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Dedicação

Para minha mãe, sinto muito por ter passado pela minha fase
adolescente-adulta durante uma pandemia. Eu te amo.
E para Lena, pelo matzah brei. Спасибо (para tudo).
Aviso de conteúdo

Contém uma breve descrição de agressão sexual do


passado (a experiência do sobrevivente é validada).
Tabela de Conteúdos

Dedicação
Aviso de conteúdo
Tabela de Conteúdos
Aviso — bwc
1. Peixes mortos não podem partir seu coração
2. Fantasmas sexuais de meio século de idade
3. Criatura Antiga das Profundezas
4. Por que eu traria um saco de cocô?
5. Salão do Sofrimento Humano
6. Detalhes sangrentos sobre a bunda desse cara
7. As pessoas amam Al Roker
8. Você é Ho Ho Sem Esperança
9. Meu incrível barista pré-adolescente
10. Ex-namorado da Amy do modelo ONU
11. Você está bloqueando a escada rolante
12. Não é uma tigresa literal
13. Thomas, de Thomas e seus Amigos, emergindo de seu
sono
14. Aranhas e fascismo
15. Uma bagunça gay
16. The Big Blue ou seja lá o que for
17. Café e necrotério
18. Você é tão gay
Agradecimentos
Aviso — bwc

Essa presente tradução é de autoria pelo grupo Bookworm’s


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Peixes mortos não podem partir seu
coração

Quatro horas. Esse é o tempo que estou no carro com


minha mãe.
Passamos as três primeiras horas discutindo, mas durante
esta última ficamos sentadas no silêncio mais desconfortável
que se possa imaginar.
Até os limpadores de para-brisa estão no limite, correndo
pelo vidro em um ritmo frenético que não resolve nada. A neve
começou a cair quando minha mãe e eu desistimos de conversar
e não parou desde então.
Tomo um susto e quase pulo do banco do carro quando ela
finalmente fala alguma coisa:
— O que essa placa significa? — A voz em pânico,
inclinando-se para a frente o máximo que seu cinto de
segurança possa permitir.
— Hum, qual? — É impossível enxergar um palmo à frente
do nosso nariz por conta da névoa branca que cobre tudo.
— Deixa para lá. — Ela liga a seta, como se isso fosse ajudar
de alguma forma, e sai da estrada.
— Mãe, o que você está fazendo?
— Estou saindo da estrada — ela retruca. — o que parece
que estou fazendo?
Isso cala minha boca. Bem, isso e o fato de eu não querer
distraí-la para que a gente não morra em um acidente de carro.
Chegamos em uma área residencial e a neve continua caindo
mais forte do que há um minuto. Ela se acumula no para-brisa
do carro em flocos bem definidos iluminados pelos faróis do
nosso Subaru e é quando eu a vejo.
— Mamãe…
Ela está atravessando a rua. Uma garota, vestindo um gorro
vermelho e um casaco bufante.
Todos os meus músculos ficam tensos e, por instinto, eu
pressiono meu pé no tapete revirado como se eu pudesse pisar
no freio que fica ao lado do passageiro e evitar a tragédia
iminente por pura força de vontade.
Minha mãe olha para mim. Ela claramente não notou a
garota na rua e escolhe o pior momento possível para
recomeçar a discussão que tivemos durante a maior parte da
viagem:
— Você tem certeza que esse estágio é o que você quer?
Ela não está parando.
— Mamãe!
Nós vamos atropelá-la.
— MÃE, CUIDADO!
— PORRA!
A garota também não deve ter nos notado, porque ela vira a
cabeça em choque e olha direto para mim.
O tempo para.
Nós vamos matá-la.
E é tudo culpa minha. Se eu não tivesse sido tão terrível com
minha mãe durante toda essa viagem de carro, ela não estaria
tão zangada e distraída. E se ela não estivesse tão zangada e
distraída, não estaríamos em rota de colisão com um ser
humano real e muito vivo (por enquanto).
Para ser justa, a nevasca não é minha responsabilidade, mas
pelo menos 85% disso tudo é minha culpa.
Porque, claro, depois de toda a merda que eu passei na
semana passada, eu também poderia adicionar assassinato à
lista.
— Tem certeza que vai ficar bem? — Minha mãe havia
perguntado no início da viagem, em algum lugar ao longo das
monótonas fábricas da rodovia de Nova Jersey. Ela olhou para
mim por muito tempo antes de voltar para a estrada.
— Eu vou ficar bem.
— Eu não gosto da ideia de você passar o Natal fora.
— Eu vou ficar bem — eu disse, de novo, com os dentes
cerrados.
— Você nunca esteve fora no Natal. Você já percebeu isso?
Nunca.
— Nós nem celebramos o Natal — eu a lembrei, o que
parecia bastante desnecessário, considerando a enorme
quantidade de culpa judaica que ela estava colocando em mim
no decorrer da nossa viagem de carro.
— Mesmo assim, Shani, são as férias. — Sem querer, minha
mãe desviou um pouco para a pista ao lado da nossa enquanto
falava e um Mazda verde-limão buzinou para nós. Ela mostrou
o dedo do meio.
— É mesmo? Tipo, são realmente as férias? — O carro
verde-limão nos ultrapassou. — O Hanukkah acabou e, de
qualquer forma, é uma completa besteira. Foi inventado por
capitalistas americanos para que crianças judias pudessem ser
incluídas na hegemonia cristã.
Fiquei orgulhosa de mim mesma por usar a palavra
hegemonia.
— É isso que eles estão ensinando na faculdade?
— Não — eu neguei, fazendo um beicinho. — Sempre
pensei assim.
— Sim, você sempre odiou os oito dias de presentes
brilhantes que eu te dava. — Ela desviou novamente, mas
entrou na pista do outro lado dela. Muito irônico, pensei.
— Caramba, ok.
Suspirei alto e cruzei os braços. Eu sabia que estava sendo
infantil, teimosa e chata. Mas não importa o que minha mãe
dissesse, ela não iria me convencer a ficar em casa em Queens
para os feriados. Nós estamos brigando uma com a outra desde
o momento em que ela foi me buscar no final do primeiro
semestre da faculdade, há apenas curtos (ao mesmo tempo
incrivelmente e infinitamente longos) três dias.
Se eu tivesse dito a ela o porquê de eu estar me sentindo
assim, talvez ela conseguisse compreender, mas eu não podia
falar.
Se é para ser honesta, aqui está como eu gostaria de
responder a pergunta da minha mãe:
— Sim! Claro que eu adoraria ficar em casa nos feriados. No
entanto, agora que você mencionou, só o pensamento de estar
em nosso apartamento durante as férias de inverno me faz
querer arrancar todos os meus dentes, um por um.
Nos últimos três dias em que estive em casa, tudo o que fiz
foi evitar o olhar de minha mãe e responder a suas perguntas
perfeitamente razoáveis com respostas monossilábicas.
Aparentemente, eu tinha voltado a ser uma criança birrenta.
Porque o que ninguém te conta sobre ir para a faculdade é
que, mesmo que seu primeiro semestre te dê uma surra e te
deixe sem fé na humanidade, é melhor do que estar em casa. O
sofá não tem mais o formato certinho do seu bumbum, o chão
range em lugares que antes não rangia e sua mãe vai trocar o
armário de canecas pelo armário de pratos (motivo de outra
briga, óbvio, porque você vai encontrar qualquer brecha para
alfinetar e falar merda para ela).
E absolutamente toda a minha raiva, completamente, é
culpa de Sadie.
Sadie disse que me amava em uma quinta-feira. Eu estava muito
ansiosa para dizer a ela que a amava antes desse dia, mas
imaginei que três meses de namoro era um pouco cedo demais.
Começamos a namorar durante os dois dias da orientação do
primeiro ano e eu já sabia que a amava. Uhum, nos dois dias da
orientação do primeiro ano.
Tivemos uma rotina perfeita durante todo o semestre:
ficávamos no dormitório dela quando a colega de quarto não
estava lá e assistíamos à Netflix. Nós nos acostumamos,
principalmente, a ver shows de competição de artesanato,
embora também tenhamos assistido a todos os filmes da
categoria “LGBTQ”.
Bem, exceto aqueles em que as mulheres transam. Seria
muito desconfortável ver outras pessoas fazendo algo que até
agora estávamos com muito medo de fazer.
Ou pelo menos que eu estava com muito medo de fazer.
Mas mesmo quando eu estava só sentada com ela, assistindo
TV, meu pescoço doendo por estar encostado em seu ombro,
eu sentia um beliscão em meu peito e automaticamente sabia
que aquilo era amor.
Eu era todos os estereótipos lésbicos em uma pessoa só e não
me importava. São estereótipos por uma razão, afinal. Já tinha
até imaginado nosso casamento, rústico e pequeno. Nenhuma
de nós usaria branco e todos os convidados sairiam de lá
impressionados, dizendo coisas como: “Isso mudou a minha
concepção do que é um casamento e, sinceramente, é assim que
deveria ser!”
— Eu realmente não acredito nisso — Sadie me disse na
quinta-feira em questão — mas achei que você deveria saber.
— Saber o quê? — Eu questionei enquanto olhava para ela
do meu lugar de sempre, com a cabeça deitada em seu ombro.
Eu sabia que o que ela ia dizer seria sério porque ela havia
pausado o Jeopardy!
Ela encarou o nada e declarou:
— Que eu te amo.
E eu, imediatamente, disse a ela que a amava também
Contudo, fiquei estressada depois disso, porque se
estivéssemos apaixonadas, o próximo passo lógico era o sexo. E
como eu nunca tinha feito isso antes, senti que precisava me
preparar.
Então, eu pesquisei algumas palavras-chave aleatórias em
um navegador e até cortei minhas unhas porque sabia que isso
era algo que as mulheres queer deveriam fazer. Mas quando
chegou a hora de fazermos sexo, nada da minha preparação
realmente valeu a pena. Porque…
Oh, Deus. Isso é tão vergonhoso.
Tá. Fizemos sexo pela primeira vez alguns dias depois do “eu
te amo” e, como você deve estar imaginando, claro que também
foi a última vez. Naquele domingo, ela me mandou uma
mensagem dizendo que precisávamos conversar. Uma hora
depois, eu estava solteira. Duas horas depois, eu estava voltando
para casa para as férias de inverno.
Não posso nem pensar nisso agora. Vou vomitar.
O pior é que nem estou brava com Sadie. Se ela estivesse
aqui no carro, eu provavelmente imploraria para ela me aceitar
de volta porque eu sou patética e, além disso, ela foi a primeira
garota que eu namorei.
Eu sequer contei à minha mãe sobre Sadie, então ela deve
estar pensando que eu fiquei triste e com raiva sem nenhum
motivo. Eu havia planejado falar para ela sobre nosso
relacionamento durante as férias de inverno, mas não faz
sentido contar agora que não estamos mais juntas.
Primeiro eu teria que contar a ela que eu estava namorando
uma garota, e que eu gosto de garotas, e, ah, sim, agora que você
me lembrou, a garota mencionada e eu não estamos mais
namorando porque algo deu terrivelmente errado setenta e
duas horas depois que dissemos “eu te amo” uma para a outra.
— Você pode ficar, você sabe. — ela repetiu mais tarde no
trajeto de carro.
— O quê?
— Ainda dá tempo. Vou fazer o retorno agora mesmo. —
Ela demonstrou seu compromisso com essa declaração virando
bruscamente o volante para a esquerda. Depois disso, foi
recebida com um coro de buzinas e rapidamente soltou o
volante para atingir o máximo da capacidade da buzina ao
pressioná-la.
— Eu realmente não posso — respondi a ela em uma voz
monótona que eu odiava ouvir saindo da minha boca, —
preciso fazer esse estágio.
— Você não precisa fazer nada.
— Bom, eu não vou voltar para Nova York. Esta é uma
oportunidade incrível para mim. Você sabe quantos calouros
já conseguiram estagiar nesse laboratório?
Quando ela não respondeu, eu continuei:
— Um. Apenas eu. Eu posso estudar a evolução dos peixes
com o melhor paleo ictiólogo do mundo inteiro. Então, não,
eu não vou ficar em casa.
Ela ficou em silêncio por um momento e eu pensei que
tinha ganhado até que ela disse:
— Se você vai estudar animais mortos, por que não
dinossauros? Todo mundo adora dinossauros.
— Meu Deus, mãe. Por favor, pare.
Ela nunca iria entender o quão impressionante era eu ter
conseguido esse estágio no Smithsonian. O Dr. Charles
Graham é o paleo ictiólogo — alguém que estuda peixes
extintos e sua evolução — mais famoso do mundo e eu vou
trabalhar com ele por um mês. Claro, ser um paleo ictiólogo o
torna menos famoso do que, tipo, um gato vagamente famoso
no Instagram, mas mesmo assim.
E, ok, tudo bem. Fazer este estágio é mais do que apenas
trabalhar com o Dr. Graham. Eu me perdi no semestre passado;
a pessoa que fui nos primeiros dezoito anos da minha vida
desapareceu.
A partir do momento que comecei a namorar Sadie, ela se
tornou meu único foco.
Apesar disso tudo, não posso mudar o passado. Então, eu
decidi que não vou namorar ninguém nunca mais. Também
nunca mais vou fazer sexo, porque o sexo estraga tudo. Eu não
vou fazer nunca mais. Serei a versão judaica de uma freira.
Trabalhar no laboratório será perfeito. Posso me concentrar
em peixes mortos. Peixes mortos não podem partir seu coração.
Eles só podem te ensinar sobre o mundo e o que significa existir
nele. Além disso, eles estão extintos há milhões de anos e, dessa
forma, são extremamente sortudos.
E, até minha mãe sair da estrada coberta de neve, eu estava
confiante de que meu tempo em DC seria tranquilo. A
continuação perfeita do meu semestre perfeito namorando
Sadie.
Mas agora estamos encarando a morte de frente.
E a morte está olhando de volta, usando um gorro vermelho.
Estou prestes a ser uma assassina.
A expressão neutra da garota se transforma em uma face de
terror enquanto o carro se aproxima dela.
Minha mãe finalmente a vê e freneticamente tenta pisar no
freio. Ela os pisoteia repetidamente, mas entre a neve e gelo, o
carro não responde.
Então, há o baque.
A colisão.
Não uma colisão forte, mas ainda assim. Uma colisão.
Atropelamos uma pessoa com nosso carro.
A garota do gorro desaparece de vista e prendo a respiração,
certa de que ela está morta. Minha mãe e eu estamos congeladas
em nossos assentos.
E, então, a garota aparece na frente do carro, se limpa e
começa a gritar.
Não consigo entender tudo o que ela diz através das paredes
robustas do Subaru, mas soa muito como:
— Que porra você estava fazendo? Você está tirando uma
com minha cara? Eu poderia ter morrido.
A garota bate os punhos contra o capô, gritando, gritando e
gritando.
Estou paralisada.
Ela deve ter mais ou menos a minha idade, olhos grandes e
pele branca quase translúcida que parece brilhar à luz dos faróis
altos. A cena toda é estranhamente… linda?
Eu afasto o pensamento da minha cabeça enquanto minha
mãe abre a porta para verificar nossa vítima.
Porém, quando ela começa a sair, a menina grita:
— Que porra é essa? — e bate o punho contra o capô
novamente. — Fique na porra do carro!
Então, minha mãe fecha a porta.
A garota se afasta, mas antes que ela vá muito longe,
novamente se vira para nós. Em sequência ela olha diretamente
nos meus olhos e dá as costas.
Minha mãe e eu ficamos em silêncio por um momento.
— Bem — ela diz, segurando o volante — espero que nem
todos em DC sejam como ela.
Fantasmas sexuais de meio século de idade

Minha mãe e eu não conversamos durante o curto trajeto


até o nosso destino. Achei que ela poderia relembrar o fato de
que quase matamos alguém em um acidente de carro, mas até
agora nada.
Ela estaciona em uma pitoresca rua residencial e desliga o
carro, mas meu coração não desacelera. Continuo me sentindo
nervosa desde que esbarramos na garota.
A questão é que estou meio feliz com as palpitações e é a
primeira vez em dias que não sinto raiva ou tristeza. Eu me sinto
— e sei que isso não soa tão bem — empolgada. Talvez não seja
errado estar alegre, afinal, a garota estava perfeitamente bem.
Aliás, não consigo parar de pensar nela. A olhada que ela deu
logo depois que nos esbarramos ainda está gravada em minha
mente, a forma como sua expressão se transformou de choque
para medo e depois para raiva. Quase quis ajudá-la quando vi
aquela emoção familiar em seu rosto. Me deu vontade de sair
do carro e levá-la para casa, só para me certificar de que ela
estava realmente bem.
E, como sou minha pior inimiga, também não consigo parar
de pensar em como ela era fofa.
O que é horrível. Eu sei.
Tipo, se recomponha, Shani – você, de todas as pessoas,
deveria saber que desse mato não sai mais coelho.
Você não pode ficar pensando essas coisas sobre todas as
garotas bonitas que você atropela com seu carro. Isso seria
anarquia. Não é uma maneira de viver muito boa.
— Eu acho que é aquela. — Minha mãe diz, apontando para
uma casa do outro lado da rua. É quadrada e coberta de hera,
com três andares e paredes externas revestidas de tijolos
vermelhos escuros manchados pela neve, igualzinho a um
cartão postal de férias.
Por alguma razão, o comentário inofensivo da minha mãe
reacende a chama da raiva no meu cérebro. Eu gostaria de poder
dizer a ela para ficar apagada, mas a resposta escapa antes que
eu consiga evitar.
— Você acha que é aquela? — Eu pergunto. — Eu pensei
que você tivesse vindo aqui antes. — Eu estremeço com as
palavras que saem da minha boca.
Eu não sou uma pessoa terrível.
Pelo menos, acho que não. É que é tão mais fácil descarregar
a raiva que eu sinto de Sadie em mamãe do que fazer qualquer
outra coisa a respeito.
— Eu tenho certeza — afirma ela. — Igual aos anos noventa.
— Ela se aproxima da janela do carro, como se isso a ajudasse a
visualizar melhor a casa. — Sim, definitivamente é aquela.
Reviro os olhos, sabendo que pareço a caricatura de uma
adolescente raivosa e não me importo.
Tudo sobre meu contrato de locação em DC foi resolvido
sem minha participação. Quando eu estava mergulhando tão
profundamente no meu romance com Sadie durante todo o
primeiro semestre, não me preocupei em encontrar um lugar
decente para morar durante o estágio, porque não parecia algo
importante naquele momento.
Mesmo que minha mãe não tenha sido exatamente sutil
sobre me querer em casa para as férias de inverno, ela ainda me
ajudou encontrando um lugar para eu ficar. Ela me mandou
uma mensagem algumas semanas atrás dizendo:
A BFF da sua bisavó, Beatrice, mora em DC ;) e disse que você
poderia ficar lá se precisar (Minha mãe manda mensagens desse
jeito porque ela acha legal. Eu nem sei por onde começar a falar
sobre isso.)
Enquanto minha mãe pega sua jaqueta na parte de trás do
carro, eu pulo do lado do passageiro e corro para tocar a
campainha. Alguns segundos depois, a porta se abre.
— Oi, boneca — uma senhora me cumprimenta.
Eu tenho que me inclinar toda só para conseguir olhar em
seus olhos. Ela provavelmente não foi muito alta quando
jovem, mas agora ela é absolutamente minúscula, uma vítima
da gravidade e do tempo.
— O que você está fazendo no frio? — Ela pergunta e agarra
meu braço com uma mão muito enrugada, me arrastando para
dentro com força inesperada para uma senhora daquela idade.
A casa tem o teto baixo, como se tivesse sido construída em
1800, quando a população em geral tinha metade da altura que
tem hoje, agora somos baixinhos devido ao escorbuto ou a
alguma outra doença antiga. É um lugar perfeito para esta
mulher, que sorri para mim do primeiro degrau de uma escada
de madeira ornamentada. Ela é só um pouco mais alta do que o
corrimão.
— Agora, quem é você? — Ela pergunta rindo de uma
forma engraçada. — Acho que provavelmente não conheço
você, mas se conheço, você pode me dar um tapa na cara e dizer:
“Beatrice, sua velha, nos conhecemos há trinta anos.” Apesar
de que pela sua aparência você deve ter… o quê? Vinte? Vinte e
cinco? Ainda uma criança, obviamente. E antes que você diga:
“Beatrice, sou uma mulher adulta'', deixe-me lembrar que
qualquer pessoa com menos de cinquenta anos é uma criança e
essa é a verdade! — Ela ri novamente e respira fundo.
Eu não tenho certeza de como responder a isso, ou se ela
realmente queria que eu lhe desse um tapa na cara, então
apenas digo:
— Hum, eu sou a Shani.
— Fale, boneca.
— EU SOU A SHANI.
— Bem, não precisa gritar.
— Eu sou a Shani — Eu digo novamente, tentando
encontrar alguma média razoável de volume que esta mulher -
Beatrice - não achará ofensiva.
— Isso é legal, boneca — Beatrice diz e, neste momento, eu
tenho certeza que ela nunca vai me chamar pelo meu nome e
vai simplesmente se referir a mim como “boneca”, o que é
bastante agradável. — E por que você está aqui, posso
perguntar?
Eu limpo minha garganta.
— Vou ficar com você por um mês?
Ela estende as mãos para agarrar meus ombros em um
movimento tão rápido que fico preocupada com a
possibilidade dela estar possuída.
— Você é a garota da Sandy? Eu deveria saber, com esse
cabelo!
O cabelo a que ela se refere é preto e grosso, com cachos
soltos voando livremente. Todos na família Levine têm a
mesma cabeleira. O meu é curtinho (uma decisão que tomei,
tipo, dois dias depois que eu percebi que era lésbica) e inchou
ao redor do meu rosto como a juba de um leão.
— Como está aquela velhota? Meu Deus, por que você não
disse logo?
Não tenho coragem de dizer a ela que Sandy, nossa única
conexão mútua e minha bisavó, morreu há mais de uma
década.
Mas, felizmente, não preciso, porque nesse momento
minha mãe entra, tirando a neve das botas.
Beatrice solta meus ombros e paralisa.
— Aquela é a pequena Rachie?
— Tia Bea! — Minha mãe diz, apertando Beatrice com tanta
força que eu tenho medo de que ela quebre os ossinhos frágeis
e antigos de Beatrice.
Estou surpresa ao ouvir minha mãe chamá-la de “tia”,
considerando que nunca conheci essa mulher. É sempre
estranho confrontar o fato de que minha mãe teve uma vida
antes de eu nascer.
— Eu tenho que chamar as outras para virem aqui — diz
Beatrice. — Ah, elas vão ficar emocionadas! — Ela respira
fundo e grita escada acima: — Venham conhecer a nova boneca
que vai morar conosco por um tempo — como se fosse a
apresentadora do antiquado programa American Girl, o motel
das bonecas, e eu fosse a recém-chegada sortuda de quarenta e
cinco centímetros.
Minha mãe me disse que outras garotas moravam aqui, mas
eu ainda não tinha processado completamente esse fato até
agora, enquanto elas desciam escada abaixo.
Ambas têm a minha idade. Uma delas está vestindo uma
camiseta da American University, tem a pele negra retinta e
longas tranças presas em um coque no topo de sua cabeça. Ela
coloca o braço em volta de Beatrice, que sorri para ela. A outra
garota se senta no último degrau e acena com a cabeça em
minha direção. Essa tem a pele branca e sardenta, o cabelo loiro
espesso está preso em um rabo de cavalo baixo.
— Anjos, esta é a nova boneca — diz Beatrice, sem usar um
único nome para me apresentar às minhas colegas de quarto.
A garota com o braço ao redor da cintura de Beatrice deve
estar pensando a mesma coisa porque ela diz:
— Eu sou Lauren.
— Tasha. — A garota na escada fala com um sotaque que
não consigo identificar de onde é.
— Shani. — Eu digo a elas.
— Você foi transferida para cá? — Lauren pergunta. — Eu
sei que há uma tonelada de transferências no semestre de
primavera para a América e, para sua sorte, eu administro uma
orientação de transferência que você vai adorar. No outono, a
gente faz churrasco, mas em janeiro ninguém quer ficar na
churrasqueira, sabe? Então, eu estava pensando em uma
potluck1. Mas da última vez que fizemos uma, ninguém trouxe
um pratinho de verdura.
Quando ela termina o falatório, eu me pergunto
brevemente se os monólogos são um pré-requisito para viver

1
Festinha em que cada convidado leva um prato de doce ou salgado.
nesta casa ou se é apenas algo pelo qual Beatrice e Lauren se
unem a favor.
— Eu não fui transferida — respondo a ela e depois
acrescento: —, desculpa. — porque me sinto mal por
atrapalhar os planos dela.
— Bem, você ainda pode vir ao jantar se quiser trazer um
prato de crudités2.
— Boneca, deixe a menina respirar! — Beatrice abraça
Lauren pelos ombros e, em seguida, envolve os dedos em volta
do meu braço com seu aperto forte. — Respire, boneca!
Ela parece séria, então faço um grande show inspirando e
deixando o pulmão cheio de ar para depois exalar
ruidosamente.
— Ah! E ela é engraçada. Você vai se encaixar perfeitamente
por aqui.
Tasha está com a cabeça apoiada entre as mãos e Lauren olha
para ela, bufando de tanto rir.
— Agora que estamos todas familiarizadas, vocês, bonecas,
querem dizer a ela as regras? — Beatrice pergunta depois que
ela me libera.
Eu tento manter minha expressão neutra, mas não estava
esperando por isso. Praticamente não tive ninguém me dizendo
o que fazer ou como viver desde que fui para a faculdade no

2
Crudités são aperitivos franceses que consistem em vegetais crus fatiados ou
inteiros.
verão passado. Claro, existem regras nos dormitórios, mas essas
são mais… sugestões leves do que regras de fato. Quase todo
mundo bebe, fuma, queima velas e tem um ou dois animais de
estimação ilegais.
Mas quando uma mulher tão velha quanto Beatrice fala
sobre regras, você não pode não as seguir. Decepcioná-la seria
como decepcionar minha (bis)avó. E honestamente, eu quero
regras. Quero que alguém me diga o que fazer, para que eu
consiga não estragar tudo como fiz nos últimos três meses.
Então, escuto com atenção quando Lauren enumera:
— Fazemos silêncio e ficamos quietas durante a madrugada,
tiramos o lixo quando está cheio, limpamos nossa própria
bagunça na cozinha — Tudo isso parece justo, até mesmo
previsível —, e garotos não são permitidos nos quartos, nunca.
Eu quase soltei uma gargalhada com este último. Mas em
vez de fazer isso, eu ajusto a regra na minha cabeça, mudando-
a para “e garotas não são permitidas nos quartos, nunca”, e me
sinto bem com isso. Quero ficar isolada no próximo mês, e
agora há um ordem expressa afirmando que deve ser assim.
— Isso tudo faz sentido.
— Fantástico, boneca — diz Beatrice. — Quer ver o seu
quarto?
Ela sobe as escadas, dois degraus de cada vez, e eu me apresso
para alcançá-la.
Apesar de tentar adiantar meus passos, me distraio com as
pinturas nas paredes da escada. Há cruzes e retratos de santos,
junto com algumas decorações de Natal – guirlandas, bastões
de doces, mais guirlandas. Começo a me preocupar que ela seja
realmente religiosa e que, mesmo sendo amiga de minha bisavó,
ela ficará desapontada por eu ser judia.
Mas então chego ao topo da escada, onde há uma cartolina
bege com letras garrafais em negrito que diz: “ÁLCOOL:
PORQUE NENHUMA GRANDE HISTÓRIA
COMEÇOU COM ALGUÉM BEBENDO LEITE”, e me
sinto bem menos desconfortável.
Quando minha mãe e eu chegamos ao patamar do segundo
andar, Beatrice está esperando por nós parada próximo a uma
porta aberta.
— Este é o seu quarto, boneca.
É muito maior do que eu imaginei que seria: há uma cama
king size, duas cômodas e duas mesinhas de cabeceira. Dois de
tudo.
— Costumava ser meu quarto principal, quando meu
marido estava vivo. — Beatrice se senta na beirada da cama.
Eu sento ao lado dela.
— Eu sinto muito.
— Não sinta, boneca. Ele morreu há cinquenta anos. —
Beatrice olha melancolicamente ao redor do quarto. — Nós
construímos tantas lembranças boas aqui.
— Eu imagino — Eu digo, porque isso parece o tipo de coisa
que você diz para uma velha nostálgica.
— Todos os meus seis filhos foram concebidos neste
quarto.
Eu pulo da cama e olho para minha mãe incrédula com os
olhos arregalados. Ela me devolve o mesmo olhar, nossa briga
sendo temporariamente esquecida.
— Onde você vai dormir, tia Bea? — Minha mãe pergunta
rapidamente. — Já que Shani ficará em seu quarto.
— No sótão — Beatrice responde. — Não consigo dormir
neste quarto desde que meu marido morreu. Mas estou feliz
que será bem aproveitado.
Meu rosto fica quente. Certamente não será “bem
aproveitado” da mesma forma que foi quando Beatrice e seu
marido conceberam seus seis filhos aqui. Lembrete: sou uma
freira judia.
Meu Deus. Eu preciso queimar os lençóis.
— Bom, acho que vou ajudar Shani a desfazer as malas agora
— Minha mãe diz em uma voz muito mais gentil do que ela
usou comigo o dia todo. Tenho a sensação de que nós duas
estamos apenas esperando Beatrice sair para que possamos
brigar novamente. — Obrigada por sua ajuda, tia Bea!
— Claro, boneca. Estarei lá em cima se vocês precisarem de
mim.
E com isso, Beatrice sobe outro lance de escadas indo em
direção ao seu quarto no sótão.
Minha mãe examina a cômoda e as fotos de família que
definitivamente contêm pelo menos algumas das crianças que
foram concebidas aqui.
— Puta merda. — Minha mãe pega um convite emoldurado
e o segura perto do rosto.
— O quê?
Ela se vira para me mostrar, é uma foto de Beatrice quando
ela era jovem. Sua pele é lisa e seu cabelo escuro está preso de
uma maneira elegante e careta.
— Por que “puta merda”? — Eu pergunto. — É só Beatrice
quando ela era jovem?
— Não, olhe para o que tem escrito embaixo.
Eu me inclino e leio: Por favor, junte-se a nós para
comemorar o aniversário de 90 anos de Beatrice Mancini!
— Ela tem noventa anos? — Questiono, admirada.
Acabei de ver essa mulher subindo um lance de escadas, dois
degraus de cada vez. Parece impossível que ela tenha quase um
século.
— Não, veja a data da festa — Minha mãe pede.
Forço as vistas para ler as letrinhas pequenas do cartão.
A festa aconteceu há mais de seis anos.
— Ela tem noventa e seis? — Eu praticamente grito,
descrente.
— Isso não é louco?
Eu assinto e dou outra olhada no quarto, agora ainda mais
interessada em Beatrice.
— Ela conheceu sua bisavó na faculdade — minha mãe
acrescenta, — isso só mostra que as amizades que você faz na
faculdade podem durar a vida toda.
Minha mãe tenta segurar meu olhar, mas depois desse
último comentário minha raiva volta. Minha experiência na
faculdade tem sido menos “amigos para a vida” e mais “ex-
namoradas que voltaram para a faculdade no semestre da
primavera e trouxeram consigo o despertar de um pesadelo”.
Mamãe não sabe disso, no entanto. Ela não sabe de nada.
Também não posso culpá-la por tentar descobrir algo sobre
mim, mesmo que isso não vá acontecer.
— Podemos apenas desfazer as malas? — Eu pergunto.
— Claro — mamãe concorda —, tudo bem.
Depois de alguns minutos arrumando roupas de modo
desajeitado, minha mãe pergunta:
— Você quer lençóis diferentes ou algo assim? Eu posso ir
comprar uns para você.
— O quê? Não. Não precisa fazer isso — Eu nego, embora
tenha pensado em incendiar a cama poucos momentos antes.
Minha mãe retruca:
— Só estou tentando ajudar.
E eu digo:
— Você não precisa fazer nada.
E então há mais silêncio.
Demora um pouco, mas assim que terminamos de desfazer
as malas, ela se senta e suspira.
— Eu preciso de algo para comer.
Eu dou de ombros.
— Ok.
— Se você não está com fome, tudo bem, mas eu estou
morrendo de fome.
— Eu disse ok.
Ela balança a cabeça, então coloca seus óculos de leitura e
mexe no telefone por um minuto.
— Há um café na rua que fica aberto até tarde. Podemos ir
caminhando.
Mesmo que ainda esteja nevando, eu não discuto com ela, e
nós nos arrastamos pela lama até um lugar chamado The Big
Blue Dog.
Quando entramos, eu gosto do lugar imediatamente. É
quente, brilhante e cheira a café – as três características mais
importantes de um bom Café. Começo a pensar na
possibilidade de realmente sentir vontade de comer alguma
coisa, mas olho para a vitrine de doces e vejo um bolo de
cenoura gigante.
Meu estômago se revira e a bile rasteja em minha garganta.
Eu sei que essa é uma reação estranha a um bolo, mas como
a maioria das coisas hoje em dia, a vontade de vomitar tem mais
a ver com Sadie.
Em nosso primeiro “encontro” no refeitório, Sadie e eu
comemos uma pizza de merda e depois dividimos uma fatia de
bolo de cenoura.
Foi quando descobri que ela bufava quando ria, que era
inteligente, linda e...
Meu sangue ferve em minhas veias até que tudo o que resta
é um concentrado de células e raiva. O café outrora
aconchegante agora é um pesadelo infernal, e eu quero
atravessar meu punho pela vitrine de vidro e acabar com o bolo
de cenoura, deixando-o em pedaços.
— Shani — Minha mãe chama, prendendo minha atenção.
— O quê?
— O garoto perguntou o que você quer. — Ela aponta para
o jovem em pé atrás do balcão. Ele parece ter acabado de sair da
puberdade, tipo, há uma hora - desengonçado, cheio de
espinhas e com olhos mortos.
— Nada — Eu respondo minha mãe —, estou bem — digo
ao garoto.
— Vamos, você tem que comer alguma coisa — Minha mãe
afirma e o funcionário com cara de adolescente acena um
pouco vigorosamente junto com ela.
— Pare com isso — digo entre dentes, como se minha mãe
fosse a única que me envergonhasse na frente desse pobre
garoto que tem que trabalhar em uma tempestade de neve, e
não o contrário.
— Ela vai querer um dinamarquês de damasco. — Minha
mãe informa ao barista, ele coloca luvas nas mãos e pega a
massa.
— Eu não quero. — eu murmuro.
Porém, uma vez que minha mãe paga e estamos sentadas em
uma pequena mesa perto da janela, eu imediatamente dou uma
mordida no dinamarquês.
— Última chance — Minha mãe fala depois de um minuto.
— O que?
— Você ainda pode voltar para casa. — Ela toma um gole
de café em uma grande caneca com The Big Blue Dog gravado
nela.
— Eu já te disse que não posso — Eu enfatizo, mas a
restauradora mordida que dei nessa dinamarquesa deve ter
apagado a chama da raiva, porque minha voz soa mais
derrotada do que qualquer outra coisa. — Tenho meu estágio.
— Se você mudar de ideia…
— Eu não vou.
Ela levanta uma palma, se rendendo.
— Eu sei, eu sei. Mas se você quiser ir embora, eu venho te
buscar.
Não sei por qual razão ela está sendo tão boa comigo. Eu
gostaria que ela fosse tão malvada quanto eu fui com ela, para
que as coisas ficassem justas e eu pudesse me sentir bem sobre
o quão mal eu tenho me comportado.
Depois de um minuto, minha mãe sussurra baixinho para
seu próprio dinamarquês:
— Não estou ansiosa para ficar sozinha nas férias, sabe.
Encaro meu colo, cheia de culpa, e vejo que tenho uma
mensagem de Taylor – minha melhor amiga desde as fraldas –
me dando uma desculpa perfeita para continuar evitando o
olhar da minha mãe.

TAY: como está DC?

EU: frio e neve


também estou hospedada no quarto de uma
mulher de 96 anos

TAY: com ela? ;)))

EU: KKKKKKK ew, não! que mente mais poluída


mas não posso falar rs
estou com minha mãe
vou mandar mensagem quando ela for
embora

Trocar mensagens de texto com Taylor às vezes pode ser


uma provação, porque não consigo desviar o olhar do meu
telefone nem por dois segundos. Ela só gosta de enviar
mensagens para as pessoas quando tem toda a atenção delas e,
em troca, responde imediatamente. Temos conversado muito
mais desde que Sadie e eu terminamos. Eu me odeio por ter
negligenciado minha amizade com Taylor por tanto tempo -
alguém de quem eu sou tão próxima, nós até tivemos
intoxicação alimentar juntas em mais de uma ocasião.
Eu amo o fato de que enviar mensagens para ela requer
minha total atenção. Acabo esquecendo todo o drama que
acontece na minha vida.
Mas não posso me concentrar nessa conversa agora, porque
minha mãe ainda está aqui, ela me trouxe até aqui e eu a paguei
sendo a pior filha da história das filhas.
— Você terá o Mikey. — Eu digo finalmente, fingindo que
esta é uma resposta adequada enquanto ela está dizendo que vai
ficar sozinha nos feriados.
— Ele está indo para a Flórida com a namorada.
— Mikey tem namorada?
— Eu sei — Ela concorda. — Também me surpreendi.
Mikey é o primo esquisito da minha mãe, a única família
que temos em Nova York, além de nós duas. E, aparentemente,
até ele tem outro lugar para estar nas férias de inverno.
Minha mãe suspira e se levanta. Devolvemos nossos pratos
e canecas e voltamos para o carro.
— Diga à Beatrice que foi bom vê-la. — Ela pede quando
chegamos ao nosso Subaru coberto de neve.
— Você não vai entrar?
— Acho que vou embora.
— Tão tarde?
— Prefiro chegar em casa hoje à noite.
—Ah — eu suspiro —, ok.
Pela primeira vez durante todo o dia, não quero que minha
mãe vá embora. Eu quero me jogar no chão duro e coberto de
neve, fazer birra e agarrar seu tornozelo para que ela não possa
ir embora, como eu fiz quando ela me deixou no meu primeiro
dia de pré-escola.
Mas não digo a ela para ficar ou que quero voltar para casa.
Tudo o que digo é:
— Tente não atropelar ninguém desta vez — E minha mãe
sorri fracamente.
Ela entra no carro e liga o motor, mas antes de sair, eu bato
na janela e ela abaixa o vidro.
— Te amo — eu digo.
— Eu te amo, Shani.
E ela vai embora.

Quando estou de volta ao meu quarto, mando outra mensagem


para Taylor.

EU: ok estou aqui


respondendo você ao vivo do ~quarto~

TAY: fofa
me mande fotos

EU: absolutamente não

TAY: só uma???????
eu quero ser capaz de imaginar onde você
está hospedada

EU: tudo bem

Tiro uma selfie minha mostrando o dedo do meio para


Taylor e envio.

TAY:
gostosa

EU: vc é a pior
de qualquer forma
ok kkkkk então, isso pode ser um pouco
estranho, mas você pode verificar minha mãe
de vez em quando?
eu acho que ela está super triste por eu não
ficar em casa nos feriados

TAY: . . . sim . . . ela é a super triste

EU: hmmm o que isso quer dizer???

TAY: só estou dizendo


vc acabou de terminar um namoro
e agora você está passando as férias sozinha
talvez eu devesse checar VOCÊ??

EU: antes de mais nada, você é rude


e você literalmente não precisa porque eu
estou bem
eu nunca vou namorar ninguém, nunca mais
então eu nunca vou ficar triste assim de novo
então está tudo bem

TAY: amo essa atitude saudável

EU: pode não ser saudável


mas estou errada?

TAY: sim????
há tantas garotas gostosas e gentis por aí
esperando por você
você só precisa encontrá-las

EU: eu não quero encontrá-las


eu quero murchar e morrer

TAY: :(
bem não faça isso
mas da próxima vez que você tiver uma
namorada, não me jogue de escanteio

Meu coração afunda quando leio essa mensagem, porque eu


sei que ela tem razão.
Costumávamos conversar constantemente quando saímos
do Queens no final do verão para ir para nossas respectivas
faculdades. Ela me enviou fotos da parede sob sua cama de
solteiro cheia de Polaroids de nós duas. Enviei fotos do campus
para que ela pudesse se imaginar na faculdade comigo e prints
do meu horário de aula para que pudéssemos planejar nossos
FaceTimes com antecedência.
E aí eu conheci Sadie.

EU: eu sei que sou a pior


eu nunca vou parar de pedir desculpas
eu sou uma pessoa lixo!

TAY: esse não era o objetivo

EU: bem, não importa


eu nunca mais vou deixar você de lado
eu nunca vou namorar ninguém de novo

TAY: nunca mais namorar ninguém


certo, claro
ok, mas caso se houver alguém em DC

EU: tem 700.000 alguéns

TAY: não é o que eu quero dizer


e você acabou de pesquisar no Google a
população de DC

EU: sim obv


de qualquer forma
não podemos mais falar sobre isso
apenas verifique minha mãe, tudo bem?

TAY: vou tomar um café com ela ou algo assim

EU: adorei
mas certifique-se de que ela peça leite de
aveia
ela é intolerante a lactose

TAY: ah você se importa

EU: só sobre o cocô dela!

TAY: bruta

EU: vc que é

TAY: eu te amo, se divirta dormindo na masmorra


do sexo
** eu quis dizer quarto

EU: claro que sim


Taylor enviou um emoji de joinha, o que significa que nossa
conversa terminou.
Acabo dormindo em cima das cobertas da minha cama nova
naquela noite, mesmo que esteja congelando. Eu me encolho
como uma bola, tentando não pensar nos fantasmas sexuais de
meio século assombrando o quarto, tentando apenas pensar em
como nunca estamos realmente tocando em nada, porque há
pelo menos um átomo nos separando de todos e de tudo que
queira se aproximar.
Então, estou flutuando sobre a cama. Uma cama que não
faz ideia de quem é Sadie e que não dá a mínima para isso.
De alguma forma, apesar dos fantasmas do sexo e do frio,
adormeço.
Criatura Antiga das Profundezas

Quando meu despertador toca às sete da manhã seguinte,


tudo parece um erro. Não é como se esse fosse o melhor horário
para acordar durante as férias da faculdade, não às sete. Por que
a Shani do passado achou que esse estágio fosse uma boa ideia?
A Shani do passado era uma tola ingênua.
Não. Não, não estamos pensando assim. O estágio é
importante.
Ainda é.
Na minha cabeça se repete um refrão de minha mãe pedindo
para eu voltar junto com ela, um coro de mães judias
autoritárias cantando: “Você ainda pode voltar para casa!”
Mas só o pensamento de ficar sentada no meu quarto de
infância por um mês, fervendo de raiva e tristeza, é pior do que
a ideia de sair da cama. Então, acabo escolhendo a segunda
opção.
Meu corpo inteiro estremece quando me levanto, como se
soubesse que estou morando na casa de uma mulher de 96
anos. Me visto rápida e silenciosamente, então desço para a
cozinha.
Está vazia, o que é um grande alívio. Eu faria qualquer coisa
para evitar ter que ficar de conversa fiada logo cedo, no café da
manhã.
Tento ligar a cafeteira de Beatrice, mas a tela está piscando
com “NÃO ESTÁ PRONTO”, seguido de “TENTE
NOVAMENTE MAIS TARDE” repetidamente, então eu
nem insisto em usar o pobre e despreparado aparelho. Em vez
disso, recolho meu orgulho, pego minha bolsa e caminho
rapidamente pelo trecho repleto de neve parcialmente
derretida até o Big Blue Dog.
O mesmo garoto de ontem está atrás do balcão, mas o resto
do Café está mais animado. Há pais discutindo com seus filhos
por causa de croissants, pessoas usando óculos redondos e
lendo livros gigantes, além da música natalina tocando nos alto-
falantes.
Eu reconheço que critiquei minha mãe sobre como o
Hanukkah não é um feriado de verdade e como eu não quero
colaborar com a América cristã convencional, mas a coisa é…
Porra, eu amo músicas de Natal. Começo a ouvir no início de
novembro, antes do Dia de Ação de Graças. Eu sei, sou um
monstro.
O fato de que todas as melhores canções de Natal tenham
sido escritas por judeus ajuda bastante. “Rudolph the Red-
Nosed Reindeer”, “Let It Snow”, “Santa Baby” e aquela que é
como “Chestnuts roasting on an open fire”. A lista continua. É
incrível o quão aconchegante músicas de Natal podem ser e eu
odeio ter um interesse tão grande nisso, mas é esse o ponto. São
músicas feitas sob medida para fazer você querer abraçar
alguém (nojento) e depois comprar presentes superfaturados
para pessoas que nunca os usarão.
Quando me aproximo do balcão, o garoto pergunta qual vai
ser o meu pedido.
— Apenas um café preto, por favor.
— Onde está sua mãe?
Levanto os olhos da minha procura pela carteira perdida nos
bolsos enormes de minha jaqueta.
— O quê?
— A mulher com quem você estava ontem?
— Ah, sim — Eu entendo, por fim, ainda procurando meu
cartão de débito. — Ela foi embora ontem à noite.
— Por que você não foi com ela?
Eu não acho que eles o ensinaram a fazer perguntas desse
tipo no treinamento de barista (“As pessoas adoram quando
você faz perguntas pessoais e sem noção!”) ou se ele é apenas
intrometido.
— Vou morar aqui pelo próximo mês — respondo, embora
não seja realmente da conta dele.
— Legal, então acho que te vejo por aí — suas bochechas
coram enquanto ele fala.
Oh, merda… esse garoto está… flertando comigo?
Ele com certeza não tem mais de quinze anos e, mais
importante, eu sou lésbica. Eu tenho esquecido esse fato cada
vez mais desde que Sadie terminou comigo. É como se eu
tivesse voltado para o início do ensino médio, para a versão de
mim que ainda estava no armário, aquela que teria
imediatamente mandado uma mensagem para Taylor se esse
garoto sequer olhasse na minha direção.
Encontro meu cartão de débito e entrego a ele, mas ele
levanta a palma da mão e diz:
— Por conta da casa — parecendo orgulhoso demais
enquanto empurra o café na minha direção.
Eu pego meu café, então sorrio e agradeço a ele, esperando
que meu sorriso diga: "Eu sou uma paixão apropriada para a sua
idade, e também com certeza gosto de meninos."
Ei, se ele quer me dar café grátis, quem sou eu para impedi-
lo?

O metrô fica ao lado do café e sou grata por estar relativamente


quente na estação. Subo em uma escada rolante enorme,
segurando meu café grátis de flertes-de-hormônios-infantis, me
sentindo muito bem comigo mesma.
A plataforma do metrô é linda – tetos abobadados, luz
amarela suave – parece mais um set de filmagem do que uma
estação de transporte público em funcionamento. Estou tão
acostumada com o metrô terrível de Nova York com cheiro de
xixi e me causando claustrofobia que o daqui parece quase
mágico.
Tracei meu trajeto no Google Maps ontem, planejando
onde fazer paradas e onde preciso descer para parecer que estive
andando de metrô em DC durante toda a minha vida.
É bom que eu não precise me concentrar em direções,
porque estou totalmente focada no meu nervosismo com o
primeiro dia do meu estágio. Me candidatei em julho, antes de
começar a faculdade. Antes de conhecer Sadie.
Quando recebi o e-mail de aceitação em novembro, tinha
esquecido que havia enviado minha inscrição. Era como se eu
tivesse sofrido amnésia. Nada antes de Sadie importava. Eu
estava convencida, logo após ela terminar comigo, que nada
depois dela importaria também.
Mas sim. Eu continuo tendo que me lembrar que términos
realmente acontecem.
Então, a moral da história é que eu vou me sair tão bem nesse
estágio que vou provar para mim mesma, para Sadie e para o
mundo inteiro que estou seguindo em frente.
Eu estou seguindo em frente.

Quando eu era criança, minha mãe me levava ao Museu de


História Natural em Nova York. Eu adorava aqueles dias
porque eles pareciam uma viagem no tempo. Como se
estivéssemos entrando em um mundo diferente logo além dos
pilares brancos: onde tubarões de quinze metros morderam as
cabeças de baleias extintas; onde animais que foram enterrados
sob cinzas vulcânicas por milhões de anos foram desenterrados
para que pudessem ficar diante de nós, inteiros e espetaculares.
Eu perdi esse sentimento de admiração, de ver quantas
criaturas viveram, morreram e renasceram ao longo dos quatro
bilhões e meio de anos de existência do nosso planeta.
O que eu não perdi foi a sensação de que os museus de
história natural foram fundados para glorificar impérios e
exibir espécimes coletados durante expedições colonialistas. Eu
não sabia disso quando eu era criança – eu não sabia muito
além de “OSSOS GRANDES, EU QUERO TOCÁ-LOS
E/OU COLOCÁ-LOS NA BOCA” – mas tenho certeza do
que sei agora.
Mas, pelo menos, o lugar onde vou estagiar – o Smithsonian
National Museum of Natural History – tem um escritório de
repatriação dedicado à devolução de objetos às comunidades de
onde eles vêm e disponibilizam suas coleções e programas
online para qualquer pessoa que queira vê-los.
Quando estava no ensino médio, passava horas no site deles
olhando imagens 3D de peixes fossilizados, sentindo que estava
sendo, ativamente, uma cientista. Eles trabalharam para
garantir que o museu não fosse uma instituição intimidadora,
mas um lugar onde qualquer pessoa que queira aprender e
participar possa fazê-lo.
É um trabalho em andamento e talvez seja ingenuidade
minha, mas estou feliz por fazer parte dessa mudança positiva,
de tornar a ciência acessível a todos.
Estou do lado de fora do museu agora, praticamente
zumbindo enquanto releio as instruções no e-mail que recebi
do programa de estágio na semana passada. Tenho que pegar
um crachá no balcão de segurança e esperar que alguém me
escolte até o laboratório.
Passo pelos turistas que madrugaram para chegar cedo e por
um elefante gigante até encontrar a mesa certa e dizer ao
funcionário o motivo de estar aqui tão sem jeito.
— Tudo bem, vamos começar — A guarda sentada atrás da
mesa me diz. — Agora, sorria.
Eu não sei porquê ela está me pedindo para sorrir, mas não
quero desobedecer, então puxo meus lábios um pouco para
cima, um minuto depois ela me entrega um distintivo.
— Esse é o seu crachá. Por favor, use-o em todos os
momentos. — Ela digita algo em seu teclado. — Alguém estará
vindo buscá-la em alguns minutos.
— Oh, ok, obrigada. — Agradeço e seguro o crachá,
encarando meu rosto estampado nele.
No cartão de plástico fino há uma foto minha com uma cara
– não há outra maneira de descrevê-la – de constipação. Eu
deveria ter percebido que a guarda não estava me pedindo para
sorrir tipo “Alegre-se, querida!”
Eu viro o crachá para o lado sem minha foto e tento fazer
meu rosto parecer menos doentio do que a versão 3x4.
Não importa realmente como eu pareço, porque todos no
museu estão em seu próprio mundinho. É barulhento e lotado,
apesar do horário. As crianças estão correndo ao redor do
elefante, transformando seus braços em trombas e evitando as
garras de seus pais.
Não me recordo de ter sido tão pequena. Na verdade, não
me lembro do intervalo entre o meu nascimento até o ensino
médio, mas o que me lembro é que sempre amei peixes.
Tudo começou com um documentário chamado Ancient
Creature of the Deep. O filme era sobre o celacanto, um peixe
gigante que os cientistas pensavam que tivesse sido extinto
junto com os dinossauros, até encontrar um vivo no início de
1900. Se pronuncia “ce-la-cân-to” e eu me sentia um pouco
orgulhosa por conseguir dizer a palavra quando era criança.
Gostava de irritar minha mãe repetindo isso várias vezes
enquanto ela lavava a louça ou tentava tirar uma soneca.
Eu amei a foto do documentário do peixe manchado sendo
capturado pela câmera, seus olhos brilhando vermelhos diante
da lanterna do mergulhador. No entanto, o que mais me
fascinou, o que eu não conseguia entender, era o fato de que os
ancestrais desse peixe viviam em uma época em que não havia
vida humana alguma na terra. E não só isso, mas todos os nossos
ancestrais vieram do oceano. Somos todos peixes.
— Shani?
Expulso os pensamentos sobre peixes da minha cabeça e me
viro. Uma pessoa com cabelos pretos curtos e encaracolados
(que são muito mais bem cuidados do que os meus) está
acenando para mim.
— Shani? — A mulher pergunta novamente.
— Hum, sim.
— Mandira! — Ela diz seu próprio nome como se não
pudesse estar mais animada com isso e então estende a mão para
me cumprimentar. Quando ela faz isso, a manga curta de sua
camisa listrada em preto e branco vai para trás, me deixando ver
uma tatuagem de um crânio de mamute preto cobrindo a pele
negra de seu braço.
— Isso é incrível — Eu digo, apontando para a tatuagem.
— Eu sei — Ela concorda —, fiz há alguns meses. Eu a
chamei de Margaret.
— Quem?
— A mamute. — Ela responde — Vamos para o
laboratório! Quer alguma coisa? Café? Chá? Energético? Suco?
— Estou bem — recuso educadamente quando ela termina
de listar as bebidas. — Ansiosa para começar.
— Bem, estamos empolgados por tê-la — ela fala enquanto
passamos por uma porta com uma placa de “Somente
funcionários”.
Entramos em um corredor extenso, estreito e sem janelas,
Mandira caminhando alguns passos à minha frente. Tento me
lembrar do caminho que fizemos — esquerda, direita, esquerda
e esquerda novamente, mas depois de um minuto decido que é
inútil e que moro aqui agora.
— No meu primeiro dia, perguntei se podia deixar um
rastro de migalhas de pão para encontrar o caminho de volta ao
laboratório — Mandira conta, lendo minha mente — Mas o
Dr. Graham me disse que isso não seria higiênico. — Ela ri e eu
acompanho, feliz por estar no mesmo barco que Mandira. —
Ele é um gênio, você sabe. Não é um exemplo de pessoa
sociável, mas é um gênio. — Ela se vira e começa a andar para
trás enquanto fala comigo:
— Então, se você achar que ele não gosta de você, não se
preocupe. Ele não gosta de nada que nasceu nos últimos
trezentos milhões de anos – piada devoniana3. — Mandira
bufa; acho legal que este seja o tipo de lugar onde as pessoas
fazem piadas sobre eras geológicas.
Ela para de rir e esclarece:
— Mas estou falando sério.
Chegamos a uma porta marcada com “Laboratório de
Paleontologia Graham” e Mandira a abre.
A sala é o perfeito oposto de uma exposição de museu
construída para o público com espécimes perfeitamente
preservados em vitrines de vidro. Há três longas bancadas de
laboratório de aço inoxidável, em cada uma há centenas, talvez

3
Devoniano é um período da era Paleozóica, ocorreu aproximadamente há
359-416 milhões de anos.
milhares, de fósseis de peixes empilhados aleatoriamente uns
sobre os outros. A maioria está coberta de sujeira ou gesso,
alguns são partes de peixes que não consigo identificar e outros
são apenas dentes.
Estou totalmente chocada. Querer tocar em todos eles é
meu primeiro desejo.
— Não é a melhor coisa que você já viu? — Pergunta
Mandira.
— Sim — Eu concordo, ainda admirada com as peças
fossilizadas.
— Resposta correta! — garante ela e eu sorrio, feliz por já ter
feito algo certo. — Então, você estará preparando os fósseis
principalmente para mim e para o Dr. Graham. — Mandira vai
até um dos bancos, pega o que parece ser parte de um peixe
pulmonado e o vira nas mãos. — Você já trabalhou com fósseis
antes?
— Na verdade, não — Nego, me sentindo envergonhada.
Que tipo de aspirante a paleontóloga nunca trabalhou com
fósseis?
— Não precisa se preocupar com isso — Mandira me
tranquiliza e a vergonha desaparece instantaneamente. Estou
convencida de que ela é a pessoa mais legal que já existiu. —
Você pode praticar a preparação de fósseis, mas não poderá
aprender o resto. Sua inscrição era sobre celacantos, certo?
— Sim.
— Venha ver isso. — Ela me leva para o terceiro banco e
aponta para um grande molde de gesso. — Abra-o.
O gesso já está serrado ao meio, então eu levanto a parte de
cima e fico boquiaberta com a metade que permanece apoiada
no banco.
— Puta merda — Deixo escapar, então rapidamente
acrescento: — Desculpe! Desculpe.
— Não, essa também é a resposta correta. — Ela encara
amorosamente o fóssil: um celacanto tão bem preservado que
faz meu coração palpitar.
— De que época é? — Imediatamente preciso saber tudo
sobre o espécime: de onde veio, como eles o encontraram, qual
é a espécie.
Mandira sorri e arqueia as sobrancelhas.
— O que você acha?
Encaro o fóssil por um minuto.
— Bem, acho que provavelmente é pré-jurássico, porque
não parece ter nenhuma das estruturas internas de reprodução
que evoluíram nas espécies posteriores. — Olho para Mandira,
cujo rosto está surpreendentemente impassível. Eu continuo.
— Além disso, é muito pequeno, não é? — É bem menor do
que qualquer outro fóssil de celacanto que já vi. Eles podem ter
até 1,80m de comprimento e pesar mais de 40 quilos, mas este
tem apenas 30 centímetros de comprimento.
Na verdade, vi alguns poucos espécimes reais e todos eles
estavam em museus. Este está bem na minha frente, posso
estender a mão e tocá-lo.
Meu coração está acelerado pela alegria de amar coisas
mortas e pelo trabalho de descobrir o máximo que puder sobre
as circunstâncias de sua morte.
Mas Mandira fica em silêncio e depois de um momento
horrível, quando estou convencida de que consegui estragar
cem por cento disso e ela vai me expulsar do programa de
estágio no meu primeiro dia, seu rosto se abre em um sorriso.
— Eu sabia que tínhamos escolhido bem. — Quase vomito
de alívio. — Você está certa quando disse que é pré-jurássico. É
Devoniano, como muitos dos peixes em nosso laboratório.
Sinto uma vontade forte de passar minhas mãos contra a
marca que suas escamas e barbatanas deixaram para trás, há 350
milhões de anos.
— E você está certa, realmente é pequeno. Temos certeza de
que era um jovenzinho. — Ela fala essa parte de modo suave,
como se pudéssemos acordar o bebê celacanto.
— Estou, tipo, confusa com esse peixe – é estranho dizer
isso?
Surpreendentemente, Mandira me deixa confortável, o que
geralmente é raro de acontecer quando estou na presença de
outras pessoas.
— De jeito nenhum. — Ela ri. — Então, isso é basicamente
o que você vai fazer: admirar fósseis, depois limpá-los e prepará-
los para mim e para o Dr. Graham. — Ela continua me falando
sobre cola de paleontologia, que é uma cola fóssil e depois me
mostra onde vou ficar.
— Tudo bem — Mandria diz quando termina as
explicações. — Vou levá-la para a outra sala para conhecer o Dr.
Graham.
Puta merda.
Estou prestes a conhecer uma estrela do rock, um homem
com quem quero trabalhar há anos. O cara que eu esqueci
completamente quando estava com Sadie.
Eu assisti a palestra dele no TED sobre como somos todos
peixes meio que umas dez mil vezes. Sou obcecada por ele.
"A vida não evolui em uma linha", diz ele no início do vídeo.
Adoro a maneira como ele explica que os humanos não são o
auge da evolução. Que somos apenas uma pequena parte do
reino animal e uma parte ainda menor de toda a vida na Terra.
— Legal — respondo tão casualmente quanto posso, como
se não fosse nada demais.
Ela abaixa a voz.
— Apenas lembre-se, ele não é uma pessoa sociável. Ele é um
cara branco de meia-idade, nerd, que adora peixes.
Mandira bate em uma porta de madeira sem placa e
pressiona o ouvido contra ela. Ela deve ouvir alguma
confirmação de que podemos entrar porque ela gira a
maçaneta.
Olho para dentro e vejo um homem de costas para nós,
curvado sobre uma bandeja de fósseis ainda mais
desorganizados do que os da área principal do laboratório. Seu
cabelo crespo está quase todo grisalho e ele é alto demais para
sua mesa.
— Dr. Graham — Mandira chama em voz alta. — Você
quer dizer oi para a nossa nova estagiária, Shani?
Ele gira em seu banco e eu quase solto uma risadinha. Ele
está segurando um fóssil em uma mão e uma escova de dentes
na outra.
— Oi — cumprimenta ele, mal direcionando seu olhar para
nós duas. — Acho que a sujeira nas mandíbulas responde
melhor a uma boa escovação de dentes, mas não a desconsidere
como uma ferramenta para qualquer número de fósseis.
— Hum, eu não vou.
— Tudo bem, eu preciso voltar para isso aqui.
Com isso ele dá as costas novamente e Mandira fecha a
porta.
— Ele é obcecado, sabe… — explica ela, sentando-se em uma
cadeira em frente a uma das bancadas do laboratório. — Os
peixes são toda a vida dele. Lamento que ele não tenha falado
tanto com você. Ele é muito ruim em conversas descontraídas,
mas eu acho que é uma pessoa muito boa, lá no fundo.
— Tudo bem. — Eu consigo entender a obsessão de Dr.
Graham. Na verdade, posso ver o laboratório se tornando a
minha própria obsessão.
Mas talvez eu só tenha uma personalidade obsessiva, de
qualquer forma.
Mandira me dá um crânio de remo para que eu comece a
limpar. Acabo perdendo a noção do tempo tentando tirar as
minúsculas partículas de sujeira da superfície rachada e
escamosa do peixe. Estou esfregando cuidadosamente seu nariz
gigante e saliente quando Mandira se manifesta:
— Acho que é o suficiente por hoje. Por que você não vai
para casa um pouco mais cedo?
De qualquer modo, já são quatro horas. Passamos direto
pelo almoço, o tempo passou voando.
— Espere, o quê? — Eu verifico meu telefone novamente.
— Isso passou tão rápido.
Mandira sorri.
— O tempo voa quando você está preparando um espécime.
Vejo você amanhã.

