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e À Prost tuição

Viril
Néstor Osvaldo Perlq(g&à
A ts À

e À Condicão da Mulher — Amor, paixão e sexualidade —


NMarta Suplicy
A Contestação Homossexual — Guy Hocquenghen
A Funcão do Orgasmo — Wilhelm Reich
Os Papéis Sexuais — John Money/Patrícia Tucker
Repressão Sexual — Em nossa tdes)conhecida — Marilena
Chausí
Sexualidades Ocidentais — P. Arféês/A, Béjin forgs. )
O negócio do michê
Coleção Primeiros Passos
»O que é Amor -- Betty Milan
'prostituição viril em São Paulo
* O que é Corpotlatria) — Wanderley Codo/Wilson A. Senne
e O que é Erotismo — Lúcia Castelo Branco
* O que é Feminismo — Branca Moreira Atves/Jacqueline
Pitanguy
» O que é Homossexualismo — Peter Fryi' Edward MachRae
* O que é Pornografia — Eliane R. Morais/Sandra M, Lapeiz
mE

ú
Coleção Encanto Radical
* Madame Satã — Com o diabo no corpo — Rogério
Dúrst
» Pier Paolo Pasolini — Orfeu na sociedade industrial
— Luíz
Nazário ;

0.2110.875-€
;
1
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f editora brasiliense
DIVIDINDO DPINHÕES MULTIPLICANDO CULTURA

H 1987
U
-
Copyright O Néstor Osvaldo Perlongher

Capa:
Isabel Carballo

Foto de capa:
Inêz Guertreiro

Revisão:
Marisilda Silva
Lúcio F. M. Filho

Indice
sc-DIDZOLA49-1

Tin dae Aau'!ªcªº_º%——


10b
ÁAgradecimentos
Aquurico de Prefácio — Peter Fry
De'o Ax WW Introdução
Presco — E | Etnografia das margens
Regis:io ºvz'%í oãsfj—kf .. Tranformações no espaço urbano: o gueto gay
Data Regisiro L Qiz —— si o paulistano entre 1959 e 1984
" SA Territórios e populações
Derivas e devires

O negócio do desejo
Bibliografia

editora brasiliense s .a.


rua general jardim, 160
01223 - são paulo - sp
fone (011) 231-1422
telex: 11 33271 DBLM BR
“Ffermina — empieza — alguna cosa.
Una experiencia se suelda con otra
pero no se confunde — fruto de un compromiso
particular; no repetir es la consigna
para seguir investigando donde el camino
se interrumpe.
Otra siesta habrá de revelar
lo que otros escondieron o mostraron
A Maria Tereza Aarão
pero no supimos describir; a veces sucedió
Nota de advertência aunque no durara, Los signos multiplicam
nunca cabal conocimiento impedido
Os nomes das pessoas e de alguns locais (bares, por circunstancia dilatoria:
boates, cinemas, saunas) envolvidos na pesquisa fo- pocos ahos, poca plata.
ram propositalmente alterados, com o intuito de res- Así Gatsby o Stahr contemplan la langosta
- guardar a intimidade dos interessados. expuesta en la vitrina de un café. *
Muitas das citações de autores estrangeiros aqui : .
apresentadas foram traduzidas, visando maior fluên- Roberto Echavarren, Animalaccio,
cia do texto. 1985, p. 59.
Agradecimentos

A versão original deste livro foi defendida como


dissertação de Mestrado em Antropologia Social na
UNICAMP, em junho de 1986. Poucas modificações
foram introduzidas: suprimiu-se o capítulo sobre “O
Contrato da Prostituição Viril” — parcialmente publi-
cado nos Arquivos Brasileiros de Psicologia (Perlon-
gher, vol. 37, nº 2, RI, 1985) — e as tabelas de entrevis-
tados. Tradução de uma multiplicidade de vozes, mui-
tas pessoas ajudaram a que a pesquisa — na qual o livro
sustenta-se — fosse possível. Meus agradecimentos a
Mariza Corrêa, pela sua orientação; a Peter F ry e Luiz
Orlandi, que junto com ela integraram a Banca Exa-
minadora, pelo seu apoio nos tramos iniciais e suas
significativas contribuições finais; a Jorge Schwartz,
pelo seu permanente estímulo; a Suely Rolnik, Luiz
Eduardo Soares, Heloisa Pontes, Maria Manuela Car-
neiro da Cunha, Rose Marie Lobert, Bella Feldman
Bianco, Arakcy Martins Rodrigues, Sergio À. Domin-
gues, Eunice Durham e aos professores e estudantes
da UNICAMP, por suas leituras e discussões do pro-
jeto; ao “Grupo de Sexualidade e Reprodução” da
Associação Brasileira de Estudos Populacionais, aos
grupos “Estudos Urbanos” e “Família e Sociedade”
10 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER

da Associação Nacional de Pós-Graduados em Ciên-


cias Sociais e aos grupos de trabalho “O Desvio em
Questão” e “Sexualidade” da Associação Brasileira de
Antropologia, que permitiram a apresentação polê-
mica de aspectos parciais do estudo; a Jorge Beloqui,
João Silvério Trevisan, Eduardo José de Sena, Antonio
Carlos de Faria, Liliana Marta Fernández, Luizmar
Evangelista, Veriano Terto e, sobretudo, a Pedro de
Souza, por suas observações e sua indispensável cola- Prefácio
boração na luta contra um persistente portunhol: a
Edward Mac Rae, Glauco Mattoso, Carlos Nelson F.
dos Santos, Paulo Otioni, Maria Dulce Gaspar, René
Schérer, Raquel Rolnik, Maria Suely Kofes, Luiz Ao ler este livro, o leitor talvez pense, como eu, da
Mott, Alfredo Iussem, pelas suas sugestões e gentil extraordinária eficiência das sociedades humanas em
cessão de materiais e textos utilizados na pesquisa; a garantir que algo tão polimorfo e perverso como o cfe-
Pedro Nunes, Roberto Piva, Darcy Penteado, Zezé sejo sexual acabe sendo constituído, na grande maio-
Melgar e outros cujos nomes escapam-me, pelas suas ria dos indivíduos, de tal forma que acabem desejando
valiosas informações; a Monique ÁAugras, Graciela o que é socialmente desejável. Afinal, índep!endentç—
Barbero, Sara Torres, Eduardo Brites, Jacques Bou- mente dos esforços da TEFP, a grande maioria de nós
chara, por seus comentários críticos; aos michês e “en- casa (formal ou informalmente) homogamicamente.
tendidos” da noite paulistana, que me guiaram pelos Mas os misteriosos mecanismos que produzem este
labirintos do gueto; à CAPES e à FAPESP, por seus efeito contêm dentro de si dispositivos em contr:ârio,
imprescindíveis financiamentos. que fazem com que muita gente deseje “indesejavel-
mente”, Eles produzem também um locus onde esses
desejos podem ser consumados de acordo com regras e
significações tão elaboradas quanto aquelas que .gub-
Jazem o consumar dos desejos mais “desejáveis . É so-
bre este lugar, o “gueto gay" de São Paulo, que Néstor
escreveu este livro.
Agora, as palavras deste prefaciador não sã.o neu-
tras, poís quem as escreve não é apenas um leitor do
livro de Néstor. É personagem também. Não, apresso-
me em dizer, como um dos michês ou clientes que fre-
qiuentam as páginas, mas como um daqueles que acom-
panhou de perto o desenvolvimento da pesquisa e que
12 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊE 13
aparece citado no texto, nas notas de rodapé e na bi- sentações gerais para a ação “molecular” da vida coti-
bliografia. Faço parte do que se costuma chamar de diana. À primeira parte do livro é uma história da for-
“referência bibliográfica”, e como tal surjo como pro- mação da taxonomia dos Dersonagens sociais envol-
tagonista de uma determinada perspectiva teórica — vidos no jogo das relações homossexuais na cidade de
aquela que insiste na necessidade de compreender a
São Paulo e sua distribuição pelo espaço do centro
sexualidade como fenômeno cultural e histórico. As- desta cidade. Uma espécie de “cartografia”, como de-
sim, nossa infinitamente rica pletora de identidades
fine o autor, À segunda parte coloca o sistema em mo-
sexuais, nossos homens, mulheres, bichas, michês,
ção, descrevendo e analisando as trajetórias dos mi-
viados, travestis, sapatões, monas, ades, MmOonocos, sa- chês e seus clientes, e as possibilidades de relaciona-
boeiras e assim por diante não são simples traduções mento entre eles; entre rapazes jovens, pobres e predo-
dos homossexuais, heterossexuais e bissexuais que po- minantemente negros e seus clientes, mais velhos, mais
voam as terras angio-saxônicas. São personagens de ricos e mais brancos.
um cenário de significações que têm sua história e ló- Num livro tão denso em dados etnográficos e in-
gica próprias, terpretações analíticas, mencionar um aspecto ou ou-
Confesso que mantenho minha posição com a tro não me parece muito apropriado ou interessante
maior dificuldade perante meus opositores, que prefe- .
Mesmo assim, gostaria de aproveitar o espaço que me
rem acreditar que gay é guel em todos os lugares e Ffoi cedido para comentar alguns Dontos que me pare-
todas as épocas. Assim, Alexandre, o Grande, Leo- cem da maior importância.
nardo da Vinci e Oscar Wilde, só para citar alguns, Em primeiro lugar, quero frisar que este livro não
são apenas os mais ilustres de uma espécie de linha- é apenas mais um estudo frio das margens perversas
gem de gays, cada um compartilhando a mesma es- de São Paulo. Na melhor tradição da antropologia so-
sência, que seria um dado da natureza. Ou seja, O mo- cial, o texto exsude a simpatia que o autor tem para
delo anglo-saxão dos homossexuais, bissexuais e hete- com seu “objeto de estudo”. Não no sentido de uma
rossexuais teria aplicabilidade universal. De fato, este
apologia formal de advogado, mas de uma séria tenta-
enfoque tem um grande apelo. Ele pDermite, por exem- tiva de “traduzir” a experiência dessas margens para
plo, entre outras coisas, que o gay de hoje possa se ver
que o leitor possa entendê-las na sua integridade (em
como um, numa longa linha de gente, que sofre per-
todos os sentidos da palavra). Como alguns antropólo-
seguições, mas que sobrevive, graças à persistência e
£os trabalham para documentar a real situação de gru-
a uma descomunal paciência e sensibilidade. Assim, ele
pDos étnicos, favelados, posseiros e outros que sofrem
pode inspirar aqueles que lutam para eliminar a dis-
dos avanços desenvolvimentistas da sociedade mo-
criminação contra o amor hkomoerótico.
derna, assim Néstor descreve com carinho e simpatia
Mas este livro me dá novo alento, pois, através de
um mundo que dificilmente atraíra a atenção dos fi-
uma pesquisa etnográfica das mais minuciosas e Sutis,
lantropos. Quando fala das investidas da polícia e das
Néstor não só corrobora a outra DPosição, como avança autoridades que legitimam suas ações com o código do
significativamente, levando a análise além das repre- “homossexual moderno”, acusando os michês de “não
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O NEGÓCIO DO MICHÊE 15
assumirem sua homossexualidade”', nos apresenta
como um dos mais pungentes socialmente distantes (rico e pobre, branco
exemplos que conheço e negro,
de “resistência cultural”. Os michês estão sob o ata- velho e moço, “feminino ” e “másculo"”), O
desejo que
que da polícia; mas corre na absoluta contramão do desejo soci
o mundo do qual fazem parte, o almente
mundo dos homens, bíchas, sapatões, etc., está sob o aceitável: aquele que é duradouro e ausente
de “inte-
ataque acirrado da modernidade. Uma cultura inteira resse'", que une pessoas de sexos opostos e socia
lmente
está sob a mira não só da polícia mas de todos aqueles próximas. O desejo que resulta em casament
o, pro-
que aderem ao esquema que chamei acima de “angio- criação, herança e, conseqiuentemente,
na reprodução
saxão”, mas que é, de fato, das camadas dominantes e de uma sociedade de classes, segmentos e estam
entos,
protagonistas-mores da ideologia índív(dualísta de to- diferenciados e desiguais. Néstor sabe que
estes dois
dos os países modernos. desejos (há mais que dois, e só faço caricatura
por im-
Em segundo lugar, quero chamar a atenção para Derativos expositivos) se constituem um ao outro, na
a qualidade etnográfica deste livro. Néstor pDassou ho- medida em que ambos surgem simultaneame
nte nas
ras e horas batendo pé no centrão de São Paulo, con- melhores famílias. Sabe, também, que podem Ssurgir
versando com os michês à deriva, e se integrando ao com a mesma simultaneidade num mesmo
indiívíduo
mundo “nomádico” que elegeu estudar. O material (exceto no modelo índividuaÍista-moderno).
Por estas
que resulta é riquíssimo e de muito valor independente razões, o livro de Néstor pode ser visto não apenas
da análise. Afinal, interpretações são sempre polêmi- como um tratado sobre as margens, mas como uma
Cas e passageiras, enquanto uma boa etnografia, inspi- Provocação para o leitor questionar os luga
res-comuns
rada, é claro, pelas dúvidas e ansiedades que só a boa do “centro” da sociedade. Afinal, apesar
de toda a
teoria pode provocar, forçosamente levanta dados que estridente gritaria dos alarmistas, a maior
ia de nós
a teoria não prevê, sobrevive aão tempo e, assim, ofe- continua constituindo famílias de um tipo ou
de outro,
rece pistas de análise Dqgra aqueles que querem discor- e a prostituição, masculina e feminina, continua
em seu
dar do autor. Ás vezes, ficamos tão seduzidos com a devido lugar de “mal necessário”. E tudo 1580
se move,
beleza das interpretações, que esquecemos do material acreditamos, pelo desejo, sem falar do medo
.
empírico que elas devem interpretar. Mas Néstor, sob
a insistente batuta dos antropólogos da UNICAMP, Peter Fry
soube pesquisar, e, o que é rmais raro, colocar seus Santa Teresa, dezembro de 1986,
resultados literariamente no papel. Ninguém pode
acusá-lo daquilo que é comum entre os antropólogos
— de ser um beletrista frustrado.
Mas o assunto mais instigante deste livro é o de-
sejo. O desejo ao menos três vezes maldito: transitório
e mediado pelo dinheiro; que corre entre pessoas do
mesmo sexo, e que une, momentaneamente, pessoas
Introdução

O objeto

O termo michê tem dois sentidos. Um alude ao


ato mesuno de se prostituir, sejam quais forem os sujei-
tos desse contrato. Assim, fazer michê é a expressão
utilizada por quem se prostitui para se referir ao ato
próprio da prostituição. Em alguns contextos — espe-
cialmente entre prostitutas e travestis — o termo pode
ser aplicado também ao cliente.
Numa segunda acepção, o termo michê é usado
para denominar uma espécie sui generis de cultores da
prostituição: varões geralmente jovens que se prosti-
tuem sem abdicar dos protótipos gestuais e discursivos
da masculinidade em sua apresentação perante o
cliente.
À origem etimológica do termo é obscura. Áluizio
Ramos Trinta, na sua tradução de A Sombra de Dio-
nísio, de Michel Maffesoli (1985, p. 120), relaciona,
baseado no Dictionnaire Historique des Argots Fran-
çais, de G. Esnault, micchette (“seio”), miches (“ná-
degas"”), michê (“doença venérea”), michet (“o que
paga o amor”") e michetonner (“pagar o amor"”). Mo-
nique Augras (1985, p. 107) remete a origem do termo
18 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 19
ao argot francês, onde até hoje designa “o homem que a) Descrição de um travesti
dá dinheiro a mulheres para conquistar-lhes os favo-
res”, significado semelhante ao recolhido pelo Novo
“O que mais me impressionou em Agatha foi o
Dicionário da Gíria Brasileira, de Manuel Viott
rosto — parecia um daqueles rostos que o cinema nor-
(1957). Para Augras, esta duplicidade do termo desve-
te-americano fabrica centímetro por centímetro qua-
laria certa indistinção básica do mecanismo da prosti-
drado, até atingir a mais fria perfeição, Os cabelos lou-
tuição, onde “quem vende se iguala a quem compra"',
ros lhe caíam em cascata até os ombros. À pele do colo
Cunhamos a noção de prostituição viril para dife-
era sedosa e bronzeada — os seios, grandes demais,
renciar esta variante de prestação de serviços sexuais
eram vigorosamente eretos. Voltando ao rosto: os zigo-.
em troca de uma retribuição econômica, de outras for-
mas — as 'pometes', como ela chamava — repuxavam
mas vizinhas de prostituição homossexual, tanto da
levemente os seus lábios, dando ao conjunto um ar
-exercida pelo travesti — que “cobra do macho por
atrevido que os olhos completavam — eram castanho-
sua representação artificial da feminilidade, à qual dourados” (Silva, 1981, p. 4).
não são alheias as perturbadoras excitações do fetiche”
(Perlongher, 1981b, p. 68) —, quanto de outros dois
gêneros francamente minoritários: o homossexual efe- b) Descrição de um michê
minado que vende seu corpo (chamado michê-bicha);
e um tipo de transição, que parece estar emergindo Em Nossa Senhora das Flores, Genet descreve as-
ainda timidamente: o michê-gay. sim o encontro de Seck Gorgui com Divina (a “bicha”
Em princípio poder-se-ia falar de uma espécie de do relato); Seck precisava de dinheiro: “Ele mantinha-
continuum da prostituição homossexual, que vai desde se ereto, firme, se bem que um pouco caído para trás,
a “feminilidade” do travesti até a “masculinidade” do imóvel e sólido na posição de um menino de sacola nas
michê. Porém, considerar separadamente este último costas, lutando sobre os trêmulos joelhos para mijar
nas suas relações com clientes “homossexuais” (no contra o nada, ou na pose(...) Colosso de Rodes, que é
sentido convencional do termo), além de se sustentar a pose mais viril dos sentinelas: coxas abertas Pousa-
em diferenciações marcadas no plano empírico, per- das sobre botas, entre as quais, elevando-se quase até
mitirá ressaltar uma singular circunstância na qual a a boca, eles agarram com as mãos fechadas um fuzil
masculinidade — tida por “ponto obscuro do dis- baioneta” (Genet, 1983, p. 183) (ênfase adicional).
curso”, “referente a partir do qual se destacam as es-
pecificidades sexuais” (Querouil, 1978, p. 102) — vai
ser posta à venda no mercado rueiro do sexo.
Para superar a distância entre travesti e michê,
As diferenças manifestas entre ambos os gêneros
alguns autores recorrem à analogia. Tanto Fry/Mac
“maiores” de prostitutos se explicitam nas descrições
Rae (1983) quanto Ottoni (1981) coincidem em afir-
seguintes: mar que “o michê é o travesti do homem, assim como
o travesti o é da mulher”. Rechy (1980), um prostituto
20 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHE
21
memorioso, extrema este paralelo: “A bicha se proteg
e nilidade. Associação que leva, por exemplo, o deleg
envergando roupas de mulher; o halterofilista se veste ado
Guido Fonseca (1982) a tratar exclusivamente
de músculos — “roupa de homem', afinal de contas”. de tra-
vestis ao se referir à prostituição masculina,
À analogia pode ser válida enquanto aponta que não na sua
História da Prostituição em São Paulo — apesa
há algo assim como uma ““natureza” feminina ou mas- r de
registrar o caso de cinco “pederastas ativos” ficha
culina — tratar-se-ia de “construções”. Mas sua perti- dos
na polícia em 1923 (p. 221). Bruckner e Finki
nência vacila se se considerar que, enquanto o michê elkraut
(1979) interpretam: “Se a prostituição masculina
estaria, no melhor dos casos, exagerando as caracterís- ti-
vesse se desenvolvido entre mulheres, as client
ticas socialmente atribuídas ao seu sexo anatômico, a es é que
continuariam a ser chamadas de Putas, pois é evide
atitude do travesti, e da bicha efeminada em geral, nte
que o que consideramos prostituído não é tanto o corpo
implicaria um distanciamento, uma ruptura com os
vendido, mas o corpo penetrado. Só atingem
protótipos gestuais e comportamentais masculinos — essa de-
gradação as mulheres, ou, na falta delas, os
indiciando uma espécie de “devir mulher” (Guattari, enraba-
1981). Contrariamente, qualquer homem jovem pode- dos” (p. 217).
ria, eventualmente, fazer michê, sem precisar de um Correlativamente, a prática da prostituição viril
corte na aparência masculina “normal”.' Curioso co- — muito menos institucionalizada do que a
feminina
mércio, onde os “normais” aparecem prostituindo-se — Parece carecer dos ares de fatalidade irreve
rsível
para os “desviantes”. que impregnam miticamente a condição de prosti
tuta,
Se, como quer Paul Veyne ( 1982), cada prática Os michês não somente costumam encarar sua
prática
“lança as objetivações que lhe correspondem e se fun- enquanto provisória, mas descarregam sobre seus
par-
damenta nas realidades do momento, quer dizer, nas ceiros homossexuais o peso social do estigma.
O fato
objetivações das práticas vizinhas” (p. 166), não se po- de não abandonar a cadeia discursiva e gestual
da nor-
dem desconhecer certos mecanismos similares entre malidade lhes possibilita esses recursos.
o Outra diferença destacável com a prostituição fe-
negócio do michê e à prostituição de travestis e mu-
lheres, No entanto, estudar autonomamente a prátic minina é a habitual ausência de proxenetas
a no meio
da prostituição viril obriga a desfazer a costumeira dos rapazes de rua.º Haveria, aliás, uma dissimilitude
mais estrutural, que remete ao diferente status
associação entre a venda de favores corporais e a femi- social-
mente atribuído a “machos” e “fêmeas”. Conse
qiien-
temente, se no caso da prostituição feminina a
“explo-
(1) Uma bicha entrevistada explica essa versatil ração” da mulher é explícita no discurso social
eu trabalho, os homens parecem todos muito machões
idade: “Na fábrica em que
domi-
, mas é claro que transam nante, no negócio do michê a superioridade sócio
bicha. Afinal, eles passam muito pouco tempo do dia fazendo
o papel de 'marido -eco-
exemplar”": trabalham oito ou dez horas, logo ficam bebendo nômica do cliente comprador pode aparecer, até
gem até a casa (os trens da periferia são uma coisa fascinan
no bar, logo a via- certo
te, aí dá para ver como
operários muito másculos acabam transando). Claro,
quando eu me insinuo e os
convido à minha casa, falam que só Por dinheiro, só por
uma nota... Mas eles não (2) Não se registrou nenhum caso de “cafetão de michês”
são necessariamente michês, só que qualquer macho pede dinheiro no gueto pau-
para dissi- listano. No entanto, esse personagem apareceria, ainda em
tmular o fato de estar transando com um outro homem".
;
forma incipiente, na
Cinelândia carioca.
22 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
x O NEGÓCIO DO MICHÊ 23
ponto, “compensada” pela valorização do michê más-
culo em detrimento da inferiorização do cliente “bi- Em princípio, a análise vai se centrar no michê-
cha”. macho ou michê-mesmo (não interessa se fingidamente
De modo global, o prostítuto viril seria uma subes- ou não) nas suas relações com clientes masculinos. No-
pécie dentro de um tipo mais extenso: o macho ou vamente, os lugares categoriais não se apresentam
bofe, um varão que sem abrir mão do protótipo más- como entidades fechadas e exclusivas, mas como pon-
culo, nem necessariamente se prostituir, se relaciona tos de um continuum, de uma rede circulatória. As-
sexualmente com bichas (ou seja, homossexuais efe- sim, um michê — como os internos do Mettray gene-
minados). | ; teano* — poderá ser macho num contexto e bicha (ou
Esse modelo de relacionamento sexual intermas- gay) no outro; às vezes, a variação poderá acontecer no
culino é (como já mostrou Peter Fry, 1982) clássico no mesmo espaço. Conta um michê:
Brasil. Trata-se de um modelo “popular” ou “hierár-
"Cheguei numa festa com um cliente que eu transava; aí
quico” (“a bicha é a sola do sapato do macho”, con- tinha boys (bofes, michês) e maríiconas. Mas eu bebi demais
densa, perante Fry, uma das suas vítimas), conforme o e comecei a desmunhecar, ter trejeitos femininos, virei bi-
qual os parceiros se classificam pela sua posição no cha. Aí a bicha que estava comigo virou macho e começou à
coito. Mas esse modelo “bicha/macho” está em con- me disputar com os outros michês que queriam me comer”.
corrência com outro, “moderno” ou “igualitário”,
onde já não a bicha efeminada e “passiva se submete Também pode acontecer que os michês tenham
perante um bofe viril e “ativo', mas um sujeito assu- relações com mulheres, seja ou não por dinheiro. Na
mido como “homossexual' * (como os “entendidos” de área da prostituição de rua que estudamos, a incidên-
Guimarães, 1977) se relaciona de igual para igual cia da clientela feminina é insignificante. À respeito
com outro homossexual — modelo gay/gay. das relações “não-prostitutivas” dos michês, elas fo-
Assim, a irrupção de um novo modelo classifica- gem do campo do nosso trabalho; não obstante, no
tório (num processo que levantamos
capítulo dedicado às transas, nos referimos sumaria-
historicamente,
através de uma análise das mudanças categoriais e ter- mente a elas, Mas essa heterossexualidade parece ser
Titoriais no seio do gueto gay paulistano entre 1959 e invocada muito mais vezes do que efetivamente prati-
1984), ao se deslocar e se superpor ao anterior, produz cada. Como os michês entrevistados “em profundi-
uma proliferação, confusão e acentuada mutabilidade/ dade” o revelam, gabar-se de heterossexuatidade soma
precariedade das categorias. pontos perante os clientes, que, em grande parte, pro-
Essa oscilação atinge sua expressão categorial curam rapazes que xão sejam homossexuais.
com a aparição, ainda incipiente, de um novo perso-
nagem: o michê gay — que, ainda que “assumindo” (3) Ne reformatório de Mettray pintado por Genet, os internos estavam
discursivamente sua condição de homossexual, não divididos em “famílias” conforme a idade: cada “família” tinha um “irmão
maior” que dominava, despótica e sexualmente, os menores. Mas este “irmão
deixa de se prostituir para “coroas” (velhos) e “mari- Mmaior” podia ocupar um lugar de inferioridade na sua própria “família”, assim:
conas”. “osirmãos maiores das famílias C e D eram sempre submissos a um valentão das
famílias À e B” (Genet, 1980, p. 239).
NESTOR OSVYALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊE
25
Áqui nos encontramos com um primeiro para-
outro recurso senão Pagar para aced
doxo que vai marcar o negócio todo. Num apreciável er a um objeto se-
xual “raro”, preso numa constela
número de casos, os rapazes que se prostituem não são ção de instituições
ou não se consideram
custodiais: o adolescente.
homossexuais; e esta recusa da
homossexualidade vai de encontro à demanda dos Esta depreciação erótica dos “coroas”
não é pri-
vativa das relações de prostituição viril,
clientes, os quais, como o grosso dos homossexuais mas — como
mediterrâneos, segundo Pasolini: já registrava Hooker (1973) no gueto gay
de São Fran-
cisco — parece característica do que
ela denomina o
“mercado homossexual”. Esse mercado
“amam ou querem fazer amor com um heterossexual dis- homossexual
posto à uma experiência homossexual, mas cuja heterosse- está composto de massas de indivíduos
à procura de
xualidade não seja em absoluto questionada. Ele deve um parceiro sexual ocasional e sem com
ser promisso (pro-
“macho' (donde a falta de hostilidade para com o heteros- grama de uma noite). O “encontro de
sexual que aceita a relação sexnal como simples experiê estranhos com o
ncia fim essencial de fazer um acordo para
ou por interesse: com efeito, isso garante sua heteros engajar-se numa
sexua- atividade sexual” (“paquera” ou crui
lidade)” (Pasolini, 1978, p. 2). sing) constítui,
no dizer de Hooker, “um dos modelos
mais padroni-
Se este primeiro paradoxo pode ser pensado como zados e característicos do mundo homossex
ual”; ainda
uma maneira de legitimar a transgressão do interdito que fosse também comum, achamos, às
práticas extra-
que desestimula as práticas homossexuais (com racio- conjugais e promíscuas em geral, próprias
do “mundo
cínios do tipo: “Eu cobro para não passar por bicha"), da noite” — expressão de uso Popular
acaso preferível
a esta permanente contradição e instabilidade (já que à de “mundo homossexual”, que imagina
o homosse-
nunca se sabe se os rapazes são ou não homossexuais, xualismo como um universo fechado e cont
rastivo.
e isso constitui uma fonte de polêmicas, conflitos, go- O campo de circulações se urde em
territórios
zações, etc.), o negócio do michê soma uma outra mais ou menos circunscritos, cujos foco
s são tanto ba-
peculiaridade, que faz referência à diferença de idade res, boates, saunas, cinemas e outras
opções de lazer
entre o prostituto e seu cliente. Em geral, a idade clás- consumista, como meros pontos de Pass
agem e peram-
Sica para o exercício da profissão oscila entre os 15 e os bulação (praças, esquinas, ruas, banheiro
s, estações,
25 anos, enquanto os clientes costumam ter mais de etc.). Park concebe a noção de “região
moral” para
35 anos. referir-se às zonas de perdição e vício
das grandes ci-
À minoridade econômica e sexual dos rapazes — dades (espécie de esgoto libidinal das
megalópoles,
observam Schérer e Hocquenghem, 1977 — pode re- condição residual que ecoa em alguns topô
nimos, como
vestir episodicamente a forma de prostituição nas suas “Boca do Lixo”).
relações com varões adultos, sem que isso se torne ne- O fato de que o “gueto” ou “mercado”
homosse-
cessariamente institucional, declarado ou sistemático. xual esteja encravado no seio da “região mora
l” — isto
Por outra parte, sendo a pedofilia socialmente desesti- é, em relações de contigitidade com outr
os *“códigos-
mulada, os pederastas maduros não teriam às vezes territórios” (Deleuze e Parnet, 1980, p. 146)
margi-
nais, não apenas tem conseqiiências em
termos de
26 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
*
O NEGÓCIO DO MICHÊ 27
“paisagem” urbana, mas também em termos de “pas-
; sagem” relacional. E certo que os pontos de michês e variantes de prostituição ao nível comp
arativo. Em se-
bichas, e os pontos de prostitutas e cafetões, costu- gundo lugar, recorreu-se às técnicas antr
opológicas de
marm estar sutilmente demarcados. Espécie de “hiper- “observação participante”, cujas condiçõe
s de utiliza-
territorialização” fluente, em permanente movimento, ção merecerão um tratamento especial, No
que diz res-
onde as várias populações distribuem e negociam seus peito ao universo da pesquisa, ele inclui
os micChês,
trajetos de perambulação e seus “pedaços” de influên- seus clientes e uma categoria suí generis, os
entendidos
cia, através de sutis fronteiras traçadas a giz nas calça- — Oou seja, aqueles que ainda sem se envo
lverem dire-
das. Assim, a despeito de seus reclamos de distinção, tamente no negócio participam das transaçõ
es do mer-
a massa de gays que circula pelo centro da cidade, cado homossexual e conhecem os mecanismo
s da pros-
num circuito instável e difuso, está em relações fatuais tituição viril.
de contigitidade com as demais marginálias que insf- À investigação inscreve-se no campo da antr
opo-
talam, no espaço urbano deteriorado, suas banqui- Togia urbana que, em se nutrindo do desl
ocamento dos
nhas: prostitutas, travestis, michês, malandros e todo antropólogos desencadeado pelo fim da domi
nação co-
« tipo de lúmpens. Multiplicidade que transparece numa lonial e a progressiva extinção dos objetos
de estudo,”
descrição “chula” da Praça da República, “onde pro- deve respeitar as diferenças derivadas de uma
abrupta
liferavam, mudança de contexto, da tribo primitiva à
azucrinavam, acampavam trombadinhas, megalópole
pivetes, bandidos, bandidetes, marafoneria barata, contemporânea.
engraxates, bicheiros, invertidos do amor e todo o resto Se a predileção pela observação de “microun
ida-
do acompanhamento de aquela fauna rica e pobre des relacionais” (Althabe, 1978) é própria da
antropo-
flora” (João Antônio, 1982). logia em geral, no caso das cidades a
exigência de
“unidade de lugar” ou território único dever
á ser dei-
xada de lado em benefício da Plurilocalidade
das “so-
À pesquisa ciedades complexas”, privilegiando os “esp
aços inter-
mediários” da vida social, os percursos,
trajetórias,
Os dados foram tomados na área do centro da ci- . devires da experiência cotidiana. Também
não se po-
dade de São Paulo, a partir de observa_ções de campo derá
impor uma rígida exigência de homogene
idade
realizadas entre março de 1982 e janeiro de 1985. À do grupo observado, própria da “etnolog
ia exótica”,
investigação pode se definir como exploratória, descri- mas se tentará detectar “unidades reais de
funciona-
tiva e qualitativa, mento” (Piedelle e Delaunoy, 1978); a
mesma noção
Primeiramente, procedeu-se à delimitação de_ um
território (ver planta, p. 110), privilegiando a prostltuf-
(4) Essa filiação da antropologia é histórica
ção de rua sobre as formas de prostituição em locais os esforços de alguns antropólogos por desvin
e fatual, e não pretende negar
cularem a disciptina de seu objeto
fechados (saunas, boates, bordéis, casas de massa- temporal, os outros, considerando-a por
seu método de observação e abordagem,
e
não por seus objetos circunstanciais. É interessante a sugestão de
gens). Não obstante, se incluem alguns dados dessas p. 142), no sentido de considerar a ciência social Veyne (1982,
como disciplina auxiltar da bhis-
tória.
28 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 29

de grupo verá diminuída, no contexto urbano, sua ims- legais: casas de massagem, bordéis, saunas, serviços
a
portância, em favor das “microrredes” relacionais. domicílio, etc., substituindo a rua como local único de
Assim, a pesquisa antropológica no meio urbano cen- recrutamento. Contudo, a chamada “baixa prostitui-
trar-se-á no nível micro; as relações interpessoais vão ção”, que recorre à prática do trottoir, continua
es-
constituir, no dizer de Althabe, a “unidade local da tando circundada de um vêu de mistério.
etnologia urbana”. Aliás, esse nível micro é o lugar Os estudos sociológicos sobre a questão* podem
onde se processa a interiorização da “reprodução das diferenciar-se conforme a estratégia de acesso esco-
relações sociais”, mas também pode funcionar como lhida. À abordagem institucional ou custodial — en-
um lugar de resistência à ordem social dominante, . trevistando prostitutos internados em reformatórios —
onde se desenvolvem fenômenos irredutíveis ao nível está descartada por razões tanto políticas quanto téc-
macro. Não haveria, entre ambos os níveis, uma rela- nicas. Pelas primeiras, prefere-se abordar os sujeitos
ção de causalidade fixada com antecedência, mas uma
dinâmica de tensão contínua. Correlativamente, não
será pertinente considerar o campo empírico como um (6) As pesquisas específicas sobre o tema não são numeros
as. Entre os que
abordam prostitutos recolhidos em centros correcionais,
Plano de constatação de hipóteses rigorosamente pre- Riess (1965) entrevista
rapazes entre 12 e 17 anos de idade internados na Tennessee State
Training
estabelecidas, mas enquanto local de experimentação (EUA) e procura estabelecer às regras Qque regem o comércio
; basicamente, pre-
domínio do interesse econômico sobre a satisfação
conceitual. Assim, as noções instrumentais tenderão a relação boca-pênis; distância afetiva; e não recorrer
sexual, redução do contato à
à violência enquanto a rela-
seguir os movimentos reais das práticas observadas, ção se mantenha conforme essas normas, que seriam
impostas pelos “passivos de
felator delinqõentes”. Por sua parte, Schmidt-Relemberg
virando, se for preciso, flutuantes (como acontecerá, Schérer e Hocquenghem,
et alir (1975, citado por
1977) entrevistam um grupo de 25 rapazes num centro
por exemplo, com a própria noção de “gueto homos- de triagem de jovens prostitutos e delinqientes de Hamburg
o; como conclusão do
estudo, sugerem uma descriminação da prostituição masculin
sexual”). tegração dos prostítutos no convívio homossexual, como
a, favorecendo a in-
forma de inserção na
ordem social.
No segundo grupo, de abordagem livre, Boys for Sale,
de Dennis Drew e
Jonathan Drake (1969, apud Schérer e Hocquengher, 1977)
Modalidades de abordagem minho entre a informação verificável e a extrapolação
situa-se a meio ca-
delirante, entrevistando 22
rapazes do gueto de Nova Iorque, entre 12 e 19 anos de
idade, e fornece uma
imagem da prostituição dos rapazes mais ou menos filantróp
À primeira dificuldade que enfrenta um estudo ica, não contraditó-
fia com a inserção familiar e social. Da sua parte, Hennig (1978)
dá uma imagem
sobre a prostituição viril passa, conforme Schérer e fluente da geografia dos pontos de prostituição masculi
na que os Tapazes pros-
titutos haveriam inventado, reproduzindo entrevist
Hocquenghem (1977), pela clandestinidade em que vestis, sadomasoquistas, funcionários sociais e um
as com prostitutos de Tuas, tra-
cliente, às quais não são objeto
tais relações se consumam. À afirmação de Schér_er e de uma análise sistemática. A tese de Alves de Álmeida,
Michê (1984) é eminen-
Hocquenghem é de 1977; no ínterim, a pfostimxçãp temente descritiva, e classifica os prostitutos segundo o
local de trabalho: casas de
massagens, saunas, bordéis, ruas, boates, sendo, mais
masculina tem protiferado sob formas legais ou semi- uma espécie de “guia social”, inspirado no Guia Gay
que um estudo analítico,
do Grupo Outra Coisa
(1982). Outros autores trabalham basicamente sobre fontes
secundárias, como
Simon Raven (£7 prostítuto en Londres, 1965), Hofiman
( Male Prostiture, 1979),
(5) Para uma visão da cidade como um espaço fluído, atravessado por Weeks (1981) e o já citado Sur la prostitution des jeunes
garçons, de Schérer
e
Hocquenghem (1977). Tanto estes quanto outros textos (literários,
redes invisíveis, ver Daghini, Giairo (1983) (“Babel-Metropole”, Change Interna- jornalísticos,
tional, nº 1, Paris, outono). etc.) são citados ao longo da exposição.
30 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 31

em liberdade, no seu habitat natural. AÀ possibilidade ÁAlém do obstáculo representado pelo pagamento,
de entrevistá-los quando prisioneiros — completa- existe um segundo inconveniente, que é a seleção pré-
mente válida em se tratando de um estudo sobre ado- via à qual os rapazes são submetidos por parte dos
lescentes concentrados — desvela, por sinal, uma es- administradores dos locais fechados de prostituição
pécie de cordão umbilical que amarra a prostituição às masculina, visando garantir as condições de segu-
formas mais engajadas de delinqiiência ou “malandra- rança e qualidade vendidas ao cliente. O grau de rigor
gem” em geral. da seleção dimiínui nos locais onde o contrato é estabe-
À opção de abordar os prostitutos nos seus locais lecido diretamente entre o prostituto e o freguês e au-
de trabalho abre duas modalidades diversas, conforme menta nas casas de massagem e nas agências a domi-
o conhecimento entre as partes da relação tiver lugar cilio.
em espaços “fechados” (saunas, etc.) ou “abertos”": es- Restringindo a observação aos locais fechados,
quinas, praças, bares, mictórios, etc. aliás, corre-se o risco de conceber uma imagem exces-
Cada um desses espaços vai exigir formas diferen- sivamente bem-comportada dos prostitutos, em detri-
ciadas de aproximação — tanto da parte do entrevis- mento da sua proverbial periculosidade. Neste risco
tador quanto dos interessados na transação. parece cair, em decorrência das próprias limitações do
No caso dos prostitutos de sauna, bordel, casa de seu campo ou de sua escassa inserção no meio (ele se
massagem, o acesso é facilitado por se tratar de um declara “heterossexual convícto”), Alves de Almeida,
local fixo de trabalho: basta dirigir-se ao local para aí que tende a dar um panorama excessivamente feliz da
achar os prostitutos. Essa trivial facilidade choca-se, “vida fácil”. Na mesma ilusão enveredam alguns ar-
porém, com um obstáculo: o preço do ingresso ao lo- tigos Jornalísticos (Internacional, 1984: Veja, 1980),
cal, ou de acesso ao próprio prostituto. na medida em que outorgam uma atenção preferencial
Por exemplo, no caso de algumas saunas, o usuá- à alta prostituição e deixam num segundo plano a ar-
— rio deve pagar uma taxa de ingresso e depois um preço riscada prostituição de rua. Esse risco agrava-se quan-
extra pelos serviços do prostituto. À conta pode atingir do intervém a pretensão de dar uma imagem global da
por volta dos US$ 20 na sauna Regata (Pinheiros). prostituição masculina em São Paulo.
O acesso de prostitutos em bordéis depende do Nesse caso, preferimos renunciar a essa pretensão
locai: no descrito por Alves de Almeida (1984), con- totalizante, restringindo-nos a uma modalidade parti-
versa-se livremente com os rapazes antes de passar cular da prostituição viril: o miíchê de rua — ou seja,
para o quarto. Mas, para entrevistar um prostituto ca- aquele que vende seus encantos em pontos: esqui-
rioca, Trevisan (nov., 1980) teve de fazer o trabalho no nas, bares de livre acesso, fliperamas, ruas, etc. Em-
próprio quarto, corpo a corpo. bora o estudo abranja a área do centro da cidade de
Também os serviços a domicílio devem ser Pagos, São Paulo, tem-se privilegiado alguns pontos de obser-
independentemente do uso, segundo a experiência — vação: as “áreas” da Ipiranga, São Luís, Marquês de
com fins jornalísticos — de Aguinaldo Silva (nov., Itu e Largo do Arouche, e adjacências.
1980). É verdade que, dado o habitual nomadismo dos
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER “"O NEGÓCIO DO MICHE
32

michês de rua, eles costumam não se restringir a um feminismo e o de Edward Mac Rae sobre grupos gays
único ponto, mas perambular de um local para outro. —, a observação chegou a uma intervenção ativa no
Mas a rua pode funcionar como o grande coletor das seio do objeto da pesquisa. Este alto grau de partici-
diferentes formas e gêneros da prostituição viril: não ê pação tem sido legitimado por razões tanto metodoló-
incomum que prostitutos de sauna ou de boates se gicas — porque permite estudar o grupo “desde den-
prostituam também na rua. Tais locais fechados fica- tro” — quanto diretamente políticas. Assim, os defen-
ram fora da área preponderante de observação — a sores da pesquisa participante propõem-se a contri-
a não ser eventuais referências comparativas. Para buir no desenvolvimento e na organização do grupo
abrangê-los, seria necessário, talvez, um estudo espe- : com seu trabalho de pesquisa, compromisso que as-
cífico, do tipo dos de Carlos Nelson F. dos Santos sume por vezes a forma de uma “devolução de infor-
(1976). mação”., —
Optou-se também por não levar em consideração Ainda reconhecendo sua probidade, este recurso
os pontos de prostituição viril fora da área central não deixou de ser criticado pelos excessos aos quais se
da cidade, como os do Ibirapuera e Trianon (Avenida presta, que acarretam o risco de passar da “observa-
Paulista).” Preferiu-se, no entanto, aprofundar o sis- ção participante” à “participação militante”, con-
tema de relações vigentes nas Bocas, submundo tradi- forme adverte Durham (1983) — conotando eventuais
cional da marginália e da prostituição. Essa escolha repercussões no delicado campo da relação saber/
relaciona-se com o interesse em ter acesso a prostitutos poder.
No caso dos prostitutos de rua, eles não costumam
de estrato mais baixo, provindos geralmente das clas-
ses populares, e que são maioria na área, enquanto as conformar grupos organizados formalmente. O desejo
áreas não-centrais costumam estar percorridas por de organizá-los politicamente não foi formulado mais
prostitutos de estrato médio. que excepcionalmente, da perspectiva anarquista (Fer-
nandez, 1978), ou gay radical (Mieli, 1979); sabemos
de tentativas de recrutamento de prostitutos por parte
Inserção no meio de grupos fascistas.” À observação participante deverá,
então, apelar para técnicas menos politizadas.
A observação participante, recomendada classi- Uma das alternativas levadas à prática, entre ou-
camente pela antropologia, exige um grau considerá- tros, por Vieira Arruda (1983) no seu trabalho sobre
vel de interação e integração com o grupo estudado. menores infratores, consiste em se integrar total ou
Em alguns estudos recentes sobre grupos organizados
de minorias — como o de Heloisa Pontes (1983) sobre : (8_) Em 1984, descobriu-se um grupo neonazista espanhol chamado "Edel-
weiss”, vinculado a redes de prostituição masculina operando no Brasil, Hondvu-
ras e'Marrocos (Folha de S. Paulo, 6.12.1984), que recrutava prostitutos para
(7) Já no fim da pesquisa de campo, observamos que alguns michês que treiná-los militarmente; a preparação para o combate incluía práticas homosse-
no xuais (Frota Neto, Folha de S. Paulo, 1.12,1984), Na pesquisa, detectou-se um
perambulam na área do Trianon são às vezes os mesmos que se prostituem
Avenida São Luís. prostítuto carioca militante num grupo fascista brasileiro.
“ponto” da
34 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
- O NEGÓCIO DO MICHÊE
parcialmente às próprias Bangues de joven
s. O exem-
plo clássico é o estudo de Whyte (1965). Coleta de dados
Porém, os
bandos informais de michês parecem care
cer de um
grau de consistência grupal comparável Orientei as entrevistas para três gra.tcldeS grl.lpos,i
aos grupos de
amigos de bairro. O tema será rediscutido michês, clientes e “entendidos”. -P01_' entendidos
mais adiante.
Há, aliás, uma outra dificuldade, que diz compreende-se não somente a população homosse?(ual
respeito
às próprias condições de integração do “moderna” — no sentido utilizado por l.ªry e Guima-
pesquisador.
No meu caso, tanto a idade — cornside rães —, mas se joga com o dgplo sentido çlo t.efrr'lo
ravelmente su-
perior à média etária dos michês, que (pessoas que “sabem” do negócio). À categor:la fm.utll,
gira em torno
dos 20 anos — como meu aspecto intelecíua também, para abranger alguns homosseyfuals reticen-
l, atrapa-
lhavam uma aceitação ampla por parte tes a se autoconsiderarem clientes, qulatª'te O expe-
das gangues
informais. diente de contar — enquanto “entend.lfios — histó-
À solução veio quase naturalmente: rias de “outros”. À eles recorreu-se, aliás, para colher
não há me-
lhor maneira de estudar o trottoir do que informação a respeito da história do gueto. Alguns
fazendo frot-
'toir. O trottoir é, por sinal, um Ttfenôme desses “entendidos” fizeram parte do Grup.o Somos de
no ponco estu-
dado. Num dos escassos trabalhos sobre Afirmação Homossexual, e tinham antecipadamente
o tema, a as-
sistente social Alvamar Meira (1957) abor certa preocupação reflexiva sobre o as.sunto.A Qutros
da o ftrottoir
das prostitutas paulistanas de uma perspect constituem uma espécie de inteiligentsia orgânica do
iva filan-
trópico-policial. Trabalhos sobre menores gueto. .
abandona-
dos, allás, têm-se realizado sob a cobertur As incursões se alternaram ao longo de quase três
a de insti-
. tuições religiosas. Cabe supor que os mich anos, com uma frequência de percurso dos locais de
ês -— pouco
habituados à filantropia ambulante —
mostrar-se-iam : “pegação” de duas ou três vezes por semana, Tentou-
relutantes perante tais apresentações. se, por assim dizer, uma espécie de implantaçãç no
À estratégia adotada tem sido a de proc gueto, procurando-se, a partir daí, percorrer e decifrar
urar uma
interação sistemática e eficiente com as os seus labirintos. ;
populações do
“gueto gay"” do centro da cidade. Esta Recorreu-se a três grandes modalidades de coleta
foi facilitada
tanto por experiências anteriores — de material empírico: . |
meu trabalho so-
bre a prostituição masculina em Buenos — observações livres, que consistiam na reallza-
Aires (Perlon-
gher, 1981a) — quanto por fatores resid ção de itinerários de “pegação”, colheqdo impressões,
enciais. Não
necessitei — como Maria Dulce Gaspar, descrições, situações e cenas da maneira mais minu-
na sua pes-
quisa sobre “garotas de programa” cari ciosa possível; |
ocas — alugar
um apartamento na área, já que — entrevistas itinerantes: no seio desses pellçur-
residia na mesma
zona de trottoir, a poucos quarteirões dos pont Sos, costumava encontrar com michês, clientes ou eli-
os prin-
cipais da pesquisa. tendidos”, com os quais tentava algum contqto vqrpa d
Registraram-se fundamentalmente as entrev1:s:[as 1t1nç-
rantes com michês. Sendo os contatos com “entendi-
36 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 37
dos” muito mais numerosos, só se registraram aquel
es talhe, embora estivessem dispostos a falar. IAssim., um
significativos;
— entrevistas profundas: quando se conseguia michê com quem mantive uma re.lação contínua (julho
prolongar o contato, entrevistava-se o sujeito, 1982-setembro 1984) desapare(.:u.l cada vez que eu
reve- ameaçava gravar; porém, participou aqnnadamente
lando a condição de pesquisador só depois de um
lapso da discussão de alguns pontos da pesquisa, sabendo
razoável de conversa (40 minutos como mínim
o: as que suas declarações seriam reproduz1da; de cor. Urp
conversas podiam durar até quatro ou cinco horas)
tii

. outro michê — contatado na rua — praticamente dei-


Noutras oportunidades, os contatos para entrevista
s
NSS

profundas foram feitos fora do circuito do trotto xou de falar quando eu tirei caneta e papel pronto a
ir, registrar seu discurso (felizmente fez isso qyando a
sm

através dos “entendidos” e, em alguns casos, dos pró-


conversa estava já muito adiantada e foi possível con-
DS

prios prostitutos. Nesse caso, a condição de pesquisa-


t

dor era manifestada a priori, tinuá-la). Não houve problemas, no entanto, para gra-
Md

Os contatos com “entendidos” não ofereceram var uma entrevista com um prostituto env1ad'o porum
grande número de dificuldades, a não ser a alega cliente. Um ex-michê também não opôs resistência à
ção gravação, tendo realizado quatro sessõçs de conversa.
de ignorância a respeito do negócio do michê, por
ve- Alguns desses longos depoimentos configuram de fato
zes verossímil. À interação foi facilitada por certa
pro- histórias de vida. :
ximidade existencial, já que eu mesmo costumarva fi-
car nos bares gays entre um percurso e outro. Embora a dificuldade de gravar as entrev1st'as
Diferente foi a relação com os prostitutos, com prostitutos possa incidir na fidelidade do material
que colhido, também não era recomenc!ável percorrer os
previ já no início carregada de dificuldades. Nos con-
tatos itinerantes costumava ser tido — ainda sem pro- perigosos itinerários do michê prowdp de um grava-
por-me a isso — como cliente potencial. Deixando cor- dor, que teria sido provavelmente conhgcado. |
rer essa confusão, adverti sua utilidade, Já que Para entrevistar os clientes, recorri a contat_os in-
isso ternos do próprio gueto. Como muitos desses clientes
permitia descobrir os mecanismos reais (e não mera-
mente discursivos) do contato prévio à relação. Assim eram mais ou menos conhecidos, ou reçomçtlldados
também, para estabelecer esses contatos,
por contatos comuns, não eram previsíveis dificulda-
foi preciso des para entrevistá-los. Não obstantr:, alguns deles se
seguir os “rituais da interação” próprios do meio.
Isto arrependeram no momento da entrevista Ou se recusa-
é, ainda reconhecendo algum rapaz como michê
, não ram a gravar. No final das contas, entrevistar os clien-
era tecnicamente recomendável chegar até ele sem
o tes acabou sendo até mais difícil do que aceder aos
rítual de olhares, gestos e deslocamentos que prece
de prostitutos. :
rotineiramente as conversas entre desconhecidos
nos Boa parte da informação recusada foi reclt?erada
circuitos do trottoir homossexual.
AÀ não-explicitação da condição de pesquisador sob o expediente de entrevistá-los enquanto “enten-
foi didos”. .
decorrente, então, das próprias condições do meio.
Os Todos esses esclarecimentos tendem a dehml_tar,o
próprios michês preferiam, por vezes, ignorar esse
de- campo empírico da pesquisa. Sua condição explorató-
38 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 39

ria decorre, em parte, dessas circunstâncias. O fato que da “média” prostituição viril. De alguma maneira,
de
ter conseguido um grau considerável de inserção mantém-se certa equivalência — embora não-pontqal
no
mundo da noite não elimina o risco de interferências — entre o tipo de clientes e o tipo de michês entrevis-
subjetivas, que resultam dessas mesmas condições tados. À maior amplidão da gama de “çqtendxdos"
de
inserção, Mencionei já a idade, que me situava em de- pode funcionar, de fato, como uma espécie de con-
terminada faixa do mercado. Também minha quali- trole.
dade de intelectual me “subenguetizava” no ramo es- Por último, me ocorre acentuar um certo caráteír
pecífico dos “professores”, Por outra parte, minhas artesanal que a pesquisa antropológica cgsn_lma rei-
próprias condições econômicas me impediam grandes vindicar para si — sobretudo nas suas polemlcgts com
dispêndios — e o fato de não ter carro tornava pro- os sociólogos. À antropologia, ciência do sutil, não
blemática a aproximação a certo tipo de michês, adep- tem as suas técnicas predeterminadas rígidamefltef é
tos exclusivamente da freguesia motorizada. Concreta- necessário inventá-las cada vez, conforme as próprias
mente, resultava mais propício trabalhar em certas caracíierísticas das populações estudadas.
áreas, Não era pertinente, por exemplo, interromper a — Além do mais, cabe reconhecer a possibilidade de
exibição de um prostituto perante o fluxo dos carros — que o acaso tenha tido, nesta pesquisá, um peso supe-
como acontece sobretudo na São Luís. Aliás, por ra- rior ao que habitualmente tem em outras 1nvestlgz!-
zões de segurança, evitei por vezes os locais excessiva- ções, realizadas sobre comunidades fechadas ou 'de li-
mente perículosos — como os jardins da Praça da Re- mites prefixados (como grupos ou bairros). Porém, o
pública ou da Praça Dom José Gaspar depois da meia- mundo da rua é, de certa maneira, o mundo do acaso
noite. Dai que alguns locais menos densos como “pon- — não de um acaso caótico, mas de um acaso orien-
tos” de michê, como o Largo do Arouche, mostraram- tado por módulos de consistência mais “frouxa” que
se, pelas suas próprias características urbanísticas, os que regem nos espaços da casa ou do trabalho.
mais apropriados para as entrevistas, por se tratar Não cabe considerar esta vesquisa como um es-
de
um espaço de *“repouso”, onde os candidatos ficam tudo sobre uma “comunidade”, nem sequer sobrç um
sentados nos bancos. “erupo”, mas como uma abordagem de. certa prática e
À gravidade das distorções pode, contudo, se tor- das populações nela envolvidas. O fato de que sua con-
nar mais tolerável levando em consideração as condi- fecção compartilhe as imprevisibilidades (relativas) do
ções particulares da pesquisa. Estatisticamente falan- trottoir não tira, achamos, valor às conclusões que se
do, elas podem se detectar em certa prevalência dos inferem; porém, as submete à marca dessa prática.
entrevistados negros e de estrato baixo, no caso do "Que um estudo sobre o real leve na sua construção as
mi-
chê. No caso dos clientes, foi de fato mais fácil acede impressões desse mesmo real deveria, talvez, antes nos
r
aos transeuntes que aos motorizados. Embora aliviar do que nos envergonhar.
esta
pesquisa não se pretenda “representativa”, pode-
se
tranqúilizar aos que desejem assim considerá-la, ad-
vertindo que ela tende a dar conta antes da “baix
a”
O NEGÓCIO DO MICHÊ

