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Para minha mãe, sinto muito por ter passado pela minha fase
adolescente-adulta durante uma pandemia. Eu te amo.
E para Lena, pelo matzah brei. Спасибо (para tudo).
Aviso de conteúdo
Dedicação
Aviso de conteúdo
Tabela de Conteúdos
Aviso — bwc
1. Peixes mortos não podem partir seu coração
2. Fantasmas sexuais de meio século de idade
3. Criatura Antiga das Profundezas
4. Por que eu traria um saco de cocô?
5. Salão do Sofrimento Humano
6. Detalhes sangrentos sobre a bunda desse cara
7. As pessoas amam Al Roker
8. Você é Ho Ho Sem Esperança
9. Meu incrível barista pré-adolescente
10. Ex-namorado da Amy do modelo ONU
11. Você está bloqueando a escada rolante
12. Não é uma tigresa literal
13. Thomas, de Thomas e seus Amigos, emergindo de seu
sono
14. Aranhas e fascismo
15. Uma bagunça gay
16. The Big Blue ou seja lá o que for
17. Café e necrotério
18. Você é tão gay
Agradecimentos
Aviso — bwc
1
Festinha em que cada convidado leva um prato de doce ou salgado.
nesta casa ou se é apenas algo pelo qual Beatrice e Lauren se
unem a favor.
— Eu não fui transferida — respondo a ela e depois
acrescento: —, desculpa. — porque me sinto mal por
atrapalhar os planos dela.
— Bem, você ainda pode vir ao jantar se quiser trazer um
prato de crudités2.
— Boneca, deixe a menina respirar! — Beatrice abraça
Lauren pelos ombros e, em seguida, envolve os dedos em volta
do meu braço com seu aperto forte. — Respire, boneca!
Ela parece séria, então faço um grande show inspirando e
deixando o pulmão cheio de ar para depois exalar
ruidosamente.
— Ah! E ela é engraçada. Você vai se encaixar perfeitamente
por aqui.
Tasha está com a cabeça apoiada entre as mãos e Lauren olha
para ela, bufando de tanto rir.
— Agora que estamos todas familiarizadas, vocês, bonecas,
querem dizer a ela as regras? — Beatrice pergunta depois que
ela me libera.
Eu tento manter minha expressão neutra, mas não estava
esperando por isso. Praticamente não tive ninguém me dizendo
o que fazer ou como viver desde que fui para a faculdade no
2
Crudités são aperitivos franceses que consistem em vegetais crus fatiados ou
inteiros.
verão passado. Claro, existem regras nos dormitórios, mas essas
são mais… sugestões leves do que regras de fato. Quase todo
mundo bebe, fuma, queima velas e tem um ou dois animais de
estimação ilegais.
Mas quando uma mulher tão velha quanto Beatrice fala
sobre regras, você não pode não as seguir. Decepcioná-la seria
como decepcionar minha (bis)avó. E honestamente, eu quero
regras. Quero que alguém me diga o que fazer, para que eu
consiga não estragar tudo como fiz nos últimos três meses.
Então, escuto com atenção quando Lauren enumera:
— Fazemos silêncio e ficamos quietas durante a madrugada,
tiramos o lixo quando está cheio, limpamos nossa própria
bagunça na cozinha — Tudo isso parece justo, até mesmo
previsível —, e garotos não são permitidos nos quartos, nunca.
Eu quase soltei uma gargalhada com este último. Mas em
vez de fazer isso, eu ajusto a regra na minha cabeça, mudando-
a para “e garotas não são permitidas nos quartos, nunca”, e me
sinto bem com isso. Quero ficar isolada no próximo mês, e
agora há um ordem expressa afirmando que deve ser assim.
— Isso tudo faz sentido.
— Fantástico, boneca — diz Beatrice. — Quer ver o seu
quarto?
Ela sobe as escadas, dois degraus de cada vez, e eu me apresso
para alcançá-la.
Apesar de tentar adiantar meus passos, me distraio com as
pinturas nas paredes da escada. Há cruzes e retratos de santos,
junto com algumas decorações de Natal – guirlandas, bastões
de doces, mais guirlandas. Começo a me preocupar que ela seja
realmente religiosa e que, mesmo sendo amiga de minha bisavó,
ela ficará desapontada por eu ser judia.
Mas então chego ao topo da escada, onde há uma cartolina
bege com letras garrafais em negrito que diz: “ÁLCOOL:
PORQUE NENHUMA GRANDE HISTÓRIA
COMEÇOU COM ALGUÉM BEBENDO LEITE”, e me
sinto bem menos desconfortável.
Quando minha mãe e eu chegamos ao patamar do segundo
andar, Beatrice está esperando por nós parada próximo a uma
porta aberta.
— Este é o seu quarto, boneca.
É muito maior do que eu imaginei que seria: há uma cama
king size, duas cômodas e duas mesinhas de cabeceira. Dois de
tudo.
— Costumava ser meu quarto principal, quando meu
marido estava vivo. — Beatrice se senta na beirada da cama.
Eu sento ao lado dela.
— Eu sinto muito.
— Não sinta, boneca. Ele morreu há cinquenta anos. —
Beatrice olha melancolicamente ao redor do quarto. — Nós
construímos tantas lembranças boas aqui.
— Eu imagino — Eu digo, porque isso parece o tipo de coisa
que você diz para uma velha nostálgica.
— Todos os meus seis filhos foram concebidos neste
quarto.
Eu pulo da cama e olho para minha mãe incrédula com os
olhos arregalados. Ela me devolve o mesmo olhar, nossa briga
sendo temporariamente esquecida.
— Onde você vai dormir, tia Bea? — Minha mãe pergunta
rapidamente. — Já que Shani ficará em seu quarto.
— No sótão — Beatrice responde. — Não consigo dormir
neste quarto desde que meu marido morreu. Mas estou feliz
que será bem aproveitado.
Meu rosto fica quente. Certamente não será “bem
aproveitado” da mesma forma que foi quando Beatrice e seu
marido conceberam seus seis filhos aqui. Lembrete: sou uma
freira judia.
Meu Deus. Eu preciso queimar os lençóis.
— Bom, acho que vou ajudar Shani a desfazer as malas agora
— Minha mãe diz em uma voz muito mais gentil do que ela
usou comigo o dia todo. Tenho a sensação de que nós duas
estamos apenas esperando Beatrice sair para que possamos
brigar novamente. — Obrigada por sua ajuda, tia Bea!
— Claro, boneca. Estarei lá em cima se vocês precisarem de
mim.
E com isso, Beatrice sobe outro lance de escadas indo em
direção ao seu quarto no sótão.
Minha mãe examina a cômoda e as fotos de família que
definitivamente contêm pelo menos algumas das crianças que
foram concebidas aqui.
— Puta merda. — Minha mãe pega um convite emoldurado
e o segura perto do rosto.
— O quê?
Ela se vira para me mostrar, é uma foto de Beatrice quando
ela era jovem. Sua pele é lisa e seu cabelo escuro está preso de
uma maneira elegante e careta.
— Por que “puta merda”? — Eu pergunto. — É só Beatrice
quando ela era jovem?
— Não, olhe para o que tem escrito embaixo.
Eu me inclino e leio: Por favor, junte-se a nós para
comemorar o aniversário de 90 anos de Beatrice Mancini!
— Ela tem noventa anos? — Questiono, admirada.
Acabei de ver essa mulher subindo um lance de escadas, dois
degraus de cada vez. Parece impossível que ela tenha quase um
século.
— Não, veja a data da festa — Minha mãe pede.
Forço as vistas para ler as letrinhas pequenas do cartão.
A festa aconteceu há mais de seis anos.
— Ela tem noventa e seis? — Eu praticamente grito,
descrente.
— Isso não é louco?
Eu assinto e dou outra olhada no quarto, agora ainda mais
interessada em Beatrice.
— Ela conheceu sua bisavó na faculdade — minha mãe
acrescenta, — isso só mostra que as amizades que você faz na
faculdade podem durar a vida toda.
Minha mãe tenta segurar meu olhar, mas depois desse
último comentário minha raiva volta. Minha experiência na
faculdade tem sido menos “amigos para a vida” e mais “ex-
namoradas que voltaram para a faculdade no semestre da
primavera e trouxeram consigo o despertar de um pesadelo”.
Mamãe não sabe disso, no entanto. Ela não sabe de nada.
Também não posso culpá-la por tentar descobrir algo sobre
mim, mesmo que isso não vá acontecer.
— Podemos apenas desfazer as malas? — Eu pergunto.
— Claro — mamãe concorda —, tudo bem.
Depois de alguns minutos arrumando roupas de modo
desajeitado, minha mãe pergunta:
— Você quer lençóis diferentes ou algo assim? Eu posso ir
comprar uns para você.
— O quê? Não. Não precisa fazer isso — Eu nego, embora
tenha pensado em incendiar a cama poucos momentos antes.
Minha mãe retruca:
— Só estou tentando ajudar.
E eu digo:
— Você não precisa fazer nada.
E então há mais silêncio.
Demora um pouco, mas assim que terminamos de desfazer
as malas, ela se senta e suspira.
— Eu preciso de algo para comer.
Eu dou de ombros.
— Ok.
— Se você não está com fome, tudo bem, mas eu estou
morrendo de fome.
— Eu disse ok.
Ela balança a cabeça, então coloca seus óculos de leitura e
mexe no telefone por um minuto.
— Há um café na rua que fica aberto até tarde. Podemos ir
caminhando.
Mesmo que ainda esteja nevando, eu não discuto com ela, e
nós nos arrastamos pela lama até um lugar chamado The Big
Blue Dog.
Quando entramos, eu gosto do lugar imediatamente. É
quente, brilhante e cheira a café – as três características mais
importantes de um bom Café. Começo a pensar na
possibilidade de realmente sentir vontade de comer alguma
coisa, mas olho para a vitrine de doces e vejo um bolo de
cenoura gigante.
Meu estômago se revira e a bile rasteja em minha garganta.
Eu sei que essa é uma reação estranha a um bolo, mas como
a maioria das coisas hoje em dia, a vontade de vomitar tem mais
a ver com Sadie.
Em nosso primeiro “encontro” no refeitório, Sadie e eu
comemos uma pizza de merda e depois dividimos uma fatia de
bolo de cenoura.
Foi quando descobri que ela bufava quando ria, que era
inteligente, linda e...
Meu sangue ferve em minhas veias até que tudo o que resta
é um concentrado de células e raiva. O café outrora
aconchegante agora é um pesadelo infernal, e eu quero
atravessar meu punho pela vitrine de vidro e acabar com o bolo
de cenoura, deixando-o em pedaços.
— Shani — Minha mãe chama, prendendo minha atenção.
— O quê?
— O garoto perguntou o que você quer. — Ela aponta para
o jovem em pé atrás do balcão. Ele parece ter acabado de sair da
puberdade, tipo, há uma hora - desengonçado, cheio de
espinhas e com olhos mortos.
— Nada — Eu respondo minha mãe —, estou bem — digo
ao garoto.
— Vamos, você tem que comer alguma coisa — Minha mãe
afirma e o funcionário com cara de adolescente acena um
pouco vigorosamente junto com ela.
— Pare com isso — digo entre dentes, como se minha mãe
fosse a única que me envergonhasse na frente desse pobre
garoto que tem que trabalhar em uma tempestade de neve, e
não o contrário.
— Ela vai querer um dinamarquês de damasco. — Minha
mãe informa ao barista, ele coloca luvas nas mãos e pega a
massa.
— Eu não quero. — eu murmuro.
Porém, uma vez que minha mãe paga e estamos sentadas em
uma pequena mesa perto da janela, eu imediatamente dou uma
mordida no dinamarquês.
— Última chance — Minha mãe fala depois de um minuto.
— O que?
— Você ainda pode voltar para casa. — Ela toma um gole
de café em uma grande caneca com The Big Blue Dog gravado
nela.
— Eu já te disse que não posso — Eu enfatizo, mas a
restauradora mordida que dei nessa dinamarquesa deve ter
apagado a chama da raiva, porque minha voz soa mais
derrotada do que qualquer outra coisa. — Tenho meu estágio.
— Se você mudar de ideia…
— Eu não vou.
Ela levanta uma palma, se rendendo.
— Eu sei, eu sei. Mas se você quiser ir embora, eu venho te
buscar.
Não sei por qual razão ela está sendo tão boa comigo. Eu
gostaria que ela fosse tão malvada quanto eu fui com ela, para
que as coisas ficassem justas e eu pudesse me sentir bem sobre
o quão mal eu tenho me comportado.
Depois de um minuto, minha mãe sussurra baixinho para
seu próprio dinamarquês:
— Não estou ansiosa para ficar sozinha nas férias, sabe.
Encaro meu colo, cheia de culpa, e vejo que tenho uma
mensagem de Taylor – minha melhor amiga desde as fraldas –
me dando uma desculpa perfeita para continuar evitando o
olhar da minha mãe.
TAY: fofa
me mande fotos
TAY: só uma???????
eu quero ser capaz de imaginar onde você
está hospedada
TAY:
gostosa
EU: vc é a pior
de qualquer forma
ok kkkkk então, isso pode ser um pouco
estranho, mas você pode verificar minha mãe
de vez em quando?
eu acho que ela está super triste por eu não
ficar em casa nos feriados
TAY: sim????
há tantas garotas gostosas e gentis por aí
esperando por você
você só precisa encontrá-las
TAY: :(
bem não faça isso
mas da próxima vez que você tiver uma
namorada, não me jogue de escanteio
EU: adorei
mas certifique-se de que ela peça leite de
aveia
ela é intolerante a lactose
TAY: bruta
EU: vc que é
3
Devoniano é um período da era Paleozóica, ocorreu aproximadamente há
359-416 milhões de anos.
milhares, de fósseis de peixes empilhados aleatoriamente uns
sobre os outros. A maioria está coberta de sujeira ou gesso,
alguns são partes de peixes que não consigo identificar e outros
são apenas dentes.
Estou totalmente chocada. Querer tocar em todos eles é
meu primeiro desejo.
— Não é a melhor coisa que você já viu? — Pergunta
Mandira.
— Sim — Eu concordo, ainda admirada com as peças
fossilizadas.
— Resposta correta! — garante ela e eu sorrio, feliz por já ter
feito algo certo. — Então, você estará preparando os fósseis
principalmente para mim e para o Dr. Graham. — Mandira vai
até um dos bancos, pega o que parece ser parte de um peixe
pulmonado e o vira nas mãos. — Você já trabalhou com fósseis
antes?
— Na verdade, não — Nego, me sentindo envergonhada.
Que tipo de aspirante a paleontóloga nunca trabalhou com
fósseis?
— Não precisa se preocupar com isso — Mandira me
tranquiliza e a vergonha desaparece instantaneamente. Estou
convencida de que ela é a pessoa mais legal que já existiu. —
Você pode praticar a preparação de fósseis, mas não poderá
aprender o resto. Sua inscrição era sobre celacantos, certo?
— Sim.
— Venha ver isso. — Ela me leva para o terceiro banco e
aponta para um grande molde de gesso. — Abra-o.
O gesso já está serrado ao meio, então eu levanto a parte de
cima e fico boquiaberta com a metade que permanece apoiada
no banco.
— Puta merda — Deixo escapar, então rapidamente
acrescento: — Desculpe! Desculpe.
— Não, essa também é a resposta correta. — Ela encara
amorosamente o fóssil: um celacanto tão bem preservado que
faz meu coração palpitar.
— De que época é? — Imediatamente preciso saber tudo
sobre o espécime: de onde veio, como eles o encontraram, qual
é a espécie.
Mandira sorri e arqueia as sobrancelhas.
— O que você acha?
Encaro o fóssil por um minuto.
— Bem, acho que provavelmente é pré-jurássico, porque
não parece ter nenhuma das estruturas internas de reprodução
que evoluíram nas espécies posteriores. — Olho para Mandira,
cujo rosto está surpreendentemente impassível. Eu continuo.
— Além disso, é muito pequeno, não é? — É bem menor do
que qualquer outro fóssil de celacanto que já vi. Eles podem ter
até 1,80m de comprimento e pesar mais de 40 quilos, mas este
tem apenas 30 centímetros de comprimento.
Na verdade, vi alguns poucos espécimes reais e todos eles
estavam em museus. Este está bem na minha frente, posso
estender a mão e tocá-lo.
Meu coração está acelerado pela alegria de amar coisas
mortas e pelo trabalho de descobrir o máximo que puder sobre
as circunstâncias de sua morte.
Mas Mandira fica em silêncio e depois de um momento
horrível, quando estou convencida de que consegui estragar
cem por cento disso e ela vai me expulsar do programa de
estágio no meu primeiro dia, seu rosto se abre em um sorriso.
— Eu sabia que tínhamos escolhido bem. — Quase vomito
de alívio. — Você está certa quando disse que é pré-jurássico. É
Devoniano, como muitos dos peixes em nosso laboratório.
Sinto uma vontade forte de passar minhas mãos contra a
marca que suas escamas e barbatanas deixaram para trás, há 350
milhões de anos.
— E você está certa, realmente é pequeno. Temos certeza de
que era um jovenzinho. — Ela fala essa parte de modo suave,
como se pudéssemos acordar o bebê celacanto.
— Estou, tipo, confusa com esse peixe – é estranho dizer
isso?
Surpreendentemente, Mandira me deixa confortável, o que
geralmente é raro de acontecer quando estou na presença de
outras pessoas.
— De jeito nenhum. — Ela ri. — Então, isso é basicamente
o que você vai fazer: admirar fósseis, depois limpá-los e prepará-
los para mim e para o Dr. Graham. — Ela continua me falando
sobre cola de paleontologia, que é uma cola fóssil e depois me
mostra onde vou ficar.
