Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
V. S. Vilela
Copyright © 2023 V. S. Vilela
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida (em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação
etc.) nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa
autorização da autora.
[2023]
Todos os diretos desta edição reservados à V. S. Vilela
@autoravsvilela
Para mulheres comuns, que são super-heroínas todos os dias, seja no trabalho,
em casa, com os filhos, na faculdade, ou em qualquer lugar.
Você sabe com quem está falando?
Agatha
Agatha
Agatha
Agatha
Agatha
Agatha
✽✽✽
Olha, sinceramente, eu ia pegar o corpinho da Xena Scott e...
Cortar em picadinhos!
A culpa era toda dela!
Quando, em toda a minha linda e rica vida de herdeira de duzentos
e cinquenta hotéis, eu poderia me imaginar, no meio do sol quente de Las
Vegas, esperando um ônibus, num ponto cheio de gente fedendo a sovaco?!
Ódio!
Debaixo do meu lindo trench coat rosa pink, eu já podia sentir o
suor escorrendo. Droga, eu tinha saído de casa tão cheirosinha. Bufando,
tirei, bruscamente debaixo do meu braço, o encarte das rotas dos ônibus, e o
abri de qualquer jeito. Sob os óculos escuros, tentei entender o que diabo
era aquilo. Aquela porcaria parecia grego. Franzi o cenho, virando o papel
de um lado para o outro. Eu não estava entendendo porra nenhuma.
Acho que ali estava dizendo que, primeiro, eu precisava pegar a
linha dois e, depois, mudar para a trinta e sete, e, depois, pegar a seis. E,
por fim, eu também tinha que pegar a dois, mas era um dois diferente do
primeiro.
Pera aí, como é que é?
Ah, merda, isso era ridículo! Por que em Las Vegas existiam
trezentas e sessenta e quatro mil linhas de ônibus? Por que não faziam
apenas uma que passava em todos os lugares? Seria muito mais fácil
assim!
Irritada, olhei de um lado para o outro. Ônibus e mais ônibus
paravam naquele ponto e rapidamente iam embora. Eu já estava com medo
de perder o meu, mesmo sem saber qual era o meu. Foi aí que eu reparei
numa senhorinha ao meu lado. Cheia de sacolas nas mãos, ela olhava para
os ônibus como se aquilo fosse uma espécie de ciência. Parecia realmente
entendida do assunto. Respirei fundo. Era para ela que eu iria recorrer.
Afinal, eu já estava catastroficamente atrasada. Não queria nem olhar o
relógio.
— É... Oi, querida... — chamei-a. — Você sabe qual ônibus passa na
Penitenciária da zona leste de Las Vegas?
Isso foi o suficiente para que ela virasse em minha direção e me
encarasse, de cima a baixo, com olhares levemente julgadores. Suas orbes
se cravaram fixamente nas minhas roupas. Era como se, na testa dela,
estivesse escrito que aqueles trajes não condiziam, nem um pouco, com um
ponto de ônibus. Ainda pensei em lhe oferecer um dos meus melhores
semblantes de poucos amigos, mas, no fundo, eu sabia que ela estava certa.
Aqueles trajes não combinavam com pontos de ônibus mesmo.
Aliás, eu não combinava com pontos de ônibus.
Era para eu estar sendo levada por um dos motoristas do meu pai!
— Penitenciária da zona leste de Las Vegas? — ela repetiu, enfim,
testando as palavras e parecendo pensar a respeito disso. Torci internamente
para que a velha me desse uma luz, quando, no momento em que um ônibus
parou por ali e algumas pessoas subiram nele, subitamente, exclamou. — É
aquele! — e arqueou as sobrancelhas. — Aquele ali passa lá perto! —
apontou. — Corra antes que ele vá embora!
Ah, meu Deus do céu!
É aquele?
Droga, droga, droga.
Eu não tinha experiências com esse tipo de coisa! Eu nunca corri
atrás da porra de um ônibus. Toda desajeitada, em meio a trench coats pink
rosa e botas cano longo de cor abacate, me apressei na direção do ônibus,
quando, repentinamente, vi a sua porta se fechar quase na minha cara. Ah
puta que pariu! Aquele motorista filho da puta só podia ter feito isso de
propósito. Simplesmente, começou a se afastar dali, enquanto eu,
desesperada, corria feito uma louca, batendo forte na lateral daquela lata de
sardinha.
Meu Deus, eu me sentia tão malditamente pobre fazendo aquilo. E
eu não era pobre. Eu era rica! Só estava sem mesada e cartões de crédito.
Merda, merda, merda.
Percebi, os olhares de todos, no meio da rua, me observando.
Alguns ainda riam da minha cara. Como se fosse uma grande piada, alguém
correr atrás de um ônibus, vestindo pink e cor abacate. Por acaso eu era
uma palhaça agora? Inferno. Bando de pobretões.
— Para o caralho desse ônibus! — gritei, expulsando através dos
meus pulmões, todo o ódio que eu sentia por ter me tornado o centro das
atenções da pior maneira possível.
Foi aí que, aparentemente, tendo um pouquinho de compaixão pela
minha situação ou se ligando no papelão que eu estava fazendo na frente de
dezenas de pessoas, o motorista, enfim, parou e abriu a porta.
Graças a Deus.
Ofegante, subi as escadas, quase fuzilando o cara com os olhos, que
também devolvia um semblante nada simpático por eu ter “atrapalhado a
sua rota”. Foda-se. Eu tinha que chegar logo na maldita penitenciária. Tirei
o trocado da bolsa, paguei a passagem e rolei a catraca. No entanto, quando
achei que fosse ter um minuto de paz para sentar e respirar... Não, não, não.
Eu estava redondamente enganada.
Tendo a certeza de que eu estava pagando por todas as vezes em que
fui uma escrota com qualquer pessoa da face da Terra, reparei no interior do
ônibus absurdamente lotado. Cacete. Não tinha um mísero assento vazio,
assim como também, por pouco, se eu fosse um tiquinho mais azarada do
que já estava sendo, não teria um único local para que pudesse ficar de pé
mesmo.
Só podia ser brincadeira.
Torcendo o nariz, encarei as pessoas que já estavam ali, se
segurando nas barras do ônibus. O mau cheiro de suor era real. Meu Deus
do Céu, eles saíam de casa sem tomar banho? Em puro nojo, fui tentando
passar por ali, me espremendo por entre as pessoas e os seus corpos que,
aparentemente, nunca tinham sido apresentados à antitranspirantes.
Repentinamente, entretanto, o ônibus deu uma arrancada, fazendo-
me segurar em uma das barras de ferro, mesmo que eu não quisesse. Olhei
de um lado para o outro. Droga. Era ali que eu tinha que ficar mesmo. O
único local possível. Na verdade, talvez nem esse local fosse possível. Mas,
fazendo um esforço para permanecer, consegui me encaixar numa pequena
passagem. Suspirei. Era isso ou ir pendurado no teto pelo lado de fora.
Passando calor, porque não tinha um mísero ar condicionado ali, o
ônibus começou a rodar por dezenas de partes de Las Vegas. Lugares que
eu nunca tinha colocado os meus pés. Minutos transcorreram sem que eu
conseguisse me orientar. Inferno, eu estava perdida. Senti um filete de suor
descer pela minha testa, provavelmente estragando parte da minha
maquiagem. No entanto, esse suor não era só de calor, era de nervosismo
também.
Eu não podia perder de vista a maldita penitenciária.
Em pé e já cansada, segurando nas barras para me equilibrar, eu
fitava as janelas dos dois lados. Era a minha tentativa de ver qualquer
prédio ou qualquer porcaria que se parecesse com uma penitenciária.
Porém, entre uma olhada e outra, algo estranho aconteceu. Comecei a sentir
alguém muito perto de mim. Perto até demais. Tudo bem que aquela infeliz
lata de sardinha lotada não permitia qualquer pessoa se distanciar de outra,
mais que alguns centímetros. Entretanto, aquilo ali estava me cheirando
esquisito. Esquisito demais. E eu não estava exatamente me referindo ao
mau cheiro de sovaco que não passava de jeito nenhum.
Era outra coisa.
Quando volvi o meu rosto para trás... Ah não. Lá estava a cara
daquele bandido! Era totalmente notório em seu semblante, as segundas, ou
melhor, terceiras intenções comigo. Um velho nojento, horrível e todo
suado sorrindo em minha direção, quase banguela, enquanto praticamente
se roçava em mim. Instantemente, comecei a arfar, sentindo cada pedacinho
da minha pele ferver de raiva.
Eu não suportava esse tipo de coisa.
Respirando fundo, para tentar não causar uma briga ali mesmo, fiz
um esforço para me afastar alguns centímetros e buscar algum espacinho
mais seguro, embora isso fosse quase impossível, dadas as circunstâncias.
Ainda consegui me encaixar numa pequena brechinha entre uma cadeira e a
porta traseira. Bufei de ódio. Por culpa daquele desgraçado, eu estava ainda
mais desconfortável dentro daquele ônibus torturante.
Meu Deus, eu nunca pensei que fosse desejar isso, mas eu só queria
chegar o mais rápido possível na penitenciária.
Entretanto, acabando com o meu restinho de paz e de sanidade
mental, notei quando, deliberadamente, o velho nojento, horroroso e
pingando suor, tornou a se aproximar de mim, literalmente se esfregando a
cada freada e impulso no maldito ônibus. Não era impressão. Eu não podia
estar ficando louca. E tudo se tornou ainda mais claro, para mim, quando os
seus quadris se inclinaram em minha direção.
QUE NOJO!
— Desencosta de mim, seu safado do caralho! — exclamei em alto
e bom som, já absurdamente puta com aquela pouca vergonha.
Isso foi o suficiente para que, todos ao nosso redor, girassem os
rostos para nós. Eu não estava nem aí! Dessa vez, eu não me importava de
ser o centro das atenções daqueles pobretões. Eu precisava expor aquele
maníaco dos infernos!
Com a cara mais deslavada do mundo, no entanto, o velho me fitou
fazendo pouco caso da situação.
— Quê? — Se fingiu de desentendido. — Eu não fiz isso não. Você
tá ficando doida, boneca — e sorriu de um jeito bem asqueroso. — O
ônibus está muito cheio, mocinha.
Não fez? Muito cheio?
Ah, vai se foder! Ele estava querendo fazer eu me passar por louca!
Expulsei o ar pesado dos meus pulmões e, mesmo com uma absurda
vontade de quebrar a sua cara, me virei, outra vez, para frente, desviando o
olhar dele. Ainda com os níveis de estresse mais altos que o Monte Everest,
tentei respirar fundo e contar até dez. Afinal, eu não merecia morrer de
raiva dentro de um maldito ônibus fedido. Se Agatha Ballard tivesse que
morrer de raiva, que fosse de maneira um pouquinho mais digna. E, assim,
tentei me concentrar novamente no caminho.
Porém, entretanto, contudo, todavia, bastou o motorista frear um
pouquinho mais forte, para que o velho escroto, mais uma vez roçasse os
seus quadris em mim. Como se não bastasse, ainda me fez sentir algo duro
ali por baixo.
AAA QUE ÓDIO! QUE NOJO! QUE RAIVA!
Sério, isso não era por causa ônibus lotado, era pura safadeza.
Pura safadeza!
Sem conseguir segurar toda a ira guardada em mim, apenas explodi,
antes mesmo que eu pudesse pensar racionalmente nas minhas ações.
— Seu filho da puta, eu disse pra você desencostar!
E simplesmente parti para cima dele, esganando o seu pescoço da
forma como eu conseguia.
Em um piscar de olho, aquilo saiu do controle. Pronto. Eu tinha
conseguido a façanha de criar e instalar uma confusão generalizada em mais
um lugar. Não bastasse a delegacia, agora o ônibus. Isso sem falar sobre as
outras vezes, ao longo da minha vida. Não que eu fosse briguenta. Claro
que não. Eu só não podia permitir que fizessem comigo o que bem
entendessem.
Afinal, que saco, eu era Agatha Ballard!
Em meio àquela lotação de pessoas suadas e pregadas, mãos, braços,
pernas que saltavam por todos os lados, confusão e gritaria, eu pulava no
pescoço do velho, enquanto aqueles ao nosso redor, na tentativa de separar
a nossa briga, na verdade, já começavam a se estapear. Um caos. Só notei,
porém, quando o ônibus parou bruscamente, as portas se abriram e alguém,
mais forte que eu, me puxou pela cintura para fora dali.
— Pera aí, me solta! — exclamei sem nem saber quem estava
fazendo aquilo.
Somente quando fui expulsa e enxotada numa calçada imunda,
percebi que aquilo tinha sido obra do motorista. Simplesmente, me largou
ali, com o seu semblante desaforado, bateu as mãos, como se estivesse se
limpando depois do seu trabalho sujo, ajeitou a roupa e me deu as costas,
voltando para o ônibus e fechando as portas.
Observei tudo aquilo paralisada, em puro choque.
Ah não... Ele estava me deixando mesmo?!
Arqueei as sobrancelhas, ao perceber o veículo voltando a se
movimentar.
— Volta aqui, seu desgraçado! Eu ainda não cheguei na
penitenciária!
Gritei, tentando correr atrás do ônibus. Porém, desta vez, o maldito
não parou para mim. Na real, ele arrancou dali muito mais rápido do que eu
conseguia raciocinar. Quando dei por mim, eu já estava plantada no meio da
rua de sabe-se lá onde, completamente perdida.
Inferno!
Olhei de um lado para o outro, desnorteada e ofegante pela briga.
Dezenas de pessoas caminhavam ao meu redor, mas nenhuma delas parecia
estar me vendo ali. Era como se estivessem todos presos às suas próprias
bolhas. Alguns apressados para trabalhar e outros para turistar em alguma
parte de Las Vegas. Rolei os olhos, absolutamente indignada e exausta com
tudo, até que, enfim, avistei, do outro lado da calçada, um coroa vendendo
lanches em um carrinho.
Suspirei, como se eu tivesse acabado de encontrar um pote de ouro.
Bom, se aquele era o seu ponto, era porque devia conhecer o local.
Apressada, me aproximei dele e perguntei:
— Ei, você sabe se aqui fica perto da penitenciária da zona leste?
Enquanto preparava um sanduíche bem gorduroso, ele me encarou
com a testa meio enrugada e disse:
— Penitenciária da zona leste? — ergueu uma das sobrancelhas. —
A penitenciária da zona leste fica a onze quarteirões daqui.
Arregalei os olhos subitamente.
— Onze quarteirões?!
✽✽✽
E não, não existia ônibus que passasse onde eu estava e percorresse
os onze quarteirões que eu precisava para chegar até às portas do inferno.
Eu queria assassinar alguém!
Na verdade, eu já estava passando pelo inferno antes mesmo de
chegar na maldita penitenciária, assim como também já me sentia exausta
antes mesmo de trabalhar. Era como se eu tivesse feito uma viagem
absurdamente longa até chegar ali. E realmente tina porque eu não morava
nem um pouco perto da penitenciária. Meus pés estavam uma verdadeira
bosta, depois de passar um tempão em pé, no ônibus, e de caminhar por não
sei quantos quilômetros, com aquela bota. Bolhas de calos se formavam,
mesmo que eu não quisesse perder a pose e, bem ereta, eu continuasse
andando, como se nada estivesse acontecendo.
Eu estava um lixo.
Sério.
Acabada.
Mesmo.
Mas...
Foi quando avistei a maldita entrada da penitenciária, que eu tive
ainda mais certeza de que não deveria baixar a guarda. Eu não permitiria
que a tal Scott me visse na merda outra vez, já bastava aquela madrugada
que nem deveria ser mencionada. Logicamente, eu não estava preocupada
em parecer bonita para ela. Óbvio que não. Bonita eu já era por natureza.
Eu apenas queria recuperar, pelo menos, um por cento da minha dignidade.
Era isso.
Assim, abri a bolsa, passando um lencinho para enxugar o suor, dei
uma leve retocada no gloss ali mesmo, debaixo da sombra de uma árvore,
ajeitei os cabelos, através do reflexo do meu pequeno espelhinho, respirei
fundo, e fiz o possível para caminhar novamente da maneira como eu
sempre fazia, sem descer do salto. Ergui o queixo, me revestindo com o
máximo de ânimo e coragem que eu conseguia, e fui.
De peito inflado, como se eu fosse imbatível e não estivesse
passando por ali para fazer trabalhos comunitários, cruzei o portão. Passei
pelos policiais sem problemas. Era como se eles já me conhecessem ou
estivessem esperando por mim. Entrei na recepção e, então, vi duas
atendentes atrás de um balcão, com telefones nos ouvidos e canetas nas
mãos, anotando alguma coisa. Respirei fundo. Certo, eu não sabia para
onde ir, nem o que fazer. Ainda girei sobre os pés, tentando reconhecer
qualquer policial que se parecesse com a Xena Scott, até que ouvi:
— Posso ajudá-la, senhorita?
Era uma das atendentes do balcão, falando comigo.
Porém, antes que eu pudesse responder, entre um olhar e outro,
avistei, enfim, o motivo do meu colapso e do recente fracasso da minha
vida. Scott estava de pé, ao lado de uma mesa, conversando com outros
policiais, enquanto encarava seriamente algo em um notebook. Parecia estar
trabalhando em alguma coisa importante, mas me viu no exato instante em
que o meu olhar pousou sobre ela. Notei quando ela endireitou a coluna e
deu um breve suspiro ao me ver. Usando óculos escuros no estilo aviador,
se aproximou de mim.
Zara
Zara
Agatha
Zara
Porra, Zara.
Já não bastava reparar nos quadris da garota, nas suas pernas
longas e no seu andar pretensioso? Ou no modo como ela conseguia ficar
bonita vestindo qualquer roupa? Ou no quanto ela era realmente atraente,
apesar de louca e de jovem demais? Será que, agora, além de tudo isso,
você também tinha que ficar reparando na boca dela, como se tivesse
voltado a ser uma adolescente ou, pior, como se fosse aquela policial sem
medo das consequências?
Merda.
Agatha era quase como um presente de grego, um cavalo de Tróia.
Por fora, bela. Mas, por dentro, podia estar carregando a minha ruína.
Mesmo que me preocupar com esse tipo de coisa parecesse uma
grande bobagem, eu tinha os meus motivos. Eu sabia que os sinais dados
pelo meu corpo eram suspeitos demais. Perigosos. Essa menina bonita -
bem cuidada e bem criada, quase como se tivesse sido realmente embalada
para presente, mas, ao mesmo tempo, imatura e ingênua demais, como se,
no fundo, pedisse para que alguém a ajudasse a caminhar porque sozinha
ela não conseguiria - poderia acabar com a minha vida e com a minha
carreira.
Eu já tinha me metido em confusões o suficiente, por pensar mais
com a boceta do que com a cabeça, para saber que todos aqueles sinais que
o meu corpo me dava eram um claro aviso de que eu deveria parar, agora
mesmo, com o que quer que fosse. Tomar o máximo de cuidado possível,
era tudo o que eu precisava fazer, para não repetir os erros do passado.
Assim, piscando os olhos algumas vezes e pigarreando a garganta,
eu me afastei dela.
— É... — Fui me levantando. — Precisa de ajuda? — e ergui uma
mão para ela.
A loira ainda encarou os meus dedos estendidos em sua direção, por
alguns instantes. Era como se ela ainda estivesse naquele mesmo universo
paralelo pelo qual eu caminhei, segundos atrás. Seu corpo estava ali, mas
sua cabeça parecia viajar por um lugar completamente diferente. Era
esquisito, muito esquisito. Eu não conseguia conceber a ideia de que o
mesmo que aconteceu comigo também estava acontecendo com ela. Claro
que não. Lógico que não. Isso não tinha cabimento. Isso não estava dentro
das possibilidades reais da vida. Aliás, nem mesmo o que eu senti tinha
cabimento.
Agatha, provavelmente, só se assustou com a queda.
— Hum? Precisa de uma mãozinha aí? — tornei a perguntar.
Então, como se simplesmente tivesse retornado ao mundo real,
suspirou, e, em um piscar de olhos, seu semblante de puro nariz empinado
estampou o rosto outra vez. Ela já nem parecia mais aquela garota perdida
ao me olhar. Essa era a Agatha Ballard que eu conheci. A riquinha e
mimada herdeira de um complexo hoteleiro em Las Vegas.
— Não, não preciso, eu mesma me levanto sozinha — disse ela,
erguendo-se do chão, em toda sua aura de autossuficiência e presunção.
— Bom, acho que o vaso desentupiu... — Ainda dei dois passos
para me aproximar dele. Vi que toda a água suja já tinha descido.
Felizmente. Aquilo ali estava mesmo uma nojeira. — Agora, a senhorita
pode continuar o trabalho de onde parou.
Notei quando a loira me deu um belo semblante de tédio, e, girando
as orbes, sem me dizer mais nada, se virou por ali, indo em direção ao balde
cheio de materiais de limpeza. Aproveitei para voltar ao meu posto na porta
e fiquei a observando. Não que eu gostasse disso. Na verdade, eu ainda
queria estar nas ruas, fazendo algo mais produtivo pela segurança da cidade.
Mas, já que o delegado designou aquela tarefa para mim, pelos próximos
seis meses, eu não tinha escolha. Deveria apenas obedecer às ordens.
Ainda vi quando a garota tirou todos os produtos de dentro do balde,
encarando as suas embalagens e lendo o que tinha ali, como se fosse a
primeira vez que pegava em desinfetantes e águas sanitárias.
Provavelmente, era mesmo a primeira vez. Seu cenho franzido em uma
quase consternação por estar fazendo aquilo e seu histórico de dondoca
gritavam sobre a sua completa inexperiência. Mas, ela era uma garota
inteligente e esperta. Eu sabia que era. Pude perceber isso, mesmo que não
em situações tão saudáveis. Por exemplo, no episódio em que ela tentou
enfiar a mão na cara da detenta por não aceitar que fizesse com ela o que
bem entendesse. Somente uma pessoa esperta e inteligente não aceita certas
imposições alheias sobre si.
Logo depois que terminou de analisar tudo, jogou todos os
materiais, que estavam no balde, em um cantinho do banheiro, encheu-o de
água e começou a jogá-la pelo chão do banheiro. Em seguida, pegou o
sabão, espalhou por todos os lados e com o esfregão iniciou a limpeza.
Mesmo inconsciente, um pequeno e quase imperceptível sorrisinho de
admiração quis surgir. Eu sabia que ela estava fazendo tudo aquilo na força
do ódio, mas eu não disse que ela sabia fazer? Só bastava querer e
começar. E, o que não soubesse, aprenderia com o tempo e a experiência do
trabalho. Mesmo assim, eu ainda quis arriscar em dizer:
— Senhorita... Não seria melhor continuar pelo vaso e depois limpar
todo o resto?
Foi aí que, erguendo os olhos nem um pouco simpáticos para mim,
arredia, ela disse:
— Olha só... Não sou eu quem precisava fazer isso? Ou você quer
fazer no meu lugar? Se quiser, fique à vontade — ergueu uma das
sobrancelhas. — Mas, se for eu a continuar aqui, então deixa eu fazer essa
merda do meu jeito — Determinada, concluiu.
Opa, não estava mais ali quem falou.
— Tudo bem, senhorita Ballard.
Mais uma vez, aquele sorrisinho quis surgir, mesmo que eu o
segurasse bem dentro de mim. No fundo, entretanto, a garota ainda
conseguia ficar bonita em meio àquela determinação odiosa de quem estava
louca para me assassinar.
E, por isso, quem devia estar ficando louca era eu.
Tentando pousar meus olhares mais profissionais sobre ela,
continuei a observá-la durante todo o seu trabalho. Apesar das caras e bocas
de puro nojo, dos suspiros de estresses enquanto esfregava o chão e o vaso
sanitário, e dos palavrões que ela sibilava sempre que uma ou outra unha
quebrava, ela estava conseguindo fazer. À sua maneira, mas estava. Era
totalmente perceptível a sua falta de prática e habilidade. Se molhava mais
do que o próprio banheiro e quase não pegava direito nos cabos do esfregão
e do rodo. Passava mais tempo tentando desvendar e decidir qual seria o seu
próprio passo, naquela aventura desenfreada na penitenciária, do que
propriamente fazendo. Mas, estava conseguindo.
Por vezes, escorregava mesmo que estivesse usando tênis. Por
vezes, eu me divertia, não ao meu bel-prazer, mas por achar engraçado o
seu jeito totalmente afobado e, ao mesmo tempo, desinibido, para cumprir
as tarefas. A garota era uma figura. No entanto, em nenhum momento eu
me permitia sorrir. Apenas continuava ali, com os meus melhores e mais
atentos olhares, supervisionando cada passo seu. Levou quase quarenta
minutos para terminar o banheiro, que realmente estava imundo, e, depois,
mais algum tempo para limpar a própria cela. Passou a vassoura, o pano,
tirou as teias de aranhas que havia por ali, e, claro, não gostava nem um
pouco quando eu tentava opinar sobre o seu trabalho ou sugerir para que
fizesse de outra maneira.
Agatha se apoderou daquilo e, nariz em pé como era, não permitia
que mais ninguém metesse o dedo no que achava que era o certo. Pelo
menos, nisso, eu ainda conseguia encontrar alguma qualidade. Afinal,
ninguém era cem por cento bom ou cento por cento ruim. Todo mundo era
uma mistura de qualidades e defeitos. E essa lógica parecia também
funcionar com aquela garota. Apesar de não aceitar intromissões nos seus
serviços, isso só mostrava que ela sabia se virar sozinha, que aprendia
rápido, e que não se esquivava das suas responsabilidades, mesmo que não
gostasse, quando sabia o que precisava fazer. Porém... Talvez eu já estivesse
reparando demais, mais uma vez, e fazendo considerações demasiadas
sobre a menina, mesmo que, agora, não tivesse nada a ver com o seu corpo
ou o seu rosto. Ainda assim, era arriscado. Arriscado e suspeito, porque eu
sabia que, há tempos, não prestava tanta atenção em alguém.
O pior era que não tinha como eu não prestar atenção, já que o meu
serviço era exatamente esse: não tirar os meus olhos dela, durante os cinco
dias úteis de trabalho da semana. Realmente, uma maravilha para quem já
tentava refrear certos tipos de pensamentos. Obrigada delegado Conway.
Eu deveria agradecer a ele, para não dizer o contrário.
O fato era que somente depois de uma hora, ou pouco mais do que
isso, nós conseguimos sair daquela cela e permitir que as detentas
voltassem para lá. Em uma hora, funcionárias com experiência já teriam
limpado, pelo menos, umas três celas, mas, considerando que Agatha nunca
tinha feito algo assim, talvez aquilo já estivesse de bom tamanho. Sua
limpeza também não tinha ficado uma grande maravilha, mas, para quem
não pegou em uma vassoura desde que nasceu, já era um bom começo. Ao
final de tudo, quando terminou de organizar os materiais dentro do balde
novamente e o suor já escorria pelo seu pescoço vermelho de calor, ela
parecia exausta. E olha que o trabalho do dia não tinha acabado. Era quase
hora do almoço, mas, pelas minhas contas, ela ainda teria que ficar ali até às
quatro da tarde para cumprir com a sua carga horária diária.
Mesmo assim, achei que ela merecesse ouvir algo encorajador. Não
apenas para motivá-la, mas também porque era verdade. Eu gostei do seu
serviço, de fato. Era razoável para alguém sem experiência. Por isso,
enquanto caminhávamos de volta para a área administrativa da
penitenciária, me aproximei dela e disse:
— Bom trabalho, senhorita Ballard.
— Me poupe dos seus elogios — De pronto, ela replicou, rolando os
olhos. — Eu estou toda suja, suada e molhada.
Ah, que humor maravilhoso.
— Estamos chegando no horário de almoço. A senhorita pode
aproveitar o tempo de folga para tomar um banho e trocar de roupa —
sugeri. — Deixei outras fardas do seu tamanho separadas também.
— Eu vou fazer isso e me sujar de novo? — Com um semblante
óbvio de tédio, girou o rosto em minha direção. — Prefiro tomar banho e
me arrumar só quando eu já tiver terminado tudo por aqui e for embora.
— Como quiser, senhorita Ballard — repliquei em um breve
suspiro. Eu já devia saber que Agatha só fazia aquilo que bem entendia. Ou,
no máximo, o que a justiça ordenava. — Bom, está liberada para o almoço.
Infelizmente, como você não é, de fato, uma funcionária da penitenciária,
não está inclusa no almoço servido pelo refeitório. Mas, aqui na frente tem
uma lanchonete. Você pode ir até lá. E, lembre-se, esteja aqui às treze horas
em ponto, para cumprir o restante do seu trabalho.
— Mal posso esperar — Com um sorriso cínico de dois segundos,
revirou as orbes e me deu as costas, saindo dali.
O que tinha de bonita, também tinha de temperamento difícil.
✽✽✽
Já era por volta das doze e meia quando eu terminei meu almoço.
Depois de conversar com alguns colegas da polícia, peguei um cafezinho,
para tirar o gosto da comida, e decidi respirar um pouco de ar puro lá fora.
Era como uma tentativa de recuperar o fôlego para o segundo turno na
penitenciária. Cruzei a porta da recepção, me encostei em um dos carros do
estacionamento, na sombra de uma árvore, e fiquei ali apenas bebendo café
e olhando para o céu.
Um total de zero pensamentos específicos rondavam a minha
cabeça, até que, repentinamente, senti alguém tocar a minha cintura com
dedos que pareciam ter intimidade com aquela e com outras partes do meu
corpo.
Quando volvi o rosto para o lado...
Alexa Westphalen.
A inspetora da penitenciária e o meu sexo casual dos últimos três
meses.
Para todos os funcionários dali e de toda a polícia de Las Vegas, ela
era a rígida e profissional inspetora Westphalen, que comandava tudo com a
sua famosa e poderosa mão de ferro, sem gracinhas, sem gracejos. Uma
mulher implacavelmente séria. E, de fato, ela era assim mesmo, menos
comigo.
Comigo, Westphalen era a mulher que toda lésbica sonhava em ter,
exceto pela parte de “pegar no pé”. Estupidamente bonita, gostosa demais
na cama, um senso de humor maravilhoso e divertidíssima apenas com
quem era íntimo. E os íntimos à Westphalen eram somente zero vírgula
cinco por cento das pessoas que ela conhecia.
Ou seja, se ela era legal comigo, provavelmente eu fiz por merecer.
Com a minha simpatia, com o meu profissionalismo. Ou com o meu
sexo.
Tudo bem que já estava com umas duas semanas que nós não
saíamos. E eu sabia que a nossa situação só era essa por minha culpa. Alexa
queria sair comigo. Era eu que não estava muito na vibe de sair. Eu tinha a
impressão de que, para ela, as coisas já estavam se tornando mais sérias do
que casuais. E eu não achava que, juntas, nós combinássemos para um
relacionamento sério. Para casualidade sim, mas para relacionamento sério
não.
— Ouvi falar que você se tornou uma baby-sitter... — disse ela, ao
meu lado, bem próxima a mim, com um tom de brincadeira que, em geral,
só usava comigo.
E eu sabia exatamente ao que ela estava se referindo...
— Ah... — sorri de leve, meio sem graça por saber que aquela não
era uma missão sonhada por nenhum policial, especialmente quando o
policial era eu. — Fazer o que, né?
— O delegado Conway não tem mesmo senso de humor — Irônica,
replicou. — Achei meio absurdo ele colocar uma das melhores policiais de
Las Vegas para fazer um trabalho tão primário como esse. Seria uma
decisão bem mais inteligente se tivesse deixado você em serviços mais
importantes e escolhido outra agente para cuidar da garota.
Na real, eu concordava com ela. E como concordava. Se não fosse a
garota, eu estaria nas ruas agora, resolvendo problemas realmente
relevantes.
— Pois é... — suspirei. — Mas, é isso... — tentei me conformar. Na
verdade, eu sempre tentava, quando me lembrava de que ia ficar naquilo
por seis meses. — Manda quem pode e obedece quem tem juízo.
Ela sorriu.
— Como sempre, tão profissional... — E, me observando com
verdadeiros olhares de admiração, passou, descaradamente, a mão na minha
cintura outra vez, mesmo que, para os outros que não entendiam o que
acontecia ali, pudesse ser um movimento discreto. — Por falar nisso, será
que se eu mandar você fazer algo, você me obedece?
Suspirei.
Eu sabia onde ela queria chegar.
— Sim... Você é uma das minhas chefes...
E o seu rosto se iluminou em verdadeiro fascínio ao ouvir a minha
resposta.
— Então, me chama para sair — Seus dedos me apertaram onde a
sua mão tocava a minha cintura. — A minha cama está com saudades de
você.
Pois é... Com uma intimação dessas, quem conseguiria escapar?
Inúmeras vezes, sem querer ser grossa ou insensível, eu pensei na
possibilidade de deixar ainda mais claro, para a Alexa, a forma como a
nossa relação se resumia. Porém, ela sempre dava um jeito de me enrolar na
sua teia e de me falar coisas nesses termos. Termos que pareciam casuais,
mas que, no fundo, revelavam desejos de quem queria um relacionamento
mais concreto.
Por mais que ela não me dissesse isso abertamente, eu sentia, sabe?
Mesmo assim, sorri, tentando disfarçar qualquer coisa.
— Claro... Podemos marcar. Quando você está disponível?
— A hora que você quiser — E, sagaz, encarou a minha boca sem
qualquer receio ou cerimônia, mesmo que estivéssemos bem ali, no
estacionamento aberto da penitenciária.
Agatha
Agatha
Agatha
✽✽✽
Zara
Agatha
Depois de sofrer, em mais uma volta para casa, num ônibus quente e
cheio de assalariado, exausta, eu finalmente cheguei. Cruzei a porta e,
cumprindo o ritual de sempre, já fui logo espalhando casaco e sandálias
pelo chão. Me jogando no sofá da sala, para recuperar minimamente as
minhas forças, eu me deitei. A diferença do dia anterior, para aquele exato
instante, era que, por mais cansada que eu estivesse, a minha mente
continuava trabalhando, sem parar, naquilo que aconteceu minutos antes de
eu ir embora da penitenciária.
Ou melhor, digo, pior, eu não parava de pensar na Xena.
Uma merda.
— Agatha...?
Eu ainda não entendia o motivo da minha cabecinha estranha estar
tão interessada e curiosa sobre a sua vida. Afinal, argh, ela era só a Xena,
pelo amor de Deus. Além do mais, pegar mulher não era exatamente um
evento. Era a coisa mais natural do mundo. Eu mesma pegava. E pegava
com gosto. Então, eu não sabia que raios tinha dado em mim. Mas, era
inevitável, absurdamente inevitável. Quanto mais eu tentava parar, mais eu
me lembrava da infeliz.
Era tipo um efeito reverso.
Inclusive, aqui vai uma dica: não se force a parar de pensar em
alguém, porque, quanto mais você pensa em parar de pensar, mais você se
lembra da maldita pessoa. Ou seja, apenas tente lidar com isso da maneira
mais natural possível, senão você vai ficar louco(a).
E era uma doideira mesmo.
Sim, eu já estava começando a ficar doida com aquela mulher
morando na minha cabeça, sem qualquer motivo aparente.
— Agui...?
Talvez fosse pela surpresa de eu ter descoberto aquilo, sem ter me
dado conta, antes, de que a Xena gostava de mulher, sendo que, na maioria
das vezes, a pessoa não precisava nem abrir a boca para eu perceber esse
tipo de coisa. Ou talvez fosse pelos sorrisos tão simpáticos que ela dava
àquela morena elegante, mesmo que reparar nisso fosse uma grande tolice
minha. Ou talvez fosse pelo que Nick falou... Pelos inúmeros pontos de
interrogação que aquela criancinha colocou na minha cabeça. Ou,
simplesmente pelo fato dele ter achado que eu era a nova namorada da sua
mãe.
— Agatha?!
Repentinamente, ouvi alguém gritar o meu nome.
Quando virei meu rosto...
— Ai meu Deus, que susto, Evangeline! — exclamei, colocando
uma mão no peito.
— Fazia meia hora que estava te chamando — cruzou os braços,
erguendo uma das sobrancelhas e sorrindo para mim. — Tudo bem... Meia
hora não — soltou uma risadinha. — Mas, nossa, você parecia estar no
mundo da lua, heim...? Tudo bem, querida?
Ah... Mundo da lua é?
Sorri meio desconcertada, por me dar conta de que estava assim não
por ter viajado para o mundo da lua, mas para o da Xena. Uma catástrofe.
Minha cabeça realmente estava me traindo a todo instante, desde que
comecei os trabalhos na maldita penitenciária.
— Impressão sua, Eva... — soltei uma risadinha meio forçada,
tentando mudar o foco do assunto. Obviamente, eu não iria dizer: “Ah, Eva,
eu só estava pensando naquela policial do meu nojo, que me prendeu e
agora também está presa na minha mente por ser gata pra caralho”.
Cacete. Meu caso já estava se tornando perdido. Pigarreei a garganta. — Eu
só tô muito cansada... — rolei os olhos, fingindo alguma coisa. — Depois
desses seis meses de trabalho comunitário, eu vou precisar de uma vida
inteira em um spa! — E ainda forcei uma pequena risadinha.
— Sei... — disse ela, meio desconfiada. Me conhecer, desde que eu
nasci, era uma vantagem e uma bosta ao mesmo tempo. Enquanto ela sabia
de tudo sobre mim, como se fosse a minha mãe, eu também não conseguia
esconder tantas coisas dela ou mentir por muito tempo. Mesmo assim,
felizmente, Eva não se prolongou no assunto. — Por que não sobe e toma
banho, querida? O jantar já está pronto. Hoje tem peixe grelhado, com
manteiga de alcaparras, que você adora.
Ai, meu Deus, Evangeline era a melhor pessoa do mundo.
Depois de sobreviver, um dia inteiro, apenas com um hambúrguer
oleoso e gorduroso, porque era a única refeição possível, que o meu bolso
conseguia pagar, naquela penitenciária, meu estômago roncou de fome, só
por Eva comentar sobre o cardápio do jantar.
— Sério, você merece um prêmio! — Entusiasmada por ter uma
refeição digna, ao menos no final do dia, me levantei do sofá. — Vou tomar
um banho. Aliás, acho que vou demorar um pouquinho na minha hidro,
porque, sério, meu corpo inteiro está doendo de passar duas horas em pé no
ônibus... — rolei os olhos, e, então, virando-me para subir as escadas, me
lembrei de algo que me fez parar no meio do caminho. — Ah, Eva! —
chamei-a.
— Sim?
— Meu pai está em casa? — Falando em um tom mais baixo e
franzindo o cenho em repulsa, perguntei.
— Não, querida, hoje ele não está.
Suspirei aliviada, um pouco mais confortável por poder transitar
livremente pela casa, sem o risco de cruzar com o coroa.
— Ah, que bom!
E eu nem me importava em deixar totalmente evidente que não
gostava da presença dele ali, fosse para Evangeline ou para qualquer outra
pessoa.
Assim, fazendo meu caminho de novo, subi as escadas rumo ao meu
quarto. Porém, quando entrei ali, eu não podia me enganar. Merda, eu não
podia. Ainda olhei para a porta do meu banheiro e a vontade de ficar de
molho na minha hidromassagem queimou dentro de mim. Só que, apesar
disso, um desejo muito maior formava quase labaredas dentro do meu
corpo. Ou melhor, dentro da minha consciência. Caralho, onde eu estava
com a minha cabeça? Na verdade, eu sabia, sim, onde eu estava com a
minha cabeça.
A minha cabeça estava na Xena.
Por mais ridículo que isso fosse.
Ainda fui e voltei, fechei a porta do meu quarto e caminhei de um
lado para o outro, pensei umas vinte vezes se eu deveria realmente
continuar com aquela estúpida busca desenfreada sobre informações de
alguém que não tinha nada a ver comigo, até que, enfim, me dei conta de
que a rendição era uma realidade. Uma realidade muito maior do que a
minha pouca força de vontade para parar. Uma lástima, mas, ainda assim,
uma realidade.
Porra, eu nem sabia direito o que eu estava fazendo, só queria
saber mais a respeito da sua vida. Será que era o meu espírito de
fofoqueira? Sim, só podia ser isso! Eu era uma fofoqueira de primeira!
E foi nesse pensamento que eu me agarrei para não odiar a mim
mesma por estar tendo uma atitude tão desprezível ou para não parecer
louca. Pior: para não parecer uma stalker tipo o You daquela série!
Ah, merda.
Foda-se.
Não dava para evitar. Era só o meu espírito de fofoqueira. Só isso.
Então, apenas levantei a tela do notebook e, me forçando para não
ser como o tal Joe Goldberg que perseguia mulheres, abri o Google e, em
meio a uma das maiores epifanias de loucura da minha vida, digitei
“Policial Scott Las Vegas”. Eram absolutamente as únicas informações,
sobre ela, que eu tinha até aquele momento. Nem o seu primeiro nome eu
sabia. Afinal, todos a chamavam de Scott.
Foi aí que, rapidamente, o resultado da pesquisa apareceu. Eu não
fazia ideia se haveria qualquer coisa a respeito dela ali. Não sabia nem se
ela era uma policial, de fato, conhecida em Las Vegas. Porém, à medida que
fui rolando a tela, manchetes de jornais começaram a pipocar, frente aos
meus olhos, com uma série de informações que chamariam a minha atenção
de longe.
Agatha
Não, eu não estava fazendo corpo mole para a merda daquela obrigação
que eu precisava cumprir diariamente, nem me esvaindo da minha
responsabilidade, por mais que esse fosse o meu maior sonho desde que o
maldito delegado me informou sobre o meu destino dos próximos seis
meses. Acontece que, naquela manhã, um absoluto rio de águas vermelhas
decidiu jorrar por entre as minhas pernas. Eu juro. Eu estava uma completa
confusão. Parecia que, a cada menstruação, um caminhão tinha passado por
cima de mim.
Minhas olheiras sempre ficavam mais profundas e eu me sentia
muito mais sonolenta que o normal. Minhas pálpebras pesavam trezentos
quilos, quando eu abria os olhos, depois daquilo que deveria ser o meu sono
da beleza, mas que, no fim das contas, só fazia eu me sentir mais morta.
Além das espinhas que sempre estouravam, na minha cara, durante esse
período, por mais skin care que eu fizesse. Nesses dias do mês, eu até
poderia concordar com o meu pai, quando ele me chamava de feia. Isso
sem falar na dor de cabeça, nas dores infernais no final da minha barriga e
na vontade de me enterrar na cama a cada pontada de cólica que eu sentia.
Eu juro que eu sentia muita dor quando estava menstruada.
Às vezes, uma dor descomunal.
Era tipo uma amostra grátis de parto, sabe?
Uma maravilha, argh!
Mesmo que aquele fosse o único dia, desde o primeiro de trabalhos
comunitários, em que eu milagrosamente não tinha acordado atrasada, eu
não estava com uma grama de vontade de pegar um ônibus lotado, passar
uma hora em pé e ainda enfrentar um dia inteirinho de faxineira. Sério. Eu
queria chorar, eu queria brigar, eu queria me estressar, eu queria ficar triste,
eu queria rir da minha própria desgraça. Tudo ao mesmo tempo. Nem eu
estava me entendendo. A minha TPM estava gritante. E meu cabelo estava
horrível! Bufei ao constatar isso, enquanto, frente ao espelho do meu closet,
passava a escova, na tentativa de deixá-lo minimamente decente, e via a
Evangeline por ali, pendurando algumas roupas limpas nos cabides.
Quase choramingando, eu disse:
— Eva, não quero ir...
Ela suspirou, balançando a cabeça de leve.
— Querida, você precisa ir.
Que merda.
Eu não precisava não!
Quero dizer...
Sim, eu precisava sim... Inferno.
— E se eu meter um atestado? — Em pura expectativa, perguntei,
arqueando as sobrancelhas e praticamente sorrindo para ela, por ter tido
aquela ideia brilhante, como uma luz no fim do túnel.
Eva, no entanto, virou para mim, aproximando-se, tocou meus
ombros e, em certo tom de repreensão, replicou, ao me encarar pelo reflexo
do espelho:
— Agui... Menstruação não é doença. Você tem vinte e dois anos, e
já está bem acostumada com esse acontecimento mensal desde os catorze.
Então, trate logo de ir, antes que se atrase. Quanto menos você faltar, mais
rápido você vai concluir esses dias e meses de trabalho, han? Força,
Aguinha! — e apertou meus ombros, em uma tentativa de me encorajar.
Expirei o ar pesado dos meus pulmões.
Fora o atestado médico, ainda cheguei a pensar em algumas
alternativas mais desesperadoras, tipo ligar para a Xena ou mandar uma
mensagem, dizendo que fui atingida por um raio cósmico e depois abduzida
por extraterrestres, ou sei lá. Mas, nem o maldito número do seu celular eu
tinha. Não que eu fizesse questão de tê-lo, claro, mas, nesses momentos,
poderia ser necessário.
Mesmo assim, o pior era que Evangeline estava certa. Se eu entrasse
numa de faltar o tempo inteiro, aqueles seis meses poderiam se transformar
em sete, oito, ou até um ano. E eu jamais, jamais mesmo, aguentaria um ano
naquele inferno. De um jeito ou de outro, eu precisava cumprir os cento e
oitenta dias da melhor maneira que eu conseguisse para não me foder ainda
mais depois.
Portanto, respirando fundo e buscando forças sabe-se lá de onde, eu
disse:
— Tudo bem, Eva. Vou lá, botar fogo nessa penitenciária. Deseje-
me sorte.
Coloquei um estoque exagerado de absorventes na bolsa, passei
gloss na boca e fui.
✽✽✽
✽✽✽
Quando achei que aquela sensação dos infernos melhoraria apenas
pelo fato de eu ter entrado no banheiro e me distanciado dela por alguns
minutos, eu estava redondamente enganada. Claro, claro que eu estava
redondamente enganada. Claro que aquela merda não melhoraria. No
fundo, era como se o toque da Xena me desse algum gatilho, ou sei lá,
despertasse alguma coisa em mim, a ponto de eu não conseguir parar de
pensar nas inúmeras formas pelas quais aquela mulher conseguia ser bonita
apenas por dizer um mísero “a”, ou somente por existir e estar bem ali na
minha frente, atormentando os meus hormônios.
Enquanto ela me guiava pela penitenciária, caminhando à minha
frente, eu não sabia como fazer para tirar os olhos do seu corpo. Argh, que
merda. Mesmo que ela estivesse coberta por aquela farda, eu podia ver
claramente as suas curvas, a perfeição das suas pernas, a postura invejável
das suas costas e o formato arredondado da sua bunda. Engoli seco, sem
nem perceber. Eu estava perdida, eu estava me perdendo. Nem reparar nas
pessoas ao nosso redor, ou em qualquer outra coisa que pudesse estar
acontecendo na penitenciária, eu conseguia. Era apenas ela. Apenas a Xena.
Até que...
— Bom, hoje você pode começar os trabalhos varrendo o chão da
recepção — Repentinamente, sem eu estar esperando, ela virou-se para
mim e disse.
Foi muito mais rápido do que a minha consciência podia assimilar.
Porém, era o susto que eu precisava para acordar. Piscando os olhos
repetidas vezes, fitei-a e tentei enrijecer a compostura para não parecer
ainda mais estranha do que já estava sendo.
— É... — Pensa, Agatha, pensa! Só não continue com essa cara de
otária para ela! — Mas, eu já limpei esse chão ontem...! — Cruzando os
braços e ensaiando a minha melhor expressão de garotinha nojenta,
substitui a cara de otária pela minha usual cara de bosta e falei a primeira
coisa que surgiu na minha cabeça.
— Sim, exatamente — replicou com obviedade. — Isso foi ontem.
Hoje é outro dia e precisa de outra limpeza.
Argh!
Com aquela sua personalidadezinha insuportável de masoquista, era
quase impossível não voltar a ser a Agatha de sempre, em dois tempos.
Rolei os olhos. Dessa vez, não por estar fingindo qualquer coisa para não
parecer uma bobona enquanto a observava, mas simplesmente por quase
não aguentar as ordens que me dava.
O que tinha de bonita, tinha de chata.
Já foi logo me empurrando a vassoura, o esfregão e todos os outros
materiais de limpeza, antes que eu dissesse qualquer coisa, e, então,
completou:
— Como não estamos nas celas, não há a necessidade de eu
acompanhá-la o tempo todo. Você sabe, aqui na recepção é mais tranquilo.
Então, vou resolver algumas coisas na penitenciária, mas pode começar. E
não transite, nem saia daqui para qualquer outra parte, sem o meu
consentimento.
Ah, aquele jeitinho de mandona do meu ódio...
Ofereci o meu melhor e maior sorriso irônico, dizendo:
— Sim, senhora. Mais alguma coisa? Quer me colocar dentro de
uma gaiola também e me alimentar à base de petiscos e alpiste?
Ela apenas ergueu uma das sobrancelhas para mim e respondeu:
— Bom, eu preferia que a senhorita estivesse cumprindo a pena em
detenção, presa em uma daquelas gaiolas da ala feminina mesmo. Assim, eu
não precisaria lidar agora com uma garotinha sem noção e estaria
trabalhando em serviços muito mais importantes para minha carreira do que
esse.
Foi tudo o que ela disse, segundos antes de se afastar e me dar as
costas.
Garotinha sem noção...?!
Então, era isso o que eu para ela?
Meu queixo despencou em pura exasperação, ao ouvir aquelas
palavras. Tão descarada! Como ousava falar comigo daquele jeito? Eu não
era uma garotinha sem noção! Não era mesmo! Talvez só um pouco... Ainda
escutei o meu subconsciente sussurrar isso em meus ouvidos, mas não dei
atenção a esse filho da puta tagarela. Bufei. Era muita cara de pau mesmo,
me acusar de uma tal de “inha” e sair daquele jeito, sem nem me dar a
oportunidade de lhe devolver uma resposta bem malcriada.
Sentindo os meus olhos queimarem de raiva, ainda pude
acompanhá-la se distanciar dali e sumir por entre uma das portas da
administração da penitenciária. Saco. A Xena escapou, mas, na primeira
oportunidade que eu tivesse, ela ia me ouvir. Ah se ia. E eu não tinha medo
dela ser uma policial. Claro que não tinha. Era justamente esse meu total de
zero medo que me fez estar ali, naquele exato momento, espanando um
covil de cobras e aturando a própria cascavel.
Com todo o meu ódio e a minha ínfima vontade de fazer malditos
trabalhos comunitários, me virei e comecei a varrer o chão. Empurrava as
cerdas da vassoura bruscamente, por ali, como se, de algum modo, aquilo
pudesse inutilmente aliviar o meu estresse. Era TPM, Xena, penitenciária.
Tudo ao mesmo tempo. E eu ainda tinha que aguentar os outros
funcionários que passavam por ali e me davam olhares de julgamento pela
maneira nem um pouco convencional e jeitosa com a qual eu limpava a
recepção.
Ah, foda-se! Eu não estava nem aí para qualquer um deles.
Não eram eles que pagavam as minhas contas.
Podiam olhar, julgar, fofocar. Eu não estava nem aí.