Etnografia das margens Eu vejo políiciais que me tolhem os


passos com ameaça de sevícias.
Eu vejo as bichinhas evoluíirem
nurm frenesi azeitado por
SUMMER 77 anfelaminas e um desespero
(ao Gustavo) dissimutado,
As maríconas não as buscam, por
isso elas exorcizam a noite com
gritos e vêem nos outros rapazes
um Irisson de inexistentes
fimusines,
O poder pelas esquinas gargalha,
Atarantado pelo sono, embarco
rispido num carro.
Logo mais, de madrugada ejacularei
catarro, voltarei no ônibus com
Atarantado pelos automóveis, meu amigo, adentraremos em
meus olhos são varados pelo néon silêncio o subúrbio sabendo que
degusto minhas doses de cinismos nos aigo em nós foi destroçado.
batcões molhados peto vácuo.
Ás mariconas fustigam meu corpo com (Fexto de F. com o desenho que acompanha
olhares sórdidos, cada olhada fere Sua edição original, O corpo, nº 6, São Pauto, 1984)
Sfundo e cria crostas que se
endurecem; até a noite acabar estes
olhares superpostos me tornarão “Prostituição homossexual”, “prostituição viril”,
imune, Avenida São Luís e seus únjos
turvos, supermarketing de pupilas
“negócio do michê”, “prostituição dos rapazes”: a
Ffrenéticas, sob as árvores o poder prática social que estas denominações pretendem en-
acaricia e intumesce caralhos
fânguidos.
quadrar é ainda imprecisamente conhecida; e a varie-
Há pelos corpos em fita uma náusea dade de denominações possíveis, os recortes alterna-
imprecisa, eu vejo uma sinfonia de
cusparadas e aprendo acordes
tivos que cada uma delas traça, é um reflexo dessa im-
Sombrios com os quais devo ornar precisão.
minhas pernas metidas num
Essas operações não se consumam no vazio, mas
bilue-jeans rasgado,
Meu camarada uns passos à frente num focus social no qual cada corpo luz suas tatuagens.
negocia sua boca de estátua grega Lugar social que é também um lugar discursivo: multi-
perfumada por conhaque e baforadas
com um pederasta untuoso que pilota plicidade de discursos que referem e encarnam o real
uma reluzente máquina. desde óticas diferentes, vacilando entre a literatura e o
Nós viemosdo subúrbio numa saber, entre a alucinação e a objetividade, entre a ime-
progressão eufórica, bebemos várias
cachaças & nossos corações diatez do verbal e o estranhamento da escritura.
acossados pela média preferem a O texto transcrito — publicado em O Corpo, um
autocorrosão, mas é assim que a
cidade nos gosta. boletim gay paulista de circulação restrita e aperiódica
Eu vejo funcionários públicos (seis números com uma tiragem de mil exemplares en-
tevemente maquiados.
tre 1981 e 1984) — soma às suas virtudes literárias uma
42 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 43

qualidade cara ao etnógrafo: trata-se de uma “crônica À paranóia impregna o “clima” do relato: “vejo
poética” das circulações homossexuais no “mundo da políciais que me tolhem os passos com ameaças de se-
noite” paulista, escrita desde dentro desse mundo. vícias”". Todo o conjunto — definido como um “super-
O narrador (F.) e seu colega são identificados, ve- marketing de pupilas frenéticas” — tem um ranço en-
ladamente, como prostitutos (“michês"): “Meu cama- tre sórdido e sombrio, denotado por aíiusões ao álcool e
rada uns passos à frente negocia sua boca de estátua às drogas: “degusto minhas doses de cinismo nos bal-
grega... com um pederasta untuoso que pilota uma re- cões molhados pelo vácuo”'; “vejo as bichinhas evoluí-
luzente máquina”. O próprio narrador, fustigado pelos rem num frenesi azeitado por anfetaminas e um deses-
“olhares sórdidos” das “mariconas” acaba lhe imi- pero dissimulado”; “... numa progressão eufórica, be-
tando: “atarantado pelo sono, embarco ríspido num bemos várias cachaças e nossos corações acossados pela
carro”, À referência geográfica é reconhecível: Avenida média preferem a autocorrosão"”. À própria prática é
São Luís, um dos “pontos” de prostituição de rapazes retratada acerbadamente: “cada olhada fere fundo e
do centro da cidade de São Paulo. À dimensão horária cria crostas que se endurecem”; *“(...) pelos corpos em
também é explicitada: ambos os rapazes vêm do su- fita uma náusea imprecisa”; “(...) uma sinfonia de cus-
búrbio para passar a noite no centro, e voltarão, pela paradas”; “(...) acordes sombrios”. O poder — cuja
madrugada, de ônibus ao bairro — “sabendo que algo natureza é difusa — “pelas esquinas gargalha”, “aca-
em nós foi destroçado”, ricia e intumesce caralhos lânguidos”. O contexto ur-
F. e seu amigo exaltam — “anjos turvos” — sua bano acentua a sensação de sufoco e pesadelo: “ata-
condição de “rapazes masculinos”, cujos “corpos em rantado pelos automóveis, meus olhos são varados pelo
fila” são objeto do desejo dos “pederastas”, referidos neon”.
também como “mariconas” (homossexuais maduros), Poética, a visão de F. não pretende ser senão intei-
“bichinhas” (efeminados jovens, cujo contato as mari- ramente subjetiva. Funcionando como uma conden-
conas eludem), “funcionários públicos levemente ma- sação abrupta, ela nos introduz de cheio ao “ambiente”
quiados” . em que as práticas de prostituição que pretendemos
Vemos assim, num universo de sujeitos anatomi- abordar consumam-se.
camente masculinos à procura de um parceiro sexual
do mesmo sexo, delinearem-se agrupações em base,
pelo menos, a duas séries de atributos: uma de gênero : Obeservação livre
(mais masculino/menos masculino); outra de idade »
(mais jovem/menos jovem). Insinua-se uma terceira Uma “observação livre” de outro dos porttos de
série que faria referência ao status econômico: o pede- prostituição dos rapazes — a esquina da São João e
-
rasta motorizado opõe-se ao rapaz pobre, vestido com Ipiranga, contígua ao anterior — permitirá ampliar o
um “bilue jeans rasgado” (atributo indumentário que panorama condensado por F.
pode denotar também uma acentuação da masculi- Uma massa de jovens, entre os 15 e os 25 anos de
nidade). idade, pobremente vestidos, ainda que convencional-
|
44 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊE 45
mente atraentes, olhar ladino e sorriso atrevido, se es-
Esta cena tem alguma coisa de carnavalesco, no
palham pelo amplo saguão do cinema, o bowling e o
histórico cafê Jeca contíguos. Sua postura ressalta a sentido de Bakhtin. Às classes sociais misturam-se nu-
masculinidade: alguns levam a mão à entreperna para ma diversidade heteróclita: “bichas” mais maduras,
destacar a protuberâpcia genital. No meio da massa hu- vestidas com casacos de couro e jeans caros, acossam, :
mana que vai de um lado para o outro, entre as luzes da às vezes desde os seus carros, a garotinhos humildes,
publicidade e os barulhos dos carros, o conjunto deli- saídos dos estratos sociais mais baixos. À diferença en- :
neia-se como uma multidão apinhada. tre ambos os bandos é brumosa. Pode-se aplicar ao lo-
Mas muitos dos que conformam essa multidão são cal o que Antonio Chrysóstomo diz acerca da Galeria
identificáveis à primeira vista para o “entendido” da Alaska — outro ponto de prostituição masculina, no
noite: putas, travestis e todas as outras tipologias da Rio de Janeiro:
homossexualidade masculina: “bichas” (efeminados), :
.“
maricona
a
s" ou “tias”
? H ”
(efeminados maduros de mais'
H FEA “Não há propriamente lados entre uns e outros. Ápenas pa-
de 35 anos), gays (sinônimo moderno de homossexual ra efeitos de narração, podemos dizer que a escala entre
homossexuais vai do folclore bravio das bichas marginali-
que abrange aqueles que não são ostensivamente femi-
zadas que usam roupas de mulher, nem sempre caracteri-
nóides), “bofes” — rapazes que sem necessariamente zadas como verdadeiros travestis, compondo, neste caso, ti-
se autoconsiderarem homossexuais, ou ainda se ga- pos híbridos entre homem e mulher, aos veados distintos,
bando de não sê-lo, consentem em “transar” com bi- indivíduos bem postos, quando não magnificamente si-
chas; quando essa transa se consuma por dinheiro, o tuados na escala social, componentes da base econômica e
social sobre a qual se movimenta este meio” (Chrysóstomo,
prostituto é conhecido como “michê”, “cowboy” ou
1978, p. 2).
simplesmente boy, como eles preferem ser chamados.
Por esta área do centro da cidade circula uma mul-
À aproximação entre uns e outros, naquilo que
tiplicidade de pessoas que por vezes nada tem a ver com
parece inicialmente uma grande confusão, não é geral-
o comércio homossexual; podem até ignorá-lo. Há fre-
mente direta: estabelece-se a partir de um jogo de des-
quentemente grupos de amigos (preponderantemente
masculinos) que se reúnem para beber, Ao redor, toda locamentos, piscares, olhares, alusões, pequenos gestos
a “cm:te dos milagres” da noite paulista: infinidade de quase imperceptíveis para um estranho, através dos
mendigos em todas suas variedades, bêbados, malucos, quais se trocam sutis sinais de periculosidade, de ri-
marginais em geral — de vez em quando acontece uma queza e poder, de libidinosidade, de inteligência. Não
“trombada”. mencionamos estes preâmbulos barrocos, mais do que
À presença policial é ostensiva. Freqgiientemente para nos deter num aspecto: num flocus de contornos
policiais fardados ou à paisana irrompem repentina- aparentemente dífusos e fugidios, toda uma sucessão
mente, brandindo armas ou cassetetes, com a conse- de demandas e ofertas sexuais articulam-se. Essas arti-
culações aparecem como casuais, “livres” ou arbitrá-
guinte dispersão pânica. Mas, passada a ameaça po-
rias. Ão conhecê-las mais de perto, percebe-se que, sem
licial, a cena reestrutura-se. perder a qualidade do acaso, essas interações estavam
46 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 47
percorridas por redes, mais ou menos implícitas, de
signos codificados. particular na Sociologia Urbana com a aplicação da
Neste momento, a “observação livre” — que “con- categoria da “região moral””.
.
siste em estudar as situações da vida real sem apelar
1 “E inevitável — raciocina Park — que indivíduos que bus-
para medidas e insirumentos de precisão e sem con- cam as mesmas formas de diversão... devam de tempo em
trolar a exatidão dos fenômenos estudados” (Madras, ; tempo se encontrar nos mesmos lugares.” À população des-
1972, p. 194) — dá passagem à “descrição densa": *”f sas áreas — que nem necessariamente reside, mas apenas
uma etnograiia cujo objeto é apreender “uma hierar- ! perambula pelo local — “tende a se segregar não apenas de
: —acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos
quia estratificada de estruturas significantes, em ter-
n etemperamentos” (Park, 1973, p. 64).
mos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as fal-
sas piscadelas, as imitações, são percebidos, produ- À noção de “região moral” repousa numa con-
zidos e interpretados, e sem os quais eles de fato não cepção que divide o espaço urbano em círculos concên-
existiriam”, Portanto, fazer a etnografia será “tentar tricos: uma faixa residencial, outra industrial e o centro
ler (no sentido de “construir uma leitura') um manus- — que serve ao mesmo tempo como ponto de concen-
crito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerên- tração administrativa e comercial, e como lugar de reu-
cias, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, : nião das populações ambulantes que “soltam”, ali,
AAA

escrito não com sinais convencionais do som, mas com seus impulsos reprimidos pela civilização (idern, p. 65).
e anA "QRA VICIHA 7

exemplos transitórios de comportamentos modelados" " —Asdelimitaçõesnãosãosempre precisas. Em prin-


[22)..e SE

(Geertz, 1978, pp. 18-20). & & s cípio, para Park, “cada vizinhança, sob as influências
Como praticar essa “etnografia densa”: que reco- que tendem a distribuir e segregar as populações cita-
sss
.a & 5

menda Geertz? Numa visão superfícial, à cena rueira dinas, pode assumir o caráter de uma “região moral' ”

de um dos “pontos” de frequência homossexual do (Park, 1973, p. 64).


«T

mundo da noite paulista apresenta-se como caótica, Modernamente, a tendência à descentralização


Mmas extremadamente rica e complexa no que respeita urbana leva também a espalhar os lugares de diversão e
às interações, circulações e trocas entre os sujeitos. lazer, especializando crescentemente o antigo centro
Tentar-se-á ver como essa territorialidade tem urbano em atividades de gestão e administração (Cas-
sido pen-
sada pelas ciências sociais. tells, 1972, p. 182). Porém, omesmo Castells adverte “a
persistência de certa especialização da região central
relativamente a espetáculos de tipo único e, notoria-
À região moral mente, no que se referêe à chamada “vida noturna' ”
(idem).
À constância de certas Populações em agruparem Se, por um lado, a caracterização do centro “en-
suas perambulações à procura de sexo, diversões, pra- quanto núcleo lúdico, concentração de lugares de di-
zeres e outros vícios próximos à ilegalidade, em áreas versão, variedade e ócio, sede espacial das “luzes da
— especializadas das megalópoles, mereceu um status cidade' ” (idem, p. 171I), costuma fugir dos limites da
sociologia para se converter num gênero literário inter-
48 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 40

mediário entre o lirismo e a ficção científica, simboli- comodo, prostltulçao, apartamentos pequenos, con-
"camente, concede Castells, ““o que caracteriza o centro Centração de bares, dancings, cinemas, boates, cri-
' não é tanto um ou outro tipo determinado de espetá- minalidade, vadiagem, homossexualismo, boêmios”
VI “culo, de museu e de paisagem, mas a possibilidade do (Barbosa da Silva, op. cit., p. 353).
: imprevisto, a opção consumista e a variedade da vida |
i social” (idem, p. 183).
O centro da cidade, lugar privilegiado de inter- À Boca do Lixo
câmbios (Castells), ponto de saturação semiológica (Le-
febvyre, 1978), é também o local da aventura, do acaso, Já em 1944 Lucila Hermann caracterizava “a de-
da extravagância, das fugas. Fluxos de populações, terioração moral” do antigo centro paulista. AÀ mobi-
fluxos do desejo: a predileção dos sujeitos à procura de lidade material própria da área, cujos habitantes não se
parceiros sexuais do mesmo sexo pelas ruas do centro, sentiam sujeitos a ela por laços familiares nem econô-
detecta Alves de Almeida (1984), “não parece ser ca- micos, “acompanha e intensifica uma grande mobili-
sual”. | dade moral”, que determina “uma mentalidade pro-
Barbosa da Silva (1959) expvlica assim esta prefe- pensa à aceitação rápida das inovações e uma fixação
rência: “A diminuição das sanções, a concentração de mínima dos tabus, convenções, códigos de moral co-
grupos masculinos para a procura de prazeres sexuais mum”, “AÁpenas as meretrizes — concediá Hermann
õu de lazer são basicamente fatores que servem de (1947, pp. 31-33) — encontram aí afinidade e centro
catalisadores de grupos homossexuais” (Barbosa da profissional; (mas constantemente controladas pela
Sllva 1959, p. 354). polícia de costumes, são freqiientemente obrigadas a se
O “dispositivo de sexualidade” não se detém em mudarem para outras zonas impostas pelas autori-
conferir à homossexualidade uma demografia — uma dades.”
base populacional. Instaura também uma territoriali- Em 1954, a zona de prostituição confinada, carac-
; dade geográfica: “Pára a agência dos indivíduos como terizada pela existência legítima de bordéis sob con-
: grupoexiste também a necessidade do aparecimento de trole governamental, é fechada por decreto das auto-
“ uma base espacial” (Barbosa da Silva, op. cit., p. 351). ridades. À antiga zona centrava-se nas ruas Itaboca,
Esta base espacial — cujos limites veremos mais Aimorés e suas travessas, abrigando milhares de pros-
adiante — está dentro da “área de desorganização” — titutas oficialmente registradas. Não apenas havia
a “região moral” de Park. À contigitidade entre homos- prostitutas na área: habitualmente, as áreas de pros-
sexualismo e delingiiência (colocada já por Hocquen- tituição são focos aglutinadores do chamado “*sub-
ghem, 1980) fundamenta-se num plano empírico, tanto mundo da noite”.
iespa.cxal quanto historicamente. Assim, já em 1959, Inicialmente resistida — até com pichações nos
““'dados de observação mostram que se superpõem nessa muros, do tipo: “Fulano (nome do policial responsável
“área atividades classificadas como índices para a ca- pela operação), reabra a zona, sua mãe já voltou para
rTacterização de áreas de desorganização, como casas de casa” (citada por Moraes Joanides, 1977, p. 21) —, a
E
so NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ S1

medida oficial acabou gerando a abertura de uma outra meira, Duque de Caxias, Largo General Osório e Rua dos
área, conhecida como “Boca do Lixo”". Protestantes, no que veijo a constituir a famigerada '*Boca
O delinqiente Hiroito dá uma visão “microscó- do Lixo'; o “Quadrilátero do Pecado' ” (Moraes Joanides,
pica"” do processo. Assim, desabrigadas pelo fecha- idem, p. 15).
mento dos bardéis,
Até inícios do ano 1959, a Boca constituía um local
“(...) o grosso, quantitativamente falando, das despejadas relativamente tolerado. À intervenção polícial era es-
(...) solucionaram seus problemas de abrigo indo morar na- tentórea, e restringia-se a propiciar um clima de sos-
queles hotelecos e casas-de-cômodos, que sempre prolife- sego na área:
raram no bairro dos Campos Elíseos, nas cercanias das Es-
tações Ferroviárias da Luz e Sorocabana, e que são pre-
sença obrigatória nas imediações de toda cidade grande” “Apenas nas sextas-feiras é que o DI e o 3º Distrito Policial
(Moraes Joanides, 1977, p. 22). saíam às ruas da Boca, em caravana com aqueles enormes
carros de presos percebíveis a quilômetros de distância, pa-
ra recolher aos xadrezes, até a segunda-feira, de preferência
AÀ modalidade de prostituição modifica-se: das ca- as mulheres mais baderneiras, os tipos mais arruaceiros,
sas fechadas passa-se ao trottoir. Assim o define (pro- visando com isso propiciar um sábado e domingo — dias em
tofoucaultianeamente) uma assistente social da época: que o pedaço iria ferver em sua movimentação — mais pa-
cíficos e ordeiros, com menos ocorrências policiais” (idem,
i “O trotfoir é a forma de prostituição em que a mulher se p. 15).
' oferece publicamente. Da calçada — símbolo do seu mérier
— até os bares, desenvolve a meretriz seu triste mister, à Mas o desencadeamento da repressão policial,
espera de 'fregueses' que concorrem para a manutenção da através de sucessivas blitz (Operação Arrastão, Pente-
- Suaexistência decaída e, mais além, para a reprodução dos
parasitas sociais, que vivem do aviltante comércio” (Meira,
Fino, etc.), geraria o desabamento da Boca, resistido
1957, p. 70). no início com novos deslocamentos de prostitutas e sua
corte de marginais, primeiramente para a Avenida São
Uma nova zona, com seus códigos, atividades e João e ambos os lados da Duque de Caxias, depois para
populações próprias, se estabelece, intermediária entre o Largo do Arouche (área, como veremos, muito signi-
ficativa para o gueto homossexual), e a Rua Rego Frei-
a delinqiência e o “ilegalismo” (para usar a expressão
s A

tas, que passaria a ser conhecida como a “Boca do


de Foucault, 1976).
Conta Hiroito: Luxo"',

“Com o fechamento da chamada 'zona', a prostituição, “de-


soficializada'”, foi se fixando no bairro dos Campos Elíseos, O gueto gay
onde, em curto espaço de tempo, apossava-se territorial-
mente de toda a área circunscrita pelas ruas e avenidas À noção de “região moral” da Escola de Chicago,
Timbiras, São João (Praça Júlio Mesquita), Barão de Li- ainda que pertinente, revela-se excessivamente ampla
S2 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHEÊ
3
para descrever as redes de sinalização e

tu
inclusão cate- cidade” (p. 191). Estas instituições
gorial das populações “homossexualista são basicamente
s”. Levine comerciais: lojas, saunas, bares, boat
(1979), baseando-se numa longa lista de usos es, mas abrangem
do termo desde bancos e agências de turismo
— que inclui, entre outros, Altman, Hump até cruising areas.
hreys e
Wainberg and Williams — propõe legitima 2) Área de cultura: Levine determina
r a noção de “a cult ura
. £ay ghetto para denominar essas Popu de uma área através do estudo dos
lações unidas traços culturais que
- Delás suas preferências e cerimônias eróticas. aparecem dentro dela” (p. 191). Obse
rva que “essas
. —“Levine parte do clássico The Ghetto, de áreas de cultura homossexvais são cara
Wirth, cterizadas por
1928 (1969), e tenta estabelecer em que medi uma concentração extraordinariamente
da as con- alta de gays e
dições definidas pela Escola de Chicago — de seus traços culturais”. Ássim, “gra
cujos soció- nde número de
logos “aplicaram a expressão a vizinhanças homens gays está presente nas ruas, enqu
habitadas anto mulheres
por judeus, poloneses, negros e italianos” e crianças estão visivelmente ausentes
— se adap- ”, Aliás, “a lin-
tam aos bairros de predomínio homossexual Buagem gay é amplamente empregada
de Boston, nestes lugares”;
Nova Iorque, Chicago, São Francisco e Los « desfilamaí as variantes da moda £gay,
Angeles.” especialmente na
Esses requisitos são: Ssua versão butech: “trabalhador,
valentão de classe bai-
xa, militar e atleta” (p. 193), Cons
1) Concentração institucional: através eqiientemente, há
do traçado um considerável aumento da tolerância
de detalhadas plantas, Levine mostra “a para as formas
existência de manifestas de comportamento homo
concentração institucional de gavs em áreas de cada
ssexual, em opo-
sição ao puritanismo cínico da sociedad
e global. Estes
fatores explicam a preferência dos 8ays
por essas áreas.
(1) Goffman defende a aplicação do termo “homossexual 3) Isolamento social: obrigados por prec
tituição ao ambíguo “homossexual”": “O termo “*homos ista” em subs- onceitos e
sexual' " é, geralmente, discriminações amplamente difundid
usado em referência a alguém que se €ngaja em
práticas homossexuais abertas as no corpo so-
com um membro do seu mesmo cial, osgays tendem a se isolar e se agru
sexo, sendo essa prática chamad
'Xualismo', (...) Observe-se que um indivíduo pode a de “homosse- par entre si, Em
conservar a filiação no mundo alguns casos, “a sua interação com
homossexual sem se engajar em práticas homosse
xtuais, assim como pode explorar os heterossexuais
o homossexual pela venda de favores sexuais era restrita ao trabalho ou à esporádi
. inente da comunidade (...). Se o termo
sem participar social e espiritual- cas visitas fami-
“homossexual' é usado em referência a liares. Excetuando-se essas, as relações
alguém que se engaja num tipo particular de
ato sexual, então é necessário um sociais limi-
termo como *homossexualista' para designar tavam-se às mantidas com outros homo
particular de comunidade desviante"”" (Goffiman,
alguém que participa de um tipo ssexuais” (p.
dos Santos segue o conselho de Goffman no seu
1975, p. 154). Carlos Neison F. 196).
trabalho sobre saunas gays (1976).
(2) Castells (1984, P- 139) refere-se critica
mente à tentativa de Levine: 4) concentração residencial: apesar das
“Mas qualquer que seja a coincidência que possa difícul-
existir entre as características do dades representadas pela não-inclusão
gueto, como definido pela Escola de Chicago, e a experiência gay de
organização da categoria £ay
espacial, trata-se de argumento meramente nos censos domiciliares, Levine detecta
- De sua parte, os líderes £ays prelerem
formal e, em certos casos, enganador. uma tendência
falar de 'zonas liberadas', e existe uma dos homossexuais a concentrarem Suas
diferença teórica maior entre as duas noções:
os territórios gays, diferentemente residências nas
dosguetos, são construíde . deliberadamente pelas áreas de “cultura gay": “A concentração
acento nos aspectos políticos da ocupação espacial
pessoas gays”, Castells põe o gay em todas
gay, sem prestar especial aten- essas áreas é tão extensa que quadras e préd
ção às definições internas de identidade. ios inteiros
são habitados exclusivamente DoOTr gays,
muitos dos
s4 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHE 55
quais proprietários dos prédios em que moram” (p.
199). mossexualismo, mas abrange as diversas variantes da
Levine conclui afirmando a validade da noção de sexualidade “desviante”. De outra parte, o grau de
gay ghetto “como uma construção sociológica”, e es- densidade das manifestações subculturais parece estar
?ecula a respeito do desenvolvimento eventual destas relacionado com o predomínio de sistemas classifica-
áreas: tórios distintos. Por exemplo, a área da Marquês de Itu
é a mais estritamente gay — e a presença de mulheres,
“Uma crescente aceitação da homossexualidade na região
míúis liberal do país significa que os gays podem agora pra- esporádica. Pelo contrário, na área mais “popular” da
ticar um estilo de vida aberto sem medo de penalidades.
Ipiranga, a proliferação de gestos, indumentárias e gf-
Uma vez fora do armário, os gays podem ser atraídos para rias prototipicamente “entendidas” pode suportar a in-
os guetos parcialmente desenvolvidos, para ficarem perto de trusão de homens e mulheres “heterossexuais”, ainda
outros semelhantes a eles e dos lugares da vida gay, aumen- que em franca inferioridade numérica. Nas duas áreas,
tando o número de moradores gays nesses distritos” (p.
esta hegemonia “homossexualista” só se verifica em
201). |
horários noturnos.
O quarto requisito — concentração residencial —
Pode-se falar de um gay ghetto em São Paulo? não parece realizar-se, pelo menos no seu sentido es-
trito. À população da área parece continuar tendo, a
No caso de São Paulo, o processo de diferenciação grosso modo, as características de “desintegração” re-
do chamado gay ghetto no seio da “região moral” não gistradas por Hermann 1944.
em À escassez de tra-
parece estar tão avançado quanto nos Estados Unidos. balhos sobre o centro da cidade na área da antropologia
Os requisitos colocados por Wirth para definir urbana dificulta comprovar completamente esta infe-
ghetto não se cumprem na sua totalidade na área do rência. Gouvêa et alit (1983) enfrentam essa dificuldade
centro da cidade de São Paulo delimitada para nosso recorrendo a estudos produzidos na área da geografia:
estudo. Porém, alguns deles estão parciaimente pre- Helena Cohn Cordeiro (1980) define a zona como “área
sentes. de depreciação urbana”; segundo Silva (1983), o centro
Assim, a denominada concentração institucional vê-se afetado “pela passagem da metrópole ampliada
limita-se à concentração e exploração de locais de lazer; simples para metrópole ampliada complexa”, vivida
bares, saunas, boates e pontos de “pegação”. À dife- pela cidade de São Paulo entre 1955 e 1970.*
rença das megalópoles do norte, a área gay superpõe-se Gouvêa et alii (op. cit.) dão conta também das
com outras “concentrações institucionais”, principal- dificuldádes
para definir com precisão os limites da
mente de prostitutas. “Boca”, que “sofrem uma expansão territorial muito
Também se realizam em forma relativa os outros
dois requisitos, área de cultura e isolamento social. À
(3) Explicando o deslocamento do centro urbano para à Avenida Paulista,
respeito deste último, pode-se pensar que a maior tole- Sant'Anna (1984, p. 7) sublinha “a perda de qualidade do Centro Histórico tra-
rância não se limita às manifestações públicas de ho- dicional”, manifestada, entre outros sinais, pelas “sucessivas 'degenerações' da
paisagem constatadas pela deterioração das edificações, como também dos espa-
ços públicos””.
56 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ
57
significativa desde 1953 até hoje” (pp. 13-14) e
obser- lerância para comportamentos £aySs mais ou menos
vam:
manifestos. Em 1984, por exemplo, abriu-se uma “casa
de chá” destinada explicitámente à “elite 8gay" no bair-
“De um lado, está o modo peculiar pelo
qual a Boca se ro de Moema. Porém, esse êxodo molecultar de
constituiu e se consolidou ao longo dos anos “ho-
como um es- moóssexuais assumidos” pode não ir especificamente
Paço segregado. De outro, a liberalização dos na
costumes e o
relaxamento da moral fazem surgir e crescer direção de constituir gays ghettos à moda ameri
enormemente. cana,
a presençade outros tipos sociais, isto é, o nascimento No momento, esses gays de classe média parecem
expansão da prostituição masculina, que vem ocupar o es-.
ea jus-
tapor aos traços da sua “subcultura” peculiar
paço aberto que é a Boca” ( p. 25). outros
próprios do setor sócio-econômico ao qual se acopl
am.
— Deoutrolado,apertinênciade aplicar a noção de
É a profusão de pessoas adeptas às formas “mar- “região moral” à área de circulação sexual do
ginais' de sexualidade e/ou sobrevivência que centro
favorece urbano sustenta-se em uso recente, como o de
Gaspar
a relativa permissibilidade a respeito das condutas (1984) — que aponta a delinear uma “geografia
pu- do
blicamente homossexuais. Essa tolerância pode sexo” de Copacabana — e o de Velho (1975), na sua
ter es- ra-
timulado a instalação residencial das populações diografia de um prédio desse mesmo bairro cario
-” ca,
gadas ao mercado homossexual, sob uma ampla Porém, Velho se declara a favor de uma “antropolo
varie- gia
dade de estilos; é comum encontrar prédios ou na cidade”, e contra uma “antropologia da cidad
“cor- e”,
tiços” habitados por diferentes tipos de lumpen donde aquela noção procede (Velho e M achado, 1977)
(pros- .
titutas, travestis, delinqiientes, etc.), coexistind À polêmica na/da é retomada a propósito da
o não aná-
raramente com famílias trabalhadoras ou ainda lise de Levine. O ponto de partida de Levine
, no é, para
mesmo quarteirão, com famílias de classe média. dizê-lo nestes termos, da. Levine (p. 183, op cit.)
— Deuma maneira geral, opõe à
o modo de agrupação das concepção espacial — “ecológica” — de Wirth e Park
populações na área do centro de São Paulo às outras interpretações da noção de ghetto,
parece cor- que res-
responder à clássica “região moral” — cuja tendê
ncia à tringem a aplicaçãodo termo a com unidades
compostas
dispersão previra já o próprio Park e descrevera de minorias étnicas e raciais. Dito de umaá manei
Cas- ra
tells. No caso de São Paulo, esta expansão da técnica, Park e Wirth colocam o acento na territ
“região oriali-
moral” tem a ver com aparição de focos de “vida dade-espacialidade: seus críticos, mais próximos
no- à so-
turna” em outras áreas da cidade. Isto se expri ciologia na cidade, salientam como determinan
me tam-
béêm nas “instituições” especificamente gays, te a
que vão idéia de comunidade-identidade *
pPaulatinamente se deslocando para bairros resid
enciais
de classe média ou média alta, como os Jardi
ns, Pi-
nheiros, Vila Madalena, etc. (4) Wellman e Leighton (1981) fazem um desenvo
lvimento dessa diterença
entre os que colocam o acento na espacialidade
Cabe, aliás, registrar certa tendência (ainda inci- terizada por “redes frouxas” de relações interpes
(““a comunidade perdida”, carac-
soais) e os que salientam à per-
piente) à instalação de homossexuais ostensivos sistência dos vínculos comunitários (“'a comunidade
em protegida”, caracterizada por
“redes protegidas" de relações), e incluem um terceiro modelo
áreas da “classe média liberal”, onde haveria certa de análise: “a
to- comunidade emancipada”, de “redes ramificadas” que independem da sujeição
NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊE s9
O curioso é que a análise de Levine, partindo de
perspectivas “espaciais”, chega a conclusões, por assim totalizante — exprimiria um reforço — uma
mutação
dizer, “comunitárias”. Em momento nenhum Levine de sentido — desse processo de reterritorializ
ação: as
coloca em questão que a chamada “identidade homos- massas flutuantes são substituídas por populaçõ
es lo-
sexual' não seja motivo suficiente para a agrupação calmente fixadas. Concomitantemente, as popu
lações
territorial destes sujeitos, que optam por realizar um dos gays ghettos começam a deixar de ser “margina
is” e
8ay way of life. Noutros termos, Levine participa da quebram seus vínculos de contigitidade com
as outras
“naturalização” da “identidade homossexual” ques- Populações da “região moral”. De fato, no caso
de São
tionada — como veremos — por Pollak. Francisco — talvez a cidade onde o peso polít
ico e de-
Haveria, então, um duplo movimento. De um la- mográfico da lavender community seja mais inten
so —
do, a preferência dos homossexuais por perambularem a pressão expansiva do gay ghetto tende a deslo
car as
na “região moral”', teria sido historicamente a resposta Populações negras que habitavam originar
iamente
à marginalização a que a sociedade giobal os condena; esses bairros, entrando fregitentemente em
conflito
elas teriam encontrado aí um “ponto de fuga” para os violento com elas.
seus desejos “reprimidos” pela moral social. Voltando à análise de Levine, esse deslocam
ento
Para dizê-lo em termos de Deleuze e Guattari, a “teórico” da perspectiva territorial para a persp
ectiva
população “homossexualista” ter-se-ia “desterritoria- comunitária pode se assentar na evolução histó
rica do
lizado” sobre a “região moral” (espécie de esgoto libi- homossexualismo americano, num processo perce
bido,
dinal das urbes, condição residual que ecoa no mesmo entre outros, por Marshal! (1981) ;
topônimo: “Boca do Lixo"), para “reterritorializar-se”
numa “territorialidade perversa”, marcada pela ade-
são a lugares de encontro, argots e códigos comunss. Ghetto x Boca
Mas já a constituição dos gays ghettos americanos
como uma população estávêl agenciaria um ponto de Num interessante artigo, Pollak (1983) relaciona
reversão da tensão desterritorialização/reterritoria- “o fato de a homossexualidade ter abandona
do (nas
lização. últimas décadas) a sombra do domínio do
não dito"
O surgimento dos gays ghettos à moda americana com o desenvolvimento de pPopulações homossex
uais
— com sua concentração territorial e sua identidade social (e até politicamente) legitimadas:

“Na visão psiquiátrica dominante, a classificaçã


o da ho-
aos limites do bairro ou da vizinhança, sendo “(...) redes tracamente soldadas, de mossexualidade entre as perversões ( ..) mante
ve toda sua
litites imprecisos, são mal-equipadas estruturalmente para o controle social in- força até os anos 60. À decisão que a Associação Psiqui
terno” (p. 125). Em compensação, “as redes emancipadas ramilicadas são bem
á-
trica Americana tomou em 1974 no sentido de
estruturadas para a aquisição de recursos suplementáres através de um grande deixar de
considerar a homossexualidade como uma pertur
número de conexões exteriores diretas e indiretas” (p. 126). Os relacionamentos bação
entre as populações do gueto poderiam talvez ser pensados através deste modelo
de redes ramificadas. (5) Conden
sa Plummer (1981, p. 55): “Guetoizado e reificad
o, o homos-
sexual permanece firmemente sob controle no “capital
ismo liberado” ”,
NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 61
mental (mental disease) é um ato simbólico que marca a al- À inclinação à “guetificação” — no sentido
teração das relações de força entre as diferentes teorias da de
concentração cultural e residencial — implicaria
sexualidade. Mas esta alteração operou-se em favor de uma , as-
sim, certa tendência à homogeneização, orientada
visão que, também ela, naturalizou o fenômeno homos- à
sexual” (p. S1). “afirmação de uma identidade homossexual”, que
re-
gimenta, modela e disciplina os Bestos, OS corpos,
os
discursos. ” Acontece, segundo Pollak, que “o apareci-
Um dos efeitos desta “naturalização” parece ter
mento no seio do meio homossexual de uma imagem
sido o progressivo deslocamento do protótipo carica-
viril em oposição à imagem efeminada” está na raiz da
tural da “bicha louca”, pelo paradigma de uma “iden-
instauração de uma “identidade homossexual”. Esse
tidade gay" redefinida pelos militantes homossexuais
mesmo processo — “que chega até a organização eco-
“libertando-a da imagem que faz do homossexual, na
nômica, política e espacial” — está na base da cons-
melhor das hipóteses, um homem efeminado, na pior,
Atituição dos gays ghettos conceituados vor Levine.
uma mulher falhada”. Como reação contra esse este-
No caso do Brasil urbano, a inexistência de um
reótipo, continua Pollak, “o homem “superviril' ou
processo de agrupação residencial da população ho-
“macho' tornou-se ideal: cabelos curtos, bigodes ou
mossexual no sentido clássico da noção de ghetto cor-
barba, corpo musculado”.* Assim:
Tesponde-se com um desenvolvimento ainda não mo-
nopólico das formas de “homogeneização” dessas po-
“enquanto o tema da emancipação dos heterossexuais está, pulações em benefício do “gay macho” — como acon-
muitas vezes, ligado à indiferenciação dos papéis mascu- tece nas cidades americanas. Embora essa tendência à
lino e feminino, a emancipação homossexual passa atual-
uniformização se expresse no Brasil — na sua versão
mente por uma fase de definição muito restrita da identi-
dade sexual” (p. 64).
política, sob o modelo da “bicha ativista” de Mott
(1982), por exemplo —, a homogeneidade androgini-
zante parece ainda longe de ser obtida e a própria dis-
(6) Seymour Kleinberg interpreta assim esta “insensível busca da masculi-
nidade”; “Antigamente, a duplicidade das vidas escondidas encontrava alívio
persão classificatória dos “Dez Viados” baianos ex-
no
comportamento efeminado excessivo e caricato: agora, a supressão ou negação prime este multimorfismo das homossexu alidades bra-
do problema moral implicado na escolha é muito mais nociva”. Ássim, “a mascu-
linidade é a única verdadeira virtude: os demais valores são desprezíveis, E a
mas-
culinidade, no caso, não é algurma noção filosófica ou um estado psicológico; não (7) Patrício Bisso pinta uma divertida descrição do ghettu gay da Rua
está sequer vinculada moralmente ao comportamento. Ela redunda exclusiva- Cas-
tro, em São Francisco: "Nós últimos anos parecem ter-se
estabelecido no universo
mente na glamurização da força física” ( Kleinberg, 1979, pp. 8-9). gaiato três modelos, modelos estes que devem ser seguidos
à risca, sob pena de
Segundo ele, a conseqiência prática deste quadro seria a progressiva im- serem condenadas à terrível lei do ombro írio(a lei do ombro
frio consiste em que,
potência registrável nas saunas gays. se você entrar num lugar e não estiver vestido igual ao resto,
todas instantanea-
Por sua parte, Blachford (1981) vê neste fenômeno de “masculinização do mMente se viram de costas e, de repente, você se sente no meio de um
mungdo gay" a permanência da dominação masculina própria da ordem social iceberg de
ombros de gelo). Os três modelinhos para esta temporad
a são: 2) lenhadora;
eglobal na subculturá gay, À partir de 1970, o “novo estilo masculino (...) tornou-se b) pesadona; c) bonitinha ( Ssegue a descrição). Ágora, não pensem
que nem entre
a forma dominante de expressão na subcultura. O novo “papel homossexual' proi- elas se misturam, não, não. Por exemplo, se uma c) bonitinha
entrar num bar
biu ou certamente limitou a efeminação” (p. 188). Isso se traduz em expressões cheia de b) pesadonas, não dá outra: pimba, lá vem o tal de
ombro frio. Às únicas
discriminatórias do tipo: “Eu sou gay, mas você é bicha". Ássim, "homossexuais que circulam livremente pelos dois ambientes Parecem ser as a) lenhadora
efeminados vão ser estigmatizados pelos homossexuais mais 'normais” ” (p. 189). s” (Bis-
so, 1984),
62 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 63

sileiras. Fry tende a vislumbrar um avanço do modelo gido pela vanguarda gay, não beneficiou somente as
“gay-igualitário” comoefeito do maior peso das classes : “bichas ativistas” de Mott (1982) nem os “entendidos”
médias urbanas democráticas na vida social brasileira. de Guimarães (1977), mas também as denotadas “fal-
Porém, esse progressivo deslocamento das formas : sas mulheres” — diferenciar-se das quais constíituíra,
“populares” de representação dos gêneros homosse- " paradoxalmente, um dos primeiros objetivos dos gays
à á . 10
xuais não parece proceder de uma forma linear. Pelo “ “conscientizados”, :
contrário, certa “resistência da (bicha) louca” — si- Nas “regiões morais” brasileiras, essa resistência
. milar à encontrada por Hocquenghem* em Barcelona da “bicha touca” costuma assumir arestas cortantes.
— parece agir como um fator não desprezível no retar- É a força de navalha — adverte Gaspar (1984) —que
damento da homogeneização identificatória gay. os travestis despejaram as prostitutas dos “pontos” da
Ássim, episódios “pitorescos” como a populari- Avenida Atlântica no Rio de Janeiro — contíguos ao
zação do travesti Roberta Close,º no nível de consumo gay ghetto da Galerta Alaska e à “Bolsa de Valores”
de massas, estariam exprimindo, apesar de sua ôbvia do narcisismo praieiro. À contigitidade e a superposi-
reapropriação capitalista, uma crescente pressão de ção entre pontos de travestis e áreas de “gavys moder-
uma população de travestis também crescente. Essa: nos” têm expressão também no caso de São Paulo.
“explosão” do travesti brasileiro parece indicar, entre. Cabe — num esquema provisório — comparar
outras coisas, que o coming-out da década de 70, diri-: dois quadros situacionais diferentes:
1) No caso do gay ghetto amerícano, a territoria-
lidade perversa vira também residencial; suas institui-
(8) Na sua descrição da área de circulação homossexual de Barcelona,
Hocquenghem (1980) pinta um ambiente carnavalesco parecido ções não são locais de lazer — como eram, segundo
ao brasileiro:
“Não existem hotmossexuais em Barcelona (...). O que se vê são os militantes
da registra Hooker, na São Francisco da década de 50 —,
frente homossexual catalã, vestidos de Jfeans, barbudos, e que acham
os travestis
*apoliticas' (...). Mas na rua ... só se vêêm mariconas, machos ambíguos,
mas também posições econômicas e políticas. Confor-
gigolôs
abertos, militares e turistas”, Hocquenghem constata “... uma resistência da
me delimitam-se com tnais clareza seus contornos geo-
“loueca latina', tradicional detentora de uma cultura vigorosa e solidament
zada nos cais dos grandes portos mediterrâneos e que se opõe ao modelo
e enrai- gráficos, a identidade gay assume contornos cada vez
anglo-
saxão de responsabilidade e de afetação liberada” (p. 138).
(9) Nurna entrevista inaugural, concebida à revista Close — da qual pro-
cede seu apelido —, Roberta Close, numa conversa com outros travestis, (10) Não seria pertinente aplicar aos modos de relacionamento homosse-
participa
, da defesa reivindicatória da classe. Simone é a mais veemente: "Eu sou travesti e xual vigentes nas urbes brasileiras moldes categoriais fabricados nas metrópoles
sou prostituta. Não estou nessa porque eu querija, mas porque
essa foi a única do Primeiro Mundo. Ploegmakers e Perruchot (1982) atribuem a ess2 defasagem
forma que encontrei para ser aquilo que sempre quis ser, isto é, muther 0 fraçasso dos grupos de "afirmação homossexual” brasileiros, cuja preocupação
de amor.
Quem vai dar emprego para um travesti? Ninguém. Há uma terrível discrimina por se diferenciar dos travestis e estabelecer um paradigma de “identidade gay”
-
ção nesse aspecto, que as autoridades não se importam. Os travestis estão no pé choca com certa “tentação hedonista ... tão densa que podemos senti-ta vibrar no
do pé da pirâmide das minorias segregadas” (seguer diversas reivindica ar”. Notam que “no centro do Rio, palavras como “gay' ou “homossexval' servem
ções es-
. pecíficas). apenas como senha, levando a práticas multiformes” (pp. 16-17),
Roberta Close explica: "*Às vezes certos homens não saem com a gente por Escreve um dos protagonistas do movimento gay brasileiro: “O homosse-
medo ou preconceito. Mas ele só tem medo ou é preconceituoso se estiver com xval deve lutar para existir e se fazer respeitar na integridade física, moral e
um
amigo ou a namorada, Fora disso, as coisas acontecem (...). Cada um tem Psicológica que lhe é natural (...) sem se autodiscrimínar ou afirmar-se em hie-
o
d(i)r;ito de ser aquilo que methor lhe convém, e isso deve ser respeitado rarquias ou classes, sejam travestis, michês, bichas loucas, bichas mais-ovu-me-
” (Close,
1981), nos-loucas... bichas-intelectuais, etc., ete.” (Penteado, 1980),
64 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 65

mais totalizantes. À tendência do ghetto, especula Le- tuição (ainda que a própria lógica do modelo gay-gay
vine, parece ser a expansão. possa avançar nessa direção).
2) No caso das bocas paulistanas, o território é Não obstante, considerando-a na sua face pura-
antes um ponto de fluxo e de ambulação do que um mente descritiva e não-conceitual, a palavyra ghetto
local de residência fixa; nele os gays coexistem, literal tem a vantagem de ter sido incorporada ao linguajar
e espacialmente, com outros tipos de marginais, “se- de alguns setores do meio homossexua! local.
xuais” ou não. Apesar de certa tendência à instalação O uso do termo traz outro benefício, que é possi-
habitacional por parte dos modernos £ays (que, po- bilitar certa distinção (espacial e “subculturalmente”
rêm, parecem preferir áreas mais de classe média), es- verificável) entre os “pontos” de encontro Hhomosse-
sas moradias costumam ter a marca da fugacidade: xual e os das restantes populações da Boca. Essa dife-
hotéis, pensões, pequenos apartamentos alugados, ca- renciação parece ser, no caso de São Paulo, anterior à
racterística da “região moral”, própria constituição de uma vanguarda gay “assu-
Esta dissidência revela-se também no plano se- mida", como a descrição da “base espacial do grupo
mântico. Ghetto associa-se às comunidades minoritá- homossexual” de Barbosa da Silva (1959) o indica.
rias e alastra uma forte carga de “nacionalismo”. Boca O acento no uso do termo vai repousar, então, nas
é um lugar de emissão de fluxos, que se associa (“boca populações masculinas que fazem o intercâmbio de
de fumo”, “boca de ouro”, etc.) a qualquer forma de prestações sócio-sexuais numa área frouxamente deli-
“ilegalismo” não exclusivamente homossexual. Alguns mitada.
pontos de emissão podem ser também pontos de fixa- ' Este acento nas populações pode permitir, de pas-
ção na rede circulatória: trata-se dos pontos de traves- sagem, abranger um segundo movimento de espaciali-
tis, de michês, de prostítutas, etc. zação. Se o requisito de “concentração residencial”
Os reparos
não se verifica numa medida significativa, cabe presu-
que provocam a aplicação literal do
conceito de gay ghetto de Levine, com mir que o deslocamento de “casa” ao “centro” impli-
sua carga de cará “micromigrações” das massas envolvidas — às
homogeneização, tem a ver não somente com a ope-
ração de “modelização' que esse contrabando ideoló- quais os michês, que costumam morar nas periferias,
gico poderia eventualmente acarretar, mas também nos parecem particularmente sensíveis. Essa circuns-
com “dissimilitudes” reais entre as populações homos- tância poderá acentuar, intuímos, certa predisposição
sexuais norte-americanas ou “metropolitanas”, de um à nomadização característica da “deriva” homosse-
lado, e as brasileiras ou até latino-americanas em ge- xual em geral, exacerbada entre os michês de rua.
ral, do outro. De outro lado, este modo sui generis de instan-
ciação e circulação da população do gueto komosse-
À existência pura e simples de um gueto £ay pau- xual — expressão usada aqui no sentido que a parti.r
listano, nas condições definidas por Levine, não pode ;de agora lhe outorgaremos — pode favorecer a apari-
ser sustentada, bem como não estamos em condições ição de “subguetos” ou de pequenas áreas (como ba-
de levantar indícios suficientes de uma próxima consti- 'res, estações, etc.) de concentração de adeptos às prá-
6% NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 67
ticas homossexuais em diferentes pont
os da cidade, “étnicos” demasiadamente precisos. Ela deverá flu-
mais ou menos próximos às residências
das “bichas”. tuar e se nomadizar, * acompanhando os movimentos
Um “entendido” entrevistado faz refe
rência a esse pro- reais das redes retacionais que aspira significar.
Cesso:

“No final dos anos 50, tinha um 8trupo de bichas “grá-finas'


que reuniam-se numa casa de Cantareira, todos moravam
mais ou menos aí por perto. Elas costumavam sair para fa-
zer pegação no bairro operário próximo mais Populoso que
era Santana. lam todas numa Dizzaria
que ficava na rua
principal de Santana sábado à noite. De
fato os rapazes que
frequentavam o pedaço sabiam que podiam
encontrar bi-
chas aí, À transação era exclusivamente sexual,
nada de
engajamentos afetivos. No domingo as bicha
s contavam-se
o que tinha acontecido na véspera. Dava para fazer
rias pegações numa noite. De fato, pegação até vá-
tinha — e acho
que tem — na cidade toda” (D,, entrevistado
por Edward
Mac Rae).