— Tudo bem — Mandria diz quando termina as
explicações. — Vou levá-la para a outra sala para conhecer o Dr.
Graham.
Puta merda.
Estou prestes a conhecer uma estrela do rock, um homem
com quem quero trabalhar há anos. O cara que eu esqueci
completamente quando estava com Sadie.
Eu assisti a palestra dele no TED sobre como somos todos
peixes meio que umas dez mil vezes. Sou obcecada por ele.
"A vida não evolui em uma linha", diz ele no início do vídeo.
Adoro a maneira como ele explica que os humanos não são o
auge da evolução. Que somos apenas uma pequena parte do
reino animal e uma parte ainda menor de toda a vida na Terra.
— Legal — respondo tão casualmente quanto posso, como
se não fosse nada demais.
Ela abaixa a voz.
— Apenas lembre-se, ele não é uma pessoa sociável. Ele é um
cara branco de meia-idade, nerd, que adora peixes.
Mandira bate em uma porta de madeira sem placa e
pressiona o ouvido contra ela. Ela deve ouvir alguma
confirmação de que podemos entrar porque ela gira a
maçaneta.
Olho para dentro e vejo um homem de costas para nós,
curvado sobre uma bandeja de fósseis ainda mais
desorganizados do que os da área principal do laboratório. Seu
cabelo crespo está quase todo grisalho e ele é alto demais para
sua mesa.
— Dr. Graham — Mandira chama em voz alta. — Você
quer dizer oi para a nossa nova estagiária, Shani?
Ele gira em seu banco e eu quase solto uma risadinha. Ele
está segurando um fóssil em uma mão e uma escova de dentes
na outra.
— Oi — cumprimenta ele, mal direcionando seu olhar para
nós duas. — Acho que a sujeira nas mandíbulas responde
melhor a uma boa escovação de dentes, mas não a desconsidere
como uma ferramenta para qualquer número de fósseis.
— Hum, eu não vou.
— Tudo bem, eu preciso voltar para isso aqui.
Com isso ele dá as costas novamente e Mandira fecha a
porta.
— Ele é obcecado, sabe… — explica ela, sentando-se em uma
cadeira em frente a uma das bancadas do laboratório. — Os
peixes são toda a vida dele. Lamento que ele não tenha falado
tanto com você. Ele é muito ruim em conversas descontraídas,
mas eu acho que é uma pessoa muito boa, lá no fundo.
— Tudo bem. — Eu consigo entender a obsessão de Dr.
Graham. Na verdade, posso ver o laboratório se tornando a
minha própria obsessão.
Mas talvez eu só tenha uma personalidade obsessiva, de
qualquer forma.
Mandira me dá um crânio de remo para que eu comece a
limpar. Acabo perdendo a noção do tempo tentando tirar as
minúsculas partículas de sujeira da superfície rachada e
escamosa do peixe. Estou esfregando cuidadosamente seu nariz
gigante e saliente quando Mandira se manifesta:
— Acho que é o suficiente por hoje. Por que você não vai
para casa um pouco mais cedo?
De qualquer modo, já são quatro horas. Passamos direto
pelo almoço, o tempo passou voando.
— Espere, o quê? — Eu verifico meu telefone novamente.
— Isso passou tão rápido.
Mandira sorri.
— O tempo voa quando você está preparando um espécime.
Vejo você amanhã.
May
4
Indivíduos descendentes das comunidades judaicas medievais da Alemanha.
Ela me leva para fora (eu presto atenção extra ao caminho
desta vez), e quando saímos do museu há um quarteirão inteiro
de carrinhos e caminhões de comida para escolher.
— Oh, porra, sim — diz ela, me levando em direção a uma
caminhonete vermelha e amarela. — Hora do queijo quente.
Esperamos na fila e, quando chegamos à frente, ela se
oferece para pagar.
— Não diga não. É o mínimo que posso fazer por uma
estagiária.
Eu não digo não (quem recusaria queijo quente de graça?)
mas agradeço a ela, e comemos nossos sanduíches sentadas nos
degraus frios e molhados que levam ao museu. É bom respirar
ar fresco que não seja do laboratório, mesmo que esteja
congelando. E os queijos quentes fazem jus ao hype.
— Há quanto tempo você trabalha no laboratório? — Eu
pergunto a Mandira depois de limpar uma quantidade
embaraçosa de queijo do meu rosto.
— Cerca de um ano — ela responde. — Honestamente, me
inscrevi em um laboratório diferente, mas Graham foi quem
me fez vir para cá. — Eu não sei o que dizer sobre isso, porque
eu doaria um rim para o Dr. Graham sem ele pedir, ela deve ver
isso no meu rosto porque acrescenta: — Estou super feliz que
ele tenha me feito vir para cá, no entanto, porque sua pesquisa
é incrível. E ele realmente se preocupa com a paleo-ictiologia
não sendo inteiramente dominada por homens brancos.
— Sim, ele é tão legal. — Eu digo. — Você viu a palestra dele
no TED?
— Ah, claro. Foi a primeira coisa que assisti quando cheguei
aqui... “A Terra não foi feita para você, e somos todos peixes…”
— “Lide com isso!” — Eu termino a citação para ela, aquela
em que sua conversa termina. — Ele é, tipo, meu ídolo.
— Ele é completamente diferente quando você o conhece,
no entanto. Diferente do cara do TED Talk, pelo menos — ela
comenta. — Tipo, ele é ótimo e tão, tão inteligente, é claro, mas
acho que ele provavelmente é um pouco solitário. Eu posso
estar projetando, mas ele está no trabalho o tempo todo. Ele não
tem esposa, filhos ou mesmo um cachorro. — Ela dá uma
mordida no queijo quente. — É bom ter pessoas para admirar,
mas talvez não o idolatrar.
Eu não conto a ela que é tarde demais. Que tudo na minha
vida parece ser tudo ou nada, e eu preciso que o laboratório e o
Dr. Graham sejam tudo, porque agora muito não é nada.
Trocamos de assunto e conversamos sobre qual filme feito
para a TV, Dinoshark ou Piranhaconda, é mais realista.
(Decidimos pela Piranhaconda, porque pelo menos esses dois
animais ainda estão vivos hoje.)
Depois disso, o resto da tarde passa tão rápido quanto
ontem, e estou triste por deixar Mandira e os peixes no final do
dia.
Mas eu tenho que ir para a casa de Greg/May/Raphael
Stern. Então, agradeço a Mandira novamente e sigo para o
metrô.
Eu chego ao meu bairro em tempo recorde, estou pronta
para ver o rabo abanando de Raphael e as orelhas de corgi
triangulares perfeitas – mesmo que isso signifique encontrar
com May – quando ouço algo dentro da casa que me impede
de bater.
Parecia uma sequência de gritos.
Uma parte de mim, que tem medo de confronto, quer sair e
voltar quando a gritaria terminar. Mas a outra parte que precisa
saber o que está acontecendo me diz para ficar e escutar.
Depois de um momento de debate entre essas duas partes de
mim, a última vence por uma vitória esmagadora, prendo a
respiração e me coloco contra a porta para ouvir.
A voz de um homem, Greg, diz:
— Isso é realmente muito ruim, porque não está em
discussão.
A voz de May:
— Você não se importou no ano passado!
Greg:
— Sim, porque sua mãe ficou com a sua guarda nos feriados
do ano passado.
May:
— Você mal tem a minha guarda agora! Você está no
trabalho o tempo todo, porra...
Greg:
— Não me xingue.
May:
— O tempo todo! Não importa se você tem a custódia se eu
nunca te vejo!
Greg:
— Não é assim que a custódia funciona. Significa apenas
que você precisa estar aqui.
May:
— Então de repente você é especialista sobre isso?
Greg:
— Sobre isso? Sim. Eu sou seu pai, eu que dito as regras.
May:
— Você percebe o quão estúpido você parece agora? “Eu
que dito as regras”. Você acha que está discutindo com uma
criança de cinco anos? Tipo, eu não entendo.
Greg: (grunhido frustrado)
— Este é o acordo que sua mãe e eu temos. Se você não gosta
disso, fale com ela.
May:
— Eu literalmente tentei. Eu disse a ela um milhão de vezes
que quero ficar na casa dela.
Greg:
— Bem, você “literalmente” não pode ficar lá. Você está
aqui para as férias.
May:
— Estou na faculdade. Farei dezoito na semana que vem.
Como isso é justo?
Passos pesados se aproximam da porta da frente e eu não sei
o que fazer, porque se eu me mexer eles vão me ver, e se eu ficar
aqui eles vão saber que eu estava ouvindo.
Eu não me movo.
E a porta não abre. Ainda.
May:
— Assim que eu fizer dezoito anos, vou voltar para a casa da
mamãe. Só vou pegar um ônibus e ir embora.
Greg:
— E é você que está me chamando de infantil? Você vai
fugir de casa como quando era criança?
May:
— Não posso fazer isso agora. (passos.)
Greg:
— Tudo bem. Faça o que você quiser. Eu não vou impedi-
la.
May:
— Mas é exatamente isso que você está fazendo, caralho.
Greg:
— Olha a língua.
Então uma terceira voz entra na conversa
Raphael:
— Au. Au au au…
Greg:
— Raph, shh, por favor. Querido, por favor.
May:
— Certo, ótimo. — (tom de deboche) — Você se importa
mais com a porra do cachorro do que comigo.
Aqui há uma pausa, e eu ainda não sei o que fazer. Estou
congelada na varanda, presa contra a porta. Eu sei que é errado
ouvir esse pai e filha que eu mal conheço brigarem um com o
outro por algo tão grande. Mas não consigo me mexer.
Depois de um minuto, Greg diz:
— Você sabe que isso não é verdade.
Então May responde:
— Tanto faz.
E, então, acabou.
Se eu fosse May, ficaria mortificada se soubesse que alguém
ouviu aquela briga. Claro, eu sou uma vadia com minha mãe,
mas eu nunca seria uma vadia com ela na frente de outras
pessoas.
Eu não sei como é brigar por custódia com um pai – eu não
tenho um, minha mãe me teve de um doador de esperma – mas
eu sei como é se sentir impotente. Como é sentir que você não
tem controle sobre a própria vida.
Então, em vez de bater na porta imediatamente e fingir que
está tudo bem, desço o caminho o mais silenciosamente que
posso, esperando chegar à calçada sem ser notada. Eu vou
refazer o caminho até a porta, ninguém vai precisar saber que
eu ouvi alguma coisa.
— Aonde você está indo?
Eu me viro, e lá está May. Sua silhueta está na entrada, e eu
não tenho ideia do que fazer. Ela fecha a porta e sai. Um
Raphael sem coleira está alegremente saltando em seus
calcanhares, sem saber das coisas ruins que já aconteceram no
mundo.
Eu corro para agarrá-lo antes que ele leve sua pequena
bunda de corgi diretamente ao trânsito.
— Você tem a coleira dele?
— Não.
— Essa é uma parte importante do passeio com cães. — Eu
ajusto Raphael em meus braços e ele se contorce um pouco,
então se acomoda. Segurá-lo é como carregar um pão muito
denso com pernas.
— Bem, nós vamos ter que ficar sem isso, então — May diz
enquanto caminha na minha frente em direção à calçada.
Nosso caminho é iluminado apenas por algumas luzes fracas
da rua, então dou passos com cuidado enquanto corro para
acompanhá-la. Eu também estou tentando não sacudir muito
Raphael – embora ele pareça estar se divertindo, ou pelo menos
não tem ideia do que está acontecendo. Eu me identifico com
ele.
Sem olhar para mim, May pergunta:
— Você ouviu alguma coisa daquilo?
— Hum…
Isso deve ser resposta suficiente, porque ela exclama
— Inferno.
— Não, não. Está bem. Ou... desculpa?
Chegamos a um pequeno parque - é literalmente apenas um
banco - e eu coloco Raphael no chão para que ele possa pelo
menos esticar as pernas dormentes.
— Você realmente continua aparecendo nos piores
momentos.
— Sinto muito. — Eu digo novamente, e não é uma
pergunta.
Nenhuma de nós diz nada por um minuto. Raphael salta ao
redor do banco, e não tenho ideia de como preencher o silêncio
- é muito mais fácil falar quando estamos discutindo. Mas acho
que ela conseguiu discutir o suficiente durante a briga com o
pai.
Finalmente, eu tomo a iniciativa:
— Então, você é judia? — Eu sei que é bobo no momento
em que digo, mas não é como se ela estivesse oferecendo alguma
coisa.
— É isso que você está me perguntando agora?
— Eu também... bem, talvez você não, mas eu... acabei de
ver a menorá na sua janela e fiquei curiosa. Eu pensei que
talvez…
— Sim, eu sou. Mas não sou tão religiosa assim. Meu pai
acabou por pegar qualquer decoração de merda de feriado que
ele pudesse encontrar para tentar aconchegar o lugar enquanto
eu estou com ele.
Eu acho que já que ela sabe que eu ouvi a briga com o pai
dela, eu deveria dizer algo de apoio.
— Ah, isso é péssimo. Dane-se o Hanukkah, certo?
Ela me encara.
— O quê?
— Porque é, tipo, um feriado corporativo? E seu pai está
comprando com os senhores corporativos?
— O quê? Não! — diz ela. — Você está brincando comigo?
Hanukkah é incrível. Eu amo.
— Você adora o fato de termos transformado um feriado
sem religião em um grande negócio apenas para que possamos
nos encaixar — quase falo da hegemonia cristã, mas penso
melhor — em toda a temporada de férias de inverno?
— Eu amo o fato de que basicamente temos um novo
feriado porque as crianças judias da América ficaram tristes
com o Natal. Eu amo que é um grande negócio. — Ela está
ficando mais animada agora e gesticula com todo o seu corpo
enquanto continua: — E é tudo uma questão de marketing. O
Hanukkah é incrível. Tipo, todo mundo sabe sobre o
Hanukkah, o que você definitivamente não pode dizer sobre
nenhum outro feriado judaico. — Ela cruza os braços sobre o
estômago e olha para os últimos resquícios de neve. — Além
disso, eu realmente amo aqueles bolinhos de batata.
— Bem, eu também, obviamente.
E, como se ele quisesse fazer parte da conversa também,
Raphael trota até mim, olha diretamente nos meus olhos e caga.
— Sério? — Eu pergunto a Raphael, que agora está
abanando a protuberância. Eu recorro a May. — Você tem um
saco de cocô?
— Por que eu teria um saco de cocô?
— Nós não falamos sobre isso ontem?
— Eu nem trouxe uma coleira, por que eu traria um saco de
cocô?
— Não sei. — Eu me curvo para inspecionar o presente de
Raphael. — Mas eu preciso de um. Acho que é ilegal deixar
cocô de cachorro no chão.
— Como você poderia conhecer as leis de merda de
cachorro de DC?
— Não sei! — Eu falo novamente, um pouco alto demais.
Raphael late.
Então, May declara baixinho
— Eu não posso ir para casa para pegar um agora — E eu me
sinto estranha por perguntar sobre o saco de cocô em primeiro
lugar.
Assim, o cocô fica no chão.
Depois de um minuto:
— Posso perguntar o que aconteceu?
— Sem ofensa, mas eu não vou falar com você sobre isso. —
Ela olha para Raphael como se estivesse pensando em acariciá-
lo, então pensa melhor. — Só porque você ouviu algo que não
deveria, não significa que eu tenha que lhe dizer alguma coisa.
— Justo — Eu afirmo, me sentindo um pouco magoada. O
que é bobo. Não é como se eu pensasse que éramos amigas só
porque ela quase voluntariamente veio nesta caminhada.
Mas pensei que pelo menos haveria algum tipo de trégua.
— Eu não quero estar aqui, sabe… — May confessa depois
de mais um minuto de Raphael se aproximando.
— Você deixou isso bem claro.
— Em DC, quero dizer. — Ela encontra meus olhos, e eu
percebo que ela pode realmente estar respondendo à minha
pergunta sobre o que aconteceu (no seu jeito estranho e
indireto), então eu calo a boca. — Eu não moro aqui. Eu venho
visitá-lo, às vezes. É por isso que eu mal conheço esse cachorro,
ou esse bairro. Geralmente moro com minha mãe.
— Oh — Eu digo, me sentindo um pouco pior, porque ela
quer estar com a mãe dela nos feriados, mas está sendo forçada
a ficar aqui, e eu estou escolhendo ficar aqui quando eu poderia
estar com minha mãe.
— Pois é.
Um carro passa, e Raphael quase corre para a rua para
persegui-lo, então eu o pego novamente.
— Então, apenas retomando o assunto - sem sacos de cocô?
— É natural. Deixe-o aí.
— É falta de educação deixá-lo aqui.
— Você quer pegá-lo com as mãos?
Eu olho para uma pilha surpreendentemente grande de
cocô. Talvez eu volte amanhã.
Carrego Raphael até a casa de May. São apenas alguns
quarteirões, mas ele fica pesado rápido demais. May e eu não
dizemos nada uma a outra, mas quando eu gentilmente deixo o
filhote na frente da porta de May, ela diz:
— Obrigada.
Eu não sei pelo quê ela está me agradecendo, muito menos
que ela era capaz de agradecer, então eu apenas respondo:
— Não tem de quê.
— Mas não espere que eu vá com você amanhã.
E com esse retorno à normalidade, ela conduz Raphael para
dentro e bate a porta.
Salão do Sofrimento Humano
5
O Hallmark Channel é um canal de televisão dos Estados Unidos, com
transmissão para mais de 100 países, focado em séries e filmes apropriados para a
família.
ensino médio ou algo hediondo assim. E eu não consigo lidar
com isso agora.
— Tudo bem, você precisa me ajudar a fazer um
brainstorming — diz Mandira.
— Ok. Como funciona? — Eu pergunto, grata por um
novo tópico de conversa.