Assim, eu passei longos minutos ali. Varri, passei o pano e, agora,
encerava o chão. A cada força que eu fazia para passar a cera com minha
própria mão e a porcaria de um paninho, era um jato daquele rio vermelho
que escorria. Porra. Eu queria estar em casa, deitada na minha cama, até
aquilo parar de descer. Mas, não. Eu tinha que ficar naquela merda,
lambendo aquele chão, até às dezesseis horas.
Eu jamais me perdoaria por ter saído para a balada naquela noite.
Expirei o ar pesado dos meus pulmões e, na força do ódio, continuei
passando a cera.
Porém, entre um esfregão e outro, um olhar displicente e outro, eu vi
algo que reteve a minha atenção. E reteve a minha atenção mesmo que eu
não quisesse. Porque não, eu não queria mais me importar, me interessar, ou
ficar curiosa sobre qualquer coisa que envolvesse a Xena, afinal, era só a
Xena (obviamente nada demais), mas, caralho, bastava eu ver uma
movimentação suspeita para que todas as minhas tentativas de me tornar
indiferente a ela caíssem por terra.
Aquilo me fez até retornar para aquele semblante de otária, que eu
não estava acostumada a ter, mas que, agora, parecia se tornar uma rotina
sempre que eu reparava em qualquer mínima coisa nela.
Depois de um tempão sem aparecer, ela surgiu ali na recepção.
Segurava um copinho de café na mão, enquanto soprava para resfriá-lo, e
conversava com ninguém menos que a bonitona morena e elegante do
estacionamento. Agora, eu conseguia vê-la mais de perto e constatar que a
mulher era realmente impecável. Elegante, fina e muito bonita. E, bem, era
totalmente perceptível que, ao passo que ela direcionava olhares frios e
formais para outras pessoas, a maneira como ela encarava Scott era bem
diferente.
Eu nem sabia descrever ao certo. Porém, tinha algo a mais. Algo
que, talvez, apenas os olhares mais atentos percebessem, mas que existia e
que eu notava. Vez por outra, ela tocava no braço da policial e deslizava
preguiçosamente por ali, enquanto conversavam. Scott, por sua vez, era só
sorrisos e risos para ela. Era como se fossem realmente íntimas, como se
estivessem acostumadas com aquilo, como se tocar no corpo da outra não
fosse novo e, sim, natural.
Será que ela era a tal “inspetola” Alexa que o Nick falou?
Minha cabeça tornou a martelar sobre isso. Ah não. Era mais forte
que eu. Mesmo que eu quisesse parar, todo aquele tsunami de curiosidade
me engoliu outra vez, a ponto de eu não conseguir mais desviar meus olhos
delas. E eu tentei. Eu juro que tentei. Voltei a encerar o chão, mas, de
instante em instante, era na direção delas que o meu rosto se erguia. No
fundo, eu sabia que estava observando-as como uma boba curiosa,
ajoelhada no chão, com um paninho numa mão e uma luva toda suja de cera
na outra.
A própria cinderela. Uma herdeira que virou gata borralheira.
Foi então que, de repente, a morena elegante virou displicentemente
para mim. No primeiro momento, não pareceu se atentar, mas, depois de
perceber que eu estava realmente olhando para elas, cravou as orbes sobre
mim. E não somente isso... Eu senti... Eu senti que ela me encarava como se
eu fosse um inseto nojento e perigoso ou como se eu estivesse com algum
tipo de doença contagiosa. Franziu o cenho e me fitou com total
superioridade.
A não ser quando era o meu pai a me olhar assim, isso nunca,
absolutamente nunca aconteceu comigo, mas, pela primeira vez, eu me senti
murchar e ficar pequenininha diante do olhar rígido de alguém. Porra, o
que estava acontecendo comigo? E pior foi quando, sem tirar os olhos de
mim, ela pareceu chamar a Scott e apontar com o queixo em minha direção.
Notei o momento em que as duas comentaram algo, enquanto me
observavam. Droga. Meu coração acelerou e, pela primeira vez, em muito
tempo, eu fiquei de fato absurdamente envergonhada.
Baixei o rosto, sem saber direito o que fazer ou para onde olhar, até
que, enfim, toda desajeitada, peguei novamente a cera e voltei a esfregar o
chão.
Droga, droga, droga.
Que merda era essa? Agatha Ballard nunca foi assim!
Suspirei, sentindo o peito ainda bater forte, e tentei me concentrar na
cera como se eu dependesse disso para viver. A vontade era de não olhar
para mais lugar algum, a não ser aquele maldito chão, até que não notassem
mais a minha presença ali. Ou melhor, até que eu me tornasse invisível.
No entanto...
— Está tudo bem, senhorita Ballard?
Sua voz soou perto de mim, enquanto esfregava o chão, ajoelhada.
Era a Xena.
Merda.
Viu só, Agatha? É isso o que você ganha por ser uma maldita
curiosa!
Tentando controlar aquele súbito nervosismo de uma figa, apenas
ergui brevemente o meu rosto para ela e disse bem rápido:
— Unhum.
Scott, entretanto, continuou me fitando com um semblante meio
desconfiado.
— Hum... É que te vi olhando para nós e pensei que pudesse estar
precisando de alguma coisa. Quer me falar algo?
A não ser o fato de eu estar precisando de um spa e de uma terapia,
não, eu não precisava de mais nada.
— Tá de boa, juro — Sucinta novamente, repliquei.
Por fora, eu era uma mulher de poucas palavras. Por dentro, eu
estava em polvorosa.
Só vi quando ela suspirou e, fazendo menção de se virar para sair
dali outra vez, falou:
— Então, tudo bem.
Porém, aquilo foi muito mais forte que eu. Maior que o meu receio.
No instante em que ela fez que ia me dar costas, eu não pude segurar.
Mesmo que a vergonha ainda me dominasse, aquilo saltou da minha boca
quase sem eu perceber:
— Aquela mulher... — Minha voz saiu um pouco mais alta do que
deveria. Pigarreei a garganta, entretanto, meio sem jeito, tentando falar um
pouco mais baixo. — Ela trabalha aqui?
A Xena, no entanto, franziu o cenho.
— Sim... — E a desconfiança não saía do seu olhar. Droga. Cacete
de mulher esperta — Por que?
Querida, nem eu sabia o motivo da minha curiosidade!
— A-Ahh... É-É... Po-Porque... — Pensa, Agatha, pensa. — Nã-
Não fomos apresentadas e... — falei a primeira merda que surgiu na minha
cabeça. — Ela parece ser uma pessoa importante aqui, alguma chefe, ou sei
lá...
Scott suspirou.
— Ela é a inspetora da penitenciária. Inspetora Westphalen.
Ai, meu Deus.
Tentei segurar minhas sobrancelhas que quiseram arquear com
aquela eureka.
Tipo inspetora de “inspetola”? Inspetola Alexa?
— E... — Merda, eu não consegui parar, mesmo que aquilo já
estivesse estranho demais. — Qual o primeiro nome dela?
Novamente, Xena enrugou a testa, ainda em meio àquele olhar
desconfiado, mas...
— Alexa. Alexa Westphalen.
Cacete, era ela mesmo!
Bingo!
Eu não estava enganada! Nick não tinha mentido!
A Xena pegava mesmo mulher, e ela ainda pegava a inspetora da
penitenciária.
Eu até tentei disfarçar, mas não soube bem como reagir àquela
informação, porque, depois de dias, a principal dúvida que, ultimamente,
rondava a minha cabeça estava sanada. E, no fundo, eu não sabia bem o que
sentir sobre isso. Aliás, eu deveria sentir alguma coisa? Na verdade, entre
nós, o que eu mais percebi, depois disso, foi um certo climão que ficou. Eu
não fazia ideia do que a policial estava pensando, mas não pude suportar
seu olhar suspeito sobre mim. Mesmo que eu já não precisasse encerar mais
nada ali, baixei a cabeça, como quem não queria nada, e voltei a esfregar o
chão.
Instantes depois, no entanto, só ouvi o momento em que ela quebrou
o silêncio:
— Acho que este chão já está mais do encerado, senhorita Ballard.
Terminou aí?
Saco.
Eu parecia uma pateta, sem saber como agir.
Apenas balancei um sim meio ligeiro demais com a cabeça.
— Ótimo. Me acompanhe. Hora de aspirar o sofá da sala de
administração.
Argh.
Ela não me dava um minuto de paz!
Infeliz.
Até agora eu não entendia o motivo do meu interesse em
informações sobre sua vida.
Scott era só uma chata.
Por pouco não revirando os olhos, enquanto o meu corpo já
quebrado e dolorido do serviço e da menstruação quase pedia por
misericórdia, me levantei do chão e a segui, carregando toda a tralha dos
materiais de limpeza.
Cruzamos o balcão da recepção e entramos na área administrativa.
Percorremos um corredor repleto de salas e passamos em frente à várias
portas, inclusive uma cuja placa estava escrito “Inspetora Westphalen”.
Provavelmente, aquele era o escritório da bonitona. Estava fechado, porém.
Então, eu não sabia se ela realmente estava ali naquele momento. O fato era
que nós só paramos quando alcançamos a última porta no final desse
corredor.
Scott abriu a sala e ligou a luz. Ao redor, era uma típica sala de
escritório. Havia um sofá no cantinho de uma das paredes, uma mesa de
trabalho com várias gavetas, um armário de arquivos e outra porta, ali
dentro, que dava acesso a sei lá o quê.
— Seu serviço será aspirar esse sofá — disse ela. — Não lembro a
última vez que aspiraram. Deve estar todo empoeirado. A tomada que está
mais próxima a ele é a que fica no banheiro. Você pode ligá-lo lá —
apontou. — E, bom, aqui também é tranquilo para a senhorita trabalhar sem
a minha supervisão permanente. Vou resolver mais algumas coisas aqui na
penitenciária e depois eu volto.
Vai resolver algumas coisas na sala da inspetora Westphalen?
Pensei, mas não disse.
— Ok.
Foi tudo o que eu falei, já exausta.
Ainda assim, era menos ruim aspirar um sofá do que esfregar chão e
desentupir privadas. E, já que eu era obrigada a fazer aquilo, eu não tinha
para onde correr. Minha única alternativa era respirar fundo e tentar
sobreviver até o fim.
Quando Scott cruzou a porta, peguei o aspirador de pó, que já estava
ali, e entrei no banheiro com ele. Me abaixei para colocá-lo no chão, inseri
o fio na tomada e apertei no botão de ligar. No entanto, quando ergui o meu
rosto e vi o meu reflexo no espelho, eu não consegui pensar em outra coisa
a não ser na tragédia ambulante que eu estava. Pelo amor de Deus, aquela
menstruação estava acabando comigo. Nem a maquiagem estava dando
jeito nas orelhas e... Meu Deus, o que era aquilo? Abri a boca,
completamente perplexa.
Aquilo era uma espinha?
Uma espinha imensa e horrorosa no meu rosto?!
Meu Deus, eu tinha uma espinha?!
Sim, não era algo fora do comum aparecer espinhas durante a
menstruação, mas... DAQUELE TAMANHO? Daquele tamanho não!
Socorro. Toda atarantada, coloquei o cano do aspirador ligado, ali por cima,
e toquei meu rosto, avaliando melhor aquela merda que ele estava. Cacete,
uma destruição total. Só podia ser aqueles malditos hambúrgueres
gordurosos e oleosos que eu estava comendo todos os dias em forma de
almoço.
Inferno.
Porém, do nada, eu disse do nada, algo ainda mais assustador
aconteceu.
O aspirador simplesmente fez um barulho feio e começou a
convulsionar sobre a pia, como se estivesse possuído. Meu Deus do Céu,
que porra era essa? Quando olhei com mais atenção, percebi que ele estava
aspirando a aguinha empoçada em cima da pia do banheiro.
Ai caralho!
Me desesperei e tentei desligá-lo.
Entretanto, no momento em que tentei fazer isso, seus estalos se
tornaram ainda piores, a ponto dele começar a faiscar. Puta que pariu, a
merda tava pegando fogo! Ai meu Deus, ele estava vivo. Estava possuído!
Me desesperei muito mais. O fogo se tornou maior.
Eu queria gritar.
Eu queria correr.
Mas, tudo o que eu consegui fazer, para parar o fogo, foi ligar a
torneira da pia e jogar ainda mais água em cima dele.
BUM!
Instantaneamente, ouvi um estrondo ensurdecedor ali dentro do
banheiro seguido de um completo apagão. O fogo parou, muito embora a
podridão de queimado estivesse por todas as partes. As luzes, entretanto, se
apagaram e a energia acabou.
Eu. Estava. Completamente. Em. Choque.
Meu queixo batia lá no chão, em meio ao completo breu.
Queimei... Queimei o aspirador? E acabei com a energia da
penitenciária?
Droga, quando eu disse para a Evangeline ia botar fogo na
penitenciária, não era no sentido literal!
Foi aí que eu vi a Xena entrar ligeiro no banheiro, tão boquiaberta
quanto eu, e dizer:
— O que você fez dessa vez?
Pensando nela
Agatha
✽✽✽
✽✽✽
Não havia sinal da Evangeline por ali, nem do meu pai. Talvez ela
tivesse saído para comprar alguma coisa pra casa, enquanto ele, sem
dúvidas, só podia estar trabalhando. Ainda vi alguns funcionários
transitando pelos corredores, mas logo subi para o meu quarto. Com toda a
carga de cansaço pelo dia agitado que tive, tirei a roupa e tomei um belo
banho. Depois, quando a barriga roncou de fome, pedi para um dos
empregados deixar um lanche com suco e sanduíche natural na minha porta.
E, então, após comer e ficar cheirosa, me deitei na cama, com um roupão
rosa de seda bem confortável e o rosto hidratado de skin care.
Respirei fundo, finalmente descansando.
Que loucura de dia...
Muitas primeiras vezes, mas também muitos tapas invisíveis na
cara. Me acalmou e falou mansinho enquanto estávamos no banheiro da
penitenciária. Nem parecia ela, na verdade. Nunca agiu daquela forma
comigo. Porém, a real era que Scott agiu como uma verdadeira policial,
pronta para ajudar e proteger. Foi o que ela realmente fez comigo. No
fundo, mesmo que eu jamais dissesse isso em voz alta, eu deveria admitir
que Zara Scott era admirável. Apenas a sua postura já fazia com que todos a
respeitassem e se curvassem às suas vontades. Provável que, se eu não
estivesse acompanhada dela, meu atendimento tivesse realmente demorado.
E ela permaneceu comigo o dia inteiro. Pareceu, de fato,
preocupada. Me fez companhia, pagou as despesas do hospital, mesmo que
não soubesse que eu não poderia pagar, e ainda me deixou em casa. De
alguma forma, eu fiquei meio... Boba. Boba de um jeito que eu não deveria
ficar. Não deveria porque eu sabia que tudo o que Scott fez não era por
outra coisa que não fosse a ideia de responsabilidade. Ela se sentiu
responsável por mim. Apenas isso. E a maior prova disso foi que a sua
gentileza não cruzou o limite da simpatia. Ela me ajudou sim, mas não
significou qualquer ligação entre nós.
Scott deixou bem claro o quanto ela estava ali somente como uma
policial.
Não quis se aproximar demais, nem mesmo conversar.
Que tipo de conversa acha que poderíamos ter, senhorita Ballard?
Eu ainda podia ouvir a sua voz, na minha cabeça, dizendo isso.
Uma grande tolice minha querer qualquer conversa com ela, dentro
daquele carro. Ou sentir qualquer estúpida falta da sua presença, enquanto
eu tomava o soro na veia e ela permanecia de pé, do lado de fora da sala.
Talvez Scott se achasse adulta e madura demais para manter algum diálogo
com uma garotinha sem noção, rica e mimada como eu. Sem dúvidas, era
exatamente isso o que ela pensava de mim. Aliás, uma policial jamais
ficaria de conversinha com uma garota que cumpria pena.
Era melhor que eu começasse a me enxergar.
Agatha Ballard poderia ser muitas coisas, podia ser rica,
milionária, ter o mundo aos seus pés, e conseguir o que quisesse, mas,
naquela penitenciária, para Zara Scott, ela não passava de uma quase
detenta. Apenas uma garota-problema.
E uma coisa era certa: eu precisava parar de pensar naquela mulher.
Sim, eu precisava. Não fazia sentido, não existia lógica, nem razão
alguma para eu me importar tanto com ela ou me preocupar com o tipo de
atenção que me dava. Eu parecia ridícula sempre que deixava isso me afetar
de alguma forma.
Suspirei.
Uma boa hora de começar a colocar isso em prática era agora, na
verdade.
Eu já tinha chegado do hospital, Scott já tinha cumprido sua missão
e sua boa ação. Momento de virar a página, Agatha. Foi então que, decidida
a pensar em outras coisas, puxei meu celular e abri no aplicativo da
farmácia. Eu ainda precisava pedir os remédios da receita.
Em alguns cliques, o pedido estava feito.
Quando bloqueei a tela, entretanto, sua luz se acendeu novamente,
sem que eu apertasse em nada. Uma mensagem parecia ter chegado.
Era um número que eu não conhecia. Não estava salvo na minha
agenda.
No momento em que cliquei, uma surpresa.
Inconscientemente, até parei de respirar por alguns instantes.
Agatha
✽✽✽
— Ajeita essa cara — Foi a primeira coisa que o meu pai me disse,
quando paramos em frente a um dos seus hotéis mais luxuosos, depois de
um longo caminho em silêncio. — Você sabe o quanto fica feia quando faz
essa cara de nojo.
Suspirei, tentando não pirar ali mesmo. Eu já estava a ponto de
explodir, somente em ter que acompanhá-lo àquele restaurante, depois de
levar um tapa que fazia minha bochecha doer até agora. Eu não merecia
também ficar ouvindo aquele tipo de coisa. Já bastava a convivência com
ele, que piorou significativamente quando mamãe se foi.
Quando eu quis rebater e devolver a ofensa com alguma resposta
ácida, no entanto, a porta do carro se abriu por um dos manobristas. Logo
um grupo de recepcionista do restaurante, que ficava no hotel, nos recebeu
com toda aquela bajulação ridícula, que eu já estava acostumada. Não que
eu não gostasse disso, mas, naquela noite, minha paciência estava curta até
para quem queria lamber o chão por onde nós passássemos.
Nos guiaram até a entrada do restaurante. Ele ficava no andar térreo
do hotel, justamente porque não funcionava apenas para hóspedes, mas
também era aberto ao público. Extremamente luxuoso, ele fazia jus ao
padrão rico e turístico de cassinos e casas noturnas de Las Vegas, muito
embora a parte dos jogos não acontecesse ali, mas em outra parte do hotel.
Aquele espaço era única e exclusivamente voltado para comidas, bebidas e
massagens de egos dos riquinhos que levavam suas mulheres-troféus para
dar uma volta e fingir que elas estavam consigo não pelo dinheiro, mas
porque os amavam bastante.
O restaurante não estava muito lotado, mas cheio o suficiente para
que o bolso do meu pai se enchesse com uma grana gorda, apenas por
aquela noite, principalmente levando-se em consideração que aquele era
somente um das dezenas de hotéis de sua propriedade. Enquanto
caminhávamos por ali; eu, claro, andando como se estivesse sendo arrastada
para uma prisão; senti quando uma das suas mãos se posicionou exatamente
na minha lombar. Estremeci com o seu toque. Era quase como uma reação
instintiva, inconsciente. Meu corpo se lembrava que, em todas as vezes que
meu pai me tocava, não era bom.
Engoli seco e continuei o acompanhando. Não consegui identificar
quem eram os seus “maravilhosos” parceiros de negócios, até chegarmos
perto o suficiente. Afinal, todos os que jantavam ali tinham a mesma cara
de ricos. Em geral, os ricos eram todos iguais. Aqueles, porém, eu não sabia
se era pelo fato de, talvez, serem mais endinheirados do que os próprios
milionários de Las Vegas, pareciam ainda mais elegantes do que de
costume. O velho, em forma e enxuto, tinha cabelos brancos e sorriso com
lentes de porcelana. Enquanto isso, o outro, o mais novo, aquele que eu
imaginava ser seu filho, olhou primeiro para o meu decote e depois para o
meu rosto.
Aparentemente, a ridícula estratégia da roupa escolhida por meu
pai funcionou.
De automático, levantaram-se para nos cumprimentar. O velho
sorridente apertou a mão do meu pai e, em seguida, beijou a minha. Fiz um
esforço para sorrir, quando Russell Ballard mirou suas orbes penetrantes em
mim, como se dissesse em silêncio para eu ser simpática, ou, então, sofreria
sérias consequências. Meu sorriso saiu duro com a seriedade que eu
carregava em mim e dolorido com a minha bochecha ainda machucada
apesar de maquiada.
— Russell, é um grande prazer estar aqui com você, em Las Vegas,
num dos seus melhores hotéis, especialmente agora, conhecendo a sua filha.
Ela é linda — disse o velho. — É um prazer também, querida. Eu me
chamo Harry Claflin, mas pode me chamar apenas de Harry — completou,
olhando para mim. — E este é o meu filho. Louis Claflin. Ele estava
ansioso para conhecê-la. Seu pai falou muito bem de você.
“Ele estava ansioso para conhecê-la.”
Argh... Eu merecia mesmo... Servir de putinha de bilionário era o
cúmulo.
E... “Seu pai falou muito bem de você”?
Piada, né? O que Russell Ballard fazia por dinheiro não era
brincadeira, inclusive me elogiar, coisa que eu nunca o vi fazer quando
estamos dentro de casa, debaixo do mesmo teto, convivendo juntos.
Notei quando o mais novo estendeu a mão para me cumprimentar.
Dessa vez, olhando para os meus olhos e não para o restante do meu corpo,
sorriu. Eu não podia negar, o cara era bonito. Alto, corpo em forma apesar
do blazer que vestia, cabelos pretos e olhos claros. Talvez tivesse por volta
dos trinta anos. Não era tão mais velho que eu, mas também não tinha a
minha idade. O típico padrão. Alguém que eu até poderia pegar em alguma
festa, mas que, ali, naquelas circunstâncias, eu não sentia interesse algum,
apenas ranço.
— Muito prazer, senhorita Ballard — falou. — Eu fico feliz que
tenha vindo. Pode me chamar de Louis.
Eu, entretanto, já não podia responder o mesmo. Não sentia prazer
em conhecê-lo, não estava feliz em ter ido àquele jantar, assim como
também não consegui nutrir um nível suficiente de simpatia em mim que
desse para cumprimentá-lo voluntariamente. Porém, provavelmente
percebendo isso, pelo meu silêncio e pela minha completa falta de
educação, meu pai replicou, com uma cordialidade que, em geral, ele só
usava quando tinha algum interesse:
— Sejam muito bem-vindos ao meu humilde hotel, meus caros.
Espero que essa seja a melhor estadia das suas vidas. Agatha também está
muito feliz em conhecê-los, não é, querida? — E finalizou, pressionando
seus dedos fortes em minha cintura, quase machucando.
Minha respiração travou e meu coração acelerou por alguns
instantes. Talvez aquilo fosse como uma espécie de gatilho para mim. Eu
não sabia ao certo. Mas, tinha certeza de que, depois de tantos anos levando
tapas e chutes, eu já não queria mais sentir aquilo nem ver os roxos na
minha pele.
— Prazer.
Foi tudo o que eu consegui dizer, após apertar a mão do moreno que
não parava de secar o meu decote. Um aperto de mãos tão ligeiro quanto
um piscar de olhos. Eu não queria me demorar naquilo. Na verdade, o que
eu mais queria era que aquela palhaçada acabasse logo e que eu voltasse
para casa.
— Excelente — Meu pai tornou a falar, satisfeito com a minha
breve resposta. — Por que não nos sentamos? Vamos! Vamos todos nos
sentar! — Empolgado, sugeriu.
Só vi quando o tal Louis puxou uma das cadeiras para mim. Nem
me dei ao trabalho de agradecer. Achava tudo aquilo um saco. Já bastavam
os sorrisos falsos e o meu breve cumprimento. Estava de bom tamanho.
— E, então, estão gostando de Las Vegas? — Meu pai perguntou
após se acomodar. — Como está a estadia de vocês no meu hotel? Alguma
reclamação? — completou, usando aquela tão falsa simpatia que, em geral,
só surgia quando ele sabia que receberia algum benefício.
— Está sendo ótimo, Russell, não se preocupe — Harry replicou. —
Claro que, para ficar melhor, precisávamos da companhia de uma bela
mulher. Com a senhorita Ballard, agora, temos isso — sorriu, mostrando
todos os dentes que, apesar de bem tratados com lentes de porcelanas, não
deixavam de ser nojentos pelo simples fato de que o seu interesse em mim
era puramente repulsivo.
Dessa vez, por mais que eu soubesse que meu pai odiava atitudes
desse tipo, eu não consegui retribuir a simpatia. Não lhe devolvi nem um
mísero sorrisinho. Permaneci séria, me esforçando para não vomitar ali
mesmo, em cima daquela mesa repleta de talheres banhados a ouro.
— Ah, que maravilha. Agatha está animada para acompanhá-los
nessa estadia em Las Vegas — Acompanhá-los? Como assim “acompanhá-
los”? Isso ficou entalado, como um bolo, em minha garganta, difícil de
descer. Franzi o cenho para o meu pai, esperando algum esclarecimento
plausível que não tornasse tudo aquilo um pesadelo ainda maior. —
Inclusive, já conheceram algo na cidade? Ou só descansaram da viagem?
— Nós já viemos a Las Vegas, mas ainda não tínhamos parado para
conhecer tudo com calma — disse o velho. — Hoje, visitamos algumas
lojas na Las Vegas Boulevard. Gostamos bastante. Tudo de muito bom
gosto. Por falar nisso, até trouxemos um presente para a Agatha. Na
verdade, foi Louis quem comprou — sorriu, astucioso. — Mesmo sem
conhecê-la pessoalmente, apenas por essas redes sociais e coisas de jovens,
ele achou que combinaria com a beleza da senhorita Ballard. Sabemos que,
provavelmente, ela já tem uma coleção de joias em casa, mas uma nova
nunca é demais, não é? — e soltou uma risadinha.
Joias?
Enruguei a testa outra vez, surpresa com aquilo. Porém, antes que eu
conseguisse raciocinar, o tal Louis se levantou prontamente, já tirando, de
dentro de uma caixa de joias, um colar de brilhantes. Arqueei brevemente
as sobrancelhas, quando ele colocou no meu pescoço. Era tão real que
pesava. Em toda a extensão da peça havia brilhantes. Era completamente
feito de diamantes verdadeiros. E, no meio, havia um pingente. Um
pingente com um diamante ainda maior, na cor azul.
Louis voltou a sua cadeira e sentou-se encarando exatamente o
pingente que pendia no colar e se encaixava bem no meio do meu decote.
Se demorou alguns instantes por ali, aparentemente maravilhado com o que
via e com o quanto a peça talvez combinasse comigo. Então,
preguiçosamente, subiu seu olhar, engolindo cada centímetro da minha pele
do meu busto e do meu pescoço até chegar ao meu rosto.
Eu não gostava disso. Não gostava nem um pouco.
Não quando eu não estava interessada na pessoa.
Desconfortável, rapidamente virei meu rosto em outra direção.
Porra, eles já estavam querendo me comprar.
E eu gostava, eu gostava sim de joias. Gostava de recebê-las, e não
poderia mentir a respeito disso. Bom, acima de tudo, eu tinha um ótimo
gosto para elas. A minha coleção em casa era fantástica. Porém, naquelas
circunstâncias, eu não me sentia bem em ganhar um colar de diamantes. Na
verdade, eu me sentia extremamente incomodada, porque eu sabia que, por
mais que aqueles caras fossem bilionários, eles iam querer algo em troca.
Ou pior, eles iam querer me receber em troca, como se eu fosse algum tipo
de moeda comercial.
— Uau! Que colar sensacional! — Meu pai falou. — Realçou ainda
mais a sua beleza, querida.
Realçou ainda mais a sua beleza, querida?
Se a minha garganta não estivesse tão entalada com aquele presente
totalmente pretensioso e cheio de segundas intenções, eu poderia rir da
piada. Nem parecia aquele coroa que passava mais tempo me chamando de
horrível do que de filha. Falso. Eu sabia exatamente o que ele estava
tentando fazer. Seu teatro era esse mesmo... Fingir que nós éramos uma
família saudável, que a nossa relação era maravilhosa e que eu era a filha
perfeita. Tudo isso para me jogar para aqueles caras, especialmente o mais
novo, o tal Louis, que, mesmo cheio de dinheiro e de classe, não tirava os
olhos dos meus peitos.
Aparentemente, ele tinha perdido, pelo meio do caminho entre
Bahamas e Las Vegas, a etiqueta de não secar uma mulher
descaradamente.
— Vamos passar uma temporada aqui em Las Vegas. Você poderia
apresentar ao Louis os pontos turísticos da cidade, senhorita Ballard —
sugeriu o velho Harry. — Eu tenho certeza que ele apreciaria muito a sua
companhia.
Ah porra...!
Eu sabia... Eu sabia que eu não receberia aquele colar de
diamantes de graça!
Bebi um gole do vinho branco, tentando segurar a revirada de olhos.
Aliás, eu nem deveria controlar. Eu não deveria ser educada com eles, nem
covarde comigo mesma, a ponto de ter medo de ser eu, por causa das
agressões de Russell Ballard. Meu rosto, no entanto, por baixo da
maquiagem, que deve ter custado uns quinhentos dólares ao bolso do meu
pai, ainda doía. Minha alma doía. Tudo doía.
Ainda assim, algo continuava me inquietando à medida que os
segundos se passavam e eu permanecia calada, apenas aceitando tudo
aquilo, como uma bonequinha de porcelana. Eu deveria fazer alguma coisa,
ou ao menos pensar em dizer algo que os “assustasse” e que mostrasse que
eu não era aquela garota perfeita que eles, provavelmente, imaginavam que
eu fosse.
Pensa, Agatha, pensa.
— Não vai dar — De repente, falei. — Não vai dar para eu
acompanhar Louis a esse tour pela cidade — sorri meio irônica. — Não
tenho tempo. Estou cumprindo pena o dia inteiro. Sabem como é, né? — E
soltei uma risadinha falsa, tomando mais um gole do vinho branco e
pensando que essas informações pudessem afetá-los de alguma forma. Em
geral, homens ricos queriam uma mulher-troféu e não uma garota-
problema. — Problemas com a polícia.
— Ah, querida... — O velho, entretanto, riu, balançando a cabeça de
leve como se isso não fosse nada. — Todos temos problemas com a polícia.
Franzi o cenho.
Como assim “todos temos problemas com a polícia?”
Meu sorriso sumiu ao me dar conta de que a minha tentativa não
surtiu o efeito desejado.
Que saco.
O que esses caras tinham na cabeça? Nada espantava ou dava um
“chega-pra-lá” neles? Nem mesmo o fato de eu não ser a garota recatada
que eles pudessem querer?
— Por que não me passa o seu número? — Louis perguntou. Seus
olhos continuavam engolindo cada centímetro do meu corpo, mesmo que eu
estivesse apenas sentada. Ele não parava de reparar no decote do meu
vestido, no meu pescoço e na minha boca.
Cacete, isso só piorava.
— Não — repliquei, de pronto.
Simplesmente, escapou dos meus lábios, sem que eu pensasse nas
consequências.
Meu pai, entretanto, por puro instinto, colocou sua mão sobre a
minha.
— Eu mesmo passarei o contato da minha filha — E apertou minha
mão, como um sinal para que eu ficasse quieta, não falasse mais nada que
pudesse irritá-lo e apenas fizesse o que ele mandasse. — Assim, você
poderá ligar e trocar mensagem sempre que quiser, porque ela vai atender e
responder, não é, querida?
Argh, que inferno!
Não.
Não.
Não.
Mas, seus dedos apertaram ainda mais a minha mão, deixando bem
claro as consequências que eu poderia sofrer, caso negasse mais uma vez.
Droga.
— Sim.
Foi tudo o que eu consegui responder, extremamente decepcionada
comigo mesma por ser tão fraca.
— Então, façamos melhor... — Russell tornou a falar. — Troquem
logo os seus contatos. Assim não corre o risco de eu me esquecer de passar
o número dela — e, então, soltou uma risadinha divertida que, no fundo, eu
sabia que era sádica.
Ele era um monstro.
Estava mais do que claro, para mim, que Russell não queria me
colocar naquela situação apenas visando os benefícios financeiros que
ganharia nos negócios, mas também porque ele adorava, adorava, me
machucar de todas as formas, ainda que não fosse fisicamente.
Mesmo morrendo um milhão de vezes internamente, por estar
fazendo aquilo, tirei o celular da bolsa e entreguei ao bilionário filho da
puta de trinta anos. Trocamos os números, enfim. Meu contato já estava
com ele. E o seu comigo. Eu me sentia tão impotente que, mesmo que eu
fosse o poço da criatividade para me safar de momentos terríveis, naquele
instante, eu não conseguia pensar em nada além do fato de que eu estava
absolutamente fodida por ter que aguentá-lo durante essa tal temporada em
Las Vegas, que eu nem fazia ideia de quanto tempo duraria.
Suspirando em uma tentativa de não pirar completamente ali, deixei
o celular sobre a mesa e tomei mais um gole do vinho branco. Eu me iludia
com a ideia de que aquilo ajudasse a empurrar goela abaixo a minha
vontade de chorar por estar sendo obrigada a, literalmente, me vender e, a
qualquer momento, dar a minha boceta para um cara que eu não tinha o
menor interesse.
Repentinamente, no entanto, ainda em cima da mesa, notei o
momento em que a tela do celular acendeu. Foi tudo muito mais rápido do
que o meu raciocínio conseguia absorver. De súbito, meu coração acelerou
com uma lembrança. Uma lembrança recente e muito fresca na minha
mente. Como se eu estivesse revivendo aquilo, eu quis me animar cinco por
cento, mesmo em meio a tanta tensão.
Será que era ela de novo?
Enquanto eles conversavam sobre uma merda qualquer, que eu
sequer entendia porque não estava prestando atenção em mais nada, peguei
o celular, com um nervosismo quase empolgante, por mais confuso que isso
pudesse parecer. Era aquele nervosismo da época do colegial, quando você
sabia que a pessoa que você gostava estava se aproximando.
Que merda.
Eu ainda não conseguia entender a razão de estar me sentindo
assim em relação a ela.
Especialmente, depois da patada que ela me deu no carro.
“Que tipo de conversa acha que poderíamos ter, senhorita Ballard?
Droga.
Porém, sensação ruim mesmo foi o que eu senti quando vi que não
era uma mensagem sua. Era a porra de um torpedo da operadora telefônica.
Que saco. Rolei os olhos, balançando a cabeça em negativo para mim
mesma. Tão estúpida... Ultimamente, eu estava me tornando tão estúpida.
Era claro que Xena Scott não me mandaria mais nada. Aliás, por
que eu pensei mesmo que pudesse ser ela? Ou pior, por que eu quis que
fosse ela? Era muita imbecilidade minha. Lógico que tudo o que ela tinha
para me falar era só aquilo. Ela já tinha deixado bem clara a nossa
incompatibilidade de assuntos, assim como também já sabia que eu estava
bem.
Não havia motivos para entrar em contato de novo.
Era isso.
Não havia.
Suspirei, erguendo o queixo na ilusão de retomar a compostura.
Porém...
Por mais que eu não entendesse a razão de estar me sentindo
daquela maneira, estúpida por uma mulher que eu tinha conhecido há pouco
mais de uma semana e que, por acaso, era a mesma que tinha me prendido e
estava me fazendo passar por todas as desgraças na penitenciária,
subitamente eu me peguei refletindo sobre o inegável fato de que eu
gostaria muito de receber uma nova mensagem sua. Mentir, para mim
mesma, eu não podia. Na verdade, por mais maluco que esse pensamento
pudesse parecer, eu gostaria que, assim como ela me ajudou mais cedo, ela
também aparecesse naquele exato momento e me salvasse dali.
Zara
Agatha
Zara
Zara
Agatha
Agatha
— Beba — disse ele, ao dar partida no carro outra vez, depois de parar
em um Drive-Thru e comprar uma garrafinha d’água para mim.
Eu não estava prestando atenção em muitas coisas, para conseguir
dizer, ao certo, quanto tempo nós já estávamos dentro carro. Mas, devia ter
alguns minutos. Depois daquele primeiro susto do assalto, eu me sentia um
pouco mais calma, ainda que a minha cabeça não estivesse dentro daquele
carro, mas em qualquer parte da cidade onde Zara pudesse estar.
Com o rosto virado para a janela, apenas olhando o mundo lá fora,
enquanto Louis dirigia pelas ruas e avenidas de Las Vegas, eu imaginava,
por mais ridículo e sem noção que isso pudesse parecer, o quanto eu queria
estar com ela, e não com ele. O quanto eu desejava que fosse ela a me levar
para casa, e não ele. E o quanto eu, na certa, já estava me tornando maluca
por aquela mulher, sem nem saber o motivo.
Apesar do fato de que, naquele momento, eu fiquei absurdamente
em pânico com o cara me agarrando; depois de vê-la, eu só conseguia
pensar no quanto eu estava aliviada em ela ter aparecido ali, por mim, e
também no tanto que ela era capaz de ficar gostosa em qualquer situação,
principalmente naquelas que agia como uma super-heroína foda pra caralho.
Seria errado ou sem-noção, da minha parte, reparar no monumento
que ela era, em uma situação tão séria como aquela? Sim, talvez sim, mas
eu não pude evitar. Não pude evitar nem naquela calçada, nem agora
dentro do carro. Era só a Zara que estava nos meus pensamentos.
Infelizmente ou felizmente.
— Agatha... Beba a água... — disse ele novamente, me acordando
dos devaneios. — Você vai se sentir bem melhor. Confie no que eu digo.
Suspirei, tentando recobrar a minha consciência para “o aqui e o
agora”, apesar de não estar com a menor vontade de olhar no rosto daquele
cara. Aliás, eu só estava dentro daquele carro, porque ele foi esperto o
bastante para me pegar em um momento muito conveniente. Caso contrário,
eu teria dado um jeito de sumir das suas vistas.
Em silêncio, girei a tampa da garrafa e tomei alguns goles. Calada,
eu permaneci.
Ele, no entanto...
— Imagino o quanto deve ter sido assustador passar por essa
tentativa de assalto — comentou. — Você não deveria andar assim sozinha
pelas ruas, principalmente nesse caminho da penitenciária.
Sorri pequeno e sem humor, ainda com o rosto virado na direção da
janela ao meu lado.
— É? Então, fala isso para o meu pai. Foi ele que me tirou tudo. O
dinheiro, o carro, os motoristas.
— E por que ele fez isso? — tornou a perguntar.
Rolei os olhos brevemente. Que cara chato. Ele estava
descaradamente tentando algum diálogo, quando era, de fato, perceptível
que eu não estava a fim de conversar. Além do mais, eu tinha certeza de que
ele já sabia a resposta a respeito de tudo da minha vida, porque o meu pai
provavelmente fez questão de passar a minha ficha inteirinha.
Ainda assim, no entanto, fiz um esforço para respondê-lo.
— Uma forma estúpida de castigo.
Me limitei apenas a dizer isso.
Ele, porém, continuou:
— Sério? Por causa desse problema com a polícia? Aliás, eu ainda
não entendi bem isso. Como uma garota tão bonita e tão educada, como
você, se envolveu em problemas com a polícia? — soltou uma risadinha.
Ai, pelo amor de Deus, bonita e educada?
Bonita sim. Mas, educada?
O cara forçava a barra. Não apenas com esses elogios nada a ver,
mas também com a tentativa de uma conversa que eu não queria ter. Aliás,
desde antes de vê-lo, naquele jantar, eu já não queria papo algum com ele.
E, bem, eu nunca tive problema em ser sincera demais sobre os meus
pensamentos e sentimentos, exceto quando o meu pai e a sua mão pesada
estavam por perto. Porém, levando em consideração que o velho e a sua
brutalidade não estavam ali para arrancar o meu couro, aproveitei para não
usar filtros e dizer tudo exatamente do jeitinho que eu mais gostava.
O jeitinho Agatha Ballard de ser.
— Louis, se você não percebeu, o que eu acho muito difícil, eu não
estou a fim de conversar, especialmente se uma das pessoas do diálogo for
você. Aliás, caso não tenha ficado claro, eu não tenho o menor interesse em
você, cara. Sério. E, olha só, você é bonitão, heim? Poderia encontrar
qualquer outra garota que cairia aos seus pés. Aqui mesmo, em Las Vegas,
têm várias. Então, vai fundo, cara. E vaza de perto de mim.
— Quem precisa de afeição quando se tem tanto ódio? — Ele sorriu,
soltando uma breve risadinha. — Agatha, basta você me dar uma chance e
eu tenho certeza de que consigo te conquistar. Só preciso de uma chance —
completou, colocando a sua mão livre do volante na minha coxa, e me
encarou com aquele mesmo olhar do jantar da outra noite, como se pudesse
tirar a minha roupa bem ali.
Tava demorando... Eu realmente estava estranhando os seus olhos
predatórios não terem aparecido até então. Mas, veja só, que novidade! Ali
estavam eles!
— A última coisa que você vai conseguir é me conquistar,
principalmente se continuar olhando para os meus peitos desse jeito e
pegando em mim com essa mão boba, argh... — torci o nariz, enojada, e lhe
dei um tapinha no braço, fazendo com que ele afastasse suas garras dali. —
Sério, cara, isso é ridículo. Você pode ter a garota que quiser aqui. Mas,
essa garota não sou eu. Então, cai fora. E trata logo de empurrar o pé no
acelerador, porque a minha casa tá bem pertinho daqui e eu tô vendo você
dirigir uma Bugatti como se fosse um Fusca!
Soltando mais uma risadinha e balançando de leve a cabeça, como
se todas aquelas palavras não o atingissem de forma alguma e apenas o
divertissem, ele acelerou o carro, a ponto do meu corpo sentir a pressão e
das minhas costas afundarem mais no banco. Melhor assim. Pelo menos, ele
era bom em obedecer a certas coisas.
Felizmente, nós já estávamos quase chegando. Eu conhecia muito
bem aquele caminho, para saber que ele não estava me levando para outro
lugar, a não ser minha casinha. Não suportaria mais passar tanto tempo em
sua companhia, na verdade. Quando estávamos dobrando na minha rua,
porém, ele disse, aparentemente empolgado:
— Você é jogo duro, heim? Eu adoro isso.
Adora?
Puta que pariu, consegui um perturbado para ficar no meu pé.
Dessa vez, não pude continuar olhando para a janela. Virei o rosto
em sua direção e o encarei firmemente.
— Isso não é um jogo, Louis. Eu não jogo desse jeito. Só estou
sendo sincera e espero que siga seu rumo, procurando outra garota para
transar, nesta sua temporada em Las Vegas.
Ele, entretanto, ainda com aquele olhar sagaz, redarguiu:
— Agatha, querida, tudo isso que você está me falando, eu já estou
cansado de saber. De onde eu vim, eu posso ter a mulher que eu quiser.
Todas realmente caem aos meus pés. Talvez, pela minha beleza. Talvez,
pelo meu dinheiro. Enfim... A questão aqui é que, no momento, eu estou
interessado em você. E, pessoalmente, a dificuldade, para mim, torna tudo
mais interessante.
Porra, eu merecia mesmo...
— Então, você é doente, cara — falei sinceramente, sem medo. —
Porque, tipo assim, eu não faço joguinhos. Quando eu quero uma pessoa, eu
quero e demonstro. Quando eu não quero, não quero e demonstro também.
Por exemplo, agora eu tô demonstrando que você é um pé no saco que não
me dá um pingo de tesão. E o certo mesmo é a gente querer quem é
recíproco. Eu não tô sendo nenhum pouco recíproca com você.
— Isso porque você ainda não se deu a oportunidade de me
conhecer melhor — retrucou ele, ao estacionar em frente à minha casa.
Finalmente, graças a Deus.
— E nem vou dar — rolando os olhos, falei, ao pegar no trinco da
porta para abrir. — Não preciso disso para saber que você não tem nada do
que eu quero. Mas, escute o que eu digo. Las Vegas está abarrotada de
mulheres. Vai que é tua, garoto.
Ele soltou uma risadinha.
No fundo, era como se, tudo o que dizia, entrasse por um ouvido e
saísse pelo outro.
— Não vai nem me convidar para entrar?
Oi?
Ergui uma das sobrancelhas, franzindo o cenho e encarando-o com
obviedade.
— É claro que não. Estou morta de cansada do dia de trabalho e não
pretendo fazer sala para você. Então, valeu pela carona e adeus!
Foi tudo o que eu disse segundos antes de pular para fora e bater
com a porta do carro.
Ainda senti meu celular vibrar dentro da bolsa, em uma mensagem.
Quando olhei...
Era ele.
Ah, vai pra puta que pariu.
O típico macho que não sabe levar um fora.
Respirando fundo, por ter conseguido sair do carro e agora poder
sentir o ar puro, caminhei a passos rápidos e largos, até passar pelos portões
que me foram abertos por um dos funcionários. Nossa, aquele cara me
deixava mais exausta do que eu já estava, com as suas insistências sobre
algo, que estava claro e cristalino, que não era da minha vontade. Era um
saco ter que lidar com tudo o que já estava acontecendo e agora, como se
não bastasse, ainda precisar ter paciência o bastante para não cometer
algum crime contra Louis.
Meu pai e seus presentinhos sempre tão desagradáveis para mim.
Entrei em casa absolutamente cansada. Olhei de um lado para o
outro, mas, fora os demais empregados, que transitavam de um lado para o
outro, nos seus afazeres, não vi sinal da Evangeline. Foi quando eu subi as
escadas, porém, quase marchando de tão pesados que estavam os meus pés
- eles refletiam o quanto eu estava puta -, que eu a encontrei no meu quarto.
Ela estava trocando a colcha da minha cama king size por uma limpinha e
cheirosa, assim como também as fronhas dos cinquenta travesseiros que eu
colocava em cima.
Maravilhosa, como sempre.
No entanto, ao me encarar displicentemente, seu semblante calmo se
transformou em atento, em menos de meio segundo, ao perceber o meu
estado de puro estresse.
— Agui, querida... — franziu o cenho. — Você está com uma cara...
O que aconteceu?
Na verdade, o que não aconteceu, não é? Porque parecia que, nos
últimos tempos, acontecia de tudo na minha vida.
Respirei fundo, porém, tentando recuperar o fôlego.
— Além do fato de agora eu precisar lidar com um macho chato do
caralho, como se a minha vida não já estivesse um caos completo, eu quase
fui assaltada hoje, no caminho do ponto de ônibus — despejei todas as
palavras rapidamente, quase na mesma velocidade com a qual a raiva se
dissipava pelo meu corpo. — Meu pai está em casa para que eu possa
vomitar todo o meu desprazer nele sobre a sua política de castigo ordinária?
— Oh, querida! — arregalou os olhos. — Assaltada?! — E,
preocupada, se aproximou ligeiro, pegando no meu rosto, nos meus braços,
como se estivesse verificando que não faltava nenhum pedaço de mim. —
Seu pai não está em casa, ma-mas você está bem, meu anjo? Esse crápula
não fez nada pior contra você, além da tentativa de assalto, não é? Ele
conseguiu levar algo?
Suspirei.
— Eu estou bem, Eva. Eu estou bem — disse eu, um pouco menos
agitada, para que ela ficasse calma. — Pode ficar tranquila. Ele tentou levar
a minha bolsa, mas... — Um repentino e quase inconsciente sorriso bobo e
estúpido surgiu no meu rosto. — A policial que me supervisiona apareceu...
— baixei a cabeça, balançando de leve, enquanto me lembrava feito uma
idiota. — Ela chegou lá e me salvou... — continuei sorrindo, parecendo
uma garotinha estúpida e sonhadora.
Vi, porém, quando Eva, agora mais sossegada por saber que nada
grave tinha acontecido comigo, se afastou, e encarando-me com um olhar
meio suspeito, sorriu e perguntou:
— Que carinha é essa, heim, Agui?
Foi aí que eu subitamente acordei.
Droga, ela percebeu que eu estava agindo como uma imbecil.
— Que... Que o quê? — E, sem querer, tossi, me engasgando com a
minha própria saliva, por cair na real do que eu estava fazendo ali, na frente
dela. Eu até poderia parecer uma idiota, quando pensava na Zara, mas essa
vergonha era melhor que eu evitasse passar na frente da Evangeline. — Se-
Sei de nada não, Eva... Eu tô normal — E me fiz de desentendida.
— Hum... Não sei não, heim... Você falou nessa mulher e o seu rosto
se iluminou — Ainda sorrindo, ela continuou. — Não conheço você de
hoje, minha querida. E sei que, além dos rapazes, você também gosta das
garotas. Talvez, delas até mais. Tessa que o diga... — soltou uma risadinha.
Ah, meu Deus, eu tinha certeza de que ela já nos ouviu transando.
Até porque Tessa e eu não tínhamos muito juízo quando fazíamos sexo. Que
vergonha. Bom, agora eu sentia vergonha, mas, na hora do ato, me
esquecia completamente disso.
— Ai, Eva, para! — exclamei, quase vermelha. Não exatamente
pela lembrança das transas barulhentas com Tessa, mas, sim, pelo que ela
estava insinuando a meu respeito com Zara. — Eu só fiquei feliz mesmo
por ela ter me ajudado. Só isso.
— Unhum... — balançou de leve a cabeça, me analisando. — Mas,
seu sorriso me pareceu falar muitas outras coisas... Ela é bonita?
Uma gata...!
Isso, por pouco, não escapuliu da minha boca. Arqueei as
sobrancelhas, no entanto, quando percebi isso, e, então, travei o elogio,
rapidamente retrucando:
— Eva, deixa disso! Ela é aquela chata que me prendeu! Enfim, eu
jamais me interessaria... — tentei dar de ombros, mesmo sabendo, lá no
fundo, que dentre todas as minhas mentiras, aquela, sem dúvidas, poderia
ser a maior.
— Se você está dizendo... — sorriu, ainda meio desconfiada. —
Bom, vou descer. Preciso ir lá na cozinha, para ver como está o andamento
do jantar. Mas, se precisar de algo, me chame, querida.
Suspirei um pouquinho mais aliviada por ela não insistir naquilo.
— Tá bom — E indiquei um breve sim com a cabeça. — Obrigada,
Eva.
No entanto, quando ela saiu e me deixou ali sozinha, meus
fantasmas apareceram para me perturbar. Mesmo que eu não quisesse,
depois daquela conversa com Evangeline, todas as lembranças vieram à
tona. Zara chegando repentinamente para me salvar, ela sendo fodona
enquanto prendia o cara, seu olhar de preocupação comigo e a vontade
quase estampada em seu rosto, de me fazer companhia, mesmo que eu
tivesse me dado a alternativa de ir embora com Louis.
Droga.
A mulher estava me deixando maluca.
Ainda tentei me desligar daquele bombardeio de pensamentos, para,
ao menos, conseguir tomar banho e trocar de roupa na paz e na
tranquilidade. Mas, inferno. Não dava. Eu não conseguia. Zara entrou na
minha cabeça de um jeito sem igual. Tão intenso e tão forte, que uma
sensação de inquietação não queria me largar. Uma inquietação que me
levava a querer fazer algo que eu não deveria, mas que meu subconsciente
ficava o tempo inteiro soprando nos meus ouvidos.
