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Sou tudo o que você (não) precisa

V. S. Vilela
Copyright © 2023 V. S. Vilela

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etc.) nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa
autorização da autora.

CAPA Jaqueline Santos da Silva Gomes


ILUSTRAÇÃO DA CAPA Arinne Maria Lobato de Souza
ILUSTRAÇÃO DO MIOLO Arinne Maria Lobato de Souza
REVISÃO Bruno Felipe Barbosa

[2023]
Todos os diretos desta edição reservados à V. S. Vilela
@autoravsvilela
Para mulheres comuns, que são super-heroínas todos os dias, seja no trabalho,
em casa, com os filhos, na faculdade, ou em qualquer lugar.
Você sabe com quem está falando?

Agatha

— Agatha, sua filha da puta...! — exclamou a garota, em meio a uma


respiração entrecortada.
Com uma das suas pernas sobre a tampa do vaso sanitário, ela
deixava o caminho livre para que eu, ajoelhada no chão daquele banheiro,
que, felizmente, não estava imundo, passasse a minha língua pela sua
boceta toda molhada.
Ergui o olhar, encarando-a por debaixo dos cílios e lhe oferecendo o
meu melhor sorriso sacana. Eu sabia que ela já estava perto de gozar e
realmente seria uma delícia se ela fizesse isso na minha boca. Acontece que
eu não queria que a festa acabasse agora. Na verdade, eu queria que
continuasse no quarto de um dos hotéis do papai. De preferência, com
outras garotas também.
Ainda sorrindo, me levantei dali, colocando habilmente sua saia no
lugar. Então, tomei seus lábios em um beijo para que ela sentisse seu
próprio gosto e deslizei para o seu ouvido, falando:
— Vamos sair daqui? Tenho um lugar irado pra gente.
Antes que ela pudesse responder qualquer coisa, até porque eu tinha
certeza absoluta de que a garota aceitaria (isso estava escrito na sua testa),
simplesmente a puxei pelo braço, percorrendo, com ela, uma boa parte
daquela boate lotada.
O lugar era foda. E, bom, essa era uma das vantagens de morar em
Las Vegas. Nós sempre estávamos a um passo de algumas das melhores e
mais badaladas festas do mundo, repletas de pessoas ricas, da alta
sociedade, que tinham apenas o objetivo de se divertir, beber, trepar e torrar
um pouco dos seus milhões guardados na conta bancária. Afinal, não
importava a quantia que gastassem por noite, sempre havia muito mais de
onde tiravam.
E eu era mais uma dessas pessoas.
Pelo caminho, eu e a garota, que eu até já tinha me esquecido o
nome, virávamos uma quantidade incontável das bebidas mais aleatórias,
enquanto beijávamos na boca daqueles que conseguíamos achar mais
atraentes, mesmo na penumbra das luzes piscantes e coloridas da casa
noturna. A música, extremamente alta, zunia nos meus ouvidos, a ponto de
me sentir meio zonza. Sei lá, talvez eu já estivesse chapada demais. Mas, eu
não me importava com isso. Eu não me incomodava nem um pouco.
Na verdade, eu gostava de estar assim.
Pelo menos, era uma forma de não me lembrar de certas coisas.
Mesmo sem saber como, porque os meus olhos pareciam estar
trocados, consegui distinguir as minhas amigas. Elas estavam se agarrando
umas com as outras, ali mesmo, na pista de dança, incluindo alguns
intrometidos caras no meio disso também. Às vezes, era um saco. Algumas
das minhas amigas ainda toleravam. Mas, eu não. Quero dizer, não que eu
não ficasse com caras de vez em quando. Até rolava com alguma
frequência. Porém, quando eu estava a fim de chupar uma boceta, eu só
queria chupar uma boceta, sem nenhum idiota de uma figa enfiando o seu
pau no meu esquema.
Foi aí que, um pouco cambaleando, sobre as minhas botas pretas de
salto fino e cano longo, me aproximei delas e disse, gritando por cima da
música:
— Ei ei! Bora lá pra um dos hotéis...! A gente pega uma suíte
presidencial!
Não demorou mais de meio segundo para que aceitassem. Elas
sabiam que, enquanto as baladas de Vegas eram estupidamente fodas,
aquelas after-parties que nós sempre fazíamos em particular, nas suítes
presidenciais, depois de chegarmos chapadas de alguma boate, ainda
conseguiam ser milhares de vezes mais memoráveis.
Segurando suas garrafas de tequila, vodca e sei lá mais o que, elas
me seguiram.
Puxei a garota que estava comigo e, junto com as minhas amigas,
caminhamos a passos trôpegos até a saída. Do lado de fora, a
movimentação era tão intensa quanto na parte interna. Apesar de ser uma
balada onde somente pessoas com muita grana tinham condições de entrar,
o local sempre estava cheio. Tentando me equilibrar sobre as botas de saltos
finos e puxar minimamente para baixo o meu vestido de paetê dourado, que
quase não cobria a minha bunda, dei graças a Deus quando vi o manobrista
chegando com o meu Audi.
Foi só o tempo de nós entrarmos no carro. Liguei o som no volume
máximo, com a música eletrônica mais tocada do momento, e baixei
totalmente o teto solar, para que o vento bagunçasse os nossos cabelos e
refrescasse um pouco do suor que já descia pelo pescoço de tanto que nós
dançamos. Todos os assentos estavam completinhos. Ao meu lado, a garota
que estava comigo bebia mais tequila, enquanto as outras cantavam a
música, gritando e dançando como podiam sobre o banco traseiro.
Dei partida. O Audi voava pelas ruas e avenidas de Las Vegas. Ao
mesmo tempo que eu dirigia, ou pelo menos tentava dirigir, ria de qualquer
bobagem que elas falavam e tomava goles e mais goles de vodca. Afundei
ainda mais o pé no acelerador, sem nem me dar conta da velocidade que nós
já estávamos. Eu só queria chegar o mais rápido possível em qualquer hotel
do meu pai que estivesse perto de nós. A cidade era repleta deles, afinal.
Logo estaríamos em um.
E a vantagem do horário avançado da madrugada era que as ruas já
não estavam tão cheias quanto de costume. Isso foi o suficiente para que eu
me empolgasse ainda mais. Tão louca quanto normalmente eu já era,
desviava de alguns carros, avançava sinais vermelhos, até porque naquela
hora eu já não precisava mais parar para eles, e percebia a minha visão meio
turva. Ainda assim, continuei gritando a música com elas e bebendo tequila
misturada com vodca, pouco me fodendo para o fato de estar cometendo
uma série de infrações de trânsito ali.
Entretanto...
Talvez eu achasse que fosse capaz de ter algum superpoder, no
momento em que tentei dobrar uma esquina e, ao mesmo tempo, acender
um cigarro. Foi muito mais rápido do que a minha consciência tão fodida de
álcool conseguia assimilar. No exato instante que girei minimamente o
volante, para entrar numa avenida, e desviei meu olhar da direção, por meio
segundo, perdi o controle do carro.
Só me dei conta de dois por cento do que tinha acontecido quando o
baque surdo do carro, se chocando em alguma coisa, estourou nos meus
ouvidos, e o airbag se abriu bem na minha cara. Meu rosto, com muita
força, foi totalmente de encontro àquele balão imenso e cheio de ar. Durante
meio segundo, o meu cérebro nublou. Porra. Eu parecia ter esquecido até
do meu nome.
Porém, aos pouquinhos, as coisas foram clareando. Literalmente
clareando. Sobretudo, quando notei uma lanterna muito forte ligada bem na
direção da minha cara. Que porra era essa? Enruguei a testa, ao passo que,
lentamente, tentava me mexer. Caralho, eu ainda tinha movimentos!
Percebi que metade do pó da minha maquiagem ficou sobre airbag,
juntamente com o batom vermelho no exato formato da minha boca.
Devagarzinho e ainda bêbada, virei o meu rosto, e, então, através da
porra daquela luz forte, que me dava dor de cabeça, vi o rosto de uma
mulher. Seus cabelos pretos estavam presos num coque, debaixo do que
parecia ser uma boina, e seu rosto, de pele negra, franzido para mim, me
dizia que o que eu tinha acabado de fazer não era nada bom.
Nossa, mais uma merda minha... Que novidade...!
O pior, porém, foi quando eu mirei mais atentamente na sua boina e
percebi o simbolozinho que tinha ali. Aquele brasão. Aquele maldito brasão.
Arqueei as duas sobrancelhas, chocada. Ela era uma policial. Porra. Uma
policial, caralho.
— A senhorita está bem? — A mulher perguntou. — Consegue me
falar o que aconteceu?
Engoli seco, o coração meio acelerado. Eu não sabia porque estava
nervosa, na verdade. Afinal, eu era Agatha Ballard. Praticamente, a herdeira
de metade de Las Vegas. Quem deveria estar nervosa de falar comigo era
ela!
— O que acon-aconteceu...? — repeti seu questionamento, tomando
um tempo para pensar na desculpa que eu ia dar, enquanto virava
brevemente o meu rosto, para o outro lado, tentando ver o estado das
garotas. Aparente e milagrosamente, estavam bem, com a exceção de muito
assustadas. Mas, o susto era o de menos. Os airbags também tinham se
aberto para elas. Um pouco aliviada, volvi novamente para a policial e
tentei lhe dar o meu melhor sorriso, em meio à um semblante cheio de
álcool e todo borrado de maquiagem. — Ah, não aconteceu nada demais...
Estamos bem! Tudo não passou de um mal-entendido... — soltei uma
risadinha forçada. — Será que podemos ir agora, querida?
Notei apenas quando ela ergueu uma das sobrancelhas, desligando a
lanterna e cruzando os braços para mim.
— Nada demais? — questionou outra vez. — Eu não sei se a
senhorita já conseguiu tomar real consciência do que aconteceu, mas
acabou de bater na nossa viatura e fez um estrago. Por favor, desça do carro.
Aliás, desçam todas vocês. Precisamos revistar.
Não, pera.
Como é que é?
Revistar? Quem ela pensava que era? A rainha da Inglaterra? A
filha do presidente?
Repentinamente, o álcool se misturou com os resquícios de
adrenalina, e a combinação disso não foi boa. Não foi nada boa. A faísca
dos meus piores instintos de pavio curto, em segundos, tomou proporções
de labaredas de fogo dentro do corpo.
Eu fiquei puta.
Atrapalhando a minha noite. Atrapalhando a minha festa.
Atrapalhando a minha transa!
Como se eu fosse uma marginal! Vê se pode? Logo eu!
Eu tinha dinheiro para comprar todos os marginais de Las Vegas, se
eu quisesse!
— Olha só, eu não vou descer coisa nenhuma! — exclamei, mesmo
que a minha língua estivesse meio enrolada da bebida. — Que direito você
acha que tem para me revistar, heim? Heim? Eu posso saber? — No fundo,
meu subconsciente sussurrou “querida, ela é uma policial”, mas eu meio
que não quis ouvir esse filho da puta. — Só saio desse carro no meu hotel!
Entretanto, escutei quando ela, séria e ridiculamente profissional,
falou por cima dos ombros, para um policial que a acompanhava. Ao todo,
era ela e mais três homens, pelo pouco que os meus malditos olhos
conseguiam contar.
— David, por gentileza, traga um bafômetro — pediu. E, então,
acionou seu rádio dizendo “Ocorrência em um cruzamento da Vegas Strip
com a avenida Tropicana. Um veículo com cinco jovens, entre vinte e vinte
e cinco anos, se chocou contra a nossa viatura. Estão todas bem. Porém, a
motorista está aparentemente alcoolizada”. Quando desligou a chamada,
volveu novamente para mim e ordenou — Saia do carro. Preciso revistá-la.
Ah não... Ah não. Ela só podia estar de brincadeira.
Será que não ouviu o que eu disse?
— Não vou sair da porra desse carro de jeito nenhum! Quero os
meus advogados!
Impassível, como parecia ser, a policialzinha de quinta categoria
apenas abriu a minha porta e, segurando meu braço com força, me tirou dali
sem pena, mesmo que eu esperneasse e dissesse que ela não deveria colocar
um só dedo sobre mim. A mulher parecia não ouvir nada do que eu dizia.
Ou, então, só ouvia o que queria. Enquanto isso, as garotas saíam do carro,
sem apresentar resistência, para que os homens averiguassem qualquer
merda que pudesse ter ali. Não tinha nada, óbvio, só bebida.
A única resistente era eu.
Porque estava puta, não porque eu tinha algo a esconder.
Bruscamente, entretanto, me encostou contra o carro, de costas para
ela, e separou minhas pernas. Começou a me revistar, tocando-me em cada
parte do corpo, com as suas mãos nojentas. Eu estava bufando. O coração
latejando em fúria, porque ela agia comigo como se eu fosse uma
criminosa. E, definitivamente, eu não era.
Eu só estava saindo bêbada de uma festa, caramba!
— Você acha que eu consigo esconder alguma coisa nesse
vestidinho minúsculo de paetê dourada que mal consegue cobrir a minha
bunda? Ou nas minhas botas de cano alto e salto fino? — sarcasticamente,
perguntei entredentes, morrendo de raiva. — Por que você não procura na
minha boceta também? Quem sabe ache algo por lá, caralho!
— Fale direito comigo, senhorita — Em tom de repreensão, ela
disse ao terminar aquela revista totalmente desnecessária. — Eu sou uma
policial.
— Ah é?! — ergui as sobrancelhas, indignada. — E você sabe com
quem está falando, han? Sabe?!
— Não, mas eu gostaria de saber disso agora — disse ela, sem
alterar o tom de voz. — Por favor, senhorita, preciso dos seus documentos.
Estão naquela bolsa, em cima do banco? As outras garotas estão liberadas.
Uma viatura vai levá-las para casa. Mas, você vem comigo. Vou levá-la ao
distrito por estar dirigindo bêbada.
Apenas notei quando a minha boca abriu e fechou umas dez vezes,
em pura ira, completamente incrédula por estar ouvindo aquele absurdo. Eu
não tinha feito nada! Eu só tinha batido naquele maldito carro da polícia,
sendo que o prejuízo maior seria meu, porque consertar um Audi sairia
muito mais caro. Ela não ia me prender! Ah, mas não ia mesmo! Aquela
mulherzinha não sabia com quem estava lidando.
— Como é que é? — Indignada, retruquei. — Você não vai me
prender. Eu nunca sou presa! Eu sou Agatha Ballard! Ballard! Você já ouviu
falar nesse sobrenome, pelo menos uma vez, durante toda a sua vidinha de
merda, não ouviu?!
— E agora será presa não somente por dirigir bêbada, mas também
por desacato à autoridade.
Foi tudo o que ela disse, segundos antes de habilmente me virar
outra vez, me pegar pelos dois pulsos e me prender com algemas.
Maldita Xena

Agatha

— Então, senhorita Ballard, vejamos aqui o que aconteceu... — Ao


folhear um bolo de papéis, disse o delegado de polícia, sentado em sua
grande e larga mesa de merda, enquanto eu, contra a minha vontade, estava
a sua frente, também sentada, mas em uma cadeirinha bem desconfortável.
Minhas costas já doíam. Eu só não sabia se era de cansaço ou do peso da
bosta que eu sabia que tinha feito, mas não queria reconhecer.
Na nossa lateral, de pé e um pouco afastada, entretanto, estava
aquela mulher que era o motivo do meu colapso. Ela observava atentamente
o homem, com as mãos atrás do corpo, naquela posturazinha ridícula de
profissional, como se estivesse disponível para executar, a todo momento,
qualquer ordem que lhe dessem.
Me dava asco.
Ela e aquela sua posturazinha de policial decente me davam asco.
Sobretudo, por saber que, mesmo que tivesse passado pela minha cabeça,
por pelo menos dois segundos, a ideia de lhe oferecer uma grana gorda para
que ela me liberasse de uma vez por todas, sem que eu precisasse passar
pela delegacia, ela não aceitaria.
Bufei com o pensamento, enquanto fitava seu nome bordado na
camisa da farda.
Policial Scott.
Policial Scott de merda.
Ela tinha acabado com a minha noite. Eu poderia estar muito bem
agora, esfregando a minha boceta naquela garota que eu já nem me
lembrava o nome, mas não. Claro que não. Claro que a policial Scott de
merda tinha que me arrastar para aquele purgatório e me deixar
impossibilitada de ser feliz por, ao menos, uma madrugada.
Bati o bico da bota no chão, impaciente, com a perna cruzada.
Nem paz para vestir o meu maravilhoso vestido minúsculo de paetê
dourada eu tive. Se eu soubesse, teria usado em outra ocasião. Ou melhor,
nem teria saído de casa.
Eu ainda estava com tanta raiva, com tanto ódio, que eu sentia nojo,
nojo, de olhar para a cara dela. Principalmente agora, sob a luz estridente
daquela sala, que me possibilitava vê-la perfeitamente nos seus trajes de
mulher-maravilha. Cabelos presos, boina, farda e botas de combate. Isso
sem falar no coldre de perna, onde jazia a sua pistola.
A própria Xena do século XXI.
Balancei a cabeça, indignada. Não somente com ela, mas comigo
também. Mesmo que eu não quisesse e fizesse um esforço absurdo para
encarar somente aquele velho na minha frente, eu não conseguia desviar os
meus olhos da sua direção. Talvez fosse a minha enorme revolta por aquela
mulher ter me feito cair do cavalo.
Quase literalmente.
Respirei fundo, tentando manter minimamente compostura, se isso
fosse possível.
— Acho melhor que eu mesma conte o que aconteceu, porque é
provável que o boletim de ocorrência feito por esta policial não seja, de
fato, fidedigno à situação — me pronunciei, mencionando a palavra
“policial” com todo o entojo que eu sentia, enquanto o coroa continuava
lendo os papéis.
Scott, no entanto, não me encarava uma única vez.
Desde que chegamos à delegacia, era como se eu e nada fôssemos a
mesma coisa. Ela não dirigiu a mim nem um mísero olhar, nem mesmo
enquanto estávamos ali, naquela espécie de interrogatório. Eu não existia
para Scott. Eu definitivamente não existia. A policiazinha fitava o delegado,
séria e impassível, na mesma postura irritante.
No fundo, eu não sabia porque isso estava me incomodando.
Era para eu estar agindo da mesma maneira, na verdade. Com
indiferença.
— Senhorita Ballard, eu confio muito no trabalho dos policiais do
meu distrito — O delegado replicou. — Creio que Scott descreveu
perfeitamente bem como o caso aconteceu. Então, vejamos aqui —
suspirou, com seus óculos de grau na ponta do nariz — A senhorita estava
na companhia de mais quatro jovens, no carro, quando o acidente
aconteceu. Avançou para a faixa contrária, ao dobrar na avenida, e perdeu o
controle do carro, porque estava bêbada, atingindo, assim, a viatura da
policial Scott, não é mesmo? A frente do seu carro e a lateral da viatura
ficaram completamente destruídas. Além disso, durante a abordagem
policial, você se utilizou de uma postura resistente e hostil, faltando com
respeito à policial Scott e dificultando o seu trabalho. Confere essas
informações?
Confere sim, Agatha. É claro que confere.
Disse o mané do meu subconsciente. Rolei os olhos para ele.
— Não, querido, não confere — repliquei, entredentes. — Olha só,
tudo isso não passou de um mal-entendido, tá legal? Não é que eu tenha
perdido o controle do carro, porque estava bêbada... Eu só... Só... — tentei
balbuciar qualquer merda para amenizar um pouco a minha barra, até que...
— A culpa é toda dela! — disparei subitamente, apontando o dedo na
direção da maldita Scott. — Ela deixou o carro praticamente no meio da
rua! Quando eu dobrei, já estava em cima! Vocês precisam colocar pessoas
mais bem treinadas para esse tipo de trabalho...! — balancei a cabeça,
passando a língua entre os lábios, enquanto esperava que a minha desculpa
esfarrapada surtisse algum efeito. — E, sobre a parte do respeito, quem
faltou com respeito foi ela, senhor delegado! Me tirou à força de dentro do
meu carro e ficou passando a mão em mim, procurando sabe-se lá o que,
como se eu fosse uma marginal!
A negra, por sua vez, continuou sem me encarar, nem me dirigir a
palavra, por, nem mesmo, meio segundo. Filha da puta. Aquela
posturazinha arrogante e formal que me dava nos nervos. Era como se nada
a atingisse. Era como se eu fosse uma pequena formiguinha na frente do seu
ego monstruoso.
Querida, quem tem um ego monstruoso aqui é você.
Disse o tagarela do meu subconsciente, outra vez.
Argh! Ele estava irritante naquela noite.
— Senhorita Ballard... — Com toda a formalidade do mundo, o
delegado tornou a se pronunciar. — A policial Scott estava apenas fazendo
o seu trabalho, ao lhe revistar. É tudo protocolo. Além do mais, não foi
exatamente isso o que ela descreveu, a respeito do caso. A policial Scott e
os demais agentes, estavam estacionados na calçada do outro lado da
avenida, quando a senhorita perdeu o controle do carro e bateu.
Bufei.
— Ela é uma mentirosa! — retruquei no mesmo segundo.
A grande muralha inabalável, que era aquela mulher, mais uma vez,
não tremeu nem um pouquinho na base, diante das minhas palavras. Suas
costas continuaram eretas, sua respiração normalzinha, seu queixo erguido,
seu nariz empinado e seu rosto absolutamente impassível. Cada centímetro
do seu corpo exibia uma só mensagem clara e evidente para mim:
“garotinha, eu não vou me trocar com você, porque estou com a
consciência tranquila e sei muito bem do meu caráter e da minha ética no
trabalho”. Era exatamente isso o que a sua postura me dizia em silêncio.
Ridícula.
— Bom, pelo sim ou pelo não, o juizado de trânsito já está
averiguando o caso, bem como o inquérito, a respeito do desacato à
autoridade, também se iniciou — replicou o velho novamente. — Assim,
poderemos esclarecer quaisquer dúvidas e saber quem infringiu regras ou
não. De todo modo, a senhorita estava dirigindo embriagada, e o seu erro
começa aí, independente de quem seja a real culpa pelo acidente. Portanto,
deve permanecer detida no distrito. Já liguei para o seu pai e informei sobre
a possibilidade do pagamento de fiança, para que a senhorita seja liberada.
Mesmo assim, ainda precisará ficar aqui, pelo menos, até amanhã, que é
quando sai o resultado da perícia e do inquérito. Tudo bem?
Pera aí.
Como se não bastasse acabar com a minha noite e com a minha
transa, aquele projetinho de Xena também seria responsável por me deixar,
durante toda a madrugada, em claro? É óbvio que eu não conseguiria
pregar os olhos ali, naquelas acomodações de altíssima qualidade.
— Você só pode tá de brincadeira! — exclamei, em choque. — Eu
vou ter que passar a noite inteira nessa pocilga?! — e ergui as duas
sobrancelhas, indignada, sem me importar em elevar também o tom de voz
para o próprio delegado. — O problema é dinheiro, não é? O problema é o
conserto daquele maldito carro, não é? Olha só, eu sou rica e posso pagar o
quanto for preciso para consertar a bosta daquela viatura! Só me deixem
dormir em paz, na confortável cama king size do meu quarto, é tudo o que
eu peço! — Praticamente supliquei, pela primeira vez quase
choramingando. — Eu não sou uma criminosa! Eu sou rica!
Só vi quando os ombros do coroa subiram e desceram em uma
respiração longa e profunda, enquanto continuava me observando sob os
óculos suspensos na ponta do seu nariz.
— Cara senhorita Ballard... — disse ele compassadamente, porém
incisivo na mesma medida, até que arrastou sua cadeira de rodinha ainda
mais, em minha direção, e me encarou firme. — Você já está detida por
desacato à autoridade. Então, sugiro que baixe o tom de voz e faça
exatamente o que estamos ordenando, se não quiser que a sua situação com
a justiça fique ainda pior. Por gentileza, siga a policial Scott, ela a levará até
o local onde deve passar a noite.
AH QUE INFERNO.
Meu coração latejou, mais uma vez, dentro do peito, em pura fúria.
Eu seria capaz de ter uma síncope a qualquer momento. Eu queria matar a
tal Scott, e fazer picadinho com o seu corpo. A culpa de eu estar ali,
naquele exato momento, prestes a passar a noite inteira longe do conforto
da minha maravilhosa cama king size, era completamente dela!
Virei meu rosto em sua direção, fuzilando-a com os olhos. Ela, no
entanto, continuou agindo como se eu nem estivesse naquela sala, pouco se
importando com a minha presença. Meu maior sonho era assassiná-la, ali
mesmo, apesar de estar dentro de uma delegacia. Mas... Mas... Droga, eu
não podia. Eu não podia.
Saco.
Respirei fundo, tentando me manter quieta e não cometer um crime
na frente do delegado. E, então, buscando reunir o máximo possível de todo
o meu sangue de barata e de todo o meu controle emocional, levantei-me
daquela maldita cadeira e caminhei para fora da sala, batendo com os saltos
finos da bota por ali.
Apenas escutei o momento em que, quando eu já estava quase
cruzando a porta da sala, o velho disse:
— Muito bem, senhorita Ballard. Nos vemos amanhã.
Eu não me dei nem ao trabalho de me virar para lhe dizer qualquer
coisa ou, ao menos, para lhe dar um sinal de que eu tinha escutado.
Somente saí porta afora e parei quando já estava a certa distância.
Estressada e puta da vida, eu tentava controlar as faíscas de ódio que
queriam escapar de mim, para eu não cair na tentação de esganar qualquer
ser humano que atravessasse o meu caminho. Quem diria que Agatha
Ballard, a herdeira de metade de Las Vegas, fosse passar uma noite
inteirinha no muquifo de um distrito policial? Era cúmulo! Só que aí, eu vi
a mulher-maravilha do quinto dos infernos, saindo da sala do delegado, e
todo o meu objetivo de manter dois por cento do restante da minha sanidade
mental foi por água abaixo.
Ainda agindo como se eu e nada fôssemos a mesma coisa, ela
caminhou em minha direção, mesmo sem olhar na minha cara, e passou por
mim, dando a entender que era para que eu a acompanhasse. E eu não
deveria acompanhá-la. Eu não deveria lhe dar o gostinho de saber que
estava em vantagem e que eu era realmente a fodida da história. Entretanto,
mesmo que eu nada fizesse ou dissesse, estava mais do que claro o meu
completo fracasso, naquela maldita noite. Ou seja, eu não tinha alternativa.
A Scott de uma figa tinha ganhado a batalha.
Não que aquilo fosse pessoal para ela. Claro que não. Eu também
não deveria ser convencida o bastante para achar isso. No entanto, para
mim, de um modo ou de outro, aquilo tinha se tornado pessoal sim,
simplesmente pelo fato de que Agatha Ballard jamais tinha sido presa. E
olha que Agatha Ballard já tinha passado por muitas coisas.
Com os olhos queimando de ódio, me apressei para acompanhá-la
pelos corredores da delegacia. Enquanto ela caminhava alguns passos à
minha frente, pouco se importando comigo, naquela sua postura ereta e
certinha até demais, eu bufava, tentando o mínimo de abertura, para
despejar todo o meu desprazer. Não que ela já não soubesse que eu estava
odiando aquilo, mas eu também não perderia a oportunidade de deixar
ainda mais claro.
A Xena Scott, no entanto, só estava ali comigo, claramente, porque
era o seu trabalho. Seu total de zero contato visual não parecia ser por medo
ou receio de alguma coisa. Não, não era por isso. Era simplesmente pelo
fato dela, provavelmente, me achar insignificante demais. Só mais uma
garota rica e rebelde de Las Vegas, com um rei na barriga. O que não era
uma mentira completa. Mas, foda-se. Aquele seu jeitinho, de não me dar a
mínima, me irritava, até porque a culpa de eu estar naquela delegacia era
totalmente dela.
— Tá gostando de me ver aqui, não é? — Entredentes e com raiva,
tentei soar sarcasmo, enquanto ainda seguia seus passos, mesmo que ela
caminhasse mais rápido.
A policial, no entanto, não me respondeu absolutamente nada. Nem
ao menos virou o rosto para mim. Uma lástima! Ninguém nunca deixava
Agatha Ballard no vácuo. Como se nada tivesse acontecido, ela apenas
continuou andando e guiando-me seja lá para onde fosse.
Argh, por que ela era assim?
Não me dava um por cento de moral.
Todavia, eu continuei. Ah, mas é claro! Aquele seu jeitinho irritante,
de propositalmente me dar pouca atenção, jamais iria me calar ou me deixar
inibida.
— Se você fosse um pouquinho inteligente, poderia ter pedido uma
boa grana minha. Uma grana que, com certeza, pagaria uns seis meses de
salário seu. E eu teria dado, lógico, para não ter que passar por isso agora.
Mas, eu nem cogitei a possibilidade, porque sabia que você não aceitaria.
— Que bom que a senhorita sabe disso.
Ainda olhando para frente, foi tudo o que ela me respondeu,
segundos antes de parar ao lado daquilo que parecia ser uma... Cela?!
Destrancou o cadeado, abriu a grade e somente falou:
— Pode entrar.
Han?
Meus olhos dobraram de tamanho. Não... Não, não, não. Aquilo ali,
sem dúvidas, era uma brincadeira. Eu só podia estar participando de uma
pegadinha com câmeras escondidas. Ou melhor... Um reality show! Sim,
claro, só podia ser um reality show! Já tinham até entrado em contato
comigo, várias vezes, para participar de alguns, graças à minha peculiar
personalidade. Eles, com certeza, decidiram parar de convidar e me jogaram
dentro de um, mesmo sem avisar.
Encarei aquela cela imunda. O chão sujo, as paredes encardidas.
Isso sem falar no cubículo que era. Parecia uma caixinha de fósforo. A
sensação de claustrofobia era real. Porra, eles tinham que me pagar uma
grana por participar de um reality show como aquele... Fora que o local
não estava vazio. Não mesmo. Dentro daquela caixinha de fósforo, havia,
pelo menos, umas dez mulheres.
— Onde estão as câmeras escondidas? — perguntei em um quase
sussurro, encarando-a como se lhe segredasse algo.
Foi aí que ela suspirou, como se estivesse tentando manter a
paciência comigo, e, então, pela primeira vez, desde que chegamos àquele
maldito distrito, me encarou firmemente, ao replicar:
— Que câmeras escondidas, senhorita Ballard?
— Ora, as câmeras escondidas do reality show... — falei com
obviedade. — Não, porque isso daqui só pode ser alguma brincadeira, né?!
Você não está querendo me dizer que eu vou dormir dentro dessa lata de
sardinha, está? — tentei forçar um meio sorriso, para entrar na tal
brincadeira.
Percebi, mesmo com aquela boina da farda, quando ela franziu
levemente o cenho para mim e, por alguns segundos, me encarou como se
dissesse em silêncio: “garota, você tem algum probleminha mental?”.
— Senhorita Ballard, eu acho que não estou te entendendo, mas,
além das câmeras de segurança da delegacia, não há nenhum outro tipo de
câmera escondida aqui. Isso não é um reality show. É a vida real.
E as suas palavras me atingiram como um soco bem nas minhas
fuças. Abri e fechei a boca repetidas vezes, incrédula, indignada, sei lá, eu
nem conseguia descrever como eu me sentia. Só notava a queimação de
fúria que subia pela minha garganta.
— Pera aí! Como é que você acha que eu vou conseguir dormir
nessa porcaria, heim?! — Puta da vida, questionei. — Ainda mais com essa
aglomeração de criminosas aí dentro! Eu não sou uma criminosa! Exijo
lugares melhores!
Notei quando seus ombros subiram e desceram em mais uma
respiração prolongada.
— A senhorita pode usar um dos bancos. Ou se deitar no chão
mesmo. Também é uma opção — Simplesmente respondeu.
Porém, apesar de tentar disfarçar, ainda consegui vislumbrar, mesmo
de leve e quase imperceptível, um pequeno rastro de sorriso nascendo nos
cantinhos da sua irritante boca. Era a primeira vez que eu via.
Ela estava se divertindo com isso?!
— Ah, mas eu queria mandar você ir se fo...
— Senhorita Ballard...! — Um tom acima do meu, ela chamou
minha atenção, me repreendendo. — Atenção com o que fala — disse ela,
aproveitando para me empurrar para dentro da cela, mesmo que eu
esperneasse para ficar do lado de fora. — Por enquanto, é só uma noite, mas
essa sentença pode aumentar, se não tomar cuidado com a língua.
Então, bem na minha cara, ela fechou e trancou a grade, sem me
dizer mais nada, nem me oferecer mais nenhum olhar. E ela tinha tanta
habilidade em fazer o seu trabalho, que, antes que eu pudesse raciocinar ou
lhe oferecer uma resposta bem malcriada, Scott já tinha me dado as costas e
caminhava despreocupadamente pelo corredor da delegacia, balançando as
chaves.
Segurei os ferros, espremendo-os entre os dedos, na mesma
intensidade do meu ódio por aquela mulher, enquanto a observava se
distanciar dali e sumir por entre as pessoas que caminhavam de um lado
para o outro.
Maldita Xena...!
Mulher-maravilha falsificada

Agatha

— Hora de tirar a fotinha, senhorita Ballard...!


Foi tudo o que eu ouvi, entre o segundo que eu estava dormindo e o
outro que abri os olhos, após um policial passar por ali, batendo com
alguma merda na grade da cela, para chamar a minha atenção. E, como se
não bastasse, com o susto que aquele filho da puta me deu, eu, que estava
deitada em um dos bancos encostado na parede da cela, acabei caindo e
batendo com a cara no chão.
— Au! — exclamei.
Puta que pariu, mas que inferno do caralho, heim?
Estirada naquele chão imundo e todo empoeirado, tentei abrir ainda
mais os olhos. Minha cabeça doía pra cacete e minhas pálpebras estavam
pesando pra porra. Meio zonza, eu estava morrendo de sono. Não consegui
dormir direito, naquele muquifo, como já era esperado. Não havia um único
local menos ruim, para que eu me acomodasse na caixinha de fósforo.
Estava lotada. As outras mulheres, aparentemente, já tinham os seus
lugares. Então, para mim, sobrou aquele que nenhuma delas queria: o pior.
Respirei fundo. Eu já tinha acordado puta. E nem fazia ideia das
horas. Não sabia se já tinha amanhecido ou se ainda era madrugada. Não
dava para ver absolutamente nada do mundo lá fora, não havia uma mísera
janelinha. Era uma merda! Além do mais, depois que a mulher-maravilha
falsificada me jogou no xilindró, eu perdi as contas de quanto tempo levei
para conseguir pregar os olhos. Talvez eu ainda tivesse cochilado uma meia
hora, ou menos. Foi a pior noite da minha vida, sem dúvidas.
E tudo isso era inteiramente culpa dela! Da Xena!
Ódio.
Com dificuldade, toda quebrada e arrasada, me levantei do chão.
Agatha Ballard não merecia passar por isso. Agatha Ballard era rica!
Bufei. Trôpega, caminhei por ali, entre as criminosas que não paravam de
me olhar. Elas me encaravam, com olhares de julgamento, e cochichavam
qualquer merda que eu não conseguia ouvir. Ou melhor, eu não dava a
mínima para ouvir. Não me importava. Apenas de nariz empinado, eu
passava por elas, mesmo que eu estivesse parecendo um galo de briga
(depois da briga). Minhas botas de cano alto e salto fino já faziam calos nos
meus pés, e meu vestido de paetê dourada estava imundo.
Argh.
Segui direto para o banheiro da cela e... Puta que pariu! Estava
podre! Alguém tinha morrido ali? Pelo amor de Deus, eu queria vomitar!
Que saudade do meu banheiro com cheirinho de baunilha, que saudade! E
não somente vomitar, mas chorar também. Por dois segundos, eu quis
chorar. Eu não podia nem respirar fundo, para tentar me manter firme,
porque, se eu fizesse isso, eu cairia mortinha ali, tamanho mau cheiro que
saía da privada.
Segurando as lágrimas de puro ódio, tampei o nariz e corri para
fazer xixi o mais rápido possível, tomando todo o cuidado para não encostar
nenhuma parte do meu corpo nele, é claro. Mijei quase em pé. E, com a
minha incrível inaptidão para esse tipo de coisa, misturada com a total
zonzeira de sono que eu ainda sentia, notei quando algumas gotas de urina
escorreram pela minha perna.
Ah que merda!
Balbuciei um palavrão comigo mesma, virando para todos os lados à
procura de algo para eu me enxugar. Não tinha um mísero papel higiênico
naquela porcaria. Perfeito! Eu queria saber o que acontecia quando as
outras precisavam, sei lá, fazer cocô. Elas limpavam com o dedo? Pelo
amor de Deus. Balançando a cabeça em total exasperação com aquilo, subi
a calcinha e me ergui.
Porém, quando assim o fiz, percebi o meu reflexo no espelho.
Caralho... Eu estava acabada e destruída. Me aproximei da pia, ainda
observando a mim mesma. Meus cabelos estavam uma merda,
completamente bagunçados. Eu preferia nem imaginar o trabalho que eu
teria para dar um jeito neles e tirar todos os nós. E olha que eu sempre
pagava uma fortuna para o salão deixar aquele loiro impecável. Agora, ele
não era nada mais que um ninho de cobra. Minha maquiagem estava
totalmente borrada. Ou melhor, não existia maquiagem. Aquilo não poderia
ser chamado de maquiagem, mas, sim, de uma merda qualquer.
Eu parecia ter sido atropelada por um caminhão. Em volta dos meus
lindos e perfeitos olhos azuis, o arroxeado da péssima dormida se misturava
com o rímel preto manchado. Os cílios postiços estavam metade grudados e
metade soltos. Para completar, o batom vermelho da minha boca foi para o
espaço, junto com o restante do pó que tinha ficado no airbag do carro.
Agatha Ballard poderia ser confundida com um zumbi. E o pior era que,
mesmo que eu quisesse lavar o meu rosto com água, para tentar melhorar o
estado daquilo, não dava. Sem um demaquilante ou mesmo um sabonete, a
minha cara só ia ficar mais feia!
Irmão, ali não tinha um sabonete!
Expirei o ar pesado, indignada, e, então, ouvi novamente o policial
me chamar, batendo na grade:
— Senhorita Ballard, precisamos tirar a sua foto!
Mas que merda de foto era essa? Eu estava horrível!
Me empertiguei ainda mais e, com a minha tão típica cara de poucos
amigos, saí daquele banheiro nojento, toda mijada porque não tinha a
porcaria de um papel higiênico. Passando pelas outras detentas, cheguei
perto do cara. Lá estava o policialzinho de meia tigela. Esse eu ainda não
tinha visto. Ou, se tinha, não me lembrava. O único semblante que não saía
da minha cabeça era o da mulher culpada por eu estar naquele estado de
decadência. Para o meu alívio, desde a noite passada, depois que me jogou
na cela, eu não a via.
Era realmente um deleite, para os meus olhos, não a ver.
— Quê que foi? — Nem um pouco simpática e quase revirando os
olhos, questionei.
O homem, por sua vez, formal como os outros policiais,
aparentemente todos ali eram assim, abriu a cela para mim e já foi logo
segurando meus pulsos para me algemar. De súbito, franzi o cenho.
Que diabo era isso?
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, porém, provavelmente
lendo os meus pensamentos, ele explicou:
— Precisamos tirar suas fotos, para registrar sua passagem na
polícia.
Ah que maravilha...
Como se não bastasse tudo o que eu já tinha vivido nas últimas doze
horas, com direito à prisão e a passar quase a madrugada toda em claro,
agora a minha ficha estaria manchada eternamente, para quem quisesse ver.
Minha primeira passagem pela polícia. Isso era realmente incrível.
Irritada, bufei, não respondendo sobre as fotos, porque eu sabia que
isso era algo inevitável, mas sobre outra coisinha que também me dava nos
nervos:
— E para você me levar a uma sala que, provavelmente, está a uns
dois metros de distância, precisa me algemar também? — Dessa vez, não
fiz esforço para não revirar os olhos. Eu já estava completamente farta
daquilo. — Acha que eu vou sair correndo daqui, como se eu fosse uma
criminosa? — Na verdade, apesar de não ser uma criminosa, a minha
vontade era essa mesmo. Fugir dali, sem olhar para trás. — Eu não sou
uma marginal!
— Senhorita Ballard... — disse ele, calmamente, enquanto já ia me
empurrando para sair da cela e começar a andar. — É tudo questão de
protocolo — explicou. — Você recebe o mesmo tratamento que qualquer
outra detenta.
— Mas eu não sou uma detenta qualquer! Aliás, eu nem deveria ser
uma detenta! — retruquei de pronto. Era real que eu não tinha noção do
perigo de falar daquele jeito com ele, com qualquer outro policial, com o
delegado ou até com o presidente dos Estados Unidos. — Eu sou Agatha
Ballard!
O homem, no entanto, não me respondeu mais nada. Continuou
olhando para frente e me segurando pelo braço, enquanto me guiava por um
caminho qualquer. Era impressão minha ou todos os policiais de Las Vegas
tinham feito um curso sobre como ser esnobe? Seu jeitinho era bem
semelhante ao da insuportável Scott.
Quando dei por mim, nós já tínhamos chegado a uma sala
relativamente pequena, onde havia um papel de parede listrado, com uma
numeração que parecia indicar centímetros de altura, e um fotógrafo. Só
notei o momento em que o policial pendurou sobre o meu pescoço uma
placa e disse:
— Por gentileza, senhorita Ballard, se posicione onde está o papel
de parede. Vamos tirar duas fotos suas. Uma de frente e uma de lado.
Eu merecia mesmo...
Ainda encarei a placa, por dois segundos. Lá estava escrito o nome
da delegacia, a data da minha detenção e o meu nome completo. Perfeito.
Agora, eu parecia um animalzinho de coleira. Bufei. Sinceramente, se eu
soubesse que ia passar por todo esse rolê, nem tinha saído de casa ontem.
Na verdade, eu teria tomado banho com água benta.
Só vi quando o primeiro flash estourou frente aos meus olhos e
depois na minha lateral. As fotos mais horrorosas da minha vida. Não
gostava nem de pensar na procedência da qualidade daquelas imagens. Eu
me sentia como uma indigente.
Mas, felizmente, a sessão fotográfica não demorou muito.
Logo o policial já estava tirando a placa do meu pescoço. Foi aí que
eu aproveitei para lhe fazer a pergunta de um milhão de dólares, aquela que
eu sonhava em saber da resposta:
— Quando eu vou ser liberada?
— Ainda não sabemos, senhorita Ballard — disse ele. — Mas, ouvi
o delegado comentar que a perícia do acidente foi encerrada e que o
inquérito estava em fase final. É provável que, ainda hoje, a senhorita saiba
do resultado. — Argh... Isso parecia um pesadelo! — Agora, pode voltar
para a sua cela. As detentas já estão recebendo o café da manhã.
“Agora, pode voltar para a sua cela. As detentas já estão recebendo
o café da manhã.”
Nossa... Eu realmente não via a hora de tomar aquele digníssimo
café da manhã que, com toda certeza absoluta, era no mesmo nível
daqueles servidos nos hotéis cinco estrelas do meu pai.
Rolei os olhos, balançando a cabeça, e, mesmo a contragosto, tornei
a fazer o exato caminho de ida, agora na volta, ainda na companhia do
policial que me segurava pelo braço. Sinceramente, era tão desnecessário.
Mesmo que eu quisesse muito, eu não conseguiria sair correndo dali com as
minhas mãos atadas. Além do mais, eu não era realmente uma ameaça para
a humanidade. Eu só era uma motorista alcoolizada! Só isso!
No momento em que paramos na minha cela, outra vez, o homem
abriu a grade para mim e tirou minhas algemas. Atrás dele, uma moça se
aproximou de nós, com uma bandeja. Não demorou muito para que ela me
entregasse um copo descartável com um café frio e um pão que parecia seco
e duro. Maravilhoso. Encarei a deliciosa refeição nas minhas mãos,
torcendo o nariz. Minha barriga roncava de fome, mas eu não sabia se
aquilo me faria bem ou mal.
— Bom, senhorita Ballard, pode tomar o seu café da manhã.
Foi tudo o que ele disse. E, então, fechou e trancou a cela
novamente, deixando-me sozinha ali, na companhia das criminosas mal-
encaradas. Suspirei. Segurando o copo descartável e o pão dormido, olhei
ao redor e percebi algo. O local estava mais cheio do que quando eu tinha
saído. Agora, havia mais duas detentas novas, que chegaram apenas nos
breves minutos em que eu estive fora para as fotos.
Trinquei a mandíbula, irritada.
Colocar tanta gente assim, em uma só caixinha de fósforo, era um
absurdo!
O banco onde eu tinha dormido estava ocupado pelas duas novas
mulheres. Eu só queria saber onde eu ia me sentar agora! Olhei novamente
ao redor e vi que havia um banquinho vazio na lateral. Talvez alguma
detenta estivesse no banheiro. Sorri para mim mesma, embora não fosse
uma felicidade genuína. Era ali onde eu ia ficar.
Afinal, já dizia o velho ditado: “saiu pra namorar, perdeu o lugar”.
Obstinada, me sentei no tal banquinho vazio. Encarando novamente
minhas mãos, respirei fundo para enfrentar aquela comida infernal. A
saudade das comidinhas feitas pelos cozinheiros da minha casa era real. Só
esperava que aquele café frio não me desse dor de barriga. Seria o cúmulo.
Tomando coragem, mastiguei um pedaço do pão e bebi um gole do líquido
preto.
Puta que pariu... Estava horrível!
Argh!
Meu Deus do Céu, como alguém tinha conseguido a façanha de
fazer um café tão ruim?
Enruguei a testa automaticamente em puro nojo, sentindo o restinho
do alimento, que ainda estava na minha barriga desde o dia anterior, se
revirar junto com as tequilas e a vodca, que eu tinha tomado na festa.
Respirei fundo, tentando conter a ânsia de vômito e a vontade de colocar
tudo para fora. Suei frio e, então, antes que fosse tarde demais, decidi não
mais olhar para aquilo.
Larguei por ali aquele projeto de café da manhã.
Eu ia passar fome, mas não ia comer esse negócio.
Foi aí que, repentinamente, uma das detentas parou bem na minha
frente. Sem entender, ergui meu olhar até encontrar o seu rosto mal-
encarado. De braços cruzados, ela permaneceu bem nas minhas fuças, como
se estivesse esperando que eu fizesse algo.
Oi? Eu tinha perdido alguma coisa, por acaso?
O que essa doida queria?
— Você está no meu canto — disse ela, bem séria.
Pera aí.
Ela tinha comprado um pedaço de terra da delegacia?
— Não sabia que os cantos eram demarcados, querida — Com o
meu típico semblante nojento de poucos amigos, repliquei e, então, desviei
meu olhar, literalmente fazendo pouco da sua cara.
Porém, isso foi o suficiente para aguçar a fúria da mulher. Só senti
quando ela segurou firmemente um dos meus braços, quase me
machucando, e, com toda a força, me levantou dali e me sacudiu no meio da
cela.
— Esse canto é meu, patricinha, e ninguém tira de mim.
Meus olhos queimaram de ódio em sua direção, na mesma medida
que o braço ardia na exata região onde ela tinha me segurado. Filha da
puta! Sentindo minha respiração tão acelerada, a ponto dos meus ombros
subirem e descerem rapidamente, fechei meus punhos com a maior vontade
de partir para cima dela, só por ter falado comigo daquele jeito.
Ninguém tratava Agatha Ballard assim.
No entanto, quando quis fazer algo, vi um dos carcereiros passar na
frente da cela, olhando especificamente para mim. E a cara que ele me deu
foi tipo “mocinha, eu sei que você cheira à confusão, eu estou de olho”.
Saco! Ah, qual é, a bonitona ali me arrastava pelo braço e era eu que
cheirava à confusão? Vai se foder! Bufei, indignada. E, então, com o cão
nos couros, me sentei no chão mesmo, tentando me controlar para manter a
calma.
Nem a mundiça daquele piso era tão grande quanto o ódio que eu
sentia.
Porém, as coisas não pararam por aí.
Subitamente, outra detenta, de pé, se colocou na minha frente. E esta
era tão mal-encarada e tão forte quanto a outra. Talvez ela medisse duas
vezes a minha altura, e olha que eu não era baixa. Seus braços, então,
davam dois dos meus. A mulher parecia uma lutadora. Cravou seus olhos
nos meus, com um semblante que conseguia botar medo em qualquer
pessoa, menos em mim. Eu simplesmente sustentei o olhar e ergui o queixo,
como se a desafiasse para dizer seja lá o que fosse.
E, então, ela falou:
— Esse lugar é meu.
Ah, qual é, porra? De novo? Elas estavam de complô contra mim?
A merda daquela cela já era um ovo, a cada minuto entravam novas
mulheres, e as filhas da puta ainda queriam marcar lugar?
Pelo amor de Deus!
Irritada, me levantei de supetão, a peitando sem temer. Empinei o
queixo e o nariz, encarando-a.
— Então, você vai ter que procurar outro lugar, porque daqui eu só
saio quando me tirarem da cela — repliquei, firme, sem desviar o olhar.
E, não, eu não estava gostando nem um pouco de sentar naquele
chão imundo, muito menos estava defendendo com unhas e dentes o meu
direito de permanecer no lugar que eu quisesse da cela. Eu apenas estava
puta demais com o fato de todos, ultimamente, quererem cagar na minha
cabeça. No que dependesse de mim, eu não ia mais permitir que isso
acontecesse.
Só vi quando os seus olhos asquerosos desceram do meu rosto para
o meu corpo, analisando milimetricamente cada parte. Sorriu, então,
irônica, com os dentes amarelos e alguns faltando na boca, até que, enfim,
respondeu:
— Quero ver até onde vai a sua coragem, quando eu acertar um
soco na sua cara, sua prostitutazinha.
Não.
Pera aí.
Não, não, não.
Prosti...? Prosti-o-quê?!
Como essa inútil teve a audácia de dizer isso? Ela estava me
chamando de prostituta por causa da minha roupa? Que porra era essa?
Senti o exato instante em que as faíscas do meu temperamental
pavio curto correram como descargas elétricas pela minha pele, incendiando
completamente todo o meu corpo, até eu não aguentar tamanho calor e
fúria. Eu precisava explodir. Eu precisava colocar tudo para fora. Assim
como também tinha o dever de esclarecer, com as minhas próprias mãos,
que ela não tinha o direito de me chamar do que bem entendesse.
— Sua filha da puta! — berrei. — Eu não sou prostituta não! — E
simplesmente voei no seu pescoço.
Pronto, o caos estava posto.
Isso foi o suficiente para que uma briga generalizada se instalasse
dentro do cubículo daquela cela. Todas as detentas, agora, se amontoavam
umas nas outras, se estapeando. A grandalhona lá, tentava, a todo custo, me
socar enquanto eu puxava seus cabelos e dava joelhadas na sua barriga.
Pulava sobre as suas costas e desferia cascudos na sua cabeça.
Em determinado momento, abri o zíper de uma das minhas botas de
cano longo, tirei e acertei sua têmpora com o salto fino. Agora, eu estava
com um pé descalço, os cabelos ainda mais assanhados e o resto de
maquiagem misturado com os roxos dos socos. Mesmo assim, me sentia
incrivelmente satisfeita com os gritos que a outra dava a cada vez que o
salto fino atingia sua cabeça.
Rá! Agora eu queria ver quem era a prostitutazinha indefesa!
Entretanto, repentina e subitamente, ouvi quando apitos estridentes
soaram nos nossos ouvidos. Os policiais abriram a cela e entraram com uma
manada de búfalos, atrás de nós. Começaram a nos separar umas das outras.
Ainda era como um “salve-se quem puder”, até que, sem avisos prévios, eu
fui puxada pela cintura e os meus dois pulsos foram bem seguros por uma
mão. Tudo o que eu escutei, depois disso, foi uma voz inconfundível, bem
atrás de mim.
Aquela voz.
Aquela voz que eu já não me esquecia, desde a noite anterior.
— Será que a senhorita não consegue passar um minuto sem fazer
confusão com qualquer pessoa?
Meu primeiro instinto foi virar o meu rosto em sua direção. Não
consegui fazer outra coisa. E, então, dei de cara com ela. A tal Scott. Me
encarava firmemente. Tão séria e tão... Bonita. O rosto tão perto do meu
que eu conseguia sentir sua respiração na pele.
O que eu faço com você, senhorita
Ballard?

Agatha

Como se não bastasse, o cheiro do seu perfume de pobre se entranhou nas


minhas narinas. Era aquele típico de quinta categoria. Horrível, mas tão
bom ao mesmo tempo. Respirei fundo, sem saber se era para senti-lo mais
ou se para recuperar o fôlego depois da briga. Meus olhos continuaram
presos nos seus, por alguns segundos. E mesmo que eu tentasse desviar para
qualquer outro ponto da cadeia, o máximo que eu consegui foi descer
preguiçosamente as orbes para os outros traços do seu rosto. Inclusive, para
a sua boca, que, pela primeira vez, eu via tão de perto.
Senti o coração bater mais forte, mesmo que eu não entendesse o
motivo, somente por visualizar suas linhas de expressão nos lábios e nas
proximidades. Isso era um sinal. Um sinal de que ela sabia sorrir. Sim, ela
sabia, por mais que eu ainda não tivesse visto um sorriso seu. E, por breves
instantes, naquele meio tempo entre a confusão na detenção e os meus
pulsos bem seguros pela sua mão, eu quis ver um sorriso seu, por mais
ilógico que isso pudesse ser. Eu não deveria me importar com isso, nem
pensar nesse tipo de coisa, porque não fazia o menor sentido, mas...
Ela estava tão séria, enquanto me observava, e tão ridiculamente
bonita que...
— O que eu faço com você, senhorita Ballard, para que se
comporte? — questionou.
E sem que eu percebesse, a mera combinação daquelas palavras tão
inofensivas, fez o meu inconsciente viajar por lugares que eu nem
imaginava que pudessem existir. Lugares novos, pensamentos recém-
nascidos e tão poderosos. Perigosos. Porém, com vinte e dois anos, e depois
de várias experiências, eu já me conhecia o bastante para saber que aquilo
não era nada mais do que...
— Vamos logo sair daqui — disse ela. — O delegado está
aguardando em sua sala. Sorte que chegamos a tempo da confusão não se
tornar maior e a sua situação aqui ficar pior — sibilou e simplesmente me
puxou para fora da cela.
Isso foi o suficiente para que eu acordasse. Pisquei os olhos algumas
vezes, caindo na real, depois que a tal Scott furou a bolha que eu mesma
tinha criado. Porra. Suspirei, ainda um pouco desnorteada, enquanto
caminhávamos pelos corredores do distrito policial. Eu não sabia direito o
que pensar ou raciocinar. Era esquisito. Primeiro, eu estava reparando mais
do que gostaria na Xena falsificada. E, agora, ela me dizia que passei perto
de deixar a minha situação ainda pior.
Se a minha situação estava por um triz de ficar pior, isso significava
que ela já estava ruim, não é? Ah, porra, o que podia ser, dessa vez? Além
de ser presa, de passar a noite em claro, de estar toda fedida, de ter tomado
um café horrível e de ter sido chutada por criminosas, o que poderia ficar
pior? Aquele delegado velho ia me ferrar ainda mais?
Inferno.
Quando chegamos à porta da sua sala, entretanto, a primeira pessoa
que eu vi não foi o dito cujo, mas, sim, outro coroa: o meu pai. Engoli seco.
Lá estava ele, de pé, em toda a sua postura altiva e semblante fechado. Por
um segundo, eu quis ficar nervosa. Juro que eu quis. Aquele homem nunca
foi simpático. Pelo menos, não desde a morte da mamãe. Mesmo assim,
apesar da sua aura intimidadora, eu tentei segurar as pontas e sustentar o
seu olhar, sem tremer muito nas bases.
Me aproximei lentamente dele. Naquela altura, o baque por vê-lo ali
já era o bastante para que eu não conseguisse enxergar mais nada ao meu
redor, apenas ele. Eu já não prestava mais atenção no delegado, nem na
policial, ou em qualquer outra pessoa que pudesse estar ali. Me aproximei
lentamente, como se tivesse medo de pisar em falso e cair em um buraco,
mas, ainda assim, temer seguir firme, com a postura ereta e o rosto
levantado. Sem temer.
Senti o coração palpitar, entretanto, no momento em que ele me
encarou de cima a baixo, com puro nojo. Sua repulsa por mim era
totalmente perceptível, palpável, tangível. Era quase como se eu
conseguisse tocá-la. E, por mais que eu não morresse de amores pelo meu
pai, ser vista assim, por ele, era mais doloroso do que deveria. Afinal,
querendo ou não, ele era a única pessoa no mundo para mim. Sem ele, eu
estava sozinha. Eu não tinha irmãos, nem mãe.
Com certeza, Russell Ballard estava notando o meu aparente estado
de decadência e calamidade. Afinal, minha roupa imunda, meu pé descalço,
meu rosto roxo e meus cabelos bagunçados falavam por si só. Eu parecia
qualquer bosta, menos Agatha Ballard. E eu tinha ainda mais certeza disso,
a cada vez que o semblante duro do meu pai se enrijecia ao perceber os
detalhes pelo meu copo. Era nojo, repulsa. Mas, também não era só isso.
Era decepção, desgosto, frustração.
Suspirei, tentando não desabar ali mesmo.
Eu me sentia horrível quando ele me encarava assim. De todas as
pessoas do mundo, a única que fazia eu perder completamente o meu
ânimo, com apenas um olhar, era o meu pai.
— Que porra é essa, Agatha? — disse ele entredentes, quando eu já
estava perto o bastante. — Você sempre se supera nas merdas que faz.
“Você sempre se supera nas merdas que faz”.
Eu deveria concordar que isso era verdade, mas, mesmo assim, essas
palavras se cravaram no meu peito como a lâmina afiada de uma faca,
porque era ele quem estava falando. Qualquer sermão ou bronca sempre se
tornava pior, quando vinha do meu pai. Se qualquer outra pessoa falasse as
mesmas coisas que ele, provavelmente entraria em um ouvido meu e sairia
pelo outro. Mas, quando se tratava de Russell Ballard, eu sentia como se as
frases tivessem um peso maior e tudo se tornasse pior do que realmente era.
Um lado meu quis, de fato, estremecer. Uma parte de mim quis
pedir desculpas pelo ocorrido. Desculpas pelas merdas que eu sempre fazia,
desculpas por ser uma péssima filha ou desculpas por eu ser apenas eu.
Mas, não o fiz. Não o fiz, porque enquanto uma parte minha gostaria do seu
perdão, a outra sabia que ele não valia nada e que também não merecia a
minha autocomiseração. Então, somente engoli a vontade de chorar e
fitando-o sem baixar a guarda, ainda ouvi quando em um tom menor, para
que somente eu escutasse, ele continuou:
— Você não merecia que eu pagasse a fiança. Por mim, você
poderia apodrecer na cadeia até tomar vergonha na cara. Mas, eu fiz o favor
de faltar a uma reunião de negócios nas Bahamas e vir, pessoalmente, pagar
para você ser solta. Então, escute bem... — se aproximou ainda mais de
mim, falando baixo, mas muito intenso. — Eu não quero mais problemas
com a polícia e a justiça. Não me envolva mais nas suas merdas. Está me
entendendo? Apenas faça tudo o que eles mandarem, sem reclamar.
“Não me envolva mais nas suas merdas.”
Bom... Aparentemente, eu estava enganada quando mencionei que,
na vida, eu tinha apenas ele. Talvez, nem ele eu tivesse. Talvez eu estivesse
realmente sozinha. Talvez eu só tentasse pensar que ele estava comigo, para
que eu não me iludisse e não pirasse total com o fato de não ter ninguém no
mundo. Não que eu quisesse que ele acobertasse as merdas que eu fazia.
Mas, a única função que Russell desempenhava, na minha vida, era me
sustentar. E, muito provavelmente, ele só fazia isso porque era seu dever,
por lei, como meu pai. Em outras situações, no entanto, eu não deveria
contar com ele. Nem mesmo naquelas que fossem boas, e muito menos nas
ruins.
— Podemos começar? — ouvi o delegado falar.
Suspirei. Essa era a deixa que eu precisava. Era melhor ouvir logo o
que aquele velho tinha para falar a meu respeito, antes que eu mesma
dissesse alguma besteira para o meu pai. E, olha, vontade de dar umas
respostas bem malcriadas a Russell Ballard não me faltava, por mais na
merda que eu estivesse.
Tudo o que eu fiz, no entanto, foi me sentar na cadeira vazia, em
frente ao delegado, e aguardar pelo seu maldito veredito.
— Bom dia a todos — Bom dia pra quem, cara? — Agora pela
manhã, eu recebi o resultado da perícia do juizado de trânsito, bem como a
decisão do inquérito sobre o desacato à autoridade. Em relação à perícia do
acidente, uma equipe esteve no local, averiguando o ocorrido. De fato, a
senhorita Ballard foi tida como culpada por estar dirigindo bêbada e atingir
a viatura onde estava a policial Scott e mais três agentes. Não houve
quaisquer indícios de culpa da policial Scott. No que se refere ao inquérito
do desacato à autoridade, foram ouvidas a acusada Agatha Ballard, a
policial Scott e os três agentes que também estavam no local. Após a oitiva
de todos, ficou evidente que a senhorita Ballard foi desrespeitosa e
resistente à ação policial, bem como agiu de modo a dificultar o trabalho
dos agentes. Portanto, ela também é tida como culpada por esse incidente.
A sanção por dirigir embriagada e atingir uma viatura da polícia será o
pagamento de uma multa no valor de nove mil dólares. No entanto, a pena
de detenção por desacato à autoridade será revertida em trabalhos
comunitários na Penitenciária de Las Vegas, pelo período de seis meses, sob
a integral e absoluta supervisão da policial Scott.
Como é que é?
Trabalho comunitário?
Mas... Que tipo de trabalho comunitário?
Isso era um absurdo!
Será que já não bastava eu ter ficado presa, ter passado a noite em
claro, estar toda fedida, ter tomado um café horrível e ter sido chutada por
criminosas? Isso já não era uma pena suficiente? Agora, eu também teria
que fazer trabalhos comunitários, para completar o meu fracasso?
E eu nem estava reclamando sobre a multa de nove mil dólares,
porque isso era um trocado para meu pai. Porém, sobre os trabalhos
comunitários, não mesmo!
Eu não queria fazer trabalhos comunitários em uma
Penitenciária...! Ainda mais sob a supervisão da Xena Scott! Não, não,
não. Não mesmo! Aliás, que tipo de trabalhos eram esses? O que eu iria
fazer? Eu nem sabia a procedência disso!
Ainda encarei a Xena Scott por alguns segundos e notei que,
diferente da madrugada, quando estava com aquela posturazinha ridícula e
extremamente profissional de quem teria disponibilidade, a todo instante,
para qualquer ordem, agora ela ainda mantinha uma postura assim, com a
exceção de que a sua mandíbula estava parcialmente pressionada e as suas
sobrancelhas levemente arqueadas. Ela não estava esperando por aquilo.
Xena Scott foi pega de surpresa. Aliás, eu também fui!
Eu não queria aquilo!
Eu...
— Ei! — ofegante, em meio a um quase colapso, tentei falar. —
Querido, será que não há outra alternativa? Eu não...
Entretanto, antes que eu conseguisse terminar a frase que externava
todo o meu desprazer com aquela maldita punição, meu pai me interrompeu
veemente:
— Agatha...! — Em tom de repreensão, sua voz subiu.
E só bastou ele falar isso, para que eu entendesse que não deveria
seguir em frente.
Bufei, me inquietando sobre a cadeira.
Merda!
— Por hoje, você está liberada — O delegado completou. — Mas,
os seus trabalhos na penitenciária começam amanhã de manhã, e a policial
Scott vai acompanhá-la de perto.
Pateticamente certinha

Agatha

— Que ódio! Que ódio! — praguejava eu, baixinho e entredentes,


enquanto eu caminhava pela rua da delegacia, ainda toda destruída pela
última noite, na companhia do meu pai, indo em direção ao carro, onde
estava o nosso motorista.
Aquela história de trabalhos comunitários não estava passando pela
minha garganta. Eu não conseguia engolir. O cúmulo. E o pior era que, se
não fosse isso, a minha outra maravilhosa opção seria a detenção de seis
meses a um ano. Ou seja, melhor seria encomendar logo um caixão, porque
viva eu não sairia da cadeia. Bastou uma noite numa caixinha de fósforo,
para que criasse uma briga com as detentas. O prazo de seis meses a um ano
era longo demais para que eu permanecesse viva sem fazer confusão com
alguma daquelas criminosas.
Mesmo assim, apesar de saber que a merda do trabalho comunitário
era a opção menos ruim para mim, eu não podia deixar de externar e
colocar para fora toda a minha repulsa por ter que cumprir com a
responsabilidade de trabalhar por seis meses no inferno de uma
Penitenciária. A realidade era que eu nunca tinha trabalhado na vida. Nunca
levantei um dedo para coisa alguma. Na minha casa, então, os empregados
eram encarregados de tudo... De fazer a minha comida, de lavar a minha
roupa, de arrumar o meu quarto. A minha única atribuição era gastar o
dinheiro do meu pai.
Enfim, para não dizer que eu também não era uma completa
desocupada. Eu fazia faculdade de Gestão de Negócios, à distância. Preferia
assim do que ficar horas e horas enfurnada em prédios de universidades. Eu
poderia estudar em casa e escolher meus horários de aula. Era perfeito. E
mais perfeito ainda era o fato de que eu tinha acabado de entrar de férias.
Ou seja, a festinha que fui ontem era para marcar o início do meu período
de folga, não fosse aquele pequeno e monstruoso detalhe que se colocou na
minha vida: os trabalhos comunitários!
Porra, eu perderia completamente as minhas férias com isso!
As minhas férias durariam dois meses. Dezembro e janeiro.
Porém, agora, elas não existiam mais.
Se eu soubesse, se eu tivesse a capacidade de prever a merda que
aconteceria, ou se eu tivesse uma miserável bola de cristal, eu juro, por tudo
o que é mais sagrado, que eu não teria colocado os meus pés fora de casa
ontem.
Mas, a culpa não era minha. Não, claro que não. Mesmo que a porra
do delegado dissesse o contrário, a culpa era da Xena! Aquela filha da puta.
Se ela não fosse tão pateticamente certinha, ela não tinha me levado para o
distrito. Ela teria aceitado a minha grana gorda, que pagaria uns seis meses
de salário seu, e teria me deixado seguir tranquilamente para casa, mesmo
com o Audi quebrado.
Bufei, outra vez, indignada, enquanto entrava no banco traseiro do
carro, fechava a porta e colocava bruscamente o cinto de segurança. Puta.
Ainda pude ver, pela minha visão periférica, meu pai, sério, me observando
pelo canto do olho. Foda-se. Nem mesmo a sua cara intimidante seria capaz
de inibir a minha completa irritação. Era provável que ele estivesse achando
muito merecida aquela punição. Do jeito como eu bem o conhecia, Russell
Ballard estava satisfeitíssimo em ver a sua filhinha rebelde e inconsequente
se foder.
E eu sabia também que ele estava louco para falar algo a respeito
disso. Mas, se fosse para pronunciar qualquer palavra que me tirasse ainda
mais sério, o que realmente tinha uma alta probabilidade de acontecer, era
melhor que ele nem abrisse a boca. Eu já estava suficientemente estressada,
para escutar sua voz insuportável e julgadora. Porém, como se lesse os
meus pensamentos e tivesse prazer em perturbar o meu juízo, só ouvi
quando, irritante, após o motorista dar partida, ele disse, ao meu lado, no
banco traseiro:
— Vou repetir, Agatha... Eu não quero mais problemas com a
polícia e a justiça, assim como também não quero mais estar envolvido nas
suas merdas. Cresça, Agatha. Você já é uma mulher de vinte e dois anos.
Então, apenas faça exatamente tudo que eles mandarem durante esses seis
meses de trabalhos comunitários, sem criar mais confusões. Está me
ouvindo? — virou o rosto para mim. — E pare de fazer essa cara de drama.
Você fica horrível.
“Você fica horrível.”
Depois de tudo o que já tinha escutado sair da sua boca, sobre mim,
ao longo da minha vida, esse tipo de insulto já não parecia ser tão ruim
quanto era tempos atrás. Na verdade, era ruim, mas já não me matava mais
por dentro. Russell não conseguia pronunciar nada de bom mesmo, e eu já
estava quase acostumada com isso. No fundo, por mais pesado que fosse
pensar assim, eu preferia que tivesse sido ele a ir embora no lugar da
mamãe.
Agora, sem conseguir conter as lágrimas ardidas de rancor que se
formavam no cantinho dos meus olhos, encarei-o, transbordando tudo
aquilo que existia dentro de mim:
— Eu odeio você, sabia?
Cuspi as palavras com tanto nojo que eu vi o breve arquear de
sobrancelhas que ele me deu, até, enfim, responder:
— Bom saber. Agora, além dos trabalhos comunitários, você
também vai passar três meses sem mesada, sem cartão de crédito e sem
motorista — Simplesmente tirou o celular do bolso e, após alguns cliques,
concluiu. — Pronto, suas contas estão bloqueadas.
Que?
Como é que é?
Em choque, abri e fechei a boca repetidas vezes, tentando assimilar
e processar todas aquelas informações. Ainda balbuciei qualquer coisa,
totalmente estupefata com o absurdo, quando, finalmente, consegui replicar:
— Você não pode fazer isso! — disparei, sentindo o meu coração
quase escapar pela garganta. — Como eu vou chegar, na maldita
penitenciária, sem, ao menos, um motorista, ou dinheiro para pagar um
Uber?
No entanto, ele apenas deu de ombros.
— Se vira — e me ofereceu o esboço de um pequeno sorrisinho
demoníaco. — Se continuar reclamando, eu te deixo sem dinheiro durante
os seis meses completos da pena.
Zara

A garota era doida.


Sim, aquela menina só podia ter um parafuso a menos na cabeça.
Com certeza, não existia outra explicação para o jeito dela, a não ser isso. E
o mais estranho de tudo era que a minha cabeça ficava, o tempo todo, se
lembrando do caso dela, por mais que eu tivesse trabalhado o dia inteiro
com muitas outras ocorrências. Precisei lidar com tentativas de assaltos,
furtos em restaurantes e uma penca de transferências de presos para
unidades penitenciárias, mas, no fim, era a tal senhorita Ballard, a garotinha
rebelde e maluca, que martelava o meu inconsciente, mesmo que não
houvesse qualquer motivo aparente para isso.
Talvez fosse a sua própria loucura que, mesmo sem querer, prendeu
a minha atenção. Ou talvez fosse o fato de que eu teria de cuidar do seu
caso, de perto, pelos próximos seis meses. Afinal, como o próprio delegado
disse, eu me encarregaria de ser a babá da menina de vinte e dois anos.
Honestamente, de todas as ordens que eu imaginei que pudessem me dar no
distrito, a última delas seria cuidar pessoalmente de uma quase menor
infratora. Era verdade que fui pega de surpresa.
Como policial, a todo momento, eu presenciava as mais variadas
situações, desde aquelas esquisitas até às extremamente perigosas e quase
surreais. Bom, eu estava há sete anos na polícia. Então, experiências era o
que não me faltava. Jovens ricos e inconsequentes de Las Vegas, vez por
outra, passavam por mim, seja com drogas, com algum tipo de acidente ou
com alguma contravenção penal. Mas, exatamente do jeito daquela menina,
não. Durante os meus sete anos de carreira, era a primeira vez. Pirada,
completamente pirada. Arredia, respondona, impulsiva. Mas, ao mesmo
tempo, forte, impetuosa, valente. E, claro, maluca.
“Você acha que eu consigo esconder alguma coisa nesse vestidinho
minúsculo de paetê dourada que mal consegue cobrir a minha bunda?”
Insana.
Como alguém, em sã consciência, teria a coragem de falar assim
com uma policial?
Mesmo assim, ali, subindo as escadas do prédio onde eu morava,
enquanto me lembrava disso, após um longo e cansativo dia de trabalho, eu
não pude evitar o breve sorriso que escapou. Balancei a cabeça de leve, me
dando a liberdade de soltar um ínfimo risinho pelo nariz, agora que eu
estava longe do meu ambiente de trabalho. Longe dela.
Tirei a boina, soltando os cabelos, quando sua voz soou novamente
na minha cabeça: “Por que você não procura na minha boceta também?
Quem sabe ache algo por lá, caralho!”.
Você é louca, garota. Você é louca.
Inconscientemente, sorri mais uma vez, até que...
— Você está rindo de que, heim...?
Quando volvi o rosto, era a Madison, minha vizinha e amiga de
infância. Nós crescemos juntas, naquela cidade. Seu apartamento ficava no
mesmo andar e exatamente em frente ao meu. Ela me alcançou quando eu
ainda estava subindo as escadas do prédio, e, pelo que pude notar, graças a
quantidade de sacolas em suas mãos, aparentemente estava vindo do
mercado.
— Ah, nada demais, Mad... — repliquei, balançando de leve a
cabeça. — Bobagem.
No entanto, ela parou no meio do caminho, fazendo-me pausar
também, e, então, me encarou em puro tédio. Estava escrito, em sua testa,
algo como “não me enrola não, porque eu te conheço desde os cinco anos
de idade”.
— Vai, fala logo, faz tempo que não te vejo sorrindo assim!
Foi aí que eu franzi o cenho.
— Que? Como assim? — e encarei-a, claramente como se ela
estivesse viajando. — Não é nada demais, Mad... — voltei a subir as
escadas, fazendo-a me acompanhar. — Eu só estava me lembrando de uma
garota meio problemática que caiu de paraquedas lá no distrito.
— Garota problemática, é? — sorriu, maliciosa. — Bonita?
Han?
— Para com isso... — torci o nariz, enrugando a testa. — É só
trabalho, não é nada pessoal. A garota é praticamente uma criança. Ela tem
vinte e dois anos. Ficou detenta por uma noite, no distrito. Estava dirigindo
bêbada e bateu na minha viatura. Agora, eu vou ter que acompanhá-la, por
seis meses, nos trabalhos comunitários que precisa fazer na penitenciária —
respirei de modo mais prolongado, apenas por me dar conta de que falar
essa última frase em voz alta era muito mais cansativo do que apenas na
minha consciência.
— E isso é um problema? — questionou.
Talvez não chegasse a ser exatamente um problema, mas...
— Você que sabe que eu gosto de estar nas ruas, Madison,
resolvendo problemas reais, fazendo coisas mais produtivas pela segurança
da cidade, e não cuidando de uma garotinha que não consegue lidar nem
consigo mesma.
Quando eu me calei, no entanto, e pus os pés no andar do meu
apartamento, aquele furacãozinho, em formato de gente, interrompeu o meu
raciocínio, ao gritar e correr para os meus braços, todo sorridente:
— Mamãaaaaaaae!
Nicholas. A primeira pessoinha que eu vi ao chegar, literalmente,
em casa.
— Meu amor...! Eu estava com tanta saudade de você... — Peguei-o
no colo e espalhei um monte de beijinhos e cheirinhos no seu rosto. Era a
melhor hora do meu dia, sem dúvidas. — Como foi a escola? E a tarde com
a tia Ava? Você se comportou?
Ava apareceu na porta do seu apartamento, de frente para o meu. Ela
era namorada da Madison. Moravam juntas. E, bom, nós três nos
conhecíamos há anos. Madison, então, era minha amiga desde os cinco anos
de idade. Eu sabia que poderia confiar nas duas de olhos fechados. Por isso,
aproveitando que Ava trabalhava em casa, eu pedia gentilmente para que ela
cuidasse do Nick, entre o fim da sua aula e a hora que eu chegava em casa
do trabalho.
Em contrapartida, eu pagava um valor mensal a ela. Entretanto,
pagando ou não, ficar com Nick não era problema algum. Elas o adoravam
e ele também era louco por elas. Algumas noites, Ava e Madison também
me davam uma forcinha, quando eu precisava fazer plantão no distrito,
exatamente como naquela do tal acidente. Ou seja, elas eram uns anjos da
guarda na minha vida. Ser mãe e policial não era fácil, mas Ava e Madison
sempre faziam o que podiam por mim e por ele.
— O Nick se comportou sim, Zara... Mas, agora, está fugindo do
banho... — sorriu, se aproximando de nós e erguendo os braços para pegá-
lo. — Vem Nick! Eu só devolvo você para a sua mãe, depois que estiver
bem cheiroso!
Porém...
— Ah, não quero tomar banho, mãe... — ele se aninhou ainda mais
nos meus braços.
E o Nick, com oito anos de idade, já sabia direitinho como fazer o
meu coração mãe amolecer. Aquele espertinho. Mesmo assim, tentei não
baixar muito a guarda para ele. Ou, então, ficaria mal acostumado.
— Que história é essa, heim, Nick? — sorri. — Vai lá tomar banho
com a tia Ava. Olha só, quando você estiver cheirosinho, eu vou fazer um
delicioso chocolate quente, pra gente tomar enquanto assiste desenho
debaixo das cobertas... O que acha, han? — e fiz cosquinhas nele.
A risadinha linda e gostosa que ele me deu era sinal suficiente de
que a minha tática funcionou e de que ele já tinha se rendido não somente
para a minha ideia, ou melhor, para o meu golpe baixo, mas também para o
seu banho.
Só vi quando Ava o tirou dos meus braços, levando-o de volta para o
seu apartamento. Feliz da vida, ele foi. Continuei sorrindo, olhando para os
dois, até que sumissem pela porta. Dei um breve suspiro mais prolongado,
tomando fôlego, entretanto, quando me vi sozinha com a Madison, outra
vez, no corredor. A noite ainda seria longa, até ele dormir. Eu amava o meu
filho e estar com ele era o que tinha de melhor na minha vida, mas, depois
de um dia inteirinho de trabalho duro, meu corpo já pedia por cama.
— Cansada? — Mad perguntou, ao deixar as compras na entrada do
apartamento.
— Um pouco... — respondi, me espreguiçando.
Complacente, ela me encarou.
— Você está trabalhando muito, Zara... Precisa descansar mais, sair
mais...
Respirei fundo, revirando os olhos um pouquinho. Madison e suas
conversinhas para o meu lado. Ela não se cansava de dizer isso. Sempre a
mesma história de que eu precisava descansar, sair, etc. Principalmente,
quando ela não tinha notícias de que eu estava transando com alguém.
— Não tenho tempo para me preocupar com isso, Mad... Eu tenho
um filho para cuidar.
Dessa vez, foi ela quem revirou as orbes.
— Mas, você também precisa cuidar de si mesma... Nick é um
ótimo garoto. Ele super entende quando a mamãe precisa sair. E você
também tem a mim e a Ava para ajudar. Sabe disso. Sério, você tem que se
desligar um pouquinho do trabalho e das responsabilidades de colocar
comida na mesa, para descansar, se divertir, ter algum momento de lazer,
conhecer pessoas novas, namorar... — ergueu uma das sobrancelhas. — Por
falar nisso, cadê aquela inspetora, a tal Alexa Westphalen, que você estava
saindo? Não te ouvi mais falar sobre ela.
Alexa...
Suspirei.
Ela era legal, divertida... Pegava um pouco no pé, mas transava bem.
Só que...
— Ah... Ela é meio... — franzi um pouco o cenho, tentando pensar
nas palavras certas para defini-la. — Agitada demais, sabe? — Essa era a
melhor e mais verdadeira justificativa que eu consegui dar. — E, no
momento, eu estou precisando de tranquilidade.
— Tranquilidade, é? — Madison ergueu novamente uma das
sobrancelhas para mim, sugestiva. — Unhum, sei... — Sabia que ela não
estava convencida disso. — Pois eu já penso o contrário. Acho que você
está precisando exatamente de uma pessoa que coloque o seu mundo de
cabeça para baixo, e te chacoalhe todinha, até você virar do avesso e
perceber que esse é o seu lado certo.
O movimento dos seus quadris

Agatha

— Agatha... Querida... — ouvi uma voz ao longe. — Agatha, querida,


acorde...! — E, então, alguém começou a me chacoalhar.
Fui sugada para o mundo real. Meio atarantada, abri os olhos,
sentindo a baba escorrer pela minha boca. Passei a mão, limpando,
enquanto um pé meu ainda estava no sonho e o outro na realidade. Aquele
foi um sono tão gostoso... Era como se eu flutuasse em um paraíso com
cheirinho de baunilha e árvores cor de rosa. Longe de todo e qualquer lugar
com grades, cadeados e... Criminosas mal-encaradas.
— Han...? Quê...? — franzi o cenho.
Fiz um esforço maior, para despertar totalmente, e vi a cara da
Evangeline bem nas minhas fuças. Tomei um susto do caramba, quase
pulando na cama. O coração por um triz de sair pela boca, graças aos seus
olhos enormes e preocupados sobre mim.
— Ai, meu Deus! O que foi, mulher?! — respirei fundo, com a mão
no peito. — Você sabe que eu não gosto de ser acordada assim, Evangeline!
Evangeline era uma senhora de sessenta anos. Ela já trabalhava para
a minha família antes de eu nascer, e cuidava mim de desde o momento em
que eu saí da barriga da minha mãe. Bom, depois que mamãe se foi, ela era
o que eu cheguei mais perto de ter como figura materna, por mais que fosse
apenas a governanta da casa. Querendo ou não, ela também era minha
companhia em casa, já que meu pai passava mais tempo fora do que
debaixo do mesmo teto que eu. E, por mais que eu não curtisse a cara de
boa parte dos habitantes do Planeta Terra, da Evangeline eu gostava, mesmo
que, às vezes, ela me acordasse da maneira que eu mais odiava.
— Agatha, faltam quinze minutos para as oito horas, e o seu pai me
disse que você deveria estar na penitenciária exatamente às oito da manhã.
Corra, querida, senão não vai dar tempo!
Arregalei os olhos, subitamente.
Ai, caralho, puta que pariu! Era hoje que aquele pesadelo ia
começar!
Por que tinham que marcar aquela merda para de madrugada?
Sim, oito da manhã ainda era madrugada!
Em um pulo, me levantei do meu maravilhoso colchão de plumas,
pronta para ir direto para o olho do furacão. Um inferno. Nervosa e
atrapalhada, quase tropecei sobre a minha bota preta, praticamente
destroçada pelos acontecimentos da “última festa”, e sobre o móvel que
ficava ao lado do closet. Merda. Eu nem sabia porque estava tão
preocupada em chegar atrasada. Eu não deveria me importar com isso,
afinal.
Mesmo assim, um incômodo nervosismo cutucava tanto o meu
peito, a ponto de eu não conseguir ficar parada ou me arrumar com calma
para ir à penitenciária. Calma essa que eu sabia que não deveria ter,
justamente por já estar em cima da hora. Porém, Agatha Ballard nunca se
preocupou em deixar os outros esperando. Na verdade, Agatha Ballard
nunca se preocupou com nada. Suspirei. Talvez essa ansiedade fosse uma
consequência de ter sido acordada daquela maneira, como se um asteroide
estivesse caindo bem em cima da minha casa. Ou talvez fosse simplesmente
por não saber o que destino tinha me reservado, naqueles trabalhos
comunitários de uma figa.
Entrei na suíte do meu quarto e a primeira coisa que eu vi foi o meu
maldito reflexo no espelho. Cacete, eu ainda estava destruída. Tudo bem,
tudo bem. Não era de todo ruim. Pelo menos, o semblante de cansaço já
tinha sumido, depois de eu ter dormido da hora que eu cheguei da delegacia
até agora. Mas, meu Deus, eu tinha que passar um reboco naquela cara,
antes de sair. Bufei. Culpa daquelas marginais. Meu rostinho ainda estava
roxo, em algumas partes. Balancei a cabeça, em reprovação. Pelo menos, eu
também tinha revidado. Ergui uma das sobrancelhas, sagaz, e, então, sorri
para mim mesma, me lembrando do salto fino da minha bota atingindo a
cabeça da outra.
Ninguém deveria mexer com Agatha Ballard.
Quase correndo, fui para debaixo do chuveiro. Bem que eu queria,
mas não daria tempo nem de ficar de molho na minha hidromassagem. Um
caos. Infeliz hora que a Mulher-Maravilha falsificada cruzou o meu
caminho. Já irritada por me lembrar de que eu a encontraria novamente,
passei o sabonete e os meus sais de banho caríssimos pelo corpo. Ao menos
cheirosa, dessa vez, eu iria aparecer naquele muquifo policial. Não que eu
me importasse em aparecer cheirosa para a Scott de merda. Claro que não.
Eu só era uma mulher vaidosa. Apenas isso.
Quando terminei o banho mais ligeiro de toda a minha vida, corri
para o closet. Encarei as milhares de peças de roupa e as centenas de pares
de calçados, tentando escolher o que fosse mais adequado para lidar com
uma corja de bandidos em uma penitenciária. Foi então que eu optei por
uma das mais simples alternativas que tinha ali. Peguei um vestidinho
branco, um trench coat rosa pink de manga longa, para colocar por cima, e
uma bota cano alto de cor abacate. Perfeito. Bem simples, do jeitinho como
eu queria, óbvio. Afinal, um muquifo policial não era nenhum desfile de
moda.
Suspirei, satisfeita com o que eu via no espelho, e, enfim, fiz uma
maquiagem bacaninha para esconder a pouca vergonha que tinham feito na
minha cara. Felizmente, os meus produtinhos eram maravilhosos. Não
demorei a encontrar a base ideal para fazer parecer que nunca levei socos de
vadias presas. Sorri para mim mesma. Gata. Por último, dei um jeitinho no
cabelo, que não parecia mais um ninho de cobras. Agora, a cobra era só eu
mesma. Fim da produção.
Quando saí do closet, lá estava Evangeline, colocando uma bandeja
de café da manhã sobre a minha cama. Seu rosto, no entanto, continuava
sem esconder a preocupação pela hora avançada no relógio. Bom, aquele
bichinho do nervosismo e da ansiedade continuava cutucando o meu peito.
Mas, pelo menos, o motorista das segundas, pela manhã, era um dos
melhores que nós tínhamos, justamente por segunda-feira ser o dia do
demônio. Seu pé era pesado no acelerador.
— Obrigada, Evinha, você é um amor... — sorri, sentando na cama
e tomando um gole do suco de laranja, um pouco menos estressada, depois
do banho e da make. — O James já está me esperando no carro?
Entretanto, no instante em que me calei, o semblante que ela me deu
foi algo como “querida, você não sabe?”
Franzi o cenho de leve.
— Agatha, seu pai cortou uma boa parte das suas mordomias,
incluindo as contas bancárias e o motorista... James não está aqui. Aliás,
estamos sem motoristas no momento. Seu pai saiu com o único que estava
disponível aqui. Acho que ele fez isso de propósito. Deu folga para os
outros. Por isso, te acordei daquele jeito, querida. Você precisa se apressar,
ou não vai chegar a tempo!
Puta que pariu!
Depois de praticamente um dia inteirinho dormindo, eu tinha me
esquecido de uma das partes mais importante: a tentativa do coroa idiota de
tornar a minha vida um inferno ainda maior.
Com o coração na mão, me levantei subitamente da cama, outra vez.
Puxei meu celular, que estava por ali, e olhei as horas. Já eram oito horas e
quinze minutos. Cacete. Eu já estava bem atrasada, levando-se em
consideração que ainda nem tinha saído de casa.
— Evangeline... — Em um sussurro perplexo, disse eu. — E agora?
Como eu vou chegar naquela pocilga?
Ela suspirou.
— Ah, querida, não sei... De ônibus, de táxi... Não sei. O que eu sei
é que você tem que sair já, antes que a sua situação fique ainda pior com a
justiça! Os policiais não vão tolerar atrasos!
Ah que ódio!
Era melhor que ela nem mencionasse a palavra “policial”, para eu
não ter uma síncope de pura fúria. Eu já estava farta daquela classe de
profissionais.
— Evangeline, eu não pego ônibus! — exclamei.
Ela balançou a cabeça em negativo, quase revirando os olhos.
— Então, dê um jeito, querida. Mas, vá logo para lá!
Merda, merda, merda.
Peguei meu celular para ver os aplicativos dos meus bancos. E
caralho. Meu pai tinha mesmo bloqueado todas, absolutamente todas, as
minhas contas. Velho chato do cacete. Eu não tinha noção do que eu ia
fazer. E o pior era que a hora estava correndo. Droga, droga, droga. Pensa,
Agatha, pensa. Talvez, se eu faltasse o trabalho comunitário daquele dia,
ou, talvez, se eu fugisse do país. Só que, merda, eu não tinha dinheiro para
ir na esquina, quanto mais fugir do país. Saco! Caminhei de um lado para o
outro do quarto, quase desesperada, ainda pensando, quando,
repentinamente, uma luz recaiu sobre a minha cabeça.
Ah, meu Deus!
Corri para o móvel ao lado do closet. Abri todas as gavetas, nervosa,
até encontrar na última delas, aquela que ficava bem pertinho do chão, o
meu baú do tesouro. Eu me lembrava que deixava alguma grana guardada
ali, em espécie, para quando eu precisasse. Sorri para mim mesma, por
pouco não chorando de felicidade, e, então, com toda a gana do mundo em
mim, abri a caixa, onde eu achava ter dinheiro, e...
Porra, cadê o dinheiro?
Enruguei a testa.
Tudo o que tinha ali era uma tremenda miséria. Pouquíssimas notas
de dólares que não conseguiriam bancar, de forma alguma, o padrão de vida
que eu estava acostumada a ter. Era melhor que eu nem contasse, para não
cair mortinha de desgosto no chão. Mas, se eu bem parasse para calcular
aquele dinheiro, em relação aos três meses sem cartão de crédito e débito,
aquilo ali só conseguiria pagar algum lanche, em um dos restaurantes mais
medianos de Las Vegas, e mal.
Droga, droga, droga.
Por que eu tinha que manter todo o meu dinheiro nas contas
bancárias?
Talvez fosse a preguiça de ir aos caixas eletrônicos.
Afinal, dinheiro vivo era tão vintage.
Argh.
Tudo o que eu fiz, entretanto, foi virar, angustiada, para a
Evangeline e dizer:
— Eva, se eu gastar esse dinheiro aqui com os táxis que eu terei que
pegar, durante os três meses sem mesadas, eu não vou ter nem como
comprar um salgadinho para lanchar, quando eu estiver por lá. E agora? —
perguntei de um jeito tão espremido quanto o meu próprio coração estava
no peito.
Eva, ainda me encarando preocupada, apenas respondeu, meio
receosa:
— Agora, você vai ter que pegar um ônibus, querida. É mais barato.

✽✽✽
Olha, sinceramente, eu ia pegar o corpinho da Xena Scott e...
Cortar em picadinhos!
A culpa era toda dela!
Quando, em toda a minha linda e rica vida de herdeira de duzentos
e cinquenta hotéis, eu poderia me imaginar, no meio do sol quente de Las
Vegas, esperando um ônibus, num ponto cheio de gente fedendo a sovaco?!
Ódio!
Debaixo do meu lindo trench coat rosa pink, eu já podia sentir o
suor escorrendo. Droga, eu tinha saído de casa tão cheirosinha. Bufando,
tirei, bruscamente debaixo do meu braço, o encarte das rotas dos ônibus, e o
abri de qualquer jeito. Sob os óculos escuros, tentei entender o que diabo
era aquilo. Aquela porcaria parecia grego. Franzi o cenho, virando o papel
de um lado para o outro. Eu não estava entendendo porra nenhuma.
Acho que ali estava dizendo que, primeiro, eu precisava pegar a
linha dois e, depois, mudar para a trinta e sete, e, depois, pegar a seis. E,
por fim, eu também tinha que pegar a dois, mas era um dois diferente do
primeiro.
Pera aí, como é que é?
Ah, merda, isso era ridículo! Por que em Las Vegas existiam
trezentas e sessenta e quatro mil linhas de ônibus? Por que não faziam
apenas uma que passava em todos os lugares? Seria muito mais fácil
assim!
Irritada, olhei de um lado para o outro. Ônibus e mais ônibus
paravam naquele ponto e rapidamente iam embora. Eu já estava com medo
de perder o meu, mesmo sem saber qual era o meu. Foi aí que eu reparei
numa senhorinha ao meu lado. Cheia de sacolas nas mãos, ela olhava para
os ônibus como se aquilo fosse uma espécie de ciência. Parecia realmente
entendida do assunto. Respirei fundo. Era para ela que eu iria recorrer.
Afinal, eu já estava catastroficamente atrasada. Não queria nem olhar o
relógio.
— É... Oi, querida... — chamei-a. — Você sabe qual ônibus passa na
Penitenciária da zona leste de Las Vegas?
Isso foi o suficiente para que ela virasse em minha direção e me
encarasse, de cima a baixo, com olhares levemente julgadores. Suas orbes
se cravaram fixamente nas minhas roupas. Era como se, na testa dela,
estivesse escrito que aqueles trajes não condiziam, nem um pouco, com um
ponto de ônibus. Ainda pensei em lhe oferecer um dos meus melhores
semblantes de poucos amigos, mas, no fundo, eu sabia que ela estava certa.
Aqueles trajes não combinavam com pontos de ônibus mesmo.
Aliás, eu não combinava com pontos de ônibus.
Era para eu estar sendo levada por um dos motoristas do meu pai!
— Penitenciária da zona leste de Las Vegas? — ela repetiu, enfim,
testando as palavras e parecendo pensar a respeito disso. Torci internamente
para que a velha me desse uma luz, quando, no momento em que um ônibus
parou por ali e algumas pessoas subiram nele, subitamente, exclamou. — É
aquele! — e arqueou as sobrancelhas. — Aquele ali passa lá perto! —
apontou. — Corra antes que ele vá embora!
Ah, meu Deus do céu!
É aquele?
Droga, droga, droga.
Eu não tinha experiências com esse tipo de coisa! Eu nunca corri
atrás da porra de um ônibus. Toda desajeitada, em meio a trench coats pink
rosa e botas cano longo de cor abacate, me apressei na direção do ônibus,
quando, repentinamente, vi a sua porta se fechar quase na minha cara. Ah
puta que pariu! Aquele motorista filho da puta só podia ter feito isso de
propósito. Simplesmente, começou a se afastar dali, enquanto eu,
desesperada, corria feito uma louca, batendo forte na lateral daquela lata de
sardinha.
Meu Deus, eu me sentia tão malditamente pobre fazendo aquilo. E
eu não era pobre. Eu era rica! Só estava sem mesada e cartões de crédito.
Merda, merda, merda.
Percebi, os olhares de todos, no meio da rua, me observando.
Alguns ainda riam da minha cara. Como se fosse uma grande piada, alguém
correr atrás de um ônibus, vestindo pink e cor abacate. Por acaso eu era
uma palhaça agora? Inferno. Bando de pobretões.
— Para o caralho desse ônibus! — gritei, expulsando através dos
meus pulmões, todo o ódio que eu sentia por ter me tornado o centro das
atenções da pior maneira possível.
Foi aí que, aparentemente, tendo um pouquinho de compaixão pela
minha situação ou se ligando no papelão que eu estava fazendo na frente de
dezenas de pessoas, o motorista, enfim, parou e abriu a porta.
Graças a Deus.
Ofegante, subi as escadas, quase fuzilando o cara com os olhos, que
também devolvia um semblante nada simpático por eu ter “atrapalhado a
sua rota”. Foda-se. Eu tinha que chegar logo na maldita penitenciária. Tirei
o trocado da bolsa, paguei a passagem e rolei a catraca. No entanto, quando
achei que fosse ter um minuto de paz para sentar e respirar... Não, não, não.
Eu estava redondamente enganada.
Tendo a certeza de que eu estava pagando por todas as vezes em que
fui uma escrota com qualquer pessoa da face da Terra, reparei no interior do
ônibus absurdamente lotado. Cacete. Não tinha um mísero assento vazio,
assim como também, por pouco, se eu fosse um tiquinho mais azarada do
que já estava sendo, não teria um único local para que pudesse ficar de pé
mesmo.
Só podia ser brincadeira.
Torcendo o nariz, encarei as pessoas que já estavam ali, se
segurando nas barras do ônibus. O mau cheiro de suor era real. Meu Deus
do Céu, eles saíam de casa sem tomar banho? Em puro nojo, fui tentando
passar por ali, me espremendo por entre as pessoas e os seus corpos que,
aparentemente, nunca tinham sido apresentados à antitranspirantes.
Repentinamente, entretanto, o ônibus deu uma arrancada, fazendo-
me segurar em uma das barras de ferro, mesmo que eu não quisesse. Olhei
de um lado para o outro. Droga. Era ali que eu tinha que ficar mesmo. O
único local possível. Na verdade, talvez nem esse local fosse possível. Mas,
fazendo um esforço para permanecer, consegui me encaixar numa pequena
passagem. Suspirei. Era isso ou ir pendurado no teto pelo lado de fora.
Passando calor, porque não tinha um mísero ar condicionado ali, o
ônibus começou a rodar por dezenas de partes de Las Vegas. Lugares que
eu nunca tinha colocado os meus pés. Minutos transcorreram sem que eu
conseguisse me orientar. Inferno, eu estava perdida. Senti um filete de suor
descer pela minha testa, provavelmente estragando parte da minha
maquiagem. No entanto, esse suor não era só de calor, era de nervosismo
também.
Eu não podia perder de vista a maldita penitenciária.
Em pé e já cansada, segurando nas barras para me equilibrar, eu
fitava as janelas dos dois lados. Era a minha tentativa de ver qualquer
prédio ou qualquer porcaria que se parecesse com uma penitenciária.
Porém, entre uma olhada e outra, algo estranho aconteceu. Comecei a sentir
alguém muito perto de mim. Perto até demais. Tudo bem que aquela infeliz
lata de sardinha lotada não permitia qualquer pessoa se distanciar de outra,
mais que alguns centímetros. Entretanto, aquilo ali estava me cheirando
esquisito. Esquisito demais. E eu não estava exatamente me referindo ao
mau cheiro de sovaco que não passava de jeito nenhum.
Era outra coisa.
Quando volvi o meu rosto para trás... Ah não. Lá estava a cara
daquele bandido! Era totalmente notório em seu semblante, as segundas, ou
melhor, terceiras intenções comigo. Um velho nojento, horrível e todo
suado sorrindo em minha direção, quase banguela, enquanto praticamente
se roçava em mim. Instantemente, comecei a arfar, sentindo cada pedacinho
da minha pele ferver de raiva.
Eu não suportava esse tipo de coisa.
Respirando fundo, para tentar não causar uma briga ali mesmo, fiz
um esforço para me afastar alguns centímetros e buscar algum espacinho
mais seguro, embora isso fosse quase impossível, dadas as circunstâncias.
Ainda consegui me encaixar numa pequena brechinha entre uma cadeira e a
porta traseira. Bufei de ódio. Por culpa daquele desgraçado, eu estava ainda
mais desconfortável dentro daquele ônibus torturante.
Meu Deus, eu nunca pensei que fosse desejar isso, mas eu só queria
chegar o mais rápido possível na penitenciária.
Entretanto, acabando com o meu restinho de paz e de sanidade
mental, notei quando, deliberadamente, o velho nojento, horroroso e
pingando suor, tornou a se aproximar de mim, literalmente se esfregando a
cada freada e impulso no maldito ônibus. Não era impressão. Eu não podia
estar ficando louca. E tudo se tornou ainda mais claro, para mim, quando os
seus quadris se inclinaram em minha direção.
QUE NOJO!
— Desencosta de mim, seu safado do caralho! — exclamei em alto
e bom som, já absurdamente puta com aquela pouca vergonha.
Isso foi o suficiente para que, todos ao nosso redor, girassem os
rostos para nós. Eu não estava nem aí! Dessa vez, eu não me importava de
ser o centro das atenções daqueles pobretões. Eu precisava expor aquele
maníaco dos infernos!
Com a cara mais deslavada do mundo, no entanto, o velho me fitou
fazendo pouco caso da situação.
— Quê? — Se fingiu de desentendido. — Eu não fiz isso não. Você
tá ficando doida, boneca — e sorriu de um jeito bem asqueroso. — O
ônibus está muito cheio, mocinha.
Não fez? Muito cheio?
Ah, vai se foder! Ele estava querendo fazer eu me passar por louca!
Expulsei o ar pesado dos meus pulmões e, mesmo com uma absurda
vontade de quebrar a sua cara, me virei, outra vez, para frente, desviando o
olhar dele. Ainda com os níveis de estresse mais altos que o Monte Everest,
tentei respirar fundo e contar até dez. Afinal, eu não merecia morrer de
raiva dentro de um maldito ônibus fedido. Se Agatha Ballard tivesse que
morrer de raiva, que fosse de maneira um pouquinho mais digna. E, assim,
tentei me concentrar novamente no caminho.
Porém, entretanto, contudo, todavia, bastou o motorista frear um
pouquinho mais forte, para que o velho escroto, mais uma vez roçasse os
seus quadris em mim. Como se não bastasse, ainda me fez sentir algo duro
ali por baixo.
AAA QUE ÓDIO! QUE NOJO! QUE RAIVA!
Sério, isso não era por causa ônibus lotado, era pura safadeza.
Pura safadeza!
Sem conseguir segurar toda a ira guardada em mim, apenas explodi,
antes mesmo que eu pudesse pensar racionalmente nas minhas ações.
— Seu filho da puta, eu disse pra você desencostar!
E simplesmente parti para cima dele, esganando o seu pescoço da
forma como eu conseguia.
Em um piscar de olho, aquilo saiu do controle. Pronto. Eu tinha
conseguido a façanha de criar e instalar uma confusão generalizada em mais
um lugar. Não bastasse a delegacia, agora o ônibus. Isso sem falar sobre as
outras vezes, ao longo da minha vida. Não que eu fosse briguenta. Claro
que não. Eu só não podia permitir que fizessem comigo o que bem
entendessem.
Afinal, que saco, eu era Agatha Ballard!
Em meio àquela lotação de pessoas suadas e pregadas, mãos, braços,
pernas que saltavam por todos os lados, confusão e gritaria, eu pulava no
pescoço do velho, enquanto aqueles ao nosso redor, na tentativa de separar
a nossa briga, na verdade, já começavam a se estapear. Um caos. Só notei,
porém, quando o ônibus parou bruscamente, as portas se abriram e alguém,
mais forte que eu, me puxou pela cintura para fora dali.
— Pera aí, me solta! — exclamei sem nem saber quem estava
fazendo aquilo.
Somente quando fui expulsa e enxotada numa calçada imunda,
percebi que aquilo tinha sido obra do motorista. Simplesmente, me largou
ali, com o seu semblante desaforado, bateu as mãos, como se estivesse se
limpando depois do seu trabalho sujo, ajeitou a roupa e me deu as costas,
voltando para o ônibus e fechando as portas.
Observei tudo aquilo paralisada, em puro choque.
Ah não... Ele estava me deixando mesmo?!
Arqueei as sobrancelhas, ao perceber o veículo voltando a se
movimentar.
— Volta aqui, seu desgraçado! Eu ainda não cheguei na
penitenciária!
Gritei, tentando correr atrás do ônibus. Porém, desta vez, o maldito
não parou para mim. Na real, ele arrancou dali muito mais rápido do que eu
conseguia raciocinar. Quando dei por mim, eu já estava plantada no meio da
rua de sabe-se lá onde, completamente perdida.
Inferno!
Olhei de um lado para o outro, desnorteada e ofegante pela briga.
Dezenas de pessoas caminhavam ao meu redor, mas nenhuma delas parecia
estar me vendo ali. Era como se estivessem todos presos às suas próprias
bolhas. Alguns apressados para trabalhar e outros para turistar em alguma
parte de Las Vegas. Rolei os olhos, absolutamente indignada e exausta com
tudo, até que, enfim, avistei, do outro lado da calçada, um coroa vendendo
lanches em um carrinho.
Suspirei, como se eu tivesse acabado de encontrar um pote de ouro.
Bom, se aquele era o seu ponto, era porque devia conhecer o local.
Apressada, me aproximei dele e perguntei:
— Ei, você sabe se aqui fica perto da penitenciária da zona leste?
Enquanto preparava um sanduíche bem gorduroso, ele me encarou
com a testa meio enrugada e disse:
— Penitenciária da zona leste? — ergueu uma das sobrancelhas. —
A penitenciária da zona leste fica a onze quarteirões daqui.
Arregalei os olhos subitamente.
— Onze quarteirões?!

✽✽✽
E não, não existia ônibus que passasse onde eu estava e percorresse
os onze quarteirões que eu precisava para chegar até às portas do inferno.
Eu queria assassinar alguém!
Na verdade, eu já estava passando pelo inferno antes mesmo de
chegar na maldita penitenciária, assim como também já me sentia exausta
antes mesmo de trabalhar. Era como se eu tivesse feito uma viagem
absurdamente longa até chegar ali. E realmente tina porque eu não morava
nem um pouco perto da penitenciária. Meus pés estavam uma verdadeira
bosta, depois de passar um tempão em pé, no ônibus, e de caminhar por não
sei quantos quilômetros, com aquela bota. Bolhas de calos se formavam,
mesmo que eu não quisesse perder a pose e, bem ereta, eu continuasse
andando, como se nada estivesse acontecendo.
Eu estava um lixo.
Sério.
Acabada.
Mesmo.
Mas...
Foi quando avistei a maldita entrada da penitenciária, que eu tive
ainda mais certeza de que não deveria baixar a guarda. Eu não permitiria
que a tal Scott me visse na merda outra vez, já bastava aquela madrugada
que nem deveria ser mencionada. Logicamente, eu não estava preocupada
em parecer bonita para ela. Óbvio que não. Bonita eu já era por natureza.
Eu apenas queria recuperar, pelo menos, um por cento da minha dignidade.
Era isso.
Assim, abri a bolsa, passando um lencinho para enxugar o suor, dei
uma leve retocada no gloss ali mesmo, debaixo da sombra de uma árvore,
ajeitei os cabelos, através do reflexo do meu pequeno espelhinho, respirei
fundo, e fiz o possível para caminhar novamente da maneira como eu
sempre fazia, sem descer do salto. Ergui o queixo, me revestindo com o
máximo de ânimo e coragem que eu conseguia, e fui.
De peito inflado, como se eu fosse imbatível e não estivesse
passando por ali para fazer trabalhos comunitários, cruzei o portão. Passei
pelos policiais sem problemas. Era como se eles já me conhecessem ou
estivessem esperando por mim. Entrei na recepção e, então, vi duas
atendentes atrás de um balcão, com telefones nos ouvidos e canetas nas
mãos, anotando alguma coisa. Respirei fundo. Certo, eu não sabia para
onde ir, nem o que fazer. Ainda girei sobre os pés, tentando reconhecer
qualquer policial que se parecesse com a Xena Scott, até que ouvi:
— Posso ajudá-la, senhorita?
Era uma das atendentes do balcão, falando comigo.
Porém, antes que eu pudesse responder, entre um olhar e outro,
avistei, enfim, o motivo do meu colapso e do recente fracasso da minha
vida. Scott estava de pé, ao lado de uma mesa, conversando com outros
policiais, enquanto encarava seriamente algo em um notebook. Parecia estar
trabalhando em alguma coisa importante, mas me viu no exato instante em
que o meu olhar pousou sobre ela. Notei quando ela endireitou a coluna e
deu um breve suspiro ao me ver. Usando óculos escuros no estilo aviador,
se aproximou de mim.

Zara

Lá estava a garotinha rica e problemática, em toda a aura de cabelos


loiros, olhos extremamente azuis, casaco rosa e botas verdes de salto. Como
alguém se vestia assim para um trabalho comunitário em uma unidade
prisional? Franzi o cenho de leve. Mesmo assim, estava bem vestida. De
longe, dava para perceber que suas roupas não eram compradas em
qualquer lugar. Talvez, aquele casaquinho rosa valesse uns cinco meses de
salários meus, ou mais. Era uma verdadeira herdeira de um complexo
hoteleiro. Ela não se encaixava ali. E, justamente por isso, parecia tão
perdida no meio daquela penitenciária, não fosse por me ver e reconhecer
um rosto familiar.
Olhei o meu relógio de pulso, enquanto percorria o caminho até ela.
O delegado tinha marcado o horário de início dos seus trabalhos para às oito
horas da manhã. Já eram nove e quarenta e cinco. E não, eu não tinha
percebido o avançar das horas somente naquele momento. Afinal, eu não
acordei de graça às sete horas da manhã. Desde que cheguei à penitenciária,
eu vi os minutos passarem. Felizmente, tinha trabalho importante a ser feito
ali. Na verdade, trabalho era o que não faltava. Assim, eu pude me entreter
até ela chegar. Apesar disso, eu gostava de comprometimento. A garotinha
precisava cumprir exatamente com o que ficou decidido em sua pena.
Tirei os óculos escuros e, encarando-a séria, falei:
— Está atrasada.
Isso foi o suficiente para que ela, bem debochada como de costume,
revisasse os olhos.
— Nossa, bom dia para você também.
Eu não estava ali para conversinha. Na realidade, eu nem queria
estar ali, com ela, sendo uma espécie de “babá”. Preferia estar trabalhando
em algo mais importante e mais relevante para a segurança da cidade, como
aquilo que eu via no notebook com os outros policiais, quando ela chegou.
Mas, de um jeito ou de outro, eu precisava cumprir as ordens. E, se o
delegado me designou para aquilo, era o que tinha de ser feito.
— Espero que chegue na hora, daqui pra frente — disse eu, quase
em tom de repreensão. — Não tenho todo o tempo do mundo disponível
para você. Isso aqui não é brincadeira, é trabalho.
Ela bufou, sem qualquer receio.
No fundo, bem no fundo mesmo, chegava a ser interessante a
maneira como ela não se dobrava a ninguém. A garota era segura de si. Isso
era uma verdade inegável. Algo que poderia ser uma qualidade ou defeito,
dependendo do ponto vista ou da situação. Para mim, mesmo que eu jamais
fosse dizer algo assim em voz alta, era, de um algum modo, instigante.
— Argh, que saco... Eu tive que vir em um maldito ônibus. E eu não
sei pegar ônibus. Não entendo nada disso. Enfrentei lotação, calor, um
velho nojento e um motorista escroto. Depois, ainda tive que caminhar onze
quarteirões até chegar aqui. Satisfeita, policial Scott? — cruzou os braços.
Ônibus?
Eu não tinha ideia do que uma riquinha como ela fazia em um
transporte público. Será que o papai cortou as regalias? Franzi o cenho de
leve. Mesmo assim, não quis me aprofundar nisso, nem entrar em detalhes.
Meu papel não era esse.
— A maneira como a senhorita chega até aqui, não me interessa. Só
peço que esse atraso não se repita, ou eu terei que levar o caso aos
superiores e a sua situação poderá ficar pior — adverti, o que foi o
suficiente para fazê-la encarar-me de cima a baixo em pura aversão.
Aqueles olhares que ela me dava, no entanto, não me intimidavam de forma
alguma. Para mim, não passava de birra de uma criança. — E que roupas
são essas? — questionei. — É assim que pretende fazer os trabalhos
comunitários em uma penitenciária?
Só vi quando ela arqueou uma das sobrancelhas para mim.
— Ué...? Quê que tem as minhas roupas? — cruzou os braços,
quase desafiadora. — Que tipo de trabalhos são esses que você vai me
colocar para fazer que eu não possa usar isso aqui?
Que tipo de trabalhos?
A garota ainda nem fazia ideia do que estava por vir. Talvez ela
tivesse uma síncope quando desse de cara com um dos vasos sanitários das
celas. Mas, uma coisa de cada vez. Não queria que ela desmaiasse ali
mesmo ou tentasse criar alguma confusão, antes que eu lhe mostrasse como
tudo funcionava e lhe explicasse sobre os seus serviços gerais de “faz-
tudo”.
— Ainda teremos que conversar sobre isso. Mas, já deixei separada
uma farda adequada para você.
— Farda?! — questionou no mesmo instante, torcendo o nariz em
puro asco. E, então, como se não bastasse, tirou o casaco e jogou em cima
de mim, sem se importar de estar agindo assim com uma policial. — E aí,
agora tá melhor?
Foi então que eu a vi por baixo do casaquinho rosa. Usava apenas
um vestido branco, absurdamente colado. Marcava cada parte do seu corpo,
deixando pouco espaço para a imaginação, e cobria somente até um pouco
abaixo da sua bunda. Curto.
Por dois segundos, eu não soube o que aconteceu comigo.
Estranhamente, o meu fôlego se tornou tão pequeno quanto o tamanho do
seu vestido. Por baixo do meu colete, eu já não sabia se o suor era do calor
daquele dia extremamente quente em Las Vegas ou de alguma outra coisa
que eu preferia nem pensar.
O fato era que a garota era bonita.
Muito bonita.
— Quê que foi? Tá olhando assim porque? — enrugando a testa,
desbocada como sempre era, perguntou.
Felizmente, ela não parecia ter percebido, em mim, qualquer coisa
além do que poderia ser razoável e normal. Sua pergunta foi uma clara
dúvida a respeito do que eu falaria sobre as suas vestimentas e do quanto
elas poderiam ser adequadas para o tal trabalho.
Ainda pisquei os olhos algumas vezes, desviando-os para outros
pontos da penitenciária, antes de encará-la outra vez, até que, enfim, falei:
— Nada. Vamos lá. — Apontei com a cabeça. — Tenho que te
mostrar como funcionam as coisas por aqui.
Indomável como ela era, apenas revirou os olhos para mim e, com
seu tão típico nariz em pé, passou na minha frente, fazendo-me acompanhá-
la, mesmo que quem tivesse que guiá-la fosse eu. A visão que eu tive,
porém, não foi proposital ou premeditada. Só dei por mim quando, de fato,
eu já estava observando. Meus olhos displicentes desceram,
preguiçosamente, pelo seu corpo, delineando cada curva, até se fixarem nos
seus quadris, por mais tempo do que deveriam.
Ela parecia uma modelo, esguia, com aquele andar pretensioso e
aquelas pernas longas. Na verdade, percebi isso desde o primeiro momento
que pus meus olhos nela, ao colocá-la de costas no carro, para revistá-la. A
garota chamava atenção por onde passava, fosse pelo modo como
caminhava ou pela cara de bosta que dava a todo mundo.
Droga.
De leve, balancei a cabeça em reprovação para mim mesma. Eu já
me conhecia suficientemente bem e tinha experiências de sobra, para saber
que isso não ia dar certo, se eu continuasse reparando no movimento dos
seus quadris.
Apenas mude a direção do seu olhar, Zara.
Cuidado para não se apaixonar

Zara

Tentando me desligar do monumento que a garota era, passei a sua frente.


Desta vez, indicando o caminho que deveríamos seguir, dobrei no corredor
principal da penitenciária, aquele que dava acesso aos demais
compartimentos do local.
— Olha só... — falei, chamando a sua atenção, ao parar no local
onde o corredor se dividia em outros. — Como a senhorita já sabe, eu vou
supervisionar o seu trabalho. Então, qualquer coisa que acontecer, qualquer
dúvida, ou qualquer possível problema, é a mim que deve recorrer, ok? Os
demais policiais e funcionários da penitenciária podem ajudar quando
necessário, mas, em geral, eles já têm outras ocupações aqui. Por isso, a
senhorita deve me consultar sempre que quiser saber ou resolver algo sobre
o seu trabalho. Eu sou responsável por você. Estamos entendidas?
Quase bocejando, cara de pau como ela era, enquanto encarava suas
unhas das mãos, impecavelmente grandes e pintadas, replicou:
— Tudo bem...
— Certo. Agora, olhe para cá. A administração da penitenciária fica
ali próximo à recepção, por onde você entrou. Porém, esse corredor, que
nós estamos agora, dá acesso às celas dos presos. Do lado direito, fica a ala
das mulheres — apontei. — E, do lado esquerdo, fica a ala dos homens.
Preste bem atenção, no que eu vou dizer, senhorita Ballard... — Encarei-a
firme, recebendo de volta seu olhar de pouco-caso. — Nunca,
absolutamente nunca, entre em qualquer uma das alas sem estar
acompanhada de um policial. Ou melhor, sem estar acompanhada por mim.
Nunca.
Não que isso fosse algum tipo de preconceito. Aquela penitenciária,
na verdade, nem era de segurança máxima. Os criminosos mais perigosos
de Las Vegas não estavam ali. Alguns deles nem eram pessoas totalmente
ruins, só fizeram escolhas erradas ou só decidiram se juntar com quem não
deveriam. Mesmo assim, eu não podia confiar em uma garotinha imatura,
como ela, caminhando livremente por ali, sem qualquer proteção.
Agatha não tinha experiência com isso. Ela não saberia lidar com os
detentos, nem se virar sozinha. Pelo pouco que eu já conhecia dela, a garota
parecia viver em um mundo cor de rosa, completamente diferente da
realidade com qual ela entraria em contato a partir daquele dia. Eu jamais
poderia colocá-la em risco ou permitir que ela mesma se colocasse em
qualquer tipo de risco, por mais que estivesse ali para cumprir uma pena.
— Isso quer dizer que você vai ficar na minha cola o tempo todo?
— Nem um pouco simpática, ela questionou.
— Isso quer dizer que eu preciso ter cuidado com a senhorita.
Então, sim, eu estarei na sua cola o tempo todo — repliquei.
Minha resposta foi o suficiente para ela me dar uma bela cara de
tédio.
— Vai vigiar o meu trabalho, a cada segundo, e todo passo que eu
der?
Não que esse fosse o sonho da minha vida, mas...
— Sim, eu preciso fazer isso, durante as horas de trabalhos diários
que foram estabelecidas na sua pena. Você está sob minha responsabilidade,
e, qualquer coisa que aconteça a você, a culpa recairá sobre mim.
Agatha, entretanto, revirou os olhos.
— Nossa, que excitante... Eu não vejo a hora de ter você ao meu
lado, até quando eu for mijar — Irônica, falou. — Cuidado para não se
apaixonar, quando eu precisar, sei lá, entrar no banheiro e tirar a calcinha.
A garota era impossível. Ela não tinha filtros e, sem se preocupar,
falava o que bem quisesse. Provavelmente, ninguém nunca a ensinou a
ponderar palavras. Suspirei, apenas balançando a cabeça de leve, para a sua
resposta nem um pouco diplomática, e, pigarreando a garganta, eu disse:
— Por falar em banheiro, por gentileza, me acompanhe.
Só notei quando ela ergueu uma das sobrancelhas para mim, após
ouvir aquela frase. Dessa vez, era eu quem tinha a pegue de surpresa. No
fundo, eu quis rir um pouquinho. Ah, qual é? Ela estava mesmo achando
que eu ia supervisionar até as suas necessidades fisiológicas no vaso
sanitário? Óbvio que eu não ia fazer isso. Mesmo assim, alguns protocolos
precisavam ser cumpridos sempre que ela chegasse ao trabalho. E era
exatamente sobre isso que eu precisava falar agora.
Quando paramos em frente ao local, expliquei:
— Esse é um dos banheiros femininos de funcionárias aqui da
penitenciária. A senhorita poderá usá-lo sempre que quiser, inclusive para
tomar banho. Todos os dias, deverá se dirigir até ele e trocar de roupa. A
farda, que eu deixei separada para você, já está aí dentro. Porém, antes de
tudo, assim que chegar ao trabalho, pela manhã, deve passar por mim, para
eu revistá-la. Não é permitido que a senhorita chegue de fora e entre em
qualquer compartimento da penitenciária sem antes eu fazer uma revista.
Ela bufou, cruzando os braços.
— Será que não se cansa de me tratar como se eu fosse uma
criminosa? Já não basta me obrigar a trocar de roupa e colocar uma farda
que, com certeza, deve ser horrorosa? Eu não sou uma marginal e não
escondo nada nas minhas roupas!
Suspirei.
Começou.
Eu tinha quase certeza de que ela não demoraria muito até querer
criar a primeira confusão. Afinal, o pavio da garota era curto, e eu não
precisava conhecê-la há tanto tempo, para saber disso. Agatha era
imparável, mas, talvez eu soubesse domar a fera, se não desse tanto
cabimento para os seus ataques de estrelismo.
— Cara senhorita Ballard, não é que eu esteja lhe tratando como
uma criminosa. Na verdade, isto é muito mais impessoal do que parece.
Qualquer civil que precise entrar nos compartimentos da penitenciária, deve
ser revistado. É regra, protocolo. Portanto, vire-se, vire-se... — indiquei
com o dedo, para que ela desse meia volta, e toquei em seus ombros, de
modo que girasse o corpo mais ligeiro. — Precisamos começar os trabalhos.
Então, tenho que revistá-la logo.
Só vi quando o seu peito subiu e desceu em uma respiração mais
pesada, e ela revirou as orbes em minha direção. Mesmo a contragosto,
ficou de costas e permitiu que eu começasse aquilo que precisava ser feito,
segundo as regras. Porém, ficar calada era algo que Agatha,
definitivamente, nunca conseguiria. Enquanto eu subia minhas mãos pelas
suas longas e magras pernas, exatamente na região onde os canos longos
das suas botas tocavam, ouvi quando ela disse:
— Sabe, eu estou começando a achar que você gosta de passar a
mão em mim...
Passar a mão?
Suspirei, balançando a cabeça em negativo. Mas, permaneci séria e
calada, fazendo o meu trabalho. Sem dar espaço para as suas gracinhas.
Talvez o seu ego fosse grande demais para achar que algo naquele
procedimento pudesse ir além do protocolo. Só porque tinha longas pernas
e chamava atenção de todo mundo à sua volta? Só porque seus quadris
eram charmosos e poderiam enfeitiçar qualquer pessoa? Só porque era
bem provável que, se eu não tomasse cuidado, a garotinha talvez pudesse
enfeitiçar a mim também? Espera aí. Pisquei os olhos, algumas vezes, me
dando conta.
Porra, Zara.
Tentando frear meu inconsciente, finalizei a revista rapidamente e
pigarreei a garganta, falando quase de uma maneira mais espremida do que
eu gostaria:
— Sua bolsa... — indiquei com o queixo, ainda me recompondo dos
caminhos pelos quais a minha cabeça quis me levar. — Agora, a sua bolsa
— E, dessa vez, consegui falar um pouco mais concisa.
Abri os seus pertences, como uma forma de me distrair. Meu
coração até batia um pouco mais forte, depois de cair na real. Respirei
fundo. Calma, Zara, calma. Você já é uma mulher adulta, não uma
adolescente. Sim, era isso. Eu já tinha trinta anos. Não vinte e dois.
Olhei o que havia ali por dentro. Celular, maquiagem, escova de
cabelo, escova de dente, creme dental, absorventes e... Spray de pimenta?
Franzi o cenho. Era realmente uma garota prevenida. Só não sabia se ela
preferia usar mesmo o spray ou o próprio braço, a contar pela última
experiência com as detentas, onde Agatha desceu a porrada em uma mulher
que dava duas de si mesma.
— Tudo certo — falei. — Pode entrar no banheiro e se trocar. Como
eu tinha mencionado, a sua farda já está aí dentro. Ao final, coloque sua
bolsa e sua roupa em um dos guarda-volumes do banheiro, e o tranque com
esta chave — entreguei em suas mãos. — Atenção para não perder a chave,
por favor.
Ainda sem simpatia, a loira me deu as costas outra vez e entrou ali.
Esperando-a do lado de fora do banheiro, girei sobre os meus pés,
voltando, enfim, ao meu estado normal. Ou, pelo menos, eu queria achar
que estava tudo bem. Minha cabeça, entretanto, ainda martelava, vez por
outra, sobre o tanto que eu tinha reparado na garota, mesmo que
inconscientemente.
Há tempos eu não prestava atenção em alguém, dessa maneira.
Foi estranho.
Mesmo assim, eu ainda a aguardei, e aguardei, e aguardei... Eu sabia
que mulheres demoravam para se arrumar, porque eu era uma delas, mas,
meu Deus, Agatha parecia bater o recorde nesse quesito. E olha que era
apenas uma farda composta por blusa, calça e tênis. Nada demais. Nenhuma
peça de roupa que a fizesse ter algum problema para vestir.
Olhei meu relógio de pulso e encarei, outra vez, a entrada do
banheiro, ponderando se deveria entrar ou não, para saber se algo
aconteceu. Quando, por um segundo, pensei que realizaria o pesadelo de
Agatha ao ficar na sua cola até quando estivesse mijando, a vi finalmente
aparecer na porta.
E não, a sua cara não estava nada boa.
Eu nem precisava ser adivinha para saber que ela não tinha gostado
nem um pouco dos seus novos trajes. O fato, entretanto, era que a garota
conseguia ficar bonita de qualquer jeito, até usando aquelas roupas ou
mesmo um saco de batatas.
— Ah, você só pode estar de brincadeira, né? Sério que você me fez
tirar a minha roupa maravilhosa para usar isso aqui?! — apontou para si
mesma, com desgosto, franzindo bem a testa. — Eu deveria te processar por
humilhação!
Processar por humilhação?
Eu quis rir. Porém, me mantive impassível, como de costume.
— Senhorita Ballard... Você está... — E aí, mesmo sem querer, dei
mais uma olhadinha. De cima a baixo. As pernas, outrora de fora, agora
estavam marcadas pela calça jeans justa. Isso sem falar nos tais quadris, tão
evidentes quanto antes. A blusa, apesar de frouxa, ainda conseguia
acompanhar as curvas que ela tinha. E, bem, a cor azul da farda combinava
perfeitamente com os seus olhos. Eu não estava enganada quando dizia que
Agatha ficava... Muito bonita de qualquer jeito. Pigarreei a garganta. Tudo
bem, Zara, já chega. Pare de olhar, mulher. — Você está muito bem nessas
roupas. Por favor, me acompanhe — E já fui logo caminhando para o outro
lado.
Era melhor assim.
Melhor fugir de tudo o que fosse o meu calcanhar de Aquiles.
Mesmo assim, ainda a ouvi praguejando atrás de mim, rebelde como
ela era:
— Muito bem...? Como eu posso estar muito bem nessas roupas? —
bufando, ela dizia. — Palhaçada isso!

Agatha

Eu ainda me arrependia amargamente de ter saído naquela maldita


noite para aquela infeliz festa. Não fosse isso, agora eu não precisaria estar
vestindo essas roupas horrorosas, nem estaria em uma penitenciária
fedorenta, e muito menos teria que lidar com uma policial cujo senso do
ridículo era péssimo. Honestamente, depois de todo esse rolê louco e
aleatório de trabalhos comunitários por seis meses, eu pensaria umas dez
vezes antes de sair de casa para qualquer festa.
Mesmo a contragosto, segui a mulher. Em meio a passos pesados de
quem caminhava por pura pirraça, acompanhei-a pelo corredor principal da
penitenciária, outra vez, até dobrarmos naquilo que eu me lembrava ser o
caminho em direção à ala das mulheres detentas. Ainda percorremos um
longo pedaço. Porém, antes de chegarmos à área das celas, vi quando Scott
parou em frente à uma salinha. Parecia uma despensa, ou sei lá.
Sem me dizer nada, abriu a porta, entrou lá e demorou alguns
instantes para sair. Confusa e sozinha no meio do corredor, franzi o cenho e
olhei de um lado para o outro. O que essa doida estava fazendo? Porém,
quando pensei que, graças a Deus, o demônio tivesse a carregado de volta
para as profundezas do inferno, ela apareceu de novo. Desta vez, segurando
um esfregão de chão e um balde com um monte de coisas de limpeza.
Cerrei os olhos em sua direção e fiquei ainda mais confusa quando
ela ergueu os braços, estendendo aquela merda toda no meu rumo.
— O que isso significa? — questionei.
— Significa que este será o seu serviço, senhorita Ballard — De
pronto, ela respondeu, em toda a sua seriedade patética. — Por gentileza,
segure seu material de trabalho — e ergueu aquilo novamente para mim.
Calma.
Enruguei a testa. Coração começando a acelerar.
— Como é que é? Eu não estou entendendo... — disse quase
entredentes, tentando forçar um pequeno sorrisinho, como se aquilo fosse
algum tipo de brincadeirinha de mau gosto.
Notei quando ela suspirou.
— Senhorita Ballard, os seus trabalhos comunitários serão definidos
como uma espécie de “faz-tudo”. Você vai fazer tudo o que eu mandar. E,
para começar, vai fazer serviços. Limpeza de celas, de banheiros, de áreas
administrativas, entre outros.
Pera aí.
Não.
Não, não, não.
Eu estava ouvindo aquilo mesmo? Era real?
Comecei a sentir uma falta de ar, um calor, uma coisa ruim.
Meu Deus, eu ia morrer, eu ia ter uma crise de pânico, eu ia
desmaiar.
— Quê...?! Você... Você... — Já ofegante, e absolutamente chocada,
eu tentava achar a melhor palavra que a classificasse, até que, enfim,
disparei. — Você é uma bruxa! A Lilith, a mulher do diabo! — exclamei
sem medo. — Eu não vou fazer isso não! Eu nem sei fazer esse tipo de
coisa. Pode me arranjar um outro tipo de trabalho comunitário que seja
melhor do que lavar privadas — cruzei os braços. — Isso é uma ordem!
No entanto, percebi quando ela me fitou com olhares muito mais
sérios e intensos que antes. Quase engoli a seco. Quase. Eu ainda estava
puta demais para que qualquer coisa pudesse realmente me intimidar.
— Senhorita Ballard, primeiro, quem dá as ordens, aqui, sou eu.
Segundo, eu sugiro que baixe o seu tom de voz para falar comigo e que me
chame apenas pelo meu sobrenome, antes que a sua situação piore por
desrespeito.
Ainda mais indignada, sem acreditar nas palavras que ela dizia, abri
e fechei a boca umas três vezes, até tornar a falar:
— Desrespeito...? Desrespeito?! — Disparei outra vez. — Quem
está praticando algum desrespeito aqui é a senhora, policial Scott! — E olha
que eu ainda tive muito equilíbrio psicológico para lhe chamar de senhora
e de policial Scott, porque a minha vontade mesmo era de lhe chamar de
filha da puta. — Está me colocando para fazer um trabalhando degradante e
humilhante! Eu não vou fazer isso!
Sua boca se tornou uma fina linha rígida, enquanto me encarava.
— Não há nada de humilhante em fazer um trabalho de limpeza.
Mas, já que é assim que a senhorita quer... — tirou o celular do bolso. —
Vou avisar aos superiores — clicou em algo e colocou o aparelho no
ouvido. — Sabe-se lá o que vão fazer com você. Provavelmente, terá que
cumprir a pena em detenção de seis meses a um ano.
Calma.
Deten...? Deten-o-quê?
Que saco!
Então, era isso. Eu teria que escolher entre a bosta e a merda.
— Pera aí, espera! — ergui as mãos, em uma quase rendição, e
respirei fundo, tentando reunir todo o meu sangue de barata para falar
aquilo. — Eu não quis dizer que não faria de jeito nenhum... — pigarreei a
garganta, me controlando. — Só pedi para que a senhora me colocasse em
um outro tipo de serviço comunitário.
Ela, no entanto, permaneceu na sua inabalável e irritante postura de
profissional certinha.
— No momento, o único serviço a ser executado é esse, senhorita
Ballard. E aí, vai querer? — ergueu uma das sobrancelhas. — Ou eu posso
comunicar aos superiores?
Ah que saco!
Mulherzinha insuportável.
Bufei.
— Você deve estar adorando isso, não é? — fitei-a, cerrando os
olhos, e, já sem paciência, puxei das suas mãos o esfregão e o balde cheio
de coisas. — Vem logo me mostrar o que eu tenho que fazer, antes que eu
desista de vez e passe o resto da vida presa por desacato à autoridade.
Ainda vi quando um pequeno, milagroso e quase imperceptível
rastro de um sorrisinho quis cruzar os seus lábios, mas ela conteve. Idiota.
Eu sentia o quanto ela gostava de me desarmar e mostrar quem, de fato,
mandava ali. Imbecil. Mesmo assim, apesar de irritada, segurei o insulto e a
acompanhei, quando ela passou à minha frente.
Lá estava ela, já caminhando tranquilamente, depois do seu trabalho
sujo.
Contendo os meus níveis de estresse, me permiti ser guiada por
Xena Scott outra vez. À medida que nos aproximávamos do final do
corredor, pude começar a ver as primeiras celas da ala das mulheres
detentas. Era um lugar imenso, realmente enorme. Eu nem conseguia contar
a quantidade de celas que haviam ali. Quase como um galpão. Mas, estava
praticamente vazio. As celas que ainda tinham detentas ficavam mais ao
fundo. Nas outras, eu via apenas funcionárias da limpeza.
Um breve arrepio quis me perpassar. Devia ser realmente horrível
ter a liberdade cerceada e passar anos e anos dentro das grades, por mais
que as pessoas que estivessem ali já fossem julgadas e consideradas
culpadas pela justiça. Eu não conseguiria me imaginar vivendo assim, nem
mesmo por um mês. Seis meses ou um ano, então, era algo completamente
inimaginável para mim.
“Então, trate de seguir à risca às ordens da policial”, disse o meu
inconsciente tagarela.
Argh. Revirei os olhos para ele.
Era muito difícil não querer ser presa e, ao mesmo tempo, sonhar
em assassinar uma policial de meia tigela.
Subitamente, no entanto, vi quando Scott parou em frente a uma das
celas e, ao destrancar as grades, disse:
— Bom, como eu já expliquei, a senhorita só pode entrar na área das
celas acompanhada por um policial, que, de preferência, seja eu. A limpeza
nas cadeias sempre acontece no momento de lazer dos presos, de refeição,
ou quando estão realizando algum trabalho de reinserção social. Agora, por
exemplo, as detentas estão no horário de lazer do período da manhã. Nós
fazemos uma espécie de rotatividade. O primeiro grupo vai e, na volta, é a
vez do segundo, que são justamente aquelas detentas que estão nas celas
mais ao final da ala. Enquanto isso, como pode ver, as funcionárias fazem
limpeza nas cadeias vazias. Hoje, a senhorita ficará responsável por esta.
Nossa, simplesmente o meu maior sonho de vida.
Rolei os olhos.
— E o que eu vou fazer exatamente aqui? — questionei quase
entredentes, enquanto, com nojo, observava aquela cela imunda ao meu
redor. Bom, não sei se você sabe, mas eu não tenho nenhuma experiência
com limpeza. Nunca nem toquei no cabo de uma vassoura. Os empregados
contratados pelo meu pai fazem tudo na minha casa.
— Para tudo há uma primeira vez, senhorita Ballard — suspirou ela.
— E você pode começar por aqui... — passou a minha frente, abrindo uma
porta dentro da cadeia. — Este é o banheiro. Quero ver tudo limpinho.
Quero ver tudo limpinho? Quero ver tudo limpinho é uma ova!
Saco!
Quando entrei ali, senti o maldito cheiro impregnado e vi as paredes
e o chão imundos, minha barriga se revirou. Puta que pariu. Estava podre
demais. Talvez eu nunca tivesse pisado em um banheiro tão sujo quanto
esse. Nem aquele fedido da delegacia estava tão ruim assim.
Que ódio! Maldita hora que eu decidi ir naquela festa!
— E o que eu vou fazer aqui? — Indignada, perguntei. — Eu nunca
lavei um banheiro!
Novamente, ela suspirou, e, então, com naturalidade, como se fosse
a coisa mais óbvia do mundo, Scott me encarou, falando:
— Você já tem um esfregão e um balde completamente cheio dos
materiais necessários para a limpeza de um banheiro. Sei que você é uma
garota inteligente, senhorita Ballard — Me deu uma piscadinha de olho
levemente irônica. — Basta começar.
Saco!
— E você? Vai fazer o que? — Com desdém, perguntei. — Vai ficar
aí de guarda, me observando o tempo todo?
— Sim, como eu já expliquei, é isso o que eu vou fazer. Não posso
deixá-la completamente sozinha nas alas dos detentos, por mais que não
estejam aqui no momento. Ficarei observando o seu trabalho, até você
terminar ou até eu ter certeza de que a senhorita não vai nenhuma besteira.
Expirei forte o ar dos pulmões.
Ou até eu ter certeza de que a senhorita não vai fazer nenhuma
besteira... Blábláblá...
Rolei os olhos. Eu merecia mesmo.
O que ela estava achando? Que eu ia botar fogo naquela maldita
penitenciária?
Não seria por falta de vontade. Claro que não. Só que eu não ia fazer
isso.
Já irritada, me virei de volta ao banheiro, encarando novamente todo
aquele pesadelo. Tudo ali estava absurdamente imundo e podre. Por onde
eu ia começar? Suspirei. Eu não fazia ideia. Tinha tanto sujo que talvez eu
precisasse de umas duas vidas para deixar tudo limpinho, como a Mulher-
Maravilha falsificada queria. Inferno. Balançando a cabeça em negativo,
puta comigo mesma por ter saído naquela noite infeliz, fui até o vaso
sanitário.
Quando abri a tampa...
— Caralho! — exclamei, arqueando as sobrancelhas.
Aquela merda, literalmente aquela merda, estava totalmente
entupida. A água suja, misturada com bosta, quase chegava à borda do
vaso. Nojo! Que diabos aquelas presas comiam para fazer tanto cocô
assim? Um jaburu? Socorro. O suco de laranja que Evangeline fez para
mim, pela manhã, quis subir pela minha garganta. Por pouco, não coloquei
tudo para fora.
Com a testa franzindo em puro asco, tirei de dentro do balde um par
de luvas, porque obviamente não ia tocar em nada com as minhas
maravilhosas mãozinhas, coloquei-as, para me proteger dos germes que,
com certeza, tinham ali, e, tampando o nariz, tentei dar a descarga, na ilusão
de que aquele monte de bosta descesse. Porém... A realidade foi totalmente
diferente da expectativa. O vaso apenas encheu ainda mais de água, e não
teve forças para empurrar tudo cano abaixo.
Cacete.
Quem fez um crime daquele?!
— Olha só, isso daqui tá entupido demais! — Irritada, e oferecendo-
lhe os meus melhores olhares de fúria, bradei para a Scott de uma figa, que
permanecia me vigiando na porta do banheiro. — Não vou conseguir limpar
essa porcaria enquanto estiver assim. Nem a pau, eu coloco a minha mão
dentro desse negócio!
Notei quando seus ombros subiram e desceram em uma respiração
mais pesada.
— Senhorita, o desentupimento do vaso sanitário faz parte da
limpeza — cruzou os braços frente ao peito. — Não sei se notou, mas há
um desentupidor aí dentro do balde. Pode usá-lo, para auxiliá-la nessa
operação.
Operação? Argh. Por que ela tinha que falar sempre nesses termos
de policial?
Com vontade de mandá-la para o inferno, vasculhei os materiais
dentro do balde, até pegar o maldito desentupidor. Eu nunca tinha feito isso
em toda a minha, meu Deus. Não sabia nem como manusear direito. Peguei
naquele negócio, encarando-o como se fosse um extraterrestre, e, de alguma
maneira, enfiei-o dentro da privada.
Porém, quando tentei movê-lo para alinhar qualquer merda que
fosse, o troço parecia ter grudado lá por dentro. Porra... Compraram um
desentupidor bom mesmo, porque ele pregou lá que era uma beleza. Só
que... Droga... Agora eu já não conseguia fazer mais nada. Ele estava
malditamente empurrado até embaixo
Tentei de um jeito, tentei de outro.
Fiz mais pressão para puxá-lo, até que...
— Ai, porra! — senti uma das minhas unhas quebrar dentro da luva.
QUE ÓDIO!
Praguejei palavrões sem fim, até virar bruscamente meu rosto para a
Lilith e disparar:
— Será que tem como você vir me ajudar aqui?! Além da bosta
entupida, agora é o desentupidor que está emperrado!
Encarei-a com os olhos queimando de raiva, e, então, ela
simplesmente respondeu:
— Este é o seu trabalho, senhorita Ballard. O meu é ver você
trabalhar.
Ah, mas eu queria fazer picadinho da Xena Scott!
— Olha só, você sabe quanto eu paguei por essas unhas de
porcelana? Uma fortuna! E esse maldito trabalho já está quebrando todas
elas! — bufei. — Será que você não consegue ser uma pessoa agradável, ao
menos uma vez na vida, e vir aqui me ajudar? — supliquei, quase sem
fôlego, depois de despejar todas essas palavras com tanto ódio.
Scott me encarou de cima a baixo. No entanto, mesmo que seu olhar
tentasse permanecer sério, como era de costume, aos poucos, pude começar
a vislumbrar o rastro de quem estava considerando realmente a
possibilidade de ajudar. Ainda vi quando seus ombros subiram e desceram
em uma respiração mais pesada, até que, quase revirando os olhos, se
aproximou de mim.
— Tudo bem, vamos lá — disse ela. — Segure o cabo do
desentupidor. Vou ficar atrás de você, segurando também. No “três”, nós
puxamos — Foi aí que senti quando se posicionou bem às minhas costas.
Alguma coisa, quase instantânea, porém, aconteceu. O calor do seu corpo
esquentou o meu. E, então, eu engoli seco, no momento em que notei
estranhamente a minha frequência cardíaca mudar. Eu nem sabia a razão
disso. Raramente eu sentia esse tipo de coisa. — Atenção... — Sua voz
soou tão próxima ao meu ouvido e sua respiração quase alcançou a minha
pele. — Um... Dois... Três!
Puxamos ao mesmo tempo.
Mas... Não deu certo.
— Precisamos de mais força, senhorita Ballard... — Ainda atrás de
mim, ela falou. Seu timbre era tão... Bonito. Tão intenso, mesmo quando
falava baixinho. — De novo. Um... Dois... Três!
Puxamos ao mesmo tempo.
Mas... Outra vez, o desentupidor nem se mexeu.
Droga.
— Mais força, senhorita Ballard, mais força — tornou a falar bem
pertinho do meu ouvido. Dessa vez, sua respiração se espalhou pelo meu
pescoço, aquecendo alguma coisa por ali. Senti até o cheiro do seu hálito
mentolado. Engoli seco de novo. Que saco. Eu só podia estar muito na seca.
Com certeza, era um reflexo da transa que eu não tive, porque fui presa por
ela. Eu me recusava a sentir esse tipo de coisa com a Xena Scott. — Um...
Dois... Três!
Agora, porém, a força que nós colocamos foi tão grande que, não
somente o desentupidor voou fora da privada, mas, antes de nos darmos
conta, nós também já tínhamos nos desequilibrado, feito duas idiotas, e
caído no chão imundo daquele banheiro. Ela por baixo e eu por cima do seu
corpo.
Nunca imaginei que eu fosse ficar tão perto dela daquele jeito, mas,
por obra do destino ou do demônio, o impacto da queda deixou nossos
rostos próximos demais. Foi, então, que eu pude perceber coisas que ainda
não tinha visto. Por exemplo, seus olhos castanhos tinham pintinhas verdes.
Eram bonitos... Porém, não foi só isso o que eu notei. Esses mesmos olhos
castanhos, com pintinhas verdes, desceram dos meus e foram na direção
certa da minha boca. Se fixaram nela por mais tempo do que me parecia
normal.
Só que... Eu também olhei para a sua.
E, mesmo que eu não quisesse admitir, Xena Scott era gata pra
caralho.
A Xena pegava mulher?

Zara

Porra, Zara.
Já não bastava reparar nos quadris da garota, nas suas pernas
longas e no seu andar pretensioso? Ou no modo como ela conseguia ficar
bonita vestindo qualquer roupa? Ou no quanto ela era realmente atraente,
apesar de louca e de jovem demais? Será que, agora, além de tudo isso,
você também tinha que ficar reparando na boca dela, como se tivesse
voltado a ser uma adolescente ou, pior, como se fosse aquela policial sem
medo das consequências?
Merda.
Agatha era quase como um presente de grego, um cavalo de Tróia.
Por fora, bela. Mas, por dentro, podia estar carregando a minha ruína.
Mesmo que me preocupar com esse tipo de coisa parecesse uma
grande bobagem, eu tinha os meus motivos. Eu sabia que os sinais dados
pelo meu corpo eram suspeitos demais. Perigosos. Essa menina bonita -
bem cuidada e bem criada, quase como se tivesse sido realmente embalada
para presente, mas, ao mesmo tempo, imatura e ingênua demais, como se,
no fundo, pedisse para que alguém a ajudasse a caminhar porque sozinha
ela não conseguiria - poderia acabar com a minha vida e com a minha
carreira.
Eu já tinha me metido em confusões o suficiente, por pensar mais
com a boceta do que com a cabeça, para saber que todos aqueles sinais que
o meu corpo me dava eram um claro aviso de que eu deveria parar, agora
mesmo, com o que quer que fosse. Tomar o máximo de cuidado possível,
era tudo o que eu precisava fazer, para não repetir os erros do passado.
Assim, piscando os olhos algumas vezes e pigarreando a garganta,
eu me afastei dela.
— É... — Fui me levantando. — Precisa de ajuda? — e ergui uma
mão para ela.
A loira ainda encarou os meus dedos estendidos em sua direção, por
alguns instantes. Era como se ela ainda estivesse naquele mesmo universo
paralelo pelo qual eu caminhei, segundos atrás. Seu corpo estava ali, mas
sua cabeça parecia viajar por um lugar completamente diferente. Era
esquisito, muito esquisito. Eu não conseguia conceber a ideia de que o
mesmo que aconteceu comigo também estava acontecendo com ela. Claro
que não. Lógico que não. Isso não tinha cabimento. Isso não estava dentro
das possibilidades reais da vida. Aliás, nem mesmo o que eu senti tinha
cabimento.
Agatha, provavelmente, só se assustou com a queda.
— Hum? Precisa de uma mãozinha aí? — tornei a perguntar.
Então, como se simplesmente tivesse retornado ao mundo real,
suspirou, e, em um piscar de olhos, seu semblante de puro nariz empinado
estampou o rosto outra vez. Ela já nem parecia mais aquela garota perdida
ao me olhar. Essa era a Agatha Ballard que eu conheci. A riquinha e
mimada herdeira de um complexo hoteleiro em Las Vegas.
— Não, não preciso, eu mesma me levanto sozinha — disse ela,
erguendo-se do chão, em toda sua aura de autossuficiência e presunção.
— Bom, acho que o vaso desentupiu... — Ainda dei dois passos
para me aproximar dele. Vi que toda a água suja já tinha descido.
Felizmente. Aquilo ali estava mesmo uma nojeira. — Agora, a senhorita
pode continuar o trabalho de onde parou.
Notei quando a loira me deu um belo semblante de tédio, e, girando
as orbes, sem me dizer mais nada, se virou por ali, indo em direção ao balde
cheio de materiais de limpeza. Aproveitei para voltar ao meu posto na porta
e fiquei a observando. Não que eu gostasse disso. Na verdade, eu ainda
queria estar nas ruas, fazendo algo mais produtivo pela segurança da cidade.
Mas, já que o delegado designou aquela tarefa para mim, pelos próximos
seis meses, eu não tinha escolha. Deveria apenas obedecer às ordens.
Ainda vi quando a garota tirou todos os produtos de dentro do balde,
encarando as suas embalagens e lendo o que tinha ali, como se fosse a
primeira vez que pegava em desinfetantes e águas sanitárias.
Provavelmente, era mesmo a primeira vez. Seu cenho franzido em uma
quase consternação por estar fazendo aquilo e seu histórico de dondoca
gritavam sobre a sua completa inexperiência. Mas, ela era uma garota
inteligente e esperta. Eu sabia que era. Pude perceber isso, mesmo que não
em situações tão saudáveis. Por exemplo, no episódio em que ela tentou
enfiar a mão na cara da detenta por não aceitar que fizesse com ela o que
bem entendesse. Somente uma pessoa esperta e inteligente não aceita certas
imposições alheias sobre si.
Logo depois que terminou de analisar tudo, jogou todos os
materiais, que estavam no balde, em um cantinho do banheiro, encheu-o de
água e começou a jogá-la pelo chão do banheiro. Em seguida, pegou o
sabão, espalhou por todos os lados e com o esfregão iniciou a limpeza.
Mesmo inconsciente, um pequeno e quase imperceptível sorrisinho de
admiração quis surgir. Eu sabia que ela estava fazendo tudo aquilo na força
do ódio, mas eu não disse que ela sabia fazer? Só bastava querer e
começar. E, o que não soubesse, aprenderia com o tempo e a experiência do
trabalho. Mesmo assim, eu ainda quis arriscar em dizer:
— Senhorita... Não seria melhor continuar pelo vaso e depois limpar
todo o resto?
Foi aí que, erguendo os olhos nem um pouco simpáticos para mim,
arredia, ela disse:
— Olha só... Não sou eu quem precisava fazer isso? Ou você quer
fazer no meu lugar? Se quiser, fique à vontade — ergueu uma das
sobrancelhas. — Mas, se for eu a continuar aqui, então deixa eu fazer essa
merda do meu jeito — Determinada, concluiu.
Opa, não estava mais ali quem falou.
— Tudo bem, senhorita Ballard.
Mais uma vez, aquele sorrisinho quis surgir, mesmo que eu o
segurasse bem dentro de mim. No fundo, entretanto, a garota ainda
conseguia ficar bonita em meio àquela determinação odiosa de quem estava
louca para me assassinar.
E, por isso, quem devia estar ficando louca era eu.
Tentando pousar meus olhares mais profissionais sobre ela,
continuei a observá-la durante todo o seu trabalho. Apesar das caras e bocas
de puro nojo, dos suspiros de estresses enquanto esfregava o chão e o vaso
sanitário, e dos palavrões que ela sibilava sempre que uma ou outra unha
quebrava, ela estava conseguindo fazer. À sua maneira, mas estava. Era
totalmente perceptível a sua falta de prática e habilidade. Se molhava mais
do que o próprio banheiro e quase não pegava direito nos cabos do esfregão
e do rodo. Passava mais tempo tentando desvendar e decidir qual seria o seu
próprio passo, naquela aventura desenfreada na penitenciária, do que
propriamente fazendo. Mas, estava conseguindo.
Por vezes, escorregava mesmo que estivesse usando tênis. Por
vezes, eu me divertia, não ao meu bel-prazer, mas por achar engraçado o
seu jeito totalmente afobado e, ao mesmo tempo, desinibido, para cumprir
as tarefas. A garota era uma figura. No entanto, em nenhum momento eu
me permitia sorrir. Apenas continuava ali, com os meus melhores e mais
atentos olhares, supervisionando cada passo seu. Levou quase quarenta
minutos para terminar o banheiro, que realmente estava imundo, e, depois,
mais algum tempo para limpar a própria cela. Passou a vassoura, o pano,
tirou as teias de aranhas que havia por ali, e, claro, não gostava nem um
pouco quando eu tentava opinar sobre o seu trabalho ou sugerir para que
fizesse de outra maneira.
Agatha se apoderou daquilo e, nariz em pé como era, não permitia
que mais ninguém metesse o dedo no que achava que era o certo. Pelo
menos, nisso, eu ainda conseguia encontrar alguma qualidade. Afinal,
ninguém era cem por cento bom ou cento por cento ruim. Todo mundo era
uma mistura de qualidades e defeitos. E essa lógica parecia também
funcionar com aquela garota. Apesar de não aceitar intromissões nos seus
serviços, isso só mostrava que ela sabia se virar sozinha, que aprendia
rápido, e que não se esquivava das suas responsabilidades, mesmo que não
gostasse, quando sabia o que precisava fazer. Porém... Talvez eu já estivesse
reparando demais, mais uma vez, e fazendo considerações demasiadas
sobre a menina, mesmo que, agora, não tivesse nada a ver com o seu corpo
ou o seu rosto. Ainda assim, era arriscado. Arriscado e suspeito, porque eu
sabia que, há tempos, não prestava tanta atenção em alguém.
O pior era que não tinha como eu não prestar atenção, já que o meu
serviço era exatamente esse: não tirar os meus olhos dela, durante os cinco
dias úteis de trabalho da semana. Realmente, uma maravilha para quem já
tentava refrear certos tipos de pensamentos. Obrigada delegado Conway.
Eu deveria agradecer a ele, para não dizer o contrário.
O fato era que somente depois de uma hora, ou pouco mais do que
isso, nós conseguimos sair daquela cela e permitir que as detentas
voltassem para lá. Em uma hora, funcionárias com experiência já teriam
limpado, pelo menos, umas três celas, mas, considerando que Agatha nunca
tinha feito algo assim, talvez aquilo já estivesse de bom tamanho. Sua
limpeza também não tinha ficado uma grande maravilha, mas, para quem
não pegou em uma vassoura desde que nasceu, já era um bom começo. Ao
final de tudo, quando terminou de organizar os materiais dentro do balde
novamente e o suor já escorria pelo seu pescoço vermelho de calor, ela
parecia exausta. E olha que o trabalho do dia não tinha acabado. Era quase
hora do almoço, mas, pelas minhas contas, ela ainda teria que ficar ali até às
quatro da tarde para cumprir com a sua carga horária diária.
Mesmo assim, achei que ela merecesse ouvir algo encorajador. Não
apenas para motivá-la, mas também porque era verdade. Eu gostei do seu
serviço, de fato. Era razoável para alguém sem experiência. Por isso,
enquanto caminhávamos de volta para a área administrativa da
penitenciária, me aproximei dela e disse:
— Bom trabalho, senhorita Ballard.
— Me poupe dos seus elogios — De pronto, ela replicou, rolando os
olhos. — Eu estou toda suja, suada e molhada.
Ah, que humor maravilhoso.
— Estamos chegando no horário de almoço. A senhorita pode
aproveitar o tempo de folga para tomar um banho e trocar de roupa —
sugeri. — Deixei outras fardas do seu tamanho separadas também.
— Eu vou fazer isso e me sujar de novo? — Com um semblante
óbvio de tédio, girou o rosto em minha direção. — Prefiro tomar banho e
me arrumar só quando eu já tiver terminado tudo por aqui e for embora.
— Como quiser, senhorita Ballard — repliquei em um breve
suspiro. Eu já devia saber que Agatha só fazia aquilo que bem entendia. Ou,
no máximo, o que a justiça ordenava. — Bom, está liberada para o almoço.
Infelizmente, como você não é, de fato, uma funcionária da penitenciária,
não está inclusa no almoço servido pelo refeitório. Mas, aqui na frente tem
uma lanchonete. Você pode ir até lá. E, lembre-se, esteja aqui às treze horas
em ponto, para cumprir o restante do seu trabalho.
— Mal posso esperar — Com um sorriso cínico de dois segundos,
revirou as orbes e me deu as costas, saindo dali.
O que tinha de bonita, também tinha de temperamento difícil.

