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1ª.

Edição
2023
Copyright © Ágatha Santos
Todos os direitos reservados.

Criado no Brasil.

Edição Digital: Criativa TI

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.


Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer
parte dessa obra, através de quaisquer meios – tangíveis ou
intangíveis – sem o consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°.
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Sinopse
Dedicatória
Conheça a história de Emir e Catarina
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Epílogo
Vem aí, a história de Haydar
Sobre a Autora
Sinopse
O solteiro e bem-sucedido Cemil Kartal carrega as
responsabilidades familiares com dedicação. Sob a fachada de bom
moço, Cemil mantém um segredo profundo, a vergonha que
colocaria a única mulher que se entregou em desgraça.
Samia Yilmaz, uma jovem sonhadora, criada pela família
mais poderosa da Turquia, confiou no homem errado. O desejo
proibido os corrompeu e, Cemil a adverte que jamais deverá
mencionar aquela vergonha, selando um acordo desonroso entre
eles.
Um ano se passa, e Cemil tem a chance de reencontrar a
única mulher capaz de fazê-lo arder de desejo. Entretanto, ele não
esperava encontrá-la em outro país, carregando um bebê
inesperado.
Entre encontros secretos, paixão e sensualidade, eles
descobrirão que o amor é uma semente que precisa ser regada com
coragem e redenção, enfrentando os obstáculos que se interpõem
em seu caminho para finalmente alcançarem a felicidade juntos.

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Dedicatória
A todas que não desistiram de amar.
Conheça a história de Emir e
Catarina

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Prólogo
“Primeiro havia só suas mãos entre mim e minha solidão
Depois, de repente, as portas se escancararam
Depois seu rosto, seus olhos, seus lábios
E depois tudo apareceu por inteiro.”
— Cemal Süreya, poeta turco.

Eu amava casamentos, festas, eventos, ou qualquer


oportunidade de reunir pessoas, poder dançar, cantar, celebrar a
vida e, principalmente, ter a chance de admirar deliberadamente o
homem que havia roubado meu coração.
Havia muito tempo que eu não me perguntava mais em que
momento aconteceu, quando finalmente me percebi apaixonada por
Cemil Kartal. Desconfio que foi logo que pousei meus olhos nele,
quando cheguei na casa principal, na vila, e o vi empilhando lenha
para a cozinha.
Eu era uma menina, nem havia descido minhas regras, não
precisava usar um hijab, ainda não era considerada uma mulher.
Talvez tenha sido por esse motivo que Cemil nunca me viu como
uma.
Passei por uma parede repleta de espelhos que foi usado
durante a cerimônia, encarei meu semblante: cabelos ondulados até
as costas, escuros, como os de minha mãe, pele bronzeada, olhos
marcados pelo kajal, meus cílios longos e um batom rosado nos
lábios.
Escolhi um vestido tradicional, ele contornava meu corpo
com certa folga, e o modelo formava uma capa por cima de um
tecido mais fino. Todo bordado com linha prateada, os punhos,
decote, a faixa na cintura e a barra.
Meu hijab tinha o mesmo tecido da parte de baixo da peça,
era leve e confortável, deixava meus olhos castanhos ainda mais
escuros. Eu estava bonita, atraia os olhares dos homens solteiros
na festa, tia Kara havia até conversado com uma família convidada
cujo filho estava em tempo de casar.
Mas eu não conseguia me importar com isso, nem com
ninguém além do homem do outro lado da sala, usava um terno
escuro, camisa vinho sem gola, fechada até a última casa, os
cabelos alinhados para trás, estavam mais cumpridos atualmente,
mas ele havia dado um jeito de modelá-los para a ocasião.
Ele segurava um copo do que eu imaginava ser Raki[1] — se
tia Kara visse, ele seria severamente repreendido —, mas ninguém
desconfiava de atitudes suspeitas do filho mais novo e exemplar dos
Kartal.
Era errado eu ver algo torpe, afinal éramos família, o que
deveria me fazer querer proteger e cuidar de Cemil, e eu até queria,
só de uma forma diferente da qual ele aceitava.
Nenhuma palavra de carinho, nada que mostrasse sua
abertura para que eu sonhasse com a possibilidade de ser sua
prometida. Éramos incompatíveis de diversas formas, ele era
cordato, gentil e obediente, já eu, sempre fora repreendida por me
exaltar demais.
Cemil era o que mais me dava broncas, Emir era meu anjo
protetor, havia me salvado diversas vezes das reprimendas dos
mais velhos, e adorava me provocar alegando minha impertinência.
Haydar nunca foi próximo o suficiente, mas tínhamos uma
relação afável. Ele já havia dito uma ou duas vezes que Cemil não
era para mim, afinal nossa diferença social era grande.
Eu fazia parte do lado miserável da família, parente por
parte de mãe, distante o suficiente para que ninguém se lembrasse
exatamente o vínculo, no entanto, digna para atender ao pedido de
uma moribunda.
Tia Kara me aceitou no casarão quando minha mãe faleceu.
Era filha única e a família do meu pai, em sua maioria, habitava na
Inglaterra. Os Kartal era a opção mais próxima para auxiliar na
criação de uma moça decente.
Os olhos de Cemil escrutinaram o ambiente, ele sorria
amistoso enquanto conversava com um senhor, assim que
encontrou minha íris seu semblante se fechou.
Desconfiava que ele não só era avesso a um
relacionamento comigo, por me ver como uma menina, mas no
fundo, me tolerava como um fardo e não tinha qualquer apreço por
minha existência.
— Menina, vá se juntar as garotas. Todas estão paparicando
a noiva. — Tia Kara surgiu ao meu lado e levei um susto. — O que
foi? — Ela correu os olhos adiante e viu seu filho nos olhando de
volta. — Tudo no seu tempo, Samia. Seja paciente.
— Ele me odeia, tia.
— Não diga uma coisa dessas em um casamento. Allahalla!
— Ela segurou minha mão em seguida e praticamente me arrastou
para próximo das mulheres.
Tratei de sorrir e festejar, afinal era o casamento do chefe
dos Kartal, meu primo distante mais querido e que merecia toda a
felicidade, depois do que havia acontecido com sua noiva e ele.
Voltei os olhos para Catarina, uma loira linda e estonteante,
estava lidando havia algum tempo com todas as mulheres que
alisavam seus cabelos, invejando, obviamente os tons claros
naturais.
Aguentei o máximo que consegui em torno da festa, mas em
algum momento meus pés obedeceram a meu desânimo, que
estava escondido em alguma parte da minha alma e me esgueirei
pela cozinha até a saída para o pomar.
A brisa gelada me fez fechar os braços em torno de mim e
eu continuei caminhando, passei pelo pomar, a horta de especiarias
e atingi o cume da colina, observei toda a vila, iluminada pelas
luzes, o barulho da música ao longe, finalmente estava segura para
chorar.
Ninguém via, não permitiria que meu sofrimento
sobrepusesse a alegria e gratidão que sentia pela acolhida dos
Kartal. Não era certo.
Dificilmente alguém entenderia a dor que carrego, alguns
achariam bobagem, outros pensariam que era exagero, mas ele, o
motivo das minhas noites maldormidas, pensaria que eu estava
sendo a criança indisciplinada que ele sempre me julgou.
— Não deveria estar aqui sozinha, Samia. — Fechei os
olhos e mais lágrimas escorreram pelo meu rosto.
Minha pele se arrepiava quando sua voz baixa era proferida,
uma reação costumeira em se tratando de Cemil. Não me admira
que tenha me encontrado, ele parecia sempre pajear os ambientes,
corrigindo, auxiliando, mantendo tudo dentro do aceitável para
agradar seus pais.
— Me deixe em paz, Cemil.
— Pode ficar em paz no seu quarto.
— Você não é meu pai ou meu irmão. — Finalmente me
virei para ele.
Sua imagem estava apagada pela escuridão, só tínhamos a
luz do luar como norte, as vestimentas escuras o faziam parecer um
cavaleiro das trevas e meu coração tolo saltou no peito de forma
rotineira.
Ele era lindo. Mesmo parecendo um homem intocável e
pedante na maioria das vezes.
— O que aconteceu com você? — Ele fechou a distância
que nos separava e tocou meu rosto.
Pela primeira vez na vida tive o vislumbre do que ansiei
desde que coloquei meus olhos em Cemil. Seu toque era quente,
convidativo e muito cuidadoso.
Me fazia sentir como se fosse uma rosa delicada, que ele
manipulava com esmero para que não se despedaçasse.
— Quem te fez chorar, Samia? — Sua voz era baixa e
rouca, levemente arrastada.
O fato de ele estar tão preocupado, me fazia questionar o
quanto ele havia bebido e estava ciente das suas ações.
— Ninguém. Acho que eu mesma. — Lembrei de responder
sua pergunta.
Eu queria dizer que era ele, mas não seria justo transferir
uma responsabilidade emocional que nunca lhe pertenceu.
Cemil não acreditava no meu amor.
— Não gosto que chore. Não parece certo. — Sua outra
mão pousou na bochecha solitária e ele usou os dedões para limpar
abaixo da minha linha d’água.
Eu devia estar a bagunça mais desastrosa agora, mas o
jeito que ele me encarava, como se eu fosse algo valioso que era
visto pela primeira vez, me fez esquecer qualquer cuidado com a
minha aparência.
Eu desejei por tanto tempo que ele me desse um mísero
olhar como esse, que enxergasse minha casca, já que meu coração
ele não queria. Estava acontecendo, seus olhos torpes miravam
meu rosto com certa devoção e eu acabei umedecendo os lábios
com nervosismo.
— Sua boca é linda. — Ele mirou meus lábios, tão atento e
determinado que prendi o fôlego. — Você parece uma sultani[2]. Está
preciosa com essa roupa.
— Cemil...
Mais lágrimas verteram sem que eu pudesse controlar, senti
o fluxo de ar ser interrompido e resfoleguei na tentativa de acalmar o
alvoroço de mariposas que se formaram na minha barriga.
Nunca havia recebido sequer um elogio seu. Absolutamente
nada.
Até quando tia Kara tentava mostrar a ele que eu era uma
moça feita e bela, Cemil desconversava e não dava ouvidos.
Parecia me repudiar a cada chance e eu sempre pensei que estava
atrelado ao fato de eu não ter nada a oferecer em uma possível
união.
— É falho eu cobiçar algo que não posso ter? — ele
questiona e seu cenho se fechou em automático. — Tenho
responsabilidades das quais não posso esquecer, jamais..., mas...
só por hoje...
— Esqueça! — Soltei alto demais e isso quase o fez recuar.
— Deixe de lado quem você é, quem eu sou, somos só dois seres
almejando a mesma coisa. Não se controle, Cemil. — Era para soar
uma afirmação, confiante e destemida, mas sei que não consegui
esconder minha nota de apelo.
— As consequências...
— Ninguém vai saber. Nunca. Jamais.
Ele foi rápido, não deu tempo para mais questionamentos,
ou talvez teria desistido. Sua boca cobriu a minha, dura e exigente,
senti sua língua invadir meus lábios e dançar no meu interior
buscando por algo.
Meu corpo respondeu em automático, lembrei de todos os
romances que já li, das sensações, de como era feito, então permiti
arriscar minha língua na sua e seu gemido era a prova de que
estava fazendo algo certo.
Foi a partir disso que o mundo parou de girar, por toda
aquela noite, no celeiro que abrigava os animais mais valiosos dos
Kartal, me entreguei a Cemil, dei a ele todas as minhas primeiras
vezes com um homem e jurei guardar somente para mim aquele
momento até o dia que deixasse a vida.
Capítulo 1
“Quem se agrada em ter seu sustento ampliado e sua vida
prolongada, que mantenha boas relações com a família.” (Bukhari)

Encarei a vista do quinquagésimo andar de um dos prédios


mais caros de toda a Istambul, estava chuvoso fazia alguns dias,
assim como meu humor e disposição para enfrentar mais um dia
longo de trabalho.
Fazia um ano que a bomba sobre o roubo de cargas havia
estourado, sabíamos quem estava por trás de todas as armações e,
confesso, doía demais ver meu irmão mais velho, que deveria ser
exemplo na família Kartal, atentar contra os seus.
Haydar sempre cultivou ódio gratuito de nosso primo, chefe
da família por direito, já que seu pai era o mais velho. A ele cabia a
missão de dar continuidade ao nosso sobrenome, negócios e
manter a família unida, e o custo da paz foi seu afastamento da
exportadora.
Eu era a ponte, desde pequeno, intermediava no convívio
entre Haydar e Emir, abrandava, tolhia as desavenças, agia como
uma balança que equilibrava os extremos para que não chegasse
aos ouvidos do meu pai.
Era cansativo ter todos os meus esforços voltados para essa
briga, segurando as cordas da união familiar, torcendo e trabalhando
para que seguíssemos em frente sem grandes impactos.
Eu amava minha família, tinha orgulho de seguir os
costumes e ensinamentos dos meus pais, e acima de tudo,
respeitava as ordens proferidas por meu baba[3].
— Senhor, sua próxima reunião acontecerá em vinte
minutos. — A voz doce da minha assistente anunciou e eu acenei
com a cabeça.

Estava preparado para assumir a empresa sozinho se fosse


necessário, mas ainda tinha dificuldades de lidar com o afastamento
de Emir, e não era por sua falta de profissionalismo.
Só não parecia o correto. Ele era nosso líder, Haydar
causou toda a confusão, e no fim, a pedido do meu baba, assumi a
empresa e tenho tocado os negócios com a mesma destreza e
inteligência que Emir, já que foi ele quem me ensinou grande parte
do que sei.
A mídia foi mais branda, assim como meu pai disse que
seria, quando eu fui anunciado como CEO da Kartal Exportações.
As especulações sobre a participação de Emir foram abafadas,
ainda se dividiam em defensores e acusadores, mas a realidade era
que sem provas, nada poderia ser feito.
Emir se afastou definitivamente fazia seis meses e desde
então tem sido um grande desafio lidar com o comando de tudo e,
principalmente, enfrentar meu irmão mais velho que parece mais
carrancudo do que de costume.
Óbvio que Haydar não aceitaria bem a ideia de não assumir
a empresa completamente, mas meu pai, sábio como era,
conseguiu dividir as responsabilidades de uma maneira que a
gestão era em conjunto, mesmo que perante o meio, eu era o CEO.
Ainda estávamos nos adaptando à nova realidade, mas as
demandas de uma empresa do nosso porte, obviamente que não
tínhamos tempo para pensar demais em outras coisas que não
fosse o trabalho.
E era isso que me salvava de enlouquecer com a mente,
relembrando o maior erro que cometi na vida e que manchava a
reputação da família que escolhi desonrar por um motivo banal:
desejo carnal e momentâneo.
— Senhor? — Olho sobre o ombro e minha assistente está
de volta. — A reunião vai começar.
— Estou indo. — Acenei com a cabeça e voltei a olhar uma
última vez para aquela vista bucólica.
A temporada de chuvas na Turquia estava mais intensa este
ano, assim como o calor foi escaldante, parecia que as estações
estavam espelhando cada vez mais meu humor, sem equilíbrio ou
trégua, ofertava somente o intenso, sem alívio ou concordância.
Soltei o ar cansado, eu precisava de uma pausa, sabia
disso, fazia muito tempo que trabalhava incansavelmente para
atender às demandas da empresa, ainda não sido capaz de atender
aos apelos da minha mãe para ir a Ancara e participar de algumas
cerimônias familiares.
Depois que ela foi embora nunca mais consegui olhar a vila
da mesma forma. Parecia que meu lar havia ruído e não existia
motivo para me sentir daquela maneira.
Era a culpa, que me corroía de tal jeito que não conseguia
chegar a um meio-termo. Até cheguei a cogitar nossa união, pensei
em falar com o baba sobre essa opção, mas ele alertou de forma
veemente que casaria seu filho mais velho primeiro.
Eu não podia contrariar as ordens expressas, tinha que
obedecer, era o certo, além do mais, ela partiu. Uma semana depois
do que aconteceu naquele celeiro, Samia fez as malas e foi morar
na Inglaterra com a irmã de seu pai.
Não questionei na época, desconhecia seu interesse de
partir, acreditava que Samia viveria na vila para sempre, dentro dos
costumes, próximo da família e servindo aos que a ampararam
quando precisou.
Minha mãe disse que ela estava em tempo de se casar, já
tinha idade, mas não havia proposta alguma das famílias na vila, o
que era estranho, já que ela era uma garota bela.
Garota. Não.
Que erro.
Cometi essa falha por um longo tempo, até finalmente
enxergá-la como a bela flor desabrochada naquela noite, e fui
sorrateiro e imprudente de reivindicar sua virtude, assim como
entregar a minha.
— Boa tarde, senhores. — Entrei a passos largos na sala de
reunião, precisava recobrar a mente e trabalhar. — Me digam que
encontraram solução para nosso cargueiro preso na Arábia Saudita.
— A India Gulf Service 1, está impedindo o atracamento da
nossa embarcação. — O responsável pela intermediação se
manifestou.
— Legalmente, o que podemos fazer? — encarei nosso
jurídico.
Havia solicitado a participação deles. Fazia vinte horas que
nosso cargueiro estava parado aguardando a liberação para atracar
e descarregar os contêineres.
— Emitiremos um pedido formal e podemos apresentar
cópia dos contratos e prazos — ele avisou.
— Faça isso.
— Nosso contato no porto informou que até o final do dia
estará liberado.
— Já estamos atrasados. Não vou correr o risco com
multas. Dê andamento, assim, se algum cliente apresentar queixa,
teremos provas dos nossos esforços.
Soltei determinado e o aceno de cabeça do homem
confirmou que ele havia entendido o que deveria ser feito. Lidar com
emergências era algo que eu havia me especializado há algum
tempo, graças a confiança que Emir depositou em mim.
Foram mais duas horas de reunião para finalmente eu
conseguir sair da empresa direto para um coquetel entediante,
promovido por um grupo do ramo alimentício muito influente e que
almejava ter como cliente.
O evento acontecia na cobertura de um prédio próximo ao
que ficava a Kartal. Enviava algumas mensagens dentro do
elevador, quando as portas se abriram e eu encarei uma figura linda
e altiva.
— Ayla! Você aqui? — Abracei minha amiga de longa data.
Havíamos estudado juntos na Europa. Seus pais tinham
origem turca, mas viviam longe do país havia muito tempo, por isso
Ayla era moderna e não seguia tanto os costumes.
Usava um vestido preto discreto, até os joelhos, mas
bastante ajustado ao corpo. O hijab nunca foi um item obrigatório
em sua vestimenta.
— Cemil! Ainda bem que te encontrei.
— O que aconteceu? — Segurei seus ombros ao afastá-la,
preocupado.
— Você nunca perde esse jeito heroico de ser. Pronto para
salvar uma donzela em perigo.
— E onde está a donzela que não vejo? — Olho por cima
dos seus ombros, dos dois lados, enfatizando a piada.
— Tamam[4]! Tamam! Tenho que concordar. — Ela torceu os
lábios para o lado, desgostosa.
— O que a trouxe para a Turquia?
— Meu pai quer trazer alguns negócios para cá. Estou
estudando a região.
— Achei que ele havia se tornado um homem europeu.
— Meu pai nunca largaria as raízes, por mais que seja
moderno. Ele sempre sonhou em trazer um hotel para a Turquia.
— Fico muito feliz em saber disso. Se precisar de algo, pode
contar comigo.
— Na verdade, soube que hoje aconteceria um coquetel
importante neste prédio e achei que te encontraria aqui.
— Já quer me usar?
— Só me apresente para algumas figuras influentes em
Istambul e eu te deixo em paz. Prometo! — Ela cruzou os dedos
diante dos lábios, mas sem encostar.
— Venha comigo. — Segurei sua mão, assim como fazia na
época da escola.
Ayla era animada e alegre, tão diferente das moças turcas,
que por um tempo cheguei a pensar que estava apaixonada por
mim. Até pedi que meu baba investigasse a família, só para garantir
a certeza, caso houvesse interesse, mas nunca aconteceu.
Meu baba estava ocupado demais cuidando do meu irmão e
primo, eles eram a prioridade matrimonial, e de qualquer forma, Ayla
e eu nos tornamos praticamente irmãos.
Ela foi meu primeiro beijo. Aconteceu embaixo da macieira
no quintal da casa gigante que seus pais tinham na Itália. Achei que
morreria de vergonha e excitação, senti meu corpo vibrar em
desespero quando seus lábios tocaram os meus.
Sua língua escorregou para dentro da minha boca e eu
recuei, assustado. Era errado, muito estranho e quase nojento.
Apesar do meu corpo responder de forma muito receptiva, sabia que
aquilo era uma desonra para a pessoa que sentia tanto apreço.
Recuei, repreendi Ayla e seguimos nossa amizade sem
nunca mais mencionar o episódio.
— Diga que sou sua namorada.
— O quê? — Olhei para ela, assustado.
— As pessoas serão mais receptivas — ela sussurrou na
minha direção.
— Não é correto firmar um compromisso falso, Ayla. Isso
pode manchar sua reputação e...
— Eu já tive dois namorados, Cemil. Você continua certinho
demais. Que mal pode haver? Desmentimos a história depois.
— Dur[5]! — soltei, angustiado.
— Não fique bravo, Cemil. Eu só quero encurtar um longo
caminho. — Aqueles olhos pidões que sempre me convenciam de
algo tiveram o mesmo efeito sobre mim.
— Só não exagere. Direi que você é minha acompanhante.
— Você é incrível. — Ayla saltou e agarrou meu pescoço.
O elevador abriu naquele instante e um mar de fotógrafos
disparou flashes em nossa direção.
BOK![6]
Capítulo 2
“Não há fadiga, doença, tristeza, mágoa ou angústia que
recaiam sobre uma pessoa, nem mesmo a picada de um espinho,
sem que através disso alguns de seus pecados sejam perdoados
por Allah.” (Bukhari)

Abri os olhos e sorri, animada, ao ouvir o choramingo baixo


do melhor despertador que eu poderia ter na vida. Meu pequeno
milagre era exigente e muito habitual com seus horários.
Levantei-me esticando os braços acima da cabeça, alonguei
o pescoço para os dois lados, estava exausta, o sono picado vinha
sendo um grande exercício de resiliência, já que sempre gostei de
dormir confortavelmente.
Mas há pouco mais de um ano minha vida havia tomado um
único rumo, do qual não me arrependia. Como poderia? Eu tinha o
fruto do amor que cultivei por toda a vida respirando ao meu lado,
era meu presente de despedida e encerramento de algo que nunca
começou.
Vesti o roupão enquanto cantava uma música dolente que
minha mãe usava para me acalmar, quando era criança. Meu
pequeno era fisicamente uma boa mistura minha e de Cemil, mas
seu temperamento inquieto certamente vinha do lado materno.
— Zeki, aprenda que tudo tem seu tempo, menino. — Soltei
ao parar diante dos olhos castanhos e expressivos, com cílios
longos o suficiente para hipnotizar o mais duro dos corações.
Ele abre o sorriso meio banguela, já que só tem os quatro
dentinhos da frente à vista, uma baba generosa escorre pelo canto
da boca e os cabelos pretos e volumosos estão bagunçados e
marcados pelo travesseiro.
— Quem é o garoto mais lindo do mundo inteiro? —
murmurei em um tom muito particular e doce, que aprendi a usar
desde o primeiro momento que vi aquele rostinho miúdo e perfeito.
Ele estava de pé na grade do berço e sacolejava o corpo,
ansioso e agitado, como fazia todas as manhãs.
— Venha que sua anne [7]vai preparar a mamadeira. — O
garoto mais esperto do mundo pareceu entender o que disse e
estendeu os bracinhos na minha direção.
Desconfiava que a palavra “mamadeira” tivesse chamado a
sua atenção. Pequeno interesseiro, isso sim.
Desci os lances de escada com Zeki encaixado em minha
cintura, ele já pesava o suficiente para fazer minhas costas
protestarem. Entrei na cozinha e vi tia Sila arrumando o café da
manhã e a mamadeira pronta na ponta da bancada.
— A senhora é maravilhosa. — Beijei o rosto da mulher que
abanou a mão no ar.
— Já sabemos o quanto esse homenzinho é exigente. —
Ela se virou para Zeki, que tinha a atenção completamente voltada
para a mamadeira na minha mão livre. — Entregue logo o que ele
quer antes que acorde a casa toda. — Minha tia aconselhou quando
viu o cenho dele franzir, em agonia.
— Tome seu alimento, ogul[8]. — Levei-o até o cercadinho, já
montado no pequeno canto da sala.
Coloquei Zeki no meio do espaço, seu corpo tombou para
trás, ciente das almofadas que o amparariam. Todo dia era a mesma
rotina, ele estava mais do que acostumado.
Entreguei a mamadeira e o deixei perdido em um dos seus
momentos favoritos da vida. Se alimentar.
— Precisa que eu acorde as meninas? — questionei ao
servir uma boa dose de çay[9].
— Não, chequerem[10]. Elas já se levantaram. Estão
ajeitando as coisas lá em cima. — Ela incluiu os ovos cozidos na
tigela de shakshuka[11] e a colocou sobre a mesa, lugar onde
costumava me sentar. — Coma. Antes de sair precisa fazer um bom
kahvaltı[12]. — Ela empurrou meus ombros para baixo e eu desabei
na cadeira. — Anda tão magra que vai acabar sumindo no ar, feito
poeira ao vento, Samia.
— Ah, tia. Eu estou bem. — Sorri, da mesma forma que
aprendi fazer na vila, disfarçando minhas tristezas.
Dona Sila para o que estava fazendo, seus olhos
experientes encaram os meus, sua feição deixava claro para
qualquer desavisado, que ela não era uma mulher fácil de enganar.
Enviuvou muito cedo, tinha duas filhas pequenas, um
modesto comércio no andar de baixo da casa, que seu marido
deixou. Ela dizia que tinha muita sorte, já que seus cunhados já
eram todos casados e ela não precisou se unir a um deles.
Seguiu a vida na Inglaterra e cuidou das filhas com cuidado
e dedicação, mantinha os costumes, mas não era tão tradicionalista
como outros turcos que viviam na mesma comunidade.
Quando cheguei aqui, há mais de um ano, foi ela quem
percebeu que algo não ia bem comigo. Fomos até um médico juntas
e o que descobri fez meu mundo desabar e se reerguer no mesmo
instante.
Eu estava grávida.
Ela não perguntou, nem questionou a paternidade. Só me
disse para manter a história que ela contaria ao povo, assim
evitaríamos o descaso dos mais conservadores.
— Que dia incrível, Günaydin[13]. — Rania entrou bastante
animada, seguida de uma Jalila completamente oposta.
— Günaydin. — A mais nova soltou sem qualquer
entusiasmo. — Anne, diga que posso ficar mais um pouco na cama.
Ainda é cedo demais. — Ela usa o tom manhoso de costume.
Jalila era um bebê crescido. Tinha o costume de enredar
sua mãe com artimanhas e colocações que sempre faziam tia Sila
ceder à sua vontade. Ela não gostava muito da minha presença, já
que sua principal tarefa era ficar em casa cuidando de Zeki
enquanto estudava.
Ela adorava meu filho, via a forma carinhosa que tratava ele,
mas era mimada demais para fazer algo pela família sem um pouco
de reclamação, o que me fazia sentir um estorvo constante.
— Não pode. Você vai para a escola estudar e depois cuidar
do pequeno Zeki.
— Mas Rania vai passear a tarde. Por que eu tenho que
ficar aqui e cuidar de uma criança que não é meu filho? — Ela
cruzou os braços diante do corpo, parecia tão infantil quanto sua
atitude poderia transparecer.
— Rania vai sair com o noivo e a futura sogra. Deixe-a em
paz.
— Não reclame tanto, Jalila. Logo chegará sua vez. — A
mais velha entre as irmãs argumentou ao ocupar a mesa com um
prato de shakshuka.
— Só estou dizendo... — Ela deu de ombros, como se não
fosse nada demais.
— Sinto muito por isso, Jalila. Se tivesse outra solução, juro
que não deixaria meu filho com você. — Sentia que precisava me
justificar, mais uma vez.
Já havia perdido as contas de quantas vezes lamentei e me
desculpei com minha prima por deixar Zeki com ela, mas não tinha
como eu ajudar na loja da família e cuidar de um bebê tão ativo.
Sabia que sobrecarregava aquela família com um fardo que
só era meu para carregar, mas o que poderia fazer? Eu não tinha
mais ninguém a recorrer, meu pai não fazia ideia que já era avô e,
até agora, eu não havia chegado a um meio-termo de como contar.
Era uma vergonha. A maior desonra para seu nome.
Jurei nunca mais pisar na Turquia por conta disso.
— Não sinta. Jalila é uma garota egoísta demais para se
importar com a família. Isso sim. — Tia Sila acertou o pano que
estava no ombro em sua filha.
— Ela não está errada em reclamar, tia.
— Sus![14] — Ela esbravejou. — Sou a matriarca da família e
a mais velha. Eu decido o que é melhor para vocês três.
— Anne, acalme-se. Jalila reclama, mas todo mundo sabe
que ela ama Zeki.
— Claro que eu amo. Aquele pequeno é nossa benção de
Allah. — Jalila se levantou da cadeira indo até o cercado para mexer
com meu filho que tinha acabado de se alimentar.
Meus lábios se abriram em um sorriso resiliente, sabia da
verdade em suas palavras e era por isso que ainda não havia
arrumado uma maneira de partir. Não tinha com quem contar além
deles, mas se realmente atrapalhasse a vida das minhas primas e
tia, partiria para longe.
— Rania cuide da arrumação, vou descer para a loja com
Samia, hoje chegam muitas mercadorias.
— Verdade, tia. — Relembrei a lista que revisamos no dia
anterior. — Aquelas especiarias que encomendamos há quase um
mês.
— Evet! [15]Quero ver a desculpa que aquele turco vai me
dar — ela ralhou ao mencionar o fornecedor que havia prometido
um prazo mais curto e não cumpriu.
— Pode negociar um bom desconto para o próximo pedido.
— Ah, isso você pode se certificar, ou não me chamarei
mais Sila Bayram.
Terminei meu alimento com mais avidez, a loja era
movimentada em seu normal, éramos tradicionais e nacionalistas
com os produtos, o que despertava o interesse de qualquer turco na
região.
Havia algumas semanas que estávamos desfalcados com
vários produtos, nossos fornecedores alegaram atrasos portuários,
que em toda a Europa a falta de insumos era latente, e era
inevitável pensar no quanto a Exportadora Kartal tinha
responsabilidade no contratempo.
Peguei Zeki do cercado beijei seu rosto e o abracei apertado
antes de descer com meu celular, avental e as chaves da loja. Tia
Sila havia ficado para trás para repassar as tarefas do dia com as
meninas.
Eu admirava muito seu pulso firme para lidar com o
comando da casa e dos negócios. Uma mulher não era ensinada a
fazer metade do que ela fazia, muito do seu jeito era instintivo e, eu
sempre imaginei como seria minha vida, ou como eu resolveria
meus problemas se tivesse a desenvoltura de tia Sila.
Capítulo 3
“Um verdadeiro devoto é grato a Deus na prosperidade, e se
submete à Sua vontade na adversidade.” (Profeta Muhammad)

Havia desembarcado em Ancara quando o sol se punha no


horizonte, estava mais cansado que o habitual, mal entrei no
apartamento de Emir e me deparei com a bolsa a tiracolo vermelha
de Ayla e gemi frustrado.
Estava afundado em uma mentira descabida desde aquela
noite do coquetel, quando os fotógrafos capturaram uma cena muito
difícil de explicar. Na manhã seguinte estávamos em todas as capas
de revistas e jornais, “suposta noiva do CEO da Kartal”, foi o que
bastou para meu mundo ruir.
Passei dois dias em ligações e explicações junto a
Relações-Públicas da empresa, o pai de Ayla, que exigia saber
sobre o romance secreto da filha, minha mãe que não parava de me
ligar de hora em hora e, por fim, meu pai, que chegou em Istambul
feito um vendaval devastador.
Passei um par de horas explicando para o homem ao qual
respeitava e honrava sobre minha amizade de longa data com Ayla,
a origem de sua família, o que de fato acontecia no interior daquele
elevador e os motivos para que ela fosse apresentada a todos como
minha suposta noiva.
Apesar de relutar e achar que não era correto, ele não
ordenou que nenhuma nota de esclarecimento fosse publicada, já
que Ayla havia implorado para deixar que as coisas se resolvessem
por si. De modo que, meses depois do escândalo, ainda não estava
resolvido.
Sabia que minha amiga estava arrastando a situação para
favorecer seus contatos e inserção no meio empresarial na Turquia,
já tínhamos discutido diversas vezes sobre o próximo passo, mas
Ayla sempre colocava algum empecilho, compromisso ou negócio
prestes a ser concretizado para protelar.
E eu, que não queria desagradar ninguém, seguia a vida
ignorando o peso da cobrança sobre meus ombros. Viajei e
trabalhei mais do que qualquer empregado da Kartal, só para me
manter ocupado e longe dos enfrentamentos que aconteceriam em
breve.
Havia falado com Emir na época que tudo aconteceu, ele
estava no Brasil com Catarina, comandando a Holding e a fábrica,
junto da esposa, também nos prestava ajuda com os negócios em
Santos — facilitando muito nosso deslocamento até a América —,
como não usava mais o apartamento, pedi emprestado.
Nunca que eu pisaria na vila enquanto o escândalo do
noivado não fosse resolvido. Evitava as ligações de minha anne,
que já tinha me prometido meia dúzia de surras quando nos
encontrássemos.
Pelo visto meu baba havia deixado para mim a missão de
contar ou não o que havia acontecido de fato. E algo me dizia que
nem assim meu castigo seria aliviado com dona Kara.
Turcos levam o relacionamento a sério demais para
entender uma “mentirinha”, como Ayla costumava se referir ao
problema, como algo banal.
— Ayla! — Chamei alto o suficiente para ela saber que
estava de volta.
Por Allah, que eu não visse algo inapropriado de minha
amiga.
Ela veio do longo corredor, roupão de banho branco e
grande, toalha na cabeça, andava tão, ou mais, habituada que eu no
ambiente. Precisava resolver essa questão o quanto antes, tinha
voltado da Ásia dois dias antes do previsto e logo meu pai bateria
naquela porta.
— Finalmente chegou, noivinho.
— Já disse para não falar isso. — Soltei entredentes quando
suas mãos apoiaram em meu peito e ela ficou na ponta dos pés
para beijar meu rosto.
Ayla tinha um sorriso provocador nos lábios, sabia muito
bem o quanto me irritava ela fazer piadas com a nossa situação.
Agia de forma dissimulada, eu não era um tolo, mas me compadecia
do seu esforço em ajudar a família.
— Não seja um mal-humorado, Cemil. Você costumava ser
mais divertido no passado.
— Eu não tinha um legado sobre meus ombros para
assegurar.
— Bom, eu também tenho. Não tão grandioso quanto o seu,
mas assim que conseguir a compra da área que estou negociando,
a rede de hotéis do meu pai se tornará internacional.
— E isso vai acontecer quando? — Afastei meu corpo dela e
removi a gravata.
Estava cansado e sem qualquer paciência para manter os
bons modos que minha mãe arduamente me ensinou.
— Em breve. Na próxima semana, no mais tardar.
— Ótimo. Meu baba ainda pensa que estou na Ásia e
retorno dentro de dois dias. Quando ele chegar marcaremos um
jantar para discutir a forma mais assertiva de encerrar toda essa
confusão.
— Você realmente quer se ver livre de mim? — Girei em sua
direção e me assustei ao perceber Ayla ainda mais próxima.
Recuei um passo e afunilei os olhos em seu semblante.
— Quanto antes melhor. A situação já chegou longe demais,
Ayla.
— Talvez não fosse tão ruim para nós. Pense bem, Cemil.
Nos conhecemos há tempo demais, sabemos da índole e
comprometimento de cada um com a família e os negócios. A Kartal
não teria nada a perder se aliando a uma rede de hotéis promissora.
— A Kartal não tem o menor interesse em mudar o ramo da
empresa. Além disso, Ayla, somos amigos. Já definimos isso há
muito tempo.
— Éramos jovens e imaturos, queríamos o mundo, antes de
entendermos que o casamento é uma aliança poderosa na vida.
Hoje temos maturidade e idade para enxergar um panorama
promissor com qualquer proposta.
— Garanto que não deva faltar propostas para seu pai
analisar.
— Nenhuma vinda de um Kartal. Seu sobrenome tem um
valor inestimável na Turquia. E fora dela. — Ela cruzou os braços
diante do corpo e me encarou de forma determinada.
Conhecia bem esse trejeito, ela estava pronta para travar
um embate, ponderar, discutir e insistir até que conseguisse o que
era de seu desejo. Ayla foi criada e moldada para ser uma mente
pensante, principalmente com relação ao legado da família.
Única filha, mulher, tinha que jogar muito bem com as
oportunidades, para não acabar em um casamento fracassado ou
que atrapalhasse a vida que ela tanto amava.
— Desista, minha amiga. Eu não vou salvar sua pele de um
casamento indesejado. Você já cresceu bastante profissionalmente,
tem inteligência e perspicácia para conseguir um bom acordo com
seu baba.
— Eu sei de tudo isso, mas você resolveria muita coisa se
aceitasse. — Ela deu de ombros.
— Quero me casar sim, mas pelos motivos certos. Nem tudo
se trata de uma questão financeira, negócios ou condição futura,
Ayla. Quero desejar minha esposa.
— Você já me desejou uma vez, se me lembro bem. — Ela
dá um passo na minha direção e eu recuo dois.
— Não vamos levar a conversa para esse lado. O passado
serve para mostrar nossas falhas para que não erremos no
presente.
— E guardar lembranças, Cemil. Ainda me lembro com
perfeição daquele beijo mal encaixado que trocamos. Tenho certeza
de que, assim como eu, você praticou e aprimorou.
— Ayla! Allahalla! Ficou louca. — Esfreguei as linhas de
expressão que já cultivava na testa.
— Ficar louco de vez em quando é necessidade básica para
permanecer são.
— Parafraseando Osho? Seu desespero deve ser grande,
amiga. — Soltei ainda mais intrigado.
Vi que sua expressão havia mudado, ela baixou os olhos
para o chão e seus braços se apertaram em torno do tronco, como
se ela buscasse por proteção.
— O que está acontecendo, Ayla?
— Nada. Eu só pensei que seria bom para nós dois.
— Você nunca insinuaria dessa forma um arranjo entre nós.
Tenho sido paciente com toda a situação, mas sei que alguma coisa
a impede de finalmente resolver o escândalo.
— Claro que não, Cemil. Você é certinho demais. Só estou
aproveitando a brecha.
— Não acho que isso seja fidedigno. — Meu telefone tocou
e interrompeu minha tentativa de tirar a verdade daquela confusão
criada. — Com licença.
Caminhei a passos largos para o escritório e fechei a porta,
era meu baba e precisava manter minha localização em segredo.
— Cemil, ogul. Espero que tenha feito uma boa viagem.
— É... sim, eu fiz, baba. O que precisa? — Fiquei aturdido
com seu conhecimento.
— Bom, sua anne tem me cobrado muito sobre Samia.
Aquela menina foi para a Inglaterra e nunca mais mandou notícias.
Ela teme que a jovem passe necessidade, sabemos que o lado da
família de seu pai não é tão abastado.
“Samia...”
— E o que quer de mim, baba. Se ela não fala nem com a
anne, é certo que não me responderá. Emir sempre foi o preferido
dela.
— Allahalla! Meu filho, não seja um tolo. Aquela menina
sempre se esgueirou pelos cantos por você.
— Baba... Samia sempre foi uma garota impertinente e
jovem demais para pensar que sabia algo sobre relações.
— Que seja, filho. Quero que vá para a Inglaterra. Existe
algumas questões para serem resolvidas lá, pessoalmente.
Aproveite para fazer uma visita aos Bayram e ver com os olhos da
família como aquela jovem tem passado.
— Na semana que vem é melhor.
— Hayir! Hayir! Hayir[16]! Você vai amanhã, Haydar vai voltar
para a Turquia. Está há tempo demais no exterior. Quero cuidar dos
trâmites para achar uma noiva para ele.
— Baba. Haydar ainda não está pronto.
— Está questionando a decisão do seu baba? — Seu tom
severo me fez murchar.
— Claro que não.
— Então, está decidido. Você vai e Haydar volta.
— Tamam.
Soltei, resignado. Quando o mais velho tomava uma
decisão, ninguém poderia contrariar, mesmo que a ideia parecesse
muito errada.
Agora eu precisava me preparar para enfrentar meu maior
temor: encarar a mulher por quem eu sucumbi e manchei nossas
histórias tomado por uma luxúria mundana.
Capítulo 4
“A mosca é pequena, mas é grande o suficiente para nos
deixar doentes.” (Provérbio Turco)