“Vai...
...Manda uma mensagem pra ela, agradecendo...
Agora, você tem o número dela...
...E vocês nem se falaram depois do que aconteceu.”
Era isso o que a minha cabeça ficava martelando e repetindo em um
looping infinito. Tão irritante e inquietante, mas, ao mesmo tempo, tão
irresistível. Bufei comigo mesma. A verdade era que, quando o assunto era
mulher, em geral, sempre fui muito idiota. Porém, com a Zara, essa idiotice
parecia se potencializar ao nível mil.
Porra, por que eu tinha que gostar tanto de boceta?
Fui e voltei, caminhando de um lado para o outro do quarto,
enquanto tentava me controlar. Ainda contei até dez. Ou melhor, até cem.
Mas... Minhas forças para evitar aquilo eram fracas demais. Peguei meu
celular, o mesmo que, por causa dela, ainda estava comigo, e abri nas
mensagens. Com o coração faltando sair pela boca, em pura antecipação,
digitei.
Enviei.
E, simplesmente, larguei o celular em cima da cama, bem longe de
mim, ofegante, nervosa. Meu Deus. Ela nem responderia. Com certeza, não
responderia. Ou pior, me acharia louca por estar incomodando o seu
momento de descanso em casa.
Ai, Agatha, como você é tola.
Será que dava tempo de apagar a mensagem, sem que ela visse?
Ainda caminhei de um lado para o outro, novamente, esfregando
uma das mãos na testa, como se isso pudesse me fazer pensar melhor, até
que, enfim, decidi pegar o celular para tentar apagar a mensagem. Se é que
ainda desse tempo de fazer isso. Porém, assim que o segurei entre os meus
dedos, ele vibrou, e, então, seu nome salvo pipocou bem na frente dos meus
olhos.
“Que bom que está bem e que nada pior aconteceu. É perigoso que
volte sozinha para casa, caminhando nos arredores da penitenciária. A
minha oferta de carona ainda está de pé. Posso lhe deixar em casa, depois
do trabalho, todos os dias. Se você quiser, claro.”
O quê?!
Todos os dias?
Meu queixo bateu lá no chão e, mais uma vez, eu quis sair correndo
pelo quarto, que nem uma doida, por mais que eu não soubesse de onde
estava vindo essa súbita empolgação, pela sua oferta, e esse tremendo
interesse na policial Scott.
Caralho.
Que diabos estava acontecendo?
Respira, mulher.
Aaaahhhh, que saco! Por que ela não poderia me mandar mais
coisas? Sei lá, qualquer coisa!
Droga.
Suspirei.
Tudo bem, tudo bem. Eu queria algo que nem mesmo eu estava
fazendo.
Ainda assim, meus dedinhos digitaram algo, que saltava do meu
peito, no calor do momento, por mais que aquilo pudesse parecer íntimo
demais e pegasse mal de alguma forma.
“Beijo, Agatha.”
✽✽✽
Zara
Sem reação.
Foi assim que eu fiquei não somente pela surpresa da sua chegada,
enquanto eu usava apenas a calça da farda e um sutiã, mas, principalmente,
pela maneira como ela me encarou. Quase indescritível para mim. E
surpreendente também. Embora eu sentisse que ela estava tentando
disfarçar ou tornar aquilo um pouco menos notório, seus olhos pareciam
sinceros demais. Mais verdadeiros do que deveriam. E não carregavam
apenas o choque pelo que aconteceu. Longe disso, na verdade.
Era esquisito, estranho demais constatar isso, mas eu já era
experimente o suficiente para saber que aquelas orbes azuis e intensas
demonstravam admiração, fascínio e até... Desejo. Pior mesmo, no entanto,
foram as reações que, reconhecer isso, me causou. Sem qualquer lógica por
trás, minha mente viajou subitamente, por alguns segundos, me levando a
lugares absurdos, onde poderia existir somente eu e ela, sem calças, sem
sutiãs, sem nada. Um calor se espalhou em um ponto específico entre as
minhas pernas.
A umidade melou bem ali.
E, então, ao me dar conta disso, eu acordei.
Droga, Zara. Droga, droga, droga.
Não caia nesse erro de novo!
Ligeiro, peguei minha roupa e, meio desconcertada, coloquei-a de
qualquer jeito na frente do meu corpo. Ao mesmo tempo, vi que ela
começou a piscar os olhos repetidas vezes, como se estivesse caindo em si.
E, depois disso, não demorou a falar:
— Ai, me desculpa! — arqueou as sobrancelhas, levando as mãos à
testa, ao peito, a todos os lugares, enquanto, claramente inquieta e nervosa,
me dava as costas. — E-Eu só vim pegar um pano pa-para limpar o chão e...
— deixou a frase solta no ar, parecendo ter se perdido entre as palavras.
— É-É... Tu-Tudo bem... — tentei falar. — Relaxa, está tudo sob
controle — E, simplesmente, voei para dentro de um dos boxers, fechando a
porta e sentindo gotículas de pura tensão já se formarem sobre a minha
testa.
Ao entrar, larguei a roupa em cima da tampa do vaso e fechei os
olhos, me encostando à parede e respirando fundo. Porra, Zara. Não, não
está nada bem. Não está tudo sob controle. Você está ficando perturbada
por uma garota da penitenciária outra vez. Merda. Puxando o máximo de
ar para os meus pulmões, que eu conseguia, passei as mãos no rosto,
limpando o suor que ainda molhava por ali.
Tudo estava acontecendo de novo.
Tudo.
Meu Deus.
Senti meu coração acelerar, a ponto de quase saltar do peito.
Porém, mesmo que tudo dentro de mim estivesse uma bagunça entre
o presente e o passado; ou pior, uma sucessão contínua de pensamentos e
sentimentos de antes e de agora, que ganhavam vida e força; eu tentei, de
alguma forma, me acalmar. Não pira, Zara. Eu não podia enlouquecer bem
ali.
O problema não foi ela me ver só de sutiã. Óbvio que não. O
problema foram as reações que isso despertou em mim e a sequência
desencadeada de tudo aquilo que eu tentei reprimir dentro de mim, desde o
primeiro dia que reparei no movimento dos seus malditos quadris bem
desenhados.
Apesar disso, tentei me concentrar e, respirando fundo pela
centésima vez, falei, fazendo o máximo de força possível para parecer
natural:
— Ainda está aí, senhorita Ballard? — Espremi os olhos, enquanto
procurava ajustar o tom de voz. — Precisa de alguma coisa?
A resposta demorou alguns instantes. Até pensei que ela tivesse
saído dali sem que eu me desse conta. Franzi o cenho de leve, achando
estranho. Porém, quando menos esperei, ela respondeu, ainda meio
atrapalhada:
— Si-sim, nã-não... — E, mesmo dentro da cabine, ouvi quando ela
suspirou. Continuava nervosa. Esse nervosismo, entretanto, não me parecia
normal. Mesmo que eu fosse uma espécie de “chefe” para ela, mulheres não
costumavam agir assim quando encaravam outras sem roupa. Exceto
quando... Pudesse existir algum sentimento. — Quero dizer, ainda estou
aqui, mas já estou indo. Já peguei o pano que eu precisava.
Depois disso, como em um piscar de olhos, ouvi a porta do banheiro
abrir e fechar.
Ela tinha caído fora.
Suspirei, tentando colocar a minha cabeça no lugar.
Uma tentativa praticamente em vão, porque, a cada segundo, minha
memória trazia de volta os seus olhos despindo o que já estava quase nu.
Azuis, lindos e tão intensos. Aquele olhar... Aquele olhar, que ela me deu,
era de quem gostava do que viu. Eu sabia que sim. Eu conhecia. E mais do
que isso: era também de quem gostava de mulher.
Merda.
Essa garota ia acabar comigo.
Nunca passou pela minha cabeça que Agatha Ballard gostava de
mulheres. Será que eu estava cega demais ou exacerbadamente preocupada
com os desejos que eu deveria evitar, para que eu não percebesse isso?
Agatha curtia mesmo mulheres? Suspirei. Merda. Essa questão não deveria
nem ser uma pauta minha, um ponto de interesse ou de dúvida. Também
havia chances de eu estar enganada. E, honestamente, eu pedia aos céus que
estivesse.
Deus sabe o quão pouco eu poderia resistir, se uma garota, como
aquela, fosse para cima de mim.
Embora eu tivesse odiado o que Alexa me falou outro dia, meu
passado realmente me condenava. O que aconteceu, minutos atrás, foi capaz
de tirar do lugar sentimentos e lembranças que tentei, durante anos, deixar
guardados e escondidos nas gavetas mais escondidas do meu coração e da
minha memória.
Haven Saunders.
Não. Depois de tanto tempo não existiam mais sentimentos por ela
dentro de mim, a não ser aquela culpa fodida, que eu ainda carregava, por
ter feito o que eu fiz com ela. Ou pior, por não ter feito o que deveria.
Covarde.
Eu fui covarde.
E, definitivamente, eu não poderia agir assim com outra garota de
novo.
As lembranças das consequências daquele relacionamento,
entretanto, ainda estavam vivas na minha memória. Era o que me assustava.
Eu não queria que tudo aquilo se repetisse, muito embora, dentro de mim,
algo me dissesse que tudo aquilo estava na iminência de voltar acontecer.
Tudo de novo. Da mesma maneira. Mas, com outra garota.
Droga.
Não.
Zara, acabe já com esses pensamentos.
Respirei fundo, tirando a boina e passando as mãos nos cabelos. O
suor escorria pelo meu corpo, debaixo da calça. Eu só não sabia se era por
causa da alta temperatura dentro do banheiro ou dentro de mim. Eu
precisava sair dali e, quem sabe, respirar um pouco de ar puro, tentar
acalmar o meu coração e parar de pensar tanta besteira.
Vesti a roupa, mesmo ainda meio suja, porque não tinha conseguido
limpar completamente, molhei o rosto na pia banheiro, com a ilusão de que
isso pudesse me ajudar a voltar ao normal, e saí, caminhando na direção do
refeitório. Ele ainda estava cheio. Todo mundo continuava ali, por causa do
aniversário. Mas, eu não voltei da mesma maneira que saí. Eu sabia que
não.
Algo dentro de mim estava fora do lugar.
Agatha Ballard tinha tirado alguma coisa do canto.
Suspirei. Tensa. Eu ainda me sentia tensa. Especialmente quando os
meus olhos recaíram sobre ela. Agora, esfregando e limpando o chão no
exato local onde tinha caído meu copo de refrigerante e meu pedaço de
bolo. Tão linda. Tão absurdamente linda, mesmo vestindo aquela farda da
limpeza e revirando os olhos por não gostar daquele trabalho.
Mesmo que eu não quisesse e tentasse evitar a qualquer custo que a
minha mente me levasse para os piores e mais absurdos lugares onde eu
poderia estar, eu não pude evitar. Talvez olhar para ela estivesse se tornando
um gatilho muito mais forte do que a minha razão. Em poucos instantes,
enquanto o meu corpo estava ali no meio daquelas pessoas, a minha cabeça
e a minha alma já tinham viajado de volta ao banheiro, numa realidade
paralela, onde Agatha não somente olhava para os meus peitos cobertos por
um sutiã, mas o tirava e colocava a sua boca na minha.
Ai, caralho.
Isso estava piorando.
Repreendi a mim mesma, em um pequeno e baixo palavrão, para
que ninguém escutasse.
Porém...
— Está tudo bem?
Alguém falou bem ao meu lado.
Quando virei o meu rosto... Alexa.
Pigarreei a garganta, tentando voltar ao normal pela milésima vez,
somente naquela tarde, e não fazer parecer que eu estava nutrindo
pensamentos impróprios, há dois segundos, justo pela garota que ela tinha
dito para eu tomar cuidado.
— Tá, tá. Tudo bem.
E puxei o ar, bruscamente, desviando o olhar do seu.
— Não é o que eu vejo... — replicou, meio desconfiada. — Parece
preocupada, Zara. Quer conversar sobre algo? Eu sou toda ouvidos — e
sorriu.
Deus me defenda.
Ela jamais poderia saber o que acontecia dentro de mim, por aquela
garota.
— Está tudo bem, Alexa — encarei-a novamente, tentando passar
segurança. — É sério.
— Hum... — A morena, entretanto, continuou analisando o meu
rosto. No fundo, isso me deixava meio inquieta. Não queria que percebesse
qualquer coisa além do meu humor esquisito. — Acho que o seu problema
é lazer, então.
Lazer?
Enruguei a testa.
— Como assim?
Ela sorriu, astuciosa, e eu poderia jurar que, se não estivéssemos na
frente dos outros funcionários, ela, sem cerimônias, me envolveria com os
seus braços.
— Você está trabalhando muito... Especialmente agora, com essa
garota nova — percebi um leve traço de desagrado em sua boca, quando
pronunciou “garota nova”. — Precisa se divertir mais. Relaxar. E, bom, faz
tempo que você me enrola para sairmos — soltou uma pequena risadinha.
— Que tal irmos hoje a um pub? Tudo por minha conta. É um dos melhores
da cidade. As bebidas de lá são ótimas, a música é boa e eles até têm um
espaço reservado para casais — ergueu uma das sobrancelhas, sutilmente
provocativa.
Espaço reservado para casais?
Alexa não mencionou indiretamente Agatha por acaso. Eu sabia que
não. Ela era esperta e queria me atingir de alguma forma, ou me convencer
da forma mais baixa possível. O problema era que não conseguiria tão
facilmente. Não ela. Algo me dizia que, agora, apenas uma mulher seria
capaz de me afetar de alguma maneira. E era justamente aquela loira que
esfregava o chão.
Eu já ia tentando negar o convite, quando...
— Olha só, Alexa, nós podemos sim marcar de sair qualquer dia
desses, mas... — Agatha se levantou do chão e, por alguma razão, seu olhar
mirou bem na minha direção. Olhos tão azuis e intensos. Eles eram intensos
naturalmente, sem que ela precisasse se esforçar. E foram esses mesmos
olhos que, por um milésimo de segundo, me carregaram de volta ao
banheiro e me fizeram reviver o que há pouco aconteceu. Seu semblante de
desejo. Minha boceta molhada. Porra, porra, porra. Baixei a cabeça,
balançando de leve e desviando o olhar do seu. A menina ia pirar minha
cabeça. Respirando fundo, tornei a encarar a morena. — Quer saber, Alexa?
Vamos. Vamos hoje. Acho que vai ser... — Bom? Não... Talvez “bom”
ainda não fosse a palavras. — Acho que vai ser necessário — completei.
Necessário para eu sair da bolha “Agatha Ballard”.
Era provável que eu realmente precisasse disso para me distrair.
Uma noite com Alexa.
Agatha
✽✽✽
Depois que eu dei meu “ok”, Zara foi pegar o carro. E não demorou
muito para que já estivéssemos na estrada, rumo à minha casa. A questão
era que Zara permaneceu tão calada e séria quanto estava na penitenciária.
Eu sentia, e quase podia tocar, aqueles muros que ela mesma parecia ter
construído ao seu redor. Impenetráveis. Por mais que eu quisesse acreditar
que Agatha Ballard não era tão ilustre a esse ponto, nada tirava da minha
cabeça que isso começou desde o momento constrangedor no banheiro.
Bom, naquele dia, depois do hospital, ela também esteve bem calada
durante praticamente todo o caminho, assim como permaneceu
relativamente distante, durante os procedimentos médicos. Ficou a apenas
alguns metros suficientes para saber que eu ainda estava viva. Talvez essa
fosse uma característica sua, ou sei lá o quê. Se realmente fosse, seria uma
característica muito estranha por sinal. Entretanto, mesmo que eu tentasse
me convencer de que aquilo não passava de uma estúpida impressão minha,
algo, dentro de mim, me dizia que eu tinha toda a razão sobre o motivo ter
sido o maldito banheiro.
Os longos minutos de silêncio, inutilmente desconfortáveis, que
estávamos passando dentro daquele carro eram ainda piores do que aqueles
do dia do hospital. Muito piores, pelo menos para mim. Scott parecia tão
dentro de si que eu sentia como se a minha presença e nada fossem a
mesma coisa. Sua cabeça estava distante, eu sabia que estava, por mais que
o seu corpo permanecesse tenso e a sua postura rígida. Ali, a única coisa
que eu ouvia era o barulho do motor e o pequeno som do rádio ao fundo. A
música lenta e calma era inversamente proporcional à energia caótica dentro
de mim.
E eu juro, eu juro que tentei não me importar. Eu juro que tentei não
me afetar com isso, nem dar à situação um significado maior do que
merecia. Tudo o que eu desejava era que o meu corpo exalasse apenas
indiferença. Mas, eu não consegui. Era uma merda. Lá pelas tantas, quando
a inquietação me dominou e eu percebi que nós já estávamos quase
chegando na minha casa, minha matraca não aguentou ficar quieta por mais
nem um segundo. Eu tive que falar, sem papas na língua, ou melhor
despejar a dúvida que estupidamente me corria por dentro:
— Você tá esquisita assim porque eu tirei sua privacidade no
banheiro? — Coração quase na mão, mesmo que isso fosse irracional
demais. Tentei me acalmar, mas não deu. Eu estava me tornando mais
imbecil do que imaginava. — Olha, me desculpa, mas... — E, a partir
daqui, eu desatei a falar. Talvez como um reflexo da tensão que eu sentia.
Uma espécie de descarga. — Não foi de propósito, eu juro! O refrigerante e
o bolo caíram, aí a Westphalen me pediu para pegar um pano e limpar, aí eu
fui atrás do pano e me lembrei que tinha deixado um no banheiro das
funcionárias, aí eu abri a porta de lá e você...
— Agatha... Tudo bem. — Repentinamente, ela me interrompeu,
antes que eu pudesse continuar a minha sessão de descarrego. E, bom, era
impossível não parar quando ela me chamava pelo meu primeiro nome, por
mais idiota que isso fosse. Virei o rosto, encarando-a mais atentamente do
que deveria. — Está tudo bem. Eu sei que aquilo foi só uma causalidade.
Pode ficar tranquila. Não há problema algum nisso.
E, então, se calou novamente, continuando a olhar para frente.
Sua postura firme e tensa ainda estava ali. Eu sentia. Eu podia quase
tocar.
— Hum... Te-Tem certeza? — Meu Deus, por acaso, eu estava
gaguejando por causa daquela mulher? Que merda. Pigarreei a garganta,
tentando empinar o nariz e fazendo um esforço absurdo para não tremer na
base enquanto falava a próxima frase. Porque eu sabia que a próxima frase
era muito além do que eu imaginava que poderia dizê-la. — Bom, eu me
lembro que você me falou, naquele dia, que eu poderia conversar com você
sempre que eu quisesse. Então... — suspirei, ainda tentando manter o nariz
em pé, por mais que eu estivesse falhando miseravelmente nisso. — Então,
pode se sentir à vontade para conversar comigo também. Se quiser, claro.
Porra, eu nem acreditava que disse isso.
Ou pior: talvez eu só tivesse dito isso porque, no fundo, eu sabia que
ela jamais falaria sobre qualquer coisa pessoal comigo.
E a prova disso foram os minutos que transcorreram depois que eu
pronunciei a última palavra. Scott permaneceu calada, com o rosto virado
para frente, enquanto dirigia como se eu não tivesse dito nada. Seu rosto
impassível e seu olhar indiferente só me davam a certeza de que a tolice
parecia ter se instalado na minha vida e não queria mais sair.
Você é tão tola, Agatha.
Ruas passaram, avenidas ficaram para trás. E nenhuma resposta ela
me deu.
Porém, foi quando ela dobrou na rua da minha casa que seus lábios
sibilaram, meio baixo, algo como:
— Você já sentiu muita vontade de fazer alguma coisa, mesmo
sabendo que não deveria?
Cada centímetro da minha pele entrou em puro estado de alerta.
Todos os meus pelinhos se eriçaram, mesmo que não entendesse a razão
disso. Ela tinha falado algo. Zara Scott tinha me dito algo que parecia mais
profundo do que o problema dos ralos entupidos nos banheiros. Aquilo, de
alguma forma, pareceu pessoal. Subitamente, senti uma vontade imbecil de
sorrir, quase incrédula.
— Se eu já senti vontade de fazer algo, mesmo sabendo que não
deveria?
Tornei a perguntar, apenas para confirmar se os meus ouvidos
tinham escutado direito. Zara apenas balançou um breve sim com a cabeça,
enquanto passava a marcha, naquela que talvez fosse a última vez, antes de
eu ir embora. Engoli seco. Não foi fruto da minha imaginação. Ela
realmente estava puxando algum diálogo verdadeiro comigo, pela primeira
vez. E, bem, por mais que racionalmente eu não tivesse motivos para me
empolgar com isso, algo, dentro de mim, não quis perder essa oportunidade.
Sorri de leve, mesmo sem querer, e disse:
— Eu geralmente faço o que não deveria fazer. Bom, foi isso o que
me levou àquela penitenciária — E me permiti soltar uma breve e quase
imperceptível brincadeira.
Zara, porém, estacionando o carro em frente à minha casa, virou o
rosto para mim e perguntou novamente. Seu rosto continuava sério.
— Mesmo que isso custasse o seu emprego?
Foi aí que o meu sutil sorriso sumiu do rosto. Franzi o cenho.
“Mesmo que isso custasse o seu emprego”?
Suspirei, quando meu subconsciente soprou algo em meus ouvidos.
Mesmo que eu não soubesse o significado por trás daquilo, percebi que
aquelas perguntas poderiam ser mais sérias do que eu imaginava.
— Como assim “emprego”?
Ainda tentei ir um pouco mais a fundo, para entender aquilo, porém
Zara desceu seus olhos na direção certa da minha boca e se demorou ali por
mais tempo do que parecia realidade. Meu peito bateu forte, como numa
reação inconsciente. Suas íris escuras passearam pelos meus lábios, mesmo
que a certa distância. E, então, quando pensei que ela fosse me falar algo a
respeito disso, subitamente acordou.
Balançou a cabeça de repente, suspirando e piscando os olhos.
Passou uma das mãos no rosto, meio inquieta. Eu me preocupei. De alguma
forma, me preocupei. Algo dentro de mim também se remexeu. Talvez o
coração. E, então, ela falou:
— Nada, senhorita Ballard... Nada. Esqueça o que eu disse. Foi só...
— E sorriu de leve, tentando disfarçar, enquanto se perdia nas palavras. —
Foi só um pequeno devaneio meu. Bobagem. Tenha uma boa noite.
Já foi logo se despedindo.
Ou melhor, indiretamente me colocando para fora.
— Mas... — Ainda tentei falar.
Porém...
— Tenha uma boa noite, senhorita Ballard — Mais incisiva e mais
formalmente, ela tornou a dizer. Sua séria e frígida postura já estava ali
outra vez.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, quase chateada por ela me
entregar um pouco daquilo e depois retroceder todos os passos. Claro que
ela não tinha obrigação alguma de me falar absolutamente nada. Mas, eu
ainda senti. Senti tudo o que não deveria sentir, inclusive uma frustração
idiota por me empolgar em ter um diálogo com alguém que claramente não
tinha interesse nisso.
Balancei a cabeça de leve e, abrindo o trinco da porta, apenas disse:
— Obrigada pela carona, policial Scott. Boa noite.
E saí, caminhando para dentro de casa, com toda a carga de tensão
(ou de tesão) que apenas Zara Scott conseguia depositar em mim.
Aquela mulher ainda ia pirar minha cabeça.
Sua boca em mim
Agatha
Zara
Agatha
Zara
Agatha
Zara
✽✽✽
✽✽✽
Zara
Zara
Agatha
Zara
Agatha
Ora essa... Quem ela pensava que era para decidir certas coisas, sobre
mim, ao seu bel-prazer? Não que fosse realmente maravilhoso pegar ônibus
lotado, na companhia de velhos nojentos e caras otários, além de andar
vários quarteirões até a penitenciária; mas, se ela queria que eu me
esquecesse do que aconteceu entre nós, e, em outras palavras, ficasse longe
dela para não criar mais confusão e não beijar a sua boca de novo, me dar a
porra de uma carona, duas vezes ao dia, durante todos os dias úteis da
semana, não era bem a solução para que eu mantivesse distância.
Ela parecia uma louca. Primeiro, praticamente ordenava para que eu
me esquecesse do que fizemos e não pensasse nem em repetir aquilo, mas,
depois, me sugeria caronas, como se não soubesse que o simples fato de eu
estar no mesmo ambiente que ela, especialmente dentro da merda de um
carro, já não fosse uma provocação o bastante para que eu quisesse cair em
tentação outras vezes. Bufei, enquanto caminhava para dentro de casa.
Aliás, eu continuava puta pela maneira grossa como me tratou mais cedo.
Ela me enxotou do seu apartamento como se eu estivesse com algum tipo
de doença contagiosa.
O que ela achava?
Que eu fosse atacá-la de novo, naquele quarto?
Não era por falta de vontade, mas... É... Que-Quero dizer... Ah, qual
é? Isso era ridículo! Eu ainda tinha os meus princípios e jamais forçaria a
barra com quem quer fosse, por mais que pessoa estivesse caidinha por
mim, e, mesmo assim, dissesse que não.
Scott idiota. Eu não fazia ideia de um motivo plausível para as suas
preocupações. Ela vinha com aquele papinho miserável de que estava
cuidando da minha segurança porque era o seu dever como policial, mas eu
sabia, na verdade, eu tinha certeza absoluta de que não era só isso. O caso
mesmo era que ela, aparentemente, era daquele tipo: nem fode, nem sai de
cima. Um saco.
Apesar de eu ainda estar me cagando de medo de ser surpreendida
por caras, como aqueles, outra vez, quem tinha a obrigação de fazer alguma
coisa era o meu pai! Eu não estava disposta a aceitar as caronas da Zara-
Não-Fode-E-Não-Sai-De-Cima-Scott, enquanto eu tivesse um pai com o
poder de colocar uma frota de carros à minha disposição.
E, por mais incrível que isso pudesse parecer, eu realmente
esperava que, dessa vez, ele estivesse em casa.
Foi aí que, como se o universo estivesse, finalmente, conspirando ao
meu favor, a primeira pessoa que eu vi, ao passar pela porta e cruzar a
imensa sala de estar, não foi Evangeline ou qualquer outro empregado. Foi
o dito cujo, descendo a longa e enorme escadaria.
Perfeito.
E olha que eu não gostava, nem um pouco de encontrá-lo em casa,
mas, naquele dia, isso era realmente necessário. Eu precisava despejar nele
tudo o que tinha me acontecido, na noite anterior. Se ele tivesse o mínimo
de consciência, me devolveria, pelo menos, os carros e os motoristas. Não
que eu acreditasse que ele tivesse, de fato, consciência sobre qualquer coisa
que envolvesse a mim, ou se preocupasse genuinamente comigo, como um
pai deveria fazer. O cara era um completo filho da puta. Mas, não custava
muito ter alguma esperança sobre a humanidade.
— Pai! — exclamei, chamando sua atenção.
Ele, por sua vez, demorou cerca de três anos para virar o rosto em
minha direção. E, quando assim o fez, já parecia extremamente cansado da
minha presença. Fiquei ainda mais puta. O sangue subia para a minha
cabeça por ser tratada desse jeito, pelo meu próprio pai.
— Eu exijo, pelo menos, os carros e os motoristas, antes que você
decida acabar, de uma vez por todas, com esse castigo ridículo!
— E por que eu faria isso? — perguntou ele, com aquele semblante
blasé que eu tinha asco. — Aliás, bom dia para você também, querida —
Irônico, completou.
Bom dia? Bom dia pra quem?
— Ah, por que? — sorri, sarcástica. Em menos de dois segundos,
porém, o sorriso sumiu, dando lugar ao meu verdadeiro semblante sério e
enraivecido. — Porque eu quase fui sequestrada, em um pub, ontem à noite!
Apontaram uma arma para a minha cabeça e quase me arrastaram para fora
do prédio, se não fosse uma policial que estava lá e me salvou.
Meu rosto quase amoleceu com a lembrança dela me livrando
daqueles idiotas. Quase. Não foi o suficiente para melhorar o meu humor, já
que eu também me lembrava, muito bem, do quanto eu continuava irritada
com o seu papelão de mais cedo, me dizendo para esquecer tudo aquilo que
me fez ir ao céu, depois de ter experimentado o inferno por alguns minutos
naquele pub.
— Você o quê...?
Russell não exclamou, mas eu percebi certa alteração no seu tom de
voz. Se antes estava, em tese, relaxado, agora ele parecia realmente atento,
e isso era quase milagroso, se tratando do meu pai que não se importava
com absolutamente nada que acontecesse comigo.
— É isso mesmo o que você ouviu, querido papai. Sofri um
atentado em um pub, este final de semana. A polícia está investigando, mas
ainda não me passaram muitas informações. Continuo sem saber da razão
para terem feito isso.
Coçando a cabeça de leve e descendo a mão pela barba, ele
questionou de um jeitinho meio esquisito e pensativo, enquanto caminhava
por ali, no espaço da sala de estar:
— A polícia está investigando, é?
E, então, do nada, absolutamente do nada, antes mesmo que eu
pudesse raciocinar demais a respeito disso, uma pequena e quase
imperceptível luzinha se acendeu sobre a minha cabeça. Franzi o cenho,
enrijecendo a coluna com a hipótese que passeava pelo meu subconsciente.
— Você sabe de alguma coisa? — Me aproximando um pouco mais,
perguntei um tanto arisca.
Entre um andar meio inquieto e outro, no entanto, ele, enfim, parou,
puxou o ar e me encarou.
— Não, eu não sei de nada. Na verdade, a única coisa que eu sei é
que algo assim não vai acontecer de novo com você.
E ele parecia estranhamente certo e determinado a respeito disso.
— Não vai? — enruguei ainda mais a testa. — Como assim não vai?
Como você pode ter tanta certeza? — E despejei todas aquelas perguntas na
mesma velocidade que a minha cabeça tentava formular possibilidades
malucas e completamente confusas. — Olha aqui, pai, se você está sabendo
de alguma coisa que eu não sei, é melhor que me diga logo! Não me
esconda nada!
— Fique quieta, Agatha! — vociferou ele, claramente irritado com a
minha agonia. — Apenas escute o que eu estou dizendo. Não vai haver uma
segunda vez. Agora, me dê licença. Tenho coisas importantes para resolver
— E, pegando a sua pasta de couro, já foi dando a volta para sair de casa.
Coisas importantes para resolver?!
— Ei! — Empertigada, tentei chamar sua atenção outra vez. — E os
meus motoristas? O meu carro?! Será que isso também não é importante,
considerando o que eu acabei de dizer?!
Labaredas de fogo saíram dos seus olhos. Eu só não sabia se era
pela minha perturbação e insistência, ou se porque estava preocupado
demais em resolver suas pendências, enquanto eu continuava ali,
teoricamente, o atrapalhando.
— Seria importante, se eu mesmo não cortasse o mal pela raiz com
as minhas próprias mãos.
E, me dando as costas, simplesmente saiu.
Eu ainda fiquei um minuto encarando a porta da sala com uma cara
idiota de quem tinha recebido um enigma da porra da esfinge grega. Não
entendi que merda significava aquilo que ele tinha dito. Mas, também não
demorei muito a ferver de ódio, ali mesmo, pela milésima vez no dia. E
ainda eram apenas nove horas da manhã.
Argh, que ódio!
Filho da puta.
Realmente, não era uma tarefa simples incutir senso de
responsabilidade em um pai que passou a maior parte do tempo ausente.
Não bastasse a irritação que eu já estava sentindo da Xena Scott, com o seu
belíssimo café da manhã de palavras indigestíveis, ainda tinha também meu
pai, que possuía um total de zero cuidados com a própria filha.
A passos rápidos e largos subi as escadas, praticamente correndo em
direção ao meu quarto. Com um baque surdo, fechei a porta.
Sério, eu seria capaz de explodir a qualquer momento.
Respirei fundo.
Eu precisava me acalmar, apesar de tudo. Não seria nada bom para a
saúde da minha pele, ou para as minhas marcas de expressão, afinal. Eu era
tão jovem! Meu Deus, eu precisava colocar em dias os meus procedimentos
estéticos. O problema era que eu não tinha dinheiro para isso. Maldito
Russell Ballard! Minha massoterapeuta até tinha dito que eu estava com
pontos de tensão nas costas. Só que isso foi antes da penitenciária e de todo
o resto. Imagina agora! Uma catástrofe.
A real era que eu tinha mesmo que me acalmar.
Mas, como? Como eu ia me acalmar, se a minha deusa interior
estava dando saltos mortais rumo à piscina de magma do inferno?
Suspirei... Pensando, pensando, pensando.
Quem sabe conversar com alguém fizesse eu me distrair e... Ah,
claro! Claro, claro, claro! Como eu não tinha pensado nisso antes?
De pronto, peguei o telefone sem fio, no qual funcionava o sistema
interno da casa, e liguei para portaria, onde sempre ficava um dos
seguranças.
— Onde está Evangeline? — perguntei.
— Ela saiu para fazer compras no supermercado, senhorita. E
avisou que vai demorar.
Ai, que droga.
Estalei a língua no céu da boca.
— Tá bom. Valeu.
Desliguei, ainda inquieta.
Para quem eu ia recorrer agora?
Eu poderia ter milhares de contatinhos no celular e de amigos que
eram ótimos para festas, mas nem um deles parecia ser bom o bastante para
me tirar daquela fossa ridícula.
Pensei, pensei. Pensei mais um pouco.
E, então, como se uma luz divina recaísse sobre a minha cabeça, eu
tive uma ideia muito melhor. Sim, claro! Muitíssimo melhor! Melhor do que
ter alguém para conversar e me distrair, era ter alguém para transar e me
fazer liberar toda aquela péssima energia de tensão acumulada dentro de
mim. Eu que não passaria o restante do domingo inteiro daquele jeitinho
miserável. Me recusava a isso. Além do mais, aquela era uma boa
companhia. Não era apenas mais um dos meus contatinhos. Era a minha
melhor amiga.
Determinada, peguei meu celular e liguei.
Felizmente, não demorou a atender.
— Hey, Tessa... Você pode vir passar o dia aqui comigo? Estou em
casa.
✽✽✽
Agatha
Zara
Zara
— Vejo que está tudo sob controle com a vítima. Você mesma se
encarregou de cuidar pessoalmente da segurança da garota, oferecendo
caronas de ida e volta para casa, não é? Muito bom.
Era totalmente perceptível a ironia em seu tom, assim como ela
também não falou a palavra “vítima” de um jeito normal. Isso porque
Agatha não era apenas uma vítima, ela também continuava sendo uma
infratora que cumpria pena sob a minha supervisão. E eu sabia exatamente
o que Alexa estava querendo falar em meio àquela voz carregada de
sarcasmo. Eu mal tinha me recuperado da visão de Agatha só de calcinha e
sutiã, e, depois, sem sutiã, quando Westphalen me interceptou no corredor e
começou, em sua sala, aquele interrogatório que eu já previa que fosse
acontecer.
— Olha só, Alexa... — suspirei, tentando pensar nas exatas palavras
que eu falaria, mesmo em meio àquela minha, ainda tão aflorada, confusão
mental de peitos, calcinha e sutiã. Tão gostosa, pelo amor de Deus. Droga.
Balancei a cabeça, me esforçando para me concentrar na justificativa mais
profissional que eu daria a Westphalen. — Eu só estou fazendo isso porque
o pai dela tirou todas as regalias da garota. Agora, ela vem e volta de
ônibus. Todos os dias. Semana passada, até foi quase assaltada. Isso sem
contar o que houve no sábado. Ela é rica e pode estar sendo visada, por
criminosos, para algum tipo de sequestro. Aliás, a investigação já descobriu
alguma coisa?
— Zara, não mude de assunto. Eu ainda não cheguei nessa parte —
Em tom de repreensão, falou. — É realmente uma história comovente.
Muito comovente mesmo. Mas... — Foi aí que seu olhar se tornou ainda
mais incisivo e sério. — Não. Me. Convenceu. Zara, essa não é a sua
obrigação, por mais que você seja uma policial. Eu sei, muito bem, a razão
para você estar tomando essa responsabilidade para si. Te conheço bem
demais, Scott, e não é de hoje. Você está interessada na garota...!
Puta que pariu.
No fundo, eu poderia estar interessada. Afinal, eu estava mesmo.
Não dava para negar. Ainda mais com a menina, literalmente, se jogando
para cima de mim. Era uma tarefa difícil resistir. Entretanto, contudo,
todavia, Westphalen não podia ter isso como uma certeza. Não mesmo.
Porque, no que dependesse de mim, até o momento, aquilo ficaria apenas
no campo do interesse mesmo, sem qualquer interferência na realidade ou
qualquer envolvimento para além daquele que tivemos no sábado.
Pelo menos, era nisso que eu queria acreditar.
— Para com isso, Alexa — tentei desconversar. — Você tá viajando.
Eu não estou interessada na garota. É lógico que não. Por favor, não
esqueça do que aconteceu no sábado. Ela quase foi sequestrada. Eu, como
policial, tenho o dever de cuidar da segurança de qualquer pessoa que esteja
em estado de risco. Todos fazemos um juramento quanto a isso. E você sabe
muito bem disso. Além do mais, eu já tive experiências suficientes na vida
para saber o que devo ou não fazer. Aprendi a lição.
Aprendeu mesmo, Zara?
Será que aprendeu mesmo?
Repliquei, com a voz da razão, exatamente o que eu repetia vinte
mil vezes, internamente, quando o meu coração gritava para eu fazer com
ela exatamente tudo aquilo que eu sentia vontade. Com a boca era isso o
que eu dizia, mas com a alma, certamente, a minha resposta seria outra.
A morena, por sua vez, ainda me encarou meio desconfiada.
— Pois é, eu realmente espero que você tenha aprendido a lição,
Zara, porque quem está falando aqui, agora, com você, não é a inspetora da
penitenciária ou a sua chefe, é a sua amiga. Uma pessoa que se preocupa
com você — parou por alguns segundos, séria, e, então, continuou. — Ou
você acha que os funcionários não se lembraram da sua história, quando
viram vocês chegando juntas hoje? É claro que eles lembraram. Estavam
olhando para vocês, daquele jeito, por saberem exatamente da confusão que
deu no passado, entre você e uma detenta. E, Zara, você é profissional
demais para saber que é proibido se envolver com detentas ou quaisquer
infratoras que estejam em cumprimento de pena. Seu emprego foi quase
perdido, por causa disso. Mesmo que eu seja a sua chefe e queira proteger o
seu rabo de qualquer demissão, se alguma merda acontecer, ainda existem
os superiores que estão acima de mim, e a palavra deles sempre será a final.
Então, eu realmente espero que você pense muito bem nisso, antes de fazer
qualquer coisa.
“Mesmo que eu seja a sua chefe e queira proteger o seu rabo de
qualquer demissão, se alguma merda acontecer, ainda existem os
superiores que estão acima de mim, e a palavra deles sempre será a final.
Então, eu realmente espero que você pense muito bem nisso, antes de fazer
qualquer coisa.”
Suas palavras quase me atingiram como um soco, se eu já não
soubesse disso. Sim, aquilo não era nenhuma novidade para mim. Era o que
me parava, o que não me permitia ir em frente com qualquer desejo que eu
pudesse ter pela garota. Os meus fantasmas do passado que nunca me
deixaram completamente em paz, e, agora, retornaram com força total.
Apesar dos pesares, tentei encarar sua advertência de queixo
erguido, como se tudo realmente estivesse sob controle, quando, na
verdade, eu sabia que não estava. Só fazia três semanas que eu conhecia a
garota e já me sentia maluca por ela, não queria nem pensar no que poderia
acontecer até o final dos seis meses de cumprimento de pena. Eu enfrentaria
uma tarefa extremamente difícil e tinha certeza absoluta disso. A tarefa de
resistir a ela.
Seja o que Deus quiser...
— Tudo bem. Obrigada pela preocupação, Alexa. Você é uma boa
amiga e eu sei que me falou tudo isso porque se importa comigo. Mas, fique
tranquila. O que aconteceu no passado não vai se repetir — Mentirosa,
mentirosa, mentirosa... Meu subconsciente me acusava de mentirosa,
enquanto eu respondia, porque o passado, na real, já estava se repetindo.
Forte, voraz, impetuoso. — Bom... — suspirei. — Será que agora pode me
dizer o que as investigações estão apontando? — E tentei mudar de assunto,
para ver se a minha cabeça me dava um descanso.
— Os caras continuam presos... — disse ela, ao se levantar da sua
cadeira, dando a volta na mesa e caminhando pelo escritório. — Aqueles
filhos da puta optaram por fazer uso do direito ao silêncio. Eles não nos
dizem nada. Nós também não podemos obrigá-los. Mesmo assim,
conseguimos descobrir os nomes verdadeiros de cada um. Eles não são
daqui. São das Bahamas. E, pelo sistema, verificamos que eles já têm
passagens pela polícia. Tráfico de drogas e relação com sistemas de
prostituição. Casas noturnas ilegais de sexo.
— Casas noturnas ilegais de sexo? — franzi o cenho, também me
levantando da cadeira, enquanto tentava entender o que caras como eles
queriam com a Agatha. — Isso me parece aquele caso recente que estamos
investigando, aqui em Las Vegas, graças à série de denúncias anônimas que
recebemos a respeito de casas noturnas desse tipo na cidade, explorando
ilegalmente mulheres para trabalho sexual — Me senti ainda mais inquieta
com as possibilidades que os meus pensamentos já estavam formulando. —
Quais as chances desses caras quererem a Agatha para levá-la a um lugar
assim?
Alexa suspirou, fitando-me com aquele semblante altamente
profissional que tinha.
— Não... Acho que nenhuma. Vamos continuar investigando para
saber qual a ligação entre eles e a garota. Mas, certamente, eles não a
queriam para levá-la a um lugar assim. Se fosse, poderiam ter pego
qualquer outra garota. Só que eles escolheram justamente ela. Isso só me
diz que Agatha é muito valiosa, e aqueles caras sabem desse valor.
Sim, a garota era muito, muito valiosa. Porém, diferente do
significado que Alexa e os caras poderiam dar ao seu valor, aquele que,
provavelmente, tinha mais a ver com o seu poder aquisitivo de milhões de
dólares, na minha opinião, ela era muito mais valiosa do que isso. Agatha
era valiosa não pela grana absurda que a sua família tinha nos bancos, mas
por tudo o que ela já poderia representar para mim.
✽✽✽
O clima leve, entretanto, não foi muito duradouro. Não por causa de
mim, dela, ou de nós duas, mas por causa da porra da cidade. Droga.
Depois de uns dez minutos no carro, assim como eu tinha previsto, o
trânsito começou a se tornar insuportável, especialmente quando eu peguei
uma das principais vias de Las Vegas. Para o lado Oeste, que era a direção
para onde estávamos indo, e os carros não andavam, ficava a região da casa
dela. Para o lado Leste, a via à minha esquerda, cujo trânsito parecia
tranquilo, era onde estava a região do meu apartamento.
Em chuvas como aquelas, geralmente alguma parte da cidade
parava, sobretudo a mais rica e movimentada, que era onde as pessoas e os
turistas costumavam transitar mais. E, claro, também tinha que ser o local
onde ela morava
Suspirei, tentando esquecer o fato de que estávamos presas em um
congestionamento, com centenas de carros na frente e atrás do meu,
enquanto a chuva forte ainda caía lá fora. Até aumentei o volume do som,
na ilusão de que a música, um pouco mais alta, pudesse acobertar o meu
tédio. Agatha também já tamborilava as unhas no encosto de braço, ao seu
lado, enquanto olhava para frente e fazia um biquinho de quem estava
viajando em pensamentos.
Só que aí, dez, quinze, vinte minutos se passaram sem que nós
conseguíssemos sair do lugar. Aquilo já estava se tornando insustentável.
Soprei o ar, impaciente. Agatha olhou para mim, com uma das sobrancelhas
erguidas. Talvez surpresa por ser a primeira vez que me via meio afobada.
Eu, no entanto, obstinada, não parei para dar explicações. Apenas peguei
meu celular e abri o aplicativo de rotas, para saber se eles já estavam
estimando o tamanho daquele engarrafamento.
E... Puta que pariu.
Sibilei alguns palavrões, ao ver o que o aplicativo indicava.
Eram quase sete quilômetros de engarrafamento, sendo que, em
vinte minutos, nós mal conseguimos avançar dois metros.
Porra, eu ia chegar absurdamente tarde em casa.
E ainda queria ficar um pouco com o Nick, antes dele dormir.
— O que foi? — Ainda ouvi quando ela perguntou.
Porém, isso foi no exato instante em que dois policiais apareceram
ali, no meio da via, sob guarda-chuvas, dando algumas orientações para os
motoristas.
Não hesitei em baixar o vidro, para falar com um deles:
— Olá, com licença! — dei uma pequena buzinada, chamando a
atenção. — O que houve na via?
— Muito alagamento e um acidente feio de trânsito, a sete
quilômetros! — respondeu ele. — Se continuar aqui, vai levar de uma a
duas horas para sair do congestionamento. Aproveite que está na faixa da
esquerda para encontrar um retorno e mudar de via, se puder.
Ah, perfeito.
Meus ombros até se curvaram, em desânimo.
— Tudo bem. Obrigada.
E subi o vidro, outra vez.
Então, era isso. Naquela noite, talvez eu só conseguisse encontrar o
Nick quando ele já estivesse dormindo. Estava com tanta saudade dele.
Mas, eu me esforçaria para compensar essa falta, no dia seguinte. Ficaria
com ele mais tempo. Agora, entretanto, não havia muito o que se fazer. Eu
teria de esperar mais umas duas horas, dentro daquele carro, até sair
daquele engodo. A garota, pelo menos, estava em segurança, e somente isso
fazia valer a pena o tempo que eu perderia ali.
Antes que se passassem mais do que cinco minutos de silêncio,
depois que o policial se afastou do meu carro, ouvi a voz dela novamente.
Sorrateira, comedida, mas quase cantarolando:
— Sabe... Eu tenho uma ideia melhor.
Ideia melhor?
Franzi o cenho.
Na real, eu não sabia se queria realmente ouvir a sua “ideia
melhor”. Pelo tom de voz faceiro que ela usou, eu não poderia imaginar boa
coisa. Era muito semelhante àquele mesmo tom que ela usava sempre que
conferia algum duplo sentido a qualquer frase que, na teoria, parecia
inocente.
— Qual seria...? — Ainda perguntei.
Mais por educação do que por qualquer outra coisa.
Talvez um pouco de curiosidade.
Mas, só um pouquinho mesmo.
Quase nada.
— Até onde eu me lembro, o caminho da sua casa fica no sentido
oposto, exatamente nessa via ao lado, que está super vazia — sorriu. — Por
que não pega o próximo retorno, quando conseguirmos avançar um pouco,
e vamos para lá? Por mim, não teria problema algum.
E passar a noite no meu apartamento, outra vez?
Claro que, para ela, não teria problema algum.
Mas, para mim, teria todos.
— Não vou te levar de novo ao meu apartamento.
Só me toquei, entretanto, depois que a frase já tinha saído. Talvez o
tom que usei tivesse sido mais ríspido do que deveria. Foi aí que eu vi o
momento em que o seu sorriso diminuiu um pouco.
— Ah, é? — E um lampejo de desafio cruzou o seu olhar,
acompanhado de um leve, bem leve e quase imperceptível, nariz empinado.
— Por quê?
Porque é arriscado.
Porque você me deixa maluca.
Porque eu posso cair na tentação de te beijar outra vez.
Porque, eventualmente, você pode se tornar a sobremesa do jantar.
Porra.
Suspirei, engolindo todos aqueles motivos que faltaram saltar da
minha garganta.
— Apenas não vou te levar.
Respondi somente isso. Não queria entrar naquela discussão.
No entanto, também não me contive em deixar de fitá-la
rapidamente pelo cantinho do olho. Foi quando eu vi um traço de mágoa,
misturada com impetuosidade, pintar o seu semblante em tons que deixaram
o azul das suas orbes mais escuro.
— E é claro que você não tem a menor obrigação de me dizer o
motivo — suspirou, com um ressentimento palpável, mas, ainda de nariz
empinado, como se isso pudesse dar um equilíbrio ao seu ego ferido. —
Aliás, eu até já sei o motivo. A incrível policial Scott não pode se misturar
com garotas problemáticas, como eu, que cumprem pena na penitenciária.
Pega mal para você, não é?
Ah não.
Eu não queria que ela fosse por esse caminho.
— Agatha... — Ainda tentei falar.
No entanto...
— Não, nem precisa dizer mais nada — ela me interrompeu. — Eu
já entendi. É melhor que eu me coloque no meu lugar, policial Scott.
Inclusive, muito obrigada pela carona, mas posso ir sozinha mesmo. E aí,
você pode dobrar no próximo retorno e seguir para o seu apartamento.
Aliás, é provável que eu chegue mais rápido a pé do que se esperar esse
congestionamento acabar — soltou uma breve e fraca risadinha sem humor.
Simplesmente, tirou o cinto de segurança e, batendo a porta para
fechá-la, saiu no meio do engarrafamento e daquela chuva torrencial. Quase
sem acreditar no que tinha acabado de acontecer, ainda vi pelos
retrovisores, ela caminhando entre os carros, aparentemente pouco se
importando em estar toda ensopada.
Caralho.
Respirei fundo.
Não me restava nenhuma dúvida: a menina era total e
completamente maluca.
Puxando bruscamente a alavanca do freio de mão, eu não pude fazer
outra coisa, a não ser ir atrás dela, mesmo que, para isso, eu tivesse que
deixar o carro sozinho no meio daquela avenida engarrafada.
Saí com a chuva grossa me banhando completamente, caminhando
ligeiro na mesma direção para onde eu a vi indo. Quase correndo, entre os
carros, um do lado do outro, fazendo aquela fila imensa, consegui avistá-la,
enquanto desviava de algumas motos no meio do percurso.
— Agatha, escuta! — exclamei, tentando alcançá-la. — Volta aqui,
garota! Você não pode sair assim no meio dessa chuva!
— Não se preocupe comigo, policial Scott! — respondeu ela,
caminhando apressada por ali. Ou melhor, praticamente correndo. — Eu sei
me virar sozinha!
Da mesma forma que ela soube, no pub, quando aqueles caras a
pegaram?
Não. Pelo amor de Deus, não.
— Tá legal, Agatha! Eu te levo para o meu apartamento! — bradei
por entre os carros, pouco me importando com o quanto pudessem estar nos
considerando duas loucas. — Apenas, vamos!
Notei quando ela bufou, ao ouvir aquilo. Seus ombros subindo e
descendo bruscamente.
— Não quero! Não aceito caridades!
Caridades?
Porra, o tom de voz que ela usou era de quem tinha ficado ainda
mais puta e magoada. Puta e magoada. Uma combinação terrível. Droga, eu
só fazia merda. Suspirei. Talvez ela tivesse me interpretado mal, ou talvez
eu tivesse demorado demais para sugerir aquilo. Eu não queria deixá-la
daquele jeito, assim como também não queria que ela não fosse ao meu
apartamento. Na real, o meu desejo mesmo era que ela fosse. Que nós
ficássemos sozinhas, em um lugar particular, sem qualquer peso na
consciência, e totalmente livres para fazermos o que quiséssemos.