— Eu tenho uma piada interna com o Dr. Graham – bem,
é engraçada para mim, de qualquer maneira – mas a piada é que
eu gosto de comprar para ele a bebida mais doce e ultrajante do
cardápio. E ele sempre bebe, não importa o que eu compre.
Tento imaginar o sério paleo-ictiólogo Dr. Charles Graham
tomando uma mocha de menta. É, de fato, hilário.
— O que devemos comprar para ele?
— Talvez uma bebida de natal.
— Obviamente — Eu falo, entrando na onda.
— E tem que ser gigante.
— Um copo família, com certeza.
— Gênia. — diz Mandira.
— Que tal — aponto para uma placa mostrando os sabores
do feriado deste ano —, um latte brûlée de caramelo?
— Ah, ele não vai saber o que fazer com isso. — Ela diz. —
É perfeito.
Um barista alegre nos atende e Mandira faz o pedido.
Quando o barista pergunta se queremos chantilly, Mandira
olha para mim, acena com a cabeça solenemente e confirma:
— Com certeza.
Saímos do Starbucks segurando dois cafés normais e uma
bebida extravagante que é maior que uma criança pequena.
Eu não posso deixar de rir. Não só por causa da bebida, mas
também porque há uma semana eu achava que minha vida
tinha acabado e agora estou levando café com leite
excessivamente doce para um cientista premiado que está
preparando espécimes que sobreviveram milhões de anos a
mais do que vivi com o coração partido.
Mesmo que o museu esteja a apenas alguns quarteirões de
distância, levamos nosso tempo andando de volta. Depois de
um minuto, Mandira questiona:
— Então, posso te contar uma coisa meio engraçada?
— Sim. — Eu concordo. Porque é claro que eu quero que
Mandira me diga algo engraçado. Toda vez que conheci uma
pessoa queer legal e mais velha, fiquei desesperada para que ela
fosse minha amiga, ela não é exceção.
— De volta ao que você estava dizendo sobre aquela garota.
— Quando ela diz isso, eu tenho um pensamento como: Que
bom, voltamos a falar de mim. Eu odeio isso, mas que seja. —
Quando conheci minha namorada, estávamos em um bar e ela
gritou comigo por furar a fila na frente dela. Mas começamos a
conversar e eu comprei uma bebida para ela, então nos demos
bem. — Ela faz essa coisa de exalar, bufar e rir. — Ainda
brincamos sobre isso porque ela disse tantas coisas loucas
enquanto gritava. Sempre que saímos, ainda a citamos. Nós
ficamos tipo, “Você passou na minha frente para uma Shirley
Temple eriçada?” — E então Mandira ri de verdade, e eu dou
risada fracamente junto com ela.
Claro que Mandira é legal o suficiente para fazer uma garota
ir de gritar com ela para flertar.
Quando ela não diz mais nada, parece um convite para falar
sobre May, o que, tudo bem, talvez seja um impulso egoísta,
mas quero conversar com Mandira sobre ela. Eu preciso que
Mandira saiba que eu sou queer e que sou legal, adjetivos que
caminham de mãos dadas, obviamente.
— Não é realmente como um filme da Hallmark – a coisa
com aquela garota. Com May.
— Hm? — Pergunta Mandira.
— Sim, eu meio que acabei de terminar um relacionamento.
— Então, conto a Mandira sobre Sadie, sobre ter me
apaixonado por ela e como eu tinha planejado nosso casamento
e todos os bebês gays que teríamos.
Depois que eu conto a história e estamos de volta ao
laboratório, Mandira diz:
— Então, por que você terminou, se não se importa que eu
pergunte? Parece que as coisas estavam muito boas.
Isso deixa meu rosto em chamas.
Sempre que falo sobre Sadie, não posso deixar de encobrir
as partes ruins.
Eu não contei o verdadeiro motivo do nosso rompimento
em voz alta para ninguém. E não é uma coisa apropriada para
dizer à pessoa que é tecnicamente minha chefe direta.
Eu tento contornar o verdadeiro motivo, mas no final das
contas, preciso contar a Mandira pelo menos parte da verdade
ou vou explodir.
— Foi tipo — Eu paro e abaixo minha voz antes de dizer a
última parte, caso o Dr. Graham esteja ouvindo —, uma coisa
de sexo.
Mandira sorri, e eu quero morrer. Ela deve ver o olhar no
meu rosto porque ela diz:
— Desculpe! Desculpe. Mas ela terminou com você por
causa de sexo?
Ela está claramente tentando não rir.
Eu olho ao redor da sala, rezando para que ninguém esteja
andando diretamente do lado de fora da porta, ou se aparece
alguém para me salvar desse constrangimento mortal.
— Não é uma coisa de sexo. Apenas, tipo, sexo… eu
provavelmente não deveria falar sobre isso. Eu nem sei por que
eu trouxe isso à tona. — Então, acrescento: — Sou a pior
estagiária de todos os tempos — para completar.
— Não, a pior estagiária de todos os tempos se sentou em
seu telefone e peidou 100 vezes todos os dias. — Mandira para
de limpar e olha para mim. — Não precisamos falar sobre isso
– certamente não deveríamos falar sobre isso – mas deixe-me
dizer uma coisa: sexo pode ser incrível. Principalmente sexo
gay. E especialmente se você comunicar sobre desejos com seu
parceiro.
Meu rosto está tão quente que minha pele e meus músculos
estão queimando e logo serei um esqueleto para o museu exibir
no Salão do Sofrimento Humano.
— Por favor, não me denuncie por falar com você sobre isso
— Mandira pede, e parece que ela está meio brincando.
— O mesmo — Eu digo. Depois: — Podemos não falar mais
sobre isso?
Trabalhamos em um silêncio constrangedor por alguns
minutos, até que Mandira fala:
— Música de Natal?
E eu concordo:
— Sim, por favor.
Bom.
Excelente.
May: ha ha.
May: entendi
EU: eu também
mesmo com você me seguindo até lá
EU: sim
deve ter sido muito difícil para vc passar o dia
inteiro com um objeto inanimado
um tão pequeno que cabe numa meia de
natal, a propósito
May: eu acho
profundamente difícil de acreditar nisso
mas você pode me dizer onde você mora
estou ansiosa
EU: bastante
6
Classifica a intensidade dos ventos, tendo em conta sua velocidade e os
efeitos resultantes das ventanias no mar e na terra.
Mas uma vez que eu saio, a força do vento (aparentemente
muito intensa) e da neve atinge meu rosto já congelado. É
possível que May esteja certa, que eu possa realmente ter
hipotermia se ficar do lado de fora um minuto a mais. Então eu
volto.
Quando faço isso, May está bem ali, segurando uma pilha
de roupas bem dobradas, quadril inclinado para o lado.
Raphael está saltando em torno de seus pés, arranhando o chão
e latindo.
— Tentando escapar?
— Tentei. — Eu a corrijo. — Está horrível lá fora.
— Eu avisei. — Ela me entrega as roupas. — O banheiro fica
no corredor à direita.
Concordo com a cabeça e caminho até lá o mais rápido que
meus pés congelados conseguem. Não penso no que isso
significa, que estou na casa de May sozinha com ela e Raphael
na véspera de Natal. Apenas me tranco no banheiro e tiro
minhas roupas, que estão duras por causa da neve.
O casaco e a calça de moletom que May me deu tem escrito
“Cornell” neles. Claro que ela escolheu esses – Binghamton e
Cornell são meio que universidades rivais.
— Melhor? — May chama do corredor enquanto eu
carrego minhas roupas molhadas de volta para a sala.
— Muito.
Mas agora que estou com roupas quentes e descongelando,
estou um pouco nervosa e me sentindo muito desajeitada. O
que estou fazendo sozinha na casa de uma garota, vestindo o
moletom da faculdade dela?
May se levanta de onde estava sentada ao pé da escada e olha
para minha roupa nova.
— Vamos, Big Red7. — diz ela, sufocando uma risada.
— Cale a boca.
— Devemos fazer um refrão rápido de “Give My Regards to
Davy8”?
— Estou indo embora. Estou saindo pela porta…
— “Give my regards to Davy, remember me to Tee Fee
Crane”.9 — May canta a plenos pulmões. Raphael uiva e corre
para cima e para baixo nas escadas, patas batendo na madeira.
— Eu vou sair lá fora e deixar a neve me levar, eu acho.
— ”Tell all the pikers on the hill that I’ll be back again”.
— Como você sabe decorado? Você é uma grande fã de
futebol? Você realmente vai aos jogos?
7
Time de futebol americano da Universidade Cornell.
8
Dê meus cumprimentos ao Davy, música da Universidade Cornell.
9
Tradução da música:
Dê meus cumprimentos ao Davy,
Lembre-se de mim no Tee Fee Crane.
Conte a todas as árvores da colina
Que eu voltarei
Diga a eles que morri
Defendendo uma bola alta
Todos nós vamos beber no Theodore Zinck
Quando eu voltar no próximo outono.
— Não todos. — Ela responde antes de falar ainda mais alto
e cantar. — ”Tell them just how I busted lapping up the high
highball”.
— Desculpe, sua música de guerra é sobre defender um
pênalti?
— “We’ll all have drinks at Theodore Zinck’s.” — Ela respira
fundo. — Se prepara para o final… “When I get back next fall!”
Ela faz uma reverência dramática, entra na sala de estar e
desaba em um sofá seccional de aparência chique. Raphael pula
perto dela e ela foge.
— Eu não posso acreditar que você conhece todas as
palavras dessa música. — Eu ando em direção ao lugar em que
ela está sentada, mas antes que eu chegue lá, ela levanta a mão
para me parar.
— Não traga suas roupas molhadas para cá, meu pai vai
pirar. Apenas deixe suas coisas na porta e eu vou jogá-las na
secadora mais tarde.
— Ok. — Eu jogo as roupas no capacho e vou para a sala de
estar.
Mesmo que haja espaço, eu não quero me sentar no sofá
com ela, então sento-me no chão. Raphael é muito mais
corajoso do que eu, deitado ao lado dessa garota assustadora
que o odeia completamente. Embora talvez a casa seja mais dele
do que de May.
Eu envolvo meus braços em volta dos meus joelhos e esfrego
minhas pernas, tentando me aquecer através do atrito.
— Você quer uma bebida quente?
Resisto à vontade de rir da frase “bebida quente”,
principalmente porque estou com tanto frio que meus ossos se
transformaram em gelo. Eu faço que sim.
— Vem. — Ela chama, se levantando do sofá.
Acaricio Raphael, ele bufa e fecha os olhos. Sigo May até a
cozinha. É grande, mas cheia de coisas – ser uma celebridade
local deve dar uma grana legal. Há uma pequena TV sobre a
mesa da cozinha, e May liga no canal do pai.
— Notícias de última hora? — Uma apresentadora de meia-
idade perfeitamente arrumada pergunta atrás de sua mesa. —
Papai Noel e suas renas vão enfrentar uma tempestade quando
pousarem aqui em DC, mas não se preocupem, crianças, ele
ainda tem seu leite e biscoitos. Dando-nos uma atualização do
Capitol Hill, seguimos com nosso Greg Stern. Como está indo
lá, Greg?
A tela muda para uma cena de Greg sendo agredido pelo
vento e pela neve. Ele está embrulhado em uma enorme parka,
usando luvas gigantes e protetores de ouvido, mas ainda parece
congelando.
— Bem, Jen — Greg grita por cima do vento —, vou apenas
dizer que o Papai Noel é o único que deveria sair hoje à noite.
— Uma grande rajada o força a tropeçar e agarrar seus
protetores de ouvido. — Temos um aviso, se você está apenas
sintonizando para saber as notícias: por favor, fique fora das
estradas e fique dentro de casa, se puder.
— Isso é ótimo, Greg. — Jen diz, embrulhada e cheia de
conforto em seu estúdio quente e seco. — Obrigada pela
atualização. — A tela muda para que vejamos apenas Jen. —
Em seguida, temos um especialista em cookies se juntando a
nós remotamente para dar algumas dicas de última hora sobre
guloseimas que vão deixar o Papai Noel com água na boca.
Vocês não vão querer perder isso, pessoal.
Um comercial do Harris Teeter, um supermercado local,
passa e May silencia a TV.
— Eu não posso acreditar que seu pai tem que estar lá fora
com o tempo assim.
— Sim, bem, é o trabalho dele. — Ela fala, parecendo
chateada.
— Tenho certeza de que ele vai ficar bem. — respondo da
forma mais gentil que consigo, porque acho que é isso que ela
precisa ouvir.
— Eu sei que ele vai ficar bem. — May retruca. — Mas ele
não estará aqui. — Ela pega uma panela de um armário
próximo ao fogão. — Tanto faz, ele está lá. Está bem. Vou
poupá-la desse drama.
— Você não precisa se fechar. — Eu afirmo. — Você deveria
falar sobre isso se quisesse. É uma merda que você não consiga
vê-lo hoje.
— Tá bom.
Eu dou a ela um minuto.
— Sério. — Eu digo finalmente. — Isso é muito, muito
chato.
Ela acende o fogão e abre a geladeira para pegar leite de aveia.
— Obrigada. — Ela diz baixinho. — Acho que estou apenas
brava porque ele me disse que encontraria alguém para cobri-
lo esta noite. Mas ele não conseguiu, ou não quis. Foi tolice
minha acreditar nele, de qualquer maneira.
— Eu não sei. — Eu respondo. — Acho que você tinha todo
o direito de acreditar nele.
Eu não vou dizer a ela que a razão de eu estar sendo tão
enérgica sobre isso é que eu tenho me sentido culpada por não
estar em casa com minha mãe, que queria estar comigo. Odeio
pensar que sou o Greg da minha própria vida.
Mas, ao mesmo tempo, eu gosto que May me conte o
motivo dela estar brava. E eu nem precisei arrancar isso dela.
Com Sadie, foi o oposto. Se eu não soubesse exatamente
como ela se sentia em todos os momentos, ela começava a
brigar. Então eu diria coisas legais para acalmá-la. Ela não queria
se abrir para mim, e eu não queria machucá-la. Eu só gostaria
que tudo ficasse bem. Que tudo fosse normal.
Obviamente, May e eu não estamos namorando, mas estou
feliz por saber que ela se sente confortável a ponto de se abrir
comigo. Talvez não exatamente, mas algo próximo disso. E eu
quero ajudar. Especialmente porque é tarde demais para estar
em casa com minha mãe.
Eu me inclino contra a ilha da cozinha, ao lado de onde May
está cuidando do fogão. Ela descansa contra o balcão enquanto
mexe o leite de aveia.
— Estou fazendo chocolate quente.
— Perfeito.
— Mas estou fazendo do jeito certo. Não com achocolatado
barato comprado em loja.
— Melhor ainda.
Eu olho, paralisada, enquanto ela mistura cacau em pó,
açúcar e calda de chocolate na panela.
Quando está pronto, ela bate a colher contra a panela de aço
inoxidável e pega duas canecas de um armário. Ela
cuidadosamente despeja o chocolate quente em cada uma das
canecas, então entrega uma para mim. A caneca tem o rosto do
pai dela e diz: “Greg traz o guarda-chuva para você”.
Ela desliga a TV, e eu tomo um gole de chocolate quente
enquanto nos sentamos à mesa. Sinto o líquido escaldante me
aquecendo por dentro.
— Seu pai realmente bebe em uma caneca com o próprio
rosto?
— É a única caneca que ele usa.
— Ah… não.
— Pois é…
Bebemos nossos chocolates quentes em silêncio por um
momento, então May acrescenta:
— Eu não, tipo, odeio ele, se é isso que você está pensando.
Eu o amo, obviamente.
— Eu não estava pensando nisso. — Se ela visse como eu
tratava minha mãe, talvez eu tivesse que dar as mesmas
desculpas. E eu não odeio minha mãe. Eu a amo, talvez mais do
que qualquer um em todo o planeta, mesmo quando estou
com raiva e sendo horrível com ela.
— Quando eu era pequena, eu queria ser como ele. — May
conta. — Ele é a razão pela qual eu amo o clima.
— Tipo, o conceito de clima? — Eu pergunto, incrédula.
— Bem, mais ou menos. — Ela continua. — Mas mais a
incerteza dele. Que, mesmo que você seja um cientista, ainda
pode errar. Nunca é cem por cento.
— Isto não é uma coisa ruim? A maioria das pessoas não
confia realmente em meteorologistas, né?
— Eles podem não confiar neles, mas os amam. — Ela
responde. — Eles reconhecem que são humanos também.
Como Al Roker10. As pessoas o adoram. E as pessoas amam
meu pai. É algo sobre a imperfeição. — Ela encara seu chocolate
quente. — Não sei, acho legal. A incerteza.
— Eu nunca pensei sobre o clima assim, mas também é por
isso que eu amo a paleontologia. — digo a ela, me inclinando
para frente. — Porque você nunca saberá a história completa,
mas você consegue juntar as peças. Tipo, com celacantos – essa
10
Meteorologista, ator e escritor famoso nos Estados Unidos.
espécie de peixe que todo mundo achava que estava extinta,
mas acabou que não estava. Os cientistas do século dezoito
tinham todas essas teorias malucas sobre como eles eram, e
então, quando as pessoas perceberam que eles ainda existiam,
quase todas as ilustrações estavam erradas. Mas eles fizeram o
melhor que puderam com as pistas que tinham.
— Eu amo isso! — Ela declara, e eu levanto minhas
sobrancelhas. — É sério! Tipo, como as pessoas ficam com raiva
quando saem e está chovendo, embora as notícias anunciassem
céu limpo. Tipo, claro que está chovendo. A coisa toda é
baseada no acaso. Nunca há cem por cento de certeza de que
fará sol… para sempre. Portanto, é sempre mais seguro ter
sempre um guarda-chuva na mochila.
Eu sorrio porque isso parece resumir toda a visão de mundo
de May.