Tinha acabado de terminar a reposição dos saquinhos


porcionados de especiarias mistas, que a tia Sila preparava para
revender. Era sucesso garantido com as senhoras da comunidade e
contribuía com a diminuição de perda e vencimentos.
Fazia dois dias que não parava de trabalhar para colocar
todas as mercadorias em ordem, estava cansada, mais do que
habitual, e ainda precisava dar atenção e cuidar de um serzinho que
exigia tudo de mim.
Zeki havia entrado em uma fase engraçada e de
descobertas. Ele era ativo e amava bisbilhotar em tudo,
principalmente o que não podia. Um pequeno curioso, assim como
eu sempre fui, que se alegrava em testar e descobrir o mundo.
Lembrei quando cheguei à Inglaterra, uma nação tão
diferente do que eu havia visto, parecia que tinha acabado de entrar
nos livros de romances que costumava ler, depois que Zeki dormia e
estava na particularidade do meu quarto.
Eu conheci o romance através dos livros adultos, lia sobre
relacionamentos, beijos quentes e relações íntimas, achava
empolgante, no entanto, utópico.
Só consegui entender o que os livros descreviam depois
daquela noite no casamento. O arrepio ao menor toque, o beijo
molhado, necessitado e cativante. A pele quente em contato com a
minha, causando tremores em lugares que eu não conhecia a
existência.
Foi uma noite. A experiência singular de me sentir venerada
pelos olhos do homem que amava, um momento perfeito, por mais
que nunca tivesse existido algo próximo de comparação.
— Samia, selam[17]. — Girei no lugar com pressa, assustada
por ter meus pensamentos tão perdidos em algo profano.
Bati a mão no gancho que abrigava uma porção de
damascos em tiras de embalagens, tentei conter a efusão ao
mesmo tempo que o homem a minha frente, acabamos colidindo e
seus braços seguraram minha cintura na confusão.
— Eymen! — Soltei, esbaforida, me livrando em seguida do
seu toque.
Sentia meu rosto aquecer, envergonhada, e um pouco
incomodada com sua aproximação repentina. Sabia que não era
intencional. Eymen era um turco jovem e respeitador, mas desde
que havia declarado seu interesse com uma suposta viúva, não
consegui mais me sentir a vontade na sua presença.
Tia Sila costumava dizer que era uma oportunidade
abençoada, já que nenhum turco que tivesse amor a vida se
interessaria por uma viúva, mesmo no meu caso, que não era uma
de verdade.
Essa era parte da mentira que contamos para a
comunidade, assim eu seria tratada com respeito, pagando o preço
de não ser vista como opção para casamento, mas a vida parecia
disposta a brincar com meus nervos, fazendo que o bom senso de
Eymen se apagasse.
Eu fugia do assunto quando ela mencionava algo, as
garotas incentivavam, diziam que eu era uma abençoada por Allah.
Uma viúva tão jovem com a chance de se casar de novo e ter um
homem para cuidar de mim e do meu filho.
Elas também achavam que eu era uma viúva, foi difícil
enganar Rania, era a mais velha e tinha perspicácia. Na época,
minha tia aceitou o pedido de compromisso da família do seu noivo,
sempre achei que tinha feito isso para desviar o foco da mais velha.
O casamento já deveria ter acontecido, mas o rapaz estava
concluindo os estudos e tia Sila exigiu que Rania o fizesse também.
Sua crença era de que a filha precisava saber se virar, afinal, o
futuro era algo incerto para uma mulher longe da Turquia.
— Afedersin[18]. Samia, eu lamento muito. Não tive a
intenção...
— Não se preocupe, Eymen. Está tudo bem. — Recuei um
passo e mirei os pacotes no chão para evitar seu olhar.
Ele era um turco muito bonito, já havia reparado em seu
corpo físico, principalmente por ele escolher vestimentas comuns da
cidade. Seu jeans era ajustado nas pernas, as camisas de algodão,
normalmente brancas e com três pequenos botões de pressão na
frente, o cabelo na altura das orelhas e a barba espessa.
Ele era inegavelmente um turco, mas tinha adotado
costumes que tornavam sua aparência ainda mais atrativa, como
por exemplo a academia. Ele se exercitava regularmente, por isso
seus ombros eram mais largos, os braços fortes e a desenvoltura
para carregar as caixas, que descarregavam em sua loja, deixava
claro que ele tinha força e disposição.
Senti meus batimentos acelerarem ao relembrar os
mocinhos bastante dispostos e ativos nos livros, algo no meu ventre
se agitou e eu tratei de me abaixar e recolher os pacotes
espalhados.
— Eu vim para avisar a tia Sila que seus embutidos estão
prontos. Minha mãe preparou especialmente um molho de ervas
para acompanhá-los. — Ele tinha um tom brando e gentil, sempre
educado.
— Eu vou buscar assim que fechar a loja. Pode ser? —
Soltei ainda empenhada na tarefa.
— Claro. Se quiser, posso trazer aqui.
— Não queremos te dar trabalho.
— Não por isso. Eu não me incomodo de poder te ver mais
de uma vez no dia, Samia. — Travei e engoli em seco.
Levantei-me com os pacotes derrubados nas mãos e passei
a encaixar um a um, quando finalmente criei coragem para me virar
em sua direção a sineta da porta tocou e eu soltei o ar que prendia,
aliviada.
— İyi günler[19], seja bem-vinda. — Acenei com a cabeça. —
Já vou atendê-la. — Voltei os olhos para o homem em expectativa a
minha frente. — Preciso trabalhar, volte mais tarde. — Sorri
apertado e me afastei sem uma resposta.
Foquei no atendimento e ignorei mais uma tentativa de
Eymen de se aproximar. Estava fazendo muito isso. Fugia a todo
custo de suas investidas ou oportunidades criadas, muitas vezes,
pela minha própria tia.
Ela dizia que eu precisava me agarrar a oportunidade, no
fundo sabia que tinha razão, mas cogitar que outras mãos, que não
fossem de Cemil, tocassem meu corpo, parecia errado.
Eu tinha carinho por Eymen, era um bom homem, estável,
com idade suficiente para casar e, nas raras oportunidades que
esteve com Zeki, sempre o tratou bem.
Tinha algo de muito errado comigo, parecia que eu gostava
de viver essa tortura angustiante de espera que todos descobrissem
a verdade. Que meu pai batesse a nossa porta e me castigasse por
meu erro, ou ainda pior, que Cemil viesse atrás de mim exigindo
explicações do filho que ele não sabia da existência.
Por Allah, ele poderia levar meu menino para longe de mim.
Daria Zeki para alguma das famílias da vila cuidar, como um primo
distante desafortunado, só para manter o filho sob seus olhos.
Isso era um pesadelo. Nunca ficaríamos juntos, isso seria
admitir um erro grave e Cemil, o filho perfeito dos Kartal, nunca
mancharia a reputação da família por mim ou seu filho.
Ele repararia o mal escondendo nosso filho sob suas asas,
garantiria uma vida decente para que nada lhe faltasse, mas nunca
daria a chance de Zeki o chamar de baba.
Tia Sila tinha razão, casar com Eymen era a opção mais
certa e segura. Não precisaria dar explicações a ninguém, caso
viessem me procurar. Desde que parti nunca mais enviei notícias
aos Kartal, mantinha contato com meu pai, mentia dizendo que era
necessária aqui e o pobre coitado acreditava.
Um dia a verdade viria à tona e eu não sabia quando estaria
preparada ou forte o suficiente, para lidar com as consequências.
— Eymen não trouxe minha encomenda? — Tia Sila veio
dos fundos com um cesto de temperos frescos nas mãos.
— Ele passou aqui mais cedo para avisar que estava pronta
e se comprometeu de trazer quando estivéssemos fechando a loja.
— Que bom. Acho que é uma ótima oportunidade para
convidá-lo a se juntar conosco para o jantar.
— Bom... se a senhora quer... acho que sim. —
Desconverso me ocupando com a cesta que ela acabara de colocar
sobre a bancada.
— É o que você deveria estar insistindo para eu fazer,
Samia. Esse casamento é a sua melhor saída. Sabe bem disso. —
Seu tom era determinado, mas estava carregado de preocupações.
Eu sabia que ela não queria me pressionar, mas era fato
que o interesse de Eymen era genuíno e uma raridade. O problema
era que ele não ficaria me esperando para sempre, precisava
agarrar a chance ou seguir a esmo.
— Eu sei, tia. Só não achei que isso aconteceria.
— Você é uma mulher bonita, Samia. Jovem. É espantoso
alguém dos nossos costumes querer um casamento, mas não é
impossível. Poderia até não ser um turco, e você é tola de não
aceitar a oportunidade. Se não for por você, faça por Zeki.
— Merhaba. — Aquela voz.
Girei no lugar no mesmo instante, senti meu coração saltar
para a boca, minha visão escureceu e a cabeça parecia que estava
dentro de um navio balançando com as ondas.
Cemil Kartal estava diante de mim, alto e imponente, os
olhos gentis, como já era característico. O terno bem alinhado
adornava seu tronco grande e largo, nunca havia me esquecido da
sua aparência encantadora, mas confesso que meu fôlego foi
roubado, como se sua beleza fosse a graça divina diante dos meus
olhos.
— Cemil...
Capítulo 5
“Existe um tipo de polidez para tudo, que remove a ferrugem;
e a polidez para o coração é a recordação de Deus.” (Bukhari)

A ansiedade havia tomado conta de todas as minhas ações


desde que coloquei os pés em solo britânico há um par de horas. Já
possuía o endereço que o assistente de meu baba tinha enviado por
e-mail, junto das informações de voo.
A partir do momento que encerrei a chamada com a ordem
de ir ao encontro de Samia, que estava hospedada na casa da
família por parte de pai em Londres, não tive mais um segundo de
paz.
Deixei Ayla sozinha ao sair do escritório e ir direto para meu
quarto me trancando lá e tomando um banho, que foi longe de ser
relaxante.
Minha mente não parava de orbitar às lembranças daquela
noite, onde o pecado inundou a mente e me fez corromper a
inocência de uma jovem. Eu sabia que a havia magoado muito
quando nos despedimos depois de tudo que havia acontecido.
“Vesti a camisa branca e fechei os botões apressado. Havia
despertado ainda há pouco e, por Allah, ainda estava escuro.
Conseguiríamos retornar para o casarão sem sermos vistos, se
houvesse um pouco de sorte.
Levantei da pequena cama improvisada e peguei minha
calça jogada no chão junto da cueca. Olhei sobre o ombro e vi sua
figura de pele brilhosa e macia deitada de lado, os longos cabelos
escuros, desmanchados do penteado, estavam espalhados em cima
do lençol.
Ela virou o corpo nu em minha direção, senti meu rosto
aquecer e meu desejo aumentou rapidamente na região dos
quadris. Tratei de vestir a calça apressado desviando os olhos para
o chão.
— Que horas são? — Seu tom doce me atingiu.
Eu ainda queria beijá-la mais. Queria provar seu sabor e
sucumbir a insanidade que me permeava junto do cheiro de sexo e
depravação do lugar.
— Ainda não é tarde o suficiente. Vista-se. Precisamos
retornar agora.
— Claro. Alguém pode ter dado falta de nós.
— Que Allah permita que não.
Vesti o blazer e o sapato com rapidez, ouvia o barulho de
passos e tecidos atrás de mim, mas não tive coragem de olhar.
Temia pelo meu controle caso ainda a visse nua.
Desci a escada íngreme e a esperei rente ao acesso social
do celeiro. Quando se juntou a mim finalmente, dei passagem para
andar à frente pela trilha que descemos, o silêncio era uma faca
apontada para minha jugular.
Toda a leveza e libertação que havíamos sentido estavam
perdidos em algum lugar das recentes lembranças. Não retornaria,
nem poderia. O que aconteceu foi um grave erro que precisava ser
esquecido imediatamente.
Quando alcançamos o pomar e as luzes baixas da casa já
permitiam uma visão melhor em torno, levei a mão até seu braço e a
segurei. Samia virou para mim, tinha um sorriso contido e receptivo,
era a última vez que a veria daquela forma e não fazia ideia disso.
— Você não pode contar para ninguém o que aconteceu.
— Ah...
— Seria uma vergonha sem tamanho, Samia. O nome dos
Kartal seria arrastado na vila, em toda a Turquia. Seu futuro seria
comprometido para sempre. — Seu rosto se transformou em
frustração, aquele brilho presente em cada segundo do que vivemos
há pouco sumiu por completo.
— Ninguém saberá.
— Acho bom. Agora que Emir está casado a tristeza
finalmente deixou esse lar, não precisamos trazer outro problema
para a família.
— Não se preocupe. — Ela torceu o braço se soltando do
meu aperto e eu enruguei o cenho, descontente. — Não serei
motivo de vergonha ou escândalo para você.”
Queria ter embarcado logo cedo, mas um problema na pista
de decolagem atrasou em metade do dia os voos e tivemos que
aguardar uma ordem interminável de prioridades que parecia nunca
acabar.
Realizei os trâmites imigratórios e fui direto para o hotel me
instalar, respondi algumas mensagens importantes, falei com
Haydar, que ainda estava irritado por ser retirado daqui contra a
vontade.
Acabei demorando mais do que o necessário, encarando a
vista da cobertura do hotel, gostava da sensação de ver tudo de
cima, tendo a falsa sensação que estava distante dos problemas
que permeavam minha mente.
Estar diante de Samia era perder o fôlego mil vezes, em um
mar revolto de ondas. Estava afogado em flashes de lembranças
que não deveriam retornar nunca, mas que inevitavelmente me fazia
sonhar, quase sempre.
— Samia. Como você está? — Consegui soltar uma
pergunta sem gaguejar.
Minha voz estava entoada e firme, da mesma forma que
usava nos negócios para intimidar ou colocar minha vontade sem
parecer grosseiro.
— Bem... Eu... O que está fazendo aqui? — Ela sacolejou a
cabeça antes de soltar a pergunta.
Seu ar espantado sumiu e deu lugar a uma postura
defensiva e contrariada. Tenho certeza de que eu era a última
pessoa que ela gostaria de ver na vida.
— O baba queria notícias suas. Foi embora há mais de um
ano e nunca retornou. — Tentei não soar repreensivo, mas a
verdade era que eu não lidava bem com sua partida.
— Estou bem. Vivendo a vida. Agradeci aos Kartal quando
parti, sua anne sabe. Mas precisava seguir adiante.
— Veja só. Cemil Kartal. Conheci sua mãe há anos. — Uma
senhora sorridente saiu de trás do balcão e caminhou até mim. —
Você se parece muito com seu baba.
— Obrigado, bayan[20]. Desculpe aparecer sem aviso, mas
vim direto do aeroporto. — Uma pequena mentira inocente.
A verdade era que eu tinha medo de avisar da minha
chegada e, Samia fugir de novo. Precisava vê-la com meus próprios
olhos, constatar que estava bem, sadia e feliz, só assim sentiria que
cumpri com o pedido do meu baba.
— Claro que não me importo. Você é família de Samia,
portanto é minha família também. Somos a extensão um do outro,
através de uma árvore grandiosa chamada vida.
— Tem razão, bayan.
— Me chame de tia.
— Tamam, tia Sila.
— Assim é melhor. Já íamos fechar a loja, suba para jantar
conosco.
— Hayir, tia. Hayir. — Samia deu um passo à frente
abanando as mãos. — Esqueceu que convidou, Eymen para jantar.
Aliás, ele deve estar chegando. — Ela chegou a ficar na ponta dos
pés para olhar sobre meu ombro, como se o indivíduo mencionado
fosse aparecer ali.
— Eu não quero incomodar. Vim para dizer que estou em
Londres para uma temporada e espero poder visitá-las em algum
momento, assim como levar Samia para passear. — Sorri, amistoso.
A senhora parecia encantada comigo e usei todo meu
charme educado e gentil, para mostrar que eu era confiável. Era um
primo distante, que conhecia a moça desde que era uma criança,
não havia perigo na minha intenção.
Ao menos não deveria haver, só faltava informar isso para
meu peito que tamborilava feito cavalos puro-sangue em uma
corrida e, o assanhamento que crescia em minhas calças, desde
que coloquei meus olhos em seu corpo coberto por aquelas roupas
modernas.
— Tábi[21]. Mas é claro que pode. Vocês são família, deve
estar com saudades de Samia. Sempre disse a essa menina para
entrar em contato com os Kartal, mas nossa vida aqui é bastante
corrida.
— Eu entendo, tia. Não se preocupe. — Segurei suas mãos
em sinal de conforto e amizade.
Vi pela visão periférica Samia torcer os dedos em frente ao
corpo. Ela parecia nervosa, talvez afetada pela minha presença,
mas sentia que estava escondendo algo importante.
Voltei os olhos para ela que paralisou, não sentia nem sua
caixa torácica mover, tamanha era sua atenção em mim. Sorri
amistoso e acenei com a cabeça.
— Voltarei amanhã.
— Iyi geceler! — Um homem tão alto, quanto eu, passou
pela porta com um embrulho nas mãos. — Trouxe sua encomenda,
senhora. — Ele acenou e estendeu o pacote para tia Sila.
— Eymen, que bom que chegou. Vamos subir para jantar?
— Samia pareceu sair do seu transe momentâneo e se aproximou
do rapaz com um sorriso genuíno.
Fiquei irritado. Irado, na verdade.
Queria dizer a ela que isso não era um comportamento
decente de uma turca, mas a forma amistosa como a mais velha via
a interação dos dois, estava claro que algo acontecia ali, talvez um
pretendente para ser desposada.
Sempre achei que seria minha mãe a encontrar alguém
digno para Samia quando a hora chegasse, estava preparado para
lidar com o homem que levaria nossa protegida do casarão, e ele
teria que enfrentar primos muito protetores.
No entanto, depois do que havia acontecido, nada com
relação a ela parecia correto ou fazer sentido. Seria ainda mais
inadequado eu tomar para mim o dever de investigar o homem
sendo que roubei o maior presente que ela ofertaria ao marido.
— Eu preciso ir. — Acenei. — Iyi geceler! — tornei a acenar,
pateticamente, e saí da loja.
Atravessei a rua e entrei no carro com agilidade, pedi ao
motorista que tocasse para o hotel e deixei que aquela raiva
adquirida se embrenhasse em meu ser, fazendo minha boca
amargar e meus pensamentos errôneos se desprenderem da
mente.
Capítulo 6
“Garanto uma morada no meio do Paraíso para aqueles que
abandonam a mentira até mesmo por brincadeira.” (Abu Umamah)

Subi a escada que dava acesso para a casa com mais


pressa do que o normal. Sentia meus nervos trepidarem, tomada de
um lado protetor que nunca cultivei antes, fui direto para o cercado
onde Zeki brincava com um ursinho e o peguei.
Meu filho sorria e batia as mãozinhas por me ver, alheio às
lágrimas que brotaram em automático nos meus olhos, ele tentava
fazer suas gracinhas costumeiras para chamar a atenção, mas eu
me mantinha agarrada em seu corpo.
— Ogul... Oh, meu ogul — sussurrei enquanto distribuía
beijos em seu rosto. — Meu pequeno, a anne está aqui —
murmurava enquanto caminhava pelo corredor até nosso quarto.
Coloquei Zeki no meio da cama, puxei alguns brinquedos
para distraí-lo e me sentei ao seu lado, acariciando seus cabelos
escuros. Outra lágrima escorreu e não fui capaz de conter o medo
que me assolava.
— Eu vou te proteger, meu filho. Sempre... — solucei e levei
o dorso livre até os lábios para conter meu choro.
“Por Allah! O que aquele homem estava fazendo aqui?”
Era melhor se fosse meu próprio pai nos visitando. Preferiria
enfrentar a ira ou decepção do homem que me deu a vida, sabendo
que ele nunca tiraria meu filho, apesar de ter certeza de que nos
colocaria para fora, sozinhos a própria sorte.
Cemil tomaria meu menino de mim. Usaria seu nome e
fortuna para justificar uma vida melhor para Zeki e me afastaria de
todas as formas da criança.
Era egoísta meu pensamento, mas eu não saberia viver
longe do meu filho. Aqui não tínhamos o luxo que Cemil poderia
oferecer, mas ele era amado e nenhum alimento faltava na mesa.
Ensinaria a ele todos os valores da nossa cultura,
aprenderia a ser um homem de bem, gentil, próspero e o ajudaria
escolher uma esposa pelo coração.
— Samia? — Ergui os olhos para ver tia Sila parada rente
ao batente, os braços cruzados em frente ao corpo e seu semblante
questionador aflorado. — O que aconteceu?
— Tia! Cemil não pode ver Zeki, de jeito nenhum.
— Isso vai ser difícil de esconder, menina.
— Ele só veio a pedido do pai para garantir que estou bem.
Vou sair com ele algumas vezes, mostrar que estou feliz e satisfeita
em Londres, mas ele não pode colocar os olhos em Zeki.
— Nunca te perguntei isso, menina, porque sua vergonha
sempre foi seu maior fardo. — Engoli em seco ao mirar os olhos
dela. — Aquele homem é o pai de Zeki?
— Zeki é só meu, tia. Como eu avisei a senhora quando
descobri a gravidez. Se achar que Cemil Kartal será um risco para a
senhora e sua reputação perante a comunidade, posso ir embora.
— Não seja tola, Samia. Não tem para onde ir. O que vai
fazer com esse menino nos braços?
— Não sei, tia. Mas eu fujo, sumo no mundo, se achar que
Cemil desconfia do meu filho.
— Então, limpe esse rosto, assuma as rédeas da sua vida e
seja uma anfitriã amigável para Eymen. A aproximação dele será o
afastamento do outro.
Queria dizer para minha tia que aquilo era errado. Dar
abertura para um homem que claramente tinha interesse em mim só
para que Cemil se mantivesse distante, soava manipulador demais.
Mas qual seria minha solução?
Sabia que ele nunca me entregaria para a família. Se não
tivesse acontecido nada entre nós, Cemil seria um grande apoio e
ajuda para que eu vivesse uma vida digna e longe de preocupações
em qualquer parte do mundo, se fosse da minha vontade.
Só que ele era um homem inteligente e perspicaz. Era óbvio
que faria as contas e chegaria a fatídica descoberta de que a nossa
noite proibida havia rendido um fruto.
Bastava olhar para Zeki e perceber a boa mistura que era
seu rostinho. Meus lábios, olhos do pai, o formato do rosto ainda
não era claro, meu pequeno era todo rechonchudo, mas
desconfiava que se pegassem fotografias de Cemil criança
encontrariam ainda mais semelhanças.
— Tamam. Vou lavar o rosto e estou indo.
— Anda. Me dê o menino. É bom que Eymen comece a
estreitar relações com ele, já que será seu baba.
Outra lágrima escorreu pelo meu rosto, agora por motivos
bem diferentes, me fazendo sentir a mais ardilosa das mulheres,
peguei o filho do homem que sempre amei nos braços e o entreguei
para ser levado a outro, do qual só tinha apreço singelo.
“Eymen era bom. Seria um ótimo pai para Zeki.”
Fui para o banheiro e fechei a porta mirando meu rosto
sôfrego no espelho. Eu ainda era bastante jovem, mas minha
aparência me fazia pensar que eu tinha envelhecido dez anos no
curto espaço de uma hora.
— Você consegue passar por isso, Samia.
Soltei para o reflexo e puxei uma força desconhecida do
fundo do meu ser, precisava enfrentar meus pesadelos, por meu
filho, por mim, até mesmo por Cemil, que nunca quis qualquer
lembrança do que vivemos, quem dirá uma prova real.
Um par de encontros e conversas amenas não seriam nada.
Cemil se certificaria de que eu estava bem, acalmaria o coração de
tio Osman e tia Kara, logo partiria para longe, já que era o CEO da
Kartal.
Eu daria conta de lidar com ele. Fiz isso por quase uma vida
toda, alguns dias esporádicos longe da Turquia não seria
complicado.
Abri a porta do banheiro e fui para a sala, estaquei no marco
ao ver Eymen com Zeki encaixado em uma perna sua, enquanto
brincava com ele de cavalinho. Meu peito se rasgou ao gritar que
era errado, que outro homem deveria estar naquele lugar, mas eu
tratei de afundar tudo em algum lugar escondido do meu coração e
aceitei o que Allah me oferecia.
— Aí está meu homenzinho. — Bati as palmas e Zeki
ergueu seu olhar curioso e sorriso babado para mim. — Venha com
a sua anne. — Estendi os braços e ele prontamente aceitou.
— Esse menino é muito forte. Será um homem destemido.
— Eymen elogiou ao mirar Zeki e eu. — Você é abençoada, Samia.
— Engoli em seco.
— Obrigada.
— Onde você foi com Zeki? Entrou toda esquisita. — Jalila
surgiu ao meu lado, curiosa e questionadora como sempre.
— Ela foi trocar a fralda do Zeki, Jalila. — Rania informou da
mesa, que estava preparando para o jantar.
— Mas eu tinha trocado ele...
— Crianças não tem hora para fazer necessidades, minha
irmã. — Ela soltou enfática e a mais nova finalmente se calou. — E,
então, Eymen, animado para meu casamento? — Rania sorria de
orelha a orelha.
— Já estamos preparando tudo para a encomenda do
grande dia — ele avisou e começou a discursar sobre como sua
mãe tem sido atenciosa e cuidadosa com os preparativos.
Finalmente Rania e o noivo terminariam os estudos nos
próximos meses e poderiam se casar. Minha tia e a mãe do noivo
estavam cuidando do que cabia a cada uma, a festa seria realizada
na rua principal da comunidade turca.
Coloquei Zeki no cercado e fui preparar sua janta.
Alimentaria meu bebê antes do jantar ser servido, assim seria mais
tranquilo dar atenção para a visita e demonstrar mais receptividade.
“Por Allah, eu nem sabia como fazer isso. Nunca olhei para
outro homem que não fosse Cemil e, normalmente, ele não me dava
bola.”
Apesar de todos conversarem, ainda me mantinha calada e
respondia somente o necessário, quando alguém me incluíam em
um comentário.
Depois de tratar de Zeki, o deixei brincando, logo estaria
cansado e querendo dormir, ocupei meu lugar de costume à mesa e
Jalila, que normalmente se sentava ao meu lado, se realocou para o
outro lado, assim Eymen pode tomar o assento.
— Você deve estar muito cansada, Samia. Tem trabalhado
tanto nos últimos dias — Eymen comentou, mais baixo, para que
somente eu ouvisse.
— Estou bem.
— Admiro seu esforço para ajudar a família e ainda cuidar
do Zeki, você é uma mulher de muito valor.
— Faço o que posso, Eymen.
— Samia é uma mulher única. Sorte do homem que a tiver
ao seu lado.
— O primeiro marido não foi tão sortudo. — Jalila soltou em
tom de brincadeira e eu gelei por dentro.
— Jalila! — Rania soltou, indignada.
— Não diga essas coisas à mesa, Jalila. Sua prima teve a
infelicidade de perder um homem, mas está viva, é bonita e ainda
pode fazer um bom casamento.
— Acredito que o próximo homem que tiver o privilégio de
ser seu esposo, será abençoado duas vezes. Uma por ter você e
outra por ter Zeki. — Eymen soltou, um tanto acanhado, mas foi
gentil e carinhoso o suficiente para fazer meu coração se aquecer.
Era bom me sentir valorizada, mesmo que parte do meu
passado fosse uma mentira completa, Eymen enxergava meus
esforços para manter uma vida decente para meu filho.
Tia Sila tinha razão, Eymen era a melhor solução para mim.
Poderíamos nos casar aqui e, depois, quando fosse seguro, eu
contaria a ele a verdadeira origem de Zeki.
Ele entenderia meus motivos, saberia que não tive outra
saída que não fosse mentir.
Rania retornou para o assunto casamento e os planos para
o próximo mês. As famílias não dispunham de muito dinheiro para
uma cerimônia extravagante, mas todos fariam o possível para fazer
algo especial.
Eymen e eu trocamos mais olhares do que de costume,
tratei de sorrir mais e ser afável, tia Sila passava a impressão de
que aprovava o que estava acontecendo e eu me sentia
parcialmente aliviada.
Cemil, mais uma vez, determinava meu destino e eu
acolheria qualquer oportunidade que assegurasse a mim e ao meu
filho.
Capítulo 7
“Esforce-se sempre para a excelência na virtude e na
verdade.” (Bukhari)

Um homem de bem só deveria precisar de uma noite de


sono tranquila, para ter um dia de trabalho produtivo. Eu não havia
dormido, talvez por confirmar que estou longe de ser um turco
decente.
Não preguei os olhos a noite inteira, ora revivendo
lembranças que deveriam me envergonhar, ora tomado pela cólera
ao ver Samia tão empolgada com o pretendente. Foi uma noite
difícil e me deu muito o que pensar.
Vesti meu terno chumbo três peças, saí do quarto e vi o café
da manhã, que havia deixado programado com o hotel, sobre a
mesa em frente à sacada. O clima chuvoso de Londres espelhava
meu humor, estranhamente, eu andava assim, cinza, desanimado e
frio.
Ainda não havia recebido nenhuma mensagem do meu
baba, o que era ótimo, queria ter mais informações de Samia antes
de passar como a garota estava.
Sabia que meu baba se preocuparia com a notícia de um
pretendente estar de olho em Samia, ainda mais por não ter um
homem próximo para resolver as negociações do casamento.
Tia Sila parecia ser uma mulher justa, séria e firme, mas
ainda era uma mulher e o pai de Samia estava longe demais para
analisar as intenções e boa índole do homem.
Destampei a cloche e o aroma dos croissants quentes
invadiram meu nariz, servi uma xícara de café e me forcei a comer.
Estava sem fome, mas o hábito de uma vida, somado aos
ensinamentos da minha anne, me faziam engolir cada pedaço de
alimento.
O motorista abriu a porta do carro em frente ao hotel, assim
que me viu sair pela porta giratória, levaríamos em torno de
quarenta minutos para chegarmos a região portuária de London
Gateway, onde tínhamos um escritório para atender as demandas
da Kartal.
Haydar estava cuidando da região desde o casamento de
Emir, acho que era a forma de declarar uma trégua na guerra entre
ambos, depois que tudo foi revelado.
Enquanto avançávamos no trajeto aproveitei para pedir os
levantamentos e a situação das cargas no porto. Precisava ficar a
par do que acontecia com o andamento dos contratos da região e
não queria pedir a meu irmão.
Ele me daria um sermão sobre como um gestor deveria
saber de todas as sucursais espalhadas da Kartal e, que estava
certo em afirmar que eu ainda era muito imaturo para assumir algo
tão grandioso.
Rapidamente a caixa de entrada do meu tablet encheu com
todas as devolutivas que solicitei. Passei o tempo enterrado com a
cara na tela, lendo, analisando e me atualizando do que fosse
necessário para finalmente ligar para meu irmão mais velho quando
chegasse ao Porto.
Não permiti que minha cabeça vagasse para Samia, era
muita distração lidar com as emoções conflitantes sobre sua reação.
Ainda precisava enviar uma mensagem marcando de nos
encontrarmos hoje.
Eu a levaria para jantar em algum bistrô, tiraria informações
com mais de um ano de silêncio, se fosse preciso, mencionaria a
chateação de minha anne com seu sumiço, algo me dizia que Samia
não facilitaria nossa reaproximação.
Cheguei ao escritório e passei as próximas horas entre
reuniões, encontros e análises. Estávamos com problemas nos
descarregamentos que vinham da Arábia Saudita, talvez
precisássemos de uma visita até lá.
Digitei o número do meu irmão e aguardei.
— Abi[22], já está perdido em solo londrino? — Seu tom
petulante era costumeiro.
— Nem que você quisesse, abi. Mas acho que temos um
problema um pouco maior do que pensávamos.
— Diga.
— Você deve estar a par dos atrasos no porto na Arábia
Saudita. Acho que é necessário a presença de um de nós.
— Por que está me ligando? Você é o CEO.
— Eu não posso sair de Londres agora. Estou resolvendo
algumas questões para o baba.
— Que questões?
— Nada com a empresa. — Soltei sem querer mencionar
Samia.
Haydar sempre teve a ideia fixa de que ela estava na vila,
sob os cuidados da anne, sendo preparada para ser minha esposa.
Sabia o quanto me irritava o assunto quando era novo e não perdeu
o hábito de me importunar.
— Agora temos segredos. Entendi. — Seu tom provocador
me fez suspirar, cansado.
— Não é nada disso, abi. Só mantenha os olhos abertos nos
alemães.
— A mesma empresa de transporte marítimo que cuidou de
London Gateway, também fez a India Gulf Service 1.
— Exato.
— Vou descobrir o que aqueles homens pretendem.
— Obrigado.
Soltei o ar aliviado quando finalmente encerramos a
chamada. Seu humor parecia ameno, então, nosso baba ainda não
havia mencionado sobre a procura de uma noiva.
Abri o aplicativo de mensagens e fiz o que estava protelando
um pouco mais da metade do dia. O número de telefone de Samia
foi passado junto com seus dados, estava salvo em meu celular,
mas ainda não havia me atrevido a abrir.
Não aparecia sua foto, afinal ela não tinha meu contato, e
era inteligente ao ponto de restringir o acesso às suas informações
e imagem somente para os conhecidos.
Eu - Selam, iyi günler.[23]
Samia – Selam. Quem é?
Eu – É o Cemil. Peguei seu contato com meu baba.
Samia – Como vai, Cemil?
Eu – Muito bem. Quero convidá-la para jantar hoje. Pego
você às 17h.
Samia – Hoje? Nossa! Não esperava por isso.
Eu – Se for um problema, posso fazer somente uma visita.
Ela não respondeu de imediato, mas a barra de avisos no
topo avisava que estava digitando algo. Não parei de encarar a tela,
por longos e irritantes minutos, até uma simples resposta surgir na
conversa.
Samia – Estarei pronta para sair às 17h. Até mais tarde.
Era óbvio que levou mais tempo do que o necessário
ponderando, não seria um encontro fácil, mas eu me esforçaria para
deixá-la confortável e me certificaria que Samia estava bem e
segura em Londres.
Devia isso a ela, não só pelo pedido do meu pai, mas por
me preocupar com seu futuro sendo o responsável por arruinar sua
pureza.
Nunca mais dormi com ninguém. Na realidade, eu sempre
quis me guardar para minha esposa, preservar meu corpo para a
mulher que seria a escolhida por Allah para construir uma família
comigo.
Samia foi um erro, não só por ela, como por mim também.
Fui fraco, falhei com sua honra, comigo mesmo e com a mulher que
um dia seria minha companheira.
Sentia que precisava de uma reparação e não havia a
procurado ainda por pura covardia e medo de ser enxotado feito um
cão de rua.
Exatamente uma hora antes do nosso encontro me peguei
levantando da mesa e encerrando a conversa com a secretária
sobre a agenda da manhã seguinte.
Murmurei que deveria me enviar as informações por e-mail,
tinha um jantar importante e inadiável, responderia depois disso. Era
óbvio que se tratava de algo particular, ou ela mesmo saberia onde
eu estava indo, mas pouco me importei.
Era um homem dono de minhas ações e determinava
quando e onde seria direcionado minha atenção e esforços.
Naquele momento, eu era somente o Cemil, que implicava com a
garota de cabelos cumpridos e volumosos na vila, e precisava olhar
no fundo dos seus olhos e saber que não poderia lhe causar mal
maior do que poderia reparar.
O motorista estacionou do outro lado da rua, a loja que a
família mantinha já estava fechada, encarei o segundo andar, as
luzes estavam acesas, mas não conseguia ver nada além de
algumas sombras.
Quando desci os olhos para a porta social, vi uma mulher
sair, cabelos soltos, longos e volumosos, como me lembrava, usava
uma calça de alfaiataria branca, larga nas pernas, uma blusa rosa-
clara, delicada e de tecido fino, deixava os braços desnudos, algo
incomum quando morava na vila.
“Ela mudou, Cemil.”
Abri a porta e desci rapidamente, fechei o botão do paletó,
por pura ansiedade, acenei com a cabeça quando ela estava
próxima o suficiente e seu sorriso amistoso fez minha agonia
particular se abrandar.
Ela tirava meu fôlego com sua beleza e recompensava com
um sorriso sincero e delicado.
— Podemos? — Ela apontou para a porta aberta do carro e
percebi que passei tempo demais perdido em seu semblante.
— Claro. Vamos. — Abri espaço para ela entrar.
Ela se acomodou na outra ponta, entrei e bati a porta
sinalizando para o motorista seguir viagem. Só ousei olhar em sua
direção quando já estávamos em movimento, as luzes de fora
sombreavam seu rosto virado para a janela.
— Você mudou. — Soltei na ânsia de chamar sua atenção
para mim.
— Eu... Sim. Londres muda as pessoas.
— Nunca passei tempo demais fora da Turquia para
confirmar essa teoria, mas deve ter seu fundo de verdade. Visto
como Emir e Haydar se comportam.
— Emir e Haydar sempre foram diferentes de você, Cemil.
— Isso soou um pouco pejorativo.
— E foi.
— Você sempre agiu feito uma menina impertinente, achei
que isso mudaria, assim como sua aparência.
— Para que mudar o hábito de uma vida, não é? — Ela
finalmente voltou o olhar para mim e aquele ar provocativo de
antigamente me fez respirar aliviado.
Ainda estava ali, a garota que conheci e quase me
enlouqueceu com seu jeito irritante não havia se apagado.
Capítulo 8
“Deus não olha para a sua aparência ou suas posses; mas
Ele olha para o seu coração e suas obras “(Abu Huraira: Muslim).

Chegamos a um restaurante na parte elegante de Londres.


Não havia visitado essa área, pudera, nunca poderia pagar por um
jantar aqui, mas ao lado de um Kartal, tudo era diferente.
Entramos lado a lado, Cemil deu seu nome para a hostess e
fomos encaminhados para uma mesa de dois lugares, em uma área
mais reservada. Até parecia que estávamos em um encontro
romântico, e eu precisava relembrar a todo momento, que ele só
queria informações sobre minha situação para repassar ao tio
Osman.
— Espero que goste de culinária italiana.
— Não sei, nunca provei. — Soltei ao colocar o guardanapo
sobre o colo.
— Não? Está a mais de um ano em Londres e ainda só
come comida turca?
— Vivo em uma comunidade que não me deixa ver muito
além do nosso próprio mundo.
— Isso é bom, por um lado, não te deixa esquecer suas
raízes.
— Eu nunca esqueci minha raiz, Cemil. — Meu olhar
determinado deixava claro que éramos iguais.
Afinal, a única falha que cometi foi partilhada com ele.
— Eu sei. Foi só um comentário aleatório.
— Boa noite, senhores. Cuidarei de vocês hoje. Desejam
ver o cardápio, ou a carta de vinhos? — Um garçom educado surgiu
ao nosso lado.
— Sem bebida — Cemil respondeu. — Queremos escolher
a comida.
— Perfeito.
Enquanto deixava a cargo de Cemil escolher o que
comeríamos, já que eu não entendia absolutamente nada de comida
italiana, aproveitei para observar o lugar, que gritava à riqueza e
requinte.
O ambiente era arborizado e contrastava com os móveis em
tons de bege. Era uma elegância natural, a iluminação do jardim em
volta tornava o lugar acolhedor e, claro, a clientela deixava evidente
que era preciso ter uma conta gorda para bancar este lugar.
— Quer algum suco?
— Só água — informei ao voltar os olhos no homem a
minha frente. — Muito bonito o lugar.
— Também achei.
— Não conhecia?
— Não. Estive poucas vezes em Londres, a trabalho, e esse
restaurante foi inaugurado há pouco tempo.
— Entendi. — Trancei meus dedos sobre o colo e sentia o
suor se formar ali.
Eu estava nitidamente nervosa, precisava respirar fundo e
focar o assunto nos Kartal. Ficaria segura se mantivesse a conversa
na família da Turquia.
— Como está tia Kara e tio Osman? — Apertei os lábios na
tentativa de sorrir.
— Preocupados com você. — Cemil tombou a cabeça para
o lado.
— Eu estou bem. Muito bem, na verdade. Tia Sila tem
cuidado de mim, estou trabalhando na loja.
— Você está diferente.
— As pessoas mudam.
— Evet. Mas você parece... outra pessoa.
— Isso não é ruim, então. Afinal, você sempre deixou claro
que meu jeito era irritante.
— Foi por isso que partiu? — Seus olhos se tornaram
acusadores.
Achei que me livraria dos seus questionamentos, que ele
teria o mínimo de decência em não mencionar o que havia
acontecido, mas pelo visto, a conversa seria mais honesta do que
gostaria.
— Eu segui com a vida, Cemil. Não havia nada na vila para
mim. Nenhuma família demonstrou interesse, já estava me tornando
um fardo para tia Kara e, ... depois de tudo o que aconteceu, foi a
melhor decisão.
— Fardo? Por Allah, Samia, você nunca foi um fardo. Minha
mãe a ama como uma filha. Te tratou como uma.
— E sempre serei grata por isso.
— Sua vida era melhor lá, sob os cuidados dos Kartal,
protegida, segura e amparada.
— Bom... preciso discordar. — Deixei meu sorriso
debochado aparecer.
Era ridículo ele agir com tanta hipocrisia depois de tudo que
aconteceu entre nós.
— Eu passo a maior parte do tempo entre Istambul e o
centro de Ancara. Mal piso na vila. — Cemil desviou os olhos,
incomodado.
— Uma pena para tia Kara. Deve se sentir sozinha.
— Você poderia voltar e fazer companhia a ela.
— Minha vida é aqui, agora, Cemil. Mas obrigada pela
oferta.
— Por que tem que ser tão irritante? — Ele soltou de súbito
e isso me espantou.
— Cemil, qual é o seu problema? Disse que veio a pedido
de tio Osman, para ver como eu estava. Poderiam ter tirado
informações sobre mim com o meu baba, que continua morando na
Turquia. Falo com ele regularmente.
— Mas não se dignou a fazer uma ligação para minha anne.
— Eu disse que estava bem quando me mudei. Não tenho
que prestar satisfações a cada momento.
— Não é assim que somos ensinados, Samia. — Seu tom
severo faz o fio de paciência que eu conservava se desprender da
razão.
— Acho que nossos valores se perderam quando entramos
naquele celeiro, não é mesmo, Cemil?
Seu rosto ficou lívido, ele não acreditava que havia sido eu a
mencionar algo que juramos nunca mais tocar no assunto, mas eu
não permitiria que me tratasse como uma ingrata, sendo que ele foi
o maior motivo por eu ter fugido da vila.
— Só estou dizendo que os Kartal podem te oferecer mais
oportunidades, Samia. De fazer um casamento valoroso, que te
traga uma boa vida, próspera e abastada.
— Eu já tenho tudo de que preciso aqui em Londres.
Conservo os costumes, valorizo minha família, ajudo como posso e
até tenho um pretendente. — Empinei mais o queixo ao mencionar
Eymen.
— O homem de ontem? — Cemil endureceu a expressão ao
questionar.
— Sim. Ele é filho de uma boa família na comunidade, cuida
da loja de embutidos, é trabalhador e trata a mãe muito bem. Tia
Sila está cuidando do casamento de Samia, em seguida deve
conversar com a família de Eymen.
— Ainda preciso ver se ele é adequado.
— Você? — Ergui as sobrancelhas.
— Sou o único Kartal próximo o suficiente.
— Tia Sila é mais velha e sabe avaliar a proposta. Está
fazendo por Rania.
— Como ela faz com Rania é problema dela, Samia, mas
você tem sangue Kartal e não será tratada como um tapete
encalhado. Avisarei o baba sobre o interesse desse homem e
tomarei para mim a responsabilidade de avaliar a família.
— Isso é... isso... Você não pode! — Soltei, inconformada.
— Não posso? Tente me parar. — Cemil soltou com o ar
arrogante, tão característico da família, deixando claro que ele não
cederia em hipótese alguma.
Eu estava indignada, ultrajada, a situação beirava ao
ridículo, não só pelo fato da noite que partilhávamos, mas
principalmente pelo meu segredo. Eymen conviver com Cemil o faria
descobrir sobre a mentira da viuvez, o que tornaria tudo ainda mais
difícil de explicar.
Cemil tinha que partir.
— Pois eu mesma posso falar com tio Osman. Melhor!
Pedirei que tia Sila fale com o tio, posso até falar com meu baba,
para que ele procure o seu na Turquia.
— Meu baba está em uma viagem na América, não sei
quando retorna à Turquia. Por que tem tanto medo de que eu
conheça seu pretendente, Samia?
— É óbvio. Não quero você metido em minha vida.
— Tem mais coisa aí. Posso sentir.
— Você fantasia demais, Cemil. — Engoli em seco e segurei
meu olhar no seu, passando toda a confiança que eu estava longe
de sentir.
Fomos interrompidos pelo garçom que serviu nosso jantar.
Ocupei minha atenção no prato, aproveitei para degustar da boa
comida, era bem diferente do que estava acostumada, mas muito
saborosa.
Por Allah, Cemil resolveu recolher suas garras e passamos
o jantar todo em silêncio. O barulho dos talheres parecia ferir meus
tímpanos, mas a minha cabeça estava aérea demais para pensar
em uma forma de afastar aquele turco idiota da minha vida.
— Emir perguntou de você quando soube que eu estava em
Londres. — O tom de Cemil era brando, acho que tentava levantar
uma trégua.
— Ah, Emir. Meu primo favorito e sua esposa loira e linda.
Como eles estão?
— Bem. Tocando os negócios no Brasil. Parecem felizes.
— Ele realmente deixou a Kartal.
— Agora, definitivamente.
— Isso deve ter deixado Haydar feliz.
— Haydar não reconheceria a felicidade, mesmo que ela
surgisse amarrada em sua frente. — Cemil soltou e sorveu um gole
de água.
— Ele nunca foi mau comigo.
— Também não foi bom. Haydar tem um jeito muito
amargurado de encarar a vida, nunca o compreendi completamente.
— Os Kartal não são fáceis de serem compreendidos.
Cemil mirou meus olhos e vi um pouco de ternura perpassar
ali. Um sentimento muito raro, quando éramos nos dois dividindo um
ambiente ou conversa.
— Lembra quando Haydar te pegou subindo na árvore da
colina?
— Claro! Fiquei uma semana sem sair do quarto.
— Ele não precisava ter dito.
— Assim como você não deveria me fazer carregar as toras
de madeira para a cozinha.
— Eram muitas.
— E você só queria mandar em mim. — Soltei em tom
acusatório, mas sorri.
Eram tempos bem mais fáceis.
Em todos os sonhos que já vislumbrei com o homem a
minha frente, nunca imaginei que um dia estaríamos jantando, com
inúmeros segredos nos permeando e um desejo latente de que
partisse brotasse em mim.
Sempre achei que ficaria feliz em reencontrar Cemil. Até
sonhei, que ele me procuraria, pediria perdão e que formaríamos a
família que sempre almejei junto de Zeki.
“Era cruel demais eu poupar meu filho de uma vida melhor?”
— Cemil... eu...
— Cemil, meu futuro genro! — Olhamos em direção da voz
grossa que evitou uma desgraça que estava prestes a cometer.
— Senhor...
Perdi a conexão com a conversa quando meu cérebro
processou o que aquele homem sério e robusto havia dito.
Genro? Cemil estava noivo?
Capítulo 9
“Ele, que deseja entrar no paraíso pelo melhor portão, deve
agradar seu pai e sua mãe.” (Bukhari e Muslim)