Quando chego na casa de Beatrice uma hora depois, abro a


porta o mais silenciosamente que posso. Depois do meu
primeiro dia de trabalho, só quero subir para o meu quarto e
não ter que falar com ninguém.
Estou quase subindo as escadas quando ouço:
— Boneca, é você?
Prendo a respiração, esperando que ela se refira a uma das
outras bonecas.
— Boneca nova? Venha para a cozinha, anjo.
Eu estremeço. Meu disfarce não deu muito certo. Beatrice,
Lauren e Tasha estão sentadas à mesa da cozinha, as três
parecendo alegrinhas.
Há uma garrafa de Baileys Irish Cream e um pote de sorvete
de baunilha entre elas, e todas estão comendo naqueles
elegantes e antiquados copos de sorvete. Beatrice está bebendo
algo que só posso supor que seja uma combinação dos dois.
Está derramando por toda a sua camisa, mas ela não está dando
a mínima e nem fazendo nenhum esforço para limpar a
bagunça. Eu acho que quando você tem noventa e seis você
realmente não precisa se preocupar com essas coisas.
— Shani! — Lauren fala. — Nós estávamos nos
perguntando onde você estava. Beatrice nos disse que você está
trabalhando em algum lugar no centro? Ela disse alguma coisa
sobre você ser uma cientista maluca, mas, honestamente, eu
não escuto nada do que ela diz.
Isso lhe rende de Beatrice um tapa brincalhão no braço, que
respinga sorvete e Baileys em todos os lugares.
— Foi o seu primeiro dia?
— Hm…
— Bem, não fique aí parada — Beatrice se manifesta antes
que eu possa responder a Lauren. — Você quer que nós lhe
entreguemos um copo? — Ela se levanta e envolve o braço em
volta de mim, que mal atinge minha bunda/parte inferior das
costas. — Nesta casa nós nos ajudamos.
Eu me sinto um pouco sobrecarregada pela enxurrada de
palavras sendo jogadas em mim, mas pego um copo, sento entre
Lauren e Tasha e me sirvo com um pouco de sorvete.
— O quê, nada de Baileys? — Beatrice pergunta.
Já bebi antes, mas não na frente de adultos. Então, decido
ser honesta.
— Eu não tenho vinte e um.
— O que isso tem a ver?
— Essa é a idade para beber — repondo a ela, como se fosse
algo óbvio.
— Bem, não era na minha época.
— Isso é porque o álcool ainda não tinha sido inventado —
Lauren solta e Beatrice ri ruidosamente.
— Você precisa de um pouco de Baileys — Beatrice me diz.
— Faz bem para a saúde, ajuda você a crescer grande e forte. —
Ela pisca e eu derramo uma gota no meu sorvete. — Bom, você
precisa colocar mais do que isso, boneca — diz ela, balançando
a cabeça.
Despejo um pouco mais.
— Então, como está Sandy esses dias? — Beatrice pergunta
depois de um minuto que todas nós bebemos nosso combo
Baileys-sorvete.
Eu engasgo e o creme irlandês escorre pelo meu nariz de
forma nojenta.
— Ela está, hum — Eu começo. — Ela morreu há cerca de
dez anos, quando eu era criança.
— Claro que sim, boneca — Beatrice responde com
simpatia. — Eu deveria saber. Todo mundo da minha idade
está morto. — Ela solta uma gargalhada.
— Como você conheceu minha bisavó? — Eu pergunto,
ignorando o comentário mórbido sobre morte.
Minha mãe mencionou que elas se conhecerem durante a
faculdade, mas eu quero saber a história toda. Estou sempre
interessada em aprender coisas novas sobre minha bisavó. Eu a
chamava de minha “bisa” e não me lembro de muita coisa sobre
ela, exceto que ela odiava cozinhar e adorava me sentar em seu
colo para me apertar. Eu sempre tentava me esquivar, mas
rapidamente desistia. Me lembro de gostar da sensação de ter
alguém me protegendo com todo o seu corpo.
— Bem, nós duas fomos para o Barnard College e nos
imaginávamos mulheres radicais e livres, só que éramos apenas
bebês, não tínhamos nem dezoito anos. — Beatrice faz uma
pausa para dar outra colherada no sorvete. — Ela tinha vindo
da União Soviética há alguns poucos anos, era muito esperta e
adorava Nova York. Sua avó era mais nova-iorquina do que eu,
e olha que eu vivi lá a minha vida inteira. Nasci em Staten
Island, estudar em Manhattan foi uma grande aventura para
mim. Conheci e fiz amizade com várias pessoas novas, judeus
imigrantes e chineses. Eu simplesmente gravitava entorno de
qualquer um que não fosse italiano porque me considerava
bastante mundana. E, ah! Como eu amei sua avó. Ela escrevia
no The Bulletin sobre controle de natalidade e atuava em várias
peças. Sandy me convenceu a fazer Noite de Reis com ela e é
óbvio que ela foi a protagonista – um homem, qualquer que
fosse o nome do personagem. Eu tinha uma fala. Foi incrível
quando ela cortejou aquela mulher no show, garota, eu vou te
dizer…
Beatrice para por aí e se afasta, tomando outro gole de
sorvete e sorrindo para si mesma. É estranho pensar na minha
bisavó como uma “mulher radical e livre”, assim como é
estranho pensar que minha mãe teve uma vida antes de mim.
Mas eu amo que Sandy interpretou um homem em Noite de
Reis. Também amo que ela cortejou uma garota, mesmo que
tenha sido apenas atuação no palco.
Não consigo imaginar minha bisavó com dezoito anos. Fico
me perguntando se ela também teve seu coração partido. Será
que ela também era horrível com a mãe dela? Talvez estes sejam
apenas traços herdados e eu não seja uma completa idiota.
— Então, com o que você está trabalhando? Tipo, de
verdade? — Lauren pergunta depois de um minuto de silêncio.
— Eu sei que você foi transferida. A propósito, desculpe pela
coisa dos crudités. Eu mesma vou trazer um prato.
Eu rio e conto a elas tudo sobre o meu estágio – nada demais,
apenas o básico dos peixes extintos.
— Você também está na American? — Eu pergunto a
Tasha.
Ela confirma.
— Sim, mas estou fazendo pós-graduação. Concluí a
faculdade em Moscou, onde cresci.
— Legal — Eu digo, feliz por ser capaz de identificar de
onde era o sotaque.
— Além disso, eu gostaria de me desculpar em nome dessas
duas. — Ela gesticula para Lauren e Beatrice. — Elas são…
inquietas.
Talvez o maior eufemismo dos últimos 350 milhões de anos.
Beatrice ri e se estica por cima da mesa para tentar bater em
Tasha, mas não consegue alcançar.
— Boneca, você precisa se soltar.
— Acho que vocês duas precisam se aquietar — diz Tasha e
todas riem.
Depois disso, como mais da minha sopa de sorvete
escutando Beatrice contar histórias e Lauren tirar sarro dela.
Tasha e eu não falamos muito, mas começo a me sentir
confortável no ambiente, que está quente e aconchegante.
Talvez seja o Baileys, ou talvez seja a aura de Beatrice; ela
envolve todo mundo.
— Bem, eu vou me deitar — Beatrice declara depois de um
tempo. — Não se divirtam muito sem mim, bonecas.
Olho para o relógio — tem uma bandeira italiana no
mostrador — e descubro que são apenas sete horas. Eu estava
imaginando que fosse um pouco mais tarde.
Quando me viro para a mesa, Lauren está inclinada para
frente, sorrindo.
— Ei, Shani, você quer ganhar alguns dólares?
É possível que ela esteja apenas começando a divagar sobre
uma questão filosófica, então eu respondo:
— Claro — Tipo “Claro, quem não gostaria de ganhar
alguns dólares. Com essa economia?”
— Ok, legal — diz ela. — Normalmente eu tenho um
trabalho de passear com cães, mas estou indo para a casa da
família do meu namorado em Houston no Natal e preciso de
alguém para me substituir.
— Ela já tentou me convencer a fazer isso — diz Tasha. —
Mas eu sou alérgica a cães.
— E eu continuo dizendo que você nem precisa tocá-los, só
precisa andar com eles.
— Ok, eu topo — Eu concordo antes que Lauren e Tasha
possam discutir mais sobre isso.
— Sério? — Lauren está surpresa. — Puta merda, eu não
achei que você fosse dizer sim. Você parece tão quieta e
reservada. Quero dizer, agora nem tanto…
É um ponto justo, embora eu esteja feliz que o Baileys e o
sorvete estejam fazendo um pequeno estrago nas vibrações
melancólicas que eu tenho emitido.
Eu quero manter viva essa imagem nova, divertida e não
melancólica, então digo:
— Não, sim, quer dizer, estou feliz em passear com os
cachorros.
— Graças a Deus — ela suspira, aliviada. — Eu prometi a
esse cara semanas atrás que encontraria um substituto, mas
fiquei esperando até o último minuto.
— Estou super feliz em fazer isso — digo a ela. — Quando
devo começar a ir lá passear? Quando você vai embora?
— Hum… — Ela olha para o canto da cozinha e, pela
primeira vez desde que cheguei em casa, vejo a mala gigante
parada ali como uma criança grande de castigo. — Esta noite?
Você pode começar hoje à noite?
— O q-
— Porque você literalmente estaria salvando minha vida se
pudesse.
É sempre bom ser uma salva-vidas.
— Sim, estou dentro.
— Certo, ótimo. Minha heroína! Vou te mandar o endereço
para você saber onde é, mas fica, tipo, a um quarteirão de
distância. — Ela pega o telefone e, enquanto digita, diz: — É
um trabalho muito legal porque o cara é uma celebridade aqui
em DC.
— Sério?
— Oh, sim. — Ela guarda o telefone enquanto eu recebo
uma mensagem com o endereço. — Ele é nosso meteorologista
local. Você conhece Greg Stern? — Eu balanço minha cabeça.
— Você não viu aqueles anúncios nos ônibus? Aqueles que são
tipo, “Greg traz o guarda-chuva para você”, e tem esse cara
segurando um guarda-chuva como se ele estivesse dando-o para
você?
— Oh, não. Eu não vi.
— Bem, é um ótimo anúncio, e todo mundo está obcecado
por Greg.
— Sim, ele é tipo um coroa gostoso que todo mundo quer
pegar — Tasha acrescenta e eu tento não engasgar com minha
própria saliva. Elas ainda não sabem que há aproximadamente
zero coroas gostosos que eu gostaria de pegar.
De qualquer forma, agora estou ainda mais animada para
passear com o cachorro, já que estarei na presença de uma
celebridade local, que é a quantidade exata de celebridades na
cidade.
— Preciso ir lá agora?
— Isso seria incrível. Muito obrigada, de verdade!
— Não tem problema. — Eu lavo meu copo de sorvete
(lembrando da regra de limpar suas próprias bagunças) e saio
de casa.
A casa do endereço acaba sendo outra linda casa de tijolo de
três andares com arbustos cobertos de neve que dão ao lugar
uma sensação agradável de inverno. Há até uma menorá na
janela, o que faz sentido para a casa de um homem chamado
Greg Stern (ainda que a menorá tenha passado da data de
validade para este ano).
Bato na porta, mas ninguém responde, então toco a
campainha. Depois de um minuto, uma luz acende na entrada
principal e o trinco se movimenta.
E então:
— Você deve estar brincando comigo.
É claro que quem abre a porta é a garota que minha mãe e
eu atropelamos. Ela não está usando o gorro vermelho desta
vez, seu cabelo castanho é longo, ondulado e muito espesso,
como se estivesse prestes a engolir sua cabeça. A garota está
vestindo uma blusa preta de gola alta com uma aparência suave
e calça de flanela roxa com o telefone enfiado no cós.
— Ok, sério, que porra é essa? — Ela pergunta, dando
alguns passos para trás. — Você não é a garota que quase me
matou no outro dia?
— Não, eu não…
— Você está aqui para terminar o trabalho?
— Não. — Eu torço meu nariz. — E… tecnicamente, era
minha mãe quem estava ao volante.
Ela revira os olhos.
— Mas você estava no carro.
— Isso não quer dizer que fui eu que pisei no acelerador.
— Você está dizendo que não aconteceu nada já que não foi
culpa sua?
— Isso obviamente não é o que estou dizendo.
Ela me encara por um momento.
— Ok, então, eu vou fechar a porta agora.
— Não! — Eu grito e ela para. — Eu vim, hum… — Respiro
fundo. — Estou aqui para passear com seu cachorro.
— Eu não tenho um cachorro — Ela diz quando algo late
dentro.
— Isso soa como… um cachorro?
Seus olhos varrem o espaço atrás de suas costas.
— Não.
Estou prestes a ir embora e dizer a Lauren que tentei e que
não vai dar certo, quando um homem de meia-idade
extremamente televisionástico – Greg Stern, tenho certeza –
caminha até a porta. Ele está vestindo um terno e uma mochila
elegante e cara.
— Você é a substituta de Lauren? — Ele pergunta, mal
olhando para mim.
— Sim.
— Ótimo, ótimo. — Ele digita algo em seu telefone. — Eu
tenho que correr para o noticiário noturno, mas muito
obrigado por passear com meu garoto. Deixei o dinheiro na
caixa de correio. Você pode simplesmente pegá-lo depois da
caminhada. — Ele desce os degraus e acrescenta: — Além disso,
dê à minha filha seu número de telefone, preciso dele em caso
de emergência. Ok, obrigado, você é ótima. — Ele fala essa
última parte de uma vez só enquanto ainda olha para o telefone.
— Obrigada? — Eu digo enquanto ele destranca seu
pequeno carro cromado e entra. Me viro para a porta depois
que ele vai embora. — Então, devo entrar e pegar o carinha?
— Absolutamente não — diz a filha de Greg, — Eu vou
pegar.
Ela bate a porta na minha cara e vai procurar o cachorro, eu
acho, embora ela possa estar me trancando do lado de fora.
Um minuto depois, ela volta com um corgi gordo atrás dela
e me entrega uma coleira e um saco plástico.
— Acho que você sabe o que fazer?
— Como passear com o cachorro? Sim, tenho certeza de
que sou capaz de descobrir como fazer.
— Você sabe como recolher o cocô e tudo mais? Porque eu
acho que eles fazem isso às vezes.
— Você acha? Você nunca foi passear com um cachorro
antes? Não sabe como se comporta uma criatura viva?
— Eu não gosto de cachorros. E eu, particularmente, não
gosto desse cachorro. — Ela encara o corgi com tanta malícia, o
corgi olha para ela com a língua pendurada e nada além de
amor.
— Isso não responde a minha pergunta — Eu digo. — Além
disso, é grosseiro. Todo mundo gosta de cachorros.
O corgi vagueia para fora, e eu me curvo para acariciar seu
corpo cilíndrico perfeito e amarrá-lo em sua coleira.
Ela suspira.
— Tudo bem, não. Eu nunca passeei com um cachorro e
espero nunca precisar passear. — Ela balança a cabeça. — As
pessoas têm um fascínio tão estranho por essas criaturas, mas
são apenas primos distantes de lobos.
Nós duas estamos olhando para o corgi, que está correndo
em círculos tentando capturar sua bunda branca e fofa.
Eu dou uma olhada na garota.
— Então, só para deixar claro, você tem um cachorro, mas
nunca o levou para passear?
— Não tenho cachorro. Meu pai tem um cachorro. — Ela
começa a fechar a porta mais uma vez, como se tivesse
respondido minha pergunta perfeitamente e esta fosse uma
interação humana satisfatória.
— Espere — eu peço, consigo praticamente ouví-la revirar
seus olhos atrás da porta. Ela abre mais uma vez. — Devo, tipo,
te passar o meu número?
Mesmo que ela seja apenas o canal de transmissão e o
número seja do pai dela, estou nervosa.
Lembro-me de quando passei meu número para Sadie. Eu
inventei uma desculpa maluca, porque eu não queria que ela
soubesse que eu queria que ela tivesse meu telefone. Eu disse a
ela que ela nunca seria capaz de encontrar a orientação de
segurança contra incêndio e enviei as instruções.
Não.
Isso não é para mim. É para o corgi.
— Claro, tudo bem — ela concorda, pegando o celular.
Digo a ela meu número enquanto acaricio o cachorro, cuja
pequena língua escorrega para fora quando lhe dou um bom
carinho atrás das orelhas.
— Esse cachorrinho doce tem um nome? — Eu pergunto,
mais para o cachorro do que para a garota.
— Está escrito na coleira. Você não sabe ler?
— Você não pode me dizer?
Quando ela não diz nada, eu cedo e leio a coleira do
cachorro: Raphael.
— Ei, Raphael — Eu murmuro e ele joga seu corpo
comprido no chão para que eu possa esfregar sua barriga.
Depois de alguns segundos, ele fica de pé e balança sua pequena
bunda de corgi. — Então, o cachorro tem um nome — Digo,
me sentindo ainda mais nervosa. — Você, hum... você tem um?
— Claro.
— E qual seria? — Eu me levanto e agarro a coleira
enquanto Raphael roça minhas panturrilhas. Ele olha para
mim, ansioso para uma caminhada.
— Por que eu deveria te contar?
— Porque estou passeando com o cachorro do seu pai
agora, então vamos nos encontrar de vez em quando. E é isso
que seres humanos decentes fazem.
— Tenho certeza de que seres humanos decentes não
atropelam as pessoas com seus carros — ela me alfineta e eu
reviro os olhos. — E de qualquer maneira, você não me contou
o seu.
— É Shani.
— Legal — responde, então fecha a porta de verdade dessa
vez.
Não consigo nem sentir raiva. Não sei o que é estar perto
dessa garota, mas ainda sinto aquela empolgação que me
percorreu depois que minha mãe e eu a atropelamos.
Eu encaro o corgi.
— Sua irmãzinha é meio malvada — segredo a ele enquanto
faço suas perninhas descerem as escadas e irem para a rua.
Raphael se distrai facilmente enterrando seu focinho doce
na neve até que fique todo branco. Eu pergunto a ele quem é
um bom menino várias vezes (é ele, é ele), e olho para o meu
telefone para ver se já está na hora de voltar.
Há três mensagens de um número desconhecido:

Não mate o cachorro


202-555-8179
👆Veterinário

Então, um minuto depois:

May

E alguns segundos depois disso, mais uma:

Meu nome é May


Por que eu traria um saco de cocô?

Quando acordo com meu despertador na manhã seguinte,


as coisas estão nebulosas. Por um momento, estou convencida
de que ver aquela garota ontem – May – foi um sonho. Mas
tenho certeza que não foi. Tenho certeza que ela me mandou
uma mensagem, me dizendo o nome dela.
Tenho certeza de que ela queria me jogar de bruços na neve
e me deixar lá para morrer.
Pego meu telefone na mesa de cabeceira de Beatrice e
encontro duas mensagens, uma da minha mãe e outra de
Taylor. A mensagem da minha mãe diz: vc precisa de
chinelos? posso 🛒 e 🚚 pra vc! Não quero seus 👣 cheios
de calos.
Levo uns cinco minutos para decifrar a mensagem no meu
estado meio adormecida, mas finalmente percebo que ela está
me perguntando se eu quero chinelos. Mando de volta um não.
Até me lembrar que ela está sozinha, então acrescento
obrigada.
Sim, eu sou a pior.
A mensagem de Taylor é um print de um garoto chamado
Gavin da nossa escola posando com seu bebê recém-nascido e a
mãe do bebê.

TAY: poderia ser você kkkkkk

Eu reajo com uma carinha rindo, mas não adiciono mais


nada, porque ela definitivamente está dormindo a esta hora,
como a maioria das pessoas deveria estar a esta hora durante as
férias de inverno.
Ela mandou: “poderia ser você”, porque Gavin tentou me
convidar para o baile do primeiro ano e, em vez de rejeitá-lo
como um ser humano decente, corri para o banheiro e me
tranquei em uma cabine.
Eu tinha acabado de começar a pensar que havia uma forte
possibilidade de eu não estar interessada em homens, e lá estava
Gavin, tentando renovar esse interesse.
Taylor me seguiu e se trancou na cabine ao lado da minha, e
foi aí que eu saí do armário para ela. No banheiro, olhando para
“CALEB MCMAHON TEM UMA TERCEIRA PERNA”
escrito acima do vaso sanitário. Eu não usei a palavra lésbica
para me descrever até este ano, porém, foi nessa época que
cortei todo o meu cabelo e flertei com o veganismo (eu sei).
Taylor passou a me dizer todas as coisas certas: que ela me
amava, que ela estava orgulhosa de mim e que iríamos para o
baile juntas (platonicamente, é claro). Ela até rejeitou Gavin
por mim.
Isso foi o que eu deixei para trás quando comecei a namorar
Sadie: minha melhor amiga hétero que usou um smoking no
baile depois que eu me assumi para ela no banheiro da escola,
cheio de embalagens de absorventes descartados e fofocas
velhas.
E então ela me aceitou de volta depois do término, sem
perguntas.
O que de alguma forma fez com que eu me sentisse ainda
pior.
Para evitar procrastinar, me visto e vou direto para o Big
Blue Dog.
Sorrio para o garoto, esperando que seja o suficiente para me
dar um café grátis. É, mas depois que ele me entrega a bebida,
ele diz:
— Aqui, seu pedido – espere, acho que não sei seu nome —
De uma maneira que faz parecer que ele esteve praticando essa
linha no espelho a noite toda.
— É Shani — digo a ele —, E você é… — olho para o crachá
dele apenas para encontrar o nome mais não-judeu da história
— Luke. Prazer em conhecê-lo oficialmente. — Eu adiciono a
última parte para realmente personalizar a coisa toda. Quero
ganhar meu café grátis.
— Você também, Shani.
Eu não amo o jeito que ele diz meu nome, como ele tenta
enchê-lo de significado. Tomo meu café e saio rapidamente do
estabelecimento para o ar gelado do inverno.
Quando chego ao museu, vou direto à entrada exclusiva de
funcionários e escaneio meu crachá virado para baixo. Então,
eu tropeço pelo corredor labiríntico na tentativa de encontrar
o laboratório do Dr. Graham.
Depois de pelo menos quinze curvas erradas e
desanimadoras, estou pronta para desistir e ir para casa quando
vejo Mandira andando na direção oposta.
— Mandira! — Eu grito, ela se vira e acena. Eu corro para
alcançá-la até que um homem passando com um jaleco diz:
— Não corra!
— Você está perdida há muito tempo? — Ela pergunta.
— Não, não — Eu minto —, acabei de chegar.
— Perfeito, vamos lá!
Sigo Mandira, grata pela guia.
— Então, você é do primeiro ano? — Ela questiona.
— Sim, são minhas férias de inverno.
— Esta é uma maneira meio selvagem de passar férias.
— Eu concordo.
— Você mora por aqui?
— Não, eu sou de Nova York.
— Sua faculdade é aqui?
— Não, a faculdade também é em Nova York.
— Então, você veio apenas para o estágio? Você não tinha
outro lugar para estar? — Então ela olha para mim e diz: —
Desculpe, isso foi um pouco rude – eu não quis dizer… É que
as pessoas que fazem este estágio geralmente são daqui para que
possam estar com a família nas férias.
— Eu não celebro o Natal, então está tudo bem.
— Sim, eu também não — diz ela —, mas ainda é bom estar
perto da família.
Por que o mundo inteiro acha que eu não estou bem? Que
preciso estar cercada de pessoas para ser feliz? Quero dizer a
todos que as coisas estão ótimas mesmo estando sozinha. Que
elas são melhores assim.
— Desculpe, isso foi meio chato da minha parte — Mandira
fala depois de um minuto. Eu quero dizer a ela que não foi, mas
ela acrescenta — Não se preocupe, vou manter as coisas festivas
no laboratório. Talvez colocar um chapéu de Papai Noel em
um dos peixes. Isso pode ser divertido, você não acha?
— Sim — Eu concordo porque, honestamente, seria.
Quando chegamos ao laboratório, Mandira informa:
— Dr. Graham já está aqui, então vou checar com ele e ver
se há algo em particular que ele precisa que façamos hoje.
— Ok.
Enquanto ela faz isso, eu ando ao redor do laboratório. Há
alguns posters de pesquisas dos últimos anos, um com o nome
de Mandira e outro com os nomes de alunos de pós-graduação.
Um dos posters é de um artigo que analisa como os nascidos
vivos evoluíram em celacantos vivos estudando fósseis. O outro
é sobre a locomoção dos celacantos – aparentemente, os
enormes tolos escamosos ficavam plantando bananeira em vez
de nadar – e o que ela pode nos dizer sobre a evolução da
caminhada em animais terrestres. Absolutamente selvagem.
Ainda não consigo acreditar que estou aqui e em como isso
é emocionante. Eu pensei que a paleo-ictiologia seria muito
mais intensa, mas gosto que seja principalmente limpar peixes
e fazer companhia à Mandira.
— Ele só quer que façamos mais um trabalho de preparação
hoje. — diz Mandira quando sai do pequeno escritório do Dr.
Graham. — Podemos colocar música ou algo assim.
— Legal.
— Alguma preferência?
— Não, na verdade. — Eu digo a ela, as mãos enfiadas nos
bolsos do meu jeans do departamento masculino.
— Você ficaria brava se eu colocasse música de Natal?
Eu sorrio.
— De jeito nenhum.
Mandira coloca “Jingle Bell Rock” e conversamos um
pouco enquanto limpamos os fósseis. Ela me conta sobre o que
estudou na graduação e que escolheu essa bolsa porque queria
estar mais perto de sua namorada, que mora na Virgínia.
Não estou nem um pouco surpresa que Mandira seja
lésbica, porque ela é incrivelmente legal, tem cabelo curto, usa
blusa de botões e tem uma tatuagem de mamute. Não que
alguma dessas coisas signifique que alguém tem que ser queer,
mas juntas elas são um bom indicador.
Enquanto isso, estou aqui parecendo uma bagunça no meu
moletom preto e jeans, meu cabelo sendo o que quiser. Alguns
meses atrás, eu considerei seriamente fazer um undercut
porque Sadie disse que ficaria bom, mas isso nunca aconteceu
enquanto estávamos juntas, e eu obviamente não vou fazer um
agora que estamos separadas. Mas, no mínimo, provavelmente
tornaria mais óbvio para as pessoas que sou queer, em vez de
apenas desgrenhada, que é o que meu visual atual está
projetando para o mundo.
— Quer almoçar? — Mandira pergunta depois de um
tempo limpando, conversando e cantarolando músicas de
Natal.
— Definitivamente. — Eu respondo a ela.
— Há alguns bons carrinhos de comida lá fora. Há halal,
hambúrgueres e tacos. E às vezes há um caminhão de queijo
quente que deixa as pessoas daqui meio loucas, inclusive eu,
obviamente. Eu não posso nem dizer o quão intolerante à
lactose eu sou, mas eu nunca deixaria isso me parar.
— Claro que não — concordo, porque eu, como quase
todos os outros judeus Ashkenazi4 do planeta, sou
profundamente intolerante à lactose, mas nunca vou admitir
isso para mim mesma.

4
Indivíduos descendentes das comunidades judaicas medievais da Alemanha.
Ela me leva para fora (eu presto atenção extra ao caminho
desta vez), e quando saímos do museu há um quarteirão inteiro
de carrinhos e caminhões de comida para escolher.
— Oh, porra, sim — diz ela, me levando em direção a uma
caminhonete vermelha e amarela. — Hora do queijo quente.
Esperamos na fila e, quando chegamos à frente, ela se
oferece para pagar.
— Não diga não. É o mínimo que posso fazer por uma
estagiária.
Eu não digo não (quem recusaria queijo quente de graça?)
mas agradeço a ela, e comemos nossos sanduíches sentadas nos
degraus frios e molhados que levam ao museu. É bom respirar
ar fresco que não seja do laboratório, mesmo que esteja
congelando. E os queijos quentes fazem jus ao hype.
— Há quanto tempo você trabalha no laboratório? — Eu
pergunto a Mandira depois de limpar uma quantidade
embaraçosa de queijo do meu rosto.
— Cerca de um ano — ela responde. — Honestamente, me
inscrevi em um laboratório diferente, mas Graham foi quem
me fez vir para cá. — Eu não sei o que dizer sobre isso, porque
eu doaria um rim para o Dr. Graham sem ele pedir, ela deve ver
isso no meu rosto porque acrescenta: — Estou super feliz que
ele tenha me feito vir para cá, no entanto, porque sua pesquisa
é incrível. E ele realmente se preocupa com a paleo-ictiologia
não sendo inteiramente dominada por homens brancos.
— Sim, ele é tão legal. — Eu digo. — Você viu a palestra dele
no TED?
— Ah, claro. Foi a primeira coisa que assisti quando cheguei
aqui... “A Terra não foi feita para você, e somos todos peixes…”
— “Lide com isso!” — Eu termino a citação para ela, aquela
em que sua conversa termina. — Ele é, tipo, meu ídolo.
— Ele é completamente diferente quando você o conhece,
no entanto. Diferente do cara do TED Talk, pelo menos — ela
comenta. — Tipo, ele é ótimo e tão, tão inteligente, é claro, mas
acho que ele provavelmente é um pouco solitário. Eu posso
estar projetando, mas ele está no trabalho o tempo todo. Ele não
tem esposa, filhos ou mesmo um cachorro. — Ela dá uma
mordida no queijo quente. — É bom ter pessoas para admirar,
mas talvez não o idolatrar.
Eu não conto a ela que é tarde demais. Que tudo na minha
vida parece ser tudo ou nada, e eu preciso que o laboratório e o
Dr. Graham sejam tudo, porque agora muito não é nada.
Trocamos de assunto e conversamos sobre qual filme feito
para a TV, Dinoshark ou Piranhaconda, é mais realista.
(Decidimos pela Piranhaconda, porque pelo menos esses dois
animais ainda estão vivos hoje.)
Depois disso, o resto da tarde passa tão rápido quanto
ontem, e estou triste por deixar Mandira e os peixes no final do
dia.
Mas eu tenho que ir para a casa de Greg/May/Raphael
Stern. Então, agradeço a Mandira novamente e sigo para o
metrô.
Eu chego ao meu bairro em tempo recorde, estou pronta
para ver o rabo abanando de Raphael e as orelhas de corgi
triangulares perfeitas – mesmo que isso signifique encontrar
com May – quando ouço algo dentro da casa que me impede
de bater.
Parecia uma sequência de gritos.
Uma parte de mim, que tem medo de confronto, quer sair e
voltar quando a gritaria terminar. Mas a outra parte que precisa
saber o que está acontecendo me diz para ficar e escutar.
Depois de um momento de debate entre essas duas partes de
mim, a última vence por uma vitória esmagadora, prendo a
respiração e me coloco contra a porta para ouvir.
A voz de um homem, Greg, diz:
— Isso é realmente muito ruim, porque não está em
discussão.
A voz de May:
— Você não se importou no ano passado!
Greg:
— Sim, porque sua mãe ficou com a sua guarda nos feriados
do ano passado.
May:
— Você mal tem a minha guarda agora! Você está no
trabalho o tempo todo, porra...
Greg:
— Não me xingue.
May:
— O tempo todo! Não importa se você tem a custódia se eu
nunca te vejo!
Greg:
— Não é assim que a custódia funciona. Significa apenas
que você precisa estar aqui.
May:
— Então de repente você é especialista sobre isso?
Greg:
— Sobre isso? Sim. Eu sou seu pai, eu que dito as regras.
May:
— Você percebe o quão estúpido você parece agora? “Eu
que dito as regras”. Você acha que está discutindo com uma
criança de cinco anos? Tipo, eu não entendo.
Greg: (grunhido frustrado)
— Este é o acordo que sua mãe e eu temos. Se você não gosta
disso, fale com ela.
May:
— Eu literalmente tentei. Eu disse a ela um milhão de vezes
que quero ficar na casa dela.
Greg:
— Bem, você “literalmente” não pode ficar lá. Você está
aqui para as férias.
May:
— Estou na faculdade. Farei dezoito na semana que vem.
Como isso é justo?
Passos pesados se aproximam da porta da frente e eu não sei
o que fazer, porque se eu me mexer eles vão me ver, e se eu ficar
aqui eles vão saber que eu estava ouvindo.
Eu não me movo.
E a porta não abre. Ainda.
May:
— Assim que eu fizer dezoito anos, vou voltar para a casa da
mamãe. Só vou pegar um ônibus e ir embora.
Greg:
— E é você que está me chamando de infantil? Você vai
fugir de casa como quando era criança?
May:
— Não posso fazer isso agora. (passos.)
Greg:
— Tudo bem. Faça o que você quiser. Eu não vou impedi-
la.
May:
— Mas é exatamente isso que você está fazendo, caralho.
Greg:
— Olha a língua.
Então uma terceira voz entra na conversa
Raphael:
— Au. Au au au…
Greg:
— Raph, shh, por favor. Querido, por favor.
May:
— Certo, ótimo. — (tom de deboche) — Você se importa
mais com a porra do cachorro do que comigo.
Aqui há uma pausa, e eu ainda não sei o que fazer. Estou
congelada na varanda, presa contra a porta. Eu sei que é errado
ouvir esse pai e filha que eu mal conheço brigarem um com o
outro por algo tão grande. Mas não consigo me mexer.
Depois de um minuto, Greg diz:
— Você sabe que isso não é verdade.
Então May responde:
— Tanto faz.
E, então, acabou.
Se eu fosse May, ficaria mortificada se soubesse que alguém
ouviu aquela briga. Claro, eu sou uma vadia com minha mãe,
mas eu nunca seria uma vadia com ela na frente de outras
pessoas.
Eu não sei como é brigar por custódia com um pai – eu não
tenho um, minha mãe me teve de um doador de esperma – mas
eu sei como é se sentir impotente. Como é sentir que você não
tem controle sobre a própria vida.
Então, em vez de bater na porta imediatamente e fingir que
está tudo bem, desço o caminho o mais silenciosamente que
posso, esperando chegar à calçada sem ser notada. Eu vou
refazer o caminho até a porta, ninguém vai precisar saber que
eu ouvi alguma coisa.
— Aonde você está indo?
Eu me viro, e lá está May. Sua silhueta está na entrada, e eu
não tenho ideia do que fazer. Ela fecha a porta e sai. Um
Raphael sem coleira está alegremente saltando em seus
calcanhares, sem saber das coisas ruins que já aconteceram no
mundo.
Eu corro para agarrá-lo antes que ele leve sua pequena
bunda de corgi diretamente ao trânsito.
— Você tem a coleira dele?
— Não.
— Essa é uma parte importante do passeio com cães. — Eu
ajusto Raphael em meus braços e ele se contorce um pouco,
então se acomoda. Segurá-lo é como carregar um pão muito
denso com pernas.
— Bem, nós vamos ter que ficar sem isso, então — May diz
enquanto caminha na minha frente em direção à calçada.
Nosso caminho é iluminado apenas por algumas luzes fracas
da rua, então dou passos com cuidado enquanto corro para
acompanhá-la. Eu também estou tentando não sacudir muito
Raphael – embora ele pareça estar se divertindo, ou pelo menos
não tem ideia do que está acontecendo. Eu me identifico com
ele.
Sem olhar para mim, May pergunta:
— Você ouviu alguma coisa daquilo?
— Hum…
Isso deve ser resposta suficiente, porque ela exclama
— Inferno.
— Não, não. Está bem. Ou... desculpa?
Chegamos a um pequeno parque - é literalmente apenas um
banco - e eu coloco Raphael no chão para que ele possa pelo
menos esticar as pernas dormentes.
— Você realmente continua aparecendo nos piores
momentos.
— Sinto muito. — Eu digo novamente, e não é uma
pergunta.
Nenhuma de nós diz nada por um minuto. Raphael salta ao
redor do banco, e não tenho ideia de como preencher o silêncio
- é muito mais fácil falar quando estamos discutindo. Mas acho
que ela conseguiu discutir o suficiente durante a briga com o
pai.
Finalmente, eu tomo a iniciativa:
— Então, você é judia? — Eu sei que é bobo no momento
em que digo, mas não é como se ela estivesse oferecendo alguma
coisa.
— É isso que você está me perguntando agora?
— Eu também... bem, talvez você não, mas eu... acabei de
ver a menorá na sua janela e fiquei curiosa. Eu pensei que
talvez…
— Sim, eu sou. Mas não sou tão religiosa assim. Meu pai
acabou por pegar qualquer decoração de merda de feriado que
ele pudesse encontrar para tentar aconchegar o lugar enquanto
eu estou com ele.
Eu acho que já que ela sabe que eu ouvi a briga com o pai
dela, eu deveria dizer algo de apoio.
— Ah, isso é péssimo. Dane-se o Hanukkah, certo?
Ela me encara.
— O quê?
— Porque é, tipo, um feriado corporativo? E seu pai está
comprando com os senhores corporativos?
— O quê? Não! — diz ela. — Você está brincando comigo?
Hanukkah é incrível. Eu amo.
— Você adora o fato de termos transformado um feriado
sem religião em um grande negócio apenas para que possamos
nos encaixar — quase falo da hegemonia cristã, mas penso
melhor — em toda a temporada de férias de inverno?
— Eu amo o fato de que basicamente temos um novo
feriado porque as crianças judias da América ficaram tristes
com o Natal. Eu amo que é um grande negócio. — Ela está
ficando mais animada agora e gesticula com todo o seu corpo
enquanto continua: — E é tudo uma questão de marketing. O
Hanukkah é incrível. Tipo, todo mundo sabe sobre o
Hanukkah, o que você definitivamente não pode dizer sobre
nenhum outro feriado judaico. — Ela cruza os braços sobre o
estômago e olha para os últimos resquícios de neve. — Além
disso, eu realmente amo aqueles bolinhos de batata.
— Bem, eu também, obviamente.
E, como se ele quisesse fazer parte da conversa também,
Raphael trota até mim, olha diretamente nos meus olhos e caga.
— Sério? — Eu pergunto a Raphael, que agora está
abanando a protuberância. Eu recorro a May. — Você tem um
saco de cocô?
— Por que eu teria um saco de cocô?
— Nós não falamos sobre isso ontem?
— Eu nem trouxe uma coleira, por que eu traria um saco de
cocô?
— Não sei. — Eu me curvo para inspecionar o presente de
Raphael. — Mas eu preciso de um. Acho que é ilegal deixar
cocô de cachorro no chão.
— Como você poderia conhecer as leis de merda de
cachorro de DC?
— Não sei! — Eu falo novamente, um pouco alto demais.
Raphael late.
Então, May declara baixinho
— Eu não posso ir para casa para pegar um agora — E eu me
sinto estranha por perguntar sobre o saco de cocô em primeiro
lugar.
Assim, o cocô fica no chão.
Depois de um minuto:
— Posso perguntar o que aconteceu?
— Sem ofensa, mas eu não vou falar com você sobre isso. —
Ela olha para Raphael como se estivesse pensando em acariciá-
lo, então pensa melhor. — Só porque você ouviu algo que não
deveria, não significa que eu tenha que lhe dizer alguma coisa.
— Justo — Eu afirmo, me sentindo um pouco magoada. O
que é bobo. Não é como se eu pensasse que éramos amigas só
porque ela quase voluntariamente veio nesta caminhada.
Mas pensei que pelo menos haveria algum tipo de trégua.
— Eu não quero estar aqui, sabe… — May confessa depois
de mais um minuto de Raphael se aproximando.
— Você deixou isso bem claro.
— Em DC, quero dizer. — Ela encontra meus olhos, e eu
percebo que ela pode realmente estar respondendo à minha
pergunta sobre o que aconteceu (no seu jeito estranho e
indireto), então eu calo a boca. — Eu não moro aqui. Eu venho
visitá-lo, às vezes. É por isso que eu mal conheço esse cachorro,
ou esse bairro. Geralmente moro com minha mãe.
— Oh — Eu digo, me sentindo um pouco pior, porque ela
quer estar com a mãe dela nos feriados, mas está sendo forçada
a ficar aqui, e eu estou escolhendo ficar aqui quando eu poderia
estar com minha mãe.
— Pois é.
Um carro passa, e Raphael quase corre para a rua para
persegui-lo, então eu o pego novamente.
— Então, apenas retomando o assunto - sem sacos de cocô?
— É natural. Deixe-o aí.
— É falta de educação deixá-lo aqui.
— Você quer pegá-lo com as mãos?
Eu olho para uma pilha surpreendentemente grande de
cocô. Talvez eu volte amanhã.
Carrego Raphael até a casa de May. São apenas alguns
quarteirões, mas ele fica pesado rápido demais. May e eu não
dizemos nada uma a outra, mas quando eu gentilmente deixo o
filhote na frente da porta de May, ela diz:
— Obrigada.
Eu não sei pelo quê ela está me agradecendo, muito menos
que ela era capaz de agradecer, então eu apenas respondo:
— Não tem de quê.
— Mas não espere que eu vá com você amanhã.
E com esse retorno à normalidade, ela conduz Raphael para
dentro e bate a porta.
Salão do Sofrimento Humano

Na primeira sexta-feira do meu estágio, decido tirar um


tempinho para mim mesma e passar meu horário de almoço
vagando sem rumo pelo museu.
Quando volto ao laboratório, Mandira está com sua
jaqueta.
— Por que não tomamos café?
— Acabei de voltar do almoço.
— Bem, eu preciso de café. Então, venha comigo
Eu não discuto, e Mandira nos leva a um Starbucks
próximo.
— Como foi sua primeira semana em DC? — Ela pergunta
quando estamos do lado de fora.
— Muito estranha — Eu respondo, então imediatamente
tento corrigir essa afirmação. — Não por causa do laboratório,
no entanto. Isso tem sido ótimo. A melhor parte, na verdade.
— O que está acontecendo, então?
De todos que conheço em DC, que, neste momento são
Mandira, minhas colegas de casa, uma mulher de 96 anos com
um potencial problema com a bebida, um barista adolescente,
um meteorologista, seu corgi e uma garota que me odeia —
sinto que Mandira é a pessoa em quem mais posso confiar.
E, claro, talvez isso seja um pouco patético.
Apague isso: é definitivamente patético que minha amiga
mais próxima na capital do nosso país também seja meio que
minha chefe. Mas estou cansada de manter as coisas para mim
mesma.
— Eu te disse que minha mãe e eu quase atropelamos uma
garota com nosso carro quando ela estava vindo me deixar?
— Espere, é sério?
Chegamos ao Starbucks e é um pesadelo com cheiro de
menta.
— Sim — Eu digo, continuando a história uma vez que
Mandira e eu estamos na fila —, estava nevando muito e a
garota surgiu do nada. Ela estava apenas dando uma caminhada
ou algo assim. Foi bem assustador. Tipo, nós poderíamos tê-la
matado.
— Ela está bem?
— Ah, sim — Eu afirmo, então acrescento à minha
declaração — Bem, ela estava com raiva, mas está bem.
— Isso é bom.
— Sim, mas quer saber algo interessante?
— É claro.
A fila mal se move, todos os empresários de terno de DC
batem os pés enquanto os turistas seguram a fila debatendo se
devem comprar a edição limitada de canecas “DC at
Christmas” ou um CD de Alanis Morissette de décadas.
— Outro dia, a menina que mora comigo me perguntou se
eu poderia assumir seu trabalho de passear com cães e adivinhe
com qual cachorro eu estou passeando?
— O da garota que você quase atropelou? — Mandira
pergunta, parecendo apropriadamente chocada.
— Sim. May. É o nome dela.
Mandira sorri um pouco, começa a dizer alguma coisa,
depois para. Após alguns segundos, ela tenta novamente:
— Isso honestamente parece o começo de um filme da
Hallmark5.
— O quê? Não. — Absolutamente não. — É apenas
estranho, certo?
— Sim, definitivamente estranho.
A conversa para logo depois disso, quando nos
aproximamos da frente da fila.
Eu não deveria ter mencionado isso, em primeiro lugar.
Mas não posso falar sobre isso com mais ninguém. Eu não
quero contar a Taylor, porque ela vai fazer disso uma coisa. Ela
tentará procurar May no Instagram ou encontrará algum vídeo
antigo estranho do YouTube, mas encantador, de uma tarefa
que May teve que fazer para a aula de espanhol ou francês no

5
O Hallmark Channel é um canal de televisão dos Estados Unidos, com
transmissão para mais de 100 países, focado em séries e filmes apropriados para a
família.
ensino médio ou algo hediondo assim. E eu não consigo lidar
com isso agora.
— Tudo bem, você precisa me ajudar a fazer um
brainstorming — diz Mandira.
— Ok. Como funciona? — Eu pergunto, grata por um
novo tópico de conversa.
— Eu tenho uma piada interna com o Dr. Graham – bem,
é engraçada para mim, de qualquer maneira – mas a piada é que
eu gosto de comprar para ele a bebida mais doce e ultrajante do
cardápio. E ele sempre bebe, não importa o que eu compre.
Tento imaginar o sério paleo-ictiólogo Dr. Charles Graham
tomando uma mocha de menta. É, de fato, hilário.
— O que devemos comprar para ele?
— Talvez uma bebida de natal.
— Obviamente — Eu falo, entrando na onda.
— E tem que ser gigante.
— Um copo família, com certeza.
— Gênia. — diz Mandira.
— Que tal — aponto para uma placa mostrando os sabores
do feriado deste ano —, um latte brûlée de caramelo?
— Ah, ele não vai saber o que fazer com isso. — Ela diz. —
É perfeito.
Um barista alegre nos atende e Mandira faz o pedido.
Quando o barista pergunta se queremos chantilly, Mandira
olha para mim, acena com a cabeça solenemente e confirma:
— Com certeza.
Saímos do Starbucks segurando dois cafés normais e uma
bebida extravagante que é maior que uma criança pequena.
Eu não posso deixar de rir. Não só por causa da bebida, mas
também porque há uma semana eu achava que minha vida
tinha acabado e agora estou levando café com leite
excessivamente doce para um cientista premiado que está
preparando espécimes que sobreviveram milhões de anos a
mais do que vivi com o coração partido.
Mesmo que o museu esteja a apenas alguns quarteirões de
distância, levamos nosso tempo andando de volta. Depois de
um minuto, Mandira questiona:
— Então, posso te contar uma coisa meio engraçada?
— Sim. — Eu concordo. Porque é claro que eu quero que
Mandira me diga algo engraçado. Toda vez que conheci uma
pessoa queer legal e mais velha, fiquei desesperada para que ela
fosse minha amiga, ela não é exceção.
— De volta ao que você estava dizendo sobre aquela garota.
— Quando ela diz isso, eu tenho um pensamento como: Que
bom, voltamos a falar de mim. Eu odeio isso, mas que seja. —
Quando conheci minha namorada, estávamos em um bar e ela
gritou comigo por furar a fila na frente dela. Mas começamos a
conversar e eu comprei uma bebida para ela, então nos demos
bem. — Ela faz essa coisa de exalar, bufar e rir. — Ainda
brincamos sobre isso porque ela disse tantas coisas loucas
enquanto gritava. Sempre que saímos, ainda a citamos. Nós
ficamos tipo, “Você passou na minha frente para uma Shirley
Temple eriçada?” — E então Mandira ri de verdade, e eu dou
risada fracamente junto com ela.
Claro que Mandira é legal o suficiente para fazer uma garota
ir de gritar com ela para flertar.
Quando ela não diz mais nada, parece um convite para falar
sobre May, o que, tudo bem, talvez seja um impulso egoísta,
mas quero conversar com Mandira sobre ela. Eu preciso que
Mandira saiba que eu sou queer e que sou legal, adjetivos que
caminham de mãos dadas, obviamente.
— Não é realmente como um filme da Hallmark – a coisa
com aquela garota. Com May.
— Hm? — Pergunta Mandira.
— Sim, eu meio que acabei de terminar um relacionamento.
— Então, conto a Mandira sobre Sadie, sobre ter me
apaixonado por ela e como eu tinha planejado nosso casamento
e todos os bebês gays que teríamos.
Depois que eu conto a história e estamos de volta ao
laboratório, Mandira diz:
— Então, por que você terminou, se não se importa que eu
pergunte? Parece que as coisas estavam muito boas.
Isso deixa meu rosto em chamas.
Sempre que falo sobre Sadie, não posso deixar de encobrir
as partes ruins.
Eu não contei o verdadeiro motivo do nosso rompimento
em voz alta para ninguém. E não é uma coisa apropriada para
dizer à pessoa que é tecnicamente minha chefe direta.
Eu tento contornar o verdadeiro motivo, mas no final das
contas, preciso contar a Mandira pelo menos parte da verdade
ou vou explodir.
— Foi tipo — Eu paro e abaixo minha voz antes de dizer a
última parte, caso o Dr. Graham esteja ouvindo —, uma coisa
de sexo.
Mandira sorri, e eu quero morrer. Ela deve ver o olhar no
meu rosto porque ela diz:
— Desculpe! Desculpe. Mas ela terminou com você por
causa de sexo?
Ela está claramente tentando não rir.
Eu olho ao redor da sala, rezando para que ninguém esteja
andando diretamente do lado de fora da porta, ou se aparece
alguém para me salvar desse constrangimento mortal.
— Não é uma coisa de sexo. Apenas, tipo, sexo… eu
provavelmente não deveria falar sobre isso. Eu nem sei por que
eu trouxe isso à tona. — Então, acrescento: — Sou a pior
estagiária de todos os tempos — para completar.
— Não, a pior estagiária de todos os tempos se sentou em
seu telefone e peidou 100 vezes todos os dias. — Mandira para
de limpar e olha para mim. — Não precisamos falar sobre isso
– certamente não deveríamos falar sobre isso – mas deixe-me
dizer uma coisa: sexo pode ser incrível. Principalmente sexo
gay. E especialmente se você comunicar sobre desejos com seu
parceiro.
Meu rosto está tão quente que minha pele e meus músculos
estão queimando e logo serei um esqueleto para o museu exibir
no Salão do Sofrimento Humano.
— Por favor, não me denuncie por falar com você sobre isso
— Mandira pede, e parece que ela está meio brincando.
— O mesmo — Eu digo. Depois: — Podemos não falar mais
sobre isso?
Trabalhamos em um silêncio constrangedor por alguns
minutos, até que Mandira fala:
— Música de Natal?
E eu concordo:
— Sim, por favor.

Acordo com uma mancha quente de sol vinda de uma grande


janela empoeirada banhando meu rosto.
Ah, merda!
Eu pulo da cama. Estou atrasada para o trabalho. Merda,
merda, merda. Eu acordei antes do sol todos os dias esta
semana, mas agora vou me atrasar e Mandira vai ficar
desapontada, o Dr. Graham vai suspirar e continuar lavando
fósseis com sua escova de dentes e os dois vão pensar em como
deveriam ter contratado uma estagiária pontual e ainda por
cima meu cérebro perturbado por Sadie tornou as coisas muito
estranhas com Mandira para que eu pudesse voltar.
Então eu verifico meu telefone.
…É sábado.
Eu estava planejando acordar cedo e passar o dia sozinha
vagando por DC, mas a parte de acordar cedo claramente não
funcionou muito bem. Eu me visto para que eu possa começar
bem a segunda parte.
Até que eu ouço conversas, música e risos lá embaixo. Não
é estranho que tenhamos visitas – elas aparecem o tempo todo
para ver Beatrice. Mas não quero vê-las. Uma coisa é encher
minha garrafa de água na cozinha de manhã antes do trabalho,
quando a casa está quieta, mas outra coisa é participar de uma
reunião de sábado de manhã.
Pego minha jaqueta, mochila e tento fugir. Uma música de
Ella Fitzgerald está tocando, que acho que deveria abafar a
abertura da porta. Eu estico minha mão para agarrar a
maçaneta, a centímetros da fuga…
— Boneca!
Eu me viro e lá está Beatrice, cerca de doze metros abaixo de
mim.
— Oi — Eu cumprimento. Então, rapidamente, com a mão
ainda na porta: — Eu não queria incomodar, então vou sair.
—Absurdo! — Beatriz diz. — Fique, fique. — Ela agarra
minha cintura e me puxa para a multidão. Há pessoas de todas
as idades espalhadas por toda a sala e cozinha, todas segurando
uma bebida ou um prato de lanche ou, se forem
profundamente selvagens, ambos.
Acabamos ficando entre um toca-discos legal e vintage e um
homem baixinho que provavelmente está na casa dos setenta.
— George — diz o homem com a voz áspera de um
fumante. Ele estende a mão para eu apertar.
Eu ofereço a minha também.
— Shani.
— Ele é meu bebê. — Beatrice aperta minha cintura e o
braço dele que não treme ao mesmo tempo. — O nanico da
ninhada.
Eu encaro o homem por um tempo demais. Este idoso é o
filho mais novo de Beatrice? Minha mente está confusa.
— Boneca, você pode fazer a social para George por um
tempo, não é? Vou falar com meu bisneto. — Ela solta minha
cintura. — Tony me deve trinta dólares.
— Então. — George começa assim que Beatrice sai. — Você
está dormindo no quarto da mamãe e do papai, certo?
Meus olhos se arregalam.
— Ah, hum, sim — E então, é claro, sou atingida por um
desagradável caso de diarreia verbal. — É fantástico. Super
confortável. Muito… caseiro. Você sabe?
George me ignora, felizmente.
— Nosso pai assombra aquele quarto, minha mãe te
contou?
É possível que eu tenha entendido errado, então pergunto:
— Ele faz o quê com o quarto?
— Assombra, garota. Ele o assombra. — George ri como se
fosse uma piada maravilhosa que o fantasma de seu pai morto
esteja me vendo dormir na cama onde George foi concebido.
— Bem, com licença, vou para o quarto dos meninos — diz
George, começando a abrir a fivela do cinto sem cerimônia.
E então eu me retiro também, feliz pela desculpa.
Quando saio, tudo está quieto, mudo. Eu me sinto livre.
Ninguém além de mim sabe para onde estou indo. E agora
que fugi, tenho um dia inteiro para fazer o que quiser. Eu
poderia andar por toda a DC, ou poderia me sentar em uma
livraria e ler por oito horas. Ninguém se importaria de qualquer
maneira.
Estive no museu de história natural todos os dias desta
semana, então acho que deveria me aventurar e ir para um
diferente. Todos os museus Smithsonian são gratuitos, e quero
ver o máximo que puder antes de voltar para a faculdade.
Antes de pegar o metrô, olho dentro do Big Blue Dog para
ver se meu garoto Luke está lá – ganhei um latte grátis dele
ontem de manhã, o que foi um grande feito – mas ele não está.
Então eu pulo o café e entro no transporte. Eu não faço
baldeações como tenho feito durante a semana e, em vez disso,
vou direto para o centro da cidade até a parada Gallery Place-
Chinatown, porque “Gallery Place” soa como um nome de
museu.
As escadas rolantes da Gallery Place são tão
assustadoramente altas quanto as das outras paradas, é como
um túnel de vento enquanto tento sair. Não sei o porquê, mas
todas as estações do metrô de DC têm vendavais de nível de
furacão tentando impedir que você chegue à rua.
No final, chego à superfície, mas a visão que meus olhos
contemplam me faz desejar que o vento me arraste de volta para
o submundo.
Eu escapei de uma festa de Natal, mas de alguma forma,
aterrissei bem no meio de outra.
Bem, não é tanto uma festa, é como um mercado de Natal.
Há luzes de cordas e bastões de doces de plástico enormes
pendurados acima de pequenas lojas em tendas listradas de
vermelho e branco. Os vendedores estão todos usando chapéus
de Papai Noel e sorrisos assustadoramente grandes.
Eu não sei o que é que tem nas semanas que antecedem o
Natal para as pessoas usarem chapéus de Papai Noel. Isso não é
confuso para as crianças? Talvez seja como as damas de honra,
que costumavam usar vestidos brancos e ficar ao redor da noiva
para afastar os maus espíritos que queriam sequestrá-la. Usar
chapéus de Papai Noel afasta o Papai Noel? Tipo, o cara é bem
assustador. Ele entra e sai, e também pode, de alguma forma,
olhar dentro de uma casa e saber se há uma criança cristã ou se
há apenas outra criança que não merece seu amor e presentes (e
crimes).
Enfim, localizo o museu, um grande edifício quadrado bege,
mas parece que a única maneira de chegar à entrada da frente é
através do mercado.
Então, eu entro na guerra.
Há uma banda montada sob uma das barracas dos
vendedores; é composta por quatro caras brancos de meia-
idade fazendo covers ruins de músicas de Natal. Paro e observo
por um minuto enquanto o baterista bate suas baquetas, então
eles começam em “Good King Wenceslas”. É a pior coisa que
já ouvi.
Uma vez que eles terminaram de massacrar a música, o
vocalista grita em um microfone de feedback:
— Nós somos os Elfos Malandros! Obrigado pelo seu
tempo e FELIZ NATAL.
Eles não recebem resposta, exceto por um homem
visivelmente embriagado andando com o que é claramente
uma cerveja embrulhada em um saco de papel marrom. Ele
assobia e grita “WOOOOO” a plenos pulmões.
Continuo andando, mas paro quando sinto o cheiro de algo
frito e maravilhoso. Há uma barraca com um cara vendendo
donuts polvilhados e bebidas quentes, o que compensa
imediatamente os Elfos Malandros.
Quando chego à frente da fila, a pessoa que está no estande
mal olha para cima e diz:
— E o que posso fazer por você, jovem?
Sorrio e peço rosquinhas cobertas de pó e chai. Ele
responde:
— Sim, senhor. — Ainda sem olhar para mim.
Isso acontece às vezes, ainda mais quando meu cabelo está
um pouco mais curto. Se alguém olhar para mim por um
momento, pode pensar que sou um menino pré-adolescente.
Ou podem olhar e ver que sou uma lésbica de dezoito anos. É
como a ilusão de ótica coelho/pato. É tudo questão de
perspectiva.
— Aqui está — O homem diz enquanto me entrega um saco
cheio de donuts e um copo de papel fumegante de chai. Ele faz
uma pausa e olha para mim, e eu vejo as engrenagens girando
em sua cabeça quando ele começa a perceber que eu posso não
ser o senhor que ele cumprimentou.
Essa é a minha deixa para agradecê-lo e subir as escadas até o
museu. De um lado há uma placa que diz “Museu Americano
Smithsonian de Arte” e do outro há uma que diz “Galeria
Nacional de Retratos”. É como uma experiência de museu dois
em um, embora seja de graça, o que é música para meus ouvidos
baratos e pobres.
— Sem comidas no museu — Um guarda grita antes de eu
passar completamente pela porta. — Você vai para o pátio?
— Hm, sim — Eu afirmo. Ele acena com a cabeça,
apontando para uma entrada depois do balcão de informações.
Abro um conjunto de portas de vidro elegantes e, quando
entro no pátio, estou em outro mundo. É enorme e quente,
com um teto de vidro gigante que deve estar a 20 metros de
altura, sustentado por belas e antigas paredes do museu nos
quatro lados. É como estar ao ar livre, mas sem o frio. Há
árvores e poinsétias e fontes e mesas e famílias, mas não parece
lotado como o mercado de Natal. O espaço é tão grande que,
mesmo com todas as pessoas, ainda parece meio vazio.
Eu tiro minha jaqueta e olho para o teto de vidro ondulado
e o céu de inverno acima. Estou feliz por não ter compromissos
enquanto ando por aí e derrubo açúcar em pó em todas as
minhas roupas, depois mergulho os donuts no chai quente.
Há uma área um pouco afastada com um banco de
mármore na frente de algumas árvores e, mesmo que eu nunca
tenha estado aqui antes, parece que foi feito para mim. Não há
ninguém por perto, então tiro um livro da mochila e me estico
no banco, descansando a cabeça na parte acolchoada da bolsa.
Eu estendo meus braços no ar para que o livro esteja
suspenso acima da minha cabeça. Tudo o que vejo são as
palavras na página, folhas se estendendo sobre mim e o teto de
vidro mantendo o frio do lado de fora. É tão pacífico, tão
perfeito, tão...
— Eu não estava esperando te encontrar aqui.
Ao som de uma voz vinda diretamente acima de mim, sento-
me tão rapidamente que fico tonta. Quando meu cérebro para
de girar, eu a vejo.
É claro.
— Você sabe que existem setecentas mil pessoas morando
em DC? — Eu pergunto quando o choque inicial passa e
minha frequência cardíaca está um pouco normal.
— Além de turistas — diz May. — E nenhuma de nós conta,
realmente. — Ela está olhando para mim com uma mão no
quadril, gorro vermelho preso na mão.
— Você não vê que eu estava lendo? — Eu me espreguiço e
começo a guardar o livro.
— Eu li esse… — Ela fala, apontando para a capa. — O
demônio é irmão dela e ela fode com o tritão.
— Sério? — Enfio o livro na minha bolsa. — Eu ainda estou
no começo.
Ela encolhe os ombros.
— Você me seguiu até aqui? — Eu pergunto, porque essa
parece ser a única explicação lógica para ela estar na minha
frente agora.
— Por que eu faria isso?
— Não sei.
Penso no que Mandira disse, sobre todos os meus
desentendimentos com May sendo como um filme da
Hallmark.
Mas Mandira estava errada.
Não é como uma comédia romântica. É uma série de
coincidências em que uma garota – uma garota bonita, tudo
bem, sim, claro – arruina minhas chances de ter um mês de
freira, tranquila e focada no laboratório, onde eu posso passear
por DC sozinha para curar meu coração partido.
Quando encontrei Sadie, parecia um filme. Como um filme
de Nora Ephron, se é que ela já escreveu sobre garotas queer.
Aconteceria nos anos noventa, de alguma forma. Seria algo que
as pessoas lembrariam até hoje.
Mas talvez seja assim que todos se sentem quando entram
em seu primeiro relacionamento real.
— Você está aqui com seu pai, então? — Eu pergunto a
May. Não consigo descobrir por qual motivo ela estaria no
museu.
Ela ri, mas não como você faria com uma piada.
— Estou aqui para ficar longe dele.
— E para me seguir, aparentemente. — Apoio os cotovelos
nos joelhos e afasto as pernas. — Você, tipo, me seguiu?
— Não, só acabamos pegando o metrô ao mesmo tempo. É
permitido.
— E então você me viu descer e me seguiu até aqui para me
dar spoilers?
— Mais uma vez, não. Você só tem um superpoder inútil de
poder antecipar onde estarei e como me irritar e então você está
lá me irritando.
Espero até ter certeza de que ela terminou de me repreender
por existir.
— Então, eu te irrito?
— Terrivelmente.
— Que bom.
Ela se joga no banco ao meu lado. Nós duas nos sentamos
lá, sem falar, observando as pessoas passarem.
— Tudo bem, escute — May pede, olhando para a frente.
— Eu sei que, porque somos nós, você vai esbarrar em mim e
derrubar alguma obra-prima de valor inestimável se eu deixar
você passear pelo museu sozinha...
— Que gentil — digo no que espero que seja minha voz mais
cortante. Mas meu coração está batendo porque ela disse “nós”,
tipo… Corpo, por quê? É um reflexo automático. Como se
engasgar. — Vou ligar para minha mãe e dizer que ela não
precisa encontrar uma babá para esta noite.
— ...Então eu poderia muito bem ter você sob minha
supervisão — Ela continua, não respondendo ao meu
comentário. Então ela se levanta, me encara de cima e indica
com a cabeça a direção da porta do museu. — Venha comigo.
Fico onde estou, de braços cruzados.
— Sério? — Ela pergunta. — Vamos. Levanta logo. Vai ficar
tudo bem. — Ela estende a mão.
Eu finjo que tenho que pensar sobre isso. Mas eu não tenho,
realmente.
Eu agarro sua mão.
No segundo que faço, ela me puxa com tanta força que deve
ter deslocado meu ombro.
— Fique comigo. Não posso deixá-la solta na galeria de
retratos.
— Eu não sou tão perigosa assim.
— Minha experiência pessoal discordaria.
Eu odeio não odiar o jeito que ela fala comigo.
Eu odeio que eu meio que gosto disso.
E, eu não sei, talvez seja possível que ela esteja afim de mim?
É um pensamento tão selvagem? Embora seja ainda mais
provável que ela seja heterossexual e eu esteja pensando demais
em tudo.
Não que isso importe, no entanto. Se ela fosse queer, nada
aconteceria.
Eu não quero que nada aconteça.
De verdade.
— Tudo bem — diz ela, uma vez que estou de pé e
esfregando meu ombro. — Vamos lá.
May corre na minha frente, sai do pátio e sobe uma escada
em espiral, tecendo entre os outros frequentadores do museu
que observam a arte em um ritmo vagaroso.
— Eu não acredito em perambular por museus — Ela diz
quando nós emergimos dois andares acima. Ela está alguns
passos à minha frente. — Eu sei onde estão todas as coisas boas,
então é para lá que eu vou. Tipo, eu não me importo com os
retratos presidenciais, mas sempre visito Michelle Obama. —
Ela anda por aí, como uma mulher idosa que vai ao shopping
fazer exercícios. — Tenha calma.
Eu corro um pouco enquanto tento não perdê-la de vista,
mas ela anda com tanta determinação que me pego pedindo
desculpas às famílias enquanto quase as derrubo.
Seu grande tufo de cabelo castanho vai em direção a uma das
galerias laterais, e eu corro atrás dela.
May está de pé no meio de uma grande multidão, na frente
da qual está o retrato de Michelle Obama.
Eu olho para May encarando a pintura, sua mandíbula
frouxa e os olhos vidrados. Ela fica assim por um minuto
inteiro.
— Eu não posso acreditar que Michelle tirou nossas
máquinas de venda automática — Eu digo, tentando provocar
literalmente qualquer resposta de uma May congelada. —
Sinto falta dos Doritos. — Depois de outro momento de olhar
silencioso, May ainda não responde. — E eu não posso
acreditar que ela gosta de esmagar cachorros com seus braços
poderosos em seu tempo livre.
— Sim — May concorda, atordoada.
— Você ouviu o que eu disse?
— O quê? — May balança a cabeça um pouco e pisca. —
Na verdade, não. Vamos lá.
— É isso? — Eu pergunto. — Você entrou em transe na
frente de Michelle Obama e agora estamos seguindo em frente?
— Sim — Ela responde. — Ficamos em uma pintura pelo
tempo que precisamos para vê-la. Isso é o tempo que
precisamos para Michelle.
— Eu meio que quero olhar um pouco para…
Mas ela está fora de novo e, contra meu melhor julgamento,
eu a sigo. Desta vez ela se vira para ter certeza de que estou lá.
Dou-lhe um sinal positivo, e ela revira os olhos, mas está
sorrindo enquanto se vira para nos guiar pelo museu.
Passamos da galeria de retratos para o lado da arte
americana, e ela para na entrada de uma grande sala. Há uma
gigantesca coluna translúcida que se estende do chão até o teto.
Não é sólido, apenas uma projeção de rolagem de luz que exibe
palavras diferentes. Está girando, girando e girando, repetindo
uma frase várias vezes:
“Estar sozinho consigo mesmo é cada vez mais impopular.”
Ou simplesmente impossível, eu acho. Mas eu digo:
— Gosto disso — enquanto aponto para o cilindro de luz e
obviedades.
— Vai passar por diferentes frases — diz May. — A última
vez que estive aqui, dizia: “Más intenções podem render bons
resultados”.
Claro que é o que a obra disse para May.
— Venha aqui — Ela chama enquanto eu ainda estou
hipnotizada pelo cilindro brilhante.
May entra em uma área vazia e escura da galeria. Mas
quando ela se senta em um banco, uma luz vermelha acende e
ilumina a peça. Com a luz, vejo que estamos em uma sala de três
paredes, olhando para algo como um palco cheio de formas
abstratas e esculturas. Algumas das formas estão iluminadas e
outras estão fazendo sombras vermelhas escuras ao longo das
paredes.
Sento-me no banco macio e almofadado preto com ela, mas
o mais longe possível, e observo a exibição.
O vermelho desaparece e o palco é mergulhado na escuridão
mais uma vez. Então outra luz se acende e ilumina uma
pequena pintura em forma de folha no chão, uma que eu não
vi quando estava banhada em vermelho. Desta vez, a luz é roxa
e o palco parece completamente diferente.
Observá-lo é como estar sentada em uma cozinha em uma
manhã brilhante de domingo, bebendo café quente enquanto
a luz do sol avança pela sala. É cor, luz e emoção.
— Da última vez que estive em DC, trouxe uma amiga de
casa — diz May depois de um tempo, apoiando-se nas mãos e
observando as cores mudarem. Há uma luz verde sendo lançada
na mistura agora, e ainda mais da escultura ganha vida. — Nós
assistimos isso por muito, muito tempo.
— É fascinante — Eu afirmo. Algo sobre a mudança de
luzes e o quarto escuro nos abrandou. Depois de mais um
minuto, pergunto: — Então, de onde você é? — porque eu
acho que ela pode realmente me dizer. E eu quero saber.
— Ithaca. — Seu rosto está coberto metade de luz roxa e
metade de verde. — Eu também estudo lá. Cornell.
Eu me sento e balanço a cabeça, chocada.
— Espere, cara, eu vou para Binghamton. — Eu
imediatamente me sinto estranha por chamá-la de cara, mesmo
que não haja nada acontecendo entre nós.
— E? Isso não é muito perto — diz ela. — Uma hora de
viagem, pelo menos.
— Não é muito longe para os padrões do interior — Eu
aponto e me inclino para trás novamente. — Sou do Queens, e
antes de ir para a faculdade, pensei que Westchester fosse no
norte do estado. Então, Ithaca e Bing estão praticamente na
mesma área.
— Tudo bem — ela concorda. — Estão no mesmo estado.
É engraçado que estejamos discutindo sobre isso – as
especificidades da geografia do norte do estado de Nova York.
De todos os lugares de onde ela poderia ser, e de todos os lugares
que eu poderia ir para fazer faculdade, é claro que elas têm
apenas uma hora de intervalo.
Mandira surge na minha cabeça novamente, dizendo:
“Filme da Hallmark”. Eu afasto o pensamento.
A luz volta a ficar vermelha e May ainda não se move.
— Leia a placa — ela pede.
— O quê?
— A placa, na entrada. É interessante. Você sabe, tem coisas
sobre a peça.
Eu me levanto do banco e leio o texto.
— David Hockney fez isso? — Eu pergunto, atordoada.
Sou obcecada por ele. Não sei muito sobre arte, mas sei
sobre Hockney. Ele era um ícone gay. Pintou homens tomando
banho juntos, paus abstratos, homens apaixonados vivendo
um com o outro. Uma intimidade tranquila.
Não me surpreende que ele tenha projetado isso. É um
convite para sentar, talvez com alguém, talvez sozinho, e olhar.
Basta observar e experimentar.
— Você gosta dele? — May pergunta, e quando me viro, ela
está me observando.
Ela volta a olhar para a pintura.
— Eu amo-o.
— Eu também o amo — diz ela, ainda olhando para o
trabalho de Hockney. — Eu amo o que diz na placa. Ele
escreveu algo sobre como é o trabalho da arte superar a
esterilidade do desespero.
Com certeza, é o que diz na placa. Quase palavra por
palavra: ”Espaço Caracóis é um resumo da carreira de Hockney
e um exemplo pungente de sua crença de que a arte deve
'superar a esterilidade do desespero'. Surgiu de sua prática de
organizar telas separadas ao redor do estúdio, pintar o chão e
convidar seus visitantes a entrar no mundo de suas pinturas.”
Penso nas palavras esterilidade do desespero. Penso em ficar
sozinha no meu quarto: em casa no Queens, na casa de Beatrice.
Penso em não falar com minha mãe na viagem de carro até aqui,
em olhar pela janela, na neve branca obscurecendo a estrada.
Então olho para a pintura: o palco, luzes brilhantes, calor. O
banco, feito para duas pessoas.
É embaraçoso, mas algumas lágrimas se formam nos cantos
dos meus olhos e quando volto para o Espaço Caracóis, é apenas
um bloco de vermelhos e roxos felpudos.
Eu secretamente enxugo as lágrimas e me sento no banco.
— Por que você não trouxe sua amiga para DC desta vez?
É algo que eu tenho pensado desde que ela mencionou a
amiga. Se ela está tentando evitar seu pai e odeia tanto DC,
parece que ela deveria ter um amortecedor. Que ela não deveria
estar assistindo o Espaço Caracóis comigo se pudesse estar
assistindo com alguém que ela gosta.
Ela franze a testa um pouco, seu rosto fica na sombra
quando a peça entra em um de seus períodos sombrios.
— Nós não somos mais amigas de verdade — ela fala. — Eu
e a garota.
Ela não diz mais nada, nenhuma resposta curta e jocosa. Ela
apenas olha e olha.
Eu sei que estou forçando, mas pergunto:
— Como assim?
— Ah, você sabe. — Ela junta o cabelo na nuca e o solta. —
Bobagem.
Algo sobre o jeito que ela diz isso me faz pensar: essa “amiga”
é (com aspas assustadoras ao infinito) como Sadie foi para
mim?
— Sinto muito — Eu digo, e eu quero dizer isso. Porque se
ela fosse uma "amiga'', eu sei como é.
— Está bem. Estou bem agora.
Vermelho vira roxo, que vira azul, que vira verde. Eu não
respondo.
Depois de nos sentarmos em frente à peça de Hockney por um
tempo, saímos para explorar o resto do museu. May ainda está
correndo à frente, mas agora ela me observa e às vezes espera.
Quando paramos em frente a uma pintura ou escultura, ela me
conta.
— Eu realmente gosto deste — Ela diz enquanto olhamos
para uma pintura feita de listras verticais coloridas. — O artista
queria fazer com que não se parecesse com nada, para que você
não pudesse fazer com que parecesse algo. Você pode ler na
placa. — Ela olha para mim. — Eu não sei, eu meio que gosto
disso.
Examino o texto sob a pintura e ele diz quase exatamente o
que May me disse.
— Como você sabe tanto sobre este museu? — Eu pergunto
depois que ela me conta sobre uma escultura de cavalo que
parece feita de galhos de árvores, mas na verdade é de bronze.
— É meu lugar favorito em DC — Ela me fala. — É o único
lugar bom.
— Hum, isso é obviamente uma mentira — respondo a ela.
— Você já foi ao museu de história natural?
— Nunca.
— É por isso que estou aqui. Estou estagiando lá durante as
férias.
— Eu estava me perguntando sobre isso — diz ela. — Eu
pensei que você estava aqui apenas para me irritar. Como um
deleite de férias.
— Quero dizer, sim, essa foi a outra razão. — Paramos em
frente a um retrato de Muhammad Ali. — Mas teremos que ir
ao museu de história natural algum dia.
E então percebo o que eu disse e coro. Um bom dia na
galeria de retratos e de repente estou planejando uma atividade
futura.
Ela olha para mim, inclina a cabeça um pouco.
— Claro — ela concorda. — Deveríamos ir.
Sorrio para Muhammad Ali.
Então, ela acrescenta:
— Não é como se eu tivesse outra pessoa para me
acompanhar.