✽✽✽
Já era por volta das doze e meia quando eu terminei meu almoço.
Depois de conversar com alguns colegas da polícia, peguei um cafezinho,
para tirar o gosto da comida, e decidi respirar um pouco de ar puro lá fora.
Era como uma tentativa de recuperar o fôlego para o segundo turno na
penitenciária. Cruzei a porta da recepção, me encostei em um dos carros do
estacionamento, na sombra de uma árvore, e fiquei ali apenas bebendo café
e olhando para o céu.
Um total de zero pensamentos específicos rondavam a minha
cabeça, até que, repentinamente, senti alguém tocar a minha cintura com
dedos que pareciam ter intimidade com aquela e com outras partes do meu
corpo.
Quando volvi o rosto para o lado...
Alexa Westphalen.
A inspetora da penitenciária e o meu sexo casual dos últimos três
meses.
Para todos os funcionários dali e de toda a polícia de Las Vegas, ela
era a rígida e profissional inspetora Westphalen, que comandava tudo com a
sua famosa e poderosa mão de ferro, sem gracinhas, sem gracejos. Uma
mulher implacavelmente séria. E, de fato, ela era assim mesmo, menos
comigo.
Comigo, Westphalen era a mulher que toda lésbica sonhava em ter,
exceto pela parte de “pegar no pé”. Estupidamente bonita, gostosa demais
na cama, um senso de humor maravilhoso e divertidíssima apenas com
quem era íntimo. E os íntimos à Westphalen eram somente zero vírgula
cinco por cento das pessoas que ela conhecia.
Ou seja, se ela era legal comigo, provavelmente eu fiz por merecer.
Com a minha simpatia, com o meu profissionalismo. Ou com o meu
sexo.
Tudo bem que já estava com umas duas semanas que nós não
saíamos. E eu sabia que a nossa situação só era essa por minha culpa. Alexa
queria sair comigo. Era eu que não estava muito na vibe de sair. Eu tinha a
impressão de que, para ela, as coisas já estavam se tornando mais sérias do
que casuais. E eu não achava que, juntas, nós combinássemos para um
relacionamento sério. Para casualidade sim, mas para relacionamento sério
não.
— Ouvi falar que você se tornou uma baby-sitter... — disse ela, ao
meu lado, bem próxima a mim, com um tom de brincadeira que, em geral,
só usava comigo.
E eu sabia exatamente ao que ela estava se referindo...
— Ah... — sorri de leve, meio sem graça por saber que aquela não
era uma missão sonhada por nenhum policial, especialmente quando o
policial era eu. — Fazer o que, né?
— O delegado Conway não tem mesmo senso de humor — Irônica,
replicou. — Achei meio absurdo ele colocar uma das melhores policiais de
Las Vegas para fazer um trabalho tão primário como esse. Seria uma
decisão bem mais inteligente se tivesse deixado você em serviços mais
importantes e escolhido outra agente para cuidar da garota.
Na real, eu concordava com ela. E como concordava. Se não fosse a
garota, eu estaria nas ruas agora, resolvendo problemas realmente
relevantes.
— Pois é... — suspirei. — Mas, é isso... — tentei me conformar. Na
verdade, eu sempre tentava, quando me lembrava de que ia ficar naquilo
por seis meses. — Manda quem pode e obedece quem tem juízo.
Ela sorriu.
— Como sempre, tão profissional... — E, me observando com
verdadeiros olhares de admiração, passou, descaradamente, a mão na minha
cintura outra vez, mesmo que, para os outros que não entendiam o que
acontecia ali, pudesse ser um movimento discreto. — Por falar nisso, será
que se eu mandar você fazer algo, você me obedece?
Suspirei.
Eu sabia onde ela queria chegar.
— Sim... Você é uma das minhas chefes...
E o seu rosto se iluminou em verdadeiro fascínio ao ouvir a minha
resposta.
— Então, me chama para sair — Seus dedos me apertaram onde a
sua mão tocava a minha cintura. — A minha cama está com saudades de
você.
Pois é... Com uma intimação dessas, quem conseguiria escapar?
Inúmeras vezes, sem querer ser grossa ou insensível, eu pensei na
possibilidade de deixar ainda mais claro, para a Alexa, a forma como a
nossa relação se resumia. Porém, ela sempre dava um jeito de me enrolar na
sua teia e de me falar coisas nesses termos. Termos que pareciam casuais,
mas que, no fundo, revelavam desejos de quem queria um relacionamento
mais concreto.
Por mais que ela não me dissesse isso abertamente, eu sentia, sabe?
Mesmo assim, sorri, tentando disfarçar qualquer coisa.
— Claro... Podemos marcar. Quando você está disponível?
— A hora que você quiser — E, sagaz, encarou a minha boca sem
qualquer receio ou cerimônia, mesmo que estivéssemos bem ali, no
estacionamento aberto da penitenciária.

Agatha

Pelo amor de Deus.


Por que faziam esses hambúrgueres com tanto óleo?
Enruguei a testa, ao encarar a comida, enquanto o homem passava
um hambúrguer na chapa da lanchonete que ficava em frente à
penitenciária. Era bizarro o quanto tudo ali pingava gordura. Engoli a seco
em puro nojo. Talvez nem os meus suquinhos detox, em casa, conseguissem
expulsar toda a porcaria do meu organismo, depois de eu enfiar aquilo goela
abaixo.
Argh.
Eu estava no fundo do poço.
Além de ser uma lisa, sem mesada, e de ter me tornado a zeladora
de uma penitenciária, que vai e volta em um ônibus fedido, calorento e
lotado, eu também teria que comer hambúrgueres banhados em óleo, porque
era a única coisa que o meu bolso conseguia pagar. Inferno. O pior era que
eu estava com tanta, mas tanta fome, que talvez eu não tivesse escolha. Era
aquilo mesmo. Meu destino era o sanduíche gorduroso. Só esperava que eu
não tivesse uma diarreia depois.
— Me vê um hambúrguer desse aí... — pedi ao atendente roliço e
tão suado quanto eu fiquei depois de limpar a maldita cela.
Tirei meus trocados lamentáveis da bolsa e paguei por aquele bolo
de gordura. Com um suspiro cansado, caminhei até uma das mesas de
plástico de quinta categoria dali e me sentei em uma das cadeiras. Encarei,
então, a minha digníssima refeição e torci o nariz. Droga. Eu não estava
acostumada a comer esse tipo de coisa.
Mesmo assim, senti minha barriga roncar.
Esse era o sinal. O sinal de que eu poderia passar mal, se comesse,
mas também poderia passar mal do mesmo jeito, se não comesse. De uma
maneira ou de outra, eu poderia cair durinha no chão. Era isso. Eu tinha que
enfrentar o meu destino sórdido.
Respirei fundo e dei a primeira mordida.
Mastiguei, mastiguei, mastiguei, até que...
Hum...
Comi mais um pouco.
Hum... Porra...
Não é que o hambúrguer oleoso estava gostoso?
Talvez fosse a fome. Eu estava realmente faminta. Meu paladar,
entretanto, se empolgou com o gosto daquilo, e a minha barriga quis mais.
Que Deus me ajudasse a não ter uma disenteria antes de chegar em casa.
Seria indigno fazer nas calças, dentro do ônibus.
— Ei, tio, me vê outro aí!
Colocando os trocados em cima da mesa, para pagar, comi feito uma
miserável, me sujando toda, de tanta fome e de tão gostoso que o
hambúrguer estava. Cacete, fazer faxina acabava com todas as minhas
energias. Comi, comi, comi, como se não houvesse amanhã, pouco me
importando com a quantidade de calorias que eu estava ingerindo fora da
minha dieta, até que, displicentemente, entre um pedaço e outro, eu vi algo
lá do outro lado. Algo que me chamou atenção. Mais especificamente na
penitenciária. Parei até de mastigar.
Xena Scott estava no estacionamento com uma mulher. Era uma
morena, bem elegante e bem vestida. Seus cabelos pretos, lisos e muito bem
cuidados iam até a altura do busto. Suas roupas aparentemente caras, sua
blusa social de seda, sua calça alinhada e aquele distintivo pendurado ao seu
cinto me diziam que ela não era qualquer funcionária da penitenciária,
assim como também não era só uma agente ou uma policial. Ela parecia ser
mais que isso. Sua postura demonstrava claramente que ela tinha um alto
escalão ali.
Mas, também não era só isso.
O que chamou a minha atenção, na verdade, não era exatamente
isso. Era a maneira como elas estavam juntas. O jeito como uma olhava
para a outra, especialmente aquela que parecia ter algum cargo de chefia.
Era como se ela engolisse a Xena Scott com os olhos. A policial, por sua
vez, era só risos e sorrisos para a morena. Algo me cutucou, mesmo que eu
nem soubesse ao certo o que era. Elas não pareciam ser apenas colegas de
trabalho ou amigas. Talvez, para qualquer pessoa que olhasse sem prestar
atenção, isso passasse despercebido. Mas, para mim não. Eu reconhecia
flertes e lésbicas a quilômetros de distância.
Só que...
Franzi o cenho.
Será que...?
Não, não podia ser...
Será que a Xena pegava mulher?
Enruguei ainda mais a testa. Aquilo ali estava suspeito. Mas, por
que eu não percebi antes? Por que eu não percebi antes que a Xena pegava
mulher?
Talvez, eu só não tivesse olhado com tanta atenção...
Agora, estava na cara.
E mais na cara ainda foi o que eu senti vendo aquilo. Uma certa
inquietação esquisita me incomodou ao ponto de eu me remexer naquela
cadeira de plástico miserável, enquanto observava elas rindo e sorrindo uma
para outra. Especialmente, ao ver a mão da morena na cintura da policial,
parecendo tão íntima e familiar com aquele toque. Eu não entendia o
motivo daquilo. Era bobeira minha. Só podia ser. Mas, o fato era que, fora
os momentos que eu percebia uma leve ironia em seu olhar, eu nunca vi a
Xena sorrir daquele jeito. Ela era sempre muito séria, impassível e formal
comigo. Na verdade, eu nunca a vi sorrir de maneira alguma. Apenas agora.
Com aquela mulher.
Ou melhor, para aquela mulher.
E o que ela tinha feito para conseguir despertar a simpatia da Scott
assim, eu não sabia.
Quem manda na porra da sua vida sou
eu

Agatha

— Quê? — franzi o cenho, enquanto entrava pela porta de casa, depois


de um longo dia e de duas horas em pé no maldito ônibus da volta. — Não,
pelo amor de Deus. Eu estou exausta, Tessa. Um total de zero vibes para
festas.
E um total de zero dólares para sair também.
Mas, eu estava tão cansada de tudo que preferia nem entrar em
detalhes, por enquanto. Se eu, ao menos, mencionasse qualquer coisa sobre
o meu pai ter cortado a minha mesada, Tessa não me deixaria em paz, até
que eu contasse tintim por tintim do rolê inteiro, desde o acidente.
Inclusive, ela era uma das minhas amigas que estava no carro, no momento
em que eu bati na maldita viatura da Scott.
Eu conheci a Tessa ainda na época do colegial e ela era a minha
melhor amiga. Tudo bem que, vez por outra, quando estávamos bêbadas e
acompanhadas de outras garotas, a gente ficava. Algo meio grupal, sabe?
Mas, só entre meninas. Tipo naquelas festinhas pós-boate que eu levava as
garotas para uma das quatrocentas suítes presidenciais de um dos hotéis do
meu pai. Não rolava, e nunca rolou, nada sério entre nós. Óbvio. A gente só
se pegava por curtição mesmo, e não era sempre.
— Nossa... Você nunca negou ir a uma festa, Agatha — Com certo
estranhamento em seu tom, ela replicou. — O que tá acontecendo, heim?
Aliás, o que aconteceu depois daquela batida? Você simplesmente sumiu,
garota. Me fala aí. Me conta tudo.
Ah, porra...
Suspirei, abrindo o zíper das botas e largando-as pelo meio da casa.
— Olha só, Tessa, eu prometo, eu juro que vou te contar
absolutamente tudo. Só que não vai ser agora. Acabei de chegar em casa,
depois de ter passado o dia no inferno. Sério. Depois eu te ligo, tá bom?
Beijo — E simplesmente desliguei, me jogando ali mesmo, no sofá da sala.
Depois que a Xena me disse que o meu horário de trabalho tinha
chegado ao fim, tomei um banho, vesti minha roupa e saí correndo até o
ponto de ônibus. O meu maior sonho era chegar o mais rápido possível em
casa. Do jeitinho como eu chegava a todos os locais, quando eu tinha um
maldito motorista particular, se liga? A realidade, porém, foi outra.
Completamente outra. Passei duas horas em pé, num ônibus lotado e
calorento. Pensei que nunca mais fosse cruzar aquela porta da sala.
Eu só queria entender o motivo de não existir um único horário,
naquela cidade, em que os ônibus fossem mais vagos.
Era uma merda.
Meus pés estavam acabados. Em carne viva, com a quantidade
calos.
Talvez eu precisasse deixá-los de molho a noite inteira, para
compensar o sofrimento.
Respirei fundo, fechando os olhos e tentando me recuperar, pelo
menos, parcialmente.
O fato era que o meu dia foi cheio e terrível. Eu estava arrasada.
Minha cara, certamente, já não tinha mais um pingo de maquiagem. Mesmo
que eu tivesse levado meu estojinho na bolsa, depois de terminar uma
faxina na sala de arquivos da penitenciária, eu não tive ânimo nem para
passar um pózinho na cara. Sem dúvidas, as olheiras já dominavam o meu
visual. Argh. Para completar, apesar de eu ter comido dois hambúrgueres
estupidamente gordurosos (que fariam a minha nutricionista ter uma
síncope), no almoço, a minha fome já estava me matando. Até a minha
alimentação balanceada estava em risco. Era o meu fim.
Mas...
Por falar em almoço e comidas calóricas, eu ainda fiquei um tempo,
na lanchonete, observando-as, até o alarme do celular tocar, indicando que o
meu segundo turno ia começar. A cada olhar que eu dava e a cada sorriso
que elas trocavam, a certeza de que elas se envolviam crescia dentro de
mim. Durante o meu horário de trabalho, mesmo que eu não quisesse,
inconscientemente, ainda tentei desvendar, em meio ao semblante
impassível e formal, que Scott sempre me dava, qualquer coisa a mais que
tivesse relação com elas. Era estranha a maneira como aquilo parecia ter me
interessado de alguma forma. Não era para ser assim. Não fazia o menor
sentido aquilo despertar a minha curiosidade.
Mesmo assim, eu só queria saber... Elas se pegavam de verdade?
Argh.
Bufei sobre o sofá.
Isso não é da sua conta, Agatha!
Rolei os olhos. Meu subconsciente tinha razão. Não era da minha
conta mesmo.
— Sempre deixando roupas e calçados espalhados pela casa, não é,
Agui? — ouvi a voz da Evangeline antes mesmo dela entrar no meu campo
de visão. Ela era a única pessoa no mundo que me chamava de Agui. Antes
dela, só a minha mãe. — Você sabe que o seu pai adora isso — cantarolou,
ironizando.
Nossa, eu tinha acabado de chegar em casa, depois de um pesadelo.
Meu juízo merecia descanso.
— Por favor, Eva, não mencione ele, eu já estou cansada demais.
Ela suspirou, me dando um sorrisinho.
— Então, fale baixo. Ele está em casa.
Girei as orbes, soltando o ar pesado dos meus pulmões. Eram raras
as vezes que o meu pai parava em casa. Mesmo assim, por pior que fosse
pensar isso, honestamente, eu não sentia nem um pouco de falta, porque eu
sabia que, quando ele estava por perto, eu não tinha um minuto de paz.
Inclusive, eu esperava que ele não tivesse ouvido a minha voz.
Recolhendo minhas botas no chão, Evangeline continuou:
— E, então, como foi o dia, querida? Deu tudo certo? Conseguiu
chegar bem lá? Você me parece tão cansadinha... — De certa forma
preocupada, me encarou. — Quer que eu faça aquele chocolate quente com
marshmallows que você adora? — e sorriu.
Evangeline era perfeita. Depois que eu perdi a minha mãe, ela
passou a cuidar de mim como se eu realmente fosse filha dela. E ainda bem
que eu tinha a Eva ali. Seria muito mais difícil morar naquela casa sozinha
ou apenas na presença do meu pai. Eu já teria enlouquecido.
— Nem queira saber, Eva, foi péssimo. Mas, pelo menos, eu
sobrevivi. Enfim... — suspirei, não querendo mais conversar sobre aquilo.
O que ela tinha dito por último, naquela frase, me chamava muito mais
atenção. — Você é maravilhosa. Sabe disso, né? — sorri, já me sentindo um
pouco mais animadinha. — Bom, eu vou tomar um banho, então, para
aguardar esse incrível chocolate quente — e me levantei do sofá.
Porém...
— Agatha!
Meu corpo inteirinho entrou em puro estado de alerta.
Ouvi meu pai gritar meu nome.
Droga.
O velho realmente me ouviu chegar.
E a energia, que apenas a sua voz carregava, era tão pesada, que até
o sorriso de Evangeline desapareceu. Ela tinha consciência do mala que ele
era, assim como também sabia que nós nunca nos damos bem.
— Ele está no escritório — Baixinho ela falou, como um alerta para
que eu fosse logo.
Saco.
Eu ainda pensei em não ir, em fingir que não estava em casa, em
tomar um chá de sumiço e evaporar. Mas, não dava. Merda. Não tinha
como. Ele já sabia que eu tinha chegado, e, pelo que eu conhecia muito bem
dele, não me deixaria quieta até que eu fosse até o troninho. Era o jeito dar
de cara com o coroa.
Respirando fundo e tomando fôlego, para o que quer que fosse,
cruzei a sala, subi as escadas e segui na direção do seu escritório que ficava
bem no topo do segundo andar. Quando empurrei a porta, já entreaberta, lá
estava ele, sentado em sua imponente cadeira, de frente para o notebook e
para um monte de papéis. Sobre os óculos de hastes finas e douradas, que
pendiam na ponta do seu nariz, ele me fitou com o seu melhor semblante
blasé e, então, franziu o cenho.
— Nossa, Agatha... Por que a cada vez que eu te vejo você está
pior?
Uau, um bom começo.
Realmente não era nada legal escutar isso de alguém que dizia ser
seu pai, mas... Talvez, depois de anos ouvindo comentários assim ou piores,
eu já estivesse acostumada. Ou, ao menos, tão calejada a ponto de me sentir
anestesiada diante dos seus insultos gratuitos.
Para ele, nada nunca estava bom mesmo.
— Hoje foi o primeiro dia na penitenciária — expliquei, séria. —
Estou exausta porque você cortou o motorista e eu tive que ir e voltar de
ônibus, além de ter trabalhado o dia inteiro — Quase entredentes,
completei.
Absolutamente indiferente ao que eu falei, ele apenas comentou:
— Ah, entendi... Realmente, o trabalho não faz bem à sua aparência,
mas, quem sabe, molde o seu caráter. Já é alguma coisa. — E deu de
ombros. — Bom, em todos os outros dias você pode permanecer horrível
assim, só não me apareça com essa cara depois de amanhã. Temos um
jantar para ir. E eu quero que você se arrume como a verdadeira Ballard que
é.
Ai que saco... Aqueles velhos e típicos jantares de negócios do meu
pai, com um monte velho comendo e bebendo, regados a muita conversa
fiada e tédio escabroso.
— Posso saber que jantar é esse? — perguntei, mesmo que eu já
tivesse uma ideia.
— Um parceiro de negócios das Bahamas está vindo para cá. Ele vai
se hospedar em um dos nossos melhores hotéis e eu o convidei para um
jantar. Estamos quase fechando um acordo muito importante. Um acordo
multimilionário. Além disso, eu gostaria que você conhecesse o filho dele.
Franzi o cenho de automático.
Alguma coisa começou a não me cheirar bem. Meu pai nunca dava
um ponto sem nó.
— E por que eu faria isso? — questionei.
Foi aí que ele se levantou da sua imponente cadeira e deu a volta na
mesa, ficando um pouco mais próximo a mim. Encarando-me mais
firmemente, suspirou, e, então, falou:
— Porque você quer ajudar o seu papai a ganhar mais dinheiro —
sorriu um sorriso duro que não chegava aos olhos, fitando-me em silêncio,
por alguns segundos, provavelmente esperando que eu dissesse algo. No
entanto, permaneci calada. Eu queria ver até onde aquilo ia. — Isso não vai
ser bom apenas para os negócios, mas para você também, Agatha. Querida,
você está perdida. Perdida no mundo. Parece uma louca desvairada, fazendo
merda atrás de merda. Quem sabe com um homem ao seu lado e um
casamento, você se comporte.
Pera aí.
Casa... Casamento?
Ainda pisquei os olhos repetidas vezes, em sua direção, para ter
certeza absoluta de que eu realmente estava vivendo aquilo. Desde que
mamãe se foi, meu pai já tinha aprontado muitas coisas, assim como
também, por vezes, me colocou em situações que eu não achava nem um
pouco confortáveis. Mas, isso, isso nunca. Um absurdo desse tamanho ele
ainda não tinha pronunciado.
Era pior do que eu podia imaginar. Muito pior.
Boquiaberta, indignada e estarrecida, o encarei.
— Você está se ouvindo? Você consegue ouvir a própria bosta que
sai da sua boca?
— Sim, eu estou ouvindo — respondeu simplesmente, como se
fosse a coisa mais natural do mundo. — Sei muito bem do que estou
falando e tenho certeza de que é o certo a se fazer nesse momento. Não há o
que você argumentar sobre isso, Agatha. Eu já tomei a minha decisão.
Isso era um absurdo!
Senti meu couro cabeludo pinicar, à medida que a ira crescia dentro
de mim.
— Você não vai me usar nos seus negócios podres! Não vai! E
também não vai me meter em um relacionamento que não seja da minha
vontade! — disparei. — Casamento...? Casamento?! — cerrei os olhos em
sua direção, quase rindo sem humor. — Você vive em que século, pai? No
século dezoito?! — bufei. — Isso não vai acontecer!
Entretanto, vi o exato momento em que a sua boca se tornou uma
fina linha rígida, à medida que, a passos devagar, ele se aproximava de
mim, intimidante. Ainda assim, me mantive de queixo erguido. Notei
quando lágrimas de raiva quiseram arder os meus olhos, mas eu não baixei
a guarda. Não mesmo. Eu não me permitiria chorar e fraquejar ali, na frente
dele. Pelo menos, não enquanto eu pudesse segurar aquilo.
O coroa, então, parou bem diante do meu rosto e, tão calmo e
sereno, mas, ao mesmo tempo, tão intenso, disse:
— Sim, Agatha, isso vai acontecer, querendo você ou não, porque
quem manda na porra da sua vida sou eu — Firme, segurou o meu braço.
Filho da puta!
Me empertiguei, não somente por ouvir aquelas palavras imundas,
mas também por sentir as suas mãos possessivas sobre mim. Era o cúmulo.
O cúmulo. Eu já estava cansada de ser tratada, por ele, como um fantoche,
que ora ela colocava em um lado e ora ele colocava em outro. Me tratava
como se eu não fosse um ser humano com pensamentos e vontades
próprias, como se ser o meu pai lhe desse o direito de ter posse e
propriedade da minha vida e do meu corpo.
Senti a fúria se disseminar por cada célula, por cada pedaço da
minha pele. Ainda quis falar, retrucar ou mesmo dizer com todas as letras
que ele era um merda, mas tudo o que consegui fazer foi puxar o meu braço
bruscamente das suas mãos e sair rapidamente dali, porque não conseguia
mais olhar para a sua cara nojenta, nem sentir o seu toque desprezível. Eu
sabia que, se continuasse ali, eu choraria na frente dele. E não era isso o que
eu queria. Eu não queria ser fraca ou que ele me visse em um momento de
fraqueza.
Apenas entrei no meu quarto e, com um baque surdo, fechei a porta.
Me joguei na cama em pura raiva. Graças a adrenalina no corpo, eu já nem
sentia direito aquele cansaço absurdo da faxina. Tudo o que eu conseguia
pensar, naquele momento, era nos absurdos que meu pai falou. E, ali no
meu próprio mundinho, distante dele e longe do seu olhar, deixei que as
lágrimas furiosas descessem. Não era tristeza. Era ódio. Mas, era também
determinação. Determinação de quem já tinha decidido não fazer as suas
vontades, nem permitir que ele ainda continuasse manipulando tudo como
bem entendesse.
Eu não ia fazer o que ele queria. Eu não ia mesmo.
Uma barbie faxineira

Agatha

— Agui... Querida... Acorde, Agatha...


Ouvi a Eva falar, ao longe. Mas, a cada vez que ela me chacoalhava,
mais perto a sua voz ficava. E mais perto, e mais perto, e mais perto, até
que... Ah, meu Deus! Despertei do meu sono de beleza subitamente.
Coração acelerado, quase saindo pela boca. Eu odiava acordar como se o
mundo estivesse acabando.
— Evangeline...! — Atarantada, me sentei na cama abarrotada de
edredons, travesseiros e almofadas. — O que foi dessa vez, mulher?!
— Você está atrasada de novo, querida.
— Ai, de novo? — choraminguei, já me levantando em um pulo. —
De novo não!
Droga, droga, droga.
Mais uma vez, eu tive que correr contra o tempo. Minha situação
não estava tão ruim quanto no dia anterior, mas, ainda assim, estava. Fiz
questão de não ficar olhando as horas no celular, ou eu ia pirar ainda mais.
Tomei banho, engoli o café da manhã quase inteiro e corri para pegar o
maldito ônibus. Pelo menos, diferente de ontem, resolvi colocar uma roupa
mais adequada e uma sandália baixinha para enfrentar o caos dos
assalariados dentro de um transporte coletivo sem ar condicionado e do
tamanho de uma lata de sardinha.
Talvez eu já estivesse ganhando um pouco mais de "experiência"
com aquela vidinha ridícula que eu levaria pelos próximos meses. Não eram
as mil maravilhas reconhecer esse tipo de coisa, mas, gradativamente, eu ia
me habituando, ou, ao menos, aprendendo a sobreviver. De todo modo,
apesar de ter conseguido entrar em um ônibus em tempo recorde, a raiva de
não ter acordado na hora certa, outra vez, ainda reinava. Aliás, a raiva de eu
nem mesmo ter conseguido dormir direito.
Tudo culpa do meu pai. Tudo culpa daquele velho escroto do cacete.
Não fosse a adrenalina que o meu corpo inteiro liberou, depois de ouvir
seus absurdos, eu teria dormido cedo, porque estava exausta. Mas, não. Ele
tinha que me falar merda. Ele tinha que me deixar estressada. Ele tinha que
tirar o restinho de paz da minha vida. O resultado foi que, em meio ao choro
de raiva, eu levei horas para conseguir pregar os olhos e dormir. Talvez eu
tivesse cochilado quando já estava quase amanhecendo.
Terrível.
Nem descansar direito, para enfrentar mais um dia daqueles, eu
conseguia.
E, então, depois de uns cinquenta minutos dentro de um ônibus
fedido, avistei a penitenciária. Argh. Puta, com toda a carga de estresse que
eu já carregava pelos problemas de casa, caminhei até lá. Não porque eu
quisesse ir, mas porque eu era obrigada. Foi aí que, como se adivinhasse a
minha chegada, Xena Scott já estava bem ali, na porta da recepção, vestindo
sua fardinha de policial e usando seus óculos de aviador, naquela
posturazinha irritante de almofadinha que ela tinha.
— Está atrasada... — disse, no mesmo instante que parei à sua
frente.
Além de tudo, eu não merecia ouvir também as cobranças.
Já era uma vitória eu estar ali, mulher.
Rolei os olhos, esgotada antes mesmo de começar a lavar mais uma
privada.
— Não estou em um dia bom hoje — avisei. — Meu humor foi pra
puta que pariu. Então, se puder evitar qualquer tipo de comentário ou
cobrança dessa natureza, eu agradeço.
Vi, entretanto, quando ela tirou os óculos escuros e me encarou com
seu pequeno e quase imperceptível sorrisinho malditamente irônico, como
se dissesse em silêncio: “e em qual dia você está de bom humor?”. Saco.
Para mim, ela me oferecia aquela grama de sorriso sarcástico, mas, para a
bonitona lá, morena e elegante, era toda cheia de dentes.
Aliás, eu nem deveria me importar com isso.
Não seja idiota, Agatha.
No momento que quis entrar logo e deixar de conversinhas sem
futuro, porém, algo aconteceu. Foi como se eu tivesse sido atingida por
alguma coisa, uma gosma quente e melequenta, que parecia escorrer pelo
meu ombro. Achando aquela sensação realmente estranha, enruguei a testa
e virei o rosto para o lado, fitando o local exato.
Quando vi... Ah não... Não, não, não. Porra! Só vi a gosma branca-
amarelada e pastosa escorregando sobre mim. Um pombo. Um pombo tinha
cagado em cima de mim! Claro, era exatamente isso o que eu merecia
ganhar por ser uma grande filha da puta.
— AI QUE NOJO! — Disparei, me empertigando ali, na entrada da
penitenciária, e abanando as mãos, como uma inútil garotinha, sem saber se
passava os dedos para tirar, ou se vomitava, ou se corria logo de uma vez
para o banheiro.
A vida só podia estar de brincadeira com a minha cara. Já não
bastava desentupir a bosta que aquelas detentas faziam, ou passar a tarde
inteira espirrando com a quantidade de poeira na sala de arquivos, ou pegar
ônibus calorento e lotado com velhos safados, ou almoçar hambúrgueres
gordurosos e oleosos, ou ter um pai que queria me obrigava a casar com um
macho só por negócios; agora, pombos também cagavam em mim.
— Calma, calma... — senti, no entanto, quando Scott segurou meu
braço, tentando me fazer parar com o chilique. Ainda pude notar um
sorrisinho de diversão nos seus lábios. Ah, claro, ela adorava ver eu me
foder. E, então, repentinamente, tirou um lencinho do bolso da calça e
começou a passar ali, me limpando.
Meu corpo inteirinho retesou. Retesou sem que eu nem soubesse o
motivo. Apenas cessei tudo, quando a sua mão me segurou e a outra, tão
atenciosamente, passava ali, tirando toda a bosta do meu braço. Eu ainda
não tinha sentido Xena Scott. Pelo menos, não dessa maneira. Bom, ela já
tinha me revistado, mas não era a mesma coisa.
Nem de longe era a mesma coisa.
Seu toque era estranhamente... Gostoso.
Amoleci, por alguns segundos, sem perceber, e, então, como uma
imbecil, suspirei até me dar conta de que a minha pele começou a esquentar
nas exatas regiões em que ela me tocava. E pior: esquentou também em
uma outra que Scott não tinha passado nem perto, mas que ficava entre as
minhas pernas. Pera aí... Não, não. Calma. Pigarreando a garganta e
piscando os olhos algumas vezes, para tentar me recompor, eu disse, ainda
meio sem jeito:
— Tá bom, tá bom, já chega — E soltei o ar em um sopro, na ilusão
de refrescar aquele calor maldito que queria subir. — Me fala aí o que eu
tenho pra fazer hoje.
Erguendo os olhos para mim, me encarou daquela maneira assertiva
de sempre.
— Tudo bem, vamos lá.

✽✽✽

Já era por volta das quatro horas da tarde, quando eu estava na


recepção, varrendo e passando o pano no chão. O movimento, naquele dia,
estava fraco. Pouca gente entrava e saía. No balcão, então, as recepcionistas
até fofocavam sobre um macho qualquer que uma delas ficou durante o
final de semana, ou sei lá o quê. Enquanto isso, nenhum detento passava
por ali. Uma regra da penitenciária dizia que os presos só poderiam transitar
para dentro ou fora da penitenciária se fosse de carro e pelos portões
laterais. Ou seja, eles nunca passavam por ali, mesmo na companhia de
policiais.
O fato era que tudo estava tranquilo. Tranquilo até demais. Porém,
ainda assim, tinha sido mais um dia estupidamente cansativo para mim.
Talvez não houvesse um único dia, naquele pardieiro, que não fosse assim.
Scott, então, parecia ter prazer em me fazer trabalhar literalmente como
uma condenada. Em quase seis horas, dentro daquelas paredes, eu já tinha
limpado duas celas, lavado dois banheiros, desentupido duas privadas,
tirado todas crostas de óleo da cozinha, continuado a faxina no arquivo
cheio de mofo e, agora, estava ali quase lambendo aquela recepção
enquanto os meus ouvidos queimavam ao escutar a conversa totalmente
explícita das posições e dos beijos, da garota do balcão, no cara do sábado à
noite.
Não percebi, entretanto, quando aquilo estava prestes a acontecer.
Só me dei conta, de fato, no momento que já acontecia. Um garotinho, por
volta de sete ou oito anos de idade, surgiu por ali, correndo todo feliz e
brincando de chutar sua bola de futebol. Ele parecia estar sozinho. Franzi o
cenho, ao mesmo tempo que esfregava o chão, achando estranho que um
menino daquele tamaninho estivesse aparentemente sem companhia. Pelo
menos, bem ele estava. Não era como se fosse uma criança perdida. Em um
dos chutes, porém, a bola correu e parou bem no meu pé.
Isso foi o suficiente para que ele, ainda todo alegre e sorridente, se
apressasse em minha direção. Porém, ele não notou a minha presença, até se
abaixar e, com as mãos, juntar a bola. Foi aí que ele ergueu seu olharzinho e
me fitou. Arqueou as duas sobrancelhas para mim, e, tão lindo, todo
admirado, ele disse:
— Uau... Você é tão bonita! Parece uma barbie!
Eu ri.
Uma barbie faxineira.
Mesmo assim, pela primeira vez em alguns dias, eu me diverti. Ele
era um fofo. E, por mais incrível que isso pudesse parecer, mesmo que eu
não fosse com a cara de noventa por cento dos seres humanos da face da
Terra, eu adorava crianças. Talvez eu tivesse criado um vínculo maior por
elas, desde a gravidez da minha mãe. Meu sonho era ter um irmão, e aí tudo
aconteceu e ela foi embora.
— Obrigada, seu lindo...! — sorri. — O que faz por aqui? Como é o
seu nome?
— Nicholas, mas pode me chamar de Nick — Todo espertinho, ele
respondeu.
— E, então, Nick, cadê a sua mãe? Seus pais estão aqui?
Sim, perguntei porque não era comum ver uma criança por ali.
Quando fechei a boca e ergui meu olhar, entretanto, quem eu vi se
aproximar de nós, em toda a sua pressa e postura de policial atenta, era a
Xena.
— Aquela é a minha mãe — disse ele, sorrindo.
Foi aí que tudo parou para mim. Quase boquiaberta, retornei meus
olhos para ele.
Então, a Xena tinha um filho?
Será que era casada também?
Ai, pelo amor de Deus, Agatha, por que está interessada em saber
disso?
— Ah, você está aí, mocinho... Não pode ficar circulando por aqui
sem que eu esteja com você — disse ela, já pegando em sua mão para tirá-
lo de perto de mim.
No entanto, antes que conseguisse fazer isso, Nick falou, a
interrompendo:
— Mamãe, mamãe! — Entusiasmado, quase pulando, ele disse, sem
parar de me olhar. — Ela parece uma barbie! Quem é?
Scott, então, me olhou de relance, quase sem prestar atenção, e
replicou:
— Ela trabalha aqui, querido.
Foi o bastante para o garotinho enrugar a testa e dizer algo que
quase me fez engasgar:
— Então, ela também é sua namorada?
Vi quando a pele preta da Scott ficou pálida. Sem jeito, fitou o
menino como se mal pudesse acreditar no que ele tinha dito, enquanto eu só
franzia o cenho, sem entender o comentário. Porém, eu sabia que crianças
eram serezinhos bastantes sinceros. Então, se ele estava dizendo isso,
alguma coisa havia por trás do comentário.
Após alguns segundinhos de baque, no entanto, notei quando a
policial quis se recompor, voltando a respirar. Franziu o cenho, fazendo-se
de desentendida, e começou a sorrir, tentando quebrar o gelo.
— Filho... Do que você está falando...? — Ainda enrugando a testa,
riu toda desconcertada. Era a primeira vez que ela sorria daquele jeito perto
de mim, mesmo que fosse por estar absurdamente acanhada. Olhou, então,
para mim, e comentou por cima, tentando se explicar. — Ele só está
brincando... Coisas de criança.
— Tô brincando não, mãe... — franziu o cenho, parecendo certo do
que dizia. — Você namora as garotas do seu trabalho, mas ela é mais bonita
que a inspetola Alexa.
Pera aí.
“Você namora as garotas do seu trabalho”?
“Inspetola Alexa”?
Só vi quando, pálida outra vez, Scott ergueu as duas sobrancelhas
para ele, sobressaltada com o que ouvia, e, respirando fundo, falou:
— Querido, vamos? Já está na hora da sua consulta.
Consulta?
Eram muitas informações em um curto espaço de tempo.
— Está tudo bem com ele? — perguntei.
Apesar das inúmeras pulgas atrás da minha orelha e do bichinho da
curiosidade cavando um buraco dentro da minha cabeça, eu ainda quis me
preocupar com ele.
— Claro, claro... É só uma consulta de rotina com a pediatra —
sorriu, ainda claramente desconcertada com os comentários do garotinho.
— Olha, seu horário já está acabando. Então, vou te liberar. Pode ir para
casa, ok? — disse ela, e, rapidamente me dando as costas, quase na
velocidade da luz, saiu dali com o Nick.
Tentando processar tudo aquilo, com o braço apoiado no cabo
vassoura e a belíssima cara paisagem que não saía do meu rosto, continuei
os observando se distanciarem de mim, até cruzarem a porta da recepção.
Esse era um dos vários motivos para eu gostar de crianças: eram
criaturinhas extremamente sinceras. E aquele menino poderia ganhar um
prêmio por falar, na lata, tudo o que bem entendia, sem filtros. Eu gostava
disso. Eu era assim.
Então, ela tinha mesmo um filho... Será que era casada também?
Não, não podia ser casada... Ela “namorava” com as colegas de trabalho,
segundo o Nick. E quem eram elas? Eram várias? Inspetola? Inspetola,
inspetola... Tipo inspetola de inspetora? Inspetora da polícia? Inspetora da
penitenciária? Alexa? Será que era aquela morena elegante com quem eu a
vi conversar no estacionamento?
Ah, porra, eu não sabia porque qualquer coisa relacionada a ela
mexia tanto com a minha curiosidade.
Liberei o ar pesado dos meus pulmões, mesmo que eu já tivesse a
certeza de que não conseguiria parar de pensar nos inúmeros pontos de
interrogação que rondavam a minha cabeça, depois daquela conversa.
Pelo menos, de algo eu já não tinha mais dúvidas: a Xena pegava
mulher.
Ridiculamente sexy

Zara

A mesa estava repleta de comida.


Depois de Nick e eu chegarmos da consulta de rotina com a sua
pediatra (e, graças a Deus, tudo estava bem com ele), nós estávamos de
frente para a mesa do nosso pequeno apartamento, com um jantar generoso,
bem servido e delicioso. Felizmente, Madison e Ava me deram mais uma
mãozinha, como sempre. Apesar de não morarmos juntas, elas eram quase
minhas vizinhas de parede, transitavam pelo meu apartamento como se
fosse delas, e vice-versa. Isso incluía a cozinha. Madison e Ava tinham livre
acesso às minhas panelas. Ou seja, quando não era eu que fazia a comida,
eram elas.
Bom, eu não mentia quando dizia que Madison e Ava eram meus
anjos da guarda.
— E, então, Nick, conta pra tia Mad como foi a sua tarde... — disse
ela, enquanto colocava um pedaço da lasanha no prato.
Quando Nick e eu estávamos juntos, ela sempre começava a
conversa por ele. Especialmente, quando passavam quase o dia inteiro
longe um do outro, já que esse não era o costume. Não era de se estranhar
que o garoto amasse Madison e Ava. As melhores tias do mundo, segundo
as suas próprias palavras.
— Foi legal, tia! — Todo animado, mais brincando com a comida
no prato do que efetivamente comendo, respondeu. — Conheci a nova
namorada da mamãe!
Quê?
Meu Deus, de onde esse menino estava tirando essas ideias?
— Namorada...?! — O sorriso que Madison abriu, ao ouvir aquilo,
foi incomensurável.
Suspirei, balançando a cabeça.
— Ele cismou com a garota que eu estou supervisionando, Mad.
Aquela que eu comentei com você, que se envolveu em um acidente e bateu
na minha viatura — expliquei e, então, virei novamente o rosto para ele. —
Filho, já disse pra você não falar esse tipo de coisa. Mamãe não está
namorando ninguém.
— Mas deveria... — De pronto, respondeu. — Ela é tão bonita! —
E, sapeca, mostrou todos os dentes para mim.
Era maravilhoso ter um filho tão esperto e inteligente, mas, ao
mesmo tempo, ele sempre era capaz de me deixar em saias justas.
— Ahhh... A garota-problema é? — Mad questionou.
Deus, ela tinha guardado mesmo essa informação?
O que não era uma informação completamente equivocada. A
garota era mesmo um problema. Além de ser enjoada, mal-humorada,
briguenta e desaforada, também era um problema que fosse tão bonita,
como o meu próprio filho dizia, que tivesse pernas longas e torneadas, e
que seus quadris fossem tão bem desenhados. Tudo isso era realmente um
problema, quando, na verdade, não deveria ser.
No fim, era um problema que tudo isso fosse um problema para
mim.
— Hum... Essas garotas-problema são sempre um problema
mesmo... — Ava comentou, quase cantarolando, enquanto bebia um gole do
seu suco e erguia, de maneira sugestiva, uma das sobrancelhas para mim. —
Principalmente, quando elas são bonitas, carregam algum tipo de pedido de
socorro na calcinha e caem de paraquedas, na sua vida, como detentas da
sua unidade prisional.
Droga, eu sabia do que ela estava falando.
Só vi quando Madison deu uma cotovelada de leve, em suas
costelas, como um claro aviso para que ela não continuasse. A morena
também sabia do que sua namorada estava falando. Aliás, não era segredo
para ninguém. Nem mesmo para as pessoas que já tinham uma carreira na
polícia de Las Vegas, por cerca de cinco ou seis anos.
Meu calcanhar de Aquiles.
O assunto que nunca deveria ser mencionado.
A culpa que eu ainda carregava por não ter tido a coragem de ir até
o fim.
Era por isso que, sempre que eu reparava no movimento dos seus
quadris, eu me repreendia, para não repetir os erros do meu passado.
— Acho que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar — Mad
redarguiu, pigarreando a garganta. — Além do mais, não é a mesma
situação. A garota não é, de fato, uma detenta. Então, amiga... —
Seriamente olhou para mim e, segundos depois, sorriu como uma criança
brincalhona. — Vai por mim. Se quiser pegar ela, pega!
Pelo amor de Deus. Madison não tinha um pingo de juízo. Eu nem
sabia como o assunto tinha chegado a esse ponto.
— Pois eu acho que cai, sim, duas vezes no mesmo lugar — Ava
retrucou, bebendo mais um gole do seu suco e fazendo sua melhor careta de
“tô de olho em você”.
Mas, Ava não era uma chata. Era só uma amiga que realmente se
importava. Madison também se preocupava comigo, mas era mais pirada,
fora da casinha, sem noção. A outra era mais pé no chão, consciente,
centrada. E com razão. Eu ainda me lembrava. Eu ainda me lembrava
perfeitamente de tudo o que aconteceu, como se tivesse sido ontem.
Me lembrava dos seus cabelos ruivos, quase laranja, que me fizeram
perder o discernimento de tudo, desde a primeira vez que a vi. Me lembrava
do seu rosto lindo, absurdamente tentador. E também da sua voz, tão intensa
e, ao mesmo tempo, suave. Do seu corpo, onde eu me perdi algumas vezes.
Mas, sobretudo, eu me lembrava do quanto ela precisava... Do quanto ela
precisava de alguém para tirá-la daquele fosso. E do quanto eu deveria ter
sido essa pessoa para ela, mas não fui. Não fui, porque me afoguei em um
mar de covardia.
Em toda a minha vida, nem depois que me separei do pai do
Nicholas, Haven não foi a primeira mulher com quem eu fiquei.
Mas, foi a primeira por quem eu me apaixonei.

Agatha

Depois de sofrer, em mais uma volta para casa, num ônibus quente e
cheio de assalariado, exausta, eu finalmente cheguei. Cruzei a porta e,
cumprindo o ritual de sempre, já fui logo espalhando casaco e sandálias
pelo chão. Me jogando no sofá da sala, para recuperar minimamente as
minhas forças, eu me deitei. A diferença do dia anterior, para aquele exato
instante, era que, por mais cansada que eu estivesse, a minha mente
continuava trabalhando, sem parar, naquilo que aconteceu minutos antes de
eu ir embora da penitenciária.
Ou melhor, digo, pior, eu não parava de pensar na Xena.
Uma merda.
— Agatha...?
Eu ainda não entendia o motivo da minha cabecinha estranha estar
tão interessada e curiosa sobre a sua vida. Afinal, argh, ela era só a Xena,
pelo amor de Deus. Além do mais, pegar mulher não era exatamente um
evento. Era a coisa mais natural do mundo. Eu mesma pegava. E pegava
com gosto. Então, eu não sabia que raios tinha dado em mim. Mas, era
inevitável, absurdamente inevitável. Quanto mais eu tentava parar, mais eu
me lembrava da infeliz.
Era tipo um efeito reverso.
Inclusive, aqui vai uma dica: não se force a parar de pensar em
alguém, porque, quanto mais você pensa em parar de pensar, mais você se
lembra da maldita pessoa. Ou seja, apenas tente lidar com isso da maneira
mais natural possível, senão você vai ficar louco(a).
E era uma doideira mesmo.
Sim, eu já estava começando a ficar doida com aquela mulher
morando na minha cabeça, sem qualquer motivo aparente.
— Agui...?
Talvez fosse pela surpresa de eu ter descoberto aquilo, sem ter me
dado conta, antes, de que a Xena gostava de mulher, sendo que, na maioria
das vezes, a pessoa não precisava nem abrir a boca para eu perceber esse
tipo de coisa. Ou talvez fosse pelos sorrisos tão simpáticos que ela dava
àquela morena elegante, mesmo que reparar nisso fosse uma grande tolice
minha. Ou talvez fosse pelo que Nick falou... Pelos inúmeros pontos de
interrogação que aquela criancinha colocou na minha cabeça. Ou,
simplesmente pelo fato dele ter achado que eu era a nova namorada da sua
mãe.
— Agatha?!
Repentinamente, ouvi alguém gritar o meu nome.
Quando virei meu rosto...
— Ai meu Deus, que susto, Evangeline! — exclamei, colocando
uma mão no peito.
— Fazia meia hora que estava te chamando — cruzou os braços,
erguendo uma das sobrancelhas e sorrindo para mim. — Tudo bem... Meia
hora não — soltou uma risadinha. — Mas, nossa, você parecia estar no
mundo da lua, heim...? Tudo bem, querida?
Ah... Mundo da lua é?
Sorri meio desconcertada, por me dar conta de que estava assim não
por ter viajado para o mundo da lua, mas para o da Xena. Uma catástrofe.
Minha cabeça realmente estava me traindo a todo instante, desde que
comecei os trabalhos na maldita penitenciária.
— Impressão sua, Eva... — soltei uma risadinha meio forçada,
tentando mudar o foco do assunto. Obviamente, eu não iria dizer: “Ah, Eva,
eu só estava pensando naquela policial do meu nojo, que me prendeu e
agora também está presa na minha mente por ser gata pra caralho”.
Cacete. Meu caso já estava se tornando perdido. Pigarreei a garganta. — Eu
só tô muito cansada... — rolei os olhos, fingindo alguma coisa. — Depois
desses seis meses de trabalho comunitário, eu vou precisar de uma vida
inteira em um spa! — E ainda forcei uma pequena risadinha.
— Sei... — disse ela, meio desconfiada. Me conhecer, desde que eu
nasci, era uma vantagem e uma bosta ao mesmo tempo. Enquanto ela sabia
de tudo sobre mim, como se fosse a minha mãe, eu também não conseguia
esconder tantas coisas dela ou mentir por muito tempo. Mesmo assim,
felizmente, Eva não se prolongou no assunto. — Por que não sobe e toma
banho, querida? O jantar já está pronto. Hoje tem peixe grelhado, com
manteiga de alcaparras, que você adora.
Ai, meu Deus, Evangeline era a melhor pessoa do mundo.
Depois de sobreviver, um dia inteiro, apenas com um hambúrguer
oleoso e gorduroso, porque era a única refeição possível, que o meu bolso
conseguia pagar, naquela penitenciária, meu estômago roncou de fome, só
por Eva comentar sobre o cardápio do jantar.
— Sério, você merece um prêmio! — Entusiasmada por ter uma
refeição digna, ao menos no final do dia, me levantei do sofá. — Vou tomar
um banho. Aliás, acho que vou demorar um pouquinho na minha hidro,
porque, sério, meu corpo inteiro está doendo de passar duas horas em pé no
ônibus... — rolei os olhos, e, então, virando-me para subir as escadas, me
lembrei de algo que me fez parar no meio do caminho. — Ah, Eva! —
chamei-a.
— Sim?
— Meu pai está em casa? — Falando em um tom mais baixo e
franzindo o cenho em repulsa, perguntei.
— Não, querida, hoje ele não está.
Suspirei aliviada, um pouco mais confortável por poder transitar
livremente pela casa, sem o risco de cruzar com o coroa.
— Ah, que bom!
E eu nem me importava em deixar totalmente evidente que não
gostava da presença dele ali, fosse para Evangeline ou para qualquer outra
pessoa.
Assim, fazendo meu caminho de novo, subi as escadas rumo ao meu
quarto. Porém, quando entrei ali, eu não podia me enganar. Merda, eu não
podia. Ainda olhei para a porta do meu banheiro e a vontade de ficar de
molho na minha hidromassagem queimou dentro de mim. Só que, apesar
disso, um desejo muito maior formava quase labaredas dentro do meu
corpo. Ou melhor, dentro da minha consciência. Caralho, onde eu estava
com a minha cabeça? Na verdade, eu sabia, sim, onde eu estava com a
minha cabeça.
A minha cabeça estava na Xena.
Por mais ridículo que isso fosse.
Ainda fui e voltei, fechei a porta do meu quarto e caminhei de um
lado para o outro, pensei umas vinte vezes se eu deveria realmente
continuar com aquela estúpida busca desenfreada sobre informações de
alguém que não tinha nada a ver comigo, até que, enfim, me dei conta de
que a rendição era uma realidade. Uma realidade muito maior do que a
minha pouca força de vontade para parar. Uma lástima, mas, ainda assim,
uma realidade.
Porra, eu nem sabia direito o que eu estava fazendo, só queria
saber mais a respeito da sua vida. Será que era o meu espírito de
fofoqueira? Sim, só podia ser isso! Eu era uma fofoqueira de primeira!
E foi nesse pensamento que eu me agarrei para não odiar a mim
mesma por estar tendo uma atitude tão desprezível ou para não parecer
louca. Pior: para não parecer uma stalker tipo o You daquela série!
Ah, merda.
Foda-se.
Não dava para evitar. Era só o meu espírito de fofoqueira. Só isso.
Então, apenas levantei a tela do notebook e, me forçando para não
ser como o tal Joe Goldberg que perseguia mulheres, abri o Google e, em
meio a uma das maiores epifanias de loucura da minha vida, digitei
“Policial Scott Las Vegas”. Eram absolutamente as únicas informações,
sobre ela, que eu tinha até aquele momento. Nem o seu primeiro nome eu
sabia. Afinal, todos a chamavam de Scott.
Foi aí que, rapidamente, o resultado da pesquisa apareceu. Eu não
fazia ideia se haveria qualquer coisa a respeito dela ali. Não sabia nem se
ela era uma policial, de fato, conhecida em Las Vegas. Porém, à medida que
fui rolando a tela, manchetes de jornais começaram a pipocar, frente aos
meus olhos, com uma série de informações que chamariam a minha atenção
de longe.

“Policial Scott recebe menção honrosa por atuar em operação que


libertou reféns e prendeu, em flagrante, os assaltantes que invadiram loja
na Las Vegas Boulevard.”

“Em grande operação da polícia de Las Vegas, Policial Scott


comanda grupo de agentes que desmontou um dos maiores esquemas de
comércio ilegal em cassinos da cidade.”

E não eram apenas essas duas manchetes, haviam muitas outras. O


que só me provava uma coisa: eu estava enganada quando achei que Scott
pudesse não ser conhecida em Las Vegas. Aparentemente, ela era uma das
policiais mais renomadas dali. Confesso que, no fundo, por mais que eu não
quisesse reconhecer, fiquei bastante admirada com isso. E mais admirada
ainda quando abri uma das muitas reportagens, para ler.

“Autor da ‘Menção Honrosa’, o prefeito de Las Vegas fez a entrega,


nesta semana, à comandante da operação, policial Zara Scott, e aos outros
quatro agentes que participaram da prisão dos criminosos que mantiveram
reféns, durante seis horas, vendedores e clientes em uma loja de jóias na
avenida Las Vegas Boulevard. Durante a ação criminosa, os acusados
agiram com extrema violência e com ameaças de morte às vítimas. Duas
mulheres chegaram a passar mal e tiveram de receber atendimento médico-
hospitalar logo depois de serem libertadas. O prefeito não somente
parabenizou a equipe que atuou nesta ocorrência, como também destacou o
trabalho de todos os policiais que cotidianamente colocam a vida em risco
para garantir a segurança da sociedade.”

Na reportagem ainda havia uma foto dela, ao lado dos outros


policiais, segurando o tal certificado de menção honrosa. Vestia sua farda, e,
no rosto, mantinha aquele sorriso... Aquele sorriso discreto e, ao mesmo
tempo, orgulhoso. Tão... Bonita. Ai, porra, eu estava achando mesmo a
Xena bonita. E, bom, isso deveria ser normal. Eu achava mulheres bonitas
naturalmente, mesmo que não tivesse qualquer interesse sobre elas.
Mas, com a Xena... Com a Xena parecia diferente.
Engoli seco. Principalmente, ao sentir meu peito estranhamente
aquecer quando o meu subconsciente soprou em meus ouvidos algo como
“essa mulher é foda...”. E, dessa vez, por mais incrível que isso pudesse
parecer, eu não quis contestar aquele espertinho tagarela. Ela parecia ser
foda mesmo. Uma mulher-maravilha. Uma mulher maravilha falsificada,
mas, ainda assim, uma mulher-maravilha.
E mais... Ela se chamava Zara.
Até então, eu só a conhecia como Xena.
Foi aí que eu, em mais um rompante de quase completa insanidade,
puxei meu celular de dentro da bolsa e abri no Instagram. Praticamente
cega, sem olhar ou prestar atenção em qualquer outra coisa, fui diretamente
na lupinha, com uma sede, uma sede tão louca e insaciável, e digitei “Zara
Scott”.
Como se o universo estivesse me dando uma mãozinha para ser a
nova protagonista de You, eu não demorei a achar o seu perfil. Era um dos
primeiros. Afinal, seu nome não era muito comum. E, para a minha
completa e esquisita felicidade, o perfil estava aberto. Com o peito aquecido
e o coração acelerado, mesmo sem justificativa plausível para isso, fucei as
suas fotos.
E, Deus, debaixo daquela farda... Ela parecia outra mulher.
Eu não podia mentir, para mim mesma, que a primeira coisa que eu
procurei foi qualquer sinal de que ele tivesse, de fato, uma namorada. Que
caralho estava acontecendo comigo, eu ainda não sabia, mas também não
pude evitar. E pior ainda foi o alívio que eu senti por não encontrar qualquer
pista a respeito disso. Eu estava pirando. Mais ainda, né? Porque
naturalmente eu já era louca. No entanto, a Xena não parecia estar em
algum relacionamento sério.
Talvez Nick estivesse se referindo às ficantes que não eram
namoradas de fato.
A maioria das suas fotos era com o filho, algumas com a família,
que eu imaginava ser seu pai e sua mãe, e outras com duas amigas, que,
aparentemente, viviam grudadas nela. Porém, o que realmente reteu a
minha atenção foi notar o quanto ela conseguia ser ainda mais bonita do que
em todas as vezes que eu a vi na penitenciária. De cabelos soltos e
volumosos, roupa casual e sorriso verdadeiro no rosto, aquela era a Zara, e
não a Xena. Eu já achava a soldadinha gata, usando sua farda de policial,
com os óculos escuros e o coldre de perna onde jazia a sua pistola. Mas, ali,
entre amigos e com a família, ela parecia impecável.
Zara não era apenas bonita. Ela também era sexy.
Ridiculamente sexy.
Vamos tirar essa roupa primeiro

Agatha

Não, eu não estava fazendo corpo mole para a merda daquela obrigação
que eu precisava cumprir diariamente, nem me esvaindo da minha
responsabilidade, por mais que esse fosse o meu maior sonho desde que o
maldito delegado me informou sobre o meu destino dos próximos seis
meses. Acontece que, naquela manhã, um absoluto rio de águas vermelhas
decidiu jorrar por entre as minhas pernas. Eu juro. Eu estava uma completa
confusão. Parecia que, a cada menstruação, um caminhão tinha passado por
cima de mim.
Minhas olheiras sempre ficavam mais profundas e eu me sentia
muito mais sonolenta que o normal. Minhas pálpebras pesavam trezentos
quilos, quando eu abria os olhos, depois daquilo que deveria ser o meu sono
da beleza, mas que, no fim das contas, só fazia eu me sentir mais morta.
Além das espinhas que sempre estouravam, na minha cara, durante esse
período, por mais skin care que eu fizesse. Nesses dias do mês, eu até
poderia concordar com o meu pai, quando ele me chamava de feia. Isso
sem falar na dor de cabeça, nas dores infernais no final da minha barriga e
na vontade de me enterrar na cama a cada pontada de cólica que eu sentia.
Eu juro que eu sentia muita dor quando estava menstruada.
Às vezes, uma dor descomunal.
Era tipo uma amostra grátis de parto, sabe?
Uma maravilha, argh!
Mesmo que aquele fosse o único dia, desde o primeiro de trabalhos
comunitários, em que eu milagrosamente não tinha acordado atrasada, eu
não estava com uma grama de vontade de pegar um ônibus lotado, passar
uma hora em pé e ainda enfrentar um dia inteirinho de faxineira. Sério. Eu
queria chorar, eu queria brigar, eu queria me estressar, eu queria ficar triste,
eu queria rir da minha própria desgraça. Tudo ao mesmo tempo. Nem eu
estava me entendendo. A minha TPM estava gritante. E meu cabelo estava
horrível! Bufei ao constatar isso, enquanto, frente ao espelho do meu closet,
passava a escova, na tentativa de deixá-lo minimamente decente, e via a
Evangeline por ali, pendurando algumas roupas limpas nos cabides.
Quase choramingando, eu disse:
— Eva, não quero ir...
Ela suspirou, balançando a cabeça de leve.
— Querida, você precisa ir.
Que merda.
Eu não precisava não!
Quero dizer...
Sim, eu precisava sim... Inferno.
— E se eu meter um atestado? — Em pura expectativa, perguntei,
arqueando as sobrancelhas e praticamente sorrindo para ela, por ter tido
aquela ideia brilhante, como uma luz no fim do túnel.
Eva, no entanto, virou para mim, aproximando-se, tocou meus
ombros e, em certo tom de repreensão, replicou, ao me encarar pelo reflexo
do espelho:
— Agui... Menstruação não é doença. Você tem vinte e dois anos, e
já está bem acostumada com esse acontecimento mensal desde os catorze.
Então, trate logo de ir, antes que se atrase. Quanto menos você faltar, mais
rápido você vai concluir esses dias e meses de trabalho, han? Força,
Aguinha! — e apertou meus ombros, em uma tentativa de me encorajar.
Expirei o ar pesado dos meus pulmões.
Fora o atestado médico, ainda cheguei a pensar em algumas
alternativas mais desesperadoras, tipo ligar para a Xena ou mandar uma
mensagem, dizendo que fui atingida por um raio cósmico e depois abduzida
por extraterrestres, ou sei lá. Mas, nem o maldito número do seu celular eu
tinha. Não que eu fizesse questão de tê-lo, claro, mas, nesses momentos,
poderia ser necessário.
Mesmo assim, o pior era que Evangeline estava certa. Se eu entrasse
numa de faltar o tempo inteiro, aqueles seis meses poderiam se transformar
em sete, oito, ou até um ano. E eu jamais, jamais mesmo, aguentaria um ano
naquele inferno. De um jeito ou de outro, eu precisava cumprir os cento e
oitenta dias da melhor maneira que eu conseguisse para não me foder ainda
mais depois.
Portanto, respirando fundo e buscando forças sabe-se lá de onde, eu
disse:
— Tudo bem, Eva. Vou lá, botar fogo nessa penitenciária. Deseje-
me sorte.
Coloquei um estoque exagerado de absorventes na bolsa, passei
gloss na boca e fui.

✽✽✽

Aparentemente, o mundo ficava mais estressante quando se estava


menstruada. Tipo assim, um caos! Apesar de eu não estar atrasada, eu juro
que aquele foi o dia em que eu mais pedi aos céus para que o percurso do
ônibus encurtasse ou que o motorista metesse o pé na tábua. Ficar de pé,
segurando e mantendo o equilíbrio naquelas barras de ferro, frente a uma
lotação, se tornava ainda mais doloroso quando se estava sangrando.
Homens jamais entenderiam isso.
Ainda assim, consegui chegar viva, e sem pirar totalmente, à
penitenciária. Só de pensar no que eu ainda tinha para fazer até às dezesseis
horas, a vontade de chorar era real, principalmente com o nível de
sensibilidade ordinária que eu sentia naqueles dias do mês. No entanto,
empurrei goela abaixo qualquer mísero sinal de nó que pudesse subir pela
garganta, endireitei a minha postura o máximo que eu conseguia, para não
parecer uma grande perdedora, empinei o nariz, e entrei no covil de cobras.
— Bom dia, senhorita Ballard. Chegou na hora. Parabéns.
Foi a primeira coisa que eu ouvi.
Argh.
A mulher parecia que madrugava para chegar sempre antes de mim.
Workaholiczinha do caramba.
Rolei os olhos. Não exatamente pelo que ela tinha dito, mas
simplesmente por já estar ali. Droga, nem um único diazinho ela chegava
atrasada, para eu ficar, sei lá, uma ou duas horas, sem fazer nada naquela
penitenciária, porque estava sem a sua supervisão. Era claro que eu tinha
que bater justamente o carro na viatura da policial mais pateticamente
certinha de Las Vegas.
— No momento, não estou aceitando bajulações — repliquei,
despejando apenas zero vírgula dois por cento do meu estresse da TPM. —
Pode guardar saliva para comentários mais proveitosos, tipo um daqueles
em que você diz que eu estou liberada desse trabalho infernal, porque estou
menstruada.
Mais uma vez, aquele mísero e quase imperceptível sorrisinho
irritantemente irônico quis surgir em seus lábios.
— Infelizmente, senhorita Ballard, mulheres reais precisam
trabalhar até quando estão menstruadas. Seja bem-vinda a essa realidade.
Argh, eu merecia.
Além de tudo, ela ainda queria me passar uma lição de moral.
— Que seja, que seja... — Irritada, abanei uma das mãos, indicando
para ela pular esse assunto chato. — Me fala logo o que eu preciso fazer
hoje.
— Tudo bem — De pronto, replicou. — Vamos tirar essa roupa
primeiro.
Eu juro.
Não soube direito o que aconteceu, mas, por mais ridículo que isso
fosse, meu corpo inconscientemente travou ao escutar sua voz
pronunciando essas últimas cinco palavrinhas. Engoli seco, com o coração
meio acelerado em uma mistura de confusão comigo mesma e vergonha.
Porra, Agatha, você tá vacilando é? Franzi o cenho, não para ela, mas para
mim, e, então, percebi quando uma de suas sobrancelhas arquearam, em
meio ao olhar ambíguo que me dava.
Ela parecia ter entendido e, ao mesmo tempo, não ter entendido o
que eu tinha entendido e o motivo de eu ter travado assim. Era confuso, eu
sei, mas realmente era assim como eu captava a mensagem que as suas
orbes me davam. Confuso e vexatório. Vexatório, porque, se ela tivesse
compreendido aquilo, meu Deus... Em qual buraco eu poderia enfiar a
minha cabeça? Credo, Agatha, a que ponto você está chegando? Ridículo.
— Eu quis dizer para trocar a sua roupa pela farda, e não...
— Sim sim, eu entendi, eu entendi — respondi rapidamente, antes
que ela pudesse completar a frase e tornar aquilo ainda mais estranho do
que já estava sendo. Pigarreando a garganta e tentando endireitar a minha
coluna outra vez, continuei. — Bora logo — E segui na sua frente para o
banheiro das funcionárias, local onde já era de costume eu usar.
Porém, as coisas não pararam por aí.
Tudo se tornou ainda pior quando, naquele procedimento estúpido e
completamente desnecessário de todos os dias, sempre que eu chegava, ela
me revistou. Outra vez, senti minha pele esquentar nas exatas regiões por
onde as suas mãos firmes me tocavam. Inclusive, na região quase
interditada entre as minhas pernas. Ali ficou quente para um caralho. E olha
que ela nem se demorava nos toques. Não passava as mãos para sentir o
meu corpo, mas para sentir se eu guardava algo no meu corpo.
Mesmo assim, eu ainda conseguia ser estúpida o suficiente para
parecer que nunca nem tinha transado na vida.
Pelo amor de Deus... Logo com a Xena? Isso era fim de carreira.
Suspirei, tentando segurar a onda e não parecer ainda mais esquisita.
No entanto, refrear só parecia despertar outros efeitos em mim.
Repentinamente, dentro daqueles breves segundos de revista, as lembranças
das suas fotos, que vi ontem, pipocaram na minha cabeça. Seus cabelos, seu
sorriso, seus olhos, seu corpo... E o quanto tudo aquilo era bonito, por baixo
da maldita farda que já lhe deixava gata pra cacete. Tudo surgiu em mim
como uma avalanche imparável, durante instantes ínfimos que, no fundo,
pareceram uma eternidade.
Porra, Agatha.
Me empertiguei comigo mesma.
Só ouvi quando ela disse, por fim:
— Tá liberada. Pode entrar no banheiro.
E a sua voz combinava perfeitamente com a beleza de todo o
restante.
Meu Deus.
Eu só podia estar muito na seca.
Nota mental: transar com uma garota.

✽✽✽
Quando achei que aquela sensação dos infernos melhoraria apenas
pelo fato de eu ter entrado no banheiro e me distanciado dela por alguns
minutos, eu estava redondamente enganada. Claro, claro que eu estava
redondamente enganada. Claro que aquela merda não melhoraria. No
fundo, era como se o toque da Xena me desse algum gatilho, ou sei lá,
despertasse alguma coisa em mim, a ponto de eu não conseguir parar de
pensar nas inúmeras formas pelas quais aquela mulher conseguia ser bonita
apenas por dizer um mísero “a”, ou somente por existir e estar bem ali na
minha frente, atormentando os meus hormônios.
Enquanto ela me guiava pela penitenciária, caminhando à minha
frente, eu não sabia como fazer para tirar os olhos do seu corpo. Argh, que
merda. Mesmo que ela estivesse coberta por aquela farda, eu podia ver
claramente as suas curvas, a perfeição das suas pernas, a postura invejável
das suas costas e o formato arredondado da sua bunda. Engoli seco, sem
nem perceber. Eu estava perdida, eu estava me perdendo. Nem reparar nas
pessoas ao nosso redor, ou em qualquer outra coisa que pudesse estar
acontecendo na penitenciária, eu conseguia. Era apenas ela. Apenas a Xena.
Até que...
— Bom, hoje você pode começar os trabalhos varrendo o chão da
recepção — Repentinamente, sem eu estar esperando, ela virou-se para
mim e disse.
Foi muito mais rápido do que a minha consciência podia assimilar.
Porém, era o susto que eu precisava para acordar. Piscando os olhos
repetidas vezes, fitei-a e tentei enrijecer a compostura para não parecer
ainda mais estranha do que já estava sendo.
— É... — Pensa, Agatha, pensa! Só não continue com essa cara de
otária para ela! — Mas, eu já limpei esse chão ontem...! — Cruzando os
braços e ensaiando a minha melhor expressão de garotinha nojenta,
substitui a cara de otária pela minha usual cara de bosta e falei a primeira
coisa que surgiu na minha cabeça.
— Sim, exatamente — replicou com obviedade. — Isso foi ontem.
Hoje é outro dia e precisa de outra limpeza.
Argh!
Com aquela sua personalidadezinha insuportável de masoquista, era
quase impossível não voltar a ser a Agatha de sempre, em dois tempos.
Rolei os olhos. Dessa vez, não por estar fingindo qualquer coisa para não
parecer uma bobona enquanto a observava, mas simplesmente por quase
não aguentar as ordens que me dava.
O que tinha de bonita, tinha de chata.
Já foi logo me empurrando a vassoura, o esfregão e todos os outros
materiais de limpeza, antes que eu dissesse qualquer coisa, e, então,
completou:
— Como não estamos nas celas, não há a necessidade de eu
acompanhá-la o tempo todo. Você sabe, aqui na recepção é mais tranquilo.
Então, vou resolver algumas coisas na penitenciária, mas pode começar. E
não transite, nem saia daqui para qualquer outra parte, sem o meu
consentimento.
Ah, aquele jeitinho de mandona do meu ódio...
Ofereci o meu melhor e maior sorriso irônico, dizendo:
— Sim, senhora. Mais alguma coisa? Quer me colocar dentro de
uma gaiola também e me alimentar à base de petiscos e alpiste?
Ela apenas ergueu uma das sobrancelhas para mim e respondeu:
— Bom, eu preferia que a senhorita estivesse cumprindo a pena em
detenção, presa em uma daquelas gaiolas da ala feminina mesmo. Assim, eu
não precisaria lidar agora com uma garotinha sem noção e estaria
trabalhando em serviços muito mais importantes para minha carreira do que
esse.
Foi tudo o que ela disse, segundos antes de se afastar e me dar as
costas.
Garotinha sem noção...?!
Então, era isso o que eu para ela?
Meu queixo despencou em pura exasperação, ao ouvir aquelas
palavras. Tão descarada! Como ousava falar comigo daquele jeito? Eu não
era uma garotinha sem noção! Não era mesmo! Talvez só um pouco... Ainda
escutei o meu subconsciente sussurrar isso em meus ouvidos, mas não dei
atenção a esse filho da puta tagarela. Bufei. Era muita cara de pau mesmo,
me acusar de uma tal de “inha” e sair daquele jeito, sem nem me dar a
oportunidade de lhe devolver uma resposta bem malcriada.
Sentindo os meus olhos queimarem de raiva, ainda pude
acompanhá-la se distanciar dali e sumir por entre uma das portas da
administração da penitenciária. Saco. A Xena escapou, mas, na primeira
oportunidade que eu tivesse, ela ia me ouvir. Ah se ia. E eu não tinha medo
dela ser uma policial. Claro que não tinha. Era justamente esse meu total de
zero medo que me fez estar ali, naquele exato momento, espanando um
covil de cobras e aturando a própria cascavel.
Com todo o meu ódio e a minha ínfima vontade de fazer malditos
trabalhos comunitários, me virei e comecei a varrer o chão. Empurrava as
cerdas da vassoura bruscamente, por ali, como se, de algum modo, aquilo
pudesse inutilmente aliviar o meu estresse. Era TPM, Xena, penitenciária.
Tudo ao mesmo tempo. E eu ainda tinha que aguentar os outros
funcionários que passavam por ali e me davam olhares de julgamento pela
maneira nem um pouco convencional e jeitosa com a qual eu limpava a
recepção.
Ah, foda-se! Eu não estava nem aí para qualquer um deles.
Não eram eles que pagavam as minhas contas.
Podiam olhar, julgar, fofocar. Eu não estava nem aí.
Assim, eu passei longos minutos ali. Varri, passei o pano e, agora,
encerava o chão. A cada força que eu fazia para passar a cera com minha
própria mão e a porcaria de um paninho, era um jato daquele rio vermelho
que escorria. Porra. Eu queria estar em casa, deitada na minha cama, até
aquilo parar de descer. Mas, não. Eu tinha que ficar naquela merda,
lambendo aquele chão, até às dezesseis horas.
Eu jamais me perdoaria por ter saído para a balada naquela noite.
Expirei o ar pesado dos meus pulmões e, na força do ódio, continuei
passando a cera.
Porém, entre um esfregão e outro, um olhar displicente e outro, eu vi
algo que reteve a minha atenção. E reteve a minha atenção mesmo que eu
não quisesse. Porque não, eu não queria mais me importar, me interessar, ou
ficar curiosa sobre qualquer coisa que envolvesse a Xena, afinal, era só a
Xena (obviamente nada demais), mas, caralho, bastava eu ver uma
movimentação suspeita para que todas as minhas tentativas de me tornar
indiferente a ela caíssem por terra.
Aquilo me fez até retornar para aquele semblante de otária, que eu
não estava acostumada a ter, mas que, agora, parecia se tornar uma rotina
sempre que eu reparava em qualquer mínima coisa nela.
Depois de um tempão sem aparecer, ela surgiu ali na recepção.
Segurava um copinho de café na mão, enquanto soprava para resfriá-lo, e
conversava com ninguém menos que a bonitona morena e elegante do
estacionamento. Agora, eu conseguia vê-la mais de perto e constatar que a
mulher era realmente impecável. Elegante, fina e muito bonita. E, bem, era
totalmente perceptível que, ao passo que ela direcionava olhares frios e
formais para outras pessoas, a maneira como ela encarava Scott era bem
diferente.
Eu nem sabia descrever ao certo. Porém, tinha algo a mais. Algo
que, talvez, apenas os olhares mais atentos percebessem, mas que existia e
que eu notava. Vez por outra, ela tocava no braço da policial e deslizava
preguiçosamente por ali, enquanto conversavam. Scott, por sua vez, era só
sorrisos e risos para ela. Era como se fossem realmente íntimas, como se
estivessem acostumadas com aquilo, como se tocar no corpo da outra não
fosse novo e, sim, natural.
Será que ela era a tal “inspetola” Alexa que o Nick falou?
Minha cabeça tornou a martelar sobre isso. Ah não. Era mais forte
que eu. Mesmo que eu quisesse parar, todo aquele tsunami de curiosidade
me engoliu outra vez, a ponto de eu não conseguir mais desviar meus olhos
delas. E eu tentei. Eu juro que tentei. Voltei a encerar o chão, mas, de
instante em instante, era na direção delas que o meu rosto se erguia. No
fundo, eu sabia que estava observando-as como uma boba curiosa,
ajoelhada no chão, com um paninho numa mão e uma luva toda suja de cera
na outra.
A própria cinderela. Uma herdeira que virou gata borralheira.
Foi então que, de repente, a morena elegante virou displicentemente
para mim. No primeiro momento, não pareceu se atentar, mas, depois de
perceber que eu estava realmente olhando para elas, cravou as orbes sobre
mim. E não somente isso... Eu senti... Eu senti que ela me encarava como se
eu fosse um inseto nojento e perigoso ou como se eu estivesse com algum
tipo de doença contagiosa. Franziu o cenho e me fitou com total
superioridade.
A não ser quando era o meu pai a me olhar assim, isso nunca,
absolutamente nunca aconteceu comigo, mas, pela primeira vez, eu me senti
murchar e ficar pequenininha diante do olhar rígido de alguém. Porra, o
que estava acontecendo comigo? E pior foi quando, sem tirar os olhos de
mim, ela pareceu chamar a Scott e apontar com o queixo em minha direção.
Notei o momento em que as duas comentaram algo, enquanto me
observavam. Droga. Meu coração acelerou e, pela primeira vez, em muito
tempo, eu fiquei de fato absurdamente envergonhada.
Baixei o rosto, sem saber direito o que fazer ou para onde olhar, até
que, enfim, toda desajeitada, peguei novamente a cera e voltei a esfregar o
chão.
Droga, droga, droga.
Que merda era essa? Agatha Ballard nunca foi assim!
Suspirei, sentindo o peito ainda bater forte, e tentei me concentrar na
cera como se eu dependesse disso para viver. A vontade era de não olhar
para mais lugar algum, a não ser aquele maldito chão, até que não notassem
mais a minha presença ali. Ou melhor, até que eu me tornasse invisível.
No entanto...
— Está tudo bem, senhorita Ballard?
Sua voz soou perto de mim, enquanto esfregava o chão, ajoelhada.
Era a Xena.
Merda.
Viu só, Agatha? É isso o que você ganha por ser uma maldita
curiosa!
Tentando controlar aquele súbito nervosismo de uma figa, apenas
ergui brevemente o meu rosto para ela e disse bem rápido:
— Unhum.
Scott, entretanto, continuou me fitando com um semblante meio
desconfiado.
— Hum... É que te vi olhando para nós e pensei que pudesse estar
precisando de alguma coisa. Quer me falar algo?
A não ser o fato de eu estar precisando de um spa e de uma terapia,
não, eu não precisava de mais nada.
— Tá de boa, juro — Sucinta novamente, repliquei.
Por fora, eu era uma mulher de poucas palavras. Por dentro, eu
estava em polvorosa.
Só vi quando ela suspirou e, fazendo menção de se virar para sair
dali outra vez, falou:
— Então, tudo bem.
Porém, aquilo foi muito mais forte que eu. Maior que o meu receio.
No instante em que ela fez que ia me dar costas, eu não pude segurar.
Mesmo que a vergonha ainda me dominasse, aquilo saltou da minha boca
quase sem eu perceber:
— Aquela mulher... — Minha voz saiu um pouco mais alta do que
deveria. Pigarreei a garganta, entretanto, meio sem jeito, tentando falar um
pouco mais baixo. — Ela trabalha aqui?
A Xena, no entanto, franziu o cenho.
— Sim... — E a desconfiança não saía do seu olhar. Droga. Cacete
de mulher esperta — Por que?
Querida, nem eu sabia o motivo da minha curiosidade!
— A-Ahh... É-É... Po-Porque... — Pensa, Agatha, pensa. — Nã-
Não fomos apresentadas e... — falei a primeira merda que surgiu na minha
cabeça. — Ela parece ser uma pessoa importante aqui, alguma chefe, ou sei
lá...
Scott suspirou.
— Ela é a inspetora da penitenciária. Inspetora Westphalen.
Ai, meu Deus.
Tentei segurar minhas sobrancelhas que quiseram arquear com
aquela eureka.
Tipo inspetora de “inspetola”? Inspetola Alexa?
— E... — Merda, eu não consegui parar, mesmo que aquilo já
estivesse estranho demais. — Qual o primeiro nome dela?
Novamente, Xena enrugou a testa, ainda em meio àquele olhar
desconfiado, mas...
— Alexa. Alexa Westphalen.
Cacete, era ela mesmo!
Bingo!
Eu não estava enganada! Nick não tinha mentido!
A Xena pegava mesmo mulher, e ela ainda pegava a inspetora da
penitenciária.
Eu até tentei disfarçar, mas não soube bem como reagir àquela
informação, porque, depois de dias, a principal dúvida que, ultimamente,
rondava a minha cabeça estava sanada. E, no fundo, eu não sabia bem o que
sentir sobre isso. Aliás, eu deveria sentir alguma coisa? Na verdade, entre
nós, o que eu mais percebi, depois disso, foi um certo climão que ficou. Eu
não fazia ideia do que a policial estava pensando, mas não pude suportar
seu olhar suspeito sobre mim. Mesmo que eu já não precisasse encerar mais
nada ali, baixei a cabeça, como quem não queria nada, e voltei a esfregar o
chão.
Instantes depois, no entanto, só ouvi o momento em que ela quebrou
o silêncio:
— Acho que este chão já está mais do encerado, senhorita Ballard.
Terminou aí?
Saco.
Eu parecia uma pateta, sem saber como agir.
Apenas balancei um sim meio ligeiro demais com a cabeça.
— Ótimo. Me acompanhe. Hora de aspirar o sofá da sala de
administração.
Argh.
Ela não me dava um minuto de paz!
Infeliz.
Até agora eu não entendia o motivo do meu interesse em
informações sobre sua vida.
Scott era só uma chata.
Por pouco não revirando os olhos, enquanto o meu corpo já
quebrado e dolorido do serviço e da menstruação quase pedia por
misericórdia, me levantei do chão e a segui, carregando toda a tralha dos
materiais de limpeza.
Cruzamos o balcão da recepção e entramos na área administrativa.
Percorremos um corredor repleto de salas e passamos em frente à várias
portas, inclusive uma cuja placa estava escrito “Inspetora Westphalen”.
Provavelmente, aquele era o escritório da bonitona. Estava fechado, porém.
Então, eu não sabia se ela realmente estava ali naquele momento. O fato era
que nós só paramos quando alcançamos a última porta no final desse
corredor.
Scott abriu a sala e ligou a luz. Ao redor, era uma típica sala de
escritório. Havia um sofá no cantinho de uma das paredes, uma mesa de
trabalho com várias gavetas, um armário de arquivos e outra porta, ali
dentro, que dava acesso a sei lá o quê.
— Seu serviço será aspirar esse sofá — disse ela. — Não lembro a
última vez que aspiraram. Deve estar todo empoeirado. A tomada que está
mais próxima a ele é a que fica no banheiro. Você pode ligá-lo lá —
apontou. — E, bom, aqui também é tranquilo para a senhorita trabalhar sem
a minha supervisão permanente. Vou resolver mais algumas coisas aqui na
penitenciária e depois eu volto.
Vai resolver algumas coisas na sala da inspetora Westphalen?
Pensei, mas não disse.
— Ok.
Foi tudo o que eu falei, já exausta.
Ainda assim, era menos ruim aspirar um sofá do que esfregar chão e
desentupir privadas. E, já que eu era obrigada a fazer aquilo, eu não tinha
para onde correr. Minha única alternativa era respirar fundo e tentar
sobreviver até o fim.
Quando Scott cruzou a porta, peguei o aspirador de pó, que já estava
ali, e entrei no banheiro com ele. Me abaixei para colocá-lo no chão, inseri
o fio na tomada e apertei no botão de ligar. No entanto, quando ergui o meu
rosto e vi o meu reflexo no espelho, eu não consegui pensar em outra coisa
a não ser na tragédia ambulante que eu estava. Pelo amor de Deus, aquela
menstruação estava acabando comigo. Nem a maquiagem estava dando
jeito nas orelhas e... Meu Deus, o que era aquilo? Abri a boca,
completamente perplexa.
Aquilo era uma espinha?
Uma espinha imensa e horrorosa no meu rosto?!
Meu Deus, eu tinha uma espinha?!
Sim, não era algo fora do comum aparecer espinhas durante a
menstruação, mas... DAQUELE TAMANHO? Daquele tamanho não!
Socorro. Toda atarantada, coloquei o cano do aspirador ligado, ali por cima,
e toquei meu rosto, avaliando melhor aquela merda que ele estava. Cacete,
uma destruição total. Só podia ser aqueles malditos hambúrgueres
gordurosos e oleosos que eu estava comendo todos os dias em forma de
almoço.
Inferno.
Porém, do nada, eu disse do nada, algo ainda mais assustador
aconteceu.
O aspirador simplesmente fez um barulho feio e começou a
convulsionar sobre a pia, como se estivesse possuído. Meu Deus do Céu,
que porra era essa? Quando olhei com mais atenção, percebi que ele estava
aspirando a aguinha empoçada em cima da pia do banheiro.
Ai caralho!
Me desesperei e tentei desligá-lo.
Entretanto, no momento em que tentei fazer isso, seus estalos se
tornaram ainda piores, a ponto dele começar a faiscar. Puta que pariu, a
merda tava pegando fogo! Ai meu Deus, ele estava vivo. Estava possuído!
Me desesperei muito mais. O fogo se tornou maior.
Eu queria gritar.
Eu queria correr.
Mas, tudo o que eu consegui fazer, para parar o fogo, foi ligar a
torneira da pia e jogar ainda mais água em cima dele.
BUM!
Instantaneamente, ouvi um estrondo ensurdecedor ali dentro do
banheiro seguido de um completo apagão. O fogo parou, muito embora a
podridão de queimado estivesse por todas as partes. As luzes, entretanto, se
apagaram e a energia acabou.
Eu. Estava. Completamente. Em. Choque.
Meu queixo batia lá no chão, em meio ao completo breu.
Queimei... Queimei o aspirador? E acabei com a energia da
penitenciária?
Droga, quando eu disse para a Evangeline ia botar fogo na
penitenciária, não era no sentido literal!
Foi aí que eu vi a Xena entrar ligeiro no banheiro, tão boquiaberta
quanto eu, e dizer:
— O que você fez dessa vez?
Pensando nela

Agatha

— Eu... E-Eu... — balbuciei, ofegante, ainda abismada e boquiaberta


com o que aconteceu. Meu cu estava na minha mão. — Eu... — olhei de um
lado para o outro, tentando entender aquilo e formar uma frase coerente em
meio a tantos pensamentos confusos. Eu, porém, não soube o motivo.
Talvez fosse o susto, ou a certeza de que eu realmente fiz uma grande
merda, ou apenas o fato de eu estar com uma fodida e monstruosa TPM.
Simplesmente comecei a chorar como uma idiota. Abri o berreiro. — Ai, eu
não sei fazer nada direito! — disparei, soluçando. — Eu sou uma burra!
Eu... — ofeguei, desesperada. Nem eu mesma entendia o nível daquele meu
desespero. — Eu fui ligar o aspirador, aí coloquei na tomada e apertei o
botão, aí no espelho eu vi uma espinha enorme e horrorosa no meu rosto, aí
eu fui olhar com mais calma e coloquei o aspirador em cima da pia, aí eu
não vi que tinha uma pocinha d’água, aí ele começou a aspirar a água, aí
fodeu tudo! — E continuei berrando e soluçando, pouco me dando conta da
vergonha que eu estava passando por chorar daquele jeito.
A quantidade de “aí” que eu falei... Igualzinho uma criança.
— Senhorita Ballard... — Só notei quando ela se aproximou um
pouco mais de mim. Sua respiração um pouco tensa. Agora, porém, já não
parecia ser por causa do estrago que eu fiz, e, sim, pelo estado deplorável
que eu me encontrava. — Acalme-se, senhorita Ballard.
Contudo, eu só conseguia chorar mais e mais. Talvez eu estivesse
colocando para fora todo o meu estresse dos últimos dias.
— Aaaaaahhh, eu sou imprestável! — esfreguei o rosto, fungando e
chorando.
Bem dramática mesmo. Mas, enfim, eu era assim.
Tantas lágrimas que eu mal conseguia enxergar um palmo à minha
frente.
Ouvi, entretanto, quando Scott suspirou mais profundo.
— Senhorita Ballard... — tentou novamente.
Eu nem prestava atenção ou deixava que ela dissesse qualquer coisa,
apenas continuava em puro estado de choque e de chilique.
— Eu não presto para nada! Era melhor que estivesse presa
mesmo...! Talvez, assim, eu não fizesse tanta merda! Meu Deus, eu sou
horrível! É exatamente isso o que o meu pai me diz e ele tem toda, toda,
razão! — Berrando, eu falava.
De súbito, no entanto, Scott quebrou completamente a distância
entre nós e...
— Senhorita Ballard...! Acalme-se. — Segurou firme o meu rosto
entre as suas mãos, encarando o fundo dos meus olhos. Foi aí que eu
simplesmente travei. Até o choro cessou. Espantada comigo mesma e com
todas as reações que o meu corpo demonstrou somente para mim, em um
nanossegundo, apenas por causa do seu toque, eu parei. Porra, o que aquela
mulher fazia comigo? — Não precisa ficar assim. Não se preocupe. Respire
com calma.
Era estranho demais.
Poderia ser com qualquer outra mulher. Sim, claro que podia. Eu já
estava acostumada a sentir atração por garotas. Mas, com a Xena? Por
que eu tinha aquela sensação por ela? Justo a mulherzinha irritante que me
prendeu e me fazia esfregar chão e desentupir privadas?
Enquanto ela mantinha o meu rosto entre as suas mãos e me
observava de maneira tão detida, porém, eu só conseguia me lembrar de
coisas que eu adoraria esquecer. Me lembrava do quanto estava interessada
em sua vida, do quanto fui uma stalker na noite anterior e do quanto ela
conseguia ser estupidamente bonita vestida ou não naquela fardinha de
policial.
A mulher era um espetáculo.
Por mais que eu não quisesse admitir isso, ela era um espetáculo.
— Está tudo bem, certo? — Em um tom curiosamente suave, ela
tornou a falar, frente ao meu silêncio e completo estado de leseira. — Eu
vou conversar com a inspetora e o restante da Administração. Vamos dar
um jeito nisso e tudo vai se resolver da melhor forma.
Scott nunca tinha usado aquele tom na minha frente.
Sua voz tão bonita e calma, falando daquele jeito comigo pela
primeira vez, só me causou uma série de pensamentos confusos. Inclusive,
aqueles que gritavam na minha cabeça sobre o quanto a tal inspetora, que
ela tinha acabado de mencionar, era tremendamente sortuda. Suspirei, ainda
boba. E, então, quando eu quis responder algo...
— AI CACETE! — arregalei os olhos e exclamei, ao sentir uma
súbita e enorme pontada na barriga.
Que porra era essa?
E não, não parou. Muito pelo contrário. A dor absurda e incômoda
continuou e parecia gradativamente aumentar. Merda, merda, merda. Como
reflexo, pressionei as mãos no exato local, tentando fazê-la parar, quase me
espremendo e curvando o meu corpo, mas era mesmo que nada. Nada dava
jeito naquilo. Eu já era acostumada a sentir muitas dores de cólica, quando
estava menstruada, mas não daquela maneira.
— O que houve, Agatha? — Com o cenho franzido em total atenção
a mim, ela perguntou.
Era a primeira vez que ela me chamava pelo meu primeiro nome.
Eu quis me afetar com isso, mas a dor, droga, a dor não me deixava prestar
muita atenção em outra coisa que não fosse naquelas malditas pontadas.
— Aiaiai, num sei, num sei... — Já sentindo o desespero se apoderar
de mim outra vez, tornei a passar vergonha chorando como uma bebê. —
Eu não sei de nada. A única que sei é que essa porra tá doendo muito...! —
Toda espremida, enquanto curvava meu abdômen, falei.
— Meu Deus... — ouvi quando ela sibilou, ao soltar o ar dos
pulmões e, aparentemente preocupada, balançar a cabeça. — Como é essa
dor? Consegue me dizer?
— Ai, eu não sei... Não sei, cacete — choraminguei. — Talvez
tenha a ver com a menstruação, mas não tenho certeza. A única coisa que
eu sei é que preciso me sentar ou me deitar, porque não estou aguentando
ficar em pé.
Foi aí que a porta do banheiro, de súbito, se abriu. Não que eu
conseguisse me atentar para muitas coisas naquele momento, mas não pude
deixar de perceber quem entrou ali. Era a tal inspetora Westphalen, em toda
a sua postura séria e rígida, de sempre, para qualquer pessoa que não fosse a
Scott.
— O que está acontecendo? — perguntou diretamente à policial.
— Houve um acidente com o aspirador de pó. Provavelmente, a
energia da penitenciária entrou em curto-circuito. Sei que pode resolver
isso, Westphalen. O problema mesmo é que a garota começou a sentir uma
dor forte. Não por conta do acidente, mas por algum outro motivo que
precisamos descobrir. Vou levá-la agora ao médico, tudo bem?
Apesar da forma como ela disse, no entanto, aquilo não parecia um
pedido de permissão, mas simplesmente um aviso.
— Ao médico...?! — questionou em um tom que quase não
escondia que ela não tinha gostado nem um pouco da ideia. — Zara, você
não tem a obrigação de levar a garota ao médico. Esse não é seu trabalho.
Temos agentes aqui que podem fazer isso no seu lugar.
Scott, entretanto, suspirou, meio impaciente, enquanto eu, pedindo
aos céus para sair logo dali, tentava segurar as pontas de alguma forma.
— Mas, Alexa, eu quero — respondeu firmemente. — Eu quero
levá-la. Ainda tenho horas extras disponíveis no meu banco de horas, que
podem ser utilizadas e descontadas. Mesmo assim, se preferir, posso ficar
aqui até mais tarde, ou chegar mais cedo, durante essa semana, para cobrir
esse tempo. Agora, por gentileza, com licença. Precisamos ir.
Não consegui nem enxergar a cara que a inspetora fez, mas isso foi
tudo o que Scott disse, segundos antes de passar um dos meus braços por
seus ombros e me ajudar a caminhar para fora do banheiro e da
penitenciária.

✽✽✽

Eu não me liguei em muitas coisas, até chegar ao hospital. Tudo o


que eu conseguia pensar era na melhor e mais confortável posição para eu
me sentar sem querer morrer. Ainda assim, reparei em coisas que não me
poderiam passar despercebidas. Scott não escolheu algum carro da polícia
ou da penitenciária para me levar, ela usou aquilo que eu imaginei ser seu
próprio carro. E dirigiu muito, muito, rápido. Não vi quantos quilômetros
por hora, mas ela não parecia se importar em estar correndo, ou quase
voando, naquele momento.
No seu rosto, vez por outra, quando meu olhar meio atordoado
recaía sobre ela, eu podia ver a preocupação estampada. E, no fundo, por
mais esquisito que pensar assim pudesse parecer para mim, não era como
uma preocupação qualquer. Era uma “Senhora Preocupação”. Eu nunca a vi
daquele jeito, nem com aquele semblante. Aliás, somente naquela manhã,
foram muitas primeiras vezes, incluindo o seu tom brando, ao tentar me
acalmar, durante aquele papelão dentro do banheiro.
Assim que entramos no hospital, tudo aconteceu muito mais rápido
do que eu podia imaginar. Eu não sabia se era porque Scott já era conhecida
por ali ou se apenas a sua autoridade de policial fazia com que todos se
curvassem aos seus pés. Mas, médicos e enfermeiros me atenderam às
pressas quando Scott simplesmente bateu com a mão sobre o balcão da
recepção. E detalhe, o hospital estava lotado. O médico principal, que me
atendia, nem me levou a um consultório. Era como se, apenas de olhar para
mim, ele já soubesse o que estava acontecendo.
Ele me colocou em uma cadeira de rodas e, com ajuda de
enfermeiros, já me medicou ali mesmo, com aquilo que eu imaginava ser
um analgésico. Todos estavam mais eficientes do que quando eu ia até
mesmo com o meu pai, que tinha dinheiro para comprar o próprio hospital.
Tudo realmente aconteceu muito rápido. Depois da medicação, fizeram uma
bateria de exames em mim, desde exames de sangue até ressonância
magnética. Era como se eu tivesse pego uma senha de prioridade, porque
filas eu não enfrentava. No fundo, eu só podia imaginar que isso era efeito
da policial. E, bom, ela me acompanhava o tempo inteiro.
Ao final de tudo, o médico me falou que eu deveria aguardar alguns
minutos pelos resultados. Enquanto isso, me colocaram em uma sala,
sentada sobre uma poltrona bem estofada, recebendo mais remédio e soro
na veia. Naquela altura, depois de tanta medicação, felizmente eu já não
sentia mais dor nem na unha. Eu não fazia ideia de quantos minutos ou
horas eu já estava ali dentro, embora todos os procedimentos tenham sido
ligeiros, mas foi tempo suficiente para que os remédios agissem.
Scott, no entanto, continuava ali por perto. Sempre parada em frente
à porta de qualquer sala que eu estivesse, naquela típica postura formal e
séria de policial. Costas eretas, queixo erguido e mãos atrás do corpo.
Impassível. Seu semblante fechado não me dava pistas do que pudesse estar
pensando. Vez por outra, olhava para mim, como se quisesse se certificar de
que eu estava viva. No entanto, não me dirigia à palavra. Não me falava
coisa alguma. No fundo, eu sentia que ela queria manter alguma distância
de mim, ou, sei lá, parecia perigoso ficar perto demais.
Mas, eu só me perguntava...
Por que não se sentava perto de mim? Aliás, eu queria que ela se
sentasse perto de mim? Ou pior... Será que eu estava com alguma doença
contagiosa, para que ela agisse dessa forma? Meu Deus, será?! Ai, porra,
era agora que eu ia morrer?!
Me empertiguei com as inúmeras possibilidades sórdidas que
cruzaram os meus pensamentos e comecei a ofegar de novo. Eu precisava
de respostas. Não aguentaria mais muito tempo sem saber o que eu tinha.
Inquieta me remexi sobre a poltrona, enquanto os remédios ainda entravam
pela minha veia. Eu já tinha um histórico de preocupações com saúde,
afinal de contas. Odiava hospitais e sempre pensava o pior quando sentia
qualquer tipo de dor. Era uma vergonha, mas, ainda assim, real.
— Hey...! — gritei em um sussurro, na direção da Xena. Ela, porém,
continuou paradinha do lado de fora da porta, olhando para o corredor. Não
parecia ter ouvido. Argh. — Ei! Psi! — e tentei outra vez. Eu tentaria até ela
me olhar. — Ei! Scott!
Foi aí que ela finalmente virou o rosto para mim. Com o cenho meio
franzido para a minha inquietação, me encarou e se aproximou finalmente.
— O que houve, senhorita Ballard? — perguntou, ao entrar na sala.
Ah, então, agora ela tinha voltado a me chamar de senhorita
Ballard? Eu gostei de ouvi-la pronunciar meu primeiro nome... No fundo,
era como se ele combinasse com a sua boca... Porque a sua boca era
realmente bonita, assim como o conjunto completo da obra e...
Ai, Agatha, pare já com isso. Argh. Foco, garota, foco.
Suspirei.
— É... — E, meio nervosa, comecei. — Você sabe quando o médico
vem aqui, para trazer os resultados dos exames?
— Não me deram um horário — respondeu ela, rapidamente. —
Mas, acredito que logo ele estará aqui — E já ia se virando para sair dali.
Que porra era essa? Que diabos ela tinha para querer manter
distância?
Aliás, o que eu tinha para ela querer manter distância?
— Ei, pera aí! — exclamei, impedindo-a de continuar.
— Diga, senhorita Ballard... — Meio impaciente, retornou.
Argh, e não foi somente ela que retornou, mas aquele tonzinho
irritante também. Era tão melhor quando a sua voz falava suavemente
comigo, que nem quando ela tentou me acalmar no banheiro.
— É... — suspirei, ansiosa. A preocupação comigo mesma não saía
da minha cabeça. — O médico falou para você o que eu tenho? Olha só, se
ele tiver dito, eu não quero mentiras! — disparei. — Não quero mentiras,
nem nada escondido pelas minhas costas. Pode falar! Bora, desembucha! —
E despejei as palavras tão rapidamente que fiquei ainda mais ofegante.
Dessa vez, foi ela quem respirou fundo, como se tentasse manter a
calma comigo.
— Senhorita Ballard, o médico não me disse nada... Todas as
informações que eu tenho são as mesmas que você tem. Mas, sugiro que
fique tranquila e tente não sofrer por antecipação. Às vezes, nós mesmos
criamos problemas maiores do que realmente são.
Rolei os olhos.
Eu não tinha paciência para isso.
— Se esse cara demorar mais para chegar aqui, eu juro que vou ter
uma síncope!
Mesmo que ela tentasse disfarçar, e conseguisse sempre fazer isso
com uma quase maestria, ainda pude vislumbrar, apesar de minimamente,
um meio sorriso surgindo nos cantinhos da sua boca. Engraçadinha... Ela
me achava com cara de palhaça? Isso era só o meu humor. Nada demais.
Porém, quando eu quis falar algo mais, a presença do dito cujo
cruzando a porta da sala, onde eu estava, me calou. O médico entrou ali
carregando alguns papéis e se aproximou de mim. Bem, seu semblante não
parecia suspeito. Não era como se ele fosse me falar algo sobre eu estar em
estado terminal. Mesmo assim, ainda continuei apreensiva.
— E, então, senhorita Ballard, como está? — Simpático e atencioso,
perguntou. — Ainda sente alguma dor?
— Não... — balancei a cabeça. — Não sinto mais dor. Estou bem,
na medida do possível. Só preocupada mesmo — confessei, e, então,
dramática, encarei-o de um jeito meio afetado, enquanto permanecia
sentada na poltrona. — Doutor, me fala logo. O que eu tenho?
— Bom... — suspirou. — Eu trouxe os resultados dos exames. Vou
entregar os papéis para a sua acompanhante — e ergueu à Scott, que os
segurou. — Depois você pode olhar com calma. Os exames apontaram para
as minhas suspeitas, especialmente a ressonância magnética e a
ultrassonografia. Você tem endometriose ovariana, senhorita Ballard.
Pera aí.
Endo...? Endo-o-quê?!
— Ai, meu Deus, doutor! — arregalei os olhos. — Eu vou morrer?!
Ele, no entanto, sorriu de leve, balançando a cabeça em negativo.
— Não, senhorita Ballard, não vai morrer. Pode ficar tranquila —
Simpático, respondeu. — A endometriose ovariana é quando há uma
modificação no funcionamento normal do organismo em que as células do
tecido que reveste o útero, o endométrio. Em vez de serem expulsas, como
acontece normalmente durante a menstruação, elas se movimentam no
sentido oposto e caem nos ovários ou na cavidade abdominal, onde voltam
a se multiplicar e a sangrar. É por isso que você sente tantas dores fortes
durante esse período do mês. No país, cerca de dois milhões de casos são
diagnosticados por ano. Então, infelizmente, é uma condição recorrente
entre as mulheres. Os sintomas tendem a melhorar com o passar dos anos, à
medida que a menopausa vai se aproximando. Mesmo assim, senhorita
Ballard, não se preocupe. Com o tratamento correto que eu vou passar para
você, logo estará livre de dores com a endometriose. No seu caso,
felizmente, a endometriose não é crítica. Até o momento, não será
necessária uma intervenção cirúrgica. Então, vamos tratar o caso,
inicialmente, com a administração de hormônios, através do uso de
anticoncepcionais, e analisar a evolução do quadro clínico. Naqueles papéis
que eu trouxe, já está a sua receita. Depois você pode verificar com calma.
Ingestão por via oral de apenas um comprimido por dia, tudo bem?
Recomendo também a ida ao ginecologista a cada seis meses, ou, no
máximo, uma vez ao ano, para que haja um acompanhamento. Mas, fique
tranquila, senhorita Ballard, está tudo sob controle. Muito em breve, suas
menstruações se tornaram bem menos dolorosas.
Eu juro, a maioria das coisas que ele falou parecia grego para mim,
exceto a parte sobre o uso do anticoncepcional para ajustar os hormônios e
as idas frequentes ao ginecologista. Querendo ou não, eu continuava
preocupada, achando que aquilo poderia acabar com a minha vida de
alguma forma. Assim, ainda meio receosa, perguntei:
— Tem certeza que é só isso, doutor? — Ele poderia estar muito
bem escondendo as coisas de mim, para dizer o diagnóstico pior à Xena,
assim como acontecia nos filmes e nas novelas. Eu já tinha conhecimento
de caso sobre isso, com a quantidade de séries que assisti desde criança. —
Olha só, se for coisa séria, se eu for morrer, pode me dizer logo! Eu sou
uma mulher forte! — E empinei o nariz.
Só ouvi a risadinha que ele soltou.
— Um dia, a senhorita, de fato, vai morrer, porque nenhum de nós
pode fugir disso — Em tom de brincadeira, replicou. — Mas, certamente,
não será agora, nem por causa da endometriose. Algumas vezes, a
endometriose pode causar o aparecimento de cistos nos ovários. Nesses
casos, há a possibilidade de intervenção cirúrgica para a retirada.
Felizmente, a sua endometriose não é crítica. Os focos estão mais
superficiais. Mesmo assim, faça consultas periódicas ao ginecologista e siga
o tratamento. Está tudo sob controle, senhorita Ballard. Fique tranquila.
Ah... Respirei fundo, um pouco mais aliviada.
Ufa.
Não era a situação perfeita, mas eu não ia passar dessa para uma
pior.
— E agora, o que eu preciso fazer? — perguntei, já querendo cair
fora dali. Sempre odiei hospitais. — Estou liberada ou vou continuar
tomando esse treco na veia?
— Bom, como a senhorita já está bem e a dor foi controlada,
termine esse tubo de soro, que já está quase no fim, e, então, está liberada.
Na receita, eu também prescrevi um analgésico que você pode comprar em
qualquer farmácia, para tomar, caso a dor persista quando chegar em casa.
Mesmo assim, se voltar a sentir qualquer sintoma persistente, pode retornar
ao hospital, que nós iremos atendê-la. Entendido, senhorita Ballard?
Perfeitamente.
Tudo o que eu mais queria era sair logo dali. E eu esperava que não
fosse para voltar à penitenciária. Pelo menos, não naquele mesmo dia.
— Entendido, doutor.
— Ótimo, senhorita Ballard. Tenha um bom dia — E, então, se
retirou.
Depois dele ter repetido umas trezentas vezes que estava tudo bem,
o mínimo que eu poderia fazer era realmente aquietar o meu coração.
Respirei fundo e permaneci ali, aguardando o medicamento terminar. O que
não demorou muito. Enquanto isso, Xena permaneceu no mesmo lugar que
estava antes do médico entrar, na porta. Foi só ele sair dali, para que ela
retornasse ao seu posto e à sua postura. Em pé, séria e calada, como sempre.
Somente quando uma enfermeira entrou na sala, para retirar o
acesso da minha veia, foi que Scott olhou para mim e se aproximou. Eu não
entendia o motivo dela continuar agindo daquele jeito. Afinal, o médico não
falou nada sobre doença contagiosa. Mas, mesmo que ela não fizesse isso
explicitamente, parecia querer distância como se eu realmente pudesse
infectá-la com algo.
Balancei a cabeça de leve, mesmo que eu nem entendesse o motivo
de estar meio irritada com aquilo, e suspirei, me forçando a não me
importar. Não era para isso me afetar de forma alguma. Scott deveria
continuar sendo indiferente para mim. Só que, infelizmente, não era isso o
que acontecia dia após dia, desde que entrei no inferno da penitenciária. Por
mais que eu não quisesse admitir, ela mexia com alguma coisa em mim,
embora eu não soubesse como isso poderia estar acontecendo.
Quando fui me levantar da poltrona, no entanto, uma surpresa.
Apesar daquela distância até então, ela segurou o meu braço, como se
tentasse me ajudar. Travei no ato, ao me erguer. Não exatamente por ela ter
me segurado, mas pela sensação que eu tive. Algo muito estranho só podia
estar acontecendo comigo. Era ridículo. A cada vez que essa mulher me
tocava, algo acontecia ou eu reparava em alguma coisa nela. Reparava no
quanto ela era bonita ou me lembrava do quanto ela conseguia ser
estupidamente atraente mesmo que fosse insuportável.
Novamente, minha pele formigou na exata região onde sua mão
estava. Era como se eu tivesse me tornado repentinamente sensível, a ponto
de não conseguir controlar reações idiotas e estúpidas que somente o corpo
de uma garota ainda muito inocente, o que não era o meu caso, poderia
sentir.
— Consegue caminhar sozinha ou precisa de ajuda também? —
perguntou ela.
Engoli seco, tentando minar os efeitos colaterais de Zara Scott sobre
mim, e, recuperando a minimamente postura, empinei o nariz.
— Pode deixar, estou bem — respondi ligeiro, em meio às
sensações. E já fui logo caminhando para fora dali.
Era estupidez, eu sabia disso, mas eu também tinha certeza de que,
se eu sentisse suas mãos em mim de novo, aquela sensação iria aumentar.
Era melhor evitar. E eu já me conhecia tão bem, a ponto de saber o que
aquilo poderia significar.
Fim de carreira. Você estava em fim de carreira, Agatha.
Cacete, eu precisava chamar alguma garota para a minha casa.
Enquanto eu caminhava pelos corredores, imersa na quantidade de
pensamentos embaralhados sobre tudo isso, entretanto, ouvi sua voz,
quando eu já estava dobrando o corredor em direção à saída do prédio.
— Ei... Precisamos pagar.
Pa-Pagar?
Foi aí que eu gelei. Claro, claro que precisávamos. Nos Estados
Unidos, talvez fosse preciso pagar até pela luva que o médico usava. Porém,
apesar de saber disso, ainda fiquei nervosa. Eu estava completamente lisa.
Meu pai não me deixou um centavo. E todo o mísero dinheiro em espécie,
que eu ainda tinha, só dava para pagar aqueles malditos hambúrgueres
gordurosos e oleosos da penitenciária, que eu chamava de almoço.
— É... É-É... — Até gaguejei, tentando processar aquilo e pensar em
alguma saída lógica. Nada vinha à minha cabeça, no entanto. — Será que...
— podemos fugir sem pagar nada? — Será que podemos pagar depois? —
sorri meio amarelo.
— Não, senhorita Ballard. Sabe que é preciso pagar tudo agora,
antes de ir embora.
Foi tudo o que ela disse, segundos antes de me dar as costas e
caminhar para o outro lado, em direção aos pagamentos. Droga, droga,
droga. Começando a ficar aflita com aquilo, não pude fazer outra coisa, a
não ser me apressar para acompanhá-la.
Será que eu já podia fingir um desmaio ou sei lá?
Não, era claro que eu não podia. Inferno. Eu estava em um hospital.
Qualquer fingimento de desmaio, poderia aumentar a conta em uns
quinhentos dólares.
Bufei.
Entretanto, quando chegamos ao balcão de pagamento e eu já estava
determinada a confessar a minha falência, Scott tirou uma carteira do bolso
da farda e sacou um cartão, praticamente me calando, mesmo que não de
maneira proposital. Só vi o momento em que ela disse algo para a
atendente, e a outra, muito eficiente para receber o dinheiro, passou logo o
valor total, que não era barato para os padrões de quem não tinha um
complexo hoteleiro, em Las Vegas, como herança.
— Você vai pagar? — Arqueando as sobrancelhas, incrédula, eu
perguntei.
— Não se preocupe — disse ela somente, séria como sempre, já
passando o cartão na maquineta.
Boquiaberta e quase sem conseguir conceber aquela atitude
totalmente voluntária, observei todos os seus movimentos, até receber a
nota fiscal. Eu mal podia acreditar que, mesmo sabendo das ótimas
condições financeiras da minha família, ela tinha pago, sem nem perguntar
se eu poderia fazer isso. Agiu como se aquela fosse a sua responsabilidade.
Ou, melhor, como se fosse o último cuidado que deveria, para completar a
sua missão.
Uma missão que, em tese, foi de ajuda à mocinha adoentada. Mas,
no fim das contas, se tornou apenas uma missão que deixou a mocinha
ainda mais boba e ridiculamente encantada do que, no fundo, já estava.

✽✽✽

Era fim de tarde, quando saímos do hospital. Durante o percurso de


carro, o silêncio reinou, a não ser pelo som baixinho do rádio que saía das
caixinhas de som nas portas. Para não dizer que não falamos nada, ela
apenas me perguntou o meu endereço e colocou no GPS. Depois disso, mais
nada. Permaneceu com o rosto virado para a frente, atenta ao trânsito, sem
me olhar uma única vez. Agia como se eu não estivesse ali, como se eu nem
existisse, ou como se não quisesse proximidade.
Eu não entendia porque ela era assim, ainda que eu não estivesse
preocupada com a sua aproximação. Ou, pelo menos, me forçava a não
estar.
Será que era pelo fato dela ser uma policial?
Será que todos os policiais eram sisudos desse jeito?
Ai, eu não sabia.
Eu realmente não sabia. A única coisa que eu tinha certeza era de
que, no fundo, por mais que eu não quisesse admitir isso, aquela indiferença
dela me incomodava. Na verdade, sempre me incomodou. Especialmente
agora, depois de tudo o que tinha acontecido naquele dia. Depois de tudo o
que fez por mim. E, droga, mesmo que eu tentasse me segurar e que eu não
tivesse o costume de abrir a minha boca para agradecer, aquilo
simplesmente escapuliu dos meus lábios, sem que eu pudesse fazer muita
coisa para parar:
— Olha só, obrigada... — Meio sem jeito e em um tom quase baixo
demais, falei. Nunca imaginei que um dia eu fosse pronunciar estas
palavras a ela. — Obrigada por tudo o que fez. Obrigada por me levar ao
hospital e por pagar tudo. Eu estou... — Meu Deus, eu nem acreditava que
eu ia dizer isso. — Eu estou sem dinheiro. Meu pai cortou tudo.
Sentia minhas bochechas queimarem de vermelhidão.
E Agatha Ballard dificilmente ficava envergonhada por qualquer
coisa. O que estava acontecendo comigo, eu não sabia, mas só podia ser
algo muito sério.
Só notei quando ela franziu o cenho e, enquanto dirigia, perguntou:
— Por que ele fez isso?
— Uma forma idiota de castigo — rolei os olhos, balançando a
cabeça. — Estou sem mesada, cartões, carro e motorista, por três meses. Eu
não teria como pagar as despesas do hospital — reconheci amargamente. —
Mas, enfim, eu prometo que, depois, eu pago a você esse dinheiro.
Scott, entretanto, séria como sempre era, apenas respondeu:
— Não se preocupe. Fica por minha conta.
Enruguei a testa, meio contrariada com aquilo.
— Não, mas eu quero pagar — retruquei. — Eu quero devolver esse
dinheiro a você, quando eu recuperar o acesso à minha conta.
Ela, porém, de maneira um pouco mais incisiva, repetiu sem nem
pestanejar e sem olhar na minha cara também:
— Senhorita Ballard, não insista.
E simplesmente se calou. Retornou àquela sua postura sisuda e
silenciosa, centrada apenas no trânsito, enquanto me dava um total de zero
atenção. Não que eu quisesse qualquer tipo de interesse seu em mim. Claro
que não. Só era realmente estranha e incômoda a maneira como ela parecia
não ligar para o fato de eu estar exatamente ao seu lado, dentro do seu
carro, enquanto ela me levava para casa.
— Por que você é tão calada? — perguntei, enfim, após mais
minutos de silêncio, quando minha matraca não conseguiu se controlar.
Ainda sem virar o rosto, vi apenas o instante em que um pequeno e
quase imperceptível sorriso irônico se desenhou no cantinho da sua boca.
Era a única espécie de sorriso que ela me dava.
— Que tipo de conversa acha que poderíamos ter, senhorita Ballard?
E, bom, eu senti... Por mais que ela tivesse tentado disfarçar, eu
senti o sarcasmo que escorreu por cada palavra. Era impressão minha ou
ela estava menosprezando a minha capacidade de dialogar? Suspirei,
enquanto tentava entender aquilo. Porém, não demorei muito a captar a sua
mensagem. Logo me dei conta.
A pior parte foi essa mesmo: me dar conta. Quase instintivamente,
me encolhi no banco, virando o rosto na direção da janela. Não era só pelo
que ela disse, mas pela forma como disse. Me envergonhei. Droga. Ficar
com vergonha, na presença dela, estava se tornando mais frequente do que
eu gostaria. Agatha Ballard não se encolhia para qualquer pessoa, nem
ficava com vergonha. Mas... Talvez estivesse se tornando mais forte do que
eu. E talvez ela tivesse mesmo razão. Talvez nós não tivéssemos nada para
conversar.
Eu murchei, mesmo que eu não quisesse demonstrar isso. Agatha
Ballard murchou. Alguém que não era o meu pai tinha conseguido esse
feito. E era provável que ela tivesse percebido isso, porque instantes depois
de mais silêncio...
— Olha, me desculpe. Eu não quis ser rude. Só pensei que não
tivéssemos assuntos em comum.
Tipo... Pegar mulher? Nós duas pegamos mulher.
Poderia ser algo em comum...
Meu subconsciente soprou em meus ouvidos, porém...
Ah, não seja ainda mais idiota, Agatha.
— Não foi rude... — falei em um tom mais baixo, enquanto ainda
olhava na direção da janela ao meu lado. — Acho que não temos nada para
conversar mesmo.
Foi no exato instante em que ela dobrou na minha rua e estacionou
em frente à minha casa. Só ouvi seu suspiro, após a minha resposta. Antes
que ela dissesse algo, entretanto, me apressei em abrir a porta do carro. E,
pela última vez, antes de ir embora, a encarei.
— Obrigada, policial Scott. Por tudo.
Essas foram as minhas breves palavras.
Ainda percebi ela me olhar como se quisesse responder, falar
alguma coisa. Porém, eu não esperei. Não valia a pena esperar. Eu já tinha
escutado o bastante. Sem mágoas, porque tudo o que Scott me disse foi a
mais pura verdade, afinal eu jamais teria de fato qualquer coisa em comum
com ela, dei as costas e entrei em casa.
✽✽✽

Não havia sinal da Evangeline por ali, nem do meu pai. Talvez ela
tivesse saído para comprar alguma coisa pra casa, enquanto ele, sem
dúvidas, só podia estar trabalhando. Ainda vi alguns funcionários
transitando pelos corredores, mas logo subi para o meu quarto. Com toda a
carga de cansaço pelo dia agitado que tive, tirei a roupa e tomei um belo
banho. Depois, quando a barriga roncou de fome, pedi para um dos
empregados deixar um lanche com suco e sanduíche natural na minha porta.
E, então, após comer e ficar cheirosa, me deitei na cama, com um roupão
rosa de seda bem confortável e o rosto hidratado de skin care.
Respirei fundo, finalmente descansando.
Que loucura de dia...
Muitas primeiras vezes, mas também muitos tapas invisíveis na
cara. Me acalmou e falou mansinho enquanto estávamos no banheiro da
penitenciária. Nem parecia ela, na verdade. Nunca agiu daquela forma
comigo. Porém, a real era que Scott agiu como uma verdadeira policial,
pronta para ajudar e proteger. Foi o que ela realmente fez comigo. No
fundo, mesmo que eu jamais dissesse isso em voz alta, eu deveria admitir
que Zara Scott era admirável. Apenas a sua postura já fazia com que todos a
respeitassem e se curvassem às suas vontades. Provável que, se eu não
estivesse acompanhada dela, meu atendimento tivesse realmente demorado.
E ela permaneceu comigo o dia inteiro. Pareceu, de fato,
preocupada. Me fez companhia, pagou as despesas do hospital, mesmo que
não soubesse que eu não poderia pagar, e ainda me deixou em casa. De
alguma forma, eu fiquei meio... Boba. Boba de um jeito que eu não deveria
ficar. Não deveria porque eu sabia que tudo o que Scott fez não era por
outra coisa que não fosse a ideia de responsabilidade. Ela se sentiu
responsável por mim. Apenas isso. E a maior prova disso foi que a sua
gentileza não cruzou o limite da simpatia. Ela me ajudou sim, mas não
significou qualquer ligação entre nós.
Scott deixou bem claro o quanto ela estava ali somente como uma
policial.
Não quis se aproximar demais, nem mesmo conversar.
Que tipo de conversa acha que poderíamos ter, senhorita Ballard?
Eu ainda podia ouvir a sua voz, na minha cabeça, dizendo isso.
Uma grande tolice minha querer qualquer conversa com ela, dentro
daquele carro. Ou sentir qualquer estúpida falta da sua presença, enquanto
eu tomava o soro na veia e ela permanecia de pé, do lado de fora da sala.
Talvez Scott se achasse adulta e madura demais para manter algum diálogo
com uma garotinha sem noção, rica e mimada como eu. Sem dúvidas, era
exatamente isso o que ela pensava de mim. Aliás, uma policial jamais
ficaria de conversinha com uma garota que cumpria pena.
Era melhor que eu começasse a me enxergar.
Agatha Ballard poderia ser muitas coisas, podia ser rica,
milionária, ter o mundo aos seus pés, e conseguir o que quisesse, mas,
naquela penitenciária, para Zara Scott, ela não passava de uma quase
detenta. Apenas uma garota-problema.
E uma coisa era certa: eu precisava parar de pensar naquela mulher.
Sim, eu precisava. Não fazia sentido, não existia lógica, nem razão
alguma para eu me importar tanto com ela ou me preocupar com o tipo de
atenção que me dava. Eu parecia ridícula sempre que deixava isso me afetar
de alguma forma.
Suspirei.
Uma boa hora de começar a colocar isso em prática era agora, na
verdade.
Eu já tinha chegado do hospital, Scott já tinha cumprido sua missão
e sua boa ação. Momento de virar a página, Agatha. Foi então que, decidida
a pensar em outras coisas, puxei meu celular e abri no aplicativo da
farmácia. Eu ainda precisava pedir os remédios da receita.
Em alguns cliques, o pedido estava feito.
Quando bloqueei a tela, entretanto, sua luz se acendeu novamente,
sem que eu apertasse em nada. Uma mensagem parecia ter chegado.
Era um número que eu não conhecia. Não estava salvo na minha
agenda.
No momento em que cliquei, uma surpresa.
Inconscientemente, até parei de respirar por alguns instantes.

“Olá, senhorita Ballard. Está tudo bem? Se sente melhor?”


Era a Zara.
Meu coração disparou. Estupidamente disparou, mesmo que eu nem
soubesse o motivo. Eu não deveria ficar assim. Não deveria, mas também
não podia evitar. Voltei a respirar, mas de um jeito muito mais rápido.
Por que ela estava me mandando mensagem?
E como ela tinha conseguido o meu número?
Ah, isso não importava. Provavelmente, tinha pego no meu registro
da penitenciária.
Eu jamais imaginaria que qualquer dia eu fosse receber alguma
mensagem sua.

“Oi. Eu estou bem. Está tudo bem.”

Em meio às batidas caóticas do meu coração, foi tudo o que eu


consegui responder, numa mistura de nervosismo, ansiedade e até... ridícula
empolgação.
Deus, o meu caso era sério.

“Ótimo. Então, tenha uma boa noite. Até amanhã.”

Suas palavras finais, no entanto, pareceram ainda mais sucintas que


as minhas. Droga. Meu peito se apertou em uma estúpida, realmente
estúpida, vontade de continuar conversando. Eu quis digitar mais. Eu quis
falar mais. Porém, tão rápido apareceu, já estava se despedindo.
Respirei fundo, tentando controlar qualquer impulso de fazer
besteira.
Scott disse que não tínhamos assuntos em comum, que não
imaginava o que nós duas pudéssemos conversar. Basicamente, deu a
entender que éramos de mundos diferentes. E, no fundo, éramos mesmo.
Então, eu não seria a boba que insistiria em continuar mandando
mensagem. Ela me acharia louca.
Mesmo assim, certos pensamentos não passaram batido pela minha
cabeça, especialmente esse: ela não precisava ter feito isso, não tinha a
obrigação de fazer, mas fez, voluntariamente fez. E se lembrou de mim.
Zara Scott ainda estava pensando em mim.
Foi aí que, sem conseguir me conter, afundei minha cabeça nos
travesseiros, encarando o teto com um maldito e estúpido sorriso bobo, que
não saía por nada do meu rosto. Eu até tentava pará-lo, fazê-lo sumir da
minha cara. Mas, não dava, não tinha como. Agora, ela tinha o meu número
e eu o seu, mesmo que isso pudesse não significar merda alguma.
Xena Scott ainda estava pensando em mim.
E ridiculamente, eu continuei assim, como uma garota sorridente e
colegial, segurando firme o celular contra o peito e apertando-o entre as
minhas mãos, como se ele pudesse escorregar pelos meus dedos a qualquer
momento e fazer desaparecer aquelas suas duas mensagens tão pequenas,
mas tão poderosas, até que...
Em um grande estrondo, a porta do meu quarto se abriu. No susto,
dei um pulo na cama, me sentando. Todos os meus pensamentos,
instantaneamente, se embaçaram. Quem entrou foi o meu pai, naquela
postura imponente de sempre, acompanhado de duas mulheres que
pareciam carregar bolsas de maquiagens e toda sorte de equipamentos de
cabelo.
— O que está acontecendo aqui...? — Com o cenho bem franzido,
questionei.
— Esqueceu que temos aquele jantar hoje, querida?
Jantar? Aquele maldito jantar?
Se há poucos instantes, eu parecia uma boba sorridente, agora eu já
praticamente nem me lembrava por qual motivo eu estava tão feliz. Toda a
minha cabeça e todos os meus sentidos se voltaram única e exclusivamente
para aquilo. E o resultado disso não foi bom. Não foi nada bom.
Gradativamente, notei a ira se apoderando de cada centímetro do meu
corpo, assim como aconteceu dois dias atrás, quando ele soltou a ideia
absurda de eu acompanhá-lo para cair nos braços do filho de algum
bilionário.
Bruscamente, liberei o ar dos pulmões, já irritada.
— Eu já disse que não vou a esse jantar...! — Incisiva e
compassadamente, para que eu me fizesse clara, redargui.
— Agatha... — suspirou ele, aparentemente já começando a se
estressar também. — Por favor, tente facilitar as coisas para você... Eu não
quero ter que usar a força — E, em tom ameaçador, concluiu.
Mesmo que eu não quisesse tremer nas bases com a sua última frase,
inconscientemente engoli seco, porque eu sabia do que ele estava falando.
Essa não seria a primeira vez que ele usaria a força. Eu já tinha experiências
suficientes para saber o quanto a sua mão era pesada e o quanto ela era
capaz de me deixar toda dolorida.
Apesar disso, tentei não baixar a cabeça. Pelo menos, não dessa vez.
— Você não pode me obrigar, nem me envolver nesses seus
negócios imundos! — disparei, me levantando da cama e pouco me
importando com o show que eu estava dando na frente daquelas mulheres.
— Não sou seu objeto, para que você faça comigo o que bem entender!
Entretanto, tudo o que ele fez foi se aproximar bruscamente de mim
e desferir um tapa forte e certeiro no meu rosto. Tão forte que meu pescoço
girou para o lado.
Ardeu. Ardeu demais. Senti como se a minha pele na exata região
estivesse pegando fogo. E, mesmo que eu estivesse tentando me segurar e
ser forte, não pude impedir as lágrimas amargas que se formaram nos meus
olhos. Lágrimas não somente de tristeza, mas também de fúria.
Eu tinha nojo, nojo, dele. Raiva. Tudo o que fosse ruim.
E exalando isso, com a dor e o ódio estampados nas minhas íris
molhadas, ergui o rosto, com uma das mãos na bochecha machucada, e o
encarei, quando ele mirou as orbes firmemente em mim, antes de dar as
costas e sair do quarto.
— Você não é meu objeto, mas é minha filha, e vai fazer exatamente
tudo o que eu mandar — replicou, frio e comedido, em um tom mais baixo
somente para mim, e, então, virando-se para as mulheres, completou,
referindo-se ao vermelho que, provavelmente, em pouco tempo, ficaria roxo
no meu rosto. — Passem uma maquiagem para cobrir isso aí.
Putinha de bilionário

Agatha

Me maquiaram, arrumaram meus cabelos e me vestiram como se eu fosse


uma boneca, um objeto inanimado. Eu juro. Na verdade, talvez eu fosse
mesmo. Sem vontades próprias, sem voz, apenas uma coisa qualquer que
colocavam onde quisessem e faziam o que bem entendessem. Isso era eu,
na maior parte do tempo, quando meu pai estava por perto. Eu parecia
anestesiada, enquanto aquelas duas mulheres mexiam em mim, puxavam
meus cabelos de um lado para o outro e passavam pó na minha cara.
Era como se eu não conseguisse me mexer, não tivesse reação, tão
introspectiva por ter falhado comigo mesma. Mas, sobretudo, por estar
sendo fraca mais uma vez e fazendo tudo o que ele queria que eu fizesse.
Covarde. Eu era covarde em me vender àquilo por puro medo da sua mão
pesada sobre mim. Meu corpo, no entanto, se lembrava bem das suas
agressões. Parada e sentada de frente para o espelho, eu permaneci estática,
em uma mistura de decepção e raiva. Decepção comigo mesma e raiva,
muita raiva, do meu pai.
Apenas as lágrimas silenciosas que desciam involuntariamente, sem
que eu fizesse o menor esforço, era o que se movia em mim. Por vezes,
durante o processo, precisaram limpar a maquiagem borrada nos meus
olhos. E tantas, mas tantas desceram, mesmo que eu não estivesse chorando
copiosamente, que, em dado momento, pareceram secar. Muito embora,
dentro de mim, tudo continuasse dolorido demais por eu estar me deixando
levar à execução do negócio sujo. Eu sempre me sentia usada pelo meu pai.
E, agora, parecia ainda pior.
Colocaram em mim um vestido de veludo longo, justo e vermelho.
Marcava cada parte do meu corpo e possuía um generoso decote para que
homem algum conseguisse tirar os olhos dos meus peitos. Sem dúvidas,
tinha sido escolhido a dedo pelo meu pai e pensado milimetricamente para
causar. Era bonito. Eu não podia mentir que era bonito e que eu me sentiria
bem em usá-lo em qualquer outra ocasião, menos naquela. Naquela, eu me
sentia suja, imunda e puta de raiva por ter que fazer o que eu sabia que ele
ia me forçar.
Ao final de tudo, depois de colocarem em mim uma sandália
prateada de salto e de prenderem meus cabelos em um coque alto que
deixava ainda mais evidente o meu busto, me levantei e me encarei no
espelho. Meus olhos estavam vazios, opacos. Depois de tantas lágrimas que
escorreram, tudo o que tinha sobrado ali era ódio. Senti nojo, ranço de mim
mesma. A vontade era de tirar tudo, rasgar tudo, borrar tudo. Colocaram
dez litros de base no meu rosto, para esconder o roxo do tapa, e
conseguiram. Mas, dentro de mim, a marca ainda não tinha sarado. E não
estava nem perto de sarar.
Meu pai até poderia me levar para o maldito restaurante, como a
cadelinha de um milionário. Mas, eu não facilitaria as coisas para ele, nem
para o herdeirinho bilionário que uma hora ou outra iria querer me comer.
Apesar de tudo, eu ainda era Agatha Ballard. Desaforada, briguenta e
atrevida. Poderia não ser hoje, mas meu pai e os vermes dos seus amigos
ainda receberiam de mim ou da vida exatamente o que mereciam.

✽✽✽

— Ajeita essa cara — Foi a primeira coisa que o meu pai me disse,
quando paramos em frente a um dos seus hotéis mais luxuosos, depois de
um longo caminho em silêncio. — Você sabe o quanto fica feia quando faz
essa cara de nojo.
Suspirei, tentando não pirar ali mesmo. Eu já estava a ponto de
explodir, somente em ter que acompanhá-lo àquele restaurante, depois de
levar um tapa que fazia minha bochecha doer até agora. Eu não merecia
também ficar ouvindo aquele tipo de coisa. Já bastava a convivência com
ele, que piorou significativamente quando mamãe se foi.
Quando eu quis rebater e devolver a ofensa com alguma resposta
ácida, no entanto, a porta do carro se abriu por um dos manobristas. Logo
um grupo de recepcionista do restaurante, que ficava no hotel, nos recebeu
com toda aquela bajulação ridícula, que eu já estava acostumada. Não que
eu não gostasse disso, mas, naquela noite, minha paciência estava curta até
para quem queria lamber o chão por onde nós passássemos.
Nos guiaram até a entrada do restaurante. Ele ficava no andar térreo
do hotel, justamente porque não funcionava apenas para hóspedes, mas
também era aberto ao público. Extremamente luxuoso, ele fazia jus ao
padrão rico e turístico de cassinos e casas noturnas de Las Vegas, muito
embora a parte dos jogos não acontecesse ali, mas em outra parte do hotel.
Aquele espaço era única e exclusivamente voltado para comidas, bebidas e
massagens de egos dos riquinhos que levavam suas mulheres-troféus para
dar uma volta e fingir que elas estavam consigo não pelo dinheiro, mas
porque os amavam bastante.
O restaurante não estava muito lotado, mas cheio o suficiente para
que o bolso do meu pai se enchesse com uma grana gorda, apenas por
aquela noite, principalmente levando-se em consideração que aquele era
somente um das dezenas de hotéis de sua propriedade. Enquanto
caminhávamos por ali; eu, claro, andando como se estivesse sendo arrastada
para uma prisão; senti quando uma das suas mãos se posicionou exatamente
na minha lombar. Estremeci com o seu toque. Era quase como uma reação
instintiva, inconsciente. Meu corpo se lembrava que, em todas as vezes que
meu pai me tocava, não era bom.
Engoli seco e continuei o acompanhando. Não consegui identificar
quem eram os seus “maravilhosos” parceiros de negócios, até chegarmos
perto o suficiente. Afinal, todos os que jantavam ali tinham a mesma cara
de ricos. Em geral, os ricos eram todos iguais. Aqueles, porém, eu não sabia
se era pelo fato de, talvez, serem mais endinheirados do que os próprios
milionários de Las Vegas, pareciam ainda mais elegantes do que de
costume. O velho, em forma e enxuto, tinha cabelos brancos e sorriso com
lentes de porcelana. Enquanto isso, o outro, o mais novo, aquele que eu
imaginava ser seu filho, olhou primeiro para o meu decote e depois para o
meu rosto.
Aparentemente, a ridícula estratégia da roupa escolhida por meu
pai funcionou.
De automático, levantaram-se para nos cumprimentar. O velho
sorridente apertou a mão do meu pai e, em seguida, beijou a minha. Fiz um
esforço para sorrir, quando Russell Ballard mirou suas orbes penetrantes em
mim, como se dissesse em silêncio para eu ser simpática, ou, então, sofreria
sérias consequências. Meu sorriso saiu duro com a seriedade que eu
carregava em mim e dolorido com a minha bochecha ainda machucada
apesar de maquiada.
— Russell, é um grande prazer estar aqui com você, em Las Vegas,
num dos seus melhores hotéis, especialmente agora, conhecendo a sua filha.
Ela é linda — disse o velho. — É um prazer também, querida. Eu me
chamo Harry Claflin, mas pode me chamar apenas de Harry — completou,
olhando para mim. — E este é o meu filho. Louis Claflin. Ele estava
ansioso para conhecê-la. Seu pai falou muito bem de você.
“Ele estava ansioso para conhecê-la.”
Argh... Eu merecia mesmo... Servir de putinha de bilionário era o
cúmulo.
E... “Seu pai falou muito bem de você”?
Piada, né? O que Russell Ballard fazia por dinheiro não era
brincadeira, inclusive me elogiar, coisa que eu nunca o vi fazer quando
estamos dentro de casa, debaixo do mesmo teto, convivendo juntos.
Notei quando o mais novo estendeu a mão para me cumprimentar.
Dessa vez, olhando para os meus olhos e não para o restante do meu corpo,
sorriu. Eu não podia negar, o cara era bonito. Alto, corpo em forma apesar
do blazer que vestia, cabelos pretos e olhos claros. Talvez tivesse por volta
dos trinta anos. Não era tão mais velho que eu, mas também não tinha a
minha idade. O típico padrão. Alguém que eu até poderia pegar em alguma
festa, mas que, ali, naquelas circunstâncias, eu não sentia interesse algum,
apenas ranço.
— Muito prazer, senhorita Ballard — falou. — Eu fico feliz que
tenha vindo. Pode me chamar de Louis.
Eu, entretanto, já não podia responder o mesmo. Não sentia prazer
em conhecê-lo, não estava feliz em ter ido àquele jantar, assim como
também não consegui nutrir um nível suficiente de simpatia em mim que
desse para cumprimentá-lo voluntariamente. Porém, provavelmente
percebendo isso, pelo meu silêncio e pela minha completa falta de
educação, meu pai replicou, com uma cordialidade que, em geral, ele só
usava quando tinha algum interesse:
— Sejam muito bem-vindos ao meu humilde hotel, meus caros.
Espero que essa seja a melhor estadia das suas vidas. Agatha também está
muito feliz em conhecê-los, não é, querida? — E finalizou, pressionando
seus dedos fortes em minha cintura, quase machucando.
Minha respiração travou e meu coração acelerou por alguns
instantes. Talvez aquilo fosse como uma espécie de gatilho para mim. Eu
não sabia ao certo. Mas, tinha certeza de que, depois de tantos anos levando
tapas e chutes, eu já não queria mais sentir aquilo nem ver os roxos na
minha pele.
— Prazer.
Foi tudo o que eu consegui dizer, após apertar a mão do moreno que
não parava de secar o meu decote. Um aperto de mãos tão ligeiro quanto
um piscar de olhos. Eu não queria me demorar naquilo. Na verdade, o que
eu mais queria era que aquela palhaçada acabasse logo e que eu voltasse
para casa.
— Excelente — Meu pai tornou a falar, satisfeito com a minha
breve resposta. — Por que não nos sentamos? Vamos! Vamos todos nos
sentar! — Empolgado, sugeriu.
Só vi quando o tal Louis puxou uma das cadeiras para mim. Nem
me dei ao trabalho de agradecer. Achava tudo aquilo um saco. Já bastavam
os sorrisos falsos e o meu breve cumprimento. Estava de bom tamanho.
— E, então, estão gostando de Las Vegas? — Meu pai perguntou
após se acomodar. — Como está a estadia de vocês no meu hotel? Alguma
reclamação? — completou, usando aquela tão falsa simpatia que, em geral,
só surgia quando ele sabia que receberia algum benefício.
— Está sendo ótimo, Russell, não se preocupe — Harry replicou. —
Claro que, para ficar melhor, precisávamos da companhia de uma bela
mulher. Com a senhorita Ballard, agora, temos isso — sorriu, mostrando
todos os dentes que, apesar de bem tratados com lentes de porcelanas, não
deixavam de ser nojentos pelo simples fato de que o seu interesse em mim
era puramente repulsivo.
Dessa vez, por mais que eu soubesse que meu pai odiava atitudes
desse tipo, eu não consegui retribuir a simpatia. Não lhe devolvi nem um
mísero sorrisinho. Permaneci séria, me esforçando para não vomitar ali
mesmo, em cima daquela mesa repleta de talheres banhados a ouro.
— Ah, que maravilha. Agatha está animada para acompanhá-los
nessa estadia em Las Vegas — Acompanhá-los? Como assim “acompanhá-
los”? Isso ficou entalado, como um bolo, em minha garganta, difícil de
descer. Franzi o cenho para o meu pai, esperando algum esclarecimento
plausível que não tornasse tudo aquilo um pesadelo ainda maior. —
Inclusive, já conheceram algo na cidade? Ou só descansaram da viagem?
— Nós já viemos a Las Vegas, mas ainda não tínhamos parado para
conhecer tudo com calma — disse o velho. — Hoje, visitamos algumas
lojas na Las Vegas Boulevard. Gostamos bastante. Tudo de muito bom
gosto. Por falar nisso, até trouxemos um presente para a Agatha. Na
verdade, foi Louis quem comprou — sorriu, astucioso. — Mesmo sem
conhecê-la pessoalmente, apenas por essas redes sociais e coisas de jovens,
ele achou que combinaria com a beleza da senhorita Ballard. Sabemos que,
provavelmente, ela já tem uma coleção de joias em casa, mas uma nova
nunca é demais, não é? — e soltou uma risadinha.
Joias?
Enruguei a testa outra vez, surpresa com aquilo. Porém, antes que eu
conseguisse raciocinar, o tal Louis se levantou prontamente, já tirando, de
dentro de uma caixa de joias, um colar de brilhantes. Arqueei brevemente
as sobrancelhas, quando ele colocou no meu pescoço. Era tão real que
pesava. Em toda a extensão da peça havia brilhantes. Era completamente
feito de diamantes verdadeiros. E, no meio, havia um pingente. Um
pingente com um diamante ainda maior, na cor azul.
Louis voltou a sua cadeira e sentou-se encarando exatamente o
pingente que pendia no colar e se encaixava bem no meio do meu decote.
Se demorou alguns instantes por ali, aparentemente maravilhado com o que
via e com o quanto a peça talvez combinasse comigo. Então,
preguiçosamente, subiu seu olhar, engolindo cada centímetro da minha pele
do meu busto e do meu pescoço até chegar ao meu rosto.
Eu não gostava disso. Não gostava nem um pouco.
Não quando eu não estava interessada na pessoa.
Desconfortável, rapidamente virei meu rosto em outra direção.
Porra, eles já estavam querendo me comprar.
E eu gostava, eu gostava sim de joias. Gostava de recebê-las, e não
poderia mentir a respeito disso. Bom, acima de tudo, eu tinha um ótimo
gosto para elas. A minha coleção em casa era fantástica. Porém, naquelas
circunstâncias, eu não me sentia bem em ganhar um colar de diamantes. Na
verdade, eu me sentia extremamente incomodada, porque eu sabia que, por
mais que aqueles caras fossem bilionários, eles iam querer algo em troca.
Ou pior, eles iam querer me receber em troca, como se eu fosse algum tipo
de moeda comercial.
— Uau! Que colar sensacional! — Meu pai falou. — Realçou ainda
mais a sua beleza, querida.
Realçou ainda mais a sua beleza, querida?
Se a minha garganta não estivesse tão entalada com aquele presente
totalmente pretensioso e cheio de segundas intenções, eu poderia rir da
piada. Nem parecia aquele coroa que passava mais tempo me chamando de
horrível do que de filha. Falso. Eu sabia exatamente o que ele estava
tentando fazer. Seu teatro era esse mesmo... Fingir que nós éramos uma
família saudável, que a nossa relação era maravilhosa e que eu era a filha
perfeita. Tudo isso para me jogar para aqueles caras, especialmente o mais
novo, o tal Louis, que, mesmo cheio de dinheiro e de classe, não tirava os
olhos dos meus peitos.
Aparentemente, ele tinha perdido, pelo meio do caminho entre
Bahamas e Las Vegas, a etiqueta de não secar uma mulher
descaradamente.
— Vamos passar uma temporada aqui em Las Vegas. Você poderia
apresentar ao Louis os pontos turísticos da cidade, senhorita Ballard —
sugeriu o velho Harry. — Eu tenho certeza que ele apreciaria muito a sua
companhia.
Ah porra...!
Eu sabia... Eu sabia que eu não receberia aquele colar de
diamantes de graça!
Bebi um gole do vinho branco, tentando segurar a revirada de olhos.
Aliás, eu nem deveria controlar. Eu não deveria ser educada com eles, nem
covarde comigo mesma, a ponto de ter medo de ser eu, por causa das
agressões de Russell Ballard. Meu rosto, no entanto, por baixo da
maquiagem, que deve ter custado uns quinhentos dólares ao bolso do meu
pai, ainda doía. Minha alma doía. Tudo doía.
Ainda assim, algo continuava me inquietando à medida que os
segundos se passavam e eu permanecia calada, apenas aceitando tudo
aquilo, como uma bonequinha de porcelana. Eu deveria fazer alguma coisa,
ou ao menos pensar em dizer algo que os “assustasse” e que mostrasse que
eu não era aquela garota perfeita que eles, provavelmente, imaginavam que
eu fosse.
Pensa, Agatha, pensa.
— Não vai dar — De repente, falei. — Não vai dar para eu
acompanhar Louis a esse tour pela cidade — sorri meio irônica. — Não
tenho tempo. Estou cumprindo pena o dia inteiro. Sabem como é, né? — E
soltei uma risadinha falsa, tomando mais um gole do vinho branco e
pensando que essas informações pudessem afetá-los de alguma forma. Em
geral, homens ricos queriam uma mulher-troféu e não uma garota-
problema. — Problemas com a polícia.
— Ah, querida... — O velho, entretanto, riu, balançando a cabeça de
leve como se isso não fosse nada. — Todos temos problemas com a polícia.
Franzi o cenho.
Como assim “todos temos problemas com a polícia?”
Meu sorriso sumiu ao me dar conta de que a minha tentativa não
surtiu o efeito desejado.
Que saco.
O que esses caras tinham na cabeça? Nada espantava ou dava um
“chega-pra-lá” neles? Nem mesmo o fato de eu não ser a garota recatada
que eles pudessem querer?
— Por que não me passa o seu número? — Louis perguntou. Seus
olhos continuavam engolindo cada centímetro do meu corpo, mesmo que eu
estivesse apenas sentada. Ele não parava de reparar no decote do meu
vestido, no meu pescoço e na minha boca.
Cacete, isso só piorava.
— Não — repliquei, de pronto.
Simplesmente, escapou dos meus lábios, sem que eu pensasse nas
consequências.
Meu pai, entretanto, por puro instinto, colocou sua mão sobre a
minha.
— Eu mesmo passarei o contato da minha filha — E apertou minha
mão, como um sinal para que eu ficasse quieta, não falasse mais nada que
pudesse irritá-lo e apenas fizesse o que ele mandasse. — Assim, você
poderá ligar e trocar mensagem sempre que quiser, porque ela vai atender e
responder, não é, querida?
Argh, que inferno!
Não.
Não.
Não.
Mas, seus dedos apertaram ainda mais a minha mão, deixando bem
claro as consequências que eu poderia sofrer, caso negasse mais uma vez.
Droga.
— Sim.
Foi tudo o que eu consegui responder, extremamente decepcionada
comigo mesma por ser tão fraca.
— Então, façamos melhor... — Russell tornou a falar. — Troquem
logo os seus contatos. Assim não corre o risco de eu me esquecer de passar
o número dela — e, então, soltou uma risadinha divertida que, no fundo, eu
sabia que era sádica.
Ele era um monstro.
Estava mais do que claro, para mim, que Russell não queria me
colocar naquela situação apenas visando os benefícios financeiros que
ganharia nos negócios, mas também porque ele adorava, adorava, me
machucar de todas as formas, ainda que não fosse fisicamente.
Mesmo morrendo um milhão de vezes internamente, por estar
fazendo aquilo, tirei o celular da bolsa e entreguei ao bilionário filho da
puta de trinta anos. Trocamos os números, enfim. Meu contato já estava
com ele. E o seu comigo. Eu me sentia tão impotente que, mesmo que eu
fosse o poço da criatividade para me safar de momentos terríveis, naquele
instante, eu não conseguia pensar em nada além do fato de que eu estava
absolutamente fodida por ter que aguentá-lo durante essa tal temporada em
Las Vegas, que eu nem fazia ideia de quanto tempo duraria.
Suspirando em uma tentativa de não pirar completamente ali, deixei
o celular sobre a mesa e tomei mais um gole do vinho branco. Eu me iludia
com a ideia de que aquilo ajudasse a empurrar goela abaixo a minha
vontade de chorar por estar sendo obrigada a, literalmente, me vender e, a
qualquer momento, dar a minha boceta para um cara que eu não tinha o
menor interesse.
Repentinamente, no entanto, ainda em cima da mesa, notei o
momento em que a tela do celular acendeu. Foi tudo muito mais rápido do
que o meu raciocínio conseguia absorver. De súbito, meu coração acelerou
com uma lembrança. Uma lembrança recente e muito fresca na minha
mente. Como se eu estivesse revivendo aquilo, eu quis me animar cinco por
cento, mesmo em meio a tanta tensão.
Será que era ela de novo?
Enquanto eles conversavam sobre uma merda qualquer, que eu
sequer entendia porque não estava prestando atenção em mais nada, peguei
o celular, com um nervosismo quase empolgante, por mais confuso que isso
pudesse parecer. Era aquele nervosismo da época do colegial, quando você
sabia que a pessoa que você gostava estava se aproximando.
Que merda.
Eu ainda não conseguia entender a razão de estar me sentindo
assim em relação a ela.
Especialmente, depois da patada que ela me deu no carro.
“Que tipo de conversa acha que poderíamos ter, senhorita Ballard?
Droga.
Porém, sensação ruim mesmo foi o que eu senti quando vi que não
era uma mensagem sua. Era a porra de um torpedo da operadora telefônica.
Que saco. Rolei os olhos, balançando a cabeça em negativo para mim
mesma. Tão estúpida... Ultimamente, eu estava me tornando tão estúpida.
Era claro que Xena Scott não me mandaria mais nada. Aliás, por
que eu pensei mesmo que pudesse ser ela? Ou pior, por que eu quis que
fosse ela? Era muita imbecilidade minha. Lógico que tudo o que ela tinha
para me falar era só aquilo. Ela já tinha deixado bem clara a nossa
incompatibilidade de assuntos, assim como também já sabia que eu estava
bem.
Não havia motivos para entrar em contato de novo.
Era isso.
Não havia.
Suspirei, erguendo o queixo na ilusão de retomar a compostura.
Porém...
Por mais que eu não entendesse a razão de estar me sentindo
daquela maneira, estúpida por uma mulher que eu tinha conhecido há pouco
mais de uma semana e que, por acaso, era a mesma que tinha me prendido e
estava me fazendo passar por todas as desgraças na penitenciária,
subitamente eu me peguei refletindo sobre o inegável fato de que eu
gostaria muito de receber uma nova mensagem sua. Mentir, para mim
mesma, eu não podia. Na verdade, por mais maluco que esse pensamento
pudesse parecer, eu gostaria que, assim como ela me ajudou mais cedo, ela
também aparecesse naquele exato momento e me salvasse dali.
Zara

Não, eu não tinha agido daquela maneira com ela porque eu


simplesmente quis, ou porque eu simplesmente era uma escrota. Tentar
manter alguma distância e não conversar não era exatamente a minha
vontade. Muito pelo contrário. Dentro de mim, eu sentia como se uma força
me puxasse para ela, para perto dela, como se aquele fosse o lugar certo
para mim, quando, na verdade, não deveria ser. Era por isso que eu me
esforçava para me manter impassível durante a maior parte do tempo.
Qualquer passo em falso, eu estaria repetindo os exatos erros do meu
passado. E eu não suportaria decepcionar nem a mim, nem a outra garota de
novo. O que aconteceu anos atrás já foi uma grande lição aprendida.
De um jeito ou de outro, entretanto, Agatha estava mexendo
comigo. Eu me importava com ela mais do que deveria. E eu sabia que
mesmo que eu agisse prontamente para ajudar qualquer outra pessoa que
estivesse passando por aquela situação, precisando ir ao médico, a minha
reação, com ela, excedia para além do que deveria. Dentro de mim, eu sabia
que tinha algo a mais. Eu sentia isso. Querendo ou não, era assustador.
Depois de anos, era assustador estar vivendo novamente algo tão parecido.
Quando Ava me dizia para tomar cuidado, mesmo sem nem saber da
mistura de sensações que se embolavam ultimamente dentro de mim, ela
tinha razão.
Eu realmente me preocupava com a garota. Eu me importava muito
mais do que deveria. Prova disso foi que eu corri para o hospital com ela,
embora qualquer outro agente pudesse fazer isso no meu lugar, assim como
a Alexa deixou bem claro. Passei o dia inteiro acompanhando-a, por mais
que eu me mantivesse a uma distância segura. Custeie as suas despesas do
hospital. E a única coisa que eu quis fazer, depois de deixá-la em casa, era
voltar até lá e conversar com ela tudo o que ela quisesse ou tudo o que
deveríamos ter falado ao longo do caminho, quando eu dei a entender que
entre nós não poderia haver assuntos em comum.
Eu não era esse tipo de pessoa que dava patadas, ou respostas
ácidas. Aquela minha postura sisuda e calada era só uma forma de evitar
que qualquer atitude ou pensamento tomasse proporções maiores.
Dimensões proibidas. No fundo, eu era a porra de uma hipócrita. Agia
como se não me importasse, mas me importava sim. Provavelmente, foi por
isso que um incômodo irritante ficou me cutucando desde que ela saiu do
meu carro daquele jeito, claramente cabisbaixa com a minha falta de
modos. Ela nem conseguiu disfarçar. E, embora as minhas respostas e
posturas não fossem as melhores, eu deveria ter deixado as coisas por isso
mesmo. Poderia ser mais uma forma de evitar qualquer problema.
Mas, não.
Claro que não.
Claro que eu não me mantive quieta.
Não pude me manter parada e fui idiota o suficiente para mandar
uma mensagem. Mais idiota ainda por ter salvo o seu número, dias atrás, no
meu celular, sem nem saber a razão. Sem justificativa plausível. Apenas o
consegui em um dos registros da penitenciária e guardei. Ridículo. Agatha
Ballard era apenas uma garota em cumprimento de pena. Só isso. E deveria
continuar sendo somente isso. Não mais que isso.
Porém, agora, enquanto tomava uma xícara de café, escorada numa
das paredes da cozinha, de frente para uma janela, e olhava o horizonte de
Las Vegas à noite e as muitas luzes que piscavam na cidade, eu me pegava
pensando na péssima ideia de lhe escrever mais alguma coisa.
Talvez, um pedido de desculpas por ter sido rude no carro? Ou
perguntar se ela tinha sentido mais alguma coisa, desde que mandei a
última mensagem?
Ainda segurei o celular, mas...
Ah, Zara, não... Não faça isso. Não seja estúpida.
Você só está inventando desculpinhas para manter contato com a
garota. E é assim, exatamente assim, como os problemas começam. Você
sabe muito bem disso. Apenas crie juízo nessa sua cabeça e não faça
besteiras.
Suspirei, soltando o ar pesado dos meus pulmões.
Era verdade.
Não era certo insistir nisso. Eu já tinha ultrapassado alguns limites
rígidos. Melhor não forçar outros. Melhor não criar mais confusões.
— Mamãe...? — Repentinamente, ouvi aquela vozinha. — Tá
fazendo o quê?
No momento que me virei, me desligando parcialmente daquelas
ideias erradas, Nick estava bem ali, já cheirosinho e vestido com o seu
pijama cheio de desenhos coloridos de planetas e astronautas. Ele amava
esse tipo de coisa. Sorri.
— Ah, querido, só estou tomando esse café e olhando um
pouquinho aqui para fora... Seus desenhos animados acabaram?
— Acabaram... — disse ele, se aproximando. — Posso ficar aqui
também?
Soltei uma risadinha, quando já o sentia se aconchegando nas
minhas pernas. Nick era assim, grudado em mim, e eu adorava isso. Por
mais que eu chegasse cansada do dia de trabalho, eu sempre reunia todas as
minhas forças para lhe dar o máximo de atenção possível. Ele merecia isso.
Não era fácil ser mãe solo e ter que dividir o tempo entre trabalho e
presença em casa, mas o amor que eu sentia por ele tornava tudo mais fácil.
— Claro, meu amor, vem... — puxei um banquinho para que ele,
com cuidado, subisse e ficasse em uma altura segura de frente para a janela
também. — Veja como a noite está linda.
Seus olhinhos brilharam observando tudo. E não demorou mais que
meio minuto para que um sorriso lindo e entusiasmado estampasse o seu
rosto. Do alto do nosso apartamento, ele via o mundo lá embaixo e
apontavam para tudo o que lhe chamava atenção, dizendo “mamãe, que
legal aquilo ali!”. Qualquer coisa para o Nick se tornava uma grande
brincadeira. Era uma delícia. Ele era uma criança esperta e maravilhosa.
Tinha apenas oito anos de idade, mas uma inteligência e astúcia de garotos
mais velhos.
Entre um olhar e outro, entretanto, algo ainda mais fantástico
aconteceu.
— Uau! Olha aí, filho! — exclamei, apontando, empolgada. — Uma
estrela cadente! Faz um pedido!
Em meio a uma risadinha gostosa, Nick fechou os olhinhos por
alguns instantes e, então, depois que os abriu novamente, me encarou com
uma carinha bem suspeita de quem tinha aprontado alguma coisa. Cerrando
as orbes de brincadeirinha, em sua direção, perguntei, enquanto lhe fazia
cócegas:
— O que você pediu, heim?
Gargalhando com as cosquinhas, ele respondeu todo divertido:
— Ah, mamãe, se eu falar não vale...
Foi aí que eu suspirei, parando após a brincadeira.
— Tem razão... — soltei uma risadinha.
Entretanto, como eu já bem o conhecia, sabia que Nick não
conseguia guardar segredos por muito tempo. Sua matraquinha e sua
empolgação eram muito incontroláveis para que ele pudesse se manter
quieto. Antes que eu dissesse mais alguma coisa, ele já foi logo falando:
— Tá, tudo bem, vou dizer, mamãe... Mas, tem que me prometer
que não vai rir da minha cara... — Eu apenas balancei um sim com a
cabeça, respondendo “claro, meu amor”. — Bom... Eu tenho um amigo na
minha escola, o Thomaz. Você sabe, né? — continuou ele, como se
estivesse contando alguma fofoquinha ou algo muito empolgante para ele.
— Thomaz tem duas mães! — soltou, arqueando as sobrancelhas e dando a
entender que aquilo era uma das coisas mais fantásticas do mundo para ele.
— Sabe, mamãe, elas vão deixar e buscar ele todos os dias na escola, e elas
são tão legais que eu fiquei pensando que talvez eu quisesse ser como o
Thomaz. Talvez eu quisesse duas mamães. Foi esse o pedido que eu fiz.
Duas mamães.
E isso me pegou completamente de surpresa...
— Por que duas mamães, querido? Você não me ama? E nós não
somos suficientes um para o outro? — perguntei, tentando entender a sua
cabecinha. — Sempre nos viramos sozinhos, meu amor, com a ajuda das
tias Madison e Ava, e somos muito bons nisso, não somos?
— Claro, mãe! — De pronto, ele exclamou. — Eu te amo
muitãozãozãozãozão! Do tamanho do universo! Você é suficiente pra mim,
mas... Isso não é só pra mim. Acho que não só eu ficaria feliz com mais
uma mamãe. Eu tenho certeza que você também — sorriu com seus
olhinhos brilhando. — Nossa família seria ainda mais bonita, assim como a
família do Thomaz é!
Ao contrário do que ele poderia ter imaginado, eu não tinha como rir
disso, mas, sim, sentir uma emoção tão grande a ponto de abraçá-lo forte
para segurar as lágrimas nos olhos, antes que escapassem. E, em meio à
quantidade de sensações e sentimentos maravilhosos que borbulhavam
dentro de mim, por ter um filho incrível, eu disse:
— Eu te amo tanto, meu garoto lindo. Eu tenho certeza que sua
outra mamãe está em alguma parte do mundo, e eu ainda vou encontrá-la.
Eu me coloco à sua disposição

Agatha

— Ah, sério, não me diga...?! — exclamei em puro sarcasmo, cruzando


os braços e arqueando as sobrancelhas. — Pois eu jurava que o aspirador
servia para aspirar água e não pó! Você acredita?!
Que saco.
Eu merecia mesmo, viu?
Além do caos completo que a vida tinha se transformado nos
últimos tempos, de ter que esfregar chão e privadas, de ter que pegar ônibus
todos os dias para chegar àquela maldita penitenciária, de ter aguentar o
meu pai me usando como moeda de troca, e, agora, mas não menos
importante, de ter que aturar um cara, que eu não tinha o menor interesse,
na minha cola, eu também precisava lidar e engolir os esporros de uma
inspetora que achava que eu tive propositalmente acabado com a energia do
prédio no dia anterior.
Brincadeira, né?
Eu mal cheguei naquele inferno, (e, diga-se de passagem,
milagrosamente não cheguei atrasada mesmo depois daquele infeliz jantar
que acabou de madrugada), mas a tal inspetora Alexa foi a primeira pessoa
a me abordar e a se colocar no meu caminho, exigindo explicações de algo
que já estava mais do que esclarecido. Eu só fui burra o suficiente para não
perceber que a pia do maldito banheiro estava cheia d’água. Só isso. No
fundo, entretanto, eu sentia como se ela estivesse falando comigo daquele
jeito, não exatamente por causa do apagão de ontem, mas por algum outro
motivo, sabe-se lá qual, que tivesse a ver com alguém que se chamava
Xena.
— Eu não sei que tipo de reizinho você tem na barriga, garota, mas
não me lembro de ter permitido, por um só segundo, que me respondesse
dessa maneira — redarguiu ela, com seriedade. — Exijo respeito enquanto
eu estiver falando com você. Esse assunto é sério. Você foi a responsável
por provocar um alarde na penitenciária ontem e merece sofrer uma
penalização pelos danos causados. Além da dificuldade que tivemos em
restabelecer a energia, o trabalho que nós tivemos para controlar os presos
foi surreal.
Surreal? Surreal era o tamanho da paciência que eu não tinha para
ser acusada de algo que eu não fiz intencionalmente.
— Querida, isso foi um acidente. Está me ouvindo? — franzi o
cenho, cerrando os olhos em sua direção. — Acidente! Ou você acha que eu
simplesmente acordei ontem e pensei “olha só, hoje dia está lindo para
causar um curto-circuito na penitenciária”? Ah, faça-me o favor, né? —
Tudo bem que tinha pensado em botar fogo na penitenciária, mas isso não
vinha ao caso, era só no sentido figurado, claro. — Não foi de propósito!
Ela suspirou, fitando-me com aquele olhar sério e aquela postura
ainda mais certinha e formal do que a usada pela mulher-maravilha
falsificada. Entretanto, isso não me assustava, nem me intimidava. Não me
colocava medo, nem receio. Na verdade, só fazia com que eu achasse todas
aquelas regras e padrões ridículos.
— Independente de ser um acidente ou não, independente de ter
sido proposital ou não, você merece ser punida pelo que fez, mesmo no
sentido culposo e não doloso. O transtorno causado pela falta de energia
aqui, durante o dia inteiro, foi severo.
Mesmo no sentido culposo e não doloso?
Ah não, espera aí, ela estava colocando aquilo em termos penais e
jurídicos?
Calma... Que tipo de crime eu tinha praticado? O crime de foder
com a energia da penitenciária? Pelo amor de Deus!
Rolei os olhos, balançando a cabeça em negativo.
Sinceramente, homens héteros faziam loucuras para comer a boceta
de uma mulher gostosa, mas lésbicas também. Eu não sabia como a Xena
conseguia aturar aquela inspetora, porque ela era realmente enfadonha. O
que tinha de gata, também tinha de chata e detestável. Às vezes, eu me
perguntava se realmente valia a pena passar tanta raiva só para sentir uma
garota gozando na sua boca.
Já impaciente com as suas ameaças, exclamei, dando de ombros e
rolando os olhos:
— Pois, então, tá bom! Vai lá! Pode me punir como você quiser. Eu
não tô nem aí!
Se ela pensava que colocaria medo em mim, por ser a inspetora da
penitenciária, estava redondamente enganada. Já bastava o que eu tinha que
aguentar do meu pai, em casa, e todo o terror psicológico que ele fazia
comigo. Eu não aceitaria me amedrontar com outra pessoa.
Porém, no exato segundo em que eu me calei, ouvi uma voz falar
bem às minhas costas. Aquela voz. A voz que me fazia travar no ato,
inconscientemente, mesmo que eu não quisesse. Quase prendi a respiração.
— Posso saber o que está acontecendo aqui? — perguntou ela.
Quando virei devagarinho o meu rosto, lá estava a Scott, nos
encarando atentamente, à espera de explicações. Tão ridiculamente bonita,
como sempre, droga. Usando a farda, as botas de combate, o coldre de
perna com a pistola, e os óculos escuros, ela parecia, naquele dia, ainda
mais atraente do que normalmente já era. Meu Deus, só podia ser o fim da
minha carreira. Suspirei, pigarreando a garganta e tentando retomar a
compostura.
Era a primeira vez que eu a via, desde ontem. Desde o que ela fez
por mim, desde a nossa mísera troca de palavras no carro, e desde as suas
mensagens. Talvez isso ainda estivesse mexendo um pouquinho com a
minha cabeça. Na verdade, ela mesma estava mexendo com a minha
cabeça. Era difícil se concentrar em algo quando a única coisa que eu
conseguia pensar, sempre que ela chegava perto, era no quanto eu estava
confusa por ter sensações com a policial que me prendeu e que eu conheci
há pouco mais de uma semana.
Mesmo assim, tentei me concentrar na situação.
— Essa mulher está querendo me culpar pelo apagão de ontem! —
E empinei o nariz, como se, há poucos segundos, eu quase não tivesse
perdido a fala apenas com a surpresa da sua presença. — Sendo que eu não
fiz nada de propósito!
Zara suspirou e, então, tirou os óculos escuros, me fitando.
Filha da puta gata do caralho.
— Essa mulher se chama Alexa Westphalen. Ela é a inspetora
Westphalen. Então, senhorita Ballard, por gentileza, um pouco mais de
respeito — Espera aí. Agora, estava querendo defender a namoradinha? Só
vi quando o peito da Westphalen se encheu de ar, ao ouvir aquilo. Ela estava
se achando. Porém... — E Alexa... — Zara virou-se para encará-la. — Tudo
não passou de um acidente, que, aliás, já foi resolvido. A garota só se
atrapalhou no trabalho. Não vai se repetir.
Rá! Viu só? Eu não disse? Foi só um acidente!
Westphalen queria pegar no meu pé!
E, cacete, eu nem acreditava que a Xena estava me defendendo
também.
Subitamente, meus olhos quiseram brilhar em uma estúpida emoção
de quem quase não acreditava naquilo. Droga, eu estava parecendo uma
criança. Ligeiro, tentei me controlar e disfarçar. Aquilo já estava indo de
mal a pior.
Foco, Agatha, foco. Sem passar vergonha.
Só vi quando a outra suspirou, quase revirando os olhos para a
policial.
— Acho bom que não se repita mesmo — Em tom de repreensão,
redarguiu. Sua postura ereta de elegância, misturada com arrogância,
continuava ali. — Mas, apesar de não ter sido um acidente proposital, nós
tivemos um enorme prejuízo não somente financeiro, mas também moral
com o apagão de ontem. O controle dos presos, dentro das celas, ficou um
caos. A garota merece alguma punição.
Argh... Punição, punição, punição...! (leia-se com voz de desdém).
Eu não aguentava mais ouvi-la falando a palavra “punição”.
— Alexa, eu entendo perfeitamente o caso. Sei o quanto deve ter
sido complicado. Mas, punição a garota já está recebendo. E, se quer saber,
de muitos tipos. Eu estou acompanhando tudo de perto. Então, deixe
comigo. Eu me resolvo com ela.
“A garota” pra cá, “a garota” pra lá... Eu também tinha nome,
caramba!
— Será que vocês podem parar de falar com se eu não estivesse
aqui? — Entredentes, questionei.
— Viu só como ela não respeita ninguém? — De pronto,
Westphalen replicou, cruzando os braços. — Não merece que pegue leve
com ela, Zara.
A policial, no entanto, suspirou e, tocando em seu ombro, repetiu:
— Alexa, deixe que eu me resolvo com ela.
Só vi o momento em que a morena, por mais que tentasse disfarçar,
se desmontou inteirinha ao sentir o toque da outra e ver onde sua mão
estava. Mesmo que a sua compostura gritasse para que ela permanecesse
séria e rígida, como de costume fazia ao estar na frente de qualquer outra
pessoa que não fosse a Scott, Alexa não conseguia fugir do meu radar. Ela
era caidinha pela policial. Suspirou, meio cansada, como se estivesse quase
se convencendo, e, então, respondeu:
— Tudo bem, pode agir como se fosse a protetora de mais uma das
suas detentas — No fundo, porém, eu senti que isso foi mais uma alfinetada
do que uma frase qualquer. E tive ainda mais certeza ao reparar na cara que
Scott fez, ao ouvir aquilo. Ele não pareceu ter gostado do comentário.
Percebi tudo, mesmo que eu estivesse viajando e não soubesse o significado
por trás daquilo. — Mas, Zara, depois, você e eu conversamos.
E esse foi o seu ultimato, segundos antes de nos dar as costas e sair
dali.
Eu sabia bem qual tipo de conversa ela iria querer com a Scott.
Alguma com muitos fluidos corporais e gemidos. Estava na cara o quanto
Alexa Westphalen era arriada os quatro pneus e o step por Zara Scott. Aliás,
quem não seria? Surpresa mesmo seria se Westphalen não se apaixonasse
por Scott. Droga. Respirei fundo, tentando mudar a direção dos meus
pensamentos, antes que eu me sentisse tão fodida pela policial quanto a
inspetora já estava.
Quando Alexa se afastou dali, porém, e eu pensei que a Xena fosse
me dar alguma bronca tanto pela maneira como eu estava falando com sua
“namoradinha” quanto pelo apagão de ontem, eu me surpreendi mais uma
vez. Sua postura tensa e rígida, enfim, mudou e deu lugar a um semblante
muito mais informal e atencioso. Era como se tivesse baixado a guarda,
deixando a policial sair de cena para entrar aquela Zara que eu só vi uma
vez, quando tentou me acalmar no banheiro, depois de tudo o que
aconteceu.
Juro que as suas mudanças de humor estavam começando a acabar
comigo.
Eu era nojenta? Sim, eu era. Mas, pelo menos, era um estado de
humor constante. Eu era nojenta sempre, sem muitas oscilações e picos.
Um negócio mais equilibrado, sabe?
— Como você está? — Em um tom mais baixo, comedido e até
preocupado, ela perguntou. — Sentiu mais alguma coisa, desde que eu te
mandei aquelas mensagens?
Ai, porra, ela estava tocando no assunto das mensagens... Querendo
ou não, meu coração estupidamente acelerou, simplesmente por me dar
conta de que ela, de fato, estava ciente daquilo. Estava ciente de que pegou
o meu número, me mandou mensagem, e estava deliberadamente falando
sobre isso. Não era como se ela quisesse fingir que nada aconteceu, porque,
sim, ela mencionou as mensagens e não parecia desconfortável com isso.
Eu quis ficar acelerada, agitada, quase empolgada, por causa disso,
mas...
Meu Deus, como eu estava sendo ridícula.
Pega leve, Agatha, pega leve. Ou você se esqueceu de que, apesar
dessas mensagens, ela deixou bem claro que vocês não tinham nada para
conversar? Aliás, por que o interesse agora, se nós éramos de mundos tão
incompatíveis a ponto de não conseguirmos trocar mais que meia dúzia de
frases?
Suspirei, tentando empinar o nariz e parecer aquela Agatha de
sempre.
— Estou bem. Já comecei a tomar os medicamentos. Não senti mais
nada.
Foi apenas isso o que eu respondi. Afinal, talvez eu não fosse
merecedora de um diálogo com uma policial de tão alta patente.
Quando virei o rosto, arredia, desviando o meu olhar do seu, no
entanto, ela percebeu algo que não deveria ter visto, ou que eu deveria ter
melhor escondido. Pela minha visão periférica, eu notei seu cenho franzido.
— Quem fez isso com você? — perguntou, segurando o meu queixo
para ver melhor.
Seu tom estranhamente não escondia preocupação. Porém, a
inquietação maior ainda foi minha. Porra, eu não tive muita paciência para
me maquiar naquela manhã. Provavelmente, era por isso que não tinha
chegado atrasada naquele dia. Fiz algo extremamente básico. Passei só um
pó e pronto, na ilusão de que fosse capaz de disfarçar alguma coisa. Mas,
certamente, ficou uma bosta, porque não escondeu o tapa que meu pai me
deu.
— Quem fez isso com você? — tornou a perguntar.
Droga, não era para ela ter visto.
— Ni-Ninguém... — pigarreei a garganta, tentando falar direito e
não aparentar nervosismo. Me afastando para que ela parasse de tocar e
olhar, busquei por uma distância segura que não existia. — Isso não é
nada... Eu só bati na porta do... — Pensa, Agatha, pensa. — Do meu
quarto.
Scott, entretanto, não parecendo muito convencida disso, enrugou a
testa outra vez.
— Na porta do quarto? — questionou.
— Sim.
Ainda estudou meu semblante por alguns instantes e...
— Tem certeza?
Argh, com qual razão ela estava insistindo nisso?
Já meio irritada, rolei os olhos.
— Sim, eu tenho sim — E um tanto arredia respondi, cruzando os
braços e trocando o peso do corpo para a outra perna. — Por que está
preocupada comigo? Não foi você quem me falou que se mantinha calada
por causa da minha evidente incapacidade de dialogar com uma policial
como você?
Ela, por sua vez, suspirou, aparentemente desapontada consigo
mesma.
— Olha, me desculpe por ontem — Se aproximou um pouco mais
de mim, encarando-me com atenção. — Eu não falei exatamente isso. Não
disse com essas palavras. Mas, mesmo assim, também não deveria ter dito o
que disse. Me desculpe, senhorita Ballard. Você pode falar comigo sempre
que quiser.
E, no fundo, eu sentia sinceridade nela.
Mas...
— Tanto faz... — Dei de ombros, como se não me importasse, muito
embora eu me importasse sim. Eu me importava tanto que murchei ontem,
dentro do carro, depois da sua resposta. — Vamos logo. Eu tenho que trocar
de roupa para começar a fazer as merdas aqui.
Fiz menção de dar as costas para sair, mas...
— Agatha... — E me segurou pelo braço, fazendo-me travar antes
de me virar totalmente. Sem conseguir conter as minhas reações, desci
minhas orbes, vendo sua mão me tocar bem ali, e, preguiçosamente, subi
novamente, para encarar suas íris castanhas. Além dos seus olhos, que
falavam muito por si só, ela também tinha me chamado pelo meu primeiro
nome. E, querendo ou não, por mais ridículo que isso fosse, mexia comigo
de alguma forma. Engoli seco inconscientemente. Eu parecia tão idiota
ultimamente, sempre que ela estava por perto. Zara tornou a observar minha
bochecha roxa. — Eu vou acreditar no que está me dizendo sobre essa
marca no seu rosto. Mas, se você quiser me falar qualquer coisa, fique à
vontade. Se precisar de qualquer coisa, eu estou aqui, tudo bem? Me coloco
à disposição, para ajudá-la ou apenas para conversar, se um dia ainda quiser.
“Me coloco à disposição, para ajudá-la ou apenas para conversar,
se um dia ainda quiser.”
Isso me pegou de surpresa outra vez.
No entanto, não era só pelo que ela disse, mas pelo modo como ela
disse, pela entonação verdadeira e sincera que colocou nas palavras, e pela
maneira como o seu corpo quase se inclinava em direção ao meu. Era por
tudo, mas principalmente pela linguagem corporal que ela me passou. Uma
linguagem que me dizia tantas coisas que eu mal podia acreditar, mas que
talvez eu me forçasse a não querer entender, porque, no fundo, eu entendia
sim.
Eu entendia muito bem.
Tudo o que eu consegui fazer, entretanto, foi balançar um leve sim
com a cabeça e mergulhar nos seus olhos por mais alguns instantes, antes de
iniciar o trabalho.