De todas as coisas ruins que ainda poderiam acontecer esta


noite, encontrar o pai de Ayla no restaurante era o que eu não
precisava. Senhor Serkan Bal, dono de uma rede de hotéis na
Europa, estava diante de mim com um olhar aguçado em minha
acompanhante.
— Como vai? — Cumprimento-o com um aperto de mãos,
tradicional, mas ele me puxa para um abraço afetuoso.
— Ainda fico impressionado como você amadureceu. O
grande CEO da Kartal. Quem diria? — Ele riu abertamente, como se
meu cargo definisse a pessoa que sou.
Para um turco, o trabalho era fundamental, dizia sim muito
da pessoa, mas não era o rótulo que ele empregava sobre meus
ombros.
— Essa é minha prima Samia. Ela mora em Londres e
marcamos de nos encontrar.
— Harika! Que bela jovem. Deve ter uma fila de
pretendentes. — Senti como se o fôlego tivesse sido roubado de
súbito dos meus pulmões.
— Na verdade, só existe um, senhor.
— Então, teremos mais um casamento em breve. Süper[24]!
— Ainda é muito cedo para afirmar. Passarei o histórico do
pretendente para meu baba investigar. Sabe como é — informei,
deixando claro que não havia nada concreto em coisa alguma.
— Tem toda razão. Precisamos marcar um jantar. Ainda está
me devendo uma visita com seu baba. — Trinquei os dentes,
irritado.
Precisava resolver essa situação com Ayla o quanto antes.
Minha compreensão já beirava a burrice, as coisas estavam sérias
demais para explicar um simples mal-entendido.
— Tenham um bom jantar. — Ele acenou sem me dar
chance de responder.
— Obrigado, senhor, boa noite.
— Boa noite. — Samia também cumprimentou.
Retomei meu lugar à mesa, o clima, que não era bom antes
do senhor Serkan aparecer, piorou e muito. Samia mirava seu prato,
sem tocar na comida, sentia um desejo enorme de esclarecer as
coisas.
— Não estou noivo. — Soltei e ela ergueu os olhos
repentinamente.
O impulso de cobrir minha mão com a sua chegou a me
causar formigamento na ponta dos dedos, mas me contive. Não
queria dar a impressão errada, mas não queria enganá-la, assim
como Ayla fazia com todos.
— Ayla é uma amiga de faculdade, estudamos juntos na
Europa e eu conheço a família Bal desde então. Ela foi à Turquia há
alguns meses, pediu ajuda para se colocar nos meios certos para
levar a Rede de Hotéis Bal para a Turquia e uma foto inconveniente
acabou nos colocando em um escândalo.
— Escândalo? — Ela enrugou o cenho, confusa.
— Ayla é muito expansiva e acabaram nos fotografando em
um abraço no elevador de um evento. Saiu em todos os jornais e
colunas o suposto romance entre nós.
— Poderia ter desmentido.
— Ayla me pediu um tempo para fechar alguns negócios. Ao
que parece, estar atrelada a um Kartal abriu possibilidades
vantajosas.
— Claro que sim. — Samia torceu os lábios e virou o rosto
para o lado.
— Enfim, é isso.
— E por que o pai dela sustenta a mentira com tanta
tenacidade?
— Ele não sabe que é mentira.
Samia voltou a me encarar com as sobrancelhas erguidas.
Era claro seu julgamento, não poderia me defender, explicar tornava
todo o acontecido ridículo e eu, um homem fraco que não sabia se
impor.
— Bom, você realmente tem muito com o que lidar. Já
terminei e não quero sobremesa. Podemos ir? — Samia soltou com
tanta frieza que fiquei momentaneamente sem reação. — Cemil?
Podemos ir?
— Ah... sim. Claro. Vou pedir a conta.
Saímos do restaurante em silêncio, o percurso até sua casa
não foi melhor, ela parecia perdida em pensamentos particulares,
inalcançáveis, e eu era um cão farejando qualquer brecha para
estender o momento.
Desci do carro logo depois dela, atravessei a rua ao seu
lado e paramos diante do pequeno portão. Meus olhos não a
deixavam de forma alguma, absorvia com esmero cada movimento
ao pegar a chave da bolsa e encaixar na fechadura.
— Obrigada pelo jantar, Cemil. Vou pedir para tia Sila
conversar com tio Osman quando for o momento. — Ela estava
firme e séria.
Duas características que nunca aparecera antes. Samia
sempre foi a leveza, irreverência e jovialidade, metade do que falava
não se podia levar a sério, no entanto, aquela garota não existia
mais.
— Ainda estarei em Londres por um tempo. Iremos nos
encontrar de novo. — Soltei determinado, sem o direito de uma
recusa.
— Claro. Só me avise antes.
— Terá uma mostra amanhã de um grande amigo da família,
seria de bom tom comparecer. O que acha?
— Está me convidando para te acompanhar? — Ela pareceu
bastante surpresa.
— Sim.
— Eu nunca fui a um lugar desses.
— Acho que vai gostar, apesar de a maioria serem pessoas
que filosofam demais.
— Isso não anima muito.
— É bom ir preparada para lidar com um pouco de soberba
e futilidade.
— Acho que posso conviver um par de horas com gente
assim. — Vejo um sorriso discreto despontar em seus lábios.
— Está insinuando algo, Samia? — provoquei.
A realidade era que eu ainda não estava pronto para me
despedir e, isso me intrigava ao ponto de ficar inquieto e impulsivo.
— Claro que não. Vou entrar. Boa noite, Cemil.
— Boa noite, Samia.
Eu a vi entrar pelo portão, enfiei as mãos no bolso para me
impedir de fazer algo imprudente. Afastei dois passos e ainda
encarei a folha de madeira por mais tempo do que o normal,
tentando acalmar o alvoroço que borbulhava em minhas entranhas.
Retornei para o carro e assim que bati a porta o cheiro de
flores, tão familiar invadiu meu olfato e fez uma saudade incomum
crescer exponencialmente.
“Ao soltar os grampos do seu penteado, as cascatas
volumosas e onduladas caíram por suas costas nuas. Samia era um
presente divino, sendo desembalado com o máximo de esmero e
cuidado.
A ponta dos meus dedos formigava, meu peito tamborilava e
as respirações profundas mostravam o quanto estava nervoso e me
controlando para não fazer nada de errado.
Seu tronco desnudo me deixava ansioso, nunca havia visto
uma mulher nua de perto. Sua pele brilhava com a luz noturna que
entrava de fora, era macia, até cremosa, a cor uniforme me fazia ter
vontade de lamber em certos pontos que não sabia se era correto.
Minha cabeça girava com uma infinidade de possibilidades
que meu discernimento julgava como errados, impuros para macular
aquele corpo intocado e inocente.
— Você me faz pensar em coisas erradas, birtanem[25]!
— Não... pense... — ela ofegou quando meus dedos
tocaram seus montes singelos.
Samia não tinha grandes seios, eram pequenos, delicados,
os bicos rosados e muito convidativos. Eu queria venerá-los com a
língua e faria em breve se ela permitisse.
A maciez do contato fez a parte baixa entre meus quadris
endurecer ainda mais, sentia algo vazar no tecido da cueca e temia
o estrago que encontraria ali assim que retirasse a calça.”
— Dur! — Balancei a cabeça e peguei o celular discando
para a única pessoa que poderia entender os tormentos que nem eu
compreendia.
— Abi! Como vai a Turquia?
— Não sei, abi, estou fora dela há um par de dias.
— O que aconteceu, Cemil? — Emir tinha o dom de
compreender as aflições alheias no tom de voz.
— O baba me enviou para Londres para olhar como Samia
está.
— E o que houve? Ela não está bem? Aconteceu algum
mal? — Seu tom se tornou alarmado.
— Hayir! Hayir! Não se preocupe, abi. Ela está bem e
segura na casa de sua tia.
— Por Allah, abi. Não me assuste assim. Seu tom de voz
me fez achar que algo ruim tinha acontecido.
— Bom. Ela tem um pretendente. — Soltei e pigarreei. —
Disse que assumiria a negociação do casamento, passaria ao baba,
mas ela não quer. Informou que a tia e o próprio pai resolverão a
questão.
— Isso não é bem um problema, Cemil. — Emir parecia
mais confuso do que eu.
— Não é, mas o baba me enviou para Londres para cuidar
dela e acho que eu deveria tomar frente nisso.
— Você é um homem solteiro, Cemil. Não tem bagagem
para resolver esse tipo de coisa. Avise a tio Osman e deixe que ele
converse com o baba de Samia.
— Mas...
— Vou ligar para Samia e conversar com ela. Sei que vocês
não se davam tão bem na vila. Será difícil ela ofertar obediência a
você.
— Ela mudou, Emir. Muito. — Soltei, cansado.
— O que quer dizer?
— Está diferente. Não é mais aquela menina leve e
impertinente. Perdeu seu lado juvenil, algo aconteceu, posso sentir
isso, abi.
— Bom, ela agora vive em um país que tem uma cultura
distinta, abi. É normal. Samia foi criada em uma redoma de vidro
pelos pais e depois na vila. Ela está se descobrindo como mulher.
— Pode ser... — Soltei a contragosto.
— Aproveitando que me ligou, quero saber mais da sua
suposta noiva. — Fechei os olhos.
Havia me esquecido do motivo de passar tanto tempo sem
falar com Emir. Não queria explicar a confusão que Ayla havia me
colocado.
— É mentira.
— Que não foi corrigida por nenhuma das partes ainda.
Você tem interesse na mulher, Cemil? Tenho certeza de que eu
poderia falar com tio Osman e ele permitir que seu casamento
acontecesse antes de Haydar. — Emir usou o tom que costumava a
entonar quando assumia sua posição como chefe da família.
Ele poderia ter deixado a exportadora nas mãos dos primos,
mas nunca poderia abandonar o posto de chefe dos Kartal. Era algo
encrustado na nossa criação, desde pequeno, sabíamos quem era
nosso líder e agíamos de acordo, cada um em seu papel.
Salvo Haydar que resolveu se revoltar com a vida.
— Por favor, abi. Não diga nada. Resolverei isso a minha
maneira.
— Pelo visto não é só Samia quem mudou. Achei que
aproveitaria essa chance para se casar, já que sempre quis isso.
— Eu ainda quero construir minha família, abi, mas não
tenho pressa mais. Casamento é algo para toda a vida e quero ter
certeza da pessoa que escolherei para estar ao meu lado.
— Sábias palavras, abi. Quando sair de Londres venha para
o Brasil, Passe uma temporada aqui. Talvez te faça bem.
— Pensarei na oferta, abi.
Encerramos a chamada e eu não me sentia melhor do que
antes. Mentir para todos era cansativo e, eu estava farto de tropeçar
em desculpas para proteger os interesses de outra pessoa.
— Alô. Quero que solte uma nota oficial em todos os meios
de comunicação possível — ordenei assim que o relações-públicas
da empresa me atendeu.
Capítulo 10
“Não perca a esperança, nem fique triste.” (Alcorão 3:139)

Minha tia já havia se recolhido para seu quarto quando


entrei em casa, mas as meninas vieram até mim afoitas para saber
onde Cemil me levou para jantar e como era o lado rico de Londres.
— O restaurante era lindo. Peguei o nome, podem olhar as
fotos na internet. — Mostrei a tela do celular com a informação que
havia anotado.
— Vou olhar agora. — Jalila pegou o próprio celular e digitou
furiosa na tela. — Nossa! Que lindo. Olha isso, Rania. — A mais
nova virou a tela para a irmã, mas voltou para si em seguida.
— E como foi a conversa com seu primo? — Rania parecia
mais preocupada do que curiosa.
— Foi boa. Ele quer cuidar da proposta de Eymen, mas
avisei que sua mãe lidará com isso quando seu casamento
acontecer.
— E ele vai embora logo?
— Ele vai passar uma temporada em Londres. Pediu que eu
o acompanhasse a uma exposição que acontece amanhã.
— Nossa! Que chique. — Jalila me encarou com seus olhos
grandes e muito curiosos.
— E você aceitou, não é? — Rania parecia mais ansiosa. —
É melhor que faça tudo que ele queira e o mantenha longe daqui,
Samia.
— Por que diz isso, Rania? Ele é família de Samia, deve ser
tratado como nossa família também.
— Não seja tola, Jalila. Ele não pode saber de Zeki — Rania
esbravejou e se arrependeu em seguida.
— Por quê? — Jalila girava a cabeça de mim para sua irmã,
conseguia ver pela visão periférica, enquanto mantinha meus olhos
cravados na mais velha das irmãs.
— Jalila, vá para seu quarto. Preciso conversar algo
importante com Samia. — Rania estava tão séria quanto sua mãe
ficava vez ou outra.
— O quê? Por quê? O que estão escondendo de mim?
— Nada. Só quero falar com Samia sobre coisas de
mulheres comprometidas.
— Mas eu quero aprender, Rania... Depois será minha vez
— ela murmura, mas se levanta. — Isso não é justo.
Jalila parecia uma criança de cinco anos batendo o pé em
direção ao quarto que compartilhava com Rania desde que vim
morar aqui. Um dos muitos motivos de me sentir um estorvo com
elas, havia tirado a privacidade de ambas, já que com Zeki nascido,
eu precisava de um espaço maior para ele.
— Eu cuidarei de Zeki para que Jalila não faça tantas
perguntas, não se preocupe. Vá ao encontro dele, dê tudo o que
pedir, mas não deixe que ele entre por essa porta, Samia.
— Você sabe... — Soltei ao alarmar os olhos.
Minha vergonha jogada no meio da sala, como se fosse
poeira ao vento, exposta e indigna, perante a uma moça de bem
que não deveria participar das mentiras que preciso conservar.
— Sempre soube. Uma mulher jovem que nem sabia que
estava grávida. Não sou boba, Samia, cresci em um mundo fora dos
costumes.
— Me perdoe. Eu não queria causar problemas para você e
seu casamento. — Soltei ao baixar a cabeça.
— Não faço isso por meu futuro marido, Samia. Faço por
você. Sei que o tio ficará desolado se souber a verdade, imagino
que a ideia da viuvez veio da minha mãe. — Balancei a cabeça em
concordância.
— Evet. Aceitei porque não tinha saída.
— O pai... ele soube...
— Zeki é só meu. Não há ninguém para reclamá-lo. — Ergui
os olhos, determinada.
— Tudo bem. Aceitar o compromisso com Eymen irá
amenizar as coisas, mesmo que seu primo permaneça perto.
— Tenho medo de que eles se encontrem, que conversem,
que Eymen ou até Jalila diga algo errado e ele descubra. — Segurei
as mãos da minha prima que me puxou para um abraço.
O que Jalila carregava de jovialidade e impulsividade, Rania
tinha de centrada e serena. Eram dois opostos, que parecia muito
minhas duas versões: antes e depois da maternidade.
— Não se preocupe. Daremos um jeito.
— Obrigada. Por Allah. Obrigada. — Beijei o rosto da minha
prima repetida vezes e nos despedimos em seguida, quando ouvi o
resmungo de Zeki no quarto.
Entrei na penumbra do cômodo, via seus bracinhos agitados
no berço, estava ressonando, me aproximei e coloquei a mamadeira
em sua boca, que passou a sugar com força.
— Meu pequeno homenzinho. — Acariciei sua testa e
cabelos.
As bochechas avermelhadas, o pijama claro de
nuvenzinhas, o cheiro de bebê, aquela paz que me rondava todas
as vezes que o via bem e com saúde. Zeki me deu a oportunidade
de olhar o mundo de uma perspectiva completamente diferente.
Antes eu me sentia uma garota cheia de sonhos intensos,
que não passavam disso, pensamentos e possibilidades que nunca
se concretizariam. Zeki foi meu sonho concretizado, minha
extensão, a continuidade da minha vida através daquele pequeno
ser.
Tudo em mim mudou, transformou, me tornou mais séria,
mas não de um jeito ruim. Minha vida a partir do nascimento dele
tinha um rumo muito diferente e eu me tornei mais prática.
Dei um beijo na cabeça do meu filho depois de tirar o bico
da sua boca, ele havia acalmado e dormia tranquilo, afastei e
troquei as roupas por um pijama.
Ao me deitar senti como se uma sobrecarga viesse para
cima de mim, fechei os olhos e imaginei um campo de girassóis
enquanto tentava equilibrar minha respiração.
Logo o campo se transformou no pomar da vila, a brisa fria
batendo contra meu corpo, o sol se tornou noite e as mãos quentes
de Cemil tocaram em mim. O momento avançou para o celeiro,
quando eu tomei a iniciativa de abrir o botão e zíper lateral da minha
roupa, o hijab já havia saído um instante antes.
“Desci o tecido macio pela minha pele, o calor do meu
ventre incendiava meu corpo e, não me tomei de vergonha ao
revelar minha intimidade para os olhos do homem que sempre amei.
Era errado, mas meu coração gritava que tinha que ser ele.
Eu estava me conformando com o fato de Cemil nunca me
querer como esposa, logo ele partiria para longe mais uma vez e eu
ficaria somente com uma doce lembrança.
Seria meu tesouro e meu segredo.
Entreguei minha pureza para um homem que me tratava
com indiferença e receberia somente as memórias da noite
condenável que partilhamos.
Cemil se aproximou, seus lábios se arrastaram por meu
queixo, pescoço e clavícula, gemi baixo e apertei as mãos até que
minhas unhas marcassem a palma.
Queria me conter, não sabia como agir, sentia vontade de
retribuir, mas morria de medo de fazer algo inapropriado. Era
apavorante e revigorante, na mesma intensidade.
Quando seus lábios tocaram meu mamilo direito, não
aguentei segurar e joguei a cabeça para trás, gemendo alto o
suficiente para me assustar. Levei as mãos até seus ombros e
apertei.
— Te machuquei? — Cemil soltou com a voz rouca.
— Hayir... continue... por favor. — Uma das mãos de Cemil
circulou minha cintura e me trouxe para mais perto.
Com os corpos colados, conseguia sentir um volume grande
e duro próximo da minha barriga, mas não tive tempo de processar
o que seria já que seus lábios voltaram a me beijar em um lugar
intocado até aquele momento.
Ele inclinou meu corpo para trás, sentia pequenos choques
se alastrarem do contato para meu baixo-ventre, que pesava e
umedecia minha calcinha com rapidez.
Levei as mãos até seus cabelos, empinei os seios e me
ofereci para que continuasse, que avançasse, que me fizesse
sucumbir ao prazer enlouquecedor que havia roubado meu juízo e
subjugava meu corpo a cada onda de prazer que se alastrava.”
Levantei-me em um pulo, Zeki estava de pé no berço,
segurando as grades e gritando algo irreconhecível enquanto
sacolejava o corpinho, todo animado. Peguei o celular e percebi que
havia dormido mais do que poderia.
— Allahalla! Zeki! Sua anne perdeu a hora. — Saltei da
cama e o peguei do berço.
Saí aos tropeços para a sala, não vi sinais de nenhuma das
mulheres, provavelmente Jalila foi pra a escola e, Rania tinha
assumido meu lugar na loja com tia Sila.
Preparei a mamadeira de Zeki, fiz minha higiene pessoal e
troquei de roupa enquanto ele se alimentava. Vesti uma roupa de
agasalho, já que o tempo em Londres estava mais frio a cada dia.
Desci as escadas enquanto encaixava a touca de ursinho na
cabeça do pequeno, que não sossegava para que eu fizesse mais
rápido. Ele nunca parava com nada na cabeça.
— Zeki, ajude sua anne, sim. — Estaquei no lugar ao sair
pelo marco do portão de madeira e dar de frente com um corpo
grande e elegante no terno três peças azul-marinho que usava.
— Cemil... — Perdi o ar por completo.
Meus sentidos nublaram a razão, as pernas amoleceram, o
dia claro se tornou um simples borrão e ao perceber que o peso de
Zeki havia deixado meus braços, desabei.
Senti alguém me amparar, não conseguia abrir os olhos ou
entender o que se passava, era como se meu corpo tivesse entrado
em colapso e minha mente mergulhasse em uma escuridão quente
e acolhedora.
Parecia que eu flutuava, ouvia ruídos, oscilava entre lutar
para permanecer acordada e me entregar por completo ao vazio
aconchegante da minha mente.
Zeki não estava aqui, mas algo me dizia, no fundo da razão
esquecida, que ele ficaria bem. Agora que seu pai o havia visto,
poderia cuidar da sua criação como deveria ser.
Capítulo 11
“E fechem suas portas e mencionem o nome de Allah, já que
os demônios não abrem uma porta fechada” (Bukhari e Muslim).

Quando a moça da loja pegou a criança do colo de Samia,


eu a ergui em meus braços. Seu rosto lívido, olhos fechados, ela
ainda respirava, mas estava fora de órbita.
— Venha. Por Allah, entre aqui. — A moça abriu o portão de
madeira e eu passei, de lado, com Samia no colo.
Subi a escadaria com a moça a minha frente, ela abriu a
porta e eu fui direto para o pequeno sofá de dois lugares que ficava
do lado oposto à entrada. Tive o cuidado ao deixar seu corpo
desfalecido sobre o estofado, segurei sua mão gelada, sem saber
ao certo o que fazer.
— Tenho uma essência ótima para os sentidos, vou pegar.
— Ela foi até um pequeno cercado que ficava entre a sala e a
cozinha, deixou a criança ali e sumiu por um corredor.
Empertiguei o tronco, passei as mãos pelo cabelo,
impotente. Talvez fosse melhor ir para um hospital e verificar o que
tinha acontecido.
Voltei a olhar para o cercado e o garotinho me encarava
com curiosidade. O indicador dentro da boca, baba escorria pela
mão e seus olhos me deixaram intrigados.
Parecia que eu estava reconhecendo sua fisionomia, mas
não fazia ideia de onde era.
— Aqui está! — Voltei a atenção para a moça que se
apressou até Samia. — Um pouco disso e ela vai acordar.
Afastei um passo e deixei que a moça fizesse algo útil, já
que eu só sabia encarar a situação, tomado de pavor, pensando no
que poderia ter feito ela ficar assim.
A jovem parecia saber o que estava fazendo já que passou
o pequeno vidro sob o nariz de Samia e a fez ressurgir à vida, os
olhos alarmados e a boca aberta.
— O que... quem? Cemil estava aqui.
— Ele está aqui, prima. Venha, sente-se. — Samia levantou
o tronco e levou a mão a cabeça.
— Acho melhor te levar a um hospital, Samia. — Soltei,
ainda angustiado.
— O que faz aqui? Por que veio até minha casa? — Ela
parecia nervosa.
— Vim trazer algo para você usar a noite. Para a exposição
— expliquei, incomodado, sentia como se estivesse desvendando
algum segredo.
— Acho melhor você continuar aqui hoje, Samia. Estou com
o dia livre e posso ajudar a anne. — A prima se ofereceu.
— Eu prefiro trabalhar. — Ela levantou, parecia bem, o que
me deixou mais aliviado.
— Tem certeza de que não quer ir ao hospital? — Ofereci.
— Não. Eu não preciso. Vamos descer. — Acenou com a
cabeça e caminhou para a saída.
— Muito obrigado por tudo. Desculpe, não gravei seu nome.
— Agradeci a jovem.
— É Rania.
— É a mais velha que se casará em breve?
— Evet.
— Se precisar de algo não hesite em pedir. Família de
Samia é minha família também.
— Tamam.
Samia já caminhava para a saída, nem parecia que há
pouco estava desmaiada no sofá. Segui seus passos, mas acabei
freando diante do resmungo do garotinho no cercado.
— Selam. — Cumprimentei quando ele ficou de pé, se
escorando na grade. — Você parece ser um garoto muito esperto —
ele gritou e esticou uma mãozinha me chamando.
Algo dentro de mim se partiu. Era como se o seu chamado
precisasse ser atendido de forma imediata, eu costumava brincar
com as crianças que apareciam no casarão da vila, mas nenhuma
delas havia me despertado esse interesse.
Curvei o corpo e toquei os dedos do menino, ele segurou
minha mão com força e puxou, queria escalar sobre mim para sair
daquele lugar. Usei a mão livre para ajudar a alçar seu corpo e o
ergui em meu colo.
Era estranho.
De todas as crianças que segurei no colo, nenhuma delas
parecia se encaixar em meu peito, como esse menino fazia agora,
ao deitar a cabeça próximo do meu pescoço e aquietar em
automático.
— Qual o nome dele? — Ao me virar para a porta estaquei
com dois pares de olhos alarmados em mim.
Rania parecia surpresa, mas tinha um ar afável e aprovador.
Samia parecia tomada de horror, seus olhos úmidos
transpareciam um medo e dor que nunca havia visto ali.
— O que...
— Entregue o menino para Rania e vamos descer, Cemil.
Tenho que trabalhar. — Ela soltou afobada.
Por um curto momento pensei que tinha feito algo de errado,
tamanha sua braveza. Passei o menino para Rania, o que o deixou
mais agitado e encarei seu rosto uma última vez.
— Mashallah![26]
Segui pela escadaria com Samia, que parecia irritada com
algo, passamos pelo portão e ela marchou em direção à entrada da
loja, mas eu a parei antes que concluísse sua vontade.
— O que aconteceu aqui? — Segurei seu braço e ela foi
obrigada a parar.
— Nada. — Seus olhos não encontraram os meus. — Só
estou atrasada e preciso trabalhar.
— Você desmaiou na minha frente, Samia. Se não fosse por
sua prima, que segurou a criança, e eu a você, poderia ter se
machucado feio.
— Não foi nada demais. Levantei atrasada, não tomei café
da manhã.
— Nunca teve uma fraqueza que fosse na vila, acho que
deveríamos ir a um hospital.
— Eu não quero! — Ela elevou a voz e isso me fez soltá-la.
— Não precisa bancar meu herói, Cemil. Estou bem, caso eu
precise de algo, saberei a quem pedir ajuda.
— Eu posso te ajudar, Samia.
— Não quero sua ajuda. Não quero nada de você. Por que
não entende isso? — Seu tom agoniado me magoou.
— Samia? — Ambos desviamos a atenção da nossa
discussão e miramos a figura de um homem parado próximo da
calçada. — Está tudo bem?
— Eymen, olá. — Samia abrandou o tom e deu um passo
para mais próximo dele.
Senti meu peito rugir, incomodado, ela não tinha que ser tão
receptiva com aquele homem. Ele poderia ser um pretendente, mas
não existia nada ainda. Era possível que tudo mudasse.
— Ela está bem. Não tem que se preocupar. — Soltei, mais
frio e grosseiro do que pretendia.
— Isso é ela quem vai dizer, senhor.
— Sou primo dela — informei ao homem que abrandou as
feições.
“Isso mesmo. Recue. Eu sou a família dela.”
— Muito prazer, sou Eymen. Tenho uma loja de embutidos
do outro lado da rua.
— Cemil Kartal, CEO da Kartal Exportações. Parente de
Samia por parte de mãe.
— Sim, da vila que Samia morava.
— Exato.
— Preciso entrar. — Samia encerrou o assunto.
— Eu venho mais tarde. — Olhei sobre o ombro e sinalizei
para que meu motorista trouxesse a caixa com o presente. — Para
você usar mais a noite. — Entreguei e olhei para o desconhecido ao
falar. — Achei que a cor combinava com você. Espero que goste.
— Tenho certeza de que é linda. Obrigada, kuzen. — Quase
fiz uma careta para o parentesco que ela nunca usou comigo.
Era claro que estava tranquilizando Eymen sobre nossa
interação, mas eu não facilitaria para ela. Dei um passo à frente,
Samia alarmou os olhos, abaixei e deixei um beijo em seu rosto.
Sentir sua pele macia em meus lábios reativou todas as
memórias que eu guardava com tanta vividez na mente, mas valeu
o sacrifício ao ver o quanto o turco desconhecido havia ficado
incomodado.
— Te vejo mais tarde, kuzen. — Soltei baixo ao mirar seus
olhos.
Samia demonstrava um misto de confusão e descrença,
parti sem me despedir, deixei claro que o tal Eymen não tinha
importância para mim e não ganharia a benção dos Kartal com
facilidade.
Fiz uma chamada para meu advogado na Turquia assim que
entrei no carro. Passei as informações sobre o tal Eymen, sem o
sobrenome dificultaria um pouco as coisas, mas eu teria um parecer
do seu histórico em um par de dias, no máximo.
Fui para a empresa e foquei no trabalho. Reuniões, ligações
importantes, repercussões sobre a nota de esclarecimento que tinha
soltado, já havia deixado a vida social da Turquia em polvorosa.
Ayla já havia me telefonado duas vezes e eu ignorei suas
tentativas de contato com eficiência. Não queria ouvir choramingo
de como minha atitude havia prejudicado seus negócios, isso não
era problema meu.
Pedi para minha secretária recomendar um bom médico em
Londres, passei o nome de Samia e solicitei que marcasse uma
consulta. Algo não ia bem e eu tinha o dever de manter sua
segurança.
Saí da empresa mais cedo, estava ansioso, aéreo, queria
vê-la o quanto antes, mas havia outra questão que me deixava
inquieto: aquela criança.
Não era filho de tia Sila, estava viúva há muito tempo. As
filhas eram solteiras, uma prestes a se casar.
De quem poderia ser?
E por que eu me importava tanto com isso?
Vir para Londres e reencontrar Samia havia realmente
mexido com minha cabeça, mais do que deveria.
Sabia que teria dificuldades de lidar com esse
enfrentamento, eu vivia em um constante turbilhão de contradições.
Ceder ao desejo tortuoso que aflorou naquela noite,
sabendo que isso só prejudicaria nossa família, e lidar com a
vergonha e imoralidade por ter falhado como um homem decente.
O pior era perceber que não pensava mais em casamento
com tanto apreço como acontecia antes daquela noite. Todas as
vezes que cogitava um enlace, a imagem de Samia vinha a minha
mente e eu lutava contra os devaneios que acompanhavam a
loucura.
Não poderíamos nos casar.
Samia foi criada como uma irmã, nunca a olhei como uma
possibilidade de enlace, nem meus pais deixaram qualquer indício
que seria da vontade deles nos unir.
Eu precisava encontrar meu equilíbrio antes que cometesse
uma loucura.
Capítulo 12
“Não entrará no Paraíso, aquele cujo próximo não está
seguro de sua conduta imprópria.” (Muslim)

Desembrulhei o interior da caixa e desvendei a cor vibrante


turquesa, muito parecida com o tom que usei no casamento e meu
coração tolo se enganou ao imaginar que poderia ser uma
mensagem velada de Cemil.
Tenho certeza de que ele não se lembrava da roupa que eu
usava, afinal, tratou de esquecer o que vivenciamos logo depois que
saímos do celeiro.
— Ele é um homem de bom gosto. — Tia Sila soltou,
enquanto via eu erguer um vestido belíssimo nas mãos.
Era um modelo discreto, mangas cumpridas, até o pé e
vinha acompanhado de um hijab, que compunha o conjunto. Ignorei
a segunda peça, não usaria, nem mesmo por Cemil.
Havia abandonado o véu quando descobri a gravidez. Não
via sentido em preservar minha imagem, não queria ninguém, minha
vida havia se transformado no único objetivo de criar meu filho.
Além do mais, em Londres as coisas eram mais brandas, tia
Sila mesmo, não usava o véu.
— Que coisa mais linda! — Jalila entrou na loja e estacou ao
mirar os olhos na roupa. — Isso deve custar uma fortuna. De quem
é?
— Meu. Para ir a um evento hoje.
— Com quem? Seu primo rico?
— Jalila! Não fale assim.
— Ai, anne, foi só modo de falar.
— O nome dele é Cemil.
— Será que ele também está interessado em você, Samia.
Allahalla! Que sorte você tem, prima. — Jalila batia palmas,
animada.
— Claro que não, Jalila. Fui criada na casa de Cemil, por
isso temos proximidade. Apesar de nunca termos nos dado muito
bem. Emir sempre foi meu primo preferido. — Esclareci e tratei de
afundar a falsa esperança que surgiu com seu comentário.
— É bastante atencioso da parte dele. — Tia Sila se
aproximou, aquele olhar de coruja, sábio e tenaz. — Acho bom eu
falar logo com a mãe de Eymen — ela suspirou.
Nossa troca de olhares deixava claro o motivo para apressar
as coisas com o dono da loja de embutidos. Quanto antes
estivéssemos noivos, mais cedo Cemil partiria e meu segredo
continuaria preservado.
Doía pensar em um afastamento, mas era ainda mais
apavorante cogitar a possibilidade de Cemil descobrir que eu era
mãe de um filho dele.
As mentiras estavam me engolfando em doses poderosas
de fel. Acreditava que era possível seguir adiante e apagar todo o
passado, mas o destino sempre dava um jeito de apontar nossas
falhas encobertas.
— E por que não espera? Quem sabe Cemil faça uma
proposta. — Jalila soltou empolgada.
— Esse homem tem que partir, Jalila. — Tia Sila soltou
enfática.
— E por quê? Ele não seria um bom marido para Samia?
— Samia não quer ir embora daqui. Eymen é a melhor
opção para ela ficar. Ainda terá uma vida confortável e um pai para
o filho. — Tia Sila justifica.
— Cemil não tem interesse em mim, Jalila. Não fantasie
com coisas impossíveis de acontecer.
Aproveitei sua chegada para subir com o pacote e dar uma
olhada em Zeki. Doeu não dar um beijo de despedida no meu
menino, mas já era demais me conter ao ver Cemil com ele no colo.
Desde que engravidei, um dos sonhos recorrentes que tinha
era com essa imagem. Ele caminhava no pomar da vila, era
entardecer e nos braços levava nosso filho, que se alegrava com a
atenção do pai.
Deixei a caixa sobre o sofá e fui até meu menino que
brincava de pé, próximo à poltrona, enquanto Rania lavava louça.
— Deu tudo certo? — Rania limpava as mãos no pano de
prato quando se aproximou.
— Sim. Encontrei com Eymen na saída. Cemil e eu
estávamos prestes a discutir.
— Kuzen, eu sei que não quer tocar no assunto, mas hoje...
Depois do que eu vi. Ele é o pai de Zeki. — Abaixei os olhos e
acariciei a cabeça do meu filho.
Sentei-me no chão, cansada demais para continuar
carregando segredos que envenenavam minha alma com altas
doses de culpa e mágoas.
— Evet.
— Samia... Por Allah. É mais sério do que pensávamos.
— Ele não pode saber, Rania. Cemil levaria meu menino de
mim e, por mais que eu saiba que ele teria uma vida digna, não
quero me separar do meu filho.
— Não pense nisso. Manteremos o plano. Caso ele
pergunte de quem é a criança, só diga que estamos tomando conta
dele para uma viúva recente.
— Tem razão. Ele pode se questionar sobre isso.
— Sim, mas você vai agir com naturalidade. Ganhamos
algum trocado para olhar a criança para uma mãe viúva trabalhar.
Simples.
— Tamam. Obrigada por pensar nisso.
— Só precisamos contar com a sorte que ele não seja visto
tão próximo de Zeki de novo. O menino é uma mistura fiel de vocês
dois, Samia. Se ele prestar um pouco mais de atenção, verá isso.
— Por Allah. Estou cansada de segurar essas cordas,
kuzen.
— Aguente firme. Logo você noivará de Eymen e isso
bastará para que Cemil se afaste.
— Ele quer conduzir a conversa entre as famílias.
— Minha anne nunca permitirá isso.
— Ainda preciso falar com Eymen. Ele não pareceu muito
feliz quando nos despedimos na porta.
— Por quê?
— Acho que Cemil o deixou intimidado.
— Eymen é louquinho por você, kuzen, não vai abandonar
suas intenções.
— Assim espero.
Levanto-me do chão e pego Zeki no colo.
Passo o final da tarde com meu filho, dou banho, alimento,
mimo e o aperto contra meu peito diversas vezes. Janto com minha
família logo após tomar um banho, usei minhas essências que
trouxe da Turquia quando me mudei.
O aroma era divino, incendiava o lugar, o que fazia as três
mulheres me encararem de formas diferentes.
Coloquei a roupa que ele havia escolhido, peguei uma
sandália dourada de Rania, algumas pulseiras e brincos de tia Sila,
coisas que ela não usava havia muitos anos. Puxei meus cabelos de
lado e coloquei uma presilha para manter o penteado e fiquei feliz
com o resultado.
— Você está maravilhosa. — Tia Sila uniu as mãos em
frente à boca. — Uma joia preciosa.
— Essa cor fica perfeita em você, kuzen. — Rania tinha um
olhar admirado.
— Ainda acho que ele está muito interessado em você,
Samia. A troco de que um homem daria algo tão valioso assim para
uma parente distante? — Jalila se aproximou, empolgada e sem
filtro, como eu era.
— Não se engane, Jalila. Cemil é um homem muito rico,
esse agrado não é nada para ele.
— Tenha uma boa noite, Samia. Divirta-se — tia Sila acenou
com a cabeça me libertando dos comentários indecorosos de Jalila.
Dei um beijo em meu filho, um pouco chateada de deixá-lo
pela segunda vez sozinho, mas era preciso. Para nosso bem.
Quando passei pelo portão social vi a porta de um carro
preto e grande ser aberto e Cemil desceu, elegante, em um terno
escuro, camisa na mesma cor, parecia o cavaleiro sombrio que
chegara para me sequestrar.
— Samia, está incrível. Como imaginei que ficaria.
— Obrigada, kuzen. Foi muito delicado de sua parte se
preocupar com minha vestimenta. Assim ficarei a sua altura como
acompanhante.
— Você está a minha altura, independente do que use. Só
achei que você se sentiria melhor com um belo vestido. Lembro-me
bem do seu gosto por moda. — Ele sorriu.
— Claro.
Entrei no carro e logo estávamos atravessando Londres,
para uma região com várias galerias, lojas e ambiente social,
completamente avesso ao que eu vivia.
Mais um lugar para conhecer, junto de Cemil.
Memórias criadas para me atormentarem no futuro e eu
ainda ter mais trabalho para esconder sua importância no fundo de
minhas entranhas.
— Você se sente melhor? — Voltei o olhar para ele.
Era engraçado analisar a beleza de Cemil. Sua simetria era
invejável, mantinha os traços fortes da nossa raiz turca, mas
continha um refinamento incomum. Seus olhos, eram gentis na
maioria das vezes, quando não perdia a paciência com algo que eu
havia dito.
— Evet. Foi um episódio isolado.
— Fiquei curioso com algo e deixei para perguntar
pessoalmente: de quem é aquela criança?
— O bebê que viu? — Prendi a respiração e foquei na
mentira planejada para meu nervosismo se abrandar.
— Isso.
— É filho de uma das mulheres da comunidade. Tomamos
conta dele para que trabalhe.
— Ah... entendi. É uma bela criança.
— Evet. Zeki é a criança mais preciosa que já vi. E muito
inteligente. Será um homem de bem, esperto e forte. — Soltei mais
do que deveria e tratei de me calar.
— Nunca te vi falar de alguém com tanto...
— Gosto de crianças. — Cortei sua tentativa de análise. —
Sempre cuidava dos pequenos na vila.
— Evet. É verdade.
O assunto encerrou e eu finalmente pude respirar aliviada,
ao que parece a mentira que Rania sugeriu deu certo.
Chegamos ao evento e entendi o motivo de Cemil se
preocupar com a minha vestimenta. Era bem maior do que imaginei,
havia uma fila enorme de pessoas na porta, fotógrafos a postos para
clicar quem descesse do carro.
— Está pronta? — Cemil se virou para mim assim que o
veículo parou no meio-fio.
Encarei sua mão estendida e aceitei o contato. Um choque
prazeroso percorreu dos meus dedos em direção ao coração e senti
meu fôlego ser suspenso por um segundo.
— Sempre.
Lembrei de responder e o sorriso amistoso de Cemil foi a
dose de incentivo que precisava, para sair daquele carro e enfrentar
uma noite que estava longe de ser confortável.
Era só uma noite, eu conseguiria lidar com algumas horas
de entretenimento sem sucumbir aos desejos que insistiam em
sobressair, quando ele estava por perto.
Capítulo 13
“Aquele que evita o duvidoso, salvaguarda sua fé e sua
honra.” (Riyadh-us-Salahin)