— Vou me lembrar disso.
— E também é mais seguro não tentar se matar passeando
com um cachorro em uma nevasca. — Ela acrescenta, e sua mão
roça meu joelho. Não sei se ela fez isso de propósito, mas agora
meu corpo inteiro está em alerta.
Mas sou uma covarde, então mexo um pouco o joelho e
digo:
— Essa parte eu não vou lembrar.
Ela bufa.
— Justo.
Acho que talvez seja aí que May também começa a perceber
como é estranho eu estar sentada na mesa da cozinha dela
tomando chocolate quente, porque, de repente, ela se levanta e
começa a lavar a panela.
— Eu posso fazer isso. — Eu digo.
— Está tudo bem, já terminei. — Ela esfrega por um
minuto, então coloca a panela em um escorredor ao lado da pia.
Está muito silencioso.
— Que tal um pouco de música?
— Sim, perfeito. — Eu respondo muito rápido.
— Vai ser música de Natal. E você não vai reclamar comigo
sobre como isso me torna uma má judia. — Ela fala. — É o
penúltimo dia da temporada em que é socialmente aceitável
ouvir música de Natal e você não vai tirar isso de mim.
Enquanto ela vasculha o telefone para encontrar o que quer
ouvir, eu digo:
— Eu realmente gosto de música de Natal.
Ela para de rolar a tela e olha para mim.
— Desculpe, eu acabei de ouvir você dizer que Shani “Foda-
se o Natal”... Espere, oh, meu Deus. Eu não tenho ideia de qual
é o seu sobrenome.
— É Levine. E “Foda-se o Natal” não é meu nome do meio.
É Adeline.
— Tudo bem, deixe-me tentar de novo: você está dizendo
que você, Shani Adeline “Foda-se o Natal” Levine…
— Bem, se você quer fazer isso direito, meu primeiro nome
completo é Shoshana.
— Jesus, tudo bem. — Ela balança os braços e reinicia. —
Blá blá blá você, Shoshana Adeline “Foda-se o Natal” Levine,
gosta de música de Natal?
— Sim, eu gosto, tanto faz.
— Esta é uma excelente notícia.
— Sério, não é.
— Eu vou tocar toda a discografia de Natal de Sufjan
Stevens e você vai adorar, porque você ama o Natal. Isso é
irreal.
Eu coloco minha cabeça em minhas mãos enquanto May
cumpre sua promessa e coloca um dos álbuns de Natal de
Sufjan. A pior parte é que, claro, estou familiarizada com isso
e, óbvio, eu gosto. Qualquer que seja a música.
É uma música otimista, e soa folclórica e caseira. May
balança a cabeça um pouco e me dá um polegar para cima e um
olhar que diz: pelo menos estou tentando tornar as coisas menos
estranhas.
Eu sufoco uma risada.
— Tudo bem, então. — Ela fala quando vê meu rosto. —
Se você acha tão engraçado, vamos ver você dançando.
— Não, estou bem.
Ela revira os olhos.
— Você pode apenas balançar a cabeça. — Ela demonstra.
— Vamos, Shoshana Adeline “Foda-se o Natal” Levine. Isso
não vai te matar.
Eu suspiro.
— Tudo bem, eu vou balançar minha cabeça. Mas não vou
gostar de fazer isso.
— É claro que não.
Eu me levanto e movo a metade superior do meu corpo de
um lado para o outro, desajeitadamente no início, depois com
um pouco mais de convicção enquanto a música cresce e May
balança também.
De alguma forma, a oscilação consegue fazer as coisas
parecerem um pouco menos estranhas.
— Tudo bem, então você tem um nome do meio? —
Pergunto para preencher o silêncio quando a música acaba,
antes que a próxima comece.
— Sim, é Ilana. Mas eu odeio isso porque é impossível dizer
meu nome completo sem juntar os dois. — Ela demonstra: —
MayIlana.
— Talvez seus pais estivessem bêbados quando deram seu
nome.
Ela bufa.
— Pode ser.
— MayIlana. — Eu digo, testando.
— Tá vendo?
— Eles fluem bem juntos.
— Você é gentil. — May responde. — Eu diria que soa mais
como uma batida de carro.
Eu balanço minha cabeça para ela. May pega nossas canecas
da mesa e começa a lavá-las, como fez com a panela:
metodicamente, esfregando cada parte com uma esponja
amarela gasta.
Mas ela para quando uma nova música começa. É brilhante,
suave e lento. Ela balança para esta também, mas com mais
suavidade. Então, May se vira para mim.
— Vamos lá! — Ela chama enquanto Sufjan começa a
cantar. — Mexa sua cabeça, sem descanso.
— Eu não vou fazer isso de novo. — Eu respondo. — Não
há nenhuma batida. Você não pode balançar sem ritmo.
— Claro que posso. — Ela caminha para uma área aberta da
cozinha e solta um longo suspiro. — Apenas… venha aqui.
Eu sigo seu comando e paro a alguns metros de distância,
ficando na frente dela.
Ela morde o lábio.
— Mais perto.
Os acordes lentos continuam. Meu coração acelera. Dou
outro passo em direção a ela.
Ela coloca a cabeça entre as mãos, então olha para o teto. Ela
acena para si mesma e pede, com uma voz um pouco magoada:
— Dança comigo? — estendendo a mão.
Concordo com a cabeça, engulo em seco e agarro sua mão
enquanto Sufjan canta em sua voz alta e doce sobre o que as
pessoas de antigamente cantaram.
Agora que ela está segurando minha mão, ela olha fixamente
para o chão. E eu também.
Mas a música é doce, e May é calma, e por mais que eu tenha
lutado, quero estar perto dela.
Eu a giro debaixo do braço lentamente e ela ri, então faz o
mesmo comigo. Eu fico presa debaixo do braço dela, e nós
rodamos muito rápido e tropeçamos uma na outra.
E isso se torna uma desculpa fácil para puxá-la para perto
enquanto dançamos.
Eu sou mais alta do que ela, e ela segura uma das minhas
mãos enquanto eu pressiono a outra em suas costas. Nós
balançamos, juntas. Ela está tensa, e eu também, mas sentir que
ela está tensa também torna as coisas um pouco melhores.
Antes que eu possa pensar no que estou fazendo, acaricio suas
costas em círculos lentos no ritmo dos acordes, e ela se inclina
para mim, colocando o queixo na cavidade da minha clavícula.
Mas a música é curta e depois de pouco tempo acaba, então
há uma música rápida sobre acender as luzes na árvore. Nós nos
separamos.
Ainda posso sentir onde o queixo dela se encaixou no meu
ombro.
May pigarreia, vai até a pia e abre a torneira, embora não haja
mais nada para lavar.
— Devemos assistir TV? — Ela pergunta, sua voz mais alta
que o normal.
— Hm, sim. — Eu respondo, não muito certa do que está
acontecendo.
Mas parece que concordamos mutuamente em não
mencionar nossa dança lenta - ou o que quer que tenha sido -
enquanto nos sentamos na sala de estar.
Ela liga a TV e nós assistimos por um tempo - não o canal
do tempo, graças a Deus, apenas um programa de culinária de
férias, mas estou tendo problemas para prestar atenção. Estou
hiperconsciente do meu corpo e do dela, e da maneira como
eles estavam conectados minutos antes. Raphael teria sido o
obstáculo perfeito entre nós no sofá, mas ele pulou no tapete e
correu em círculos inquietos por um minuto antes de
adormecer.
Traidor.
Eu enrolo minhas pernas embaixo de mim, tomando
cuidado para não tocar em May. Acho que ela está fazendo o
mesmo, porque suas pernas estão dobradas, e eu a peguei
olhando para mim enquanto uma criança pequena era
repreendida por colocar muito glacê em uma escultura de Rice
Krispies do Rudolph. Claro, isso significa que eu estava
olhando para ela também… mas, tipo, obviamente eu estava
olhando para ela. Como eu não poderia olhar para ela?
O programa de culinária acaba sendo ridiculamente
viciante, e à meia-noite nós duas estamos gritando para a tela
porque um dos juízes mandou o garoto do glacê para casa por
causa de um rocambole de chocolate ligeiramente malpassado.
— Marmelada! — May grita, levantando-se.
— Temo que isso seja um adeus. — diz o juiz depois de
anunciar que o garoto do glacê irá para casa. — Hora de
pendurar o avental.
— PENDURE VOCÊ SEU AVENTAL, SEU PEDAÇO
DE MERDA! — Eu grito com o juiz.
May ri, o que se transforma em um bocejo quando ela diz:
— Acho que, se já estamos gritando com a TV, é hora de ir
para a cama. — Ela pausa o show. — Você pode ficar no meu
quarto e eu durmo no do meu pai.
Meu coração afunda, mesmo que não haja motivo algum
para dormirmos no mesmo quarto.
— Ele não vai voltar para casa esta noite?
— Ele acabou de mandar uma mensagem. — Ela ergue o
telefone. — Eles o estão mantendo lá durante a noite para que
ele possa estar na TV, para cumprimentar o público na manhã
de Natal.
— Isso é péssimo.
— Sim, mas as pessoas estarão esperando que Greg Stern
esteja lá quando acordarem na manhã de Natal. Especialmente
depois de uma nevasca.
— É uma loucura que seu pai tenha anúncios de ônibus
espalhados pela cidade.
— Eu sei. Eu odeio isso.
Nós nos levantamos do sofá enquanto Raphael se
espreguiça e fica de pé em suas pernas curtas. Nós o deixamos
sair para a varanda por cerca de meio segundo para fazer cocô
na neve imaculada, e quando ele trota para dentro, May bate a
porta.
As coisas parecem normais de novo, o que é uma maneira
engraçada de descrever qualquer parte de dormir na casa de
uma garota que eu conheci há menos de duas semanas por meio
de um atropelamento. Mas mesmo assim, é normal. É tudo
normal.
Uma vez que estamos lá em cima, May me acompanha até
seu quarto. É vazio e genérico, nada do que eu esperaria dela.
Ela deve ver meu rosto, porque ela justifica:
— Meu quarto na casa da minha mãe, em Ithaca, é muito
mais bonito. Há coisas nas paredes, para começar.
— Sim, é muito sombrio aqui. — Eu falo, olhando para as
paredes brancas nuas.
— Eu me recusei a decorá-lo quando meu pai se mudou há
muitos anos, agora eu simplesmente não estou com vontade.
— Mau vai até a cama e puxa o edredom, então abre o armário
e pega outro cobertor. — Acho que você não gostaria de
dormir em meus lençóis usados.
— Hm, obrigada. — Eu agradeço, mas não era nisso que eu
estava pensando.
— Há toalhas naquele armário, se você quiser tomar banho,
mas estou muito cansada, então acho que vou para a cama.
— Tudo bem. — Eu respondo, me sentindo estranha, como
se eu tivesse adormecido em um trem e perdido minha parada.
Sento-me na cama, no edredom limpo, mas May não sai do
quarto. Ela permanece na porta, encostada no batente.
É muito, muito silencioso. Nenhuma criatura está se
mexendo.
Ela quer que eu diga alguma coisa? Ela quer dizer alguma
coisa? Não faço ideia, mas posso sentir meu corpo começar a
tremer, mesmo estando quente há horas.
Depois de um minuto sem nada, ela diz:
— Boa noite, Shoshana Adeline Levine.
Eu sorrio e respiro.
— Boa noite, MayIlana Stern.
Ela sorri de volta, mas ainda não se move. Acho que ela pode
querer dizer outra coisa, mas depois de alguns segundos ela
levanta a mão em um tchauzinho desajeitado. Então, May
fecha a porta.
Por mais que eu tente, não consigo dormir. Já faz pelo menos
meia hora desde que May me deixou em seu quarto, mas eu
continuo pensando em como estamos separadas somente por
uma parede. Seria tão fácil para algo acontecer. Eu poderia
invadir o quarto do pai dela e dizer: “O que estamos fazendo
aqui?” e depois… quem sabe?
Poderíamos nos beijar.
Provavelmente nos beijaríamos.
Eu poderia beijá-la, se ela quisesse. E eu acho que ela quer.
Talvez ela esteja pensando a mesma coisa. Talvez ela esteja
esperando que eu saia deste quarto e entre no do pai dela.
Mas eu realmente não sei o que ela está pensando.
E isso já me colocou em apuros antes.
Então, eu não faço absolutamente nada.
E, eventualmente, eu adormeço.
Pensando nela.
Você é Ho Ho Sem Esperança
Isso é uma coisa que minha mãe tem a seu favor: ela sabe o
que quero dizer quando digo isso. Porque foi ela quem
inventou essa palavra.
Um minuto depois, ela escreve de volta.
EU: absolutamente
EU: agora?
MAY: sim
me encontra na livraria?
o café fica aberto até às 10
MAY: obrigada!
11
Eles sabem que é Natal?
12
Eu vi mamãe beijando o Papai Noel.
Um dos muitos talentos de Taylor é conhecer o conteúdo
de todo o meu guarda-roupa. Ajuda que ela tenha comprado a
maioria das roupas que não são camisetas que visto sempre.
Vasculho as gavetas, procurando o blazer de que ela está
falando.
— Você não trouxe? — Ela pergunta, horrorizada. — É
realmente por isso que você não pode ter coisas boas.
Eu não a escuto e continuo vasculhando até encontrá-lo em
uma pilha amarrotada de roupas bonitas que eu nem tentei usar
nas últimas três semanas.
— Sim, excelente! — Taylor exclama. — Você vai vestir isso.
E você pode até usar com jeans, mas não se eles estiverem sujos.
— Você não precisa me dizer para não usar jeans sujos. —
Ela levanta as sobrancelhas para mim, e eu acrescento: — Tudo
bem, tudo bem. Vou usar meu par limpo.
Ela sorri.
— O que você faria sem mim?
Eu sei que ela não está falando sério, mas eu meio que tive
que descobrir no semestre passado como viver sem ela. Quando
a única pessoa no mundo com quem eu achava que me
importava era Sadie.
Eu não encontro seu olhar quando digo:
— Taylor?
— Sim?
— Eu sou um pedaço de merda.
— O quê? — Ela caminha até mim. — Por que você diz
isso?
— Eu não falei com você por um semestre inteiro e agora
você está sendo tão gentil comigo. — Então, eu olho para ela.
— Por que? Eu nunca mais falaria comigo se fosse você.
Ela balança a cabeça.
— Primeiro de tudo, porque isso é apenas o que os melhores
amigos fazem. — Eu sorrio, mas agora é a vez de ela não
encontrar meus olhos. — E não é como se eu tivesse mandado
muitas mensagens, né?
— Mas por que você não mandou?
Ela suspira.
— Acho que é porque eu queria ser, tipo, Taylor por um
tempo, sabe? — Eu franzo minhas sobrancelhas, confusa. Ela
respira fundo e olha para o teto, como se estivesse tentando
pensar em como explicar. — Nós éramos “Taylor e Shani”
durante todo o ensino médio, e eu não queria que fosse assim
na faculdade. Eu não queria que as pessoas me vissem como
metade de um todo.
Lágrimas brotam em meus olhos, e eu as enxugo. Porque é
verdade.
Eu estraguei tudo. Não apenas nossa amizade, mas, tipo,
minha vida.
Ela foi para a faculdade e tentou se tornar sua própria
pessoa, e eu me perdi. Eu fui de “Taylor e Shani” para “Sadie e
Shani”. Meu nome nunca parece ser suficiente sozinho.
— Entendi. — digo a Taylor entre lágrimas, porque
realmente entendo. Precisamos ser Taylor, ponto final, e Shani,
ponto final. Melhores amigas, mas separadas.
Não precisamos depender de outra pessoa para vivermos
nossas vidas.
— Desculpe, Tay.
— Sinto muito também. — Ela declara, mas como Taylor
não é de sentimentalismo, ela limpa a garganta, enxuga os olhos
e fala que é hora de nos trocarmos.
Vou ao banheiro me vestir e deixo Taylor se trocando no
quarto.
Honestamente, eu pareço bonita. Eu me encaro no espelho
por um tempo muito longo, passando minhas mãos pelo meu
cabelo e posando.
— Você está gostosa. — Taylor diz quando eu saio do
banheiro.
Sorrio um pouco e falo:
— Obrigada. — mas não acrescento mais nada.
Ela sempre se sentiu mais confortável me elogiando do que
eu a elogiando. Acho que é porque ela pode olhar para as
roupas que estou usando e dizer objetivamente que, sim, estou
gostosa nessa roupa. Mas mesmo sabendo que Taylor está
linda, não digo isso, porque não quero parecer assustadora.
(Obrigada, homofobia internalizada!)
Taylor e eu saímos por volta das dez para pegar o ônibus
para Georgetown, mas não antes de Beatrice nos lembrar de
ficarmos seguras e voltar para casa logo após o relógio bater
meia-noite. Nós assentimos e dizemos, com certeza, sem
problemas.
Quando o ônibus nos deixa em Georgetown, Taylor pega
seu telefone e nos guia para a casa do amigo de Teddy.
É uma bela casa de cidade, com grandes janelas de sacada e
uma porta da frente ornamentada — que Taylor abre sem
sequer uma batida ou uma respiração nervosa.
E, claro, bem na hora, alguém grita:
— Taylor!
— Teddy! — Ela corre até um cara alto com cabelo loiro
brilhante e pele bronzeada demais para uma pessoa branca
durante um inverno na Costa Leste, então eles se abraçam. Ela
envolve os braços em volta do pescoço dele e as mãos dele ficam
muito perto de sua bunda para eu querer continuar assistindo
essa interação.
Eu uso isso como uma oportunidade para inspecionar a
festa. A casa está cheia de pessoas da nossa idade e talvez um
pouco mais velhas, todas parecendo mais arrumadas do que eu
jamais estarei. Eles nem estão segurando copos de plástico,
estão usando taças de vidro de verdade. É irreal.
