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Sexo e Caráter -

Otto Weininger
A presente tradução fora realizada com base na versão de Ladislau Löb —
do Alemão —, editada/revisada por Daniel Steuer e Laura Marcus. O
objetivo desta tradução não é um emprego profissional, e fica eximido o
tradutor, apesar de seu esforço, de exigências deste teor. É também
necessário deixar claro que, no decorrer da leitura, poderá o leitor
encontrar erros gramáticos, de sintaxe ou digitação, embora se deva
considerar que o tradutor serviu-se de devida atenção — esta é uma
iniciativa totalmente voluntária e de interesse puramente intelectual. “Sexo
e Caráter” será apresentado a partir de seu Prefácio, seguindo-se para o
Preparatório (parte primeira) e finalmente Parte Principal (parte segunda).
Seus comentários iniciais — incluindo a nota do tradutor — e o Apêndix
(adições e referências) não foram traduzidos.
PREFÁCIO

Este livro tenta alcançar uma nova e decisiva visão sobre a relação entre os sexos. Não
pretendo listar o maior número possível de características discretas ou compilar os resultados
das medições científicas e experimentos realizados até hoje, mas intento traçar todos os
contrastes entre o Homem e a Mulher sob um mesmo princípio. É por isto que este livro se
difere dos demais que abordam o tema. Ele não se limita a este ou aquele ideal, mas avança
para um objetivo final; não acumula observações sobre observações, mas situa as diferenças
intelectuais de ambos os sexos dentro de um sistema; não é sobre as mulheres, mas sobre a
mulher. Aborda as coisas mais superficiais e comuns em seu ponto inicial, mas somente no
sentido de interpretar todas as experiências concretas e únicas. Não se trata de uma
“metafísica indutiva”, mas de uma progressão gradual para camadas psicológicas cada vez
mais profundas.

Minha investigação não se preocupa com especificidades, mas com princípios. Ela não
despreza o laboratório, embora, ao lidar com problemas mais profundos, considere seus
recursos limitados em comparação com o trabalho de auto-observação analítica. Um artista
retratando uma mulher também pode transmitir características típicas sem demonstrar sua
legitimidade apresentando figuras e números seriais a uma guilda de juízes experimentais. O
artista não despreza a experiência, mas, pelo contrário, considera adquirir experiência como
seu dever. No entanto, a experiência, para ele, é apenas o ponto de partida para o mergulho
em si mesmo, o que na arte parece mergulhar no mundo.

A psicologia usada em meu relato é completamente filosófica, embora seu método particular,
que é justificado apenas por seu tópico pessoal, seja começar fora das experiências mais
triviais. No entanto, a diferença entre a tarefa do filósofo e a do artista é apenas formal. O que
é um símbolo para o último torna-se um conceito para o primeiro. A relação entre a expressão
e o conteúdo é a mesma que existe entre arte e filosofia. O artista inalou o mundo para exalá-
lo: para o filósofo ele exalou e ele deve inalar novamente.

No entanto, há necessariamente algo de pretensioso em toda teoria, e assim, o mesmo


conteúdo que aparece como natureza em uma obra de arte pode parecer muito mais duro e
até ofensivo quando apresentado dentro de um sistema filosófico tal qual uma generalização
condensada, como uma tese que está sujeita ao princípio da razão suficiente e que se propõe a
fornecer provas. Nas partes em que meu relato é antifeminista — o que acontece em muitos
lugares — relutarão os homens em concordar prontamente e de todo o coração: seu egoísmo
sexual sempre os faz preferir ver a Mulher como eles querem que ela seja e como eles querem
amá-la.

Como não adivinhar a resposta que as mulheres darão ao julgamento que formei sobre o
vosso sexo?

De pouco servirá ao autor ilibar-se aos olhos do sexo feminino, em cujo estudo acaba por ir
contra os homens: quem assume a maior e mais essencial responsabilidade, pois o significado
profundo do trabalho excede o que pensam as próprias feministas.
Minha análise chega ao problema da culpa, porque surge dos mais simples e óbvios
fenômenos para aqueles pontos que não apenas oferecem uma visão sobre a natureza da
Mulher e seu significado no mundo como um todo, mas que também abrem uma visão de sua
relação com a humanidade e com as mais elevadas tarefas desta. É a partir desses pontos que
se pode tomar uma posição sobre o problema da cultura e a contribuição da feminilidade para
a totalidade dos objetivos mais elevados. E então onde os problemas da cultura e da
humanidade coincidem, tentarei, portanto, não apenas para explicar, mas também avaliar: de
fato, aqui explicação e avaliação coincidem por vontade própria.

A investigação chega necessariamente a essa altura sem que a propusemos desde o início.
Gradualmente reconhece a inadequação de toda a filosofia psicológica empírica nos próprios
fundamentos da psicologia empírica. Isso não diminui seu respeito pela experiência, que, ao
invés de ser destruída, é sempre mais apreciada se reconhecermos nos fenômenos — de fato
as únicas coisas que podemos experimentar — quaisquer componentes que nos asseguram
que eles não são as únicas coisas que existem e quando percebemos esses sinais que apontam
para algo superior, situado acima dos fenômenos. A existência dessa fonte primária é
confirmada mesmo quando nenhum ser vivo consegue alcançá-la. E este livro não descansará
até que tenha levado seu leitor para a proximidade dessa fonte.

Eu não ousaria aspirar tal meta num espaço tão estreito a partir do qual as diferentes opiniões
sobre a Mulher e a Questão da Mulher têm colidido até recentemente. No entanto, o
problema envolve todos os mais profundos mistérios da existência. Pode-se resolvê-lo, prática
e teoricamente, moral ou metafisicamente, somente com a orientação firme de
um(a) weltanschauung [visão de mundo].

Uma Weltanschauung — isto é, uma digna desse nome — não é algo que poderia vir a ser um
obstáculo para descobertas particulares. Ao contrário, é a força motriz de cada descoberta
particular que transmite uma verdade mais profunda. A Weltanschauung é produtiva em si
mesma e nunca pode ser gerada sinteticamente, como todas as épocas que subscrevem a
ciência meramente empírica acreditam, a partir de uma soma de conhecimento específico, por
maior que seja.

Somente os germes de uma visão tão abrangente tornam-se visíveis neste livro. Essa
perspectiva está mais intimamente relacionada às visões de Platão, Kant e do cristianismo,
embora eu tenha sido obrigado em grande parte a criar os fundamentos científicos,
psicológicos e filosóficos, lógicos e éticos para mim mesmo. Há muitas coisas que não pude
discutir detalhadamente e que pretendo explicar completamente em um futuro próximo. Ao
referir-me precisamente a essas partes específicas do meu livro, faço porque coloco mais
importância em reconhecer e aceitar o que eu tentei dizer sobre os problemas mais profundos
e mais gerais do que aqueles que podem surgir de sua aplicação particular a questões de sexo
feminino.

Para a tranquilidade do leitor filósofo que se sente incomodado observando que os problemas
mais decisivos e de longo alcance parecem colocados aqui ao serviço de uma questão especial,
de uma dignidade inferior, devo especificar que participo de sua opinião. Acrescento, porém,
que a questão específica do contraste dos sexos é mais que um fim, é um ponto de partida. De
sua consideração, são obtidos dados importantes para os problemas cardeais da lógica, seus
julgamentos e conceitos, bem como suas relações com os axiomas do pensamento, para a
teoria do cômico, do amor, da beleza e do valor, para os problemas individualidade e ética, e
as relações entre elas, enfim, para os conceitos de gênio, desejo de imortalidade e judaísmo.
Naturalmente, discussões tão amplas ao final também beneficiam o problema específico, que
entra em relações cada vez mais variadas à medida que aumenta o campo de investigação. Se
essas considerações nos levam a mostrar quão pouca esperança a cultura pode ter para a
intervenção das mulheres, se as deduções obtidas significam a completa desvalorização e até a
negação da feminilidade, isso não significa que tenhamos aniquilado tudo o que existe, nem
desprezado tudo o que tem valor em si mesmo. Eu teria que ficar horrorizado comigo mesmo
se realmente fosse apenas um destruidor que não deixou nada intocado. As afirmações deste
livro talvez sejam menos poderosas, mas quem for capaz de ouvir, poderá ouvi-las em outros
lugares.

O livro está dividido em duas partes: a primeira biológica e psicológica, a segunda psicológica e
filosófica. Alguns podem pensar que teria sido melhor se eu tivesse dividido o todo em dois
livros separados, um puramente científico e outro puramente introspectivo. No entanto, tive
que me libertar da biologia para me tornar um psicólogo por completo. Meu tratamento de
certos problemas psicológicos na segunda parte é bem diferente da abordagem de um
cientista atual, e percebo que isso também coloca em risco a recepção da primeira parte por
muitos leitores. No entanto, toda a primeira parte exige ser notada e julgada pela ciência, o
que a segunda parte, com sua maior concentração na experiência interna, pode exigir apenas
em alguns lugares. Como a segunda parte emana de uma perspectiva não positivista, muitos
considerarão ambas as partes como não científicas (por mais firmemente que o positivismo
seja refutado nessa parte). Por enquanto devo aprender a viver com isso na convicção de ter
dado à biologia o que lhe é devido e reivindicado os direitos de uma psicologia não biológica,
não fisiológica para todos os tempos.

Talvez eu seja acusado de não fornecer provas suficientes em certos pontos.

No entanto, isto me parece ser a menor fraqueza de minha investigação. O que “provar”
poderia significar neste contexto? O que se discute aqui não é nem matemática nem
epistemologia (esta última apenas em dois lugares), mas questões de ciência empírica, onde o
máximo que se pode fazer é colocar o dedo no que é. Nessas áreas, o que normalmente é
chamado de prova é meramente um acordo entre as novas experiências e as antigas, e não
importa se os novos fenômenos são produzidos experimentalmente por um ser humano ou
dados em estado acabado pela mão criadora da natureza. Deste último tipo de prova este livro
fornece bastante.

Finalmente, até onde posso julgar, a parte principal do livro não é aquela que pode ser
compreendida e absorvida após uma única leitura superficial. Desejo declarar isso para
informação do leitor e para minha própria proteção.

Quanto menos eu repetia coisas velhas e conhecidas em ambas as partes (particularmente na


segunda), mais eu queria apontar todas as coincidências quando me encontrava de acordo
com o que havia sido dito antes e o que era geralmente reconhecido. Esse é o objetivo das
referências no apêndice. Tentei reproduzir as citações com precisão e de uma forma que fosse
útil tanto para leitores leigos quanto para especialistas. Por serem exaustivas, e para evitar que
o leitor tropece a cada passo, essas referências foram relegadas ao final do livro.

Meus agradecimentos ao professor Laurenz Müllner por seu apoio efetivo, e ao professor
Friedrich Jodl pelo gentil interesse que demonstrou em meu trabalho desde o início. Sinto-me
especialmente grato aos amigos que me ajudaram a corrigir o livro.
Primeira Parte (Preparatória): Diversidade
sexual — Introdução
Todo pensamento começa com generalizações intermediárias e depois se desenvolve em duas
direções diferentes: uma em direção a conceitos de abstração cada vez maior, que abrangem
áreas cada vez maiores da realidade, registrando propriedades compartilhadas entre cada vez
mais coisas, a outra em direção à interseção de todas as linhas conceituais, a unidade
complexa concreta, o indivíduo, que só podemos abordar em nosso pensamento com a ajuda
de um número infinito de qualificações e que definimos acrescentando à mais alta
generalização, uma “coisa” ou “algo”, um número infinito de características distintivas
específicas. Assim, os peixes eram conhecidos como uma classe de animais separada dos
mamíferos, aves e vermes, por um lado, muito antes de serem feitas distinções entre peixes
ósseos e cartilaginosos e, também, muito antes de se considerar necessário incluir peixes com
aves e mamíferos dentro de um complexo maior através do conceito de vertebrado, e
distinguir esse complexo maior de vermes.

Essa autoafirmação da mente sobre as inúmeras semelhanças e diferenças que tornam a


realidade tão confusa tem sido comparada à luta pela vida entre todos os seres. Nós nos
afastamos do mundo através de nossos conceitos. Ao se deparar com um louco raivoso, a
primeira coisa que se faz é segurá-lo de qualquer maneira para diminuir o perigo, e uma vez
que isso é alcançado, restringimos seus membros até nos sentirmos relativamente seguros.

Existem dois conceitos cuja origem se remonta às épocas mais antigas da humanidade, e dos
quais esta começa a formar sua existência intelectual. Estabeleceram-se relações tênues entre
eles, julgou-se necessário repetidamente separá-los com algumas variantes, acrescentou-se,
removeu-se, estabeleceu-se limitações, excluídas mais tarde, como acontece da necessidade
que surge de quebrar os grilhões de alguma velha lei coercitiva. Mas, em geral, acho que,
como nos tempos antigos, prevalecem os dois conceitos a que me refiro: os conceitos
de homem e mulher.

Falamos de “mulheres” magras, definhadas, achatadas, musculosas, enérgicas, “mulheres” de


gênio, “mulheres” de cabelo curto e voz grave, e de “homens” imberbes e tagarelas.
Aceitamos até que existam “mulheres não-femininas”, “mulheres masculinas” e “homens”
“não-masculinos”, “femininos”. Concentrando-se apenas em uma característica que é usada
para atribuir uma pessoa a uma categoria sexual no nascimento, ousamos até combinar alguns
conceitos com atributos que realmente os negam. Tal estado de coisas é logicamente
insustentável.

Quem não ouviu e opinou sobre discussões acaloradas sobre “homens e mulheres” ou sobre
“a libertação das mulheres” em um círculo de amigos ou em um salão, em uma reunião
científica ou pública? Nessas conversas e debates, “homens” e “mulheres”, numa ordem
monótona, eram colocados em total oposição um ao outro tais como bolas brancas e
vermelhas, como se não houvesse a menor diferença entre bolas da mesma cor. Nunca houve
qualquer tentativa de discutir questões individuais como tal; e como cada um tinha apenas
suas próprias experiências individuais, naturalmente não havia possibilidade de acordo, como
sempre acontece quando coisas diferentes são descritas pela mesma palavra, quando
linguagem e conceitos não coincidem. Será realmente verdade que todos os “homens” e todas
as “mulheres” são totalmente diferentes uns dos outros, e que todos os que estão de ambos
os lados da divisão, homens de um lado, mulheres do outro, são completamente iguais em
número de estima? Isso é assumido, é claro, na maioria das vezes inconscientemente, em
todas as discussões sobre diferenças sexuais. Em nenhum outro lugar da natureza existem
descontinuidades tão gritantes. Encontramos transições contínuas entre metais e não-metais,
compostos químicos e misturas, e formas intermediárias entre animais e plantas, fanerógamas
e criptógamas, mamíferos e aves. Inicialmente, é apenas por uma necessidade prática muito
geral, de uma visão genérica, que criamos divisões, estabelecemos limites à força e
distinguimos árias separadas dentro da melodia infinita de todas as coisas naturais. Mas “o
sentido torna-se absurdo, boas ações um incômodo” é tão verdadeiro para os antigos
conceitos intelectuais quanto para as regras herdadas de comportamento social. Em vista das
analogias citadas, podemos considerar improvável que na natureza tenha sido feito um corte
limpo entre o masculinis de um lado e o femininis de outro, e que um ser vivo possa ser
descrito simplesmente como residindo deste lado ou daquele lado de tal abismo. Mesmo a
gramática não é tão rígida.

Na controvérsia sobre a Questão da Mulher, o anatomista foi muitas vezes chamado para
atuar como árbitro e realizar a controversa demarcação entre aquelas qualidades da mente
masculina e feminina que são inalteráveis porque são inatas e aquelas qualidades que são
adquiridas. (De qualquer forma, era uma ideia estranha fazer a resposta à questão da
capacidade natural do homem e da mulher depender das descobertas do anatomista: como
se, se todos os outros tipos de experiência fossem realmente incapazes de estabelecer
qualquer diferença entre eles, um excesso de cento e vinte gramas de cérebro de um lado
poderia ter refutado tal resultado). No entanto, anatomistas sóbrios, quando questionados
sobre critérios que se apliquem sem exceção, seja em relação ao cérebro ou a qualquer outro
órgão do corpo, sempre responderão que não é possível demonstrar diferenças sexuais
constantemente recorrentes entre todos os homens por um lado e todas as mulheres do
outro. Embora, dirão, o esqueleto da mão na maioria dos homens seja diferente do da maioria
das mulheres, não é possível determinar o sexo de uma pessoa a partir de partes (isoladas),
seja na forma esquelética ou preservadas juntas. com músculos, ligamentos, tendões, pele,
sangue e nervos. O mesmo vale para o tórax, o sacrum e o crânio. E aquela parte do esqueleto
que, na verdade, deveria mostrar fortes diferenças sexuais: a pélvis? Afinal, acredita-se
geralmente que a pelve esteja adaptada para o ato do nascimento em um caso e não no outro.
Mas mesmo a pélvis não pode servir como um determinado critério. Como todos sabem — e
os anatomistas sabem um pouco mais a esse respeito — existem “mulheres” suficientes com
uma pelve masculina estreita e “homens” suficientes com uma pelve feminina larga. Não há
diferenças sexuais então? Talvez seja mais sábio no final não distinguir entre homens e
mulheres?

Como resolvemos esta questão? As velhas respostas são insuficientes, mas não podemos
prescindir delas. No entanto, diante de tais insuficiências, é necessário buscar um novo
caminho que nos permita uma orientação mais segura.