Zara

Era difícil explicar o que estava acontecendo comigo em relação


àquela garota, mas uma coisa era certa, mesmo que eu não tivesse a menor
obrigação de fazer isso, eu só consegui me aquietar e prosseguir com o
trabalho, depois de me retratar com ela sobre o que eu tinha lhe dito, dentro
do carro, ontem. Agatha poderia ser, sim, apenas uma garotinha mimada,
problemática e aparentemente superficial. Alguém de um mundo totalmente
diferente do meu. Porém, talvez houvesse algo a mais nela. E era
exatamente esse algo a mais que prendia a minha atenção.
Aquela estúpida sensação de preocupação e proteção com ela, ainda
estava ali, especialmente depois de ver a marca roxa em seu rosto, que, nem
de longe, parecia ter sido fruto de uma batida na porta. Apesar de estar com
os dois pés atrás em relação a isso, eu não quis insistir. Afinal, ela não me
devia satisfação alguma sobre a sua vida. Tentei, então, seguir em frente
com a minha responsabilidade de passar trabalhos a ela e supervisioná-la.
Era somente o que eu precisava fazer, no fim das contas. E deveria
continuar sendo apenas isso.
Foi só o tempo de vê-la saindo do banheiro, já vestida com a farda
da limpeza, para que os meus pensamentos se embaralhassem um pouco,
assim como a minha parca determinação de fazer aquilo permanecer apenas
como algo estritamente profissional. A garota realmente conseguia ficar
bonita de qualquer jeito e, ultimamente, eu parecia estar, cada vez mais,
reparando nesse detalhe e em muitos outros no seu rosto, no seu corpo e até
na sua personalidade. Era como se os meus olhos tivessem ganhado algum
tipo de poder de Raio X. Uma merda. Algo que eu realmente deveria evitar.
Respirei fundo, recuperando cinco por cento da minha noção de ética no
trabalho, e falei:
— Pronta, senhorita Ballard? Me acompanhe, por favor.
— Eu nunca estou pronta — disse ela, rolando os olhos. — Mas,
não tenho outra alternativa. Vamos.
Segurando um breve sorrisinho, para a sua tão peculiar simpatia,
dei-lhe as costas e comecei a caminhar em direção à recepção da
penitenciária, fazendo-a me acompanhar. Não demoramos muito para
chegar próximo à área onde ficava o balcão das recepcionistas. Por ali, eu já
tinha organizado tudo o que ela precisaria para executar o primeiro trabalho
do dia: escada e lâmpadas.
— Bom, algumas lâmpadas queimaram ontem, por causa do apagão,
como pode ver — virando-me para ela, apontei para que notasse as que não
estavam acesas. — Somente aqui na recepção, temos três que precisam ser
trocadas. Então, o seu serviço, por ora, será esse. A escada já está aqui e as
lâmpadas também. Bom trabalho.
Foi tudo o que eu disse, segundos antes de lhe entregar uma das três
lâmpadas tubulares que eu havia deixado ali. Na minha cabeça, de todos os
serviços que ela já tinha feito, aquele, sem dúvidas, seria o mais simples.
Não haveria espaço para problemas ou acidentes. Pelo menos, era esse o
esperado. Afinal, era basicamente uma troca de lâmpadas. Super simples.
A loira, entretanto, ao segurar o objeto, encarou-o como se fosse um
extraterrestre, um alienígena, um ser com o qual ela nunca tivesse entrado
em contato.
— Algum problema, senhorita Ballard? — perguntei.
Ela, no entanto, ainda fitou a lâmpada tubular por alguns segundos,
segurando-a com as duas mãos, como se estivesse tentando entender a
mecânica ou a lógica da dita cuja, até que, enfim, pigarreou a garganta e
empinou o queixo, tornando a ser aquela Agatha de nariz em pé de sempre.
A autossuficiente e prepotente Ballard.
— Não, nenhum — disse apenas. — Pode deixar que eu consigo
fazer essa merda.
Ah, aquele palavreado adorável de sempre...
— Tudo bem... Então, como você sabe, aqui na recepção é
tranquilo, eu não preciso supervisionar o seu trabalho o tempo todo. Vou ali,
pegar um café, e volto daqui a pouco. Mas, senhorita Ballard... — chamei
sua atenção, fazendo-a olhar para mim. — Tente não causar mais acidentes
por aqui, nem quebrar mais coisa alguma.
Revirando os olhos e balançando a cabeça de leve, a loira apenas
disse, enquanto se virava para pegar a escada:
— Hahaha, que engraçadinha.
Suspirei, certa de que ela tinha entendido o recado.
Assim, confiando que, daquela vez, ela não faria nenhuma besteira,
fui atrás do cafezinho na copa que ficava bem ao lado da área da recepção.
Por ali, alguns policiais conversavam e trocavam ideias, entre uma pausa e
outra durante o trabalho. Me aproximei deles, já cumprimentando alguns
que falavam comigo. Enquanto eu pegava um copinho descartável e enchia
de café, um dos meus colegas chegou mais perto. Era o David, um dos
agentes que estava comigo exatamente no dia acidente com Agatha.
— E aí, Zara! Tudo tranquilo? — disse ele, simpático como sempre,
apertando o meu ombro e quase chacoalhando. Era o seu jeito.
— Fala, David... — cumprimentei-o de volta. — Tudo bem sim, e
contigo?
— Bem, na medida do possível... Só cansado mesmo — soltou uma
risadinha. — Cheguei há pouco tempo da ronda noturna. Você sabe como
são os trabalhos à noite, com essa quantidade de cassinos e casas noturnas,
não é? Mas, enfim, e você? Muito trabalho aí com a menor infratora? —
apontando com o queixo em direção a ela, perguntou em tom de
brincadeira. — Estamos sentindo sua falta nas ruas!
Suspirei, tomando fôlego, para falar sobre aquilo, e sorrindo de leve.
— Pois é, meu caro, eu também sinto falta das ruas — soltei uma
risadinha. — O trabalho com a garota está me dando mais dores de cabeça
do que eu imaginava. Ela é difícil. Você se lembra daquela noite, né? A
garota é exatamente daquele jeitinho. Só que vinte e quatro horas por dia —
sorri, meio cansada. — Mas, estamos levando.
— Porra... Você deveria ganhar adicional de insalubridade só por
estar aguentando isso — brincou. — A garota me pareceu bem complicada
mesmo... — rindo, balançou a cabeça de leve, enquanto tomava um gole do
seu café, até que... — Ei, Zara, olha aquilo ali... — franzindo o cenho,
apontou com o queixo de novo. — Ela vai trocar a lâmpada desse jeito?
Ah, não.
Não, não, não.
Isso não ia dar certo.
Agatha subiu a escada com uma das novas lâmpadas tubulares
debaixo do braço. Porém, aparentemente esquecendo-se disso, ao erguer o
braço para tirar a queimada, deixou a nova cair e se quebrar no chão.
Meu Deus.
Isso não ia dar certo mesmo.
Todos os que estavam na recepção olharam em sua direção, no
momento em que o barulho de vidro se quebrando ecoou por ali. Ela se
empertigou, provavelmente falando algum palavrão, quando percebeu o
pequeno estrago que tinha feito.
O problema, entretanto, não era exatamente esse.
Era que...
— Ela... — Já abismada e preocupada com a situação que se
desenhava frente aos meus olhos, à medida que Agatha se movia, falei
baixinho, comigo mesma, de olhos bem arregalados. — Ela tinha que
desligar a energia primeiro, antes de tirar essa lâmpada, senão ela vai...!
— AAAAAAAAAA!
Só ouvi o grito que a garota deu ao levar um tremendo choque.
Puta que pariu.
Deixando cafezinho, conversa e tudo para trás, corri rapidamente em
sua direção, chegando a tempo de segurá-la nos meus braços, quando ela
caiu durinha da escada. Com os cabelos loiros arrepiados, ela parecia meio
desnorteada, depois do choque.
Pelo amor de Deus, essa menina ainda ia me matar do coração.
Um burburinho se alastrou pela recepção, com pessoas preocupadas
que estavam por ali. Ouvi alguns falarem e se colocarem à disposição. Eu,
no entanto, não prestei atenção em mais nada, nem ninguém, somente nela.
Ainda com Agatha em meus braços, apenas caminhei rapidamente até uma
das salas da administração, onde eu sabia que tinha o que pudesse ajudá-la.
Abrindo a porta como se um furacão estivesse entrando ali,
coloquei-a sobre o sofá. Pelo menos, acordada ela estava. Só parecia meio
grogue e mais branca do que já era. Contudo, ela e o seu raciocínio estavam
lentos demais. Ou pareciam se recuperar de pouco em pouco. Em um passo
mais devagar do que a minha preocupação poderia aguentar.
— Agatha... Agatha... — inquieta com o seu estado, passei as mãos
em seu rosto. Seus olhos, de pouco em pouco, se fixaram nos meus. Ela
estava meio molinha, enquanto eu a tocava para que reagisse. — Você está
bem? Como se sente?
Suspirou, lenta.
— Estou... Acho que sim... — E inclinou a cabeça para trás,
fechando os olhos.
Meu Deus.
— Agatha... Agatha... — segurei seu rosto novamente, trazendo
para frente e impedindo-a de dormir. — Abra os seus olhos... — dei
batidinhas leves, para ela espertar, e aproximei ainda mais o meu rosto do
seu. — Olhe para mim, Agatha. Por favor. Olhe para mim.
Foi aí que, repentinamente, suas orbes se fixaram mais firmemente
nas minhas e, sem avisos prévios, ela sorriu de leve. Percebi quando
passeou com as suas íris meio aéreas pelos meus olhos, pelo meu nariz,
pelas minhas bochechas, pela minha boca... Sorriu de novo, letárgica, como
se estivesse viajando, e disse:
— Sabe... Eu gosto quando você me chama de Agatha e gosto
também dos seus olhos. Eles têm pintinhas verdes — Ela viajava... Viajava
com o seu rosto tão perto do meu. Até que, de súbito, parou e arqueou as
duas sobrancelhas. — Espera aí... Eu disse isso em voz alta?
Travei por dois segundos, ao ouvir aquilo. O fato era que eu não
deveria levar em consideração o que uma pessoa grogue, depois de um
choque, falava. Poderiam ser coisas bem sem sentido mesmo. Mas,
querendo ou não, aquilo me deixou desconcertada de certa forma. E a
encabulou na mesma medida também.
Inclusive, eu precisava abrir um parêntese para deixar bem claro o
quanto ela ficava adorável com as bochechas coradas. Ficava ainda mais
bonita do que já era. Isso até deu uma corzinha para ela, depois daquela
palidez extrema que me assustou. Porém, apenas pigarreei a garganta,
mudando de assunto, porque, além de não dever levar ao pé da letra o que
uma recém-eletrocutada falava, eu também não deveria reparar no quanto
ela ficava linda com vergonha.
— Você está bem, não está? Está melhor? — perguntei, afastando
um pouco meu rosto do dela, já estava mais perto do que deveria.
— Estou... — ela suspirou novamente, em mistura de
constrangimento - tanto pelo que acabou de dizer quanto pelo ocorrido -
com falta de senso. Era como se ainda estivesse assimilando tudo aquilo. —
Só que os dedos estão meio queimados, eu acho... — tocou uns nos outros,
franzindo o cenho.
— Oh sim, claro! — exclamei, me lembrando de algo, ao ouvir isso.
— Te trouxe para cá justamente porque nessa sala há uma caixa de
primeiros socorros — E me levantei, caminhando ligeiro em direção a um
dos armários. Abri a primeira gaveta, retirei o que eu queria e logo voltei
para onde ela estava. — Nessa caixa tem um mundo de coisas... — disse eu,
abrindo e fuçando por ali, até achar. — Mas, sei que tem também... —
Achei! — Essa pomada aqui, que é ótima para cicatrizar feridas — Sem
conseguir conter o pequeno sorriso de alívio, tanto por ela estar bem quanto
por ter encontrado, ergui para que ela visse.
Segurei, então, sua mão e comecei a passar a pomada na ponta de
cada um dos dedos. Percebi, no entanto, o momento em que ela pareceu
prender brevemente a respiração ao se arrepiar. Cada um dos pelinhos do
seu braço ficou eriçado.
— Está tudo bem mesmo? — ergui uma das sobrancelhas, cautelosa
sobre o seu estado pós-choque. — Está sentindo alguma dor? Aqui nesta
caixa tem muitas outras coisas. Se você estiver sentindo algo mais, posso te
dar um comprimido ou...
— Não, eu estou bem... — Soltando uma risadinha, ela me
interrompeu. — Eu estou bem sim — E, de pouco em pouco, seu sorriso foi
diminuindo até sua expressão se tornar meio reflexiva ou quase...
Contemplativa. Seus brilhantes olhos azuis me fitaram tão atentamente,
como se não quisesse olhar para mais nada daquela sala que não fosse eu.
— Só estava aqui pensando que parece que ultimamente tem se tornado um
hábito você me salvar — disse em um leve tonzinho de brincadeira, até me
observar atentamente outra vez. — E eu sou grata por isso. Obrigada
mesmo, Zara.
Zara...
Era a primeira vez que eu a ouvia me chamar pelo meu nome.
E, se ela gostava de me ouvir chamá-la pelo seu nome, também não
era nada mal reparar nos seus lábios pronunciando o meu. Na verdade, se eu
pudesse, talvez eu fosse capaz de gostar não somente disso, mas de muitas
outras coisas nela.
Fique comigo, Zara

Zara

— Eu só não consigo entender a razão para que você esteja acobertando


tantas coisas dessa menina... — disse Alexa, de pé, encostada ao tampo da
mesa do seu escritório. — Aliás, não somente acobertando, mas também
claramente preocupada com ela, e se importando mais do que deveria —
cruzou os braços. — Naquele dia, você correu com ela para o hospital,
como se fosse um dever seu, sendo que não era. Outros agentes poderiam
ter feito isso. E, quando eu tentei responsabilizá-la pela falta de energia
aqui, você simplesmente me impediu. Mais uma vez, “passou a mão na
cabeça da garota” — fez aspas com os dedos. — E ainda tirou a minha
autoridade na frente dela. Eu não consigo entender isso, Zara. O que está
havendo?
Nem eu entendia. Nem eu.
E a situação era tão confusa para mim, que Alexa estava dirimindo a
minha paciência, naquela espécie de interrogatório, dentro da sua sala de
escritório. Se nem eu sabia responder certas coisas para mim mesma, quem
diria para ela. De toda forma, eu queria acreditar que ela estava exigindo
satisfações porque era a inspetora da penitenciária e deveria estar a par de
tudo. Sim, ela sempre se sentia no direito de fazer isso. Sempre queria estar
ciente do que acontecia ali. Muito embora, por outro lado, algo me dissesse
que essa atitude dela, para comigo, não era apenas por ser uma das chefes
da penitenciária, mas por alguma razão mais pessoal do que deveria.
Suspirei, tentando manter a paciência.
— Alexa, olha, me perdoe. Não foi a minha intenção tirar a sua
autoridade na frente dela. Se você pensou isso, eu realmente peço
desculpas. Mesmo assim, você também sabe que quem está na supervisão
dela sou eu. Então, nada mais justo que seja eu a me entender com ela. Eu
supervisiono, eu cobro, eu sou responsável por ela, querendo você ou não.
Só esperava que, dessa vez, eu tivesse sido clara.
A morena, no entanto, sem papas na língua, replicou de pronto:
— Você pode até ser a supervisora dela, mas acima de você quem
está sou eu. Ou seja, de uma maneira ou de outra, eu também tenho poder
sobre a garota.
Pelo amor de Deus, que cansativo.
Soltei o ar pesado dos meus pulmões, balançando a cabeça de leve,
já farta de uma conversa que tinha acabado de começar. Por mais que ela
fosse a minha chefe, eu odiava quando entrava nesses termos. Ou pior,
quando queria se colocar acima de mim, em qualquer situação,
independente de ser um assunto profissional ou não. Em partes, essa
arrogância foi um dos motivos que me fez perder o meu interesse pessoal
nela. Alexa sempre queria estar no comando de tudo, fosse no trabalho ou
na minha vida.
— Tem certeza que quer entrar nesse mérito? — enruguei a testa,
não escondendo a minha aversão sobre isso.
Alexa, por sua vez, suspirou, mas, agora, de maneira um pouco mais
resignada e um pouco menos prepotente. Caminhou pela sala, como se
estivesse pensando algo - isso, no fundo, me causava certo tipo de receio,
porque eu sabia o quanto a sua mente poderia ser fértil - até que, enfim,
parou em determinado ponto e virou-se para mim, dizendo:
— Ainda acho que pode haver algo além disso, além do que é visto
explicitamente, Zara. Algo além do fato de que essa sua “proteção” seja
porque você é a supervisora dela.
Espera aí.
De automático, meu cenho franziu ainda mais e minha postura
enrijeceu.
— O que você está querendo dizer com isso, Alexa?
Com obviedade, ela ergueu uma das sobrancelhas, me fitando.
— Ah, Zara, teu passado te condena... — sacudiu de leve os
ombros, dando dois passos em minha direção. — As lembranças sobre o
que aconteceu, anos atrás, ainda existem. Não foram apagadas da memória
de quem trabalha na polícia de Las Vegas há anos. E essas lembranças não
deveriam ser apagadas da sua memória. Você quase perdeu o seu emprego,
Zara — Em um breve tom de advertência, ela disse. — Precisa tomar
cuidado.
“Você quase perdeu o seu emprego.”
Porra...
Essas lembranças jamais seriam apagadas da minha memória,
mesmo que eu quisesse e fizesse muito esforço. Eu não precisava de alguém
que as trouxesse de volta à pauta. Já bastavam os meus próprios fantasmas
me atormentando. Subitamente, minhas costas se endureceram ainda mais,
à medida que eu sentia minha mandíbula trincar de tensão apenas por ouvir
isso.
— Você sabe que eu não gosto de tocar nesse assunto, Alexa —
repreendi.
Ela suspirou, balançando a cabeça.
— Não me leve a mal, Zara. Sei que pode ser uma ideia absurda.
Afinal de contas, ela é só uma garota extremamente imatura. Alguém que,
sem dúvidas, não despertaria o seu interesse de forma alguma — soltou
uma breve risadinha de desdém. — Ou, pelo menos, não deveria despertar.
Mas, considerando o que já aconteceu e... — pigarreou a garganta, deixando
a frase pela metade, ao notar o semblante nem um pouco agradável que eu
lhe oferecia. — Bom, isso é apenas um conselho de quem quer o seu bem.
Um conselho de quem quer o meu bem?
Por favor.
Balancei a cabeça em negativo, contrariada, irritada.
Era péssimo que, além de gerenciar todas as sensações confusas que
se embolavam dentro de mim ultimamente, por causa daquela garota, - que
mal apareceu e já estava virando a minha cabeça - eu ainda tivesse que lidar
com esse tipo de pressão externa que não me ajuda em absolutamente nada.
— Não, Alexa, eu vou levar isso a mal sim — retruquei, sem receio
de estar sendo rude. — Eu não gosto de comentários assim, nem de
insinuações. Não preciso que me diga com o que eu devo ou não tomar
cuidado, porque eu tenho controle total sobre a minha própria vida. E eu
realmente não permito que ninguém tome esse controle para si. Pode
guardar os seus conselhos para você mesma.
Sinceramente, depois disso, a minha vontade era lhe dar as costas e
sair dali. Preferia estabelecer alguma distância, até que os meus ânimos se
acalmassem de novo. Eu só não fazia isso em razão do respeito que eu
ainda tinha por ela, porque, apesar de comer a sua boceta, Alexa ainda era a
minha chefe e eu a sua subordinada. A regra era clara quando dizia que uma
policial não deveria faltar com respeito à inspetora.
— Tudo bem, me desculpe... — suspirou. — Não está mais aqui
quem falou — rolou os olhos de leve. — Enfim, eu sei que você não vai
cair no erro de novo — aproximando-se, deu a volta ao meu redor, como
uma gata que marcava o seu território. — Agora, você tem uma opção
muito melhor — E sorrindo, deslizou suas mãos dos meus ombros aos meus
braços.
Opção...? Era ridículo quem se reduzia à opção.
Preferi, no entanto, tentar não comentar sobre isso, para não ter que
prolongar o nosso diálogo. Aquilo ali era para ter acabado antes mesmo de
começar. Eu só queria sair daquela sala, até porque já estava quase no final
do expediente e eu precisava ver o que a Agatha estava fazendo, para,
então, liberá-la.
— Olha, Alexa, eu tenho que ir... — desconversei. — Se ainda
quiser falar algo importante, é melhor que diga logo. Tenho outras coisas
para resolver.
— E isso não é importante? — questionou, sagaz, pouco se
importando com a cortada que eu lhe dei. Ela era assim mesmo.
Dificilmente se deixava afetar por alguma coisa. — Ainda me lembro de
que você está me devendo uma saída. Sabe que estou sentindo falta do que
a gente faz — deslizou seus olhos do meu, na direção da minha boca,
enquanto, de leve, mordia seu lábio inferior. — Aliás, pensando bem...
Poderíamos fazer agora mesmo. Aqui. Não seria a primeira vez — e, rindo
baixinho, me beijou.
Como ela conseguia entrar no clima para esse tipo de coisa, depois
da conversa que tivemos?
Franzi o cenho, me afastando e empurrando de leve o seu ombro
para que ela parasse de me beijar.
— Alexa, agora não.
— A porta está trancada e já faz tempo que nós não... — deixou a
frase solta e me beijou de novo, tentando tirar o meu colete e abrir minha
blusa da farda, puxando o pano passado da calça.
Porra...
— Alexa, não é não.
E, enfim, lhe dei as costas, ajeitando a minha roupa e deixando-a
sozinha na sala. Dessa vez, eu pouco me importei em ser rude com a minha
chefe, porque ela tentou ultrapassar um limite que eu não estava lhe dando
permissão. Nenhuma chefia estava acima do direito que eu tinha sobre o
meu corpo.

Agatha

Era fim de tarde quando eu terminei de passar o pano na entrada da


recepção. Morta de cansada por mais um dia inteirinho de trabalho, segui
para o banheiro das funcionárias. Bom, eu sabia que eu só poderia ir
embora depois que a Xena me liberasse, mas, pelo que eu tinha visto no
relógio, eram quatro e meia da tarde e já estava quase passando do meu
horário de ir para casa.
Ela tinha sumido para alguma parte da penitenciária, enquanto eu
finalizava meu serviço na entrada do prédio, já que, segundo ela, aquele era
um local tranquilo, diferente de quando eu precisava limpar alguma coisa
nas alas das celas. Mesmo assim, eu sabia que logo logo ela apareceria por
ali, me avisando que era hora de zarpar. Aquela mulher era sempre pontual
em tudo mesmo.
Assim, tomei banho, em um dos boxes com chuveiro, apesar de ter
certeza de que chegaria fedorenta em casa da mesma maneira, depois do
ônibus (eu só não conseguia me vestir estando toda suada); troquei a farda
pela minha roupa; e, já pronta, segui de volta à recepção. Quando cheguei
por lá, dito e feito, Scott não demorou muito a aparecer. Logo ela surgiu
caminhando pelo corredor que dava para as salas da administração.
Percebi, porém, algo meio esquisito nela. Parecia um pouco irritada.
Ajeitava sua roupa, meio amarrotada, e franzia o cenho, como se
balbuciasse palavrões baixinhos consigo mesma. Confesso que certa
curiosidade e até... preocupação se acendeu dentro de mim. Senti uma
súbita vontade de perguntar o que tinha acontecido. Mas, alguma coisa em
mim travou, especialmente quando ela falou primeiro.
— Senhorita Ballard, como estão os trabalhos? — Ríspida,
perguntou, mesmo que eu sentisse que não fosse a sua intenção agir assim
comigo. Ela não estava normal. Apesar de sempre agir de maneira formal
comigo, a postura dela, naquele momento, não era comum. Algo, porém,
me dizia que o problema não era exatamente comigo, mas com ela mesma
ou com algo, em uma daquelas salas da administração, de onde ela saiu. —
Já finalizou? — E, com a testa enrugada, encarou minhas roupas de cima a
baixo, vendo que eu já estava pronta para ir embora.
— É-É... — Gaguejei sem nem saber o motivo. Talvez aquele jeito
dela, que eu ainda não tinha visto, me deixasse meio acanhada e receosa.
Mesmo assim, pigarreei a garganta, tentando não parecer idiota demais. —
Já, sim, já terminei. Quero dizer, são mais de quatro e meia da tarde, não é?
Tá passando da hora de eu ir.
— Cacete, já? — notei quando ela falou baixinho e, então, olhou
para o seu relógio de pulso. Scott não tinha o costume de falar palavrões.
Pelo menos, não na minha frente. Eu quase não ouvia. Realmente, ali ela
não parecia a mesma de sempre. Alguma coisa aconteceu. — Tudo bem,
então — respirou fundo, como se tentasse repor o seu fôlego por algum
motivo, que eu suspeitava ser o mesmo que estava a deixando daquele jeito.
Voltando os olhos para mim, me encarou. — Pode ir. Está liberada.
— Ok... — suspirei. — Até... — E, meio esquisita, me despedi.
Porém, depois disso, meu raciocínio reagiu muito mais rápido do
que a minha própria ação de dar as costas e sair dali. Ele correu na
velocidade da luz. Ainda quis franzir o cenho para mim mesma e para o que
eu estava sentindo. Tudo o que eu deveria fazer era ir embora e não
perguntar nada a ela. Afinal, eu não tinha nada a ver com a sua vida. Porém,
aquele bichinho da curiosidade, ou do interesse, cutucou tanto o meu peito,
que não me deixou virar totalmente e dar dois passos, sem dizer:
— Scott... — a chamei. Meu coração meio acelerado pela vergonha
tanto do que eu ia fazer quanto de mim mesma por saber que, outra vez,
estava me importando com ela mais do que deveria. Eu sabia que algo
estava acontecendo entre nós, não somente pelas vezes que ela já me
ajudou, mas por tudo. Até mesmo pelo simples fato dela estar perto de mim,
eu sentia algo acontecendo. Algo que eu não conseguia descrever com
exatidão o que era, mas sabia que existia. Algo que fazia com que eu me
importasse e quisesse saber sobre ela, mesmo que eu não estivesse em
posição de me intrometer na sua vida. Outro dia, no entanto, ela tinha me
dito que poderíamos conversar, caso eu quisesse. E foi nesse filete de lógica
que eu quis me segurar para não morrer de vergonha. — Está tudo bem?
Só vi quando ela, que estava quase se afastando, também voltou o
corpo para mim. Sua testa ainda mais enrugada que antes. Meu coração
estúpido faltou pular da garganta. Droga, droga, droga. Por que você tinha
que ser assim, Agatha? Será que não dava para continuar agindo como
aquela Ballard insensível de sempre? Suspirei, contrariada comigo mesma.
Não, aparentemente não dava para ser aquela Ballard, quando a Xena estava
por perto.
— Se está tudo bem comigo? — questionou ela, claramente
estranhando a minha pergunta.
Argh, que vergonha.
Aliás, por que diabos eu me permitia ficar envergonhada na frente
dela?
Isso era ridículo.
— É-É... — gaguejei de novo. Droga. Estava tudo errado. Tudo
tudo. Era melhor que eu desse o fora logo dali, antes que as coisas
piorassem ainda mais. — É que eu te achei mais séria do que o normal e...
Pareceu chateada. Enfim... — balancei a cabeça, com o meu próprio
papelão. — Não precisa responder. Fui indiscreta demais — Ligeiro, falei.
— Tchau! — e dei-lhe as costas.
Dessa vez, caminhei a passos rápidos e largos, como se a distância
que eu ganhasse dela pudesse diminuir a minha estúpida vergonha de
alguma forma. Agatha, você piora a cada dia. Tola. Eu praguejava comigo
mesma e me maldizia enquanto fazia o meu percurso o mais ligeiro que eu
conseguia, com a bolsa no ombro e a sandália quase levantando poeira.
Porém, quando já estava quase cruzando o portão da penitenciária,
eu ouvi:
— Ei, espera!
Parecia a sua voz.
Subitamente, parei no meio do caminho e, devagarzinho, com o
coração ainda acelerado, mesmo sem entender o motivo dessas reações que
ela causava em mim, fui me virando. E lá estava ela. Era ela mesmo,
correndo em minha direção, aparentemente com a pressa de não me deixar
esperando. Quanto mais ela se aproximava, mais nervosa eu ficava. Deus
do céu, terapia. O nome para isso era terapia. Só que aí, quando ela
chegou perto o bastante e falou...
— Você vai embora sozinha?
A realidade foi inversamente proporcional à expectativa.
Ah, então, era isso?
Minha respiração até normalizou um pouco. Me aliviei. Eu não
estava esperando que ela me dissesse algo realmente importante, mas aquilo
era básico demais.
— É... — franzi o cenho. — Esqueceu o que eu te falei sobre o meu
pai ter cortado tudo?
Sua testa enrugou, e o olhar que me deu foi de curiosa preocupação.
Aquela mesma preocupação que eu vi no seu semblante, quando precisei ir
ao hospital e quando levei um choque. Senti minha coluna tencionar,
entretanto, no instante em que meu subconsciente soprou algo em meus
ouvidos.
Quê que foi?
Agora ela ia me oferecer uma carona?
Travei.
Não, não, não. As coisas já estavam se tornando esquisitas demais
entre nós. Era melhor que essa carona não acontecesse, por mais bem-
vinda que fosse. Distância talvez fosse o remédio para que eu parasse de
vê-la com olhos que eu poderia dar a qualquer outra mulher, mas não à
policial que me supervisionava.
— Bom, eu preciso ir tá? Antes que fique mais tarde — falei de
repente, tentando não lhe dar espaço para dizer outra coisa. — O ônibus vai
passar.
E me virei.
Porém...
— Agatha... — Ela me chamou pelo meu nome e ainda segurou o
meu braço. Isso era um tremendo golpe baixo. Porra. Inconscientemente,
senti um arrepio perpassar. Meus pelinhos se eriçaram. Aquele mesmo
arrepio idiota de quando ela estava passando a pomada nos meus dedos.
Que saco. De novo? De novo não. Já bastavam as gafes que eu dei no dia
que estava grogue do choque. Ali, coisas saíram da minha boca sem que eu
pudesse segurar. Só depois eu percebi a gravidade do que eu disse. — Eu
posso te dar uma carona. Não é problema algum para mim.
Não.
Não, não.
Poderia não ser um problema para ela, mas era para mim sim.
Seria mais uma chance de eu dizer ou fazer coisas pelas quais eu
poderia me arrepender assim que me despedisse dela e entrasse em casa.
Puxei de leve o meu braço, fazendo-a me soltar.
— Olha, eu agradeço, de verdade, mas... — Não vai rolar. — Eu
posso ir de ônibus mesmo, tá legal?
Ainda tentei esboçar um pequeno e mísero sorriso, mas logo lhe dei
as costas e saí dali o mais rápido que pude, enfim cruzando o portão da
penitenciária. Era outra investida minha de evitar que mais alguma coisa
constrangedora acontecesse entre nós. Afinal, isso já estava quase se
tornando um costume. Foi assim quando ela me deu carona, foi assim
naquela sala quando eu levei um choque, e era assim que continuaria sendo,
se eu não evitasse.
Caminhei ligeiro pela rua. O sol já estava quase sumindo na linha do
horizonte, por mais que ainda houvesse um pouco da claridade do fim do
dia. Em determinados pontos, pessoas transitavam de um lado para o outro.
Porém, um dos motivos para eu odiar ter que fazer trabalhos comunitários
era o local onde aquele inferno de penitenciária ficava: na parte mais
afastada e quase deserta da cidade.
Em geral, penitenciárias eram construídas distantes da região mais
central e movimentada mesmo. E era isso o que fodia para mim. Eu sempre,
sempre, ficava com o cu na mão, quando precisava fazer o meu caminho de
ida e de volta, até o ponto de ônibus. Havia sim pessoas por ali, mas não era
como no centro de Las Vegas, ou na parte mais rica da cidade. Devido ao
local, pouca gente andava naqueles arredores.
Quando passava uma mulher por perto, era um pouco mais
tranquilo. Porém, quando eram homens que me olhavam de um jeito meio
torto, eu me cagava de medo. Alguns deles me secavam na cara de pau e
ainda soltavam piadinhas ou assobios, enquanto encaravam a minha bunda
e o meu corpo. Eu odiava isso! Mas, querendo ou não, por mais briguenta e
desaforada que eu fosse, eu tinha medo de bater boca com esses caras no
meio de uma rua quase deserta. Isso, sem dúvidas, era o pior.
Enquanto eu caminhava por ali, praticamente correndo para chegar
logo ao ponto de ônibus, no entanto, ouvi meu celular tocar dentro da bolsa.
Droga. Nem a pau eu atenderia o celular justo ali, naquele lugar fedido e
perigoso. Tentei me desligar do fato de que a porcaria estava quase dando
saltos mortais, de tanto chamar, e fingi que ele nem existia.
Porém, a merda continuou tocando.
Tocando, tocando, tocando.
Tocando freneticamente a ponto de quem passava por mim, na rua,
ouvir. Argh, que saco. Isso não era bom. Não era nada bom. De nada
adiantaria eu escondê-lo de possíveis roubos, se ele continuasse chamando
atenção daquele jeito.
Merda.
Irritada, bruscamente tirei-o da bolsa e atendi, sem ao menos ler o
nome que estava na tela.
— Fala — Mal-humorada, atendi.
— Olá, Agatha... Tudo bem...? — Um tom de voz masculino, e
aparentemente simpático, ecoou.
Revirei os olhos.
Eu não estava com humor para simpatias naquele momento.
— Quem é que tá falando, heim? — Impaciente, questionei. — Eu
não tô podendo conversar agora — Olhando de um lado para o outro,
preocupada, falei.
Se me roubassem ali, eu não teria dinheiro para comprar outro,
assim como também não estava disposta a ter que passar dois meses e meio
sem celular, até conseguir acesso às minhas contas bancárias novamente.
— Ah, Agatha, quem está falando é o Louis... Lembra de mim? —
Ai, caralho, eu não podia acreditar, assim como também não tinha como
me esquecer. Deveria ter o olhado o nome antes de atender aquela merda.
— Eu estava passando aqui próximo a penitenciária, onde você está
fazendo os seus trabalhos, e pensei se não queria uma carona.
Que? Como assim? Como ele sabia qual era penitenciária, se havia
mais de uma? E como ele sabia os meus horários?
Argh, que ódio. Só podia ser obra do meu pai!
Era um saco ter que pegar ônibus e andar por aquelas ruas esquisitas
e cheias de homens mal-encarados que me olhavam de cima a baixo. Mas,
ainda assim, eu preferia ir sozinha do que chegar perto daquele tal Louis.
Entretanto, só vi quando passei em frente a um banco onde havia um
cara cheirando alguma coisa numa latinha. Seus olhos meio trocados se
ergueram em minha direção. Só podia ser droga. E ele me fitou, mirando
exatamente no celular. A cara que ele fez não foi nada boa. Na verdade, foi
super suspeita.
Merda, merda, merda.
Me empertiguei.
— Olha só, eu vou ter que desligar. Não tenho como falar agora.
E, deixando bem claro que eu realmente estava pouco me
importando com a sua sugestão de carona, encerrei a ligação e coloquei o
celular dentro da bolsa o mais rápido que pude. Segui meu caminho,
andando rapidamente e tentando não parecer tão nervosa quanto eu já
estava.
Porém, isso pareceu tarde demais, no momento em que aquele cara
esquisito, que estava no banco, se levantou de súbito e voou em minha
direção. Foi muito mais rápido do que eu imaginava que ele pudesse
conseguir, dadas as condições decadentes que eu pensei que ele estivesse.
De supetão, me agarrou por trás. Porra, porra, porra. No susto, eu
gritei em puro pânico e, instintivamente, segurei minha bolsa firmemente
entre as mãos. Ele, no entanto, me segurando forte, a ponto de me
machucar, pressionou os meus braços.
— Ei, patricinha, passa a bolsa! Passa bolsa!
Eu sabia que não deveria reagir a assaltos. Era perigoso. Não dava
para saber se ele estava armado ou não. Porém, naquele meu estado de
pânico, eu só conseguia gritar e pedir socorro, com lágrimas já escorrendo,
enquanto minhas mãos continuavam involuntariamente segurando firme a
bolsa.
Merda, eu estava fodida mesmo.
Até assalto em Las Vegas, eu sofria.
Entretanto, no exato instante em que ele tentou colocar uma pressão
ainda maior para levar a minha bolsa, algo repentinamente aconteceu. De
súbito, por uma força que eu não estava esperando, fui empurrada para o
lado, quando alguém se colocou no meio de nós, entre o cara e eu.
— Solte a garota! Mãos na cabeça!
Só ouvi a voz, em meio a minha letargia, enquanto tentava entender
tudo o que acontecia. Aquela voz. Por alguns segundos, o mundo passou em
câmera lenta frente aos meus olhos. Quando, enfim, minha visão se firmou,
eu a vi, em toda a sua aura grave e imponente. Em ação. Era ela. Lá estava
ela. Zara. Com uma pistola apontada para a cabeça do cara.
Eu odiava armas e tinha medo delas, porque qualquer manuseio
equivocado seria capaz de causar um estrago, mas... Inexplicavelmente,
meu coração, segundos antes acelerado de puro nervosismo, se aqueceu. Eu
quis sorrir de alívio e algo mais. Algo que eu nem conseguia definir
intimamente a mim mesma. Mas, quis sorrir por saber que ela estava ali...
Comigo. E por mim.
Ela agiu tão rápido e tão eficiente, que eu mal consegui pensar em
qualquer outra coisa, além do fato dela ser realmente foda e estupidamente
gata. De pronto, segurou seus braços, cujas mãos já estavam em sua cabeça,
e algemou seus pulsos. Com uma habilidade quase invejável, colocou-o
deitado de bruços no chão, e, então, falou, no seu rádio, algo como
“ocorrência na rua vinte e sete, quase esquina com a trinta e dois, preciso
de reforço”.
Porém, quando ela enfim ergueu a cabeça para me olhar e falar
alguma coisa, sem que eu esperasse, uma Bugatti preta parou bem ao nosso
lado da calçada. O vidro do motorista baixou e a porta do passageiro se
abriu. Era Louis. Seu olhar encontrou o meu, enquanto seu semblante
parecia tão preocupado como o de qualquer pessoa poderia estar em uma
situação como aquela.
— O que houve, Agatha? — perguntou ele. A resposta, no entanto,
não apareceu. Eu ainda não tinha conseguido recuperar plenamente as
minhas funções básicas de fala, depois daquele susto. — Venha, entre no
carro. Eu te levo para casa.
Eu ainda me sentia meio desnorteada.
— Você o conhece? — Zara perguntou.
Infelizmente sim, eu conhecia.
Porém, sem muita reação, só consegui balançar um sim com a
cabeça.
— Então, é melhor você ir com ele... Não volte para casa sozinha.
Ou, então, você pode esperar que eu termine aqui e te leve.
Se minutos atrás, na penitenciária, eu quis recusar isso, pelo medo
ridículo das atitudes que eu ainda poderia tomar diante dela, agora eu só
conseguia pensar em uma única coisa e nada mais: Sim, sim, somente sim.
Me leve para casa. Eu quero ficar com você. Eu quero que seja você a me
levar, não ele. Fique comigo, Zara.
Era isso o que o meu corpo inteiro gritava em silêncio. Apenas isso.
Eu, porém, ainda naquele estado de choque, estupidamente não fui capaz de
externar essas palavras. Tentei, eu juro que tentei, enquanto a encarava
firmemente com os meus olhos ainda molhados. Cada pedaço meu gritava
por ela. Mesmo que eu não pudesse, mesmo que eu não devesse, meu corpo
gritava por ela.
Porém, antes que eu conseguisse abrir a minha boca, um comboio de
carros da polícia, de súbito, chegou ali, levantando a poeira. Ligeiro, um
grupo de policiais nos alcançou na calçada e iniciou os procedimentos com
o cara detido. A partir de então, o seu nome não parou de ser chamado. Eles
queriam mais dela. Aparentemente, agora, não era só eu que precisava da
Zara. A todo instante, eles a levavam de um lado para o outro e
perguntavam alguma coisa.
Sem querer – sim, porque, por mais novo que isso fosse, eu percebi
nas suas orbes que ela não queria - ela foi se afastando de mim. Ainda vi
quando Zara me deu um último olhar e, então, definitivamente, foi puxada
pelos outros policiais. Olhei de um lado para o outro, pensando no que
fazer. Ir ou ficar? Louis ou Zara? Suspirei, passando as mãos nos cabelos.
Os policiais, entretanto, estavam trabalhando e, consequentemente, ela
também.
No fundo, embora fosse a primeira vez que eu notava essa sensação
em mim, algo me dizia que eu precisava dela. Na verdade, eu queria sim a
sua companhia. Mas, eu não era a única ali. Por um breve segundo, um
pensamento perpassou a minha cabeça. Eu deveria ter aceitado sua carona,
antes de sair da penitenciária. Talvez, o rumo daquele fim de tarde tivesse
sido outro. Agora, porém, já era tarde.
Respirei fundo, empurrando o último nó de choro que quis subir
pela minha garganta.
Sem opção, tudo o que eu fiz foi entrar no carro dele e fechar a
porta.
Cadelinha da policial Scott

Agatha

— Beba — disse ele, ao dar partida no carro outra vez, depois de parar
em um Drive-Thru e comprar uma garrafinha d’água para mim.
Eu não estava prestando atenção em muitas coisas, para conseguir
dizer, ao certo, quanto tempo nós já estávamos dentro carro. Mas, devia ter
alguns minutos. Depois daquele primeiro susto do assalto, eu me sentia um
pouco mais calma, ainda que a minha cabeça não estivesse dentro daquele
carro, mas em qualquer parte da cidade onde Zara pudesse estar.
Com o rosto virado para a janela, apenas olhando o mundo lá fora,
enquanto Louis dirigia pelas ruas e avenidas de Las Vegas, eu imaginava,
por mais ridículo e sem noção que isso pudesse parecer, o quanto eu queria
estar com ela, e não com ele. O quanto eu desejava que fosse ela a me levar
para casa, e não ele. E o quanto eu, na certa, já estava me tornando maluca
por aquela mulher, sem nem saber o motivo.
Apesar do fato de que, naquele momento, eu fiquei absurdamente
em pânico com o cara me agarrando; depois de vê-la, eu só conseguia
pensar no quanto eu estava aliviada em ela ter aparecido ali, por mim, e
também no tanto que ela era capaz de ficar gostosa em qualquer situação,
principalmente naquelas que agia como uma super-heroína foda pra caralho.
Seria errado ou sem-noção, da minha parte, reparar no monumento
que ela era, em uma situação tão séria como aquela? Sim, talvez sim, mas
eu não pude evitar. Não pude evitar nem naquela calçada, nem agora
dentro do carro. Era só a Zara que estava nos meus pensamentos.
Infelizmente ou felizmente.
— Agatha... Beba a água... — disse ele novamente, me acordando
dos devaneios. — Você vai se sentir bem melhor. Confie no que eu digo.
Suspirei, tentando recobrar a minha consciência para “o aqui e o
agora”, apesar de não estar com a menor vontade de olhar no rosto daquele
cara. Aliás, eu só estava dentro daquele carro, porque ele foi esperto o
bastante para me pegar em um momento muito conveniente. Caso contrário,
eu teria dado um jeito de sumir das suas vistas.
Em silêncio, girei a tampa da garrafa e tomei alguns goles. Calada,
eu permaneci.
Ele, no entanto...
— Imagino o quanto deve ter sido assustador passar por essa
tentativa de assalto — comentou. — Você não deveria andar assim sozinha
pelas ruas, principalmente nesse caminho da penitenciária.
Sorri pequeno e sem humor, ainda com o rosto virado na direção da
janela ao meu lado.
— É? Então, fala isso para o meu pai. Foi ele que me tirou tudo. O
dinheiro, o carro, os motoristas.
— E por que ele fez isso? — tornou a perguntar.
Rolei os olhos brevemente. Que cara chato. Ele estava
descaradamente tentando algum diálogo, quando era, de fato, perceptível
que eu não estava a fim de conversar. Além do mais, eu tinha certeza de que
ele já sabia a resposta a respeito de tudo da minha vida, porque o meu pai
provavelmente fez questão de passar a minha ficha inteirinha.
Ainda assim, no entanto, fiz um esforço para respondê-lo.
— Uma forma estúpida de castigo.
Me limitei apenas a dizer isso.
Ele, porém, continuou:
— Sério? Por causa desse problema com a polícia? Aliás, eu ainda
não entendi bem isso. Como uma garota tão bonita e tão educada, como
você, se envolveu em problemas com a polícia? — soltou uma risadinha.
Ai, pelo amor de Deus, bonita e educada?
Bonita sim. Mas, educada?
O cara forçava a barra. Não apenas com esses elogios nada a ver,
mas também com a tentativa de uma conversa que eu não queria ter. Aliás,
desde antes de vê-lo, naquele jantar, eu já não queria papo algum com ele.
E, bem, eu nunca tive problema em ser sincera demais sobre os meus
pensamentos e sentimentos, exceto quando o meu pai e a sua mão pesada
estavam por perto. Porém, levando em consideração que o velho e a sua
brutalidade não estavam ali para arrancar o meu couro, aproveitei para não
usar filtros e dizer tudo exatamente do jeitinho que eu mais gostava.
O jeitinho Agatha Ballard de ser.
— Louis, se você não percebeu, o que eu acho muito difícil, eu não
estou a fim de conversar, especialmente se uma das pessoas do diálogo for
você. Aliás, caso não tenha ficado claro, eu não tenho o menor interesse em
você, cara. Sério. E, olha só, você é bonitão, heim? Poderia encontrar
qualquer outra garota que cairia aos seus pés. Aqui mesmo, em Las Vegas,
têm várias. Então, vai fundo, cara. E vaza de perto de mim.
— Quem precisa de afeição quando se tem tanto ódio? — Ele sorriu,
soltando uma breve risadinha. — Agatha, basta você me dar uma chance e
eu tenho certeza de que consigo te conquistar. Só preciso de uma chance —
completou, colocando a sua mão livre do volante na minha coxa, e me
encarou com aquele mesmo olhar do jantar da outra noite, como se pudesse
tirar a minha roupa bem ali.
Tava demorando... Eu realmente estava estranhando os seus olhos
predatórios não terem aparecido até então. Mas, veja só, que novidade! Ali
estavam eles!
— A última coisa que você vai conseguir é me conquistar,
principalmente se continuar olhando para os meus peitos desse jeito e
pegando em mim com essa mão boba, argh... — torci o nariz, enojada, e lhe
dei um tapinha no braço, fazendo com que ele afastasse suas garras dali. —
Sério, cara, isso é ridículo. Você pode ter a garota que quiser aqui. Mas,
essa garota não sou eu. Então, cai fora. E trata logo de empurrar o pé no
acelerador, porque a minha casa tá bem pertinho daqui e eu tô vendo você
dirigir uma Bugatti como se fosse um Fusca!
Soltando mais uma risadinha e balançando de leve a cabeça, como
se todas aquelas palavras não o atingissem de forma alguma e apenas o
divertissem, ele acelerou o carro, a ponto do meu corpo sentir a pressão e
das minhas costas afundarem mais no banco. Melhor assim. Pelo menos, ele
era bom em obedecer a certas coisas.
Felizmente, nós já estávamos quase chegando. Eu conhecia muito
bem aquele caminho, para saber que ele não estava me levando para outro
lugar, a não ser minha casinha. Não suportaria mais passar tanto tempo em
sua companhia, na verdade. Quando estávamos dobrando na minha rua,
porém, ele disse, aparentemente empolgado:
— Você é jogo duro, heim? Eu adoro isso.
Adora?
Puta que pariu, consegui um perturbado para ficar no meu pé.
Dessa vez, não pude continuar olhando para a janela. Virei o rosto
em sua direção e o encarei firmemente.
— Isso não é um jogo, Louis. Eu não jogo desse jeito. Só estou
sendo sincera e espero que siga seu rumo, procurando outra garota para
transar, nesta sua temporada em Las Vegas.
Ele, entretanto, ainda com aquele olhar sagaz, redarguiu:
— Agatha, querida, tudo isso que você está me falando, eu já estou
cansado de saber. De onde eu vim, eu posso ter a mulher que eu quiser.
Todas realmente caem aos meus pés. Talvez, pela minha beleza. Talvez,
pelo meu dinheiro. Enfim... A questão aqui é que, no momento, eu estou
interessado em você. E, pessoalmente, a dificuldade, para mim, torna tudo
mais interessante.
Porra, eu merecia mesmo...
— Então, você é doente, cara — falei sinceramente, sem medo. —
Porque, tipo assim, eu não faço joguinhos. Quando eu quero uma pessoa, eu
quero e demonstro. Quando eu não quero, não quero e demonstro também.
Por exemplo, agora eu tô demonstrando que você é um pé no saco que não
me dá um pingo de tesão. E o certo mesmo é a gente querer quem é
recíproco. Eu não tô sendo nenhum pouco recíproca com você.
— Isso porque você ainda não se deu a oportunidade de me
conhecer melhor — retrucou ele, ao estacionar em frente à minha casa.
Finalmente, graças a Deus.
— E nem vou dar — rolando os olhos, falei, ao pegar no trinco da
porta para abrir. — Não preciso disso para saber que você não tem nada do
que eu quero. Mas, escute o que eu digo. Las Vegas está abarrotada de
mulheres. Vai que é tua, garoto.
Ele soltou uma risadinha.
No fundo, era como se, tudo o que dizia, entrasse por um ouvido e
saísse pelo outro.
— Não vai nem me convidar para entrar?
Oi?
Ergui uma das sobrancelhas, franzindo o cenho e encarando-o com
obviedade.
— É claro que não. Estou morta de cansada do dia de trabalho e não
pretendo fazer sala para você. Então, valeu pela carona e adeus!
Foi tudo o que eu disse segundos antes de pular para fora e bater
com a porta do carro.
Ainda senti meu celular vibrar dentro da bolsa, em uma mensagem.
Quando olhei...

“Você ainda vai me querer, Agatha...”

Era ele.
Ah, vai pra puta que pariu.
O típico macho que não sabe levar um fora.
Respirando fundo, por ter conseguido sair do carro e agora poder
sentir o ar puro, caminhei a passos rápidos e largos, até passar pelos portões
que me foram abertos por um dos funcionários. Nossa, aquele cara me
deixava mais exausta do que eu já estava, com as suas insistências sobre
algo, que estava claro e cristalino, que não era da minha vontade. Era um
saco ter que lidar com tudo o que já estava acontecendo e agora, como se
não bastasse, ainda precisar ter paciência o bastante para não cometer
algum crime contra Louis.
Meu pai e seus presentinhos sempre tão desagradáveis para mim.
Entrei em casa absolutamente cansada. Olhei de um lado para o
outro, mas, fora os demais empregados, que transitavam de um lado para o
outro, nos seus afazeres, não vi sinal da Evangeline. Foi quando eu subi as
escadas, porém, quase marchando de tão pesados que estavam os meus pés
- eles refletiam o quanto eu estava puta -, que eu a encontrei no meu quarto.
Ela estava trocando a colcha da minha cama king size por uma limpinha e
cheirosa, assim como também as fronhas dos cinquenta travesseiros que eu
colocava em cima.
Maravilhosa, como sempre.
No entanto, ao me encarar displicentemente, seu semblante calmo se
transformou em atento, em menos de meio segundo, ao perceber o meu
estado de puro estresse.
— Agui, querida... — franziu o cenho. — Você está com uma cara...
O que aconteceu?
Na verdade, o que não aconteceu, não é? Porque parecia que, nos
últimos tempos, acontecia de tudo na minha vida.
Respirei fundo, porém, tentando recuperar o fôlego.
— Além do fato de agora eu precisar lidar com um macho chato do
caralho, como se a minha vida não já estivesse um caos completo, eu quase
fui assaltada hoje, no caminho do ponto de ônibus — despejei todas as
palavras rapidamente, quase na mesma velocidade com a qual a raiva se
dissipava pelo meu corpo. — Meu pai está em casa para que eu possa
vomitar todo o meu desprazer nele sobre a sua política de castigo ordinária?
— Oh, querida! — arregalou os olhos. — Assaltada?! — E,
preocupada, se aproximou ligeiro, pegando no meu rosto, nos meus braços,
como se estivesse verificando que não faltava nenhum pedaço de mim. —
Seu pai não está em casa, ma-mas você está bem, meu anjo? Esse crápula
não fez nada pior contra você, além da tentativa de assalto, não é? Ele
conseguiu levar algo?
Suspirei.
— Eu estou bem, Eva. Eu estou bem — disse eu, um pouco menos
agitada, para que ela ficasse calma. — Pode ficar tranquila. Ele tentou levar
a minha bolsa, mas... — Um repentino e quase inconsciente sorriso bobo e
estúpido surgiu no meu rosto. — A policial que me supervisiona apareceu...
— baixei a cabeça, balançando de leve, enquanto me lembrava feito uma
idiota. — Ela chegou lá e me salvou... — continuei sorrindo, parecendo
uma garotinha estúpida e sonhadora.
Vi, porém, quando Eva, agora mais sossegada por saber que nada
grave tinha acontecido comigo, se afastou, e encarando-me com um olhar
meio suspeito, sorriu e perguntou:
— Que carinha é essa, heim, Agui?
Foi aí que eu subitamente acordei.
Droga, ela percebeu que eu estava agindo como uma imbecil.
— Que... Que o quê? — E, sem querer, tossi, me engasgando com a
minha própria saliva, por cair na real do que eu estava fazendo ali, na frente
dela. Eu até poderia parecer uma idiota, quando pensava na Zara, mas essa
vergonha era melhor que eu evitasse passar na frente da Evangeline. — Se-
Sei de nada não, Eva... Eu tô normal — E me fiz de desentendida.
— Hum... Não sei não, heim... Você falou nessa mulher e o seu rosto
se iluminou — Ainda sorrindo, ela continuou. — Não conheço você de
hoje, minha querida. E sei que, além dos rapazes, você também gosta das
garotas. Talvez, delas até mais. Tessa que o diga... — soltou uma risadinha.
Ah, meu Deus, eu tinha certeza de que ela já nos ouviu transando.
Até porque Tessa e eu não tínhamos muito juízo quando fazíamos sexo. Que
vergonha. Bom, agora eu sentia vergonha, mas, na hora do ato, me
esquecia completamente disso.
— Ai, Eva, para! — exclamei, quase vermelha. Não exatamente
pela lembrança das transas barulhentas com Tessa, mas, sim, pelo que ela
estava insinuando a meu respeito com Zara. — Eu só fiquei feliz mesmo
por ela ter me ajudado. Só isso.
— Unhum... — balançou de leve a cabeça, me analisando. — Mas,
seu sorriso me pareceu falar muitas outras coisas... Ela é bonita?
Uma gata...!
Isso, por pouco, não escapuliu da minha boca. Arqueei as
sobrancelhas, no entanto, quando percebi isso, e, então, travei o elogio,
rapidamente retrucando:
— Eva, deixa disso! Ela é aquela chata que me prendeu! Enfim, eu
jamais me interessaria... — tentei dar de ombros, mesmo sabendo, lá no
fundo, que dentre todas as minhas mentiras, aquela, sem dúvidas, poderia
ser a maior.
— Se você está dizendo... — sorriu, ainda meio desconfiada. —
Bom, vou descer. Preciso ir lá na cozinha, para ver como está o andamento
do jantar. Mas, se precisar de algo, me chame, querida.
Suspirei um pouquinho mais aliviada por ela não insistir naquilo.
— Tá bom — E indiquei um breve sim com a cabeça. — Obrigada,
Eva.
No entanto, quando ela saiu e me deixou ali sozinha, meus
fantasmas apareceram para me perturbar. Mesmo que eu não quisesse,
depois daquela conversa com Evangeline, todas as lembranças vieram à
tona. Zara chegando repentinamente para me salvar, ela sendo fodona
enquanto prendia o cara, seu olhar de preocupação comigo e a vontade
quase estampada em seu rosto, de me fazer companhia, mesmo que eu
tivesse me dado a alternativa de ir embora com Louis.
Droga.
A mulher estava me deixando maluca.
Ainda tentei me desligar daquele bombardeio de pensamentos, para,
ao menos, conseguir tomar banho e trocar de roupa na paz e na
tranquilidade. Mas, inferno. Não dava. Eu não conseguia. Zara entrou na
minha cabeça de um jeito sem igual. Tão intenso e tão forte, que uma
sensação de inquietação não queria me largar. Uma inquietação que me
levava a querer fazer algo que eu não deveria, mas que meu subconsciente
ficava o tempo inteiro soprando nos meus ouvidos.
“Vai...
...Manda uma mensagem pra ela, agradecendo...
Agora, você tem o número dela...
...E vocês nem se falaram depois do que aconteceu.”
Era isso o que a minha cabeça ficava martelando e repetindo em um
looping infinito. Tão irritante e inquietante, mas, ao mesmo tempo, tão
irresistível. Bufei comigo mesma. A verdade era que, quando o assunto era
mulher, em geral, sempre fui muito idiota. Porém, com a Zara, essa idiotice
parecia se potencializar ao nível mil.
Porra, por que eu tinha que gostar tanto de boceta?
Fui e voltei, caminhando de um lado para o outro do quarto,
enquanto tentava me controlar. Ainda contei até dez. Ou melhor, até cem.
Mas... Minhas forças para evitar aquilo eram fracas demais. Peguei meu
celular, o mesmo que, por causa dela, ainda estava comigo, e abri nas
mensagens. Com o coração faltando sair pela boca, em pura antecipação,
digitei.

“Oi. Só passando pra te agradecer por hoje. Se você não tivesse


aparecido, essa hora eu não poderia te mandar essa mensagem, pois
estaria sem celular. Obrigada."

Enviei.
E, simplesmente, larguei o celular em cima da cama, bem longe de
mim, ofegante, nervosa. Meu Deus. Ela nem responderia. Com certeza, não
responderia. Ou pior, me acharia louca por estar incomodando o seu
momento de descanso em casa.
Ai, Agatha, como você é tola.
Será que dava tempo de apagar a mensagem, sem que ela visse?
Ainda caminhei de um lado para o outro, novamente, esfregando
uma das mãos na testa, como se isso pudesse me fazer pensar melhor, até
que, enfim, decidi pegar o celular para tentar apagar a mensagem. Se é que
ainda desse tempo de fazer isso. Porém, assim que o segurei entre os meus
dedos, ele vibrou, e, então, seu nome salvo pipocou bem na frente dos meus
olhos.

“Boa noite, senhorita Ballard. Não precisa agradecer. Eu peço


desculpa por não ter conseguido ficar com você. Precisei cuidar dos
trâmites para a detenção do homem. Você chegou bem em casa? Como está
se sentindo agora?”

Ai meu Deus, ela respondeu.


Ela respondeu!
Ela respondeu!
Ela respondeu!
E ainda perguntou como eu estava!
Um sorriso, dez vezes maior que aqueles que esbocei na frente da
Evangeline, estampou o meu rosto, enquanto eu me segurava para não sair
pulando feito uma imbecil pelo quarto.
Respirei fundo, tentando fazer minha mão parar de tremer.
Calma, Agatha, calma. Você está parecendo uma virgem, mulher.
Engoli seco, me controlando, e digitei.

“Eu estou bem. Obrigada por perguntar.”

E eu quis ter digitado algo mais. Na verdade, muito mais. A minha


estúpida e estranha vontade era de conversar com ela sobre tantas coisas.
Sobre coisas aleatórias. Conhecê-la melhor, mesmo que eu nem soubesse de
onde vinha esse desejo ou como ele tinha surgido. No fundo, eu só queria
um diálogo casual, onde, quem sabe, ela pudesse me dizer coisas que não
falava para muitas pessoas, mas que decidiu dizer a mim por achar que
valia a pena.
Droga.
Eu estava parecendo mais ridícula que o normal. Por isso, me limitei
apenas a mandar aquelas míseras palavras.
Entretanto, a mensagem que ela me mandou de volta compensou
toda a minha covardia em lhe escrever algo mais. Meu coração foi parar na
garganta de novo.

“Que bom que está bem e que nada pior aconteceu. É perigoso que
volte sozinha para casa, caminhando nos arredores da penitenciária. A
minha oferta de carona ainda está de pé. Posso lhe deixar em casa, depois
do trabalho, todos os dias. Se você quiser, claro.”

O quê?!
Todos os dias?
Meu queixo bateu lá no chão e, mais uma vez, eu quis sair correndo
pelo quarto, que nem uma doida, por mais que eu não soubesse de onde
estava vindo essa súbita empolgação, pela sua oferta, e esse tremendo
interesse na policial Scott.
Caralho.
Que diabos estava acontecendo?
Respira, mulher.

“Eu agradeço, de verdade. Podemos conversar sobre isso amanhã.”

Tentei responder civilizadamente, embora eu sentisse como se,


dentro de mim, fogos de artifício estivessem explodindo a cada segundo.
Uma empolgação estúpida e silenciosa. Eu gritava por dentro sem nem abrir
a boca. Ela, porém, replicou tão comedida quanto eu, mesmo que eu
desejasse que ela escrevesse muito mais.
“Então, até amanhã. Boa noite, senhorita Ballard.”

Aaaahhhh, que saco! Por que ela não poderia me mandar mais
coisas? Sei lá, qualquer coisa!
Droga.
Suspirei.
Tudo bem, tudo bem. Eu queria algo que nem mesmo eu estava
fazendo.
Ainda assim, meus dedinhos digitaram algo, que saltava do meu
peito, no calor do momento, por mais que aquilo pudesse parecer íntimo
demais e pegasse mal de alguma forma.

“Boa noite. Beijo, Zara.”

Eu nunca tinha escrito ou falado a palavra “beijo” para ela. E, por


mais que algo tivesse quase me travado, segundos antes de enviar, e que o
meu coração ainda estivesse quase pulando pela garganta, eu não consegui
me conter até que aquilo realmente fosse encaminhado.
Sua resposta final custou alguns instantes. Na verdade, eu nem
imaginei que ela fosse me mandar algo mais. Porém, quando chegou...

“Beijo, Agatha.”

Ah, meu Deus.


Aquilo era para me transformar em uma garotinha mais estúpida do
que eu já estava sendo?
Beijo, Agatha.
BEIJO.
AGATHA.
Parecia algo simples e nem um pouco “uau”. Realmente não era.
Para qualquer outra pessoa do mundo, não deveria ser. Mas, querendo ou
não, para mim e para a minha sensibilidade caótica diante de toda mínima
coisa que Zara fazia nos últimos dias, aquilo foi “uau” sim.
Ela escreveu a palavra “beijo” e ainda me chamou pelo meu
primeiro nome.
Isso soava como... Intimidade.
Suspirei, sentindo um frio gostoso na barriga. Era ridícula a maneira
como aquela mulher conseguiu me causar tanta raiva, quando eu a conheci,
e, agora, me provocava tanta palpitação no peito. Eu nem pude perceber em
que momento uma coisa se transformou em outra. Ou talvez ainda estivesse
se transformando. Ou nunca deixaria de ser uma coisa ou outra. Talvez na
mesma medida que ela me causasse ódio, também me causasse... Desejo.
A única coisa que eu realmente sabia era que, depois daquela sua
última mensagem, eu simplesmente me deitei na cama e, sem mais reações,
passei horas encarando o teto com um sorriso idiota, que não saía por nada
do meu rosto.

✽✽✽

No dia seguinte, eu tentei agir como sempre agia diante dela.


Busquei a tal indiferença lá no fundo da minha alma, ou, pelo menos,
qualquer mísero detalhezinho que eu pudesse usar para não parecer tão
esquisita e boba perto dela. Tentei até dar umas reviradas de olhos, quando
ela me disse para esfregar o chão do refeitório e desentupir uma das
privadas. Mas, nem mesmo a podridão dos banheiros das celas e a ordem de
limpá-los foram capazes de despertar a tão conhecida Agatha Nojenta
Ballard, em mim, naquele dia.
Era uma lástima.
No fundo, eu sentia como se estivesse, gradativamente, me tornando
a cadelinha da Zara, sempre nos seus pés, cumprindo as suas ordens e
babando por ela.
Gente, pelo amor de Deus, como isso começou?
Eu não sabia. Eu juro que não sabia.
O fato era que algo precisava ser feito para que eu recuperasse, pelo
menos, cinco por cento da minha decência. Poxa, de algum modo, por mais
enjoada e mal-humorada que eu fosse, era boa a época, não muito distante,
em que eu conseguia reparar nela sem me sentir uma completa idiota.
Agatha Ballard não podia se tornar tão cadelinha assim de Xena
Scott, podia?
O problema era que, vez por outra, ela puxava alguma conversa
comigo. Não exatamente sobre coisas pessoais, claro. Seria de fato um
milagre o dia em que ela falasse comigo sobre qualquer coisa mais
profunda do que o problema da água que não descia direito pelos ralos.
Mas, ainda assim, perguntar como eu estava, como foi o caminho até eu
chegar e se eu queria beber um copo d’água, entre a pausa de um serviço e
outro, já era alguma coisa.
Somente isso já fazia com que eu me sentisse ainda mais imbecil.
Às vezes, quando eu pensava bem, chegava à conclusão de que talvez fosse
até melhor que ela não comentasse sobre coisas tão pessoais assim, porque
aí, sim, seria só ladeira abaixo. Por enquanto, eu ainda me sentia em uma
zona relativamente segura. Assuntos pessoais só fariam eu me sentir íntima
e isso podia não dar certo.
Apesar dos pesares, eu tentei seguir o dia de trabalho da maneira
mais natural possível, como se dentro de mim tudo estivesse sob controle.
Lá pelas três horas da tarde, entretanto, quando a digestão do almoço com
certeza já tinha sido feita e o pessoal já se preparava para o cafezinho,
percebi uma movimentação diferente por ali. Era um entrançado de gente
indo e voltando ao refeitório dos funcionários.
Alguns levavam caixas de salgadinhos e docinhos, outros enchiam
balões, enquanto umas três pessoas carregavam um bolo enorme e
colocavam em cima de uma das grandes mesas coletivas. Era um
aniversário, constatei. A primeira vez que eu via aquela quantidade de gente
se juntar e se divertir ali. A diversão parecia já ter começado antes mesmo
do aniversariante aparecer. Bom, pelo menos, eu ainda não tinha
identificado quem era ele ou ela.
Entre os muitos funcionários de todos os setores (policiais,
recepcionistas, secretárias, faxineiras, etc), que começavam a se amontoar,
enquanto eu terminava de regar as plantinhas que ficavam um pequeno
jardinzinho ao lado do refeitório, vi quando Scott repentinamente se
aproximou e, acenando com a cabeça para mim, disse:
— Desliga essa mangueira e vem pra cá.
Franzi o cenho de leve.
Ela queria que eu participasse também?
Apesar do leve estranhamento, eu fiz o que ela disse e cheguei mais
perto.
Me sentindo meio deslocada - coisa que raramente acontecia comigo
-, porque eu não falava com muitas pessoas da penitenciária, tentei me
encaixar por ali, em um cantinho mais vago, ao fundo do refeitório
abarrotado de gente. Talvez aquele fosse o lugar perfeito para mim. Eu nem
estava a fim mesmo de disputar um pedaço de bolo ou alguns salgadinhos,
apesar da fome que eu já sentia. Os hambúrgueres de almoço não eram nem
um pouco nutritivos.
Quando achei que fosse ficar quietinha ali, porém, senti alguém me
puxar pelo braço. Mirei meus olhos naquela mão, que não era nem um
pouco irreconhecível, e, devagarinho, os subi, experimentando todas as
estúpidas sensações que apenas aquela mulher causava em mim
ultimamente. Era Scott, me guiando para mais perto da mesa do bolo. Me
deixei levar não apenas pela surpresa daquele toque, mas pelo próprio
toque.
O que quer que estivesse acontecendo comigo só podia ser alguma
coisa muito séria.
Sempre que Xena Scott encostava em mim, eu me desmontava
inteira, como a tal inspetora Westphalen.
Ao pararmos ali na frente, em meio aos outros, ela disse:
— Fica à vontade, tá? Isso aqui é um aniversáriozinho simples, que
a gente preparou de surpresa, para a Sra. McBride. Ela trabalha aqui
conosco, na parte da limpeza, há anos. Sabemos o quanto ela vai adorar isso
e temos um carinho enorme por ela. Então, fica à vontade. Se enturma com
o pessoal. A maioria das pessoas aqui é gente boa. Tá bem? Agora, eu vou
lá. Vou trazê-la para cá.
Foi tudo o que ela disse antes de sair.
Mesmo que não tivesse dado tempo de eu falar alguma coisa, dada a
rapidez com a qual ela agia para deixar tudo pronto, de certa forma, pude
sentir aquela parte do meu peito, onde diziam ter um coração, se aquecer.
Era ela quem estava à frente de tudo aquilo? Foi ela quem organizou a
festinha surpresa da senhorinha da limpeza? Sorri para mim mesma, em
pura admiração a ela. Eu sabia que era algo tão simples, um detalhe tão
pequeno, mas que, de algum modo, fazia diferença.
Scott parecia ser única.
E eu tive ainda mais certeza de que ela era excepcional quando
apareceu guiando a senhorinha por ali, com as mãos em seus olhos,
formando uma espécie de venda. A Sra. McBride estava tão feliz, mesmo
antes de ver tudo o que tinham preparado para ela. Ela era uma fofa, e me
lembrava Evangeline, só que um pouco mais velha. Todos empolgados,
faziam silêncio para o grande momento. Então, em uníssono, contaram até
três e, assim que Scott tirou as mãos dos olhos da Sra. McBride, gritaram
“surpresa” e cantaram parabéns.
Todos ali eram só risos e sorrisos, principalmente a senhorita, que
não parava de agradecer. Quando dei por mim, eu também já sorria com
aquilo e ria das brincadeiras. Nunca imaginei que um ambiente tão infernal
quanto aquele de penitenciária pudesse se tornar minimamente agradável
em algum momento. Por um instante, senti como se eu nem estivesse lá.
Era como se aquele fosse outro local. Um salão de festas simples, em uma
empresa qualquer, com funcionários que compartilhavam amizade uns com
os outros.
Agradável.
E mais agradável ainda era perceber o quanto Zara parecia feliz.
Eram raras as vezes em que eu a via agir de maneira tão informal, tão leve.
Tão... Linda. Indescritivelmente mais gata do que ela sempre foi. Se isso
fosse realmente possível. Eu tinha a impressão de que risos e sorrisos
verdadeiros combinavam com ela, porque sempre a deixavam ainda mais
bonita. E eu ainda mais idiota.
Droga.
Estalei a língua dentro da boca, quando caí em mim mesma.
Para com isso, Agatha.
Tentei olhar para outro lugar, algum que não tivesse a ver com a
policial. Porém, percebi quando a inspetora Westphalen também apareceu
ali. Enquanto algumas pessoas começavam a distribuir pedaços de bolo,
salgadinhos e refrigerante, ela ficava o tempo todo perto da Zara. Só que
bem menos simpática do que todos os outros. Séria e austera, como sempre,
seus sorrisos eram os mais contidos.
Em dado momento, minha atenção foi retida para um pratinho de
comida que me entregaram. Minha barriga roncou, indicando o quanto
aquele mísero hambúrguer que comi no almoço já tinha sido digerido. Me
entreti com o pedaço de bolo de chocolate que eu comia, até que vi algo...
Em meio às brincadeiras e conversas empolgadas, de uns com os outros, um
dos colegas policiais da Zara esbarrou bem nas suas costas. Com o impulso,
o bolo e o refrigerante que estavam em suas mãos caíram, sujando não
apenas o chão, mas também a blusa e o colete da sua farda.
— Nossa, Zara, foi mal! — Ainda ouvi quando ele disse.
— Ah, droga... — notei quando ela balbuciou ao baixar o rosto
brevemente e notar sua roupa suja. — Mas, tudo bem, tudo bem —
balançou a cabeça para o outro e, então, começou a rir como se não fosse
nada. — Vou ali me limpar.
E saiu, rumo a um lugar que eu não vi qual era.
Porém, quando isso aconteceu, e Scott não estava mais ali, só
percebi o minuto que Alexa Westphalen girou quase trezentos e sessenta
graus, como se estivesse procurando por uma pessoa específica, até cravar
os olhos. Sim, aparentemente ela estava buscando alguém específico: eu.
E, então, disse:
— Querida, você pode pegar um pano e limpar esse chão sujo?
E ela falou isso de um jeito muito mais nojentinho do que eu mesma
conseguia ser.
Argh.
Eu só recebia ordens da Xena. Não dessa mulher aí que achava que
podia mandar em mim só porque era a inspetora da penitenciária. Quase
rolei os olhos. Juro. Foi por muito pouco que eu não fiz isso. Mas, para não
estragar aquele momento bonito e feito especialmente para a Sra. McBride,
engoli todo o veneno que estivesse a ponto de escorrer pelos cantinhos da
minha boca e, sem criar caso, segui no rumo de algum bendito pano.
Foi enquanto eu caminhava que eu me lembrei de que tinha deixado
um pano de chão no banheiro das funcionárias. Sim, eu estava limpando lá
mais cedo. E ele ficava pertinho dali. Não demorei muito para chegar.
Entretanto, quando alcancei a porta e, displicentemente, a abri, a
exclamação de surpresa que saiu dos meus lábios e dos dela foi quase
instantânea. Zara estava dentro do banheiro, apenas com a calça da farda,
suas botas de combate e um... Sutiã. Na pia, enquanto tentava limpar sua
blusa e seu colete.
Paralisei por alguns segundos.
Ela também.
Certo, eu odiava quando alguns homens ficavam me secando e
observando descaradamente o meu corpo, os meus peitos, a minha bunda.
Mas, por mais ridículo que parecesse, foi impossível não reagir de uma
maneira muito semelhante, ao vê-la com aquele sutiã. Sua pele preta e tão
bonita, quase dourada e reluzente, seus peitos pequenos e lindos, sua cintura
fina, sua barriga lisa e definida. O corpo de uma policial bem treinada e
preparada.
Babei.
Eu juro que babei.
Talvez não só pela boca...
...Mas isso não vinha ao caso agora.
Se ainda me restava alguma dúvida de que ela era perfeita, todas
desapareceram naquele instante. Zara era perfeita. Ou mais que isso.
A menina ia pirar minha cabeça

Zara

Sem reação.
Foi assim que eu fiquei não somente pela surpresa da sua chegada,
enquanto eu usava apenas a calça da farda e um sutiã, mas, principalmente,
pela maneira como ela me encarou. Quase indescritível para mim. E
surpreendente também. Embora eu sentisse que ela estava tentando
disfarçar ou tornar aquilo um pouco menos notório, seus olhos pareciam
sinceros demais. Mais verdadeiros do que deveriam. E não carregavam
apenas o choque pelo que aconteceu. Longe disso, na verdade.
Era esquisito, estranho demais constatar isso, mas eu já era
experimente o suficiente para saber que aquelas orbes azuis e intensas
demonstravam admiração, fascínio e até... Desejo. Pior mesmo, no entanto,
foram as reações que, reconhecer isso, me causou. Sem qualquer lógica por
trás, minha mente viajou subitamente, por alguns segundos, me levando a
lugares absurdos, onde poderia existir somente eu e ela, sem calças, sem
sutiãs, sem nada. Um calor se espalhou em um ponto específico entre as
minhas pernas.
A umidade melou bem ali.
E, então, ao me dar conta disso, eu acordei.
Droga, Zara. Droga, droga, droga.
Não caia nesse erro de novo!
Ligeiro, peguei minha roupa e, meio desconcertada, coloquei-a de
qualquer jeito na frente do meu corpo. Ao mesmo tempo, vi que ela
começou a piscar os olhos repetidas vezes, como se estivesse caindo em si.
E, depois disso, não demorou a falar:
— Ai, me desculpa! — arqueou as sobrancelhas, levando as mãos à
testa, ao peito, a todos os lugares, enquanto, claramente inquieta e nervosa,
me dava as costas. — E-Eu só vim pegar um pano pa-para limpar o chão e...
— deixou a frase solta no ar, parecendo ter se perdido entre as palavras.
— É-É... Tu-Tudo bem... — tentei falar. — Relaxa, está tudo sob
controle — E, simplesmente, voei para dentro de um dos boxers, fechando a
porta e sentindo gotículas de pura tensão já se formarem sobre a minha
testa.
Ao entrar, larguei a roupa em cima da tampa do vaso e fechei os
olhos, me encostando à parede e respirando fundo. Porra, Zara. Não, não
está nada bem. Não está tudo sob controle. Você está ficando perturbada
por uma garota da penitenciária outra vez. Merda. Puxando o máximo de
ar para os meus pulmões, que eu conseguia, passei as mãos no rosto,
limpando o suor que ainda molhava por ali.
Tudo estava acontecendo de novo.
Tudo.
Meu Deus.
Senti meu coração acelerar, a ponto de quase saltar do peito.
Porém, mesmo que tudo dentro de mim estivesse uma bagunça entre
o presente e o passado; ou pior, uma sucessão contínua de pensamentos e
sentimentos de antes e de agora, que ganhavam vida e força; eu tentei, de
alguma forma, me acalmar. Não pira, Zara. Eu não podia enlouquecer bem
ali.
O problema não foi ela me ver só de sutiã. Óbvio que não. O
problema foram as reações que isso despertou em mim e a sequência
desencadeada de tudo aquilo que eu tentei reprimir dentro de mim, desde o
primeiro dia que reparei no movimento dos seus malditos quadris bem
desenhados.
Apesar disso, tentei me concentrar e, respirando fundo pela
centésima vez, falei, fazendo o máximo de força possível para parecer
natural:
— Ainda está aí, senhorita Ballard? — Espremi os olhos, enquanto
procurava ajustar o tom de voz. — Precisa de alguma coisa?
A resposta demorou alguns instantes. Até pensei que ela tivesse
saído dali sem que eu me desse conta. Franzi o cenho de leve, achando
estranho. Porém, quando menos esperei, ela respondeu, ainda meio
atrapalhada:
— Si-sim, nã-não... — E, mesmo dentro da cabine, ouvi quando ela
suspirou. Continuava nervosa. Esse nervosismo, entretanto, não me parecia
normal. Mesmo que eu fosse uma espécie de “chefe” para ela, mulheres não
costumavam agir assim quando encaravam outras sem roupa. Exceto
quando... Pudesse existir algum sentimento. — Quero dizer, ainda estou
aqui, mas já estou indo. Já peguei o pano que eu precisava.
Depois disso, como em um piscar de olhos, ouvi a porta do banheiro
abrir e fechar.
Ela tinha caído fora.
Suspirei, tentando colocar a minha cabeça no lugar.
Uma tentativa praticamente em vão, porque, a cada segundo, minha
memória trazia de volta os seus olhos despindo o que já estava quase nu.
Azuis, lindos e tão intensos. Aquele olhar... Aquele olhar, que ela me deu,
era de quem gostava do que viu. Eu sabia que sim. Eu conhecia. E mais do
que isso: era também de quem gostava de mulher.
Merda.
Essa garota ia acabar comigo.
Nunca passou pela minha cabeça que Agatha Ballard gostava de
mulheres. Será que eu estava cega demais ou exacerbadamente preocupada
com os desejos que eu deveria evitar, para que eu não percebesse isso?
Agatha curtia mesmo mulheres? Suspirei. Merda. Essa questão não deveria
nem ser uma pauta minha, um ponto de interesse ou de dúvida. Também
havia chances de eu estar enganada. E, honestamente, eu pedia aos céus que
estivesse.
Deus sabe o quão pouco eu poderia resistir, se uma garota, como
aquela, fosse para cima de mim.
Embora eu tivesse odiado o que Alexa me falou outro dia, meu
passado realmente me condenava. O que aconteceu, minutos atrás, foi capaz
de tirar do lugar sentimentos e lembranças que tentei, durante anos, deixar
guardados e escondidos nas gavetas mais escondidas do meu coração e da
minha memória.
Haven Saunders.
Não. Depois de tanto tempo não existiam mais sentimentos por ela
dentro de mim, a não ser aquela culpa fodida, que eu ainda carregava, por
ter feito o que eu fiz com ela. Ou pior, por não ter feito o que deveria.
Covarde.
Eu fui covarde.
E, definitivamente, eu não poderia agir assim com outra garota de
novo.
As lembranças das consequências daquele relacionamento,
entretanto, ainda estavam vivas na minha memória. Era o que me assustava.
Eu não queria que tudo aquilo se repetisse, muito embora, dentro de mim,
algo me dissesse que tudo aquilo estava na iminência de voltar acontecer.
Tudo de novo. Da mesma maneira. Mas, com outra garota.
Droga.
Não.
Zara, acabe já com esses pensamentos.
Respirei fundo, tirando a boina e passando as mãos nos cabelos. O
suor escorria pelo meu corpo, debaixo da calça. Eu só não sabia se era por
causa da alta temperatura dentro do banheiro ou dentro de mim. Eu
precisava sair dali e, quem sabe, respirar um pouco de ar puro, tentar
acalmar o meu coração e parar de pensar tanta besteira.
Vesti a roupa, mesmo ainda meio suja, porque não tinha conseguido
limpar completamente, molhei o rosto na pia banheiro, com a ilusão de que
isso pudesse me ajudar a voltar ao normal, e saí, caminhando na direção do
refeitório. Ele ainda estava cheio. Todo mundo continuava ali, por causa do
aniversário. Mas, eu não voltei da mesma maneira que saí. Eu sabia que
não.
Algo dentro de mim estava fora do lugar.
Agatha Ballard tinha tirado alguma coisa do canto.
Suspirei. Tensa. Eu ainda me sentia tensa. Especialmente quando os
meus olhos recaíram sobre ela. Agora, esfregando e limpando o chão no
exato local onde tinha caído meu copo de refrigerante e meu pedaço de
bolo. Tão linda. Tão absurdamente linda, mesmo vestindo aquela farda da
limpeza e revirando os olhos por não gostar daquele trabalho.
Mesmo que eu não quisesse e tentasse evitar a qualquer custo que a
minha mente me levasse para os piores e mais absurdos lugares onde eu
poderia estar, eu não pude evitar. Talvez olhar para ela estivesse se tornando
um gatilho muito mais forte do que a minha razão. Em poucos instantes,
enquanto o meu corpo estava ali no meio daquelas pessoas, a minha cabeça
e a minha alma já tinham viajado de volta ao banheiro, numa realidade
paralela, onde Agatha não somente olhava para os meus peitos cobertos por
um sutiã, mas o tirava e colocava a sua boca na minha.
Ai, caralho.
Isso estava piorando.
Repreendi a mim mesma, em um pequeno e baixo palavrão, para
que ninguém escutasse.
Porém...
— Está tudo bem?
Alguém falou bem ao meu lado.
Quando virei o meu rosto... Alexa.
Pigarreei a garganta, tentando voltar ao normal pela milésima vez,
somente naquela tarde, e não fazer parecer que eu estava nutrindo
pensamentos impróprios, há dois segundos, justo pela garota que ela tinha
dito para eu tomar cuidado.
— Tá, tá. Tudo bem.
E puxei o ar, bruscamente, desviando o olhar do seu.
— Não é o que eu vejo... — replicou, meio desconfiada. — Parece
preocupada, Zara. Quer conversar sobre algo? Eu sou toda ouvidos — e
sorriu.
Deus me defenda.
Ela jamais poderia saber o que acontecia dentro de mim, por aquela
garota.
— Está tudo bem, Alexa — encarei-a novamente, tentando passar
segurança. — É sério.
— Hum... — A morena, entretanto, continuou analisando o meu
rosto. No fundo, isso me deixava meio inquieta. Não queria que percebesse
qualquer coisa além do meu humor esquisito. — Acho que o seu problema
é lazer, então.
Lazer?
Enruguei a testa.
— Como assim?
Ela sorriu, astuciosa, e eu poderia jurar que, se não estivéssemos na
frente dos outros funcionários, ela, sem cerimônias, me envolveria com os
seus braços.
— Você está trabalhando muito... Especialmente agora, com essa
garota nova — percebi um leve traço de desagrado em sua boca, quando
pronunciou “garota nova”. — Precisa se divertir mais. Relaxar. E, bom, faz
tempo que você me enrola para sairmos — soltou uma pequena risadinha.
— Que tal irmos hoje a um pub? Tudo por minha conta. É um dos melhores
da cidade. As bebidas de lá são ótimas, a música é boa e eles até têm um
espaço reservado para casais — ergueu uma das sobrancelhas, sutilmente
provocativa.
Espaço reservado para casais?
Alexa não mencionou indiretamente Agatha por acaso. Eu sabia que
não. Ela era esperta e queria me atingir de alguma forma, ou me convencer
da forma mais baixa possível. O problema era que não conseguiria tão
facilmente. Não ela. Algo me dizia que, agora, apenas uma mulher seria
capaz de me afetar de alguma maneira. E era justamente aquela loira que
esfregava o chão.
Eu já ia tentando negar o convite, quando...
— Olha só, Alexa, nós podemos sim marcar de sair qualquer dia
desses, mas... — Agatha se levantou do chão e, por alguma razão, seu olhar
mirou bem na minha direção. Olhos tão azuis e intensos. Eles eram intensos
naturalmente, sem que ela precisasse se esforçar. E foram esses mesmos
olhos que, por um milésimo de segundo, me carregaram de volta ao
banheiro e me fizeram reviver o que há pouco aconteceu. Seu semblante de
desejo. Minha boceta molhada. Porra, porra, porra. Baixei a cabeça,
balançando de leve e desviando o olhar do seu. A menina ia pirar minha
cabeça. Respirando fundo, tornei a encarar a morena. — Quer saber, Alexa?
Vamos. Vamos hoje. Acho que vai ser... — Bom? Não... Talvez “bom”
ainda não fosse a palavras. — Acho que vai ser necessário — completei.
Necessário para eu sair da bolha “Agatha Ballard”.
Era provável que eu realmente precisasse disso para me distrair.
Uma noite com Alexa.

Agatha

Eu ainda estava com a cara no chão de tanta vergonha. E olha que


eu raramente me envergonhava com qualquer coisa. Mas, parecia que a
presença da Zara, na minha vida, estava tornando esse detalhe de merda
cada vez mais frequente. Sei lá, era uma mistura de vergonha com tesão.
Uma coisa de doido. Ao mesmo tempo que eu tinha certo receio em olhar
para ela, eu também queria fazer isso. E sempre que fazia, a minha cabeça
não se concentrava no presente e no seu corpo vestido por uma farda. Ela
pipocava em flashes do momento em que eu a vi só de sutiã. Seu corpo, sua
pele, seus peitos, sua barriga.
E a imaginação de como poderia ser por baixo daquela calça que
ainda vestia...
Argh... Soprei o ar pesado dos meus pulmões.
A mulher-maravilha falsificada era mesmo uma maravilha.
Gostosa pra caralho.
Esse era o fim da minha carreira.
Não que eu fosse do tipo que quisesse tapar o sol com uma peneira,
ou buscar alternativas baratas para suprir necessidades, mas, por mais
gostosa que ela fosse, eu ainda achava que só estava me sentindo assim
porque fazia um zilhão de anos que eu não transava. Sim, desde aquele rolê
do acidente, e o caos que se instaurou na minha vida, eu não tinha um
mísero orgasmo. Só podia ser estresse misturado com abstinência. Duas
semanas era um tempo limite para Agatha Ballard. Nem de maneira
autoinduzida, com minha própria mão, eu gozei. Terrível.
Talvez essa fosse a justificativa para aquela minha sequidão. Eu
ainda não tinha certeza absoluta dessa minha conclusão, claro. Mas, os
indícios eram fortes. Eu precisava transar com alguma garota.
Porém, de alguma maneira, a verdade era que não foi só eu que
fiquei meio esquisita, depois daquele episódio no banheiro, Scott também.
Não que eu achasse que isso fosse exatamente por minha causa, mas só
podia ser muita coincidência que ela ficasse estranha justo depois de eu
pegá-la só de sutiã.
Pegá-la só de sutiã...
Estudei a frase por dois segundos e balancei a cabeça.
Tudo bem, não foi uma escolha muito acertada de palavras,
considerando o quanto eu já estava louca.
O fato era que, se mais cedo ela parecia leve, enquanto puxava
conversa comigo e organizava o aniversário surpresa, agora Zara parecia
tensa, séria. Ela se mantinha a certa distância de mim, principalmente
porque não me colocou para fazer limpeza nas celas. Me deixou
trabalhando naquilo que eu classificava como “zona de segurança”. Um
local em que ela não precisava estar no meu pé a todo instante. E, sendo
sincera, por mais que o mundo não girasse ao meu redor, a impressão que
eu tive foi de que ela só me deixou ali justamente porque não queria ficar
muito perto.
Vez por outra, a cada meia hora ou quarenta minutos, ela ainda
perguntava se eu precisava de algo ou se eu aceitava um copo d’água. Mas,
apenas isso. Apenas. No fundo, eu sentia que essas perguntas, em partes,
eram só por educação, e, em partes também, para fazer parecer que estava
tudo bem. No fim daquela tarde, entretanto, Zara Scott não era a mesma do
início do dia. Honestamente, embora tudo o que eu devesse sentir por ela
fosse indiferença, percebê-la esquisita me inquietava de alguma forma.
E isso era um saco.
Quando eu terminei de dar uma geral na cozinha do refeitório, que
estava uma verdadeira bagunça depois da festinha, já eram quase quatro e
meia da tarde. Tudo o que ouvi foram duas batidinhas suas na porta da
cozinha, seguidas de um “senhorita Ballard, está liberada, pode ir se
trocar”. Depois disso, Scott desapareceu novamente, para uma parte
qualquer daquela imensa penitenciária. Suspirei, irritada comigo mesma por
me importar com isso. Eu não deveria. Eu juro que não deveria.
E precisava fazer alguma coisa, antes que tudo piorasse.
Nota mental: chamar a Tessa para sair.
Mesmo que eu estivesse completamente lisa, ela, com certeza,
pagaria para mim. Pelo menos, eu já tinha bancado sozinha nossas saídas
várias vezes. Então, era hora de mostrar que era minha amiga de verdade,
pagando dessa vez. Além do mais, Tessa era rica. Claro que ela ia me matar
antes, por eu estar praticamente “desaparecida” a tantos dias. Mas, depois
iria querer me dar. Ou seja, o rolê, sem dúvidas, ia dar certo.
Saí dali e fui direto para o banheiro das funcionárias. Porém, era
impossível entrar naquele maldito lugar sem me lembrar de mais cedo. Ela
bem ali, na pia, só de sutiã, tentando limpar sua roupa. Eu não aguentava
mais isso. Minha cabeça precisava parar, já, de repetir imagens da Xena
sem roupa umas trezentas vezes seguidas. Respirei fundo, lutando para
manter a calma e me arrumar o mais rápido que eu conseguia, para dar o
fora logo.
Com certeza, foi o banho mais ligeiro de toda a minha vida. Eu,
praticamente, só me molhei e saí. Ainda cruzei a porta do banheiro, olhando
de um lado para o outro, como se, inconscientemente, eu esperasse que
alguém estivesse por ali. Alguém... Não seja ainda mais imbecil, Agatha,
você esperava que Zara estivesse por ali, para que você pudesse vê-la pela
última vez, antes de ir embora. Bufei, com meu subconsciente filho da puta.
Cacete. O pior era que ele tinha razão.
Quase irritada comigo mesma somente por causa dessa bobagem,
caminhei decidida, a passos largos, na direção da porta de saída da
recepção. Era até melhor mesmo que eu não tivesse visto aquela mulher
antes de ir para casa. Já bastava tudo aquilo. As merdas que aconteceram
naquela tarde eram o suficiente para que eu ficasse atormentada até o final
da semana seguinte.
Agatha idiota.
Agatha imbecil.
Você precisa falar com a Tessa.
Você precisa comer uma boceta, mulher.
Entre os muitos pensamentos confusos e conflituosos, quando toquei
na maçaneta da porta de vidro da recepção, para abri-la e alcançar a parte de
fora, porém...
— Agatha...!
Travei no ato.
Porra, ela me chamou pelo meu primeiro nome. E isso sempre,
sempre, seria um golpe extremamente baixo.
Suspirei.
O que essa mulher queria agora, além de me deixar mais
perturbada?
Devagarzinho, eu me virei. Lá estava ela. Sua postura formal e seu
semblante mais sério do que nunca. Era como se tivesse construído um
muro inteiro em volta de si, tão alto quanto aqueles que cercavam a
penitenciária. Nem parecia a mesma pessoa leve e sorridente do início do
aniversário surpresa.
Por um segundo, eu quis me sentir culpada. Talvez ela não tivesse
gostado de eu ter tirado a sua privacidade naquela hora, ou sei lá. Mesmo
assim, não foi intencional. Eu nem sabia que ela ia estar dentro do banheiro,
ainda mais daquele jeito. Porém... Pensando bem, Agatha Ballard
dificilmente se sentia culpada por qualquer coisa. Era isso. Dificilmente.
Foi então que eu decidi empinar o nariz e parar de ser tola.
Só que aí, ela falou, ao se aproximar:
— A carona...? Você me disse que conversaríamos sobre isso hoje.
A minha oferta ainda está de pé.
E isso me desmontou inteira. Merda.
“Você me disse que conversaríamos sobre isso hoje.”
Ai, ela se lembrou... Alguma coisa estúpida no meu peito quis se
empolgar, ao me dar conta disso. Talvez fosse aquele negócio chamado
coração, ou alguma coisa parecida. Que droga. Quando eu tentava empinar
o nariz e ser pelo menos dez por cento daquela Agatha Ballard, nojenta de
sempre, ela, naquela posturazinha ridícula e linda de policial decente e
altruísta, aparecia para me mostrar que algo virou de cabeça para baixo em
mim, sem que nem percebesse o momento exato em que isso aconteceu.
Não que eu tivesse me esquecido. Nem se eu quisesse eu poderia me
esquecer do tamanho do sorriso estúpido que grudou no meu rosto depois
de ler a mensagem em que ela me sugeria carona todos os dias. Quase
inacreditável. Mas, depois do que aconteceu e da sua clara estratégia em
manter distância, eu não imaginei que ela fosse levar a ideia da carona
adiante. Pelo menos, não naquele dia. Talvez, quem sabe, depois.
Sem conseguir esconder totalmente a minha surpresa, ainda
perguntei, meio incerta:
— Você quer mesmo me dar carona? — Meu coração idiota ainda
estava acelerado. — Tipo, todos os dias?
— Claro — Séria, de pronto, ela replicou, como se fosse a coisa
mais óbvia do mundo. — O que aconteceu ontem não pode se repetir.
E parecia decidida.
Foi aí que eu percebi, que eu me dei conta. Enfim, caí na real.
Suspirei. Agatha, sua boba. Estúpida. Eu precisava parar de ser ingênua.
Essa característica não combinava nem um pouco com o tipo de pessoa que
eu sempre fui. Era óbvio que Zara não estava sugerindo aquelas caronas por
qualquer outro motivo que não fosse o fato de uma policial estar se
responsabilizando pela segurança de uma garota idiota. Claro. Lógico que
era só isso.
Aliás, eu queria que houvesse qualquer outro motivo por trás disso?
Não. Eu não queria. Definitivamente, não.
Entretanto, no fundo, ao constatar que as suas intenções não
passavam do puro altruísmo de uma policial, me senti curiosamente
desanimada, por mais que eu me negasse a reconhecer essa sensação.
...Não havia nenhum sentimento além do altruísmo...
Merda.
Não se importe com isso, Agatha!
— Tudo bem. Eu aceito. Valeu.
Me limitei apenas em dizer essas palavras.
Tentei não ligar e seguir em frente. Afinal, de idiotices a minha vida
já estava cheia.

✽✽✽

Depois que eu dei meu “ok”, Zara foi pegar o carro. E não demorou
muito para que já estivéssemos na estrada, rumo à minha casa. A questão
era que Zara permaneceu tão calada e séria quanto estava na penitenciária.
Eu sentia, e quase podia tocar, aqueles muros que ela mesma parecia ter
construído ao seu redor. Impenetráveis. Por mais que eu quisesse acreditar
que Agatha Ballard não era tão ilustre a esse ponto, nada tirava da minha
cabeça que isso começou desde o momento constrangedor no banheiro.
Bom, naquele dia, depois do hospital, ela também esteve bem calada
durante praticamente todo o caminho, assim como permaneceu
relativamente distante, durante os procedimentos médicos. Ficou a apenas
alguns metros suficientes para saber que eu ainda estava viva. Talvez essa
fosse uma característica sua, ou sei lá o quê. Se realmente fosse, seria uma
característica muito estranha por sinal. Entretanto, mesmo que eu tentasse
me convencer de que aquilo não passava de uma estúpida impressão minha,
algo, dentro de mim, me dizia que eu tinha toda a razão sobre o motivo ter
sido o maldito banheiro.
Os longos minutos de silêncio, inutilmente desconfortáveis, que
estávamos passando dentro daquele carro eram ainda piores do que aqueles
do dia do hospital. Muito piores, pelo menos para mim. Scott parecia tão
dentro de si que eu sentia como se a minha presença e nada fossem a
mesma coisa. Sua cabeça estava distante, eu sabia que estava, por mais que
o seu corpo permanecesse tenso e a sua postura rígida. Ali, a única coisa
que eu ouvia era o barulho do motor e o pequeno som do rádio ao fundo. A
música lenta e calma era inversamente proporcional à energia caótica dentro
de mim.
E eu juro, eu juro que tentei não me importar. Eu juro que tentei não
me afetar com isso, nem dar à situação um significado maior do que
merecia. Tudo o que eu desejava era que o meu corpo exalasse apenas
indiferença. Mas, eu não consegui. Era uma merda. Lá pelas tantas, quando
a inquietação me dominou e eu percebi que nós já estávamos quase
chegando na minha casa, minha matraca não aguentou ficar quieta por mais
nem um segundo. Eu tive que falar, sem papas na língua, ou melhor
despejar a dúvida que estupidamente me corria por dentro:
— Você tá esquisita assim porque eu tirei sua privacidade no
banheiro? — Coração quase na mão, mesmo que isso fosse irracional
demais. Tentei me acalmar, mas não deu. Eu estava me tornando mais
imbecil do que imaginava. — Olha, me desculpa, mas... — E, a partir
daqui, eu desatei a falar. Talvez como um reflexo da tensão que eu sentia.
Uma espécie de descarga. — Não foi de propósito, eu juro! O refrigerante e
o bolo caíram, aí a Westphalen me pediu para pegar um pano e limpar, aí eu
fui atrás do pano e me lembrei que tinha deixado um no banheiro das
funcionárias, aí eu abri a porta de lá e você...
— Agatha... Tudo bem. — Repentinamente, ela me interrompeu,
antes que eu pudesse continuar a minha sessão de descarrego. E, bom, era
impossível não parar quando ela me chamava pelo meu primeiro nome, por
mais idiota que isso fosse. Virei o rosto, encarando-a mais atentamente do
que deveria. — Está tudo bem. Eu sei que aquilo foi só uma causalidade.
Pode ficar tranquila. Não há problema algum nisso.
E, então, se calou novamente, continuando a olhar para frente.
Sua postura firme e tensa ainda estava ali. Eu sentia. Eu podia quase
tocar.
— Hum... Te-Tem certeza? — Meu Deus, por acaso, eu estava
gaguejando por causa daquela mulher? Que merda. Pigarreei a garganta,
tentando empinar o nariz e fazendo um esforço absurdo para não tremer na
base enquanto falava a próxima frase. Porque eu sabia que a próxima frase
era muito além do que eu imaginava que poderia dizê-la. — Bom, eu me
lembro que você me falou, naquele dia, que eu poderia conversar com você
sempre que eu quisesse. Então... — suspirei, ainda tentando manter o nariz
em pé, por mais que eu estivesse falhando miseravelmente nisso. — Então,
pode se sentir à vontade para conversar comigo também. Se quiser, claro.
Porra, eu nem acreditava que disse isso.
Ou pior: talvez eu só tivesse dito isso porque, no fundo, eu sabia que
ela jamais falaria sobre qualquer coisa pessoal comigo.
E a prova disso foram os minutos que transcorreram depois que eu
pronunciei a última palavra. Scott permaneceu calada, com o rosto virado
para frente, enquanto dirigia como se eu não tivesse dito nada. Seu rosto
impassível e seu olhar indiferente só me davam a certeza de que a tolice
parecia ter se instalado na minha vida e não queria mais sair.
Você é tão tola, Agatha.
Ruas passaram, avenidas ficaram para trás. E nenhuma resposta ela
me deu.
Porém, foi quando ela dobrou na rua da minha casa que seus lábios
sibilaram, meio baixo, algo como:
— Você já sentiu muita vontade de fazer alguma coisa, mesmo
sabendo que não deveria?
Cada centímetro da minha pele entrou em puro estado de alerta.
Todos os meus pelinhos se eriçaram, mesmo que não entendesse a razão
disso. Ela tinha falado algo. Zara Scott tinha me dito algo que parecia mais
profundo do que o problema dos ralos entupidos nos banheiros. Aquilo, de
alguma forma, pareceu pessoal. Subitamente, senti uma vontade imbecil de
sorrir, quase incrédula.
— Se eu já senti vontade de fazer algo, mesmo sabendo que não
deveria?
Tornei a perguntar, apenas para confirmar se os meus ouvidos
tinham escutado direito. Zara apenas balançou um breve sim com a cabeça,
enquanto passava a marcha, naquela que talvez fosse a última vez, antes de
eu ir embora. Engoli seco. Não foi fruto da minha imaginação. Ela
realmente estava puxando algum diálogo verdadeiro comigo, pela primeira
vez. E, bem, por mais que racionalmente eu não tivesse motivos para me
empolgar com isso, algo, dentro de mim, não quis perder essa oportunidade.
Sorri de leve, mesmo sem querer, e disse:
— Eu geralmente faço o que não deveria fazer. Bom, foi isso o que
me levou àquela penitenciária — E me permiti soltar uma breve e quase
imperceptível brincadeira.
Zara, porém, estacionando o carro em frente à minha casa, virou o
rosto para mim e perguntou novamente. Seu rosto continuava sério.
— Mesmo que isso custasse o seu emprego?
Foi aí que o meu sutil sorriso sumiu do rosto. Franzi o cenho.
“Mesmo que isso custasse o seu emprego”?
Suspirei, quando meu subconsciente soprou algo em meus ouvidos.
Mesmo que eu não soubesse o significado por trás daquilo, percebi que
aquelas perguntas poderiam ser mais sérias do que eu imaginava.
— Como assim “emprego”?
Ainda tentei ir um pouco mais a fundo, para entender aquilo, porém
Zara desceu seus olhos na direção certa da minha boca e se demorou ali por
mais tempo do que parecia realidade. Meu peito bateu forte, como numa
reação inconsciente. Suas íris escuras passearam pelos meus lábios, mesmo
que a certa distância. E, então, quando pensei que ela fosse me falar algo a
respeito disso, subitamente acordou.
Balançou a cabeça de repente, suspirando e piscando os olhos.
Passou uma das mãos no rosto, meio inquieta. Eu me preocupei. De alguma
forma, me preocupei. Algo dentro de mim também se remexeu. Talvez o
coração. E, então, ela falou:
— Nada, senhorita Ballard... Nada. Esqueça o que eu disse. Foi só...
— E sorriu de leve, tentando disfarçar, enquanto se perdia nas palavras. —
Foi só um pequeno devaneio meu. Bobagem. Tenha uma boa noite.
Já foi logo se despedindo.
Ou melhor, indiretamente me colocando para fora.
— Mas... — Ainda tentei falar.
Porém...
— Tenha uma boa noite, senhorita Ballard — Mais incisiva e mais
formalmente, ela tornou a dizer. Sua séria e frígida postura já estava ali
outra vez.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, quase chateada por ela me
entregar um pouco daquilo e depois retroceder todos os passos. Claro que
ela não tinha obrigação alguma de me falar absolutamente nada. Mas, eu
ainda senti. Senti tudo o que não deveria sentir, inclusive uma frustração
idiota por me empolgar em ter um diálogo com alguém que claramente não
tinha interesse nisso.
Balancei a cabeça de leve e, abrindo o trinco da porta, apenas disse:
— Obrigada pela carona, policial Scott. Boa noite.
E saí, caminhando para dentro de casa, com toda a carga de tensão
(ou de tesão) que apenas Zara Scott conseguia depositar em mim.
Aquela mulher ainda ia pirar minha cabeça.
Sua boca em mim

Agatha

Subi as escadas quase correndo. Meus pensamentos borbulhando e


preenchendo cada centímetro do meu, já tão fragilizado, juízo. Não vi nada,
não vi ninguém, nem Evangeline. Apenas entrei no meu quarto e fechei a
porta. Andando de um lado para o outro e passando as mãos nos cabelos,
tentei controlar toda aquela inquietação que parecia não se aguentar dentro
do meu corpo. Eu estava frustrada com muitas questões, mas
principalmente comigo mesma.
Era ridículo que qualquer mínima coisinha que Zara fizesse fosse o
suficiente para me afetar tanto. Onde foi parar a Agatha Ballard de
sempre? Aquela que se importava tão pouco com tudo? Eu não sabia onde
eu tinha me perdido, mas, sem dúvidas, deve ter sido em algum lugar entre
a entrada da recepção daquele inferno de penitenciária e o banheiro das
funcionárias, local escolhido por Xena, desde o início, para me revistar
antes de começar a trabalhar todos os dias.
Ela, com certeza, devia ter tirado algo de mim, naquelas malditas
revistas, ou trocado alguma coisa de lugar. Tipo, provavelmente, pegou o
meu cérebro e colocou no cu.
Soltei o ar pesado dos meus pulmões e me sentei na cama, confusa.
Ao mesmo tempo que eu queria que ela conversasse comigo, seja lá por
qual motivo fosse esse desejo, também parecia ruim quando isso acontecia.
Nós nunca conseguíamos ter um diálogo normal. Parecia sempre ter algo a
mais por trás. Algo que ela e eu guardávamos, por mais que não
soubéssemos exatamente o que poderia ser isso.
Aquelas perguntas que Scott me fez, no carro, não pareciam ter sido
por acaso. No fundo, eu sentia como se ela tivesse pensado muito bem.
Pareciam questionamentos prontos. O tipo de dúvida que alguém passava
um tempo pensando, antes de soltar. E isso era mais um motivo para
despertar a merda da minha curiosidade. Eu não devia ser tão curiosa assim.
Às vezes, eu só me fodia por causa dessa “qualidade”. Mas, era mais forte
que eu.
O que aquelas perguntas significavam, eu não sabia. E o motivo
para eu me importar tanto com a sua aparente dificuldade de conversar
comigo... Porra, caralho, eu também não sabia! Eu não fazia ideia de
muitas coisas, a não ser o fato de que eu realmente estava interessada
naquela mulher. A verdade era essa: eu estava interessada. Não havia outra
maneira de dizer isso, a não ser com essas palavras.
Interessada por ela, pela mulher que ela era, por tudo o que ela podia
representar. Pelo seu corpo, pelo seu rosto, pelas suas mãos em mim e...
Droga! Tantas mulheres no mundo, mas eu tinha que estar logo interessada
pela Xena. A mulher que me prendeu. Parecia piada. Tantos contatos
salvos de garotas no meu celular, mas era justo nela em quem eu pensava
como poderia ser por debaixo de todas aquelas roupas da farda. Tantas
meninas que, se eu estalasse os dedos, apareceriam na mesma hora, mas era
só ela que parecia ser mais sexy do que todas as outras, quando estava
apenas sutiã ou em qualquer situação.
Talvez fosse a falta. A falta de saídas, a falta de ficadas. A falta de
sexo. Desde que eu comecei a fazer os trabalhos comunitários, não saía
mais de casa, não encontrava ninguém. Eu também quase não tinha ânimo
para isso. Chegava tão exausta dos ônibus e do dia inteiro esfregando chão,
que só pensava em deitar na cama e dormir. O fato, porém, era que, graças a
isso, a minha vida acabou se resumindo àquela maldita penitenciária e à
Xena Scott.
Talvez o meu remédio fosse realmente sair, ver gente, conhecer
pessoas novas, beijar na boca de desconhecidos em alguma festa e, quem
sabe, transar. Sim, eu precisava transar com alguma garota. Era provável
que, só com um bom sexo, eu conseguisse tirar a prova que eu precisava. Só
assim, eu saberia se realmente estava ficando doida pela Zara ou se todo
aquele interesse por ela não era nada mais que uma grande ilusão minha.
Era isso: eu tinha que testar.
Estava decidido.
Suspirei, enchendo o peito e empinando o nariz.
Naquela noite, eu ia colocar toda a porra do cansaço do dia no bolso.
Aproveitando que era sexta-feira e que eu não precisaria trabalhar no dia
seguinte, porque era fim de semana, parecia ser o momento perfeito para
colocar os meus planos em ação.
Quase sorrindo para mim mesma, me levantei da cama e fui direto
na bolsa onde estava o meu celular. Em dois segundos, um número já estava
chamando. E não demorou muito até ela me atender.
— E aí, Tessa! Tá a fim de dar uma volta?

Zara

O combinado foi que eu passaria na casa da Alexa, às dez e meia da


noite, para buscá-la. E aconteceu exatamente assim. O sorriso que ela me
deu, quando eu apareci lá, foi inestimável. Aliás, Westphalen estava
deslumbrante naquela noite, como sempre. A sua postura elegante, e de
bom gosto, a acompanhava em qualquer hora e em qualquer situação.
Usando um vestido que deixava suas pernas à mostra, sentou-se no banco
ao meu lado. A conversa que tivemos, durante todo o caminho, foi bem
casual, tranquila e leve, mas os olhares, que ela me dava, não escondiam as
suas intenções mais sacanas comigo.
Já fazia algumas semanas que nós não saíamos, nem transávamos.
E, honestamente, sem querer desfazer da mulher maravilhosa que ela era,
eu de fato pensei em parar com o nosso caso. Pensava nisso até agora,
sendo sincera. Por mais interessante que ela fosse, eu sabia que algo em
mim não combinava com algo nela. Entretanto, se eu tinha aceitado o seu
convite, eu já deveria saber de todos os “brindes” acessórios que viriam
com isso. Incluindo, beijo e sexo. Era como dizia aquele ditado “se você
está na chuva, é para se molhar”.
Chegamos ao pub por volta das onze horas da noite. Pelo menos, era
sexta-feira e eu não estava escalada para trabalhar no dia seguinte. E, bem,
eu já tinha me acostumado com a vida noturna em Las Vegas, graças às
muitas rondas que eu e outros agentes precisávamos fazer durante a
madrugada. Mas, ainda assim, era diferente estar na posição de quem curtia,
e não naquela de quem cuidava da segurança dos que curtiam. Eram raras
as vezes em que eu deliberadamente decidia sair para uma festa.
O West Country Pub era um dos bares mais frequentados de Las
Vegas, por pessoas ricas. Isso porque nada ali era barato. Um pequeno
drinque poderia custar quase o valor de uns três dias de trabalhos meus. Eu
até preferia que Alexa e eu fôssemos para um mais simples e acessível.
Mas, ela insistiu para irmos naquele e para pagar por tudo. Apesar disso,
talvez a vista que o local nos proporcionava pudesse compensar toda a
fortuna gasta. Ele ficava no topo de um dos prédios mais altos de Las
Vegas. E a vidraça que o rodeava nos dava uma visão panorâmica da cidade
completamente iluminada lá embaixo. Era muito bonito.
Além de bar, o West Country também funcionava como cassino e
boate. Naquela hora da noite, a pista de dança já estava lotada. As luzes
piscantes, os leds, a aura de fumaça e neon, e a música alta completavam o
que eu poderia chamar de “mágica da noite dos milionários de Vegas”.
Pessoas andavam de um lado para o outro com bebidas em mãos, enquanto
outras já se acabavam de dançar e de se beijar em todos os cantos do pub.
De longe, era perceptível o quanto todos ali deviam ter uma grana gorda nas
contas bancárias. Homens de posses e garotas riquinhas. As roupas que
usavam poderiam facilmente pagar todas as minhas contas e ainda sobrar
um bom dinheiro.
Vez por outra, enquanto adentrávamos pelos corredores, eu ainda me
perguntava que porra eu estava fazendo ali. No fundo, me sentia deslocada,
porque eu não era mais uma daquele clube, nem sentia uma tremenda
vontade de estar trepando, bebendo e gastando dinheiro como todos os
outros dali. Eu era uma policial assalariada. Uma das melhores de Las
Vegas, mas, ainda assim, uma policial assalariada, que cuidava do filho,
tinha um apartamento simples, um carro popular, e era muito feliz apenas
com isso. Eu não precisava de mais nada para ser completa. Já tinha o
necessário, principalmente ar nos meus pulmões.
No entanto... Entre um questionamento e o outro sobre a razão para
eu ter preferido ir àquele lugar, em vez de estar assistindo desenhos
animados com o meu filho até dormir, uma loira, na verdade uma modelo
ou quase um avião, passou por mim, gingando seus quadris e deixando um
rastro de perfume caro pelo ar. Ainda girei brevemente o pescoço,
acompanhando-a discretamente com o olhar, até perdê-la de vista entre a
multidão. Não por algum tipo de interesse, mas porque eu me lembrei do
exato motivo para eu ter ido àquele pub com Alexa.
A tentativa de esquecer dos meus fantasmas... Aqueles que
ultimamente estavam me atormentando mais do que deveriam. E aquela
loira... Aquela loira, que passou, parecia muito com os meus fantasmas.
Balancei a cabeça de leve.
Droga, eu estava naquele pub para esquecer dos problemas, e não
para me lembrar deles.
Eu precisava beber alguma coisa.
Senti, entretanto, quando Alexa me puxou pela mão, entrelaçando
nossos dedos e me guiando por ali. Eu não sabia se ela tinha notado que eu
virei o rosto para ver a menina que nos cruzou, mas eu percebi, de alguma
forma, que a maneira como Westphalen me segurou foi como um meio de
marcar seu território. E, como se estivesse lendo os meus pensamentos, me
levou até um dos balcões de drinques, onde os barmans remexiam garrafas
para todos os lados, enquanto preparavam bebidas.
— Acho que está na hora de bebermos alguma coisa, han? — sorriu.
Eu via a sacanagem escorrendo pelos cantinhos da sua boca. Uma raridade,
era verdade. Alexa sempre preferia adotar aquela outra postura séria na
frente de todas as pessoas do trabalho. — Para entrar no clima... —
completou, aproximando seu corpo do meu e escorregando uma das suas
mãos pelas minhas costas até alcançar a lombar.
Não neguei. Afinal, era o que eu realmente precisava.
— Gin tônica pra mim, por favor — falei.
— Claro.
E ela gostou da minha resposta.
Não demorou muito para fazer o pedido e receber nossas bebidas.
Em dois tempos, eu já estava dando um gole no álcool. Meio forte. Fazia
algumas semanas que eu não bebia. Se eu bem me lembrasse, foi na última
vez que nós saímos. Mesmo assim, bebi mais sem dificuldade. E o sorriso
da Alexa tomou proporções ainda maiores, entre um gole e outro, sem tirar
os olhos de mim, enquanto virava o seu drinque também.
Provavelmente, ela se lembrava das vezes em que bebemos juntas. E
também do que fizemos, em todas elas, quando já estávamos meio altas.
Não que eu gostasse de ficar bêbada. Na verdade, era muito, muito difícil
mesmo eu ficar completamente bêbada. Acho que eu só ficava na
adolescência. Agora não. Não mais. Depois de adulta, minha única reação
ao álcool era só o tesão mesmo que me dava. E, no fundo, eu sabia que essa
era a razão para o sorriso que Alexa me dava, enquanto eu tomava minha
gin tônica.
— Está se sentindo bem? — perguntou ela.
— Perfeitamente bem.
Nem tanto.
Mas, eu esperava ficar cem por cento, ainda naqueles primeiros
minutos da noite.
— Ótimo — disse ela, escorrendo seus olhos dos meus até chegar à
minha boca. — O que acha da gente pegar mais bebida e depois dançar um
pouco? A música está maravilhosa.
— Eu topo.
Respondi sem nem pensar.
Não que eu fosse fã daquilo, de dançar e de beber, ou, sei lá,
qualquer coisa desse tipo. Mas, eu estava naquele pub e eu toparia qualquer
coisa que me fizesse esquecer da razão para eu ter ido ali com a Alexa. Que
ela, seus lábios e sua boceta me fizessem esquecer... Era o que eu pedia,
para que aquela saída valesse à pena.

Agatha

— Porra, Agatha, eu quero te matar! Você sumiu, garota! — disse


ela, ao passarmos pela porta do pub.
— Nossa... E eu pensando aqui que você queria me dar... — Com
um sorrisinho sagaz, repliquei. Embora fosse em tom de brincadeira, tinha
seu fundo de verdade.
Tessa soltou uma risadinha sacana, girando o rosto para me encarar
com uma das sobrancelhas erguidas.
— Sim, eu também estou com vontade de fazer isso, sua vagabunda
convencida... Mas, o tesão não muda o fato de que você deveria ter me dado
alguma notícia antes. Fora aquele dia que eu te liguei, você não me disse
mais nada. Parece até que só dá as caras quando quer me comer. Esqueceu
que eu também sou sua melhor amiga e que mereço notícias? — questionou
ela, dramática.
Bom, apesar de todo esse melodrama da ruiva, não foi difícil
convencê-la a sair comigo. Tessa logo aceitou o meu convite, mesmo que eu
tivesse deixado claro que estava na pior, por causa do meu lindo pai, e que,
dessa vez, ela teria que bancar tudo. Ainda estava chateada por eu ter
sumido do mapa, era verdade, mas jamais recusaria qualquer rolê comigo,
porque sabia que valia a pena.
Mesmo assim, como forma de me redimir, até porque seria ela a
pagar tudo, deixei que ela mesma escolhesse o local. Tessa sugeriu que
fôssemos a um dos pubs que ela mais gostava na cidade. E, bem, eu gostei.
Na verdade, era um dos melhores de Las Vegas. Tinha uma vibe sofisticada
e, ao mesmo tempo, divertida. O local perfeito para que eu me desligasse de
todo o caos.
— Tessa, a minha vida virou uma merda, depois da noite daquele
acidente... Sério, você não vai achar nada interessante. Eu juro. Além do
fato de eu ter passado a madrugada inteira presa, eu ainda estou sendo
obrigada a fazer trabalhos comunitários em uma penitenciária, por seis
meses. Preciso esfregar muito chão e lavar muita privada.
— Você o quê?! — Seus olhos dobraram de tamanho ao ouvir
aquilo, e, então, pela minha mão, ela me puxou para um dos balcões de
drinques. — Peraí que eu preciso de uma bebida para escutar melhor isso.
Ei, querido, me vê dois shots de tequila...! — e bateu sobre o balcão,
chamando a atenção do barman.
— Ah, não é só você não — retruquei. — Eu também preciso. Dois
pra mim, dois pra você. Só pra começar a noite.
— Quatro, querido, me vê quatro! — De pronto, ela exclamou para
o homem, batendo com a mão sobre o balcão outra vez.
E, eficiente como o cara parecia ser, em menos de um minuto, os
shots já estavam em nossa frente.
— Certo, me conta isso direito — pediu ela, ao virar uma das
tequilas e trincar os dentes por sentir a ardência do líquido descendo.
Rolei os olhos. Eu odiava ter que mencionar sobre o que eu fazia
naquele inferno de penitenciária. Já bastavam as horas que eu tinha que
passar enfurnada lá dentro, sofrendo com um esfregão e um desentupidor de
vasos sanitários. A ruiva, porém, jamais me deixaria em paz, se eu não
entrasse em mais detalhes.
Me preparando para isso, até porque era sempre uma batalha comigo
mesma ter que falar sobre qualquer coisa que tivesse a ver com aquele
lugar, chupei um limão com sal e também bebi uma das doses. Aquilo
desceu quase borbulhando pela minha garganta e esquentando tudo dentro
de mim. Uma maravilha. Era exatamente o que eu queria.
— Tessa, é basicamente isso — despejei, com certa irritação. — Se
quiser me encontrar durante o dia, é só ir à penitenciária da zona leste de
Las Vegas, porque eu, provavelmente, estarei lá, lambendo algum banheiro,
que é quase um trabalho semelhante a limpar a bunda de um elefante de
circo com confete. Mesmo que nada. Em dois tempos, já está tudo sujo de
novo. E, para completar, eu vou ter que fazer isso por nada menos que
infernais seis meses.
— Argh, amiga, que horror! — ela torceu o nariz, balançando a
cabeça. — Meus pêsames pra você! Eu não conseguiria nem me imaginar
varrendo o meu próprio quarto, imagina fazendo isso aí. Felizmente, na
minha casa, temos cinquenta empregados à disposição — sorriu para si
mesma e bebeu outro shot. — Mas, vem cá, não tem nada de interessante
lá? Nada que chame atenção e torne os seus dias menos tediosos e
cansativos?
Nada que chame atenção...?
Suspirei, pensando.
É... Até que tinha...
Tinha uma certa policial filha da puta que me deixava confusa para
um caralho e que era gostosa para um cacete. Mas, eu preferia não comentar
sobre isso, porque eu tinha ido ali justamente para tirá-la da minha cabeça
com alguma distração, tipo uma distração feminina, se é que me entendem,
e não para me lembrar da dita cuja.
Tomei a última tequila que faltava, empurrando aquilo para baixo, e,
como se o universo estivesse com pena do tanto que eu já tinha me fodido
nos últimos dias, ele pareceu ter ouvido as minhas preces. Eu simplesmente
me dei conta de que, do nosso lado oposto do balcão, havia uma garota. Ela
era morena, bonita. Se destacava no meio de todos. Porém, o que mais me
fez fixar os meus olhos nela, foi a maneira como ela estava encarando Tessa
e eu, enquanto brincava com o canudinho do seu drinque, na ponta da
língua.
A garota estava dando mole. Eu sabia que estava.
Cutuquei Tessa de leve, para que ela visse também, já dando pouca
importância à sua última pergunta, a respeito do que poderia chamar a
minha atenção na penitenciária. Eu sabia que, somente aquele olhar que a
morena estava nos dando, faria Tessa esquecer do seu próprio nome.
— Ela é gata... — A ruiva comentou.
Na mosca.
Tessa já não parecia pensar em nada além da beleza da outra.
— É sim... — confirmei sem tirar os olhos.
— Será que está sozinha? — Interessada, Tessa questionou.
— Não sei, mas vamos descobrir isso agora.
Sorrindo, cheia de intenção, mostrei todos os dentes para a garota,
simpatissíma. Indiquei com a cabeça, para que se aproximasse. Não
demorou mais que meio minuto para que a morena fizesse isso. Meu sinal
era como uma permissão que eu dava. Gingando por ali, com seus quadris
bonitos, caminhou até nós. E, quando chegou perto o bastante, disse logo,
antes mesmo que Tessa e eu falássemos qualquer coisa.
— Olá... — colocou uma das mãos na minha cintura, enquanto
olhava para minha amiga. — Vocês estão a fim de fazer novas amizades, é
isso? Entendi certo? — Em um leve tom de brincadeirinha sacana, ela
perguntou.
— Sim, principalmente se as novas amizades beijarem bem — Logo
respondi.
— Hum... — A morena sorriu ainda mais. — Acho que vocês vão
ter que experimentar, para saber.
Soltei uma risadinha.
— Posso ser a primeira? — Tessa perguntou.
— Claro... — Sem demora, a outra replicou.
E, então, elas simplesmente começaram a se beijar. Bom, eu já
conhecia Tessa suficientemente bem para saber o quanto ela se garantia
nisso. Aquele beijo que elas davam estava bonito pra cacete. Não demorou
para que eu quisesse me juntar a elas. Em pouco tempo, éramos nós três se
beijando e se pegando ali, em uma troca gostosa de lábios, línguas e mãos.

Zara

A noite de Las Vegas poderia reservar muitas surpresas. Inclusive, te


envolver em sua ardilosa aura de magia sem que você nem percebesse.
Entre bebidas, sedução, requintes de pessoas ricas a cada metro quadrado e
a impressão de que tudo era absolutamente possível com apenas uma jogada
nos cassinos mais luxuosos do mundo, quando menos se esperava, a tal
noite de Las Vegas já tinha lhe tragado para dentro dela.
E, talvez, só talvez, ela já tivesse me puxado para dentro, mesmo
que eu estivesse quase de penetra no meio daquela gente rica e sofisticada
até terminar a primeira garrafa de Whisky Macallan.
Depois de alguns drinques, - o que não me deixou bêbada, mas me
fez ficar legalzinha - eu perdi a noção de quanto tempo nós estávamos
dentro do West Country Pub. Conversamos sobre qualquer bobagem, entre
flertes velados e explícitos, até que Alexa me puxou para a abarrotada pista
de dança. Praticamente passamos de mão em mão, para chegarmos ao
centro do local. Em volta de nós, a lotação era tanta que foi impossível não
ficarmos grudadas uma na outra.
Dançamos... Dançamos... Coladas. Quase nos esfregando uma na
outra.
Aquela era uma Alexa Westphalen que só eu e poucas pessoas
conheciam.
Na verdade, eu mesma agia daquela maneira poucas vezes.
O pior era que com aquela música alta zunindo nos nossos ouvidos,
as doses de alguma coisa que tomamos, e as luzes que não paravam de
piscar, eu já me sentia mais alta do que deveria. No fundo, eu percebia que
Alexa também. Ela, porém, não parecia preocupada com isso. Confesso que
eu também estava com o raciocínio um pouco lento para parar e pensar
nisso. Só vi quando a morena se virou e, erguendo uma das mãos para tocar
o meu pescoço e me levar para mais perto, roçou a bunda em mim enquanto
dançava.
Ela era sexy.
Realmente e inegavelmente sexy.
— Sabe que eu senti falta das suas mãos, né?
Ouvi o momento em que ela falou por cima da música, e, então,
guiou as minhas mãos pela sua barriga, pela sua cintura, pelos seus quadris.
Sorri, sem muita noção. Era provável que todos os elementos daquela festa,
incluindo fumaça, neon, álcool e uma inspetora doida para trepar,
estivessem me deixando meio impossibilitada de pensar em coisas mais
profundas e complexas do que a minha vontade de continuar a brincadeira.
No fim das contas, era o que eu queria: esvaziar a minha cabeça.
— É? Só das mãos? — Pertinho do seu ouvido, perguntei.
Foi aí que ela girou novamente o corpo, ficando de frente para mim.
— Não... Eu senti falta de você por inteira — E se aproximou ainda
mais, colando seu corpo em mim, enquanto dançávamos na pista. — Senti
falta da sua boca — me beijou e, falando contra os meus lábios, continuou.
— Da sua língua... — aprofundando ainda mais o beijo, sugou meus lábios,
enfiou sua língua na minha boca e chupou a minha. — Da sua boceta
também — me apalpou por cima da minha calça jeans. — E, claro, das suas
mãos sentindo o quanto eu estou molhada... — Sem cerimônia, já foi logo
segurando uma das mãos e a guiando para debaixo do seu vestido.
Enfim, acordei de leve.
— Uou...! — exclamei em um tom não muito alto, arqueando um
pouquinho as sobrancelhas. — Ei... — soltei uma pequena risadinha, meio
frouxa demais, provavelmente por conta da bebida, pendendo um pouco a
cabeça para trás e tirando brevemente minha mão de perto de dentro do seu
vestido. — Você está querendo me colocar no mau caminho, Alexa...
Ela girou as orbes um pouquinho.
— E você está querendo resistir a uma noite onde tudo está liberado.
Tudo está liberado?
Soltei uma risadinha frouxa de novo. Era o álcool.
— Estamos no meio de dezenas de pessoas, Alexa. Em uma pista de
dança — O juízo quis aparecer por um triz, mas logo se foi... — Quer que
eu te coma aqui mesmo?
Depois de ouvir isso, um breve sorrisinho esperto se formou nos
cantinhos da sua boca. Esperto até demais. E, então, quando eu menos
esperei, uma das suas mãos me puxou dali. Sorri, balançando a cabeça. Essa
mulher sempre agia comigo de uma maneira que poucas pessoas poderiam
acreditar, se soubessem.
Quase tropeçando por cima dos outros que dançavam e caminhavam
por ali, cruzamos quase toda a extensão do pub até chegarmos naquilo que,
pelas plaquinhas, eu pude adivinhar que era o banheiro, antes mesmo de
entrarmos. Sem se importar que pudessem haver outras mulheres usando os
boxers ao lado, a morena me empurrou para dentro de uma das cabines e
trancou a porta.
Depois daí, simplesmente foi para cima de mim.
Me beijando enlouquecida, subiu minha blusa, arrancando-a pela
minha cabeça. Enquanto uma das suas mãos me seguravam firme e me
levavam para ainda mais perto dela, baixou um dos lados do meu sutiã e
chupou meu peito.
Ai, caralho.
Entre uma sugada e outra, porém, ela soltou uma risada baixinha e
de leve, perguntando:
— Trouxe a sua pistola? — tocou na arma guardada dentro do cós
da minha calça. Apenas o cabo estava para fora. — Tão prevenida... — e a
tirou dali, manuseando-a habilmente como uma inspetora bem sabia e a
colocou sobre um suporte ao lado, pregado à parede.
— É... Nunca se sabe quando vai ser preciso usar... — Ainda tentei
dizer.
Porém...
Antes que eu pudesse falar mais alguma coisa, sua língua estimulou
meu mamilo de novo. Cacete. Um palavrão escapou dos meus lábios,
seguido de uma respiração ofegante. Pendi a cabeça para trás, fechando os
olhos e experimentando as sensações que a sua língua me causava em um
mamilo e os seus dedos no outro.
Puxei o ar para os meus pulmões, sorvendo, para bem dentro de
mim, a vontade de fazer algum barulho, até que, repentinamente e sem
avisos prévios, uma lembrança cruzou a minha memória, como um raio. Foi
muito mais rápido do que o meu raciocínio conseguia assimilar. Em um
segundo, eu estava ali, com Alexa colocando a sua boca em mim, e, no
outro, eu já tinha sido transportada de volta ao banheiro da penitenciária,
onde eu não via nada além daqueles olhos azuis tão bonitos engolindo cada
parte do meu corpo.
Ela.
Apenas ela.
Agatha.
E nada mais.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, abrindo os olhos e tentando
voltar ao presente. Merda, merda, merda. Não era para isso estar
acontecendo logo agora. Eu saí com Alexa justamente para fugir desses
pensamentos, não para voltar a eles.
E eu tentei me controlar.
Eu juro que tentei controlar a minha cabeça e a minha imaginação,
enquanto Westphalen me chupava e me beijava, mas não deu. Não estava
dando. Era quase impossível. Em poucos segundos, aquilo que parecia ser
apenas lembranças fragmentadas se tornaram memórias contínuas, junto
com desejos irreais. Desejos de coisas que nunca aconteceram e que não
poderiam acontecer.
No fundo, quem eu queria que fizesse aquilo comigo era a Agatha.
Não Alexa.
Porra.
Eu estava perturbada demais.
E, já meio irritada comigo mesma, inverti as nossas posições. Era a
minha vez, numa tentativa de, enfim, prender a minha atenção somente ali e
voltar a me excitar com Alexa. Apenas com Alexa. Decidida, me sentei
sobre a tampa fechada do vaso e puxei Westphalen para cima de mim,
fazendo-a montar sobre as minhas pernas.
Aberta e completamente, receptiva, afastei sua calcinha para o lado,
sentindo sua boceta bem molhada, ao mesmo tempo que baixava um lado
do seu vestido e sugava seu mamilo. Eu chupava e metia um, dois, três
dedos nela. Bem fundo, bem intenso, massageando-a até o final.
Alexa começou a gemer, rebolando em cima de mim, como numa
tentativa de aumentar a fricção. E ela gemia alto, sem qualquer vergonha ou
receio de que outras pessoas pudessem ouvi-la. Westphalen era linda.
Maravilhosa. E parecia ainda mais bonita enquanto fazia aquilo.
Porém...
Apesar de tudo e de todo o meu esforço para evitar, ao mesmo
tempo que eu chupava e metia, ainda era nela, naquela loira que eu
pensava. Era ela quem a minha cabeça, já tão perturbada e atormentada,
imaginava ali, completamente excitada. Era Agatha quem eu queria ouvir.