Senti meu peito se expandir quando baixei a mão e o toque


delicado de Samia aqueceu minha palma. Ela era refinada, tinha
uma postura graciosa, havia passado muitos anos próximo da minha
anne para aprender como se portar.
Soltei sua mão e me coloquei próximo o suficiente para
mostrar que estávamos juntos, os fotógrafos pediram que
virássemos na direção deles e os flashes começaram a pipocar.
— Senhor Kartal e... — Um deles se aproximou
questionando.
— Senhorita Yilmaz — informei e levei a mão até o meio das
suas costas nos guiando para dentro da galeria.
A iluminação do ambiente era focada nas paredes, onde as
obras estavam colocadas, havia muitas pessoas, todas elegantes,
reconheci o anfitrião e fui até ele.
— Merhaba, meu amigo. — Abracei Bark com afetuosidade.
Ele era um conhecido de longa data, fotógrafo investigativo,
acabara de voltar da Faixa de Gaza e expunha uma coleção tocante
da situação na região. Seu trabalho tem reconhecimento mundial,
gostava de conversar com ele e ver além do mundo que eu vivia.
— Parabéns pela exposição. — Voltei para perto de Samia.
— Essa é Samia Yilmaz.
— Senhora. — Ele acena com a cabeça. — Lindo vestido.
Cemil é um homem afortunado por sempre estar acompanhado de
belas mulheres. — Ele sorriu, amistoso e senti Samia endurecer ao
meu lado.
— Vamos dar uma volta — avisei e me afastei conduzindo
Samia pelo primeiro corredor que vi.
A primeira imagem que vimos foi de um grupo de quatro
crianças escoradas em uma grade azul — único item com cor na
foto, já que o resto era composto de tons de cinza —, uma tinha o
sorriso contido, as outras mantinham-se cabisbaixas, observando os
escombros à frente.
Ouvi a respiração de Samia ficar mais alta e a vi limpar o
canto dos olhos. A imagem era tocante, conhecia o trabalho de Bark
para não me surpreender com que veríamos.
Ele tinha um dom peculiar de capturar o belo no meio do
caos e tragédia.
Passamos para o quadro seguinte, a imagem de uma sala
destruída, a parede caída mostrava que se tratava de um prédio,
uma criança no meio do lugar, ao lado de um colchão velho.
As próximas cinco imagens não foram menos impactantes,
confesso que sentia meu peito se apertar e ao encarar Samia,
percebi que não fazia bem a ela.
— Podemos ir embora.
— Eu... só preciso ir ao banheiro.
— Por aqui.
Guiei seu corpo trêmulo até o lavabo e a deixei que
entrasse, guardando a porta a sua espera.
— Cemil, como vai? — Olhei sobre o ombro e vi um velho
conhecido do ramo de cargas alimentícias.
— Muito bem. — Nos cumprimentamos.
— Estive ontem com Serkan Bal, estava feliz e orgulhoso de
sua filha finalmente ter encontrado um futuro marido. Até comentou
que a entrada no ramo hoteleiro na Turquia facilitou com o anúncio
do relacionamento, mas hoje acordei com meia dúzia de jornais
turcos desmentindo tudo.
— Evet. Foi uma confusão em um evento. Nada importante.
Ayla Bal e eu somos amigos da época de faculdade.
— A forma como Serkan parecia animado, achei que fosse
verdade.
— Fofocas do meio, nada demais.
— Estou pronta. — Voltei a encarar a entrada do banheiro e
Samia estava parada, as mãos unidas à frente do corpo segurando
uma pequena bolsa de mão.
Seus olhos brilhavam e o nariz estava avermelhado, era
claro que ela tinha chorado e eu só queria puxá-la para meus braços
e confortar seu sofrimento.
— Que bela jovem.
— Samia Yilmaz. — Apresentei minha acompanhante com
certo orgulho e o olhar de entendimento do homem deixava claro os
motivos da nota de esclarecimento ter saído.
Voltamos a caminhar pelos corredores, Samia não prestava
mais a atenção nas imagens, acho que sua cota de tolerância
emocional havia atingido um limite miserável.
— Acredito que esteja esgotada — comentei e ela ergueu o
olhar para mim.
— Sinto muito, Cemil. Mas todas essas fotografias... é
demais para digerir.
— Não tem que se desculpar, Samia. Eu já conhecia o
trabalho de Bark, sabia o que encontraria aqui. Quem deve se
desculpar sou eu, não sabia que era tão sensível.
— São crianças. Não tem como não pensar em... — Seus
olhos se alarmaram enquanto a voz morria. — É, enfim, são
crianças, não mereciam passar por isso.
— Ninguém possui um fardo maior do que deve dar conta,
Samia — mencionei as palavras do meu baba.
— Concordo. Mas eles são jovens demais para lidar com a
crueldade do mundo. Não parece justo.
— Não disse que é. Só disse que se nasceram ali, existe
uma razão de ser.
— Diz isso porque não é seu filho naquela situação. —
Samia tinha um olhar recriminador, que me fez enrugar o cenho,
confuso.
— Por Allah, Samia. Não desejo isso a um estranho, quem
dirá para um filho no futuro. — Balancei a cabeça e ela parou os
passos. — O que foi?
— Nada. Não é nada. Podemos ir? Eu não estou me
sentindo muito bem.
— Ia sugerir agora. Já cumpri meu papel. — Nos guiei até
Bark que conversava com um grupo de empresários.
— Já vai, meu amigo. — Ele tornou a me abraçar. — Espero
que tenha gostado.
— Com certeza. Você sabe como chamar a atenção para o
que importa, Bark. Conte com a Kartal para a arrecadação de
fundos desse ano.
— Agradeço.
Saímos pela lateral, quis evitar o aglomerado de repórteres,
que já teriam muito o que falar na manhã seguinte. Sabia que a
presença de Samia levantaria diversas especulações e teria que
lidar com um pouco mais de exposição do que seria confortável.
Naquele momento eu compreendia os motivos de Emir se
manter tão discreto em relação a sua vida. Nunca estava
acompanhado de ninguém e constantemente emitia notas e
declarações de como sua vida era confortável daquela maneira.
Era cansativo ter um bando de abutres especulando cada
um dos seus passos, principalmente quando não se compreendia
direito para onde estava indo.
O que era meu caso naquela situação.
Samia estava calada, algo que ainda era estranho, já que
minha mente vivia em constante busca da garota impetuosa que
conheci ainda muito jovem. Ela era uma menina feliz e
despreocupada, não conseguia parar de pensar onde foi parar essa
versão sua.
— Está com fome?
— Jantei antes de sair.
— Podemos só...
— Eu prefiro ir embora, Cemil. Levanto cedo amanhã. — Ela
determinou e não tive qualquer outro argumento.
A viagem foi angustiante para me fazer tamborilar os dedos
sobre a perna direita, queria dizer tantas coisas, aquele clima
desagradável não era a forma que pretendia cultivar entre nós.
— Obrigada pelo passeio — anunciou ao abrir a porta,
pronta para fugir.
— Samia. — Soltei, determinado. Quando seus olhos se
voltaram para os meus, ela transparecia tristeza. — Sei que algo
está acontecendo, mas não sou seu inimigo. Estou aqui para ajudar.
— Queria poder acreditar nas suas palavras, Cemil. — Sua
voz angustiada me fez deslizar no banco de couro e aproximar meu
corpo do seu.
Toquei seu rosto, senti a bochecha molhada com a lágrima
errante que acabara de cair. Finalmente, na privacidade do carro,
pude fazer o que tive vontade na galeria e tive que me conter. Eu
abracei seu corpo miúdo.
Puxei sua cabeça para meu peito e acariciei suas costas
enquanto ela tremulava contendo o choro. Precisava olhar em seus
olhos e explicar que tudo ficaria bem, mesmo que eu não soubesse
o motivo do seu tormento.
Segurei seu queixo e ergui em minha direção, agia no
instinto e não percebendo que seu hálito quente atingiria próximo
dos meus lábios e os faria formigar.
Engoli em seco e separei os meus em uma fresta fina,
Samia agiu em automático e projetou a língua umedecendo a região
ressecada. Não era um convite, minha razão sabia, mas eu joguei
todo o bom senso para o espaço.
Depois eu pensaria em qualquer consequência da atitude
imprudente que tomava, mas eu precisava relembrar, sentir de novo
o sabor vívido da sua língua em contato com a minha.
Um gemido reverberou em minha garganta quando meu
palato degustava da iguaria daquele momento. Sua língua macia
dançava em torno da minha, ainda tímida, nos reconectávamos
àquele momento no celeiro, quando o mundo parou para que nós
emergíssemos.
Senti sua palma quente tocar meu rosto, assim como eu
fazia no seu, afundei minha língua com mais furor, Samia se apertou
contra mim, meus lábios doloridos, sentindo cada puxão que os
seus davam.
Era enlouquecedor e tão certo, que os segundos se
tornaram eternos e só findei o momento quando meus pulmões não
aguentaram mais, a ponto de explodir pela falta de oxigênio.
— Por Allah... — Samia soltou, recuperando o fôlego.
Soltei seu corpo quando ela se remexeu apressada e saltou
do carro com tamanha rapidez, que não tive tempo de prever a
ação. Ela estava fugindo, recuperada da insensatez, se afastou a
tempo de não haver volta.
— Samia. — Desci do carro, alisei o paletó ao me aproximar
da sua figura turbulenta, em busca da chave na pequena bolsa. —
Ei, olhe para mim.
Ela soltou os braços e se virou, estava um misto de
arrependimento e cansaço. Foi um duro golpe na boca do
estômago, que precisei conter a falta de ar para não me abalar.
— O que está havendo, Samia? — Trouxe minha
preocupação à margem.
— Nada. Tudo. Você, Cemil. Eu só queria esquecer o último
ano. Precisamente aquela noite no celeiro.
— Eu não. — Soltei de imediato.
— Por quê? Foi você quem disse que precisávamos enterrar
o que havia acontecido. Que jamais alguém deveria saber. Você
disse isso! — Ela soltou em tom apertado.
— Eu sei o que disse, Samia, mas a responsabilidade do
que eu deveria fazer está em constante conflito com o meu desejo.
E apesar de tentar suprimir toda essa tentação errada, eu não
consigo.
— Você...
— Eu quero você, Samia. Quero reviver tudo que aconteceu
aquela noite. Só mais uma vez.
Capítulo 14
“Filho, se você é capaz, mantenha seu coração livre de
malícia contra qualquer um.” (Al-Tirmidhi)

Sempre ouvi dizer que depois da tormenta vinha a calmaria,


mas nunca soube que era possível vivenciar as duas coisas ao
mesmo tempo.
Cemil fez meu coração falhar uma batida com a sua
declaração, sem reação, eu simplesmente peguei a chave da bolsa
e destranquei o portão em tempo recorde, entrei e fechei.
Não me despedi, nem respondi, simplesmente corri para
dentro o mais rápido possível, para longe daquele tormento, da
tentação, da obsessão que crepitava em cada poro do meu corpo,
urrando para que eu aceitasse.
Ele não me ofereceu amor, era claro, queria mais uma noite,
uma prova de que tudo não foi um sonho erótico partilhado. Ainda
não entendia o motivo da sua necessidade já que não havia
sentimento de sua parte.
Fechei a porta de casa, toda a tristeza que sentia havia
dado espaço para uma euforia descabida, que eu sabia que poderia
me trazer grandes problemas se não mantivesse a razão.
Graças a Allah que ninguém me aguardava na sala, fui para
a cozinha e preparei um chá tranquilizante, precisava acalmar meus
pensamentos e achar uma saída para o que havia acontecido.
Toquei minha boca, ainda sentia a dormência do furor
daquele homem sobre meus lábios. Ele consumia cada parte de
mim, em demasiadas doses que contribuíam ainda mais para meu
entorpecimento.
— Samia. — Girei no lugar, assustada, vendo tia Sila com
seu pijama habitual, braços cruzados e um olhar intrigante.
— Tia.
— Chegou cedo. Achei que levaria mais tempo.
— Saímos antes. Era uma exposição de fotos com cenário
das crianças na Faixa de Gaza, muito triste, fiquei abalada demais.
Não parei de pensar em Zeki e o quanto somos afortunados.
— Tem razão. Quando olhamos em torno deve ser somente
para nos certificar do quanto estamos no lugar que devemos.
— Evet.
— Seu primo exigiu mais algum encontro?
— Não. Por Allah. Acho que em deve partir em breve,
depois de hoje.
— E o que aconteceu para que tivesse tanta certeza?
— Hãm... nada específico. Ele só pareceu mais tranquilo em
relação a minha segurança, tia. É isso.
— Vou providenciar para que você e Eymen se encontrem
mais essa semana. Precisamos ter certeza de que seu interesse
não mudou, assim eu posso procurar a mãe dele em algum
momento.
Senti meu peito se apertar na medida que o balde de água
fria caía sobre a minha cabeça e, a realidade batia com força ao
encontro dos sacrifícios que eu faria para manter meu filho comigo.
— De acordo. — Apertei os lábios. — Vou me recolher, boa
noite, tia.
— Boa noite, minha filha.
Entrei no quarto à meia-luz, Zeki dormia tranquilo no berço,
fui até ele e dei um beijo de boa-noite, tirei o lindo vestido que
lavaria e entregaria a Cemil. Eu não tinha pretensão de usar alguma
outra vez, e duvidava que teria oportunidade.
Minha vida era simples, sem luxo ou requinte, mas eu
estava feliz com isso, desde que mantivesse meu menino seguro,
não me importava com um mundo de ostentações.
Deitei na cama e não me animei para continuar a leitura do
livro que estava lendo. Já era difícil acompanhar um enredo quente
sendo sozinha, pior seria fantasiar com o tormento dos meus
sonhos que havia voltado para me assombrar.

Dois dias haviam se passado sem qualquer aparição de


Cemil. Eu ainda vivia o misto de angústia e alívio, somado a uma
saudade tola que jamais deveria permitir florescer, porém não sabia
como controlar.
Perante as mulheres da casa eu agia com firmeza, seguia
minha rotina, aceitava os conselhos de tia Sila, que por sinal havia
determinado que esta tarde eu não trabalharia, para levar Zeki ao
parque, acompanhada de Eymen.
Eu não sentia a menor vontade de sair, principalmente com
ele, mas precisava continuar, não sabia se Cemil apareceria de
novo, tinha que aproveitar a oportunidade de firmar um
compromisso e finalmente me libertar do passado.
Conferi a bolsa com tudo que precisava para Zeki, Jalila me
ajudou a descer com o carrinho e ao sair me deparei com Eymen de
calça jeans e camisa vinho.
Ele estava cheiroso, os cabelos úmidos demonstravam que
havia tomado banho, fiquei acanhada de súbito, sem saber como
agir. Isso era praticamente um encontro, nada convencional, era
verdade, mas seria a primeira experiência da minha vida.
— Samia, como vai?
— Eymen, vou bem. Obrigada por me acompanhar até o
parque.
— É um prazer levar você e o Zeki para um passeio.
— Divirtam-se. — Jalila bateu as palmas e marchou para a
loja.
Eymen tentou armar o carrinho para colocar Zeki, mas ele
se atrapalhou todo, quase quebrando o pobre coitado.
— Espere. Eu monto. Segure Zeki.
Meu filho foi para o colo do homem de bom grado,
rapidamente montei o carrinho, coloquei a bolsa de utilidades no
cesto embaixo e peguei Zeki o colocando no assento e prendi o
cinto.
— Você é habilidosa.
— Com o tempo a gente acaba se acostumando. É prática.
— Espero ter a chance de treinar bastante. — Engoli em
seco quando seus olhos escrutinavam os meus.
— O tempo dirá. — Sorri de forma que não chegou aos
meus olhos.
“Você precisa se esforçar, Samia.”
— É um ótimo dia para ir ao parque. Ao menos temos um
pouco de sol.
— Concordo.
Passamos a caminhar lado a lado, cumprimentei alguns
clientes conhecidos, sentia o olhar impressionado das pessoas em
nós, comentando sobre Eymen e eu juntos.
Qualquer turco acharia uma loucura o que Eymen fazia.
Nenhum homem na idade de casar se interessaria por uma “viúva”.
— É bom você ter uma folga, Samia. Tem trabalhado muito,
desde que Zeki nasceu.
— Faço tudo pelo meu filho, Eymen.
— Eu sei. E isso me faz admirar ainda mais você.
— É o que se espera de uma mãe.
— Sonho em ter meus próprios filhos, Samia, confesso que
Zeki é uma fonte de inspiração. Ele é um menino esperto, será um
grande homem.
— Que Allah te ouça. Faço qualquer coisa para que meu
filho seja feliz.
— É lamentável que o pai não esteja aqui para vê-lo. — O
flash de Cemil com ele no colo, na sala da minha tia, veio à mente e
fez a culpa intensificar.
O pai o havia visto, não o reconheceu fisicamente, mas a
forma como acolheu Zeki em seu peito, parecia que a conexão do
sangue gritava para ambos.
— Os caminhos da vida são misteriosos, Eymen. Sigo
resignada em minha sorte.
— Sabe que tenho um grande apreço por você, Samia. É
jovem, bonita, trabalhadeira, seu filho é encantador. Seria uma
grande alegria se você aceitasse minha aproximação.
— Eu... evet. É bom ter você por perto, Eymen. — O homem
sorriu e parou no lugar.
— Você me faz um homem muito feliz, Samia. E saberei
valorizar isso por todos os anos que eu ainda tenha de vida.
— Vamos deixar o tempo cuidar das coisas, Eymen. O
casamento de Rania vai acontecer em algumas semanas, só depois
disso poderei falar com tia Sila.
Eu deveria incentivar sua aproximação, mas pensar em
Cemil por perto era demais para lidar. Esperava que até o
casamento da minha prima, o homem que amava em segredo,
tivesse partido.
— De acordo. Não tenho pressa.
Chegamos ao parquinho, Zeki se anima ao ver o
escorregador, retiro o cinto e o pego no colo enquanto ele se bate
com pressa para ir até o brinquedo.
A altura do brinquedo me fez tomar fôlego para erguer o
corpo rechonchudo do meu filho e o colocar no topo do
escorregador. Desci todo o caminho apoiando Zeki por baixo dos
bracinhos.
Repeti o feito umas quatro vezes, ele estava longe de querer
parar e eu já sentia minha lombar protestar de cansaço.
— Deixe que eu assumo. — Eymen ofereceu ao segurar
meu braço.
Passei Zeki para ele de bom grado e me sentei em um
banco de madeira próximo o suficiente para observar os dois
interagindo.
Eymen estava meio desajeitado no começo, acho que nunca
precisou lidar com um serzinho tão pequeno e agitado, mas ele
estava se saindo bem.
Conseguia vislumbrar um futuro, não muito distante, que
momentos como esse fariam parte da nossa rotina. Zeki cresceria
aprendendo a trabalhar e cuidar dos seus, teria um irmão, ou irmã,
quem sabe?
Aquecia meu coração vislumbrar esse cenário, mas causava
também uma melancolia, já que essa realidade prevista, contrastava
com meus sonhos tortuosos no qual Cemil aparecia e levava seu
filho e eu para a vila na Turquia.
Fechei os olhos por um instante, permiti que a loucura
permeasse a mente e viajei na ilusão de uma felicidade que nunca
sentiria.
“Ele te queria, por mais uma noite.”
Abri os olhos e vi Eymen distraído com Zeki, peguei meu
celular do bolso e vi uma mensagem perdida na tela. Meu coração
saltou e não precisei pensar para abrir todo o conteúdo.
“Eu dei o máximo de tempo que meu humor permitiu, Samia,
mas não posso mais me manter longe. Sei que estou pedindo algo
errado, que deveria partir hoje mesmo para quilômetros de
distância, mas eu não quero ir embora sem provar mais uma dose
de júbilo que um dia fui presenteado.
Nunca vivi aquilo com ninguém, somente com você. E não
quero que nenhuma outra pessoa me dê o prazer que só reconheço
em seu corpo.
Estarei na sua porta hoje, logo que anoitecer e vou esperar
até a virada do dia se necessário. É o máximo que aguardarei por
uma resposta sua.
Se aceitar ser minha mais uma vez, farei dessa noite a mais
memorável de nossas vidas.”
— Por Allah... o que vou fazer?
Capítulo 15
“Se você não sente vergonha de nada, então você pode fazer
o que quiser.” (Abu-Masud: Bukhari)

Dispensei o motorista a noite. Entrei no carro e dirigi até a


região mais simples de Londres, estacionei do outro lado da rua e
mirei os olhos na casa de dois andares.
A loja estava fechada, as luzes nas janelas acima
demonstravam que havia movimentação lá dentro e tive que conter
o desejo de descer e bater no portão.
Não recebi nenhuma mensagem sua, nem sei dizer se isso
era bom ou ruim, mas me fazia manter uma esperança tímida de
que ela não seria a parte racional na proposta que eu havia feito.
Era tão errado, tinha ciência disso, só não conseguia me
impedir de continuar ansiando pela sua figura miúda e graciosa
saindo por aquela porta.
Passei um dia de provações, não consegui me concentrar
no trabalho, adiei duas reuniões que exigiriam muito de mim e eu
não estava nada disposto a me dedicar.
Olhei a tela de celular, mais uma dúzia de mensagens de
Ayla que eu resolvi ignorar, como já vinha fazendo. Tinha minhas
próprias demandas para lidar, os problemas e confusões da minha
amiga não eram prioridades.
Quando ergui os olhos para o portão mais uma vez, achei
que estivesse hipnotizado por uma miragem. Samia atravessava a
rua, passos contidos, ela usava os cabelos soltos, que balançavam
com o movimento do corpo.
Havia escolhido um vestido lilás que ia até o pé, conhecia
aquela peça, já tinha a visto usar algumas vezes na vila, sempre
achei que combinava com seu tom de pele.
Desci do carro e contornei a lataria, meus olhos cravados
nos seus, ansioso e em expectativa. Estar aqui era a resposta
positiva para a proposta que havia feito.
— Selam.
— Selam, Cemil. Eu vou com você, mas não posso dormir
fora de casa. Tia Sila... ela não concordaria.
— Eu posso falar com ela, se quiser. — Ofereci, um pouco
chateado por encurtar nosso tempo.
— Hayir. Está decidido. Ou é isso. Ou não será nada. — Ela
segurou meu olhar com firmeza.
— Tamam. Vamos então.
Abri a porta do carro e aguardei que se acomodasse para
fechar. Contornei o veículo e assumi meu lugar ao volante, mais
empolgado do que esperava.
Seguimos todo o caminho em silêncio, sua postura era
defensiva, não parecia nada à vontade de estar comigo. Reorganizei
o que havia planejado, mudei a rota para Westminster e me enchi
de esperanças de que isso faria a velha Samia ressurgir.
— Aonde vamos? — Ela olhava para o monumento que
crescia conforme nos aproximávamos.
— Eu nunca vim aqui, achei que seria uma boa
oportunidade. — Soltei a título de explicação.
Partilhávamos algumas primeiras vezes, Samia era especial
e eu não queria que ela se sentisse mal pelo que aconteceu. Não
era o correto, íamos contra a religião, família, os costumes, mas
quando estávamos juntos algo perfeito se encaixava.
— Essas luzes... é lindo. — Um fraco sorriso brotou em seus
lábios e assim que estacionei o carro ela foi a primeira a descer.
— Mantenha a calma, Cemil. — Soltei para mim mesmo e,
também deixei o veículo.
Caminhamos lado a lado para a fila que se aglomerava, as
pessoas conversavam, animadas, algumas barracas, um parque
itinerante, restaurantes em torno, era um lugar bastante animado.
— Isso é incrível! Por Allah! — Samia agora sorria, lembrava
muito a garota que conheci e isso me acalmou.
— Como consegue morar há mais de um ano em Londres e
nunca ter vindo aqui? — questionei achando graça, mas isso a fez
murchar consideravelmente. — O que foi, Samia?
— Eu só não tive tempo. Desde que cheguei as coisas
ficaram mais conturbadas do que imaginava. Enfim, não era meu
foco.
— Você sempre foi uma garota curiosa, vivia dizendo que
queria conhecer o mundo.
— As pessoas mudam, Cemil.
— Você com certeza mudou.
— Isso é uma crítica? — Ela soltou ao me encarar com ar
provocador.
— De forma alguma.
— E como estão todos na Turquia? — Samia mudou o
assunto quando meus olhos permanecem por tempo demais nos
seus.
Passamos a conversar sobre a rotina da vila, como nada
têm mudanças significativas por lá. Ocultei a parte em que eu mal
havia pisado no lugar desde o casamento de Emir, não precisava
deixar ainda mais evidente o quanto nosso segredo mexia comigo.
Chegou nossa vez de embarcar, a gigantesca roda era
realmente impressionante e estava feliz de desfrutar da experiência
com Samia, que parecia tomada por uma energia vibrante ao
adentar a cabine.
— Estou com medo. — Samia informou rindo. — É tão
empolgante!
Ela bateu palmas e espalmou o vidro que dava uma vista
esplêndida para o Tâmisa. Era grandioso, tomado de uma luz
rosada vinda da roda-gigante, tornava a noite leve e convidativa.
Nossa cabine foi trancada e avançou um estágio, fazendo
Samia girar e permanecer grudada no vidro.
— Allahalla! — Soltou em meio a uma gargalhada e isso me
hipnotizou.
Ela era graciosa, linda, não fazia jogos ou vestia máscaras.
Samia era a essência de verdade e pureza, o que me fazia sentir
ainda pior por tudo que havia feito no passado e o que pretendia
para hoje.
— Está sério demais, Cemil. Tem medo de altura? — Ela
provocou ao caminhar até mim, se escorando pelo vidro.
— Hayir.
— Pois parece que você está sim, com medo.
— Talvez eu esteja, mas não é da altura. — Sua expressão
suavizou e ela finalmente parou diante de mim. — Temo tudo que
carrego dentro de mim, Samia, que não tenho direito de tornar real,
como também não posso apagar feito poeira ao vento.
— Se vive esse conflito tão angustiante, por que dar força a
ele? Seria melhor que voltasse para a Turquia, seguisse com suas
obrigações, assumisse o noivado com a moça, ou qualquer outra
que fosse adequada.
Samia não teve reservas em apontar o óbvio na situação.
Eu não sabia explicar o motivo de ainda não ter ligado para meu
baba, informado que Samia passava bem e eu poderia findar minha
permanência em Londres.
“Por que eu insistia em seguir por um caminho tortuoso que
só prejudicaria a nós dois?”
— Cada coisa tem seu tempo de acontecer, Samia. Por
hoje, sou dono dos meus desejos e resolvi deixar as
responsabilidades para o futuro. Só quero poder me sentir como
aconteceu há mais de um ano.
Minhas mãos criaram vontade própria enredando a cintura
dela e puxando seu corpo ao encontro do meu. Nosso fôlego foi
suspenso, meus olhos miraram sua boca e quando dei por mim,
estávamos nos consumindo em um beijo ardente e entregue.
Ofertei tudo que prendia dentro do peito, deixava evidente a
necessidade de consumir cada parte sua, como um homem
mundano e viciado, queria tragar tudo que ela poderia oferecer.
Minha cabeça girava em um vórtice prazeroso e viciante, era
a dose de esquecimento tomada pelo gosto sublime da sua boca.
Puxei seu lábio macio e afastei o suficiente para manter nossos
narizes unidos.
— Eu só queria que o mundo parasse. Que pudéssemos
ficar aqui pelo tempo necessário para que toda essa loucura se
esvaísse. — Soltei, quase sem ar.
— Não temos o controle dos desejos, mas somos
responsáveis por nossas ações — Samia murmurou, mais cordata
do que eu.
Não queria falar ou pensar em responsabilidades naquele
momento.
Girei seu corpo para que suas costas se encaixassem no
meu peito, estávamos no cume do aparelho, tínhamos a visão
noturna de toda a Londres. Era lindo e grandioso, fazia com que nos
sentíssemos pequenos diante da imensidão.
— É incrível. — A voz de Samia era doce.
Encaixei meu queixo em seu ombro, tombei a cabeça na
direção do pescoço e inalei seu cheiro de essências particular.
— Seu cheiro é maravilhoso.
Samia recua a cabeça e vira, nos encaramos por um breve
momento até eu beijá-la, mais uma vez.
A experiência na roda não dura tempo o suficiente para que
eu canse de beijá-la, descemos do brinquedo e andamos pelo
calçadão de mãos dadas, nunca faria isso, nem mesmo com minha
esposa, mas não estávamos na Turquia.
Permiti que meus ensinamentos fossem jogados em um baú
fundo e escondido, assumi o papel de um homem comum, em um
encontro casual com a mulher que despertava seu interesse.
— O que é isso? — Samia parou diante de um carrinho de
algodão-doce.
— É doce — respondi. — Parecem nuvens açucaradas.
— Jura? — Ela me olhou com os olhos pidões.
— Vou pedir um para você experimentar.
Voltamos a caminhar enquanto Samia devorava o segundo
algodão-doce. Parecia uma criança feliz com sua iguaria nas mãos.
— Prove. — Eu não era muito fã desse doce, mas aceitei. —
Ele some na boca. — Ela informa, maravilhada.
Segurei sua mão antes que se afastasse, chupei a ponta do
seu dedo indicador, que estava rosado com restos de doce e ela
calou de imediato.
— Acho que já podemos ir, Samia. — Não era um pedido,
nem uma ordem, somente a urgência do meu corpo ansiando pelo
seu.
Infelizmente não a teria pelo tempo que desejava, precisava
aproveitar o máximo possível, já que amanhã tudo mudaria, ou não,
na realidade voltaria ao que era antes de reencontrá-la.
A única diferença era que naquela noite criaríamos mais
memórias das quais iriam me torturar por anos a fio.
— Você aceita minha proposta, Samia? — questionei
tomado da necessidade de sua aprovação.
Precisava sentir que ela estava no mesmo barco que eu.
Que éramos conscientes de que tudo o que acontecesse a partir de
agora, faria parte de outro segredo que partilharíamos para sempre.
Capítulo 16
“Diga o que é verdade, embora possa ser amargo e
desagradável para as pessoas.” (Baihaqi)

Eu repensei diversas vezes na decisão que tomei naquela


tarde, mas depois que tia Sila voltou de uma visita rápida até a loja
de embutidos, informando que Eymen e sua mãe nos convidara
para jantar, decidi atender o último apelo da minha alma.
Parecia que as coisas se desenrolariam antes mesmo de
Rania estar casada. O que me deixava mais nervosa e aquela
sensação mínima de sufocamento crescia no meu peito, como se
fosse invadir cada parte do meu juízo.
Disse a tia Sila que encontraria Cemil uma última vez, ele
partiria de Londres, não era uma verdade, mas esperava que o
convencesse a mudar suas intenções depois de hoje.
Eu não fazia isso por me sentir intimidada por sua presença.
A decisão de estar neste quarto de hotel requintado era para me
presentear e punir, ao mesmo tempo, com uma despedida do que
nunca deveria ter acontecido entre nós.
— Quer beber ou comer algo? — Cemil ofereceu ao retirar o
paletó escuro que usava.
Ele virou em minha direção, percebi que passei tempo
demais analisando seu perfil e havia me esquecido de responder.
Sinalizei em negativa, já que não conseguia dizer nada.
— Vou só atender uma ligação e já volto. — Cemil sumiu por
uma porta anexa à sala que estávamos.
Mirei as janelas abertas, os vidros deixavam uma vista linda,
não tão bela quanto da roda-gigante, mas ainda era possível se
perder por horas na paisagem.
Fechei os olhos e respirei fundo, tentava acalmar o alvoroço
que permeava meu estômago, desde que saí de casa.
— Voltei... — Abri os olhos e girei no lugar encontrando um
Cemil sem gravata e com a camisa branca para fora da calça.
Perdi o fôlego pela milésima vez desde que nos
reencontramos, Cemil cortou nossa distância com um único passo e
quando seus olhos pousaram nos meus, deixo todo o medo de lado
e simplesmente me permito voar.
Da primeira vez que aconteceu, estava tão nervosa que não
sabia como agir, por isso deixei a cargo dele tomar cada atitude,
inclusive tirar minha roupa. Mas agora eu queria dar vida ao meu
desejo, tomei a tarefa de abrir os botões frontais do vestido, sem
desviar do seu olhar cobiçoso.
Terminei os botões e removi um lado e depois o outro dos
ombros permitindo que o vestido caísse aos meus pés e revelasse o
conjunto de lingerie preta que guardava com carinho.
Foi um presente de Catarina, na época que passou na vila,
disse para eu guardar e usar quando estivesse com meu marido.
Avisou que instigaria o desejo dele e me deixaria poderosa e bonita.
Era provável que tivesse seu fundo de verdade, já que Cemil
tinha os olhos injetados, as mãos inquietas ao lado do corpo e seu
lábio inferior havia se prendido entre os dentes.
— Você é a coisa mais linda que já tive o prazer de ver. —
Ele ergueu uma mão e acariciou com dorso minha clavícula.
Senti a pele arrepiar com seu toque quente, estava ansiosa,
queria sua boca em meu corpo, como foi da primeira vez.
Ele desceu a mão e eu quase lamentei em voz alta, mas fui
impedida ao perceber seus dedos abrindo a camisa e desvendando
o corpo másculo que ele tinha.
A barriga ondulada, o peitoral amplo, uma fraca penugem
compunham todo o tronco e, duas marcas profundas próximas dos
quadris indicavam sua intimidade, o que me fez ruborizar.
Lembrava-me muito bem do seu membro teso, pesado,
entrando em mim como se tivesse esse direito, e de fato tinha. Eu
havia dado.
Voltei a encarar seus olhos e vi um sorriso cúmplice surgir,
ele sabia bem onde eu estava olhando. Na intenção de equilibrar a
balança, levei as mãos até as costas e soltei o fecho do sutiã, deixei
a peça escorregar por meus braços até se juntar ao vestido no chão.
— Você quer me enlouquecer de vez, Samia. — Cemil ficou
sério e puxou meu quadril ao encontro do seu.
Ele cavou sua intimidade no meu vão ao cobrir meu pescoço
com sua boca esfomeada. Joguei a cabeça para trás deixando que
o alvoroço que permeava minha barriga se expandisse por todo o
corpo.
Éramos um misto de sensações, libertação e desejo
transbordando. Sua boca buscou a minha, minhas mãos apertaram
suas omoplatas, ele puxou minha perna para cima e moeu sua
dureza no meu ponto prazeroso.
A excitação escorria pelo meu canal, meus gemidos já não
podiam mais ser contidos e quando ele mandou que enlaçasse sua
cintura com as pernas, só consegui obedecer.
Meus cabelos formaram uma cortina em torno dos nossos
beijos alucinados. Fui colocada sobre um colchão macio, nem havia
me dado conta de que ele havia caminhado para o quarto.
Ele se afastou a tempo de tirar a calça e a cueca, seus
dedos enroscaram na lateral da minha calcinha e puxaram a única
peça que impedia a completa nudez.
— Eu nunca consegui apagar essa imagem da minha mente
e agora sou afortunado com uma segunda oportunidade. — A voz
de Cemil era rouca.
Ele desceu o tronco, sua mão passou por baixo de mim e
me ergueu, puxando meu corpo para o seu. Seus joelhos
avançaram sobre a cama e eu acompanhava sua movimentação,
escalando junto dele pelo espaço.
Seus dentes cravaram em meus lábios e trilharam um
caminho perigoso pelo meu queixo, pescoço, clavícula, os seios —
que receberam uma atenção especial —, desceu pelas costelas,
beijando, chupando e mordendo, até que pôde encaixar os ombros
no vão das minhas pernas.
— Quero te beijar em todos os lugares. — Cemil soltou, seu
olhar era um misto de devassidão e desejo.
— Faça como quiser.
Cemil sorriu de um jeito que nunca tinha visto, parecia saber
de um segredo que eu estava prestes a desvendar.
Sua boca baixou bem lá, naquele lugar sensível e cheio de
necessidade e quando sua língua deslizou por toda a extensão, eu
estremeci. Segurei os lençóis com força para conter o gemido alto
ao perceber que ele continuaria aquela tortura pecaminosa.
“Isso era muito bom. Era sublime.”
Joguei a cabeça para trás e gritei quando sua boca sugou
meu ponto prazeroso reverberando cada onda de prazer pelo meu
ventre. Meu abdômen contraiu na tentativa inútil de controlar a
sensação que tomava conta do meu corpo exponencialmente.
Ele tornou a repetir os movimentos e eu não consegui conter
aquela sensação avassaladora de tocar as nuvens, deixar o corpo e
levitar pelo fluxo de prazer que escorria por meu canal.
Cemil se afastou quando eu já era uma massa mole e
incoerente ali, alçou minhas pernas e cobriu meu corpo com o seu.
Seu membro encaixou em minha entrada ele arremeteu de uma vez.
— Cemil! — gritei ao segurar seu maxilar com as mãos.
— Birtanem. Era esse lugar que eu deveria estar, cada dia
desde àquela noite. É aqui que pertenço. — Ele recuou e tornou a
entrar, gemi ao senti-lo bater fundo dentro de mim.
Ele assumiu um ritmo firme, suas estocadas eram
poderosas e reivindicavam cada célula do meu corpo, o fôlego
perdido e todos os pensamentos errôneos.
Nosso momento ficaria eternizado em minha mente, a
segunda vez que sucumbimos, sendo ainda melhor que a primeira,
já que agora conhecíamos o corpo um do outro.
Cemil me fez chegar ao cume mais uma vez e me
acompanhou. Sucumbimos juntos, suados, roucos e sem ar. O
prazer escorria de nossos corpos em fluidos quentes e encorpados.
Ressonei em algum momento e fui despertada pela boca de
Cemil em meus seios e seus dedos trilhando um caminho tentador
para meu ventre. Gemi baixo e ele sorriu, nos entregamos de novo
ao prazer, só que desta vez, comigo montada em seu quadril.
Era estranho estar no controle de algo tão íntimo, mas não
me senti envergonhada. O ângulo me permitia ver Cemil sem
qualquer impedimento, seu rosto contorcido pelo prazer, meus
cabelos volumosos caindo sobre seu peito, enquanto me movia
sobre ele.
O grito do meu nome em seus lábios foi o gatilho certeiro
para me fazer estremecer e deixar o prazer tomar do meu corpo.
Tombei para a frente, cansada, meus olhos mal paravam abertos.
— Birtanem... Vamos tomar um banho. Você precisa voltar
hoje, se lembra? — Sua voz era suave enquanto acariciava minha
bochecha.
— Evet... — Soltei e quando tentei descer de cima dele,
seus braços se fecharam ainda mais em torno de mim.
— Não quero que acabe. — Ergui os olhos para encarar os
de Cemil cerrados, o rosto tinha um brilho de suor e estava
levemente ruborizado.
— É preciso, Cemil. O acordo era mais uma noite e nada
mais.
— Podemos continuar nos vendo... Alugo um apartamento
aqui e...
— Cemil. — Eu o Fiz parar e me desvencilhei do seu aperto.
— Tudo que você me pediu eu dei, até mais do que deveria, mas
agora chega. Tenho um pretendente que me quer, mesmo que eu
não tenha nada a oferecer. Preciso seguir com a minha vida e
afundar mais essa lembrança em um lugar escondido da minha
própria mente.
— Você não tem que se casar com o dono de uma loja
qualquer, Samia. — Cemil fechou a cara, nitidamente irritado.
— Jura? — Levantei-me da cama de súbito. — E com quem
eu deveria, Cemil? Você? — Apontei o dedo em sua direção e ele
permaneceu estático.
Nenhuma resposta da sua parte, já era entendimento
suficiente para mim.
— Sou boa o suficiente para uma noite de desejo, mas não
para ser sua esposa.
Saí do quarto atrás das minhas roupas, fui embora logo que
terminei de me vestir, não ouvi qualquer movimento seu para me
impedir.
“Chega, Samia! Agora você vai fazer o que deve ser feito.”
Capítulo 17
“Seja discreto para conseguir o que deseja, pois aquele que é
abençoado, é invejado.” (Tarabani)