I — “Homem” e “Mulher”
Ao classificar a maioria dos seres vivos nos termos mais gerais e simplesmente chamá-los de
macho ou fêmea, homem ou mulher, não podemos mais fazer justiça aos fatos. A inadequação
desses termos é sentida mais ou menos claramente por muitos. O primeiro objetivo deste
estudo é esclarecer as coisas a esse respeito.

Juntando-me a outros autores que escreveram recentemente sobre fenômenos relacionados a


esse tópico, tomo como ponto de partida a ausência de diferenciação sexual no estágio
embrionário mais precoce de humanos, plantas e animais, conforme estabelecido pela história
do desenvolvimento (embriologia).
Em um embrião humano com menos de cinco semanas, por exemplo, é impossível reconhecer
o sexo em que se desenvolverá mais tarde. Somente na quinta semana fetal começam os
processos que irão, no final do terceiro mês de gravidez, desenvolver a genitália primitiva,
originalmente compartilhada por ambos os sexos, em uma direção particular e, no devido
tempo, produzirá um indivíduo que pode ser sexualmente definido em termos precisos[1]. Não
descreverei esses processos em detalhes aqui.

É fácil ver uma conexão entre a predisposição bissexual de todos os organismos, incluindo os
mais elevados, e o fato de que mesmo na planta, animal ou humano mais monossexualmente
desenvolvido, as características do outro sexo persistem sem exceção e nunca desaparecem
completamente. Em outras palavras, a diferenciação sexual nunca é completa. Todas as
características do sexo masculino, ainda que fracamente desenvolvidas, podem de alguma
forma ser detectadas também no sexo feminino; e igualmente todas as características sexuais
de uma mulher, por mais retardadas que sejam, estão de alguma forma presentes em um
homem. Eles estão presentes no que é comumente chamado de forma “rudimentar”. Por
exemplo, entre os humanos, nos quais nos concentraremos quase exclusivamente, mesmo a
mulher mais feminina tem um delicado crescimento de penugem não pigmentada chamada
“lanugo” no local onde os homens têm barba, e mesmo o homem mais masculino tem um
complexo de glândulas incompletamente desenvolvidas sob seus mamilos. Essas coisas foram
investigadas em particular na área dos órgãos sexuais e suas saídas, o “trato urogenital”
propriamente dito, onde foi possível demonstrar em ambos os sexos todas as características
do outro, de forma rudimentar, mas em completo paralelo.

Essas observações dos embriologistas, colocadas lado a lado com outras, podem ser inter-
relacionadas dentro de um sistema. Se seguirmos Häckel ao chamar a separação dos sexos de
“gonocorismo”, primeiro teremos que distinguir entre diferentes graus de gonocorismo entre
as diferentes classes e espécies. As diferentes espécies, não apenas de plantas, mas também
de animais, contrastarão entre si de acordo com a quantidade de características latentes de
um sexo no outro. Nesse sentido mais amplo, o caso mais extremo de diferenciação sexual, ou
seja, o grau mais alto de gonocorismo, é o dimorfismo sexual. Esta é uma peculiaridade, por
exemplo, de algumas espécies de isópodes em que a diferença na aparência externa entre
machos e fêmeas é tão grande, e às vezes até maior do que entre membros de duas famílias
ou gêneros diferentes. Assim, o gonocorismo entre vertebrados nunca é tão desenvolvido
como, por exemplo, entre crustáceos ou insetos. No caso deles não há uma separação tão
completa entre machos e fêmeas como no dimorfismo sexual, mas sim inúmeras misturas
sexuais, incluindo o chamado “hermafroditismo anormal”; e entre os peixes há até famílias
com hermafroditismo exclusivo ou normal.

No caso dos humanos, o seguinte é indubitavelmente verdadeiro:

Entre o Homem e a Mulher existem inúmeras gradações, ou “formas sexuais intermediárias”.


Assim como a física fala de gases ideais — isto é, aqueles que seguem precisamente a lei de
Boyle-Gay-Lussac (na realidade nenhum a obedece) — antes de passar a notar divergências
desta lei em casos concretos, podemos também postular um homem ideal M e uma Mulher
ideal W, nenhum existindo como tipos sexuais. Esses tipos não só podem como devem ser
construídos. O tipo, a ideia platônica, não é apenas o “objeto da arte”, mas também o da
ciência. A ciência da física explora o comportamento de corpos completamente rígidos e
completamente elásticos, com plena consciência de que a realidade nunca lhe fornecerá um
ou outro para confirmação. Os estágios intermediários que se estabelecem empiricamente
como existentes entre os dois servem apenas como ponto de partida nessa busca por formas
típicas de comportamento e, ao retornar da teoria à prática, são tratados e exaustivamente
descritos como formas mistas. E, igualmente, há uma série de estágios intermediários entre o
Homem completo e a Mulher completa, que podem ser aproximados, mas nunca são
experimentados como tais na realidade.

Deve-se notar que não estou falando apenas de uma predisposição bissexual, mas de
bissexualidade permanente, nem apenas daqueles estágios intermediários entre os sexos, os
hermafroditas (físicos ou psíquicos), aos quais todos os estudos desse tipo foram restritos até
agora por razões óbvias. Nesta forma, então, minha ideia é inteiramente nova. Pois até hoje o
termo “estágios sexuais intermediários” foi aplicado apenas aos estágios intermediários entre
os sexos, como se, matematicamente falando, estes constituíssem um ponto de concentração
particular e fossem algo mais do que apenas um pequeno trecho ao longo de uma linha de
conexão entre dois extremos que são igualmente densamente ocupados em todos os pontos.
Homem e Mulher, então, são como duas substâncias divididas entre os indivíduos vivos em
diferentes proporções, sem que o coeficiente de uma substância chegue a zero. Pode-se dizer
que na experiência empírica não há nem Homem nem Mulher, mas apenas macho e fêmea.
Assim, não se deve mais chamar um indivíduo A ou um indivíduo B simplesmente de “homem”
ou “mulher”, mas cada um deve ser descrito em termos das frações que possui de ambos, por
exemplo:

Onde sempre:

Essa visão — como sugerida na introdução em termos mais gerais — pode ser apoiada por
inúmeras evidências precisas. Pode-se lembrar de todos aqueles “homens” com pélvis
feminina e seios femininos, barba faltante ou escassa, cintura marcada, cabelos compridos
demais, todas aquelas “mulheres” com quadris estreitos[2] e seios pequenos, nádegas
cadavéricas e gordura subcutânea nos fêmures, vozes roucas e bigode (para o qual há uma
predisposição muito mais abundante do que geralmente se percebe, porque é claro que
sempre é removido: não estou falando de barbas, que tantas mulheres desenvolvem após a
menopausa), etc., etc., coisas que normalmente são encontradas quase sempre juntas na
mesma pessoa, são conhecidas por todo clínico e todo anatomista prático por sua própria
experiência, embora até agora não tenham sido coletadas em nenhum lugar.

A prova mais abrangente do ponto de vista aqui defendido é fornecida pela ampla gama de
variações nos números referentes às diferenças sexuais que são encontradas invariavelmente
tanto em estudos individuais quanto entre vários levantamentos antropológicos e anatômicos
dedicados à medição das mesmas.

Em todos estes casos, os números dados para o sexo feminino nunca começam onde
terminam os do sexo masculino, mas há sempre uma área central em que tanto homens como
mulheres estão representados. Por mais que essa incerteza beneficie a teoria das formas
sexuais intermediárias, ela deve ser sinceramente lamentada no interesse da verdadeira
ciência. Até agora os anatomistas e antropólogos profissionais não tentaram nenhuma
representação científica dos tipos sexuais, mas apenas quiseram estabelecer características
gerais igualmente válidas, o que, repetidas vezes, foram impedidos de fazer pelo maior
número de exceções. Isso explica a imprecisão e diversidade de todas as medições nesta área

Aqui, como em outros lugares, a ânsia pela estatística, que distingue nossa era industrial de
todas as anteriores e que — obviamente por causa de sua relação distante com a matemática
— leva esta época a se considerar eminentemente científica, inibiu grandemente o progresso
do conhecimento. O que se buscava era a média, não o tipo. Não se entendia que em um
sistema de ciência pura (não aplicada) a última é a única coisa que importa. É por isso que os
preocupados com os tipos ficam completamente decepcionados com as informações
fornecidas pela morfologia e fisiologia atuais. Para satisfazer suas necessidades, todas as
medições e outras investigações detalhadas ainda precisam ser realizadas. O que existe é
inteiramente inútil para a ciência, mesmo no sentido mais amplo (muito menos kantiano) da
palavra.

Tudo depende de conhecer o M e a W, de estabelecer corretamente o Homem ideal e a


Mulher ideal (ideal no sentido de típico, sem implicar qualquer avaliação).

Uma vez que tenha sido possível reconhecer e construir esses tipos, sua aplicação ao caso
individual e sua representação pela quantificação das proporções na mistura será tão fácil
quanto proveitosa.

Vou resumir o conteúdo deste capítulo. Não há seres vivos que possam ser descritos sem
rodeios como unissexuais e de um sexo definido. Em vez disso, a realidade oscila entre dois
pontos em que nenhum dos indivíduos empíricos pode ser encontrado, mas entre os quais
cada indivíduo tem seu lugar em algum lugar. É tarefa da ciência determinar a posição de cada
ser entre esses dois projetos morfológicos. A esses projetos não deve ser atribuída nenhuma
existência metafísica ao lado ou acima do mundo da experiência, mas é necessário construí-los
com o propósito heurístico de representar a realidade da maneira mais perfeita possível. —
—.

Um vislumbre dessa bissexualidade de todas as coisas vivas (como resultado de uma


diferenciação sexual que nunca é completa) é tão antiga quanto o próprio tempo. Pode não ter
sido estranho aos mitos chineses e certamente estava muito vivo na antiguidade grega. Isso é
demonstrado pela personificação de Hermafrodito como figura mítica; a história de
Aristófanes no Banquete de Platão; e mesmo em um período tardio a seita gnóstica dos ofitas
considerava o ser humano primitivo como sendo simultaneamente macho e fêmea.

Notas: [1] - Naturalmente – como nossa necessidade de continuidade nos força a acreditar – as
diferenças sexuais, embora anatomicamente e morfologicamente invisíveis e indetermináveis
pelo olho mesmo com a maior ampliação microscópica, devem de alguma forma ser “pré-
formadas”, isto é, formadas antes da primeira fase de diferenciação. Mas exatamente como
isso acontece é o maior enigma de toda a história da evolução.[2] - Um critério físico bastante
seguro e geralmente aplicável do conteúdo W não é a largura absoluta da pelve medida como
a distância em centímetros entre as cabeças dos fêmures ou as espinhas do ílio, mas a largura
relativa dos quadris em comparação com a do os ombros.

II- Arrenoplasma e Teliplasma


A primeira coisa que se espera de uma obra destinada a ser uma revisão universal de todos os
fatos relevantes seria uma representação nova e completa das qualidades anatômicas e
fisiológicas dos tipos sexuais. No entanto, como não realizei nenhuma das investigações
independentes exigidas para essa tarefa abrangente e, em nenhum caso, considero as
respostas a essas perguntas necessárias para os objetivos finais deste livro, devo renunciar a
esse empreendimento desde o início — bem à parte a questão de saber se tal
empreendimento não transcenderia em muito os poderes de um indivíduo. Compilar os
resultados apresentados na literatura existente seria supérfluo, pois isso foi excelentemente
feito por Havelock Ellis. Uma derivação dos tipos sexuais por meio de prováveis inferências dos
resultados coletados por ele permaneceria hipotética e não pouparia à ciência um único
trabalho novo. As discussões neste capítulo serão, portanto, de natureza mais formal e geral.
Estarão preocupados com os princípios biológicos, embora também se destinem a recomendar
a consideração de certos pontos específicos no decorrer do trabalho que precisam ser
realizados no futuro e, portanto, serem benéficos para esse trabalho. O leigo biológico pode
pular esta seção sem prejudicar muito sua compreensão do resto.

Até agora, a teoria dos diferentes graus de masculinidade e feminilidade foi desenvolvida em
termos puramente anatômicos. No entanto, a anatomia perguntará não apenas em quais
formas, mas também em quais lugares a masculinidade e a feminilidade se expressam. Os
exemplos dados anteriormente de diferenças sexuais em outras partes do corpo deixam claro
que a sexualidade não se restringe aos órgãos reprodutores e gônadas. Mas onde se pode
traçar a linha? O sexo está confinado exclusivamente às características sexuais “primárias” e
“secundárias”? Ou seu alcance é muito maior? Em outras palavras, onde está situado o sexo e
onde não está?

Muitos fatos trazidos à luz nas últimas décadas parecem agora nos forçar a reviver uma teoria
que foi apresentada pela primeira vez na década de 1840, mas que conquistou poucos adeptos
porque, tanto para seu fundador quanto para seus oponentes, suas consequências pareciam
contradizer uma série de resultados de pesquisa que este último, embora não o primeiro,
considerava indiscutíveis. A teoria que, com alguma modificação, a experiência mais uma vez
nos compele a enfrentar é a do zoólogo de Copenhague, J. J. S. Steenstrup, que sustentava que
o sexo está presente em todo o corpo.

Os resultados, extraídos por Ellis, de inúmeros exames de quase todos os tecidos do organismo
demonstram a onipresença das diferenças sexuais. Observo que a tez tipicamente masculina é
muito diferente da tipicamente feminina, o que nos permite supor diferenças sexuais nas
células da cútis e nos vasos sanguíneos. No entanto, tais diferenças também foram
descobertas na quantidade de hemoglobina e no número de glóbulos vermelhos do sangue
por centímetro cúbico de fluido sanguíneo. Bischoff e Rüdinger observaram diferenças entre
os sexos em relação ao cérebro e, mais recentemente, Justus e Alice Gaule também
encontraram essas diferenças nos órgãos vegetativos (fígado, pulmões, baço). De fato, tudo
sobre uma mulher, embora mais fortemente em algumas zonas e menos em outras, tem um
efeito “erógeno” sobre um homem, e similarmente tudo sobre um homem tem um efeito
sexualmente atraente e estimulante em uma mulher.

Podemos assim chegar à noção de que é hipotética do ponto de vista da lógica formal, mas
que é elevada quase ao nível de certeza pela soma total dos fatos: cada célula do organismo
(como diremos provisoriamente) tem um caráter sexual, ou uma certa ênfase sexual. De
acordo com nosso princípio da generalidade das formas sexuais intermediárias, apressamo-nos
a acrescentar que esse caráter sexual pode ser de diferentes graus. A suposição imediata de
diferentes graus no desenvolvimento das características sexuais facilitaria a incorporação em
nosso sistema de pseudo-hermafroditismo e até mesmo de hermafroditismo genuíno (cuja
ocorrência entre muitos animais, embora não com certeza entre humanos, foi estabelecida
sem dúvida desde o tempo de Steenstrup). Steenstrup disse: “Se o sexo de um animal
realmente tivesse apenas base nos órgãos sexuais, poderíamos imaginar a presença de dois
sexos em um animal, de dois desses órgãos sexuais lado a lado. Mas o sexo não é algo que tem
sua sede em algum lugar particular ou que se manifesta através de um determinado órgão; ele
permeia todo o ser e se desenvolve em cada ponto dele. No macho, cada parte, mesmo a
menor, é masculina, por mais que se assemelhe à parte correspondente de uma fêmea, e
neste último, da mesma forma, até a menor parte é exclusivamente feminina. Portanto, a
presença conjunta de ambos os órgãos sexuais só faria um ser bissexual se as naturezas de
ambos os sexos fossem capazes de dominar todo o corpo e afirmar-se em todos os pontos —
algo que, devido à oposição diametral dos sexos, só poderia resultar em os dois lados
cancelando um ao outro e todo sexo desaparecendo em tal criatura”. Se, no entanto, como
todos os fatos empíricos parecem ditar, o princípio das inúmeras formas de transição da
sexualidade entre M e W se estende a todas as células do organismo, a dificuldade que
perturbou Steenstrup é removida e a bissexualidade não mais contraria a natureza. Com base
neste princípio, é possível imaginar um número infinito de diferentes características sexuais de
cada célula, desde a masculinidade total, passando por todas as formas intermediárias, até sua
completa ausência, o que coincidiria com a feminilidade total. Seria prudente abster-se de
quaisquer suposições sobre se essa gradação em uma escala de diferenciais deve ser
concebida à imagem de duas substâncias reais se juntando em proporções diferentes ou de
um protoplasma uniforme em uma infinidade de modificações (por exemplo, um arranjo dos
átomos em moléculas grandes). A primeira suposição seria difícil de aplicar fisiologicamente —
se pensarmos em um movimento de um corpo masculino ou feminino e a consequente
necessidade de duplicação das condições que determinam sua real manifestação, que em
última análise é sempre fisiologicamente uniforme. A segunda suposição lembra demais
algumas especulações menos bem-sucedidas sobre a hereditariedade. Talvez ambos estejam
igualmente distantes da verdade.

No momento, nosso conhecimento empírico não nos permite determinar, mesmo como mera
probabilidade, o que pode realmente constituir a masculinidade ou feminilidade de uma
célula, que diferenças histológicas ou físico-moleculares ou mesmo químicas podem distinguir
cada célula de M de cada célula de W. Sem antecipar qualquer investigação futura (que é mais
provável que reconheça a impossibilidade de derivar qualidades especificamente biológicas da
física e da química), um bom argumento pode ser feito em defesa da suposição de ênfases
sexuais variadamente fortes em todas as células individuais e não apenas em sua soma total,
todo o organismo. Os homens femininos geralmente têm uma pele totalmente mais feminina
e, no caso deles, as células dos órgãos masculinos têm uma tendência mais fraca para se
dividir, como sugerido sem dúvida pelo desenvolvimento mais leve de suas características
sexuais macroscópicas, etc.