Era exatamente isso o que eu queria.
O problema era esse.
Esse era o motivo para eu ter negado, quase instintivamente, a sua
ideia de ir para lá.
Era só o medo. A porra daquele medo de cair em tentação.
Mas, foda-se isso. Pelo menos, por agora. Eu queria, sim, que ela
fosse ao apartamento. Não por caridade, mas por vontade. Pelo menos, por
aquela noite. Por aquela noite, eu iria me controlar e colocar limites nos
meus desejos, enquanto ela estivesse comigo.
— Não é caridade, Agatha! Eu quero que você vá! Olha, prometo
que faço chocolate quente pra você! E eu juro, eu juro que é uma delícia! —
Enfim, falei. — O melhor que você vai provar na sua vida!
Foi aí que ela subitamente parou, no meio do corredor de carros
engarrafados, e, devagarzinho, virou-se para mim, toda molhada, pingando
gotas pesadas daquela chuva absurda que ainda caía. Seu olhar, no entanto,
era de absoluta surpresa. Eu sentia como se tivesse conseguido atingir um
ponto fraco seu.
— O que disse? — Mais baixinho, ela perguntou, incrédula.
Suspirei de alívio por ela, enfim, ter realmente parado.
Graças a Deus.
Aos pouquinhos, como quem tomava cuidado para não deixar que
uma fera corresse, eu me aproximei. E, então, olhando nos seus olhos, com
total sinceridade, falei com muito jeitinho:
— Eu disse que quero que vá comigo, Agatha, e que faço chocolate
quente com pedacinhos de marshmallows pra você.
— Ahhhh... — Ela me encarou com os seus olhinhos,
repentinamente, brilhando de felicidade. — Chocolate quente com
pedacinhos de marshmallows? — E perguntou quase choramingando de
felicidade. Desgraçada linda. — Eu adoro chocolate quente com
pedacinhos de marshmallows.
E, de algum modo, depois de ouvir isso, o meu coração idiota virou
tipo uma gosminha derretida, quase formando uma pocinha como aquelas
no meio da avenida toda alagada.
— O Nick também adora — sorri, meio boba, me lembrando. —
Vamos... Vamos voltar logo para o carro, antes que a gente pegue um
resfriado com essa chuva. Eu faço chocolate quente pra você.
— Faz mesmo? — sorriu ainda mais, ainda com os olhinhos
brilhando.
— Faço... — garanti. — Mas, você vai ter que me prometer que não
vai me agarrar subitamente dentro do meu apartamento, nem tirar a roupa,
na minha frente, para tentar me convencer de qualquer coisa que eu não
devo fazer.
Embora isso fosse uma advertência, mesmo que em tom de
brincadeira, um pequeno sorrisinho escapou dos meus lábios.
Erguendo uma das sobrancelhas, astuciosa, ela apenas respondeu:
— Quem vai querer me agarrar primeiro é você, policial Scott.
E, ainda sorrindo, caminhou de volta para o carro.
O maior shipper “Zagatha” da face da
terra
Agatha
Zara
Tudo bem, tudo bem. Nick, vamos com calma. Com calma, querido. Isso
não é uma situação de crise, nem de risco. Eu só estava mesmo com...
VONTADE DE BEIJÁ-LA.
Ai, meu Deus.
De todas as horas que o meu filho tinha para aparecer (tipo assim,
incluindo todos os oitenta seis mil quatrocentos e quarenta segundos do
dia), ele precisava surgir ali, justo no momento em que os meus lábios
estavam quase tocando os dela. Para completar, ainda falava sobre aquilo
em alto e bom som, para eu me convencer, de uma vez por todas, que estava
mesmo maluca por aquela garota. Pelo menos, eu praticamente fui salva,
por ele, de cometer o tal “crime”. Mas, ainda assim, as coisas precisavam
voltar aos trilhos pra já.
— Querido, que surpresa! — disse eu, sorrindo e já o puxando para
um abraço. — Não ouvi você passando pela porta... Onde estão as tias Mad
e Ava?
— Claro, mamãe... — Me encarou com obviedade, ao passar os
braços pelo meu pescoço, me abraçando e pouco se importando com a
minha pergunta. — Você estava quase beijando ela... Não prestava atenção
em nada. E eu vi a cara de vocês — soltou uma risadinha traquina. — Ah,
oi! — acenou, espevitado, para Agatha. — Legal te ver aqui! Posso brincar
de guerra de sabão com vocês também?
Esse garoto estava cada dia mais esperto. O que era uma bênção,
sem dúvidas. Mas, também, um motivo adicional para eu ficar de olho no
que ele dizia ou fazia.
— O-Oi, pequeno homenzinho! — A loira respondeu, sorrindo
simpática, com as sobrancelhas meio arqueadas, puramente admirada com
ele. — É bom ver você também! Gostou da bagunça que fizemos aqui? E,
sim, vamos brincar! Vem logo pra cá! — gesticulou com as mãos, fazendo-
o se soltar de mim, todo entusiasmado.
Em poucos segundos, ele estava mergulhado e molhado no meio
daquelas grandes nuvens de sabão que estavam por todas as partes.
Divertidos, jogavam espumas um no outro, até mesmo em mim. Claro que
Agatha parecia estar tomando todo o cuidado para não atingir os olhos dele,
mas, ainda assim, a brincadeira estava grande. Risadas e gargalhadas, dos
dois, ecoavam por todos os lados, como se eles se conhecessem há tempos,
não há três semanas, quando Nick deu uma passada na penitenciária. Isso
era realmente curioso.
Durante alguns instantes, me permiti observá-los, enquanto
brincavam e se molhavam por ali. Apesar do Nick ser uma criança ótima e
simpática, não era com todo mundo que ele se abria assim, logo de cara. Da
mesma forma, era novo, para mim, o quanto Agatha parecia ser uma pessoa
tão agradável com ele, diferente daquela garota arrogante que eu tinha
conhecido. Talvez ela gostasse de crianças. Era uma boa explicação para
isso. E, bem, eu não podia negar o quanto era uma cena realmente bonita
vê-los assim, se divertindo.
Um sorriso brincou nos meus lábios, à medida que o meu coração se
aquecia com eles dois juntos, daquela maneira.
Agradável...
Novo...
Mas...
Familiar.
Só que aí me lembrei que já passava das nove horas da noite e que o
máximo que eu permitia deixá-lo acordado era até às nove e meia,
estourando dez horas.
— Tá bem, tá bem... Já chega...! — Soltando uma pequena
risadinha, tentei fazê-los parar. — Precisamos colocar as coisas em ordem
por aqui. E você, mocinho, precisa tomar um banho e jantar, para dormir —
completei, já o puxando de volta para mim e lhe dando mais um abraço
gostoso, seguido de muitos beijinhos.
Quando olhei de relance para o lado, pude perceber, mesmo de
maneira desproposital, o olhar quase contemplativo que Agatha oferecia,
enquanto me observava enchê-lo de cheirinhos e abraços. Seu sorriso não
saía por nada do rosto e suas orbes brilhavam a cada demonstração minha
de afeto e carinho com Nick.
Ele, no entanto, protestou:
— Ah não, mãe... Por favor... Aqui nunca teve uma espuma dessa!
Claro... Essas espumas só poderiam estar ali por causa de Agatha
Ballard.
Porém, no exato instante que se calou, foi quando Madison e Ava
apareceram bem na porta da lavanderia. As sobrancelhas arqueadas não
escondiam o quanto estavam surpresas com aquela quantidade de espumas
por todos os lados, mas os seus olhares se fixaram mesmo sobre Agatha, e
foi nela que todas as suas atenções se depositaram.
Ai não.
Eu ainda não tinha passado no apartamento delas, para buscar o
Nick, justamente por causa disso... Para que não soubessem da presença da
garota ali e, consequentemente, para que eu não tivesse que responder a um
longo interrogatório. Não que eu estivesse tentando, de fato, esconder a
garota, ou algo do tipo. Mas, eu já conhecia Madison e Ava suficientemente
bem, para saber que elas iam me pilhar pra caralho, só porque eu tinha a
levado para o meu apartamento.
Madison diria para eu comer Agatha sem pensar no amanhã,
enquanto Ava suplicaria para que eu, pelo amor de Deus, não me
envolvesse com a loira e acabasse ainda mais fodida do que na outra vez.
De um jeito ou de outro, elas não me deixariam em paz.
Só que, agora, de frente para as duas e para aqueles semblantes
chocados, eu tinha certeza absoluta de que não poderia fugir disso.
Droga.
— Mad! Ava! Oi! — forcei um sorriso e me levantei rapidamente do
chão, passando pela porta e pegando as duas pelos braços, para que elas
saíssem dali, mesmo que fosse para um corredor que ficava a meio metro de
distância — Olha, muito obrigada mesmo por ficarem mais um dia com o
Nick e por trazerem ele aqui. Mas, agora, nós estamos meio ocupadinhos
viu? — soltei uma risadinha falsa. — Depois eu falo com vocês, meninas!
Tchau tchau! — E já fui tentando empurrá-las dali, por mais que eu odiasse
tratá-las desse jeito.
A situação, no entanto, pedia para que eu agisse assim.
Do contrário, toda a tensão, que eu já carregava por ter interesse na
garota, ficaria ainda pior.
— Pera aí, pera aí, pera aí! — Erguendo bruscamente uma das
mãos, Madison me parou. — Eu sei muito bem o que você está tentando
fazer, sua espertinha! Está querendo que a gente dê o fora daqui, para não
sabermos quem é a garota. Mas, sinto lhe informar, já era. Agora, a gente
quer saber quem é. Desembucha!
Argh, que saco.
— Não é ninguém — repliquei de pronto. — Ninguém importante.
Ava, por sua vez, me ofereceu um belo olhar de tédio.
— Se não fosse alguém importante, você não estaria agindo assim.
Vai, diz logo quem é essa daí! — exclamou em um sussurro.
Droga, droga, droga.
Balancei a cabeça, suspirando e quase rolando os olhos em puro
cansaço.
Elas não me deixariam em paz, enquanto eu não dissesse.
— É a garota que eu estou supervisionando na penitenciária — disse
baixinho, fraco, quase sem jeito.
— O quê?! — Esbugalhando os olhos, Mad por pouco não se
engasgou entre as suas próprias palavras. — Aquela é a garota?! Meu Deus,
ela é uma gata!
Puta que pariu.
— Fala baixo, cacete! — gritei em um sussurro, entredentes.
Se Agatha ouvisse aquilo...
Ava bufou, disparando, mesmo que em tom menor que Madison:
— Zara, pelo amor da deusa! O que essa menina está fazendo
aqui...?! — franziu o cenho, claramente já preocupada com o perigo que eu
poderia representar à loira e ela a mim. — E você, Madison, calada — fitou
a namorada com olhares que não escondiam o leve ciúme pela expressão
“meu Deus, ela é uma gata!”.
— Ué, ela é uma gata mesmo... — A outra, confusa, encarou a
namorada, respondendo. — Eu apoio! — E sorriu, sacana, para mim.
Tipo assim: “vai que é tua, Zara!”.
— Jesus Cristinho... — Após colocar dois dedos na testa, Ava
fechou os olhos, balançando a cabeça em negação e respirando fundo, até
que... — Não tem essa de gata! — disparou. — Existem outras gatas por aí
que não vêm com o selo de menor infratora e com a sua carta de demissão!
— puxou o ar. — Se essa garota está aqui, então Nick estava certo! Você a
quer!
Em um universo paralelo, eu até poderia rir das duas, porque, no
fundo, eram engraçadas. Mas, naquela situação, não. Ali, eu não tinha como
rir. Muito pelo contrário, eu só conseguia ficar ainda mais tensa com esse
bombardeio de palavras que eu não queria ouvir, nem permitir que Agatha
escutasse.
— Aí, você duas, parem! — exclamei, fazendo de tudo para não
falar tão alto, muito embora isso já estivesse quase se tornando impossível.
— Está tudo sob controle, tá legal?! Chega. Respirem. Vai dar tudo certo.
— Mas, amiga, assim, se quiser pegar, ela é tipo como ganhar na
loteria — Mad só faltou finalizar com um “hehehehehe”.
— Você é tão sem noção...! — Ava revirou os olhos.
Porra, elas não iam parar.
— Ok, ok, ok — ergui as duas mãos, como um sinal para
encerrarem aquilo. — Eu já entendi que, para a Mad, ela é como o paraíso,
e, para Ava, ela é o próprio capeta sentado no seu troninho com um tridente.
Agora, fiquem calmas, antes que vocês tenham uma hemorragia nasal —
puxei o ar, buscando por um fôlego de quem acabou de correr trezentos
quilômetros. — Eu já disse que está tudo sob controle. Não vai acontecer
nada aqui. Ela vai já embora para casa — menti. — E vocês podem voltar
para o apartamento, jantar, descansar e dormir, tá legal? Depois a gente
conversa e eu explico o motivo dela estar aqui.
No fundo, eu não ia explicar porra nenhuma. Eu realmente apenas
esperava que elas esquecessem tudo aquilo.
— Você promete? — Ava suspirou. — Posso confiar que vocês não
vão passar a noite inteirinha transando e que, depois, você não vai ser
demitida?
Deus, Ava talvez fosse mais traumatizada com o meu passado do
que eu mesmo.
— Eu prometo, amiga!
— Vou nem dizer o que eu penso sobre isso, porque eu não tenho
dinheiro para pagar os advogados do processo que Ava vai colocar em cima
de mim — Zoando, Mad falou.
— É melhor mesmo — Erguendo uma das sobrancelhas, quase
intimidadora, Ava replicou.
Por muito pouco, eu não ri. Ainda estava meio tensa com tudo
aquilo.
Suspirei.
— Então é isso, vão lá — E me deixem finalmente em paz. — Já
disse. Não vai acontecer nada demais. Ela está indo embora já já.
— Tá bem, tá bem... Nós vamos pra casa. Mas, cuidado na vida,
heim, Zara? — Ava replicou. — Boa noite!
Quando elas se viraram e já estavam caminhando em direção à
porta, porém, ainda vi quando Mad se virou brevemente para mim e
gesticulou, com os lábios, algo como “cara, vai fundo!”. Mas, Ava
percebeu. E não deixou passar batido. Deu um tapinha de leve no ombro da
namorada, dizendo algo como “cria juízo”. A outra, por sua vez, apenas a
puxou, sussurrando alguma coisa nos seus ouvindo, fazendo com que Ava,
enfim, abrisse um sorriso sacana em sua direção. Provavelmente, era
alguma baixaria entre as duas.
Dessa vez, eu não contive o sorriso. Ele já estava no meu rosto antes
mesmo que eu me desse conta.
Loucas.
✽✽✽
Ainda levamos uma meia hora, ou um pouco mais que isso para dar
conta de toda a bagunça feita na lavanderia. Foram longos minutos tirando
todo aquele sabão e as enormes nuvens de espumas. Apesar de tudo, eu não
estava nem um pouquinho irritada com tudo molhado e melado pela,
segundo Agatha, minha máquina de lavar assassina. Na verdade, aquilo
ainda era engraçado para mim. Há tempos, eu não ria tanto quanto naquela
noite. O rostinho dela corado de vergonha e depois suas risadas gostosas,
enquanto eu também gargalhava.
No fundo, por mais esquisito que fosse admitir isso, Agatha
conseguia despertar uma Zara que eu mostrava a poucas pessoas, ou uma
Zara que eu achei que não existisse mais. Talvez aquela de vinte anos que
engravidou e, enquanto poderia curtindo a juventude com as amigas, estava
trocando fraldas e preparando mingau para o filho. Obviamente, isso não
era, nem de longe, nenhum tipo de reclamação. Nick foi a melhor coisa que
aconteceu na minha vida. E, embora eu tivesse descoberto uma gravidez
ainda nova e pouco madura, ele foi um presente. Meu parceiro e melhor
amigo.
Era ele quem coloria todos os dias preto e branco de uma policial
que, diariamente, encarava o pior lado das pessoas. Era por ele que eu me
preocupava em voltar viva, todos os dias, para casa.
Inclusive, Nick continuava se divertindo mesmo em meio a nossa
tentativa de organização da lavanderia. Para ele, era tudo como uma grande
brincadeira. Na verdade, não somente para ele. Às vezes, eu tinha a
impressão de que Agatha só cresceu no tamanho. E isso ficava evidente
quando ela estava perto de uma criança. No caso, o meu filho. Eles eram só
risos e sorrisos. E, de alguma maneira; sempre que eu olhava para eles,
juntos, e via a maneira afetuosa e brincalhona, que ela interagia com ele,
assim como o modo amável com o qual ele sorria e olhava para ela; o meu
peito se agitava em uma ternura quentinha e curiosa.
Sem dúvidas, meu filho era o meu ponto fraco.
Então, sempre que eu o via feliz com alguém e esse alguém também
parecia o fazer feliz, isso consequentemente acabava se tornando o meu
ponto fraco do mesmo jeito.
Era como se, a cada minuto, Agatha e Nick se tornassem cada vez
mais íntimos. Depois que ela disse que ele poderia a chamar de “Agui”, era
“Agui”, na boca dele, para todos os lados. Para cima e para baixo. Eu não
sabia como ou quando isso tinha começado a acontecer, mas eu sentia que
ele realmente tinha criado uma afeição por ela, assim como ela também
parecia totalmente confortável com ele. E, bem, isso poderia representar um
perigo muito maior do que os nossos próprios beijos. Afinal, uma relação
mais íntima, com o meu filho, representava totalmente a quebra da linha
tênue entre o profissional e o pessoal.
Agatha estava, gradativamente, ultrapassando aqueles limites que eu
mesma tinha imposto sobre nós.
Perigoso...
Porém...
Eu não conseguia não achar interessante vê-los juntos.
Isso porque eu sempre adoraria qualquer coisa que fizesse o Nick
sorrir de verdade.
Depois que eu preparei chocolate quente com pedacinhos de
marshmallows e torradas para todos nós, e fizemos a refeição, era a hora de
seguir para o turno final do dia: colocar o Nick para dormir, enquanto
desenhos passavam na televisão. Era o nosso programa de praticamente
todas as noites. E naquela não seria diferente, mesmo que Agatha estivesse
ali.
Ela nos acompanhou até o quarto dele. Era a primeira vez que a
loira entrava ali. Percebi que ela ainda ficou olhando discretamente ao
redor, notando a decoração, os bichinhos de pelúcia, os brinquedos e as
pinturas coloridas em formato de estrelas, planetas e via láctea que
enfeitavam as paredes. Tudo isso com um pequeno e quase imperceptível
sorrisinho que não saía por nada do seu rosto. De alguma forma, eu notava
que ela estava se sentindo bem por estar ali conosco, mesmo que eu não
conseguisse enxergar uma razão plausível para isso.
— Vou me deitar um pouquinho com o Nick e assistir desenhos até
ele pegar no sono — disse eu, já me acomodando com ele em sua cama. —
Você pode se deitar no meu quarto ou usar a televisão da sala para assistir
alguma coisa... — Ainda era estranho dizer “pode se deitar no meu
quarto”, para ela, mas eu jamais a deixaria dormir no sofá. — Ou, então...
Você pode ficar aqui e assistir com a gente, se quiser — Enfim, sugeri.
Bem, eu confesso que ainda tinha as minhas ressalvas sobre essa
proximidade que Agatha estava estabelecendo com o meu filho. Em outras
palavras, isso poderia se chamar ligação, laço, afeto, construção de
relacionamento. E eu sabia que não deveria deixá-la entrar ainda mais na
minha vida pessoal. Era um risco para mim, para o meu trabalho. Por outro
lado, algo não me permitiu deixar de convidá-la para ficar ali conosco. E
não foi só a educação. Foi mais alguma outra coisa que eu não sabia dar
nome.
— É, Agui! Fica! — Quase dando pulinhos de entusiasmo sobre a
cama, Nick exclamou. — Deita com a gente!
Se o sorriso dela aumentou quando eu sugeri, depois de ouvir Nick
falar isso, ele ficou três vezes maior. Eu nunca tinha visto Agatha tão
simpática e de bom humor como naquele dia. E, honestamente, isso era
ótimo.
— Cla-Claro...! — Praticamente gaguejou de empolgação. — É
claro que eu fico com vocês. Vou adorar assistir desenhos, até dormir
também — e soltou uma pequena risadinha.
Lógico... Se ir ao meu apartamento não tinha problema algum, para
ela, aquela proximidade com o meu filho também não.
Em menos de meio minuto, Agatha já estava aconchegando na cama
com a gente. E, bem, ela não apenas se sentou, mas também se deitou
embaixo dos cobertores, deixando Nick no meio de nós duas. Vi o sorriso
de felicidade que ele deu, enquanto, nos meus braços, observava Agatha, ou
melhor, Agui ali. O olhar que ela ofereceu a ele foi de cumplicidade. E ela
não parecia nem um pouco desconfortável naquela situação. Muito pelo
contrário, sorriu de volta para ele e voltou suas atenções para o desenho
animado que passava na televisão.
Mesmo que eu não quisesse deixar minha mente voar por lugares
arriscados e pouco antes frequentados, foi impossível não pensar naquilo,
depois de um tempo. Tê-la daquela forma ali, com o meu filho e comigo, no
fundo, era... Era tão... Família. Não parecia ser casual, e muito menos
errado. Era como se ela se encaixasse perfeitamente naquele papel. Como se
aquele lugar tivesse sido reservado única e exclusivamente para ela. E,
honestamente, isso me deixava meio preocupada. Aquela sensação de
programa em família era tão perigosamente palpável que, de algum modo,
eu não pude evitar, engoli seco um tantinho inquieta sobre a cama.
Nick percebeu o meu movimento.
— O que foi, mamãe? — perguntou ele, erguendo aqueles olhinhos
lindos para mim.
Apenas balancei brevemente a cabeça, sorrindo de leve para ele.
— Nada, querido... Vamos assistir.
Foi tudo o que eu disse.
E, assim, longos minutos de desenhos animados se passaram,
conosco debaixo do edredom quentinho da cama do Nick. Eu de um lado,
Agatha do outro e Nick quase no meio, mas ainda abraçado a mim. E ele
passou um tempão assim, exatamente nessa posição, até que, quando o
mundo dos sonhos já estava quase o alcançando, percebi o momento em
que ele, não sabia se consciente ou inconscientemente, se afastou levemente
de mim e se aconchegou em Agatha.
O sorriso que ela deu foi impecável, misturado com aquele olhar...
Aquele olhar brilhante de quem tentava conter alguma emoção.
Eu fiquei apenas observando o desenrolar daquilo.
Porém, foi quando ela o abraçou verdadeiramente, fazendo cafuné
nos seus cabelos, até ele realmente dormir, que o meu coração se partiu e se
juntou um milhão de vezes seguidas. Nick só ficava assim com Madison e
Ava, que conviviam desde que nasceu. Mas, agora, também com Agatha,
que ele nem conhecia direito, mas que, sem qualquer explicação, já tinha
alimentado algum afeto por ela.
Bobamente admirada com a interação deles, continuei observando
pelo cantinho dos olhos, enquanto Agatha nem se dava conta. E eu vi
quando, após isso, com o sono quase lhe tomando, Agatha também fechou
os olhos, abraçada a ele, em uma expressão tranquila e suave de quem
estava em paz... Tão em paz quanto Nick que já dormia com a cabecinha
recostada sobre o seu peito.
E eu seria muito mentirosa se não confessasse a mim mesma que
aquela cena era o que estava fazendo os meus olhos estupidamente
umedecerem. Eu quis sorrir de verdade, enquanto sentia alguma coisa
esquentar e vibrar intensamente no meu peito. Talvez fosse o coração.
Agatha
Que merda.
É claro que quer.
E é claro que Russell Ballard não seria capaz de organizar uma
ceia em família, mas, sim, um grande evento em um dos seus hotéis, com o
único objetivo de fazer mais negócios, ganhar mais dinheiro e ficar mais
reconhecido.
Irritada, me empertiguei, soltando alguns palavrões baixinhos
comigo mesma, enquanto bloqueava a tela do celular com a vontade de, na
real, jogá-lo pela janela.
Notei, porém, quando Zara, com o cenho meio franzido, perguntou:
— O que houve?
Puxei o ar, tentando manter a calma.
— Nada demais... Só um macho escroto que não larga do meu pé.
— Interessado demais e você de menos? — Erguendo uma das
sobrancelhas, perguntou outra vez.
— Tipo isso... — Quase cantarolei. — A culpa é toda do meu pai.
Coisas de negócios.
Eu, honestamente, não gostava nem de mencionar essa merda. Ela,
porém, continuou. O que era realmente um milagre, principalmente
levando-se em consideração que nós nunca fomos de conversar nada tão
além de coisas sobre o meu trabalho na penitenciária e sobre a minha
segurança. Então, bem, como eu não estava muito a fim de dispensar
diálogos com ela, coisa que eu tanto quis ter, apenas continuei ali, mesmo
que o assunto não fosse dos melhores.
— Coisas de negócios? — enrugou ainda mais a testa, muito
embora um pequeno sorrisinho confuso quisesse estampar seus lábios. —
Pensei que isso fosse ultrapassado demais.
— Não para o meu pai. Russell Ballard ainda vive no século XV. A
verdade é essa. — Retruquei, rolando os olhos. E, claro, não pude deixar de
dar uma pequena alfinetada nela, mesmo que isso custasse o fim daquela
nossa conversa milagrosamente prolongada. — Enquanto alguns querem
demais, outros não querem nada. Mas, a vida é assim mesmo. Tem até um
poema brasileiro que fala sobre isso. João amava Teresa que amava
Raimundo que amava Maria e por aí vai.
Ouvi apenas a sua risadinha.
— O que está tentando dizer com isso?
Bom, esse era o meu o momento. E eu não ia fugra da raia.
Virei o rosto para ela, encarando-a fixamente.
Nunca tive filtros mesmo.
— Estou falando que, enquanto esse filho da puta não some da
minha vida, tem uma mulher, bem aqui na minha frente, que eu sou louca
pra pegar, mas ela simplesmente não quer, porque, aparentemente, não está
interessada.
Foi aí que o seu sorriso diminuiu.
Me encarou por alguns instantes. Aquele olhar que poderia
atravessar o meu corpo. E, então, passou a língua entre lábios, como se
estivesse tentando se reprimir de falar algo, olhou para frente, na direção do
horizonte, puxou o ar, liberando-o novamente, até que...
— E quem disse que eu não estou interessada?
Bingo!
Era isso o que queria ouvir, meu Deus.
O que eu sempre quis ouvir saindo da sua maldita boca, desde
aquele primeiro beijo.
E, bem, eu nunca duvidei que ela estivesse interessada. Só falei
aquilo para dar um charminho ao final da minha frase mesmo.
Porém...
— Se você está tão interessada, porque não faz logo o que tem
vontade? — ergui uma das sobrancelhas, quase como um desafio.
Ela, no entanto, sorriu fraco, balançando a cabeça de leve.
— Sério mesmo que você quer entrar nesse assunto logo agora? —
Um pequeno vinco se formou em sua testa, após um breve suspiro. —
Agatha, eu, simplesmente, não posso.
Bufei, soltando ar bruscamente. Aquele papinho de “quero, mas não
posso” me irritava pra caramba.
— Só quem pode dizer isso a você sou eu. Dona do meu corpo.
Apenas eu que digo quem pode ou não tocar em mim. E eu digo que você
pode. Isso é o bastante. Isso deveria ser bastante.
Scott, soltou uma pequena risadinha, meio sem humor, meio irônica,
balançando a cabeça.
— Sim, deveria ser o bastante. Mas, não é bem assim que funciona.
Você é completamente dona do seu corpo. Só que eu preciso seguir regras.
Regras que não estão ao seu alcance, nem ao meu. Eu não posso me
relacionar com quem supervisiono na penitenciária, nem com detentas.
Pelo amor de Deus.
— Foda-se as regras — retruquei. — Depois dos seis meses eu
estarei livre daquele inferno. E aí, o que acontece? Eu vou estar
automaticamente habilitada para beijar a sua boca? É isso? Até lá, eu sou
uma merdinha, e, depois que acabar, eu volto a ser gente? Pode me explicar
isso?
Respirando fundo, passou uma das mãos no rosto.
— Agatha, apenas entenda que agora não dá. Eu queria que as
coisas fossem mais simples, mas elas não são.
Hum?
Franzi o cenho.
— Queria mesmo? Tem certeza disso? — Quase cuspi as palavras,
irritada, por mais que eu não quisesse que o clima entre nós tivesse ido por
esse caminho. Estava maravilhoso o nosso diálogo na paz e na
tranquilidade, assim como o meu bom humor também, mas eu
simplesmente não conseguia engolir aquelas justificativas calada. — Pra
mim, você não passa de uma arregona. Sim, arregona! Certamente, o
problema é que você tem vergonha de estar comigo. Vergonha por eu estar
cumprindo pena, e, por eu ser apenas uma garota mais nova e,
aparentemente, imatura. Você me vê como uma criança, né? — cerrei os
olhos. — E isso não pega bem pra você, pra sua carreira. Isso não pega bem
para a grande, incrível e profissional policial Scott. Mas, se fosse a
imponente e maravilhosa inspetora Alexa Westphalen, não teria problema
algum, não é?
Juro que tentei evitar, mas não consegui deixar de pronunciar o
nome Alexa Westphalen com toda a raiva que eu já estava sentindo.
Ela, por sua vez, soprou o ar pela boca, quase rolando as orbes.
— Não fala merda, garota. Você não sabe de nada. Não sabe da
minha vida e do que eu sinto — retrucou. — Você é mimada. Quer ter tudo
na palma da sua mão, inclusive pessoas. Eu tenho certeza que se eu te
pegasse aqui e agora, ou te desse uma noite de sexo, toda essa sua vontade
ia passar, porque isso é só fogo. Depois que ele apagar, você vai esquecer
essa fixação.
Ah, é?
Então, é assim?
— Se pra você eu sou mimada, pra mim você é medrosa. Não teria
coragem de me pegar aqui e agora, pra tirar a prova.
Ela apenas ergueu uma das sobrancelhas, me fitando fixamente com
aquele olhar que enxergava a minha alma.
— É isso o que você acha?
— Sim, e ainda acho muito mais — respondi de pronto. — Você é
medrosa. Você tem medo de tentar e... — Bufei, meneando a cabeça. Não
valia a pena continuar. A gente não ia chegar a lugar algum. Era melhor
concordar em discordar. — Quer saber? Cansei. Não vou mais falar sobre
isso. Vou voltar a dormir — e lhe oferecendo um último olhar, me virei.
Porém, assim que eu dei o primeiro passo para sair dali, senti meu
braço ser repentinamente puxado por uma Zara afoita e desejosa. Meu
corpo voltou para ela de maneira brusca e, quando eu dei por mim, já estava
colado no seu, com suas mãos me envolvendo por todos os lados. Pelas
costas, pela cintura, pela nuca.
Porra...
Cada centímetro do meu corpo acendeu.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, entretanto, sua boca
tomou a minha em um beijo que não era nem um pouco calmo. Na mesma
velocidade, me guiou por ali, até que eu encostasse a parte de trás dos meus
joelhos na mesa da cozinha. Quase agressiva, me colocou sobre ela. Soltei,
ali por cima, em um lugar qualquer, meu celular e o copo que ainda estava
em minha mão. E, assim, pude tocá-la da maneira como eu queria.
Aproveitei tudo. Aproveitei aquele momento mágico em que ela
finalmente estava deixando, para finalmente segurá-la entre as minhas mãos
do jeito que eu desejava. E ela me beijou inteira, assim como eu também
fazia a mesma coisa nela. Minha boca, meu pescoço. Chupou minha língua.
Sugou meus lábios. Cacete, eu estava no paraíso. E, para ficar ainda
melhor, seus dedos desceram as duas alças da blusa que ela mesma tinha
emprestado.
Eu estava sem sutiã.
Meus peitos ficaram completamente despidos, quando, instantes
antes de colocá-los em sua boca, ela os observou como se fossem duas
obras de artes comestíveis e prontas para serem devoradas. Eu nunca,
nunca, tinha visto aquele olhar nela. Confesso, foi a melhor visão que eu
tive em anos. E, meu Deus, eu achei que fosse morrer no momento em que
ela me puxou mais para si, encaixando-se entre as minhas pernas e fazendo
meu corpo se inclinar para trás, para que pudesse me chupar.
Observei tudo com os cotovelos apoiados sobre a mesa. E, juro,
segurei o gemido tantas vezes, porque eu sabia que não podíamos fazer
barulho. Quase não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Era
bom demais para ser verdade. Será que era um sonho? Se fosse, caralho, eu
não podia acordar. Ela sugou, chupou, brincou com meu mamilo em sua
boca, enquanto tocava e massageava o outro com os dedos.
Que boca mais gostosa da porra.
Meu ponto fraco. Absolutamente meu ponto fraco.
Minha calcinha ficava mais molhada a cada segundo. E a minha
boceta encharcada e encaixada na sua coxa era como uma tentação para que
eu quisesse deixar aquilo ainda mais imoral. Eu queria mais. Eu queria me
esfregar nela. Ou melhor, eu queria que ela colocasse a mão em mim. A
boca ali. Talvez a minha boceta junto com a dela. Eu queria gozar.
Determinada a isso, ofegante, e completamente maluca de tesão,
segurei uma das suas mãos e tentei levá-la para dentro do meu short.
Porém...
Ela me parou, puxando meu corpo de volta para cima e colando seus
lábios nos meus, para sussurrar:
— E, agora, o que acha? Ainda sou medrosa?
Embevecida de prazer, eu apenas respondi:
— Acho que quero ir pra cama com você...
Scott, por sua vez, se afastou e, encarando-me séria, falou:
— Não... Você não quer — Ah não, como assim? — Eu já dei o que
você queria. É só um restinho tesão que você ainda sente. Deixa esse fogo
baixar e, então, tudo vai passar — finalizou, se soltando de mim e subindo
as alcinhas da blusa para os seus devidos lugares.
Pera aí, pera aí, pera aí...
Que merda era essa?!
EU ESTAVA FODIDAMENTE MOLHADA NESSE CARALHO.
— Você não está me dizendo que vai me deixar assim, né...? —
Quase ri de nervoso, esperando que fosse alguma piada de mal gosto.
— Finalizamos por aqui, Agatha. Eu já dei o que você queria.
Simplesmente respondeu, como se estivesse na padaria pedindo
cinco pães pra viagem.
— Quê?! — arregalei os olhos, aturdida, revoltada, alucinada. —
Sua... — ofeguei, procurando palavras para descrever a minha completa
indignação. — Sua... — ofeguei de novo, e não era de excitação. — Sua
filha da puta! — disparei, finalmente.
— Fala baixo, garota. Meu filho está dormindo — disse ela,
ajeitando a própria roupa e afastando-se ainda mais de mim.
QUE ÓDIO.
Realmente, ela tinha toda razão quando dizia que o meu tesão ia
passar, porque, agora, tudo o que eu sentia era raiva!
E, bem, no fundo, eu tinha certeza que esse era o seu objetivo.
— Por que você sempre começa e não termina? Por que, caralho,
você tem que me deixar desse jeito? — apontei para o meu short, com um
vinco enorme na testa.
— Porque é assim que tem que ser. Esse fogo vai passar, Agatha.
Não vai durar. Pode ter certeza — suspirou. — Durma no meu quarto. Eu
vou voltar a dormir com o Nick.
Foi tudo o que ela me disse, segundos antes de me dar as costas e
sair dali.
Porém, dentro de mim, além do ódio, tinha outra coisa que
absurdamente gritava. Não era só tesão, porra! Não era só fogo! Quero
dizer... Era também. Mas, não era só isso. Era muito mais que isso. Eu tinha
certeza absoluta de que era mais do que isso, porque, algo assim, eu nunca
tinha sentido por alguém.
Absurda e completamente maluca por
você
Agatha
✽✽✽
Zara
Zara
✽✽✽
Agatha
Eu via a minha vida inteira passar frente aos meus olhos, com um desfile
infindável de festas, bailes, jantares, iates e partidas de golfe. Sempre as
mesmas pessoas desinteressantes, sempre as mesmas conversas idiotas.
Sempre os mesmos caras ricos que achavam que podiam comprar o meu
afeto, baseados na quantidade de dólares que tinham nas contas bancárias.
Quem me observava de fora, até poderia me considerar uma garota rasa,
superficial, que adorava o luxo, o dinheiro e tudo o que a alta sociedade
poderia proporcionar.
Eu não era capaz de negar que já havia muito disso entranhado em
mim. Afinal, cresci com isso, fui criada e educada com notas gordas de
dinheiro. Acostumada a ter tudo na mão, eu gostava de todas as coisas que
fossem de bom gosto. No entanto, sempre que eu estava no meio daquela
gente que o meu pai me forçava a conversar, exatamente como agora, na
maldita confraternização de natal do Grupo Hotéis Ballard, eu me sentia
absolutamente deslocada. Absolutamente farta de ter que agir como aquela
bonequinha de porcelana.
Por fora, eu não era nada mais do que se esperava da herdeira de um
grande complexo hoteleiro em Las Vegas. Fina, classuda e educada. Por
dentro, eu estava gritando, mesmo que eu soubesse que ninguém se
importava ou percebia. Ali, ninguém estava realmente me enxergando.
E a única pessoa que talvez me visse por dentro, debaixo de todas as
roupas caras e maquiagens bem feitas, não estava comigo agora.
Zara.
Em meio àqueles assuntos, que não faziam o menor sentido para
mim, puxados por pessoas que não me interessavam nem um pouco, eu só
conseguia pensar nela. E no quanto eu gostaria que ela estivesse ali comigo.
Talvez me salvando daquele completo tédio, ou das mãos de algum escroto
que não perdia a oportunidade de me tocar pela cintura, mesmo que eu não
desse abertura alguma para isso.
Eram as mãos dela que eu queria em mim. Era na minha cama que
eu ainda queria estar. Com ela.
Mas...
O meu pai tinha que aparecer para estragar tudo.
Fui vestida e maquiada, mais uma vez, como um objeto inanimado,
e jogada ali, no meio do saguão de um dos hotéis mais caros do meu pai.
Ao meu redor, pessoas riam e sorriam para mim, tomando seus
champanhes, enquanto eu só desejava que aquilo acabasse o mais rápido
possível. Mulheres querendo a minha amizade por interesse na vida boa que
eu poderia proporcionar. Homens desejando a minha boceta. E eu pedindo
aos céus que um meteoro caísse exatamente ali e matasse todo mundo.
Porém, o momento em que eu realmente quis morrer foi quando
uma daquelas garotas riquinhas, muito semelhante a imagem que eu
passava, me puxou para um local onde havia muitas outras exatamente
iguais. Um grupinho de quatro garotas, que eu não conhecia, mas que não
precisavam ser apresentadas para que eu soubesse exatamente quem elas
eram. Filhas de empresários ou aspirantes a ricas, além dos rostos e corpos
bonitos, elas não tinham mais nada a oferecer.
Tempos atrás, eu até poderia me interessar pela companhia delas, se
fosse para foder alguma. Mas, agora, uma vez que na minha cabeça só
parecia existir a Xena, eu já nem me importava mais com qualquer
benefício sexual que eu, por acaso, pudesse conseguir delas.
— Agatha...! Essa festa está maravilhosa! — Uma delas comentou.
Era uma loira peituda e cheia de plásticas no rosto com, aparentemente,
apenas vinte anos de idade. — Na verdade, não existe uma festa organizada
pelos Ballard que não seja maravilhosa — sorriu faceira, tomando um gole
do seu champanhe.
Que entediante... Aquela mesma babação de ovo de sempre.
— É... Pois é, né... Tá show... — falei meio sem interesse, olhando
para os lados, enquanto tentava achar alguma rota de fuga.
— Russell Ballard é um homem incrível... — disse uma das
morenas, quase suspirando.
Homem incrível?
Franzi o cenho para ela.
Talvez só a casca dele, e aquilo que ele fingia ser na frente das
pessoas, parecesse incrível. Mas, se convivessem com ele, assim como era o
meu caso, certamente mudariam de opinião.
— E é um gato também, né? — A outra morena falou, enquanto
suas amigas soltavam risadinhas sacanas, tão interessadas quanto. — Ele
está solteiro?
Ahhh, agora eu estava entendendo onde elas queriam chegar e a
razão para terem me puxado até ali. Claro que tinha algum interesse por
trás. E eu acabava de descobrir qual era.
Em instantes, meu semblante com cenho franzido mudou para uma
das sobrancelhas erguidas. Xeque-Mate. Elas queriam o meu pai. E, sim,
isso era bem nojento, mesmo que ele fosse um coroa enxuto. Qualquer uma
delas tinha idade para ser minha irmã.
Não que eu fosse inocente o suficiente para achar que Russell
Ballard não tinha suas aventuras com mulheres de todas as idades, inclusive
com garotas que poderiam ser suas filhas. Mas, ainda assim, era claro,
lógico e evidente que eu não ia servir de cupido entre as interesseiras e o
filho da puta.
— Por falar nisso, onde ele está, heim? — A loira peituda e
plastificada perguntou, ao observar ao redor. — Você bem que poderia
descolar um encontrinho com ele para nós, Agatha.
Para as quatro? Tipo, ao mesmo tempo?
Pelo amor de Deus.
Puxei um drinque qualquer de um garçom que passava ao lado. Eu
precisava de uma bebida para ouvir isso. Virei quase a taça toda de uma só
vez.
Onde ele estava, eu não sabia, mas de uma coisa eu tinha certeza: ia
vazar daquela rodinha agora mesmo.
— Olha só, eu ouvi alguém me chamar bem ali... — apontei para
um ponto qualquer, atrás de mim, oferecendo-lhes um sorriso bem forçado.
— Foi bom falar com vocês, mas eu preciso ir, tá legal? Até... — Nunca
mais. — Até mais!
E dei o fora dali o mais rápido que eu conseguia.
Soltei o ar pela boca, balançando a cabeça, ao caminhar sem rumo
por entre os convidados. Terminei de beber o drinque, em um só gole, e
larguei o copo em cima de uma mesa cheia de gente, sem me importar.
Era só o que me faltava mesmo ficar ouvindo aquela baboseira... Já
bastava ter sido obrigada a estar ali e ter de aguentar, por horas, aquela
quantidade de gente absolutamente sem graça. Eu não precisava aturar
garotas ricas, ou quase ricas, que, além de serem sustentadas pelo próprio
pai, agora queriam ser sustentadas pelo meu pai também.
Claro que aquela desculpa de ter alguém me chamando nunca seria
um fingimento por completo. À medida que eu passava, era chamada e,
praticamente, puxada por gente que eu nem conhecia. “Admiradores” da
família Ballard, ou interesseiros mesmo. Mas, dessa vez, eu não parei.
Honestamente, eu não estava a fim de falar com ninguém. E deveria
aproveitar o fato de que o meu pai não estava ali, enchendo o meu saco para
receber cada daqueles convidados.
Continuei caminhando, na tentativa de encontrar um lugar tranquilo
para eu ficar. Entretanto, foi quando eu dobrei, para um lado, que os meus
olhos se encontraram com os de Louis, pela primeira vez, naquela
confraternização. Ele estava próximo a um balcão de drinques e cravou as
orbes mim, sem que desse tempo de eu disfarçar. Puta que pariu. Só vi e
ouvi quando ele acenou, dizendo a certa distância:
— Oi...! — sorriu meio atravessado. Ele já parecia bêbado, e ainda
era só meio-dia. — Oi, Agatha! Eu estava mesmo procurando você...!
Ai, cacete.
Empertigada, simplesmente corri dali, me enfiando sem rumo, por
entre as pessoas, até, de repente, encontrar uma porta qualquer e entrar ali
sem nem saber onde eu estava.
Quando o silêncio alcançou os meus ouvidos, por eu ter conseguido
escapar e estar em um lugar vazio, respirei fundo, aliviada e encostada a
uma das paredes. Graças a Deus. Eu nem sabia em que parte do hotel eu
estava, mas, quando olhei ao redor, me vi em um corredor com várias salas
daquilo que parecia ser da administração do hotel.
Repentinamente, porém, uma voz, ao longe, tornou-se nítida para
mim. Parecia ser... Parecia ser do meu pai. Franzi o cenho. Então, era ali
que aquele coroa estava? Balancei a cabeça. Era melhor que eu encontrasse
uma sala vazia antes que ele me encontrasse e a minha amostra grátis de
paz acabasse.
Quando pensei em dar um passo, no entanto, sua voz falando algo,
chamou a minha atenção:
— Olha só, traga para mim apenas as melhores garotas que você
tiver. Se houver garotas virgens, ainda melhor, eu pago o quanto for preciso.
Loiras, morenas, ruivas, pretas, brancas. De todo tipo. Mas, apenas as
melhores.
Enruguei a testa, travando no ato.
Que porra era essa?
E eu sabia que eu deveria dar o fora dali, antes que ele pusesse os
olhos em mim, mas eu simplesmente não conseguia ir em frente depois de
ouvir algo tão sem sentido.
O que o meu pai queria com garotas virgens?
E, tipo assim, as melhores de todos os tipos?
Eu não sabia que caralho isso significava, mas, dando vazão a toda a
curiosidade nascente em mim, caminhei na direção de onde eu escutava a
sua voz. Parecia ser numa das últimas salas do corredor. Devagarzinho me
aproximei dali e senti o coração acelerar ao perceber que havia uma
pequena fresta aberta na porta.
Com todo o cuidado, coloquei meu olho apenas naquele espacinho
e, então, pude ver o que acontecia ali. Era realmente o meu pai. E ele estava
dentro daquela sala, que parecia um escritório, junto com Harry Claflin, o
pai do Louis. Vi quando Russell mexeu em algo no notebook e perguntou:
— Qual a previsão de chegada delas aqui?
— Bom, elas devem estar saindo das Bahamas após o ano novo.
Precisam sair de lá à noite e também chegar aqui no período noturno, para
não chamar atenção — disse o Harry. — Vai ser tudo cronometrado. Não se
preocupe, já estamos preparados. Relaxe, Russell. Vai tudo correr na mais
perfeita ordem. Agora, aproveite a sua confraternização.
Meu pai sorriu de leve.
— Tem razão... Tudo bem, vamos nos divertir. Sem negócios hoje,
Harry — E soltou aquela nojenta e falsa risadinha que só ele tinha.
Foi tudo o que ele disse, segundos antes de dar duas batidinhas, de
leve, no ombro do outro, e caminhar na direção da porta daquela sala.
Exatamente. Onde. Eu. Estava.
Droga, droga, droga.
Quase desesperada, olhei de um lado para o outro, procurando um
lugar onde eu pudesse me esconder. Pensa, pensa, pensa, Agatha. Ainda
olhei para as portas das outras salas do corredor, mas nada me garantia que
pudessem estar abertas. E, o tempo que eu levaria para verificar isso,
poderia ser o tempo que eles me veriam ali, com a mão na massa.
Quando eu girei o pescoço pela milésima vez, no entanto, como se
uma luz tivesse piscado para mim, eu vi. Era uma cortina gigante, bem ao
lado da sala onde eles estavam. Amém. Em um piscar de olhos, me coloquei
atrás dela, tomando todo o cuidado do mundo para que nem a pontinha do
meu pé aparecesse.
Eles saíram do escritório e caminharam pelo corredor. Só as suas
costas eu podia visualizar. Para a minha completa felicidade, não
perceberam que eu estava ali. Cruzaram pela porta do corredor, deixando o
local, agora, completamente vazio. Aguardei alguns instantes atrás daquela
cortina, mas, quando me certifiquei de que não voltariam, eu não pensei
duas vezes em agir.
No fundo, eu sabia que era um risco continuar naquele lugar, ainda
mais entrar no escritório. Porém, eu não conseguiria ir para outro lugar, sem
antes tentar entender sobre o que eles estavam falando. Com a ânsia da
descoberta, corri lá para dentro, à procura do tal notebook. Olhei de um
lado para o outro, girando o pescoço várias vezes, mas eu não o via em
lugar algum. Não estava mais em cima da mesa, nem aparentemente em
qualquer outra parte.
Porra, eles tinham levado?
Que saco.
Ainda procurei em todos os lugares possíveis, não apenas o
notebook, mas qualquer outra coisa que pudesse ser suspeita ou esquisita.
Abri gavetas e armários, revirei tudo, fucei papéis e agendas, mas não havia
absolutamente nada que despertasse a minha atenção ou que parecesse ter a
ver com o que eles estavam conversando.
Droga.
Frustrada, puxei o ar, ainda olhando ao redor e pensando em qual
outra parte eu poderia procurar o que quer que fosse. Quando fui dar um
passo para vasculhar o armário outra vez, a porta da sala se abriu.
Meu coração disparou, achando que fosse o meu pai.
Porém...
Quem entrou foi Louis, em toda a sua aura bêbada e absolutamente
sacana.
Eu senti o cheiro do álcool de longe.
Merda.
— Ah...! Aí está você, sua diabinha fugitiva...! — sorriu torto,
falando com a língua enrolada pela quantidade de bebidas que já deveria ter
tomado. — Finalmente te achei.
E se aproximou de mim. Apesar de bêbado, seus passos eram ágeis,
rápidos e decididos. Sem que eu conseguisse o deter ou mesmo desviar,
seus braços me envolveram ligeiro, com ímpeto e força, enquanto sua boca
já ia direto no meu pescoço.
Mas que droga!
— Louis, tira a merda dessas mãos de mim! — tentei empurrá-lo
com o máximo de força, ou socá-lo no seu saco, mas cada investida minha
era fracassada, porque ele tinha muito mais força. Ou, sei lá, “habilidade”.
Se eu tivesse ao menos alguma técnica de luta para defesa pessoal, isso já
poderia valer mais do que realmente ter força.
O caralho era que eu não tinha nem técnica, nem força.
E ele, completamente maluco e alterado, só ria de mim, enquanto eu
tentava me safar.
— Você não vai conseguir mais fugir de mim, amor — disse ele, me
empurrando contra a mesa do escritório e me forçando a sentar com as
pernas abertas para que ele se encaixasse no meio. — Vou te provar como,
dessa vez, eu te conquisto.
Han?!
— Sai pra lá, seu doente! Para... Para com isso, porra! — tentei
falar, mesmo com a sua boca pressionando a minha. — Eu não... Eu não
quero! — E, enfim, cuspi na sua cara.
Foi aí que ele repentinamente parou.
— Ah, então, é assim?
Seus olhos se tornaram ainda mais intensos, numa mistura de raiva e
desejo.
E, então, me segurou com ainda mais força, tomando os meus
lábios, outra vez.
Seus dedos já iam abrindo o zíper do meu vestido, quando uma voz,
aquela voz, bem séria e rígida, disse:
— A garota mandou parar.
Bruscamente, o pegou pelos braços, tirando-o de perto de mim,
praticamente o chacoalhando como se ele fosse um saco de bosta. E ele era
mesmo.
Zara...
Minha expressão suavizou em menos de dois segundos, ao vê-la, e...
Cacete, era ela. Em choque com a surpresa, ainda pisquei os olhos
repetidas vezes para ter certeza de que eu não estava sonhando. E, apesar de
eu ter afirmado a minha visão umas trezentas vezes no último minuto, ela
parecia ser real mesmo. Muito mais real do que eu poderia imaginar.