Agatha

O fato era que Tessa e eu tínhamos uma espécie de radar ligado


sobre as garotas que queriam pegar a gente. Era batata! Bastava encarar a
menina uma única vez, para saber se ela estava a fim ou não. Talvez fosse a
nossa experiência ou algo do tipo. E, bem, aquela morena, que se
aproximou de nós, estava a fim pra caralho.
Os beijos, que dávamos em trio, se tornavam, segundo a segundo,
mais quentes e intensos. Inclusive, a gente não se importava, nem um
pouco, em fazer aquilo na frente das dezenas de pessoas do pub, que
passavam de um lado para outro. Para nós, era extremamente natural. E
deveria ser mesmo.
No entanto, em dado momento, entre lábios, línguas e mãos que
tocavam em todas as partes do corpo, só ouvi quando algum enviado de
satanás falou bem ao nosso lado:
— Caralho, que gostosas...
Já me tremendo de ódio por ter uma ideia do que aquilo significava,
quando virei o meu rosto, as minhas suspeitas foram confirmadas. Era um
macho chato do caralho, com uma puta cara de seco, nos observando e
quase babando. Filho da puta escroto. Eu odiava isso. Odiava quando os
caras não podiam ver mulheres se beijando e deixá-las em paz. Era como se
encarassem aquilo como a merda de um pornô, ou algo que os satisfizesse.
E, não, definitivamente não. Aquilo não era para eles. Era para nós. Para o
nosso próprio prazer.
— Ah, vai se foder — retruquei. — Cai fora daqui!
Ele, entretanto, nojento, soltou uma risadinha e perguntou:
— Será que eu posso participar também?
Ah, pelo amor de Deus.
Que merda!
Dessa vez, fomos nós três que viramos em pura cara de nojo e,
juntas, berramos:
— Vai se foder, porra!
Para completar, aproveitei um copo de sei lá o quê, que estava ali
por cima do balcão de bebidas, e também joguei na cara dele. Nem um
pouco preocupada se o drinque tinha dono. Só queria que o idiota vazasse
dali.
Meio assustado, atarantado, com aquele líquido repentino no seu
rosto, ele se afastou um pouco dali. Pude respirar, de certa forma, mais
aliviada. As garotas também. No entanto, aquela breve aura de estresse
ainda parecia pairar pelo ar.
Foi então que a morena desconhecida falou por cima da música:
— Vamo deixar isso acabar com a nossa noite não!
E, animada, simplesmente nos segurou pelos braços e nos puxou
dali.
Em menos de meio minutos, nós três já estávamos nos pegando de
novo. Porém, dessa vez, ela nos guiava pelo meio da festa, seguindo em um
rumo, até então, desconhecido para mim. Porém, não demorou muito até eu
me dar conta do local para onde a morena estava nos levando: o banheiro
feminino.
Tessa, eu e a outra entramos ali totalmente entretidas com nós
mesmas. Quase não prestávamos atenção ao nosso redor, ou no que tinha à
nossa volta. Ainda assim, pude perceber de leve que o banheiro não estava
muito cheio. Havia algumas mulheres por ali, mas, se nós não nos
importávamos de nos pegar daquele jeito no meio da festa, que dirá dentro
do banheiro.
Enquanto, a morena me beijava pela frente, Tessa passava as mãos
em mim por trás. Ora seus dedos alcançavam a minha bunda, ora pegavam
nos meus peitos. Ora era eu quem estava no meio, ora era a Tessa, ora era a
morena. Trocávamos as posições como em uma espécie de dança que nós
sabíamos os passos. Entre inversões de posições, beijos e mãos que
exploravam todos os lugares sem qualquer restrição, comecei a ouvir.
Pareciam gemidos...
— Acho que tem mais gente se pegando aqui dentro... — falei, no
espaço entre um beijo e outro, soltando uma risadinha.
— E isso deixa tudo muito mais excitante, né... — Sorrindo sacana,
a morena desconhecida replicou.
Em meio a risadinhas descaradas e pegações, instintivamente me
sentei sobre a imensa pia de lavar as mãos. Permiti que a morena
continuasse me beijando, enquanto Tessa enfiava a mão debaixo do meu
vestido curtíssimo. Levada por aqueles gemidos interessantes que saíam de
alguma parte do banheiro, enquanto uma sugava meus lábios e a outra
passava os dedos para dentro da minha calcinha, era eu quem já começava a
gemer também.
Sorri para mim mesma, ao sentir que eu parecia estar me
aproximando do meu objetivo. Aquele objetivo que eu estabeleci antes
mesmo de sair de casa: tirar a prova... Tirar a prova de que eu conseguiria
esvaziar a minha cabeça daquela... Mulher. Pelo menos, ali eu não pensava
em nada. Em nada do que eu não queria pensar. Era um dos poucos
momentos em que eu percebia a minha cabeça leve.
Leve...
Leve...
Me deixei levar naquilo, sentindo toda a leveza que o momento
poderia me causar, sorrindo feito boba, e beijando até perder
completamente o juízo, a ponto me esquecer de absolutamente tudo o que
enchiam os meus pensamentos nos últimos tempos. Esquecer, ao menos,
por aquela noite. E, com sorte, pelo resto da vida inteira.
Porém...
Com um vento, uma brisa rasteira e esperta soprando por ali,
gradativamente eu já não sentia somente aquela leveza, mas também um
cheiro. Um cheiro de perfume... Perfume de pobre. Perfume de quinta
categoria. Mas, ao mesmo tempo, tão bom. O perfume dela.
Merda.
Parecia piada, mas, para a minha verdadeira inquietação, o cheiro
ficava mais forte a cada segundo. Será que o meu nível de loucura por ela
já estava se tornando tão alto, a ponto de eu imaginar seu perfume? Droga.
Em pouco tempo, já não era apenas a morena, Tessa e eu ali. Era como se
ela estivesse bem ao meu lado.
Ou pior... Me beijando, colocando a sua boca em mim, no lugar
daquela desconhecida.
Eu só podia estar muito bêbada. Cacete. E olha que eu nem tinha
bebido tanto, assim como também não era muito fraca para álcool. Para eu
começar a me sentir apenas de boa, eu precisava ingerir uma boa
quantidade. Porém, aqueles shots de tequila só podiam ser muito poderosos.
Não era para os meus pensamentos serem invadidos dessa maneira.
Não era.
Tudo estava indo tão bem... E eu ainda me esforcei para retornar
àquela vibe e à excitação que eu estava sentindo. Contudo...
Repentinamente, nos assustamos com um estrondo que ecoou por ali,
quando a porta de uma das cabines se abriu. E, em definitivo, depois disso e
de ver a imagem que se desenhou frente aos meus olhos, a última coisa que
eu consegui sentir foi tesão.
Eram, ninguém menos, que Zara e Alexa saindo do box, com as
roupas quase fora do lugar, nos encarando em pura surpresa, como se nós
fôssemos as últimas pessoas que elas esperavam encontrar ali. Ou melhor,
como se eu fosse a última pessoa que elas imaginavam encontrar ali. A
coincidência, porém, era que eu preferia ver o demônio do que elas duas
juntas, daquela maneira, com a certeza de que tinham acabado de se pegar
forte dentro da cabine do banheiro.
Quero a sua companhia esta noite

Zara

Certo. A vida só podia estar de brincadeira com a minha cara.


Além do fato de eu ter decidido sair com Alexa exatamente para
esquecer da sua perturbadora existência, de que eu, mais uma vez, havia
sido atormentada pelas suas lembranças justo quando estava quase
transando com Westphalen, e de que aquela cena dela com mais duas
garotas me fazia brevemente trincar a mandíbula; Agatha coincidentemente
escolheu sair para o mesmo lugar que eu, em uma cidade de mais de
trezentos e cinquenta quilômetros quadrados. De todas as dezenas de pubs
existentes em Las Vegas, Agatha tinha que estar justo no mesmo que eu.
Parecia piada. Mas, na verdade, era só um pesadelo mesmo.
O recado do universo, para mim, era apenas um: você não vai
esquecer dela não, amor.
E, se eu ainda tinha alguma dúvida de que Agatha gostava de
mulheres, todas elas foram sanadas naquele instante. Não havia outra
explicação, além desta, para o fato de que a loira estava sobre a pia do
banheiro, ofegante, com o vestido praticamente levantado e os cabelos
bagunçados, na companhia de uma morena e de uma ruiva. As outras duas
também estavam em uma situação semelhante à dela. Ofegantes e ainda
vermelhas de excitação.
Puxei o ar para os meus pulmões, tentando me resignar. Ela gostava,
sim, de mulheres. O problema era que, no fundo, algo se inquietou, se
incomodou, dentro do meu peito, por vê-la, naquele estado, com alguém
que não era... Ai, merda. Para com isso, Zara. Estalei a língua no céu da
boca, balançando de leve a minha cabeça, para os pensamentos inadequados
que já queriam se apoderar da minha cabeça, sem qualquer consentimento
meu.
Só ouvi quando a loira, ainda claramente em choque com a surpresa,
disse, enquanto encarava Alexa e eu, e ajeitava sua roupa, descendo da pia:
— Po-Policial Scott... E inspetora Westphalen...?
Agatha parecia mais branca do que já era, completamente sem jeito,
tanto por nós termos a encontrado daquela maneira, quanto, provavelmente,
por ter nos visto, saindo de dentro da cabine, amarrotadas também. Seu
queixo batia lá no chão. Por mais ruim que fosse reconhecer isso, era de
fato uma situação bem constrangedora.
— Que merda... — escutei quando Westphalen quase cantarolou
isso. — Acho que vou dar o fora daqui — E, em um tom mais baixo,
completou, aparentemente frustrada, dando as costas para todas nós.
Cacete.
— Ei, Alexa! — Ainda tentei chamá-la, mas ela saiu tão ligeiro, que
já tinha cruzado a porta do banheiro. Droga, droga, droga. Suguei o ar entre
os dentes, fechando os punhos. Então, ainda meio sem jeito, encarando as
três, sobretudo Agatha... — Com licença — e saí dali, correndo, atrás da
morena.
​Assim que alcancei o lado de fora, olhei de um lado para o outro,
tentando encontrá-la. O pub ainda estava lotado. Pessoas dançavam, bebiam
e se beijavam loucamente. Ainda caminhei alguns passos, buscando-a. E,
sim, foi quase difícil achá-la. Mas, entre um giro e outro, consegui vê-la,
caminhando em direção à porta de saída.
Me apressei para alcançá-la e, segurando o seu braço, a impedi de
continuar.
— Alexa, hey, alexa... — tentei fazê-la me encarar. Ela, por sua vez,
virando o rosto em minha direção, respirou fundo, como se estivesse meio
cansada, meio sem paciência. — Hey, o que foi? — franzi o cenho. — Você
ficou chateada com o que houve? Ficou chateada com algo que eu tenha
feito? Foi uma coincidência. A culpa não foi minha.
A morena, por sua vez, passando a língua entre os lábios, suspirou.
— Eu sei, eu sei... — rolou os olhos de leve. — Eu sei que a culpa
não foi sua. Claro. É só que... — curvou levemente os ombros. — Essa
garota está aqui, está ali. Está em todos os lugares. Como se não bastasse a
penitenciária, agora a encontramos também no nosso momento de lazer.
Realmente foi frustrante dar de cara com ela, durante uma intimidade nossa.
Queria que fosse uma noite só de nós duas, sem qualquer interferência
externa ou lembranças do trabalho.
Puxei um pouco de ar para os pulmões.
Westphalen não gostava mesmo da Agatha. E a razão disto... Bem,
além do fato da garota ser um problema, respondona e arredia em qualquer
diálogo com Alexa ou com qualquer pessoa da face da Terra, eu não saberia
de algum outro motivo para o seu desprazer. Essas características da
menina, porém, não eram exatamente algo pessoal, mas, sim, uma marca
registrada. Agatha agia de tal forma com todo ser humano.
— Mas, ainda pode ser... Ainda pode ser uma noite nossa. Quero
dizer, na verdade, já está sendo — falei meio sem pensar. Meu único
objetivo era não deixá-la mal com isso. — O que aconteceu foi apenas um
detalhe. Podemos sair daqui e ir para outro lugar. O que acha?
Ainda vi quando, após alguns instantes de silêncio, a morena
ensaiou um pequeno sorrisinho no rosto.
— Acho que pode ser uma boa ideia — disse ela.
Todavia...
Antes que eu pudesse falar qualquer outra coisa, algo, que nem em
mil anos eu poderia imaginar, aconteceu.
Um estrondo absurdo soou por cada parte daquele pub. Parecia
como o som de um tiro. Na verdade, aquilo só podia ser um tiro. A atenção
de absolutamente todo mundo foi sugada para o exato ponto de onde
parecia ter saído aquele barulho. Girei o rosto na direção do banheiro onde
nós estávamos, Alexa também o fez, e tudo o que eu vi pareceu um borrão
surreal e estressante.
Cada centímetro do meu corpo ferveu.
A ira e a adrenalina se apoderando como fogo de rastilho.
Agatha estava sendo levada por três homens. Todos eles armados. O
que a arrastava, apontava uma pistola para a sua cabeça e exigia para que
ela parasse de gritar. A garota, no entanto, estava apavorada, enquanto todos
ao seu redor corriam assustados, de um lado para o outro, a cada vez que os
capangas acertavam tiros no chão, para intimidar todos e deixar livre o
caminho de fuga. Era um verdadeiro “salve-se quem puder”.
Agatha chorava, ao mesmo tempo que lutava para se soltar, entre o
medo de ir com eles e a ameaça de levar um tiro ali mesmo.
Cacete.
Que porra era essa? O que esses caras queriam? Uma recompensa
por sequestro?
Em questão de segundos, sem pensar por muito tempo, saquei
minha pistola do cós da calça, engatilhando a munição. Eles só
conseguiriam levar a garota, se passassem por cima de mim antes.
— Alexa, eu vou acabar com esses caras. E preciso de você comigo
nessa também — disse eu, já dando um passo em direção à confusão
instalada.
— Eu não vim armada.
Puta que pariu.
Sibilei uma série de palavrões.
— De qualquer jeito, eu tenho que ir. Peça reforços, por favor.
Ela suspirou, entretanto, determinada.
— Tudo bem, eu peço, mas eu vou com você, mesmo assim. Fui
treinada para desmontar uma bomba no escuro, só com um clipe de papel e
uma bala de menta. Posso desarmar um cara tranquilamente.
Ótimo.
— Então, vamos.
Deixando seus saltos para trás, Alexa correu comigo, em direção a
eles, mantendo, no entanto, o cuidado de pegá-los de surpresa, para evitar
qualquer confronto maior antes do tempo certo. Afinal, estávamos vestidas
à paisana, sem nossos uniformes. Só ouvi quando Westphalen, em dois
cliques no celular, ainda conseguiu contato com aquilo que eu imaginava
ser um dos comandantes da polícia, dizendo:
— Precisamos de reforços. West Country Pub. Agora!
E, bem, eu sabia o quanto os soldados eram orientados para o fato
de que, qualquer exigência da inspetora Westphalen, deveria ser sempre
atendida rapidamente.
Quanto mais perto nós chegávamos, melhor eu visualizava.
Lutávamos, entretanto, para nadar contra a maré de pessoas absurdamente
apavoradas com aquela confusão. Vez por outra, esbarrávamos em meio
àqueles que queriam sair do pub de qualquer jeito. Alguns, provavelmente,
já desciam pelas escadas de emergência, sem nem esperar pelos elevadores.
Vi, contudo, os três caras cada vez mais próximos de nós. Um arrastava
Agatha, com uma pistola apontada para a sua cabeça, ao passo que os
outros ainda atiravam no chão para continuar intimidando os civis por ali e
abrindo caminho.
Eram três contra duas. Sendo que uma das duas ainda estava
desarmada. Então, era preciso pensar estrategicamente, mesmo dentro de
poucos instantes, sobre a maneira como nós os abordaríamos. E eu não
levei mais que três segundos para bolar o plano. De um jeito ou de outro,
nós causaríamos ainda mais tumulto ali. Porém, era melhor que fosse uma
bagunça organizada e iniciada no exato melhor momento para Westphalen e
eu.
Com apenas um menear de cabeça, indiquei para que ela se
posicionasse atrás de mim. Depois disso, a inspetora entendeu todo o resto,
sem que eu nem precisasse falar. Ela já era experiente demais para saber de
tudo. Caminhamos categoricamente em direção a eles, percorrendo o
espaço de modo a ficarmos às suas costas. Foi então, no momento em que
chegamos à exata distância, que mirei a pistola e acertei a perna de um
deles. Não era uma região que o mataria, mas uma que o deixaria sem andar
até que o socorro chegasse. Ele caiu no chão, se acabando de gritar,
enquanto tentava pressionar o furo ensanguentado.
Pronto, um caos ainda maior.
Pessoas assustadas gritaram por todos os lados e mais lágrimas
desceram dos olhos da Agatha. Porém, os dois caras, que restavam, ficaram
como baratas tontas, olhando de um lado para o outro, na tentativa de
encontrar o alvo que os acertou. Eles só não esperavam que nós já
estivéssemos bem atrás deles.
Tudo aconteceu muito rápido.
Alexa, treinada, já sabia exatamente o que fazer e como fazer, foi
para cima de um, enquanto eu me colocava entre o cara, que segurava
Agatha, e a própria garota. O que Westphalen e eu usávamos não era
necessariamente força, era jeito. Jeito e habilidade.
Surpreendido com o golpe inesperado e a força que eu usei,
consegui fazer com que a garota se soltasse. Durante meio segundo, após
libertá-la das mãos nojentas do homem, eu pude ver pavor e surpresa nos
seus olhos. Pavor por tudo o que estava acontecendo e surpresa por eu ter
aparecido ali. Não hesitei em exclamar, enquanto via suas sobrancelhas bem
arqueadas e tentava conter o criminoso:
— Corra, Agatha! Corra daqui agora!
E a minha ordem foi como um gatilho para que ela, enfim,
acordasse. Em dois tempos, a garota já desaparecia para dentro de alguma
das portas do pub.
Balas perdidas escaparam por ali, tanto da arma do cara que
Westphalen estava responsável quanto do meu, quando eu o segurei. Torci
seu braço para trás, enquanto mirava minha pistola na sua cabeça,
disparando ordens para que ele se rendesse. Sua arma se soltou da mão,
com o meu súbito movimento, mas, de repente, quando a empurrei para o
lado, ele me girou por cima das suas costas e, bruscamente, me jogou contra
o chão.
Ai, porra!
Todos os ossos da minha coluna doeram com o impacto. Inferno.
Mas, não deixei barato. Pelo menos, agora, nem ele nem eu estávamos
armados. Uma luta quase de igual para igual. E, entre um soco e outro, ali
mesmo no chão, eu consegui puxá-lo pelo pescoço e dar uma cabeçada
segura em sua testa. Zonzo, ele arreou para o lado. Foi no mesmo instante
em que Westphalen, sem se importar com o seu vestidinho, deu uma chave
de braço no pescoço do outro, fazendo-o perder o controle não somente da
pistola, que escorregou da sua mão e foi para longe dali, mas também do
seu próprio corpo.
Como uma fruta madura, ele caiu durinho por ali.
Assobiei, quase maravilhada.
— Caceeete, Westphalen... Você se garante, heim?
— Só não mais que você — Com uma piscadinha de olho para mim
e um sorriso, disse ela, em meio a quase um total zero gotas de suor
escorrendo pelo seu corpo. — Ei, cuidado aí! — E, repentinamente,
exclamou.
Seu aviso foi o suficiente para que eu virasse meu rosto de súbito.
Só quando o zozo-desacordado, aquele mesmo que eu havia acabado de lhe
dar uma cabeçada, tentou me puxar para socar o meu rosto. Ah, filho da
puta. Ridículo, ele estava fraco e trôpego. Fui mais rápida, desviando e
acertando o seu nariz, que pareceu uma torneirinha aberta ao esguichar
sangue, enquanto ele se lamuriava.
Eu só precisava tomar cuidado para não matar o cara, ou o Estado
arrancaria todos os meus órgãos. Porém, deixá-lo abatido por minutos
suficientes para que ele não tivesse a chance de me matar, era o objetivo.
E, aproveitando o seu momento de guarda bem baixa, após
machucar seu nariz, acertei em cheio o queixo. Dessa vez, deixando-o sem
qualquer possibilidade de reagir, a não ser pelos seus grunhidos de dor. Ao
meu lado, Westphalen terminava de imobilizar o outro cara. Foi no exato
segundo em que os reforços chegaram. Policiais cercaram o lugar, já
preparados com algemas para levar os criminosos ao local que mereciam. A
cadeia.

✽✽✽

Por ali, agentes e investigadores isolavam a área e tiravam fotos do


local, enquanto outros levavam os três homens presos para a detenção.
Ainda não sabíamos de fato a motivação que eles tiveram para agir daquela
maneira, mas, sem dúvidas, o apuramento do caso poderia esclarecer isso.
Alexa trabalhava no direcionamento dos demais policiais, enquanto eu
auxiliava no que fosse preciso. Apesar disso, entretanto, eu não conseguia
tirar os olhos da loira sentada em um cantinho, toda encolhida.
Ouvimos suas amigas, aquelas duas que estavam no banheiro. Elas
continuavam apavoradas. Preferimos, no entanto, respeitar o momento da
Agatha. Ela não parecia bem para falar sobre muitas coisas. Ainda nos deu
um breve depoimento do que aconteceu e de como aconteceu, mas nada
muito mais a fundo do que isso. Era melhor assim. Pelo menos, até que ela
ficasse mais calma. Envolvida em uma manta, enquanto tomava um chá
quente de camomila, eu via que ela permanecia tremendo. Os tremores,
porém, não eram de frio, mas de puro nervosismo. Eu tinha certeza
E, por mais que eu devesse continuar o meu trabalho, era perto dela
que eu queria estar. Não dava para eu continuar andando de um lado para o
outro, resolvendo pendências e burocracias a respeito da prisão dos caras,
enquanto ela estivesse daquele jeito, e outros agentes, tão capacitados
quanto eu, pudessem dar continuidade àquilo. Deixando tudo para trás,
então, fiz o que o meu coração pedia. Me aproximei da Agatha. De longe, já
era tão perceptível a sua respiração pesada, o corpo fragilizado e toda
tensão que ainda exalava de si.
Flexionando os meus joelhos e me abaixando para ficar na altura do
seu olhar, capturei suas orbes ainda molhadas, com os resquícios de
lágrimas que ainda havia por ali. O nariz vermelho, as íris azuis mais
brilhantes do que nunca, e a maquiagem completamente borrada. Era assim
que ela estava. Mas, apesar dos pesares, de todo o susto e do pavor ainda
estampado no seu semblante, não deixava de ser absolutamente linda por
nem um só segundo.
— Agatha... — baixinho, eu falei, tentando trazer sua atenção para
mim. — Está tudo bem. Agora, você está protegida. Acalme-se. Nenhum
mal vai mais te acontecer. Isso eu garanto. Os homens estão presos, e nós
estamos investigando tudo. Fique calma.
Ela, no entanto, continuava tremendo. O corpo, aparentemente, tão
indefeso, que nem parecia aquela Agatha de sempre, tão cheia de si, tão
segura e atrevida. Agora, infelizmente, ela não era nada mais que uma
garota em choque.
— Eu sei, eu sei... — Ofegante, ainda quase sem ar, falou. — É só
que... Eu não consigo parar de... De pensar naquele filho da puta me
arrastando e apontando uma arma para a minha cabeça.
E o seu corpo voltou a tremer ainda mais. Ela puxava o ar de
maneira tão pesada, a ponto dos seus ombros subirem e descerem quase
bruscamente.
— Por favor... — baixinho, disse eu outra vez. — Tente respirar
devagar. Puxe o ar devagar para os seus pulmões e solte lentamente
também. Você vai melhorar, se puder fazer isso — suspirei, preocupada,
embora não quisesse deixar isso evidente, para não a inquietar ainda mais.
— Vamos, Agatha, você consegue.
Contudo, a cada vez que ela tentava fazer o que eu pedia, aquela
sensação de cansaço, de falta de ar, a impedia de continuar. O corpo
tremendo, o medo ainda estampado em seu semblante.
Droga.
— Acho que você está tendo uma crise de ansiedade — falei. —
Venha, vamos... Eu vou te tirar daqui — e segurei o seu braço, para que ela
se levantasse. Senti, entretanto, quando o seu corpo retesou com o meu
toque. Seus olhos assustados cravaram no exato local que a minha mão
estava. Franzi o cenho. — Está tudo bem, Agatha. Nenhum mal vai te
acontecer. Estou aqui para proteger você, certo?
Foi então, quando eu disse aquela última frase, que ela ergueu o
rosto para mim e me fitou por alguns instantes, ainda gelada de tensão. Só
vi o momento em que suas orbes azuis discretamente desceram na direção
da minha boca e seus lábios pronunciaram:
— Muito obrigada.
A sinceridade no seu agradecimento era óbvia. Porém, singular.
Embora racionalmente eu não quisesse admitir, lá no fundo, senti existir
algo a mais, algo por trás daquelas pequenas palavras e do seu olhar tão
intenso direcionado a mim, durante segundos eternos, que me fizeram parar
e encará-la com ainda mais atenção. Por mais abalada que ela ainda
estivesse, era quase palpável, o que poderia haver naquela sua breve
resposta e nas suas orbes tão expressivas. Parecia um significado muito
além do literal.
— Não há de quê. Esse é o meu dever.
Me limitei apenas a dizer isso, porém. Dentro de mim, ao contrário
do poderia parecer, na verdade, eu sabia que a minha vontade mesmo era de
falar muitas outras coisas. Coisas que queriam se desprender da minha boca
sem qualquer filtro. Coisas que poderiam ser perigosas, inadequadas, mas...
Verdadeiras. Sentimentos muito além do que o altruísmo que uma policial
deveria ter, para garantir a segurança dos cidadãos.
Parecia mais intenso e profundo do que mero altruísmo.
Balancei, no entanto, a cabeça, tentando me desligar desses
pensamentos. Não seja tão tola, Zara. Eu só precisava tomar cuidado para
que isso não ultrapasse a linha tênue entre o profissional e o pessoal. Eu
estava cuidando dela apenas pelo profissionalismo que qualquer policial
deveria ter. Claro. Somente isso. Era o puro comprometimento que, durante
a cerimônia de posse do cargo, há quase oito anos, eu jurei ter.
Apenas isso. Nada mais que isso.
Somente isso.
Ainda segurando seu braço, ajudei-a a se levantar. Quando assim o
fiz, porém, Agatha, de súbito e sem qualquer receio, me envolveu com os
seus braços pelo meu corpo, como se a força das suas pernas estivesse
pouca. Vulnerável. Quase prendi a respiração, durante meio segundo, por
senti-la tão perto de mim, de uma maneira como jamais esteve. Mas, no fim
das contas, tentei encarar com naturalidade. Suspirei, colocando um dos
braços por sua cintura, enquanto ela descansava com a cabeça no meu
ombro.
Certo, ela ainda estava se sentindo apavorada.
Era só isso, Zara.
E, tentando mentalizar isso, começamos a caminhar.
Girei o pescoço, buscando por Alexa. Eu precisava avisá-la que ia
sair. Não era nenhum pouco saudável para a sua recuperação emocional e
mental, se Agatha continuasse naquele ambiente. Vi Westphalen a alguns
metros de distância. Com cenho franzido, enquanto olhava na direção da
tela de um notebook, ao lado de dois policiais, parecia estar analisando algo
importante.
— Alexa...! — Tentei chamar sua atenção. E não demorou muito em
virar o rosto para mim, ao ouvir minha voz. — Vou levar a garota embora.
É melhor que ela saia daqui. Ainda está abalada. Mas, me avise sobre as
novidades. E, se precisar de algo, pode me ligar.
A morena ainda nos encarou de cima a baixo, visualizando a exata
maneira como a loira estava abraçada a mim e o justo ponto onde o meu
braço a envolvia pela cintura. Porém, nada falou. Apenas acenou um breve
sim com a cabeça, para mim, e voltou aos trabalhos com os demais
policiais.

✽✽✽

Vulnerável... Essa era mesmo a palavra.


Era assim como Agatha Ballard parecia estar.
E, bem, era humanamente impossível eu não me importar com isso.
Qualquer pessoa que tivesse o mínimo de empatia, se importaria. Lógico
que ela ficaria abatida com a surpresa totalmente desagradável e sem nexo
que lhe aconteceu. Até onde tinha relatado, aos demais policiais, durante o
seu breve depoimento, era a primeira vez que passava por algo assim.
Então, nada menos esperado que, a garotinha do nariz empinado, enfim,
baixasse a guarda.
Em meio a passos um tanto trôpegos, a ajudei a caminhar, ainda
naquela mesma posição, com a mão sobre a sua cintura e a sua cabeça
recostada ao meu ombro, até o estacionamento, onde o meu carro estava.
Com cuidado, abri a porta para ela e, como uma frágil criança, coloquei o
cinto de segurança ao seu redor, enquanto permanecia praticamente imóvel.
Aparentemente, imersa em uma gama de pensamentos.
Fechei a porta e, dando a volta no carro, me sentei ao seu lado, no
banco do motorista. Antes de dar partida, porém, a encarei. A loira, que
quase não se mexia, enfim, também voltou os olhos para mim. Ainda tão
expressivos. Apenas a claridade dos postes de luz era capaz de iluminar e
deixar aquelas pedras preciosas azuis, em formato de íris, mais brilhantes.
O silêncio nos abraçou por mais alguns instantes, até que eu perguntei:
— Como está se sentindo?
Ao menos, agora, pelo que eu pude perceber, o caminho da saída e o
vento fresco e frio da noite a fizeram se acalmar, de certa forma. O corpo já
não tremia tanto quanto antes, embora o rosto permanecesse meio
assustado.
— Coração ainda acelerado, mas me sinto um pouco melhor.
Já era um avanço, afinal.
— A respiração está voltando ao normal, não está?
Ela balançou brevemente a cabeça, em uma afirmação.
— Aos poucos, mas sim, está. Obrigada.
Suspirei, mais aliviada.
— Ótimo. Então, vou deixá-la em casa — disse eu, já colocando
meu cinto de segurança.
— Não... — De pronto, no entanto, ela sibilou.
Virei o rosto novamente, para encará-la. O temor voltou a estampar
os seus olhos de maneira mais contundente. Franzi o cenho de leve, sem
entender o que estava acontecendo desta vez.
— Como disse? — perguntei.
A loira meneou a cabeça em negativo, e, então, encarou suas mãos,
passando os dedos uns por cima dos outros, meio sem jeito, até erguer o
rosto novamente para mim e falar com a voz um tanto embargada:
— Não, por favor — Suas íris cintilaram de leve. — Não me leve
para casa. Eu... E-Eu... — puxou o ar, inquieta. — Quero a sua companhia
esta noite. Pelo menos, essa noite. Só hoje. Por favor.
E “surpresa” não era, nem de longe, uma palavra que conseguiria
me descrever. Eu estava muito mais que surpresa. Nunca imaginei que um
dia fosse ouvir isso saindo da sua boca. Mesmo que soasse como
insegurança, vontade de se sentir protegida, e certeza de que ela se sentia
segura comigo, ainda parecia haver algo a mais, assim como também
pareceu quando ela me disse aquele “muito obrigada”.
— Mas, Agatha... — Ainda tentei falar.
Ainda tentei ser racional.
Porém...
— Eu peço. Não me leve para outro lugar que você não esteja. Fique
comigo, Zara. Por favor.
Se eu te pedir uma coisa, você
promete que não vai achar muito
estranho?

Zara

Não era exatamente com Agatha que eu me imaginei terminando aquela


noite.
Quero dizer... No fundo, lá bem dentro de mim, nas gavetas mais
profundas e escondidas dos desejos inconscientes do meu coração, talvez,
só talvez, eu já tivesse me imaginado em um universo paralelo, onde o fim
daquela ou de qualquer outra noite fosse na companhia da senhorita
Ballard.
Ainda assim, racionalmente, o que eu esperava era que Westphalen
estivesse ali comigo, dentro do carro, indo para o meu apartamento ou para
algum outro local da cidade. Não que essa fosse de fato a minha vontade,
mas, se Alexa me chamou para sair, eu podia presumir a forma como ela
tinha pensado que aquela madrugada continuaria.
Só que não.
Aconteceu tudo aquilo que não poderia nem passar pela minha
cabeça. E quem estava comigo era a loira que, ultimamente, atormentava
todos os meus pensamentos.
Eu juro... Eu juro que passei o caminho inteiro perguntando a mim
mesma, em silêncio, que diabos eu estava fazendo da minha vida. A razão
por eu ter decidido levá-la para o meu apartamento e o motivo para eu não
saber dizer “não” a ela. Talvez eu só não tivesse conseguido resistir aos seus
olhos, ainda tão assustados, e ao seu semblante, inquieto até demais,
pedindo “por favor” para que eu a fizesse companhia.
Um pedido que poderia ser simples.
Mas que, para mim, não era.
E, ainda assim, eu aceitei.
Sim, eu era idiota.
No fim das contas, eu sabia que estava, muito provavelmente,
ultrapassando um limite perigoso. O limite do profissional para o pessoal.
Sim, profissionalmente falando, eu já tinha feito, por ela, tudo o que deveria
fazer. A libertei dos caras que queriam levá-la e a deixaria em casa, na
segurança de uma policial. Mas, levá-la ao meu apartamento e fazê-la
adentrar, de alguma forma, na intimidade da minha vida, já me parecia
pessoal até demais.
E, mesmo que toda a minha racionalidade gritasse para eu evitar, o
meu coração não me permitiu que eu fizesse outra coisa a não ser conceder
o seu desejo de passar a noite na minha companhia. Eu só precisava tomar
cuidado para não permitir que as tais vontades irracionais, que habitavam
uma das partes mais escondidas do meu inconsciente, me fizessem agir, no
mundo real, de algum modo que eu pudesse me arrepender minutos depois.
Em silêncio, nós percorremos as ruas e avenidas de Las Vegas, até
chegarmos ao local onde eu morava. Ainda percebi Agatha, vez por outra,
me observando pelo cantinho dos olhos. Algo me dizia que, embora
estivesse calada, sua cabeça trabalhava ativamente em algo a meu respeito.
No fundo, preferi não perguntar sobre o que era. Na verdade, enquanto eu
dirigia só conseguir traçar, mentalmente, rotas e planos de como agir da
maneira mais coerente, quando estivéssemos sozinhas, dentro do meu
apartamento.
Pelo menos, ela parecia estar melhor, assim como tinha me dito,
antes de sairmos do estacionamento do pub. Entre os muitos pensamentos
que só podiam estar rondando a sua cabeça, talvez isso, de algum modo,
estivesse a entretendo.
Assim que saímos do carro, indiquei com a cabeça para que ela me
acompanhasse. O silêncio continuou nos abraçando, da mesma maneira
como o prédio inteiro estava quieto. Talvez fosse por volta das duas horas
da manhã. Subimos alguns lances de escadas, ali não tinha elevador, e,
enfim, chegamos ao meu andar. Ainda olhei para a porta do apartamento de
Ava e Madison. Estava fechada. Sem dúvidas, elas estavam dormindo, e
Nick também. Eu tinha pedido a gentileza de que ficassem com ele naquela
noite, já que eu não sabia o horário que eu voltaria.
No fundo, se não fosse pelo fato de eu ter salvado a pele da Agatha,
eu preferiria ter ficado com Nick, assistindo desenhos animados, debaixo
das cobertas, até dormirmos.
Suspirei, tirando a chave do meu bolso.
Certamente, ali não devia ter cinco por cento do luxo da mansão
onde a garota morava, mas isso em nada me envergonhava. Muito pelo
contrário. Eu me sentia muito orgulhosa de tudo o que consegui conquistar
com o esforço do meu próprio trabalho. Mesmo assim, ainda notei um
estúpido nervosismo, quando abri a porta do apartamento para ela. Não pela
simplicidade de tudo, mas unicamente pelo fato de que estava acontecendo
algo que nunca imaginei: ver Agatha dentro da minha casa.
Tentei segurar as pontas, apesar de tudo, e acenei para que ela
entrasse. Devagarzinho, caminhou para dentro. No fundo, eu também sentia
certa tensão exalar do seu corpo, por estar ali. Ainda olhou brevemente para
alguns pontos da sala de estar, mas não demorou muito nisso. Era como se
estivesse envergonhada por reparar demais. Virou, então, o rosto para mim,
esperando que eu dissesse, sei lá, que ela podia se sentar ou mesmo respirar.
Agatha Ballard, a inabalável milionária e herdeira de dezenas de
hotéis, estava acanhada. Quase inacreditável. Tão inacreditável quanto tê-la
ali, na minha frente, no meio do meu apartamento, iluminando tudo ao seu
redor e deixando o lugar muito mais bonito, a despeito do susto que levou
minutos atrás, do seu rosto ainda marcado pelos resquícios de medo e da
maquiagem toda borrada.
— Bom... — Enfim, abri a minha boca. — Você pode ficar à
vontade, tá? Fique tranquila. Está tudo bem — Ou, pelo menos, eu queria
acreditar que estava. Quanto à sua segurança realmente estava tudo bem,
mas, quanto ao rebuliço dentro de mim, não. — Acho melhor você tomar
um banho, não é? — franzi o cenho, um pouco incerta sobre como ela
pretendia ficar. — Pode vim... — acenei com a cabeça. — Vou te mostrar o
banheiro.
E, assim, tornamos a caminhar por ali. Agatha um pouco atrás de
mim, o tempo todo. Mesmo assim, eu ainda podia notar aquela breve
inquietude de quem não sabia direito para onde olhar, o que olhar ou como
olhar. Por um segundo, um breve sorrisinho quis escapar dos meus lábios,
pelo simples fato de que era a primeira vez que eu via a garotinha do nariz
empinado daquele jeito. Mas, me contive.
Me contive porque não era justo, levando em consideração que, em
cinco segundos, era eu quem ia ficar sem jeito. Abri a porta do meu quarto e
dei passagem para ela. Esse era o motivo: Agatha no meu quarto,
ultrapassando definitivamente o limite entre o profissional e o pessoal. Meu
medo era que ela jamais pudesse voltar ao nível anterior daquele limite.
Suspirei. Apesar dos pesares, não haveria outro lugar melhor no meu
apartamento para ela ficar.
Mesmo que houvesse dois banheiros, um no meu quarto e outro
social, só existiam dois quartos. O meu e o do Nick. E estava totalmente
fora de questão eu deixá-la dormindo no sofá. Seria eu a ficar na sala, não
ela.
Girei sobre os calcanhares e a fitei de novo. Bochechas coradas de
vergonha, embora ela tentasse disfarçar. E, bem, ela conseguia ficar ainda
mais bonita assim. Droga. Quis estalar a língua no céu da boca. Não era
para eu ficar reparando ou pensando nesse tipo de coisa justo quando a
garota, que me atormentava ultimamente, estava exatamente dentro do meu
quarto.
Tentei focar no que era preciso fazer.
— Pode usar o meu banheiro, tudo bem? É nesta porta — apontei.
— Vou tirar uma roupa limpa aqui pra você — E segui na direção do meu
guarda-roupa. Talvez enquanto eu estivesse fazendo algo, eu pudesse me
distrair. Pelo menos, era com isso que eu queria me iludir. — Tem esse
blusão grande... Acha que serve?
A encarei de cima a baixo, por alguns instantes, analisando se
realmente ficaria bom nela. Era a minha roupa mais larga e comprida. Em
geral, eu usava para dormir. Provavelmente, ficaria como um vestido nela.
Pelo menos, em mim, ficava. E, considerando que nós tínhamos a mesma
altura... É... Apesar das suas pernas longas e bonitas, ficaria... Bem...
Refleti, enquanto observava seu par de coxas quase sonhando acordada,
quando, enfim, senti um estalo repentino na minha cabeça.
Ai, Zara, não começa não, heim? Não começa não!
Pigarreei a garganta, tentando retomar àquela merda de compostura
que já tinha perdido fazia tempo. Só vi quando ela engoliu seco, acenando
um breve sim com a cabeça. Havia um clima de tensão por ali. E não era
por causa do atentado que ela sofreu, mas por alguma coisa entre nós.
— Pode ir... — acenei para o banheiro, com a cabeça.
Pode ir e deixar o meu juízo em paz por alguns segundos.
Pensei, mas não disse. Claro.
Em silêncio, ela se virou, seguindo para o banho. Foi então que eu
me lembrei de algo que poderia ser importante.
— Senhorita Ballard... — A chamei. Foi o suficiente para ela se
virar de volta para mim. — Eu estava aqui pensando e... Acho que é bom
você comer antes de dormir. Posso preparar algo. Não vai ser nada luxuoso,
mas... Você quer?
Um breve sorrisinho surgiu nos cantinhos da sua boca, pela primeira
vez desde que o caos aconteceu. Isso era bom. Muito bom. Fazia eu sentir
mais alívio por ela realmente estar melhorando e, ao mesmo tempo, menos
tensão com aquele clima esquisito que pairava sobre o ar entre nós.
Agatha indicou um breve e rápido sim com a cabeça, respondendo
baixinho:
— Aceito.
— Ok.
E eu já ia me virando para ir à cozinha, quando...
— Zara... — A ouvi falar o meu nome.
— Sim? — Erguendo brevemente as sobrancelhas, perguntei.
— O Nick... Onde ele está?
Nick...?
Dessa vez, foi um pequeno e quase imperceptível sorrisinho, de
surpresa e admiração, que quis estampar os meus lábios. Eu não soube
explicar o motivo. Mas, senti o meu peito se aquecer somente pelo fato dela
ter mencionado o meu filho. Dela ter se lembrado dele. O encontro deles
foi tão ligeiro. Não fazia ideia que ela tinha guardado na memória.
Isso também era bom...
— Ele está aqui na frente. Está com as vizinhas. Elas são minhas
melhores amigas. Pedi para que ficassem com ele essa noite, porque eu ia
sair e... — Travei um pouco, ao perceber que estava falando mais do que
deveria. — Você sabe né... — Um ínfimo sorrisinho sem jeito escapou.
Já era demais... Agatha já estava entrando muito na minha vida.
Eu nem sabia porque tinha entrado em tantos detalhes. Não era
necessário. Aliás, bastava eu dizer que estava sob o cuidado de amigas.
Nossa, eu não tinha jeito mesmo... Sempre fazendo mais do que
deveria.
— Ah... Entendi.
Porém, por mais que ela tentasse disfarçar, eu vi no seu semblante e
no seu breve desviar de olhos, que, no fundo, aquele seu “Ah... Entendi”
poderia ser traduzido como “Ah... Entendi que ele ficou com as suas
amigas, porque você ia passar a noite com a Alexa...”
Pigareei a garganta, meio sem jeito por me lembrar do momento em
que nós praticamente nos pegamos no flagra lá naquele banheiro do pub.
— Bom, vou lá.
Deixando o blusão em cima da cama, enquanto ela entrava no
banheiro, saí do quarto tão ligeiro quanto o próprio bombardeio de
pensamentos na minha cabeça. Eu até tentava me desligar de tudo e,
principalmente, do fato de que, agora, ela não estava somente no meu
apartamento e no meu quarto, mas também no meu banheiro. Era como se,
gradativamente, estivesse se apoderando da minha vida e... De mim.
E o motivo da minha preocupação não era outro, senão a certeza de
que todas aquelas coisas que aconteceram no passado pareciam, de fato,
estar se repetindo agora. Como looping infinito, uma maldição inquebrável,
ou como se o universo estivesse trazendo um erro antigo de volta só para
ver se eu aprendi mesmo a lição.
E o spoiler era esse: talvez eu não tivesse aprendido da maneira
como acreditava.
Tudo se repetindo. Tudo, tudo. Ou, pelo menos, quase tudo. Agora,
era outra garota.
Droga, droga, droga.
Suspirei, tirando todos os ingredientes da geladeira, para fazer, sei
lá, um sanduíche natural com suco para ela.
Segura as pontas, Zara. Segura as pontas.
Ela é só uma garota.
Nada demais.
Você já é uma mulher adulta.
Pare de agir como se fosse uma imbecil.
É você quem tem que estar no comando de tudo, do seu corpo, dos
seus pensamentos e, principalmente, dos seus desejos.
Apenas aja naturalmente. Entregue a porra do lanche, saia do
quarto e durma no sofá da sala até o momento de deixá-la em casa.
Foi exatamente isso o que eu tentei mentalizar por vinte minutos,
enquanto preparava um sanduíche natural com suco para ela, e, depois,
tomava um banho no outro banheiro do apartamento.
Porém...
Quando terminei tudo, inclusive de me vestir com uma roupa limpa,
e cheguei ao meu quarto com a bandeja do lanche em mãos...
Agatha estava relaxadamente deitada na minha cama, enquanto,
entretida, mexia em alguma coisa no seu celular. De barriga para baixo,
talvez de maneira despercebida, ela deixou a polpa da sua bunda
aparecendo debaixo do blusão.
Caralho. Isso só podia ser um teste.
A visão daquilo me deixou meio perturbada.
Respirei fundo.
Short. Ela precisava de um short. Só aquele blusão não iria servir.
Deixando a bandeja em cima da cama, segui direto para o guarda-
roupa, vasculhando por ali algo que pudesse cobrir a maçã do pecado.
Enfim, voltei com um short em mãos, erguendo-o para ela e puxando o ar
um pouco inquieta, quase sem olhar nos seus olhos.
— Vista isso aqui, por favor.
E, apesar do “por favor”, aquilo era uma ordem.
Ainda pude perceber quando a loira me ofereceu um semblante
meio confuso.
— Por quê?
— Porque sim.
Foi tudo o que eu respondi.
Agatha franziu o cenho de leve, porém, milagrosamente, sem
contestar, fez o que eu disse e colocou a roupa. Me virei um pouco, porque
a garota, sem qualquer cerimônia, subiu o blusão ali mesmo, para vestir o
short. Aparentemente, ela tinha vergonha de outras coisas, mas não de ficar
seminua na minha frente. Pelo menos, agora estava coberta. O que me
deixava um pouco mais à vontade para olhá-la sem me imaginar, em um
universo paralelo, tirando toda a sua roupa.
Suspirei.
— Olha, aqui está o lanche que eu preparei... Como eu disse, você
pode ficar à vontade por aqui. E, quando for dormir, também pode apagar as
luzes. Enfim, se precisar de alguma coisa, é só me chamar. Tenha uma boa
noite, senhorita Ballard.
Despejei todas as informações de maneira clara e rápida, para que
não houvesse dúvidas. Porém, eu já ia me virando para sair dali, quando...
— Ei...
Ela me chamou.
— Hum?
— Você vai pra onde? — enrugou a testa.
— Vou ficar na sala.
— Não vai dormir aqui? — O vinco no seu cenho se tornou maior.
Claro que não.
— É melhor que eu durma no sofá. Assim você pode ficar mais à
vontade.
E eu também.
Pensei em completar, mas não disse.
— Eu queria que você dormisse aqui.
Queria?
Mais uma vez, a garota me pegou completamente de surpresa.
Ainda pensei em questionar o motivo desse seu “desejo”, mas,
honestamente, não quis me delongar no assunto. Eu poderia receber uma
resposta que me deixasse ainda mais atormentada por ela.
— Agatha... — Ainda tentei dizer, ou melhor, negar.
— Pode dormir aqui. Sério. — Ela, no entanto, me interrompeu. —
A cama é sua. E é espaçosa também. Cabe nós duas aqui, sem qualquer
problema.
Sem qualquer problema?
— Agatha... — tentei novamente.
— Por favor... — E, mais uma vez, ela me impediu de continuar.
Droga.
Passei as mãos no rosto, meio inquieta. Não exatamente com a
situação em si, mas comigo mesma. Comigo mesma, porque eu sabia o que
eu iria fazer. Na verdade, o que eu já estava fazendo. Eu iria ceder, assim
como acontecia justamente agora que, em meio a um suspiro de pesar e de
frustração diante da minha puta fraqueza, eu caminhei até o lado vazio da
cama e, estupidamente, me deitei sem dizer mais nada.
Cacete... O que eu estava fazendo da minha vida?
Em uma única noite eu tinha feito absolutamente tudo o que uma
policial não deveria fazer com uma pessoa que cumpria pena sob a sua
supervisão, estando ou não interessada por essa pessoa. E pior ainda se
estivesse, como era o meu caso.
Inferno.
A garota sabia mesmo como convencer e me deixar mais burra do
que eu já era.
Agatha lanchou em silêncio, enquanto eu permanecia deitada,
olhando para o teto e chegando à péssima conclusão de que eu estava
perdendo o controle de tudo, quando isso não deveria acontecer de maneira
alguma. Eu só fazia merda e ela era extremamente persuasiva.
Essa era a verdade.
Entre milhares de pensamentos silenciosos, entretanto, ela, de
repente, ainda sentada, falou, ao terminar de comer e colocar a bandeja em
cima do móvel ao lado da cama:
— Eu queria te agradecer mais uma vez.
E se deitou.
Ainda era inacreditável, para mim, que nós pudéssemos estar
deitadas juntas, na mesma cama. No caso, a minha cama, o que parecia
tornar tudo pior e a minha absurda falha profissional maior.
— Não há de quê.
Tentei ser sucinta, mas ela, virando o rosto para mim, continuou.
— Eu fiquei apavorada. Foi a primeira vez que aconteceu algo
assim comigo. Até agora, eu não sei o que eles queriam com aquilo.
Me dei a liberdade de observá-la também.
— Vamos descobrir. A polícia está investigando. Agora, meu
conselho é que durma e descanse, para acordar totalmente recuperada.
Ela sorriu de leve. Cada sorriso verdadeiro seu, aquecia o meu peito,
depois daquele susto no pub. E, bem, os seus olhos estavam cintilando mais
uma vez, assim como eu vi quando ainda estávamos dentro do carro. Tão
malditamente lindos.
— Muito obrigada... Boa noite, Zara.
Zara...
Era bonita a forma como ela pronunciava o meu nome.
Talvez eu nunca me acostumasse com isso.
— Boa noite, Agatha.
E, enfim, desliguei o abajur. Agora, a parca iluminação que
tínhamos era da luz dos postes da rua, que atravessava a janela.
Vi quando ela se virou para o outro lado, enquanto eu permanecia
deitada de barriga para cima. O silêncio nos abraçou novamente. Respirei
fundo, tentando me concentrar para dormir. E muitos minutos
transcorreram. Minutos que pareceram infinitos, sem que eu conseguisse
relaxar completamente para dormir. Talvez aquela tensão, que ainda pairava
sobre nós, estivesse forte demais. Algo me dizia que, mesmo que ela
estivesse deitada para o meu lado oposto, também não tinha pregado os
olhos ainda.
Quem sabe... Talvez... Só talvez... Ela estivesse sentindo o mesmo
que eu.
Droga.
Era como se a minha cabeça estivesse trabalhando, o tempo todo,
com o fato de que Agatha Ballard estava deitada comigo, na minha cama,
vestindo uma roupa minha e deixando o cheiro natural do seu corpo ali.
Aquilo era demais para mim. E eu estava sendo absurdamente estúpida. Eu
sabia que era e estava. Mas também não conseguia deixar de ser. Não
enquanto ela continuasse me afetando daquela maneira.
Foi aí que, depois de minutos tentando relaxar e dormir, quando eu,
irritada, pensei em me levantar da cama e ir para o sofá, na ilusão de que
essa atitude pudesse resolver alguma coisa, ela, ainda virada para o outro
lado, falou baixinho:
— Se eu te pedir uma coisa, você promete que não vai achar muito
estranho?
E somente essa breve pergunta fez cada centímetro da minha pele
entrar em puro estado de alerta. Eu deveria me preparar para qualquer coisa.
Suspirei.
— Diga, senhorita Ballard.
Ainda tentei estabelecer alguma impessoalidade com aquele
pronome de tratamento, muito embora eu soubesse que isso fosse
absolutamente em vão. Já tinham muitas coisas pessoais envolvidas. Coisas
que eu sequer poderia imaginar, há duas semanas, quando a prendi na noite
do acidente.
— Você pode me abraçar?
Hum?
Inconscientemente, a minha respiração se prendeu por alguns
instantes.
— Abraçar?
Franzi o cenho.
— Sim... — disse ela, ainda virada.
Porra... A garota sabia mesmo me pegar com as calças abaixadas.
Talvez fosse melhor dizer que não, que não tínhamos intimidade
para isso. Talvez o correto fosse eu me levantar e ir para o sofá, mesmo que
ela achasse estranho. Talvez... Muitos “talvez” pipocando na minha cabeça,
a cada segundo. E eu ainda tentei lutar comigo mesma por alguns minutos
que pareciam eternos.
Porém, tudo o que eu pensava e todas as soluções que eu
encontrava, só seriam capazes de tornar ainda mais evidente, para ela, o
quanto a sua presença me afetava, o quanto a minha cabeça estava virada
por ela e o quanto já existia tanto dela dentro de mim.
Isso me parecia muito pior.
Eu não queria que ela percebesse, não queria que ela soubesse, nem
que aquilo fosse evidente o bastante para ela. Na verdade, meu maior desejo
racional era deixar tudo entre nós à sombra da naturalidade, como uma
mulher qualquer que, com sua empatia, acolhia outra em um momento
difícil. Só isso. Apenas isso.
Era assim que eu queria me sentir diante dela, muito embora eu
soubesse que, dentro da minha cabeça e do meu estúpido coração, a coisa
era bem diferente. Porém, entre deixar na cara que acontecia algo muito
doido comigo, por ela, ou fingir que estava tudo bem; eu ainda escolhi
aquela opção que, em tese, era mais imatura: fingir que estava tudo bem.
Foi aí que, mesmo em meio a uma série de sussurros do meu
subconsciente dizendo “está acontecendo tudo de novo... tudo de novo,
tudo de novo, tudo novo”, eu, incapaz de me impedir, escorreguei devagar
pela cama, envolvendo-a com um dos meus braços pela sua cintura. Ainda
assim, tentei manter alguma distância minimamente segura, mesmo que, no
fundo, eu soubesse que isso era pura estupidez, uma vez que eu já estava no
meio do fogo cruzado.
Percebi, porém, quando ela suspirou e se aconchegou ainda em
mim, encaixando-se ao meu ao peito e quebrando totalmente a pouca
distância que eu tinha estabelecido. Travei por alguns segundos. Eu nunca
tinha a sentido dessa maneira. Agatha nunca esteve tão perto de mim quanto
agora. E, honestamente, ter o seu corpo grudado no meu, daquele jeitinho, e
perceber a sua pele tão macia e cheirosa encostando na minha era gatilho
suficiente para a minha cabeça pirar muito mais.
Nem de longe, aquilo estava se desenrolando da maneira como eu
utopicamente imaginei.
Nem de longe, eu era apenas uma mulher, com empatia, que acolhia
outra.
Eu era uma mulher que desejava outra.
Para piorar e me deixar com ainda menos noção de tudo o que
estava acontecendo, Agatha começou a roçar os seus pés nos meus. Bem
leve. No entanto, apesar dos movimentos cadenciados, meu coração
acelerava e um calorzinho miserável subia pelo meu corpo. A noite de Las
Vegas parecia quente, mesmo que, no período noturno de um deserto,
fizesse frio. E, bem, nós estávamos no meio de um deserto. Como se não
bastasse, aos poucos, começou a se virar, ficando de frente para mim, e tão,
mas tão perto, que a sua respiração se espalhava sobre o meu rosto.
Cacete.
— O que você está fazendo, Agatha? — Ainda sussurrei.
Em silêncio, ela encarou o fundo dos meus olhos por alguns
segundos. E eu poderia jurar que milhares de coisas estavam se passavam
pela sua cabeça. Afinal, os meus pensamentos também eram um turbilhão.
A loira, porém, não me respondeu com palavras, apenas aproximou, ainda
mais, o seu rosto do meu e, simplesmente, me beijou.
Como você prefere ser chamada,
então? De gostosa?

Zara

Por um segundo, ou melhor, por um milésimo de segundo, a minha


consciência ainda quis bater. A minha racionalidade ainda tentou gritar nos
meus ouvidos para que eu a impedisse de continuar. Mas... Sentir a sua boca
sugando os meus lábios e pedindo passagem para a língua entrar, assim
como perceber a sua mão se encaixando no meu pescoço e me puxando
para mais perto dela, foi o suficiente para me desmontar inteira e para que
eu perdesse completamente a noção do que era certo ou errado. Pior: do que
era pessoal ou profissional.
Apenas aprofundei o beijo, ou melhor, a minha carta de demissão à
polícia de Las Vegas, e permiti que a sua língua lambesse a minha e que eu
também chupasse a sua. Tão gostoso. Tão fodidamente gostoso. Sem pensar
em muitas coisas, além do fato de que Agatha era não somente uma delícia,
mas a total perdição da minha vida, instintivamente colei muito mais o meu
corpo ao seu. Notei que, por baixo do blusão, não usava sutiã. A minha
morte. Seus peitos roçaram nos meus, mesmo por cima do tecido. Percebi
seus mamilos durinhos. Salivei com vontade de colocá-los na minha boca.
Ela estava excitada, e isso, consequentemente, me deixou ainda mais úmida
do que eu já estava.
A minha boceta já parecia suplicar pela sua.
Só que aí...
Como se não bastasse tudo aquilo, Agatha montou em cima de mim,
colocando uma perna de cada lado. A sorte, ou o azar, era que ela tinha
vestido o bendito short. Se estivesse nua por baixo, ou só de calcinha, eu ia
ficar muito mais perturbada. Foi quando ela passou as mãos por debaixo da
minha blusa; tocando a minha barriga, apertando a minha pele, fazendo eu
jurar a Deus, em silêncio, que ainda ia pedir essa mulher em casamento, e
tentando levantar a minha roupa; que eu, enfim, acordei.
Porra.
Caralho.
Ligeiro, me afastei, tirando-a de cima e me sentando na cama. Com
a respiração absurdamente ofegante, o coração faltando pular pela minha
garganta, e o corpo todo suado de puro tesão, fechei os olhos e curvei o
pescoço, colocando a cabeça entre as minhas mãos.
— O que foi?
Ainda a ouvi perguntar.
Eu, no entanto, só conseguia sussurrar, para mim mesma:
— Tá acontecendo de novo, tá acontecendo de novo...
Um turbilhão de lembranças cruzava a minha mente, a cada
segundo.
— O que tá acontecendo de novo? — Com certo estranhamento no
seu tom de voz, ela questionou.
Contudo, eu não ia entrar em detalhes.
Apenas me levantei subitamente da cama, toda atrapalhada, em uma
mistura de consciência pesada e vontade absurda de comer sua boceta. Na
rapidez daquele movimento inquieto, entretanto, não percebi o cabideiro de
madeira, com algumas roupas, bem ali, quase atrás de mim. Esbarrei
exatamente nele, deixando tudo cair no chão. Tomei um puta susto, o que
fez o meu coração saltar ainda mais dentro do peito.
Encarei a loira de relance, por alguns segundos, e pude perceber,
apesar do cenho franzido de leve, um pequeno e nascente sorrisinho nos
cantinhos da sua boca, pelo meu jeito completamente desconcertado.
Sim, eu sabia que estava passando uma vergonha extraordinária.
— E-Eu... Eu... — pigarreei a garganta, tentando recuperar cinco
por cento daquela compostura que eu já tinha perdido antes mesmo de
chegarmos ao meu apartamento. — Vou pra sala. Vou dormir na sala. É
melhor.
Meio complacente, meio resignada, ela suspirou, me observando,
muito embora aquele pequeno sorrisinho permanecesse em seu rosto. Ela
entendia o meu ponto. Eu sabia que sim. Ela era uma garota esperta.
Porém, ainda assim...
— Zara... — Ela tentou me chamar, quando eu já estava quase
cruzando a porta do quarto.
Dessa vez, no entanto, eu não parei para escutá-la, assim como fiz
quando tentei sair depois de lhe entregar o lanche. Eu já tinha a escutado o
bastante, e ela já tinha me convencido de coisas demais. O suficiente para
que aquela merda acontecesse.
Segui direto para o sofá da sala, me repreendendo a cada segundo,
por tudo aquilo.
Caralho, Zara. Caralho. Será que você não aprende nunca? Será
que todo o problema com a Haven não foi o suficiente para que você
entendesse a lição e compreendesse que trabalho não se mistura com vida
pessoal, principalmente quando se é uma policial (mesmo que você já
tivesse ficado com a inspetora)? Com garotas em cumprimento de pena
supervisionada, o negócio era muito mais embaixo.
E é claro, lógico, óbvio, que a única vez que eu pisei na bola,
daquele jeito, foi com a Haven. Nem antes dela, e, muito menos, depois
dela, algo assim não tinha acontecido, principalmente porque, com o meu
enorme sentimento de culpa por não ter cuidado dela da maneira como
merecia e também por quase ter perdido o emprego, eu jurei, jurei mesmo,
que jamais me envolveria com outra garota daquela.
Honestamente, não foi nem um pouco difícil cumprir essa promessa.
Durante os últimos anos, eu estive completamente fechada para
envolvimentos amorosos. Mesmo com breves casos que aconteciam aqui ou
ali, como a minha relação com Alexa, por exemplo, nada passava de sexo
casual. Além do mais, na penitenciária, na delegacia, ou em qualquer outro
lugar que eu estivesse à trabalho, mesmo que eu não me esforçasse para
isso, naturalmente eu já olhava para toda e qualquer garota detenta com
total indiferença.
Ninguém me chamava realmente atenção.
Nem dentro ou fora do trabalho.
Isso até Agatha Maluca Ballard aparecer.
Porra...
Tantos anos depois, eu pensei que estava liberta disso e que jamais
passaria por uma situação semelhante novamente.
Bufei, inquieta, me deitando bruscamente no sofá, enquanto o meu
corpo faiscava em uma junção de tesão com frustração.
Você é idiota, Zara. Idiota.
E eu sabia que; se dentro do meu quarto, antes de tudo acontecer, eu
já estava com dificuldades para dormir; ali, naquela sala, a poucos metros
de onde eu sabia que ela estava, e depois de sentir a perfeição do seu beijo;
eu não conseguiria pregar os meus olhos mesmo.

Agatha

Dormir foi realmente uma tarefa difícil, depois de tudo o que


aconteceu.
No entanto, pela manhã, o primeiro pensamento que eu tive ao abrir
os olhos foi um só:
CARALHO, A GENTE SE BEIJOU!
Sim.
Xena. E. Eu. Nos. Beijamos.
AAAH!
Pois é, parecia uma grande e imensa estupidez esse tipo de coisa, eu
nem deveria dar tanta atenção para isso; Até porque, durante duas semanas,
eu pensei que fosse fim de carreira estar atraída por Xena Scott, por mais
gostosa que ela fosse. Porém, honestamente, a minha vontade não somente
agora, mas, desde que o beijo aconteceu era de, cacetada (!), sair correndo
que nem uma idiota, ou uma louca varrida, pelo meio do apartamento,
pulando, gritando e, ao final, montando em cima dela para terminar,
daquele jeitinho, o que começamos.
Claro que, antes, eu daria um soco no meio da sua fuça por ter me
deixado sozinha no quarto, mesmo que tivesse sido engraçado ela, toda
atrapalha, esbarrando e derrubando tudo do cabideiro. Mas, depois disso, se
estivéssemos vivendo em uma realidade paralela, eu, com certeza, sairia
correndo que nem uma idiota, ou uma louca varrida, pelo meio do
apartamento, pulando, gritando e, ao final, montando deliciosamente em
cima dela para terminar, daquele jeitinho, o que começamos.
Ah, que inferno de mulher!
Sabe Deus quanto tempo eu levei para dormir. Ainda cogitei a
possibilidade de tomar outro banho, com uma água bem gelada, para ver se
aqueles hormônios voltavam para o lugar. Sério. Abalada com aquela
merda, absolutamente sem noção, no pub, eu ainda estava. Isso era um fato.
Inclusive, eu ainda aguardava mais detalhes sobre a tal investigação da
polícia. Eu merecia respostas. Mas, apesar de tudo e daquele pesadelo,
talvez os lábios dela tivessem conseguido me distrair de alguma forma, a
ponto de eu esquecer, por algumas horas, que quase fui sequestrada por três
filhos da puta.
Eu não sabia explicar, ao certo, o que tinha acontecido comigo, mas,
depois de ter passado duas semanas praticamente fissurada por aquela
mulher, e de ter sido salva tantas vezes por elas, e de sentir o meu coração
imbecil bater mais forte a cada vez que ela se aproximava, e de estar no
quarto dela (deitada com ela!), uma coisa acabou levando a outra, e, quando
eu me dei conta, eu já estava beijando aquela boca ridiculamente
maravilhosa. Para completar, agora, eu estava como uma garotinha
sonhadora, só pensando nisso, nela, nos seus lábios gostosos, no seu corpo
absolutamente quente de tesão, na sua respiração ofegante, e,
principalmente, na minha absurda vontade de fazer tudo de novo.
Como se não bastasse, eu ainda continuava deitada na sua cama,
sentindo o seu cheiro e imaginando que ela pudesse estar ali comigo. Ah,
meu Deus, o meu caso era sério. Rolei de um lado para o outro do colchão,
várias, eu juro, várias vezes, feito boba, com um sorriso idiota, que não saía
por nada do meu rosto, enquanto achava incrível o fato de estar
considerando tão confortável uma cama que não era king size, e respirando
fundo, o máximo que eu conseguia, de todo o cheiro do seu perfume, para
que eu não esquecesse dele, de jeito nenhum, quando chegasse em casa, por
mais ridículo e piegas que isso fosse.
Em uma das roladas e cheiradas no colchão, entretanto, ouvi duas
batidinhas de leve na porta do quarto.
Puta que pariu.
Minha respiração, de súbito, deu uma travada.
Parei automaticamente toda aquela patifaria, que eu estava fazendo,
e, devagarzinho, fui virando o meu rosto, até dar de cara com ela. Era ela.
Exatamente ela. A Xena. Novamente, com uma bandeja de lanche nas
mãos. Porém, dessa vez, me encarou com uma das sobrancelhas erguidas,
como se perguntasse em silêncio “quê que tá acontecendo aqui?”. E, com
as bochechas queimando de vergonha, eu não pude fazer outra coisa, a não
ser lhe dar o meu melhor e maior sorrisinho amarelo de quem foi pega no
flagra.
Sendo que eu queria ter sido pega de outro jeito, por ela, naquela
manhã.
Mas, isso não vinha ao caso agora. Infelizmente.
— Está tudo bem? — perguntou.
Ai, a sua voz. A sua maldita voz!
Inferno! Era tão bonita!
Que caralho!
Ela bem que podia sussurrar alguma sacanagem no meu ouvido
com aquela voz...
Quero dizer... Ai, para com isso, Agatha!
Suspirei, no entanto, tentando não parecer que, por dentro, eu era
capaz de ter uma síncope apenas com o seu timbre.
— Sim, perfeitamente.
Foi tudo o que eu consegui falar.
A policial, por sua vez, ainda me fitando brevemente desconfiada,
deu alguns passos em minha direção e, colocando aquela bandeja repleta de
comidas, em cima da cama, falou:
— Trouxe o seu café da manhã. Pode comer à vontade e, se quiser,
também pode tomar um banho. Vista sua roupa, depois disso. Me avise
quando estiver pronta.
Séria, fria e comedida, foi tudo o que ela falou. Totalmente diferente
daquela mulher que, na noite anterior, tinha quase me engolido com a boca,
ali, em cima daquela cama. Por um segundo, eu senti falta daquela mulher e
quis que ela estivesse dentro daquele quarto, agora. Por um segundo, eu
quis me afetar com a sua frieza, mas, superei, empinando o nariz e tentando
blindar o meu coração idiota, ao replicar do jeitinho como Agatha
Respondona Ballard faria, quando Scott fez menção de se virar para sair:
— Você já quer me botar pra fora, é?
Erguendo uma das sobrancelhas, para mim, outra vez, ela voltou o
rosto em minha direção.
Argh, eu odiava a forma como, vez por outra, ela parecia ter um oco
profundo no lugar daquilo que diziam ser um coração. Principalmente
depois de ter me dado aquele beijão.
— Não, senhorita Ballard. Mas, o seu pedido de passar uma noite
aqui já foi concedido. Então, é hora de voltar para casa.
Ah, é?
— Na verdade, não — retruquei, de pronto, cruzando os braços. —
O meu pedido não foi concedido. Eu pedi para passar a noite na sua
companhia, e, até onde podemos notar... — Ironicamente, olhei ao redor. —
Dormi a noite inteirinha, nessa cama, sozinha.
Foi aí que eu a vi suspirar, passando a língua entre os lábios, como
se estivesse tentando segurar alguma coisa dentro da boca, até que, passou
uma das mãos no rosto e, enfim, disse:
— Senhorita Ballard, apenas faça o seu café da manhã e vista a sua
roupa. Estarei esperando aqui fora.
Senhorita Ballard pra cá, senhorita Ballard pra lá... E blábláblá!
Saco!
Eu odiava essas formalidades que ela tentava estabelecer comigo,
para não parecer que, na verdade, estava louca para me comer.
Ela já ia se virando novamente, quando eu...
— E agora está tentando me evitar? — questionei. — Nem parece
aquela mulher que, ontem à noite, estava secando a minha bunda debaixo
desse blusão, e, depois, quase engoliu a minha a cabeça com aquele beijo.
Sendo que eu tenho certeza que você também queria engolir outra coisa —
e ergui uma das sobrancelhas, quase desafiadora.
De automático, percebi que falar isso foi o suficiente para deixá-la
embasbacada, por mais que ela tentasse disfarçar. Por um segundo, ela
pareceu se esquecer de como se pronunciava palavras, ao mesmo tempo que
sua pele preta ficou um tantinho pálida. Quase sorri para mim mesma com o
meu feito. Sim, antes do nosso beijo, eu já estava notando os seus olhares,
enquanto eu usava aquele blusão. E, bem, aparentemente, eu estava
recuperando meus dotes de Agatha Descarada Ballard, aquela que falava
exatamente o que lhe dava na telha. Só que aí, puxando o ar, Scott disse:
— Olha só, eu não queria comentar sobre aquilo, mas, já que você
está tocando no assunto, eu peço que esqueça tudo o que aconteceu. Não
passou de um erro. E, por favor, não fale a respeito disso com outras
pessoas, principalmente na penitenciária. Não me leve a mal, não se ofenda.
Isso não é sobre você, ou sobre nós. É sobre mim.
Como assim ela não queria comentar? Como assim eu não deveria
me ofender? Como assim isso também não era sobre mim? Ela queria
enterrar tudo, a sete palmos do chão, e fingir que nada aconteceu?
— Então, vai agir como uma filha da puta? — retruquei. — Que
nem aqueles machos que pegam e depois fazem questão de esquecer até do
nome da garota?
Tudo bem que, algumas vezes, eu já tinha agido assim. Mas, eu não
precisava pensar nisso agora.
— Senhorita Ballard, eu ainda sou uma policial e você ainda
continua subordinada a mim, por determinação judicial, então sugiro que
não me chame por nomes de baixo calão.
— Como você prefere ser chamada, então? De gostosa? — sorri.
Foi aí que ela respirou fundo, como se estivesse tomando fôlego
para não perder totalmente a paciência comigo.
— Agatha... — Incisivamente me encarou, dando dois passos para
se aproximar um pouco e me fitar ainda mais séria. — Eu não quero
nenhum tipo de problema. Nenhum tipo de envolvimento. Então, esqueça o
que aconteceu. Aquilo foi uma falha que não deve ser repetida.
E simplesmente saiu dali, me dando as costas e, dessa vez, me
impedindo de falar qualquer outra coisa.

Zara

Não, eu não estava tentando evitá-la somente naquela manhã, mas


também em todos os outros dias, desde que a conheci e ela começou a
atormentar a minha cabeça. Certo que era difícil evitar a sua presença,
quando a própria justiça determinava que eu a supervisionasse, e também
quando a garota, além de tudo, atraía todas as confusões possíveis, para si, a
tal ponto de eu me sentir no dever de protegê-la e zelar pela sua segurança.
Agatha, no entanto, era sagaz. Não tinha medo de nada, falava tudo
o que eu bem entendia, e não preocupava nem um pouco com as
consequências das suas atitudes. Pelo que deu para perceber, ela não se
importava em deixar claro que gostou do nosso beijo, assim como também
não parecia ligar para o fato de que a maioria das atitudes que ela tomava
me afetava e despertava o meu interesse. Estava na cara o meu interesse,
por mais que eu tentasse disfarçar.
E, na real, ela se aproveitava disso. Se aproveitava da certeza de que
eu não era mais apenas a chata policial Scott que a supervisionava e a
obrigava a esfregar o chão. Agora, eu era a chata policial Scott que a
supervisionava, a obrigava a esfregar o chão, e, além de tudo, a beijava na
calada da noite, sobre os lençóis da minha cama, com a maior vontade de
continuar e ir até o fim. Agatha sabia disso. Eu sabia que ela sabia. As
cartas do meu interesse estavam sobre a mesa e eram notórias.
Era justamente com isso que eu precisava tomar cuidado.
A clareza dos meus desejos.
De verdade, por mais rude e grossa que eu tivesse sido no quarto,
quando falei que aquilo foi uma falha e que ela deveria esquecer do que
aconteceu, era uma das minhas formas de tomar cuidado e de zelar pelo
meu emprego que, além de ser a fonte do sustento do meu filho, ainda era
uma realização pessoal minha. Desde criança, eu sonhava em ser uma
policial. E eu tinha certeza absoluta de que, se a polícia de Las Vegas me
pegasse, pela segunda vez, tendo um envolvimento com uma das
supervisionadas que cumpriam pena, eles não me dariam uma segunda
chance de permanecer no trabalho. Tudo iria por água abaixo.
O meu pedido, no quarto, realmente não foi para ofendê-la. Na real,
aquilo não era sobre ela, ou sobre nós. Era única e exclusivamente sobre
mim, sobre o meu trabalho, sobre a minha carreira. Mas, Agatha pareceu
não entender, nem ter gostado da maneira como eu falei, porque, desde que
saímos do meu apartamento e entramos no meu carro, para deixá-la em
casa, seu semblante estava fechado. Não me direcionou a palavra nenhuma
vez, nem mesmo para soltar suas típicas ironias e sagacidades. A loira
estava séria, e tudo o que eu sentia era que ela não estava com a mínima
vontade de falar nada mesmo, muito embora a sua cabeça estivesse imersa
em um milhão de pensamentos.
Bem, por um momento, eu ainda pensei em contar para ela sobre o
que tinha acontecido comigo no passado, mas, no segundo seguinte,
retrocedi totalmente. Eu não precisava entrar em detalhes. Aquilo dizia
respeito somente a mim. Era a minha vida. E ela já tinha entrado demais no
meu âmbito pessoal, para que eu mesma a fizesse ultrapassar outros limites
que deveriam ser mantidos. Agatha não precisava saber daquilo, nem de
muitas outras coisas. Era hora de tentar estabelecer, novamente, uma
relação de apenas profissionalismo com ela.
E foi assim que eu me mantive até chegarmos próximo à sua casa.
Calada, em silêncio. Isso, porém, até que eu me lembrasse de algo
importante. Algo que eu não podia deixar de falar e que ia muito além das
minhas tentativas de evitá-la. Era necessário. O meu dever.
— Você ainda está de castigo? — perguntei. — Seu pai já devolveu
seus cartões e os carros?
A loira ainda levou alguns instantes para responder. Ela estava mais
arredia do que eu imaginava. Pensei até que não fosse me dizer nada.
Entretanto, quando achei que precisaria questionar novamente, ela replicou:
— Por quê quer saber?
Séria, ácida, fria. Talvez como um troco pelo jeito como falei com
ela, no meu quarto, naquela manhã.
— Porque, enquanto policial, tenho o dever de cuidar da segurança
dos cidadãos de Las Vegas. E você é uma cidadã de Las Vegas.
Pelo menos, era nisso que eu queria acreditar. Era essa a justificativa
que eu dava, a mim mesma, sempre que eu notava estar me preocupando,
com ela, mais do que deveria.
— Foda-se.
Agatha simplesmente deu de ombros.
Soltei o ar pelo nariz, balançando a cabeça de leve. Eu não ia entrar
naquela discussão, nem exigir que falasse direito. Eu tinha consciência de
que ela estava puta comigo, e até lhe dava razão. Além do mais, no fundo,
eu sabia que era melhor que ela nutrisse raiva por mim do que vontade de
fazer novamente o que fez ontem à noite.
Então, quando estacionei em frente à sua casa, apenas continuei:
— Bom, eu acredito que o seu pai ainda não tenha devolvido as suas
regalias, assim como também sei que, depois do que aconteceu no pub, não
é seguro que você saia de casa sozinha. Você é rica e está sendo visada por
criminosos, mesmo que ainda não saibamos a real motivação deles. Pode
ser por dinheiro, mas também por qualquer outra razão. Sendo assim, a
minha carona não vai ser só na volta na penitenciária, mas na ida também.
Passo aqui para lhe buscar amanhã de manhã. Esteja pronta às sete e meia.
Sim, eu sei que deveria manter distância e evitar qualquer
aproximação, mas...
Eu não ficaria, nem um pouco, com a consciência leve, sabendo que
deixei deliberadamente a garota andando por aí, sem qualquer amparo,
considerando o atentado ocorrido contra ela. Isso não combinava com o
meu caráter. Eu não seria capaz de ficar tranquila em colocá-la nessa
posição, por mero capricho meu e receio de cair na tentação de tomar a sua
boca com a minha de novo. Eu precisava agir como uma mulher madura e
cumprir os meus dois deveres: cuidar da sua segurança e tirar qualquer
pensamento impróprio, sobre ela, da minha cabeça.
Ao ouvir aquilo, porém, percebi o momento em que Agatha, pela
primeira vez desde que entramos no carro, virou o rosto para mim. Eu
poderia jurar que, por cinco segundos, ela ainda me encarou como se, de
alguma maneira, eu a tivesse desmontado com as minhas últimas palavras,
ou mesmo rachado, ao ponto de quase ruir, o muro que criou em volta de si.
Surpresa, ela continuou me fitando, mesmo que não quisesse aparentar isso.
Só que aí, quando eu achei que ela, enfim, fosse baixar a guarda, as
minhas expectativas foram por água abaixo. Outra vez, ela virou o rosto
para frente, desviando o olhar do meu, e, simplesmente, como a Agatha
Ballard que eu conhecia, empinou o nariz, convencida.
— Não quero. Não preciso disso. Enquanto eu faço o favor de
esquecer daquele beijo, você também pode fazer o favor de esquecer de
toda aquela merda no pub.
Foi tudo o que ela disse, segundos antes de sair do carro e bater a
porta, sem nem se despedir.
Eu queria aquela mulher pra mim

Agatha

Ora essa... Quem ela pensava que era para decidir certas coisas, sobre
mim, ao seu bel-prazer? Não que fosse realmente maravilhoso pegar ônibus
lotado, na companhia de velhos nojentos e caras otários, além de andar
vários quarteirões até a penitenciária; mas, se ela queria que eu me
esquecesse do que aconteceu entre nós, e, em outras palavras, ficasse longe
dela para não criar mais confusão e não beijar a sua boca de novo, me dar a
porra de uma carona, duas vezes ao dia, durante todos os dias úteis da
semana, não era bem a solução para que eu mantivesse distância.
Ela parecia uma louca. Primeiro, praticamente ordenava para que eu
me esquecesse do que fizemos e não pensasse nem em repetir aquilo, mas,
depois, me sugeria caronas, como se não soubesse que o simples fato de eu
estar no mesmo ambiente que ela, especialmente dentro da merda de um
carro, já não fosse uma provocação o bastante para que eu quisesse cair em
tentação outras vezes. Bufei, enquanto caminhava para dentro de casa.
Aliás, eu continuava puta pela maneira grossa como me tratou mais cedo.
Ela me enxotou do seu apartamento como se eu estivesse com algum tipo
de doença contagiosa.
O que ela achava?
Que eu fosse atacá-la de novo, naquele quarto?
Não era por falta de vontade, mas... É... Que-Quero dizer... Ah, qual
é? Isso era ridículo! Eu ainda tinha os meus princípios e jamais forçaria a
barra com quem quer fosse, por mais que pessoa estivesse caidinha por
mim, e, mesmo assim, dissesse que não.
Scott idiota. Eu não fazia ideia de um motivo plausível para as suas
preocupações. Ela vinha com aquele papinho miserável de que estava
cuidando da minha segurança porque era o seu dever como policial, mas eu
sabia, na verdade, eu tinha certeza absoluta de que não era só isso. O caso
mesmo era que ela, aparentemente, era daquele tipo: nem fode, nem sai de
cima. Um saco.
Apesar de eu ainda estar me cagando de medo de ser surpreendida
por caras, como aqueles, outra vez, quem tinha a obrigação de fazer alguma
coisa era o meu pai! Eu não estava disposta a aceitar as caronas da Zara-
Não-Fode-E-Não-Sai-De-Cima-Scott, enquanto eu tivesse um pai com o
poder de colocar uma frota de carros à minha disposição.
E, por mais incrível que isso pudesse parecer, eu realmente
esperava que, dessa vez, ele estivesse em casa.
Foi aí que, como se o universo estivesse, finalmente, conspirando ao
meu favor, a primeira pessoa que eu vi, ao passar pela porta e cruzar a
imensa sala de estar, não foi Evangeline ou qualquer outro empregado. Foi
o dito cujo, descendo a longa e enorme escadaria.
Perfeito.
E olha que eu não gostava, nem um pouco de encontrá-lo em casa,
mas, naquele dia, isso era realmente necessário. Eu precisava despejar nele
tudo o que tinha me acontecido, na noite anterior. Se ele tivesse o mínimo
de consciência, me devolveria, pelo menos, os carros e os motoristas. Não
que eu acreditasse que ele tivesse, de fato, consciência sobre qualquer coisa
que envolvesse a mim, ou se preocupasse genuinamente comigo, como um
pai deveria fazer. O cara era um completo filho da puta. Mas, não custava
muito ter alguma esperança sobre a humanidade.
— Pai! — exclamei, chamando sua atenção.
Ele, por sua vez, demorou cerca de três anos para virar o rosto em
minha direção. E, quando assim o fez, já parecia extremamente cansado da
minha presença. Fiquei ainda mais puta. O sangue subia para a minha
cabeça por ser tratada desse jeito, pelo meu próprio pai.
— Eu exijo, pelo menos, os carros e os motoristas, antes que você
decida acabar, de uma vez por todas, com esse castigo ridículo!
— E por que eu faria isso? — perguntou ele, com aquele semblante
blasé que eu tinha asco. — Aliás, bom dia para você também, querida —
Irônico, completou.
Bom dia? Bom dia pra quem?
— Ah, por que? — sorri, sarcástica. Em menos de dois segundos,
porém, o sorriso sumiu, dando lugar ao meu verdadeiro semblante sério e
enraivecido. — Porque eu quase fui sequestrada, em um pub, ontem à noite!
Apontaram uma arma para a minha cabeça e quase me arrastaram para fora
do prédio, se não fosse uma policial que estava lá e me salvou.
Meu rosto quase amoleceu com a lembrança dela me livrando
daqueles idiotas. Quase. Não foi o suficiente para melhorar o meu humor, já
que eu também me lembrava, muito bem, do quanto eu continuava irritada
com o seu papelão de mais cedo, me dizendo para esquecer tudo aquilo que
me fez ir ao céu, depois de ter experimentado o inferno por alguns minutos
naquele pub.
— Você o quê...?
Russell não exclamou, mas eu percebi certa alteração no seu tom de
voz. Se antes estava, em tese, relaxado, agora ele parecia realmente atento,
e isso era quase milagroso, se tratando do meu pai que não se importava
com absolutamente nada que acontecesse comigo.
— É isso mesmo o que você ouviu, querido papai. Sofri um
atentado em um pub, este final de semana. A polícia está investigando, mas
ainda não me passaram muitas informações. Continuo sem saber da razão
para terem feito isso.
Coçando a cabeça de leve e descendo a mão pela barba, ele
questionou de um jeitinho meio esquisito e pensativo, enquanto caminhava
por ali, no espaço da sala de estar:
— A polícia está investigando, é?
E, então, do nada, absolutamente do nada, antes mesmo que eu
pudesse raciocinar demais a respeito disso, uma pequena e quase
imperceptível luzinha se acendeu sobre a minha cabeça. Franzi o cenho,
enrijecendo a coluna com a hipótese que passeava pelo meu subconsciente.
— Você sabe de alguma coisa? — Me aproximando um pouco mais,
perguntei um tanto arisca.
Entre um andar meio inquieto e outro, no entanto, ele, enfim, parou,
puxou o ar e me encarou.
— Não, eu não sei de nada. Na verdade, a única coisa que eu sei é
que algo assim não vai acontecer de novo com você.
E ele parecia estranhamente certo e determinado a respeito disso.
— Não vai? — enruguei ainda mais a testa. — Como assim não vai?
Como você pode ter tanta certeza? — E despejei todas aquelas perguntas na
mesma velocidade que a minha cabeça tentava formular possibilidades
malucas e completamente confusas. — Olha aqui, pai, se você está sabendo
de alguma coisa que eu não sei, é melhor que me diga logo! Não me
esconda nada!
— Fique quieta, Agatha! — vociferou ele, claramente irritado com a
minha agonia. — Apenas escute o que eu estou dizendo. Não vai haver uma
segunda vez. Agora, me dê licença. Tenho coisas importantes para resolver
— E, pegando a sua pasta de couro, já foi dando a volta para sair de casa.
Coisas importantes para resolver?!
— Ei! — Empertigada, tentei chamar sua atenção outra vez. — E os
meus motoristas? O meu carro?! Será que isso também não é importante,
considerando o que eu acabei de dizer?!
Labaredas de fogo saíram dos seus olhos. Eu só não sabia se era
pela minha perturbação e insistência, ou se porque estava preocupado
demais em resolver suas pendências, enquanto eu continuava ali,
teoricamente, o atrapalhando.
— Seria importante, se eu mesmo não cortasse o mal pela raiz com
as minhas próprias mãos.
E, me dando as costas, simplesmente saiu.
Eu ainda fiquei um minuto encarando a porta da sala com uma cara
idiota de quem tinha recebido um enigma da porra da esfinge grega. Não
entendi que merda significava aquilo que ele tinha dito. Mas, também não
demorei muito a ferver de ódio, ali mesmo, pela milésima vez no dia. E
ainda eram apenas nove horas da manhã.
Argh, que ódio!
Filho da puta.
Realmente, não era uma tarefa simples incutir senso de
responsabilidade em um pai que passou a maior parte do tempo ausente.
Não bastasse a irritação que eu já estava sentindo da Xena Scott, com o seu
belíssimo café da manhã de palavras indigestíveis, ainda tinha também meu
pai, que possuía um total de zero cuidados com a própria filha.
A passos rápidos e largos subi as escadas, praticamente correndo em
direção ao meu quarto. Com um baque surdo, fechei a porta.
Sério, eu seria capaz de explodir a qualquer momento.
Respirei fundo.
Eu precisava me acalmar, apesar de tudo. Não seria nada bom para a
saúde da minha pele, ou para as minhas marcas de expressão, afinal. Eu era
tão jovem! Meu Deus, eu precisava colocar em dias os meus procedimentos
estéticos. O problema era que eu não tinha dinheiro para isso. Maldito
Russell Ballard! Minha massoterapeuta até tinha dito que eu estava com
pontos de tensão nas costas. Só que isso foi antes da penitenciária e de todo
o resto. Imagina agora! Uma catástrofe.
A real era que eu tinha mesmo que me acalmar.
Mas, como? Como eu ia me acalmar, se a minha deusa interior
estava dando saltos mortais rumo à piscina de magma do inferno?
Suspirei... Pensando, pensando, pensando.
Quem sabe conversar com alguém fizesse eu me distrair e... Ah,
claro! Claro, claro, claro! Como eu não tinha pensado nisso antes?
De pronto, peguei o telefone sem fio, no qual funcionava o sistema
interno da casa, e liguei para portaria, onde sempre ficava um dos
seguranças.
— Onde está Evangeline? — perguntei.
— Ela saiu para fazer compras no supermercado, senhorita. E
avisou que vai demorar.
Ai, que droga.
Estalei a língua no céu da boca.
— Tá bom. Valeu.
Desliguei, ainda inquieta.
Para quem eu ia recorrer agora?
Eu poderia ter milhares de contatinhos no celular e de amigos que
eram ótimos para festas, mas nem um deles parecia ser bom o bastante para
me tirar daquela fossa ridícula.
Pensei, pensei. Pensei mais um pouco.
E, então, como se uma luz divina recaísse sobre a minha cabeça, eu
tive uma ideia muito melhor. Sim, claro! Muitíssimo melhor! Melhor do que
ter alguém para conversar e me distrair, era ter alguém para transar e me
fazer liberar toda aquela péssima energia de tensão acumulada dentro de
mim. Eu que não passaria o restante do domingo inteiro daquele jeitinho
miserável. Me recusava a isso. Além do mais, aquela era uma boa
companhia. Não era apenas mais um dos meus contatinhos. Era a minha
melhor amiga.
Determinada, peguei meu celular e liguei.
Felizmente, não demorou a atender.
— Hey, Tessa... Você pode vir passar o dia aqui comigo? Estou em
casa.

✽✽✽

— Sabe o quê que é, Agatha? — A ruiva franziu o cenho de leve,


torcendo o nariz. — Esse filme tá uma merda.
Nós estávamos deitadas na minha cama, de frente para a Smartv de
setenta e cinco milhões de polegadas, assistindo uma porcaria qualquer,
depois dela ter chegado e, em menos de cinco minutos, dito “menina, que
loucura foi aquela no pub?”. Tessa estava comigo quando tudo aconteceu,
claro. Mas, os caras nem olharam para ela, ou para aquela garota
desconhecida que estava com a gente. Agiram como se elas fossem
invisíveis. Eles foram direto em mim, como se já tivessem planejado aquilo.
Claro que Tessa e a outra ficaram muito assustadas, mas o abalo maior, sem
dúvidas, foi o meu.
E era justamente por causa disso, do abalo e da tensão pelos quais
eu passei e estava parcialmente recuperada, que eu não queria comentar
sobre o pesadelo que aconteceu. Era melhor eu esquecer aquilo, pelo menos
enquanto eu podia. Tessa ainda quis papear e criar teorias sobre o que os
motivou, mas, honestamente, eu não estava com cabeça para isso. Já fui
logo cortando as suas asinhas e ligando a televisão. Afinal, foi o primeiro
objeto que eu vi pela frente, capaz de distraí-la, a ponto de não continuar
falando daquela porcaria.
Coloquei um filme, que, por sinal, já estava rodando a cerca de
quarenta minutos, e, mesmo assim, eu não entendia porra nenhuma do que
acontecia nele. Era confuso. Meio chato. Claro que o meu objetivo, em ter a
chamado para o meu quarto, não era exatamente a Netflix. Mas,
considerando o quanto eu estava agoniada para fazê-la calar a boca a
respeito do meu quase sequestro, a televisão, infelizmente, foi a solução
imediata. Apesar disso, eu ainda colocaria em prática a minha real intenção.
E, talvez, o melhor momento fosse agora.
— Eu também acho... Tá uma merda mesmo — concordei.
Na real, não era só o filme que estava uma merda. Meu dia estava
uma merda. Ou melhor, meu final de semana inteiro foi uma merda. E Xena
Scott ainda fez o favor de estragar, com suas palavras nem um pouco
agradáveis, a única coisa que prestou nas minhas últimas vinte e quatro
horas. Bufei, ainda me lembrando da sua voz ao dizer “esqueça tudo o que
aconteceu. Não passou de um erro. E, por favor, não fale a respeito disso
com outras pessoas”.
Idiota.
— Quer fazer outra coisa? — disse eu, já desligando a televisão com
o controle. — Tipo... Transar. Tá a fim?
Virando o rosto para mim, também deitada na minha cama, ela
sorriu.
— Eu tô.
Não existia uma única vez que Tessa me negasse isso.
E, a resposta que me deu, foi o suficiente para que eu avançasse na
direção da garota. Pelo menos, era um passatempo melhor do que o filme
bobo. E, bem, eu ainda queria acreditar que aquilo me faria relaxar e
recuperar um pouco da minha dignidade perdida naquele fim de semana
pavoroso.
Puxando sua nuca, para levar o seu rosto ao meu, beijei a sua boca,
sentindo seus lábios, sua língua, seu gosto. Tessa tinha gosto de
familiaridade. Depois de anos e anos de amizade, ela já conhecia
suficientemente bem o meu corpo e as minhas vontades, para saber me dar
prazer do jeito que eu gostava, e vice-versa. Da mesma forma, eu também
conhecia o seu e sabia a exata maneira como ela queria que eu fizesse.
Era por isso que o nosso sexo sempre dava certo.
Sempre.
Não havia uma única vez em que eu não ficasse molhada com Tessa,
em menos de um minuto de pegação, e, depois, absolutamente satisfeita
com o orgasmo.
Era sempre assim.
Sempre...
Exceto...
Naquele maldito dia.
Entre beijos, franzi o cenho quando percebi o meu incômodo com
aquilo e com o motivo dele. Mesmo que ela estivesse fazendo tudo do
jeitinho como eu gostava, algo não estava funcionando. Algo não estava
fazendo o efeito esperado em mim. Eu juro. Eu estava seca. E essa
sequidão não era no bom sentido, se houvesse realmente algum. A minha
boceta não soltava uma gota de lubrificação.
Inferno.
Tessa me beijava, chupava a minha língua, lambia o meu pescoço,
pegava em cada curva do meu corpo. Mas, nada, absolutamente nada, era
capaz de fazer os meus hormônios acordarem daquele ridículo sono
profundo. Nem mesmo ter a sua boca nos meus peitos me fazia reagir. Ela
levantou a minha blusa e sugou os meus mamilos naquele exato momento,
mas eu não senti nada além de uma miserável indiferença.
E, caralho, passar a língua nos meus mamilos sempre foi um ponto
absurdamente fraco, para mim. Eu sempre ficava encharcada com qualquer
atenção maior aos meus peitos.
Mas, não naquele dia.
Era claro que não.
Eu só podia ser muito iludida mesmo para achar que aquela maré
de azar, que, ultimamente, me afogava, não afetaria a minha vida sexual.
Parecia que, naquele dia, o meu corpo tinha entrado em um estado
de inação ou, sei lá, de anestesia. E, bem, se a minha ideia de fazer sexo
com Tessa foi para eu relaxar, depois de tanto estresse no final de semana,
eu só consegui ficar mais puta por não estar conseguindo transar direito.
Como se não bastasse, a gota d’água aconteceu mesmo quando a
ruiva, entre as minhas pernas, enquanto sugava os meus mamilos, desceu
com uma das mãos na direção certa da minha calcinha. Passando os dedos
para dentro da minha roupa, ela tentou me tocar. No entanto, por mais que
eu soubesse que a sua intenção não era passar aquilo na minha cara, eu
tinha certeza que o seu espanto, por estar vivendo uma situação daquela
comigo pela primeira vez, a impediu de falar ou fazer qualquer outra coisa
que não fosse isso:
— Nem um pouquinho molhada? — franziu o cenho, me dando um
leve sorrisinho, apesar do estranhamento. Ou por causa do estranhamento.
Que merda.
Reage, Agatha!
Reage, sua idiota!
— Tessa, chupa a minha boceta.
Foi tudo o que eu disse, tentando não me abalar, ainda mais, com o
papelão que eu estava fazendo em cima daquela cama.
E a ruiva, daquele jeitinho como eu já conhecia tão bem, há tantos
anos, apenas me deu mais um sorrisinho, dessa vez sagaz, junto com um
olhar que mostrava tudo menos inocência, e fez o que eu pedi. Ou melhor,
quase ordenei.
Subindo a minha saia e tirando a minha calcinha, ela caiu de boca,
enquanto eu fechava os olhos, procurando pensar só naquilo. Sua língua
passava pelo meu clitóris, indo e voltando na direção da minha vagina,
fazendo tudo exatamente como eu sempre gostei. O mais estranho era que a
ruiva sempre foi maravilhosa nisso. Pelo menos comigo, o seu oral era
impecável. Tinha um total de zero defeitos. Só que naquele dia... Naquele
maldito dia... Tinha alguma coisa diferente. Em mim ou nela. Mas, era
provável que fosse em mim mesmo.
Cacete, que pesadelo.
Desde quando um oral não conseguia me excitar?
— Tessa, mete seus dedos — Fazendo de tudo para disfarçar a
minha agonia, eu pedi.
E ela, como uma garota sempre tão obediente para a putaria, fez
daquele jeitinho. Respirei fundo, tentando me concentrar mais uma vez, à
medida que ela me chupava e enfiava os seus dedos, massageando lá no
final.
Ow... Isso aí era bom.
Muito bom...!
Foi aí que, de súbito, eu comecei a enxergar uma pequena e quase
imperceptível luz no fim do túnel. Os anjos estavam ouvindo as minhas
preces! Gradativamente, fui ficando ofegante. Senti a pulsação do meu
sangue aumentar e se concentrar naquele exato ponto, entre as minhas
pernas, que tornava o clitóris inchado e durinho de tesão. Todos os meus
pelinhos se eriçaram e os meus mamilos também.
Eu estava ficando excitada.
Excitada...
O líquido já parecia escorrer pela minha boceta, quando,
repentinamente, mesmo de olhos fechados, uma imagem foi se
materializando. E, à medida que ela ia se tornando mais clara, com mais
tesão eu ficava. De início, não era nítida. Mas, depois... Puta que pariu. Eu
salivei com aquela figura da minha imaginação. Na verdade, em dado
momento, já parecia tão real. Muito real. Talvez eu pudesse tocá-la, se
quisesse.
E, porra, como eu queria tocá-la...!
Era ela. Sim. Era ela. Bem ali, na frente. Aquela preta. Gostosa.
Com seu rosto bonito, seu corpo malditamente perfeito, tocando os meus
peitos e enfiando a língua na minha boceta.
Filha da mãe...
Só com essa visão, eu estava quase... Quase...
Gozando...
E, então, subitamente, como um choque, entre o limiar do tesão e do
orgasmo, abri os olhos, em um pulo, ao me dar conta do que estava quase
acontecendo.
Cacete.
Eu estava quase gozando não com a Tessa, mas com a visão
imaginária da Xena.
Argh.
Droga, droga, droga.
Me afastando para trás, fechei minhas pernas e me sentei na cama.
Isso não estava bom.
Não estava nada bom.
Aliás, estava maravilhoso. Eu estava quase gozando. Mas, isso
deveria ser pela Tessa e não pela Xena, que, agora, além de tudo, também
estava começando a me atormentar até no meio do meu sexo!
— O que foi, Agatha? — Meio preocupada, a ruiva perguntou.
Respirei fundo, tentando manter a calma.
Mas, estava difícil. Realmente, muito difícil. Tudo o que nós
fizemos e tudo o que eu senti enquanto estávamos nos beijando, ontem à
noite, voltou à tona, naquele momento, apenas com a miserável imaginação
que eu tive. Soprei o ar pesado dos meus pulmões, balançando a cabeça.
Isso não estava certo. Não estava nem um pouco certo.
— Tess... — A chamei pelo seu apelido, porque, no fundo, o que eu
iria falar não seria nada legal. — Eu sei que te convidei para que você me
fizesse companhia, mas, na verdade, eu acho que preciso mesmo ficar
sozinha agora.
Talvez apenas sozinha eu pudesse entender que porra era aquela e
entrar em uma espécie de acordo ou consenso comigo mesma. Pelo menos,
era nisso que eu queria confiar agora. Caso contrário, eu poderia ficar
louca.
— Mas... — A ruiva ainda tentou falar.
— Está tudo bem, eu prometo — disse eu, interrompendo-a e
tocando em sua mão numa mistura de conforto e súplica silenciosa, para
que ela me deixasse sozinha ali, no meio da minha confusão interna. Não
bastava eu tapar o sol com uma peneira, fingindo para mim mesma que algo
muito estranho não estava acontecendo. Na real, eu tinha que me entender.
— Não aconteceu nada demais. Só acho que preciso ficar um tempinho na
minha própria companhia. Tudo bem? Mais tarde eu ligo pra você. Eu
prometo. E, quando você sair daqui, com certeza terá um motorista à sua
disposição. Russell Ballard não tem motoristas para a própria filha, mas
sempre tem para os convidados.
Tessa, por sua vez, suspirou, meio resignada, meio desconfiada.
— Tá bom, Agatha. Vou te deixar sozinha apenas porque você tá
pedindo mesmo. Mas, só para deixar claro, até agora eu tô achando tudo
isso muito estranho. Não esquece de me ligar, tá? Se precisar de qualquer
coisa, fala comigo.
Dentre tantos conhecidos, Tessa não era minha melhor amiga por
acaso.
Eu realmente continuaria com ela ali, se a minha cabeça não
estivesse completamente afundada em uma merda confusa. Pelo menos,
Tessa sabia me dar espaço, quando eu pedia. E, em um breve e pequeno
sorriso, acenei um sim com a cabeça, já me despedindo dela. Não demorou
muito para que eu, enfim, estivesse sozinha, da exata maneira como, agora,
eu queria.
Respirei fundo pela milésima vez, esparramando meu corpo sobre o
colchão novamente e rolando de um lado para outro, enquanto deixava a
minha cabeça afundar sobre um dos travesseiros.
Argh, que ódio.
Se eu pudesse, eu gritaria para extravasar a raiva que eu estava
sentindo. Mas, isso só atrairia atenção para mim e para o meu quarto,
quando eu queria ficar a sós comigo mesma.
Que merda era aquela que estava acontecendo ultimamente?
Estava tudo indo relativamente bem na minha vida, exceto pela
parte daquele inferno de penitenciária, quando, de repente... Bum! Fui
atingida pela Xena, como um enorme e maldito caminhão de carga pesada,
que arrastava e atropelava qualquer coisa pela frente, na minha mente, a
ponto de me fazer pensar apenas nela. Aquela mulher estava mesmo me
deixando maluca. Já não bastava eu me sentir atraída, agora ela também já
começava a invadir os meus pensamentos, sem qualquer permissão minha.
Sim, eu gostava de mulheres. Na verdade, eu sempre gostei de
mulheres, desde o início da puberdade. Ficava com caras, assim como, até
então, eu continuava ficando, vez por outra. Mas mulheres sempre me
atraíram mais. Só que ficar fissurada por uma, daquele jeitinho que eu
estava por Xena Scott, era a primeira vez.
Uma merda.
E o mais estranho de tudo (o que era realmente um milagre, porque
aquilo já estava absurdamente esquisito), era que, apesar do susto e da
minha enorme confusão mental, eu ainda estava toda molhada e com
vontade de ter um orgasmo. Por causa dela. Única e exclusivamente dela.
Zara invadiu tanto os meus pensamentos, que todo o desejo do meu corpo
continuava concentrado entre as minhas pernas, a ponto de eu não
conseguir me manter quieta por muito tempo, sem colocar a mão na minha
boceta e me masturbar, para ver se aquilo acabava de uma vez por todas.
Caralho, eu estava pirando.
Suspirei, me virando novamente sobre a cama e, dessa vez,
encarando o teto.
Eu sabia que não deveria fazer aquilo. Não deveria alimentar um
desejo por alguém que praticamente me disse, com todas as letras, para me
manter distante porque nós éramos um erro. E sabe-se lá qual era a porra a
desse erro. Eu não entendia, assim como também não me esforçava para
entender. Talvez Xena fosse confusa demais. O fato, porém, era que naquele
exato momento, ainda verdadeiramente excitada e com a cabeça
borbulhando de imagens e lembranças dos seus lábios nos meus e das suas
mãos em cima de mim, parecia muito mais forte a vontade de levar aquilo
adiante do que tentar respirar para acalmar os ânimos.
E eu não consegui.
Realmente, o desejo foi muito mais forte do que a razão.
Eu poderia me envergonhar por estar agindo como a porra de
maníaca, mas eu simplesmente não fui capaz me barrar. Quando dei por
mim, meus dedos já estavam girando na minha boceta, enquanto a minha
outra mão me estimulava nos mamilos, pegando, apertando, massageando.
Eu estava maluca não somente por ela, mas também para gozar... Pra ela.
Graças à maldita lembrança que tive. Com ela.
Foi então que eu fechei os olhos e aumentei o ritmo, me entregando
àquilo, sorvendo todas as sensações que a masturbação causava em mim,
enquanto cada imagem de nós duas, ontem à noite, passava pela minha
cabeça. Sua boca na minha. Seu corpo colado ao meu. E a imaginação, que
não abandonava a minha cabeça por nada, com a excitante possibilidade de
fazer, naquela cama, com ela, exatamente aquilo que eu tentei fazer com
Tessa. Só que melhor. Muito melhor.
Mantive o ritmo, ofegante, enquanto tocava a minha boceta e os
meus mamilos, sentindo meu clítoris tão inchado e tão molhado de tesão.
Os lençóis embaixo de mim já úmidos da minha excitação que escorria.
Meu coração latejando no peito, à medida que tudo no meu baixo ventre se
contraía. Eu não ia aguentar por muito tempo. Não mesmo.
E não aguentei.
Eu gozei...
Gozei tão forte, tão gostoso.
Gozei pensando nela.
E, enquanto eu achava que fazer aquilo fosse acabar e saciar, de uma
vez por todas, o desejo que eu sentia por ela, eu estava muito enganada.
Depois de respirar fundo, para recuperar o fôlego, e, exausta, abrir os olhos,
eu só tinha uma certeza: não dava para eu continuar mentindo a mim
mesma ou seguir fingindo que aquilo passaria.
Não dava.
Simplesmente não dava.
Eu queria aquela mulher pra mim e eu ia tê-la.
Estava decidido, por mais louca que fosse essa decisão.
Porque eu sabia que não era só eu quem queria. Ela também
desejava isso. Ela me desejava. E eu vi perfeitamente isso nos seus olhos,
ontem à noite.
Estratégias para convencer uma filha
da puta de que você é a mulher da vida
dela

Agatha

Base, pó, um pouquinho de blush para corar, um rímel para levantar o


olhar e um tiquinho de gloss para completar. Soltei os cabelos do coque,
bagunçando as ondas loiras com os dedos. Perfeito. Eu estava perfeita. Sorri
para mim mesma, ao encarar meu reflexo no espelho e imaginar o que eu
poderia conseguir, se eu colocasse em prática aquilo que eu chamava de
“Estratégias para Convencer uma Filha da Puta de que Você é a Mulher da
Vida Dela”. Certo. Não era um nome muito criativo, assim como também
era a primeira vez que eu precisaria “convencer” (bem entre aspas mesmo)
alguém a ficar comigo. Geralmente, bastava eu estalar os dedos.
Mas, o principal eu já tinha: a beleza e a cara de pau. Agora, era só
eu correr atrás da humilhação. Quase que literalmente. Argh! Realmente, eu
nunca tinha imaginado que eu fosse me esforçar por alguém, um dia, da
forma como eu estava prestes a fazer por aquela canalhinha. Suspirei,
resignada. Era necessário, entretanto. Necessário para que eu não
sucumbisse à loucura de desejá-la sem tê-la, e, principalmente, para que eu
me convencesse de que tinha jogado todas as cartas possíveis para
conquistar Xena Scott, por mais fim de carreira que isso pudesse parecer.
E tudo por causa de uma bendita gozada.
Que gozada mais sagrada e santificada!
Tá, tá, tudo bem. Não foi só por causa da masturbação e da gozada
maravilhosa. Foi por tudo, pela maneira ridícula como eu me sentia quando
estava perto dela, pelas taquicardias que apenas a sua presença me causava,
pelo nosso beijo na sua cama, pela vontade de dar muitos outros beijos nela
(e não apenas na boca). Enfim, por tudo. Era por tudo o que me levava e me
envolvia a ponto de fazer isso. De querer correr atrás da humilhação. Digo,
da pegação.
Naquela manhã, eu praticamente nem precisei de despertador para
acordar, ou mesmo da ajudinha da Evangeline. Claro, eu mal tinha dormido
na noite anterior, só pensando e maquinando todas as possibilidades. Muitas
delas ficariam apenas na imaginação. Talvez fossem maquiavélicas demais.
Mas, a maioria, sim, dava para colocar em prática. E foi por isso que eu me
levantei da cama cedinho. Tomei banho e me arrumei impecavelmente.
Claro que eu nunca saía de casa menos do que perfeita. Nem mesmo para
aquela penitenciária imunda. Entretanto, naquele dia, eu dei uma caprichada
maior. Eu queria parecer uma gata para a Xena.
Sim, eu já era uma gata. Mas, eu queria ficar uma gata muito maior,
entende?
E, bem, eu não tinha mandado nenhuma mensagem para ela
(embora estivesse morrendo de vontade), avisando que aceitaria as suas
caronas; assim como também sabia que tinha lhe dado umas respostas
muito malcriadas, pouco antes de sair do seu carro. Porém, entretanto,
contudo, todavia, pelo que eu já conhecia da Xena Scott, ela não desistiria
da sua ideia só por causa da minha arrogância. Isso porque ela era cabeça
dura justamente do jeitinho como bem me lembrava alguém: eu.
O fato era que, agora, as suas caronas, duas vezes ao dia, cairiam
muito bem. Cairiam muito bem para os meus planos sórdidos e maléficos
de conquistá-la. Sim, conquistá-la. E não era daquela maneira irritante
como Louis queria fazer comigo. Não mesmo. Eu usaria minhas próprias
armas, sem agir exatamente como uma pentelha.
Além do mais, existia uma grande diferença entre Xena e eu, e
Louis e eu. A Xena realmente estava caidinha por mim, e, bem, que-saco-
eu-também-estava-por-ela. Enquanto isso, por Louis, eu sentia uma total de
zero atração, por mais bonito, multimilionário e ridiculamente safado que
ele fosse.
O cara era um pé no saco.
Scott também era, mas, por alguma razão complexa demais para o
meu entendimento, eu estava interessada justamente pela policial
escrotinha, não importava o quão chata ela fosse.
Quando eu já estava quase pronta para aguardar somente o seu sinal
de fumaça, indicando que já estava indo me buscar, entretanto, vi
Evangeline cruzar a minha porta. Ela era a única funcionária com a
liberdade de entrar no quarto sem bater. Afinal, ela tinha senso suficiente
para saber os momentos em que podia fazer isso ou não.
No entanto, assim que os seus olhos pousaram sobre mim, notei suas
sobrancelhas arqueando em pura surpresa.
— Já está acordada, Agui? E... — Observou-me de cima a baixo,
com o cenho bem franzido. Eu entendia o motivo da sua admiração. Não
era normal que eu me acordasse tão cedo sem a sua ajuda. Na verdade, eu
sabia que ela tinha ido ali justamente para me acordar. — Arrumada
também?
Sorri.
Algo, dentro de mim, estava me fazendo sorrir bobamente. Era
como uma espécie de entusiasmo estúpido, ou sei lá. Alguma ansiedade
para dar de cara com a mulher que era o motivo do meu colapso e do meu
tesão ao mesmo tempo, por mais que ela me quisesse a quilômetros de
distância. Eu tentava não pensar nessa última parte, no entanto.
— Sim, Eva! Isso não é maravilhoso? — Quase radiante, repliquei.
Ela, por sua vez, sorrindo de volta, me encarou meio desconfiada.
— E essa animação, hum? Posso saber o motivo? Não era
exatamente assim que você estava ontem. Passou o dia enfurnada no quarto.
Foi aí que eu vi meu celular vibrando em cima da minha penteadeira
camarim. Junto com isso, o meu coração saltou no peito de um jeitinho bem
gostoso. Estúpido, mas gosto. Eu sabia. Eu já sabia o que era. No fundo,
era como se eu pudesse sentir o cheiro do seu perfume, mesmo que ela
ainda estivesse no início da minha rua.
Esquecendo até mesmo das perguntas que Evangeline tinha me
feito, corri para alcançar o celular, e, quando fitei a tela, lá estava seu nome,
da exata maneira como eu tinha salvo. Meu sorriso dobrou de tamanho. Eu
realmente estava certa: ela não tinha desistido da ideia!
“Chego à sua casa em cinco minutos. Espero que esteja pronta.”
E, por mais incrível que isso pudesse parecer, até mesmo aquele seu
jeitinho autoritário, que tanto me dava nos nervos, estava começando a me
deixar ainda mais interessada.
Ai, isso só podia ser algum tipo de doença.
Mesmo assim, tentei não me ligar no quão estranho tudo aquilo
parecia ser. Apenas puxei minha bolsa e mirei em Evangeline, numa
mistura de pressa, animação e ansiedade.
— Evinha, estou indo de carona para a penitenciária. Então, preciso
ir logo! Já chegou! Beijo, beijo, beijo!
O olhar que ela me deu, apesar do sorriso no rosto, dizia em silêncio
algo como: “eu nunca te vi tão empolgada assim para ir à penitenciária,
alguma coisa tem aí”.
Mas, eu meio que não prestei muita atenção nas teorias que
Evangeline poderia estar criando. Eu só conseguia pensar no que
encontraria em cinco minutos.
Saí do quarto rapidamente, quase saltitando como uma garotinha
idiota. Na verdade, eu era mesmo uma garotinha idiota de vinte e dois anos
de idade. Estava saltitante pela mulher que me pediu distância. Era
realmente uma quase atitude masoquista minha. Eu só podia ter uns
parafusos a menos na cabeça. Porém, minha animação não era apenas para
vê-la, mas, principalmente, pelo que poderia acontecer entre nós, daqui pra
frente.

Zara

Estacionei o carro bem em frente à sua mansão, enquanto, a cada


três segundos, eu tentava repetir para mim mesma que não estava fazendo
aquilo por motivos pessoais, mas profissionais. Uma policial cuidando da
segurança de uma garota. Apenas isso.
Somente isso.
Entretanto, não demorou muito para que qualquer tipo de
pensamento sumisse da minha cabeça. Bastou eu vê-la, caminhando para
fora de casa. Ou melhor, quase desfilando em direção ao carro. Aquelas
malditas pernas longas e magras de modelo. O movimento dos quadris que
sempre me faziam perder a noção de muitas coisas. Suspirei, balançando a
cabeça de leve para mim mesma. Eu sabia que estava brincando com coisa
séria, como se não tivesse noção do perigo.
Aja como a porra de uma policial profissional, Zara.
Pelo menos, essa era a tentativa.
O que mais me chamou atenção, porém, foi o seu sorriso. A loira
estava absolutamente sorridente de uma maneira como eu nunca tinha visto.
Franzi um pouco o cenho ao perceber isso. Era algo bem incomum. A
garota que sempre foi o poço da arrogância, e a mesma que tinha saído do
meu carro, no dia anterior, com raiva, sem nem se despedir, agora parecia
agir como se o nosso breve desentendimento não tivesse acontecido.
Através da janela aberta, ela fixou os olhos em mim e continuou
caminhando simpática, até abrir a porta e entrar.
Agatha trouxe consigo não somente a sua típica e natural beleza,
mas também o seu cheiro. Precisei me segurar para não fechar os olhos,
como uma idiota, e sorver o aroma gostoso do seu perfume caro que,
provavelmente, pagaria uns três meses de salários meus. E, bem, ela já era
evidentemente bonita, mas, naquele dia... Naquele dia, tinha algo a mais,
algo diferente. Um negócio que deixava a menina bonita ainda mais gata.
Eu só não sabia se era o sorriso ou alguma coisa que ela tivesse feito na
aparência. Talvez fosse o sorriso. Era muito provável, na verdade.
— Bom dia, policial Scott...!
Seu tom de voz acompanhava aquele mesmo bom humor do seu
semblante.
E, apesar de eu tentar evitar, a minha testa continuava levemente
enrugada, estranhando aquilo. Era incomum aquela garota ser tão simpática
dessa maneira.
— Bom dia, senhorita Ballard... — Com uma das sobrancelhas
erguidas, dei partida no carro, fitando-a ainda de rabo de olho. — Está tudo
bem...? — perguntei.
A pergunta foi só essa. Por outro lado, o que eu queria mesmo saber
era “por que você está aparentemente tão alegre assim?”
— Tudo ótimo! E com você?
E com você?
Foi impossível não continuar de cenho franzido. Além de simpática
e alegre, ela também estava educada. Era realmente um marco naquilo que
eu, internamente, costumava chamar de “temperamento questionável de
Agatha Maluca Ballard”. Sem dúvidas, as mudanças de humor dela mexiam
comigo, mesmo que eu não quisesse.
— Tudo bem. Obrigada.
Ainda assim, enquanto dirigia, tentei encerrar o assunto por aí.
Apesar de estar curiosíssima para saber o motivo da sua simpatia, prolongar
o diálogo, sobre aquilo, apenas faria com que eu mesma cruzasse, mais uma
vez, o limite entre o profissional e o pessoal, que não deveria mais ser
ultrapassado. E eu nem precisava perguntar para saber que, talvez, ela
tivesse enterrado no lugar mais profundo e inconsciente da sua cabeça, o
ocorrido no pub, sábado à noite. Para estar agindo dessa forma, não havia
outra razão, a não ser tentar esquecer o que houve. Aquilo a deixou bem
assustada, afinal.
E, bem, eu me mantive calada e quieta durante uma boa parte do
caminho. Na verdade, eu teria agido o caminho inteiro como um mero
chofer, quase imóvel e indiferente, se Agatha não tivesse começado a agir
de um jeito ainda mais esquisito. Não bastava o seu bom humor, ela
simplesmente passou o caminho inteiro chamando a minha atenção de
alguma forma, mesmo que tudo fosse de uma maneira muito sutil e quase
velada. Eu realmente não sabia se aquilo era proposital, mas, se fosse,
droga, ela estava mesmo conseguindo atingir o seu objetivo.
Vi quando ela baixou o quebra sol e encarou o próprio reflexo no
espelhinho. Abriu, então, sua bolsa e tirou um gloss de lá. Enquanto ela o
passava em sua boca, fazia um biquinho irresistível. E, honestamente, foi
impossível não me lembrar do momento em que eu a senti, no sábado à
noite. Saco. Tentei mudar a direção do meu olhar, de volta ao trânsito, mas,
vez por outra, as minhas orbes ainda recaíam sobre ela, enquanto Agatha
continuava fazendo caras e bocas em frente ao espelhinho. Sexy. Linda.
Infernal. Suspirei. Era isso o que eu ganhava por estar brincando com o
perigo.
Ainda jogava os seus cabelos de um lado para o outro, como se
estivesse tentando decidir qual o melhor lado para ele ficar. O plot twist era
que de todo jeito ficava maravilhoso. Eu tinha certeza que, até se ficasse
careca, ela continuaria impecável. E, a cada jogada de mechas que ela
dava, era uma lufada de perfume no ar, que eu sentia dentro do carro. Um
cheiro que conseguia deixá-la ainda mais atraente do que já era.
A gota d’água, porém, foi o momento em que colocando o quebra
sol no lugar, guardando o gloss e ajeitando-se sobre o banco ao meu lado,
ela deixou que seu vestido subisse discretamente, ao cruzar aquelas pernas
longas e maravilhosas, me dando uma visão privilegiada da sua coxa.
Porra, ela tinha feito isso mesmo? Eu ainda não acreditava que beijei
aquele monumento, no sábado à noite.
— Cuidado para não bater o carro, policial Scott.
Ouvi quando ela, de repente, falou, quase irônica.
Droga, a garota percebeu.
Pisquei os olhos, meio desconcertada, voltando discretamente a
minha atenção para a avenida, como se eu dependesse daquilo para viver. E
eu realmente dependia. Não queria causar um acidente ali justamente por
causa de Agatha Ballard e das suas pernas ridiculamente convidativas.
— Estou atenta ao trânsito. Não se preocupe.
Foi tudo o que eu consegui falar.
Ela soltou uma risadinha. Risadinha gostosa e sexy.
— Pensei que você estivesse prestando mais atenção nas minhas
pernas, policial Scott. Mas, não tem problema. Pode olhar o quanto quiser.
E pode pegar também.
Cacete.
Suspirei, tentando convencer a mim mesma de que aquelas suas
palavras atrevidas não me afetavam em nada, quando, na verdade, afetavam
sim. Afetavam muito.
O que essa garota estava pensando?
Ela era maluca. Completamente maluca.
Procurei não a responder.
Porém, foi no exato instante em que chegamos à penitenciária. Fiz a
curva por ali, para parar em frente ao portão, aguardando que alguém
abrisse. Havia três policiais na portaria. Um deles era uma mulher, que, por
sua vez, se aproximou do carro. Baixei o vidro do meu lado, para me
identificar.
— Ah, é a Scott? — Ela logo falou assim que me viu.
— Sim, Thompson — Com um breve aceno de cabeça, respondi. —
Bom dia.
— Sabe que, para você, está tudo sempre aberto — E, sorrindo,
acionou o controle do portão para que eu entrasse.
Porra... Era impressão minha ou estava todo mundo meio louco,
naquele dia?
Mesmo assim, eu já deveria saber como era Virginia Thompson.
Nunca perdia a oportunidade de dar em cima de mim, muito embora nós
nunca tivéssemos ficado. Eu só não sabia que ela não se importava em falar
assim comigo na frente da garota.
Passando com o carro, procurei alguma vaga para estacionar. Foi
quando Agatha disse:
— As mulheres, por aqui, reparam muito em você, não é?
Claro que ela não poderia ficar calada.
— Nunca notei isso.
Me fiz de desentendida, replicando sem muito interesse, enquanto
manobrava o carro em uma das garagens.
— Pois eu notei. Mas, eu dou razão a elas.
Dessa vez, porém, eu não pude deixar passar batido. De algum
modo, aquilo despertou a minha curiosidade novamente. E eu já estava
curiosa a respeito de várias coisas, para permitir que a conta aumentasse,
mesmo que eu não devesse me importar.
Quando desliguei o motor, volvi o rosto para ela e, franzindo o
cenho de leve, perguntei:
— Dá?
— Dou. E, se eu pudesse, daria outras coisas também. Pra você.
Pigarreei minha garganta, meio inquieta sobre o banco, quando, por
pouco, não me engasguei com minha própria saliva, graças à sua resposta.
Não era nada adequado que ela mencionasse sobre coisas pelas quais o meu
subconsciente já estava absurdamente poluído.
— É impressão minha ou está flertando comigo, senhorita Ballard?
Ela sorriu, sagaz.
— Se fosse um flerte, teria algum problema, policial Scott?
— Sim, muitos — respondi sem pestanejar.
— Ah, é? — ergueu uma das sobrancelhas, quase desafiadora. —
Quais?
E todos eles estavam exatamente na ponta da minha língua, em
razão das milhares de vezes que eu os repetia mentalmente, sempre que ela
estava comigo. No entanto, assim como aconteceu no meu apartamento, eu
não consegui falar. Talvez, se eu dissesse que era só pelo meu emprego,
poderia soar egoísta demais, mesmo que não fosse. Por outro lado, eu
também não me sentia confortável em lhe contar a história completa. E, no
mínimo, Agatha já devia saber que, como policial, a nossa relação não seria
nem um pouco ética. Ela era uma garota esperta. Disso eu tinha certeza.
Porém...
Sem esperar por qualquer resposta minha, em poucos instantes ela
emendou, me dando uma piscadinha de olhos arteira e charmosa, pouco
antes de sair do carro e caminhar em direção à recepção:
— Acho que o seu único problema aqui é admitir que realmente me
quer e que está louca para ficar comigo e fazer de novo o que fizemos
sábado.
Fechando a porta do carro e me deixando ali dentro, eu permaneci
imóvel por alguns segundos, enquanto digeria as suas palavras e olhava
para o vácuo.
A garota era extremamente astuciosa.
Ainda respirei fundo, tentando me recompor daquilo. Se eu não
tomasse cuidado, em pouco tempo, ela poderia me fazer esquecer do que
era certo ou errado, ético ou antiético. Agatha era um perigo.
Quando eu saí do carro, ela ainda caminhava despreocupadamente
por ali, nem rápido nem devagar, mas era como se, de algum modo,
estivesse esperando para que eu aparecesse e nós entrássemos juntas na
penitenciária. Meus olhos ainda recaíram sobre o seu andar e o movimento
perspicaz que só os seus quadris sabiam fazer. Sua bunda. Aquilo ainda
seria o motivo da minha queda, sem dúvidas. Mas, suspirando e erguendo o
olhar, tentei acompanhá-la, para não dar motivos, ao meu subconsciente, de
ficar observando o que não deveria.
E, bem, o fato de eu ter chegado, junto com a garota, chamou
atenção entre os funcionários da recepção e alguns da parte administrativa.
A maioria deles esticou o pescoço somente para observar melhor algo que
ainda não tinha acontecido. Estava na cara que nós fomos juntas de carro.
Mas, especialmente, dentre todas as pessoas, que nos fitaram de maneira
nem um pouco discreta, estava ninguém menos que Alexa Westphalen que,
como se adivinhasse a minha carona, conversava bem ali, com uma das
moças do balcão. Coisa que ela raramente fazia.
Eu não a via desde o sábado à noite. E, pelo olhar que ela me deu,
eu tive a certeza de que viria algum interrogatório por aí, sobre a minha
aparente proximidade com Agatha. Sem direito a advogado, nem a ficar em
silêncio.
Mesmo assim, passei por ali, com a garota, de queixo erguido e
costas eretas, como se não estivesse acontecendo nada demais. E realmente
não estava. Dei bom dia a todos, assim como eu sempre fazia quando
chegava ao trabalho, e já fui logo seguindo na direção do banheiro das
funcionárias, para que Agatha trocasse a sua roupa pela farda.
Ao pararmos de frente à entrada, falei:
— De costas.
A garota, no entanto, parecia estar disposta a me enlouquecer de
vez, naquele dia.
— Uhhhh... Isso é excitante, sabia? — Com um sorriso arteiro,
replicou.
Suspirei, quase cansada.
— Apenas vire-se, senhorita Ballard. E fale baixo.
Que Deus me ajudasse a ninguém da penitenciária ter escutado a
palavra “excitante”.
Ela, por sua vez, soltou uma risadinha, enquanto fazia o que eu
ordenava.
— Vou te confessar que até esse seu jeitinho ordinário e mandão,
que eu sempre odiei, está se tornando interessante.
Maluca.
Extremamente maluca.
Passei as mãos pelo seu corpo, tentando agir da maneira mais
profissional possível. Comecei pelas suas pernas e fui subindo da maneira
mais rápida que eu conseguia, quando cheguei à parte superior, não me
contive em praticamente sussurrar no seu ouvido:
— Não esqueça do que eu falei a você no meu quarto. O que
aconteceu entre nós foi uma falha. Eu não quero problemas. Não quero
confusões. Espero que tenha me entendido. Agora, vá.
Virando o rosto apenas para me olhar sobre o seu ombro, ela me deu
um sorrisinho meio enigmático e entrou no banheiro.
Ao me perceber sozinha naquele corredor da penitenciária, pude
respirar um pouco mais aliviada. Era como se, quando ela se afastava,
também levasse consigo uma parte daquela tensão que existia entre nós.
Maldita tensão. Eu deveria tomar todos os cuidados possíveis de agora em
diante. Ela parecia estar bem determinada sobre o que queria.
Queria me deixar tão maluca quanto ela.
E o seu poder de persuasão, misturado com astúcia, era significativo
demais para que eu deixasse de pensar umas dez vezes em qualquer tipo de
movimento, quando ela estivesse perto de mim. Jamais imaginei que um dia
fosse tentar correr de uma mulher. Logo eu. Mas, com Agatha Ballard, isso
era aparentemente necessário.
Entre alguns pensamentos, fiquei caminhando de um lado para o
outro do corredor, enquanto a esperava. Porém, naquele dia, ela parecia
estar demorando mais tempo do que normalmente passava para se trocar.
Achei estranho, franzindo o cenho, ao puxar meu relógio de pulso para dar
uma olhada na hora.
Foi aí que, de repente, e não mais que de repente, eu ouvi um grito
fino, agudo e quase histérico, vindo de dentro do banheiro, onde ela estava.
Meu coração automaticamente acelerou e apertou, ao mesmo tempo, se é
que isso era possível.
Merda.
O que ela tinha aprontado desta vez?
Em disparada, atravessei a porta do banheiro. Porém, tudo o que eu
vi, depois disso, foi a sua imagem, ao vivo e a cores, usando apenas uma
calcinha e um sutiã. Nada mais que isso. A própria tentação do satanás.
Embasbacada, paralisei por alguns instantes com aquilo. Era a primeira vez
que eu a via desse jeito. Quase nua. Suas pernas longas e magras, eram
realmente longas e magras. Pude constatar pelo total de zero roupas que
cobriam, exceto pela calcinha. A cintura fina, a barriga esbelta de quem
tinha sido abençoada pela genética, os seios apertados dentro do sutiã.
Gostosa pra caralho.
Ofeguei por um segundo, enquanto redescobria o movimento da
minha própria respiração. Só consegui piscar os olhos, caindo na real,
quando ela, choramingando e fungando, subitamente, me abraçou,
pressionando os peitos contra o meu busto.
— Ai, tem uma barata enooooorme! Enoooorme aqui...!
E, quanto mais ela dizia, mais se esfregava em mim.
— Ba-Barata? — Até gaguejei, tentando me desligar dos seus
peitos, para prestar atenção no que estava acontecendo. — Onde?
— Ali... Naquele box... — Fungando, ainda abraçada a mim, a
garota apontou.
Meio incerta sobre tudo, me afastei, tentando não olhar ainda mais
para o seu corpo e seguindo na direção que ela me indicava.
Quando abri a cabine, a última, olhei por todos os lados. Atrás do
vaso, por cima, por baixo. Suspirei. Não tinha nem um sinal de barata por
ali. Ainda olhei nas outras cabines e próximo à pia também. Fucei nos
armários, mas não deu em nada. Ou ela tinha fugido, com aquela gritaria, o
que era uma possibilidade plausível, ou...
— Onde está essa barata, Agatha? — franzindo o cenho para ela,
perguntei.
— Não sei... — Com o semblante de maior inocência do mundo,
replicou — Ela deve ter ido embora...
Ido embora?
Balancei a cabeça de leve.
Isso estava mesmo era com cara de armação.
— Hum... — Ainda meio desconfiada, segui para um dos armários
do banheiro, abrindo-o e indicando a ela. — Se qualquer outra, sei lá, barata
aparecer, aqui dentro tem inseticida próprio para isso. Você pode usar, ok?
Ela sorriu, aparentemente, tão agradecida e tão simpática quanto
estava mais cedo.
— Ai obrigada...! Sendo assim, vou continuar trocando de roupa —
E, simplesmente, desabotoou o sutiã, tirando-o na minha frente.
Seus peitos fartos e empinados saltaram para fora. Se eu fosse um
pouquinho mais esperta e segura das minhas próprias decisões, aquela visão
talvez não fosse capaz de me fazer sair da órbita. Mas, eu era eu. Claro. E
eu jamais conseguiria dar de cara com aquilo sem reparar mais do que
deveria.
Eram absolutamente lindos, assim como ela por completo.
Porra.
Perdi a noção de tudo, e até do chão, por alguns segundos, enquanto
ela continuava paradinha ali, na minha frente, no mesmo lugar, com o seu
sorriso arteiro e endiabrado.
— Algum problema, policial Scott? — perguntou ela, irônica.
E foi aí que eu, enfim, consegui ser puxada de volta ao planeta
Terra.
Droga.
A garota estava conseguindo fazer o que queria comigo.
Que papel de otária, Zara.
Soprando o ar pesado dos meus pulmões pela boca, apenas balancei
a cabeça em negativo, para ela, já me virando e saindo do banheiro,
enquanto algo entre as minhas pernas, que eu conhecia muito bem,
queimava.
Quem vai querer me pegar primeiro é
você

Zara

— Vejo que está tudo sob controle com a vítima. Você mesma se
encarregou de cuidar pessoalmente da segurança da garota, oferecendo
caronas de ida e volta para casa, não é? Muito bom.
Era totalmente perceptível a ironia em seu tom, assim como ela
também não falou a palavra “vítima” de um jeito normal. Isso porque
Agatha não era apenas uma vítima, ela também continuava sendo uma
infratora que cumpria pena sob a minha supervisão. E eu sabia exatamente
o que Alexa estava querendo falar em meio àquela voz carregada de
sarcasmo. Eu mal tinha me recuperado da visão de Agatha só de calcinha e
sutiã, e, depois, sem sutiã, quando Westphalen me interceptou no corredor e
começou, em sua sala, aquele interrogatório que eu já previa que fosse
acontecer.
— Olha só, Alexa... — suspirei, tentando pensar nas exatas palavras
que eu falaria, mesmo em meio àquela minha, ainda tão aflorada, confusão
mental de peitos, calcinha e sutiã. Tão gostosa, pelo amor de Deus. Droga.
Balancei a cabeça, me esforçando para me concentrar na justificativa mais
profissional que eu daria a Westphalen. — Eu só estou fazendo isso porque
o pai dela tirou todas as regalias da garota. Agora, ela vem e volta de
ônibus. Todos os dias. Semana passada, até foi quase assaltada. Isso sem
contar o que houve no sábado. Ela é rica e pode estar sendo visada, por
criminosos, para algum tipo de sequestro. Aliás, a investigação já descobriu
alguma coisa?
— Zara, não mude de assunto. Eu ainda não cheguei nessa parte —
Em tom de repreensão, falou. — É realmente uma história comovente.
Muito comovente mesmo. Mas... — Foi aí que seu olhar se tornou ainda
mais incisivo e sério. — Não. Me. Convenceu. Zara, essa não é a sua
obrigação, por mais que você seja uma policial. Eu sei, muito bem, a razão
para você estar tomando essa responsabilidade para si. Te conheço bem
demais, Scott, e não é de hoje. Você está interessada na garota...!
Puta que pariu.
No fundo, eu poderia estar interessada. Afinal, eu estava mesmo.
Não dava para negar. Ainda mais com a menina, literalmente, se jogando
para cima de mim. Era uma tarefa difícil resistir. Entretanto, contudo,
todavia, Westphalen não podia ter isso como uma certeza. Não mesmo.
Porque, no que dependesse de mim, até o momento, aquilo ficaria apenas
no campo do interesse mesmo, sem qualquer interferência na realidade ou
qualquer envolvimento para além daquele que tivemos no sábado.
Pelo menos, era nisso que eu queria acreditar.
— Para com isso, Alexa — tentei desconversar. — Você tá viajando.
Eu não estou interessada na garota. É lógico que não. Por favor, não
esqueça do que aconteceu no sábado. Ela quase foi sequestrada. Eu, como
policial, tenho o dever de cuidar da segurança de qualquer pessoa que esteja
em estado de risco. Todos fazemos um juramento quanto a isso. E você sabe
muito bem disso. Além do mais, eu já tive experiências suficientes na vida
para saber o que devo ou não fazer. Aprendi a lição.
Aprendeu mesmo, Zara?
Será que aprendeu mesmo?
Repliquei, com a voz da razão, exatamente o que eu repetia vinte
mil vezes, internamente, quando o meu coração gritava para eu fazer com
ela exatamente tudo aquilo que eu sentia vontade. Com a boca era isso o
que eu dizia, mas com a alma, certamente, a minha resposta seria outra.
A morena, por sua vez, ainda me encarou meio desconfiada.
— Pois é, eu realmente espero que você tenha aprendido a lição,
Zara, porque quem está falando aqui, agora, com você, não é a inspetora da
penitenciária ou a sua chefe, é a sua amiga. Uma pessoa que se preocupa
com você — parou por alguns segundos, séria, e, então, continuou. — Ou
você acha que os funcionários não se lembraram da sua história, quando
viram vocês chegando juntas hoje? É claro que eles lembraram. Estavam
olhando para vocês, daquele jeito, por saberem exatamente da confusão que
deu no passado, entre você e uma detenta. E, Zara, você é profissional
demais para saber que é proibido se envolver com detentas ou quaisquer
infratoras que estejam em cumprimento de pena. Seu emprego foi quase
perdido, por causa disso. Mesmo que eu seja a sua chefe e queira proteger o
seu rabo de qualquer demissão, se alguma merda acontecer, ainda existem
os superiores que estão acima de mim, e a palavra deles sempre será a final.
Então, eu realmente espero que você pense muito bem nisso, antes de fazer
qualquer coisa.
“Mesmo que eu seja a sua chefe e queira proteger o seu rabo de
qualquer demissão, se alguma merda acontecer, ainda existem os
superiores que estão acima de mim, e a palavra deles sempre será a final.
Então, eu realmente espero que você pense muito bem nisso, antes de fazer
qualquer coisa.”
Suas palavras quase me atingiram como um soco, se eu já não
soubesse disso. Sim, aquilo não era nenhuma novidade para mim. Era o que
me parava, o que não me permitia ir em frente com qualquer desejo que eu
pudesse ter pela garota. Os meus fantasmas do passado que nunca me
deixaram completamente em paz, e, agora, retornaram com força total.
Apesar dos pesares, tentei encarar sua advertência de queixo
erguido, como se tudo realmente estivesse sob controle, quando, na
verdade, eu sabia que não estava. Só fazia três semanas que eu conhecia a
garota e já me sentia maluca por ela, não queria nem pensar no que poderia
acontecer até o final dos seis meses de cumprimento de pena. Eu enfrentaria
uma tarefa extremamente difícil e tinha certeza absoluta disso. A tarefa de
resistir a ela.
Seja o que Deus quiser...
— Tudo bem. Obrigada pela preocupação, Alexa. Você é uma boa
amiga e eu sei que me falou tudo isso porque se importa comigo. Mas, fique
tranquila. O que aconteceu no passado não vai se repetir — Mentirosa,
mentirosa, mentirosa... Meu subconsciente me acusava de mentirosa,
enquanto eu respondia, porque o passado, na real, já estava se repetindo.
Forte, voraz, impetuoso. — Bom... — suspirei. — Será que agora pode me
dizer o que as investigações estão apontando? — E tentei mudar de assunto,
para ver se a minha cabeça me dava um descanso.
— Os caras continuam presos... — disse ela, ao se levantar da sua
cadeira, dando a volta na mesa e caminhando pelo escritório. — Aqueles
filhos da puta optaram por fazer uso do direito ao silêncio. Eles não nos
dizem nada. Nós também não podemos obrigá-los. Mesmo assim,
conseguimos descobrir os nomes verdadeiros de cada um. Eles não são
daqui. São das Bahamas. E, pelo sistema, verificamos que eles já têm
passagens pela polícia. Tráfico de drogas e relação com sistemas de
prostituição. Casas noturnas ilegais de sexo.
— Casas noturnas ilegais de sexo? — franzi o cenho, também me
levantando da cadeira, enquanto tentava entender o que caras como eles
queriam com a Agatha. — Isso me parece aquele caso recente que estamos
investigando, aqui em Las Vegas, graças à série de denúncias anônimas que
recebemos a respeito de casas noturnas desse tipo na cidade, explorando
ilegalmente mulheres para trabalho sexual — Me senti ainda mais inquieta
com as possibilidades que os meus pensamentos já estavam formulando. —
Quais as chances desses caras quererem a Agatha para levá-la a um lugar
assim?
Alexa suspirou, fitando-me com aquele semblante altamente
profissional que tinha.
— Não... Acho que nenhuma. Vamos continuar investigando para
saber qual a ligação entre eles e a garota. Mas, certamente, eles não a
queriam para levá-la a um lugar assim. Se fosse, poderiam ter pego
qualquer outra garota. Só que eles escolheram justamente ela. Isso só me
diz que Agatha é muito valiosa, e aqueles caras sabem desse valor.
Sim, a garota era muito, muito valiosa. Porém, diferente do
significado que Alexa e os caras poderiam dar ao seu valor, aquele que,
provavelmente, tinha mais a ver com o seu poder aquisitivo de milhões de
dólares, na minha opinião, ela era muito mais valiosa do que isso. Agatha
era valiosa não pela grana absurda que a sua família tinha nos bancos, mas
por tudo o que ela já poderia representar para mim.