ÀAo pensar o termo gueto £8ay, então,


s estaremo
nos referindo, de um modo geral, aos sujei
tos envol-
vidosno sistema de trocas do “mercado homo
ssexual”
(Hooker) e aos locais onde as atividad
es relacionadas
com sua prática sexual (e geralmente tamb
ém existen-
cial) se exercitarem com freqiência consuetu
:! Nosso uso da expressão ghetto vai dinária.
;
abranger, em pri-
meira instância, a área estudada — mas
j ressonância poder-se-á estender conforme
seu campo de
o desloca-
mento das populações que o constitu Boca pode contribuir para ampliar a apreensão deste “espaço ftuido' * (1983, p.
em.
Esta noção de ghetto,º ao contrário da ndo Relatório). :
enunciada ” Seg'lll'a:tolªles quar)no MackRae (1983) consentem — emboríl sem uma discus-
por Levine, não poderá ter limites geográficos são conceitual específica — num uso da noção de “gueto gav" similtar ao elabo-
nem | T ui. :
á ªq(13) Deleuze e Guattari, no “Traité de Nomadologie" ('19.80), opõem a
localização, própria do espaço nômade, à delimitação caractf:ru.itlca .(Ilu espaço
(11) Edward MacRae — que realizou sedentário: “O nômade, o espaço nômade, é localizado, não dellml'tado ' pe uma
—mamúm&fadhm-mom uma pesquisa sobre o Grupo Somos
nmmmu, parte, “o nômade tem um território, ele segue os trajetos costumeiros, vai de unê
(12) Gouvêa er alíi propõem Ponto a outro, não igrtora os pontos”. Mas esta perambulação entre pontos não
verto em movimento”": “Desta forma, princípio, mas conseqiiência da deriva nômade. “(...).Mesmo se os ;?ontns detãr:
ção de um conjunto de relações que minam os trajetos, eles não estão estritamente subordufaªos aos trajetos que de
terminam, inversamente ao que se passa com o sedentário” (p. 471).
O NEGÓCIO DO MICHÊ 69

Resta, porém, um paper. Nele, Barbosa da Silva nos


dá os limites de território ocupado pelo que ele chama
Transformações de “grupo homossexual” no seio da “região moral”
paulista:
no espaço urbano:
“À região principal, que tem resistido durante muito tempo
o gueto gay paulistano como ponto de encontro de grande parte do grupo homos-
sexual de São Paulo, pode ser caracterizada por um grande
entre 1959 e 1984 T, formado pela confluência das Avenidas São João e Ipi-
ranga, que teria seus limites mais gerais entre os pontos do
cinema Oásis, Art-Palácio e início da Rua São Luís. À vida
de rua encontra alguns focos principais entre os quais po-
dem ser mencionados: imediações do café Mocambo (Rua
dos Timbiras), do bar do Jeca (esquina da Avenida São João
VISÃO DE SÃO PAULO À NOITE com Avenida Ipiranga), o passeio de todo o quarteirão for-
Poema antropófago sob narcótico
mado pela Avenida São João, Ipiranga, Praça da Repú-
(Uragmento) blica, e rua dos Timbiras, Avenida São João desde o cine
Oásis até o Art-Palácio (lado ímpar), Praça Dom José Gas-
Maidoror em taças de maré alta par (principalmente diante dos bares aí localizados), toda a
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho de minha vída
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria feroz
Praça da República, Largo Paissandu, Rua São Luís (prin-
na plena afegria das praças, meninas esfarrapadas
cipalmente diante dos bares), Praça da Sé, Praça Clóvis Be-
definitivamente fantásticas vilacqua, Praça João Mendes, Praça Ramos de Azevedo (em
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo frente à loja Mappin), à tarde, Rua Barão de Itapetininga, e
àa iuo não se apóia em nada os bares República, Nicky Bar, Pari Bar, Mocambo, Jeca,
eu não me apóio em nada.
Cremeirie, Brahma, Baiúca, os cinemas Art-Palácio (prin-
cipalmente segundas-feiras), Oásis, Marabá (principal-
Roberto Piva (1963, p. 35)
mente quartas-feiras), Cairo, Pedro , Cinemundi, Santa
Helena, banheiros públicos (principalmente os das Praças
Período 1959-1979 da República, Arouche, Paissandu, Ramos de Azevedo e
dos cinemas e bares citados), estações de ônibus intermu-
O gueto homossexual em 1959 nicipais, estações de estrada de ferro e quartéis” (Barbosa
da Silva, 1959, p. 352).
Salientou-se já o caráter pioneiro do trabalho de
B_arbosa da Silva — cuja tese de mestrado em Sociolo- Nota-se, em primeiro lugar, uma superposição
gia, dçfendida na USP no início da década de 60, foi parcial com alguns pontos de diversão de prostitutas e
misteriosamente “arquivada” e nunca mais apareceu.' delinqiientes, assinalados por Hiroito. Homossexuais e
marginais compartilhavam, por exemplo, o cinema
| (1)D Ver Prandi, ; Reginaldo: : "Homossexualismo, , du duas teses êmicas"º
Oúásis, que Moraes Joanides (1978, p. 79) incluií no
in Lampião, ano 1, nº 11, abril 1979, p. 17. EEA “campo de entretenimento social “submundano” ”.
70 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 71

Mas Hiroito não faz menção a esta obscura convergên-


Apesar dessa detalhada classificação, quando Bar-
cia; anota, porém, que “o Restaurante Papai, da Júlio
bosa da Silva aprofunda a noção de .“grupf) homosse
Mesquita, sempre .gozou da preferência das lésbicas”
xual”, exclui os “ativos”, para referir-se só àos “pas-
(idem, p. 78). Infelizmente, as lésbicas ficam fora da
sivos”. Faz isso se referindo às virtudes socializadoras
análise de Barbosa da Silva. Ele, se bem que situe o
do “grupo homossexual”:;
território homossexual dentro da “área de desorgani-
zação”, não está preocupado, aparentemente, com
precisar os contatos entre as marginalidades. Inte- “Ê no grupo que os homossexuais se iniciam e são classi-
ficados, perdem as suas inibições de viver e mostrar-se co-
ressa-se, antes, por “determinar
(...) os indivíduos que mo homossexuais, aprendem a desfilar, usar roupas fe-
fazem parte da categoria social homossexual”"., Con- mininas, e meios de atração e defesa do parceiro sexual. Em
forme o “critério sexo”, os divide em: homossexual suma: ele representa para o homossexual um ponto .de
passivo; homossexual duplo: homossexual ativo. apoio psicossocial e moral; oferege-lhe segurança, maior
Os passivos “são aqueles que durante o ato sexual conforto, perspectivas de ter uma vida organizada com cen-
tro de interesses e valores próprios. Se ele não explica, to-
desempenham papéis sexuais que podem, no contexto talmente, a diferenciação da personalida'de do homossexual
da relação, ser assimilados aos da parceira feminina”, no plano biopsicológico, é a agência sêmo-çultçral, por ex-
Estes homossexuais dividem-se, pela sua vez, em duas celência, que seleciona, regula e orienta os ideais de vida do
“espécies”: em primeiro lugar, “aqueles que não só homossexual passivo " (sic)(p. 360).
representam durante o ato sexual o papel passivo como
também em outras situações têm a preocupação de de- Como se pode entender essa restrição de ?arbosa
monstrar um comportamento construído segundo este- da Silva ao “homossexual passivo” no agencªflnfentg
reótipos e padrões de personagem feminina (travesti)”: do “grupo homossexual””? Provavelmente, os atlvos
em segundo lugar, “aqueles que só desempenham pa- e “duplos” — ainda que incluídos na classificação de_
péis femininos durante o ato sexual, mas que em ou- homossexuais — não seriam sujeitos do grupo hqmos,:
tras situações da vida externam o maior número possí- sexual na medida em que suas “atitudes maspulmas
vei de atitudes tidas como “masculinas” ”, os confundiriam com os varões heterossextíals. À ex-
Os homossexuais duplos, continua Barbosa da clusão praticada pelo antor é coerente, então, com os
Silva, “são aqueles que desempenham no ato sexual seus postulados iniciais, que apontayam no setxóltndo de
tanto o papel feminino quanto o masculino; compor- estabelecer uma diferenciação taxativa entre “homos-
tam-se, em geral, segundo padrões de comportamento sexuais” e “heterossexuais”:
'masculinos” ”, '
Por último, os homossexuais ativos “são aqueles “À definição do homossexual, portanto.)im'plica (...) uma
que só representam papéis masculinos nas relações se- pluralidade de pessoas que são reconhecíveis afravés de.v:se
xuais; podem ser considerados, na totalidade, subje- caráter e podem ser estudados como uma umda.de sçclal
tiva e externamente, como “masculinos'" (pp. 356- (...). À explicitação da categoria levantada serve nmçd.nata-
357). mente para indicar o tipo de indivíduos que delfl participam
e que dela são excluídos pois dívide o grupo social sgiobal em
NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 73

duas semipopulações exclusivas: a dos heterossexuais e a Além da entrevista de Clóvis, intercalam-se ou-
dos homossexuais” (p. 359, ênfase adicional). tros depoimentos e materiais que, basicamente, coin-
cidem com a esquematização daquele.
ÁÀ restrição de Barbosa da Silva não somente é
O entrevistado citado, Rolando, é um escritor, da
ilustrativa dos riscos a que conduz a partir deuma visão classe média, 53 anos, branco, entendido. Há mais de
“exclusiva” do “grupo homossexual” como “categoria 30 anos ele é um dos que freqúentam as redes de pe-
social”', E, num outro sentido, até premonitória: ante- rambulação homossexual: porém, não conta fazê-lo
cipa — pode-se pensar — as modernas elucubrações com a persistência e conseqiiência de Clóvis.
acerca da “identidade homossexual” que somente ha-
veriam de se consolidar depois do gay liberation (1969). Incluem-se, também, trechos de um pouco difun-
Mas, diferentemente da identidade gay — que vai se dido artigo de Antônio Bivar, “O Paraíso Gay, São
constituir predominantemente Paulo, é claro”', revista Especial, fevereiro de 1980. Bi-
em torno do persona-
var foi um protagonista direto dos fatos.
gem que Barbosa da Silva chama de “homossexual
duplo" —, o protótipo escolhido era, na época, o “pas-
sivo”,
Como se processa, no gueto homossexual do cen- DEPOIMENTO DE CLÔVIS — 1960-1965
tro de São Paulo, essa passagem?
“Um pouco antes da década de 60, eu morava em
Santos com minha família. Eu pegava o trem Santos/
História do gueto — 1959-1979 Jundiai, que não tinha tanta fiscalização com relação
aos menores, então preferia ir com uns amigos passear
Para ter uma visão global da história do gueto gay pelo grande centro. Vínhamos a São Paulo de trem.
paulista, desde a descrição de Barbosa da Silva até a Isso era por volta de 1959. Eu tinha um grande fasci-
década de 80, recorremos ao depoimento de Clóvis. nio pelo mundo gay, queria saber como era, onde é
Clóvis se define como gay, tem 42 anos (ainda que cos- que estava. Chegava à cidade escutando: é na Rua São
tume revelar menos), trabalha como supervisor em Luís, na esquina da Ipiranga com São João. Assediava
pesquisa de mercado, e freqienta sistematicamente o esses lugares, existia o fascinio de um adolescente para
“mundo da noite” paulista desde os primórdios da dé- com locais freqientados por pessoas adultas.
cada de 60. Seu depoimento contribui para uma tenta- Nessa época eu ainda não podia me definir como
tiva de reconstrução da “história dos pedaços”', refe- homossexual. Não tinha consciência como tenho hoje.
rente também às modificações nas vigências das cate- Tinha uns 14 ou 15 anos. No início freqúentava a Rua
gorias classificatórias bicha/bofe/gay, às variações São Luís. Ainda não existia a Galeria Metrópole, mas
com relação ao michê, e a ligação do “mundo gay” no lugar onde ela está agora já existiam dois bares fre-
com a chamada marginália em geral. qientados por pessoas homossexuais, Barbazul e Ar-
74 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 75

pege. O Barbazul era mais refinado, pessoas mais con- muito criticada, chamada “quebra-louça”, muito mal-
vencionais, de terno e gravata, e o Arpege era mais vista; dizia-se que era coisa dessas “bichas loucas”,
boteco, não tinha mesinhas como o Barbazul, era um paranóicas, intelectuais, que estavam propondo esse
bar de balcão. Continuando pela Rua São Luís, onde modelo de bicha transar bicha.
agora é a Praça Dom José Gaspar, ainda não tinha A diferença entre a bicha e o macho era muito
calçadão, mas já estavam outros dois bares gays: o mais nítida do que agora, falava-se em termos de bi-
Cremeirie (que ainda existe) e o Pari Bar, que desapa- cha e bofe, não se usavam muito essas classificações
receu por volta de 1983. como homossexual, nem ativo/passivo. Também entre
À indumentária da época era terno e gravata, as lésbicas a diferença lfady/sapatona era muito rígida.
mesmo entre os gays. O Pari Bar era mais sofisticado. . Depois, já na primeira metade da década de 60,
O Cremeirie era intermediário: também tinha mesas a coisa começou a ficar mais diluída, num processo
mas era freqliientado por pessoas mais jovens e era per- muito lento que ainda não está totalmente definido.
mitido não usar terno e gravata. Continuando, do ou- No início esse modelo de mentalidade progressista pro-
tro lado da rua, havia um bar, bem popular, chamado punha a quebra desses esquemas, mas era uma mino-
Turist — este tinha uma fregiência misturada: entre ria. Nessa época o homossexual tinha esses valores
gays e pessoal de teatro. Tinha um outro bar freqiien- ativo/passivo muito incorporados, a coisa se dissipou
tado pela classe teatral: o Nicky Bar, com piano, fi- com o tempo. Hoje em dia tem mil caminhos, muitas
cava ao lado do TBC, na Major Diogo. Fora desse cir- possibilidades de transa e paquera, uma explosão das
cuito, nas imediações da Ipiranga e São João, já exis- possibilidades.”
tia, nessa mesma esquina, o Jeca, muito freqitentado;
e.um café, chamado Mocambo, muito sofisticado, de- Repressão policial
trás do cinema Metro, perto da Avenida São João.
Também tinha o Brahma (São João esquina Ipiranga, “Tá na época tinham-se notícias de repressão po-
frente ao Jeca), um local mais boêmio. Tinha casas de licial. Determinados lugares muito assediados por ho-
chá como a Vienense, que ainda existe, na Barão de mossexuais, cuja homossexualidade era muito nítida,
Itapetininga, freqilentada por casos, no começo da evidente, imediatamente sofriam assédio, repressão da
noite, finai da tarde. Havia também marginália; São polícia. Os políciais apareciam, pediam documentos, e
Paulo já era uma cidade grande. O ponto dos michês produziam uma dissipação, uma saída, um êxodo do
era no cinema Itapira, do lado do Jeca, se estendendo gueto. Principalmente na Avenida São Luís, no co-
pela Avenida São João até a galeria do cinema Lira. meço dos anos 60, lembro do assédio da polícia e a
Havia então uma postura de distinção entre as pes- conseqgiiente dispersão. À coisa já estava muito aflo-
Ssoas, na paquera. rada.
AÀ transa em geral era de mariconas com machos. Porém, os lugares não só mudavam por causa da
Havia uma mentalidade de vanguarda, mais imposta repressão, mas também por causa da moda. Um pou-
pelo pessoal de teatro, de gay transar com gay, mas era quinho de cada coisa, o gay tem um pouco de se enjoar
76 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 77

do lugar, gosta da novidade. Havendo o pretexto e o (Rolando: “*Na década de 60 os meninos, quando
incômodo da repressão, era uma coisa que acionava cobravam, era mais para jantar, essa coisa toda. Me-
mais essa mudança.” ninos muito afetivos, que criavam uma relação até du-
radoura. Muitas vezes bem do subúrbio ou da classe
Boca do Lixo mais baixa. Pessoas de certa sensibilidade, queriam
sempre estar em dia com determinados filmes ou dis-
*“Na época havia a Boca do Lixo, que começava cos, para poder levar um papo com o pessoal homos-
na esquina da São João e Ipiranga, e estendia-se do sexual da época que era muito intelectualizado. Atual-
outro lado da São João. Eu não cheguei a fregientar mente, com a sociedade de massas, os garotos perde-
essa área. Apenas conheci um barzinho, boêmio, do ram sua gíria criativa, Hoje só querem uma moto e
outro lado da São João, justo em frente ao Jeca e, no grunhem: — Legal, tudo bem.
Largo do Paissandu, o Ponto Chic, que era um lugar Nos anos 60 não era um gueto homogêneo, tinha
muito do mundo da noite, freqiientado por boêmios pessoas diversificadas, não tinham essa cara de socie-
mas também por gays, essas misturas da noite onde os dade anônima que têm hoje. Noites com mais de mii
gays se incorporavam, pessoas de todas as idades. Agora o centro se espalhou.
À contigúidade com o mundo marginal sempre Naquela época, entre os mesmos homossexuais, a
existiu. Mas eu não tenho notícias de que as bichas coisa se dividia entre as bichas (efeminadas) e os fan-
estivessem integradas ao mundo autônomo da prosti- chonas (viris). Lembro de um pessoal que fregilentava
tuição (que era isso a Boca do Lixo até fins da década o bar Arpege e que fazia ponto em frente do cinema
de 60). Estavam contíguos mas não se misturavam,. HFtapira, que não era esse lixo que é agora. Um dia
Muito perto um do outro, mas acho que nunca houve estava tendo um desfile de adolescentes na Ávenida
mistura dessas duas marginalidades: São João. Dois fanchonas (desses que procuravam ga-
Travesti era muito raro na época, pelo menos nas rotos para comer — o termo ainda se usa na linguagem
Tuas. Geralmente se limitavam aos teatros, às boates. patibular, Oswald de Andrade já o empregava) fala-
Eles eram tão discretos que passavam despercebidos. vam um para o outro: “olha como nós somos crimino-
As boates gays demoram em aparecer, eu só as sos, olha essa juventude, o que nós fazemos', era um
conheci na metade da década de 60. Na época ante- Jjeito de dizer que os meninos eram gostosos sem sentir
rior, à postura de homossexual era muito comedida, culpa: tinham que se tratar primeiro de corruptores.
muito elegante. Tinha um bar, na Praça Roosevelt, Esse universo da compra/venda é um universo da
por volta de 1960-1965, chamado João Sebastião Bar. culpa.”).”
Também na Praça Roosevelt (que então era uma espé-
cie de largo, um estacionamento, ainda não estava
construído o Minhocão), uma outra confeitaria, a (2) O termo fanchona, segundo parece, deixou de ser usado entre os ho-
mossexvais masculinos, passando a denominar a lésbica “masculinizada”. Com o
Baiúca, também transada por entendidos da classe sentido de “homossexual ativo", o termo se conserva na gíria carcerária — ver
média intelectualizada e de teatro. Ramalho, Mundo do Crime (1979).
78 NÉSTOR OSYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 79

CLÔVIS — 1965-1970 mundo,. Isso conseguiu diminuir a frequência, e a Ga-


leria Metrópole caiu no declínio.
“Na segunda metade da década de 60, há um Até então à paquera era sobretudo caminhante. À
grande acontecimento, que é a inauguração da Galeria paquera motorizada no circuito (onde agora é o cal-
Metrópole. Ela foi construída como um espaço arqui- çadão) que apodava-se “*Autorama', aparece só nos
tetônico, urbanístico. Mas já quando estava em obras anos 70. Até então era uma badalação incrível, mas a
as bichas já falavam: 'vamos invadir esse espaço, vai pé, nas imediações da Galeria Metrópole.
ser nosso, vai ser uma bicharada toda nessa gaieria”. Não havia hotéis específicos para gays como tem
Na época, os grupos de bichas eram mais sólidos, agora. Transava-se em hotéis improvisados, mas tam-
não tão fracos quanto agora. Frequentava-se muito os bém fregientados por heterossexuais. Hotéis mais ba-
apartamentos. De tanto em tanto dava-se uma saída à ratos sempre permitiam hospedar dois caras por uma
caliçada, Avenida São Luís, Galeria Metrópole. Havia noite, às vezes passava-se o final de semana. Na Rua 7
mais interação entre as pessoas, visitavam-se as casas, :de Abril, lembro, havia um hotelzinho chamado São
organizavam brincadeiras. Tião, a gente ia com muita discrição e ficava hospe-
O michê já era uma constante da época, mas dada com um cara. |
muito menos do que hoje. Existiam uns boyzinhos que (Rolando: “Galeria Metrópole na década de 60: os
faturavam, ou tentavam faturar. À mesma postura garotos ficavam andando pela cidade. Tinha noites
machista que hoje, mas em muito menor quantidade. 500, 600 garotos que te chamavam, não queriam gra-
Não existia a violência de hoje, em termos de assalto, na, queriam transar.
roubo. Os anos 60 foram muito livres, entre 1966 e 1968.
Nessa época começa a aparecer o termo “enten- Bandos e bandos que ficavam perambulando ou en-
dido', usado pela vanguarda teatral, para amenizar. costados nos carros. Quando Sartre veio no Brasil fi-
Foi tipo 1964-1965; hoje quase não se usa, foi substi- cava a noite toda tomando uvísque na Galeria. Tinha
tuído por gay .” uma vivência de garotos que perambulavam por aí.
Agora são garotos que ficam na beira da calçada para
pegar carro. Só pega de carro. Garoto de subúrbio com
Repressão fetiche da Rua Augusta, que aceita os valores da
classe média como algo inquestionável. Nos anos 60 a
“O golpe rmilitar de 1964 demora em se fazer sen- maioria não era assim. Falava com garotos, era mais
tir no pedaço; 1966-1967 foi o auge da Galeria Metró- livre, mais aberto. Isso correspondia incluso com uma
pole. À revolução de 1964 não surtiu efeito imediato maior rigidez da família. Muitas pessoas na época
entre as pessoas, só a partir do AI-5, em 1969. eram expulsas de casa e não ficavam amargas, enten-
Aí houve um grande momento de blitz maciça. diam que a verdade estava com eles. Quantos meninos
Na Galeria Metrópole foram fechadas as suas três por- moraram já na minha casa. Atualmente isso é impossí-
tas, e em camburões e ônibus levavam preso todo vel, porque eles roubam.”)
NÉSTOR OSVALDO FERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 81

(Bivar: “1967: o ponto quente da vida gay paulis- José Gaspar, fica restrita só à Avenida São Luís. Atual-
tana era a Galeria Metrópole. Cheia de bares, boates, mente é ponto só de michês.
inferninhos, fliperamas, galerias, livrarias, escadas ro- O chamado Autorama foi uma extensão da gale-
lantes, etc., a Galeria misturava não só o mundo gay, ria, até as imediações do Teatro Municipal, onde ro-
mas também intelectuais, artistas, poetas, encucados, dava pessoal de carro. Já na época a ideologia gay era
suicidas, prostitutas, gigolôs, cafetinas, músicos, e mais aceita, pintavam paqueras gay/gay a pé. Pinta-
mais a bossa nova, o jazz, o rock, a tropicália, a psi- vam transas em qualquer parte, mais concentradas no
codélia, o álcool, as drogas e, é claro, a polícia. Enfim, centro,
misturava tudo e todos, de Chico Buarque a Silvia Pi- Mas à extensão do circuito da paquera gay aos
nel, todo mundo deu, nem que en passant, uma geral Jardins vai se dar muito depois, já no final dos anos
pela galeria, onde o “Barroquinho' de Zilco Ribeiro era 70, com a expansão das boates. Uma das primeiras a
o ponto chique. sair do microcentro e ir para a Augusta foi a Saloon.
(...) Apesar de que antes de 1967, num tempo ca- As boates foram uma grande novidade da época.
reta, já caía de existir travesti, bichas irremediavel- Já no final dos anos 60 (1968 ou 1969) lembro de uma,
mente pintosas, hermafroditas, etc., a tônica gay, antes na Ladeira da Memória, chamada Nighting... No iní-
de 1967, era enrustida e não-assumida. Era uma socie- cio, à capa cultural, os “entendidos” e o pessoal do
dade secreta, entendida. teatro, fizeram uma grande resistência às boates, à
(...) À Galeria Metrópole teve seu apogeu e declí- música rock, ao Roberto Carlos. Eles transavam jazz e
nio em 68, por ocasião da visita da rainha Elizabeth ao bossa nova e curtiam lugares para ouvir música. Era a
Brasil, quando a polícia, para limpar a cidade das suas elite versus o populacho.
criaturas indesejáveis, prendeu meio mundo e instalou Essa transformação do mundo gay no que ele é
o grilo, como se a rainha a qualguer momento resol- agora foi aos poucos. Mas não houve (eu acho) tanto
vesse irromper pela galeria. Logo veio o AI-S5.* Bivar, um crescimento da quantidade de “entendidos” (gays,
1980, p. 26.)” diz-se hoje) quanto uma maior dispersão. Agora dá
para encontrar gay em qualquer parte, antes era so-
bretudo no centro. Lembro que o volume de homosse-
CLÓVIS — 1970-1980 xuais que havia era enorme mesmo, a polícia levava
quantidades enormes de pessoas nas suas blitz.
“A Galeria Metrópole sobreviveu um pouco, es- Finalmente, esvaziada a Galeria Metrópole, so-
pecialmente sua periferia, a Avenida São Luís. Às pes- breveio o auge da Nestor Pestana. Nos anos 70 houve o
soas ficavam com medo de ir lá, porque a galeria era movimento hippie, underground, que foi absorvido
uma verdadeira ratoeira: a polícia fechava as três bo- pelos gays. À Nestor Pestana era um local absorvido
cas e o pessoal não tinha por onde fugir. Ássim mesmo pelos gays sem ser de características exclusivamente
sobreviveu até que fizeram o calçadão, e tiraram a cir- gays. Era um local assediado pelo pessoal que fumava,
culação de carros pela porta que dá na Praça Dom transava LSD, ia maquiado com batom verde, purpu-
82 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 83

rina noucabelo, penas na cabeça. Aí veijo uma grande Mas essa ideologia gay/gay foi logo incorporada,
repressão, mas parece que estava dirigida mais contra como está sendo incorporada agora a moda gay-ma-
o'tr'aflco de drogas, o tóxico, o desbunde. Procuravam cho. O que sumiu com a generalização da moda gay
tóxico nas pessoas e com essa escusa foram pertur- foi essa tendência intelectualizante, culturalizante,
bando o pessoal homossexual e esvaziando o local, essa preocupação dos primeiros entendidos pela dis-
Ai já aparece claramente o gay como personagem. tinção, pelo sensível. Isso sumiu e deu passagem à ba-
Isso aconteceu por volta de 1974. Foi um questiona- nalidade, à frivolidade, ao antiintelectualismo.
n.lento dos valores burgueses, um cansaço do conven- Essa mudança de bicha/bofe para gay-macho foi
cional. O pessoal procurou atividades alternativas: ar- bastante radical. Antes, uma grande parte das bichas
tçsanato, artes. Isso foi antes de que aparecesse o mo- procurava ser mais mulheres para atrair os machos.
v1mentc? £gay propriamente dito. Na verdade, estava Hoje, os garotos pensam que para atrair caras não-efe-
tudo misturado, o movimento era contestatório, o gay minados, eles devem ser mais másculos para conseguir
pegava carona. Havia um ponto particular de reunião pessoas mais, másculas. Então o gay-macho procura-
desse pessoal, gay-contestatório, que era na Rua Nes- ria ser mais machão, não para atrair o pessoal muito
tor Pestana. bicha, senão para seduzir o mais metido a machão
Já existia independentemente, como um outro também. |
foco, o Largo do Arouche, também começando a ser Há uma preocupação tão grande dos gays por
gají ; E outrps lugares, como uma grande churrascaria transarem com um parceiro de aparência máscula
de “entendidos” na Rua Rego Freitas. que se um cara desmunhecar ou se for muito mulher
Durante toda a época se mantém uma diferença não tem praticamente chance de trepar nesses ambien-
de classe muito clara; todos esses locais: Nestor Pes- tes gays.
tana, Largo do Arouche, eram curtidos por pessoa! da Essa situação é curiosa, a gente poderia se per-
classe n?édia. Continuava o tempo todo existindo o guntar que é que acontece quando o michê tem que
foco mais pobre, mais lúmpen, da Avenida Ipiranga transar com uma bicha de aparência bem machuda.
e São João e a Praça da República. Eu acho que os michês incorporaram inconsciente-
mente um padrão rentável para eles. Eles parecem
| O importante era que na época quem dava as di-
retivas no mundo gay da classe média era a vanguarda mais másculos que o mais heterossexual dos homens,
os michês são quase caricatos na sua masculinidade.
teatral, mais intelectualizada, Eles acabariam im-
Descobriram que sendo assim têm mais chance de se
pondo o padrão gay/gay.
comercializarem. Descobriram esse segredo quase in-
Já no ínicio da década de 70 esse padrão bicha/ conscientemente, pois não são pessoas brilhantes. Esse
bofe começa a se enfraquecer, perante a ideologia que tipo ultramásculo é muito apreciado, o michê pode fa-
começaram a propagar os teatrólogos. Nos anos 60 a turar mais sendo desse feito.
bicha era mulher, e o bofe era o homem. Logo nos Agora, vejamos o que acontece com a massa dos
anos 70 esse esquema veio a ser questionado,. gays. Saem da Galeria Metrópole, fugindo da polícia,
s4 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 85
e vão parar na Nestor Pestana. Daí vem uma nova
per- do calçadão — que afasta o movimento dog carros em
seguição policial, e então confluem para o Largo
do torno da Praça Dom José Gaspar —, o território espe-
Arouche e expandem-se pela Vieira de Carvalho.
Esse cificamente gay/gay (então sob a orientação da “van-
processo tem seu apogeu no final dos anos 70,
1978 e guarda teatral”') desloca-se para a Ruz% Nestor Pes-
1979, justo antes das blitz do Richetti, que foram
em tana. Aí os “entendidos” compartllhffnam o espaço
1980.”
com os novos marginais urbanos da década de 70 —
hippies, roqueiros, maconheiros, etc. Com as novas
Numa primeira análise, identificam-se dois gran- operações policiais, os gays passam a se concentrar nas
des níveis: adjacências do Largo do Árouche — le.mbren_los que
; essa área, assim como aà Rua Rego Freitas e l'fn.e'dla—
1) territorial: refere-se aos deslocamentos espa-
ciais, devidos à intervenção policial, à moda, à lógica ções, fazia parte da chamada “Boca do Luxo” já na
do microcapitalismo dos bares £gays, etce.; década de 60.
2) categoriíal: invoca deslocamentos no nível dos Chama a atenção o que poderíamos chamgr de
sistemas de classificação instrumentados pelos nativo “inversão lógica”. Assim, enquanto no modelo bicha/
s bofe, a bicha, supostamente, procurava ser cadí vez
e nos paradigmas comportamentais decorrente
s dessas
modificações. mais feminina para atrair o macho (aprendiam a “des-
Os dois níveis interpenetram-se: em grande parte, filar e usar roupas femininas” no grupo homossexual,
as divisões espaciais têm sentido em função dizia B. da Silva), no novo modelo gay/gay os homo?—
das divi-
sões categoriais. À adscrição a sistemas de valore sexuais procurariam ser mais masculinos para sedugxr
s so- amantes ainda mais masculinos. Se na lógica do sis-
ciais invocada como legitimação das escolhas
— do tema “hierárquico” a submissão da bicha perante o
tipo “gay é a elite culta” — parece ser, de modo geral,
interna aos próprios modelos. Ássim, os gays bofe era manifesta e aberta, no novo sistema, que se
identifi-
cam-se manifestamente com certa “classe média ufana de “igualitário”, essa submissão é formalglente
inte-
lectualizada”; as bichas e bofes, desse ponto criticada. Porém, ela não parece implicar uma “defe-
de vista,
ficariam do lado do “popultacho”, nestração revolucionária” do macho. Emborfl os extre-
No central, o território demarcado por Barbosa mos “caricatos” da macheza sejam deseçtlmulâdos,
da Silva parece ter-se mantido. Espacialmente, não se trataria, na verdade, de uma espéc,le .c!e inte-
o riorização” do protótipo masculino? Istf) é: já nã.o se
“grande T” de 1959 parece ter-se expandido para
am- procuraria submeter-se perante o machão, mas pro-
bos os lados da Avenida Ipiranga e seu alongament
o duzir” em si mesmo certo modelo gay q.ue.pajsarla,
imaginário em direção ao Bixiga. O núcleo Aveni
da entre outras coisas, por uma recusa de “bichice" e por
São João e Avenida Ipiranga/Avenida São
Luís/ Praça uma defesa — ainda que retórica — de certa pretensão
da República sofre um primeiro acréscimo com
O apo- de masculinidade. .
geu da Galeria Metrópole. Devastada esta, prime
iro Ão que parece, esta autoprodução de j/mhd.ade
pela intervenção policial e finalmente pela const
rução não parece ter tido resultados práticos tão felizes
86 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 87

quantç os propalados; assim, a persistência do protó- Antônio Bivar (1979) pinta um vívido quadro do
tipo hipermasculino entre os michês, que Clóvis reco- “visual”” do Largo do Arouche, “onde — especial-
nhece, parece marcar os limites desta curiosa reversão. mente se for sábado à noite — a efervescência era
“:A inversão da inversão”, proclamaríamos com Ca- total”:
dillac, um travesti de Cobra (Sarduy, 1974, p. 99), que
se opera, não para virar mulher, mas para se converter “Do lado direito (entrando pela Vieira de Carvalho) ficam
em macho. os bares com mesinhas na calçada. O décor lembra um
| De' passagem, poderia pensar-se numa curiosa pouco todos os cais do mundo, no seu passé: a iluminação é
trajetória: da discreta “reivindicação” do “homosse- luz negra e o som é de discoteque. À clientela é ruídosa e
xual passivo” (com seus modos femininos e seu gosto mistura todos os sexos, tendências e idades, beirando a fai-
pelos desfiles), deslizada quase sorrateiramente por xa dos 8 aos 80 anos. Do lado esquerdo do Largo, na ampla
calçada em frente à tradicional floricultura, uma ala mais
Barbosa da Silva em 1959, à defesa da “virilidade gay”
jovem e bastante avant-garde reúne-se em grupos na cal-
que alguns dos descendentes contemporâneos dos épi- çada, nos balcões dos bares e lanchonetes, e riem, dis-
cos “entendidos” da vanguarda dos anos 70 parece- cutem, fofocam... (Gilson — que é do Amazonas e expert
riam conclamados a assumir. em computadores — conta, numa roda de amigos, do “tra-
balho' que fez para a Pomba Gira...) São animados, mo-
dernos, são a new wave gay de São Paulo: dos vários estilos
de cortes de cabelo à um ou outro brinco na orelha, aos
modelinhos (foram os primeiros a vestir pantufas no verão e
Período 1979-1984 anoraks na meia-estação)” (p. 27).

Embora o que mais chamasse a atenção fosse a


O “desbunde” gay emergência da new wave gay, o Largo do Árouche
constituía um espaço consideravelmente democrático,
Os ecos do desencadeamento do chamado ““des- Os gays tendiam a instalar-se nos bares situados em
btpmde” gay ressoam como uma música: Trevisan (1986) frente à praça do Largo (com árvores e um fervente
dá conta da influência dessas modulações no coming- banheiro público no meio), na continuação das ruas
out dos homossexuais brasileiros, pautada por nomes
Bento Freitas e Vieira de Carvalho. O extremo da
ainda vigentes: entre outros, Ney Matogrosso, Caetano praça para a Rua Rego Freitas era mais frequentado
Veloso, Gilberto Gil, e os Dzi Croquettes com sua an-
por travestis; às vezes, se misturavam prostitutas. Ou-
droginia de combate (Lobert, 1979), tro foco de travestis e bichas populares se insinuava na
No que diz respeito à expansão do gueto, o “des-
Rua da Vitória, onde ainda hoje sobrevive um bar fre-
bunde” gay ruge com vigor em 1979, seguindo o com-
qúientado por homossexuais maduros de classes popu-
passo da abertura. Este massivo out of closets (“sai lares, em boa parte migrantes nordestinos.
do_ armário”) tem um epicento: o Largo do Arouche —
Mas a praça era um campo comum para o hete-
cujo processo de ocupação homossexual já vimos. róclito leque de homossexualidades da época — que se
fais NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 89
confunde com o atual. Continuemos com a descrição
nativa: masculinidade) e vestem-se com um aprumo que beira o
conservador, de tão discreto” (...)(p. 27).

"“1980: O universo gay hoje é vasto e povoado por tipos


que
vão desde o travesti radical (...) ao gay macho, que é o
ex- À efervescência nas ruas teria também seu corres-
tremo oposto. O gay macho rejeita, hoje, a velha e neurót pondente político: resultante da confluência da "vqn-
ica
superidentificação com as mulheres (...). Hoje. os modelo
s guarda teatral” com os intelectuais e os universitários
de identificação são os macho-men. Em Poucos anos pas-
saram da escravidão à feminilidade que nunca alcançaram gays, e com uma vasta rede de relações entre os “çn-
à uma masculinidade que, eles sabem, jamais alcançarão” tendidos” do gueto em geral, a militância gay paulis-
(...). “Os machos e os travestis são os dois extremos que ilu- tana — após várias tentativas descontínuas — conse-
minam o vasto centro gay. Tem: as tias, os garotos e as guiu organizar o “Grupo Somos de Afirmação Homos-
meninas que vêm dos bairros e subúrbios em busca de al- sexual”.
guma “grana' ou de um pouco dos réflexos das luzes da ci-
dade; as “bichas loucas' de todas as idades que fazem o gê- O grupo Somos expressava politicamente as de-
nero jeune fille; os que estão à caça do verdadeiro amor;
os
mandas de “liberação” dos gays. Sua difusão deu-se
que só acreditam no dinheiro, etc., é OSs mutantes (como
a através de um processo já registrado, por exemplo,
deliciosa Sharon Tate que nasceu *Aderbal' e já passou quando da constituição da Frente de Liberación Ho-
por
várias encarnações até chegar a “Sharon”')”.
mosexual argentina: independentemente de ter per-
manecido ou não no grupo, uma parte considerável da
O mesmo Bivar vê assim o “perímetro £gav”, “onde população homossexual do gueto paulista acabou pas-
pulsa o coração da coisa”: sando pelas suas reuniões.
Os atrativos da participação extravasavam o polí-
“Da Rua Major Sertório, com o trottoir de travestis [ É tico para beirar o clássico encontro gay — do tipo df)s
passamos pela “Boca do Luxo' (império das mundanas) e
“grupos de passivos” recuperados por Barbosa da Sl!-
saimos para a Ávenida Ipiranga. Uma volta pela Avenida
São Luís — outrora elegante e arborizada, hoje passárela de va em 1959 —, onde o papo entre conhecidos é ani-
8ay quiet quality —, um passeio pelos calçadões e um mado pela possibilidade de conhecer “pessoas novas”.
fook
na esquina do pecado que é o cruzamento das Avenidas
Ipi- Além desse estimulo — que se dá bem com certa ho-
ranga e São João (os mais sofisticados que não querem mogeneidade endogâmica suposta no “modelo gay”

mas não conseguem deixar de — dar uma passada
, nem — , o Somos oferecia para o recém-chegado uma espé-
que rapidinha, por lá, já inventaram até um nome para
o cie de “ritual de iniciação”, que era a passagem pelos
vício: “a síndrome da esquina'). Desse ponto crucial, o
tu-
rista sobe um pouco e evita — ou atravessa — a Praça “grupos de reconhecimento” (de afirmação ou de iden-
da
República (onde costumam acontecer assaltos e até
crimes, tificação), onde se procurava, em termos gerais, alen-
e onde impo era baixo gay), e chega à bonita Avenida Vieira, tar a “assunção” homossexual das pessoas e ajudá-las
de Carvalho, cheia de edifício art-déco e quartel-general na “conscientização” da sua condição existencial.
do
gay *macho' e do gay “executivo', enfim, do £ay aparent
e- Nos seus primórdios, os grupos gays brasileiros se
mente sério: todos usam bigodes (símbolo de classe,
status e
orientaram a diferenciar-se dos travestis, libertando-se
sL NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 91

da imagem degradada e folclórica do homossexual efe- No final das contas, o Largo do Arouche parece
minado, festejado só no Carnaval. Este enunciado pa- constituir uma espécie de “corredor polonês”, por
rece faszer parte do arcabouço ideológico do movi- onde se faz a passagem da primitiva Boca de Lixo à
mento; porém, o ingresso de travestis e bichas “pin- mais atual Boca do Luxo. Esse fato pode explicar o
t?sas" foi estimulado, sem muitos resultados: a parti- trottoir de travestis e prostitutas, como também a
cipação de travestis, quando aconteceu, foi minoritá- afluência de “garotos” e “tias” do subúrbio.
ria e geralmente passageira. Mas a atualização explosiva do largo parece pro-
| De fato, os militantes gays — com variantes con- vir da conexão das populações “populares” da área
sideráveis, que iam dos discretos viris quase enrustidos com a área mais sofisticada e “burguesa”: a Avenida
atê prototravestis, passando por universitários barba- Vieira de Carvalho. Esta avenida funcionou, segundo
dos — tenderam a se recrutarem entre os “entendi- inferimos, como uma espécie de barreira de contenção
dos” da vasta “classe média"”', e não entre os travestis da expansão da Boca para a área da Consolação., Re-
nem as bichas pobres mais “pintosas”; porém, quando flexos desse movimento de avanço da Boca sobre a ave-
o grupo inicia sua decadência (1981), passa por uma nida chic podem-se ler ligeiramente no público da
aguda fase de lumpenização. No início, a adesão gené- “Caneca de Lata”, reduto de homossexuais maduros,
rica à “moda gay"” ostentava-se espacialmente na vi- parentes pobres dos sofisticados gays da Caneca de
trina do Largo do Arouche: a turma dos gays mais ou Prata, situada exatamente do outro lado da calçada.
menos ligados com o Grupo Somos que fregiientava o Na Rua Aurora há ainda um escuro “inferninho” gay,
largo, costumava agrupar-se na porta do Bar 77. freqiientado por um público da classe mais baixa, o
mesmo que invade os cinemas de “pegação” da Aveni-
da Rio Branco.
O Largo do Arouche: um ponto sensível O Largo do Arouche é, então, um ponto particu-
larmente sensível do centro da cidade, na medida em
Pelo menos desde a década de 50, o Largo do que está — como a Praça Roosevelt — circundado de
Arouche está mais ou menos integrado à Boca do Lixo. prédios residenciais da classe média, com alguns res-
Por volta de 1957, a perambulação homossexual não taurantes de luxo. Desta vizinhança provirá, em boa
era — com as condições de maior discrição da época medida, o apoio social com que contou a operação po-
— excepcional no Largo. licial de “limpeza” da área, conhecida como “Opera-
ção Richetti”.

(3) Diz um membro do grupo Somos, numa mesa-redonda: “... o próprio


hor_nmscxual está muito esclarecido a respeito da sua homossexualidade, tanto
assim que reproduz na prática os padrões heterossexuais, caricaturando as fun- A “operação limpeza '
!;õa de atividade e passividade, por exemplo. Existe sempre aquela bicha *pintosa”,
desmunhecada', à procura do seu “bofe', isto é, aquele que vai exeroer o papel 1980
masculino na relação. Isto é muito faiso, pois não tem nada a ver com a homos- O paraíso pintado por Bivar no verão de
sexualidade em si” (Mantega, 1979, p. 144), marca o ponto culminante da explosão gay no centro
92 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 93

da cidade, que foi praticamente ocupado por massas “Tal plano pretende juntar as forças da polícia civil e mi-
de bichas, gays, travestis, marginais, bofes, prostitu- litar (verdadeira façanha, considerando as rivalidades entre
tas, etc. ambas) para, entre outras coisas, tirar os travestis dos bair-
No inicio a resistência não passou de queixas anô- ros residenciais, reforçar a Delegacia de Vadiagem e des-
nimas e rotineiras violências policiais, sobretudo con- tinar um prédio (o desativado presídio do Hipódromo) para
abrigar especialmente homossexuais. No fim de maio, é
tra travestis. O artigo de Bivar é de fevereiro. Já em transferido para a Terceira Seccional (Centro) um delegado
abril O Estado de S. Paulo desatava uma barulhenta que se vangloria de ter, na década passada, expulsado as
campanha, chamando a lutar contra o perigo dos tra- prostitutas de São Paulo e criado a zona de meretrício em
vestis. Santos. Nome do personagem: José Wilson Richetti' (Tre-
Em 1.4.1980 o delegado da Seccional Sul da Po- visan, Lampião, julho de 1980).
lícia, Paulo Boncristiano, propunha confinar os tra-
vestis numa zona da cidade: À operação desata-se com intensidade em meados
de maio de 1980, com o apoio estratégico de comer-
— t> *“Serão alguns quarterões, depois de determinada hora da
ciantes e vizinhos da área: “centenas de cartas e tele-
*
noite, quando o comércio já fechou e estão abertos somente gramas de apoio e, pelo menos, 60 abaixo-assinados
os bares e os inferninhos. Em São Paulo já temos o lugar, as com cerca de duas mil assinaturas de comerciantes e
chamadas “*Boca de Luxo e Lixo', proximidades da Avenida moradores do Centro da cidade”, noticia a Folha de 5.
Rio Branco, bairro de Santa Ifigênia, e Rua Amaral Gur- Paulo, de 17.5.1980, e enumera:
gel, baixos do elevado Costa e Silva” (OESP, 1.4.1980).

“Um abaixo-assinado com 200 assinaturas, por exemplo,


De sua parte, o Coronel da PM Sydney Gimenez veio dos moradores das ruas Santa Ifigênia, Aurora, Triun-
Palácios (futuro deputado estadual pelo PTB) prome- fo e Vitória. Outro, com 90 assinaturas, do edifício Santa
Elisa, no Largo do Arouche, 109. Um terceiro com 70 assi-
tia:
naturas, dos moradores da Rua Vieira de Carvalho, 197”,

“As rondas policiais recolherão os travestis e na triagem os Os moradores não se limitavam a protestos passi-
primários serão liberados e aconselhados a frequentar so- vos: costumavam atéê jogar sacolas de excrementos e
mente determinadas ruas, o mesmo ocorrendo com os en-
quadrados em crime de vadiagem” (idem). garrafas contra os gays do largo. No entanto, a polícia
apelava para recursos mais efetivos:

Este enquadramento era provisório, “enquanto a “Nas semanas iniciais, as investidas da polícia ocorreram de
lei não puder ser modificada, sujeitando o homosse- forma maciça, simultaneamente em diferentes regiões do
xualismo a outras penalidades”, advertia Darcy Pen- centro, em horários dispares que variavam das quatro da
teado (Lampião, maio de 1980). Outro integrante tarde às quatro da madrugada, inclusive arrancando gente
de dentro de táxis. Depois, pretextando insuficiência de efe-
desse jornal, João Silvério Trevisan, e protagonista di- tivos policiais, a Operação Limpeza entrou num ritmo me-
reto dos acontecimentos, conta: nos maciço, agora mais rotineiro. De tal modo que os carros
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 95

de chapa fria ou camburões rondam sistematicamente o


Após a prisão de um sociólogo do CEBRAP, o
centro ou estacionam em pontos-chave como o Largo do
Árouche, levando quem não tíver carteira profissional assi- Comitê Brasileiro de Anistia entra em ação. O jurista
nada. “Precisamos tirar das ruas os pederastas, maconhei- Hélio Bicudo abre processo contra o delegado Richetti
rtos e prostitutas', declara Richetti” (Trevisan, julho de e o secretário da Segurança. Ambos são convocados
1980), para depor diante da Comissão de Direitos Humanos
da Assembléia dos Deputados. Por outra parte, os
Os métodos para limpar a área de indesejáveis fo- grupos homossexuais, negros e feministas, com apoio
ram extremamente contundentes: de estudantes e trotskistas, se mobilizam e convocam
um ato público de protesto, no dia 13.6.1980.
“(...) o próprio Richetti (...) esmurra as costas ou a cabeça Marchando pela Avenida São João, os manifes-
das mulheres que deixam a prisão (...). Um travesti relata tantes ingressaram no Edifício Século XX (tradicional
como Richetti (...) abriu uma gaveta e fechou-a violenta- bordel) e desembocaram no Largo do Arouche. Às pa-
mente, prendendo seus seios (...). Na esquina da Rego Frei- layras de ordem: “ADA ADA ADA RICHETTI E
tas com Major Sertório, investigadores tentam tirar a den- DESPEITADA”, “A B X LIBERTEM OS TRAVES-
tadura de um travesti, para recolher a gilete aí escondida.
Como ele jura aos berros que seus dentes são naturais, é TIS”. À mais repetida foi a introduzida pelas feminis-
espancado e tido por mentiroso” (idem). tas: “SOMOS TODAS PUTAS”, '

As detenções são arbitrárias; “Algumas prostitutas — informa a Folha de S. Pauto, 14/


os habeas-corpus
06/80, apareceram nas janelas e gritavam junto com os ma-
preventivos que algumas prostitutas tinham obtido da
nifestantes: “nosso mal é a repressão” ”.
TJustiça são rasgados:
Porém, quando a passeata estaciona no “largo
“Nos bares do Largo do Arouche, os investigadores já che-
gam gritando: “Quem for viado pode ir entrando no cam- proibido” ao grito de “O AROUCHE E NOSSO”, re-
burão' ” (idem). lata Trevisan:

Só numa semana, 1500 pessoas foram detidas, “Vários estabelecimentos amplamente sustentados pelas
sendo indiciadas apenas 0,8%. Richetti declara que só bichas começam a baixar as portas, inclusive o famigerado
Caneca de Prata, cuja clientela de viados classe média, en-
cessará a violência se os comerciantes do bairro o soli-
tre incrédula e divertida, espia as primas pobres, através do
citarem. Pouco depois, um panfleto distribuído na ci- vidro.”
dade censura “os maus representantes do povo”, que
“defendem prostitutas, homossexuais, lésbicas, trom- A partir daí a operação entra num ritmo menos
badinhas e outros desocupados”; a atriz Ruth Escobar veemente. Não obstante, o modus vivendi da área mo-
é acusada de fazer apologia do delito. difica-se substancialmente, já que a polícia não se re-
Mas a reação das vítimas não demora em se mani- tira completamente do pedaço. Conta um michê vete-
festar. rano, de 35 anos:
97
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ

era explícito
“/.Xntçs, na época do Áutorama, era mais lindo, mais solto reaparecer quando a polícia vai embora),
stis e, em se-
Não tinha repressão polícial, documento eu só andava con'i que os inimigos principais eram os trave
um na m'ão e só. Hoje, ando com quilos de documentos e
gundo lugar, as prostitutas.
ainda assim (...). À polícia entrou com tudo em 80, com a 1982,
operação Richetti, e logo ficou, você nunca sabe quz;ndo vai Num balanço da operação, em fevereiro de
os travestis e
aparecer, fica fora de uma área muito tempo e depois pinta Richetti ameaça: “os rondões continuam;
982). E
com tudç e detém todo mundo. Enche o saco, leva, pede as prostitutas devem saber disso” (FSP, 3.2.1
s”; “a lei deve
muita coisa, documentos (...)”, '
insiste: “os travestis devem ser preso
punir os travestis”.
prosti-
| Num desses recrudescimentos de surpresa, a polí- Porém, Richetti diferencia duas formas de
de carro
cia ataca o bunker das lésbicas paulistas, em 15 de tuição: a chamada “alta prostituição”', feita
novembro de 1980. Informa Lampião (dez. 1980): “que não causa clamor pú-
ou em locais fechados,
investe:
blico”, e o trottoir ou paredão, contra o qual
com sainha,
"(_....) os policiais invadiram os bares Cachação, Ferro's e “O que choca é a mulher no “paredão',
resp eitando os
BIXIgl,llnha, e as mulheres que aí estavam, incluíndo as que saias abertas, provocando casais, não
possuíam carteira profissional assinada, foram todas de- homens”.
tidas, debaixo do seguinte argumento: "É tudo sapatão”” ual:
Também diferencia o travesti do homossex
uma pessoa
“O homossexual não cria problemas. Ele é
Ele não se
| Um papfleto dos grupos Terra Maria, Ação Lés- humilde, recatada, cordata e avergonhada.
bico-Feminista e Eros denuncia:
expõe” (idem).
pelo
O argumento é retomado, um ano depois,
rno Mont oro,
_(...) foi constatado que os policiais recebiam dinheiro para primeiro secretário de segurança do gove
llb'ertarelm as pessoas,
suíam, lá permaneciam”.
sendo que aquelas que não pos-
Manoel José Pimentel, que declara:

travesti. O
“ ..) você tem que distinguir o homossexual do
o traves ti é uma es-
homossexual é um ser pacato — mas
do homos sexua lismo (...). Ho-
pécie de subcultura dentro
Saldo da operação ievam sua vida norma l. Os tra-
mossexuais que trabalham,
reduz ido, isso explic a por que agem
vestis são um grupo do
, segun
Os objetivos da “Operação Limpeza”, do ponto com extrema violência. E para complicar as coisas -
de polici ais experi
de x'ffsta pc_»licial, estavam claros: propunha-se a “lim- estou sabendo agora, pelas informações ra o
client es dos traves tis procu
par"” — ainda que não “extirpar” — as Bocas da ci- mentados, grande parte dos ho-
que neles há, não o femin ino. São
dade. Err_lbora o aumento da criminalidade (sobretudo elemento masculino
dissimulam
mossexuais envergonhados, não assumidos que mente,
trombadinhas) fosse invocado como escusa para as a viril (...). Geral
sua condição adotando falsa' postur execu-
opex_'ações (quando é um lugar comum, em que o trom- tis são de boa posiçã o, como
os clientes dos traves
Estes não são
badinha some enquanto dura a ação repressiva, para tivos. O travesti fica dono do segredo deles.
NEÉSTOR OSYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE

propriamente problemas poliíciais, mas sociais, que de re-


pente se transformam em problemas policiais” (entrevista a Mudanças na distribuição territorial
Mauro Santayana, Folha de S. Paulo, 24.3.1983, p. 20; ên-
fase adicional). À operação Richetti teve como saldo mudanças
na distribuição dos espaços do “gueto gay” e das “bo-
cas” em geral. |
É interessante salientar como o próprio secretário
de Segurança toma o discurso gay para legitimar a re- O resultado mais elogiiente da “limpeza” foi a
pressão contra os travestis, denunciando o “enrusti- supressão do Largo do Arouche como ponto focal de
concentração das populações homossexuais. Os gays
mento” dos seus amantes. Desenvolvendo o pernsa-
foram acantonados na Rua Marquês de Itu, entre as
mento de Richetti, Pimente! — que deseja “uma polí-
cia gay para lidar com os gays” — enuncia, diria Fou- ruas Bento Freitas e Rego Freitas, na porta da boate
H, S. No pedaço — literalmente denominado de “gue-
cault, certa “verdade do sexo”, que, à diferença da
to gay” pelos seus freqúentadores — perampulav.a
antiga, não passa pela imposição da heterossexuali-
uma população exclusivamente gay, sem travestis, mt-
dade genital obrigatória, mas pela assunção (correta)
chês estridentes nem bichas pobres e “pintosas” do es-
de uma condição, neste caso homossexual. No tribunal
tilo São João e Ipiranga. —
desta verdade manifesta (que evita o “segredo” dos en-
Nesse deslocamento dos gays para a porta dos ba-
redos mentirosos), o travesti é culpado de um duplo
Tes — já que a estreita Rua Marquês de Itu carece de
engano: por um lado, se faz passar por mulher, sendo
um espaço errático como o do Largo — se delata uma
anatomicamente homem; não contente com isso, ainda
rotineira prática policial que consiste, quando nas
mentindo sua genitalidade, ele não executa o papel de
blitz, em deter as bichas que estão na calçada, sem
mulher passiva que propaia, mas o papel de penetra-
atrapalhar as que estão no balcão consumindo, segun-
dor ativo que sua aparência desmente.
do a fórmula: “Bicha na rua não pode; bicha no bar,
Tanta inversión en la inversión pode ser irritante.
pode"” (Grossman, 1983). Pode-se suspçitar (.le. algum
No mesmo dia do “quebra-quebra”, abril de 1983,
tipo de “caixinha” sob esta complacência polícial pelo
Pimentel recebeu os integrantes dos grupos gays —
microcapitalismo do lazer gay, muitas Vezes contro-
“sua única alegria daquele dia”, conforme declarou à
lado pela máfia ou pela própria polícia, como é comum
Veja dias depois. Durante o encontro, conta um dos
noutros países latino-americanos (por exemplo, Ar-
participantes, rodou uma frase, referente à homosse-
gentina).
xualidade não-assumida dos policiais que agridem tra-
Haveria também uma trama especificamente bu-
vestis. Pimentel haveria respondido que os policiais
rocrática por trás da “limpeza”, Já a “carta .ab.erta à
não podiam resistir ao desejo de agressão que os tra-|
população”, distribuída no ato gay-negro-feminista de
vestis lhes provocaram. À luz dessa constatação, pode-
13.6.1980, denunciava:
se interpretar de que maneira “problemas sociais se
transformam em problemas policiais”.
“(...) por trás de uma falsa defesa da moral pública estão
escondidas finalidades carreiristas, uma vez que a verda-
NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 101

deira criminalidade continua às soltas pelas ruas da ci- Edson Gemignini nota que as prostitutas estão su-
dade”.
mindo das ruas e que “noventa por cento dos que ain-
da fazem trottoir são travestis”.
Na entrevista citada, Richetti reconhecia “desin- “A prostituição — conclui Pessoa Ferreira — é à
teligências” com o então secretário da Segurança, Eras- única atividade em que o amadorismo desbancou os
mo Dias. profissionais.”