As características sexuais devem ser classificadas de acordo com os vários graus de seu
desenvolvimento macroscópico, e sua disposição, em geral, coincide com a força de seu efeito
erógeno sobre o outro sexo (pelo menos no reino animal). Para evitar qualquer confusão,
seguirei a nomenclatura comumente aceita de John Hunter, aplicando o termo característica
sexual primordial às gônadas masculinas e femininas (testículo, epidídimo, ovário, epoóforo) e
primária a ambos os anexos internos das gônadas (cordão espermático, vesícula seminal ,
tuba, útero, cujas características sexuais a experiência às vezes mostrou diferir amplamente
das gônadas) e os “órgãos sexuais externos”, que são os únicos usados para estabelecer o sexo
dos seres humanos ao nascer e que, em certa medida, determinar seu destino na vida
posterior (muitas vezes incorretamente, como será visto). O que todas as características
sexuais que seguem as primárias têm em comum é que elas não são diretamente exigidas para
fins de cópula. Quanto ao primeiro grupo de características sexuais secundárias, podemos
distinguir mais claramente aquelas que não se tornam visíveis externamente até a puberdade
e que, segundo uma visão que quase atingiu o nível de certeza, não podem se desenvolver sem
a “secreção interna”. de certas substâncias das gônadas para o sangue (crescimento de barba
nos homens e cabelo nas mulheres, desenvolvimento dos seios, quebra da voz, etc.).

O uso do termo características sexuais terciárias é sugerido, por razões práticas e não teóricas,
para certas qualidades inatas que só podem ser deduzidas de enunciados ou ações, como força
muscular ou independência mental nos homens. Finalmente, como resultado de costumes,
hábitos ou ocupações relativamente acidentais, surgem as características sexuais acessórias ou
quaternárias, como fumar e beber entre os homens ou bordados entre as mulheres. Também
estes não deixam de ter um efeito erógeno ocasional, o que já sugere, muito mais do que
talvez se suponha, que possam derivar das características terciárias e às vezes até ter uma
profunda ligação com as primordiais. Esta classificação das características sexuais não
pretende prejulgar uma sequência essencial ou decidir se as qualidades mentais precedem as
qualidades corporais ou, inversamente, são determinadas e derivadas destas últimas em uma
longa cadeia causal. É provável, no entanto, que corresponda na maioria dos casos à força da
atração[1], a sequência temporal em que as qualidades em questão atingem
o sexo oposto e o grau de certeza com que são reconhecidos pelo sexo oposto.

Finalmente, como resultado de costumes, hábitos ou hábitos relativamente acidentais,


ocupações, há as características sexuais acessórias ou quaternárias, como fumar e beber entre
os homens ou costurar entre as mulheres. Também estes não deixam de ter um efeito
erógeno ocasional, o que já sugere, muito mais do que talvez se suponha, que possam derivar
das características terciárias e às vezes até ter uma profunda ligação com as primordiais. Esta
classificação das características sexuais não pretende prejulgar uma sequência essencial ou
decidir se as qualidades mentais precedem as qualidades corporais ou, inversamente, são
determinadas e derivadas destas últimas em uma longa cadeia causal. É provável, no entanto,
que corresponda na maioria dos casos à força da atração, a sequência temporal em que as
qualidades em questão atingem o sexo oposto e o grau de certeza com que são reconhecidos
pelo sexo oposto.

No contexto das “características sexuais secundárias”, referi-me à secreção interna de material


das gônadas para o sangue. Os efeitos desta secreção, ou a falta dela induzida artificialmente
devido à castração, têm sido estudados principalmente em relação ao desenvolvimento, ou
falha de desenvolvimento, das características sexuais secundárias. No entanto, a “secreção
interna” sem dúvida exerce influência em todas as células do corpo. Isso é comprovado pelas
mudanças que ocorrem no momento da puberdade em todo o organismo e não apenas
naquelas áreas distinguidas por características sexuais secundárias. De fato, desde o início,
seria difícil entender a secreção interna de todas as glândulas afetando todos os tecidos de
outra forma que não seja igual.

É, então, apenas a secreção interna das gônadas que completa a sexualidade do indivíduo.
Assim, temos que assumir em cada célula uma característica sexual original, que deve, no
entanto, ser unida em certa medida pela secreção interna das gônadas como condição
complementar para produzir um macho ou fêmea definitivo e acabado.
A gônada é o órgão no qual as características sexuais do indivíduo aparecem mais visíveis e em
cujas unidades morfológicas elementares elas podem ser demonstradas com mais facilidade.
No entanto, devemos também supor que as qualidades específicas de gênero, específicas de
espécie e específicas de família de um organismo são representadas mais completamente nas
gônadas. Enquanto Steenstrup corretamente ensinou que o sexo se estende por todo o corpo
e não está localizado apenas nos “órgãos sexuais” específicos, Naegeli, Hugo de Vries, Oskar
Hertwig, et al., desenvolveram a teoria extremamente instrutiva, solidamente baseada em
argumentos de peso, de que cada célula de um organismo multicelular carrega em si todas as
qualidades da espécie e que nas gônadas estas se concentram apenas de forma
particularmente marcada — como talvez pareça óbvio para todos os pesquisadores um dia,
tendo em vista o fato de que todo ser vivo passa a existir através da clivagem e divisão de uma
única célula.

Com base em muitos fenômenos que foram multiplicados desde então por inúmeras
experiências de regeneração de quaisquer partes, e por observações de diferenças químicas
em tecidos homólogos de diferentes espécies, os pesquisadores citados acima tiveram o
direito de supor a existência do idioplasma como a totalidade do propriedades particulares da
espécie, mesmo em todas aquelas células de um metazoário que não servem mais
diretamente ao propósito de reprodução. Da mesma forma também podemos e devemos criar
os conceitos de arrenoplasma e teliplasma como as duas modificações em que qualquer
idioplasma pode aparecer em seres sexualmente diferenciados, tendo em vista que esses
conceitos, segundo as visões defendidas neste estudo como questões de princípio, novamente
representam casos ideais, ou limites, entre os quais reside a realidade empírica. Assim, o
protoplasma que existe na realidade afasta-se cada vez mais do arrenoplasma ideal e,
passando por um ponto (real ou imaginário) de indiferença (= hermafroditismo verdadeiro),
transforma-se num protoplasma mais próximo do teliplasma e do qual só se distingue
finalmente por um pequeno diferencial. Isso nada mais é do que uma conclusão lógica da
soma do que já foi dito antes, e peço desculpas pelos neologismos: eles não foram inventados
apenas para aumentar a novidade do assunto.

A prova de que cada órgão e, na verdade, cada célula possui uma sexualidade situada em
algum ponto entre o arrenoplasma e o teliplasma, ou seja, que, originalmente, cada parte
elementar é determinada sexualmente de certa maneira e em certo grau, pode ser facilmente
fornecida através o fato de que mesmo no mesmo organismo as características sexuais das
diferentes células nem sempre são idênticas e muitas vezes diferem em força. Não é de modo
algum que todas as células de um corpo apresentem o mesmo conteúdo de M ou W, ou seja, a
mesma aproximação de arrenoplasma ou teliplasma, e algumas células de um mesmo corpo
podem até estar situadas em lados diferentes do ponto de indiferença entre esses pólos. Se,
em vez de sempre soletrar a masculinidade e a feminilidade como tais, escolhermos diferentes
signos algébricos para cada um e atribuirmos, sem segundas intenções mais profundas e
dissimuladas neste estágio, um positivo para o masculino e um negativo para o feminino, a
proposição pode ser reformulado assim: a sexualidade das células no mesmo organismo pode
não apenas diferir em quantidade absoluta, mas também pode ser positiva ou negativa.
Existem alguns machos bastante distintos com barbas e músculos bastante fracos, ou fêmeas
quase típicas com seios pequenos e, por outro lado, homens bastante femininos com barbas
fortes e mulheres com cabelos anormalmente curtos e barba claramente visível, mas no ao
mesmo tempo seios bem desenvolvidos e uma pelve espaçosa. Também conheço pessoas com
coxa masculina e perna feminina, ou quadril direito feminino e esquerdo masculino. Em geral,
as diferenças locais entre as características sexuais existem mais frequentemente entre os dois
lados do corpo, direito e esquerdo do plano mediano, que em qualquer caso são simétricos
apenas em circunstâncias ideais: aqui encontramos um enorme número de características
sexuais desenvolvidas assimetricamente, por exemplo, em relação às barbas. No entanto,
como já disse, essa falta de uniformidade (e a uniformidade absoluta nunca existe entre as
características sexuais) dificilmente pode ser atribuída a secreção interna. A mistura, ainda que
não necessariamente a quantidade, do sangue que chega a todos os órgãos deve ser sempre a
mesma, ou seja, em casos não patológicos, tanto da qualidade quanto da quantidade
necessária à sobrevivência.

Se essas variações não fossem causadas, como devemos supor, por uma característica sexual
original que é fixada desde o início do desenvolvimento embrionário e que geralmente é
diferente em cada célula, seria possível descrever plenamente a sexualidade de um indivíduo
simplesmente indicando quão perto, por exemplo, suas gônadas se aproximam do tipo sexual,
e a situação seria muito mais simples do que realmente é. No entanto, a sexualidade não está,
por assim dizer, espalhada por todo o indivíduo em uma medida padrão fictícia, onde a
definição sexual de uma célula também se aplica a todas as outras. Embora raramente haja
grandes lacunas entre as características sexuais das diferentes células ou órgãos do mesmo
organismo vivo, a regra geral deve ser a especificidade das características sexuais de cada
célula. Ao mesmo tempo, permanece o fato de que as aproximações a uma completa
uniformidade das características sexuais (em todo o do corpo) são encontrados com muito
mais frequência do que, aparentemente, diferenças substanciais de grau entre os órgãos
individuais, muito menos as células individuais. Para determinar o alcance máximo de
variações possíveis, seria necessária uma investigação detalhada.

De acordo com uma crença popular que remonta a Aristóteles e que também é defendida por
muitos médicos e zoólogos, a castração de um animal implica regularmente uma mudança
repentina na direção do sexo oposto e a emasculação de um animal macho, por exemplo, eo
ipso [tal como] resulta em efeminação completa. Se assim fosse, a presença em cada célula de
uma característica sexual primordial independente das gônadas voltaria a ser duvidosa. Mas as
experiências mais recentes de Sellheim e Foges mostraram que existe um tipo de castração
que é inteiramente diferente da fêmea, e que a emasculação não é simplesmente idêntica à
efeminação. No entanto, também a este respeito será prudente evitar conclusões demasiado
amplas e radicais, e não se deve excluir a possibilidade de que, após a remoção ou atrofia de
uma primeira gônada, uma segunda gônada do sexo oposto, que esteve latente, passará a
dominar um organismo cujas características sexuais flutuam até certo ponto. Os exemplos
mais conhecidos, ainda que geralmente interpretados com muita ousadia (como a adoção
completa de características masculinas), seriam aqueles numerosos casos em que, após a
involução dos órgãos sexuais femininos na menopausa, um organismo feminino começa a
apresentar sinais secundários externos das características do macho: a “barba” das “avós”
humanas, as pequenas protuberâncias que às vezes se desenvolvem na testa das velhas, as
“penas de galo” das velhas galinhas etc., mas essas mudanças também parecem ocorrer sem
quaisquer atrofias senis ou o impacto de intervenções cirúrgicas externas. Eles foram
estabelecidos sem dúvida como o desenvolvimento normal em alguns representantes dos
gêneros de cymothoa, anilocra e nerocila entre os cymothoidae, uma família de isópodes
parasitas encontrados em peixes. Esses animais são hermafroditas de um tipo peculiar: neles
as gônadas masculinas e femininas estão permanentemente e simultaneamente presentes,
mas nunca funcionam simultaneamente. Trata-se de uma espécie de “protandria”: cada
indivíduo funciona primeiro como homem, depois como mulher. No momento de sua função
masculina, eles têm órgãos sexuais inteiramente masculinos, que são descartados quando a
fêmea sai e as lamelas pós-vaginais se desenvolvem e se abrem. O fato de que tais coisas
também existem entre os humanos parece ser comprovado por aqueles casos extremamente
peculiares de “eviratio” e “efeminatio” em adultos do sexo masculino maduros, relatados pela
psicopatologia sexual. Assim, teremos ainda menos direito de negar categoricamente que a
efeminação possa ocorrer na realidade se lhe forem concedidas condições favoráveis, como a
extirpação da gônada masculina [2]. No entanto, o fato de que a conexão não é geral e
necessária, e que a castração não transforma com certeza um indivíduo em um membro do
sexo oposto, é mais uma prova da necessidade geral de supor que todo o corpo é feito de
células originalmente arrenoplasmáticas e teliplásmicas.

A existência de características sexuais originais em cada célula e a impotência das secreções


gonádicas quando inteiramente revertidas aos seus próprios recursos são ainda comprovadas
pelo fracasso total dos transplantes de gônadas masculinas para animais fêmeas. Se esses
experimentos servissem como evidência conclusiva, seria necessário implantar os testículos
extirpados na fêmea mais próxima, possivelmente uma irmã do macho castrado, para que pelo
menos o idioplasma não fosse muito diferente. Aqui, como em outros lugares, muito
dependeria de isolar as condições decisivas para o sucesso do experimento na forma mais
pura, a fim de obter os resultados mais inequívocos. Experimentos na clínica de Chrobak em
Viena mostraram que os ovários trocados arbitrariamente entre duas fêmeas selecionadas
aleatoriamente atrofiam na maioria dos casos e nunca serão capazes de evitar que as
características secundárias (por exemplo, as glândulas mamárias) murchem: alternativamente,
se a gônada é removida de seu local natural e implantado em um local diferente no mesmo
animal (que assim retém seu próprio tecido), em circunstâncias ideais o desenvolvimento
completo das características sexuais secundárias é tão possível quanto onde nenhuma
operação ocorre. A razão pela qual os transplantes em membros castrados do mesmo sexo
falham é, talvez, a falta de parentesco: o mais importante seria atentar para o aspecto
idioplasmático.

Tudo isso lembra de perto as experiências adquiridas com a transfusão de sangue heterólogo.
É uma regra prática entre os cirurgiões que (para evitar o risco de complicações graves)
qualquer reposição de sangue perdido deve vir não apenas da mesma espécie e de uma família
relacionada, mas também do mesmo sexo. O paralelo com os experimentos em transplantes é
inconfundível. No entanto, se os pontos de vista aqui defendidos estiverem corretos, qualquer
cirurgião que realize transfusões e não prefira infusões salinas, não apenas teria que garantir
que o sangue substituto fosse retirado de um animal filogeneticamente relacionado, mas
também poderia não ser muito exigir que o grau de masculinidade ou feminilidade de
qualquer sangue usado seja o mais semelhante possível.

Assim como essas condições transfusionais fornecem provas das características sexuais dos
corpúsculos sanguíneos, o fracasso total de todos os transplantes, mencionados
anteriormente, de gônadas masculinas para fêmeas ou de gônadas femininas para machos
prova ainda que a secreção interna só pode ter efeito sobre um arrenoplasma ou teliplasma
adequado a ele. Nesse contexto, algo deve ser dito sobre os procedimentos
organoterapêuticos. Do exposto, fica claro que, e por que, se o transplante cuidadoso de
gônadas relativamente intactas para indivíduos do outro sexo não foi bem-sucedido, a injeção
de substância ovariana no sangue de um homem, por exemplo, também não poderia fazer
nada além de prejudicar. Por outro lado, muitas objeções ao princípio da organoterapia são
invalidadas pelo fato de que preparações orgânicas de não membros da espécie,
naturalmente, nem sempre podem ter um efeito pleno por sua própria natureza. Ao ignorar
um princípio biológico de tamanha importância como a teoria do idioplasma, os
representantes médicos da organoterapia podem ter perdido muitas curas bem-sucedidas. A
teoria do idioplasma, que atribui as características particulares da espécie mesmo àqueles
tecidos e células que perderam sua capacidade reprodutiva, ainda não é amplamente
reconhecida. Mas todos devem ao menos aceitar que as características da espécie são
coletadas nas gônadas e que, no caso das preparações das gônadas em particular, a menor
distância possível entre parentes deve ser o requisito primordial, se este método visa alcançar
mais do que apenas fornecer um bom tônico. Talvez fosse útil realizar experimentos paralelos
envolvendo o transplante de gônadas e injeções de seus extratos: por exemplo, pode-se
comparar o efeito em um galo de um testículo, retirado de si mesmo ou de um indivíduo
intimamente relacionado e transplantado, por exemplo , para sua cavidade peritoneal, com a
de injeções intravenosas de extrato testicular em outro galo castrado, sendo o extrato
novamente retirado dos testículos de indivíduos aparentados. Tais experimentos também
podem fornecer informações instrutivas sobre as quantidades e métodos mais apropriados
para produzir as preparações orgânicas e injeções individuais. Seria ainda desejável do ponto
de vista teórico estabelecer se as secreções internas das gônadas formam um composto
químico com substâncias na célula, ou se seu efeito é meramente catalítico e essencialmente
independente de sua quantidade. Dadas as investigações realizadas até agora, esta última
hipótese ainda não pode ser descartada.