✽✽✽

Aquele dia passou incrivelmente rápido. Mesmo com a cabeça a


mil, pela quantidade de informações que Alexa conseguiu me passar em
uma breve conversa, o trabalho, de alguma forma, me distraiu até o fim do
meu expediente. Quando olhei meu relógio de pulso, por volta das quatro e
meia da tarde, uma chuva muito grossa caía em Las Vegas.
Na verdade, o céu estava desabando desde cedo. Praticamente, uma
tempestade. Foi um dia milagrosamente nublado. Isso era mesmo uma
raridade, naquela cidade. Talvez fosse a proximidade do fim do ano e do
início da quadra chuvosa, que sempre era curta numa cidade como Las
Vegas, localizada no meio do deserto.
Eu só podia aguardar pelo trânsito meio (ou completamente)
caótico, que eu enfrentaria, durante a volta para casa. Quando chovia muito,
era assim. Mas, não existia outra alternativa, a não ser pegar o carro e seguir
para o caos. Era melhor isso do que dormir na própria penitenciária.
Inclusive, já estava passando da hora de liberar a garota.
Durante o dia, porém, mesmo que ela tentasse fazer isso de maneira
muito velada, eu ainda consegui perceber todas as suas investidas
“passivamente agressivas” em me deixar louca. Talvez estivesse se
tornando uma espécie de hobby para Agatha, ou sei lá o quê. Eu sentia que
ela estava se divertindo em aproveitar qualquer mínima oportunidade para
fazer qualquer coisinha pequena, nem que fosse um olhar mais intenso em
minha direção.
Algo me dizia que aquele seu bom-humor, desde os primeiros
minutos da manhã, era como uma decisão. A decisão de não desistir de
repetir o seu feito na minha cama, por mais que eu tivesse deixado bem
claro que era um erro. A real era que eu não conseguia convencer nem a
mim mesma com aquelas palavras estúpidas de negação, quem diria a
obstinada Agatha Ballard. Desde que eu pus os meus olhos sobre ela, pela
primeira vez, soube que era exatamente o meu tipo de mulher: decidida e
determinada.
E era isso o que fodia tudo.
Além de ser o meu tipo, ela também estava decidida e determinada a
seguir com o plano maligno de me provocar. O pior era que Agatha não
forçava a barra, nem agia com impulsividade ou insistência. Era como se
ela soubesse exatamente qual passo dar, depois do outro. E, claro, ela nem
precisava se esforçar muito. Para me matar na unha e me mostrar o quanto
conseguia ser linda e incrível, bastava apenas um breve olhar, um pequeno
sorriso e uma rara educação que saía em forma de palavras como “estou às
suas ordens, policial Scott”, ao final de cada tarefa realizada naquele dia.
Foi essa a frase que ela mais repetiu nas últimas horas de trabalho.
Agatha nunca pareceu tão obediente e tão veladamente
desobediente, ao mesmo tempo.
Ela era mesmo um paradoxo.
Obediente enquanto cumpria as minhas ordens sobre o seu trabalho.
E desobediente a cada flerte disfarçado de inocência e duplo sentido. Sim,
ela sabia, como ninguém, deixar qualquer frase comum, e até inofensiva,
com uma carga poderosa de sacanagem dissimulada.
Mesmo assim, eu ainda tentava me resguardar, me esquivar de
alguma forma. Ou, pelo menos, protelar, ao máximo, o que eu sentia que
estava predestinado a acontecer entre nós: a explosão daquela bomba. Por
mais que eu tentasse evitar e repetir vinte mil vezes, a mim mesma, aquela
ladainha sobre o passado e o quanto eu quase me fodi completamente, era
só questão de tempo.
Apenas isso.
Seis meses seria tempo demais com ela, sem fazer absolutamente
nada, depois de ter experimentado o seu gosto pela primeira vez. Era como
acontecia com viciados em drogas. Bastava sentir uma única vez para
querer de novo. E eu sabia que uma hora ou outra, eu não ia aguentar e
experimentaria aquela droga, mais uma vez. Ia acontecer. E de novo. E de
novo.
E de novo.
Porque eu era idiota.
Extremamente idiota.
Porém, ao menos, para algumas coisas, eu conseguia ser
minimamente inteligente. Como era eu quem decidia quais seriam os seus
trabalhos, todos os dias, aproveitei isso para lhe passar tarefas em que eu
não precisasse ficar no seu pé o tempo todo. Ou seja, nenhuma delas, pelo
menos naquele dia, foi nas alas dos detentos. Talvez esse tipo de atitude
minhas fosse uma grande imaturidade. Afinal, era como se eu estivesse
assinando o meu atestado de incompetência no quesito “não resistir à
tentação de uma boceta”. O problema era que não era qualquer boceta. Era
a boceta dela. Então, todo cuidado era pouco.
Ainda assim, eu não pude evitar a sua presença por muito tempo. A
hora da sua carona de volta para casa estava chegando, e, disso, eu não
poderia fugir. Dei a minha palavra. Aliás, muito mais do palavras e
promessas, eu também tinha conseguido a façanha de criar um estúpido
senso de cuidado por ela. E isso me impedia de fazer qualquer coisa para
me distanciar demais, enquanto eu soubesse que ela poderia estar andando
sozinha por aí e pegando ônibus, quando havia sido quase assaltada e
raptada na última semana.
No momento em que ela estava terminando de lustrar os móveis da
recepção, eu me aproximei, dizendo:
— Pode ir trocar de roupa. Já está na sua hora.
E o sorrisinho que ela me deu foi lindo. Lindo, como sempre era.
Eu ainda precisava me acostumar a ver uma Agatha de tão bom
humor assim. Era esquisito, mas, ao mesmo tempo, absurdamente bonito. O
bom humor a deixava mais gata e, em consequência, também me deixava
mais imbecil. Talvez o segredo fosse eu tomar cuidado para não me
acostumar. Se um dia eu me habituasse àquilo, a ela daquele jeito para mim,
eu estaria ferrada.
Balancei a cabeça de leve, para mim mesma, enquanto caminhava
em direção à porta da recepção e aguardava por ela. Eu já não sabia mais o
que fazer para afastar pensamentos que eu deveria evitar sobre aquela
garota. Isso parecia impossível. Da mesma forma como eu também estava
me tornando cada vez mais incapaz de me manter distante dela.
E não demorou muito para que ela voltasse, já vestida e arrumada,
como a Agatha que eu vi pela manhã, gloriosa, entrando no meu carro. A
garota tinha um charme que era só dela. E não importava se ela passasse um
dia inteirinho só trabalhando, desentupindo privadas e lustrando móveis, ela
continuaria sendo a garota mais bonita que eu já vi na minha vida.
— Prontinho — falou, parando ao meu lado, ainda com aquela
simpatia que, até então, era rara.
— Você trouxe guarda-chuva? — perguntei, reparando nas gotas
grossas que continuavam molhando tudo lá fora.
— Pior que não. Estou sem nada. Não imaginei que fosse chover.
— Eu também não. Vamos ter que ir correndo para o carro. Tudo
bem?
Dando de ombros, leve, ela soltou uma risadinha.
— Ok...
Isso também era novo. A Agatha de três semanas atrás, sem
dúvidas, iria levar aquela tempestade lá de fora para um copo d’água,
reclamando em ter que se molhar, porque, provavelmente, ela e sua roupa
deviam ser feitos de açúcar. Porém, ela já não me parecia mais aquela
Agatha de três semanas atrás. Nem eu mesma era aquela Zara. Na real, era
estranho o quanto nós ainda parecíamos com aquilo e, ao mesmo tempo,
também estávamos tão diferentes. E isso em apenas três semanas. Eu não
queria nem ver o nosso estado, ao final dos seis meses.
— Tá legal — falei. — No três, nós vamos.
Acenando um entusiasmado sim, com a cabeça, ela concordou.
— Um, dois... Três!
E, enfim, saímos correndo dali, feito loucas, no meio da chuva
pesada. Ainda olhei para o lado e vi aquele sorrisinho lindo no rosto dela,
enquanto colocava os braços acima da cabeça, tentando proteger o cabelo.
Apesar disso, ela parecia tão despreocupada, tão naturalmente leve, que eu
não pude deixar de sorrir com isso.
Para completar, entrou no carro, rindo, enquanto sacudia os braços e
a roupa molhada. Na verdade, ela estava quase gargalhando. E isso era tão
gostoso de ouvir. Me dava uma sensação de familiaridade, de conforto, de...
Paz. Talvez porque eu tinha a certeza de que, apesar de tudo, ela não ia
surtar por ter molhado o cabelo ou borrado sua maquiagem com a chuva.
— Meu Deus, que dilúvio! — exclamou, em meio a risadinhas, ao
mesmo tempo que tentava se enxugar.
Deixei os vidros fechados e, ligando o ar condicionado e o som,
respondi:
— Sim... E está assim desde cedo. Sem previsão de parar. Quero só
ver o congestionamento que vamos enfrentar.
— Congestionamento? — arqueou um pouco as sobrancelhas, me
fitando.
— Sim, congestionamento... Do lugar de onde você vem, não
existem vias engarrafadas, quando chove, ou você tinha o costume de usar o
helicóptero do seu pai, para evitar o trânsito? — Me permiti fazer uma
pequena brincadeirinha.
A loira, por sua vez, levando aquilo naquilo na esportiva, apenas
cerrou os olhos de leve para mim, devolvendo, sem evitar o sorriso:
— Como você conseguiu adivinhar? Eu usava um dos helicópteros
do papai, sim.
Soltei uma pequena risadinha, balançando a cabeça.
Era a herdeira de um complexo hoteleiro em Las Vegas, afinal de
contas.
E com a brincadeira e o clima leve, nós fomos embora.
✽✽✽

O clima leve, entretanto, não foi muito duradouro. Não por causa de
mim, dela, ou de nós duas, mas por causa da porra da cidade. Droga.
Depois de uns dez minutos no carro, assim como eu tinha previsto, o
trânsito começou a se tornar insuportável, especialmente quando eu peguei
uma das principais vias de Las Vegas. Para o lado Oeste, que era a direção
para onde estávamos indo, e os carros não andavam, ficava a região da casa
dela. Para o lado Leste, a via à minha esquerda, cujo trânsito parecia
tranquilo, era onde estava a região do meu apartamento.
Em chuvas como aquelas, geralmente alguma parte da cidade
parava, sobretudo a mais rica e movimentada, que era onde as pessoas e os
turistas costumavam transitar mais. E, claro, também tinha que ser o local
onde ela morava
Suspirei, tentando esquecer o fato de que estávamos presas em um
congestionamento, com centenas de carros na frente e atrás do meu,
enquanto a chuva forte ainda caía lá fora. Até aumentei o volume do som,
na ilusão de que a música, um pouco mais alta, pudesse acobertar o meu
tédio. Agatha também já tamborilava as unhas no encosto de braço, ao seu
lado, enquanto olhava para frente e fazia um biquinho de quem estava
viajando em pensamentos.
Só que aí, dez, quinze, vinte minutos se passaram sem que nós
conseguíssemos sair do lugar. Aquilo já estava se tornando insustentável.
Soprei o ar, impaciente. Agatha olhou para mim, com uma das sobrancelhas
erguidas. Talvez surpresa por ser a primeira vez que me via meio afobada.
Eu, no entanto, obstinada, não parei para dar explicações. Apenas peguei
meu celular e abri o aplicativo de rotas, para saber se eles já estavam
estimando o tamanho daquele engarrafamento.
E... Puta que pariu.
Sibilei alguns palavrões, ao ver o que o aplicativo indicava.
Eram quase sete quilômetros de engarrafamento, sendo que, em
vinte minutos, nós mal conseguimos avançar dois metros.
Porra, eu ia chegar absurdamente tarde em casa.
E ainda queria ficar um pouco com o Nick, antes dele dormir.
— O que foi? — Ainda ouvi quando ela perguntou.
Porém, isso foi no exato instante em que dois policiais apareceram
ali, no meio da via, sob guarda-chuvas, dando algumas orientações para os
motoristas.
Não hesitei em baixar o vidro, para falar com um deles:
— Olá, com licença! — dei uma pequena buzinada, chamando a
atenção. — O que houve na via?
— Muito alagamento e um acidente feio de trânsito, a sete
quilômetros! — respondeu ele. — Se continuar aqui, vai levar de uma a
duas horas para sair do congestionamento. Aproveite que está na faixa da
esquerda para encontrar um retorno e mudar de via, se puder.
Ah, perfeito.
Meus ombros até se curvaram, em desânimo.
— Tudo bem. Obrigada.
E subi o vidro, outra vez.
Então, era isso. Naquela noite, talvez eu só conseguisse encontrar o
Nick quando ele já estivesse dormindo. Estava com tanta saudade dele.
Mas, eu me esforçaria para compensar essa falta, no dia seguinte. Ficaria
com ele mais tempo. Agora, entretanto, não havia muito o que se fazer. Eu
teria de esperar mais umas duas horas, dentro daquele carro, até sair
daquele engodo. A garota, pelo menos, estava em segurança, e somente isso
fazia valer a pena o tempo que eu perderia ali.
Antes que se passassem mais do que cinco minutos de silêncio,
depois que o policial se afastou do meu carro, ouvi a voz dela novamente.
Sorrateira, comedida, mas quase cantarolando:
— Sabe... Eu tenho uma ideia melhor.
Ideia melhor?
Franzi o cenho.
Na real, eu não sabia se queria realmente ouvir a sua “ideia
melhor”. Pelo tom de voz faceiro que ela usou, eu não poderia imaginar boa
coisa. Era muito semelhante àquele mesmo tom que ela usava sempre que
conferia algum duplo sentido a qualquer frase que, na teoria, parecia
inocente.
— Qual seria...? — Ainda perguntei.
Mais por educação do que por qualquer outra coisa.
Talvez um pouco de curiosidade.
Mas, só um pouquinho mesmo.
Quase nada.
— Até onde eu me lembro, o caminho da sua casa fica no sentido
oposto, exatamente nessa via ao lado, que está super vazia — sorriu. — Por
que não pega o próximo retorno, quando conseguirmos avançar um pouco,
e vamos para lá? Por mim, não teria problema algum.
E passar a noite no meu apartamento, outra vez?
Claro que, para ela, não teria problema algum.
Mas, para mim, teria todos.
— Não vou te levar de novo ao meu apartamento.
Só me toquei, entretanto, depois que a frase já tinha saído. Talvez o
tom que usei tivesse sido mais ríspido do que deveria. Foi aí que eu vi o
momento em que o seu sorriso diminuiu um pouco.
— Ah, é? — E um lampejo de desafio cruzou o seu olhar,
acompanhado de um leve, bem leve e quase imperceptível, nariz empinado.
— Por quê?
Porque é arriscado.
Porque você me deixa maluca.
Porque eu posso cair na tentação de te beijar outra vez.
Porque, eventualmente, você pode se tornar a sobremesa do jantar.
Porra.
Suspirei, engolindo todos aqueles motivos que faltaram saltar da
minha garganta.
— Apenas não vou te levar.
Respondi somente isso. Não queria entrar naquela discussão.
No entanto, também não me contive em deixar de fitá-la
rapidamente pelo cantinho do olho. Foi quando eu vi um traço de mágoa,
misturada com impetuosidade, pintar o seu semblante em tons que deixaram
o azul das suas orbes mais escuro.
— E é claro que você não tem a menor obrigação de me dizer o
motivo — suspirou, com um ressentimento palpável, mas, ainda de nariz
empinado, como se isso pudesse dar um equilíbrio ao seu ego ferido. —
Aliás, eu até já sei o motivo. A incrível policial Scott não pode se misturar
com garotas problemáticas, como eu, que cumprem pena na penitenciária.
Pega mal para você, não é?
Ah não.
Eu não queria que ela fosse por esse caminho.
— Agatha... — Ainda tentei falar.
No entanto...
— Não, nem precisa dizer mais nada — ela me interrompeu. — Eu
já entendi. É melhor que eu me coloque no meu lugar, policial Scott.
Inclusive, muito obrigada pela carona, mas posso ir sozinha mesmo. E aí,
você pode dobrar no próximo retorno e seguir para o seu apartamento.
Aliás, é provável que eu chegue mais rápido a pé do que se esperar esse
congestionamento acabar — soltou uma breve e fraca risadinha sem humor.
Simplesmente, tirou o cinto de segurança e, batendo a porta para
fechá-la, saiu no meio do engarrafamento e daquela chuva torrencial. Quase
sem acreditar no que tinha acabado de acontecer, ainda vi pelos
retrovisores, ela caminhando entre os carros, aparentemente pouco se
importando em estar toda ensopada.
Caralho.
Respirei fundo.
Não me restava nenhuma dúvida: a menina era total e
completamente maluca.
Puxando bruscamente a alavanca do freio de mão, eu não pude fazer
outra coisa, a não ser ir atrás dela, mesmo que, para isso, eu tivesse que
deixar o carro sozinho no meio daquela avenida engarrafada.
Saí com a chuva grossa me banhando completamente, caminhando
ligeiro na mesma direção para onde eu a vi indo. Quase correndo, entre os
carros, um do lado do outro, fazendo aquela fila imensa, consegui avistá-la,
enquanto desviava de algumas motos no meio do percurso.
— Agatha, escuta! — exclamei, tentando alcançá-la. — Volta aqui,
garota! Você não pode sair assim no meio dessa chuva!
— Não se preocupe comigo, policial Scott! — respondeu ela,
caminhando apressada por ali. Ou melhor, praticamente correndo. — Eu sei
me virar sozinha!
Da mesma forma que ela soube, no pub, quando aqueles caras a
pegaram?
Não. Pelo amor de Deus, não.
— Tá legal, Agatha! Eu te levo para o meu apartamento! — bradei
por entre os carros, pouco me importando com o quanto pudessem estar nos
considerando duas loucas. — Apenas, vamos!
Notei quando ela bufou, ao ouvir aquilo. Seus ombros subindo e
descendo bruscamente.
— Não quero! Não aceito caridades!
Caridades?
Porra, o tom de voz que ela usou era de quem tinha ficado ainda
mais puta e magoada. Puta e magoada. Uma combinação terrível. Droga, eu
só fazia merda. Suspirei. Talvez ela tivesse me interpretado mal, ou talvez
eu tivesse demorado demais para sugerir aquilo. Eu não queria deixá-la
daquele jeito, assim como também não queria que ela não fosse ao meu
apartamento. Na real, o meu desejo mesmo era que ela fosse. Que nós
ficássemos sozinhas, em um lugar particular, sem qualquer peso na
consciência, e totalmente livres para fazermos o que quiséssemos.
Era exatamente isso o que eu queria.
O problema era esse.
Esse era o motivo para eu ter negado, quase instintivamente, a sua
ideia de ir para lá.
Era só o medo. A porra daquele medo de cair em tentação.
Mas, foda-se isso. Pelo menos, por agora. Eu queria, sim, que ela
fosse ao apartamento. Não por caridade, mas por vontade. Pelo menos, por
aquela noite. Por aquela noite, eu iria me controlar e colocar limites nos
meus desejos, enquanto ela estivesse comigo.
— Não é caridade, Agatha! Eu quero que você vá! Olha, prometo
que faço chocolate quente pra você! E eu juro, eu juro que é uma delícia! —
Enfim, falei. — O melhor que você vai provar na sua vida!
Foi aí que ela subitamente parou, no meio do corredor de carros
engarrafados, e, devagarzinho, virou-se para mim, toda molhada, pingando
gotas pesadas daquela chuva absurda que ainda caía. Seu olhar, no entanto,
era de absoluta surpresa. Eu sentia como se tivesse conseguido atingir um
ponto fraco seu.
— O que disse? — Mais baixinho, ela perguntou, incrédula.
Suspirei de alívio por ela, enfim, ter realmente parado.
Graças a Deus.
Aos pouquinhos, como quem tomava cuidado para não deixar que
uma fera corresse, eu me aproximei. E, então, olhando nos seus olhos, com
total sinceridade, falei com muito jeitinho:
— Eu disse que quero que vá comigo, Agatha, e que faço chocolate
quente com pedacinhos de marshmallows pra você.
— Ahhhh... — Ela me encarou com os seus olhinhos,
repentinamente, brilhando de felicidade. — Chocolate quente com
pedacinhos de marshmallows? — E perguntou quase choramingando de
felicidade. Desgraçada linda. — Eu adoro chocolate quente com
pedacinhos de marshmallows.
E, de algum modo, depois de ouvir isso, o meu coração idiota virou
tipo uma gosminha derretida, quase formando uma pocinha como aquelas
no meio da avenida toda alagada.
— O Nick também adora — sorri, meio boba, me lembrando. —
Vamos... Vamos voltar logo para o carro, antes que a gente pegue um
resfriado com essa chuva. Eu faço chocolate quente pra você.
— Faz mesmo? — sorriu ainda mais, ainda com os olhinhos
brilhando.
— Faço... — garanti. — Mas, você vai ter que me prometer que não
vai me agarrar subitamente dentro do meu apartamento, nem tirar a roupa,
na minha frente, para tentar me convencer de qualquer coisa que eu não
devo fazer.
Embora isso fosse uma advertência, mesmo que em tom de
brincadeira, um pequeno sorrisinho escapou dos meus lábios.
Erguendo uma das sobrancelhas, astuciosa, ela apenas respondeu:
— Quem vai querer me agarrar primeiro é você, policial Scott.
E, ainda sorrindo, caminhou de volta para o carro.
O maior shipper “Zagatha” da face da
terra

Agatha

E você, caro leitor dessa linda quase-história-de-amor com a minha futura


mulher (quase, porque ainda não está completa, e futura, porque ela ainda
não sabe que vai ser a minha mulher - mas um dia ainda vai saber), deve
estar pensando: ah, ela fez chantagem emocional e blábláblá. Não, claro que
não. É óbvio que aquilo não foi uma chantagem emocional. Talvez só um
pouco. Mas, honestamente, eu fiquei puta mesmo. Digo... Sentida, triste e
puta. As três coisas, quase ao mesmo tempo.
Primeiro, fiquei sentida pela maneira bruscamente ríspida com a
qual ela negou a minha ideia de irmos para o seu apartamento. Talvez se ela
tivesse sido um pouco menos incisiva... Ah qual é? Eu estou por ela que
nem o Greg, quando fala para o Chris: “Cara, ela tá tão na sua!”. Depois,
fiquei triste ao me dar conta de que, por pior que isso fosse, eu não chegava
aos seus pés. Enquanto ela era uma policial foda, eu era só a “garota-
problema” que não largava o seu pé. E me sentir inferior a alguém era a
primeira vez que me acontecia. Por fim, eu fiquei puta quando, em menos
de cinco minutos depois de dizer que não me levaria ao seu apartamento,
ela retrocedeu só porque eu saí naquele dilúvio. Por favor, ela achava o
quê? Que era idiota? Eu não aceitava caridades.
Mas, bem, eu confesso: tudo mudou quando ela falou sobre o
bendito chocolate quente com pedacinhos de marshmallows. Tá legal, tá
legal. Não era só pelos marshmallows, mas, sim, porque aquilo, no fundo,
embora ela não soubesse, era muito pessoal para mim.
Evangeline era a única pessoa, na vida, que fazia chocolate quente
com pedacinhos de marshmallows, para mim, desde que eu era criança e
mamãe se foi. Eu adorava. Eu realmente adorava isso. Tinha gosto de
cuidado, cheiro de afeto. Então, quando Zara falou foi como um gatilho. O
modo sincero como ela disse, o carinho que ela expressou não somente com
palavras, mas também com todo o seu semblante. E, agora, o fato de eu
estar entrando no seu apartamento pela segunda vez. Tudo isso fez com que
algo, dentro do meu peito, voltasse a pulsar, quentinho e entusiasmado, e o
meu humor retornasse na forma de um sorriso que já não saía mais do meu
rosto.
Ainda demoramos alguns minutos para conseguirmos alcançar o
primeiro retorno. Mas, depois que saímos daquele inferno, foi uma
maravilha. Rapidinho, chegamos ao seu prédio. E, meu Deus, eu mal
conseguia acreditar que estava ali de novo, em um espaço de tempo tão
curto. Eu podia estar parecendo uma garotinha estúpida, idiota e sonhadora,
mas eu também não poderia negar o quanto, estar ali, me deixava feliz.
Além do mais, eu já tinha praticamente desistido de lutar contra mim
mesma. Era hora de jogar a toalha naquele tatame e me dar por vencida. Na
briga entre a razão e o coração, o meu ego tinha perdido para a vontade de
ficar com aquela mulher de novo.
Essa era a verdade.
Quando Scott abriu a porta do seu apartamento, tudo estava escuro e
silencioso. Já era de noite. Talvez passasse das sete. E, bem, se tivéssemos
esperado todo o engarrafamento passar, eu teria chegado muito mais tarde
em casa, e ela também. Foi então que os seus dedos encontraram os
interruptores e as luzes da sala se acenderam. No momento em que tudo
clareou, nossas roupas molhadas, daquela chuva fenomenal que tomamos,
tornaram-se ainda mais evidentes. Meus cabelos ainda pingavam, assim
como a sua farda parecia mais pesada que o normal. Tudo formando
pocinhas d’água no chão.
— Acho melhor tirarmos logo essas roupas... — disse ela, antes de
qualquer coisa. — Já estamos molhadas assim há tempo demais. Isso é um
convite para o resfriado.
— Ah, tá bom... — dei de ombros. — Já posso começar, então? —
E fiz menção de subir meu vestido ali mesmo, no meio da sala e na frente
dela.
Porém...
— Ah, não, não... — De pronto, ela praticamente segurou as minhas
mãos, me interrompendo. — Você pode fazer isso no quarto.
No quarto?
Hehehe.
Tudo bem. Parou, parou. Olha a brincadeira, Agatha.
Sentir o seu toque era uma coisa meio estranha. Tudo em mim,
subitamente, retesava, como em um piscar de olhar. Tipo um estado de
alerta. Mesmo assim, com toda a carga de tensão que, vez por outra, saía
dos nossos corpos e sobrevoava as nossas cabeças, eu ainda quis rir. No
fundo, essas tentativas de fugir, de qualquer tentação minha, eram
engraçadas. Eu só queria saber até quando ela resistiria ao fato de que
estava, claramente, com tanta vontade quanto eu.
— Ok — Soltando uma risadinha, eu a segui.
Acompanhando-a na direção que ela indicava, caminhamos pelo
apartamento. Suspirei, satisfeita. Era bom estar ali. De alguma maneira, eu
sentia certa familiaridade, conforto e até... Aconchego. Como se aquele
lugar também fosse meu. E isso era algo que, evidentemente, ia muito além
da clara organização e limpeza dele. Zara parecia deixar tudo nos seus
devidos lugares. O meu bem-estar, porém, era muito mais subjetivo do que
objetivo. Não dependia de fatores materiais, mas apenas do único e simples
fato de que o apartamento tinha um clima diferente. Talvez porque fosse
dela.
Lugares simples nunca me chamaram atenção. Mas, tudo o que
tinha a ver com ela, parecia ganhar um significado muito maior do que
realmente possuía. Talvez todo lugar se tornasse bom, ou minimamente
aceitável, só por ela estar presente. Até mesmo a maldita penitenciária.
Ainda pensei em perguntar onde o Nick estava, já que, novamente,
eu não o via ali. Entretanto, antes que eu pudesse falar qualquer coisa,
lembranças tomaram a minha mente, quando chegamos ao quarto dela. Meu
peito se agitou por estar ali mais uma vez. E, quando eu virei meu rosto em
direção a sua cama, a sensação nostálgica, de uma lembrança tão recente,
foi incomensurável. Eu tinha certeza de que, se eu olhasse para lá, por mais
do que meros segundos, ainda poderia nos ver em cima do colchão, sobre os
lençóis, fazendo uma das coisas mais gostosas que eu já tinha
experimentado na minha vida.
Sim, era verdade que eu já tinha beijado muitas mulheres.
Mas, não uma mulher como Zara Scott.
Ela era única. Edição limitada.
— Troque sua roupa por essa blusa e esse short — ergueu para mim,
me tirando dos meus devaneios, após vasculhar seu armário. Tão
mandona... Eu odiava e adorava isso na mesma medida. — Quando
terminar, você pode colocar sua roupa na máquina de lavar, ok? Amanhã de
manhã, já deve estar seca — disse ela, fazendo menção de se virar para sair
do quarto, enquanto segurava uma roupa limpa para si também, quando, de
repente, parou e volveu o corpo para mim novamente. — Ah, se importa de
eu colocar a minha farda junto com o seu vestido pra lavar?
A farda junto com meu vestido?
Eu te juro que o meu caso era bem sério.
Um sorriso estupidamente bobo quis estampar o meu rosto,
enquanto eu a fitava feito uma idiota, como se ela tivesse acabado de me
falar algum tipo de declaração de amor.
Caralho, se ela quisesse, poderia até colocar nossas escovas de
dentes juntas no banheiro, nossas calcinhas umas por cima das outras no
armário. Se ela quisesse, eu até tiraria todas as minhas roupas do meu
closet enorme e maravilhoso, só para dividir, com ela, a porra de um
guarda roupa minúsculo.
— Não, sem problemas — Apenas respondi, como se, dentro de
mim, um milhão de fogos de artifícios não estivessem explodindo.
— Ok.
E, saindo dali, ela encostou a porta do quarto, provavelmente para
me dar a tal privacidade, na hora de trocar a roupa. Suspirei. Por mim, ela
poderia continuar ali, observando. Ou melhor, se quisesse tirar a minha
roupa, com suas próprias mãos, também não teria problema algum. Apenas
soluções. Mas, isso só aconteceria em um universo paralelo. Infelizmente.
Tirei a minha roupa toda molhada, vestindo outra limpinha,
enquanto respirava profundamente o seu cheiro impregnado no tecido.
Provavelmente, era um daqueles perfumes que se comprava em revistas,
mas, sem dúvidas, o cheiro ainda conseguia ser muito bom. Para completar,
talvez o meu coração estúpido nunca se acostumasse com o fato de estar
vestindo as suas roupas. Isso era... Tão íntimo, tão... Casal...! Aaaaah! No
fundo, eu só queria sair correndo e gritando de entusiasmo, por todo o
apartamento, com aquela vibração incomum, no peito, que não me largava
nem um segundo.
Por mais incrível que pudesse parecer, Agatha Ballard estava se
sentindo feliz e confortável com aquelas roupinhas de lojas de
departamento. E olha que Agatha Ballard nunca dispensou suas Gucci nem
Karl Lagerfeld.
Ainda tentei lutar contra uma vontade absurda de me jogar na sua
cama e rolar de um lado para o outro, como se aquilo, de algum modo,
pudesse suprir a minha vontade de, na verdade, me esfregar no corpo dela.
Mas, pensei que ela pudesse me pegar no flagra, que nem no domingo de
manhã, quando eu estava fazendo exatamente isso... Me enrolando e me
amassando em meio aos seus lençóis, numa genuína alegria de uma colegial
que tinha acabado de ficar a garota mais foda da escola.
Mesmo assim, era só eu ter paciência. Mais alguns minutos ou
horas, e eu estaria deitada novamente ali. Eu apenas precisava esperar.
Tinha certeza de que, por puro cuidado comigo, Zara jamais me deixaria
dormir em outro lugar do apartamento que não fosse ali. E, meu Deus, eu ia
dormir no seu quarto de novo! AAAA! Respirei fundo. Tá bom, tá legal,
Agatha. Segura as pontas, mulher, senão daqui a pouco você terá uma
hemorragia nasal. Foi o que eu pensei, segundos antes de tentar retomar a
compostura e abrir a porta, para seguir na direção da lavanderia do
apartamento.
Quando saí do quarto e caminhei displicentemente por ali, todos os
meus pensamentos, de súbito, se tornaram uma grande massa cinzenta e
nublada, enquanto minhas pernas viraram pura geleinha de merda, ao
visualizar aquilo, depois de passar pela cozinha e me aproximar da área de
serviço que ficava ao lado. Do reflexo de um espelho por ali, eu pude ver a
Xena, dentro da lavanderia, tirando o colete, a blusa e todo o restante da
farda, ficando apenas de calcinha e sutiã. Instintivamente, parei no meio do
caminho, engolindo a seco.
Aquele bendito reflexo no espelho.
Minha respiração travou por alguns segundos, ao mesmo tempo que
meus olhos, gradativamente, dobraram de tamanho. Salivei, querendo
chegar mais perto. Sei lá, me aproximar de alguma forma, mesmo que eu
soubesse que não podia fazer isso. O problema era que, caralho, essa era
primeira vez que eu a via só de calcinha e sutiã (aquele episódio no
banheiro da penitenciária não contava muito, porque ela estava vestida da
cintura para baixo), e...
Puta que pariu.
Que corpo, meu Deus... Que corpo. Essa mulher seria capaz de
fazer um estrago comigo.
Gostosa pra cacete.
E, assim, eu fiquei ali, paralisada com aquela visão e com toda a
umidade que já queria escapar por entre as minhas pernas, mesmo após ela
vestir a roupa. Tentei respirar fundo, para me recuperar. Tentei pedir por
uma ajuda divina, mas nada dava um jeito de eu voltar ao normal, exceto...
Exceto quando eu, enfim, a vi caminhar em direção à porta da
lavanderia.
Puta merda, ela ia me ver!
Girei sobre os meus pés, nervosa, quase desesperada. Ainda olhei de
um lado para o outro, procurando uma luz no fim do túnel, uma saída, ou
qualquer merda que servisse para eu disfarçar e não deixar muito evidente
que eu estava descaradamente a observando e, claro, a secando.
Pensa, Agatha. Pensa, porra.
Volvi novamente o pescoço para todos os lados, em questão de
segundos, e, como se os céus estivessem ouvindo as minhas preces, notei
uma vassoura encostada a uma das paredes. Subitamente, coloquei minha
roupa molhada sobre o ombro e segurei a vassoura entre as mãos, fingindo
estar tirando a poeira por ali.
Atriz mesmo.
Só que não.
Logo eu, que estava fugindo de faxinas e de quaisquer trabalhos
manuais, como o diabo fugia da cruz, porque a porra da penitenciária já
conseguia sugar todas as minhas energias para serviços domésticos, por,
pelo menos, uns vinte anos.
— Ah... Você tá... Aí? — disse ela, ao cruzar a porta e me ver. —
Varrendo...? — franziu o cenho.
Ai, meu Deus, ela achou estranho.
— É-É... — soltei uma risadinha meio desconcertada. — E-Eu tô
sim... — pigarreei a garganta numa tentativa fracassada de parecer normal.
Algo que não aconteceria nem em um milhão de anos, especialmente depois
de vê-la só de calcinha e sutiã. Eu jamais pareceria normal, depois disso. —
Mas, enfim... — joguei a vassoura para o lado, quase teatral. — Melhor eu
ir colocar logo esse negócio na máquina — e chacoalhei minha roupa
molhada.
— Tá... Tá bem... — Ainda me observando como se eu tivesse umas
quatro cabeças em cima do pescoço, ela continuou. — Bom... Eu já
coloquei minha farda na máquina... — e entrou comigo na lavanderia. —
Pode colocar a sua roupa aí também.
Olhando ao redor, com o coração ainda saltando na boca da
garganta, respondi qualquer merda, na tentativa de quebrar o gelo eu ainda
sentia. Ou, na verdade, a combustão completa do meu corpo. Isso sim.
— Uau... Até onde eu sei, máquina de lavar em casa significa
independência total...
Ela sorriu de leve, balançando um pouquinho a cabeça.
— Pois é... — coçou a testa de leve. — É uma questão de
necessidade. Sem ela, eu estaria ferrada por trabalhar fora e ainda ter que
dar conta de tudo aqui no apartamento. Mas, enfim... — suspirou, franzindo
um pouco o cenho, ao perguntar. — Será que você pode colocar o sabão,
ligar a máquina e, enfim... Colocar as roupas para lavar? Pode fazer isso
enquanto eu vou lá na cozinha preparar o chocolate quente?
Espera aí.
Não.
Não, não, não.
Não podia ser.
Minha cabecinha de vento, rapidamente, começou a contabilizar
algumas coisinhas, tipo: vestir suas blusas e shorts, colocar nossas roupas
para lavar juntas, e ainda ajudá-la com o trabalho, enquanto ela preparava
o nosso chocolate quente, era muito coisa de casal!
AAA, era casal demais!
De-mais!
Socorro.
Eu quis sair correndo, pulando e dando cambalhotas que nem uma
abestada.
Porém, tudo o que eu fiz foi:
— É... Cla-Claro! — Quase me engasguei entre as palavras,
tamanho entusiasmo. Meus olhinhos brilhando por ela, finalmente, estar
agindo como se nós fôssemos duas pessoas comuns e normais, que
compartilhavam uma vida doméstica, e não a policial e a infratora. — Pode
deixar. E-Eu coloco sim!
— Ótimo — respondeu ela. — Então, eu vou lá.
E, com uma breve piscadinha de olhos, saiu.
Puta que pariu, ela piscou o olho pra mim.
Para. Mim.
Ah, eu ia morrer!
Meu Deus, o meu caso estava se tornando realmente sério. Até
parecia que eu nunca tinha me envolvido com alguém, nem transado na
vida. No fundo, eu já começava a sentir vergonha de mim mesma.
Mas, foda-se.
Foda-se.
Ainda sorrindo que nem uma boba, fiquei olhando para a porta até,
enfim, suspirar, como se estivesse quase flutuando, e, compassadamente,
me virar para fazer o tínhamos combinado. Com a cabeça nas nuvens, fitei a
máquina.
Porra, eu nunca tinha usado uma máquina de lavar.
Constatei.
Na minha casa, deviam ter umas quatro ou cinco dessas, mas, bem,
não era eu quem manuseava elas. Eram os funcionários. Eles tinham
bastante prática nisso. E, agora, de frente para uma, eu não sabia direito
onde apertar.
Suspirei.
Gradativamente, aquele sorrisinho bobo foi diminuindo, à medida
que eu tentava entender como o troço funcionava. Encarei, então, o painel,
como se aquilo fosse uma nave espacial ou algo do tipo e... Droga, deveria
ter um manual por ali. Coisa complicada. Meus ombros se curvaram com
certo desânimo. Balancei a cabeça. Era melhor eu colocar logo o sabão.
Estiquei o pescoço, procurando ali por cima o tubo de sabão. E não
demorei muito para achá-lo. Era um que tinha escrito “lava roupas”. Só
podia ser aquele, afinal. Abri a tampa, mas, quando comecei a despejar o
líquido dentro da máquina...
— Você gosta de torradas...?!
Ouvi ela gritar lá da cozinha.
Ai, aquela voz maravilhosa.
— Sim, eu gosto! — repliquei, de pronto.
Com a minha atenção lá na puta que pariu, ou melhor, lá na mulher
que levava embora a minha dignidade e que estava lá na cozinha, fazendo
chocolate quente com pedacinhos de marshmallows e torradas,
especialmente para mim, eu só percebi que, mais da metade do tubo de
sabão, escorreu para dentro da máquina, quando tudo ali já estava melado
por aquele líquido azul.
Ai, droga!
Sibilei alguns palavrões, enquanto, ligeiro, erguia o tubo para fechá-
lo.
Suspirei.
Está tudo sob controle, Agatha. Tudo sob controle!
Era o que eu tentava mentalizar.
Fitei novamente o painel daquela nave alienígena e... Que saco...
Desde quando uma máquina de lavar precisava de tudo isso? Enruguei
ainda mais a testa. Eu também não estava disposta a chamar Zara para me
socorrer. Ela tinha me pedido para fazer aquilo e eu não queria passar
vergonha por não saber nem ligar a porcaria de uma máquina de lavar. Tudo
bem. Estava tudo bem. Não podia ser tão difícil... Cliquei em lavagem
pesada. Afinal, estávamos não apenas completamente molhadas de chuva,
mas também sujas de lama. E coloquei no mudo turbo pro-max. Talvez o
modo turbo pro-max lavasse mais rápido, né? Fazia sentido.
Prontinho.
Finalmente, cliquei em iniciar.
Em poucos segundos, a máquina começou a trabalhar, enquanto a
água caía lá dentro.
Suspirando, com a sensação de dever cumprido, me virei,
encostando-me a ela, com um sorrisinho no rosto.
Tudo sob controle. Nem foi tão difícil.
E, assim, fiquei um tempinho apenas visualizando cada coisinha da
área de serviço. Os tubos de produtos de limpeza separados
categoricamente, as roupas sujas e limpas colocadas em compartimentos
diferentes do armário, o cheirinho de limpeza que perfumava não somente
ali mas o apartamento inteiro. Zara parecia ser tão organizada.
E era tão legal estar ali!
No fundo, eu quis dar um gritinho de entusiasmo, mas me contive.
Porém, repentinamente, como se a alegria de infratora caidinha por
policial durasse pouco, ou pior, como se as portas do inferno tivessem sido
abertas, algo bem esquisito começou a acontecer. Enquanto eu estava
encostada à máquina, simplesmente percebi gradativas bolinhas de sabão
voando por ali, junto com uma espécie de espuma que se espalhava pelas
minhas mãos e molhava minha roupa. Franzindo o cenho, com o coração já
acelerando de nervoso, eu me virei para saber que porra era aquela.
Foi quando eu vi um monte, eu disse um monte, de espuma
escorrendo pela tampa da máquina e formando imensas nuvens de espumas
no chão. Ai, caralho! Que diabo era isso? O desespero bateu na minha
garganta. E, à medida que os segundos avançavam, a quantidade daquela
porra que jorrava pelas frestas da máquina só parecia aumentar. E aumentar.
E aumentar.
Merda, merda, merda.
Arregalei os olhos, tentando aparar, com os braços, todo aquele
monte de espumas e jogar na pia ao lado. O pesadelo era que, quanto mais
eu aparava, mais saía. Parecia uma praga, que saco! Por que tudo tinha
que acontecer comigo? Logo agora! Bufei, agoniada e sozinha, naquele
show de sabão, bolhas e espumas.
— Não acredito, não acredito! — Eu gritava em sussurros, comigo
mesma. O coração saltando pela goela, enquanto eu continuava aparando as
espumas, mas completamente sem sucesso. — Ai, não. De novo não! Eu
sou muito azarada!
Será que já não bastava o desentupidor de privada quebrado? O
aspirador de pó queimado? E o choque com aquela maldita lâmpada?
Agora tinha que ter também a máquina de lavar possuída?!
— Por favor, para! Para com isso! — Agoniada, eu tentava
conversar com a máquina de lavar. Ou melhor, suplicar para que encerrasse
o showzinho. Eu. Não. Sabia. O. Que. Fazer. AAAAA! — Para, cacete! — E
apertei, de qualquer jeito o painel, procurando o botão de desligar. Porém,
mesmo achando aquela carniça, cliquei trezentas vezes e a máquina não
desligava. — AAARGH! Isso é um pesadelo! Essa máquina tá mesmo
possuída!
— Agatha... Tá tudo bem? — Ainda ouvi quando Zara, lá da
cozinha, perguntou.
Ai, meu Deus, ela podia ver isso! Ela ia me matar e, depois, nunca
mais olharia na minha cara!
— T-Tá! Tá tudo bem sim! — E, simplesmente, fechei a porta da
lavanderia, para que ela não desse de cara com a patifaria.
Quando me tranquei naquele cubículo, a situação parecia ainda pior.
Espumas se espalhavam por todo, eu disse todo, o chão! Meu Deus do céu.
Corri de novo para a máquina, tomando todo o cuidado para não escorregar,
e continuei clicando sobre o painel, mas nada, absolutamente nada
acontecia, a não ser aquele monumental show pirotécnico de bolhas,
espumas e sabão.
— Ai, que droga! — estiquei o braço para alcançar a torneira, atrás
da máquina, onde fechava a geral, mas, no desespero... — AAAA! —
exclamei de susto, quando a mangueira se soltou e começou a jorrar água
na minha cara. — Que inferno! Alguém tem que trazer água benta pra te
exorcizar, sua filha da puta!
Como se não bastasse, em uma das minhas últimas tentativas de
fazê-la parar, abrir a tampa da máquina, para ela pausar, mas a maldita
apenas começou a vomitar ainda mais espumas, terminando de melar tudo o
que faltava. Absolutamente tudo. Eu, a área de serviço, as paredes. Isso sem
falar no chão, que mais parecia um mar de espumas.
— SOCORRO!
Foi então que eu vi a porta se abrindo e a Zara olhando toda aquela
cena de guerra.
— Ah, meu Deus...! — Boquiaberta, exclamou.
— Essa sua máquina é assassina! — gritei, desesperada e cheia de
sabão na boca.
— Espera aí, eu tô indo! Calma! — disse ela, entrando rapidamente
na lavanderia e na chuva de espumas e bolhas de sabão. — Fica calma! —
E, então, em meio àquilo, se equilibrando por ali, ela quase se enfiou entre a
máquina e a pia, conseguindo alcançar a geral que ficava atrás, e,
finalmente, fazendo-a parar. — Pronto! — disse ela, dando uma bela
respirada profunda.
Desolada, observei tudo ao redor. A destruição. O meladeiro. O
chão coberto de espumas. As paredes molhadas. E aquela sensação de nó
subindo pela garganta, misturada com lágrimas prestes a romper os meus
olhos, foi inevitável.
— Ai, meu Deus, me desculpe! — Disparei, choramingando, ainda
desesperada com a bagunça. — Me desculpe, me desculpe! E-Eu não sei o
que houve... Eu só tava aqui... E do nada começou a sair o negócio e... —
Me embananei, com as palavras, nervosa. Eu mal conseguia falar. — Não
sei fazer nada direito!
De súbito, porém, em meio àquela abanada de mãos, sem querer, me
desequilibrei por ali. Tudo aconteceu muito rápido. Tentando me segurar
em alguma coisa, puxei o braço da Zara e, surpresa pela velocidade do meu
toque, a levei ao chão junto comigo. Escorregamos nós duas, entre as
espumas. Completamente molhadas mais uma vez, só que, agora, não era de
chuva. Era de água e sabão.
Quando eu pensei que ela fosse me dar a maior bronca, no entanto,
risadas romperam o ar. Quase não acreditei naquilo. Ainda pisquei os olhos
repetidas vezes, enquanto nós estávamos estiradas no chão, para ter certeza
de que eu estava presenciando mesmo aquilo. Eu nunca tinha a visto
gargalhar daquele jeito. Leve, descontraída, despreocupada. Em nada se
parecia com a policial Scott que eu via diariamente na penitenciária. Era
tão... Bom. Incrivelmente bom.
Era maravilhoso.
O gelo do meu corpo, repentinamente, se aqueceu com o quentinho
do meu coração.
— Você ainda vai me matar, garota... — disse ela, balançando a
cabeça, em meio aos risos.
Tão absolutamente tranquila.
Sublime.
E eu até poderia ter ficado envergonhada pelo incrível papelão, mas
o seu bom humor era tão lindo e tão contagiante, que eu não consegui me
segurar. Quando dei por mim, eu já estava gargalhando junto com ela, caída
no chão, ensopada, no meio da zona de espumas.
— Então, é isso... O que eu posso dizer? Eu sou patética,
desastrada... Uma grande azarada! Eu desisto! — falei em meio aos risos.
— Ah, para de drama... — Rindo, ela também falou.
E, subitamente, começou a jogar espumas em mim, brincalhona de
uma maneira como eu nunca tinha visto. Surpresa e absolutamente
empolgada com aquela nova face de Zara Scott, arregalei os olhos e abri a
boca, divertida. Em menos de dois segundos, nós já estávamos no meio de
uma guerrinha ali, entre risos, gargalhadas, sabão e espumas. Eu jogando
nela, ela jogando em mim.
Isso, até um pouco de sabão salpicar nos meus olhos.
— Au... — disse eu, fechando os olhos ao sentir a ardência.
Não era muito. Foi só de leve.
Mas, ainda assim...
— Ow... — Zara, de súbito, parou, preocupada. — Tá doendo
muito? Espera aí, deixa eu ver... — E chegando bem pertinho de mim,
tocou o meu rosto.
Sim, eu era tão boba que, apesar dos olhos vermelhos, eu não pude
resistir àquela proximidade. Mesmo com certa dificuldade, os abri para
admirar seu rosto tão perto do meu e o seu corpo quase colado comigo.
Daquele jeitinho que eu sonhava estar com ela, desde que ficamos pela
primeira vez, no domingo. Ou até antes disso.
Eu não fui a única a notar, porém.
Ela também.
E eu engoli seco, quando suas íris desceram dos meus olhos para a
minha boca, fitando-a por mais tempo do que parecia normal. Quase
contemplativa, enquanto também quase me fazia esquecer da ardência. No
fim das contas, talvez Zara Scott fosse a cura ou mesmo um analgésico para
olhos ardidos de sabão. Isso porque, ali, daquele jeito, a única coisa que eu
conseguia pensar era no quanto ela era maravilhosa, no quanto eu queria
beijá-la e no quanto ela também parecia querer o mesmo que eu.
Transitando suas orbes entre os meus olhos e a minha boca, eu não
pude pensar em outra coisa. Ela queria sim. E as regras da penitenciária que
me perdoassem, mas eu ia beijar aquela mulher.
Porém...
— Uau! Que legal! Guerra de sabão! — A voz estridente de uma
criança soou por ali, quando, de repente, entrou correndo e... — Ow! —
escorregou para perto de nós, nos fitando. Seus olhinhos absurdamente
arregalados e sua boca com um sorriso enorme. — Pera aí... Vocês iam se
beijar?!
Era o Nick, empolgado, vibrante e... Aparentemente, o maior
shipper “Zagatha” da face da Terra.
Não é só fogo

Zara

Tudo bem, tudo bem. Nick, vamos com calma. Com calma, querido. Isso
não é uma situação de crise, nem de risco. Eu só estava mesmo com...
VONTADE DE BEIJÁ-LA.
Ai, meu Deus.
De todas as horas que o meu filho tinha para aparecer (tipo assim,
incluindo todos os oitenta seis mil quatrocentos e quarenta segundos do
dia), ele precisava surgir ali, justo no momento em que os meus lábios
estavam quase tocando os dela. Para completar, ainda falava sobre aquilo
em alto e bom som, para eu me convencer, de uma vez por todas, que estava
mesmo maluca por aquela garota. Pelo menos, eu praticamente fui salva,
por ele, de cometer o tal “crime”. Mas, ainda assim, as coisas precisavam
voltar aos trilhos pra já.
— Querido, que surpresa! — disse eu, sorrindo e já o puxando para
um abraço. — Não ouvi você passando pela porta... Onde estão as tias Mad
e Ava?
— Claro, mamãe... — Me encarou com obviedade, ao passar os
braços pelo meu pescoço, me abraçando e pouco se importando com a
minha pergunta. — Você estava quase beijando ela... Não prestava atenção
em nada. E eu vi a cara de vocês — soltou uma risadinha traquina. — Ah,
oi! — acenou, espevitado, para Agatha. — Legal te ver aqui! Posso brincar
de guerra de sabão com vocês também?
Esse garoto estava cada dia mais esperto. O que era uma bênção,
sem dúvidas. Mas, também, um motivo adicional para eu ficar de olho no
que ele dizia ou fazia.
— O-Oi, pequeno homenzinho! — A loira respondeu, sorrindo
simpática, com as sobrancelhas meio arqueadas, puramente admirada com
ele. — É bom ver você também! Gostou da bagunça que fizemos aqui? E,
sim, vamos brincar! Vem logo pra cá! — gesticulou com as mãos, fazendo-
o se soltar de mim, todo entusiasmado.
Em poucos segundos, ele estava mergulhado e molhado no meio
daquelas grandes nuvens de sabão que estavam por todas as partes.
Divertidos, jogavam espumas um no outro, até mesmo em mim. Claro que
Agatha parecia estar tomando todo o cuidado para não atingir os olhos dele,
mas, ainda assim, a brincadeira estava grande. Risadas e gargalhadas, dos
dois, ecoavam por todos os lados, como se eles se conhecessem há tempos,
não há três semanas, quando Nick deu uma passada na penitenciária. Isso
era realmente curioso.
Durante alguns instantes, me permiti observá-los, enquanto
brincavam e se molhavam por ali. Apesar do Nick ser uma criança ótima e
simpática, não era com todo mundo que ele se abria assim, logo de cara. Da
mesma forma, era novo, para mim, o quanto Agatha parecia ser uma pessoa
tão agradável com ele, diferente daquela garota arrogante que eu tinha
conhecido. Talvez ela gostasse de crianças. Era uma boa explicação para
isso. E, bem, eu não podia negar o quanto era uma cena realmente bonita
vê-los assim, se divertindo.
Um sorriso brincou nos meus lábios, à medida que o meu coração se
aquecia com eles dois juntos, daquela maneira.
Agradável...
Novo...
Mas...
Familiar.
Só que aí me lembrei que já passava das nove horas da noite e que o
máximo que eu permitia deixá-lo acordado era até às nove e meia,
estourando dez horas.
— Tá bem, tá bem... Já chega...! — Soltando uma pequena
risadinha, tentei fazê-los parar. — Precisamos colocar as coisas em ordem
por aqui. E você, mocinho, precisa tomar um banho e jantar, para dormir —
completei, já o puxando de volta para mim e lhe dando mais um abraço
gostoso, seguido de muitos beijinhos.
Quando olhei de relance para o lado, pude perceber, mesmo de
maneira desproposital, o olhar quase contemplativo que Agatha oferecia,
enquanto me observava enchê-lo de cheirinhos e abraços. Seu sorriso não
saía por nada do rosto e suas orbes brilhavam a cada demonstração minha
de afeto e carinho com Nick.
Ele, no entanto, protestou:
— Ah não, mãe... Por favor... Aqui nunca teve uma espuma dessa!
Claro... Essas espumas só poderiam estar ali por causa de Agatha
Ballard.
Porém, no exato instante que se calou, foi quando Madison e Ava
apareceram bem na porta da lavanderia. As sobrancelhas arqueadas não
escondiam o quanto estavam surpresas com aquela quantidade de espumas
por todos os lados, mas os seus olhares se fixaram mesmo sobre Agatha, e
foi nela que todas as suas atenções se depositaram.
Ai não.
Eu ainda não tinha passado no apartamento delas, para buscar o
Nick, justamente por causa disso... Para que não soubessem da presença da
garota ali e, consequentemente, para que eu não tivesse que responder a um
longo interrogatório. Não que eu estivesse tentando, de fato, esconder a
garota, ou algo do tipo. Mas, eu já conhecia Madison e Ava suficientemente
bem, para saber que elas iam me pilhar pra caralho, só porque eu tinha a
levado para o meu apartamento.
Madison diria para eu comer Agatha sem pensar no amanhã,
enquanto Ava suplicaria para que eu, pelo amor de Deus, não me
envolvesse com a loira e acabasse ainda mais fodida do que na outra vez.
De um jeito ou de outro, elas não me deixariam em paz.
Só que, agora, de frente para as duas e para aqueles semblantes
chocados, eu tinha certeza absoluta de que não poderia fugir disso.
Droga.
— Mad! Ava! Oi! — forcei um sorriso e me levantei rapidamente do
chão, passando pela porta e pegando as duas pelos braços, para que elas
saíssem dali, mesmo que fosse para um corredor que ficava a meio metro de
distância — Olha, muito obrigada mesmo por ficarem mais um dia com o
Nick e por trazerem ele aqui. Mas, agora, nós estamos meio ocupadinhos
viu? — soltei uma risadinha falsa. — Depois eu falo com vocês, meninas!
Tchau tchau! — E já fui tentando empurrá-las dali, por mais que eu odiasse
tratá-las desse jeito.
A situação, no entanto, pedia para que eu agisse assim.
Do contrário, toda a tensão, que eu já carregava por ter interesse na
garota, ficaria ainda pior.
— Pera aí, pera aí, pera aí! — Erguendo bruscamente uma das
mãos, Madison me parou. — Eu sei muito bem o que você está tentando
fazer, sua espertinha! Está querendo que a gente dê o fora daqui, para não
sabermos quem é a garota. Mas, sinto lhe informar, já era. Agora, a gente
quer saber quem é. Desembucha!
Argh, que saco.
— Não é ninguém — repliquei de pronto. — Ninguém importante.
Ava, por sua vez, me ofereceu um belo olhar de tédio.
— Se não fosse alguém importante, você não estaria agindo assim.
Vai, diz logo quem é essa daí! — exclamou em um sussurro.
Droga, droga, droga.
Balancei a cabeça, suspirando e quase rolando os olhos em puro
cansaço.
Elas não me deixariam em paz, enquanto eu não dissesse.
— É a garota que eu estou supervisionando na penitenciária — disse
baixinho, fraco, quase sem jeito.
— O quê?! — Esbugalhando os olhos, Mad por pouco não se
engasgou entre as suas próprias palavras. — Aquela é a garota?! Meu Deus,
ela é uma gata!
Puta que pariu.
— Fala baixo, cacete! — gritei em um sussurro, entredentes.
Se Agatha ouvisse aquilo...
Ava bufou, disparando, mesmo que em tom menor que Madison:
— Zara, pelo amor da deusa! O que essa menina está fazendo
aqui...?! — franziu o cenho, claramente já preocupada com o perigo que eu
poderia representar à loira e ela a mim. — E você, Madison, calada — fitou
a namorada com olhares que não escondiam o leve ciúme pela expressão
“meu Deus, ela é uma gata!”.
— Ué, ela é uma gata mesmo... — A outra, confusa, encarou a
namorada, respondendo. — Eu apoio! — E sorriu, sacana, para mim.
Tipo assim: “vai que é tua, Zara!”.
— Jesus Cristinho... — Após colocar dois dedos na testa, Ava
fechou os olhos, balançando a cabeça em negação e respirando fundo, até
que... — Não tem essa de gata! — disparou. — Existem outras gatas por aí
que não vêm com o selo de menor infratora e com a sua carta de demissão!
— puxou o ar. — Se essa garota está aqui, então Nick estava certo! Você a
quer!
Em um universo paralelo, eu até poderia rir das duas, porque, no
fundo, eram engraçadas. Mas, naquela situação, não. Ali, eu não tinha como
rir. Muito pelo contrário, eu só conseguia ficar ainda mais tensa com esse
bombardeio de palavras que eu não queria ouvir, nem permitir que Agatha
escutasse.
— Aí, você duas, parem! — exclamei, fazendo de tudo para não
falar tão alto, muito embora isso já estivesse quase se tornando impossível.
— Está tudo sob controle, tá legal?! Chega. Respirem. Vai dar tudo certo.
— Mas, amiga, assim, se quiser pegar, ela é tipo como ganhar na
loteria — Mad só faltou finalizar com um “hehehehehe”.
— Você é tão sem noção...! — Ava revirou os olhos.
Porra, elas não iam parar.
— Ok, ok, ok — ergui as duas mãos, como um sinal para
encerrarem aquilo. — Eu já entendi que, para a Mad, ela é como o paraíso,
e, para Ava, ela é o próprio capeta sentado no seu troninho com um tridente.
Agora, fiquem calmas, antes que vocês tenham uma hemorragia nasal —
puxei o ar, buscando por um fôlego de quem acabou de correr trezentos
quilômetros. — Eu já disse que está tudo sob controle. Não vai acontecer
nada aqui. Ela vai já embora para casa — menti. — E vocês podem voltar
para o apartamento, jantar, descansar e dormir, tá legal? Depois a gente
conversa e eu explico o motivo dela estar aqui.
No fundo, eu não ia explicar porra nenhuma. Eu realmente apenas
esperava que elas esquecessem tudo aquilo.
— Você promete? — Ava suspirou. — Posso confiar que vocês não
vão passar a noite inteirinha transando e que, depois, você não vai ser
demitida?
Deus, Ava talvez fosse mais traumatizada com o meu passado do
que eu mesmo.
— Eu prometo, amiga!
— Vou nem dizer o que eu penso sobre isso, porque eu não tenho
dinheiro para pagar os advogados do processo que Ava vai colocar em cima
de mim — Zoando, Mad falou.
— É melhor mesmo — Erguendo uma das sobrancelhas, quase
intimidadora, Ava replicou.
Por muito pouco, eu não ri. Ainda estava meio tensa com tudo
aquilo.
Suspirei.
— Então é isso, vão lá — E me deixem finalmente em paz. — Já
disse. Não vai acontecer nada demais. Ela está indo embora já já.
— Tá bem, tá bem... Nós vamos pra casa. Mas, cuidado na vida,
heim, Zara? — Ava replicou. — Boa noite!
Quando elas se viraram e já estavam caminhando em direção à
porta, porém, ainda vi quando Mad se virou brevemente para mim e
gesticulou, com os lábios, algo como “cara, vai fundo!”. Mas, Ava
percebeu. E não deixou passar batido. Deu um tapinha de leve no ombro da
namorada, dizendo algo como “cria juízo”. A outra, por sua vez, apenas a
puxou, sussurrando alguma coisa nos seus ouvindo, fazendo com que Ava,
enfim, abrisse um sorriso sacana em sua direção. Provavelmente, era
alguma baixaria entre as duas.
Dessa vez, eu não contive o sorriso. Ele já estava no meu rosto antes
mesmo que eu me desse conta.
Loucas.

✽✽✽

Ainda levamos uma meia hora, ou um pouco mais que isso para dar
conta de toda a bagunça feita na lavanderia. Foram longos minutos tirando
todo aquele sabão e as enormes nuvens de espumas. Apesar de tudo, eu não
estava nem um pouquinho irritada com tudo molhado e melado pela,
segundo Agatha, minha máquina de lavar assassina. Na verdade, aquilo
ainda era engraçado para mim. Há tempos, eu não ria tanto quanto naquela
noite. O rostinho dela corado de vergonha e depois suas risadas gostosas,
enquanto eu também gargalhava.
No fundo, por mais esquisito que fosse admitir isso, Agatha
conseguia despertar uma Zara que eu mostrava a poucas pessoas, ou uma
Zara que eu achei que não existisse mais. Talvez aquela de vinte anos que
engravidou e, enquanto poderia curtindo a juventude com as amigas, estava
trocando fraldas e preparando mingau para o filho. Obviamente, isso não
era, nem de longe, nenhum tipo de reclamação. Nick foi a melhor coisa que
aconteceu na minha vida. E, embora eu tivesse descoberto uma gravidez
ainda nova e pouco madura, ele foi um presente. Meu parceiro e melhor
amigo.
Era ele quem coloria todos os dias preto e branco de uma policial
que, diariamente, encarava o pior lado das pessoas. Era por ele que eu me
preocupava em voltar viva, todos os dias, para casa.
Inclusive, Nick continuava se divertindo mesmo em meio a nossa
tentativa de organização da lavanderia. Para ele, era tudo como uma grande
brincadeira. Na verdade, não somente para ele. Às vezes, eu tinha a
impressão de que Agatha só cresceu no tamanho. E isso ficava evidente
quando ela estava perto de uma criança. No caso, o meu filho. Eles eram só
risos e sorrisos. E, de alguma maneira; sempre que eu olhava para eles,
juntos, e via a maneira afetuosa e brincalhona, que ela interagia com ele,
assim como o modo amável com o qual ele sorria e olhava para ela; o meu
peito se agitava em uma ternura quentinha e curiosa.
Sem dúvidas, meu filho era o meu ponto fraco.
Então, sempre que eu o via feliz com alguém e esse alguém também
parecia o fazer feliz, isso consequentemente acabava se tornando o meu
ponto fraco do mesmo jeito.
Era como se, a cada minuto, Agatha e Nick se tornassem cada vez
mais íntimos. Depois que ela disse que ele poderia a chamar de “Agui”, era
“Agui”, na boca dele, para todos os lados. Para cima e para baixo. Eu não
sabia como ou quando isso tinha começado a acontecer, mas eu sentia que
ele realmente tinha criado uma afeição por ela, assim como ela também
parecia totalmente confortável com ele. E, bem, isso poderia representar um
perigo muito maior do que os nossos próprios beijos. Afinal, uma relação
mais íntima, com o meu filho, representava totalmente a quebra da linha
tênue entre o profissional e o pessoal.
Agatha estava, gradativamente, ultrapassando aqueles limites que eu
mesma tinha imposto sobre nós.
Perigoso...
Porém...
Eu não conseguia não achar interessante vê-los juntos.
Isso porque eu sempre adoraria qualquer coisa que fizesse o Nick
sorrir de verdade.
Depois que eu preparei chocolate quente com pedacinhos de
marshmallows e torradas para todos nós, e fizemos a refeição, era a hora de
seguir para o turno final do dia: colocar o Nick para dormir, enquanto
desenhos passavam na televisão. Era o nosso programa de praticamente
todas as noites. E naquela não seria diferente, mesmo que Agatha estivesse
ali.
Ela nos acompanhou até o quarto dele. Era a primeira vez que a
loira entrava ali. Percebi que ela ainda ficou olhando discretamente ao
redor, notando a decoração, os bichinhos de pelúcia, os brinquedos e as
pinturas coloridas em formato de estrelas, planetas e via láctea que
enfeitavam as paredes. Tudo isso com um pequeno e quase imperceptível
sorrisinho que não saía por nada do seu rosto. De alguma forma, eu notava
que ela estava se sentindo bem por estar ali conosco, mesmo que eu não
conseguisse enxergar uma razão plausível para isso.
— Vou me deitar um pouquinho com o Nick e assistir desenhos até
ele pegar no sono — disse eu, já me acomodando com ele em sua cama. —
Você pode se deitar no meu quarto ou usar a televisão da sala para assistir
alguma coisa... — Ainda era estranho dizer “pode se deitar no meu
quarto”, para ela, mas eu jamais a deixaria dormir no sofá. — Ou, então...
Você pode ficar aqui e assistir com a gente, se quiser — Enfim, sugeri.
Bem, eu confesso que ainda tinha as minhas ressalvas sobre essa
proximidade que Agatha estava estabelecendo com o meu filho. Em outras
palavras, isso poderia se chamar ligação, laço, afeto, construção de
relacionamento. E eu sabia que não deveria deixá-la entrar ainda mais na
minha vida pessoal. Era um risco para mim, para o meu trabalho. Por outro
lado, algo não me permitiu deixar de convidá-la para ficar ali conosco. E
não foi só a educação. Foi mais alguma outra coisa que eu não sabia dar
nome.
— É, Agui! Fica! — Quase dando pulinhos de entusiasmo sobre a
cama, Nick exclamou. — Deita com a gente!
Se o sorriso dela aumentou quando eu sugeri, depois de ouvir Nick
falar isso, ele ficou três vezes maior. Eu nunca tinha visto Agatha tão
simpática e de bom humor como naquele dia. E, honestamente, isso era
ótimo.
— Cla-Claro...! — Praticamente gaguejou de empolgação. — É
claro que eu fico com vocês. Vou adorar assistir desenhos, até dormir
também — e soltou uma pequena risadinha.
Lógico... Se ir ao meu apartamento não tinha problema algum, para
ela, aquela proximidade com o meu filho também não.
Em menos de meio minuto, Agatha já estava aconchegando na cama
com a gente. E, bem, ela não apenas se sentou, mas também se deitou
embaixo dos cobertores, deixando Nick no meio de nós duas. Vi o sorriso
de felicidade que ele deu, enquanto, nos meus braços, observava Agatha, ou
melhor, Agui ali. O olhar que ela ofereceu a ele foi de cumplicidade. E ela
não parecia nem um pouco desconfortável naquela situação. Muito pelo
contrário, sorriu de volta para ele e voltou suas atenções para o desenho
animado que passava na televisão.
Mesmo que eu não quisesse deixar minha mente voar por lugares
arriscados e pouco antes frequentados, foi impossível não pensar naquilo,
depois de um tempo. Tê-la daquela forma ali, com o meu filho e comigo, no
fundo, era... Era tão... Família. Não parecia ser casual, e muito menos
errado. Era como se ela se encaixasse perfeitamente naquele papel. Como se
aquele lugar tivesse sido reservado única e exclusivamente para ela. E,
honestamente, isso me deixava meio preocupada. Aquela sensação de
programa em família era tão perigosamente palpável que, de algum modo,
eu não pude evitar, engoli seco um tantinho inquieta sobre a cama.
Nick percebeu o meu movimento.
— O que foi, mamãe? — perguntou ele, erguendo aqueles olhinhos
lindos para mim.
Apenas balancei brevemente a cabeça, sorrindo de leve para ele.
— Nada, querido... Vamos assistir.
Foi tudo o que eu disse.
E, assim, longos minutos de desenhos animados se passaram,
conosco debaixo do edredom quentinho da cama do Nick. Eu de um lado,
Agatha do outro e Nick quase no meio, mas ainda abraçado a mim. E ele
passou um tempão assim, exatamente nessa posição, até que, quando o
mundo dos sonhos já estava quase o alcançando, percebi o momento em
que ele, não sabia se consciente ou inconscientemente, se afastou levemente
de mim e se aconchegou em Agatha.
O sorriso que ela deu foi impecável, misturado com aquele olhar...
Aquele olhar brilhante de quem tentava conter alguma emoção.
Eu fiquei apenas observando o desenrolar daquilo.
Porém, foi quando ela o abraçou verdadeiramente, fazendo cafuné
nos seus cabelos, até ele realmente dormir, que o meu coração se partiu e se
juntou um milhão de vezes seguidas. Nick só ficava assim com Madison e
Ava, que conviviam desde que nasceu. Mas, agora, também com Agatha,
que ele nem conhecia direito, mas que, sem qualquer explicação, já tinha
alimentado algum afeto por ela.
Bobamente admirada com a interação deles, continuei observando
pelo cantinho dos olhos, enquanto Agatha nem se dava conta. E eu vi
quando, após isso, com o sono quase lhe tomando, Agatha também fechou
os olhos, abraçada a ele, em uma expressão tranquila e suave de quem
estava em paz... Tão em paz quanto Nick que já dormia com a cabecinha
recostada sobre o seu peito.
E eu seria muito mentirosa se não confessasse a mim mesma que
aquela cena era o que estava fazendo os meus olhos estupidamente
umedecerem. Eu quis sorrir de verdade, enquanto sentia alguma coisa
esquentar e vibrar intensamente no meu peito. Talvez fosse o coração.

Agatha

Em um sobressalto, eu acordei. Ao redor, estava praticamente tudo


escuro, com exceção da parca iluminação de um dos postes de luz, que
atravessava a janela e clareava um pouco o local. Olhei para os lados,
tentando entender onde eu estava. Franzi o cenho, afirmando a visão.
Bichos de pelúcia, brinquedos e paredes pintadas com desenhos de planetas
e astronautas. Ahhh... Suspirei, quando as lembranças começaram a surgir
na minha cabeça.
Baixei o olhar e lá estavam eles... Zara e Nick, dormindo juntinhos,
na mesma cama onde eu também estava. Um pequeno sorriso cruzou os
meus lábios. Eu mal podia acreditar que isso estava acontecendo. Era tão
surreal e, ao mesmo tempo, maravilhoso. Zara era uma mãe perfeita e Nick
uma criança incrível. Eles eram o tipo de família que eu admirava. O tipo
de família que eu gostaria que fosse a minha.
O tipo de família que eu não tinha desde que mamãe se foi.
Droga.
Puxei o ar, balançando a cabeça e tentando me desvencilhar
daqueles pensamentos impertinentes.
Sede.
Sede e xixi.
Foi nisso que eu foquei.
Com cuidado, para não os acordar, me levantei devagarzinho da
cama. Puxei meu celular, acionando a lanterna, e saí pelo corredor do
apartamento. Primeiro, fui ao banheiro e fiz xixi. Depois, segui até a
cozinha. Tentando não fazer muito barulho, já que o lugar era pequeno,
procurei algum copo e enchi d’água.
Ao meu redor, tudo estava escuro, exceto pela lanterna do meu
celular e pela bonita iluminação da cidade que eu conseguia ver através do
alto da janela da cozinha. Aquela vista chamou a minha atenção, por alguns
instantes. O apartamento era tão pequeno que não havia uma varanda ali,
mas existiam janelas, como aquela da cozinha, e, por mais que ele ficasse
localizado em uma zona mais afastada da parte rica da cidade, ainda era
possível ter uma vista deslumbrante do centro, ao longe, com todas as luzes
piscantes e a Paris de Las Vegas.
Segurando o copo, enquanto bebia alguns goles d’água, me
aproximei compassadamente daquele janelão, até encostar no peitoril e
sentir a brisa da noite atingir o meu rosto. Respirei fundo, sugando o ar
puro, e, então, desliguei a lanterna do celular. Porém, quando assim o fiz,
percebi a hora que a tela indicava. Uma e meia da manhã do dia vinte e
quatro de dezembro. Véspera de natal. Porra, como tinha passado rápido...
Já era natal. E eu nem parei para reparar na velocidade que os dias corriam.
Era fim de ano, quase final do mês de dezembro. Um dos motivos para eu
estar de férias da minha “faculdade à distância”.
No entanto, talvez pelo fato daquela data comemorativa ter se
tornado tão intragável para mim, eu não percebi a sua proximidade já bater
à porta.
Há anos, o natal tinha deixado de ser sinônimo de algo bom para
mim.
— O que está fazendo aí?
Repentinamente, eu ouvi, em meio ao silêncio.
— Ah! — puxei o ar de um jeito meio brusco, no sobressalto que eu
levei, colocando uma das mãos sobre o peito. — Nossa! — exclamei, ao
volver meu rosto e vê-la. Era Zara. Bem ali. — Você me deu um susto da
porra.
Ela sorriu de leve.
— Me desculpe... Só achei estranho te ver aí no meio da madrugada.
Você está precisando de alguma coisa?
Suspirei, mais uma vez, recobrando a minha calma, e, então,
respondi, virando-me novamente na direção da janela e fitando o horizonte
brilhante:
— Eu só estava aqui pensando que, graças a loucura da minha vida
ultimamente, eu não tinha me dado conta de que já é véspera de natal.
Notei quando ela se aproximou de mim e parou ao meu lado,
encarando Las Vegas lá fora, abaixo de nós.
— Sim, amanhã você está de folga — respondeu. — Aliás, hoje. Já
passou da meia noite. — Soltou uma risadinha.
Graças a Deus.
Pelo menos, um dia sem limpar privadas.
Por outro lado... Ir à penitenciária não estava se tornando de todo
ruim. Porém, apenas pelo fato de ser uma oportunidade de estar perto dela.
Exclusivamente por ela.
De resto, nada mais prestava naquele lugar.
— E você? Também está de folga? — perguntei.
— Não... Eu vou trabalhar até o horário da ceia. Por sorte não
peguei uma escala para o período noturno. A vida de policial é muito
incerta.
Ceia... Há tantos anos eu não sabia o que era uma ceia de natal em
família.
— Você vai fazer um jantar aqui? Pra você e o Nick? — perguntei.
Um breve sorrisinho de admiração se desenhando nos meus lábios. Eu não a
imaginaria comemorando o natal de outra maneira, que não fosse com o seu
filho.
— Sim... Eu vou preparar alguma coisinha com minhas amigas. O
Nick adora o natal e está ansioso para saber qual presente o Papai Noel vai
deixar aqui — soltou uma breve risadinha. — Penso que você também,
não? Sua família deve estar preparando algo grande, com certeza.
Suspirei, ainda mirando lá pra fora. Todas as luzes brilhando nos
meus olhos.
— Na verdade, não... Meu pai não faz ceias de natal desde que
mamãe se foi. Ela faleceu numa véspera de natal. Estava grávida do meu
irmão. E eu sonhava em ter um irmão, principalmente um irmão que fosse
mais novo que eu — sorri, meio sem humor, meio pensativa, com as orbes
fixas nas luzes piscantes. — Acho que é por isso que eu gosto tanto de
crianças.
Percebi, no entanto, quando o clima mudou por ali. Zara enrijeceu a
compostura brevemente. O silêncio nos abraçou muito mais. Franzi o
cenho, dessa vez, virando o rosto para ela.
— Eu sinto muito — disse ela, olhando nos meus olhos.
E, sim, parecia muito sincero.
— Não, tudo bem — balancei a cabeça. — Já faz tempo — E tentei
esboçar mais algum pequeno sorriso, para que aquele clima
esquisito sumisse.
O silêncio, porém, continuou ali, por mais alguns instantes, até que
ela falou:
— Sabe... Eu percebi que você gosta mesmo de crianças. Obrigada
pela maneira como tratou o meu filho. Ele parece adorar você — sorriu. —
E, apesar dele ser simpático, ele não se solta tão rapidamente assim com
todo mundo. Mas, com você, foi uma coisa quase instantânea — soltou uma
pequena risadinha. — Ele realmente gostou de você.
Sorrisos... Risadinhas... Confissões naturais e verdadeiras, mas
profundas.
Foi aí que eu finalmente me dei conta de algo. Depois de tantos dias
querendo ter qualquer tipo de diálogo, com ela, que fosse mais complexo do
que o problema dos ralos entupidos nos banheiros imundos daquela
penitenciária, pela primeira vez, nós realmente estávamos conversando.
Leves, desimpedidas e, aparentemente, de coração aberto.
Um friozinho se agitou no fim da minha barriga, me fazendo sorrir.
Sorrir bobamente pra ela.
— Imagina... Ele é maravilhoso — respondi. — Muito esperto. Um
doce de criança. E você parece ser uma mãezona. Cuida muito bem dele.
Talvez aquele fosse o primeiro elogio que ela ouvia sair da minha
boca.
Quando me calei, percebi o instante em que o seu olhar recaiu sobre
o meu, me fitando quase como se estivesse conseguindo enxergar por trás
dos meus olhos. E mais que isso: como se quisesse me dizer algo que eu
tinha certeza que adoraria ouvir. Aquilo, no entanto, parecia estar entalado
em sua garganta, à espera de que uma força maior pudesse arrancá-lo de lá.
E eu esperei. Realmente esperei paciente e esperançosa, para que ela me
dissesse o que poderia mudar a nossa noite em um piscar de olhos.
Porém...
Senti quando o meu celular vibrou na minha mão, arrancando minha
atenção do seu rosto. Tão bonito.
Franzi o cenho.
Quem poderia ser àquela hora?
No momento em que eu desbloqueei a tela, entretanto, eu tive a
resposta. E toda a paz de espírito que eu estava sentindo se esvaiu, em
menos de meio segundo. Era uma mensagem do Louis. Aquele filho da
puta.

“Feliz natal, Agatha... Eu quis ser o primeiro a te desejar isso.


Espero que ninguém tenha chegado antes rsrsrs. Você tem me evitado, eu
sei. Mas, eu espero que não suma, pelo menos até a confraternização de
natal do Grupo Hotéis Ballard. Quero que vá comigo”.

Que merda.
É claro que quer.
E é claro que Russell Ballard não seria capaz de organizar uma
ceia em família, mas, sim, um grande evento em um dos seus hotéis, com o
único objetivo de fazer mais negócios, ganhar mais dinheiro e ficar mais
reconhecido.
Irritada, me empertiguei, soltando alguns palavrões baixinhos
comigo mesma, enquanto bloqueava a tela do celular com a vontade de, na
real, jogá-lo pela janela.
Notei, porém, quando Zara, com o cenho meio franzido, perguntou:
— O que houve?
Puxei o ar, tentando manter a calma.
— Nada demais... Só um macho escroto que não larga do meu pé.
— Interessado demais e você de menos? — Erguendo uma das
sobrancelhas, perguntou outra vez.
— Tipo isso... — Quase cantarolei. — A culpa é toda do meu pai.
Coisas de negócios.
Eu, honestamente, não gostava nem de mencionar essa merda. Ela,
porém, continuou. O que era realmente um milagre, principalmente
levando-se em consideração que nós nunca fomos de conversar nada tão
além de coisas sobre o meu trabalho na penitenciária e sobre a minha
segurança. Então, bem, como eu não estava muito a fim de dispensar
diálogos com ela, coisa que eu tanto quis ter, apenas continuei ali, mesmo
que o assunto não fosse dos melhores.
— Coisas de negócios? — enrugou ainda mais a testa, muito
embora um pequeno sorrisinho confuso quisesse estampar seus lábios. —
Pensei que isso fosse ultrapassado demais.
— Não para o meu pai. Russell Ballard ainda vive no século XV. A
verdade é essa. — Retruquei, rolando os olhos. E, claro, não pude deixar de
dar uma pequena alfinetada nela, mesmo que isso custasse o fim daquela
nossa conversa milagrosamente prolongada. — Enquanto alguns querem
demais, outros não querem nada. Mas, a vida é assim mesmo. Tem até um
poema brasileiro que fala sobre isso. João amava Teresa que amava
Raimundo que amava Maria e por aí vai.
Ouvi apenas a sua risadinha.
— O que está tentando dizer com isso?
Bom, esse era o meu o momento. E eu não ia fugra da raia.
Virei o rosto para ela, encarando-a fixamente.
Nunca tive filtros mesmo.
— Estou falando que, enquanto esse filho da puta não some da
minha vida, tem uma mulher, bem aqui na minha frente, que eu sou louca
pra pegar, mas ela simplesmente não quer, porque, aparentemente, não está
interessada.
Foi aí que o seu sorriso diminuiu.
Me encarou por alguns instantes. Aquele olhar que poderia
atravessar o meu corpo. E, então, passou a língua entre lábios, como se
estivesse tentando se reprimir de falar algo, olhou para frente, na direção do
horizonte, puxou o ar, liberando-o novamente, até que...
— E quem disse que eu não estou interessada?
Bingo!
Era isso o que queria ouvir, meu Deus.
O que eu sempre quis ouvir saindo da sua maldita boca, desde
aquele primeiro beijo.
E, bem, eu nunca duvidei que ela estivesse interessada. Só falei
aquilo para dar um charminho ao final da minha frase mesmo.
Porém...
— Se você está tão interessada, porque não faz logo o que tem
vontade? — ergui uma das sobrancelhas, quase como um desafio.
Ela, no entanto, sorriu fraco, balançando a cabeça de leve.
— Sério mesmo que você quer entrar nesse assunto logo agora? —
Um pequeno vinco se formou em sua testa, após um breve suspiro. —
Agatha, eu, simplesmente, não posso.
Bufei, soltando ar bruscamente. Aquele papinho de “quero, mas não
posso” me irritava pra caramba.
— Só quem pode dizer isso a você sou eu. Dona do meu corpo.
Apenas eu que digo quem pode ou não tocar em mim. E eu digo que você
pode. Isso é o bastante. Isso deveria ser bastante.
Scott, soltou uma pequena risadinha, meio sem humor, meio irônica,
balançando a cabeça.
— Sim, deveria ser o bastante. Mas, não é bem assim que funciona.
Você é completamente dona do seu corpo. Só que eu preciso seguir regras.
Regras que não estão ao seu alcance, nem ao meu. Eu não posso me
relacionar com quem supervisiono na penitenciária, nem com detentas.
Pelo amor de Deus.
— Foda-se as regras — retruquei. — Depois dos seis meses eu
estarei livre daquele inferno. E aí, o que acontece? Eu vou estar
automaticamente habilitada para beijar a sua boca? É isso? Até lá, eu sou
uma merdinha, e, depois que acabar, eu volto a ser gente? Pode me explicar
isso?
Respirando fundo, passou uma das mãos no rosto.
— Agatha, apenas entenda que agora não dá. Eu queria que as
coisas fossem mais simples, mas elas não são.
Hum?
Franzi o cenho.
— Queria mesmo? Tem certeza disso? — Quase cuspi as palavras,
irritada, por mais que eu não quisesse que o clima entre nós tivesse ido por
esse caminho. Estava maravilhoso o nosso diálogo na paz e na
tranquilidade, assim como o meu bom humor também, mas eu
simplesmente não conseguia engolir aquelas justificativas calada. — Pra
mim, você não passa de uma arregona. Sim, arregona! Certamente, o
problema é que você tem vergonha de estar comigo. Vergonha por eu estar
cumprindo pena, e, por eu ser apenas uma garota mais nova e,
aparentemente, imatura. Você me vê como uma criança, né? — cerrei os
olhos. — E isso não pega bem pra você, pra sua carreira. Isso não pega bem
para a grande, incrível e profissional policial Scott. Mas, se fosse a
imponente e maravilhosa inspetora Alexa Westphalen, não teria problema
algum, não é?
Juro que tentei evitar, mas não consegui deixar de pronunciar o
nome Alexa Westphalen com toda a raiva que eu já estava sentindo.
Ela, por sua vez, soprou o ar pela boca, quase rolando as orbes.
— Não fala merda, garota. Você não sabe de nada. Não sabe da
minha vida e do que eu sinto — retrucou. — Você é mimada. Quer ter tudo
na palma da sua mão, inclusive pessoas. Eu tenho certeza que se eu te
pegasse aqui e agora, ou te desse uma noite de sexo, toda essa sua vontade
ia passar, porque isso é só fogo. Depois que ele apagar, você vai esquecer
essa fixação.
Ah, é?
Então, é assim?
— Se pra você eu sou mimada, pra mim você é medrosa. Não teria
coragem de me pegar aqui e agora, pra tirar a prova.
Ela apenas ergueu uma das sobrancelhas, me fitando fixamente com
aquele olhar que enxergava a minha alma.
— É isso o que você acha?
— Sim, e ainda acho muito mais — respondi de pronto. — Você é
medrosa. Você tem medo de tentar e... — Bufei, meneando a cabeça. Não
valia a pena continuar. A gente não ia chegar a lugar algum. Era melhor
concordar em discordar. — Quer saber? Cansei. Não vou mais falar sobre
isso. Vou voltar a dormir — e lhe oferecendo um último olhar, me virei.
Porém, assim que eu dei o primeiro passo para sair dali, senti meu
braço ser repentinamente puxado por uma Zara afoita e desejosa. Meu
corpo voltou para ela de maneira brusca e, quando eu dei por mim, já estava
colado no seu, com suas mãos me envolvendo por todos os lados. Pelas
costas, pela cintura, pela nuca.
Porra...
Cada centímetro do meu corpo acendeu.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, entretanto, sua boca
tomou a minha em um beijo que não era nem um pouco calmo. Na mesma
velocidade, me guiou por ali, até que eu encostasse a parte de trás dos meus
joelhos na mesa da cozinha. Quase agressiva, me colocou sobre ela. Soltei,
ali por cima, em um lugar qualquer, meu celular e o copo que ainda estava
em minha mão. E, assim, pude tocá-la da maneira como eu queria.
Aproveitei tudo. Aproveitei aquele momento mágico em que ela
finalmente estava deixando, para finalmente segurá-la entre as minhas mãos
do jeito que eu desejava. E ela me beijou inteira, assim como eu também
fazia a mesma coisa nela. Minha boca, meu pescoço. Chupou minha língua.
Sugou meus lábios. Cacete, eu estava no paraíso. E, para ficar ainda
melhor, seus dedos desceram as duas alças da blusa que ela mesma tinha
emprestado.
Eu estava sem sutiã.
Meus peitos ficaram completamente despidos, quando, instantes
antes de colocá-los em sua boca, ela os observou como se fossem duas
obras de artes comestíveis e prontas para serem devoradas. Eu nunca,
nunca, tinha visto aquele olhar nela. Confesso, foi a melhor visão que eu
tive em anos. E, meu Deus, eu achei que fosse morrer no momento em que
ela me puxou mais para si, encaixando-se entre as minhas pernas e fazendo
meu corpo se inclinar para trás, para que pudesse me chupar.
Observei tudo com os cotovelos apoiados sobre a mesa. E, juro,
segurei o gemido tantas vezes, porque eu sabia que não podíamos fazer
barulho. Quase não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Era
bom demais para ser verdade. Será que era um sonho? Se fosse, caralho, eu
não podia acordar. Ela sugou, chupou, brincou com meu mamilo em sua
boca, enquanto tocava e massageava o outro com os dedos.
Que boca mais gostosa da porra.
Meu ponto fraco. Absolutamente meu ponto fraco.
Minha calcinha ficava mais molhada a cada segundo. E a minha
boceta encharcada e encaixada na sua coxa era como uma tentação para que
eu quisesse deixar aquilo ainda mais imoral. Eu queria mais. Eu queria me
esfregar nela. Ou melhor, eu queria que ela colocasse a mão em mim. A
boca ali. Talvez a minha boceta junto com a dela. Eu queria gozar.
Determinada a isso, ofegante, e completamente maluca de tesão,
segurei uma das suas mãos e tentei levá-la para dentro do meu short.
Porém...
Ela me parou, puxando meu corpo de volta para cima e colando seus
lábios nos meus, para sussurrar:
— E, agora, o que acha? Ainda sou medrosa?
Embevecida de prazer, eu apenas respondi:
— Acho que quero ir pra cama com você...
Scott, por sua vez, se afastou e, encarando-me séria, falou:
— Não... Você não quer — Ah não, como assim? — Eu já dei o que
você queria. É só um restinho tesão que você ainda sente. Deixa esse fogo
baixar e, então, tudo vai passar — finalizou, se soltando de mim e subindo
as alcinhas da blusa para os seus devidos lugares.
Pera aí, pera aí, pera aí...
Que merda era essa?!
EU ESTAVA FODIDAMENTE MOLHADA NESSE CARALHO.
— Você não está me dizendo que vai me deixar assim, né...? —
Quase ri de nervoso, esperando que fosse alguma piada de mal gosto.
— Finalizamos por aqui, Agatha. Eu já dei o que você queria.
Simplesmente respondeu, como se estivesse na padaria pedindo
cinco pães pra viagem.
— Quê?! — arregalei os olhos, aturdida, revoltada, alucinada. —
Sua... — ofeguei, procurando palavras para descrever a minha completa
indignação. — Sua... — ofeguei de novo, e não era de excitação. — Sua
filha da puta! — disparei, finalmente.
— Fala baixo, garota. Meu filho está dormindo — disse ela,
ajeitando a própria roupa e afastando-se ainda mais de mim.
QUE ÓDIO.
Realmente, ela tinha toda razão quando dizia que o meu tesão ia
passar, porque, agora, tudo o que eu sentia era raiva!
E, bem, no fundo, eu tinha certeza que esse era o seu objetivo.
— Por que você sempre começa e não termina? Por que, caralho,
você tem que me deixar desse jeito? — apontei para o meu short, com um
vinco enorme na testa.
— Porque é assim que tem que ser. Esse fogo vai passar, Agatha.
Não vai durar. Pode ter certeza — suspirou. — Durma no meu quarto. Eu
vou voltar a dormir com o Nick.
Foi tudo o que ela me disse, segundos antes de me dar as costas e
sair dali.
Porém, dentro de mim, além do ódio, tinha outra coisa que
absurdamente gritava. Não era só tesão, porra! Não era só fogo! Quero
dizer... Era também. Mas, não era só isso. Era muito mais que isso. Eu tinha
certeza absoluta de que era mais do que isso, porque, algo assim, eu nunca
tinha sentido por alguém.
Absurda e completamente maluca por
você

Agatha

Eu ainda estava puta. Absolutamente puta. A verdade era essa!


Óbvio que eu jamais forçaria qualquer pessoa a ficar ou a transar
comigo. Mas, puta que pariu, heim? Me dar aquilo tudo, armar todos os
paus da barraca, me deixar daquele jeito, fazer a minha calcinha ficar
ridiculamente molhada e, simplesmente, parar...? Isso... Isso... Isso era um
absurdo! Isso não se fazia nem com um inimigo!
Argh!
Xena Scott só podia ser muito audaciosa mesmo!
Aquela miserável.
E ela, de fato, conseguiu fazer a minha excitação passar, porque,
depois daquela ceninha, era só o ódio me consumindo. O ódio por ela ser
tão gostosa e ridícula, perfeita e chata, maravilhosa e estupidamente
imbecil. Ódio por me manipular, por me deixar maluca e por me fazer
comer na palma da sua mão. Ódio por eu saber que, mesmo sentindo toda
aquela raiva, eu jamais conseguiria sentir ódio real por ela, assim como
também tinha certeza de que aquela frustração momentânea não me faria
parar de desejá-la.
O meu caso era realmente sério.
Ódio.
Ódio.
Ódio.
Fui dormir sem calcinha, pra deixá-la secar, porque aquele negócio
todo molhado só me fazia lembrar do que eu não tive, e isso me deixava
ainda mais irritada. Fiquei apenas com o short e a blusa. Também não me
atrevi a ir até o seu quarto, por mais que ela estivesse dormindo com o
Nick. Eu não estava com o meu juízo perfeito para deitar na sua cama.
Dormi no sofá da sala mesmo. Ou, pelo menos, tentei. Rolei naquele
maldito por infinitas horas sem conseguir pregar os olhos, porque, a cada
vez que eu os fechava, eram as imagens da sua boca na minha e nos meus
peitos que me despertavam de supetão.
Uma das piores noites que eu já tive.
Não chegava aos pés daquela no dia em que eu fui presa,
obviamente. “Dormir” (bem entre as aspas mesmo) na delegacia foi o “auge
do meu fundo do poço”. Mas, ainda assim, foi ruim estar naquela sala,
sabendo que a mulher que era o motivo da minha raiva e do meu desejo, na
mesma medida, estava dormindo, tranquila, a poucos metros de mim,
depois de ter me deixado literalmente e propositalmente na mão.
Na manhã seguinte, não troquei nenhuma palavra com ela. Todo
aquele meu bom humor, do dia anterior, foi com Deus. Tomei o café e
troquei de roupa para ir embora, sem demonstrar qualquer mísero sorrisinho
a ela. Claro que, na frente do Nick, eu fui o mais simpática possível. Ele era
um amor, e não tinha nada a ver com o que aconteceu, nem com a sua mãe
canalha.
O pequeno ficou perto de mim o tempo inteiro, até eu ir embora. Na
verdade, ele quase não me deixou sair. Quis que eu ficasse brincando e
assistindo desenhos com ele, durante todo o restante do feriado. Confesso
que o meu coração idiota gritou comigo mesma, umas trezentas vezes, para
que eu ficasse. Mas, tinha a Zara. E eu sabia, pelo olhar discreto que, vez
por outra, ela me dava, que era hora de ir para casa.
Chata.
Fui embora com a promessa de que nos encontraríamos de novo
para aprontar alguma bagunça organizada com espumas e desenhos
animados. Ele adorou e ficou super ansioso para que isso acontecesse logo.
Uma graça. Porém, o meu sorriso só durou até o momento em que eu dei as
costas e entrei no carro da Scott. A raiva misturada com desejo ainda estava
ali, percorrendo todas as veias do meu corpo. E o clima de tensão, entre
nós, continuava totalmente palpável.
Por vezes, a vontade de despejar todo o meu desprazer nela, em
forma de palavras e insultos, bateu no início da minha garganta, quase
pulando para fora. Mas, respirei fundo e fiz o possível para engolir tudo,
mesmo que, para isso, eu tivesse explodido internamente umas mil vezes.
Não disse nada, durante o percurso, nem mesmo olhei uma única vez para
ela, embora eu já estivesse morrendo de saudade, antes mesmo de entrar em
casa.
Sim, eu estava total e completamente em estado de calamidade por
essa mulher.
Nunca senti falta de alguém, antes mesmo de me despedir.
Ela também não puxou conversa, o que me irritava em um nível que
não estava escrito em lugar algum. Eu sempre fiquei emputecida com as
suas indiferenças. Quando ela queria ser indiferente, ela conseguia isso com
maestria. Parecia que eu nem existia. Era como se Agatha Ballard e nada
fossem a mesma merda.
E o pior mesmo foi na hora do tchau. Eu também não dei uma
palavra, nem lhe ofereci um mísero olhar, por mais que eu estivesse
morrendo de vontade. Era a porra daquele meu ego que fazia o ódio se
sobrepor ao desejo, em alguns momentos. Pelo lado de fora, eu parecia uma
muralha. Por dentro, eu ardia de vontade dela.
Guardei. Guardei tudo. Praticamente fiquei podre por dentro.
E, até agora, depois de um dia inteiro, eu continuava sofrendo as
consequências por ter guardado todo aquele ressentimento internamente.
Não conseguia parar de pensar nela, na boca dela, nas mãos dela, no jeito
como ela me tocava, na maneira como ela me beijava e na forma ridícula
como ela me deixou na mão, por mais que eu soubesse que a única idiota da
história a se importar, com qualquer coisa, era eu. Ela provavelmente estava
trabalhando, sem nem se lembrar da minha existência.
Ainda pensei em lhe enviar alguma mensagem, mas não.
Eu não seria imbecil a esse ponto.
Enquanto a noite caía lá fora, no entanto, suas irritantes palavras
ainda soavam na minha cabeça...
“Esse fogo vai passar, Agatha. Não vai durar. Pode ter certeza.”
Que caralho.
Bufei, deitada na minha cama, balançando a cabeça.
Não era só tesão, porra. Não era só fogo. Não podia ser só isso! Eu
tinha certeza que não. Era mais que isso. Era alguma coisa que eu ainda não
conseguia explicar. Algo maior, mais forte, mais enlouquecedor. Só tesão
nunca me deixou maluca daquele jeito. E, olha, que eu já senti muito tesão
na porra minha vida. Aquele inferno com certeza era maior.
Será que, se eu desenhasse, aquela anta conseguiria entender?
Aliás...
E se ela entendesse, será que isso ia mudar alguma coisa entre nós?
Provavelmente não.
Ou melhor, provavelmente sim. Ela fugiria ainda mais de mim, sem
olhar para trás.
Bem típico de Xena Scott.
O pior era que me dar conta disso sempre fazia com que um ridículo
nó quisesse subir pela minha garganta, assim como estava acontecendo e
como aconteceu, pelo menos, umas vinte vezes, desde que pus os pés em
casa, pela manhã. Aquela maldita vontade de chorar queria se apoderar de
mim. E, mesmo que eu tivesse me mantido firme por um bom tempo, agora,
no entanto, ela parecia mais forte.
Uma droga.
Eu não podia permitir que aquilo acontecesse. Eu não podia
derramar uma lágrima sequer por aquela terrorista!
Era hora de reagir.
Sim, eu tinha que reagir!
E quer saber? Eu ia sair!
Sim, claro.
Jamais ficaria em casa numa noite de véspera de natal, como aquela.
O canalha do meu pai estava em algum lugar qualquer do mundo,
planejando incansavelmente a sua confraternização do Grupo Hotéis
Ballard, só para se passar na frente de um monte de gente. Ele não faria
nenhuma ceia de natal em família. E eu também não ficaria ali, no meio de
um monte de bosta daquela fossa, só esperando o tempo passar, enquanto
pensava na boca e nas palavras sórdidas de uma mulherzinha que se achava
a própria princesa guerreira do século XXI.
Claro que não.
Lógico que eu não ficaria ali.
Havia dezenas de festas rolando, naquela noite, nos melhores pubs
de Las Vegas.
Determinada, peguei meu celular e...
— Hey, Tessa, bora pro natal do Waring 's?
Sorri para mim mesma.
Eu ia curtir a noite inteiraaa!
Isso sim!

✽✽✽

— AAAAHHH... Aquela filha de uma puta! — exclamei, batendo


com o copo sobre a mesa do pub, enquanto chorava feito uma desgraçada,
segurava um cigarro entre os dedos e bebia gin, depois de algumas (muitas)
doses de tequila, naquilo que eu achei que se tornaria a noite da minha vida.
Lágrimas vergonhosas escorriam pelos meus olhos, borrando toda a
minha maquiagem. Ao fundo, eu poderia jurar que Céline Dion estava
cantando All By Myself, mas era só uma música eletrônica fodida mesmo.
Enquanto todos dançavam e se divertiam, ao meu redor, eu chorava,
completamente bêbada. Na real, preferia que estivesse tocando Céline Dion
mesmo. Combinava com a porra do meu estado de espírito!
Realmente um papelão.
Nota mental: não tomar mais tequila por, pelo menos, uns cinco
anos, nem misturar com gin e cigarro.
Juro que eu achei que fosse me divertir. Eu juro! Mas, bastou alguns
mililitros de álcool entrarem na minha corrente sanguínea para que a
muralha que eu construí, durante o dia inteiro, fosse abaixo na forma de um
chororô ridículo misturado com um catarro nojento escorrendo pelo nariz,
no meio de dezenas de pessoas que passavam por mim e notavam
claramente o meu estado deplorável.
Tudo culpa daquela Mulher-Maravilha falsificada!
Tudo culpa da Xena!
— Espera aí, Agatha... — Tessa, ao meu lado, falou. — Você está
querendo me dizer que tá pegando a policial que te supervisiona na
penitenciária? Passada, menina! — E colocou uma das mãos sobre a boca,
em choque, como aquele meme de mil anos atrás.
— Não foi por vontade própria, eu juro... — suspirei, fungando. —
Deve ter sido o diabo agindo na minha cabeça.
Ela gargalhou.
— Você é uma desgraçada pervertida! E eu amo!
— Tessa, isso não é motivo pra rir e achar legal! Você ouviu o que
eu disse...? — franzi o cenho, quase indignada. — Eu tô ficando maluca por
aquela terrorista! — E esbugalhei os olhos.
A ruiva, por sua vez, deu de ombros.
— É só continuar pegando, amiga... Coisa que você sabe fazer
muito, muito bem — E sorriu, sacana, tomando um gole do seu drinque
verde e brilhante. — Pra quê esse chororô?
E ela achava que era fácil assim?!
Bom, no começo, eu também achei que seria. Mas, se tratando da
Xena, nada era fácil.
— Porque ela é uma ordinária! — O álcool me deixando mais
desbocada do que eu já era. — Olha só... Ontem a gente teve uma noite
perfeita, sabe? — choraminguei, fungando. — Pela primeira vez, a gente
teve realmente uma conversa e... Foi mágico! A gente tava se entendendo,
sabe? E... O filho dela me ama! Ele é uma criança maravilhosa e... Será que
ela não percebe que fomos feitas uma pra outra, cara?! — esbugalhei os
olhos, de novo, bem dramática. Certeza era o álcool. — Ontem, depois que
o Nick dormiu, a gente se pegou e... Meu Deus! É tão absurdamente
gostoso quando a gente se pega que... Cara, sério! Aquela ridícula só pode
ser a mulher da minha vida. Só que ela diz que é só fogo, só tesão, e que a
minha vontade vai passar... Não é só tesão, porra! — passei o braço no
nariz, limpando o catarro que escorria. — Se fosse, eu provavelmente teria
perdido o interesse, depois do ódio que ela me fez passar, ontem, por
começar e parar o serviço sem terminar. Só me deixou com mais vontade!
— E virei o restante da bebida bruscamente.
— Olha... Se você começar a fazer muita propaganda assim, quem
vai querer pegar vocês duas juntas sou eu... — riu.
Arqueei uma das sobrancelhas para ela.
— Nem brinca com isso, heim...
Ela riu ainda mais.
— Tá bom, sua ciumenta, parei... — sorriu. — Mas... Analisando o
caso e considerando que eu sou sua amiga há muitos anos, é bem provável
que você esteja realmente gostando dela. Eu nunca te vi falar assim ou ficar
desse jeito por nenhuma outra mulher, nem por um homem.
Soprei o ar pela boca, já cansada.
— Eu ainda não sei o que sinto por ela... A única coisa que sei é que
não é só tesão — traguei o cigarro, ainda desolada, liberando a fumaça
depois, como se aquilo, de algum modo, pudesse aliviar a inquietação no
meu peito. — Porra, só faz três semanas que eu a conheço! Sério. Não é
caso de psiquiatra? — franzi o cenho. — O caralho é que eu não consigo
parar. Já tentei, mas não consigo. A mulher é um monumento em tudo! Não
só na beleza, mas também na personalidade. Por dentro, por fora, por todos
os lados! E aí, vez por outra, eu penso no quanto a sua boceta deve ser tão
perfeita, como ela todinha, só que eu ainda não tive a oportunidade nem de
ver... Argh! — puxei o barman que passava ao meu lado. — Cara, enche
esse copo de novo!
E, assim, ele o fez, com muita eficiência, em menos de meio minuto,
apesar do susto que levou.
Tomei um gole.
— Então, amiga... — Tessa passou a língua entre os lábios,
colocando uma mecha atrás da orelha e se ajeitando sobre a cadeira. —
Você já experimentou dizer isso a ela?
— Quê? — franzi o cenho. — Dizer?! Meu amor, eu falo o tempo
todo! Nesse momento, a minha dignidade já está enterrada e sepultada no
cemitério de Las Vegas. Ontem mesmo eu disse! Eu sempre deixo claro,
com todas as palavras, letras, consoantes e vogais, que eu estou interessada,
mas a filha da puta diz que é só fogo de palha. Ela basicamente não
acredita... Ou, talvez, se acredita, ela dá essa desculpa de “fogo de palha”,
porque não pode ficar comigo. Segundo ela, policiais não podem se
envolver com pessoas que estão cumprindo pena, ou com detentos. Bom,
honestamente, até que faz sentido, por causa de toda essa bobagem de ética
de trabalho e blábláblá... — suspirei e puxei o cigarro para mais uma
tragada. — Mas, mesmo assim, eu ainda fico puta! Tá na cara que ela
também quer. Ela me disse ontem que tem interesse! E, bem, o jeito como
ela me pegou também não esconde o quanto deseja.
Tessa suspirou, tomando mais um gole do seu drinque.
— Nesse caso, Agatha, eu acho que você precisa ser mais
específica, entende?
— Tá querendo me dizer pra eu me humilhar ainda mais? — franzi
o cenho.
— É tipo isso... — sorriu. — Certas humilhações autoinduzidas, por
amor, edificam o homem. No caso, a mulher. Você. Vai fazer bem para o
seu ego — E soltou uma pequena risadinha.
Ah, por favor...
— O que você sabe sobre o amor, Tessa? Você nunca nem namorou.
Só fica de pegação por aí — rolei os olhos. — E só pode tá de brincadeira...
Eu não vou mais atrás daquela idiota. Já basta!
— Então, vai parar de chorar também? É isso? — ergueu uma das
sobrancelhas, quase desafiadora.
Porém...
Antes que eu pudesse conter, um súbito soluço escapou da minha
garganta.
— Não, não vou...! — E tornei a chorar, como a imbecil que eu
realmente era, enquanto tentava virar o copo mais uma vez, em meio às
lágrimas. — Ela deve ter me enfeitiçado ou sei lá...! — funguei. — Não
consigo parar de pensar nela.
Tessa suspirou.
— Então... Acho bom que considere fazer uma declaração mais
completa para ela... Falar em termos sentimentais, por mais que você ainda
não saiba dar nome ao que sente. Mas, tipo, falar mais com o coração do
que com a boceta, sabe?
Era só o que me faltava...
Além de tudo o que ela me fazia passar naquela penitenciária,
esfregando chão e desentupindo privadas, agora eu também teria que descer
a níveis ainda mais baixos.
O fim da minha carreira.
Mas... Aparentemente, eu não tinha escolha. Era isso ou continuar
me passando por louca naquele pub, em plena véspera de natal.
Respirei fundo, tentando me preparar.
— O não eu já tenho, agora vou correr atrás da humilhação.
A ruiva riu baixinho.
— Para com esse drama... Vamos lá, animação! — bateu palminhas.
— Por que não aproveita o resto da noite e vai lá na casa dela? Quem sabe o
clima natalino não amolece o coração daquela mulher... — sorriu. —
Vamos... Eu te levo! Afinal, não teria como você ir de outro jeito mesmo.
Bom, isso era verdade.
Era Tessa quem estava pagando por toda a porra daquelas bebidas,
já que eu continuava sem um centavo. Então, que me levasse também direto
para a forca! Quero dizer, direto para o apartamento da Xena.
— E eu vou dizer o que, cacete?
— Ora... Você vai falar tudo! Contar pra ela! Botar pra fora! Se
declarar!
Puta que merda... Eu só podia estar mesmo muito bêbada para
aceitar um negócio desse.
— Minha última cartada! — retruquei, fitando-a intensamente,
determinada. — Última! Se ela me der mais algum fora, eu desisto e nunca
mais dou outras trezentas e cinquenta mil chances para aquela desgraçada,
mesmo que ela tenha um corpão gostosão e um coração lindo!

Zara

Era véspera de natal.


E meu apartamento estava tão lindo... Todo enfeitado com árvores
de natal, guirlandas, bolinhas coloridas, velas e uma maravilhosa mesa
posta com pratos, copos e guardanapos nas cores vermelho, verde e
dourado. Tudo organizado por Mad, Ava e Nick (que mais brincava do que
exatamente deixava as coisas no lugar), enquanto eu fazia o meu último
plantão, antes de voltar para casa. Por ali, musiquinhas soavam, ao passo
que eu e as garotas colocávamos as comidas sobre a mesa para o jantar.
Aproveitei que Nick estava entretido, brincando com alguns
carrinhos, e saí de fininho para o quarto. Sem que ele me visse, peguei o seu
presente. Coloquei, próximo à árvore de natal, a bicicleta novinha que ele
tanto me pediu, nos últimos meses, e, então, saí de perto, dizendo:
— Olha só, filho! Ainda nem é meia noite, mas o Papai Noel já
passou por aqui e deixou o seu presente, acredita? — sorrindo, apontei com
o queixo.
Assim que ele virou o rosto e viu o que estava ali, seu sorriso foi
imenso e sua carinha linda de felicidade foi impagável. Deixou todos os
carrinhos de lado e saiu em disparada, na direção da bicicleta, exclamando:
— Uooooouuu! Que iraaada! Tá vendo, mãe?!
— Tô vendo sim, querido... O Papai Noel disse que você foi um
bom menino esse ano — brinquei. Mas, ele foi bom mesmo. Era um garoto
de ouro. Uma criança maravilhosa.
E ele não passou mais que meio minuto apenas observando os
detalhes do seu presente, já subiu logo na cela, para experimentar a
sensação de andar sobre o seu mais novo brinquedo potente. Em um piscar
de olhos, Nick estava a toda velocidade, passando por mim e por suas tias,
quase nos atropelando.
— Filho, só cuidado para não se machucar, nem quebrar o
apartamento da mamãe... — Ainda tentei falar.
Ele, porém, já nem me ouvia mais direito. Estava totalmente
fascinado com aquilo, enquanto rodava pelos setenta metros quadrados,
como se estivesse disputando alguma corrida, derrubando almofadas, pelo
caminho, e tirando cadeiras do lugar. Uma risadinha escapou de mim,
mesmo com a bagunça que ele estava fazendo.
Eu sempre ficaria feliz com a felicidade dele.
— Pode apostar que ele não vai sair de cima dessa bicicleta tão
cedo... — Madison brincou.
Ava também soltou uma risadinha, observando aquele furacãozinho
dentro de casa.
Quando fui responder, porém, ouvi meu celular chamando. Eu até já
poderia imaginar quem seria. Sorri para mim mesma e corri até o balcão da
cozinha para alcançá-lo. Assim que pus os meus olhos na tela, lá estava a
minha confirmação. Eram os meus pais, em uma chamada de vídeo. Que
saudade... Eles moravam na Califórnia, um estado vizinho à Nevada, onde
ficava Las Vegas. Quando fui aprovada para trabalhar na polícia de Las
Vegas, precisei me mudar. E, apesar de fazermos visitas periódicas e
ligações semanais, a saudade nunca deixava de existir.
— Feliz nataaaaal! — Foi a primeira coisa que eles exclamaram,
assim que atendi.
— Feliz natal, mamãe! Feliz natal, papai! — Com um sorriso de
orelha a orelha, eu respondi. — Como vocês estão? Vão passar o natal em
casa?
— Está tudo bem, querida... — Mamãe respondeu. — Eu já aprontei
a ceia aqui com as vizinhas. Gail e Francis estão vindo para cá com maridos
e filhos. Já até mandei o seu pai tomar banho e se arrumar, mas você sabe
como ele é, né? — soltou uma risadinha, apontando a câmera para o que ele
estava fazendo. — Seu pai comprou um novo quebra-cabeça de mil peças,
com o tema do Harry Potter, e agora a vida dele é montar isso. Ainda quer
emoldurar a obra de arte depois, como se aqui em casa já não tivesse
dezenas de quebra-cabeças emoldurados.
Eu ri.
Meu pai era uma graça. Apesar de ser um sessentão, ele ainda tinha
os seus hobbys de garoto nerd. Adorava montar quebra-cabeças e emoldurá-
los, também perdia horas completando caça-palavras e tinha uma coleção
completa de quadrinhos dos super-heróis, assim como uma imensa
biblioteca cheinha de livros de fantasia e aventura. Esses eram alguns dos
motivos para Nick amar visitar a casa do vovô.
— Ah, Martha, para... Me deixa montar o meu quebra-cabeça aqui.
Ainda são nove horas da noite. A tradição do natal é servir a ceia somente à
meia noite — respondeu ele, com um sorriso arteiro no rosto, enquanto
continuava sua brincadeira.
— Tá vendo, né? — Divertida, mamãe apenas balançou a cabeça.
— Mas, e as coisas por aí, minha filha, como estão? Cadê o meu neto?
Deixe-me vê-lo... Estou morrendo de saudade!
Assim que ela perguntou, porém, vi quando o meu celular recebeu
mais uma ligação. Obviamente, deixei na linha de espera. Eu não ia desligar
com os meus pais, para atender um número que nem estava salvo na minha
lista telefônica. Continuei.
— Ah, mamãe, talvez, se você tivesse me ligado uns dez minutinhos
mais cedo, eu conseguisse pará-lo um instantinho para ele falar com mais
calma. Agora, ele acabou de ganhar uma bicicleta nova do Papai Noel e não
quer saber de outra coisa... — Me virei, tentando buscá-la com o olhar. E lá
estava ele, rodopiando pelo corredor e pela sala. — Querido, dá oi pra vovó
Martha e pro vovô Henry — mirei a câmera nele.
— Oi, vó! Oi, vô! Olha só o que eu sei fazer! — E girou por ali,
numa espécie de manobra com a bicicleta.
Mamãe riu, e eu também.
— Excelente, meu amor! Vovó ama você!
— Radical, Nick! — Papai também disse.
— Ele não para um segundo — voltei a câmera mim, sorrindo. —
Ficou tão feliz com o presente.
Todavia, assim que me calei, aquele número tornou a chamar.
Franzi o cenho.
Dessa vez, nem coloquei na linha de espera. Cliquei logo em rejeitar
a ligação.
— Que ótimo, querida! Eu adoro vê-lo assim... Olha, Henry e eu
estávamos conversando e nós adoraríamos que você e o Nick viessem
passar a virada de ano aqui conosco. Nós íamos ficar tão contentes com
isso, minha filha. Venha, por favor. Tente tirar uma folga do seu trabalho.
Convide também Madison e Ava para cá. Elas são ótimas!
— Ahhh, Sra. Scott, pode apostar que nós já estamos aí! —
Madison, que ainda organizava o jantar por ali, disparou, antes mesmo que
eu falasse qualquer coisa.
— Venham pra cá deixar esse ano novo mais animado! — Papai
também exclamou.
Quando eu quis responder, porém, lá estava aquele número esquisito
e ensandecido que não parava de me ligar, por mais que eu recusasse a
chamada ou deixasse na linha de espera. E de novo. E de novo. E de novo.
Não parava.
Como se não bastasse, algo ainda mais estranho aconteceu. Comecei
a ouvir alguém gritar “Xeeeeenaaaaa! Abre esse portão! Ô Xeeeeena, eu tô
aqui!” E era uma voz muito, muito familiar.
Por um segundo, meu coração parou as batidas, ao me dar conta de
quem poderia ser.
— Mamãe, só um segundinho, tá?
Corri para a janela da sala. Madison e Ava, curiosas, foram logo
atrás de mim.
Assim que pus a cabeça para fora e olhei para baixo, no entanto, eu
quase não acreditei.
Meu queixo despencou.
Que diabos era aquilo?
Agatha estava na companhia de outra garota. Pareciam ter saído de
alguma festa. A loira usava um dos seus típicos vestidinhos caros, curtos e
brilhosos, com um salto enorme que deixava as suas pernas ainda mais
longas. Estava absolutamente linda, como sempre. Seu rosto, porém, estava
devastado. A maquiagem toda borrada, como se ela tivesse chorado litros
por horas. Na sua mão havia uma garrafa de uísque. E, sim, ela parecia bem
bêbada.
Meu Deus.
O que essa maluca estava aprontando dessa vez?
— Ma-Mamãe... — Meio atarantada com aquela surpresa, até
gaguejei. — Eu vou ter que desligar agora, tá? Mas, eu prometo, prometo,
que ligo pra gente combinar o ano novo, tá bom? Eu já adorei a ideia! Beijo
beijo beijo, pra você e pro papai!
Enfim, encerrei a chamada.
A garota, por sua vez, continuava gritando, totalmente alterada pelo
álcool:
— Sua filha da puuuuta, eu acho que tô apaixonada por voceeê! E,
olha só, eu nunca me apaixonei por alguém! Sinta-se lisonjeada!
Caralho, caralho, caralho...
— Eu avisei... — Ava praticamente cantarolou, enquanto observava
aquilo.
— Você sabe que tá fodida né? — Madison também disse.
— Ah, meu Deus... — Praticamente sussurrei, quase sem piscar os
olhos. — Eu sei sim — E simplesmente saí correndo dali.
Eu precisava descer, o mais rápido possível.
Com o coração batendo na garganta, pulei as escadas de dois em
dois degraus.
Quando, enfim, cheguei lá embaixo eu ainda podia ouvir:
— Cadê voceeeê?! — Ela gritava, choramingando e batendo no
portão. — Vai arregar de novo, é?!
Porra, os vizinhos, com certeza, deviam estar adorando aquele
barulho.
À medida que eu fui me aproximando, escutei a garota, ao seu lado,
falando:
— Pega leve, Agatha! Desse jeito, você não vai conquistar, você vai
assustar a mulher!
Conquistar?
— Que porra é essa? Você tá ficando maluca, Agatha...?!
Foi a primeira coisa que eu disse ao aparecer no portão e abrir as
grades.
— Aaaaahhhhh, finalmeeeente! — Ela abriu um sorriso. O sorriso
mais bêbado da face da Terra. Sua garrafa de uísque, o tempo todo, debaixo
do braço. — A deusa resolveu descer do Olimpo! Ela é maravilhosa, não é?
— apontou para mim, ainda sorrindo, toda babada de bebida e,
aparentemente, orgulhosa por me mostrar a garota ao seu lado. — Eu te
disse que ela era maravilhosa!
Puta merda.
— Fala baixo, Agatha! Os vizinhos vão reclamar da sua gritaria! —
bufei, balançando a cabeça. E, então, mirei na outra. — E você, quem é?
— Sou amiga dela — disse a ruiva.
Franzi o cenho.
— E eu posso saber que diabos vocês estão aqui na frente do meu
prédio?
— Assim, a ideia era que ela viesse aqui se declarar, e não passar
vergonha, sabe? — soltou uma risadinha meio desconcertada, a amiga dela.
Como é que é?
— Declarar? — enruguei ainda mais a testa.
— Tô louca por você, sua idiota! — disparou a loira. — Será que
hoje você não vai me chamar para o seu apartamento, praticamente me
comer, e, depois, me deixar na mão, heim? Heim? — riu, debochada.
Pelo amor de Deus.
Quando eu achei que ela fosse criar ódio por mim, graças ao meu
trabalho propositalmente incompleto, ela, na verdade, ficou ainda mais
perturbada.
— Agatha, você tá completamente bêbada. Eu vou te levar pra casa.
A loira, por sua vez, rolou os olhos já trocados pela bebida.
— Ai que saco! Eu não quero ir pra minha casa, eu quero ir para o
seu apartamento, passar a noite inteira com você e fazer um amor bem
gostosinho! A minha cabeça tá só “Xena, Xena, Xena, Xena” o tempo
todinho! — E puxou o ar, depois daquele bombardeio de palavras
despejadas e atropeladas.
— Que porra é essa de Xena...? — sussurrei para mim mesma,
baixinho, confusa. Suspirei, balançando a cabeça e tentando colocar o juízo
no lugar. — Olha, você pode ir pra casa... Eu me viro com ela, tá bem? —
disse eu, para a sua amiga.
Porém...
— Aaaaahahahaha, eu sabia! Eu sabia! — A loira disparou. — É
agora que você vai me levar para o seu apartamento, né? Diz que sim! Diz
que sim! — Ela implorou dando pulinhos trôpegos. — Meu Deus, eu só
penso em nós duas e... — Teatralmente, colocou as mãos no meu rosto,
quase apertando as minhas bochechas. — Não é só fogo de palha, cacete!
Meio desnorteada, eu não sabia nem o que raciocinar direito.
— Tem certeza? — Ainda ouvi quando sua amiga ruiva perguntou,
preocupada. — Tem certeza que você vai mesmo conseguir se virar com ela
sozinha? A Agatha tá bem doida. E é por você.
Soprei o ar pela boca.
— Percebi... — Meu Deus. — Mas... — tomei fôlego, tentando
ocupar o meu lugar de pessoa mais madura dali. — Eu a levo pra casa. Só
faz uma coisinha... — puxei a garrafa da mão da loira, já entregando a
outra. — Isso aí vai com você. Hoje, ela não bebe mais.
— Aaaaaah naaaaão! — Agatha protestou, quase tropeçando por ali.
Precisei segurá-la pelo braço. Enquanto isso, sua amiga, ainda meio
assustada, se afastava, indo na direção do carro, conforme eu tinha
garantido que ela poderia ir embora. — Devolve a minha bebida! E eu não
quero ir pra casa não! Quero ficar com você! Na sua cama! E olha que a
minha cama é melhor que a sua, mas eu ainda prefiro a sua porque tem
você! Argh!
Confesso: apesar dos pesares e do quão horrível poderia ser uma
pessoa em quase coma alcoólico, eu nunca imaginei que essas palavras, um
dia, pudessem sair da sua boca. Bem, aquela Agatha que foi presa por mim,
depois do acidente, e que me odiou exatamente por causa disso, não
parecia aquela Agatha absolutamente sedenta pela minha pessoa.
— Você não tem querer, Agatha. Não está nem em condições de
ficar em pé sozinha. Vou te levar para a sua casa agora — E, simplesmente,
a peguei de surpresa pelas pernas, colocando-a sobre o meu ombro. Ela
ainda exclamou com o movimento, mas eu apenas continuei no meu
objetivo. Ergui o olhar, vendo que Madison e Ava, chocadas, ainda
acompanhavam tudo de camarote, lá da janela do meu apartamento. — Joga
aí a chave do meu carro! — gritei.
Eu sabia que ainda teria um longo interrogatório pela frente, feito
especialmente por elas, mas eu preferia não pensar sobre isso agora. No
momento, tudo o que eu precisava fazer era levar Agatha, para casa, sã e
salva. Ou, pelo menos, salva, porque a sanidade já tinha passado longe.
Apenas peguei a chave que elas jogaram e, caminhando ainda com a
garota sobre o meu ombro, segui para o meu carro. A cada passo que eu
dava, no entanto, ainda podia ouvir suas exclamações, enquanto sua cara
praticamente batia na minha bunda, devido a posição que eu a carregava:
— Sua gostosaaaaa! Meu Deus, que mulher! Que mulher!
Eu juro que tantos elogios assim, saindo da boca dela, sobre mim,
mesmo que devido ao álcool, era uma novidade.
No momento em que abri a porta do passageiro, ao lado do
motorista, porém, ela tentou me puxar.
— Vem cá... Por favor... — disse ela, baixinho. — Eu quero você,
Xena... Só você.
Eu ainda não entendia que história era essa de Xena, mas...
— Para com isso, Agatha — retruquei, fazendo-a tirar as mãos de
mim, enquanto prendia o cinto de segurança em volta do seu corpo. — Você
nem sabe o que está falando.
Ela bufou, inconformada, mesmo que já aparentemente fraca pelo
sono.
— Eu sei o que estou falando...! Para de fingir que não quer a
mesma coisa que eu.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, balançando a cabeça, ainda
abaixada, com os joelhos flexionados, depois de lhe colocar o cinto.
Isso era loucura.
— Por que, Agatha? — franzi o cenho. — Por que está insistindo
em uma coisa que eu já disse que não pode acontecer?
Foi aí que ela, mesmo com as pálpebras já cansadas e quase se
fechando de tão bêbada, me encarou bem no fundo dos olhos.
Aqueles olhos tão lindos. E tão azuis.
Brilhavam mais que um centavo novo.
— Porque eu tô absurda e completamente maluca por você, caralho.
E eu sei que você quer. Eu tô gostando pra caramba... — passou a língua
entre os lábios, tentando aproximar seu rosto do meu. — Eu tô gostando pra
caramba de você... Mais do que você possa imaginar, Xena. Se fosse só
fogo, depois da raiva de ontem, eu nunca mais olharia na sua cara. Mas,
não, aquilo só aumentou ainda mais a minha vontade. E eu nunca quebrei a
cabeça tanto por alguém, como eu tô quebrando por você, porque... —
suspirou, recobrando fôlego, em meio ao seu olhar quase se fechando. —
Porque eu sempre tive tudo muito fácil. Se eu quiser, agora mesmo, eu
posso estalar os dedos e ficar com alguém. Só que essa pessoa não seria
você. E o que eu tô sentindo por você, eu nunca, nunca, senti por alguém,
porque... Você. É. Única. — Disse ela, quase soletrando com a língua
enrolada. — Então... — Quase fechando os olhos, ela tentou continuar. —
Só fica comigo e...
No instante em que ela quis erguer os braços novamente, para me
puxar, porém, simplesmente foi sugada para o mundo dos sonhos, como se,
enfim, tivesse perdido para o álcool, naquela luta. Caiu para o lado e
começou a roncar baixinho. Dormiu.
Expirei pela milésima vez, passando uma das mãos pelo rosto.
Ainda a fitei por uma quantidade incerta de minutos, enquanto ela
continuava ali de olhos fechados, em um sono tão profundo.
A única coisa que eu conseguia pensar, no entanto, quando o
silêncio da noite enfim nos abraçou, era que não era apenas Agatha que
estava maluca por mim. Eu também estava louca por ela. O pior era isso. E,
vê-la daquele jeito, só aumentou, ainda mais, a minha vontade de tê-la pra
mim.
A minha garota

Zara

Fui o caminho inteiro pensando naquela loucura, enquanto Agatha


continuava dormindo no banco ao meu lado. Sua voz falando tudo aquilo,
ainda ressoava na minha cabeça, como uma memória tão recente. Coisas
que acenderam algo que deveria estar apagado no meu coração. Coisas que
eram perigosas, porque eu sabia que já estava na beira de um precipício. As
suas palavras funcionavam apenas como um gatilho. A porra de um
empurrãozinho.
“Porque eu tô absurda e completamente maluca por você, caralho”
“O que eu tô sentindo por você, eu nunca, nunca, senti por alguém,
porque... Você. É. Única.”
Você...
É...
Única.
Olhos aparentemente tão sedentos e cheios de sentimento, corpo
exalando desejo, rosto impecável de quem sabia que poderia ter tudo na
mão (inclusive eu) e lábios tão perfeitos ao pronunciar cada frase.
Porra...
O que você está fazendo comigo, menina impulsiva?
Inspirei profundamente e soltei o ar, balançando a cabeça.
Eu tinha que me concentrar pelo menos no que precisava ser feito
naquele momento. Deixá-la em casa com segurança, principalmente
considerando que estava bêbada e desacordada. Mal conseguia pensar no
perigo que ela poderia correr por aí, andando sozinha desse jeito ou apenas
na companhia daquela outra garota.
Felizmente, pelo horário já avançado da noite, não peguei muito
trânsito. Em poucos minutos, eu já estava na frente da sua mansão. Com a
rua tranquila, ninguém percebeu a minha chegada, a não ser os seguranças
da casa dela. Especialmente quando eu a tirei de dentro do carro,
desacordada nos meus braços.
Ligeiro, se amontoaram ao meu redor, querendo saber o que
aconteceu.
— Está tudo bem. Eu sou policial. Ela só está meio... Bêbada —
disse eu, tentando passar pelos portões.
Mas, prontamente, os seguranças quiseram me ajudar e tirá-la dos
meus braços. E eu até pensei que ela continuasse em seu sono profundo.
Bastou, porém, eles fazerem menção de segurá-la, para que ela se aninhasse
ainda mais contra o meu corpo, resmungando algo como: “Não... Sai...”. E
permaneceu ali, de olhos fechados, abraçada a mim.
— Está tudo bem... Sou policial e posso levá-la. Se não confiarem
na minha palavra, mostro meu distintivo.
Sem terem muito o que fazer, os seguranças apenas se olharam por
alguns segundos, e, então, permitiram que eu entrasse. Carregando-a em
meus braços, coloquei em prática todos os exercícios que eu cotidianamente
fazia para estar bem preparada em qualquer situação da polícia.
Cruzando o imenso jardim da frente, observava o lugar ao redor. Era
uma riqueza que poucas vezes eu tinha visto. Piscinas, quadras esportivas,
um gramado impecável, uma casa enorme. Mesmo assim, aquilo ainda não
me chamava realmente a atenção. Era legal ter dinheiro e uma porção de
coisas de valor, mas, entre uma vida simples e com amor, e uma vida
luxuosa e vazia, eu ainda preferia a simplicidade afetuosa.
Acompanhada por alguns seguranças, cheguei à porta de entrada da
casa. A primeira pessoa a me receber foi uma senhorinha. Por volta dos
seus cinquenta ou sessenta anos, seu olhar não escondia o quanto se
preocupava com Agatha. Colocou as mãos sobre a boca e arqueou as
sobrancelhas, exclamando:
— Ah, meu Deus! O que aconteceu? Ela está bem? Está
desmaiada?!
Bem, de algum modo eu achei que não fosse apropriado entrar em
detalhes e dizer os motivos pelos quais ela estava tão bêbada.
Então, apenas falei, tentando acalmá-la:
— Ela está bem sim. Não se preocupe, ela não desmaiou. Só bebeu
mais do que deveria e agora está dormindo. Pode me mostrar onde fica o
quarto dela, para que eu a coloque na cama?
— Ah, graças a Deus... — respirou aliviada. — E, sim, claro, claro!
— Prontamente se colocou à disposição. — Por favor, me acompanhe.
Enquanto ela ia na frente, eu a acompanhava, subindo as escadas,
com Agatha no meu colo. Entramos em um corredor que dava para aquilo
que eu imaginei ser o seu quarto. Era a perfeita representação da garotinha
rica e herdeira de um complexo hoteleiro que ela realmente era. Talvez só o
seu quarto fosse do tamanho do meu apartamento inteiro. A mobília toda
em tons branco, prateado e dourado. Tudo milimetricamente organizado e
planejado, com uma imensa cama king size no meio, cheia de travesseiros e
almofadas que pareciam de fato bem confortáveis.
Ela era como uma princesa em seu castelo.
— Aqui, por favor... — A senhora apontou. — Pode colocá-la aqui.
E, com cuidado, eu a deitei, como se ela fosse a bela adormecida,
sobre sua cama colossal. A única diferença era que a princesa da Disney,
certamente, não estaria com a maquiagem toda borrada de tanto chorar, por
estar absurdamente bêbada. Mas, ainda assim, Agatha continuava
totalmente bela.
Ainda passei breves segundos observando. Seus olhos fechados, sua
expressão tranquila e em paz, mesmo debaixo de todo o rímel preto
escorrido. Ela estava segura. Suspirei aliviada. Meu trabalho havia sido
cumprido. Quando pensei em me virar para ir embora, no entanto, a
senhorinha chamou a minha atenção:
— Você é...?
— Policial Scott.
— Ah... Você é a policial Scott? — Seu olhar subitamente mudou, à
medida que o seu rosto se iluminava e um sorrisinho brincava em aparecer
por ali. — Agatha já me falou algumas vezes sobre você.
Não pude evitar. Uma das minhas sobrancelhas se ergueu em certa
surpresa.
— Falou foi?
Não imaginava que Agatha, em seu tempo livre, fora da
penitenciária, comentasse qualquer coisa sobre mim, fosse algo bom ou
ruim.
— Foi sim. Ela gosta de você... — Seu sorriso aumentou ainda mais.
— Bom, ela tem um jeitinho meio peculiar de demonstrar afeto... — soltou
uma pequena risadinha. — Mas, ela gosta, sim, muito de você. Muito
prazer, eu me chamo Evangeline, sou a governanta da casa — E ergueu a
mão para mim.
Ela gosta muito de você...
Isso me acertou em certa medida. Ainda passei uns segundinhos
para processar aquelas informações, mas, enfim, acordando, apertei sua
mão, cumprimentando-a de volta.
— O prazer é todo meu, Evangeline. Pode me chamar de Zara — E
ensaiei um sorrisinho para lhe oferecer também, suspirando. — Bom, acho
que já vou... Está na minha hora.
A missão foi cumprida.
— Tudo bem, como quiser — disse ela. — Muito obrigada por tê-la
trazido em segurança.
Acenando um breve sim com a cabeça, fiz menção de me afastar da
cama. Porém, quando dei apenas o primeiro passo, vi quando a loira
repentinamente, ainda de olhos fechados, escorregou sobre os lençóis,
agarrando as minhas pernas com os braços e dizendo algo como: “Não...
Não”.
Franzi o cenho.
— Oi?
Me virei para ela, a fitando novamente.
A loira, por sua vez, continuava me mantendo ali, entre os seus
braços, apesar dos olhos fechados e da postura de quem estava mais no
mundo dos sonhos do que no real.
— Acho que ela não quer que você vá embora...
Ouvi quando Evangeline falou, soltando uma breve risadinha.
— Mas... — Ainda com a testa enrugada, tentei me sair dali.
Entretanto, mesmo que estivesse aparentemente dormindo, já que
ressonava baixinho e mantinha seus olhos bem fechados, numa expressão
de quem viajava pelo décimo terceiro sono, ela me segurava firmemente.
— Fique, não tem problema algum — disse Evangeline.
Suspirei.
A ideia de início não era essa...
— Eu não sei se posso... Preciso voltar para o meu apartamento e...
A loira, no entanto, resmungou algo incompreensível, me
interrompendo e chamando a minha atenção outra vez.
— Parece que não vai ser fácil você voltar — Evangeline soltou
mais uma risadinha. Era como se ela soubesse de algo que eu também sabia
e não queria admitir. — Bom, vou deixá-las a sós. Fique à vontade, policial
Scott. Aqui tem tudo o que precisa... — No fundo, eu senti que esse “tudo”
se referia à Agatha. — Mas, se quiser mais alguma coisa, é só me chamar.
Boa noite e... Feliz natal.
Com um sorrisinho arteiro, ela me deu as costas e saiu dali.
Droga...
Isso não estava bom.
Depois que a porta do quarto se fechou e eu me vi ali sozinha com a
loira, ainda baixei o olhar e a observei por alguns segundos. Pálpebras
fechadas, respiração tranquila e braços envolta das minhas pernas. Você é
impossível, garota... Ela era realmente impossível de esquecer, impossível
de não se importar, impossível de não querer.
Eu a tinha levado para sua casa, porque sabia que deveria evitar que
nós dormíssemos juntas outra vez. Nas duas vezes em que ela esteve no
meu apartamento, nós acabamos quase sem roupas. Então, passar a noite
comigo era quase uma certeza de que alguma merda poderia acontecer.
Mesmo assim, aparentemente, eu não conseguiria fugir desse destino.
Era como se o universo e a minha vida inteira estivesse conspirando
para que aquilo acontecesse.
Isso porque eu sabia que o meu coração já estava estupidamente
rendido por ela, mesmo que estar envolvida naquele emaranhado de cabelos
loiros, pele dourada e sorrisos lindamente perturbadores, ainda pudesse me
custar muito caro. Não fui eu quem a prendi naquela noite do acidente. Foi
Agatha quem colocou algemas nos meus sentimentos, mantendo todos
reféns a ela.
Agora, eles estavam na posse e na propriedade da senhorita Ballard.
A garota-problema. A menina maluca.
Sabendo que estava quase assinando a minha carta de demissão da
polícia de Las Vegas, apenas tirei minhas botas e me deitei na cama com
ela. Seus braços agora me envolviam pela cintura, enquanto sua cabeça se
mantinha recostada ao meu peito. Ela continuou dormindo.
Ainda digitei uma mensagem rápida para Madison e Ava:
“Não se preocupem, está tudo bem, mas vou passar a noite fora.
Depois eu explico. Coloquem o Nick para dormir e fiquem de olho nele, por
favor. Eu agradeço demais e amo vocês.”
Com um breve suspiro, fiz de tudo para me concentrar em fechar os
olhos e dormir, embora todo o meu corpo parecesse ter sido ligado a uma
tomada, somente pelo fato de estarmos deitadas juntas daquela maneira. No
fundo, porém, mesmo que a minha mente ainda permanecesse consciente,
eu sabia que já estava sonhando.
Porque só mesmo em um sonho eu teria uma garota como aquela
interessada por mim.

✽✽✽

No dia seguinte, quando abri os olhos, a primeira coisa que eu vi foi


a cortina de seda prateada da varanda, balançando com o vento. E, logo
depois, senti aquele peso sobre o meu corpo. A lembrança de onde e com
quem eu estava não demorou mais que meio minuto para surgir como um
filme na minha cabeça. O cheiro do perfume inigualável também contribuía
com as minhas recordações.
No momento em que baixei o olhar, lá estava a garota, ainda
dormindo com aquela mesma expressão tranquila de quando me deitei com
ela. Nós continuávamos na mesma posição. Seu braço me envolvendo pela
cintura e sua cabeça recostada ao meu peito. A diferença, agora, era que
uma das suas pernas estavam por cima das minhas, me envolvendo bem
encaixada.
Puxei o ar, mesmo devagar, para não acordá-la.
Era quase um teste de resistência ter uma garota daquela, em cima
de mim daquele jeito, sabendo que me queria, e, ainda assim, eu não poder
fazer absolutamente nada. Porra... Eu só podia ser muito forte mesmo. E
muito fodida também. Mas, de um jeito ou de outro, eu tinha certeza
absoluta de que, naquela luta, entre o desejo e a razão, as minhas forças já
estavam acabando. E, mesmo que eu não quisesse admitir, a previsão era de
que, mais cedo ou mais tarde, eu perderia para a vontade de tê-la pra mim.
Naquela última noite em que ela dormiu no meu apartamento, eu
não a peguei por acaso, assim como também não fiz aquilo por cair no seu
papinho e querer prová-la que eu não era medrosa. Não, definitivamente
não foi por isso. Além do fato de eu realmente estar maluca para colocar a
boca na sua e no seu corpo, eu quis deixá-la com raiva, por mais imaturo
que isso possa parecer.
Veja bem, não me interprete mal, mas... Nós tivemos conversas
normais, onde eu dizia, com todas as letras, que, por mais que eu quisesse,
nós não podíamos nos envolver. E, bem, em nenhuma daquelas conversas
normais, ela realmente me levou à sério. A verdade era que nem eu mesma
me levava à sério, quando negava as suas investidas. Estava mais do que na
cara que eu queria. Eu queria muito. Eu queria demais.
O problema não era ficar com ela. Isso porque eu poderia muito bem
ficar, transar, fodê-la e deixar as coisas por isso mesmo, sem que ninguém
soubesse. Só que eu tinha certeza de que eu não conseguiria fazer isso. Eu
não conseguiria deixar as coisas por isso mesmo. Eu ia querer de novo. E de
novo. E de novo. E outra vez.
Era por isso que eu evitava. Evitava. E evitava.
Porque eu ia querer muito mais, uma vez que eu provasse daquilo.
E eu tentei dar a cartada final, naquela noite, no meu apartamento.
Não fiz com ela tudo o que tinha para fazer, mas fiz o suficiente para deixá-
la com aquilo que eu acreditei ser um ódio absurdo de mim, por não ter ido
até o final. Um ódio que a fizesse não olhar mais na minha cara, porque eu
a deixei na mão, e isso era uma das piores coisas no mundo. Pelo menos, eu
acreditei que seria isso a acontecer.
Afinal, entre o ódio e o desejo, era melhor que ela alimentasse o
ódio por mim.
Assim, não desejaria fazer o que não podia.
Acontece que aquela cartada final não serviu pra ela nem pra mim.
Foi um completo fiasco, na verdade. Ela continuou maluca e eu fiquei
querendo ainda mais.
E, agora, eu estava ali, que nem uma idiota, a observando dormir e
pensando no quanto eu gostaria de beijá-la e fodê-la em cima daquela cama,
enquanto suas frases de ontem não paravam de se repetir na minha cabeça.
“Porque eu tô absurda e completamente maluca por você, caralho”
“O que eu tô sentindo por você, eu nunca, nunca, senti por alguém,
porque... Você. É. Única.”
Porra...
Tão linda.
Tão absurdamente linda.
Respirei fundo outra vez, contendo os ânimos, mas não a vontade de
tocá-la. Num ímpeto de desejo, me dei a liberdade de passar os dedos pelos
cabelos, indo e voltando, de leve. Bem de leve. Isso era o máximo que eu
poderia fazer. Mas, apenas esse breve toque já foi capaz de me fazer sair da
órbita e ir para outro lugar onde existia apenas eu, ela e nada mais do que os
nossos corpos juntos e sem roupas.
Em uma das voltas que os meus dedos deram nos seus fios
dourados, porém, percebi seus olhos se abrindo.
Ela acordou bem devagar, enrugando o cenho e afirmando a visão.
Olhou por ali.
Porém, quando me viu e se deu conta de que estava nos meus
braços, seu semblante suavizou e um sorriso cresceu nos seus lábios.
Um sorriso realmente lindo.
Como sempre era.
— Oi... — disse ela, baixinho.
— Oi...
— Dormimos juntas? No meu quarto? — piscou os olhos, olhando
para os lados brevemente e franzindo mais um pouquinho a testa, mesmo
que o sorriso permanecesse.
— Sim... Dormimos juntas aqui.
Foi aí que o seu rosto, de súbito, pareceu preocupado.
— Nós... — Pareceu travar. — Nós... Tran-Transamos?
Espera aí.
Ela não se lembrava de nada?
— Não, não transamos... Mas, seria um problema, pra você, se a
gente tivesse transado?
Afinal, nas suas palavras de bêbada, ontem, na frente do meu
prédio, disse que queria “fazer um amor bem gostosinho” comigo.
— Não, não seria problema, mas... — Ela soltou uma risadinha de
leve. — Eu ia gostar de me lembrar.
“Eu ia gostar de me lembrar”
Porra...
Provavelmente, a garota fez um curso de como deixar Zara Scott
pirada de todas as formas, até com palavras.
Só aquilo me fez imaginar trocentas coisas, em apenas meio
segundo.
Eu estava cada vez pior. Droga.
Puxei o ar, tentando me concentrar em algo que não tivesse a ver
comigo fodendo ela, e, então, me ajeitei sobre a cama. A loira, no entanto,
continuou praticamente naquela mesma posição, ainda com a cabeça
recostada ao meu peito, olhando para cima, sob os cílios, e me observando.
— E você não se lembra de nada? — perguntei.
Agatha suspirou.
— Eu me lembro sim. Mas, me lembro só até a parte em que dormi
no seu carro... — E me encarou um pouquinho sem jeito.
— Então, se lembra do show que deu na frente do meu prédio, justo
na véspera de natal? — Um sorriso ameaçou brincar nos meus lábios.
Ela, por sua vez, não se conteve.
Soltou uma risadinha.
— Foi vergonhoso, eu sei... Eu estava muito bêbada. Me desculpe
— baixou o olhar, meio acanhada, embora o sorriso astucioso ainda
permanecesse inteirinho no seu rosto de princesa.
E aí, por mais que eu soubesse que não devesse trazer de volta
coisas que poderiam ter ficado única e exclusivamente no dia de ontem,
algo dentro do meu peito se agitou para falar. Eu não sabia exatamente o
motivo. Talvez fossem as suas palavras que não paravam de se repetir em
um looping infinito na minha cabeça. Talvez fosse a proximidade que nós
estávamos, o seu olhar em mim, o seu rosto tão perto do meu. Ou talvez...
Talvez fosse o fato de que, por mais que eu negasse, tentasse esquecer e
fizesse juras de que não ia me envolver, eu estava em cima da cama da
garota que eu tanto... Tanto, tanto, tanto desejava.
— Mas... — passei a língua entre os lábios, meio ansiosa por aquilo.
Uma ansiedade que parecia estupidez, afinal, aquilo não deveria acontecer
entre nós. Só que era mais forte do que eu conseguia segurar. — É
verdade...? É verdade tudo o que me falou, principalmente quando te
coloquei no carro?
As palavras já estavam escapando pela minha garganta.
Foi então que, mesmo tendo acordado há pouco tempo, o seu olhar
se tornou mais intenso, como duas pedras preciosas de cor flamejante.
Agatha se ajeitou sobre mim, mas não para se levantar ou se afastar. Apenas
para se erguer brevemente e deixar o seu rosto ainda mais próximo ao meu.
Senti as batidas do meu coração tomarem um ritmo diferente, à medida que
o calor da sua respiração se espalhava sobre o meu rosto.
— Sobre eu ter dito que tô absurda e completamente maluca por
você, e que o que eu sinto por você eu nunca senti por alguém porque você
é única?
Cacete, apenas a menção disso me fazia querer virá-la sobre a
cama e tirar a sua roupa.
Tentando me segurar, apenas indiquei um sim com a cabeça.
Ela, por sua vez, séria, ainda me encarando no fundo dos olhos,
respondeu:
— A mais pura verdade, Xena... O que mais eu preciso fazer para
deixar claro que eu quero você como nunca quis outra pessoa?
Eu juro que eu ainda precisava entender que história era aquela de
Xena, mas a confirmação, que me deu, era só o que faltava para que cada
centímetro do meu corpo entrasse numa absurda polvorosa. Caralho, eu já
tinha atravessado o limite da zona de perigo e agora caminhava sobre as
labaredas de fogo. Eu não tinha nenhuma dúvida de que aquela garota
estava me tirando da minha zona de conforto e me virando completamente
do avesso. Eu estava a ponto de fazer exatamente aquilo que, há anos, eu
jurei nunca mais fazer.
Porém...
— Ah, pelo amor de Deus, Evangeline, qual o problema? — ouvi
uma voz grave e masculina se aproximando do seu quarto. — É claro que
eu vou entrar no quarto da minha filha — O som se tornava cada vez mais
nítido. — Sou dono dessa casa inteira e entro onde eu quiser.
Como em um piscar de olhos, a porta foi simplesmente aberta,
fazendo a figura daquele homem se desenhar frente aos meus olhos,
enquanto, nos seus, ele claramente observava a garota quase em cima de
mim. Atrás dele, três mulheres o acompanhavam carregando maletas de
maquiagem e estojos com roupas de festa. Isso sem contar com Evangeline
que parecia não estar nada bem com a abrupta entrada do homem.
— Pai...? — Agatha falou.
Ela parecia ter quase perdido o ar, e estava mais branca do que já
era.
Cinco segundos depois, toda atrapalhada, se afastou de mim, tirando
a perna de cima e o braço da minha cintura.
O coroa, por sua vez, entrou ali, caminhando a passos devagar, para
perto de nós, como se estivesse pensando em algo, meio desconfiado.
Aproveitei o meio tempo para me ajeitar sobre a cama. Foi quando me
sentei, colocando as pernas para fora do colchão. Percebi, então, um sorriso
irônico se desenhar nos seus lábios, ao pousar os olhos sobre mim. Eu, no
entanto, continuei sustentando o olhar, encarando-o absolutamente séria.
Não fazia ideia do que diabos aquele cara pudesse estar pensando.
— Então, essa é mais uma das suas amigas? — E virou o rosto para
Agatha.
O sarcasmo escorria por cada letra da palavra, porque era óbvio que
ele não estava se referindo exatamente a amigas. Eu sabia o que ele queria
insinuar.
Agatha bufou. Depois do primeiro susto, já parecia estar começando
a retomar a compostura daquela garota que eu conhecia.
— O que está fazendo aqui? Será que não sabe bater na porta antes
de entrar? — devolveu sua pergunta com outras duas, já irritada.
O cara, no entanto, riu.
Ele parecia como um daqueles sem noção, que podiam matar e,
ainda assim, achar graça enquanto faziam isso.
— Você é realmente muito engraçada, querida. Se eu quiser posso
até arrancar a porta do seu quarto, para que fique sem nenhuma e eu tenha o
prazer de tirar a sua privacidade — sorriu. — Mas, enfim... — puxou o
fôlego. — Você esqueceu que hoje temos o almoço de confraternização de
natal do Grupo Hotéis Ballard? Quero que você esteja impecável. Muitos
investidores e parceiros de negócios estarão lá, inclusive Louis.
Eu entendi certo mesmo?
Ele estava basicamente dizendo, para a própria filha, que ela
deveria se arrumar, porque a colocaria à disposição dos tais investidores e
parceiros de negócios, para quem quisesse pegar?
Tipo assim: Oferta! Oferta! Leve a minha filha e, em troca, faça
negócio comigo.
Só vi quando a loira torceu ainda mais o nariz.
— E você esqueceu que eu já disse que não vou? — Seus olhos
azuis tomaram um tom mais escuro, enquanto o fitava. — Desde a primeira
vez que me falou sobre isso, eu avisei que não iria.
O sorriso, outrora sarcástico, foi substituído por um vinco profundo
na testa, típico de quem já começava a se irritar. Aproximou-se ainda mais
da cama e da garota, como uma muralha três vezes maior do que ela.
— Se levante agora dessa cama e vá se arrumar — bateu palma uma
única vez, chamando sua atenção, autoritário. — As maquiadoras e
cabeleireiras já estão aqui. Aliás... — franziu o cenho, com um verdadeiro
semblante de nojo, ao encará-la. — O que houve com você, querida? Parece
que teve uma péssima noite. Sua cara está horrível.
Pera aí.
Então, esse era o homem que se dizia pai dela?
Com humilhações gratuitas assim?
E eu percebi no olhar dela que cintilou, pela primeira vez, após
aquilo, o quanto os seus insultos a magoavam e machucavam sua
autoestima.
— Eu já disse que não vou a lugar algum... — retrucou ela, tentando
se manter firme, muito embora eu percebesse sua voz já embargada.
Ele suspirou, odioso.
— Então, acho bom que vá. Não estou disposto a ficar batendo boca
com você, porque não tenho tempo para isso. Além do mais, querida, você
deveria fazer esse favor a si mesma. Aproveite que é filha de um homem
rico que pode pagar as melhores maquiadoras e cabeleireiras para você. Se
fosse pobre, sua aparência estaria realmente em um estado deplorável.
Puta que pariu.
O cara era intragável.
Notei quando os olhos da garota, de um azul intenso, tornaram-se
labaredas de fogo, mesmo já úmidos de tristeza, ao dizer pausadamente:
— Sai. Daqui. Agora.
Irritado, no entanto, só vi quando ele a puxou pelo braço, fazendo-a
se levantar da cama aos tropeços, quase caindo no chão. Meus olhos
dobraram de tamanho ao ver aquela cena. E eu realmente não poderia ficar
calada e quieta, enquanto sua mão apertava tão firmemente o braço branco,
a ponto de deixá-lo vermelho e quase roxo.
— Ei! — exclamei, me levantando prontamente da cama e, sem
cerimônia, já segurando-o também pelo braço. — Solta ela. Você está
machucando — disse entredentes.
Incrédulo com a minha atitude, ele virou o rosto para mim.
— Quem você pensa que é para me dizer como devo tratar a minha
filha?!
— Policial Scott. Agente do décimo terceiro distrito estadual.
Experimente encostar um só dedo nela, e veja o que acontece com você.
Foi aí que o seu semblante brevemente mudou.
— Policial, é? — E me encarou de cima a baixo. — O que você faz
com uma policial aqui dentro desta casa, querida? — perguntou ele a
Agatha, liberando o braço dela, mas sem tirar os olhos de mim.
Tudo o que eu conseguia enxergar nas íris da garota era pavor. Pavor
pelas mãos dele que a seguravam firme, pavor pelas ameaças veladas e
pavor por algo que ainda não tinha acontecido, mas que, talvez, ela
imaginasse que pudesse acontecer.
Sem respondê-lo, notei quando os olhos dela, absolutamente
marejados, me fitaram com um pedido silencioso que não dizia outra coisa
a não ser: por favor, vá, não crie confusão com ele. Só que eu não queria ir.
Não queria deixá-la daquele jeito, porque, por mais que ele fosse o seu pai,
nada lhe dava o direito de agredi-la. E eu sabia que ele estava a um passo de
dar um tapa em sua cara.
— E, então, querida? O que uma policial faz aqui? — Ele tornou a
perguntar.
Agatha, porém, me fitou mais uma vez e, agora, ela, angustiada, já
gesticulava com os lábios para mim “por favor”. Porra. Eu sabia que ela
não queria que eu fosse. Eu tinha certeza disso. Mas, estava absolutamente
amedrontada com o pai. E isso parecia falar mais alto do que qualquer outra
coisa.
Filho da puta.
Irritada, soltei o braço dele bruscamente. Porém, antes de lhe dar as
costas o encarei seriamente, como se pudesse o enxergar até a sua alma. Ele
sustentou o olhar de tal forma que eu pude sentir, lá no fundo, haver mais
do que curiosidade nas suas perguntas sobre mim. Eu ainda não sabia o que
era. Mas tinha certeza absoluta de que iria descobrir.
E, então, olhei para Agatha, com uma imensa vontade de acalmá-la.
Eu ainda faria isso. Com certeza faria. Peguei, no entanto, minhas botas e
as calcei, em silêncio. Passando pelas maquiadoras e cabeleireiras,
caminhei para fora. Todo o meu corpo pesado por estar deixando, mesmo
que momentaneamente, a minha garota.
E eu ia sair dali. Mas, as coisas não ficariam por isso mesmo.
Eu tô querendo você demais

Agatha

Eu via a minha vida inteira passar frente aos meus olhos, com um desfile
infindável de festas, bailes, jantares, iates e partidas de golfe. Sempre as
mesmas pessoas desinteressantes, sempre as mesmas conversas idiotas.
Sempre os mesmos caras ricos que achavam que podiam comprar o meu
afeto, baseados na quantidade de dólares que tinham nas contas bancárias.
Quem me observava de fora, até poderia me considerar uma garota rasa,
superficial, que adorava o luxo, o dinheiro e tudo o que a alta sociedade
poderia proporcionar.
Eu não era capaz de negar que já havia muito disso entranhado em
mim. Afinal, cresci com isso, fui criada e educada com notas gordas de
dinheiro. Acostumada a ter tudo na mão, eu gostava de todas as coisas que
fossem de bom gosto. No entanto, sempre que eu estava no meio daquela
gente que o meu pai me forçava a conversar, exatamente como agora, na
maldita confraternização de natal do Grupo Hotéis Ballard, eu me sentia
absolutamente deslocada. Absolutamente farta de ter que agir como aquela
bonequinha de porcelana.
Por fora, eu não era nada mais do que se esperava da herdeira de um
grande complexo hoteleiro em Las Vegas. Fina, classuda e educada. Por
dentro, eu estava gritando, mesmo que eu soubesse que ninguém se
importava ou percebia. Ali, ninguém estava realmente me enxergando.
E a única pessoa que talvez me visse por dentro, debaixo de todas as
roupas caras e maquiagens bem feitas, não estava comigo agora.
Zara.
Em meio àqueles assuntos, que não faziam o menor sentido para
mim, puxados por pessoas que não me interessavam nem um pouco, eu só
conseguia pensar nela. E no quanto eu gostaria que ela estivesse ali comigo.
Talvez me salvando daquele completo tédio, ou das mãos de algum escroto
que não perdia a oportunidade de me tocar pela cintura, mesmo que eu não
desse abertura alguma para isso.
Eram as mãos dela que eu queria em mim. Era na minha cama que
eu ainda queria estar. Com ela.
Mas...
O meu pai tinha que aparecer para estragar tudo.
Fui vestida e maquiada, mais uma vez, como um objeto inanimado,
e jogada ali, no meio do saguão de um dos hotéis mais caros do meu pai.
Ao meu redor, pessoas riam e sorriam para mim, tomando seus
champanhes, enquanto eu só desejava que aquilo acabasse o mais rápido
possível. Mulheres querendo a minha amizade por interesse na vida boa que
eu poderia proporcionar. Homens desejando a minha boceta. E eu pedindo
aos céus que um meteoro caísse exatamente ali e matasse todo mundo.
Porém, o momento em que eu realmente quis morrer foi quando
uma daquelas garotas riquinhas, muito semelhante a imagem que eu
passava, me puxou para um local onde havia muitas outras exatamente
iguais. Um grupinho de quatro garotas, que eu não conhecia, mas que não
precisavam ser apresentadas para que eu soubesse exatamente quem elas
eram. Filhas de empresários ou aspirantes a ricas, além dos rostos e corpos
bonitos, elas não tinham mais nada a oferecer.
Tempos atrás, eu até poderia me interessar pela companhia delas, se
fosse para foder alguma. Mas, agora, uma vez que na minha cabeça só
parecia existir a Xena, eu já nem me importava mais com qualquer
benefício sexual que eu, por acaso, pudesse conseguir delas.
— Agatha...! Essa festa está maravilhosa! — Uma delas comentou.
Era uma loira peituda e cheia de plásticas no rosto com, aparentemente,
apenas vinte anos de idade. — Na verdade, não existe uma festa organizada
pelos Ballard que não seja maravilhosa — sorriu faceira, tomando um gole
do seu champanhe.
Que entediante... Aquela mesma babação de ovo de sempre.
— É... Pois é, né... Tá show... — falei meio sem interesse, olhando
para os lados, enquanto tentava achar alguma rota de fuga.
— Russell Ballard é um homem incrível... — disse uma das
morenas, quase suspirando.
Homem incrível?
Franzi o cenho para ela.
Talvez só a casca dele, e aquilo que ele fingia ser na frente das
pessoas, parecesse incrível. Mas, se convivessem com ele, assim como era o
meu caso, certamente mudariam de opinião.
— E é um gato também, né? — A outra morena falou, enquanto
suas amigas soltavam risadinhas sacanas, tão interessadas quanto. — Ele
está solteiro?
Ahhh, agora eu estava entendendo onde elas queriam chegar e a
razão para terem me puxado até ali. Claro que tinha algum interesse por
trás. E eu acabava de descobrir qual era.
Em instantes, meu semblante com cenho franzido mudou para uma
das sobrancelhas erguidas. Xeque-Mate. Elas queriam o meu pai. E, sim,
isso era bem nojento, mesmo que ele fosse um coroa enxuto. Qualquer uma
delas tinha idade para ser minha irmã.
Não que eu fosse inocente o suficiente para achar que Russell
Ballard não tinha suas aventuras com mulheres de todas as idades, inclusive
com garotas que poderiam ser suas filhas. Mas, ainda assim, era claro,
lógico e evidente que eu não ia servir de cupido entre as interesseiras e o
filho da puta.
— Por falar nisso, onde ele está, heim? — A loira peituda e
plastificada perguntou, ao observar ao redor. — Você bem que poderia
descolar um encontrinho com ele para nós, Agatha.
Para as quatro? Tipo, ao mesmo tempo?
Pelo amor de Deus.
Puxei um drinque qualquer de um garçom que passava ao lado. Eu
precisava de uma bebida para ouvir isso. Virei quase a taça toda de uma só
vez.
Onde ele estava, eu não sabia, mas de uma coisa eu tinha certeza: ia
vazar daquela rodinha agora mesmo.
— Olha só, eu ouvi alguém me chamar bem ali... — apontei para
um ponto qualquer, atrás de mim, oferecendo-lhes um sorriso bem forçado.
— Foi bom falar com vocês, mas eu preciso ir, tá legal? Até... — Nunca
mais. — Até mais!
E dei o fora dali o mais rápido que eu conseguia.
Soltei o ar pela boca, balançando a cabeça, ao caminhar sem rumo
por entre os convidados. Terminei de beber o drinque, em um só gole, e
larguei o copo em cima de uma mesa cheia de gente, sem me importar.
Era só o que me faltava mesmo ficar ouvindo aquela baboseira... Já
bastava ter sido obrigada a estar ali e ter de aguentar, por horas, aquela
quantidade de gente absolutamente sem graça. Eu não precisava aturar
garotas ricas, ou quase ricas, que, além de serem sustentadas pelo próprio
pai, agora queriam ser sustentadas pelo meu pai também.
Claro que aquela desculpa de ter alguém me chamando nunca seria
um fingimento por completo. À medida que eu passava, era chamada e,
praticamente, puxada por gente que eu nem conhecia. “Admiradores” da
família Ballard, ou interesseiros mesmo. Mas, dessa vez, eu não parei.
Honestamente, eu não estava a fim de falar com ninguém. E deveria
aproveitar o fato de que o meu pai não estava ali, enchendo o meu saco para
receber cada daqueles convidados.
Continuei caminhando, na tentativa de encontrar um lugar tranquilo
para eu ficar. Entretanto, foi quando eu dobrei, para um lado, que os meus
olhos se encontraram com os de Louis, pela primeira vez, naquela
confraternização. Ele estava próximo a um balcão de drinques e cravou as
orbes mim, sem que desse tempo de eu disfarçar. Puta que pariu. Só vi e
ouvi quando ele acenou, dizendo a certa distância:
— Oi...! — sorriu meio atravessado. Ele já parecia bêbado, e ainda
era só meio-dia. — Oi, Agatha! Eu estava mesmo procurando você...!
Ai, cacete.
Empertigada, simplesmente corri dali, me enfiando sem rumo, por
entre as pessoas, até, de repente, encontrar uma porta qualquer e entrar ali
sem nem saber onde eu estava.
Quando o silêncio alcançou os meus ouvidos, por eu ter conseguido
escapar e estar em um lugar vazio, respirei fundo, aliviada e encostada a
uma das paredes. Graças a Deus. Eu nem sabia em que parte do hotel eu
estava, mas, quando olhei ao redor, me vi em um corredor com várias salas
daquilo que parecia ser da administração do hotel.
Repentinamente, porém, uma voz, ao longe, tornou-se nítida para
mim. Parecia ser... Parecia ser do meu pai. Franzi o cenho. Então, era ali
que aquele coroa estava? Balancei a cabeça. Era melhor que eu encontrasse
uma sala vazia antes que ele me encontrasse e a minha amostra grátis de
paz acabasse.
Quando pensei em dar um passo, no entanto, sua voz falando algo,
chamou a minha atenção:
— Olha só, traga para mim apenas as melhores garotas que você
tiver. Se houver garotas virgens, ainda melhor, eu pago o quanto for preciso.
Loiras, morenas, ruivas, pretas, brancas. De todo tipo. Mas, apenas as
melhores.
Enruguei a testa, travando no ato.
Que porra era essa?
E eu sabia que eu deveria dar o fora dali, antes que ele pusesse os
olhos em mim, mas eu simplesmente não conseguia ir em frente depois de
ouvir algo tão sem sentido.
O que o meu pai queria com garotas virgens?
E, tipo assim, as melhores de todos os tipos?
Eu não sabia que caralho isso significava, mas, dando vazão a toda a
curiosidade nascente em mim, caminhei na direção de onde eu escutava a
sua voz. Parecia ser numa das últimas salas do corredor. Devagarzinho me
aproximei dali e senti o coração acelerar ao perceber que havia uma
pequena fresta aberta na porta.
Com todo o cuidado, coloquei meu olho apenas naquele espacinho
e, então, pude ver o que acontecia ali. Era realmente o meu pai. E ele estava
dentro daquela sala, que parecia um escritório, junto com Harry Claflin, o
pai do Louis. Vi quando Russell mexeu em algo no notebook e perguntou:
— Qual a previsão de chegada delas aqui?
— Bom, elas devem estar saindo das Bahamas após o ano novo.
Precisam sair de lá à noite e também chegar aqui no período noturno, para
não chamar atenção — disse o Harry. — Vai ser tudo cronometrado. Não se
preocupe, já estamos preparados. Relaxe, Russell. Vai tudo correr na mais
perfeita ordem. Agora, aproveite a sua confraternização.
Meu pai sorriu de leve.
— Tem razão... Tudo bem, vamos nos divertir. Sem negócios hoje,
Harry — E soltou aquela nojenta e falsa risadinha que só ele tinha.
Foi tudo o que ele disse, segundos antes de dar duas batidinhas, de
leve, no ombro do outro, e caminhar na direção da porta daquela sala.
Exatamente. Onde. Eu. Estava.
Droga, droga, droga.
Quase desesperada, olhei de um lado para o outro, procurando um
lugar onde eu pudesse me esconder. Pensa, pensa, pensa, Agatha. Ainda
olhei para as portas das outras salas do corredor, mas nada me garantia que
pudessem estar abertas. E, o tempo que eu levaria para verificar isso,
poderia ser o tempo que eles me veriam ali, com a mão na massa.
Quando eu girei o pescoço pela milésima vez, no entanto, como se
uma luz tivesse piscado para mim, eu vi. Era uma cortina gigante, bem ao
lado da sala onde eles estavam. Amém. Em um piscar de olhos, me coloquei
atrás dela, tomando todo o cuidado do mundo para que nem a pontinha do
meu pé aparecesse.
Eles saíram do escritório e caminharam pelo corredor. Só as suas
costas eu podia visualizar. Para a minha completa felicidade, não
perceberam que eu estava ali. Cruzaram pela porta do corredor, deixando o
local, agora, completamente vazio. Aguardei alguns instantes atrás daquela
cortina, mas, quando me certifiquei de que não voltariam, eu não pensei
duas vezes em agir.
No fundo, eu sabia que era um risco continuar naquele lugar, ainda
mais entrar no escritório. Porém, eu não conseguiria ir para outro lugar, sem
antes tentar entender sobre o que eles estavam falando. Com a ânsia da
descoberta, corri lá para dentro, à procura do tal notebook. Olhei de um
lado para o outro, girando o pescoço várias vezes, mas eu não o via em
lugar algum. Não estava mais em cima da mesa, nem aparentemente em
qualquer outra parte.
Porra, eles tinham levado?
Que saco.
Ainda procurei em todos os lugares possíveis, não apenas o
notebook, mas qualquer outra coisa que pudesse ser suspeita ou esquisita.
Abri gavetas e armários, revirei tudo, fucei papéis e agendas, mas não havia
absolutamente nada que despertasse a minha atenção ou que parecesse ter a
ver com o que eles estavam conversando.
Droga.
Frustrada, puxei o ar, ainda olhando ao redor e pensando em qual
outra parte eu poderia procurar o que quer que fosse. Quando fui dar um
passo para vasculhar o armário outra vez, a porta da sala se abriu.
Meu coração disparou, achando que fosse o meu pai.
Porém...
Quem entrou foi Louis, em toda a sua aura bêbada e absolutamente
sacana.
Eu senti o cheiro do álcool de longe.
Merda.
— Ah...! Aí está você, sua diabinha fugitiva...! — sorriu torto,
falando com a língua enrolada pela quantidade de bebidas que já deveria ter
tomado. — Finalmente te achei.
E se aproximou de mim. Apesar de bêbado, seus passos eram ágeis,
rápidos e decididos. Sem que eu conseguisse o deter ou mesmo desviar,
seus braços me envolveram ligeiro, com ímpeto e força, enquanto sua boca
já ia direto no meu pescoço.
Mas que droga!
— Louis, tira a merda dessas mãos de mim! — tentei empurrá-lo
com o máximo de força, ou socá-lo no seu saco, mas cada investida minha
era fracassada, porque ele tinha muito mais força. Ou, sei lá, “habilidade”.
Se eu tivesse ao menos alguma técnica de luta para defesa pessoal, isso já
poderia valer mais do que realmente ter força.
O caralho era que eu não tinha nem técnica, nem força.
E ele, completamente maluco e alterado, só ria de mim, enquanto eu
tentava me safar.
— Você não vai conseguir mais fugir de mim, amor — disse ele, me
empurrando contra a mesa do escritório e me forçando a sentar com as
pernas abertas para que ele se encaixasse no meio. — Vou te provar como,
dessa vez, eu te conquisto.
Han?!
— Sai pra lá, seu doente! Para... Para com isso, porra! — tentei
falar, mesmo com a sua boca pressionando a minha. — Eu não... Eu não
quero! — E, enfim, cuspi na sua cara.
Foi aí que ele repentinamente parou.
— Ah, então, é assim?
Seus olhos se tornaram ainda mais intensos, numa mistura de raiva e
desejo.
E, então, me segurou com ainda mais força, tomando os meus
lábios, outra vez.
Seus dedos já iam abrindo o zíper do meu vestido, quando uma voz,
aquela voz, bem séria e rígida, disse:
— A garota mandou parar.
Bruscamente, o pegou pelos braços, tirando-o de perto de mim,
praticamente o chacoalhando como se ele fosse um saco de bosta. E ele era
mesmo.
Zara...
Minha expressão suavizou em menos de dois segundos, ao vê-la, e...
Cacete, era ela. Em choque com a surpresa, ainda pisquei os olhos
repetidas vezes para ter certeza de que eu não estava sonhando. E, apesar de
eu ter afirmado a minha visão umas trezentas vezes no último minuto, ela
parecia ser real mesmo. Muito mais real do que eu poderia imaginar.
Tudo dentro de mim saiu do lugar.
Era felicidade, alívio, desejo por ela, admiração e... Talvez... Amor.
— Quem é você, heim...? — desaforado, ele questionou. — Posso
saber com que direito está me segurando assim?!
— Policial Scott — tirou seu distintivo do bolso e praticamente
esfregou nas fuças dele. — Sei quem é você, Louis Claflin. Herdeiro de
casas de shows noturnos nas Bahamas e excêntrico bilionário. Vou ficar de
olho em cada passo seu. E terei o prazer de fazer você ver o sol nascendo
quadrado todos os dias, se tentar qualquer coisa contra essa garota. Então,
se não quiser ter problemas com a polícia, sugiro que dê o fora daqui agora.
Bom, as suas palavras e a maneira como ela falou fizeram até eu
mesma estremecer. E, com aquele filho da puta não foi diferente, o
semblante desaforado de outrora, gradativamente sumiu, a cada frase dita
pela boca da policial. Se em um minuto ele não parecia nada mais que um
bêbado prepotente, agora ele não passava de um cachorrinho com o rabo
entre as pernas.
Foi exatamente assim que ele saiu dali. Como um cachorrinho com
o rabo entre as pernas, depois que Zara o soltou com um empurrão. Ele
ainda tentou fitá-la com certos ares de superioridade, mesmo que eu notasse
que, por dentro, ele tremia nas bases. Scott, no entanto, sustentou o olhar,
não deixando se intimidar por nem um segundo. Troncho, ele quase
cambaleou por ali, e, sem olhar para mim (amém), saiu.
Enfim, respirei fundo, aliviada por aquele canalha ter ido embora e
por aquela mulher maravilhosa estar ali comigo.
Tudo o que ela fez, depois disso, foi caminhar até a porta para
fechá-la. E eu queria agradecê-la, dizer “muito obrigada” um milhão de
vezes, pular no seu colo e beijá-la até cansar, mas, graças a minha enorme
curiosidade, tudo o que consegui fazer foi perguntar, com o coração ainda
saltando do peito:
— O que está fazendo aqui?
Só que aí, o meu fôlego foi completamente sugado quando ela,
depois de fechar a porta, cruzou todo o espaço entre nós, com um olhar tão
determinado, e pousou suas mãos em cada lado do meu rosto, pegando-me
anda mais de surpresa, ao me beijar, dizendo:
— O que você está fazendo comigo, garota...? Eu não podia ir
embora daquele jeito. Eu não tinha condições de voltar pra casa, depois de
tudo aquilo, depois de você... E... — suspirou, balançando a cabeça, meio
perdida entre as palavras. — Você sabe o que eu tô dizendo, né? Você está
sentindo isso também, não está?
É sério que Zara Scott estava pronunciando todas aquelas palavras
para mim, enquanto me beijava e me encarava no fundo dos olhos?
Eu quase não conseguia acreditar. Juro. Um dia atrás, ela estava
fazendo de tudo para me evitar, mesmo com o seu interesse à flor da pele.
E, agora, ela me beijava como louca, sedenta por aquilo, como se tivesse
esperado tempo demais.
E tinha.
Três semanas poderia parecer pouco, mas, para quem desejava
alguém com todas as forças do corpo, não era. Não poderia ser.
Naquele instante mágico, em sua voz e em seu jeito de falar, houve
necessidade, tesão, desejo imbuído nas palavras, mas, sobretudo, loucura. E
eu amava isso, porque eu também estava doida por ela.
Desgraçada perfeita.
A beijei ainda mais, numa quase dança sincronizada de lábios,
línguas e mãos, aproveitando para fazer, enfim, na vida real, o que eu
secretamente imaginei nas últimas semanas.
Tão gostoso, tão perfeito... Exatamente do jeitinho como sempre
era, quando a gente se beijava, só que melhor. Agora, tinha gosto de total
entrega e rendição.
Absolutamente recíproco.
— Eu sei, eu sei do que você está falando, porque eu estou sentindo
a mesma coisa — disse eu entre beijos. — Obrigada, obrigada, obrigada por
estar aqui comigo... Obrigada por ter feito isso... — Também mirei no fundo
dos seus olhos, ofegante. — Mas... Como conseguiu entrar aqui no hotel?
Como soube que eu estava aqui? Você é maluca? — soltei uma pequena
risadinha.
— Vantagens de ser uma policial — Ela também riu baixinho,
contando apenas com o pequeno espaço entre os seus lábios e os meus. —
Mas, sim, eu sou maluca... Na verdade, estou maluca por você, garota
impulsiva... O que você está fazendo comigo? — franziu o cenho, me
observando por breves segundinhos, até me beijar de novo.
— O mesmo que você está fazendo comigo... — respondi com tanta
vontade de sentir, com a minha boca, não apenas os seus lábios, mas todo
restante do seu corpo.
E ela suspirou, encostando sua testa na minha, cheia de desejo. Era
tão palpável. Eu poderia senti-lo escorrendo pela sua pele.
— Vamos sair daqui? Vamos pra outro lugar? — perguntou em
quase súplica.
Isso era tudo o que eu mais queria.
— Pelo amor de Deus, sim, me tire daqui e me leve para qualquer
outro lugar onde você esteja.
Durante a vida inteira com ela

Agatha

Felizmente, o merda do meu pai estava muito entretido com os seus


convidados ridículos. Isso facilitou muito a minha saída com Zara, daquele
covil de cobras, sem que muitas pessoas percebessem. Passamos
rapidamente por alguns convidados, enquanto eu tomava o cuidado para ser
discreta. Do contrário, aqueles interesseiros ficariam me chamando como
zumbis, outra vez. E, bem, eu só queria dar o fora dali o mais rápido
possível.
Talvez, as únicas pessoas que realmente perceberam foram os
seguranças do hotel. Mas, obviamente, eles nada falaram a respeito da
minha saída. Pelo menos, não para mim. E eu esperava que, para o meu pai,
também não.
Enfim, quando entrei no seu carro, a sensação que me inundou foi
de liberdade. Respirei aliviada. Eu não precisava de mais nada. Estava livre
daquele show de horrores e acompanhada da mulher que eu mais desejava
no mundo inteiro. Por dentro, a minha vontade era de continuar, naqueles
bancos, o que começamos no escritório do hotel. Mas, tentei fazer o
possível para me comportar e esperar o momento certo (que eu pedia aos
céus que estivesse chegando).
Ao menos, eu já estava longe do hotel e do tédio que teria de
enfrentar nas próximas horas. Zara me levou para o seu apartamento. E
sorria para mim o tempo todo. Quase inacreditável. Eu juro que adorava
estar naquele lugar. Não era grande, nem tinha luxo algum. Na verdade, era
bem simples, mas, ainda assim, eu preferia estar ali do que na minha
própria casa. Honestamente, eu iria gostar de estar em qualquer lugar onde
ela estivesse. Foi exatamente isso o que eu pedi, antes de sairmos daquele
escritório. E foi isso o que ela fez.
No instante em que subimos as escadas e alcançamos o andar do seu
apartamento, eu tive a certeza de que ela estava fora desde a noite anterior,
quando me levou bêbada para casa. Nick estava no corredor, brincando de
jogar bola, com as amigas da Zara, cujo apartamento ficava de frente para
seu, pois era o único que estava com a porta aberta. O sorriso que ele deu e
a forma como correu para se jogar nos seus braços, não escondiam que
aquela era a primeira vez no dia que ela pisava em casa.
— Mamaaaaaãe! — disse ele, ao pular no seu colo.
E Zara o segurou, sorrindo e espalhando beijinhos por todo o seu
rosto.
Eu também gostava disso.
Eu gostava de vê-la interagindo com ele. E a maneira carinhosa
como ela o tratava. Exatamente do jeitinho como uma mãe ou um pai
deveriam fazer.
— Oi, meu amor! Você está bem? Já almoçou?
— Já sim, mamãe... — respondeu. — Por que demorou a voltar? —
Foi aí que ele virou o rosto para mim, me fitando e abrindo um sorriso
ainda maior por me ver ali. — Uaaaau! Você tá uma gata! Agora entendi
porque a mamãe demorou — soltou uma risadinha astuciosa.
Nem eu, nem Zara conseguimos nos conter. A risada foi instantânea.
Esse garoto era muito esperto.
E ele, provavelmente, estava se referindo ao meu look da festa.
— Muito obrigada, meu pequeno homenzinho — disse eu, divertida.
Porém, aparentemente, ele era o único realmente contente por me
ver no prédio. As amigas da Zara me encararam de um jeitinho meio
esquisito. Digo... Uma delas estava sorrindo até simpática, mas a outra
parecia um tanto desconfiada e receosa com a minha presença. Eu só não
entendia o motivo.
E, bem, eu senti que a Zara percebeu aquilo, quando as fitou,
segundos depois de parar de rir. Puxou o ar brevemente, como se estivesse
se preparando para alguma coisa, e, então, virou o rosto para mim. Dessa
vez, esboçando um sorriso que, no fundo, me dizia algo como “fica
tranquila, está tudo bem”.
— Será que você pode entrar com o Nick? — tirou do bolso a chave
do seu apartamento e ergueu para mim. — Eu vou só falar rapidinho aqui
com elas. Você pode ficar à vontade, tomar um banho, trocar de roupa,
enfim... Pode fuçar o meu guarda-roupa inteiro até encontrar algo
confortável para vestir. Está bem?
Balancei um breve sim com a cabeça.
Entendi que ela queria um momento a sós com as amigas.
— Tudo bem... — disse eu. E, então, sorrindo para o Nick que já
tinha sido colocado no chão por ela, ergui minha mão para ele. — Vamos?
Sua mãozinha segurou a minha prontamente, e, assim, entramos
juntos no apartamento.