Expansão das bocas e espalhamento da criminalidade Micropolíitica do coming-out

O fenômeno parece repetir-se. Já Hiroito advertia O desbunde — versão gay da abertura — parece
que tal tinha sido o resultado do esemagamento do ter- deter seu fluxo ascendente de “ocupação de espaços”
ritório autônomo do crime, a Boca do Lixo. Quando da (segundo a terminologia do Somos) a partir da Opera-
morte do “último malandro”, “Quinzinho”, o chefe ção Richetti, e se cristaliza progressivamente de março
dos investigadores do 3º DP, João Batista Magalhães, de 1982 em diante.
se entristece: “Já não fazem mais malandros como As transformações mais próximas são absorvidas
antes, À arte foi substituída pela violência” (Pessoa pelo difuso presente da pesquisa, que abrange o pe-
Ferreira, Folha de S. Paulo, 11.4.1984). ríodo março de 1982-janeiro de 1985, com esporádicas
De fato, se o objetivo público da operação foi “di- incursões a partir de 1979, e imprecisos flash-backs
minuir a criminalidade no centro da cidade”, esta não para o tempo da memória dos nativos. O processo
cessou de se incrementar desde então, a julgar pelas 'coincide com uma expansão dos pontos gays às áreas
próprias invocações policiais. Segundo parece, a des- de classe média e média alta dos Jardins, caindo fora
truição das formas grupais de solidariedade territorial do nosso campo de análise.
(neste caso entre as populações do gueto e das bocas O interessante é que este fluxo ascéêndente, expli-
em geral) favoreceria o surgimento, junto com circuns- citamente encabeçado pela vanguarda gay — que ti-
tâncias de outro tipo, de delingtiências desregradas, nha sua imprensa (Lampião) e seus grupos militan-
de nexos mais frouxos e potencialmente mais perigosas tes —, não somente favoreceu a expansão do modelo
— desterritorialização da delinqiência que teria a ver de “homossexual assumido” que alguns dos seus inte-
com a explosão fora de controle de certa violência di- grantes (antes em “reuniões de reconhecimento” do
fusa espalhada na capilaridade do sistema social, e que que em declarações públicas) fantasiavam: diferen-
vai desembocar, no dizer de Virilio (1976, p. 61), na ciar-se dos travestis. À própria lógica do impuilso de
extensão da improvisation criminelle. “liberação” arrastou consigo uma intermitente —
Por outra parte, a massa de travestis, expul- ainda que contraditôória — solidariedade a respeito dos
sa das imediações do Arouche (salvo eventuais in- travestis, das prostitutas e demais marginalizados e
cursões), não diminui seu empuxo. O investigador oprimidos. Independentemente das vacilações dos seus
102 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 103

integrantes — que não eram majoritariamente traves- rância”' — embora retórica — para com o consumismo
tis, mas gays —, o certo é que à invasão e ocupação gay, visando a um saldo até econômico: os gays conso-
dos espaços do centro pelos travestis faz coincidir seu mem nos bares, enquanto travestis e prostitutas levz_lm
esplendor com o momento de auge do Grupo Somos o dinheiro dos clientes, diria um observador local. E a
(1979), tal como a brilhante descrição de Bivar ilustra. articulação de uma demanda desejante gay/gay da
O discurso polícial, quando ressalta a diferencia- classe média com uma demanda econômica de “con-
ção entre “homossexuais normais” e “travestis margi- sumo” (um consumo mais suntuário e fixo que o dos
nais”, tenta mobilizar uma escansão constitutiva do pedaços mais “populares”, como o Jeca) que garante,
processo mesmo do coming-out e que se manifesta de um ponto de vista estrutural, a relativa tolerância
num princípio: a cisão de classe entre os adeptos ao do circuito. No caso do gueto gay da Marquês, porém,
“modelo popular” e os entusiastas do “modelo mo- produzem-se esporádicas blitz que atacam — indiscri-
derno”. minadamente ou não — gays, michês, bichas, travestis
Lembremos do vaticínio de Pollak: e outras faunas do local. Uma das operações mais res-
soantes — com camburões, no melhor estilo Richetti
“A ideologia da frente comum de todos os oprimidos, que — aconteceu na Rua Marquês de Itu no sábado se-
procura demonstrar o interesse que todos os minoritários de guinte ao Carnaval de 1984, que atingiu níveis “exces-
uma sociedade têm em unir-se, pode reduzir-se a nada em sivos” de loucura. Contudo, estas irrupções não costu-
conseqiiência da concorrência (...). À isto vem juntar-se o mam ter a sistematicidade nem a violência despeitada
fato de que a solidariedade, nascida na clandestinidade, se-
rá mais difícil de aceitar num grupo socialmente mais acei- dos ataques contra os travestis; operações específicas
te. Na primeira etapa, a comercialização em torno da ho- contra os michês são também rotineiras, embora mais
mossexualidade contribui para aumentar a sua visibilidade tênues e discretas.”
social e indiretamente para a coesão do grupo. Contudo, a No conjunto, pode-se reconhecer uma tendência à
longo prazo, vai contribuir para fazer ressaltar as divisões
comercialização crescente da perambulação homosse-
sociais que atravessam o meio, por exemplo, diferenciando
os circuitos de engate de tempos livres consoante o estatuto
xual, tanto no seu aspecto de fixação nos bares, boa-
social e o nível econômico. O sentimento de um destino co- tes, saunas, etc., progressivamente diferenciadas en-
mum, que junta os homossexuais para lá das barreiras que quanto acesso social, quanto no seu sentido mais am-
separam as classes sociais, terá tendência a desaparecer” plo de “calculização” ou “mercantilização” das tran-
(Pollak, 1983, p. 66). sações em geral, que diz respeito à nova convertibili-

Em São Paulo, esta cisão social — que é também


uma dissidência enquanto os gêneros sexuais que re- (4) O estreito vínculo entre michês e maltandros faz com que os primeiros
estejam expostos à repressão policial explicitamente dirigida contra delingfientes
mete diretamente ao gozo e à “verdade” do sexo — foi comuns, No discurso polícial, a distância entre michês e travestis é tênue: “Por
energicamente estimulada por uma intervenção poli- natureza — explica o delegado Ceiso Chagas, entrevistado por Assis Angelo, 1983
— os travestis são mais violentos em seus atos. Mas tanto um como o outro pra-
cial massiva e precisa, que operava também a exclusão ticam assaltos, agridem suas vítimas e, principalmente, os dois são chegados à
e segregação dos travestis e prostitutas e certa “tole- prática do 'conto do suadouro”. É um pessoal perígoso””.
164 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 105
dade dos atributos eróticos postos em atualização pela
Como último elemento desta análise sumária,
“modelização” gay.
cabe chamar a atenção sobre a “resistência” dos ho-
No gueto paulista, a profundidade do abismo so- mossexualismos populares. Esta se expressa tanto no
cial brasileiro, progressivamente agravado, fez com plano territorial — de fato, o foco “popular da São
que o processo de diferenciação social entre as popu-
João e Ipiranga/Praça da República foi o que mais
lações homossexuais da área não tivesse de aguardar vigorosamente sobreviveu no último quarto do século
muito a lógica do consumo para se manifestar. Já que — quanto nos sucessivos deslocamentos das popula-
o “interesse de classe"” que anima o “novo desejo” da ções pobres do gueto sobre as áreas douradas dos gays
vanguarda entendida é legível desde os primeiros tre- de classe média *
chos. —A lumpenização do pedaço — no contexto da
Por sinal, a irrupção dos rondões de Richetti tem deterioração geral do centro da cidade — parece coin-
a ver com circunstâncias mais gerais, políticas e econô- cidir com um processo dúbio, uma espécie de “gayza-
micas, que não é o caso analisar exaustivamente aqui.
ção” das bichinhas e garotos de periferia, que passam
Sob o pano de fundo da “fechadura” que se avizi-
rapidamente a imitar os tiques, as roupas e os gestos
nhava para conter os excessos da “abertura”, rutila o
dos gays de classe média. Destarte, o acesso à modeli-
episódio histórico da visita do Papa potonês. Lembre-
zação gay pode dar a ilusão de um ascenso social, ex-
mos que a grande blitz contra a Galeria Metrópole, em
pressado em termos de prestígio, mas geralmente sem
1908, foi justificada em nome da vísita da Rainha da
réditos financeiros reais. Não obstante, a expectativa
Inglaterra. Parece que as autoridades também teme-
de obter melhoras econômicas e sociais a partir de en-
ram que Sua Santidade tentasse dar uma voltinha pe- contros homossexuais não deixa de estar presente no
las Bocas. | circuito todo,
Por outra parte, a crise da recessão e o final do Esta onipresença da questão econômica pode ter
milagre contribuíram para aumentar as desigualdades ido contra as ilusões liberacionistas dos gays, exprimi-
de classe, assim como a periculosidade dos lúmpens e das assim por um entrevistado:
desempregados. À crise, porém, vaíi produzir efeitos
singulares nos negócios do gueto. Veja-se este depoi- “À luta homossexual criou uma liberação, que liberou a ca-
mento, recolhido por Sérgio Alves de Almeida (1984) da baça e o corpo do homossexual, mesmo desses que não as-
boca de um maduro industrial gay, no sofisticado Ca- sumem mas usufruem. Os locais de encontro são mais fá-
reca de Prata:

“.Sabe, Uuma recessão econômica vai ser ótima. Você já ima-


(S) À “iumpenização” não afeta só os entendidos da classe média: tam-
ginou o que vai pintar de garoto legal na praça? Escritu- bém a boemia “saiu do centro”', reporta a Folha de S. Paulo (“Mesas na calçada
rário, operário, tá todo mundo indo pra rua, sendo despe- atraem os novos boêmios”, 9.2.1985), fazendo também referência ao esvazia-
dido; não há emprego pra ninguém, o jeito é se virar como mento do tradicional bar Redondo (Avenida Consolação com Ipiranga) — anti-
michê. A viadagem tem que aproveitar a chance, viver à gamente local de reunião de “personalidades do teatro” — e dos barzinhos com
e o mesas na calçada do Largo do Arouche., Os novos boêmios procuram, segundo a
Ccrse .
reportagem, barzinhos de Pinheiros e os Jardins para seus conciliábulos.
O NEGÓCIO DO MICHEÊ to7
NESTOR OSVALDO PERLONGHER

ceis. Muitos que antes procuravam michês hoje vão às sau-


O negócio do michê situa-se na interseção de uma
nas, aos bares, e não usam mais o michê. O movimento gay multiplicidade de coordenadas sociais. O interesse ho-
liberou-nos do uso do michê. O michê talvez esteja em cri- mossexual dos jovens pobres não diz respeito apenas
ao plano do desejo, mas também à crescente pauperi-

se .
zação — e correlativa “tumpenização” — dos adoles-
Um outro “entendido” discrepa desse prognós- centes da classe baixa, principais vítimas do desem-
tico: prego. Este processo enche de bandos de jovens as ruas
das grandes cidades brasileiras. O desemprego propi-
“Eu acho que o que o movimento gay não liberou foi esse cia a perambulação; o quase inevitável encontro com
preconceito de idade, uma das coisas mais fortes que justi-
os homossexuais à deriva, à procura de um garoto jo-
ficam e sustentam o michê. Tem um gênero novo, o michê
£ay, que não tem problemas de se assumir, se baseia na vem e rude, dá lugar a um peculiar contrato, no qual
idade. São jovens ou com aspecto de jovens e viris sem se- uma “ajuda” outorgada ao rapaz pelo cliente serve
rem sempre machistas. À maioria dos massagistas por tele- também de exutório para veicular a consumação se-
fone são gays que estão fazendo uma ficção de machão. Es- xual, atenuando os reparos “morais” em nome da
tamos no meio da cultura da juventude: importa a mascu- compensação monetária. €
linidade, mas também importa a idade”,
Outra diferença salientável entre o período atual e
o anterior pode residir na incorporação desordenada
De fato, o coming-out paulista não parece ter pro-
de oficiantes circunstanciais no circuito do negócio,
duzido necessariamente uma diminuição da prostitui-
passível de ser lido como um “sintoma embrionário do
ção masculina, mas até um aumento e expansão dela.
estouro do gueto” (Perlongher, 1981b) e que tende a
O que se percebe é também uma crescente legiti-
tornar mais difuso o comércio e indiscerníveis suas
mação da “michetagem” entre setores mais largos da
fronteiras. Essa expansão não é exclusiva do Brasil,
juventude, que tem a ver com a expansão geral da tole-
rância relativa da homossexualidade. Na medida em onde pode estar acontecendo algo similar ao detectado
que esse tabu tende a atenuar seu rigor, o interesse por Lafont (1983) na França, onde “dá-se até o caso de
pela prática homossexual — relaxadas as antigas bar- os irmãos mais novos dos que desciam à praceta ou à
reiras de segregação generalizada — se estende entre saída das boates gays para 'depenarem uma bicha',
os rapazes. Nesse caso a existência de um mercado de ganharem hoje uns cobres prostituindo-se com a mes-
prostituição que privilegia os mais jovens se conecta ma ausência de má consciência e escrúpulos” (p. 170).
com necessidades materiais concretas dos rapazes, ge-
ralmente desprovidos de meios de subsistência autôno-
mos$A prostituição revela-se, assim, como uma espé-
cie de “rito de passagem” (Van Gennep, 1978) ou de
iniciação sexual dos adolescentes, que atende não so-
mente a suas carências sexuais mas também econômi-
cas. Desejo e interesse parecem marchar juntos.
O NEGÓCIO DO MICHÊE 109

O eixo central de circulação é a Avenida Ipiranga


entre São João e São Luís, com extensão pela Avenida
São João até o Largo do Paissandu, circundado de ci-
nemas de “pegação” com um mictório público “de
transa” no meio.
À área é transitada por uma população homosse-
xual majoritariamente “popular” (em termos de Fry/
Territórios e populações MacRae). Vincula-se com outros dois “pedaços” ainda
mais “populares": a Avenida Rio Branco, que se in-
terna na Boca e cujo nó é o Palacete (ali, michês e
travestis dividem territorialmente no banheiro do ci-
nema os favores de um público lúmpen-proletário). O
O percurso da história do gueto gay procurou dar cinema, lembremos, era já freqiientado pelos margi-
uma imagem global, sem privilegiar a transação objeto nais da Boca na década de 50. Equivale ao cinema Íris
do nosso estudo. Uma visão atual do gueto, no en- do Rio de Janeiro.
tanto, girará em torno dos pontos de michê, dando Seguindo pelos calçadões, a área da Ipiranga se
conta do fluxo global das populações do gueto que se liga com os concorridos banheiros da Praça da Sé (in-
distribuem territorialmente na planta transcrita. tenso ponto de badalação “popular” até a inaugura-
ção do Metrô, pelo menos, e que entrou em decadên-
cia desde então), onde se pratica um tipo de pegação de
Os pontos
mictório — às vezes remunerada — similar ao da Cen-
Pode dividir-se o centro da cidade em três áreas tral do Rio de Janeiro. À densidade homosseêxual é,
— que também denominam, conforme ver-se-á, três porém, notoriamente menor do que nos pontos cern-
tipos de michês segundo seus pontos: Area Ipiranga, trais, São João e Ipiranga, e Praça da República. Es-
Área São Luís, Área Marquês. boçar-se-á uma sumária revisão deles.
Há também uma subárea estratégica, cujo grau
de densidade circulatória é menor, embora persistente,
e que tem características próprias: o Largo do Arou- São João e Ipiranga
che.
À esquina da São João e Ipiranga constitui, como
vimos, um ponto privilegiado de contatos homosse-
Área Ipiranga xuais, pelo menos desde a década de 50, conformando
A área Ipiranga tem dois grandes pontos focais:
1) a esquina da São João e Ipiranga; 2) a Praça da (1) Para uma descrição dos locais de perambulação homossexual no Ric
República. de Janeiro, ver Guimarães (1984),
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NESTOR OSVALDO PERLONGHER
112 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 113

simultaneamente uma das “pontas quentes” da Boca alguns que ficam parados em cima das pontes sobre'o la-
do Lixo, e um dos extremos do gueto “entendido”. Na guinho artificial onde fatalmente se é admirado, medido,
“observação livre” (capítulo 1) entreviu-se sua paísa- curtido. Os olhares se cruzam. Das pontes vai-se até a re-
gião central da praça, onde fazem limite o parque infantil
gem humana.
(que só funciona durante o dia), o coreto (igualzinho ao das
O eixo de referência é o bar Jeca, na esquina da cidades do interior) e uma árvore que se presume cente-
São João e Ipiranga, com saída para ambas as ruas. nária. Novos flertes acontecem na passagem em frente aos
antinuando pela calçada da Avenida Ipiranga, o bancos de cimento das diversas ruas que saem dessa zona
Flipperama e o cinema Itapira são pontos fortes de central!l” (Dantas, 1979).
aglomeração de michês, estilo “paredão”. O “pare-
dão” prolonga-se nos vastos saguões do cinema e conti- O mesmo cronista dá conta das variantes sócio-
nua até a esquina com a Rua Barão de Itapetininga em econômicas da “paquera”:
direção à Avenida São Luís.
Na Avenida São Jão a Galeria do cinema Lira é “O relacionamento pessoal na praça é carregado de tensão e
também um ponto de perambulação de “entendidos”, medo por diversos motivos. O mais importante de todos é o
que constituiu (entre 1978-1982, aproximadamente) preconceito de classe e social (são fatores interligados,
um local de encontro de “bichas-baby"” (um tipo de não?). Os entendidos mais pobres, ou seja, os negros, imi-
adolescente de michês-bichas, em geral office-boys que grantes recém-chegados de outros estados, operários da
construção cívil, só contam com a Praça da República para
se prostituem). suavizar a solidão da cidade grande (...). Aparentemente sô
Amantes do sexo impessoal — e eventualmente há bofes e bichas na praça, embora a credibilidade dessa
michês — fazem ponto nos cinemas da área: no caso permanência de papéis num contato mais profundo seja
da sala do andar térreo do cinema Ártico um freqiien- discutível.
tgdor percebeu que os corredores estavam escorrega- Essa pobreza — continua Dantas — (...) leva a outra
conseqgiiência: o michê(...). O fato é que esses elementos não
du_)s de esperma, tal a quantidade e urgência dos
1êm reaimente mais do que três ou quatro cruzeiros no bol-
coltos. so, o suficiente para pagar o ônibus de volta às suas casas,
nos bairros do subúrbio. Isso não quer dizer, no entanto,
que a transação se dê sempre no nível de dinheiro: a maioria
Praça da República das bichas garante que nunca pagou um centavo” (Dantas,
1979.
'_Eduardo Dantas pinta assim o movimento ves-
pertino da Praça da República: Um parágrafo especial merece o populoso banhei-
ro da Praça da República. Até 1982 estava situado no
“Elas chegam quase sempre em turma. Duas ou três, às ve-
zes mais até em cada grupo, de mãos dadas algumas. De vértice da praça mais próximo à esquina da São João e
bairros distantes. Se a noite estiver quente, serão mais de Ipiranga. Com a inauguração da estação República do
mail cu_rtindo a madrugada. E passeiam, cumprimentando Metrô — que vai originar uma verdadeira invasão de
as amigas, mexendo com os bofes, recebendo gracejos de entendidos da periferia —, o banheiro é deslocado
114 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 115

para a esquina sobre a rua Joaquim Gustavo. Não obs- Ipiranga, com variantes a respeito dg grau de pericu-
tante, a tradicional masturbação coletiva de homens à losidade e à circulação de “estranhos” (não-adeptos ao
procura de outros homens nos corredores arborizados, mossexual). .
que circundavam o banheiro fechado, continua até mercê?nqgeíal, os pontos da ârea'l Ipir'anga são freqper!-
hoje pelas noites, deixando a manhã impregnada de tados por michês do estrato mais baixo. Eles se distri-
cheiros característicos — como diria Oliverio Girondo: buem nos “paredões” e flippers da Avenida Iplranng,
“un olor a sexo que desmaya”, ou rondam os tenebrosos caminhos da Praça da Repú-
Este sexo promíscuo em público — não necessa- blica. O grau de violência parece crescer en.qualm;)1 a
riamente tabelado — oferece altos encantos, especial- origem social desce: o saguão do cinema It:f.p,l,ra ê cha-
mente para aqueles que não querem ou não podem
se mado pelos entendidos de “chave de casielg — por-
integrar nas regras mais “personalizadas” da ordem que se relacionar com algum dos m'a.rgma.ls da área
gay. O estilo é, correlativamente, mais periígoso — pode acarretar encontros com a pohçla. Slmultgnea-
tanto pelos assaltos quanto pela irrupção da polícia e mente à confusão entre michê e margmal_, aAprollfera-
a
conseqgiiente fuga dos perversos. À periculosidade es- ção de tipos sociais é multiforme: os r.mchestmcich;:ç
tende-se a toda a zona arborizada da praça: os “enten- compartilham as calçadas com travest—ls e mwhesc[ -
didos” supõem que aquele que se internar nos corre- chas — assim como prostitutas, c.afetoes,. malan ãos
dores interiores da praça sabe já o que arrisca... em geral... — não existindo fronteiras muito bem de-
À chegada do Metrô iniroduziu certa “fronteira ntre uns e outros. | .
de classes” na famigerada Ppraça: a área nova cons- marc.â?i⪠,e a área toda é antes um espaço de c1rculaçao
truída sobre o Metrô, em redor da ex-Escola Caetano do que de fixação. Inclusivç à exposição costumel?i
de Campos (atual dependência da Secretaria da Edu- dos prostitutos se faz no meio Qe uma corrente contí-
cação), bem iluminada, espaçosa e com bancos insta- nua de transeuntes dos mais variados t%po's.. ÀA rotativi-
lados, costuma ser fregiientada por um pessoal inais dade nos bares da zona — como o histórico .[eca —
“transado”, que faz ponto na Marquês de Itu. Este parece consideravelmente maior do que a registrada
extremo da praça integra o corredor de circulação que nos bares especificamente gays da Marquês.
une as duas outras áreas, São Luís e Marquês de Itu,
cujos frequentadores se gabam de “nunca pisar na
praça”, ' São Luís
Embora o engate homossexual sela predominan-
temente noturno, há também certa perambulação no À área São Luís, cujo epicentro é a Praç:a Dçm
dia, especialmente sábados e domingos pela tarde, José Gaspar, estende-se pela.AvAeni.da São L.ulS alteda
quando afluem operários da periferia, que se prosti- Ipiranga, Rua 7 de Abril e adja_cencms. Tem instala c:
tuem ocasionalmente. recentemente uma nova cabeceira, na porta de um nãc;
As características sócio-culturais da população da dernoso bar (Ipiranga esquina com Rua 7 de Abri Á
Praça da República podem se estender a toda a área cujos proprietários recorreram ao serviço de seguranç
116 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 117

para afugentar os michês, que costumavam até deixar Esta “vontade de distinção” a respeito dos seus
a roupa aos cuidados das balconistas do local. parentes pobres da Ipiranga expressa-se também na
À área sofreu modificações importantes, tanto distribuição espacial dos diferentes gêneros homosse-
pela repressão polícial quanto pela supressão do “Au- xuais: enquanto os bofes da Ipiránga estão misturados
torama”, segundo já vimos. Na atualidade é um ponto com todos os estilos, no pedaço da São Luís há uma
quase exclusivamente de michês. Uma porção destes diferenciação bastante rija:
e)flbe seus atrativos à beira das calçadas, atentos para
oir-e-vir dos carros. “O pedaço da São Luís se caracterizou como um espaço ex-
Amantes desta prostituição “de carona” se distri- clusivo de michês, Lá se aparecer uma pessoa alheia ao ne-
buem por todo o perímeiro da praça, pelas avenidas gócio da prostituição, é recriminado. Só o fato do carinha
São Luís e Consolação,. ficar aí, já supõe que está se prostituindo. Os michês se
conhecem entre si e para uma pessoa ingressar nessse meio
.Outros michês preferem perambular pelas vere- tem que ser apresentada por outro, fazer amizade, porque
das interiores da praça, cujo grau de periculosidade senão vai ter problemas”.
aumenta junto às paredes dos fundos da Biblioteca
Municipal, usadas como mictório improvisado: a frui- Essa exclusividade da prostituição se reproduz na
ção dá vazão tanto ao exibicionismo genital quanto à divisão dos espaços da praça por gêneros: o michê-
vontade de confiscação. macho e o michê-bicha. Diz um michê-macho:
No local são frequentes os assaltos. Os próprios
michês se queixam: “No pedaço da São Luís tem uma diferenciação do espaço
muito marcada. Do lado da rua, na porta da Galeria Me-
“Eu já fui roubado três vezes, duas por fregueses. Quando trópole, ficam os michês-bichas, dando bandeira, fazendo
acontece, não dá para sair correndo e pegar o cara. Fico na escândalo. Os michês-machos preferem ficar do tado de
?ísl?era de um dia ele voltar, às vezes acontece, mas é di- dentro da Praça, paranóicos, sérios, muito discretos”.
Cll",

À divisão entre michês-machos e michês-bichas é


diz Márcio, 23 anos, desempregado, ponto fixo na taxativa:
Avenida São Luís, entrevistado pela revista Internacio-
nal (nº 14, 1984). “Há uma necessidade de se distinguir. Os michês-bichas se
o O status social dos michês da São Luís passa a ser relacionam mais com travestis, que os protegem. Incluso os
michês-machos não agridem elas, não só porque consi-
ligeiramente mais alto do de seus colegas da Ipiranga. deram que estão na mesma batalha, mas porque essas bi-
Isto se verifica na relativa predominância de michês chas costumam ter a proteção de algum travesti. E o travesti
prancos sobre michês negros ou pardos, com um fook é bem pesado, nem michê nem malandro gostam de mexer
mcíumentário mais próximo ao dos michês da Mar- com ele, porque travesti é violento mesmo, assim ele ganha
respeito. São poucos os michês-bichas em relação aos mi-
quês — que podem ser os mesmos, já que o ir-e-vir
chês-machos. E os travestis dão coberturas à sua fragili-
entre as duas áreas é constante, dade”.
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 19

Esta “conexão forte” entre michê-bicha e travesti


se complementa com outra, que é à conexão michê- Estes traços relacionais são comuns a todo o cam-
macho/malandro. À força dessas alianças se expressa po da prostituição viril. Porém, como a Avenida São
nas celas, onde todos eles podem ser recluídos. Conta Luís é um local exclusivo de michês, eles podem apa-
recer aí mais marcados.
um “entendido”:

“Quando os michês-bichas vão presos, preferem numa cela


estar com os travestis do que ficar com os malandros, por- Marquês de Itu
que correm o risco de serem estuprados. O michê-macho
fica com os malandros, dificilmente será estuprado numa Enquanto a circulação homossexual nas outras
cela porque ele está fazendo aquele jogo de macho imposto áreas é bem mais antiga, a ocupação gay da Rua Mar-
tradicionalmente ao homem. Vai sair na porrada, ele san- quês de Itu entre a Bento Freitas e a Ávenida Amaral
gra e apanha mas não dá o cu — ainda se desmanchar
continua fazendo a representação máscula”.
Gurpgel é relativamente recente. Ela deriva, segundo
: vimos, da “limpeza” do Largo do Arouche. O rondão
. Nos espaços delimitados
policial empurra os gays — no início mais ou menos
tenuamente nos calça-
dçes, o'relaclonamento entre michês-machos e michês- diferenciados das “bichas pintosas” — contra a porta
bichas é diplomático: da boate H. S.. Uma sucessão de barzinhos não tar-
da em devir redutos gays, adquirindo no código de
— *“Não dá briga não. Só cumprimento, às vezes. Tem muita comunicação interna do local o nome das suas patroas.
questão gestual: o michê cumprimenta dando a mão de um Com a chegada dos gays, novos barzinhos vão-se
jeito prôpr_io que nem o malandro; enquanto o michê-bicha, abrindo, constituindo uma série de locais de pouso e
qhuando vai cumprimentar o outro, já dá um beijinho... En- repouso quase ininterruptamente; outros, vão “viran-
tão os machos procuram manter o distanciamento, fazem
do” gays, como a inédita padaria “entendida” da es-
questão de mantê-lo, para não incorporar nenhum toque de
feminilidade. Mas é um relacionamento legal”. quina com a Rua Rego Freitas. Tem também uma so-
fisticada choperia.
Também é “legal” o convívio entre michês e ma- Sextas e sábados pela noite a massa humana aí
concentrada constitui a maior aglomeração do centro
landros:
da cidade. Ainda que a Ávenida Ipiranga possa ter
uma maior circulação, a quantidade de homossexuais
"E_ntre michê e malandro o convívio é legal, porque tem
colsa em comum. O malandro, ele rouba, está na sua fun-
estacionados na calçada (ou circulando lentamente de
ção. Para os malandros, os michês estão numa outra fun- carro) costuma ser maior no gueto da Marquês.
çã_o, que é a batalha. Têm em comum a dificuldade finan- O caráter gay “distinto” que a Marquês preten-
ceira, econômica, que eles compartilham, não ter onde dor- deu atingir começou a se desmoronar com a chegada
mir, precisar às vezes de uma maricona que pague um jan- do Metrô, trazendo miríades de bichinhas decididas a
tar ou de ter um amigo. Há um bom relacionamento, em- entrar na “orgia” gay. O predomínio da classe média
bora os espaços estejam territorialmente delimitados”.
no local — que se expressava com toda clareza durante
XE
120 NEÉSTOR OSVALDO FERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 12t

1982 — vai perdendo força: aos poucos alguns Lays “Com relação aos michês a coisa vira de acordo com (_:ada
mais distinguidos migram, em boa parte, para a cal- — pedaço. Os michês têm sua demarcaç'ão do espaço, ainda
que fiquem 'zoando' para lá e para cá, mas .cqu um tem
çada da Rua Rui Barbosa, no Bixiga, que tenta em vão seu ponto certo, disso eles próprios têm consciência .
se constituir como um gueto alternativo e de classe
média.
Michês e travestis, inicialmente excluídos da fes- Conforme a própria ciassificação dos nativos, o
ta, invadem o paraíso da Marquês. À quantidade de michê da Marquês conformaria o estrato médio da
travestis acrescenta-se nos dias de festa — sobretudo prostituição viril, enquanto o michê d.a São Luiís o es-
na esquina com à Rua Rego Freitas. Diversamente, os trato médio baixo e o michê da Ipiranga o estrato
michês constituem verdadeiros focos fixos: um deles haixo. Estas diferenciações por estrato remedam a d1
no Flipperama; o outro, numa boate relativamente re- visão de classes sociais, mas não podem ser confundi-
cente (inaugurada em 1983), que tenta assimilar o pú- das inteiramente com ela. Estas classificações não são
blico (tradicionalmente lumpenpopular) do Valsinhos conceituais, mas instrumentais: recriam aquelas usa-
Valsão. Nesta boate, os michês ingressam de graça e das pelos próprios membros do gueto para autoquaii-
recrutam aí seus clientes, com certo compromisso com ficar-se e qualificar os outros.
a casa no relativo a questões de segurança (já que são De um modo geral, o status sócio-econômico ads-
admitidos só michês “conhecidos”, sob condição de crito da sociedade “normal” não se transmite automa-
não “sujar” o local). Além desse serviço de acompa- ticamente ao “código-território” da prostituição,' mas
nhantes pagos, a casa costuma oferecer concursos de é reinterpretado e traduzido em termos da própria ló-
boys que ficam nus para o público escolher o mais gica situacional.
atrativo — título que, de passagem, inflacionará os As variações entre origem de classe e estrato do
apetites financeiros do afebo. Um detalhe secreto: co- “mundo da noite” podem ser espetaculares no caso
mo os rapazes precisam exibir o pênis semi-ereto para das prostitutas: não é incomum que moças provtpdas
aumentar a possibilidade de sucesso, recorrem às fela- da classe média alta se degradem e passem a se situar
ções da freguesia, por trás das bambalinas, para obtê- nos degraus inferiores do ofício.
lo. Similares competições foram oferecidas por uma Entre os michês, o desejo de degradação pode não
boate já fechada, situada na Rua Santa Isabel esquina aparecer manifesto. Pelo contrário:
com a Rego Freitas.

A “Para um michê é muito importante a roupagem, a indu-


Comparação entre os pontos mentária. Se ele for uma pessoa mais transada com relaçâ'o
aos demais, ele se destaca. Se ele tiver uma linguagem mais
elaborada, pode atrair clientes mais opulentos. Acho que É
Traçar um panorama completo do negócio do mi- diferente no caso da prostituta, porque o homem heteros-
chê é complexo: a diferenciação territorial implica sexual vai procurar uma quanto mais escrachada ela es-
também diversos “tipos” de prostitutos: tiver, mais ele estáa fim.”
NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 123

” Isso não impede que o michê mais “baixo”, de No entanto, a relação particular que se estabelece
Jeitos mais rudes, goze de um encanto especial, que entre os michês de boate reforça a consistência grupal:
depende do “desejo do cliente”:
“Os michês do Valsão estão muitos ligados entre si. O pes-
:'Depende do desejo do cliente, alguns têm preferência ou soal que ronda a porta é integrado ao pessoal que entra na
1dçntificação com o tipo de michê mais embrutecido, aquela boate, e se trair ou roubar um cliente fica feio, os outros
coisa máscula e rude. Porém, esse baixo michê, para o podem até pagar uma pessoa para dar um pau nele. Isto é
cliente que tem grana, não é apresentável em sociedade, ele assim porque se supõe que os michês de boate não roubam,
não vai poder desfilar pelas boates com um michê do Ipi- não fazem sujeiras, senão podem ser expulsos da boate, fi-
ranga”. car sem fonte de trabalho. À relação entre eles, sem deixar
de estar sujeita ao imprevisível, é um pouquinho mais con-
sistente. No entanto, entre os michês da Ipiranga o relacio-
Em compensação, o “baixo michê” pode ter uma namento só se faz mais forte quanto têm o roubo em comum
clientela diversificada, de encontros efêmeros, embora entre eles. Quando o negócio é roubo, porém, a amizade
pouco importa. À relação é frouxa, muito frouxa. Se toi
menos generosos, mais abundantes, tanto no paga-
preso ou levou facada, os outros esquecem, acham até nor-
mento quanto no acesso aos paraísos concentracioná- mal”
Tios do lazer caro.

| Temos, então, que as diferenças de classe originá-


rias se reinterpretam e subsumem em diferenças de
pontos, que são também diferenças quanto ao estilo, Conexão com a malandragem
ao gênero, ao tipo de clientela, ao preço, etc.
Um dado importante para determinar sua adscri- Se o grau de consistência grupal dos michês pa-
ção a um estrato é o grau de nomadização do rapaz: se conforme o estrato sócio-econômico,
rece aumentar
ele tem onde morar, ou deve achar amparo nos seus
também a delinqiilência aparece ligada à questão so-
eventuais parceiros. Isto também vai ter relação com o
cial:
grau de fixação ao ponto e, consegiientemente, com a
lcor:islistência__ dos laços grupais entre os prostitutos do
ocal: “O roubo freqúentemente ocorre na São Luís, na Ipiranga
ou se pegar um michê avulso num bar da Marquês, por
exemplo. Um michê de boate em princípio não vai roubar o
“O pessoal da Marquês tem mais vínculo com boates, ou cliente. Eles oferecem uma maior segurança; a gerência da
são michês que circulam mas que têm uma posição já mais casa assegura ao cliente: “aqui o pessoal não tem babados'.
deHnida,Aeconomicamente; são pessoas que saem das suas Na Ipiranga ou na São Luís o roubo é muito mais fácil, há
casas e vêm para o centro. Enquanto na Ipiranga e na São um caos total, ninguém conhece ninguém. O carinha rouba
]Lllls muitos dos michês não têm onde dormir, ficam ao na Praça e ninguém mais encontra. No entanto, na boate é
éu”, um pessoal mais conhecido e fixo”.
« NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 125

Haveira uma maior ligação dos michês de estrato “arvorado', corajoso, disposto a correr um risco. Mesmo
mais baixo com os rituais de delinqiiência: para o michê que curte a Praça é legal negar. Sç ele en-
contrar o cliente num local que não a Praça. ele diz: 'Nãoz
não freqiiento Ipiranga, Praça da República eu nunca fui
“Na São Luís e na Ipiranga há uma identificação maior do
michê com o malandro, eles têm até uma gíria comum. En-
14
quanto que o michê da Marquês é um boy mais transado,
procura se diferenciar do marginal, mesmo que mantendo
essa representação máscula comum a todos eles”.,

À conexão
Contiguidade das bocas
com a malandragem expressa-se em
termos de periculosidade. O michê da Ipiranga, pelo
fato de ser mais pobre, é tido por mais perigoso: Subdividido em três grandes áreas, o território
homossexual no seu conjunto parece funcionar como
uma espécie de colchão entre duas áreas já tradicio-
“O michê da Ipiranga está mais discriminado do que os ou- nais da marginália central: a Boca do Luxo e a Boca
tros, porque é uma pessoa mais zangada, está envolvida em
do Lixo. |
babados, cobra uma taxa inferior em relação aos michês de
outros pontos. O pessoal da Marquês dá umas de limpo, Há também superposição e contigitidade territo-
enquanto os michês da São Luís procuram não se envolver rial com os travestis, que fazem trottoir estridente na
em babados com o pessoal da Ipiranga, que tem fama de Rua General Jardim, se misturam às prostitutas da
ladrão”. Rego Freitas (onde funciona, perto da Avenida Çonfo-
lação, um bordel de travestis) e invadem as adjacên-
À periculosidade traduz-se em termos de vio- cias do Hotel Hilton, na avenida Ipiranga. |
lência: O gueto prolonga-se, no entanto, em duag dire-
ções básicas: para o extremo da São João e Iplrãnga
“A violência está muito presente, tanto na Marquês como entra em conexão com as áreas mais “populares 'da
na São Luís, mas é pior na Ipiranga. No caso dos michês da Boca do Lixo. Saindo da Avenida São Luís esquina
Marquês, é um espaço que eles batalharam e procuram com a Ipiranga, prolonga-se raleadamente pela Praça
mantê-lo. Na Ipiranga tem mais pessoas batendo carteira e
passando fumo, a polícia age mais intensamente”,
Roosevelt (considerada ponto de “paquera adoles-
cente”) e conecta-se com o gueto lésbico das ruas Mar-
tinho Prado e Santo Antônio: é um dos raros locais de
AÀ paranóia é mais forte na Praça da República, o “pegação” lésbica de “rua”.
“buraco negado” do gueto; ninguém assume que fre- Mais adiante, os gays confundem-se comos ma-
qiienta o local: lucos do Bixiga, uma de cujas avançadas tradicionais
ainda é o bar Redondo (na esquina da Consolação com
“A praça da República tem michês envolvidos com roubo. Ipiranga). Até 1980 o bar Bixigão era um p(?flto de
Os clientes têm medo de chegar, a não ser o cliente mais encontro de gays malucos, misturados com * maco-
126 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 127

nl_le_lros" em geral. À blitz Richetti também castigou o O fenômeno apresenta-se como barroco no sen-
Bixiga. tido estrito da palavra: por um lado, uma proliferação
-
A presença de gays é corriqueira nas noites de de significantes que capturam o “movimento pulsio
,' sofisti -
se?cta e sábado sobretudo. Uma grande massa de pú- nal” sob uma muttiplicidade de perspectivas
,
blico entre intelectual e punk-marginal se amontoa cando as codificações e fazendo cada vez mais escuro
nas calçcadas, enquanto uma miriade de carros se en- obsessivo, o sistema. Simultaneamente, a
hermético,
ganfifa nas ruas. Bixiga poderia ser pensado como proliferação no nível dos códigos/significantes possi-
um “gueto maluco”, do qual alguns gays também fa- bilita, na sua indecidível superposição, a emergência
zem parte.” ' de múltiplos “pontos de fuga” libidinal, “hiância” dos
significantes que se entrechocam (ver Sarduy, 1972).
bor-
Digamos que o sujeito, na passagem — difusa e
radiça — de um critério de classificação — que é basi-
Os gêneros
camente um módulo de atribuição de valor no mer-
va-
cado sexual — para outro, poderia “fugir” relati
À classificação dos michês conforme os seus pon- mente na transição de um aparelho de captura mais
vice-
tos desvela a base sócio-econômica subsumida na divi- “tradicional” para outro mais “moderno”, ou até
que se estive r sob o im-
sãg territorial, na correspondência: Ipiranga: estrato versa, com mais facilidade do
pério de um único sistema significante despót ico.
baixo; São Luís: estrato médio baixo; Marquês: estrato
médio. Antes do que tentar construir um modelo classifi-

C_abe destacar que estas atribuições são sempre catório — ao mesmo tempo descritivo e prescritivo
dos vigent es, é mais perti-
tentativas, assinalando antes arquétipos ou modelos com base nos fragmentos
o
do que sujeitos reais; estes costumam oscilar muitas nente percorrer as várias nomenclaturas, organizand
-
vezes entre ponto e ponto, recebendo até qualificações tenuemente sua apresentação. Embora estas nomen
as
dl?e?entes segundo o seu lugar de exibição. Pontos de claturas obedeçam a um entrelaçamento de sistem
de articu lá-las nem
“fixitude” funcionam como eixos de distribuição, tan- classificatórios diferentes, tratamos
a
to populacional como retórico ou semântico das redes tanto com base em sua “história”, quanto atendendo
circulatórias por onde perambulam os sujeitos. seu funcionamento fatual,
À essa distribuição básica por territorialidade
aAcregcentam-se outras que, grosso modo, fazem refei
ser análoga à “in-
rência a pelo menos três tipos de variantes ou séries: (3) Esta superposição de códigos proliferantes poderia
ade de figuras simultâ neas”, e consequ ente “enterr o da identidade”,
gênero, idade, classe. componibilid
observa na “teatri ca pagã”'; havia, na religião da
que Lyotard (1979, pp. 20-21) des: “Para cada li-
ração de divinda
Baixa Roma do Baixo Império, uma prolife
dade e investida, um deus pequeno
gação um nome divino, para cada grito, intensi nome de trânsito de
que é um
(...) que não serve exatamente para nada, mas
ção da representação como um
(2) Para mais
! dados sobre os locais do gueto, ver Guiaq Gay de São “ P emoções (...)” (ídem, p. 18). Isto se liga à concep
Grupo Qutra Coisa de Ação Homossexualista, São Paulo, 1981. AAAA “ disposiÍÍVº enefgélicº".
128 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 129

Michê-macho, michê-bicha, michê-gay £ay são confusos, e às vezes até subjetivos. Os dois gê-
neros não-machos, por outra parte, são ostensivamente
Vistas já as alternâncias da relação entre michês- minoritários.
machos e michês-bichas na divisão territorial do ponto O michê-gay é um gênero ainda muito novo:
da Avenida São Luís, cabe recapitular algumas carac-
terísticas do tipo majoritário e mais corriqueiro de mi- "É um novo tipo de michê, o michê-entendido, que está
chê, chamado michê-macho, michê-mesmo ou sim- surgindo, embora o michê mais másculo não admita. O mi-
piesmente bofe (termo este último usado de maneira chê-gay, ou okô-odara, é um michê que tem uma aparência,
desprezativa pelos “entendidos” um corpo muito bonito, às vezes procura até explorar o par-
para denominar ra-
ceiro sem necessariamente transar, ou transando o menos
pazes não manifestamente homossexuais, mas que
possível. Como quanto mais ele se vende, mais ele se des-
participam ou podem participar eventualmente de gasta, procura conservar seu corpo transando só o impres-
transas com outros homens, mantendo sua macheza). cindível. É fundamentalmente uma transa de cabeça, al-
Haveria uma tendência à polarização das posições guns destes caras se consideram michês e outros não. Ocor-
sexuais nos pólos “masculino/feminino": re que é tanta a carência dos entendidos mais maduros que
eles estão a fim de ter uma companhia. Aí o michê-gay se
« coloca para a pessoa fingindo afeto e começa a usufruir da
“Em geral, as relações são entre pessoas que ocupám pólos. solidão do outro, para tirar direito uma série de coisas, co-
Uma pessoa que tem dado mais “bandeira', mais aberta, mo moradia, comida, grana, etc...”
mais feminina, tende a procurar o pólo oposto, uma pessoa
mais máscula. Pode ter algum caso no qual os dois sejam
femininos, mas a gente diz que não luta espadas, não luta O michê-gay, aliás, é um personagem infrequente
espadim, não dá certo. À tendência do feminino é procurar na área. Em geral ele não “faz avenida”, mas prefere
o masculino, e do masculino procurar o feminino — ainda frequentar locais sofisticados, prontos para “acompa-
que num grau menor. De fato, no gueto, é difícil o macho
nhar” o cliente, que em ocasiões sequer se considera
procurar à bicha pintosa, a não ser que seja um michê que
se quer afirmar como homem e então busca travesti ou mu- como tal.
lher. Via de regra, os michês tendem a preferir uma pessoa
ligeiramente masculina, que não dá bandeira, que não seja
muito evidente ou escandalosa, com que é mais fácil cir-
cular sem chamar à atenção. Mas podem se sentir atraídos Nomenclaturas que aludem a diferenças de idade
realmente por uma bicha feminina os que gostam de agirem
como machos",
Há uma diferença básica entre michê jovem —
menos de 20 anos — e michês velhos — mais de 20
O michê-macho compartilha com o michê-gay o anos. Registram-se só as nomenclaturas classificatô-
recurso à masculinidade, se bem que no último caso a rias em que estas diferenças se denotam.
virilidade é expressa de forma menos estridente. Se a Erê, termo de raiz afro, é usado para denominar o
diferenciação entre michê-macho e michê-bicha é menino de 11 a 14 anos que se prostitui (a palavra é
transparente, os limites entre míchês-bichas e michês- mais usada por travestis).
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 131

“Conheço um erê, que é um michê muito jovem. Ele tem


como gay, Graciliano, 23 — narra suas experiências
onze anos e freqilenta um flipper da Vilanova. Sempre faz
questão de vir me cumprimentar, como se afirmando como
como bicha-baby:
um 'adulto'. Encontrei esse pivete na Marquês de ltu, até
na Ipiranga. Já é da avenida, já faz a noite. O dia que um “Richa-baby é uma bichinha jovem e pintosa que cobra pa-
cliente se interessa por ele, os outros michês lhe aconse- ra as mariconas que vão de carro por aí, bichas velhas, gays
lhain: *tem que cobrar uma noia, não andar dando de pre- ou enrustidos. Essas bichas jovens que se prostituem são di-
sente à bunda para qualquer um que isso é que se vaioriza ferentes do travesti oqu do michê, mais perto do michê-gay,
mais'. Ele toma as dicas do pessoal mais experiente”. um pouco efeminado. Eu participava de um grupinho que
fazia ponto (por volta de 1980) na galeria do Cinema Lira, e
era um pessoal bem solto, que não fazia problema de comer
ou de dar. Muitos éramos offtce-boys da área. Eramos uns
O grau imediatamente superior de idade corres- 10 carinhas, entre 16 e 17 anos. Se alguém pintar, o carinha
ponde, vagamente, à denominação, ambígua e ampla, ia transar e depois voltava. Todo mundo sabia que a gente
ja por grana. Mas tínhamos o nosso público. Nas boates
de garoto. O termo costuma ser aplicado ao rapaz tinha muita maricona que gostava de transar com meninos
muito jovem (15, 16 anos) que chega ao centro com efeminados. Alguns pediam para a gente vestir calcinha de
vontade de transar com homossexuais, mas sem expe- mulher, um barato. Um michê-macho relutaria em botar
riência no negócio. Como são muito jovens, não fazem calcinha”",
um gênero muito definido, ainda que comumente se
considerem “machos”. Segundo vemos, a bicha-baby seria uma versão
precoce do michê-bicha,.
O termo tem uma conotação “popular”: denota a
predisposição dos garotos de períferia para transar
com bichas durante a adolescência, disposição mais ou
menos tolerada pelo “grupo de idade”. Esta inclinação Diferenciação por grau de profissionalismo
se ancora numa justificação econômica: para transar
com mulher, o garoto — geralmente desempregado e Nem todos os michês convertem a prostituição na
pobre — precisa de dinheiro. Transando com Bbicha sua fonte princípal de subsistência. Alguns moram
velha, no entanto, ele pode até ganhar algum dinheiro. com as famílias (é o caso de Graciliano), outros traba-
Em certos casos, o ingresso ao mercado da prostitui- lham e exercem a prostituição ocasionalmente.
ção pode estar precedido de relacionamentos homosse- Os chamados michês profissionais costumam fa-
xXuais não-prostitutivos. zer expedientes intensivos de trottoir, começando às 6
ou 7 da tarde e indo deitar — às vezes na casa de al-
Os garotos que entram numa espécie de “devir guma “bicha” — às 4 ou 5 da madrugada. Entre tran-
mulher”, efeminando-se progressivamente, passam sa e transa, eles perambulam pela cidade ou curtem à
por diversas transições, não muito claramente nomi- companhia de outros michês e marginais.
nadas nos discursos de gueto. Um desses rapazes — : Os michês ocasionais são aqueles rapazes que Se
que acabou deixando a prostituição e se assumindo prostituem circunstancialmente, às vezes como forma
PA me

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132 NESTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 133

de vazão sexual, como os rapazes pobres que invadem “Eu não estava a fim, o cara era gordo e velho e eu tinha 16
a Praça da República nos finais de semana. anos só. Tive a idéia de pedir dinheiro. Ele aceitou e fomos
Uma diferenciação taxativa entre michê profissio- num motel. Bebi, tentando me excitar, mas só consegui
passar mal. Quase não houve transa, mas o cara pagou le-
nal e michê eventual é dificuitada pelo fato de que o gal e fomos embora”,
desejo de abandonar a profissão e conseguir um em-
prego é freqientemente invocado — ainda que retori-
camente — por todos os michês. Há um contexto geral A figura do semimichê tem a ver com a indiscerni-
de desemprego que afeta fortemente a população jo- bilidade geral do negócio. É uma nomenclatura mais
vem, e que pode tornar verossimil a justificação clás- “situacional” do que “identificatória”, aplicando-se
sica: àqueles rapazes que se prostituem ou não dependendo
dos atrativos do cliente.
"Eq faço isto (transar com homem) porque preciso de di-
nhãlro, e agora estou precisando porque estou desempre-
gado”. : Os clientes

Mas adverte um “entendido”:


Ao tratar dos diferentes tipos de michês, houve
constante referência à outra parte da relação: o cliente
homossexual.
““Eles estão sempre aconselhando para as outras pessoas en- Se se pode pensar que qualquer homem jovem e
trar na batalha do emprego, vivem falando do emprego —
com exceção do michê-malandro. Quando um arrumou ser- convencionalmente atraente está em condições de ren-
viço, vem se gabando: “Olha meu, eu saí dessa vida, arru- tabilizar seu corpo entregando-se à prostituição, cabe
mei uma maricona e estou trabalhando'. Mas seus em- inferir que o avesso pode ser até mais verossímil, isto é,
p.rãíos são geralmente efêmeros, e eles retornam à ave- qualquer sujeito tido por homossexual é visto como um
nida”. cliente em potencial pelo bloco dos machos, só pelo
fato de ser “bicha”.
Esta instabilidade de fundo faz aparecerem figu- Por outra parte, os machos que se separam dos
ras ambíguas, como o semimichê, isto é, o rapaz que, outros machos para entregar-se a uma prostituição
embora estando à procura de um cliente homossexual, mais ou menos consuetudinária, “elaboram”, por as-
pode aceitar uma transa “de graça ' com algum “en- sim dizer, um conjunto difuso de racionalizações sobre
tendido”. Ou, inversamente, aquele que não costuma o negócio, que pode até conformar certa “subcultura”
ter relações homossexuais e “faz uma exceção” em específica. Isso não parece acontecer no caso dos clien-
troca de um pagamento. tes, os quais costumam tomar a subcultura genérica
| De fato, uma quantidade considerável de rapazes dos homossexuais manifestos.
acaba passando, ainda que episodicamente, pela pros- Não é pertinente, então, falar de uma classifica-
tituição. Ronalido, um gay negro de 20 anos, conta: ção particular dos clientes, diferente da relativa ao
O NEGÓCIO DO MICHE 135
134 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER

gueto gay em geral. Isto é, não parece funcionar na social, medra a figura do “cliente enrustido” — ou
retórica territorial uma categorização especial para os seja, aquele que não é manifestamente homossexual
clientes. Antes, algumas categorias do gueto parecem na sua vida social ou familiar, tendo em alguns casos
mais inclinadas a fornecer clientes para os prostitutos. mulher e filhos. Este gênero foi particularmente difí-
De um modo geral, as categorias vigentes no meio cil, dada sua relutância, de incluir nas entrevistas da
homossexual para qualificar os outros e autoqualifi- pesyquisa.
car-se foram já enunciadas. Tentar-se-á agora regis- Na “microcultura” gay, é considerado despresti-
trar como aparecem, no discurso do gueto, diferentes giante o fato de pagar um michê. Especiaimente os
nomentclaturas aplicáveis aos clientes. jovens gays da Marquês acreditam que o fato de pa-
Da mesma maneira que procedemos a respeito gar um michê expressa a decadência do entendido em
dos michês, organizamos essas nomenclaturas em tor- termos de valor erótico: como seu corpo tem-se desva-
no de alguns tensores básicos: sistematicidade no re- lorizado (em termos do mercado sexual), precisaria
curso aos prostitutos; nomenclaturas que qualificam compensar essa perda de valor de troca com um paga-
segundo status sócio-econômico, gênero e idade; e, por mento em dinheiro. Esta crença, fartamente divul-
último, uma tipologia “sentimental” fornecida por um gada, se sustenta no fato de que a maioria dos clientes
michê imaginativo. é velho (mais de 35 anos) — aqueles que não conse-
guiriam com quem transar e ver-se-lam obrigados a
recorrer à prostituição.
Mas alguns outros elementos vão complicar essas
Clientes eventuais e habituais regras básicas de cálceulo: a começar, o deserjo do clien-
te — que mencionamos para explicar a preferência de
À distinção entre clientes habituais de prostitutos alguns entendidos pelos michês sujos e mal-vestidos da
e clientes eventuais não é fácil de estabelecer. Por um Ipiranga. Esse desejo vai se articular, na experiência
lado, uma quantidade considerável de homossexuais de vida do sujeito, irequentemente sob a forma do de-
do gueto utiliza às vezes os serviços de prostítutos, pa- sejo do masculino, com raciocínios do tipo: “Eu sou
gando o miçhê ou concertando algum tipo de retribui- mulher e fraca, e preciso de um homem forte e más-
ção (como Jantar ou moradia). Neste último caso, a con- culo” (um cliente). Como vimos,os michês-machos fa-
dição de prostituição pode ficar encoberta. zem questão de garantir essa certidão de “macheza .
Mas ainda aqueles que costumam recotrer aos O fato de o “negócio do michê"” estar movimen-
amantes profissionais fazem questão, na grande maio- tando molecularidades desejantes muito delicadas e
ria dos casos, de manter certa discrição sobre o as- complexas, não impede que o relacionamento com
sunto, revelando-o apenas para seu círculo de amiza- prostitutos seja, de um modo geral, estigmatizac?o
des mais intimas. Este pudor se liga, por um lado, ào pelos gays e entendidos do gueto. Pesa sobre o negêcw
cone de sombra que ainda pesa sobre as práticas ho- certa mácula de indignidade. Gays representativos
mossexuais em geral. Relacionada com esta repressão aduzem, sobretudo, que a prostituição éê basicamente
136 NEÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 137
um mecanismo de exploração do homossexual, pro-
que procuram impressionar o rapaz com a demonstra-
clive a assumir arestas criminosas.
ção do seu poderio econômico — são pejorativamente
O estigma pesa sobre os próprios clientes, que
denominados pelos michês do gueto, recebendo os
costumam se envergonhar e viver com indissimulável
qualificativos de: :
culpa por suas aventuras tabeladas. Há, no entanto,
outros clientes (minoritários) que assumem aberta- — maricona fodida: “O cliente que dispõe de
mente sua condição. Os limites entre uma e outra ati- muito dinheiro ou carro; mas também se denomina
tude são difusos, pois, como diz o entrevistado Ro- assim pejorativamente o cliente de classe inferior que
lando, “o universo da prostituição masculina é o uni- não dispõe de dinheiro para pagar o boy";
verso da culpa”. .
Fenomenicamente, os nativos tendem a classificar — maricona podre: “Cliente idoso que desagrada
os clientes de michês em torno de três grandes eixos: ou esnoba alguns boys com dinheiro ou carro. Pode
ser também um cliente que está sempre acompanhado
1) Status sócio-econômico: É particularmente re- de rapazes cobrindo toda consumação. Em geral, apli-
levante, porque mede a capacidade do “entendido” de ca-se ao cliente que faz questão de mostrar que com
retribuir os serviços dos prostitutos. Os próprios pros- dinheiro compra qualquer rapaz, até mesmo os que
titutos diferenciam os clientes entre pobres e não-po- explicitamente não vão com sua cara e rejeitam ele”.*
bres, abrindo um ramo particular para os “profes- As tribulações do cliente “executivo” — um dos
sores”. ; protótipos da prostituição em geral, que se aplica com
Um experiente michê queixa-se dos clientes po- certa liberalidade a quem for que trabalhe e esteja bem
bres, quando de sua iniciação nos mictórios da Central pago, englobando, às vezes, industriais, comerciários,
do Rio: burocratas, etc. —, cuja mesma riqueza é objeto da
cobiça dos marginais, estando em ocasiões sujeitos a
“Tinha 13, 14 anos e já fazia ponto em banheiros. Os clientes ameaças e chantagens, não parecem ser diferentes das
me levavam para casa, Mas eram umas viagens intermi- angústias dos seus colegas do mesmo sfatus que tran-
náveis, bem na periferia. Esse pessoal da Central é tão po- sam com travestis. Tanto num caso como no outro, a
bre que não tem grana nem para hospedaria, e te levam
experiência homossexual à beira da sociedade (masca-
nas suas casas, tão longe que a gente perde a noite toda por
um trocado miserável nuns quartinhos de merda. Deu-se rada ou não) pode servir como uma espécie de “ponto
uma onda de polícia muito forte, e passei para a Cinelân- de fuga” que põe em contato o sujeito burguês com os
dia, onde é melhor, esse pessoal da classe média Paga mes- fascinantes perigos da promiscuidade marginal. I?sta
mo, não tem papo, é se a gente satisfazer eles, eles voltam e “condição desejante"” — desejo de perigo, de margina-
procuram”.