Algumas horas depois, estou exausta do jeito que só um museu


pode me deixar, e May e eu pegamos o metrô para casa juntas.
Ficamos em silêncio por um tempo enquanto o veículo faz sua
viagem para o norte, silencioso e suave.
Não sei como ou por que (eu nunca sei), mas Sadie surge na
minha cabeça. E quando ela surge, percebo: não penso nela há
horas.
Uma semana atrás, eu estava pensando nela a cada segundo
de cada dia. Ela vivia no meu cérebro.
Então, diminuiu para uma vez a cada dez minutos, e agora,
magicamente, é apenas a cada duas horas. Talvez um dia seja
nunca. Ou, pelo menos, não vai doer tanto quando eu pensar
nela.
Talvez isso signifique que estou seguindo em frente.
O pensamento me faz sorrir e, enquanto sorrio, me viro para
May.
Ela se vira para mim e sorri de volta. Um sorriso real, da
garota que eu quase atropelei há menos de uma semana.
À medida que o metrô faz uma curva, ela é empurrada para
mais perto de mim. Ela não se move de volta para seu lugar
perto da janela.
Tê-la tão perto faz meu coração bater mais rápido. Faz
minhas palmas suarem.
Ah, foda-se.
Não. Não vamos fazer isso.
Porque tenho certeza de que meu corpo pensa algo que meu
cérebro certamente não aprova.
Que talvez, possivelmente, inacreditavelmente, meu sistema
nervoso traidor tenha desenvolvido uma queda por alguém
quando eu disse explicitamente que não.
O anúncio do metrô aparece: “A próxima parada é
Tenleytown-AU”.
— É nossa parada. — declara May, colocando sua jaqueta
de volta.
Eu me levanto para me afastar dela.
— Eu acho que é.
Detalhes sangrentos sobre a bunda desse
cara

Sério, a última coisa que quero fazer hoje é ir até a casa de


May e passear com o cachorro do pai dela. Porque se eu for,
verei May. E se eu a vir, há uma forte possibilidade de meu
corpo me trair mais uma vez.
Então, em vez disso, estou sentada em meu quarto. O plano
atual é não me mover desse lugar – ficar na cama, sob as
cobertas – hoje. Vou passar meu domingo inteiro enclausurada
aqui.
E, hoje à noite, quando a família de Beatrice for embora e
May provavelmente estiver dormindo, levarei Raphael para um
passeio à meia-noite. Isso é um pouco incomum para um
passeador de cães? Claro. O pai de May vai achar que alguém
está roubando seu corgi? Possivelmente.
Abro meu livro — vou terminá-lo por despeito, já que May
o estragou — e acabo lendo o mesmo parágrafo quatro vezes.
Então, é claro, eu pego meu telefone.
May: que horas você vem passear com o
cachorro?

Bom.
Excelente.

EU: você está perguntando porque quer ter


certeza de que não vai esbarrar em mim?

May: ha ha.

EU: sei lá, acho que vou mais tarde


tipo, bem tarde
estou muito ocupada hoje

Eu envio essa última mensagem deitada com meu livro sobre


meu peito e sabendo que minha agenda está livre hoje. Mas
May não precisa saber disso.

May: entendi

Eu mudo para o Instagram, pensando que é tudo o que ela


tem a dizer, quando chega outra mensagem:

MAY: eu realmente me diverti muito ontem

Eu olho para o meu telefone por um minuto inteiro. Então,


meus dedos digitam antes que meu cérebro possa pensar.

EU: eu também
mesmo com você me seguindo até lá

May: hm eu NÃO te segui


!!!!!
EU: não sei se acredito em você...
os sinais apontam que sim

May: você tem uma bola de cristal?

EU: sim desculpe ainda estou aprendendo a usar


e na verdade, ela é sensível

May: oh, merda


eu sabia que tinha algo diferente

Eu sorrio para o meu telefone.


Não!
Desfaço o sorriso.
Mas aqui está o problema: se alguém é bom em flertar por
mensagens, isso é dez mil pontos a seu favor.
Sadie era péssima nisso, mas realmente não importava
porque estávamos sempre juntas. Sempre. Tipo, as pessoas me
perguntavam onde ela estava se eu aparecesse em qualquer
lugar sem ela. Depois de um tempo, comecei a me ressentir de
como todos achavam que eu deveria segui-la o tempo todo,
como um cachorrinho abandonado na mudança.
Na maioria das vezes, eu me ressentia porque era verdade.
Eu precisava dela perto de mim – perto demais, até – para me
sentir segura.
Mas May não é Sadie. E não há nada acontecendo aqui.
Você pode flertar por mensagem com alguém sem que isso seja
uma coisa.
E May é muito boa nisso.
Em flertar por mensagens!

EU: sim
deve ter sido muito difícil para vc passar o dia
inteiro com um objeto inanimado
um tão pequeno que cabe numa meia de
natal, a propósito

May: e aqui estava eu pensando que você era


anti natal
ou isso é apenas com o hanukkah?
esqueci
você gosta de arruinar as férias para todas as
crianças ou apenas para algumas?

EU: eu gosto de estragar as férias de todas as


crianças
mesmo as cristãs
eu não as discrimino

May: muito corajoso da sua parte


convocando o comitê do prêmio nobel da
paz agora mesmo

O som da risada de Beatrice chega ao andar de cima, e eu me


afundo ainda mais na cama. A última coisa que quero fazer é
descer lá. Além disso, a troca de mensagens com May subiu na
minha lista de prioridades.

EU: tem uma grande família católica lá embaixo


então estou me escondendo kk
May: ok me lembre de onde você está
morando???
quanto mais detalhes sei sobre onde você
mora, mais confusa eu fico
você está morando no lugar que a
passeadora de cães do meu pai costuma
morar?
mas uma família católica invadiu a casa?
isso é uma invasão de domicílio?
eu deveria estar preocupada?

A comunicação está tão distorcida em relação às palavras de


May agora. É bom estar no lado receptor das mensagens; isso
me faz sentir como se estivesse no controle. Ou pelo menos que
May quer falar comigo.
O que não era o caso há apenas alguns dias.
Além disso, ela está se perguntando se deveria se preocupar
comigo. É como se eu estivesse falando com alguém fazendo
uma imitação de merda de May.

EU: não precisa se preocupar


eu consigo lidar com eles
sou dotada na arte do combate corpo a
corpo

May: eu acho
profundamente difícil de acreditar nisso
mas você pode me dizer onde você mora
estou ansiosa

EU: kkkkkkkk ok então


estou morando com a amiga da minha
bisavó?
ela tem 96
e sua família católica gigante está aqui

May: ela tem 96??


tipo anos?????

EU: KKKKKK literalmente o que mais isso significaria

May: ISSO SÃO MUITOS ANOS DE VIDA


ESTOU CHOCADA

Eu desvio o olhar do meu telefone e balanço a cabeça, rindo.


Então, do lado de fora do quarto:
— Anjo, você está aí?
Eu não me movo ou respiro.
— Nós vamos comer bolo, boneca. Se você estiver aí, por
que não desce e se junta a nós?
Quase corro para o banheiro da suíte, mas seria patético
continuar me escondendo de uma mulher de 96 anos que quer
me dar bolo, então arranco minha calça de pijama e coloco um
par de jeans antes de enviar algumas mensagens para May.

EU: a de 96 anos de idade está batendo na minha


porta
me pedindo para ir comer bolo
então tenho que ir

May: ela sobe as escadas?????????


Eu mais uma vez sorrio para o meu telefone, mas
rapidamente desfaço o sorriso.
— Bolo parece ótimo! — Eu exclamo enquanto abro a
porta, imediatamente a fechando atrás de mim para que
Beatrice não possa ver a bagunça que fiz em sua cama conjugal.
— Oh, boneca, você me assustou! — Ela põe a mão no
coração. — Eu nem sabia que você estava aí.
— Eu estava… — Eu digo. — Você sabe, apenas
descansando.
— Você não está se sentindo bem? Eu posso te dar um
ibuprofeno. — Ela estica a mão até a minha testa. — Isso
ajudaria? Acho que tenho um punhado em um dos meus
bolsos.
— Eu estou bem, de verdade. — Respondo. — Apenas
relaxando.
Ela agarra meu braço.
— Você pode relaxar quando estiver morta.
E assim, estou lá embaixo. A multidão da família diminuiu
um pouco, mas George está sentado ali, sozinho à mesa da
cozinha. Eu puxo uma cadeira e me sento ao seu lado.
— Shani! Sentimos sua falta depois que você partiu ontem.
— Ele dá uma mordida no bolo de chocolate. — Aonde você
foi?
— Fui andar por aí. — Eu respondo. Então, porque isso é
algo que eu diria para minha mãe e não o que eu deveria falar
para o filho da mulher que está me deixando ficar em seu
quarto, eu acrescento: — Fui à Galeria de Retratos.
— Ah, é a melhor de todas, né? — Ele pergunta.
Beatrice se senta e dá uma mordida no bolo.
— Qual é a melhor?
— A Galeria de Retratos, mãe. — George diz em voz alta.
— Isso é verdade! — Ela sorri melancolicamente para mim.
— Um dos lugares mais românticos da cidade. Perfeito para um
primeiro encontro.
Poças de suor surgem sob meus braços. Eu corto um pedaço
de bolo para me ocupar com alguma coisa.
— Você tem um namorado, boneca?
— Hm, não. — Concentro toda a minha atenção no bolo.
— Isto é delicioso. — Eu digo rapidamente, com a boca cheia.
— Obrigado. — agradece George, rindo um pouco. — Eu
peguei a receita de um vídeo no YouTube. Minha sobrinha me
enviou por e-mail. Estou testando algumas sobremesas para o
Natal.
— O que você vai fazer no Natal, boneca? — Beatriz
pergunta.
Ficar o mais longe possível de qualquer pessoa comemorando
o feriado.
— Ah, nada, na verdade.
— Nada? — Ela agarra meu braço com seus dedos
assustadoramente fortes. — Venha conosco para a casa de
George, anjo! Ele ficaria feliz em receber você.
George parece hesitante.
— Hm, mãe, eu estava pensando que seria apenas uma coisa
de família, você sabe…
— Está tudo bem. — digo a ele, porque é verdade. A última
coisa que quero fazer é comemorar o Natal com um bando de
estranhos. Ou comemorar o Natal em geral.
— Esta boneca é da família. — Beatrice responde, dando a
George um olhar de repreensão enquanto seus dedos apertam
meu pulso.
Não sei como Beatrice sobreviveu a uma vida assim, onde
ela considera garotas mal-humoradas que passaram menos de
duas semanas em sua casa parte de sua família. Mas talvez seja
esse o segredo de sua longevidade: convidar todos para sua vida,
indiscriminadamente.
Se esse é o segredo, acho que não vou viver até os noventa e
seis anos.
— Eu estou bem, de verdade. — Eu digo. — Mas obrigada
pela oferta. — Dou a George um sorriso de boca fechada para
que ele saiba que estamos no mesmo time, e ele tenta distrair
Beatrice perguntando sobre sua aula de hidroginástica.
Mas ela volta a uma pergunta anterior:
— Então, sem namorado? Isso é bom. — Ela acrescenta. —
Os meninos apenas distraem dos estudos. Você pode levar a
sério o namoro quando terminar a faculdade.
Se ela soubesse o quanto as meninas podem distrair dos
estudos também.
— Você estuda em Nova York, boneca?
— Sim, mas não na cidade…
Beatrice continua:
— O melhor local para encontros na cidade? Quer saber
qual? — Ela pergunta. — O melhor lugar para levar um
menino – ou melhor ainda, um homem, – é a balsa de Staten
Island. É grátis e romântico! O clima do rio, o vento. Você
ainda pode dar uma olhada na Estátua da Liberdade! Essa é
uma linda vista, eu vou te dizer.
— Mãe, Shani não quer ouvir sobre isso. Olha para ela. —
George gesticula em minha direção enquanto eu coloco um
grande pedaço de bolo na minha boca.
Beatrice apenas ri.
— Claro que ela quer. Certo, anjo? — Ela não espera que eu
responda antes de continuar: — Quem não gostaria de
conselhos sobre como conseguir um namorado de alguém que
nunca se divorciou?
— Você nunca se divorciou porque papai morreu, mãe. —
diz George enquanto limpa a garganta.
— Mas ainda é verdade, não é? — Ela ri e dá um tapa no
braço de George. — E quem é você para dar pitaco? Não deixe
que seu namorado tome conta de toda a sua vida. Ele deve fazer
parte dela, não ser toda a sua vida.
Bem, merda. Isso é realmente um bom conselho. Eu poderia
ter usado alguns meses atrás.
Concordo com a cabeça e sorrio enquanto Beatrice dá um
tapinha no meu braço, então ela e George começam a discutir
sobre o horário da balsa de Staten Island.
Quando eu estava com Sadie, eu sentia que tinha me
tornado uma pessoa em segundo plano no relacionamento,
mesmo namorando outra garota. Eu confiei nela de uma forma
que sei que ela não confiava em mim.
E eu não gosto de onde esta linha de pensamento está indo.
A cozinha parece muito pequena, e eu me sinto muito grande,
como se fosse rasgar minha própria pele, então murmuro:
— Eu, hm, tenho que ligar para minha mãe. — Isso é um
pouco exagerado, mas preciso sair daqui.
— Diga oi para ela por mim! — Beatrice pede. — Diga a ela
que estou cuidando perfeitamente de você.
— Vou dizer. — Eu respondo e aceno para George
enquanto corro de volta para o conforto do quarto de Beatrice.
Quando chego lá, fecho a porta, coloco a calça do pijama de
volta e pulo na cama. Decido que provavelmente deveria
checar minha mãe, então envio uma mensagem para ela.

EU: Beatrice mandou um oi

Não é muito, mas é alguma coisa. Alguns minutos depois,


ela responde.

MÃE: Awwwwww. . . Diga a ela que mandei um


oi de volta. . . . . . Vc está comendo bem?
A última parte é uma pergunta clássica de mãe judia que
dificilmente acho necessário responder. Eu respiro fundo para
abafar a raiva indesejada crescendo em meu peito.

EU: bastante

E agora que me comuniquei o mínimo com minha mãe, há


outra coisa que preciso fazer.
No início desta semana, eu não queria contar a Taylor sobre
May porque estava preocupada que ela se animasse demais.
Mas agora, ao que parece, pode haver algo para contar.
Taylor adora saber tudo sobre minha vida. Foi uma quebra
do nosso contrato de amizade não falar com ela sobre Sadie,
não contar tudo a ela.
Eu definitivamente não sei tudo sobre a vida de Taylor, mas
só porque eu tenho que lembrá-la repetidamente que ela deve
manter algumas coisas privadas. Veja, por exemplo, quando ela
viu pela primeira vez um menino nu na nona série. Ela
começou a me dar os detalhes sangrentos sobre a bunda desse
cara, e eu cobri meus ouvidos. Ela agora sabe que não deve
descrever sua vida sexual em detalhes; Não preciso ouvir o que
minha melhor amiga está fazendo com as portas fechadas.
Preciso ligar para Taylor.
— Shani! — Ela cumprimenta quando atende pelo
FaceTime.
— Tay!
Sorrimos uma para a outra por um segundo e depois
começamos a rir sem nenhum motivo em particular.
— Como está minha mãe? — Eu pergunto.
— Nós tomamos café ontem. — A pequena Taylor na tela
me conta. — Eu me certifiquei de que ela usasse uma
alternativa aos laticínios.
— Você é uma heroína.
Ela tira um chapéu de cowboy falso.
— Apenas fazendo meu trabalho, senhora. — Então ela
pergunta: — Como diabos você está?
Eu respiro fundo.
— Então-
— EU SABIA!
— O quê? — Eu questiono, alarmada.
— Eu sabia que você tinha conhecido alguém. EU SABIA.
Ah! É por isso que você ligou pelo FaceTime. Sou uma gênia!
Eu sabia.
— Eu não “conheci alguém”. — Mas então eu acrescento:
— É que tem essa garota… — e Taylor ri triunfante.
Eu me lanço na história de May, desde o quase homicídio
culposo veicular até o nosso dia no museu até as mensagens de
texto com ela antes de ligar para Taylor.
— Tudo bem, então você tem uma grande paixão lésbica
por ela. — Taylor afirma quando termino a história.
— O quê? Absolutamente não. — Eu aliso o edredom
áspero. — Eu nem sei se ela é queer.
— As mensagens são claramente em tom de flerte! — Taylor
responde. — Eu nunca mandaria mensagens assim para outra
garota.
— Ok, então supondo que eu tenha uma queda por ela…
— Eu sabia! — Taylor diz novamente.
— …e eu não estou dizendo que sim, mas se eu tivesse… É
muito cedo? É estranho? Eu sou horrível? Você me odeia?
— Bem, vamos por partes. — Taylor é sempre muito boa
em fazer listas de prós e contras, ela é a parte lógica desta
amizade. — Pode ser um pouco cedo demais, claro, mas o céu
só é um limite se você não for um avião. É estranho? Não.
Parece meio empolgante, honestamente. Quanto aos dois
últimos: você não é nada horrível. E espere, qual foi o último
mesmo?
— Você me odeia? — Eu pergunto baixinho.
— Sim.
Eu sorrio com isso.
— Mas eu ainda estou brava com você por estar em DC. Eu
não posso acreditar que não vamos passar o Ano Novo juntas.
— Taylor acrescenta quando eu não digo nada por um
momento.
— Eu sei. — Eu caio de volta na cama. — Quem vai me
acordar quando eu inevitavelmente adormecer às dez e meia?
Taylor e eu passamos todo ano novo juntas desde que nos
tornamos amigas. Quando éramos pequenas, nos juntávamos
aos pais dela e à minha mãe, mas quando chegamos ao ensino
médio, celebrávamos só nós duas. Então, nos últimos anos do
ensino médio, Taylor nos conseguiu convites para festa de ano
novo, o que foi um grande salto sociável para nós.
Depois de ficar afastada durante um semestre inteiro, o Ano
Novo teria sido o momento perfeito para fazer as pazes. Para
provar que nossa amizade não mudou completamente.
— Oh, merda! — diz Taylor, sua tela fica preta quando ela
sai do FaceTime para verificar outra coisa - ela se recusa a
atualizar seu telefone. — Prometi ao meu pai que iria ver um
documentário com ele. Algo sobre a Segunda Guerra Mundial
no JCC.
— Parece terrível.
— Será. Mantenha-me atualizada sobre a garota.
— Não haverá nada para atualizá-la.
Taylor volta ao FaceTime apenas para piscar
dramaticamente para mim.
— Divirta-se cochilando no JCC! — Eu digo.
— Divirta-se enviando mensagens para sua nova namorada.
— Estou desligando agora. — Respondo e, sorrindo,
desligo.
Bem, agora que Taylor sabe, acho que é oficial: eu tenho
uma queda por May.
As pessoas amam Al Roker

É impossível fazer qualquer trabalho nos dias que


antecedem o Natal. Eu culpo (repita comigo) a hegemonia
cristã. Se o Natal não fosse um feriado tão consumista, seríamos
engrenagens capitalistas perfeitamente produtivas. Mas, em vez
disso, somos engrenagens capitalistas perfeitamente
improdutivas, aguardando a chegada do feriado mais capitalista
do ano.
Tentei dar o meu melhor no laboratório esta semana, para
limpar cada milímetro dos fósseis que Mandira me deu, para
impressionar o Dr. Graham, para ser a estagiária do mês.
Mas, assim como todos os outros, perdi o fôlego na metade
da semana.
Na quinta-feira, dia 23, as coisas haviam regredido ao ponto
de Mandira tentar me fazer usar um chapéu de Papai Noel, mas
por razões óbvias, eu recusei, então ela o colocou gentilmente
em cima de um crânio de peixe fossilizado. Ela também tentou
fazer o Dr. Graham usar um, mas eu acho que ele nem a ouviu
perguntar.
Tudo bem, pode haver outra razão para eu estar perdendo o
ânimo. E esse motivo pode ter um cabelo volumoso, raiva e ser
obscenamente boa em flertar por mensagens.
May se juntou a mim em todas as caminhadas com Raphael
esta semana. Ela resmungou um pouco, claro, mas veio de
qualquer maneira.
— Por que você não segura a coleira? — Eu tinha
perguntado a ela na quarta-feira à noite. — Talvez se você
segurasse a guia literalmente uma vez, você gostaria do pobre
cachorro um pouco mais.
Nós duas desviamos nosso olhar para Raphael. Ele olhou
para nós como se nunca tivesse ficado mais feliz em fazer
qualquer coisa em toda a sua vida além de ficar do lado de fora
no frio e olhar para sua dona de meio período e passeadora de
cães substituta.
— Se eu segurasse a coleira, não haveria razão para meu pai
pagar você — Ela disse.
— Eu acho que ele me pagaria para te supervisionar — Eu a
retruquei, e ela me empurrou com o ombro. — Ele não deixaria
o precioso filho sozinho com você.
Sua expressão escureceu.
— Você acha que está brincando, mas isso não está longe da
verdade.
— Bem, então é uma coisa boa eu estar aqui para supervisão,
não é?
Ela sorriu um pouco, então caminhou na minha frente e de
Raphael.
— Se prefere acreditar nisso — Ela resmungou de volta.
Corri para alcançá-la, e Raphael correu alguns passos com
suas perninhas curtas.
— Eu prefiro.
— Que bom. — disse May, sem quebrar o contato visual.
— Que bom. — Eu respondi, fazendo o mesmo.
— Au-au. — Raphael latiu, e May e eu rapidamente
desviamos o olhar uma da outra.
Não só May tem se juntado a mim em caminhadas, mas
estamos demorando mais do que os vinte minutos exigidos por
Greg – às vezes, até uma hora. Quando caminhamos por muito
tempo, tenho que carregar Raphael para casa. Ele não tem
resistência suficiente para exercícios intensos.
Durante esse tempo extra, May me conta sobre seus amigos
em Ithaca, ou sobre as tradições de Hanukkah de sua mãe
(alternando latkes e rosquinhas de geléia todas as noites), e eu
pego o cachorro-pão, embalando seu corpo denso em meus
braços, onde ele suspira feliz até chegarmos em casa.
Às vezes eu adiciono algo à conversa, como minha mãe
adora latkes, por exemplo, mas odeia o cheiro deles, então ela
abre todas as janelas e portas quando está cozinhando, fazendo
a casa congelar. E às vezes Raphael contribui com um latido ou
um uivo, mas na maioria das vezes apenas ouvimos May falar.
Hm, então. De volta ao laboratório.
O museu está aberto na véspera de Natal, então todos os
laboratórios também estão. E é uma sexta-feira, o que significa
que não vamos fazer nada. Até o Dr. Graham está do lado de
fora de seu pequeno escritório de trabalho, sentado nos bancos,
cantarolando a música natalina de Mandira em uma voz
surpreendentemente doce.
Ele veio se juntar a nós algumas vezes, e eu sempre fico um
pouco chocada. Esse sentimento diminuiu no outro dia
quando ele estava sentado conosco e separando fósseis, tão
distraído que ele mal pareceu notar quando soltou um
tremendo peido. Mandira teve que se desculpar por rir demais.
Para tornar as coisas ainda menos produtivas, começou a
nevar esta manhã, e agora o Dr. Graham está nos contando que
Greg Stern informou que só iria piorar.
— Ele está nos dizendo para que tenhamos certeza de que
faremos longas viagens no período da tarde. — enfatiza o Dr.
Graham enquanto limpa um fóssil com sua fiel escova de
dentes.
— Então isso significa que você está indo para casa mais
cedo? — Mandira pergunta a ele.
— Claro que não.
— Você sabe que os fósseis ainda estarão aqui amanhã,
certo? — Ela brinca. — Eles sobreviveram alguns milhões de
anos, o que é outra noite?
É aconchegante no laboratório, com Mandira provocando
o Dr. Graham e música de Natal explodindo nos alto-falantes.
Não tenho acrescentado muito à conversa, principalmente
porque, mesmo depois do incidente do peido, ainda estou um
pouco intimidada pelo Dr. Graham. Mas depois de um minuto
eu digo:
— Você sabe que eu passeio com o cachorro de Greg Stern,
né?
Dr. Graham larga a escova de dentes e olha para mim,
realmente olha para mim, pela primeira vez desde que meu
estágio começou.
— Você conhece Greg Stern?
Nunca vi esse homem tão animado. Seus olhos se iluminam,
como se o Natal tivesse chegado um dia antes.
— Como ele é?
Nas uma ou duas breves interações que tive com Greg, ele
passou correndo por mim para chegar ao carro ou gritando
com May.
— Ele parece ser gente boa — Eu digo —, e o cachorro dele
é ótimo. Um pequeno corgi. Muito fofo.
— É claro que ele tem um corgi. — O Dr. Graham
responde, rindo e balançando a cabeça. — Minha estagiária
conhece Greg Stern!
— Na verdade, eu tenho que passear com o cachorro dele
esta noite — explico ao Dr. Graham, pensando que esta será
uma pequena anedota divertida para ele. — Eu disse a ele que
faria outro dia…
— Bem, então é melhor você ir logo — diz ele, olhando para
o relógio. — O próprio Greg Stern está dizendo que a neve vai
aumentar. Pode até ser uma nevasca. — Ele olha para o pulso
novamente, dessa vez com um olhar de pânico. — Talvez você
devesse ir agora. O metrô pode não estar funcionando muito
bem em uma hora.
— Deixe-me ver se entendi — Mandira fala. — Você quer
que Shani saia às quatro da tarde para passear com um cachorro
— Ela olha para mim —, o que você absolutamente deveria
fazer, já que é véspera de Natal — Ela se vira para o Dr. Graham
—, mas você não vai sair antes das seis? Mesmo com uma
nevasca chegando?
— É o cachorro de Greg Stern — Ele responde a ela, como
se isso explicasse tudo. Depois, se vira para mim. — Você
deveria ir.
— Tem certeza?
— Você realmente deveria. — diz Mandira. — Mas não
apenas por causa do cachorro. Você tem feito um ótimo
trabalho nas últimas duas semanas. É Natal, devemos ir para
casa. — Ela olha para o Dr. Graham, deixando claro que este
conselho é dirigido a todos nós. — Por mais que eu ame estar
aqui, vou sair em breve também. Eu disse à minha namorada
que levaria vinho quente para a festa que vamos.
— Eu pensei que você não comemorasse o Natal? — Eu
pergunto, me sentindo um pouco traída. Tínhamos toda a
nossa solidariedade não-cristã acontecendo.
— Não, tipo, não de uma maneira religiosa — Ela diz —,
mas minha namorada sim, e nós vamos a uma festa de véspera
de Natal. Além disso, o vinho quente transcende a religião.
Sério, Shani, vá para casa.
— Tudo bem. — Eu respondo, mesmo que pareça uma
armadilha. — Hum, obrigada. Feliz... você sabe.
— Feliz Natal, Shani — Mandira deseja.
Pego meu casaco, mas logo antes de sair, o Dr. Graham grita:
— E se você vir Greg Stern, diga a ele que o Dr. Charles
Graham é seu fã número um!

Dr. Graham – e, eu acho, Greg Stern – estavam certos: quando


eu saio do metrô, é uma verdadeira nevasca. A lua está
brilhante, mas está lutando para brilhar através das espessas
nuvens de neve. Mal consigo ver qualquer coisa por conta dos
ventos fortes e flocos de neve rebeldes passando por mim.
— Porra.
Eu mantenho meus braços acima do meu rosto para parar a
sensação de frio ardente e luto por todo meu caminho para a
casa de May.
Quando chego à rua dela, meu corpo inteiro está congelado
e há neve até nas minhas panturrilhas. Minhas calças estão
encharcadas, e minha jaqueta não está muito melhor.
Quando vejo a menorá no tempo inapropriado na janela, é
como chegar a um oásis no deserto.
Subo os degraus da casa, mas está nevando tão forte e o
vento é tão intenso que até a varanda está coberta de
centímetros de neve espessa e molhada, e eu tenho que usar
minhas mãos para sulcar o caminho e abrir a porta de vidro.
Eu bato, depois toco a campainha, depois bato de novo.
Meus dedos vão cair, assim como meus dedos dos pés, talvez
meus braços e pernas também. Acho que nunca senti tanto frio
em toda a minha vida.
Depois de um minuto interminável de toques e batidas com
meus dedos dormentes de neve, a porta se abre.
— Jesus Cristo. — May exclama quando me vê.
Eu tropeço por dentro.
— É quase o aniversário dele, hein? — Eu digo em resposta,
ligeiramente delirante.
— Você está bem? — Ela pergunta enquanto eu pingo neve
no chão de seu pai.
Ela fecha a porta e olha para mim.
— Você não vai passear com Raphael assim.
— Claro que vou. — Eu respondo, batendo os dentes.
— Não, você não vai. E meu pai não gostaria que você o
levasse lá fora agora, de qualquer maneira. Esse cachorro não é
muito resistente. — Ela aponta para cima. — Ele está dormindo
no chão aquecido do banheiro. Mal acordou para o jantar.
— Então por que você não me mandou uma mensagem
para não vir?
— Eu esqueci que você viria hoje! — Ela parece assustada, e
tenho certeza de que eu também, porque ainda estou
congelando e meus dedos estão descongelando, mas agora estão
queimando e posso desmaiar.
May envolve os braços em volta da cintura e balança para
frente e para trás.
— Você precisa tirar essas roupas.
Se houvesse calor suficiente no meu corpo para permitir que
meu rosto corasse, eu ficaria vermelha agora mesmo.
Mas se May percebe o que ela disse, ela não demonstra.
— Vou pegar um moletom para você. — Ela corre escada
acima. — Fique aqui para não pingar em nada.
— Eu não vou ficar. — Eu chamo atrás dela. — Se você não
precisa que eu vá passear com Raphael, eu vou para casa.
Ela para no topo da escada, então desce alguns degraus para
que eu possa vê-la.
— Você certamente não vai.
— São apenas alguns quarteirões.
— Sim, e você quase morreu chegando aqui de metrô.
— Então eu vou andando para casa.
— Você literalmente não vai. — Ela insiste. — Meu pai está
me dizendo para ficar dentro de casa o dia todo. A velocidade
do vento chegou a quase setenta e cinco quilômetros por hora.
É um vento muito forte segundo a escala Beaufort6. É um
perigo real.
Olho em volta para a casa aparentemente vazia.
— Onde está seu pai?
— Ele está na estação.
— Na estação de metrô?
— Hm, não. Tipo, no trabalho. Na estação de TV.
— Ele está trabalhando na véspera de Natal? À noite?
— Se houver uma emergência climática, eles precisam dele
lá. Além disso, não é como se nós realmente celebrássemos de
qualquer maneira. — Ela me encara. — E esta é uma
emergência climática. Então, não vá lá fora. Estou trazendo
roupas quentes para você não ter hipotermia e morrer.
E com isso, ela corre para cima.
A coisa é que eu estava planejando passar a noite sozinha.
Não sei se era isso que eu queria, mas esse era o plano.
Tasha está na festa de véspera de Natal de uma amiga da
faculdade, Lauren está com o namorado e George levou
Beatrice para as festividades de Natal exclusivas para a família.
Então, enquanto May está lá em cima, tento ao máximo
abrir a porta com as mãos dormentes.
Eu preciso ir embora. Não quero incomodá-la. Não quero
que as coisas fiquem estranhas.

6
Classifica a intensidade dos ventos, tendo em conta sua velocidade e os
efeitos resultantes das ventanias no mar e na terra.
Mas uma vez que eu saio, a força do vento (aparentemente
muito intensa) e da neve atinge meu rosto já congelado. É
possível que May esteja certa, que eu possa realmente ter
hipotermia se ficar do lado de fora um minuto a mais. Então eu
volto.
Quando faço isso, May está bem ali, segurando uma pilha
de roupas bem dobradas, quadril inclinado para o lado.
Raphael está saltando em torno de seus pés, arranhando o chão
e latindo.
— Tentando escapar?
— Tentei. — Eu a corrijo. — Está horrível lá fora.
— Eu avisei. — Ela me entrega as roupas. — O banheiro fica
no corredor à direita.
Concordo com a cabeça e caminho até lá o mais rápido que
meus pés congelados conseguem. Não penso no que isso
significa, que estou na casa de May sozinha com ela e Raphael
na véspera de Natal. Apenas me tranco no banheiro e tiro
minhas roupas, que estão duras por causa da neve.
O casaco e a calça de moletom que May me deu tem escrito
“Cornell” neles. Claro que ela escolheu esses – Binghamton e
Cornell são meio que universidades rivais.
— Melhor? — May chama do corredor enquanto eu
carrego minhas roupas molhadas de volta para a sala.
— Muito.
Mas agora que estou com roupas quentes e descongelando,
estou um pouco nervosa e me sentindo muito desajeitada. O
que estou fazendo sozinha na casa de uma garota, vestindo o
moletom da faculdade dela?
May se levanta de onde estava sentada ao pé da escada e olha
para minha roupa nova.
— Vamos, Big Red7. — diz ela, sufocando uma risada.
— Cale a boca.
— Devemos fazer um refrão rápido de “Give My Regards to
Davy8”?
— Estou indo embora. Estou saindo pela porta…
— “Give my regards to Davy, remember me to Tee Fee
Crane”.9 — May canta a plenos pulmões. Raphael uiva e corre
para cima e para baixo nas escadas, patas batendo na madeira.
— Eu vou sair lá fora e deixar a neve me levar, eu acho.
— ”Tell all the pikers on the hill that I’ll be back again”.
— Como você sabe decorado? Você é uma grande fã de
futebol? Você realmente vai aos jogos?

7
Time de futebol americano da Universidade Cornell.
8
Dê meus cumprimentos ao Davy, música da Universidade Cornell.
9
Tradução da música:
Dê meus cumprimentos ao Davy,
Lembre-se de mim no Tee Fee Crane.
Conte a todas as árvores da colina
Que eu voltarei
Diga a eles que morri
Defendendo uma bola alta
Todos nós vamos beber no Theodore Zinck
Quando eu voltar no próximo outono.
— Não todos. — Ela responde antes de falar ainda mais alto
e cantar. — ”Tell them just how I busted lapping up the high
highball”.
— Desculpe, sua música de guerra é sobre defender um
pênalti?
— “We’ll all have drinks at Theodore Zinck’s.” — Ela respira
fundo. — Se prepara para o final… “When I get back next fall!”
Ela faz uma reverência dramática, entra na sala de estar e
desaba em um sofá seccional de aparência chique. Raphael pula
perto dela e ela foge.
— Eu não posso acreditar que você conhece todas as
palavras dessa música. — Eu ando em direção ao lugar em que
ela está sentada, mas antes que eu chegue lá, ela levanta a mão
para me parar.
— Não traga suas roupas molhadas para cá, meu pai vai
pirar. Apenas deixe suas coisas na porta e eu vou jogá-las na
secadora mais tarde.
— Ok. — Eu jogo as roupas no capacho e vou para a sala de
estar.
Mesmo que haja espaço, eu não quero me sentar no sofá
com ela, então sento-me no chão. Raphael é muito mais
corajoso do que eu, deitado ao lado dessa garota assustadora
que o odeia completamente. Embora talvez a casa seja mais dele
do que de May.
Eu envolvo meus braços em volta dos meus joelhos e esfrego
minhas pernas, tentando me aquecer através do atrito.
— Você quer uma bebida quente?
Resisto à vontade de rir da frase “bebida quente”,
principalmente porque estou com tanto frio que meus ossos se
transformaram em gelo. Eu faço que sim.
— Vem. — Ela chama, se levantando do sofá.
Acaricio Raphael, ele bufa e fecha os olhos. Sigo May até a
cozinha. É grande, mas cheia de coisas – ser uma celebridade
local deve dar uma grana legal. Há uma pequena TV sobre a
mesa da cozinha, e May liga no canal do pai.
— Notícias de última hora? — Uma apresentadora de meia-
idade perfeitamente arrumada pergunta atrás de sua mesa. —
Papai Noel e suas renas vão enfrentar uma tempestade quando
pousarem aqui em DC, mas não se preocupem, crianças, ele
ainda tem seu leite e biscoitos. Dando-nos uma atualização do
Capitol Hill, seguimos com nosso Greg Stern. Como está indo
lá, Greg?
A tela muda para uma cena de Greg sendo agredido pelo
vento e pela neve. Ele está embrulhado em uma enorme parka,
usando luvas gigantes e protetores de ouvido, mas ainda parece
congelando.
— Bem, Jen — Greg grita por cima do vento —, vou apenas
dizer que o Papai Noel é o único que deveria sair hoje à noite.
— Uma grande rajada o força a tropeçar e agarrar seus
protetores de ouvido. — Temos um aviso, se você está apenas
sintonizando para saber as notícias: por favor, fique fora das
estradas e fique dentro de casa, se puder.
— Isso é ótimo, Greg. — Jen diz, embrulhada e cheia de
conforto em seu estúdio quente e seco. — Obrigada pela
atualização. — A tela muda para que vejamos apenas Jen. —
Em seguida, temos um especialista em cookies se juntando a
nós remotamente para dar algumas dicas de última hora sobre
guloseimas que vão deixar o Papai Noel com água na boca.
Vocês não vão querer perder isso, pessoal.
Um comercial do Harris Teeter, um supermercado local,
passa e May silencia a TV.
— Eu não posso acreditar que seu pai tem que estar lá fora
com o tempo assim.
— Sim, bem, é o trabalho dele. — Ela fala, parecendo
chateada.
— Tenho certeza de que ele vai ficar bem. — respondo da
forma mais gentil que consigo, porque acho que é isso que ela
precisa ouvir.
— Eu sei que ele vai ficar bem. — May retruca. — Mas ele
não estará aqui. — Ela pega uma panela de um armário
próximo ao fogão. — Tanto faz, ele está lá. Está bem. Vou
poupá-la desse drama.
— Você não precisa se fechar. — Eu afirmo. — Você deveria
falar sobre isso se quisesse. É uma merda que você não consiga
vê-lo hoje.
— Tá bom.
Eu dou a ela um minuto.
— Sério. — Eu digo finalmente. — Isso é muito, muito
chato.
Ela acende o fogão e abre a geladeira para pegar leite de aveia.
— Obrigada. — Ela diz baixinho. — Acho que estou apenas
brava porque ele me disse que encontraria alguém para cobri-
lo esta noite. Mas ele não conseguiu, ou não quis. Foi tolice
minha acreditar nele, de qualquer maneira.
— Eu não sei. — Eu respondo. — Acho que você tinha todo
o direito de acreditar nele.
Eu não vou dizer a ela que a razão de eu estar sendo tão
enérgica sobre isso é que eu tenho me sentido culpada por não
estar em casa com minha mãe, que queria estar comigo. Odeio
pensar que sou o Greg da minha própria vida.
Mas, ao mesmo tempo, eu gosto que May me conte o
motivo dela estar brava. E eu nem precisei arrancar isso dela.
Com Sadie, foi o oposto. Se eu não soubesse exatamente
como ela se sentia em todos os momentos, ela começava a
brigar. Então eu diria coisas legais para acalmá-la. Ela não queria
se abrir para mim, e eu não queria machucá-la. Eu só gostaria
que tudo ficasse bem. Que tudo fosse normal.
Obviamente, May e eu não estamos namorando, mas estou
feliz por saber que ela se sente confortável a ponto de se abrir
comigo. Talvez não exatamente, mas algo próximo disso. E eu
quero ajudar. Especialmente porque é tarde demais para estar
em casa com minha mãe.
Eu me inclino contra a ilha da cozinha, ao lado de onde May
está cuidando do fogão. Ela descansa contra o balcão enquanto
mexe o leite de aveia.
— Estou fazendo chocolate quente.
— Perfeito.
— Mas estou fazendo do jeito certo. Não com achocolatado
barato comprado em loja.
— Melhor ainda.
Eu olho, paralisada, enquanto ela mistura cacau em pó,
açúcar e calda de chocolate na panela.
Quando está pronto, ela bate a colher contra a panela de aço
inoxidável e pega duas canecas de um armário. Ela
cuidadosamente despeja o chocolate quente em cada uma das
canecas, então entrega uma para mim. A caneca tem o rosto do
pai dela e diz: “Greg traz o guarda-chuva para você”.
Ela desliga a TV, e eu tomo um gole de chocolate quente
enquanto nos sentamos à mesa. Sinto o líquido escaldante me
aquecendo por dentro.
— Seu pai realmente bebe em uma caneca com o próprio
rosto?
— É a única caneca que ele usa.
— Ah… não.
— Pois é…
Bebemos nossos chocolates quentes em silêncio por um
momento, então May acrescenta:
— Eu não, tipo, odeio ele, se é isso que você está pensando.
Eu o amo, obviamente.
— Eu não estava pensando nisso. — Se ela visse como eu
tratava minha mãe, talvez eu tivesse que dar as mesmas
desculpas. E eu não odeio minha mãe. Eu a amo, talvez mais do
que qualquer um em todo o planeta, mesmo quando estou
com raiva e sendo horrível com ela.
— Quando eu era pequena, eu queria ser como ele. — May
conta. — Ele é a razão pela qual eu amo o clima.
— Tipo, o conceito de clima? — Eu pergunto, incrédula.
— Bem, mais ou menos. — Ela continua. — Mas mais a
incerteza dele. Que, mesmo que você seja um cientista, ainda
pode errar. Nunca é cem por cento.
— Isto não é uma coisa ruim? A maioria das pessoas não
confia realmente em meteorologistas, né?
— Eles podem não confiar neles, mas os amam. — Ela
responde. — Eles reconhecem que são humanos também.
Como Al Roker10. As pessoas o adoram. E as pessoas amam
meu pai. É algo sobre a imperfeição. — Ela encara seu chocolate
quente. — Não sei, acho legal. A incerteza.
— Eu nunca pensei sobre o clima assim, mas também é por
isso que eu amo a paleontologia. — digo a ela, me inclinando
para frente. — Porque você nunca saberá a história completa,
mas você consegue juntar as peças. Tipo, com celacantos – essa

10
Meteorologista, ator e escritor famoso nos Estados Unidos.
espécie de peixe que todo mundo achava que estava extinta,
mas acabou que não estava. Os cientistas do século dezoito
tinham todas essas teorias malucas sobre como eles eram, e
então, quando as pessoas perceberam que eles ainda existiam,
quase todas as ilustrações estavam erradas. Mas eles fizeram o
melhor que puderam com as pistas que tinham.
— Eu amo isso! — Ela declara, e eu levanto minhas
sobrancelhas. — É sério! Tipo, como as pessoas ficam com raiva
quando saem e está chovendo, embora as notícias anunciassem
céu limpo. Tipo, claro que está chovendo. A coisa toda é
baseada no acaso. Nunca há cem por cento de certeza de que
fará sol… para sempre. Portanto, é sempre mais seguro ter
sempre um guarda-chuva na mochila.
Eu sorrio porque isso parece resumir toda a visão de mundo
de May.
— Vou me lembrar disso.
— E também é mais seguro não tentar se matar passeando
com um cachorro em uma nevasca. — Ela acrescenta, e sua mão
roça meu joelho. Não sei se ela fez isso de propósito, mas agora
meu corpo inteiro está em alerta.
Mas sou uma covarde, então mexo um pouco o joelho e
digo:
— Essa parte eu não vou lembrar.
Ela bufa.
— Justo.
Acho que talvez seja aí que May também começa a perceber
como é estranho eu estar sentada na mesa da cozinha dela
tomando chocolate quente, porque, de repente, ela se levanta e
começa a lavar a panela.
— Eu posso fazer isso. — Eu digo.
— Está tudo bem, já terminei. — Ela esfrega por um
minuto, então coloca a panela em um escorredor ao lado da pia.
Está muito silencioso.
— Que tal um pouco de música?
— Sim, perfeito. — Eu respondo muito rápido.
— Vai ser música de Natal. E você não vai reclamar comigo
sobre como isso me torna uma má judia. — Ela fala. — É o
penúltimo dia da temporada em que é socialmente aceitável
ouvir música de Natal e você não vai tirar isso de mim.
Enquanto ela vasculha o telefone para encontrar o que quer
ouvir, eu digo:
— Eu realmente gosto de música de Natal.
Ela para de rolar a tela e olha para mim.
— Desculpe, eu acabei de ouvir você dizer que Shani “Foda-
se o Natal”... Espere, oh, meu Deus. Eu não tenho ideia de qual
é o seu sobrenome.
— É Levine. E “Foda-se o Natal” não é meu nome do meio.
É Adeline.
— Tudo bem, deixe-me tentar de novo: você está dizendo
que você, Shani Adeline “Foda-se o Natal” Levine…
— Bem, se você quer fazer isso direito, meu primeiro nome
completo é Shoshana.
— Jesus, tudo bem. — Ela balança os braços e reinicia. —
Blá blá blá você, Shoshana Adeline “Foda-se o Natal” Levine,
gosta de música de Natal?
— Sim, eu gosto, tanto faz.
— Esta é uma excelente notícia.
— Sério, não é.
— Eu vou tocar toda a discografia de Natal de Sufjan
Stevens e você vai adorar, porque você ama o Natal. Isso é
irreal.
Eu coloco minha cabeça em minhas mãos enquanto May
cumpre sua promessa e coloca um dos álbuns de Natal de
Sufjan. A pior parte é que, claro, estou familiarizada com isso
e, óbvio, eu gosto. Qualquer que seja a música.
É uma música otimista, e soa folclórica e caseira. May
balança a cabeça um pouco e me dá um polegar para cima e um
olhar que diz: pelo menos estou tentando tornar as coisas menos
estranhas.
Eu sufoco uma risada.
— Tudo bem, então. — Ela fala quando vê meu rosto. —
Se você acha tão engraçado, vamos ver você dançando.
— Não, estou bem.
Ela revira os olhos.
— Você pode apenas balançar a cabeça. — Ela demonstra.
— Vamos, Shoshana Adeline “Foda-se o Natal” Levine. Isso
não vai te matar.
Eu suspiro.
— Tudo bem, eu vou balançar minha cabeça. Mas não vou
gostar de fazer isso.
— É claro que não.
Eu me levanto e movo a metade superior do meu corpo de
um lado para o outro, desajeitadamente no início, depois com
um pouco mais de convicção enquanto a música cresce e May
balança também.
De alguma forma, a oscilação consegue fazer as coisas
parecerem um pouco menos estranhas.
— Tudo bem, então você tem um nome do meio? —
Pergunto para preencher o silêncio quando a música acaba,
antes que a próxima comece.
— Sim, é Ilana. Mas eu odeio isso porque é impossível dizer
meu nome completo sem juntar os dois. — Ela demonstra: —
MayIlana.
— Talvez seus pais estivessem bêbados quando deram seu
nome.
Ela bufa.
— Pode ser.
— MayIlana. — Eu digo, testando.
— Tá vendo?
— Eles fluem bem juntos.
— Você é gentil. — May responde. — Eu diria que soa mais
como uma batida de carro.
Eu balanço minha cabeça para ela. May pega nossas canecas
da mesa e começa a lavá-las, como fez com a panela:
metodicamente, esfregando cada parte com uma esponja
amarela gasta.
Mas ela para quando uma nova música começa. É brilhante,
suave e lento. Ela balança para esta também, mas com mais
suavidade. Então, May se vira para mim.
— Vamos lá! — Ela chama enquanto Sufjan começa a
cantar. — Mexa sua cabeça, sem descanso.
— Eu não vou fazer isso de novo. — Eu respondo. — Não
há nenhuma batida. Você não pode balançar sem ritmo.
— Claro que posso. — Ela caminha para uma área aberta da
cozinha e solta um longo suspiro. — Apenas… venha aqui.
Eu sigo seu comando e paro a alguns metros de distância,
ficando na frente dela.
Ela morde o lábio.
— Mais perto.
Os acordes lentos continuam. Meu coração acelera. Dou
outro passo em direção a ela.
Ela coloca a cabeça entre as mãos, então olha para o teto. Ela
acena para si mesma e pede, com uma voz um pouco magoada:
— Dança comigo? — estendendo a mão.
Concordo com a cabeça, engulo em seco e agarro sua mão
enquanto Sufjan canta em sua voz alta e doce sobre o que as
pessoas de antigamente cantaram.
Agora que ela está segurando minha mão, ela olha fixamente
para o chão. E eu também.
Mas a música é doce, e May é calma, e por mais que eu tenha
lutado, quero estar perto dela.
Eu a giro debaixo do braço lentamente e ela ri, então faz o
mesmo comigo. Eu fico presa debaixo do braço dela, e nós
rodamos muito rápido e tropeçamos uma na outra.
E isso se torna uma desculpa fácil para puxá-la para perto
enquanto dançamos.
Eu sou mais alta do que ela, e ela segura uma das minhas
mãos enquanto eu pressiono a outra em suas costas. Nós
balançamos, juntas. Ela está tensa, e eu também, mas sentir que
ela está tensa também torna as coisas um pouco melhores.
Antes que eu possa pensar no que estou fazendo, acaricio suas
costas em círculos lentos no ritmo dos acordes, e ela se inclina
para mim, colocando o queixo na cavidade da minha clavícula.
Mas a música é curta e depois de pouco tempo acaba, então
há uma música rápida sobre acender as luzes na árvore. Nós nos
separamos.
Ainda posso sentir onde o queixo dela se encaixou no meu
ombro.
May pigarreia, vai até a pia e abre a torneira, embora não haja
mais nada para lavar.
— Devemos assistir TV? — Ela pergunta, sua voz mais alta
que o normal.
— Hm, sim. — Eu respondo, não muito certa do que está
acontecendo.
Mas parece que concordamos mutuamente em não
mencionar nossa dança lenta - ou o que quer que tenha sido -
enquanto nos sentamos na sala de estar.
Ela liga a TV e nós assistimos por um tempo - não o canal
do tempo, graças a Deus, apenas um programa de culinária de
férias, mas estou tendo problemas para prestar atenção. Estou
hiperconsciente do meu corpo e do dela, e da maneira como
eles estavam conectados minutos antes. Raphael teria sido o
obstáculo perfeito entre nós no sofá, mas ele pulou no tapete e
correu em círculos inquietos por um minuto antes de
adormecer.
Traidor.
Eu enrolo minhas pernas embaixo de mim, tomando
cuidado para não tocar em May. Acho que ela está fazendo o
mesmo, porque suas pernas estão dobradas, e eu a peguei
olhando para mim enquanto uma criança pequena era
repreendida por colocar muito glacê em uma escultura de Rice
Krispies do Rudolph. Claro, isso significa que eu estava
olhando para ela também… mas, tipo, obviamente eu estava
olhando para ela. Como eu não poderia olhar para ela?
O programa de culinária acaba sendo ridiculamente
viciante, e à meia-noite nós duas estamos gritando para a tela
porque um dos juízes mandou o garoto do glacê para casa por
causa de um rocambole de chocolate ligeiramente malpassado.
— Marmelada! — May grita, levantando-se.
— Temo que isso seja um adeus. — diz o juiz depois de
anunciar que o garoto do glacê irá para casa. — Hora de
pendurar o avental.
— PENDURE VOCÊ SEU AVENTAL, SEU PEDAÇO
DE MERDA! — Eu grito com o juiz.
May ri, o que se transforma em um bocejo quando ela diz:
— Acho que, se já estamos gritando com a TV, é hora de ir
para a cama. — Ela pausa o show. — Você pode ficar no meu
quarto e eu durmo no do meu pai.
Meu coração afunda, mesmo que não haja motivo algum
para dormirmos no mesmo quarto.
— Ele não vai voltar para casa esta noite?
— Ele acabou de mandar uma mensagem. — Ela ergue o
telefone. — Eles o estão mantendo lá durante a noite para que
ele possa estar na TV, para cumprimentar o público na manhã
de Natal.
— Isso é péssimo.
— Sim, mas as pessoas estarão esperando que Greg Stern
esteja lá quando acordarem na manhã de Natal. Especialmente
depois de uma nevasca.
— É uma loucura que seu pai tenha anúncios de ônibus
espalhados pela cidade.
— Eu sei. Eu odeio isso.
Nós nos levantamos do sofá enquanto Raphael se
espreguiça e fica de pé em suas pernas curtas. Nós o deixamos
sair para a varanda por cerca de meio segundo para fazer cocô
na neve imaculada, e quando ele trota para dentro, May bate a
porta.
As coisas parecem normais de novo, o que é uma maneira
engraçada de descrever qualquer parte de dormir na casa de
uma garota que eu conheci há menos de duas semanas por meio
de um atropelamento. Mas mesmo assim, é normal. É tudo
normal.
Uma vez que estamos lá em cima, May me acompanha até
seu quarto. É vazio e genérico, nada do que eu esperaria dela.
Ela deve ver meu rosto, porque ela justifica:
— Meu quarto na casa da minha mãe, em Ithaca, é muito
mais bonito. Há coisas nas paredes, para começar.
— Sim, é muito sombrio aqui. — Eu falo, olhando para as
paredes brancas nuas.
— Eu me recusei a decorá-lo quando meu pai se mudou há
muitos anos, agora eu simplesmente não estou com vontade.
— Mau vai até a cama e puxa o edredom, então abre o armário
e pega outro cobertor. — Acho que você não gostaria de
dormir em meus lençóis usados.
— Hm, obrigada. — Eu agradeço, mas não era nisso que eu
estava pensando.
— Há toalhas naquele armário, se você quiser tomar banho,
mas estou muito cansada, então acho que vou para a cama.
— Tudo bem. — Eu respondo, me sentindo estranha, como
se eu tivesse adormecido em um trem e perdido minha parada.
Sento-me na cama, no edredom limpo, mas May não sai do
quarto. Ela permanece na porta, encostada no batente.
É muito, muito silencioso. Nenhuma criatura está se
mexendo.
Ela quer que eu diga alguma coisa? Ela quer dizer alguma
coisa? Não faço ideia, mas posso sentir meu corpo começar a
tremer, mesmo estando quente há horas.
Depois de um minuto sem nada, ela diz:
— Boa noite, Shoshana Adeline Levine.
Eu sorrio e respiro.
— Boa noite, MayIlana Stern.
Ela sorri de volta, mas ainda não se move. Acho que ela pode
querer dizer outra coisa, mas depois de alguns segundos ela
levanta a mão em um tchauzinho desajeitado. Então, May
fecha a porta.