✽✽✽

Só que o rapidinho dela não foi tão rapidinho assim. Eu não contei
exatamente quanto tempo já tinha passado, mas, talvez, eu já estivesse ali,
com Nick, há uma meia hora ou mais. Afinal, eu pude tomar banho, revirar
seu armário, assim como ela tinha dito que eu estava autorizada a fazer,
vestir um blusão confortável e cheiroso, e ainda ter altas conversas com o
pequeno Nick, sobre os assuntos mais aleatórios que ele falava, incluindo
desenhos animados, presentes de natal e a bicicleta novinha que ele ganhou
do Papai Noel na noite anterior.
Estávamos no quarto da Zara, lá pelo décimo terceiro papo sobre
Toy Story e Shrek, quando eu percebi a televisão dando sopa e perguntei:
— Que tal um filme agora, Nick?
Bom, eu imaginei que Zara não fosse achar ruim. Se ela disse que eu
poderia ficar à vontade para olhar tudo dentro do seu guarda-roupa, então
também não teria problema, caso eu deitasse em sua cama, com Nick, para
assistir mais desenhos animados, como naquela última vez que eu estive lá.
— Sim! Sim! — Sem nem pensar duas vezes, ele exclamou, já
pulando na cama. — Eu adoro assistir filme aqui no quarto da mamãe!
Sorri.
— Ótimo! Então vamos escolher um — disse eu, pegando o
controle da televisão e me sentando ao seu lado. — Vamos ver o que tem de
bom por aqui... — abri nos streamings, procurando alguma coisa que fosse
adequada para crianças.
Enquanto eu mexia por ali, indo e voltando nas abas, percebi quando
ele virou seu rosto para mim, ficou me olhando meio pensativo e, então, de
repente, perguntou:
— Agui... O seu olho é de verdade?
O sorriso que eu dei, misturado com a vontade de rir, foi impagável.
Crianças...
— Como assim...? — franzi o cenho, divertida.
— É porque ele é tão azul que parece de mentira. Tipo o olho das
bonecas das garotas da minha escola.
Agora sim eu ri.
— Eles são de verdade sim, Nick... Prometo que não são de plástico
— brinquei.
— Ah, legal! Você já viu o meu? É castanho — E os abriu bem,
aproximando seu rosto do meu para que eu pudesse ver sem restrição.
Sorri.
Ele era uma graça.
— São lindos, Nick!
— É, eu também gosto do meu olho castanho — comentou, dando
de ombros. — Mamãe diz que tem cor de mel — soltou uma risadinha.
E ele não tinha filtro para falar nada. Era muito parecido com uma
pessoa que eu conhecia muito bem... Eu.
— E tem mesmo... Você é um gatinho, Nick — soltei uma piscadela
divertida para ele.
— É o que as garotas da minha escola falam.
Franzi o cenho outra vez, sorrindo.
— Espera aí... — E me ajeitei sobre a cama, fitando-o com muita
atenção. — Você está querendo me dizer que já tem namoradinhas na
escola, seu espertinho?
Ele soltou uma risadinha brincalhona.
— Não... — E passou os dedos uns nos outros, baixando o olhar,
meio faceiro, para encarar suas mãos. — Quer dizer... As garotas da minha
classe dizem que eu sou o mais bonito de todos os garotos da nossa idade, e
elas também me dão beijo na bochecha. Mas, mamãe disse que eu ainda não
tenho idade para namorar.
Sensata...
Mesmo assim, uau...! Com oito ou nove anos de idade, eu ainda
estava comendo terra.
— Hum, entendi... — acenei um breve sim com a cabeça, ainda me
divertindo com ele.
— Mas, você tá namorando a mamãe, né? — perguntou ele de
repente, fazendo-me quase engasgar com a própria saliva. Nick era sempre
tão direto. Talvez, essa fosse a reação que eu também causava à maioria das
pessoas. — Pode contar pra mim. Vai.
Uma pequena risadinha de surpresa escapou da minha garganta.
— E-Eu...? Nós somos... É... — tentei pensar em alguma desculpa
para dar, mas, humpft, não valia a pena mentir para crianças. Mesmo que eu
não soubesse ainda dar nome para o acontecia entre Zara e eu, era melhor
ser franca com ele. Em geral, adultos deviam saber como conversar com
crianças. E não era daquela maneira que duvidava da capacidade mental
deles. Muito pelo contrário, era de um modo que ativasse, ainda mais, a
inteligência e a esperteza. E inteligente e esperto, o Nick já era bastante. —
Tudo bem... — suspirei, sorrindo. — Se nós fôssemos namoradas mesmo,
você ia gostar?
— É lógico! — respondeu sem nem pensar. — Você parece uma
boneca, e a mamãe parece gostar de você pra caramba! Eu ia adorar que
vocês fossem namoradas.
“E a mamãe parece gostar de você pra caramba...”
Talvez eu nunca me acostumasse a ouvir isso, sem que o meu
coração desse umas trezentas cambalhotas dentro do peito.
Quando pensei em responder, no entanto, ela apareceu.
E eu podia jurar que ela tinha escutado, pelo menos, a última parte
daquela conversa, porque o olhar que nos deu, junto com aquele sorrisinho,
foi tipo “eu sei o que vocês estão aprontado”.
— Opa, opa... — disse ela, ao entrar no quarto. — Vejo que já estão
bem enturmados, heim...?
Nick e eu nos encaramos, cúmplices, e, então, sorrindo para ela,
logo depois, eu respondi:
— Ah, pois é... Espero que não tenha problema... Você estava
demorando e eu achei que fosse uma boa ideia colocar algum filme para
assistir.
Ela soltou uma risadinha.
— É claro que não tem problema — balançou a cabeça de leve. —
Mas... Acho que isso pede uma pipoca, não é?
— Sim, mamãe! Sim! — Nick logo pulou sobre a cama,
entusiasmado.
Nós rimos.
— Quer que eu te ajude? — perguntei.
Pelo menos, pipoca era uma das poucas coisas que eu sabia fazer
na cozinha, sem causar algum tipo de incêndio.
— Por favor — Ela sorriu.
E, assim, deixamos Nick confortavelmente deitado na cama,
enquanto “Enrolados” passava na tela e ele esperava pela tal pipoca.
Seguimos para a cozinha. Pegamos, uma panela e os outros ingredientes.
Bem vintage mesmo, porque, apesar do micro-ondas que ela tinha, estava
faltando justamente a pipoca de micro-ondas.
— Está tudo bem? — Ela perguntou.
— Sim...
Porém, mesmo que a conversa entre Nick e eu tivesse sido um tanto
longa, eu ainda não havia me esquecido do momento em que chegamos ao
seu prédio e da cara meio esquisita que as amigas dela me ofereceram. Por
mais que aquilo pudesse parecer uma grande bobagem, estava quase
escapando pela minha garganta.
E, quando dei por mim, eu já estava comentando, mesmo por alto...
— Não sei, mas... Acho que as suas amigas não gostam muito de
mim. Quero dizer, uma delas parece ser bem simpática, mas a outra nem
tanto. Sinto como se ela tivesse um pé atrás comigo — tentei soltar uma
risadinha de leve, para tirar qualquer possível peso daquilo e não parecer
que tinha me afetado de alguma forma.
Colocando o milho na panela e ligando o fogo, Zara suspirou de
leve, e, então, com um pequeno sorrisinho, virou o rosto para mim, me
observando. Ainda em silêncio, pousou uma das mãos sobre o meu rosto,
fazendo um carinho, por ali, com o polegar. Confesso que eu ainda não
estava acostumada com o seu toque, e talvez nunca conseguisse me
acostumar. Foi por isso que fechei os olhos, puxando o ar brevemente e
experimentando todas as sensações que apenas ela era capaz de causar em
mim.
Só ouvi quando falou:
— Relaxa, tá? É só impressão sua.
E, bem devagar, aproximou seu rosto do meu, beijando os meus
lábios, com todo o carinho que, secretamente, eu desejei que ela tivesse
comigo. Primeiro, o inferior. Depois, o superior. E, em seguida, voltando
para o primeiro. Sugando de leve, pedindo passagem para a sua língua.
Mas, não afoita. Na verdade, sem pressa, como se não visse os minutos
passarem, ou o mundo inteiro se mover ao nosso redor. Isso me desmontava
em um milhão de pedaços, porque eu não imaginava que, naquele dia e
naquela exata hora, nós fôssemos estar exatamente dessa maneira.

✽✽✽

A noite ainda não tinha chegado completamente, mas, depois de


tantos filmes e pipocas, Nick pegou no sono. Vi quando Zara o pegou no
colo e o tirou dali, provavelmente para colocá-lo na cama dele. O problema
era que, depois de horas, o meu sumiço da festa deu nas vistas do meu pai,
porque eu já estava, há uma ou duas horas, recebendo e rejeitando ligações
e mensagens suas. Quase não consegui me concentrar no último filme.
Ainda tentei disfarçar para que Zara não percebesse e se
preocupasse, mas uma daquelas muitas ligações chegou no exato instante
em que, depois de levar o Nick, ela voltou para o quarto e fechou a porta.
Juro que, se eu tivesse adivinhado que ela apareceria justo naquele
momento, eu não teria largado o celular abruptamente sobre os lençóis e
falado um palavrão, ao recusar sua chamada.
— Algum problema? — perguntou ela.
Droga.
— Não... — balancei a cabeça, muito embora eu não conseguisse
disfarçar o meu semblante consternado, por mais que eu tentasse. — Não é
nada.
Zara, por sua vez, sentou-se ao meu lado, na cama, e...
— Agatha... — Seu tom era quase como uma repreensão. — Você
não precisa esconder nada de mim. Qualquer coisa que estiver acontecendo
e te deixando irritada, você pode me falar. Portanto, diga. — E pôs seus
olhos sobre mim atentamente.
Suspirei. Eu não teria como fugir disso.
— É só... — tentei engolir o gosto amargo que subia pela minha
garganta. — É só o meu pai. Ele está me ligando e mandando mensagens
incessantes, há um tempo. Enfim, parece ter notado a minha ausência.
— Você quer ir pra casa?
Virei, de súbito, o meu rosto para ela.
— Não — respondi sem nem pensar por mais de dois segundos. —
Eu não quero ir pra casa. Quero ficar aqui.
— Bom... Então, fique calma — disse ela, aproximando-se um
pouco mais de mim e deslizando uma das suas mãos suavemente pelos
meus cabelos. — Você pode ficar aqui quanto tempo quiser. Tudo bem?
Era reconfortante ouvir isso. Principalmente, por não esperar que,
depois de ter repetido, algumas vezes, que não me levaria mais ao seu
apartamento, agora me recebesse dessa forma.
— Obrigada — sorri de leve, mesmo que, por dentro, eu ainda me
sentisse agoniada com as pressões do meu pai.
Ele até podia não estar ali comigo, nem por perto, assim como eu
também podia não estar ouvindo nenhuma das suas palavras, mas, apenas
aquelas ligações e mensagens ostensivas de quem queria saber, a todo custo,
onde eu estava, eram desgastantes. Isso porque eu sabia que ele não se
importava comigo, na verdade, nunca se importou com o meu paradeiro,
mas estava fazendo aquilo apenas por eu não ter recebido os seus amigos
investidores da maneira como ele queria, nem me oferecido como carne
nobre para que eles pudessem comer e fazer negócios, especialmente Louis.
Entre um pensamento e outro, que me levava para um lugar um
pouco distante dali, só ouvi quando Zara perguntou:
— Seu pai sempre te trata assim?
Puxei o ar, tomando fôlego para reconhecer aquilo.
— Sempre. Ele sempre me obriga a fazer as vontades dele, sem me
ouvir, sem se importar com o que eu penso ou com o que eu quero. Ele me
usa como moeda de troca, para fechar grandes negócios. Especialmente,
depois que eu fiquei mais crescida. Sou como a porra de uma cortina de
fumaça, usada para distrair os caras. Enquanto meu pai os empurra negócios
milionários, para que fique ainda mais rico, eu estou lá, dando o suporte
necessário para que os velhos nojentos só vejam peito e bunda, mas não os
inúmeros zerinhos a mais nos contratos assinados. E, quando eu não sigo as
suas ordens ou faço alguma coisa que o desagrada, recebo uma chuva de
insultos, como você viu hoje de manhã. Feia é o adjetivo mais básico que
ele usa. Existem outros piores. Na verdade, eu acho que o insulto que mais
me machuca não é nem com palavras, mas apenas com o olhar de desprezo
que ele me dá.
Despejei tudo aquilo como se estivesse em alguma sessão de terapia,
onde se tenta tirar um peso das costas na mesma proporção de palavras
ditas. Zara, no entanto, me encarou como se estivesse enojada. Seu cenho
franzido. A expressão de consternação, por mais que, naquele momento, eu
estivesse fora da zona de alcance do meu pai.
— Eu quero muito, muito, fazer algo que possa mudar isso — Ela
disse com tanta sinceridade.
Porém...
— Não, não se preocupe. Eu acho que isso é algo que não dá para
ser mudado.
Durante muitos anos, depois que mamãe se foi e o meu pai se tornou
ser humano desprezível, eu pensei que a minha condição de submissão a ele
fosse momentânea. Achei que, depois que eu estivesse maior e mais
crescida, eu me tornaria mais independente. Ledo engano. Ele ainda tinha
domínio sobre tudo a meu respeito. E os anos só fizeram com que isso
piorasse. Quando eu era mais nova, ele não me obrigava a me jogar para os
homens nojentos dos seus negócios. Mas, agora, uma vez que nem mais
virgem eu era, já não tinha mais o “problema” de eu servir apenas como
enfeite.
Agora, ele usava o enfeite.
Scott, no entanto, parecia inconformada. E, pela maneira como ela
olhava para diversos pontos do quarto, quase inquieta, eu sabia que a sua
cabeça estava formulando e refletindo sobre inúmeras coisas. Ainda que ela
não estivesse abrindo a boca para externar aquilo, era totalmente visível o
quanto os seus pensamentos estavam ativos.
Quando achei que, enfim, fosse colocar algumas coisas para fora,
ela, no entanto, respirou fundo, como se estivesse tentando resguardar para
si qualquer ideia, antes de saber se ia realmente funcionar, e, então, segurou
o meu rosto com as duas mãos, encarando firmemente os meus olhos.
— Você é a garota mais linda que eu já conheci. Por dentro e por
fora. Mesmo que a nossa relação tenha sido meio controversa nas últimas
semanas, eu sempre te achei maravilhosa.
E eu finalmente sorri de verdade.
— Você acha mesmo? — Sem conseguir conter minha alegria,
perguntei. — Aliás, sobre a nossa relação controversa, eu devo interpretar
isso como “mesmo que eu tenha sido grosseira e você desaforada nas
últimas semanas”? — brinquei.
Ela riu, também de verdade.
Deus, como eu desejei que um dia ela risse desse jeito comigo.
— Sim, você pode interpretar assim... — Divertida, replicou. — E
eu não somente acho como também tenho certeza.
Eu sabia que o meu rosto tinha se iluminado ainda mais.
Minha vida era meio esquisita quando o assunto era “elogios”. Eu
recebia inúmeros, de todo tipo de gente. De homens, de mulheres. De
pessoas interesseiras ou não. Isso, de algum modo, aumentava o meu ego.
Mesmo assim, sempre que o meu pai me insultava sobre algo a respeito da
minha aparência, era como se nunca ninguém no mundo tivesse me
elogiado. Era como se anulasse todas as palavras boas existentes e não me
restasse nada.
Acontece que, agora, ouvindo aquilo sair da boca dela, eu chegava à
conclusão de que não importava quantas pessoas já tivessem me elogiado
ou quantas milhares de vezes o meu pai tivesse me insultado, nada se
comparava e nada chegava aos pés do que era Zara Scott me chamando de
linda por fora e por dentro.
— Minha mãe era modelo... — sorri. — Então, ser bonita sempre
foi quase como uma obrigação pra mim.
Uma exigência que não era da minha mãe, mas do meu pai.
— E você não precisa fazer nada para ficar bonita, porque isso já é
natural de você. Vem de dentro. Você consegue ficar linda de qualquer jeito,
mesmo depois de um dia inteiro desentupindo privadas, esfregando o chão,
passando o pano em um monte de móveis, ou usando aquela farda que eu
consegui para você na penitenciária... — soltou uma risadinha.
Eu também sorri.
Tão feliz, tão... Amada.
Tão de uma maneira que eu nem conseguia dizer, apenas...
— Por que você está me tratando assim agora? — franzi o cenho de
leve, mesmo que o sorriso verdadeiro permanecesse ali. — Poucos dias
atrás você queria distância de mim, por mais que eu mostrasse o meu
interesse. E agora... Agora você está assim... — encarei-a em uma mistura
de admiração, alegria e dúvida. — O que te fez mudar de ideia?
Ela sorriu de leve.
— Provavelmente, o mesmo motivo que te levou a parar de querer
me assassinar, e, em vez disso, sentir vontade de me beijar.
Boa.
Touché.
— E quem disse que eu não quero mais assassinar você? —
brinquei.
Ela riu.
— Se eu fosse você, tomaria muito cuidado com o que fala para
uma policial — zoou.
Sorri.
— Mas, sério... O que aconteceu pra que mudasse de ideia? Não me
diga que o fato de eu ter aparecido aqui no prédio ontem, completamente
bêbada, falando um monte de besteira, realmente te conquistou — soltei
uma risadinha.
— Ah, não foi um monte de besteira... — Ela riu de leve e, então,
suspirou, ficando um pouco mais séria, ao me encarar nos olhos. — Mas,
bem, depois de tudo o que aconteceu entre nós, acho que estava bem na
cara o quanto eu queria né? Hoje de manhã, eu só cheguei à conclusão de
que não dava mais pra negar ou tentar parar o desejo que eu sinto por você.
Ele é irrefreável, irreprimível, ininterrupto, incessável.
“Eu só cheguei à conclusão de que não dava mais para negar ou
tentar parar o desejo que eu sinto por você...”
“Ele é irrefreável, irreprimível, ininterrupto, incessável...”
Porra... Se apenas com palavras ela era capaz de ferver tudo o que
existia dentro de mim, imagina o que poderia fazer com todo o resto. Uma
bruxa. Uma feiticeira. Poderosa de alguma maneira como ninguém
conseguiu ser comigo.
Pedindo ardentemente aos céus para que ela me dissesse algo muito
específico, perguntei:
— E o que você quer agora?
Foi aí que ergueu uma das sobrancelhas, me fitando intensamente.
Um pequeno e quase imperceptível sorrisinho meio sacana brincando nos
seus lábios.
— Você.
Puxei o ar.
Era isso mesmo. Era exatamente o que eu queria ouvir.
E somente aquela sua resposta curta e simples foi o bastante para
que eu não pensasse em outra coisa, a não ser tê-la agora, ali, naquele
instante. Eu precisava disso. Eu sonhava com isso há dias.
Deus, que ela deixasse nós irmos até o fim.
Era tudo o que eu pedia.
Me aproximei ainda mais, se é que isso era realmente possível,
porque nós já estávamos perto demais, e deslizei uma das mãos pelo seu
rosto. Ela fechou os olhos, respirando fundo, pesado. Mais uma vez, eu já
era capaz de sentir o seu desejo exalando por cada poro. Perfeita,
maravilhosa... Gostosa. Eu não aguentaria esperar mais tempo.
E realmente não aguentei.
Encaixando a mão na sua nuca, avancei para os seus lábios.
Sua boca macia invadiu a minha sem qualquer receio. Obrigada,
Deus. Era desse jeitinho como eu queria que ela estivesse. Totalmente
receptiva. Nossos beijos e toques eram intensos e firmes, mas lentos. Ou
melhor, graduais. Iam aumentando a velocidade gradativamente, minuto a
minuto. Nos demoramos ali, por quanto tempo era necessário, apenas
naquele beijo. Seus lábios sugando os meus e pedindo passagem para a
língua.
Não apresentei qualquer resistência.
Em pouco tempo, nós já estávamos em um emaranhado de lábios,
línguas e tesão. Uma quase dança sincronizada, onde ora o meu rosto ia
para um lado, ora virava para o outro. Meus lábios sugavam os seus,
enquanto a sua língua lambia e tocava a minha pretensiosamente. A porra
da língua mais gostosa do mundo. Que sorte a minha, ter uma mulher como
aquela. Uma maldita feiticeira com incríveis poderes nas pontas de cada
dedo.
Suspirei, sentindo o acúmulo de tesão em cada parte de mim.
Foi quando uma das suas mãos desceu pelo meu corpo que eu senti
todo o meu bombeamento sanguíneo aumentar. O coração absurdamente
acelerado de desejo. Firme, seu polegar alcançou um dos meus mamilos por
cima do blusão que eu vestia. Eu não estava usando sutiã, então, ligeiro, ela
o sentiu enrijecer. Não apenas o mamilo, mas todo o meu peito. E o outro
também, aquele que ela ainda nem tocava. Rígidos, durinhos, apenas se
preparando para o que estava prestes a acontecer.
Sem tirar minha boca da sua, arqueei brevemente as costas, para
aproximar ainda mais aquele contato e mostrar o quanto me excitava. Ela
ainda brincou ali por mais tempo, mesmo por cima do tecido, arrancando de
mim respirações ofegantes e gemidos baixinhos. A cada toque nos meus
mamilos, a cada beijo mais molhado, eu já sentia a lubrificação escorrendo
pela minha boceta. Melada, pulsando. Eu estava tão cheia de desejo, e
prontinha para dar tudo a ela.
Foi quando desceu a sua mão pelo meu corpo, encaixando na minha
cintura e apertando firme e gradativamente a minha pele, que eu não resisti
em falar. Separei nossos lábios por apenas alguns centímetros e sussurrei,
sentindo o tesão já transbordar de dentro de mim:
— Sabe... — passei a língua entre os lábios, tomando fôlego e
encarando o fundo dos seus olhos. Seu rosto tão perto do meu. Sua
respiração quente se espalhando sobre a minha pele. — Eu passei dias e
dias fantasiando isso, e tocando a mim mesma, enquanto imaginava que
fosse você.
Vi quando ela arqueou uma das sobrancelhas, intensa. Seu olhar se
tornando ainda mais quente do que já estava.
— Você se tocou pensando em mim?
Afirmei com a cabeça, sem nem pensar.
A vergonha, por falar a pura verdade, não existia.
— Sim... E, sério, na real, eu tô toda e completamente molhada pra
você. Eu tô pingando, Zara — disse eu, encarando-a tão firmemente. —
Não vejo a hora de sentir você me comendo com a sua boca.
Ela sorriu, sacana, mordendo de leve o próprio lábio inferior.
— Quer dar sua boceta pra mim, senhorita Ballard?
— Ela já é sua, policial Scott.
Seu sorriso se tornou ainda maior.
— Então, abra as pernas pra mim, amor.
E, habilmente, segurou as barras do blusão que eu usava, subindo-o
para me deixar nua. Por baixo, eu não vestia nada além de uma calcinha.
Quando dei por mim, ela já tinha tirado e me observava com aqueles
olhos... Aqueles mesmos olhos da noite em que me colocou em cima da
mesa da cozinha e chupou os meus peitos. Eu me sentia a mulher mais linda
e maravilhosa do mundo, uma deusa, quando ela me observava desse jeito,
engolindo cada pedaço da minha pele com as suas orbes pretas.
Quando tentei levar minhas mãos a sua roupa, para também tirá-la,
ela, no entanto, me segurou, repentinamente me empurrando contra o
colchão e prendendo meus dois pulsos acima da minha cabeça. Soltei uma
risadinha, sagaz. Era disso que eu gostava. Se enfiou no meio das minhas
pernas, avançando em mim, como se estivesse prestes a realmente me
devorar. Sua boca tornou a me beijar. Dessa vez, muito mais intensa do que
minutos antes de me deixar nua.
Enquanto uma das suas mãos segurava firmemente os meus pulsos,
sem dar espaço para que eu, ao menos, os mexesse, a outra desciam pelo
meu corpo. Apertando a minha pele, sentindo a textura, tocando o suor que
já queria escorrer. Seus lábios pareciam ter total poder sobre mim, porque
não era apenas a minha boca que eles sugavam. Zara também descia pelo
meu pescoço, lambendo, chupando, tão deliciosa. Eu pouco me importava
se fosse ficar alguma marca. Na verdade, eu até queria que ficasse.
Era como marcar o seu território em mim.
E, para a minha completa felicidade, os seus lábios escorregaram
ainda mais e envolveram os meus peitos. Puta que pariu. Pendi a cabeça
para trás, fechando os olhos e arqueando as costas, ainda que ela mantivesse
meus pulsos bem seguros. Isso era maravilhoso. Meus peitos estavam
empinados e fartos, tamanha excitação. Não pude conter o gemido que
escapou da minha garganta, quando sua língua, tão habilidosa, se conteve
minuciosamente sobre os meus mamilos. E passou minutos preciosos nesse
trabalho desgraçado e delicioso.
Como se não bastasse, ainda chupando os meus peitos, desceu com
a sua mão para dentro da minha calcinha, a única peça que ainda me cobria.
Passou os dedos em toda a extensão da minha boceta, até se concentrar no
meu clitóris.
Meu Deus, eu ia morrer.
— Toda molhadinha... — sussurrou, franzindo o cenho, não em
confusão, mas em pura excitação, como se notar aquilo fosse como ver o
próprio paraíso. Largou minha boceta, segurando meu rosto por baixo do
queixo, com uma das mãos, apertando firmemente e fazendo-me encará-la.
— Garota, você me dá um tesão da porra... — E tomou os meus lábios em
um beijo profundo outra vez.
Voltou para meus mamilos, tocando e estimulando, enquanto beijava
a minha boca. E eu, aproveitando que ela continuava entre as minhas
pernas, rocei minha pélvis na sua, mesmo que ela ainda estivesse de short.
Eu sentia a minha boceta pulsando de prazer, escorrendo e melando toda a
minha calcinha. Os gemidos escapavam da minha garganta sem que eu
pudesse contê-los.
— Se eu continuar me esfregando assim em você, eu vou gozar —
falei, em meio aos beijos e a respiração ofegante.
De automático, ela parou tudo e só então soltou os meus pulsos que
ainda estavam presos acima da minha cabeça.
— Não, não... Eu quero que você goze na minha boca.
Ah, porra, era tudo o que eu mais queria.
Apenas vi quando ela tirou a minha calcinha, largando-a em uma
parte qualquer do chão, e enfiou a boca e a língua na minha boceta. Filha de
uma... A porcaria da boca mais deliciosa do universo inteiro. Pelo amor de
Deus... O quanto eu desejei sentir isso. Esfreguei minhas mãos no meu
rosto, em polvorosa, delirando, sem saber como ela conseguia ser assim.
Sua língua passando por toda a extensão, lambendo toda a minha
lubrificação sem qualquer reserva, chupando os grandes e pequenos lábios,
e, então, se atentando, com maestria, bem no meu clitóris.
Não consegui segurar. Dessa vez, o gemido que escapou foi muito
mais intenso que os outros. Ela, por sua vez, sorrindo, sacana, contra a
minha boceta, ergueu um dos seus braços, colocando a mão na frente da
minha boca, como um aviso. E aí eu me lembrei. Me lembrei de que não
podíamos fazer muito barulho. Droga. Engoli toda a vontade de gemer
todas as sacanagens que estavam passando pela minha cabeça, naquele
momento. Ou, pelo menos, tentei.
O problema era que aquela desgraçada sabia fazer tão bem, como se
já me conhecesse e me comesse há anos. Tinha que ser mulher, né? Na
verdade, tinha que ser A Mulher, porque, por mais que nós mulheres nos
entendêssemos muito bem, também não era com todas que acontecia uma
ligação tão boa e intensa na cama. Quase raro. Na maioria das vezes, era,
sim, gostoso. Mas, não gostoso daquele jeito como ela sabia fazer. Uma
ligação quase cósmica que só poderia ter sido obra dos deuses e alinhada
por todos os elementos do universo.
Zara sabia a maneira como eu gostava que tocassem na minha
boceta. E a forma como o fato de me chupar, ao mesmo tempo que
estimulava os meus mamilos, me deixava incrivelmente excitada. Ela
também sabia, mesmo que eu nem tivesse dito, que eu adorava quando
passavam a língua detidamente em cima do meu clitóris, apenas lá, nem
forte nem fraco, mas de uma maneira que o deixava bem duro, inchado,
dando todos os indícios de que eu estava prestes a gozar.
E eu realmente estava prestes a gozar...
...porque Zara estava fazendo exatamente tudo isso.
Eu sentia os meus dedos do pé formigando desde as pontinhas até as
minhas pernas, que tremiam de instante em instante. Tudo queimando por
dentro, pulsando. Minha boceta pulsava de tesão e de vontade de ter um
orgasmo, principalmente quando ela meteu seus dedos dentro de mim, três
de uma vez, entrando e saindo, massageando o ponto certo lá no final,
enquanto eu, sem conseguir segurar os meus quadris, rebolava na sua boca.
E ela, a própria Lilith, me encarava por debaixo dos cílios com um
semblante de verdadeira adoração misturado com loucura. Por mim.
Ah porra...
...Eu não ia aguentar.
— Sua desgraçada... — balbuciei de olhos fechados e costas
arqueadas.
— Goza pra mim, goza... Goza na minha boca — disse ela, com
aquele tom de voz que me fazia ir do céu ao inferno e do inferno ao céu,
enquanto continuava habilmente o seu trabalho em mim.
Puta que pariu.
Retorci meus dedos dos pés nos lençóis, quando senti toda a
contração do meu baixo ventre. Eu estava prestes a gozar... Não... Porra...
Eu não estava prestes a gozar. Eu já estava gozando. Tudo dentro de mim
se contraindo e retesando, enquanto eu colocava pra fora o ápice do meu
desejo. A boceta pulsando involuntariamente. Tentei conter um gemido
mais alto, ainda que ele, mesmo assim, continuasse saindo pela minha
garganta.
E eu realmente gozei.
Gozei tanto, até a minha visão falhar, por alguns segundos, e eu
fechar os olhos, quando tudo pareceu escurecer.
Só soube que Zara lambeu tudinho porque sua boca e sua língua
estavam lá o tempo todo. Mas, no momento em que eu consegui recobrar a
consciência e abrir os olhos, eu tive certeza de que, além de tudo, ela
também tinha sentido a minha boceta apertando os seus dedos, durante o
orgasmo. Isso porque os seus dedos ainda estavam ali, dentro de mim, e o
semblante que ela me dava era impagável.
Pura contemplação.
Porém, mais impagável ainda foi o que ela fez depois. Erguendo-se
na cama, tirou rapidamente sua roupa, ficando, pela primeira vez,
completamente nua na minha frente. Sem sutiã, sem calcinha, sem nada.
Meus olhos dobraram de tamanho. E, tudo o que parecia ter se desfalecido,
depois do orgasmo, reavivou com força total, somente por eu ter aquela
visão. Seu corpo nu, perfeito, lindo. As pernas magras, mas tornadas. Os
braços da mesma maneira. A barriga lisinha de quem cumpria muito bem o
dever de ser uma policial em forma. A pele preta... Ela brilhava. Quase
dourada.
Mas, tudo parou mesmo quando eu mirei nos seus peitos, cujos
mamilos tinham cor de amêndoas. Eram pequenos e maravilhosos.
Pareciam prontos para eu colocá-los na minha boca. E a sua boceta...
Porra... Ela tinha que ser a mulher da minha vida, porque eu ainda queria
usar aquela boceta muitas outras vezes, de várias maneiras, mesmo que eu
ainda nem a tivesse tocado pela primeira vez.
E meu Deus do céu, como eu desejava senti-la...
Foi aí que, como se estivesse lendo os meus pensamentos, Zara
habilmente se encaixou em mim, de modo que as suas pernas ficaram
transpassadas às minhas. Ai, cacete... Soprei o ar pela boca, já excitada
outra vez, mesmo que eu ainda estivesse sensível pós-orgasmo. Eu jamais
conseguiria tirá-la de cima de mim, apesar disso. Principalmente, porque,
agora, eu podia sentir, finalmente, a sua boceta molhada na minha
igualmente melada.
Fui do céu ao inferno. Do inferno ao céu. Dei uma olhada no
paraíso e no purgatório também. Porra, talvez eu tivesse feito até uma
visitinha aos deuses do Olimpo.
E, então, ela começou a rebolar em mim.
Nossas bocetas juntas.
Uma deslizando na outra.
Caralho, eu ia morrer.
Sem conseguir conter toda a perversão que passeava pelos meus
pensamentos...
— Sua filha da puta gostosa... — Sibilei, vendo aquele monumento
se mover em cima de mim e me fazer senti-la completamente com a minha
própria genital.
— Respeita a policial — Ela brincou, sacana.
O sorrisinho mais delicioso de todos os tempos.
Seus olhos ardendo em desejo pra mim.
— Será que agora você me prende de novo por desacato à
autoridade?
Ela soltou uma risadinha.
— Eu tenho algemas em casa. Cuidado.
Embora fosse uma brincadeira, eu sabia que tinha um fundo de
verdade sobre me algemar. E confesso: eu ia adorar. Dessa vez, sim.
Totalmente diferente da garota emputecida que foi levada presa, por ela, ao
distrito.
Era engraçado o quanto as coisas podiam mudar.
Sedenta, me inclinei para chupar seus peitos. Eu já estava salivando
para senti-los com minha língua. E, assim que os coloquei na boca, ela
gemeu, pendendo a cabeça para trás e aumentando o ritmo das suas
reboladas. Porra, era delicioso ouvir os seus gemidos, junto com o som que
nossas bocetas juntas produziam. Eu estava no sétimo céu... Eu... Caralho...
Eu acho que ia gozar de novo.
Cacete.
A visão dela se movendo sobre mim, seu rosto completamente
tomado pelo prazer, seus gemidos maravilhosos, as nossas bocetas
deslizando uma na outra, tudo... Eu melando ela com a minha excitação e
ela me molhando também, tudo... Tudo, tudo, tudo, absolutamente tudo
fazia o meu baixo ventre se retesar outra vez.
Eu não ia suportar.
Especialmente quando ela rebolou ainda mais, com seus mamilos
durinhos de tesão, parecendo estar prestes a ter um orgasmo.
— Eu... Eu vou gozar de novo...!
Ela sorriu, ofegante, charmosa, perfeita.
— Eu também vou, amor. Vou gozar pra você.
E, então, pendendo a cabeça para trás, arqueando as costas e
fechando os olhos, ela produziu o som mais perfeito de todo o universo. Era
como uma música para os meus ouvidos. E aquela visão dela tendo um
orgasmo tão gostoso em cima de mim, se contorcendo inteira e liberando o
seu prazer, enquanto eu também gozava, foi a coisa mais linda que eu já
tinha visto em toda a minha vida.
Fiquei quase paralisada, tamanho fascínio que eu sentia.
E aí, ela caiu sobre o meu corpo, me abraçando e beijando o meu
rosto, ainda que estivesse bastante ofegante, ao mesmo tempo que eu
também tentava me recuperar daquele segundo delírio. Um carinho que em
lugar nenhum, durante a minha existência, eu tinha recebido. Me senti ainda
mais estupidamente realizada. E, honestamente, mesmo que eu estivesse
exausta por ter gozado duas vezes seguidas, perto uma da outra, tão forte e
tão intenso, eu ainda seria capaz de fazer tantas outras vezes naquele
mesmo dia.
E também durante a vida inteira.
Com ela.
Muito mais que perfeita

Agatha

Depois de repetirmos por mais umas duas vezes, tão intensas e demoradas
quanto a primeira, dormimos esgotadas, abraçadas uma na outra, mesmo
que ainda nem fosse tarde da noite. Tê-la daquela maneira, com seus braços
e pernas estirados preguiçosamente sobre mim, depois de fazermos sexo,
estava no top cinco das melhores sensações do mundo, sem dúvidas. E,
bem, o meu top cinco era formado por tudo o que fizemos naquele dia. Eu
só precisava decidir os lugares de cada coisa. Afinal, era muito complicado,
quando absolutamente tudo parecia perfeito.
Eu estava no paraíso.
E, graças ao tamanho da paz que eu sentia, o mundo dos sonhos não
demorou a me encontrar. Praticamente flutuei em uma nuvem qualquer, por
lugares onde existia apenas eu e ela, durante uma vida inteira. Mesmo que
isso parecesse tempo demais. Maravilhoso, perfeito... Eu estava feliz com
coisas que achei que nunca fosse, ao menos, almejar um dia. Digo, eu nunca
fui exatamente uma pessoa sentimental. Não mesmo. Os meus objetivos
eram apenas ficar, pegar, ter um momento legal com a pessoa, e, depois,
cair fora. Sempre assim. Era o que fazia eu me sentir bem.
Mas, não com ela.
Com ela, só aquele sexo não bastava.
Assim como também dormir juntas, daquela maneira, uma única
noite não parecia ser o suficiente. Não satisfazia as necessidades que eu já
sentia, porque, mesmo sonhando e viajando por outra dimensão, enquanto
os meus olhos estavam fechados, eu sabia que queria repetir aquilo outras
trezentas e cinquenta mil vezes.
Só que aí, entre um cochilo e outro, um barulhinho insistente
começou a me incomodar. Ele não parava. Era incessante, de modo a me
fazer empertigar em cima da cama. E eu estava tão tranquila... Franzindo o
cenho e tentando abrir os meus olhos pesados, olhei para o lado. Meu
celular estava em cima da cabeceira da cama, vibrando a todo segundo.
Droga. Sibilei um palavrão qualquer e tentei me erguer com cuidado. Ela
ainda dormia com o corpo praticamente sobre mim.
Quando, enfim, consegui alcançá-lo e, com os olhos meio trocados
de sono, visualizei a tela, era o nome da Evangeline que aparecia. Ah, meu
Deus. De súbito, fui sugada para o mundo real, longe daquele dos meus
sonhos, em que existia apenas Zara e eu. Aqui, onde ainda estávamos,
também existia o meu pai. E, mesmo que eu tivesse recusado todas as suas
chamadas e mensagens, a ligação da Evangeline eu não podia simplesmente
rejeitar.
Respirando fundo e já tentando me preparar para qualquer coisa,
atendi.
— Oi, Eva.
Foi tudo o que eu consegui falar.
— Ai, meu Deus... Graças a Deus! — De pronto, ela exclamou,
exaurida. — Onde você está, menina? Faz horas que eu te ligo e tento falar
com você!
Enruguei a testa, achando tudo aquilo muito estranho. Evangeline já
estava acostumada com as minhas saídas e os meus sumiços. Aliás, não
somente ela, mas o meu pai também. Já cheguei a passar três ou quatro dias
fora, sem dar notícia alguma, e ninguém morreu por isso. Eu não entendia o
motivo de tanto alarde.
— O que aconteceu, Eva?
Ouvi quando ela soprou o ar.
— Eu que o pergunto o que aconteceu, Agui...! Seu pai está louco
dentro de casa. Desde cedo, ele tenta entrar em contato com você, mas você
não atende, não responde suas mensagens, não aparece... — suspirou. —
Querida, ele está uma fera!
Que saco.
— Eva, diga pra ele que estou bem e que volto em 2050, tá bom?
— Não, menina! — Sua exclamação foi automática. — Eu estou
muito preocupada. Você sabe como o seu pai fica, quando está furioso e...
Ele está a ponto de mandar os seus homens procurarem você em cada parte
da cidade! Eu temo pelo que possa te acontecer, se você demorar ainda mais
a voltar para casa. Venha logo, querida. Por favor. É tudo o que eu peço.
Merda... Fechei os olhos, respirando fundo e lentamente. Toda a
minha força de vontade em permanecer ali, simplesmente, se esvaindo
pelos meus dedos.
Sim, eu queria ficar, eu queria continuar com a Zara, o melhor lugar
do mundo inteiro, assim como, nem de longe, estava satisfeita em fazer as
vontades do meu pai. Por outro lado... Mesmo que, diversas vezes, eu
tentasse bater de frente com ele e impor as minhas próprias decisões, eu
também temia pela minha própria pele, porque eu sabia que, em todas as
vezes, ele sempre foi mais forte que eu. Além do mais, com Eva me
pedindo daquela maneira, tão angustiada, eu não conseguia pensar em outra
coisa, a não ser, enfim, aparecer em carne e osso para acalmar os ânimos.
Não do meu pai, mas dela.
— Tudo bem. Eu já estou indo. Chego daqui a pouco, Eva — disse
eu, fraca, frágil, desanimada por ter que interromper a melhor coisa que
tinha me acontecido nos últimos tempos, só para ter de voltar para casa que
nem uma cadelinha adestrada.
Quando desliguei o celular, no entanto, colocando-o de volta na
cabeceira da cama, ouvi sua voz...
— O que houve?
Ela tinha acabado de acordar. De cenho franzido e ainda com certa
dificuldade de abrir os olhos, ela me fitou, sentando-se na cama, da maneira
como eu também estava.
Puxei o ar brevemente.
— Nada demais... — tentei ensaiar um pequeno sorriso a ela. — Eu
só preciso ir pra casa agora. Você pode me levar?
Zara ainda me observou por alguns segundinhos com um semblante
que eu não conseguia descrever, até que, após suspirar, me abraçou,
fazendo-nos cair juntas sobre a cama outra vez. Beijando o meu rosto, ela
disse meio preocupada:
— Eu ouvi você falando ao telefone... É o seu pai, não é?
— Como sempre — rolei os olhos, cansada apenas de pensar. — Eu
não queria ir. Queria ficar aqui com você. Mas, Evangeline me suplicou.
Ela parecia bastante preocupada.
Foi então que Zara soprou o ar pesado e passou as mãos no rosto.
— Não me sinto bem em saber que você vai estar dentro de casa
com ele, depois de eu ter visto o que ele pode fazer com você
E ela nem viu praticamente nada... Eu já tinha vivido coisas piores.
— Não se preocupe... Passei a vida inteira assim. E, se ele ainda não
me matou, não vai ser agora que isso vai acontecer.
Ela, por sua vez, balançou a cabeça, inconformada.
— Mas, isso não está certo... Não é normal que ele trate você dessa
forma, por mais que seja o seu pai. E, agora que eu sei disso, não posso
simplesmente aceitar.
Ah, meu Deus, ela era tão linda.
Depois da minha mãe e da Evangeline, essa era a primeira vez que
alguém se importava dessa forma comigo. E eu não podia negar que
aquecia o meu coração de uma maneira sem igual. Era como estar
alcançando o paraíso, depois de tanto tempo no inferno.
Suspirei, deslizando uma das mãos pelo seu rosto, fazendo carinho.
— Eu agradeço a sua preocupação, mas apenas me leve para casa e
eu prometo que tudo ficará bem.
Pelo menos, era nisso que eu queria acreditar.
Zara, no entanto, fechou os olhos, relutante, e, então, quando os
abriu novamente, me fitou tão determinada, dizendo:
— Se ele tentar qualquer coisa contra você, me diga. Está bem?
Deus, ela conseguia ficar mais perfeita do que já era.
E, não, mesmo em meio àquela quase tensão que eu sentia, não pude
deixar de esboçar um pequeno sorriso, tão verdadeiro, que, gradativamente,
tomou proporções maiores. A felicidade por tê-la comigo e a alegria por
termos feito o que fizemos, apoderando-se do meu corpo novamente.
— Sim... Eu digo.
Simplesmente a beijei, sem me aguentar.
A reciprocidade dos seus lábios e das suas mãos foi instantânea. Em
poucos segundos, nós estávamos nos engalfinhando outra vez, entre beijos,
toques e respirações pesadas. A memória do meu corpo ainda estava tão
recente, ao rastro das suas mãos sobre mim, que eu honestamente não
demorei nada para me excitar de novo, sobretudo pela forma como ela me
sentia, me olhava e me pegava a cada beijo.
Suas mãos apalpando os meus peitos tão firmemente e, depois,
descendo pelas minhas pernas, se encaixando entre elas. O desejo crescente,
gritante, monumental. E, então, minha respiração cada vez mais
entrecortada. As batidas dilacerantes do meu coração. E a pulsação da
minha boceta, mais uma vez, querendo dar tudo o que já era dela por
direito.
Mas...
— Melhor a gente parar por enquanto — disse eu, tentando puxar o
fôlego. — Ou vamos fazer tudo de novo e eu só aparecerei em casa amanhã
de manhã.
Ela sorriu, sacana.
— Eu não tenho culpa se você me deixou meio maluca. Ou
completamente maluca. Até tentei resistir, mas você foi persuasiva demais
— brincou.
Você foi persuasiva demais...
Ri, dando um último beijo na sua boca.
— Eu sei disso — E soltei uma piscadela quase convencida para ela,
já pulando para fora da cama e procurando a minha roupa.

✽✽✽

Não demorou muito para que o carro da Zara parasse em frente à


minha casa. Puxei o ar, tentando oxigenar os meus pulmões e me preparar
para o que estava por vir. Quando destravei o cinto de segurança, ela
segurou uma das minhas mãos. Fez um carinho com o polegar e, então,
mirou seus olhos intensos nos meus, dizendo:
— Lembre-se, Agatha... Me mantenha informada, se ele tentar
qualquer coisa contra você. Eu terei o maior prazer em colocar esse cretino
onde merece. E também não se esqueça de que pode ir para o meu
apartamento quando quiser e por quanto quiser.
Tudo dentro de mim se revirava em afeto e admiração,
principalmente por estar tão desacostumada com isso. Tão desacostumada
com a ideia de que Zara Scott, agora, estava comigo. Depois de tudo.
Depois das nossas inúmeras trocas de farpas, de tentar negar o desejo e de
se esquivar de mim, ela finalmente estava comigo. E, apenas isso, somente
isso, faria o restante da minha noite valer a pena, mesmo que, muito
provavelmente, o meu pai tentasse estragar tudo com algum sermão sobre
eu ser a filha desalmada e desobediente.
Imensamente grata, pousei uma das minhas mãos na região entre o
seu rosto e o seu pescoço, desejando poder fazer muito mais que isso e
voltar para a sua cama, ou ir para qualquer outro lugar onde eu pudesse
passar o resto da noite suando de tesão por ela. Ainda assim, suspirei,
tentando conter os hormônios em polvorosa dentro de mim.
— Muito obrigada mesmo. Você sabe, né? Eu queria ficar mais
tempo com você, só que... — baixei o olhar, checando brevemente o horário
no celular. Onze da noite. Merda. — Meu pai deve estar quase parindo uma
criança — girei as orbes, sinceramente exausta em ser filha de Russell
Ballard.
Vi quando ela suspirou e passou a língua entre os lábios, como se
estivesse tentando segurar mais palavras do que isso:
— Qualquer coisa me ligue. Amanhã eu passo aqui às sete e meia,
para irmos à penitenciária.
Eu sabia que sim. Eu sabia que ela gostaria de xingar o meu pai até
a décima terceira geração, mas tentou engolir tudo para ser prática o
suficiente, no momento daquela inevitável e compulsória despedida.
— Está bem — ensaiei um sorrisinho. — Obrigada de novo.
E eu não pude sair do carro sem antes lhe dar um pequeno beijo.
Segurei seu rosto entre as minhas mãos e selei nossos lábios. Na real, queria
que tivesse durado mais, que fosse tão intenso quanto todos os outros que
demos em sua cama, mas, infelizmente, não tínhamos tempo.
Foi quando eu já ia me virando para abrir a porta do carro que ela...
— Agatha — me chamou.
— Sim?
Dessa vez, foram as suas mãos que seguraram o meu rosto.
— Eu adorei hoje. Você é muito mais que perfeita. Muito melhor do
que quando eu sonhava, que nem uma boba, em ficar com você.
O sorriso que se desenhou nos meus lábios foi tão largo e poderoso
que eu não pude evitar.
— Você sonhou em ficar comigo?
— Todos os dias, desde o nosso primeiro beijo. E antes dele
também, quando inconscientemente eu já pensava em você.
A forma como os seus lábios invadiram a minha boca, depois disso,
foi surpreendente. Intenso, arrebatador, na exata maneira como, no fundo,
eu desejava me despedir dela, para que não sentisse tanto a sua falta, na
hora de me deitar sozinha na minha cama. Sua língua deslizou sobre a
minha, várias vezes, em um beijo dolorosamente gostoso, despertando todas
as terminações nervosas do meu corpo.
Quando achei que eu mesma seria capaz de tirar a minha roupa ali,
dentro do carro, na frente de casa, para que ela fosse até o fim pela quarta
vez naquela noite, Zara parou. Me abraçou, afagando as minhas costas e
deixando um rastro de pequenos beijos pelo meu rosto, até a minha
respiração se acalmar e o meu corpo entender que ainda não era o
momento. Suspirei, querendo tanto continuar.
Mas...
Não podíamos agora.
Infelizmente, não.
— Tenha uma boa noite, senhorita Ballard — disse ela, com aquele
sorrisinho mais charmoso do mundo.
— Boa noite, policial Scott...
E, quase sem conseguir parar de olhá-la, abri a porta e saí do carro.
Ainda caminhei por um breve espaço com o rosto virado para trás,
em sua direção. Ela permanecia ali, com o vidro baixo, me observando até
que eu cruzasse os portões e entrasse em casa. Me sentia cada vez mais
estupidamente pirada por ela, porque apenas aquilo, o fato de permanecer
parada, esperando-me desaparecer pelos portões, deixava o meu coração
batendo de uma maneira totalmente nova e fora do normal.
Era ela.
Somente ela que fazia aquilo comigo.
Só que aí... Os seguranças fecharam tudo atrás de mim e eu não vi
mais nada, apenas aquela enorme e imensa casa mal-assombrada pelos
meus piores medos.
Foi como se eu tivesse sido tragada de volta à realidade, de uma vez
por todas.
Antes, eu estava em um sonho ou no próprio paraíso, cercada e
adornada pelo anjo mais lindo de todos, mas, agora, não existia nada além
do que o terror real e palpável do meu pai. Era só ele que, pouco a pouco,
começava a invadir cada um dos meus pensamentos.
Caminhei por toda a extensão do jardim, tentando me preparar para
qualquer coisa e segurar os meus nervos que já queriam deixar as minhas
mãos geladas. Eu não poderia ter uma crise de pânico ou de ansiedade
naquele momento. Pelo amor de Deus, não. Fazendo o possível para as
minhas pernas não estremecerem antes que eu conseguisse alcançar o meu
quarto, respirei fundo e abri a porta.
Para a minha completa infelicidade...
A primeira pessoa que eu vi foi ele, extremamente sério e
exatamente sentado de frente para a porta, no sofá, como se soubesse que eu
iria entrar naquele instante. Como se estivesse na porra do seu troninho,
pronto para me enviar à forca. Logo depois, um pouco mais atrás, vi
Evangeline, toda encolhida na entrada do corredor que dava para a cozinha.
Seu rosto não demonstrava nada além de temor, preocupação e culpa.
Temor pelo que meu pai poderia fazer. Preocupação pelo mesmo
motivo.
E eu sabia que a culpa era por se sentir incapaz de me proteger da
maneira como queria.
Eu não a culpava. Nunca a culpei por isso. Meu pai era mesmo um
merda. E eu não queria que ela entrasse em um embate com ele que pudesse
lhe custar o emprego. Mesmo que ela já estivesse na família há anos, eu
sabia que Russell Ballard não teria escrúpulos em lhe demitir, caso ela
fizesse algo que o desagradasse. Era provável que ele só não me demitia
porque eu era filha dele. Caso contrário, eu já estaria longe da sua vida há
muito tempo. O que, na real, não seria, nem de longe, ruim para mim. Era
tudo o que eu mais queria.
Agora, Evangeline não. Eu não gostaria nem de pensar em perder
Evangeline. Eu precisava dela naquela casa e na minha vida. Ela sempre foi
o meu ponto de apoio, até mesmo quando mamãe ainda era viva. Sem ela,
os meus dias debaixo daquele teto, com a péssima convivência entre mim e
meu pai, seriam ainda piores. Eu ia ficar louca.
Entrando ali, suspirei, tentando me manter de queixo erguido e não
aparentar qualquer fraqueza diante dele.
— Boa noite.
Foi tudo o que eu disse, já me encaminhando para as escadas.
Eu só queria sair das vistas dele e entrar no meu quarto.
Porém...
— Agatha — Ele me chamou firmemente.
Não havia uma sombra de simpatia no seu tom de voz. Nunca havia,
na verdade.
Travei no ato, tomando todo o fôlego possível para me virar de volta
a ele.
— Olha só, eu não quero confusão — tentei meu tom mais neutro e
comedido. — Já estou em casa e está tudo bem. Vim correndo como uma
cadelinha adestrada, da maneira como você queria. Agora, por gentileza,
me deixe subir para o quarto, porque eu estou morta de cansada.
— Está cansada de que? — Prontamente, ele retrucou. — De dar o
rabo por aí?! — E se levantou do sofá, enfurecido. Eu tinha a impressão de
que o seu rosto poderia derreter a qualquer momento. — Você não fez
absolutamente nada do que eu queria, Agatha. Você fugiu! Não recebeu os
meus convidados da maneira como eu ordenei, não me deu o apoio
necessário, não me deu nenhum tipo de assistência. Você simplesmente me
desobedeceu, quando eu deixei bem claro que deveria estar presente durante
toda a confraternização!
Ah não.
Era sempre assim, quando tudo não se tornava ainda pior.
E essas cobranças eram tudo o que eu não precisava.
Me davam nos nervos!
— Eu saí, pai, porque eu simplesmente não suporto aquelas
pessoas! — exclamei. Toda a minha tentativa de manter a calma indo por
água abaixo. — E você sabe disso! Não suporto aquelas mulheres que
tentam ser minhas amigas por puro interesse, não suporto aqueles sorrisos
falsos, mas, principalmente, eu não suporto a porra daqueles seus amigos
investidores que acham que podem passar a mão em mim só pelo tanto de
dígitos que têm nas contas bancárias! Eu não suporto nada disso e me sinto
sufocada!
Enfim, despejei todo o meu desprazer, sem medidas, sem filtros,
sem qualquer receio. Bem no jeitinho Agatha Ballard de ser. E isso o deixou
ainda mais puto da vida. Eu sabia disso. No fundo, porém, eu sentia prazer
nisso. Sentia prazer em lhe deixar puto, porque era o que ele deveria ganhar
por me usar como barganha aos seus amigos idiotas.
Só vi quando ele bufou, fechando os punhos e cerrando os olhos em
minha direção.
A qualquer momento, aqueles punhos poderiam acertar a minha
cara. Eu tinha certeza.
— Você está dando para aquela policial, não é?
Empinei o nariz, erguendo o queixo.
Eu poderia ter medo de muitas coisas em relação a ele, mas jamais
permitiria que ele me deixasse amedrontada a respeito do melhor que me
aconteceu nos últimos tempos: Zara.
— E se eu estiver, qual o problema?
Seu semblante, no entanto, tornou-se ainda mais rígido, à medida
que trincava o maxilar.
— Escute bem, Agatha Marinne Ballard, eu não quero você se
envolvendo com ela. Não quero!
Espera aí.
Como assim?
Um profundo vinco se formou em minha testa.
Russell Ballard sempre soube que a sua filhinha mimadinha e
patricinha, desde a adolescência, nunca ficou apenas com homens.
— Qual é? Vai dar uma de preconceituoso agora? — retruquei.
Ele soltou um pequeno sopro de riso sem humor, pelo nariz.
— Agatha, por favor, com quantas mulheres você faz esse tipo de
imundície não é problema meu. Eu não estou nem aí. Mas, com ela, não!
Imundície?!
Juro que uns quatrocentos mil tipos diferentes de palavrões subiram
à minha garganta. E eu quis jogar múltiplos insultos e palavras desaforadas
em cima dele, por se referir, dessa forma ridícula, a uma relação entre duas
mulheres. Porém, ainda assim, havia outra coisa ali me deixando muito
cismada e pensativa.
— Por quê? — Enrugando ainda mais a testa, confusa e
desconfiada, questionei. — Por quê eu posso ficar com qualquer mulher,
menos com ela? Qual o problema dela? Ou qual o seu problema com ela?
— Porque não! — Nervoso, de supetão, ele replicou. Contudo, eu
sentia que existia alguma coisa muito mal contada nisso aí. — Eu não quero
uma filha minha sendo puta de uma policial!
Ah, claro, porque ele sempre preferia que eu fosse a puta dos seus
amiguinhos bilionários.
Eu quase ri de pura incredulidade com aquele absurdo.
Quase.
Eu ainda estava muito irritada para conseguir esboçar qualquer
mínimo sorrisinho, por mais que fosse de consternação.
— Você não pode me impedir — Entredentes, retruquei, encarando
o fundo dos seus olhos, desafiadora, por mais que ele ainda estivesse a
alguns metros de mim.
Foi aí que, muito mais enfurecido pela minha audácia, Russell
rompeu, a passos largos em minha direção, toda a distância que ainda
existia entre nós, e me segurou bruscamente pelo braço, a ponto de
machucar, da mesma maneira como fez mais cedo no meu quarto.
— Você tem o dever de me obedecer!
Jura?
— Eu prefiro ser a puta de uma policial do que obedecer a você.
Cuspi aquilo, quase soletrando letra por letra, tão determinada.
As minhas palavras ríspidas e desaforadas, no entanto, foram o
suficiente para que ele largasse um tapa forte e certeiro no meu rosto.
Fechei os olhos, quando a minha cabeça girou para o lado, tamanho o
impacto. E tudo dentro de mim ardeu e se contorceu, não somente a minha
bochecha. Me senti devastada e humilhada, mais uma vez, pelas suas
próprias mãos.
Lágrimas amargas se formaram e escorreram, silenciosamente pelos
meus olhos, de ódio, tristeza e frustração por ter um pai ridículo como
aquele. Porém, apesar de estar sentindo dor até na minha alma, ergui meu
olhar outra vez, úmido e mordaz, fitando-o com uma superioridade que eu
sonhava em ainda ter.
Se ele achava que eu ia deixar a Zara por causa disso, dos seus
insultos e das suas agressões, estava muito enganado.
Alguém importante para ela

Agatha

Ao final de tudo, quando meu pai, enfim, decidiu parar de cagar pela boca
e se retirou para o seu quarto, eu entrei no meu e tomei, talvez, o banho
mais demorado de toda a minha vida. Era como uma forma de limpar toda a
sujeira que eu sentia das suas mãos em mim. Me esfreguei com esponja por
todas as partes, até que a minha pele ficasse vermelha. Depois disso, Eva
me procurou no quarto. Seu rosto ainda estava extremamente preocupado e
carregado de culpa. Pediu desculpas várias vezes. Eu tentei acalmá-la, Eva
não tinha culpa de nada, e disse que estava tudo bem.
Bom, ainda não estava tudo bem. Mas, ficaria. Sempre ficava.
E, então, ela me fez carinho nos cabelos até que eu dormisse.
Foi um sono reparador, confesso. Era o que eu precisava.
Optei por não procurar Zara para falar sobre o que tinha acontecido,
mesmo que eu tivesse prometido que falaria. A real era que eu continuava
sentindo aquela mesma vontade de estar com ela, de vê-la, de passar o resto
da noite ao seu lado, mas não naquelas circunstâncias que o meu pai criou,
porque eu sabia que, se eu ligasse, ela apareceria na minha casa, em menos
de meia hora, e faria uma baita confusão.
Não que eu não quisesse que fizessem confusão com o meu pai. Ele
merecia. Realmente merecia. E, mais cedo ou mais tarde, quase como uma
certeza matemática, isso acabaria acontecendo. Mas, eu já estava
estupidamente cansada e tudo o que eu queria, para o final daquela noite,
era um bom sono.
Na manhã do dia seguinte, tentei passar uma boa quantidade de
maquiagem no rosto, para tentar cobrir a merda que Russell fez. Uma
tentativa quase frustrada, já que aquele negócio estava realmente feio.
Talvez, ainda levasse por volta de dois ou três dias, para a marca do seu
tapa sair por completo. Ainda assim, fiz de tudo para me iludir de que
aquilo tinha ficado bom e de que Zara não perceberia.
Pontualmente, às sete e meia da manhã, ela chegou à minha casa.
Com uma mensagem sua, no meu celular, avisando que já estava ali, meu
coração faltou dar cambalhotas no peito. Desci as escadas quase correndo,
ansiosa para encontrá-la, como uma colegial estúpida em seu primeiro
romance de adolescência. Às vezes, parecia que eu nunca tinha nem
transado na vida, tamanho entusiasmo bobo que eu sentia por estar com ela
ou, simplesmente, por saber que a veria.
E, bem, a verdade era que, mesmo que eu ainda estivesse meio
sobrecarregada com toda a energia negativa do meu pai, despejada ontem
sobre mim, todo o meu humor melhorava apenas em vê-la. Especialmente
ali, dentro daquele carro, com uma mão no volante, o braço apoiado na
janela, o rosto virado para mim, a farda de policial, a boina sobre cabelos
presos em um coque, e aqueles óculos escuros de aviador. Sexy, charmosa,
a oitava maravilha do mundo. A sensação era de que eu fosse a garota mais
sortuda do mundo inteiro, por estar dando para aquela mulher e a comendo
também.
Abri a porta do seu carro e, em dois segundos, ao fechar e me sentar
no banco, avancei em sua direção, envolvendo seu pescoço e sua nuca com
as minhas mãos, a beijando. Ela correspondeu, mas, divertida com a minha
intensidade, riu contra os meus lábios. Eu também. Logo depois,
aprofundou o beijo aproveitando aquele instante que ainda tínhamos antes
de chegarmos à penitenciária. Eu pouco me importava de estar fazendo
aquilo na frente de casa, com os vidros baixos e os olhares dos seguranças
sobre nós. Pelo menos, ali não era como na penitenciária, onde eu, talvez,
tivesse até que fingir que ainda a odiava, só para não ficar muito na cara
que, na real, queria estar transando com ela dentro de algum banheiro de
funcionárias.
— Sabia que você fica muito gata com esses óculos escuros e essa
farda? — sussurrei, soltando uma risadinha, bem pertinho da sua boca.
— Você acha...? — Sutilmente, com um sorrisinho sacana, disse ela,
entre um beijo e outro.
— Sim... Fica muito gostosa — repliquei com o máximo de
sacanagem que eu conseguia. — Mas, melhor ainda do que isso, é quando
você fica sem roupa alguma. Sabe por que?
— Por quê? — ergueu uma das sobrancelhas, quase desafiadora.
— Porque aí eu posso chupar você todinha. Os peitos, a bocetinha.
Ainda com o rosto colado ao meu, vi quando Scott fechou os olhos,
depois que eu me calei, e, balançando a cabeça de leve, ela puxou o ar,
como se aquilo a tivesse feito perder o fôlego por alguns instantes. Senti o
momento em que, abrindo as orbes outra vez, agora tão intensa e
determinada, segurou meu rosto, com uma das mãos, por baixo do queixo,
apertando, e disse:
— Sua garota infernal... Eu ainda vou te comer tanto.
Ri, baixinho, sagaz, me deleitando por ouvir aquilo saindo da sua
boca.
— Com o maior prazer.
E, então, ainda sorrindo e me fitando com verdadeiros olhares de
“você é um demônio” e “não perde por esperar”, ela suspirou, afastando seu
rosto e dando partida no carro. Enfim, dentro de poucos segundos, nós já
estávamos percorrendo as ruas de Las Vegas. Foi quando ela tornou a falar,
divertida:
— Então, esse é o seu “bom dia” pra mim? Vejo que acordou de
ótimo humor. Isso é maravilhoso. As coisas devem ter se saído bem ontem à
noite, não?
Sim, eu sabia que ela estava se referindo ao meu pai.
Mas, não. As coisas não tinham se saído bem. Só que, depois de
tanto tempo passando por situações assim, com ele, eu tinha aprendido a
ficar anestesiada, ou, ao menos, aprendi a não permitir que os insultos do
meu pai estragassem o resto dos meus dias. Já bastava o tanto que
estragava apenas nos minutos em que ele estava por perto.
E não, eu não estava disposta a comentar sobre isso com a Zara.
Nós estávamos nos saindo bem.
— É... Pois é... — soltei uma risadinha meio forçada, meio amarela.
— Acordei renovada. Está tudo bem sim.
Porém...
Eu já deveria saber que nada passava despercebido aos olhos atentos
dela.
— Espera aí... — Tentando se concentrar na rua e, ao mesmo tempo,
em mim, alternou seu olhar entre o meu rosto e o trânsito vezes até,
subitamente, tirar os óculos escuros e me encarar com mais atenção. — O
que é isso?
Droga.
Eu sabia.
Eu tinha certeza absoluta.
Ela viu a mancha no meu rosto, que não saía com reza braba, nem
com os melhores produtos de maquiagem que eu comprava.
— Não... Nada. Num é nada não.
Tentei desconversar, oferecendo o meu melhor sorriso falso.
Não que eu quisesse acobertar as coisas do meu pai e tirar das suas
costas a responsabilidade por aquilo. Ele merecia, sim, ser cobrado pelas
suas agressões contra mim. Acontece que eu não estava muito a fim de
entrar nesse assunto e discutir, naquele exato momento, sobre coisas ruins
ou que não tivessem nada a ver com a parte boa do meu relacionamento
com a Zara. Nós estávamos indo tão bem. Eu só queria aproveitar o tempo,
antes de chegarmos à penitenciária e antes que eu tivesse que trabalhar feito
uma gata borralheira.
— Agatha... — Ela, no entanto, puxou o ar, quase trincando os
dentes. Sua expressão era de uma seriedade que poucas vezes eu vi. — Não
me esconda nada, Agatha — completou entredentes. Seus dedos, apertando
ainda mais o volante. Droga. — Eu já tinha visto o seu rosto roxo uma vez
e agora estou vendo de novo.
Porra...
E eu me lembrava disso.
Foi no dia em que ele me deu outro tapa, segundos antes de me
obrigar a ir para aquele primeiro jantar com Louis e o velho Harry. Estava
na gaveta das minhas piores memórias, sem dúvidas.
Suspirei, tentando pensar rápido em alguma desculpa, muito embora
eu soubesse que ela não engoliria nada, a não ser a própria verdade. Ainda
tentei disfarçar, mas, inferno, não dava. Por fim, me dei por derrotada,
curvando os ombros o suficiente para demonstrar o quanto falar sobre
aquilo era cansativo, mas não o bastante para me fazer parecer fraca.
Porque fraca era uma coisa que eu definitivamente não era.
E jamais permitiria que aquele tipo de coisa afetasse por completo a
minha vida e a minha saúde emocional, física e mental.
— Tá, tá legal — Meio desconfortável, redargui. — Foi o meu pai.
Tão logo eu me calei, aquilo foi repentino. Ela deu uma freada
brusca, no meio da rua, fazendo o meu corpo ir bastante para frente, não
fosse o cinto de segurança.
Cacete.
— Seu pai...?!
Ai, meu Deus.
— É... Foi... Mas, num é nada não. A marca vai sair e...
— Como assim, não é nada...?! — disparou ela, outra vez, fitando-
me muito seriamente, com o cenho super franzido, sem se importar com o
fato de estarmos paradas literalmente no meio de uma rua movimentada.
Suspirei, tentando manter a calma exatamente para lhe deixar mais
tranquila.
— Olha só, Zara, eu tô ligada que o meu pai é um filho da puta
comigo e que algo precisava ser feito quanto a isso, mas... Sério, a gente tá
com o carro empatando a passagem de muitos outros, e, eu só queria
aproveitar esses últimos minutos com você, pra chegar de boa na
penitenciária.
— De boa? — encarou-me ainda mais incrédula. — Eu tô pouco me
fodendo com os outros carros que precisam passar — balançou a cabeça. —
Até quando você vai continuar agindo com normalidade a respeito disso? A
vontade que eu tenho é de voltar, agora, na sua casa, colocar algemas no seu
pai e levá-lo para onde ele merece, por ser um agressor.
Até que não seria uma má ideia...
Mas...
Passei a língua entre os lábios e, com delicadeza, me aproximei dela
novamente, estendendo uma das mãos pelo seu pescoço e a levando para
mais perto de mim. Ela conseguia ficar tão mais linda, quando se
preocupava assim comigo. Espalhei pequenos beijos pelo seu rosto, da
bochecha à boca, até sentir sua respiração um pouco mais calma.
— Nós vamos resolver isso, está bem? — falei com jeitinho,
olhando nos seus olhos. — Eu prometo. Não vou me sujeitar a isso pelo
resto da vida. Nós vamos dar um jeito nessa situação — tentei passar
confiança e segurança, porque essa era mesmo a minha vontade. Eu
realmente queria dar um jeito naquilo. — Só que, nesse momento, eu
apenas quero chegar tranquilamente à penitenciária com você e aproveitar
os últimos minutos que temos, antes de voltarmos a agir como se eu fosse
apenas a garota-problema que cumpre uma pena e você a policial que me
supervisiona.
E, então, assim que me calei, os carros começaram a buzinar atrás
de nós, numa bela sinfonia ininterrupta.
Vi quando ela fechou os olhos por cinco segundos e, então, os abriu
novamente, soprando o ar, um pouco mais amolecida.
— Só quero deixar claro que não vou ser paciente por muito tempo,
Agatha.
— E eu sei disso. Sei o quanto você pode ser impaciente quando vê
algo errado. Mas, vamos só passar esse tempinho um pouco mais de boas, e,
depois, vemos que o que fazemos, tá? — sorri, tranquila. — Passei três
semanas inconscientemente sonhando com o momento que teria você assim
pra mim. Então, eu não quero interromper logo agora, com a grande
confusão que eu tenho certeza que isso vai ser. Eu estou bem, Diana Prince.
E melhor com você.
— Diana Prince, é? — Dando leves indícios de que o seu bom
humor poderia retornar, ela perguntou, soltando uma pequena risadinha, um
pouco mais leve.
Tornou a colocar o carro em movimento.
Eu aproveitei isso para deixar o clima melhor. Claro.
— Ué, sim... Mulher-Maravilha... Você sabe, né?
— Mulher-Maravilha? — sorriu, balançando a cabeça, como se
dissesse em silêncio “você é maluca, garota”. — Aliás, que história é essa
de Xena, heim? Você me chamou de Xena várias vezes, quando estava
bêbada no natal.
Eu ri.
— Mulher-Maravilha falsificada e Xena do século XXI. Era a forma
como eu te chamava em pensamento, quando eu não gostava de você.
Quero dizer, quando eu achava que não gostava de você. Na verdade, eu te
chamo assim, em pensamento, até hoje.
— Ah não... — Ela também riu, realmente se divertindo. — Você é
muito criativa, Agatha, e completamente louca.
— Eu sei... — sorri, pousando uma das mãos na sua coxa, enquanto
ela dirigia.
— Além de muito linda também, claro... — Seu tom um pouco mais
intenso.
— Eu sei disso também... — pisquei pra ela, brincando com um ar
de convencimento. — E você adora.
Ela virou o rosto para mim, passando a marcha. Aquele olhar
charmoso.
— Adoro mesmo.
Foi assim que seguimos viagem até a penitenciária. Entre risadas e
um clima leve, enquanto dançávamos em meio aos problemas que
passeavam ao nosso redor.

✽✽✽

Quando chegamos ao inferno, digo, à penitenciária, uma súbita


vontade de andarmos de mãos dadas me tomou, por mais ridículo e piegas
que isso pudesse parecer. Não porque estávamos ali, naquele lugar onde
essa atitude seria terminantemente proibida, mas pelo simples fato de que,
cada vez mais, eu a queria junto de mim. E eu sabia que essa súbita vontade
me daria em qualquer lugar, a partir daquele momento. Afinal, era a
primeira vez que “saíamos juntas”, desde que nos entendemos e transamos.
Mesmo assim, tentei me segurar. Por mais que eu não curtisse essa
ideia, eu sabia que não podíamos fazer qualquer coisa que deixasse
evidente, aos funcionários da penitenciária, que estávamos juntas. Bom, por
mim, a gente se pegava até na frente da recepção. Mas, em respeito a ela e
ao trabalho, eu tentava me manter quieta. E, bem, novamente, todos ficaram
nos observando descaradamente. Nem se davam ao trabalho de disfarçar.
Cerca de vinte par olhos em nossa direção.
Os comentários eram de que a exemplar e profissional policial Zara
Scott estava dando caronas à sua subordinada que cumpria pena de
trabalhos comunitários no interior do prédio.
Mal sabiam eles que ela também estava me dando outras coisas.
Zara, no entanto, parecia não se importar com isso. Nem com os
olhares, nem com os comentários. Muito menos eu. Afinal, não havia nada
de errado em oferecer caronas, mesmo que as más línguas quisessem dizer
o contrário. Nós não estávamos fazendo nada demais. E, de queixo erguido
ao meu lado, ela caminhava, enquanto, educada, dava “bom dia” aos
fofoqueiros de plantão.
Honestamente, eu fiquei bem comportadinha, durante todos os cinco
minutos que cruzamos a parte realmente movimentada da penitenciária: a
entrada. Quando chegamos em frente a um dos banheiros de funcionárias,
aquele onde eu já tinha o costume de trocar de roupa, a coisa ficou um
pouco diferente. Aquele fervorzinho da sacanagem quis se apoderar do meu
corpinho magrelo de aeróbica.
Talvez fosse pela reprimida vontade de segurar sua mão. Ou talvez
pelas lembranças que aquele lugar me trazia, tipo quando eu a vi só sutiã
pela primeira vez. Ou, simplesmente, pelo fato de que, há quase dez horas,
eu não sentia o seu corpo colado ao meu. E eu estava realmente com um
tesão da porra.
Na real, aquele meu tesão, por ela, nunca passava.
Antes mesmo de lhe dar costas, foi quase instintivo, como um
reflexo do que acontecia internamente em mim, comecei a encará-la de um
jeito diferente. Aquele olhar sugestivo que eu tinha certeza de que ela já
conhecia. E a Zara percebeu isso. Percebeu tanto que ergueu uma das
sobrancelhas, enquanto, como os dedos, me indicava para que eu me
virasse.
Claro, obediente, como a garota que eu era, assim o fiz.
Porém, abri bem as pernas, mais do que deveria, e empinei bem a
bunda, apoiando as mãos na parede à minha frente. Bem cara de pau. Porra,
eu estava louca para sentir suas mãos em mim. E aquela era a oportunidade
perfeita para isso.
Senti quando seus dedos me tocaram desde os calcanhares, pouco
depois das amarras das minhas sandálias, e subiram lentamente, bem
lentamente, pelas minhas pernas nuas, até alcançarem a barra da minha saia.
Diferente de todas as outras vezes em que me revistou, quando ela tentava
fazer tudo rapidamente e não demorar mais que meio minuto. Obviamente,
ela nem precisava passar as mãos nas minhas pernas, daquele jeito, porque
não existia algo que eu pudesse esconder dentro da pele. Mas, eu sabia que,
assim como eu, ela também, sacana, estava entrando na onda de se
aproveitar, sobretudo por não ter alguém passando ali, naquele momento.
Suas mãos, por pouco, não alcançaram a minha bunda, debaixo da
saia, mas, ainda assim, sem qualquer reserva ou receio, ela a tocou por cima
da roupa, passando as mãos, apertando, se apropriando demoradamente
daquilo, de uma maneira como nunca tinha feito em outra revista. E, bem, a
real era que, mesmo que nós estivéssemos nos pegando de verdade há um
dia, eu já tinha transferido a propriedade do meu corpo a ela. Zara podia
tocá-lo como quisesse, a hora que quisesse, porque eu adorava isso. A cada
sensação dos seus dedos em mim, naquele momento, era como um jorro de
tesão que se acumulava entre as minhas pernas.
Puxei o ar, mordendo o lábio, logo depois, ao tentar conter os meus
ânimos e a incrível vontade de ir para cima dela.
Zara, porém, atiçando ainda mais a minha vontade, continuou
subindo suas mãos, naquela revista dos infernos. Alcançou a minha cintura,
pressionando firmemente a minha pele entre os dedos. Seu toque era tão
seguro, forte, imoderado, que eu só imaginava num futuro muito, muito
próximo, tipo agora, ela me pegando daquela maneira, mas sem roupa
alguma. Deslizou seus dedos, apalpando a base dos meus seios, e, depois,
os apertando por completo, sentindo-os, massageando-os. Mesmo que eu
estivesse usando sutiã, percebi quando meus mamilos se enrijeceram.
E, para completar, como se não bastasse toda aquela sessão de quase
tortura, finalizou sussurrando no meu ouvido:
— Gostosa pra caralho... Eu mal consigo acreditar nisso.
Ah não.
Girei as orbes, soprando o ar pela boca.
Filha da puta.
Eu não ia mesmo aguentar.
Ainda olhei de um lado para o outro, na tentativa de me certificar de
que estávamos realmente sozinhas. E, bem, ninguém passava por ali. Eu
também torcia para que todas as cabines do banheiro estivessem vazias. Era
arriscado, bem arriscado, mas, quando dei por mim, eu já estava segurando-
a firmemente pelo colete da farda e a puxando para dentro do banheiro.
Não havia ninguém na área dos lavatórios, o que era ótimo. Mas,
totalmente sedenta, sem nem parar para observar os outros boxes, a arrastei
para dentro do primeiro mais próximo a nós e fechei a porta, passando a
tranca. Empurrei-a contra a tampa do vaso, fazendo-a se sentar, e, enfim,
montei sobre ela. Pernas bem abertas, uma de cada lado.
— Agatha... Quê que é isso? — Um sorriso ainda brincou nos seus
lábios.
Não respondi com palavras, apenas avancei em sua boca, puxando-a
pelo pescoço e fazendo cair sua boina no chão. Afundando meus dedos seus
cabelos, seu coque simplesmente se desfez, revelando suas maravilhosas e
lindas mechas escuras e volumosas. Ela correspondeu, me segurando pela
cintura e, em seguida, deslizando mãos e braços pelas minhas costas, para
me segurar e me prender ainda mais contra o seu corpo. Não deixou, porém,
de sussurrar, entre beijos e uma risadinha sacana:
— Você é maluca, garota... Completamente maluca. Mas, eu gosto
disso.
Também ri, baixinho, sem largar sua boca.
— Viu? É isso o que você ganha por me apalpar daquele jeito, Xena.
— Um presente, então — sorriu. — Vou te apalpar mais vezes assim
— E apertou minha bunda, já por baixo da saia.
Argh, que desgraçada.
Rolei os olhos, puxando o ar, desesperada para colocar pra fora todo
o meu tesão.
— Tô toda molhadinha pra você e doida pra gozar... Me faz gozar,
por favor. Tô pertinho já... — Quase choraminguei entre os seus braços,
falando sem parar de sugar os seus lábios — Olha só... — E levei uma das
suas mãos para a minha boceta, afastando a calcinha para o lado.
A forma como ela olhou para mim, depois disso, e como os seus
lábios se entreabriram em puro fascínio, por me sentir toda melada, foi
impagável. Eu vi a libido completamente estampada em seu semblante. A
coisa mais linda do mundo inteiro. E, em menos de meio segundo, ela já me
afastava alguns centímetros, apenas o suficiente para termos um pouco mais
de espaço. Inclinei minhas costas até alcançarem a porta da cabine, ao
mesmo tempo que ela, habilmente, enfiava seus dedos dentro de mim,
enquanto o polegar estimulava meu clitóris. Com a outra mão, arrastou para
baixo um dos lados da blusa que eu vestia, e chupou meu peito.
Ai porra.
— Tu é a realização dos meus sonhos, cara... — sussurrou ela,
enquanto me encarava por baixo dos cílios e me chupava.
Meu Deus... Ouvir isso foi como sentir um jorro de tesão ainda
maior.
Eu estava tão excitada, tão pirada com aquela mulher, que rebolei
para aumentar ainda mais a fricção dos seus dedos em mim. Ela ia tão
fundo e tão gostoso, alcançando o exato local onde fazia meu baixo ventre
se contrair e retesar ainda mais. O suor escorrendo pelo meu corpo, os meus
batimentos cardíacos absolutamente acelerados, e todos os pelinhos dos
meus braços arrepiados como um prenúncio do que estava para acontecer.
Droga. Minha boceta estava pulsando tanto e meu clitóris tão inchado que
eu não demorei mais que meio minuto para gozar.
Gritando em silêncio, por mais paradoxal que isso fosse, já que não
podíamos fazer barulho ali, liberei tudo aquilo que já transbordava de mim,
enquanto pressionava seu rosto contra os meus peitos, cuja língua ainda
lambia os meus mamilos. Apertei seus dedos, dentro do meu corpo, de tal
forma que, instantes depois, ergueu o olhar para mim, fascinada mais uma
vez. O puro olhar de contemplação. E aquela sensação familiar que ela
sempre me causava: eu me sentia como uma deusa, a mulher mais linda do
universo. Sorri, satisfeita, ofegante, realizada. E, então, tirando os seus
dedos dali e colocando a minha calcinha lugar, me abraçou forte, firme,
envolvendo o meu corpo pela cintura, com suas mãos e seus braços, como
se estivesse segurando uma pedra preciosa.
Depositou um caminho de pequenos beijos no meu rosto, enquanto
afagava as minhas costas até que a minha respiração voltasse ao normal.
Naqueles instantes que nós ficamos naquela exata posição, depois do
orgasmo, e também em todos os outros, desde que começamos a nos ver de
outra forma, Zara me dava a impressão de eu ser alguém importante.
Alguém importante para ela.
Strip-tease

Agatha

Felizmente, ninguém percebeu. Ao menos, eu não vi qualquer pessoa


dentro do banheiro conosco, quando, com todo o cuidado, nós saímos
daquela cabine. Além disso, Zara permanecia ali normalmente, sem levar
qualquer puxão de orelha de algum dos seus superiores, o que era uma coisa
muito boa e também um indicativo de que a situação estava sob controle.
Bem, a discrição do nosso “caso” estava aparentemente sob controle, mas
não a minha vontade de fazer de novo o que fizemos na sua cama, ontem à
noite, ou algo muito semelhante àquela pegação no banheiro.
Aquela pegação no banheiro foi uma bela forma de começar os
trabalhos e controlar o meu foguinho. Porém, mesmo assim, não foi nem
um pouco fácil estar perto dela, o dia inteiro, e não pensar em um monte de
sacanagens, sobretudo depois de já ter experimentado do que ela era capaz
de fazer comigo e de ter provado o quanto nós éramos uma obra de arte
quando estávamos juntas. Sim, o meu estado de calamidade piorava a cada
minuto. O fato era que eu não parava de pensar nela me beijando, no seu
corpo sem roupas, nas suas mãos sobre mim, e em todos os carinhos que ela
me fazia, com maestria, mesmo em meio à putaria.
Ainda que nós estivéssemos sendo ótimas em disfarçar o que
acontecia por debaixo dos panos, aquilo, de alguma forma, estava causando
uma espécie de efeito colateral em mim. Passar tanto tempo em um teatro
fazia o meu desejo por ela, e por nós duas agindo normalmente uma com a
outra, aumentar em níveis exponenciais. Tudo bem que o teatro não era
assim tão grande e imenso. Apesar de tudo, Xena Scott continuava a típica
policial mandona que eu conheci desde o primeiro dia, me passando
inúmeras tarefinhas das quais eu não gostava.
Não importava se nós estivéssemos nos pegando às escondidas. Ali,
naquela penitenciária, eu ainda era uma garota em cumprimento de pena,
assim como ela também permanecia sendo a policial que me supervisionava
e me cobrava sobre os meus trabalhos de faxineira. No fundo, se eu fosse
realmente honesta comigo mesma, eu não tirava a sua razão em agir assim.
Zara tinha as suas responsabilidades e eu as minhas. Só que isso não me
impedia de revirar os olhos, em puro asco, a cada ordem sua de esfregar um
chão ou desentupir uma privada cheia de cocô. Talvez eu jamais me
acostumasse com isso.
Mesmo assim, apesar dos pesares e de todas as situações, ao longo
do dia, que, em tese, pudessem nos afastar emocionalmente uma da outra,
eu ainda desejava tê-la de outra maneira que não fosse naqueles termos da
penitenciária, assim como também sentia que ela queria o mesmo, por mais
que estivesse vestindo a sua máscara de policial super ultra mega
profissional. A minha vontade nunca passava, e eu estava começando a
perceber que a dela também não. Além do mais, eu queria um momento
com ela, curtindo a sua companhia, antes de ter que voltar para o inferno da
minha casa. Foi por isso que, no final da tarde, depois de trocar aquela farda
ridícula pela minha roupa maravilhosa, e entrar no seu carro para pegar a
carona de volta, eu disse quase despretensiosamente:
— Tá a fim de dar uma volta?
Mesmo com o rosto virado para frente, em direção ao trânsito, vi
quando um sorriso se formou no cantinho dos seus lábios.
— Volta é? — E mirou brevemente seu olhar em mim, com uma das
sobrancelhas erguidas, divertida.
— Sim... Tipo... Eu estava a fim de mostrar a noite de Las Vegas a
você. Quero dizer, eu sei que já deve conhecer muito bem a noite de Las
Vegas — ri baixinho. — Só que eu queria que você conhecesse do meu
jeito. Mas, claro, se você não tiver nada melhor para fazer — E fingi dar de
ombros, como se não estivesse me importando tanto com a sua possível
recusa, quando, na real, eu me importava sim. Eu me importava muito.
Por dentro, naqueles breves instantes entre a minha sugestão e a sua
resposta, os meus pensamentos ficaram gritando, feito loucos, nos meus
ouvidos: “Aceite, aceite, aceite. Por favor, passe um tempinho comigo.”
Sim, aquela mulher tinha colocado a minha vida e os meus
sentimentos de cabeça para baixo. Eu já tinha desistido de tentar entender.
E, novamente, ela, bem humorada, virou o rosto rapidamente para
mim.
— Hum... Do seu jeito... — Pareceu testar as palavras, enquanto as
pronunciava e pensava em algo. — É... Acho que não tenho nada melhor
para fazer... — brincou. — Quero dizer, não posso voltar para casa muito
tarde, porque ainda quero ficar um tempinho com o Nick, antes que ele
durma.
Ufa...
Ainda assim, isso era melhor do que nada.
Eu ainda preferiria ter mais alguns minutos com ela do que
nenhum.
— Tudo bem, eu entendo... — balancei um sim com a cabeça. — A
gente janta rapidinho e vai pra casa.
Claro que, antes, ela seria a sobremesa. Ou eu.
Na verdade, melhor, nós duas. Muito melhor.
— Perfeito. Acha que estou com roupas adequadas? — franziu o
cenho brevemente, sorrindo.
Ah, peraí.
Eu praticamente revirei os olhos para ela, tamanha obviedade nisso.
— Eu já te falei umas mil vezes que você fica gata com essa farda
de policial.
Seu sorriso de pura diversão aumentou.
— Nah... Umas mil vezes não. Você falou uma vez, hoje de manhã.
Ainda estou esperando pelas outras novecentos e noventa e nove vezes — E
ergueu uma das sobrancelhas pra mim, pelos cantinhos dos olhos, enquanto
dirigia.
Eu ri.
— Tudo bem... Não se preocupe. Espero ter a vida toda para falar as
outras novecentas e noventa e nove vezes.
Foi quando eu me calei, e o seu sorriso diminuiu um pouco, dando
lugar a um olhar diferente, sugestivo, intenso, ou melhor, indecifrável, que
eu me dei conta do que tinha escapado da minha boca.
A vida toda...
Isso saiu inconscientemente. Não percebi.
Aliás, não percebi até ela me observar daquela maneira.
Talvez fosse eu transbordando do que o meu coração estivesse
cheio. Ou talvez... Talvez eu só estivesse ficando louca mesmo, o que era
bem provável.
Ouvi, porém, quando ela replicou:
— Eu também espero — E colocou a mão na minha coxa, enquanto
dirigia.
Quente e firme, apertando de leve.
A forma como o meu peito se agitou, com a sua resposta e a sua
mão sobre mim, era indescritível. Uma mistura de empolgação com
hesitação. Empolgação pelo que ela me disse, hesitação pelo que eu tinha
falado. Mas, sobretudo, aquela sensação de que isso estava acontecendo
comigo pela primeira vez. Eu nunca tinha me sentido, dessa maneira, por
nenhuma outra pessoa, até então.
Zara conseguia ser única de todos os jeitos.
Puxei o ar, tentando conter os meus ânimos.
E, assim, seguimos viagem até um dos hotéis mais sofisticados do
meu pai.
Bom, a minha tarde na penitenciária foi um pouco movimentada não
apenas pelos trabalhos que eu tinha de fazer, mas porque, a cada folga entre
um serviço e outro, eu tentava organizar aquele rolezinho. Sim, antes
mesmo de fazer o convite a Zara, eu tinha combinado tudo com os
funcionários do restaurante do hotel. Liguei para eles, exatamente entre os
pequenos espaços de folga dos serviços, e tentei já deixar tudo agilizado.
Não sabia se ela aceitaria, mas fui na fé.
E que ótimo que ela aceitou.
Seria mais um tempinho com ela, depois de um dia inteiro tentando
fingir que Zara e nada eram a mesma coisa para mim.
Quando chegamos ao local, não estava muito cheio. Afinal, ainda
era cedo. Mas, a nossa mesa já estava posta e reservada, apenas nos
aguardando no espaço mais vip do restaurante. Alguns clientes estavam em
mesas a nossa volta, mas, sem dúvidas, a nossa era a melhor de todas.
Ainda percebi quando Zara observou o espaço, ao redor, aparentemente
admirada, mas não o suficiente para deixá-la de queixo caído. Era verdade
que aquilo deixaria qualquer pessoa de queixo caído. Mas, não ela. Eu já
tinha notado que Zara até apreciava o luxo, como qualquer pessoa
normalmente faria, mas não se deleitava com a riqueza. E, honestamente,
essa era mais uma das muitas coisas que eu gostava nela.
O restaurante daquele hotel, de fato, era maravilhoso, refinado. Um
dos locais que mais chamavam atenção em Las Vegas. E Zara parecia gostar
de estar ali comigo. Não era como se estivesse se sentindo deslocada, ou
algo do tipo, apesar de que, pelo seu semblante, eu percebesse que ela
nunca tinha pisado em um local como aquele. Apesar disso, eu notava que a
sua empolgação não era pelo lugar em si, extremamente refinado e luxuoso,
com a sua decoração dourada e os seus talheres banhados a ouro, mas, sim,
por mim, pela minha companhia, por estar ali comigo. E eu sempre, sempre
apreciaria uma pessoa que me colocasse acima de qualquer bem material.
A hostess do restaurante nos acompanhou até nossa mesa e, logo
que nos sentamos, o metre apareceu para nos trazer o vinho que eu mesma
tinha escolhido à tarde, enquanto fazia minhas ligações às escondidas. Na
minha opinião, aquele era o melhor vinho de todos.
Zara, no entanto, franziu o cenho de leve, sorrindo meio confusa.
— Você já tinha pedido?
— Sim... — tomei um gole da bebida, despretensiosa, como se
aquilo não fosse uma grande coisa, quando, na verdade, era sim. Era muito.
Não por eu ter organizado aquilo, mas pelo simples fato de que eu nunca
tinha feito isso por alguém e de que seria capaz de fazer muitas outras
coisas por ela. — Eu tinha combinado tudo com antecedência.
Seu sorriso, então, se tornou ainda maior.
— Uau... Assim eu fico convencida.
Soltei uma risadinha.
— Espero que você goste do meu gosto para bebidas e comidas.
— Bem... Você tem um bom gosto. Afinal, escolheu estar comigo —
brincou, piscando um olho brevemente e bebendo um gole da sua taça.
Ri outra vez.
— Hum... Então, o seu convencimento não é exatamente por minha
causa, ele já é de natureza — Também brinquei.
Divertida, ela balançou a cabeça de leve, entrando ainda mais
naquele nosso climinha despretensioso de quem aparentemente não tinha
preocupações e estava com os pensamentos unicamente voltados para o
presente. Era maravilhoso vê-la assim, sobretudo depois de tanto quebrar a
cabeça por achar que estava fazendo comigo o que não deveria. Bom, para
os tais padrões e regras da penitenciária, que ela costumava mencionar, era
um erro. Mas, não para mim. E tê-la daquela forma, livre ou esquecida do
peso na consciência, pelo menos por ora, era como um presente.
Entre conversas tranquilas e risadas boas de ouvir, o metre surgiu
novamente, trazendo o nosso primeiro prato. Era um cannelloni de filé
mignon ao molho béchamel, também um dos meus preferidos. Escolhi tudo
a dedo, com o único objetivo de agradá-la. Algo que eu realmente nunca fiz
na vida, mas tinha a sensação de que ela merecia. E, bem, tudo valia a pena
a cada sorriso seu, a cada olhar, a cada vez que o seu rosto mirava o meu e
eu me dava conta do quanto ela era estupidamente bonita e atraente.
Só que além da beleza que já era natural dela, ainda existiam outras
coisas. Coisas que eu só conseguia enxergar nas entrelinhas da nossa
conversa, atrás dos seus olhos, no leve sorriso, nas breves risadas, ou nos
seus lábios enquanto tomava um gole de vinho. Porra, ela conseguia ser
gata e charmosa até quando levava a porcaria da taça à boca. Por alguns
instantes, eu até quis ser a merda da taça. O fato era que cada mínimo
detalhe alimentava uma crescente tensão sexual entre nós, por mais
amigáveis que fossem os assuntos que estávamos dialogando.
Zara cortava seu filé mignon e conversava despreocupadamente
comigo, como se não houvesse nada além disso. Mas, eu percebi. Eu
percebi a intensidade no fundo do seu olhar, o traço de sacanagem em cada
mísero sorrisinho seu, e os duplos sentidos de algumas frases que poderiam
se passar perfeitamente como inocentes. Por trás de toda aquela máscara,
que ela vestia, usava e transmitia a imagem de uma séria e profissional
policial, existia uma mulher extremamente gostosa e pronta para acabar
com o restante da minha vida. Entre trocas de olhares, sorrisos e palavras,
alguns pensamentos impróprios, mas absolutamente instigantes, começaram
a passear pela minha cabeça.
Em dado momento, entretanto, quando nos calamos por alguns
segundos, eu não pude interromper aquele meu velho instinto imoral de ter
atitudes bem caras de pau. Era a pouca-vergonha que morava dentro de
mim e aflorava quando Zara estava por perto. Afinal, eu não tinha a
convidado somente para conversar e curtir a sua companhia, muito embora
eu também quisesse isso e achasse realmente importante. Eu, porém, queria
algo mais. Foi então que, descarada, enquanto cortava um pedaço de carne,
descalcei minhas sandálias, com os próprios pés, e ergui umas das pernas,
por baixo da mesa, até alcançá-la do outro lado, com os meus dedos, já que
ela estava de frente para mim.
Ousada, posicionei exatamente sobre a sua calça, na região púbica,
pressionando.
Ela subitamente ergueu o olhar para mim. Surpresa, mas sacana.
Aquele sorrisinho, ao mesmo tempo, safado e contido, que me dava vontade
de subir em cima dela ali mesmo.
— Quê que é isso, Agatha...?
Já percebeu que ela me fazia essa pergunta sempre que sabia
exatamente o que eu estava fazendo?
— Nem sei... — Me fiz de desentendida, com uma inocência fajuta,
mas continuei pressionando sua boceta com meus dedos, mesmo por cima
da sua farda.
— Estamos no meio de um restaurante... — tentou me lembrar, mas
aquele sorrisinho em seu rosto não escondia que ela estava gostando.
— Eu sei... Mas, eu nem estou fazendo nada... — E dei de ombros,
me fazendo de louca e continuando o meu serviço ali, literalmente por
baixo dos panos.
Ela riu, balançando a cabeça.
A imoralidade já querendo aparecer por trás dos seus olhos.
— Então, você está deliberadamente disposta a não parar... É isso?
— ergueu uma das sobrancelhas, quase desafiadora.
E, dessa vez, eu me rendi...
— Acho que sim — respondi, audaz, passando a língua entre os
lábios e segurando um risinho.
Isso, no entanto, foi o suficiente para que o seu olhar se tornasse
mais intenso. Duas pedras de turmalina começando a pegar fogo.
— Tudo bem... — Subitamente séria, respirou fundo e abriu mais as
pernas, como se quisesse aumentar a minha região de contato. — Então, tire
a sua calcinha e entregue na minha mão, por baixo da mesa.
Oi?
— Tirar... Tirar a minha calcinha? — perguntei, com um quase ar de
diversão. O sorriso querendo aumentar de tamanho nos meus lábios.
Ela se endireitou em sua cadeira, apoiando os cotovelos sobre a
mesa, aproximando seu rosto do meu, e fitando-me ainda séria e
firmemente.
— Eu estou mandando você tirar a calcinha e entregar na minha
mão.
Quase soletrou.
Ah. Meu. Deus.
O bichinho da sacanagem já querendo saltar e dar cambalhotas
dentro de mim. A mulher não parecia, mas era louca, e me deixava mais
doida do que eu já era. Eu gostava desse tipo de coisa. E ela sabia disso.
Desgraçada.
— Agora — ordenou, outra vez.
Aquele ar de mandona que eu adorava e odiava na mesma medida.
Pirada, olhei de um lado para o outro. Estávamos na área vip do
restaurante e, ainda que houvesse pessoas em mesas próximas à nossa, não
era tão perto assim. Também havia uma toalha cobrindo o tampo, e isso, de
alguma forma, poderia facilitar. Porra, eu nunca tinha feito algo assim.
Mas, eu gostava da ideia.
Eu gostava muito.
Encarando-a quase por debaixo dos meus cílios, respirei fundo,
enfiei as mãos dentro da minha saia e puxei a calcinha, entregando-a por
baixo da mesa. Ainda vi um traço de sorriso querendo surgir entre os seus
lábios, ao segurar aquele micro pedacinho de tecido, mas se manteve séria.
— Ótimo... — E me encarou com as orbes tão intensas. — Agora,
preste atenção. Coloque a mão dentro da sua saia e se toque debaixo da
mesa, até gozar, para eu ver.
Ela parecia estar falando muito sério.
Meu queixo quase bateu lá no chão.
Um misto de surpresa com tesão.
O pior era que eu era tão maluca de um jeito que, somente aquele
pedido, ou melhor, aquela ordem, assim como a imaginação daquilo
realmente acontecendo, já era o suficiente para começar a me deixar
molhada, excitada... Em resumo, era o suficiente para me deixar querendo
trepar com ela.
Ainda fitei meus dois lados, mais uma vez, tentando criar coragem
de uma vez por todas, embora meu eu interior já estivesse surtando para que
eu fizesse aquilo.
Porém...
— Agatha... — Firmemente ela me chamou. — Olhe para mim e me
escute. Eu estou mandando você bater uma, até gozar, para eu ver — sibilou
quase entredentes, me encarando tão séria.
Socorro. A filha da puta era a minha total perdição.
Respirei fundo. Era agora ou nunca.
Ai, lá vai.
Afastei minha saia de tal forma e enfiei a mão dentro. Porra, eu já
estava ensopada... Se duvidasse, aquilo poderia melar a minha sala, ou
mesmo a cadeira do restaurante. Passei os dedos por ali e... A situação era
realmente crítica. Estar excitada daquela maneira só me fazia ficar ainda
mais excitada.
Maluca, eu? Demais!
Para piorar, Zara, com aquela sua puta cara fingida e dissimulada de
séria, mas que, no fundo, estava morrendo de tesão, falou:
— Isso... Boa garota — puxou o ar como se já estivesse meio
fôlego. — Pode começar... — E se ajeitou novamente em sua cadeira,
colocando os cotovelos sobre a mesa, aproximando-se ainda mais de mim, e
me encarando firmemente. — Me imagine deslizando os dedos pela sua
bocetinha deliciosa e toda melada, enquanto chupo os seus peitos e passo a
língua toda molhada nos seus mamilos... — falou baixinho, quase
sussurrando, mas tão excitante que eu já estava quase passando mal, e
aquilo tinha acabado de começar.
Assim como ela me observava, eu me tocava olhando no fundo dos
seus olhos, sedenta, necessitada, sugando o ar. Meu coração acelerado pela
adrenalina, o tempo inteiro.
— Perfeito... Se toque lentamente, aproveitando cada segundo, não
da sua mão, mas da minha na sua bocetinha, e sentindo tudo o que eu posso
fazer por você. Quero o seu clitóris bem durinho, inchado, a ponto de
arrebentar, amor. Por isso, aos poucos, aumente o ritmo.
Cacete...
Assim o fiz e fechei os olhos brevemente, tentando me controlar
para não começar a gemer ali mesmo, na frente dos clientes. Quando os abri
novamente, não eram apenas eles a pegar fogo. Era absolutamente o meu
corpo inteiro.
Estávamos correndo o risco de sermos presas por atentado ao
pudor? Com certeza. Mas, pelo menos, quem me pedia tudo aquilo era uma
policial.
— Agora, imagine que eu estou descendo pelo seu corpo, depois de
lamber e chupar os peitos. Pense em mim apertando a sua pele com os
dentes, deixando marcas pela sua barriga, e descendo ainda mais. Já não são
mais os meus dedos aí, sou eu caindo de boca na sua boceta. Lambendo
tudinho, secando e molhando ao mesmo tempo. Sugando seu clitóris e
deixando ele ainda mais inchadinho, quase a ponto de gozar.
Caralho...!
Não era só nas suas palavras que eu estava a ponto de gozar. Era na
realidade mesmo. Todos os pelinhos dos meus braços se arrepiando como
um prenúncio do que estava por vir. A respiração ofegante, mesmo que eu
lutasse para disfarçar. Meus dedos completamente melados. O pensamento
de que a minha saia estivesse nesse mesmo caminho. Meus mamilos
enrijecidos, mesmo que ela não tivesse os tocados realmente nem uma
única vez. Mas, principalmente e sobretudo, meu baixo ventre inteiro já se
contraindo.
Eu não ia aguentar...
Eu realmente não ia aguentar por mais tempo.
Antes que aquilo tomasse logo um fim, abruptamente me levantei da
cadeira e, sem pensar duas vezes, a puxei pelo braço, sedenta, louca, quase
correndo na direção do elevador mais próximo. O sorriso que ela me deu foi
instantâneo e do tamanho da sua enorme cara de pau. Eu sabia que ela
estava segurando aquele sorriso há muito tempo, assim como também tinha
certeza de que aquilo que eu estava fazendo ali, naquele momento, era
exatamente o que ela queria. Esse era o seu objetivo, desde o início, com
aquela história de masturbação pública. Não é, sua miserável que mata
pobres meninas de tanto tesão? O grande plot twist era que eu também
queria. Eu queria gozar em cima dela, numa suíte presidencial que eu
também tinha reservado à tarde.
Era isso o que eu queria.
E, completamente cega de desejo, entrei no primeiro elevador aberto
que eu vi.
Acontece que, para o meu completo e inteiro azar, entraram mais
umas dez pessoas, provavelmente hóspedes, depois de nós duas. Ficou
lotado, inferno. Eu e Zara em um cantinho bem apertado. Ou seja, eu não
podia nem ir logo tirando a nossa roupa ali mesmo, antes de chegarmos à
suíte. Para completar, aquele hotel tinha mais de vinte andares, e eu não
sabia em qual dos pisos cada pessoa iria sair.
As portas se fecharam.
Droga.
Eu estava quase subindo pela porra das paredes espelhadas daquele
troço, impaciente para que chegássemos logo à suíte do último andar.
Foi quando Scott, repentinamente, ainda que com certa dificuldade,
graças à lotação, se abaixou, como se estivesse amarrando os cadarços das
suas botas de combate. E aí, depois de fazer o serviço... Franzi o cenho.
Que porra era...? Uou, espera aí! Isso é bom... Muito bom. Mas... Ai porra,
tentei conter um gemido. Zara simplesmente foi lentamente se erguendo
chão, à medida que, junto a isso, também deslizava seus dedos pela minha
perna, indo desde o calcanhar, passando pela coxa, e alcançando...
Alcançando a minha boceta.
Filha da puta.
Esfregou meu clitóris inchado e todo molhado, por baixo da saia, e
enfiou dois dedos dentro de mim. Ali mesmo, na porra daquele elevador
lotado. Na verdade, era provável que ela estivesse se aproveitando
exatamente dessa lotação para fazer isso. Mordi meu lábio inferior,
fechando os olhos, como um reflexo dos sons que eu tentava segurar na
minha garganta. Mas, ela continuou assim, metendo em mim e me matando
de tanto tesão na frente de todos aqueles desconhecidos que mal sabiam o
que estava acontecendo ali.
Depois disso, eu juro que perdi completamente a noção de tudo. Não
percebi nem a proporção gradativa em que as pessoas iam deixando o
elevador. Com os olhos se fechando de excitação, a cada vez que eu tentava
conter meu próprio gemido, eu não via mais nada. Só fui me dar conta
mesmo, quando a última pessoa saiu. E foi nesse exato momento, no
instante em que nós ficamos sozinhas, que eu quase literalmente pulei em
seu colo.
Zara prontamente correspondeu a minha ânsia. Tomou a minha boca
naquele beijo mais gostoso do mundo, enquanto, com uma mão, pela dobra
do meu joelho, segurava uma das minhas pernas na altura da sua cintura.
Com a outra, ela continuava metendo em mim. Deus, que mulher perfeita...
Dessa vez, não contive os gemidos que queriam se desprender da minha
garganta. Seus lábios estavam por toda parte, assim como os meus também,
louca para tirar aquela sua farda.
E, assim, nós subimos até o último andar.
Quando as portas do elevador abriram, finalmente no vigésimo
oitavo andar, eu já puxava o ar bruscamente para os meus pulmões.
Continuamos naquela quase dança sincronizada de lábios, mãos, braços e
pernas. Entre risadinhas sacanas e beijos molhados, nós caminhamos aos
trancos e barrancos na direção da suíte presidencial. Vez por outra, ainda
esbarrávamos em alguma coisa, numa parede ou num carrinho de limpeza
deixado por alguma funcionária. Isso era motivo para mais risadas.
Só que aí, em uma dessas, nós quase nos desequilibramos, e
acabamos tropeçando em um corredor do último andar, quase próximo à
nossa suíte, onde havia uma porta entreaberta e uma música bem alta
rolando. Aquele som totalmente perceptível, juntamente com o barulho de
vozes, me fez esticar o pescoço e interromper o nosso beijo por alguns
instantes. Zara também notou aquilo. Franzindo o cenho, olhei para dentro
do local. Scott fez o mesmo logo atrás de mim. Aquilo, de alguma forma,
chamou a nossa atenção.
Isso porque eu me lembrava exatamente daquele local do hotel, mas
nunca tinha presenciado algo daquela natureza ali. Era um grande salão de
festas, que o meu pai, geralmente, construía no último andar dos hotéis,
para disponibilizar aos hóspedes que quisessem fazer alguma
confraternização ou algo tipo. No entanto, aquilo, nem de longe, parecia
uma confraternização. Garotas, muitas garotas dançavam de maneira
sensual sobre mesas e em barras de pole dance, enquanto algumas dezenas
de homens eram servidos com bebidas, por garçons, apreciavam o show e
colocavam gordas notas de dólares nas calcinhas das meninas. Algumas
pareciam à vontade, enquanto outras carregavam ódio no olhar.
No fundo, por mais estranho que aquilo pudesse parecer, tinha
muita... Muita cara de prostituição, embora não absolutamente explícita. A
prostituição era permitida, por lei, no estado de Nevada, mas não no
condado de Las Vegas. Por outro lado, show de strip-tease e algumas casas
de danças eram legalizadas. Restava saber, porém, se aquilo era meramente
um show de strip-tease ou se era prostituição mesmo.
Em choque, virei o rosto para Zara, e, pela cara que ela estava
fazendo, enquanto observava os jogos de luzes e as meninas dançando, eu
sabia que ela estava pensando exatamente essas mesmas coisas que eu. A
pulga atrás da orelha não era só minha. E talvez a dela fosse ainda maior.
Afinal, ela era uma policial.
— Você sabia de algo assim acontecendo por aqui? — Desconfiada,
ela perguntou. — Já tinha visto isso?
Balancei a cabeça, sinceramente, ainda pasma.
— Não... Eu juro que nunca tinha visto isso aqui, nem em qualquer
outro hotel do meu pai. Essa é a primeira vez. Eu não sabia que o hotel,
agora, está oferecendo esse tipo de... Entretenimento.
Só vi quando ela tirou o celular do bolso, aparentemente discando
para alguém, e, então, em menos de meio minuto, falou:
— Alexa, temos um caso aqui para investigar.
Viciada nela

Zara

Aquela cena, de fato, mexeu com a minha cabeça e com o meu sexto
sentido. Eu sabia exatamente quando alguma coisa não cheirava bem. E
aquilo me parecia podre. Não pude fazer outra coisa, senão ligar para
Alexa, por mais que isso me custasse a quebra da minha privacidade com
Agatha. De um jeito ou de outro, Westphalen saberia que eu só tomei
ciência do que acontecia em um dos hotéis Ballard porque estava
justamente lá.
Mesmo assim, eu entrei em contato com Alexa. E ainda fiquei
aguardando até que os agentes plantonistas, encaminhados por ela,
chegassem para averiguar a situação. Ainda os acompanhei por um bom
tempo, embora eu não estivesse no meu horário de trabalho. A questão era
que, para um policial, não havia bem uma distinção entre período de folga
ou de trabalho. Isso porque, se houvesse necessidade, a gente tinha o direito
e o dever de agir até mesmo à paisana.
O problema foi que, exatamente conforme o esperado, assim que os
agentes chegaram, todos agiram como se nada estivesse acontecendo,
porque aquilo era apenas...
— Um show de strip-tease como qualquer outro que acontece
dezenas de vezes nas noites de Las Vegas.
Segundo as palavras da Alexa, ali na sua sala de escritório, na
penitenciária, durante a manhã do dia seguinte, foi isso o que os
funcionários disseram aos agentes, assim como algumas das garotas
ouvidas também.
Claro. Era óbvio que eles não dariam outra resposta.
Já era de se esperar.
— E você acredita nisso? — questionei, erguendo uma das
sobrancelhas para ela.
— É claro que não. Óbvio que essa história está mal contada. Nós
vamos investigar isso mais a fundo. Os agentes apontaram algumas
inconsistências nos relatos, assim como algumas garotas também pareceram
meio assustadas com a chegada da polícia. Existe uma possibilidade bem
contundente de que alguém esteja coagindo essas garotas a dizer que está
tudo bem e que aquelas atividades realizadas no hotel não são ilegais.
Com toda certeza absoluta existia essa possibilidade. Era comum
que garotas de programas fossem coagidas por cafetões a não dizer a
verdade. Inclusive, essa palavra “cafetão” fazia reverberar coisas, na minha
cabeça, que martelavam desde ontem à noite. Coisas que eu não podia
deixar de falar para Alexa, porque, de um jeito ou de outro, faziam algum
sentido para mim, e também porque tinham a ver com a Agatha e com a
segurança dela. Então, tudo o que fosse relacionado a isso, prenderia a
minha atenção mais do que o normal.
— Olha só, tem algo sobre isso que eu não paro de pensar — falei.
— E o que é?
— Bom... — suspirei. — Você lembra daqueles caras que foram
presos por tentativa de sequestro da Agatha? Eles têm passagem pela
polícia devido à relação com sistemas de prostituição e casas noturnas
ilegais de sexo. Você não acha que essa pode ser a nossa primeira pista mais
conclusiva sobre o que pode estar acontecendo com a família Ballard?
Talvez os casos estejam interligados. Afinal, aqueles caras envolvidos em
prostituição quiseram raptar a Agatha e, agora, nós nos deparamos com uma
cena muito semelhança à prática de prostituição exatamente nas
dependências de um dos hotéis da família Ballard. Para mim, isso está
muito claro. Os casos podem estar interligados. Só nos resta descobrir a
forma como eles estão relacionados.
— Hum... — Foi então que, me fitando ainda mais atentamente, ela
se levantou da sua cadeira do escritório e caminhou alguns passos por ali,
pensando. — Isso faz sentido. Bem pensado, Zara. Eu vou convocar os
demais agentes de investigação e detetives para trabalharem
especificamente nesses dois casos e buscarem essas possíveis ligações. De
todo modo, eu acho que eles têm relação sim. E, honestamente, eu não vejo
a hora de descobrir tudo o que há por trás disso.
— Eu também não vejo a hora... — soprei o ar pela boca. — Esses
casos precisam ser solucionados, pela Agatha e por todas aquelas garotas de
ontem. Elas podem estar correndo um risco que, talvez, ainda seja
inimaginável para nós.
E isso era bem verdade. Esse era um dos meus maiores medos.
Eu podia estar muito cega pelos sentimentos que já nutria por aquela
garota, mas eu tinha certeza e confiava de olhos fechados que Agatha
jamais se envolveria em um sistema ilegal que facilitasse a prostituição de
várias garotas. Por outro lado, era perceptível que ela e sua família estavam
sendo visadas por pessoas comprometidas em questões como essas. Para
mim, Agatha continuava correndo risco. E isso não me deixava tranquila.
Aliás, essa minha preocupação não era somente pela segurança dela, mas
também daquelas inúmeras garotas que talvez estivessem sendo coagidas a
se apresentarem sensualmente naquele local.
No entanto, interrompendo os meus devaneios, só ouvi quando
Alexa disse:
— Por falar em Agatha, sem querer sem muito indiscreta, mas já
sendo, o que você estava fazendo em um dos hotéis da família Ballard, para
saber do que acontecia lá? Você estava com a garota?
Ah, porra, eu sabia que essa perguntaria chegaria.
E, bem, eu ainda não tinha pensado em uma boa desculpa para dar.
Na real, eu já estava começando a me sentir mal com essa situação
de ter que fingir que não acontecia nada entre nós, que não estávamos
juntas. Eu não sabia até quando conseguiria guardar isso. Não era justo com
a Agatha. Em contrapartida, também não era justo comigo. Muita coisa em
jogo. De um lado, o sentimento, o afeto, a vontade de ficar com ela. Do
outro, o meu trabalho, o meu sonho de seguir na carreira, e o meu sustento.
Suspirei.
Tudo era muito complicado.
De uma forma ou de outra, era melhor que aquilo continuasse em
segredo, por ora.
Por isso, falei a primeira merda que apareceu na minha cabeça:
— Eu... E-Eu fui jantar lá com uma amiga. Ela me chamou e eu fui.
Tudo bem, não foi algo muito convincente. Mas, era a única coisa
que eu conseguia pensar.
— Amiga...? — Ainda de pé e de frente para mim, Alexa
questionou, cruzando os braços brevemente.
— Sim.
Foi aí que ele passou a língua entre os lábios, suspirando e se
aproximando de mim.
— Zara, talvez você já esteja cansada de ouvir isso de mim, mas eu
realmente me preocupo com você. Sei bem o que pode te acontecer, se te
pegarem tendo um caso com essa garota. Como sua chefe e sua amiga, eu
ainda posso salvar a sua pele, por enquanto. Mas, ela não será salva, se os
nossos superiores ficarem sabendo de qualquer coisa entre vocês.
Ah, pelo amor de Deus.
Ela achava que eu não tinha consciência disso?
Eu tinha, e muito. Era algo que eu não deixava de pensar, nem
mesmo quando estávamos juntas, transando no que talvez fosse o melhor
sexo da minha vida. Era um tipo de fantasma que me atormentava o tempo
inteiro.
Porém, enquanto eu sabia que aquilo era um risco, eu também tinha
certeza de que já não conseguia parar. Era ruim deixar tudo em segredo,
mas também seria pior encerrar aquilo com a Agatha. Foi por isso que lhe
dei uma resposta que me dilacerava por dentro:
— Não existe qualquer coisa entre nós. Eu já falei para você. Pode
ficar tranquila — E fui logo tentando emendar em outro assunto, para que
ela se desligasse daquilo, muito embora esse outro assunto também tivesse
a ver com a Agatha. Alexa, porém, não precisava saber disso. — Aliás, eu
queria falar sobre algo com você. Gostaria de pegar uma folga no ano novo,
de sexta a domingo. Não tive folga no natal, então eu realmente gostaria de
ter no ano novo. Meus pais me convidaram para visitá-los na Califórnia. O
meu plano é pegar a estrada, na sexta de manhã, e passar a virada de ano
com eles.
— Hum... Está bem — Ela acenou um breve sim com a cabeça, sem
hesitar. Não parecia haver problemas com a minha ausência. — Acho que
você tem horas de trabalho sobrando no seu banco. Então, não vai ser um
problema. Só passe no RH para formalizar isso. Eu vou autorizar o pedido
daqui mesmo e a Ruth lá do RH já vai saber.
— Ótimo. Muito obrigada, Alexa. Mas... — pigarreei a garganta de
leve, como um reflexo da minha quase ansiedade em falar aquilo. Eu já
tinha uma certa ideia de como ela poderia reagir. Acontece que eu não iria
me parar. — Tem outra coisa também.
— É? — franziu o cenho de leve, me dando mais atenção. — O que
seria?
Lá vai.
— Como eu não vou estar aqui, peço que Agatha também seja
liberada dos seus trabalhos, na sexta.
A morena, no entanto, enrugou ainda mais a testa, como se não
entendesse a razão disso. E ela realmente não entendia.
— Já que você vai faltar na sexta, eu mesma posso supervisioná-la.
Ou pedir a outro agente disponível que faça isso.
— Não — Só que a minha resposta saiu rápida demais. Quase
carrancuda. Pigarreei a garganta outra vez, tentando retomar a compostura
e parecer normal, enquanto sorria meio amarelo. — É que... — Pensa,
pensa, pensa. — Ela também me pediu folga na sexta — Mentira. Ela nem
sabia que eu ia viajar e que ia chamá-la para ir comigo. — Então, como eu
fui designada pessoalmente pelo delegado Conway, para supervisioná-la,
achei justo que, como eu não estarei aqui, ela também não esteja. Claro que
a falta dela será reposta.
E, assim, eu poderia levá-la comigo na viagem à casa dos meus
pais.
Sim, eu já estava pensando nisso há alguns dias, desde que eles me
fizeram o convite. Queria que ela estivesse comigo na virada do ano, por
mais que apresentá-la aos meus pais pudesse parecer um passo muito
grande. Era como inseri-la, ainda mais, na minha vida, e tornar o nosso caso
menos casual do que já era. Eu estava indo na contramão do que deveria
fazer. Mesmo assim, apesar dos riscos que essa atitude poderia me trazer, eu
queria e sentia que deveria levá-la. Quase como uma necessidade minha.
E eu ainda nem tinha a convidado, mas tinha fé que ela aceitaria ir
comigo.
Percebi, porém, quando Alexa puxou o ar, me encarando mais séria
do que já estava. Estudou meu semblante por alguns segundos, e, então,
falou:
— Olha, Zara, eu não vou me opor a isso. Não desta vez. Mas, vou
te dizer novamente. Tome muito cuidado com o que você está fazendo por
essa garota. Eu percebo o quanto você já está emocionalmente envolvida a
ela. O problema mesmo será quando os nossos superiores perceberem. Você
já caiu uma vez, e pode cair de novo.
Você já caiu uma vez, e pode cair de novo...
Passei a língua entre os lábios, encarando-a e absorvendo suas
palavras.
Eu sempre soube disso.
Sempre.
Aliás, era única e exclusivamente isso que me fez tentar resistir a
ela, manter distância, tirá-la da minha cabeça de alguma maneira. Eu tentei.
Eu tentei bastante. Mas, cheguei a um ponto que não deu mais. Nem todo o
perigo, que eu corria, foi capaz de me parar quando o desejo aumentou a
níveis exponenciais. E, agora, eu já estava envolvida demais, física e
sentimentalmente, para querer encerrar aquilo. Por mais maluco e irracional
que isso pudesse parecer, eu estava assumindo os meus riscos quanto a
isso.
Porque eu estava viciada nela.
Completa e absurdamente viciada naquela garota infernal.

✽✽✽

Uma irracionalidade, misturada com loucura, desta natureza, só


tinha acontecido uma vez na minha vida. Com Haven. E deu no que deu. Eu
passei muito perto de me foder completamente. Agora, no entanto, quando
achei que estava livre dos meus fantasmas do passado e que algo assim
jamais aconteceria novamente, Agatha apareceu, e me deixou tão maluca
quanto fiquei por Haven.
No entanto, por mais piegas que isso pudesse ser, apesar de tudo, eu
sabia que aquilo que eu sentia por Agatha Ballard chegava a ser ainda mais
forte e mais intenso do que um dia senti por Haven, ainda que eu não
entendesse ou não soubesse o motivo disso. O fato era que a intensidade
dos meus sentimentos tornava tudo muito mais perigoso.
Mesmo que eu tentasse manter aquilo o mais casual possível, não
dava. Não dava porque eu era incapaz de ficar longe dela, incapaz de não
querer ainda mais momentos nossos. Não era só pelo sexo. Era por tudo.
Pela sua companhia, pela sua conversa despojada, pelo seu jeitinho pirado
de ser, pelo seu sorriso que me matava mil vezes por dentro, pelos seus
beijos que me faziam rejuvenescer uns dez anos. A cada vez que estávamos
juntas, eu sentia como se estivesse recuperando um tempo quase perdido da
minha juventude.
Ela fazia eu me sentir como uma garota de vinte anos outra vez.
E a grande prova do meu vício nela era que tudo o que fazíamos já
não parecia o bastante. Beijá-la uma vez não era suficiente, abraçá-la uma
vez também não era o bastante, transar uma vez satisfazia apenas
momentaneamente a minha vontade por ela, e sair um único dia com ela,
depois do trabalho, também não parecia ser o suficiente para suprir o meu
desejo da sua companhia. Eu era como uma viciada. E a minha droga era
Agatha Ballard. Só bastou eu provar uma única vez.
No dia anterior, ela quis me mostrar a noite de Las Vegas do seu
jeito. Com todo o luxo de um restaurante requintado, os talheres banhados a
ouro e o jazz como música ambiente que tornava tudo mais fino do que já
era. Agora, eu também queria mostrar a noite de Las Vegas a ela, mas do
meu jeito, a levando para a minha realidade mais uma vez. Algo simples
que não deixava de ser bom.
Sem dúvidas, porém, tudo era apenas uma desculpa para tê-la perto
de mim.
Foi por isso que, depois de sair do escritório da Alexa e resolver
algumas pendências na penitenciária, eu me aproximei dela, enquanto
limpava as mesas do refeitório, próximo à cozinha. Enxugando as gotinhas
de suor que já escorriam pela sua testa, em meio a um rosto vermelhinho
pelo esforço que fazia, ela parecia ainda mais adorável.
De alguma forma, isso me lembrava a maneira como ela ficava na
cama, quando a gente transava. As bochechas coradas daquele jeito, os
lábios vermelhos e o olhar que seria capaz de matar qualquer um
desavisado que passasse mais do que alguns minutos o observando. Mas,
era melhor eu nem parar para pensar muito sobre isso, ou sentiria vontade
de fazer amor com ela em alguma parte daquela penitenciária.
Fazer amor...
Quase testei as palavras mentalmente, segundos depois.
A garota estava mesmo fazendo um estrago em mim.
— E aí, tá tudo bem por aí? — perguntei, parando ao seu lado. —
Precisa de alguma coisa?
Foi então que ela limpou novamente as gotículas de suor que se
formavam em sua testa e me encarou firme e seriamente, falando:
— Sim, eu preciso. Eu preciso de um spa, para me recuperar da
porcaria desses trabalhos que você me passa. Sério. Não tinha como você
me passar alguma coisinha menos chata? Tipo, dormir a tarde inteira em um
daqueles sofás que ficam na área administrativa? Eu tô dando pra você
agora, cara. Tem que ter o mínimo de consideração.
Eu ri. Não aguentei.
E, meu Deus, esperava que ela não tivesse dito isso muito alto.
Mesmo assim, continuei rindo. Seu humor sempre tão ácido. Talvez
aquela personalidade de burguesinha nunca mudasse.
— Então, você começou a me dar pra ver se eu pegava mais leve
nas minhas ordens? — questionei em tom mais baixo, erguendo uma das
sobrancelhas.
— É claro que não, projetinho de Xena — cerrou os olhos para
mim, encarando-me com obviedade. — Só acho que mereço algum agrado.
Soltei mais uma risadinha.
— Bom, você sabe que isso não é nada pessoal. As tarefinhas que eu
passo a você são apenas o cumprimento das ordens do delegado.
Ela suspirou.
— É, eu sei, eu sei... Os seis meses mais demorados da minha vida
— rolou os olhos. — Mas, enfim, você falou com a Alexa sobre ontem? Ela
te disse algo a respeito do que estava acontecendo no hotel?
— Como você sabe, os funcionários alegaram que tudo não passava
de um simples show de strip-tease. Mas, Alexa disse que, mesmo assim, as
investigações continuarão. Desconfiamos de que, talvez, possa haver
alguma relação entre o caso de ontem e o seu naquele pub à noite. É
provável você seja chamada para algum depoimento.
Vi, no entanto, quando ela estremeceu de leve, somente pela menção
ao seu quase rapto. Eu sabia que, infelizmente, ainda era como uma espécie
de gatilho para ela.
— Só espero não ter que cruzar nunca mais com aqueles caras —
disse Agatha, sinceramente. — Quanto ao depoimento, tranquilo. Tudo o
que eu tenho para falar já disse a você. Ontem foi a primeira vez que eu vi
acontecer aquele tipo de coisa em qualquer um dos hotéis do meu pai. Mas,
sem problemas, eu posso conversar com os investigadores.
— Ótimo. Vai ficar tudo bem, senhorita Ballard — sorri de leve.
— Eu espero que sim, policial Scott — Ela também sorriu.
E, então, aquilo que eu estava guardando, desde que cheguei em
casa ontem à noite, borbulhou dentro de mim, para escapar pela minha
garganta. Assim como com a viagem, eu também estava ansiosa para
sugerir aquilo a ela. Sobre o ano novo, porém, eu só falaria mais tarde.
— Olha só... — puxei o ar brevemente. — Eu queria fazer um
convite a você.
Foi automático.
Repentinamente, seus olhos se iluminaram.
Ela soltou até o paninho que esfregava a mesa.
— Convite? — Sorrindo de orelha a orelha, toda interessada e
empolgada, ela perguntou. — Que convite?
— Bom... Ontem, você me chamou para conhecer a noite de Las
Vegas do seu jeito. Hoje, eu quero te convidar para conhecer do meu. Topa?
Quer ir ao cinema comigo?
Agatha, então, suspirou, como se estivesse vendo o próprio paraíso,
cheio de anjos, na sua frente. Os olhinhos brilhando.
A garota mais linda do mundo.
— Cara, pra ser sincera, o que eu queria mesmo era te dar um beijo
bem aqui, agorinha, por ser uma miserável tão perfeita — sorriu. — É claro.
É óbvio que eu quero. Vou adorar.
Soltei uma risadinha.
— Então, ótimo. Fica combinado assim. Depois do trabalho.
E, com uma piscadinha de olho para ela, me afastei dali. Ainda vi
quando ela suspirou uma última vez. Minha reação não foi muito diferente.
Duas idiotas. Era como se eu tivesse voltado ao colegial. Aquela mesma
sensação de ardência no peito pela garota mais bonita e incrível da escola
ter aceitado ir ao baile com você.

✽✽✽

Bom, diferente do dia anterior, naquele eu fui mais preparada, já que


estava decidida a chamá-la para ir ao cinema comigo. Coloquei uma roupa
casual, dentro da minha mochila, e, quando o expediente acabou, eu troquei
a farda de policial por ela. Algo bem mais leve e despojado do que ficar
andando, para cima e para baixo, com aquelas botas de combate, coldre de
perna e colete.
Quanto à Agatha, meu Deus, a garota tinha caprichado de um jeito,
naquele dia, depois de tomar banho no banheiro de funcionárias e vestir sua
roupa. Claro que ela ficava maravilhosa de qualquer maneira ou usando
qualquer roupa, até mesmo a farda da faxina. Naquele fim de tarde, após o
expediente, porém, ela estava impecável. Que ela sempre levava
maquiagem na bolsa, isso não era novidade. Mas, o seu poder de se superar
a cada dia, me deixou realmente fascinada.
Precisei respirar fundo, umas três vezes, para que eu não desistisse
de levá-la ao cinema, e, em vez disso, procurasse um quarto de hotel mais
próximo por ali. Mesmo assim, tentei manter a linha e continuar com a ideia
inicial. Vi quando ela se sentou ao meu lado, no carro, linda, perfeita, como
um presente embrulhado e perfumado única e exclusivamente para mim.
Deus, eu era uma sortuda do caralho por estar com uma garota como essa.
E, assim, com a certeza de que ela era tipo como ganhar na loteria,
seguimos para um dos shoppings de Las Vegas.
Durante todo o caminho, nós conversamos assuntos aleatórios. Era
como conhecer melhor uma à outra, em detalhes que poderiam passar
despercebidos, mas que faziam toda a diferença quando se estava
interessado em alguém. Desde gostos pessoais até segredinhos e vergonhas
passadas nas mais diversas situações. Era maravilhoso conhecê-la assim,
quando estávamos distantes de toda a carga de problemas que corriam atrás
de nós. Ali era apenas Zara Scott e Agatha Ballard, não duas mulheres de
classes sociais diferentes.
A assalariada e a herdeira de um complexo hoteleiro.
A policial e a garota que cumpria pena.
Não.
Ali éramos apenas Zara Scott e Agatha Ballard. Duas mulheres que
gostavam de mulher, e também se gostavam.
E, bem, eu, feito uma imbecil, não conseguia parar de reparar nela.
Talvez eu nunca tivesse sorrido tanto na minha vida quanto eu estava
sorrindo para ela, naquele momento. Minhas bochechas já estavam até
doendo. Mas, eu não conseguia parar, nem de sorrir, nem de reparar na sua
beleza. Seus olhos perfeitos, seu sorriso charmoso, seu nariz pequeno, sua
boca atraente, seu semblante que conseguia alternar perfeitamente entre a
inocência e a sacanagem.
Quando chegamos ao estacionamento e saímos do carro, eu não
pude resistir em falar:
— Sabia que você tá linda? Na verdade, você é linda.
Seu sorriso foi de uma ponta a outra.
— Hum... — Os olhos cintilando para mim em puro entusiasmo e
admiração. — Muito obrigada, Policial Scott. É uma honra receber um
elogio seu — brincou, soltando uma risadinha.
Eu também ri, enquanto caminhávamos para o interior do shopping.
— Tem outra coisa também... Eu tô louca pra segurar sua mão.
Aquilo simplesmente saiu. Nos últimos dias, tudo o que eu desejava
fazer com a Agatha apenas escapulia da minha garganta, como se as
palavras tivessem vida própria. Talvez eu estivesse aprendendo com ela a
não ter filtros.
No entanto, depois de dizer aquilo, só vi quando a loira virou
brevemente o rosto para mim. A empolgação e o deleite em me ouvir
pronunciando todas essas palavras. Por mais rica e cheia de posses que ela
fosse, aparentemente era simples agradá-la. Eu não precisava de dinheiro.
Só precisa ser sincerava e carinhosa.
— E por que não segura? — Astuciosa, ela perguntou. — Estamos
bem longe da penitenciária e das regras.
Eu suspirei.
Embora estivéssemos longe da penitenciária, as regras existiam,
independente do lugar onde a gente estivesse, assim como os fantasmas do
meu passado também. Sempre rondando a minha cabeça, quase sem dar
descanso. Era um saco. Memórias que estavam sempre ali, para me lembrar
de que eu estava a passo de me foder.
Mas...
Ainda assim, muitas coisas já tinham acontecido entre Agatha e eu.
Andamos muitos passos, em alguns dias, para que eu pudesse evitar de me
sentir envolvida. O que não era para ser casual, se tornou. E o que era para
ser apenas casual, ganhou um significado maior. Por isso, mesmo com todo
o risco que eu corria, me joguei ainda mais do abismo e segurei sua mão,
pela primeira vez, enquanto caminhávamos pelo shopping.
Isso era pessoal demais.
Demais.
Mas...
Foda-se.
Não tinha como tornar impessoal algo que era já íntimo antes de ser.
Respirei fundo e me dei à liberdade de sentir sua mão na minha. A
pele tão macia e aveludada, do mesmo jeito como eu a sentia quando
estávamos transando. Maravilhosa. Vi quando ela sorriu para mim,
claramente satisfeita com a minha atitude de andarmos de mãos dadas.
Como eu disse, por mais rica que ela fosse, Agatha, comigo, parecia dar
valor ao que era simples.
E, assim, percorremos os corredores e subimos os andares do Wynn
Plaza, em direção ao cinema. Meu coração acelerado o tempo todo, não
pelo receio de cruzarmos com alguém conhecido, mas pelo simples fato de
que eu estava segurando a mão dela. Daquela garota linda, por dentro e por
fora. Risos e sorrisos saíam das nossas bocas o tempo inteiro. Era como se
estivéssemos em um mundo paralelo, onde tudo era perfeito.
Quando chegamos ao cinema, a primeira coisa que a gente fez foi
comprar uma pipoca imensa. Sério. Muito grande. Eu ainda nem sabia qual
filme iríamos assistir, mas, pelo tamanho do pacote, daria para um de, no
mínimo, duas horas. E, bem, eu não escolhi antes, porque queria que nós
fizéssemos isso juntas. Era outra oportunidade de conhecê-la mais um
pouco. E eu não desperdiçaria isso, escolhendo o filme sozinha.
Com a pipoca em mãos e dois copos gigantes de refrigerante,
seguimos para a fila de comprar os bilhetes. Foi quando eu perguntei
aleatoriamente:
— Você acha que consegue dar conta dessa pipoca imensa comigo?
— sorriu.
— O quê, querida? — Ela ergueu uma das sobrancelhas, me fitando,
divertida. — Eu posso até ser magrinha, mas sou boa de boca, viu...?
Boa de boca...
Mesmo sem querer, isso fez a minha imaginação voar longe.
E eu só reparei naquilo que já estava escapando da minha boca, no
momento em que eu, de fato, disse:
— É... Eu sei o quanto você é boa de boca... — Quase cantarolei.
Tá vendo? Quando eu disse que a convivência com a Agatha estava
me tornando uma pessoa sem filtros, que nem ela, eu não menti.
A risada, porém, que ela deu, depois disso, foi muito gostosa. Até
inclinou o pescoço, jogando a cabeça para trás. Tão leve. E, então...
— Sua safada...! — disparou, balançando a cabeça de leve. — Mas,
eu gosto... — E me encarou de cima a baixo, por duas vezes, com aquele
jeitinho sacana que só ela tinha. — Gosto muito disso.
Puxei o ar.
Só aquele olhar era capaz de desmontar inteira.
— Você se aquieta, heim, garota? Senão, te levo daqui pra outro
lugar e a gente nem assiste o filme — brinquei.
Era brincadeira? Era.
Mas tinha um baita fundo de verdade.
— Ah, então, é assim...? — Seu sorriso se tornou enorme e ela
pareceu se animar ainda mais. — Olha, eu adorei o convite para o cinema,
mas... Se quiser me chupar e me comer em algum lugar por aqui, eu tô
aceitando também. Pode até ser dentro do cinema! Você já imaginou...?! —
Louca, ela arqueou as duas sobrancelhas, enquanto segurava a pipoca
imensa nos braços. — Já imaginou a gente se comendo dentro do cinema?!
Meu Deus, meu sonho! Escolhe duas cadeiras lá no fundão, viu?
Ah, meu pai.
Ela até podia ser maluca, mas eu também tinha níveis de loucura,
dentro do corpo, para incendiar por completo. Bastava uma pequena
faísca. E essa faísca, sem dúvidas, tinha nome e sobrenome: Agatha
Ballard.
Suspirei, balançando ligeirinho a cabeça e tentando me concentrar
na ideia inicial, antes que eu loucamente decidisse pegá-la dentro do cinema
mesmo.
— Para com isso, garota... — Quase em tom de advertência, disse
eu, em meio a risinhos. — Eeenfiiim... Qual o seu estilo preferido de filme?
Comédia, ação, terror?
Ela riu com a minha troca abrupta de assunto.
Era uma forma de evitar que a minha loucura interior saísse por aí
e quisesse fazer besteirinhas dentro do cinema, como adolescentes, afinal.
— Bom... Pra ser sincera mesmo? O meu tipo de filme preferido é
ficção científica. Amo!
Olha só, isso chamou a minha atenção.
— Acredita que esse é o meu tipo preferido também? — sorri.
E, não, eu não estava tentando fazer média com ela. Eu não
precisava disso. Era a pura verdade. Eu gostava mesmo de ficção científica.
— Ah, sério?! — Suas sobrancelhas arquearam absurdamente,
enquanto sua boca se abria em um “o” perfeitinho.
Ela parecia em choque com a coincidência.
— Seríssimo — sorri. — Eu gosto de praticamente todos. Em
especial, aqueles de espaço, universo e tal. O Nick puxou isso de mim —
soltei uma risadinha. — Você já reparou na decoração do quarto dele, né?
— Caramba, eu também! — Ela parecia ainda mais abismada. — Os
que eu mais amo são os de espaço. Meu Deus, acho que já assisti todos os
existentes. Até os piores! — riu.
— Ah, o meu preferido é Interestelar, do Christopher Nolan. Pra
mim, esse filme é uma obra-prima.
Foi aí que o seu queixo despencou muito mais, enquanto seus olhos
faltaram pular da caixa craniana. Ela parecia uma daquelas fãs, quase
histéricas, quando iam a um show da banda de rock preferida. Muito
engraçadinha. E linda também.
— O quê?! Mentira! Esse é o meu preferido também!
Ninguém nunca poderia imaginar, afinal.
Porém, no momento em que exclamou “Esse é o meu preferido
também!” e deu um passo para trás, tamanha surpresa com a nossa
afinidade para filmes, ela acabou tropeçando em alguém que passava ao
lado. Com o impacto repentino, pipocas caíram por todos os lados,
enquanto ela tentava recuperar o equilíbrio.
— Ai, desculpa! Desculpa! — Toda atrapalhada, ela falou. — Eu
não te...
Quando mirou o seu olhar na pessoa, entretanto, simplesmente
travou e ficou mais branca do que já era. E eu até tinha achado esquisita a
sua reação, mas isso foi somente até eu também pousar os meus olhos na
“vítima”.
Porra.
Eu não podia acreditar.
Todo o sangue do meu corpo foi drenado no mesmo segundo.
Era ninguém mais que Alexa Westphalen.
Eu cuidaria pessoalmente do seu
coração

Zara

Caralho.
Por meio segundo, em um estúpido instinto, eu ainda pensei em dar
um ou dois passos para trás, e fingir que aquilo não passava de uma mera
coincidência. Pura obra do destino que Agatha e eu estivéssemos no mesmo
local e na mesma hora, sem estarmos realmente juntas. Apenas um encontro
aleatório e banal de quem se cruzava pela cidade. Mas, não. Eu não
consegui fazer isso, porque era simplesmente ridículo. No fundo, uma
vozinha interior gritava bem nos meus ouvidos: “assuma os seus B.O.’s”.
E, sim, seria muito ridículo se eu me afastasse um ou dois passos. Feio
demais, totalmente errado da minha parte e também muito desrespeitoso
com a garota.
Isso seria como negar tudo o que eu, de fato, já estava sentindo por
ela, mesmo que as consequências do nosso relacionamento me fizessem
perder praticamente tudo o que eu tinha. Eu já quase perdi tudo uma vez,
numa situação semelhante. Então, eu sabia que estava a um passo de ser
convidada a me retirar da Polícia de Las Vegas, pela segunda vez. Mesmo
assim, não fiz outra coisa a não ser me manter paradinha ali do lado dela,
assumindo os meus riscos, que eram muitos. Muitos mesmo.
Só vi quando o olhar da morena passeou por entre nós duas,
analisando, estudando, instigando, até, finalmente, dizer:
— Senhorita Ballard. Policial Scott. Que agradável surpresa as
encontrar aqui — Suas orbes, no entanto, não demonstravam surpresa
alguma. Era como se, uma hora ou outra, ela já soubesse que ia descobrir
algo sobre nós — Eu trouxe o meu afilhado para assistir um filme —
segurou na mão do garotinho ao seu lado, que sorriu para nós. — Vocês vão
assistir algo também?
Ainda mirei em Agatha brevemente, pelos cantinhos dos olhos, que
permanecia estática, parada, imóvel ao meu lado. Ela, sim, estava bastante
surpresa. Eu diria até que em choque. E o pior, eu também percebia o seu
bom humor e a sua leveza, de minutos atrás, se esvaindo, segundo a
segundo, e dando lugar a uma perceptível e palpável tensão.
Eu sabia e sentia que ela não tinha gostado nem um pouco de ter
cruzado com Alexa ali. Não pela inspetora ter praticamente nos pegue no
flagra, mas pelo simples fato de que, assim como eu, Agatha também queria
que aquele momento fosse só nosso. Um universo paralelo onde não havia
nada que nos lembrasse da existência da penitenciária e dos nossos
problemas.
Percebi ainda que ela não estava em condições de responder à
Westphalen, e, mesmo que estivesse, era eu quem preferia fazer isso.
Assim, passado o susto inicial, ergui o queixo e sustentei o olhar, frente à
Alexa, dizendo:
— Sim, nós... Vamos.
E bastava eu apenas falar aquilo. As cartas tinham sido lançadas. Eu
ainda poderia tentar alguma discrição diante de outros funcionários da
penitenciária ou dos chefes superiores da Polícia de Las Vegas, como forma
de protelar o destino que eu já estava dando como certo de que seria meu.
Mas, com Alexa não mais. Aliás, no fundo, eu sabia que era questão de
tempo para que o restante das pessoas soubesse do que, de fato, acontecia
ali, entre nós. Agatha me cegou e anulou a minha racionalidade de tal forma
que, naquela altura, eu já tinha parado de lutar comigo mesma e de querer
entender como pude ter sido tão fraca.
O fato era que, a cada segundo, eu me tornava cada vez mais
incapaz de interromper o que quer que estivesse acontecendo entre Agatha e
eu, já que eu ainda não sabia como nomear aquilo. Incapaz de manter
distância, incapaz de não querer repetir por muitas e muitas vezes os beijos
que já trocamos, porque eu realmente estava gostando dela.
Eu estava gostando de verdade daquela garota.
Vi, porém, quando um sorriso gelado brincou nos lábios da
Westphalen, após ouvir a minha resposta. E, então, tentando parecer
simpática e natural o bastante, apenas disse, depois de um breve suspiro:
— Ótimo. Então, tenham um bom filme. Até mais.
E, se afastando dali com o seu afilhado, se despediu de nós nos
dando às costas.
Ainda olhei novamente para a Agatha e vi o desconforto em seu
semblante. Mais uma vez, não pela Alexa ter interrompido a nossa
intimidade, mas por simplesmente ter aparecido, quando aquilo deveria ser
algo só nosso. Era como o brilho de uma estrela se apagando. Não pude
resistir ao vê-la assim, ainda incomodada com a situação. Nós estávamos
indo tão bem.
— Está tudo... Fica tranquila — E a abracei ali mesmo, pouco me
importando se estávamos em público. Nem a chegada repentina de Alexa
me faria parar ou hesitar. Passei minhas mãos carinhosamente sobre as suas
costas e os seus cabelos, afagando e desejando muito que nós pudéssemos
voltar ao momento onde paramos, naquela conversa tão divertida. Percebi
quando respirou fundo e, então, me envolveu com os seus braços também.
— Será que podemos comprar o bilhete agora e assistir ao filme? — Com
jeitinho, sugeri.
Agatha, ainda introspectiva, apenas balançou um sim com a cabeça,
sem me dizer nada com palavras.
Suspirei.
Era uma merda que aquilo tivesse a afetado de alguma forma.
Porém, ainda que eu quisesse muito que ela retornasse logo àquele bom
humor tão maravilhoso, eu faria o possível para lhe dar o tempo necessário
de voltar ao normal.
Segurando, então, a sua mão e entrelaçando os nossos dedos,
porque, apesar de tudo, eu não deixaria de fazer isso, a levei até a fila do
bilhete e, depois, até a sala do filme. Enquanto caminhávamos, no entanto,
senti quando o meu celular vibrou no bolso da calça. Franzindo brevemente
o cenho, o tirei e vi o que tinha ali. Era uma mensagem da Alexa.

“Não tem mais como mentir pra mim. Vocês estão se envolvendo. E
você é completamente maluca, Zara... Pelo amor de Deus. Tudo o que eu
peço é que tente ser o mais discreta possível com essa garota, ou, então,
sua cabeça vai rolar. O segredo está a salvo comigo, mas não se você ficar
dando bandeira em toda a cidade de Las Vegas. Abra o olho.”
Puxei o ar, tentando refrigerar os meus pulmões, e, balançando a
cabeça de leve, guardei novamente o celular no bolso. Se Alexa soubesse o
quanto aquilo já tinha se tornado um caminho sem volta para mim, talvez
ela poupasse as suas preocupações comigo, porque saberia que o meu
destino era um só.
Apenas questão de tempo.
Eu só precisava pensar no que eu faria da minha vida, quando o dia
chegasse.