O cliente pobre é chamado também de “maricona (4) Um caso de um cliente (negro) que persegue o michê brandindo o seg
tumbada”. Em compensação, os clientes “ricos” — poder econômico, no conto de Gasparino Damata: “Módulo lunar pouco feliz
(1975). ;
138 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 139

lidade — pode tornar os clientes em geral passíveis de Pela sua parte, os boys que curtem este gênero
roubo e violência. têm especial apreço pelo verniz cultural que podem
adquirir com o relacionamento. Um jovem gay con-
densa este interesse: “Dinheiro no bolso e cultura na
cabeça”.
Professor: mais do que apenas um tipo definido,
o “entendido” tido como professor — universitário, 2) Gêneros: as nomenclaturas de gênero discri-
intelectual, artista, ete. — configuraria um “ramo” do minam por grau de efeminamento. Vulgarmente, al-
negócio. Esta caracterização é ambígua e faz referên- guém que pagar um michê vai ser considerado auto-
cia a certo jeito de ser que não encontra lugar nas di- maticamente bicha. Fora do repúdio que aflora no uso
visões por gênero Para um jovem “entendido”', o filho pejorativo deste termo, ele aplica-se propriamente
de santo Edivaldo, “intelectual é uma categoria à parte àqueles bmossexuais com trejeitos femininos, cujo ex-
do mercado”. tremo é a bicha pintosa e seu limite, o travesti.
AÀ diferença entre o professor e o cliente “execu- Mas há também um outro tipo de cliente que,
tivo” é tênue, na medida em que tanto um como o longe de feminilizar-se, encarna representações proto-
outro se representam como “riços” — dispondo de di- tipicamente masculinas, assimilando-se à persistente
nheiro. Mas, enquanto o chamado “executivo” procu- figura do bufarrón cantado por Quevedo. Esse tipo de
raria impressionar com seu poder econômico, o pro- “homossexual ativo” (na classificação de Barbosa da
fessor deslumbraria o rapaz com seu brilho discursivo. Silva) era também conhecido como “fanchona” — cu-
O “papo” teria certa eficácia na hora das contas: jas inquietações iluminou o depoimento de Rolando
(capítulo 2). Mas o “fanchona” parece estar extinto no
“Estava na cidade, vi aquele menino, olhos negros, ca-
meio homossexual de hoje. Algumas denominações
belo cacheadinho, lindo, e falei pra ele: “tem dois punhais são reservadas, porém, para esse tipo de homossexual:
de prata dentro dos olhos'. Até hoje ele lembra da frase.
Cada vez que me visita a repete. Ele é michê mesmo, transa “São esses caras que chegam muito másculos, com o papo,
com turistas americanos no Rio e ganha muito dólar por “a gente é igual, tudo homem, eu sei que os michês dizem
noite, mas comigo a transação não é por dinheiro: ele gosta que comem mas todos acabam dando'. São paranóicos, du-
do papo, da curtição. Até fez questão uma vez de me pagar ros. Então a gente tem que ser ainda mais duro. Como eu
ojantar”. falava que eu não dava de jeito nenhum e ele insistiu, pintou
violência mesmo”.

Este cliente “machudo” pode se assimílar tam-


(5) Um outro michê situa no seu relacionamento com "“professores” sua
iniciação tanto sexual quanto literária: “Eu tinha uns 14 ou 15 anos, com uns bém à figura do “enrustido”, característico cliente de
colegas da escola freqiientávamos o apartamento de dois entendidos, professores travesti, segundo denuncia Pimentel. É aquele que
muito malucos: tinha sexo, álcool, maconha, quanto quiser, mas também tinha
muito livro, muita poesia, Um deles me lia Artaud, Genet, Rimbaud (...). Imagi-
mantendo uma representação pública familiar e hete-
na para a cabeça de um garotinho, isso foi uma revolução, bem subversivo mes- rossexual, dá vazão a sua inclinação pelos rapazes de
mo”
140 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 141

aspecto másculo, recorrendo à prostituição como ma- não vai cobrar ou vai cobrar menos. Ou vai ter com-
neira de manter a clandestinidade da promiscuidade paixão do seu jeito de bonzinho para não arrebentar
descompromissada. ele. Embora a gente pegue o relógio dele, o cara não
reage, continua dando umas de mártir”.
3) Idade: maricona e tia denominam o homosse- — O cliente depressivo: “São terríveis, caras que
xual de mais de 35 anos, o coroa, grupo etário onde se estão acabados, querendo se suicidar, choram, embe-
recruta a maior parte dos clientes. Ambos os termos bedam-se, provocam nojo e lástima. Um caso: o cara
são usados quase indistintamente, mas com um leve gemia, choramingava, podia ter roubado tudo, mas
matiz diferencial: enquanto tia designa genericamente senti pena”.
a bicha velha, maricona tem também uma conotação — Onamorado: “Ficam apaixonados pela gente,
de “enrustido”, além da sua carga estigmatizante para perseguem, querem morar junto, prometem tudo. In-
os homossexuais maduros em geral. suportáveis. Um deles não me deixava faturar, enchia
O caso da bichinha jovem (na faixa dos 20-25 o saco no pedaço, como eu nem ligava ameaçou-me de
anos) que paga um michê é excepcional: morte, tive que sair um tempo do pedaço porque era
séria a coisa, ele estava maluco e era capaz de fazê-lo”.
“Pode acontecer que uma bichinha jovem ganhe um di-
nheiro, ou seja dia de pagamento, ela quer se dar um gosto
e em vez de gastar na boate, pode escolher um michê atraen-
À variável cor
te e pagar para ele”".

Ás discriminações de cor costumam aparecer sor-


O desejo pode passar por cima dos preconceitos
venais: terradas e mascaradas nos rituais sociais brasileiros. O
negócio do michê não é uma exceção neste “pudor”,
que foi delicado descortinar.
“Eu habitualmente não pago, mas se pintar algum carinha
gostoso que só transa cobrando, e eu estiver com grana, À discriminação por cor perpassa todas as outras
tudo bem. O que importa é o tesão””. classificações e divisões, e funciona tanto entre michês
como entre clientes e “entendidos” em geral.*
Como no resto da sociedade, ser negro é um fator
Uma tipologia sentimental de inferiorização no gueto gay paulistano. Este “ra-
cismo homossexual” tem sido vasculhado pela pes-
Um prostituto propõe uma classificação singular
dos clientes segundo sua experiência subjetiva:
— O cliente piedoso: “Compassivo, aparece com (6) Um aprofundamento das retações raciais no campo do homossexua-
lismo extravasa os limites desta pesquisa. Esse conflito racial é registrado só des-
um discurso do tipo: “você tem que deixar essa vida, critivamente. Cabe salientar, aliás, que o racismo, embora incida permanente-
tem que transar por amor porque vai se arruinar'. Dá mente nos relacionamentos entre os sujeitos do gueto paulistano, está longe de se
constituir num impedimento para as relações sexuais inter-raciais, as quais acon-
todo tipo de conselhos, acreditando que assim a gente tecem costumeiramente,
142 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 143

quisa do grupo gay baiano Adé Dudu (1981) sobre re-


reservando o quesito de “negros” só para africanos
lações inter-raciais, e chama a atenção dos observado-
puros ou mulatos escuros. Os próprios destinatários
res estrangeiros. Young (1973) registra a vigência de
“pardos” costumavam fruir desse esclarecimento.
um padrão de beleza branco e europeu entre os enten-
Porém, um entendido inuito chegado aos michês,
didos cariocas. Altman (1980) repara como a cena gay
consente:
brasileira “(...) é estratificada através de linhas de
classe e de dinheiro”, estando o corte racial misturado
*À rejeição contra o negro é muito forte no mundo dos mi-
com o corte de classe. chês. Eles falam abertamente para um michê negro; “Eu
Meecito

Em São Paulo, algumas das formas deste racismo aprecio você porque é um negro mais claro, diferente, che-
contravêm até as leis formais. Sabe-se de negros bar- gado'(...)”.
Fs

rados nas portas de boates e de saunas gays. Neste úl-


SNA

timo caso, a discriminação é ela mesma “seletiva”: se Em compensação, os michês negros se gabam de
permite o ingresso de alguns negros mais “transados”, encantos especiais. Este encanto pode provir da asso-
Í para afastar a suspeita de racismo, e se impede de en- ciação entre negritude e animalidade, herança da es-
j
H trar os restantes. O método seria trivial nas saunas de cravídão que negava a humanidade do africano e o
Í São Francisco (EUA). destinava exclusivamente ao trabalho braçal. Um de-
'
E

H
Muitas vezes, a sua exclusão não precisa ser di- poimento recolhido por Adé Dudu (1981), dá conta
|
em

U reta, já que o preço do ingresso a boates e saunas mais deste dilatado preconceito:
t refinadas costuma se encarregar de afastar a maioria
dos negros — que, por sinal, são os mais pobres. “Existe um folclore segundo o qual os negros são mais viris,
Michês e “entendidos” negros compartilham, mais potentes, dão mais no “couro'; é o mito do negro forte,
aliás, a preferência polícial. Assim, enquanto gays de machão, violento e que possuí o pênis com proporções gi-
gantescas, que se cultiva muito, também entre os homosse-
classe média não costumam ser importunados pela
xuais. É muito comum a gente ouvir homossexuais dizerem
polícia — a não ser quando das grandes blitz —, os que transaram com um “negão', ou um nego do vau deste
negros em geral não gozam dessa tolerância. ' tamanho' “ (p. 8).
No que diz respeito exclusivamente ao negócio do
michê, o preconceito não impede que boa parte dos- Aliás, o fato de os negros ocuparem posições só-
prostitutos seja negra ou não-branca (mestiços, mu- cio-econômicas mais baixas — o que explicaria a pre-
latos, genericamente chamados de pardos). O pre- dominância de negros e “pardos” na baixa prostitui-
domínio cromático costuma ser dissimulado recor- ção — os predispõe a “se entregarem a re.la.xções amo-
rendo a definições suí genteris das categorias raciais, rosas com homossexuais brancos, em troca de um pa-
considerando pardos ou “morenos claros” (definição gamento" (idem, p. 12). No limite, machos negros po-
abundante nos classificados amorosos gays) como dem se prostituir com entendidos brancos, mas se re-
“brancos”. Com esse procedimento, alguns “entendi- cusando a se relacionar sexualmente com outros ne-
dos” calculavam uma proporção de 70% de brancos, Bros.
O NEGÓCIO DO MICHÊ 145
144 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER

No entanto, há uma clientela considerável (ainda também nos “lugares míticos”, fantasiados pelos ra-
que não majoritária) especializada em garotos negros. pazes nos seus delírios nomádicos. Embora haja uma
Isso faz com que o fato de ser negro não diminua ne- circulação de boys muito intensa entre São Paulo e
cessariamente a tarifa: Rio, classicamente o paradigma de michê paulista,
para os “entendidos” e gays, seria mais assimilável ao
“Os michês negros costumam ser negros muito bonitos, al- do gaúcho: ele é imaginado branco e loiro. :
guns na Marquês são até modelos, muito mais bonitos do De fato, os michês loiros (gaúchos, argentinos,
que o comum. Um físico transado, interessante. Há toda
paulistas, etc.) são altamente valorizados na praça, es-
uma tradição de que negro é mais potente, mais sensual,
mais macho, é mito mas ainda tem bichas que acreditam e pecialmente pelos clientes de classe média alta; um
curtem, sobretudo estrangeiras”. deles confessa:

À incidência negra do michê se manifesta no nível *“"Transo com qualquer um, não tenho uma preferência defi-
nida, só não transo com negros nem com japoneses",
semântico; regem termos de raiz afro, provindos do
candomblé ou da umbanda. Os cultos afro-brasileiros os dourados loiros do Sul
A identificação com
parecem ter, aliás, uma presença constante no gueto.
mobiliza alguns michês. Um dos entrevistados — em
Um filho de santo que Íreqiienta o gueto conta:
companhia de um michê gaúcho — empreende uma
viagem “no trecho” — isto É, “pegando carona” nas
“Tem até pais de santo que saem, pegam garoto e levam ele
moarar no terreiro, vira ogã, participa no culto. Ogã é mui- rodovias, até Porto Alegre, fantasiando “explorar al-
tas vezes um pouco malandro, se transa com bicha quer guma maricona”. Um dos encantos de Porto Alegre,
grana...”. argumentava-se, seria o fato de ser uma cidade predo-
minantemente branca.
Malandros e michês, aliás, manteriam certo res-
peito para com o pessoal do candomblé, carregado de
poderes sagrados. O cliente negro

O Sul loiro
Se os michês negros conseguem reverter nos fatos
a discriminação, a situação dos clientes negros parece
O racismo imperante no meio homossexual pau- mais desafortunada. O preconceito aparece com força
lista, exacerbado no campo dos michês, transparece na boca do michê paulista protagonista de um conto de
de Damata (1975):
(7) À fascinação pelos negros atinge conotações poéticas em Orgia, de Tú- fome e
lio Carella, para quem eles “têm crânios espelhantes, cor de aço lustroso, são “Não gostava de crioulo, preferia mil vezes passar
com crioulo (.. .').
lascivos e eruéis. O ar afrodisíaco que chega do mar faz com que fiquem ternos e não ter onde dormir do que fazer programa
era papel sujo
sanguinários”; ... petas veias dos negros não corre sangue, mas luz do sol, a Dinheiro de crioulo para ele não valia nada,
nem com
de merda (...). Não fazia programa com Pelé e
substância vital dos trópicos” (Carelia, 1968). Sobre as chocofate queens ameri-
canas (apaixonadas por negros), ver Soáres (1979).
O NEGÓCIO DO MICHÊ
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER

filho da puta do crioulo nenhum, para ele bastou ser crioulo


para não prestar" (pp. 23-24).

Muaricona podre. Maricona fodida


Mais aho
— m Mais velho

:
NMais feminino

homossexual passivo
Bicha pintosa

Michê velho

Michê da Marquês
Bicha velha
MICHÊ-BICHA
No pedaço da Marquês a discriminação é muito

TRAVESTI

Maricona

Michê de luxo
rmos


forte:

“Txecutivo”
m—
“Se anarecer um branco com um carro caro, os michês bri-
gam por sair com o cara e às vezes seu fascínio pelo luxo é
tão grande que esquecem de cobrar. Mas se vier um negro
com o mesmo modelo de carro, eles dizem: “Olha essa mari-

ENTENDIDO
cona podre, negro com carro querendo esnobar'. Só acei-

MICHÊ-GAY

“Professor”'
Okbd-odata
tam negro muito rico, se tiver muita grana”',

“hamossexual duplo”
ICATÓRIAS

Bichinha jovem

Michê da São Luis

Gay maluco
À discriminação expressa-se também sob forma

Boy modelito

Rgay macho
Táxi-boy
conjugal. Pode se dar o caso de um michê branco acei-

QUADRO GERAL DE NOMENCLATURAS CLASSIF


tar um “caso” com uma bicha negra, para ganhar co-

Bicha pobre/Cliente pobre


Bicha-Baby
mida, moradia, etc., mas se recusando a transar: “sa-

Maricona tumbada
MICHE-COMILÃO

homossexval ativo
canagens das quais os michês se orgulham”,

Cliente machudo

Michê maluco
Buy panqueca
O quadro apresenta um total de 56 nomenciatu-

Michê jovem
Boy-laranja

“comilão”
Enrustido
ras classificatórias registradas nos discursos do gueto.
Experimentalmente, agrupam-se essas nomenclatu-
ras conforme tensores ou póôlos relacionais de gênero
(mais masculino/mais feminino), de idade (mais jo-

Michê da |piranga

boy dos babados


Michê malandro
MICHÊ MACHO
vem/mais velho), de estrato social (mais alto/mais

boy das tretas


Baixo michê
baixo). Essas nomenclaturas se superpõem em vários

fanchona)
Okô-mati
sentidos. Algumas vezes, como no caso de “hoy pan-

BOFE
OKkã
queca” e “michê gilete”, trata-se de sinônimos, apli-
cados indistintamente ao mesmo sujeito. Outras vezes,
sobre o mesmo sujeito recaem classificações que cor-
respondem a modelos categoriais diferenciados (como

NAO-PROSTITUTOS
NÃO-PROSTITUTOS
é o caso de “michê gay"” e “okô odara”, onde o pri-

NÁÃO-PROSTITUTOS

PROSTITUTOS
PROSTITUTOS

t=
meiro termo corresponde à gíria gay de classe média, e

3) Por estrato social


4=
a

PROSTITUTOS
o segundo exprime a influência lexical do candomblé

Mais baixo
Mais masculino

Mais iovem
2) Por idade
1) Por gêncro

entre as homossexualidades “populares” do sistema


“hierárquico”; algo similar acontece com à superposi-
ção “bicha"”/“homossexual passivo”). Há ainda outra
t48 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 149

superposição: o mesmo sujeito pode receber nomen


- particular referência ao rapaz “feio” — (.ia mesma ma-
claturas díspares, mas que fazem referência a tensores
neira que seu contrário da mesma matnz,,, olfo odara,
de diferente plano. Assim, o “garoto” (termo que faz
alude a um rapaz bonito e “bem transado & Jão te:mo
referência ao tensor “idade”) pode ser simultanea-
mais popular (ainda que aplicado pek.)s cllgntes e “en-
mente um “michê macho”, se classificado conforme
o tendidos” e não pelos rapazes mals“mascplos) ”de
tensor “gênero”. Da mesma maneira, um sujeito
clas- “bofe” ocupa um lugar limítrofe entre. prostitutos” e
sificado como “professor” (em referência ao tensor
“não-prostitutos”, já que não necessanªmente comer-
“estrato social””) poderá ser nominado como “enten-
dido”, se categorizado com relação ao gênero. Estas cializa sua virilidade, a qual faz questão de aflmj.ar.
Dentre os prostitutos, uma proliferação de denomina-
Sucessivas superposições dão uma idéia da complexi-
ções alude a rapazes menos intranmgeflt.es na manu-
dade e instabilidade do conjunto. Aliás, as adscrições
nominatórias variam conforme o lugar. O mesmo su- tenção da moral masculina; certa comicidade ridicu-
jeito considerado gay no ponto da Marquês da Itu, po- lariza esses deslizes — a ironia transparecel em te.rn'lf)ê
como “boy panqueca” e “michê gilete”. O “laranta ” É
derá ser chamado de “bicha” ou “mona” no ponto da
simplesmente o “bobo”, que acaba c':?denfií) às dç—
Ipiranga. Não se trata apenas de mudança na denomi-
marndas ativas dos clientes, enquanto *“comilão” sati-
nação: o mesmo sujeito pode ele mesmo mudar de “gê-
Tiza os rapazes que mais se afirmariam como m?'ls.culos
nero” segundo seus objetivos ou expectativas: por
quanto mais fracos em face da tentaç?ío da passmqad.e
exemplo, o mesmo rapaz tido por “okô” na Ipiranga,
(os verdadeiramente másculos, supõe-se, 'prescmdl—
poder-se-ia eventualmente manifestar enquanto *“mi-
riam dessa insistência encobridf)r?). Ã medida que se
chê-gay" na Marquês de Itu.
aproximam do pólo “mais feminino”, OS rapazes su-
Resume-se seguidamente a distribuição por “egê-
nero”. portam outras ironias, como boy moadelito (aquele que
“Mais masculino”/“mais feminino” indicam
se arruma demais) e “mãezinhas” (termo que tqfnpem
tensores relacionais, que ordenam distribuições de no-
menclaturas no sentido horizontal. Na parte superior denomina o passivo nas transações entreA prç51d1arlos).
“Táxi-boy ' é um termo um pouco exsentrlco, gera'.%-
do quadro agrupam-se as nomenciaturas habitual-
mente atribuídas aos prostitutos; na parte inferior, as mente aplicado a rapazes aptos para “todo serviço”,
atribuídas aos “não-prostitutos”, incluindo clientes, que marcam suas entrevistas gelp telefcffle: Pf)derlg
equivaler, na largueza de seus habltºs, ao” fnlche-gay
“entendidos” e também “machos” que transam ho-
mossexualmente sem retribuição econômica. Neste úl- dos itinerários de ruas. Mas a aparência Já levement_e
masculina, ou pelo menos and:r.ôginzít,,q.uç, esta nomi-
timo caso, a linha de separação é bastante precária, prescreve,
nação do sistema “moderno e %guaª:tan?
como o índica a figura do “semimichê”, que pode co-
diluií-se por inteiro no “michê-bicha”, atÉ ,desaparecer
brar ou não dependendo da situação,
na radicalidade feminilizante do “travesti””.
No extremo “mais masculino”, situamos, entre os
Os efeminados que se prostituem são, neste cam-
prostitutos, as nomenclaturas “michê-macho” e seu ao bando dos
po, minoritários; a maioria. pertergce
equivalente afro, okó; na mesma linha, okó-mati faz
“não-prostitutos”, onde “bicha” é a nomenciatura
150 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER 151
O NEGÓCIO DO MICHÊ

mais paradigmática e conhecida, superada em femini-


um homem tão idoso quanto a “tia”, mas que, dife-
lidade pela “bicha pintosa” e compartilhando o mes-
rentemente desta, mantém sua postura masculina.
mo campo semântico com designações como morna
“Tio” é, aliás, o sinônimo moderno mais próximo do
(tenpo afro) ou “marica” (portunholismo menos di-
fundido). Uma denominação já decadente é usada (por antigo “fanchona”,
exemplo, pelo sociólogo Barbosa da Silva) para segre- A proliferação categorial — nomencilaturas que se
gar estas tipologias sexuais: “homossexual passivo””. deslizam e entrechocam, incrustam-se e misturam-se
Para reconhecer aquele que podia se desempe- entre si — pode expressar vários fenômenos. Em pri-
meiro lugar, ela tem a ver com o choque entre dois
AN

nhar alternativamente como ativo e como passivo, Bar- € o


modelos classificatórios, um igualitário (gay/gay)
to

bosa da Silva cunhava uma expressão hoje coml,aleta- por outra


rpet_lte fora de uso: “homossexual duplo”; essa pecu- outro Rhierárquico (bicha/macho). Mas,
har.ldade vai ser exprimida pelo termo “entendido” e parte, essa proliferação expressaria também o multi-
o
mais modernamente pelo anglicismo gay. Próximo ao formismo das condutas e das representações, fazend
pensar antes numa “carnavalização” à Bakhti ne, do
campo do antigo “homossexual ativo” aparece moder-
namente o paradigma do “gay macho” — radical em que numa “construção da identidade” da minoria des-
Sua representação máscula, mas flexível nas suas prá- viante.
ticas sexuais. No sistema mais clássico, esse “gay ma-
c.ho"', confundir-se-ia à simples vista com o “enrus-
tldq ; para quem a manutenção do estereótipo víril não Tdentidade e territorialidade
——

deriva explicitamente de uma assunção consciente


mas do 'tçmor de que se descubram suas inclinaçõe; Cabe ler o esquema transcrito como uma rede de
ho'moerotlcas. Nesse ambíguo terreno, os prostitutos sinais, por cuja trama transitam os sujeitos, não en-
2

ma?culos_ costumam designar como “cliente machudo” quanto identidades individu alizadas, definidas, “cons-
ou “comilão” os seus parceiros não-efeminados. Cir- cientes”, mas como sujeitos à deriva, na multiplici-
dade dos fluxos desejantes, na instantaneidade e acaso
o

culava na década de 60 um outro termo destinado aos


peçlerastas ávidos por possuir rapazes: “fanchona” dos encontros.
af

hoje reservado às lésbicas e aos presidiários que se de: es


No entanto, os pólos relacionais não são “lugar
sempenham sexualmente como “ativos”. —,
vazios” — como num árido esquema estruturalista
os
mas estão ocupados por sujeitos concretos. Os divers
pólos e categorias funcionariam como pontos de “re-
R

As distribuições por idade e por estrato social são


territorialização” na fixação à um gênero ou à uma
menos numerosas e mais simples, e podem ser recons- na
postura determinada; fixação que manifestar-se-á

cia
adscrição categorial e, correlativamente, na aparên
truídas recorrendo à explicação preliminar ao quadro
Novamente, elas se dividem entre “prostitutos” e “não: desem penho se-
gestual e discursiva, indícios de um
pr_ostltutos". Chama a atenção a categoria de “tio” —
xual esperado ou proclamado.
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
G NEGÓCIO DO MICHE 153
Pode acontecer, ainda, que os sujeitos “ocupem”
Sucessivamente diversos lugares do código, isto lações e intercâmbios. Os sujeitos se deslocam intefm?-
é, se
desloquem mais ou menos intermitentemente pelas tentemente nesses spatitm continuum e são passíveis
vá-
rias casinhas classificatórias, mudando de classi de permanecer na mesma posíição a respeito dos ou-
fica- tros, ou ainda de mudar de posição. Essa nomenclg-
ção conforme o loca! e a situação. Freqgiientement
e, é tura classificatória — que tem alguma coisa de provi-
um mesmo sujeito que vai assumindo e recebendo
vá- sória, de mutável — alude a certa frequência de c1rcu,:
Trias nomenclaturas classificatórias em diferentes
mo- lação: o grau de fixação dos agentes a um “gonto
mentos do seu deslocamento. Poder-se-ia falar,
então, (um gênero, uma postura, uma “representação , mas
de um deslocamento do sujeito pelas redes do código
. também uma adscrição territorial) será determinante
Configura-se, assim, um complexo “código-terr
i- para estabelecer seus lugares no sistema de trocas.
tório” (Deleuze), dado pelos códigos e suas superf
ícies
de inscrição em zonas do corpo social. Territoria Para dar um exemplo aproximado, os personagens
lidade
entendida não apenas no espaço físico — ainda paradigmáticos (michê profissional, bicha-de-todos-
que os-dias) significariam pontos de rigidez ou engrossa-
este também seja importante, já que delimita as
difu-
sas fronteiras do gueto -—, mas no próprio espaç mento da rede circulatória; os fregientadores even-
o do
código. tuais, momentos de fluência ou afrouxamento dessas
À idéia de identidade, que define os sujeitos pela redes. Sistema de redes “alargadas” (Lafont, 1983) ou
representação que eles próprios fazem da prátic “ramificadas” (Wellman e Leighton, 1981), será _mul-
a se- tifacético e fragmentário: não interessará tanto a iden-
xual que realizam, ou por certo recorte privilegiado
que o observador faz dessa prática, justapomos tidade, construída representativamente por e para o
a idéia
de territorialidade.º Daí, o “nome” dos agentes num sujeito individual, mas os lugares (as inters.eções) do
sistema classificatório-relacional vai exprimir código que se atualizam em cada contato. Sístema de
o lugar
que ocupam numa rede mais ou menos fluida redes que indicia outras mobilizações, conexões e con-
de circu-
jugações de fluxos: fluxos de corpos e de_.d'm.helro, flu-
xos desejantes e sociais, etc. Um território, sugere
(B) Precisar a noção de “territorialidade” é complex
comentando o Antiédipo, exprime essas dificuld
o. Donzelot (1976),
ades: “Esta noção é, para nós, a
Guattari, não é mais que um nó de fluxos; um corte
Mtais rica e mais nova da obra, mas embora
se compreenda que dá conta de nesse território terá de estar atento às intensidades que
imensas coisas, que pernite saltar as diferenças
entre à marginal e o essencial, é preciso reconhe
entre o iníra e o Superestrutural, os animam. Deslocamentos molares, da ordem dos
cer que ela é ma! e muito rara-
mente explicitada”; tenta então abordá-la com referência ao código. Guattar
i
macrocódigos sociais, mas também mobilizações mo-
(CERFLIL 1973, p. 142) entende o código como
distinguindo dois elementos no dispositivo
uma “inscription territorialisée”, leculares, no nível das sensações dos corpos. .
territorial: uma “sobrecodificação”
tsurcudage, código de códigos) e uma “"axiomática”, que
rege as relações, pas- À opção pela territorialidade em detrlmentg da
Sugens e traduções entre e através da rede de códigos. À fórmula
tório” exprime justamente essa relação entre
“código-terri- identidade coloca em cena certa “fragmentação” ou
o código e o território definido por
seu funcionamento, Às redes de código "capturariam”
os sujeitos que se
“segmentariedade” do sujeito urbano já assinalada
cam, classificando-os segundo uma retórica, desto-
matização dos fluxos. No entanto, o disposit
cuja sintaxe corresponderia à axio- pelos clássicos da Escola de Chicago — da cham.ada
ivo territorial agiria canalizando os
fluxos, mas a4o mesmo têmpo reiculando-os, Sociologia Urbana, que seria preciso rqcugerar libe-
rando-a do seu ranço moralista — e cuja “arqueolo-
154 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER

gia” é em certo modo esboçada por Deleuze e


Guattari
(1980, p. 255), que a remetem à noção de segme
nta-
riedade elaborada por Evans Pritehard em seu
clássico
estudo sobre os Nuer (1978).,
Ássim, em vez de considerar os sujeitos enqu
anto
unidades totais, ver-se-4, conforme esta
perspectiva,
que eles estariam fragmentados por diversas segme
n-
tariedades, Ássim, haveria uma segmentariedade
bi-
nária, da ordem do molar — que cinde os sujeit
os se-
gundo oposições de sexo (homem/ mulher),
de idade
(jovem/veiho), de classe (burguês/proletário),
etc.
Simuitaneamente, outra ordem de seginentos
, ou
meihor, fluxos moleculares, que fazem refer
ência ao
desejo — considerado não como uma “ener
gia pulsio-
nal indiferenciada”, mas como resultante “de uma
montagem elaborada, de um engineering de altas
inte-
rações: toda uma segmentariedade flexível que
trata
de energias moleculares” (Deleuze e Guattari,
1980,
p. 262) — sacodem “disruptivamente" o corpo
social.
Movimentos de “desterritorialização” e “rete
rritoriali-
zação” operarão complexas “transduções
” * entre esta
diversidade de planos.

'
!
(9)
Por “transdutor” o dicionário Aurélio deline
“qualquer disposítivo ca-
pPaz de transformar um tipo de sinal em outro tipo,
com o objetivo de transformar
unia forma de energia em outra, possibilitar o control
e de um processo ou fenô-
meno(...)”, etc. Por transdução Deleuze entende
o "trabalho de tradução” — de
conversão e captura, de recuperação e moneta
rização — dos ftuxos molecuiares
(desejantes) para os "centros do poder"”
locais: “adaptadores, conversores que
não estão numa posição simétrica ao que eles
neutralizam, mas se apóiam numa
zona de potência onde se dispõem os mecanismos
de retardamento dos ftuxos
€ numa zona de impotência onde os fluxos
acionam seu exercício de constante-
Mmente escapar a esses mecanistmos, mMergu
lhando numa região de negociação en-
tre essas forças” (Caiafa, 1985, p. 221).
Derivas e devires

“Você bem sabe


Eu sou um rapaz de bem
e a minha onda
é do vai e vem...
Pois com as pessoas
que eu bem tratar
em qualquer dia
Posso me arrumar
(vê se mora).
No meu trabalho intelectual
é o trabalho a pior moral
não sendo a minha apresentação
e meu dinheiro é só de arrummação

Se a luz do Sot
vem me trazer calor
a luz da Lua vem me trazer amor
Tudo de graça
Para que eu quero trabalhar”

Johny Alf, “Rapaz de Bem'""*


E

À deriva homossexual
___,/

Há um modo de circulação característico dos su-


jeitos envolvidos nas transações do meio homossexual:

(*) Roberto Piva teve a gentileza de facilitar a letra desta canção, entoada
por um dos _criadm'es da bossa-nova, Johny Alt, na década de 60. O tema está
incluído no Album MPB, da Abril, 1979
156 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 157

à “paquera”, ou deriva. Trata-se de pessoas que saem de província descritos por Thales de Azevedo (1975) ou
á rua à procura de um contato sexual, ou simplesmente os rituais de aproximação erótica dos “amores cam-
“vão para o centro para ver se pinta algo”, toda uma pestres” pesquisados por Flandrin, “ritual amoroso do
massa que “se nomadiza” e recupera um uso antigo, campo que sobrevive na ligação homossexual” (Bruck-
arcaico da rúa.vA rua, “microcosmos da moderni- ner e Finkielkraut, 1979, p. 323).
dade” (Lefebyre, 1978), torna-se algo mais do que AÀ “paquera” homossexual constitui, no funda-
mero lugar de trânsito direcionado ou de fascinação es- mental, uma estratégia de procura de parceiro sexual,
petacular perante a proliferação consumista: é, tam- adaptada às condições históricas de marginalização e
bém, um espaço de circulação desejante (a “errância clandestinidade dos contatos homossexuais. Esta ne-
sexual” de Maffesoli, 1985). cessidade de salvaguardar certo segredo vai ter um pa-
Certa expectativa de aventura erótica escandiria pel decisivo, segundo Pollak, na determinação das ca-
per se a marcha — indiferente e automatizada — da racterísticas dos modos de conexão inter-homossexual:
multidão nas megalópoles contemporâneas. Benja- “isolamento do ato sexual no tempo e no espaço, a li-
min, na sua análise do soneto “A une Passante”, de mitação a um mínimo dos ritos de preparação do ato
Baudelaire, fala como o olhar do flâneur “captura” sexual, a dissolução da relação imediatamente após o
(singulariza, investe) o objeto — furtivo — do seu de- ato, o desenvolvimento de um sistema de comunicação
sejo; na instantaneidade dessa apressada paixão o sexo que permite esta minimização dos investimentos, en-
separa-se do eros. Partindo das sugestões de Benja- quanto maximiza os rendimentos orgásticos” (Pollak,
mim poder-se-ia, aliás, esboçar alguma analogia entre 1983, p. 53). Coincidentemente, Foucault vê a origem
oflamar da boemia e a deriva das homossexualidades. do cruising no fato de a homossexualidade estar “des-
Explorar as possibilidades sensuais do fluxo das mas- terrada” na cultura ocidental, que impõe “a repentina
sas urbanas não é, por sinal, exclusivo de prostitutos e decisão de ir direto ao assunto, a rapidez com que se
“entendidos”. Pelo contrário, a “pegação” homosse- consumam as relações homossexuais...” (1985, p. 29).
xual (Guimarães, 1984) constitui uma versão particu- À “paquera” (drague, cruísing, yiro, etc.) con-
lar de uma prática muito mais institucionalizada e co- siste numa perambulação, mais ou menos prolongada,
nhecida: o trottoir da prostituição feminina, cuja di- pelas áreas da cidade tendentes a serem transitadas
fusão em São Paulo, a partir do fechamento dos bor- por homens dispostos ao prazer e às diversões. O ar-
déis e do fim da zona confinada, vimos anteriormente. gentino Túlio Carella oferece, no seu romance Orgia,
Aliás, a sedução da paquera pode se associar a formas uma crônica pormenorizada e autobiográfica de seus
mais tradicionais de flerte erótico, como os namoros “itinerários desejantes” pela Recife da década de 60:

“Que fazer até a noite? (Lúcio, o protagonista) passeia,


(1) Diz Benjamin: "O que contrai convulsivamente o corpo — olha, toma café, continua passeando. Pára, vendo um ajun-
“crispé
comme un extravagant' é dito na poesia — não é a felicidade de quem é invadido tamento: é um vendedor ambulante. Sente-se olhado: é um
pelo eros em todos os recantos do seu ser; mas antes um quê de perturbação se- rapaz de aspecto atlético. Pouco depois, é um rapaz afo-
xual que pode surpreender o solitário” (1980, p. 39). gueado que Ihe oferece seu corpo. Em seguida, um mulato
NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 159

se aproxima dele e se roça, pretendendo excitá-lo. E mais deveria ser, não dévia ter nada marcado, horários de traba-
distante há um homem que o olha com uma profundidade lho, nada. Na rua flui muito mais, acontecem coisas que a
que Lúcio jamais vira antes. E outro, mais outro, e outro. gente não iria imaginar, você se expõe”.
Lúcio acha que suas roupas despertam a atenção, mas está
um pouco alarmado com esses olhares cobiçosos que o des- Essa predisposição à aventura, esse “acontecer na
nudam”" (Carella, 1968, p. 45),
rua”, pode conduzir o sujeito que deriva a situações
diferentes da sua intenção original. No reiato que
O sujeito que paquera se desliza entre à multidão, transcrevemos, um michê encontra-se com um outro
e capta — sexualizando-os — os incidentes aparente- que estava “bem vestido e com grana”', e:
mente anódinos ou insignificantes do espetáculo da
rua:
“(...) Eu comecei a puxar conversa, 'convida uma pingui-
nha', o cara muito delicado, com essa delicadeza masculina,
“Caminha. Um escultor lhe oferece uma peça de barro nada bicha, fomos num bar e pediu conhaque. Depois con-
cru. Um menino, a quem compra cigarros, tenta vender-lhe tinuamos bebendo na rua (...). De pronto, quando passáva-
um isqueiro por um preço exorbitante. Uma mulher lhe mos pela porta de uma boate, o cara entrou numas de pro-
pede esmola. Um velho mostra-lhe bilhetes de toteria. Um vocativo e arrebentou um luminoso com um pontapé”. (À
FRL

homem fardado sorri para ele. Pára, olhando o ambulante, história continua com uma briga com os “leões-de-chácara”
rodeado por uma pequena multidão, instalando-se no es- da boate.)
paço entre um automóvel e o último espectador. Mas fica
imprensado para dar lugar a um negro que também quer
olhar. O automóvel recua e empurra o negro que se adere às Nesse relato, a vontade de nomadização parece
costas de Lúcio com um corpo quente (...). Soldados e fuzi- confluir com certo “desejo de transgressão”, anteci-
leiros passam lentamente, como de propósito, para serem pando a problemática de violência que trataremos em
detidos mais facilmente” (idem, p. 76). particular posteriormente.
Porém, a predisposição à aventura é compensada
No ato de se lançar à deriva, à “paquera”, à va- por uma certa “organização do acaso”. À perambula-
diagem, parece estar implícita certa disponibilidade ção não é exatamente caótica. Pelo contrário, o “ritual
para o novo, o inesperado, a aventura. Um michê en- de preparação” (Guimarães, 1984) se organiza racio-
trevistado chama essa disponibilidade de “acontecer nalmente, incluindo microdispositivos de seleção de
na rua”: eventual parceiro, verdadeiras regras de cálculo que
procuram tanto medir o grau de desejabilidade quanto
*““Se o michê virar marido de bicha, passa a morar com bi- a eventual periculosidade do candidato. Também Pol-
cha, é uma situação em que a pessoa morre, não existe mais lak chama a atenção para esta previsão da aventura:
aventura, fluidez, à coisa de sair, aí não se sabe o que vai
acontecer, Mas se você morar com bicha, já sabe o que vai
acontecer no dia a dia, não vai ter nada de novo, uma aven- '“O engate homossexual traduz uma procura de eficácia e de
economia, comportanto, ao mesmo tempo, a maximização
tura, nada. Então isso assusta. O que os michês querem
mais é viver, acontecer na rua (...). Essa é a vida como ela do 'rendimento' quantitativamente expresso (em número de
NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 161

parceiros e de orgasmos) e a minimização do “custo' (perda tada refere-se assim à maneira de olhar do “michê ar-
de tempo e risco de recusa das propostas)” (1983, p. 65). quetípico”':

« O cálculo já está contido no sistema de olhares re- “É um olhar sedutor que deixa a gente aberta, Nesse olhar
ciprocos que constituem o primeiro sinal de comuni- eles tornam-se ariscos e misteriosos, tem que haver um lance
cação. Hooker (1973) percebe, num bar de São Fran- de mistério e provocação, que represente uma ameaça be-
nigna, um perigo benigno; tem perigo mas a gente sabe que
cisco, o funcionamento desta complexa estrutura de não é muito”".
elhares:
Haveria, então, na “paquera” homossexual, dois
*“Se se reparar com muito cuidado e-souber-se o que reparar grandes blocos constitutivos. De um lado, um desejo
num bar 'alegre', observar-se-á que alguns indivíduos estão
sexual aberto, profuso, que remete à ordem do acaso.
claramente comunicando-se uns com outros sem trocar pa-
lavras, simplesmente através da troca de olhares — mas não De outro lado, esse desejo não é indiscriminado, mas
a espécie de olhar de relance que ordinariamente se dá entre agencia, para se consumar, um complexo sistema de
homens. Os homossexuais dizem que se um outro homem cálculo dos valores que se atribuem àquele que é cap-
encontra o olhar e o mantém, sabe-se imediatamente que é tado pelo olhar desejante, incluindo tanto expectativas
um deles” (p. 87).º sexuais quanto riscos de periculosidade. Assim, a “má-
quina de draga” (Hocquenghem, 1974: “tudo sempre
Pode-se comparar esse olhar âquele que atra-
é possível em todos os momentos, (...) os órgãos se
vessa transversalmente a multidão baudelaireana,
buscam e se enlaçam sem conhecer a lei da disjtunção
que Benjamin (1980) assimila ao “de uma fera que se exclusiva”, p. 93) é também uma “máquina de cál-
põe a salvo do perigo enquanto olha ao redor em busca culo”, um mecanismo de atribuição de valor.”
da presa”. O michê, como a prostituta, “(...) passeia o O “passeio esquizo” do homossexual e do michê
seu olhar pelo horizonte como o animal predador, a
circula permanentemente entre esses dois pôlos: desejo
mesma instabilidade, a mesma distração indolente, e interesse, acaso e cálculo. Na prática da deriva, um e
mas também, por vezes, a mesma atenção inopinada”' outro tornam-se fregientemente indiscerníveis. Esta
(p. 54). “indiscernibilidade” aparece na experiência de um
Michês e “entendidos” gabam-se de reconhecer michê iniciante:
um outro homossexual por uma simptles troca de olha-
res. Esse olhar, carregado de desejo, não é apenas se- (3) Blachford (1981) fala da “objetificação” implícita no cruising: “AÀs
pessoas nessa situação não serão atraídas por alguém a não ser que sejam atraídas
dutor, mas também paranóico. Uma bicha entrevis- por algum aspecto exterior que satisfaça alguma fantasia sexual"”. AÀ ênfase é colo-
cada em “características superficiais e cosméticas”, seguindo critérios de seleção
como “aparência, vestuário, maneiras e compleição”. Assim, o parceiro "é ape-
(2) Um etnógrafo do “ambiente” homossexual da área da baiía de São nas um meio para um fim impessoal, puramente sexual” (p. 191). Se, de um tado,
Francisco dá uma imagem irônica deste jogo de olhares num bar gay: “Antes da esta objetificação sexual não se diferencia da característica dos encontros casuais
hora de fechar, todos os paroquianos parecem estar procurando pelo estabeleci- heterassexuais, ela pode também ser vista como uma oposição aos valores da cul-
mento uma lente de contato perdida que flutuasse na altura dos olhos” (Bell e tura dominante, que exaltam o amor e as relações monogâmicas orientadas para a
Weinberg, 1978, p. 311). reprodução.
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 163

"“Dando voltas pelo centro fui parar no Largo do Arouche, isto quer aquilo, isto se encaixa naquilo”, idem), os
tocal que ainda não conhecia. AÍ vi essa confusão toda de outros não são vistos como “identidades pessoais”,
bichas e travestis. Um travesti vejo me encarar, mas nesse mas apenas como possibilidade de um contato parcial,
momento pintou um argentino com andar de gato, vestido
de órgão a órgão. O corpo é parcelado, certas partes
todo de preto, que me fascinou. Ele contou-me como que
era o negócio, ele mesmo era michê, e me levou para os
são “separadas” do conjunto. No caso dos michês, o
jardins da Biblioteca (Avenida São Luís). 'Vai pintar uma objeto destacado é sobretudo o pênis. Narra Carella:
lança para vos', falou-me em portunhol. Eu não estava inte-
ressado nas bichas, mas no argentino. Mas ele fez negócio “(..) um mulato junta-se a ele (Lúcio), para conquistá-lo
com uma maricona e fiquei sozinho. Voltei no outro dia, lança mão do meio primitivo de apalpar o sexo” (1980, p.
para ver se achava ele. Ãos poucos, fui virando mais expe- 76).
riente, eu mesmo comecei a pegar mariconas por grana”,

. A saídaàrua do narrador não estava predetermi- A estratégia da paquera


nada mais do que por uma vaga vontade de aventura.
O encontro com o argentino acende o desejo de uma A atividade da paquera costuma implicar certos
transação sexual fora dos padrões do mercado. Mas rituais prévios de preparação. Um elemento impor-
esta disposição desejante é submetida às regras de cál- tante é a roupa. No caso dos michês, certos detalhes
culo do meio. devem ser cuidados, tanto para facilitar a identifica-
ção por parte do eventual cliente, quanto para evitar
Na paquera dos homossexuais parece haver certa
instabilidade de base, que corrói o negócio todo. Hoc- serem confundidos com “bichas”. Os michês mais ex-
quenghem (1980) insta a ver esta aparente instabili- perientes recomendam o uso de tênis e não de sapatos
dade não como um fenômeno negativo, nem como uma ou mocassins, jeans preferentemente desbotados (in-
manifestação de carência ou de falta a respeito de rela- cluindo às vezes a colocação de uma calça por cima de
ções estáveis, que seriam — supõe-se — universal- outra, para aparentar “pernas de jogador de futebol""),
mente desejadas. Pelo contrário, haveria certa afirma- chegando até à colocação de apósitos sob a braguilha
tividade na “máquina de draga : para ressaltar a protuberância genital, verdadeiro fe-
tiche do negócio:

“A sexualidade bicha, os encontros nos parques e jardins,


as boates, as praias (...) tudo isso não é um substituto, uma “Tem um negócio de colocar papel ou gaze na cueca para
busca desesperada que objetiva preencher um vazio. Não simular um pinto mais grande, mas não funciona muito
somos instáveis, mas móveis. Não temos vontade de lançar não, as bichas podem acabar sabendo e é pior. Ágora, o
âncora. Vamos derivar por aí afora” (p. 101). michê tem que mostrar que é o que tem. Eu tenho uma
roupa especial: calça branca, bem justa, que deixa o pinto
bem marcado. O michê fica se tocando o pênis, isso é bem
No “agenciamento maquiínico” dos membros clássico e dá bom resultado, assim fica mais fácil para as
(“imperiosas localizações de um desejo que se impõe: bichas identificá-lo”,
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 165

Outro michê fornece algumas instruções básicas: ou não), depois como você faz para mandar ele embora se
pinta sacanagem? Então, como medida de precaução, tem
de se prolongar o papo o mais possível. Se você consegue ter
“Você vê o cara, vai e pede um cigarro, aí começa o papo.
uma boa conversa com o cara, vai ser mais difícil para ele te
Nunca ande muito rápido, mão no bolso, gestos bem más-
agredir”.
culos, nada de ficar mexendo a mão enquanto fala, que isso
é coisa de bicha. O cabelo nunca bem penteado, para dar
uma impressão de tosco, de bruto. De preferência, o michê Em se tratando de dois desconhecidos que vão es-
nunca usa óculos...”. tabelecer relações marcadas por uma extrema desi-
gualdade e diferenciação, a abordagem inicial entre
Uma vez iniciada à conversa, convém seguir cer- michê e cliente constitui um jogo de força e sedução,
tas regras: onde sinais mínimos vão ser estudados e valorizados,
para formar uma imagem das intenções, status e en-
“Sempre mentir o nome. Se meu nome é João, então por cantos do outro. Algumas transcrições de paqueras
que ser João se posso ser Walter, ou Wagner ou então mostram como os clientes levam em conta esses de-
Washington? Quanto mais floreada a coisa para cativar o talhes:
cliente, melhor”.
“O bofe era moreno, alto, másculo, até que estava vestido
O contato oral, do ponto de vista do prostituto, decentemente. Mas carregava uma sacola com roupa. Isso
deve ser o mais breve possível. Caso contrário, o clien- pode querer dizer que ele não tinha onde passar a noite, ou
te pode perder a fascinação instantânea: que acabaria pedindo mais dinheiro para viajar a alguma
outra cidade, como efetivamente aconteceu.”

“Pessoas que verbalizam muito, que têm muita conversa, “Ele dava umas de office-boy, até tinha uma pasta na mão.
quer dizer que não vai dar certo. Tem muitos que começam: Mas logo suspeitei que mentia, pois tinha a camisa rasgada
o que você faz, quantos anos você tem, donde você é. Aí é e os tênis caindo aos pedaços, e dei o fora.”
sinal de que pode não acontecer nada. À pessoa quando vê,
sente tesão, fica apaixonada na hora sem possibilidade de “Vi que o cara lançava olhares de desejo para os travestis
raciocinar. Agora quando o cara verbaliza, raciocina, aí eu que desmunhecavam na Praça da República, e achei que ele
caio fora de antemão”. estaria com tesão mesmo. Não foi grande coisa, mas pediu
muito pouco dinheiro”.
Pelo contrário, para os clientes, trata-se de pro-
longar a paquera o mais possível como uma mediãa de Na “paquera” motorizada, a marca do carro é al-
segurança: tamente valorizada. Em ocasiões, alguns michês po-
dem até deixar de lado interesses econômicos pelo pra-
zer de se exibir num carro de luxo:
“Nunca tem que pegar um michê sem bater um papo antes.
Por isso eu prefiro ir a pé, e não de carro. Se você faz entrar
O cara no carro ou no apartamento (ainda que os hotéis “Embora o carro não determine muito a posição social do
também não são seguros, os funcionários podem te ajudar cliente, para muitos michês determina. À marca quanto
NESTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO BO MICHE 167

mais valorizada, melhor, eles pensam que vão obter mais Por outra parte, à medida que desce o status so-
grana. Mas isso é uma fantasia da cabeça deles, Tem muito cial do prostituto, diminuem também suas perspecti-
a fissura pelo carro, por estar andando. É importante para
vas de conseguir clientes motorizados. A tendência do
ele, fica valorizado perante os outros michês, se estiver num
Bgrupo e pára um Del Rey ou um Monza. Ássim ele se des- michê da Ipiranga, por exemplo, é caminhar, ficar
taca. Os michês preferem pessoal de carro. E os clientes, “zoando por aí”, à procura do freguês.
mesmo não tendo condições econômicas, fazem até questão Nesses iongos percursos, os michês estabelecem
de adquirir um carro para conquistar michês. Alguns destes formas elementares de sociabilidade, já que, entre
são tão fissurados pelo carro que podem transar indepen- transação e transação, acabam passando boa parte do
dentemente da grana, tão importante é o stafus do cliente”.
dia juntos, em pequenas gangues.
À consistência dessas gangues (como vimos no
Nesta variante de abordagem, o diálogo entre
capítulo 3) é extremamente frouxa:
prostituto e cliente costuma ser mínimo. Geraimente,
os michês se apostam na calçada. Os carros vão pas-
sando lentamente, Uma sutil troca de olhares indica “Eles se dão bem entre si, inclusive trocando clientes. Ou
pode acontecer de um estar numa situação ruim e o outro
quando o michê deve se aproximar do motorista. Con- arrumar um cliente para ele. Há certo companheirismo em-
certam-se rapidamente algumas condições da transa- bora possa se desfazer a troco de nada. É um tipo de soli-
ção e, se o cliente ficar interessado, o prostituto sobe dariedade, num outro nível do que a gente imagina a ami-
imediatamente no carro. Embora a operação implique zade, À amizade entre michês não tem afeto, visita em casa,
maiores riscos para o cliente, em compensação, seu interesse pelo outro, nada disso. É compartilhar o pedaço e
o ponto. Se o outro desaparece um mês, caiu em cana, aí
anonimato fica mais protegido. Mas também para o
pouco importa, esquecem; mas se pinta de novo aparece
boy o fato de subir num carro pode ser arriscado, já que outra vez esse tipo de amizade, naquele pique" (Péricles).
perde o controle da situação.