Por mais que eu tente, não consigo dormir. Já faz pelo menos
meia hora desde que May me deixou em seu quarto, mas eu
continuo pensando em como estamos separadas somente por
uma parede. Seria tão fácil para algo acontecer. Eu poderia
invadir o quarto do pai dela e dizer: “O que estamos fazendo
aqui?” e depois… quem sabe?
Poderíamos nos beijar.
Provavelmente nos beijaríamos.
Eu poderia beijá-la, se ela quisesse. E eu acho que ela quer.
Talvez ela esteja pensando a mesma coisa. Talvez ela esteja
esperando que eu saia deste quarto e entre no do pai dela.
Mas eu realmente não sei o que ela está pensando.
E isso já me colocou em apuros antes.
Então, eu não faço absolutamente nada.
E, eventualmente, eu adormeço.
Pensando nela.
Você é Ho Ho Sem Esperança

Acordo com o sol no rosto e mantenho os olhos fechados


enquanto me espreguiço, preparando-me para passar o dia
evitando Beatrice e contato com humanos em geral.
Então me lembro de duas coisas muito importantes:

1) Não estou na cama de Beatrice.


2) Estou, de fato, na cama de May.

Eu pulo para fora dela, me sentindo constrangida, como se


a cama pudesse saber sobre minha paixão. Minhas roupas de
ontem estão em outro lugar, talvez na secadora, então saio do
quarto de May com seu moletom da Cornell. Eu acho que vou
descer, vestir minhas roupas, voltar para a casa de Beatrice e
fazer o possível para esquecer o que aconteceu ontem à noite.
Mas antes que eu possa fazer qualquer coisa sobre pegar
minhas roupas e ir embora, encontro May na cozinha, e o que
quer que aconteceu entre nós ontem à noite parece, de repente,
imensamente real.
— Tem café na cafeteira francesa. — diz ela sem tirar os
olhos do jornal. Seu cabelo está desgrenhado e seu rosto está
inchado: seus olhos, seus lábios, suas bochechas, seus lábios, sua
testa, seus lábios.
O quê?
Não se preocupe com isso.
— Obrigada. — Eu agradeço, mas as primeiras palavras da
manhã são ásperas, então eu limpo minha garganta e digo
novamente, em uma voz mais profunda: — Obrigada.
Então ela olha para cima e sorri.
— Se você não quiser uma caneca com o rosto do meu pai,
há algumas vermelhas no armário acima da cafeteira francesa.
Esfrego os olhos e pego uma caneca sem o rosto do pai dela,
depois me sirvo de uma xícara de café.
— Há também leite de aveia e creme de leite. — Ela
acrescenta.
Eu tropeço na tigela vazia de Raphael no meu caminho para
a geladeira e me seguro no balcão.
— Porra, espere, você alimentou o cachorro? — Eu
pergunto.
— Alimentado e regado. Ele está cochilando aqui.
— Regado? Desculpe, ele é uma planta?
May revira os olhos e eu olho para onde ela está apontando,
logo além da mesa da cozinha. Raphael está cochilando ao sol,
dando pequenas fungadas e bufadas enquanto sonha. Ele está
de costas, suas patas brancas descansando em seu torso robusto.
Eu gentilmente coço atrás de suas orelhas, e ele uiva
sonolento, mas não acorda.
— É um bom menino. — digo a ele, só porque ele é um
menino muito bom.
Ele está no melhor lugar da cozinha, com a luz quente da
manhã cobrindo todo o seu corpo. O sol está refletindo sobre
pilhas de neve fresca, tornando-a tão brilhante que é quase
difícil olhar para fora.
— É incrível que você tenha mantido este cachorro vivo sem
qualquer ajuda. — Eu observo quando me levanto do local de
cochilo de Raphael.
— Você acha que sou capaz de matar um cachorro?
— Não de propósito. Mas por, tipo, negligência.
— Cale a boca e beba seu café. — May retruca, balançando
a cabeça e sorrindo. — Levaria mais de um dia para minha
negligência surtir efeito.
— Ha ha. — Despejo um pouco de leite de aveia na xícara e
me sento à mesa, colocando minhas pernas na cadeira e
cruzando uma embaixo de mim.
Observo May por um minuto, o jeito que ela está lendo o
jornal e segurando sua caneca para se manter aquecida.
A cena toda é tão doméstica. Sentadas em sua cozinha,
tomando café, um corgi dormindo ao nosso lado. Isso aperta
meu coração de uma forma que parece estranhamente
nostálgica, como se eu já tivesse estado aqui antes. Como se
estivéssemos de volta à exposição colorida que vimos no museu.
Como se eu tivesse passado uma vida inteira nesta mesa em uma
manhã de neve.
Eu não tenho ideia de como estamos depois da noite
passada. Voltei a pensar que era tudo um sonho coberto de
neve. Tenho oitenta por cento de certeza de que não dançamos
uma música lenta – essa parte parece particularmente
inacreditável.
A única maneira que eu sei que não foi inteiramente um
sonho é que eu ainda estou usando seu moletom da Cornell.
Mas o resto pode ser, tudo da noite passada. Agora que é um
novo dia, voltamos às nossas brincadeiras habituais.
— Você quer uma seção? — May pergunta depois de um
minuto. Ela dobra a parte do jornal que estava lendo na ordem
certa
— Claro.
— Qual delas?
— Qualquer uma. — Então, quando ela começa a puxar
uma seção: — Espere, você tem Artes e Lazer? — May assente
e me entrega. — Eu gosto de fazer as palavras cruzadas. — Eu
explico.
— Você é boa nisso?
— Bem, estou pedindo as palavras cruzadas de sábado, não
estou?
— Eu não tenho idéia do que isso significa.
Abro o jornal no jogo de palavras cruzadas e o dobro. May
aproxima sua cadeira de mim para que ela possa ver também.
Eu coloco minha perna para baixo da cadeira para ter certeza
de que não tocará a dela.
— Elas ficam mais difíceis a cada dia, de segunda a sábado.
Sábado é como um nível mais difícil. Eu só terminei sozinha
uma vez. — Examino as pistas, procurando uma para começar.
— Minha bisa era uma gênia das palavras cruzadas, no entanto.
Ela poderia terminar a de sábado em meia hora, às vezes menos.
Ela sempre me ligava se houvesse uma pista que ela não sabia.
Uma “pista de jovem”, ela dizia. Geralmente sobre abreviações
de mensagens de texto.
— Eu amei isso. — May fala. — Vamos começar.
— Você quer fazer as palavras cruzadas?
— O que mais nós temos para fazer agora?
Ela disse “nós”, o que faz meu coração saltar do peito direto
para o jornal.
— Nada, eu acho. Mas seu pai não vai voltar logo? Eu
provavelmente deveria ir embora antes. — Mas não me levanto
da mesa. Eu não me movo.
— Meu pai mandou uma mensagem mais cedo. Ele não vai
voltar para casa antes do programa da manhã, então ele estará
de volta no final da tarde.
Eu a encaro.
— Se fizermos as palavras cruzadas, você tem que seguir
minhas regras. Você não pode pular de coluna em coluna até
encontrar algo que possa preencher.
May coloca uma mão no peito e outra no ar.
— Eu juro obedecer às suas regras pedantes de palavras
cruzadas.
— Cala a boca. — Eu digo, balançando a cabeça.
— Deixe-me pegar uma caneta.
Ela se levanta e abre uma gaveta perto da cafeteira. Eu a
observo. Ela está de pijama: uma camisa de manga comprida
que diz “Ithaca” nas costas em letras brancas e calças de lã com
pinguins esquiando e participando de vários outros esportes de
inverno.
Sadie nunca me deixou vê-la de pijamas, eu só dormi no
quarto dela algumas vezes, mas ela sempre se levantava antes de
mim, se vestia e se maquiava. Isso me estressava, mas achei que
fosse normal. Eu pensei que se você realmente gosta de alguém,
você não deve vê-la antes que ela esteja pronta para ser vista.
May coloca a caneta na minha frente e começa a ler as dicas
para si mesma.
— Acho que não sei nem um único desses.
— Ok, não é verdade. — Eu digo. — Vamos encontrar um
fácil. — Eu escaneio as dicas. — Tudo bem, este é apenas um
fato. Esses são mais fáceis. “Claras de ovo, cientificamente
falando”.
— Você acha que eu sei disso? Sou formada em ciências
atmosféricas.
Eu rio e escrevo albumina.
Depois conto a ela que se uma pista terminar em ponto de
interrogação, a resposta será algo mais irreverente e divertido;
você tem que pensar fora da caixa. Isso ajuda May um pouco,
mas não muito. Eu examino as palavras cruzadas e preencho
mais algumas palavras, e então May finalmente completa uma
coluna.
— Meu cérebro dói.
— Você acertou esse último!
— Se eu não acertasse, estaria preocupada comigo mesma.
— (A dica era “Muppet que toca banjo”: Kermit.)
Depois de preenchermos mais algumas palavras, somos
capazes de descobrir algumas das grandes dicas. Há várias que
terminam com pontos de interrogação e são sobre o Natal, e
descobrimos que todas elas contêm as palavras ho ho ho.
— Geralmente, há algumas dicas relacionadas a outras
palavras cruzadas, de outra edição. — explico à May. — E se
você descobrir um, ajuda a encontrar o resto. Vamos tentar
isso. — Leio uma dica:
— "O que a Sra. Claus disse quando o marido dela esqueceu
de abaixar o assento do vaso sanitário?”
— Bem, sabemos que há “ho ho ho” em algum lugar. —
May responde, olhando para as palavras cruzadas com intensa
concentração.
Eu conto as caixas para a resposta. É longa, mas há algumas
letras preenchidas, o que ajuda. Mesmo assim, não consigo
entender direito.
— Puta merda! — May grita depois de um minuto. —
CONSEGUI, CONSEGUI, CONSEGUI. — Entrego-lhe a
caneta e ela escreve freneticamente a resposta. — “Você é ho ho
sem esperança.” Foi o que a Sra. Claus disse!
Eu observo, a palavra se encaixa. Além disso, é confirmada
por várias outras dicas que já respondemos indo na outra
direção.
— Oh, meu Deus! — Eu exclamo. — Estou profundamente
impressionada.
Ela se levanta e começa a pular gritando:
— EU CONSEGUI, CONSEGUI, CONSEGUI. TOMA
ISSO. EU CONSEGUI, PORRA! — Então Raphael salta de
seu local de cochilo e começa a latir, e eu sou arrastada pelo
espírito das palavras cruzadas e me levanto também, pulo um
pouco, e estendo a mão para dar um high five com May. Ela me
puxa para um abraço e eu não luto contra isso, e May continua
pulando por um momento enquanto se agarra a mim, e tudo o
que posso fazer é rir, segurá-la e tentar não surtar.
Então paramos de pular e continuamos agarradas uma à
outra.
May se afasta. E eu a deixo ir.
Não sei o que fazer porque é o mais próximo que cheguei do
sentimento da noite passada. Quando estávamos dançando.
Quando eu estava adormecendo pensando em como algo
poderia acontecer.
— Vou fazer um ovo para você. — May fala do nada,
esfregando as mãos na calça do pijama. — A dica “claras de
ovo” me deixou com fome. — Ela não olha para mim.
Sento-me à mesa.
— Você não quer terminar as palavras cruzadas?
O clima acabou. A sensação doméstica e tranquila da manhã
se foi. Puf. Escapou-se.
— É muita emoção para mim.
— As palavras cruzadas são muita emoção para você? — Eu
pergunto. — Você tem cem anos? Além disso, espere, por que
você está fazendo um ovo? Como você sabe que eu gosto de
ovos? — Eu tento trazer nossas brincadeiras antagônicas de
volta, na esperança de que isso faça o constrangimento ir
embora, mas parece artificial. Isso não me impede de tentar. —
E se eu for mortalmente alérgica?
Ela pega uma panela.
— Você é mortalmente alérgica?
— Não. — Eu respondo. — Eu amo ovos.
— É claro. — Ela coloca manteiga na panela e acende o
fogão.
Eu tento preencher mais palavras cruzadas, mas estou
distraída. Por causa de May. Pelo chiar da panela, pelo jeito que
ela se apoia em uma perna e estica o pescoço para checar os
ovos.
Depois de um minuto ela coloca um ovo frito na minha
frente, perfeitamente cozido, coberto de sal e pimenta. Então
ela frita um para ela e lê outro artigo, enquanto eu alterno entre
olhar para ela e para as palavras cruzadas.
Não consigo me concentrar.
Quando May termina de comer seu ovo, ela se levanta e
começa a lavar a louça. Eu gosto que ela faça a limpeza
imediatamente, mas não gosto que ela esteja fazendo isso para
ficar longe de mim.
Eu me levanto também.
— Existe um pano de prato que eu possa usar para secar?
— Você não precisa fazer isso.
— Mas eu quero.
Ela olha para mim, com as mãos na pia, e acena em direção
ao forno.
— Basta usar o que está na porta.
Eu pego e seco os pratos depois que May os lava. Nós não
nos falamos, mas temos um bom sistema funcionando.
Quando terminamos, esfrego as mãos na calça de moletom
da Cornell que estou usando e pergunto:
— Vamos participar do Natal judaico hoje?
— O quê?
— Judeal, se você preferir.
— O fato de serem duas palavras separadas não foi a fonte
da minha confusão. — May ironiza enquanto se joga de volta
na mesa.
Eu entro em confusão também.
— Agora estou confusa, - você não costuma comemorar o
Natal judaico com sua mãe?
— Quero dizer, nós assistimos filmes e comemos comida
chinesa, mas…
Soltei um enorme suspiro melodramático.
— Ah, graças a Deus. Eu pensei por um segundo que você
não sabia do que eu estava falando.
— Ainda não!
— Bem, é Judeal, só que com outro nome...
— Você pode parar de dizer “Judeal”? Soa ruim.
— Nunca. — Eu me inclino em direção a ela com os
cotovelos sobre a mesa. — Especialmente porque é isso que
vamos fazer hoje: assistir filme e comer comida chinesa,
enquanto o povo está lá dentro trocando presentes ou
planejando dominar o mundo, ou seja lá o que eles fazem no
Natal.
— Então estamos falando da mesma coisa?
— Sim, mas o meu se chama Judeal.
— Você sabe que é totalmente impossível conversar com
você, certo? — Ela balança a cabeça e olha para o telefone,
depois se levanta da mesa. — Falando nisso, preciso ligar para
minha mãe. Eu vou fazer isso super-rápido, então talvez
possamos procurar quais filmes estão passando?
— Soa bem. — Volto às palavras cruzadas, que de alguma
forma não se tornaram magicamente mais preenchidas desde
que começamos a trabalhar nele.
— Você vai ligar para sua mãe também? Desejar a ela um
feliz “Judeal” ou algo assim? — May pergunta enquanto entra
na sala. — Pergunte a ela qual é a contagem de corpos que ela
atropelou com seu carro até agora.
— Ha ha. — Eu digo, olhando para o chão. — Eu só vou
mandar uma mensagem para ela mais tarde.
— Ela não está forçando você a ligar? Que tipo de mãe judia
ela é?
— Ela não está me forçando a ligar, não. — Então eu
acrescento: — Está tudo bem. — e May não insiste mais.
May vai para a sala e eu finjo me concentrar nas palavras
cruzadas, mas na verdade estou ouvindo a ligação. Não consigo
entender muitas palavras, mas o tom é claro. May está falando
com sua mãe gentilmente, com tanto amor. É o oposto de
como eu a ouvi falar com o pai. Sua voz é mais alta, mais doce.
Começo a me sentir muito mal com o nível de comunicação
que minha mãe e eu temos (e de quem é a culpa, Shani?), então
pego meu telefone e mando uma mensagem para ela.

EU: feliz Judeal

Isso é uma coisa que minha mãe tem a seu favor: ela sabe o
que quero dizer quando digo isso. Porque foi ela quem
inventou essa palavra.
Um minuto depois, ela escreve de volta.

MÃE: Feliz Judeal, docinho<3

Eu sorrio para o meu telefone, então rapidamente desfaço o


sorriso enquanto May volta para a cozinha.
— Como está sua mãe? — Eu pergunto, porque isso parece
algo legal e cortês de se fazer, e eu estou tentando o meu melhor
para imitar essas pessoas legais.
— Ela está bem, está ótima. — May se senta e puxa as
palavras cruzadas para ela. Acho que ela está de volta. Ela franze
as sobrancelhas quando vê que eu não preenchi mais nada.
May morde o lábio, pega a caneta e paira sobre um espaço
em branco nas palavras cruzadas.
— Ela estava apenas me perguntando como vou comemorar
o Natal. E, tipo, como eu vou comemorar meu aniversário. —
ela diz a última parte casualmente enquanto empurra as
palavras cruzadas de volta para mim.
— Espere, é seu aniversário?
— Quarta-feira. — Ela responde. — Dia 29. Daqui a alguns
dias. — Ela desfaz o coque e prende o cabelo no alto da cabeça,
depois o deixa cair ao redor do rosto.
A briga que ouvi passa pela minha mente, aquela em que o
pai dela argumentou que May ainda era uma criança, que ela
não tinha escolha sobre ficar com ele.
— Bem, feliz quase aniversário! — Eu desejo. Não insisto no
assunto, mesmo achando que ela não teria tocado no assunto
se não quisesse que eu soubesse. — Devemos ver quais as
atrações para hoje?
— Sim. — May pega seu telefone e digita algo. — Há um
teatro de arte na rua. Como o resto dos teatros, teríamos que
pegar o metrô e, entre a nevasca de ontem e hoje ser Natal,
prefiro evitar, se estiver tudo bem para você.
— Sim, eu concordo.
Ela olha para o telefone por mais um segundo e depois diz:
— Bem, só tem um filme passando no cinema, então acho
que não temos escolha.
— Alguma coisa que eu teria ouvido falar?
— Definitivamente não. Chama-se Namorado da Vovó e
literalmente tem uma crítica. O Northern Virginia Daily deu
três de cinco American Foxhounds.
— Impossível superar isso. — Eu digo. — Exceto com
quatro ou cinco American Foxhounds, eu acho. — May bufa.
— Ok, vamos assistir esse aí.
— Você precisa de mais roupas emprestadas? — Ela
pergunta. — Temos que sair em vinte minutos.
— Posso usar as que usei ontem.
— Bem, mas — May diz, esfregando a nuca. —, eu não as
coloquei na secadora.
— Tudo bem. — Eu digo a ela. — Elas provavelmente estão
secas agora, certo?
— Você pode verificar, estão na lavanderia.
Eu vou, e elas não estão. Se é possível, as roupas estão ainda
mais úmidas do que ontem.
Eu me esgueiro de volta para May, que sorri.
— Precisa de roupas emprestadas?
— Sim, tudo bem, tanto faz.
Ela me olha de cima a baixo, e eu tenho que me impedir de
sorrir.
— Acho que somos mais ou menos do mesmo tamanho. —
Ela fala. — Você pode pegar mais roupas emprestadas. Com
uma condição.
— Qual?
— Eu escolho.
Eu reviro os olhos.
— Ok. Mas você não tem, tipo, uma camiseta e jeans que eu
possa usar?
— Eu tenho.
— Mas não é isso que você tem em mente, né?
— Não!
E com isso ela corre para cima. Eu a ouço vasculhar
freneticamente suas gavetas, o que não pode ser um bom sinal.
May desce alguns minutos depois e, como na noite passada,
há uma pilha de roupas bem dobradas em suas mãos.
— Não será ruim. — diz ela. Quando ela vê o olhar no meu
rosto, acrescenta: — Eu prometo!
Pego as roupas, não acreditando muito nela, e bato a porta
do banheiro do corredor.
Em uma reviravolta chocante, ela está certa: não é ruim. Eu
nunca usaria essas roupas. Eu provavelmente descreveria meu
estilo como discreto a ponto de desaparecer diretamente no
fundo. E nada sobre essa roupa – calça de sarja listrada verde-
azul-e-vermelho de cintura alta e um grande suéter vermelho de
tricô – vai me fazer desaparecer, seja lá para onde estivermos
indo.
As calças são um pouco curtas, então eu dobro a bainha e
depois fico na frente do espelho com as mãos nos bolsos muito
grandes.
É um ajuste extremamente gay.
Mas talvez isso não tenha sido de propósito. Talvez May não
seja queer e eu tenha interpretado mal toda a situação.
Mas talvez seja verdade.
E talvez ela seja queer.
— Isso ficou bem em você. — May diz casualmente quando
eu saio do banheiro, como se isso fosse uma coisa normal de se
dizer a alguém.
O que, tipo, pode ser. Não sei. Meu cérebro está quebrado.
— Nós provavelmente deveríamos ir agora.
— Sim. — Ela concorda, calçando as botas. — Deixe-me
apenas trancar o portão para que Raphael não fuja.
— Você acha que ele vai tentar fazer uma festinha na
cozinha?
— Honestamente? Sim. Esse cachorro é arteiro.
Ela tranca o portão e coloca a mão na cabeça dele, como se
fosse um alienígena que foi informado de que é um costume
humano acariciar cães. Em resposta, ele fica vesgo e tenta comer
o portão de madeira.
— Claramente um gênio do mal. — Eu digo apontando
para Raphael, que ainda está alegremente atacando as barras.
Quando saímos está ensolarado e ameno, mas é quase
impossível sair de casa; há mais de 30 centímetros de neve
empilhada na frente da porta. Nós cavamos e nos arrastamos
pela lama até chegarmos a uma parte da calçada que algum bom
samaritano limpou esta manhã.
Deveria ter levado apenas alguns minutos para chegar ao
teatro, mas a espessa camada de neve a transformou em uma
caminhada completa. Mesmo assim, é bom estar do lado de
fora e não quase morta, como ontem à noite. Nada pode
amortecer meu ânimo no meu dia de liberdade judaica. Não é
nem barateado pelo fato de ser sábado. Digo isso para May,
como me sinto livre.
Ela se vira para mim enquanto atravessamos a rua e respira
fundo.
— Eu também.
O cinema é um pequeno prédio de aparência clássica, com
uma escultura Deco saindo do toldo, anunciando “Namorado
da Vovó” e “Feliz Aniversário, Axel!”.
Quando entramos, todos estão aguardando no saguão,
esperando que as portas se abram para a única sala de cinema.
Quando olho ao redor, algo me ocorre. Eu me inclino para May
e sussurro:
— Nós somos as mais jovens aqui?
Ela examina a multidão e abafa uma risada.
— Uma diferença de cinquenta anos, eu acho.
A clientela é composta inteiramente pelo que parecem ser
casais judeus idosos. Na verdade, cem por cento das pessoas no
cinema, exceto eu, May, e a pessoa do ingresso/lanche, têm
mais de setenta anos.
Quando caminhamos até a bilheteria, o funcionário parece
levemente surpreso ao nos ver.
— Você sabe que estamos apenas apresentando "O
namorado da vovó", certo? — Ele pergunta. — Tipo, apenas
verificando.
— Ah, nós sabemos. — responde May. — Dois ingressos?
— Hm, claro. — diz a pessoa.
— Estou pagando. — May me diz enquanto o funcionário
imprime um par de bilhetes. Começo a discutir, mas ela me
interrompe. — Não insista comigo. Meu pai me deu dinheiro
hoje, e eu vou gastar cada centavo. — Ela tira uma nota de cem
dólares. — Sério, não discuta comigo.
Eu não discuto e alguns minutos depois, as portas do
cinema se abrem e encontramos nossos lugares.
O filme é sobre uma criança que faz uma viagem para
Tucson com sua avó para visitar o novo namorado dela. Não é
para ser engraçado, eu não acho, mas May e eu não
conseguimos parar de rir, a ponto de as outras pessoas no
cinema nos darem olhares de reprovação.
Depois do filme, há um êxodo em massa de frequentadores
de cinema para um restaurante chinês próximo, e May e eu
também vamos para lá. Pedimos rolinhos de ovo e macarrão
com ovo, legumes, arroz integral e tofu agridoce. Está quente e
perfeito, no final da refeição me sinto satisfeita por ter comido
como um bom judeu.
— Ainda temos um pouco de tempo antes que meu pai
chegue em casa. — May diz enquanto fechamos nossos casacos
e saímos do restaurante. — Quer levar o cachorro para passear?
— Você quer levar Raphael para passear? — Eu pergunto.
— “Querer” é uma palavra forte. "Sentir-se obrigada”' é
provavelmente melhor.
— De qualquer forma, é um grande passo. Primeiro vem
um senso de obrigação, depois disso, o amor. Você vai
amaaaaaaar Raphael.
— Nunca.
— Você vaaaaaiiiii. — Eu insisto com uma voz cantante.
— Cale-se. — Ela me empurra levemente com o ombro
enquanto caminhamos, com as mãos nos bolsos, de volta para
sua casa.
Eu entro e pego a coleira de Raphael. No segundo em que
ouve o menor indício da coleira de metal, o cachorro
enlouquece. Ele salta no ar de quatro. Tipo, ele nem pula nas
patas traseiras. Ele está tão animado que voa, sem uma única
pata minúscula no chão. É surpreendente.
— Oh, merda. — May fala logo antes de sairmos.
Estou preocupada que seja algo sério, talvez sobre o pai dela,
mas então ela diz:
— Precisamos colocar as botas dele.
— Colocar o quê?
— Suas botas de neve.
Ela pega uma cesta perto da cama de Raphael e tira dois
pares de botas vermelhas e pretas e uma jaqueta combinando.
— Ele precisa usá-los na neve. É uma ordem de Greg. E o
casaco também.
May revira os olhos, e eu me abaixo e coloco as botas uma
de cada vez. É uma tarefa incrivelmente difícil, porque Raphael
está muito animado e continua tentando fugir. Então, eu o
pego no colo, envolvo meus braços ao redor de sua barriga e
estico o casaco sobre suas orelhas gigantes. Eu puxo suas patas
cobertas pelos buracos dos membros e coloco o capuz – que
tem até duas fendas para as orelhas – sobre sua cabeça.
Quando ele está todo pronto, saímos.
— Porra, isso é fofo. — Eu digo enquanto observamos
Raphael tentar andar na neve em seu casaco e botas. Ele
continua esticando as patas traseiras atrás dele e levantando as
patas dianteiras o mais alto que pode, como uma pessoa
andando de nadadeiras.
— Infelizmente, tenho que concordar. — May fala.
— Para onde vamos?
— Que tal aquele pequeno parque a alguns quarteirões?
Raphael se acostuma um pouco com as botas enquanto
caminhamos até lá, mas não muito. O capuz desliza sobre seus
olhos e ele começa a uivar, então eu o puxo para baixo para um
visual mais casual. A coisa toda permanece adorável durante
nossa caminhada.
Mas May e eu estamos bem quietas. Algo está errado.
— Quanto tempo você acha que levou para colocar essas
decorações? — Pergunto para preencher o silêncio enquanto
passamos por uma casa coberta de luzes, bastões de doces,
bonecos de neve infláveis e quase todos os outros símbolos de
inverno ou Natal imagináveis.
— Muito tempo. — responde May.
Eu respiro.
— Acho que hoje é o melhor dia do ano para ser Ju…
— Se você disser “Judeal” mais uma vez…
— Bem, sim, Judeal faz parte disso. Mas é mais do que isso.
Você não acha que o Natal é super estressante para as pessoas
que o celebram? Tipo, tem que ser uma comemoração em
família perfeita. Você tem que esconder verdades duras sobre o
Papai Noel de seus filhos; tem que estar cem por cento
preparado. Nós não temos que lidar com nada disso.
— Mas isso é parte da diversão, você não acha? É isso que
faz do Natal um grande negócio.
— Prefiro não ficar estressada por dois meses no ano. Acho
que não vale a pena por um dia.
— Eu não sei, é meio legal.
— Acho que esse é o milagre do judaísmo, o fato de não
termos que lidar com isso.
— Acho que não odeio o Natal tanto quanto você.
— Eu não odeio o Natal. — Eu digo, empurrando-a
suavemente quando chegamos ao parque. — Eu odeio que seja
uma produção tão grande.
E então algo colide com meu rosto. Algo frio, úmido e
redondo.
— VOCÊ ESTÁ BRINCANDO COMIGO? — Eu grito
com May, que está rindo e formando outra bola de neve.
Eu amarro a coleira de Raphael no banco e corro atrás de
May, pegando neve no caminho. Não há ninguém por perto e
estamos longe da estrada, então nem tento tomar cuidado.
— Isso foi GOLPE BAIXO. — grito enquanto jogo uma
bola de neve em May e erro.
— Não, isso é! — Ela fala e joga uma bola de neve nos meus
joelhos.
Eu grito, e ela corre em minha direção. Eu tento fugir, mas
a neve está muito profunda e eu caio nela. Ela tropeça em mim
e cai também.
Está congelando, mas nós duas respiramos com dificuldade
e não nos movemos de onde afundamos na neve. Ela olha para
mim, todo o rosto coberto de gelo.
Começo a rir e não consigo parar, o que a faz rir também.
— Você… está… rindo… de mim?
— Sim! — eu afirmo, uma dor se formando na minha
barriga.
Ela empurra meu ombro, e eu a empurro de volta. Estamos
afundando cada vez mais, nossas roupas ficando ainda mais
encharcadas.
E, de repente, seu rosto está perto do meu. Tão, tão perto.
Nós duas paramos de rir.
Ela olha para minha boca, seu rosto meio submerso na neve.
Eu olho para a dela também.
Ela olha para a minha novamente.
Eu olho para a dela.
Eu não sei o que fazer. Estou quebrada.
Vou morrer aqui na neve porque não sei se essa garota quer
que eu a beije ou não.
E então, ela se inclina.
Ela me beija suavemente no início. Apenas um beijinho.
Então ela se afasta.
E voltamos a olhar uma para a outra.
Foda-se.
Eu agarro suas bochechas em minhas mãos geladas e a beijo.
Seus lábios estão congelando e os meus estão dormentes, então
é um começo lento. Mas depois de um minuto estamos nos
descongelando e nos beijando, e ela está tão quente e macia. Eu
coloco minha mão na neve para alcançar suas costas e a puxo
para mim, há neve por toda parte e Raphael está latindo, nós
não paramos de nos beijar até que nenhuma de nós consiga
respirar.
Então nos separamos.
Estamos sorrindo uma para a outra, e eu começo a me
sentar, mas ela me arrasta de volta para a neve e eu envolvo meus
braços ao redor dela o melhor que posso, e nos beijamos
novamente. Raphael late ainda mais alto e nós duas gritamos
para ele se calar.
May fica de pé e eu a sigo. Ela enfia neve no meu pescoço,
eu grito e enfio neve no dela.
Então ela me empurra contra uma árvore, de costas para a
estrada.
— Merda. — diz ela, recuperando o fôlego, olhando para
mim com os olhos arregalados.
— Porra. — Eu concordo.
E ela me beija, forte, com língua, dentes e sentimentos.
Então, hm.
Acho que isso responde a minha pergunta: parece haver
uma forte probabilidade de que May seja queer.
Meu incrível barista pré-adolescente

Fiz tudo ao meu alcance para não mandar uma mensagem


para May no momento em que acordei. Mas agora que se
passaram algumas horas e eu me dei permissão para enviar uma
mensagem para ela, tento torná-la incrivelmente apática.

EU: quer passear com Raphael comigo hoje?

MAY: sim sim


mas meu pai está me cobrando para passar
um tempo com ele, então você pode vir mais
tarde?

EU: absolutamente

Hm, não foi um super flerte. Mas tudo bem, obviamente,


porque eu estou nervosa, ela está nervosa, o mundo inteiro está
nervoso e esses nervos estão se manifestando em nossas
mensagens.
Então espero o máximo que posso, ficando na cozinha com
Beatrice e Tasha. Estou tendo dificuldade em me concentrar na
conversa até que Beatrice me pergunta o que fiz no Natal.
Ah, você sabe, acabei dormindo na casa de uma garota e
depois dei uns amassos com ela em uma grande pilha de neve no
parque perto da estrada.
— Nada de mais.
— Bem, isso é uma pena. — diz Beatrice com um tsk. — Eu
gritei com meu filho o dia todo por não deixar você vir. Eu não
sei quem o criou, lobos, provavelmente! — Ela joga a cabeça
para trás e ri. — Você ficou presa aqui naquela nevasca? Essa
foi a pior que eu vi desde 1996, você se lembra daquela, boneca?
“A Nevasca de 96”, acho que eles a chamavam assim.
— Ah, hm…
Não acho que seja necessário mencionar que eu tinha anos
negativos em 1996, ou que estava, de fato, presa na nevasca da
véspera de Natal – só não aqui.
Felizmente, Tasha me salva dizendo que Moscou tem
cobertura de neve de novembro a abril, e que a nevasca de
ontem não foi nada, ao que Beatrice responde que “não é uma
competição, boneca”, e Tasha diz que “sim, mas se fosse, eu
venceria”. Isso lhe rende um tapa suave no braço.
O ponteiro dos minutos do relógio com a bandeira italiana
está avançando tão devagar que tenho certeza de que o universo
está tirando uma com minha cara. Eu decidi arbitrariamente às
cinco horas como o momento que eu me permitiria ir para a
casa de May. Então quando 4:59h vira 5:00h, eu digo a Beatrice
e Tasha que tenho que ir passear com Raphael, pego as roupas
que May me emprestou e parto para a casa dela.
Mas não é May quem atende à porta — é Greg. Eu escondo
as roupas de May atrás de mim.
— Obrigado por passear com Raphael na neve no outro dia.
— ele agradece. — Desculpe por fazer você trabalhar no Natal,
mas bem, o tempo nunca tem um dia de folga.
Eu quero dizer que eu quem deveria estar agradecendo a ele,
já que a caminhada levou a um dos amassos mais quentes de
toda a minha vida. Mas obviamente não digo isso, porque seria
a coisa mais louca que qualquer humano já falaria na vida.
Felizmente, May vem até a porta.
— Eu vou sair um pouco. — ela informa ao seu pai
enquanto corre para fora para me encontrar.
Eu tenho um sorriso bobo no meu rosto quando Greg fecha
a porta, deixando eu, May e Raphael sozinhos.
— Ei. — Eu cumprimento, sorrindo para ela e devolvendo
as roupas que ela me emprestou.
— Ei. — Ela sorri de volta para mim. — Obrigada.
Até Raphael parece mais feliz do que o normal em suas
botas de neve e casaco, abanando o rabo e ofegante. Ele solta
pequenos grunhidos e gemidos até que finalmente faz cocô, e
então eu tenho que remover a bomba da cena do crime antes
que Raphael coma (o que não seria a primeira vez).
Estamos de volta ao mesmo parque que fomos no dia de
Natal, mas andando aqui agora, a vibe é diferente. Não estou
muito sociável, e May está mais quieta também. Raphael mal
mexe a bunda na neve. Estamos todos hesitantes, como se
estivéssemos andando em solo sagrado.
Penso brevemente em beijar May, é claro. Mas não parece
certo. E, de qualquer forma, estou feliz apenas por estar ao lado
dela, na neve.
A caminhada é tranquila. (E com isso quero dizer: nada de
amassos na neve, tanto faz, está tudo bem.) Quando é hora de
dizer adeus, demoro um pouco demais na varanda de May.
— Tchau, Shani. — ela diz finalmente, e gentilmente fecha
a porta.
De volta à casa de Beatrice, estou aquecendo um pouco de
arroz que sobrou quando a porta da frente se abre, e Lauren
irrompe, jogando os braços em volta de Beatrice.
Então, a passeadora de cães legítima de Raphael volta à cena.
— Como foi? — Lauren pergunta enquanto deixa sua mala
gigante na cozinha. — Espero que Raphael não tenha lhe dado
muitos problemas. Ou a filha de Greg. Eu realmente não a
conheço, mas sinto uma energia tão carregada toda vez que ela
está na casa do pai.
— Nem um pouco. — Eu falo em uma voz aguda, meu
rosto ficando quente.
Então, eu peço licença e subo as escadas.

Depois que chego em casa do trabalho na segunda-feira – e sim,


passei praticamente o dia inteiro pensando em May enquanto
limpava fósseis frágeis de milhões de anos – recebo uma
mensagem dela.

MAY: então você não passeia mais com


Raphael??

EU: acho que meu dever está cumprido


adeus, doce cachorrinho

MAY: você deveria ter me contado!!


eu pensei que era você vindo para a porta
eu até me arrumei

Quase jogo meu telefone do outro lado do quarto de


Beatrice. Não sei nem o que dizer, mas felizmente não preciso
responder, porque tem mais.

MAY: a outra garota até que é fofa


mas...

Como May está sendo estupidamente corajosa, decido que


deveria ser também. Então eu faço a pergunta que sua última
mensagem parece exigir.

EU: mas o quê?

MAY: mas ela não é a garota de 1,75m (cheguei


perto, né?)
que fica incrível em minhas roupas
e é muito boa nas palavras cruzadas

Estou prestes a voar pelo teto, explodir em chamas e depois


renascer, como uma fênix. De onde veio a coragem de May?
EU: pena que essa garota não existe
eu tenho apenas 1,73m

MAY: bem, merda


acho que vou perguntar para aquela outra
garota se ela quer um chocolate quente
que não é você
:(

EU: agora?

MAY: sim
me encontra na livraria?
o café fica aberto até às 10

Depois de algum pânico leve e pulando ao redor da sala


sacudindo minhas mãos e pernas, eu coloco meu melhor jeans,
minha camiseta mais limpa e minha única jaqueta.
Há uma livraria-café perto do Big Blue Dog, e eu sei que é
dela que May está falando. Quando eu chego lá, ela está sentada
em uma mesa de canto, sob uma fileira de luzes de Natal
multicoloridas, dois chocolates quentes na frente dela.
— Eu quase não me sentei aqui. — Ela diz enquanto eu
ando até a mesa. — Achei que você poderia se opor
moralmente às luzes de Natal.
— Tudo bem. — Eu me sento. — Elas são bonitinhas,
quero dizer.
Estou perdendo. Não tenho ideia do que ou como dizer.
Estamos em público, juntas.
Coloco as mãos no colo e bebemos nossos chocolates
quentes, sem falar muito.
— O seu estava muito melhor. — Eu digo, e quando ela me
dá um olhar engraçado eu acrescento: — Seu chocolate quente.
Ela se inclina em minha direção, e minha nuca se arrepia
quando ela diz:
— Eles usam achocolatado.
— Tem o gosto. — Eu me inclino.
Sou patética, dezoito anos e neste momento, meu maior
medo é a garota sentada à minha frente.
— Então, como foi o trabalho? — Ela pergunta depois que
eu fico quieta por muito tempo.
— Hm, tranquilo. — Eu acidentalmente bato na perna dela,
então me afasto como se tivesse tocado em uma panela quente.
Ela coloca a coxa para trás e sorri para mim, as sobrancelhas
levantadas. É um desafio.
Então eu sorrio de volta.
E algo muda.
Nós duas tomamos mais alguns goles de chocolate quente,
olhando uma para a outra o tempo todo.
— Na verdade, acho que terminei o meu. — May afirma,
nem um pouco cansada de sua bebida. — Você acha que
acabou o seu? — Seus olhos estão arregalados.
— Sim, acho que sim.
Eu me levanto o mais rápido que posso, raspando minha
cadeira de metal no chão no processo, fazendo com que todos
no café nos encarem.
Tenho certeza de que há uma mancha de suor se formando
em todos os locais possíveis do meu corpo. Tudo que eu quero
fazer é beijá-la, e ao mesmo tempo o pensamento de beijá-la me
faz querer me enterrar na neve.
Corremos para fora, para o estacionamento escuro perto da
entrada dos fundos do café.
No segundo em que a porta se fecha atrás de nós, May me
arrasta até a parede de tijolos ao lado da janela. Eu me pressiono
contra ela para que ninguém lá dentro possa nos ver.
Eu sei o que está por vir. Eu quero isso.
Ela morde o lábio e olha para mim, e eu a puxo pela barra do
casaco. Nós nos beijamos freneticamente, nos controlando
como dá, e quando nos separamos, ela empurra meu cachecol
para baixo e beija meu pescoço. Deixo escapar um pequeno
suspiro e ela me morde. Não muito forte, mas o suficiente.
— Ai, caramba. — Eu rio e a empurro de cima de mim,
então puxo meu cachecol. Mas estou profundamente aliviada,
porque a tensão foi quebrada.
— Desculpe! — ela pede. — Tudo bem? Eu não pude evitar.
Eu aceno e a trago de volta para mim, pela cintura desta vez.
Coloquei uma das minhas pernas entre as dela, tirando seu
gorro vermelho e passando minhas mãos por seu cabelo.
Então eu coloco o gorro na minha própria cabeça, ela ri e
tenta pegá-lo de volta. Mas antes que ela consiga pegá-lo, eu
agarro seus pulsos, envolvo-os em volta da minha cintura e a
beijo com força.
É como se eu fosse uma pessoa diferente, e eu gosto de quem
ela é.
— Eu tenho que ir para casa. — Ela fala, sem fôlego, depois
de um minuto. — Meu pai nem sabe que saí.
— Não… — Eu peço a ela, e ela me beija de novo, no canto
da minha boca, então suavemente nos meus lábios, depois no
outro canto, para equilibrar.
Ela começa a se afastar, andando para trás, ainda olhando
para mim.
— Tchau, Shani.
Um arrepio percorre minha espinha ao som dela dizendo
meu nome em voz alta.
Ela me deixa lá, encostada na parede.
Usando seu gorro vermelho.

Hoje é quarta-feira, dia vinte e nove. Aniversário de May.


Não tenho notícias dela desde segunda-feira à noite, desde a
sessão de amassos no estacionamento atrás da livraria.
Nenhuma mensagem, nada. Eu sei que não é tão estranho.
Tipo, é normal não ter notícias de alguém por um dia útil
inteiro. Está tudo bem.
Enviei uma mensagem para ela ontem, mas era apenas um
vídeo bobo de um corgi famoso do TikTok com botas de neve,
então não é como se ela realmente precisasse responder.
Ok, tudo bem, eu também mandei uma mensagem para ela
uma hora atrás para desejar a ela um feliz aniversário. E ainda
não há resposta para isso também. O que é, claro, totalmente
tranquilo. Ela provavelmente está sendo inundada com
mensagens de aniversário. O meu deve ter se perdido em sua
caixa de entrada.
Mas estou nervosa e no limite enquanto vou para o
trabalho. Paro no The Big Blue Dog antes de pegar o metrô e,
felizmente, meu incrível barista pré-adolescente está lá.
— Shani! — Luke cumprimenta quando eu entro.
Sua saudação me faz sentir um pouco mal.
— Onde você estava no outro dia? — Eu pergunto
enquanto finjo pegar minha carteira, mesmo sabendo que não
vou precisar dela.
— Que dia? — Ele inclina os dois braços contra o balcão e
seu rosto cheio de espinhas está assustadoramente perto do
meu.
Eu tento colocar uma voz semi-sensual enquanto digo:
— Não sei... no outro dia… — mas soa como se eu tivesse
com a garganta seca.
— Pensando em você, provavelmente. — Ele fala e, juro por
Deus, ronrona.
Ele ronronou para mim. Eu quero vomitar.
Mas consigo me segurar. Eu apenas assinto e sorrio.
Então ele diz:
— Vou preparar algo especial para você. — com tanta
ênfase no preparar que fico realmente preocupada.
Ele vai da máquina de café expresso para a geladeira, para a
pia e volta. Eu considero fugir, apenas correr para o metrô e me
deixar ir direto para o inferno pela linha vermelha.
Então ele se vira, e eu dou um sorriso enquanto ele se curva
e oferece:
— Um macchiato para resolver seus problemas, milady.
Ele me entrega o copo de café e eu começo a inclinar minha
cabeça para longe dele, então me controlo.
— Se você abrir a tampa, verá que substituí a espuma por
chantilly.
— Uau! — Eu exclamo, removendo a tampa e descobrindo
que, sim, a maior parte do copo de café está cheia de chantilly
mal pulverizado. E no topo há uma cereja marrasquino. É claro.
— Isso parece ótimo. — continuo, tentando suprimir uma
careta.
— Por conta da casa. — Como se eu alguma vez tivesse
pagado por alguma bebida aqui.
Mas eu agradeço e vou até o metrô, me preocupando com
qual bebida ele vai me fazer da próxima vez.
Quando chego ao laboratório, Mandira já está lá, preenchendo
a papelada. Acho que isso é uma grande parte de seu trabalho,
escrever números em formulários.
— Graham não vem hoje, então vamos ficar absolutamente
loucas. — diz ela sem olhar para cima de seu lugar no banco de
aço inoxidável. — Brincadeirinha, brincadeira. — ela
acrescenta. — Nós só vamos fazer o nosso trabalho.
— Dr. Graham não vem hoje? — Eu pergunto. — Ele
morreu?
Mandira ri.
— Não, ele está doente, o que é quase tão surpreendente
quanto. No início do ano, ele veio trabalhar com uma fratura
no tornozelo. Ele tropeçou no gelo e seu tornozelo ficou do
tamanho de um balão, mas esperou até às seis para ir ao
hospital.
— Jesus.
— Eu sei! — ela concorda. — Então, eu estava pensando...
você quer me ajudar a fazer uma preparação de celacanto?
Puta merda.
Claro que Mandira escolheria hoje para me deixar fazer a
tarefa mais legal. O dia em que estou completamente distraída
por conta de May.
Eu disse a mim mesma no início deste estágio que não ia me
distrair e agora estou prestes a ajudar a preparar um fóssil de
celacanto. Não é hora de pensar em garotas que te empurram
contra as paredes e beijam os cantos da sua boca.
— Sim, claro! — digo a Mandira. — Isso seria incrível.
Ela sorri e dá um tapinha no banco ao lado dela.
Eu fico boquiaberta quando chego na mesa.
— Oh, meu Deus!
— Eu sei.
Porque bem na nossa frente está o que parece ser uma
comunidade inteira de fósseis de celacantos juvenis, cada um
deitado em seu próprio molde de gesso. O espécime que vi no
primeiro dia também está lá, agora cercado por todos esses
outros peixes. Eu mordo a parte interna de minha bochecha.
— Onde era o local da escavação? — Eu pergunto, ainda
maravilhada.
— Boa pergunta. — Mandira pega uma caixa de luvas. —
Na localidade de Waterloo Farm, na África do Sul.
— Não era um estuário Devoniano? — Li alguns jornais
sobre a Fazenda Waterloo. É um local de escavação bastante
famoso para paleo-ictiólogos.
Esses peixes são celebridades.
— Era. — afirma Mandira, sorrindo agora. — Por que a
pergunta?
— Eles provavelmente estavam usando o estuário como
berçário, certo? Se todos esses jovens foram encontrados
juntos?
— Inferno, sim! — Ela fala. — Bem, essa é a teoria geral, pelo
menos.
Meu coração está acelerado, porque embora eu não tenha
sido a primeira a descobrir isso, parece uma descoberta. É o
máximo que conseguimos juntando pistas antigas.
E ainda não sei por qual motivo May não está me
respondendo.
É um pensamento tolo, mas está na minha cabeça e não
consigo me livrar dele.
Mandira me dá algumas escovas e começamos a limpar os
fósseis com muito cuidado, mas mesmo com os bebês
celacantos bem na minha frente, não consigo parar de pensar
em May.
O que então me faz pensar em como ainda nem contei a
Taylor tudo o que aconteceu. Eu ainda estava processando no
domingo, eu ia contar a ela na segunda à noite, mas eu estava
meio... ocupada.
Mas vou contar a ela. Eu preciso contar a ela. Não será como
foi com Sadie, em que eu pensei que nosso relacionamento não
significaria tanto se eu contasse a outras pessoas sobre isso,
pessoas da minha vida pré-universitária.
Vou contar tudo a Taylor sobre May, porque ela é minha
melhor amiga e merece saber. Eu poderia mandar mensagem
para ela, mas prefiro contar pelo FaceTime. Algumas coisas são
grandes demais para mensagens de texto.
Então, todos os meus pensamentos, sentimentos e angústias
sobre May ficaram presos na minha cabeça, prontos para
explodir a qualquer momento. É por isso que, após alguns
minutos de limpeza em silêncio, Mandira me pergunta:
— Você tem novidades? — Imediatamente conto tudo a ela.
Ela já sabia sobre o acidente de carro, sobre passear com o
cachorro e sobre a galeria de retratos, então é fácil atualizá-la
sobre a festa do pijama na véspera de Natal e o beijo. Deixo de
fora os detalhes, obviamente, e não conto a ela sobre o beijo na
parede de tijolos atrás do café da livraria. Eu tento mantê-lo em
segredo.
— Isso é incrivelmente romântico. — diz Mandira. — E eu
não quero dizer que avisei, mas eu avisei.
— Avisou-me sobre o quê?
— Que isso é como um filme da Hallmark! Porque meio
que é! — Eu balanço minha cabeça, mas ela continua. — Ouça,
eu assisti todos os filmes de Natal existentes nas últimas
semanas com minha namorada, e eu poderia basicamente
escrever um roteiro agora. Talvez os bebês celacantos sejam seus
colegas de trabalho divertidos para quem você fofoca quando
seu supervisor – eu – sai da sala.
Eu ri um pouco disso.
— Eu absolutamente fofocaria com os bebês celacantos.
— Igualzinho aos filmes! — Mandira exclama. — Mas,
honestamente, se este fosse realmente um filme da Hallmark,
nós duas seríamos as peculiares ajudantes do personagem
principal irritadiço que retornou à DC para trabalhar na
fazenda de chocolate quente de sua família ou algo assim.
— Fazenda de chocolate quente? — Eu pergunto, sorrindo.
— Por que parece que foi seu corretor que escreveu o roteiro?
— Vou levar isso como um elogio. — brinca Mandira. —
Porque meu corretor não colocaria uma judia gay ou – Deus
me livre – um hindu pardo gay em um filme de Natal.
— Você não está errada.
Eu já tentei mapear minha vida no enredo de uma comédia
romântica, tentei fazer com que ela se encaixasse na fórmula,
espremendo-a em um lugar ao qual ela não pertence.
— A essa altura, eu gostaria que as coisas fossem mais como
um clássico filme americano, protestante, confortável,
natalino, com uma fazenda de chocolate quente. — falo para
Mandira, que me dá um olhar questionador. — Porque eu
honestamente não sei o que está acontecendo conosco agora.
Eu estou tão estressada. Faz 36 horas que ela não me responde.
— Isso não é muito tempo. — Mandira aponta. — E você
não disse que era aniversário dela hoje? Ela provavelmente está
ocupada com amigos ou algo assim.
— Sim. — Eu concordo. Mas eu não sei. Acho que May não
tem amigos em DC. Ela me disse que não tinha.
— Ela provavelmente está descobrindo como ela se sente
também. — Mandira acrescenta, claramente tentando me fazer
sentir melhor.
Não funciona.
O dia passa rapidamente depois disso (certificamo-nos de
evitar qualquer discussão adicional sobre relacionamento), e
quando saio do laboratório, tento ligar para Taylor, mas ela não
atende.

TAY: ligue mais tarde!


noite da família Catan
se eu não pegar a estrada mais longa eu vou
morrer

EU: KKKK desculpa te distrair


divirta-se

Claro, Taylor não pode falar, e eu não tenho vontade de ir


direto para casa, então ando um pouco. E quando isso não me
distrai dos pensamentos sobre May, faço algo selvagem.
Eu ligo para minha mãe.
Ela atende no primeiro toque.
— Oi, querida.
— Oi. — Eu respondo e, de alguma forma, minha voz soa
irritada, embora eu não esteja. Ainda.
— O que está acontecendo? Como foi o Judeal? Você já se
preparou para a véspera de Ano Novo?
— O que eu preciso fazer para me preparar? — Eu
resmungo, então imediatamente quero uma segunda chance,
para tentar novamente com um tom mais suave.
— Refletir sobre o seu ano, talvez. Pense em suas resoluções.
— Eu não vou fazer isso.
Paro de andar e coloco a mão na testa, me sentindo furiosa
comigo mesma. Porque esta é a segunda vez no mês que fui
uma vadia com minha mãe por causa de uma garota e é a
segunda vez que eu não posso contar a ela sobre isso.
Então eu me preparo e tento ser legal.
— Você foi ao cinema no sábado? — Eu pergunto.
— Claro. — Mamãe fala, ela está claramente tão satisfeita
com o mínimo esforço que eu fiz que eu me sinto ainda pior.
— Apenas o mais novo filme de super-heróis. Foi bom.
— Parece bom.
Há uma pausa.
— Você está se alimentando direito?
— O quê? Sim, me alimentando direito.
— Você precisa que eu mande alguma coisa?
— Não.
— Estou fazendo o jantar agora. — ela conta. — Aconteceu
mais alguma coisa?
— Hm, não. — Eu nego, um pouco surpresa. Geralmente
sou eu quem termina nossas conversas.
— Vou ligar de volta depois que terminar o jantar, preciso
cortar algumas coisas agora.
— Não, está bem.
Penso na minha mãe jantando sozinha. Cozinhando para
uma pessoa só. Não sei mais o que dizer.
— Cuide-se, Shani.
— Tá bem. — E logo antes de ela desligar, acrescento: — Te
amo.
— Amo você também.
Mesmo que a conversa tenha sido estranha, me sinto um
pouco melhor. Bem o suficiente para eu pegar o metrô. Pela
primeira vez durante todo o dia, não estou em pânico por May
ainda não ter me respondido.
E então, porque minha cabeça está uma bagunça, meus
pensamentos encontram Sadie. Se eu não tivesse respondido a
ela o dia todo, se eu não tivesse dito a ela onde eu estava, ela
ficaria brava. Ela sempre queria saber onde eu estava, e eu ficava
feliz em contar a ela. Mas foda-se isso. Foi preciso que ela
terminasse comigo para eu perceber que isso não era saudável.
Que isso não era amor.
Não quero ser assim com May. Se ela não está respondendo,
que assim seja. Não preciso saber onde ela está. Eu gostaria –
tudo bem, claro, óbvio – mas não preciso. Não tenho direito de
exigir essa informação.
Na verdade, estou com raiva de mim mesma. Eu me abri. Eu
fiquei com uma garota que não é Sadie. Eu fiquei com ela duas
vezes, na verdade. E agora ela não está me respondendo.
Isso é o que eu ganho por me permitir ser vulnerável.
Quando chego em casa, corro escada acima para evitar
Beatrice, Tasha e Lauren. Eu nem tento ligar de volta para
Taylor. Não quero fazer isso agora.
Eu desligo meu telefone e leio por um tempo, mas meus
olhos continuam fechando e eu não estou absorvendo
nenhuma das palavras, então escovo meus dentes e me preparo
para dormir.
Antes de adormecer, ligo meu telefone novamente para
definir um alarme e verificar minhas mensagens, uma última
vez.
Abro minha conversa com May.
A mensagem de feliz aniversário nem foi entregue.
Eu não sei o que isso significa. Talvez ela esteja em algum
lugar sem serviço?
Não posso pensar nisso agora.
Então, coloco meu telefone no modo avião para que eu
também não receba nenhuma mensagem.

Eu mergulho de cabeça no trabalho no dia seguinte, o 364º do


ano. Sou gentil, mas meticulosa com os fósseis, removendo
cada partícula de sujeira. O dia passa rápido assim, esfregando
e fazendo um milhão de perguntas a Mandira sobre os
celacantos juvenis que estou limpando. E estou aprendendo,
aprendendo de verdade. Eu posso dizer que ela está feliz em
falar sobre peixes e não sobre meu drama de romance. É bom
fazer o que vim para fazer em DC e fazê-lo bem. Quase não
penso em May. Lembro a mim mesma que não deveria estar
pensando nela.
Sair do trabalho é a pior parte do meu dia, a mais solitária,
quando me despeço de Mandira e vou para casa passar a noite
sozinha.
Ainda sem resposta de May.
E nem consigo me consolar vendo Raphael, com seu
sorrisinho canino e suas perninhas pequeninas e saltitantes.
Esse é o trabalho de Lauren. Nunca foi realmente meu, em
primeiro lugar.
Mais uma vez, vou direto para o meu quarto quando chego
em casa, como se estivesse de castigo, exceto que é auto-
infligido. Como ontem, não consigo me concentrar em ler,
assistir TV ou qualquer coisa. Então, é claro, eu verifico minhas
mensagens com May.
A mensagem ainda não foi entregue. Eu pressiono a bolha
azul e escolho enviá-la novamente. Então agora está verde, e não
há como saber se ela recebeu, estou começando a pensar que
talvez eu devesse ir até a casa dela para ter certeza de que ela está
bem. Ela não pode me culpar por verificá-la.
Decido que é uma boa ideia — ou talvez me iluda pensando
que é —, mas ainda demoro um pouco para criar coragem para
caminhar os poucos quarteirões até a casa de May.
Eu bato na porta, Raphael começa a latir lá dentro. É um
som confortável e me faz sentir melhor por vir; seu latido parece
confirmar que foi uma boa ideia.
Mas quando a porta se abre, é Greg quem atende, como da
última vez. Ele olha para mim como se não tivesse certeza de
quem eu sou. Greg está em sua versão mais abatida que já vi:
não em seu terno habitual, mas em uma camiseta manchada e
calça de moletom. Ele claramente não se barbeia há dias.
— Lauren já levou o cachorro para passear. — Ele diz,
começando a fechar a porta.
— Não! — Eu grito. Então, em uma voz mais nivelada: —
Não, espere. — Ele empurra a porta de volta. Eu respiro fundo.
— Desculpe, mas eu estava me perguntando se May está em
casa?
Ele parece quase estar com raiva por um momento antes de
seu rosto voltar à sua expressão neutra.
— Não, ela não está. — Ele fala, e fecha a porta.
Ele nem espera por uma resposta. Apenas… bate a porta.
Fecha na minha cara.
Eu me viro para olhar para a rua, me perguntando o que
diabos acabou de acontecer. Querendo saber se May está bem.
Saber onde ela está. E por que, por que, por que ela não está me
respondendo.
Eu nem saio da varanda antes de ligar para Taylor pelo
FaceTime. Ela manda uma mensagem dizendo que não tem
Wi-Fi e que eu deveria ligar direto, então eu faço isso.
Quando ela atende, estou tão aliviada que quase começo a
chorar.
— Eu tenho tanto para lhe contar… — Eu digo. — A merda
realmente bateu no ventilador aqui.
— Você pode esperar para me dizer pessoalmente? — Ela
pergunta.
— O quê? Não. Você está brincando comigo? Sinto que
vou explodir.
Há algum ruído de fundo na chamada, e ela diz:
— Hm, você pode esperar, tipo, dois segundos?
Eu começo a sentir raiva. Eu preciso de Taylor agora, e ela
está me colocando em espera. Achei que não estávamos mais
fazendo isso, que aprendemos algo no nosso primeiro semestre
separadas.
Bem, foda-se.
— Eu só vou desligar. — Eu digo quando viro na rua de
Beatrice. — Eu te ligo de volta quando você tiver tempo para
conversar.
— Não, sério. — Taylor fala. — Você pode me dizer
pessoalmente.
Estou prestes a quebrar meu telefone no chão.
— Por que está fazendo isso comigo?
Então Taylor ri, mas não ouço pelo telefone.
— Oi! — Taylor cumprimenta, desligando e correndo para
me abraçar.
— QUE PORRA? — Eu grito, abraçando-a, depois
empurrando-a, depois a abraçando novamente. — Eu estava
prestes a te dar um gelo por um mês inteiro. Talvez dois.
Ela envolve o braço em volta dos meus ombros.
— Você está surpresa?
Nos últimos meses, ela me alcançou, mas ela costumava ser
bem mais baixa do que eu. É bom poder ficar cara a cara com
ela, especialmente agora.
— Fodidamente e obviamente que sim. — Ela ri, mas é
verdade. Meu corpo está em choque. — Te odeio.
— Claro! — diz ela enquanto entramos na casa de Beatrice.
— Agora me conte tudo.
Ex-namorado da Amy do modelo ONU

Eu arrasto Taylor para dentro, agarrando-me a ela como


uma melhor amiga sanguessuga. Eu quero alternar entre
contar a ela tudo sobre May, então meio que chorar e deixá-la
acariciar meu cabelo. Então, podemos trocar e ela vai chorar
por qualquer coisa que ela queira e eu vou acariciar seu cabelo.
Mas antes que eu possa levá-la para cima, Beatrice aparece,
parada na nossa frente. Ela tem um sexto sentido para saber
quando eu mais quero ficar sozinha e aparecer do nada, como
uma criança fantasma vitoriana.
— Agora, quem é essa linda jovem? — Beatrice pergunta do
jeito que as velhas fazem, em que parece que elas estão
flertando, mas na verdade estão apenas elogiando uma mulher
mais jovem. (Ou talvez elas estejam flertando. Quem sabe?)
— Esta é minha melhor amiga, Taylor. Taylor, esta é a
minha... Beatrice. — Percebo que quando estou apresentando
Beatrice, não tenho ideia de como chamá-la. Minha senhoria?
Minha colega de casa? O último faz parecer que ficamos
acordadas a noite toda comendo Takis e assistindo TV de sinal
ruim. O que não deixa claro os fatos de que ela é uma mulher
de noventa e seis anos e eu estou dormindo na cama em que ela
fazia sexo com o marido.
— É tão importante ter uma boa parceira. — diz Beatrice
depois da minha apresentação fracassada, e eu me encolho.
Uma das minhas maiores aflições ocorre quando as pessoas
chamam melhores amigas de “parceiras”. Mas Beatrice é café
com leite.
— Esta boneca aqui — Beatrice fala com Taylor, mas
aponta para mim. —, te disse que a mãe dela e eu éramos
melhores amigas?
Taylor me dá um olhar questionador, e eu balanço minha
cabeça e gesticulo bisavó com a boca, enquanto Beatrice
relembra momentos com Sandy.
— Todo mundo na escola a amava. — Beatrice conta,
colocando uma mão no coração e apertando o braço de Taylor
com a outra. — Ela tinha essa energia, e as garotas quase
desmaiavam por ela, como fizeram os caras!
Eu posso perceber que Taylor está prestes a perder a
circulação em seu braço, então eu digo:
— Esta, hm, boneca teve uma longa viagem, então ela
provavelmente deveria descansar.
— Ok, anjos — Beatrice concorda enquanto eu arrasto
Taylor para cima. —, tenham uma boa noite de sono.
— Sua bisavó era queer? — Taylor sussurra no topo da
escada enquanto massageia o antebraço.
— Honestamente? Quanto mais Beatrice me conta sobre
ela, mais parece que ela pode ter sido.
Imagino a possibilidade de ter um ancestral queer —
embora, com toda a probabilidade, tenham muitos —,
enquanto entramos no quarto de Beatrice.
Espero que estejam orgulhosos de mim e do caos gay que
criei.
Eu pergunto a Taylor como ela chegou aqui (ônibus) e por
que ela está aqui (não queria que eu ficasse sozinha na véspera
de Ano Novo – ok, obrigada pelo abraço de urso), e então
conto toda a história com May. Até mesmo o amasso atrás da
livraria que eu não contei para Mandira por motivos óbvios.
Taylor e eu nos sentamos de pernas cruzadas na minha cama,
uma de frente para a outra. Ela é uma ótima ouvinte: se engasga
quando algo chocante acontece e ri das partes engraçadas.
Quando termino, Taylor me empurra mesmo que minhas
pernas ainda estejam dobradas, ficando para cima no ar, e nós
duas rimos quando ela diz:
— Por que diabos você não me contou sobre o beijo quando
aconteceu?
— Não sei! Eu estava surtando.
Ela estende a mão e eu a agarro para que ela possa me puxar
de volta para a posição vertical.
— E ela ainda não mandou uma mensagem?
— A mensagem nem foi entregue. — Eu tiro o meu telefone
para mostrar a ela nossa última conversa. — Estou preocupada
que ela esteja com problemas ou algo assim.
Mas quando entro no aplicativo de mensagem, há dois
tracinhos.
A mensagem foi entregue.
— O que foi? — Taylor pergunta quando eu não mostro as
mensagens para ela.
— Enviou… — Eu conto, um pouco atordoada. — Então
agora eu não posso nem usar a mensagem não recebida como
uma desculpa. Ela simplesmente está me dando um gelo.
— Talvez ela responda, no entanto. Ela não tem
confirmação de leitura, né?
— Não.
— Então você nem sabe se ela viu sua mensagem!
— Ela obviamente viu. — Eu retruco. — Todo mundo olha
suas malditas mensagens. Eles simplesmente não respondem
quando beijam uma garota duas vezes e se arrependem um dia
depois. — Jogo meu telefone no final da cama. — Desculpe! —
Eu peço. — Só estou frustrada.
— O que faz todo o sentido. — Então Taylor tenta me
distrair falando sobre o último garoto que está obcecado por
ela e com quem ela não tem vontade de namorar, e eu digo que
ela é boa demais para os homens como um todo, e Taylor me
fala que obviamente pararia de namorar com eles, se pudesse.
Como é um dia de semana, decidimos ir para a cama bem
cedo. Taylor é uma excelente convidada, porque ela está feliz
por estar em meus planos, e eu a amo por isso.
— Nós vamos acordar às sete, ok? — Confirmo com Taylor
enquanto ela escova os dentes.
— Sim, tudo bem. — diz ela de volta com a boca cheia de
pasta de dente.
Pego meu telefone para definir o alarme, e meu coração
quase para.
Há uma mensagem de May.
Eu me esforço para desbloquear o celular. Minhas mãos
estão tremendo tanto que mal consigo digitar meu código.
Eventualmente, consigo.
Respiro fundo.