A casa não é muito iluminada, cheia de madeira escura e
móveis caros de cores neutras. Taylor está conversando com
Teddy em um sofá de couro, e eu ficaria muito, muito surpresa
se eles não ficassem mais tarde.
Deixo-os sozinhos flertando e vou procurar uma bebida.
Minha busca me leva à cozinha. É o lugar mais brilhante da
casa, as pessoas estão saindo, conversando, sentadas em balcões
(principalmente em duplas) e flertando tão descaradamente
quanto Taylor e Teddy. Os balcões são de mármore preto, e há
uma ilha com um jarro de vidro de algo que alguém inutilmente
rotulou como “Sem Glúten ;)”.
Não se parece em nada com o Jungle Juice13 que Sadie e eu
bebíamos nas festas de Binghamton. Do tipo que era
definitivamente perigoso e servido em barris de plástico
Gatorade, que é despejado na cabeça dos jogadores campeões
de futebol. Este é rosa e brilhante, tem folhas de hortelã,
mirtilos e sementes de romã flutuando na superfície, e pode ou
não conter glúten.
Pego um copo chique no balcão e me sirvo de uma bebida.
É inacreditavelmente deliciosa e mal tem gosto de álcool, o que
pode ser mais perigoso do que Jungle Juice, mas de uma
maneira sutil.
— É bom, né? — Uma garota me pergunta enquanto
caminha até a ilha da cozinha para se servir de um pouco de
ponche.
Eu aceno e tomo um gole.
— Sim, definitivamente.
13
Jungle Juice combina os sabores de suco ácido de abacaxi, laranja, toranja,
uva, maçã e tem notas de melancia. Geralmente misturado com mais sabores de
frutas ou sabores de licores brancos como gim, vodka e tequila!
— Onde conheceu Josh? — Ela questiona, e eu suponho
que ela esteja falando do anfitrião.
— Hm, por aí. — Eu respondo, esperando que isso seja
suficiente.
— Eu também. — Ela sorri para mim, então estende a mão
para tocar meu ombro. — Eu gostei do seu blazer.
Instintivamente, puxo meu braço para trás, e seu rosto passa
de um sorriso gentil para pânico.
— Merda. — Ela diz. — Desculpe! Achei que você poderia
ser... — Ela começa. — Você não é? Eu sou nova nisso. Eu
pensei que talvez – você estivesse disponível para um beijo de
Ano Novo – ai, porra. — Ela coloca a cabeça nas mãos.
— Não, eu sou queer, se é isso que você está perguntando.
— digo a ela, e ela tira a cabeça de suas mãos para olhar para
mim. — Eu simplesmente não estou... — Eu me afasto.
O que eu ia mesmo dizer? Solteira?
Porque eu estou muito, muito mesmo.
Majoritariamente.
— Desculpa. — Ela pede novamente.
— Por favor, não se desculpe.
— Eu não posso evitar.
— Tudo bem. — Eu digo, e saio da cozinha.
Eu sinto uma série de coisas naquele momento: me sinto
mal pela garota e me sinto bem que ela estava flertando comigo.
Mas principalmente, tolamente, eu me pego desejando que
May estivesse aqui.
Não posso deixar de pensar como seria beijá-la à meia-noite.
Agarrando-a e sabendo que estávamos entrando em um novo
ano juntas.
Eu nunca tive um beijo de Ano Novo.
Oh, meu Deus — espere.
Devo enviar-lhe uma mensagem de Ano Novo? Eu sei que
ela disse que não podia trocar mensagens agora, mas isso não
seria uma conversa, por si só. Isso seria apenas eu desejando a
ela um feliz Ano Novo. Isso é algo que as pessoas fazem. Certo?
Abro a multidão de pessoas e encontro Taylor sentada no
colo de Teddy, o que não me impede de pegar sua mão e
perguntar o que me tortura:
— Devo enviar uma mensagem de Ano Novo para ela?
— Hm. — Taylor diz, pulando do colo de Teddy e fazendo
uma cara de quem está pensando sobre. — Isso não é uma má
ideia.
Eu amo isso, apesar de termos vindo essencialmente para
esta festa para que ela pudesse ficar com o ex-namorado da
Amy do Modelo ONU, ela ainda está respondendo minhas
perguntas cheias de pânico sobre May.
— Eu vou trazê-la de volta em breve. — aviso a Teddy
enquanto arrasto Taylor para longe.
Encontramos uma escada silenciosa e caminhamos em
direção ao topo, depois nos sentamos ombro a ombro em um
degrau. Eu abro meu aplicativo Notas para que eu possa
escrever as opções de um texto para enviar para May, mas não
consigo pensar em uma única mensagem.
— Esta é uma ideia terrível, né? — Eu pergunto à Taylor.
— Não, não, isso é bom. E se a mensagem for como uma
piada interna ou algo assim? Dessa forma, é fofo, mas não
muito.
— Eu a conheço há três semanas. — Eu retruco, sentindo o
pânico e a náusea borbulhar em meus intestinos. — Não temos
nenhuma piada interna. Ela nem me contou quando foi para a
casa da mãe dela.
Taylor ergue as sobrancelhas e levanta as mãos.
— Só estou tentando ajudar.
— Eu sei, eu sei. Desculpe, estou estressada.
Mas, novamente, talvez tenhamos piadas internas, ou pelo
menos algo interno. Tem que haver algo em minha galeria de
fotos, ou o filme que vimos no dia de Natal.
— E se você apenas disser: “Gostaria que estivesse aqui”? —
Taylor sugere.
— Isso não é um cartão postal! É uma mensagem para uma
garota que eu beijei duas vezes e, idealmente, gostaria de beijar
novamente se ela voltar para DC.
— Ok, que tal isto? — Taylor pergunta. — “Gostei dos dois
primeiros beijos. O que você acha de um terceiro? Feliz Ano
Novo.”
— Essa é a sua pior sugestão até agora.
— Eu não vi você dando uma só ideia!
Olho para o meu aplicativo de notas. Anotei algumas coisas
depois do comentário da piada interna de Taylor, mas tudo o
que tenho até agora é o beijo da meia-noite? em uma linha e as
palavras botas de cachorro em outra, que parece bobagem, de
alguma forma.
— Talvez eu não devesse mandar uma mensagem para ela.
— Não! — Taylor grita, o que faz com que algumas das
pessoas que se aglomeram ao redor da escada olhem
carrancudas para nós. — Não. — diz ela, mais calma desta vez.
— Uma mensagem de Ano Novo é a coisa perfeita para um
romance em ascensão. Especialmente se você está preocupada
que ela não volte para DC. Só precisamos fazer um
brainstorming.
— Bem, só temos vinte minutos até a meia-noite. — Eu
enterro meu rosto em minhas mãos. — Além disso, eu não acho
que nada que eu diga vai convencê-la a voltar se ela não quiser
voltar. — Eu bloqueio meu telefone e balanço minhas pernas o
mais rápido possível. — Isso não tem sentido.
Taylor ignora meu pânico e, em vez disso, verifica seu
telefone e diz:
— Merda, já tão tarde?
Eu me sento.
— O tempo voa quando você está escrevendo uma
mensagem para a paixão da sua melhor amiga.
— Quem disse isso? Churchill?
— Acho que foi Nixon.
— Certo, certo.
Eu coloquei minha cabeça em minhas mãos.
— Merda. — Eu exclamo, o desespero se transformando em
pânico.
Nós duas ficamos quietas por um minuto enquanto a festa
ganha força no andar de baixo, todos ansiosos pela meia-noite,
um ano novo.
— Ei, ei! — Taylor grita, pulando e quase batendo a cabeça
no corrimão. Ela se senta novamente, pega meu telefone e
começa a digitar. Meu corpo inteiro aperta.
— Escreva nas notas! Não coloque nas mensagens ainda. —
Eu grito de volta para ela, me inclinando para tentar ver o que
Taylor está escrevendo.
— Obviamente, estou escrevendo nas notas. — diz Taylor
com a língua para fora, concentrando-se na mensagem que
pode melhorar ou arruinar de vez o que quer que esteja
acontecendo entre mim e May. Se está acontecendo alguma
coisa.
Quando ela termina, me entrega o telefone. “Queria que você
estivesse aqui, mas que tal um replay de beijo de meia-noite?”
É mais ousada do que qualquer mensagem que já enviei, mas
não a odeio.
— Na verdade, isso não é ruim.
— Viu? — Ela diz, batendo no meu joelho com o dela. —
Eu acho que está bom. É sedutor, implica que ela voltará para
DC e que, se ela quiser beijos no futuro, sua língua estará
disponível.
— Ai, credo… — Leio a mensagem novamente. — Tudo
bem, tudo bem. — Então eu leio mais algumas vezes, e
encaminho para meu aplicativo de mensagens. — Vou mandar.
Eu deveria enviar agora, certo? Ou devo esperar até meia-noite?
— Não, envie agora. — diz Taylor. — Dessa forma, à meia-
noite ela estará pensando em como ela poderia ter ficado em
DC e ter beijado você no Ano Novo.
Eu olho para ela.
— Eu não consigo fazer isso.
Ela pega meu telefone e eu deixo.
— Você está me devendo. — Ela paira com o polegar sobre
a seta para cima que enviará esta mensagem para May.
— Porra. — Dobro meu torso sobre meus joelhos. — Três
— Eu digo, tremendo.
— Você consegue
— Dois. — Vou derreter em uma poça nas escadas.
— É uma boa mensagem. — diz Taylor. — Agora vamos
enviar essa porrinha.
Eu gemo, bato minha cabeça contra meus joelhos, então
gemo novamente.
— Um.
Sento-me a tempo de ver o polegar de Taylor pressionando
em meu telefone. Ver a mensagem catapultada para o éter, para
sempre fora do meu alcance.
— Perfeito! — exclama Taylor. — Agora vamos tomar uma
bebida. — Ela me leva para a cozinha, onde ela enche meu copo
com o ponche chique.
Eu tomo em um gole. Em seguida, verifico meu telefone,
sabendo que não haverá nada além de uma esperança
desesperada de qualquer maneira.
— Dez minutos, vadias! — Uma garota incrivelmente
bêbada grita enquanto tenta ficar em cima da bancada.
Todos aplaudem, e foda-se, eu também.
11:50, ainda sem resposta.
Bebo mais ponche, e então sigo Taylor de volta para a sala,
onde ela volta para o colo de Teddy.
11:52. Nada.
11:53. Acho que nunca estive menos empolgada com a
chegada de um novo ano.
11:55. Todos estão reunidos na sala. É um instinto quase de
peixe: mesma turma, estar perto de outros membros de sua
espécie enquanto você avança uma hora, um dia, um ano.
11:58. Alguém liga a TV e vemos as pessoas enlouquecendo
na Times Square.
11:59. Todos na sala estão se espremendo como na porra da
Arca de Noé.
Eu verifico meu telefone, verifico meu telefone, verifico
meu telefone e não há nada e a sala está nebulosa, mas eu me
sinto tão estranhamente bem e meu corpo está zumbindo, e
agora eu nem quero que este ano acabe e eu vou apenas parar o
tempo e vai ser ótimo, e eu verifico meu telefone novamente e
obviamente não há nada e nunca haverá nada porque ter uma
queda é inútil e agora é…
— QUINZE, QUATORZE, TREZE… — segundos para o
Ano Novo e todo mundo está gritando, sorrindo, gritando a
contagem regressiva para o ano novo. E eu estou olhando para
o meu telefone. — DOZE, ONZE… — Se ela não responder,
eu jogo meu telefone no banheiro e me mudo para outro
continente. — DEZ, NOVE, OITO… — Eu me pergunto o
que Sadie está fazendo agora. A última vez que estive em uma
festa em casa eu estava com ela. Foi a noite em que tudo deu
errado, e eu estava ainda mais bêbada do que isso. Muuuuito
bêbada. Bêbada é uma palavra engraçada. Bêbada bêbada. E
Sadie estava mais bêbada. E depois…
Nãooooo. Não, cérebro. Pare. Sadie não vai ser a última
pessoa em quem eu penso antes do ano novo.
— SETE, SEIS… — Eu localizo a garota que estava dando
em cima de mim antes. Nós fechamos os olhos. — CINCO,
QUATRO… — Ela se aproxima e fica tão perto que posso
sentir o cheiro do ponche nela. Ou talvez esse cheiro seja meu.
— TRÊS, DOIS… — Ela envolve seus braços em volta do meu
pescoço. Eu agarro sua cintura.
— UM! FELIZ ANO NOVO!
Nós nos beijamos e é desleixado e molhado, sua língua
parece uma enguia morta dentro da minha boca, mas pelo
menos eu não estou checando meu telefone.
— GOSTOSAS! — Algum cara grita e tenta passar o braço
em volta dos meus ombros. Eu me esquivo dele e cambaleio
para o banheiro.
Me seguro no balcão e verifico meu telefone e, caramba, há
uma mensagem de texto e tudo está nebuloso e o contato
começa com M e tem três letras e eu puxo meu telefone perto
do meu rosto e é…
MÃE: feliz ano novo, querida <3!
fique segura!
amo você
Eu deslizo para o chão de ladrilhos, e é claro que os ladrilhos
são aquecidos como os do banheiro do andar de cima da casa
de May, onde Raphael dormiu na noite da nevasca e eu estou
apenas...
Estou com medo de perdê-la. Com a possibilidade. Mesmo
que tenhamos acabado de nos conhecer. Mesmo que ela talvez
tenha fugido. Estou com medo, agora tudo está arruinado e a
única pessoa além de Taylor que se importa comigo é minha
mãe e eu nem a mereço.
Há uma batida na porta.
— Shani? Você está aí?
Eu enterro minha cabeça em meus joelhos.
— Não.
Taylor entra e se senta ao meu lado, descansando a cabeça
no meu ombro.
— Você está bem?
— Ela não me respondeu.
— Bem, foda-se ela, então.
Nós nos sentamos lá por um tempo, mesmo que Taylor
definitivamente pudesse estar chupando a cara do ex da Amy
do Modelo ONU agora.
E ainda estamos ambas aqui, no chão do banheiro de um
estranho, perdendo os primeiros minutos do ano novo uma
com a outra.
— Eu te amo, Tay.
— Você está bêbada.
— Ainda te amo.
Ela suspira.
— Eu sei.
Acaricio o cabelo de Taylor, grata por ela estar aqui, por ser
alguém sólido em minha vida, quando tudo mais parece estar
escorregando sob camadas de lodo, fossilizando diante dos
meus olhos.
Talvez tudo seja escavado em cem milhões de anos, junto
com meu coração.
Você está bloqueando a escada rolante
EU: sim
eu estarei lá
EU: sim!
você está pensando em ir ou algo assim?
EU: hoje?
MAY: hm
que tal agora?
a menos que você esteja ocupada
pensei que poderíamos nos encontrar no café
perto do metrô
Oh, não. A cafeteria do metrô…
EU: ta bem
14
É um termo introduzido e aplicado por John McPhee ao conceito de tempo
geológico em seu livro Basin and Range (1981)
— E os geodos?15 — Ela pergunta, lendo a grande placa que
diz: “GEODOS!”
— Geodos são para depois do Deep Time. Eu não posso
acreditar que você disse geodos.
— Quanta audácia. — diz May. — O que eu estava
pensando? — Reviro os olhos e ela sorri para mim. — Tudo
bem, vamos.
A exposição Deep Time é o novo salão de fósseis do museu,
mas é muito mais do que isso, porque também é sobre evolução
e vida na Terra em geral, e sobre como os humanos estragaram
tudo. Digo isso a May, e ela parece animada com a parte dos
humanos estragando tudo.
Está incrivelmente lotado perto da entrada, em parte
porque ainda é uma espécie de feriado e em parte porque, bem,
há dinossauros.
— Ok, escute. — Peço a May quando entramos, virando-
me para bloquear sua visão do que está dentro. — A exposição
vai tentar te atrair mostrando um T. Rex superlegal demolindo
absolutamente um Triceratops.
— Eu sou atraída apenas por essa descrição.
— Bem, que pena — Eu falo —, porque não é por aí que
vamos começar. Toda a exposição é cronológica, então temos
que começar do início. Proteja os olhos se for preciso. Faça o
que for preciso.
15
São formações rochosas que ocorrem em rochas vulcânicas e sedimentares.
— Pode deixar, capitã.
— Prometa-me que você não vai olhar para o T. Rex
rasgando o Triceratops em pedaços.
— Mas você está fazendo isso soar tão legal. — Ela lamenta.
— Vai valer a pena, eu prometo! — Digo a ela, e entramos.
May brinca e faz um grande show cobrindo os olhos
enquanto passamos pelos dinossauros em direção ao início da
exposição.
O que por acaso é o começo de tudo. Bem, nem tudo, mas o
início da vida na Terra, há 3,7 bilhões de anos.
Passamos pelas origens da vida e os primeiros três bilhões de
anos ou mais, porque eram basicamente micróbios e tal.
Corro até uma tela de jogo interativo, e May vem ao meu
lado para que possamos jogar juntas. Eu sei que estou
parecendo com uma criança hiperativa nesta exposição, mas
não posso evitar. É emocionante ter alguém para compartilhar
tudo.
O jogo é sobre as origens antigas dos corpos modernos, e
você pode examinar diferentes partes do corpo de uma pessoa
animada para ver como eles evoluíram.
O povo é principalmente inexpressivo e completamente
neutro em termos de gênero. Eles estão vestindo uma roupa
preta, têm cabelos castanhos espetados, pele morena clara e
pulam pela tela quando você pressiona diferentes partes do
corpo.
— Acho que eu os amo? — May diz enquanto pressiona a
mão da pessoa para saber como nossos polegares opositores
evoluíram.
— Um ícone não-binário. — Concordo enquanto
pressiono o ouvido deles para aprender sobre a evolução da
audição em mamíferos.