Eu tive que delinear os limites do impacto da secreção interna na formação do caráter sexual
definitivo, a fim de afastar quaisquer objeções à suposição de que cada célula contém
características sexuais originais que geralmente diferem em grau e são determinadas desde o
início.[ 3] Embora na esmagadora maioria dos casos tais características possam não ser
particularmente diferentes em grau nas várias células e tecidos do mesmo indivíduo, existem
algumas exceções notáveis que revelam a possibilidade de grandes amplitudes. Assim, os
óvulos e espermatozoides individuais, não apenas de organismos diferentes, mas também nos
folículos e na massa espermática de um mesmo indivíduo, mostrarão diferenças no grau de
sua feminilidade e masculinidade, tanto ao mesmo tempo como ainda mais em épocas
diferentes: por exemplo, os espermatozoides serão mais ou menos esbeltos, mais ou menos
rápidos. Até agora sabemos muito pouco sobre essas diferenças, mas apenas porque ninguém
ainda examinou essas questões com a mesma intenção do presente estudo.

No entanto — e isso é o interessante — nos testículos de alguns anfíbios, óvulos reais e bem
desenvolvidos foram encontrados lado a lado com os estágios normais de desenvolvimento da
espermatogênese, não apenas por um observador em uma única ocasião, mas por vários em
muitas ocasiões diferentes. Essa interpretação foi contestada e houve quem admitisse com
certeza apenas a existência de células anormalmente grandes no canal espermático, mas
posteriormente o fato acima foi estabelecido sem dúvida. As formas hermafroditas são de fato
extremamente comuns entre os anfíbios em questão, mas este fato por si só é prova suficiente
da necessidade de cautela ao assumir a relativa uniformidade de arrenoplasma ou teliplasma
em um mesmo corpo. Parece distante do assunto em discussão, e ainda um tipo semelhante
de julgamento precipitado, descrever e continuar a considerar um indivíduo humano como um
“menino”, apenas porque ele nasceu com um órgão masculino muito curto ou mesmo
epispádico ou hipospádico, muito menos com o criptorquismo duplo, quando outras partes de
seu corpo, por exemplo, o cérebro, estão muito mais próximas do teliplasma do que do
arrenoplasma. Sem dúvida, devemos tentar aprender a diagnosticar matizes mais sutis da
sexualidade no nascimento.
Como resultado dessas longas induções e deduções, podemos agora considerar firmemente
estabelecido que as características sexuais originais não devem ser consideradas idênticas ou
mesmo aproximadamente idênticas em todas as células do mesmo corpo. Cada célula, cada
complexo de células, cada órgão tem um certo índice que mostra sua posição entre o
arrenoplasma e o teliplasma. Em geral, um índice para todo o corpo será suficiente para
satisfazer quaisquer exigências moderadas de exatidão. No entanto, estaríamos cometendo
erros teóricos desastrosos e pecados práticos graves se pensássemos seriamente que com
uma descrição tão incorreta tínhamos feito todo o possível para casos individuais.

A ocorrência de formas sexuais intermediárias é determinada pelos diferentes graus das


características sexuais originais em conjunto com as secreções internas (que provavelmente
variam em qualidade e quantidade em cada indivíduo).

Arrenoplasma e teliplasma, em suas gradações infinitas, são os agentes microscópicos que,


juntamente com a “secreção interna”, criam aquelas diferenças macroscópicas que foram o
único assunto do capítulo anterior.

Assumindo que as explicações dadas até agora estão corretas, há uma necessidade de toda
uma série de investigações anatômicas, fisiológicas, histológicas e histoquímicas sobre as
diferenças entre os tipos M e W na estrutura e função de todos os órgãos individuais, e na
forma como o arrenoplasma e o teliplasma são diferenciados nos vários tecidos e órgãos.
Nosso conhecimento atual de médias nessas questões dificilmente é suficiente mesmo para o
estatístico moderno, e seu valor científico é muito pequeno. Uma razão pela qual todos os
estudos sobre diferenças sexuais no cérebro, por exemplo, conseguiram produzir tão pouco
valor é que os pesquisadores não examinaram as condições típicas, mas ficaram satisfeitos
com o que um certificado de batismo ou o aspecto mais superficial de um cadáver revelado
sobre o sexo de uma pessoa, e assim aceitava cada Jack ou Jill como representantes completos
da masculinidade ou feminilidade. Se eles não acreditavam que precisavam de dados
psicológicos, deveriam ao menos ter verificado alguns outros fatos na composição do corpo
que podem determinar a masculinidade ou a feminilidade, como a distância entre os grandes
trocânteres, a spinae ilíaca ant., sup., etc., etc. Afinal, a harmonia entre as características
sexuais das várias partes do corpo é mais comum do que grandes saltos do mesmo entre
diferentes órgãos.

Aliás, a mesma fonte de erros — a aceitação impensada de formas sexuais intermediárias


como indivíduos que fornecem a norma — foi deixada em aberto em outras investigações, e
esse descuido pode retardar a descoberta de resultados defensáveis e prováveis por muito
tempo. Por exemplo, aqueles que especulam sobre as causas do excesso de meninos nascidos
não devem ignorar inteiramente essas circunstâncias. No entanto, aqueles que se atrevem a
tentar resolver o problema das causas que determinam o sexo sem levá-las em consideração
terão que pagar muito caro por não fazê-lo. Até que examinem a posição entre M e W de todo
ser vivo que nasce e se torna objeto de seus estudos, suas hipóteses ou mesmo seus métodos
de manipulação experimental podem ser desconfiados com razão. Pois se continuarem a
classificar as formas sexuais intermediárias nascidas como masculinas ou femininas da mesma
maneira superficial que antes, estarão reivindicando para si alguns casos que testemunham
contra elas se examinados em maior profundidade, e consideram outros casos como
contraexemplos, que na verdade não são. Sem o Homem ideal e a Mulher ideal, carecerão de
um padrão firme para aplicar à realidade e tropeçarão em incertas ilusões superficiais.
Por exemplo, os resultados alcançados por Maupas, que conseguiram determinar
experimentalmente o sexo do rotífero hydatina senta, ainda continham desvios de 3 a 5%.
Embora em temperaturas mais baixas ele esperasse o nascimento de fêmeas, essa
porcentagem de nascimentos era masculina; e, igualmente, em altas temperaturas,
contrariando a regra, emergia aproximadamente a mesma porcentagem de fêmeas. Deve-se
supor que eram formas sexuais intermediárias, fêmeas muito arrenoplásmicas em alta
temperatura, machos muito teliplásmicos em baixa. Onde o problema é muito mais
complicado, por exemplo, no caso do gado, para não falar dos humanos, a porcentagem de
casos que sustentam a teoria dificilmente será tão grande quanto aqui, e a interpretação
correta será, portanto, muito mais prejudicada por irregularidades devido às formas sexuais
intermediárias.

Uma patologia comparativa de tipos sexuais, assim como sua morfologia, fisiologia e biologia
do desenvolvimento, por enquanto, permanece apenas um desiderato. No entanto, tanto
nesta área como nas outras, podemos tirar algumas conclusões das estatísticas. Se as
estatísticas demonstram que uma determinada doença é encontrada muito mais
frequentemente no “sexo feminino” do que no “masculino” podemos geralmente supor que
esta é uma afecção “idiopática” peculiar ao teliplasma. Assim, o mixedema, por exemplo, é
provavelmente uma doença de W [da mulher], enquanto a hidrocele é naturalmente uma
doença de M [do homem].

No entanto, mesmo os números estatísticos mais reveladores não podem com certeza evitar
erros teóricos até que uma conexão funcional indissolúvel seja estabelecida entre uma
determinada doença e masculinidade ou feminilidade. A teoria das doenças em questão
também terá que explicar por que elas “parecem quase exclusivamente em um sexo”, ou seja
(na terminologia desenvolvida aqui), eles pertencem a M ou a W.

III — Leis da Atração Sexual


Carmem:
“O amor é um pássaro rebelde,
Que ninguém pode domar:
E é em vão que o chamamos
Se lhe convém recusar.
Nada funciona; ameaça ou oração:
Um fala, o outro fica em silêncio;
E é o outro que eu prefiro;
Ele não disse nada, mas eu gosto dele
.....................................
O amor é filho da boêmia
Ele nunca conheceu qualquer lei.”

Expresso nos termos antigos, entre todos os organismos sexualmente diferenciados existe
uma atração entre machos e fêmeas, Homem e Mulher, cujo objetivo é a cópula. No entanto,
como Homem e Mulher são apenas tipos, não encontrados de forma pura na realidade, não
podemos mais dizer que a atração sexual busca reunir um macho e uma fêmea. No entanto, a
teoria aqui defendida deve levar em conta os efeitos sexuais para que seja completa, e os
novos métodos devem ser capazes de representar a área em que ocorrem melhor do que os
antigos para manter sua vantagem sobre os últimos. De fato, a descoberta de que M e W estão
distribuídos entre os organismos em todas as diferentes proporções possíveis me levou à
descoberta de uma lei natural desconhecida, da qual um filósofo suspeitou apenas uma vez,
uma lei da atração sexual. Eu recolhi esta lei da minha observação dos seres humanos e,
portanto, começarei com eles aqui

Todos os seres humanos têm seu “gosto” específico no que diz respeito ao sexo oposto. Se,
por exemplo, comparamos os retratos das mulheres que se sabe terem sido amadas por
qualquer homem famoso na história, quase sempre encontramos uma semelhança quase
constante entre todos eles. Em sua aparência externa, isso é mais marcante em sua
constituição (no sentido estrito da figura) ou em seu rosto, mas, olhando mais de perto,
estende-se aos mínimos detalhes — ad unguem — até as unhas. O mesmo, no entanto,
também se aplica em outros lugares. Assim, toda garota que atrai fortemente um homem
imediatamente o lembra de todas as garotas que antes tinham um efeito semelhante sobre
ele. Além disso, todo mundo tem muitos conhecidos cujo gosto pelo sexo oposto o levou a
exclamar: “Está além de mim como alguém pode imaginá-la”. Darwin (em The Descent of Man
[A Descendência do Homem]) coletou um grande número de fatos que tornam impossível
duvidar que também entre os animais cada indivíduo tem seu próprio gosto específico. Em
breve será mostrado que existem analogias claras com esse fato de gosto específico mesmo
entre as plantas.

Quase sem exceção, a atração sexual, como a gravitação, é recíproca. Onde parece haver
exceções a essa regra é quase sempre possível demonstrar alguns fatores mais diferenciados
que impedem a busca do gosto imediato — quase sempre recíproco — ou que criam um
desejo se aquela primeira impressão imediata não estiver presente.

Ditados comuns, como “a pessoa certa virá” ou “esses dois são completamente inadequados
um para o outro”, também sugerem uma vaga consciência do fato de que em todos os seres
humanos existem certas qualidades que fazem parecer menos do que completamente
fortuito. qual indivíduo do sexo oposto está apto à união sexual com eles; e que não é possível
para cada “homem” ou “mulher” substituir qualquer outro “homem” ou “mulher” sem que
isso faça diferença.

Todo mundo também sabe por experiência própria que certos membros do sexo oposto
podem repudiá-lo, outros o deixam frio, outros novamente apelam para ele, até que
finalmente (talvez nem sempre) chega um indivíduo que desperta nele tal desejo de união que
em comparação, ele pode vir a considerar o mundo inteiro como inútil e inexistente. Que
indivíduo é este? Que qualidades esse indivíduo deve possuir? Se — e é assim — cada tipo de
homem realmente tem como seu correlato um tipo correspondente de mulher que exerce um
efeito sexual sobre ele, e vice-versa, então, pelo menos, uma certa lei parece estar em ação
aqui. Que tipo de lei é essa? Como pode ser formulado? “Os opostos se atraem”, me disseram
quando, já de posse da minha própria resposta, insisti teimosamente em várias pessoas para
que pronunciassem tal lei, auxiliando sua capacidade de abstração com exemplos. Isso
também é aceitável em certo sentido e para uma minoria de casos. Mas é muito geral, escapa-
se das mãos dos que tentam apreender algo concreto e não admitem qualquer formulação
matemática.

Este livro não pretende desvendar todas as leis da atração sexual — pois existem muitas — e,
portanto, de forma alguma pretende estar em posição neste estágio de fornecer a cada
indivíduo informações confiáveis sobre qual indivíduo do sexo oposto seria melhor.
correspondesse ao seu gosto, embora um conhecimento completo das leis relevantes tornasse
isso realmente possível. Apenas uma dessas leis será discutida neste capítulo, porque está
organicamente relacionada às outras discussões do livro. Estou no rastro de uma série de
outras leis, mas esta foi a primeira que tomei conhecimento, e o que tenho a dizer sobre isso
é, relativamente falando, mais completo. As imperfeições da evidência podem ser perdoadas
em vista da novidade e dificuldade do assunto.

No entanto, em certo sentido é, felizmente, desnecessário listar aqui os fatos dos quais
originalmente extraí esta lei da afinidade sexual, ou o grande número de pessoas que a
confirmaram a mim. Pede-se a todos que testem primeiro em si mesmos e depois olhem ao
redor do círculo de seus conhecidos: em particular, eu o aconselharia a lembrar e prestar
atenção naqueles casos em que ele não entendia seu gosto ou mesmo negava que eles
tivessem qualquer “gosto”. ”, ou onde o mesmo foi feito a ele por outros. O conhecimento
mínimo das formas externas do corpo humano que é necessário para este escrutínio está à
disposição de todos.

Foi da mesma forma, que julguei dever assinalar aqui primeiro, que eu mesmo cheguei à lei
que agora formularei.

A lei é assim: “É sempre um homem completo (M) e uma mulher completa (W) que se
esforçam para se unir em união sexual, embora sejam distribuídos em proporções diferentes
entre os dois indivíduos diferentes em cada caso”.

Em outras palavras: se em um indivíduo µ, descrito de acordo com o entendimento comum


simplesmente como um homem, Mμ [micro] é o elemento masculino e Wμ [micro]o feminino,
e em uma pessoa ω [Ômega], de outra forma superficialmente descrita simplesmente como
uma “mulher”, Wω [Ômega] expressa o grau do elemento feminino e Mω do masculino, então
em todos os casos de afinidade completa, isto é, da atração sexual mais forte,

(Ia) Mμ + Mω = C (onstante)1 = O homem ideal

E portanto, da mesma forma, naturalmente

(lb) Wμ + Wω = C2 = A mulher ideal.

Esta formulação não deve ser mal interpretada. Descreve um caso, uma única relação sexual,
para a qual ambas as fórmulas são válidas, mas onde a segunda fórmula segue diretamente da
primeira, sem acrescentar nada de novo a ela. Pois estamos trabalhando na suposição de que
todos os indivíduos têm tanta feminilidade quanto falta masculinidade. Se forem
completamente homens, desejarão uma contraparte completamente feminina, e se forem
completamente femininas, um completamente masculino. Se, no entanto, eles contiverem
uma proporção um pouco maior de Homem e outra proporção não desprezível de Mulher, eles
exigirão um indivíduo que os complemente e sua masculinidade fragmentária para formar um
todo; ao mesmo tempo, sua proporção de feminilidade será complementada da mesma forma.
Suponhamos, por exemplo, que um indivíduo tenha

therefore = portanto
Então, de acordo com nossa lei, o melhor complemento sexual desse indivíduo será aquele
que pode ser definido sexualmente da seguinte forma:

therefore = portanto

Essa formulação já mostra a vantagem da maior generalidade sobre a visão comum. Que o
homem e a mulher, como tipos sexuais, se atraem, está contido nela apenas como um caso
especial em que um indivíduo imaginário

“é complementado por um igualmente imaginário”

Ninguém hesitará em admitir o fato de um gosto sexual definido. Ao fazê-lo, porém, também é
reconhecida a justificativa de perguntar sobre as leis desse gosto e sobre a relação funcional
entre a preferência sexual e as outras qualidades físicas e psicológicas de um organismo. A lei
aqui estabelecida nada tem de obviamente improvável, nem entra em conflito algum com a
experiência ordinária ou cientificamente calibrada. Mas, em si, certamente também não é
“auto evidente”. Poderia concebivelmente — uma vez que a própria lei ainda não pode ser
deduzida — também funcionar assim: Mµ−Mω = Const., ou seja, a diferença, e não a soma do
conteúdo M, poderia ser uma qualidade constante e, portanto, mesmo o mais masculino
homem estaria tão distante de seu complemento, que então se localizaria exatamente no
meio entre M e W, quanto o homem mais feminino dele, o que neste caso deveria ser
considerado como extrema feminilidade. Seria, como digo, concebível, mas isso não significa
que exista na realidade. Se, lembrando que se trata de uma lei empírica, seguirmos o ditame
da moderação, não falaremos, por enquanto, de uma “força” puxando dois indivíduos um para
o outro como marionetes, mas consideraremos a lei apenas como a expressão de uma relação
que pode ser detectada em cada instância da atração sexual mais forte da mesma maneira: ela
só pode revelar um “invariante” (Ostwald) ou “multiponível” (Avenarius), que neste caso é a
soma sempre constante de o masculino e o feminino nos dois organismos que se atraem mais
fortemente.

Aqui o elemento “estético” ou “beleza” deve ser completamente ignorado. Pois quantas vezes
um homem fica completamente encantado por uma certa mulher e fica fora de si por sua
beleza “extraordinária”, “encantadora”, enquanto outro homem “gostaria de saber o que
pode ver nela” porque ela não é também seu complemento sexual. Sem assumir a posição de
alguma estética normativa ou querer coletar exemplos para um relativismo de avaliações,
pode-se dizer que um apaixonado considerará belo algo que do ponto de vista puramente
estético não é apenas indiferente, mas completamente feio, onde “ puramente estético” não
significa algo absolutamente belo, mas apenas o belo, isto é, aquilo que é esteticamente
agradável uma vez que todas as “apercepções sexuais” foram deduzidas.