Não havia pregado os olhos no dia anterior, sucumbi diante


da raiva que me tomou quando fiquei parado no quarto sem reação
alguma com a declaração de Samia.
Ela era muito mais do que uma noite de desejo, sabia disso,
sentia em cada fibra do meu ser o quanto era valoroso o que
fizemos, sua permissão, era um presente lindo que guardaria para
sempre em minha mente.
Nunca quis dormir com outra mulher antes ou depois de
Samia, era minha forma de valorizar e preservar o que havia
acontecido. A única mulher que tocaria meu corpo, além dela, seria
minha esposa.
Queria mantê-la perto, queria cuidar e zelar por seu futuro,
queria muito mais do que fazer o papel de parente mais velho, mas
eu não podia.
As coisas na família haviam se abrandado depois do
casamento, meus pais nunca, mencionaram nada sobre tornar
Samia esposa de algum Kartal, ir contra a vontade deles era difícil.
“Você a levou para a cama, seu filho de burro!”
Mais uma vez eu desrespeitei sua honra quando sugeri que
mantivéssemos um caso. Minha cabeça estava voltada para o
desespero da sua partida, faria e aceitaria qualquer coisa naquele
momento, só para que ela ficasse.
Estava recluso no escritório desde que cheguei à empresa,
atrasado, diga-se de passagem.
Odiava perder a hora, o que só contribuía com meu humor
nefasto.
Encarei a tela do celular quando vibrou sobre a mesa, era
Haydar e precisei soltar o ar com ainda mais força para acalmar
meu temperamento irritadiço.
— Abi, como vai?
— Irritado. Irei para a Arábia dentro de dois dias. Você
verificou seus e-mails? — ele esbravejou.
— Ainda não tive tempo.
— Mas que merda você está fazendo em Londres que não
foca a cabeça no trabalho, Cemil? Está correndo atrás da priminha
pobretona? — Engoli em seco e permaneci em silêncio. — É isso?
Por Allah, Cemil.
— Estou cuidando de algumas coisas relacionadas a um
pretendente.
— Por que não deixa isso para o pai dela fazer? Quem
deveria se preocupar era nosso baba. Ele já sabe da situação?
— Hayir! Não diga nada Haydar, eu te proíbo. — Soltei,
desesperado.
— Você está enrolando uma corda no próprio pescoço, abi.
Tome cuidado. — Permaneci em silêncio. — Por que não a toma
como esposa de uma vez? Ao menos voltaria a trabalhar direito. —
O ritmo cardíaco, que já era acelerado, aumentou a ponto de bater
em meus tímpanos.
— Não posso. O baba e anne nunca manifestaram vontade
em nos unir e...
— Porque você vivia implicando com ela. Já ouvi anne dizer
diversas vezes que faria muito gosto na união de vocês, Cemil. Não
seja um filho de burro e tome as rédeas da sua vida.
Sentia como se todas as lamparinas da minha mente se
acendessem de uma vez e a clara imagem de Samia vestida de
noiva surgiu como água límpida em meus pensamentos.
Era isso.
Tinha que ser ela, porque diferente do que pensava, eu já
havia me apaixonado, antes de tocá-la, antes de conviver em
matrimônio, antes mesmo de aceitar a possibilidade.
— Na vida, abi, você tem dois caminhos: ser o senhor do
seu destino e tomar decisões pronto para lidar com as
consequências, ou permitir que a vida tenha controle da sua
existência.
— Eu não quero contrariar a família, Haydar. Você tem que
casar antes e...
— Não se preocupe comigo. Eu não serei empecilho da sua
vida matrimonial. É o costume, mas somos os Kartal, podemos fazer
isso.
— Preciso ir para a Turquia, conversar com o baba.
— Então venha. Não deixe a vida passar para se arrepender
depois, abi.
— Mashallah, abi. Obrigado. — Acho que era a primeira vez
que realmente me sentia grato por algo vindo de Haydar.
Meu irmão sempre foi duro o suficiente para não passar a
mão na minha cabeça, nem quando éramos jovens demais.
O jeito dele demonstrar amor era diferente. Sempre voltado
para a força, coragem, enfrentar a todos quando estava convicto de
algo, o que o tornava um vilão da própria história.
Encerrei a chamada com o ânimo revigorado. Havia
esperança, existia uma forma de fazer funcionar, eu só precisava
usar inteligência e calma.
Chamei a secretária e ordenei que comprasse uma
passagem comercial para a Turquia, mandei o motorista preparar o
carro e saí apressado do escritório rumo a minha felicidade.
O carro mal estacionou no meio-fio em frente à loja de
especiarias e eu desci apressado. Entrei no estabelecimento,
completamente vazio, salvo pela senhora de olhar astuto na minha
direção.
— Merhaba, senhora. — Acenei com a cabeça e acalmei
meus nervos. — Preciso falar com Samia. Ela está?
— Samia está ocupada, na casa.
— Eu poderia subir? É realmente urgente.
— Hayir. Não pode. Ela está sozinha, não seria adequado.
— A mulher mantinha o semblante fechado.
— Somos família, tia Sila.
— Eu vejo a forma como você olha para minha sobrinha,
rapaz. Não pense que pode enganar essa velha.
— Afedersin, senhora. Nunca tive essa intenção.
— Samia está praticamente comprometida, Cemil. Já
comecei a tratar com a família. Oficializarão logo após o casamento
de Rania, que acontece em duas semanas.
Senti que o ar dos meus pulmões havia sido sugado. Queria
gritar, esbravejar, dizer que nunca permitiria que a mulher, por quem
eu nutria sentimentos, estaria nos braços de outro.
— Senhora, por favor, tenha um pouco de paciência.
Embarco para a Turquia essa noite, vou resolver algumas questões
de família e conversar com meu baba.
— Não precisamos da aprovação de Osman Kartal para dar
continuidade aos trâmites, rapaz. Meu irmão está ciente do que se
passa com sua filha.
— Não é isso... eu não...
— Cemil, o que faz aqui?
Olhei para a porta dos fundos e a imagem de Samia com o
bebê no colo me fez perder a linha de raciocínio. Seus cabelos
estavam presos para cima, um tanto bagunçados, mas não
desabonava em nada sua beleza.
O garotinho, aquele que vi da última vez, brincava com um
bonequinho, sacolejando para os lados, os cabelos pretos e lisos,
parecidos com os meus quando tinha seu tamanho, me fizeram
pensar em um futuro próximo.
— Selam, Samia. Poderíamos conversar?
— Estou ocupada, trabalhando. — Ela voltou os olhos para
o menino que bateu com a mãozinha em seu rosto. — Não posso
sair.
— É importante. Não vai levar muito do seu tempo.
Samia estava agitada, depois da forma que saiu ontem do
hotel, era natural. Havia ponderado suas palavras, pronto para
acatar sua vontade e realmente partir, mas eu não queria.
Haydar acionou o botão da liberdade e coragem que eu
sempre escondi de mim mesmo, sendo o filho mais novo e
obediente, não deixava minhas vontades tomarem forma para não
decepcionar meus pais.
Eu era um tolo.
— Tamam. — Ela passou por mim e saiu da loja.
— Você deve ter mais do que palavras bonitas para ofertar a
ela, rapaz. — Olhei sobre o ombro, a senhora estava mais séria
ainda. — Para ficar com Samia, precisará enfrentar absolutamente
tudo. Inclusive sua crença.
Continuei encarando a mulher sem entender do que estava
falando. Samia era jovem e solteira, uma turca criada dentro dos
costumes, não dispunha de dinheiro, mas eu não precisava disso.
Catarina também não tinha nada para oferecer
financeiramente e ainda se casou com o chefe da família. Tenho
certeza de que isso não seria empecilho para aceitarem nosso
enlace.
— Não se preocupe, tia. Sei bem o que estou fazendo.
— Espero que realmente saiba, meu jovem.
Deixei a loja com a mesma confiança que cheguei. Não
poderia fraquejar diante do primeiro desconforto. A senhora não
aprovava nosso enlace, tudo bem, mas a decisão não era dela.
Eu tinha o pai de Samia a nosso favor, era um casamento
vantajoso para a família dele, só precisava deixar isso claro para
Samia e saber que ela aceitaria quando fosse questionada.
— Achei que havíamos concordado ontem quando saí do
hotel, Cemil. — Ela soltou em reprimenda.
— Você disse muita coisa, Samia, eu só me calei.
— Seu silêncio foi prova suficiente para mim.
— Eu ponderei bastante o que você disse e peço desculpas
por ter te colocado em um lugar que não é digno. Você é uma
mulher pronta para o casamento, tão certa quanto qualquer outra
moça de família, Samia. Quero firmar um compromisso com você.
Soltei de uma vez, doente por um sorriso que fosse em
concordância, quase entrei em pânico quando a vi recuar um passo,
o cenho franzido e a recusa estampada em seu rosto.
— Cemil, vá embora. Por favor. Siga sua vida, longe, na
Turquia, como deve ser.
— Venha comigo. Eu embarco amanhã para a Turquia, vou
conversar com meu baba e deixar minhas intenções claras. Tenho
certeza de que não irão recusar meu pedido. Você é querida por
eles, Samia.
— Hayir... não. Eu não... — Samia pareceu ainda mais
perdida, seus olhos encaravam outros lugares que não meu rosto.
— Não posso.
— Por que não? É uma jovem solteira, disponível, não tem
compromisso firmado com ninguém.
— Somos de mundos diferentes, Cemil. Sua anne, sou tão
grata a ela por tudo que fez... eu ficaria tão envergonhada.
Desonramos sua casa. — Ela soltou em desespero.
— Samia, isso será corrigido. Ninguém precisa saber o que
aconteceu. Só cabe a nós. — Elucidei o óbvio.
— Não tem como esconder isso, Cemil. Não dá.
— Você está exagerando, Samia. Fique calma. Eu vou para
a Turquia e preparo tudo com meus pais, te busco assim que passar
o casamento de Rania. Manterei contato por mensagem.
— Cemil, não...
— Eu me decidi, birtanem. Nós construiremos uma família.
Ver esse menino em seu braço só me faz pensar em como será
quando for o nosso.
Lágrimas verteram dos olhos de Samia quando ela
finalmente focou seus olhos em mim. Ela abriu a boca para dizer
algo, mas nada saiu.
— Não tenha medo. Eu vou cuidar de você. — Aproximei o
suficiente para beijar sua testa e acariciei a cabeça do menino
quando me afastei. — Espere por mim, Samia. Voltarei para te levar
como minha esposa.
Parti em seguida, enquanto deixava a surpresa conter suas
reações. Não estava pronto para ser rechaçado, daria tempo para
ela assimilar tudo e perceber, assim como eu, que nascemos para
ficarmos juntos.
Capítulo 18
“Deus não olha para a sua aparência ou suas posses; mas
Ele olha para o seu coração e suas obras “(Abu Huraira: Muslim).

Sentia que meu coração saltaria pela boca a qualquer


minuto. Corri para dentro da loja e entreguei Zeki nas mãos de tia
Sila, subi a escadaria com pressa e voei até o banheiro.
Tive tempo de erguer a tampa do sanitário e coloquei tudo
para fora de uma vez. Meu corpo tremulava enquanto meu
estômago protestava contra a ânsia.
— Por Allah, o que aconteceu? — Rania apareceu na porta
do banheiro. — Vou preparar um chá para você.
— Eu estou bem. — Soltei, cansada. — Acho que ficarei
bem. — Levantei-me e lavei o rosto e a boca na pia.
— Você está mais pálida do que cera de vela, Samia.
Venha. — Rania me pegou pela mão e me colocou sentada na
cadeira da mesa. — O que houve? Onde está Zeki?
— Na loja, com tia Sila.
— Jalila! — Rania gritou pela irmã que apareceu um
segundo depois. — Desça e fique com a anne na loja. Ela está
sozinha com Zeki.
— E por que a Samia não faz isso? O filho é dela. — A
garota retrucou.
— Allahalla! Faça logo o que estou mandando, Jalila —
Rania esbravejou e a garota saiu da casa batendo a porta.
— Ela tem razão, Rania. Eu que preciso cuidar do meu filho.
— Você vai ficar sentada aí até tomar o chá e me dizer o
que te deixou desse jeito.
Encarei o olhar determinado da minha prima, seu jeito era
muito parecido com tia Sila, tinha certeza de que seria uma mulher
firme e coerente em seu casamento.
Abri a boca e despenquei todas as minhas angústias,
segredos, relatei absolutamente tudo que aconteceu na noite do
casamento de Emir. Até antes, sobre a paixão que nutria desde que
coloquei meus olhos em Cemil.
Rania ouviu tudo sem emitir um som que fosse, não sabia o
quanto da minha vergonha a havia chocado. Ela era tão nova,
inexperiente, não era certo encher seus pensamentos com minhas
vergonhas.
— Ele querer se casar é bom, não é?
— Hayir, Rania. Como vou mostrar Zeki?
— Conte a verdade, kuzen. Tenho certeza de que Cemil vai
compreender.
— Como vou lidar com a vergonha? Tia Kara, tio Osman,
quando souberem... meu baba. Por Allah.
— Deveria se preocupar em como vai contar para Cemil que
ele já é pai.
— Allahalla! Kuzen, não sei como fazer isso. — Senti meu
rosto banhar em lágrimas. — Ele pode me odiar.
— Claro que não vai, Samia. Ele parece ser um homem
cordato.
— Minha relação com Cemil nunca foi equilibrada ou calma.
Ele pode usar meu segredo para me punir. Levar Zeki para longe.
Não posso... eu não...
— Ei, por Allah. Acalme-se. — Rania cobriu minhas mãos
com as suas.
— O que eu vou fazer? Ele vai para a Turquia manifestar
seu interesse em mim.
— Allah sabe o que faz, Samia. Deixe que o curso do rio
mostre o caminho.
Respirei fundo algumas vezes acalmando minhas emoções.
Era incrível como meu sonho mais intenso se concretizava e
me deixava completamente apavorada. Achei que teria coragem
para enfrentar tudo que escondi, encarar minha vergonha perante a
todos em nome do meu amor, mas eu não estava.
Aceitar um compromisso com Eymen era a certeza que nos
manteríamos em Londres, longe o suficiente da vila e da família.
Contaria a verdade para meu marido e com seu apoio diríamos a
eles que Zeki era filho dele e não meu.
Poderia ser qualquer outra coisa, até mesmo a verdade, de
que Zeki pertencia somente a mim, ainda era mais fácil do que viver
sob o teto daqueles que envergonhei.
Demorei para descer até a loja, Jalila estava com um bico
enorme, descontente por ter que cuidar de Zeki no dia que
teoricamente era sua folga.
Tia Sila não mencionou nada, nem uma palavra que fosse,
mas mantinha aquele olhar de águia sobre mim o tempo todo. Sabia
que em algum momento conversaríamos, a forma como me
encarava deixava claro que Cemil havia mostrado sua intenção em
me desposar.
— Samia, ainda bem que te encontrei aqui. — Olhei sobre o
ombro e vi Eymen parado no marco. — Pequeno Zeki, como vai? —
Ele brincou com meu filho que esperneou no meu colo.
— Filho, acalme-se — disse ao me aproximar e Eymen
esticar as mãos para pegá-lo.
Por alguns segundos relutei. Lembrei-me que mais cedo
Cemil externou seu desejo de ter um filho, acariciou a cabeça do
meu pequeno, inconsciente de estar diante do seu sangue.
Eymen correu os olhos de Zeki para mim, despertei da
minha culpa e passei o garoto agitado para o homem em
expectativa. Eles brincaram um com o outro, aquela cena deveria
me comover e acalmar, mas causava uma sensação controversa na
boca do estômago.
— Quero convidar você e sua família para jantar em casa
amanhã. Minha mãe vai preparar algo especial. — Demorei demais
para responder e ele me encarou. — Está tudo bem?
— Ah, evet. Evet, nós iremos.
— Que bom. Minha anne ficará muito feliz.
— O casamento da minha Rania acontece em duas
semanas, Eymen. Espero que logo após a festa possamos tratar do
futuro de Samia. — Olhei sobre o ombro para ver uma tia Sila muito
determinada.
— Claro, senhora. É um tempo perfeito. — Eymen me
direcionou um sorriso acolhedor e eu tentei retribuir sem muito
sucesso.
— Preciso subir. Me dê ele. — Sinalizei com as mãos e meu
filho voltou para meu colo. — Nos vemos amanhã. — Soltei sem
encarar Eymen e subi a escadaria.
Coloquei Zeki no cercado e fui aprontar sua comida. Rania
havia saído com Jalila de companhia para comprar algumas coisas
do enxoval. Teria um minuto de paz no meu dia perturbador,
finalmente.
Foquei meus esforços em Zeki, banhei, tratei, adormeceu
em meus braços, o deixei no berço e quando saí do quarto e fui
para a sala encontrei tia Sila sentada com sua caixa de costura, os
óculos baixos, presos na ponta do nariz e a atenção em um
bordado.
— Podemos ter nossa conversa agora, Samia? Ou pretende
continuar fugindo da verdade?
— Não sei do que está falando, tia.
— Vamos começar pelo fato de esconder que Cemil Kartal é
o pai de Zeki. — Endureci no lugar, minha respiração engatou e
precisei de um esforço sobre-humano para manter a firmeza.
— De onde tirou isso, tia?
— Só um tolo para não perceber as semelhanças de ambos
quando estão juntos. Zeki é a mistura perfeita entre ele e você. Me
admira ele não ter visto isso ainda.
— O que espera que eu diga?
— Nada. Mas quero saber o que pretende fazer quando ele
voltar da Turquia. O homem está determinado a te desposar, Samia,
o que não é uma má ideia.
— Hayir, tia. Não posso assumir isso para os Kartal.
— E vai continuar escondendo o filho dele? Acha isso
correto, Samia?
— Nada nessa história é correta, tia. Só quero uma solução
viável.
— Você quer o mais fácil, menina. Só que a vida nos exige
coragem para enfrentar as consequências. Amanhã iremos até uma
família turca, de bom histórico, Eymen assumirá um compromisso
sem saber que não se casa com uma viúva.
— Eu vou contar a verdade.
— Quando? Depois do casamento?
— A senhora que sugeriu toda a mentira quando me mudei,
tia. Por que me atormenta agora?
— Porque a verdade não batia a sua porta como agora,
menina. Eu estou fazendo o papel da sua consciência, te
despertando para o que é correto.
— Eu nem sei se Cemil falou a sério, tia. Ele foi para lá, mas
conheço aquele homem. Quando seus pais negarem a possibilidade
do enlace, ele vai desistir. Cemil não enfrentaria a família por mim.
— Talvez saber que tem um filho o motivaria.
— Não quero que ele me assuma como uma
responsabilidade.
— Você fantasia demais, Samia. A vida é mais objetiva que
isso.
— Nada do que sonhei aconteceu, tia. Ao menos, não como
eu gostaria. Errei com a família, os costumes, pago pesadamente
pelo preço, mas não quero expor meu filho. Voltar para a Turquia
como uma traidora que se deitou com um dos líderes da família,
carregar um filho bastardo nos braços. Zeki não precisa disso.
— Se aquele homem te quiser de verdade, Samia, não vai
permitir que digam nada a seu respeito.
— Eu não vou criar nenhuma ilusão, tia. Prefiro seguir com o
plano, em duas semanas muitas coisas podem acontecer. Não vou
assumir esse risco.
— Suas escolhas, seu destino. Depois não reclame por
Allah não olhar por sua felicidade.
— Eu não reclamarei. — Acenei e fui para a cozinha.
Fiz minha refeição por força do hábito, não sentia fome
alguma, mas aquele mal-estar somado a uma ansiedade por
qualquer sinal de vida de Cemil estava me deixando doente.
Voltei para o quarto e meu celular apitava com diversas
mensagens, corri até ele e abri rapidamente ao ver o nome de Cemil
na tela.
Cemil – Birtanem, cheguei em Istambul agora. Já telefonei
para meu baba, vamos conversar amanhã, assim que ele retornar
da Capadócia.
Samia – Cemil, siga com sua vida. É o melhor.
Cemil – Não tenha medo, birtanem. Sei que meu baba ficará
feliz com a notícia. Acredito nisso.
Samia – E se ele não gostar, Cemil? Se sua anne for
contra? O que você fará?
Demorou certo tempo para a resposta chegar.
Cemil – Eles vão concordar.
Soltei o celular e joguei o corpo sobre o colchão fechando os
olhos.
Uma vida inteira amando um único homem e sonhando com
o tão almejado pedido de noivado. Quando dormimos juntos
finalmente acreditei que viveria o amor que tanto almejei, mas ser
dispensada em seguida, ver o medo e a vergonha nos olhos de
Cemil, me desacreditou de qualquer possibilidade.
Eu queria acreditar, mas não sentia que era verdadeiro.
Capítulo 19
“Diga o que é verdade, embora possa ser amargo e
desagradável para as pessoas.” (Baihaqi)

Desembarquei em Istambul era tarde o suficiente para


encontrar as ruas vazias, tranquilas, o que contrastava demais com
meu humor agitado.
Fui direto para o apartamento que tínhamos na cidade,
tomei um banho quente e relaxante, precisava me acalmar, um bom
negociante deveria manter a calma para conseguir o que pretendia.
Quando retornei para o quarto encontrei Ayla sentada na
beirada da cama, usava um robe de seda rosa, os cabelos presos
para cima, a maquiagem no rosto mostrava que estava fora até
pouco tempo.
— Merhaba. — Ela soltou. — Precisamos conversar.
— Estou cansado, Ayla. Deixaremos isso para amanhã. Na
verdade, não esperava te encontrar aqui.
— Depois que me apunhalou pelas costas, amigo? — Seu
tom reprovador me fez endurecer a postura.
— Eu te dei tempo suficiente pra resolver suas questões,
Ayla. Encontrei seu pai em Londres, estava animado demais com
nosso noivado. Pensei que tivesse deixado claro para ele que isso
não passava de uma confusão.
— Eu disse a você que precisava de tempo para resolver
com ele. O escândalo me deu alguma vantagem.
— Para quê? Fechar bons negócios? Você pode conseguir
isso ainda com o apoio da Kartal, não se preocupe.
— Não tem a ver somente com os negócios na Turquia,
Cemil. — A postura altiva de Ayla caiu, consideravelmente, e isso
me fez acalmar o humor irritadiço.
— O que está acontecendo, Ayla?
— Meu pai está forçando um casamento por conveniência.
— O quê? Seu pai? Ele nunca teve esse tipo de postura
com você.
— Os negócios vão mal. Teremos que fechar dois hotéis no
próximo trimestre. Tudo pelo que nossa família trabalhou será
jogado no ralo, Cemil, a única solução seria alavancar as coisas na
Turquia, migrar para cá, mas apareceu alguém interessado.
— Quem?
— Um sheik. Na Arábia Saudita.
— Bok! — Soltei de imediato. — Desculpe. Eu... Isso é bem
ruim.
— Tenho que concordar. Ele havia parado as negociações
quando viu nosso nome atrelado nos jornais. Trabalhei feito uma
maluca para conseguir fechar algo concreto na Turquia, salvar parte
do patrimônio, uma nova vida, quem sabe, com muita sorte,
conseguiríamos nos reerguer.
— Nada do que você faça vai se comparar a fortuna de um
sheik, Ayla.
— Eu sei... eu. Não sei o que fazer, Cemil. — Ayla cobriu o
rosto com as mãos e começou a chorar.
Fui até meu armário, vesti uma camiseta, ainda de toalha,
retornei até ela e me ajoelhei, puxei suas mãos e a encarei. Seu
rosto banhado em lágrimas era uma versão de Ayla que não
conhecia.
— Acalme-se. Vou falar com seu pai e ganhar algum tempo.
— Eu tenho que me casar, Cemil. Preciso firmar um
compromisso para não ser arrastada até um casamento
completamente opressor. Eu nunca mais poderia trabalhar com o
que amo. — O sofrimento em seu semblante partiu meu coração.
— Mesmo que eu mantivesse a mentira, Ayla. Isso não
duraria tanto tempo. Logo seríamos cobrados e...
— Poderíamos nos casar. O que acha? Assumiríamos um
compromisso, você pode viver sua vida particular, Cemil, não me
importo. Só me deixe trabalhar. Eu amo o que faço, mais do que
qualquer outra coisa.
— Ayla... — Levantei-me de súbito e me afastei.
— Eu não pediria isso a você se não fosse tão importante.
— Por que não vai embora? Fuja. Vá reconstruir sua vida
em outro lugar. Emir está no Brasil, tenho certeza de que ele te daria
abrigo. — Virei-me para ela de súbito, com uma solução que era
descabida para nossos costumes.
— Você sabe muito bem que não posso fazer isso. Não é o
correto. Largar tudo que foi construído por meu sangue, renunciar
as minhas crenças? Seria pior do que o sacrifício de me casar com
um sheik.
— Tem razão. Eu não deveria ter sugerido isso.
— Meu pai ficou furioso quando viu a nota emitida pelo seu
RP. Se sentiu enganado por nós dois, marcou um jantar com o tal
sheik para daqui três dias.
— Seu pai ainda está em Londres?
— Hayir. Embarcou hoje para a Turquia. Já deve ter
chegado em Istambul.
— Você estar aqui só vai piorar as coisas, Ayla.
— Eu sei, Cemil, mas não tenho mais solução. Eu não quero
me casar com aquele homem.
— Não consigo pensar em uma forma de te ajudar, Ayla.
Sinto muito.
— Por que não aceita minha proposta?
— Não posso.
— Por qual motivo? Não seremos um casal convencional,
ainda terá sua liberdade, desde que longe das vistas dos outros.
Podemos ser parceiros pela vida toda, Cemil.
— Eu quero mais que isso, Ayla. — Girei o corpo em sua
direção, determinado. — De todos os Kartal, eu sempre fui o que
queria as coisas certas. Seguir a tradição, os costumes, encontrar
uma mulher digna e construir um relacionamento pautado no
respeito, carinho e com um pouco de sorte, amor.
— Tudo bem. Posso fazer isso. Se é o que quer. Posso ser
sua esposa.
— Não, Ayla. Você não pode. — Fui até ela, segurei suas
mãos e a ergui. — A verdade é que você tem força o suficiente para
seguir sua vida, como bem entender, mas te falta coragem. Assim
como faltou para mim durante um longo tempo da minha vida.
— Do que está falando?
— Eu estou apaixonado, minha amiga. Esse foi o principal
motivo de eu mandar soltar a nota. — Seus olhos se alarmaram e
ela me abraçou com empolgação.
— Cemil, não acredito. Que coisa maravilhosa! Allahalla!
Endureci o corpo, incomodado. Estava seminu, em meu
quarto, com a minha melhor amiga pendurada no meu pescoço. Se
minha anne visse isso, eu tomaria uma surra de vara sem piedade
alguma.
— Desculpe, Cemil. Eu... — Ela se afastou, sorridente. —
Estou tão feliz por você. Já pediu a mão dela?
— Hayir. Vou conversar com meu baba, amanhã.
— Tenho certeza de que ele vai concordar. Você é um bom
homem, deve ter feito a escolha certa.
— Acho que fui escolhido, sem ao menos perceber. — Meu
coração se encheu de ternura ao relembrar o sorriso de Samia.
— Bom, espero ser convidada para esse casamento. — Ela
se afastou limpando o rosto das lágrimas derramadas.
Ayla tentava disfarçar sua tristeza. No fundo, ela era uma
boa pessoa, sempre gostou de trabalhar e ter sua independência,
era uma pena tudo que estava caindo sobre seu colo.
— Ayla, vamos dar um jeito. — Soltei, determinado.
— Não tenho tantas esperanças assim, Cemil. Amanhã vou
para um hotel. Não é certo eu ficar na casa de um homem
comprometido. — Ela deixou o quarto em seguida.
Terminei de vestir o pijama e deitei a cabeça no travesseiro,
menos feliz do que gostaria de estar. Nossa amizade era muito
valiosa para mim, juramos ajudar um ao outro por toda a vida, só
não fazia ideia de que o auxílio poderia custar minha felicidade.

A manhã chegou antes do que eu desejava, não tinha


pregado os olhos durante a noite e custava a acreditar que minha
amiga havia conseguido descansar.
Troquei de roupa, coloquei meu terno de três peças, iria
para a empresa cuidar dos negócios, meu baba estaria de volta
somente no final da tarde, precisava ocupar minha mente para não
sucumbir à ansiedade.
Cheguei à sala e vi um conjunto de malas pink próximo da
saída, soltei o ar com pesar e fui para a área das refeições vendo
que Ayla estava perfeitamente arrumada, alinhada e incrivelmente
imponente.
— Günaydin, Ayla.
— Günaydin, Cemil. Dormiu bem?
— Nem um pouco.
— Sofremos da mesma sorte, então.
— O que pretende fazer?
— Vou aceitar meu destino, amigo. Meu pai marcou comigo
no final da tarde, provavelmente quer tratar das negociações e
trâmites com o futuro pretendente.
— Ayla... você pode...
— Hayir. Não posso. Assim como você, Cemil, sou uma
turca que honra a família e os costumes. Não deixarei minha família
sucumbir à falência. Sou uma Bal e irei preservar meu sangue.
— Tamam.
Tomamos o café em silêncio, o clima já não era dos
melhores, mas tinha que admitir, a mulher a minha frente se
segurava como uma verdadeira guerreira.
Ofereci uma carona até seu hotel, ela aceitou e descemos
os elevadores juntos. Pedi que o motorista nos pegasse em frente
ao prédio, era mais fácil para o percurso.
Cheguei à empresa com uma imensidão de serviços para
dar conta. A exportadora não esperaria que eu resolvesse os meus
problemas emocionais para atender as demandas.
O trabalho dignifica o homem e, é uma boa distração para
que eu não olhe o celular a cada minuto esperando por uma
mensagem dela.
Cemil – O que está fazendo?
Tomei coragem e enviei mordiscando o canto do dedo,
ansioso.
Samia – Trabalhando.
Cemil – Na loja ou olhando a criança?
Samia – A criança tem nome, Cemil. É Zeki.
Cemil – Tamam. Eu não me lembrava.
Samia – Não é relevante para você.
Cemil – Por que está brava comigo?
Samia – Não estou.
Cemil – Não é o que parece.
Samia – Precisa de algo, Cemil? Estou ocupada aqui.
Cemil – De você. Em meus braços, mais uma vez.
Samia – Só mais uma?
Cemil – Sim. Só que dessa vez será para sempre.
Senti meu peito se agitar em uma cavalgada de cavalos
puro-sangue. Meu corpo despertou e, sonhar acordado com o mar
de possibilidades me fazia suspirar.
Eu levaria Samia para conhecer o mundo, realizaria todas
as suas vontades, a tornaria a mulher mais feliz. Faríamos amor em
todos os lugares possíveis, veneraria seu corpo e, com muitas
bençãos, observaria sua barriga crescer com todos os filhos que
teríamos.
Nada me impediria de ser feliz.
Capítulo 20
“Um pai dá a seu filho nada melhor do que uma boa
educação.” (Tirmidhi)

Meu baba mandou uma única mensagem no meio da tarde,


informou que estava em Istambul, no apartamento e me aguardava
para conversarmos.
Era estranho, já que sempre me ligava e passávamos horas
no telefone discutindo assuntos aleatórios, mesmo que fossemos
nos ver em algum momento do dia.
Fui para casa assim que sua mensagem chegou, paciência
era uma das virtudes que eu havia abandonado, junto do bom
senso, quando sucumbi ao prazer carnal, do qual não me
arrependia, com Samia.
Sentia meus nervos crepitarem por todo o corpo, nunca
havia tido qualquer tipo de conversa com senhor Osman Kartal, que
sugerisse qualquer vontade ou desejo que ele já não fosse de
acordo.
Motivado pelo comentário de Haydar, me joguei na
possibilidade de eles quererem o casamento com Samia, mas a
realidade me batia fortemente e a pergunta da garota, que parecia
ser mais sábia do que eu, retornou a minha mente: “E se eles
fossem contra?”
Ao entrar no apartamento percebi uma movimentação muito
maior do que o comum. Meu baba estava em sua poltrona de
costume, seu assistente pessoal atrás, um tanto afastado, minha
anne em outra cadeira, sorriu afetuosa ao me ver.
Havia três pessoas de costas, reconheci as vozes em
automático e enruguei o cenho ao me perguntar as inúmeras
possibilidades de estarem tomando chá com os Kartal.
— Meu menino. Finalmente chegou. — Minha anne,
caminhou até mim e me abraçou apertado. — Filho, senti tanto sua
falta na vila. Até parece que esqueceu de sua anne. — Ela se
afastou e acertou meu braço com um tapa.
— Anne. O que faz aqui?
— Isso é coisa que se diga a sua mãe, Cemil? — A voz
imperiosa de meu pai cresceu no ambiente. — Venha até aqui.
— O que está acontecendo, anne? — questionei baixo, o
coração apertado, prevendo que algo daria muito errado.
— Seu baba finalmente resolveu toda a questão do
escândalo.
— Cemil, não me faça esperar. — Olhei sobre o ombro de
minha anne e vi o baba com um olhar astuto em nós. — Hádi[27]!
Não temos a noite inteira.
Desvencilhei minhas mãos da senhora a minha frente e
caminhei, cauteloso, até a área aberta da sala, fitando as figuras
que conhecia de longa data: Serkan Bal, Canan Bal e Ayla, minha
melhor amiga.
— Cumprimente nossos amigos. — Meu pai ordenou
quando permaneci tempo demais encarando a todos, sem saber
como agir.
— Claro, desculpem. Como vão? Senhor — Acenei com a
cabeça para o homem que me encarava altivo. — Senhora Bal,
como vai? — Ela acenou mais amistosa. — Ayla.
— Oi, Cemil — ela respondeu amena, mas seus olhos
desviaram dos meus rápidos demais.
— O que os trazem à Turquia? Finalmente abrirão o hotel?
— Permaneci em pé, algo me dizia que logo eu estaria bastante
inquieto.
— Vai acontecer, graças a Kartal. — Virei para meu baba,
que mantinha sua postura de mais velho e senhor de toda a família.
— Já conversei com Emir, como líder pedi seu aval.
— Isso é ótimo. Bal e Kartal serão sócios. — Forcei um
sorriso que estava bem longe de ser feliz.
— Seremos mais que isso, filho. Você e Ayla se unirão em
matrimônio, nossos sobrenomes se tornarão uma família. — Levei
alguns segundos para processar tudo que acabara de ouvir.
Algo dentro de mim se partiu por completo, era meu
coração. A pancada que sofri foi tão forte que minhas pernas
fraquejaram e precisei apertar os punhos em busca de forças para
não sucumbir.
Séculos de ensinamentos, aprendizados, cultura e
obediência, pesavam sobre as minhas costas, fez os flashes de
todas as desavenças que meus pais tiveram que lidar entre Emir e
Haydar brotarem na minha mente.
As lamúrias de minha anne, chorando pelos cantos pela paz
que nunca habitava a vida dos Kartal, o luto empregado no rosto do
meu irmão mais velho e meu primo. A tristeza de meu pai que
carregava o fardo de lidar com todos e não deixar que a família
sucumbisse à desgraça.
Senti uma ânsia brotar no fundo do estômago e quase me
afogar, sufocando tudo que reverberava em meu peito, desesperado
para sair, se libertar e gritar para o mundo que essa situação toda
estava muito errada.
— Vocês já estamparam todas as capas dos jornais da
Turquia, mesmo. Melhor que oficializemos tudo de uma vez. —
Senhor Serkan tinha um sorriso genuíno, e vitorioso, diga-se de
passagem, estampado no rosto.
— Ah, meu menino vai se unir. Não acredito. — Minha anne
se aproxima beijando meu rosto. — Melhore sua feição, Cemil — ela
sussurrou discretamente para que somente eu ouvisse. — Ayla,
você será minha filha. — Ela se voltou para minha amiga que não
tinha um semblante tão melhor do que o meu.
— Seremos uma família muito próspera, Cemil. Estou te
entregando meu maior tesouro, espero que valorize e cuide de Ayla
como ela merece.
O senhor levantou e se aproximou segurando meus ombros,
deu dois beijos no meu rosto antes de cobrir meus ombros com um
braço e rir abertamente.
— Acho que seu filho ficou sem palavras, Osman. — Ele
nos virou para meu baba que permanecia sentado e muito sério.
— Cemil, de todos os Kartal, sempre foi o que mais queria
se casar. Achei que faria o casamento de Haydar antes dele, mas o
curso da vida nos leva para algumas situações que precisam ser
consertadas. — O olhar mordaz de meu baba deixava claro que ele
não tinha ficado nada contente com o escândalo.
— Devemos manter os olhos de águia para enxergarmos as
oportunidades, meu amigo. Sempre disse isso a minha filha. —
Olhei sobre o ombro e mirei Ayla, que tinha os olhos cravados em
mim.
— Se me derem licença, quero conversar com minha...
prometida — informei ao me afastar do senhor Bal.
— Evet. Vocês logo estarão noivos, podem conversar. — O
pai dela informou quando eu já caminhava em direção a Ayla.
— Venha comigo — solicitei cortante ao tomar rumo para o
escritório.
— Com licença. — Ayla sorriu para as mulheres ao seguir
meus passos.
— Feche a porta — avisei assim que passei para dentro do
cômodo e comecei a andar de um lado para o outro, feito um animal
enjaulado. — Bok! O que significa tudo isso, Ayla?
— Eu estou tão surpresa quanto você, Cemil.
— Você armou esse golpe com seu pai? Diga a verdade. —
Apontei o dedo, acusatório, em sua direção.
— Hayir. Claro que não. Como pode pensar isso de mim? —
Minha amiga cruzou os braços diante do corpo, chateada.
— Como eles fizeram isso? Quando?
— Meu pai disse que falou com o seu, logo depois de vê-lo
no restaurante com uma turca muito bela, em Londres. Acredito que
você estava com sua amada.
— Evet. Eu estava. — Fechei os olhos e apertei o osso
entre meu nariz e sobrancelhas, sentia uma dor de cabeça se
aproximar. — Não entendo. Estava tudo certo. Eu falaria com meu
baba hoje, deixaria claro a minha intenção.
— Você ainda pode resolver isso, Cemil. Diga não.
— Como vou desrespeitar a palavra do meu baba? Ele se
comprometeu com o seu.
— Posso dizer ao meu pai que aceito o sheik. Isso
resolveria o problema. — Ayla desvia os olhos para um canto escuro
do escritório.
Meu peito se apertou ainda mais. Sabia bem o que seria do
futuro de Ayla se aceitasse ser esposa de um sheik. Confinada em
uma gaiola de ouro, perderia toda sua individualidade e referência e,
eu viveria com o peso de ter dado a ela esse destino cruel.
“Por Allah, como eu poderia ter me tornado responsável pela
infelicidade da minha melhor amiga?”
— Nunca faria isso com você, Ayla. — Ela voltou seus olhos
nublados de lágrimas contidas, seu choro veio em seguida, baixo,
controlado e muito sentido.
— Me desculpe, Cemil. Por Allah, eu não queria isso. Eu
não... — Ela soluçou e eu fui até ela envolvendo seu corpo em torno
dos meus braços.
— Nós somos vítimas do destino, Ayla. Não tem que se
desculpar.
— Mas e seu grande amor? O que vai fazer? — Respirei
fundo e soltei o ar devagar.
— Há coisas na vida que simplesmente não são para ser.
Fechei os olhos e tentei, sem qualquer sucesso, sufocar o
desespero que permeava minha mente e coração.
Às vezes, nós montávamos um plano, queríamos coisas,
pessoas, lugares, sonhávamos, mas a vontade divina nos
encaminhava para nossas responsabilidades.
Essa era maior do que todas as vontades. Estava atrelado
aos ensinamentos, ao respeito e ao amor com aqueles que nos
concedeu a oportunidade de vir ao mundo.
Ao que parece, Samia me conhecia melhor do que a mim
mesmo. Ela sempre soube que no final, nós continuaríamos
separados e que eu não iria contra a vontade da família.
Talvez, se eu tivesse falado, se tivesse demonstrado
interesse, ligado para meus pais de Londres, externado meu desejo
de desposar Samia, tudo fosse diferente agora.
Mas chorar sobre o balde entornado não vai ajudar a secar
em volta.
Fui tomado pelo egoísmo de um sentimento recém-
descoberto. Por luxúrias mundanas que não deveriam habitar o
coração de um homem de bem. Não enxerguei que o homem da loja
de embutidos, poderia sim ser a melhor opção para Samia.
Havia investigado sua família, não encontrei nada irregular,
que impedisse o matrimônio ou comprometesse a honra da família
de Samia.
Tudo estava encaminhado, como o curso da vida gostaria
que fosse.
Capítulo 21
“Não sejais como os hipócritas, que, quando ele fala, diz
mentiras; quando ele faz uma promessa, ele rompe com ela; e
quando ele é de confiança, ele prova ser desonesto. “(Bukhari e
Muslim)