— Isso talvez seja um pouco violador para eles? — Ela
pergunta enquanto pressiona os pés da pessoa e eles pulam no
ar.
— Sim, vamos deixá-los descansar.
Damos adeus ao nosso novo amigo na tela e caminhamos
para a próxima exposição assim que uma criança pequena corre
até a tela e bate com a palma da mão inteira no torso do avatar
para fazê-los dançar.
A próxima coisa que vemos é uma placa que diz: “Não é fácil
viver em terra.”
— O que você estava dizendo mesmo? — Questiona May.
— Ok, mas é sério... é tão difícil — Eu respondo.
E então quero compartilhar meus pensamentos sobre como
os peixes são superiores a todas as outras criaturas e como a terra
é superestimada. Quero contar a May todo o meu
conhecimento sobre peixes, transmitir para ela para que ela
saiba mais sobre o porquê de eu ser do jeito que sou.
Mas.
Não quero cair no modo “bom, na verdade” de falar que as
pessoas – geralmente garotos que pensam que sabem mais do
que eu sobre a evolução dos peixes só porque pegaram um
celacanto em Animal Crossing – usaram comigo. É uma merda
ter alguém fazendo você se sentir inadequado quando você está
aprendendo algo novo.
Então, em vez de iniciar algum monólogo sobre peixes, o
que eu faria com prazer, tento iniciar uma conversa.
— Aquele primeiro peixe idiota que rastejou para a terra nos
fodeu para sempre. Tipo, ele deveria ter ficado na água. O
oceano é literalmente mil vezes melhor do que qualquer
centímetro quadrado de terra seca.
— Mas não foi bom para aqueles carinhas serem as primeiras
coisas lá? — May pergunta. — Dessa forma, não havia
competição por comida, abrigo ou qualquer outra coisa que
um animal precisasse.
— Sim, mas você tem que lidar com coisas como a gravidade
e o sol. No oceano você pode flutuar. Os peixes podem fazer
isso com tanta facilidade – eles estão apenas vibrando.
— “Isso é o que todos dizem” — May aponta para a cópia
da exposição abaixo da placa —, “que os animais que saíram do
oceano tiveram que obter todas essas adaptações estranhas”.
Eu gostaria de não ser tão previsível, mas acho tão gostoso
ouvir May falar sobre adaptações terrestres.
E, mais do que isso, May ler a placa e me explicar é o que eu
mais amo nos museus: que as pessoas possam descobrir as coisas
por si mesmas. Elas podem tornar esse conceito difícil deles um
que elas possam explicar para a família, amigos e garotas que
talvez estejam namorando ambiguamente.
Finalmente, chegamos à parte da exposição da qual eu forcei
May a proteger os olhos no início: o T. Rex comendo o
Triceratops.
— Isso aqui sim é muuuito legal! — Diz May.
— Como você ousa...
Ela bate no meu ombro. É a primeira vez que nos tocamos
durante todo o dia - eu sei porque também é a primeira vez que
meu corpo parece ter sido incendiado. Nós nem nos tocamos
mesmo em um metrô lotado. Tensionei todos os músculos do
meu corpo para garantir que ficaríamos a pelo menos uma
polegada de distância.
Eu sou uma bagunça.
Continuamos viajando no tempo enquanto os mamíferos
se tornam o grupo dominante de animais na Terra, mas meu
cérebro está preso no meu ombro, com o toque de May.
Em seguida, chegamos às recentes eras glaciais. Não tipo
recente recente. Geologicamente recentes — começaram há
dezenas de milhares de anos.
— Ah, essa é a parte boa. — May fala quando chegamos ao
ponto em que os humanos estão começando a evoluir e, como
é da nossa natureza, estragando tudo.
A exposição fala sobre como a vida muda à medida que a
Terra muda. Os continentes se movem, os oceanos sobem e
descem, o clima global flutua. E a vida se adapta. Ou tenta, de
qualquer maneira.
Uma das partes finais da exposição é uma parede de animais
que foram levados pelos humanos à extinção ou à beira da
extinção. É essencialmente a parede do “nós fodemos tudo”.
May e eu fazemos um momento de silêncio para os Moas,
uma espécie de pássaros gigantes que não voavam, viveram na
Nova Zelândia e foram caçados até a extinção por humanos.
Embora, para ser justa, fosse um pássaro incrivelmente bobo.
Esta parte da exposição é bastante sombria, porque é sobre
o papel que os humanos desempenharam no que agora é um
novo evento de extinção global.
— E a mudança climática é um grande fator nisso, você sabe.
— May declara. — Parte do que era interessante sobre aquelas
exposições, sobre extinções que aconteceram há milhões de
anos, foi que a temperatura teve algum significado em todas
elas. E agora temos níveis de dióxido de carbono mais altos do
que tínhamos desde tipo, antes da existência dos humanos, e
esse é um dos fatores que estão causando todas essas extinções.
Adoro ouvir May falar sobre tempo e clima. O assunto é
horrível, mas ela fala com tanta emoção.
É a mesma coisa que senti na véspera de Natal, quando ela
me contou pela primeira vez que adora o clima.
Eu devo estar encarando-a muito intensamente, porque
suas sobrancelhas se juntam e ela pergunta:
— O quê?
— Nada. — Eu respondo.
Agora me sinto tímida. Nós não estávamos super delicadas
ou sedutoras hoje. O que faz sentido porque teria sido
estranho, tipo, nos beijarmos enquanto estávamos lamentando
o extinto Moa.
Mas agora eu quero beijá-la. Eu quero tanto que dói.
— Não, sério. O quê?
E é aí que eu percebo: não é como quando eu estava
dormindo na cama de May na véspera de Natal, enquanto ela
dormia no quarto do pai dela, quando eu fantasiava sobre o que
poderia acontecer se eu criasse coragem para fazer uma jogada.
— Venha aqui. — Eu peço, e ela fica mais perto de mim do
que esteve o dia todo, enquanto entramos em uma pequena
sala escura e vazia mostrando um filme sobre mudança
climática.
Nós nos sentamos, ainda uma ao lado da outra, ainda nos
tocando, ainda tão perto quanto podemos estar sem...
E então ela me beija.
Eu me inclino para ela e meu corpo inteiro se sente
exatamente como meu ombro estava antes.
O narrador britânico do filme explica que nossa pegada
ecológica hoje é escrita através de histórias do passado, e
continuamos nos beijando. Nós nos beijamos tão forte que eu
sei, eu sei que ela está pensando sobre isso também.
Eu envolvo meus braços ao redor de sua cintura. Ela se
aproxima ainda mais e coloca as mãos sob meu suéter. Sua pele
é macia e fria e tão, tão humana. Posso sentir os milhões de anos
de evolução que nos trouxeram a este momento. Eu quero ir
para a área da exposição com o avatar de gênero neutro e dizer
a todos que passam que a tela interativa está errada. Que
desenvolvemos polegares oponíveis para que May pudesse me
tocar assim, sua mão agarrando minha cintura, seu polegar
suavemente roçando minhas costelas.
E então há passos.
Nós nos separamos tão rápido que quase fico tonta. Nós
duas ficamos paradas, olhando para frente e respirando
pesadamente.
Atrás de nós, um garotinho grita:
— É apenas um filme estúpido.
Eu me viro, menos preocupada e mais irritada, e vejo que é
o garoto sensível que está nos seguindo pela exposição.
— NÃO DIGA ESSA PALAVRA FEIA! — Um adulto
grita do lado de fora da sala de cinema escura, e o garoto sai
pisando forte, deixando-nos sozinhas novamente.
Continuamos de onde paramos. Nós nos beijamos até o
narrador nos dizer que o mundo está condenado, a menos que
façamos algo logo.
E mesmo que essa provavelmente não seja a ação sobre a
qual ele estava falando, ainda parece algo bom a se fazer.
No dia seguinte, no laboratório, passamos a primeira parte da
manhã preparando fósseis do sítio de celacanto juvenil para
análise isotópica, e não consigo parar de pensar em May.
Mas dou o meu melhor, porque estou animada para
aprender sobre a técnica, para participar de algo que só li em
artigos científicos.
O Dr. Graham sai de seu escritório alguns minutos depois
que eu chego, carregando uma caixa de arquivamento enorme
com mais espécimes.
— Conchas devonianas. — diz ele, sem explicação.
Eu olho para dentro da caixa e com certeza existem centenas,
talvez milhares de conchas fósseis não classificadas,
mineralizadas e bonitas.
— Nós as coletamos no local de escavação onde
encontramos os celacantos juvenis. — Dr. Graham continua.
— Podemos poupar alguns deles, mas não podemos poupar
nenhum dos espécimes de celacantos.
O problema de usar a análise de isótopos é que, para
aprender algo útil sobre a amostra, você precisa destruí-la. Mas
depois de fazer a análise isotópica de uma amostra mineral
(como as conchas), você pode começar a reconstruir o
ambiente aquático dos peixes encontrados no mesmo local de
escavação.
— Isso pode ser um grande avanço no espaço Devoniano
juvenil de filhotes de celacantos. — O Dr. Graham fala com
tanto entusiasmo quanto um astrônomo falando sobre alguma
forma de encontrar vida senciente em outro planeta. — Então,
mãos na massa!
Trabalhamos por um tempo esmagando as conchas, e isso
se torna tão monótono quanto limpar fósseis. Não é chato,
apenas monótono.
Dr. Graham volta ao seu escritório para trabalhar, o que
deixa eu e Mandira sozinhas na área principal do laboratório.
Quero contar a ela sobre o que está acontecendo com May,
mas sei que tenho monopolizado a conversa com meu drama
de relacionamento. E o pior é que ainda quero continuar
falando sobre isso. Então eu decido chegar lá pela rotatória.
— O que você fez neste fim de semana? — Eu pergunto,
tentando soar casual, para esconder minhas segundas
intenções. — Alguma coisa divertida?
Mandira bufa.
— Hum, nada demais. O mesmo de sempre. — Mandira me
dá um olhar curioso. — Por que o interesse repentino? Porque
tipo, só dizendo, você não parecia muito interessada em saber
sobre a minha vida antes.
Estou profundamente envergonhada quando ela afirma
isso, porque ela está certa. Eu tenho a usado como terapeuta.
Mas tê-la falando assim é... rude.
— Sinto muito! — Digo a ela. — Eu realmente quero saber
sobre você. Tipo, eu sou tão, tão...
— Shani, está tudo bem. — Ela tranquiliza. — Adoro falar
sobre coisas de relacionamento, e posso dizer que é isso que
você está louca para me contar. — Eu olho para o banco
enquanto ela diz isso, mas Mandira está certa. — Eu gostaria de
ter tido alguém para me dar conselhos quando eu estava no
meu primeiro ano de faculdade. — Acrescenta ela.
Ela tira uma nova concha da caixa, então há uma pausa. Um
momento em que nenhuma de nós diz nada.
— Tudo bem — Continua Mandira, rindo um pouco. —,
me conte o que aconteceu com você neste fim de semana.
Ela olha para mim com as sobrancelhas levantadas, e peço
desculpas mais uma vez antes de iniciar esta edição da Hora da
História de May. Termino com:
— Então, acho que é por isso que estou meio distraída hoje.
— Sem ofensa, mas acho que você está meio distraída todos
os dias – não que você esteja fazendo um trabalho ruim. — Ela
acrescenta. — Mas você definitivamente é alguém distraído.
— Isso é justo. — Eu concordo, mas não estou prestando
muita atenção porque verifico meu telefone e vejo uma
mensagem de May. É uma ilustração de um Moa com a legenda
“vá em paz”. O pássaro tem pernas assustadoramente longas e
um corpo redondo, parecido com uma batata.
Eu mando de volta:
EU: vá em frente
TAY: !!!
oficialmente??
EU: quero dizer
nós não dissemos nada oficialmente
EU: não
é perfeito pq estou meio que em um
relacionamento
e está indo bem até agora
o que significa que talvez em algumas
semanas
quando for mais oficial
eu posso finalmente dizer a minha mãe que eu
sou queer
EU: o quê?
MAY: pera
é esse o barulho que você acha que um trem
faz???
MAY: vergonhoso
até logo
MAY: sabia
mesmo assim, você pode vir assim mesmo,
sabe disso né?
tenho certeza que não é tão ruim
EU: é, muito
EU: oi
o que tá acontecendo por aí?
TAY: obv
a coisa é que ele tem a personalidade de uma
porta
EU: kkk
eu acho que estou apenas preocupada
TAY: ah
EU: sim
EU: hm
tipo eu entrei em uma lixeira ontem
uma caçamba L I T E R A L M E N T E
então eu diria que sim as coisas estão indo
bem
EU: senhor
quantas vezes eu tenho que me desculpar por
isso???
EU: BEM
você tem razão :(((((
sinto muito, excepcionalmente. por favor, me
perdoe, minha melhor amiga perfeita. com
amor, shani.
TAY: excelente
mas sério eu não acho que você tem que se
preocupar
may não soa nada como sadie
16
Arroz persa crocante com grão de bico temperado.
— É a confirmação de que você não é como o Scrooge.
—Bem, Scrooge é uma caricatura antissemita, então...
— Jesus, você está tentando arruinar Um conto de Natal
agora?
— Só estou dizendo que ele é um agiota que não comemora
o Natal...
— Eu odeio você. — Diz May, mas ela está rindo.
É confortável falar com ela assim, discutir sobre bobagens.
— Aqui. — Eu entrego a ela o pôster.
Ela tira o elástico e o desenrola.
— É uma gravura do Hockney — Eu explico. —, para sua
parede.
— E é o gay famoso! — Ela diz depois de um momento
olhando para o pôster com uma mão pressionada em sua
bochecha.
— É absolutamente o gay famoso. — É uma impressão da
pintura mais conhecida de Hockney, Pool with Two Figures. —
Sabe, como as paredes do seu quarto são vazias... eu só pensei
que talvez você quisesse enfeitá-las.
— Obrigada! — Ela agradece e seus olhos ficam
lacrimejantes. — Eu amei isso.
— De nada.
Antes que outra pausa de silêncio aconteça, o garçom vem
com nossa abóbora. O pôster ainda está desenrolado, então
May o enrola e nós comemos, atacando o aperitivo de lados
opostos.
— Isso é tão bom. — Eu falo. — Eu não sabia que abóbora
podia ter esse sabor. É, tipo, irreal.
— Desculpe, você está gravando um comercial de abóbora?
— Eu queria que fosse. Eu invento slogans tão bons.
— Tudo bem. — Diz ela. — Me dê exemplos.
— Bem, para começar, “Abóbora: Very Gourd”.
May bufa.
— Isso deveria ser uma brincadeira com “muito bom”?
— Obviamente.
— Tente novamente.
Eu limpo minha garganta.
— Que tal “Moranga: porque os dias de abóbora estão
contados”?
— Isso faz parecer que a abóbora vai matar a abóbora.
— Quero dizer...
Nós criamos mais alguns slogans, e então a abóbora acabou
e o presente foi dado e mais uma vez ficamos sem coisas para
dizer.
Isso até May limpar a garganta.
— Então, lembra quando estávamos no Espaço Caracóis
pela primeira vez?
— Claro. — Eu respondo, porque... é claro que lembro.
— E eu te disse que já tinha visto antes com uma amiga de
Ithaca? — Eu aceno, não tenho certeza de aonde isso está indo.
— A coisa é, ela não era apenas minha amiga. Ou, bem, ela era
apenas minha amiga. Mas eu queria que ela fosse mais. — May
olha para baixo. — Ela foi a primeira garota por quem eu
realmente me apaixonei.
Eu teria pensado que May me contando sobre outra garota
por quem ela tinha sentimentos me deixaria com ciúmes, mas
eu quero saber mais.
— O que aconteceu?
— Nada. — Ela diz. — Exceto que ela descobriu que eu
tinha uma paixão por ela e me disse que não sentia o mesmo.
Não conversamos muito desde então.
— Eu sinto muito.
Bem, merda.
May acabou de me contar sobre uma garota por quem ela
tinha sentimentos. A primeira garota por quem ela teve
sentimentos. O que significa que agora seria o momento
perfeito para contar a ela sobre Sadie. Nem tudo, claro, mas
apenas que ela existe. Que eu vim para DC com o coração
partido e que, embora eu goste de May – realmente goste dela
–, de muitas maneiras eu ainda sou uma casca vazia.
Mas então nossa comida chega, e eu sou grata pela distração,
porque contar a May sobre Sadie parece uma ideia
terrivelmente horrível, mesmo que agora seja o melhor
momento para fazer isso.
E de qualquer forma, Sadie é passado. E, para citar a lésbica
mais famosa de todos os tempos, Elsa de Arendelle, digo:
— O passado está no passado.
Então, estou deixando para lá. Enfio arroz na boca e escuto
May me contar sobre como pode haver uma frente fria
chegando, o que não parece particularmente interessante, mas
é, quando é ela quem fala sobre isso.
— Você sempre gostou do clima? — Pergunto a May depois
de alguns minutos dela descrevendo como uma frente fria pode
mudar rapidamente a previsão. Está muito quente – ela, não o
clima.
Ela me dá um olhar questionador.
— Você sempre gostou de peixe?
— Na verdade, sim. — Digo a ela.
— Bem, o mesmo para mim.
— Mas e seu pai? — Eu pergunto.
Eu quero retirar imediatamente, já que ele provavelmente
não é o melhor assunto para falar durante nosso encontro. Mas
não é para isso que serve? Para uma saber mais sobre a outra?
Para falar sobre nossas vidas, nossas esperanças, nossos sonhos
e depois dar uns amassos?
— O que tem ele?
— Ele é um meteorologista, certo?
Ela deve sentir a outra pergunta que está na ponta da minha
língua – algo como você não odeia estar seguindo os passos dele?