MAY: obrigada!

Nada mais. Apenas “obrigada”.

EU: você está bem??


onde você está??

A mensagem é entregue, e o “MAY está digitando” aparece.


Talvez eu não devesse ter perguntado onde ela está. Talvez fosse
uma coisa muito controladora, em pânico, muito como Sadie
faria.. Mas estou genuinamente preocupada com ela, mesmo
que não devesse estar.

MAY: estou bem


não posso conversar agora
estou na casa da minha mãe

Eu leio a última mensagem várias vezes. Na casa da mãe dela?


Em Ithaca?
Eu penso na conversa que ouvi dela com o pai, em que May
disse que no segundo em que fizesse dezoito anos, deixaria DC.
É bobagem, mas eu pensei que talvez, por minha causa, ou
seja lá o motivo, ela não iria embora. Que ela ficaria.
Eu sou uma tola nível hard.
Porra.
Então eu vejo o “MAY está digitando” novamente, e meu
coração emocionado bate na minha garganta.

MAY: vamos conversar depois?


não posso agora mas em breve
ok?

Eu apenas reajo à mensagem - não quero parecer muito


ansiosa – e Taylor desliga a luz do banheiro, subindo na cama.
Eu gemo.
— O que há de errado?
Eu seguro meu telefone e cubro meus olhos.
— Ela mandou uma mensagem de volta.
Taylor pega e lê as mensagens.
— Eu não acho que isso seja uma coisa ruim. — Ela fala. —
Um pouco estranho, talvez. Mas parece que ela realmente quer
te contar o que está acontecendo?
— Sim… — Eu concordo. — Pode ser.
Mas e se ela nunca mais voltar? E se o “conversar em breve”
for um código para “olhe, nos divertimos, mas estou ficando
em Ithaca para sempre, cortando os laços com meu pai e está
tudo acabado, ok?”
Eu tento me lembrar de que esse era meu objetivo, que eu
seria uma freira judia, me concentraria no laboratório, dormiria
às oito da noite e voltaria à vida descomplicada e orientada pela
paleo-ictiologia que eu tinha antes de Sadie.
Mas por mais que eu me esforce para me convencer de que
isso é verdade, eu não acredito muito nisso.

Eu me sinto um pouco menos esquisita pela manhã, sabendo


que estarei no trabalho com Mandira e depois passarei a véspera
de Ano Novo com minha melhor amiga.
Eu deixo Taylor no museu de história natural e digo a ela
para me encontrar nos food trucks ao meio-dia.
— Ok! — diz ela. — Mas eu vou entrar em alguma
travessura estilo Noite no Museu enquanto você está no
trabalho, só para você saber.
— Sim, tudo bem! — Eu grito para ela através do átrio
cavernoso enquanto abro a porta dos funcionários. — Divirta-
se, fique segura.
— Eu vou, e não vou.
Quando chego ao laboratório, Mandira está ouvindo
músicas de Natal.
— É permitido legalmente tocar música de Natal até o dia
de Ano Novo. — ela fala antes que eu possa perguntar por que
o som suave e jazzístico de Michael Bublé está nos fazendo
serenata com “Have Yourself a Merry Little Christmas”.
— Eu não sabia que havia uma lei. — Eu afirmo, rindo.
— É quase mais do que uma lei! — Ela retruca. — É, tipo,
parte da nossa construção social.
Falamos sobre a legalidade de tocar música de Natal depois
do Natal (e antes do Dia de Ação de Graças) enquanto
limpamos as bancadas. Vamos começar com algumas análises
de habitat de fósseis de celacantos no Ano Novo, o que será
superlegal.
Ao meio-dia, mando uma mensagem para Taylor me
encontrar do lado de fora da entrada principal do museu para
meu horário de almoço. Felizmente, ela ainda está intacta e,
mais felizmente, o caminhão de queijo quente está aqui.
Caminhamos até lá enquanto explico que os funcionários do
Smithsonian enlouquecem quando o queijo quente fica
disponível para eles.
— E com razão. — diz ela quando entramos na fila.
Sentamos nos degraus do museu com sanduíches na mão, e
depois de um minuto empurrando queijo perfeitamente
derretido e pão perfeitamente grelhado em nossos rostos,
Taylor pergunta:
— O que você acha de ir a uma festa hoje à noite?
Faço uma pausa no meio de uma mordida no queijo quente.
— Quero dizer, tudo bem, eu acho, mas isso pode ser um
problema, já que eu não conheço ninguém que esteja dando
uma festa.
— Bem, hm… — diz Taylor, e eu faço uma careta para ela.
— Mas eu sim.
É claro.
Taylor de alguma forma sabe exatamente quando e onde as
coisas estão acontecendo em uma determinada noite. E quando
ela passa por uma porta, todos gritam: “Taylor!” como se ela
fosse sua prima perdida ou sua pastora. Enquanto isso, tenho
sorte se outra pessoa além de Taylor souber meu nome. Essa é
uma boa festa para mim.
— Você conhece Amy? — Ela pergunta.
— Do Debate?
— Não, não, Amy do Modelo ONU. Foda-se Amy do
Debate.
— Ela é a pior. — eu concordo.
— Sim, bem, Amy do Modelo ONU não é a pior Amy. E
você se lembra do ex-namorado dela?
— Não? Literalmente, por que eu me lembraria do ex-
namorado da Amy do Modelo ONU?
— Bem, o nome dele é Teddy. — Ela responde, como se isso
fosse refrescar minha memória. — Respondemos os stories do
Instagram um do outro de vez em quando, e outro dia ele estava
me contando sobre uma festa que seu amigo de Georgetown
vai dar hoje à noite. Ambos viemos à DC para as férias de
inverno.
E então entendo.
— Você está tentando ficar com o ex-namorado da Amy?
— Essa é a única explicação lógica para esta história suspeita
sobre uma garota que conhecemos vagamente no ensino
médio.
— O quê? Não! — ela nega, mas é uma péssima atriz, e
quando eu levanto minhas sobrancelhas, Taylor cede. — Tudo
bem, sim. Estou tentando ficar o ex-namorado da Amy do
Modelo ONU. Mas, tudo bem, o amigo dele é esse garoto super
rico de Georgetown e, aparentemente, ele tem uma casa incrível
bem perto do campus, e Teddy está dizendo que essa festa vai
ser incrível, então temos que ir.
Taylor está sem fôlego depois de me contar tudo isso, e eu a
deixo recuperá-lo por um momento antes de concordar:
— Tanto faz, tudo bem, sim. Então vamos. — Porque a
outra opção é sentar na cozinha de Beatrice e, tipo, ouvir a
contagem regressiva no rádio ou algo assim.
Depois do almoço, volto ao trabalho e deixo Taylor sozinha
em DC mais uma vez, mas às três, Mandira me diz que eu
deveria ir para casa.
— Tem certeza?
— Sim, claro. — Ela concorda, animada — Prefiro “Do
They Know It’s Christmas11?” no lugar de “I Saw Mommy
Kissing Santa Claus12.”
— Muito obrigada, Mandira. — Coloco minha jaqueta. —
Vejo você ano que vem.
— Vejo você no próximo ano, Shani. Você fez um bom
trabalho esta semana.
Eu sorrio.
Deus, eu amo feedback positivo.

— Qual é a vibe dessa festa? — Eu pergunto a Taylor quando


estamos de volta ao meu quarto na casa de Beatrice, nos
arrumando. — Tipo, o que devo vestir?
— Vou vestir isto. — Ela puxa um vestido dourado
brilhante de sua mochila.
— Eu não tenho uma única peça de roupa que se encaixe
nessa vibe. — digo a ela enquanto abro e fecho minhas gavetas,
esperando que algo divertido e apropriado para festas
simplesmente apareça.
— Hmm. — Taylor murmura, e eu posso ver as
engrenagens girando em sua cabeça. — Você trouxe aquele
blazer listrado que eu comprei para você?

11
Eles sabem que é Natal?
12
Eu vi mamãe beijando o Papai Noel.
Um dos muitos talentos de Taylor é conhecer o conteúdo
de todo o meu guarda-roupa. Ajuda que ela tenha comprado a
maioria das roupas que não são camisetas que visto sempre.
Vasculho as gavetas, procurando o blazer de que ela está
falando.
— Você não trouxe? — Ela pergunta, horrorizada. — É
realmente por isso que você não pode ter coisas boas.
Eu não a escuto e continuo vasculhando até encontrá-lo em
uma pilha amarrotada de roupas bonitas que eu nem tentei usar
nas últimas três semanas.
— Sim, excelente! — Taylor exclama. — Você vai vestir isso.
E você pode até usar com jeans, mas não se eles estiverem sujos.
— Você não precisa me dizer para não usar jeans sujos. —
Ela levanta as sobrancelhas para mim, e eu acrescento: — Tudo
bem, tudo bem. Vou usar meu par limpo.
Ela sorri.
— O que você faria sem mim?
Eu sei que ela não está falando sério, mas eu meio que tive
que descobrir no semestre passado como viver sem ela. Quando
a única pessoa no mundo com quem eu achava que me
importava era Sadie.
Eu não encontro seu olhar quando digo:
— Taylor?
— Sim?
— Eu sou um pedaço de merda.
— O quê? — Ela caminha até mim. — Por que você diz
isso?
— Eu não falei com você por um semestre inteiro e agora
você está sendo tão gentil comigo. — Então, eu olho para ela.
— Por que? Eu nunca mais falaria comigo se fosse você.
Ela balança a cabeça.
— Primeiro de tudo, porque isso é apenas o que os melhores
amigos fazem. — Eu sorrio, mas agora é a vez de ela não
encontrar meus olhos. — E não é como se eu tivesse mandado
muitas mensagens, né?
— Mas por que você não mandou?
Ela suspira.
— Acho que é porque eu queria ser, tipo, Taylor por um
tempo, sabe? — Eu franzo minhas sobrancelhas, confusa. Ela
respira fundo e olha para o teto, como se estivesse tentando
pensar em como explicar. — Nós éramos “Taylor e Shani”
durante todo o ensino médio, e eu não queria que fosse assim
na faculdade. Eu não queria que as pessoas me vissem como
metade de um todo.
Lágrimas brotam em meus olhos, e eu as enxugo. Porque é
verdade.
Eu estraguei tudo. Não apenas nossa amizade, mas, tipo,
minha vida.
Ela foi para a faculdade e tentou se tornar sua própria
pessoa, e eu me perdi. Eu fui de “Taylor e Shani” para “Sadie e
Shani”. Meu nome nunca parece ser suficiente sozinho.
— Entendi. — digo a Taylor entre lágrimas, porque
realmente entendo. Precisamos ser Taylor, ponto final, e Shani,
ponto final. Melhores amigas, mas separadas.
Não precisamos depender de outra pessoa para vivermos
nossas vidas.
— Desculpe, Tay.
— Sinto muito também. — Ela declara, mas como Taylor
não é de sentimentalismo, ela limpa a garganta, enxuga os olhos
e fala que é hora de nos trocarmos.
Vou ao banheiro me vestir e deixo Taylor se trocando no
quarto.
Honestamente, eu pareço bonita. Eu me encaro no espelho
por um tempo muito longo, passando minhas mãos pelo meu
cabelo e posando.
— Você está gostosa. — Taylor diz quando eu saio do
banheiro.
Sorrio um pouco e falo:
— Obrigada. — mas não acrescento mais nada.
Ela sempre se sentiu mais confortável me elogiando do que
eu a elogiando. Acho que é porque ela pode olhar para as
roupas que estou usando e dizer objetivamente que, sim, estou
gostosa nessa roupa. Mas mesmo sabendo que Taylor está
linda, não digo isso, porque não quero parecer assustadora.
(Obrigada, homofobia internalizada!)
Taylor e eu saímos por volta das dez para pegar o ônibus
para Georgetown, mas não antes de Beatrice nos lembrar de
ficarmos seguras e voltar para casa logo após o relógio bater
meia-noite. Nós assentimos e dizemos, com certeza, sem
problemas.
Quando o ônibus nos deixa em Georgetown, Taylor pega
seu telefone e nos guia para a casa do amigo de Teddy.
É uma bela casa de cidade, com grandes janelas de sacada e
uma porta da frente ornamentada — que Taylor abre sem
sequer uma batida ou uma respiração nervosa.
E, claro, bem na hora, alguém grita:
— Taylor!
— Teddy! — Ela corre até um cara alto com cabelo loiro
brilhante e pele bronzeada demais para uma pessoa branca
durante um inverno na Costa Leste, então eles se abraçam. Ela
envolve os braços em volta do pescoço dele e as mãos dele ficam
muito perto de sua bunda para eu querer continuar assistindo
essa interação.
Eu uso isso como uma oportunidade para inspecionar a
festa. A casa está cheia de pessoas da nossa idade e talvez um
pouco mais velhas, todas parecendo mais arrumadas do que eu
jamais estarei. Eles nem estão segurando copos de plástico,
estão usando taças de vidro de verdade. É irreal.
A casa não é muito iluminada, cheia de madeira escura e
móveis caros de cores neutras. Taylor está conversando com
Teddy em um sofá de couro, e eu ficaria muito, muito surpresa
se eles não ficassem mais tarde.
Deixo-os sozinhos flertando e vou procurar uma bebida.
Minha busca me leva à cozinha. É o lugar mais brilhante da
casa, as pessoas estão saindo, conversando, sentadas em balcões
(principalmente em duplas) e flertando tão descaradamente
quanto Taylor e Teddy. Os balcões são de mármore preto, e há
uma ilha com um jarro de vidro de algo que alguém inutilmente
rotulou como “Sem Glúten ;)”.
Não se parece em nada com o Jungle Juice13 que Sadie e eu
bebíamos nas festas de Binghamton. Do tipo que era
definitivamente perigoso e servido em barris de plástico
Gatorade, que é despejado na cabeça dos jogadores campeões
de futebol. Este é rosa e brilhante, tem folhas de hortelã,
mirtilos e sementes de romã flutuando na superfície, e pode ou
não conter glúten.
Pego um copo chique no balcão e me sirvo de uma bebida.
É inacreditavelmente deliciosa e mal tem gosto de álcool, o que
pode ser mais perigoso do que Jungle Juice, mas de uma
maneira sutil.
— É bom, né? — Uma garota me pergunta enquanto
caminha até a ilha da cozinha para se servir de um pouco de
ponche.
Eu aceno e tomo um gole.
— Sim, definitivamente.

13
Jungle Juice combina os sabores de suco ácido de abacaxi, laranja, toranja,
uva, maçã e tem notas de melancia. Geralmente misturado com mais sabores de
frutas ou sabores de licores brancos como gim, vodka e tequila!
— Onde conheceu Josh? — Ela questiona, e eu suponho
que ela esteja falando do anfitrião.
— Hm, por aí. — Eu respondo, esperando que isso seja
suficiente.
— Eu também. — Ela sorri para mim, então estende a mão
para tocar meu ombro. — Eu gostei do seu blazer.
Instintivamente, puxo meu braço para trás, e seu rosto passa
de um sorriso gentil para pânico.
— Merda. — Ela diz. — Desculpe! Achei que você poderia
ser... — Ela começa. — Você não é? Eu sou nova nisso. Eu
pensei que talvez – você estivesse disponível para um beijo de
Ano Novo – ai, porra. — Ela coloca a cabeça nas mãos.
— Não, eu sou queer, se é isso que você está perguntando.
— digo a ela, e ela tira a cabeça de suas mãos para olhar para
mim. — Eu simplesmente não estou... — Eu me afasto.
O que eu ia mesmo dizer? Solteira?
Porque eu estou muito, muito mesmo.
Majoritariamente.
— Desculpa. — Ela pede novamente.
— Por favor, não se desculpe.
— Eu não posso evitar.
— Tudo bem. — Eu digo, e saio da cozinha.
Eu sinto uma série de coisas naquele momento: me sinto
mal pela garota e me sinto bem que ela estava flertando comigo.
Mas principalmente, tolamente, eu me pego desejando que
May estivesse aqui.
Não posso deixar de pensar como seria beijá-la à meia-noite.
Agarrando-a e sabendo que estávamos entrando em um novo
ano juntas.
Eu nunca tive um beijo de Ano Novo.
Oh, meu Deus — espere.
Devo enviar-lhe uma mensagem de Ano Novo? Eu sei que
ela disse que não podia trocar mensagens agora, mas isso não
seria uma conversa, por si só. Isso seria apenas eu desejando a
ela um feliz Ano Novo. Isso é algo que as pessoas fazem. Certo?
Abro a multidão de pessoas e encontro Taylor sentada no
colo de Teddy, o que não me impede de pegar sua mão e
perguntar o que me tortura:
— Devo enviar uma mensagem de Ano Novo para ela?
— Hm. — Taylor diz, pulando do colo de Teddy e fazendo
uma cara de quem está pensando sobre. — Isso não é uma má
ideia.
Eu amo isso, apesar de termos vindo essencialmente para
esta festa para que ela pudesse ficar com o ex-namorado da
Amy do Modelo ONU, ela ainda está respondendo minhas
perguntas cheias de pânico sobre May.
— Eu vou trazê-la de volta em breve. — aviso a Teddy
enquanto arrasto Taylor para longe.
Encontramos uma escada silenciosa e caminhamos em
direção ao topo, depois nos sentamos ombro a ombro em um
degrau. Eu abro meu aplicativo Notas para que eu possa
escrever as opções de um texto para enviar para May, mas não
consigo pensar em uma única mensagem.
— Esta é uma ideia terrível, né? — Eu pergunto à Taylor.
— Não, não, isso é bom. E se a mensagem for como uma
piada interna ou algo assim? Dessa forma, é fofo, mas não
muito.
— Eu a conheço há três semanas. — Eu retruco, sentindo o
pânico e a náusea borbulhar em meus intestinos. — Não temos
nenhuma piada interna. Ela nem me contou quando foi para a
casa da mãe dela.
Taylor ergue as sobrancelhas e levanta as mãos.
— Só estou tentando ajudar.
— Eu sei, eu sei. Desculpe, estou estressada.
Mas, novamente, talvez tenhamos piadas internas, ou pelo
menos algo interno. Tem que haver algo em minha galeria de
fotos, ou o filme que vimos no dia de Natal.
— E se você apenas disser: “Gostaria que estivesse aqui”? —
Taylor sugere.
— Isso não é um cartão postal! É uma mensagem para uma
garota que eu beijei duas vezes e, idealmente, gostaria de beijar
novamente se ela voltar para DC.
— Ok, que tal isto? — Taylor pergunta. — “Gostei dos dois
primeiros beijos. O que você acha de um terceiro? Feliz Ano
Novo.”
— Essa é a sua pior sugestão até agora.
— Eu não vi você dando uma só ideia!
Olho para o meu aplicativo de notas. Anotei algumas coisas
depois do comentário da piada interna de Taylor, mas tudo o
que tenho até agora é o beijo da meia-noite? em uma linha e as
palavras botas de cachorro em outra, que parece bobagem, de
alguma forma.
— Talvez eu não devesse mandar uma mensagem para ela.
— Não! — Taylor grita, o que faz com que algumas das
pessoas que se aglomeram ao redor da escada olhem
carrancudas para nós. — Não. — diz ela, mais calma desta vez.
— Uma mensagem de Ano Novo é a coisa perfeita para um
romance em ascensão. Especialmente se você está preocupada
que ela não volte para DC. Só precisamos fazer um
brainstorming.
— Bem, só temos vinte minutos até a meia-noite. — Eu
enterro meu rosto em minhas mãos. — Além disso, eu não acho
que nada que eu diga vai convencê-la a voltar se ela não quiser
voltar. — Eu bloqueio meu telefone e balanço minhas pernas o
mais rápido possível. — Isso não tem sentido.
Taylor ignora meu pânico e, em vez disso, verifica seu
telefone e diz:
— Merda, já tão tarde?
Eu me sento.
— O tempo voa quando você está escrevendo uma
mensagem para a paixão da sua melhor amiga.
— Quem disse isso? Churchill?
— Acho que foi Nixon.
— Certo, certo.
Eu coloquei minha cabeça em minhas mãos.
— Merda. — Eu exclamo, o desespero se transformando em
pânico.
Nós duas ficamos quietas por um minuto enquanto a festa
ganha força no andar de baixo, todos ansiosos pela meia-noite,
um ano novo.
— Ei, ei! — Taylor grita, pulando e quase batendo a cabeça
no corrimão. Ela se senta novamente, pega meu telefone e
começa a digitar. Meu corpo inteiro aperta.
— Escreva nas notas! Não coloque nas mensagens ainda. —
Eu grito de volta para ela, me inclinando para tentar ver o que
Taylor está escrevendo.
— Obviamente, estou escrevendo nas notas. — diz Taylor
com a língua para fora, concentrando-se na mensagem que
pode melhorar ou arruinar de vez o que quer que esteja
acontecendo entre mim e May. Se está acontecendo alguma
coisa.
Quando ela termina, me entrega o telefone. “Queria que você
estivesse aqui, mas que tal um replay de beijo de meia-noite?”
É mais ousada do que qualquer mensagem que já enviei, mas
não a odeio.
— Na verdade, isso não é ruim.
— Viu? — Ela diz, batendo no meu joelho com o dela. —
Eu acho que está bom. É sedutor, implica que ela voltará para
DC e que, se ela quiser beijos no futuro, sua língua estará
disponível.
— Ai, credo… — Leio a mensagem novamente. — Tudo
bem, tudo bem. — Então eu leio mais algumas vezes, e
encaminho para meu aplicativo de mensagens. — Vou mandar.
Eu deveria enviar agora, certo? Ou devo esperar até meia-noite?
— Não, envie agora. — diz Taylor. — Dessa forma, à meia-
noite ela estará pensando em como ela poderia ter ficado em
DC e ter beijado você no Ano Novo.
Eu olho para ela.
— Eu não consigo fazer isso.
Ela pega meu telefone e eu deixo.
— Você está me devendo. — Ela paira com o polegar sobre
a seta para cima que enviará esta mensagem para May.
— Porra. — Dobro meu torso sobre meus joelhos. — Três
— Eu digo, tremendo.
— Você consegue
— Dois. — Vou derreter em uma poça nas escadas.
— É uma boa mensagem. — diz Taylor. — Agora vamos
enviar essa porrinha.
Eu gemo, bato minha cabeça contra meus joelhos, então
gemo novamente.
— Um.
Sento-me a tempo de ver o polegar de Taylor pressionando
em meu telefone. Ver a mensagem catapultada para o éter, para
sempre fora do meu alcance.
— Perfeito! — exclama Taylor. — Agora vamos tomar uma
bebida. — Ela me leva para a cozinha, onde ela enche meu copo
com o ponche chique.
Eu tomo em um gole. Em seguida, verifico meu telefone,
sabendo que não haverá nada além de uma esperança
desesperada de qualquer maneira.
— Dez minutos, vadias! — Uma garota incrivelmente
bêbada grita enquanto tenta ficar em cima da bancada.
Todos aplaudem, e foda-se, eu também.
11:50, ainda sem resposta.
Bebo mais ponche, e então sigo Taylor de volta para a sala,
onde ela volta para o colo de Teddy.
11:52. Nada.
11:53. Acho que nunca estive menos empolgada com a
chegada de um novo ano.
11:55. Todos estão reunidos na sala. É um instinto quase de
peixe: mesma turma, estar perto de outros membros de sua
espécie enquanto você avança uma hora, um dia, um ano.
11:58. Alguém liga a TV e vemos as pessoas enlouquecendo
na Times Square.
11:59. Todos na sala estão se espremendo como na porra da
Arca de Noé.
Eu verifico meu telefone, verifico meu telefone, verifico
meu telefone e não há nada e a sala está nebulosa, mas eu me
sinto tão estranhamente bem e meu corpo está zumbindo, e
agora eu nem quero que este ano acabe e eu vou apenas parar o
tempo e vai ser ótimo, e eu verifico meu telefone novamente e
obviamente não há nada e nunca haverá nada porque ter uma
queda é inútil e agora é…
— QUINZE, QUATORZE, TREZE… — segundos para o
Ano Novo e todo mundo está gritando, sorrindo, gritando a
contagem regressiva para o ano novo. E eu estou olhando para
o meu telefone. — DOZE, ONZE… — Se ela não responder,
eu jogo meu telefone no banheiro e me mudo para outro
continente. — DEZ, NOVE, OITO… — Eu me pergunto o
que Sadie está fazendo agora. A última vez que estive em uma
festa em casa eu estava com ela. Foi a noite em que tudo deu
errado, e eu estava ainda mais bêbada do que isso. Muuuuito
bêbada. Bêbada é uma palavra engraçada. Bêbada bêbada. E
Sadie estava mais bêbada. E depois…
Nãooooo. Não, cérebro. Pare. Sadie não vai ser a última
pessoa em quem eu penso antes do ano novo.
— SETE, SEIS… — Eu localizo a garota que estava dando
em cima de mim antes. Nós fechamos os olhos. — CINCO,
QUATRO… — Ela se aproxima e fica tão perto que posso
sentir o cheiro do ponche nela. Ou talvez esse cheiro seja meu.
— TRÊS, DOIS… — Ela envolve seus braços em volta do meu
pescoço. Eu agarro sua cintura.
— UM! FELIZ ANO NOVO!
Nós nos beijamos e é desleixado e molhado, sua língua
parece uma enguia morta dentro da minha boca, mas pelo
menos eu não estou checando meu telefone.
— GOSTOSAS! — Algum cara grita e tenta passar o braço
em volta dos meus ombros. Eu me esquivo dele e cambaleio
para o banheiro.
Me seguro no balcão e verifico meu telefone e, caramba, há
uma mensagem de texto e tudo está nebuloso e o contato
começa com M e tem três letras e eu puxo meu telefone perto
do meu rosto e é…
MÃE: feliz ano novo, querida <3!
fique segura!
amo você
Eu deslizo para o chão de ladrilhos, e é claro que os ladrilhos
são aquecidos como os do banheiro do andar de cima da casa
de May, onde Raphael dormiu na noite da nevasca e eu estou
apenas...
Estou com medo de perdê-la. Com a possibilidade. Mesmo
que tenhamos acabado de nos conhecer. Mesmo que ela talvez
tenha fugido. Estou com medo, agora tudo está arruinado e a
única pessoa além de Taylor que se importa comigo é minha
mãe e eu nem a mereço.
Há uma batida na porta.
— Shani? Você está aí?
Eu enterro minha cabeça em meus joelhos.
— Não.
Taylor entra e se senta ao meu lado, descansando a cabeça
no meu ombro.
— Você está bem?
— Ela não me respondeu.
— Bem, foda-se ela, então.
Nós nos sentamos lá por um tempo, mesmo que Taylor
definitivamente pudesse estar chupando a cara do ex da Amy
do Modelo ONU agora.
E ainda estamos ambas aqui, no chão do banheiro de um
estranho, perdendo os primeiros minutos do ano novo uma
com a outra.
— Eu te amo, Tay.
— Você está bêbada.
— Ainda te amo.
Ela suspira.
— Eu sei.
Acaricio o cabelo de Taylor, grata por ela estar aqui, por ser
alguém sólido em minha vida, quando tudo mais parece estar
escorregando sob camadas de lodo, fossilizando diante dos
meus olhos.
Talvez tudo seja escavado em cem milhões de anos, junto
com meu coração.
Você está bloqueando a escada rolante

Não tenho cem por cento de certeza de como Taylor e eu


chegamos em casa, mas chegamos. Acho que talvez o amigo
rico de Teddy tenha nos chamado um táxi.
Não é que eu estivesse bêbada demais para me lembrar –
embora, tudo bem, eu estava bem bêbada – é mais porque eu
estava totalmente distraída pensando em May.
Mesmo assim, parecia um presente estar na cama com
Taylor roncando ao meu lado. Além disso, eu dormia entre os
lençóis, o que foi uma vitória para a minha fixação francamente
doentia com a cama de sexo de Beatrice.
Taylor foi embora, no entanto. Ela me acordou antes do sol
para se despedir, e em uma névoa grogue, eu fiz o meu melhor
para convencê-la a não ir embora. Mas ela teve que pegar um
ônibus cedo para que pudesse estar em casa a tempo do jantar
de aniversário de sua mãe.
Dormi mais um pouco depois disso, mas agora os sons de
conversas e risadas no andar de baixo penetram no meu quarto.
E pela primeira vez em vários dias, a ideia de estar perto de
pessoas não é a pior coisa do mundo.
Beatrice sorri e se levanta da mesa quando me vê atravessar
o arco da cozinha.
— Feliz Ano Novo, boneca! — Ela cumprimenta e me puxa
até a altura de seu rosto para que ela possa dar um beijo na
minha bochecha.
— Feliz Ano Novo! — digo a ela, a Lauren e Tasha, que
estão ambas sentadas de pijama ao redor da mesa da cozinha,
segurando canecas de café.
Eu me sirvo de uma xícara e inspiro o vapor.
— Nós estávamos falando sobre nossas resoluções de Ano
Novo. — Lauren comenta, enquanto eu puxo uma cadeira.
— Quais são as suas? — Eu pergunto, tentando evitar ter
que listar minhas próprias inexistentes.
— Bem, eu quero dormir mais, tipo, pelo menos três horas
por noite – brincadeira! Tipo, sete horas, idealmente. E vou ler
cinquenta livros. — conta Lauren.
— E eu disse a ela que é um objetivo bobo, porque
cinquenta livros são livros demais! — Beatrice interrompe,
batendo no ombro de Lauren com um jornal dobrado. — O
que ela está fazendo, lendo cinquenta livros? Vá assistir TV.
Este é o meu conselho. Ordens do médico.
— Qual é a sua resolução? — pergunto à Beatrice.
Ela ri.
— Boneca, estou muito velha para resoluções. Se eu não
tenho mudado nos últimos dez mil anos, certamente não vou
mudar agora.
— Quero meditar mais. — Tasha me diz. — Essa é a minha
resolução. Estou muito estressada o tempo todo.
— Com essa eu concordo! — Beatrice retruca.
Lauren bufa, e Tasha revira os olhos, mas um sorriso aparece
em seu rosto.
— E você, Shani?
Todas elas olham para mim.
Honestamente, acho que as resoluções de Ano Novo são
inúteis. Se você quer melhorar, você deve ser capaz de fazer isso
em qualquer momento. É muita pressão para se arrastar
durante os feriados e, em seguida, ter que melhorar
imediatamente no momento em que o ano vira.
Talvez eu devesse ter uma este ano, no entanto. Posso pensar
em inúmeras maneiras de melhorar. Ser mais legal com minha
mãe, para começar.
Mas não quero dizer isso a elas, então apenas falo:
— Acho que vou tentar comer mais vegetais.
Elas acenam como se essa fosse uma resposta fascinante,
embora seja a resolução mais básica possível.
Mas mesmo que eu coma tantas cenouras que consiga
enxergar no escuro, isso não me tornará uma pessoa melhor.
Isso só vai significar que eu posso viver mais tempo como uma
pessoa de merda. Me sirvo com uma tigela de cereal e outra
xícara de café, depois escuto Beatrice falar sobre o “jovem
lindo” que era o professor substituto em sua aula de
hidroginástica outro dia.
Depois de um tempo, peço licença e subo para me trocar.
Talvez eu ande um pouquinho na cidade hoje. Agora que
Taylor foi embora, não tenho mais nada para fazer.
Pego meu telefone para verificar o tempo e vejo duas
mensagens de texto.
De May.
Enviadas há vinte minutos.

MAY: me encontra no Espaço Caracóis em uma


hora?
nós precisamos conversar

Uma onda de emoções passa por mim no tempo que levo


para ler suas mensagens. O primeiro, e mais poderoso, é um
forte desejo de ir ao banheiro.
E quando isso acaba, fico apenas com o choque. Eu
honestamente não achei que ela voltaria para DC. Mas agora
ela está aqui e quer que eu a encontre no Espaço Caracóis. Em
uma hora. Bem, em quarenta minutos.
Porra.

EU: sim
eu estarei lá

Coloco meu bom jeans, uma jaqueta e saio correndo do meu


quarto, pronta para correr até o museu.
Mas então me lembro que ainda estou com o gorro de May,
aquele que roubei da cabeça dela quando nos beijamos atrás da
livraria. Pego-o e enfio-o no bolso do casaco.
Corro até o metrô e, quando chego na plataforma, meu
peito parece que vai explodir, em parte porque estou nervosa,
mas principalmente porque estou incrivelmente fora de forma.
Quando entro no metrô, não há assentos vagos, então fico
de pé. Eu tropeço e tremo quando o transporte começa e para.
Ando de um lado para o outro do vagão, e as poucas famílias
que estão no metrô no dia de Ano Novo me lançam olhares
estranhos. Mas eu não me importo.
Porque May precisa falar comigo.
O que poderia ser tão urgente para que ela precise falar
comigo agora? Tipo, eu quero que ela me diga por que ela foi
embora, o que está acontecendo, ou qualquer coisa. Mas eu
nem sei se mereço essas respostas. Não é como se fôssemos algo.
Quando a voz pré-gravada anuncia que estamos na Gallery
Place-Chinatown, desço do metrô e me curvo, esfregando as
mãos nos joelhos e tentando inspirar o máximo de ar possível.
— Você está bem? — Uma mulher com um bebê amarrado
ao peito me pergunta.
— Sim. — Eu respondo, sem me mover. — Estou bem.
— Que bom, querida… — diz ela. — Mas você está
bloqueando a escada rolante.
— Oh, desculpa. — Eu a deixei ir à minha frente. Talvez eu
devesse pegar o metrô de volta para a casa de Beatrice. Agora
parece um bom momento para desistir, cortar tudo pela raiz,
raspar minha cabeça, juntar-me a um eremitério...
Não.
May quer falar comigo.
Eu gostaria de poder parar de comparar o que está
acontecendo com May com o que aconteceu com Sadie, mas
não consigo. E neste caso, isso pode ser uma coisa boa. Porque
Sadie e eu não conversávamos sobre como nos sentíamos. Nós
brigávamos sobre merdas estúpidas, e quando finalmente
importava, quando eu precisava falar, eu não falava.
E tudo desmoronou.
Não, não, não, não. Não estou pensando nisso agora. May
não é Sadie e eu vou subir essa escada rolante, se isso não me
matar.
Eu subo, e ela me leva para a rua.
Meu corpo entra no piloto automático enquanto adentro o
museu e refaço o caminho que fiz com May na semana passada,
subindo a escada em espiral, pelo grande corredor.
Na exposição de arte moderna.
Eu respiro fundo. Estou congelando, suando e tão tensa que
acho que minha garganta pode fechar.
Passo pelo cilindro de luz, que agora está me dizendo: “Você
vai perceber que tudo se alinha quando os problemas se
resolvem”. Não sei o que significa, mas pelo menos me distrai
por um momento.
Então eu a vejo.
Sentada de lado no banco do Espaço Caracóis, sozinha.
Vestindo o suéter que ela me emprestou no dia de Natal.
Eu não percebi o quão aliviada eu ficaria em ver May, saber
que ela está no mesmo espaço físico que eu. Eu estava muito
preocupada em não entrar em pânico sobre qual mensagem
enviar para ela ou se algo tinha acontecido com ela.
Não tenho ideia do que ela vai me dizer.
Mas eu sei que não posso adiar mais.
Vou até o banco e me sento, devagar, em silêncio. Estou na
borda do banco, com uma perna dobrada debaixo de mim,
tentando me fazer pequena.
Por um momento, estou preocupada que ela não me veja.
As luzes no espaço mudam de verde para roxo. As formas
aparecem e desaparecem.
E então, sem olhar para mim, ela pede:
— Deixe-me falar. Não diga nada. Ok?
Eu aceno, esperando que ela veja o movimento em sua visão
periférica. Ela deve ter percebido, porque depois de mais um
minuto observando as luzes mudarem, ela respira fundo e
começa a falar.
— Fiz uma resolução de Ano Novo… — diz ela. Claro que
ela fez. — É que não quero mais ser uma covarde de merda,
sabe?
Prendo a respiração, com medo de que, se eu fizer qualquer
movimento brusco, ela desapareça em uma nuvem de fumaça.
— Tipo, eu odeio o quão assustada eu estava no ano
passado. De ir para a faculdade, de ficar com meu pai, de
perceber que sou lésbica.
A sala inteira está vermelha agora. Pela primeira vez, olho
para o rosto de May. É vermelho também.
— Acabei de entrar em um ônibus. — May fala, e não tenho
certeza do que ela quer dizer até que ela continua: — Entrei em
outra enorme briga com meu pai, então peguei um ônibus que
partiu à meia-noite, no segundo em que completei dezoito
anos. Eu precisava ver minha mãe, então fui. Nem levei nada
comigo.
"E eu me senti uma merda durante toda a viagem de ônibus.
Eu tinha certeza de que tinha arruinado tudo com meu pai… E
com você."
A luz vermelha está desaparecendo e uma nova luz verde
sobe para iluminar um canto da peça. Não chega aos nossos
rostos, mas está lá, mudando a pintura, revelando formas onde
antes só havia escuridão.
— Então, esta é a minha resolução, parte dela, de qualquer
maneira. Quero melhorar as coisas com meu pai. E não quero
ter medo. — Pela primeira vez, ela se vira para olhar para mim.
Eu também olho para ela. — Você me assusta, Shani. — Ela
deve ver a confusão no meu rosto porque se vira para a pintura
e balança a cabeça, sorrindo um pouco. — Você me assusta
para caralho.
Ainda não digo nada, porque não tenho ideia de como
responder a isso.
— A coisa é que, no entanto... Eu gosto mesmo de você.
Meu coração acelera como se estivesse tentando voar para
fora da minha garganta.
— E é fodidamente difícil para mim dizer isso. — May meio
que grunhe de frustração, como se quisesse provar seu ponto
de vista. — Isso vai soar como um clichê tão estúpido, mas não
sei se já me senti assim antes. — Ela balança as pernas e o banco
balança junto com ela. — Eu não posso nem olhar para você
agora porque, tipo... é. Eu sei que nos conhecemos há apenas
algumas semanas, e que eu era uma vadia quando nos
conhecemos. Talvez eu ainda seja. Tipo, eu fugi, o que é uma
merda. Mas estou de volta. — Ela dá de ombros e respira. — E
eu acho que é só que eu nunca senti isso antes. Seja o que isso
for. Ela se move para mais perto de mim. — E pode ser uma
suposição estúpida, mas eu sinto que, seja o que for, pode ser
algo… Jesus, ok, vou calar a boca. — Ela toma uma respiração
irregular. — Ok. Você deve saber que eu nunca namorei
ninguém antes, não que eu ache que vamos começar a namorar
ou algo assim, mas... merda.
Ela soa tão assustada, tão diferente de May, o que me assusta
também. E antes de pensar se deveria, estendo minha mão e a
coloco em seu ombro. É a coisa mais estranha do mundo
inteiro, especialmente porque agora eu posso dizer que nós
duas estamos tremendo. É como se houvesse uma corrente
viajando de seu ombro para minha mão e de volta para mim.
Então ela declara:
— Não é só que eu nunca namorei ninguém antes. Eu
nunca fiz, tipo, nada disso. — Ela se inclina para frente tão
rapidamente que minha mão cai de seu ombro. Ela enterra o
rosto nas pernas.
Eu sei que preciso dizer algo agora, então começo com a
verdade.
— Eu também gosto de você.
Leva um segundo, mas May deve ter registrado o que eu
disse porque ela lentamente se senta, então se vira no banco
para ficar de frente para mim.
Estou preocupada achando que disse a coisa errada. Que, de
alguma forma, mesmo depois que ela fugiu, voltou e desnudou
sua alma para mim, eu fui e arruinei tudo com cinco palavras.
Mas seu rosto se abre em um sorriso.
Sorrio de volta, tão aliviada que poderia chorar.
— Então, eu acho que isso está acontecendo? — May
pergunta tão baixinho que eu tenho que me aproximar para
ouvi-la. — Vamos tentar alguma coisa? Nós duas?
— Acho que sim… — Eu afirmo, também baixinho.
Ela sorri, mas suas sobrancelhas se juntam.
— Mas eu quero que as coisas andem devagar, ok? Tipo,
muito lento?
Eu aceno fervorosamente.
— Sim. Sim. Absolutamente.
Naquele momento, considero brevemente contar a ela
sobre Sadie. Falar a ela que estou completamente bem em levar
as coisas devagar, porque acabei de sair de um relacionamento
em que meu coração foi quebrado em um milhão de pedaços,
e lento é a única velocidade que sou capaz neste momento.
Mas se eu contar a ela sobre Sadie, ela vai pensar que sou
mais experiente, quando isso não poderia estar mais longe da
verdade.
— Shani? — May chama, me tirando desses pensamentos.
Esses pensamentos ativamente prejudiciais que não têm
lugar nesta exposição, onde uma garota fofa que de alguma
forma tive a sorte de atropelar com meu carro está me dizendo
que ela tem uma queda por mim e quer tentar algo comigo
Eu me inclino no banco e sussurro para ela:
— Como você se sentiria se eu te beijasse aqui? — Eu não
acho que isso seja algo com que as pessoas heterossexuais se
preocupam, mas eu quero ter certeza de que ela está bem em
beijar nesta exposição semipública.
— Eu me sentiria muito bem com isso… — Ela sussurra de
volta.
Ela se aproxima de mim no banco, coloca a mão na minha
nuca e me beija, bem dentro do Espaço Caracóis.
Nossos narizes frios se tocam. Eu me inclino mais para ela,
nossas pernas pressionadas juntas. Não quero que o beijo
termine.
Sem tirar minha boca da dela, abro o bolso da jaqueta e tiro
o gorro vermelho.
Nós nos separamos lentamente, mas quando eu me inclino
para trás, ela me puxa para frente e descansa sua testa contra a
minha.
Eu desajeitadamente levanto minhas mãos de onde elas
estão em sua cintura e tento colocar o gorro nela.
Ela ri e me ajuda, até que está de volta em sua cabeça, o lugar
a que pertence.
— Eu estava esperando que você devolvesse. — Ela fala,
sorrindo, nossas testas ainda pressionadas juntas.
— Eu pensei que teria que guardá-lo para sempre. — digo a
ela. — Achei que você não fosse voltar.
— Bem, eu precisava pegar o gorro de volta. — Ela responde
com uma piscadela, levantando-se do banco. — Não é?
Ela pega minha mão e me puxa para cima, e saímos juntas
do Espaço Caracóis, mãos entrelaçadas, apenas por um
momento, enquanto as luzes verdes, vermelhas e roxas crescem
e toda a pintura é iluminada.
Não é uma tigresa literal

Depois de nossa conversa no Espaço Caracóis, May e eu


passamos a maior parte do dia juntas. Nós não nos beijamos
ou demos as mãos nem nada, mas nenhuma de nós conseguia
parar de sorrir.
Foi meio incrível.
Hoje é domingo e, depois de toda a empolgação de ontem,
dormi um pouco. Agora estou me perguntando se ainda é
muito cedo para mandar uma mensagem para May. Tipo, não
apenas muito cedo de manhã, mas muito cedo.
Porque e se ontem contasse como um encontro? E se
realmente fosse um encontro, você não deveria esperar dois, três
dias, uma semana ou algo assim antes de convidá-la para outro?
Talvez nossa situação seja diferente, no entanto.
Ou... talvez não seja. Eu provavelmente deveria passar o dia
cuidando da minha vida e me preparando para a análise de
celacanto juvenil que faremos amanhã no laboratório. Eu
poderia ler alguns artigos, me dedicar ao trabalho.
Ou, e se eu mandar uma mensagem para ela, de qualquer
maneira?
Mas isso pode me fazer parecer desesperada.
E quando estou prestes a mergulhar em uma espiral de
pensamentos sem fim sobre ser ou não muito cedo para enviar
uma mensagem para May, algo maravilhoso acontece: ela me
manda uma mensagem.

May: lembra quando você disse que deveríamos


ir ao museu de história natural?

Lembrar? Eu estive agonizando por causa disso durante a


semana passada. Quando eu disse a ela que teríamos que ir ao
museu juntas algum dia. Quando ainda não havia "nós''.
Mas em vez disso, eu mando uma mensagem de volta

EU: sim!
você está pensando em ir ou algo assim?

MAY: bem, sim, estou pensando em ir


mas com vc, boba
:0

Eu sorrio para o meu telefone como uma tola.

EU: hoje?

MAY: hm
que tal agora?
a menos que você esteja ocupada
pensei que poderíamos nos encontrar no café
perto do metrô
Oh, não. A cafeteria do metrô…

EU: você quer dizer na big blue dog?

MAY: sim, nesse mesmo


eles têm um café decente
você já foi lá?

EU: algumas vezes


mas eu realmente não quero café agora

MAY: kkkk ok mas eu quero


me encontra lá em 30 minutos?

EU: ta bem

Eu enterro meu rosto no travesseiro e tento não rir. É


horrível, mas também é hilário.
Minha paixão atual e meu... barista adolescente que flerta
comigo de vez em quando estão prestes a estar no mesmo lugar,
ao mesmo tempo.
Minha última esperança é que Luke pode não estar
trabalhando hoje. Acho que as escolas de DC retornam
amanhã, então espero que ele esteja se preparando para seu
primeiro dia de volta após as férias de inverno.
Realmente espero.
Eu me visto e desço as escadas, não desesperada para sair
como fiz ontem. Estou alguns minutos atrasada, e espero que
tenha sido tempo suficiente para que May já tenha pegado seu
café e esteja me esperando na entrada do metrô.
Isso é, obviamente, um desejo. Quando chego ao The Big
Blue Dog, May está lá dentro, conversando com um barista que
não é Luke, graças a Deus.
Eu entro quando a campainha acima da porta toca e fico em
um canto que está um pouco obscurecido do balcão.

EU: olhe para a esquerda kkk

May verifica seu telefone, então olha para cima e sorri,


balançando a cabeça para mim.
— O que você está fazendo, Shani? Venha aqui.
E talvez seja ouvir meu nome, ou talvez seja um sexto
sentido, mas nesse momento Luke sai da cozinha.
— Shan Shan! — Ele grita, porque é claro que ele escolheu
agora para testar um novo apelido.
— Ei, Luke. — Eu murmuro.
Olho para May, esperando que ela esteja checando seu
telefone ou algo assim, qualquer coisa para distraí-la do que está
prestes a acontecer aqui. Mas não. Ela está olhando diretamente
para mim. Suas sobrancelhas sobem até o topo de sua testa, e eu
posso ouvir a pergunta não dita: Shan Shan?
May paga o barista e vai até a ponta do balcão para colocar
leite e açúcar no café.
— O que eu posso fazer por você? — Luke pergunta,
parecendo de alguma forma mais jovem e mais ansioso do que
eu já o vi.
— Nada para mim, obrigada. — Eu ando até May, tentando
conduzi-la para fora do café.
— O quê? — Luke exclama. — Não, vamos lá. Que tal
outro macchiato? Essa é especial, o nome dessa bebida nova é
“Shani”.
Não discuto com ele porque sei que será pior se o fizer. Eu
mantenho minha cabeça baixa enquanto ele prepara a bebida,
e tento ao máximo não olhar para May.
Quando ouço chantilly espirrando atrás do balcão, quero
afundar no chão.
— Por conta da casa — Luke fala enquanto me entrega a
bebida —, é claro.
— Obrigada. — Murmuro, então passo rapidamente por
May saindo do café.
Quando estamos na calçada, ela começa a rir.
— Puta merda. — Diz ela, lágrimas se formando em seus
olhos por rir muito. — Eu não sabia que você já estava em um
relacionamento sério.
Esfrego meu rosto com minha mão que não segura o café.
— Eu não posso acreditar que você é literalmente uma
tigresa! — May fala.
— Bem, não uma tigresa literal. — Eu respondo.
— Você vai dar a ele algo bom para o seu bar mitzvah?
Talvez um anel de compromisso ou bilhetes Nats ou...
— Bem, em primeiro lugar, ele não é judeu...
— Isso é o que te preocupa? Que ele não seja judeu? E não
que ele tenha treze anos? — May começa a rir de novo quando
entramos na escada rolante do metrô.
— Ele deve ter pelo menos quatorze anos.
— Eu não posso acreditar que você está deixando uma
criança flertar com você por café grátis. E ele deu o seu nome a
uma bebida. Isso é hilário.
— Bem, eu nunca vou voltar lá, então... problema resolvido.
Estamos na plataforma agora, esperando o metrô chegar.
— Não! Você vai partir o coração dele!
— Ele vai sobreviver.
Está muito cheio no metrô, então ficamos de pé e seguramos
um poste perto da porta. Fazemos o caminho que tenho feito
para o museu nas últimas duas semanas, mas é diferente fazer
meu trajeto com May.
É legal.
— Nós estamos indo diretamente para Deep Time.14 — Eu
digo quando entramos no museu. É a minha exposição favorita
e uma das únicas que vale a pena ver. Mesmo com suas
tentativas de contar o passado, a maioria dos museus de história
natural ainda é fã do colonialismo e de artefatos roubados, e
este não é exceção.
Mas existem fósseis radicais, então isso é... legal.

14
É um termo introduzido e aplicado por John McPhee ao conceito de tempo
geológico em seu livro Basin and Range (1981)
— E os geodos?15 — Ela pergunta, lendo a grande placa que
diz: “GEODOS!”
— Geodos são para depois do Deep Time. Eu não posso
acreditar que você disse geodos.
— Quanta audácia. — diz May. — O que eu estava
pensando? — Reviro os olhos e ela sorri para mim. — Tudo
bem, vamos.
A exposição Deep Time é o novo salão de fósseis do museu,
mas é muito mais do que isso, porque também é sobre evolução
e vida na Terra em geral, e sobre como os humanos estragaram
tudo. Digo isso a May, e ela parece animada com a parte dos
humanos estragando tudo.
Está incrivelmente lotado perto da entrada, em parte
porque ainda é uma espécie de feriado e em parte porque, bem,
há dinossauros.
— Ok, escute. — Peço a May quando entramos, virando-
me para bloquear sua visão do que está dentro. — A exposição
vai tentar te atrair mostrando um T. Rex superlegal demolindo
absolutamente um Triceratops.
— Eu sou atraída apenas por essa descrição.
— Bem, que pena — Eu falo —, porque não é por aí que
vamos começar. Toda a exposição é cronológica, então temos
que começar do início. Proteja os olhos se for preciso. Faça o
que for preciso.

15
São formações rochosas que ocorrem em rochas vulcânicas e sedimentares.
— Pode deixar, capitã.
— Prometa-me que você não vai olhar para o T. Rex
rasgando o Triceratops em pedaços.
— Mas você está fazendo isso soar tão legal. — Ela lamenta.
— Vai valer a pena, eu prometo! — Digo a ela, e entramos.
May brinca e faz um grande show cobrindo os olhos
enquanto passamos pelos dinossauros em direção ao início da
exposição.
O que por acaso é o começo de tudo. Bem, nem tudo, mas o
início da vida na Terra, há 3,7 bilhões de anos.
Passamos pelas origens da vida e os primeiros três bilhões de
anos ou mais, porque eram basicamente micróbios e tal.
Corro até uma tela de jogo interativo, e May vem ao meu
lado para que possamos jogar juntas. Eu sei que estou
parecendo com uma criança hiperativa nesta exposição, mas
não posso evitar. É emocionante ter alguém para compartilhar
tudo.
O jogo é sobre as origens antigas dos corpos modernos, e
você pode examinar diferentes partes do corpo de uma pessoa
animada para ver como eles evoluíram.
O povo é principalmente inexpressivo e completamente
neutro em termos de gênero. Eles estão vestindo uma roupa
preta, têm cabelos castanhos espetados, pele morena clara e
pulam pela tela quando você pressiona diferentes partes do
corpo.
— Acho que eu os amo? — May diz enquanto pressiona a
mão da pessoa para saber como nossos polegares opositores
evoluíram.
— Um ícone não-binário. — Concordo enquanto
pressiono o ouvido deles para aprender sobre a evolução da
audição em mamíferos.
— Isso talvez seja um pouco violador para eles? — Ela
pergunta enquanto pressiona os pés da pessoa e eles pulam no
ar.
— Sim, vamos deixá-los descansar.
Damos adeus ao nosso novo amigo na tela e caminhamos
para a próxima exposição assim que uma criança pequena corre
até a tela e bate com a palma da mão inteira no torso do avatar
para fazê-los dançar.
A próxima coisa que vemos é uma placa que diz: “Não é fácil
viver em terra.”
— O que você estava dizendo mesmo? — Questiona May.
— Ok, mas é sério... é tão difícil — Eu respondo.
E então quero compartilhar meus pensamentos sobre como
os peixes são superiores a todas as outras criaturas e como a terra
é superestimada. Quero contar a May todo o meu
conhecimento sobre peixes, transmitir para ela para que ela
saiba mais sobre o porquê de eu ser do jeito que sou.
Mas.
Não quero cair no modo “bom, na verdade” de falar que as
pessoas – geralmente garotos que pensam que sabem mais do
que eu sobre a evolução dos peixes só porque pegaram um
celacanto em Animal Crossing – usaram comigo. É uma merda
ter alguém fazendo você se sentir inadequado quando você está
aprendendo algo novo.
Então, em vez de iniciar algum monólogo sobre peixes, o
que eu faria com prazer, tento iniciar uma conversa.
— Aquele primeiro peixe idiota que rastejou para a terra nos
fodeu para sempre. Tipo, ele deveria ter ficado na água. O
oceano é literalmente mil vezes melhor do que qualquer
centímetro quadrado de terra seca.
— Mas não foi bom para aqueles carinhas serem as primeiras
coisas lá? — May pergunta. — Dessa forma, não havia
competição por comida, abrigo ou qualquer outra coisa que
um animal precisasse.
— Sim, mas você tem que lidar com coisas como a gravidade
e o sol. No oceano você pode flutuar. Os peixes podem fazer
isso com tanta facilidade – eles estão apenas vibrando.
— “Isso é o que todos dizem” — May aponta para a cópia
da exposição abaixo da placa —, “que os animais que saíram do
oceano tiveram que obter todas essas adaptações estranhas”.
Eu gostaria de não ser tão previsível, mas acho tão gostoso
ouvir May falar sobre adaptações terrestres.
E, mais do que isso, May ler a placa e me explicar é o que eu
mais amo nos museus: que as pessoas possam descobrir as coisas
por si mesmas. Elas podem tornar esse conceito difícil deles um
que elas possam explicar para a família, amigos e garotas que
talvez estejam namorando ambiguamente.
Finalmente, chegamos à parte da exposição da qual eu forcei
May a proteger os olhos no início: o T. Rex comendo o
Triceratops.
— Isso aqui sim é muuuito legal! — Diz May.
— Como você ousa...
Ela bate no meu ombro. É a primeira vez que nos tocamos
durante todo o dia - eu sei porque também é a primeira vez que
meu corpo parece ter sido incendiado. Nós nem nos tocamos
mesmo em um metrô lotado. Tensionei todos os músculos do
meu corpo para garantir que ficaríamos a pelo menos uma
polegada de distância.
Eu sou uma bagunça.
Continuamos viajando no tempo enquanto os mamíferos
se tornam o grupo dominante de animais na Terra, mas meu
cérebro está preso no meu ombro, com o toque de May.
Em seguida, chegamos às recentes eras glaciais. Não tipo
recente recente. Geologicamente recentes — começaram há
dezenas de milhares de anos.
— Ah, essa é a parte boa. — May fala quando chegamos ao
ponto em que os humanos estão começando a evoluir e, como
é da nossa natureza, estragando tudo.
A exposição fala sobre como a vida muda à medida que a
Terra muda. Os continentes se movem, os oceanos sobem e
descem, o clima global flutua. E a vida se adapta. Ou tenta, de
qualquer maneira.
Uma das partes finais da exposição é uma parede de animais
que foram levados pelos humanos à extinção ou à beira da
extinção. É essencialmente a parede do “nós fodemos tudo”.
May e eu fazemos um momento de silêncio para os Moas,
uma espécie de pássaros gigantes que não voavam, viveram na
Nova Zelândia e foram caçados até a extinção por humanos.
Embora, para ser justa, fosse um pássaro incrivelmente bobo.
Esta parte da exposição é bastante sombria, porque é sobre
o papel que os humanos desempenharam no que agora é um
novo evento de extinção global.
— E a mudança climática é um grande fator nisso, você sabe.
— May declara. — Parte do que era interessante sobre aquelas
exposições, sobre extinções que aconteceram há milhões de
anos, foi que a temperatura teve algum significado em todas
elas. E agora temos níveis de dióxido de carbono mais altos do
que tínhamos desde tipo, antes da existência dos humanos, e
esse é um dos fatores que estão causando todas essas extinções.
Adoro ouvir May falar sobre tempo e clima. O assunto é
horrível, mas ela fala com tanta emoção.
É a mesma coisa que senti na véspera de Natal, quando ela
me contou pela primeira vez que adora o clima.
Eu devo estar encarando-a muito intensamente, porque
suas sobrancelhas se juntam e ela pergunta:
— O quê?
— Nada. — Eu respondo.
Agora me sinto tímida. Nós não estávamos super delicadas
ou sedutoras hoje. O que faz sentido porque teria sido
estranho, tipo, nos beijarmos enquanto estávamos lamentando
o extinto Moa.
Mas agora eu quero beijá-la. Eu quero tanto que dói.
— Não, sério. O quê?
E é aí que eu percebo: não é como quando eu estava
dormindo na cama de May na véspera de Natal, enquanto ela
dormia no quarto do pai dela, quando eu fantasiava sobre o que
poderia acontecer se eu criasse coragem para fazer uma jogada.
— Venha aqui. — Eu peço, e ela fica mais perto de mim do
que esteve o dia todo, enquanto entramos em uma pequena
sala escura e vazia mostrando um filme sobre mudança
climática.
Nós nos sentamos, ainda uma ao lado da outra, ainda nos
tocando, ainda tão perto quanto podemos estar sem...
E então ela me beija.
Eu me inclino para ela e meu corpo inteiro se sente
exatamente como meu ombro estava antes.
O narrador britânico do filme explica que nossa pegada
ecológica hoje é escrita através de histórias do passado, e
continuamos nos beijando. Nós nos beijamos tão forte que eu
sei, eu sei que ela está pensando sobre isso também.
Eu envolvo meus braços ao redor de sua cintura. Ela se
aproxima ainda mais e coloca as mãos sob meu suéter. Sua pele
é macia e fria e tão, tão humana. Posso sentir os milhões de anos
de evolução que nos trouxeram a este momento. Eu quero ir
para a área da exposição com o avatar de gênero neutro e dizer
a todos que passam que a tela interativa está errada. Que
desenvolvemos polegares oponíveis para que May pudesse me
tocar assim, sua mão agarrando minha cintura, seu polegar
suavemente roçando minhas costelas.
E então há passos.
Nós nos separamos tão rápido que quase fico tonta. Nós
duas ficamos paradas, olhando para frente e respirando
pesadamente.
Atrás de nós, um garotinho grita:
— É apenas um filme estúpido.
Eu me viro, menos preocupada e mais irritada, e vejo que é
o garoto sensível que está nos seguindo pela exposição.
— NÃO DIGA ESSA PALAVRA FEIA! — Um adulto
grita do lado de fora da sala de cinema escura, e o garoto sai
pisando forte, deixando-nos sozinhas novamente.
Continuamos de onde paramos. Nós nos beijamos até o
narrador nos dizer que o mundo está condenado, a menos que
façamos algo logo.
E mesmo que essa provavelmente não seja a ação sobre a
qual ele estava falando, ainda parece algo bom a se fazer.
No dia seguinte, no laboratório, passamos a primeira parte da
manhã preparando fósseis do sítio de celacanto juvenil para
análise isotópica, e não consigo parar de pensar em May.
Mas dou o meu melhor, porque estou animada para
aprender sobre a técnica, para participar de algo que só li em
artigos científicos.
O Dr. Graham sai de seu escritório alguns minutos depois
que eu chego, carregando uma caixa de arquivamento enorme
com mais espécimes.
— Conchas devonianas. — diz ele, sem explicação.
Eu olho para dentro da caixa e com certeza existem centenas,
talvez milhares de conchas fósseis não classificadas,
mineralizadas e bonitas.
— Nós as coletamos no local de escavação onde
encontramos os celacantos juvenis. — Dr. Graham continua.
— Podemos poupar alguns deles, mas não podemos poupar
nenhum dos espécimes de celacantos.
O problema de usar a análise de isótopos é que, para
aprender algo útil sobre a amostra, você precisa destruí-la. Mas
depois de fazer a análise isotópica de uma amostra mineral
(como as conchas), você pode começar a reconstruir o
ambiente aquático dos peixes encontrados no mesmo local de
escavação.
— Isso pode ser um grande avanço no espaço Devoniano
juvenil de filhotes de celacantos. — O Dr. Graham fala com
tanto entusiasmo quanto um astrônomo falando sobre alguma
forma de encontrar vida senciente em outro planeta. — Então,
mãos na massa!
Trabalhamos por um tempo esmagando as conchas, e isso
se torna tão monótono quanto limpar fósseis. Não é chato,
apenas monótono.
Dr. Graham volta ao seu escritório para trabalhar, o que
deixa eu e Mandira sozinhas na área principal do laboratório.
Quero contar a ela sobre o que está acontecendo com May,
mas sei que tenho monopolizado a conversa com meu drama
de relacionamento. E o pior é que ainda quero continuar
falando sobre isso. Então eu decido chegar lá pela rotatória.
— O que você fez neste fim de semana? — Eu pergunto,
tentando soar casual, para esconder minhas segundas
intenções. — Alguma coisa divertida?
Mandira bufa.
— Hum, nada demais. O mesmo de sempre. — Mandira me
dá um olhar curioso. — Por que o interesse repentino? Porque
tipo, só dizendo, você não parecia muito interessada em saber
sobre a minha vida antes.
Estou profundamente envergonhada quando ela afirma
isso, porque ela está certa. Eu tenho a usado como terapeuta.
Mas tê-la falando assim é... rude.
— Sinto muito! — Digo a ela. — Eu realmente quero saber
sobre você. Tipo, eu sou tão, tão...
— Shani, está tudo bem. — Ela tranquiliza. — Adoro falar
sobre coisas de relacionamento, e posso dizer que é isso que
você está louca para me contar. — Eu olho para o banco
enquanto ela diz isso, mas Mandira está certa. — Eu gostaria de
ter tido alguém para me dar conselhos quando eu estava no
meu primeiro ano de faculdade. — Acrescenta ela.
Ela tira uma nova concha da caixa, então há uma pausa. Um
momento em que nenhuma de nós diz nada.
— Tudo bem — Continua Mandira, rindo um pouco. —,
me conte o que aconteceu com você neste fim de semana.
Ela olha para mim com as sobrancelhas levantadas, e peço
desculpas mais uma vez antes de iniciar esta edição da Hora da
História de May. Termino com:
— Então, acho que é por isso que estou meio distraída hoje.
— Sem ofensa, mas acho que você está meio distraída todos
os dias – não que você esteja fazendo um trabalho ruim. — Ela
acrescenta. — Mas você definitivamente é alguém distraído.
— Isso é justo. — Eu concordo, mas não estou prestando
muita atenção porque verifico meu telefone e vejo uma
mensagem de May. É uma ilustração de um Moa com a legenda
“vá em paz”. O pássaro tem pernas assustadoramente longas e
um corpo redondo, parecido com uma batata.
Eu mando de volta:

EU: ai meu deus, que inveja dessas pernocas


ele era tão jovem :'(

— Deixe-me adivinhar. — Diz Mandira. — Você está


mandando mensagens para ela agora.
— O quê? — Eu pergunto, rápido demais, guardando meu
telefone. — Não.
— Por que você não almoça agora? — Ela pergunta. — E
quando você voltar, você deixará seu telefone de lado pelo resto
do dia, se estiver tudo bem para você. — Quando Mandira vê
as lágrimas inúteis pinicando no canto dos meus olhos, ela
acrescenta: — Isso nem sou eu dizendo isso para você como
supervisora. Às vezes é bom se desconectar de um novo
relacionamento por um tempo. Mesmo que seja apenas por
algumas horas.
— Ok! — Eu concordo, balançando a cabeça e segurando as
lágrimas, meu rosto quente de vergonha.
Saio do laboratório e me deixo chorar. O pior é que ela está
certa. Estou em DC por peixes mortos, não por uma garota.
Mas ao mesmo tempo...
Respiro fundo e procuro o caminhão de queijo quente.
Claro, quando eu mais preciso, não está lá. Então, em vez de
procurar um almoço abaixo da média, sem queijo quente, me
sento nos degraus do museu e mando uma mensagem para
Taylor.