Acordei mais sorridente esta manhã, apesar dos meus


esforços em me convencer que esse era o meu normal, no fundo eu
sabia que não. Todo meu bom humor estava ligado à resposta que
Cemil me deu por mensagem.
Ele não disse quando a conversa com seu baba
aconteceria, tio Osman era um homem muito ocupado, vivia em
viagens por toda a Turquia, principalmente, mas esperava, para o
bem da minha ansiedade, que ele não demorasse muito.
Estava embalando alguns temperos secos quando a porta
da loja abriu e eu vi Eymen caminhar até a bancada. Confesso que
precisei manter o semblante alegre, mas não queria deixá-lo pensar
que era por ele.
— Selam, Samia.
— Selam, Eymen. Já falo com você — avisei terminando de
empacotar o embrulho da cliente.
Ainda estava incerta sobre cancelar o jantar de mais tarde,
mas não caberia insistir em algo, se meu tolo coração me jogava
para o homem que sempre amei.
Era muito cedo para dizer o que seria de Cemil e eu, nem
sabia se tio Osman daria sua benção ou não para nosso
compromisso, mas até obter essa resposta, não queria alimentar as
esperanças de alguém que só quis o meu bem.
— Você trabalha tão bem e alegre, Samia. Poderia passar o
dia vendo-a assim.
— Ora, Eymen. E eu só trabalharia enquanto você
descansava? É isso mesmo? — Fiz uma brincadeira para
descontrair sua tentativa de flerte.
Eu sempre ficava nervosa em interagir com o sexo oposto.
Não tinha qualquer experiência, nem sabia como me portar diante
do elogio, era mais fácil fazer uma piada e encerrar o assunto.
— Eu nunca permitirei que se esforce demais, Samia. Quero
que seja a sultana do seu lar. — Ele deslizou a mão pelo balcão e
capturou a minha. — Estou muito ansioso por hoje à noite.
— Ah... é... infelizmente não poderei ir. Zeki está
impertinente demais, não quero deixá-lo com minhas primas.
— O que ele tem? Precisa de hospital, um médico? Posso
chamar um. — Ele pareceu genuinamente preocupado e isso
apertou ainda mais meu coração.
— Hayir. É coisa de criança. Nada que eu não resolva.
— Tamam. Espero que ele melhore. Irei avisar minha anne.
Podemos remarcar, para amanhã. — Soltou mantendo a
empolgação.
— Acho melhor eu observar Zeki primeiro. Não quero fazer
outra desfeita.
— Não se preocupe com isso, Samia. Eu entendo e sei que
minha mãe entenderá também.
— Obrigada, Eymen.
— Conte comigo, sempre. — Ele afagou minha mão e se
afastou. — Até mais.
Soltei o ar com pesar, odiava ser tão ardilosa em minhas
ações, mas quando se assume uma mentira como a minha, precisa
manter uma série de outras para preservar seus segredos.
Eymen achava que eu era uma viúva, se casaria comigo
enganado. Cemil queria um compromisso, mas não sabia que já
tínhamos um filho.
Era preciso consertar o passado para seguir adiante, por
isso peguei o celular e enviei uma mensagem para Cemil:
Samia – Selam. Como estão as coisas por aí?
Ele não respondeu de imediato, aguardei, conferi as horas,
ele deveria estar na empresa. Deixei o celular embaixo do balcão e
virei para ir até o estoque dando de frente com tia Sila.
— Resolveu reagir, menina? — falou baixo.
Ela não estava brava, mas era claro que havia escutado
toda a conversa.
— Resolvi seguir seu conselho, tia. Chega de mentiras e
meias-verdades. Eymen não merece isso.
— Nem Cemil. Não sei a história de vocês, Samia, mas algo
me diz que foi um punhado de frases desconexas e mal-
interpretadas.
— Hayir, tia. Não foi assim. Cemil e eu, nós erramos no
passado, não existia nada da parte dele e... Enfim, ele voltou para
minha vida, quer um compromisso, por mim, isso já é o suficiente
para que eu dê uma chance, certo?
— Se você está me perguntando, é porque não está tão
confiante assim da sua escolha.
— Eu o amo. Sempre amei.
— Amor exige sacrifício, menina. Essa euforia que permeia
seu peito é a entrada de uma caverna fechada e profunda. Amar é
aceitar tudo do outro, seu lado bom e ruim. É saber valorizar as
coisas boas, usar as ruins de aprendizado e evoluir, mutuamente. —
Seus olhos estavam carregados de sabedoria e serenidade.
— A senhora me confunde com seus conselhos. Nunca sei
se é para eu aceitar Eymen, ou correr para Cemil. Se conto a
verdade para um, ou para outro — desabafei jogando os braços
para o ar.
— Acho isso ótimo, menina. Sinal de que estou fazendo
meu papel.
— Como assim?
— Te dar a certeza de uma decisão que influencia em suas
escolhas, Samia, tiraria seu poder de enfrentar as consequências
com coragem e determinação. No fundo, não importa o que eu julgo
que é correto, a grande verdade que deve calar em sua alma, é o
que deixa seu coração em paz, minha filha.
— Ah, tia, obrigada. — Fui até a mulher a abracei com força.
Ela realmente salvou minha mente quando tudo aconteceu.
Achei que estaria perdida no mundo, sem ninguém para me
amparar e ensinar a como crescer da noite para o dia.
— O que está acontecendo com vocês duas? — Encerrei
nosso abraço e nos viramos para uma Jalila curiosa, com Zeki no
colo.
— Ah, meu pequeno, venha com sua anne. — Fui até meu
filho e o peguei.
— Ele está inquieto lá em cima. Achei melhor trazê-lo para
ver um pouco de movimento.
— Filho de quem é, não me admira. — Tia Sila soltou e eu
sorri.
— Seu falecido marido era tão agitado quanto ele, Samia?
— encarei Jalila criando consciência de que ela não entendeu a
referência de tia Sila.
— Evet. — Sorri, sem graça — Venha, pequeno, vamos
tomar um ar. — Fui até o balcão e peguei meu celular, dei um beijo
no rosto de tia Sila. — Obrigada.
Saí da loja com Zeki no colo, o dia estava lindo, abri a
câmera do celular e mirei para nós, ele abriu um sorriso genuíno ao
ver nossa imagem na tela e eu capturei o instante.
— Olha como somos lindos, meu filho. — Mostrei a foto para
Zeki que tentou bater aquela mão estabanada na tela. — Também
acho que ficamos charmosos. Que tal enviar para seu baba? —
Soltei mais baixo e o garoto bateu as palmas, ainda mais animado.
Abri o aplicativo de mensagens, Cemil não havia respondido
ainda, upei a foto e enviei. Em breve ele saberia que Zeki era nosso
filho.
Samia – Por aqui tudo está bem, o sol resolveu aparecer em
Londres.
Nenhuma resposta, dei de ombros, uma pequena fagulha de
insegurança surgiu, mas eu me apeguei aos conselhos de tia Sila e
não deixaria minha determinação esmorecer.
Havia chegado o momento de enfrentar o passado, assumir
as consequências das escolhas que fizemos, as que eu fiz, construir
um futuro mais feliz para nós três.
Era início da noite quando entrei para casa com Zeki nos
braços, estava cansada de carregar esse pequeno pacote para
todos os lados. Precisava de um banho e alimento, por isso seu
choramingo quando o coloquei no cercado.
— Allahalla! Por que chora tanto, garoto? — Jalila vem do
quarto.
— Está com fome.
— Então o alimente, Samia. Quero assistir o episódio da
minha novela. — Engoli a resposta.
Jalila estava em seu ambiente, eu era a intrusa e precisava
incomodar o mínimo possível. Sabia que não fazia isso por Zeki, ela
se dava bem com o pequeno, mas havia momentos que ela só
queria ter a antiga vida de volta.
— Vou esquentar a comida dele.
— Jalila, não seja indelicada. Crianças choram, é normal —
tia Sila esbraveja da sala.
— Eu sei, anne. Desculpe. — Ela mirou meus olhos com
raiva, mais uma culpa atribuída a mim.
Abaixei a cabeça e corri com a comida, peguei Zeki e o
coloquei no cadeirão, enquanto o alimentava em pequenas
colheradas de papinha, conferi o celular mais uma vez, uma única
mensagem de Cemil me fez enrugar o cenho.
Cemil – Estarei em Londres no final de semana. Precisamos
conversar.
Levei a mão livre até o peito e apertei, sentia uma pressão
incômoda no local, parecia que algo ruim estava prestes a
acontecer.
— Anne, Samia, olhem isso! — Jalila entrou na sala com o
celular nas mãos. — "Ontem à noite, o CEO da Kartal Exportações,
Cemil Kartal, filho mais novo de Osman Kartal, recebeu a família Bal
em sua residência em Istambul. Parece que haverá uma importante
união de famílias, com a única filha dos Bal, Ayla Bal, estando
solteira. Recentemente, houve uma nota sobre os dois sendo
flagrados juntos no elevador. Essa união promete ser um grande
acontecimento e estamos ansiosos para ver os termos do contrato
de noivado desses dois.” — Jalila leu toda a matéria com tanta
empolgação que não percebeu o sangue se esvair da minha face.
Não sei como permaneci de pé quando minhas pernas
fraquejaram. A sensação de moleza e impotência tomou conta de
mim, e eu pensei que não seria capaz de suportar a pressão.
A palavra noivado piscava diante dos meus olhos, lembrei-
me do caso que me contou sobre a amiga de Istambul, que ele
afirmou não passar de uma situação errada.
— Samia? Está bem? — Tia Sila estava de pé, diante de
mim.
— Evet. Eu vou dar banho em Zeki. — Soltei baixo demais,
nem sabia que ela havia compreendido.
Minhas forças haviam se concentrado em me manter em pé
e executando a tarefa de cuidar do meu filho, nada mais.
“Noivo. Ele ficaria noivo? Da amiga. Não de mim.”
Capítulo 22
“Em verdade, Deus é suave e gosta de brandura, e Ele dá ao
gentil o que Ele não dá ao áspero.” (Muslim)

Encarei a vista noturna do apartamento, as mãos no bolso,


fechadas em punho, estava tão perdido em pensamentos
desconexos que não havia percebido a aproximação de minha
anne.
— O que foi, kuş[28]? — Sua mão espalmou minhas costas,
livre somente do blazer.
— Nada com o que se preocupar, anne. Está tudo como
deveria ser.
— Tem certeza? Achei que você estaria mais feliz depois de
ontem. — Virei meu corpo em direção a ela.
— Fui pego de surpresa. Não sabia que faziam tanto gosto
assim em me unir com Ayla Bal.
— Filho, vocês estamparam todas as capas de revistas da
Turquia nas últimas semanas. A moça se hospedou aqui, Cemil.
Esses costumes podem ser normais na Europa, mas nossa tradição
é diferente.
— Ayla e eu sempre fomos amigos, anne. Seu pai nunca viu
problema nisso.
— Na Itália as coisas eram diferentes, Cemil.
— Bem, o que está feito, está feito. Preciso ir até o escritório
falar com o baba. Dar notícias de Samia.
— Ah, aquela pequena menina travessa. Como ela está?
— Diferente.
— Espero que vocês não tenham se atracado por lá.
Em automático, minha mente foi inundada pelas imagens de
Samia nua e meu corpo venerando o seu, com luxúria.
— Allahalla! — Soltei ao afastar um passo. — Quer dizer...
claro que não. Ela... amadureceu.
— Queria ver uma foto que fosse daquela menina.
— Acho que tem uma do dia do evento. — Peguei o celular
do bolso e uma notificação dela no aplicativo de mensagens me fez
suspirar.
Havia ignorado sua primeira mensagem, sem saber ao certo
o que escrever, precisávamos conversar, não era um covarde
completo que a deixaria sem um término digno.
Apertei o celular com mais força nas mãos quando vi sua
foto e do Zeki na minha tela. O dia era claro, a luz irradiava da pele
dos dois, o olhar de ambos era cativante.
Aquela sensação de conhecer o garoto de algum lugar
apertou meu peito, eu o reconhecia, tinha algo que me chamava.
Lembrei-me do meu sonho tolo de vê-la com ele nos braços e
imaginar que era nosso filho.
Um sonho. Uma ilusão. Ficaria junto das lembranças do que
nunca deveria ter acontecido.
Abri a internet e busquei pelo nome do meu amigo fotógrafo,
abri as fotos do dia da exposição e encontrei nossa fotografia. Virei
o celular para minha anne que tomou o aparelho de mim e soltou
várias lamúrias quando seus olhos se encheram de água.
— Ela está... linda. Samia, que saudades sinto da alegria
dela na vila. Aquele casarão ficou vazio demais sem sua presença.
— Evet. — Soltei ao relembrar das suas cantorias pelos
corredores.
Samia era a agitação e leveza que o ambiente precisava
constantemente, ainda mais com a guerra velada entre Haydar e
Emir.
— Vocês dois me deixavam atormentada com as brigas.
— Evet. — Soltei com um riso fraco.
“Será que eu já a amava naquela época e não me dava
conta? Por que só na noite do casamento eu a vi como a mulher
que havia se tornado?”
— Samia precisa de um bom marido. — Engoli em seco e
apertei a mandíbula, incomodado.
— Ela terá. Existe uma família na comunidade turca, já
investiguei a árvore genealógica, parecem decentes. A tia dela dará
início as intenções de noivado.
— Como assim? Ela é uma mulher.
— As coisas lá são mais flexíveis, anne.
— Seu baba precisa saber disso.
— Evet. Vou falar com ele agora mesmo.
Peguei o celular das suas mãos e fui para o escritório, bati
na porta antes de entrar, encontrei o homem que me ensinou
absolutamente tudo que sei, sentado atrás da mesa, a idade já
cobrava o preço de uma aparência mais cansada.
— Baba? Podemos conversar?
— Cemil, claro, meu filho. Entre. — Fechei a porta atrás de
mim e tomei a cadeira a sua frente. — Você se recolheu logo depois
do encontro de ontem. Não tivemos chance de falar sobre seu futuro
noivado.
— Não tinha muito o que dizer, afinal.
— Essa não era a reação que esperava, menino. Você vivia
cobrando Emir de se casar para que finalmente pudesse procurar
sua futura esposa.
— Assumir as demandas da Kartal exigiu mais do meu
tempo. Foquei no trabalho.
— Grande o homem que vive para o trabalho, mas ainda
maior será aquele que vive para a família. — Ele apontou o dedo
indicador em riste. — Precisa aprender a viver cada momento, meu
filho.
— Evet, baba. Aprenderei.
— Ainda acho que sua futura esposa não será tão
tradicional. Ayla manifesta grande paixão quando fala dos negócios
da família. Serkan de fato não a criou para ser doméstica.
— De forma alguma. Ayla sempre foi uma mulher de fibra,
nunca almejou um casamento.
— A vida cobra seu preço. Todos precisam assumir as
responsabilidades, que lhe cabem em algum momento.
— O que fez o senhor aceitar esse acordo, baba? Eu havia
mandado o RP soltar a nota desmentindo os escândalos.
— Você deve saber que os hotéis Bal não andam muito
bem. Serkan tem se esforçado para manter os negócios em
operação, mas tem enfrentado dificuldades. Como vocês se
conhecem há anos, demoraram muito para desmentir os rumores, o
que permitiu que as maledicências se espalhassem feito poeira ao
vento. Acredito que seria a atitude mais adequada corrigir a situação
agora. Fiz mal? — Meu pai encostou no respaldo da cadeira, suas
mãos espalmadas no tampo da mesa e um olhar afiado em mim.
— Eu não... eu não a amo. — Abaixei a cabeça, sem
coragem de encarar seus olhos.
— Tolice, menino. Amor se constrói com o tempo, sabe bem
disso. Olhe Emir. Casou-se com uma estrangeira, que não sabia
nada dos costumes. Vivem felizes.
— Ayla e eu nos conhecemos há anos, baba, nunca
sentimos nada diferente de amizade.
— E isso não é ótimo? No final das contas, meu filho, o que
resta a um casal é isso: amizade, cumplicidade e companheirismo.
Ela é bonita o suficiente para aquecer sua cama, não se preocupe.
— Pigarreei, incomodado com o rumo da conversa.
Pensar em Ayla na minha cama era algo que realmente não
me agradava.
— Isso não me preocupa.
— Muito bom! Agora me dê as notícias de Londres. — Ele
inclinou o corpo para frente, interessado.
Relatei sobre a vida de Samia, o homem que pretendia
desposá-la em breve. Falei sobre as condições financeiras, que
eram humildes, mas dignos e escondi todo o resto, assim como
meus sentimentos.
— Vá para Londres no final de semana e converse com
essa tia. Vou falar com o baba de Samia, ajudaremos com os custos
que cabem a família da noiva. Ela tem sangue Kartal, não entrará
em um compromisso devendo sua parte.
— Evet.
— Converse com o pretendente também, deixe ciente que
Samia tem quem olhe por ela.
— Farei isso. — Levantei-me. — Posso me retirar?
— Claro, filho.
Peguei meu blazer que havia deixado na sala, dei um beijo
na minha anne e saí do apartamento sem rumo. Perdido, furioso e
muito frustrado, dirigi meu carro pelas ruas de Istambul, procurando
uma solução para o que não existia conserto.
O sistema de som indicou uma chamada e atendi de
imediato.
— Abi, o que está fazendo?
— Dirigindo — respondi sem muita vontade ao reconhecer a
voz de Haydar.
— Não, seu filho de um burro. O que está fazendo com a
sua vida? Eu li as matérias dos jornais. Você vai se casar?
— Você está demorando demais, irmão. O baba resolveu
adiantar o meu compromisso.
— E Samia? Por que não é ela?
— Não tive a chance de dizer. Cheguei em Istambul e o
compromisso já havia sido firmado entre eles. O pai de Ayla precisa
resolver suas pendências financeiras. Os hotéis estão quase falidos.
— E você resolveu ser o herói de algo que não é problema
seu?
— Ayla seria entregue a um sheik na Arábia Saudita,
Haydar.
— Bom para ela. Viveria em um palácio de ouro.
— Isso mataria Ayla. Você não a conhece. Ela ama a
liberdade, trabalhar, tem uma mente astuta. Seria um pecado
mantê-la em cárcere.
— Então, meu querido abi, isso prova que seu desejo de se
casar com a pobretona era só um fetiche. Nada demais.
— Não diga isso, seu filho de um burro. — Soltei com raiva.
— Sua obediência vai custar muito caro, Cemil. Você
precisa tomar as rédeas da sua vida.
— E fazer como você e Emir? Que se afundaram em culpa,
ódio e desavenças. Fui eu quem ficou para trás puxando as cordas,
abi. Consolava nossa anne, que vivia em constante agonia pelas
brigas e, trabalhava dobrado para que o baba pudesse se orgulhar
da próxima geração dos Kartal.
— Oh, grande mártir. Sacrificado. Punido.
— Você não tem respeito por nada, abi. Acha que sua dor
está acima de qualquer um.
— Só digo a verdade, abi. Ninguém pediu que vivesse em
nosso respaldo. Seu primo e eu encontramos uma trégua, mas
dificilmente teremos paz. E de que adiantou todo seu esforço?
— Ao menos deito minha cabeça no travesseiro tranquilo.
— Será mesmo, Cemil? Acho muito pouco provável que
você durma em paz, sabendo que sua vida vai passar e que nunca
saberá o que é deitar-se na cama da mulher que ama.
— Então, seremos dois infortunados, abi.
Desliguei em seguida e acelerei o carro.
Capítulo 23
“A pessoa forte não é aquela que pode na luta colocar
alguém para baixo. A pessoa forte é aquela que pode controlar-se
quando está com raiva.” (Bukhari e Muslim)

O destino sempre foi um juiz cruel por toda a minha vida.


Tive que aprender a lidar com as dificuldades desde cedo, mas foi
meu baba, que Allah o proteja, quem me ensinou a cultivar a parte
boa de cada situação ruim. Essa lição se mostrou especialmente
importante, quando perdi minha querida anne.
Desde então, tenho tentado seguir seu conselho e encontrar
um jeito de ver o lado positivo de tudo o que acontece em minha
vida. Acredito que isso me tornou uma pessoa mais resiliente e,
capaz de enfrentar os desafios com mais otimismo e fé.
Naquela época acreditava que minha única opção seria ir
para a vila com os Kartal. No entanto, quando me deparei com o
majestoso casarão, a presença carinhosa de tia Kara e, sobretudo,
ele, sentia como se fosse uma recompensa por ter perdido alguém
tão importante em minha vida.
Foi como se a vida estivesse me oferecendo uma segunda
chance de ser feliz e de construir novas memórias. A partir daquele
momento, eu sabia que a vila dos Kartal era muito mais do que um
refúgio temporário, seria o começo de uma nova fase em minha
jornada.
Mas o destino me provou, de forma bastante cruel, que meu
lugar não era ao lado do homem por quem me apaixonei, entreguei
minha inocência e almejei casar.
Cemil sempre será o tesouro guardado em forma de
memórias, cultivado somente com a esperança que se perdeu e a
ilusão que o alimentou de forma tão superestimada.
Os dias até agora foram longos e difíceis. Parece que o
tempo passa lentamente, sem pressa de terminar. Tia Sila tem sido
uma presença constante ao meu lado, mas, estranhamente, ela não
mencionou uma palavra sobre a notícia que foi divulgada acerca do
suposto noivado.
— Onde coloco essas caixas? — Jalila questionou de mau
humor.
— Ali. — Apontei para um canto na loja.
Havia chegado mercadorias no dia anterior, que não tivemos
tempo de colocar no lugar. Tia Sila assumiu os cuidados de Zeki
esta tarde para que Jalila me ajudasse, já que, segundo ela, não
tinha mais uma lombar jovem para ser explorada.
Estávamos terminando de colocar tudo em ordem, aproveitei
o par de mãos extras para mudar algumas disposições da loja, o
que contribuiu para o azedume da minha prima mais nova.
— Rania deveria estar aqui também.
— Ela está cuidando dos preparativos do casamento, Jalila.
— Agora tudo é essa desculpa e eu que sou prejudicada.
— Tenha paciência. Logo Rania se mudará e tudo volta ao
normal.
— Nem tanto, já que eu serei sobrecarregada com seu filho
e os afazeres da casa.
Parei com a caixa que empilhava do outro lado da loja, virei
e mirei o semblante destemido da garota. Sabia que havia muita
verdade no que dizia, mas ainda era desconfortável ouvir a todo
momento o quanto meu filho e eu éramos um estorvo.
— Eu pago como posso, Jalila. Não tenho ninguém.
— Você tem dois pretendentes, Samia. Mesmo sendo uma
viúva. Assuma logo um compromisso com um deles.
— A vida não é simples como você julga, kuzen. Quando for
mais velha vai entender.
— Até parece que você quer viver escondida em seu luto.
— Não tem nada a ver com isso.
— Se o Kartal não está mais disponível, aceite o
compromisso com Eymen, mas pelo menos siga adiante. — Ela deu
de ombros, sua sinceridade crua era uma faca cravejada em meu
peito.
Ela não sabia de toda a verdade, isso permitia que visse a
situação sem o drama que me envolvia. Talvez houvesse chegado o
momento de olhar a vida de forma objetiva.
— Obrigada pelo conselho, Jalila, mas da minha vida cuido
eu.
— Só falei para seu bem.
Soltei o ar cansada demais para contra-argumentar. Aquela
menina me lembrava demais uma jovem expansiva e cheia de
sonhos de um tempo atrás. Queria saber onde ela foi parar, depois
de tudo que aconteceu.
— Selam. — Travei por completo ao reconhecer aquele tom
de voz.
Eu senti meu coração acelerar e meu corpo começou a
tremer. Uma mistura de raiva, euforia, desespero e amor, eu não
sabia como agir. Queria gritar, chorar e rir tudo ao mesmo tempo,
mas não conseguia decidir qual emoção deveria prevalecer.
Pensei em todas as coisas que me trouxeram até aquele
momento, lembrei do meu filho, de como deveria me manter firme
por ele. Percebi que, apesar da intensidade das minhas emoções,
eu ainda era capaz de controlá-las e usá-las como uma força
positiva para me motivar e me ajudar a enfrentar o que estivesse por
vir.
Ao girar no lugar e cravar meus olhos no homem que
detinha meu coração em suas mãos, era como se uma blindagem
me fizesse forte o suficiente para não esmorecer.
— Cemil. Bem-vindo.
— Obrigado. Podemos sair para conversar?
— Claro. Eu só preciso de um banho. Estava trabalhando.
— Ergui as palmas para cima, em sinal de lamento.
— Não tem problema. Estarei no carro.
— Tamam.
A partir disso agi em automático. Deixei Jalila na loja, subi e
expliquei para tia Sila que precisava sair, tomei banho e coloquei
uma roupa simples, bata e calças de linho, abracei meu filho e
deixei um beijo em sua cabecinha.
— Mantenha a razão em suas ações, minha filha.
— Não se preocupe, tia. Farei tudo que é preciso e serei
ainda mais forte.
— Assim que se fala.
Saí pelo portão e encarei Cemil encostado no carro preto
que estava estacionado em frente à casa. As mãos nos bolsos da
calça social, um ar desanimado, seu olhar parecia resignado.
— Podemos ir.
Ele não disse nada ao abrir minha porta, passei por ele e
tomei meu lugar. Ignorei o perfume masculino que permeava o
veículo e gritava a requinte e Cemil.
— Podemos ir ao meu hotel?
— Claro.
Mantive minha atenção no caminho o tempo todo, com meu
pequeno Zeki na mente, não poderia fraquejar, aquele homem
destruiria meu coração com justificativas que beneficiariam somente
a sua vida e, eu precisava ser firme para dar o meu final.
Quando entrei mais uma vez naquele quarto de hotel, uma
ideia nada convencional veio a minha mente. Era maluquice, talvez
a última que eu cometesse na vida, por isso não pensei demais
sobre o que estava prestes a fazer.
— Pedi nosso jantar. Espero que esteja com fome.
— Na realidade — girei no lugar e o encarei —, estou com
fome de outra coisa, Cemil. — Deixei minha bolsa na cadeira da
área comum e caminhei em direção ao quarto removendo minha
blusa no processo. — Acho que ambos precisamos mais disso, do
que de qualquer outra coisa.
Olhei sobre o ombro e os olhos de Cemil estavam
arregalados de tanta surpresa. Sorri, travessa, da forma que sempre
fazia quando o tirava do prumo na vila.
Feito um animal felino, que espreitava a presa, Cemil se
aproximou cauteloso, segui caminho para dentro do quarto e,
quando ele parou no marco, eu me livrei das calças.
— Quero que você possua meu corpo, Cemil... — Engoli o
“pela última vez”.
Ainda não era momento de dizer adeus. Tínhamos tempo,
era curto, mas seria único e memorável.
Quando ele me alcançou seus olhos estavam límpidos,
transparentes em suas emoções, existia muito desejo, mas também
continha a nota de despedida que permeava meu íntimo.
Preferia deixar meu corpo falar, era menos dolorido assim.
Levei as mãos até seu rosto e o puxei ao encontro dos meus
lábios. O desejo explodiu em meu ventre, causando uma reviravolta
que se espelhou no beijo intenso que trocamos.
Logo éramos um emaranhado de mãos, roupas removidas e
jogadas a esmo, o fôlego suspenso em cada ação, até nossos olhos
se conectarem mais uma vez, quando já estávamos na cama, ele
sobre mim, completamente nus.
— Birtanem... — Fechei os olhos ao ouvir seu tom rouco.
Eu não queria me despedir, era demais fazer isso com
minha alma exposta ao lamento e dor.
Cemil entrou em mim devagar, seus movimentos eram
cuidadosos, parecia desfrutar e gravar cada golpe lascivo contra
meu quadril. Sua cabeça baixou para o vão do meu pescoço e ele
inalou profundamente.
— Eu não quero que acabe, birtanem. — Sôfrego, lastimoso
e triste.
— Eu também não.
Foi a única coisa que mencionei antes dos gemidos
tomarem à frente e, Cemil nos levar por um caminho pecaminoso de
prazer carnal e entrega mútua.
Eu o amaria por toda a vida, tinha certeza disso.
Na minha crença, aprendemos que o amor era construído
por um casal no decorrer dos anos de casamento. Tudo que
antecede ao enlace, era chamado de expectativa, chama,
ansiedade pelo novo, sentimentos que se perderiam como uma
brasa malconservada.
Esperava que essa crença tivesse seu fundo de verdade
quando eu me comprometesse com outro homem. Cemil era a
pólvora para o fogaréu que habitava minha alma, intenso e
alucinante, mas que não tinha força suficiente para perdurar.
Amor era uma brasa constante, assim me diziam, e eu
precisava manter a fé de que conseguiria alcançar essa constância
no decorrer da vida, que assumiria assim que saísse por aquela
porta.
Nosso tempo havia acabado. O sonho durou não mais que
poucos momentos de prazer, intensidade e paixão. Não me
arrependeria, levava comigo o maior presente de todos, um filho.
Zeki era fruto de um amor unilateral, grande o suficiente
para gerar uma vida, mas não forte para construir uma família.
Era o adeus mais dolorido de toda a minha existência.
Capítulo 24
“A realidade da fé é saber que aquilo que não o atingiu jamais
o atingiria; e que o que o atingiu jamais deixaria de atingi-lo”
(Tabarani)

Antes de abrir os olhos já estava sorrindo, seu cheiro


misturado ao aroma de sexo no ar despertava meu corpo
instantaneamente, mas ao deixar as pálpebras se erguerem, tudo
em mim se aquietou.
O silêncio era quase ensurdecedor e, a penumbra do quarto,
angustiante.
— Ela se foi...
Samia havia saído sem uma despedida verbal. Nossos
corpos sucumbiram ao desejo e, sei que essa foi a forma que ela
escolheu de terminar tudo.
Levantei-me da cama e fui para o chuveiro, tomei um banho
e lavei todos os resquícios da nossa noite inebriante. Eu jamais me
esqueceria dela, nossos momentos íntimos ficariam gravados em
minha alma para sempre.
Fechei os olhos e deixei minha cabeça entrar embaixo da
ducha, quem sabe a água fosse capaz de levar consigo os
pensamentos, que angustiavam meu peito.
A pressão que eu sentia era imensa, quase sufocante, e
uma bola se formou na minha garganta, tornando difícil respirar. Eu
me senti completamente subjugado e não pude evitar o urro e o
choro. As lágrimas rolavam pelo meu rosto, enquanto eu lutava para
liberar a tensão e o medo que me consumiam.
Sabia que era o correto. Meu baba sabia o melhor para mim,
fez sua escolha pensando em minha felicidade, mesmo sem saber
minhas intenções com Samia.
Além do mais, Ayla estava atrelada a um destino cruel, caso
eu fugisse do compromisso, seria enviada para outro país, com uma
cultura completamente opressora.
As responsabilidades da vida não eram fáceis de serem
assumidas, o que ajudava a separar homens de meninos.
Saí do chuveiro e fui direto para meu celular, deixei uma
mensagem para a assistente pessoal da família, solicitando uma
passagem aérea.
Eu precisava me afastar de tudo, colocar a cabeça no lugar
e principalmente, afogar todos os sentimentos que me faziam querer
invadir aquela casa no pitoresco bairro turco de Londres e, levar
Samia comigo para qualquer outra parte do mundo.
Era tentador, e por isso mesmo eu precisava fugir.
Desembarquei em São Paulo, Brasil, as terras tropicais,
quentes e úmidas, com uma diversidade cultural gigante e pessoas
bonitas.
Fui direto para o apartamento de Emir, que quando soube
da minha vinda não aceitou que eu ficasse em um hotel.
Não havia avisado ninguém na Turquia sobre a viagem,
mandei uma mensagem para Haydar, comunicando meu
afastamento por um curto período, estaria trabalhando a distância,
ele se limitou a responder que eu era um covarde.
Meu irmão e seu jeito nada acolhedor de me consolar.
— Abi! — Emir abriu a porta para me receber com tanta
felicidade que sorri. — Senti sua falta! — Fui envolvido em um
abraço acolhedor.
— Abi, obrigado por me recepcionar.
— Não por isso. Somos família. Venha, entre. — Ele tomou
minha bagagem das minhas mãos e me puxou para dentro. — Eda!
Cemil, chegou.
A senhora que trabalhava para os Kartal, igual a Berna em
Istambul, surgiu em um pequeno corredor, com uma bandeja de
çay[29] nas mãos.
— Seja bem-vindo, senhor. — Ela acenou sorridente. — Vou
servir na sala de visitas.
Ela passou por nós e eu encarei em volta. Sentia meu
humor um pouco mais leve aqui, acho que a distância realmente
faria bem para meu juízo.
— Como está, abi? Todos na Turquia? Fiquei sabendo do
seu enlace, meus parabéns. — Emir parecia uma metralhadora
falante.
Talvez o convívio com a esposa brasileira o tenha deixado
mais comunicativo do que foi em toda a vida. Ou tenha conseguido
se libertar de toda a tristeza que carregava e, esse comportamento
incomum fosse o reflexo da felicidade.
— Venha, vamos conversar. — Ele passou o braço sobre
meu ombro e me puxou para a sala de visitas.
— Os negócios vão bem. Você deve estar recebendo os
relatórios, não é?
— Claro. Claro. Não estou me referindo a isso, abi. Quero
saber da família.
— Está tudo... caminhando.
— Cemil, você está com cara de que acabou de sair de um
evento fúnebre. Por Allah, diga de uma vez o que te trouxe para o
Brasil.
Encarei meu primo por alguns segundos e no momento em
que abri minha boca, simplesmente despejei tudo que estava preso
dentro de mim.
Contei sobre a noite do seu casamento, a minha vergonha
completa por desonrar Samia embaixo do teto dos Kartal, por ir
atrás dela mais de um ano depois e fazer a mesma coisa, repetidas
vezes, de novo.
Quanto mais eu falava sobre minhas ações, menos me
sentia um homem honrado e digno.
Emir não emitiu um pigarreio que fosse durante meu relato.
Cruzou uma perna sobre o joelho, segurou seu çay com o pires e
somente ouviu.
Ele era bom em ouvir e observar, era o que tinha tornado o
jovem rapaz um homem de negócios perspicaz e astuto.
— Vaya![30]— Ele soltou antes de tomar um gole da sua
bebida e tornar a me encarar. — Tem um bocado de história aí,
Cemil.
— Evet. — Baixei as pálpebras.
Era difícil encarar as pessoas que eu tinha tanto apreço,
como um irmão mais velho, tão querido quanto meu sangue, que
ainda por cima era o chefe da família Kartal.
— Você deveria ter falado tudo isso para seu baba.
— Enlouqueceu, Emir? Meu baba acabaria com minha vida
por ter desonrado Samia.
— Primo, nossa cultura é limitada em alguns aspectos,
temos valores e costumes muito enraizados, entendo seu tormento,
mas a vida nos coloca em situações que precisamos lutar por aquilo
que acreditamos e, principalmente, sentimos.
— Não quero ser uma decepção para meu baba. Ele já
passou por muita coisa com... — Mordi a língua para não falar.
— Comigo e Haydar. A morte de Sevil. Eu sei.
— Desculpe. Eu não queria tocar no assunto.
— É o passado que compartilhamos, abi. Não tem como
apagar.
— Enfim, ainda tem Ayla. A moça não merece ser jogada
em uma gaiola, podada de fazer o que foi ensinada a vida toda.
— E você acha correto sacrificar sua felicidade por outra
pessoa? Mesmo sendo sua amiga? Desculpe, abi, mas a forma
como me contou tudo e vejo em seus olhos a dor, Samia nunca será
só uma lembrança.
— Ela vai firmar compromisso com outro, Emir. É bom, de
família honesta, vai honrar Samia como um marido deve fazer.
— Você também faria isso, até mais. Levaria Samia para
conhecer o mundo, assim como ela sempre sonhou.
Soltei um suspiro alto demais, cansado e sem qualquer
vontade de pensar nos “Ses” que minha vida poderia ter, caso eu
fosse rebelde o suficiente.
— Kuzen! — Uma voz estridente quase me matou de susto.
— Finalmente chegou. — A loira mais expansiva que já conheci veio
até mim de braços abertos.
Fiquei de pé em imediato para receber seu carinho, um
abraço apertado, beijos no rosto e meia dúzia de palavras
desconexas em outra língua.
— Qalbi, ele não consegue te entender.
— Ah, sim. Desculpe. — Ela voltou para o inglês. — Estou
tão feliz de estar aqui. Deveria ter trazido Samia, já que estava em
Londres.
Troquei um olhar significativo com Emir e voltei para
Catarina, ainda muito atenta em minha expressão descontente.
— Samia tem uma vida em Londres, kuzen. Está prestes a
assumir um compromisso.
— É mesmo? E eu sempre achei que vocês dois acabariam
juntos.
— Qalbi. — Emir chama sua atenção.
— O que foi? Todo mundo sabe que Samia sempre foi
apaixonada por Cemil, era claro como água.
— É... parece que o único que não se deu conta enquanto
havia tempo fui eu. — Tornei a olhar para Emir, enquanto minha
língua era invadida pelo gosto horrível da amargura.
— Nunca é tarde para reparar um erro. Basta ter vontade e
coragem, Cemil. — Catarina soou tão clara e firme que minha
autopiedade se alastrou por completo em meu sistema.
— Estou um pouco cansado. Acho que é o fuso. — Soltei.
— Claro, abi. Venha. Vou mostrar seu quarto.
— Obrigado.
Sozinho no quarto, tomei um banho e me deitei, com a
desculpa de descansar devido a diferença de horário, mas a
verdade era que eu só queria permanecer na minha bolha de
vitimismo.
Fechei os olhos e dormi, mais rápido do que havia
acontecido em meses.
Eu subia as ruas da vila Kartal a pé, usava roupas
confortáveis de linho, o calor me fazia suar mais do que o normal,
estava ansioso para encontrar Samia.
Entrei pelas portas do casarão, sorri ao ver minha anne
sentada em sua cadeira de balanço, cuidando de alguns trabalhos
em linha que gostava de fazer. Continuei o caminho para meu
quarto, meu coração estava disparado, ansioso, ao abrir a porta
senti como se toda a aflição fosse extinta.
De costas para a porta, próximo as grandes janelas que
mostravam o pomar, estava Samia. Nos braços, sorrindo para mim,
o pequeno garoto que ela cuidava em Londres, Zeki, seu nome.
Ela o embalava com uma cantiga antiga, que os pais dos
nossos pais cantavam e foram passados através das gerações.
Acenei para o menino que sorriu amplamente e esticou a pequena
mão para mim.
— O que foi, Zeki? — Ela girou no lugar, tombou a cabeça
ao me ver, com tanto amor e ternura que senti meu coração
aquecer. — Sabia que sua empolgação era porque seu baba
finalmente nos encontrou, meu filho.
Saltei da cama, não conseguia respirar direito, sentia meus
olhos úmidos, segurei um choro misturado ao grito de desespero.
Peguei meu celular e abri as mensagens com Samia, cliquei na foto
e ampliei, focando na imagem do menino simpático.
— Ele é meu filho.
Capítulo 25
“Como é maravilhosa a condição do crente. Há um bem para
ele em todas as circunstâncias e esse não é o caso com mais
ninguém, exceto o crente. Se ele estiver feliz, ele agradece a Allah
e, assim, é bom para ele e, se for prejudicado, ele demonstra
paciência e, assim, é bom para ele.” (Muslim)

Levei exatos três dias para desembarcar em solo britânico.


Tudo graças a porcaria das companhias aéreas que não
encontravam uma passagem para eu partir imediatamente.
Precisava dizer que ter Emir comigo era o que mantinha
longe de cometer qualquer loucura que fosse. Ele confiscou meu
celular quando mencionei que ligaria para o baba e contaria o que
havia suspeitado.
Eu estava fora de mim. Aquele sonho me acordou para a
verdade, que sempre estivera diante dos meus olhos. Aquele
garoto, dos cabelos escuros e volumosos, olhos gentis e rosto terno
era meu filho e de Samia.
Por Allah, havia tanto de nós dois. Não sei como não tinha
percebido isso antes. Minha cabeça estava tão focada em ter
Samia, em saciar o desejo que me permeava, que não conseguia
raciocinar direito.
Um homem sensato usa sempre a razão e, não se deixa
levar pelas tentações do caminho.
— Vamos para um hotel.
— Hayir. Quero ir até a casa de Samia.
— E vai fazer o quê? Um escândalo? Assustar a pobre
garota, Cemil? Você está descontrolado.
— Eu fui enganado. — Trinquei os dentes, a raiva
permeando todo meu sistema.
— Ainda não sabemos de nada. Primeiro, vou investigar
sobre essa criança.
— Eu sei que é meu filho. Você viu a foto, Emir. — Estava a
um passo de entrar em qualquer táxi e partir.
— Você ficou perto o suficiente do garoto e não percebeu,
Cemil. Não seja um homem enfurecido nas ações. Estou aqui para
te ajudar e orientar, como chefe da família.
Engoli em seco e respirei fundo. Contava com a ajuda dele
para resolver todos os trâmites matrimoniais e abrandar a situação
com a família.
— Tamam. Quando iremos?
— No máximo em dois dias.
— Isso será no casamento de Rania, prima de Samia.
— Ótimo. Festejos sempre deixam as pessoas mais
pacíficas.
— Eu não me sinto nada brando.
— Você precisa manter a calma, abi. Não sei como é
descobrir que se tem um filho que não viu nascer, mas use a
coerência. Samia estava sozinha, sem ninguém.
— Ela deveria ter me procurado.
— Pelo que me contou, Cemil, logo depois da noite que
passaram juntos você a dispensou e proibiu de tocar no assunto.
Ela partiu em seguida. O que você faria no lugar dela?
— Eu voltei. Vim para cá a sua procura.
— E não demonstrou nenhum desejo de tomá-la em
compromisso. Viveram mais do romance proibido, e partiu, acatando
a decisão de tio Osman.
— Eu não sabia que tínhamos um filho.
— Suposto — Ele ergueu o dedo em riste. — Vocês têm
muito o que conversar, abi, espere o tempo certo de agir.
Fomos para o hotel, pegamos um apartamento completo e
equipado, já havia decidido que Samia e Zeki viriam conosco, de
qualquer forma. Ela não ficaria um minuto a mais, longe dos meus
olhos.
Aluguei um carro discreto e simples, menti para Emir que
ficaria no quarto, recluso, mas parti para o bairro onde Samia
morava, feito uma cobra sorrateira, estacionei em um ponto
estratégico da rua, era fim de tarde, só precisava ver que estavam
bem.
Ela olhou nos meus olhos, quando segurei meu filho, sem
saber que éramos sangue do mesmo sangue, disse que era uma
babá, me repreendeu quando não me lembrei do nome dele, como
se eu tivesse obrigação de saber.
E tinha, realmente.
A percepção veio como um choque, um misto de medo e
excitação. Eu não sabia muito bem o que esperar, mas estava
determinado a fazer o meu melhor. Quando vi o meu filho pela
primeira vez, uma onda de emoção tomou conta de mim. Eu havia
me tornado pai sem saber, mas agora tudo fazia sentido.
Era algo que nunca havia experimentado antes: um misto de
amor, proteção, necessidade de manter perto e cuidar.
Ele era o meu menino, o meu filho, o meu Zeki.
Meu coração se encheu de amor e alegria, sabendo que eu
tinha uma missão neste mundo: cuidar e amar aquele garoto para
sempre.
Observei a porta da loja se abrir e a prima mais nova de
Samia saiu com o menino nos braços. Senti minhas mãos se
apertarem ainda mais em torno do volante, precisava conter o
ímpeto de sair do carro e tomá-lo para mim.
— Zeki...
Senti minha voz embargar, trinquei os dentes, na vã
tentativa de não sucumbir às lágrimas de saudade que descobri
existirem dentro de mim.
Eu havia feito tudo errado até aqui, o preço que estava
pagando era alto demais, não estava disposto a continuar seguindo
por um caminho de obediência que quase me afastou de vez do
meu menino.
Samia saiu da loja, ela bateu palmas e pegou Zeki dos
braços da prima. Brincou com o menino e mostrou algo na rua. Suas
mãos passaram pela cabeça dele, bagunçando o cabelo nanquim,
então o puxou e beijou a testa.
Ela era amorosa.
Claro que era.
Se tratava de Samia, a turca mais expansiva, cheia de vida
e descontraída que conheci, me apaixonei e fui turrão demais para
admitir que os desejos mais importantes da minha vida, sempre
estiveram diante dos meus olhos e ao alcance das minhas mãos.
Estava magoado, era verdade. Passei todo o tempo até aqui
com raiva, me sentia traído e enganado, mas a verdade era que
Samia também carregava seus medos.
Não seria fácil para nenhum dos dois retornar à vila e
enfrentar nossa vergonha. O pecado havia se transformado em uma
vida, em minha continuidade, e eu não seria covarde de esconder.
Ela se virou na direção do carro, peguei o celular, abri a
câmera e ampliei a lente. Capturei o momento em que ela sorriu
para Zeki e ele bateu as palmas.
Era uma péssima qualidade de imagem, mas serviria para
me alimentar até que pudesse oficialmente procurar por ela e levá-
los embora.
Retornei para o hotel, depois que eles entraram na casa,
passei por Emir que manteve a atenção na tela do seu notebook e
não questionou de onde eu estava vindo.
Eu estava agindo feito um animal enjaulado, minha razão se
mantinha por um fio muito tênue de coerência. Já havia cometido
burradas demais, para insistir no mesmo caminho.