– porque ela afasta o cabelo do rosto e coloca os cotovelos sobre
a mesa.
— Quando nos dávamos bem, eu queria ser exatamente
como ele. Eu o seguia no trabalho e o observava criar a previsão
do dia, parecia mágica. Como se ele estivesse prevendo o
futuro. — Ela sorri um pouco. — Sei agora que é uma ciência,
mas era o que eu pensava na época. E eu simplesmente amo.
Aprendi sobre mudanças climáticas, oceanografia, lua,
tsunamis e como as pessoas se comportam de maneira diferente
quando chove.
Meu coração quase explode quando ela me conta isso. Eu
poderia ouvi-la falar sobre o tempo por horas.
Para o resto da minha vida.
— Isso é tão legal! — Eu digo e realmente quero dizer isso.
May revira os olhos, mas o rubor em suas bochechas é
evidente mesmo à luz das velas.
Movo meu pé para cruzá-lo sob minha perna, mas
acidentalmente esbarro em May. Ela esbarra em mim de volta.
May sorri enquanto faz isso, então eu sei que é de propósito.
Então eu esbarro nela de novo. E ela esbarra em mim. E logo
nossos tornozelos estão torcidos um ao redor do outro e
estamos brincando com os pés, e é muito mais fácil do que falar.
Meu corpo relaxa. Não é nem mesmo a parte de tocar em
May que me relaxa, exatamente. Na verdade, acho que é o
contrário: ela põe todo o meu corpo no limite. É que a parte
mais difícil já passou, aquela em que eu não sabia quando, ou
se, ou como eu poderia tocá-la.
Assim, não tiro o pé. Parece atraído por ela, como metal em
uma tempestade de raios.
Quando o garçom pergunta se queremos sobremesa, May
diz:
— Acho que precisamos de um minuto. — Então ele
balança a cabeça e vai verificar outra mesa.
May encontra meus olhos de uma maneira que me faz
perguntar, antes que eu possa pensar no que estou dizendo:
— Você quer vir para casa comigo?
Ao que May responde imediatamente:
— Sim.
Quando o garçom volta, May pede a conta, nossos pés ainda
entrelaçados. Ela insiste em pagar, pelo que agradeço muito,
então insisto em pagar o táxi, porque é tarde e o jeito que ela
está olhando para mim me faz querer fazer coisas com ela que a
maioria dos passageiros do metrô provavelmente não gostaria
de ver.
Começamos a nos beijar no momento em que entramos no
carro. Parece, de alguma forma, mais urgente do que das outras
vezes, como se estivéssemos tentando dizer algo uma à outra.
Como se nossos corpos estivessem operando separadamente de
nossas mentes.
Dou uma gorjeta alta ao motorista.
Quando chegamos à casa de Beatrice, corro primeiro para
verificar se a barra está limpa e, quando não ouço ninguém na
cozinha, levo May para o andar de cima.
No fundo da minha mente, ouço Lauren me dizendo as
regras no meu primeiro dia em DC. “Nenhum garoto é
permitido no seu quarto, nunca.” Eu penso em como eu mudei
a regra para que ela se aplicasse a mim, e em como eu não traria
ninguém para o meu quarto, ponto final.
Mas... Eu não estou tecnicamente quebrando uma regra por
ter May no meu quarto. Na verdade, ao levá-la para lá, estou
lutando de frente com o edital heteronormativo.
Então está tudo bem – mais do que bem, na verdade – levar
May para cima.
Passamos despercebidas e continuamos exatamente de onde
paramos. Nós tropeçamos na cama de Beatrice, e então caímos
nela, enroladas juntas.
— Ei! — Ela diz, olhando para mim. — Isso é... você acha
que isso conta como ir devagar?
Lembro-me da conversa que tivemos no sábado. Há menos
de uma semana, no Espaço Caracóis.
Eu encontro seus olhos.
— O que você acha?
Ela respira fundo, então morde o lábio.
— Eu não me importo.
E, por enquanto, nem eu.
Eu envolvo meus braços ao redor de sua cintura e a beijo
para transmitir esse fato e, quando nos separamos, ela parece
aliviada.
May enfia a mão embaixo da minha camiseta e a puxa um
pouco para cima.
— Está tudo bem?
Eu aceno, e ela a tira, junto com a gola alta por baixo. Está
frio no quarto, e com minha pele exposta eu sinto um desejo
ainda mais forte de agarrá-la o mais forte que posso.
Eu alcanço seu suéter e antes que eu possa perguntar se está
tudo bem, ela mesma o tira. Em seguida vem meu sutiã
esportivo, o que é fácil, porque dá para deslizar sobre minha
cabeça.
Beijo o pescoço de May, depois seu colo, redistribuindo o
batom marrom que ela transferiu da sua boca para a minha. Eu
empurro a alça do sutiã para baixo e beijo o pedaço do ombro
que estava sob ele.
— Você pode tirá-lo. — diz ela.
Eu puxo a segunda alça para baixo e beijo seu outro ombro,
então levo minhas mãos para atrás dela, para tentar desabotoar
o sutiã. Eu tento, tento e tento.
Mas May apenas se senta, tira-o com um movimento suave
e se joga de volta no travesseiro.
Beijar agora é diferente do que no chuveiro. Havia algo na
água, no vapor e na banheira escorregadia que deixava claro que
nada mais do que beijos iria acontecer.
Mas agora estamos em uma cama.
E meu corpo sabe o que está prestes a acontecer e
definitivamente quer.
Mas meu cérebro não tem tanta certeza. Na verdade, está me
dizendo para cair fora daqui enquanto posso. Está dizendo que
não tenho ideia do que estou fazendo. Está me lembrando de
que eu nunca fiz isso sóbria. Que eu só vou fazer papel de boba.
Eu começo a ficar tensa, a boca de May deixa de ser perfeita
e macia e tudo gira, de repente ficando mais áspero. Como se
estivéssemos nos beijando sob as luzes da uma sala de cirurgia.
Eu não sei o que fazer. Estou preocupada que seja tarde
demais. Que eu não possa parar o que está prestes a acontecer.
Especialmente porque a mão de May desliza em direção ao meu
jeans.
— Está tudo bem? — Eu concordo. Eu não a paro enquanto
ela se atrapalha com o botão, então o zíper. Porque eu deveria
querer isso. Eu quero isso.
Mas se eu quero isso, então por que minha mente continua
gritando para eu parar? Por que continua nublada por conta
do que aconteceu com Sadie? Por que continua repetindo o
momento que levou ao fim do nosso relacionamento?
Por quê?
E então há um grito de gelar o sangue.
Beatrice está gritando.
Eu me levanto, um novo tipo de medo está se formando
dentro de mim, mas o outro está retrocedendo enquanto fecho
meu jeans e coloco minha camisa de volta.
Eu corro para fora do quarto, batendo a porta atrás de mim
para que, se alguém estiver no patamar principal, não veja May
no meu quarto, seminua.
Lauren chegou primeiro ao quarto de Beatrice, ela a está
ajudando a descer as escadas do sótão.
— Você está bem? — Eu pergunto, estendendo a mão para
ajudar Beatrice pelo resto do caminho.
— Ela está bem. — Lauren responde, parecendo um pouco
irritada. — Ela viu uma aranha.
— Se você visse o jeito que ela estava olhando para mim,
você teria gritado também!
Tasha sai do quarto, equilibrando um laptop no antebraço.
— O que está acontecendo?
— Beatrice viu uma aranha. — Lauren repete, Tasha revira
os olhos e se retira de volta para seu quarto.
— Só isso? — Achei que Beatrice estava à beira da morte.
Ela tem noventa e seis anos. Não era uma suposição tão
estúpida.
— Boneca! — Beatrice começa a sério, segurando meu
braço enquanto ela chega ao patamar. — Só tenho medo de
duas coisas neste mundo: aranhas e fascismo.
— Então, você está bem? — Eu pergunto.
— Tudo bem, anjo. — Ela acena com o braço. — Não se
preocupe comigo.
Com isso, Lauren leva Beatrice para baixo para uma xícara
de chá.
E eu tenho que voltar para o antigo quarto de Beatrice.
Onde May está.
Onde ela está seminua, e eu estou completamente vestida, e
ela provavelmente espera que eu faça sexo com ela, mesmo que
ela tenha dito que queria levar as coisas devagar.
Não posso voltar lá e não sei o que fazer. Sei que é horrível,
mas gostaria que algo tivesse acontecido com Beatrice — nada
ruim, apenas ruim o suficiente — para não ter que enfrentar
May novamente.
Eu empurro as palmas das minhas mãos contra meus olhos
até que haja manchas e cores, então respiro, lutando contra a
vontade de vomitar.
Abro a porta e May está debaixo dos lençóis, parecendo
ansiosa.
— Beatrice está bem?
— Ela está bem. — Eu respondo, sem me mover em direção
à cama.
— Isso é bom, certo?
— Sim.
May suspira de alívio e dá um tapinha no travesseiro ao lado
dela.
— Vem aqui? — Ela chama, mordendo o lábio inferior. —
Podemos continuar. Continuar de onde paramos...
Mas a ideia de continuar de onde paramos me faz querer
morrer e não sei como dizer isso a May ou como dizer a ela que
talvez sua definição de devagar não seja a mesma que a minha.
Não sei como dizer a ela o quanto estou com medo e que não
quero repetir o que aconteceu com Sadie.
Então, em vez de dizer isso a ela, apenas digo:
— Estou meio cansada.
— Tudo bem. — Diz May. — Podemos simplesmente ir
dormir. — Ela dá um tapinha na cama ao lado dela novamente
e levanta as cobertas.
Mas isso é apenas adiar o inevitável. Agora que quase
fizemos sexo, vai acontecer a qualquer momento. E eu quero,
mas ao mesmo tempo prefiro pular de um avião sem
paraquedas.
Fiz muita pesquisa e sei que não sou assexual.
Mas estou assustada para caralho.
Meu corpo travou.
— Hum, Beatrice realmente não gosta de pessoas
desconhecidas dormindo aqui.
— Ela não precisa saber! — May brinca em uma voz que
provavelmente soaria sexy para qualquer outro ser humano,
mas atualmente está me enchendo de pavor.
Odeio não querer voltar para a cama com May. Eu deveria
querer, mas não posso.
— Eu não sei. — Eu digo, ainda de pé na porta. — Ela está
muito assustada. E estou preocupada que ela veja você sair e isso
a assuste ainda mais. — Isso é principalmente uma mentira,
mas não sei mais o que dizer.
May se senta, parecendo confusa.
— Você não quer que eu fique? — O ar na sala fica parado
e, quando não respondo, May franze a testa e diz: — Eu vou
embora.
Eu aceno, então desvio o olhar enquanto ela se veste. Eu
ando em direção à cama enquanto ela caminha até a porta.
— Tchau, eu acho. — Ela diz enquanto sai.
— Certifique-se de que Beatrice não veja você na saída. —
Eu peço, ainda sem olhar para ela.
Ela bate a porta do quarto e, depois de alguns segundos, a
porta da frente bate também.
Coloco a cabeça entre as mãos e tento chorar, soluçar,
chorar, mas nada sai.
Está tudo uma bagunça, tudo.
Eu gostaria de ter a coragem de correr atrás dela. Para
explicar tudo.
Mas não posso me humilhar assim.
Eu apenas afugentei uma garota, uma garota que eu gosto
muito, porque eu tenho medo de fazer sexo com ela.
Por causa da porra da Sadie.
Porra.
Eu tenho que terminar as coisas com May. Não há como
isso dar certo.
Eu subo na cama e sinto algo amassando debaixo de mim.
Eu levanto as cobertas para encontrar a impressão de
Hockney amassada.
Uma bagunça gay
17
Alegre-se, em russo
se eu tinha namorado e quase cuspi meu café, mas não a corrigi.
Talvez Tasha e Lauren pensem assim também.
Mas pelo menos posso usar isso.
— Problemas com garotos, eu acho. — Parece tão
antinatural saindo da minha boca que eu nem culpo Lauren
quando ela dá a Tasha um olhar cético.
— Bem, um brinde aos nossos problemas com garotos. —
Lauren diz, independentemente de sua clara incredulidade.
— Você está namorando o mesmo cara desde o colegial. —
Tasha fala. — Que tipo de problemas com garotos você está
tendo?
— Muitos — Lauren responde. —, só não falo sobre eles.
Eu deixo a briga familiar de Lauren e Tasha entrar por um
ouvido e sair pelo outro.
Então elas servem um terceiro copo, minhas pernas
começam a ficar dormentes e minha cabeça está girando.
Depois de um minuto, Lauren empurra a garrafa para o centro
da mesa.
— Acho que foi o suficiente.
— Claro. — Eu digo, feliz por ter alguém tomando uma
decisão por mim. Então eu volto a ouvir Tasha e Lauren
falarem sobre as inscrições para a pós-graduação de Lauren.
Mas não consigo me concentrar. Eu não entendo como elas
estão levando suas vidas normais agora, quando nada é normal.
E, no entanto, aqui estão elas, na mesa da cozinha, falando
sobre seus futuros.
É demais para mim, então peço licença e subo.
Sento-me no chão do quarto de Beatrice, debruçada sobre
meu telefone. Debatendo para quem mandar mensagem.
Eu poderia mandar uma mensagem para Taylor.
Mas... não.
Porque se eu mandar uma mensagem para ela, tenho certeza
de que ela vai ficar brava. Ela vai perguntar por que eu não a
deixei saber o que estava acontecendo. Taylor vai me dizer que
estou agindo como no primeiro semestre. Ela pode até tentar
oferecer conselhos racionais. E eu não os quero.
Mas há uma pessoa que definitivamente não vai oferecer
nenhum conselho.
Eu navego para Configurações.
Eu pressiono Bloqueio e Identificação de Chamadas.
Eu toco Editar.
Eu desbloqueio o número de Sadie.
Eu começo a digitar uma mensagem.
E faço uma pergunta que tem me incomodado desde que
terminamos. Pergunto mesmo que, no fundo, já saiba a
resposta.
Mas eu preciso saber da boca dela.
Não.
EU: sim
SADIE: É
legal que você seja assexual ou o que quer
que seja
Mas independentemente disso
Você precisa colocar suas merdas no lugar
Essa última mensagem que ela enviou pode ser a única coisa
verdadeira que ela já disse para mim, a parte sobre a necessidade
de colocar minhas coisas em ordem.
E o primeiro passo que dou nesse esforço é bloquear
novamente o número dela.
Então eu subo na cama e choro. Enfio-me debaixo dos
lençóis, gemo até minha garganta doer e meus olhos arderem.
Um pensamento surge na minha cabeça, um que acho que não
tenho desde os cinco anos de idade:
Eu preciso da minha mãe.
É um sentimento tão primitivo. Eu preciso dela. Eu preciso
dela aqui.
Pego meu telefone novamente, me sento, respiro fundo e
ligo para ela.
— Shani? — Minha mãe pergunta quando atende e, antes
que eu possa respondê-la, ela diz: — Você não liga há tanto
tempo que pensei que você tinha me deserdado ou algo assim.
Ela ri fracamente de sua própria piada e ouvir sua voz quebra
algo em mim. Começo a soluçar tão alto que sei que ela
também ouve. Eu tento parar, mas não consigo. Depois de um
segundo, eu finalmente colapso
— Mãe?
— Querida, você está bem?
Eu choro por mais um minuto, tentando me recompor.
— Shani?
— Eu preciso de você aqui. — Eu digo através de lágrimas
quentes e grossas.
— Em DC?
Eu tento dizer “aham” enquanto soluço, mas sai como se eu
estivesse asfixiada. Eu engulo o ranho da minha garganta e digo:
— Você estava certa. — Então começo a chorar ainda mais.
— Você estava certa. — Repito.
— Sobre o quê, querida? — Ela pergunta tão, tão
gentilmente.
Eu bufo, eu choro.
— Eu não deveria ter vindo. Eu deveria ter ficado em casa.
— Não, querida. — Diz ela, usando sua voz mais suave. —
Você é tão corajosa. Minha garota corajosa.
Outro soluço sai, e então mais um, e ela me deixa chorar por
um minuto até que eu diga:
— Por favor, venha. Por favor?
Ela suspira, mas não com raiva.
— Ok, querida. — Ouço o som de digitação em um teclado.
— Eu só tenho que enviar um e-mail para meu chefe, mas posso
estar aí amanhã de manhã cedo. Você pode esperar esse tempo?
Você vai ficar bem?
Eu agarro um travesseiro.
— Sim. — Eu digo, as lágrimas diminuindo.
— Você quer falar sobre isso agora? Ou mais tarde?
— Mais tarde.
— Ok! — Ela concorda, então repete. — Ok. — Ela respira.
— Vou sair em breve. Ligue-me se precisar de alguma coisa, está
bem?
Concordo com a cabeça, mesmo que seja um telefonema,
mesmo que ela não possa me ver.
— Eu te amo, Shani. Eu te amo muito, sempre. Você sabe
disso, certo?
Minha visão nubla-se com lágrimas novamente quando
declaro:
— Eu também te amo.
Então ela diz:
— Fique segura. Vejo você em breve — E depois desliga.
Estou chorando de novo, mas dessa vez de alívio. Não
importa o quanto eu estraguei tudo. Minha mãe está vindo, e
tudo vai ficar bem.
E com esse pensamento, e depois de mais alguns minutos de
choro, adormeço.
The Big Blue ou seja lá o que for
Minha mãe teve que ir embora mais tarde naquele dia, mesmo
assim foi um dos melhores dias que tivemos juntas. Depois do
café da manhã, voltamos para a casa de Beatrice e conversamos
com ela por um tempo. Então minha mãe escreveu por mim
um e-mail para o centro de aconselhamento de Binghamton
marcando um horário para quando as aulas recomeçarem. Eu
me senti menos sobrecarregada no minuto em que apertei
Enviar.