EU: tenho novidades

O “TAY está digitando” aparece logo depois de eu enviar a


mensagem e estou quase convencida de que Taylor estava
esperando uma mensagem minha.

TAY: espere, não diga nada


deixe-me adivinhar

EU: vá em frente

TAY: May voltou


deu tudo certo
isso é tudo que eu tenho
mas está certo
não está?

EU: kkkkk sim


mas sério como você sabia???

TAY: você não me manda mensagem há dois


dias
eu percebi que era uma coisa sua em
relacionamentos
ou quando você namorava com a sadie
e eu passava dias sem ouvir falar de você

A coisa que ela está se referindo é que, se algo bom acontecer


comigo, não posso contar a ela por alguns dias porque estou
preocupada que a coisa boa vá embora. O que é parte da razão
pela qual eu não contei a ela sobre Sadie. Mas eu sei que preciso
fazer melhor agora, ou pelo menos tentar.

EU: não está acontecendo o que acontecia com


a sadie, juro
mas tipo sim, may e eu estamos meio que
namorando??

TAY: !!!
oficialmente??
EU: quero dizer
nós não dissemos nada oficialmente

TAY: ah você não assinou um contrato ainda?

EU: kkkk não


mas sim as coisas estão boas eu acho?
também está tudo perfeito
quer saber por que

TAY: posso adivinhar isso também

EU: não
é perfeito pq estou meio que em um
relacionamento
e está indo bem até agora
o que significa que talvez em algumas
semanas
quando for mais oficial
eu posso finalmente dizer a minha mãe que eu
sou queer

TAY: você sabe que pode dizer a ela quando


você NÃO está em um relacionamento, certo?

EU: oops desculpe o horário de almoço acabou


tenho que ir

TAY: vc é uma merda

EU: <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3

E com isso, minha conversa com Taylor acabou. Nos


últimos dois anos, eu me recusei a ouvir seu conselho
perfeitamente razoável sobre sair do armário para minha mãe.
Eu não quero que ela discuta comigo por causa disso, porque
se o fizermos, ela vai ganhar.
Mas não posso contar à minha mãe. Mesmo que eu tenha
certeza de que vai ficar tudo bem. Mesmo que isso possa
realmente nos aproximar. Acho que todos no planeta sabem
que sou queer, exceto ela. Parte de mim espera que ela descubra
por conta própria, e então nunca teremos que falar sobre isso,
porque falar a respeito disso seria mortificante. Eu não quero
que ela saiba que eu tive sentimentos românticos ou sexuais por
alguém, nunca.
Ainda tenho alguns minutos restantes do meu horário de
almoço, então, antes de voltar para dentro e desligar o telefone,
mando uma mensagem para May.

EU: o que você vai fazer mais tarde?

MAY: meu pai quer que eu jante com ele


tipo, na sala de jantar
me salve disso por favor

EU: kkkkkk quer sair?


quer vir ao centro? já que estou de qualquer
forma

MAY: ooh sim, espere


vamos ao show de trens

EU: o quê?

MAY: no jardim botânico


não é incrível
mas é divertido

EU: não, isso parece incrível


eu amo trens
piuííííí

MAY: pera
é esse o barulho que você acha que um trem
faz???

EU: que som um trem faz??

MAY: tchau tchau!!!!!!!!!!!!!!


concentre-se no jogo, levine

EU: desculpe, faz muito tempo desde a pré-


escola

MAY: vergonhoso
até logo

E, sorrindo para o meu telefone – é claro – eu volto para o


laboratório, com a preparação de isótopos e jardins botânicos
me esperando.
Thomas, de Thomas e seus Amigos,
emergindo de seu sono

Está chovendo quando saio do trabalho. Não há janelas no


laboratório, então nunca sei como estará o tempo quando o dia
chegar ao fim.
Não há estação de metrô indo do museu ao jardim botânico,
e é muito longe para ir andando na chuva gelada, então me
preparo e corro para um ônibus cheio de turistas encharcados.
O jardim botânico é como um farol no escuro. O edifício é
feito de vidro e metal, e no centro há uma cúpula gigante que
emana luzes multicoloridas.
Lá dentro, o clima é totalmente diferente: é quente, úmido
e as plantas não devem saber que é inverno. Sorte delas.
O hall de entrada é longo, estreito e cheio até a borda com
rosas vermelhas, mas as principais atrações são as longas
piscinas de fontes que se estendem por toda a extensão do salão
com seus azulejos turquesa profundos e luzes subaquáticas
amarelas.
Vejo May sentada em um banco, bem ao lado de uma
maquete do jardim botânico feita com o que parecem ser
galhos, folhas e outros materiais naturais, iluminada por dentro
da mesma forma que é a de tamanho real esta noite.
Ela está sentada com os olhos fechados, e estou hesitante em
perturbar sua paz neste oásis quente.
Mas, depois de alguns segundos, a parte de mim que quer
correr pelos jardins botânicos com May enquanto flerta com os
trens vence.
— Boo! — Eu exclamo, cutucando sua perna com meu pé.
Ela não se move.
— Não estou dormindo. Apenas descansando com os olhos
fechados.
— Bem, levante-os e sacuda a preguiça para fora. — Eu
estendo minha mão.
Ela revira os olhos, mas a agarra, e uma corrente flui entre
nós. Eu me pergunto se ela sente isso também.
— Hora do trem? — Ela pergunta, soltando minha mão.
— Piuííí! — Eu respondo.
— Sério, horrível. — Ela bufa e ri. — Vem comigo.
Atravessamos o conservatório principal, uma sala enorme
que é ainda mais quente do que o hall de entrada. Acima de nós,
gigantescas plantas tropicais esvoaçam preguiçosamente ao
vento dos ventiladores de teto.
Seguimos a multidão até o showroom principal. Está cheio
até a borda com trens, árvores, plantas, pontes, modelos de
edifícios e pessoas. Apesar do que May mandou na mensagem
antes, é incrível.
Os trens passam pelos bosques de árvores enquanto as
crianças gritam de alegria, o que é irritante, mas compreensível,
porque toda a sala está coberta de trilhos em miniatura que se
cruzam. Parece que somos gigantes controlando os trilhos.
— Eles deveriam fazer isso o ano todo. — Eu digo enquanto
caminhamos sob uma ponte de madeira e um modelo de trem
passa por nós.
— Mas então não seria especial.
— Eu concordo. — Falo, ela provavelmente está certa. Há
algo de espetacular em uma sala quente e aconchegante cheia
de pessoas que estão se espremendo para ver modelos de trens
uma vez por ano.
Algumas crianças atrás de nós gritam tão alto que meu
primeiro instinto é correr, apenas para me virar e descobrir que
é Thomas, do desenho infantil Thomas e Seus Amigos,
emergindo de seu sono para fazer um grande tour pela sala.
Crianças o perseguem, gritando:
— Thomas! — porque é divertido identificar as coisas.
Depois de alguns minutos olhando para os trens com
admiração, May conta:
— Eu menti sobre aonde estava indo. Para o meu pai...
Eu olho para ela, confusa. Não sei por que ela está me
contando isso, então digo:
— Entendo. É difícil sair do armário para os pais. — O que
é completamente hipócrita, considerando que eu não me
assumi.
May ri um pouco.
— Não, não, não é isso. — Paramos em um moinho de
vento em miniatura que continua esbarrando em uma
samambaia enquanto suas lâminas giram. — Eu não acho que
ele se importaria.
— Então por que você mentiu para ele?
— Eu não... — Ela suspira, então se vira para mim. — É
porque eu não quero que ele saiba sobre você. Ou sobre nós.
Há uma pontada no meu peito, e não do tipo bom. Por que
ela me disse isso no show de trem?
May deve ver isso em meu rosto, porque ela acrescenta:
— Não, escute. Você é muito importante para mim, é por
isso.
Thomas, a locomotiva, passa zunindo e um grupo de
crianças esbarra em nós, quase me desequilibrando. May agarra
meu braço para me firmar enquanto continua:
— Meu pai e eu não nos damos muito bem, o que eu sei que
você sabe. E acho que não quero que ele saiba sobre nós, é o que
estou tentando dizer.
Seu cabelo cai em seu rosto enquanto ela explica isso, e tudo
que eu quero fazer é estender a mão e empurrá-lo atrás de suas
orelhas e dizer a ela que está tudo bem. Então é isso que eu faço.
— Está tudo bem. — Eu digo enquanto afasto uma mecha
grossa de seu cabelo, o melhor que posso. — É realmente, tipo,
muito doce.
Ela parece tão aliviada, e estamos tão perto, mas não quero
beijá-la na frente dessa multidão de pessoas. Então, eu a puxo
para mim e nos abraçamos no meio do caos do show de trem.
— Quer voltar para a minha casa para um chá ou algo assim?
— Eu pergunto depois de andarmos sem rumo pelos jardins
por mais algum tempo.
Não quero que ela tenha que voltar para a casa do pai. Eu a
quero comigo.
— Parece ótimo. — Ela responde, nos despedimos dos trens
e pegamos o metrô.

— Estou em casa! — Eu grito quando entramos na casa de


Beatrice. Normalmente não me anuncio, mas fazê-lo agora
significa que teremos que nos sentar e conversar com Beatrice
por um tempo.
E então, talvez May não me pergunte por que não a estou
levando para o meu quarto.
— Venha para a cozinha, boneca!
Atravessamos a sala de estar e, antes mesmo de passarmos
pelo arco da cozinha, Beatrice se levanta da mesa, estende os
braços e exclama:
— Um novo anjo! E ela é linda! — Ela abraça May, que
parece surpresa, mas não desconfortável.
Aceno para Tasha e Lauren, que estão sentadas uma ao lado
da outra comendo pizza de micro-ondas.
— Esta é a May. — Eu apresento, mais para seu benefício do
que para o de Beatrice. — Ela é minha amiga.
Eu me sinto boba depois de dizer essa última parte, porque
provavelmente faz nosso relacionamento parecer mais suspeito
do que se eu não tivesse dito nada.
Mas Beatrice não parece entender. Ela agarra May pela
cintura e olha para ela.
— Nós nos conhecemos. — Lauren diz em resposta à minha
apresentação. Ela acena para May.
— Ah, certo, hum.
Eu quase esqueci que Lauren é quem geralmente passeia
com Raphael. E não apenas isso, ela também aparentemente
acha que May tem uma “energia estranha”. O que poderia ser
uma coisa boa agora, porque talvez esconda a outra vibração
estranha - a vibração estranha e sedutora - que está quase que
definitivamente emanando de mim e de May. Eu me pergunto
se todo mundo pode ver isso. Se a vibração é tão poderosa que
está saindo de nós em ondas visíveis.
Nós nos sentamos para uma xícara de chá um pouco
estranha e uma fatia de pizza de micro-ondas, e depois de alguns
minutos May pergunta a Lauren:
— Você já levou o cachorro para passear?
Lauren olha para ela com um olhar que diz: Você está
brincando comigo?
— Oh, não. Eu ia depois do jantar.
— Não, desculpe, eu só estava perguntando porque se você
ainda não o levou, não precisa se preocupar com isso. Shani e
eu podemos acompanhá-lo hoje.
Agora Lauren tenta me dar um olhar que diz: Por que você
está passando tempo sozinha com uma garota de vibe estranha?,
mas eu me viro antes para que ela não possa segurar meu olhar.
— Hum, tudo bem — Lauren concorda —, tudo bem.
Nós não havíamos conversado sobre passear com Raphael
antes, mas de repente estou pronta para ficar sozinha com May
novamente e ver o filhote de corgi, então depois que
terminamos nosso chá e pizza e conversamos, saímos.
— Não volte muito tarde! — Pede Beatrice antes de irmos.
— Eu estarei em casa em breve. — Digo a ela. — Dentro de
uma hora, provavelmente.
— Bem, volte um pouquinho mais tarde. — Ela ri, e May e
eu saímos.
— Eu só vou entrar e pegar Raphael. — May fala quando
chegamos à sua casa.
— Você vai buscar Raphael?
Ela balança a cabeça.
— Vou agarrá-lo rapidamente para que meu pai não nos
veja.
Eu aceno e fico onde estou. Eu realmente não quero ter um
encontro com Greg depois da última vez, e está se
transformando em uma noite bem amena agora que a chuva
parou.
Depois de um minuto, Raphael sai, puxando May junto
com ele. Ele corre até mim e pula nas minhas pernas. Eu me
curvo para acariciá-lo enquanto ele balança o rabo e move suas
pequenas patas para frente e para trás sobre meu jeans. Ele uiva,
eu digo para ele se calar, mas estou honrada por ele estar
fazendo tanto barulho por mim.
— Ele sentiu sua falta. — May afirma. — Ele nunca me
cumprimentou assim.
— Ele cumprimentaria se você o amasse. — Eu digo
enquanto pego a coleira da mão dela.
Mesmo na luz fraca da rua eu posso ver May revirar os olhos,
mas então ela ri, e eu rio também, e Raphael late novamente.
Imagino que minha vida será essa a partir de hoje: ir a
museus e jardins com May, passear com um cachorro que eu
amo e ela tolera vagamente, conversar, apenas estar juntas.
Mas isso não é vida real. São as férias de inverno.
E, pela primeira vez desde sábado – desde que May e eu nos
encontramos – um pensamento surge na minha cabeça: o que
vai acontecer quando as férias acabarem?
Nós duas vamos voltar para a faculdade em breve. E quando
o fizermos, estarei ocupada estudando, evitando Sadie,
aplicando para um trabalho no Laboratório Paleo em
Binghamton e qualquer outra coisa que eu precise fazer.
O que acontece depois?
Eu tento espantar o pensamento da minha cabeça para
aproveitar a caminhada rápida com May e Raphael. Mas agora
que pensei nisso, não vou conseguir tirá-lo da minha cabeça tão
cedo.

É o segundo dia de preparação das conchas fósseis para análise


de isótopos, e estou tendo ainda mais dificuldade em me
concentrar do que ontem. Mandira me disse para guardar meu
telefone – por amor, ela disse –, mas May continua me
mandando mensagens bobas e eu continuo respondendo a elas
com outras coisas bobas.
Mas no fundo da minha mente, me pergunto se Mandira
está certa. Não consigo parar de pensar em como May e eu
realmente temos apenas alguns dias juntas no mesmo lugar e
em como isso é terrível, já que só começamos a namorar
recentemente.
À tarde, Mandira me faz mudar para a limpeza de fósseis,
então pego uma escova de dentes e começo a trabalhar, olhando
para meu celular a cada poucos minutos para ver se May
mandou uma mensagem. Depois de mais ou menos uma hora
de limpeza e verificação, minha escova de dentes está
desgastada. Eu a jogo no lixo enquanto verifico meu telefone.
Limpo o resto da bancada também, como cortesia para
Mandira.
Eu varro a poeira, as pedras e coisas para o lixo,
simultaneamente lendo a mensagem de May onde ela me diz
que, de acordo com a página de Thomas e Seus Amigos na
Wikipedia, a velocidade máxima de Thomas é de apenas 64
quilômetros por hora.

EU: nosso menino é lento!


deixe que leve o tempo que precisar
um rei!

Limpo a poeira restante da bancada com uma toalha de


papel, pego outro fóssil e começo a esfregá-lo com a nova
escova de dentes, que está fazendo um trabalho muito melhor.
Mandira e eu trabalhamos em silêncio, que é apenas
interrompido por um zelador entrando e tirando o lixo.
No final do dia, Mandira entra no escritório do Dr. Graham
para fazer seu check-in da tarde, e quando ela sai, pergunta:
— Você pode levar para o Dr. Graham os fósseis em que
você estava trabalhando mais cedo?
— Quais? — Eu pergunto. — O celacanto? Ou as conchas?
— Ambos. — Ela responde, vindo até minha bancada. — E
os outros também. Acho que havia um monte de microfósseis
da Fazenda Waterloo.
— Hum... — Olho em volta da minha estação de trabalho,
uma sensação horrível subindo no meu peito, uma que eu senti
no ensino médio quando o professor nos pedia para entregar o
dever da escola e eu tinha percebido que não fizera. — Eu não
acho que limpei isso. Eu realmente sinto muito.
— Tudo bem. — Mandira diz, parecendo um pouco
irritada. — Mas você os tem? Eles estavam na mesma caixa que
as conchas.
Olho dentro da caixa.
Nada.
Hum.
Porra.
O pânico borbulha dentro de mim.
Joguei o conteúdo da caixa sobre a mesa.
E joguei no lixo.
Que foi removido.
Horas atrás.
— Merda! — Eu falo baixinho. — Merda, merda, merda,
merda, merda, merda, merda. Merda.
— Shani. — Mandira chama. — Onde estão os fósseis?
— Hum, eu meio que... joguei fora, mas não de propósito.
— Acrescento. — Eu estava tentando limpar. Merda. — Estou
começando a hiperventilar, o que na verdade é ótimo, porque
significa que posso desmaiar por falta de oxigênio e então não
terei que olhar para Mandira.
— O lixo que foi retirado hoje cedo? — Ela pergunta,
falando tão devagar que me assusta.
Eu concordo.
Mandira passa as mãos pelos cabelos.
— Shani, Graham queria ver esses fósseis mais tarde esta
noite.
Sou a pior estagiária da história dos estagiários. Eu prometi a
mim mesma que isso não aconteceria. Que eu não me distrairia
com nada. Que eu focaria todo o meu tempo no laboratório.
E então eu conheci uma garota.
— Eu vou consertar isso! — Eu digo. — Eu vou. Eu vou
consertar tudo. Eu vou trazê-los de volta.
A primeira coisa que faço é ir ao balcão de segurança e
perguntar para aonde vai o lixo do prédio.
A guarda me dá um olhar estranho, mas depois responde:
— Você pode verificar com a gerência de instalações.
Ela me diz que eles estão localizados no escritório
Smithsonian principal, então eu corro para fora do museu e
corro alguns quarteirões até o escritório deles. Estou vestindo
apenas uma camiseta, mas estou muito agitada para me
incomodar com o frio.
Porque eu estou fodida. Joguei fósseis no lixo porque estava
mandando mensagens para May.
Chego ao escritório de gerência de instalações, estou sem
fôlego e em um estado de pânico inconsolável.
— Você está bem? — A pessoa atrás da recepção pergunta
enquanto eu me curvo, tentando recuperar o fôlego.
— Ah, sim. — Eu suspiro.
— Ótimo! — diz ela. — O que posso fazer por você?
Eu me levanto e pergunto:
— Onde está o lixo?
— Com licença?
— O lixo. — Eu digo, como se repetir fosse me ajudar. — O
lixo que é retirado dos museus. É para cá que ele é trazido?
— Oh! — Ela exclama com compreensão em seu rosto. —
Sim, é para cá. Mas por que você está perguntando?
— Eu trabalho no museu de história natural e
acidentalmente joguei fora algo que é realmente importante.
— São joias? — Ela pergunta. — Temos muitas pessoas
tentando roubar joias, então tenho que verificar.
— Não! — Eu respondo a ela, nem mesmo escondendo o
aborrecimento na minha voz. — É um fóssil. Ou um monte de
fósseis, na verdade.
— Como um dinossauro?
— Hum, mais ou menos. — Eu falo, batendo meus dedos
nas minhas pernas, ansiosa para encontrar o lixo antes que seja
despejado em um aterro sanitário ou algo assim. — É um peixe.
— Tipo, um salmão?
— Hum, não realmente. Mas é aqui, né? Posso olhar no
lixo?
— Seu crachá.
— O quê?
— Seu crachá da Smithsonian? Eu preciso escaneá-lo.
Puta merda, deu certo?
Eu entrego a ela minha identidade.
— Você deveria tirar uma nova foto. — Diz ela. — Isso não
se parece em nada com você.
— Eu sei.
— Talvez a pior foto 3x4 que já vi na vida.
— Obrigada. — Eu respondo muito alto.
Ela me encara com os óculos na ponta do nariz, depois
balança a cabeça.
— A lixeira está lá atrás. Não roube nenhuma joia.
— Eu não vou. — Garanto, mas agora eu meio que quero.
Além disso, se já está no lixo, é realmente roubado?
Mas eu não penso na ética do roubo de joias de lixo por
muito tempo, porque logo estou cara a cara com uma lixeira
laranja gigante exibindo orgulhosamente o logotipo do
Smithsonian na lateral. Tem pelo menos dois metros e meio de
altura e seis metros de largura, cheia até a borda com sacos de
lixo.
Esta é a minha penitência. É o que eu mereço.
Subo a escada e pulo.
A primeira coisa que ouço é um crash!, seguido por um som
baixo que eu definitivamente vou ignorar. Os odores de
comida podre e Deus sabe o que mais sobrecarregam meu nariz
a ponto de eu não saber se serei capaz de sentir o cheiro de
alguma coisa novamente.
Existem centenas e centenas de sacos plásticos. Acho que só
preciso olhar na camada superior, já que não faz muito tempo
que o lixo do laboratório foi recolhido.
O sol de inverno não é forte, mas está lá, fazendo os sacos de
lixo pretos absorverem o calor e atraindo bichos que eu nem
sabia que existiam nessa época do ano.
Respiro pela boca, peço desculpas aos insetos, ao universo e
abro o primeiro saco. O zelador esvaziou o lixo do laboratório
em um recipiente maior, então agora eu não serei capaz de
reconhecê-lo de vista.
Esta sacola é composta principalmente de batatas fritas meio
comidas e guardanapos, provavelmente de uma praça de
alimentação de um dos museus. Eu tento não pensar em toda a
saliva, ranho, cabelo e qualquer outra coisa que está aqui.
Tento não pensar em qualquer coisa.
Perco a noção do tempo assim, abrindo sacos, vasculhando-
os, jogando-os de lado quando não encontro nenhum fóssil (ou
joia, aliás).
Estou pronta para desistir, jogar a toalha, descer a escada e
me demitir do meu estágio.
E é aí que eu pego em uma sacola, uma mais pesada do que
as outras que eu estava pegando antes.
Já fui enganada várias vezes a pensar que um saco estava
cheio de fósseis quando na verdade estava cheio de tijolos,
assentos de carro e outras merdas estranhas que as pessoas
devem ter jogado na lixeira. Separar o lixo tem sido como um
estudo antropológico das piores partes da existência humana.
Abro a sacola, me preparando para mais porcarias aleatórias,
mas há algo lá dentro que me faz querer pular de alegria (mas
não vou, porque meus sapatos estão presos em uma substância
pegajosa perto do fundo da lixeira): sujeira.
Enfio a mão na sacola e vasculho e, com certeza, é o lixo do
meu laboratório. Até vejo um recibo do café que Mandira
recebeu esta tarde.
— SIM! — Eu grito e levanto meu punho no ar.
Eu me iludo por um segundo pensando que sou a melhor
funcionária do mundo, até que me lembro que me meti nessa
confusão em primeiro lugar jogando fora os fósseis.
De alguma forma, arrasto o saco de lixo e meu corpo para
fora da lixeira e passo pela recepcionista (“Sua última chance de
devolver qualquer joia!”), então aperto o lixo no meu peito
durante todo o caminho de volta ao laboratório. Todo mundo
por quem passo me lança olhares desagradáveis, tanto na rua
quanto no museu, mas não importa.
Eu fiz isso. Encontrei os fósseis.
Claro, fui eu que os perdi. Mas eu os encontrei.
Enfio a sacola pela porta, suada, fedorenta e um pouco
orgulhosa demais de mim mesma.
— Puta merda! — Diz Mandira, levantando-se de seu banco
e andando até mim. — É isso que eu acho que é?
— Sim. — Eu respondo, colocando o saco de lixo cheio de
fósseis em um canto não utilizado da bancada do laboratório.
— É isso.
— Jesus Cristo, Shani. — Ela timidamente olha para dentro.
— Ok, eu tenho que ser honesta, eu estava muito brava quando
você saiu, mas... como você encontrou isso? — Ela coloca luvas
de borracha (merda, por que não pensei nisso antes?) e vasculha
a sacola.
— A lixeira do prédio principal do Smithsonian.
— Bem, você é definitivamente a primeira estagiária que
vasculhou o lixo para encontrar um fóssil. — Ela puxa um
punhado de terra da sacola. — Mas você também é a primeira
estagiária que já jogou um fóssil no lixo, então...
Eu limpo minha garganta.
— Eu realmente sinto muito! — Eu digo. — Tipo, estou
tão, tão inimaginavelmente arrependida.
Ela suspira.
— Eu sei. E acho que vasculhar o lixo foi punição suficiente,
então não vou contar ao Dr. Graham. Mas você precisa ter mais
cuidado. — Ela fala esta última parte significativamente,
olhando diretamente para mim. Eu olho para o chão. — Ok?
Eu evito seu olhar.
— É claro.
Passo o resto do dia de trabalho sendo uma empregada
modelo: limpando os fósseis, a bancada e até pegando mais café
para Mandira, tudo isso cheirando à merda, de verdade.
Mandira me ofereceu seu moletom com capuz, mas eu não
queria estragar tudo.
Eu nem checo meu telefone até sair do museu e quando o
faço, vejo uma mensagem de May.

MAY: quais são seus planos para hoje a noite?


Estou tentada a não responder. Ignorar as mensagens dela
ou ligar e dizer que ela está me distraindo do meu trabalho. Para
terminar as coisas com ela completamente.
Mas o problema é que prefiro vasculhar a lixeira de novo –
prefiro vasculhar todo o lixo de toda a DC – do que terminar
as coisas com May. E, tipo, eu achei os fósseis. Tudo deu certo.

EU: absolutamente nada

MAY: vem pra cá?


meu pai está trabalhando está tarde essa
noite
então seremos apenas nós e o cachorro

Ela me pegou quando tirou Greg da jogada e colocou


Raphael, mas eu não posso encontrá-la toda suja e fedorenta
como estou agora.

EU: só tenho que ir pra casa tomar banho primeiro

MAY: não pode tomar banho mais tarde?


meu pai não está trabalhando até tããão
tarde assim
e eu ainda quero sair

EU: não mesmo


é uma longa história, mas eu passei a maior
parte do meu dia em uma lixeira

MAY: caralho o que??


você é o oscar da lixeira de lixo dos muppet
por acaso?
EU: sim

MAY: sabia
mesmo assim, você pode vir assim mesmo,
sabe disso né?
tenho certeza que não é tão ruim

EU: é, muito

MAY: quando você chegar, eu decido

Eu suspiro, porque sei o que vou dizer antes mesmo de


digitar a mensagem.

EU: tudo bem


mas você vai se arrepender

Estou cansada e quero ver May. E possivelmente ficar com


ela.
Então eu pego o metrô e vou direto para a casa dela.
— Ai, meu Deus! — Ela diz quando eu entro. — Você não
estava brincando.
— Eu tentei avisá-la!
Eu fico na área de entrada para não impregnar meu fedor em
tudo. Raphael não se importa, no entanto, pulando em cima
de mim.
— Não deixe meu cachorro fedido!
— Ah, de repente ele é seu cachorro agora?
— Sim. — Diz May. Ela puxa Raphael pela coleira,
tampando o nariz. — Você realmente cheira à merda. —
Acrescenta ela.
— Sorte minha. — Havia tanto lixo não identificável
naquela lixeira que a fonte do meu cheiro poderia ser qualquer
coisa.
— Você estava certa — fala May —, você precisa de um
banho.
— Sim, eu sei.
— Você pode tomar um aqui, se quiser, tá? No meu
banheiro, lá em cima.
Eu coro com o pensamento de usar o chuveiro de May,
porque parece tão pessoal, tão privado.
E então eu coro no nível máximo possível quando ela
acrescenta:
— Não tipo, comigo. Só no meu banheiro. — Ela bate a
mão na testa. — Eu não sei por que eu disse isso. Eu
literalmente não sei por que eu disse isso. Sinto muito por ter
sido tão idiota, obviamente não seria comigo.
Eu tomo um tempo para deixar minha respiração estável
novamente, e então, porque o pensamento de tomar banho
com May está na minha cabeça e é tão, tão atraente, eu deixo
minha boca falar antes que meu cérebro possa pensar:
— Por que não?
May puxa a cabeça de suas mãos e olha para mim. Seu rosto
está vermelho como uma beterraba. Estou preocupada que eu
tenha dito a coisa errada, e que ela pense que isso é muito rápido
depois que dissemos especificamente que iriamos devagar - não
que tomar banho juntas seja a mesma coisa que sexo, ou que
isso signifique que vamos fazer sexo ou qualquer coisa, ou...
Porra. Será? Não, né?
Não.
Mas não posso me preocupar com isso por muito mais
tempo, porque May caminha até mim e envolve os braços em
volta da minha cintura e me beija.
— Você não está preocupada em como você vai cheirar?
Ela sorri.
— Eu vou tomar banho depois.
Eu mordo meus lábios para me impedir de sorrir demais,
mas os libero para que eu possa beijar o contorno do pescoço
de May. Eu levo minhas mãos até sua camisa, chegando o mais
perto que me atrevo de seu sutiã.
Mas então eu começo a ficar paranoica sobre a coisa toda.
May vai me ver nua.
E eu não sei o quanto me sinto confortável com isso.
Mas adoro a ideia de vê-la nua; eu amo a ideia de que ela está
pensando a mesma coisa sobre mim.
E então fico envergonhada por ter qualquer um desses
pensamentos.
Eu paro de pensar tanto quanto as mãos de May migram
para os bolsos do meu jeans. Ela me envolve nela e, mesmo
sendo menor do que eu, me sinto segura, protegida.
Depois de um minuto de beijos, ela se afasta e enterra a
cabeça no meu ombro, rindo.
— O quê?
— Você cheira tão mal.
— Ai, meu Deus! — Eu digo, rindo também e me sentindo
envergonhada, mas abraçando-a mais perto, já que ela não está
me soltando.
— Vamos tomar banho.
Eu respiro fundo.
— Ok.
Ela pega minha mão e me leva para cima.
— Eu vou, hum, deixar você entrar primeiro. — Ela fala
baixinho enquanto pega uma toalha de linho do armário.
Meu coração está batendo na minha garganta e bloqueando
a saída das palavras, então eu apenas aceno, entro no banheiro
e fecho a porta. Eu me assisto no espelho enquanto tiro minha
camiseta, então meu jeans. Eu olho para o meu corpo em meu
sutiã esportivo e calcinha.
Talvez esta seja uma ideia terrível. A primeira e única pessoa
a me ver nua foi Sadie, e isso foi em um quarto escuro, quando
não estávamos...
Não. Não.
Eu assisto a Shani do espelho enxugar as lágrimas que
conseguiram cair menos de um milissegundo depois de pensar
em Sadie. Então eu a vejo respirar fundo e tirar o resto de suas
roupas.
Fico de costas para o espelho e ligo o chuveiro o mais quente
possível, então entro e esfrego todos os sabonetes e xampus
disponíveis pelo meu corpo.
— Eu vou entrar, ok? — May chama pela porta depois de
um minuto.
— Ok. — Fico diretamente sob a água e a deixo escorrer pelo
nariz e entrar na boca.
O banheiro agora está tão cheio de vapor que mal consigo
ver May através do box de vidro do chuveiro. Parece indelicado
olhar enquanto ela tira a toalha, então não o faço. Fecho os
olhos e não os abro novamente até que os lábios de May estejam
nos meus.
Mas abrir os olhos diretamente sob o bico do chuveiro é
uma péssima ideia, o xampu escorre nos meus olhos, água e
espuma obstruindo minha visão.
— Ai, ai, ai, ai. — Eu reclamo através do ardor, me curvando
para agarrar a borda da banheira. Mas não consigo ver nada,
então acabo escorregando e batendo o joelho no chão da
banheira. — Porra.
May ri e coloca as mãos na minha cintura, me firmando.
— Você está rindo de mim? — Eu pergunto, mas sai com
um leve gorgolejo de toda a água derramando na minha boca.
— Não! — May responde, ainda rindo. — Venha aqui.
Nós duas estamos de joelhos e ela me arrasta para a outra
extremidade da banheira, onde ela esfrega meus olhos com uma
toalha.
— Melhor? — Ela pergunta quando eu abro meus olhos
para encontrá-la rindo silenciosamente.
— Bem melhor. — Eu digo, tentando não olhar para baixo,
tentando apenas olhar para o rosto dela.
— Cale a boca! — May fala e, enquanto nós duas estamos
de joelhos, uma de frente para a outra, ela me beija. Está tudo
molhado e cheio de espuma, mas está quente e é tão, tão bom.
Eu mantenho meus olhos fechados enquanto a pressiono
mais perto de mim, para que nossos corpos se toquem o
máximo possível. Exploramos partes uma da outra que não
tínhamos explorado antes. Beijo seu pescoço até o peito,
maravilhada com o fato de poder tocá-la assim.
Mas depois de alguns minutos, a água quente acaba e meus
joelhos doem, agora estamos ajoelhadas na água fria.
— Quer sair? — May pergunta.
— Sim, por favor. — Eu digo, aliviada.
Ela estende a mão sobre mim para desligar o chuveiro, então
levanta e pega sua toalha, jogando a minha para mim ao mesmo
tempo.
Eu me cubro rapidamente enquanto o vapor se dissipa, e
quando a toalha está bem presa ao meu redor, May vem até
mim e descansa a cabeça no meu ombro.
— Você cheira bem.
Eu descanso meu queixo em sua cabeça.
— Eu cheiro como você.
Ela bufa.
— Estou pegando roupas para você. Espere aqui.
— Se for os seus moletons da Cornell, eu prefiro ficar nua!
— Eu grito atrás dela, mas May já se foi.
Fiz papel de boba; ela vai pensar que eu nunca tomei banho
antes na minha vida.
E, a melhor parte.
May não fugiu. Ela me puxou para ela e me deu uma toalha
quando a água esfriou.
Mas ainda há ecos de riso na minha cabeça. E não são de
May.
Porque por mais que eu tente não ouvir, eu ouço Sadie.
Sadie, que me trouxe para o meu dormitório, nós duas rindo,
tropeçando pelos corredores. Sadie, que acabou com as coisas
porque... Mando minha cabeça calar a boca quando May volta
ao banheiro vestida com um pijama não Cornell. Ela me
entrega uma pilha de roupas dobradas com – é claro – os
moletons mencionados acima.
Ela me deixa no banheiro para me vestir, e quando estou
vestindo o moletom, May chama pela porta.
— Ainda falta um pouco de tempo até meu pai chegar em
casa. Quer assistir TV ou algo assim?
— Claro! — Eu digo de volta, porque cara, eu quero assistir
um pouco de TV com May e não me preocupar se eu
acidentalmente fiz ou não algo errado.
Descemos e nos sentamos no sofá e, de alguma forma,
acontece que a cabeça de May descansa no meu peito e meu
braço a envolve. Como se fosse a coisa mais natural. Como se
fosse algo intrínseco aos nossos corpos.
Então Raphael pula no sofá e se enterra no colo de May. Ela
recua, mas eu me aproximo e acaricio sua cabeça, ele se
acomoda e fecha os olhos. May relaxa, embora ainda não se
aproxime de Raphael.
Agora somos nós três, juntos, meu braço em volta de May,
minha mão na cabeça de Raphael.
May liga em um programa de culinária em que as crianças se
sabotam para ganhar bolsas de estudos, porque vivemos em um
país quebrado onde nossos filhos precisam competir para pagar
o ensino superior. Somos extremamente cruéis, vaiando
quando uma criança de quem não gostamos rouba cheddar
envelhecido de uma criança que gostamos.
Mas o tempo todo que estamos assistindo, estou tentando
me convencer de que está tudo bem. Que está tudo bem eu
estar tão com May. Que está tudo bem eu estar tão distraída no
laboratório hoje que joguei fora preciosos microfósseis. Isso
porque eu consertei meu erro a tempo, então, não há nada de
errado.
E talvez não haja. Talvez eu possa ter as duas coisas em
equilíbrio: May e o laboratório. May e qualquer coisa.
May e tudo.
Mas também não importa se eu posso ou não ter os dois.
Porque quando olho para May e beijo o topo de sua cabeça
recém-banhada, tenho certeza de uma coisa: não há mais como
voltar atrás.
Não posso simplesmente recuar e dizer a ela, "Hum, isso não
está funcionando, na verdade." Porque eu sei, eu sei, eu sei, que
estou me apaixonando por ela.
Aranhas e fascismo

No trabalho, no dia seguinte, sigo o conselho de Mandira


e desligo o telefone. Ainda estou pensando em May o tempo
todo, mas pelo menos não estou mandando mensagens para
ela.
Eu ligo meu telefone na hora do almoço, no entanto, e
recebo uma mensagem de May perguntando se seis é uma boa
hora para nos encontrarmos hoje à noite. Eu digo a ela que é
perfeito.
Porque vamos a um encontro.
Um encontro de verdade. Em um restaurante.
Nós planejamos isso ontem à noite, logo antes do pai dela
chegar em casa e ela me fazer sair às escondidas pelas portas de
correr na parte de trás de sua casa. Fiquei mais do que feliz em
atender o telefone.
Estou nervosa para um caramba, embora eu tenha saído
com ela tantas vezes. Eu acho que é apenas a designação oficial
que está fazendo meu estômago doer e minhas mãos suarem.
Eu também comprei um presente para ela, o que faz a coisa
toda parecer um negócio ainda maior. Para ser justa, comprei
há mais de uma semana e é uma coisa pequena, mas estou
esperando o momento certo para dar a ela.
Acho que este é o momento certo.
Está excepcionalmente quente hoje, então fico do lado de
fora e mando uma mensagem para Taylor antes de voltar para
o laboratório. A melhor coisa sobre as férias de inverno é que
ela não está fazendo quase nada, então sempre há uma boa
chance de ela estar livre para falar.

EU: oi
o que tá acontecendo por aí?

TAY: LITERALMENTE NADA


estou tão entediada
eu até mandei uma mensagem para teddy

EU: kkkk você quer dizer o ex-namorado da amy?

TAY: obv
a coisa é que ele tem a personalidade de uma
porta

EU: que bom pra ele

TAY: sim, ele vai se dar bem na vida


e ele é gostoso e tem uma língua habilidosa

EU: SÉRIO, EU NÃO PRECISO DE TODOS OS


DETALHES
não precisava saber disso
TAY: desculpa!!!!
mas é verdade ;)
de qualquer forma
como vai sua vida amorosa???

EU: muito boa

TAY: muito boa??


não está... INCRÍVEL??!!

EU: kkk
eu acho que estou apenas preocupada

TAY: sobre o que??

EU: caindo em velhos hábitos

TAY: ah

EU: sim

TAY: e com isso você quer dizer...


velhos hábitos da época de Sadie?

EU: hm
tipo eu entrei em uma lixeira ontem
uma caçamba L I T E R A L M E N T E
então eu diria que sim as coisas estão indo
bem

TAY: melhor amiga... ... ... ... ... ... .


vc vai ter que falar mais sobre isso
por favor

EU: talvez mais tarde


mas
eu claramente tenho RAZÕES para estar
preocupada
caçamba de lixo 😤

TAY: ok isso é justo


você ERA um pedaço de merda enquanto
você estava namorando sadie
quero dizer, suponho que você...
desde que nós... você não disse nada

EU: senhor
quantas vezes eu tenho que me desculpar por
isso???

TAY: mais uma vez não poderia doer

EU: BEM
você tem razão :(((((
sinto muito, excepcionalmente. por favor, me
perdoe, minha melhor amiga perfeita. com
amor, shani.

TAY: excelente
mas sério eu não acho que você tem que se
preocupar
may não soa nada como sadie

A questão é que, mesmo quando comecei a falar com Taylor


novamente, não contei tudo a ela sobre Sadie. Mas eu disse a ela
o suficiente. Logo depois que Sadie me largou, eu liguei pelo
FaceTime para Taylor, soluçando e gritando sobre o quão
controladora, uma pessoa de merda e qualquer outra coisa que
Sadie era, mesmo que eu não acreditasse totalmente nisso. Eu
queria que Taylor a odiasse o suficiente por nós duas; ela me
disse que eu era boa demais para Sadie, e ela não mencionou
nada sobre como nós não nos falamos por três meses. Ela
apenas estava lá para mim.
Mas não contei a Taylor um detalhe crucial. Eu não disse a
ela por que Sadie terminou comigo, só que ela terminou.
E eu não posso contar isso a ela agora também. Eu não vou.
Então, em vez disso, eu apenas falo:
EU: ela não é
Porque é verdade: May não tem nada a ver com Sadie. Para
começar, ela se preocupa com o que tenho a dizer. Ela me conta
sobre as coisas que ela ama. Ela me avisa quando está brava.
Mas…

EU: estou preocupada que as coisas estejam indo


rápido demais

TAY: elas têm que ir rápido!


é uma aventura de inverno!
como uma aventura de verão, mas com as
temperaturas mais baixas
você só tem que se divertir

Talvez Taylor esteja certa. Talvez eu devesse apenas


aproveitar o que está acontecendo, mesmo que “diversão”
pareça uma palavra tão trivial para isso. Porque se Taylor
aprovar, então está tudo bem.
E eu vou me divertir, para caramba.
O restaurante a que vamos fica em uma parte legal do centro da
cidade, e me sinto profundamente inadequada quando passo
por um grupo de vinte e poucos anos bem vestidos, fumando e
conversando no pátio.
May mandou uma mensagem um minuto atrás dizendo que
conseguiu uma mesa para nós, então eu respiro fundo e entro.
Está lotado, barulhento e colorido, com pompons de arco-íris
e borlas penduradas no teto e no bar.
— Mesa para um? — A anfitriã pergunta.
É essa a vibração que estou emitindo?
Tento não parecer ofendida quando respondo:
— Na verdade, estou aqui para encontrar alguém.
Olho em volta para encontrar esse alguém, e quando o faço
fico muito suada.
May está sentada em uma mesa perto dos fundos, seu rosto
brilhando suavemente à luz das velas. Ela está vestindo o suéter
marrom mais fofo que eu já vi, com batom combinando. Seu
cabelo está em um coque e há duas mechas soltas, emoldurando
seu rosto e enrolando em torno de seus lábios.
Ela é tão linda.
Vê-la me faz desejar ter feito alguma coisa. Tipo, ter me
arrumado mais (pelo menos optei por uma gola alta por baixo
da minha camiseta). Arrumado meu cabelo. Qualquer coisa.
Mas então ela ergue os olhos do cardápio e nossos olhos se
encontram do outro lado do restaurante. Ela sorri, e eu aceno,
sentindo-me presunçosa enquanto a anfitriã me leva até a mesa.
— Oi. — Eu digo para May enquanto me sento.
— Oi.
Nós olhamos uma para a outra por um instante, e eu não sei
o que fazer e gostaria de não estar nervosa, mas também há uma
linda garota na minha frente, então é claro que estou inquieta.
Meu corpo está tenso e trêmulo e eu gostaria de poder dizer
algo para pará-lo. Para relaxar.
— A comida daqui parece ser muito boa. — May diz depois
que eu não falo pelo que deve ser um minuto inteiro.
— Legal. — Respondo olhando para o menu, mas sem
assimilar nada.
— Ouvi dizer que eles fazem boas carnes e outras coisas. —
Ela continua, com os olhos no menu. — Mas eu sou
vegetariana.
— Você é?
Ela sorri.
— Isso é um rompimento de acordo?
— Não. — Eu respondo. — Eu também sou.
Nós duas rimos disso, e a tensão no meu corpo diminui um
pouco.
— Como não conversamos sobre isso antes? — Ela
pergunta.
— Não sei! — Eu digo. — Eu honestamente esqueço na
maioria das vezes. Sou vegetariana desde pequena.
— Não é um estereótipo que, como toda pessoa queer, seja
vegetariana?
— Ah, com certeza. — Eu concordo. — Somos todos os
estereótipos.
— Claro que somos.
Sorrio para o meu cardápio, lendo-o desta vez. O restaurante
é bem chique, então o menu é pequeno e altamente caro. Eu
peço o tahdig16 e May pede o curry de pepino. Nós pedimos um
aperitivo à base de abóbora para dividir, e então o garçom leva
nossos menus.
Sem a muleta do menu para termos assunto, há outro
período de calmaria na conversa. Por que é que a única vez que
estou em um encontro, preciso conversar e flertar, mas meu
cérebro se recusa a pensar no que dizer?
Então, acho que agora é uma boa hora para dar o presente
para May.
— Eu tenho uma coisa para você. — Digo a ela.
Ela inclina a cabeça, surpresa.
— Tipo, um presente?
— Sim, exatamente assim, pode-se dizer. — Eu ignoro seu
revirar de olhos. — É uma espécie de presente de aniversário
atrasado-barra-de-Natal.
Enquanto tiro o pôster enrolado da minha bolsa, May
suspira melodramaticamente.
— Isso é selvagem.
— O que é?

16
Arroz persa crocante com grão de bico temperado.
— É a confirmação de que você não é como o Scrooge.
—Bem, Scrooge é uma caricatura antissemita, então...
— Jesus, você está tentando arruinar Um conto de Natal
agora?
— Só estou dizendo que ele é um agiota que não comemora
o Natal...
— Eu odeio você. — Diz May, mas ela está rindo.
É confortável falar com ela assim, discutir sobre bobagens.
— Aqui. — Eu entrego a ela o pôster.
Ela tira o elástico e o desenrola.
— É uma gravura do Hockney — Eu explico. —, para sua
parede.
— E é o gay famoso! — Ela diz depois de um momento
olhando para o pôster com uma mão pressionada em sua
bochecha.
— É absolutamente o gay famoso. — É uma impressão da
pintura mais conhecida de Hockney, Pool with Two Figures. —
Sabe, como as paredes do seu quarto são vazias... eu só pensei
que talvez você quisesse enfeitá-las.
— Obrigada! — Ela agradece e seus olhos ficam
lacrimejantes. — Eu amei isso.
— De nada.
Antes que outra pausa de silêncio aconteça, o garçom vem
com nossa abóbora. O pôster ainda está desenrolado, então
May o enrola e nós comemos, atacando o aperitivo de lados
opostos.
— Isso é tão bom. — Eu falo. — Eu não sabia que abóbora
podia ter esse sabor. É, tipo, irreal.
— Desculpe, você está gravando um comercial de abóbora?
— Eu queria que fosse. Eu invento slogans tão bons.
— Tudo bem. — Diz ela. — Me dê exemplos.
— Bem, para começar, “Abóbora: Very Gourd”.
May bufa.
— Isso deveria ser uma brincadeira com “muito bom”?
— Obviamente.
— Tente novamente.
Eu limpo minha garganta.
— Que tal “Moranga: porque os dias de abóbora estão
contados”?
— Isso faz parecer que a abóbora vai matar a abóbora.
— Quero dizer...
Nós criamos mais alguns slogans, e então a abóbora acabou
e o presente foi dado e mais uma vez ficamos sem coisas para
dizer.
Isso até May limpar a garganta.
— Então, lembra quando estávamos no Espaço Caracóis
pela primeira vez?
— Claro. — Eu respondo, porque... é claro que lembro.
— E eu te disse que já tinha visto antes com uma amiga de
Ithaca? — Eu aceno, não tenho certeza de aonde isso está indo.
— A coisa é, ela não era apenas minha amiga. Ou, bem, ela era
apenas minha amiga. Mas eu queria que ela fosse mais. — May
olha para baixo. — Ela foi a primeira garota por quem eu
realmente me apaixonei.
Eu teria pensado que May me contando sobre outra garota
por quem ela tinha sentimentos me deixaria com ciúmes, mas
eu quero saber mais.
— O que aconteceu?
— Nada. — Ela diz. — Exceto que ela descobriu que eu
tinha uma paixão por ela e me disse que não sentia o mesmo.
Não conversamos muito desde então.
— Eu sinto muito.
Bem, merda.
May acabou de me contar sobre uma garota por quem ela
tinha sentimentos. A primeira garota por quem ela teve
sentimentos. O que significa que agora seria o momento
perfeito para contar a ela sobre Sadie. Nem tudo, claro, mas
apenas que ela existe. Que eu vim para DC com o coração
partido e que, embora eu goste de May – realmente goste dela
–, de muitas maneiras eu ainda sou uma casca vazia.
Mas então nossa comida chega, e eu sou grata pela distração,
porque contar a May sobre Sadie parece uma ideia
terrivelmente horrível, mesmo que agora seja o melhor
momento para fazer isso.
E de qualquer forma, Sadie é passado. E, para citar a lésbica
mais famosa de todos os tempos, Elsa de Arendelle, digo:
— O passado está no passado.
Então, estou deixando para lá. Enfio arroz na boca e escuto
May me contar sobre como pode haver uma frente fria
chegando, o que não parece particularmente interessante, mas
é, quando é ela quem fala sobre isso.
— Você sempre gostou do clima? — Pergunto a May depois
de alguns minutos dela descrevendo como uma frente fria pode
mudar rapidamente a previsão. Está muito quente – ela, não o
clima.
Ela me dá um olhar questionador.
— Você sempre gostou de peixe?
— Na verdade, sim. — Digo a ela.
— Bem, o mesmo para mim.
— Mas e seu pai? — Eu pergunto.
Eu quero retirar imediatamente, já que ele provavelmente
não é o melhor assunto para falar durante nosso encontro. Mas
não é para isso que serve? Para uma saber mais sobre a outra?
Para falar sobre nossas vidas, nossas esperanças, nossos sonhos
e depois dar uns amassos?
— O que tem ele?
— Ele é um meteorologista, certo?
Ela deve sentir a outra pergunta que está na ponta da minha
língua – algo como você não odeia estar seguindo os passos dele?
– porque ela afasta o cabelo do rosto e coloca os cotovelos sobre
a mesa.
— Quando nos dávamos bem, eu queria ser exatamente
como ele. Eu o seguia no trabalho e o observava criar a previsão
do dia, parecia mágica. Como se ele estivesse prevendo o
futuro. — Ela sorri um pouco. — Sei agora que é uma ciência,
mas era o que eu pensava na época. E eu simplesmente amo.
Aprendi sobre mudanças climáticas, oceanografia, lua,
tsunamis e como as pessoas se comportam de maneira diferente
quando chove.
Meu coração quase explode quando ela me conta isso. Eu
poderia ouvi-la falar sobre o tempo por horas.
Para o resto da minha vida.
— Isso é tão legal! — Eu digo e realmente quero dizer isso.
May revira os olhos, mas o rubor em suas bochechas é
evidente mesmo à luz das velas.
Movo meu pé para cruzá-lo sob minha perna, mas
acidentalmente esbarro em May. Ela esbarra em mim de volta.
May sorri enquanto faz isso, então eu sei que é de propósito.
Então eu esbarro nela de novo. E ela esbarra em mim. E logo
nossos tornozelos estão torcidos um ao redor do outro e
estamos brincando com os pés, e é muito mais fácil do que falar.
Meu corpo relaxa. Não é nem mesmo a parte de tocar em
May que me relaxa, exatamente. Na verdade, acho que é o
contrário: ela põe todo o meu corpo no limite. É que a parte
mais difícil já passou, aquela em que eu não sabia quando, ou
se, ou como eu poderia tocá-la.
Assim, não tiro o pé. Parece atraído por ela, como metal em
uma tempestade de raios.
Quando o garçom pergunta se queremos sobremesa, May
diz:
— Acho que precisamos de um minuto. — Então ele
balança a cabeça e vai verificar outra mesa.
May encontra meus olhos de uma maneira que me faz
perguntar, antes que eu possa pensar no que estou dizendo:
— Você quer vir para casa comigo?
Ao que May responde imediatamente:
— Sim.
Quando o garçom volta, May pede a conta, nossos pés ainda
entrelaçados. Ela insiste em pagar, pelo que agradeço muito,
então insisto em pagar o táxi, porque é tarde e o jeito que ela
está olhando para mim me faz querer fazer coisas com ela que a
maioria dos passageiros do metrô provavelmente não gostaria
de ver.
Começamos a nos beijar no momento em que entramos no
carro. Parece, de alguma forma, mais urgente do que das outras
vezes, como se estivéssemos tentando dizer algo uma à outra.
Como se nossos corpos estivessem operando separadamente de
nossas mentes.
Dou uma gorjeta alta ao motorista.
Quando chegamos à casa de Beatrice, corro primeiro para
verificar se a barra está limpa e, quando não ouço ninguém na
cozinha, levo May para o andar de cima.
No fundo da minha mente, ouço Lauren me dizendo as
regras no meu primeiro dia em DC. “Nenhum garoto é
permitido no seu quarto, nunca.” Eu penso em como eu mudei
a regra para que ela se aplicasse a mim, e em como eu não traria
ninguém para o meu quarto, ponto final.
Mas... Eu não estou tecnicamente quebrando uma regra por
ter May no meu quarto. Na verdade, ao levá-la para lá, estou
lutando de frente com o edital heteronormativo.
Então está tudo bem – mais do que bem, na verdade – levar
May para cima.
Passamos despercebidas e continuamos exatamente de onde
paramos. Nós tropeçamos na cama de Beatrice, e então caímos
nela, enroladas juntas.
— Ei! — Ela diz, olhando para mim. — Isso é... você acha
que isso conta como ir devagar?
Lembro-me da conversa que tivemos no sábado. Há menos
de uma semana, no Espaço Caracóis.
Eu encontro seus olhos.
— O que você acha?
Ela respira fundo, então morde o lábio.
— Eu não me importo.
E, por enquanto, nem eu.
Eu envolvo meus braços ao redor de sua cintura e a beijo
para transmitir esse fato e, quando nos separamos, ela parece
aliviada.
May enfia a mão embaixo da minha camiseta e a puxa um
pouco para cima.
— Está tudo bem?
Eu aceno, e ela a tira, junto com a gola alta por baixo. Está
frio no quarto, e com minha pele exposta eu sinto um desejo
ainda mais forte de agarrá-la o mais forte que posso.
Eu alcanço seu suéter e antes que eu possa perguntar se está
tudo bem, ela mesma o tira. Em seguida vem meu sutiã
esportivo, o que é fácil, porque dá para deslizar sobre minha
cabeça.
Beijo o pescoço de May, depois seu colo, redistribuindo o
batom marrom que ela transferiu da sua boca para a minha. Eu
empurro a alça do sutiã para baixo e beijo o pedaço do ombro
que estava sob ele.
— Você pode tirá-lo. — diz ela.
Eu puxo a segunda alça para baixo e beijo seu outro ombro,
então levo minhas mãos para atrás dela, para tentar desabotoar
o sutiã. Eu tento, tento e tento.
Mas May apenas se senta, tira-o com um movimento suave
e se joga de volta no travesseiro.
Beijar agora é diferente do que no chuveiro. Havia algo na
água, no vapor e na banheira escorregadia que deixava claro que
nada mais do que beijos iria acontecer.
Mas agora estamos em uma cama.
E meu corpo sabe o que está prestes a acontecer e
definitivamente quer.
Mas meu cérebro não tem tanta certeza. Na verdade, está me
dizendo para cair fora daqui enquanto posso. Está dizendo que
não tenho ideia do que estou fazendo. Está me lembrando de
que eu nunca fiz isso sóbria. Que eu só vou fazer papel de boba.
Eu começo a ficar tensa, a boca de May deixa de ser perfeita
e macia e tudo gira, de repente ficando mais áspero. Como se
estivéssemos nos beijando sob as luzes da uma sala de cirurgia.
Eu não sei o que fazer. Estou preocupada que seja tarde
demais. Que eu não possa parar o que está prestes a acontecer.
Especialmente porque a mão de May desliza em direção ao meu
jeans.
— Está tudo bem? — Eu concordo. Eu não a paro enquanto
ela se atrapalha com o botão, então o zíper. Porque eu deveria
querer isso. Eu quero isso.
Mas se eu quero isso, então por que minha mente continua
gritando para eu parar? Por que continua nublada por conta
do que aconteceu com Sadie? Por que continua repetindo o
momento que levou ao fim do nosso relacionamento?
Por quê?
E então há um grito de gelar o sangue.
Beatrice está gritando.
Eu me levanto, um novo tipo de medo está se formando
dentro de mim, mas o outro está retrocedendo enquanto fecho
meu jeans e coloco minha camisa de volta.
Eu corro para fora do quarto, batendo a porta atrás de mim
para que, se alguém estiver no patamar principal, não veja May
no meu quarto, seminua.
Lauren chegou primeiro ao quarto de Beatrice, ela a está
ajudando a descer as escadas do sótão.
— Você está bem? — Eu pergunto, estendendo a mão para
ajudar Beatrice pelo resto do caminho.
— Ela está bem. — Lauren responde, parecendo um pouco
irritada. — Ela viu uma aranha.
— Se você visse o jeito que ela estava olhando para mim,
você teria gritado também!
Tasha sai do quarto, equilibrando um laptop no antebraço.
— O que está acontecendo?
— Beatrice viu uma aranha. — Lauren repete, Tasha revira
os olhos e se retira de volta para seu quarto.
— Só isso? — Achei que Beatrice estava à beira da morte.
Ela tem noventa e seis anos. Não era uma suposição tão
estúpida.
— Boneca! — Beatrice começa a sério, segurando meu
braço enquanto ela chega ao patamar. — Só tenho medo de
duas coisas neste mundo: aranhas e fascismo.
— Então, você está bem? — Eu pergunto.
— Tudo bem, anjo. — Ela acena com o braço. — Não se
preocupe comigo.
Com isso, Lauren leva Beatrice para baixo para uma xícara
de chá.
E eu tenho que voltar para o antigo quarto de Beatrice.
Onde May está.
Onde ela está seminua, e eu estou completamente vestida, e
ela provavelmente espera que eu faça sexo com ela, mesmo que
ela tenha dito que queria levar as coisas devagar.
Não posso voltar lá e não sei o que fazer. Sei que é horrível,
mas gostaria que algo tivesse acontecido com Beatrice — nada
ruim, apenas ruim o suficiente — para não ter que enfrentar
May novamente.
Eu empurro as palmas das minhas mãos contra meus olhos
até que haja manchas e cores, então respiro, lutando contra a
vontade de vomitar.
Abro a porta e May está debaixo dos lençóis, parecendo
ansiosa.
— Beatrice está bem?
— Ela está bem. — Eu respondo, sem me mover em direção
à cama.
— Isso é bom, certo?
— Sim.
May suspira de alívio e dá um tapinha no travesseiro ao lado
dela.
— Vem aqui? — Ela chama, mordendo o lábio inferior. —
Podemos continuar. Continuar de onde paramos...
Mas a ideia de continuar de onde paramos me faz querer
morrer e não sei como dizer isso a May ou como dizer a ela que
talvez sua definição de devagar não seja a mesma que a minha.
Não sei como dizer a ela o quanto estou com medo e que não
quero repetir o que aconteceu com Sadie.
Então, em vez de dizer isso a ela, apenas digo:
— Estou meio cansada.
— Tudo bem. — Diz May. — Podemos simplesmente ir
dormir. — Ela dá um tapinha na cama ao lado dela novamente
e levanta as cobertas.
Mas isso é apenas adiar o inevitável. Agora que quase
fizemos sexo, vai acontecer a qualquer momento. E eu quero,
mas ao mesmo tempo prefiro pular de um avião sem
paraquedas.
Fiz muita pesquisa e sei que não sou assexual.
Mas estou assustada para caralho.
Meu corpo travou.
— Hum, Beatrice realmente não gosta de pessoas
desconhecidas dormindo aqui.
— Ela não precisa saber! — May brinca em uma voz que
provavelmente soaria sexy para qualquer outro ser humano,
mas atualmente está me enchendo de pavor.
Odeio não querer voltar para a cama com May. Eu deveria
querer, mas não posso.
— Eu não sei. — Eu digo, ainda de pé na porta. — Ela está
muito assustada. E estou preocupada que ela veja você sair e isso
a assuste ainda mais. — Isso é principalmente uma mentira,
mas não sei mais o que dizer.
May se senta, parecendo confusa.
— Você não quer que eu fique? — O ar na sala fica parado
e, quando não respondo, May franze a testa e diz: — Eu vou
embora.
Eu aceno, então desvio o olhar enquanto ela se veste. Eu
ando em direção à cama enquanto ela caminha até a porta.
— Tchau, eu acho. — Ela diz enquanto sai.
— Certifique-se de que Beatrice não veja você na saída. —
Eu peço, ainda sem olhar para ela.
Ela bate a porta do quarto e, depois de alguns segundos, a
porta da frente bate também.
Coloco a cabeça entre as mãos e tento chorar, soluçar,
chorar, mas nada sai.
Está tudo uma bagunça, tudo.
Eu gostaria de ter a coragem de correr atrás dela. Para
explicar tudo.
Mas não posso me humilhar assim.
Eu apenas afugentei uma garota, uma garota que eu gosto
muito, porque eu tenho medo de fazer sexo com ela.
Por causa da porra da Sadie.
Porra.
Eu tenho que terminar as coisas com May. Não há como
isso dar certo.
Eu subo na cama e sinto algo amassando debaixo de mim.
Eu levanto as cobertas para encontrar a impressão de
Hockney amassada.
Uma bagunça gay

Eu não dormi nada naquela noite. Eu nem me deitei. A


ideia de dormir na cama de Beatrice – aquela em que ela
concebeu seus filhos, aquela em que eu quase fiz sexo com May
– é demais.
Em vez disso, ando de um lado para o outro no quarto,
tentando impedir meu coração de bater forte e meu corpo de
tremer.
Eu rascunho um texto de desculpas para May na minha
cabeça enquanto ando de um lado para o outro, escrevendo e
reescrevendo cada palavra, até que se torne uma confusão de
ideias e sentimentos.
Eu não posso mandar uma mensagem para Taylor sobre
isso, porque então ela vai tentar descobrir o que aconteceu, e eu
não poderei contar a ela, porque se eu o fizesse, meu esqueleto
sairia do meu corpo. E depois ela apenas pensaria que estou
mais uma vez agindo como agi com Sadie.
Mas aqui está algo que eu poderia dizer a May: que eu vim
para DC para me concentrar em paleo-ictiologia, e esse foco se
foi. Tudo por causa dela.
Pelo menos isso seria semelhante à verdade.
O problema é que não tenho certeza de qual é a verdade real.
Eu estou com medo? Claro, isso faz parte. Tenho medo o
tempo todo: de ser forte demais, de amar alguém apenas para
afastá-la depois.
De fazer sexo.
Se eu disser a ela essa última parte, que tenho medo de fazer
sexo, pode soar como uma desculpa. Talvez ela ficasse tipo
“Sim, claro, tudo bem”, mas em sua cabeça, ela pensaria que isso
significa que eu não queria fazer sexo com ela.
Outra coisa que eu poderia dizer a ela: ainda estou
superando um rompimento; ainda é muito cedo para mim.
Isso também não estaria errado.
Mas nenhuma dessas verdades se juntam em uma mensagem
que posso enviar a May. Ou uma que eu quero enviar.
O que eu quero fazer é bater meu punho na parede. Para me
punir por não ter contado a May sobre Sadie, mesmo de forma
geral.
Agora ela provavelmente está na casa de seu pai, deitada em
uma cama vazia, pensando em como a garota que ela achava
que gostava dela acabou de chutá-la para fora quando elas
quase transaram. E isso, com certeza, a deixou envergonhada.
Porra.
Então eu decido manter tudo simples, para acabar com isso
de vez.
Minhas mãos tremem violentamente enquanto digito uma
mensagem.