✽✽✽

Sim, eu fiz o possível para dar à Agatha o espaço necessário para


que voltasse ao normal. Compramos os bilhetes, assistimos o filme,
dividimos a pipoca e o refrigerante, enquanto um romance passava na tela,
mas, aparentemente, nada daquilo parecia estar conseguindo fazê-la se
desligar do que aconteceu. Agatha continuava tão mais introspectiva do que
já estava. Não me ofereceu muitas palavras, passou a maior parte do tempo
calada, e, mesmo que o filme fosse uma desculpa para ela não estar falando
muito, eu sabia que, se estivesse realmente tudo bem, a sua matraca não se
calaria nem mesmo no cinema.
Por vezes, tentei puxar algum mínimo assunto ou fazê-la rir, sobre
algo engraçado que acontecia na comédia romântica que assistíamos, mas
ela não me deu nada além de breves e pequenos sorrisos ou míseras
palavras de alguém estava mais perdida entre os próprios pensamentos do
que firmada no mundo real. Também tentei fazer carinho nela, em seu
braço, em suas mãos, enquanto o filme continuava passando, ou mesmo a
puxando para alguns beijos, como se costumava fazer no escurinho do
cinema. Agatha, porém, mesmo aceitando, continuava meio cabisbaixa.
Eu nem consegui prestar muita atenção no filme. Se me
perguntassem o que aconteceu, eu, provavelmente, não saberia responder
direito. Ainda assisti algumas partes, é claro, mas passei quase o tempo
inteiro alternando o meu olhar entre o telão e o seu rosto, pelo cantinho dos
meus olhos, tentando desvendar o que se passava dentro da sua cabeça.
Aquilo chamava mais a minha atenção do que qualquer filme. Eu queria
saber quais eram os seus pensamentos, as suas preocupações. E, bem, de
algum modo, já era eu quem me sentia preocupada com sua persistente
mudança de humor, por mais que, no fundo, eu soubesse a razão.
Eu estava sentindo falta daquele seu bom humor. Na verdade, eu já
estava sentindo falta até mesmo do seu humor ácido, aquele que sempre
acompanhava ironias e sarcasmos. Eu também sentia falta dos seus beijos
espontâneos e da sua vontade de me “atacar” onde quer que estivéssemos,
até mesmo em um cinema. Se tudo tivesse corrido conforme o planejado, eu
poderia jurar que ela até tentaria alguma sacanagenzinha naquele escuro. E,
bem, eu queria isso. Eu queria qualquer coisa dela. Agatha poderia até me
xingar, como sempre fazia, ou jogar em cima de mim todo o seu desprazer,
mas não ficar calada. Ficar calada era uma das piores coisas do mundo.
E, embora eu tentasse gerenciar as sensações que aquela sua postura
causava em mim, eu não conseguia controlar a minha inquietação e o meu
desejo de que tudo ficasse bem entre nós outra vez. Deus, eu nem sabia
como tinha conseguido me apegar desse tanto a ela, em um curto espaço de
tempo. Porém, foi por isso e por todo o resto, que, depois de sairmos do
cinema e caminharmos um bom pedaço, eu não pude segurar aquilo que já
queria escapar da minha garganta. Ao entrarmos no carro, não dei partida.
Na verdade, eu não fiz qualquer outra coisa, a não ser virar o meu rosto
atenciosamente para ela e perguntar, mesmo que eu já soubesse a resposta:
— Qual o problema, Agatha?
Eu só queria que ela desabafasse comigo. Talvez, o ato de colocar
para fora pudesse ajudar a tirar, de si, aquele peso que ela parecia
carregar desde antes de entrarmos no cinema.
Ela, que tinha entrado no carro, colocado o cinto e permanecido com
o olhar fixo para frente, sem me fitar, no entanto, finalmente, baixou as
orbes encarando suas próprias mãos e os dedos que passavam uns nos
outros. Parecia querer falar, mas, ao mesmo tempo, se refrear em dizer.
Algum conflito interno ou a busca pela escolha das melhores palavras.
Soprei o ar pela boca.
Eu não queria que ela ficasse assim comigo. Queria que se sentisse à
vontade em dizer qualquer coisa, que confiasse em mim, e que, meu Deus,
seus lábios encontrassem os meus outra vez, por livre e espontânea vontade,
porque eu adorava, eu amava, aquela Agatha maluquinha por um beijo
meu.
— Pode falar. Por favor, não tenha medo. Eu quero ouvir você —
insisti mais um pouco. — Estamos juntas agora. Você tem toda a liberdade
de falar comigo sobre tudo e, principalmente, sobre o que te deixa assim,
desconfortável.
Desconfortável...
Talvez a sinceridade, com a qual eu falei, tivesse surtido algum
efeito, porque, apesar dela ainda ter passado mais uns segundinhos calada,
pensando, suspirou, como se estivesse se preparando para algo muito
importante, e, então, falou:
— Eu só acho muito injusto, sabe?
Franzi o cenho.
Sim, muitas coisas sobre nós eram injustas, mas...
— O que exatamente?
Foi aí que ela, enfim, ergueu o olhar e me encarou, tão cheia de
ressentimentos, com as íris brilhantes. Puxou o ar, preparando-se para correr
uma maratona ou apenas despejar em mim tudo o que queria, e,
honestamente, disse:
— Termos que fingir que não existe nada entre nós ou precisarmos
disfarçar, na frente das pessoas da penitenciária, só porque eu estou
cumprindo a merda de uma pena que vai terminar em seis meses. Seis
meses, Zara... Quase cinco — enrugou a testa, inconformada. — É como se
eu estivesse sendo tratada como uma “grande criminosa” cuja incrível
policial não pode se envolver. E, porra, eu só estava dirigindo bêbada e falei
umas merdas pra você. Logo para você! Aliás, parece que a ética no
trabalho só se aplica a mim e a você, porque quando era com a Westphalen,
sua chefe, não tinha problema algum! A ética no trabalho não impedia o
caso de vocês!
A ética no trabalho não impedia o caso de vocês...
Finalmente, Agatha tinha explodido com aquilo que enchia o seu
coração. Quando se calou, ela até parecia meio ofegante. E, bem, de forma
alguma, eu não tiraria a sua razão em estar assim.
Puxei o ar, tentando tomar fôlego. Eu sabia que, mesmo sendo
necessária, aquela conversa não seria fácil, porque, assim como ela, eu
também não achava nada daquilo justo. A vida, muitas vezes, não era justa.
E também não era justo que, se eu quisesse seguir o meu coração, eu tivesse
que lidar com a possível perda do meu emprego. Não era justo que a única
mulher pela qual eu me senti verdadeiramente conectada, em anos, fosse a
mesma que estivesse a um passo de acabar com a minha carreira, embora
ela nem tivesse noção disso.
Mas, enfim, era ela. Eu sentia que era ela. Era Agatha quem mexia
comigo de verdade. Depois de tantos anos nutrindo relações superficiais
com outras mulheres (não propositalmente, mas pelo simples fato de não
conseguir me conectar realmente com nenhuma delas), era quase como uma
obra divina, criada e lapidada por deuses, que eu tivesse encontrado uma
pessoa que fizesse eu me sentir viva outra vez e ter a certeza de que eu
ainda era capaz de me apaixonar por alguém.
Honestamente, eu já não estava mais disposta a dispersar isso.
E tinha fé de que encontraríamos uma solução.
— Olha, eu sei que é difícil compreender isso — respondi,
sinceramente. — Sei que tudo parece muito injusto. E realmente é. Você
sabe que eu passei por muitos momentos de tentar negar o que eu sentia por
você, fosse atração, desejo ou mesmo sentimento. Mas... — segurei sua
mão, encarando o fundo dos seus olhos. — Eu não quero mais tentar matar
centenas de partes do meu coração e dos meus sentimentos só por causa das
regras da Polícia de Las Vegas. Sei que tenho responsabilidades, sei que fiz
juramentos para não repetir mais o que eu achava que fosse um erro, só que
eu não quero desistir de você. Se eu desistir de você, sei que vou estar
desistindo de mim mesma. Do que acredito, do que quero. Das minhas
próprias vontades — Eu já tinha feito isso uma vez, e não me fez nem um
pouco bem. Não queria repetir a experiência. Suspirei. Dessa vez, levando
uma das minhas mãos ao seu rosto, segurando firmemente. Seu olhar tão
lindo pra mim. — Eu estou gostando muito de você, garota. Muito mesmo.
De uma forma que, há muito tempo, eu não sentia. Saiba que, mesmo que
isso possa custar consequências irreversíveis pra mim, eu estou disposta a
levar a nossa relação adiante, se essa também for a sua vontade. Sei que
haverá alguma saída. Sei que as coisas podem se ajeitar.
Foi então que, depois que eu me calei, o muro que ela havia
construído, em volta de si, durante aquelas horas, no cinema, pareceu
subitamente desmoronar. Com suas íris tão azuis, lindas e cintilantes de
emoção, simplesmente destravou o cinto e me envolveu, abraçando-me tão
forte e entregue, como se precisasse disso para manter o equilíbrio do
próprio corpo.
— É claro que essa é a minha vontade, Zara. É claro que eu quero
levar essa relação adiante — disse ela, com a voz quase embargada. — Eu
já falei que eu tô gostando de você pra caralho... — E, me soltando do
abraço apenas por alguns centímetros, me encarou. — Eu só não gosto da
porcaria dessas regras que nos impedem de sermos quem nós somos. Que
mal tão grande pode acontecer a você, se assumir um relacionamento
comigo, heim? O que aqueles merdas poderiam fazer contra você? —
franziu o cenho, confusa, inconformada.
Respirei fundo.
Tá legal, tá legal, tá legal... Não dava mais para omitir aquela parte
da minha vida, como se Agatha não merecesse saber. No início, quando eu
tentei não estabelecer uma relação íntima com ela, até que a justificativa de
não entrar em assuntos pessoais viria a calhar. Mas, não agora. Agora,
aquela garota já tinha se tornado mais importante, para mim, do que eu
achei que um dia pudesse acontecer. E, se nós estávamos tentando construir
uma relação, segredos não poderiam existir.
— Olha... — pousei novamente uma das minhas mãos no seu rosto,
fazendo carinho com o polegar. — Tem algo sobre mim que eu acho que
você deveria saber. Isso não vai ser uma justificativa para eu desistir de
você, porque eu não quero desistir. Mas, talvez isso possa fazer você
entender o motivo de eu ter tentado resistir à nossa relação, por um tempo.
Vi o momento em que o seu cenho se enrugou, ao me encarar com
certa hesitação.
— O que você quer me falar? — Meio receosa, perguntou.
Deus...
Eu não queria ter que abrir essa parte da minha vida e trazer de
volta, para uma relação atual, algo que ficou lá no passado. Algo que não
representava a mim nenhum outro sentimento que não fosse culpa. Nem
paixão, nem amor, nem afeto. Apenas culpa. Mas, talvez, só talvez, isso a
fizesse entender algumas coisas.
A hora era agora.
— Bom... Há cerca seis ou sete anos, eu conheci uma garota. Foi
depois que eu me separei do pai do Nick — E, só naquele início, eu já
percebi a loira estremecer. — Ela não foi a primeira mulher com quem eu
me envolvi. Antes mesmo de ter um relacionamento com o pai do Nick, eu
já ficava com garotas. Mas, ela foi a primeira com quem eu realmente me
conectei. Acontece que ela era uma detenta da mesma penitenciária onde
você presta serviços comunitários. Ela se chamava Haven. Haven Saunders.
E, assim como você, ela também não era uma criminosa. Mas, foi presa.
Presa injustamente. Depois de um longo dia de trabalho, fui chamada para
um plantão de última hora. Era tarde da noite quando recebemos a denúncia
de uma festa clandestina, onde havia jovens consumindo e vendendo
drogas. Assim que os outros agentes e eu chegamos lá, o tumulto foi
grande. Naquela confusão, ela foi uma das primeiras pessoas que eu
encontrei. Estava desesperada, com uma mochila no ombro, enquanto
procurava os amigos que tinham sumido. Só que, como eu tinha dever de
revistar o máximo de jovens possíveis, eu precisei abrir a mochila que
estava com ela. E, quando assim eu o fiz, eu vi quilos de drogas. A agonia
no olhar dela, depois disso, foi palpável. Haven ficou ainda mais
desesperada, mais abalada. Ela chorava copiosamente o tempo inteiro,
enquanto dizia que aquela mochila não era dela, mas, sim, dos amigos que
colocaram nas suas costas, quando a polícia chegou, segundos antes de
correrem e fugirem. Não conseguimos encontrá-los em nenhuma parte do
local da festa. Mas, eu sabia que eles tinham armado pra cima da garota. E,
na polícia, eu já tinha entrado em contato com todo tipo de gente,
verdadeiros atores que deveriam ganhar até um prêmio. Com aquela garota,
porém, foi diferente. Ela estava absolutamente confusa e desnorteada por se
deparar com a quantidade de drogas na mochila. E eu via a sinceridade e o
pavor nos olhos dela. Eu conseguia sentir que Haven estava falando a
verdade, como se eu estivesse conectada a ela, de alguma maneira. Mesmo
assim, eu tive que cumprir a minha obrigação de levá-la à delegacia, ainda
que eu estivesse com o peito dilacerado por saber que o erro dela foi se
acompanhar com quem não deveria. Só que Haven não foi somente para a
delegacia, mas também desceu para a penitenciária e lá ficou presa por um
bom tempo. Ninguém acreditou nela, nem o delegado, nem a sua família,
nem mesmo os seus pais. Todos ficaram contra a garota, enquanto os
amigos dela, que apareceram dias depois, juraram que nunca tinham visto
aquelas drogas. Claro, eles não iriam confessar mesmo. Mas, de alguma
forma, o meu coração dizia que ela estava certa. Eu sabia que ela estava
falando a verdade, mesmo que o mundo inteiro estivesse contra. Haven só
conseguiu um advogado para defendê-la no processo, porque eu fui atrás. E,
todos os dias, desde o primeiro dia em que ela seguiu para penitenciária, na
sua prisão preventiva que deveria durar até as investigações acabarem e o
juiz dar o parecer final, nós conversamos. Eu sempre encontrava alguma
maneira de vê-la nos seus horários de lazer, fora da cela. E, a cada conversa,
eu via o brilho da honestidade nos seus olhos, a franqueza nas suas palavras
e o desalento por ter sido presa no lugar daqueles que eram os reais
culpados. Inevitavelmente, nós ficamos próximas. Muito mais próximas do
que eu poderia imaginar. Um dia, eu a encontrei chorando em um dos
banheiros de detentas. Ela estava tendo uma crise de pânico. Desesperada,
completamente desesperada por continuar presa. E eu a abracei, tentando
acalmá-la e pedindo para que ela se mantivesse firme e forte, porque, cada
dia que se passava, ela estava mais perto de sair dali. Quando os ânimos
dela foram voltando ao normal, ainda abraçada a mim, ela simplesmente me
beijou. E, por mais louco e irracional que isso possa parecer, desde esse
momento, nós tivemos um caso, no interior daquela penitenciária. Naquela
época, as regras já existiam. Eu já sabia que era terminantemente proibido
que qualquer policial se envolvesse com qualquer detento ou pessoa em
cumprimento de qualquer tipo de pena. Mas, eu não consegui parar e eu
jurei a ela que a tiraria de lá com a sua inocência provada. Um dia, porém,
em um dos nossos beijos escondidos, fomos pegas em flagrante pela
inspetora da penitenciária, que, na época, não era a Westphalen. O caos
estava posto. Me interrogaram de todas as formas, quiseram me punir de
todas as maneiras, não me deixaram mais ver a garota. E, por fim, me
disseram que, ou eu encerrava o caso ou eu seria convidada a me retirar da
Polícia de Las Vegas. Foi um dos piores momentos da minha vida. Eu fiquei
extremamente confusa. De um lado, estava uma garota que eu gostava e que
precisava de mim. Do outro, havia o meu trabalho e o meu filho. Eu tinha
me tornado mãe há pouco tempo. O Nick ainda era um bebê. E eu precisava
do dinheiro do meu trabalho, para sustentá-lo. A pensão que eu recebia do
pai dele não era suficiente para cobrir todas as despesas. Fora isso, seguir na
carreira de policial era um sonho meu de muito tempo. Passei dias pensando
sobre isso. A culpa e a covardia ruminavam no meu coração sempre que eu
pensava em abandoná-la. Mas, o sentimento, que eu já tinha nutrido por ela,
sempre me levava de volta. Foi quando eu decidi que não abriria mão do
nosso relacionamento. Eu ia dar um jeito na minha vida, conseguiria outro
emprego, mas não deixaria ela. Só que isso foi tarde. Muito tarde. No dia
em que eu fui fazer o comunicado aos meus superiores, a garota já tinha
sido transferida. Levaram-na para uma penitenciária de outra cidade. Eu
nunca soube qual, muito embora eu tivesse, a todo custo, procurado
respostas, não apenas com quem trabalhava na polícia, mas também nos
arquivos da administração. Eu não consegui encontrar, e também nunca
quiseram me falar nada, nem mesmo a família dela, que passou a me odiar
por estar ajudando uma “criminosa”. Calaram a boca até do advogado que
eu mesma tinha conseguido para ela. E, depois disso, tudo o que eu pude
sentir foi uma extrema culpa. Uma extrema covardia da minha parte. Pedi
uma licença da polícia e me afastei por um tempo até eu colocar a minha
cabeça no lugar. Chorei por dias, porque eu sabia que, naquele momento,
ela só podia contar comigo. E nem eu fui capaz de dar a ela o suporte que
precisava. Depois de todo o meu tempo de licença, não existia mais nenhum
sentimento bom dentro de mim, em relação a Haven, a não ser o remorso de
tê-la deixado na mão e ter demorado para agir enquanto era tempo. E,
então, quando eu voltei a trabalhar, eu prometi a mim mesma que me
dedicaria exclusivamente à polícia e que jamais iria me envolver com
qualquer tipo de garota que pudesse me trazer problemas na penitenciária.
Honestamente, não foi difícil cumprir essa promessa, porque, desde Haven,
eu não consegui mais me apegar verdadeiramente a alguém. Todas as
minhas relações acabaram se tornando superficiais. Isso até você aparecer.
Isso até você me deixar maluca.
Quando me calei, observando atentamente cada movimento seu, vi
quando ela se afastou de mim e, deslizando as mãos pelos cabelos,
aparentemente em choque pela carga de informações que eu tinha colocado
para fora, afundou o corpo no seu banco, fechando os olhos e respirando
fundo, como se estivesse tentando, a muito custo, organizar as ideias.
Droga, também não era para ela parecer quase em pânico assim.
— Agatha... — Com cuidado, toquei o seu braço. — Está tudo bem?
De olhos ainda fechados, ela balançou a cabeça. Não era como uma
negação à minha pergunta, mas uma quase incredulidade diante dos fatos.
Só depois de alguns instantes, ela, enfim, abriu as orbes e me encarou pelos
cantinhos dos olhos.
— Você... — suspirou. — Você gostou dela de verdade, não é? —
perguntou com pesar.
— Eu me apaixonei por ela — respondi sinceramente.
Já não havia mais motivos para que eu omitisse isso dela.
Agatha, no entanto, engoliu seco.
— Era amor?
— Não, não era amor. Era paixão.
Disso, eu tinha certeza absoluta.
— E você ainda sente alguma coisa por ela? — Temerosa,
perguntou mais uma vez.
— Depois de todos esses anos? — franzi o cenho de leve. — Além
da imensa culpa que eu ainda carrego, por não ter a ajudado da maneira
como eu deveria, não. Eu não tenho mais qualquer outro sentimento por ela
que não seja culpa — repliquei, também honestamente.
Ela suspirou.
— E você foi quase demitida mesmo?
— Sim. Eu passei bem perto disso.
E, então, como se, aparentemente, tivesse feito todas as perguntas
que inquietavam o seu coração, ela desabou, virando-se completamente
para mim e pondo as mãos na cabeça, numa tentativa de colocar para fora
todo o conflito que sentia.
— Ah, meu Deus...! Eu... Eu mal podia imaginar isso. Eu... Eu sabia
que tinha a merda da regra, mas eu... Eu não sabia quais consequências
disso — disse ela, tão agoniada, quase atropelando as palavras, umas por
cima das outras. — Pelo amor de Deus, não quero prejudicar você. Quem
vai se sentir culpada agora sou eu.
Ah, merda. Não era isso o que eu pretendia ao lhe contar sobre
aquela história.
— Agatha, não — Praticamente supliquei, segurando o seu rosto
entre as minhas mãos, como se, de alguma maneira, isso pudesse apagar da
sua memória todo aquele seu temor. — Não se sinta culpada, por favor.
Você não vai me prejudicar. E eu não quero desistir de você. Não quero
desistir de nós. Não quero ser covarde de novo. Vamos continuar juntas, da
maneira como estamos, e o que tiver de ser será. Sei que vamos encontrar
alguma saída, alguma solução, caso aconteça alguma coisa.
Ela, porém, engoliu seco, ainda tão apreensiva, preocupada.
— Tem certeza disso?
— Absoluta — E a beijei, puxando o seu corpo ainda mais para o
meu. Toquei seus lábios com tudo o que eu sentia por ela, mesmo que eu
ainda não soubesse nomear, demonstrando o quanto eu realmente queria
que continuássemos juntas e o quanto eu estava sendo verdadeira em todas
as minhas palavras. Ela correspondeu, me dando o prazer da sua língua
deslizando na minha e das suas mãos tocando a minha pele. Foi aos poucos
que eu pude senti-la finalmente amolecer entre os meus braços. — Eu tô
gostando muito de você, Agatha. Muito. — Encostei a testa na sua,
enquanto dizia. — E tem mais. Eu quero que você entre na minha vida.
Quero que faça parte do meu cotidiano, que compartilhe tudo comigo, tanto
os momentos bons quanto os ruins. Eu quero tudo de você, Agatha —
segurei seu rosto entre as minhas mãos, encarando-a nos olhos. — E quero
que passe o ano novo comigo. Quando o ano que vem chegar, quero que
esteja ao meu lado. Vou viajar na sexta de manhã para a casa dos meus pais.
Eles moram em Los Angeles, na Califórnia.
Percebi quando ela se afastou, me observando fixamente. Nem
piscava os olhos. As sobrancelhas arqueadas, em um misto de incredulidade
e felicidade, deixando-a ainda mais linda do que já era. Eu quis sorrir,
apenas por vê-la recuperar um pouco daquela garota que era e que eu
amava que fosse.
— Parece um sonho ouvir tudo isso... — Ela sussurrou, mais para si
do que para mim. E, então, continuou. — E você... Você quer me levar
numa viagem de família? — Um sorriso querendo despontar nos seus
lábios, ainda que a falta de crença o segurasse. — Quer que eu passe o ano
novo com você?
Dessa vez, fui eu que não pude segurar.
Sorri. Sorri grande. Sorri largo. Sorri de verdade.
— Sim, eu quero. Isso é importante pra mim. Você é importante pra
mim. E, se você quiser, é claro, esse será apenas o primeiro passo de muitos
outros que quero dar com você, na vida. E aí, topa? Aceita o meu convite?
Enfim, seu rosto demonstrou uma fagulha de tranquilidade, ou
mesmo alívio, junto com a emoção que cintilava e umedecia os seus olhos
tão brilhantes.
— É claro... É claro que eu topo — E simplesmente me agarrou, tão
espontânea, com os seus braços, daquele jeitinho como eu bem a conhecia.
— Muito obrigada pelo convite — Espalhando vários beijinhos pelo meu
rosto, emocionada e muito feliz, ela continuou. — Há muito tempo, eu
queria passar um ano novo em família. A última vez que eu tive isso foi
quando a mamãe ainda estava aqui e... Agora... — suspirou, como se
faltassem palavras. — Meu Deus... Eu... Eu te... Eu sou louca por você,
cara.
E me beijou outra vez.
“Eu sou louca por você, cara...”
Eu adorava quando ela falava nesses termos.
Deus, como eu senti falta disso. Dessa intensidade que só ela tinha.
A envolvi pela cintura, aproveitando tudo o que ela podia me dar.
Eu sabia que, apesar da felicidade com o convite e da emoção com
todas aquelas palavras que dediquei a ela, ainda existiam resquícios de
preocupação em si. Sentimentos que levariam um tempo até sumirem por
completo do seu corpo. Mas, eu cuidaria pessoalmente do seu coração. E
fazia questão disso.
Exatamente o meu tipo de mulher

Zara

Os dias que se seguiram depois da nossa conversa no meu carro passaram


voando, mas, felizmente, nenhuma novidade ruim aconteceu. Alexa não nos
dedurou para os superiores, muito embora os seus olhares, para nós, fossem
os mais intimidadores possíveis. Não me intimidavam, claro, mas deixavam
Agatha meio assustada. Inclusive, ainda levou um tempinho para ela voltar
completamente ao normal. Porém, após alguns dias dedicados à carinho,
beijinhos, sexo gostoso e palavras seguras e reconfortantes, ela tornou a ser
aquela mesma Agatha de sempre, que eu adorava.
E, assim, a sexta-feira de manhã chegou, junto com a nossa viagem.
Nick estava super animado, é claro, enquanto Madison e Ava não poderiam
deixar de ir. Mesmo que fossem minhas amigas, elas faziam parte da
família como minhas irmãs. Ou seja, elas também tinham que passar o ano
novo conosco. E seria maravilhoso. Eu tinha certeza. Era uma oportunidade
de aproximar Agatha das minhas amigas e da minha família. Mesmo que,
por vezes, eu tivesse tentado deixar a nossa relação apenas na esfera do
casual, eu já tinha parado de insistir com os meus próprios sentimentos.
Sim, eu queria algo mais sério com a garota.
Chegamos à mansão da família Ballard, no meu carro, por volta das
oito horas da manhã. No banco de trás, estavam Mad, Ava e Nick.
Descemos, porém, para esperá-la e reorganizar as malas com mais aquelas
que ela iria levar. Depois que enviei uma mensagem ao seu celular,
avisando que já estávamos ali, não demorou para que a loira aparecesse. Ela
caminhou até nós, toda sorridente e feliz, em todo aquele conjunto de
pernas longas, roupas fashionistas e uma mala de rodinhas que mais parecia
como uma daquelas se leva nos aviões em viagens para outro continente.
Linda. Absolutamente linda.
A segunda coisa que eu reparei, depois de, claro, constatar, pela
milésima vez, o monumento que a garota era, foram os olhares das minhas
amigas. Bem, eu já tinha conversado com elas sobre como a nossa relação
estava. Madison, aquela maluca, só se preocupava com a quantidade de
sexo que eu fazia. Então, sabendo que eu estava pegando uma das garotas
mais gostosas da face da Terra, a única coisa que ela conseguiu dizer foi:
“Zara, eu sou sua fã”. Ava, que era mais pé no chão, ainda me perguntou
uma trezentas vezes se eu estava realmente certa do que fazia e ciente das
possíveis consequências daquela decisão. Eu, claro, não hesitei em dizer
que sim. Apesar de tudo, aquilo era apenas um cuidado dela comigo, por
saber do que eu já tinha enfrentado e do quão aquela barra com Haven foi
difícil. Mesmo assim, ao final, Ava disse que só poderia me desejar
felicidades e livramentos de todo mal.
Ava, no entanto, ainda estava naquilo que eu chamava de uma
espécie de “processo de aceitação”. Claro que essa não era a primeira vez
em que eu percebia o quão aquela mulher conseguia ser exigente em suas
relações afetivas. Aliás, Madison quase sofreu em sua mão, no início de
tudo, enquanto tentava conquistá-la. Era super exigente. Ava sempre
analisava as coisas milimetricamente, com seu olhar astucioso e crítico, até
se chegar à conclusão se realmente valia a pena ou não. Apesar disso, eu
sabia que ela tinha o coração mole e que bastaria apenas alguns momentos
de convivência mais próxima com Agatha, para que Ava percebesse aquilo
que eu tinha percebido, na garota, para além de toda a sua máscara de
mimada e burguesinha: quão encantadora e bonita de coração ela também
podia ser.
Ainda assim, ouvi quando Ava, irônica, praticamente cantarolou, ao
dizer, enquanto a loira se aproximava:
— Ela leva pouca bagagem, não é?
Madison soltou uma pequena risadinha, balançando a cabeça.
— Meu amor, dá um descontinho pra garota... — E abraçou a
namorada pela cintura, dando alguns beijinhos em seu pescoço.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Agatha, no entanto,
chegou realmente perto de nós. Aquele sorriso de orelha a orelha. O
entusiasmo de quem estava absolutamente satisfeita com o convite. E, claro,
aquele brilhinho nos olhos.
— Oi, oi! Tudo bem? — disse ela, simpática, não somente para
mim, mas também para minhas amigas.
— Tudo ótimo, querida — Madison foi a primeira a falar, dando
dois beijinhos em cada lado do seu lado. Agatha o todo inteiro
correspondendo a gentileza. — Venha, deixe-me ajudá-la com essa mala —
E já foi puxando logo as rodinhas, para colocar no bagageiro. — Joga aí a
chave do carro, gata! — gritou para mim.
Louca.
Sorrindo e meneando a cabeça, assim o fiz.
Enquanto Mad colocava a mala da loira dentro do carro, vi quando
ela mirou a atenção na Ava, ainda toda simpática. Honestamente, nem se
parecia com aquela garota de nariz empinado, que eu conheci semanas
atrás.
— E com você, tudo bem? — perguntou ela, para a minha amiga.
No entanto, quando Ava ia cumprimentá-la, um furacãozinho
simplesmente saiu do carro, a todo vapor e muito feliz, pulando em cima da
loira.
— Aguiiiiiiii! — Nick disparou, agarrando as suas longas pernas.
A risadinha de surpresa, que ela soltou, foi muito maravilhosa.
Assim como ela também era completamente maravilhosa.
E eu cada vez mais boba.
— Olha só, quem está aqui! — E lhe abraçou, pegando-o no colo.
— Eu já estava com saudades de você, acredita? — sorriu.
— Eu também! Que legal que você vai viajar com a gente!
— Siiimmmmm! Eu também tô super animada! Vamos agitar em
Los Angeles, pequeno homenzinho! — E começou a fazer cócegas nele.
As risadas do Nick tão gostosas e felizes.
Eu me divertia ao vê-los assim. Era adorável. Um sorrisinho de
idiota sempre estampava o meu rosto quando Agatha e ele estavam juntos.
E, aparentemente, eu não era a única a ficar assim. Quando olhei de relance
para Ava, percebi que, enquanto observava os dois, aquela sua postura
austera foi levemente substituída por um toque de admiração. Nascentes
sorrisinhos e breves suspiros inconscientes de quem aprovava a maneira
como ela tratava o Nick.
Talvez nem ela mesma tivesse se dado conta da maneira como os
olhava.
Eu sorri ainda mais, porque, agora, eu tinha certeza absoluta de que
era só questão de tempo para que Agatha caísse nas graças de Ava.
Suspirei, satisfeita, e...
— Bom... Vamos? — falei, mesmo sem querer tirá-los daquele
momento.
Para mim, quanto mais Agatha e Nick se divertissem juntos, melhor.
Era maravilhoso vê-los assim. O problema mesmo era que ainda tínhamos
uma longa estrada para enfrentar. Cerca de quatro horas de carro, até
chegarmos em Los Angeles. Pelo menos, as muitas vistas que teríamos, de
Las Vegas até lá, seriam deslumbrantes, além, é claro, do quanto eu tinha
certeza de que aquele réveillon seria um dos melhores dos últimos anos.
Isso faria valer a pena as nossas muitas horas sentadas na mesma posição.
— Sim! Vamos! — Agatha, por sua vez, prontamente disse,
colocando Nick no chão.
Madison, Ava e Nick já foram logo ocupando seus lugares no banco
de trás. Antes de dar a volta no carro e permitir que Agatha se sentasse no
banco do passageiro ao meu lado, no entanto, segurei-a pelo pulso, fazendo-
a virar-se para mim. Aquele sorriso impressionante que sempre me deixava
quase sem rumo.
Passei brevemente os braços pela sua cintura.
— E o meu bom dia...?
Ela soltou uma risadinha, pousando suas mãos em mim também e
aproximando seu rosto do meu. Mordeu o lábio inferior e me encarou com
seu olhar tão sagaz. Aquele olhar que já era naturalmente dela e que ela não
fazia esforço algum para que ele aparecesse.
— Bom dia, linda... — disse contra os meus lábios, me beijando em
seguida.
Filha da mãe difícil de resistir.
Puxei o ar, tentando não pensar em algo que fosse preciso
privacidade para fazer.
— Bom dia... Foi tudo tranquilo com o seu pai? Ele falou alguma
coisa sobre você viajar?
Todavia, quando pensei que não, aquele seu semblante leve e
empolgado vacilou um pouco. Uma expressão mais fechada e sisuda quis
cruzar o seu olhar. Não que eu quisesse colocar o dedo na ferida, mas eu me
preocupava com ela, e sentia que aquele cara estava apenas esperando uma
boa oportunidade para fazer mais alguma merda, dentre tantas que ele já
tinha feito.
— Ele não estava em casa, quando eu saí agora. E é melhor que seja
assim.
Foi tudo o que ela me respondeu.
E, apenas com essas poucas palavras, eu entendi que, mesmo com
todo o meu cuidado por ela, era melhor que, naquele momento, eu
realmente não tocasse em assuntos que envolvessem Russell Ballard, ou
isso poderia estragar o seu humor pelo resto da viagem. Dos problemas, nós
talvez não pudéssemos fugir durante muito tempo. Mas, pelo menos,
naquele fim de semana do ano novo, eu faria questão de vivermos em uma
bolha, onde não houvesse nada em jogo além da nossa felicidade e do nosso
prazer.
— Hum... Ok. — Suspirei subitamente, já colocando um sorriso
tranquilo no rosto, outra vez. — Está preparada para a melhor virada de ano
da sua vida? — ergui uma das sobrancelhas, divertida.
De automático, o seu olhar se iluminou.
Obrigada, Deus.
— Estou mais do que preparada, Xena — E piscou um dos olhos
para mim, faceira.
— Então, vamos, Penélope Charmosa.
Ela riu.
— Penélope Charmosa é? Com quem você está aprendendo a
colocar apelidos assim nos outros? — cerrou os olhos para mim,
brincalhona.
— Ah, é com uma garota ali que... Cá entre nós... — aproximei o
rosto, sussurrando em seu ouvido. — Tem uma sentada muito gostosa.
E ela riu ainda mais, jogando a cabeça para trás.
Tão linda.
Maravilhosa.

✽✽✽
Cruzamos cerca de duzentas e setenta e duas milhas entre paisagens
praticamente desérticas e muito chão de estrada. Durante boa parte do
percurso, de um lado e do outro, era apenas areia e grandes blocos de
terrenos rochosos com vegetação árida, que nós víamos. Ao nosso redor,
imensas montanhas completavam o visual, deixando tudo ainda mais
bonito, perto ou longe de onde estávamos. A beleza da natureza, distante da
selva de pedras da cidade, era como um show à parte.
E, então, em torno de quatro horas depois, ou, na verdade, um pouco
mais que isso, quase quatro horas e meia depois, começamos a avistar as
grandes palmeiras imperiais que compunham a aparência tão típica de Los
Angeles, além dos prédios e das mansões que vislumbravam os turistas. Ao
longe, ainda era possível avistar a grande e imponente placa com o nome
Hollywood, no alto de uma montanha. Nick pulou de entusiasmo lá no
banco, enquanto a música, através dos alto-falantes do carro, soava em alto
e bom som.
Todas nós rimos com a sua alegria contagiante.
Era incrível.
E Los Angeles era linda.
Para completar, o sol à pino, de mais de meio dia, deixava tudo
ainda mais bonito, e também calorento. Quase quente como Las Vegas,
mas, ainda assim, mais ventilado, graças à brisa que vinha do sentido da
praia. Apesar de tudo, aquele calor era quase como a cereja do bolo para
aproveitar a experiência completa da cidade. Por isso, baixei os vidros e
deixei que o clima litorâneo nos acompanhasse até chegarmos à casa dos
meus pais.
Eles, claro, não moravam naquela parte rica e sofisticada da cidade,
onde havia as mansões dos artistas. Meus pais moravam um pouco mais
afastados, quase no caminho da praia, em uma casa grande, mas simples
para os padrões californianos. Desci pelas ruas de Los Angeles, seguindo no
rumo das zonas menos abastadas, e não demoramos muito para chegar.
Quase no final da rua, três casas antes do cruzamento com uma das
avenidas que levava ao cais de Santa Mônica, vi o cercadinho que
delimitava a moradia deles.
Estacionei o carro bem em frente.
Meu coração estava quase saindo pela boca de tanta ansiedade em
ver pessoalmente os meus velhos. Não que fizesse muito tempo, desde a
última vez que eu estive ali, mas a saudade sempre fazia tudo parecer uma
eternidade. Agatha, por sua vez, não parecia nem um pouco nervosa com o
fato de estar prestes a conhecer os seus futuros sogrinhos (sim, aquela
mulher ainda seria completamente minha). Na verdade, ela estava bem
empolgada. Aquele sorriso não saía do seu rosto por nada, desde que
deixamos Las Vegas.
Quando todos nós descemos do carro, Agatha, Nick, Mad, Ava e eu,
o primeiro serzinho que deu notícias da nossa chegada foi o Costelinha. Um
enorme labrador que os meus pais tinham há anos. Costelinha, latindo de
felicidade por ver tantas pessoas sorrindo e chamando por ele, logo correu
até nós, pulando e fazendo bagunça por toda parte. Não se passaram mais
do que cinco segundos para que Martha e Henry saíssem pela porta, com
largos sorrisos. Rapidamente, fomos recebidos com beijos, abraços e muito
carinho. Eu fui a primeira a ser atacada por aquele monte de beijos.
— Ah, que saudade de vocês! — disse eu.
— Nós também, querida. Nós também! — Mamãe replicou, já
virando-se também para Nick. — E você, meu amor? Venha cá, deixe a
vovó lhe dar um abraço bem apertado!
— Vovó! Vovô! — Nick pulou neles.
Não foi preciso nenhum esforço para que Martha e Henry pegassem
Nick nos braços. Ele foi por livre e espontânea vontade, tamanha
empolgação que estava para rever os avós. Tinha passado a semana inteira
falando só nisso, desde que eu disse a ele que nós iríamos viajar no ano
novo.
Logo depois, foi a vez das meninas. Mad e Ava já conheciam os
meus pais há anos. Bem, elas eram praticamente da família, né? E eles se
adoravam mutuamente. Então, tudo se tornou ainda mais repleto de carinho.
Percebi, no entanto, pelo cantinho dos olhos, um rastro de ansiedade
perpassando o rosto, até então, tranquilo da Agatha. Segurei de leve a sua
mão, tentando passar segurança a ela. A loira sabia que estava chegando a
sua vez. E, bom, não era mesmo preciso uma bola de cristal para adivinhar
a sequência de cumprimentos.
Assim que meus pais terminaram as cortesias à Mad e Ava, mamãe
logo pousou o olhar sobre a Penélope Charmosa. Muito simpática,
perguntou:
— E essa garota tão linda, quem é? Ainda não fomos apresentadas.
As bochechas da Agatha ficaram adoravelmente coradas. Por alguns
segundos, eu desejei tirar o celular do bolso para, com uma foto, registrar e
eternizar aquele momento. A menina conseguia ficar encantadora de todas
as formas. E o sorriso que ela ofereceu à minha mãe, porém, foi tão maior
que sua leve vergonha. Ela estava tentando relaxar, e eu sabia que logo
conseguiria.
— Essa é a... — Minha namorada? Ficante? Amiga? Suspirei.
Nossa relação ainda não estava exatamente definida, mas, com certeza, eu
não chamaria de amiga alguém que representava muito mais do que isso
para mim. Por isso, disse apenas... — Agatha.
O sorriso que mamãe ofereceu a ela, segundos depois de me olhar e
perceber a minha breve hesitação, foi de quem já tinha entendido tudo, sem
que eu nem mesmo precisasse dizer muita coisa. Aquela mulher era
realmente esperta. Aliás, não somente ela, mas o papai também. Pelo
olharzinho divertido que ele me dava, eu já sabia o que ele estava pensando,
e, provavelmente, era algo como “escolha muito bem feita, minha filha”.
— Seja muito bem-vinda, meu amor. É um prazer conhecê-la —
Mamãe a abraçou calorosamente.
E, então, eu quase pude ouvir as centenas dos muitos gelos da
Agatha sendo quebrados. Uma respiração mais amena e um semblante mais
aliviado eram verdadeiros sinais para mim.
— Ah, muito obrigada! — agradeceu sinceramente. — O prazer é
todo meu, Sra. Scott.
— Imagina, querida — Mamãe soltou uma risadinha, balançando a
mão e a cabeça. — Me chame de Martha.
— Tudo bem, Martha — sorriu.
Linda.
— Sinta-se em casa, minha jovem — Papai também falou. — Só
tome cuidado com as armadilhas do Costelinha. Ande sempre olhando para
o chão. Esse rapazinho, às vezes, sai espalhando cocô e xixi pela casa.
Todos riram.
Se eu bem me lembrava, Costelinha era mesmo o terror das
limpezas da dona Martha. Quando filhote, então, a casa era sempre uma
zona.
— É, verdade... E sobra para quem limpar a bagunça que ele faz? —
Divertida, mamãe apontou para si mesma. — Mas, eu amo esse meninão...!
— Afetuosamente, passou a mão sobre a sua cabeça, fazendo-o se esfregar,
ainda mais, em suas pernas, de tanta felicidade com o carinho. — Bem...
Acho que vocês devem estar morrendo de fome, não é? Foram muitas horas
de viagem! — continuou ela, erguendo o olhar para nós. — Venham,
venham! O almoço já está na mesa!
Eu não podia mentir. A minha barriga estava mesmo roncando. Fora
que a comidinha da minha mãe também era motivo de saudade. Então,
segurando a mão da Agatha, deixei que eles nos guiassem. Nick foi na
frente, brincando com o Costelinha, enquanto Mad e Ava também nos
acompanharam.
A casa continuava do mesmo jeitinho como da última vez que eu
estive lá. Grande, mas simples, representava o padrão da classe média baixa
da cidade. Nada luxuoso, mas, ainda assim, aconchegante para quem nunca
foi acostumado com luxo ou para quem não se importava com isso. Se eu já
não conhecesse Agatha tão bem, poderia até ficar em dúvida sobre a
maneira como ela se sentia dentro daquelas paredes. Mas, mesmo que
Agatha parecesse um enfeite caro no meio do local, aquele sorriso
verdadeiro não permitia que ela escondesse o quanto estava gostando de
tudo, apesar da simplicidade.
Ou por causa da simplicidade.
Enquanto caminhávamos por ali, eu também não pude deixar de
reparar na sala repleta de inúmeros quadros emoldurados com quebra-
cabeças completamente montados. Sorri. Era um dos passatempos
preferidos do meu pai.
— Papai, você está cada vez mais viciado nesses quebra-cabeças —
soltei uma risadinha.
— Ah, querida, um homem aposentado não pode ser culpado por
querer alguma diversãozinha, não é? — brincou.
— Vovô, quero montar também! — Nick já foi logo falando, antes
mesmo que eu pudesse responder qualquer coisa.
— Claro, rapazinho! — Animado, replicou. — Depois do almoço,
podemos passar a tarde inteira montando quebra-cabeças. O que acha?
— Ebaaaaa!
E essa resposta já era o bastante. Nick pulou de felicidade.
Para ele, estar em Los Angeles era quase como estar em um parque
de diversões.
— Bem, fiquem à vontade! A mesa já está posta!
Foi o que eu ouvi mamãe falar. Quando dei por mim, já estávamos
de frente para uma mesa impecável e farta, com muita comida cheirosa. Do
jeitinho como eu sabia que a dona Martha tinha prazer em fazer. Minha
barriga roncou em pura satisfação. Depois de uma viagem de mais de
quatro horas, uma refeição, como aquela, era muito bem-vinda.
Aliás, uma refeição, como aquela, seria bem-vinda a qualquer
momento.
— Vamos, vamos! Sentem-se! — Mamãe quase bateu palminhas
para que a gente se acomodasse logo nas cadeiras em volta.
Agatha estava de um lado meu, enquanto Nick ficou do outro, e os
demais se sentaram sequencialmente. Mamãe, gentil e hospitaleira, como
ela sempre foi, pegou logo o prato da loira, para que ela mesma colocasse a
sua comida. Em suas palavras, toda e qualquer visita, deveria ser bem
tratada.
— E, então, querida, acha que está boa essa quantidade de arroz? Ou
você quer mais? — perguntou.
— Ah, não, não. Está ótimo! — Agatha respondeu.
Todavia, existia uma matraquinha ali que não podia ficar calada. E
eu tive ainda mais certeza disso, quando, todo feliz e entusiasmado, falou:
— Vovó, sabia que ela é namorada da mamãe?!
Nick... A criança mais esperta do mundo. Meu filho, claro.
Se eu ainda não sabia bem como definir a nossa relação, ele tinha
total certeza do que falava. E não media palavras para isso. Foi automático.
Todos riram, sem exceção. Inclusive eu. Apesar da pouca discrição, era
muito engraçadinha e adorável a forma como ele parecia estar tão contente
por Agatha e eu estarmos juntas. Aliás, ela também riu, mas leves tons de
vermelho coloriram as suas bochechas de quem não sabia onde enfiar a
cabeça.
— Namorada...? — Papai foi o primeiro a falar, quase soletrando
letra por letra. Um largo sorriso estampando o seu rosto. — Que ótimo!
— Nós ficamos tão felizes! — Mamãe também disse, enquanto
entregava o prato à Agatha, já com a comida posta. — Como vocês se
conheceram, querida?
Ah, meu Deus...
Tudo bem. Nick até poderia tirar aqueles lençóis de cima das nossas
cabeças. Não havia problema algum com isso, claro. Os meus pais sempre
souberam que eu me relacionava com mulheres. No entanto, Agatha e eu,
definitivamente, não estávamos preparadas para essa pergunta. Talvez
tivesse sido uma falha minha, por não me lembrar de pensar a respeito
disso, já que era uma pergunta tão comumente feita, quando se comunicava
o início de algum relacionamento. Só que, tipo assim, nós não ensaiamos
uma resposta bonitinha, que não fosse “ah, a gente se conheceu quando ela
bateu na minha viatura e a prendi por desacato à autoridade”.
Ainda percebi quando Agatha virou brevemente o rosto em minha
direção, observando-me com as sobrancelhas levemente arqueadas e um
sorriso no rosto, de quem queria disfarçar, mas tinha sido totalmente pegue
de surpresa. Era como se ela me suplicasse, apenas com o olhar, algo como
“por favor, me ajuda com isso”.
Droga.
Pensa, Zara.
Engoli seco e, então, colocando o meu melhor sorriso, falei:
— Ela... — passei a língua entre os lábios. — Ela trabalha na
mesma penitenciária que eu.
Foi o máximo que eu consegui.
— Olha só... Uma moça tão jovem já trabalhando. E ainda mais
numa penitenciária. Muito bem. Parabéns. — Inocentemente, disse o papai,
sorrindo de orgulho.
Mal sabia ele que essa história estava bem pela metade, mas... Ufa.
Pude respirar um pouco aliviada. A situação parecia ter sido contornada. Os
semblantes satisfeitos dos meus pais, com a minha resposta, não me diziam
outra coisa, a não ser a concordância deles com o que eu falei. Olhei
também para a loira, pelo cantinho dos olhos, e notei que aquele leve rubor,
junto com o sorriso forçado de quem não sabia o que dizer, tinha dado lugar
a uma postura bem mais tranquila.
— Sim, é verdade! É muito bom ver uma menina tão jovem assim,
já exercendo trabalho em um local tão difícil. Meus parabéns. E, querida...
— Mamãe olhou especificamente para Agatha. — Saiba que estamos
realmente felizes em recebê-la aqui. Zara nunca foi de trazer garotas para
cá. Raras vezes isso aconteceu. Então, se ela trouxe você, é porque você é
importante para ela. E, se você é importante para ela, também é para nós.
E, se você é importante para ela, também é para nós...
Senti subitamente os meus olhos criarem uma aguinha tola e quase
impossível de parar. Ao mesmo tempo, um sorriso se encaixou nos meus
lábios, de modo que eu não conseguia tirá-lo dali. Fiquei feliz, emocionada.
Emocionada e feliz. Os meus pais eram os melhores do mundo. E,
honestamente, era reconfortante vê-los nos tratando assim.
Agatha, que já não conseguia esconder a felicidade com aquela
viagem, agora parecia estar explodindo umas mil vezes por dentro. Seus
olhos não deixavam escapar a emoção e a alegria que estava sentindo. No
fundo, algo me dizia que aquilo representava, para ela, muito mais que uma
aprovação do pais da mulher com quem estava ficando.
Soava como família...
E família parecia ser algo muito importante para ela.
— Eu agradeço demais, Martha. Mesmo. Do fundo do coração —
Com os olhinhos brilhando e um sorriso lindo que não sumia por nada,
Agatha falou. — Estou me sentindo realmente em casa. Muito obrigada.
E eu sabia que Agatha estava falando a verdade não somente pelo
jeitinho como ela me olhou, depois disso, mas também pela maneira
afetuosa como colocou sua mão sobre a minha e apertou gentilmente.
— A tia Martha é sempre um amor — Mad, de repente, falou, entre
uma garfada e outra no prato.
Pelo que eu conhecia da Madison, era apenas um alívio cômico em
meio àquele mar de tantos sentimentos que, por alguns segundos,
pareceram tomar Agatha, meus pais e eu. Isso porque ela sabia o quanto a
mamãe não gostava de ser chamada de tia, se não fosse um sobrinho de
verdade falando.
Divertida, dona Martha virou o rosto para Mad, dizendo:
— Que tia, menina? Sou tão jovem quanto vocês!
Todos riram em volta da mesa.
— Ela ainda acha que está na flor da idade... — Papai também
brincou, ganhando um leve tapinha dela no ombro.
— Ah, tio, mas ela é jovem... — Dessa vez, foi Ava quem se
pronunciou, soltando uma risadinha.
— Epa, tio não, heim... Eu também sou jovem!
E, mais uma vez, todos riram.
Foi assim que almoçamos e também passamos o restante da tarde.
Com muitos sorrisos, brincadeiras e afetos. Exatamente da maneira como
uma família de verdade deveria ser. E eu amava isso. Amava estar ali com
eles. Eu amava todos os nossos momentos juntos.

Agatha
Quando eu falava que estava me sentindo em casa, não era mentira.
Era a mais pura verdade. Os pais da Zara eram maravilhosos e me
receberam melhor do que eu poderia imaginar. Talvez os únicos momentos
que eu tivesse me sentido um pouco mais encabulada foram segundos antes
do primeiro cumprimento a eles, assim que chegamos, e quando Nick
mencionou sobre eu ser namorada da Zara. Apenas nesses breves instantes.
Depois disso, não mais. Com a simpatia e as brincadeiras, eles quebraram
qualquer gelo que pudesse me travar.
E o melhor: eu realmente me sentia como se estivesse em família.
A conversa afetuosa, as brincadeiras leves, os risos e sorrisos
frouxos, e a certeza de união faziam eu me lembrar de uma época tão
distante. Breves anos em que eu pude experimentar um pouco disso, com
aquilo que eu considerava que fosse a minha família. Anos que ficaram tão
no passado, que eu quase não conseguia me recordar direito dos detalhes e
da sensação de como era ter uma mãe e um pai. Eu só sabia que era bom e
que sentia falta daquilo. E continuava sentindo saudade, desde que mamãe
foi embora.
Era como um espaço no meu coração que eu tentava preencher.
Tentava preencher com o luxo, as roupas de marca, os carros caros, as festas
em pubs e boates, as bebidas que nublavam os meus pensamentos, o sexo
que fazia eu me esquecer de tanta coisa. Alegrias momentâneas,
passageiras, que se acabavam tão logo eu acordasse no dia seguinte. Então,
na tentativa desenfreada de acabar com aquela sensação de vazio dentro de
mim, eu buscava o luxo, as roupas, os carros, as festas, as bebidas, e sexo
de novo. E de novo, e de novo, e de novo.
Foi assim que a minha vida se resumiu. Por anos.
Nunca senti aquele espaço vazio sendo preenchido por nada. Exceto
agora. Por mais esquisito e inexplicável que pudesse parecer, era como se
algo, no meu peito, estivesse se completando, se formando, se enchendo de
vida. Uma ferida aberta que começava a cicatrizar. Ou enxertos de grama
numa terra que foi árida, por anos. A chuva depois da seca.
A órfã que encontrava uma família.
Após o almoço, subimos para a varanda do andar superior. Um lugar
calmo, tranquilo e simples, com pufes e sofás à espera do nosso descanso,
enquanto a comida fazia a digestão. De alguma forma, eu estava me
afeiçoando por aquela simplicidade. A vida pacata, o tempo que parecia
correr a nosso favor. Talvez fosse aquela sensação de estar em família.
Talvez, estar em família, me fizesse esquecer de tudo aquilo que eu achava
que tivesse realmente algum valor, como uma casa grande e espaçosa,
móveis caros e requintados, uma cama enorme e confortável. Enfim, bens
materiais que passavam uma sensação de conforto qualquer.
Agora, no entanto, a única coisa que parecia fazer sentido era estar
com as pessoas que faziam eu me sentir bem. Eram elas que me passavam a
real sensação de conforto. Era o afeto, e não o luxo. Não importava se eu
estivesse em uma casa simples, com móveis simples e vida simples. Dessa
vez, Agatha Ballard não era exatamente aquela Agatha Ballard. O que
realmente tinha valor era o carinho que eu recebia, de graça, daquelas
pessoas que não me tratavam como uma desconhecida, mas como se eu já
fizesse parte das suas vidas há anos.
Isso, nenhum dinheiro no mundo poderia comprar.
E eu sempre soube disso, porque de todas as milhares de coisas que
eu tinha poder aquisitivo para comprar, eu nunca pude pagar pelo afeto
verdadeiro de ninguém.
Nem do meu pai.
Naquela tarde, alguns foram dormir, para “descansar o almoço”,
enquanto outros apenas continuaram conversando na varanda. Zara e eu
fomos do time que permaneceu acordado. Nós ficamos ali mesmo, sentadas
próximo ao peitoril da varanda, enquanto recebíamos o vento fresco que
vinha diretamente da praia, já que a casa dos pais Zara ficava, praticamente,
a um quarteirão do cais de Santa Mônica. Jogamos conversa fora, enquanto
Henry, o pai da Zara, e Nick montavam um quebra-cabeça perto de nós.
Uma conversa gostosa, despretensiosa, sobre assuntos aleatórios que nunca
tínhamos falado, mas que deixavam tudo muito mais interessante por me
permitir conhecer mais dela.
E nós rimos uma com a outra.
E sorrimos uma para a outra.
E nos divertimos ao ver Henry e Nick, literalmente, quebrando a
cabeça para encaixar as peças.
E observamos o tempo passar sem pressa.
E, enfim, soubemos que nada, no mundo, poderia tirar a paz que
sentíamos.
Isso até ouvirmos o seu celular tocando no bolso da calça. Zara
parou a conversa e, então, mirou no nome que aparecia na tela. Um
pequeno sorriso pincelou os seus lábios. E aí, erguendo o rosto para onde
Nick estava, falou:
— Vem cá, filho! Vamos falar com o papai. Ele está ligando!
— Papai?!
O garotinho exclamou e rapidamente se levantou do chão onde
brincava com o avô. Correu ligeirinho até Zara e, segurando sua mão,
sumiu com ela para alguma parte da casa.
Pai...
Confesso que ainda passei um tempinho perdida em alguns
pensamentos, olhando fixamente para a porta de vidro, corrediça, que
dividia a varanda da parte interna da casa, por onde Zara saiu com Nick.
Dentre todas as coisas que nós já tínhamos conversado sobre as nossas
vidas pessoais, o pai do Nick nunca foi um assunto. Aliás, não tinha a
obrigação de ser. Ela me falaria se quisesse, se estivesse à vontade.
Mesmo assim, algumas curiosidades silenciosas percorreram os
meus pensamentos, durante breves segundos. Perguntas que, naturalmente,
qualquer pessoa teria vontade de fazer. Tipo, onde estava esse cara? E...
Qual a história que eles tiveram? Suspirei e balancei a cabeça de leve,
comigo mesma, tentando fazer com que o vento forte da varanda levasse
consigo aquelas estúpidas curiosidades.
E foi justamente aquele vento forte que corria, o tempo inteiro, pela
varanda, que me deu uma vontade de fazer xixi. Era o puro vento frio que
vinha da praia. Há alguns minutos, eu já estava segurando a vontade, só
para não interromper a conversa com Zara. Mas, agora que ela tinha ido
atender o telefone com o Nick, talvez fosse o melhor momento para eu ir ao
banheiro.
Foi então que olhei para Henry, ainda montando seu quebra-cabeça,
e perguntei:
— O senhor pode me dizer onde fica o banheiro?
— Claro, filha. Basta seguir no corredor, desse mesmo andar, e
entrar na segunda porta à direita, antes do final.
— Ah, obrigada.
E, assim, eu me levantei de onde estava sentada. Caminhei
exatamente pelo local onde o pai da Zara tinha me indicado. Porém, uma
porta antes de chegar àquela segunda à direita, que ele me disse para entrar,
eu ouvi a voz dela. A voz da Zara. E do Nick também. Subitamente,
diminuí o passo e caminhei mais devagar que o normal.
Percebi que eles estavam dentro de um quarto, atrás daquela porta.
Havia uma pequena fresta aberta, por onde eu não conseguia vê-los, mas
podia perfeitamente ouvi-los. Eles pareciam estar em uma chamada de
vídeo. Algo dentro do meu coração, no entanto, se remexeu por saber que
eu não deveria estar fazendo aquilo, quando, na verdade, deveria única e
exclusivamente seguir para o banheiro. Mas... Argh, droga. Aquela merda
de curiosidade sempre falava mais alto.
Simplesmente, parei e continuei escutando.
— Como foi o natal, querido? — perguntou o homem. — Ouvi falar
que você ganhou um presente muito irado!
— Siiimmm! Eu ganhei uma bicicleta do Papai Noel!
— É verdade... E, Kaleb, você não tem noção das manobras radicais
que ele consegue fazer naquele pequeno espaço de casa. Só falta colocar o
apartamento da mamãe de cabeça para baixo — Divertida, Zara também
falou.
O homem riu.
— Que Papai Noel mais legal! — disse ele. — Mas, tome cuidado
com essas manobras radicais, para não se machucar ou quebrar alguma
coisa no apartamento da sua mãe.
— Tá bom, pai.
— Que saudade de você, meu amor. Fico muito feliz por saber que
está bem.
— Eu também tô com saudade, papai. Quando você vem me ver?
O homem suspirou. Aquele chiado característico de uma
videochamada.
— Logo eu estarei aí, meu amor. Eu prometo.
— Mas... Você sempre diz isso e nunca vem... — Com uma vozinha
triste, Nick replicou.
Ah, meu Deus.
Percebi meu coração se dilacerar lentamente em um milhão de
partes, porque talvez eu tivesse certa noção do que Nick sentia. Eu sabia
como era ter um pai ausente, mesmo que, teoricamente, o meu dividisse a
casa comigo. Na maioria das vezes, era mesmo que nada. Parecia que eu
morava sozinha. E eu só me dava conta da sua existência ali, quando ele me
procurava para me obrigar a fazer algo contra a minha vontade.
Inclusive, era um milagre que ele ainda não tivesse me ligado,
mandado mensagem, ou feito algum sinal de fumaça para que eu voltasse
para casa, o mais rápido possível, e desse alguma merda de “assistência” a
um dos seus parceiros de negócios filhos da puta. Eu sabia bem que tipo de
coisa ele queria que eu fizesse, quando falava em “assistência”.
Suspirei, balançando a cabeça.
Aquela conversa, entre Zara, Nick e o seu pai, parecia pessoal
demais para que eu ficasse ali bisbilhotando. Foi então que decidi sair.
Reunindo o máximo da minha força de vontade, dei o primeiro passo para
me afastar. Porém, quando assim o fiz, senti meu celular vibrar na minha
mão.
Aquilo me assustou por um segundo.
Era como se eu tivesse sido pega no flagra por alguém.
Droga... Sibilei um palavrão baixinho, comigo mesma.
Se acalma, Agatha.
Puxei o ar e olhei a tela do celular.
Tessa. Era ela.
Filha da puta pra assustar os outros. Logo naquele meu momento
de bisbilhoteira.
Corri para a varanda e atendi.
— Fala.
— Nossa... Que mau humor é esse, heim?
Foi aí que me dei conta do tom meio áspero que eu tinha usado.
Suspirei.
— Ah, foi mal, foi mal, Tessa... Eu só me assustei quando o celular
vibrou.
— Hum... Muito assustadinha — ironizou. — Posso saber o que
anda fazendo? Aliás, é assim que você trata a sua melhor amiga que te
levou pra se declarar para a mulher por quem você tá maluca? Pelo amor de
Deus. Desde aquela noite, você sumiu. Pela milésima vez. Você sempre
some, sua vagabunda — riu.
E eu não pude evitar, também ri, porque era verdade. Eu não era,
digamos, aquela amiga mais presente da face da Terra. Mas, ainda assim, eu
sabia que a nossa amizade continuava intacta do mesmo jeito. Por isso que
era bom ser amiga da Tessa.
— Tá tudo bem, Tessa... Me desculpa pelo sumiço. É que, desde
aquela noite, tudo se tornou muito mais corrido. Eu... — passei a língua
entre os lábios, meio sem saber como dizer, porque eu tinha certeza de que
ela iria surtar. — Eu vim passar o ano novo com ela em Los Angeles, na
casa dos pais dela. A gente viajou.
— VOCÊ O QUÊ? — berrou.
Viu só? Eu disse que ela ia surtar.
— Calma, foi só uma viagenzinha.
— Quê? Co-como assim “só uma viagenzinha”?! — Até gaguejou,
atropelando as palavras. — Amiga, eu não acredito que vocês já estão nesse
nível! Já te levou para conhecer os sogrinhos? Meu Deus, essa mulher vai te
pedir em casamento! — riu.
— Para de ser imbecil, Tessa — disse eu, balançando a cabeça e
sorrindo feito idiota, porque, no fundo, eu sabia que ela tinha razão. Tudo
aquilo que estava acontecendo entre Zara e eu era inacreditável até para
mim. — Ela só quis ser gentil em me convidar.
— Gentil, é? — Quase duvidando, replicou. — Pra mim, isso tem
outro nome. Essa mulher quer comer a tua boceta pelo resto da vida, amiga.
Só acho. Quero dizer, tenho certeza.
Porra, se ela quisesse comer a minha boceta pelo resto da vida, eu
ia super adorar e deixar... Cantarolei mentalmente.
Quando fui responder qualquer merda, porém, a dita cuja apareceu
na varanda, naquele exatíssimo segundo, como se adivinhasse que nós
estávamos falando justamente dela. Para completar, ainda me olhou como
se quisesse dizer algo a mim.
— Um instante, Tessa.
Tirei o celular do ouvido, encarando-a para que falasse.
— Ahh, desculpa... Eu não queria atrapalhar... — Me deu um
sorrisinho meio sem jeito. — É que o Nick está louco para brincar um
pouquinho na praia. Então, eu pensei em chamar você para ir com a gente.
E eu quis suspirar de satisfação.
Era tão maravilhosa a forma como ela queria me incluir em tudo. Eu
adorava isso.
Obviamente, eu jamais negaria qualquer convite seu.
Inclusive, se ela quisesse me chamar até para comer um daqueles
hambúrgueres horríveis, gordurosos e oleosos, que ficava na lanchonete em
frente à penitenciária e que eu fazia um tremendo esforço para engolir a
cada almoço, eu aceitaria de bom grado. E ainda iria super empolgada.
Digo isso só para terem uma noção do que essa mulher tinha feito
comigo.
Eu já não era a mesma Agatha Ballard.
— Claro! Vamos. — Sorri, sentindo o coração dar um milhão de
cambalhotas dentro do peito. — Tessa, vou ter que desligar. Depois eu te
ligo, tá?
— Vai trepar, né, filha da puta? — Ela brincou, soltando uma
risadinha sacana. — Beijo. Até mais.
E eu também ri.
Boba. Tinha que ser minha amiga mesmo.
— Tchau, sua idiota.
E desliguei.

✽✽✽

Depois disso, nós não demoramos muito a descer para praia. Zara
segurou minha mão e a do Nick, e nos levou para lá. Confesso que ela já
estava começando a me deixar mal-acostumada com esse lance de segurar a
minha mão. Isso era tão bom. E eu nunca fiz questão dessa “espécie de
demonstração de carinho”. Só que, com ela, era diferente. Com ela, eu
sempre ia querer mais. Com ela, eu sempre iria gostar de qualquer atitude
que deixasse claro que, agora, pertencíamos sentimentalmente uma à outra.
Era assim que eu me sentia, quando ela entrelaçava os nossos dedos:
eu era dela.
E não existia qualquer sensação, no mundo, melhor do que essa.
Satisfeita e feliz, deixei que ela me guiasse à Santa Mônica, na
companhia do Nick, que, entusiasmado, levava uma bola e um baldinho de
areia. Fomos a pé mesmo. A praia ficava a apenas um quarteirão da casa
dos pais da Zara. Estava cheia, como sempre, completamente lotada de
turistas que andavam de um lado para o outro. Mas, absolutamente bonita.
Linda demais. O céu azul, o mar que se confundia bem na linha do
horizonte, o sol que já começava a querer descer pelo Oeste, e aquele clima
californiano que era inconfundível.
Zara escolheu um lugar perfeito para ficarmos. Descemos do píer e
caminhamos pela areia mesmo. À certa distância de onde havia uma
aglomeração maior de pessoas, em uma parte que estava mais tranquila, ela
estendeu a toalha de praia para nos sentarmos, enquanto Nick logo correu
para brincar. Ficou a poucos metros de nós, chutando sua bola e, depois,
construindo castelos de areia com o seu baldinho. Se divertia como se
estivesse em um parquinho de diversões.
Scott, por sua vez, ao se sentar sobre a toalha, fez de tal modo que
eu entendi que havia deixado um local para eu que me sentasse no espaço
livre entre as suas pernas. Assim o fiz. Me sentei ali, com as costas apoiadas
no seu peito, enquanto ela me abraçava pela cintura e encaixava seu rosto
na curva do pescoço. Meu coração batia acelerado o tempo todo. Aquela
sensação de peito esquentando, como quando somos adolescentes e nos
apaixonamos pela primeira vez. Era essa sensação que ela me causava.
E era por isso que eu precisava respirar fundo, na tentativa de
acalmar as cambalhotas e os saltos mortais que o meu coração queria dar,
de tão plena e realizada que eu estava.
Por alguns minutos, nós ficamos em silêncio, apenas ouvindo o som
das ondas quebrando na areia, do vento que remexia os nossos cabelos, e
observando o Nick brincar por ali. Enquanto o seu corpo estava abraçado ao
meu, eu não queria outra coisa, eu não precisava de mais nada. Apenas
aquilo era suficiente para mim. Somente aquele momento, que nós
estávamos vivendo, era o bastante para que eu me satisfizesse a respeito de
tudo. E, se nós passássemos o resto da vida daquele jeito, seria como viver
um sonho dia após dia.
Nem roupas de marca, nem carros luxuosos, nem casas caras, nem
festas da alta sociedade. Nada. Nada daquilo me proporcionava a real
felicidade que eu estava sentindo naquele instante. Meu maior desejo era
que isso nunca acabasse, que a nossa bolha nunca furasse, e, quiçá, que nós
não precisássemos voltar à nossa realidade em Las Vegas.
— Sabe... Há tanto tempo, eu não me sentia tão bem e tão feliz...
Obrigada por ter vindo à Los Angeles. Obrigada por estar aqui comigo —
De repente, ela falou.
Nós ainda estávamos abraçadas naquela mesma posição.
Tudo dentro de mim se revirou apenas com aquilo. Breves palavras
que carregavam tanto significado. Frases que nunca imaginei ela, um dia,
oferecendo especialmente a mim. A honestidade e a sinceridade gritantes
em cada letra pronunciada. E o melhor: ela estava sentindo exatamente o
mesmo que eu. Era incrível saber que eu não sentia sozinha, que existia
reciprocidade até na sensação daquele instante em que estávamos abraçadas
na areia da praia.
— Sou eu que agradeço... — repliquei, passando carinhosamente as
mãos pelos seus braços que me envolviam pela cintura. Um sorrisinho
muito idiota no meu rosto. — Você é linda e a sua família é maravilhosa.
Suas amigas também. Sua mãe e seu pai, então, nossa... — Eu quase não
tinha palavras para explicar. — Eles me trataram como se eu já fosse da
família, como se já me conhecessem há muito tempo. E, honestamente, eu
tenho me sentido mais em casa aqui do que no lugar onde eu moro.
Senti o seu sorriso na minha pele, enquanto seu rosto continuava na
curva do meu pescoço. Todos os pelinhos dos meus braços se arrepiaram.
— É tão bom ouvir isso, sabia? É tão bom estar com você. Tenha
certeza de que, em qualquer lugar que eu esteja, você sempre vai poder
encontrar um lar em mim.
“Você sempre vai poder encontrar um lar em mim...”
Porra, essa mulher ainda ia acabar comigo, se continuasse me
falando coisas assim.
Suspirei, na tentativa de controlar a quantidade de emoções que
subiam pela minha garganta. Quando eu quis respondê-la com algo que
representasse, pelo menos, um terço de todas as sensações que ela causava
em mim, porém, Nick exclamou, lá de onde ele estava brincando:
— Olha, mãe! Olha, Agui! Meu castelo! — Todo entusiasmado,
chamou a nossa atenção e apontou para a sua obra de arte construída na
areia.
Nós sorrimos para ele, orgulhosas.
— Ficou incrível, meu amor! — Zara falou.
— Ótimo trabalho, rapazinho! — disse eu também.
E ela me abraçou ainda mais pela cintura, me apertando na mesma
medida que eu sentia que estava sorrindo, ainda com o rosto encaixado
sobre o meu ombro.
— Eu já disse que adoro a maneira como você o trata? — sussurrou
ela no meu ouvido.
Soltei uma risadinha de leve.
— Bom, eu já falei a você o quanto eu acho o Nick uma criança
maravilhosa — respondi, sinceramente. — E eu também adoro crianças.
Então, acho que a junção dessas duas coisas deu muito certo.
— É... Deu muito certo sim... — disse ela, rindo baixinho também e
espalhando pequenos beijos pelo meu pescoço. O que me deixava ainda
mais arrepiada.
Só que, para além de todo aquele carinho insubstituível que eu
recebia dela e daquele momento tão especial, eu me lembrei de algo. Me
lembrei da conversa que eu bisbilhotei por alguns instantes, mesmo sabendo
que não deveria. E, agora, ainda que eu tentasse segurar, bem no fundo da
minha garganta, a confissão do meu crime, eu não conseguia, porque, fora a
confissão, eu também queria matar a curiosidade que permanecia tão viva
dentro de mim.
— Zara... — falei de leve, baixinho, meio sem jeito. — Se eu te
disser e te perguntar algo, você promete que não me leva a mal?
— Sim... Claro — percebi, no entanto, certo estranhamento no seu
tom de voz, mas nada muito além do que já não fosse esperado por mim.
Era claro que ela iria achar esquisito aquilo. — Pode falar.
Puxei o ar, tomando fôlego para me preparar para aquilo. Afinal, eu
não sabia como ela iria reagir. E me ajeitei sobre a toalha de praia, virando
o meu rosto, para que eu a encarasse, enquanto dizia.
— Eu preciso dizer que... — mordi o lábio inferior, meio receosa. —
Ouvi uma parte da sua conversa com o pai do Nick. Me desculpe por
xeretar assim a sua vida. Eu estava passando para ir ao banheiro, e ouvi um
pouco do que vocês estavam falando. Me desculpe — suspirei. — É que eu
fiquei muito curiosa. Na verdade, ainda estou muito curiosa sobre a história
que vocês tiveram, sabe? Mas, se não quiser me contar tudo bem. Você tem
até o direito de ficar chateada por eu ter bisbilhotado vocês.
Concluí dessa forma, mesmo que tudo dentro de mim gritasse e
suplicasse “ai, por favorzinho, eu sei que sou uma idiota, mas não fica com
raiva de mim não”.
No entanto, totalmente ao contrário do que eu poderia esperar, tudo
o que ela fez foi soltar uma risadinha leve, erguer uma das sobrancelhas e
perguntar:
— Ah, então, era só isso?
Só isso?
— É-É... — Ainda meio nervosa, gaguejei um pouco. — Quero
dizer, você não ficou chateada?
Ela riu mais uma vez, balançando a cabeça.
— É claro que não, Agatha... Por que eu ficaria? — questionou,
divertida, e, então, suspirou, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da
minha orelha e me olhando nos olhos. — Você sabe que tem a liberdade de
falar e de me perguntar sobre qualquer coisa, ou até mesmo de ouvir
qualquer conversa minha. Eu não tenho nada a esconder de você. Bom... A
minha história com o pai do Nick foi tão normal quanto a de qualquer outro
casal. Com exceção de alguns detalhes. Eu estava solteira, tinha uns vinte
ou vinte e um anos, ficava com algumas garotas e alguns garotos, e, então,
eu o conheci. Ele tinha se alistado no serviço militar para ser fuzileiro
naval. Estava fazendo curso e tudo mais, enquanto eu também estudava
para entrar na polícia. Foi na noite de uma festa com amigos em comum
que nos conhecemos. Demos o nosso primeiro beijo e, então, depois disso,
tudo aconteceu muito rápido. Não que eu estivesse realmente apaixonada,
mas eu acabei engravidando do Nick. Foi totalmente sem planejamento. A
gente nem sabia direito o que fazer. Começamos a morar juntos, mas isso
coincidiu com o chamamento dele para servir oficialmente em missões no
exterior. O Kaleb esteve em várias, como fuzileiro naval. Só que, por causa
disso, ele passava mais tempo viajando do que em casa. Aliás, por vezes, eu
nem sabia quando o veria de novo. Isso minou o nosso relacionamento,
além do fato de que eu nunca fui realmente apaixonada por ele. O Kaleb é
um cara ótimo, mas eu não achava que queria continuar naquela relação.
Nós nos separamos por volta de um ano depois que o Nick nasceu.
Fuzileiro naval?
Eu nem imaginava que essa era a sua profissão.
— E foi... Uma separação difícil...? — perguntei meio receosa, sem
saber se poderia seguir por esse caminho, mesmo que ela tivesse me dito
que eu tinha liberdade de falar ou de perguntar qualquer coisa. — Vocês
chegaram a brigar?
— Ah, não, não... — balançou a cabeça, respondendo calmamente.
— Foi uma separação tranquila. Tanto eu quanto ele já sabíamos que a
nossa relação não daria certo, antes mesmo de conversarmos e decidirmos
sobre a separação. Nick também era um bebê, então não foi uma mudança
muito drástica para ele, porque ele ainda não entendia muita coisa. Hoje,
Kaleb e eu somos amigos. E eu entendo que o trabalho dele não permita que
esteja o tempo todo aqui com o Nick. Hoje, ele está em uma missão na
Palestina. Mas, sei que se fosse exclusivamente pela vontade dele, ele seria
um pai presente. Eu só não queria ter um marido assim, sabe? Sempre quis
estar casada por amar de verdade uma pessoa, e não por obrigação. Mas,
enfim, hoje nós somos bons amigos.
E uma esposa bem presente, será que ela iria querer?
A súbita pergunta subiu bem para a minha ponta da língua, antes
mesmo que eu conseguisse pensar racionalmente sobre ela. Me dei conta,
no entanto, quando a segurei, para não a deixar sair.
Talvez não fosse o momento mais apropriado para dizer aquilo.
— Bom... — puxei o ar. — Com todo o respeito à situação, mas que
bom que você não tem um marido ou uma esposa agora — sorri pequeno,
meio sem jeito, por não saber se caberia uma pequena brincadeira naquele
momento. — Senão, a gente não poderia estar assim agora.
Ela, no entanto, soltou uma risadinha.
A cada vez que ela demonstrava encarar com leveza, aquele assunto,
eu me sentia um pouco mais aliviada.
— Acho que o meu destino era conhecer você — sorriu.
De automático, ergui uma das sobrancelhas, surpresa, por ouvir
aquilo.
— Acha mesmo?
— Sim... Não é todo dia que batem o carro numa viatura da polícia.
E você bateu logo na minha — riu mais um pouquinho.
Mesmo que o seu tom fosse divertido, ainda assim, ela parecia estar
sendo realmente sincera.
— Bendito acidente de carro — brinquei. Embora, a essa altura, eu
já estivesse agradecendo ao universo somente por tê-la trazido à minha
vida. — Tudo bem que até hoje eu fico puta quando me lembro que tive que
passar a noite inteira na porcaria de uma cela e também quando você me
manda limpar alguma privada entupida de cocô, mas, pelo menos, isso me
fez conhecer você. Então, já valeu a pena. Literalmente, valeu a pena —
sorri.
Ela riu ainda mais, jogando a cabeça para trás, tão linda e tão leve.
— Garota, você é maluca... Mas, eu adoro isso.
E, simplesmente, encaixando suas duas mãos no meu pescoço me
puxou para um beijo. O beijo mais gostoso do mundo. Ah, eu era maluca
sim... Por ela. Deixando-me levar por suas mãos e pelo poder que ela tinha
na pontinha de cada um dos seus dedos, fechei os olhos e aprofundei aquilo.
Em pouco tempo, a mágica que existia nos seus próprios lábios, já me fazia
imaginar que nós não estávamos mais nem na praia de Santa Mônica. Era
como se estivéssemos sendo transportadas para outro lugar, em cima de
alguma nuvem flutuante, por mais piegas e tosco que pudesse parecer.
Isso até que...
Repentinamente, ouvimos seu celular tocar.
Foi quando ela parou o beijo, mesmo entre selinhos e sorrisos de
quem, na verdade, queria continuar aquilo. Suspirando, no entanto, o tirou
do bolso e atendeu.
— Oi, Mad — franziu o cenho, como se prestasse atenção naquilo
que a outra falava. — Hum... — E balançou um sim com a cabeça. — Tá
legal, tá legal. Eu vou falar aqui com a Agatha — desligou e me fitou. —
Mad e Ava foram a uma lanchonete que fica no píer. Estão nos chamando
para ir lá. Você tá a fim?
Sorri.
Eu estaria a fim de qualquer coisa que envolvesse Zara Scott.
— É claro.

Zara

Já era fim de tarde, quase noite, quando nós chegamos ao local onde
Madison tinha me falado. A lanchonete estava absolutamente lotada. Aliás,
eu não sabia qual nome dar exatamente àquele lugar. Parecia uma
lanchonete, pela quantidade de hambúrgueres e batatas fritas que eu via
circulando por ali, mas também tinha muita bebida. Drinques dos mais
variados tipos. Inclusive, pelo que eu pude notar, já nos três primeiros
segundos que pus meus olhos sobre as minhas amigas, elas estavam bem
bêbadas. E olha que eu ainda nem estava realmente perto. Mas, aqueles
risos frouxos e espera aí... Ava no karaokê? Não... Elas só podiam estar
mesmo muito bêbadas.
Como se não bastasse, meus pais também estavam ali. Não bêbados,
como elas, claro. Mas, também se divertiam e as acompanhavam naquele
show, em meio às outras dezenas de pessoas que ocupavam mesas e
cadeiras do local. Segurei Agatha e Nick pela mão, e me aproximei. O
pequeno, no entanto, empolgado com aquela grande bagunça, logo se soltou
e praticamente pulou na Ava, que já sorria até para uma mosca passando em
frente à sua cara.
— Tiaaaa, eu quero cantar também! — exclamou, agarrando suas
pernas.
— Então, vem meu amor! Vem cantar com a tia! — E se abaixou, na
altura dele, para que os dois pudessem dividir o microfone, enquanto Ava
cantava a música do momento.
Para a minha completa surpresa, a galera estava curtindo. E, bem,
Ava definitivamente não era nenhuma cantora. As pessoas só podiam estar
sob muito efeito de álcool tanto quanto ela. Ou, então, era aquele clima
californiano de um lugar onde as festas nunca pareciam acabar.
Me divertindo ao ver os dois mandando ver no microfone, me
aproximei dos meus pais.
— Como vocês estão aguentando a voz da Ava, heim? — brinquei.
— Ela é uma das melhores que passou por esse karaokê hoje...! —
Papai replicou.
Quê?
Uma das melhores?
Eu realmente não queria ouvir a pior.
— Seu pai tem razão... — Mamãe também disse, soltando uma
risadinha. — Beba um drinque, querida. Eu tenho certeza que a sua audição
vai melhorar consideravelmente, depois de umas boas doses — E tomou um
gole da sua própria bebida.
Eu ri.
Isso significava que, depois de beber os drinques esquisitos daquela
lanchonete, eu ficaria louca ao ponto de suportar ouvir qualquer merda. A
verdade era essa.
Antes que eu pudesse responder, no entanto, senti quando Madison,
repentinamente, pulou no meu ombro e no da Agatha, ao mesmo tempo,
entre nós. O cheiro de álcool que saía pela sua boca não dava para disfarçar
sua embriaguez, nem mesmo seus risos frouxos ou a maneira como estava
falando.
— Olha soooó, quem chegou, heim...?! — disse ela. — As
maiooores autarquias dessa cidade inteira! E eu não aceito não como
resposta, tá bom...? — continuou, se pendurando ainda mais nos nossos
ombros. — Vamos começar os trabalhos! — apontou para a mesa cheia de
bebidas.
— Pera aí, Ava... — Sorrindo, ergui uma das sobrancelhas. — Você
já tá querendo embebedar a gente? Agora que são seis horas da noite.
— Ah, poxa, eu quero beber... — disse Agatha, dando de ombros.
Eu ri.
É claro que ia querer beber.
Conhecia bem a figura.
— A-RÁ! — Mad exclamou, entusiasmada com a resposta da loira,
e completamente maluca também. — Eu sabia que a Agatha era das
minhas! Sensacional essa menina! Você tem muita sorte, minha amiga! — E
deu tapinhas no meu ombro. — Então, vamos lá... — disse ela, se afastando
de nós e se aproximando da mesa. — Temos aqui um incrível Pinot Grigio!
Coisa refinada, chique... — fez uma firula engraçada com a mão. —
Maaaaas! Temos também essa incrível e maravilhosa Periquita! Juro! É a
melhor! Melhor do qualquer vinho no mundo! Tem uma ardênciazinha, no
início, mas, no final, desce tão docinho que vocês vão querer mais! Bem
periquita mesmo! — Riu. — E aí, qual vai ser? Aposto que é a periquita.
Agatha gargalhou.
— Eu acho que vou de Periquita mesmo — disse ela entre risos.
— Ahhh, viu só? Eu disse que essa menina era das minhas! — Mad
exclamou.
Eu ri.
— Também vou querer a Periquita — falei.
— Booa! Bora nós virar isso aqui! — disse Mad, já enchendo os
nossos copos. — No três, heim? — E entregou a nós. — Um... Dois... Três!
Bebemos ao mesmo tempo, Agatha, Mad e eu.
Caralho, desceu rasgando.
Fechei os olhos por alguns instantes, mas, quando os abri
novamente, percebi que Agatha tinha feito o mesmo. Seus lábios, porém,
exibiam o maior sorriso de todos. Ela tinha gostado daquilo. Era realmente
como Mad falou, ardia no início e ficava docinho no final. Pela cara da
loira, ela já queria mais. E eu também.
No entanto, quando fui puxar a garrafa para encher os nossos copos,
outra vez, ouvi Ava falar, ao final da sua última música:
— Quem é que vai cantar agora? Eu preciso dar um descanso aqui
para a minha voz maravilhosa — disse ela, bêbada.
Em uníssono, todos da lanchonete exclamaram um “aaaaahhh”.
Eu ri.
Aquela galera era da putaria.
Entretanto, antes que eu pudesse caçoar daquilo por mais tempo,
com risadinhas, Mad exclamou, tomando logo partido, frente às dezenas de
pessoas que comiam seus lanches e bebiam drinques tão esquisitos quanto a
Periquita:
— Já sei! Já sei! — levantou o dedo. — Quem vai cantar agora é a
nossa querida Aguinha! Aaaaaeeeee!
A lanchonete inteira vibrou junto Madison.
Meu. Deus.
Olhei para Agatha, sem saber se ria ou se ficava preocupada. E,
então, vi que, junto com suas duas sobrancelhas arqueadas de surpresa, ela
já gargalhava.
Oh, sim, claro. Por um segundo, eu me esqueci de que a minha
mulher também era da putaria.
— Canta! Canta! Canta! — Em um coro, todos começaram a
exclamar.
E Agatha ria ainda mais. Olhei para os meus pais que gargalhavam.
Senti o meu peito esquentar. Talvez eu nunca tivesse me sentido tão feliz
em toda a minha vida.
— Tá, tá bom, tá bom — E puxou o microfone. — Eu vou! Dá o
play aí DJ! — brincou, já falando ao microfone.
Era a mulher que eu tinha pedido a Deus.
— Tem certeza que quer fazer isso? — Ainda perguntei, sorrindo.
— Não estou bêbada o bastante, mas acho que posso fazer isso — E
piscou o olho pra mim, faceira.
Por um milésimo, senti que ela estava esquematizando alguma coisa
em sua cabecinha fértil. Mas, também não falei nada sobre isso. Apenas
com aquele sorriso bobo, que não saía por nada do meu rosto, reparei nos
seus passos, quando ela se aproximou do homem que controlava as músicas
no karaokê.
Aparentemente, fez o pedido de alguma música que eu não consegui
ouvir o nome, e, então, tomou o seu lugar do show, pertinho de nós. Uma
salva de palmas entusiasmadas, seguidas de gritos e assobios eufóricos,
romperam o ar, antes mesmo dela começar a cantar. Eu ri de novo. Aquele
pessoal só podia estar mesmo muito bêbado.
E aí, a música começou a tocar.
Franzi o cenho de leve, ao reparar naquele ritmo. Apenas com
aquele toque inicial, eu soube que a música era familiar para mim. Era
alegre, pra cima, vibrante. Eu já tinha escutado em algum lugar, ou, sei lá,
em algum filme. Tipo, um daqueles de comédia romântica. Só precisava me
lembrar do nome dela.
Foi quando começou a cantar.

She’s blood flesh and bone


(Ela é de carne e osso)
No tucks or silicone
(Sem enfeites ou silicones)
She’s touch, smell, sight, taste, and sound
(Ela é toque, cheiro, vista, gosto e som)
But somehow I can’t believe
(Mas de alguma maneira eu não consigo acreditar)
That anything should happen
(Que algo possa acontecer)
I know where I belong
(Eu sei o meu lugar)
And nothing’s going to happen
(E nada vai acontecer)

Ah não. Não, não, não.


Bastou ela pronunciar as primeiras palavras da letra para que eu
reconhecesse.
Eu sabia que música era essa! A letra era inconfundível! Como eu
não pude ter percebido desde o primeiro instante? Era She’s So High do Tal
Bachman. Claro! E, meu Deus, eu mal conseguia acreditar que ela estava
cantando essa música. “Surpresa” não chegava nem perto de descrever
como eu estava me sentindo. Especialmente porque a voz dela não era ruim.
Na verdade, era muito boa. Ela tinha uma ótima entonação, e não
desafinava. Além de ficar extremamente gata cantando na frente de todas
aquelas pessoas. E, ficou mais gata ainda, quando, toda faceira, caminhou
em minha direção, olhando nos meus olhos, como se estivesse cantando
para mim.
Era isso mesmo? Estava cantando pra mim? Eu estava entendendo
certo?
Dúvidas, porém, eu não tive mais, quando o refrão chegou e ela
apontou para mim, fazendo todos ao nosso redor irem ao delírio,
principalmente eu.
Deus, cheguei ao paraíso.

Cause she’s so high


(Porque ela está tão acima)
High above me
(Tão acima de mim)
She’s so lovely
(Ela é tão amável)
She’s so high
(Ela está tão acima)
Like Cleopatra, Joan of Arc, or Aphrodite
(Como Cleopatra, Joana D’Arc ou Afrodite)

E ela cantava aquilo olhando nos meus olhos, aproximando o seu


corpo do meu, dançando tão bem, fazendo todo mundo curtir aquela música
com a gente, e, principalmente, me deixando absolutamente apaixonada.
Absolutamente apaixonada.
Para completar, não era apenas eu da família que estava curtindo.
Óbvio que não. Também cantavam e dançavam junto com ela, Mad, Ava,
meu pai, minha mãe, e, claro, o Nick, que pulava por todos os lados super
feliz. Aliás, se as pessoas já tinham gostado da voz da Ava, Agatha deveria
ganhar um prêmio por aquilo que estava fazendo.

First class and fancy free


(Primeira classe e toda chique)
She’s High Society
(Ela é da alta sociedade)
She’s got the best of everything
(Ela tem o melhor de tudo)
What could a girl like me ever really offer
(O que uma garota como eu poderia realmente oferecer)
She’s perfect as she can be
(Ela é tão perfeita quanto poderia)
Why should I even bother
(Nem sei por que ainda me preocupo)

A loira pulava e dançava, contagiando cada uma das pessoas da


lanchonete e arrancando suspiros que não eram somente meus. Ciúmes?
Claro que não. O que era bonito deveria ser apreciado. Eu tinha um puta
orgulho da minha mulher. Agatha era linda, perfeita, maravilhosa.
Encantadora. Engraçada, divertida, maluca.
Exatamente o meu tipo de mulher.
Em pouco tempo, os clientes já se levantavam das suas cadeiras e
dançavam junto com a gente. Alguns tentavam alguns passos de dança
totalmente desengonçados, mas muito engraçados, enquanto outros
mandavam ver junto a Agatha, cantando a letra certinha da música e
rodopiando ao nosso redor.
Uma festa.

Cause she’s so high


(Porque ela está tão acima)
High above me
(Tão acima de mim)
She’s so lovely
(Ela é tão amável)
She’s so high
(Ela está tão acima)
Like Cleopatra, Joan of Arc, or Aphrodite
(Como Cleopatra, Joana D’Arc ou Afrodite)

No fim de tudo, como se não bastasse o quanto eu já estava babando


por ela, quando a música acabou, Agatha sussurrou no meu ouvido: “você é
real, e esse é um dos muitos motivos pra eu gostar tanto de você”. E me
beijou ali. Na frente de todo mundo, acabando com o restinho de fôlego dos
meus pulmões e de juízo da minha cabeça. Só ouvi o momento em que
gritos, assobios e palmas ecoaram por todos os lados.
E foi ali, naquele exato instante, no meio de uma lanchonete de
Santa Mônica, com o coração saltando pela boca e o meu corpo inteirinho
entregue a ela, que eu tive a maior certeza da minha vida: eu estava amando
aquela garota.
Eu estava amando aquela mulher.
Nunca foi questão de tempo, mas de
conexão

Zara

Eu nunca conseguiria descrever, ao certo, o que eu senti naquele ano novo.


Foi mágico. Muito além de qualquer expectativa que eu pudesse ter criado.
Eu já sabia que tinha pais maravilhosos, mas eles se superaram. Assim
como também já sabia que tinha as melhores amigas do mundo, mas,
naquele final de semana, elas fizeram questão de mostrar o motivo pelo
qual ocupam esse posto na minha vida há tanto tempo. E eu também sabia
que Agatha era encantadora, mas, naquela viagem, Agatha me provou, pela
milésima vez, a razão por eu ter caído de quatro por ela.
Não tinha como eu não me apaixonar.
E nós aproveitamos. Nós aproveitamos absolutamente cada segundo
que esteve ao nosso favor, naquele feriado que mais pareceu uma viagem a
um mundo paralelo, onde tudo era perfeito. Aproveitamos os momentos
com a minha família e com as minhas amigas. Aproveitamos todas as horas
possíveis com o Nick, brincando, levando-o à praia, ao Pacific Park, ou
mesmo andando de bicicleta com ele pelo píer. E, claro, também
aproveitamos os nossos momentos à sós. Aqueles minutos preciosos em que
ela e eu podíamos ter a nossa intimidade, para namorar, beijar, transar.
Era como a consumação de algo que já estava determinado a
acontecer nas nossas vidas. Quando eu dizia a ela que acreditava que nós
não nos conhecemos por acaso, eu não falava isso da boca pra fora. Não era
uma forma de tentar seduzi-la com palavras bonitas. Eu dizia isso porque
era o que eu realmente sentia no meu coração. Algo, lá no fundo,
sussurrando que ela era como uma nova chance que a vida me dava, e que
eu era como uma espécie de redenção para ela. Não que eu entendesse o
significado dessas vozes na minha cabeça, mas, de algum modo, isso me
deixava pensativa e me fazia ter a sensação de que os nossos caminhos se
cruzaram com algum propósito.
E, então, entre pensamentos, conversas, sentimentos, beijos, e
muitas risadas, o sábado à noite chegou, dia trinta e um, o último dia do
ano. Todos nós descemos para Santa Mônica. Agatha, Nick, Mad, Ava, meu
pai, minha mãe e eu. A praia estava lotada e muito bem decorada com
lindas luzes e enfeites dourados que representavam aquela época do ano.
Uma onda de pessoas vestidas de branco tomava o píer e a areia, ali na
beirinha do mar. O Pacific Park também estava bem cheio, não apenas de
crianças, mas de adultos e turistas que se aventuravam nos brinquedos e,
especialmente, na roda gigante colorida, o cartão postal de Santa Mônica.
Papai, como já conhecia muito bem o local, nos levou até uma das
faixas de areias mais tranquilas. Ao nosso redor, ainda havia pessoas por
perto, mas o maior aglomerado tinha ficado para trás. Foi onde colocamos
algumas cadeirinhas de praia para nos sentarmos, uma caixa térmica com
cervejas, e a brasa do churrasco, para ficarmos à espera da queima de fogos.
Tudo dentro de mim era uma explosão tão grande de sentimentos quanto
aqueles fogos que veríamos dentro de alguns minutos. Eu mal conseguia
acreditar que estava passando a virada de ano, pela primeira vez, com
aquela que eu tinha certeza que era a mulher da minha vida. Ainda mais, na
companhia dos meus pais, do meu filho e das minhas melhores amigas.
E, bem, não seria novidade se eu dissesse que Agatha estava linda
naquela noite, seria? Claro que não. Mas, ela realmente estava.
Usando um vestido branco, leve e solto, com uma fenda que deixava
sua perna à mostra até o meio da coxa, a cada vez que ela se movimentava,
Agatha não me deu outra opção a não ser observá-la o tempo todo, ou a
cada dois minutos, com a impressão de que eu tinha ganhado um prêmio
muito maior e melhor do que em qualquer loteria.
Já era por volta das onze e meia da noite, quando peguei uma latinha
de cerveja, me sentei em uma das nossas cadeirinhas de praia e fiquei
pensando no quão sortuda eu era, enquanto observava Agatha brincar de
bola com Nick, Mad e Ava. Ora ela chutava a bola, ora pegava Nick nos
braços e o rodava no ar, fazendo-o gargalhar. E ela também ria com as
minhas amigas e tirava onda com elas. A mulher dos meus sonhos. Não
somente pela maneira como ela tratava o meu filho e as minhas amigas,
mas por tudo. Absolutamente por tudo o que fazia parte dela, do seu corpo,
da sua personalidade, do seu jeito de ser.
De repente, porém, entre os olhares de boba que eu oferecia à loira,
sem que ela nem percebesse, mamãe se sentou em uma cadeirinha ao meu
lado. Notei que ela também passou a observar Agatha por um tempinho, da
mesma forma como eu fazia.
Até que...
— Você gosta muito dela, não é?
— Hum? — Com a surpresa da sua súbita frase, ainda questionei.
— Eu disse que você gosta muito dela, filha.
Passei a língua entre os lábios, dessa vez, fitando as minhas mãos,
cujos dedos passavam uns sobre os outros. Mamãe e eu sempre tivemos
conversas francas, afinal.
— Sim, eu gosto... — confirmei, com toda a certeza de que aquilo
que eu sentia era real. — Eu gosto muito dessa garota.
Mamãe sorriu.
— E ela também gosta muito de você. Dá para perceber.
Arqueei brevemente as sobrancelhas. O coração se aquecendo
apenas por ouvir aquilo.
— Dá pra perceber? — Surpresa, perguntei.
— Dá sim, querida — soltou uma risadinha misturada com um leve
ar de admiração. — É totalmente perceptível.
Suspirei. Um sorriso bobo se formando no meu rosto. De repente,
ainda mais legal do que eu mesma perceber os sentimentos da Agatha, era
saber que outras pessoas também notavam aquilo que eu via, especialmente
a minha mãe.
Porém, antes mesmo que eu pudesse falar qualquer coisa, em meio
ao meu quase êxtase de sensações, mamãe continuou:
— Madison me contou como vocês realmente se conheceram.
Só que aí, subitamente, foi como se todo aquele encantamento se
esvaísse, tipo uma bolha de sabão estourada. Depois de escutar a mamãe
pronunciado aquelas palavras, senti como se todo o sangue do meu corpo
tivesse sido drenado para tão dentro de mim que tive a certeza da minha
palidez.
— A Madison o quê...?! — Meus olhos dobraram de tamanho.
— Se acalme, querida... — soltou uma risadinha. — Não há
problema algum em eu saber a verdade, há?
Puxei o ar, balançando a cabeça de leve.
— Não... É só que... Você sabe... Eu não gostaria de ouvir mais uma
pessoa me julgando por isso. Principalmente se essa pessoa for a minha
mãe.
Eu já estava meio cansada disso. Ava, no início, tentou me alertar de
todas as formas, embora, agora, ela estivesse se dando bem com a Agatha.
Alexa sempre fazia questão de me lembrar sobre o quanto eu estava
“errada”. E eu também tinha certeza de que, se os demais funcionários da
polícia soubessem sobre nós, eu receberia uma chuva de comentários como
aqueles. Me julgando e me criticando. Na real, eu só queria ficar bem com a
Agatha e ter um relacionamento normal.
— Você acha que eu faria isso, querida? — Em um tom ameno,
mamãe perguntou.
Puxei o ar, tentando refrigerar os meus pulmões.
Talvez eu já não soubesse mais de nada.
— Não, mãe... Eu realmente não gostaria que fizesse. Eu não
gostaria que fosse mais uma pessoa me dizendo que eu estou caindo no erro
pela segunda vez.
Ela, no entanto, ergueu uma das sobrancelhas para mim.
— E você acha que está caindo no erro pela segunda vez?
Mamãe sabia do que tinha acontecido no passado, comigo, da
minha história com Haven.
— Por um tempo eu achei — confessei. — Por um tempo, eu quis
evitar, de todas as formas, ficar com ela, porque eu achei que seria como se
eu não tivesse aprendido a lição. Ou como se a vida estivesse me testando,
para ver se eu realmente tinha aprendido a lição. Mas, agora, honestamente,
eu me sinto mais leve quando não penso no nosso relacionamento nesses
termos. Eu tento não pensar nesses termos.
Embora os fantasmas do passado, vez por outra, ainda me
atormentassem...
Mamãe, porém, me encarou seriamente.
— Sabe, querida... Você pode não perceber, mas eu vejo. Eu
conheço a filha que tenho. Mesmo que o Nick tenha sido a melhor coisa que
aconteceu na sua vida, nos últimos anos, e que ele seja uma bênção para
você e para todos nós, eu sei que você vem apenas sobrevivendo.
Trabalhando para pagar contas, para sustentar o seu filho, e só. Apenas de
casa para o trabalho, e do trabalho para casa. Eu notava, querida... Eu
notava que você tinha perdido muito daquele brilho no seu olhar. O brilho
de uma juventude sonhadora. Uma juventude suprimida pela gravidez
precoce. Mas, pela primeira vez, em anos, eu estou vendo você realmente
feliz. O seu rosto está iluminado, o seu sorriso é verdadeiro. A única
mensagem que o seu corpo transmite, agora, é de alguém que está muito
satisfeita consigo mesma e com a vida. E eu sei que aquela garota tem
muitas parcelas de culpa nisso.
...Pela primeira vez, em anos, eu estou vendo você realmente feliz...
...E eu sei que aquela garota tem muitas parcelas de culpa nisso...
Senti como se um nó, subitamente, estivesse se formando na minha
garganta. Não de tristeza, mas de alegria. De pura alegria em ouvir palavras
tão reconfortantes da minha mãe.
— Você vê isso, mamãe? — Com um sorriso no rosto e um traço de
emoção no olhar, perguntei.
— Sim, eu vejo, minha filha — segurou as minhas mãos,
carinhosamente. — E você não deve se culpar pelo que aconteceu com a
Haven. O que aconteceu com ela não foi sua culpa, querida. Aquele foi um
momento de muita vulnerabilidade para você. Nick ainda era um bebê, e
não fazia muito tempo que você tinha se separado. Estava lidando com as
responsabilidades da maternidade praticamente sozinha. Naquela época,
você tinha outras perspectivas de vida, outras prioridades. Mas, agora,
talvez a vida esteja te dando uma segunda chance. E, com a Agatha, quem
sabe seja a oportunidade de você realmente seguir o seu coração.
...Talvez a vida esteja te dando uma segunda chance...
...E, com a Agatha, quem sabe seja a oportunidade de você
realmente seguir o seu coração...
No fundo, era exatamente isso o que alguma voz interna falava a
mim.
E, agora, era minha mãe quem confirmava.
— Uma segunda chance? — Emocionada, perguntei.
— Sim. Uma segunda chance, não um segundo erro.
E eu não pude me conter.
Ouvir aquilo da minha própria mãe era revigorante, fortalecedor. Às
vezes, a gente só precisava do apoio de quem era realmente importante para
nós. E, sem dúvidas, o apoio sincero de uma mãe e um pai sempre estariam
no topo de uma escala de relevância e consideração.
Como num rompante de alegria, eu a abracei tão forte e tão firme,
na mesma intensidade da minha felicidade e da minha gratidão a ela.
— Obrigada, mamãe. Eu amo você. Muito.
E ela me envolveu com os braços, forte, por longos e incontáveis
minutos que preencheram o meu coração de tanto carinho e de tudo o que
era bom. Depois, apenas nos separou alguns centímetros o suficiente para
me olhar nos olhos.
— Eu só falei a verdade, filha... E também amo muito você — disse
ela, sorrindo. — Agora, vá. Falta um minuto para o ano novo... — apontou
com o queixo na direção de onde Agatha estava.
Foi tudo o que eu precisei para entender.
Respirando fundo e enxugando as lágrimas de felicidade que
pudessem ter caído, eu me levantei e, definitivamente feliz, segui até ela.
No mesmo instante, notei as pessoas já se preparando para a virada
de ano. Todos olhavam para o céu, esperando o grande show. Agatha
também estava com o rosto erguido. Foi quando, pegando-a de surpresa,
segurei sua mão, entrelaçando os nossos dedos. Ela sorriu para mim. Tão
absolutamente linda. E, então, todos ao nosso redor fizeram a contagem
regressiva de cinco segundos.
Tudo pareceu passar em câmera lenta, enquanto os nossos olhares
estavam fixos um no outro.
Fogos de artifício estouraram nos céus, iluminando tudo à nossa
volta, nas mais diversas cores e tons. Um show de luzes. E de colorido. Da
mesma forma como eu sabia que eu estava por dentro. Tudo implodindo, no
meu corpo, em pura felicidade, como fogos de artifícios coloridos.
Um novo ano tinha chegado. E eu estava com a mulher da minha
vida.
A abracei, bem forte e bem apertado, entrelaçando os meus braços
em sua cintura, e, por pouco, não tirando-a do chão. Ela soltou uma
risadinha tão gostosa no meu ouvido. E me prendeu também com as suas
mãos. Transbordando todos os sentimentos mais bonitos que eu tinha em
mim, a beijei e, contra os seus lábios, falei:
— Feliz ano novo, minha princesa... Que seja o primeiro de muitos.
Ela sorriu.
Sorriu tanto ao ponto dos seus olhos ficarem pequenininhos.
E, entre beijos, também disse a mim:
— Feliz ano novo, meu amor. Vai ser o primeiro de muitos, porque
quero passar todos os outros com você.
...Vai ser o primeiro de muitos, porque quero passar todos os outros
com você.
A garota sabia bem como usar as palavras para me deixar ainda
mais arrebatada.
Simplesmente, a tirei do chão, abraçando-a e rodopiando com ela
pela areia da praia. Agatha ria nos meus ouvidos e me beijava. Tão perfeita.
Nós curtimos, brindamos com champanhe e dançamos quase o resto da
noite, quando o volume da música na praia aumentou.
Quase o resto da noite porquê...
Algum tempo mais tarde, depois de comemorarmos, feito loucas, a
chegada do novo ano e de bebermos várias latinhas de cervejas, misturadas
com champanhe, enquanto dançávamos na beira do mar e sentíamos o calor
da nossa tensão sexual aumentar de minuto em minuto, tudo o que nós
fizemos foi deixar a festa na praia para trás, antes mesmo que acabasse, e
seguir de volta para a casa dos meus pais. Como numa imensa explosão de
todo o sentimento que borbulhava dentro de nós, já entramos no meu antigo
quarto nos beijando e tirando nossas roupas pela cabeça.
Na noite anterior, de sexta para sábado, eu tinha dormido com o
Nick. Mas, sem que eu ao menos pedisse, dessa vez, Mad e Ava se
prontificaram a dormir com ele, no quarto onde elas estavam, para que eu
pudesse ficar a sós com a Agatha. Quando eu dizia que elas eram as
melhores amigas do mundo, eu não mentia. Elas eram mesmo. E, agora,
poderíamos desfrutar da nossa última noite em Los Angeles, exatamente
como eu queria e como eu desejei a cada vez que eu a observei na praia.
Fechei a porta do quarto com suas próprias costas, pressionando o
meu corpo contra o seu, beijando-a com força e deixando seu vestido solto
pelo chão, assim como ela também fazia com as minhas roupas. Agatha
estava inacreditavelmente gostosa com uma lingerie branca por baixo. Os
seus fartos e empinados seios, preenchendo todo o espaço do sutiã, ao ponto
de ficarem apertadinhos nas bordas do bojo. Os ossos salientes dos seus
quadris, que me mostravam o caminho certo e direto até o seu ponto entre
as pernas. As suas curvas perfeitamente delineadas, onde eu conseguia
encaixar as minhas mãos e apertar sua pele entre os meus dedos.
Caralho, só de olhar para ela, daquele jeito, a minha calcinha
molhava inteira.
Sem qualquer esforço meu, eu poderia gozar.
A vontade de colocar aqueles peitos gostosos na minha boca. O
desejo de encontrar a sua boceta toda ensopadinha pra mim. O tesão de
lamber a delícia que era aquela mulher, e de me enfiar dentro dela. E,
depois, de me esfregar nela, até que a sua boceta e a minha fossem uma só.
O calor entre as minhas pernas pulsava, latejava de segundo em
segundo, mostrando o quanto eu já estava fraca por ela e para gozar para
ela, a cada vez que a sua boca chupava qualquer parte do meu corpo e a sua
língua deslizava em mim.
Sem aguentar o absurdo tesão que crescia dentro de mim, baixei as
duas taças do seu sutiã, fazendo os seus peitos saltarem para fora. Foi
automático. Minha boceta pulsou, mais uma vez, apenas por vê-los.
Caralho. Eram lindos. Deliciosos. Os mamilos durinhos de excitação. Eu
jamais, jamais deixaria de admirar ou de falar, quantas fossem necessárias,
o quanto ela era maravilhosa.
— Não existe uma única parte do seu corpo que não seja perfeita,
sabia? — sussurrei.
E Agatha percebia a maneira como eu olhava para os seus peitos,
porque eu notei o momento em que ela mordeu seu próprio lábio inferior,
contemplando o meu olhar, como se estivesse ansiosa pelo que eu faria a
seguir. Eu, claro, não demorei mais que meio segundo. Concedendo o seu
desejo silencioso, e o meu também, coloquei-o na minha boca, o máximo
que eu conseguia, fazendo-a ofegar e pender a cabeça para trás.
Nada, no mundo, chegaria aos pés da beleza dela ou do quão ela
ficava ainda mais atraente quando estava assim, completamente excitada.
Todo o seu corpo dando sinais do quanto ela queria o mesmo que eu, e do
quanto ela me queria tanto quanto eu também a desejava. Sua respiração
entrecortada, seus lábios vermelhos, sua boca entreaberta, suas bochechas
coradas de tesão.
A mulher mais linda de todo o universo.
Continuei chupando. Lambia e sugava um dos seus mamilos,
enquanto o outro eu estimulava com os dedos. Sua garganta, provocando os
sons mais excitantes do planeta, aquele timbrezinho sacana que só ela tinha,
me impelia, ainda mais, na minha missão de vida, que era deixá-la
totalmente maluca e fazê-la completamente feliz.
Em dado instante, no entanto, senti quando sua mão segurou
firmemente os meus cabelos e puxou, fazendo-me parar. Foi então que ela,
com o semblante mais safado e determinado que eu já tinha visto em toda a
minha vida, repetiu o mesmo que eu, colocando os meus peitos na sua boca,
depois de desabotoar meu sutiã e jogá-lo no chão.
Ah, que filha da mãe da boca gostosa...
Fechei os olhos experimentando todas as ondas de prazer que a sua
língua quente causava nos meus mamilos. Porém, no momento em que ela
quis enfiar uma das suas mãos dentro da minha calcinha, meu corpo
subitamente alertou. Abri as orbes, respirando fundo. Um pequeno sorriso
querendo cintilar os meus lábios.
Eu queria isso. Eu desejava isso. Muito. Eu tinha vontade de senti-la
me dando prazer tanto quanto eu também queria dar prazer a ela. Acontece
que eu sabia que já estava a um passo de gozar. Qualquer movimento seu na
minha boceta já seria o suficiente. E, bem, eu queria protelar aquilo, eu
desejava prolongar um pouco mais o nosso momento.
Então, seria ela primeiro.
Era a minha vez de dar prazer. E de colocar para fora, em forma de
beijos, abraços, carinhos, chupadas, lambidas e penetrações, todo o tesão
que ela me fazia sentir não apenas agora, mas desde sempre.
Segurando firmemente as suas mãos, para fazê-la parar, a empurrei
forte contra a cama, jogando-a sobre os lençóis. Fui para cima dela,
dizendo:
— Passei a noite todinha querendo te comer, só de te ver naquele
vestidinho. Então, agora, você vai ter que esperar eu fazer isso.
Ela soltou uma risadinha sagaz, mordendo o lábio inferior.
Daquele jeitinho que me deixava pirada.
— E se eu disser que quero comer você também?
Aquilo não era só charminho. Eu sabia que era a verdade.
No entanto...
— Aí, você vai ter que esperar, amor... Aqui quem vai fazer
primeiro sou eu.
O que eu imaginava que não fosse nada difícil, porque, enquanto
ela esperava, eu lhe dava prazer.
Sem demora, desabotoei completamente o seu sutiã, jogando-o por
ali, enquanto minha boca a sugava novamente. Desci minhas mãos pelo seu
corpo, deslizando os dedos sobre a sua pele, de modo que, a cada instante,
eu sentia seus pelinhos se arrepiarem. Sua barriga se contraía, em meio a
uma respiração ofegante, toda vez que os meus dedos passavam por ali,
ameaçando cruzar a linha da calcinha.
Ela, no entanto, espertinha demais, como sempre era, pareceu não
aguentar a própria vontade e levou uma das suas mãos ao meu peito,
enquanto a outra foi na direção minha calcinha.
— Eu já mandei você parar.
Fui incisiva ao falar e segurar firmemente um dos seus punhos.
— Nossa... Que mandona — soltou uma risadinha, sarcástica.
E, bem, apesar de eu ter dito aquilo e segurado um dos seus braços,
ela continuou, se aproveitando a cada vez que eu aproximava meu corpo do
seu sobre a cama. Quando não era com a outra mão livre, era com a perna
que dava um jeitinho de roçar a minha boceta já prestes a ter um orgasmo.
Vi um sorriso sacana e diabólico se desenhar nos lábios.
O sorriso de quem fazia por desejo em me ver gozar, mas também
em me tirar do sério.
Foi aí que eu parei.
Me ergui da cama, encarando-a fixamente, enquanto ela, com aquele
semblante arteiro, se apoiava sobre os cotovelos para me observar também.
Confesso que eu quis sorrir tão sacana quanto ela. Agatha me instigava.
Isso era mais uma das coisas que eu adorava naquela garota. Porém, entrei
no meu personagem, bem séria, e continuei a fitando.
Foi quando ela, em uma falsa inocência, com aquela carinha de
anjo, que, na real, era o próprio demônio, disse:
— Acho que sou uma garota muito desobediente.
Filha da mãe pra me dar tesão.
— Eu sempre soube disso — repliquei. — E é por isso que você vai
ganhar o que as garotas desobedientes merecem.
Sem dizer mais nada, apenas segui na direção das minhas bagagens.
Me abaixei para pegar a minha maleta. Eu praticamente nunca andava sem
o meu material de trabalho, ainda que em momentos de folga. Levava pelo
menos uma parte, onde quer que eu fosse. E, para Los Angeles, não seria
diferente, mesmo que eu estivesse na casa dos meus pais. Eu sempre
pensava que era melhor prevenir do que remediar. Apesar disso, eu não
imaginei que eu fosse usar aquilo com a Agatha.
Mas...
Bem, eu já tinha colocado nela uma vez. Era verdade.
A diferença era que, agora, provavelmente ela ia gostar.
Rolei a senha do cadeado e abri a maleta. Lá estava o que eu queria.
Minha pistola e...
Notei quando os seus olhos brilharam ao ver as algemas balançando
na minha mão, enquanto eu caminhava pelo quarto, de volta para a cama.
Ela ainda quis se mexer por ali, quase ansiosa, mas eu fui mais rápida. Não
falei nada, apenas, habilmente, a virei sobre o colchão, dando um tapa na
sua bunda e colocando-a de bruços. Uma exclamação de surpresa escapou
da sua garganta. Eu, no entanto, só continuei. Tirei sua calcinha e segurei
firme os seus pulsos, esticando os seus braços até que eles encontrassem a
cabeceira da cama, que foi onde a prendi com as algemas. Depois, com
jeito, puxei seu quadril, de modo que ela ficasse de quatro para mim.
Maravilhosa.
Seu tronco estava praticamente inclinado por completo sobre a
cama, junto com os braços esticados, cujas mãos permaneciam presas na
cabeceira da cama pelas algemas. Como se não bastasse, aquela posição que
eu a coloquei, fazia com que ela ficasse com a bunda toda empinada para
mim. Linda. A maior tentação da minha vida. E, cara, a visão era
privilegiada... Eu consegui ver, literalmente, a sua boceta escorrendo aquele
líquido transparente, a cada instante. Tudo dedicado e oferecido a mim.
Eu não ia aguentar nem mais meio segundo.
— O que você vai fa...?
Porém, antes que ela pudesse completar a pergunta, enchi minhas
duas mãos com cada lado da sua bunda e enfiei minha boca dentro da sua
boceta, fodendo-a com a minha língua. Agatha, de automático, gemeu o
meu nome, seguido de uma série de palavrões. E eu sabia que ela estava se
segurando para não elevar o tom. O esforço do seu grunhido espremido era
tão perceptível.
E eu continuei.
A loucura por estar transando com aquela que eu sabia que era a
mulher da minha vida. A palpitação no peito por ter a certeza de que era
para ela, e somente para ela, que eu queria dar prazer pelo resto dos meus
dias. Diante das regras da polícia de Las Vegas, nós podíamos estar
quebrando protocolos e caindo em erros irreparáveis. Mas, para mim, aquilo
soava como liberdade. A liberdade de poder ser quem eu era, e quem
sempre quis ter sido. E a liberdade de estar com quem eu realmente queria e
amava.
Se antes me restava alguma dúvida, agora eu sabia qual caminho
seguir, independente das consequências, talvez irreversíveis, para mim. Era
com ela que eu queria estar. Era com ela que eu queria ficar, mesmo que a
nossa relação, em tese, ainda parecesse recente demais, curta demais.
Sentimento real, no entanto, nunca foi questão de tempo, e, sim, de
conexão. Só quem vive e sente na pele, sabe a intensidade do que é vivido.
E era exatamente assim que eu me sentia em relação a ela. Tudo tão intenso,
mas tão real e sólido, de uma maneira como nunca tinha acontecido em toda
a minha vida.
Com ninguém.
Nem com o pai do Nick.
Nem com Haven, que, até então, era a única mulher por quem eu
tinha me apaixonado.
Com a Agatha, no entanto, era diferente, por mais piegas que
pudesse parecer. Com ela, era mais intenso, mais real. Com ela, o meu
sentimento não era só sensação, era também decisão. A decisão de ficar
com ela.
E, agora, nesse instante, eu demonstrava todo o meu sentimento na
forma de prazer. Era uma das muitas coisas que eu podia dar a ela, fora
afeto, carinho, amor e segurança. Meus lábios e minha língua
permaneceram ali. Ora passando em toda a extensão da sua boceta, ora se
detendo apenas ao seu clitóris. Por longos e incontáveis minutos, enquanto
uma sinfonia de gemidos deleitava os meus ouvidos.
Foi quando eu substituí a língua por três dedos dentro dela, que um
grito, um pouco mais alto e mais forte do que ela conseguia segurar,
escapou. Ainda pude ouvi-la quando sibilou algo como “sua desgraçada”.
Eu apenas continuei. E não era só meter por simplesmente meter. Tinha
uma intenção, um foco. Era meter e alcançar aquele ponto lá no final. Era
meter e, ao mesmo tempo, massagear com os dedos, aquilo que havia lá no
fim da boceta. Era meter e fazer de tudo para tornar aquilo ainda mais
gostoso para ela.
Para ela.
Pensando nela.
Tudo por ela.
Acontece que, aos poucos e gradativamente, os seus reflexos aos
meus atos estavam tomando outras proporções. Suas pernas já começavam
a tremer e os seus gemidos se tornavam mais profundos. As paredes
internas da sua boceta se contraíam mais vezes dentro de um minuto. Tudo
isso só queria dizer uma coisa.
Ela estava perto de...
— Zara, acho que eu vou... — choramingou.
Porém, antes que conseguisse terminar a frase, rapidamente
destranquei as algemas e a virei, fazendo-a se deitar de frente para mim.
Tirei minha calcinha e me encaixei entre ela, transpassando minhas pernas
nas suas, de modo a deixar nossas bocetas uma sobre a outra. Nós éramos
uma só. A sensação indescritível de não somente completude, mas,
principalmente, transbordamento.
Alguém que não me completava apenas.
Mas que transbordava o que existia de melhor em mim.
E eu queria que nós chegássemos ao ápice juntas, porque eu também
estava quase gozando. Há tanto tempo eu segurava isso.
Senti sua bocetinha tão inchada na minha. O seu clitóris durinho, e o
meu também, pronto para romper em um orgasmo maravilhoso. E, então, eu
me mexi. Mexi sem aguentar ou controlar os sons guturais que saíam pela
minha boca. Mais gostoso ainda foi quando ela também começou a rebolar
para mim e em mim, fazendo com que a nossa fricção se intensificasse
ainda mais.
Eu já estava na beira daquele precipício, pronta para me jogar.
Pronta para dar vazão a todos os espasmos mais gostosos e satisfatórios que
um ser humano poderia experimentar. Apenas continuei rebolando sobre
ela, encarando-a fixamente, me deleitando com o seu olhar e os seus
gemidos de pura excitação, sentindo a sua lubrificação na minha, até não
aguentar mais. Até não ser capaz de suportar o limite máximo do meu
prazer.
Não demorou para que o meu baixo ventre se contraísse, entre
respirações descompassadas e gemidos que se desprendiam
involuntariamente da minha boca. Ao mesmo tempo, ela também gritou,
tremendo embaixo de mim. Seus mamilos absurdamente mais eriçados do
que estavam. Gozamos juntas.
Cada uma ofegante.
Cada uma suada.
As duas terminantemente satisfeitas e esgotadas.
Conectadas pelo sentimento que não se acabava depois do sexo.
Muito pelo contrário, só aumentava.
Esgotada, mas completamente feliz e realizada, a abracei
firmemente, caindo sobre a cama com ela. Enquanto minha respiração
tentava voltar ao normal, eu espalhava um monte beijos carinhosos pelo seu
rosto, ao mesmo tempo que sentia suas mãos macias e delicadas me
abraçarem firmemente como se quisesse que eu não saísse de perto nunca.
E era realmente isso o que aconteceria. Eu não sairia mais de perto dela. A
verdade era que eu seguiria pelo caminho onde Agatha e eu estivéssemos
juntas, independentemente de qualquer coisa.
Eu tinha trinta anos de idade. Não era tão velha, mas também não
era tão nova. Eu já tinha passado por várias situações, naqueles trinta anos.
Situações suficientes para saber que sentir o que eu estava sentindo, por
aquela garota, não acontecia muitas vezes na vida. Aliás, tinha gente que
vivia uma vida inteira e não sabia o que era aquilo que eu estava sentindo
por ela. Era raridade. Algumas pessoas só encontravam uma vez, ou, às
vezes, nem encontravam.
E eu sabia que aquela oportunidade eu não deveria desperdiçar.
Era com a Agatha que eu tinha que ficar.
Segurei-a ainda mais forte entre os meus braços, enquanto
permanecíamos deitadas sobre a cama, nos recuperando dos últimos
minutos. Foi quando ela deslizou suas mãos sobre mim e puxou o meu
rosto. Olhando bem no fundo dos meus olhos, falou em um tom baixinho,
mas tão firme, como se confessasse aquilo com todas as forças que tinha
dentro de si:
— Se eu pudesse pedir qualquer coisa no mundo... Eu pediria algo
que nem todo o dinheiro, que a família Ballard tem no banco, seria capaz de
pagar. É algo que vem de graça, porque é dado de coração. Não se compra...
— suspirou. — Eu pediria que você me amasse tanto quanto eu te amo.
...Que você me amasse tanto quanto eu te amo...
...Eu te amo...
Como uma brisa leve e sorrateira, aquelas palavras tão poderosas
entraram pelos ouvidos e causaram um burburinho na minha cabeça e no
meu coração. Se antes eu tentava controlar a minha respiração, agora ela já
parecia falhar de novo. Eu mal conseguia acreditar no que ouvia. Porque
era exatamente o mesmo que eu sentia por ela. Em poucos segundos,
lágrimas sutis se formaram no cantinho dos meus olhos.
— Você me ama? — sussurrei, quase sem fôlego.
— Com todo o meu coração.
Ah meu Deus.
Soprei o ar dos meus pulmões e, num rompante de emoção, a
abracei forte, segurando-a como se ela fosse uma pedra preciosa. E ela
realmente era. Um frenesi tão grande de sensações boas dentro de mim, que
deixei sair aquilo que já transbordava do meu coração, sustentando o seu
rosto com as duas mãos, sem tirar os meus olhos dos seus:
— Garota, o que eu sinto por você, nessa mesma velocidade e
intensidade, eu nunca senti por outra pessoa. Nunca. Com ninguém. Com
nenhuma pessoa que já tenha passado pela minha vida. Quando eu digo que
não nos conhecemos por acaso, não é da boca pra fora. Uma conexão tão
rápida e tão forte, como a nossa, não é mera casualidade — puxei o ar. —
Eu amo você, Agatha. Te amo por tudo o que você é, com todos os seus
defeitos, e também com as suas inúmeras qualidades. Eu amo cada
pedacinho de você. Cada parte que forma e completa a pessoa que você é.
A pessoa por quem me apaixonei e agora amo.
Vi quando lágrimas romperam os seus os olhos. E, então, ela me
abraçou, tão forte e tão segura, em meio a soluços baixinhos de emoção e
sorrisos imensos de felicidade.
— Obrigada por me amar — disse ela.
— Você não tem que me agradecer. Eu tenho o maior prazer nisso.
Eu simplesmente não aguentava mais
isso

Zara

Tudo o que era bom não durava pouco, mas durava tempo o bastante para
que se tornasse inesquecível. Foi essa a sensação que eu tive quando o
domingo de manhã chegou junto com a nossa volta para casa. Aquele fim
de semana do feriado de ano novo foi inesquecível, mesmo que tivesse
passado muito rápido. E que bela forma de começar o ano, não? Eu
guardaria no meu coração, para sempre, tudo o que vivi ali. A forma como
meus pais receberam Agatha desde o primeiro segundo, a maneira como ela
e as minhas amigas conseguiram se conectar, e o jeito como Nick, Agatha e
eu parecíamos, cada vez mais, uma família.
Isso, claro, sem contar com todos os momentos mais íntimos entre
mim e ela. Só eu sabia o que senti, durante aquela queima de fogos, na
praia, quando segurei a sua mão e olhei nos seus olhos, tendo a certeza de
que ela realmente estava ali comigo. Jamais conseguiria explicar para
qualquer pessoa, por mais que eu tentasse. A primeira passagem de ano que
eu estive com a minha mulher. A mulher da minha vida. E, depois, o nosso
sexo. O primeiro eu te amo. A sensação de que todos os sentimentos que eu
nutria por ela estavam tomando proporções maiores a cada minuto.
A impressão de não somente completude, mas também de
transbordamento.
Eu estava feliz e satisfeita com ela, assim como tinha a certeza de
que ela estava da mesma forma comigo.
Naquele domingo de manhã, depois de tomarmos o café e
colocarmos as nossas malas no carro, a nostalgia era gritante. E, também, a
vontade de vivermos para sempre naquele único e exclusivo final de
semana em Los Angeles. Nós carregaríamos dali boas recordações, até que
retornássemos, mais uma vez, para renovar as lembranças. Sem dúvidas, eu
voltaria com ela. Com a Agatha. Da mesma maneira como eu havia lhe
dito, quando fiz o convite, aquele era apenas o primeiro passo de muitos
que eu queria dividir com ela, durante a vida.
— Ai, querida... Mas, vocês já vão mesmo? — Mamãe perguntou,
como se segurasse o próprio coração com suas palavras.
— Ainda está tão cedo... Fiquem, pelo menos, para o almoço... —
Papai completou.
— Ah, eu adoraria ficar para experimentar mais uma comidinha da
dona Martha — Divertida, Mad replicou.
Ava soltou uma risadinha, balançando a cabeça para a folga da
namorada.
Madison falou aquilo em tom de brincadeira, mas eu sabia que tinha
parcelas de verdade. Afinal, não existia qualquer pessoa no mundo que
dispensasse, por livre e espontânea vontade, as refeições e os quitutes que
mamãe fazia. Eu mesma já estava com o coração apertado por ter que voltar
a provar seu escalopinho de filé somente na próxima vez que estivéssemos
ali.
— Mamãe... Infelizmente, sim... Nós temos que ir. Bem que eu
queria ficar e passar mais tempo com vocês. Aliás, eu nem queria ir pra
casa — soltei uma risadinha. — Mas, o caminho daqui pra lá é longo, e
amanhã é dia de trabalho. Não quero chegar em casa muito cansada.
Mamãe suspirou, resignada.
— Tudo bem, filha, eu entendo... Mas, não demore muito a voltar,
sim? — sorriu, esperançosa. — Você se mata de trabalhar e mal tira uma
folguinha. Precisa descansar e nos visitar mais vezes.
— Mamãe disse que a gente vem no Dia do Presidente! —
Entusiasmado, Nick exclamou, dando pulinhos.
Todos nós rimos com a sua empolgação.
— É... É verdade... Quero dizer, eu só comentei por alto, mas o Nick
já tomou como certo que isso vai acontecer — disse eu, entre risinhos. —
Mas, eu vou tentar, sim, tirar mais folgas esse ano, e também vou fazer o
possível para não ser escalada no Dia do Presidente. Quem sabe, eu venho
passar o feriado com vocês.
— Ah, filha, seria ótimo — Dessa vez, quem disse foi o papai.
— E traga a Agatha também, viu? — Mamãe completou, sorrindo,
como um aviso irremediável.
— Claro que eu trago. Já assinei o contrato de posse e propriedade
— falei, brincando.
A loira riu.
— Eu agradeço, de verdade — E replicou. — Muito obrigada pelo
carinho que tiveram comigo e por me receberem tão bem. Eu adorei. Eu
adorei tudo.
Sim, ela era o motivo do meu orgulho.
— E nós adoramos você, meu bem — Mamãe também disse,
enquanto papai acenava um sim com a cabeça. — Saiba que sempre será
bem-vinda em nossa casa.
Eu tinha os melhores pais do mundo, não é?
— Ah, vocês são uns fofos! — Madison exclamou, brincalhona. —
Parece aquelas famílias de comercial de margarina, sabe?
— Ai, Mad, você sempre estraga os momentos fofos com esses
comentários — Ava retrucou, divertida.
Todos riram.
Essa era realmente uma marca registrada da Madison. Sempre tirava
uma brincadeira ou fazia alguma piadinha nessas horas.
— Bem, acho melhor irmos, não é? — Suspirando, falei. — Senão,
vamos chegar tarde em Las Vegas.
— Por mim, vocês ficariam aqui pelo resto da semana — Divertida,
mamãe replicou. — Mas, já que precisam ir, façam uma ótima viagem. E
tomem cuidado. Quando chegarem em casa me avisem.
Assim, entre beijos, abraços e promessas de que logo voltaríamos,
nós nos despedimos.
Deixamos Los Angeles por volta das nove horas da manhã. Quase
no mesmo horário que saímos de Las Vegas na ida. Toda a paisagem
californiana sendo deixada para trás, junto com suas enormes palmeiras
imperiais e seu excitante clima praiano. Com as janelas abertas, o vento
bagunçava os nossos cabelos, como se tudo ao redor parecesse rápido
demais e lento demais, ao mesmo tempo. Eu vi as mechas loiras da Agatha
voarem em câmera lenta frente aos meus olhos, enquanto o carro deslizava
ligeiro pelas rodovias.
A sua beleza.
O seu encanto.
A mulher que eu queria e que eu tinha para mim.
Apesar de tudo e das lembranças empolgantes vividas naquele final
de semana, o caminho de volta foi mais introspectivo que o de ida. Talvez já
fosse a saudade batendo de algo que ficaria guardado na nossa memória. Ou
talvez fosse apenas o enfado da farra e da festa que durou até altas horas.
Mad e Ava, inclusive, foram praticamente o caminho inteiro dormindo, com
Nick, no banco de trás. Eles estavam bem cansados. Era perceptível. A
adrenalina da viagem já tinha passado.
Também não havia música por ali. O único som ouvido era o da
trilha sonora que o vento impetuoso, que entrava pelas janelas, fazia. Talvez
fosse mais uma razão para o sono.
E Agatha seguia com seu olhar sereno. Com seus sorrisos
agradáveis e com seu semblante ameno, ainda que, vez por outra, ao longo
do caminho, eu percebesse, mesmo de maneira quase ínfima e discreta, um
pequeno traço de preocupação ou de inquietação. Como a cada vez que ela
respirava fundo, pensativa, ou passava as mãos na roupa, enxugando-as.
Embora tentasse ser comedida em toda atitude, eu percebia.
Eu percebia porque já a conhecia bem demais, como se fosse de
outra vida, ainda que eu a tivesse visto, pela primeira vez, somente há
poucas semanas. Eu já sabia tão bem como aquela garota funcionava. Algo
estava incomodando-a. Eu só precisava descobrir o quê.
Ainda tentei desvendar algo, através do seu olhar ou da forma
contida como dava a entender aquilo, mas, aparentemente, quando percebia
que eu estava notando, ela me devolvia um sorriso imenso, soltava algum
beijinho, ou colocava a mão na minha coxa em um carinho, antes que eu
perguntasse qualquer coisa, como se quisesse demonstrar que estava tudo
bem ou se esquivar de qualquer questionamento.
Bem, naquele momento eu não insistiria.
Mas, ainda tentaria saber o que poderia estar acontecendo.
Quando chegamos em Las Vegas, já era mais de uma hora da tarde.
Dobrar na rua da sua casa foi como um prenúncio. O prenúncio do fim
daquele sonho tão fugaz do fim de semana. Talvez um fim de semana já
tivesse sido o suficiente para eu me acostumar com a sua companhia do
momento em que eu abrisse os olhos até o horário de dormir. E eu queria
tanto que fosse assim todos os dias. No fundo do meu coração, eu sentia
isso: a vontade de acordar e dormir todos os dias com Agatha ao meu lado.
Bem, eu faria o possível para que esse desejo se realizasse.
Estacionei em frente à sua mansão e desci do carro, para ajudá-la a
tirar a mala do bagageiro. Mad, Ava e Nick ficaram aguardando no banco
de trás. Uma saudade já apertava o meu peito, mesmo que eu fosse
encontrá-la, no dia seguinte, na penitenciária. Talvez porque eu soubesse
que não seria a mesma coisa. Claro que não. Encontrá-la na penitenciária
jamais seria a mesma coisa que viajar com ela, ou encontrá-la na minha
casa, ou em qualquer outra parte do planeta. Aquela penitenciária era como
uma espécie de câncer para nós. Minava a nossa relação, mesmo que
minimamente.
Precisar fingir que não tínhamos nada, quando o meu coração
gritava por ela, estava se tornando cada vez mais difícil. Eu só queria saber
até quando eu aguentaria isso. Aqueles cinco meses que restavam, para o
fim da sua pena, tinham que passar muito, muito rápido. Era uma questão
de necessidade.
Ao colocar a sua mala sobre a calçada e lhe oferecer um pequeno
sorriso de quem tinha que se despedir, mas, no fundo, não queria, falei:
— Bom... Está entregue. Sã e salva.
Ela sorriu de volta, muito embora o sorriso não alcançasse os seus
olhos.
Aquela impressão de algo por trás das suas íris permanecia ali.
— Obrigada. Obrigada por tudo. Mesmo.
— Gostou da viagem? — perguntei.
— Claro! Eu amei — respondeu sinceramente. — A viagem foi
maravilhosa. Seus pais são ótimos e tudo o que nós fizemos foi incrível. Eu
vou ficar com saudades.
Eu vou ficar com saudades...
Foi então, quando eu percebi que, apesar do sorrisinho de gratidão e
felicidade que me deu, ao final, ainda existia muita coisa por trás. Algo no
fundo do seu olhar. Aquela mesma impressão que eu tive no percurso de
volta da viagem.
Ela não ia ficar com saudades... Ela já estava, assim como eu.
— E está tudo bem com você? — Ainda perguntei.
— Comigo? — arqueou brevemente as sobrancelhas, quase surpresa
com a minha pergunta. Ou como se tivesse perguntado apenas para ganhar
um tempo pensando na resposta.
— Sim... Quero dizer... Eu não sei, mas percebi algo. Você parecia
meio preocupada com alguma coisa, no caminho de volta.
Vi quando sua garganta pareceu engolir seco, ao descer e subir
rapidamente. E, então, sorriu, ou riu de leve, balançando a cabeça, como se
eu tivesse falado algo muito bobo, ou sem noção.
— Ah, eu? Isso foi só impressão sua — franziu o cenho de leve,
ainda sorrindo.
No fundo, eu realmente queria que fosse só impressão minha, mas...
— Tem certeza? Você sabe que pode sempre me falar qualquer
coisa.
— É claro... Por que eu não estaria bem? — E me abraçou, me
dando um beijo de despedida na boca e me fazendo perder o chão por
alguns segundos, como sempre acontecia quando os seus lábios se
encontravam com os meus. — Eu te amo — sussurrou. — Foi um dos
melhores finais de semana da minha vida.
Para mim também...
Suspirei, pousando minha mão sobre o seu rosto e encarando o
fundo dos seus olhos.
— Eu amo você, Agatha. Muito.
E ela sorriu. Dessa vez, mais intensamente do que nas outras,
durante aquela manhã.
Era esse o seu sorriso verdadeiro.
Porém, antes que pudéssemos falar mais alguma coisa...
— Tchaaaau, Agui! — Nick exclamou, se pendurando na janela para
se despedir dela.
A loira soltou uma risadinha.
— Tchau, meu amor! — disse ela, o abraçando ali mesmo e dando
um beijo cada bochecha sua. — Tchau tchau Mad! Tchau Ava! — Também
falou, acenando com a mão.
— Até mais, Agatha! — Elas disseram.
E, com uma piscadinha de olho e um pequeno sorriso, ela segurou
no puxador da sua mala de rodinhas e se despediu de mim pela última vez.
Ainda a observei caminhar até os imensos portões da fortaleza onde
ela morava. Sorri por breves instantes. Uma centelha de emoção se
formando no cantinho dos meus olhos, ao me dar conta, pela milésima vez,
de que eu estava com a mulher mais especial de todo o planeta. Uma
fagulha de felicidade por saber que, mesmo que o fim de semana tivesse
acabado, ela ainda seria minha, no dia seguinte.
E, então, segundos antes dos seguranças fecharem os portões, após
ela entrar e sumir do meu campo de visão, senti algo estranho. Uma
sensação ruim, um incômodo repentino que me fez franzir o cenho. Algo
que eu não sabia descrever o que era, mas que me deixou confusa pela
intensidade com a qual me tomou.
Talvez, um pressentimento.
Ainda passei um tempinho de pé, na calçada, observando fixamente
a fachada da casa dela, na tentativa de entender o que estava acontecendo
comigo. Porém, quando eu decidi dar um passo para voltar ao carro, o meu
celular tocou no bolso da calça.
O número era desconhecido.
Minha testa enrugou outra vez.
— Alô?
— Olá. Eu falo com a policial Scott?
Eu não reconhecia aquela voz.
— Sim... No que posso ajudar?
— Policial Scott, eu sou a secretária da Superintendência da Polícia
de Las Vegas. O Superintendente McConaughey está solicitando uma
reunião, em caráter de urgência, com a senhora. Ele pede que se dirija o
mais rápido possível ao prédio da Superintendência e aguarda a senhora
ainda hoje.
Superintendente McConaughey?
Algo despontou em mim.
— Você poderia me adiantar do que se trata? — Ainda perguntei.
— Infelizmente não, senhora. Somente com ele.
Passei a língua entre os lábios.
— Entendi. Está bem. Dentro de uma hora, eu estarei aí.
E desliguei.
Guardei o celular no bolso e puxei o ar, encarando a fachada da casa
da Agatha numa última vez. Pela minha experiência, ser chamada
pessoalmente pelo Superintendente de Polícia poderia significar duas
coisas. Algo muito bom, como receber uma promoção ou ser escalada para
a maior missão da sua vida. Ou algo muito ruim, como uma demissão.
Agatha

Sim, aquele foi um dos melhores finais de semana da minha vida.


Sem dúvidas, o melhor dos últimos tempos. Chegava a se comparar com os
finais de semana da época em que a mamãe ainda estava aqui. A alegria, a
festa saudável em família, as risadas, os abraços calorosos e a certeza de
que eu não poderia estar em qualquer outro lugar melhor do que aquele
onde eu já estava. Nenhum dinheiro no mundo nunca comprou aquilo para
mim. As únicas vezes que ganhei foram me dadas de graça, pela minha
mãe, quando ela estava viva.
E, agora, por Zara e pela sua família que me recebeu como se eu já
fosse parte deles.
Nem todo o valor que eu tivesse no banco pagaria por aquilo, assim
como nem toda farra que eu tivesse feito ou participado, nos últimos anos,
conseguiria chegar aos pés do preenchimento do vazio, no meu coração,
que aquele final de semana me proporcionou e que aquelas pessoas me
deram gratuitamente. Nenhuma festa, em Las Vegas, no pub mais cobiçado,
com as pessoas mais ricas e com as bebidas mais caras, poderia se comparar
ao que eu vivi na simplicidade da casa dos pais da Zara em Los Angeles.
Eu jamais me esqueceria daquilo.
Eu jamais me esqueceria do carinho que eles tiveram comigo e do
amor que a Zara me deu. O primeiro eu te amo que ouvi sair da sua boca
para mim. Para mim. Exclusivamente para mim. Logo eu que achei que
nunca poderia ser digna de receber o afeto sincero de alguém, porque
sempre fui acostumada com a miserabilidade do que era dado a mim pelo
meu pai e por praticamente todas as outras pessoas do mundo que estavam
mais preocupadas com a minha conta bancária do que unicamente com a
minha pessoa.
Zara era um sonho.
Um sonho tão bonito para alguém que tinha desaprendido a
acreditar que a bondade poderia se tornar uma realidade.
E eu a amava com todo o meu coração.
Não porque eu precisava dela.
Mas porque eu a queria na minha vida.
E eu também quis que aquele fim de semana nunca tivesse acabado.
Eu quis não precisar voltar para casa. Eu desejava não ter que retornar
àquela realidade, onde eu dividia um teto com o meu pai. Percebi que nem
todo o conforto que o meu corpo poderia receber em uma casa luxuosa,
com móveis refinados e enxovais teoricamente aconchegantes, seria capaz
de afagar a alma. Talvez o corpo, a massa e o material pudessem apreciar
minimamente aquilo, mas não o que havia dentro de mim.
O que existia dentro de mim, a alma, o espírito, os sentimentos, não
se iludiam com a imponência da riqueza. Pelo menos, não mais. Não agora,
depois de tudo o que eu vivi nas últimas semanas e de saber que todo o luxo
pelo qual eu buscava era apenas uma forma de tentar conseguir aquilo que
ganhei gratuitamente: afeto verdadeiro. Agora, eu preferiria o simples, mas
afetuoso, do que o luxuoso e frio.
Era nisso, exatamente nisso, que passei todo o caminho de volta
pensando, mesmo que eu tentasse disfarçar. E eu sabia que Zara tinha
notado porque nada passava despercebido por aquela mulher. Mas, eu
preferi não comentar. Achei melhor deixar aquilo bem guardado. Não
queria preocupá-la, principalmente depois de tantas coisas boas que
vivemos no fim de semana. A real era que eu quis prolongar o clima bom
da viagem, o máximo que eu conseguia, e não o cortar com a porra dos
meus problemas.
Bom, pelo menos era o que eu pretendia.
A passos breves e comedidos, caminhei lentamente por toda a
extensão do jardim da casa. Quase com os ombros curvados em desânimo.
A sensação de que o meu lugar já não era mais ali. Empregados e
funcionários passavam por mim desejando “bom dia”, mas eu só era capaz
de lhes oferecer um pequeno sorriso. Eu deveria ter voltado explodindo em
pura felicidade por ter feito uma viagem tão maravilhosa. Sim, deveria. Só
que a viagem, infelizmente, foi passageira. E morar naquela casa,
dependendo financeiramente do meu pai para tudo, era uma condição
constante.
Quando abri a porta da sala, no entanto, o local estava vazio e
silencioso. Características que não eram nem um pouco incomuns. A casa,
em geral, tinha esse clima todos os dias mesmo. Um silêncio mórbido. Uma
vivacidade morta. Ainda procurei por Evangeline na cozinha e no seu
quarto, a única razão por, até então, eu não ter enlouquecido ali, mas não a
vi em lugar algum. Uma pena. Talvez ela tivesse saído para o mercado.
Tudo o que eu mais queria, no entanto, era o seu colo até que aquela
sensação de luto, por estar de volta, passasse minimamente.
Subi para o meu quarto, sem escolha.
Só que aí, quando assim o fiz, nada, nem ninguém seria capaz de me
preparar para o que aconteceria nos minutos seguintes. Provavelmente os
minutos mais dolorosos pelos quais eu já tinha passado.
Ao abrir a porta do meu quarto, um susto. Ele estava sentado na
minha cama, exatamente de frente para mim. Em sua mão, havia um cinto
de couro verdadeiro, grande e grosso. A fivela prateada e pesada brilhou
bem nos meus olhos que já cintilavam em lágrimas formadas
automaticamente.
— P-Pai...?
Meu coração disparou, minha respiração falhou, minhas mãos
congelaram. Todo o sangue do meu corpo se escondeu bem dentro de mim,
enquanto uma súbita ânsia de vômito me tomou. Eu travei, paralisei, ali, na
porta, ao mesmo tempo que a taquicardia, com a falta de fôlego, não me
deixava respirar direito, como num iminente ataque de pânico. Eu já
conhecia os sintomas há muito, muito tempo.
Ele não me respondeu nada.
Apenas fez o que tinha para fazer. Na verdade, o que adorava fazer.
Naquele momento, ele me bateu muito mais do que em qualquer
outro dia da minha vida. E eu sabia exatamente os motivos pelos quais ele
estava me batendo, mesmo eu gritasse e suplicasse para que ele parasse.
Nenhum desses motivos, porém, eram capazes de justificar os seus atos.
Eu simplesmente não aguentava mais isso.
Estava exausta.
As regras do coração

Zara

Eu preferi não falar nada para Mad e Ava, porque sabia que elas iriam ficar
preocupadas ou tirar conclusões precipitadas sobre algo que eu nem fazia
ideia do que se tratava. Ou talvez, no fundo, eu até soubesse... Apenas disse
que fui chamada para cobrir uma emergência da polícia. Deixei-as no
prédio, junto com Nick. Pedi a gentileza que ficassem com ele até eu voltar.
Vesti minha farda e fui.
A Superintendência da Polícia de Las Vegas não ficava muito
distante de onde eu morava. Por isso, não demorei a chegar. Durante o
percurso, foi como se, instintivamente, o meu corpo e os meus sentimentos
já estivessem se preparando para qualquer coisa. Boa ou ruim. Sobretudo,
ruim. Algo, lá dentro da minha alma, sussurrava a razão para eu estar ali.
Uma sensação de déjà vu. De passado se repetindo no presente, como se eu
já tivesse vivido aquilo.
E já tinha.
Cerca de cinco ou seis anos atrás.
Fui chamada naquela mesma Superintendência.
O resultado, eu já conhecia.
Respirei fundo e entrei no imponente prédio. A sala do
superintendente ficava no último andar. Por isso, peguei um elevador e subi
direto para lá. Fora a sala do McConaughey, havia mais outras duas, além
do balcão da secretária. Porém, a primeira pessoa que eu vi, ao chegar lá,
foi Alexa Westphalen, sentada em uma das cadeiras da recepção, com os
cotovelos sobre as pernas e a cabeça entre as mãos. Preocupada. O que ela
fazia ali, eu não sabia, mas, com certeza, tinha a ver comigo.
De súbito, eu senti o impacto apenas por vê-la daquela maneira.
Eram raras as vezes em que Westphalen demonstrava qualquer tipo de
vulnerabilidade ou abatimento. Aquela mulher sempre foi uma fortaleza.
No entanto, tentei segurar as pontas, me mantendo firme. Eu já tinha
passado por muitas coisas, assim como também deveria me preparar para o
que viesse. Eu não era uma mulher fraca. Eu era Zara Scott. E, de um jeito
ou de outro, a minha vida iria seguir.
Caminhei, então, pelo corredor. Foi quando ela girou o rosto e me
viu. Tive uma certeza ainda maior de que ela estava, de fato, abalada.
Repentinamente, se levantou de onde estava, indo em minha direção, com
uma ânsia, uma gana. E, enfim, me abraçou tão apertado e tão forte,
pegando-me de surpresa. Por alguns instantes, eu não tive reação. Apenas
parei de caminhar e, então, sem saber direito onde colocar as mãos, a
abracei devagar.
— Me desculpe, me desculpe... — suplicava em meus ouvidos. —
Eu tentei fazer o que pude, mas... Eu não consegui... Eu não consegui. Me
desculpe, Zara. Me desculpe.
Então, a merda era grande... Talvez, aquilo que eu já imaginava.
Foi a primeira coisa que pensei.
Puxei o ar.
— Alexa... — Nos separei apenas alguns centímetros, segurando seu
rosto com as duas mãos. Seus olhos lacrimejavam como se aquilo estivesse
acontecendo com ela mesma. — Está tudo bem, ok? Está tudo bem —
tentei acalmá-la.
Se o motivo fosse aquele que já sussurrava no meu coração, quem
sofreria todas as consequências seria eu. Não ela. Então, somente por isso,
tudo já estava bem.
Todavia, antes que ela pudesse falar mais alguma coisa, a secretária
disse:
— Policial Scott?
— Sim...? — Girei o rosto para ela.
— Policial Scott, o superintendente McConaughey está aguardando
em sua sala. Por favor, me acompanhe. Inspetora Westphalen também.
E, assim, sem mais delongas, saiu de sua mesa e nos guiou pelo
último andar, até a sala do superintendente. Meu coração, o tempo inteiro,
gritava uma certeza, mesmo que ninguém ainda tivesse me dito
abertamente. Apesar disso, eu estava estranhamente calma. Talvez fosse a
certeza do pior. Ou melhor, talvez fosse a certeza de que o pior seria ainda
mais doloroso se eu tivesse que deixar para trás, mais uma vez, o desejo do
meu coração.
E isso eu não faria.
Pelo menos, não outra vez.
Quando a secretária abriu a porta para nós, lá estava ele. Ao
contrário de Westphalen, que era uma inspetora mais recente na
penitenciária, aquele homem era o mesmo superintendente de anos atrás. O
mesmo que participou de um dos momentos mais difíceis da minha vida. O
mesmo que me obrigou a escolher entre o meu trabalho e o meu coração. O
mesmo que quase me demitiu por causa da Haven.
Novamente, aquela sensação de déjà vu bateu. Só que muito mais
forte.
— Boa tarde, Policial Scott e inspetora Westphalen. Por favor,
sentem-se — apontou ele para as cadeiras que ficavam em frente à sua
mesa.
Assim que o fizemos, ele continuou:
— É um prazer recebê-la em meu escritório, policial Scott, mas não
pelo motivo que a trouxe aqui. Você sabe porque foi chamada?
— Não.
Menti.
Alguma coisa já me dizia.
Ele respirou profundamente, e, então, abriu uma das gavetas da sua
mesa, colocando vários papéis em cima, bem à minha frente.
— Policial Scott, desde que você entrou na polícia de Las Vegas,
tem se destacado como uma das melhores e mais profissionais agentes da
nossa cidade. Por isso, já ganhou promoções, aumentos salariais e
certificados de honra ao mérito. Nós realmente valorizamos a sua presença
aqui, pelo bom trabalho. Mas... Aparentemente, você possui um tipo de...
— franziu o cenho, como se estivesse tentando escolher as palavras certas.
— Um tipo de calcanhar de Aquiles. Uma fraqueza. Uma grande fraqueza.
— Foi aí que empurrou o material, sobre a mesa, em minha direção. —
Você reconhece essas fotos? — E, com seriedade, me encarou.
Quando olhei para as inúmeras imagens espalhadas por ali, havia
apenas uma verdade: tinham nos descoberto. A verdade que o meu coração
já sussurrava. O meu relacionamento com Agatha sendo exposto por um
dos membros superiores da Polícia de Las Vegas. O passado se
apresentando com uma nova roupa no presente. Tudo outra vez, mas de um
jeito diferente, porque, agora, eu não estava apenas apaixonada. Eu estava
amando aquela garota.
Uma série de fotos minhas com Agatha, beijando Agatha, abraçando
Agatha, namorando Agatha, rindo com Agatha, no dia em que nós fomos
jantar em um dos hotéis do seu pai. Eu não sabia como a polícia tinha
conseguido aquilo. Ou até soubesse, na verdade. Apenas uma pessoa
poderia ter feito isso. Afinal, eram registros de imagens captadas através
das câmeras de segurança do local.
Só que de todas as coisas que eu poderia sentir, por estar sendo
exposta daquela maneira, quando eu sabia das regras veementes da polícia,
tudo do que o meu coração se encheu foi de alívio, orgulho e felicidade.
Alívio por acabar com a farsa. Orgulho pela mulher que eu tinha. Felicidade
por finalmente poder falar a verdade sem peso na consciência. Eu até quis
sorrir, como se sentisse um gostinho de liberdade na minha boca.
E se tinha uma coisa que eu aprendi, durante todos os últimos anos,
foi não ser covarde.
— Sim — confirmei. — São registros meus com a minha mulher.
O superintendente ergueu uma das sobrancelhas.
— Sua mulher?
— Sim. Minha mulher.
E, Deus, eu enchia tanto a minha boca para falar isso.
Ele suspirou, ajeitando-se sobre sua cadeira, como se não esperasse
que eu lhe desse uma resposta como essa.
O que ele queria?
Que eu ficasse ali como um cachorrinho com o rabo entre as
pernas?
Não mais. Eles nunca mais me deixariam dessa maneira.
— Bem... Recebemos uma denúncia anônima com essas fotos —
Ele continuou. Uma denúncia anônima que eu sabia exatamente de onde
tinha saído. — Por isso, comuniquei à Westphalen, pedindo para que ela
viesse aqui, já que é sua superior na penitenciária. E também pedi para que
você estivesse aqui, mesmo que não seja nenhuma novidade o que eu tenho
para lhe falar. Você sabe que está incorrendo, pela segunda vez, na infração
de uma das regras mais claras da polícia, não sabe? Isso acarreta a você
uma demissão sumária. Sem novas chances.
— Superintendente McConaughey...! — Alexa repentinamente
exclamou. Parecia tão angustiada quanto eu deveria estar. Seus olhos ainda
demonstravam toda a preocupação que sentia por mim. — Por favor,
superintendente McConaughey... Deve haver algo que possa ser feito — Ela
se remexeu sobre a cadeira, encarando-o fixamente. — A policial Scott não
pode ser simplesmente demitida assim. Ela é uma das melhores que nós
temos.
O homem puxou o ar mais uma vez, fitando nós duas atenta e
seriamente.
— Qualquer outro chefe de departamento ou superintendente da
polícia, desligaria Scott, sem dar qualquer outra chance, por ter infringido a
mesma regra duas vezes. Mas... O que a inspetora Westphalen falou é uma
verdade. Scott é uma das melhores que nós temos, muito embora possua um
péssimo desvio de caráter por se envolver com quem não deve. Nós não
queremos perdê-la, policial, apesar de tudo. Eu não quero fazer isso sem
antes tentar resolver da melhor forma para todos nós.
Desvio de caráter? Resolver da melhor forma para todos nós? Que
melhor forma? Que tipo de “melhor forma” alguém que me acusava de
desvio de caráter poderia sugerir?
Eu deveria ir embora dali só por essa falta de respeito. Vontade
realmente não me faltou. Fiz um esforço tremendo para não falar alguma
besteira e perder a razão, assim como também trinquei a mandíbula e
concentrei no meu corpo todo o sangue de barata que poderia haver, para
replicar apenas:
— Então, diga.
Séria e friamente.
— Isso é bem simples. Eu posso abrir uma exceção para você e lhe
dar mais uma chance de continuar conosco e de permanecer no seu
emprego, sem que ninguém fique sabendo desse seu... Probleminha. Todo
esse caso ficará apenas entre nós três e mais ninguém. Isso vai lhe ajudar,
sobremaneira, policial Scott, porque o caso será enterrado como se nada
tivesse acontecido, e você não terá que responder sobre nada a respeito
disso. Mas, para que eu lhe conceda esse benefício, a relação entre a garota
e você precisa ser encerrada agora. A inspetora Westphalen ficará a cargo
de transferi-la para uma das nossas outras unidades. Assim, ela poderá
cumprir o restante da pena sob a supervisão de outro agente, e vocês não
terão qualquer outro contato. Creio que seja o mais correto e sensato a se
fazer no momento.
O mais correto e sensato a se fazer?
Transferi-la? Tipo como fizeram com a Haven que eu nunca mais
vi?
E isso era bem simples?
Bem simples para quem? Para ele?
Ainda olhei de relance para Alexa, que esboçava, em minha direção,
um sorriso pequeno, preocupado e quase ansioso, como se me dissesse em
silêncio “aceite isso, pelo amor de Deus, mas não perca o seu emprego”.
— Não perca o seu trabalho e todos os benefícios, Zara — Ele
completou. — Este é o seu sustento, e o sustento do seu filho.
O sustento do seu filho...
Aquele filho da puta estava tentando me atingir da maneira mais
baixa.
Sim, eu sabia.
Era não somente o meu sustento e o sustento do meu filho, como
também foi o meu sonho por muitos e muitos anos. Ainda continuava
sendo, na verdade. Passei dias, longos dias, pensando nisso, enquanto o
desejo por ela atormentava a minha cabeça e o meu corpo. Por um tempo,
aquelas justificativas realmente pareceram importantes para mim, e eram,
ao passo que, em contrapartida, eu sufocava uma parte do que eu estava
sentindo tão intensamente, pela primeira vez, em anos, por alguém.
Acontece que eu não era formada por um único sonho. Zara era uma
soma de várias partes que formavam o todo. E essas várias partes eram
diversos sonhos e desejos que eu pretendia cumprir um dia em minha vida.
Incluindo, ser quem eu realmente era e amar alguém sem medidas.
Entrar para a polícia era um sonho realizado. Aquilo já fazia parte
de uma realidade vivida por mim.
Mas, viver um amor, não. Eu ainda não tinha vivido um amor.
Ou não tinha me permitido viver.
E, mais uma vez, lá estava eu, naquela mesma sala, sendo
confrontada pela mesma pessoa. Um choque entre o passado e o presente.
As lembranças de como eu me senti impotente depois de ter, covardemente,
deixado Haven ir. A culpa que carreguei, durante anos, por não ter seguido
o meu coração. E, agora, eu novamente sendo colocada à prova, pela razão
e a emoção, tendo que escolher entre uma delas, como se uma fosse a
boazinha e a outra a vilã da história.
Na verdade, não existia um maniqueísmo desse tipo. A única coisa
que existia era uma mulher querendo ser feliz e fazer a sua própria vontade
pela primeira vez na vida.
Ao contrário do que McConaughey pensava, aquelas fotos, que
expuseram a nossa relação, não representavam a minha fraqueza. Aquilo
não era o meu calcanhar de Aquiles. Me apaixonar por Agatha Ballard e me
permitir sentir o que sentia por ela, na real, eram as maiores provas da
minha força e da minha grandeza. A força de ser quem eu realmente era e
quem eu realmente queria ser. A grandeza de ocupar o lugar de uma mulher
que escolhia seguir o próprio coração e não as imposições alheias.
Quanto ao meu trabalho e ao meu dinheiro, para tudo havia um
jeito.
Eu sempre dei os meus jeitos, ao longo da vida, afinal.
— Obrigada pela proposta, superintendente McConaughey — disse
eu, firme. — Obrigada, mas eu não quero.
Dessa vez, eu não precisava nem pensar. Eu não tiraria um tempo
para refletir, assim como foi com Haven. E também não permitiria que eles
tomassem a decisão por mim.
Notei, entretanto, quando as sobrancelhas do homem arquearam em
pura surpresa, ao mesmo tempo que Westphalen soprava o ar pela boca
como quem já tinha perdido as esperanças.
— Você não quer? — Sem entender, ele questionou. — Você prefere
trocar a sua carreira e o seu emprego por causa de uma garota
problemática?
Não, ela não era uma garota problemática.
Ela era a minha mulher.
— Não, eu não quero, superintendente McConaughey — enchi o
peito para falar. — Eu não quero porque não permito ser coagida por vocês,
mais uma vez. Nenhum dinheiro no mundo que eu receba, por trabalhar na
polícia, nunca conseguiu cobrir o dano moral que eu sofri, anos atrás, por
não ter seguido o que o meu coração queria. Então, não, eu não aceito a sua
proposta. E, se eu realmente fosse importante para vocês, eu não seria
demitida por causa disso. Eu não seria demitida por estar me envolvendo
com uma garota que nem é detenta. Uma garota que está apenas cumprindo
uma pena de seis meses que logo vai acabar.
Ainda com seriedade e frieza, como se não tivesse gostado nem um
pouco da minha resposta, ele respondeu:
— Estamos apenas cumprindo as regras, policial Scott.
Fodam-se as regras...
Já dizia a Agatha.
Por dois segundos, eu quis sorrir brevemente, apenas por ouvir a sua
voz, na minha memória, me falando isso. Mas, tentei me manter quieta.
— Eu sei — balancei um obediente sim com a cabeça. — Eu
também estou seguindo as regras. As regras do coração. Do meu coração.
Vi quando passou a língua entre os lábios, encarando-me de modo
quase intimidador.
Um jeito intimidador que não me intimidava em nada.
— Corajosa, policial Scott... — disse ele.
— Sim, eu sou — respondi sem pestanejar, de queixo erguido e
nariz empinado, assim como Agatha, mesmo sem saber, tinha me ensinado.
— Sou corajosa e sei que você ainda vai me pedir para voltar,
superintendente McConaughey.
Ainda mais surpreso com o que falei, ele questionou, quase irônico:
— Ah, eu vou? Como pode ter tanta certeza?
Sorri de maneira bem breve.
— Porque eu sou uma das melhores policiais da cidade. Você
mesmo disse.