“Cacei um cara de carro. À gente combinou a grana. Ele


A base destes agrupamentos instáveis é antes ter-
falou que tinha uma casa em Santo Amaro. No final, não ritorial do que “afetiva” — do tipo das “capelas” ou
tinha casa nenhuma, ele encostou perto da represa de Gua- “igrejinhas” de “entendidos”. Eles satisfazem a ne-
rapiranga, e a gente transou dentro do carro. Só que depois cessidade de manter boas relações de vizinhança e de
ele não queria me pagar o prometido. Fiquei muito puto, contar com certos pontos de apoio, fundamentais para
era um dia que eu não tinha almoçado e o dinheiro dele ia
aqueles que fazem da rua seu local de existência. Tam-
dar para eu comer. Eu tinha 15, 16 anos e o cara era bem
forte. Mas fiquei com tanta raiva que peguei uma chavye de bém as vantagens de dispor de “refúgios” onde recor-
ferro que tinha no carro, e quebrei o vidro. O cara ficou rer de vez em quando levam os michês a manter rela-
apavorado, acabou pagando demais”. ções mais dilatadas com aiguns homossexuais, aos
quais chamam de “bicha de retaguarda”. Por isso os
Assim, uma regra básica do cálculo implícito na
paquera diz respeito à periculosidade do eventual con-
tato. (4) Espécie de “família homossexua! alargada”, no dízer de Pollak.
O NEGÓCIO DO MICHÊ 169
168 NESTOR OSVALDO PERLONGHER

michês preferem ir ao apartamento do cliente, mais do própria disposição arquitetônica do local favorece o
que consumar a transação num hotel: fluxo constante de espectadores da sala do andar tér-
reo à sala do primeiro andar e vice-versa, licença con-
“Os clientes mais amadurecidos, mais conscientes, levam o templada no preço do ingresso.
michê para um hotel. Mas os michês preferem ir em casa, Conta um frequentador:
transar no apartamento do cliente. Porque há maior liber-
dade, pode tomar uns vinhos, até dormir. No hotel, a coisa **O cinema Palacete é uma coisa bem marginal, bem bar-
vai ser mais imitada, sexo e pronto. Indo na residência, os ra-pesada, o pessoal fuma maconha, cocaína, os clientes
michês têm possibilidade de um dia ele chegar, estar sem são bandidos, caras que entram e saem da cadeia, inclusive
serviço, bater na porta, voltar”. com papel de liberdade condicional. À polícia aparece de
vez em quando, dá batida, leva a droga. Tem travestis, mi-
chês bem perígosos, um matou não sei onde, outro roubou

Pegação
- ”"r

no cinema
*
sei lá o quê. Inclusive o código de comportamento é mais
bem pesado. Garoto é garoto e não pode desmunhecar.
Bandido é bandido mesmo e ele tem que comer. Há algu-
Existem cinemas de “pegação” — onde assistem mas putas, mas sobretudo travestis, que vão faturando, ou
massas de homens mais ou menos inclinados a manter às vezes pagando para transar com alguém. Tudo muito
relações homossexuais — que são usados como campo determinado. É um cinema muito louco ao nível de compor-
tamento. São duas salas, as platéias viram, na platéia tem
de operação pelos michês, Um destes cinemas, talvez o
um mexendo ou até transando com o outro. De pronto um
mais tradicional, encobre, sob pretensioso nome, um
cara que está sentado na frente chama o de trás de “filho da
prédio antigo, ruinoso, vestígio da época em que a puta' e alguém responde: “Seu viado, vou te comer', e co-
Avenida Rio Branco conservava certa aura chique, meça aquele berreiro, todos querendo se soltar. Tem muita
logo confiscada pela crescente “lumpenização”. O Pa- bicha negra, o público é muito negro. À linguagem é dife-
lacete reúne um público dos estratos mais baixosda rente, falam uma outra língua, gíria de malandro e de can-
sociedade. Sua freqiência é majoritariamente negra; domblé, muito nagô misturado”".
seus espectadores, pedreiros, soldados, operários não-
especializados, bichas proletárias, malandros, adoles- O tipo de atos sexuais que se pratica dentro do ci-
centes de periferia, etc. O baixo preço do ingresso fa- nema tem a marca da fugacidade e da “parcialidade”
vorece esta distribuição social. própria da deriva homossexual. Contatos na penum-
bra, entre homens que às vezes sequer se vêem as ca-
O cinema funciona à maneira antiga, isto é, não
como mero espetáculo passivo, mas como centro de ras, roçares “casuais” de membros na massa que se
reunião social, onde se desenvolve uma ativa sociabili- amontoa nas últimas fileiras da sala, penetrações
apressadas nas toaletes diminutas e fedorentas, num
dade, que não se restringe às relações de amizade, mas
abrange também contatos diretamente sexuais, na es- espaço buliçoso, que cheira a suor masculino,
curidão das poltronas ou nos banheiros do cinema, Os contatos estabelecidos dentro do cinema não
divididos entre travestis (que controlam as privadas) e precisam consumar-se no local. Os parceiros podem se
michês (que perambulam em torno dos mictórios). À retirar juntos e realizar o ato sexual num local mais
170 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 174

privado. À medida que sobe o status social do cinema, exibindo nos mictórios. Um “entendido” narra esta
é mais provável que os contatos entre michês e clientes experiência:
não fiquem restritos ao mero ato sexual, mas que ori-
ginem programas mais “românticos”: “m sujeito preto, muito alto e corpulento, estava esgri-
mindo seu gigantesco pênis ereto no mictório da Praça da
República. Num dos cantos tinha uma bicha branca fa-
“No Ártico o nível social é baixo, mas não tão baixo quanto
zendo o mesmo e olhando. Eu chego perto do negro e olho
no Palacete. Nesses cinemas pobres é só transa: encontra-
indissimuladamente, enquanto me disponho a mijar. À ere-
se alguém. fala-se em dinheiro, vai-se para o hotel (quando
ção dele não era muito firme, mas o tamanho impressio-
a transa não é no cinema mesmo) e pronto. No cinema Lira,
por exemplo, as transas acontecem mais romanticamente.
nava. Ácaricio-o superficialmente e ele roça minha bunda.
Os caras convidavam um jantar, jantávamos, depois íamos
Sussurra-me que quer ir numa das privadas. Mas fica pa-
transar. Pagava sim, mas ficava uma coisa menos materia- rado junto ao guarda. À “caixinha' está vazia e eu suspeito
lista, menos no nível de mercadoria”. que possa haver algum acordo. Saio, ele vem logo. Na rua
pergunto-lhe:
— Qual a tua?
— Faço programa.
— À quanto?
“Pegação ' de mictório — Sei lá, eu não cobro muito. Imagina que num lu-
gar desses não frequentam milionários. Não dá pra ir pra
O mictório ocupa o lugar mais baixo na categori- um hotel logo?
zação dos locais de engate homossexual. E, junto com Mas ele tinha tanta pressa por ir para um hotel, que
eu achei que poderia ser perigoso, e dei o fora”.
as saunas, o mais diretamente sexual, o menos “amo-
roso”; mas é também o mais periígoso, pois está sujeito
a esporádicas irrupções políciais, José Luís de Toledo Os michês de mictório têm o status mais baixo na
(1980) dá uma visão poetizada das possibilidades eró- escala social do negôcio. Um michê carioca, que co-
ticas dos mictórios: meçou “trabalhando” nos banheiros da Central do
Rio, vive como uma ascensão social o fato de ter pas-
“Um espetáculo indescritivel, só vendo mesmo. Os prazeres
sado a circular no gueto da Cinelândia:
nesses lugares podem ser vários, comprometedores ou não.
Podemos adotar, conforme o astral, sô a via voyeurística. “Ev tinha 13, 14 anos. Entrei para mijar no banheiro da
Também podemos assistir, tocar, ser tocados, chupados, Central, e uma bicha viu e falou: 'Agora é que estão che-
chupar, gozar, ser esporrados; ou laçar e içar alguém para gando os de pinto grande'. Ofereceu um refrigerante, de-
paragens mais tranqúilas” (p. 5). pois ofereceu-me grana para transar com ele e sua mulher e
eu aceitei. Aí descobri como que era o negócio. la sempre
no banheiro da Central e procurava perceber quem que es-
No meio dessa profusão de fricções e masturba-
tava interessado no meu pinto. Aí pintou uma onda da Bblitz
ções exibicionistas, a abordagem não é, porém, indis- da polícia, e acabei indo para Cinelândia, que jáé um nível
criminada, mas exige certo ritual de olhares e apalpa- menos baixo, onde dá para fazer amizades mais interes-
ções. Os michês, como o resto dos habitués, ficam se santes”,
NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 173

O fato de ser uma prática sexual fortemente ““des- grave” (Lemert, citado por Taylor, Walton e Young,
personalizada”, desenvolvida num rigoroso silêncio, 1975, p. 174). Como assinala Matza, há certa imprevi-
não impede que certas formas de sociabilidade se de- sibilidade nos mecanismos que levam os sujeitos a in-
senvolvam em torno da exibição masturbatória nos gressar na sociabilidade “desviada” e, também, a sair
mictórios públicos. Diz uma reportagem de Lampião dela.
sobre o sexo nos banheiros da estação Central do Bra- De uma perspectiva bastante diferente, Deleuze e
sil (RJ): Guattari (1980) falam de “devires”, que seriam, muito
simplificadamente, processos de desterritorialização
“Ficar amigo, membro da conftaria, é quase uma obrigação dos sujeitos que saem de identidades personológicas
nos banheiros da Central. Os frequentadores do Porno- familiares, institucionais, etc., rígidas, para entrar em
Shop tropical fazem questão de se relacionar e há um certo “linhas de fuga” da ordem social. Os homossexualis-
esprit de corps. Há sempre os que ficam do lado de fora do mos masculinos representariam pontos privilegiados
subsolo, próximo ao café, a velar pela segurança e dar o
alarme ao primeiro sinal de presença da Polícia Ferroviária, de “ruptura” (Guattari, 1981, p. 36), desencadeando
fardada ou não (...). Mas não é só nisso que se caracteriza a “viagens” pelas fronteiras da ordem.
Confraria da Punheta. Seja no &all do subsolo ou mesmo Algumas histórias de vida tomadas em campo
dentro do banheiro — na 'sala de estar' — há sempre tempo podem constituir uma espécie de trajetórias modelares
para um bate-papo ameno, para um cigarro, para um tititi” 'dos sujeitos envolvidos no negócio do michê. Percur?os
(Pinheiro, Lampião, ano 3, nº 31, dezembro de 1980, p. 6). que não pretendem ser “representativos” no sentido
estatístico, mas apenas indicativos de algumas tensões
que percorrem e agitam o emaranhado de redes rela-
Histórias de vida cionais.

À própria prática da prostituição viril implica


uma deriva “horizontal”, microterritorial, através da Caso 1: Fausto
qual o sujeito vai deslocando-se pelos pontos ou redes
do negócio. Mas há um outro tipo de deriva, que po- Fausto é paulistano. Prostituíiu-se desde os 14
deríamos chamar de “vertical”, histórica, que diz res- anos. Tem 23 anos no momento das entrevistas. E um
peito aos próprios deslocamentos existenciais dos en- rapaz forte, com ligeira tendência a engordar. Seu ros-
volvidos no tráfico. to não é precisamente bonito, mas participa de certo
À sociologia do desvio elaborou a noção de “car- encanto tosco. Sua expressão é habitualmente cínica.
reira desviante”, que se desencadeia a partir da “acu- Tem um ligeiro defeito nos lábios, que lhe dá certo'ar
sação de desvio”. Desde o próprio campo de desvio, foi de sensualidade. Alardeia uma macheza provocativa
criticada a dificuldade de delinear “seqiiências ou eta- no andar, veste-se intencionalmente mal com um leve
pas fixas, através das quais devem passar as pessoas ao toque punk, calças jeans sujas, zíper roto. Costuma
avançar de um desvio menos grave para outro mais levantar à camiseta até a altura dos mamilos para mos-
174 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 175

trar o peito. Porém, seu aspecto não é precisamente mento costumava convidar algum dos meninos para
miserável, já que suas roupas, ainda que gastas, são de dormir com ele. Nesses episôdios F. começou a sentir
certa qualidade. Há até certa elegância desleixada — deseios sexuais por outros garotos da sua idade, houve
que ele chama de “delicadeza masculina”. Racial- carícias, jogos eróticos, mas sem penetração. À che-
mente, é uma mistura de índio e branco, mãe mestiça gada da polícia — que suspeitava de reuniões políticas
e paíi branco, mas passa por branco segundo as regras —— acabou com o antro. Foram todos presos. Na cadeia
cromáticas do meio. F. viu pela primeira vez um travesti — que confundiu
F. é filho bastardo de uma família numerosa. À com uma mulher — que estava sendo torturado. À
mãe teve cinco filhos com um parceiro que a abando- cena impressionou-o vivamente.
nou, e logo tem uma breve aventura com um rapaz, Passeando casualmente pelo Largo do Árouche,
donde nasce F. À mãe é uma anciã de 64 anos, para- F. conhece um michê argentino, que o inicia no ne-
lítica, que convive com um homem negro bastante gócio.
mais jovem do que ela (mais ou menos 50 anos), al- À partir daí, começa a se prostituir sistematica-
coólatra. Quando das primeiras entrevistas, F. ocupa mente. Faz o gênero “michê-macho”. Nos primeiros
um quarto na casa da famiília, que depois perde. anos, tem bastante sucesso nos pontos (caça preferen-
À família de F. é extremamente pobre. F. foge de temente na Avenida São Luís). Mas, à medida que
casa pela primeira vez aos 12 anos. Acaba dormindo “envelhece”, vê-se obrigado a recorrer a métodos mais
no porto de Santos, entre malandros, vagabundos, expeditivos de sobrevivência:
menores fugidos como ele. Aí, marinheiros estrangei-
ros, alguns velhos e fortes, transavam com os garotos e
às vezes retribuíam com alguns cruzeiros. Mas F. ti- “Quando a gente passa dos 20 anos, vai ficando feio, muito
nha medo, e refugiou-se numa guarida de vagabun- álcool, muita droga, uma vida de merda. Aií os caras ligam
menos para a gente. Então, eu fui virando cada vez mais
dos. Mas um dia aparece a polícia e ameaça recluí-lo malandro, recorrendo cada vez mais a ardis, fazendo su-
na FEBEM. F. consegue escapar e procura proteção jeira. À gente, quando não tem sucesso, passa horas a fio no
entre os Hare-Krishna. É sustentado por um casal de ponto, zoando pela cidade sem conseguir porra nenhuma,
americanos ricos, mas muito rígidos e moralistas, que vai ficando com mais ódio, mais vontade de destruir, de es-
pretendem impor-lhe normas (não fumar, não beber: pancar, de roubar. Ássim que quando a gente pega uma
maricona, se vinga nela da desgraça”.
F. embebedava-se desde os 12 anos). Aí foge de novo e
retorna aolar familiar.
F. é um rapaz inteligente. Ingressa no colegial, Sucessivas “vinganças” vão fazendo F. ingressar
onde enturma-se com uns professores homossexuais. em roteiros mais próximos do mundo do delito. Via d.e
No apartamento deles, participa de orgias, onde tam- regra, suas “malandragens” não ultrapassam os limi-
bém intervinham mulheres. Nessas festas, circulava tes relacionais do gueto homossexual, consistindo em
álcool e maconha. Das reuniões participavam majori- furtos e espancamentos a clientes “desconhecildos”.
tariamente adolescentes., No final, o dono do aparta- Simultaneamente, F. desenvolve outras estratégias de
176 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 177

sobrevivência com o que ele chama de “bichas de re- rem fazer casal, ficam com ciúme, cobrando, não dá. Duas,
taguarda": três vezes, e nunca mais .

— “Há dias que o michê não tem sucesso ou está simplesmente O nomadismo libidinal de F. — que não quer ou
cansado ou deprimido, com vontade de ser bem tratado (a não pode se “fixar” sentimentalmente — se satisfaz na
vida da gente é muito dura, muito solitária, nada sentimen- orgia:
tal) e então convém ter alguma bicha amiga que convide um
jantar, onde a gente possa passar a noite, transar de vez em “O melhor é quando pinta orgia, com uma mulher e uma
quando, que empreste um trocado ou pague umas cervejas, bicha, ou um garoto, Numa, a bicha comia a mulher e eu
um pouco de vida social. À estas bichas a gente não pode comia a bicha. Outra vez, eu estava transando com uma
cobrar diretamente, tira a grana de um outro jeito. Aliás, mina e pintou um garoto de 16 anos no quarto., Eu convidei
elas podem te levar a outros locais, festas, onde pode se ele para participar, a mulher no início não gostou, falou que
fazer algum programa sem precisar ficar na rua. Nestes ca- não era mercadoria para ser ofertada, mas acabamos trans-
sos não dá para ser muito duro. No entanto, bicha que é sando os três”,
pega na rua, dá para sacanagem mesmo”. &
Também os programas “conjuntos” — dois mi-
Esses contatos satisfariam uma outra demanda de chês e dois clientes — abrem a porta para que o vín-
F., que é a de ter certo diálogo “cultural””. As primei- culo libidinal entre os próprios michês, da gangue, ge-
ras experiências de F. — suas transas com professores ralmente contido por razões de macheza, se expresse:
“malucos” — foram muito marcantes. Ele se gaba de
não ser um “michê burro” como a maioria, de ter “Eu já estava com minha bicha, já de pau duro, mas saltei
“certo papo”. Escreve poemas e cita alguns escritores da cama e fui dormir com o Alemão (o outro michê do pro-
“marginais”, como Artaud, Genet, os surrealistas, grama). As bichas não entendiam, perguntavam: “são caso?'.
Eu perguntei para o Álemão: “somos caso?'. E falei: “não
Piva, Fernando Pessoa, etc. Isso desemboca numa cer- somos caso, não, somos amigos, mas vamos dormir juntos,
ta ideologia discursiva “anarco-lúmpen”, que, para- falou?'. As bichas não gostaram, mas nada podiam fazer
doxalmente, legitima as confiscações aos clientes em porque nós éramos mais fortes e podíamos arrebentar elas”.
nome do combate à “caretice”, e exalta o machismo,
desprezando as bichas e as muilheres. Porém, essa Estes relacionamentos levam, porém, a marca da
exaltação parece ligada à sua própria sustentação pro- . fugacidade, característica deste modo nômade de se-
fissional, já que, como ele mesmo diz: “se o michê vi- xualidade. O nomadismo exprime-se nem só sexual-
rar bicha, está perdido, ninguém mais liga para ele”. mente, mas também espacialmente. F. abandona pe-
E acrescenta: riodicamente o lar familiar — onde é rejeitado por
“marginal” — e se instala em moradias transitórias.
“Olha, a esta altura das coisas, eu não posso negar que sou Aos 23 anos, F. sente-se num “impasse”:
entendido, viu? Mas isso não quer dizer que seja bicha não.
Eu gosto mesmo de transar com mulher, sobretudo com lés- “Ou viro marginal barra-pesada, ou estudo alguma coisa,
bicas. Mas relação com mulher é muita história, elas que- sei lá, a michetagem já não está dando mais. Não tenho
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO PQO MICHE 179

saco de ficar fazendo cara de bobo para esses velhos idiotas. da vida gav local, sendo habitué dos bares e boates.
E o pior que agora os moleques começam me procurar. Tem
um, de 13 anos, que está doido por mim, me procura sem-
Porém, continua mantendo seu papel de “boyzinho”',
diferenciando-se claramente das “bichas”. ;
pre. E virar pederasta também não dá”.
Em 1981 vai para o Rio de Janeiro, onde corneça
uma vida de prostituição mais profissional. Diferen-
temente de outros prostitutos, não recusa manter rela-
Caso 2: Américo cionamento mais prolongados com seus clientes. Às-
sim, um candidato eleitoral da direita passa a susten-
Américo é pernambucano. Transa homossexual- tá-lo, e instala À. num apartamento, em troca do Gúal
mente desde os 13 anos, mas só vai se prostituir siste- ele deve participar da campanha eleitoral (1982), A
maticamente a partir dos 16. Tem 20 anos no momento partir daí, À. se politiza, considera-se fascista e parti-
das entrevistas. É um rapaz baixo, magro, “moreno cipa, terminada a campanha, de um grupo falangista.
claro” (ele se diz filho de espanhol). Não é convencio- Sua obsessão é acabar com os cárceres, matando os
nalmente bonito, mas faz um gênero “boyzinho” sim- marginais. Faz questão de se diferenciar dos michês
pático e tem um olhar pícaro que chama a atenção. “que roubam”. Porém, confessa ter participadq pelo
Gosta de caprichar no vestir, luzindo roupas baratas menos em dois episódios de extorsão de clientes ricos e
mas limpas, que ele mesmo passa a ferro na pensão casados — supostos policiais irrompiam no hotel onde
onde mora provisoriamente. se consumava a relação, “achavam” drógas e ameaça-
Américo é filho de uma família de classe média de vam deter o cliente. À. obtinha polpudos lucros dessas
Recife. À mãe é professora, mas não trabalha atual- chantagens. |
mente. Está desquitada do pai de À., a quem ele se Habitualmente prostitui-se na rua. Prefere isso
refere obscuramente. porque desse jeito pode selecionar o cliente e t.ra'n.sa,r só
A. é uma espécie de “ovelha desgarrada” de uma com quem gosta. Trabalhou também “a domicílio” —
família prolífica. Desde muito jovem freqienta os am- telefona a uma agência informai que lhe indica fre-
bientes homossexuais de Recife, levado por colegas e gueses — e também num “club-bordel”, que dispõe. de
professores do colegial. À regra imperante no meio um elenco de boys para os sócios. Mas deixou esse tipo
impõe relações menores/adultos. À. a transgride bre- de prostituição porque tinha obrigação de trans.ar com
vemente, iniciando um romance com um garoto de sua todos; às vezes, participava em extenuantes orgias com
mesma idade que provoca certo estupor na turma.
homens e mulheres, que o deixavam exaurido e depri-
Aos 15 anos À. vai de férias a Salvador e decide mido. Não havia como recusar os convites e acompa-
ficar “estudando”. Consegue, após ásperas disputas, nhamentos a bares e boates, drogas, álcool, saídas
que a mãe lhe financie parcamente a sobrevivência,
permanentes. Chega um momento que E)rçcisa esfor-
Em Salvador passa por várias situações de convivência çar-se para funcionar sexualmente. Na ultlr_na. .dessas
com gays adultos que o sustentam ou “ajudam”, traba-
mas saídas, passou depois dez dias sem conseguir
não é estritamente um prostituto. Participa ativamente lhar” narua.
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 181

À. não gosta de ser chamado de michê; prefere comunicou sua escolha homossexual. Porém, nunca
apresentar-se como boy. Também acha desagradável a falou em casa das suas experiências como prostituto.
pergunta aberta pelo preço; ele prefere que os clientes A manifestação do desejo de G. pelos homens
falem assim: “Está precisando de algum dinheiro?”, adultos é precoce.
Como é simpático e falante, confia-se da generosidade
do cliente. Porém, está preocupado porque acha que “Já quando tinha cinco ou seis anos, um amigo do meu pai
já não obtém prazer nenhum do ato sexual, tem perdi- vinha nos finais de semana à casa e eu sentia muita atração
por ele. Ele abraçava-me de uma maneira diferente, eu sen-
do o tesão.
tia, ele também, me colocava no colo, meu corpo entre suas
Em 1984 viaja a São Paulo, onde se prostitui dia- pernas, ninguém sacava nada. À gente nunca chegou a
riamente no circuito São Luiz/Marquês de Itu. Mas transar explicitamente, mas poderia ter pintado.”
não se dá bem com o ambiente paulistano e ameaça vol-
tar para o Rio. No final do ano, some dos pontos que Ãos 14 anos, G., trabalhando como office-boy,
freqiientara. começa a freqiientar o centro da cidade e a relacionar-
se sexualmente com homens adultos. No início as tran-
sas não eram interesseiras. Mas ele não demora em
Caso 3: Graciliano
descobrir as vantagens econômicas do assunto:

“Eu tinha 15 anos, transava com uma pessoa muito mais


Graciliano é paulistano. Nasceu e mora atual- velha do que eu, e descobri que ele tinha dinheiro para pa-
mente na periferia (Santo Amaro). Tem 23 anos no gar as horas de prazer que passava comigo. Não tínhamos
momento das entrevistas. Prostituiu-se sistematica- falado em grana, mas depois das primeiras transas ele colo-
mente entre 1977 e 1980, ano em que entrou em con- cou umas notas no meu bolso. Aí descobri uma fonte de
renda, que combinava o útil ao agradável. Eu gostava de
tato com o pessoal do Grupo Somos e assumiu-se como transar com ele, e também precisava de dinheiro”.
gay. Sua história é interessante porque mostra uma
deriva entre as diferentes tipologias de prostituição e
Uma vez desempregado, G. começa a sistemati-
homossexualismo. Atualmente trabalha como escritu-
zar sua prostituição. No primeiro momento, não fazia
rário numa empresa de contabilidade. Veste-se “nor-
um gênero definido. Era, simplesmente, “garoto”:
malmente” durante o dia, mas nas suas saídas ao gue-
to se permite algumas extravagâncias “bichas”, como *“Ê um processo. Quando você começa, você é garoto. Não
paletós de couro com correntes metálicas à moda está impregnado do comportamento, dos padrões desse
punk. mundo. Você é uma coisa cabulosa que os caras curtem
Graciliano é o maior de uma família operária de muito. Depois desse processo de garoto, a gente passa para
um estágio que eu diria de profissional, é muito mais deslo-
três filhos. Mora atualmente com a família. Suas saí- cado, sabe quem tem dinheiro, quem não tem, levar um
das do lar parental foram sempre breves. Ele diz ter papo, aparentar o que o cara estiver procurando, tirar van-
um relacionamento razoável com os paiís, aos quais tagem ou dinheiro de alguém. Como a moda era ser mais
O NEGÓCIO DO MICHÊ 183
NESTOR OSYALDO PERLONGHER

desde os
machinho, os clientes o que mais pediam era isso, eu me anos no momento dos contatos. Prostituiu-se
vida fami-
orientei para esse gênero”. 14 anos e continua fazendo-o, apesar de sua
escura.
liar. É alto, forte e corpulento. Sua pele é bem
ber imedia-
Depois de uma experiência traumática — onde é Seu rosto, um pouco gasto, dá para perce
categorias
praticamente estuprado por um cliente —, G. começa tamente que não é nada “iovem” (para as
ente lindo ; seu rosto tem
a perder seus preconceitos e temores a respeito da pas- do mercado). Não é precisam
por certa “delica-
sividade, resultando-lhe indiferente qualiquer postura traços de dureza tosca, atenuados
no modo de
sexual. Embora esse liberalismo não seja assumido no deza masculina” no sorriso, nos gestos,
ida Vieira de
momento do contrato prévio à relação: vestir. No momento do encontro, na Aven
presente
Carvalho, ele vestia uma camiseta “francesa,
a às costa s levava
“Geralmente os caras perguntam: “o que você faz?'. Você de um amigo professor”. Numa sacol
se dispõ e a
tem que ser hábil para não perder o cliente. De cara tem um agasalho e outras roupas, como quem
dormir.
que falar que só come. Mas se o cara estiver interessado, ele uma iminente viagem ou não tem onde
vai dar um jeitinho de conversar mais, de ampliar o jogo,
G. faz o gênero “macho mesm o” e diferencia-se
plan,-a deixar aberta a possibilidade de você ser passivo com mesmo sô
ele”, com desprezo do “michê tanto faz”': “Michê
negro e de pinto bem grande”, se auto-
fica macho,
aqui apresen-
Paulatinamente, G. vai preferindo este tipo de re- promove com orgulho. É, dos casos até
z tamb ém o mais
lações. Muda de ponto, de clientela, de gênero. Da tados, o mais “clássico” — e talve
Avenida São Luís desloca-se para um ponto vesper- popular.
Seus
tino, na galeria do cinema Lira. Das “bichas idosas”' G. é filho de uma prolífica família favelada.
os a partir dos
(chegou a transar com um cara de 68 anos), passa a contatos com a família se tornam difus
te de outros
explorar as “mariconas” mais gays. Enturma-se, aliás, 14 anos, até desaparecerem. Diferentemen
familiar, ele
num grupinho de “bichas-gay" que se juntavam dia- casos, que mantêm algum tipo de contato
o marginal e
riamente, Ele já se considerava homossexual, mas ti- se integra completamente ào nomadism
s residências
rava proveito da discriminação contra a velhice impe- passa a morar “na rua”, com esporádica
etc., e também
rante no meio. Até que, em se assumindo progressiva- em casas de clientes, hotéis, pensões,
mente como “gay militante”, abandona, aos 22 anos, “picos” passageiros.
com a
a prostituição. O ingresso de G. na prostituição coincide
alme nte no ba-
sua iniciação homossexual. Entra casu
homem, sur-
nheiro da Central do Rio de J aneiro e um
pinto , lhe oferece di-
Caso 4: Genildo preso perante o tamanho do seu
r. G. diz ter
nheiro para transar com ele e sua mulhe . Rapi-
no meio”
Genildo é carioca e está passando “uns tempos” aceito o convite porque tinha “mulher dois
e durante uns
em São_Paulo; mora habitualmente no Rio de Janeiro, damente libera-se desse escrúpulo
no banheiro da Cen-
onde diz ter mulher e um filho de dois anos. Tem 25 anos repete o jogo periodicamente
184 - NEÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 185
tral. Mas os clientes eram pobres, pagavam-lhe muito À prostituição configura, para G., uma estraté-
pouco e o obrigavam a longas peregrinações por sórdi- gia de sobrevivência, intermediária entre o trabaiho —
dos quartinhos da períferia. Assim aproveitou uma inacessível — e a criminalidade, tentadora e perigosa.
blitz policial no banheiro para se deslocar à Cinelân- Mantendo certa “honestidade profissional”, pode-se
dia, onde conheceu clientes mais generosos e até dura- contínuar no “negócio” fora do disputado circuito da
douros.
TUa.
Durante anos fez prostituição de rua na Cinelân-
dia, era conhecido e os clientes voltavam para procurá- “Fiquei na rua até os 23 anos às vezes trabalhando, em
lo. No final das contas, G. acaba desenvolvendo certas geral não. Agora não estou na idade de curtir a Cinelândia,
“amizades particulares” com seus “protetores”. É gra- onde todo mundo me conhece. Só vou para conseguir garo-
ças a relacionamentos desse tipo que G. ter-se-ia salvo tinhos para um cliente muito velho, que não tem condições
de cair nas redes da delinquência. de ficar paquerando, agridem ele. Mas tenho uma agenda
volumosa, onde posso recorrer quando estou precisando de
grana. LL

—à “Seocarinha que começa a fazer michê não conhece bichas


boas, legais, que orientem ele, que dêem uma ajuda nem só
econômica, mas amizade, conselho, proteção — que o cari-
nha saiba que pode contar com eles —, então é fácil ele Fuga e captura
”"
partir para o crime...” 4
Duplo mecanismo: por um lado, as “áreas de per-
E cita casos de amigos que começaram sua traje- dição e vício das grandes cidades” — que preocupa-
tória criminosa assaltando homossexuais. G. dá uma vam já a Park, que se propunha a “entender as forças
interpretação social da predisposição predatória dos que em toda cidade grande tendem a desenvolver esses
michês: ambientes isolados nos quais os impulsos, as paixões,
e os ideais vagos e reprimidos se emancipam da ordem
*“Tem um contraste social muito forte. Transar com bicha moral dominante” — poderiam ser lidas como uma
pobre tipo Central não dá, não é negócio para o carinha ir
tão longe por uma mixaria, então às vezes ele acaba rou-
espécie de ponto de fuga libidinal, onde “as paixões,
bando a bicha aí mesmo. O roubo pode ser premeditado, na instintos e apetites, incontrolados e indisciplinados”,
rua, no banheiro, na casa da bicha. Mas é assim: o michê os “impulsos selvagens”, reprimidos ou sublimados na
vem da favela, pega essas bichas na Cinelândia ou na Alas- ordem urbana da normalidade, encontrariam vazão.
ka que levam ele nuns apartamentos superluxuosos, um Simultaneamente, esses desejos proscritos, desterra-
luxo como ele nunca viu, muita grana mesmo, o carinha dos do corpo social, seriam reconhecidos, classifica- .
fica fascinado. Aí um dia a bicha cansa dele e fala: 'não me
telefone mais, não estou mais a fim, vou viajar'. E o carinha dos, controlados, “reterritorializados”, na válvula de
pensa: “não é possível, eu não vou voltar à miséria', e des- escape da “região moral”.
carrega na bicha, rouba ela ou fica com vontade de roubar Este duplo movimento de “desterritorialização" a
qualquer outra que apareça. Outra vez ele não vai esperar a respeito da ordem moral e familiar dominante, e de
bicha dar o fora; antes disso, vai partir para a violência”.
“reterritorialização” no “código-território” do gueto
186 NESTOR OSVALDO FERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 187

homossexual, esta inscrição na “desordem organi- simbólica, mas literal: produção de marcas no corpo,
zada” (Bataille) da “territorialidade perversa” (De- tipificação da indumentária, modellzaç:oes de hques e
leuze e Guattari), se exprime também nas próprias tra- trejeitos, serialização de moldes gestuais e sexuais, se-
jetórias existenciais dos sujeitos envolvidos no meio. leção e valorização do parceiro sexual, etc. |
Há, nos adolescentes que deslumbrados pelas lu- Essa inscrição perversa não parece ser le.a. nem
zes do centro se extraviam nos interstícios do “mundo total, mas segmenta o sujeito ligando-o à sociabilidade
da noite”, um primeiro movimento de saída da conste- “paralela” do mercado homossexual, sem que elÉ per-
lação familiar, que pode assumir diferentes formas: ca necessariamente sua possibilidade de cgrculaçao no
desde “micromigrações” intra-urbanas (mantendo o mercado da normalidade. Certa “duplicidade est.ru-
convívio com o núcleo parental) até fugas deliberadas tural” torna difícil analisar as trajetórias dos prostitu-
do lar com eventuais retornos, passando Por processos tos em termos de “constituição de identidade”, Cf)r.no
migratórios. Os garotos, sem saber muito bem o que é vemos, essa “contrução de identidade” só se vertflca
que vão encontrar, confluem para o “pedaço”: explicitamente em alguns michês, que acabam se as-
sumindo” militantemente como gays. Conta Graci-
“Quando comecei a trabaihar na cidade (13-14 anos) eu liano:
nem sabia como que era esse negócio de transar com ho-
mens. À rádio, a família, já falavam de travesti, prostitui-
“Em 1980 passei de 'michê gay' à 'gay militante', Este seria
ção, marginalidade, Eu imaginava que teria que pagar para
um ganho de consciência homossexual. Agor.a eu acho que é
transar com alguém e que seria caro demais. Mas logo des-
uma agressão o fato de o michê ser o tempo inteiro mplhfr,
cobri as boates e comecei a fazer programas. Aí me assustei. O michê é
é só falta de consciência da homossexualidade.
Na minha cabeça imaginava que seria um prazer puro. Mas
um extremo, nem tanto pelo fato de cobrar, mas porque
não é, as bichas são burríssimas, criam seus padrões, rotu-
ressalta o tempo todo a imagem de másculo. E o travgstl
lam, você tem que ser algo dentro dessa classificação” (um
ressaltando a feminilidade é um outro extremo. À consciên-
“entendido”). cia é não chegar nesses extremos”.

À desterritorialização relativa (no sentido de que Tudo isso seria um “processo”:


os sujeitos não perdem suas vinculações com o uni-
verso normal e familiar in totum, não criam necessa- “O garoto seria uma iniciação, e a pal"tir daí vem o mxíchxí
riamente sistemas de sociabilidade autônomos e con-
mais padronizado, mais macho. Ele vai avanpando no níve
trapostos aos da sociedade respeitável, mas desenvol- da consciência, até chegar a esse gay entendido que fê mais
vem “valores subterrâneos” (Matza) presentes nela) aberto. Ainda que possa continuar cobrando, ser um mlcil;iê
vai suceder então uma reterritorialização também re- gay'. O fato de cobrar não faz diferença. E que as possibili-
lativa, isto é, o sujeito vai ser rotulado, rotular-se e dades sexuais vão se alargando”,
rotular os outros em se guiando pelos códigos instru-
mentais do “submundo perverso”. Essa reinscrição do AÀ sua trajetória mostra, aliás, como o mesmo su-
sujeito desejante num outro código não é meramente jeito pode derivar por sucessivas rotulações e represen-
188 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 189

tações — deriva personológica que vai se corresponder duzindo-as em termos operatórios de intercâmbio.
com derivas microterritoriais ao longo dos vários pon- Mas a modalidade factual de conexão entre os sujeitos
tps e localizações da rede relacional. Mas, se Graci- que derivam continua sendo ela mesma nômade: pre-
liano passa de “garoto” a “michê macho”, logo a “mi- ponderância do acaso, expectativa de aventura (“acon-
çhê gay” e finalmente a “gay não-michê”, outros su- tecer na rua”), prática da promiscuidade, tendência à
Jçitos podem seguir trajetórias diferentes. Assim, Amé- orgia, frequência de relações impessoais e anônimas
rico começa como boy para depois se prostituir sem (“parciais”).
perder sua representação máscula. Se a prostituição Pode-se perceber que essas práticas não se esgo-
ªe. Graciliano pode ser interpretada como um longo tam na monótona extenuação dos recursos anatômi-
ritual de passagem” às configurações personológicas cos, mas servem de alicerce a verdadeiras redes de so-
do. homossexualismo adulto, nos outros casos ela não ciabilidade “alternativas” a respeito da cultura oficial,
vai ir_nplicar necessariamente a “assunção” de uma “desviantes” ou marginais com relação à norma social
identidade homossexual no sentido “moderno”, dominante, nômades com relação aos módulos de he-
Pelo contrário, a conservação — intencionalmente terossexualidade sedentária.
teatralizada — do estereótipo hipermásculo — que À coexistência desses dois modos de sociabilidade
responde às demandas do mercado — funciona como (um, “nômade” e “marginal”, o outro, “sedentário” e
um dissuasivo à assunção. Esta recusa não impede — “normal”) pode ser desenvolvida em vários planos.
mas »íexcl'lla — àa participação nas transações, onde o Em primeiro lugar, essa contigitidade expressa-se
.mzche máâsculo vai ocupar uma espécie de “pólo dese- territorialmente na própria convivência, na “região
jante”, moral” das Bocas paulistanas, de populações fixas, fa-
miliares, com massas ambulantes envolvidas nos trân-
sitos do “mundo da noite”. O trabalho de Gouvêa et
Nômade/sedentário alii (1984) mostra como se distribuem, no mesmo es-
paço, sociabilidades diferenciadas. Há, inclusive, certo
O guetç gay, na sua versão brasileira, configura-se acordo relativo no que respeita à diferenciação e de-
como uma instância de “reterritorialização”. Sinteti- marcação dos territórios de donas-de-casa e prostitu-
camente, um modo de circulação sexual que pode ca- tas. Já Hiroito (1978) descreve os pactos de cortesia
racterizar-se como nómade — cujo paradigma é o trot- que regiam as relações “amigáveis” dos malandros
tc'):.r — combina-se com operações de codificação espe- com algumas famílias “decentes” de comerciantes da
cíficas, que apontam a inscrever o sujeito num sistema Boca. À coexistência funciona em grande parte graças
de categorias, atribuindo-lhe um valor erótico con- a sutis demarcações, que definem vias de trânsito e
forme as regras do mercado. Por sinal, os modos de circulação pela zona, por onde as famílias correm me-
classificação e distribuição das populações do meio nores riscos de ser “importunadas”. Esta obrigada to-
homossexual apareceriam como dispositivos de poder lerância mútua não exclui periódicos confrontos, que
local, que procuram capturar as fugas desejantes, tra- podem assumir a forma de tentativas de expulsão dos
1%) NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ i91
“marginais” (travestis, prostitutas, homossexuais,
etc.) por parte dos vizinhos da área, vítimas tal ou imprevisível do ponto de vista dç qualqper sistema
também teórico de reflerência; o afastar-se da trilha dehtuosa.pode
de freqientes ataques, ser um ato igualmente acidental e imprevisível” (idem,
Num segundo plano, cabe perguntar como p. 197).º
essa
difusa fronteira territorial entre os “guetos” e as
“fa-
mílias” pode se refletir no próprio nível das normas. Entre crime e não-crime, entre transgressão e lei,
Tem sido difundida a idéia de que os “grupos desvia
n- as fronteiras são imprecisas, atravessadgs por uma
tes” desenvolvem sistemas de normas autônomos e multiplicidade de poros. O chamaQo d_esvzo seria, em
opostos aos da sociedade normal. Esta interpreta
ção úitima instância, uma faixa de indiscernibilidade,
foi levantada sobretudo pelos sociólogos da
conduta uma espécie de “deriva subterrânea” que socava e per-
desviada. Do interior do mesmo campo, Matza
rebate corre o mundo normal. e
esta consideração. Não haveria uma “subcultur
a deli- Sedentariedade é nomadismo denol.nfnarlam an-
tuosa” de valores “inversos aos valores aceito
s pela so- tes pólos de tensão na circulação dps su]eltos,Ado. que
ciedade respeitável”, mas “uma subcultura
da delin- configurações personológicas globqls. Ás tendências à
qúência que existe em forma subterrânea na
sociedade nomadização entendem-se como ““linhas de fuga ou de
normal” (apud Taylor, Walton e Young, 1975,
pp. ruptura” que envolvem, atravessam e escondem os
192-194). Ainda que a própria idéia de “subcultur
a” próprios sujeitos individuais. e
seja questionável, pela homogeneização que
induz, é Estas tensões de nomadização e sedçnfanzaçao
interessante salientar que entre à norma e a
margínali- são, então, transindividuais: a posição do sujeito, numa
dade não existiria, segundo Matza, uma oposição
fron- leitura deste tipo, vai se medir pelo seu grau l:elg.tlvo de
tal, mas uma zona de deriva:
“desterritorialização” e “reterritorialização — num
“A deriva está a meio caminho entre a liberdade campo de forças social e libidinal. o
e o con-
trole. Baseia-se numa zona da estrutura social
na qual o
Ássim mesmo, o fenômeno de que muitos indiví-
controle foi afrouxado (...). O delingitente está
momenta- duos possam participar simultaneam.ente, ainda que
neamente num limbo entre o âmbito do tradiciona! e em diferentes graus de situações, de * n]odos de socia-
o do
delituoso, e responde alternadamente às exigên
cias de am-
bos, às vezes flertando com um, outras vezes com
bilidade” nômades e sedentários:, çsta lçqge de ser
mas postergando todo compromisso,
o outro, uma exceção. No campo da prostltmçêo Yl.rll e d.(.) ho-
evitando as decisões,
Assim, oscila à deriva entre o comportamento delitu mossexualismo masculino em geral, não é infreqiente
oso e o
tradicional” (idem, p. 196). que um sujeito mantenha uma vida heterossexual con-

As formas de passagem a esta deriva não seria


m
facilmente predetermináveis estruturalmente: (5) Observações análogas faz Altja. Zalnj.ualr (1985, p. 1%3), s:l ;:sí;:ã:tªc;n dª
bandídos da periferia carioca: “Na história f.ragxca.d'os.t.).andl os.t :
elementos indeterminados de Cifcunsiâllclªs imprevisiveis: o encon :ícm TE
“A deriva é um processo gradual de movimento, um bkandido perverso a caminho do tr.abalno que provoca o passo ; s o ats
não perce-
bido pelo agente, em que à primeira etapa pode ção ao *condomínio do diabo', uma &riga por causa de muiher, ou à P
ser aciden-
eviolenta num posto poliícial”.
192 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 193

jugal “oficial”, enquanto participa, mais ou menos de sedentarização, “que se propunha a vencer ao
clandestinamente, dos rituais da perversão. mesmo tempo uma vagabundagem de bando e um no-
O fato de essas “ambigúidades” serem relativa- madismo de corpo” (Deleuze e Guattari, 1980), vai
mente comuns, não as torna mais facilmente interpre- converter a errância espacial em errância social e ex-
táveis,. Um dos impasses das teorias do desvio e da primi-la conseqiientemente em categorias sociopatoló-
identidade reside na sua dificuldade em lidar com a gicas. Porém, alguns traços desse nomadismo poli-
“duplicidade estrutural” característica de muitos dos ciado e “psiquiatrizado” persistem — comentam Ste-
participantes do submundo “desviante”. Às discussões bler e Watier (1978) — nas derivas dos noctâmbulos,
acirram-se em torno da noção de “desviante secreto” nas vagabundagens do sexo e da droga, nos ilegalismos
de Becker.º Uma perspectiva de análise que tome o obscuros tramados na noite.
sujeito nem tanto como desviante com relação a uma Para sobreviver no espaço urbano, as populações
norma social dominante, mas como “viajante” entre nômades recorreriam às formas de organização e so-
“pontos de ruptura” e “pontos de sutura”, permitirá ciabilidade sui generis, diferenciadas da ordem seden-
ler o campo social, como demanda Deleuze, não so- tária dominante, mas em cujos interstícios emaranham
mente nos seus momentos de estruturação, mas tam- suas redes relacionais mais ou menos frouxas e instá-
bém nas suas fugas e desestruturações. Diz Deleuze: veis, “retrabalhando” os valores da sociedade mais
ampla, mas mantendo certa exterioridade ou estra-
“Em linhas gerais, reconhecemos um marxista quando diz nhamento a respeito deles (Caiafa, 1985, p. 93). Às
que uma sociedade se contradiz, que uma sociedade se de-
fine por suas contradições e particularmente por suas contra-
redes de organização e distribuição territorial dos
dições de classe. Nós dizemos antes que numa sociedade mendigos (Stoffels, 1977) são um exemplo deste modo
tudo foge, e que uma sociedade se define precisamente por de sociabilidade nômade.
essas linhas de fuga que afetam a massas de qualquer natu- Deleuze e Guattari diferenciam uma “mundani-
reza (...). Uma sociedade, assim como um empreendimento dade” nômade, referente ao mundo, de uma “socia-
coletivo, define-se em primeiro lugar por suas máximas de
desterritorialização, por seus fluxos de desterritorializa-
lidade” sedentária. O nômade erigiria o bando, a ma-
ção” (Deleuze e Parnet, 1980, p. 154). tilha (meute) como modalidade de grupalização, en-
quanto a família seria a organização sedentária para-
A “territorialidade itinerante” do gueto homos- digmática. Como entre os gamirntos de Bogotá pesqui-
sexual pode ser lida como uma manifestação de formas sados por Mounier (1978), nos bandos nômades funcio-
mais clássicas de nomadismo urbano. Um dispositivo nam mecanismos — análogos aos que conjuram o apa-
recimento do Estado nas sociedades primitivas (Clas-
tres, 1979) — que inibem a consolidação de um poder
(6) Taylor, Walton e Young (1975) assinalam a incoerência entre à noção estável.
de “desviante secreto” e a explicação do "desvio” “em função das reações que
provoca”: “Se o desvio depende da reação pública, coma pode haver um desviado Outro traço interessante das gangues nômadçs,
secreto?” Trata-se de uma crítica à teoria da rotulação, que considera determi- presente nos gaminos, é a sua rotatividade. Mounier
nante a “acusação de desvio” para a “carreira desviante” (pp. 165-166),
nota que os grupos de gaminos aparecem e desapare-
194 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 195

cem das ruas, dispersando-se intempestivamente, mas e permissões certa “crise de identidade”: “Para o ho-
um fluxo de ingressantes também arbitrário mantém mem jovem que se prostitui, a escolha foi, emocional-
mais ou menos constante a presença numérica dos mente, entre conservar um conceito convencional de si
“moleques de rua”. Isto revela outra característica dos mesmo (...) ou aceitar uma identidade homossexual,
bandos nômades, presente nas gangues informais de com todos os perigos que isso acarreta numa socieda-
michês de rua, que é a sua instabilidade e sua rápida de hostil”” (1981, p. 130). Da sua parte, baseado nas
dissolução e reagrupamento. Essa condição de transi- regras de prescrição de conduta dos hustlers de Riess e
toriedade era entrevista por Matza como própria da na autobiografia de Rechy (1964), Hofíman (1979)
deríva do delinqiiente juvenil. A respeito da prostitui- propõe distinguir duas classes de prostitutos, do ponto
ção masculina, já Henning (1978) salientara a condi- de vista do auto-reconhecimento da sua homossexua-
ção errática dos garçons de passe (rapazes prostitutos), lidade; entre aqueles que se recusam, “a crença de que
que possuem “mil faces e mil nomes”', e estão em per- não são homossexuais por fazerem sexo, (...) é faci-
manente movimento: litada psicologicamente por um pagamento em dinhei-
ro” (p. 279). Mas “a versatilidade e a ambivalência
“Eles vagabundeiam no espaço que o grego chama linda- (...) e a fusão da prostituição e da afeição” que carac-
mente de 'hipocosmos'. Um céu subterrâneo. Algo, talvez, terizam o hustler fazem Hoffman desistir da possibili-
não tão divino quanto nos livros de Genet, mas que o per-
dade de aplicar um estereótipo único.
turbava igualmente. Uma vida de pequenos bandos, um
meio de astúcias, de alcoviteiros, de lágrimas e de ternuras” Ainda que a dificuldade de estabelecer uma iden-
(p. 53). tidade do prostituto viril seja bem reconhecida, fica a
dúvida sobre o sentido da tentativa. Por que pensar à
Seria preciso, então, restaurar as potências da er- questão da perspetiva da “identidade homossexual",
rância (não passar a ver, por exemplo, “identidades quando essa identidade não somente costuma ser
sócio-sexuais” onde o que há são deslocamentos e flu- alheia na sua mesma formulação aos oficiantes do ne-
xos, territoriais e libidinais). gócio, mas é muitas vezes explicitamente renegada?
Não caberia suspeitar, nessa tentativa, de certa voca-
ção “imperialista” da própria noção de identidade,
manifesta na expansão acrítica da noção, nascida dos
O michê é homossexual ? estudos étnicos, “a outros grupos ou categorias sociais
(que) implica a diluição desse campo (de investigação)
Quando se trata de identidade homossexual, a pela diluição de sua dimensão contrastiva concreta”,
questão do michê másculo (rapaz que, prototipica- passando a identidade “a ser concebida como uma
mente, recusa autoqualificar-se como homossexual, propriedade do grupo, projetada na pessoa”? (Dur-
residindo nessa recusa, demandada pelos clientes, boa hamn, 1983, p. 17). Caberia, nesse sentido, recorrer a
parte do seu encanto) torna-se particularmente delica- Soares, quando detecta a persistência, sob as análises
da. Weeks detecta nesse excitante jogo de denegações voltadas para a apreensão das identidades sociais, da
O NEGÓCIO DO MICHÊE 197
196 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER

“idéia de que há um focus essencial, um ego ele- outro caso, encurralado pelas investidas de um cliente
mentar, um papel matriz, pelo qual se expressa a ver- irritado, que lhe joga na cara sua suposta “bichice”
dadeira, mas radical, profunda e permanente identi- profunda (manifestada na homenagem do ânus que o
dade” (1984, p.12). Demanda de essencialidade que rapaz, em troca de uma acidentada sustentação, lhe
transparece na procura de uma “imagem coerente do entrega), o jovem michê de “À Desforra” * (Damata,
self” que se propõe, por exemplo, Gaspar (1984, p. 96) 1975) estoura: “Porra! Estou ficando maluco (...). Já
na sua pesquisa sobre Garotas de Programa cariocas. não sei mais o que porra sou (...). Se sou homem ou sou
Os riscos de trabalhar com a noção de identidade no viado ou que porra sou”.
campo da prostituição viril não são apenas teóricos, “Ey não sou eu”, “eu não sei o que sou”', “eu não
mas empíricos: Guimarães (1977) enfrenta essas difi- sou o que sou”: impasses da prática desejante em face
culdades quando procura, na sua tese sobre “enten- dos imperativos da identificação, que desvela, na cena
didos” da classe média do Rio de Janeiro, definir a sórdida e trivial pintada por Damata (e Írequente nos
“identidade sócio-sexual” do michê. Aberto o para- jabirintos do meio) o conteúdo micropolítico da ope-
doxo, o michê caracterizar-se-ia, num momento, pelo ração de atribuição de identidade. De alguma maneira
fato de ser “tido como heterossexual” (p. 87) — ainda na irada reação do dentista homossexual de “A Des-
que sua prática concreta, na instância da prostituição, forra” (“É macho coisíssima nenhuma! Você sabe
seja tecnicamente homossexual —; e, num segundo perfeitamente que é tão homossexual como qualquer
momento, vai ressaltar “o significado simbólico” um de nós! Chega de bancar o macho!"”') ecoam as res-
(p. 109) outorgado à sua condição de insertor no inter- sonâncias da retórica igualitária, que vai diagramar a
curso anal — fato que não lhe impediria, eventual- anulação das diferenças na subsunção à um modelp
mente em troca de uma retribuição maior, mudar de homogeneizante que procede a uma rígida determ!-
posição no seio da relação concreta. nação da identidade homossexual.*
Recorrendo — como recomenda a antropologia Aliás, a premissa da identidade, da “imagem
— aos próprios interessados, pareceria que essa “crise coerente do self,' parece resultar antes um pressu-
de identidade””* não aponta, necessariamente, no sen-
tido de sua resolução (numa afirmação coerentemente homgssexual ?ão
Os inconvenientes de uma noção fixa de ide:lltidade
homossexual, heterossexual ou, no caso extremo, bis- (8)
à ql:estão j !Jolhef:m,
apontados por Fry (fm “Ser ou não ser homossexual, eis
sexual), mas de sua dissolução: “Quando eu vou tran- homem" ou que “está ho-
10.1.1982b), que prefere falar de alguém que “transa ”
sar com um cliente — enuncia um michê entrevistado mossexual”, a falar que alguém é homossexuai. .es menos “in-
(9) À demanda de coerênci a transpar ece em outras concepçõ
— eu não sou eu; eu sou a fantasia do cliente”, reco- e outra um tndlvíduo não
timistas” da identidade. Assim, ““se entre uma ocasião
ide_nudade s::x:lal pode-
mendando “ficar mentalmente em branco” para cap- pode ser reconhecido como uma mesma pessoa, nenhuma
p. 5). À identidade som.al envolve,
ria ser construída” (Cardoso de Oliveira, 1976, do
tar essa fantasia e “trabalhar” o corpo do outro. Num conforme essa abordagem, a noção de grupo social. Tanto a versatilidade
as gangues tornariam difícil
michê quanto a frouxidão das redes relacionais entre
'“repmfentaçãq qg si” que, enqua.n::
de achar (e de atribuir) essa coerência na
os participantes de utp; olrleº:
(7) Erdman (1981, p. 53) recolhe um enunciado cômico dessa “crise de “corpo coerente de imagens, idéias (...) que provê
e e total”, da qual fal. Erikson , não se distinguiria da idecio
identidade”: “Ataque um dia de machismo e outro dia de fêmea”"". tação coerent
198 NESTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 199

posto a priori do observador, que um fenômeno empi- coerência, de homogeneidade” (Carneiro da Cunha,
ricamente registrável. Essa premissa não somente
afasta do campo estudado as fugas, contradições, in- 1985&5:&32?6 campo concreto das homossexualidades
coerências, desejos dos sujeitos — esmagando-os sob o cóntemporâneas onde talvez se possam explorar com
imperativo da sujeição a uma coerência preestabele- mais nitidez os pressupostos poht'lco-sexuals defse su-
cida —, mas tende a se transformar numa espécie de posto metodológico. Como essa área das relações se--
“obstáculo epistemológico”: levado por essas noções, xuais contemporâneas está em pleno processo de mà;-
o observador tenderá a se deter nos meandros da atri- tação vertiginosa (complica.da ago.ra, pela 1rrupçâo lhª
buição de identidade, talvez em detrimento das prá- AIDS), não sabe senão arriscar hipóteses de tra— alho
ticas concretas. | bastante provisória. À idéia é que a construção da
À discussão sobre a identidade transcende o limi- “identidade homossexual” só poçe ser 'et.lt?,ndlda dâ
tado campo das relações homossexuais, para se es- perspectiva do chamado “modelo 1gual.1tano ; d_? que
Sflao
tender à ciência social em seu conjunto. Assim, Be- é uma das suas pontas de lança. Sua mstau.ra—çao
re-
noist reconhece o risco corrido pelo conceito de identi- implicaria somente um desvelamento das palxogs
Pra ao longo dos sê-
dade de ser “o tecelão de um espaço único e de subs- primidas” e condenadas à penum
eân
tituir homeomorfismos difíceis por uma identidade um culos (clandestinidade que imprime sua marca
do
tanto excessivamente congruente: efeito do logos que muitas das práticas atuais, como no mecanismo
reprimiria uma topologia selvagem” (1981, p.361) e trottoir), mas suporia uma espéci e de tr—adu çaoz çgnâo
e
critica uma “atitude homogeneizante que suprime as se as antigas paixões pudessem, graças à versatilidad
diferenças e a diversidade cultural e reabsorve-as no fundamental do desejo humano, Ser—VEÍftldªS em novos
um
seio de uma identidade de tipo transcendental ou kan- moldes. Operativo de “mode.rmzaçao que, após
tiano, seja materialista ou espiritualista, (que) tem co- certo estágio de festividade difusa , rapªda tflen. te ãeclu-
a;
mo corolário um obstáculo metodológico que provoca perado pelo consumismo das mo.das. ea 1£1dusma lo
dos enlace s
danos no exercício da investigação”, pelo recurso de zer, parece proceder a uma redistribuição
“não deixar as diferenças subsistirem independen- homoeróticos, reagrupando seus cult'ores nas novas
temente, mas determiná-las a partir do que é mais fa- casinhas da identidade e, o que é mais grave, coªge-
“ho-
miliar ao antropólogo” (idem, p. 13). Reparos aná- nando os praticantes das velhas modalidades, as
logos são formultados a respeito da identidade étnica, mossexualidades populares”, a uma crescer%te marâl-
:a
por Maria Manuela Carneiro da Cunha, para quem a nalização que pode conduzir a um recrudescimento
s.exua i-
identidade não é, em último termo, mais que um a intolerância popular a respeito d.a nova honlos
bur-
priori metodológico, “condição de inteligibilidade, de dade “branqueada”, beneficiária da tolerância
guesa. "
h s
(idem, p. 38). A identidade seria, afinal, uma espécie de "ideologia étnica” culuvadfls - Iportant? t(;l?âll::::o;e-
(sdem, (10) Escreve Pasolini: “Só as elites
p. 48) liberar- se do 'tabu' que ating
dem, talvez, já que não são afetadas,
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 201