Coloquei meu terno três peças, não era a roupa mais


confortável para o que estava prestes a fazer, mas era meu costume
e, de certa forma, eu conheceria Zeki como meu filho, queria estar à
altura do garoto.
— Estamos prontos? — Emir me encarou com as
sobrancelhas erguidas.
— Levei tempo demais, abi. — Soltei ao caminhar para o
carro.
Havia dispensado o motorista, queria dirigir para ocupar
meu corpo e mente com algo que não fosse a conversa que mudaria
minha vida por completo.
Aguardei as torturantes quarenta e oito horas que Emir
levou para levantar todas as informações e, constatar que Samia
esteve no hospital há nove meses.
A certidão de Zeki constava pai desconhecido, algo que eu
já havia acionado a justiça para ser corrigido. Como seu registro foi
feito em Londres, contratei o melhor advogado de família para
resolver a questão.
Ao que parecia, na comunidade, ela disse que era viúva,
assim conseguia esconder a origem de Zeki sem sofrer represálias.
E me fazia pensar no quanto aquele pretendente a queria de
fato, não era comum um turco, solteiro, desposar uma viúva. Dava
má sorte.
Estacionei em frente à casa, hoje seria o casamento da
prima de Samia, era um dia de festa, mas não esperaria um minuto
a mais que fosse. Eu queria segurar meu filho nos braços e mantê-
lo protegido.
— Deixe que eu falo, Cemil. Vamos resolver tudo com
calma.
— Evet. Vou tentar.
— Lembre-se que vocês dois erraram e precisam corrigir as
arestas.
— Tamam. Vamos logo.
Descemos do carro, Emir tocou a campainha duas vezes
antes de uma garota vestida de forma graciosa atender a porta.
Seus olhos se alarmaram ao encarar de mim para Emir.
— Olá, sou Emir, primo de Samia.
— O senhor é o chefe Kartal? — Ela arregalou ainda mais
os olhos.
— Evet. Podemos entrar?
— Claro. Por favor.
Subimos as escadarias, tive que conter meus passos para
não parecer tão desesperado. O lugar estava arrumado e mais
enfeitado devido as comemorações.
— Vou chamar Samia. Ela está ajudando minha irmã, Rania.
Que se casa hoje.
— Tudo bem.
Encarei o pequeno cercado, ali, deitado ressonando, estava
Zeki. Fui direto até ele, me curvei o tirando da grande almofada,
acabou resmungando um pouco, já que eu não tinha muito tato para
lidar com seu tamanho.
Consegui apoiá-lo em meu peito, sua cabeça tombou no
ombro e ele voltou a dormir, tranquilo.
Grande parte do desespero que me tomava abrandou,
consegui respirar aliviado ao sentir meu filho nos braços. Acariciei
sua cabeça com carinho e olhei para Emir, sorrindo.
— É meu filho, abi. — Soltei, com a voz embargada.
— Uma benção, abi. Uma benção.
— Cemil... — Virei para o corredor e vi Samia usando o
vestido que eu o havia dado na noite da exposição.
Ela tinha os cabelos presos de lado, estava estonteante,
assim como no dia do casamento de Emir. Voltei ao momento que
meus olhos foram desvendados para sua beleza feminina e eu abri
as comportas do desejo que não sabia que guardava em meu
íntimo.
— Como vai, kuzen? — Soltei entredentes.
Eu sabia que deveria manter a coerência, mas a raiva por
ser privado de todos os meses de gravidez e o início de vida de
Zeki, deixaram minha razão amargada.
Eu sabia que deveria manter a coerência, mas a raiva por
ser privado de todos os meses de gravidez e o início de vida de
Zeki, deixaram minha razão amargada. Perceber tudo que fui
privado, por todos esses meses, fazia meu coração se tornar triste e
lamentoso. Além disso, a sensação de impotência diante da
situação era extremamente frustrante. Eu gostaria de ter sido capaz
de ajudar Samia durante todos os momentos difíceis pelos quais ela
passou, mas infelizmente ela me privou disso.
— Por que está com o menino no colo? Me dê. — Ela
avançou um passo e eu recuei.
— Hayir, Samia. Meu filho não sairá mais de perto de mim.
Capítulo 26
“Eu ordeno que tratem as mulheres amavelmente…”
(Bukhari)

O meu coração acelerou quando encontrei o olhar de Cemil.


Eu o conhecia desde sempre, mas nunca havia visto tanta raiva em
seus olhos. Eu sabia que todo aquele ódio era por minha culpa, por
ter mantido escondido o maior segredo que nós dois dividíamos: o
nosso filho, fruto de um amor proibido que floresceu na escuridão da
noite.
Lembrei-me da noite em que nos encontramos às
escondidas, da adrenalina de correr o risco e da paixão que me
consumia. Mas agora, tudo o que eu sentia era medo. Medo de
perder meu menino, medo de perder o amor da minha vida e medo
do que o futuro nos reservava.
— Cemil... eu... — tentei encontrar palavras, em vão.
— Kuzen, como vai? — Olhei para a figura parada ao lado
de Cemil.
Era Emir, o chefe da família Kartal, tão sério quanto o outro.
Isso fez meu corpo inteiro hiperventilar.
— Emir. Seja bem-vindo. — Soltei sem muita vontade.
Meus olhos se voltaram para Cemil que mantinha Zeki
dormindo em seus braços.
— Obrigado, Samia. Precisamos discutir sua situação, mas
agora sugiro que ambos se acalmem e deixem tudo para depois do
casamento.
— Evet. — Soltei. — Me dê Zeki. — Estendi os braços e
Cemil hesitou. — Por favor, Cemil. Todos acham que sou uma viúva,
não quero prejudicar a reputação de tia Sila.
— Não deveria me importar com a reputação de uma
senhora que te ajudou a mentir.
— Ela foi a única pessoa que me estendeu a mão quando
tudo ruiu. O que esperava que eu fizesse? Assumisse um filho
bastardo perante a comunidade que moro? — Soltei mais alto,
sentindo minha indignação brotar com força nas ações.
— Zeki não é um bastardo. — Ele grunhiu entredentes e
apertou mais os braços em torno do meu filho.
Apesar do grande medo que sentia de Cemil sair porta afora
com meu menino e nunca mais me deixar vê-lo, confesso que era
imensamente prazeroso observar a forma que tomava para si o
senso de proteção.
— Não é isso que as pessoas dirão. Rania, Jalila, todas
serão apontadas na rua como motivo de vergonha. Sabe bem como
funciona as coisas em nosso mundo.
— Ela tem razão, Cemil. Use as lamparinas do juízo. Não
viemos aqui para prejudicar a família que estendeu a mão para
Samia.
Emir tentou persuadir Cemil, que parecia um homem prestes
a explodir, contendo seus ímpetos por uma linha fina de coerência e
bom senso.
— Tamam. Mas no fim da noite você e Zeki irão conosco
para o hotel.
— De acordo. — Acenei com a cabeça, não queria
contrariar suas vontades e correr o risco de um escândalo.
Senti meus nervos se abrandarem quando ele caminhou até
mim e passou meu filho para meu colo. Acariciei e beijei o rosto de
Zeki, que nem se mexeu, estava cansado do dia agitado, voltei a
olhar para Cemil e a tristeza em seu semblante me tocou.
— Eu não tive outra opção.
— Sempre há uma, Samia. — Cemil me olhou altivo, suas
armaduras erguidas no lugar certo.
— Não diga nada a sua tia, por enquanto. Vamos deixar o
casamento passar. — Emir pigarreou cortando o momento
desconfortável que partilhava com o homem que me rejeitou.
— Tudo bem. — Tentei sair da sala, mas fui barrada pela
voz gélida de Cemil.
— Arrume uma bagagem básica para o menino e você. Irão
para o hotel conosco no fim da noite.
Respirei fundo e parti para o quarto. Ao menos ele não
cogitava levar somente o filho, o que deveria ser um bom sinal.
Coloquei Zeki no berço, dormia tranquilo e suave, não fazia
ideia do turbilhão de emoções e acontecimentos que estavam
prestes a invadir nossas vidas.
Ainda não sabia o que Cemil pretendia, mas para arrastar
Emir do Brasil até aqui, era porque nada seria fácil ou simples a
partir daquele momento.
Peguei um lenço e limpei o canto dos olhos, impedi que
lágrimas sorvessem por meu rosto, não daria o gosto de ele me ver
acabada e temerosa. Cemil poderia ter o controle do meu destino
nas mãos, mas não teria mais poder sobre as minhas emoções.
Se ele queria levar nosso filho para perto dele na Turquia,
aceitaria a condição, por Zeki, para que tivesse uma vida melhor e
pudesse chamar por seu verdadeiro baba quando precisasse.
— Samia? — Olhei em direção a porta e vi tia Sila parada
ali, o semblante preocupado.
— Chegou o momento, tia.
— Se você não quiser ir... saiba que sempre terá um lugar
aqui.
— Eu sei, tia. Obrigada. — Fui até ela e a puxei para um
abraço.
Tia Sila nunca foi uma mulher de muito contato, nem com as
filhas, senti seu corpo endurecer com meu rompante, mas ela
acabou por relaxar e acariciou meus cabelos.
— O que houve? O que estão fazendo aqui? — Jalila
apareceu no marco, agitada. — Anne, o que devo servir para os
primos da Samia?
— Nada. Já estamos de saída.
A cerimônia seria celebrada na casa do noivo, pois o lugar
era melhor, além da rua sem saída, favorecer para servir de espaço
em comum aos convidados.
— Seja forte, menina. — Tia Sila me encarou com
determinação. — Ele pode ser um Kartal, mas você é uma Yilmaz.
— Do que estão falando?
— Nada, Jalila. Vá buscar o carrinho de passeio de Zeki.
Aproveitei enquanto todos terminavam de se arrumar para
separar uma bolsa grande com os pertences de Zeki, algumas
roupas minhas, objetos pessoais e mirei o ambiente em despedida.
Eu era forte, sobrevivi até aqui com meu filho, afinal das
contas, mas sabia que um dia a verdade bateria em minha porta. Se
não fosse pelo próprio Cemil, seria por Eymen, quando contasse a
origem do meu filho.
Era melhor assim. Envolver o mínimo de pessoas possíveis,
nas consequências das minhas escolhas errôneas no passado.
A proposta de tia Sila era tentadora, mas a verdade é que
não conseguiria lutar contra um Kartal, nem que quisesse.

Rania era a mulher mais radiante do lugar, estava linda em


seu vestido vermelho com ladrilhos bordados por tia Sila e ela. Era
uma preciosidade que merecia ser passada a cada geração a partir
daquele casamento.
Ela dançava no meio do ambiente junto de seu marido,
usavam o Taki Toreni, um adornamento de fita que enfeitava o
pescoço de ambos e era preenchido de votos de prosperidade em
bilhetes.
Era um momento de pura alegria e partilha, mas eu estava
inquieta e bastante nervosa, Emir e Cemil me acompanhavam na
mesa, já que tia Sila e Jalila estavam na mesa da família da noiva.
Eymen estava distante, parecia incomodado com algo e
suspeitava que fosse a presença de um Cemil carrancudo ao meu
lado.
— Isso lembra meu casamento. — Olhei para Emir que
estampava uma expressão saudosa.
— Quem diria que um dia eu veria meu primo, frio e
inatingível, emocionado com uma cerimônia.
— Quando se encontra a pessoa certa, tudo se torna
compreensível, kuzen. — Olhei de soslaio para Cemil que mantinha
a atenção no ambiente.
— Evet. Catarina é uma mulher de muita sorte, assim como
Rania.
— E você também será, Samia. — Emir cobriu sua mão com
a minha. — Garantirei isso. — Senti meus olhos se encherem de
água.
Um choro baixo me tirou do momento e quando me virei
para olhar o carrinho, Cemil já pegava Zeki nos braços, ainda
desajeitado, mas logo estaria habituado.
— Deve ser fome — informei ao me abaixar para pegar a
mamadeira no cesto do carrinho.
— Acho que esse barulho o está perturbando. — Cemil
soltou, seu tom era sério. — Se despeça de todos. É melhor irmos.
— Já? Ainda é cedo. — Retornei com a mamadeira e ele
estendeu a mão. — Sabe como fazer isso? — questionei com as
sobrancelhas erguidas.
— Hayir. Mas vou descobrir. — Entreguei a mamadeira para
ele e Zeki se agitou. — Ei, calma, rapazinho. Seu baba já vai
alimentá-lo.
O choro que estava preso em minha garganta sucumbiu a
essa pequena frase. Tudo que sempre sonhei estava acontecendo
diante dos meus olhos, Zeki aquietou com a voz firme e carinhosa
de Cemil, se aconchegou em seu colo e aceitou o bico que era
ofertado.
Ambos se olhavam com tanta intensidade, era o
reconhecimento do sangue, a aceitação que havia uma parte
compartilhada, passada para a nova geração, era o legado Kartal
dando continuidade.
— Tome. — Emir estendeu um lenço para mim e eu aceitei
de bom grado.
— Preciso falar com Eymen, antes de partir — sussurrei
para meu primo mais centrado.
Duvidava que Cemil concedesse um minuto de
consideração ao homem que quase me comprometi.
— Tamam. Só se mantenha à vista.
— Pode deixar. — Virei na direção dos dois homens da
minha vida, que usurpavam toda a minha existência, por motivos
diferentes, e avisei. — Vou ao banheiro. Volto daqui a pouco.
— Não se preocupe. Ele estará protegido.
— Eu sei. — Apertei os lábios em uma linha fina e me
levantei.
Precisava começar a enfrentar os resultados das minhas
ações pregressas e, a primeira coisa a fazer era ser sincera com
Eymen.
— Selam. — Ele surgiu ao meu lado em um pequeno
corredor.
— Selam, Eymen. Precisava falar com você.
— Eu queria me aproximar, mas a cara dos seus primos
deixou claro que não deveria.
— Estou de partida.
— O quê? — Ele afastou um passo. — Por qual motivo?
— Eles vieram para me levar para a Turquia. Ficarei onde
devo, ao lado da família Kartal.
— Mas... Pensei que firmaríamos um compromisso, Samia.
Você deixou claro suas intenções, estou me preparando para
assumir uma família e quero que seja você.
— Eu sei que te dei esperanças, Eymen, mas existem
verdades sobre mim, sobre minha vida, que você não sabe.
— Não me importa seu passado. Sei bem que não foi
casada, Samia. — Senti o sangue se esvair do meu rosto. —
Mandei que pesquisassem sua família, descobri que sempre foi
solteira.
— Eymen... eu não queria mentir. Não pretendia te manter
enganado. Eu ia falar, antes do casamento.
— Não me importa. Eu sempre gostei de você. Desde que a
vi desembarcar em um táxi na porta da loja de especiarias.
— Sinto muito.
— Não sinta. — Ele avançou um passo e segurou minha
mão. — Fique em Londres. Nos casaremos o mais rápido possível.
Todos pensarão que é viúva, criarei Zeki como meu filho. Não
precisa contar sua vergonha a ninguém.
— Ela vai para a Turquia comigo e não será motivo de
constrangimento.
Gelei ao ouvir a voz imperiosa de Cemil logo atrás de mim.
Capítulo 27
“O melhor de vocês é aquele que são os melhores para as
suas mulheres.” (Tirmidhi)

Sentia meu corpo inteiro crepitar de raiva, frustração, afronta


e, sobretudo, por medo de perder Samia.
Ela havia se esgueirado dos meus olhos, encontrou o
homem com quem pretendia se ater a um compromisso escondida,
não disse a verdade sobre Zeki e não permiti que respondesse a
proposta descabida do homem.
— Com todo respeito, senhor Kartal, quem deve responder
é ela. — Eymen, um homem corajoso, tinha que admitir, empertigou
o tronco.
— Samia é sensata e sabe que o melhor para ela e Zeki é
retornar para a Turquia comigo e cumprir seu destino.
— Ela não tem que fazer isso.
— Eu não preciso discutir isso com você. É um estranho.
Não entende o que aconteceu, muito menos tem influência para
mudar o fato de que Zeki e Samia ficarão com os Kartal.
— Samia. Não dê ouvidos a ele. Podemos viver bem aqui.
Não precisa da caridade dos Kartal.
— Não seja ridículo. Não é caridade. É dever. — Soltei,
entredentes, sentia minha sensatez se esvair consideravelmente.
— Já basta! — Samia se colocou entre nós. — Sinto muito,
Eymen, mas a situação mudou e eu preciso partir. Não tenho
escolha.
— Claro que tem. Você pode escolher com seu coração,
Samia. Sabe que serei um bom pai para Zeki. — Algo dentro de
mim explodiu e eu me dei conta do quão rápido consigo ser para
agarrar o colarinho de um homem.
— Sus! Não abra a sua boca para falar do meu filho. Ele tem
um baba, que sou eu. Eu vou cuidar. Eu vou zelar. Eu vou proteger.
Ele é meu filho — rosnei tão próximo quanto poderia do rosto do
homem e o vi perder a cor.
— Você... — Ele segurou meu punho e me afastou. — Ele é
o pai? — O olhar julgador de Eymen para Samia me incomodou.
— Evet.
— Seduziu um Kartal, Samia? Achei que tivesse sido
enganada por um qualquer. Talvez até abusada. Por Allah. Você
desonrou uma família e estava mentindo até agora? — Puxei o
braço de Samia para trás, a protegendo do homem.
— Não fale do que não sabe. Samia é mãe do meu filho e
não permitirei comentários desdenhosos com sua índole.
— Sinto muito, senhor, mas sou um homem que quase foi
persuadido por ela. Tenho direito de pensar o que quiser.
— Só não tem o mesmo direito de falar. Seja um homem de
honra e siga seu caminho. Samia e Zeki estão no seu passado a
partir de hoje. Encontre uma mulher e construa sua vida.
Não dei tempo para que ele dissesse qualquer outra
besteira ofensiva. Agarrado no braço de Samia, praticamente a
arrastei corredor afora, Emir estava próximo da mesa, de pé,
sinalizei com a cabeça e saímos dali.
Chegamos à casa da tia de Samia, segurei meu filho por
todo o percurso enquanto Samia caminhava cabisbaixa ao meu
lado, empurrando o carrinho e Emir agia feito um leão de chácara,
em alerta e silencioso.
— Pegue suas malas. Leve o que for importante, o resto
providenciaremos na Turquia.
— Vai simplesmente me sequestrar? Não tenho direito a
escolha? — Samia soltou, exasperada.
— Você tem uma escolha: estar ou não ao lado do seu filho,
Samia. O que vai querer?
— Não tem o direito de tirar Zeki de mim.
— Isso significa, então, que você vem comigo. Porque o
meu filho, nunca mais vai sair das minhas vistas.
— Falou como um poderoso Kartal, mas nem sabia da
existência dele.
— Por culpa de quem? — Explodi.
Meu grito fez Samia recuar um passo e meu filho, que
dormia pacífico no meu colo, despertou aos prantos.
— Dê ele aqui. — Samia avançou e tirou o menino dos
meus braços.
— Eu...
— Vou acalmá-lo. — Ela sumiu corredor afora e acabei me
sentando no sofá.
Cobri minha cabeça com as mãos e tentei colocar o máximo
de ar dentro dos pulmões. A pressão em meu peito fazia meu
coração querer saltar pela garganta, inconformado e desesperado.
— Acho melhor ir com calma, abi.
— Eu... não sei o que estou fazendo, abi. — Encarei o olhar
sério de Emir.
— Vocês dois estão nervosos, abalados e com medo.
Mantenha a serenidade para resolver tudo.
— Não permitirei que ninguém machuque os dois. Eles são
meus, para cuidar e proteger. Vou reparar nosso erro. Quero me
casar com ela assim que chegarmos na vila.
— Isso é o correto, abi, mas já pensou no que Samia quer?
— Ela partiu com meu filho na barriga, abi. Eu perdi coisas
que nunca irão retornar.
— Posso imaginar sua frustração, mas isso não te dá o
direito de impor seu medo sobre o dela. Quer mesmo que ela aceite
o casamento por medo de perder o filho? Vai conseguir viver um
relacionamento harmonioso com a dúvida se é benquisto ou não?
— Não sei... eu não. Só quero tirá-la daqui logo.
— Espero que ao tirá-la daqui, saiba que se tornará
responsável por defender sua honra. — Olhei em direção a porta e
vi sua tia entrar. — Está preparado para enfrentar tudo por ela?
— Faço qualquer coisa por meu filho.
— Resposta errada. Seu filho é sua continuidade, rapaz,
mas ela será sua companheira.
— Eu a queria comigo. Desde antes.
— Mas a renegou quando um compromisso acordado por
seus pais foi levantado. Se você quer corrigir uma situação
desonrosa, siga esse caminho e tudo ficará certo e respeitável. Mas
se o que quer é amar, ser amado, construir uma vida feliz e que te
complete, fortaleça o seu desejo e o torne indestrutível.
As palavras da senhora foram como ferro em brasa,
queimando minha alma e declarando sem qualquer reserva, a
importância de ser firme, fiel e intrépido com o que sinto por Samia.
— Estou pronta. — Olhei sobre o ombro e fui até ela,
pegando o menino dos seus braços.
Ele estava acordado, mas sonolento, sua cabeça pendeu
em meu ombro e um pouco de calmaria preencheu meu sistema.
Era apaziguador sentir seu corpinho minúsculo junto ao meu.
— Eu levo as malas. — Emir ofereceu ao se aproximar. —
Cemil e eu desceremos, pode se despedir de sua tia com calma.
Parei diante da senhora que cuidou de ambos quando
ninguém mais fez, peguei sua mão e beijei o dorso levando até a
testa.
— Obrigado por cuidar deles quando eu não pude.
— Não foi trabalho algum.
Entrei no banco de trás com Zeki no colo, Emir tomou o
volante e esperamos cerca de quinze minutos por Samia, que
limpava as lágrimas ao entrar no lado do carona.
— Se quiser eu posso...
— Hayir. Quero ele comigo — avisei quando ela tentou
trocar de lugar comigo.
Seguimos viagem em um silêncio incomodo, foquei a
atenção no pequeno garoto que dormia, tranquilo em meus braços.
Ele era forte, cheio de saúde, ao menos era o que parecia,
precisava marcar uma consulta com o melhor médico de Londres e
me certificar disso.
— Chegamos. Seu quarto fica...
— Eu mostrarei — avisei ao meu primo quando ele tentou
informar.
— Tamam. Eu vou me recolher, amanhã conversaremos
melhor. Só não se matem, por favor — Emir avisou ao deixar a
bagagem com Samia.
— Por aqui — avisei ao seguir caminho para o quarto que
ficava de frente com o meu.
Abri a porta e fiquei mais uma vez satisfeito com o
atendimento rápido ao meu pedido. Um quarto aconchegante, com
cadeira de amamentação, berço e um trocador.
Queria que Samia não se sentisse deslocada, de forma
alguma, então providenciei alguns itens básicos para os cuidados de
Zeki.
— Que lindo.
— Pedi que providenciassem o básico para facilitar.
Também comprei algumas coisas. Fraldas, talcos e outros itens que
julguei necessário. — Apontei para o canto que estava repleto de
sacolas.
— Isso é além do necessário, Cemil. Obrigada.
— Não precisa me agradecer por fazer o melhor pelo meu
filho. — Não era para sair tão amargo, mas não consegui evitar.
Coloquei Zeki no berço, o cobri com uma manta azul, era
leve, o ambiente não estava tão frio.
— Cemil, eu...
— Desculpe. — Girei no lugar e mirei uma Samia
lindamente vestida, mas terrivelmente abalada. — Sei que estou
agindo feito um trator de carga, sem cuidado, tomando o que posso,
atropelando você e suas escolhas.
— Eu posso compreender seu comportamento.
— Por que não me contou, Samia? Por que fugiu? — Soltei
a pergunta que mais me atormentava.
— Você disse que aquela noite não poderia ter existido. Um
filho era muito mais que uma lembrança, Cemil. Não queria que Zeki
fosse criado como um bastardo na vila.
— O quê? Eu jamais esconderia meu sangue embaixo de
um tapete sujo.
— E isso vai se manter quando chegarmos na vila e
enfrentarmos o julgamento de todos? O desejo dos seus pais?
— Está me tomando por um covarde, Samia.
— Foi você quem prometeu um enlace que nunca
concretizou, Cemil.
— Eu não sabia do meu filho. — Soltei, sentindo a mentira
envenenar a razão que deveria prevalecer.
— Já que seu desejo por mim não foi forte o suficiente para
enfrentar sua família, espero que por Zeki, você possa ser firme.
— Samia, eu quero me casar com você.
— Acho que o pedido ficou um pouco redundante. É a única
opção agora. A reparação do erro.
— Você não é uma reparação. — Avancei um passo e ela
recuou.
— Estou cansada. De verdade. Podemos deixar isso para
amanhã?
— Claro. — Afastei um passo, depois outro, e a dor em meu
peito só expandiu.
Deixei o quarto desolado.
A mulher que eu rejeitei no passado, havia me dado um filho
e o escondeu. Eu renunciei ao meu sentimento com medo de
contradizer minha família, e agora teria que lidar com minha
frustração e a sua mágoa.
Por Allah. Seríamos capazes de superar tudo isso?
Capítulo 28
“A cura para a ignorância é questionar.” (Profeta Muhammad)

Despertei em um rompante, saltei da cama tropeçando nas


cobertas, meus olhos chicotearam direto para o berço e ao perceber
que estava vazio o desespero assolou meu peito.
— Zeki... — murmurei tomando rumo para a saída.
Milhares de possibilidades invadiram meus pensamentos,
uma mais terrível que a outra, o medo de nunca mais ver meu filho
era o mais desesperador de todos.
Estaquei na sala com a cena que se desenrolava diante dos
meus olhos, agora nublados de lágrimas que me esforçava para não
derramar.
Zeki estava no meio do espaço entre os sofás, cercado de
almofadas e travesseiros e uma dúzia de brinquedos novos e
diferentes. Cemil estava deitado de lado, fazia um barulho bobo com
a boca enquanto deslizava um carrinho de madeira na direção do
meu pequeno.
— Brumm... Bi-bi! — Ele soltou em um tom engraçado e eu
sorri. — Olha o seu carrinho, Zeki. Você gosta de carros? Hãm?
Conte para seu baba. — Respirei de forma audível e isso o fez virar
para trás e seu olhar escureceu. — Günaydin. — Soltou em um tom
bem menos receptivo.
— Günaydin. Ele está bem? — questionei ao avançar um
passo na direção deles.
— Sou perfeitamente capaz de cuidar de uma criança,
Samia, ainda que não tenha experiência.
— Fico feliz em ouvir isso, já que a partir de agora terá uma
em tempo integral exigindo sua atenção. — Rebati em pé de
igualdade. — Vou me trocar — avisei ao encarar meu pijama.
Era de malha clara, com pequenas margaridas estampadas,
cavado nos braços e colo, cruzei os braços sobre os seios quando
me dei conta que era revelador demais.
— Acho bom. Emir deve aparecer a qualquer momento.
— Emir! Verdade! — Corri para o quarto em disparada. —
Por Allah, Samia. — Bati com a mão na testa e fui direto para o
banho.
Fiz toda minha higiene com mais calma, levaria um tempo
até que nos acostumássemos, Zeki, Cemil e eu, tínhamos um
caminho desconcertado para seguir, mas talvez encontrássemos
alguma harmonia.
Não tinha a menor ideia de como as coisas transcorreriam
na Turquia. O compromisso dele com Ayla Bal ainda não estava
sacramentado em contrato, mas isso era uma mera formalidade em
se tratando da palavra de um turco.
Teria que encarar a família que me acolheu e deixar que
julgassem minhas escolhas sorrateiras do passado. Só esperava
que Zeki pudesse adoçar o coração dos avós, e ao menos ele fosse
bem tratado.
Não me importava muito com minha situação, poderia ser
desprezada e indigna perante os olhos de todos na vila, desde que
deixassem Zeki em paz, eu conseguiria suportar.
Coloquei uma calça de linho creme e uma blusa azul com
babados na frente, delicada e discreta, prendi os cabelos em um
rabo de cavalo alto, não usava o hijab desde que descobri a
gravidez, passei meu óleo essencial atrás das orelhas e pulsos e
retornei para a sala.
— Venha com o tio Emir. — Sorri ao ver um homem com
mais de um metro e oitenta, agachado diante de Zeki e fazendo uma
voz fanhosa ao falar. — Venha, Zeki. Vou te ensinar a como
comandar uma empresa.
— Por Allah, Emir. Sou eu que vou ensinar isso a ele.
— Você comanda uma exportadora, já eu, tenho vários
empreendimentos. Ele pode diversificar.
— Ele seguirá os passos dos Kartal. Será forte, honrado,
esperto e comandara os negócios com inteligência e perspicácia.
— Ou, pode trabalhar com o tio Emir no ramo de tecidos.
— Allahalla! Faça seus próprios filhos, sim. — Cemil se
irritou e pegou nosso filho no colo.
Quando girou no lugar me viu parada, nossos olhos se
conectaram e ele pareceu menos irritado do que antes. A realidade
era que estávamos agindo feito dois estranhos sob o mesmo teto,
havia um longo caminho para nós, era um fato.
— Bom dia, kuzen. — Emir soltou empolgado ao se levantar.
— Devo te parabenizar. Seu filho é uma preciosidade, Samia. Será
um Kartal forte e destemido. — Ele veio até mim com os braços
abertos e eu finalmente o abracei. — Menina, por que escondeu
esse fardo de mim? — seu sussurro era somente para meus
ouvidos.
— Não queria te preocupar com meus problemas, você já
tinha coisa demais para lidar em outro continente.
— Eu sempre tenho tempo e disposição para a família,
Samia. — Ele segurou meus braços e se afastou. — Precisamos
discutir algumas questões legais, mas acho que você e Cemil
precisam conversar antes.
— Evet. — Limpei uma lágrima errante ao me afastar.
— Cuidarei do pequeno Zeki enquanto conversam.
— Você sabe como fazer isso? — Cemil questionou ao
passar o meu menino para Emir.
— Tanto quanto você, abi. — Ele riu ao pegar Zeki no colo.
— Vamos ligar em chamada de vídeo para a tia Catarina, tenho
certeza de que a convencerei a providenciarmos o nosso filho.
Emir conseguiu deixar o clima tenso da sala mais leve até
sua partida, que assim que saiu, a temperatura baixou
consideravelmente e o sorriso que ostentávamos, ambos, se
extinguiu.
— Vamos tomar café. — Cemil avisou ao se encaminhar
para a mesa posta.
— Estou sem fome.
— Precisa se alimentar, para cuidar do nosso filho. Teremos
que sair. Marquei um médico para ver Zeki, e em seguida uma
reunião com o advogado que está cuidando da papelada do registro
de nascimento. — Ergui as sobrancelhas ao tomar o lugar na mesa.
— E fez tudo isso sem me consultar.
— Não preciso te consultar para cuidar do meu filho e
legitimar seu nascimento.
— Acho que esse não é o melhor tom para essa conversa,
Cemil. Eu entendo sua mágoa, você perdeu o crescimento de Zeki
até aqui, mas não sabe o desespero que passei.
— Poderia ser evitado com uma ligação sua.
— E dizer o quê? “Selam, Cemil, lembra da noite fatídica
que você me mandou esquecer enquanto os lençóis ao qual me
entreguei a você ainda nem esfriaram, pois bem, ele resultou em
uma criança” — esbravejei perdendo o fio de paciência que tentava
manter.
— O que fizemos era errado, Samia, você bem sabia disso.
Não pode me culpar por você tomar decisões sozinha.
— Você fala como se tudo tivesse sido muito fácil para mim.
Tem ideia do medo ao qual passei? Se tia Sila não tivesse me
acolhido, eu não teria ninguém, Cemil.
— Você tinha a mim! — Ele bateu na mesa, irritado.
— Hayir! Eu não tinha! Você me dispensou. Disse para eu
esquecer. Só descobri da gravidez quando cheguei em Londres. Eu
segui adiante, como você havia ordenado.
— Me diga uma coisa, Samia: você viveria em paz por
permitir que um estranho criasse meu filho como seu? Se eu não
tivesse vindo até você, teria coragem de manter a origem de Zeki
em segredo?
— Zeki é só meu. Sempre foi. Eu faria qualquer coisa para
que ele tivesse uma vida digna e decente.
— Você está errada. Zeki nunca foi somente seu. Sou o pai
dele e eu posso dar uma vida a ele que nunca se compararia a
qualquer esforço seu. — Senti como se um tapa tivesse sido
deferido em meu rosto.
— Espero que Zeki não puxe a soberba dos Kartal.
— Desculpe, mas estou sendo honesto.
— Eu achava que você tiraria Zeki de mim e o colocaria sob
os cuidados de alguma família na vila. Ele seria um ninguém, Cemil.
— Jamais faria isso com nosso filho, Samia. — O tom dele
amenizou consideravelmente. — Você deduziu coisas demais a meu
respeito, e nenhuma delas parece satisfatória.
— E você pode me culpar por isso? — Ergui o queixo,
determinada.
Eu sabia bem que o rumo da minha vida havia mudado por
completo, Cemil repararia sua falha e corrigiria a honra da família
me desposando. Um sonho juvenil se concretizaria, uma pena que
era vazio e sem sentimento.
Estava condenada a viver um casamento de aparências,
sem qualquer sentimento por parte de Cemil, salvo o fardo de arcar
com as consequências de uma má escolha no passado.
— Essa discussão não levará a lugar algum. Marquei os
compromissos para acelerar os trâmites. Sei que cuida bem do
nosso filho, posso ver isso só de olhá-lo, mas ficaria mais
confortável se o passasse por um check-up.
— Tamam. Zeki está bem e saudável, mas se isso o
tranquiliza. — Dei de ombros.
— Obrigado. Já havia pedido para um advogado de
confiança, aqui em Londres, entrar com o pedido de correção da
paternidade. Quero retornar para a Turquia com tudo resolvido,
inclusive nosso casamento.
— O quê? — O olhei alarmada. — Vai passar por cima da
vontade de tio Osman?
— Não há vontade que sobreponha um filho, Samia. —
Engoli em seco.
Era verdade. Nosso enlace se pautava exclusivamente ao
fato de Cemil ter um herdeiro.
— Sim.
— Eu falarei com todos. Nossos pais, tratarei do contrato de
casamento, você terá uma conta separada para seu mahr[31] e...
— Hayir. Não quero nada de você.
— É a tradição, Samia. — Torci os lábios, desgostosa.
— Não quero nada além de poder cuidar do meu filho.
— Fará isso, como minha esposa, tem a responsabilidade
de zelar e cuidar de Zeki.
Pensar na quantia que seria destinada a mim por me casar
com Cemil me deixava incomodada, pelo simples fato de imaginar
que todos me veriam como uma interesseira.
Sabia que o mahr ofertado por um noivo, com posses como
Cemil tinha, seria muito maior do que meu baba conseguiu juntar
em toda uma vida.
— Viverei na vila?
— Ainda não sei. Veremos isso. — Segurei meu riso de
escárnio.
Minha vida estaria atrelada as paredes do casarão da vila,
sob o olhar vigilante de tia Kara, que não perderia a oportunidade de
sempre falar o quanto a vida do seu filho mais novo foi prejudicada
por mim.
“Por Allah, mereço esse castigo por meu erro?”
Capítulo 29
“Não vejas e não critiques os vícios humanos que em ti
próprio se encontram.” (Maomé)

Foi a conversa mais catastrófica de toda a minha vida. Nem


a primeira negociação grande que fiz em nome da empresa, não me
deixou tão volátil, impaciente e temoroso.
Achava que a qualquer momento Samia se levantaria e
renegaria minha proposta com todas as forças. Procuraria aquele
Eymen e viveria a vida que havia se inclinado a aceitar, antes que
tudo fosse descoberto.
Tive medo e isso me fez agir como um déspota que não
gostaria. Como havia aprendido no ramo empresarial, não entregar
sua fraqueza para que não fosse prejudicado, pensei que agir da
mesma maneira na vida pessoal daria certo.
Acho que me enganei.
Emir retornou do passeio com Zeki, que parecia ansioso
demais pelo colo da mãe, ambos foram para o quarto e eu fiquei de
fora. Como sempre.
— Dê tempo ao tempo, Cemil. Vocês só precisam de uma
conversa sincera e sem ressentimentos.
— Ela não quer estar aqui, abi. Acho que ela ama o outro,
mas será forçada a ficar ao meu lado por nosso filho.
— Você tem a opção de deixá-la...
— Hayir! Não serei um homem desonrado.
— E você está se casando com ela somente pela honra?
Não a quer? — Olhei para Emir espantado.
— Claro que eu quero, abi. Quando voltei para a Turquia foi
justamente para assumir nossa relação para o baba, mas as coisas
já estavam resolvidas.
— E você aceitou. — Acenei com a cabeça. — Cemil,
sempre admirei seu senso de dever e obediência com nossos
costumes e respeito aos mais velhos, mas, kuzen, estamos falando
da sua felicidade.
— Eu não me resignei somente por obediência, Emir. Ayla
está em uma situação complicada, se não se casar comigo, será
entregue a um sheik. Tem ideia do que isso significa para uma
mulher como ela?
— Por Allah! As coisas só pioram, abi. E eu achando que a
minha história com minha qalbi era complicada.
— Estou decidido. Voltaremos para a Turquia com os
contratos de compromisso assinados por nós e você. Conversarei
com seu pai assim que chegarmos à vila. Mas ainda me preocupa a
situação de Ayla.
— Não vejo uma solução cabível para ela. Ainda mais com
sua posição social.
— Estou vivendo minhas provações na terra, abi. Sinto-me
culpado por não ter visto meu filho crescer até aqui, rejeitei duas
vezes a mulher que sempre fez meu coração bater fora do ritmo e
ainda estou cravando uma faca afiada no destino de uma pobre
coitada.
— Há coisas na vida, Cemil, que requerem muita coragem
para lidar com o que não está em seu controle. O que você pode
fazer está sendo feito, o que cabe a Ayla Bal, é problema dela.
Posso tentar algum acordo com a Holding para os hotéis, mas
sinceramente, não temos suporte financeiro para salvar a rede toda.
— Já é alguma coisa. Quem sabe conseguimos mais
investidores.
— Existe a possibilidade. Veremos isso quando chegarmos
a Turquia.
— Já falou com Ayla?
— Ainda não. Prefiro conversar pessoalmente.
— Tem razão.
Emir resolveu trabalhar pelo resto do dia, Samia e eu
saímos com Zeki e fomos para o médico, que examinou meu filho
passou alguns exames básicos, mas me tranquilizou quanto ao
prognóstico.
Ele era um Kartal, forte e saudável.
Pedi que o motorista parasse em uma joalheria a caminho
do escritório de advocacia. Estava entusiasmado e queria
comemorar, entrei no lugar com Zeki nos braços e Samia ao meu
lado.
— İyi günler, gostaria de ver anéis de compromisso. —
Anunciei.
— O que está fazendo? — Samia cutucou meu braço.
— Estou comprando algo especial para nosso compromisso.
— Isso é desnecessário, Cemil. Vamos assinar os contratos
de casamento. Não precisa.
— Mas eu quero. — A olhei com determinação. —
Começamos tudo ao contrário na nossa vida, Samia, mas não
pretendo deixar as tradições de lado.
Ocupamos a mesa com os mostruários, bati os olhos em um
anel de diamantes encrustados em torno de uma gema amarela,
linda e delicada, era tão vivaz em seu brilho que foi automático
associá-la a peculiar alegria de Samia.
— Esse.
— Enlouqueceu? Isso é diamante. — Ela soltou baixo,
parecia horrorizada.
— Exatamente.
— O diamante amarelo é tão raro quanto o incolor. Uma
escolha realmente especial, senhor. — A mulher entregou o objeto
para mim.
— O que acha? — Virei em direção a ela e seus olhos se
iluminaram ao observar a peça. — Acho que você aprova.
— Tanto faz. Eu nem acho necessário. — Samia fechou o
cenho e desviou os olhos.
— Pode tirar a medida do dedo, vou levar.
Encarei Samia que parecia desgostosa. Não conseguia
compreender suas oscilações de humor, ora parecia resignada, ora
parecia nervosa. Iríamos nos casar em poucos dias, queria agradar
a ela e nosso filho, valorizar nosso enlace.
Por que renegava tudo?
Parei diante de uma vitrine que mantinha em destaque um
broche pequeno, delicado, a imagem de uma ave, que eu apostaria
ser uma águia, significado do sobrenome Kartal.
Enquanto Samia media o anel com a primeira atendente,
pedi, em segredo, que outra pessoa colocasse o broche junto do
anel, presentearia nosso filho com ele assim que saísse a papelada
do registro.
Partimos para o advogado, Samia estava mais calada do
que já havia visto na vida, isso me incomodava, mas tinha medo de
perguntar e ouvir o que não queria.
Era errado, continuava sendo um covarde, eu sabia, mas
não tinha forças para deixá-la voltar para os braços daquele homem.
— No máximo em dois dias sairá o novo registro. — O
Advogado informou. — Quanto ao contrato de casamento, recebi a
documentação do seu advogado na Turquia. Está aqui. — Ele me
repassou uma pasta.
— Ótimo. Ele só poderá ser lavrado na Turquia.
— Sei disso. Agradeço a atenção.
Saímos do advogado e Samia ainda estava quieta, o que
me tornava mais agitado, um péssimo sinal para atitudes
prematuras e, em geral, burras. Zeki estava em seu colo, ele parecia
alheio a angústia que permeava o ambiente.
— Preciso ir até tia Sila. Tenho que pegar o restante das
minhas coisas.
— Não precisa levar nada que tiver lá. Compraremos tudo
novo.
— Lembranças não são compradas, Cemil. Você acha que
tudo se trata de dinheiro, mas não é.
— Eu não disse isso. — Virei para ela, indignado. — Qual o
seu problema, Samia? Queria ter firmado compromisso com o
Eymen?
— O quê? Do que está falando? — Ela soltou, indignada.
— Só falo o que vejo, Samia. Você quer aquele homem? —
Lancei a pergunta que me atormentava.
Seus olhos se alarmaram, o ar ficou suspenso dentro do
carro, e por coincidência, ou não, o veículo parou em um semáforo.
Prendi a respiração encarando o semblante endurecido dela.
— Eu só quis um homem, em toda a minha vida, Cemil. —
Meu peito expandiu, puxei o ar com força, tragando todo o fôlego
para apaziguar meu desespero. — Foi o meu presente e a minha
ruína. Estar com você é o certo perante nossa família, para o bem
de Zeki, e é isso que importa.
— Você está comigo pela obrigação?
— A essa altura, qualquer resposta é irrelevante. — Ela
virou para a janela e o carro começou a andar.
Recolhi todos os meus pensamentos para mim. Nunca
pensei que um dia estaria forçando Samia, a garota que me
atormentou por toda a vida, a se casar comigo.