Encontrei a própria lei confirmada em várias centenas de casos (para citar o número mais
baixo), e todas as exceções meramente aparentes. Quase todo casal de namorados que
encontramos na rua fornece uma nova confirmação. As exceções foram instrutivas na medida
em que fortaleceram as pistas para as outras leis da sexualidade e convidaram a uma
investigação mais aprofundada. Aliás, eu mesmo realizei uma série de experimentos
realizando uma pesquisa baseada em uma coleção de fotos de mulheres esteticamente
impecáveis, cada uma delas correspondendo a um determinado conteúdo W, que apresentei a
vários conhecidos, a quem pedi enganosamente “escolha a mais bonita”. A resposta que
recebi foi regularmente a mesma que eu esperava desde o início. Inversamente, fiz-me testar
por outros, que já sabiam o que estava em jogo, mostrando-me fotos das quais eu devia
escolher aquelas que achavam mais bonitas. Isso eu sempre consegui fazer. Para outros, ainda,
que não haviam me apresentado anteriormente nenhuma amostra aleatória, fui capaz de
descrever seu ideal do sexo oposto, às vezes quase completamente e, pelo menos com
frequência, com muito mais precisão do que eles próprios eram capazes de especificar. Às
vezes, eles também se conscientizaram do que não gostavam — que as pessoas geralmente
sabem muito melhor do que o que os atrai — somente depois que eu lhes disse.

Acredito que o leitor, com alguma prática, em breve adquirirá a mesma habilidade que alguns
conhecidos meus escolhidos de um círculo de amigos científicos próximos, estimulados pelas
ideias aqui defendidas, já adquiriram. É certo que também seria muito desejável conhecer as
outras leis da atração sexual neste contexto. Como um teste das proporções em uma relação
realmente complementar, muitas constantes especiais podem ser identificadas. Por exemplo,
pode-se dizer maliciosamente que o comprimento total do cabelo de dois amantes é sempre
igual. No entanto, mesmo que apenas pelas razões discutidas no segundo capítulo, isso nem
sempre seria o caso, pois nem todas as partes de um mesmo organismo são igualmente
masculinas ou femininas. Além disso, tais regras heurísticas logo se multiplicariam e logo
desceriam ao nível de piadas ruins, e é por isso que prefiro me abster de apresentá-las aqui.

Não ignoro o fato de que a forma como esta lei foi introduzida aqui foi um tanto dogmática, o
que a torna ainda menos boa na ausência de provas exatas. No entanto, também aqui me
preocupei menos em apresentar resultados acabados do que em estimular a busca por eles,
pois os meios de que disponho para verificar essas proposições segundo um método científico
eram extremamente limitados. Se, portanto, muitos detalhes permanecem hipotéticos,
espero, no entanto, poder, a seguir, sustentar as vigas individuais do edifício umas com as
outras, indicando algumas analogias notáveis que não haviam sido notadas até agora: até os
princípios da mecânica analítica podem não ser capazes de prescindir do “reforço
retrospectivo”.

Uma confirmação mais impressionante de minha lei é fornecida inicialmente por um conjunto
de fatos do reino vegetal, que até agora foram estudados em completo isolamento e que,
portanto, pareciam extremamente estranhos. Como qualquer botânico terá imediatamente
adivinhado, refiro-me ao fenômeno da heterostilia, a presença de estilos de comprimento
desigual, descoberto por Persoon, descrito pela primeira vez por Darwin, e dado seu nome por
Hildebrand. Isto é o seguinte: muitas espécies de plantas dicótilas (e algumas monocótilas),
por exemplo, primulaceae e geraniaceae, mas especialmente muitas rubiaceae, todas elas
plantas em cujas flores tanto o pólen quanto o estigma são capazes de funcionar, embora
apenas em resposta a produtos de flores alheias, e que, portanto, parecem andróginos do
ponto de vista morfológico, mas dioicos do ponto de vista fisiológico — todos eles têm a
peculiaridade de desenvolver seus estigmas e anteras a diferentes alturas em diferentes
indivíduos. Um espécime desenvolve exclusivamente flores com um estilete longo e, portanto,
um estigma alto e anteras baixas: esta, na minha opinião, é a mais feminina. O outro espécime
produz apenas flores com estigma baixo e anteras altas (por causa de seus estames longos): a
mais masculina. Além dessas espécies “dimorfos”, no entanto, existem também as
“trimórficas”, como Lythrum salicaria, com três comprimentos diferentes dos órgãos sexuais:
entre estas, as flores com estiletes longos e aquelas com estiletes curtos são unidas pelas
flores “ mesóstilo”, ou seja, com estilos de comprimento médio. Mas, embora apenas a
heterostilia dimorfa e trimorfa tenha chegado aos compêndios, ela ainda não esgota todas as
variações. Darwin sugere que “se diferenças menores forem levadas em consideração, cinco
posições distintas dos órgãos masculinos devem ser distinguidas”. Também aqui, então, a
descontinuidade que existe inegavelmente, a separação de diferentes graus de masculinidade
e feminilidade em diferentes andares, não é regra geral, e também neste caso nos deparamos
às vezes com formas sexuais intermediárias mais contínuas. Por outro lado, essas categorias
discretas também têm algumas analogias marcantes no reino animal, onde os fenômenos em
questão eram considerados igualmente isolados e milagrosos porque a heterostilia não era
sequer pensada. Em muitos gêneros de insetos, ou seja, os forculidae (tesouras) e os
lamellicorns (lucanus cervus, o besouro-veado, dynastes hercules e xylotrupes gideon), há, por
um lado, muitos machos nos quais as antenas, a característica sexual secundária que os separa
mais visivelmente das fêmeas, são muito longos, enquanto o outro grupo principal de machos
tem antenas relativamente curtas. Bateson, que forneceu uma descrição bastante detalhada
dessas condições, distingue, portanto, “machos altos” e “machos baixos” entre eles. Esses dois
tipos estão ligados por transições contínuas, mas as formas intermediárias entre eles são raras,
e a maioria dos espécimes está situada em um extremo ou outro. Infelizmente Bateson não
estava interessado em explorar as relações sexuais desses dois grupos com as fêmeas, porque
ele menciona esses casos apenas como exemplos de variação descontínua e, portanto, não se
sabe se existem também dois grupos de fêmeas dentro da espécie em questão que têm
diferentes afinidades sexuais para as diferentes formas de machos. Portanto, essas
observações podem ser usadas apenas como um paralelo morfológico à heterostilia, mas não
como instâncias fisiológicas da lei da atração sexual, para a qual a heterostilia pode de fato ser
utilizada.

As plantas heterostílicas podem, na verdade, ter uma confirmação completa da crença na


validade geral dessa fórmula para todos os seres vivos. Darwin demonstrou, e muitos outros
observadores também notaram desde então, que em plantas heterostílicas a fertilização quase
nunca tem qualquer perspectiva de sucesso, ou mesmo é impossível, a menos que o pólen de
uma flor macrostilosa, isto é, das anteras inferiores, seja transferido para o microstilo. estigma
de outro indivíduo, que possui filamentos longos, ou a menos que o pólen das anteras altas de
uma flor icróstila seja transferido para o estigma macrostiloso de outra planta (com filamentos
curtos). Portanto, em uma flor, o comprimento do estilete, ou seja, o desenvolvimento do
órgão feminino na direção feminina, deve ser igual ao comprimento do órgão masculino, ou
seja, o flamingo, na outra flor, que deve conseguir fertilizá-lo, e neste último o estilo, cujo
comprimento mede o grau de feminilidade, deve ser correspondentemente mais curto. Onde
há três comprimentos diferentes de estilete, a fertilização, de acordo com a mesma regra
expandida, resulta melhor se o pólen for transferido para um estigma de mesma altura em
outra flor que a antera da qual o pólen deriva. Se isso não for observado e, por exemplo, a
fertilização artificial for realizada com pólen inadequado, o procedimento, se for bem-
sucedido, quase sempre resulta em descendentes doentios, atrofiados, anões e totalmente
inférteis, com extrema semelhança com híbridos de espécies diferentes.

Todos aqueles autores que discutiram a heterostilidade estão perceptivelmente insatisfeitos


com a explicação costumeira dessa diversidade de comportamento no processo de fertilização.
A explicação costumeira é que esse efeito notável é causado pelo fato de os insetos que
visitam as plantas tocarem os órgãos sexuais posicionados na mesma altura com a mesma
parte do corpo. No entanto, o próprio Darwin admite que as abelhas carregam todos os tipos
de pólen em cada ponto de seu corpo, de modo que o procedimento eletivo dos órgãos
femininos no curso da polinização com dois ou três tipos diferentes de pólen ainda permanece
inexplicável. Além disso, essa explicação, por mais atraente e mágica que pareça, parece um
tanto superficial para deixar claro por que a polinização artificial com pólen inadequado, a
chamada “fertilização ilegítima”, está destinada a ter tão pouco sucesso. Se assim fosse, um
contato tão exclusivo com pólen “legítimo” teria tornado os estigmas receptivos por hábito
para pólen desta única proveniência. No entanto, de acordo com o próprio testemunho de
Darwin, a ausência de contato com outros pólens é totalmente ilusória, pois os insetos aqui
empregados como mediadores de casamento são de fato muito mais propensos a favorecer o
cruzamento indiscriminado.

Parece, portanto, uma hipótese muito mais plausível que a razão para esse comportamento
seletivo peculiar seja algo diferente, mais profundo e originalmente inerente às próprias flores.
A questão é que aqui, como entre os humanos, a atração sexual é maior entre aqueles
indivíduos dos quais se possui uma pressão tão grande quanto a fórmula acima. A
probabilidade desta interpretação é muito aumentada pelo fato de que na flor mais masculina
com o estilete mais curto os grãos de pólen nas anteras, que são mais altas, são sempre
maiores, e as papilas do estigma menores do que nas partes homólogas dos mais femininos
com os estilos longos. Isso mostra que dificilmente podemos estar lidando com algo além de
diferentes graus de masculinidade e feminilidade. E nesta suposição a lei da afinidade sexual
aqui estabelecida é brilhantemente verificada porque, de fato, nos reinos animal e vegetal —
teremos que voltar a isso mais tarde — a fertilização é sempre mais bem sucedida onde os pais
tiveram maior afinidade sexual uns aos outros.[1]

Que a lei seja inteiramente válida no reino animal só se tornará altamente provável quando
discutirmos a “inversão sexual”. Por enquanto, gostaria apenas de observar como seria
interessante examinar se os óvulos maiores e menos móveis podem ou não atrair os
espermatozoides mais ágeis e esbeltos com mais força do que os óvulos menores, polilecitais e
ao mesmo tempo menos inertes. , enquanto o último pode não atrair precisamente os
zoospermas mais lentos e volumosos. Talvez uma correlação realmente venha à tona aqui
entre as taxas de movimento ou energias cinéticas das duas células sexuais, como L. Weill
presumiu em um pequeno artigo especulativo sobre os fatores que determinam o sexo. Afinal,
até agora ainda não foi estabelecido — e é muito difícil estabelecer — se as duas células
sexuais se moveriam uma em direção à outra com velocidade crescente ou uniforme se fossem
eliminadas as fricções e as correntes no meio líquido. Essas e muitas outras perguntas
poderiam ser feitas aqui.

Como já enfatizado em várias ocasiões, a lei da atração sexual em humanos (e provavelmente


também em animais) discutida até agora não é a única. Se fosse, o fato de não ter sido
descoberto há muito tempo pareceria bastante incompreensível.
Casos de atração sexual irresistível são tão raros precisamente porque tantos fatores
contribuem, porque um número, possivelmente substancial, de outras leis devem ser
obedecidas[2]. Como a pesquisa relevante ainda não está completa, não falarei sobre essas leis
aqui e apenas indicarei, a título de ilustração, um outro fator que poderia desempenhar um
papel e que provavelmente não pode ser formulado facilmente em termos matemáticos

Os fenômenos particulares a que me refiro são bastante conhecidos.

Quando se é bem jovem, com menos de 20 anos, sente-se mais atraído por mulheres mais
velhas (de mais de 35), enquanto com o avançar da idade gosta-se de mulheres cada vez mais
jovens; por outro lado, meninas bem jovens na adolescência com igual frequência
(reciprocidade!) preferem homens mais velhos aos mais jovens, mas mais tarde cometem
adultério com rapazes bem jovens. Todo o fenômeno pode estar mais profundamente
enraizado do que parece, dada a forma anedótica em que é relatado.

Apesar da inevitável restrição deste estudo à única lei, no interesse da correção, tentarei agora
uma melhor formulação matemática, que não finja uma falsa simplicidade. Mesmo sem
introduzir todos os fatores contribuintes e todas as outras leis que possam desempenhar um
papel, alcançaremos essa precisão formal adicionando um fator proporcional.

A primeira fórmula era apenas um resumo “econômico” dos elementos uniformes de todos os
casos de atração sexual de força ideal, na medida em que a relação sexual é determinada pela
lei. Agora vou escrever uma fórmula para a força da afinidade sexual em qualquer caso
concebível. Aliás, esta fórmula, por causa de sua forma indefinida, poderia ao mesmo tempo
fornecer a descrição mais geral da relação entre dois seres vivos, mesmo de espécies e
espécies diferentes.
do mesmo sexo.

Se quaisquer dois seres vivos forem definidos sexualmente como

and Y = e Y

onde novamente

então a força de atração entre eles é


onde f(t) representa qualquer função empírica ou analítica do tempo em que os indivíduos são
capazes de agir uns sobre os outros, ou seja, o “tempo de reação”, como poderíamos chamá-
lo; enquanto k é aquele fator proporcional — a ser especialmente estabelecido em cada caso
— no qual acomodamos todas as leis conhecidas e desconhecidas da afinidade sexual, que,
além disso, depende do grau de espécie, raça e parentesco, bem como sobre a saúde e a
ausência de deformidades nos dois indivíduos, e que, por fim, diminui com o aumento da
distância no espaço.

Se nesta fórmula α = β, então A = ∞. Este é o caso mais extremo: é a atração sexual como uma
força elementar, como apresentada com maestria na história de Lynkeus “In the Post Chaise”.
A atração sexual é algo que segue uma lei natural, assim como as raízes crescem em direção ao
centro da terra e as bactérias migram em direção ao oxigênio na borda da lâmina do espécime.
É certo que é preciso primeiro acostumar-se a tal visão do assunto. Voltarei a este ponto
agora.

Onde α — β atinge seu valor máximo

Então lim A = k.f(t). Assim, como caso específico de fronteira, o resultado são todas as relações
de simpatia e antipatia entre os seres humanos (que, porém, nada têm a ver com as relações
sociais que constituem o ordenamento jurídico da sociedade) na medida em que não são
reguladas pelo nosso direito de afinidade sexual. Como k aumenta com a força das relações
familiares em geral, A tem um valor maior, por exemplo, entre os membros de uma nação do
que entre os de diferentes nações. A razoabilidade de f(t) pode ser facilmente observada onde
dois animais domésticos de espécies diferentes vivem juntos: seu primeiro impulso é muitas
vezes uma inimizade amarga ou medo mútuo (com A se tornando um valor negativo), mais
tarde frequentemente substituído por um relacionamento amigável, no qual eles procuram
uns aos outros.

Se eu colar mais

então A = 0, ou seja, entre dois indivíduos de origens muito diferentes, nenhuma atração
perceptível ocorrerá.

Como é improvável que os códigos penais contenham a lei da sodomia por nada, e atos sexuais
tenham sido observados mesmo entre um humano e uma galinha, pode-se ver que k é maior
que zero dentro de limites muito amplos. Portanto, não devemos restringir os dois indivíduos
em questão à mesma espécie, ou mesmo à mesma classe.

Que todos os encontros de organismos masculinos e femininos sejam regidos por certas leis,
em vez de serem uma questão de acaso, é uma visão nova, e sua estranheza — que foi
abordada anteriormente — nos força a discutir a profunda questão da natureza misteriosa da
atração sexual. .
Os experimentos bem conhecidos de Wilhelm Pfeffer mostraram que os espermatozoides de
vários criptógamos são atraídos não apenas pelas arquegônias femininas em condições
naturais, mas também por algumas substâncias que são excretadas por elas em condições
habituais, ou são produzidas artificialmente, e muitas vezes até por substâncias que não
ocorrem na natureza e, portanto, nunca teriam a oportunidade de entrar em contato com os
espermatozoides, a menos que mediado pelas condições experimentais específicas. Assim, os
espermatozoides das samambaias são atraídos não apenas pelo ácido málico secretado pelas
arquegônias, mas também pelo ácido málico produzido sinteticamente, e mesmo pelo ácido
malônico, enquanto os dos funários são atraídos pela cana-de-açúcar. O espermatozóide
afetado, não sabemos como, por diferenças na concentração da solução se move em direção à
concentração mais alta. Pfeffer chamou esses movimentos de quimiotáticos e cunhou o termo
quimiotropismo para todos esses fenômenos, bem como para outros casos de movimentos
tropicais assexuadamente estimulados. Parece haver muitas indicações de que entre os
animais a atração exercida pela fêmea quando percebida pelo macho à distância através dos
órgãos dos sentidos (e vice-versa) é em alguns aspectos análoga à atração quimiotática.