No Brasil, a supervivência do modelo “hier


ár- texto de Trevisan, Devassos no Paraz:.fo (1986), sugere
quico” remonta também a certa circunst
ância histô- em certo “gosto barroco pelo excesso (p..2%7) a chasíe
rica: não somente a prática homossexual
enquanto tal desta lubricidade ambivalente. Uma hlpptÉsç mais
não está explicitamente penalizada (aind
a que cos- questionável, à luz dos modernos estudos hlStOI'lÉOS —
tume ser reprimida apelando para eufe
“atentado ao pudor”, “vadiagem, etc.),
mismos como a presença de um vasto contingçnte de população nã-
pouco teria havido um período de repre
mas tam- gra, cujos laços familiares, dev1do.â.. concentrgção le
sistemática e radical, parecida à padecida
ssão polícial massas masculinas, ter-se-lam deblhtado,' e cujos (:1(1l -
por outros tos exaltam a sensualidade corporal —, É aventurada
países, como os da Europa Ocidental (a
perseguição por Lacey (1979) para explicar esta discreta .condes—
genocida do nazismo e a manutenção, às
vezes melho- cendência para os amores entre homens. Sejq corr;o
rada, das leis antichomossexuais após
a Liberação), for, o certo é que, diferentem.ente <.10 acontecimento
Estados Unidos (o período do maccarthysmo
cada de 50, quando chegaram a introduzir
, da dé- em outras partes, onde a gay hberthrf suce(ªeuda unr:
câmaras e período de dura repressão, no Brasil a irrupção (ã no
policiais maquiados nos banheiros públi
cos para fla- vo modelo classificatório gay/gay acontece“quaq o o
grar os invertidos, condenados a longas pop'ulares ou arcaicos
penas), Ar- sistema de relacionamentos
gentina (onde à montagem de um dispo
sitivo especí- gozava de plena vitalidade, isto é, funclonawfa com vcrll
fico de perseguição aos homossexuais vai-s
e aperfei- gor. Imagem de dissipação que antecedfu à chegada
çoando a partir de 1946 e desencadeia
com fúria seu da moda gay, com sua artificiosa ?fetaçao,e quedapãó
afã de “extirpação” na ditadura militar de
1976-1983), rece, por exemplo, nê. lúlílrica Recife da década de
etc. À inexistência de um período prolongado or Tultio Carella. |
de cam-
panhas de erradicação não desmente a
ocorrência de expkíflalg:rpdemarcado para a cerimôn.i.a de.um. d]çãejc(l),
periódicos atropelos e Blitz Massivas, que territorialida <;:
parecem a homossexualidade configpl.'a' ugla
apontar mais a uma distribuição e controle
das popu- perversa”, um ““paraíso artificial”": os Pçrversfos (ílll:le
lações homossexuais das “regiões morais”,
do que a rem ““terras virgens, mais realrpente exóticas, z;)m jas
uma erradicação efetiva. Porém, talvez
suposto liberalismo o que explica a toler
não seja este mais artificiais, sociedades mais secretas que es oçam
ância, mas o e instalam ao longo do muro, no lugares de perversz.lto |
inverso: uma espécie de cumplicidade subt
errânea, se- (Deleuze e Guattari, 1974, pp. 140-141). Essa Aterrl 2
creta e elástica, que ocultava na penumbra
do silen- rialidade não é, porém, completa.meírllte aqtotlignâlá
ciamento os demônios de uma paixão conse
tida. O mas está fortemente ligada ao meio “margina o
geral, como saldo da tradiçã_lo de semlclaglçlestml
que a emancipação igualitária procura retificar. e
xualidade. Em compensação, as massas estão destina
O michê parece atuar precisamente como afg á
das a acentuar ainda mais
sua fobia biblica, caso a tenham; se, pelo contrário, não a têm
ícomo em Roma,
rador de uma dessas pontes entre o meio mªrlgn(l1982)
na Itália meridional, na Sicília, nos países
árabes) estão prontas à “abjurar' sua
tolerância popular e tradicional para adotar à intoler
mente evoluídas
ância das massas forma!l-
meio espeçificamente homossexual. Barel A
dos países burgueses gratificados pela tolerância”
adverte a dificuldade de estabelecer algo assim
(Pasolini,
1978, p. 2).
202 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 203
uma “identidade” ou “personalidade marginal” — negócio, esses tensores — afeto e iqteressç, acaso e
como queria Park" — comum a todos os trânsfugas
, cálculo — costumam mostrar-.se ªnextncave?men- |
já que o que caracteriza os marginais de toda espéci
e te ligados. Em todo caso, a miséria, filha da desigual-
são justamente suas fugas, suas saídas da normalidad
e. dade social, é vista como desencadeante do processo
No entanto, no caso dos prostitutos, esta marginali-
dade não vai determinar-se somente por coordenada de prostituição: arroja o ragazApo.bre: desprotegido e
s desprovido de meios de sub51s.te31c_1ª,' às t')ocas VOTAzes
libidinais (espécie de “muralha tátil” que diz
respeito dos pederastas, que o “imaginário ã sqcml veste com
à distribuição social das perversões) (Perlongher,
1986, o vestido de cauda da luxúria e a opulência.
P. 170) —, mas também por coordenadas econô
mico-
sociais. Fugitivos ou expulsos da ordem da família
e do
trabalho, muitos rapazes vêm-se “arrastados” à
pros-
tituição não só por extravagâncias eróticas quant
o por À força da classe
imperativos de sobrevivência. Onde acaba a necess
i-
dade e começa a vontade (ou o desejo “inco
nsciente” No ingresso ao mercado da prostitiliç.ão intervém
é difícil de determinar no plano psicológico indivi- uma multiplicidade de fatores. O-econogmco c.ostum.a
dual.” No “agenciamento coletivo” que se atualiza
no aparecer manifestamente como determinante: a mi-
séria e o desemprego crônico de vasta? maísas, qaftl—
cularmente grave entre os joyens, criam condições
(11) À noção de “personalidade marginal" foi
1928 e é um antecedente da moderna “identi
concebida por Park em objetivas” para que a prostitluçzfto, ,se]a eqçarada corlno
ássinala os problemas que acarreta a identid
dade desvian te". Quijano (1973)
ade do marginal: “(...) os marginais
uma “estratégia de sobrevivência e legltlm?.da pPelos
encontram um espaço cultural desestruturado
e dependente, e (...), por causa seus praticantes enquanto tal, P.orem., a expl.l'caçao eê-
disso, encontram dificuidades perinanentes
cio-cultural autônoma e autogerada (...), Além
na elaboração de uma identidade só-
disso, a situação econômica dos
tritamente econômica se revela insuficiente já no pró-
marginais impediria a organização de uma persona
lidade social, ainda que mal prio plano empírico (não abrange aquçlefs que saem de
integrada” (p. 165). Segundo Stonequist —
“o marginal provavelmente exibirá uma 'dupla
citado por Perlman (1977, p. 132) —,
uma formação familiar de classe.mefha para entrar
personalidade' e possuirá uma
'dupla consciência' ”. Masa própria noção de
marginalidade seria modernamente numa verdadeira voragem de marginalização). e
rejeitada. Quijano (1978) insta a substituí-la pela
econômicos. Perlman critica sua larga heterog
remissão a determinantes sócio- No entanto, a deserção ou expulsãp dos circuitos
eneidade, na qual pode residir, no
entanto — se retirarmos da noção de marginalidade a auréota recuperadora
e cor- oficiais da família e do trabalho assalariado poªç fun-
retiva que é a sua marca de origem —, sua principal
engloba
vantagem, já que permite
r uma multiplicidade de fugas (e segregações) cionar como um ponto de partida para certas. olmhas
da ordem social,
(12) O funcionamento do dinheiro coma pretexto
faz, por outro lado, de de fuga” que poderiam eventualmçnte prec1p1:lar-ãe
sua falta uma necessidade, Ássim: “Depois de um
seguinte: é certo que eu saio porque estou duro, mas
tempo dá para perceber o por outros interstícios da .orc.leín social. Essa 111; ta alÉ
também é certo que quando dqs garotos, i tfr
eu junte algum dinheiro gasto Tudo rapidamente, para me ver na necessidade fuga é, no caso da prostituição
de
sair novamente à rua. Saber que estou fazendo michê
Eurança, me excita..
por necessidade me dá se- mente desejante, já que vai operar diretamente sobre a
.”. Um “entendido" de 20 anos é taxativo: “O
dinheiro fun-
ciona só como desculpa. O que o michê quer
fazer é sexo mesmo, não dinheiro.
Mas eles não podem dizer que gostam mesmo
de transar bicha. Se eles assomi- ichê tem que seguiri sendo m achão
rem, então eles são homossexuais; e eles não bicha não paga de jeito nenhum. Porque o michê
podem suportar isso. ÁAliás, aí a
para ser o modelo que a bicha procura”.
204 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 205 -
venda de prazeres corporais. Mas esse impulso de sub-
única à delinquência e à miséria. Os elementos deste
versão das sociabilidades dominantes, esse “desejo de
discurso estão exprimidos esparsamente, mas confi-
saída” presente também em outras marginalidades,
guram certo “enunciado coletivo” do nf:gôcio. Asgim,
vai ser, num movimento quase simultâneo, recuperado
a prostituição e suas depredações associadas são tidas
e reinvertido nos circuitos do negôcio pelo menos num
como uma espécie de compensação das diferenças de
duplo sentido: de um lado, na adscrição categorial
classe. À “exploração” do cliente homossexual justi- ;
(que é, porém, instável e dúbia); de outro, na circun-
fica-se em virtude da própria demanda erótica do :
versão das intensidades libidinais no circuito das trocas
mercado e como uma forma de “tirar vantagem” da
econômicas (Lyotard, 1979).
dificuidade dos clientes em conseguir parceiros “não-
À despeito dessas “recapturas”, a deriva do mi-
remunerados”" que reúnam as condições eróticas. dos
chê continua sendo topologicamente nômade. Este
prostitutos (sobretudo idade, macheza, etc.). A.mda“
nomadismo não é somente econômico e territorial,
nos casos dos michês que abandonam a postura l.nper—
mas também sexual: o sujeito passa de corpo em corpo
máscula, há uma disposição explícita em aproveitar a
sem se fixar, numa promiscuidade sucessiva que não
“carência” sexual dos homossexuais mais idosos.
recusa a orgia. Nesse sentido, é interessante enfocar os
À dimensão micropolítica das trajetórias dos mí-
itinerários da prostituição viril não apenas como re-
chês pode se explicitar em enunciados de corte “mi-
sultantes de uma impossibilidade de acesso aos para-
crofascista”, presentes em formulações de legitimação
digmas da normalidade, mas também na afirmativi-
da atividade, e que vão do “fascismo militante" de al-
dade de uma recusa fatual.
guns deles até certo “lúmpen-anarquismo” de outros.
À recusa à disciplina do trabalho e à lógica da or-
dem pode assumir formas diretamente delinqienciais. Apesar das diferentes fundamentações, em am-
As diversas formas de confiscação — roubo, chan- bos os discursos o michê considera-se como agente de
tagem, etc. — são costumeiramente legitimadas como uma expiação: o homossexual deve pagar sua c:ulpa, já
parte da “estratégia de sobrevivência” da prostituição. pelo fato de ser “burguês”, como por estar msmuand_o
O recurso à ação direta pode transbordar os interesses uma subversão dos valores sexuais da orderp tra(ª-
estritamente financeiros, para desencadear surtos de cional, que estes michês, ainda “desterritorializados”,
violência e de morte. À “linha de fuga”, diriam De- se obstinham paradoxalmente por representar, como
leuze e Guattari, se precipita numa “paixão de abo- correlato discursivo da sua exacerbação gestual ma-
lição” (1980, p. 281). chista. *
Esta “estratégia de sobrevivência” implica certa
micropolítica, expressa em enunciados discursivos que (13) À preocupação obsessiva pela masculinidade seria, segundf) Wal!er
legitimam e “explicam” a prática. Assim, os próprios Miiler, própria das ciasses baixas: “(...) À preocupação quase compulsiva do ]ã-
prostitutos constroem uma interpretação “social” de vem de classe baixa com sua *masculinidade' provém de um txpo_ de formação de
reação compulsiva. Há uma preocupação com a hoínossçxualldadc. que ;:orr:
sua atividade, que concebem como uma “situação como um fio de comunicação atravessando a classe mais baixa — fnamíesta Íl n
criada” à qual se vêêm arrastados como alternativa prática de satirizar e, às vezes, agredir fisicamente os homosseêxuais, e no d&; ell'n
por toda demonstração de brandura, assim como o emprego do termo vernáculo
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER Q NEGÓCIO DO MICHÊ 207

Comenta um “entendido”: que eles tinham. Daí uma coisa muito estranha, esse tesão
pela miséria. Mas da mesma maneira que os michês não
“Os michês, via de regra, são extravagantemente moralis- assumem seu tesão pelos velhos, a bicha rica não vai assu-
tas, pelo menos no discurso, fazem questão de sê-lo, embora mir que gosta de transar com pobres”.
na prática não sejam. Discriminam pessoas velhas, falam só
de comer mulheres, coisas que fogem do que eles fazem Um entrevistado, no entanto, assume esse tesão:
mesmo. Falam da bicha da forma mais preconceituosa pos-
sível, denegrindo a imagem. Com o cliente faz jeito de bon- “Ê uma “opção preferencial pelos pobres', como diz a Igre-
zinho, mas na turma faz questão de denegrir a transa que ja. Um movimento que leva a gente a sair de um bairro de
teve, sempre se colocando numas de machão, muito forte”".
classe média e ir paquerar na última das periferias. Um
desejo de sair da classe social”.
Do ângulo dos pederastas, a miséria facilita a ob-
tenção dos favores sexuais dos jovens pobres. Assim O “cruzamento de classes” peculiar da prosti-
responde o escritor homossexual William Burroughs tuição viril * já era registrado nos meios homossexuais
(1982), à pergunta de um jornalista sobre como é o da Inglaterra de 1900, onde Weeks (1981) reconhece a
sexo em Tânger: “Muito simpiles, todos os garotos são fascinação dos homossexuais de alta classe média pe-
pobres", Conforme sugere Guimarães.(1984), haveria, los rudes parceiros de classe baixa, ligada à procura de
entre os parceiros desiguais, “uma relação de domi- uma masculinidade “autêntica”. “O desejo de uma
nação que a pegação tende a encobrir”. relação que atravesse as barreiras de classe (...) inte-
AÀ facilidade da exploração — na qual emerge ragindo com o desejo de uma relação com um "“ho-
certo “colonialismo sexual” — se conjuga com um de- mem', um “homem de verdade', um heterossexual”,
sejo de atravessar as barreiras de classe. Entre os clien- tido também como um animal man (p. 121).
tes, manifestar-se-ia certo “tesão pela miséria"':

“Fazendo michê, eu me perguntava: por QUe esses caras


sentem tesão por mim e me levavam ao apartamento deles?
Sabiam que eu era um garoto pobre, que ia curtir os luxos

usado em lugar de “homossexual' como depreciativo” (Miller, . 1958, citado por


Riess, 1965). Modernamente, Bourdieu interpreta esta preocupação com à manu-
tenção de um protótipo rígido de masculinidade, presente nas classes operárias
Írancesas, como um mecanismo de autodefesa perante a cultura burguesa. À re-
cusa do eleminamento — perceptível na repulsão aos pedés, obedece à que: “(...) (14) O prostituto viril ocuparia um lugar “interci.asses". “fissuras da h,le'
a submissão às exigências percebidas como femininas e burguesas simultanea- rarquia social” (Duvignaud, 1975, p. 31), Essa peculiaridade denota-se t.ambem
ur-
mMente aparece de certa forma como o índice de uma dupla negação da virilidade”"; no nível sócio-lingilístico; assim, numa análise do discurso de um marginal
ao mesmo tempo, “a oposição entre as classes populares e à classe dominante se bano expressões de gíria se mesclam com enunciados da língua culta (e_até psr-
organiza por analogia com a oposição entre o masculino e o feminino” (La Dis- canalíticos). Ver Souza, Pedro: “Variantes lingiísticas e modo de enunciação no
tinction, 1979, pp. 444-445), discurso de um margina! urbano”, Trabalho de Curso, PUC-SP, xerox, 1984.
O NEGÓCIO DO MICHÊ 209

veicula “linhas de fuga””), se mescla com certas prolife-


ração de códigos (uma “hipersegmentação", no dizer
de Durkheim) que não apenas tentam classificar cate-
goricamente os sujeitos que se encontram, mas tam-
bém prescrevem e ritmam a sucessão dos contatos,
“projetam”, por assim dizer, o devir dos aconteci-
mentos.
Ás transas

o
O caráter não somente prescritivo e proscritivo,

o
mas também preditivo, dos enunciados classificatórios
foi sublinhado por Maria Manuela Carneiro da Cu-

AAAA
nha; segundo ela, na “retórica classificatória” do uni-
verso homossexual vê-se mais claramente como “a
“Entonces todas las cosas que le hice, en la tarde de sol
atuação (...) não precede a classificação, mas antes

-
menguante, azul, con el punzón. Le abií un canal de *
doble labio en la pierna izquierda hasta que el hueso deriva dela” (1974).
despreciable y atorrante quedó at desnudo. Era un hueso Este privilégio da designação sobre a mecânica

PNA
blanço como todos los demás, pero sus huesos no eram
huesos semejantes, Le rebané la mano y vi otro hueso, dos corpos não chega a velar, porém, o reconheci-
crispados los nódulos-falanges aferrados, clavados en el mento de certa especificidade das “técnicas corporais”
barro, mientras Esteban agonizaba a punto de RoZzaAr.”

a7
(Mauss) — entendidas como “as maneiras como os
Osvaldo Lamborghini,
homens, sociedade por sociedade (...), sabem servir-se

5 v
“EI Niífio Proletario” (1973, p. 66).
de seus corpos” (1974a, p. 211): tratar-se-ia de “mon-
tagens fisio-psico-biológicas” (idem, p. 231) que con-
formariam, no dizer de Mariza Corrêa (1980), certa
O dispositivo libidinal “egramática corporal feita de signos, gestos, vestes, de
toda uma gama de elementos não-verbais diferen-
Execução de um ritual, mas também pôr em ação ciados conforme a pertinência do sujeito que os utiliza
um código:' na maquinação da prostituição viril, es- a um sexo, a um grupo ou a uma classe social”, que
fumada a lei social, o ritual dos corpos que se roçam,
vão configurar “um território de pequenas percep-
se experimentam, se entrelaçam nas penumbras de
ções”.
uma marginalidade semiclandestina (onde a anomia Estabelecer-se-ia, então, certa tensão entre o nível
dos atos e o nível das designações. Em vez de procurar
(1) Baudrillard (1979) — que diferencia entre a ordem da lei (transcen- a relação causal entre um e outro nível, em última ins-
dent_e. mas atualmente “difratada” numa multiplicidade de códigos proliferante
é o signo ritual (imanente, regido por “regras de jogo”) — sugere alguma
s) tância indiscernível, Deleuze e Guattari instam a ou-
analogia * torgar certa autonomia relativa a cada um desses pla-
entre a manipulação contemporânea dos signos do código, flutuantes, e os
signos
rituais, À prostituição viril pode se configurar como um dos
casos em que o ritual nos, discutindo a correspondência entre o plano da ex-
se confunde com o código.
pressão (os enunciados: “agenciamentos coletivos de
210 NÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 211

enunciação”) e o plano do conteúdo (as ações e pai- O campo da prostituição não poderia ser reduzido
xões dos corpos).” a uma representação na medida da ordem, já que a
Agenciamentos coletivos de enunciação, agencia- trama da prostituição, mesmo abrangendo “todas as
mentos maquínicos dos corpos: a ordem das catego- formas de conivências e de exclusões hierárquicas, ra-
rias, do jurídico, se inscreve diretamente na “eramá- cistas, sexistas”, remete a uma rede de rçlações com-
tica dos corpos”. Talvez o erro dos taxonomistas “en- plexas entre os corpos, cuja natureza "re51qe no o:misto
tomólogos” seja sua falta de radicalidade. AÀA disciplina da ordem cristalizada, das convenções, 1nst1t1.nçoes,
dos códigos se implanta numa disciplina, também, dos constituições de todas as escalas e que mistura diversos
corpos. imaginários sociais, as “representações: que as pessoas
Nesse sentido, reconhecer a autonomia relativa de normais projetam sobre um universo diferente, os fun-
ambos os planos implica, de um lado, diferenciar as cionamentos que lhes escapam” (Belladona e Quer-
práticas das representações (as “objetivações” de Paul rien, 1977, p. 181). |
Veyne, 1982) que as obliteram, sem desconhecer sua Haveria então um nível microscópico da prosti-
condição de “dispositivo energético”: se as “intensi- tuição que pouco teria a ver com as categorizações
dades” — como quer Lyotard — não podem nunca ser sócio-sexuais da lei, do Estado, uma diversidade com-
fechadas no “espaço sala-cena” da “câmara represen- pletamente anárquica dos funcion.amentos. no real,
tativa”, esta câmara constitui ela mesma um disposi- que não age necessariamente no sentido das circulações
tivo energético (libidinal), que se trataria de des- oficiais e das codificações sensoriais impostas como
montar “para descrever a implantação, a sedentari- dominantes: *“singularidades de estados ªexcit.a.ntes: -
zação dos infiuxos... descrever a ocupação do “cubo' (idem, p. 183) que trabalham e roem as cod;lflcaçoes
(da representação) a partir da banda de energia libidi- miméticas. O escândalo da prostituição (brouillage c_le
nal” (Lyotard, 1979,p,13), . códigos sexuais, racistas, classistas, etc.). repousaria
Por outra parte, distinguir o plano dos corpos do sobre “a multiplicidade de fugas potenciais que ela
plano das enunciações, no nível da “relação sexual”, camufla”. Calafetação, acolchoamento, "dl.SSIm.U-
permite abrir-se tanto à molecularidade das intensi- lação” (Lyotard, 1979, p. 64) das.energias puls_lonfns,
dades quanto à microscopia das codificações, sem es- que é necessário “(...) à economia sexual Fapltallsta
magar as singularidades na sujeição à ordem molar da para a formação permanente e para o funcionamento
representação, dos corpos” (Belladona, 1977, p. 81).
Essa “dissimulação” dos “signos intensivos” —
que dizem respeito à energética pul.sion,al — sob os
(2) Se o agenciamento maquínico dos corpos concerne às “mélanges des
corps" (mesclas, misturas de corpos — dando à palavra corps seu sentido “signos inteligentes” (ou “comunicativos”) — que res-
mais
amplo, isto é, todo “conteúdo formado”) o agenciamento coletivo de enunciação pondem à ordem do conceito — opera, no epxsodff) da
prostituição, sob a forma de uma “çxrcunversão .O
corresponde ao níve! dos ““atos incorporais (que são “o expresso' nos
enunciados)”,
Ássim, "a forma de expressão será constituída pelo encadeamento do exprimido,
como a forma do conteúdo pela trama dos corpos” (Deleuze e Guattari,
1980. dispositivo da prostituição orientaria, seguªdo Lyo-
p- 111).
tard, a canalização das "“pulsões perversas para o
212 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 213

corpo social dos intercâmbios; seu objetivo seria “re- versão da energia libidinal no gozo perverso integra-_se
verter pulsões parciais no círculo do negócio e do corpo pelo pagamento, que traz consigo uma par.te do cir-
total” (ou seja, institucional);' cuito dos intercâmbios”: conexão dqs 1nte931dades no
Trata-se-ia, então, de decifrar o enigma desta circuito dos intercâmbios onde as 1ntegmdades e aàas
conversão: “como a justaposição inconponível de sin- emoções são “negociadas ao preço da rua .
gularidades intensas dá lugar ao controle e ao re-
gistro” (p. 30) — ou seja, em termos de Deleuze, como úc Ã

uma máquina de sobrecodificação, da ordem da enun- O discreto encanto da sodomia


ciação, se agencia com certo estado intensivo dos cor- “Toda la homosexualidad está tocada por el erotismo
pos. anal.”
Hocquenghem
Lyotard fala de uma “sintaxe da pele”: a pele,
território de circulação e fiuxo das intensidades, “pele
Os sistemas de enunciados classificat.óriçs. não se
libidinal como esteira das intensidades”, se torna su-
limitariam a “dar sentido” (ou sejq, a sqtgmhcar) as
perfície de inscrição e registro. Haveria algo como a mas os talhariam, Inscrever-se-
práticas dos corpos,
“moeda libidinal” de Klossowsky, a libido em quali-
iam como um profundo corte (o tajo de Osvaldo Lam-
dade de monetarizável. À conversão das intensidades
borghini, e não apenas a tatuaje de Sarduy) na mes-
libidinais em signos monetários instaura um “inter- dos contatos corporais. Os sis-
ma ordem e sucessão
câmbio fraudulento”, já que “os signos empregados
temas classificatórios da homossexuallda.de mascu-
para forjar o simulacro traem e encobrem a intensi-
dade desvanecida”. Simultaneamente, esse simulacro lina enunciam e prescrevem certa: S gramáhca. qos cor-
desvelaria certa “duplicidade dos signos”, funcionando pos”". Quando se passa de um snstegla class1f1ca'tôno
ao mesmo tempo como “signo vazio passional” e como “popular e hierárquico” a um outro moderno e igua-
“signo racional intercambiável” (p. 93). litário”, a transformação não se opera ,somente no
plano simbólico, mas nas próprias mélanges d('>s
À prostituição constituiria um dos dispositivos
corpos físicos. Carrier (1976) dá um exemglo. etnográ-
pelo qual o gozo (de intensidades incomponíveis, irre-
fico desta dupla inscrição (no plano dos códigos retó-
cuperáveis) se “circunverte” na intercambialidade ge-
ricos e no plano dos atos sexuais,. isso tudo atravessado
neralizada da ordem socia! do capital. Assim “a di-
por diferenças sociais mais gerais) quan.do compara (3
privilégio da penetração anal en'trç os jofos e OS rrt;;zª
(3) Bruckner e Finkielkraut (1979) exprimem uma idéia simílar: “Á cena yates mexicanos, como predoqumo da fruição mil
da prostituição é o lugar de realização das pulsões parciais cuja expressão con- e a felação entre os homossexuais americanos de classe
tinua sendo reprovada socialmente em maior ou menor grau, Contudo, só faz
surgir essas manifestações do desejo chamadas “anormais” para poder melhor neu-
tralizá-las” (p. 119). Dessa maneira, “a prostituíção opera a cotiversão perma-
(4) Tomamos
j o título
í (inédito)
igo (med.lto).
de um artigo de Oscar i Cesarotto.:
nente da força libidinal em intensidades médias. Todas as anomalias terão de
abrandar-se na grande lei da *igualdade pulsional', atenuar-se e apagar-se no
(5) Mayate designa simultaneamente prostituto e ativo. Os nâ:;;s Ir-l::n'.:)ã:
,
cireuito fixo do intercâmbio e da comparabilidade” (p. 125). considerados homossexuais (Carrier, 1976, pp. 111-116). Ver tam
David, Gay Life in Macho México, Cristopher Street (1977).
214 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊE 2t5
média (Carrier, 1977). Os mexicano
s -— e também os repousa historicamente na prôçria consúm%ção da es-
norte-americanos de classe baixa
— não considera- pécie homossexual. À categoria de.so.domlta (e, por
riam realizado o ato sexual se este
não culminar com a extensão, a de homossexual) constitui-se ela mesma
ejaculação por intercurso anal,
Esta predileção pelo intercurso anal em torno da transgressão de um tabu — ou, melhor,
— que seria da realização de um ato regls'tradq'enquan.to _trans-
típica do machismo latino-americano
(Lacey, 1979), gressão em certo “regime de signos”, que dlspf)e de-
modo local do chamado “sistema
mediterrâneo” estu- terminada organização do organismo, onde os orgãlos
dado por Pitt Rivers (1979) — se
corresponde com a vão ser atrelados a funções hierárquicas preestabele- -
vigência de um sistema classificatório
que classifica os cidas (a boca para comer, o ânus para defecar, etc..).
participantes em relações sexuais
intermasculinas co- Se a sodomia ocupa um lugar central nos inter-
mo ativo e passivo, conforme seu pape
l de insertor e cursos homossexuais masculinos, esta centralidade re-
insertado no coito anal. À atuação
no coito sustenta, vela com mais nitidez seu eixo de 'rot.agão ggando nã)s
segundo este modelo, relações de poder hier
árquico, transladamos ao circuito da prostituição Vll.'ll — on t:
onde o ativo é supostamente Superior
ao passivo. — as intensidades libidinais se conectam diretamen
À vigência deste sistema é combatid
a por outro com os valores (e o0s preços) soc1a.lrflçn.te clrculz.mtes. P
modelo alternativo, conforme o qual
os homens classi- No negócio do michê, o privilégio do.c01tq anade
ficar-se-ão em homossexuais ou hete
rossexuais segun- denotado por vários índices. No—plano imediato do
do sua escolha de objeto sexual, e já
não mais em ativos contrato sexual, esta sobrevaloração se traduz em ter-
€ passivos pela sua performançce
na relação concreta. mos diretamente monetáric')s (em algumas Adç sx:;s
Este segundo modelo (gay/gay) impõ
e também certas equações mais grosseiras, até o tamanho do per%s ei e
diretrizes no que diz Tespeito aos entr
elaçamentos dos grimido como argumento para encarecer a retrl1 viç S
corpos. O papel definidor do coito
anal vai ser ques- do prostituto).' Nesse sentido, a penetração anal con
tionado, seja mediante a incorporação
de -outras téc-
nicas corporais, como carícias, roça
res, felações mú-
tuas etc., seja pelo recurso à penetraç (6) Outras vezes a tarifa remete a'p?ses determinadas como mostra esta
ão alternada. nota apresentada por u;in jovem michê francês:
Apesar de suas diferenciações, o pivô
de ambos os JOSEPH GMG
sistemas parece continuar residindo SERVIÇOS DE AMOR DE TODOS OS GÊNEROS —
no ânus como zo-
na erógena, a contrapelo até da freq Fatura por Duke EEA
iiência estatística 1 no cu (pernas ao redor do pescoço) Em
de relações anais. Afirma Hocquengh
em: “Toda ho- 1 no cu (normal) *m
mossexualidade está ligada ao ânus, 1 bunda (úmida) —
inclusive se, como 1 repetição F
ensinam as estatísticas de Kinsey, a relação
anal é ex- 2 repetição A
ceção mesmo entre homossexuais 3 repetição a
” (1974, p. 65).
Esta identificação entre hom ossexual 4 repetição (seca)
idade e coito (-..)
anal (segundo Hocquenghem, “os
homossexuais são ice-
Os únicos que fazem uso libidinal cons tcontinua; o cálculo final dá 15,07 dol.), (De C. Dukhaz, Vice-Versa, repr oduzida
tante do ânus”) por Schérer e Hocquenghem, 1977, p. 229.)
216 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 217

titui um dos atos sexuais mais prezados (apreciação com a prostituição feminina, onde acontece e).cata-.
traduzida no pagamento), tendendo a ser mais valo- mente o contrário: o passivo é quem cobra e o ativo .é
rizado (mais “caro”) do que outros atos sexuais, tidos quem paga. No entanto, deve umshr-ge na especifíci-
por secundários e conseqilentemente mais “baratos”, dade do circuito: a mesma regra (o ativo como forne-
tais como a felação ou a masturbação passivas. cedor de favores sexuais a um cllente( lpasswo)-dperªe
Esta predileção pela sodomia pode ser atéê mais rigidez, não somente nas'trqcas' que transgric e:g /,
imaginária do que real (não há dados estatísticos). Es- no fato dos corpos, seu próprio código de enunciação
ta difusa preferência não pode se generalizara qual- anunciação (já que quem acaba sendo ?exualtpente
quer meio. Assim, diferentemente dos mayates mexi- passivo se mostra inicialmente como ativo mais ãu
a
canos, os prostitutos norte-americanos pesquisados menos “virginal”, para dobrar seu preço na h.m.'ah

por Riess (1965) restringiam sua participação na tran- “viração”), mas também em outros 51sten.1ãls vm;n
sação homossexual ao papel de passivos de felator, de prostituição masculina, como à exercida poter?11 f
e rejeitavam qualquer aproximação mais estreita e travestis. Note-se porém que, nes
chês-bichas
pa-
dos corpos (com particular reprovação pelas carícias timo caso, a hipervalorização do papeAl dç mg?rtor

e os beijos na boca, descontando a sacralidade do rece manter paradoxalmente sua vigência, Já que
ânus). segundo se comenta no meio — os travestis C(:lbrana;t;
O intercurso anal não só parece predominante na mais por desempenhar o papel_de pepetra ore㪠ã
área de tráfico homossexual do centro de São Paulo (e coito anal, sendo esse o seu serviço mais deman
talvez do Brasil em geral, como sugere Hocquenghem, i s. '
à peqetra çao sus-
1981), mas se converte num elemento definidor do pelosâl:ãrrlâescimo do preço atribuído
sentido da relação, na hora da tarifa. O papel domi- tenta-se também na crença de que a prática e)t::luslll sã
nante do macho ativo, no sistema “hierárquico” de do papel ativo em transaçõe.s sexuais com ou ºstante
"
homossexualidade popular, se traduz em termos de mens não atribuiria automaticamente a seu çxçãude
masculi nida .
intercâmbio econômico, porque, como regra prescri- o estigma de “bicha”, mas que sua
:
tiva, o passivo é quem paga e o ativo é quem recebe. por conseguiínte, sua dispomblhdqde para a norm
Nesta prescrição poder-se-ia ver uma diferença básica dade heterossexual) encontrar-se-la resguardadzfl gra
ças a essa precaução, crença expressada sob a ªorma
de mitologia do “duplo macho” (Moscato,.19761:im
(7) Gaspar (1984) sugere que a proscrição da boca como zona erógena Por via das dúvidas, no caso do.pl.'ostltu'foú o
seria um ato simbólico comum à prostituição em geral (tanto feminina
nidade edepz!.g:: 1|
masculina), que buscaria resguardar a identidade do prostituíd
quanto
risco de descrédito para sua masculi
o. Mas esses tabus
ãg á:o .
parecem em verdade constitutivos do padrão de intercâmbio
homossexual **hie- — à maneira de um reaseguro — na opera.tç
pra-venda. Por outra parte, quando o michê-máscu
rárquico"”, Assim, entre o macho e Manuela, a bicha caricata
de E/ Lugar sin
Límites, de Donoso (1977), não há necessariamente uma
relação de prostituição.
: Mas o macho se enfurece quando Manuela tenta beijá-lo na boca
e acaba ma-
tando-a. O valor do beijo na boca é mostrado, inversamente,
em El Beso de la M E :
pção nos quadrinhos
Mugjer Arara, de Puig (1976), ondeeleéa prenda máxima
de amor entre à bicha e (8) DaMatta (1983b) mostra a vigência dessa conce
o militante, eróticos de Cartos Zéfiro.
218 NESTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 2198
. acaba “dando”, a perda da sua viril
idade deve-se
Compensar com um aumento no preço. À renegação, a escamoteaçãç,.a. eh.lsã(? do corz:
Além de operar como definidora da dist teúdo homossexual das pul.sf)es libidínais .fluçntes
ribuição
dos papéis na cerimônia relacional, o no negócio da prostituição viril, parece constitutivo _da
privilégio conce-
dido pelos michês à sodomia ativa prática. Não se trata de um mero jogo de esgelh(is in-
teria também a
função de “ocultar” (ou “dissimular”) vertidos, mas as transições entre a hlpervalorolzaçaq de
os desejos pre-
sumi velmente homossexuais, uma virilidade convencional que proscreve discursiva-
que se deslizariam,
no
plano das intensidades libidinais, a desp mente o ânus como zona erógena (no plano da expres-
eito dos enun-
ciados que as renegam — dissimulação são), e o envolvimento em relações homossexçaols. cujo
constitutiva,
ào nmesmo tempo, de um vetor de intensif eixo gira em torno, precisamente, da"sensmlll(Íads
icação dessas
troca
s libidinais. É, como vemos, não
apenas a perfo-
anal (no plano do conteúdo), envqlvem transduções
mance factual no ato sexual concreto lentas e tortuosas. Dessa tortuomdade.df claro-escª-
, mas a represen-
tação máscula que o prostituto sustenta, rós, de falsas poses, de simulacros ?. paixões subterrãâ-
o que é valo-
rizado, : neas, contraditórias, encontradfts (“Stilitano era uma
Esta representação é, também, um dispo bicha que se odiava a si mesma”', descobre çlesassossie-
sitivo
energético, que faz circular diferenças inte gado Genet), pode provir, em alguma meqldg,—o hg o
nsivas. Sar-
tre registra essas diferenças de superfície de sordidez que parece impregnar a prOStltl.nÇÉl(.) yml
s intensivas
no nível dos órgãos: “A mesma turgênci “de rua” — soturnidade de uma penumbra artificiosa
a que sente o
macho como o retesamento agressivo de e sobrecarregada.
seu músculo,
Genet sente como a abertura de uma
flor” (1967, p.
94). Diferença de intensidade que monta
um arsenal
de símbolos, alegorias, posturas, gesto À violência do gozo
s (o “detalhe
falso” de EI Balcón, Genet, 1975) onde
ressalta a Porém, o efeito sórdido não merece ser atribuído
marmoriedade do macho: “Impenetráve
l e duro, pe-
sado, tenso, sólido, o Mac será definido inteiramente ao obscurecimento do “dese;o tlomosse—
por sua ri-
gidez. Seu corpo, esticado pelos músculos xual” (Hocquenghem) proferido pelos michês — su-
, parece um
sexo retesado pelo desejo de esburacar, posta elisão que é em verdade desencafíeante de uãna
de perfurar, de
romper, que se ergue até o céu com a proliferação de alusões e toques. Este jogo de 'sedu-
aspereza subi-
tamente malvada de um campanário ção histérica” em torno das “comportas do anllsr_
que rompe uma
nuvem de tinta” (Sartre, 1967, p. 122). (Lamborghini, 1973), parece corresponder — para ol
Entre masculinidade e penetração se nar ainda mais pesados os véus —a çerta atração pÍ a
entretece margem, própria do meio prostitucional, onde estas
assim um inter-relacionamento aparente
mente inextri-
cável. Mas a força da representação pode ati envolvem. :
primar sobre a “lªg?%ã(f
a realidade dos contatos, circunstância pranãfc?uenghem chama a atenção para
assinalada as-
sim por um michê: “Eu sou macho até dando”. histórica” entre homossexualidade e delingiiência: de
tecta “as secretas cumplicidades dos pederastas com
220 NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 221
relação aos cafajestes que os agridem”, mas adverte intensificação mortífera das pulsões investidas na tran-
que “essa cumplicidade não é redutível ao medo ou à sação, condensada na equação terror/gozo (*“Paciên-
admiração masoquista, e sim devida à história e à con- cia, cu e terror nunca me faltaram”, anota Lambor-
cepção do homossexualismo como delingiência” ghini, 1973).
(1980, p. 117).º : Apesar das similitudes com à maquinação maso-
À contiguiidade entre prostituição masculina e de- quista — em ambas se poderiam reconhecer modali-
linqilência tem sido reiteradamente mencionada (por dades de produção de um “corpo sem órgãos” (Deleu-
exemplo, Karpman, 1974). “Homossexualidade, rou- ze e Guattari, 1980) — do pólo terror-gozo que fun-
bo e traição são os temas deste livro”": assim começa o ciona como intensificador libidinal no dispositivo da
Journal du Voleur, de Genet (1980), em cujo decorrer prostituição viril, os amantes do risco, no circuito do
a prostituição costuma ser uma ocasião para o assalto michê, não explicitam (nem enunciam num contrato
€ a agressão violenta das vítimas, que pode chegar — detalhado e escrito) um desejo manifesto de dor (ainda
como em Nossa Senhora das Flores — ao assassinato. que sim, por vezes, de humilhação),' mas amiúde o
A tentação do crime e do sangue não apenas ronda desencadeamento de uma situação de terror real é visto
os prostitutos, mas também os clientes. Hocquenghem como uma catástrofe que acontece a contrapelo das
transcreve a reação de um gordo cliente amaneirado tentativas “conscientes” de evitá-la — produto acaso
quando Ilhe informam que o rapaz com quem vai tran- de uma “maquinação inconsciente” ou de uma dila-
sar acaba de assassinar um outro homossexual: “Eu tação descontrolada dos limites de risco. À via de aces-
não sou ciumento”, No meio homossexuai paulistano, so ao pesadelo é muitas vezes anal:
esta tentação pelo abismo costuma aparecer sob a for-
ma de um “gosto pelo perigo”, que conduz alguns pe- “Esse ponto de dar ou não é ponto de eclosão da violência.
derastas, se não a certo gozo “masoquista”, ” a uma Às vezes tem situações em que o michê já vai indo com a
intenção só de roubar. Mas outras vezes o michê está indo
mesmo para transar, se prostituir, chegando na cama dá
(9) Batailie, baseado nas estatísticas de Kinsey, deduz uma maior “exube- um rolo sexual, de culpa, ele entra numa espécie de surto
rância animal"” do meio criminoso, em contraste com à baixa frequência orgástica psicótico, fica maluco, começa a quebrar tudo, pode até
dos trabalhadores, atribuindo essa distinção a uma oposição gozo/trabalho (1979, matar o freguês”PSA (um cliente).
p. 22%0).
(160) Os limites entre o desejo do perigo e a procura da morte são sutis e
truculentos. Em Paradiso, Fociôn, o homossexual do relato, leva a seu quarto um A gênese da explosão pode derivar das .p.rôprias
adolescente ruivo a quem já vira roubando um vendedor de escovas. Quando o condições prévias do contrato, da simulação viril que o
muivo ameaça matá-lo com uma faca, Foción lhe mostra ““o círculo negro que
havia traçado em si mesmo, com o mamilto esquerdo como centro”, e fala: michê forja:
“— Você disse que hoje era o dia que você tinha escolhido para matar
alguém, mas casualmente hoje é o dia que escolhi para me matar. Como você
pode ver, tracei este círcuto negro para não me equivacar quanto ao alvo escolhido (11) Aoentrevistar um casal masoquista do Rio de Janeiro, constatei a dis-
(...). À única alegria foi você quem me deu no fim desta noite, sei que existe tância entre certa imagem de domesticidade banal que transmitiam, apesar dos
alguém disposto a me agradar, disposto a me matar. Enfim encontrei alguém instrumentos de tortura pendurados nas paredes (um deles era motoquetro € o
disposto a fazer algo por mim, que me dispensa de um trabatho banal, que está outro médico), e o verdadeiro terror de muitas aventuras com desconhecidos nos
disposto a me matar" (Lezama Lima, 1968, p. 393), “buracos quentes” da cidade.
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 223

“A situação clássica é a seguinte: sempre o michê diz que só dos, ancorados num preconceito social vastamente di-
come. Mas muitas vezes o diz só no pedaço, porque não
pode falar de outro jeito, se ele falar que dá, aí o cliente fundido. E carregar demais as tintas a respeito da vio-
pode atravessar a rua e contar para os outros michês. Então lência dos amores marginais pode não configurar mais
ele diz: *Eu só como'. Daí que às vezes chegam no hotel e o que um disfarce desse preconceito. Nem tão vítima
cliente pretende comer ou beijar, botar o dedo no cu, botar nem tão carrasco: “o Ahustler ou michê — observa
o pinto entre as pernas do rapaz (...). Ele pode viver isso Wainwright Churchill, 1969 — não é em geral uma
como uma ofensa, uma ferida, e reagir (...)”. pessoa depravada. Talvez cometa um ou outro delito
insignificante ou 'afane' (roube) seu cliente, mas nor-
malmente se sujeita a certas regras de conduta que
O fantasma da violência e da morte ronda tam- constituem o regulamento de suas atividades comer-
bém os avatares do negócio. “Matei para roubar”, é ciais”.
uma desculpa fregilentemente esgrimida pelos michês Apesar de certos arrebatos de terrorismo sexual,
perante a justiça. Em muitos casos — como mostra o certo é que os rapazes de rua, independentemente de
Aguinaldo Silva (1978, p. 5), a respeito do midnight- seu grau de profissionalismo, parecem sempre prontos
cowboy Aníval Fonseca, que matou seu cliente arguin- para encarar um homossexual e exigir uma paga. Nes-
do “falta de pagamento” — esta escusa revela sua pre- ta fantasia — que não necessariamente se satisfaz —
cariedade, revelando um temor mais profundo de per- pode-se ler a adscrição do homossexualismo ao lugar
der a heterossexualidade, ou de ser possuído anal- da despesa, da suntuosidade, do luxo. À homosse-
mente (como argumentou o adolescente Pelosi, mata- xualidade não produz nem reproduz nada: por conse-
dor de Pasolini em 1975).* qúuência, um homossexual “deve ser rico”.* Em al-
No seu limite, a irrupção da violência desvela um gum lugar do imaginário social, a homosseguahdade é
lado “sacrificial” do ritual prostitutivo. Em episódios sempre uma 'íestq:/ .despesa de sêmen, esbarª]amentl_o d.e
desta natureza os michês fazem uso do Iugar social de dinheiro, esbanjamento de fluxos libidinais econômi-
bode expiatório, genericamente atribuído aos homos- cos. E nestas festas o que se paga é o imposto: o uísque
sexuais, mostrando assim sua disponibilidade a se con- que se derrama a mancheias na cobertura, a nota en-
verterem em agentes terroristas de uma lei às custas de rolada no travesseiro — estilo prostituta timida da dé-
cuja transgressão vivem. De todas maneiras não é ne- cada de 20 — ou até o isqueiro furtado num descuido,
cessário ser um prostituto para exercer esses desman- alcançam, justamente, para pagar o preço da culga.
Absolvição pelo dinheiro na qual o pagador também

(12) Naà sua recriação (literária) da morte de Pasolini, Dominique Fernán-


dez (1985) satienta o desejo sacrificial da vítima: “Servira de brinquedo sangrento (13) Um michê justifica a diferença entre pagar uma mulhf:r € ser pago
para o ardor homicida de um rapaz imberbe. Expiara, justamente com por uma bicha: “A diferença é econômica, mulher tá precisando, blctla não. ;Jm
minhas
faltas, as faltas de toda a humanidade” (p. 158), Pasolini teria “provocado cara que não é bicha sempre tem alguma coisa para manter: f:'lmilla, mulher,
” o
rapaz, tentando possuí-lo. Sobre a conflitividade do coito anal na prostituição filho. No entanto à bicha é sozinha, quando compra uma calça é só uma calça,
masculina, ver também o comentário de Fernández (1982) a um artigo de Sartre para o homem são três calças. À bicha pobre munca é tão pobre quanto o boy
sobre a morte do cineasta. pobre" (Geniido).
224 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊE 225

lava, aos olhos do recebedor, sua culpa: indulgência estereótipo viril, os sujeitos “despersonalizam-se”, "
que a Reforma não chegou a desterrar. num processo similar à “apatia” sadeana (ver Klos-
Uma complexa dinâmica culpa-castigo parece en- sowsky, 1970).
trar em movimento nestes incidentes guignolescos.
Não somente culpa do prostituto com relação à emer- “Eu não existo, michê não existe como pessoa, só existe
como fantasia do cliente. Eu jamais estou sendo eu, estou
gência de seu prôprio desejo homossexual contido, mas sendo o personagem que o cara quer que eu seja. O que eu
culpa também do cliente homossexual que o levaria faço é captar o que ele quer e representar esse personagem.
ora a submeter-se às imposições despóticas do seu par- Existe uma tática para isso, é ficar frio, mentalmente bran-
ceiro másculo, ora a deixar-se levar por certo cego im- co, sem pensar em nada, aí você vai pegando o que ele
— pulso de abismo a situações cujo desenlace macabro quer...”
' era até previsível. Situações onde o desejo parece desa-
fiar a própria morte, e que aparecem recorrentemente: Um cliente concorda com o michê:
“Pressentia que o cara não tinha boas intenções, mas
não pude resistir, e me deixei levar a um canto obscuro “... quando eu estou pagando um michê, não estou pa-
e solitário, onde ele me assaltou”, conta um cliente gando uma pessoa, estou pagando uma fantasia. Por isso é
que eu pago, para viver uma fantasia”.
atribulado.
Essa violência seria constitutiva do paradigma de Ligado a essa gelacialidade, a esse “estranhamento
masculinidade, no sistema de oposições binárias ma- quase brechtiano”, diria Sarduy, haveria um senti-
cho/bicha (ativo/passivo, forte/ fraco, etc.). Como um mento de “desprezo” (segundo o michê), de “ódio mú-
dos atributos mais valorizados é precisamente essa du- tuo” (um cliente). Diz este:
reza/masculinidade, pode se inferir que a ameaça de
violência na qual ela repousa é inerente à transação, “Ê uma transa de poder. Eu tenho o dinheiro, ele precisa do
isto é: está incluída no que o cliente pederasta paga dinheiro, então ele faz o que eu quiser. Há um prazer sádico
para chegar a um jovem macho. nisso de dominar alguém. Claro que ele pode se rebelar,
pode achar a bicha muito despótica e reagir.”'
Além do mais, essa violência é desejada. Segundo
um michê, “a bicha deseja ser estuprada”. O cliente
consente: “o que a bicha deseja é sentir-se como uma (14) Mafiesoli (1985) reconhece, na “errância sexual contemporânça':,
uma “fragmentação de si mesmo”, diluição do eu que, no episódio da prostitui-
mulher estuprada”. ção, combinar-se-ia com uma “necessidade de simulacro” (p, 119), i
(15) À preocupação com o puder impregna os discursos do gueío. ÁAlirma
Haveria um duplo movimento: um míichê: “Este negócio do michê é todo uma paródia, um teatro.ASupoe—se que é
o michê quem tem o pader, o pinto, que impõe as regras, mas cmdado'. aí quem
tem grana é que manda, decide se vaií ou não vai com você, toma a decisão fmãl.
— por um lado, uma teatralização — impostação Uma vez que aceitou transar, o michê pode roubar ou não, mas a.té aí qpodcr é da
que às vezes beira o caricatural — da masculinidade: bicha"". Augras (1985) sugere que essa obsessão pelo poder seria mais mlfva[l;:e
que o desejo. No entanto, essa questão remete, no plano teórico, à discussão De-
esta faz parte da “estética” do mercado;
leuze/Foucautt (in Microfísica do Poder, Foucault, 1979, pp. 76-77), Conforme
— simultaneamente a essa inflação paródica do Deleuze e Guattari (1980, p. 175), os agenciamentos não seriam de poder, mas de
NESTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 27
Na medida em que a violência está sempre pre- prazer orgástico — é esgrimida como um recurso para
sente, os clientes tomam infinitas precauções para evi- manter a “distância afetiva” do cliente, esta distância
tar serem roubados ou agredidos.* Alguns chamam resulta, no plano meramente físico, mais difícil de
isso de “desconfiômetro” — uma série de pequenos manter quando se trata da prostituição viril. À rigidez
detalhes que permitem perceber quando o michê é pe- a que alude Sartre se expressa na obrigatoriedade da
rigoso ou tem más intenções, ereção — requisito demandado tanto no papel do in-
Esse ritual paranóico, nessa perambulação com- sertor anal quanto no de passivo de felator.
pulsiva própria da deriva, todo esse trabalho prelimi- Como conseguir a ereção quando se trata de rela-
nar, parece inseparável do gozo sexual em si, ou talvez ções com parceiros explicitamente não-desejados?
acabe sendo até mais importante do que este.
O mecanismo de produção desse gozo percorre “Ê muito difícil michê brochar. Ele já está habituado. Uma
caminhos bastante afastados da imagem arcádica do vez que entrou no negócio, ele se excita pelo dinheiro e só.
Ássim, por 5.000 ele só deixa chupar o pau. Por 10.000 ele
prazer para se consumar. Mas o interessante é precisa-
come o cliente. Por 15.000 já faz uma pose mais fantasiosa,
mente esse percurso do desejo. No negócio da “prosti- beija, abraça. O cliente vai subindo o preço e aí o michê vai
tuição dos rapazes” o desejo parece percorrer (agen- fazendo coisas mais fantasiosas. Por 20.000, já dá. Isso é o
ciar) todas as séries: as séries de idade, as séries de mais caro”, :
classe, as séries de raça e as séries de gênero. Inventa,
exacerba, finge, simula as diferenças entre os parcei- À preocupação não residiria somente no fato de
ros, as exalta — e joga permanentemente com sua dis- obter uma ereção — que seria quase automática, parte
solução, com sua confusão, entre a paixão e a morte. da mecânica do ofício, ligação direta (“inconsciente”?)
entre a intensidade desejante e os segmentos monetá-
rios —, mas também na progressiva insensibilização
Algumas técnicas corporais do prazer que um uso “indiferenciado” do sexo acaba-
ria acarretando: : ;
Se entre as prostitutas femininas estudadas por (
,

Gaspar a indiferença erótica — no sentido de evitar o “Depois de um tempo (dois, três anos) a gente acaba não
sentindo mais nada. Fica de pau duro sem problemas, mas
quando estou a fim de transar alguém que eu curto, tam-
desejo — o desejo sendo “agenciado” e o poder como uma dimensão estratificada bém não sinto nada. Isso deprime muito”. | |
do agenciamento.
(16) Nota Guimarães na sua pesquisa sobre “entendídos” cariocas;
"Quanto à questão da violência, monta-se um “esquema de segurança', que per- Mas o que acontece quando o negócio efetiva-
mite reduzir os riscos físicos e materiais da transação, transformando-a numa
relação de força e poder. O assalto € o roubo, mesmo infreqientes, são expe-
mente não funciona? Podem suceder basicamente duas
riências comuns a todos. Fazem parte deste esquema: dizer ao michê que mora Coisas:
com outro colega, insinuar que ele está no quarto, que tem guarda-costas, deixar 1) que o contrato se anule: “Conheci um carinha
a carteira no banheiro, não revelar dados pessoais sobre trabalho, família, etc.””
(1977, p. 110). preto, bem bofe, na Praça da República, que me pediu
228 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHE 229
uma grana. Fui procurar lá em casa e fomos para um
roto: “Se você está tendo prazer, então os dois estamos tendo
hotel, mas aí o rapaz impressionou-se porque eu tenho prazer. E eu não tenho que pagar. Já está pago, o prazer
muitos pêlos no corpo, e não conseguia a ereção. Aí eu está pago pelo prazer' ss
”,
fui embora sem pagar nada. Ele protestou mas não
muito, até que aceitou o fato"; O michê tem de ter cuidado para não se precipitar
2) que o michê “vire”: “É muito mais fácil dar, pela pendente orgiástica; o código é taxativo: “Michê
você não precisa ter ereção, de outro modo precisa ter que gosta é bicha. Michê não pode gostar”.
uma ereção firme. Ser passivo é muito mais simples, a Apesar dos liberalismos off the record (como reco-
transa acaba logo. Normalmente já está estabelecido nhece um interessado, “michê é entendido mesmo,
quem vai ser o quê. Mas chega a hora e o michê — que ainda que ele não possa reconhecer isso perante os ou-
ja ser ativo — funciona como passivo. Isso dá muita tros, e às vezes nem sequer perante si mesmo" ), dar
confusão na cabeça do cliente, ele pagou por uma coi- — ou seja, desempenhar como passivo sexual, com o
sa, a mercadoria era para funcionar assim e assim, e conseqiiente “estigma” (Missé, 1979) que acarreta, e
está funcionando de um outro modo”. que os prostitutos preferem depositar nos seus clientes
Em geral, os clientes acabam aceitando a situação — configura um problema muito. delicado, tema de
— ou conformando-se com outras bolinações. O vete- múltiplas apreciações.
rano P. nega o fato de que os michês — como propa-
gandisticamente alegam — “dêem sem vontade”": “Há um mito. Todo mundo acha que a maioria dos michês,
80% ou 90% são ativos. Isso é completamente furado. É
“No momento da transa, ninguém é'bícha., nem michê, é o tipo metade, eu diria que se um cara teve seis vezes relações
que está sendo naquela hora. Ninguém vai dar se não tiver sexuais, três foi passivo e três ativo, o mesmo cara.”
vontade de dar, é impossível, dói pra burro. Tem que ter
um mínimo de vontade, Então é mentira dizer que o michê Outro michê discorda:
deu e ele não sentiu nada, é mentira. Mas ele não pode dizer
isso para ele mesmo e não pode falar que gosta, porque se
ele falasse não seria michê — ele está se vendendo para “Mito é o contrário, de que todos os michês dão, ou de que
sentir”. todos os travestis comem. Eu dou só se estou a fim, falou?
Mas se pintar algum cara com esse papo furado: “vocês os
michês falam que só comem e no final todos acabam dan-
De todas as maneiras, a intensidade gozosa desse
do', aí é que eu parto para a violência”.
sentimento deve ser dissimulada perante o cliente, já
que: Mais contemporizador, um entrevistado explica:
“Se o cliente percebe que o michê está sentindo, acha que
“Tradicionalmente existe um medo muito grande em rela-
está tendo uma atração, o cliente diz: "Como é que é, ele
ção à questão de dar. Realmente é uma mitologia muito
está sentindo prazer, não era para ele ter prazer, eu é que
larga. Há uma questão de formação das pessoas. Eu, por
tenho que ter prazer, eu estou Pagando ele para ele não ter
exemplo, tenho minhas restrições, meus bloqueios, com re-
prazer nenhum mas para me dar prazer', e fala para o ga-
lação a atuar passivamente. Mas entre michês tem o princi-
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 231
pio de não dar, e quando dão ninguém deles pode saber,
falar para os outros. Na turma eles não sabem, nem procu-
O michê mais profissionalizado deve desenvolver
ram se inteirar que tipo de transa o outro michê fez. Agora, uma atividade sexual intensa. Uma das técnicas para
entre quatro paredes, só você e o cliente contam. Eles partem manter a excitação ao longo de uma sucessão de par-
do pressuposto de que qualquer coisa pode acontecer lá ceiros (até cinco ou seis por noite), consiste em evitar a
dentro, contanto que ninguém saiba; que não se torne pú- ejaculação. O mecanismo é delicado, poiís alguns clien-
blica a forma de transar. Na realidade, em grande parte dos
michês, há um desejo de dar, de atuar passivamente, mas o
tes exigem o orgasmo do prostituto:
bloqueio é muito forte. Muitos deles, apesar de dar, são
machistas; porém, chega na cama e cai de quatro, quando é “Eles querem que a gente chegue aào fim da relação, que a
alguém que eles gostam. Outros caem de boca”. ” gente goze dentro deles, eu é uma coisa que quase nunca
faço, Mas os caras insistem porque isso representa que você
Essa espécie de “passividade oculta” dos michês se foi junto com eles até o fim. Existem muitos deles que se
sentem feios, indesejáveis, querem sentir que alguém gostou
conecta também com o desejo dos clientes pederastas:
deles, ou que foram capazes de provocar o gozo do outro”.