EU: Acho que não devemos mais nos ver

Eu olho para o meu telefone. Uma parte de mim está


gritando: NÃO ENVIE ISSO! ESQUEÇA ISSO!, e outra parte
está me provocando, sussurrando: Toque no enviar. Vamos,
faça isso.
Eu escuto a outra parte.
Então corro para o banheiro e tento vomitar, mas não sai
nada.
Então eu volto à minha paranóia.
Não sei o que espero que ela diga em resposta a essa
mensagem.
Bem, não, isso não é bem verdade. O que eu quero que ela
diga, por mais iludida que seja, é o seguinte: “Não, não vamos
terminar por mensagens. Me diga o que está errado. Diga-me
por que você me expulsou. Vamos levar as coisas ainda mais
devagar dessa vez. Vai ficar tudo bem.”
Recebo uma resposta depois de uma hora, quando é tão
tarde - ou talvez tão cedo - que o céu está começando a mudar
de preto para azul escuro e depois para cinza, como um
hematoma.

MAY: Eu acho que é o melhor.


Li a mensagem várias vezes. Cada vez, novas lágrimas se
formam em meus olhos, borrando minha visão. Então eu as
limpo para longe para que eu possa lê-la novamente.
Acho que é o melhor.
Acho que é o melhor.
Acho que é o melhor.
Eu leio até que se torne verdade, até que se torne um fato
inevitável de nosso breve relacionamento: foi melhor assim.
Mas se for, então por que eu esperava uma resposta
diferente? Por que eu sinto que alguém acabou de me dar um
soco na cara?
Eu me deito na cama, olhando para o teto.
O tempo passa. Meu alarme dispara.
O amanhã chegou.

Isso é tudo o que resta: o laboratório. Fazendo um bom


trabalho aqui. Provando à Mandira e ao Dr. Graham que eles
fizeram a escolha certa ao me contratar, mesmo que haja
montanhas de evidências dizendo o contrário.
Eu esfrego os fósseis até ficarem crus, tirando cada partícula
de sujeira.
— Você está tentando revivê-los ou algo assim? — Mandira
pergunta quando vê minha limpeza vigorosa. Ela ri um pouco,
mas quando eu não respondo, ela diz: — Ei, ei, pare por um
segundo. — Eu olho para cima. — Você está bem?
— Eu estou bem. — Eu confirmo. — Apenas tentando
terminar isso.
— Ok. — Diz ela, as sobrancelhas levantadas. — Mas você
sabe que estou aqui para conversar, se quiser, né?
— Sim.
Mas o que posso dizer a Mandira agora que minha comédia
romântica pessoal azedou? Agora que arruinei tudo tão
profundamente que nem é mais uma comédia romântica? Que
agora é um filme de terror, um thriller ou um filme francês em
preto e branco sobre uma mulher deprimida com olhos
melancólicos que vaga pelas ruas de Paris?
Depois de mais alguns minutos, Mandira acrescenta:
— Bem, se você vai esfregar com tanta eficiência, pode colar
os pedaços também.
Ela me entrega a cola e me mostra onde encaixar os pedaços
do fóssil em que estou trabalhando.
Eu começo, feliz por ter uma nova tarefa.
Exceto que isso permite que minha mente vagueie. E agora
está vagando para o fato de que May não me mandou uma
mensagem desde aquele eu acho que é o melhor. Não sei por que
ela faria isso, mas talvez, se eu verificar meu telefone...
Não.
Acabou. Ia terminar quando eu fosse embora na próxima
semana para voltar para a faculdade, de qualquer maneira. Isso
foi apenas um término antecipado.
Quem se importa que ela se abriu, me deixou entrar e me fez
sentir segura?
Eu certamente não, de verdade. Eu não estou pensando
nisso nem um pouco. Eu definitivamente não estou repassando
cada momento do nosso relacionamento incrivelmente curto
em minha mente, nossa comédia romântica de merda.
E em nenhum universo estou pensando em como ela
desabotoou minhas calças tão gentilmente, como ela me
perguntou para ter certeza de que estava tudo bem.
Eu não estou pensando em como ela foi tão boa para mim.
E como eu fui terrível de volta.
Como eu a expulsei. Como eu não disse a ela o porquê.
Como eu estava muito envergonhada.
Eu olho para o fóssil que eu estava colando, apenas para
descobrir que não colei o fóssil. Meu polegar e dedo indicador
estão grudados com a cola.
Honestamente, isso é bom. Deixe-me fossilizar assim. Isso
vai me tirar da minha miséria. Alguém poderia me expor no
museu e me usar como um espécime modelo para exemplificar
uma nova subespécie de ser humano que arruina todos os
relacionamentos que toca. Puta merda.
Pode ser que o karma não seja legal comigo, mas todo
mundo que passar por aqui saberá exatamente o tipo de pessoa
que eu era: o tipo que não merece amor. Uma bagunça gay.
Não digo a Mandira que colei meus dedos, mas ela me vê
lutando com o fóssil e vem ajudar.
— Aqui. — Diz ela, entregando-me um palito. — Esse é o
segredo para tirar a cola de suas mãos. Isso acontece comigo o
tempo todo.
— Obrigada! — Agradeço a ela, embora desejasse que ela
não tivesse me ajudado.
Eu gostaria que ela me deixasse aqui para fossilizar.

Quando chego em casa, não tenho ideia do que fazer comigo


mesma. Meus dias têm sido tão cheios de May que ter uma
noite livre parece errado.
Deixo minhas coisas no antigo quarto de Beatrice e desço
para a cozinha.
Beatrice não está em casa, mas Tasha e Lauren estão. Elas
estão rindo e bebendo Baileys em copos minúsculos. Eu coloco
minha cabeça no arco.
— Ei — Lauren fala. —, fico feliz em ver que você está
finalmente se juntando a nós.
— Eu disse que ela iria. — Tasha diz a Lauren. — Nós só
precisávamos esperar.
— Nós? — Lauren pergunta. — Esperá-la?
— Hm...
— Pegue um copo. — Ela pede antes que eu possa dizer que
elas, na verdade, não me esperaram. Que estou aqui porque não
tinha outro lugar para estar.
Eu puxo um copo do armário, feliz por ter alguém me
dizendo o que fazer. Lauren me serve um pouquinho de
Baileys, uma quantidade bem generosa, e eu tomo em um gole.
Isso queima minha garganta, e eu quase convulsiono de dor.
Mas quando atinge meu estômago, sinto calor e formigamento.
— Whoa, calma aí! — Lauren exclama, como se ela estivesse
tentando acalmar um cavalo.
Mas então Tasha diz:
— Nasdrovia!17 — E bebe do copo também, Lauren dá de
ombros e bebe do dela. Então ela nos serve mais uma rodada.
— Vamos brindar. — Eu digo, levantando meu copo. Tasha
e Lauren levantam os delas também. — Por Beatrice.
— Por Beatrice! — Lauren acrescenta.
— Beatrice! — Tasha diz, balançando a cabeça.
E bebo. Este vai mais suave do que o primeiro.
É bom estar fazendo alguma coisa. Para não ficar deprimida
no meu quarto.
— O que fez você finalmente decidir se juntar a nós? —
Tasha pergunta.
Aí vamos nós...
Não quero contar a elas sobre May. Lauren a odeia, recebe
vibrações estranhas dela ou o que quer que seja. Eu não sei o
quão simpática Lauren seria se eu dissesse a ela que arruinei um
relacionamento que ela não sabia que existia com uma garota
que ela não gosta. Além disso, Beatrice me perguntou outro dia

17
Alegre-se, em russo
se eu tinha namorado e quase cuspi meu café, mas não a corrigi.
Talvez Tasha e Lauren pensem assim também.
Mas pelo menos posso usar isso.
— Problemas com garotos, eu acho. — Parece tão
antinatural saindo da minha boca que eu nem culpo Lauren
quando ela dá a Tasha um olhar cético.
— Bem, um brinde aos nossos problemas com garotos. —
Lauren diz, independentemente de sua clara incredulidade.
— Você está namorando o mesmo cara desde o colegial. —
Tasha fala. — Que tipo de problemas com garotos você está
tendo?
— Muitos — Lauren responde. —, só não falo sobre eles.
Eu deixo a briga familiar de Lauren e Tasha entrar por um
ouvido e sair pelo outro.
Então elas servem um terceiro copo, minhas pernas
começam a ficar dormentes e minha cabeça está girando.
Depois de um minuto, Lauren empurra a garrafa para o centro
da mesa.
— Acho que foi o suficiente.
— Claro. — Eu digo, feliz por ter alguém tomando uma
decisão por mim. Então eu volto a ouvir Tasha e Lauren
falarem sobre as inscrições para a pós-graduação de Lauren.
Mas não consigo me concentrar. Eu não entendo como elas
estão levando suas vidas normais agora, quando nada é normal.
E, no entanto, aqui estão elas, na mesa da cozinha, falando
sobre seus futuros.
É demais para mim, então peço licença e subo.
Sento-me no chão do quarto de Beatrice, debruçada sobre
meu telefone. Debatendo para quem mandar mensagem.
Eu poderia mandar uma mensagem para Taylor.
Mas... não.
Porque se eu mandar uma mensagem para ela, tenho certeza
de que ela vai ficar brava. Ela vai perguntar por que eu não a
deixei saber o que estava acontecendo. Taylor vai me dizer que
estou agindo como no primeiro semestre. Ela pode até tentar
oferecer conselhos racionais. E eu não os quero.
Mas há uma pessoa que definitivamente não vai oferecer
nenhum conselho.
Eu navego para Configurações.
Eu pressiono Bloqueio e Identificação de Chamadas.
Eu toco Editar.
Eu desbloqueio o número de Sadie.
Eu começo a digitar uma mensagem.
E faço uma pergunta que tem me incomodado desde que
terminamos. Pergunto mesmo que, no fundo, já saiba a
resposta.
Mas eu preciso saber da boca dela.

EU: por que você fez isso

Alguns minutos depois, há uma resposta.


Merda.
Ver o nome de Sadie na minha tela me dá o mesmo choque
químico que senti enquanto estávamos namorando. O influxo
perigoso e delirante de algo que quase poderia ser felicidade se
você inclinar a cabeça da maneira certa.

SADIE: Shani não faça isso

EU: mas por que

SADIE: Você está me perguntando por que eu


terminei com você?

EU: bem, por que fez isso?????

SADIE: Querida, você sabe por que

Eu tremo, vendo a palavra querida vindo de uma mensagem


enviada por Sadie na tela.

SADIE: É como eu te disse


O sexo é uma grande parte de um
relacionamento
Se você não queria, nós não íamos funcionar

Eu odeio as palavras que estou lendo. Elas são tão distantes,


como se ela estivesse escrevendo um e-mail comercial.
Eu nem deveria responder. Eu não quero mais saber.
Mas eu não consigo me segurar.

EU: mas eu FIZ


por você!!!!!!!!
Estou me sentindo em desespero agora. Tudo o que eu
quero fazer é desligar meu telefone e jogá-lo pela janela. Eu
quero vê-lo quebrar em pedaços.

SADIE: Uma vez.


Nós só fizemos isso uma vez
E então você não queria fazer de novo
Você quer uma explicação real?

Não.

EU: sim

SADIE: Eu preciso de um relacionamento sexual


satisfatório
E eu sabia que você não ia me dar isso
Você deveria **querer** fazer sexo com sua
namorada
Tipo, o que caralhos passava pela sua
cabeça?

Eu grito. Eu realmente grito de frustração. Então eu jogo


meu telefone. Ele voa pela sala e cai no chão com um estrondo.
Eu não sei por que eu fiz isso comigo mesma.
Por que mandei uma mensagem para Sadie?
Porque aqui está a história real.
Não me lembro de ter feito sexo com ela.
Naquela quinta-feira, o dia em que dissemos “eu te amo”,
fomos a uma festa na casa de alguém e ficamos bêbadas. Muito
bêbadas. Tipo, tão bêbadas que mal me lembro de estar bêbada.
Então voltamos para o meu quarto.
As únicas lembranças que tenho daquela noite vêm em
flashes: Sadie agarrando minha cintura, me levando até minha
cama. Sadie me beijando.
Sadie abaixando minhas calças, e as dela.
Eu, copiando o que ela fazia.
Estar animada para fazê-lo, para agradá-la.
E então, nada.
Minha memória fica escura.
Até que acordamos na manhã seguinte, nós duas nuas. Eu
com uma dor de cabeça lancinante. Sadie sorrindo.
Sadie, tão linda.
Sadie, me dizendo o quão boa eu fui.
Em quê? Lembro-me de pensar.
Até que me toquei.
Eu tinha certeza de que o sentimento que tive naquele
momento foi de felicidade. Era um pouco oco, com certeza.
Um pouco tingido de pavor. Mas talvez estivesse tudo bem. Eu
tinha acabado com isso. Eu tinha feito sexo com uma garota.
E então ela queria fazer isso de novo.
Mas eu não queria. Eu disse a ela que não. Eu não estava
pronta. Eu não estava no clima.
Eu movi suas mãos para cima das minhas calças. Colocando-
as de volta ao redor da minha cintura.
Ela me perguntou por que não. Tentar outra vez.
Mas eu disse a ela que não.
Então ela foi embora.
E então ela terminou comigo.
Eu bato na minha testa com as mãos.
Não consigo mais pensar nisso.
Pego meu telefone de onde o joguei. Há uma rachadura no
meio, mas está funcionando bem.
E há mais textos de Sadie.

SADIE: É
legal que você seja assexual ou o que quer
que seja
Mas independentemente disso
Você precisa colocar suas merdas no lugar

Essa última mensagem que ela enviou pode ser a única coisa
verdadeira que ela já disse para mim, a parte sobre a necessidade
de colocar minhas coisas em ordem.
E o primeiro passo que dou nesse esforço é bloquear
novamente o número dela.
Então eu subo na cama e choro. Enfio-me debaixo dos
lençóis, gemo até minha garganta doer e meus olhos arderem.
Um pensamento surge na minha cabeça, um que acho que não
tenho desde os cinco anos de idade:
Eu preciso da minha mãe.
É um sentimento tão primitivo. Eu preciso dela. Eu preciso
dela aqui.
Pego meu telefone novamente, me sento, respiro fundo e
ligo para ela.
— Shani? — Minha mãe pergunta quando atende e, antes
que eu possa respondê-la, ela diz: — Você não liga há tanto
tempo que pensei que você tinha me deserdado ou algo assim.
Ela ri fracamente de sua própria piada e ouvir sua voz quebra
algo em mim. Começo a soluçar tão alto que sei que ela
também ouve. Eu tento parar, mas não consigo. Depois de um
segundo, eu finalmente colapso
— Mãe?
— Querida, você está bem?
Eu choro por mais um minuto, tentando me recompor.
— Shani?
— Eu preciso de você aqui. — Eu digo através de lágrimas
quentes e grossas.
— Em DC?
Eu tento dizer “aham” enquanto soluço, mas sai como se eu
estivesse asfixiada. Eu engulo o ranho da minha garganta e digo:
— Você estava certa. — Então começo a chorar ainda mais.
— Você estava certa. — Repito.
— Sobre o quê, querida? — Ela pergunta tão, tão
gentilmente.
Eu bufo, eu choro.
— Eu não deveria ter vindo. Eu deveria ter ficado em casa.
— Não, querida. — Diz ela, usando sua voz mais suave. —
Você é tão corajosa. Minha garota corajosa.
Outro soluço sai, e então mais um, e ela me deixa chorar por
um minuto até que eu diga:
— Por favor, venha. Por favor?
Ela suspira, mas não com raiva.
— Ok, querida. — Ouço o som de digitação em um teclado.
— Eu só tenho que enviar um e-mail para meu chefe, mas posso
estar aí amanhã de manhã cedo. Você pode esperar esse tempo?
Você vai ficar bem?
Eu agarro um travesseiro.
— Sim. — Eu digo, as lágrimas diminuindo.
— Você quer falar sobre isso agora? Ou mais tarde?
— Mais tarde.
— Ok! — Ela concorda, então repete. — Ok. — Ela respira.
— Vou sair em breve. Ligue-me se precisar de alguma coisa, está
bem?
Concordo com a cabeça, mesmo que seja um telefonema,
mesmo que ela não possa me ver.
— Eu te amo, Shani. Eu te amo muito, sempre. Você sabe
disso, certo?
Minha visão nubla-se com lágrimas novamente quando
declaro:
— Eu também te amo.
Então ela diz:
— Fique segura. Vejo você em breve — E depois desliga.
Estou chorando de novo, mas dessa vez de alívio. Não
importa o quanto eu estraguei tudo. Minha mãe está vindo, e
tudo vai ficar bem.
E com esse pensamento, e depois de mais alguns minutos de
choro, adormeço.
The Big Blue ou seja lá o que for

Está escuro quando acordo e, por alguns segundos, não sei


onde estou, o que aconteceu ou por que todo o meu corpo dói.
Eu verifico meu telefone. São cinco da manhã de um sábado
e eu tenho sete mensagens da minha mãe.

MÃE: Estou aqui


Esperando aqui fora no 🚗
Mas tome seu 🕠
Tô achando q vc esta dormindo
Avise qndo acordar
❤️ muito você
Sem pressa

Eu não troco meus pijamas. Não mando uma mensagem de


volta.
Eu simplesmente saio da cama e corro para a rua – o Subaru
da minha mãe está estacionado bem na frente. Bato na janela
do lado do motorista.
Minha mãe estava claramente dormindo porque, quando
ela ouve a batida, se assusta, bate seu cotovelo na porta e grita:
“MERDA!”. Mas então ela me vê, coloca a mão no peito e corre
para destravar o carro para me deixar entrar.
Eu ando até o banco do passageiro. Está quente quando
entro; ela ligou os aquecedores do carro no máximo. Quando
me sento, ela se inclina para me abraçar. Eu a abraço e não
choro, principalmente porque não tenho mais lágrimas. Mas
eu enterro meu rosto em seu moletom enquanto ela passa os
dedos pelo meu cabelo, que são parecidos com os dela, e se
agarra a mim.
— Eu estava tão preocupada. — Ela diz perto da minha
cabeça.
— Eu sei.
— Eu te amo muito.
Eu a deixo me segurar por alguns minutos em silêncio.
Depois de um tempo, eu falo:
— Por favor, não me diga que você sabia disso.
— Sabia o quê? — Ela pergunta, ainda segurando em mim.
— Que eu não conseguiria ficar sozinha nas férias.
— Eu nunca diria isso — Diz ela. —, porque as férias
acabaram. — Eu bufo em seu moletom. Então ela acrescenta:
— Eu sabia que você não poderia viver sem sua mãe.
Eu sei que ela está brincando para tentar me fazer sentir
melhor, e isso acontece, mas também começo a chorar de novo.
Eu achava que não estava chorando.
— Sinto muito. — Eu digo entre lágrimas.
— Não. Não se desculpe. Eu dirigiria um milhão de
quilômetros se você precisasse de mim.
— Não só por isso. Por, você sabe... — Porque fui uma
cadela total.
Eu me afasto e olho para ela. Ela acena com a mão.
— Shan, era tão fácil lidar com você no ensino médio. Você
foi tão tranquila. Eu estava esperando você atingir sua fase
adolescente. — Eu rio e minha mãe enxuga as lágrimas que
escorrem pelo meu rosto. — Chegou um pouco tarde, mas
tudo bem. Está tudo bem, querida.
Sentamos e observamos o céu ficar mais claro, e depois de
alguns minutos ela pergunta:
— Café da manhã?
— Sim, por favor. — O nó ansioso no meu estômago
afrouxou um pouco e agora estou com muita fome.
— E aquele lugar que fomos quando te deixei aqui? The Big
Blue, ou seja lá o que for?
— Não! — Eu respondo, sendo grosseira. Então, tentando
equilibrar meu tom: — Vamos em outro lugar, pode ser?
Ela acena com a cabeça, sem fazer perguntas, e verifica seu
telefone para ver se há algum lugar para café da manhã aberto a
esta hora.
— Há um restaurante na estrada que está aberto 24 horas.
— Soa perfeito.
Ela liga o carro, e nós partimos.
Na última vez em que estive neste carro, atropelamos May.
De lá para cá, passamos por todo o ciclo de um relacionamento:
primeiro eu a odiava, depois me apaixonei por ela, depois
começamos a namorar, em seguida terminei tudo.
Eu tinha acabado de sair de um relacionamento na última
vez em que estive no carro, e recentemente saí de um
novamente. Talvez minha vida seja um ciclo interminável de
relacionamentos de merda e viagens de Subaru.
Mas, novamente, talvez não. As coisas parecem diferentes
desta vez. Eu não estou sendo uma vadia com minha mãe, para
começar.
Quando chegamos ao restaurante, minha mãe estaciona
bem na frente – não há competição por vagas a essa hora – e
nós entramos.
Uma garçonete de aparência cansada nos coloca sentadas em
uma mesa, nos entrega um cardápio e dois copos de água,
depois vai verificar o homem desmaiado em um banquinho ao
lado do bar. Além dele, somos as únicas pessoas aqui.
— Peça o que quiser! — Minha mãe me diz. — O céu é o
limite.
Eu peço café, suco de laranja e panquecas de chocolate.
Minha mãe pega café, suco de maçã e uma omelete, e nós
dividimos um waffle coberto de chantilly.
Comemos em um silêncio aconchegante, mas quando
terminamos, meu coração começa a bater forte. Eu me mexo
no banco, incapaz de encontrar uma posição confortável.
E eu sei o porquê.
Está na hora.
Eu brinco com uma panqueca não comida no meu prato e
aperto meus olhos fechados. Tudo machuca. Eu sei que vou me
sentir melhor quando acabar, mas não consigo dizer nada
agora.
No colegial eu sempre pensei: Hum, eu vou dizer a ela
quando eu estiver namorando uma garota. Dessa forma, não
teríamos que falar sobre minha sexualidade, no fim das contas.
Apenas sobre a menina. Vai ser mais fácil assim.
Mas isso estava errado. Porque eu sou uma lésbica que
terminou um relacionamento com toda e qualquer garota que
tenha namorado no passado, e que vai terminar com qualquer
garota que namorar no futuro. E eu quero que minha mãe
saiba.
Ela me dá uma abertura quando pergunta:
— Você quer falar sobre isso agora?
Concordo com a cabeça lentamente, mas ainda não digo
nada. Eu tomo um gole de água. Em seguida, um gole de suco
de laranja. Em seguida, um gole de café. Em seguida, um gole
de água novamente para tirar o gosto de suco de laranja e café
da minha boca.
— Ok. — Eu digo, batendo meus dedos contra a mesa. —
Ok.
— Ok.
— Mãe. — Falo, porque sinto que é assim que essa frase
deve começar. — Eu sou lésbica.
Ela olha para mim por um minuto, e meu coração cai
porque e se eu estiver errada e ela não estiver bem com isso?
E então as lágrimas se formam em seus olhos e caem por suas
bochechas.
— Mãe. — Eu chamo novamente, meu coração quebrando.
— Eu só te amo tanto! — Diz ela. — Desde o momento em
que te vi pela primeira vez.
E assim, eu também estou chorando.
— Mãe. — Eu digo mais uma vez, mas dessa vez meu
coração se costura novamente, crescendo três tamanhos, no
estilo Grinch.
— Obrigada por me falar! — Diz ela depois de um pouco
mais de choro.
Concordo com a cabeça, porque não consigo pensar em
nada para dizer sobre isso.
Exceto para contar a ela a verdadeira razão pela qual eu
liguei. Devo muito a ela. Porque mesmo que eu tenha saído do
armário para ela, ainda preciso explicar por que as coisas
estavam tão terríveis quando voltei para casa para as férias de
inverno.
Então, eu conto a ela a história de Sadie. Do começo ao fim.
Eu corto algumas partes para ser uma história apropriada para
mães, mas eu quero que ela saiba o máximo possível. Eu digo a
minha mãe como Sadie era controladora e o quanto eu a amava
de qualquer maneira.
Eu não falo sobre May. Eu vou contar a ela eventualmente,
mas não agora. É muito recente.
No final da história, minha mãe pega minha mão.
— Eu me sinto horrível que você pensou que não poderia
falar comigo sobre isso. — Ela desabafa. Então acrescenta: —
Eu odeio essa garota.
— Eu sinto muito.
— Chega de pedir desculpas. — Ela dá um suspiro trêmulo,
então olha para as minhas panquecas pela metade. — Coma.
Eu sigo seu comando de mãe judia, e quando termino de
comer, ela diz:
— Você está falando com alguém na faculdade?
— O quê?
— Quero dizer, um terapeuta? Na faculdade tem alguns
disponíveis para você, certo?
— Sim! — Eu confirmo. — Na faculdade tem, mas não
estou fazendo terapia.
Os recursos de saúde mental de Binghamton são
notoriamente ruins, mas pelo menos eles existem.
— Posso ajudá-la a encontrar um? Antes de eu sair hoje à
noite? Podemos marcar uma sessão juntas.
Estou surpresa, mas assinto. Minha mãe e eu não falamos
muito sobre saúde mental. Tudo o que sei é que ela vê um
terapeuta, às vezes.
Mas talvez isso possa ser o começo de algo. O começo de nós
duas falando mais livremente uma com a outra. Um começo de
nós duas não escondendo nada uma da outra.
Enquanto minha mãe paga a conta, me sinto mais leve do
que há muito, muito tempo.

Minha mãe teve que ir embora mais tarde naquele dia, mesmo
assim foi um dos melhores dias que tivemos juntas. Depois do
café da manhã, voltamos para a casa de Beatrice e conversamos
com ela por um tempo. Então minha mãe escreveu por mim
um e-mail para o centro de aconselhamento de Binghamton
marcando um horário para quando as aulas recomeçarem. Eu
me senti menos sobrecarregada no minuto em que apertei
Enviar.
Bem, eu ainda me sentia incrivelmente triste e ansiosa, mas
de uma maneira mais administrável. Quando minha mãe saiu
tarde naquele dia, eu a abracei e disse adeus enquanto ela ia
embora.
— Vejo você em alguns dias. — Ela me lembrou.
Eu balancei a cabeça, mas ainda chorei enquanto ela se
afastava.
Agora que ela se foi, no entanto, May está pesando em
minha mente novamente.
Eu não contei nada para minha mãe sobre ela. Eu não podia.
Contar à minha mãe sobre May parecia uma invasão de
privacidade. Não à minha privacidade, realmente. Mas à dela.
Acho que não sei o que estou fazendo. Eu só sinto falta dela.
May se tornou uma parte tão grande da minha vida tão
rapidamente, e agora que ela se foi, há um buraco no qual ela,
de alguma forma, se encaixava perfeitamente.
Mas acho que o melhor a fazer é esquecê-la. Para reconhecer
que farei melhor da próxima vez, seja qual for a próxima vez.
Mesmo que não seja com ela.
A boa notícia sobre tudo isso é que estou muito mais focada
no estágio. A má notícia é que agora é meu penúltimo dia no
laboratório, então o foco veio um pouco tarde.
Dr. Graham sai de seu escritório por um tempo, discutimos
um artigo em que ele está trabalhando sobre uma espécie
extinta de celacanto e nossas opiniões sobre. É estressante falar
com ele, mas tão, tão excitante. Mandira está aqui também, e
ela me dá um sinal positivo pelas costas do Dr. Graham.
— Acho que isso será muito importante para a pesquisa do
anel esclerótico. — Diz ele. — Você sabe o que é o anel
esclerótico? É onde o olho está localizado na maioria dos répteis
e peixes. — Ele explica que seu artigo está focado na evolução
do anel, e os celacantos são um ótimo organismo para estudar
como as características evoluíram, porque eles estão
intimamente relacionados com os primeiros tetrápodes. —
Acho que pode até ajudar os cientistas que estudam os olhos
dos mamíferos.
— Ah, legal! — Eu respondo a ele. — Os anéis escleróticos
estão bem preservados em algum dos fósseis de celacantos?
— Ótima pergunta. — Exclama ele, e eu dou um sorriso. Ele
fala ainda mais rápido quando continua. — Eles raramente são
preservados em fósseis, mas os dos celacantos que encontramos
em uma escavação no início deste ano estão, e eles podem nos
ajudar a aprender sobre a evolução do anel esclerótico. — Dr.
Graham sorri. — Pode ser um grande avanço.
Ouvi-lo falar é como estar na platéia de um TED Talk
personalizado. Faz-me desejar não ter estado tão distraída nas
primeiras semanas do meu estágio. Que eu tivesse feito mais
perguntas.
No final do dia, Mandira me puxa de lado.
— Fico feliz em ver que você está mais focada. — Ela abaixa
a voz e acrescenta. — Acho que é algo tão difícil de aprender –
que um relacionamento não precisa consumir tudo. Que você
deve ser capaz de ser você mesma e viver sua própria vida, mas
com uma companhia. E parece que você já está aprendendo
isso, o que é incrível.
Meu coração é um trem de carga no meu peito. Ela parece
tão animada para me dar conselhos sobre relacionamentos
queer.
— Demorei um pouco para descobrir isso com minha
namorada. — Ela continua. — Eu estava muito obcecada por
ela quando começamos a namorar. Mas agora as coisas estão
mais calmas. Eu a amo, mas não sou obcecada por ela. Há uma
diferença.
Eu aceno e agradeço a ela, então corro para fora do
laboratório. Eu não vou dizer a Mandira que a razão pela qual
eu não estou mais obcecada por May ou por nosso
relacionamento é que ele não existe mais.
Mas enquanto estou indo para casa no metrô, a tristeza
baseada em May volta, como aconteceu esta manhã antes do
laboratório. Minha mente vagueia para todas as coisas boas, o
que me deixa ainda mais triste: Raphael testemunhando nosso
primeiro beijo, abraçadas no sofá. Quando ela limpou o
sabonete dos meus olhos no chuveiro. Isso me faz estremecer,
mas ainda assim foi bom. Foi tudo tão, tão bom.
Quando eu pego a escada rolante e saio do metrô na minha
parada, de repente me sinto paranoica. É um pouco irracional,
mas estou preocupada que vá correr até a casa de May em
algum momento.
Preciso de uma distração enquanto caminho para casa,
então ligo para Taylor. É hora de ser honesta com ela, de
qualquer maneira. Nós não nos falamos desde antes da merda
acontecer com May, e ela precisa saber.
— Quanto tempo! — Ela diz quando atende à ligação do
FaceTime. Tay está me dando um olhar que diz: É melhor você
não estar namorando uma Sadie.
— Sim! — Eu concordo. — Sobre isso...
E eu me lanço na história. Começo com Sadie e, ao contrário
da minha mãe, Taylor recebe todos os detalhes sobre como as
coisas terminaram. Eu conto tudo a ela. Então peço desculpas
por não ter contado tudo a Tay quando liguei para ela
chorando quando Sadie terminou comigo. Então peço
desculpas novamente, só porque sinto que o primeiro pedido
não foi suficiente.
— Por que você não me contou isso antes? — Ela pergunta.
— Eu literalmente teria dirigido para Binghamton e falado
umas verdades na cara dela.
— Só isso? Falar verdades na cara dela?
— E um socão na cara dela.
Eu balanço minha cabeça e rio. Estou pegando o caminho
mais longo para casa, serpenteando pelas ruelas do bairro.
— Mas realmente, obrigado por me dizer, Shan. —
Agradece Taylor. — Você sabe que eu te amo muito, certo?
Eu assinto, um nó se formando na minha garganta.
— E nada disso foi culpa sua. — Ela diz tão gentilmente.
Então, ela respira fundo. — Eu também queria dizer que o que
ela fez com você realmente soa como agressão sexual.
O nó na minha garganta desaparece e é substituído por um
soluço.
Eu assinto novamente, mas não digo nada.
Eu sabia na minha cabeça que o que aconteceu com Sadie
parecia errado, mas é muito, muito válido ouvir Taylor dizer
isso em voz alta.
Que foi agressão sexual. Porque foi isso.
Taylor me deixa chorar por alguns minutos, uma presença
calmante do outro lado do telefone.
Quando me acalmo, conto a ela sobre May. Sobre por que
eu me apavorei quando as coisas começaram, tipo... a
acontecer.
— Isso é completamente compreensível. — Taylor me
tranquiliza, mas eu perco a próxima coisa quando as sirenes
soam à distância.
— O quê?
— Eu disse que entendo se você não quiser tentar falar com
May, mas acho que deveria.
— Não sei. — Olho para a calçada, que ainda tem um
pouquinho de neve nas bordas, a última evidência da nevasca
da véspera de Natal. — Duvido que ela vá me perdoar por
terminar as coisas sem uma explicação.
— Então dê a ela uma explicação!
— Não sei... — Eu repito.
Porque eu tenho pensado que, mesmo sentindo falta de
May, talvez eu não deva estar em um relacionamento agora. Na
verdade, eu quase definitivamente não deveria estar.
Provavelmente.
Taylor deixa de lado o assunto depois disso, e passamos a
falar sobre Teddy e sua falta de personalidade.
Digo adeus a ela quando viro na minha rua, mas quando
olho por cima do meu telefone, meu coração cai.
Há uma ambulância e um caminhão de bombeiros, ambos
com as luzes piscando.
Estacionados em frente à casa de Beatrice.
Café e necrotério

Eu corro em direção à porta enquanto Lauren corre para


fora da casa. Ela para na frente da ambulância, em estado de
choque, então me vê e se aproxima.
— O que está acontecendo?
— Ela caiu. — Lauren fala, sem fôlego. — No sótão. Eu nem
saberia se não tivesse ligado e perguntado se ela viria jantar.
Seus olhos se enchem de lágrimas, eu estou em pânico e não
ajuda que eu não tenha ideia de como confortar as pessoas em
perigo. Acaricio seu braço roboticamente e, em seguida, puxo
minha mão.
— Ela ainda está lá em cima?
— Não, eles acabaram de colocá-la na ambulância. —
Lauren me diz.
E então, a pergunta que eu não quero fazer:
— Ela está bem?
— Ela está consciente, mas com muita dor. — Lauren diz,
tremendo. — Quando Beatrice não estava atendendo o
telefone, subi para ver como ela estava e ela estava deitada no
chão, tentando rastejar até o telefone fixo. Ela disse que não
queria me incomodar.
Eu tento não pensar muito sobre isso. Mas não consigo tirar
da minha cabeça a imagem de Beatrice, que normalmente é tão
ágil, tão indefesa.
É fodidamente sombrio.
— Merda! — Eu praguejo.
— Aham.
A ambulância toca suas sirenes e se afasta da casa.
— Espere! — Eu grito, tentando persegui-la até que esteja
muito longe. — Por que não vamos com ela?
— Não sei! — Lauren diz, parecendo mais em pânico do
que há alguns segundos. — Eu esqueci de perguntar! Eu
deveria ter perguntado! E Beatrice está sozinha na ambulância,
ela provavelmente pensa que nós a abandonamos, que vai ter
sepse e morrer no hospital – eu li isso em algum lugar uma vez.
Que as duas principais coisas pelas quais as pessoas morrem no
hospital são infecções e um coração partido.
Eu quero pedir a Lauren para respirar fundo, mas soaria
hipócrita, já que eu estaria dizendo isso com uma voz
igualmente em pânico.
— Tasha está aqui? — Eu pergunto. — Podemos levar o
carro dela? Precisamos ir atrás da ambulância.
— Não, ela vai ficar até tarde numa reunião. — Lauren
responde.
Por que sou tão ruim em uma crise? Eu deveria ter prestado
mais atenção quando Sparky The Fire Dog18 veio à minha aula
da quarta série. Tomando cuidado em ensinar o que era
permitido para crianças na quarta série, ele nos disse apenas o
que fazer em uma emergência de incêndio e esta é uma
emergência de queda de uma idosa de 96 anos, mas quem sabe,
né? Ele poderia ter dado algumas boas dicas.
Não.
Preciso parar de pensar e começar a fazer.
Neste momento, Beatrice está sendo levada para o hospital.
Sozinha.
— Você ligou para a família dela?
Lauren balança a cabeça.
— Não tenho os números deles e não consigo encontrar a
agenda de endereços de Beatrice. Uma vez ela me disse que a
guardava em um cofre em seu sótão, mas eu pensei que era uma
piada e que estaria em sua mesa ou algo assim. — Lauren tenta
respirar fundo. — Eles vão ligar para a família dela do hospital,
eu acho. Eles têm maneiras de entrar em contato com as
pessoas. Tipo, isso acontece o tempo todo. Eles precisam entrar
em contato com alguém quando não têm seu número, né?
— Eu acho que sim, mas ela estará sozinha quando chegar
lá! E se ela precisar de cirurgia e estiver sentada lá, se
perguntando onde está sua família? — Eu me sinto totalmente,

18
Mascote oficial da Associação Nacional de Proteção à Incêndios, nos EUA.
completamente impotente. E então me sinto mal por me sentir
impotente, porque Beatrice é quem está sendo levada às pressas
para o hospital, sem ninguém para encontrá-la, segurar sua mão
ou dizer que ela ficará bem.
— Nós podemos pegar o ônibus. — Lauren diz, pegando
seu telefone. — Tem um chegando, tipo, em quinze minutos.
— Quinze minutos? — Eu grito para Lauren, como se ela
controlasse o horário do ônibus de DC. — Desculpe! — Eu
acrescento. — É que isso é muito tempo.
— Se você tiver alguma outra maneira de nos levar ao
hospital mais rápido, fique à vontade. — Ela olha para o
telefone. — Da última vez que tentei pegar um táxi para o
hospital, eles cancelaram comigo, depois ligaram para gritar
que eles não eram uma porra de uma “ambulância”. Eu estava
apenas tentando chegar para o meu exame de Papanicolau e...
Lauren continua falando em espiral e, quando ela faz isso,
eu percebo que eu tenho uma maneira de nos levar lá mais
rápido.
Isto é, se ela estiver em casa.
Eu sei que ela tem um carro, pelo menos.
Mas eu nem sei se ela dirige. E ela definitivamente não vai
querer me ver. Ela teria todo o direito de bater a porta na minha
cara.
Mas isso é para Beatrice.
— Vamos. — Digo a Lauren. — Nós estamos indo para a
casa de Greg.
— Sério? — Ela pergunta. — Greg vai nos levar?
— Não. — Eu respondo. — May vai.
Lauren me dá um olhar cético, mas relutantemente me
segue quando corro na direção da casa de May. Leva apenas
alguns minutos, mas estou ofegante enquanto caminhamos até
a área da frente. Espero que meu plano funcione quando vejo
o carro de Greg estacionado na frente, mas meu coração dispara
enquanto penso no que estou prestes a fazer.
Ando até a porta da frente com a determinação de alguém
que nunca conheceu o medo.
Eu bato.
Um minuto depois, a porta se abre, e é May, de pijama,
embora seja apenas seis horas. A determinação sai de mim, e
então, realmente, eu só quero olhar para ela. Que é o impulso
errado exato neste momento.
Ela não encontra meus olhos quando diz:
— Ah, hum, acho que vou chamar Raphael. — E começa a
fechar a porta.
— Não! Espere! — Eu grito, e ela reabre um pouquinho.
Respirações profundas. — Você sabe dirigir?
Depois de uma batida, ela se vira para mim, confusa.
— Hum, sim?
Concordo com a cabeça, mas agora que ela finalmente está
olhando para mim, não digo nada. Eu não posso dizer nada.
Felizmente, Lauren intervém:
— Beatrice está no hospital. Você pode nos levar até lá?
May cruza os braços sobre o peito, balança para frente e para
trás, depois acena com a cabeça.
— Sim, ok.
Alguns segundos depois, ela está de volta do lado de fora,
vestindo um casaco por cima do pijama e segurando um molho
de chaves. May nos aponta para o carro de seu pai.
Eu debato comigo mesma sobre deixar Lauren sentar-se na
frente, mas então eu paro e pulo no banco do passageiro, e nós
partimos.
Nós não falamos durante todo o passeio de carro. Nenhuma
de nós. Nem um único pio. O que permite que meu cérebro
contemple o que significa May estar nos levando para o
hospital. Só que ela é uma boa pessoa, provavelmente. Não
significa nada sobre nós. Mas talvez possa?
Começo a formular uma ideia. Sobre mim e May. Não
tenho certeza se é uma boa, mas me deixo meditar até que o
hospital apareça.
— Posso deixar vocês duas aqui? — May pergunta
enquanto estaciona na entrada da frente.
Lauren sai do carro, mas eu não. E então, antes que eu saiba
o que estou dizendo, viro para May e pergunto:
— Você pode entrar também?
Ela coloca as mãos em cima da cabeça, alisando o cabelo.
Depois de um momento:
— Deixe-me encontrar uma vaga para estacionar. — Eu
expiro pelo que parece ser a primeira vez desde que vi a
ambulância. — Vocês duas deveriam descer aqui, no entanto.
— Muito obrigada. — Lauren diz do lado de fora do carro.
Eu levanto minhas sobrancelhas – acho que vibrações
estranhas podem ser ignoradas em uma crise – e a sigo
enquanto May dirige em direção ao estacionamento.
Quando Lauren e eu entramos, perguntamos
freneticamente sobre o paradeiro de Beatrice, e uma gentil
funcionária nos leva até o quarto dela.
Entramos em silêncio, caso ela esteja dormindo, mas ela está
falando com uma médica. Eu não entendo o que elas estão
dizendo, mas Beatrice está acenando com as mãos com desdém
e sorrindo um pouco, então não pode ser tão ruim assim.
Lauren caminha até sua cama primeiro.
— Bonecas! — Ela cumprimenta quando nos vê. — Vocês
acreditam que eu ainda estou viva?
— Não. — Diz Lauren, e Beatrice joga a cabeça para trás na
risada.
A médica se apresenta como Dra. Clarke e aperta nossas
mãos.
— Voltarei daqui a pouco para ver como está Beatrice, mas
enquanto isso, não a deixe comer ou beber nada. Ela pode
comer lascas de gelo se estiver com sede.
— Por que? — Eu pergunto.
— Bem, não podemos descartar a cirurgia e, se precisarmos
levá-la para a sala de cirurgia, seu sistema deve estar limpo.
— Meu sistema está bem. — Diz Beatrice.
— Como eu estava dizendo a ela, o Raio-x voltou
mostrando uma fratura no quadril, e geralmente não gostamos
de operar alguém de idade tão avançada — Beatrice ri disso. —
, mas ela está em um estado notável.
Eu odeio o jeito que a Dra. Clarke fala sobre Beatrice como
se ela fosse uma cadela. Há algo em ver o corpinho dela na cama
estéril do hospital; eu me sinto protetora com ela.
— Tudo bem. — Diz a médica, batendo palmas. — Volto
daqui a pouco.
— Vá pela sombraaaa! — Fala Beatrice quando ela se foi.
Lauren se senta na beirada da cama do hospital, e eu caio em
uma cadeira próxima.
— Por que você não ligou para mim? — Lauren pergunta,
segurando a mão de Beatrice e enxugando as lágrimas. — Eu
teria ido! Eu teria ajudado você!
— Eu sei disso, boneca — Beatrice responde. —, mas você
já faz muita coisa. Eu tinha tudo sob controle.
— Você tinha? — Lauren pergunta, sobrancelhas
levantadas. — Porque eu tenho certeza de que ser internada no
hospital não conta como ter tudo sob controle.
Beatrice dá um tapa em Lauren, estremecendo um pouco ao
fazê-lo.
— Você não precisa se preocupar tanto comigo, boneca. Se
eu sobrevivi a cinquenta e três, posso sobreviver a uma pequena
quedinha!
— O que aconteceu em cinquenta e três? — Lauren
questiona.
— Oh, você sabe, sendo acusada de ter simpatias
comunistas, aquele bastardo do McCarthy... blá blá blá. Não
quero aborrecê-la com os detalhes.
Eu adoraria ficar entediada com os detalhes de Beatrice e
suas simpatias comunistas, mas nesse momento May aparece,
parando no batente da porta.
— É outro anjo? — Beatrice questiona enquanto acena para
May sem mais perguntas.
May parece extremamente desconfortável, e não posso
culpá-la. Ela parece se sentir como eu. Mas, além do meu
desconforto, há outra sensação que tenho ao vê-la: é quente,
macia, formigante e demais para agora.
— Tudo bem, mas como você está se sentindo? — Lauren
pergunta, voltando-se para Beatrice, segurando sua mão.
— Ah, perfeitamente bem. Mas você quer saber o que eu
realmente adoraria? — Beatrice gesticula para que Lauren se
aproxime. — Um copo de Baileys com uma grande bola de
sorvete. Você pode fazer isso por mim?
Beatrice sorri, e Lauren e eu rimos educadamente,
agradando-a, enquanto May silenciosamente assombra o canto
mais distante da sala. Ela está alternando entre olhar para seu
telefone e para mim, então rapidamente de volta para baixo. O
que eu só sei porque tenho feito o mesmo.
Somos como lésbicas em um drama de época à beira-mar.
— Mas já que eu não posso ter isso, vocês bonecas — Ela
aponta para mim e para May. —, podem pegar para mim e para
este anjo — Ela aponta para Lauren. —, duas xícaras de café?
Como isso soa?
— Você não pode beber nada. — Eu a lembro. — A médica
disse apenas lascas de gelo no caso de você precisar de cirurgia.
— O que um pouco de café vai fazer? — Mas Lauren olha
para ela e Beatrice diz: — Ok, o café é só para o anjo, então.
— Eu posso pegar sozinha. — Lauren diz, olhando para
May.
— Elas podem fazer isso. — Insiste Beatrice, acenando com
a mão. — Você fica aqui comigo.
Se eu não soubesse, pensaria que Beatrice estava me dando
uma desculpa para ficar sozinha com May.
Eu me viro para encontrar May, que está mais uma vez
olhando para mim. Meu coração acelera, e eu aceno com a
cabeça em direção ao corredor. Ela não reage por um momento,
então sai do quarto.
Uma confirmação.
O que faz meu coração bater ainda mais rápido. Mas eu sei
que é necessário; nós realmente precisamos conversar. Não
importa o que esteja acontecendo entre nós, o mínimo que
devo a ela é uma explicação.
— Voltaremos em breve. — Digo a Beatrice.
— Não se apressem, anjos. — Diz ela. — A boneca aqui e eu
podemos conseguir nossa própria diversão.
— Isso nós podemos. — Concorda Lauren. — E um pouco
de leite, por favor? No café. Qualquer leite serve.
Dou um sinal de positivo e saio do quarto de hospital de
Beatrice, esperando que May esteja me seguindo. Mas antes de
ter essa conversa com May, há outra coisa que preciso fazer.
Eu rascunho uma mensagem para minha mãe.

EU: Beatrice está no hospital


ela caiu

Se isso tivesse acontecido na semana passada, eu


provavelmente não teria mandado uma mensagem para ela.
Mas estou tentando essa coisa nova onde sou aberta sobre
coisas importantes na minha vida e de outras pessoas e – isso vai
ser um choque – não ser uma cadela total para minha mãe.
Não há mais segredos entre nós.

MÃE: Que
Ela está OK??

EU: sim
mas a médica está vendo se ela precisa de
cirurgia

MÃE: Deixe-me saber se houver algo que eu


possa fazer para ajudar!

EU: obrigada
qualquer coisa eu aviso

Guardo meu telefone. May está de pé do outro lado do


corredor, ao lado de uma maca de hospital vazia.
Se estou realmente fazendo essa coisa de não-mais-segredos,
então há muito que preciso dizer a ela. Não que eu espere
alguma coisa disso. Eu só preciso que ela saiba.
Eu limpo minha garganta.
— Devemos ir ao refeitório? — Sai áspero e tenso, como as
primeiras palavras da manhã depois de uma noite
particularmente agitada.
— Sim. — Ela coloca o telefone no bolso do casaco. May
está com a jaqueta comprida fechada até o fim, com a calça do
pijama aparecendo – ele é estampado de sóis usando óculos
escuros.
Se May e eu estivéssemos conversando, eu provavelmente
diria algo como: “Não é estranho que o sol tenha que usar
óculos escuros? Do que ele está se protegendo? De outro sol?”.
E então ela diria algo sarcástico e nós gargalharíamos e
gargalharíamos.
Mas eu não digo nada. Caminhamos em silêncio enquanto
o hospital apita e zumbe ao nosso redor. Quando as portas do
elevador se abrem, há um grupo de médicos de aparência jovem
conversando em voz alta sobre isso, aquilo e aortas.
— Porão. — A voz de uma mulher serena diz enquanto
descemos. — Neste nível: café e necrotério.
As portas se abrem.
O refeitório está lotado com uma mistura de funcionários
do hospital e entes queridos dos pacientes. Seria fácil dizer a
diferença, mesmo que um grupo não estivesse usando
uniforme – todos os entes queridos parecem sobrecarregados e
cansados. Mais do que alguns obviamente acabaram de chorar.
Alguns estão chorando ativamente; eles recebem um amplo
espaço.
— Café? — Eu pergunto a May.
— Sim. — Diz ela, com os olhos no chão. — Obrigada.
Pego xícaras de café para nós duas, e nos sentamos em frente
uma da outra em uma mesa vazia.
Não posso adiar mais esta conversa. E eu não quero. Eu
preciso dizer a May o que eu deveria ter dito desde o momento
em que decidimos tentar isso: tudo.
Começo com um suspiro e depois digo as mesmas palavras
que ela me disse no Espaço Caracóis:
— Só deixe-me falar, ok? — Fecho os olhos, respiro fundo
mais uma vez e começo. — Eu sei que você pode não querer
falar comigo depois do que aconteceu no outro dia. E tudo
bem. É muito compreensível. Mas eu queria oferecer uma
explicação para que pelo menos você saiba o porquê daquela
reação.
Por mais doloroso que seja, eu sei que o primeiro ponto de
discussão tem que ser Sadie.
— Eu estava namorando alguém antes de vir para cá. Bem
antes, na verdade. Essa garota, Sadie. Não que importe o nome
dela, mas às vezes é irritante quando alguém conta uma história
e eles dizem “essa garota” ou qualquer outra coisa e você está
pensando, tipo, “Use o nome dela!”.
Eu sei que estou divagando. Estou tentando criar uma
reserva de coragem para que, quando chegar à parte realmente
difícil, não seja tão ruim.
May ficou olhando para o café o tempo todo, aproximando
o rosto do vapor.
— Então, de qualquer forma — Eu continuo. —, essa
garota – Sadie – e eu começamos a namorar bem no começo do
semestre, e então nós terminamos logo antes de sairmos para as
férias. — Tomo um gole de café, e isso queima minha língua.
Mas não paro de falar. — Bem, isso não é verdade, realmente.
Ela terminou comigo.
Examino o rosto de May em busca de uma reação, mas não
há nada. Apenas a apatia dela encarando o café. E tudo bem. Eu
já esperava mesmo.
Eu preciso continuar.
— E a coisa é, parte da razão pela qual ela terminou comigo
foi por causa de algo que aconteceu – eu acho que tudo é
porque algo aconteceu, mas — Jesus Cristo, fale logo, Shani. —
, tinha a ver com, tipo, algumas coisas com sexo. — Baixo um
pouco a voz na última palavra para que as pessoas sentadas ao
nosso lado que trabalham no hospital não ouçam. Não que a
palavra sexo envergonhe um profissional médico, mas ainda
assim. É constrangedor para mim. E isso é parte do problema.
— Então, sim. — Eu levo uma das minhas mãos ao meu
rosto e meu rosto está quente ao toque. — Meu coração estava
partido quando cheguei aqui em dezembro. E eu tinha
prometido a mim mesma que não iria me envolver com
ninguém, tipo, nunca mais. Porque a coisa é, eu não estava
apenas com o coração partido. Também me senti violada,
confusa e zangada. Porque... — Eu me afasto.
Respire, Shani.
Você sabe que é ruim quando precisa lembrar seu corpo de
realizar uma função involuntária. Respire dois três, expire dois
três.
Eu tenho que dizer a May. Eu quero dizer a ela.
— Porque eu não me lembro exatamente de ter feito sexo
com ela. — Com isso, May levanta os olhos do café,
sobrancelhas franzidas. Agora sou eu quem olha para baixo. —
Eu estava muito, muito bêbada. E acho que talvez ela também
estivesse, mas honestamente não sei. E eu meio que sempre me
senti desconfortável com a ideia de sexo, mas depois do que
aconteceu e depois que ela terminou comigo, eu fiquei ainda
mais assustada e... Não sei.
Eu olho para ela agora. Pela primeira vez durante toda essa
conversa (você pode chamar de conversa se eu sou a única
falando?), nós duas estamos olhando uma para a outra.
— O que mais me arrependo é de não ter contado tudo isso
antes. Porque está me consumindo de dentro para fora, e é
claro que tudo surgiu no pior momento possível... — Eu me
afasto novamente. Meu rosto está quente, quase na
temperatura ideal para se cozinhar um ovo. Eu sei que May sabe
do que estou falando, na noite em que quase transamos, mas
não transamos. — Então era isso que eu queria dizer. E que
sinto muito por não ter lhe contado. E que eu realmente sinto
muito sobre como as coisas aconteceram, e mesmo que o que
tivemos fosse curto, isso significou muito para mim. É o que eu
queria dizer.
Respiro trêmula, sentindo, pela primeira vez desde que May
saiu do meu quarto, que fiz algo certo com ela.
— Shani. — May começa, ainda franzindo a testa. O que é
suficiente para fazer meu coração acelerar novamente. — Sinto
muito que você não tenha me contado antes. — Suas
sobrancelhas estão ainda mais apertadas, de modo que há uma
poça de rugas entre elas. E então ela começa a chorar. — Eu
disse que não precisávamos fazer isso ainda. — Diz ela entre
lágrimas. — Tipo, podíamos ter feito qualquer coisa. Nós
poderíamos ter descoberto isso juntas. Ou pelo menos um
pouco. — Ela coloca a mão na testa. — Porra.
— Sinto muito! — Digo a ela. — Eu sinto muito.
— Não peça desculpas. — Ela funga. — Bem, quero dizer,
peça sim. Mas não pelo que aconteceu com você.
E agora estou chorando, o que significa que fazemos parte
do clube de choro no refeitório.
— Posso dizer algo? — Ela pergunta depois que nós duas
fizemos o nosso melhor para controlar as lágrimas.
— É claro.
— Eu contei para minha colega de quarto sobre você. — Eu
inclino minha cabeça para ela, confusa, mas ela continua. — Eu
não sou tão próxima dela. Eu não sou tão próxima de ninguém
na faculdade, na verdade. Mas na semana passada ela me
mandou uma mensagem perguntando como estavam minhas
férias de inverno, e a história veio à tona. E então eu tive que
dizer a ela que tudo acabou. Ela até me ligou depois disso, o que
ela nunca tinha feito antes, e tivemos toda essa longa conversa.
Ela te xingou, e eu ri, chorei e foi muito, muito legal. — Ela
toma um gole de café, soprando-o mesmo que não possa estar
mais do que morno. — Eu acho que o ponto da história é que
eu costumo guardar as coisas. Demorei cinco anos inteiros
tendo uma queda por minha amiga antes de contar a ela. Nadia
é o nome dela, a amiga por quem eu tive uma queda. Já que
você parece pensar que as histórias precisam de nomes.
Ela sorri um pouco depois que diz isso, e estou tão
encorajada pela pequena expressão facial que sorrio para ela.
Mas então seu sorriso desaparece, e ela não acrescenta mais
nada.
— Isso é muito tempo para ter uma queda por alguém. —
Eu digo. Eu quero que ela continue falando.
— Sim, eu sei. E eu provavelmente não teria contado a ela,
nunca, se isso não tivesse começado a tomar conta de toda a
minha vida. Não tinha um segundo do dia em que eu não
pensasse nela. — Ela respira. — E o que você fez comigo. Em,
tipo, um mês. Eu não quero dizer que passo o tempo todo
pensando em você, mas... Quando saí outro dia, depois que
Beatrice gritou e tudo isso aconteceu, me senti dez vezes pior
do que depois que Nadia me rejeitou. Eu estava voltando para
casa, e cada grama de mim estava pensando em você. Não
consegui descobrir o que fiz de errado. — Ela enxuga os olhos
e diz — Merda! — mais uma vez para uma boa medida.
Eu coloco minha cabeça em minhas mãos, então olho para
cima.
— Por favor, deixe-me pedir desculpas novamente, ok?
Porque eu sinto muito, muito, muito. E você não fez nada de
errado, você fez tudo certo. — Eu tento respirar. — Me
desculpe por não ter contado por que eu estava sofrendo. —
Eu quero continuar, pedir desculpas até que a palavra desculpe
seja três sílabas desconexas e sem sentido, mas paro quando vejo
a expressão no rosto de May.
— Você sabe que eu até contei para minha mãe sobre você?
— Ela pergunta. — Eu conto tudo a ela, de qualquer maneira.
Mas quando eu estava em casa em Ithaca, contei a ela sobre
você também.
— Foi assim que você se assumiu para ela? — Eu pergunto.
— Não, ela sabia sobre Nadia, então ela sabe que sou queer.
E porque estamos deixando tudo claro, falo:
— Vi minha mãe outro dia. Ela veio para DC depois que
toda a merda aconteceu. Eu saí do armário para ela então.
May engole o grande gole de café que tinha na boca e seus
olhos se arregalam.
— Você não tinha contado para sua mãe?
— Não. — Eu respondo. — Nunca tive a chance. — O que
é mentira, então me corrijo. — Bem, eu não queria ter que dizer
a ela. Pensei em esperar até estar em um relacionamento sério
com uma garota. Eu estava pensando que Sadie seria isso. Mas,
obviamente, ela não era a garota certa.
— Você contou a ela sobre mim? — May pergunta,
incrédula.
Minhas axilas estão de repente muito úmidas.
— Não. — Eu digo. — Porque percebi que era bobagem
estar esperando estar com alguém para contar à minha mãe,
quando ser lésbica é uma parte tão importante da minha vida.
É bem mais do que apenas as garotas que namoro. Tudo isso,
sabe? E começou a parecer que eu estava mentindo para ela.
Então eu disse a ela, sem ninguém ligado à notícia.
Seu rosto está com um tom de vermelho que não estava há
um momento.
— Então, você não contou a ela sobre mim? — Ela
pergunta, e eu não posso dizer o que ela espera que seja a
resposta.
— Não. — Eu respondo. — Porque você sabe. As coisas não
estavam indo muito bem.
— Não. — Ela concorda. — Não estavam.
E é então que decido contar a ela sobre a ideia que tive
enquanto íamos para o hospital. Foi apenas um devaneio na
época, mas agora parece algo que poderia plausivelmente
acontecer. Algo que nós duas podemos querer que aconteça.
— Mas poderíamos?
— O quê?
Eu respiro fundo.
— E se começarmos de novo?
Ela inclina a cabeça.
— O quê?
— Ok, então, acho que, embora tenhamos dito que
queríamos ir devagar, as coisas acabaram indo muito rápido.
Certo?
— Hum, sim?
— E se começarmos de novo? Eu sei que as férias estão
acabando, mas ainda temos alguns dias. Podemos voltar para
quando nós duas tínhamos uma queda uma pela outra, mas
ainda não tínhamos nos beijado. E talvez, já que estamos
começando de novo, não faremos isso desse jeito. Mas
podemos ir devagar desta vez. Em um ritmo com o qual
estamos confortáveis, para que nenhuma de nós se machuque.
Obviamente, eu entendo se você não quiser, mas...
— Não! — May diz rapidamente. — Eu gosto dessa ideia.
— Ela olha para longe por um momento, profundamente
concentrada. Eu não respiro. — E já que estamos começando
de novo, talvez não nos encontremos porque você quase me
atropelou com seu carro. — Ela sorri.
— Ou talvez sim. — Falo, sorrindo também.
— Na minha cabeça, a nova maneira de nos conhecermos é
que eu vi você flertando com um barista infantil em um café e
achei você tão fofa que fiquei com ciúmes do garoto, então
duelei com ele por sua honra.
— Cala a boca! — Eu digo, sorrindo. Então, silêncio. —
Posso dizer mais uma vez? Sinto muito, May.
— Para quê? — Ela levanta as sobrancelhas. — Se estamos
começando de novo...
— Ainda posso me desculpar!
— Bem, eu não vou ouvir.
— Tudo bem. — Eu concordo.
— Tudo bem. — Ela fala.
Nós duas estamos sorrindo como tolas, as pessoas mais
felizes no café do hospital, uma categoria até então
desconhecida do clube da cafeteria.
Depois disso, conversamos por mais um minuto sobre a
nova forma fictícia como nos conhecemos – May insiste que
ela teve uma briga de salão no estilo Velho Oeste com Luke para
me conquistar – e então compramos um café para Lauren.
Mas enquanto estamos caminhando para o elevador, ouço
algo vindo de May. A princípio, acho que ela está chorando de
novo, e entro em pânico porque não faço ideia do motivo. Mas
então eu olho, e ela está rindo.
— O que você está fazendo?
— A conversa que tivemos antes — Diz ela, respirando
fundo para conter a empolgação vertiginosa. —, foi tão
inacreditavelmente gay.
— O quê?
— Nós apenas processamos nossos sentimentos — Ela tenta
respirar novamente. —, por meia hora. Nunca me senti mais
lésbica em toda a minha vida — Diz ela. —, e olha que eu desejei
uma garota por cinco anos.
E eu começo a rir também, porque foda-se. É engraçado. Os
relacionamentos são engraçados. Eles são confusos,
assustadores e horríveis, às vezes, é. Mas engraçados do mesmo
jeito.
May e eu não damos as mãos nem nada quando entramos
no elevador. Nós não nos tocamos. Mas, de uma forma
estranha, parece ainda mais o começo de algo do que o nosso
primeiro beijo. Parece certo.
Quando chegamos ao quarto de Beatrice, mais duas pessoas
chegaram...
— George! — Eu falo, feliz em vê-lo, mesmo que seja em
circunstâncias estranhas. Tasha deve ter terminado sua
reunião, porque ela também está aqui. Eu aceno para ela, e ela
levanta a mão de onde está colocada no ombro de Lauren ainda
em estado de choque.
— Olá! — George cumprimenta em sua voz rouca. — Eu
estava apenas agradecendo a Lauren aqui por cuidar de mamãe.
Suponho que também devo um agradecimento a você?
A resposta para isso é um retumbante não, mas Lauren diz
graciosamente:
— Shani e May garantiram que chegássemos aqui logo após
a ambulância para que Beatrice não ficasse sozinha.
— Bem, obrigado a ambas, então. — George agradece a
mim e a May.
— A médica apareceu?
— Ela com certeza apareceu. — Beatriz revira os olhos. —
Aquela mulher pensa que estou gagá. Ela que é uma piada,
porque minha mente está bem! Estaria melhor depois de um
copinho de Baileys, no entanto.
— Mãe, absolutamente não. — Diz George. — Eu não
quero você bebendo. Não foi isso que te desequilibrou em
primeiro lugar? Você estava bêbada quando caiu?
Beatrice faz um som como “shhh” e estende a mão para dar
um tapa no filho.
— O que me desequilibra é ter noventa e seis anos, isso sim.
Os Baileys só ajudam.
— Beatrice não precisa de cirurgia — Lauren interrompe.
—, mas eles vão mantê-la durante a noite para monitorá-la
apenas por precaução.
— Isso é ótimo. — Digo a Beatrice. E eu me sinto aliviada,
mas há outra coisa também. Os últimos dias foram uma
maratona de tirar merda do meu peito, e para realmente fazer
isso, há mais uma coisa que preciso dizer. — Posso falar com
você? — Eu ando até o lado de sua cama.
— Boneca, você pode falar comigo sobre qualquer coisa.
Olho ao redor da sala.
— Talvez a sós? Vai levar apenas um minuto.
— Claro! — George concorda e leva Lauren e Tasha para o
corredor. May ergue as sobrancelhas para mim, e tento
comunicar que está tudo bem, que ela não precisa ficar. Mas ela
fica, de qualquer maneira.
— Então, você lembra quando eu te disse que tinha
namorado? — Eu pergunto Beatrice, aquecendo-a.
— Claro, anjo. Mas nunca o vi por aí. Ele é invisível? — Ela
ri, então estremece.
— Não, na verdade. — Eu digo. — Ele não existe.
— Eu respeito todas as suas fantasias, boneca.
— Não. — Eu falo, tentando novamente. — O que quero
dizer é que nunca houve um namorado. E nunca haverá um
namorado. Eu sou lésbica. — Viro-me para May, que me dá um
sorriso encorajador.
Depois de alguns segundos, Beatrice sorri.
— Você os mandou para fora da sala para isso? — Ela me dá
um tapa de brincadeira. — Você acha que eu não vi você se
esgueirar com esse anjo ali? — Ela aponta para May, cujos olhos
se arregalam. — Boneca, eu adoro lésbicas. Elas sempre me
ofereceram os melhores conselhos sobre os homens. — Eu
sorrio e balanço a cabeça, me sentindo aliviada. Então Beatrice
diz a May: — Trate-a bem. — O que me faz querer cair em um
buraco e dar um grande abraço em Beatrice, simultaneamente.
May parece assustada, mas eu dou de ombros como se
dissesse: é Beatrice, o que você vai fazer?
Então, May fala:
— Eu vou. — E eu sufoco tanto o riso quanto as lágrimas.
Depois de alguns segundos embaraçosos, May abre a porta
para que Lauren, Tasha e George possam voltar. Todos nós nos
movemos para ficar ao redor da cama de Beatrice, um poço de
existência humana.
Eu olho para todos, para George, Lauren, Tasha, Beatrice e
May (mas principalmente May), e um pensamento me vem à
cabeça: não tenho mais medo de voltar para a faculdade.
Não é como se nada tivesse mudado com Sadie, mas... Não
sei. Gosto da ideia de todas essas pessoas existirem
simultaneamente, de estarem no mundo comigo. Só de saber
que eles estão por aí, em algum lugar, me sinto melhor.
— Parem de olhar para mim como se eu estivesse morrendo.
— Beatrice nos diz depois de um minuto. — Vocês podem
fazer isso quando eu estiver morta!
Ela berra de alegria, e tento memorizar o som, capturá-lo na
minha cabeça.
E porque, aparentemente, nossa atividade favorita é o olhar
gay, e quando olho para May, ela está olhando de volta para
mim.
Você é tão gay