O quimiotropismo é provavelmente a causa desse movimento enérgico e persistente também


realizado pelos espermatozoides dos mamíferos, de forma independente, sem nenhum
suporte externo, durante dias inteiros em oposição à direção dos cílios da mucosa do útero,
que oscilam do interior para o exterior, do corpo em direção ao colo do útero. Com uma
segurança incrível, quase misteriosa, apesar de todos os obstáculos mecânicos e outros, o
espermatozoide é capaz de encontrar o óvulo. O mais peculiar a este respeito são as enormes
migrações de muitos peixes: os salmões migram sem nenhum alimento por muitos meses do
mar a montante contra as ondas do Reno para desovar em um local seguro com abundantes
estoques de alimentos perto de sua fonte.

Por outro lado, vale a pena relembrar a bela descrição de P. Falkenberg do processo de
fertilização entre algumas algas baixas do Mediterrâneo. Assim como falamos de linhas de
força puxando dois pólos magnéticos com denominações diferentes um para o outro, aqui
também estamos diante de uma força natural que impulsiona o espermatozoide em direção
ao óvulo com poder irresistível. A principal diferença será que os movimentos da matéria
inorgânica exigem mudanças nas condições de estresse nos meios circundantes, enquanto as
forças da matéria viva estão localizadas nos próprios organismos como verdadeiros centros de
poder. De acordo com as observações de Falkenberg, os espermatozoides em seu movimento
em direção ao óvulo superaram até mesmo aquela força que de outra forma os levaria em
direção à luz que entrava. Assim, o efeito quimiotático, chamado impulso sexual, é mais forte
do que o
fototático.

Se dois indivíduos que, de acordo com nossas fórmulas, estão mal combinados formam uma
associação e o complemento real de um aparece posteriormente, a inclinação para deixar o
arranjo improvisado anterior seguirá imediatamente com a inevitabilidade de uma lei natural.
O adultério ocorre, como um evento elementar, um fenômeno natural, assim como quando
FeSO4 é reunido com 2 K OH, e os íons SO4 abandonam imediatamente os íons Fe para passar
para os íons K. Quem quer que tentasse aprovar ou desaprovar em termos morais quando tal
nivelamento de diferenças potenciais está prestes a ocorrer na natureza pareceria para muitos
estar desempenhando um papel ridículo.

Esta é, naturalmente, também a ideia fundamental das Afinidades Eletivas de Goethe,


desenvolvidas no quarto capítulo da primeira parte como um prelúdio lúdico cheio de
significado futuro insuspeitado por aqueles que mais tarde aprenderão sua profunda verdade
fatídica por meio de sua própria experiência. Tenho orgulho de ser o primeiro a retornar a essa
ideia no presente estudo. Ao fazê-lo, porém, desejo tão pouco quanto Goethe defender o
adultério, mas sim torná-lo compreensível. Nos seres humanos existem motivações que
podem neutralizar com sucesso o adultério e preveni-lo. Isso vai ser discutido na segunda
parte. Um sinal de que nos seres humanos mesmo a esfera sexual inferior não é tão
estritamente governada pelas leis naturais como em outros organismos é que os seres
humanos são sexualmente ativos em todas as estações e que neles o remanescente de uma
estação especial de cio na primavera é muito menor. pronunciada do que em animais
domésticos.

A lei da afinidade sexual mostra ainda, embora ao lado de diferenças radicais, analogias com
uma lei bem conhecida da química teórica. Nossa lei é análoga à “lei do impacto de massa” na
medida em que, por exemplo, um ácido mais forte se une principalmente a uma base mais
forte, assim como o ser mais masculino faz com o mais feminino. No entanto, temos aqui mais
de uma nova qualidade em relação à matéria inorgânica. Acima de tudo, um organismo vivo
não é uma substância homogênea e isotrópica capaz de ser dividida em qualquer número de
partes qualitativamente iguais: o “principium individuationis”, o fato de que tudo o que vive
vive como um indivíduo, é idêntico ao fato da estrutura. Portanto, neste último caso não é
possível, como no primeiro, que uma parte maior entre em uma associação e uma parte
menor em outra, gerando assim um subproduto. Além disso, o quimiotropismo também pode
ser negativo. Além de um certo tamanho da diferença a−b na fórmula II, obtemos uma atração
negativa, ou seja, uma na direção oposta, e nos deparamos com a repulsão sexual. É verdade
que também na química inorgânica a mesma reação pode ocorrer em velocidades diferentes.
No entanto, pelo menos de acordo com as últimas visões, se uma reação está totalmente
ausente (ou, no nosso caso, presente na forma de seu oposto), ela nunca pode ser induzida,
por exemplo, por meio de um catalisador, seja por um período mais longo ou um período de
tempo mais curto. Por outro lado, é possível criar um composto que se forma a uma
determinada temperatura e se decompõe a uma temperatura mais elevada e vice-versa. Neste
último caso, a direção da reação é função da temperatura, no primeiro, freqüentemente, do
tempo.

A última analogia da atração sexual com os processos químicos provavelmente repousa no


significado do fator t, o “tempo de reação”, se tais comparações não forem rejeitadas desde o
início. Aqui também se poderia pensar em uma fórmula para a velocidade da reação, os
diferentes graus de velocidade em que a reação sexual se desenvolve entre dois indivíduos, e
talvez realmente tentar diferenciar A de acordo com t. No entanto, ninguém deve permitir que
o orgulho da “pompa matemática” (Kant) o leve a enfrentar circunstâncias tão complicadas e
difíceis, tais funções de constância muito duvidosa, com um quociente diferencial. O ponto
será tomado em qualquer caso: como um processo químico que leva muito tempo para se
tornar perceptível, o desejo sensual pode se desenvolver entre dois indivíduos que estão
juntos ou, de preferência, trancados juntos, por um longo período, mesmo onde não existiam
antes ou onde havia realmente repulsão. Esta é provavelmente uma das razões para o
conforto comumente dado aos que se casam sem amor: isso viria “mais tarde”; aconteceria
“no decorrer do tempo”.

É claro que nenhuma grande importância deve ser dada à analogia com afinidade em
processos químicos inorgânicos, embora eu achasse esclarecedor me envolver em tais
reflexões. Mesmo a questão de se a atração sexual deve ser subsumida aos tropismos ainda
está indecisa, e mesmo que isso fosse certo para a sexualidade, ainda não decidiria
implicitamente nada em relação às questões eróticas. O fenômeno do amor precisa de um
tratamento mais aprofundado, que a segunda parte do meu livro pretende fornecer. No
entanto, existem algumas analogias inegáveis entre esses quimiotropismos e as formas em
que a atração mais apaixonada ocorre mesmo entre humanos: observe o relato da relação
entre Eduard e Ottilie nas Elective Affinities.

À primeira menção deste romance, o problema do casamento já estava


brevemente tratadas, e algumas aplicações práticas decorrentes das discussões teóricas deste
capítulo serão inicialmente também relacionadas ao problema do casamento. A única lei da
atração sexual que estabeleci, e à qual as outras parecem ser muito semelhantes em estrutura,
ensina que existem inúmeras formas sexuais intermediárias e que, como resultado, sempre
haverá dois seres que se adaptam melhor um ao outro. . A este respeito, então, o casamento é
justificado, e o “amor livre”, do ponto de vista biológico, deve ser rejeitado. No entanto, a
questão da monogamia torna-se extremamente complicada, e encontrar uma solução menos
simples, devido a outras circunstâncias, como as periodicidades que mencionarei mais adiante
e as mudanças de gosto com o avançar da idade que discuti anteriormente.

Segue-se uma segunda conclusão se nos lembrarmos da heterostilia e, em particular, o fato de


que a “fecundação ilegítima” quase sempre produz germes incapazes de se desenvolver. Isso
já sugere que a prole mais forte e saudável de outros organismos sairá de uniões nas quais há
um alto grau de atração sexual recíproca. Assim, as pessoas há muito falam de “filhos do
amor” de maneira especial, acreditando que eles se tornarão pessoas mais bonitas, melhores,
mais magníficas. É por isso que, apenas por questão de higiene, mesmo aqueles que não
sentem que têm uma vocação especial para a criação de seres humanos desaprovam o
casamento apenas por dinheiro, o que pode ser muito diferente de casar por razões
puramente racionais.

Gostaria de mencionar de passagem que observar as leis da atração sexual também pode ter
uma influência considerável na criação de animais. Desde o início, mais atenção do que antes
será dada às características sexuais secundárias e ao grau de seu desenvolvimento nos dois
indivíduos que serão acasalados. Os procedimentos artificiais empreendidos para que as
fêmeas sejam servidas por machos reprodutores, mesmo quando estes não se parecem muito
com os primeiros, podem não perder totalmente o seu propósito em casos individuais, mas
como regra geral sempre têm algumas consequências ruins. Esses procedimentos, por
exemplo, são certamente a causa final do tremendo nervosismo de garanhões jovens, gerados
em éguas erradas, que precisam ser alimentados com brometo e outros medicamentos, como
qualquer jovem moderno. Da mesma forma, a degeneração física dos judeus modernos pode
ser causada pelo fato de que entre os judeus, com muito mais frequência do que em qualquer
outro lugar do mundo, os casamentos são feitos por corretores de casamento e não por amor.

Em seus trabalhos, tão fundamentais neste aspecto quanto em outros, Darwin estabeleceu,
através de experimentos e observações muito extensos, algo que desde então tem sido
geralmente confirmado, ou seja, que tanto indivíduos muito próximos quanto indivíduos de
características de espécie excessivamente desiguais têm menos atração sexual um pelo outro
do que certos indivíduos “insignificantemente diferentes”. Se a fertilização ocorre
independentemente, o germe morre nos estágios preliminares de desenvolvimento ou se
torna doentio e geralmente incapaz de se reproduzir, assim como nas plantas heterostílicas a
“fertilização legítima” produz mais e melhores sementes do que qualquer outra combinação.
Assim, os germes cujos pais demonstraram maior semelhança sexual sempre prosperarão
melhor.

Desta regra, que provavelmente pode ser considerada válida em geral, decorre a justeza da
conclusão tirada do que precede: se deve haver casamento e se devem ser produzidos filhos,
pelo menos eles não devem resultar de um esforço para superar a repulsa sexual , o que não
poderia acontecer sem pecar contra a constituição física e mental da criança. Certamente uma
alta proporção de casamentos estéreis são casamentos sem amor. A velha experiência de que
a excitação sexual mútua durante a relação sexual deve aumentar as perspectivas de
concepção provavelmente está ligada a isso e será mais facilmente compreendida como
consequência da maior intensidade, desde o início, do desejo sexual entre dois indivíduos que
se complementam.

[1] - Para fins especiais de reprodutores, cuja intenção é geralmente modificar tendências
naturais, esse princípio deve ser muitas vezes abandonado.

[2] - Geralmente, quando se fala de uma constante no gosto sexual de homens ou mulheres,
pensa-se primeiro na preferência por uma cor de cabelo favorita no sexo oposto. Realmente
parece que, onde uma determinada cor de cabelo é preferida a todas as outras (o que não é o
caso de todas as pessoas), a preferência é bastante profunda.

IV — Homossexualidade e Pederastia
A lei da atração sexual, que acaba de ser discutida, também contém a — há muito procurada
— teoria da inversão sexual, ou seja, a inclinação sexual para o próprio (e não, ou não apenas,
para o sexo oposto). Além de uma distinção, que será feita mais adiante, pode-se afirmar com
ousadia que todo invertido sexual também exibe as características anatômicas do sexo oposto.
Não existe algo como puramente “hermafroditismo psicossexual”. Homens que se sentem
sexualmente atraídos por homens são parcialmente femininos em sua aparência externa e
comportamento e mulheres que têm um desejo sensual por outras mulheres mostram
características físicas parcialmente masculinas. Partindo do pressuposto de um estrito
paralelismo entre propriedades físicas e psíquicas, essa visão é auto evidente, mas, para
demonstrá-la em detalhes, deve-se prestar atenção ao fato, que mencionei no segundo
capítulo, de que nem todas as partes do mesmo organismo estão situados na mesma posição
entre M e W, mas diferentes órgãos podem ser masculinos ou femininos em diferentes
graus. Assim, um invertido sexual sempre mostra uma aproximação anatômica do sexo oposto.

Isso por si só bastaria para refutar a opinião daqueles que consideram a inversão sexual uma
propriedade adquirida pelos indivíduos envolvidos no curso de suas vidas e que abrange a
sensação sexual normal. Que tal propriedade seja adquirida através de estímulos externos na
vida de um indivíduo é acreditado por cientistas respeitados como Schrenck-Notzing, Kräpelin
e Féré, que consideram a abstenção de relações “normais” e, particularmente, a “sedução”
como tais causas. Mas onde isso deixa o primeiro sedutor? Ele foi ensinado pelo deus
Hermafrodito? Para mim, toda essa ideia sempre me pareceu diferente de pensar na
inclinação “normal” de homens típicos para mulheres típicas como algo adquirido
artificialmente, e de alegar, ainda mais absurdamente, que essa atração era invariavelmente
resultado da instrução de companheiros mais velhos que tinha descoberto o prazer da relação
sexual por acaso. Assim como uma “pessoa normal” descobre por si mesma “o que é uma
mulher”, também no “invertido sexual” a atração sexual exercida sobre ele por pessoas do
mesmo sexo provavelmente aparece por si mesma pela mediação desses processos
ontogenéticos que continuam após o nascimento e ao longo da vida. Naturalmente, uma
oportunidade deve surgir para que o desejo por atos homossexuais surja, mas a oportunidade
só pode atualizar o que, em maior ou menor grau, está presente nos indivíduos há muito
tempo e está apenas esperando para ser liberado. O que os teóricos da aquisição teriam que
explicar é o fato de que no caso de abstinência sexual (para ter em mente a segunda suposta
causa da inversão sexual) é possível recorrer a algo diferente da masturbação; entretanto, para
que atos homossexuais sejam almejados e realizados, uma predisposição natural já deve
existir. Afinal, a atração heterossexual também poderia ser chamada de “adquirida” se fosse
necessário, por exemplo, explicar que um homem heterossexual deve ter visto uma mulher, ou
pelo menos uma foto de uma mulher, para se apaixonar por ela. Mas aqueles que tratam a
inversão sexual como uma propriedade adquirida parecem estar refletindo sobre nada além
dessa noção, excluindo toda a predisposição de um indivíduo, que sozinha pode fornecer uma
estrutura para que uma causa específica tenha seu efeito específico: eles parecem fazer um
evento externo de menor importância, uma “condição complementar” final ou “causa parcial”,
o único fator que produz todo o resultado.

A inversão sexual não é mais herdada dos pais ou avós do que adquirida. É certo que ninguém
parece ter feito essa afirmação precisa — que seria contrariada à primeira vista por toda a
experiência -, mas foi sugerido que a precondição da inversão sexual é uma constituição
completamente neuropática, uma deficiência hereditária geral, que se expressa na prole, entre
outras coisas, através de uma inversão dos instintos sexuais. Todo o fenômeno foi alocado ao
domínio da psicopatologia. Era considerado um sintoma de degeneração e aqueles afligidos
por ela como pessoas doentes. Embora essa visão tenha agora menos adeptos do que há
alguns anos, antes de seu ex-principal defensor Krafft-Ebing tacitamente abandoná-la nas
últimas edições de seu Psychopathia sexualis, ainda vale a pena observar que as pessoas
sexualmente invertidas podem ser perfeitamente saudáveis e , além de fatores sociais
acessórios, não se sente pior do que todas as outras pessoas saudáveis. Se lhes perguntarmos
se desejam ser diferentes a este respeito, muitas vezes recebemos uma resposta negativa.

Todas essas tentativas de explicar a homossexualidade foram equivocadas porque o fenômeno


era totalmente isolado e nenhuma tentativa foi feita para conectá-lo a outros fatos. Aqueles
que consideram as “inversões sexuais” como algo patológico ou como uma horrível e
monstruosa anomalia no desenvolvimento mental (esta última sendo a visão sancionada pelos
filisteus), ou mesmo como um vício adquirido pelo hábito ou resultado de uma monstruosa
sedução, deveriam parar de achar que há uma infinidade de transições do macho mais
masculino, através do homem feminino e finalmente o invertido sexual masculino, para o
hermaphroditismus spurius e genuinus, e daí, através da tríbade e do virago, para a virgem
feminina. De acordo com a visão aqui defendida, os invertidos sexuais (“de ambos os sexos”)
devem ser definidos como indivíduos em cujo caso a fração flutua em torno de 0,5, ou seja,
não difere muito de α’ (cf. p. 11). , e que, portanto, têm neles aproximadamente a mesma
quantidade do elemento masculino que o feminino, e de fato muitas vezes mais do feminino
mesmo quando são considerados homens, e talvez mais do masculino mesmo quando são
considerados mulheres. Como as características sexuais nem sempre são distribuídas
uniformemente por todo o corpo, é certo que alguns indivíduos são alocados o suficiente, sem
pensar mais, ao sexo masculino simplesmente com base em uma característica sexual primária
masculina, mesmo que o descensus testiculorum apareça tardiamente, epispadia ou
hipospadia está presente, ou azoospermia ocorre em um estágio posterior, ou mesmo se (nas
mulheres) for observada atresia vaginale. Portanto, tais indivíduos são educados como
homens e recrutados para o serviço militar, etc., mesmo que no seu caso α < 0,5 e α′ > 0,5.
Assim, seu complemento sexual estará aparentemente localizado naquele lado da divisão que
pertence à característica primária, onde, no entanto, eles apenas parecem estar, quando na
realidade já estão do outro lado.