“Como o pessoal é garoto, no cata mais velho pinta o desejo


As técnicas de evitar (e simular) o orgasmo são
de transar mais ativa do que passivamente: eles adoram co-
mer bunda de garoto. Mas os michês não aceitam isso e diversas. À maioria o finge com grandes exalações e
aproveitam para cobrar mais caro: “Eu quero te comer, pra espaventos. Alguns chegam até a urinar no ânus do
parceiro, *c .-to EA É S ss ;
A 1 “ á N. U .
dar eu cobro mais caro', dizem os michês machos”'.
Conforme essa lógica, os michês costumam ser to-
Isto obriga os michês a uma dupla dissimulação: lerantes para certos “desvios” da clientela: voyeu-
. do desejo homossexual, com relação ao cliente; dos de- rismo, pseudonecrofilia (o rapaz se deita nu num ataú-
talhes non sanctos da transação, com relação aos ou- de e o cliente masturba-se à sua volta), ejaculação pre-
tros prostitutos: Coce...

“Eles não compartilham dos detalhes da relação sexual. “O cara tinha ejaculação precoce, encostava e gozava. O
Mesmo que ele fizer, se não afirmar, OK. Faz sempre ques- cara gozou cinco vezes e eu não gozei nenhuma vez. Mal
tão de representar a coisa. Que isso seja bem feito, senão ele encostava nele, ele gozava. Para mim foi até bom, de re-
vai dançando: “Fulano agora está dando', dizem os outros. pente eu não gozei e dava para transar outra vez, estava
Aí ele perde o prestígio entre o grupo, tratam de “chupão”, guardando o sêmen para distribuir por aí.” (Graciliano)
“boy mãezinha'. Perde pontos gradativamente para o su-
posto grupo”, ÀAs técnicas de evitar a ejaculação reconhecem um
limite: “Quando o cliente quer que você goze na cara
(17) Cair de boca: Expressão que denomina a felação ativa. Chupar seria o dele, aí não tem escapatória”.
mais desprestigiante dos atos passíveis de serem cometidos por um michê más-
culo. No entanto, a felação passiva enaltece a virilidade, e costuma operar como
uma introdução à transa “completa"”: “Você pensa numa outra coisa, foge desse
momento, aí o cliente começa a te chupar e você se excita"".
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232 NEÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 233

As relações “horizontais” ex-presidiário de aparência hipermáscula que se en-


trega sexualmente a ele. Mas ambos disputam a conse-
qliência de uma troca (de maconha por roupas) e aca-
Michê/michê bam brigando aos socos na rua. '
Alguns desses relacionamentos entre michês se
Haveria uma circulação também horizontal das realizam por instância do próprio cliente, cujo gozo é
intensidades libidinais envolvendo os próprids michês. ver transar dois “boyzinhos”:
O michê “deslocaria” sobre o corpo do cliente os dese-
jos dirigidos a outro michê igual a ele, mas vedados na “Tinha um cliente que nos pagava, a mim e ao outro michê,
sua manifestação. Esse mecanismo de deslocamento paára que nos acariciássemos na frente dele, e ele se mastur-
libidinal seria freqúuente nas perversões, envolvendo bava. Depois, eu e o outro carinha acabávamos indo dormir
juntos”.
também objetos heterossexuais. Freud (1974, p. 776)
observa que “supostos invertidos não eram nem um
pouco insensíveis aos encantos femininos, apenas Damata (1975) relata o relacionamento de um
transferiam deretamente para um objeto masculino a michê velho com dois michês jovens, aos quais prote-
excitação produzida por uma mulher". Entre os prosti- gia e possuía analmente.
tutos, esta translação libidinal pode ser vivida como
uma “curtição”:
Michê/malandro
“Os michês se curtem muito entre eles. Falam que o negó-
cio é mulher, mas se curtem entre eles, essa questão de AÀ simulação viril do michê pode-se desmanchar
transa entre homers, saca, se curtem mesmo”. quando se encontra com alguém “mais viril”" do que
ele.” Neste caso, Lucymar conhece um “malandro da
Esta atração tenuemente contida explode às vezes Boca". Depois de “puxar fumo”, ambos se dirigem à
sob a forma de paixões turbulentas, que aparecem pensão do rmalandro, moreno, barbudo e com muitos
como disruptivas, à margem da regulamentação que pêlos pelo corpo. Lucymar, ao ceder aos desejos do
rege as trocas michê-cliente. Em compensação, exi- malandro, se sente vigiado por olhos paranóicos:
gem uma clandestinidade quase absoluta. Estas rela-
ções parecem ter algo de particularmente fascinante
para os próprios michês, ligado talvez ao comporta- (18) Esta diferença em grau de virilidade se associa às práticas homosse-
mento “passivo” de quem se apresenta publicamente xuais nas prisões, onde os reclusos mais atraentes são transformados em esposas
(boys) dos mais poderosos — mantendo porém sua superioridade com respeito ao
como “ativo”. Mas esses romances intermásculos cos- homossexual que não é “feito na marra”', isto é, que é já manifestamente homos-
tumam ser instáveis, sujeitos a crises de ciúmes e po- sexual ao ingressar na cadeia (Ramalho, 1979). Nos cárceres argentinos (onde os
“invertidos” são recolhidos a um pavilhão especial) esse ambivalente boy res-
dem ser coroados por traições pérfidas. Ássim, o ga- ponde ao nome de garrote: macho para as "maricas”, mas sodomizado pelos
roto Lucymar se apaixona por um outro michê, um homens dos pavíilhões “normais”.
NÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 235

“Ele já acomodado na cama só de cueca, onde escondia seu mente tem uma transa regular com mulher ou são casados.
volume bastante avantajado, pediu-me para ficar à vontade. Tem até michês casados que vão fazer ponto, a esposa está
Ántes de tirar minha roupa estávamos mais íntimos, mas o grávida e fica lá esperando. Mas são poucos. À maior parte
espírito mortal nos olhava pelas frestas de cima do quarto: dos michês faz questão de afirmar sua masculinidade di-
eram vários olhos. Diante de tanta expectativa, não conse- zendo que transa com mulheres, quando na realidade não
guia levantar meu pau. Ele com o seu que talvez pelo ta- transa. No papo a fluência é sempre mulheres, eles estão aí
manho encostava quase no seu pulmão atrapalhando até na batalha pelo homem, pelo cliente, mas o papo que está
um pouco sua respiração de tanto volume que ali se acumu- rolando é: “ que gostosa', se passa uma mulher. Eles têm
lava. Ele começou a ser irônico. Beijava e mordia, sua barba até que fazer esforço, porque se pintar uma mulher no pe-
gélida ao contato do meu rosto. Me disse: 'Você tem que daço — é raro, mas às vezes acontece — pega mal para um
dar seu cu para vagabundo e não para cuzão' (...). Ele já me michê másculo não sair com ela”'.
chupando todo o corpo em lambadas frenéticas e quentes,
superexcitado (...). Depois de ter-me penetrado 25 cm abai-
xo do meu limite de sacrifício carnal (em função da desilu- Certo tipo de mulheres — prostitutas de fim de
são de viver sob ditadura de terceiros) onde eu mesmo esco- noite, “menininhas malucas que transam por prazer”
lhi minha hora, e ela nem sequer chegou, mas que sorriu em
falso e olhou pelo buraco do prso do quarto de cima, isto
— rondam os ambientes de michês, usufruindo da de-
olhou (...)” (Depoimento escrito pelo protagonista). magógica virilidade daqueles. Mas estes relaciona-
mentos costumam ter a marca da fugacidade, já que:

Relações com muilheres “Elas têm que ser rápidas, sabem que não vão conseguir
transar mais do que uma vez ou duas, porque mulher não é
o forte do michê. É uma questão de hábito”.
Apesar da infrequência da clientela feminina na
zona (o mesmo não acontece nas áreas de alta prosti-
tuição — como o Ibirapuera, onde não é incomum ver Mignon, um mac de Nossa Senhora das Flores,
madames em seus carros de luxo à procura de bovzi- sente na própria carne a força desse hábito quando
nhos, ou na prostituição masculina “fechada”, de ca- inicia relações com uma mulher madura que...
sas de massagens e serviços a domicílio), a mulher não
deixa de estar presente, de um modo não precisamente “Ficou louça por ele. Mas ela apareceu tarde demais. Às
físico, no negócio. Assim, “quando o michê não gosta formas redondas e a feminilidade macia não agiam mais
da bicha, come ela pensando em mulher”. sobre Mignon, agora acostumado aào contato de uma vara
dura. Ão lado da mulher, ele permaneceu inerte. O abismo
Mas essa heterossexualidade é meramente mitoló-
o atemorizava. De qualquer maneira, fez um esforço para
gica, ou tem alguma realidade? Responde um “enten- superar o nojo e unir-se à mulher, a fim de obter dela di-
dido”: nheiro. Demonstrou estar galantemente ansioso. Mas che-
gou um dia quando, não podendo mais, confessou que
amava um... homem. À senhora sentiu-se ultrajada e pro-
“Acho que não é só mitologia. Tem uma certa porcentagem nunciou a palavra veado. Mignon deu-lhe uma bofetada e
de michês, aproximadamente uns 10% ou 20%, que real- partiu” (Genet, 1983, p. 141).
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ

Não obstante, as mulheres insistem: Amor e comércio

“Elas procuram essa transa porque sabem que os michês “Amor com amor se paga”. À banalidade do re-
são caras transados, podem amar mais por completo, se sol-
tar na cama. Embora muitas mulheres comecem a se apegar
frão alude a uma intercambialidade (neste caso entre
. aão michê, a recíproca não é verdadeira: para ele, é geral- amores) mediada por um pagamento. À relação amor/
mente uma transa esporádica e sem conseqúuência. Aí pin- comércio remete assim a uma troca dinheiro/desejo —
tam ciúmes por parte dela, medo ao compromisso por parte segmentos econômicos por intensidades libidinais. Se
dele, e a coisa se dilui”. tomarmos ao pé da letra a frase inícial, veremos que a
emergência do amor entre ambas as partes envolvidas
Também se registram, embora infreqientemente, na troca equivale a uma igualação dos termos da re-
relacionamentos mais prolongados entre travestis e mi- lação. Mas, por outro lado, haveria uma maneira de
chês — entre os quais vige, em geral, um código de conseguir essa “anulação das intensidades no zero dos
. respeito recíproco. O denominador desses romances
intercâmbios” (Lyotard, 1979) por outras vias que não
parece ser o interesse mútuo:
as amorosas: recorrendo à retribuição do gozo em
quantidades constantes e sonantes de dinheiro — tal o
—D “Em geral, o travesti é pobre, o michê sabe que não pode
tirar dinheiro dele. Mas muitas vezes o travesti tem aparta- caso da prostituição.
mento no centro da cidade, enquanto o michê mora longe, Entre o negócio da prostituição aberta e decla-
na periferia. São encontros de fim de noite, aí fazem um rada, e o relacionamento sexual onde o que conta são
contrato: o travesti deixa o michê dormir, morar na sua as satisfações sentimentais e afetivas, há todo um di-
casa. Aí transam e às vezes pinta o amor. Cada um na sua,
sem ciúmes. Um protege o outro”. t5-
fuso campo de tensões e superposições, ligações que
podem se considerar inscritas num contínuo de inter-
cambialidades desejo/dinheiro (Schérer e Hocquen-
Michês-malandros podem atuar como cafetões de
ghem, 1977). O complexo de interações que se conven-
prostitutas. À distância entre michê e cafetão é relati-
ciona chamar de “sentimento amoroso” apresentar-se-
vamente curta — se se superar a barreira da diferença
ia como um momento desse continuum — um mo-
do objeto sexual. Um filme alemão, “Mulher em Fogo”
(exibido em São Paulo em 1984), mostra o tormentoso mento de neutralização e de equiparamento dos dese-
quilíbrios sócio-sexuais entre os sujeitos da relação,
romance entre uma prostituta e um michê de luxo:
onde os corpos — enquanto “moeda vivente” — se
ambos compartilham uma casa-bordel. Mas o prosti-
igualam (Finkielkraut e Bruckner, 1979, p. 125).
tuto acaba preferindo os encantos de seu velho amante
milionário. Como a possibilidade do “amor homossexual” —
ou seja, de um relacionamento sistemático com um ou-
tro homem, fundado em interações afetivas e não em
permutas econômicas — aparece no discurso instru-
mental da prostituição viril?
238 NESTOR OSVYALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ 239
À conjugalidade como ameaça: o “marido de bicha"'
vida “careta” (sobretudo, uma recusa ao trabalho as-
salariado, típica da nossa malandragem).
Alves de Almeida, no seu recente trabalho sobre
Um michê se queixa da clausura a que a bicha
Michê, detecta em alguns prostitutos “certo roman-
submete o rapaz:
tismo”; “o desejo de vários deles de encontrar um
"príncipe encantado' (como acontece na prostituição
“Quando o michê passa a morar (casa) com bicha, aí fica
feminina) que os “tire daquela vida' ”. estranho. Ele quase não pode mais sair, tem que ficar à
Esse sonho desborda as fronteiras nacionais: tí- disposição da bicha. E a rua chama, a aventura, a varie-
nhamos recolhido fantasias similares na pesquisa so- dade. Não é fácil achar bichas que entendam isso”'.
bre “táxi-boys” (prostitutos) argentinos (Perlongher,
1981a). Mas elas parecem tão freqiientes quanto difíci!
Virar bicha
sua concretização. Esse “príncipe encantado”, de fato,
chega muito raramente. Isso não quer dizer que os ra-
O fato de “morar com bicha" pode acentuar as
pazes de rua não recebam, de vez em quando, ofertas
possibilidades de contágio; para continuar se diferen-
conjugais de seus parceiros homossexuais. Mas, ao in-
ciando, o michê deve “ficar cada vez mais duro, mais
vês do dourado devir, uma outra perspectiva se apre-
tmasculino (...)”:
senta como imediata e horrorosa: “virar marido de
bicha”.
“ÃÀs vezes a gente acha numa boate, como o Valsinho, al-
Propomos duas vias de acesso para esse pavor:
gum boyzinho que está esbanjando dinheiro, bem ves-
tido, até com carro. É evidente que ele está morando com
Elogio da aventura bicha. Então, para mostrar que ele continua sendo ho-
mem, ele gasta quanto puder, explora mesmo. Ele tem que
Primeiro, esse medo liga-se com uma caracterís- ser cada vez mais durão. Se virar afeminado, pode até perder
tica do negócio: a circunstancialidade, o momentâneo, 0 emprego, ou seja, que a bicha lhe dê o fora””.
o *programa de uma noite”,
Deve se manter a distância entre o prostituto e o
cliente, entre quem paga e quem é pago. Mas acontece
“Meus clientes — exprime um michê de 16 anos — são sem-
pre ocasionais, isto é, porque eles procuram alguém descar- que as situações de convívio conjugal acabam às vezes
tável.” confundindo os limites. E se aviva o fantasma de um
momento perigoso: a bicha acha que não tem mais por
Além do mais, há um permanente elogio do no- que pagar.
madismo, da imprevisibilidde, da aventura — conju- Um infatigável veterano viu-se, por um excesso de
profissionalismo, envolvido numa dessas armadilhas:
gado com certo “desejo de transgressão”, intermediá-
rio entre a perversão e a delinqilência, e muitas vezes
com uma rejeição manifesta à integração no modo de “À gente tem que captar o desejo do cliente e realizá-.lo, é
um trabalho sobre o corpo, fazer o corpo. Eu conheci um
NEÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ
coroa que não conseguia ereção, então eu caprichei (acho
que até demais) e ele conseguiu gozar. Logo houve todo um O tio
papo, do que ele sentia, a gente acabou morando juntos.
Claro que eu sentia prazer: mas como ele percebeu isso, O discurso sentimental da prostituição viril é,
achava que não tinha mais o que pagar, imagina! Então a
contrariamente ao considerado por Barthes, um dis-
coisa acabou não dando certo, foi uma situação muito ten-
sa. Aí o que pinta é a violência. Por isso quando a gente curso antiamoroso. À repulsa do amor é já esgrimida
sabe desses casos que o michê assassinou a bicha, muitas por alguns clientes. Assim, o dentista homossexual de
vezes era um boy que morava com o cliente, quando dá a “A Desforra”: :
briga solta toda a violência do macho”.
“Em matéria de amor, só acreditava no prazer comprado,
isto é, no garoto que topava exclusivamente por dinheiro,
A conjugalidade parece, além de desaconselhável, ou vantagens altas, que sabia tirar partido da situação (...);
arriscada. nada de “eu te amo' ou coisa parecida; garoto que se apai-
À captura conjugal é vivida como um perigo por- xonava não servia, era bicha em potencial” (Damata, 1975,
p. 142).
que: |
—— implica uma ameaça da individualização, no
Os michês-mesmos são taxativos na sua condena-
sentido de assunção de uma “identidade” homosse-
ção do amor:
xual, que se territorializa no nível do “ser” (tradicio-
nalmente, o michê poderia virar bicha; agora pode
também virar gay); “À única paixão do michê é a bicha dizer para ele: vou ficar
só com você e compartilhar tudo quanto eu tenho. Só"."º
— mas a via da territorialidade homossexual é
também a via de acesso à inserção numa ordem social
Em ocasiões, se trata de fingir um amor que não
estabelecida, pautada desde o trabalho. Este aspecto
se sente para manter os privilégios da conjugalidade:
não passa despercebido para os estrategistas do social.
Ássim, uma pesquisa alemã sobre prostitutos recluí-
dos num instítuto de triagem em Hamburgo recomen- “Eu fiz um tipo que não era michê dito michê, eu não dizia:
*quero tanto', mas eu era michê, não dizia abertamente
dava a descriminação da prostituição masculina, ar-
mas era. Passei dois anos (1976-1977) morando com um
gúindo que ela permitia “uma fixação afetiva (necessi- cara. Mas eu não gostava do cara, não estava com ele por
dade de trocas da parte de um parceiro social, tanto da nenhuma razão afetiva, só estava pelo dinheiro, pelo sus-
parte do homossexual cliente quanto do jovem)"”. Nes- tento””.
sa medida, “o reforço das pulsões homossexuais,
quando conduzem à uma agregação ao meio homosse-
xual, tem uma influência favorável” (Schmidt-Relen- (19) Os michês gays parecem mais contemporizadores. Assistimos à uma
berg/Kãârner/Pieper, 1975, citado por Schérer e Hoc- discussão entre um michê gay jovem (17 anos) e um míchê velho (de 23 anos). O
primeiro exprimia seu desejo de achar “um caso”; o segundo rebatia, argiindo:
quenghem, 1977, p. 217). *O que a gente tem que procurar é mesmo grana, surnupiar e roubar quanto
puder”,
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 243

No entanto, este discurso mercantilista, interes- uma dação, que se mantém entre o “tio” e o “so-
seiro, faz uma exceção para os amigos, para os “caras brinho”.
legais”, Assim, Essa ligação afetiva entre sujeitos socialmente de-
siguais — que chamaremos “verticais” — se diferen-
“O que pode pintar não é paixão, amor, essas são pieguices cia de outras relações que se pode denominar ““hori-
bestas; o que pode dar é uma amizade, uma amizade muito
particular, como a que eu tenho com um professor. É claro
zontais” (do michê com a namorada, com um outro
que ele sempre vai me dar alguns trocados, ainda que não michê ou com um travesti).
transe todas aàs vezes, mas esse dinheiro é para cobrir as Restringir-nos-emos, então, às relações classica-
diferenças de classe, de renda”. mente pederásticas (clássicas também por referência à
cultura clássica). Como se sabe, as relações entre o
Este esquema de relacionamento não pode ser fa- efebo e o adulto constituíam o protótipo de amor entre
cilmente assimilado ao modelo conjugal clássico. O os gregos. Essas relações, observa Marrou, não eram
mesmo michê sugere pensar essas “amizades particu- apenas sexuais:
lares” como uma espécie de relação “tio-sobrinho”':
“O vínculo amoroso é acompanhado (...), por um lado, de
um trabalho de formação, por outro, de uma etapa de ma-
“Já passei dois anos de caso com uma bicha que era muito turação (...); e é exercido livremente, através da frequen-
legal. Ele não permitia que eu transasse com homens, mas tação cotidiana, do contato e do exemplo, da conversação,
com mulheres ele queria que eu transasse -- até me dava da vida comum, da iniciação progressiva do mais jovem nas
dinheiro para pagar prostituta ou curtir com namorada,
atividades sociais do mais velho: o clube, a ginástica, o ban-
porque achava que homem que não transa com mulher dei-
quete”, Ássim, condensa Marrou (1976, p. 36), “a paideia
xa de ser homem. O tio era pai de santo de um grupo espí-
se realiza na paiderasteia”.
rita, e eu ajudava ele no cuito. À gente transava numa boa e
ele me pagava. Eu podia até apresentar namorada para ele,
que ele era muito delicado e discreto. Eu era para ele o filho Já foi deslizada num outro texto (Perlongher,
que ele não podia ter, mas não era filho mesmo não, era 1981b) esta sugestão: a pederastia, que depois deriva-
mais bem como uma espécie de sobrinho”. ria em pedagogia, poderia talvez iluminar uma espécie
de “relação fundante” da sexualidade ocidental; o ne-
Às características destas relações amorosas “tio/ gócio de michê seria passível de ser pensado como uma
sobrinho” seriam, simplificadamente: maneira em que essa conexão pederástica se consuma,
— seguir as pautas gerais das relações circuns- nas peculiares condições de troca capitalista.
tanciais michê/cliente, no que diz respeito às oposições Contemporaneamente, Schérer e Hocquenghem
de idade, de classe, de gênero; (1979) colocam uma interpretação próxima: “O garoto
— nelas o afeto (que dista de ser romântico) não — afirmam — está pronto para ser raptado” (p. 9.
aparece como desestruturante — como acontecia na Nesse “rapto” — que tem algo de fuga —, o garoto,
temida situação de “marido de bicha” —, mas como soterrado sob as redes familiares e escolares, realiza-se
alicerçador das relações econômicas, legíveis como como sujeito, numa relação diferente — não-hierár-
244 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 245
quica — perante o adulto. As instituições do “sistema nheiro — são mantidas — e viabilizadas frouxamente,
de infância” procederiam como se defendessem per- afetuosamente, sob a forma de uma dação pederástica.
manentemente o garoto, o adolescente, da ameaça de O paradigma que ilumina essas relações não po-
um rapto que sempre está por perpetrar-se. E a figura deria ser concebido através da conjugalidade edipiana
do sedutor adulto fustiga os paraísos familiares; é a — que repousa, conforme a psicanálise, numa identi-
figura do tio, do amigo da família, do vizinho, com o ficação do sujeito com as figuras parentaís pPai/mãe,
que o menino estabeleceria uma relação afetiva não- Às relações afetivas entre rapazes “pobres” e pederas-
prescritiva, mas eletiva.” tas “ricos” poderiam talvez ser melhor pensadas desde
Nas suas relações com as tias, nossos michês re- o fantasma do tio, que ronda e socava o triângulo fa-
Jeitam com ênfase a ameaça conjugal, o “virar marido milial.
de bicha”; têm, no entanto, certa tolerância por rela-
ções afetivas e sexuais prolongadas, não precisamente
maritais, onde as diferenças de idade, de classe, de
gênero, continuam vigentes e reguladas pela retribuí-
ção.
Não cabe pensar a relação entre amor e comércio,
no caso da prostituição viril, de uma maneira român-
tica. Para a dita concepção o amor surgiria como uma
salvação pelo outro, que retiraria o sujeito do sórdido
circuito das trocas mercantis, para ancorá-lo a uma
espiritualidade etérea e desinteresseira. Esse amor pa-
radigmático costuma não “dar certo”; a pressão indi-
vidualizadora, tendente à “assunção” da homossexua-
lidade, que acarreta por vezes sua prática, pode propi-
ciar eclosões desestruturantes que desencadeiam a ma-
cheza (o “microfascismo”) do michê. ÀAs relações que
“dão certo” são, aparentemente, aquelas em que as
condições da troca — que configuram uma imisção
inextricável entre amor e comércio, entre desejo e di-

(20) Poder-se-ia ler nesta singular versão contemporânea do avunculado,


uma expressão do paradigma do fio, cuja centraiídade nas relações do parentesco
primitivas é salientada por Lévi-Sirauss. Não obstante, cabe ressalvar que o to
lévi-straussiano não rompe — como queria Malinowski na sua fracassada polê-
mica com os freudianos — com a triangularidade edipiana.
O NEGÓCIO DO MICHE 247
constitutiva dos contratos da prostituição, há, como
demanda Mauss, uma ausência do mercador: o pró-
prio corpo vale como mercadoria.
Considerado por Barthes como “o modelo do bom
contrato” — “já que o corpo aí intervém diretamente”
(1977, p. 66), pelo contrato da prostituição passaria
uma operação de atribuição de valor ao corpo próprio
O negócio do desejo e ao corpo do outro que estaria, como quer Leo Scheer
(1979), “na raiz do rítual de todo valor”". Atribuição
de valor que configura, em verdade, uma “operação
fraudulenta”, sorte de confiscação/expropriação do
corpo, destinado a introduzi-lo na ordem dos inter-
“Se asoman por la rendija, empujan, engreídos y fanfar- câmbios sociais — ou seja, a dispor as condições de
tones, la puerta: !a trusa mugrienta o
tadas por la erección, Cuánto me das?
la toaila ya levan- seu lançamento e circulação em certo “modelo de trá-
Cuánto me das? Y
después de zalamelés y regateos, a la entrada siguiente, FTico” imposto “sadeanamente”, de fora do sujeito.
a lo largo del pasillo color mostaza y del mediodia Iluvio-
so (...). Cuánto me das? Alzando hasta lo risible la cifra
Esta operação de expropriação/confiscação dos
ante los senectos — vejez, para ellos, es lo venéreo y mór- corpos revelaria, no dispositivo da prostituição, um
bido —, o ante esos perversos exigentes cuyos diverti-
mientos ignoram y confunden, quizá por um espejismo
dos seus mecanismos básicos, que é o fato de estatuir
lingiístico con las venidas y otros vejámenes, que ejecu- equivalências entre o nível das intensidades pulsionais
tam indiferentes o mecánicos, ajenos, brechtianos casi
(...) antes de correr, como ganados por una lepra fulmi-
e os segmentos monetários. Assim, o contrato da pros-
nante, a la ducha más cercana, siempre helada, intermi- tituição “postula já de início uma equivalência entre
tente cuando no à secas, por reformas de estructura o
penuria laboral”.
uma pequena soma e um pequeno pedaço de corpo,
uma espécie de preço fixo oficialmente estabelecido,
Sarduy, 1982 baseado na alta dos preços, na inflação, na greve, va-
riável de acordo com as categorias sociais, a idade, a
1 raça, os bairros” (Bruckner e Finkielkraut, 1979, p.
133). Mas esta equivalência inicial não seria instau-
Entre prostituto e cliente se estabelece então uma rada mais que para desdobrar-se numa “microfísica
espécie bastante singular de contrato, cujas fronteiras
do detalhe", uma “multiplicidade de contratos deriva-
com o ritual tornam-se difusas (adverte Schérer, 1978,
dos que versarão sobre as vantagens suplementares”,
p. 66) quando a pedofilia entra em questão. Caberia, conforme uma “preocupação pela rentabilidade do de-
talvez, recorrer aqui a Mauss (1974b) quando postula
talhe em que não apenas cada membro, mas também
a “subjacência” em alguns fenômenos contemporâneos
o mais ínfimo movimento se transforma em moeda”
de formas de “prestações totais de tipo agonístico”. (idem).
Ainda que a moeda (ausente nas trocas primitivas) seja
Caberia então diferenciar, por um lado, um plano
248 NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHÊ

do macrocódigo “binário” — que aludiria às grandes


2
clivagens sociais: idade, gênero, classe, raça, etc., pro-
cedendo por oposições exclusivas; e, por outro lado,
um plano do microcódigo “infinitesimal”, que traba- O nômade — comentam Deleuze e Guattari —
Iharia captando as singularidades moleculares do de- estabelece localizações, mas não pára de circula:r, de
sejo e o gozo dos sujeitos, de modo a retraduzi-las (re- derivar. O interessante desta deriva, no ÉlegÓCIO d?
batê-las) sobre o equivatente monetário geral (o capi- michê, é que ela é literalmente desejante, isto é, está
tal). Nesse sentido, o dispositivo da prostituição pode guiada pelo desejo de realização de um ato sexual,
ser visto como uma espécie de “máquina de captura” ainda que em troca de um pagamento ou de aleum
dos fluxos libidinaiís, aos quais seqúestra (“expro- usuíruto “simbólico” (por exemplo, o gozo do status
pria”, “confisca”, na terminologia de Scheer) e reduz que sentem alguns prostitutos por passear num carro
a “intensidades médias”. O contrato conformar-se-ia de luxo). Por outra parte, na paquera de “entendidos
e michês, esta procura de compradores e vepdçdores
como a expressão jurídica dessa conversão, que envol-
veria certa mélange dos corpos. de sexo percorre itinerários urbanos, territorialidades
Não obstante, as micromobilizações pulsionais materiais; as circunvoluções desejantes são es.tampa—
que entram em jogo no dispositivo da prostituição não das no plano real da paisagem urbana em movimento.
Elas usam, em verdade, circuitos moleculares que
deixam de manter certo grau de heteronomia, de “in-
discernibilidade”, com relação à tradução jurídico- atravessama massa de transeuntes — um aparell.lo de
monetária que o contrato estipula.' As margens de captura do olhar que singulariza um sujeito Qes.ejante
“indiscernibilidade” parecem crescer à medida que o . na multidão, separando-o fugazmerite da fileira. de
grau de institucionalização da prática venal diminuí. rostos “facsimilizados” e anônimos.O olhar de relªnçe
No caso, a prostituição viril de rua se apresenta como da próostituita, do “entendido”, do michê — os “sis-
fracamente institucionalizada (em comparação, por temas de comunicação” de que fala Pollak — Sexua-
exemplo, com a prostituição heterossexual feminina, liza e acende a multidão anódina, com um movimento
em que boa parte das contribuições teóricas citadas se que víamos na narração de Carell.a; por um lado, se
inspiram), ocupando um lugar esfumado, intermediá- abrem “pontos de fuga” libidinais, mas, por 0ut£0
rio entre a sujeição axiomática às regras do código, e lado, a prostituição procede a uma reconversão econo-
certo nomadismo pseudolibertino que borbulha nos mica desse fluxo deseiante. Isto é, o fluxo desejante
meandros das “cidades da noite”. seria capturado pela “máquina de calcular” que a.tn—
bui valores aos corpos, remetendo-os a um “equiva-
lente geral”', ao mesmo tempo econômico e çatçg_onal.
(1) Escrevem Belladona e Querrien (1977): “À textura convencional do De alguma maneira, o preço da prostituição no
campo homossexual pode ser pensado como a explres:
contrato está sempre deslocada, subvertida e fundida a uma matéria viva que a
alimenta verdadeiramente, um processo de vida, toda uma dimensão passional”'
(p. 181), Esse nível microscópico abre, no dizer de Lyotard, uma "“política dos são de uma diferença de valor basicamente categorial;
incomensuráveis"', trabalhando com séries infinitamente variadas do mundo pas-
sional que comportam infinitesimais diferenças (citado por Schérer, 1978, p. 26).
as diferenças de valor sexual entre os corpos remetem
sistema de nomenclaturas, estas pela sua vez
L a um
O NEGÓCIO DO MICHÊ 251
250 NÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER

proliferantes. No gueto paulistano, esse sistema de no- das barreiras de classe, que fica mais evidente no epi-
menclaturas não é homogêneo, mas está “fraturado” sódio da prostituição: o relacionamento entre um ho-
pelo choque e imisção de dois sistemas globais de clas- mossexual adulto e “rico” e um rapaz pobre, tosco e
sificação: um arcaico, hierárquico, popular (bicha/ viril.
macho) e o outro moderno, igualitário, pequeno-bur- Noutros termos, os agenciamentos do desejo se-
guês (gay/gay). Configura-se assim uma massa instá- riam diretamente sociais, transindividuais, intersubje-
vel de referências “identificatórias”, um campo de for- tivos. O desejo não ficaria restrito ao individual subje-
ças atravessado por tensões, por vetores de circulação tivado, mas percorreria tensões de força que atraves-
que buscam orientar o sujeito no emaranhado dos cor- sam diretamente o campo social. Simultaneamente,
pos. Esses tensores — de atribuição de valor e de dis- essa “fuga libidinal” que fende as barreiras de classe,
tribuição no código categorial — seriam basicamente gênero, idade, raça, etc. vai ser “reterritorializada”
três: gênero, classe, idade, e mais um “oculto”: raça. num duplo sentido: de um lado, uma captura do su-
A operação da prostituição constituiíria centralmente jeito pelo código, como condição do seu desejo; para
uma tradução dessas tensões de distribuição “dese- poder se expressar enquanto sujeito desejante, deverá
jante” ao plano diretamente econômico. Os michês circular e ingressar nas condições do mercado sexual,
operariam nessa zona de tradutibilidade, remetendo onde atribuirá e lhe será atribuído certo valor situacio-
as intensidades libidinais a quantidades monetárias. nal, reinterpretável em cada encontro — o que o torna
Para tornar possível esta operação, os sujeitos que “in- altamente mutável, sem que essa mutabilidade deixe
tercambiam” prestações (homo)sexuais devem estar de ser uma circulação entre as diversas faixas do có-
ocupando certas “posições desejantes” no campo de digo econômico-sexual. De outro lado, no negócio da
vatores eróticos do território (o gueto) onde esse encon- prostituição em particular, a “reterritorialização” ca-
tro se consuma. tegorial vai dar lugar a uma reversão explicitamente
Os modelos de atribuição de valior 1mperantes na monetária.
sociabilidade nômade do gueto expressam diferenças Este dispositivo de “reterritorialização” tem uma
- intensivas que dizem respeito diretamente ao plano do dupla vertente: controla, mas também veicula o en-
desejo. Assim, a tensão adulto/jovem exprimirá em contro sexual. O gozo em si aparece como resultante
termos categoriais uma relação de desejabilidade do de uma operação econômico-sexual. As diferenças de
adulto pelo jovem, ou vice-versa. O mesmo pode se intensidade (o pilano do conteúdo) são vertidas a uma
dizer da tensão de gênero: neste caso, uma afirmação escala de qualificação (o plano da expressão) que age
artificiosa da diferença parodia os rituais da heterosse- diretamente sobre o corpo e suas sensações. Essa es--
xualidade, que funcionam, pela sua vez, como modelo cala de quahflcaçao que está na base do negócio todo,
desejante geral do socius, como “regime sexual” domi- pode-se assentar numa multiplicidade de índices, que
nante. incluem aiternativamente habilidades técnicas, atri-
À tensão de classe, pela sua parte, reforça a ima- butos corporais, aspecto, beleza, etc., e uma infini-
gem histórica do homossexualismo como transgressão dade de peculiaridades que, em última instância, en-
252 NEÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER
O NEGÓCIO DO MICHE 253
tram nas tensões de distribuição das diferenças dese-
preanunciam o devir de aventura. Esta não deixa de
jantes.
ser, de todos os modos, altamente imprevisível. Está
No território da perversão, os movimentos de
disposta a si mesma como acaso. Trata-se, no final das
desterritorização e reterritorialização são relativos.
contas, de apostar sobre o acaso, sobre o abismo, so-
Há permanentemente mobilizações nos dois sentidos.
bre o limite. Nesse gosto pelo risco — índice de des-
Assim, desterritorialização a respeito da ordem fami-
liar e do bairro, mas reterritorializações no circuito do territorialização de desmanchamento — parece residir
o encanto do negócio.
mercado sexual; desterritorialização na abertura do
corpo à perversão, mas reterritorialização na interdi-
ção do ânus e da boca, etc. À partir desta fluidez de
3
base, o sistema é altamente instável. De alguma ma-
neira, a proliferação, complexificação, especialização
Espécie de fato social total — na acepção de
e “localismo” das nomenclaturas classificatórias, po-
Mauss (1974b), que Maffesoli (1985, p. 108) estende a
dem estar dando conta dessa dificuldade de “organi-
todas as manifestações “orgiásticas” de “perversidade
zar a desordem” ou “sistematizar o acaso”.
polimorfa” espalhadas pelo corpo social, sem deixar
O negócio do michê apresenta-se como um para-
de constituir, pela sua vez, o “secreto” suporte do seu
doxo: por um lado, põe em movimento uma fuga dese-
funcionamento: “circulação de orgia pelo corpo social,
jante que entaça os corpos (uniões de órgãos, mais que
como princípio e garantia de socialidade” (idem,
conjugalizações personalizadas). Por outro lado, uma
p. 11) —, a prostituição viril suporta também ser pen-
diversidade de dispositivos se instauram para contro-
sada do ponto de vista da troca, enquanto estrutura de
lar, canalizar, veicular essa eclosão desejante, de modo
prestação de serviços sexuais. Os interditos que pesam
a evitar, esmagar ou neutralizar os perigos da fuga.
sobre o negócio (referidos à venalidade, à homossexua-
Perigos estes que podem aparecer sob diversas formas:
lidade e à pederastia, Schérer e Hocquenghem, 1977)
perigo de morte ou de violência corrido pelo cliente, poder-se-iam associar com o tabu do incesto, que opera
perigo de paixão ou efeminamento vivido pelo prosti-
como modelo de interdito sexual (Bataílle, 1979). Em
tuto, etc.
ambas as situações, por diferentes que sejam uma da
Este duplo aspecto da prostituição viril — fuga
outra, o interdito revela seu caráter “positivo”, en-
libidinal, por um lado; proliferação de dispositivos de
quanto operador (“incitador”) de circulações de cor-
controle, pelo outro — aparece também nas tentativas
pos e bens e agenciador de comunicações.”'
de “organizar o acaso” presentes na própria deriva
territorial. Assim, a “máquina de paquera” torna-se
uma “máquina de cálculo”, que opera através de deta- (2) O interdito sexval não apenas agiria no sentido positivo ao.or.demr as.
trocas e designar os parceiros, mas erotizaria o objeto mesmo da pfOlbW.âo. Diz
lhes infinitesimais: na maneira de olhar, caminhar, Bataílle (1979, p. 296): “O objeto do interdito não foi revelado à cobiça pelo
vestir, falar, etc., os “entendidos” (e seus amantes pa- próprio fato de ser interdito? Sendo o interdito de natureza sexual, enfam
gos) vão escrutar uma multiplicidade de indícios, que aparentemente o valor sexuai de seu objeto. Ou melhor, deu um valor erótico .t
esse objeto”". No negócio do michê, os estigmas que pesam sobre a homossexuali-
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 255

Mas a “natureza erótica do vínculo” que se esta- labirintos do negócio e ronda os discursos dos -prota-
belece entre os parceiros impediria que os contratos gonistas. Paixão esta que, paradoxalmente, ocorreria
amorosos fossem tomados apenas como uma “expres- paralela a outra, que vai se superpor àquela: o que
são particular da teoria da circulação de bens e sig- Baudrillard (1981, p. 97) denomina “paixão pelo có-
nos”, como faz Lévi-Strauss, sendo preciso abordá-los digo”. Assim, nova duplicidade: ao mesmo tempo que
“por aquilo que os distingue dos outros sistemas de o esbanjamento exuberante do excesso impediria a re-
comunicação”, sugere Octávio Paz (1977, pp. 94-95) dução do vínculo erótico a uma mera relação entre sig-
na sua crítica à perspectiva estruturalista. Assim, con- nos “comunicativos”, o erótico seria também o territó-
siderar que o contrato amoroso é meramente “uma re- rio de uma intensa, proliferante codificação, que apon-
lação entre signos que designam nomes (classes e li- ta a uma “estereotipia geral dos modelos de beleza,
nhagens) e valores (prestações)”,' implicaria deixar de regra absoluta em questão de rosto e corpo"” (a “mãá-
lado a dialética própria dos signos passionais (“dom e quina de rosto” do Mílle Plateaux), mediante a gene-
ralização do valor da troca. O erótico apareceria assim
possessão, desejo e gasto vital”") que transcendem e
sendo ““a reinscrição do erógeno num sistema homogê-
desbordam a comunicação.
No campo da prostituição viril esta cautela teórica neo de signos (gestos, movimentos, emblemas)”, de
se revela pertinente se se pensa, por exemplo, no cará- modo a constituir uma “heráldica do corpo” (Bau-
ter permanentemente frágil do contrato — entendido drillard, 1981, p. 100).
este como a ordenação de um sistema de prestação Ainda reconhecendo a persistência de certo “de-
entre prostituto e cliente —, que parece “feito para ser sejo de perda” (lapsos de vontade ausentes das aná-
transgredido”. No seu limite, o desencadeamento da lises sócio-econômicas, onde reinaria uma “racionali-
violência está de alguma maneira previsto (e fanta- dade indefetível”, p. 268), no global a tradução ao
siado) em certa “paixão pelo risco” que emaranha os equivalente geral se imporia ao desejo, que passaria a
funcionar como “desejo de código”, donde — deduz
Baudrillard, p. 269 — “o desejo não tem vocação para
se realizar na liberdade, mas na regra, não na traus-
dade, a prostituição, a pederastia, viram pelo avesso sua dimensão excludente e
negativa: revelam-se como operadores de intensidade libidinal. ferência de um conteúdo de valor, mas na opacidade
(3) Lotringer (1981) critica uma concepção similar, conforme a qual o sexo do código de valor”. Aliás, este mecanismo de captura
seria apenas comunicação: “Não é o sexo, é a comunicação que é comunicada
através da sexualidade” (p. 293), que reduziria a reverberação das sensações in- desejante sustentaria a ordem social: “É com este in-
tensivas à um mero código simbólico de intercâmbio “interpessoal””. No entanto, vestimento da regra pelo desejo que a ordem social se
não seria um princípio de comunicação o que prevaleceria nos relacionamentos da
encontra ligada" (idem, p. 274). .
prostituição, mas um impulso de despesa, de voluptuosidade, de gasto exube-
rante, que instauraria, aliás, para se desenvolver fora dos interditos sociais (que A prostituição viril, particularmente “margi-
fundamentam a “humanidade”), um mundo de degradação e ruínas: “À prosti-
tuição, o vocabulário chulo e todos os vínculos do erotismo e da infâmia contri-
nal”, afundada nos “paraísos artíficiais” do vício, do
buem para fazer do mundo da voluptuosidade um mundo de degradação e de crime, da perversão, seria talvez um desses fenômenos
ruína (...). Queremos sempre estar certos da inutilidade, do caráter destruidor de
onde um desmesurado impulso de perda —, uma “li-
nha de fuga” emaranhada em certa “paixão de aboli-
nosso gasto” (Bataílle, 1979, p. 236). Essa impulsão de perda assimilaria a pros-
tituição ao potlatck e à pilhagem do nômade,
256 NÉSTOR OSVYALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHE 257

ção”, onde a destruição do outro é um correlato da (por vezes patéticas) no próprio plano da circulação
própria autodestruição do ego (comenta Bataille a res- social. Os indivíduos fazem ingressar seus corpos so-
peito de Sade) —, enredar-se-ia quase inextricavel- bretatuados, maquiados (maquete de uma representa-
mente com uma codificação proliferante e difusa, que ção teatralizada e grotesca, de um simulacro que paro-
tenta traduzir as mínimas intensidades do encontro dia os rítuais da normalidade) num “código-território”
dos corpos (vestidos com suas tatuagens “simbólicas”, cujas regras e sinalizações são percebidas como pre-
talhados com a disciplina da ordem) ao equivalente existentes.
geral do capital. Tratar-se-ia então de uma maquinaria que fun-
Neste segundo mecanismo o funcionamento “de- ciona socialmente, articulando séries (ou fluxos) cor-
sejante” de uma multiplicidade de práticas sociais se porais e monetários — de um agenciamento, no dizer
coloca em questão. O desejo, lançado à circulação de Deleuze e Guattari, onde uma máquina de sobreco-
através do dinheiro (pensado aqui como fluxo de inten- dificações (da ordem jurídica dos enunciados e as re-
sificação, e não somente como signo “racional”), car- gras) vai agir diretamente no plano da mélange dos
rega, para se excitar, oposições sociais que fraturam corpos, das intensidades corporais. Um agenciamento
profundamente (historicamente) o corpo social. é uma conexão de fluxos: fluxos de dinheiro e desejo,
de paixão e de morte, de corpos clientes (homossexuais
marginalizados pela idade e pelo estigma), de corpos
4 prostituídos (adolescentes minoritarizados pela juven-
tude e pela miséria).
Agenciamento específico, singular, onde o desejo
O negócio do michê desenvolve-se num território
— enquanto engeneering de fluxos moleculares — põe
ambíguo, nas margens do corpo social, a cavalo entre
em movimento um dispositivo social, a prostituição vi-
o desejo e a morte, entre a disrupção passional e a
ril participa de uma dupla condição: é simultanea-
submissão ao sistema de regras e preços do mercado.
mente produção desejante e produção de bens — já
A periculosidade da profissão de prostituto reside em
que o corpo é tomado como mercadoria, reintrodu-
que está sempre se jogando à compra-venda com valo-
zindo assim as pulsões perversas que “escapam” pelos
res demasiadamente carregados — sujeitos ao desliza-
poros ou “pontos de fuga” do socius na ordem do ca-
mento de uma carícia sobre a pele. Dos distúrbios e
pital. .
perambulações desse percurso (feito de sensações libi-
dinosas) pode proceder, precisamente, o desencadea- É interessante notar como esse “agenciamento de-
sejante” procede introduzindo no mercado um valor
mento de certa pulsão mortífera que ronda o negócio.
No entanto, essa tensão terror/gozo não se efetua, à socialmente hipervalorizado: a masculinidade.
maneira do ritual masoquista de produção “dolorí- Os jovens corpos masculinos (o prezado bem dos
fera” de um “corpo sem órgãos” de pura intensidade, adolescentes) são colocados à venda no mercado ho-
num salão reservado, mas executa suas cerimônias mossexual. Movimento paradoxal do capital:
O NEGÓCIO DO MICHÊ 259
NESTOR OSVYALDO PERLONGHER

neste circuito, permitiria iluminar obscuros entrama-


“O capital confunde tudo, libidiniza o dinheiro, monetariza
as paixões (...). Ao soltar os fluxos da produção, ao voltar dos que dispõem a produção e reprodução, a recriação,
indiscriminadamente todos os bens — quaisquer que sejam de um modo de dominação sócio-sexual,
— ao mercado, o capital solapa, apesar de (contra?) si mes- Por outra parte, a dominação atribuída ao jovem
mo, os velhos cânones proibicionistas de que se serve para macho ver-se-ia de alguma maneira “compensada”,
sustentar o seu domínio. Sob o império da lei da ganância,
no circuito da prostituição viril, pela dominação sócio-
do princípio de rendimento marcusiano, os varões lançam
seus sexos — reservados a princípio apenas para a heteros- econômica concreta do cliente enquanto comprador e
sexualidade — no mercado da prostituição homossexual; “tasador” de um adolescente geralmente desprovido
mas não vendem sua alma; já que seu apego aos paradig- de meios de subsistência, e relativamente “desterrito-
mas da normalidade lhes permite — ou, pelo menos, é o rializado” a respeito da ordem da família e do iraba-
que se acredita — alugar apenas seus corpos” (Perlongher, lho. Este complicado jogo de dominações combinadas
1981b, p. 71). se expressa, entre outras coisas, no duplo sentido da
confiscação predatória do cliente, que pode aparecer
ÀA virilidade — e nem tanto a virilidade quanto como um ato legítimo de sobrevivência, mas também
sua impostação , sua caricatura — desvela seu valor de comio um castigo infligido pelo macho “normal” ao
troca. O dinheiro, fetichizando-a, a resguarda, in ex- homossexual “desviante”.
tremis, de anulá-la no círculo vicioso das paixões per- No dispositivo da prostituição atualizam-se, aliás,
Versas. outras virtualidades sociais. Desejo da bicha pelo ma-
Esta valorização parece (ou melhor, pretênde) cho, mas também do adulto pelo jovem, do rico pelo
dissipar, reduzindo-as a “intensidades médias” — pobre. Oposições que, sob diferentes formulações,
mas somente com o efeito de torná-las bens intercam- atravessam o corpo social no seu conjunto, se articu-
biáveis, de integrá-las no circuito mercantil e suas leis lam neste caso (e nisso reside seu interesse) direta-
da oferta e da procura —, as paixões cuja eclosão é mente no nível do desejo sexual. As sobrecodificações
contabilizada. do socius são, elas próprias, desejadas. Mecanismos'
sociais que aparecem “do avesso”, no seu lado dese-
Dissimulação, simulacro: o macho deve manter
jante e turbulento.
sua (im)postura viril, não somente como parte da pró-
pria maquinação perversa, mas também como exigên-
(4) Isto diz respeito, para falar como Paul Veyne, às condições de atuali-
cia do mercado. O negócio do michê é também o epi- zação de uma disposição virtual. Veyne, propondo substituir uma “filosofia do
sódio de uma atualização do “desejo de submissão” objeto tomado como fim ou como causa, por uma filosofia da relação”, vai con-
(La Boétie): o desejo do macho. Este macho é encar- siderar desejo “o fato de que as pessoas se interessem pelos encadeamentos vir-
nuais e os fazem funcionar” (Veyne, 1982, p. 166). Este desejo é “a coisa mais
nado por um adolescente valente: o socialmente mais óbvia do mundo": “O desejo é o fato de que os mecanismos giram, de que os
fraco carrega, contabilizando-os, os atributos mais for- encadeamentos funcionam, de que as virtualidades (...) se realizam, preferente
mente a não se realizarem: *todo encadeamento exprime e realiza um desejo cons-
tes. Na sua marginalidade, a prostituição revela (ou truindo o plano que o torna possível'"', diz Veyne, citando a Deleuze, € acrescen
condensa residualmente) uma operação que afeta o ta: "Esse deseja como a cupiditas em Spinoza, é o princípio de todos os outros afe-
tos. À afetividade, o corpo sabe mais do que a consciência” (idem, p. 197).
campo social global. O desejo do macho, explicitado
NÉSTOR OSVALDO PERLONGHER O NEGÓCIO DO MICHÊ 261

Virada pelo avesso, a estrutura — da ordem do rais se agenciam, com o capital enquanto “equivalente
molar — revela as intensidades moleculares que a ali- geral” veiculando essas operações de transdução. Na
mentam e a trabalham; uma espécie de energética pul- sua singularidade — que está longe de ser insular — o
sional pondo em movimento o quadro topológico: negócio do michê manifesta uma modalidade de fun-
“para um bom organograma são necessárias duas coi- cionamento do desejo no campo social, que seria pas-
sas: uma topologia, 1sto é, o esboço geral num espaço sível de ser estendida a outros territórios e articulações,
determinado do que se quer explicar, e, por outro lado, se, como querem Deleuze e Guattari, “existe o desejo,
a energética que circula no gráfico em questão; desta o social e nada mais”.
forma não se tem simplesmente uma representação es-
tática da explicação, mas também se vê o que circula e
o que sucede dinamicamente em determinado estado
de coisas (...) a topologia e a energética simultanea-
mente” (Serres, 1981, pp. 48-49),
Uma “topologia” do negócio do miíichê procura-
ria, então, pôr em circulação os fluxos desejantes que
animam o quadro social, sem esmagá-los na sujeição
ao circo-teatro da representação, nicho da “câmara
representativa” que encobre (e exclui) as práticas e as
intensidades passionais. Uma energética do desejo no
campo social deveria figurar nessa topologia proje-
tada.
O limitado campo da prostituição viril — fascina-
ção sociológica das formações marginais, já que nas
bordas do corpo social podem desdobrar-se com cla-
reza prístina mecanismos que no seu centro esfumam-
se 5— permite vislumbrar certo estado singular de en-
trelaçamento onde códigos sociais e sensações corpo-

(5) Como assinala Augras (1985), cabe enfocar os “grupos marginais” não
como exemplos de patologia sacial, mas, ao contrário, “como maquetes altamente
representativas das contradições estruturais da sociedade global. Tais grupos ex-
pressariam mais cruamente os cornflitos, as ambigilidades, os sistemas de valores e
até mesmo os Eidos (imagem, essência) da sociedade, que aparentemente os re-
jeita, enquanto os cria € alimenta”; assim, “a codificação do relacionamento in-
terpessoal em termos de circulação do dinheiro, ou seja, a substituição das trocas
afetivas e emocionais por um sistema abstrato de compra e venda, constitui preci-
samente uma das características da nossa sociedade” (p. 107),
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Sobre o Autor

Nasci em 1949 em Avellaneda, um subúrbio industrial de Bue-


nos Aires. O fascínio pela luzes do centro levou-me a freqúentar as
buliçosas mesas intelectuais da época, sem deixar de lado as penum-
bras marginais., Ingressei na agitada Faculdade de Filosofia e Letras
da Universidade de Buenos Áires, onde me formei em Sociologia em
1975. Cometi — e cometo — versos diversos, que publiquei em 1980,
sob o título de Austria-Hungria, pela pequena editora Tierra Baldía.
Trabalhei vários anos em pesquisa de mercado. Mas não suportei a
sufocante ditadura argentina e migrei para o Brasil, refugiando-me
no mestrado em Antropologia Social da Universidade de Campinas,
onde realizei a pesquisa que sustenta o presente livro. Atualmente
sou professor de Antropologia na UNICAMP. No entanto, mante-
nho vínculos literários transplatinos, estando no prelo meu segundo
' livro de poemas, Alambres, a ser publicado pela editora Último Rei-
no, de Buenos Áires.
TB
VY
x
t)
Y

tb areedaN
[RonooC a

A Prostituição Viril ==
R e aedem |

em São Paulo
- Néstor Perlongher
Centrode São Paulo. Regiãoda Praça da
República, Avenida São João e Largo do Arouche.
O local dos travestis, prostitutas, malandros e -
mMarginais. Ao longo de quase três anos, o
antropólogo Néstor Osvaldo .PerÍongher foi a este
universo para investigar a vida-e os métodos de —
sobrevivência dos michês, rapazes geralmente
jovens que, sem abdicar da sua masculinidade,
prostituem-se para homossexuais maduros.
Pesquisou, entrevistou michês, ouviu
depoimentos de clientes e de homossexuais.
Assim, elaborou um estudo completo sobre
o circuito da prostituição viril nas ruas de
São Paulo. O primeiro já feito sobre o negócio
do michê.

Areas de Interesse: Antropologia e Sociologia .

brasiliense

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