Tudo dentro de mim saiu do lugar.
Era felicidade, alívio, desejo por ela, admiração e... Talvez... Amor.
— Quem é você, heim...? — desaforado, ele questionou. — Posso
saber com que direito está me segurando assim?!
— Policial Scott — tirou seu distintivo do bolso e praticamente
esfregou nas fuças dele. — Sei quem é você, Louis Claflin. Herdeiro de
casas de shows noturnos nas Bahamas e excêntrico bilionário. Vou ficar de
olho em cada passo seu. E terei o prazer de fazer você ver o sol nascendo
quadrado todos os dias, se tentar qualquer coisa contra essa garota. Então,
se não quiser ter problemas com a polícia, sugiro que dê o fora daqui agora.
Bom, as suas palavras e a maneira como ela falou fizeram até eu
mesma estremecer. E, com aquele filho da puta não foi diferente, o
semblante desaforado de outrora, gradativamente sumiu, a cada frase dita
pela boca da policial. Se em um minuto ele não parecia nada mais que um
bêbado prepotente, agora ele não passava de um cachorrinho com o rabo
entre as pernas.
Foi exatamente assim que ele saiu dali. Como um cachorrinho com
o rabo entre as pernas, depois que Zara o soltou com um empurrão. Ele
ainda tentou fitá-la com certos ares de superioridade, mesmo que eu notasse
que, por dentro, ele tremia nas bases. Scott, no entanto, sustentou o olhar,
não deixando se intimidar por nem um segundo. Troncho, ele quase
cambaleou por ali, e, sem olhar para mim (amém), saiu.
Enfim, respirei fundo, aliviada por aquele canalha ter ido embora e
por aquela mulher maravilhosa estar ali comigo.
Tudo o que ela fez, depois disso, foi caminhar até a porta para
fechá-la. E eu queria agradecê-la, dizer “muito obrigada” um milhão de
vezes, pular no seu colo e beijá-la até cansar, mas, graças a minha enorme
curiosidade, tudo o que consegui fazer foi perguntar, com o coração ainda
saltando do peito:
— O que está fazendo aqui?
Só que aí, o meu fôlego foi completamente sugado quando ela,
depois de fechar a porta, cruzou todo o espaço entre nós, com um olhar tão
determinado, e pousou suas mãos em cada lado do meu rosto, pegando-me
anda mais de surpresa, ao me beijar, dizendo:
— O que você está fazendo comigo, garota...? Eu não podia ir
embora daquele jeito. Eu não tinha condições de voltar pra casa, depois de
tudo aquilo, depois de você... E... — suspirou, balançando a cabeça, meio
perdida entre as palavras. — Você sabe o que eu tô dizendo, né? Você está
sentindo isso também, não está?
É sério que Zara Scott estava pronunciando todas aquelas palavras
para mim, enquanto me beijava e me encarava no fundo dos olhos?
Eu quase não conseguia acreditar. Juro. Um dia atrás, ela estava
fazendo de tudo para me evitar, mesmo com o seu interesse à flor da pele.
E, agora, ela me beijava como louca, sedenta por aquilo, como se tivesse
esperado tempo demais.
E tinha.
Três semanas poderia parecer pouco, mas, para quem desejava
alguém com todas as forças do corpo, não era. Não poderia ser.
Naquele instante mágico, em sua voz e em seu jeito de falar, houve
necessidade, tesão, desejo imbuído nas palavras, mas, sobretudo, loucura. E
eu amava isso, porque eu também estava doida por ela.
Desgraçada perfeita.
A beijei ainda mais, numa quase dança sincronizada de lábios,
línguas e mãos, aproveitando para fazer, enfim, na vida real, o que eu
secretamente imaginei nas últimas semanas.
Tão gostoso, tão perfeito... Exatamente do jeitinho como sempre
era, quando a gente se beijava, só que melhor. Agora, tinha gosto de total
entrega e rendição.
Absolutamente recíproco.
— Eu sei, eu sei do que você está falando, porque eu estou sentindo
a mesma coisa — disse eu entre beijos. — Obrigada, obrigada, obrigada por
estar aqui comigo... Obrigada por ter feito isso... — Também mirei no fundo
dos seus olhos, ofegante. — Mas... Como conseguiu entrar aqui no hotel?
Como soube que eu estava aqui? Você é maluca? — soltei uma pequena
risadinha.
— Vantagens de ser uma policial — Ela também riu baixinho,
contando apenas com o pequeno espaço entre os seus lábios e os meus. —
Mas, sim, eu sou maluca... Na verdade, estou maluca por você, garota
impulsiva... O que você está fazendo comigo? — franziu o cenho, me
observando por breves segundinhos, até me beijar de novo.
— O mesmo que você está fazendo comigo... — respondi com tanta
vontade de sentir, com a minha boca, não apenas os seus lábios, mas todo
restante do seu corpo.
E ela suspirou, encostando sua testa na minha, cheia de desejo. Era
tão palpável. Eu poderia senti-lo escorrendo pela sua pele.
— Vamos sair daqui? Vamos pra outro lugar? — perguntou em
quase súplica.
Isso era tudo o que eu mais queria.
— Pelo amor de Deus, sim, me tire daqui e me leve para qualquer
outro lugar onde você esteja.
Durante a vida inteira com ela
Agatha
✽✽✽
Só que o rapidinho dela não foi tão rapidinho assim. Eu não contei
exatamente quanto tempo já tinha passado, mas, talvez, eu já estivesse ali,
com Nick, há uma meia hora ou mais. Afinal, eu pude tomar banho, revirar
seu armário, assim como ela tinha dito que eu estava autorizada a fazer,
vestir um blusão confortável e cheiroso, e ainda ter altas conversas com o
pequeno Nick, sobre os assuntos mais aleatórios que ele falava, incluindo
desenhos animados, presentes de natal e a bicicleta novinha que ele ganhou
do Papai Noel na noite anterior.
Estávamos no quarto da Zara, lá pelo décimo terceiro papo sobre
Toy Story e Shrek, quando eu percebi a televisão dando sopa e perguntei:
— Que tal um filme agora, Nick?
Bom, eu imaginei que Zara não fosse achar ruim. Se ela disse que eu
poderia ficar à vontade para olhar tudo dentro do seu guarda-roupa, então
também não teria problema, caso eu deitasse em sua cama, com Nick, para
assistir mais desenhos animados, como naquela última vez que eu estive lá.
— Sim! Sim! — Sem nem pensar duas vezes, ele exclamou, já
pulando na cama. — Eu adoro assistir filme aqui no quarto da mamãe!
Sorri.
— Ótimo! Então vamos escolher um — disse eu, pegando o
controle da televisão e me sentando ao seu lado. — Vamos ver o que tem de
bom por aqui... — abri nos streamings, procurando alguma coisa que fosse
adequada para crianças.
Enquanto eu mexia por ali, indo e voltando nas abas, percebi quando
ele virou seu rosto para mim, ficou me olhando meio pensativo e, então, de
repente, perguntou:
— Agui... O seu olho é de verdade?
O sorriso que eu dei, misturado com a vontade de rir, foi impagável.
Crianças...
— Como assim...? — franzi o cenho, divertida.
— É porque ele é tão azul que parece de mentira. Tipo o olho das
bonecas das garotas da minha escola.
Agora sim eu ri.
— Eles são de verdade sim, Nick... Prometo que não são de plástico
— brinquei.
— Ah, legal! Você já viu o meu? É castanho — E os abriu bem,
aproximando seu rosto do meu para que eu pudesse ver sem restrição.
Sorri.
Ele era uma graça.
— São lindos, Nick!
— É, eu também gosto do meu olho castanho — comentou, dando
de ombros. — Mamãe diz que tem cor de mel — soltou uma risadinha.
E ele não tinha filtro para falar nada. Era muito parecido com uma
pessoa que eu conhecia muito bem... Eu.
— E tem mesmo... Você é um gatinho, Nick — soltei uma piscadela
divertida para ele.
— É o que as garotas da minha escola falam.
Franzi o cenho outra vez, sorrindo.
— Espera aí... — E me ajeitei sobre a cama, fitando-o com muita
atenção. — Você está querendo me dizer que já tem namoradinhas na
escola, seu espertinho?
Ele soltou uma risadinha brincalhona.
— Não... — E passou os dedos uns nos outros, baixando o olhar,
meio faceiro, para encarar suas mãos. — Quer dizer... As garotas da minha
classe dizem que eu sou o mais bonito de todos os garotos da nossa idade, e
elas também me dão beijo na bochecha. Mas, mamãe disse que eu ainda não
tenho idade para namorar.
Sensata...
Mesmo assim, uau...! Com oito ou nove anos de idade, eu ainda
estava comendo terra.
— Hum, entendi... — acenei um breve sim com a cabeça, ainda me
divertindo com ele.
— Mas, você tá namorando a mamãe, né? — perguntou ele de
repente, fazendo-me quase engasgar com a própria saliva. Nick era sempre
tão direto. Talvez, essa fosse a reação que eu também causava à maioria das
pessoas. — Pode contar pra mim. Vai.
Uma pequena risadinha de surpresa escapou da minha garganta.
— E-Eu...? Nós somos... É... — tentei pensar em alguma desculpa
para dar, mas, humpft, não valia a pena mentir para crianças. Mesmo que eu
não soubesse ainda dar nome para o acontecia entre Zara e eu, era melhor
ser franca com ele. Em geral, adultos deviam saber como conversar com
crianças. E não era daquela maneira que duvidava da capacidade mental
deles. Muito pelo contrário, era de um modo que ativasse, ainda mais, a
inteligência e a esperteza. E inteligente e esperto, o Nick já era bastante. —
Tudo bem... — suspirei, sorrindo. — Se nós fôssemos namoradas mesmo,
você ia gostar?
— É lógico! — respondeu sem nem pensar. — Você parece uma
boneca, e a mamãe parece gostar de você pra caramba! Eu ia adorar que
vocês fossem namoradas.
“E a mamãe parece gostar de você pra caramba...”
Talvez eu nunca me acostumasse a ouvir isso, sem que o meu
coração desse umas trezentas cambalhotas dentro do peito.
Quando pensei em responder, no entanto, ela apareceu.
E eu podia jurar que ela tinha escutado, pelo menos, a última parte
daquela conversa, porque o olhar que nos deu, junto com aquele sorrisinho,
foi tipo “eu sei o que vocês estão aprontado”.
— Opa, opa... — disse ela, ao entrar no quarto. — Vejo que já estão
bem enturmados, heim...?
Nick e eu nos encaramos, cúmplices, e, então, sorrindo para ela,
logo depois, eu respondi:
— Ah, pois é... Espero que não tenha problema... Você estava
demorando e eu achei que fosse uma boa ideia colocar algum filme para
assistir.
Ela soltou uma risadinha.
— É claro que não tem problema — balançou a cabeça de leve. —
Mas... Acho que isso pede uma pipoca, não é?
— Sim, mamãe! Sim! — Nick logo pulou sobre a cama,
entusiasmado.
Nós rimos.
— Quer que eu te ajude? — perguntei.
Pelo menos, pipoca era uma das poucas coisas que eu sabia fazer
na cozinha, sem causar algum tipo de incêndio.
— Por favor — Ela sorriu.
E, assim, deixamos Nick confortavelmente deitado na cama,
enquanto “Enrolados” passava na tela e ele esperava pela tal pipoca.
Seguimos para a cozinha. Pegamos, uma panela e os outros ingredientes.
Bem vintage mesmo, porque, apesar do micro-ondas que ela tinha, estava
faltando justamente a pipoca de micro-ondas.
— Está tudo bem? — Ela perguntou.
— Sim...
Porém, mesmo que a conversa entre Nick e eu tivesse sido um tanto
longa, eu ainda não havia me esquecido do momento em que chegamos ao
seu prédio e da cara meio esquisita que as amigas dela me ofereceram. Por
mais que aquilo pudesse parecer uma grande bobagem, estava quase
escapando pela minha garganta.
E, quando dei por mim, eu já estava comentando, mesmo por alto...
— Não sei, mas... Acho que as suas amigas não gostam muito de
mim. Quero dizer, uma delas parece ser bem simpática, mas a outra nem
tanto. Sinto como se ela tivesse um pé atrás comigo — tentei soltar uma
risadinha de leve, para tirar qualquer possível peso daquilo e não parecer
que tinha me afetado de alguma forma.
Colocando o milho na panela e ligando o fogo, Zara suspirou de
leve, e, então, com um pequeno sorrisinho, virou o rosto para mim, me
observando. Ainda em silêncio, pousou uma das mãos sobre o meu rosto,
fazendo um carinho, por ali, com o polegar. Confesso que eu ainda não
estava acostumada com o seu toque, e talvez nunca conseguisse me
acostumar. Foi por isso que fechei os olhos, puxando o ar brevemente e
experimentando todas as sensações que apenas ela era capaz de causar em
mim.
Só ouvi quando falou:
— Relaxa, tá? É só impressão sua.
E, bem devagar, aproximou seu rosto do meu, beijando os meus
lábios, com todo o carinho que, secretamente, eu desejei que ela tivesse
comigo. Primeiro, o inferior. Depois, o superior. E, em seguida, voltando
para o primeiro. Sugando de leve, pedindo passagem para a sua língua.
Mas, não afoita. Na verdade, sem pressa, como se não visse os minutos
passarem, ou o mundo inteiro se mover ao nosso redor. Isso me desmontava
em um milhão de pedaços, porque eu não imaginava que, naquele dia e
naquela exata hora, nós fôssemos estar exatamente dessa maneira.
✽✽✽
Agatha
Depois de repetirmos por mais umas duas vezes, tão intensas e demoradas
quanto a primeira, dormimos esgotadas, abraçadas uma na outra, mesmo
que ainda nem fosse tarde da noite. Tê-la daquela maneira, com seus braços
e pernas estirados preguiçosamente sobre mim, depois de fazermos sexo,
estava no top cinco das melhores sensações do mundo, sem dúvidas. E,
bem, o meu top cinco era formado por tudo o que fizemos naquele dia. Eu
só precisava decidir os lugares de cada coisa. Afinal, era muito complicado,
quando absolutamente tudo parecia perfeito.
Eu estava no paraíso.
E, graças ao tamanho da paz que eu sentia, o mundo dos sonhos não
demorou a me encontrar. Praticamente flutuei em uma nuvem qualquer, por
lugares onde existia apenas eu e ela, durante uma vida inteira. Mesmo que
isso parecesse tempo demais. Maravilhoso, perfeito... Eu estava feliz com
coisas que achei que nunca fosse, ao menos, almejar um dia. Digo, eu nunca
fui exatamente uma pessoa sentimental. Não mesmo. Os meus objetivos
eram apenas ficar, pegar, ter um momento legal com a pessoa, e, depois,
cair fora. Sempre assim. Era o que fazia eu me sentir bem.
Mas, não com ela.
Com ela, só aquele sexo não bastava.
Assim como também dormir juntas, daquela maneira, uma única
noite não parecia ser o suficiente. Não satisfazia as necessidades que eu já
sentia, porque, mesmo sonhando e viajando por outra dimensão, enquanto
os meus olhos estavam fechados, eu sabia que queria repetir aquilo outras
trezentas e cinquenta mil vezes.
Só que aí, entre um cochilo e outro, um barulhinho insistente
começou a me incomodar. Ele não parava. Era incessante, de modo a me
fazer empertigar em cima da cama. E eu estava tão tranquila... Franzindo o
cenho e tentando abrir os meus olhos pesados, olhei para o lado. Meu
celular estava em cima da cabeceira da cama, vibrando a todo segundo.
Droga. Sibilei um palavrão qualquer e tentei me erguer com cuidado. Ela
ainda dormia com o corpo praticamente sobre mim.
Quando, enfim, consegui alcançá-lo e, com os olhos meio trocados
de sono, visualizei a tela, era o nome da Evangeline que aparecia. Ah, meu
Deus. De súbito, fui sugada para o mundo real, longe daquele dos meus
sonhos, em que existia apenas Zara e eu. Aqui, onde ainda estávamos,
também existia o meu pai. E, mesmo que eu tivesse recusado todas as suas
chamadas e mensagens, a ligação da Evangeline eu não podia simplesmente
rejeitar.
Respirando fundo e já tentando me preparar para qualquer coisa,
atendi.
— Oi, Eva.
Foi tudo o que eu consegui falar.
— Ai, meu Deus... Graças a Deus! — De pronto, ela exclamou,
exaurida. — Onde você está, menina? Faz horas que eu te ligo e tento falar
com você!
Enruguei a testa, achando tudo aquilo muito estranho. Evangeline já
estava acostumada com as minhas saídas e os meus sumiços. Aliás, não
somente ela, mas o meu pai também. Já cheguei a passar três ou quatro dias
fora, sem dar notícia alguma, e ninguém morreu por isso. Eu não entendia o
motivo de tanto alarde.
— O que aconteceu, Eva?
Ouvi quando ela soprou o ar.
— Eu que o pergunto o que aconteceu, Agui...! Seu pai está louco
dentro de casa. Desde cedo, ele tenta entrar em contato com você, mas você
não atende, não responde suas mensagens, não aparece... — suspirou. —
Querida, ele está uma fera!
Que saco.
— Eva, diga pra ele que estou bem e que volto em 2050, tá bom?
— Não, menina! — Sua exclamação foi automática. — Eu estou
muito preocupada. Você sabe como o seu pai fica, quando está furioso e...
Ele está a ponto de mandar os seus homens procurarem você em cada parte
da cidade! Eu temo pelo que possa te acontecer, se você demorar ainda mais
a voltar para casa. Venha logo, querida. Por favor. É tudo o que eu peço.
Merda... Fechei os olhos, respirando fundo e lentamente. Toda a
minha força de vontade em permanecer ali, simplesmente, se esvaindo
pelos meus dedos.
Sim, eu queria ficar, eu queria continuar com a Zara, o melhor lugar
do mundo inteiro, assim como, nem de longe, estava satisfeita em fazer as
vontades do meu pai. Por outro lado... Mesmo que, diversas vezes, eu
tentasse bater de frente com ele e impor as minhas próprias decisões, eu
também temia pela minha própria pele, porque eu sabia que, em todas as
vezes, ele sempre foi mais forte que eu. Além do mais, com Eva me
pedindo daquela maneira, tão angustiada, eu não conseguia pensar em outra
coisa, a não ser, enfim, aparecer em carne e osso para acalmar os ânimos.
Não do meu pai, mas dela.
— Tudo bem. Eu já estou indo. Chego daqui a pouco, Eva — disse
eu, fraca, frágil, desanimada por ter que interromper a melhor coisa que
tinha me acontecido nos últimos tempos, só para ter de voltar para casa que
nem uma cadelinha adestrada.
Quando desliguei o celular, no entanto, colocando-o de volta na
cabeceira da cama, ouvi sua voz...
— O que houve?
Ela tinha acabado de acordar. De cenho franzido e ainda com certa
dificuldade de abrir os olhos, ela me fitou, sentando-se na cama, da maneira
como eu também estava.
Puxei o ar brevemente.
— Nada demais... — tentei ensaiar um pequeno sorriso a ela. — Eu
só preciso ir pra casa agora. Você pode me levar?
Zara ainda me observou por alguns segundinhos com um semblante
que eu não conseguia descrever, até que, após suspirar, me abraçou,
fazendo-nos cair juntas sobre a cama outra vez. Beijando o meu rosto, ela
disse meio preocupada:
— Eu ouvi você falando ao telefone... É o seu pai, não é?
— Como sempre — rolei os olhos, cansada apenas de pensar. — Eu
não queria ir. Queria ficar aqui com você. Mas, Evangeline me suplicou.
Ela parecia bastante preocupada.
Foi então que Zara soprou o ar pesado e passou as mãos no rosto.
— Não me sinto bem em saber que você vai estar dentro de casa
com ele, depois de eu ter visto o que ele pode fazer com você
E ela nem viu praticamente nada... Eu já tinha vivido coisas piores.
— Não se preocupe... Passei a vida inteira assim. E, se ele ainda não
me matou, não vai ser agora que isso vai acontecer.
Ela, por sua vez, balançou a cabeça, inconformada.
— Mas, isso não está certo... Não é normal que ele trate você dessa
forma, por mais que seja o seu pai. E, agora que eu sei disso, não posso
simplesmente aceitar.
Ah, meu Deus, ela era tão linda.
Depois da minha mãe e da Evangeline, essa era a primeira vez que
alguém se importava dessa forma comigo. E eu não podia negar que
aquecia o meu coração de uma maneira sem igual. Era como estar
alcançando o paraíso, depois de tanto tempo no inferno.
Suspirei, deslizando uma das mãos pelo seu rosto, fazendo carinho.
— Eu agradeço a sua preocupação, mas apenas me leve para casa e
eu prometo que tudo ficará bem.
Pelo menos, era nisso que eu queria acreditar.
Zara, no entanto, fechou os olhos, relutante, e, então, quando os
abriu novamente, me fitou tão determinada, dizendo:
— Se ele tentar qualquer coisa contra você, me diga. Está bem?
Deus, ela conseguia ficar mais perfeita do que já era.
E, não, mesmo em meio àquela quase tensão que eu sentia, não pude
deixar de esboçar um pequeno sorriso, tão verdadeiro, que, gradativamente,
tomou proporções maiores. A felicidade por tê-la comigo e a alegria por
termos feito o que fizemos, apoderando-se do meu corpo novamente.
— Sim... Eu digo.
Simplesmente a beijei, sem me aguentar.
A reciprocidade dos seus lábios e das suas mãos foi instantânea. Em
poucos segundos, nós estávamos nos engalfinhando outra vez, entre beijos,
toques e respirações pesadas. A memória do meu corpo ainda estava tão
recente, ao rastro das suas mãos sobre mim, que eu honestamente não
demorei nada para me excitar de novo, sobretudo pela forma como ela me
sentia, me olhava e me pegava a cada beijo.
Suas mãos apalpando os meus peitos tão firmemente e, depois,
descendo pelas minhas pernas, se encaixando entre elas. O desejo crescente,
gritante, monumental. E, então, minha respiração cada vez mais
entrecortada. As batidas dilacerantes do meu coração. E a pulsação da
minha boceta, mais uma vez, querendo dar tudo o que já era dela por
direito.
Mas...
— Melhor a gente parar por enquanto — disse eu, tentando puxar o
fôlego. — Ou vamos fazer tudo de novo e eu só aparecerei em casa amanhã
de manhã.
Ela sorriu, sacana.
— Eu não tenho culpa se você me deixou meio maluca. Ou
completamente maluca. Até tentei resistir, mas você foi persuasiva demais
— brincou.
Você foi persuasiva demais...
Ri, dando um último beijo na sua boca.
— Eu sei disso — E soltei uma piscadela quase convencida para ela,
já pulando para fora da cama e procurando a minha roupa.
✽✽✽
Agatha
Ao final de tudo, quando meu pai, enfim, decidiu parar de cagar pela boca
e se retirou para o seu quarto, eu entrei no meu e tomei, talvez, o banho
mais demorado de toda a minha vida. Era como uma forma de limpar toda a
sujeira que eu sentia das suas mãos em mim. Me esfreguei com esponja por
todas as partes, até que a minha pele ficasse vermelha. Depois disso, Eva
me procurou no quarto. Seu rosto ainda estava extremamente preocupado e
carregado de culpa. Pediu desculpas várias vezes. Eu tentei acalmá-la, Eva
não tinha culpa de nada, e disse que estava tudo bem.
Bom, ainda não estava tudo bem. Mas, ficaria. Sempre ficava.
E, então, ela me fez carinho nos cabelos até que eu dormisse.
Foi um sono reparador, confesso. Era o que eu precisava.
Optei por não procurar Zara para falar sobre o que tinha acontecido,
mesmo que eu tivesse prometido que falaria. A real era que eu continuava
sentindo aquela mesma vontade de estar com ela, de vê-la, de passar o resto
da noite ao seu lado, mas não naquelas circunstâncias que o meu pai criou,
porque eu sabia que, se eu ligasse, ela apareceria na minha casa, em menos
de meia hora, e faria uma baita confusão.
Não que eu não quisesse que fizessem confusão com o meu pai. Ele
merecia. Realmente merecia. E, mais cedo ou mais tarde, quase como uma
certeza matemática, isso acabaria acontecendo. Mas, eu já estava
estupidamente cansada e tudo o que eu queria, para o final daquela noite,
era um bom sono.
Na manhã do dia seguinte, tentei passar uma boa quantidade de
maquiagem no rosto, para tentar cobrir a merda que Russell fez. Uma
tentativa quase frustrada, já que aquele negócio estava realmente feio.
Talvez, ainda levasse por volta de dois ou três dias, para a marca do seu
tapa sair por completo. Ainda assim, fiz de tudo para me iludir de que
aquilo tinha ficado bom e de que Zara não perceberia.
Pontualmente, às sete e meia da manhã, ela chegou à minha casa.
Com uma mensagem sua, no meu celular, avisando que já estava ali, meu
coração faltou dar cambalhotas no peito. Desci as escadas quase correndo,
ansiosa para encontrá-la, como uma colegial estúpida em seu primeiro
romance de adolescência. Às vezes, parecia que eu nunca tinha nem
transado na vida, tamanho entusiasmo bobo que eu sentia por estar com ela
ou, simplesmente, por saber que a veria.
E, bem, a verdade era que, mesmo que eu ainda estivesse meio
sobrecarregada com toda a energia negativa do meu pai, despejada ontem
sobre mim, todo o meu humor melhorava apenas em vê-la. Especialmente
ali, dentro daquele carro, com uma mão no volante, o braço apoiado na
janela, o rosto virado para mim, a farda de policial, a boina sobre cabelos
presos em um coque, e aqueles óculos escuros de aviador. Sexy, charmosa,
a oitava maravilha do mundo. A sensação era de que eu fosse a garota mais
sortuda do mundo inteiro, por estar dando para aquela mulher e a comendo
também.
Abri a porta do seu carro e, em dois segundos, ao fechar e me sentar
no banco, avancei em sua direção, envolvendo seu pescoço e sua nuca com
as minhas mãos, a beijando. Ela correspondeu, mas, divertida com a minha
intensidade, riu contra os meus lábios. Eu também. Logo depois,
aprofundou o beijo aproveitando aquele instante que ainda tínhamos antes
de chegarmos à penitenciária. Eu pouco me importava de estar fazendo
aquilo na frente de casa, com os vidros baixos e os olhares dos seguranças
sobre nós. Pelo menos, ali não era como na penitenciária, onde eu, talvez,
tivesse até que fingir que ainda a odiava, só para não ficar muito na cara
que, na real, queria estar transando com ela dentro de algum banheiro de
funcionárias.
— Sabia que você fica muito gata com esses óculos escuros e essa
farda? — sussurrei, soltando uma risadinha, bem pertinho da sua boca.
— Você acha...? — Sutilmente, com um sorrisinho sacana, disse ela,
entre um beijo e outro.
— Sim... Fica muito gostosa — repliquei com o máximo de
sacanagem que eu conseguia. — Mas, melhor ainda do que isso, é quando
você fica sem roupa alguma. Sabe por que?
— Por quê? — ergueu uma das sobrancelhas, quase desafiadora.
— Porque aí eu posso chupar você todinha. Os peitos, a bocetinha.
Ainda com o rosto colado ao meu, vi quando Scott fechou os olhos,
depois que eu me calei, e, balançando a cabeça de leve, ela puxou o ar,
como se aquilo a tivesse feito perder o fôlego por alguns instantes. Senti o
momento em que, abrindo as orbes outra vez, agora tão intensa e
determinada, segurou meu rosto, com uma das mãos, por baixo do queixo,
apertando, e disse:
— Sua garota infernal... Eu ainda vou te comer tanto.
Ri, baixinho, sagaz, me deleitando por ouvir aquilo saindo da sua
boca.
— Com o maior prazer.
E, então, ainda sorrindo e me fitando com verdadeiros olhares de
“você é um demônio” e “não perde por esperar”, ela suspirou, afastando seu
rosto e dando partida no carro. Enfim, dentro de poucos segundos, nós já
estávamos percorrendo as ruas de Las Vegas. Foi quando ela tornou a falar,
divertida:
— Então, esse é o seu “bom dia” pra mim? Vejo que acordou de
ótimo humor. Isso é maravilhoso. As coisas devem ter se saído bem ontem à
noite, não?
Sim, eu sabia que ela estava se referindo ao meu pai.
Mas, não. As coisas não tinham se saído bem. Só que, depois de
tanto tempo passando por situações assim, com ele, eu tinha aprendido a
ficar anestesiada, ou, ao menos, aprendi a não permitir que os insultos do
meu pai estragassem o resto dos meus dias. Já bastava o tanto que
estragava apenas nos minutos em que ele estava por perto.
E não, eu não estava disposta a comentar sobre isso com a Zara.
Nós estávamos nos saindo bem.
— É... Pois é... — soltei uma risadinha meio forçada, meio amarela.
— Acordei renovada. Está tudo bem sim.
Porém...
Eu já deveria saber que nada passava despercebido aos olhos atentos
dela.
— Espera aí... — Tentando se concentrar na rua e, ao mesmo tempo,
em mim, alternou seu olhar entre o meu rosto e o trânsito vezes até,
subitamente, tirar os óculos escuros e me encarar com mais atenção. — O
que é isso?
Droga.
Eu sabia.
Eu tinha certeza absoluta.
Ela viu a mancha no meu rosto, que não saía com reza braba, nem
com os melhores produtos de maquiagem que eu comprava.
— Não... Nada. Num é nada não.
Tentei desconversar, oferecendo o meu melhor sorriso falso.
Não que eu quisesse acobertar as coisas do meu pai e tirar das suas
costas a responsabilidade por aquilo. Ele merecia, sim, ser cobrado pelas
suas agressões contra mim. Acontece que eu não estava muito a fim de
entrar nesse assunto e discutir, naquele exato momento, sobre coisas ruins
ou que não tivessem nada a ver com a parte boa do meu relacionamento
com a Zara. Nós estávamos indo tão bem. Eu só queria aproveitar o tempo,
antes de chegarmos à penitenciária e antes que eu tivesse que trabalhar feito
uma gata borralheira.
— Agatha... — Ela, no entanto, puxou o ar, quase trincando os
dentes. Sua expressão era de uma seriedade que poucas vezes eu vi. — Não
me esconda nada, Agatha — completou entredentes. Seus dedos, apertando
ainda mais o volante. Droga. — Eu já tinha visto o seu rosto roxo uma vez
e agora estou vendo de novo.
Porra...
E eu me lembrava disso.
Foi no dia em que ele me deu outro tapa, segundos antes de me
obrigar a ir para aquele primeiro jantar com Louis e o velho Harry. Estava
na gaveta das minhas piores memórias, sem dúvidas.
Suspirei, tentando pensar rápido em alguma desculpa, muito embora
eu soubesse que ela não engoliria nada, a não ser a própria verdade. Ainda
tentei disfarçar, mas, inferno, não dava. Por fim, me dei por derrotada,
curvando os ombros o suficiente para demonstrar o quanto falar sobre
aquilo era cansativo, mas não o bastante para me fazer parecer fraca.
Porque fraca era uma coisa que eu definitivamente não era.
E jamais permitiria que aquele tipo de coisa afetasse por completo a
minha vida e a minha saúde emocional, física e mental.
— Tá, tá legal — Meio desconfortável, redargui. — Foi o meu pai.
Tão logo eu me calei, aquilo foi repentino. Ela deu uma freada
brusca, no meio da rua, fazendo o meu corpo ir bastante para frente, não
fosse o cinto de segurança.
Cacete.
— Seu pai...?!
Ai, meu Deus.
— É... Foi... Mas, num é nada não. A marca vai sair e...
— Como assim, não é nada...?! — disparou ela, outra vez, fitando-
me muito seriamente, com o cenho super franzido, sem se importar com o
fato de estarmos paradas literalmente no meio de uma rua movimentada.
Suspirei, tentando manter a calma exatamente para lhe deixar mais
tranquila.
— Olha só, Zara, eu tô ligada que o meu pai é um filho da puta
comigo e que algo precisava ser feito quanto a isso, mas... Sério, a gente tá
com o carro empatando a passagem de muitos outros, e, eu só queria
aproveitar esses últimos minutos com você, pra chegar de boa na
penitenciária.
— De boa? — encarou-me ainda mais incrédula. — Eu tô pouco me
fodendo com os outros carros que precisam passar — balançou a cabeça. —
Até quando você vai continuar agindo com normalidade a respeito disso? A
vontade que eu tenho é de voltar, agora, na sua casa, colocar algemas no seu
pai e levá-lo para onde ele merece, por ser um agressor.
Até que não seria uma má ideia...
Mas...
Passei a língua entre os lábios e, com delicadeza, me aproximei dela
novamente, estendendo uma das mãos pelo seu pescoço e a levando para
mais perto de mim. Ela conseguia ficar tão mais linda, quando se
preocupava assim comigo. Espalhei pequenos beijos pelo seu rosto, da
bochecha à boca, até sentir sua respiração um pouco mais calma.
— Nós vamos resolver isso, está bem? — falei com jeitinho,
olhando nos seus olhos. — Eu prometo. Não vou me sujeitar a isso pelo
resto da vida. Nós vamos dar um jeito nessa situação — tentei passar
confiança e segurança, porque essa era mesmo a minha vontade. Eu
realmente queria dar um jeito naquilo. — Só que, nesse momento, eu
apenas quero chegar tranquilamente à penitenciária com você e aproveitar
os últimos minutos que temos, antes de voltarmos a agir como se eu fosse
apenas a garota-problema que cumpre uma pena e você a policial que me
supervisiona.
E, então, assim que me calei, os carros começaram a buzinar atrás
de nós, numa bela sinfonia ininterrupta.
Vi quando ela fechou os olhos por cinco segundos e, então, os abriu
novamente, soprando o ar, um pouco mais amolecida.
— Só quero deixar claro que não vou ser paciente por muito tempo,
Agatha.
— E eu sei disso. Sei o quanto você pode ser impaciente quando vê
algo errado. Mas, vamos só passar esse tempinho um pouco mais de boas, e,
depois, vemos que o que fazemos, tá? — sorri, tranquila. — Passei três
semanas inconscientemente sonhando com o momento que teria você assim
pra mim. Então, eu não quero interromper logo agora, com a grande
confusão que eu tenho certeza que isso vai ser. Eu estou bem, Diana Prince.
E melhor com você.
— Diana Prince, é? — Dando leves indícios de que o seu bom
humor poderia retornar, ela perguntou, soltando uma pequena risadinha, um
pouco mais leve.
Tornou a colocar o carro em movimento.
Eu aproveitei isso para deixar o clima melhor. Claro.
— Ué, sim... Mulher-Maravilha... Você sabe, né?
— Mulher-Maravilha? — sorriu, balançando a cabeça, como se
dissesse em silêncio “você é maluca, garota”. — Aliás, que história é essa
de Xena, heim? Você me chamou de Xena várias vezes, quando estava
bêbada no natal.
Eu ri.
— Mulher-Maravilha falsificada e Xena do século XXI. Era a forma
como eu te chamava em pensamento, quando eu não gostava de você.
Quero dizer, quando eu achava que não gostava de você. Na verdade, eu te
chamo assim, em pensamento, até hoje.
— Ah não... — Ela também riu, realmente se divertindo. — Você é
muito criativa, Agatha, e completamente louca.
— Eu sei... — sorri, pousando uma das mãos na sua coxa, enquanto
ela dirigia.
— Além de muito linda também, claro... — Seu tom um pouco mais
intenso.
— Eu sei disso também... — pisquei pra ela, brincando com um ar
de convencimento. — E você adora.
Ela virou o rosto para mim, passando a marcha. Aquele olhar
charmoso.
— Adoro mesmo.
Foi assim que seguimos viagem até a penitenciária. Entre risadas e
um clima leve, enquanto dançávamos em meio aos problemas que
passeavam ao nosso redor.
✽✽✽
Agatha
Zara
Aquela cena, de fato, mexeu com a minha cabeça e com o meu sexto
sentido. Eu sabia exatamente quando alguma coisa não cheirava bem. E
aquilo me parecia podre. Não pude fazer outra coisa, senão ligar para
Alexa, por mais que isso me custasse a quebra da minha privacidade com
Agatha. De um jeito ou de outro, Westphalen saberia que eu só tomei
ciência do que acontecia em um dos hotéis Ballard porque estava
justamente lá.
Mesmo assim, eu entrei em contato com Alexa. E ainda fiquei
aguardando até que os agentes plantonistas, encaminhados por ela,
chegassem para averiguar a situação. Ainda os acompanhei por um bom
tempo, embora eu não estivesse no meu horário de trabalho. A questão era
que, para um policial, não havia bem uma distinção entre período de folga
ou de trabalho. Isso porque, se houvesse necessidade, a gente tinha o direito
e o dever de agir até mesmo à paisana.
O problema foi que, exatamente conforme o esperado, assim que os
agentes chegaram, todos agiram como se nada estivesse acontecendo,
porque aquilo era apenas...
— Um show de strip-tease como qualquer outro que acontece
dezenas de vezes nas noites de Las Vegas.
Segundo as palavras da Alexa, ali na sua sala de escritório, na
penitenciária, durante a manhã do dia seguinte, foi isso o que os
funcionários disseram aos agentes, assim como algumas das garotas
ouvidas também.
Claro. Era óbvio que eles não dariam outra resposta.
Já era de se esperar.
— E você acredita nisso? — questionei, erguendo uma das
sobrancelhas para ela.
— É claro que não. Óbvio que essa história está mal contada. Nós
vamos investigar isso mais a fundo. Os agentes apontaram algumas
inconsistências nos relatos, assim como algumas garotas também pareceram
meio assustadas com a chegada da polícia. Existe uma possibilidade bem
contundente de que alguém esteja coagindo essas garotas a dizer que está
tudo bem e que aquelas atividades realizadas no hotel não são ilegais.
Com toda certeza absoluta existia essa possibilidade. Era comum
que garotas de programas fossem coagidas por cafetões a não dizer a
verdade. Inclusive, essa palavra “cafetão” fazia reverberar coisas, na minha
cabeça, que martelavam desde ontem à noite. Coisas que eu não podia
deixar de falar para Alexa, porque, de um jeito ou de outro, faziam algum
sentido para mim, e também porque tinham a ver com a Agatha e com a
segurança dela. Então, tudo o que fosse relacionado a isso, prenderia a
minha atenção mais do que o normal.
— Olha só, tem algo sobre isso que eu não paro de pensar — falei.
— E o que é?
— Bom... — suspirei. — Você lembra daqueles caras que foram
presos por tentativa de sequestro da Agatha? Eles têm passagem pela
polícia devido à relação com sistemas de prostituição e casas noturnas
ilegais de sexo. Você não acha que essa pode ser a nossa primeira pista mais
conclusiva sobre o que pode estar acontecendo com a família Ballard?
Talvez os casos estejam interligados. Afinal, aqueles caras envolvidos em
prostituição quiseram raptar a Agatha e, agora, nós nos deparamos com uma
cena muito semelhança à prática de prostituição exatamente nas
dependências de um dos hotéis da família Ballard. Para mim, isso está
muito claro. Os casos podem estar interligados. Só nos resta descobrir a
forma como eles estão relacionados.
— Hum... — Foi então que, me fitando ainda mais atentamente, ela
se levantou da sua cadeira do escritório e caminhou alguns passos por ali,
pensando. — Isso faz sentido. Bem pensado, Zara. Eu vou convocar os
demais agentes de investigação e detetives para trabalharem
especificamente nesses dois casos e buscarem essas possíveis ligações. De
todo modo, eu acho que eles têm relação sim. E, honestamente, eu não vejo
a hora de descobrir tudo o que há por trás disso.
— Eu também não vejo a hora... — soprei o ar pela boca. — Esses
casos precisam ser solucionados, pela Agatha e por todas aquelas garotas de
ontem. Elas podem estar correndo um risco que, talvez, ainda seja
inimaginável para nós.
E isso era bem verdade. Esse era um dos meus maiores medos.
Eu podia estar muito cega pelos sentimentos que já nutria por aquela
garota, mas eu tinha certeza e confiava de olhos fechados que Agatha
jamais se envolveria em um sistema ilegal que facilitasse a prostituição de
várias garotas. Por outro lado, era perceptível que ela e sua família estavam
sendo visadas por pessoas comprometidas em questões como essas. Para
mim, Agatha continuava correndo risco. E isso não me deixava tranquila.
Aliás, essa minha preocupação não era somente pela segurança dela, mas
também daquelas inúmeras garotas que talvez estivessem sendo coagidas a
se apresentarem sensualmente naquele local.
No entanto, interrompendo os meus devaneios, só ouvi quando
Alexa disse:
— Por falar em Agatha, sem querer sem muito indiscreta, mas já
sendo, o que você estava fazendo em um dos hotéis da família Ballard, para
saber do que acontecia lá? Você estava com a garota?
Ah, porra, eu sabia que essa perguntaria chegaria.
E, bem, eu ainda não tinha pensado em uma boa desculpa para dar.
Na real, eu já estava começando a me sentir mal com essa situação
de ter que fingir que não acontecia nada entre nós, que não estávamos
juntas. Eu não sabia até quando conseguiria guardar isso. Não era justo com
a Agatha. Em contrapartida, também não era justo comigo. Muita coisa em
jogo. De um lado, o sentimento, o afeto, a vontade de ficar com ela. Do
outro, o meu trabalho, o meu sonho de seguir na carreira, e o meu sustento.
Suspirei.
Tudo era muito complicado.
De uma forma ou de outra, era melhor que aquilo continuasse em
segredo, por ora.
Por isso, falei a primeira merda que apareceu na minha cabeça:
— Eu... E-Eu fui jantar lá com uma amiga. Ela me chamou e eu fui.
Tudo bem, não foi algo muito convincente. Mas, era a única coisa
que eu conseguia pensar.
— Amiga...? — Ainda de pé e de frente para mim, Alexa
questionou, cruzando os braços brevemente.
— Sim.
Foi aí que ele passou a língua entre os lábios, suspirando e se
aproximando de mim.
— Zara, talvez você já esteja cansada de ouvir isso de mim, mas eu
realmente me preocupo com você. Sei bem o que pode te acontecer, se te
pegarem tendo um caso com essa garota. Como sua chefe e sua amiga, eu
ainda posso salvar a sua pele, por enquanto. Mas, ela não será salva, se os
nossos superiores ficarem sabendo de qualquer coisa entre vocês.
Ah, pelo amor de Deus.
Ela achava que eu não tinha consciência disso?
Eu tinha, e muito. Era algo que eu não deixava de pensar, nem
mesmo quando estávamos juntas, transando no que talvez fosse o melhor
sexo da minha vida. Era um tipo de fantasma que me atormentava o tempo
inteiro.
Porém, enquanto eu sabia que aquilo era um risco, eu também tinha
certeza de que já não conseguia parar. Era ruim deixar tudo em segredo,
mas também seria pior encerrar aquilo com a Agatha. Foi por isso que lhe
dei uma resposta que me dilacerava por dentro:
— Não existe qualquer coisa entre nós. Eu já falei para você. Pode
ficar tranquila — E fui logo tentando emendar em outro assunto, para que
ela se desligasse daquilo, muito embora esse outro assunto também tivesse
a ver com a Agatha. Alexa, porém, não precisava saber disso. — Aliás, eu
queria falar sobre algo com você. Gostaria de pegar uma folga no ano novo,
de sexta a domingo. Não tive folga no natal, então eu realmente gostaria de
ter no ano novo. Meus pais me convidaram para visitá-los na Califórnia. O
meu plano é pegar a estrada, na sexta de manhã, e passar a virada de ano
com eles.
— Hum... Está bem — Ela acenou um breve sim com a cabeça, sem
hesitar. Não parecia haver problemas com a minha ausência. — Acho que
você tem horas de trabalho sobrando no seu banco. Então, não vai ser um
problema. Só passe no RH para formalizar isso. Eu vou autorizar o pedido
daqui mesmo e a Ruth lá do RH já vai saber.
— Ótimo. Muito obrigada, Alexa. Mas... — pigarreei a garganta de
leve, como um reflexo da minha quase ansiedade em falar aquilo. Eu já
tinha uma certa ideia de como ela poderia reagir. Acontece que eu não iria
me parar. — Tem outra coisa também.
— É? — franziu o cenho de leve, me dando mais atenção. — O que
seria?
Lá vai.
— Como eu não vou estar aqui, peço que Agatha também seja
liberada dos seus trabalhos, na sexta.
A morena, no entanto, enrugou ainda mais a testa, como se não
entendesse a razão disso. E ela realmente não entendia.
— Já que você vai faltar na sexta, eu mesma posso supervisioná-la.
Ou pedir a outro agente disponível que faça isso.
— Não — Só que a minha resposta saiu rápida demais. Quase
carrancuda. Pigarreei a garganta outra vez, tentando retomar a compostura
e parecer normal, enquanto sorria meio amarelo. — É que... — Pensa,
pensa, pensa. — Ela também me pediu folga na sexta — Mentira. Ela nem
sabia que eu ia viajar e que ia chamá-la para ir comigo. — Então, como eu
fui designada pessoalmente pelo delegado Conway, para supervisioná-la,
achei justo que, como eu não estarei aqui, ela também não esteja. Claro que
a falta dela será reposta.
E, assim, eu poderia levá-la comigo na viagem à casa dos meus
pais.
Sim, eu já estava pensando nisso há alguns dias, desde que eles me
fizeram o convite. Queria que ela estivesse comigo na virada do ano, por
mais que apresentá-la aos meus pais pudesse parecer um passo muito
grande. Era como inseri-la, ainda mais, na minha vida, e tornar o nosso caso
menos casual do que já era. Eu estava indo na contramão do que deveria
fazer. Mesmo assim, apesar dos riscos que essa atitude poderia me trazer, eu
queria e sentia que deveria levá-la. Quase como uma necessidade minha.
E eu ainda nem tinha a convidado, mas tinha fé que ela aceitaria ir
comigo.
Percebi, porém, quando Alexa puxou o ar, me encarando mais séria
do que já estava. Estudou meu semblante por alguns segundos, e, então,
falou:
— Olha, Zara, eu não vou me opor a isso. Não desta vez. Mas, vou
te dizer novamente. Tome muito cuidado com o que você está fazendo por
essa garota. Eu percebo o quanto você já está emocionalmente envolvida a
ela. O problema mesmo será quando os nossos superiores perceberem. Você
já caiu uma vez, e pode cair de novo.
Você já caiu uma vez, e pode cair de novo...
Passei a língua entre os lábios, encarando-a e absorvendo suas
palavras.
Eu sempre soube disso.
Sempre.
Aliás, era única e exclusivamente isso que me fez tentar resistir a
ela, manter distância, tirá-la da minha cabeça de alguma maneira. Eu tentei.
Eu tentei bastante. Mas, cheguei a um ponto que não deu mais. Nem todo o
perigo, que eu corria, foi capaz de me parar quando o desejo aumentou a
níveis exponenciais. E, agora, eu já estava envolvida demais, física e
sentimentalmente, para querer encerrar aquilo. Por mais maluco e irracional
que isso pudesse parecer, eu estava assumindo os meus riscos quanto a
isso.
Porque eu estava viciada nela.
Completa e absurdamente viciada naquela garota infernal.
✽✽✽
✽✽✽
Zara
Caralho.
Por meio segundo, em um estúpido instinto, eu ainda pensei em dar
um ou dois passos para trás, e fingir que aquilo não passava de uma mera
coincidência. Pura obra do destino que Agatha e eu estivéssemos no mesmo
local e na mesma hora, sem estarmos realmente juntas. Apenas um encontro
aleatório e banal de quem se cruzava pela cidade. Mas, não. Eu não
consegui fazer isso, porque era simplesmente ridículo. No fundo, uma
vozinha interior gritava bem nos meus ouvidos: “assuma os seus B.O.’s”.
E, sim, seria muito ridículo se eu me afastasse um ou dois passos. Feio
demais, totalmente errado da minha parte e também muito desrespeitoso
com a garota.
Isso seria como negar tudo o que eu, de fato, já estava sentindo por
ela, mesmo que as consequências do nosso relacionamento me fizessem
perder praticamente tudo o que eu tinha. Eu já quase perdi tudo uma vez,
numa situação semelhante. Então, eu sabia que estava a um passo de ser
convidada a me retirar da Polícia de Las Vegas, pela segunda vez. Mesmo
assim, não fiz outra coisa a não ser me manter paradinha ali do lado dela,
assumindo os meus riscos, que eram muitos. Muitos mesmo.
Só vi quando o olhar da morena passeou por entre nós duas,
analisando, estudando, instigando, até, finalmente, dizer:
— Senhorita Ballard. Policial Scott. Que agradável surpresa as
encontrar aqui — Suas orbes, no entanto, não demonstravam surpresa
alguma. Era como se, uma hora ou outra, ela já soubesse que ia descobrir
algo sobre nós — Eu trouxe o meu afilhado para assistir um filme —
segurou na mão do garotinho ao seu lado, que sorriu para nós. — Vocês vão
assistir algo também?
Ainda mirei em Agatha brevemente, pelos cantinhos dos olhos, que
permanecia estática, parada, imóvel ao meu lado. Ela, sim, estava bastante
surpresa. Eu diria até que em choque. E o pior, eu também percebia o seu
bom humor e a sua leveza, de minutos atrás, se esvaindo, segundo a
segundo, e dando lugar a uma perceptível e palpável tensão.
Eu sabia e sentia que ela não tinha gostado nem um pouco de ter
cruzado com Alexa ali. Não pela inspetora ter praticamente nos pegue no
flagra, mas pelo simples fato de que, assim como eu, Agatha também queria
que aquele momento fosse só nosso. Um universo paralelo onde não havia
nada que nos lembrasse da existência da penitenciária e dos nossos
problemas.
Percebi ainda que ela não estava em condições de responder à
Westphalen, e, mesmo que estivesse, era eu quem preferia fazer isso.
Assim, passado o susto inicial, ergui o queixo e sustentei o olhar, frente à
Alexa, dizendo:
— Sim, nós... Vamos.
E bastava eu apenas falar aquilo. As cartas tinham sido lançadas. Eu
ainda poderia tentar alguma discrição diante de outros funcionários da
penitenciária ou dos chefes superiores da Polícia de Las Vegas, como forma
de protelar o destino que eu já estava dando como certo de que seria meu.
Mas, com Alexa não mais. Aliás, no fundo, eu sabia que era questão de
tempo para que o restante das pessoas soubesse do que, de fato, acontecia
ali, entre nós. Agatha me cegou e anulou a minha racionalidade de tal forma
que, naquela altura, eu já tinha parado de lutar comigo mesma e de querer
entender como pude ter sido tão fraca.
O fato era que, a cada segundo, eu me tornava cada vez mais
incapaz de interromper o que quer que estivesse acontecendo entre Agatha e
eu, já que eu ainda não sabia como nomear aquilo. Incapaz de manter
distância, incapaz de não querer repetir por muitas e muitas vezes os beijos
que já trocamos, porque eu realmente estava gostando dela.
Eu estava gostando de verdade daquela garota.