Passei dois dias enfurnado no escritório de Londres,


afundado no trabalho, resolvi mais questões, realizei mais reuniões
e apaziguei mais acordos comerciais do que fiz por toda minha
existência.
Emir havia me acompanhado, se mantinha perto, mas não
ousava mencionar nada sobre meu comportamento ou modo de
agir. O Kartal mais correto, educado e gentil, havia se tornado uma
máquina de trabalho e intolerância.
Já estava em posse dos documentos de Zeki, que agora
carregava o nome Zeki Yilmaz Kartal, o campo paterno não indicava
mais “desconhecido”, meu nome preenchia o local.
O acordo de casamento ainda não havia sido assinado, Emir
já tinha questionado um par de vezes, mas eu relutei em dar
continuidade.
Samia foi empacotar seus pertences na casa da tia,
passaria mais tarde para buscar os dois, amanhã partiríamos para a
Turquia, e o fato de sentir que a estava obrigando a retornar comigo
estava me afetando mais do que deveria.
Era o correto. Não era?
Saí da empresa no final da tarde, enviei um e-mail para meu
baba e Haydar, informando que amanhã estaria na vila, na
companhia de Emir e que tinha uma surpresa para todos.
Queria toda a família presente para anunciar o primeiro filho
da nova geração dos Kartal. Havia uma grande chance de Zeki ser o
braço direito do herdeiro de Emir, por ser o mais velho.
Eu me orgulhava de pensar que quando deixasse essa
terra, me certificaria de ter ensinado ao meu filho como ser um
homem de bem e um apoio para o primo que gestaria nossos
negócios.
Chegamos à casa de tia Sila, entramos para tomar um çay,
como mandava a educação, carreguei as caixas dos pertences de
Samia e Zeki para o carro e nos despedimos, de uma vez por todas,
daquele lugar.
Soube na conversa aleatória que Eymen havia mantido sua
descrição e honra e não revelado a verdadeira condição de Samia e
Zeki, o que garantiria a moral da família Yilmaz perante a
comunidade.
Eu deveria estar feliz e otimista, mas só sentia meu coração
pesar um pouco mais. A angústia em meu peito aumentava,
gradativamente, anunciando algo que estava por vir, e deixaria meu
coração ainda mais pesado no final de tudo.
Capítulo 30
"Cuidado com a súplica dos oprimidos, pois não há barreira
entre ele e Allah." (Profeta Muhammad)

Estávamos no avião da Kartal, Cemil reservou o voo para


que fôssemos com maior rapidez e sem nenhuma conturbação para
Zeki.
Não trocamos uma palavra que fosse nos últimos dois dias,
absolutamente tudo girava em torno de Zeki. As falas, sorrisos,
atitudes, era direcionado à rotina do menino, que parecia muito mais
à vontade com o pai.
Em todos os meus sonhos, os mais delirantes, sempre
imaginei como Cemil agiria com o filho. No entanto, suas atitudes
superaram tudo que já vi, até banho ele pediu para dar em nosso
filho, sob minha vigilância, claro.
Cemil era um homem grande e com pouca experiência para
lidar com um serzinho agitado e pequenino, preferia me manter em
torno, apesar de sempre parecer desnecessária.
Eles só tinham olhos um para o outro.
Confesso que senti um pouco de ciúme do meu menino,
agora dividiria não só a atenção, como também o amor. Era
completamente egoísta, eu sabia, mas em minha defesa, ainda não
conseguia acreditar que um dos meus sonhos delirantes estava se
consagrando.
— Se mantiver a cabeça nas nuvens, nunca conseguiremos
aterrizar em segurança, kuzen. — Emir tomou lugar ao meu lado.
Estava sentada no fundo, escolhi a penúltima poltrona,
andava mais pensativa do que de costume, aproveitando os últimos
momentos de tranquilidade e sem julgamentos, antes de entrarmos
na vila.
— As nuvens são mais confortáveis. — Sorri, sem vontade
alguma.
Daqui conseguia ver metade do corpo de Zeki, alçado para
o ar, por braços forte e mãos grandes de seu pai. Acontecia uma
conversa unilateral, um tom engraçado que nunca tinha ouvido de
Cemil e alguns resmungos e risos do nosso filho.
— Ele será um ótimo pai e marido.
— Cemil sempre foi o mais correto e equilibrado entre
vocês, por isso seu senso de dever é tão expansivo. Sei que Zeki
estará bem perto dele.
— E você também, Samia. Sempre o amou.
— Evet. Mas uma vida não é construída somente de amor,
kuzen. É preciso partilhar, dividir, querer, admirar... Por Allah,
passaria todo o percurso até a vila mencionando cada um dos
verbos que compõem uma relação saudável e feliz.
— Sei bem o que é começar um relacionamento de forma
conturbada, Samia. Lembra-se como Catarina e eu começamos?
— Pelo menos você foi atrás dela, enquanto havia tempo.
Ficaram juntos por quererem um ao outro. Essa foi a mola
propulsora para enfrentarem as dificuldades.
— E acha que isso não acontece com você.
— Evet — concordei, mesmo não sendo uma pergunta. —
Estamos fazendo o que é correto. Reparando um erro do passado.
— Eu saí do Brasil para intermediar o enlace de vocês,
Samia. Era para ter assinado a papelada em Londres, mas Cemil
reteve a documentação. Não passa pela sua cabeça o motivo? —
Encarei o olhar afiado do meu primo.
— Esperando a aprovação de tio Osman?
— Comigo presente, como chefe da família, Cemil poderia
assumir esse compromisso sem qualquer objeção.
— Mas...
— Não é o tio Osman que ele espera, Samia. Não deixe seu
medo te impedir de enxergar o que está diante dos seus olhos.
— Ele ainda é noivo de outra mulher, mesmo quando disse
para mim que havia partido para Turquia para buscar a aprovação
do seu baba.
— O único pecado de Cemil é ser obediente demais e
colocar a necessidade dos outros acima das suas.
— Por que diz isso?
— Você vai entender. Em breve.
Nossa conversa foi interrompida pelo choro irritado de Zeki,
já sabia que era fome, mas ainda deixei que Cemil sofresse um
pouco para começar a aprender as artimanhas do garoto.
Alimentei e ninei Zeki quando Cemil desistiu, depois de
algum tempo de choro e impertinência, o coloquei para dormir na
cadeira reclinável ao meu lado.
Aterrizamos em solo turco quando anoitecia, fomos direto
para o apartamento de Emir em Ancara. Cemil disse que não queria
pegar estrada à noite com nosso filho e eu concordei.
Zeki chegou dormindo, o coloquei no berço desmontável
que estava na sala, mais uma providência de Cemil, que pediu para
que arrumassem um lugar seguro para seu filho dormir, assim que
chegássemos à Turquia.
— Não quero jantar, comi no voo, vou aproveitar para tomar
um banho e falar com Catarina. Tenham uma boa noite. — Emir se
livrou de nós logo após a chegada.
— Preciso de um banho. — Soltei, incomodada por
estarmos sozinhos pela primeira vez desde a última conversa.
— Pode ir. Fico de olho em Zeki.
— Não precisa. Ele está dormindo, seguro.
— Mas e se ele chorar, ou se engasgar. Pode acordar
assustado, se sentir sozinho.
— Cemil! — Chamei sua atenção com um riso leve. — Não
se preocupe com essas coisas. Vai ficar tudo bem.
— Como você sabe? — Sua pergunta tinha um tom de
desespero que nunca tinha visto antes.
Cemil poderia ser tudo e ter milhares de defeitos, mas nunca
o vi demonstrar insegurança sobre absolutamente nada.
— Eu não sei. Mas eu confio.
— Tenho medo de não ser bom o suficiente. Tudo mudou
muito depressa, Samia. Não consegui colocar todas as emoções em
ordem ainda.
— Lembro de me sentir exatamente assim quando descobri
a gravidez. — Sorri ao recordar os momentos que sucederam a
notícia.
Era, de fato, um divisor de águas. Como se duas pessoas
existissem dentro de você: uma antes, desenganada e alheia à vida,
outra que sentia a necessidade de estar alerta, com
responsabilidades que não vinham com um manual antifalha.
— Deve ter sido terrível. — Ele riu sem humor e bateu os
braços na lateral do corpo. — Eu que devo te fornecer proteção e
segurança, ao meu filho também. Mas aqui estamos, você sendo
muito mais do que a garota impertinente do passado.
— Aquela garota não existe mais. — Senti minha garganta
se fechar e o choro surgir de imediato.
Eu não queria sucumbir, precisava me manter firme já que a
maior tormenta ainda não havia acontecido.
Senti meu rosto ser erguido, Cemil fechou nossa distância
enquanto eu sucumbia as minhas próprias dores, seus olhos
miraram os meus, aquele olhar amável e polido, fizeram meu
coração disparar.
— Eu discordo. Vejo ela todas as vezes que você rebate
qualquer coisa que eu digo.
— Não seja tolo. — Levei a mão até seu peito deferindo um
tapa amistoso.
Cemil segurou minha palma, com a outra mão ele firmou os
dedos em meu queixo e se inclinou sobre meus lábios.
O beijo aconteceu de forma lenta, cuidadoso e gentil,
parecia que era a primeira vez que fazíamos aquilo, como se
estivéssemos diante de uma nova versão de nós mesmos.
Nossas línguas dançaram em um ritmo particular, que
ambos sabíamos cada passo, já que criamos os movimentos por
nós mesmos há muito tempo. Era sublime e inebriante, fazia minha
mente vagar pelas nuvens, distante de qualquer um dos tormentos
que permeavam minha alma.
Meu corpo foi trazido mais ao encontro do seu, sentia sua
dureza pressionar meu ventre, minhas mãos puxaram ainda mais as
lapelas do seu blazer e quando ele se afastou éramos confusão,
desejo e ansiedade.
— Ainda não... Quero fazer do nosso relacionamento algo
honrado, Samia. Só te levarei para cama quando estivermos
casados. — Ele determinou e eu quase protestei.
Era frustrante não sucumbir ao prazer, mas entendia seu
ponto.
Além do mais, ele ainda era um homem comprometido, em
palavra, com outra mulher e precisaria resolver essa questão antes
de dar continuidade a suas obrigações.
— Tenho um café da manhã com a família Bal. Iremos Emir
e eu, encerrarei o compromisso firmado e logo em seguida
partiremos para a vila.
— Ah... — Senti meu peito se apertar.
Ele encontraria com ela. Seria obrigado a terminar seu
enlace, Emir era a garantia da seriedade e respeito com a família da
futura noiva, que ainda poderia resultar em um desacordo sem
reparação por parte deles.
Eu era motivo de ofensa para uma família de bem.
— Não tem que se preocupar com nada. Fique tranquila e
foque suas energias em Zeki. — Cemil segurou minhas mãos, mas
eu afastei.
— Seu baba não vai gostar disso. Deveria ter falado com ele
antes. Ele pode muito bem não aceitar nossa união.
— Samia? Está fora do seu juízo? Meu baba nunca
rechaçaria você. Além do mais, estou fazendo o que quero, pela
primeira vez na vida.
— Mas você está noivo de outra.
— Não assinamos absolutamente nada. As coisas não são
da forma como pensa. Ayla é uma amiga de longa data, que tentei
ajudar nos negócios aqui na Turquia. Amanhã tentarei poupar sua
desgraça.
— Eu não gostaria ser motivo de desgraça ou vergonha de
ninguém.
— Isso não tem a ver com você ou nossa situação, Samia.
Acredite.
— Estou cansada. — Afastei um passo. — Vou tomar um
banho, quero dormir um pouco.
— Tamam. — Seus ombros cederam, parecia derrotado. —
Conversaremos melhor depois que eu resolver tudo isso.
Peguei Zeki do berço e o levei comigo para o quarto.
Deixei que as lágrimas caíssem na segurança da solidão.
Encarei meu filho e pedi perdão diversas vezes por trazê-lo ao
mundo com um fardo tão pesado assim.
Ao dormir supliquei a Allah que me desse forças para
enfrentar minha nova realidade.
Capítulo 31
"É difícil para um homem carregado de riquezas escalar o
caminho íngreme que leva à bem-aventurança." (Profeta
Muhammad)

Entramos no restaurante do hotel que a família Bal estava


hospedada, era próximo do apartamento de Emir em Ancara, o que
me tranquilizou, já que deixei Samia e meu filho, a contragosto, na
mesa de café da manhã.
Meu filho estava animado em comer e bagunçar as
tentativas de sua anne o alimentar, já Samia, parecia ainda mais
fechada e reclusa. Quando mais nos aproximávamos do momento
decisivo, sentia que menos ela estava feliz com o enlace.
E era por isso que ainda não tinha rabiscado aquele contrato
infeliz de compromisso. Eu a queria, mais do que tudo, mas era
egoísta demais para aceitar somente seu corpo e a concordância.
Eu a queria por inteiro. Mente, corpo e emoção.
— Günaydin. — Cumprimentei todos a mesa.
— Günaydin, Cemil. Espero que tenha feito uma viagem
agradável de volta.
— Foi bastante determinante. Com certeza. — Apontei para
Emir que estava de pé ao meu lado. — Este é Emir Kartal, chefe da
família Kartal. Ele mora no Brasil com a esposa, mas atendeu ao
meu pedido de vir até Ancara para termos esse encontro.
— Deve ser de suma importância, já que um homem tão
ocupado se deslocou de longe.
— De fato é. Günaydin. — Emir cumprimentou o homem e
acenou para as mulheres.
— Cemil, como vai? — Ayla tinha um olhar desconfiado.
Havia enviado uma mensagem na noite anterior afirmando
que havia uma solução para nossos problemas. Sua resposta foi
instantânea e disse estar ansiosa para resolver tudo sem me
prejudicar.
Ayla era uma boa pessoa, merecia alguém de valor, não só
com uma posição importante nos negócios, mas que a enxergasse
como é.
— Senhor, estou aqui para manifestar meu desejo de ser
sócio dos Hotéis Bal. — Serkan Bal, ficou sério e interessado. — Eu
tenho uma Holding, a Sadik, tenho concentrado minha atenção
exclusivamente nela há mais de um ano.
— Conheço seu histórico, senhor Kartal, mas você tem
poder aquisitivo para tanto?
— Não. Mas conheço alguém que poderia se interessar e
tem poder de cobrir o que precisa.
— Quem?
— Emanuel Kent.
— Allahalla! Hayir! Kant? Hayir. — O homem esbravejou e
eu senti minha confiança esmorecer.
— Entendo suas reservas, senhor Bal, mas estamos sem
muitas opções.
— Osman se comprometeu em nome da Kartal.
— Infelizmente, senhor, o acordo firmado não poderá
acontecer. — Tomei a palavra.
Apesar de ser Emir o responsável pela família, estávamos
falando da minha vida, do meu destino traçado pelas mãos do meu
pai e, principalmente, da correção dos meus erros pregressos e
omissão.
— Vai contrariar a vontade do seu baba? — Serkan me
olhou com desdém.
— Na verdade, vou reparar um erro que cometi com a
pessoa que amo há um longo tempo. Eu não posso me casar com
Ayla, senhor, pois tenho um dever a cumprir com outra moça, a
qual, eu cultivo sentimentos profundos. — Evitei mencionar os
detalhes, mesmo tendo a ciência de que em breve estamparíamos
todas as capas e noticiários da Turquia.
— Eu não entendo.
— Não há muito para entender, senhor. Só precisa saber
que não poderei me comprometer com Ayla, pois já assinei meu
compromisso com outra.
— Por Allah. — Encarei a mãe de Ayla que cobria a boca
com as mãos, chocada.
— Cemil, que maravilhoso! — Ayla avançou sobre a mesa
me puxou para um abraço.
— Ayla! O que significa isso? — O senhor Serkan protestou.
— Baba, você bem sabia que Cemil e eu não queríamos
esse acordo. Só aceitei para fugir do casamento com aquele homem
asqueroso. Com a solução do senhor Kartal não terei mais que me
preocupar.
— Isso não está decidido. — Ele se levantou em um
rompante. — Falarei com seu baba, Cemil.
— Faça como preferir, senhor, mas é fato que eu não serei o
Kartal a me casar com a sua filha. — Levantei também fechando o
paletó. — Sem ofensas, Ayla.
— Não ofendeu. Espero que essa garota saiba o que tem
nas mãos. Quero ser convidada para o casamento. — Minha amiga
sorriu e eu retribuí.
— Allahalla! Vamos embora. — O homem saiu batendo os
pés e ambas o acompanharam em seguida.
— Primeira questão resolvida, abi. Vamos para a vila? —
Encarei Emir com pesar.
— Evet. Vamos.
— Não desanime homem. Tudo está se resolvendo e tenho
orgulho por você tomar as rédeas da situação.
— Já estou pronto para as consequências do escândalo,
abi. Só queria ter certeza de que Samia estará feliz.
— Às vezes, abi, o que nos falta é um pouco de conversa e
sinceridade.
— Do que está falando? — Encarei o semblante enigmático
de Emir.
— Você verá.
Entrei no apartamento e vi Zeki em volta das almofadas no
espaço entre os sofás, fui direto até ele, o peguei no colo e beijei
seu rosto. A barba pinicou sua pele e ele me empurrou, como já
costumava a fazer.
— O baba chegou, meu pequeno. — Brinquei com ele que
sorriu e fez meu coração se encher ainda mais de amor.
— Como foi tudo? — Girei para encontrar Samia em um
vestido floral em tons claros, a deixava com ar gracioso e delicado.
— Como o esperado. A promessa está findada. Vamos para
a vila.
— E como a moça ficou? Você a viu? — Samia tinha um
olhar angustiado.
— Ayla lidará melhor do que todos nós com isso. Pode ter
certeza.
— Ah... que bom. — Samia passou direto por mim e Emir. —
Vou pegar minhas coisas.
Encarei o caminho que ela percorria apressada, voltei o
olhar para Emir, que parecia saber tudo que estava acontecendo, o
que me deixava bastante irritado, e me confundia ainda mais sem
saber como agir.
— Vá falar com ela. — Emir estendeu os braços chamando
por Zeki. — Eu cuido dele.
— Tamam. — Entreguei meu filho, ainda incerto, dei alguns
passos em direção ao quarto.
— Seja sincero com seus sentimentos, abi. Ela precisa
disso. — Olhei sobre o ombro e acenei com a cabeça.
Bati na porta entreaberta, avistei Samia colocando os
pertences dentro de uma bolsa grande, não havíamos desfeito as
malas da viagem, era desnecessário.
Sua mudança já tinha sido enviada para a vila, então meus
pais já faziam ideia de que alguém retornaria para casa. Talvez
pensassem que seria Emir e Catarina, já que mencionei o nome
dele no comunicado que fiz.
Seria uma surpresa bastante inesperada.
— Está tudo bem.
— Evet. Por que não estaria? — Ela continuou a tarefa,
ainda mais apressadas nos movimentos. — Vamos fazer isso logo
de uma vez.
— Samia?
— O que foi?
— Samia? — Chamei com mais cautela e cuidado e ela
finalmente parou o que estava fazendo para me encarar.
Queria ir ao encontro dela, segurar seu rosto entre as
minhas mãos, beijar e cuidá-la até que seu olhar aflito se
dispersasse. Eu a pouparia de toda e qualquer avalanche julgadora
que poderia vir, mas não conseguiria impedir seu coração de sofrer
por outro.
— Sinto muito por tudo. Nunca me arrependi do que
fizemos, eu a desonrei, assumo toda a responsabilidade. Mas
aquela noite foi uma revelação com a qual não soube lidar,
finalmente enxerguei a mulher que você havia se tornado e um
sentimento que vivia escondido dentro de mim explodiu. O que era
inviável e estranho, se tornou a coisa certa e eu cedi. Pela primeira
vez na vida, permiti que meus sentimentos sobrepusessem a razão.
“Foi a melhor decisão que tomei na vida. — Enfiei as mãos
nos bolsos para me conter. — Passei um ano de tormento e
inquietação, mergulhei no trabalho para tentar esquecer, por poucas
horas no dia, de tudo que fizemos. Do gosto do seu beijo, do sabor
da sua pele, do som dos seus gemidos quando eu a fazia sentir
prazer. Era inebriante e enlouquecedor me lembrar de você. Mas
com isso vinha a culpa por ter tirado sua honra de forma tão
sorrateira.”
— Eu me entreguei porque quis. Você nunca me forçou a
nada, e no fundo, sabia como as coisas seriam depois que
terminasse. Nunca fui vista por você como uma possibilidade.
— Eu era um tolo. Só consegui perceber a verdade quando
a reencontrei em Londres. E meu medo de te afastar, de manifestar
meus desejos para meu baba me mantiveram covarde em minha
obediência.
— Bom, você tinha alguém, não é? Quem poderia te culpar.
Sei bem o quanto não controlamos o coração, Cemil.
— Eu nunca tive ninguém além de você Samia. Não beijei
uma boca sequer depois de nós.
— O quê? Mas, e a moça que você se comprometeu?
— Aquilo foi um erro, um mal-entendido que o pai de Ayla se
aproveitou para firmar um compromisso vantajoso. Ele queria casar
a filha com um sheik na Arábia Saudita, entregar Ayla como
barganha para manter os hotéis funcionando.
— Por Allah.
— O escândalo que te contei realmente foi acidental, deixei
que ela resolvesse tudo e ganhasse tempo para sair dessa situação,
meu baba entendeu tudo errado e firmou o compromisso
acreditando que eu queria o enlace. Uma confusão completa, que
por minha culpa não havia sido evitada.
— Mas você aceitou o acordo que ele fez. — Seu tom era
magoado.
— Evet. E esse foi meu segundo maior erro, Samia.
— Eu não quero me casar com você somente porque é o
certo, Cemil. Sei que preciso pensar no bem-estar e condição de
Zeki, o melhor para seu futuro, mas não quero uma vida conjugal
vazia.
— E não terá. Eu prometo a você. — Avancei um passo e
me contive. — Eu quero você, Samia. Estou apaixonado, sempre
estive, eu acho, mas só me dei conta há pouco tempo. Fugi para o
Brasil para evitar te procurar em Londres, achei que você estava
feliz com o compromisso que Eymen ofereceu e que o destino
estava ditando nossos caminhos.
— Você era um tolo por pensar isso.
— Evet. Eu era. — Fechei nossa distância e peguei suas
mãos. — Mas não serei mais. Meu corpo a quer, minha mente
nunca se desvinculou das nossas lembranças e meu coração... ele
só bate ritmado quando está próximo do seu. Eu quero estar perto
do nosso filho para sempre, Samia, mas acima de tudo, desejo você
por inteira. Aceita ser minha esposa para todo o sempre?
Capítulo 32
"Torne as coisas fáceis e não difíceis para as pessoas. Dê
boas novas e alegre às pessoas, e não as rejeite." (Profeta
Muhammad)

O cheiro da terra cultivada, as pedras ornamentando as


margens das ruas, uma subida que indicava o lugar que conheci o
amor da minha vida e sabia, bem no fundo do meu coração, que
seria para sempre.
Eu disse sim para o pedido de Cemil.
Não haveria qualquer outra resposta mesmo, no entanto,
minha aceitação se deu a verdade que seus olhos transmitiam
quando se declarou.
Ele realmente me queria, ainda estávamos inseguros e com
medo do futuro, tudo seria diferente, estávamos prestes a enfrentar
nossa raiz, cultura, não seria fácil, mas eu me sentia confiante por
saber que ele estava apaixonado.
Estávamos de mãos dadas, Zeki encaixado no colo de
Cemil, o rostinho atento às janelas, para o mar de flores brancas
que eram despejados no carro.
O chefe da vila havia retornado e eles estavam saudando
sua saúde. Emir nunca gostou muito dessa atenção, mas entendia
que era a forma deles agradecerem o trabalho árduo de manter
nossa família segura.
Quando o carro parou diante das portas laterais da área
comum do casarão, voltei meus olhos para Cemil, ele sorria
apaziguador, para me acalmar, já que não tinha parado quieta um
minuto que fosse durante a viagem.
— Birtanem. Não se preocupe. Estamos comprometidos.
Pertencemos um ao outro agora.
— Eu sei, mas...
— Eles vão compreender.
— Tamam.
— Allahalla! Finalmente vocês voltaram para casa. — Ouvi
tia Kara festejar quando Emir abriu a porta do carona e desceu. —
Você está um belo homem, meu querido. Olhe só para você.
— Cemil e eu trouxemos uma surpresa, tia. Aliás, uma não,
duas. — Engoli em seco quando minha porta foi aberta.
— Samia... — A senhora levou as mãos até a boca
enquanto seus olhos marejaram.
Tentei me manter firme e distante. Achei que um pouco de
frieza poderia inibir a decepção e reprimenda que viria em seguida,
mas não consegui.
Só dei por mim e do que estava fazendo, quando meu corpo
curvado abraçou o seu, suas mãos trêmulas e protetoras
envolveram minhas costas e acalantou meu choro.
— Vaya! Menina, não chore. Você voltou para casa. Só isso.
— Afedersin! Afedersin, tia. Me perdoe, por favor. —
Supliquei quando ela me afastou.
— Te perdoar por partir? Minha criança, se eu tivesse
metade da minha idade também gostaria de conhecer o mundo. Faz
parte.
— Hayir, tia. Não é por isso.
— Anne. — Cemil chamou ao caminhar para próximo de
nós.
Tia Kara olhou para seu filho, seu semblante lamentoso se
transformou em surpresa, choque e... contentamento? Ela abriu os
braços e esqueceu do mundo a sua volta ao caminhar para junto do
filho e neto.
Suas mãos acariciaram a cabeça de Zeki, ela proferiu
murmuras de bençãos, o tom embargado e quase inaudível.
Finalmente olhou para Cemil e acariciou seu rosto.
— Eu sabia, meu filho. Sentia dentro de mim que algo
estava fora do lugar. — Ela se virou para mim. — Ah, minha menina,
você deve ter passado por tanta coisa. — Suas mãos se uniram
diante da boca.
— Afedersin, tia. Eu tive medo de contar. Não queria trazer
essa vergonha para a família.
— E ia esconder o primeiro herdeiro Kartal de todos nós,
Samia? — Seu tom subiu e eu abaixei a cabeça.
Puxei o ar para dentro dos pulmões e prendi ali, teria que
aguentar horas a fio de reprimendas e acusações, não seria fácil,
mas suportaria o que fosse preciso como forma de penitência.
— Afedersin...
— Pare de se desculpar. — Subi o olhar para a mulher que
terminou de me criar. — Meu coração de mãe não se enganou,
nunca. Sabia que no dia que Cemil enxergasse a mulher que havia
se tornado, vocês ficariam juntos. Não precisavam atropelar as
coisas, não é? — Emir pigarreou, disfarçando um sorriso. — O que
está feito, está feito. E sinto que Allah abençoou a casa dos Kartal
com vida.
— Ele se chama Zeki Yilmaz Kartal, anne. — Cemil
informou, orgulhoso.
— Um nome forte para um garoto forte. Venha! — Ela pegou
meu filho nos braços com um sorriso enorme no rosto. — Vamos
conhecer sua casa, torunum[32].
A senhora entrou animada e festiva com Zeki nos braços,
que parecia muito à vontade — diga-se de passagem —, voltei
meus olhos para Cemil e ele sorriu de lado.
— Acho que estamos indo muito bem. — Seus passos
fecharam nossa distância. — Vamos, ainda falta o baba.
— Acho que Zeki ir na frente foi uma boa tática, assim
amacia a ira do tio. — Emir fez o gracejo e todos rimos.
— Tamam.
Rever aquelas paredes eram um misto de saudade,
esperança e resiliência.
Minha vida foi bastante diferente quando os Kartal me
acolheram. Aprendi a ser uma dona do lar, estudei, conheci muitas
coisas que nunca teria oportunidade morando com meu baba.
Entramos na grande sala e vi Haydar de pé, as mãos nos
bolsos, corpo tenso e os olhos fixados em Emir. Muita coisa havia
acontecido, eu não sabia dos detalhes, era nova demais para
compreender a profundidade da desavença entre eles, mas parecia
que o casamento de Emir havia abrandado grande parte do ódio
cultivado.
— Cemil. Samia. — Voltei os olhos para tio Osman. —
Espero que estejam prontos para casar.
— Já assinamos o contrato de compromisso, baba. Emir
assinou como testemunha e responsável pela família.
— Muito bem. Recebi uma ligação de Serkan. Você findou o
acordo.
— Evet. Era o correto — Cemil informou, firme e com
seriedade.
— Kara sempre disse que vocês foram feitos um para o
outro, eu tinha minhas dúvidas, já que Cemil fugia de você, Samia.
— Sorrimos um para outro quando trocamos um breve olhar. — Mas
parece que as lamparinas do juízo dele se apagaram e o fizeram
olhar para você e tomar... atitudes... indevidas.
— Baba, eu estou apaixonado por Samia. Vamos nos casar,
com a sua benção, eu espero.
— Allahalla! Garoto! É claro que vocês têm minha benção.
Samia é como uma filha para os Kartal.
— Ah, tio, afedersin. Eu não queria desonrar seu nome. —
Fui até ele e ajoelhei a sua frente, beijando sua mão repetidas
vezes.
— Samia, já basta. — Afastei, preocupada. — Você é mãe e
em breve esposa do meu filho mais novo. Deixemos as
circunstâncias no passado. — Ele se levantou no mesmo instante e
alçou meus braços. — Vá cuidar das suas acomodações. Cemil e
eu iremos até a casa do seu baba.
— Eu gostaria de ir e...
— Hayir. Você é nossa responsabilidade. Iremos resolver
tudo com seu baba e ele te verá no casamento.
— Tamam, tio.
— Venha, vou levar você e Zeki até o quarto.
— Não demore, Cemil. Venha, Haydar e Emir, todos os
homens precisam ir.
— Evet. — Ambos responderam e seguiram tio Osman.
— O que acontece agora? — perguntei em total expectativa.
— Agora os Kartal irão reparar a falha cometida e negociar
seu casamento e uma reparação pela desonra.
— Tenho certeza de que meu pai não vai exigir nada.
— Ainda assim, precisa de reparação, birtanem. — Cemil
tocou a palma em meu rosto e aproximou sua boca da minha. —
Não vejo a hora de te ver vestida de noiva.
Fechei os olhos e esperei pelo beijo que não aconteceu. Ao
abrir as pálpebras o vi se afastar de costas para a saída, seu sorriso
cúmplice despertou minha libido.
— Não demore.
— Nunca mais do que o necessário, birtanem.
Ele jogou um beijo no ar e partiu.
Um par de horas transcorreu, tia Kara não largou seu neto
nem por decreto. Alegou que precisaria recuperar todo o tempo
perdido e queria mimar seu torunum.
Apesar da recepção ser completamente diferente do que
esperava, ainda estava apreensiva, já que os homens estavam
negociando o que seria a compensação do passado e,
principalmente, o que reservaria nosso futuro.
— Meu pequeno sultão. Hora de tomar um banho. — Tia
cara pegou Zeki nos braços e caminhou para o corredor dos
quartos.
— Vou encontrar as roupas dele, tia.
— Tem várias caixas no seu antigo quarto. Estarei com ele
no banheiro dos meus aposentos.
— Não é mais fácil ir para o meu quarto, tia? — Soltei o
óbvio.
— Já disse que vou aproveitar absolutamente todo e
qualquer momento com o torunum.
— Tamam, tia.
Fui para o quarto e comecei a procurar as roupas, aproveitei
para separar meus pertences, coloquei algumas fotografias no
mural, que mantinha no quarto antigamente.
Fiquei emocionada ao perceber que nada mudou do que
deixei.
— Não desembale tudo. Logo mudaremos para outro
quarto. — Girei no lugar assustada e mirei Cemil, encostado no
marco da porta com os braços cruzados diante do peito.
— Finalmente! Como foi tudo?
— Muito bom. Tomamos çay, conversamos, acordamos os
trâmites do casamento e semana que vem você será oficialmente
uma Kartal.
— Por Allah! Mesmo? Ele não ficou bravo? — Fechei nossa
distância enquanto falava, sem conseguir me conter.
— Evet. Ficou sim. Mas meu baba soube conduzir tudo.
— E agora? — Cemil sorriu, suas mãos passaram pela
minha cintura, unindo ainda mais nossos corpos.
— No momento eu só quero te beijar e aproveitar os poucos
minutos de privacidade que teremos até estarmos casados.
Seus lábios cobriram os meus com furor.
Cemil entregou tudo que tinha, conseguia perceber seu
carinho, seu desejo, sua paixão, em cada entrelaçar das nossas
línguas.
Nós começamos de uma forma inesperada. Concebemos o
fruto precioso de um amor que mal havia nascido, mas seria
cultivado a cada dia, em todas as oportunidades, para se tornar forte
e inquebrável.
Epílogo

Segui o caminho ornamentado com flores de todas as cores.


A casa dos Kartal estava em festa, mas toda a vila comemorava,
não só o meu casamento, como também a apresentação de Zeki
aos familiares.
Nem tudo era alegria genuína, houve muito burburinho,
comentários maliciosos e desnecessários, mas meu irmão mais
velho e meu primo, conseguiram impor o respeito e calar a boca do
povo.
Tomei cuidado para não esbarrar nos batentes ungidos em
sinal de prosperidade e harmonia. Fui colocado em uma das
almofadas no centro da sala, aguardei ansioso pela vinda da minha
noiva.
Zeki estava de colo em colo. Ele se tornou a atração da
casa, das pessoas na rua, era querido e muito zelado por todos.
A cada dia descobria uma nova faceta do meu menino,
Samia parecia gostar de nos ver junto e eu me apaixonava ainda
mais por eles dois.
Uma música começou a tocar no corredor, todos se viraram,
menos eu, para ver a entrada de Samia, acompanhada das
mulheres casadas e solteiras.
Vislumbrei Emir, perdido em um olhar distante, com certeza
contemplava sua esposa, que embarcou para a Turquia, assim que
soube que tudo havia se resolvido.
Uma figura entrou na minha frente, olhei para cima e vi
Samia em um vestido todo vermelho, bordado com ladrilhos no
mesmo tom e um véu cobrindo o seu rosto.
Ela se sentou de frente comigo, as mulheres segurando
pratos de prata com a henna e velas acesas, usadas na noite da
henna, um dia antes, cantavam canções, e a Basi Bütün[33] tira um
pouco da henna e passou ao redor do dedo meu mindinho.
O véu de Samia foi erguido, senti meu peito expandir com
tanto amor. Eu viveria para venerar essa mulher.
Todos os rituais foram realizados por mim no automático. Eu
estava preso na beleza da minha esposa, não queria perder um
segundo que fosse das suas expressões.
Quando nos separamos para correr até o sapato, ponderei
por alguns segundos e rapidamente tenho meu parecer: ela
ganharia essa disputa, para que eu ganhasse sua atenção por toda
a vida.
Não me importava de Samia ser a primeira a pisar no sapato
conjugal e se tornar a pessoa de nós dois que dominaria o
casamento.
Ela já tinha todo meu coração para si.
Ovações, aplausos e muita música, finalmente estávamos
casados.
Havia combinado com minha anne dela cuidar de Zeki por
essa noite, quando a festa já estava mais calma e nossa presença
não era tão requisitada, tratei de fugir com a minha esposa para
nosso quarto.
— Finalmente, só nos dois. — Soltei ao bater a porta e
avançar sobre Samia que ria abertamente.
Trocamos beijos calorosos, o desejo fervia minha pele,
tornava meu sistema uma ebulição completa.
— Como eu tiro isso? — Tateei o lindo vestido de Samia em
busca do zíper.
— São botões. Pequenininhos. — Ela virou de costas
puxando a beirada do hijab para frente.
Ela havia me informado que voltaria a usar o hijab. Confesso
que foi o melhor presente de casamento que ela poderia me ofertar:
sua beleza toda reservada a mim.
— Então eu terei que ir bem devagar, birtanem.
— Faça do modo que quiser, Cemil. Sei que será incrível.
Desembrulhei Samia como um presente, o maior e melhor
de toda a vida, nos livrei das roupas e a deitei na cama com
cuidado. Entrei em seu canal, úmido e desejoso, gememos e
sucumbimos ao nosso prazer, selamos um acordo mútuo de amor e
cuidado que perpetuaria por toda a nossa existência.
Samia era para ser minha, desde sempre.
E a partir daquele momento nunca mais nos separaríamos.
Vem aí, a história de Haydar
Prólogo
Ela era o ser mais lindo que eu já havia visto na vida. Sentia
meu coração palpitar no peito feito um cavalo puro-sangue em uma
corrida acirrada, galopando em total vigor para atingir o objetivo.
Tudo no grande salão perdeu forma, cor e volume, meus
sentidos se concentraram na figura que desfilava ao lado de sua
família a caminho de uma mesa afastada.
Resmunguei um pedido de desculpas, levantei-me ajeitando
o paletó, caminhei até a lateral do salão, sem perdê-la de vista, a vi
se sentar e acomodar seu corpo miúdo e gracioso na cadeira ao
lado de um senhor robusto, provavelmente seu baba[34].
Fiquei de longe, feito uma ave de rapina que aprendi a ser
muito cedo com os Kartal, treinado para observar tudo antes de
tomar qualquer atitude, para que fosse certeiro em minhas ações.
Estávamos em uma festa beneficente, ocorreria leilões de
cavalos e alguns objetos de valor inestimável na cultura turca, a alta
nata da sociedade estava presente, então sabia que a família
daquela jovem deveria ser importante.
O mestre de cerimônias anunciou o primeiro item, as luzes
do salão foram baixadas, tornando o palco o principal ponto de
atenção de todos. Não tinha qualquer interesse no desenrolar do
evento, estava aqui exclusivamente para agradar meu baba, já que
minha anne queria muito uma ou duas peças da mostra de arte.
Pensei em desistir da vigília e retomar meu lugar, era
ridículo, um homem feito como eu, que já havia conhecido metade
do mundo, estudado, informado e muito bem acompanhado por
belas mulheres, ficar à espreita de uma miúda turca de família
tradicional.
Quando dei um passo na direção do meu lugar a vi levantar
e se afastar rumo aos reservados. Agi por impulso e saí a seu
encalço, estava sozinha, seria a minha chance de ver de perto o que
me deslumbrou a distância.
Acelerei as passadas e me adiantei, próximo do corredor
que levava aos sanitários, esperei na curva da parede e surgi no
momento em que ela contornava o espaço.
Nossos corpos quase se chocaram, ela estava atenta
demais no caminho e conseguiu saltar para trás quando meu corpo
a impediu de prosseguir.
Quando seus olhos fixaram nos meus, senti todo o ar dos
meus pulmões se esvaírem, de uma única vez, meu peito
comprimiu, era uma necessidade instantânea de algo que não fazia
ideia que faltava: a profundidade do seu olhar.
— Merhaba[35], senhorita. — Soltei com a voz aveludada.
Não sei o que acontecia comigo, mas a necessidade de ser
benquisto por ela era quase visceral. Seus olhos ainda me
escrutinavam, via ali um pouco de curiosidade e muita reserva.
Ela abaixou o olhar, vi suas bochechas corarem, parecia se
dar conta que estava em um corredor escuro, com um homem
desconhecido e não deveria me olhar daquela forma.
— Não quis assustá-la.
— Não assustou. Afedersin, bey[36]. Não pretendia atrapalhar
seu caminho.
— Não atrapalhou. Você está exatamente onde eu gostaria
que estivesse, senhorita... — Soltei, amável, na esperança de
descobrir seu nome.
— Peço sua licença, senhor. Não tenho ordem do meu baba
para falar com outros homens. — Sua cabeça permaneceu baixa e
me incomodou não ver seus olhos.
— Olhe para mim — ordenei.
Seu olhar se ergueu, assustado, o arrependimento bateu de
imediato ao perceber que eu a havia incomodado de alguma forma.
— Qual o seu nome? — Precisava disso, mais do que me
lamentar pelo arroubo.
— Sevil... — murmurou ao contornar meu corpo em seguida.
Fui mais rápido, invasivo e completamente tomado pelo
desespero quando girei e capturei seu braço. O choque que
percorreu do nosso contato se alastrando pela minha mão, peitoral e
entranhas, quase me fez soltá-la de imediato.
— Lotifer[37]... — Ela soltou chorosa.
— Amanhã, na cisterna da basílica, na praça das Sete
Colinas. Estarei lá no meio da tarde e aguardo a senhorita.
— Por quê? Hayir. Não posso.
— Vá me encontrar ou irei até sua casa. — Foi uma
ameaça, cruel e desonrosa, mas eu era assim.
Lidava com meus desafios da forma que fosse preciso, para
ter aquilo que eu quisesse.
E eu a queria.
Mais do que qualquer coisa em toda a minha vida.
— Jure! Jure que irá! — Enfatizei, minha mão ainda fechada
em torno do seu braço magro.
— Evet. Estarei lá.
— Te esperarei na entrada subterrânea.
Soltei nosso contato e ela praticamente correu para longe de
mim.
Retornei para meu lugar com o humor revigorado, estava
inquieto e estimulado, queria que as horas passassem mais rápido
para que eu finalmente a visse.
Ainda não sabia o que era, como seria, ou de que forma
aconteceriam as coisas entre nós, mas eu estava determinado a ter
Sevil para mim. Eu a desposaria e formaríamos uma família
abastada e cheia de filhos.
Ela era o güneşim[38] no meio da escuridão que habitava
minha alma. A única capaz de me salvar de mim mesmo, e eu a
tornaria minha, na Terra e perante Allah.
Sobre a Autora

Ágatha Santos, casada, sem filhos, umbandista na alma e


no coração. É natural de Taubaté, interior de São Paulo.
Formada em Administração de Empresas, ex-gerente
administrativa no ramo de varejo de combustíveis e atualmente
trabalha como escritora.
Sempre gostou de leitura, mas sua paixão se enraizou com
a Série Cinquenta Tons. É uma devoradora de romances eróticos e
há algum tempo descobriu o encantamento pela escrita.
Suas obras trazem uma temática para mulheres e regada de
comédia, hoje conta com diversos títulos publicados, todos
disponíveis na Amazon.
A frase que leva para a vida: “Se você sonha, você pode
fazer.”

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Outras obras: https://amzn.to/3ap53rL
[1] Raki é um licor, derivado da uva, tem o sabor assemelhado ao anis.
[2] No sentido de “princesa”.
[3] O mesmo que “pai”.
[4] O mesmo que “tudo bem”.
[5] Tom repreensivo. O mesmo que “pare com isso!”
[6] Xingamento. O mesmo que “merda”.
[7] Significa “mãe”.
[8] Significa “filho”.
[9] Significa “chá”.
[10] Significa “querida”.
[11] É uma espécie de ratatouille, normalmente consumido no café da manhã.
[12] Significa “antes do café”, seria o nosso café da manhã.
[13] Significa “bom dia”.
[14] O mesmo que “Calada! Cale a boca!”
[15] Significa “sim”.
[16] Significa “não”.
[17] Significa “olá”.
[18] É uma forma comum de lamentar algo que você fez e pedir perdão.
[19] Significa “bom dia”, mas vale para todo o resto do dia.
[20] Significa “senhora ou senhorita”.
[21] Significa “claro, sim”.
[22] Significa “irmão”.
[23] Significa “Oi, bom dia.”
[24] Significa “super, que massa”.
[25] Significa “minha única”.
[26] Significado “que Deus o proteja”.
[27] Significa “vamos, rápido”.
[28]
Significa “passarinho”.
[29]
chá
[30] Significa “uau”.
[31] Se trata de uma negociação feita com a família da noiva, antes do casamento, em que dinheiro,
joias ou propriedades, são passados para ela. É sua segurança financeira.
[32] Significa “meu neto”.
[33] Significa “cuja cabeça é completa”. Se trata da mulher mais próspera, escolhida a dedo, para pintar
os noivos.
[34]
Significa “pai”.
[35]
Significa “olá”.
[36]
Significa “Perdoe-me, senhor.”
[37]
Significa “por favor”.
[38]
Significa “meu sol”.

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