✽✽✽

Apesar de tudo, da minha força em não me curvar mais uma vez e


da resiliência em rebater os ditames do superintendente McConaughey,
depois que cheguei em casa, ainda me permiti derramar uma ou duas
lágrimas. Talvez um pouco mais do que isso. Não porque eu estava
arrependida do que fiz. Claro que não. Eu tinha certeza de que jamais me
arrependeria daquela decisão, especialmente por ter tomado uma atitude
que há anos eu deveria ter feito. No fundo, eu sabia que aquelas lágrimas
eram efeito da baixa na minha adrenalina, depois daquele embate, ou
mesmo pela leve indignação que eu sentia da classe policial, por terem me
colocado na rua sob a justificativa daquilo.
Sim, eu sabia que era uma regra. Eu sabia que, diante dos olhares de
boa parte das pessoas que trabalhavam na polícia, aquele relacionamento
era antiético. Eu sabia de tudo isso, e de tantas outras coisas. Mas, mesmo
assim, nada, no mundo, me tiraria aquela sensação de que eu estava sendo
demitida por uma bobagem.
Ainda assim, eu tinha certeza de que fiz o certo. Dessa vez, eu
estava seguindo o meu coração. E, nenhuma outra atitude que eu tivesse
tomado, faria eu me sentir tão em paz comigo mesma do que aquela de não
ter aceitado a proposta do McConaughey. Eu sofreria as consequências,
sim. Eu perderia o meu trabalho. Mas, eu sabia que eu ia dar um jeito nisso.
Eu sempre dava. Eu sempre me virava. Assim como também, no fundo,
algo me dizia que as coisas não terminaram daquele jeito. Era como mais
um daqueles sussurros internos, tão típicos, que eu tinha. Uma certeza de
que a minha história na polícia não acabaria daquele jeito.
Não obstante, ao chegar em casa, já com o processo demissional em
mãos, a única coisa que eu consegui fazer foi seguir direto para a dispensa e
juntar todo o meu material de trabalho, que eu guardava ali, para devolver à
polícia. As minhas fardas extras, as várias maletas com pistolas, munições e
algemas, os muitos equipamentos que o Estado me dava para cuidar da
segurança das pessoas, e os meus distintivos. Eu estava tirando tudo e
levando até a sala, para colocar organizadamente em uma grande e espaçosa
mala. Aquilo ficaria em um cantinho do chão, até o dia seguinte, que era
quando eu iria novamente à Superintendência, para entregar-lhes tudo de
volta.
Eu ainda não tinha entrado em contato com a Agatha, porque,
durante todo o tempo, depois que eu terminei a reunião com o
McConaughey e a Westphalen, eu fiquei pensando em como contar tudo
aquilo para ela. Eu queria falar da melhor maneira possível, para que ela
não criasse qualquer sensação de culpa. Uma culpa que, evidentemente, não
existia, nem deveria existir. Mas, o receio de não saber como Agatha iria
reagir, ainda que eu escolhesse as melhores palavras, era o que continuava
me travando em pegar o celular e discar o seu número. Eu vi a maneira
como ela ficou somente por saber sobre a minha história com Haven. E eu
realmente não queria que aquele recém-incidente com a polícia afetasse o
seu relacionamento comigo de nenhuma maneira.
Por isso, eu continuava pensando.
Foi quando eu carregava mais uma leva de materiais, para sala, que
ouvi Nick perguntar:
— Mamãe, por que os seus olhos estão molhados?
Isso me atingiu com certa surpresa, já que, até então, ele brincava
detidamente com os seus carrinhos por ali. Não achei que ele estivesse
prestando atenção em outra coisa.
Suspirei, ensaiando um meio sorrisinho para ele.
— Impressão sua, meu amor. Está tudo bem.
Ele franziu o cenho de leve, esperto como sempre era.
— Tem certeza?
Nick era adorável.
Largando o material por ali, eu me aproximei dele, que brincava no
chão. Flexionei os joelhos para ficar na altura do seu olhar e passei a mão
nos seus cabelos, fazendo carinho.
— Tenho sim, querido. A mamãe está bem, obrigada.
Ele balançou um breve sim com a cabeça, ainda pensativo.
— Hum... Por que não chama a Agui pra cá? Sei que ela faz bem a
você.
Sei que ela faz bem a você...
Uma frase quase despretensiosa, mas tão poderosa, que não me
causou outra sensação além de um coração quente e confortável, e outra
atitude além de um sorriso largo, verdadeiro e emocionado.
— Você acha que ela me faz bem, querido? — perguntei.
Meus olhos agora molhados de alegria.
— Acho, mãe. Ela faz bem a você. E faz bem a mim também,
porque me sinto feliz quando te vejo feliz. A Agui é muito legal — sorriu.
Soltei todo o ar pesado dos pulmões, de súbito, ao ouvir aquilo,
aliviada, reconfortada, quase flutuando, como se mais alguns trezentos
quilos estivessem saindo das minhas costas, fora todo o peso que eu já tinha
retirado de mim apenas naquela reunião com McConaughey. E eu sorri.
Sorri, grata por tê-lo como meu filho, por ele ser um anjo na minha vida,
por ser tão inteligente ao ponto de saber exatamente o momento certo de
dizer as coisas.
Isso era tudo o que eu precisava ouvir. Isso era tudo o que eu
precisava.
Isso já me bastava.
Isso era mais uma das muitas confirmações pessoais de que eu tinha
feito a coisa certa.
— Ah, meu amor... Eu te amo tanto...! — O abracei ali mesmo,
afundando com ele no chão, entre as poltronas e o sofá da sala. — Eu te
amo demais.
— Também te amo, mãe — disse ele, recebendo carinhosamente os
beijinhos que eu espalhava no seu rosto.
Passamos longos minutos assim, dentro daquela bolha de afeto e
carinho, como se não existisse nada no mundo além dos sentimentos bons e
dos sorrisos que compartilhamos mutuamente. Era como se tudo estivesse
perfeito, ou se encaixando. Como se o mundo repentinamente tivesse ficado
bom.
Isso, porém, foi somente até eu escutar a campainha tocar, me
levantar do chão, abrir a porta do apartamento e ter a certeza de que muita
merda ainda precisava ser reparada. Ou pior, de que o mundo continuava
sendo aquele antro de gente maldita que não se preocupava com os outros
além do próprio umbigo.
Em choque, observei Agatha parada, bem à minha frente, de uma
maneira que eu nunca tinha a visto. Seu rosto completamente banhado em
lágrimas que se misturavam com roxos e manchas de sangue. Os olhos
absurdamente inchados de quem tinha chorado toda a água do corpo. E as
marcas horríveis e totalmente expostas de uma pessoa que foi maltratada e
violentada por uma surra enorme, não somente no rosto, mas nos braços,
nas pernas, em tudo.
Ela tremia de cima a baixo.
E, naquele instante, eu morri umas dez mil vezes seguidas.
Sou tudo o que você (não) precisa

Zara

Ainda permaneci paralisada, estática, com o tamanho absurdo que se


desenhava frente aos meus olhos. O choque me consumindo de segundo a
segundo, a ira querendo despontar dentro de mim, por mais que eu ainda
não soubesse nada sobre aquilo, até que ela, não se aguentando mais em pé,
daquela maneira como estava, me abraçou. Quero dizer, ela praticamente se
pendurou em mim, chorando copiosamente.
Fraca, desolada, desesperada.
Foi quando o meu corpo, estupidamente paralisado pelo abalo,
enfim, reagiu da maneira como deveria. Acordei. Segurei-a firme entre os
meus braços, ouvindo-a ainda chorar como um bebê. Chorava tanto que
soluçava. Chorava tanto que se engasgava. E isso acabava comigo. Isso me
detonava em um milhão de partes diferentes, como se o meu corpo fosse
conectado ao dela e eu estivesse sentindo na pele aquilo que ela passava.
Pelo amor de Deus...
Pelo. Amor. De. Deus.
Quem fez isso com a minha garota?
Ou melhor, o que EU ia fazer com o filho da puta que fez isso com
ela?!
Talvez eu já soubesse quem era o autor, afinal.
Aquele desgraçado!
Quando eu quis abrir a boca para falar, no entanto...
— Agui... — Com a voz assustada, ouvi Nick falar. — O que
aconteceu com você?
Instintivamente, virei o rosto para ele, e o vi ali, com os olhos bem
arregalados, ao nos fitar daquela maneira. Parecia tão amedrontado. Droga,
eu não queria que ele presenciasse aquele tipo de coisa. Ele era só uma
criança.
Puxei o ar, tomando fôlego.
— Meu amor, sente aqui, por favor — sussurrei para Agatha,
ajudando-a a caminhar até o sofá da sala. E, então, flexionei os meus
joelhos, me abaixando, para ficar na altura do seu olhar, e segurando o seu
rosto entre as minhas mãos, com cuidado, para não machucar o que já doía.
— Me aguarde, está bem? Eu volto em um segundo.
Ela apenas balançou um leve sim com a cabeça, enquanto,
visivelmente abalada, tentava segurar as lágrimas, mesmo que não
conseguisse tão bem.
Minha garota estava tentando ser forte. Eu sabia.
E eu faria o possível e o impossível para consertar qualquer merda
que acontecesse a ela.
Determinada, peguei o Nick no meu colo, levando para fora do
apartamento. Coração na mão, pulmões tentando regular o fôlego. Em
menos de dois segundos, eu já estava em frente à porta da Mad e Ava,
tocando a campainha. Enquanto isso, eu falei baixinho com ele:
— Meu pequeno príncipe, a mamãe vai precisar de uns minutinhos a
sós com a Agui, está bem? Você pode fazer isso pela mamãe? Eu vou ficar
muito agradecida, filho.
— Tá bom, mãe — disse ele, ainda nos meus braços. — Faz ela
parar de chorar.
Faz ela parar de chorar...
Um pequeno e fraco sorriso ainda quis pincelar os meus lábios, com
a sua adorável inocência infantil.
O filete de esperança de que o mundo ainda poderia ser um lugar
bom...
— Eu vou fazer, meu amor — beijei sua bochecha. — Eu prometo.
Foi quando a porta do apartamento das meninas se abriu e Madison
apareceu.
— Uou, que cara é essa, heim? — Com as sobrancelhas bem
arqueadas, foi a primeira coisa que ela perguntou a mim.
Meu rosto, com certeza, já parecia uma confusão de respiração
ofegante e preocupação.
— Mad, eu não vou poder explicar agora, mas preciso resolver algo
com a Agatha. Então, eu agradeceria muito se você pudesse ficar um
tempinho com o Nick. Por favor. — Faltei suplicar.
— Claro, claro... — Sem demora, ela respondeu, já pegando-o no
braço. — Vai lá. Depois me conta o que aconteceu.
— Tá bem, tá bem — balancei, ligeiro, a minha cabeça, na mesma
velocidade da minha inquietação. — Muito obrigada, Mad. Ava e você são
as melhores.
Saí dali praticamente correndo.
Quando entrei novamente no meu apartamento e fechei a porta, ela
ainda estava ali, encolhida sobre o sofá, tremendo como se continuasse
fazendo um esforço para se manter firme, mas falhasse miseravelmente
nessa missão. E eu sentia várias partes de mim sendo dilaceradas somente
por vê-la daquela maneira. Tudo era muito intenso. Muito pesado. O clima
estava sobrecarregado entre nós, de modo que aquele parecia ser o
momento em que todas as nossas cartas, no jogo da vida, seriam expostas.
Aliás, já estavam sendo expostas.
Que maior exposição haveria, para o corpo de uma mulher, em se
mostrar daquela maneira? Tão vulnerável. Nenhuma mulher, nenhum ser
humano, merecia sofrer agressões gratuitas de alguém, muito menos do
próprio pai.
Me aproximei dela. O coração ainda acelerado. Todos os meus
sentimentos nas minhas mãos, prontos e disponíveis para serem entregues
de bandeja a ela. Claro. Eles sempre foram dela, desde o primeiro minuto
que eu a vi, naquele acidente. Eles já eram dela mesmo quando eu ainda
nem tinha me dado conta.
Sentei ao seu lado, no sofá, levando minhas mãos ao seu rosto e aos
seus cabelos. Meu toque, no entanto, foi como um jorro de estímulo para
que ela voltasse a soluçar. Era como se, apenas em tocá-la, ela fosse capaz
de desmontar por completo, tamanha fragilidade. Abracei-a, então,
firmemente, como numa tentativa de que a minha força, de alguma maneira,
pudesse ser transmitida a ela naquele abraço.
— Foi o seu pai, não foi? — questionei com uma certeza que já era
minha.
O ódio me subindo pela garganta. A ira me fazendo trincar a
mandíbula. A vontade era de acabar com ele, com as minhas próprias mãos,
mesmo que eu, como uma policial, tivesse passado vários anos convivendo
com a máxima de que a justiça não deveria ser feita com as próprias mãos.
Naquele momento, no entanto, era como se eu estivesse me esquecendo de
tudo, dos princípios, das leis, das regras. Eu só queria acabar com aquele
cara.
Frágil e fraca, ela balançou um sim com a cabeça.
— Ele... — soluçou. — Ele me bateu tanto... Tanto... Depois que eu
cheguei em casa... Ele me deu uma surra e... — parecia com tanta
dificuldade de falar, como se aquilo fosse um assunto difícil de lembrar e de
colocar para fora. Eu sabia que realmente era. — Ele me deu uma surra, e,
depois que saiu do meu quarto e a Evangeline apareceu, ela me disse que
foi proibida por ele... Proibida de impedi-lo de fazer o que queria comigo...
— franziu o cenho, tão enojada. — Ela também foi proibida de me ajudar,
mas ela me ajudou a fugir de casa... E agora... Agora eu acho... — Lágrimas
escorriam como cascatas. — Quer dizer, agora eu tenho certeza que ela vai
perder o emprego por minha causa, por ter me ajudado a sair de lá. Uma
hora ou outra ele vai descobrir e vai lá colocá-la no olho da rua. E, meu
Deus, eu não queria que ela perdesse o emprego por minha causa. Ela não
merece. Isso não é justo.
Indignada com toda a situação, liberei o ar pesado dos meus
pulmões pela boca e...
— Você não tem que se preocupar com isso por agora — falei
firmemente. — Eu sei que a Evangeline é muito importante pra você. E,
certamente, essa demissão não vai ficar assim. Vamos dar um jeito. Mas, o
que precisamos fazer agora, nesse exato momento, é resolver a situação
com o... — Filho da puta. — Com o seu pai, Agatha. Você sofre violência
doméstica. E mesmo que ele seja o seu pai, ele não tem o direito de fazer
isso! Esse cara tem que ser preso e nós precisamos denunciá-lo agora! —
despejei com toda a fúria que eu sentia por ter a minha mulher nos meus
braços, violentada e fragilizada, daquela maneira.
Porém...
— Não... Não! — Chorando, ofegante, ela se negou, balançando a
cabeça. — Eu não quero pensar nisso agora! Eu não tenho condições de
pensar nisso agora... — Praticamente suplicou. — Eu só quero tentar
manter a minha cabeça vazia de toda essa merda por um tempo. Não quero
pensar nele, nem no que fazer com ele. Eu só quero ficar o mais distante
possível disso tudo. Por favor, por favor!
Expirei, já consumida por tudo aquilo.
Ela não entendia.
Ela definitivamente não entendia.
Talvez ainda houvesse algum sentimento de filha para com o pai,
mesmo que ele fosse um monstro.
— Agatha, se nós conseguirmos colocá-lo atrás das grades, você
pode ter certeza absoluta de que ficará definitivamente distante dele e de
toda essa merda... — tentei mais uma vez, louca para sair dali e colocar
algemas nos pulsos daquele homem. — Você precisa me ouvir, Agatha. Se
você não me deixar fazer isso, eu farei mesmo sem o seu consentimento!
— Zara, não! — retrucou. — Para com isso — levantou-se do sofá,
olhando para todos os lados, meio agoniada, desnorteada. — A minha
cabeça tá tão cheia e tão... Confusa... — fechou os olhos, passando as mãos
nos cabelos. Quando os abriu de novo, porém... Franziu o cenho,
observando ao redor. — O que são todas essas coisas aqui na sala? Você
está se mudando?
Droga, ela percebeu.
— Agatha, por favor, não mude de assunto. Temos que nos focar no
que interessa.
Na verdade, era eu que não queria entrar naquela parte.
Talvez o diálogo piorasse em uns duzentos por cento.
Ela, no entanto, enrugou ainda mais a testa.
— Isso me interessa, Zara — redarguiu, determinada, como se, no
fundo, até já soubesse do que aquilo se tratava. — Vamos. Me conte
também o que está acontecendo. Seja sincera comigo da mesma forma que
eu sou com você! A minha vida é um livro aberto que você sabe de todas as
merdas.
Porra.
Puxei o ar, tomando fôlego.
Pelo que eu bem conhecia dela, Agatha não ia ficar quieta enquanto
eu não contasse.
Que os céus me ajudassem a conduzir isso da melhor maneira
possível. Era tudo o que eu pedia.
— Você não vai mais me ver na penitenciária — Comedida, falei em
um tom mais baixo e introvertido.
A bomba relógio prestes a explodir.
Percebi quando o seu corpo estremeceu ao ouvir aquilo.
— P-Por que? — Receosa, perguntou. O nervosismo à flor da sua
pele.
Era agora.
Eu não tinha outra saída. Eu precisava falar a verdade.
— Porque me desligaram da polícia.
E Agatha pareceu sem ar por alguns instantes.
— Fizeram o quê com você...?! — arregalou os olhos e, então,
segundos depois, girando sobre os pés, desolada, fechou-os já cintilantes em
lágrimas. Ela sabia. Ela já sabia. — Fizeram isso por minha causa, não é?
— Amargamente, falou. — Eles descobriram sobre nós, não foi?!
E tornou a chorar, soluçando, ainda mais abalada do que já estava.
Pelo amor de Deus.
— Agatha, calma... — Me levantei do sofá, abraçando-a com todo o
carinho e o amor que eu tinha por ela.
No entanto...
— Calma? — franziu o cenho, ainda chorando, e me empurrou,
distanciando-se de mim. — Como eu vou ficar calma se todas as merdas
que estão acontecendo com a gente são por minha causa? Como?! Me
explica!
Porra... Não era assim que eu queria que essa conversa seguisse.
Todo o medo que eu tinha da sua reação se tornando realidade.
— Agatha... — tentei me aproximar novamente, mas ela se afastou.
Eu odiava isso. Eu odiava tudo isso. Eu odiava a forma como não
conseguíamos ter uma relação normal, não por nossa culpa, mas por culpa
dos outros. — Lembra daquele dia no carro, depois do cinema, quando eu
disse que, se algo acontecesse, nós íamos dar um jeito? E nós vamos. Nós
vamos dar um jeito!
— Que jeito, Zara? Para de sonhar! — retrucou ela, claramente sem
esperanças. — Isso não tem jeito! A merda já está feita!
Que pesadelo.
— Agatha, não diz isso... — tentei me aproximar outra vez, mesmo
que ela não deixasse e se afastasse de mim. — Não tem nenhuma merda
feita. Nós estamos juntas. Eu estou com a mulher que eu amo. E é isso o
que importa!
A loira, por sua vez, esfregou a mão nos olhos e no nariz, limpando
bruscamente o que descia, enquanto caminhava de um lado para o outro,
sem rumo, até que...
— Será que não percebe? — parou, virando-se para mim, com o
cenho franzido, confusa. — A gente só faz mal uma pra outra. Eu levei uma
surra por estar com você. E você perdeu o seu emprego e a sua carreira, por
minha causa, que é quase como levar uma surra também! A gente tá se
destruindo, Zara!
Destruindo?
Meu Deus... O que fizeram com a minha garota?
— Não diga isso, Agatha. Não diga isso...!
— Eu sou destrutiva — Ela, porém, continuou. — Eu destruo a vida
das pessoas que chegam perto de mim. O meu pai, a Evangeline, você... Eu
sempre fiz merdas das quais o meu pai sempre odiou consertar. Evangeline
também deve estar no olho da rua, uma hora dessas, por minha causa. E
você, bom, eu sei que você adorava a sua carreira, adorava trabalhar na
polícia, e agora... — soluçou, como se as palavras se perdessem na sua
própria língua. — Se eu crio um vínculo com alguém, eu destruo a vida
dessa pessoa, então... Zara... — balançou a cabeça para mim. Os olhos
brilhando em pura tristeza. Lágrimas escorrendo o tempo inteiro. — Nós
não podemos... Simplesmente, não podemos.
Não podemos o quê, porra?!
— Cala a boca, Agatha! — Perturbada, exclamei. — Já chega dessa
autocomiseração!
Ela, por sua vez, enrugou a testa para mim.
— Autocomiseração? — Quase indignada, redarguiu. — Isso não é
autocomiseração! É a verdade! Eu sou tudo o que você não precisa pra sua
vida. Eu acabei com a sua carreira, eu fiz você perder o emprego, eu te tirei
do trabalho dos seus sonhos, e você ainda tem a coragem de me dizer que
isso é autocomiseração?! Se você não tomar cuidado, Zara, eu posso acabar
com o restante das coisas boas que você tem. Aliás, eu vou acabar com o
restante das coisas boas que você tem. Tudo o que eu toco vira lixo. Isso é
um fato, quase como uma certeza matemática! O meu pai sempre me disse
que eu não sirvo pra nada. E essa é a verdade. Ele sempre teve toda a razão.
Sempre. — E me encarou firmemente. — Eu sou tudo o que você não
precisa.
Chega!
Para mim, isso era o fim. A gota d’água.
Eu não suportava ouvir mais nenhuma das suas palavras, porque
nada daquilo, pra mim, fazia sentido. Nada daquilo, pra mim, tinha lógica.
Eu estava farta!
Determinada, rompi definitivamente o espaço entre nós, pegando-a
de surpresa ao lhe prender contra uma das paredes. Segurei o seu rosto entre
as minhas mãos, de maneira firme, encarando-a no fundo dos olhos. Percebi
seu semblante assustado com o meu impulso e a minha seriedade. Um olhar
absurdamente rígido que eu nunca tinha usado com ela.
— Você é a garota mais chata e mais irritante que eu já conheci em
toda a minha a vida — Entredentes, com a mandíbula trincada, eu falei. —
É também a mais problemática e a mais teimosa. Você faz poucas coisas
certas. Quebra e destrói tudo o que esteja direito. Você é tudo isso, Agatha.
E eu sei que continuaria com o meu emprego, se eu não tivesse me
envolvido com você. Eu realmente não preciso de você pra nada... Pra
nada... — Meus olhos nem piscavam, e os dela também. — Mas, eu te
quero pra tudo. Pra tudo! Para as horas boas e ruins. Para momentos de
alegria e tristeza. Eu quero você na minha vida, Agatha, mesmo que eu não
precise.
E, então, quando eu me calei, ela simplesmente desmoronou nos
meus braços, chorando copiosamente, me abraçando tão forte e tão apertado
como se dependesse disso para viver. Eu fechei meus olhos, segurando-a,
com todo o amor e cuidado, espalhando beijos fortes por todo o seu rosto,
até alcançar a sua boca. E, no momento em que os meus lábios tocaram os
seus, ela definitivamente se entregou, como se não aguentasse mais negar e
se distanciar do que queria: eu.
Sua língua invadiu a minha boca, enquanto as minhas mãos
deslizavam por todo o seu corpo. Uma profusão intensa de sentimentos e
sensações que não queriam dizer outra coisa a não ser amor. Eu amava
tanto aquela mulher, que o meu peito doía com a vontade de colocar pra
fora e demonstrar isso a ela com as ações possíveis. Atitudes verdadeiras.
Cuidado, carinho, segurança.
— Por que eu tenho que ser tão louca por você, heim...? —
sussurrou ela, contra os meus lábios.
Eu amava ouvir isso.
— Não sei... — respondi entre um beijo e outro. — Eu só sei que
sempre, sempre vou escolher você, Agatha.
E aí, sem que nós duas disséssemos mais nada, suas mãos
desesperadas começaram a tirar as minhas roupas. Eu sabia... Eu sabia que
talvez nós devêssemos continuar a conversa, até que toda a confusão fosse
completamente esclarecida, e, principalmente, seu pai estivesse atrás das
grades. Mas, eu também sabia que nós precisávamos daquilo. Nós
precisávamos tão ardentemente uma da outra, na mesma intensidade que as
minhas mãos a tocavam e as delas apertavam-me. Corpo a corpo. Beijo a
beijo. Como num rompante de amor e desejo. Sentença e redenção. Como
se aquele ato fosse um grito decodificado pelos nossos corpos.
O grito de que nenhuma merda seria capaz de nos separar.
O grito de que nada seria capaz de apagar o que sentíamos uma pela
outra.
Aliás, talvez não existisse nenhuma espécie de reconciliação tão
maravilhosa quanto aquela que acontecia na cama. Talvez, naquele instante,
tudo o que precisávamos era demonstrar, na dança sensual, sobre os lençóis,
que o nosso sentimento estava mais vivo do que nunca dentro dos nossos
corpos.
Tão vivo que ele transbordava em nós, através dos beijos, das mãos
que tocavam firmemente, das respirações ofegantes, e, mais na frente, do
ápice do nosso desejo e do nosso prazer. Tão vivo que não podíamos ficar
paradas. Tão vivo que tudo borbulhava numa só crescente, para consumar
aquele ato.
Um ato que eu sabia que nós queríamos repetir por muitas e muitas
vezes...
...Ao longo das nossas vidas.
Entre beijos intensos e roupas espalhadas pelo chão, caminhamos
até o meu quarto. Agatha me puxou para a cama, sedenta, quase
desesperada. E eu fui. Eu me deixei levar porque também queria aquilo
tanto quanto ela. Eu a queria. Queria na minha cama, no meu apartamento,
na minha vida. Queria pra sempre.
Contudo, apesar da impetuosidade das nossas atitudes e da ânsia que
aumentava segundo a segundo, naquele dia, eu a toquei com cuidado. E
beijei lenta e carinhosamente cada um dos seus machucados. E deslizei as
minhas mãos como se, de algum modo, aquilo pudesse curá-la. E eu fiz de
tudo para que ela se recuperasse de todo o mal, nos meus braços.
Eu a fiz minha mulher, assim como ela também me fez sua. Gozar
na sua boca foi como um presente. Vê-la gozar para mim também era.
Agatha clamou o meu nome, a cada vez que o seu corpo se contraiu sobre
mim, como uma obra de arte que eu deveria admirar, adorar, venerar, reter
nos meus pensamentos como um marco para a vida.
Eu a amei ardente e dolorosamente naquele restante de dia, assim
como também em todos os outros dias, depois desse.
E repeti tantas e tantas vezes, enquanto fazíamos amor:
— Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem, meu amor... Eu prometo.
Você vai querer ouvir o que eu tenho
para dizer sobre ele

Agatha

Eu não estava confusa sobre os meus sentimentos pela Zara. Óbvio que
não. Eu jamais ficaria confusa quanto a isso. Era absoluta a certeza de que
ela era a primeira pessoa por quem eu me apaixonava de verdade. Eu a
amava, com todo o meu coração, de todas as formas, de todos os jeitos, com
todas as dificuldades, com todos os infinitos problemas. Eu amava aquela
mulher por tudo o que ela era e por tudo o que representava para mim. E eu
sabia que continuaria a amando mesmo se não houvesse motivos para isso.
A única coisa que me deixava confusa era a razão pela qual o
universo me fez, pela primeira vez na vida, amar justo uma pessoa que eu
não deveria. Os problemas que carregávamos em nossas costas eram mais
pesados do que eu imaginava. Primeiro, a surra que eu levei por estar com
ela, fora as diversas vezes em que o meu pai brigou comigo por estarmos
juntas. Até aquele momento, eu não entendia o motivo disso.
Sim, eu não estava fazendo o que ele queria. Eu não estava ficando
com Louis para facilitar os seus negócios. Só que essa também não era a
primeira vez que eu não fazia as suas vontades de me envolver com os seus
parceiros, assim como também, desde muito tempo, ele já sabia que eu
ficava com mulheres. Meu pai nunca se importou com nada ao meu
respeito. Ou seja, ele também não dava importância alguma para o fato de
eu gostar mais de boceta do que de pau.
Tantas vezes eu transei com a Tessa debaixo do mesmo teto que ele.
E eu tinha certeza que ele sabia. Mas, nunca fez uma tempestade em copo
d’água por causa disso, muito embora ele continuasse me agredindo e
exigindo de mim tantas outras coisas, como dar para os seus possíveis
sócios, até que eles decidissem assinar contratos que eram mais vantajosos
para os seus próprios bolsos.
Agora, porém, Russell Ballard estava praticamente surtado por estar
me envolvendo com uma mulher.
E eu não entendia isso.
Eu juro que não entendia.
Como se não bastasse, Zara tinha perdido o seu emprego.
Por minha causa.
Por. Minha. Causa.
Talvez eu tivesse sido ingênua demais, antes de tudo, quando pensei
que nenhum mal tão grande poderia acontecer a ela, caso se envolvesse
comigo. Afinal, eu nunca fui uma marginal, por mais que eu estivesse
cumprindo uma maldita pena. Mas, bem, eu estava realmente enganada.
Nunca senti uma culpa tão grande quanto naquele momento em que Zara
me confessou o que aconteceu. Foi como se uma série de pesadelos
estivessem se tornando realidade.
Isso não era bom.
Isso não era legal.
Isso era por minha causa. Por minha culpa.
Eu tinha feito Zara perder o seu emprego e a sua carreira, e eu sabia
o quanto ela amava aquilo. Zara não era uma polícia exemplar por mero
dever. Ela era assim porque adorava o trabalho que tinha. E eu sabia disso.
Eu sempre soube disso, assim como também tinha certeza de que, mesmo
que nós ficássemos juntas e eu enchesse a boca para dizer que poderia
bancar todas as suas contas, com o dinheiro que eu tinha, se o pai não me
deserdasse, ainda assim não era justo. Nunca seria justo, porque, apesar de
ser momentaneamente bom ter as contas pagas, nenhum dinheiro no mundo
seria capaz de devolver o prazer que ela tinha em trabalhar com o que
gostava.
E eu tirei isso dela.
Por um instante, eu confesso que, embora aquilo me machucasse de
todas as formas por dentro e me cortasse em um milhão de pequenos
pedaços, eu pensei em desistir. Pensei em não continuar, para não fazer
mais mal a ela. Às vezes, amar também era saber a hora de seguir em
frente, para o próprio bem da outra pessoa. Só que... Aquilo que eu sentia
por ela era tão estupidamente forte que, mesmo que eu tentasse negar, fugir
ou acabar, não dava. Não tinha como. Bastava ela me beijar, me fazer
carinho, e falar palavras bonitas, para que a minha guarda baixasse e o muro
à minha volta desmoronasse.
E foi exatamente isso o que aconteceu. O meu amor e o meu desejo
por ela conseguiram ser maiores do que a porra do peso na consciência.
Transamos até as nossas forças se tornarem tão pequenas. Me senti
absurdamente amada a cada vez que ela beijou com tanto carinho todos os
machucados pelo meu corpo. E eu deixei que todos os meus sentimentos
por ela se libertassem, apesar dos pesares, enquanto fazíamos amor.
Naquele instante, eu não pensei mais em nada, a não ser no seu corpo no
meu, na sua boca na minha e em todas as outras partes. Ou, pelo menos,
tentei não pensar em nada, além o nosso momento na cama.
Zara me fez esquecer por algumas horas.
Depois disso, com o corpo esgotado não somente do sexo, mas
também de tudo o que vivi antes dele, consegui pregar os olhos e dormir até
o dia seguinte. Felizmente, o meu sono foi mais tranquilo do que eu
esperava. Talvez, um oásis no meio do deserto. Eu precisava daquilo para
me recuperar um pouco.
Quando acordei, ainda meio sonolenta, minha cabeça não demorou
em recuperar as lembranças do dia anterior. Eu quis desanimar, logo de
cara. Porém, ao virar meu rosto brevemente para o lado, encontrei a mulher
mais maravilhosa do mundo, junto com uma bandeja de café da manhã em
cima da cama. Não pude deixar de sorrir. Um sorriso meio fraco pelas
memórias que não me deixavam, mas, ainda assim, um sorriso.
Eu estava ali com ela.
Com a mulher que eu amava.
E ela estava fazendo de tudo para me ver bem. Eu seria eternamente
grata ao seu esforço, mesmo que ela me dissesse que não era esforço algum.
Ainda meio trôpega de sono, me sentei sobre a cama. Porém,
quando assim o fiz, só de calcinha e sutiã, percebi o momento em que o
lençol escorregou pelo meu corpo, revelando meus braços e minhas pernas.
Havia pomada por todas as partes machucadas.
Franzi o cenho.
Eu não me lembrava de ter passado aquilo em mim.
— Você que fez isso? — Levemente surpresa, perguntei.
— Sim... — sorriu. Linda como sempre era. — Enquanto você
estava dormindo. Você nem percebeu de tão pesado que o sono estava — E
soltou uma risadinha. — Vai ajudar a curar os machucados. Esses roxos
logo vão desaparecer.
Vai ajudar a curar os machucados...
Por dois segundos, pequenas gotículas quiseram se formar no
cantinho dos meus olhos. Não de tristeza, mas de pura gratidão. Talvez eu
estivesse um pouco mais fraca para chorar do que o comum. O fato era que
Zara cuidava de mim. E fora Evangeline e a minha mãe, nenhuma outra
pessoa nunca tinha me tratado daquela maneira.
— Eu te amo, sabia? — falei.
Ela sorriu, tão feliz e amável, se aproximando de mim.
— Eu também te amo — E beijou a minha boca. — Acordou
melhor?
De certa forma...
— Sim — balancei brevemente a cabeça, enquanto pegava a xícara
na bandeja e tomava um pequeno gole de café. — Um pouco melhor. Eu só
penso em como vou conseguir voltar para casa — confessei.
Dentre tantas coisas que martelavam a minha cabeça, isso era uma
delas. Eu sabia que, uma hora ou outra, eu teria de encontrá-lo novamente.
Não tinha como fugir para sempre, infelizmente. E eu não queria nem ver, e
muito menos sentir, o que ele faria comigo, depois de eu ter sumido.
Zara, no entanto, enrugou a testa, como se não tivesse entendido o
que eu falei.
— Não, você não vai voltar para casa — Tão determinada, disse ela.
— Eu não vou permitir que você volte a ficar perto dele. Você não vai
retornar àquela casa enquanto ele não estiver preso, Agatha.
Suspirei.
Ainda era difícil de eu conceber essa ideia, apesar de tudo. Sim, eu
odiava o meu pai e tudo o que ele fazia comigo. Sim, eu sabia que ele era
um canalha. Um escroto. Ele não se importava com nada além dos próprios
interesses. Mas, mesmo assim, eu nunca imaginei que ele pudesse ser preso
por minha causa.
Por minha causa.
Tantas merdas por minha causa, não é?
Balancei a cabeça comigo mesma, enquanto eu pensava. Talvez, no
caso dele, isso fosse o de menos. Aquele coroa, às vezes, era mais esperto
que o diabo. No fundo, eu sabia que ele sempre seria capaz de dar um jeito
de se safar.
— Uma hora ou outra, ele vai me achar, Zara. Tenho certeza —
Desiludida, repliquei.
— Vamos cuidar disso hoje, está bem? — De pronto, ela replicou,
ainda tão certa do que dizia. — Não se preocupe. Eu já estou pensando em
várias alternativas e entrando em contato com pessoas que também podem
nos ajudar nisso.
Porém...
Isso me lembrava de algo que não me orgulhava nem um pouco.
— Você nem está mais na polícia — reconheci amargamente,
baixando o olhar e sentindo o peso absurdo daquelas palavras.
Zara, apesar disso, não titubeou. Continuou firme no que falava.
— Não importa. Eu vou dar o meu jeito da mesma maneira —
afirmou, como se já soubesse de cada passo que deveria dar. E era provável
que soubesse mesmo. Passou tantos anos naquele trabalho. — Só preciso
que você fique aqui, e não tente voltar para lá.
Voltar para aquela casa era a última coisa que eu ia querer.
— Não vou tentar — repliquei com convicção.
— Ótimo — disse ela, aparentemente mais tranquila. — Então, eu
vou só fazer umas compras no supermercado que tem ao lado do prédio,
para que você possa passar esse tempo aqui. Percebi que a geladeira está
quase vazia, quando fui preparar o café da manhã. Você fica aqui e eu volto
em um minuto, está bem?
Deus, por que ela sempre tinha que pensar em tudo para me deixar
o mais confortável possível? Por que ela tinha que ser tão perfeita?
Novamente, gotículas de emoção quiseram se formar no cantinho
dos olhos. Qualquer mínima coisa parecia ser capaz de me desmontar por
inteiro. Eu estava ridiculamente fraca naquele dia.
— Tá bem — respondi. Um pequeno sorriso misturado com
emoção. — Vem aqui... — E a puxei pela blusa, fazendo-a chegar ainda
mais perto de mim, na cama. — Obrigada por tudo, Zara. Obrigada mesmo
— disse eu, sinceramente, olhando nos seus olhos. — Eu nem sei como
agradecer por tudo o que você fez por mim ontem. Aliás, por tudo o que
você faz sempre por mim e continua fazendo. Eu espero, de verdade, poder
um dia retribuir.
— Você já retribui — sorriu, pousando carinhosamente uma das
mãos no meu rosto. — Você retribui me amando dessa maneira.
E o meu coração ficou tão quente e apertado no peito, que pensei
que ele pudesse subir e escapar pela minha garganta a qualquer momento.
— Eu te amo como nunca amei alguém.
Ela sorriu, tão feliz, e me beijou, dizendo contra os meus lábios:
— E juntas nós vamos ficar — Me abraçou tão forte e tão apertado.
Suas mãos sempre me causando sensações únicas. As únicas mãos que eu
fazia questão de sentir pelo resto da vida. — Agora, eu vou lá, tá? Mas,
volto em um piscar de olhos. Pode ficar à vontade e terminar o seu café.
— Tá bom — sorri. — Te amo.
— Também te amo, princesa.
Me deu mais um beijo e saiu dali.
Princesa...
Ainda passei um tempinho olhando para a porta do quarto, depois
que ela sumiu para fazer as compras. O coração aquecido pelas suas
palavras, pelo seu carinho comigo. Era curioso a maneira como Zara fazia
eu me sentir bem e absolutamente amada, mesmo com o mundo inteiro
desabando ao nosso redor. Ela era uma pedra preciosa que eu não estava
disposta a abrir mão, ainda que tudo parecesse conspirar contra.
Ainda que, ontem, por um segundo, depois de descobrir sobre a sua
demissão, eu tivesse estupidamente pensado, durante o desespero, em
desistir da melhor coisa que aconteceu na minha vida.
Tomei mais alguns goles de café e mastiguei alguns pedaços do bolo
de cenoura que ela levou para mim. Comi umas fatias de torradas, para
equilibrar o doce e o salgado, talvez indiretamente tentando equilibrar as
coisas boas e ruins na minha vida. Durante aqueles breves minutos sozinha
no seu apartamento, o silêncio não me causou incômodo. Muito pelo
contrário, ele me deu, no fundo, uma breve sensação de que, ali, as coisas
estavam exatamente nos seus devidos lugares.
Eu estava no meu lugar.
No lugar certo, apesar de tudo.
Isso, até um súbito susto me fazer pular sobre a cama.
Repentinamente, ouvi um grande estrondo vindo da porta da sala. Meu
coração acelerou, sem saber que diabos significava aquilo significava.
Parecia algo pesado caindo no chão.
Ou a própria porta...
Franzi ainda mais o cenho, e me levantei da cama.
Era a Zara?
Rapidamente, caminhei até a entrada do quarto, saindo para o
corredor.
Porém, quando assim o fiz, não foi a minha mulher que eu vi, foi a
materialização do meu pior pesadelo. O pior mesmo, dentre todos os outros.
A porta da sala realmente tinha caído. Porque arrombaram ela.
Acompanhado de vários dos seus homens estava o meu pai.
E o seu semblante não estava, nada, nada bom.
Automaticamente, aquela típica reação me tomou. Gelei e tremi de
cima a baixo.
Em meio ao meu nervosismo, porém, ainda consegui pronunciar
palavras presas à minha garganta:
— O q-que você está fazendo aqui?
Ele, por sua vez, com total seriedade, apenas disse para os seus
seguranças:
— Peguem-na. Agora.
Han?
Arregalei os olhos quando vi aqueles brutamontes seguindo em
minha direção.
Isso, porém, foi o suficiente para que um deles me pegasse
firmemente pelas pernas e me colocasse sobre o seu ombro, enquanto os
outros o escoltavam.
Que porra era essa...?!
Completamente confusa, eu gritava e esperneava para que eles me
soltassem. Mas, nada, absolutamente nada, foi capaz de impedi-los. Eu nem
vesti uma roupa, me carregaram para fora do prédio, à força, só de calcinha
e sutiã, enquanto lágrimas de ódio já escorriam pelos meus olhos.
No fim das contas, meu pai sempre conseguia tudo o que queria
mesmo.

Zara

Comprei tudo o que eu sabia que ela gostava e o que achava que iria
gostar. Iogurtes, sucos, biscoitos, chocolates. E coisas saudáveis também,
claro, principalmente para preparar o almoço. Apesar de tudo e daquela
merda monstruosa que o pai dela fez, eu me senti aliviada por Agatha ter
me procurado e ido direto para o meu apartamento. Isso só me mostrava
que ela sentia segurança comigo e que queria estar perto de mim.
Agora, ela ficaria na minha casa até que eu conseguisse dar um jeito
naquele idiota. Jamais deixaria que ela retornasse, sabendo que, a qualquer
momento, ele poderia fazer aquilo novamente ou coisa pior com ela. Eu já
tinha até entrado em contato, mais cedo, enquanto preparava o café da
manhã, com algumas pessoas que se prontificaram em me ajudar. Faltava
apenas eu falar com a Alexa.
Ainda naquele mesmo dia, ele ia ter o que merecia, com ou sem o
consentimento da Agatha. Eu sabia que, de alguma forma, por mais escroto
que ele fosse, ela ainda o considerava como pai e, aparentemente, não sentia
apenas ódio por ele. Mas, isso não era o bastante para me parar. Eu só
descansaria depois que aquele cara pagasse por tudo o que fazia com a
filha.
Assim, paguei ao caixa pelas minhas compras e, segurando várias
sacolas nas mãos, displicentemente cruzei a porta do supermercado, que
ficava quase ao lado do meu prédio. Quando assim o fiz, porém, meus olhos
não acreditaram no que eu vi, ao dobrar para seguir na direção do
apartamento. Subitamente, travei em choque, como se tudo aquilo estivesse
passando em câmera lenta frente aos meus olhos.
Havia um comboio de cerca de cinco carros parados em frente ao
meu prédio.
Vários homens vestidos de blazer preto, como se estivessem
fazendo algum tipo de escolta.
E então...
Eu a vi...
Desesperada, gritando, esperneando, chorando, pedindo socorro
para que a ajudassem a sair dali. Ela tentava se defender, como podia, nos
braços do outro, mesmo que de nada adiantasse. Tudo dentro de mim se
contorceu em uma mistura de agonia e fúria. Meus olhos arderam, enquanto
cada centímetro da minha pele esquentou. Instintivamente, soltei todas as
compras no chão, sem me importar, sem pensar em mais nada a não ser
naquilo.
Tudo o que me importava era ela.
Seminua, eu a vi sendo levada por um dos brutamontes e jogada
dentro de uma das cinco Blazer pretas, que estavam estacionadas. As
marcas roxas na sua pele totalmente exposta, os cabelos completamente
bagunçados, o rosto tão vermelho de tanto pedir socorro. O sangue subiu
inteiro para a minha cabeça. E aí, como se não bastasse, depois de se
debater, antes ser de atirada para dentro do carro, quem passou por último e
entrou foi Russell Ballard.
A porta se fechou.
Os demais homens se dispersaram para os outros carros.
Puta que pariu!
Cerrei os punhos.
Completamente determinada e cega de ódio, eu não fiz outra coisa
senão olhar ao meu redor, a fim de encontrar o primeiro veículo que eu
visse pela frente. Com a adrenalina correndo absurdamente pelas minhas
veias, me apressei na direção de um homem que também saía do
supermercado.
— Preciso da sua moto — disse eu, ligeiro, já arrastando-o de cima
do banco, pela gola da camisa.
— Ei, ei! — Aturdido, ele exclamou, tentando me empurrar e se
defender.
Eu, porém, fui mais rápida, imobilizando os seus braços e girando
os seus pulsos para as costas, de modo a conseguir puxar a chave das suas
mãos.
— Sou policial e estou em uma emergência.
— Policial?! — questionou ele, incrédulo e irritado, com as
sobrancelhas bem arqueadas. — Você tá mais pra uma bandida!
Realmente...
Eu não era mais uma policial em exercício, mas isso não vinha ao
caso agora.
— A moto será devolvida.
Foi tudo o que eu disse, segundos depois empurrá-lo para a calçada,
subir no banco e girar a ignição.
Em poucos instantes, o motor já roncava nos meus ouvidos e os
pneus cantavam na rua. Olhei na direção para onde o comboio saía
rapidamente e vi quando a última Blazer dobrou a esquina. Merda. Eles
estavam rápidos demais. Acelerei o máximo que a moto conseguia, girando
o guidão sem pena.
Eu não sabia a razão, mas a porra daqueles cinco carros estavam
realmente correndo. Eles só podiam estar armando alguma merda com a
garota. Que pai mais filho da puta. Cruzei ruas e avenidas de Las Vegas,
feito louca, em pleno trânsito fodido de oito horas da manhã. A sorte era
que aquela moto não era ruim. Pelo menos, eu estava conseguindo fazer
alguns milagres por ali.
O milagre mesmo, porém, era não bater em nada nem ninguém.
Perdi as contas de quantas ultrapassagens perigosas eu já estava fazendo, de
quantas vezes subi e desci em calçadas, de quantas curvas violentas foram
feitas. Eu não estava respeitando os sinais de trânsito, nem os caras nos
carros. Aliás, nenhum de nós estava respeitando qualquer tipo de lei de
trânsito. E eu tinha certeza de que, a qualquer momento, eles perceberiam
que eu estava bem na cola. Mas, eu não me importava com isso. Claro que
não.
Meu corpo inteiro estava em puro estado de alerta. O coração
faltando sair pela garganta. Respiração intensa. E um só pensamento: salvar
a minha garota.
Quando eles dobraram em uma viela mais estreita, porém, eu tive a
certeza absoluta de despercebida eu já não passava. Isso porque... Cacete!
Uma bala quase acertou a minha cara. Os filhos da puta do último carro
simplesmente baixaram os vidros e sacaram duas pistolas na minha direção.
E eu estava sem nada, sem capacete, sem arma, sem colete. Sem
porra nenhuma.
Mas, eu ia encontrá-la. Eu não ia desistir.
Não enquanto eu conseguisse me manter de pé.
Abaixei meu tronco, o máximo que eu conseguia, para tentar
escapar dos tiros, e, mesmo em meio à alta velocidade, fiz malabarismos
para tirar o celular do bolso. Sem arma, sem munição, sem capacete, sem
nada, eu precisava de reforços. O mais rápido possível. Quando eu quis
baixar minimamente a cabeça para encontrar o número da Alexa, nas
chamadas rápidas, porém, vi de relance a viela estreita acabar e desembocar
em uma grande e aberta praça. No meio, um helicóptero estava pousado.
Que merda!
Contudo, não tive nem muito tempo para pensar na bosta que eles
estavam pretendendo fazer com aquele helicóptero, porque vi o instante em
que outro dos cinco carros baixou o vidro e mirou um fuzil bem na minha
direção. Caralho. Virei bruscamente o guidão da moto, dando um quase
cavalo de pau, para desviar e ir por outro caminho. Porém, no momento em
que eu assim o fiz, um dos pneus foi atingido por uma bala.
Fui atirada ao chão bruscamente e rolei pela areia da praça, com as
mãos na cabeça para tentar protegê-la. Senti meus braços se ralando por
inteiro. A sorte foi que eu precisei reduzir a velocidade para girar o guidão e
tentar fazer a curva. Não fosse isso, eu, com certeza, já poderia me
considerar morta. Ainda percebi breves segundos em que a minha visão
falhou e ficou turva. No entanto, depois disso, estirada no chão, quando
consegui abrir os olhos e mirar no helicóptero, vi o instante em que Agatha
foi retirada do carro, aparentemente desacordada, e colocada dentro da
aeronave. Russell Ballard entrou em seguida.
Em poucos segundos, as hélices já giravam intensamente,
levantando o voo, enquanto os demais carros fugiam e se espalhavam pelas
ruas e avenidas da cidade, tomando caminhos para além do meu campo de
visão.
Puta que pariu, caralho, porra.
Sibilei uma série de palavrões comigo mesma, ao sentir meu corpo
inteiro dolorido e observar o helicóptero se distanciar dali, levando a minha
mulher para sabe-se lá onde.
Miserável.
Fechei os olhos por alguns instantes, apertando-os e espremendo o
raciocínio até a última gota. Eu precisava pensar em alguma coisa, eu tinha
que tomar alguma atitude o quanto antes. O meu próximo passo precisava
ser dado. Sim, tinha que haver um próximo passo. Eu não podia deixar as
coisas por isso mesmo, assim como também jamais teria a capacidade de
permitir que aquele cara fizesse isso com ela e conosco.
Foi então que, como um coro de aleluia, eu ouvi o meu celular, que
estava caído no chão com a tela toda trincada, começar a tocar. Estiquei o
braço para pegá-lo, com a força de todo o ódio que eu sentia.
Ao encarar a tela, vi o seu nome.
Alexa.
Graças a Deus.
Atendi.
— Preciso de ajuda.
Foi a primeira coisa que eu falei.
— Meu Deus, Zara, no que você se meteu dessa vez?
— O pai da Agatha — Entredentes, repliquei, grunhindo um pouco
de dor. — Aquele filho da puta do caralho.
— Ah, só podia ser... — disse ela, soprando o ar, como se aquilo não
fosse uma novidade. — Você vai querer ouvir o que eu tenho para dizer
sobre ele.
Franzi o cenho, interessada naquilo.
— Qual foi a outra merda que esse cara fez?
Você ainda é a policial Scott

Zara

— Prostituição...?! — Quase incrédula, perguntei eu, com as


sobrancelhas bem arqueadas, enquanto uma das enfermeiras da
penitenciária fazia curativos nos meus braços, dentro de uma das salas de
reunião.
Não demorou para que Westphalen enviasse um grupo de agentes da
polícia e da saúde para me ajudar naquela maldita praça. Em poucos
minutos, eu já estava sendo retirada e levada para a penitenciária, onde ela
me contaria a fofoca quentinha do Filho da Puta Ballard. Tudo bem que
ainda eu precisei de um tempo para me recuperar quase completamente do
baque que foi a queda da moto. Mas, bem, durante toda a minha trajetória
na polícia, eu já tinha passado por coisas piores e não morri. Não seria
agora que eu passaria dessa para uma melhor, ou ficaria com alguma
sequela. Talvez eu fosse um gato com umas treze vidas.
E, agora, lá estava eu, sentada de frente para uma série de slides que
resumiam, categoricamente, as investigações feitas por diversos detetives
da polícia, sob a coordenação salutar de Alexa Westphalen, ao mesmo
tempo que a enfermeira limpava e colocava faixas nas minhas feridas, e,
eventualmente, passava a agulha para dar um ponto ou outro.
— E tráfico de mulheres — completou Westphalen.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões. Meu raciocínio ainda
tentando assimilar aquilo.
— Porra, cara... Eu jamais poderia imaginar.
Jamais poderia mesmo, ainda que ele fosse estupidamente escroto.
Porém...
Algumas coisas começavam a fazer sentido para mim... Tipo, a
forma como ele queria me manter longe de qualquer envolvimento mais
profundo com a Agatha. Aquele coroa só podia ter rabo preso com a
polícia mesmo. O medo de ser pego era maior. E, obviamente, uma hora ou
outra, isso iria acontecer, com a namorada policial da sua filha
frequentemente entrando em sua mansão e estando próxima aos segredos
que guardava.
— Pois bem, nós seguimos com as investigações e descobrimos um
esquema de tráfico e prostituição de mulheres, comandado, principalmente,
por Russell Ballard, junto com os seus sócios. Entre eles Harry Claflin e
Louis Claflin também. Os magnatas das Bahamas. — Cacete, esses caras
também? — Não foi nem um pouco fácil, você sabe... Estamos há vários
meses tentando descobrir os responsáveis pelo aumento de casos de
prostituição em Las Vegas, bem como o foco das inúmeras denúncias
anônimas que recebemos acerca de mulheres traficadas para exploração
sexual aqui. Mas, depois daquele quase sequestro da Agatha, de termos
descoberto a origem e as passagens pela polícia daqueles homens, e de você
ter me sugerido que poderia haver uma ligação entre os casos, por
presenciar uma cena bem suspeita em um dos hotéis do Russell, as
investigações tomaram um rumo diferente e se tornaram um pouco menos
difíceis. Foi um trabalho conjunto entre a polícia de Las Vegas e de
Bahamas, durante, pelo menos, os últimos quinze dias, até conseguirmos
ligar as pontas soltas. E o mais importante é que nós temos provas.
Encarei-a fixamente, tão atenta àquilo.
— Então, aqueles homens que quase sequestraram a Agatha também
estão envolvidos, de fato, no esquema?
Meu sexto sentido nunca falhava.
— Sim, eles foram mandados por James Lawford. Descobrimos que
trabalhavam para ele, antes de serem presos por nós, claro. Lawford é outro
magnata das Bahamas, que explora mulheres e tem uma relação delicada
com Harry Claflin. Em outras palavras, são completamente rivais. Ambos
traficam, vendem e exploram mulheres para prostituição. Lawford não
gostou quando soube que Claflin estava fechando um negócio
multimilionário com Russell Ballard, para trazer centenas de mulheres das
Bahamas a Las Vegas, porque isso poderia “desestabilizar os seus negócios”
— fez aspas com os dedos, rolando os olhos. — O atentado contra a Agatha
foi promovido por mandato de James Lawford, como uma tentativa de
ameaça à Russell Ballard. Queriam levar a garota para fazer chantagem. A
devolveriam somente quando Ballard desistisse dos negócios com Harry
Claflin. E, aquelas garotas que Agatha e você viram hotel, naquele dia,
provavelmente não eram apenas strippers, mas, sim, mulheres vítimas de
abuso sexual.
Estalei a língua no céu da boca, balançando a cabeça, irritada.
— Era por isso que Russell se importava tanto com o meu
relacionamento com a Agatha. Ou melhor, se irritava tanto — cheguei à
conclusão de milhões, literalmente. — Era mais do que óbvio que o cara
tinha culpa no cartório e estava com medo de ser pego por mim com a mão
na massa. Só faltava a gente realmente enxergar isso. Um criminoso jamais
vai querer uma policial como norinha — sorri pequeno, sem humor, quase
irônica.
— Exatamente. E agora ele fugiu porque soube previamente, de
alguma maneira, que mandados de busca e apreensão foram expedidos
contra ele. Como se não bastasse, também levou a filha numa tentativa de
cortar qualquer ligação entre o caso e você, e, consequentemente, entre ele e
a polícia.
Soprei o ar pesado dos meus pulmões, incrivelmente mais furiosa.
— Desgraçado... — O sangue subia inteiro para a cabeça, somente
em pensar que ele tratou a Agatha daquela maneira, com socos e tapas,
apenas por mero capricho seu de não querer ter qualquer relação com a
polícia. — Precisamos fazer algo o quanto antes, Alexa! Eu... Eu quero
pegar aquele cara com as minhas próprias mãos e... — Palavras até me
faltavam, tamanha aversão que me consumia a cada vez que eu pensava no
caso. E me faltavam principalmente quando eu me dava conta de que...
Curvei os ombros, repentinamente desanimada. — Mesmo que eu não tenha
mais o direito de agir como uma policial — Cabisbaixo, conclui.
Ouvi, no entanto, quando Alexa puxou o ar, se levantou da cadeira
onde estava e caminhou em minha direção, aproximando-se de mim.
Colocou firmemente uma das suas mãos sobre a minha, fazendo-me
levantar o olhar novamente, e me encarou com total seriedade:
— Você tem sim. Você tem o direito de continuar agindo como uma
policial, Zara, porque é isso o que você é. Você vai participar dessa
operação comigo, nem que depois eu perca o meu emprego por causa disso.
Não vou permitir que uma das melhores policiais de Las Vegas fique de
fora de uma das operações mais importantes da cidade.
Inevitavelmente, algo se agitou dentro do meu peito. Uma espécie
de esperança, de luz no fim do túnel. Uma emoção inexplicável.
Ela estava assumindo todos os riscos, que poderiam lhe acarretar
problemas pessoais e profissionais, só para que eu estivesse incluída
naquilo...
— Tem certeza, Alexa? — Quase sem fôlego, perguntei.
— Absoluta. Troque de roupa, vista a sua farda e pegue as suas
armas e munições. Você ainda é a policial Scott.

Agatha

A minha memória não parava de repetir as inúmeras cenas que eu vi


simplesmente passarem frente aos meus olhos, sem que eu pudesse fazer
nada, minutos antes de eu apagar e me jogarem no maldito helicóptero.
Coisas que eu nunca imaginei viver, durante toda aquela minha vidinha
quase miserável de festas, roupas caras, bebidas, sexo e agressões do meu
pai. Aquilo foi muito além de qualquer loucura que eu pudesse ter
guardado, um dia, no lugar mais escondido da minha cabeça.
Eu nunca imaginei que o meu pai pudesse ser mais podre do que já
era.
E, novamente, mais imagens na minha cabeça, sem parar. Um
looping infinito de cenas absurdas e picotadas nas minhas lembranças. Zara
nos perseguindo em uma moto que eu não fazia ideia de como e onde ela
tinha conseguido, e, depois, os seguranças apontando armas e atirando em
sua direção. O meu coração faltando sair pela boca, com o medo e a
angústia dela ser atingida, morta. E, então, em seguida, eu não vi mais nada.
Me deram alguma coisa para dormir, não sabia como, e eu apaguei.
Quando acordei, eu já estava vestida com uma roupa qualquer, em
um lugar que eu nunca tinha ido. Aparentemente, era uma casa bem grande,
enorme, mas antiga. Móveis do século passado, pelo que eu pude perceber.
O quarto onde me colocaram, no entanto, dava uns dois do meu. E olha que
o quarto da minha casa não era nem um pouco pequeno. Só que eu não
sabia onde eu exatamente estava. Não sabia se ainda era Las Vegas ou outro
lugar. Outra cidade. Outro país. Eu não fazia ideia de nada, porque, durante
o caminho inteiro, eles me colocaram para dormir.
A única coisa que eu tinha certeza era de que, depois que o choque e
a crise de choro passaram, eu permaneci absolutamente puta, com tudo,
assim como estava até agora. Eu queria explodir, queria enfiar a mão na
cara da primeira pessoa que eu visse pela frente. Para completar, como se
estivessem tentando me deixar ainda mais furiosa, sumiram com o meu
celular e me jogaram naquele quarto, rodeada por uns quatro seguranças
mal-encarados, que não paravam de me observar. Russell Ballard não
estava ali, claro, mas, provavelmente, tinha dado ordens expressas àqueles
brutamontes para que não tirassem os olhos de mim nem por um segundo.
Uma merda!
E, naquele ócio infinito, sem nada para fazer, de tanto olhar para o
tempo, eu imaginava, a cada segundo, como Zara estava. As únicas coisas
que eu pensava era nela e em como sair daquela prisão. Eu não parava de
me perguntar onde ela poderia estar e o que fazia naquele exato momento.
Eu não parava de desejar, com todas as minhas forças, voltar para ela, e,
principalmente, que ela estivesse bem. Intacta e perfeita como sempre foi.
Eu preferia nem pensar em como eu ia ficar ou o que eu seria capaz de fazer
com o culpado, se eu soubesse que qualquer coisa ruim tivesse acontecido a
ela.
Eu só queria voltar ao seu apartamento e ter uma vida normal e
tranquila com ela.
Eu só queria...
...Uma saída.
Foi quando, de tanto revirar os olhos em puro asco, para aqueles
quatro merdinhas, eu mirei displicentemente sobre uma cômoda ao lado de
uma cama colossal. Deus, eu poderia ouvir os anjos cantando, quando os
meus olhos viram aquilo. Era um celular. A porra de celular. Lindo e
maravilhoso, ali em cima. Ele parecia brilhar, a todo instante, chamando a
minha atenção, como se eu estivesse enfeitiçada.
Cara, um celular ia me ajudar pra cacete.
E, Deus, eu até tentava disfarçar, mas os meus olhos sempre, sempre
recaíam naquela mesma direção, observando, admirando, imaginando o que
eu poderia fazer se conseguisse pegá-lo e ligar para a Zara. O meu amor.
Por mais vintage que isso pudesse parecer, de tanto olhar para o seu número
na minha agenda telefônica, quando ela me surpreendeu com a primeira
mensagem, acabei decorando. Claro, eu jamais imaginaria que eu o veria
ali, entre os meus contatos.
Era só de um celular e de uma ligação que eu precisava, para
começar a torcer que, de algum modo, eu pudesse ser localizada por ela e
por alguma tecnologia da polícia.
Inferno de seguranças que não tiravam os olhos de mim.
Tamborilei os meus dedos, impaciente, sobre a mesa onde eu estava.
Minhas ridículas unhas por fazer. A porcelana já tinha ido com Deus há
muito tempo. Desde que comecei a esfregar o chão da penitenciária e lavar
os banheiros imundos das celas, elas foram caindo uma por uma. Sem
dinheiro na conta, eu já estava sem manicure há um século. Mesmo assim,
ainda quis sorrir por me lembrar de cada história vivida naquela merda
penitenciária.
Segurei um pequeno riso bobo que quis se desprender dos meus
lábios, ao me dar conta de que eu não imaginei que, um dia, fosse
classificar algumas lembranças da penitenciária como “boas”. Com certeza
era por ela, por causa dela: Zara. Foi ela que transformou aquele inferno em
um lugar bem mais tolerável para se estar do que realmente era.
Suspirei.
Pelo menos, foi o que trouxe a minha mulher pra mim.
Minha mulher...
Minha...
Mulher...
Era tão bom chamá-la dessa maneira.
E, então, entre um pensamento e outro sobre ela, enquanto eu
viajava pelo mundo da Zara, ouvi sua voz falar bem nos meus ouvidos,
como num passe de mágica, ao me dar uma ideia.
Em puro estado de alerta, subitamente, me endireitei sobre a cadeira
onde eu estava sentada, refletindo sobre aquilo. Poderia não funcionar.
Poderia não dar em nada. Ou, então, eu poderia me foder completamente e
levar mais uma surra do meu pai.
Por outro lado, eu sabia que tinha que tentar algo.
Eu precisava sair daquele buraco.
Determinada, subitamente me levantei da cadeira.
— Quero água.
Disse eu, aquela voz típica de garotinha mimada.
Eu tinha que entrar no meu personagem, afinal.
E, então, como uma criancinha curiosa e xereta, comecei a caminhar
pelo quarto, pegando nas coisas, tocando tudo, tirando bibelôs e pequenos
objetos de um lugar para colocar em outro. Vez por outra, eu derrubava
propositalmente alguma coisa. No fim das contas, eu precisava distrair
aqueles idiotas de alguma maneira.
— Sente-se, senhorita Ballard. Um de nós vai pegar para você.
Claro que eu sabia que falariam isso.
— Mas eu quero ir — falei quase em um grunhido de garota cheia
de vontades. Bem patricinha mesmo. — Preciso esticar as minhas pernas —
Displicentemente, me aproximei do móvel onde o celular estava
abandonado, virando-me de frente para eles e de costas para a cômoda. —
Não aguento mais ficar na porcaria desse quarto — E fazendo de tudo para
que não percebessem, com a mão mais leve do mundo, quase uma
furtadora, estiquei os dedos, peguei o celular e o guardei dentro da minha
roupa, na parte do cós traseiro da calça, praticamente na bunda.
AAA caralho, eu queria gritar de felicidade!
Foi no mesmo instante, porém, em que um deles se levantou de uma
cadeira.
Me afastei dois passos do móvel, automaticamente, com a cara mais
deslavada do mundo.
— Seu pai nos deu ordens expressas de que a senhorita não pode
sair daqui. Portanto, eu mesmo vou buscar.
Claro que deu.
Rolei os olhos, como a típica garotinha enjoada e mimada que eles
sabiam que eu era, ou, pelo menos, que fui um dia. Eu continuava
encenando o meu papel. Não era preciso muito esforço para revirar as orbes
com aquilo que ele falou, entretanto.
— Ai que saco...! — disse eu, me jogando sobre a cadeira onde
estava sentada antes. — Já que você vai buscar, como se eu fosse uma
incapaz, pelo menos faça o favor de trazer bastante água. Estou com muita
sede, seu cretininho — E usei o meu melhor tom de nojenta.
Com um breve aceno de cabeça e seu semblante irritantemente
sério, ele saiu dali, enquanto os outros permaneceram feito urubus ainda me
observando.
Suspirei.
O celular eu já tinha. Agora, eu só precisava de um único momento
a sós, sem aqueles infelizes quatro pares de olhos virados em minha
direção.
Tamborilei os dedos, de novo, sobre a mesa.
Dessa vez, impaciente para fazer a minha ligação. Ou enviar uma
mensagem.

Zara

Chegamos por volta do meio dia na mansão dos Ballard. E, claro,


Westphalen e eu não estávamos sozinhas. Ela tinha exigido um grupo de
mais quinze agentes, entre policiais e detetives, para aquela diligência
judicial. Nós sabíamos que não encontraríamos Russell ou qualquer pessoa
suspeita ali, claro, mas estávamos à espera de encontrar pistas de possíveis
locais para onde ele pudesse ter fugido.
E eu tinha certeza que iríamos encontrar.
Era só questão de tempo.
Westphalen e eu descemos da viatura, devidamente uniformizadas,
na companhia dos demais agentes. Enquanto isso, os seguranças, que
ficavam no portão de entrada, nos ofereciam os seus melhores olhares de
desconfiança. Eu não me importava com isso. Nós éramos da polícia, e,
mesmo que tivessem recebido ordens para não deixar que ninguém entrasse,
eles ficariam em maus lençóis se não nos permitissem passar por aqueles
portões.
— Mandado de busca e apreensão — Alexa e eu erguemos os
distintivos para um deles, juntamente com o processo judicial que já corria
contra Russell Ballard.
— O Senhor Ballard não está em casa — Sério, o segurança
respondeu.
— Não interessa. Precisamos entrar. — Falei. — Mas, se quiserem
dificultar o nosso trabalho, temos espaço de sobra, nas viaturas, para levá-
los à delegacia — E ergui uma das sobrancelhas, alternando o olhar severo
entre cada um deles.
Notei, porém, quando o segurança, que estava mais à frente,
representando os outros, suspirou profundamente, sabendo que não havia
saída, e, então, encarou os demais que ali estavam, acenando um breve sim
com a cabeça, para que os portões fossem abertos.
Bom. Muito bom.
Quanto antes eles soubessem que as autoridades éramos nós,
melhor.
Passamos para a parte interna da mansão, com os mais de quinze
agentes que nos acompanhavam, e caminhamos até a porta de entrada
principal, que dava para a sala de estar. Foi quando Alexa tomou a frente, o
seu posto de comandante do grupo, e orientou a todos:
— Vamos começar pela parte interna da casa. Eu quero que
recolham todo e qualquer material suspeito, colocando nos sacos plásticos,
e que também fotografem tudo. Usem suas luvas, para não entrar em
contato direto com os objetos. Quanto aos seguranças da casa... — fitou
sobretudo aquele que parecia ser o chefe da segurança, porque não saía do
nosso encalço. — Eu exijo que não toquem em nada sem a permissão dos
agentes.
Usou o seu melhor tom de autoritária, aquele que a fazia ser tão
respeitada em qualquer lugar onde estivesse. Em seguida, separou os
agentes em grupos de três, delegando compartimentos diversos para cada
um deles. Mas, me deixou livre para que eu seguisse por onde quisesse. Em
outras palavras, Westphalen sabia que eu tinha maturidade suficiente para
fazer o que deveria ser feito ali e priorizar os locais que eu considerasse
mais importantes.
Bom, eu sabia que o escritório de Russell Ballard poderia ser um
prato cheio para nós. Mas, a Alexa enviou uma equipe qualificada para lá.
Eu confiava nos agentes, sabia perfeitamente do potencial que eles tinham.
E, se necessário, eu me juntaria a eles, numa busca mais complexa e
aprofundada sobre os muitos papéis, documentos e notebooks que deveriam
haver naquele escritório. Enquanto isso, eu seguiria para outro lugar. Um
local um pouco mais afastado, que, quem me mandava ir, não era uma
pessoa. Era o meu coração.
O quarto da Agatha.
Subi as escadas, caminhando por entre os muitos agentes que faziam
os seus trabalhos, e alcancei o andar superior. Respirando fundo, como se
me preparasse para entrar no seu universo, girei a maçaneta da porta e pus
os meus pés ali. A primeira coisa que eu senti foi o cheiro do seu perfume.
O cheiro tão inesquecível que Agatha tinha. Marcante como ela mesma era.
Fechei os olhos, inspirando o máximo de ar para os meus pulmões. Uma
onda de saudade me inundou por alguns instantes. Foi como ter a impressão
de que ela estava bem ao meu lado.
Queria tanto que fosse verdade...
Mais uma vez, o meu coração se encheu de pura determinação. Abri
os olhos, desta vez, mirando clinicamente em tudo o que existia ao meu
redor. Em todos os móveis da decoração em branco, prata e dourado. Era
como se tudo tivesse a sua cara. Uma boa nostalgia para quem já estava
morrendo de saudade. Voei para o seu closet, revirando tudo por ali. Agatha
que me perdoasse pela bagunça, quando voltasse e visse o estrago que eu
tinha feito.
Bem, o importante era voltar.
Pra mim.
Sã e salva.
E eu não ia parar até encontrá-la.
Acontece que, depois de tirar tudo do lugar, não parecia haver nada
que não fossem roupas caras, sapatos de grife, bolsas diferentonas, e o
cheiro maravilhoso do seu perfume. Mesmo assim, sem parar, corri para
fora, alcançando a escrivaninha do seu quarto. Abri todas as gavetas,
tirando tudo e jogando no chão o que eu considerava que não pudesse me
ajudar em nada. Folheei suas agendas e passei pelos papéis riscados, até
erguer o rosto e dar de cara com um quadro formado por pequenos porta-
retratos.
Aquilo chamou a minha atenção de alguma forma. Eram muitas,
muitas pequenas fotos de vários momentos vividos por ela. Desde criança
até agora. E, claro, ela foi uma criança linda, assim como, depois de
crescida, se tornou uma mulher impecável. Agatha parecia mesmo adorável,
enquanto segurava um algodão doce, no parque, e sorria para a câmera, com
os dois dentes da frente faltando. Uma risadinha idiota quis escapar da
minha garganta, mesmo em meio à tensão da situação. Ela devia ter uns seis
anos de idade. Ao seu lado, porém, havia uma mulher loira. Muito parecida
com Agatha atualmente.
Será que era... A sua mãe?
Passeei com os meus olhos um pouco mais pelas fotografias e
percebi que havia várias com ela e a mesma mulher. Sim, só podia ser a
mãe dela. A semelhança entre as duas era gritante. E, pela forma como elas
se olhavam e sorriam uma para a outra, pareciam ser muito apegadas. Eu
sabia que ela sentia muita falta da mãe... Suspirei. Para minha surpresa,
também havia algumas fotos com Russell Ballard. Todas eram antigas, no
entanto, e ele só aparecia naquelas em que a mãe da Agatha também estava.
Fotos atuais, com ele, não existiam ali. O que talvez não fosse uma
novidade.
Porém, a novidade mesmo foi o que eu vi em seguida. Era um cartão
pequeno, colocado não dentro do quadro com os porta-retratos, mas, na
parte de fora, fixado no espacinho entre o vidro e a moldura. A ilustração
colorida da Mulher-Maravilha. E, como se não bastasse, o nome Zara estava
escrito por cima, provavelmente com a sua letra.
Dessa vez, eu não pude me segurar. Mesmo com a minha
preocupação por tudo, eu ri, boba, ao ver aquilo. Ri baixinho, balançando a
cabeça, enquanto me lembrava das muitas vezes em que ela também me
chamou de Xena.
Xena e Mulher-Maravilha falsificada.
— Sua maluca... — sussurrei, ainda rindo um pouco.
E, então, estiquei minha mão para tocar em uma foto sua mais
recente, como se estivesse tocando nela mesma. Sua pele macia. Seus lábios
convidativos. Puxei o ar. Meus olhos arderam um pouco. Passei o dorso da
mão por ali, para enxugar qualquer coisa que pudesse estar escorrendo, até
que o meu olhar recaiu displicentemente sobre uma determinada foto. Com
Evangeline.
Evangeline...
Sim, sim, sim...!
Subitamente, parei de sorrir. Meu corpo em estado de alerta outra
vez.
Ela podia ser uma peça-chave.
— Precisa de ajuda, policial Scott?
Foi quando ouvi e vi o chefe da segurança parar bem na porta,
pegando-me de surpresa. O tom de voz que ele usou, no entanto, não me
parecia ser de uma pessoa solícita, mas de alguém que, desconfiado, queria
bisbilhotar algo.
— Onde a Evangeline está? — perguntei.
— Evangeline não está mais trabalhando conosco.
Merda...
Foi demitida, assim como Agatha já previa.
Russell filho da puta.
Sem dizer mais nada, simplesmente cruzei a porta do quarto da
Agatha, como um furacão, deixando-o para trás. Ele, no entanto,
intrometido como parecia ser, me acompanhou a passos largos e rápidos,
enquanto eu descia as escadas praticamente correndo. Eu não me importava
com isso, desde que ele não me atrapalhasse.
Cruzei os vários agentes que trabalhavam na sala e nos quartos, e
segui para o andar inferior, próximo à cozinha, onde eu sabia que ficava o
quarto dela. Quando cheguei em frente à porta e coloquei a minha mão no
trinco, para abrir, todavia, o infeliz colocou o braço bem na minha frente.
Que porra era essa?
— Você não vai encontrar nada aí. Evangeline foi embora.
Ele achava que eu era o quê? Uma otária?
Franzi o cenho, irritada, me aproximando bem do seu rosto, com o
meu melhor e mais intimidante semblante, dizendo entredentes:
— Saia da frente. Agora. Se me importunar mais uma vez, você vai
se arrepender de ter saído de casa hoje, para trabalhar.
Isso foi o bastante para que ele se afastasse dois passos, estrecendo
mesmo que tentasse disfarçar, e se mantivesse quieto no seu lugar.
Entrei no quarto, revirando tudo, com pressa. Nenhum tempo a mais
poderia ser perdido. Abri o guarda-roupa, que já estava vazio, olhei debaixo
da cama e dos travesseiros, caminhei de um lado para o outro, vasculhando
gavetas e armários, até que eu... Simplesmente vi... Debaixo de uma
caixinha sobre uma penteadeira.
Parecia ter sido estrategicamente colocado ali.
Um pedaço de papel com um endereço escrito à mão.
“Meadow Ln, 93, Lovelock, Nevada”
E embaixo o nome: Evangeline.
Meus olhos brilharam. Eu sabia que aquele papel com esse endereço
não tinha sido deixado ali por acaso, quando todo o restante do quarto
estava absolutamente vazio, exceto pelos móveis. Ligeiro, minha cabeça
começou a formular hipóteses e rotas. Planos. Lovelock... Lovelock, no
condado de Pershing. Era uma das cidades menos populosas do estado de
Nevada. Ficava distante de Las Vegas, em um sentido totalmente oposto.
Era isso.
Era isso, Zara.
Uma informação mais contundente que você estava buscando.
Apenas aja.
Repentinamente ofegante, apertei aquele papel entre os meus dedos
e corri para fora do quarto, deixando, outra vez, para trás, o chefe da
segurança com uma testa bem enrugada. Segui para a sala de estar, onde um
verdadeiro acampamento de investigação havia sido montado. Lá,
Westphalen continuava orientando os agentes, enquanto eles, com luvas,
vasculhavam tudo, guardavam objetos suspeitos em sacos plásticos e
fotografavam.
— Achei isso aqui — De pronto, eu falei, ao parar do seu lado. —
Evangeline trabalhava, há anos, para essa família. Você sabe que
precisamos ir até esse local, não sabe? — ergui uma das sobrancelhas.
— Agora mesmo.
Foi tudo o que ela me respondeu, profissional como sempre era.
Eu ainda não sabia de quem era aquele endereço, mas...
Ou a gente ia encontrar Evangeline, ou... Agatha.
Inexplicavelmente mais forte

Zara

Era uma viagem longa. Bem longa, conforme eu já imaginava. De carro,


Lovelock ficava há mais de sete horas de Las Vegas. Saímos da cidade por
volta das duas horas da tarde e seguimos pela estrada. Um comboio de vinte
policiais, enquanto outros agentes ficaram em Las Vegas para dar
continuidade à outra parte da investigação. No horizonte, o dia já estava
indo embora, à medida que estrelas começavam a pincelar o céu. Mas, nem
a chegada da noite seria capaz de nos parar. As buscas seriam ininterruptas
até que encontrássemos todos.
A cada segundo, eu via asfalto e mais asfalto passar frente aos meus
olhos, enquanto eu me mantinha com o rosto virado para frente, só
pensando nela. Na Agatha. Eu não parava de imaginar como ela estava
naquele exato momento e para qual parte do mundo Russell a tinha levado.
Será que estava em Lovelock? Será que foi agredida mais uma vez? Eu não
queria nem cogitar a possibilidade de ver mais manchas absurdamente
roxas em seu corpo. Só pedia aos céus para que ela estivesse bem e que nós
não estivéssemos fazendo aquela longa viagem de graça. Seria muito tempo
perdido, para não dar em nada.
E tempo era algo que nós não poderíamos nos dar ao luxo de
perder.
Precisávamos encontrar algo importante em Lovelock.
Mas, se encontrássemos Agatha, seria como ganhar um pedaço do
céu.
Todo o tempo gasto naquela maldita estrada teria valido a pena.
Senti, porém, quando Alexa, sentada ao meu lado, pousou uma das
mãos sobre a mim e, então, disse:
— Tenho boas expectativas. Acho que vamos encontrar o que
estamos procurando. Mantenha-se firme.
Apenas acenei um breve sim com a cabeça, enquanto o meu rosto
permanecia voltado para frente, vidrado e sério, observando a estrada,
enquanto absorvia aquelas palavras. Eu estava concentrada no meu
objetivo: encontrar Agatha e prender Russell. E, se tinha algo que eu faria,
definitivamente, era me manter firme.

Agatha

Eu juro. Eu já estava pirando dentro daquela merda de quarto. A


angústia e a irritação cresciam dentro de mim, a cada segundo que eu
notava o dia escurecendo lá fora, sem que eu tivesse conseguido sair dali,
em um mísero momentinho a sós, para pegar na porcaria do celular da
maneira como eu queria.
E, bem, eu não tinha pedido praticamente um galão d’água por
acaso. Depois de tanto beber líquido, eu usaria aquilo como desculpa para
requisitar uma ida ao banheiro. Acontece que eu já tinha pedido, umas vinte
vezes àqueles filhos da puta, para mijar, mas a resposta era sempre a mesma
“daqui a pouco, senhorita Ballard”.
Daqui a pouco era o meu cu.
Agora, eu queria ir ao banheiro não somente numa tentativa de sair,
mas também por uma questão de necessidade. Eu estava malditamente
apertada, cacete.
— Que droga, vocês são muito idiotas! — berrei, inquieta, naquela
mesma cadeira que eu estava desde cedo, onde já criava raízes. — Vão se
arrepender de estar fazendo isso!
Eles, no entanto, apenas continuavam me encarando com as mesmas
caras de paisagem que eu tanto odiava. Calados, sérios, impassíveis. Era
como se eu nada fôssemos a mesma coisa. Aliás, era como se eu fosse uma
formiguinha na frente daqueles brutamontes.
Eu, porém, continuei, tão indignada como eu estava.
— É, sério, eu vou mandar o meu pai demitir todos vocês! Eu vou
dizer que vocês estão me maltratando! — Como se meu pai se preocupasse
com isso... Era ele mesmo quem me maltratava primeiro. Mas, eu tinha que
ameaçar de alguma forma. — Vocês viram que eu bebi trezentos litros
d’água! Agora, preciso fazer xixi, que saco! — E eu nem me esforcei para
entrar no meu personagem de garotinha nojenta, naquele momento. Estava
mesmo irritada, e queria que todos aqueles imbecis fossem para o olho da
rua. Afinal, para alguma coisa minimamente aceitável, o meu pai tinha que
servir. — Mas, tudo bem... Tudo bem! Eu vou me mijar aqui mesmo... Lá
vai...! — E, franzi o cenho, fingindo uma cara de concentração de quem já
estava começando a deixar o xixi sair.
Foi quando um deles pulou logo ali, repentinamente levantando-se
da cadeira, onde estava há alguns metros. Após um longo suspiro de alguém
que sabia que tinha perdido uma batalha naquela guerra, ele disse:
— Tudo bem, tudo bem, senhorita Ballard. Vamos. Eu levo você ao
banheiro.
Ah, aleluia! Finalmente!
Ajeitei o celular no cós da parte traseira da calça, sem que eles
vissem e, empinando bem o nariz e o queixo, me levantei da cadeira. Passei
por todos eles, seguindo na direção daquele que tinha se prontificado a me
levar. Porém, assim o fiz com a minha melhor cara de poucos amigos.
Endireitando a minha postura, caminhei por ali.
Quando a porta foi aberta e eu, finalmente, pude ver algo diferente
das paredes do quarto onde eu estava, quase senti um cheiro de liberdade.
Um cheiro de liberdade que, por pouco, não me inebriou. Ainda olhei de
um lado para o outro daquele corredor que se mostrou à minha frente.
Eu poderia muito bem sair correndo, sem olhar para trás, como se
não houvesse amanhã, numa tentativa desesperada de me ver livre. Mas,
isso seria uma atitude muito burra, porque eu sabia que as chances deles me
pegarem, antes de eu cruzar os portões, eram muito maiores do que o
sucesso da minha fuga.
Ou seja, eu precisava fazer algo mais discreto.
Pelo menos, quase isso.
Deixei que ele me guiasse pelo corredor. Eu sabia que era uma casa
de um único andar, mesmo que fosse bem grande. Ainda observei por ali e
percebi todas as portas dos quartos fechadas. A única que estava entreaberta
era justamente aquela onde ficava o banheiro, quase no final.
Sentindo a ansiedade já querer dominar o meu corpinho, por saber
que eu poderia estar a um passo de conseguir o que queria, entrei no
banheiro. O xixi ainda quis sair antes do tempo, tamanha animação intensa
e silenciosa que eu estava. Quando fiz menção de segurar a maçaneta para
fechar a porta, porém, o demônio do segurança colocou sua mãozona bem
no meio.
De súbito, enruguei a testa, encarando-o como se ele tivesse três
cabeças em cima do pescoço.
— Quê que foi? — Com desdém, questionei.
— Você pode usar o banheiro, senhorita Ballard, desde que fique
com a porta aberta.
Pera aí.
— Então, eu vou ter que mijar na sua frente? — ergui uma das
sobrancelhas, cruzando os braços e trocando o peso do corpo para a outra
perna.
— Posso me virar um pouco, se achar melhor.
Isso era inacreditável.
Será que devo pedir desculpas por saber falar e interpretar a minha
língua materna?
— Ah, vai se foder, meu amigo...! — Bem desaforada, repliquei. —
Poupe os meus tímpanos de ouvir esse tipo de coisa — E fui o abanando
com as mãos, até empurrá-lo e afastá-lo de mim.
Ele, felizmente, com a sua cara nojenta de paspalhão idiota se
afastou dali, enquanto eu não somente fechei a porta como também passei a
chave, trancando-a. Quando me vi sozinha ali, dentro daquele espaço que,
mesmo pequeno, eu podia fazer o que eu quisesse, um sorriso esperançoso e
exultante escapou dos lábios.
Finalmente, a sós, meu Deus!
Ligeiro, comecei a agir. Tirei o celular da parte de trás do cós da
calça, abaixei as calças e mijei. Eu realmente estava apertada. Porém,
enquanto assim eu fazia, também tentava ligar o maldito celular. Era um
Iphone dos modelos mais antigos. Ainda assim, eu sabia mexer naquele
troço, porque tive um desses durante o verão de, sei lá, dois mil e dezesseis.
Acontece que não importava o que eu fizesse, ele não ligava de jeito
nenhum.
De jeito nenhum!
Argh!
Que merda era essa?!
E olha que eu passei um tempo considerável tentando.
Um tempo precioso que eu não poderia perder, porque, senão,
aquele idiota acharia estranho a minha demora, e, tal hora, poderia até
arrombar a porta para me “resgatar”.
Rolei os olhos, impaciente. O coração já saltando no peito.
Chacoalhei, mexi de um lado para o outro. Faltei tacar ele no chão,
de tanta raiva, mas me segurei. Ou melhor, o segurei. Pelo menos, tentei.
Essa porra estava descarregada?
Ah não.
Ah não!
Eu devia ter desconfiado! Afinal, esmola grande o cego desconfia,
né? Era por isso que essa porcaria estava tão facilmente largada sobre o
móvel. Com um celular descarregado, ninguém fazia nada!
Inferno!
Bufei. A ira se espalhando por cada centímetro da minha pele.
Eu estava fervendo.
Num rompante, me levantei do vaso e bruscamente vesti minhas
calças. Quase desesperada por alguma solução, andei de um lado para o
outro do banheiro, esperando por alguma luz, alguma intervenção divina,
ou, sei lá, qualquer coisa. Qualquer tipo de merda que servisse para me tirar
dali!
De tanto girar a cabeça para todos os lados, pensando e observando
cada canto, meus olhos miraram em uma entrada de ar que ficava na parte
superior de uma das paredes do banheiro. Quadrada. Quase retangular. Mas,
de tamanho significativo. Foi aí que a minha cabeça começou a trabalhar
ativamente, formulando saídas, hipóteses. Literalmente saídas. E mesmo
que tudo na minha cabeça parecesse muito sem noção, fazia sentido.
Fazia sentido, porque, droga, eu tinha que tentar!
Percebendo que a grade da entrada de ar estava meio torta, como se
já tivesse sido aberta, eu, louca, apelando para qualquer coisa, fechei o vaso
sanitário e subi na tampa. Mexi na grade, enganchando os meus dedos e
fazendo força para abri-la. Passei ainda mais tempo do que eu não deveria,
naquelas tentativas. Eu já podia sentir o suor escorrendo por baixo da minha
roupa.
Ai que merda.
Esse cacete não ia abrir, não?
E o pior era que eu nem podia fazer barulho!
Eu já estava a ponto de sibilar mais uma série de palavrões,
enquanto colocava mais força, quando, de repente, a portinhola cedeu,
fazendo-me quase cair para trás com o impulso. Ai, caralho. Precisei me
segurar por ali, para não bater com a bunda no chão do banheiro e me foder
mais ainda.
Mesmo assim, os meus olhos brilharam ao ver aquele buraco
maldito completamente aberto. Sorri. Sorri como uma criancinha num
parque de diversões, pronta para se soltar da mão dos pais. Quase
literalmente. E, então, com cuidado, para não fazer barulho, larguei a grade
por ali, colocando a cabeça para fora.
O céu já estava escuro. A noite tinha chegado. Mas, o vento que
corria estava maravilhoso. Era como mais um convite para que eu caísse
fora logo. Eu não via nada, nem ninguém, passando por ali. A área aberta
da casa estava completamente deserta até os limites dos muros gradeados.
Era agora.
Agora, Agatha.
Fuja.
Fazendo um esforço com meus braços para me esgueirar pela
estreita passagem, eu quase grunhi. Na primeira tentativa, eu regressei ao
ponto inicial. Não consegui pular. Merda. Irritada, coloquei mais força e me
inclinei novamente. Por pouco, não consegui. Mas, foi quando eu dei um
impulso maior, com o meu pé sobre a tampa da privada, que eu subitamente
escorreguei para o outro.
Au!
Era uma vantagem e uma desvantagem, ao mesmo tempo, sempre
ter sido tão magricela daquele jeito. Ao mesmo tempo que eu conseguia
atravessar lugares estreitos com certa facilidade, eu também sentia muito
mais a dor de qualquer impacto. Caí no chão, do outro lado, rolando sobre a
areia do espaço. O baque da queda, especialmente nas minhas costelas, me
fez arquejar baixinho.
Ainda assim, nada, nem as novas manchas roxas que, com certeza,
eu tinha adquirido com o plano, me faria perder o sorriso no rosto, quando
me vi praticamente em liberdade do lado de fora. Olhei de um lado para o
outro. Eu não estava completamente livre, porque eu ainda precisava dar
um jeito de atravessar os portões. Mas, só de estar ali e não naquele infeliz
quarto, já era maravilhoso!
Eu só precisava chegar discretamente ao portão e dar um jeito de
cair fora dali sem que me vissem.
Foi então que eu me levantei do chão e me encostei à parede da
casa, quase agachada, andando pé ante pé, como se estivesse pisando em
ovos. Eu tentava equilibrar a cautela com a rapidez, buscando com o meu
olhar o primeiro portão que eu visse pela frente. Porém, entre um passo e
outro, na ânsia de fugir o mais rápido possível, eu me deparei com algo que
fez o meu corpo subitamente travar, mesmo que eu não quisesse.
Sim, eu sabia que não devia parar ali.
Eu não devia parar para nada, nem ninguém.
Mas, eu simplesmente não consegui.
Enruguei a testa, confusa, ao dar de cara com a cena bem em uma
das janelas.
Meu pai e alguns dos seus seguranças estavam em uma sala cheia de
garotas. Não parecia ser uma sala de estar, por exemplo. Não ficava na parte
da frente da casa. Ficava na lateral. Mas, ainda assim, parecia bem ampla
para comportar a quantidade de meninas que estavam ali. Ele passava por
elas como se estivesse as inspecionando. E todas, absolutamente todas,
pareciam bastante assustadas.
Engoli seco inconscientemente.
O que diabos o meu pai queria com todas essas meninas?
O quê...?
E, então, num flash repentino de memória, eu me lembrei de algo.
Eu me lembrei daquela festa de confraternização de natal do Grupo Ballard.
Me lembrei da conversa entre Harry Claflin e o meu pai. Eles falavam sobre
a chegada de várias garotas. E eu escutei perfeitamente quando o meu pai
exigiu que recebesse somente as melhores.
Puxei o ar, sentindo o coração acelerar.
Será que...?
Antes mesmo que eu conseguisse completar o pensamento, porém
ouvi um barulho vindo da parte de trás da casa, chamando a minha atenção.
Droga.
Arfei.
Eu não podia dar bobeira por ali, mesmo que eu estivesse bastante
curiosa para saber que porra era aquela que o meu pai fazia. Aquele, no
entanto, era um campo minado, onde eu estava rodeada de inimigos. A
qualquer momento, eles poderiam ir atrás de mim, quando se dessem conta
da minha ausência.
Me apressei, cruzando a tal janela o mais rápido possível, para que
não me notassem. Corri. Corri, fazendo de tudo para alcançar logo os
portões.

Zara

Senti o meu coração bater mais rápido, quando, após mais de sete
horas de viagem, chegamos ao endereço que constava naquele papel.
Acostumada com tudo o que eu vivia, quase todos os dias na polícia, eu
raramente me sentia tensa ou ansiosa, antes de qualquer missão. Era como
se o meu corpo já estivesse acostumado com aquilo e a minha cabeça
completamente programada para qualquer surpresa, fosse boa ou ruim.
Aquela missão, porém, era mais pessoal, para mim, do que todas as outras
que eu já tinha participado.
Ali, o que estava em jogo era a vida da minha mulher.
Todos os meus pensamentos inteiramente focados em encontrá-la.
Observei o local ao redor, ainda que continuássemos dentro do
carro. Westphalen e eu ainda não tínhamos dado ordens aos demais policiais
para que cercassem logo o lugar. Aliás, em parceria com a polícia de
Lovelock, conseguimos mais dez policiais para reforçar aqueles viajaram
conosco. Ainda assim, preferimos chegar discretamente. Paramos a certa
distância da entrada da casa, para que pudéssemos estudar o local, antes de
um possível conflito.
Estacionamos os carros e ficamos assistindo o movimento por
alguns minutos.
Era uma casa grande, mas antiga. Tudo estava absolutamente
silencioso, tanto na rua quanto na própria residência. Dava até a impressão
de que não tinha ninguém. A maioria das janelas estava fechada. E, das
poucas que estavam abertas, não havia luz acesa. Por um segundo, o medo
me abateu. O medo de que nós tivéssemos percorrido gratuitamente aquela
longa distância para, no fim das contas, não dar em nada.
— Será que é aqui mesmo? — Meio receosa, perguntei à
Westphalen, sentada ao meu lado. — Estamos no local, certo?
Quando fechei a boca, no entanto, cada centímetro do meu corpo
entrou em puro estado de alerta, ao ver repentinamente a figura que se
desenhou frente aos meus olhos, mesmo a alguns metros de distância.
Apareceu bem no portão da casa, pela parte de dentro. Correndo, agoniada,
desesperada... Alcançou o cadeado do portão e o chacoalhou de todas as
formas, tentando abrir. Por um momento, até fez menção de escalar as
imensas grades e pular. Respiração ofegante, semblante apreensivo.
E... Cabelos loiros.
Olhos azul.
Rosto de uma boneca de porcelana, mesmo que continuasse com as
manchas de machucados.
O meu coração automaticamente saltou para a garganta, enquanto o
meu corpo inteiro se tencionava. Ainda pisquei os olhos repetidas vezes,
para ter a certeza de que eu não estava sonhando, de que aquilo não era uma
miragem ou pura obra da minha imaginação já tão perturbada.
Aquela... Aquela era a... Agatha? A minha Agatha?
Os meus olhos arderam.
Já sentindo a adrenalina me dominar por completo, pus as mãos no
trinco da porta do carro, para abrir e sair correndo até lá, como numa atitude
louca e desesperada de tê-la nos meus braços, sem nem pensar direito nas
estratégias táticas que tínhamos estudado e traçado, durante as várias horas
de viagem.
No momento em que eu, assim, tentei fazer, pouco me importando
se aquilo poderia representar a falha de uma policial, algo travou a minha
atenção novamente. Algo que fez o meu sangue ferver, enquanto eu
apertava o trinco entre os meus dedos. Ela estava tentando fugir. Eu sabia
que estava. Mas, dois homens, de repente, apareceram e a puxaram
bruscamente. A minha garota forte e destemida ainda tentou lutar contra
eles como podia. Só que não conseguiu. Sobretudo, depois de levar um tapa
certeiro na cara que a fez cair no chão, tamanha força do impacto.
Arrastaram-na para dentro de novo, como se ela fosse um objeto inanimado.
E aí, tudo dentro de mim se revirou em pura fúria.
Talvez eu nunca tivesse sentido tanta raiva em toda a minha vida.
Bufei, trincando os dentes, puta. Meus olhos pegando fogo.
Destranquei a porta do carro, já me impulsionando para sair dali e ir
atrás deles, pronta para fazer o que sempre me disseram que era um erro,
mesmo que eu fosse uma policial: justiça com as próprias mãos.
Foi quando eu ia me levantando, sem pensar mais em nada, apenas
cega de fúria, que Westphalen segurou firmemente o meu braço.
— Zara, calma! — exclamou.
Suas sobrancelhas bem arqueadas.
— Calma...?! — franzi o cenho, quase sem entender aquilo. —
Como eu posso manter a calma, porra? Você viu o que eu vi, não viu?! Você
viu o que aqueles filhos da puta fizeram com ela!
— Sim, Zara, eu vi. E eu também fico tão indignada quanto você!
Mas, não aja simplesmente por impulso. A policial Scott que eu conheço
nunca colocou a emoção acima da razão, durante o trabalho! Precisamos
agir em conjunto, estrategicamente. Se você for até lá, desse jeito, sem o
plano e sem os outros policiais, vai foder a missão inteira!
E as suas palavras me atingiram como um soco, mesmo que eu não
quisesse.
Me dei conta.
Mesmo toda dura de tensão e ódio, respirei fundo, tentando conter
os meus ânimos, ainda que fosse absolutamente difícil. Quase impossível.
— Certo — repliquei entredentes. Dura feito pedra. — Mas, vamos
agir logo. Não estou disposta a perder mais tempo. Já temos a certeza de
que ela está aqui. E, com sorte, Russell Ballard também.
— Sim, nós vamos — disse ela, já pegando o rádio, para se
comunicar com todos os outros policiais nos demais carros. — Preparem-
se. Fase um. Vamos cercar o local.
Depois disso, eu não contei mais de meio minuto, até ver as viaturas
da polícia seguindo em direção à casa, como em uma fila indiana
organizada e muito bem treinada. Ao todo, eram trinta homens. Vinte da
polícia de Las Vegas e dez de Lovelock. Todos foram tomando os seus
lugares nas laterais, nos fundos e na frente da casa. Abriram as portas dos
carros, que poderiam funcionar como escudos, e apontaram luzes e armas.
Aqueles que ocuparam as laterais e os fundos, ficariam de guarda para que
ninguém tentasse escapar durante o confronto. E, os que pararam em frente
à residência, entrariam conosco.
Westphalen e eu também seguimos para lá, passando de carro por
todos os policiais já posicionados. Estacionamos à alguns metros da
entrada. Agora, eles aguardavam apenas pelo nosso sinal.
Verifiquei minha farda. Tudo no lugar. Pistolas e munições também.
Quando eu peguei o escudo, para já sair do carro e liberar o portão de uma
maneira nada sutil, Alexa segurou o meu braço e disse:
— Vamos conseguir, Zara.
— Eu sei que vamos.
O fracasso naquilo estava totalmente fora de cogitação pra mim.
Ela fez que sim. Porém, quando já ia saindo do banco do motorista,
eu me lembrei de algo... Algo importante.
— Ei, Westphalen... — A chamei. Ela se virou. — Obrigada por me
deixar fazer parte disso. Não vou decepcionar.
A morena, então, me ofereceu um breve aceno de cabeça, junto com
um pequeno sorriso, e, também com o seu escudo, deixou o carro. Ela já
sabia que eu não iria decepcionar, mesmo que eu não tivesse dito nada.
Que o show começasse.
Saímos noite afora. Tudo escurecido ao nosso redor, não fosse pelos
faróis dos carros apontados para cada canto da casa. Nada nos faria parar,
entretanto. E, bem, nós poderíamos começar utilizando uma abordagem
menos hostil. Mas, se tratando daqueles caras e do quão espertos poderiam
ser, preferimos não dar a chance de que eles preparassem para o confronto
ou de que fugissem para algum lugar que não estivesse ao alcance das
nossas vistas.
Chegamos de surpresa.
Rapidamente, me aproximei um pouco do portão gradeado, onde
ficava a entrada. Westphalen e os demais ficaram aguardando a certa
distância, próximos aos carros, enquanto eu agia. Tirei o pino de uma
granada e joguei, me afastando ligeiro dali, o mais rápido que eu conseguia,
para a explosão.
Cerca de quatro ou cinco segundos depois, tudo o que nós ouvimos
foi o barulho dos estilhaços por todos os lados e do alarme de segurança
soando bem forte. Westphalen correu com os demais policiais, os guiando
por ali, embora eles já soubessem exatamente o que deviam fazer e para
onde ir. Nós já tínhamos repassado o plano, antes mesmo de chegarmos.
Porém, bastou que o primeiro agente cruzasse o portão estilhaçado para que
víssemos e ouvíssemos o primeiro som de tiro em nossa direção.
E aí, a velocidade das coisas tomou uma proporção muito maior.
Protegendo-se com os escudos, eles adentravam a casa, enquanto
tiros soavam e balas passavam por todos os lados. Balas lançadas tanto pela
polícia quanto pelos capangas de Russell Ballard. O caos estava posto. Uma
correria no jardim da casa, enquanto policiais tentavam avançar frente à
resistência da ameaça rival. Aparentemente, os caras contratados por
Russell estavam mais preparados com munição do que deveriam.
Em meio à troca de tiros, eu me movia ligeiro, esgueirando pelo
jardim, a fim de alcançar a porta da casa. Eu precisava entrar, encontrar a
minha mulher, deixá-la bem longe daqueles tiros. E, claro, prender o filho
da puta do pai dela. Deus, que nenhum acertasse ela. Era tudo o que eu
pedia. Eu jamais me perdoaria se qualquer coisa acontecesse a ela, por eu
não ter sido rápida o bastante. Respirei fundo. A determinação cada vez
mais correndo pelo meu corpo e me dando o impulso que eu precisava para
ser mais ágil.
Sem tirar minha pistola da mira por nem um segundo, eu atirava,
enquanto apoiava o escudo na frente do corpo. De capacete na cabeça, eu
deixava apenas os meus olhos saírem pelo limite superior do escudo. Ainda
pude ver alguns, que se colocavam no meu caminho, caindo a cada
explosão do meu gatilho. Honestamente, eu não tinha pena de atirar.
Mesmo que fossem tiros certeiros e fatais. Depois de uns bons anos na
polícia, o peso na consciência de tirar a vida de um criminoso, por pior que
ele fosse, tornava-se menor com o passar do tempo. No início da minha
carreira, eu ainda passei algumas noites em claro, achando que as minhas
mãos estavam sujas. Mas, agora, não mais. Não quando era necessário.
A troca estava tão intensa que eu percebi quando a munição da
minha pistola acabou. Puxei outras que eu carregava na farda, completando
o espaço na arma. E não foi apenas dessa vez. Eu tirava munições e mais
munições para recarregar. Isso, até que eu conseguisse chegar à varanda,
que dava para porta daquilo que eu imaginava ser a sala. Quando eu estava
quase alcançando, porém, um deles foi para cima de mim. No corpo a corpo
mesmo. Arrastou o meu escudo, tentando me desequilibrar. Soltei-o por ali
e fui para cima do cara. Ele, no entanto, conseguiu me prender pelo
pescoço, quase enforcando.
Desgraçado.
Dei uma cotovelada forte no seu estômago e, depois, puxei-o por
cima do meu ombro, virando seu corpo e fazendo-o cair brutalmente no
chão à minha frente. Ele ficou estirado sem ar, praticamente apagado.
Durante um tempo, antes de entrar na polícia, eu achei que, pelo meu
biotipo magro, eu não teria força para fazer esse tipo de coisa. Mas, depois
de muitos treinos e práticas reais no trabalho, percebi que eu não precisava
exatamente de força, mas de habilidade.
Obviamente, não permaneci ali, perdendo o meu tempo. Com a
pistola em punho, corri para dentro, abrindo a porta. Ainda não havia
agentes naquela parte, fora eu. E, diferente da área externa, onde tiros
soavam por todos os lados, ali parecia estranhamente calmo. Olhei de um
lado para o outro e não vi ninguém. Tudo o que eu mais queria era gritar
pelo seu nome. Chamá-la, na expectativa de que ela me ouvisse. O
problema era que, se eu fizesse isso, não era apenas ela quem ia escutar,
mas também todos aqueles infelizes que estavam sendo pagos para acabar
com a gente.
Cautelosa, mas ágil, parti na direção dos cômodos fechados, que o
meu campo de visão conseguia alcançar. Alerta, com a arma apontada o
tempo inteiro, abri porta por porta. Tudo vazio. Inferno. O pensamento era
um só, encontrar a minha garota e prender Russell. Coração acelerado,
adrenalina pulsando nas veias. Ouvi, porém, um grito estridente vindo de
algum lugar, quebrando a falsa calmaria da parte interna da casa.
Subitamente, parei tudo o que eu estava fazendo e me apressei na direção
em que eu achei que escutei o barulho.
No momento em que fui atravessar um corredor, no entanto, um
homem apareceu pela lateral, tentando erguer a sua arma em minha direção.
Aquilo foi muito rápido. No milésimo em que eu percebi a sua presença e a
sua menção de sacar a arma para mim, bati com o meu braço no seu. O
solavanco colocou abaixo sua pistola. No impulso, entretanto, a minha arma
acabou caindo também. Não liguei. Apenas o empurrei contra a parede mais
próxima, fazendo-o bater fortemente com a cabeça e cair desacordado no
chão.
Para evitar que a bela adormecida fizesse algo quando, enfim,
acordasse, tratei logo de algemar as suas mãos. Bem, eu ainda tinha
algumas, no meu colete, para qualquer outro que se colocasse à minha
frente. Porém, no instante em que terminei de trancafiar, notei a presença
sorrateira de mais alguém ali por perto. Instintiva e rapidamente, ergui a
cabeça, já levantando o meu corpo e empunhando a minha arma.
Cada centímetro meu entrou em puro estado de alerta, quando a sua
figura se tornou nítida aos meus olhos. O alvo. Como um ratinho
encurralado na toca, o meu alvo estava bem ali.
Russell Ballard.
E, pela sua cara de espanto, ao me ver, tive a certeza de que eu era a
última pessoa que ele queria encontrar. O filho da puta estava fugindo.
Correu, sumindo do fim do corredor.
Eu, no entanto, saquei a minha segunda pistola, aquela que estava
no coldre de perna, e fui atrás, correndo em sua direção, sem dar a mínima
chance para que ele saísse do meu campo de visão.
— Pare agora, Russell! Isso é uma ordem!
Ele, claro, não me deu ouvidos. Continuou fugindo de mim, até
entrar por uma das portas da área da cozinha. Segui no seu encalço, sem
parar. Quando passei pela porta por onde ele tinha se enfiado, no entanto,
dei de cara com escadas. Escadas que pareciam levar até um porão. Sei lá,
um tipo de sótão.
Sem temer, eu desci. O lugar, porém, era muito escuro e mal
iluminado. Por isso, redobrei a minha atenção. Todo cuidado era pouco. Eu
não estava enxergando direito, assim como também não estava mais com o
meu escudo. Assim, pé ante pé, alcancei o último degrau e dei alguns
passos por ali. No instante em que tentei puxar uma lanterna presa à minha
farda, fui surpreendida.
Um tiro passou de raspão pelo meu olho direito.
Puta que pariu.
O sangue subiu inteiro para a minha cabeça.
Rapidamente, me protegi atrás de uma coluna. Ali, havia várias
colunas, como se fossem o alicerce da casa.
— Russell, renda-se! — exclamei e me coloquei para fora por um
segundo, atirando na direção de onde o tiro tinha vindo. — Você não tem
mais saída! É o fim da linha!
Meu movimento, apesar de ligeiro, porém, foi o suficiente para vê-
lo do outro lado do porão.
— Quem não tem é você! Só vai sair daqui morta! — E tornou a
atirar na minha direção, mesmo que eu continuasse atrás da coluna.
Eu podia sentir os tiros fazendo furos por ali.
Fechei os olhos por dois segundos, respirando fundo, e, então, parti
também para o ataque, saindo de trás da coluna e tentando me aproximar
dele. Se eu não fizesse isso, o nosso impasse não acabaria tão cedo. Ou,
quando acabasse, eu poderia estar realmente morta. Russell não parecia ter
o menor escrúpulo.
E, de fato, não tinha.
Uma intensa troca de tiros, entre nós, movimentou aquele espaçoso
galpão que parecia ter o mesmo tamanho da casa acima de nós. Enquanto
eu corria, tentando atingi-lo e, ao mesmo tempo, me proteger, ele agia da
mesma forma. Exceto, pelas doses de loucura que eu via em seus olhos.
Aquelas doses de loucura eu não tinha.
Para fugir de uma chuva de balas, no entanto, me agachei atrás de
um balcão no meio do sótão, enquanto, por cima do tampo, eu continuava
atirando. Da mesma maneira, ele, se abaixando por trás de uma mesa,
também permaneceu mirando em mim como um doido. Exceto pelo
instante em que eu o peguei no flagra, fugindo, ele não parecia ter medo de
nada.
Assim, nós seguimos naquele terror de tiros que voavam de um lado
para o outro. Isso, até eu me dar conta de algo. Em dado momento, apertei
várias vezes o gatilho, mas as balas não saíam. E, bem, para a minha
completa infelicidade, eu notei que Russell percebeu. Ligeiro, busquei por
mais alguma munição na minha farda, porém... Franzi o cenho, aturdida,
tateando tudo sem encontrar.
Ah não.
Não, não, não.
Essa merda não podia acabar logo agora.
Puta que pariu.
— Acabou a munição, policialzinha? — Irônico, perguntou ele,
gargalhando. — Que vontade de te acertar bem no meio da cabeça, para
nunca mais precisar lidar com você.
E, então, continuou ele, se aproximando e atirando, enquanto eu me
mantinha abaixada atrás do balcão.
Porra, porra, porra.
Eu percebia, cada vez mais, a sua proximidade e os seus passos, à
medida que os tiros ficavam mais intensos. Caralho. Eu tinha que fazer
algo o mais rápido possível.
Apenas, aja, Zara!
Contei seus tiros, um dois, um dois, um dois.
Segundo a segundo, considerando o tempo entre a bala e a pausa.
Bala e pausa.
Bala e pausa.
Agora.
Em um milésimo de pausa, saí de trás do balcão e lancei a minha
pistola contra a sua cara. Fui certeira, quando achei que poderia não dar
certo. A arma bateu exatamente no seu nariz. Forte, dura. Sangue espirrou
por todos os lados, ao mesmo tempo que ele se desequilibrava, com o
impacto, e caía no chão. Com isso, sua própria pistola escapou da sua mão,
escorregando, enquanto ele tocava o rosto, desesperado, tentando conter o
sangue que escorria como uma torneira pelo nariz.
Não perdi meu tempo, aproveitei seu momento de baixa e parti para
cima dele. Russell ainda tentou reagir, mas estava bem desorientado com o
nariz quebrado. Foi então, que eu o soquei. Meu golpe final. Não que eu me
sentisse bem em fazer esse tipo coisa com qualquer pessoa que fosse. Mas,
aquele era Russell Ballard. Um cara sujo. O pai mais escroto do mundo. Eu
o soquei pela vida de todas as garotas que ele estragou. O soquei por todos
os momentos em que ele quis atrapalhar o meu relacionamento com a
Agatha. E, enfim, me sentindo incrível e realizada, o soquei, novamente,
por todas as vezes que, ao longo da vida, em que ele agrediu a filha.
Larguei-o feito um saco de bosta no chão, nocauteado. Virei-o de
bruços, agarrando firmemente os seus pulsos. Tirei outra algema da minha
farda e disse:
— Você está preso, Russell Ballard, por tráfico de mulheres, por
promover e facilitar a prostituição, e por todas as vezes que agrediu a sua
filha.
Fechei as algemas, respirando fundo na tentativa de recuperar o
fôlego.
Quando fiz menção de erguer o meu corpo, porém, fui surpreendida
outra vez. Um dos seus capangas apareceu repentinamente ali, bem do
nosso lado, apontando uma arma para mim. Perfeito. Eu estava sem arma,
sem munição, sem nada. Juro que vi a minha vida inteirinha passar frente
aos meus olhos em um milésimo de segundo. Eu vi o meu filho, vi os meus
pais e as minhas amigas. Eu vi Agatha e todos os momentos em que
ficamos juntas. Eu vi o último beijo que ela me deu.
E, então, ouvi quando ele puxou o ferrolho da pistola, para
engatilhar a munição.
Adeus, Zara.
Quando pensei em fechar os meus olhos, só esperando o impacto,
porém, uma barra de ferro acertou a sua cabeça no exato segundo em que
ele apertou o gatilho em minha direção. Ainda tentei me afastar para o lado,
mas o tiro acertou um dos meus braços, enquanto ele caía durinho no chão,
desacordado.
E no instante em que caiu, eu vi atrás dele... Lá estava ela... Agatha.
Como um anjo dourado. Meus olhos, de súbito, brilharam em pura emoção.
A minha garota estava ali. Sã e salva. Com uma barra de ferro, feito uma
heroína. Um sorriso fraco estampou os meus lábios, enquanto o sangue
escorria como cascata pelo braço.
Instantaneamente, ela soltou a barra e escorregou para o chão, bem
onde eu estava ajoelhada, me agarrando, me abraçando, segurando o meu
rosto entre as suas mãos com tanta gana. Suas íris azuis tão brilhantes em
lágrimas. Seu sorriso de felicidade, em me ver, misturado com preocupação.
— Ai, meu Deus...! Você está bem?! — perguntou ela, ansiosa,
tocando-me em todas as partes como se quisesse ter a certeza de que eu
estava inteira.
Foi no mesmo minuto em que eu vi policiais já descendo as escadas
do porão onde estávamos.
Sorri para ela.
Tão linda, como sempre.
— Como nunca estive em toda a minha vida... — disse eu, meio
alegre demais. Na verdade, meio grogue. Só não sabia se era da maldita
bala ou de amor. Talvez dos dois. — Você está aqui, senhorita Ballard, e me
salvou.
Ela soluçou, em uma mistura de choro, risada e sorriso.
— E eu salvo todas as vezes que forem necessárias... — Me abraçou
ali mesmo, espalhando beijos pelo meu rosto, até alcançar a minha boca.
Isso me inundou de afeto e de todos os sentimentos bons existentes no
mundo. — Vem, vamos... — Separando os nossos lábios, fez que ia
levantar, ajudando-me a me erguer também. — Precisamos cuidar disso no
seu braço, Mulher-Maravilha.
Mulher-Maravilha...
Um pequeno riso escapou da minha garganta.
E eu já me sentia inexplicavelmente mais forte só por ela estar ali.
Comigo.
De volta pra mim.
Eu faria tudo de novo

Alguns dias depois

Agatha

Quando meu pai pagou a minha fiança, depois do acidente, e disse que não
queria mais que eu o envolvesse nas minhas merdas, na verdade ele estava
dizendo que não queria eu atrapalhasse as merdas dele ao me envolver com
a polícia. Foi por isso que ele exigiu que eu cumprisse perfeitamente a
minha pena, sem criar mais problemas. Só que isso não incluía o fato de eu
me apaixonar justo por uma policial. Ele sabia a confusão que Zara faria ao
descobrir qualquer coisa a seu respeito.
E, bem, ele tentou de tudo para evitar isso.
Russell foi realmente preso. Depois de todas as investigações e,
especialmente, de encontrarem garotas presas, naquela casa, que seriam
futuramente levadas para se prostituírem, não havia dúvidas da culpa do
meu pai. Elas tinham chegado das Bahamas e seguiram para Las Vegas
depois que a poeira, do mandado de busca e apreensão do meu pai,
baixasse. Pelo menos, foi isso o que eu ouvi, durante o solucionamento do
caso pelos policiais.
Harry Claflin e o idiota do Louis Claflin foram escoltados até as
Bahamas e, lá, também foram presos. Eles estavam igualmente sujos,
naquele esquema, como o meu pai. Quanto às garotas, não somente aquelas
de Lovelock, mas também todas as outras que estavam sobre o poderio de
Russell, em Las Vegas, foram ouvidas, libertadas e devolvidas às suas
famílias com todo o aparato de serviço social e psicológico oferecido pelo
Estado.
Sinceramente, durante alguns dias, essa situação toda deu um nó na
minha cabeça. Embora eu tivesse achado absolutamente estranho aquela
conversa entre Harry e o meu pai, na festa de confraternização de natal,
assim como também foi totalmente esquisito me deparar com aquela
quantidade de garotas na casa de Lovelock, eu jamais imaginaria que o meu
pai tivesse a capacidade de estar envolvido com tráfico de mulheres e
prostituição. Porém, nada disso, por pior que fosse, chegou a se comparar
com a surpresa que eu tive, no encerramento das investigações.
Russell Ballard não estava envolvido com trabalhos ilícitos e
práticas de origens duvidosas somente agora. Na verdade, isso já se estendia
há alguns anos. Senti o meu coração se partir um milhão de vezes, quando
eu soube que mamãe não tinha morrido na hora do parto. Ela foi assinada.
Na verdade, ela e o meu irmão, que ainda estava na sua barriga, foram
mortos por criminosos que, há anos, estavam envolvidos com o meu pai,
nos esquemas sujos de tráfico de mulheres e prostituição.
Minha mãe e meu irmão, que eu nunca cheguei a conhecer, foram
vítimas das porcarias de Russell Ballard. Eles foram vítimas do tipo
decepcionante de pessoa que Russell era. E eu chorei. Chorei por dias,
quando eu descobri. Chorei de ódio, de raiva, de indignação. Mas, chorei
também de frustração, por ter nascido em uma família como aquela. Na
verdade, por ter um pai de merda, como aquele. Minha mãe não merecia
isso, nem meu irmão. Eu também não merecia. Ninguém, na verdade.
A única pessoa que merecia o destino que teve era Russell Ballard.
Honestamente, se eu pudesse escolher, eu não queria que qualquer coisa
daquelas tivesse acontecido. Eu escolheria ter um pai bom, amoroso,
honesto. Eu escolheria que Russell fosse assim, um pai que eu poderia me
orgulhar. Eu escolheria uma família de verdade. Não aquilo. Mas, depois de
deixar que todas as lágrimas possíveis saíssem do meu corpo, eu me senti
incrivelmente mais leve. Zara também me ajudou a me reerguer. Sua
companhia e seu amor, sem dúvidas, foram fundamentais durante o meu
processo de luto e de recuperação.
E aí, meu pai desceu para o presídio. Como eu me considerava
idiota o bastante, achei que não aguentaria vê-lo receber a pena perpétua.
Achei que ia chorar de novo. Porém, depois de tudo... De todos os absurdos
que eu descobri e de todas as coisas que passei convivendo com ele, durante
esses anos, especialmente depois que mamãe se foi, eu não senti outra coisa
a não ser alívio, quando vi os portões da cadeia sendo fechados, assim que o
carro passou com ele e com os demais policiais que o escoltavam.
Estava acabado.
Aquele pesadelo tinha acabado.
Finalmente.
Eu não sofreria mais nas suas mãos, o meu corpo não seria mais
machucado pelas suas agressões, assim como eu também não precisaria
mais prestar contas da minha vida, nem obedecer aos ditames que apenas
beneficiavam ele próprio. Eu não seria mais usada como moeda de troca,
não precisaria mais me deitar com velhos nojentos, nem com seus parceiros
de negócios. Eu não seria mais coagida nem obrigada a fazer qualquer coisa
contra a minha vontade. E, principalmente, agora, eu estava livre para viver
normal e tranquilamente com a mulher que eu amava e que o meu coração
tinha escolhido para ficar comigo.
Esse era o maior prêmio que eu poderia receber.
Então, depois de tudo isso e de alguns dias de um longo suspiro,
para recuperar o fôlego, aconteceu algo que a gente não esperava, não
imaginava, nem acreditava que pudesse acontecer nos nossos melhores
sonhos: Zara foi convocada, por ninguém mais que o próprio prefeito de
Las Vegas, para não somente retornar à polícia, como também receber uma
promoção, por ter sido uma das principais responsáveis pelo desmonte do
esquema de tráfico de mulheres e prostituição, ao qual a polícia estava, há
tempos, tentando eliminar. Ela foi uma das responsáveis por uma das
missões mais importantes da história da cidade.
Ou melhor, do país.
E nós comemoramos, vibramos e ficamos tão, mas tão felizes com a
notícia. O alívio que eu senti foi ainda maior, incomensurável. Se antes eu
tinha me sentido culpada por fazê-la perder o emprego, agora eu pulava
com ela de tanta alegria. Só que aí, Zara avisou aos superiores que voltaria,
mas apenas com uma condição: que nós pudéssemos ficar juntas. Bem, eles
acataram o pedido. Quero dizer, a decisão. Especialmente depois do que o
meu pai fez. A verdade era que Russell nunca foi o tipo de pessoa que fazia
coisas boas, mas, nesse ponto em específico, ele milagrosamente acertou.
Ou deu um tiro no próprio pé.
Eu descobri que, pouco antes de aparecer no apartamento da Zara,
para me arrastar de lá e me levar embora, ele tinha conseguido, com um dos
seus advogados, a redução da minha pena: de serviços comunitários para
doações de cestas básicas e medicamentos a pessoas em estado de
vulnerabilidade. Claro que ele não fez isso porque era bonzinho comigo. Na
verdade, ele fez isso, mais uma vez, pensando em si mesmo, egoísta como
ele sempre foi. O plano dele era fugir comigo para que eu nunca mais
tivesse qualquer ligação com a polícia, e, consequentemente, ele também
não.
Bom, as doações foram feitas, mas a execução completa do seu
plano foi falha. Agora, ele estava preso, enquanto eu estava livre dos
trabalhos comunitários. Então, eu não precisaria mais ir à penitenciária, não
era mais uma garota em cumprimento de pena e, tecnicamente, Zara não era
mais a minha supervisora. Eu estava livre. Livre para ela. Livre para mim.
Livre para o nosso relacionamento. Livre do meu pai. Livre das suas
agressões e coações. Eu estava livre para viver a minha vida como bem
entendesse. E nenhuma felicidade no mundo, para mim, seria tão grande
quanto essa.
Consequentemente, Zara não tinha mais nenhum obstáculo para
assumir novamente um lugar de onde nunca deveria ter saído.
Agora, eu, a família da Zara, suas amigas, e até Evangeline,
estávamos no Centro de Convenções de Las Vegas, em uma cerimônia feita
especialmente para condecorar os policiais que trabalharam juntos naquela
ação de desmonte. Por falar na Eva, ela foi uma peça fundamental para que
o meu pai fosse pego. Evangeline foi demitida por ter me ajudado, mas,
naquela manhã, antes de ir embora, ela ouviu o esquema do meu pai, sem
que ele percebesse. E soube exatamente para onde ele estava querendo ir
comigo. Anotou o endereço no papel. O endereço de um local que ela nem
tinha ideia de onde era. Mas, anotou na esperança de que a pessoa certa o
encontrasse.
Zara encontrou.
Russell despediu Evangeline, mas eu a trouxe de volta para a minha
vida. E de uma maneira muito melhor que antes. Não apenas por ter
ajudado a polícia a me encontrar, mas por tudo. Por absolutamente tudo.
Evangeline foi a minha tábua de salvação, durante os muitos anos que
precisei conviver com Russell, depois que mamãe se foi. Foi por causa da
Evangeline que eu não enlouqueci, em todas as vezes que achei que não
aguentaria mais. Foi ela quem me manteve firme e de pé, quando eu pensei
que não houvesse mais nada de bom no mundo para mim. Então, foi por
absolutamente tudo, que eu fiz dela o meu braço direito.
Eva não era mais a governanta da casa. Agora, ela era a minha
assistente pessoal. O meu braço direito em todos os lugares, mas
principalmente nos negócios. Como o meu pai tinha sido preso e não
possuía outro herdeiro, além de mim, eu precisei começar a lidar
pessoalmente com os negócios. Negócios legais, diga-se de passagem,
nada daquela merda com garotas. Nos últimos dias, eu estava começando a
entender como funcionava a administração dos hotéis da família e o
gerenciamento das contas.
E, bem, apesar da Evangeline ter sempre cuidado da administração
de uma casa, ela também parecia levar jeito para o gerenciamento de um
negócio, junto comigo e com os demais funcionários do Grupo Ballard.
Mesmo que ela não entendesse dos termos técnicos ou ainda não tivesse
conhecimentos o suficiente, ela tinha o que eu precisava: lealdade. Era de
uma pessoa leal e de confiança que eu precisava para me ajudar com tudo
aquilo. E era só questão de tempo para que nós aprendêssemos tudo.
Eu sentia que tinha amadurecido anos, em apenas algumas
semanas.
Mas, isso, de forma alguma, me incomodava.
Muito pelo contrário.
Eu me sentia ainda mais mulher.
Eu estava orgulhosa de mim, orgulhosa de tudo. E, principalmente,
orgulhosa da Zara, a minha mulher. Agora, em cima do palco, na
companhia dos seus demais colegas de trabalho que recebiam certificados
de honra ao mérito, vestida com seu uniforme branco de gala, ela ganhava,
diretamente das mãos do prefeito da cidade de Las Vegas, uma medalha de
bronze, em formato de estrela, como forma de agradecimento pela sua
distinta conduta na operação. Westphalen, ao seu lado, também recebia sua
insígnia. Ambas sendo promovidas. Zara como a nova Inspetora de Polícia.
E Westphalen como a nova Vice-Superintendente de Polícia.
Aplausos e assobios, em cada canto do Centro de Convenções,
romperam o ar. Eu estava tão feliz. Uma felicidade genuína. Uma sensação
de completude, de realização. Meus olhos brilhavam, emocionados,
enquanto eu via os dela, em cima do palco, direcionados especificamente a
mim, da mesma maneira. Depois que aquele pesadelo acabou, e nós fomos
ao hospital, para a fazer a retirada da bala que atingiu o seu braço, foi como
se tudo, aos poucos, voltasse ao normal, com algumas diferenças, claro.
Eu não era mais uma garotinha estúpida, que colocava festas,
bebidas e roupas caras em primeiro lugar. Zara também não estava mais
sozinha. Agora, nós estávamos juntas. E, apenas isso, já me fazia sentir que
eu tinha tudo o que eu precisava. Ou melhor, tudo o que eu queria.
Finalmente, entendi a diferença entre os verbos precisar e querer.
E, então, eu vi o momento em que ela, após os aplausos, assumiu o
lugar no microfone. Linda, tão maravilhosa. Aquele sorriso largo, no seu
impecável rosto, que sempre me deixava absolutamente sem ar.
A mulher da minha vida.
A mulher que eu amava, que eu me orgulhava, que eu seria capaz
de fazer qualquer coisa.
— Eu gostaria de falar em nome de todos os meus colegas e de
todas as minhas colegas da polícia, que estiveram presentes na operação.
Cada um de vocês foi fundamental para o sucesso da nossa missão. Todos e
todas tiveram sua parcela de contribuição e merecem todos os aplausos e
congratulações, por terem sido tão responsáveis e fiéis aos seus deveres
enquanto policiais. Las Vegas se orgulha de vocês. Os Estados Unidos se
orgulham de vocês. Eu me orgulho de vocês. Obrigada. Muito obrigada.
Gostaria de agradecer também ao prefeito e a todos os outros membros e
funcionários públicos que preparam esta cerimônia para nós. Receber este
reconhecimento é motivador para que nós sigamos em nossa missão
fundamental, que é cuidar da segurança das pessoas. Agradeço também à
Alexa Westphalen, minha companheira de trabalho, por ter acreditado em
mim, num momento tão difícil, e por ter me dado a oportunidade de
participar da operação, quando achei que isso não estava ao meu alcance.
Agradeço também aos meus pais, pelo apoio incondicional de sempre, ao
meu incrível filho, por ser tão compreensivo, às minhas amigas, Mad e Ava,
pela força que me dão todas as horas, e à Evangeline, por ter sido uma
chave para a operação. Por fim, eu quero agradecer à minha mulher —
olhou especificamente para mim, em meio à multidão. Meu coração
saltando no peito, não somente por ter se referido a mim, na frente de todos,
mas também por ter me chamado de “minha mulher”. A forma como ela
pronunciou essas palavras foi especialmente particular. A energia era
palpável para mim. Que mulher mais maravilhosa. — Agatha, obrigada por
fazer parte da minha vida e por ter me dado vida. Você foi o caminho para
que tudo isso acontecesse. Apareceu para mim, quando eu achei que fosse
desempenhar a pior e mais entediante tarefa da minha carreira. Porém, além
de ter me proporcionado a missão mais importante, em todos os meus anos
de profissão, você me encheu de amor. Você é a minha maior medalha. E eu
te amo muito, garota. Amo com todo o meu coração. Obrigada por
absolutamente tudo.
Foi quando mais aplausos e assobios estouraram os nossos ouvidos.
Meus olhos molhados de lágrimas de emoção, por ouvir cada uma das suas
palavras tão bonitas e sinceras. Eu nunca tive isso na vida. Eu nunca fui
amada dessa forma. Talvez porque a pessoa certa para me amar, daquela
maneira, sempre fosse a Zara. Eu só precisava encontrá-la.
E encontrei.
Graças a uma batida de carro.
Ela, então, desceu do palco, ainda ovacionada por todos, e caminhou
em nossa direção, tão contente.
Sua família inteira e suas amigas, simplesmente, foram para cima
dela. Eu ri, ainda em meio às lágrimas de felicidade. Meu peito tão
aquecido por ela estar recebendo exatamente aquilo que merecia... Todo o
reconhecimento por ser uma das melhores policiais de Las Vegas. Seus pais
a abraçavam, suas amigas também. Nick pulava em suas pernas, até fazê-la
colocá-lo em seus braços. Evangeline, ao meu lado, era só sorrisos.
— Querida, você foi maravilhosa! — disse Martha, sua mãe.
— Estamos tão orgulhosos! — Seu pai também falou.
— Mãe, mãe, mãe! Deixa eu ver a estrela! — Nick exclamou dando
pulinhos.
Zara riu, pegando-o colo e dizendo:
— Aqui está a estrelinha... — apontou para a insígnia pregada ao
uniforme de gala. — Bonita, não é?
— Linda, mamãe!
E ela sorriu ainda mais.
— Meu Deus, somos amigas da mulher mais foda da cidade de Las
Vegas! — Mad brincou.
— E eu tenho certeza que a mulher mais foda de Las Vegas está
louca para falar com a sua garota... — Ava cantarolou, percebendo a
maneira como Zara não parava de me olhar, mesmo que, a cada segundo,
uma pessoa falasse algo diferente com ela.
Aquele olhar, contudo, já me deixava sem fôlego.
Sexy sem fazer o menor esforço.
Totalmente desproposital.
— Hum... Bem observado... — Mad, brincalhona, quase cantarolou
também, como a namorada. — Vamos abrir aqui um espacinho. Acho que
elas estão loucas para matar a saudade pelo tempo recorde de meia hora que
ficaram longe uma da outra.
Zara riu. Eu também.
— Para de ser boba, Mad — disse ela.
E, colocando Nick no chão, se aproximou de mim.
A cada passo que ela dava, era um suspiro idiota meu. Até agora, eu
não sabia como eu tinha conseguido ficar tão imbecil por aquela mulher,
mas, provavelmente, foi depois de soltar algum miolo, naquela batida de
carro, e perdê-lo no meio do cruzamento entre a Vegas Strip e a Tropicana.
Nunca mais o encontrei, principalmente depois de dar de cara com uma tal
de Policial Scott.
— Gostou do que viu? — perguntou ela, se referindo à cerimônia,
enquanto pousava suas mãos na minha cintura e eu subia as minhas pelos
seus braços.
Cada toque seu, por mais displicente que fosse, era sempre
carregado de uma intensidade. Uma intensidade tão desproposital com o
olhar sexy que ela tinha por natureza. Isso já era dela. Já tinha nascido com
ela.
— Estou gostando do que vejo — repliquei eu, enquanto alternava
os meus olhos entre os seus e a sua boca.
Louca para beijá-la.
Sim, eu adorei a cerimônia, claro, mas não pude deixar de responder
sem me referir especificamente a ela. Estava maravilhosa.
— Uh... — arqueou brevemente as sobrancelhas. Aquele sorrisinho
sacana já querendo aparecer. — Eu também, Penélope Charmosa. Você está
linda nesse vestido, como sempre.
Penélope Charmosa...
Soltei uma risadinha.
— Continuo sem saber de onde você aprendeu a dar apelidos assim
às pessoas — E franzi o cenho, me fazendo de desentendida, até que... —
Xena... — sussurrei com um sorriso maior que eu.
Ela riu.
E me agarrou mais firmemente pela cintura, me beijando ali mesmo,
no meio de todos. Afinal, nós éramos livres. E estávamos livres para
vivermos juntas, do jeitinho como a gente queria. A Agatha, de meses atrás,
jamais poderia imaginar que encontraria o amor da sua vida em uma batida
de carro, que lhe rendeu muitas lavagens de banheiro e desentupimentos de
vasos sanitários sujos. Mas, se fosse para ter a Zara na minha vida, eu faria
tudo de novo.
Aos seus pés

Um ano mais tarde

Zara

Se as nossas vidas mudaram em apenas algumas semanas, depois de um


ano, então, Agatha e eu éramos, uma para a outra, algo que nunca
imaginamos que seríamos. Ela não era mais aquela menina cheia de mimos
e de vontades, assim como também não colocava mais em primeiro lugar a
riqueza ou o vislumbre que o dinheiro, que ela tinha, evidentemente poderia
oferecer. Agatha era muito mais “família”, porque agora ela tinha realmente
uma família. Eu também não era mais a Zara sisuda e fechada para
momentos de diversão e de felicidade que, agora, eu sabia que tinha o
direito de viver, mesmo com todas as minhas responsabilidades de mãe e de
inspetora da penitenciária.
E, nós tínhamos tanto orgulho de sermos, finalmente, assim, que não
trocaríamos isso por nada no mundo. Eu não trocaria a sua companhia, o
seu afeto e os seus carinhos diários por qualquer outra coisa, e a amava
intensamente, cada dia mais, assim como também sabia que isso era
totalmente recíproco. Essa era uma das muitas provas de que o aquilo que
sentíamos, uma pela outra, não era passageiro. Muito pelo contrário, se
tornava mais forte a cada minuto.
Agatha tinha amadurecido tanto, mesmo que continuasse com as
suas gracinhas e piadinhas, sempre que surgia uma oportunidade. Eu amava
isso, era verdade. Ela sempre seria a minha garota. E permanecia sendo a
minha garota, ainda que também tivesse se tornado uma grande mulher de
negócios, em apenas um ano. Bem, eu sempre soube que ela era uma garota
muito esperta e inteligente, mas, depois que teve de assumir pessoalmente o
Grupo Ballard, se mostrou ainda mais talentosa, para isso, do que já
parecia.
Ela terminou sua faculdade de Gestão de Negócios, e, com o auxílio
da Evangeline e dos demais funcionários, os Hotéis Ballard nunca
estiveram em um momento tão próspero quanto aquele. Se eles já faziam
sucesso entre os turistas de Las Vegas, agora, então, com as jogadas de
marketing da Agatha e o seu empenho em fazer a administração dar certo,
as pessoas precisavam fazer suas reservas com meses de antecedência, para
conseguir uma vaga. E o melhor de tudo: Agatha gostava disso. Ela gostava
de viver isso, de não ficar parada um segundo do horário comercial, de
gerenciar os hotéis e de solucionar os problemas que qualquer um deles
tivesse.
Sim, era extremamente perceptível, em seu olhar, o quanto ela
estava satisfeita, com a vida que levava, e realizada, com o seu trabalho no
Grupo Ballard.
Era como se ela tivesse nascido para isso.
Óbvio que eu sempre a ajudava quando necessário. Vez por outra,
ela pedia a minha opinião sobre algo. E eu dava. Mas, honestamente,
Agatha era tão boa no que fazia, que eu confiava de olhos fechados no fato
de que ela estava fazendo um ótimo trabalho. Então, eu nem me metia.
Deixava-a caminhar por si só, tomando suas próprias decisões nos
negócios. E, lógico, ficava ao seu lado para tudo. Prontamente disponível
para ser seu porto-seguro sempre que fosse preciso.
Enquanto isso, eu também continuava na Polícia. Agora,
trabalhando como Inspetora da penitenciária, já que Westphalen foi
promovida e transferida para o prédio da Superintendência. Mesmo que o
dinheiro que a Agatha tivesse no banco pudesse nos sustentar pelo resto das
nossas vidas, eu ainda quis continuar trabalhando. Bem, ser ainda mais
respeitada, do que eu já era, e estar em um cargo de chefia, tinha as suas
vantagens. Era como alcançar uma posição que sonhei desde que eu
estudava para entrar na polícia, aos meus vinte anos. Agora, o meu salário
era melhor e eu também tinha mais tempo para o meu filho e para a minha
mulher.
Russell, claro, permanecia preso, e não havia expectativa alguma de
que ele fosse solto enquanto estivesse vivo. Ou seja, isso nunca aconteceria,
não importava quão bons fossem os seus advogados. Agatha ainda tentou
visitá-lo algumas vezes, nesse último ano. Fez um esforço mental, para se
preparar psicologicamente e enfrentar aquilo, mas acabou não conseguindo.
E eu entendia perfeitamente. Eu sabia que não era nada fácil relembrar tudo
o que viveu, sob o mesmo teto que ele, depois que sua mãe morreu, e ainda
ter cabeça o suficiente para encontrá-lo no presídio.
Tudo o que eu pedi foi para que ela pegasse leve consigo mesma e
para que não se culpasse por não conseguir visitá-lo. Afinal, ela não tinha
nenhuma obrigação de fazer isso. Quem escolheu seguir pelos erros foi
Russell Ballard, e ele estava apenas colhendo exatamente tudo o que
plantou. Se ele nunca foi um pai presente, não deveria esperar por qualquer
visita da filha. E, se ele nunca foi uma pessoa honesta, não deveria esperar
pela liberdade ainda em vida. Felizmente, Agatha me escutava. E, sempre
que ela ficava um pouquinho abalada, eu estava ao seu lado para reerguê-
la.
Não eram comuns os momentos em que ela pensava sobre isso ou
sobre ele, assim como também estavam se tornando cada vez mais raros.
Agatha focava no que a fazia feliz, no trabalho, e, principalmente, na
família. Durante esse último ano, nós vivemos os melhores meses das
nossas vidas. Namoramos tanto. Aproveitamos tudo o que podíamos, juntas.
Fizemos tantas viagens só nós duas. E também tantas outras com o Nick,
com os meus pais, com a Ava e a Mad. Enfim, nós realmente vivemos e
soubemos apreciar cada momento, fosse em um hotel de luxo de alguma
das nossas viagens ou fosse na simplicidade de um trailer de hambúrguer
que ficava em frente à penitenciária.
Nós sabíamos transformar tudo em algo inesquecível.
E também nos mudamos. Nós continuávamos em Las Vegas, mas
não estávamos morando nem no meu apartamento, nem na sua antiga
mansão. Era como se estivéssemos construindo a nossa vida, juntas, desde
o início e os mínimos detalhes, sabe? Por mais que Agatha já não fizesse
tanta questão de uma vida luxuosa e que adorasse o meu apartamento, eu
não achava muito justo manter a dona de um complexo hoteleiro dentro de
um local de setenta metros quadrados. Assim como eu também não ia
gostar, muito menos ela, que nós morássemos na mansão onde ela tinha
passado por tantas situações ruins.
Compramos, então, uma casa nova. Uma casa só nossa. Para nós,
para o Nick, para os futuros filhos que nós tivéssemos. E, a cada dia, eu
tinha mais certeza absoluta de que queria passar o resto da minha vida com
ela. Era exatamente isso que eu pensava todas as horas. Aquela vontade,
aquele desejo que crescia e aumentava minuto a minuto, durante os dias e
os meses que passamos juntas, naquele último ano. Algo que selaria
definitivamente a nossa relação. Pelo menos, simbolicamente falando,
porque o nosso compromisso, uma com a outra, já estava mais do que
selado, claro.
O fato era que, independentemente do quanto o nosso
relacionamento já estivesse sólido, eu desejava fazer aquilo. Não porque eu
precisava, mas porque eu queria. Com todas as minhas forças. Eu desejava
colocar oficialmente uma aliança no seu dedo.
Foi por isso que, naquele dia, eu a chamei para um dos restaurantes
de Las Vegas que nós mais gostávamos. Ele ficava de frente para um lago e
era completamente iluminado por luzinhas douradas. Tinha um clima
aconchegante e romântico, do jeito como eu queria. Do jeito como a gente
gostava. Agatha estava completamente linda. Era engraçado como, a cada
dia, ela conseguia parecer ainda mais bonita do que já era. E, um ano
depois, desde a primeira vez que eu a vi, ela estava impecável. Sortuda
talvez fosse pouco para descrever o que eu era.
E, naquele momento, uns quarenta minutos depois que chegamos ao
restaurante, em meio ao jantar e às taças de vinho, ela já ria meio soltinha
demais.
— Olha, pelas minhas contas, essa é a terceira taça de vinho que eu
viro — disse ela, divertida.
Eu ri.
— Sei que você aguenta — respondi.
— Aguento sim, mas você sabe como o meu corpo funciona com
vinhos tintos.
Suspirei, pensando mais alto do que deveria para o momento.
Afinal, estávamos no meio de um restaurante. E, dali para a nossa casa,
ainda levaria alguns minutinhos.
A verdade, porém, era que eu sabia sim. A garota se tornava um
furacão. Quero dizer, não que ela já não fosse um furacão na cama todos os
dias. Porque sim, ela era. Mas, digamos que, depois de umas boas taças de
vinho tinto, ela se tornava um pouco mais “sensível” do que o normal.
Gostosa.
— Talvez seja por isso que eu esteja te servindo com mais... —
soltei uma risadinha, meio sacana.
— Ah, se empurrar mais bebida, daqui a pouco eu vou começar a
tirar a calcinha aqui pra você — brincou, muito embora eu soubesse que
tinha um fundo de verdade nisso.
Eu ri.
Eu adorava o seu senso de humor.
E, claro, não pude deixar de me lembrar do dia em que nós fizemos
exatamente isso no restaurante de um dos hotéis. Agatha tirando a calcinha
por baixo da mesa, entregando na minha mão e, depois, se tocando.
Puxei o ar, numa tentativa de conter os ânimos.
Só de imaginar...
— Honestamente, eu vou achar uma delícia que a nossa noite
termine assim — E enchi sua taça, mais uma vez.
— Quer me embebedar mesmo, inspetora Scott? — sorriu.
— Você nunca foi exatamente fraca para bebidas, senhora Scott.
Foi então que ela ergueu uma das sobrancelhas para mim,
paralisando por um instante.
E eu sabia o exato motivo.
Era a primeira vez que eu a chamava assim.
— Senhora Scott? — perguntou, visivelmente tocada.
Bom, a verdade era que eu fiz dela a senhora Scott, durante o último
ano inteiro, todos os dias, a cada beijo, a cada carinho, a cada conversa, a
cada sexo. Talvez, porém, não fosse a mesma coisa que chamá-la assim
com todas as letras.
Suspirei.
Era agora.
Tinha que ser agora, porque eu não podia perder mais um segundo
da minha vida sem fazer isso.
Quando fiz que ia baixar a cabeça, para tirar a caixinha de alianças
do bolso, no entanto, de relance, eu vi... Um pouco mais à frente da mesa
onde estávamos, caminhando rumo à saída do restaurante. Parei alguns
segundos para observar. Era como se a cena estivesse passando em câmera
lenta, só para me dar a oportunidade de vê-la, pela última vez na vida, e ter
a certeza de que ela, enfim, estava bem.
Seus cabelos ruivos. Seu inigualável sorriso. Inigualável, porque eu
mal o via na penitenciária. Ela mal sorria, a não ser quando estava comigo.
Haven. Depois de tantos anos, era Haven quem estava passando por ali. Ela
estava com uma mulher e uma criança pequena, que não devia ter mais do
que três anos de idade. Sua barriga, porém, estava grande. Haven estava
grávida. E não apenas isso. Haven estava feliz, sorridente. Deu um beijo na
mulher ao seu lado, que, em seguida, colocou a criança no colo. E, assim,
sumiram porta afora.
Haven conseguiu.
Ela conseguiu.
Ela estava bem.
Haven conseguiu se salvar daquela merda e reconstruir sua vida.
Sim, ela merecia isso.
Suspirei. Mais uma sensação de alívio.
E aí, com o coração cheio de alegria, eu baixei o olhar para a
Agatha. A mulher da minha vida. A representação do meu presente e de
todo o meu futuro. Eu me lembrei de tudo. De tudo o que eu vivi, de como
eu era antes de conhecê-la e do que eu me tornei depois que eu decidi ficar
com ela.
Agatha me deu vida. Uma vida que eu achei que nunca seria minha.
Me fez esquecer do peso de uma culpa que eu não deveria ter carregado. E
me mostrou que eu poderia, sim, não somente me apaixonar, mas,
principalmente, amar alguém de verdade, pela primeira vez na vida, mesmo
com todas as minhas responsabilidades e todo o peso que eu carregava.
Sorri para ela, tão leve e tranquila. Tão feliz por tê-la na minha vida
e por não ter desistido de nós nas primeiras dificuldades.
— Eu te amo muito, sabia? — falei. — E sou muito, muito grata por
estar com você. É por isso, e por tantas outras coisas, que eu não paro de
pensar em algo, todos os dias. Fico imaginando o quanto seria maravilhoso
se você aceitasse.
Me levantei da cadeira e, então, me ajoelhei à sua frente, tirando a
caixinha do bolso.
Percebi quando ela prendeu a respiração, surpresa, admirada, quase
incrédula, ao me ver daquela maneira. Seus olhos instantaneamente se
encheram de lágrimas de emoção. Duas safiras brilhantes.
— Estou aos seus pés, meu amor, assim como sempre estive, desde
o dia em que você bateu o carro na minha viatura — continuei, olhando no
fundo dos seus olhos. Um sorriso emocionado brincou nos seus lábios. — E
a minha maior realização será passar o resto da vida com você. Case
comigo e me deixe te fazer a mulher mais feliz do mundo.

Agatha

Aquilo era como a realização de um sonho. Ou como se eu estivesse


vivendo em um conto de fadas. Aliás, ter a Zara na minha vida era a própria
realização de um sonho. Ela já tinha repetido, algumas vezes, para mim,
durante o último ano, que eu lhe dei vida. Mas, enquanto eu dei vida a ela,
Zara me deu um amor que eu nunca recebi e que eu achei que não que fosse
digna de ganhar, porque nunca estive acostumada com isso. Ela também me
deu uma família. Uma família de verdade. Me mostrou que eu poderia ter
tudo isso, e muito mais, sem precisar pagar um centavo.
Zara me deu amor de graça, me deu uma família de graça, e me
provou o quanto isso poderia ser muito mais valioso que qualquer dinheiro
que eu tivesse no banco. Amor gratuito, verdadeiro, e sem igual. Ela me
salvou de todas as maneiras que uma pessoa poderia ser salva. Ela me
salvou de uma vida miserável, me salvou de uma série de traumas. Ela me
salvou de mim mesma. E, depois de tudo o que vivemos, se tinha algo que
nós aprendemos, foi que nada seria capaz de separar um casal que quer ficar
junto.
Nada seria capaz de nos separar.
Vê-la daquela forma, tão entregue e tão minha, não apenas molhava
os meus olhos de muitas lágrimas, mas também me dava a certeza de que
nós realmente seríamos uma da outra, pelo resto das nossas vidas.
E eu não podia fazer outra coisa. Eu não podia responder outra
coisa, a não ser o óbvio:
— Por quê não pediu logo, sua idiota?
Ela riu.
Tão linda.
E eu completei:
— É claro que eu caso... Eu aceito me casar com você e deixar que
continue me fazendo feliz todos os dias, da mesma maneira como eu vou
fazer com você. Eu amo você. E sou sua. Completamente sua.
Conheça outras obras da autora

Além deste livro individual, Sou tudo o que você (não) precisa, a autora V.
S. Vilela possui outra três obras publicadas na Amazon. Marido às Avessas,
que é um livro individual e romance gay. E Jogada de Mestre e Doce
Rendição, que também são romances gays, mas fazem parte da Série A
Família Tremblay. Cada livro desta série tem começo, meio e fim, e pode
ser lido fora de ordem; embora exista a possibilidade do leitor receber
alguns spoilers do que aconteceu com personagens de volumes anteriores.
Todavia, destaca-se que as obras são independentes.
Sinopse

Marido às Avessas

Elliot, um australiano, morava em Nova Iorque e tinha uma carreira bem


sucedida como arquiteto. Entretanto, por um golpe do destino, teve o seu
visto norte-americano vencido. Por escolha pessoal, Elliot nunca se casou e,
no momento, estava solteiro. Para não ser deportado, sua amiga, Sarah, lhe
deu a ideia de se casar com um estadunidense. Porém, quem aceitaria um
casamento de fachada? Talvez, um acompanhante de luxo? Sarah e Elliot
acreditavam que nenhum homem, que não fosse um acompanhante de luxo,
aceitaria uma proposta tão bizarra. Assim, para executar o plano
mirabolante, ambos foram em busca da vítima. Ou melhor, do profissional.
A ideia era passar, no máximo, sete meses casados. Tempo suficiente para
que o casamento não fosse alvo de questionamentos pelas autoridades
americanas. Além disso, eles não precisariam ter uma vida con
jugal íntima. Deveriam apenas se casar no papel e fingir união frente
aos conhecidos. Na intimidade, eles viveriam como solteiros. Elliot só não
sabia que poderia levar outro golpe do destino.
Sinopse

Jogada de Mestre

Liam e Eric cresceram na cidade de Londres e foram, sempre, o oposto em


tudo. Enquanto o preto estava para o Liam, o branco estava para o Eric.
Enquanto um preferia o quente, o outro gostava do frio. Liam queria estudar
em Harvard, Eric sonhava com Oxford. Ao contrário de Liam, que tinha o
paladar muito mais apurado para a Vodca, a bebida preferida do Eric era o
Uísque. Em campo, Liam ocupava a posição de atacante, enquanto o outro
era o zagueiro. Comparações e pressões sociais também faziam com que
eles não se dessem bem, apesar da amizade de longa data entre as suas
respectivas famílias. Só existiam três coisas em comum aos dois: festas,
futebol e garotas. No entanto, a vida, assim como no futebol, tem seus
dribles. Em um desses dribles, Liam e Eric começaram a perceber que não
existiam apenas três coisas em comum. Existiam muito mais, elas só
estavam escondidas dentro deles.
Sinopse

Doce Rendição

Aos quatro anos, Arthur foi adotado pelo casal Liam e Eric, e viu sua vida
mudar para melhor. Porém, tudo se transformou, ainda mais, quando, anos
mais tarde, seus pais decidiram adotar outro garoto. Daniel chegou à casa
dos Tremblay e, em pouco tempo, se tornou um dos melhores amigos de
Arthur. A amizade chegou a falar mais alto que a própria ideia de
irmandade, mesmo que não consanguínea. Afinal, como se diz, alguns
amigos são mais chegados que irmaões. E, por mais que a sociedade lhe
enxergasse como irmãos adotivos, por convivência, eles sempre se viram
como amigos, mais do que qualquer outra coisa. Apenas algo suplantava a
noção de amizade: o amor. A questão era que, depois de crescidos, eles
começaram a perceber que sentiam muito mais que um amor fraternal. Era
um amor... Diferente.
Agradecimentos

Muito obrigada por terem lido essa história. O processo criativo de uma
escrita, às vezes, é meio solitário. Nós, autores, passamos dias e mais dias
sentados de frente para o computador, sozinhos. Quero dizer, apenas na
companhia dos nossos personagens. Então, quando há a “quebra” dessa
parede e o livro começa a ser lido por pessoas fora da nossa caixinha, é algo
maravilhoso.
Mais uma vez, muito obrigada por me lerem, por me acompanharem e
por apoiarem o meu trabalho. Saibam que existe muito amor meu colocado
em cada mínima palavra desta história. Então, eu sou eternamente grata a
vocês que dedicam um tempinho precioso das suas vidas para adquirir e ler
o meu livro. Eu realmente espero que essa história tenha sido tão tocante a
vocês quanto foi para mim.
Muito obrigada a todos os que me leem pela Amazon e pela Uiclap.
Muitíssimo obrigada também aos que, além de me ler, também me
acompanham, sobretudo pelo Instagram. Vocês não têm noção do quanto a
nossa interação, através de mensagens, comentários, curtidas e
compartilhamentos, faz uma imensa diferença para mim. São vocês que me
dão fôlego para continuar. E, sem vocês, nada disso teria razão de ser.
Agradeço à própria Amazon, por tornar o ato de ler ainda mais
popularizado e difundido, especialmente no Brasil. Também agradeço à
Uiclap pelo apoio indispensável aos autores independentes que sonham com
a publicação das versões físicas dos seus livros. Agradeço aos amigos tenho
feito ao longo dessa minha trajetória como escritora. E, claro, eu não
poderia deixar de agradecer ao meu marido que sempre, absolutamente
sempre, me ajuda com as minhas publicações. Eu amo você. E eu amo
vocês.
Indo Além

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About The Author
V. S. Vilela

V. S. Vilela é mestre e doutoranda em Administração por formação e


escritora por paixão. Desde a infância, já escrevia suas histórias e
imaginava mundos fantásticos, que somente a cabeça de uma criança
poderia criar. Mas, foi apenas aos 22 anos que começou a compartilhar, na
internet, seus textos, com amantes da leitura. Com o tempo, a
autopublicação em plataformas digitais e gratuitas lhe deu a oportunidade
de acumular números jamais imaginados, e, principalmente, conhecer
pessoas maravilhosas, seus leitores. Hoje, certa da sua vocação, deseja se
profissionalizar, cada vez mais, na escrita, e levar histórias de qualidade ao
público, desde romances à aventuras.
Books By This Author
Marido às Avessas

Jogada de Mestre

Doce Rendição

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