Vi, porém, quando um sorriso gelado brincou nos lábios da
Westphalen, após ouvir a minha resposta. E, então, tentando parecer
simpática e natural o bastante, apenas disse, depois de um breve suspiro:
— Ótimo. Então, tenham um bom filme. Até mais.
E, se afastando dali com o seu afilhado, se despediu de nós nos
dando às costas.
Ainda olhei novamente para a Agatha e vi o desconforto em seu
semblante. Mais uma vez, não pela Alexa ter interrompido a nossa
intimidade, mas por simplesmente ter aparecido, quando aquilo deveria ser
algo só nosso. Era como o brilho de uma estrela se apagando. Não pude
resistir ao vê-la assim, ainda incomodada com a situação. Nós estávamos
indo tão bem.
— Está tudo... Fica tranquila — E a abracei ali mesmo, pouco me
importando se estávamos em público. Nem a chegada repentina de Alexa
me faria parar ou hesitar. Passei minhas mãos carinhosamente sobre as suas
costas e os seus cabelos, afagando e desejando muito que nós pudéssemos
voltar ao momento onde paramos, naquela conversa tão divertida. Percebi
quando respirou fundo e, então, me envolveu com os seus braços também.
— Será que podemos comprar o bilhete agora e assistir ao filme? — Com
jeitinho, sugeri.
Agatha, ainda introspectiva, apenas balançou um sim com a cabeça,
sem me dizer nada com palavras.
Suspirei.
Era uma merda que aquilo tivesse a afetado de alguma forma.
Porém, ainda que eu quisesse muito que ela retornasse logo àquele bom
humor tão maravilhoso, eu faria o possível para lhe dar o tempo necessário
de voltar ao normal.
Segurando, então, a sua mão e entrelaçando os nossos dedos,
porque, apesar de tudo, eu não deixaria de fazer isso, a levei até a fila do
bilhete e, depois, até a sala do filme. Enquanto caminhávamos, no entanto,
senti quando o meu celular vibrou no bolso da calça. Franzindo brevemente
o cenho, o tirei e vi o que tinha ali. Era uma mensagem da Alexa.
“Não tem mais como mentir pra mim. Vocês estão se envolvendo. E
você é completamente maluca, Zara... Pelo amor de Deus. Tudo o que eu
peço é que tente ser o mais discreta possível com essa garota, ou, então,
sua cabeça vai rolar. O segredo está a salvo comigo, mas não se você ficar
dando bandeira em toda a cidade de Las Vegas. Abra o olho.”
Puxei o ar, tentando refrigerar os meus pulmões, e, balançando a
cabeça de leve, guardei novamente o celular no bolso. Se Alexa soubesse o
quanto aquilo já tinha se tornado um caminho sem volta para mim, talvez
ela poupasse as suas preocupações comigo, porque saberia que o meu
destino era um só.
Apenas questão de tempo.
Eu só precisava pensar no que eu faria da minha vida, quando o dia
chegasse.
✽✽✽
Zara
✽✽✽
Cruzamos cerca de duzentas e setenta e duas milhas entre paisagens
praticamente desérticas e muito chão de estrada. Durante boa parte do
percurso, de um lado e do outro, era apenas areia e grandes blocos de
terrenos rochosos com vegetação árida, que nós víamos. Ao nosso redor,
imensas montanhas completavam o visual, deixando tudo ainda mais
bonito, perto ou longe de onde estávamos. A beleza da natureza, distante da
selva de pedras da cidade, era como um show à parte.
E, então, em torno de quatro horas depois, ou, na verdade, um pouco
mais que isso, quase quatro horas e meia depois, começamos a avistar as
grandes palmeiras imperiais que compunham a aparência tão típica de Los
Angeles, além dos prédios e das mansões que vislumbravam os turistas. Ao
longe, ainda era possível avistar a grande e imponente placa com o nome
Hollywood, no alto de uma montanha. Nick pulou de entusiasmo lá no
banco, enquanto a música, através dos alto-falantes do carro, soava em alto
e bom som.
Todas nós rimos com a sua alegria contagiante.
Era incrível.
E Los Angeles era linda.
Para completar, o sol à pino, de mais de meio dia, deixava tudo
ainda mais bonito, e também calorento. Quase quente como Las Vegas,
mas, ainda assim, mais ventilado, graças à brisa que vinha do sentido da
praia. Apesar de tudo, aquele calor era quase como a cereja do bolo para
aproveitar a experiência completa da cidade. Por isso, baixei os vidros e
deixei que o clima litorâneo nos acompanhasse até chegarmos à casa dos
meus pais.
Eles, claro, não moravam naquela parte rica e sofisticada da cidade,
onde havia as mansões dos artistas. Meus pais moravam um pouco mais
afastados, quase no caminho da praia, em uma casa grande, mas simples
para os padrões californianos. Desci pelas ruas de Los Angeles, seguindo no
rumo das zonas menos abastadas, e não demoramos muito para chegar.
Quase no final da rua, três casas antes do cruzamento com uma das
avenidas que levava ao cais de Santa Mônica, vi o cercadinho que
delimitava a moradia deles.
Estacionei o carro bem em frente.
Meu coração estava quase saindo pela boca de tanta ansiedade em
ver pessoalmente os meus velhos. Não que fizesse muito tempo, desde a
última vez que eu estive ali, mas a saudade sempre fazia tudo parecer uma
eternidade. Agatha, por sua vez, não parecia nem um pouco nervosa com o
fato de estar prestes a conhecer os seus futuros sogrinhos (sim, aquela
mulher ainda seria completamente minha). Na verdade, ela estava bem
empolgada. Aquele sorriso não saía do seu rosto por nada, desde que
deixamos Las Vegas.
Quando todos nós descemos do carro, Agatha, Nick, Mad, Ava e eu,
o primeiro serzinho que deu notícias da nossa chegada foi o Costelinha. Um
enorme labrador que os meus pais tinham há anos. Costelinha, latindo de
felicidade por ver tantas pessoas sorrindo e chamando por ele, logo correu
até nós, pulando e fazendo bagunça por toda parte. Não se passaram mais
do que cinco segundos para que Martha e Henry saíssem pela porta, com
largos sorrisos. Rapidamente, fomos recebidos com beijos, abraços e muito
carinho. Eu fui a primeira a ser atacada por aquele monte de beijos.
— Ah, que saudade de vocês! — disse eu.
— Nós também, querida. Nós também! — Mamãe replicou, já
virando-se também para Nick. — E você, meu amor? Venha cá, deixe a
vovó lhe dar um abraço bem apertado!
— Vovó! Vovô! — Nick pulou neles.
Não foi preciso nenhum esforço para que Martha e Henry pegassem
Nick nos braços. Ele foi por livre e espontânea vontade, tamanha
empolgação que estava para rever os avós. Tinha passado a semana inteira
falando só nisso, desde que eu disse a ele que nós iríamos viajar no ano
novo.
Logo depois, foi a vez das meninas. Mad e Ava já conheciam os
meus pais há anos. Bem, elas eram praticamente da família, né? E eles se
adoravam mutuamente. Então, tudo se tornou ainda mais repleto de carinho.
Percebi, no entanto, pelo cantinho dos olhos, um rastro de ansiedade
perpassando o rosto, até então, tranquilo da Agatha. Segurei de leve a sua
mão, tentando passar segurança a ela. A loira sabia que estava chegando a
sua vez. E, bom, não era mesmo preciso uma bola de cristal para adivinhar
a sequência de cumprimentos.
Assim que meus pais terminaram as cortesias à Mad e Ava, mamãe
logo pousou o olhar sobre a Penélope Charmosa. Muito simpática,
perguntou:
— E essa garota tão linda, quem é? Ainda não fomos apresentadas.
As bochechas da Agatha ficaram adoravelmente coradas. Por alguns
segundos, eu desejei tirar o celular do bolso para, com uma foto, registrar e
eternizar aquele momento. A menina conseguia ficar encantadora de todas
as formas. E o sorriso que ela ofereceu à minha mãe, porém, foi tão maior
que sua leve vergonha. Ela estava tentando relaxar, e eu sabia que logo
conseguiria.
— Essa é a... — Minha namorada? Ficante? Amiga? Suspirei.
Nossa relação ainda não estava exatamente definida, mas, com certeza, eu
não chamaria de amiga alguém que representava muito mais do que isso
para mim. Por isso, disse apenas... — Agatha.
O sorriso que mamãe ofereceu a ela, segundos depois de me olhar e
perceber a minha breve hesitação, foi de quem já tinha entendido tudo, sem
que eu nem mesmo precisasse dizer muita coisa. Aquela mulher era
realmente esperta. Aliás, não somente ela, mas o papai também. Pelo
olharzinho divertido que ele me dava, eu já sabia o que ele estava pensando,
e, provavelmente, era algo como “escolha muito bem feita, minha filha”.
— Seja muito bem-vinda, meu amor. É um prazer conhecê-la —
Mamãe a abraçou calorosamente.
E, então, eu quase pude ouvir as centenas dos muitos gelos da
Agatha sendo quebrados. Uma respiração mais amena e um semblante mais
aliviado eram verdadeiros sinais para mim.
— Ah, muito obrigada! — agradeceu sinceramente. — O prazer é
todo meu, Sra. Scott.
— Imagina, querida — Mamãe soltou uma risadinha, balançando a
mão e a cabeça. — Me chame de Martha.
— Tudo bem, Martha — sorriu.
Linda.
— Sinta-se em casa, minha jovem — Papai também falou. — Só
tome cuidado com as armadilhas do Costelinha. Ande sempre olhando para
o chão. Esse rapazinho, às vezes, sai espalhando cocô e xixi pela casa.
Todos riram.
Se eu bem me lembrava, Costelinha era mesmo o terror das
limpezas da dona Martha. Quando filhote, então, a casa era sempre uma
zona.
— É, verdade... E sobra para quem limpar a bagunça que ele faz? —
Divertida, mamãe apontou para si mesma. — Mas, eu amo esse meninão...!
— Afetuosamente, passou a mão sobre a sua cabeça, fazendo-o se esfregar,
ainda mais, em suas pernas, de tanta felicidade com o carinho. — Bem...
Acho que vocês devem estar morrendo de fome, não é? Foram muitas horas
de viagem! — continuou ela, erguendo o olhar para nós. — Venham,
venham! O almoço já está na mesa!
Eu não podia mentir. A minha barriga estava mesmo roncando. Fora
que a comidinha da minha mãe também era motivo de saudade. Então,
segurando a mão da Agatha, deixei que eles nos guiassem. Nick foi na
frente, brincando com o Costelinha, enquanto Mad e Ava também nos
acompanharam.
A casa continuava do mesmo jeitinho como da última vez que eu
estive lá. Grande, mas simples, representava o padrão da classe média baixa
da cidade. Nada luxuoso, mas, ainda assim, aconchegante para quem nunca
foi acostumado com luxo ou para quem não se importava com isso. Se eu já
não conhecesse Agatha tão bem, poderia até ficar em dúvida sobre a
maneira como ela se sentia dentro daquelas paredes. Mas, mesmo que
Agatha parecesse um enfeite caro no meio do local, aquele sorriso
verdadeiro não permitia que ela escondesse o quanto estava gostando de
tudo, apesar da simplicidade.
Ou por causa da simplicidade.
Enquanto caminhávamos por ali, eu também não pude deixar de
reparar na sala repleta de inúmeros quadros emoldurados com quebra-
cabeças completamente montados. Sorri. Era um dos passatempos
preferidos do meu pai.
— Papai, você está cada vez mais viciado nesses quebra-cabeças —
soltei uma risadinha.
— Ah, querida, um homem aposentado não pode ser culpado por
querer alguma diversãozinha, não é? — brincou.
— Vovô, quero montar também! — Nick já foi logo falando, antes
mesmo que eu pudesse responder qualquer coisa.
— Claro, rapazinho! — Animado, replicou. — Depois do almoço,
podemos passar a tarde inteira montando quebra-cabeças. O que acha?
— Ebaaaaa!
E essa resposta já era o bastante. Nick pulou de felicidade.
Para ele, estar em Los Angeles era quase como estar em um parque
de diversões.
— Bem, fiquem à vontade! A mesa já está posta!
Foi o que eu ouvi mamãe falar. Quando dei por mim, já estávamos
de frente para uma mesa impecável e farta, com muita comida cheirosa. Do
jeitinho como eu sabia que a dona Martha tinha prazer em fazer. Minha
barriga roncou em pura satisfação. Depois de uma viagem de mais de
quatro horas, uma refeição, como aquela, era muito bem-vinda.
Aliás, uma refeição, como aquela, seria bem-vinda a qualquer
momento.
— Vamos, vamos! Sentem-se! — Mamãe quase bateu palminhas
para que a gente se acomodasse logo nas cadeiras em volta.
Agatha estava de um lado meu, enquanto Nick ficou do outro, e os
demais se sentaram sequencialmente. Mamãe, gentil e hospitaleira, como
ela sempre foi, pegou logo o prato da loira, para que ela mesma colocasse a
sua comida. Em suas palavras, toda e qualquer visita, deveria ser bem
tratada.
— E, então, querida, acha que está boa essa quantidade de arroz? Ou
você quer mais? — perguntou.
— Ah, não, não. Está ótimo! — Agatha respondeu.
Todavia, existia uma matraquinha ali que não podia ficar calada. E
eu tive ainda mais certeza disso, quando, todo feliz e entusiasmado, falou:
— Vovó, sabia que ela é namorada da mamãe?!
Nick... A criança mais esperta do mundo. Meu filho, claro.
Se eu ainda não sabia bem como definir a nossa relação, ele tinha
total certeza do que falava. E não media palavras para isso. Foi automático.
Todos riram, sem exceção. Inclusive eu. Apesar da pouca discrição, era
muito engraçadinha e adorável a forma como ele parecia estar tão contente
por Agatha e eu estarmos juntas. Aliás, ela também riu, mas leves tons de
vermelho coloriram as suas bochechas de quem não sabia onde enfiar a
cabeça.
— Namorada...? — Papai foi o primeiro a falar, quase soletrando
letra por letra. Um largo sorriso estampando o seu rosto. — Que ótimo!
— Nós ficamos tão felizes! — Mamãe também disse, enquanto
entregava o prato à Agatha, já com a comida posta. — Como vocês se
conheceram, querida?
Ah, meu Deus...
Tudo bem. Nick até poderia tirar aqueles lençóis de cima das nossas
cabeças. Não havia problema algum com isso, claro. Os meus pais sempre
souberam que eu me relacionava com mulheres. No entanto, Agatha e eu,
definitivamente, não estávamos preparadas para essa pergunta. Talvez
tivesse sido uma falha minha, por não me lembrar de pensar a respeito
disso, já que era uma pergunta tão comumente feita, quando se comunicava
o início de algum relacionamento. Só que, tipo assim, nós não ensaiamos
uma resposta bonitinha, que não fosse “ah, a gente se conheceu quando ela
bateu na minha viatura e a prendi por desacato à autoridade”.
Ainda percebi quando Agatha virou brevemente o rosto em minha
direção, observando-me com as sobrancelhas levemente arqueadas e um
sorriso no rosto, de quem queria disfarçar, mas tinha sido totalmente pegue
de surpresa. Era como se ela me suplicasse, apenas com o olhar, algo como
“por favor, me ajuda com isso”.
Droga.
Pensa, Zara.
Engoli seco e, então, colocando o meu melhor sorriso, falei:
— Ela... — passei a língua entre os lábios. — Ela trabalha na
mesma penitenciária que eu.
Foi o máximo que eu consegui.
— Olha só... Uma moça tão jovem já trabalhando. E ainda mais
numa penitenciária. Muito bem. Parabéns. — Inocentemente, disse o papai,
sorrindo de orgulho.
Mal sabia ele que essa história estava bem pela metade, mas... Ufa.
Pude respirar um pouco aliviada. A situação parecia ter sido contornada. Os
semblantes satisfeitos dos meus pais, com a minha resposta, não me diziam
outra coisa, a não ser a concordância deles com o que eu falei. Olhei
também para a loira, pelo cantinho dos olhos, e notei que aquele leve rubor,
junto com o sorriso forçado de quem não sabia o que dizer, tinha dado lugar
a uma postura bem mais tranquila.
— Sim, é verdade! É muito bom ver uma menina tão jovem assim,
já exercendo trabalho em um local tão difícil. Meus parabéns. E, querida...
— Mamãe olhou especificamente para Agatha. — Saiba que estamos
realmente felizes em recebê-la aqui. Zara nunca foi de trazer garotas para
cá. Raras vezes isso aconteceu. Então, se ela trouxe você, é porque você é
importante para ela. E, se você é importante para ela, também é para nós.
E, se você é importante para ela, também é para nós...
Senti subitamente os meus olhos criarem uma aguinha tola e quase
impossível de parar. Ao mesmo tempo, um sorriso se encaixou nos meus
lábios, de modo que eu não conseguia tirá-lo dali. Fiquei feliz, emocionada.
Emocionada e feliz. Os meus pais eram os melhores do mundo. E,
honestamente, era reconfortante vê-los nos tratando assim.
Agatha, que já não conseguia esconder a felicidade com aquela
viagem, agora parecia estar explodindo umas mil vezes por dentro. Seus
olhos não deixavam escapar a emoção e a alegria que estava sentindo. No
fundo, algo me dizia que aquilo representava, para ela, muito mais que uma
aprovação do pais da mulher com quem estava ficando.
Soava como família...
E família parecia ser algo muito importante para ela.
— Eu agradeço demais, Martha. Mesmo. Do fundo do coração —
Com os olhinhos brilhando e um sorriso lindo que não sumia por nada,
Agatha falou. — Estou me sentindo realmente em casa. Muito obrigada.
E eu sabia que Agatha estava falando a verdade não somente pelo
jeitinho como ela me olhou, depois disso, mas também pela maneira
afetuosa como colocou sua mão sobre a minha e apertou gentilmente.
— A tia Martha é sempre um amor — Mad, de repente, falou, entre
uma garfada e outra no prato.
Pelo que eu conhecia da Madison, era apenas um alívio cômico em
meio àquele mar de tantos sentimentos que, por alguns segundos,
pareceram tomar Agatha, meus pais e eu. Isso porque ela sabia o quanto a
mamãe não gostava de ser chamada de tia, se não fosse um sobrinho de
verdade falando.
Divertida, dona Martha virou o rosto para Mad, dizendo:
— Que tia, menina? Sou tão jovem quanto vocês!
Todos riram em volta da mesa.
— Ela ainda acha que está na flor da idade... — Papai também
brincou, ganhando um leve tapinha dela no ombro.
— Ah, tio, mas ela é jovem... — Dessa vez, foi Ava quem se
pronunciou, soltando uma risadinha.
— Epa, tio não, heim... Eu também sou jovem!
E, mais uma vez, todos riram.
Foi assim que almoçamos e também passamos o restante da tarde.
Com muitos sorrisos, brincadeiras e afetos. Exatamente da maneira como
uma família de verdade deveria ser. E eu amava isso. Amava estar ali com
eles. Eu amava todos os nossos momentos juntos.
Agatha
Quando eu falava que estava me sentindo em casa, não era mentira.
Era a mais pura verdade. Os pais da Zara eram maravilhosos e me
receberam melhor do que eu poderia imaginar. Talvez os únicos momentos
que eu tivesse me sentido um pouco mais encabulada foram segundos antes
do primeiro cumprimento a eles, assim que chegamos, e quando Nick
mencionou sobre eu ser namorada da Zara. Apenas nesses breves instantes.
Depois disso, não mais. Com a simpatia e as brincadeiras, eles quebraram
qualquer gelo que pudesse me travar.
E o melhor: eu realmente me sentia como se estivesse em família.
A conversa afetuosa, as brincadeiras leves, os risos e sorrisos
frouxos, e a certeza de união faziam eu me lembrar de uma época tão
distante. Breves anos em que eu pude experimentar um pouco disso, com
aquilo que eu considerava que fosse a minha família. Anos que ficaram tão
no passado, que eu quase não conseguia me recordar direito dos detalhes e
da sensação de como era ter uma mãe e um pai. Eu só sabia que era bom e
que sentia falta daquilo. E continuava sentindo saudade, desde que mamãe
foi embora.
Era como um espaço no meu coração que eu tentava preencher.
Tentava preencher com o luxo, as roupas de marca, os carros caros, as festas
em pubs e boates, as bebidas que nublavam os meus pensamentos, o sexo
que fazia eu me esquecer de tanta coisa. Alegrias momentâneas,
passageiras, que se acabavam tão logo eu acordasse no dia seguinte. Então,
na tentativa desenfreada de acabar com aquela sensação de vazio dentro de
mim, eu buscava o luxo, as roupas, os carros, as festas, as bebidas, e sexo
de novo. E de novo, e de novo, e de novo.
Foi assim que a minha vida se resumiu. Por anos.
Nunca senti aquele espaço vazio sendo preenchido por nada. Exceto
agora. Por mais esquisito e inexplicável que pudesse parecer, era como se
algo, no meu peito, estivesse se completando, se formando, se enchendo de
vida. Uma ferida aberta que começava a cicatrizar. Ou enxertos de grama
numa terra que foi árida, por anos. A chuva depois da seca.
A órfã que encontrava uma família.
Após o almoço, subimos para a varanda do andar superior. Um lugar
calmo, tranquilo e simples, com pufes e sofás à espera do nosso descanso,
enquanto a comida fazia a digestão. De alguma forma, eu estava me
afeiçoando por aquela simplicidade. A vida pacata, o tempo que parecia
correr a nosso favor. Talvez fosse aquela sensação de estar em família.
Talvez, estar em família, me fizesse esquecer de tudo aquilo que eu achava
que tivesse realmente algum valor, como uma casa grande e espaçosa,
móveis caros e requintados, uma cama enorme e confortável. Enfim, bens
materiais que passavam uma sensação de conforto qualquer.
Agora, no entanto, a única coisa que parecia fazer sentido era estar
com as pessoas que faziam eu me sentir bem. Eram elas que me passavam a
real sensação de conforto. Era o afeto, e não o luxo. Não importava se eu
estivesse em uma casa simples, com móveis simples e vida simples. Dessa
vez, Agatha Ballard não era exatamente aquela Agatha Ballard. O que
realmente tinha valor era o carinho que eu recebia, de graça, daquelas
pessoas que não me tratavam como uma desconhecida, mas como se eu já
fizesse parte das suas vidas há anos.
Isso, nenhum dinheiro no mundo poderia comprar.
E eu sempre soube disso, porque de todas as milhares de coisas que
eu tinha poder aquisitivo para comprar, eu nunca pude pagar pelo afeto
verdadeiro de ninguém.
Nem do meu pai.
Naquela tarde, alguns foram dormir, para “descansar o almoço”,
enquanto outros apenas continuaram conversando na varanda. Zara e eu
fomos do time que permaneceu acordado. Nós ficamos ali mesmo, sentadas
próximo ao peitoril da varanda, enquanto recebíamos o vento fresco que
vinha diretamente da praia, já que a casa dos pais Zara ficava, praticamente,
a um quarteirão do cais de Santa Mônica. Jogamos conversa fora, enquanto
Henry, o pai da Zara, e Nick montavam um quebra-cabeça perto de nós.
Uma conversa gostosa, despretensiosa, sobre assuntos aleatórios que nunca
tínhamos falado, mas que deixavam tudo muito mais interessante por me
permitir conhecer mais dela.
E nós rimos uma com a outra.
E sorrimos uma para a outra.
E nos divertimos ao ver Henry e Nick, literalmente, quebrando a
cabeça para encaixar as peças.
E observamos o tempo passar sem pressa.
E, enfim, soubemos que nada, no mundo, poderia tirar a paz que
sentíamos.
Isso até ouvirmos o seu celular tocando no bolso da calça. Zara
parou a conversa e, então, mirou no nome que aparecia na tela. Um
pequeno sorriso pincelou os seus lábios. E aí, erguendo o rosto para onde
Nick estava, falou:
— Vem cá, filho! Vamos falar com o papai. Ele está ligando!
— Papai?!
O garotinho exclamou e rapidamente se levantou do chão onde
brincava com o avô. Correu ligeirinho até Zara e, segurando sua mão,
sumiu com ela para alguma parte da casa.
Pai...
Confesso que ainda passei um tempinho perdida em alguns
pensamentos, olhando fixamente para a porta de vidro, corrediça, que
dividia a varanda da parte interna da casa, por onde Zara saiu com Nick.
Dentre todas as coisas que nós já tínhamos conversado sobre as nossas
vidas pessoais, o pai do Nick nunca foi um assunto. Aliás, não tinha a
obrigação de ser. Ela me falaria se quisesse, se estivesse à vontade.
Mesmo assim, algumas curiosidades silenciosas percorreram os
meus pensamentos, durante breves segundos. Perguntas que, naturalmente,
qualquer pessoa teria vontade de fazer. Tipo, onde estava esse cara? E...
Qual a história que eles tiveram? Suspirei e balancei a cabeça de leve,
comigo mesma, tentando fazer com que o vento forte da varanda levasse
consigo aquelas estúpidas curiosidades.
E foi justamente aquele vento forte que corria, o tempo inteiro, pela
varanda, que me deu uma vontade de fazer xixi. Era o puro vento frio que
vinha da praia. Há alguns minutos, eu já estava segurando a vontade, só
para não interromper a conversa com Zara. Mas, agora que ela tinha ido
atender o telefone com o Nick, talvez fosse o melhor momento para eu ir ao
banheiro.
Foi então que olhei para Henry, ainda montando seu quebra-cabeça,
e perguntei:
— O senhor pode me dizer onde fica o banheiro?
— Claro, filha. Basta seguir no corredor, desse mesmo andar, e
entrar na segunda porta à direita, antes do final.
— Ah, obrigada.
E, assim, eu me levantei de onde estava sentada. Caminhei
exatamente pelo local onde o pai da Zara tinha me indicado. Porém, uma
porta antes de chegar àquela segunda à direita, que ele me disse para entrar,
eu ouvi a voz dela. A voz da Zara. E do Nick também. Subitamente,
diminuí o passo e caminhei mais devagar que o normal.
Percebi que eles estavam dentro de um quarto, atrás daquela porta.
Havia uma pequena fresta aberta, por onde eu não conseguia vê-los, mas
podia perfeitamente ouvi-los. Eles pareciam estar em uma chamada de
vídeo. Algo dentro do meu coração, no entanto, se remexeu por saber que
eu não deveria estar fazendo aquilo, quando, na verdade, deveria única e
exclusivamente seguir para o banheiro. Mas... Argh, droga. Aquela merda
de curiosidade sempre falava mais alto.
Simplesmente, parei e continuei escutando.
— Como foi o natal, querido? — perguntou o homem. — Ouvi falar
que você ganhou um presente muito irado!
— Siiimmm! Eu ganhei uma bicicleta do Papai Noel!
— É verdade... E, Kaleb, você não tem noção das manobras radicais
que ele consegue fazer naquele pequeno espaço de casa. Só falta colocar o
apartamento da mamãe de cabeça para baixo — Divertida, Zara também
falou.
O homem riu.
— Que Papai Noel mais legal! — disse ele. — Mas, tome cuidado
com essas manobras radicais, para não se machucar ou quebrar alguma
coisa no apartamento da sua mãe.
— Tá bom, pai.
— Que saudade de você, meu amor. Fico muito feliz por saber que
está bem.
— Eu também tô com saudade, papai. Quando você vem me ver?
O homem suspirou. Aquele chiado característico de uma
videochamada.
— Logo eu estarei aí, meu amor. Eu prometo.
— Mas... Você sempre diz isso e nunca vem... — Com uma vozinha
triste, Nick replicou.
Ah, meu Deus.
Percebi meu coração se dilacerar lentamente em um milhão de
partes, porque talvez eu tivesse certa noção do que Nick sentia. Eu sabia
como era ter um pai ausente, mesmo que, teoricamente, o meu dividisse a
casa comigo. Na maioria das vezes, era mesmo que nada. Parecia que eu
morava sozinha. E eu só me dava conta da sua existência ali, quando ele me
procurava para me obrigar a fazer algo contra a minha vontade.
Inclusive, era um milagre que ele ainda não tivesse me ligado,
mandado mensagem, ou feito algum sinal de fumaça para que eu voltasse
para casa, o mais rápido possível, e desse alguma merda de “assistência” a
um dos seus parceiros de negócios filhos da puta. Eu sabia bem que tipo de
coisa ele queria que eu fizesse, quando falava em “assistência”.
Suspirei, balançando a cabeça.
Aquela conversa, entre Zara, Nick e o seu pai, parecia pessoal
demais para que eu ficasse ali bisbilhotando. Foi então que decidi sair.
Reunindo o máximo da minha força de vontade, dei o primeiro passo para
me afastar. Porém, quando assim o fiz, senti meu celular vibrar na minha
mão.
Aquilo me assustou por um segundo.
Era como se eu tivesse sido pega no flagra por alguém.
Droga... Sibilei um palavrão baixinho, comigo mesma.
Se acalma, Agatha.
Puxei o ar e olhei a tela do celular.
Tessa. Era ela.
Filha da puta pra assustar os outros. Logo naquele meu momento
de bisbilhoteira.
Corri para a varanda e atendi.
— Fala.
— Nossa... Que mau humor é esse, heim?
Foi aí que me dei conta do tom meio áspero que eu tinha usado.
Suspirei.
— Ah, foi mal, foi mal, Tessa... Eu só me assustei quando o celular
vibrou.
— Hum... Muito assustadinha — ironizou. — Posso saber o que
anda fazendo? Aliás, é assim que você trata a sua melhor amiga que te
levou pra se declarar para a mulher por quem você tá maluca? Pelo amor de
Deus. Desde aquela noite, você sumiu. Pela milésima vez. Você sempre
some, sua vagabunda — riu.
E eu não pude evitar, também ri, porque era verdade. Eu não era,
digamos, aquela amiga mais presente da face da Terra. Mas, ainda assim, eu
sabia que a nossa amizade continuava intacta do mesmo jeito. Por isso que
era bom ser amiga da Tessa.
— Tá tudo bem, Tessa... Me desculpa pelo sumiço. É que, desde
aquela noite, tudo se tornou muito mais corrido. Eu... — passei a língua
entre os lábios, meio sem saber como dizer, porque eu tinha certeza de que
ela iria surtar. — Eu vim passar o ano novo com ela em Los Angeles, na
casa dos pais dela. A gente viajou.
— VOCÊ O QUÊ? — berrou.
Viu só? Eu disse que ela ia surtar.
— Calma, foi só uma viagenzinha.
— Quê? Co-como assim “só uma viagenzinha”?! — Até gaguejou,
atropelando as palavras. — Amiga, eu não acredito que vocês já estão nesse
nível! Já te levou para conhecer os sogrinhos? Meu Deus, essa mulher vai te
pedir em casamento! — riu.
— Para de ser imbecil, Tessa — disse eu, balançando a cabeça e
sorrindo feito idiota, porque, no fundo, eu sabia que ela tinha razão. Tudo
aquilo que estava acontecendo entre Zara e eu era inacreditável até para
mim. — Ela só quis ser gentil em me convidar.
— Gentil, é? — Quase duvidando, replicou. — Pra mim, isso tem
outro nome. Essa mulher quer comer a tua boceta pelo resto da vida, amiga.
Só acho. Quero dizer, tenho certeza.
Porra, se ela quisesse comer a minha boceta pelo resto da vida, eu
ia super adorar e deixar... Cantarolei mentalmente.
Quando fui responder qualquer merda, porém, a dita cuja apareceu
na varanda, naquele exatíssimo segundo, como se adivinhasse que nós
estávamos falando justamente dela. Para completar, ainda me olhou como
se quisesse dizer algo a mim.
— Um instante, Tessa.
Tirei o celular do ouvido, encarando-a para que falasse.
— Ahh, desculpa... Eu não queria atrapalhar... — Me deu um
sorrisinho meio sem jeito. — É que o Nick está louco para brincar um
pouquinho na praia. Então, eu pensei em chamar você para ir com a gente.
E eu quis suspirar de satisfação.
Era tão maravilhosa a forma como ela queria me incluir em tudo. Eu
adorava isso.
Obviamente, eu jamais negaria qualquer convite seu.
Inclusive, se ela quisesse me chamar até para comer um daqueles
hambúrgueres horríveis, gordurosos e oleosos, que ficava na lanchonete em
frente à penitenciária e que eu fazia um tremendo esforço para engolir a
cada almoço, eu aceitaria de bom grado. E ainda iria super empolgada.
Digo isso só para terem uma noção do que essa mulher tinha feito
comigo.
Eu já não era a mesma Agatha Ballard.
— Claro! Vamos. — Sorri, sentindo o coração dar um milhão de
cambalhotas dentro do peito. — Tessa, vou ter que desligar. Depois eu te
ligo, tá?
— Vai trepar, né, filha da puta? — Ela brincou, soltando uma
risadinha sacana. — Beijo. Até mais.
E eu também ri.
Boba. Tinha que ser minha amiga mesmo.
— Tchau, sua idiota.
E desliguei.
✽✽✽
Depois disso, nós não demoramos muito a descer para praia. Zara
segurou minha mão e a do Nick, e nos levou para lá. Confesso que ela já
estava começando a me deixar mal-acostumada com esse lance de segurar a
minha mão. Isso era tão bom. E eu nunca fiz questão dessa “espécie de
demonstração de carinho”. Só que, com ela, era diferente. Com ela, eu
sempre ia querer mais. Com ela, eu sempre iria gostar de qualquer atitude
que deixasse claro que, agora, pertencíamos sentimentalmente uma à outra.
Era assim que eu me sentia, quando ela entrelaçava os nossos dedos:
eu era dela.
E não existia qualquer sensação, no mundo, melhor do que essa.
Satisfeita e feliz, deixei que ela me guiasse à Santa Mônica, na
companhia do Nick, que, entusiasmado, levava uma bola e um baldinho de
areia. Fomos a pé mesmo. A praia ficava a apenas um quarteirão da casa
dos pais da Zara. Estava cheia, como sempre, completamente lotada de
turistas que andavam de um lado para o outro. Mas, absolutamente bonita.
Linda demais. O céu azul, o mar que se confundia bem na linha do
horizonte, o sol que já começava a querer descer pelo Oeste, e aquele clima
californiano que era inconfundível.
Zara escolheu um lugar perfeito para ficarmos. Descemos do píer e
caminhamos pela areia mesmo. À certa distância de onde havia uma
aglomeração maior de pessoas, em uma parte que estava mais tranquila, ela
estendeu a toalha de praia para nos sentarmos, enquanto Nick logo correu
para brincar. Ficou a poucos metros de nós, chutando sua bola e, depois,
construindo castelos de areia com o seu baldinho. Se divertia como se
estivesse em um parquinho de diversões.
Scott, por sua vez, ao se sentar sobre a toalha, fez de tal modo que
eu entendi que havia deixado um local para eu que me sentasse no espaço
livre entre as suas pernas. Assim o fiz. Me sentei ali, com as costas apoiadas
no seu peito, enquanto ela me abraçava pela cintura e encaixava seu rosto
na curva do pescoço. Meu coração batia acelerado o tempo todo. Aquela
sensação de peito esquentando, como quando somos adolescentes e nos
apaixonamos pela primeira vez. Era essa sensação que ela me causava.
E era por isso que eu precisava respirar fundo, na tentativa de
acalmar as cambalhotas e os saltos mortais que o meu coração queria dar,
de tão plena e realizada que eu estava.
Por alguns minutos, nós ficamos em silêncio, apenas ouvindo o som
das ondas quebrando na areia, do vento que remexia os nossos cabelos, e
observando o Nick brincar por ali. Enquanto o seu corpo estava abraçado ao
meu, eu não queria outra coisa, eu não precisava de mais nada. Apenas
aquilo era suficiente para mim. Somente aquele momento, que nós
estávamos vivendo, era o bastante para que eu me satisfizesse a respeito de
tudo. E, se nós passássemos o resto da vida daquele jeito, seria como viver
um sonho dia após dia.
Nem roupas de marca, nem carros luxuosos, nem casas caras, nem
festas da alta sociedade. Nada. Nada daquilo me proporcionava a real
felicidade que eu estava sentindo naquele instante. Meu maior desejo era
que isso nunca acabasse, que a nossa bolha nunca furasse, e, quiçá, que nós
não precisássemos voltar à nossa realidade em Las Vegas.
— Sabe... Há tanto tempo, eu não me sentia tão bem e tão feliz...
Obrigada por ter vindo à Los Angeles. Obrigada por estar aqui comigo —
De repente, ela falou.
Nós ainda estávamos abraçadas naquela mesma posição.
Tudo dentro de mim se revirou apenas com aquilo. Breves palavras
que carregavam tanto significado. Frases que nunca imaginei ela, um dia,
oferecendo especialmente a mim. A honestidade e a sinceridade gritantes
em cada letra pronunciada. E o melhor: ela estava sentindo exatamente o
mesmo que eu. Era incrível saber que eu não sentia sozinha, que existia
reciprocidade até na sensação daquele instante em que estávamos abraçadas
na areia da praia.
— Sou eu que agradeço... — repliquei, passando carinhosamente as
mãos pelos seus braços que me envolviam pela cintura. Um sorrisinho
muito idiota no meu rosto. — Você é linda e a sua família é maravilhosa.
Suas amigas também. Sua mãe e seu pai, então, nossa... — Eu quase não
tinha palavras para explicar. — Eles me trataram como se eu já fosse da
família, como se já me conhecessem há muito tempo. E, honestamente, eu
tenho me sentido mais em casa aqui do que no lugar onde eu moro.
Senti o seu sorriso na minha pele, enquanto seu rosto continuava na
curva do meu pescoço. Todos os pelinhos dos meus braços se arrepiaram.
— É tão bom ouvir isso, sabia? É tão bom estar com você. Tenha
certeza de que, em qualquer lugar que eu esteja, você sempre vai poder
encontrar um lar em mim.
“Você sempre vai poder encontrar um lar em mim...”
Porra, essa mulher ainda ia acabar comigo, se continuasse me
falando coisas assim.
Suspirei, na tentativa de controlar a quantidade de emoções que
subiam pela minha garganta. Quando eu quis respondê-la com algo que
representasse, pelo menos, um terço de todas as sensações que ela causava
em mim, porém, Nick exclamou, lá de onde ele estava brincando:
— Olha, mãe! Olha, Agui! Meu castelo! — Todo entusiasmado,
chamou a nossa atenção e apontou para a sua obra de arte construída na
areia.
Nós sorrimos para ele, orgulhosas.
— Ficou incrível, meu amor! — Zara falou.
— Ótimo trabalho, rapazinho! — disse eu também.
E ela me abraçou ainda mais pela cintura, me apertando na mesma
medida que eu sentia que estava sorrindo, ainda com o rosto encaixado
sobre o meu ombro.
— Eu já disse que adoro a maneira como você o trata? — sussurrou
ela no meu ouvido.
Soltei uma risadinha de leve.
— Bom, eu já falei a você o quanto eu acho o Nick uma criança
maravilhosa — respondi, sinceramente. — E eu também adoro crianças.
Então, acho que a junção dessas duas coisas deu muito certo.
— É... Deu muito certo sim... — disse ela, rindo baixinho também e
espalhando pequenos beijos pelo meu pescoço. O que me deixava ainda
mais arrepiada.
Só que, para além de todo aquele carinho insubstituível que eu
recebia dela e daquele momento tão especial, eu me lembrei de algo. Me
lembrei da conversa que eu bisbilhotei por alguns instantes, mesmo sabendo
que não deveria. E, agora, ainda que eu tentasse segurar, bem no fundo da
minha garganta, a confissão do meu crime, eu não conseguia, porque, fora a
confissão, eu também queria matar a curiosidade que permanecia tão viva
dentro de mim.
— Zara... — falei de leve, baixinho, meio sem jeito. — Se eu te
disser e te perguntar algo, você promete que não me leva a mal?
— Sim... Claro — percebi, no entanto, certo estranhamento no seu
tom de voz, mas nada muito além do que já não fosse esperado por mim.
Era claro que ela iria achar esquisito aquilo. — Pode falar.
Puxei o ar, tomando fôlego para me preparar para aquilo. Afinal, eu
não sabia como ela iria reagir. E me ajeitei sobre a toalha de praia, virando
o meu rosto, para que eu a encarasse, enquanto dizia.
— Eu preciso dizer que... — mordi o lábio inferior, meio receosa. —
Ouvi uma parte da sua conversa com o pai do Nick. Me desculpe por
xeretar assim a sua vida. Eu estava passando para ir ao banheiro, e ouvi um
pouco do que vocês estavam falando. Me desculpe — suspirei. — É que eu
fiquei muito curiosa. Na verdade, ainda estou muito curiosa sobre a história
que vocês tiveram, sabe? Mas, se não quiser me contar tudo bem. Você tem
até o direito de ficar chateada por eu ter bisbilhotado vocês.
Concluí dessa forma, mesmo que tudo dentro de mim gritasse e
suplicasse “ai, por favorzinho, eu sei que sou uma idiota, mas não fica com
raiva de mim não”.
No entanto, totalmente ao contrário do que eu poderia esperar, tudo
o que ela fez foi soltar uma risadinha leve, erguer uma das sobrancelhas e
perguntar:
— Ah, então, era só isso?
Só isso?
— É-É... — Ainda meio nervosa, gaguejei um pouco. — Quero
dizer, você não ficou chateada?
Ela riu mais uma vez, balançando a cabeça.
— É claro que não, Agatha... Por que eu ficaria? — questionou,
divertida, e, então, suspirou, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da
minha orelha e me olhando nos olhos. — Você sabe que tem a liberdade de
falar e de me perguntar sobre qualquer coisa, ou até mesmo de ouvir
qualquer conversa minha. Eu não tenho nada a esconder de você. Bom... A
minha história com o pai do Nick foi tão normal quanto a de qualquer outro
casal. Com exceção de alguns detalhes. Eu estava solteira, tinha uns vinte
ou vinte e um anos, ficava com algumas garotas e alguns garotos, e, então,
eu o conheci. Ele tinha se alistado no serviço militar para ser fuzileiro
naval. Estava fazendo curso e tudo mais, enquanto eu também estudava
para entrar na polícia. Foi na noite de uma festa com amigos em comum
que nos conhecemos. Demos o nosso primeiro beijo e, então, depois disso,
tudo aconteceu muito rápido. Não que eu estivesse realmente apaixonada,
mas eu acabei engravidando do Nick. Foi totalmente sem planejamento. A
gente nem sabia direito o que fazer. Começamos a morar juntos, mas isso
coincidiu com o chamamento dele para servir oficialmente em missões no
exterior. O Kaleb esteve em várias, como fuzileiro naval. Só que, por causa
disso, ele passava mais tempo viajando do que em casa. Aliás, por vezes, eu
nem sabia quando o veria de novo. Isso minou o nosso relacionamento,
além do fato de que eu nunca fui realmente apaixonada por ele. O Kaleb é
um cara ótimo, mas eu não achava que queria continuar naquela relação.
Nós nos separamos por volta de um ano depois que o Nick nasceu.
Fuzileiro naval?
Eu nem imaginava que essa era a sua profissão.
— E foi... Uma separação difícil...? — perguntei meio receosa, sem
saber se poderia seguir por esse caminho, mesmo que ela tivesse me dito
que eu tinha liberdade de falar ou de perguntar qualquer coisa. — Vocês
chegaram a brigar?
— Ah, não, não... — balançou a cabeça, respondendo calmamente.
— Foi uma separação tranquila. Tanto eu quanto ele já sabíamos que a
nossa relação não daria certo, antes mesmo de conversarmos e decidirmos
sobre a separação. Nick também era um bebê, então não foi uma mudança
muito drástica para ele, porque ele ainda não entendia muita coisa. Hoje,
Kaleb e eu somos amigos. E eu entendo que o trabalho dele não permita que
esteja o tempo todo aqui com o Nick. Hoje, ele está em uma missão na
Palestina. Mas, sei que se fosse exclusivamente pela vontade dele, ele seria
um pai presente. Eu só não queria ter um marido assim, sabe? Sempre quis
estar casada por amar de verdade uma pessoa, e não por obrigação. Mas,
enfim, hoje nós somos bons amigos.
E uma esposa bem presente, será que ela iria querer?
A súbita pergunta subiu bem para a minha ponta da língua, antes
mesmo que eu conseguisse pensar racionalmente sobre ela. Me dei conta,
no entanto, quando a segurei, para não a deixar sair.
Talvez não fosse o momento mais apropriado para dizer aquilo.
— Bom... — puxei o ar. — Com todo o respeito à situação, mas que
bom que você não tem um marido ou uma esposa agora — sorri pequeno,
meio sem jeito, por não saber se caberia uma pequena brincadeira naquele
momento. — Senão, a gente não poderia estar assim agora.
Ela, no entanto, soltou uma risadinha.
A cada vez que ela demonstrava encarar com leveza, aquele assunto,
eu me sentia um pouco mais aliviada.
— Acho que o meu destino era conhecer você — sorriu.
De automático, ergui uma das sobrancelhas, surpresa, por ouvir
aquilo.
— Acha mesmo?
— Sim... Não é todo dia que batem o carro numa viatura da polícia.
E você bateu logo na minha — riu mais um pouquinho.
Mesmo que o seu tom fosse divertido, ainda assim, ela parecia estar
sendo realmente sincera.
— Bendito acidente de carro — brinquei. Embora, a essa altura, eu
já estivesse agradecendo ao universo somente por tê-la trazido à minha
vida. — Tudo bem que até hoje eu fico puta quando me lembro que tive que
passar a noite inteira na porcaria de uma cela e também quando você me
manda limpar alguma privada entupida de cocô, mas, pelo menos, isso me
fez conhecer você. Então, já valeu a pena. Literalmente, valeu a pena —
sorri.
Ela riu ainda mais, jogando a cabeça para trás, tão linda e tão leve.
— Garota, você é maluca... Mas, eu adoro isso.
E, simplesmente, encaixando suas duas mãos no meu pescoço me
puxou para um beijo. O beijo mais gostoso do mundo. Ah, eu era maluca
sim... Por ela. Deixando-me levar por suas mãos e pelo poder que ela tinha
na pontinha de cada um dos seus dedos, fechei os olhos e aprofundei aquilo.
Em pouco tempo, a mágica que existia nos seus próprios lábios, já me fazia
imaginar que nós não estávamos mais nem na praia de Santa Mônica. Era
como se estivéssemos sendo transportadas para outro lugar, em cima de
alguma nuvem flutuante, por mais piegas e tosco que pudesse parecer.
Isso até que...
Repentinamente, ouvimos seu celular tocar.
Foi quando ela parou o beijo, mesmo entre selinhos e sorrisos de
quem, na verdade, queria continuar aquilo. Suspirando, no entanto, o tirou
do bolso e atendeu.
— Oi, Mad — franziu o cenho, como se prestasse atenção naquilo
que a outra falava. — Hum... — E balançou um sim com a cabeça. — Tá
legal, tá legal. Eu vou falar aqui com a Agatha — desligou e me fitou. —
Mad e Ava foram a uma lanchonete que fica no píer. Estão nos chamando
para ir lá. Você tá a fim?
Sorri.
Eu estaria a fim de qualquer coisa que envolvesse Zara Scott.
— É claro.
Zara
Já era fim de tarde, quase noite, quando nós chegamos ao local onde
Madison tinha me falado. A lanchonete estava absolutamente lotada. Aliás,
eu não sabia qual nome dar exatamente àquele lugar. Parecia uma
lanchonete, pela quantidade de hambúrgueres e batatas fritas que eu via
circulando por ali, mas também tinha muita bebida. Drinques dos mais
variados tipos. Inclusive, pelo que eu pude notar, já nos três primeiros
segundos que pus meus olhos sobre as minhas amigas, elas estavam bem
bêbadas. E olha que eu ainda nem estava realmente perto. Mas, aqueles
risos frouxos e espera aí... Ava no karaokê? Não... Elas só podiam estar
mesmo muito bêbadas.
Como se não bastasse, meus pais também estavam ali. Não bêbados,
como elas, claro. Mas, também se divertiam e as acompanhavam naquele
show, em meio às outras dezenas de pessoas que ocupavam mesas e
cadeiras do local. Segurei Agatha e Nick pela mão, e me aproximei. O
pequeno, no entanto, empolgado com aquela grande bagunça, logo se soltou
e praticamente pulou na Ava, que já sorria até para uma mosca passando em
frente à sua cara.
— Tiaaaa, eu quero cantar também! — exclamou, agarrando suas
pernas.
— Então, vem meu amor! Vem cantar com a tia! — E se abaixou, na
altura dele, para que os dois pudessem dividir o microfone, enquanto Ava
cantava a música do momento.
Para a minha completa surpresa, a galera estava curtindo. E, bem,
Ava definitivamente não era nenhuma cantora. As pessoas só podiam estar
sob muito efeito de álcool tanto quanto ela. Ou, então, era aquele clima
californiano de um lugar onde as festas nunca pareciam acabar.
Me divertindo ao ver os dois mandando ver no microfone, me
aproximei dos meus pais.
— Como vocês estão aguentando a voz da Ava, heim? — brinquei.
— Ela é uma das melhores que passou por esse karaokê hoje...! —
Papai replicou.
Quê?
Uma das melhores?
Eu realmente não queria ouvir a pior.
— Seu pai tem razão... — Mamãe também disse, soltando uma
risadinha. — Beba um drinque, querida. Eu tenho certeza que a sua audição
vai melhorar consideravelmente, depois de umas boas doses — E tomou um
gole da sua própria bebida.
Eu ri.
Isso significava que, depois de beber os drinques esquisitos daquela
lanchonete, eu ficaria louca ao ponto de suportar ouvir qualquer merda. A
verdade era essa.
Antes que eu pudesse responder, no entanto, senti quando Madison,
repentinamente, pulou no meu ombro e no da Agatha, ao mesmo tempo,
entre nós. O cheiro de álcool que saía pela sua boca não dava para disfarçar
sua embriaguez, nem mesmo seus risos frouxos ou a maneira como estava
falando.
— Olha soooó, quem chegou, heim...?! — disse ela. — As
maiooores autarquias dessa cidade inteira! E eu não aceito não como
resposta, tá bom...? — continuou, se pendurando ainda mais nos nossos
ombros. — Vamos começar os trabalhos! — apontou para a mesa cheia de
bebidas.
— Pera aí, Ava... — Sorrindo, ergui uma das sobrancelhas. — Você
já tá querendo embebedar a gente? Agora que são seis horas da noite.
— Ah, poxa, eu quero beber... — disse Agatha, dando de ombros.
Eu ri.
É claro que ia querer beber.
Conhecia bem a figura.
— A-RÁ! — Mad exclamou, entusiasmada com a resposta da loira,
e completamente maluca também. — Eu sabia que a Agatha era das
minhas! Sensacional essa menina! Você tem muita sorte, minha amiga! — E
deu tapinhas no meu ombro. — Então, vamos lá... — disse ela, se afastando
de nós e se aproximando da mesa. — Temos aqui um incrível Pinot Grigio!
Coisa refinada, chique... — fez uma firula engraçada com a mão. —
Maaaaas! Temos também essa incrível e maravilhosa Periquita! Juro! É a
melhor! Melhor do qualquer vinho no mundo! Tem uma ardênciazinha, no
início, mas, no final, desce tão docinho que vocês vão querer mais! Bem
periquita mesmo! — Riu. — E aí, qual vai ser? Aposto que é a periquita.