Aliás — e isso não só apoia minha teoria, mas é na verdade explicado por ela — não há
invertido sexual que seja apenas um invertido. Desde o início todos são bissexuais, ou seja,
capazes de manter relações sexuais com homens e mulheres. É possível que mais tarde eles
promovam ativamente seu próprio desenvolvimento unidirecional em direção a um sexo,
empurrando-se para a uni-sexualidade e, finalmente, fazendo com que a heterossexualidade
ou a homossexualidade prevaleçam neles, ou deixando-se influenciar por causas externas para
se mover em uma dessas direções. No entanto, isso nunca pode extinguir sua bissexualidade,
que continua a revelar sua existência temporariamente suprimida repetidamente.

Uma conexão entre os fenômenos homossexuais e a predisposição bissexual de cada embrião


no reino animal ou vegetal tem sido reconhecida repetidamente e, nos últimos tempos, com
frequência crescente. A novidade do meu relato é que, diferentemente dessas investigações,
ele não vê a homossexualidade como uma regressão ou um desenvolvimento incompleto, ou
seja, um defeito na diferenciação sexual, e que não considera mais a homossexualidade como
uma anomalia isolada, intrometendo-se na separação completa dos sexos como um
remanescente de uma condição indiferenciada anterior. Em vez disso, inclui a
homossexualidade como a sexualidade das formas sexuais intermediárias dentro da
continuidade das formas sexuais intermediárias, que considera como as únicas formas que
ocorrem na realidade, enquanto os extremos são apenas casos ideais. De acordo com essa
teoria, assim como todos os organismos também são heterossexuais, todos também são
homossexuais.

Correspondendo ao desenvolvimento mais ou menos rudimentar do sexo oposto, a


predisposição para a homossexualidade ainda está presente, ainda que fracamente, em todo
ser humano. Isso é particularmente comprovado pelo fato de que, na idade anterior à
puberdade, quando ainda prevalece uma relativa indiferenciação e a secreção interna das
gônadas ainda não determinou finalmente o grau de desenvolvimento sexual unidirecional,
essas “amizades juvenis” entusiásticas que nunca são inteiramente desprovidos de um aspecto
sensual são a regra tanto no sexo masculino quanto no feminino.

Pessoas além dessa idade que entram em êxtases extremos pela “amizade” com seu próprio
sexo carregam um forte elemento do sexo oposto em si. No entanto, uma forma intermediária
muito mais avançada é representada por aqueles que se entusiasmam com o companheirismo
entre os “dois sexos”, que, sem ter que guardar seus próprios sentimentos, podem ter
relações de camaradagem e se tornarem confidentes, o sexo oposto, que afinal é o seu, e que
tentam impor uma relação tão “pura” e “ideal” a outros que têm mais dificuldade em manter-
se puros.

Tampouco existe amizade entre homens que careça completamente de um elemento de


sexualidade, embora, longe de representar a essência da amizade, o próprio pensamento de
sexo seja constrangedor para os amigos e contrário à ideia de amizade. Que isso seja correto é
suficientemente provado pelo simples fato de que não pode haver amizade entre os homens
se sua aparência externa não despertou nenhuma simpatia entre eles e, portanto, eles nunca
se aproximarão um do outro. Grande parte da “popularidade”, proteção e nepotismo entre os
homens deriva de tais relacionamentos, que muitas vezes são inconscientemente de natureza
sexual.
Um fenômeno análogo à amizade sexual juvenil é talvez o reaparecimento em homens mais
velhos de anfi-sexualidade latente ao lado da atrofia senil das características sexuais que se
desenvolveram unidirecionalmente em seu auge. Esta pode ser a razão pela qual tantos
homens com 50 anos ou mais são processados por cometer “atos indecentes”.

Finalmente, um grande número de atos homossexuais também foi observado entre os


animais. F. Karsch fez uma compilação louvável (embora incompleta) de casos da literatura.
Infelizmente, os observadores quase nunca relatam nada sobre os graus de “masculinidade”
ou “feminilidade” nesses animais. No entanto, não há dúvida de que aqui também temos uma
prova da validade de nossa lei para o reino animal. Se os touros são trancados e privados de
uma vaca por um longo período, atos de inversão sexual podem ser observados entre eles
depois de um tempo: alguns, os mais femininos, levam a isso mais cedo, outros mais tarde e
alguns, talvez, nada. (O grande número de formas sexuais intermediárias já foi estabelecido
para o gado em particular.) Isso prova que eles têm a predisposição, exceto que anteriormente
eram capazes de satisfazer melhor sua necessidade. O comportamento dos touros cativos não
é diferente do comportamento dos seres humanos nas prisões, internatos e mosteiros.
Também entre os animais existem formas sexuais intermediárias, e o fato de conhecerem não
apenas o onanismo (que ocorre entre eles como ocorre entre os humanos), mas também a
homossexualidade, parece-me uma das mais fortes confirmações da lei da atração sexual
formulada acima.

Assim, para esta teoria, a inversão sexual não é uma exceção à lei natural, mas apenas um caso
especial da mesma. De acordo com essa mesma lei, um indivíduo que é metade homem e
metade mulher deseja outro indivíduo com aproximadamente as mesmas proporções de
ambos os sexos. Esta é a razão do fenômeno, que naturalmente também exige uma
explicação, segundo o qual os “invertidos” sexuais quase sempre praticam seu tipo de
sexualidade apenas entre si e — sendo a atração sexual recíproca — aqueles que não buscam
a mesma forma de satisfação raramente são encontrados em seus círculos; e este é também o
fator poderoso que sempre faz com que os homossexuais se reconheçam instantaneamente.
No entanto, é também por isso que as pessoas “normais” geralmente não têm ideia da
enorme incidência de homossexualidade e até mesmo o pior lascivo “sexualmente normal” se
acredita plenamente no direito de condenar “tais monstruosidades”. Ainda em 1900, um
professor de psiquiatria de uma universidade alemã recomendou seriamente que os
homossexuais fossem simplesmente castrados.

O método terapêutico usado hoje para combater a inversão sexual (se é que é tentado) é
menos radical do que esse conselho, mas sua aplicação prática revela a total inadequação de
muitas ideias teóricas sobre a natureza da homossexualidade. Hoje as pessoas em questão são
tratadas — principalmente pelos teóricos da aquisição, como seria de esperar — com
hipnotismo: tentativas são feitas, por meio de sugestão hipnótica, para introduzi-los e
acostumá-los à ideia de Mulher e relações sexuais ativas “normais” com ela. Como os
praticantes admitem, o sucesso é mínimo.

Do nosso ponto de vista isso é óbvio. O hipnotizador apresenta ao seu sujeito o quadro típico
da Mulher, isto é, com algo abominável a toda a sua natureza inata, e especialmente à sua
parte inconsciente, que não é facilmente acessível à sugestão hipnótica. Seu complemento não
é W, e o médico não deve mandá-lo para a primeira prostituta disponível, que o deixará ter
seu caminho com ela apenas pelo dinheiro, como a coroação do tratamento, que geralmente
fará com que sua aversão às relações sexuais “normais” seja ainda maior. Pelo contrário, se
perguntarmos nossa fórmula sobre o complemento do invertido sexual, a resposta será: a
mulher mais masculina, a lésbica, a tríbade. Ela, de fato, é quase a única mulher que atrai o
invertido sexual, e a única mulher que se sente atraída por ele. Se deve haver uma “cura” para
a inversão sexual, e se não podemos prescindir de desenvolvê-la, esta teoria recomenda que
um invertido sexual seja guiado a outro invertido sexual, o homossexual à tríbade. No entanto,
o objetivo desta recomendação só pode ser tornar o mais fácil possível tanto para o
cumprimento das leis que proíbem os atos homossexuais ainda existentes (na Inglaterra,
Alemanha, Áustria), que são ridículas, quanto para a abolição das quais essas linhas também
pretendem contribuir. A segunda parte deste livro explicará por que a prostituição ativa de um
homem por meio de um ato sexual realizado com ele, e a participação passiva de outro
homem em tal ato, é considerada uma vergonha muito maior, enquanto a relação sexual entre
um homem e uma mulher parecem degradar ambos menos. Em termos éticos, porém, não há
diferença alguma entre os dois atos em si. Apesar de toda a baboseira popular de hoje sobre
os diferentes direitos de diferentes personalidades, existe apenas uma ética universal, que é a
mesma para todos os seres humanos, assim como existe apenas uma lógica e não várias
lógicas. É absolutamente condenável e, além disso, totalmente incompatível com os princípios
do código penal, que pune o crime, mas não o pecado, proibir os homossexuais de
prosseguirem a sua via sexual e permitir aos heterossexuais a sua, se ambos o fizerem
igualmente sem criar uma “perturbação da ordem pública.” A única lógica (desconsiderando
totalmente, nessas reflexões, a perspectiva de pura humanidade e um código penal que é mais
do que um sistema de educação social proposital “dissuasor”) seria deixar que os “invertidos”
encontrem sua satisfação onde a buscam: entre si.

Esta teoria parece ser totalmente sem contradições e completa em si mesma, fornecendo uma
explicação totalmente satisfatória para todos os fenômenos. Mas agora devo enfrentar alguns
fatos com os quais certamente será combatido e que realmente parecem invalidar a
subsunção dessa “perversão” sexual dentro das formas sexuais intermediárias e da lei de suas
relações sexuais. Embora a explicação acima talvez seja suficiente para as mulheres invertidas,
há certamente e sem dúvida homens que dificilmente são femininos e sobre os quais, no
entanto, pessoas de seu próprio sexo exercem um efeito muito forte. Na verdade, esse efeito
pode ser mais forte do que aquele produzido em homens que são muito mais femininos do
que elas; também pode emanar de homens masculinos; e, finalmente, muitas vezes pode ser
mais forte do que a impressão que qualquer mulher é capaz de causar nesses homens. Albert
Moll está certo ao dizer: “Há hermafroditas psicossexuais que se sentem atraídos por ambos
os sexos, mas que amam em cada sexo apenas as qualidades típicas desse sexo, e por outro
lado há hermafroditas [?] psicossexuais que não amam em nenhum dos sexos a propriedades
típicas desse sexo, mas consideram essas propriedades com indiferença e, em parte, até com
repulsa”. É a essa diferença que se refere a distinção entre homossexualidade e pederastia no
título deste capítulo. A distinção pode ser justificada da seguinte forma: homossexual é aquele
tipo de “pervertido” que, de acordo com a lei discutida, prefere homens muito taloides e
mulheres muito arrenóides; o pederasta, por outro lado, pode amar homens muito masculinos
e, igualmente, mulheres muito femininas, estas últimas na medida em que não é pederasta.
No entanto, sua inclinação para o sexo masculino será mais forte e mais profunda do que para
o feminino. A questão sobre a causa da pederastia é um problema por si só e permanecerá
completamente sem solução neste estudo.

V — Caracterologia e Morfologia
Dada uma certa correspondência entre os fenômenos físicos e psíquicos, o amplo alcance do
princípio das formas sexuais intermediárias, conforme demonstrado no contexto morfológico
e fisiológico, pode ser esperado desde o início que produza pelo menos uma colheita
psicológica igualmente rica. Há certamente também um tipo psíquico de Mulher e de Homem
(pelo menos os resultados obtidos até agora tornam nossa tarefa procurar tais tipos), ainda
que nunca sejam alcançados pela realidade, que é tão repleta de sucessivas formas
intermediárias em o domínio mental como é no físico. Meu princípio, portanto, tem todas as
perspectivas de se provar também em relação às propriedades mentais e de lançar alguma luz
na escuridão confusa que ainda esconde da ciência as diferenças psicológicas entre os
indivíduos humanos. Pois nesse processo também foi dado um passo à frente em direção a
uma compreensão diferenciada da disposição mental de cada ser humano, e em termos
científicos também não devemos mais falar do caráter de uma pessoa como se fosse
simplesmente masculino ou simplesmente fêmea. Em vez disso, devemos observar e
perguntar quanto Homem e quanto Mulher há em uma pessoa. Foi ele ou ela no indivíduo em
questão que fez, disse ou pensou isto ou aquilo? Isso facilitará uma descrição individualizada
de todos os seres humanos e de todas as questões humanas, e alinhará o novo método com o
desenvolvimento de toda a pesquisa científica, conforme explicado no início deste estudo:
desde tempos imemoriais todo o conhecimento humano, estabelecendo das generalizações
intermediárias, divergiu em duas direções, ou seja, não apenas em direção ao aspecto mais
geral comum a todas as entidades individuais, mas também em direção aos fenômenos mais
singulares, mais individuais. Portanto, há todas as razões para esperar que o princípio das
formas sexuais intermediárias forneça o suporte mais forte para a tarefa científica ainda não
cumprida de uma caracterologia, e há toda justificativa para tentar levantá-lo, como um
método, ao posto de princípio heurístico na “psicologia das diferenças individuais” ou
“psicologia diferencial”. E a aplicação do princípio ao campo da caracterologia, que até agora
tem sido quase exclusivamente lavrado por figuras literárias e um tanto negligenciado pelos
cientistas, talvez deva ser bem recebido com mais calor porque pode acomodar
imediatamente todas as gradações quantitativas, de modo que que ninguém, por assim dizer,
poderá mais deixar de buscar a porcentagem de M e W que um indivíduo também possui no
domínio psíquico. Tendo em mente minhas explicações no segundo capítulo sobre as
diferenças de grau entre a masculinidade e a feminilidade mesmo das partes físicas e
propriedades do mesmo indivíduo, parece claro que essa tarefa não é cumprida por meio de
uma resposta anatômica à pergunta da localização sexual de um indivíduo entre Homem e
Mulher, mas em geral exige um estudo especial mais aprofundado, mesmo que isso traga à luz
uma frequência muito maior de semelhanças do que diferenças nos casos particulares.

Nesse contexto, a coexistência de elementos masculinos e femininos na mesma pessoa não


deve ser entendida como uma simultaneidade completa ou aproximada. A importante adição
que agora se faz necessária não é apenas uma direção para o uso psicológico correto do
princípio, mas também uma importante extensão dos pontos levantados anteriormente. Todos
os seres humanos oscilam entre o Homem e a Mulher neles. Essas oscilações podem ser
anormalmente grandes em uma pessoa e quase imperceptivelmente pequenas em outra, mas
sempre existem e, se forem suficientemente substanciais, também se revelam através da
mudança da aparência física dos indivíduos envolvidos. Essas oscilações das características
sexuais podem ser divididas, como as oscilações do magnetismo terrestre, em regulares e
irregulares. As oscilações regulares são pequenas: por exemplo, algumas pessoas sentem as
coisas de uma maneira mais masculina à noite do que de manhã; ou seguem os principais
períodos da vida orgânica, que mal começaram a ser notados e cuja exploração parece
destinada a lançar alguma luz sobre o que é até agora um número incalculável de fenômenos.
As oscilações irregulares são provavelmente desencadeadas por fatores externos,
principalmente o caráter sexual da pessoa ao seu lado. Até certo ponto, eles são certamente a
causa daqueles notáveis fenômenos de atitude que desempenham o maior papel na psicologia
de uma multidão, embora ainda não tenham recebido a atenção que merecem. Em suma, a
bissexualidade não se manifestará em um único momento, mas pode fazê-lo apenas em
sucessão, independentemente de essa diferença entre as características sexuais no tempo
obedecer à lei da periodicidade, ou se a amplitude da oscilação em direção a um sexo é
diferente daquela em direção ao outro sexo, ou se o antinodo da fase masculina é igual ao
antinodo da fase feminina (o que não precisa necessariamente ser o caso, mas, ao contrário, é
apenas um caso entre inúmeros outros igualmente possíveis).

Pode-se, portanto, estar inclinado a admitir em teoria, mesmo antes de ser testado pela
experiência, que o princípio das formas sexuais intermediárias torna possível uma melhor
descrição caracterológica dos indivíduos, exigindo a avaliação das proporções em que os
elementos masculinos e femininos se misturam em cada organismo, e insistindo na
determinação dos alongamentos das oscilações, para ambos os lados, de que um indivíduo é
capaz. Mas aqui chegamos a uma questão que nos obriga a fazer uma escolha, porque o
progresso de nossa investigação depende quase inteiramente da resposta. A questão é se
devemos cruzar inicialmente todo o campo infinitamente rico das formas sexuais
intermediárias, ou a diversidade sexual no domínio psíquico, tentando observar, com a maior
precisão possível, as condições que prevalecem em pontos particularmente adequados, ou se
devemos começar planejando e completando a construção da psicologia do “Homem ideal” e
da “Mulher ideal”, antes de investigar as várias possibilidades de sua combinação empírica in
concreto e examinar até que ponto as imagens alcançadas por dedução coincidem com a
realidade. A primeira maneira corresponde à visão comum da psicologia do processo de
pensamento, segundo a qual as ideias são sempre extraídas da realidade e os tipos sexuais só
podem ser colhidos da diversidade sexual, que é a única real: este é o método indutivo e
analítico. A segunda maneira teria a vantagem da lógica formal rigorosa sobre a primeira: este
é o método dedutivo e sintético.

Eu não queria tomar o segundo caminho por duas razões. Uma das razões foi que qualquer um
pode aplicar facilmente dois tipos claramente definidos à realidade concreta por conta própria,
uma vez que isso requer apenas que as proporções na mistura dos dois (que de qualquer
forma devem ser determinadas especificamente em cada novo caso) sejam conhecidas por
criar a possibilidade de conciliar a teoria e a prática. A outra razão era (assumindo a escolha de
uma abordagem investigativa que, ao mesmo tempo histórica e biográfica, estaria além da
competência do autor) que todos os benefícios dessas ramificações seriam colhidos pelo
interesse nos indivíduos e nenhum pela teoria. A primeira via, indutiva, é impraticável porque
neste caso seria necessário repetir constantemente o que foi dito antes e o grosso das
repetições ocorreria naquela parte dedicada a uma tabela de contrastes entre os tipos sexuais,
e ainda porque o o estudo das formas sexuais intermediárias e a preparação dos tipos que o
acompanham seria demorado, demorado e pouco lucrativo para o leitor.