Bem, eu ainda me sentia incrivelmente triste e ansiosa, mas
de uma maneira mais administrável. Quando minha mãe saiu
tarde naquele dia, eu a abracei e disse adeus enquanto ela ia
embora.
— Vejo você em alguns dias. — Ela me lembrou.
Eu balancei a cabeça, mas ainda chorei enquanto ela se
afastava.
Agora que ela se foi, no entanto, May está pesando em
minha mente novamente.
Eu não contei nada para minha mãe sobre ela. Eu não podia.
Contar à minha mãe sobre May parecia uma invasão de
privacidade. Não à minha privacidade, realmente. Mas à dela.
Acho que não sei o que estou fazendo. Eu só sinto falta dela.
May se tornou uma parte tão grande da minha vida tão
rapidamente, e agora que ela se foi, há um buraco no qual ela,
de alguma forma, se encaixava perfeitamente.
Mas acho que o melhor a fazer é esquecê-la. Para reconhecer
que farei melhor da próxima vez, seja qual for a próxima vez.
Mesmo que não seja com ela.
A boa notícia sobre tudo isso é que estou muito mais focada
no estágio. A má notícia é que agora é meu penúltimo dia no
laboratório, então o foco veio um pouco tarde.
Dr. Graham sai de seu escritório por um tempo, discutimos
um artigo em que ele está trabalhando sobre uma espécie
extinta de celacanto e nossas opiniões sobre. É estressante falar
com ele, mas tão, tão excitante. Mandira está aqui também, e
ela me dá um sinal positivo pelas costas do Dr. Graham.
— Acho que isso será muito importante para a pesquisa do
anel esclerótico. — Diz ele. — Você sabe o que é o anel
esclerótico? É onde o olho está localizado na maioria dos répteis
e peixes. — Ele explica que seu artigo está focado na evolução
do anel, e os celacantos são um ótimo organismo para estudar
como as características evoluíram, porque eles estão
intimamente relacionados com os primeiros tetrápodes. —
Acho que pode até ajudar os cientistas que estudam os olhos
dos mamíferos.
— Ah, legal! — Eu respondo a ele. — Os anéis escleróticos
estão bem preservados em algum dos fósseis de celacantos?
— Ótima pergunta. — Exclama ele, e eu dou um sorriso. Ele
fala ainda mais rápido quando continua. — Eles raramente são
preservados em fósseis, mas os dos celacantos que encontramos
em uma escavação no início deste ano estão, e eles podem nos
ajudar a aprender sobre a evolução do anel esclerótico. — Dr.
Graham sorri. — Pode ser um grande avanço.
Ouvi-lo falar é como estar na platéia de um TED Talk
personalizado. Faz-me desejar não ter estado tão distraída nas
primeiras semanas do meu estágio. Que eu tivesse feito mais
perguntas.
No final do dia, Mandira me puxa de lado.
— Fico feliz em ver que você está mais focada. — Ela abaixa
a voz e acrescenta. — Acho que é algo tão difícil de aprender –
que um relacionamento não precisa consumir tudo. Que você
deve ser capaz de ser você mesma e viver sua própria vida, mas
com uma companhia. E parece que você já está aprendendo
isso, o que é incrível.
Meu coração é um trem de carga no meu peito. Ela parece
tão animada para me dar conselhos sobre relacionamentos
queer.
— Demorei um pouco para descobrir isso com minha
namorada. — Ela continua. — Eu estava muito obcecada por
ela quando começamos a namorar. Mas agora as coisas estão
mais calmas. Eu a amo, mas não sou obcecada por ela. Há uma
diferença.
Eu aceno e agradeço a ela, então corro para fora do
laboratório. Eu não vou dizer a Mandira que a razão pela qual
eu não estou mais obcecada por May ou por nosso
relacionamento é que ele não existe mais.
Mas enquanto estou indo para casa no metrô, a tristeza
baseada em May volta, como aconteceu esta manhã antes do
laboratório. Minha mente vagueia para todas as coisas boas, o
que me deixa ainda mais triste: Raphael testemunhando nosso
primeiro beijo, abraçadas no sofá. Quando ela limpou o
sabonete dos meus olhos no chuveiro. Isso me faz estremecer,
mas ainda assim foi bom. Foi tudo tão, tão bom.
Quando eu pego a escada rolante e saio do metrô na minha
parada, de repente me sinto paranoica. É um pouco irracional,
mas estou preocupada que vá correr até a casa de May em
algum momento.
Preciso de uma distração enquanto caminho para casa,
então ligo para Taylor. É hora de ser honesta com ela, de
qualquer maneira. Nós não nos falamos desde antes da merda
acontecer com May, e ela precisa saber.
— Quanto tempo! — Ela diz quando atende à ligação do
FaceTime. Tay está me dando um olhar que diz: É melhor você
não estar namorando uma Sadie.
— Sim! — Eu concordo. — Sobre isso...
E eu me lanço na história. Começo com Sadie e, ao contrário
da minha mãe, Taylor recebe todos os detalhes sobre como as
coisas terminaram. Eu conto tudo a ela. Então peço desculpas
por não ter contado tudo a Tay quando liguei para ela
chorando quando Sadie terminou comigo. Então peço
desculpas novamente, só porque sinto que o primeiro pedido
não foi suficiente.
— Por que você não me contou isso antes? — Ela pergunta.
— Eu literalmente teria dirigido para Binghamton e falado
umas verdades na cara dela.
— Só isso? Falar verdades na cara dela?
— E um socão na cara dela.
Eu balanço minha cabeça e rio. Estou pegando o caminho
mais longo para casa, serpenteando pelas ruelas do bairro.
— Mas realmente, obrigado por me dizer, Shan. —
Agradece Taylor. — Você sabe que eu te amo muito, certo?
Eu assinto, um nó se formando na minha garganta.
— E nada disso foi culpa sua. — Ela diz tão gentilmente.
Então, ela respira fundo. — Eu também queria dizer que o que
ela fez com você realmente soa como agressão sexual.
O nó na minha garganta desaparece e é substituído por um
soluço.
Eu assinto novamente, mas não digo nada.
Eu sabia na minha cabeça que o que aconteceu com Sadie
parecia errado, mas é muito, muito válido ouvir Taylor dizer
isso em voz alta.
Que foi agressão sexual. Porque foi isso.
Taylor me deixa chorar por alguns minutos, uma presença
calmante do outro lado do telefone.
Quando me acalmo, conto a ela sobre May. Sobre por que
eu me apavorei quando as coisas começaram, tipo... a
acontecer.
— Isso é completamente compreensível. — Taylor me
tranquiliza, mas eu perco a próxima coisa quando as sirenes
soam à distância.
— O quê?
— Eu disse que entendo se você não quiser tentar falar com
May, mas acho que deveria.
— Não sei. — Olho para a calçada, que ainda tem um
pouquinho de neve nas bordas, a última evidência da nevasca
da véspera de Natal. — Duvido que ela vá me perdoar por
terminar as coisas sem uma explicação.
— Então dê a ela uma explicação!
— Não sei... — Eu repito.
Porque eu tenho pensado que, mesmo sentindo falta de
May, talvez eu não deva estar em um relacionamento agora. Na
verdade, eu quase definitivamente não deveria estar.
Provavelmente.
Taylor deixa de lado o assunto depois disso, e passamos a
falar sobre Teddy e sua falta de personalidade.
Digo adeus a ela quando viro na minha rua, mas quando
olho por cima do meu telefone, meu coração cai.
Há uma ambulância e um caminhão de bombeiros, ambos
com as luzes piscando.
Estacionados em frente à casa de Beatrice.
Café e necrotério
18
Mascote oficial da Associação Nacional de Proteção à Incêndios, nos EUA.
completamente impotente. E então me sinto mal por me sentir
impotente, porque Beatrice é quem está sendo levada às pressas
para o hospital, sem ninguém para encontrá-la, segurar sua mão
ou dizer que ela ficará bem.
— Nós podemos pegar o ônibus. — Lauren diz, pegando
seu telefone. — Tem um chegando, tipo, em quinze minutos.
— Quinze minutos? — Eu grito para Lauren, como se ela
controlasse o horário do ônibus de DC. — Desculpe! — Eu
acrescento. — É que isso é muito tempo.
— Se você tiver alguma outra maneira de nos levar ao
hospital mais rápido, fique à vontade. — Ela olha para o
telefone. — Da última vez que tentei pegar um táxi para o
hospital, eles cancelaram comigo, depois ligaram para gritar
que eles não eram uma porra de uma “ambulância”. Eu estava
apenas tentando chegar para o meu exame de Papanicolau e...
Lauren continua falando em espiral e, quando ela faz isso,
eu percebo que eu tenho uma maneira de nos levar lá mais
rápido.
Isto é, se ela estiver em casa.
Eu sei que ela tem um carro, pelo menos.
Mas eu nem sei se ela dirige. E ela definitivamente não vai
querer me ver. Ela teria todo o direito de bater a porta na minha
cara.
Mas isso é para Beatrice.
— Vamos. — Digo a Lauren. — Nós estamos indo para a
casa de Greg.
— Sério? — Ela pergunta. — Greg vai nos levar?
— Não. — Eu respondo. — May vai.
Lauren me dá um olhar cético, mas relutantemente me
segue quando corro na direção da casa de May. Leva apenas
alguns minutos, mas estou ofegante enquanto caminhamos até
a área da frente. Espero que meu plano funcione quando vejo
o carro de Greg estacionado na frente, mas meu coração dispara
enquanto penso no que estou prestes a fazer.
Ando até a porta da frente com a determinação de alguém
que nunca conheceu o medo.
Eu bato.
Um minuto depois, a porta se abre, e é May, de pijama,
embora seja apenas seis horas. A determinação sai de mim, e
então, realmente, eu só quero olhar para ela. Que é o impulso
errado exato neste momento.
Ela não encontra meus olhos quando diz:
— Ah, hum, acho que vou chamar Raphael. — E começa a
fechar a porta.
— Não! Espere! — Eu grito, e ela reabre um pouquinho.
Respirações profundas. — Você sabe dirigir?
Depois de uma batida, ela se vira para mim, confusa.
— Hum, sim?
Concordo com a cabeça, mas agora que ela finalmente está
olhando para mim, não digo nada. Eu não posso dizer nada.
Felizmente, Lauren intervém:
— Beatrice está no hospital. Você pode nos levar até lá?
May cruza os braços sobre o peito, balança para frente e para
trás, depois acena com a cabeça.
— Sim, ok.
Alguns segundos depois, ela está de volta do lado de fora,
vestindo um casaco por cima do pijama e segurando um molho
de chaves. May nos aponta para o carro de seu pai.
Eu debato comigo mesma sobre deixar Lauren sentar-se na
frente, mas então eu paro e pulo no banco do passageiro, e nós
partimos.
Nós não falamos durante todo o passeio de carro. Nenhuma
de nós. Nem um único pio. O que permite que meu cérebro
contemple o que significa May estar nos levando para o
hospital. Só que ela é uma boa pessoa, provavelmente. Não
significa nada sobre nós. Mas talvez possa?
Começo a formular uma ideia. Sobre mim e May. Não
tenho certeza se é uma boa, mas me deixo meditar até que o
hospital apareça.
— Posso deixar vocês duas aqui? — May pergunta
enquanto estaciona na entrada da frente.
Lauren sai do carro, mas eu não. E então, antes que eu saiba
o que estou dizendo, viro para May e pergunto:
— Você pode entrar também?
Ela coloca as mãos em cima da cabeça, alisando o cabelo.
Depois de um momento:
— Deixe-me encontrar uma vaga para estacionar. — Eu
expiro pelo que parece ser a primeira vez desde que vi a
ambulância. — Vocês duas deveriam descer aqui, no entanto.
— Muito obrigada. — Lauren diz do lado de fora do carro.
Eu levanto minhas sobrancelhas – acho que vibrações
estranhas podem ser ignoradas em uma crise – e a sigo
enquanto May dirige em direção ao estacionamento.
Quando Lauren e eu entramos, perguntamos
freneticamente sobre o paradeiro de Beatrice, e uma gentil
funcionária nos leva até o quarto dela.
Entramos em silêncio, caso ela esteja dormindo, mas ela está
falando com uma médica. Eu não entendo o que elas estão
dizendo, mas Beatrice está acenando com as mãos com desdém
e sorrindo um pouco, então não pode ser tão ruim assim.
Lauren caminha até sua cama primeiro.
— Bonecas! — Ela cumprimenta quando nos vê. — Vocês
acreditam que eu ainda estou viva?
— Não. — Diz Lauren, e Beatrice joga a cabeça para trás na
risada.
A médica se apresenta como Dra. Clarke e aperta nossas
mãos.
— Voltarei daqui a pouco para ver como está Beatrice, mas
enquanto isso, não a deixe comer ou beber nada. Ela pode
comer lascas de gelo se estiver com sede.
— Por que? — Eu pergunto.
— Bem, não podemos descartar a cirurgia e, se precisarmos
levá-la para a sala de cirurgia, seu sistema deve estar limpo.
— Meu sistema está bem. — Diz Beatrice.
— Como eu estava dizendo a ela, o Raio-x voltou
mostrando uma fratura no quadril, e geralmente não gostamos
de operar alguém de idade tão avançada — Beatrice ri disso. —
, mas ela está em um estado notável.
Eu odeio o jeito que a Dra. Clarke fala sobre Beatrice como
se ela fosse uma cadela. Há algo em ver o corpinho dela na cama
estéril do hospital; eu me sinto protetora com ela.
— Tudo bem. — Diz a médica, batendo palmas. — Volto
daqui a pouco.
— Vá pela sombraaaa! — Fala Beatrice quando ela se foi.
Lauren se senta na beirada da cama do hospital, e eu caio em
uma cadeira próxima.
— Por que você não ligou para mim? — Lauren pergunta,
segurando a mão de Beatrice e enxugando as lágrimas. — Eu
teria ido! Eu teria ajudado você!
— Eu sei disso, boneca — Beatrice responde. —, mas você
já faz muita coisa. Eu tinha tudo sob controle.
— Você tinha? — Lauren pergunta, sobrancelhas
levantadas. — Porque eu tenho certeza de que ser internada no
hospital não conta como ter tudo sob controle.
Beatrice dá um tapa em Lauren, estremecendo um pouco ao
fazê-lo.
— Você não precisa se preocupar tanto comigo, boneca. Se
eu sobrevivi a cinquenta e três, posso sobreviver a uma pequena
quedinha!
— O que aconteceu em cinquenta e três? — Lauren
questiona.
— Oh, você sabe, sendo acusada de ter simpatias
comunistas, aquele bastardo do McCarthy... blá blá blá. Não
quero aborrecê-la com os detalhes.
Eu adoraria ficar entediada com os detalhes de Beatrice e
suas simpatias comunistas, mas nesse momento May aparece,
parando no batente da porta.
— É outro anjo? — Beatrice questiona enquanto acena para
May sem mais perguntas.
May parece extremamente desconfortável, e não posso
culpá-la. Ela parece se sentir como eu. Mas, além do meu
desconforto, há outra sensação que tenho ao vê-la: é quente,
macia, formigante e demais para agora.
— Tudo bem, mas como você está se sentindo? — Lauren
pergunta, voltando-se para Beatrice, segurando sua mão.
— Ah, perfeitamente bem. Mas você quer saber o que eu
realmente adoraria? — Beatrice gesticula para que Lauren se
aproxime. — Um copo de Baileys com uma grande bola de
sorvete. Você pode fazer isso por mim?
Beatrice sorri, e Lauren e eu rimos educadamente,
agradando-a, enquanto May silenciosamente assombra o canto
mais distante da sala. Ela está alternando entre olhar para seu
telefone e para mim, então rapidamente de volta para baixo. O
que eu só sei porque tenho feito o mesmo.
Somos como lésbicas em um drama de época à beira-mar.
— Mas já que eu não posso ter isso, vocês bonecas — Ela
aponta para mim e para May. —, podem pegar para mim e para
este anjo — Ela aponta para Lauren. —, duas xícaras de café?
Como isso soa?
— Você não pode beber nada. — Eu a lembro. — A médica
disse apenas lascas de gelo no caso de você precisar de cirurgia.
— O que um pouco de café vai fazer? — Mas Lauren olha
para ela e Beatrice diz: — Ok, o café é só para o anjo, então.
— Eu posso pegar sozinha. — Lauren diz, olhando para
May.
— Elas podem fazer isso. — Insiste Beatrice, acenando com
a mão. — Você fica aqui comigo.
Se eu não soubesse, pensaria que Beatrice estava me dando
uma desculpa para ficar sozinha com May.
Eu me viro para encontrar May, que está mais uma vez
olhando para mim. Meu coração acelera, e eu aceno com a
cabeça em direção ao corredor. Ela não reage por um momento,
então sai do quarto.
Uma confirmação.
O que faz meu coração bater ainda mais rápido. Mas eu sei
que é necessário; nós realmente precisamos conversar. Não
importa o que esteja acontecendo entre nós, o mínimo que
devo a ela é uma explicação.
— Voltaremos em breve. — Digo a Beatrice.
— Não se apressem, anjos. — Diz ela. — A boneca aqui e eu
podemos conseguir nossa própria diversão.
— Isso nós podemos. — Concorda Lauren. — E um pouco
de leite, por favor? No café. Qualquer leite serve.
Dou um sinal de positivo e saio do quarto de hospital de
Beatrice, esperando que May esteja me seguindo. Mas antes de
ter essa conversa com May, há outra coisa que preciso fazer.
Eu rascunho uma mensagem para minha mãe.
MÃE: Que
Ela está OK??
EU: sim
mas a médica está vendo se ela precisa de
cirurgia
EU: obrigada
qualquer coisa eu aviso