Agatha gargalhou.
— Eu acho que vou de Periquita mesmo — disse ela entre risos.
— Ahhh, viu só? Eu disse que essa menina era das minhas! — Mad
exclamou.
Eu ri.
— Também vou querer a Periquita — falei.
— Booa! Bora nós virar isso aqui! — disse Mad, já enchendo os
nossos copos. — No três, heim? — E entregou a nós. — Um... Dois... Três!
Bebemos ao mesmo tempo, Agatha, Mad e eu.
Caralho, desceu rasgando.
Fechei os olhos por alguns instantes, mas, quando os abri
novamente, percebi que Agatha tinha feito o mesmo. Seus lábios, porém,
exibiam o maior sorriso de todos. Ela tinha gostado daquilo. Era realmente
como Mad falou, ardia no início e ficava docinho no final. Pela cara da
loira, ela já queria mais. E eu também.
No entanto, quando fui puxar a garrafa para encher os nossos copos,
outra vez, ouvi Ava falar, ao final da sua última música:
— Quem é que vai cantar agora? Eu preciso dar um descanso aqui
para a minha voz maravilhosa — disse ela, bêbada.
Em uníssono, todos da lanchonete exclamaram um “aaaaahhh”.
Eu ri.
Aquela galera era da putaria.
Entretanto, antes que eu pudesse caçoar daquilo por mais tempo,
com risadinhas, Mad exclamou, tomando logo partido, frente às dezenas de
pessoas que comiam seus lanches e bebiam drinques tão esquisitos quanto a
Periquita:
— Já sei! Já sei! — levantou o dedo. — Quem vai cantar agora é a
nossa querida Aguinha! Aaaaaeeeee!
A lanchonete inteira vibrou junto Madison.
Meu. Deus.
Olhei para Agatha, sem saber se ria ou se ficava preocupada. E,
então, vi que, junto com suas duas sobrancelhas arqueadas de surpresa, ela
já gargalhava.
Oh, sim, claro. Por um segundo, eu me esqueci de que a minha
mulher também era da putaria.
— Canta! Canta! Canta! — Em um coro, todos começaram a
exclamar.
E Agatha ria ainda mais. Olhei para os meus pais que gargalhavam.
Senti o meu peito esquentar. Talvez eu nunca tivesse me sentido tão feliz
em toda a minha vida.
— Tá, tá bom, tá bom — E puxou o microfone. — Eu vou! Dá o
play aí DJ! — brincou, já falando ao microfone.
Era a mulher que eu tinha pedido a Deus.
— Tem certeza que quer fazer isso? — Ainda perguntei, sorrindo.
— Não estou bêbada o bastante, mas acho que posso fazer isso — E
piscou o olho pra mim, faceira.
Por um milésimo, senti que ela estava esquematizando alguma coisa
em sua cabecinha fértil. Mas, também não falei nada sobre isso. Apenas
com aquele sorriso bobo, que não saía por nada do meu rosto, reparei nos
seus passos, quando ela se aproximou do homem que controlava as músicas
no karaokê.
Aparentemente, fez o pedido de alguma música que eu não consegui
ouvir o nome, e, então, tomou o seu lugar do show, pertinho de nós. Uma
salva de palmas entusiasmadas, seguidas de gritos e assobios eufóricos,
romperam o ar, antes mesmo dela começar a cantar. Eu ri de novo. Aquele
pessoal só podia estar mesmo muito bêbado.
E aí, a música começou a tocar.
Franzi o cenho de leve, ao reparar naquele ritmo. Apenas com
aquele toque inicial, eu soube que a música era familiar para mim. Era
alegre, pra cima, vibrante. Eu já tinha escutado em algum lugar, ou, sei lá,
em algum filme. Tipo, um daqueles de comédia romântica. Só precisava me
lembrar do nome dela.
Foi quando começou a cantar.
Zara
Zara
Tudo o que era bom não durava pouco, mas durava tempo o bastante para
que se tornasse inesquecível. Foi essa a sensação que eu tive quando o
domingo de manhã chegou junto com a nossa volta para casa. Aquele fim
de semana do feriado de ano novo foi inesquecível, mesmo que tivesse
passado muito rápido. E que bela forma de começar o ano, não? Eu
guardaria no meu coração, para sempre, tudo o que vivi ali. A forma como
meus pais receberam Agatha desde o primeiro segundo, a maneira como ela
e as minhas amigas conseguiram se conectar, e o jeito como Nick, Agatha e
eu parecíamos, cada vez mais, uma família.
Isso, claro, sem contar com todos os momentos mais íntimos entre
mim e ela. Só eu sabia o que senti, durante aquela queima de fogos, na
praia, quando segurei a sua mão e olhei nos seus olhos, tendo a certeza de
que ela realmente estava ali comigo. Jamais conseguiria explicar para
qualquer pessoa, por mais que eu tentasse. A primeira passagem de ano que
eu estive com a minha mulher. A mulher da minha vida. E, depois, o nosso
sexo. O primeiro eu te amo. A sensação de que todos os sentimentos que eu
nutria por ela estavam tomando proporções maiores a cada minuto.
A impressão de não somente completude, mas também de
transbordamento.
Eu estava feliz e satisfeita com ela, assim como tinha a certeza de
que ela estava da mesma forma comigo.
Naquele domingo de manhã, depois de tomarmos o café e
colocarmos as nossas malas no carro, a nostalgia era gritante. E, também, a
vontade de vivermos para sempre naquele único e exclusivo final de
semana em Los Angeles. Nós carregaríamos dali boas recordações, até que
retornássemos, mais uma vez, para renovar as lembranças. Sem dúvidas, eu
voltaria com ela. Com a Agatha. Da mesma maneira como eu havia lhe
dito, quando fiz o convite, aquele era apenas o primeiro passo de muitos
que eu queria dividir com ela, durante a vida.
— Ai, querida... Mas, vocês já vão mesmo? — Mamãe perguntou,
como se segurasse o próprio coração com suas palavras.
— Ainda está tão cedo... Fiquem, pelo menos, para o almoço... —
Papai completou.
— Ah, eu adoraria ficar para experimentar mais uma comidinha da
dona Martha — Divertida, Mad replicou.
Ava soltou uma risadinha, balançando a cabeça para a folga da
namorada.
Madison falou aquilo em tom de brincadeira, mas eu sabia que tinha
parcelas de verdade. Afinal, não existia qualquer pessoa no mundo que
dispensasse, por livre e espontânea vontade, as refeições e os quitutes que
mamãe fazia. Eu mesma já estava com o coração apertado por ter que voltar
a provar seu escalopinho de filé somente na próxima vez que estivéssemos
ali.
— Mamãe... Infelizmente, sim... Nós temos que ir. Bem que eu
queria ficar e passar mais tempo com vocês. Aliás, eu nem queria ir pra
casa — soltei uma risadinha. — Mas, o caminho daqui pra lá é longo, e
amanhã é dia de trabalho. Não quero chegar em casa muito cansada.
Mamãe suspirou, resignada.
— Tudo bem, filha, eu entendo... Mas, não demore muito a voltar,
sim? — sorriu, esperançosa. — Você se mata de trabalhar e mal tira uma
folguinha. Precisa descansar e nos visitar mais vezes.
— Mamãe disse que a gente vem no Dia do Presidente! —
Entusiasmado, Nick exclamou, dando pulinhos.
Todos nós rimos com a sua empolgação.
— É... É verdade... Quero dizer, eu só comentei por alto, mas o Nick
já tomou como certo que isso vai acontecer — disse eu, entre risinhos. —
Mas, eu vou tentar, sim, tirar mais folgas esse ano, e também vou fazer o
possível para não ser escalada no Dia do Presidente. Quem sabe, eu venho
passar o feriado com vocês.
— Ah, filha, seria ótimo — Dessa vez, quem disse foi o papai.
— E traga a Agatha também, viu? — Mamãe completou, sorrindo,
como um aviso irremediável.
— Claro que eu trago. Já assinei o contrato de posse e propriedade
— falei, brincando.
A loira riu.
— Eu agradeço, de verdade — E replicou. — Muito obrigada pelo
carinho que tiveram comigo e por me receberem tão bem. Eu adorei. Eu
adorei tudo.
Sim, ela era o motivo do meu orgulho.
— E nós adoramos você, meu bem — Mamãe também disse,
enquanto papai acenava um sim com a cabeça. — Saiba que sempre será
bem-vinda em nossa casa.
Eu tinha os melhores pais do mundo, não é?
— Ah, vocês são uns fofos! — Madison exclamou, brincalhona. —
Parece aquelas famílias de comercial de margarina, sabe?
— Ai, Mad, você sempre estraga os momentos fofos com esses
comentários — Ava retrucou, divertida.
Todos riram.
Essa era realmente uma marca registrada da Madison. Sempre tirava
uma brincadeira ou fazia alguma piadinha nessas horas.
— Bem, acho melhor irmos, não é? — Suspirando, falei. — Senão,
vamos chegar tarde em Las Vegas.
— Por mim, vocês ficariam aqui pelo resto da semana — Divertida,
mamãe replicou. — Mas, já que precisam ir, façam uma ótima viagem. E
tomem cuidado. Quando chegarem em casa me avisem.
Assim, entre beijos, abraços e promessas de que logo voltaríamos,
nós nos despedimos.
Deixamos Los Angeles por volta das nove horas da manhã. Quase
no mesmo horário que saímos de Las Vegas na ida. Toda a paisagem
californiana sendo deixada para trás, junto com suas enormes palmeiras
imperiais e seu excitante clima praiano. Com as janelas abertas, o vento
bagunçava os nossos cabelos, como se tudo ao redor parecesse rápido
demais e lento demais, ao mesmo tempo. Eu vi as mechas loiras da Agatha
voarem em câmera lenta frente aos meus olhos, enquanto o carro deslizava
ligeiro pelas rodovias.
A sua beleza.
O seu encanto.
A mulher que eu queria e que eu tinha para mim.
Apesar de tudo e das lembranças empolgantes vividas naquele final
de semana, o caminho de volta foi mais introspectivo que o de ida. Talvez já
fosse a saudade batendo de algo que ficaria guardado na nossa memória. Ou
talvez fosse apenas o enfado da farra e da festa que durou até altas horas.
Mad e Ava, inclusive, foram praticamente o caminho inteiro dormindo, com
Nick, no banco de trás. Eles estavam bem cansados. Era perceptível. A
adrenalina da viagem já tinha passado.
Também não havia música por ali. O único som ouvido era o da
trilha sonora que o vento impetuoso, que entrava pelas janelas, fazia. Talvez
fosse mais uma razão para o sono.
E Agatha seguia com seu olhar sereno. Com seus sorrisos
agradáveis e com seu semblante ameno, ainda que, vez por outra, ao longo
do caminho, eu percebesse, mesmo de maneira quase ínfima e discreta, um
pequeno traço de preocupação ou de inquietação. Como a cada vez que ela
respirava fundo, pensativa, ou passava as mãos na roupa, enxugando-as.
Embora tentasse ser comedida em toda atitude, eu percebia.
Eu percebia porque já a conhecia bem demais, como se fosse de
outra vida, ainda que eu a tivesse visto, pela primeira vez, somente há
poucas semanas. Eu já sabia tão bem como aquela garota funcionava. Algo
estava incomodando-a. Eu só precisava descobrir o quê.
Ainda tentei desvendar algo, através do seu olhar ou da forma
contida como dava a entender aquilo, mas, aparentemente, quando percebia
que eu estava notando, ela me devolvia um sorriso imenso, soltava algum
beijinho, ou colocava a mão na minha coxa em um carinho, antes que eu
perguntasse qualquer coisa, como se quisesse demonstrar que estava tudo
bem ou se esquivar de qualquer questionamento.
Bem, naquele momento eu não insistiria.
Mas, ainda tentaria saber o que poderia estar acontecendo.
Quando chegamos em Las Vegas, já era mais de uma hora da tarde.
Dobrar na rua da sua casa foi como um prenúncio. O prenúncio do fim
daquele sonho tão fugaz do fim de semana. Talvez um fim de semana já
tivesse sido o suficiente para eu me acostumar com a sua companhia do
momento em que eu abrisse os olhos até o horário de dormir. E eu queria
tanto que fosse assim todos os dias. No fundo do meu coração, eu sentia
isso: a vontade de acordar e dormir todos os dias com Agatha ao meu lado.
Bem, eu faria o possível para que esse desejo se realizasse.
Estacionei em frente à sua mansão e desci do carro, para ajudá-la a
tirar a mala do bagageiro. Mad, Ava e Nick ficaram aguardando no banco
de trás. Uma saudade já apertava o meu peito, mesmo que eu fosse
encontrá-la, no dia seguinte, na penitenciária. Talvez porque eu soubesse
que não seria a mesma coisa. Claro que não. Encontrá-la na penitenciária
jamais seria a mesma coisa que viajar com ela, ou encontrá-la na minha
casa, ou em qualquer outra parte do planeta. Aquela penitenciária era como
uma espécie de câncer para nós. Minava a nossa relação, mesmo que
minimamente.
Precisar fingir que não tínhamos nada, quando o meu coração
gritava por ela, estava se tornando cada vez mais difícil. Eu só queria saber
até quando eu aguentaria isso. Aqueles cinco meses que restavam, para o
fim da sua pena, tinham que passar muito, muito rápido. Era uma questão
de necessidade.
Ao colocar a sua mala sobre a calçada e lhe oferecer um pequeno
sorriso de quem tinha que se despedir, mas, no fundo, não queria, falei:
— Bom... Está entregue. Sã e salva.
Ela sorriu de volta, muito embora o sorriso não alcançasse os seus
olhos.
Aquela impressão de algo por trás das suas íris permanecia ali.
— Obrigada. Obrigada por tudo. Mesmo.
— Gostou da viagem? — perguntei.
— Claro! Eu amei — respondeu sinceramente. — A viagem foi
maravilhosa. Seus pais são ótimos e tudo o que nós fizemos foi incrível. Eu
vou ficar com saudades.
Eu vou ficar com saudades...
Foi então, quando eu percebi que, apesar do sorrisinho de gratidão e
felicidade que me deu, ao final, ainda existia muita coisa por trás. Algo no
fundo do seu olhar. Aquela mesma impressão que eu tive no percurso de
volta da viagem.
Ela não ia ficar com saudades... Ela já estava, assim como eu.
— E está tudo bem com você? — Ainda perguntei.
— Comigo? — arqueou brevemente as sobrancelhas, quase surpresa
com a minha pergunta. Ou como se tivesse perguntado apenas para ganhar
um tempo pensando na resposta.
— Sim... Quero dizer... Eu não sei, mas percebi algo. Você parecia
meio preocupada com alguma coisa, no caminho de volta.
Vi quando sua garganta pareceu engolir seco, ao descer e subir
rapidamente. E, então, sorriu, ou riu de leve, balançando a cabeça, como se
eu tivesse falado algo muito bobo, ou sem noção.
— Ah, eu? Isso foi só impressão sua — franziu o cenho de leve,
ainda sorrindo.
No fundo, eu realmente queria que fosse só impressão minha, mas...
— Tem certeza? Você sabe que pode sempre me falar qualquer
coisa.
— É claro... Por que eu não estaria bem? — E me abraçou, me
dando um beijo de despedida na boca e me fazendo perder o chão por
alguns segundos, como sempre acontecia quando os seus lábios se
encontravam com os meus. — Eu te amo — sussurrou. — Foi um dos
melhores finais de semana da minha vida.
Para mim também...
Suspirei, pousando minha mão sobre o seu rosto e encarando o
fundo dos seus olhos.
— Eu amo você, Agatha. Muito.
E ela sorriu. Dessa vez, mais intensamente do que nas outras,
durante aquela manhã.
Era esse o seu sorriso verdadeiro.
Porém, antes que pudéssemos falar mais alguma coisa...
— Tchaaaau, Agui! — Nick exclamou, se pendurando na janela para
se despedir dela.
A loira soltou uma risadinha.
— Tchau, meu amor! — disse ela, o abraçando ali mesmo e dando
um beijo cada bochecha sua. — Tchau tchau Mad! Tchau Ava! — Também
falou, acenando com a mão.
— Até mais, Agatha! — Elas disseram.
E, com uma piscadinha de olho e um pequeno sorriso, ela segurou
no puxador da sua mala de rodinhas e se despediu de mim pela última vez.
Ainda a observei caminhar até os imensos portões da fortaleza onde
ela morava. Sorri por breves instantes. Uma centelha de emoção se
formando no cantinho dos meus olhos, ao me dar conta, pela milésima vez,
de que eu estava com a mulher mais especial de todo o planeta. Uma
fagulha de felicidade por saber que, mesmo que o fim de semana tivesse
acabado, ela ainda seria minha, no dia seguinte.
E, então, segundos antes dos seguranças fecharem os portões, após
ela entrar e sumir do meu campo de visão, senti algo estranho. Uma
sensação ruim, um incômodo repentino que me fez franzir o cenho. Algo
que eu não sabia descrever o que era, mas que me deixou confusa pela
intensidade com a qual me tomou.
Talvez, um pressentimento.
Ainda passei um tempinho de pé, na calçada, observando fixamente
a fachada da casa dela, na tentativa de entender o que estava acontecendo
comigo. Porém, quando eu decidi dar um passo para voltar ao carro, o meu
celular tocou no bolso da calça.
O número era desconhecido.
Minha testa enrugou outra vez.
— Alô?
— Olá. Eu falo com a policial Scott?
Eu não reconhecia aquela voz.
— Sim... No que posso ajudar?
— Policial Scott, eu sou a secretária da Superintendência da Polícia
de Las Vegas. O Superintendente McConaughey está solicitando uma
reunião, em caráter de urgência, com a senhora. Ele pede que se dirija o
mais rápido possível ao prédio da Superintendência e aguarda a senhora
ainda hoje.
Superintendente McConaughey?
Algo despontou em mim.
— Você poderia me adiantar do que se trata? — Ainda perguntei.
— Infelizmente não, senhora. Somente com ele.
Passei a língua entre os lábios.
— Entendi. Está bem. Dentro de uma hora, eu estarei aí.
E desliguei.
Guardei o celular no bolso e puxei o ar, encarando a fachada da casa
da Agatha numa última vez. Pela minha experiência, ser chamada
pessoalmente pelo Superintendente de Polícia poderia significar duas
coisas. Algo muito bom, como receber uma promoção ou ser escalada para
a maior missão da sua vida. Ou algo muito ruim, como uma demissão.
Agatha
Zara
Eu preferi não falar nada para Mad e Ava, porque sabia que elas iriam ficar
preocupadas ou tirar conclusões precipitadas sobre algo que eu nem fazia
ideia do que se tratava. Ou talvez, no fundo, eu até soubesse... Apenas disse
que fui chamada para cobrir uma emergência da polícia. Deixei-as no
prédio, junto com Nick. Pedi a gentileza que ficassem com ele até eu voltar.
Vesti minha farda e fui.
A Superintendência da Polícia de Las Vegas não ficava muito
distante de onde eu morava. Por isso, não demorei a chegar. Durante o
percurso, foi como se, instintivamente, o meu corpo e os meus sentimentos
já estivessem se preparando para qualquer coisa. Boa ou ruim. Sobretudo,
ruim. Algo, lá dentro da minha alma, sussurrava a razão para eu estar ali.
Uma sensação de déjà vu. De passado se repetindo no presente, como se eu
já tivesse vivido aquilo.
E já tinha.
Cerca de cinco ou seis anos atrás.
Fui chamada naquela mesma Superintendência.
O resultado, eu já conhecia.
Respirei fundo e entrei no imponente prédio. A sala do
superintendente ficava no último andar. Por isso, peguei um elevador e subi
direto para lá. Fora a sala do McConaughey, havia mais outras duas, além
do balcão da secretária. Porém, a primeira pessoa que eu vi, ao chegar lá,
foi Alexa Westphalen, sentada em uma das cadeiras da recepção, com os
cotovelos sobre as pernas e a cabeça entre as mãos. Preocupada. O que ela
fazia ali, eu não sabia, mas, com certeza, tinha a ver comigo.
De súbito, eu senti o impacto apenas por vê-la daquela maneira.
Eram raras as vezes em que Westphalen demonstrava qualquer tipo de
vulnerabilidade ou abatimento. Aquela mulher sempre foi uma fortaleza.
No entanto, tentei segurar as pontas, me mantendo firme. Eu já tinha
passado por muitas coisas, assim como também deveria me preparar para o
que viesse. Eu não era uma mulher fraca. Eu era Zara Scott. E, de um jeito
ou de outro, a minha vida iria seguir.
Caminhei, então, pelo corredor. Foi quando ela girou o rosto e me
viu. Tive uma certeza ainda maior de que ela estava, de fato, abalada.
Repentinamente, se levantou de onde estava, indo em minha direção, com
uma ânsia, uma gana. E, enfim, me abraçou tão apertado e tão forte,
pegando-me de surpresa. Por alguns instantes, eu não tive reação. Apenas
parei de caminhar e, então, sem saber direito onde colocar as mãos, a
abracei devagar.
— Me desculpe, me desculpe... — suplicava em meus ouvidos. —
Eu tentei fazer o que pude, mas... Eu não consegui... Eu não consegui. Me
desculpe, Zara. Me desculpe.
Então, a merda era grande... Talvez, aquilo que eu já imaginava.
Foi a primeira coisa que pensei.
Puxei o ar.
— Alexa... — Nos separei apenas alguns centímetros, segurando seu
rosto com as duas mãos. Seus olhos lacrimejavam como se aquilo estivesse
acontecendo com ela mesma. — Está tudo bem, ok? Está tudo bem —
tentei acalmá-la.
Se o motivo fosse aquele que já sussurrava no meu coração, quem
sofreria todas as consequências seria eu. Não ela. Então, somente por isso,
tudo já estava bem.
Todavia, antes que ela pudesse falar mais alguma coisa, a secretária
disse:
— Policial Scott?
— Sim...? — Girei o rosto para ela.
— Policial Scott, o superintendente McConaughey está aguardando
em sua sala. Por favor, me acompanhe. Inspetora Westphalen também.
E, assim, sem mais delongas, saiu de sua mesa e nos guiou pelo
último andar, até a sala do superintendente. Meu coração, o tempo inteiro,
gritava uma certeza, mesmo que ninguém ainda tivesse me dito
abertamente. Apesar disso, eu estava estranhamente calma. Talvez fosse a
certeza do pior. Ou melhor, talvez fosse a certeza de que o pior seria ainda
mais doloroso se eu tivesse que deixar para trás, mais uma vez, o desejo do
meu coração.
E isso eu não faria.
Pelo menos, não outra vez.
Quando a secretária abriu a porta para nós, lá estava ele. Ao
contrário de Westphalen, que era uma inspetora mais recente na
penitenciária, aquele homem era o mesmo superintendente de anos atrás. O
mesmo que participou de um dos momentos mais difíceis da minha vida. O
mesmo que me obrigou a escolher entre o meu trabalho e o meu coração. O
mesmo que quase me demitiu por causa da Haven.
Novamente, aquela sensação de déjà vu bateu. Só que muito mais
forte.
— Boa tarde, Policial Scott e inspetora Westphalen. Por favor,
sentem-se — apontou ele para as cadeiras que ficavam em frente à sua
mesa.
Assim que o fizemos, ele continuou:
— É um prazer recebê-la em meu escritório, policial Scott, mas não
pelo motivo que a trouxe aqui. Você sabe porque foi chamada?
— Não.
Menti.
Alguma coisa já me dizia.
Ele respirou profundamente, e, então, abriu uma das gavetas da sua
mesa, colocando vários papéis em cima, bem à minha frente.
— Policial Scott, desde que você entrou na polícia de Las Vegas,
tem se destacado como uma das melhores e mais profissionais agentes da
nossa cidade. Por isso, já ganhou promoções, aumentos salariais e
certificados de honra ao mérito. Nós realmente valorizamos a sua presença
aqui, pelo bom trabalho. Mas... Aparentemente, você possui um tipo de...
— franziu o cenho, como se estivesse tentando escolher as palavras certas.
— Um tipo de calcanhar de Aquiles. Uma fraqueza. Uma grande fraqueza.
— Foi aí que empurrou o material, sobre a mesa, em minha direção. —
Você reconhece essas fotos? — E, com seriedade, me encarou.
Quando olhei para as inúmeras imagens espalhadas por ali, havia
apenas uma verdade: tinham nos descoberto. A verdade que o meu coração
já sussurrava. O meu relacionamento com Agatha sendo exposto por um
dos membros superiores da Polícia de Las Vegas. O passado se
apresentando com uma nova roupa no presente. Tudo outra vez, mas de um
jeito diferente, porque, agora, eu não estava apenas apaixonada. Eu estava
amando aquela garota.
Uma série de fotos minhas com Agatha, beijando Agatha, abraçando
Agatha, namorando Agatha, rindo com Agatha, no dia em que nós fomos
jantar em um dos hotéis do seu pai. Eu não sabia como a polícia tinha
conseguido aquilo. Ou até soubesse, na verdade. Apenas uma pessoa
poderia ter feito isso. Afinal, eram registros de imagens captadas através
das câmeras de segurança do local.
Só que de todas as coisas que eu poderia sentir, por estar sendo
exposta daquela maneira, quando eu sabia das regras veementes da polícia,
tudo do que o meu coração se encheu foi de alívio, orgulho e felicidade.
Alívio por acabar com a farsa. Orgulho pela mulher que eu tinha. Felicidade
por finalmente poder falar a verdade sem peso na consciência. Eu até quis
sorrir, como se sentisse um gostinho de liberdade na minha boca.
E se tinha uma coisa que eu aprendi, durante todos os últimos anos,
foi não ser covarde.
— Sim — confirmei. — São registros meus com a minha mulher.
O superintendente ergueu uma das sobrancelhas.
— Sua mulher?
— Sim. Minha mulher.
E, Deus, eu enchia tanto a minha boca para falar isso.
Ele suspirou, ajeitando-se sobre sua cadeira, como se não esperasse
que eu lhe desse uma resposta como essa.
O que ele queria?
Que eu ficasse ali como um cachorrinho com o rabo entre as
pernas?
Não mais. Eles nunca mais me deixariam dessa maneira.
— Bem... Recebemos uma denúncia anônima com essas fotos —
Ele continuou. Uma denúncia anônima que eu sabia exatamente de onde
tinha saído. — Por isso, comuniquei à Westphalen, pedindo para que ela
viesse aqui, já que é sua superior na penitenciária. E também pedi para que
você estivesse aqui, mesmo que não seja nenhuma novidade o que eu tenho
para lhe falar. Você sabe que está incorrendo, pela segunda vez, na infração
de uma das regras mais claras da polícia, não sabe? Isso acarreta a você
uma demissão sumária. Sem novas chances.
— Superintendente McConaughey...! — Alexa repentinamente
exclamou. Parecia tão angustiada quanto eu deveria estar. Seus olhos ainda
demonstravam toda a preocupação que sentia por mim. — Por favor,
superintendente McConaughey... Deve haver algo que possa ser feito — Ela
se remexeu sobre a cadeira, encarando-o fixamente. — A policial Scott não
pode ser simplesmente demitida assim. Ela é uma das melhores que nós
temos.
O homem puxou o ar mais uma vez, fitando nós duas atenta e
seriamente.
— Qualquer outro chefe de departamento ou superintendente da
polícia, desligaria Scott, sem dar qualquer outra chance, por ter infringido a
mesma regra duas vezes. Mas... O que a inspetora Westphalen falou é uma
verdade. Scott é uma das melhores que nós temos, muito embora possua um
péssimo desvio de caráter por se envolver com quem não deve. Nós não
queremos perdê-la, policial, apesar de tudo. Eu não quero fazer isso sem
antes tentar resolver da melhor forma para todos nós.
Desvio de caráter? Resolver da melhor forma para todos nós? Que
melhor forma? Que tipo de “melhor forma” alguém que me acusava de
desvio de caráter poderia sugerir?
Eu deveria ir embora dali só por essa falta de respeito. Vontade
realmente não me faltou. Fiz um esforço tremendo para não falar alguma
besteira e perder a razão, assim como também trinquei a mandíbula e
concentrei no meu corpo todo o sangue de barata que poderia haver, para
replicar apenas:
— Então, diga.
Séria e friamente.
— Isso é bem simples. Eu posso abrir uma exceção para você e lhe
dar mais uma chance de continuar conosco e de permanecer no seu
emprego, sem que ninguém fique sabendo desse seu... Probleminha. Todo
esse caso ficará apenas entre nós três e mais ninguém. Isso vai lhe ajudar,
sobremaneira, policial Scott, porque o caso será enterrado como se nada
tivesse acontecido, e você não terá que responder sobre nada a respeito
disso. Mas, para que eu lhe conceda esse benefício, a relação entre a garota
e você precisa ser encerrada agora. A inspetora Westphalen ficará a cargo
de transferi-la para uma das nossas outras unidades. Assim, ela poderá
cumprir o restante da pena sob a supervisão de outro agente, e vocês não
terão qualquer outro contato. Creio que seja o mais correto e sensato a se
fazer no momento.
O mais correto e sensato a se fazer?
Transferi-la? Tipo como fizeram com a Haven que eu nunca mais
vi?
E isso era bem simples?
Bem simples para quem? Para ele?
Ainda olhei de relance para Alexa, que esboçava, em minha direção,
um sorriso pequeno, preocupado e quase ansioso, como se me dissesse em
silêncio “aceite isso, pelo amor de Deus, mas não perca o seu emprego”.
— Não perca o seu trabalho e todos os benefícios, Zara — Ele
completou. — Este é o seu sustento, e o sustento do seu filho.
O sustento do seu filho...
Aquele filho da puta estava tentando me atingir da maneira mais
baixa.
Sim, eu sabia.
Era não somente o meu sustento e o sustento do meu filho, como
também foi o meu sonho por muitos e muitos anos. Ainda continuava
sendo, na verdade. Passei dias, longos dias, pensando nisso, enquanto o
desejo por ela atormentava a minha cabeça e o meu corpo. Por um tempo,
aquelas justificativas realmente pareceram importantes para mim, e eram,
ao passo que, em contrapartida, eu sufocava uma parte do que eu estava
sentindo tão intensamente, pela primeira vez, em anos, por alguém.
Acontece que eu não era formada por um único sonho. Zara era uma
soma de várias partes que formavam o todo. E essas várias partes eram
diversos sonhos e desejos que eu pretendia cumprir um dia em minha vida.
Incluindo, ser quem eu realmente era e amar alguém sem medidas.
Entrar para a polícia era um sonho realizado. Aquilo já fazia parte
de uma realidade vivida por mim.
Mas, viver um amor, não. Eu ainda não tinha vivido um amor.
Ou não tinha me permitido viver.
E, mais uma vez, lá estava eu, naquela mesma sala, sendo
confrontada pela mesma pessoa. Um choque entre o passado e o presente.
As lembranças de como eu me senti impotente depois de ter, covardemente,
deixado Haven ir. A culpa que carreguei, durante anos, por não ter seguido
o meu coração. E, agora, eu novamente sendo colocada à prova, pela razão
e a emoção, tendo que escolher entre uma delas, como se uma fosse a
boazinha e a outra a vilã da história.
Na verdade, não existia um maniqueísmo desse tipo. A única coisa
que existia era uma mulher querendo ser feliz e fazer a sua própria vontade
pela primeira vez na vida.
Ao contrário do que McConaughey pensava, aquelas fotos, que
expuseram a nossa relação, não representavam a minha fraqueza. Aquilo
não era o meu calcanhar de Aquiles. Me apaixonar por Agatha Ballard e me
permitir sentir o que sentia por ela, na real, eram as maiores provas da
minha força e da minha grandeza. A força de ser quem eu realmente era e
quem eu realmente queria ser. A grandeza de ocupar o lugar de uma mulher
que escolhia seguir o próprio coração e não as imposições alheias.
Quanto ao meu trabalho e ao meu dinheiro, para tudo havia um
jeito.
Eu sempre dei os meus jeitos, ao longo da vida, afinal.
— Obrigada pela proposta, superintendente McConaughey — disse
eu, firme. — Obrigada, mas eu não quero.
Dessa vez, eu não precisava nem pensar. Eu não tiraria um tempo
para refletir, assim como foi com Haven. E também não permitiria que eles
tomassem a decisão por mim.
Notei, entretanto, quando as sobrancelhas do homem arquearam em
pura surpresa, ao mesmo tempo que Westphalen soprava o ar pela boca
como quem já tinha perdido as esperanças.
— Você não quer? — Sem entender, ele questionou. — Você prefere
trocar a sua carreira e o seu emprego por causa de uma garota
problemática?
Não, ela não era uma garota problemática.
Ela era a minha mulher.
— Não, eu não quero, superintendente McConaughey — enchi o
peito para falar. — Eu não quero porque não permito ser coagida por vocês,
mais uma vez. Nenhum dinheiro no mundo que eu receba, por trabalhar na
polícia, nunca conseguiu cobrir o dano moral que eu sofri, anos atrás, por
não ter seguido o que o meu coração queria. Então, não, eu não aceito a sua
proposta. E, se eu realmente fosse importante para vocês, eu não seria
demitida por causa disso. Eu não seria demitida por estar me envolvendo
com uma garota que nem é detenta. Uma garota que está apenas cumprindo
uma pena de seis meses que logo vai acabar.
Ainda com seriedade e frieza, como se não tivesse gostado nem um
pouco da minha resposta, ele respondeu:
— Estamos apenas cumprindo as regras, policial Scott.
Fodam-se as regras...
Já dizia a Agatha.
Por dois segundos, eu quis sorrir brevemente, apenas por ouvir a sua
voz, na minha memória, me falando isso. Mas, tentei me manter quieta.
— Eu sei — balancei um obediente sim com a cabeça. — Eu
também estou seguindo as regras. As regras do coração. Do meu coração.
Vi quando passou a língua entre os lábios, encarando-me de modo
quase intimidador.
Um jeito intimidador que não me intimidava em nada.
— Corajosa, policial Scott... — disse ele.
— Sim, eu sou — respondi sem pestanejar, de queixo erguido e
nariz empinado, assim como Agatha, mesmo sem saber, tinha me ensinado.
— Sou corajosa e sei que você ainda vai me pedir para voltar,
superintendente McConaughey.
Ainda mais surpreso com o que falei, ele questionou, quase irônico:
— Ah, eu vou? Como pode ter tanta certeza?
Sorri de maneira bem breve.
— Porque eu sou uma das melhores policiais da cidade. Você
mesmo disse.
✽✽✽
Zara
Agatha
Eu não estava confusa sobre os meus sentimentos pela Zara. Óbvio que
não. Eu jamais ficaria confusa quanto a isso. Era absoluta a certeza de que
ela era a primeira pessoa por quem eu me apaixonava de verdade. Eu a
amava, com todo o meu coração, de todas as formas, de todos os jeitos, com
todas as dificuldades, com todos os infinitos problemas. Eu amava aquela
mulher por tudo o que ela era e por tudo o que representava para mim. E eu
sabia que continuaria a amando mesmo se não houvesse motivos para isso.
A única coisa que me deixava confusa era a razão pela qual o
universo me fez, pela primeira vez na vida, amar justo uma pessoa que eu
não deveria. Os problemas que carregávamos em nossas costas eram mais
pesados do que eu imaginava. Primeiro, a surra que eu levei por estar com
ela, fora as diversas vezes em que o meu pai brigou comigo por estarmos
juntas. Até aquele momento, eu não entendia o motivo disso.
Sim, eu não estava fazendo o que ele queria. Eu não estava ficando
com Louis para facilitar os seus negócios. Só que essa também não era a
primeira vez que eu não fazia as suas vontades de me envolver com os seus
parceiros, assim como também, desde muito tempo, ele já sabia que eu
ficava com mulheres. Meu pai nunca se importou com nada ao meu
respeito. Ou seja, ele também não dava importância alguma para o fato de
eu gostar mais de boceta do que de pau.
Tantas vezes eu transei com a Tessa debaixo do mesmo teto que ele.
E eu tinha certeza que ele sabia. Mas, nunca fez uma tempestade em copo
d’água por causa disso, muito embora ele continuasse me agredindo e
exigindo de mim tantas outras coisas, como dar para os seus possíveis
sócios, até que eles decidissem assinar contratos que eram mais vantajosos
para os seus próprios bolsos.
Agora, porém, Russell Ballard estava praticamente surtado por estar
me envolvendo com uma mulher.
E eu não entendia isso.
Eu juro que não entendia.
Como se não bastasse, Zara tinha perdido o seu emprego.
Por minha causa.
Por. Minha. Causa.
Talvez eu tivesse sido ingênua demais, antes de tudo, quando pensei
que nenhum mal tão grande poderia acontecer a ela, caso se envolvesse
comigo. Afinal, eu nunca fui uma marginal, por mais que eu estivesse
cumprindo uma maldita pena. Mas, bem, eu estava realmente enganada.
Nunca senti uma culpa tão grande quanto naquele momento em que Zara
me confessou o que aconteceu. Foi como se uma série de pesadelos
estivessem se tornando realidade.
Isso não era bom.
Isso não era legal.
Isso era por minha causa. Por minha culpa.
Eu tinha feito Zara perder o seu emprego e a sua carreira, e eu sabia
o quanto ela amava aquilo. Zara não era uma polícia exemplar por mero
dever. Ela era assim porque adorava o trabalho que tinha. E eu sabia disso.
Eu sempre soube disso, assim como também tinha certeza de que, mesmo
que nós ficássemos juntas e eu enchesse a boca para dizer que poderia
bancar todas as suas contas, com o dinheiro que eu tinha, se o pai não me
deserdasse, ainda assim não era justo. Nunca seria justo, porque, apesar de
ser momentaneamente bom ter as contas pagas, nenhum dinheiro no mundo
seria capaz de devolver o prazer que ela tinha em trabalhar com o que
gostava.
E eu tirei isso dela.
Por um instante, eu confesso que, embora aquilo me machucasse de
todas as formas por dentro e me cortasse em um milhão de pequenos
pedaços, eu pensei em desistir. Pensei em não continuar, para não fazer
mais mal a ela. Às vezes, amar também era saber a hora de seguir em
frente, para o próprio bem da outra pessoa. Só que... Aquilo que eu sentia
por ela era tão estupidamente forte que, mesmo que eu tentasse negar, fugir
ou acabar, não dava. Não tinha como. Bastava ela me beijar, me fazer
carinho, e falar palavras bonitas, para que a minha guarda baixasse e o muro
à minha volta desmoronasse.
E foi exatamente isso o que aconteceu. O meu amor e o meu desejo
por ela conseguiram ser maiores do que a porra do peso na consciência.
Transamos até as nossas forças se tornarem tão pequenas. Me senti
absurdamente amada a cada vez que ela beijou com tanto carinho todos os
machucados pelo meu corpo. E eu deixei que todos os meus sentimentos
por ela se libertassem, apesar dos pesares, enquanto fazíamos amor.
Naquele instante, eu não pensei mais em nada, a não ser no seu corpo no
meu, na sua boca na minha e em todas as outras partes. Ou, pelo menos,
tentei não pensar em nada, além o nosso momento na cama.
Zara me fez esquecer por algumas horas.
Depois disso, com o corpo esgotado não somente do sexo, mas
também de tudo o que vivi antes dele, consegui pregar os olhos e dormir até
o dia seguinte. Felizmente, o meu sono foi mais tranquilo do que eu
esperava. Talvez, um oásis no meio do deserto. Eu precisava daquilo para
me recuperar um pouco.
Quando acordei, ainda meio sonolenta, minha cabeça não demorou
em recuperar as lembranças do dia anterior. Eu quis desanimar, logo de
cara. Porém, ao virar meu rosto brevemente para o lado, encontrei a mulher
mais maravilhosa do mundo, junto com uma bandeja de café da manhã em
cima da cama. Não pude deixar de sorrir. Um sorriso meio fraco pelas
memórias que não me deixavam, mas, ainda assim, um sorriso.
Eu estava ali com ela.
Com a mulher que eu amava.
E ela estava fazendo de tudo para me ver bem. Eu seria eternamente
grata ao seu esforço, mesmo que ela me dissesse que não era esforço algum.
Ainda meio trôpega de sono, me sentei sobre a cama. Porém,
quando assim o fiz, só de calcinha e sutiã, percebi o momento em que o
lençol escorregou pelo meu corpo, revelando meus braços e minhas pernas.
Havia pomada por todas as partes machucadas.
Franzi o cenho.
Eu não me lembrava de ter passado aquilo em mim.
— Você que fez isso? — Levemente surpresa, perguntei.
— Sim... — sorriu. Linda como sempre era. — Enquanto você
estava dormindo. Você nem percebeu de tão pesado que o sono estava — E
soltou uma risadinha. — Vai ajudar a curar os machucados. Esses roxos
logo vão desaparecer.
Vai ajudar a curar os machucados...
Por dois segundos, pequenas gotículas quiseram se formar no
cantinho dos meus olhos. Não de tristeza, mas de pura gratidão. Talvez eu
estivesse um pouco mais fraca para chorar do que o comum. O fato era que
Zara cuidava de mim. E fora Evangeline e a minha mãe, nenhuma outra
pessoa nunca tinha me tratado daquela maneira.
— Eu te amo, sabia? — falei.
Ela sorriu, tão feliz e amável, se aproximando de mim.
— Eu também te amo — E beijou a minha boca. — Acordou
melhor?
De certa forma...
— Sim — balancei brevemente a cabeça, enquanto pegava a xícara
na bandeja e tomava um pequeno gole de café. — Um pouco melhor. Eu só
penso em como vou conseguir voltar para casa — confessei.
Dentre tantas coisas que martelavam a minha cabeça, isso era uma
delas. Eu sabia que, uma hora ou outra, eu teria de encontrá-lo novamente.
Não tinha como fugir para sempre, infelizmente. E eu não queria nem ver, e
muito menos sentir, o que ele faria comigo, depois de eu ter sumido.
Zara, no entanto, enrugou a testa, como se não tivesse entendido o
que eu falei.
— Não, você não vai voltar para casa — Tão determinada, disse ela.
— Eu não vou permitir que você volte a ficar perto dele. Você não vai
retornar àquela casa enquanto ele não estiver preso, Agatha.
Suspirei.
Ainda era difícil de eu conceber essa ideia, apesar de tudo. Sim, eu
odiava o meu pai e tudo o que ele fazia comigo. Sim, eu sabia que ele era
um canalha. Um escroto. Ele não se importava com nada além dos próprios
interesses. Mas, mesmo assim, eu nunca imaginei que ele pudesse ser preso
por minha causa.
Por minha causa.
Tantas merdas por minha causa, não é?
Balancei a cabeça comigo mesma, enquanto eu pensava. Talvez, no
caso dele, isso fosse o de menos. Aquele coroa, às vezes, era mais esperto
que o diabo. No fundo, eu sabia que ele sempre seria capaz de dar um jeito
de se safar.
— Uma hora ou outra, ele vai me achar, Zara. Tenho certeza —
Desiludida, repliquei.
— Vamos cuidar disso hoje, está bem? — De pronto, ela replicou,
ainda tão certa do que dizia. — Não se preocupe. Eu já estou pensando em
várias alternativas e entrando em contato com pessoas que também podem
nos ajudar nisso.
Porém...
Isso me lembrava de algo que não me orgulhava nem um pouco.
— Você nem está mais na polícia — reconheci amargamente,
baixando o olhar e sentindo o peso absurdo daquelas palavras.
Zara, apesar disso, não titubeou. Continuou firme no que falava.
— Não importa. Eu vou dar o meu jeito da mesma maneira —
afirmou, como se já soubesse de cada passo que deveria dar. E era provável
que soubesse mesmo. Passou tantos anos naquele trabalho. — Só preciso
que você fique aqui, e não tente voltar para lá.
Voltar para aquela casa era a última coisa que eu ia querer.
— Não vou tentar — repliquei com convicção.
— Ótimo — disse ela, aparentemente mais tranquila. — Então, eu
vou só fazer umas compras no supermercado que tem ao lado do prédio,
para que você possa passar esse tempo aqui. Percebi que a geladeira está
quase vazia, quando fui preparar o café da manhã. Você fica aqui e eu volto
em um minuto, está bem?
Deus, por que ela sempre tinha que pensar em tudo para me deixar
o mais confortável possível? Por que ela tinha que ser tão perfeita?
Novamente, gotículas de emoção quiseram se formar no cantinho
dos olhos. Qualquer mínima coisa parecia ser capaz de me desmontar por
inteiro. Eu estava ridiculamente fraca naquele dia.
— Tá bem — respondi. Um pequeno sorriso misturado com
emoção. — Vem aqui... — E a puxei pela blusa, fazendo-a chegar ainda
mais perto de mim, na cama. — Obrigada por tudo, Zara. Obrigada mesmo
— disse eu, sinceramente, olhando nos seus olhos. — Eu nem sei como
agradecer por tudo o que você fez por mim ontem. Aliás, por tudo o que
você faz sempre por mim e continua fazendo. Eu espero, de verdade, poder
um dia retribuir.
— Você já retribui — sorriu, pousando carinhosamente uma das
mãos no meu rosto. — Você retribui me amando dessa maneira.
E o meu coração ficou tão quente e apertado no peito, que pensei
que ele pudesse subir e escapar pela minha garganta a qualquer momento.
— Eu te amo como nunca amei alguém.
Ela sorriu, tão feliz, e me beijou, dizendo contra os meus lábios:
— E juntas nós vamos ficar — Me abraçou tão forte e tão apertado.
Suas mãos sempre me causando sensações únicas. As únicas mãos que eu
fazia questão de sentir pelo resto da vida. — Agora, eu vou lá, tá? Mas,
volto em um piscar de olhos. Pode ficar à vontade e terminar o seu café.
— Tá bom — sorri. — Te amo.
— Também te amo, princesa.
Me deu mais um beijo e saiu dali.
Princesa...
Ainda passei um tempinho olhando para a porta do quarto, depois
que ela sumiu para fazer as compras. O coração aquecido pelas suas
palavras, pelo seu carinho comigo. Era curioso a maneira como Zara fazia
eu me sentir bem e absolutamente amada, mesmo com o mundo inteiro
desabando ao nosso redor. Ela era uma pedra preciosa que eu não estava
disposta a abrir mão, ainda que tudo parecesse conspirar contra.
Ainda que, ontem, por um segundo, depois de descobrir sobre a sua
demissão, eu tivesse estupidamente pensado, durante o desespero, em
desistir da melhor coisa que aconteceu na minha vida.
Tomei mais alguns goles de café e mastiguei alguns pedaços do bolo
de cenoura que ela levou para mim. Comi umas fatias de torradas, para
equilibrar o doce e o salgado, talvez indiretamente tentando equilibrar as
coisas boas e ruins na minha vida. Durante aqueles breves minutos sozinha
no seu apartamento, o silêncio não me causou incômodo. Muito pelo
contrário, ele me deu, no fundo, uma breve sensação de que, ali, as coisas
estavam exatamente nos seus devidos lugares.
Eu estava no meu lugar.
No lugar certo, apesar de tudo.
Isso, até um súbito susto me fazer pular sobre a cama.
Repentinamente, ouvi um grande estrondo vindo da porta da sala. Meu
coração acelerou, sem saber que diabos significava aquilo significava.
Parecia algo pesado caindo no chão.
Ou a própria porta...
Franzi ainda mais o cenho, e me levantei da cama.
Era a Zara?
Rapidamente, caminhei até a entrada do quarto, saindo para o
corredor.
Porém, quando assim o fiz, não foi a minha mulher que eu vi, foi a
materialização do meu pior pesadelo. O pior mesmo, dentre todos os outros.
A porta da sala realmente tinha caído. Porque arrombaram ela.
Acompanhado de vários dos seus homens estava o meu pai.
E o seu semblante não estava, nada, nada bom.
Automaticamente, aquela típica reação me tomou. Gelei e tremi de
cima a baixo.
Em meio ao meu nervosismo, porém, ainda consegui pronunciar
palavras presas à minha garganta:
— O q-que você está fazendo aqui?
Ele, por sua vez, com total seriedade, apenas disse para os seus
seguranças:
— Peguem-na. Agora.
Han?
Arregalei os olhos quando vi aqueles brutamontes seguindo em
minha direção.
Isso, porém, foi o suficiente para que um deles me pegasse
firmemente pelas pernas e me colocasse sobre o seu ombro, enquanto os
outros o escoltavam.
Que porra era essa...?!
Completamente confusa, eu gritava e esperneava para que eles me
soltassem. Mas, nada, absolutamente nada, foi capaz de impedi-los. Eu nem
vesti uma roupa, me carregaram para fora do prédio, à força, só de calcinha
e sutiã, enquanto lágrimas de ódio já escorriam pelos meus olhos.
No fim das contas, meu pai sempre conseguia tudo o que queria
mesmo.
Zara
Comprei tudo o que eu sabia que ela gostava e o que achava que iria
gostar. Iogurtes, sucos, biscoitos, chocolates. E coisas saudáveis também,
claro, principalmente para preparar o almoço. Apesar de tudo e daquela
merda monstruosa que o pai dela fez, eu me senti aliviada por Agatha ter
me procurado e ido direto para o meu apartamento. Isso só me mostrava
que ela sentia segurança comigo e que queria estar perto de mim.
Agora, ela ficaria na minha casa até que eu conseguisse dar um jeito
naquele idiota. Jamais deixaria que ela retornasse, sabendo que, a qualquer
momento, ele poderia fazer aquilo novamente ou coisa pior com ela. Eu já
tinha até entrado em contato, mais cedo, enquanto preparava o café da
manhã, com algumas pessoas que se prontificaram em me ajudar. Faltava
apenas eu falar com a Alexa.
Ainda naquele mesmo dia, ele ia ter o que merecia, com ou sem o
consentimento da Agatha. Eu sabia que, de alguma forma, por mais escroto
que ele fosse, ela ainda o considerava como pai e, aparentemente, não sentia
apenas ódio por ele. Mas, isso não era o bastante para me parar. Eu só
descansaria depois que aquele cara pagasse por tudo o que fazia com a
filha.
Assim, paguei ao caixa pelas minhas compras e, segurando várias
sacolas nas mãos, displicentemente cruzei a porta do supermercado, que
ficava quase ao lado do meu prédio. Quando assim o fiz, porém, meus olhos
não acreditaram no que eu vi, ao dobrar para seguir na direção do
apartamento. Subitamente, travei em choque, como se tudo aquilo estivesse
passando em câmera lenta frente aos meus olhos.
Havia um comboio de cerca de cinco carros parados em frente ao
meu prédio.
Vários homens vestidos de blazer preto, como se estivessem
fazendo algum tipo de escolta.
E então...
Eu a vi...
Desesperada, gritando, esperneando, chorando, pedindo socorro
para que a ajudassem a sair dali. Ela tentava se defender, como podia, nos
braços do outro, mesmo que de nada adiantasse. Tudo dentro de mim se
contorceu em uma mistura de agonia e fúria. Meus olhos arderam, enquanto
cada centímetro da minha pele esquentou. Instintivamente, soltei todas as
compras no chão, sem me importar, sem pensar em mais nada a não ser
naquilo.
Tudo o que me importava era ela.