É a penúltima vez que acordo na cama de Beatrice. Um


mês atrás, esse fato teria me encantado, já que é uma cama de
sexo certificada e assombrada. Mas agora me sinto um pouco
nostálgica. Acho que tenho dado muito duro nessa cama.
Eu relutantemente me visto para o meu último dia de
laboratório e vou para o metrô. May não mandou uma
mensagem, mas estou tentando não me preocupar com isso.
Faz menos de um dia da nossa conversa.
Mas ainda há aquela parte terrível do meu cérebro que está
gritando que algo está totalmente errado, que o mundo está
pegando fogo e que eu preciso evitar todo o desastre humano.
Eu tento acalmar os gritos internos fazendo uma parada
muito importante antes do meu trajeto.
— Shani! — Luke grita quando entro no The Big Blue Dog.
— Ei, Luke. — Eu digo, caminhando até o balcão. — E aí?
Ele parece chocado que eu digo o nome dele e faço uma
pergunta, mas depois de um momento de admiração ele
responde:
— Ótimo, está uma maravilha. — Então acrescenta: —
Quero dizer, nada demais. Foi isso que eu quis dizer, não que
eu não seja ótimo. — Um sorriso de gato de Cheshire aparece
em seu rosto. — Na verdade, está tudo incrível, agora que você
está aqui.
E aí está ele novamente.
— Fico feliz em ouvir isso. — Eu digo, não querendo
esmagar seu espírito ainda. — Posso tomar um café?
— Você não quer um “Shani”? — Ele pergunta, abrindo a
geladeira e tirando um pote de cerejas maraschino.
— Não. — Por favor, pelo amor de tudo que é sagrado, não.
— Obrigada, mesmo.
Ele parece desanimado, mas serve um copo de café.
— Por conta da casa! — Ele afirma. — Mas você já sabia
disso.
Pego o copo e o seguro em minhas mãos.
— Eu só parei porque queria que você soubesse que hoje
será meu último dia de trabalho em DC por um tempo, então
provavelmente será a última vez que vou tomar um café aqui.
— O quê? — Ele pergunta, e para minha tristeza, seus olhos
ficam vermelhos e lacrimejantes.
Ele se vira, pega uma toalha e, sem entusiasmo, limpa o bico
da máquina de café expresso.
Oh, não.
Eu tento pensar em algo reconfortante para dizer, mas acho
que ele provavelmente não quer que eu chame a atenção para o
fato de que ele está chorando. Então, para trazer um conforto,
eu apenas fico lá sem jeito.
— Qualquer coisa que você quiser… — Diz ele depois de um
minuto, seus olhos ainda vermelhos. — Qualquer coisa
mesmo. Quer outra bebida? Eu vou te fazer uma outra em um
segundo. Ou um dinamarquês? Eu posso te dar um
dinamarquês também. — Ele puxa a parte de baixo do avental
para enxugar os olhos, o que, com certeza, não é nada higiênico.
— Não, Luke, está tudo bem. Mas muito obrigada por todo
o café. — E eu quero dizer isso. Tem sido bom tê-lo e ter sua
devoção bizarra a mim como uma constante no último mês.
— Eu não pensei que você iria embora tão cedo. — Ele fala,
inquieto. — Há algo que eu quero dizer a você também.
Merrrrrrrrrda.
— Ok! — Eu digo, de um jeito muito alegre, minha voz
muito alta.
— Eu queria que você soubesse… — Ele respira fundo. —
Na verdade, hum, gosto de você. Tipo, eu tenho sentimentos
por você, gosto mais do que apenas amizade. — Ele olha para
baixo. — É isso.
E já que, aparentemente, minha mudança de personalidade
sai do armário para todos os seres humanos que já conheceu, eu
digo:
— Isso é muito fofo, Luke, mas eu sou lésbica.
Uma batida. Então as lágrimas… um fluxo delas escorrendo
pelo rosto.
— Está tudo bem. — Eu continuo, tentando confortá-lo
sobre minha sexualidade. — Se isso faz você se sentir melhor,
eu também sou, tipo, muito velha para você.
— Eu vou esperar. — Diz ele, fungando. — Eu não me
importo com quantos anos você tem.
— Mas eu sou gay. — Eu repito, um pouco menos
reconfortante desta vez. — Eu sou, tipo, muito lésbica.
Ele olha para mim com olhos de cachorrinho.
— Tem certeza?
Eu penso em todas as pessoas que eu já gostei.
Eu penso em May.
— Sim. — Eu digo a ele. — Desculpe, mas sim.
Ele suga todo o ranho que produziu para chorar por mim.
Depois de um momento, Luke pergunta:
— Mas, sério, você quer um dinamarquês?
Eu sorrio para ele.
— Claro, Luke. Eu aceito um dinamarquês.

— Último dia! — Mandira fala assim que entro no laboratório


com a barriga cheia de massa folhada e me acomodo no meu
banco. — Como você está se sentindo?
— Triste. — Eu digo a ela com sinceridade.
Mesmo que eu tenha sido uma empregada de merda
durante a maior parte do meu estágio, eu não quero ir embora.
Ainda quero me provar para o Dr. Graham, para o peixe
fossilizado e especialmente para Mandira. Preciso provar que
tenho o que é preciso para ser uma paleo-ictióloga.
— Ah! — Mandira exclama. — Eu também estou triste. —
Então ela acrescenta: — Embora certamente tenham sido
algumas semanas interessantes. Não posso dizer que tenhamos
outra estagiária disposta a procurar no lixo em busca de um
fóssil.
— Eu faria de novo.
— Bem, vamos torcer para que você não precise.
Dr. Graham sai de seu escritório segurando uma escova de
dentes e um fóssil no estilo Dr. Graham.
— É o último dia de Shani. — Mandira diz a ele.
— Eu sei. — Ele gira a escova de dentes em sua mão. — Bem,
eu gostei de ter você aqui. — Diz ele de uma forma estéril, mas
meu coração ainda está aquecido pela declaração.
— Obrigada! — Eu o agradeço. — Gostei de estar aqui.
Depois dessa agradável interação com o Dr. Graham, passo
mais ou menos uma hora limpando escamas de peixes
fossilizadas e não jogando espécimes preciosos no lixo.
— Starbucks? — Pergunta Mandira. — Eu pago.
— Com certeza.
Nós saímos e, enquanto caminhamos, ela diz:
— Então, eu tenho um pequeno presente de despedida para
você. — Ela estende um saco de papel cheio de papel de seda
azul.
— Você realmente não precisava.
— Eu sei — Ela fala. —, mas abra mesmo assim.
Eu espio dentro da sacola.
— Isso é…?
— Abre logo! — Mandira insiste.
Estamos paradas na calçada, e me aproximo para deixar os
turistas passarem por nós enquanto tiro o presente da sacola.
É uma pequena latinha de lixo nova, completa, com uma
tampa vermelha brilhante e um pequeno pedal.
— Pelo amor dos velhos tempos! — Mandira diz, e eu rio.
— Você pode colocar qualquer coisa além de fósseis aí.
— Eu nunca vou usá-la. — Eu digo. — Vou apenas olhar
para ela e lembrar com carinho do laboratório. Obrigada.
— De nada!
Continuamos andando e, quando entramos na fila do
Starbucks, ela acrescenta:
— Sabe, se você quiser voltar no verão, adoraríamos
contratar você de novo. Falei com o Dr. Graham sobre isso
outro dia.
Eu a encaro, incrédula.
— Sério?
— Claro! — Ela confirma. — Eu acredito em você. E você
tem a paixão, mesmo que às vezes se distraia um pouco.
— O tempo todo. — Eu a corrijo.
— Isso não é verdade. — Diz ela. — Tenha um pouco de fé
em si mesma. A última semana foi ótima em comparação às
outras. Você está trabalhando e se esforçando muito.
Meu coração bate forte. Eu tenho que dizer a ela a
verdadeira razão pela qual minha ética de trabalho melhorou.
— Então, você sabe como você disse que estava orgulhosa
de como eu tenho equilibrado o namoro e o trabalho melhor?
— Ela acena. A ansiedade borbulha em meu peito. Respiração
profunda. Honestidade. — Na verdade, é porque, bem, May e
eu meio que terminamos. — Mandira parece surpresa quando
digo isso, mas continuo. — Nós não estávamos namorando, e
é por isso que eu estava melhor. É chato, mas é por isso.
E para meu alívio, tudo o que Mandira me pergunta é:
— Você está bem?
Eu concordo.
— Sim, as coisas estão melhores agora. E eu realmente gosto
dela, mas... não sei. Eu ainda sinto que não deveria estar
namorando ninguém por enquanto.
— Você deve fazer o que for mais confortável, mas se
realmente quiser sair com ela, você com certeza deveria chamá-
la para sair.
Agora é minha vez de parecer surpresa. Mas antes que eu
possa fazer uma pergunta, chegamos à frente da fila e ela pede
cafés para nós duas e um chocolate quente de avelã venti com
chantilly e calda de morango para o Dr. Graham.
— Por que você não tenta trazê-la para essa parte de sua
vida? — Mandira pergunta enquanto sacode um pacote de
açúcar e despeja o conteúdo em seu café. — Você pode contar
a ela sobre a evolução dos peixes, e então ela pode falar sobre o
que ela ama.
— Clima. — Eu digo. — Ela ama o clima.
— Aí está. — Ela coloca a tampa de volta em seu café e toma
um gole. — É divertido namorar alguém que seja um grande
nerd se você também for um grande nerd. Tipo, minha
namorada é louca por arquitetura. Ela sabe mais sobre o sistema
de esgoto de DC do que praticamente qualquer outra pessoa.
— Mandira sorri. — Eu a amo tanto.
Saímos para o frio agradável de um dia de inverno, eu
segurando um café e uma lata de lixo, Mandira segurando seu
café e a abominação de chocolate quente que ela pediu para o
Dr. Graham.
Viro-me para Mandira e a vejo bebericando seu café,
parecendo super fodona. Uma pessoa que não posso deixar de
desejar ser.
— Eu também queria dizer que sinto muito. — Digo a ela
depois de um minuto de silêncio. — Por colocar todo o meu
drama de relacionamento em cima de você. Eu só sabia que
você entenderia. — Eu suspiro. — Mas eu sei que era muito,
muito pouco profissional.
— Shani, não. — Ela me diz. — Estas últimas semanas
foram tão divertidas, mesmo que não tenhamos feito a maior
parte do trabalho. E, honestamente, eu sinto que tenho sido um
pouco chata sobre coisas de relacionamento e… — Eu tento
interromper, mas ela me impede e continua. — Não, eu fui.
Mas falando sério, eu nunca tive alguém que se sentisse como
um mentorado antes. Não há tantos aspirantes a paleo-
ictiólogos, e há ainda menos que são queer. Temos que ficar
juntas.
Eu sorrio para ela. Ela disse que eu era sua mentorada.
Mandira é minha mentora.
E já que ela é minha mentora, acho que devo contar a ela
sobre o que aconteceu no hospital ontem, e como May não me
mandou mensagens desde então.
Quando termino a história, Mandira olha para mim.
— Só estou dizendo isso porque estive no seu lugar, mas há
uma pequena chance de você estar pensando demais. — Ela
franze a testa com simpatia. — Você já pensou em talvez - e eu
sei que isso parece loucura - mandar uma mensagem para ela?
Eu bufo, mas é um bom ponto.
— Você acha que eu deveria?
— Claro que sim.
Quando voltamos ao laboratório, antes de me sentar no
banco, sigo o conselho de Mandira e mando uma mensagem
para May.

EU: você quer sair mais tarde?


já que eu vou embora amanhã

Segundos depois, uma resposta:

MAY: com certeza


Eu respiro, já me sentindo melhor.
— Eu mandei uma mensagem para ela. — Conto a
Mandira, guardando meu telefone. — Obrigada por me dizer
para fazer isso.
— Para que serve um mentor?

Estou voltando para a casa de Beatrice quando o nome de


Taylor aparece na minha tela. Eu atendo o FaceTime
imediatamente.
— Ei! — Eu digo, movendo meu telefone diretamente
abaixo do meu rosto para que eu ainda possa ver a calçada. Só
Taylor consegue me ver desse ângulo. É exclusivo para as
melhores amigas.
— UAU, EU ESTOU OLHANDO PARA O ROSTO DE
ALGUÉM QUE FINALIZOU SEU ESTÁGIO?
Eu sorrio.
— Tão estranho que você possa ver isso no meu rosto.
— Sou muito perspicaz. — Taylor sorri também, e vejo que
ela está maquiada. Isso parece bom.
— É claro.
— Como está Beatrice?
— Melhor, eu acho. Ela pode até estar em casa agora.
— Fico tão feliz em ouvir isso! — Ela fala. — Sua mãe vai te
buscar hoje?
— Amanhã de manhã. — A corrijo enquanto ligo minha
lanterna. Está escuro e não há mais luzes de Natal para iluminar
a calçada.
É engraçado como o Natal é uma temporada de meses, mas
uma vez que o calendário muda para janeiro, muitas pessoas
imediatamente descartam tudo e qualquer coisa relacionada ao
feriado.
Eu não admitiria isso para ninguém, mas eu meio que sinto
falta. A festa, o calor. Talvez não seja a pior temporada do
mundo inteiro. Acho que poderia transferir todo o meu ódio
para o Dia dos Namorados. Tipo, por que é tudo rosa e
vermelho em primeiro de janeiro? O amor não está no ar!
— Mal posso esperar para te ver por trinta segundos antes
de você voltar para a faculdade.
— Eu te enganei por um minuto inteiro.
— Isso é tão fofo de sua parte. — Taylor bufa, então seu
rosto fica um pouco mais sério quando ela pergunta: — Você
está pronta para voltar?
— Eu acho que sim.
— Tipo, Sadie está superada?
— Honestamente? Sim.
Taylor ergue as sobrancelhas.
— Sério?
Eu dou de ombros.
— Estou com medo de correr para ela, mas não tipo,
cagando nas calças de medo.
— Eu ficaria muito preocupada se você estivesse com medo
a esse ponto.
— Justo. — Eu suspiro, e Taylor não pergunta nada, sem
perguntas por enquanto. Ela sabe quando eu preciso deixar
meus pensamentos correrem soltos.
Porque sim, vai ser uma merda se eu acabar encontrando
Sadie – o que estou assumindo que vou – mas não será o fim
do mundo.
Quando saí de Binghamton há um mês, o pensamento de
voltar para a faculdade e não ser a namorada de Sadie era a coisa
mais horrível que se podia imaginar, mesmo com o que
aconteceu.
Mas agora… não sei.
Estou pronta para voltar e ser Shani. Para ser uma garota
que ama peixe um pouco demais. Fazer amigos, fazer faculdade
direito.
E eu vou ter May. Não para monopolizar minha vida, mas
para fazer parte dela. Talvez ela até conquiste uma parte do
tamanho da do peixe, de Taylor, da minha mãe, dos novos
amigos e de qualquer outra coisa.
O rosto de Taylor ainda está lá quando estou pronta para
falar novamente.
— Você vai sair? — Eu pergunto a ela. — Ou a maquiagem
é apenas…
Ela sorri e puxa a câmera para mais longe, para mostrar uma
linda combinação de jaqueta jeans e vestido preto.
— Com quem?
Ela traz o telefone de volta ao rosto, depois olha para baixo
e sorri.
— Teddy.
— Oh, meu Deus! — Eu digo. — Então isso é, tipo, um
lance?
Ela sorri ainda mais, confirmando que é, de fato, alguma
coisa.
— Eu acho que sim. Ele está de volta ao Queens pelo resto
das férias de inverno e... é.
— Bem — Eu digo, me preparando. —, você está gostosa.
— Obviamente. — Ela fala, então acrescenta. — Obrigada,
Shan.
Ela sabe como foi difícil para mim dizer isso, mas estou feliz
por ter dito.
Porque ela parece gostosa! E de agora em diante, eu quero
dizer a ela. Eu quero fazer um trabalho melhor em ser sua
melhor amiga.
Depois disso, não falamos sobre nada em particular por
alguns minutos, e é incrivelmente legal.
— Vejo você amanhã! — Digo a ela quando chego à porta
de Beatrice.
— Mal posso esperar. — Ela declara. — Te amo.
Eu mostro minha língua para ela, embora eu não saiba se ela
pode ver através do escuro do meu lado da tela, então
acrescento:
— Amo você também.
Quando abro a porta, há uma comoção.
— Beatrice?
— Boneca!
Eu vou para a sala, e sim, lá está Beatrice, descansando no
sofá. George está sentado em uma grande cadeira almofadada,
e Lauren está lendo um livro no chão, com as costas apoiadas
no sofá onde Beatrice está descansando.
— Ei. — Tasha diz, sorrindo para mim enquanto sai da
cozinha com um copo de água. Ela o entrega a Beatrice.
— Ei. — Eu cumprimento, sorrindo de volta. — Como está
indo por aqui? — Ajoelho-me ao lado de Beatrice. — Você está
bem? Como você está se sentindo? Quando é que voltou do
hospital? — Tenho muitas perguntas, mas estou
principalmente aliviada por vê-la em sua própria casa e não em
uma cama de hospital.
Ela levanta seus braços minúsculos com suas enormes peles
frouxas, força sobre-humana e me puxa para um abraço.
— Cuidado, mãe. — Pede George.
— É meu quadril que está machucado, não meus braços. —
Ela fala. — E eu estou bem, boneca.
George balança a cabeça e suspira.
— Já que vocês três estão em casa — Ele gesticula para mim,
Lauren e Tasha. —, eu tenho algo a dizer. Minha mãe pode não
ser capaz de ter vocês meninas morando com ela por muito
mais tempo. Ela está frágil agora.
Beatrice balança o braço para bater nele.
— Ah, cale a boca, querido. Frágil minha bunda. Eu tomei
conta delas enquanto elas tomavam conta de mim.
Ela agarra meu braço, e eu coloco minha mão sobre a dela.
— Hum, eu estou indo embora amanhã. — Eu digo. —
Meu estágio acabou.
— Amanhã? Tão cedo? — Ela esfrega a mão livre sobre o
cobertor para alisá-lo.
— Eu sei, mal posso acreditar.
— Lembre-me novamente há quanto tempo você está aqui,
anjo? Um ano?
Eu não posso dizer se ela está falando sério, então eu rio e
respondo:
— Um mês.
— Só isso? Parece que você está aqui há uma eternidade.
— Faz sentido.
Mas também parece que só passaram dois dias. O tempo é
selvagem.
— Bem, não importa. — Diz ela. — Você sempre terá uma
casa aqui.
Sorrio com os lábios pressionados e enxugo as lágrimas que
de alguma forma se formaram em meus olhos.
— Obrigada! — Eu agradeço, minha voz grossa.
— Agora vá fazer coisas de jovens. — Diz Beatrice com uma
piscadela. — Só existe a última noite em DC uma vez, mas não
faça nada que eu não faria.
— Claro que não.
Meus planos para esta noite são simples: vou ver May.
Eu estava tão perto de passar minha última noite em DC
sozinha no meu quarto, esperando que ela mandasse uma
mensagem. Mas então eu mandei uma mensagem primeiro. E
ela mandou uma mensagem de volta. É mágica, realmente.
Feitiçaria.
Antes de ir, cutuco o pé de Lauren, e ela levanta os olhos de
seu livro.
— Obrigada. — Eu digo. Ela me dá um olhar questionador.
— Pelo trabalho de passear com cães, quero dizer.
Isso me rende um sorriso.
— Sim, isso não foi o que eu pensei que aconteceria quando
eu pedi para você me substituir. — Ela fecha o livro. — Então,
você e a filha de Greg, hein?
Eu concordo.
— Eu e a filha de Greg. — Então eu acrescento: — Eu sei
que você recebe vibrações estranhas dela ou algo assim, mas ela
é muito legal quando você a conhece, e tipo…
— Não, não. Sim, eu sei. Me desculpe por dizer isso. Eu não
sabia que algo estava acontecendo entre vocês duas.
— Você não tinha como saber.
— Eu provavelmente poderia ter adivinhado. — Eu rio um
pouco, e Lauren fala: — Mas ela tem sido, tipo, muito mais
tranquila desde que eu voltei de Houston. Acho que você tem
sido uma boa influência para ela. Ela sorri agora, já é um
progresso.
Eu sorrio quando ouço isso.
— É?
— Ah, com certeza. — Ela afirma. — Estou muito feliz por
ter lhe oferecido o emprego. Eu ofereci para Tasha também,
mas aparentemente ela odeia cachorros...
— Eu não odeio cachorros. — Tasha chama da cozinha. —
Eu odeio ficar do lado de fora no frio.
— Você é da Rússia. — Lauren chama de volta.
— Nem todos os russos gostam do frio. — Tasha
argumenta, parada na porta agora.
É claramente uma conversa que elas tiveram antes, porque
Tasha balança a cabeça e sorri. Lauren sorri de volta para ela e
mostra a língua, e então estamos todas rindo sem motivo real,
até mesmo George, que momentos antes tentou nos expulsar
de casa. Embora, para ser justa, no fundo, ele só estava
protegendo sua mãe.
Tenho certeza de que faria o mesmo.
Subo as escadas, coloco a lixeira de tampa vermelha na
minha mala, pego o presente que comprei para May depois do
trabalho no outro dia e volto para baixo.
Eu nem tento fugir. Aceno e digo “tchau” para todos na
sala, como o ser humano decente que estou tentando ser.
Quando chego na casa de May, toco a campainha, mas
ninguém atende, então mando uma mensagem para ela com o
coração acelerado.

EU: estou aqui fora

Olho pela janela, além da menorá elétrica ainda acesa.


Primeiro eu vejo May. Ela está sentada à mesa da cozinha
com Greg, e ambos estão sorrindo para alguma coisa. A casa é
banhada por uma luz amarela quente.
Não quero incomodá-los tocando a campainha novamente.
Eu disse a May que apareceria, mas não especifiquei um
horário.
Eles estão jantando – sopa, talvez, embora eu não possa dizer
a partir daqui. Espiar esse momento parece bem mais uma
invasão de privacidade do que quando ouvi os dois discutindo.
Dou-lhes mais um minuto, depois cinco, depois dez. Não
quero estragar o que está acontecendo. Eu dou saltinhos no
lugar para que eu não congele.
E então eu toco novamente.
Desta vez, Raphael late, e há movimento lá dentro.
Quando a porta se abre, é Greg quem atende.
— Olá. — Diz ele.
— Oi.
Ele não sai do batente da porta. E então:
— Você está aqui para ver May, né?
Tento esconder minha surpresa.
— Sim.
Ele concorda.
— Eu vou chamá-la.
Quando a porta se abre novamente, é May, de calça de
pijama, casaco e gorro vermelho.
— Ei! — Ela pronuncia, um pouco sem fôlego.
— Ei! — Eu respondo, e não posso deixar de sorrir um
pouco.
Ela se senta nos degraus da varanda, e eu me sento ao lado
dela. Perto, mas sem nos tocarmos. Átomos nos separando.
— Então, você e seu pai?
— Estamos bem. — Diz ela. — Um pouco melhor, eu acho.
— Isso é ótimo! — Eu exclamo, olhando para frente. — Que
bom.
Silêncio.
Meu rosto fica quente quando pergunto:
— Ele, hum, ele sabe sobre mim?
Ela balança a cabeça lentamente e leva seu tempo antes de
dizer:
— Ele sabe sobre você, sim. Eu disse a ele.
Eu não posso deixar de sorrir com isso.
— Legal.
— Eu penso que sim. — Ela se vira para mim. — Ok, por
que estamos sendo tão estranhas uma com a outra?
— Bem, nós ainda nem tivemos nosso primeiro encontro.
— Eu digo, mantendo nosso plano de recomeço. — Talvez as
coisas devam ser um pouco estranhas.
Olhamos para os nossos pés, para a esquerda, para a direita,
para cima — em qualquer lugar, menos uma para a outra.
E então, antes que eu pense melhor:
— Posso te beijar?
— Foda-se, claro que sim.
Ela sobe em mim, com força, e nossos quadris batem.
— Ai. — Eu falo, rindo. Ela coloca a mão na minha nuca.
Eu me viro para ela, e ela se vira para mim. Nossos joelhos
batem e meu pescoço dói, mas não importa, porque estamos
nos beijando. Ela está quente, eu afundo nela e parece certo.
— Está tudo bem? — Ela pergunta na minha testa, seu
polegar esfregando a pele macia onde minha orelha encontra
meu pescoço.
Concordo e levanto a cabeça para que nossos narizes batam.
Ela me empurra de volta.
— Não, sério. Está tudo bem? Eu quero ter certeza.
Eu tento segurar o riso, mas é difícil.
— Sim. Está tudo bem.
— E você vai me avisar quando não estiver?
Eu a puxo para mim, de modo que estamos de frente uma
para a outra, e uma de suas pernas está descansando em cima da
minha. Estamos quase caindo da escada, mas está tudo bem. É
incrível.
Eu toco sua cintura suavemente com as duas mãos.
— Eu aviso a você. Eu prometo.
Ela balança a cabeça e beija meu pescoço e minha testa, e
então estamos na posição mais estranha possível, nossos
membros totalmente emaranhados. Eu tento descobrir como
me mover, como desconectar nossos corpos, mas May faz isso
primeiro removendo sua perna do meu quadril. Então ela puxa
minha cabeça para baixo em seu colo.
Ela esfrega os cachos soltos da minha testa com a mão, e eu
fecho meus olhos.
— Tem certeza de que vai ficar bem? — Ela pergunta.
Eu me viro para olhar para cima, visualizando a silhueta de
seu cabelo espesso pelas luzes da varanda.
— Definitivamente, sim. — Eu a puxo para mim para que
eu possa beijá-la. Nossos narizes batem um contra o outro e
nossas bocas quase não se encontram. Elas não se encaixam
muito nesse ângulo. É imperfeito, mas não é o fim do mundo.
Não é o nosso fim. — Obrigada por checar se estou
confortável.
— Obviamente. — Diz ela. — Mas você tem que conversar
comigo também. Ok? O que quer que façamos, você tem que
falar comigo.
Concordo com a cabeça, e ficamos lá por mais um minuto,
ela esfregando minha testa, eu descansando em seu colo.
— O que vai acontecer? — Ela pergunta. — Depois que
você for embora? Quando voltarmos a Nova York?
Eu me sento.
— Total honestidade, certo?
— Certo. — Ela concorda.
— Acho que não sei. — Agora que não estou tocando May,
eu me abraço para ter calor. — Porque estou tentando fazer
melhor, ser melhor para as pessoas em minha vida, e sei que isso
também significa você. Significa você mais do que qualquer
outra pessoa, provavelmente. E mesmo que estejamos
começando de novo, você ainda significa muito para mim. Mas
eu me importo demais com você para pular em alguma coisa e
então ter tudo bagunçado. Eu acho que estou preocupada com
o fato de que eu nem sei quem eu sou sozinha, mas ao mesmo
tempo eu quero saber quem eu sou quando estou com você. Eu
simplesmente não sei. Eu realmente não...
— Shani. — May chama, o que felizmente me cala. — Está
bem. — Ela me puxa para ela novamente e eu me contorço para
que minha cabeça fique em seu ombro. Uma sensação
agradável se instala quando fico assim. — Eu só estava
perguntando porque eu queria saber como você está com tudo
isso. Ajudaria se eu lhe dissesse como estou me sentindo? — Eu
aceno colada em sua jaqueta. — Ok. Então, eu acho que o que
estou sentindo é que eu quero esperar até que você esteja
pronta. Não apenas para fazer sexo — Eu me encolho com a
palavra, o que provavelmente não é um bom sinal para o meu
nível de prontidão. —, mas para tudo. Para você e para mim.
Eu sei que não é uma garantia, que haverá um você e eu, mas se,
e quando você estiver pronta...
May para, e eu me sento para olhar para ela.
— O quê?
Ela ri.
— Ithaca e Binghamton estão separadas por apenas uma
hora, certo?
Eu a empurro.
— Foi você quem disse que era praticamente a mesma
distância de ir até a lua e voltar!
— Bem, eu mudei de ideia.
Sentamos pressionadas uma contra a outra, de frente.
Depois de um minuto, ela diz:
— Então, faz apenas algumas semanas...
— Sim, algumas semanas bem fodidamente agitadas. — Eu
digo.
— Você pode me deixar terminar? Estou tentando te dizer
uma coisa. — Eu bufo, mas quando ela olha para mim, seu
rosto está sério. — Faz apenas algumas semanas, e isso é tão
idiota, e eu sei que ainda nem tivemos nosso primeiro encontro
— Eu sorrio para ela jogando junto com meu jogo de recomeço.
—, mas eu acho que… o que eu quero dizer é que eu…
— May, eu também te amo.
Seu rosto abre um sorriso maior, e então o meu também, e
estamos nos beijando de novo. Seus braços estão em volta do
meu pescoço, minhas mãos estão em sua cintura e eu quero
viver aqui, na varanda, neste lugar perfeito. Onde não
precisamos ter nada definido, mas sabemos exatamente como
nos sentimos. Onde nos apaixonamos depois de apenas um mês
de conhecermos uma à outra.
Somos mais uma vez estereótipos lésbicos, mas são
estereótipos por uma razão. Quero viver minha vida sendo
irracionalmente esperançosa. Amando pessoas, peixes e cidades
com todo o meu coração.
Depois de mais alguns minutos de beijo, começo a sentir
frio, então me levanto e May me segue.
Ela cruza os braços.
— Você não me deixou terminar de dizer isso.
— Eu sabia o que você ia dizer.
— Essa foi uma suposição ousada.
— Eu estava errada?
Ela morde os lábios e revira os olhos.
— Não. — Ela se inclina para beijar meu nariz. — Porra,
você está tão fria. — Eu rio, e ela também. — Eu te amo, Shani.
Eu beijo seu nariz de volta, porque está lá e é perfeito e eu
preciso.
— Você é tão gay.
Ela ri.
— Você tem razão.
E nos beijamos mais uma vez para provar isso.
— Eu tenho um presente para você. — Digo a ela enquanto
o pego em seus degraus da varanda. — Outro, quero dizer.
— Ok, agora é quase demais. — Ela fala. — Você é
basicamente o Papai Noel. Você vai cantar a próxima música
ou...?
— Sim. — Eu falo a ela, empurrando o presente em suas
mãos. — Vou cantar “God Rest Ye Merry Gentlemen”, ou
alguma merda assim.
May pega o presente, mas não para de olhar para mim, a
boca provocativamente perto da minha.
— Vamos ouvir uma amostra. Nós poderíamos fazer um
pouco de dramatização de canções de Natal.
Eu levanto minhas sobrancelhas e nem tento esconder o
jeito que minhas bochechas coram.
— Eu não sabia que você gostava disso.
— Tem um monte de coisas que você não sabe sobre mim.
Essa afirmação não me enche com o pavor que poderia ter
causado algumas semanas atrás. Em vez disso, estou animada
para saber mais sobre ela. Para descobrir tudo sobre essa garota
que eu já amo.
Eu nos coloco de volta nos degraus e aceno para o presente,
outro pôster da loja de presentes do museu, enrolado no
mesmo tubo apertado que o último.
— Abra.
May revira os olhos, mas o abre. Quando ela o faz, olha por
um momento, sem dizer nada.
— É só que você deixou o outro na minha cama. — Eu
começo, preocupada que ela não goste. — E então nós tivemos
aquela briga, e eu queria te dar algo diferente porque as coisas
são diferentes entre nós agora e…
Em vez de responder, May me joga na madeira fria da
varanda e beija cada centímetro quadrado do meu rosto.
— Eu amei! — Diz ela. — E eu te amo.
Eu sorrio para ela, e nós duas admiramos o pôster. É uma
impressão de uma pintura de Hockney chamada “Cena
Doméstica, Los Angeles”, e é exatamente isso. Nela, dois
homens estão tomando banho juntos: um está coberto pelo
jato de água do chuveiro, e o outro está de pé atrás dele,
esfregando ternamente suas costas.
— Hockney realmente passa uma vibe de “direitos dos
homossexuais”. — May fala enquanto enrola o pôster de volta
e coloca o elástico de volta.
— Ah, sim. — Acrescento. — Ele disse: “Gays são loucos
para tomar banho juntos”.
May ri e se inclina para mim.
— É verdade.
Eu beijo o topo de sua cabeça, lembrando como ela esfregou
suavemente meus olhos com a toalha naquele dia. Como era
quente e confortável, mesmo assim.
Depois de um minuto abraçada na varanda, May acena com
a cabeça em direção à sua casa bem iluminada.
— Eu provavelmente deveria voltar para o jantar.
— Sim. — Eu me levanto e limpo a sujeira das minhas calças.
— Ok.
Ela começa a entrar, mas antes que ela o faça, eu digo:
— Espere, May? — Ela se vira. — Quando minha mãe vier
me buscar amanhã, você quer conhecê-la?

Na manhã seguinte, mais uma vez corro de pijama e tênis até o


Subaru.
— Nenhum problema para chegar até aqui? — Eu pergunto
quando minha mãe abre a porta do passageiro para me deixar
entrar no carro quente para um abraço.
— Acho que atropelei umas cinco ou dez garotas. — Ela diz
depois que me solta. — Quinze, no máximo.
— Muito engraçado.
Saímos do carro e entramos em casa. Beatrice está ficando
no sofá até que seu quadril esteja melhor, e ela ainda está
dormindo quando minha mãe e eu deslizamos pela porta da
frente.
— Devo acordá-la para que você possa dizer oi? — Eu
sussurro para minha mãe enquanto estamos no pé da escada.
— Não, não, deixe-a dormir. — Ela nega. — Vou dizer oi
assim que tivermos suas coisas no carro.
Mas logo antes de chegarmos ao meu quarto, uma voz ecoa
pela casa:
— Bonecas?
— Bem, acho que vamos dizer oi agora. — Minha mãe diz
para mim, antes de começar a descer as escadas. — Tia Bea?
— Anjo!
Então agora estou correndo para baixo também, e minha
mãe acende todas as luzes e se ajoelha ao lado do sofá para dar
um abraço em Beatrice.
— Espero que ela não tenha lhe dado muitos problemas. —
Minha mãe diz, apontando o polegar de volta para mim.
— Aquela boneca? — Beatrice sorri para mim e me acena
para baixo com seus braços fortes e agitados. — Ela tem sido
um anjo perfeito. — Minha mãe bufa, e eu reviro os olhos. —
Nós estamos cuidando uma da outra, não é, boneca?
— Sim, nós cuidamos. — Eu digo, me sentando na ponta
do sofá que os pés de Beatrice não alcançam.
Beatrice pisca para mim.
Eu pisco de volta.
Então deixo minha mãe e Beatrice conversarem um pouco
enquanto me visto e levo minhas coisas para o Subaru.
Leva muitas viagens para mover tudo, e eu estou enfiando a
última das minhas malas no carro quando minha mãe sai e
pergunta:
— Você tem mais alguma coisa no seu quarto?
— Eu acho que é só isso. — Eu falo enquanto tento e não
consigo colocar minha mala gigante no banco de trás.
— Coloque no porta-malas. Aqui... — Ela levanta a mala
sobre a cabeça e a joga dentro. É uma façanha de força sobre-
humana que não consigo nem começar a compreender. —
Então, um adeus rápido para Beatrice e depois pegamos a
estrada?
Olho para os meus pés.
— Hum, então, há mais uma parada que eu preciso fazer –
nós precisamos fazer, na verdade. Se estiver tudo bem.
— Sim, claro. — Ela concorda, enxugando uma gota de suor
induzido pela mala de sua testa. — Onde?
— Apenas uma casa na outra rua. — Minha mãe me dá um
olhar engraçado - que, tipo, eu mereço - e eu me lembro de toda
a minha coisa de tentar ser honesta, então acrescento: — Só um
minuto, ok?
— Está tudo bem?
— Sim. — Eu digo, mas minha voz falha. Eu limpo minha
garganta e acrescento, em um tom mais baixo — Sim.
Eu mando uma mensagem para May, mantendo meu
telefone perto do meu peito.

EU: estamos a caminho

May envia mensagens de volta imediatamente:

MAY: caralho, ok!

Sorrio para o meu telefone e começamos a andar, embora eu


fique alguns passos à frente da minha mãe.
Ai, meu Deus.
Está acontecendo.
Respire fundo, Shani.
(Respirações profundas não estão acontecendo.)
Paro abruptamente e me viro, e minha mãe quase tropeça
em mim.
— Desculpa!
Ela parece um pouco irritada.
— O que está acontecendo, Shani?
— Então, hum… — Eu começo. Não tenho certeza de como
terminar o pensamento, mas estou determinada a fazê-lo do
mesmo jeito. — Você conhece aquela garota que nós, hum,
meio que atropelamos com o carro quando você me deixou
aqui?
— Hum, sim, eu. — Diz ela. — Eu não parei de pensar nela.
Sério.
Acho que isso facilita um pouco. Pelo menos May está
ocupando espaço no cérebro da minha mãe também.
Definitivamente não da mesma forma. Mas ainda sim ela está
lá.
— Então, eu estou meio que... namorando com ela?
Os olhos da minha mãe se arregalam, então ela ri e me
abraça, embora eu não saiba o por quê.
— Como diabos isso aconteceu?
Estou tão aliviada que é uma sensação física. Mesmo que eu
já tenha saído do armário para minha mãe, eu não sabia como
ela lidaria com isso.
— Eu passeava com o cachorro do pai dela. — Eu explico,
então eu conto a ela sobre a galeria de retratos, sobre a neve,
sobre explorar os museus juntas.
— Isso é muito doce, Shan.
Estamos estagnadas no ponto em que parei, mas agora
gostaria de estar andando para que ela não pudesse ver as
lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Eu alcanço a palma da
minha mão e esfrego meu rosto com força.
— Nós vamos lá para que você possa dizer adeus? — Minha
mãe questiona.
— Não. — Eu digo. — Bem, sim. Mas estamos indo
principalmente para que você possa conhecê-la. Eu quero que
você a conheça.
E sem perder o ritmo, minha mãe sorri e pergunta:
— Então, qual é o nome dela?
— É May.
Um silêncio desta vez.
— Judia?
— Mamãe. — Eu reviro os olhos. — Sim. Não que isso
importe.
— Não, você está certa, não importa. Eu só queria saber.
Você teve uma tia-avó May, sabe.
— Mãe, pare.
Eu me viro e ando na frente dela novamente, revirando os
olhos mais uma vez para garantir. Mas então eu sorrio também.
Porque esse tipo de discussão não parece crua e potente como
as discussões em que estávamos nos enfiando no início das
férias. Parece o tipo de discussão que qualquer um pode ter
com sua mãe judia.
Quando chegamos à casa de May, me sinto nervosa de uma
maneira diferente de ontem. Minha mãe não diz nada, mas ela
está esperando ansiosamente na porta.
Mesmo que seja muito cedo, eu toco a campainha. May me
disse que Greg estaria no trabalho, de qualquer maneira.
A porta abre uma fresta, e um míssil em forma de corgi vem
correndo para a varanda.
— Quem é este carinha? — Minha mãe pergunta,
curvando-se para acariciar Raphael, que está pulando de
emoção.
— Esse é Raphael. — Digo a ela.
Eu olho para cima, e lá está May, encostada no batente da
porta, balançando a cabeça e sufocando uma risada.
— Mãe. — Eu a chamo, e ela se afasta de Raphael. Eu aceno
para May.
— Desculpe, desculpe. — Minha mãe diz para mim. Ela se
levanta e se limpa.
Agarro Raphael e o coloco debaixo do braço para que ele
não fuja.
— Mãe, May. — Eu as apresento. — May, minha mãe.
May dá um pequeno aceno, e minha mãe sorri e diz:
— Oi, May! — Com sobrancelhas franzidas e um olhar
significativo em minha direção.
Eu coloquei minha cabeça em minhas mãos.
— Ai, meu Deus, mãe.
— Posso dizer? — Minha mãe se vira para May enquanto
levanto a cabeça. — Eu sinto muito por toda a coisa do carro.
Você está bem?
May ri.
— Eu estou bem, sim. Nenhum dano duradouro.
— Bem, isso é um alívio!
— Você quer entrar? — May pergunta enquanto abre a
porta para o resto do caminho.
Raphael se contorce para fora das minhas mãos, então eu o
coloco no chão, e nós quatro vamos para a casa quente.
May nos leva para a cozinha, onde a TV mostra Greg no
noticiário da manhã.
— Graças a Deus vai fazer sol hoje. — Minha mãe diz,
olhando para a previsão de cinco dias. — Eu não posso lidar
com outro passeio na neve.
Aponto para a TV, para Greg.
— Esse é o pai de May.
Minha mãe tira os óculos de leitura do bolso da jaqueta e se
aproxima da pequena TV.
— Muito bom. — Diz ela, balançando a cabeça em
aprovação.
Depois disso, é um pouco estranho, mas Raphael corre
entre nós implorando por carinho, o que ajuda a quebrar o
gelo. Minha mãe pergunta a May sobre onde ela estuda e em
quê ela está pensando em se formar (ciência atmosférica, é
claro). É vergonhoso e um pouco estranho, mas parece
maravilhosamente normal.
Durante uma pausa na conversa, Raphael de alguma forma
pula do chão da cozinha diretamente para o colo da minha mãe.
Não tenho certeza de como a parte da frente de seu corpo envia
mensagens para a parte de trás, mas ela envia, e ele joga seu
corpo pesado sobre ela. Ela o acaricia, e eu sei que ela vai se
distrair por um tempo.
Chuto a perna de May por baixo da mesa e digo para minha
mãe:
— Voltaremos em alguns minutos, ok?
Minha mãe assente.
— Tudo bem. — Ela coça entre as omoplatas de Raphael.
— Sem pressa.
May e eu corremos para o andar de cima, e quando
chegamos ao quarto dela, ela fecha a porta e ficamos ali paradas
por um momento. Então eu fecho o espaço entre nós e
descanso minha testa em seu ombro e ela me puxa. Eu me
envolvo em torno dela e nos abraçamos por um longo, longo
tempo.
E então tudo das últimas quatro semanas – todos os
encontros que tivemos, os erros que cometi, as brigas que
tivemos, tudo isso – surge e sai da minha garganta que já estava
apertada e de repente estou chorando – soluçando, realmente -
e fazendo sons sufocados e feios.
Tudo o que consigo pensar em dizer é:
— Vou sentir sua falta.
May me abraça mais forte, fungando.
— Eu vou sentir sua falta também. Tanto quanto você. —
Ela me leva até a beirada de sua cama, e nos sentamos. Ela
inclina a cabeça no meu ombro, e eu envolvo meu braço ao
redor de sua cintura. — Mas estou apenas em Ithaca. Nós nos
veremos. E você pode me visitar quando quiser. Qualquer hora,
na verdade.
Eu sorrio fracamente.
— E você sempre pode vir para Binghamton.
— Eca, não, nunca. — Ela sorri, e eu bato em seu braço.
Então May acrescenta: — Brincadeira. Brincadeirinha. Claro
que irei a Binghamton. Sempre que você quiser.
Eu concordo. Eu precisava ouvi-la dizer isso. Porque eu sei
que, durante o próximo semestre, terei uma vida além da garota
com quem estou namorando, além de May.
Mas estou tão feliz que May estará nela.
— Eu não quero ir embora. — Eu confesso, envolvendo-me
em torno dela novamente. Nós caímos de volta em sua cama.
— Bem, isso não é um adeus. É um “Vou atropelar você com
meu carro de novo mais tarde”.
Eu a afasto, rindo, então enterro meu rosto no edredom.
— Pare, meu Deus.
Ela levanta meu queixo.
— Nunca.
Nós nos beijamos, e eu me pressiono contra ela, respiro ela.
E mesmo que eu pudesse ficar aqui e beijar e conversar e
abraçar e simplesmente existir com May para sempre, eu sei que
não podemos deixar minha mãe lá embaixo com Raphael por
muito tempo.
— Mais um minuto. — May pede, me puxando para baixo
quando tento me sentar.
Nós pressionamos nossas testas juntas, e eu fecho meus
olhos. Eu esfrego meu polegar sobre sua cintura, e ela acaricia a
parte de trás do meu pescoço. Um minuto vira dois, vira três, e
mais uma vez parece que a Terra foi criada só para nós.
— Tudo bem! — May diz finalmente, pulando da cama. —
Vamos lá. — Ela estende a mão.
Sem hesitar, eu a agarro.

Quando chegamos lá embaixo, Raphael está cochilando no


colo da minha mãe, e ela está olhando para algo em seu telefone,
óculos de leitura empoleirados precariamente na ponta do
nariz.
Ela tira os óculos quando May e eu entramos na cozinha.
— Pronta para ir, Shan?
— Deixe-me dizer adeus a Raphael. — Eu me ajoelho ao
lado da minha mãe e acaricio o filhote entre suas orelhas para
acordá-lo. Ele boceja e estica suas perninhas de corgi, e eu sorrio
e lhe dou uma coçadinha embaixo do queixo.
Ele pula do colo da minha mãe, eu pego meu bebê comprido
e o seguro na minha frente enquanto o beijo no topo de sua
cabeça.
— Tchau, Raph! — Eu digo.
Raphael late em resposta. Eu o coloco debaixo do meu
braço.
Para minha surpresa, May vem e beija Raphael também.
Então, ela imediatamente limpa a boca.
— Ai, credo. — Ela faz uma careta. — É estranho que as
pessoas beijem cachorros, certo? — Mas ela mantém a mão na
cabeça dele, acariciando-o e não recuando. Ele se inclina em seu
toque.
E mesmo que minha mãe esteja bem ali, eu meio que
respondo à pergunta de May beijando-a. É só um beijinho, mas
sei que ela sabe o que quero dizer.
Ela sussurra em meu ouvido:
— Eu te amo, Shani.
Meu rosto fica quente, e posso dizer que minha mãe está
olhando propositadamente para o telefone para nos dar
privacidade.
Eu sussurro de volta:
— Eu te amo, May.
E Raphael uiva para selar o acordo.

— Ela parece uma menina doce. — Minha mãe diz enquanto


voltamos para Queens na estrada a uma velocidade que parece
estar irritando todos os outros motoristas na estrada. Mas por
dentro no carro, as coisas estão boas. Ótimas, de verdade.
Pouco antes de partirmos, Beatrice havia dito a mesma coisa
sobre May (embora ela a chamasse de anjo).
— E não se esqueça do que eu disse sobre a balsa de Staten
Island. — Dissera Beatrice. — É o lugar mais romântico de todo
o estado de Nova York. Nenhum namorado é necessário.
Ela sorriu, e eu a abracei o mais forte que pude sem empurrar
seu quadril.
— Ela é. — Respondo à minha mãe, porque é verdade,
embora doce não seja a primeira palavra que me vem à mente.
Talvez corajosa, ou bonita, ou teimosa. Ela é mais teimosa
do que um boi.
E eu a amo para caralho.
Na viagem de carro até DC, parecia que tudo na minha vida
estava irremediavelmente danificado: minha paixão por peixes,
minha vida amorosa, meu relacionamento com minha mãe.
Mas agora, de alguma forma, não está.
Minha mãe e eu conversamos sobre meu horário de aulas
para o próximo semestre – muita biologia, um pouco de
geologia e talvez uma aula de karatê para minha necessidade de
me movimentar. Acho que não deve doer socar, chutar e gritar
por uma ou duas horas toda semana.
Então minha mente vagueia e penso nos celacantos juvenis
que Mandira e o Dr. Graham encontraram. Eles foram
enterrados, adormecidos, presos no subsolo por milhões de
anos, apenas para serem acariciados e admirados por gente
como eu.
Talvez esteja tudo bem não saber exatamente o que eu
quero. E se sentir perdida. Talvez eu ainda tenha um milhão de
anos pela frente antes de ser desenterrada. Mas sei que um dia
serei, e será um avanço. Um milagre.
— Posso dizer algo? — Minha mãe pergunta.
— Você já está dizendo.
— Engraçadinha. — Ela olha para mim, sorrindo, e vira tão
longe em outra pista que ela simplesmente fica lá. — Estou
triste que você não esteve comigo nas férias…
— Caramba, mãe, eu sei.
— Me deixe terminar. — Ela respira. — Estou triste que
você não esteve comigo nas férias, mas estou feliz por você ter
feito este estágio. Acho que foi bom para você se afastar. — Ela
olha para mim novamente, não por tanto tempo, mas o
suficiente para um Prius buzinar para nós. — E estou orgulhosa
de você por fazer isso.
— Obrigada! — Eu falo. — Estou feliz por ter feito isso
também.
Nós dirigimos em um silêncio confortável por um tempo.
A estrada se abre e o Subaru nos leva para casa.
— E de nada — Diz ela, olhando para mim, sobrancelhas
levantadas. —, por atropelar May com o carro.
Agradecimentos

Não é exagero dizer que há anos venho pensando nesses


agradecimentos. Quando escrevi este livro, solitária e com o
coração partido em uma viagem de trem que durou semanas,
imaginei as palavras maldosas que escreveria para a pessoa que
partiu meu coração.
Agora isso parece irrelevante. Minha vida é cheia de alegria
e amor e, embora eu tenha começado a escrever essa história
como uma garota ferida recém-saída da faculdade, de alguma
forma estou chegando aos meus vinte e poucos anos vivendo
uma vida totalmente diferente. (Eu sei, eu sei.)
Estou digitando isso em um apartamento ensolarado que
compartilho com meu gato, que está dormindo
profundamente ao meu lado; com minha namorada, que
cozinha refeições elaboradas e me lembra o quanto me ama;
com arte revestindo as paredes pintadas por amigos, que são
minha família.
Eu queria começar esses reconhecimentos sendo engraçada,
mas não vou mais.
Tudo o que quero fazer agora é envolver meus braços em
torno da versão de mim mesma que escreveu este livro. Se você
sentir algum pedaço do que eu senti, do que Shani está sentindo
neste livro, saiba que um dia isso vai passar. Pode levar meses,
anos ou mais, mas algo brilhante e maravilhoso tomará seu
lugar.
Agora, vamos para os agradecimentos reais.
Em primeiro lugar, à minha editora, Stephanie Guerdan.
Não consigo imaginar como teria sido o processo de revisão
deste livro sem você, e sou grata pelas notas e pelos memes. E ao
sindicato HarperCollins! Todo mundo vai segui-los no IG –
Harper é a única editora sindicalizada do Big Four (irado!).
Para meu agente, Jim McCarthy – quando este livro for
lançado, estaremos trabalhando juntos por três anos, o que
parece irreal (tempo? Não o conheço). Obrigada por sugerir
que eu adicione um corgi ao livro; você sempre sabe exatamente
o que dizer.
Para Natalie Shaw, que capturou Shani e May ainda melhor
do que eu poderia imaginar. O anseio sáfico nesta capa doce e
fofa é incomparável.
A todos da HarperTeen – Chris Kwon, Shannon Cox, Sean
Cavanaugh, Jon Howard, Robin Roy, Rosanne Lauer, Lauren
Levite. Obrigada por apoiarem meu livro nos bastidores.
Espero que saibam o quanto seus trabalhos significam para
mim. E obrigado por serem tão diligentes sobre o tamanho do
corgi.
Por que eu sinto que já estou sendo direcionada ao Oscar?
Não, este discurso não vai parar tão cedo. Ok, aqui vamos nós.
Para minha eterna leitora alfa, minha consultora de
laboratório, consultora de empatia, consultora russa e
consultora de Capricórnio (mantenho uma nota de todos os
seus títulos desde 2019), Lena Kogan. Obrigada por me deixar
dormir no chão do seu dormitório, chorar enquanto você me
fazia matzah brei, e por literalmente tudo. Este livro sempre foi
para você.
Para minha mãe, desculpe, eu meio que fugi de você em um
passeio de carro para uma gravação de podcast de comédia. Não
foi meu melhor trabalho. Eu te amo mais do que tudo.
Para as pessoas que leram o livro enquanto era um
documento do Google em constante mudança que eu enviaria
para vocês nas horas frenéticas da noite: Louisa, Zareen,
Gruber, Sal, Sabrina, Lylia, Lena (acho que são todos vocês?
Estou literalmente apenas olhando para as permissões de
compartilhamento no documento, mas se esqueci de você,
desculpe). Obrigada por ler minhas palavras quando eram
apenas resumos de artigos científicos sobre celacantos.
Obrigada a Sally por me ouvir ler este livro em voz alta mais
vezes do que posso contar e por sempre atender o telefone.
Desculpe por todas as vezes que tive que encerrar nossas
ligações abruptamente para fazer cocô.
Aos meus amigos escritores que tornam muito mais
divertido estar nesta indústria: Camryn Garrett, Helena Greer,
Christina Li, Racquel Marie (nunca poderia esquecer aquele c),
Emma Ohland, Angela Velez e Joelle Wellington.
Obrigada aos primeiros leitores que disseram coisas tão boas
e fazem um trabalho incrível para tornar esta indústria melhor
para todos: Dahlia Adler, Aashna Avachat, Jennifer Dugan,
Gabby Noone, Becca Podos, Kelly Quindlen, Rachel Lynn
Solomon e Misa Sugiura. Obrigada também à medalhista
olímpica Erica Sullivan por divulgar meu livro. Ainda estou
torcendo por você!!
Obrigada aos membros da equipe Women Want Me, Fish
Fear Me por seu apoio e caos no Discord!! Estou honrada que
você e tantas pessoas apoiaram este livro antes mesmo de lê-lo.
Eu mantive uma lista de pessoas para agradecer em meus
agradecimentos por dois anos, então essa lista ainda não
acabou. Vamos fazer isso rápido: para o microfone do
Youtuber Mike para “It's Christmas, Let's Go Home”, para
MUNA para a música “Winterbreak”, para David Hockney
para cor e luz, para Política e Prosa (parabéns por ser a primeira
livraria sindicalizada da DC !!!) por ser a inspiração para a
livraria deste livro, a Sophia por ser minha adolescente no
chão/permitir que eu pegasse seu corgi emprestado. A Laura,
que encontrei no Craigslist e que inspirou tanto Beatrice.
Obrigada por me deixar dormir em seu quarto principal e por
tentar me alimentar com cheesecake de 30 anos de idade.
Ao Dr. Josh Drew por me ensinar sobre peixes. E ao Dr.
Paul Hertz por me ensinar biologia evolutiva e me contratar
para ser sua assistente técnica, embora eu tenha matado todas
as minhas brássicas. Espero que você esteja aproveitando sua
aposentadoria - você fez mais um impacto sobre mim do que
você poderia saber.
Agradeço também aos meus colegas de trabalho da QABC
pelo apoio. Ser uma livreira independente, além de ser uma
autora, me deu muita perspectiva e alegria. Obrigado
especialmente a Torrin e Kaye por lerem o livro cedo, e a Tegan
por tudo que você faz pela iluminação infantil.
Obrigada a Mateo pelo passeio de balsa onde você me
lembrou sobre Michelle Obama levando nossas máquinas de
venda automática. Gracias a Monica y Victor por hacerme
sentir bienvenida.
Finalmente, obrigada a todas as pessoas que me deixaram
ficar com elas enquanto escrevia este livro.
Em primeiro lugar, minha avó Phyl e Don. Aquelas duas
semanas que passei com você escrevendo e fazendo palavras
cruzadas e indo ver Adoráveis Mulheres são duas das minhas
semanas favoritas para relembrar. Eu amo vocês.
Para Zaidie, obrigado pela comida vegana e pelo apoio sem
fim. Obrigada por me dar previsões sobre a indústria editorial.
À Sabrina, pelos pomodoros, pela consideração e pelas
notas incríveis.
Para Lousia, que transmitiu “LA Winter”.
Para Deb, obrigada por me deixar ler seus romances gráficos
(os que você tem na estante e o que você escreveu).
A Vy, por sua bolsa de água quente e sua infinita bondade.
E para Daniela, onde tudo começou, onde eu finalmente
entendi a emoção que Shani sentiria enquanto ela estivesse
dormindo na casa de alguém em um quarto diferente quando
tudo o que ela quer fazer é abraçá-los – estou feliz por poder
fazer isso agora. Te amo mais do que palavras, amo nosso
carinha, amo nossa vida.
(Obrigado, Flan!! Eu te amo, meu filho!!!!!! Já passou da sua
hora de dormir! Vá dormir!!!!)
Finalmente: este livro foi escrito nas terras ancestrais não
cedidas do povo Duwamish. Se você mora nessas terras, eu o
encorajo a pagar Aluguel Real, que chama as pessoas que
moram em Seattle a fazer pagamentos de aluguel para a tribo
Duwamish. Além disso, a tribo Duwamish está atualmente
lutando pelo reconhecimento e pelos direitos do Tratado que
os acompanha. Você pode assinar a petição em
standwiththeduwamish.org.

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