Seminua, eu a vi sendo levada por um dos brutamontes e jogada
dentro de uma das cinco Blazer pretas, que estavam estacionadas. As
marcas roxas na sua pele totalmente exposta, os cabelos completamente
bagunçados, o rosto tão vermelho de tanto pedir socorro. O sangue subiu
inteiro para a minha cabeça. E aí, como se não bastasse, depois de se
debater, antes ser de atirada para dentro do carro, quem passou por último e
entrou foi Russell Ballard.
A porta se fechou.
Os demais homens se dispersaram para os outros carros.
Puta que pariu!
Cerrei os punhos.
Completamente determinada e cega de ódio, eu não fiz outra coisa
senão olhar ao meu redor, a fim de encontrar o primeiro veículo que eu
visse pela frente. Com a adrenalina correndo absurdamente pelas minhas
veias, me apressei na direção de um homem que também saía do
supermercado.
— Preciso da sua moto — disse eu, ligeiro, já arrastando-o de cima
do banco, pela gola da camisa.
— Ei, ei! — Aturdido, ele exclamou, tentando me empurrar e se
defender.
Eu, porém, fui mais rápida, imobilizando os seus braços e girando
os seus pulsos para as costas, de modo a conseguir puxar a chave das suas
mãos.
— Sou policial e estou em uma emergência.
— Policial?! — questionou ele, incrédulo e irritado, com as
sobrancelhas bem arqueadas. — Você tá mais pra uma bandida!
Realmente...
Eu não era mais uma policial em exercício, mas isso não vinha ao
caso agora.
— A moto será devolvida.
Foi tudo o que eu disse, segundos depois empurrá-lo para a calçada,
subir no banco e girar a ignição.
Em poucos instantes, o motor já roncava nos meus ouvidos e os
pneus cantavam na rua. Olhei na direção para onde o comboio saía
rapidamente e vi quando a última Blazer dobrou a esquina. Merda. Eles
estavam rápidos demais. Acelerei o máximo que a moto conseguia, girando
o guidão sem pena.
Eu não sabia a razão, mas a porra daqueles cinco carros estavam
realmente correndo. Eles só podiam estar armando alguma merda com a
garota. Que pai mais filho da puta. Cruzei ruas e avenidas de Las Vegas,
feito louca, em pleno trânsito fodido de oito horas da manhã. A sorte era
que aquela moto não era ruim. Pelo menos, eu estava conseguindo fazer
alguns milagres por ali.
O milagre mesmo, porém, era não bater em nada nem ninguém.
Perdi as contas de quantas ultrapassagens perigosas eu já estava fazendo, de
quantas vezes subi e desci em calçadas, de quantas curvas violentas foram
feitas. Eu não estava respeitando os sinais de trânsito, nem os caras nos
carros. Aliás, nenhum de nós estava respeitando qualquer tipo de lei de
trânsito. E eu tinha certeza de que, a qualquer momento, eles perceberiam
que eu estava bem na cola. Mas, eu não me importava com isso. Claro que
não.
Meu corpo inteiro estava em puro estado de alerta. O coração
faltando sair pela garganta. Respiração intensa. E um só pensamento: salvar
a minha garota.
Quando eles dobraram em uma viela mais estreita, porém, eu tive a
certeza absoluta de despercebida eu já não passava. Isso porque... Cacete!
Uma bala quase acertou a minha cara. Os filhos da puta do último carro
simplesmente baixaram os vidros e sacaram duas pistolas na minha direção.
E eu estava sem nada, sem capacete, sem arma, sem colete. Sem
porra nenhuma.
Mas, eu ia encontrá-la. Eu não ia desistir.
Não enquanto eu conseguisse me manter de pé.
Abaixei meu tronco, o máximo que eu conseguia, para tentar
escapar dos tiros, e, mesmo em meio à alta velocidade, fiz malabarismos
para tirar o celular do bolso. Sem arma, sem munição, sem capacete, sem
nada, eu precisava de reforços. O mais rápido possível. Quando eu quis
baixar minimamente a cabeça para encontrar o número da Alexa, nas
chamadas rápidas, porém, vi de relance a viela estreita acabar e desembocar
em uma grande e aberta praça. No meio, um helicóptero estava pousado.
Que merda!
Contudo, não tive nem muito tempo para pensar na bosta que eles
estavam pretendendo fazer com aquele helicóptero, porque vi o instante em
que outro dos cinco carros baixou o vidro e mirou um fuzil bem na minha
direção. Caralho. Virei bruscamente o guidão da moto, dando um quase
cavalo de pau, para desviar e ir por outro caminho. Porém, no momento em
que eu assim o fiz, um dos pneus foi atingido por uma bala.
Fui atirada ao chão bruscamente e rolei pela areia da praça, com as
mãos na cabeça para tentar protegê-la. Senti meus braços se ralando por
inteiro. A sorte foi que eu precisei reduzir a velocidade para girar o guidão e
tentar fazer a curva. Não fosse isso, eu, com certeza, já poderia me
considerar morta. Ainda percebi breves segundos em que a minha visão
falhou e ficou turva. No entanto, depois disso, estirada no chão, quando
consegui abrir os olhos e mirar no helicóptero, vi o instante em que Agatha
foi retirada do carro, aparentemente desacordada, e colocada dentro da
aeronave. Russell Ballard entrou em seguida.
Em poucos segundos, as hélices já giravam intensamente,
levantando o voo, enquanto os demais carros fugiam e se espalhavam pelas
ruas e avenidas da cidade, tomando caminhos para além do meu campo de
visão.
Puta que pariu, caralho, porra.
Sibilei uma série de palavrões comigo mesma, ao sentir meu corpo
inteiro dolorido e observar o helicóptero se distanciar dali, levando a minha
mulher para sabe-se lá onde.
Miserável.
Fechei os olhos por alguns instantes, apertando-os e espremendo o
raciocínio até a última gota. Eu precisava pensar em alguma coisa, eu tinha
que tomar alguma atitude o quanto antes. O meu próximo passo precisava
ser dado. Sim, tinha que haver um próximo passo. Eu não podia deixar as
coisas por isso mesmo, assim como também jamais teria a capacidade de
permitir que aquele cara fizesse isso com ela e conosco.
Foi então que, como um coro de aleluia, eu ouvi o meu celular, que
estava caído no chão com a tela toda trincada, começar a tocar. Estiquei o
braço para pegá-lo, com a força de todo o ódio que eu sentia.
Ao encarar a tela, vi o seu nome.
Alexa.
Graças a Deus.
Atendi.
— Preciso de ajuda.
Foi a primeira coisa que eu falei.
— Meu Deus, Zara, no que você se meteu dessa vez?
— O pai da Agatha — Entredentes, repliquei, grunhindo um pouco
de dor. — Aquele filho da puta do caralho.
— Ah, só podia ser... — disse ela, soprando o ar, como se aquilo não
fosse uma novidade. — Você vai querer ouvir o que eu tenho para dizer
sobre ele.
Franzi o cenho, interessada naquilo.
— Qual foi a outra merda que esse cara fez?
Você ainda é a policial Scott
Zara
Agatha
Zara
Zara
Agatha
Zara
Senti o meu coração bater mais rápido, quando, após mais de sete
horas de viagem, chegamos ao endereço que constava naquele papel.
Acostumada com tudo o que eu vivia, quase todos os dias na polícia, eu
raramente me sentia tensa ou ansiosa, antes de qualquer missão. Era como
se o meu corpo já estivesse acostumado com aquilo e a minha cabeça
completamente programada para qualquer surpresa, fosse boa ou ruim.
Aquela missão, porém, era mais pessoal, para mim, do que todas as outras
que eu já tinha participado.
Ali, o que estava em jogo era a vida da minha mulher.
Todos os meus pensamentos inteiramente focados em encontrá-la.
Observei o local ao redor, ainda que continuássemos dentro do
carro. Westphalen e eu ainda não tínhamos dado ordens aos demais policiais
para que cercassem logo o lugar. Aliás, em parceria com a polícia de
Lovelock, conseguimos mais dez policiais para reforçar aqueles viajaram
conosco. Ainda assim, preferimos chegar discretamente. Paramos a certa
distância da entrada da casa, para que pudéssemos estudar o local, antes de
um possível conflito.
Estacionamos os carros e ficamos assistindo o movimento por
alguns minutos.
Era uma casa grande, mas antiga. Tudo estava absolutamente
silencioso, tanto na rua quanto na própria residência. Dava até a impressão
de que não tinha ninguém. A maioria das janelas estava fechada. E, das
poucas que estavam abertas, não havia luz acesa. Por um segundo, o medo
me abateu. O medo de que nós tivéssemos percorrido gratuitamente aquela
longa distância para, no fim das contas, não dar em nada.
— Será que é aqui mesmo? — Meio receosa, perguntei à
Westphalen, sentada ao meu lado. — Estamos no local, certo?
Quando fechei a boca, no entanto, cada centímetro do meu corpo
entrou em puro estado de alerta, ao ver repentinamente a figura que se
desenhou frente aos meus olhos, mesmo a alguns metros de distância.
Apareceu bem no portão da casa, pela parte de dentro. Correndo, agoniada,
desesperada... Alcançou o cadeado do portão e o chacoalhou de todas as
formas, tentando abrir. Por um momento, até fez menção de escalar as
imensas grades e pular. Respiração ofegante, semblante apreensivo.
E... Cabelos loiros.
Olhos azul.
Rosto de uma boneca de porcelana, mesmo que continuasse com as
manchas de machucados.
O meu coração automaticamente saltou para a garganta, enquanto o
meu corpo inteiro se tencionava. Ainda pisquei os olhos repetidas vezes,
para ter a certeza de que eu não estava sonhando, de que aquilo não era uma
miragem ou pura obra da minha imaginação já tão perturbada.
Aquela... Aquela era a... Agatha? A minha Agatha?
Os meus olhos arderam.
Já sentindo a adrenalina me dominar por completo, pus as mãos no
trinco da porta do carro, para abrir e sair correndo até lá, como numa atitude
louca e desesperada de tê-la nos meus braços, sem nem pensar direito nas
estratégias táticas que tínhamos estudado e traçado, durante as várias horas
de viagem.
No momento em que eu, assim, tentei fazer, pouco me importando
se aquilo poderia representar a falha de uma policial, algo travou a minha
atenção novamente. Algo que fez o meu sangue ferver, enquanto eu
apertava o trinco entre os meus dedos. Ela estava tentando fugir. Eu sabia
que estava. Mas, dois homens, de repente, apareceram e a puxaram
bruscamente. A minha garota forte e destemida ainda tentou lutar contra
eles como podia. Só que não conseguiu. Sobretudo, depois de levar um tapa
certeiro na cara que a fez cair no chão, tamanha força do impacto.
Arrastaram-na para dentro de novo, como se ela fosse um objeto inanimado.
E aí, tudo dentro de mim se revirou em pura fúria.
Talvez eu nunca tivesse sentido tanta raiva em toda a minha vida.
Bufei, trincando os dentes, puta. Meus olhos pegando fogo.
Destranquei a porta do carro, já me impulsionando para sair dali e ir
atrás deles, pronta para fazer o que sempre me disseram que era um erro,
mesmo que eu fosse uma policial: justiça com as próprias mãos.
Foi quando eu ia me levantando, sem pensar mais em nada, apenas
cega de fúria, que Westphalen segurou firmemente o meu braço.
— Zara, calma! — exclamou.
Suas sobrancelhas bem arqueadas.
— Calma...?! — franzi o cenho, quase sem entender aquilo. —
Como eu posso manter a calma, porra? Você viu o que eu vi, não viu?! Você
viu o que aqueles filhos da puta fizeram com ela!
— Sim, Zara, eu vi. E eu também fico tão indignada quanto você!
Mas, não aja simplesmente por impulso. A policial Scott que eu conheço
nunca colocou a emoção acima da razão, durante o trabalho! Precisamos
agir em conjunto, estrategicamente. Se você for até lá, desse jeito, sem o
plano e sem os outros policiais, vai foder a missão inteira!
E as suas palavras me atingiram como um soco, mesmo que eu não
quisesse.
Me dei conta.
Mesmo toda dura de tensão e ódio, respirei fundo, tentando conter
os meus ânimos, ainda que fosse absolutamente difícil. Quase impossível.
— Certo — repliquei entredentes. Dura feito pedra. — Mas, vamos
agir logo. Não estou disposta a perder mais tempo. Já temos a certeza de
que ela está aqui. E, com sorte, Russell Ballard também.
— Sim, nós vamos — disse ela, já pegando o rádio, para se
comunicar com todos os outros policiais nos demais carros. — Preparem-
se. Fase um. Vamos cercar o local.
Depois disso, eu não contei mais de meio minuto, até ver as viaturas
da polícia seguindo em direção à casa, como em uma fila indiana
organizada e muito bem treinada. Ao todo, eram trinta homens. Vinte da
polícia de Las Vegas e dez de Lovelock. Todos foram tomando os seus
lugares nas laterais, nos fundos e na frente da casa. Abriram as portas dos
carros, que poderiam funcionar como escudos, e apontaram luzes e armas.
Aqueles que ocuparam as laterais e os fundos, ficariam de guarda para que
ninguém tentasse escapar durante o confronto. E, os que pararam em frente
à residência, entrariam conosco.
Westphalen e eu também seguimos para lá, passando de carro por
todos os policiais já posicionados. Estacionamos à alguns metros da
entrada. Agora, eles aguardavam apenas pelo nosso sinal.
Verifiquei minha farda. Tudo no lugar. Pistolas e munições também.
Quando eu peguei o escudo, para já sair do carro e liberar o portão de uma
maneira nada sutil, Alexa segurou o meu braço e disse:
— Vamos conseguir, Zara.
— Eu sei que vamos.
O fracasso naquilo estava totalmente fora de cogitação pra mim.
Ela fez que sim. Porém, quando já ia saindo do banco do motorista,
eu me lembrei de algo... Algo importante.
— Ei, Westphalen... — A chamei. Ela se virou. — Obrigada por me
deixar fazer parte disso. Não vou decepcionar.
A morena, então, me ofereceu um breve aceno de cabeça, junto com
um pequeno sorriso, e, também com o seu escudo, deixou o carro. Ela já
sabia que eu não iria decepcionar, mesmo que eu não tivesse dito nada.
Que o show começasse.
Saímos noite afora. Tudo escurecido ao nosso redor, não fosse pelos
faróis dos carros apontados para cada canto da casa. Nada nos faria parar,
entretanto. E, bem, nós poderíamos começar utilizando uma abordagem
menos hostil. Mas, se tratando daqueles caras e do quão espertos poderiam
ser, preferimos não dar a chance de que eles preparassem para o confronto
ou de que fugissem para algum lugar que não estivesse ao alcance das
nossas vistas.
Chegamos de surpresa.
Rapidamente, me aproximei um pouco do portão gradeado, onde
ficava a entrada. Westphalen e os demais ficaram aguardando a certa
distância, próximos aos carros, enquanto eu agia. Tirei o pino de uma
granada e joguei, me afastando ligeiro dali, o mais rápido que eu conseguia,
para a explosão.
Cerca de quatro ou cinco segundos depois, tudo o que nós ouvimos
foi o barulho dos estilhaços por todos os lados e do alarme de segurança
soando bem forte. Westphalen correu com os demais policiais, os guiando
por ali, embora eles já soubessem exatamente o que deviam fazer e para
onde ir. Nós já tínhamos repassado o plano, antes mesmo de chegarmos.
Porém, bastou que o primeiro agente cruzasse o portão estilhaçado para que
víssemos e ouvíssemos o primeiro som de tiro em nossa direção.
E aí, a velocidade das coisas tomou uma proporção muito maior.
Protegendo-se com os escudos, eles adentravam a casa, enquanto
tiros soavam e balas passavam por todos os lados. Balas lançadas tanto pela
polícia quanto pelos capangas de Russell Ballard. O caos estava posto. Uma
correria no jardim da casa, enquanto policiais tentavam avançar frente à
resistência da ameaça rival. Aparentemente, os caras contratados por
Russell estavam mais preparados com munição do que deveriam.
Em meio à troca de tiros, eu me movia ligeiro, esgueirando pelo
jardim, a fim de alcançar a porta da casa. Eu precisava entrar, encontrar a
minha mulher, deixá-la bem longe daqueles tiros. E, claro, prender o filho
da puta do pai dela. Deus, que nenhum acertasse ela. Era tudo o que eu
pedia. Eu jamais me perdoaria se qualquer coisa acontecesse a ela, por eu
não ter sido rápida o bastante. Respirei fundo. A determinação cada vez
mais correndo pelo meu corpo e me dando o impulso que eu precisava para
ser mais ágil.
Sem tirar minha pistola da mira por nem um segundo, eu atirava,
enquanto apoiava o escudo na frente do corpo. De capacete na cabeça, eu
deixava apenas os meus olhos saírem pelo limite superior do escudo. Ainda
pude ver alguns, que se colocavam no meu caminho, caindo a cada
explosão do meu gatilho. Honestamente, eu não tinha pena de atirar.
Mesmo que fossem tiros certeiros e fatais. Depois de uns bons anos na
polícia, o peso na consciência de tirar a vida de um criminoso, por pior que
ele fosse, tornava-se menor com o passar do tempo. No início da minha
carreira, eu ainda passei algumas noites em claro, achando que as minhas
mãos estavam sujas. Mas, agora, não mais. Não quando era necessário.
A troca estava tão intensa que eu percebi quando a munição da
minha pistola acabou. Puxei outras que eu carregava na farda, completando
o espaço na arma. E não foi apenas dessa vez. Eu tirava munições e mais
munições para recarregar. Isso, até que eu conseguisse chegar à varanda,
que dava para porta daquilo que eu imaginava ser a sala. Quando eu estava
quase alcançando, porém, um deles foi para cima de mim. No corpo a corpo
mesmo. Arrastou o meu escudo, tentando me desequilibrar. Soltei-o por ali
e fui para cima do cara. Ele, no entanto, conseguiu me prender pelo
pescoço, quase enforcando.
Desgraçado.
Dei uma cotovelada forte no seu estômago e, depois, puxei-o por
cima do meu ombro, virando seu corpo e fazendo-o cair brutalmente no
chão à minha frente. Ele ficou estirado sem ar, praticamente apagado.
Durante um tempo, antes de entrar na polícia, eu achei que, pelo meu
biotipo magro, eu não teria força para fazer esse tipo de coisa. Mas, depois
de muitos treinos e práticas reais no trabalho, percebi que eu não precisava
exatamente de força, mas de habilidade.
Obviamente, não permaneci ali, perdendo o meu tempo. Com a
pistola em punho, corri para dentro, abrindo a porta. Ainda não havia
agentes naquela parte, fora eu. E, diferente da área externa, onde tiros
soavam por todos os lados, ali parecia estranhamente calmo. Olhei de um
lado para o outro e não vi ninguém. Tudo o que eu mais queria era gritar
pelo seu nome. Chamá-la, na expectativa de que ela me ouvisse. O
problema era que, se eu fizesse isso, não era apenas ela quem ia escutar,
mas também todos aqueles infelizes que estavam sendo pagos para acabar
com a gente.
Cautelosa, mas ágil, parti na direção dos cômodos fechados, que o
meu campo de visão conseguia alcançar. Alerta, com a arma apontada o
tempo inteiro, abri porta por porta. Tudo vazio. Inferno. O pensamento era
um só, encontrar a minha garota e prender Russell. Coração acelerado,
adrenalina pulsando nas veias. Ouvi, porém, um grito estridente vindo de
algum lugar, quebrando a falsa calmaria da parte interna da casa.
Subitamente, parei tudo o que eu estava fazendo e me apressei na direção
em que eu achei que escutei o barulho.
No momento em que fui atravessar um corredor, no entanto, um
homem apareceu pela lateral, tentando erguer a sua arma em minha direção.
Aquilo foi muito rápido. No milésimo em que eu percebi a sua presença e a
sua menção de sacar a arma para mim, bati com o meu braço no seu. O
solavanco colocou abaixo sua pistola. No impulso, entretanto, a minha arma
acabou caindo também. Não liguei. Apenas o empurrei contra a parede mais
próxima, fazendo-o bater fortemente com a cabeça e cair desacordado no
chão.
Para evitar que a bela adormecida fizesse algo quando, enfim,
acordasse, tratei logo de algemar as suas mãos. Bem, eu ainda tinha
algumas, no meu colete, para qualquer outro que se colocasse à minha
frente. Porém, no instante em que terminei de trancafiar, notei a presença
sorrateira de mais alguém ali por perto. Instintiva e rapidamente, ergui a
cabeça, já levantando o meu corpo e empunhando a minha arma.
Cada centímetro meu entrou em puro estado de alerta, quando a sua
figura se tornou nítida aos meus olhos. O alvo. Como um ratinho
encurralado na toca, o meu alvo estava bem ali.
Russell Ballard.
E, pela sua cara de espanto, ao me ver, tive a certeza de que eu era a
última pessoa que ele queria encontrar. O filho da puta estava fugindo.
Correu, sumindo do fim do corredor.
Eu, no entanto, saquei a minha segunda pistola, aquela que estava
no coldre de perna, e fui atrás, correndo em sua direção, sem dar a mínima
chance para que ele saísse do meu campo de visão.
— Pare agora, Russell! Isso é uma ordem!
Ele, claro, não me deu ouvidos. Continuou fugindo de mim, até
entrar por uma das portas da área da cozinha. Segui no seu encalço, sem
parar. Quando passei pela porta por onde ele tinha se enfiado, no entanto,
dei de cara com escadas. Escadas que pareciam levar até um porão. Sei lá,
um tipo de sótão.
Sem temer, eu desci. O lugar, porém, era muito escuro e mal
iluminado. Por isso, redobrei a minha atenção. Todo cuidado era pouco. Eu
não estava enxergando direito, assim como também não estava mais com o
meu escudo. Assim, pé ante pé, alcancei o último degrau e dei alguns
passos por ali. No instante em que tentei puxar uma lanterna presa à minha
farda, fui surpreendida.
Um tiro passou de raspão pelo meu olho direito.
Puta que pariu.
O sangue subiu inteiro para a minha cabeça.
Rapidamente, me protegi atrás de uma coluna. Ali, havia várias
colunas, como se fossem o alicerce da casa.
— Russell, renda-se! — exclamei e me coloquei para fora por um
segundo, atirando na direção de onde o tiro tinha vindo. — Você não tem
mais saída! É o fim da linha!
Meu movimento, apesar de ligeiro, porém, foi o suficiente para vê-
lo do outro lado do porão.
— Quem não tem é você! Só vai sair daqui morta! — E tornou a
atirar na minha direção, mesmo que eu continuasse atrás da coluna.
Eu podia sentir os tiros fazendo furos por ali.
Fechei os olhos por dois segundos, respirando fundo, e, então, parti
também para o ataque, saindo de trás da coluna e tentando me aproximar
dele. Se eu não fizesse isso, o nosso impasse não acabaria tão cedo. Ou,
quando acabasse, eu poderia estar realmente morta. Russell não parecia ter
o menor escrúpulo.
E, de fato, não tinha.
Uma intensa troca de tiros, entre nós, movimentou aquele espaçoso
galpão que parecia ter o mesmo tamanho da casa acima de nós. Enquanto
eu corria, tentando atingi-lo e, ao mesmo tempo, me proteger, ele agia da
mesma forma. Exceto, pelas doses de loucura que eu via em seus olhos.
Aquelas doses de loucura eu não tinha.
Para fugir de uma chuva de balas, no entanto, me agachei atrás de
um balcão no meio do sótão, enquanto, por cima do tampo, eu continuava
atirando. Da mesma maneira, ele, se abaixando por trás de uma mesa,
também permaneceu mirando em mim como um doido. Exceto pelo
instante em que eu o peguei no flagra, fugindo, ele não parecia ter medo de
nada.
Assim, nós seguimos naquele terror de tiros que voavam de um lado
para o outro. Isso, até eu me dar conta de algo. Em dado momento, apertei
várias vezes o gatilho, mas as balas não saíam. E, bem, para a minha
completa infelicidade, eu notei que Russell percebeu. Ligeiro, busquei por
mais alguma munição na minha farda, porém... Franzi o cenho, aturdida,
tateando tudo sem encontrar.
Ah não.
Não, não, não.
Essa merda não podia acabar logo agora.
Puta que pariu.
— Acabou a munição, policialzinha? — Irônico, perguntou ele,
gargalhando. — Que vontade de te acertar bem no meio da cabeça, para
nunca mais precisar lidar com você.
E, então, continuou ele, se aproximando e atirando, enquanto eu me
mantinha abaixada atrás do balcão.
Porra, porra, porra.
Eu percebia, cada vez mais, a sua proximidade e os seus passos, à
medida que os tiros ficavam mais intensos. Caralho. Eu tinha que fazer
algo o mais rápido possível.
Apenas, aja, Zara!
Contei seus tiros, um dois, um dois, um dois.
Segundo a segundo, considerando o tempo entre a bala e a pausa.
Bala e pausa.
Bala e pausa.
Agora.
Em um milésimo de pausa, saí de trás do balcão e lancei a minha
pistola contra a sua cara. Fui certeira, quando achei que poderia não dar
certo. A arma bateu exatamente no seu nariz. Forte, dura. Sangue espirrou
por todos os lados, ao mesmo tempo que ele se desequilibrava, com o
impacto, e caía no chão. Com isso, sua própria pistola escapou da sua mão,
escorregando, enquanto ele tocava o rosto, desesperado, tentando conter o
sangue que escorria como uma torneira pelo nariz.
Não perdi meu tempo, aproveitei seu momento de baixa e parti para
cima dele. Russell ainda tentou reagir, mas estava bem desorientado com o
nariz quebrado. Foi então, que eu o soquei. Meu golpe final. Não que eu me
sentisse bem em fazer esse tipo coisa com qualquer pessoa que fosse. Mas,
aquele era Russell Ballard. Um cara sujo. O pai mais escroto do mundo. Eu
o soquei pela vida de todas as garotas que ele estragou. O soquei por todos
os momentos em que ele quis atrapalhar o meu relacionamento com a
Agatha. E, enfim, me sentindo incrível e realizada, o soquei, novamente,
por todas as vezes que, ao longo da vida, em que ele agrediu a filha.
Larguei-o feito um saco de bosta no chão, nocauteado. Virei-o de
bruços, agarrando firmemente os seus pulsos. Tirei outra algema da minha
farda e disse:
— Você está preso, Russell Ballard, por tráfico de mulheres, por
promover e facilitar a prostituição, e por todas as vezes que agrediu a sua
filha.
Fechei as algemas, respirando fundo na tentativa de recuperar o
fôlego.
Quando fiz menção de erguer o meu corpo, porém, fui surpreendida
outra vez. Um dos seus capangas apareceu repentinamente ali, bem do
nosso lado, apontando uma arma para mim. Perfeito. Eu estava sem arma,
sem munição, sem nada. Juro que vi a minha vida inteirinha passar frente
aos meus olhos em um milésimo de segundo. Eu vi o meu filho, vi os meus
pais e as minhas amigas. Eu vi Agatha e todos os momentos em que
ficamos juntas. Eu vi o último beijo que ela me deu.
E, então, ouvi quando ele puxou o ferrolho da pistola, para
engatilhar a munição.
Adeus, Zara.
Quando pensei em fechar os meus olhos, só esperando o impacto,
porém, uma barra de ferro acertou a sua cabeça no exato segundo em que
ele apertou o gatilho em minha direção. Ainda tentei me afastar para o lado,
mas o tiro acertou um dos meus braços, enquanto ele caía durinho no chão,
desacordado.
E no instante em que caiu, eu vi atrás dele... Lá estava ela... Agatha.
Como um anjo dourado. Meus olhos, de súbito, brilharam em pura emoção.
A minha garota estava ali. Sã e salva. Com uma barra de ferro, feito uma
heroína. Um sorriso fraco estampou os meus lábios, enquanto o sangue
escorria como cascata pelo braço.
Instantaneamente, ela soltou a barra e escorregou para o chão, bem
onde eu estava ajoelhada, me agarrando, me abraçando, segurando o meu
rosto entre as suas mãos com tanta gana. Suas íris azuis tão brilhantes em
lágrimas. Seu sorriso de felicidade, em me ver, misturado com preocupação.
— Ai, meu Deus...! Você está bem?! — perguntou ela, ansiosa,
tocando-me em todas as partes como se quisesse ter a certeza de que eu
estava inteira.
Foi no mesmo minuto em que eu vi policiais já descendo as escadas
do porão onde estávamos.
Sorri para ela.
Tão linda, como sempre.
— Como nunca estive em toda a minha vida... — disse eu, meio
alegre demais. Na verdade, meio grogue. Só não sabia se era da maldita
bala ou de amor. Talvez dos dois. — Você está aqui, senhorita Ballard, e me
salvou.
Ela soluçou, em uma mistura de choro, risada e sorriso.
— E eu salvo todas as vezes que forem necessárias... — Me abraçou
ali mesmo, espalhando beijos pelo meu rosto, até alcançar a minha boca.
Isso me inundou de afeto e de todos os sentimentos bons existentes no
mundo. — Vem, vamos... — Separando os nossos lábios, fez que ia
levantar, ajudando-me a me erguer também. — Precisamos cuidar disso no
seu braço, Mulher-Maravilha.
Mulher-Maravilha...
Um pequeno riso escapou da minha garganta.
E eu já me sentia inexplicavelmente mais forte só por ela estar ali.
Comigo.
De volta pra mim.
Eu faria tudo de novo
Agatha
Quando meu pai pagou a minha fiança, depois do acidente, e disse que não
queria mais que eu o envolvesse nas minhas merdas, na verdade ele estava
dizendo que não queria eu atrapalhasse as merdas dele ao me envolver com
a polícia. Foi por isso que ele exigiu que eu cumprisse perfeitamente a
minha pena, sem criar mais problemas. Só que isso não incluía o fato de eu
me apaixonar justo por uma policial. Ele sabia a confusão que Zara faria ao
descobrir qualquer coisa a seu respeito.
E, bem, ele tentou de tudo para evitar isso.
Russell foi realmente preso. Depois de todas as investigações e,
especialmente, de encontrarem garotas presas, naquela casa, que seriam
futuramente levadas para se prostituírem, não havia dúvidas da culpa do
meu pai. Elas tinham chegado das Bahamas e seguiram para Las Vegas
depois que a poeira, do mandado de busca e apreensão do meu pai,
baixasse. Pelo menos, foi isso o que eu ouvi, durante o solucionamento do
caso pelos policiais.
Harry Claflin e o idiota do Louis Claflin foram escoltados até as
Bahamas e, lá, também foram presos. Eles estavam igualmente sujos,
naquele esquema, como o meu pai. Quanto às garotas, não somente aquelas
de Lovelock, mas também todas as outras que estavam sobre o poderio de
Russell, em Las Vegas, foram ouvidas, libertadas e devolvidas às suas
famílias com todo o aparato de serviço social e psicológico oferecido pelo
Estado.
Sinceramente, durante alguns dias, essa situação toda deu um nó na
minha cabeça. Embora eu tivesse achado absolutamente estranho aquela
conversa entre Harry e o meu pai, na festa de confraternização de natal,
assim como também foi totalmente esquisito me deparar com aquela
quantidade de garotas na casa de Lovelock, eu jamais imaginaria que o meu
pai tivesse a capacidade de estar envolvido com tráfico de mulheres e
prostituição. Porém, nada disso, por pior que fosse, chegou a se comparar
com a surpresa que eu tive, no encerramento das investigações.
Russell Ballard não estava envolvido com trabalhos ilícitos e
práticas de origens duvidosas somente agora. Na verdade, isso já se estendia
há alguns anos. Senti o meu coração se partir um milhão de vezes, quando
eu soube que mamãe não tinha morrido na hora do parto. Ela foi assinada.
Na verdade, ela e o meu irmão, que ainda estava na sua barriga, foram
mortos por criminosos que, há anos, estavam envolvidos com o meu pai,
nos esquemas sujos de tráfico de mulheres e prostituição.
Minha mãe e meu irmão, que eu nunca cheguei a conhecer, foram
vítimas das porcarias de Russell Ballard. Eles foram vítimas do tipo
decepcionante de pessoa que Russell era. E eu chorei. Chorei por dias,
quando eu descobri. Chorei de ódio, de raiva, de indignação. Mas, chorei
também de frustração, por ter nascido em uma família como aquela. Na
verdade, por ter um pai de merda, como aquele. Minha mãe não merecia
isso, nem meu irmão. Eu também não merecia. Ninguém, na verdade.
A única pessoa que merecia o destino que teve era Russell Ballard.
Honestamente, se eu pudesse escolher, eu não queria que qualquer coisa
daquelas tivesse acontecido. Eu escolheria ter um pai bom, amoroso,
honesto. Eu escolheria que Russell fosse assim, um pai que eu poderia me
orgulhar. Eu escolheria uma família de verdade. Não aquilo. Mas, depois de
deixar que todas as lágrimas possíveis saíssem do meu corpo, eu me senti
incrivelmente mais leve. Zara também me ajudou a me reerguer. Sua
companhia e seu amor, sem dúvidas, foram fundamentais durante o meu
processo de luto e de recuperação.
E aí, meu pai desceu para o presídio. Como eu me considerava
idiota o bastante, achei que não aguentaria vê-lo receber a pena perpétua.
Achei que ia chorar de novo. Porém, depois de tudo... De todos os absurdos
que eu descobri e de todas as coisas que passei convivendo com ele, durante
esses anos, especialmente depois que mamãe se foi, eu não senti outra coisa
a não ser alívio, quando vi os portões da cadeia sendo fechados, assim que o
carro passou com ele e com os demais policiais que o escoltavam.
Estava acabado.
Aquele pesadelo tinha acabado.
Finalmente.
Eu não sofreria mais nas suas mãos, o meu corpo não seria mais
machucado pelas suas agressões, assim como eu também não precisaria
mais prestar contas da minha vida, nem obedecer aos ditames que apenas
beneficiavam ele próprio. Eu não seria mais usada como moeda de troca,
não precisaria mais me deitar com velhos nojentos, nem com seus parceiros
de negócios. Eu não seria mais coagida nem obrigada a fazer qualquer coisa
contra a minha vontade. E, principalmente, agora, eu estava livre para viver
normal e tranquilamente com a mulher que eu amava e que o meu coração
tinha escolhido para ficar comigo.
Esse era o maior prêmio que eu poderia receber.
Então, depois de tudo isso e de alguns dias de um longo suspiro,
para recuperar o fôlego, aconteceu algo que a gente não esperava, não
imaginava, nem acreditava que pudesse acontecer nos nossos melhores
sonhos: Zara foi convocada, por ninguém mais que o próprio prefeito de
Las Vegas, para não somente retornar à polícia, como também receber uma
promoção, por ter sido uma das principais responsáveis pelo desmonte do
esquema de tráfico de mulheres e prostituição, ao qual a polícia estava, há
tempos, tentando eliminar. Ela foi uma das responsáveis por uma das
missões mais importantes da história da cidade.
Ou melhor, do país.
E nós comemoramos, vibramos e ficamos tão, mas tão felizes com a
notícia. O alívio que eu senti foi ainda maior, incomensurável. Se antes eu
tinha me sentido culpada por fazê-la perder o emprego, agora eu pulava
com ela de tanta alegria. Só que aí, Zara avisou aos superiores que voltaria,
mas apenas com uma condição: que nós pudéssemos ficar juntas. Bem, eles
acataram o pedido. Quero dizer, a decisão. Especialmente depois do que o
meu pai fez. A verdade era que Russell nunca foi o tipo de pessoa que fazia
coisas boas, mas, nesse ponto em específico, ele milagrosamente acertou.
Ou deu um tiro no próprio pé.
Eu descobri que, pouco antes de aparecer no apartamento da Zara,
para me arrastar de lá e me levar embora, ele tinha conseguido, com um dos
seus advogados, a redução da minha pena: de serviços comunitários para
doações de cestas básicas e medicamentos a pessoas em estado de
vulnerabilidade. Claro que ele não fez isso porque era bonzinho comigo. Na
verdade, ele fez isso, mais uma vez, pensando em si mesmo, egoísta como
ele sempre foi. O plano dele era fugir comigo para que eu nunca mais
tivesse qualquer ligação com a polícia, e, consequentemente, ele também
não.
Bom, as doações foram feitas, mas a execução completa do seu
plano foi falha. Agora, ele estava preso, enquanto eu estava livre dos
trabalhos comunitários. Então, eu não precisaria mais ir à penitenciária, não
era mais uma garota em cumprimento de pena e, tecnicamente, Zara não era
mais a minha supervisora. Eu estava livre. Livre para ela. Livre para mim.
Livre para o nosso relacionamento. Livre do meu pai. Livre das suas
agressões e coações. Eu estava livre para viver a minha vida como bem
entendesse. E nenhuma felicidade no mundo, para mim, seria tão grande
quanto essa.
Consequentemente, Zara não tinha mais nenhum obstáculo para
assumir novamente um lugar de onde nunca deveria ter saído.
Agora, eu, a família da Zara, suas amigas, e até Evangeline,
estávamos no Centro de Convenções de Las Vegas, em uma cerimônia feita
especialmente para condecorar os policiais que trabalharam juntos naquela
ação de desmonte. Por falar na Eva, ela foi uma peça fundamental para que
o meu pai fosse pego. Evangeline foi demitida por ter me ajudado, mas,
naquela manhã, antes de ir embora, ela ouviu o esquema do meu pai, sem
que ele percebesse. E soube exatamente para onde ele estava querendo ir
comigo. Anotou o endereço no papel. O endereço de um local que ela nem
tinha ideia de onde era. Mas, anotou na esperança de que a pessoa certa o
encontrasse.
Zara encontrou.
Russell despediu Evangeline, mas eu a trouxe de volta para a minha
vida. E de uma maneira muito melhor que antes. Não apenas por ter
ajudado a polícia a me encontrar, mas por tudo. Por absolutamente tudo.
Evangeline foi a minha tábua de salvação, durante os muitos anos que
precisei conviver com Russell, depois que mamãe se foi. Foi por causa da
Evangeline que eu não enlouqueci, em todas as vezes que achei que não
aguentaria mais. Foi ela quem me manteve firme e de pé, quando eu pensei
que não houvesse mais nada de bom no mundo para mim. Então, foi por
absolutamente tudo, que eu fiz dela o meu braço direito.
Eva não era mais a governanta da casa. Agora, ela era a minha
assistente pessoal. O meu braço direito em todos os lugares, mas
principalmente nos negócios. Como o meu pai tinha sido preso e não
possuía outro herdeiro, além de mim, eu precisei começar a lidar
pessoalmente com os negócios. Negócios legais, diga-se de passagem,
nada daquela merda com garotas. Nos últimos dias, eu estava começando a
entender como funcionava a administração dos hotéis da família e o
gerenciamento das contas.
E, bem, apesar da Evangeline ter sempre cuidado da administração
de uma casa, ela também parecia levar jeito para o gerenciamento de um
negócio, junto comigo e com os demais funcionários do Grupo Ballard.
Mesmo que ela não entendesse dos termos técnicos ou ainda não tivesse
conhecimentos o suficiente, ela tinha o que eu precisava: lealdade. Era de
uma pessoa leal e de confiança que eu precisava para me ajudar com tudo
aquilo. E era só questão de tempo para que nós aprendêssemos tudo.
Eu sentia que tinha amadurecido anos, em apenas algumas
semanas.
Mas, isso, de forma alguma, me incomodava.
Muito pelo contrário.
Eu me sentia ainda mais mulher.
Eu estava orgulhosa de mim, orgulhosa de tudo. E, principalmente,
orgulhosa da Zara, a minha mulher. Agora, em cima do palco, na
companhia dos seus demais colegas de trabalho que recebiam certificados
de honra ao mérito, vestida com seu uniforme branco de gala, ela ganhava,
diretamente das mãos do prefeito da cidade de Las Vegas, uma medalha de
bronze, em formato de estrela, como forma de agradecimento pela sua
distinta conduta na operação. Westphalen, ao seu lado, também recebia sua
insígnia. Ambas sendo promovidas. Zara como a nova Inspetora de Polícia.
E Westphalen como a nova Vice-Superintendente de Polícia.
Aplausos e assobios, em cada canto do Centro de Convenções,
romperam o ar. Eu estava tão feliz. Uma felicidade genuína. Uma sensação
de completude, de realização. Meus olhos brilhavam, emocionados,
enquanto eu via os dela, em cima do palco, direcionados especificamente a
mim, da mesma maneira. Depois que aquele pesadelo acabou, e nós fomos
ao hospital, para a fazer a retirada da bala que atingiu o seu braço, foi como
se tudo, aos poucos, voltasse ao normal, com algumas diferenças, claro.
Eu não era mais uma garotinha estúpida, que colocava festas,
bebidas e roupas caras em primeiro lugar. Zara também não estava mais
sozinha. Agora, nós estávamos juntas. E, apenas isso, já me fazia sentir que
eu tinha tudo o que eu precisava. Ou melhor, tudo o que eu queria.
Finalmente, entendi a diferença entre os verbos precisar e querer.
E, então, eu vi o momento em que ela, após os aplausos, assumiu o
lugar no microfone. Linda, tão maravilhosa. Aquele sorriso largo, no seu
impecável rosto, que sempre me deixava absolutamente sem ar.
A mulher da minha vida.
A mulher que eu amava, que eu me orgulhava, que eu seria capaz
de fazer qualquer coisa.
— Eu gostaria de falar em nome de todos os meus colegas e de
todas as minhas colegas da polícia, que estiveram presentes na operação.
Cada um de vocês foi fundamental para o sucesso da nossa missão. Todos e
todas tiveram sua parcela de contribuição e merecem todos os aplausos e
congratulações, por terem sido tão responsáveis e fiéis aos seus deveres
enquanto policiais. Las Vegas se orgulha de vocês. Os Estados Unidos se
orgulham de vocês. Eu me orgulho de vocês. Obrigada. Muito obrigada.
Gostaria de agradecer também ao prefeito e a todos os outros membros e
funcionários públicos que preparam esta cerimônia para nós. Receber este
reconhecimento é motivador para que nós sigamos em nossa missão
fundamental, que é cuidar da segurança das pessoas. Agradeço também à
Alexa Westphalen, minha companheira de trabalho, por ter acreditado em
mim, num momento tão difícil, e por ter me dado a oportunidade de
participar da operação, quando achei que isso não estava ao meu alcance.
Agradeço também aos meus pais, pelo apoio incondicional de sempre, ao
meu incrível filho, por ser tão compreensivo, às minhas amigas, Mad e Ava,
pela força que me dão todas as horas, e à Evangeline, por ter sido uma
chave para a operação. Por fim, eu quero agradecer à minha mulher —
olhou especificamente para mim, em meio à multidão. Meu coração
saltando no peito, não somente por ter se referido a mim, na frente de todos,
mas também por ter me chamado de “minha mulher”. A forma como ela
pronunciou essas palavras foi especialmente particular. A energia era
palpável para mim. Que mulher mais maravilhosa. — Agatha, obrigada por
fazer parte da minha vida e por ter me dado vida. Você foi o caminho para
que tudo isso acontecesse. Apareceu para mim, quando eu achei que fosse
desempenhar a pior e mais entediante tarefa da minha carreira. Porém, além
de ter me proporcionado a missão mais importante, em todos os meus anos
de profissão, você me encheu de amor. Você é a minha maior medalha. E eu
te amo muito, garota. Amo com todo o meu coração. Obrigada por
absolutamente tudo.
Foi quando mais aplausos e assobios estouraram os nossos ouvidos.
Meus olhos molhados de lágrimas de emoção, por ouvir cada uma das suas
palavras tão bonitas e sinceras. Eu nunca tive isso na vida. Eu nunca fui
amada dessa forma. Talvez porque a pessoa certa para me amar, daquela
maneira, sempre fosse a Zara. Eu só precisava encontrá-la.
E encontrei.
Graças a uma batida de carro.
Ela, então, desceu do palco, ainda ovacionada por todos, e caminhou
em nossa direção, tão contente.
Sua família inteira e suas amigas, simplesmente, foram para cima
dela. Eu ri, ainda em meio às lágrimas de felicidade. Meu peito tão
aquecido por ela estar recebendo exatamente aquilo que merecia... Todo o
reconhecimento por ser uma das melhores policiais de Las Vegas. Seus pais
a abraçavam, suas amigas também. Nick pulava em suas pernas, até fazê-la
colocá-lo em seus braços. Evangeline, ao meu lado, era só sorrisos.
— Querida, você foi maravilhosa! — disse Martha, sua mãe.
— Estamos tão orgulhosos! — Seu pai também falou.
— Mãe, mãe, mãe! Deixa eu ver a estrela! — Nick exclamou dando
pulinhos.
Zara riu, pegando-o colo e dizendo:
— Aqui está a estrelinha... — apontou para a insígnia pregada ao
uniforme de gala. — Bonita, não é?
— Linda, mamãe!
E ela sorriu ainda mais.
— Meu Deus, somos amigas da mulher mais foda da cidade de Las
Vegas! — Mad brincou.
— E eu tenho certeza que a mulher mais foda de Las Vegas está
louca para falar com a sua garota... — Ava cantarolou, percebendo a
maneira como Zara não parava de me olhar, mesmo que, a cada segundo,
uma pessoa falasse algo diferente com ela.
Aquele olhar, contudo, já me deixava sem fôlego.
Sexy sem fazer o menor esforço.
Totalmente desproposital.
— Hum... Bem observado... — Mad, brincalhona, quase cantarolou
também, como a namorada. — Vamos abrir aqui um espacinho. Acho que
elas estão loucas para matar a saudade pelo tempo recorde de meia hora que
ficaram longe uma da outra.
Zara riu. Eu também.
— Para de ser boba, Mad — disse ela.
E, colocando Nick no chão, se aproximou de mim.
A cada passo que ela dava, era um suspiro idiota meu. Até agora, eu
não sabia como eu tinha conseguido ficar tão imbecil por aquela mulher,
mas, provavelmente, foi depois de soltar algum miolo, naquela batida de
carro, e perdê-lo no meio do cruzamento entre a Vegas Strip e a Tropicana.
Nunca mais o encontrei, principalmente depois de dar de cara com uma tal
de Policial Scott.
— Gostou do que viu? — perguntou ela, se referindo à cerimônia,
enquanto pousava suas mãos na minha cintura e eu subia as minhas pelos
seus braços.
Cada toque seu, por mais displicente que fosse, era sempre
carregado de uma intensidade. Uma intensidade tão desproposital com o
olhar sexy que ela tinha por natureza. Isso já era dela. Já tinha nascido com
ela.
— Estou gostando do que vejo — repliquei eu, enquanto alternava
os meus olhos entre os seus e a sua boca.
Louca para beijá-la.
Sim, eu adorei a cerimônia, claro, mas não pude deixar de responder
sem me referir especificamente a ela. Estava maravilhosa.
— Uh... — arqueou brevemente as sobrancelhas. Aquele sorrisinho
sacana já querendo aparecer. — Eu também, Penélope Charmosa. Você está
linda nesse vestido, como sempre.
Penélope Charmosa...
Soltei uma risadinha.
— Continuo sem saber de onde você aprendeu a dar apelidos assim
às pessoas — E franzi o cenho, me fazendo de desentendida, até que... —
Xena... — sussurrei com um sorriso maior que eu.
Ela riu.
E me agarrou mais firmemente pela cintura, me beijando ali mesmo,
no meio de todos. Afinal, nós éramos livres. E estávamos livres para
vivermos juntas, do jeitinho como a gente queria. A Agatha, de meses atrás,
jamais poderia imaginar que encontraria o amor da sua vida em uma batida
de carro, que lhe rendeu muitas lavagens de banheiro e desentupimentos de
vasos sanitários sujos. Mas, se fosse para ter a Zara na minha vida, eu faria
tudo de novo.
Aos seus pés
Zara
Agatha
Além deste livro individual, Sou tudo o que você (não) precisa, a autora V.
S. Vilela possui outra três obras publicadas na Amazon. Marido às Avessas,
que é um livro individual e romance gay. E Jogada de Mestre e Doce
Rendição, que também são romances gays, mas fazem parte da Série A
Família Tremblay. Cada livro desta série tem começo, meio e fim, e pode
ser lido fora de ordem; embora exista a possibilidade do leitor receber
alguns spoilers do que aconteceu com personagens de volumes anteriores.
Todavia, destaca-se que as obras são independentes.
Sinopse
Marido às Avessas
Jogada de Mestre
Doce Rendição
Aos quatro anos, Arthur foi adotado pelo casal Liam e Eric, e viu sua vida
mudar para melhor. Porém, tudo se transformou, ainda mais, quando, anos
mais tarde, seus pais decidiram adotar outro garoto. Daniel chegou à casa
dos Tremblay e, em pouco tempo, se tornou um dos melhores amigos de
Arthur. A amizade chegou a falar mais alto que a própria ideia de
irmandade, mesmo que não consanguínea. Afinal, como se diz, alguns
amigos são mais chegados que irmaões. E, por mais que a sociedade lhe
enxergasse como irmãos adotivos, por convivência, eles sempre se viram
como amigos, mais do que qualquer outra coisa. Apenas algo suplantava a
noção de amizade: o amor. A questão era que, depois de crescidos, eles
começaram a perceber que sentiam muito mais que um amor fraternal. Era
um amor... Diferente.
Agradecimentos
Muito obrigada por terem lido essa história. O processo criativo de uma
escrita, às vezes, é meio solitário. Nós, autores, passamos dias e mais dias
sentados de frente para o computador, sozinhos. Quero dizer, apenas na
companhia dos nossos personagens. Então, quando há a “quebra” dessa
parede e o livro começa a ser lido por pessoas fora da nossa caixinha, é algo
maravilhoso.
Mais uma vez, muito obrigada por me lerem, por me acompanharem e
por apoiarem o meu trabalho. Saibam que existe muito amor meu colocado
em cada mínima palavra desta história. Então, eu sou eternamente grata a
vocês que dedicam um tempinho precioso das suas vidas para adquirir e ler
o meu livro. Eu realmente espero que essa história tenha sido tão tocante a
vocês quanto foi para mim.
Muito obrigada a todos os que me leem pela Amazon e pela Uiclap.
Muitíssimo obrigada também aos que, além de me ler, também me
acompanham, sobretudo pelo Instagram. Vocês não têm noção do quanto a
nossa interação, através de mensagens, comentários, curtidas e
compartilhamentos, faz uma imensa diferença para mim. São vocês que me
dão fôlego para continuar. E, sem vocês, nada disso teria razão de ser.
Agradeço à própria Amazon, por tornar o ato de ler ainda mais
popularizado e difundido, especialmente no Brasil. Também agradeço à
Uiclap pelo apoio indispensável aos autores independentes que sonham com
a publicação das versões físicas dos seus livros. Agradeço aos amigos tenho
feito ao longo dessa minha trajetória como escritora. E, claro, eu não
poderia deixar de agradecer ao meu marido que sempre, absolutamente
sempre, me ajuda com as minhas publicações. Eu amo você. E eu amo
vocês.
Indo Além
Apoie o trabalho da autora nas redes sociais e fique por dentro dos
próximos lançamentos.
Instagram: @autoravsvilela
Facebook: Autora VS Vilela
About The Author
V. S. Vilela
Jogada de Mestre
Doce Rendição