A classificação, portanto, teve que ser determinada por uma consideração diferente.

Como não me interessava uma investigação morfológica e fisiológica dos extremos sexuais,
tratei apenas do princípio das formas intermediárias, mas o fiz em relação a todos os aspectos
que ele parecia elucidar, inclusive o biológico. Foi assim que o presente trabalho como um
todo ganhou sua forma. Enquanto sua primeira parte é constituída pelo exame das formas
intermediárias, a segunda parte empreenderá, e tentará levar o mais longe possível, a análise
puramente psicológica de M e W. Quanto aos casos concretos, qualquer um poderá facilmente
montá-los aplicando os insights obtidos aqui e representá-los com a ajuda das experiências e
conceitos adquiridos na segunda parte.

A segunda parte receberá muito pouco apoio das visões familiares e comuns sobre as
diferenças mentais entre os sexos. No entanto, ainda que apenas por uma questão de
completude e sem atribuir qualquer importância particular ao assunto, aproveitarei esta
oportunidade para ilustrar muito brevemente as formas sexuais intermediárias dos processos
mentais por meio de algumas peculiaridades comumente conhecidas e algumas de suas
modificações, embora eles ainda não serão submetidos a uma análise mais detalhada neste
momento.

Os homens femininos muitas vezes têm uma necessidade excepcionalmente forte de se casar,
mesmo que (para evitar qualquer mal-entendido) eles sejam extremamente ricos. Se puderem,
quase sempre o farão em uma idade muito jovem, e muitas vezes ficarão particularmente
lisonjeados por ter uma mulher famosa, um poeta ou pintor ou possivelmente uma cantora ou
atriz, como esposa.

Homens femininos, de acordo com sua feminilidade, também são mais vaidosos fisicamente
do que outros homens. Há “homens” que passeiam pelo calçadão simplesmente para sentir
que seu rosto, que é o rosto de uma mulher e, portanto, geralmente trai amplamente a
intenção de seu portador, é admirado, e depois voltam para casa satisfeitos. Narciso foi
modelado em tais “homens”. Essas mesmas pessoas, é claro, também tomam extremo
cuidado com seu penteado, roupas, sapatos e roupas íntimas. Sua consciência de sua postura
física momentânea e de sua aparência externa em qualquer dia em particular, dos menores
detalhes de seus trajes e dos olhares mais fugazes de outras pessoas é quase igual à
consciência constante de W dessas coisas, e seus passos e gestos são francamente coquete.
Viragos, por outro lado, muitas vezes exibem uma flagrante negligência no vestuário e falta de
higiene pessoal, e muitas vezes completam o banheiro muito mais rápido do que muitos
homens femininos. Toda “foppery” e “dandismo”, bem como parte da emancipação das
mulheres, derivam do atual aumento no número de tais criaturas hermafroditas. Isso é mais
do que “mera moda”. A questão é sempre por que algo pode se tornar uma moda, e
provavelmente há bem menos “mera moda” do que acredita o espectador que se dedica à
crítica superficial.

Quanto mais W uma mulher tiver nela, menos ela entenderá um homem, mas mais ele a
afetará através de sua peculiaridade sexual, ou seja, mais ele a impressionará como Homem.
Isso não é explicado apenas pela lei da atração sexual, mas também pelo fato de que quanto
mais puramente feminina for uma mulher, mais ela será capaz de agarrar seu oposto.
Inversamente, quanto mais um homem tem de M, menos ele será capaz de compreender W,
mas com mais urgência as mulheres se apresentarão a ele em toda sua natureza externa, sua
feminilidade. Portanto, os chamados “connoisseurs of women”, isto é, aqueles que nada mais
são do que meros “connoisseurs of women”, são eles próprios em grande parte mulheres.
Conseqüentemente, os homens mais femininos muitas vezes sabem melhor como tratar as
mulheres do que os homens completos, que só aprendem isso depois de muita experiência e
que, salvo algumas exceções, provavelmente nunca aprendem completamente.

A essas poucas ilustrações, que pretendiam demonstrar a aplicabilidade do princípio à


caracterologia por meio de exemplos deliberadamente escolhidos da esfera mais trivial dos
caracteres sexuais terciários, gostaria de acrescentar as aplicações óbvias que me parecem
resultar dele com no que diz respeito à pedagogia. Ao fazê-lo, espero que a aceitação geral do
elemento comum subjacente a estes e muitos outros factos tenha um resultado acima de
tudo: uma educação mais individualizante. Todo sapateiro que mede pés deve saber mais
sobre individualidade do que os educadores de hoje, tanto na escola quanto em casa, que não
podem ser levados a uma consciência viva de tal obrigação moral. Até agora, a educação das
formas sexuais intermediárias (particularmente entre as mulheres) visava aproximar-se o mais
possível de um ideal convencional de masculinidade e feminilidade, o que equivaleu à
ortopedia psicológica no sentido pleno de tortura. Isso não apenas privou o mundo de uma
grande variedade, mas também suprimiu muitas coisas que estão embrionariamente
presentes e podem criar raízes, enquanto distorce outras coisas em uma posição não natural e
cria artificialidade e fingimento.

Por muito tempo, nosso sistema educacional teve um efeito padronizador sobre todos os
nascidos com genitais masculinos e todos os nascidos com genitais femininos. Desde tenra
idade, “meninos” e “meninas” são forçados a usar roupas diferentes e ensinados a jogar jogos
diferentes. Mesmo a educação primária é totalmente separada, com todas as “meninas”
aprendendo artesanato, etc., etc. As formas intermediárias recebem menos do que seu
quinhão. No entanto, muitas vezes se vê, mesmo antes da puberdade, quão fortes podem ser
os instintos, os “determinantes” da disposição natural, dessas pessoas maltratadas: alguns
meninos ficam mais felizes brincando com bonecas, aprendem crochê e tricô com suas
irmãzinhas, gostam de usar roupas de meninas e gostam de ser chamadas por nomes próprios
femininos; e algumas meninas se misturam com meninos, em cujos jogos mais loucos querem
participar e que muitas vezes os tratam como iguais e “companheiros”. No entanto, em todos
os casos uma natureza suprimida de fora pela educação vem à tona após a puberdade:
mulheres masculinas cortam seus cabelos, preferem vestidos que lembram sobrecasacas,
estudam, bebem, fumam, escalam montanhas, tornam-se caçadoras apaixonadas; os homens
femininos deixam os cabelos compridos, usam espartilhos e simpatizam com as preocupações
das mulheres sobre seus trajes, com quem podem ter conversas amistosas sobre interesses
compartilhados; de fato, muitas vezes se entusiasmam sinceramente com a amizade entre os
dois sexos, assim como, por exemplo, estudantes do sexo masculino efeminados por serem
“colegas” de estudantes do sexo feminino, etc.

Meninas e meninos sofrem igualmente com a pressão viciosa de uma educação que os obriga
a se alinhar, embora em um estágio posterior estes últimos sofram mais por serem submetidos
à mesma lei e os primeiros por serem estereotipados pela mesma norma moral. Temo,
portanto, que na cabeça das pessoas a demanda aqui articulada encontre mais resistência
passiva em relação às meninas do que aos meninos. Nesse contexto, é essencial reconhecer a
absoluta inverdade da crença difundida e incessantemente reiterada, transmitida pelas
autoridades da época, na mesmice de todas as “mulheres” (“não há diferenças, não há
indivíduos entre as mulheres; se você conhece uma mulher você conhece todas”). É verdade
que os indivíduos mais próximos de W do que de M (ou seja, “mulheres”) mostram muito
menos diferenças e possibilidades do que os demais — a maior diversidade de “machos”, não
apenas entre os humanos, mas em toda a área da zoologia, é um fato geral, amplamente
apreciado por Darwin em particular — mas ainda existem diferenças suficientes. A gênese
psicológica da crença errônea difundida em contrário é amplamente condicionada pela
circunstância de que (cf. capítulo III) todo homem em sua vida conhece relativamente
intimamente apenas um grupo de mulheres, todas as quais, de acordo com a lei natural, , têm
muito em comum. Também as mulheres, pela mesma razão e com menos justificativa ainda,
costumam dizer: “um homem é igual a outro”. Isso também explica algumas, para dizer o
mínimo, declarações arriscadas de feministas sobre o homem e sua suposta superioridade
falsa, que novamente derivam do tipo de homem com quem elas geralmente se familiarizam
mais de perto.

Assim, a coexistência variadamente graduada de M e W, que reconhecemos como um dos


principais princípios de toda caracterologia científica, revela-se um fato que também deve ser
levado a sério pela pedagogia especial.

A relação entre a caracterologia e aquele tipo de psicologia que por si só deveria realmente ser
válida de acordo com uma “teoria da atualidade” psicológica corresponde àquela entre
anatomia e fisiologia. Como sempre haverá uma necessidade teórica e prática de
caracterologia, deve ser permitido praticar a psicologia das diferenças individuais,
independentemente de seus fundamentos epistemológicos e de sua demarcação em relação
ao assunto da psicologia geral. Aqueles que aderem à teoria do paralelismo psicofísico
concordarão com os princípios básicos de nossa abordagem até aqui, pois acreditam que a
caracterologia deve ter a morfologia como ciência irmã, assim como a psicologia no sentido
mais estrito e a fisiologia (do sistema nervoso central) são ciências paralelas. De fato, há
motivos para esperar grandes coisas no futuro a partir da conexão entre anatomia e
caracterologia e o estímulo que elas podem receber uma da outra. Ao mesmo tempo, tal
aliança forneceria uma ajuda inestimável ao diagnóstico psicológico, que é o pré-requisito de
toda educação individualizante. O princípio das formas sexuais intermediárias, e mais ainda o
método de assumir um paralelismo entre morfologia e caracterologia em sua aplicação mais
ampla, nos dão uma visão de um tempo em que a fisionomia, tarefa que tão poderosamente
atraiu e tão persistentemente repeliu as mentes mais destacadas , será finalmente
homenageado com o título de disciplina científica.

O problema da fisionomia é o problema de uma relação constante entre o elemento psíquico


em repouso e o elemento físico em repouso, assim como o problema da psicologia fisiológica é
o de uma relação regular entre o elemento psicológico em movimento e o elemento físico em
movimento. que não é defender uma mecânica especial dos processos neurológicos). Um é até
certo ponto estático e o outro mais puramente dinâmico, mas em princípio nenhuma empresa
é mais ou menos legítima que a outra. É, portanto, muito errado, tanto metodologicamente
quanto factualmente, considerar o estudo da fisionomia, por causa de suas enormes
dificuldades, como algo extremamente dúbio, que é o que acontece, inconscientemente e não
conscientemente, nos meios científicos de hoje e que ocasionalmente vem à luz, como
aconteceu, por exemplo, nas reações ao renascimento de Moebius das tentativas de Gall de
descobrir a fisionomia do matemático nato. Se é possível dizer muitas coisas corretas sobre o
caráter de uma pessoa que nunca se conheceu, apenas com base em sua aparência externa e
uma sensação imediata não suportada por uma riqueza de experiências conscientes ou
inconscientes — e há pessoas que possuem essa capacidade de alto grau — então não pode
ser impossível chegar a um sistema científico dessas questões. Tudo o que é necessário é o
esclarecimento conceitual de certos sentimentos fortes, a colocação de um cabo no centro da
fala (para dizer de maneira muito grosseira), embora seja verdade que essa tarefa é muitas
vezes extremamente difícil.

Em todo caso, levará muito tempo até que a ciência oficial deixe de considerar o estudo da
fisionomia como algo altamente imoral. Os cientistas continuarão a jurar pelo paralelismo
psicofísico como fizeram até agora e, ao mesmo tempo, consideram os fisionomistas, assim
como consideravam os pesquisadores do hipnotismo há pouco tempo, como almas perdidas
ou charlatães, embora não haja ser humano que não seja um inconsciente, e nenhum ser
humano notável que não seja um fisionomista consciente.
O ditado “Você pode dizer pelo nariz” também é usado por pessoas que não consideram a
fisionomia como uma ciência, e a imagem de uma pessoa eminente ou de um assassino é de
grande interesse mesmo para aqueles que nunca ouviram a palavra “fisionomia”.

Em um momento como o atual, em que estamos sendo inundados por escritos sobre a relação
entre o físico e o psíquico, quando o chamado “Paralelismo psicológico!” proferida por uma
maioria compacta é contrariada pela chamada “Reciprocidade!” proferidas por um grupo
pequeno, mas corajoso e crescente, teria sido útil refletir sobre essas circunstâncias. No
entanto, nesse caso também seria preciso perguntar se a suposição de qualquer tipo de
correspondência entre elementos físicos e psíquicos é ou não uma função sintética a priori de
nosso pensamento até agora negligenciada — o que me parece ser firmemente estabelecido
pelo menos pelo fato de que todo ser humano reconhece a fisionomia simplesmente
praticando a fisionomia, independentemente da experiência. Embora Kant não tenha
percebido esse fato, ele confirma sua visão de que nada mais pode ser cientificamente
comprovado ou apurado sobre a relação entre o físico e o psíquico. Uma relação, regida por
leis, entre o físico e o psíquico deve, portanto, ser aceita como um princípio heurístico da
investigação científica, e a posterior determinação da natureza dessa relação, que é a priori
considerada um fato por todos, continua sendo privilégio da metafísica e da religião.

Quer a caracterologia seja ou não considerada relacionada à morfologia, pode ser verdade
para qualquer uma delas isoladamente ou para a prática coordenada de ambas, ou seja, a
fisionomia, que o fracasso quase completo até agora das tentativas de criar tais ciências é
devido, sobretudo, à falta de um método adequado, ainda que profundamente enraizado na
natureza dessa difícil empreitada. A proposta que agora desenvolverei para preencher essa
lacuna me guiou com segurança por muitos labirintos. Portanto, sinto que não devo hesitar em
submetê-lo ao escrutínio geral.

Algumas pessoas gostam de cachorros e não suportam gatos, outras apenas gostam de ver
gatinhos brincando e consideram os cachorros como animais repugnantes. Nesses casos, a
pergunta feita com grande e justificável orgulho sempre foi: por que uma pessoa prefere gatos
e outra cachorros? Por quê? Por quê?

Esta questão, especialmente no contexto atual, não parece muito frutífera. Não acredito que
Hume e, em particular, Mach estejam certos em deixar de fazer uma distinção explícita entre
causalidade simultânea e sucessória. Algumas analogias formais inegáveis são assim
forçosamente exageradas na tentativa de sustentar o edifício oscilante do sistema.
Simplesmente não serve para identificar a relação entre dois fenômenos que se sucedem
regularmente no tempo com uma relação funcional regular entre diferentes elementos
simultâneos. Nada, na realidade, justifica falar de sensações de tempo e muito menos supor a
existência de um sentido de tempo ao lado dos outros sentidos. Qualquer um que acredite ter
resolvido o problema do tempo apenas considerando o tempo e o ângulo horário da Terra
como uma e a mesma coisa, para dizer o mínimo, ignora o fato de que, mesmo que a Terra de
repente começasse a girar em torno de seu eixo a uma velocidade desigual ainda faríamos a
suposição a priori de um lapso de tempo uniforme. Onde causa e efeito ocorrem um após o
outro em uma sequência cronológica, é inteiramente legítimo e frutífero distinguir o tempo
das experiências materiais nas quais se baseia a distinção entre dependência sucedânea e
simultânea e, assim, perguntar sobre a causa das mudanças, que é, a pergunta Por quê. No
entanto, no caso citado acima como exemplo do tipo de questões colocadas na psicologia
individual, a ciência empírica, que como tal não explica a coexistência regular de características
individuais em um complexo por meio da suposição metafísica de uma substância, não deveria
procure o porquê, mas em vez disso, começar examinando o que mais distingue os amantes de
gatos dos amantes de cães.

Acredito que o hábito de fazer esta pergunta constantemente sobre quaisquer outras
diferenças correspondentes, onde uma diferença entre elementos em repouso tenha sido
identificada, beneficiará não apenas a caracterologia, mas também a morfologia pura e,
portanto, se tornará o método óbvio de combiná-las, a fisionomia. O fato de que muitas
características dos animais nunca variam isoladamente já ocorreu a Aristóteles. Mais tarde, é
claro, primeiro Cuvier e depois Geoffroy St. Hilaire e Darwin estudaram detalhadamente esses
fenômenos de “correlação”. A existência de relacionamentos constantes às vezes pode ser
facilmente entendida como resultado de um propósito comum. Assim, onde o trato digestivo é
adaptado para uma dieta de carne, uma expectativa teleológica óbvia será que um aparelho
mastigatório e órgãos para capturar a presa também devem estar presentes. Mas por que
todos os ruminantes têm cascos fendidos e, se forem machos, chifres, por que em alguns
animais a imunidade contra certos venenos é sempre acompanhada por uma cor de pelo
específica, por que as variedades de pombos de bico curto têm pés pequenos e os de bico
grande têm pés grandes, ou mesmo por que gatos brancos de olhos azuis são quase
invariavelmente surdos — tais coincidências regulares não podem ser explicadas nem por uma
razão óbvia nem por referência a um propósito uniforme. Isso não quer dizer, é claro, que, por
uma questão de princípio, a ciência terá de se satisfazer por toda a eternidade com o mero
estabelecimento de uma coexistência constante. Afinal, seria como se alguém afirmasse pela
primeira vez estar procedendo cientificamente, restringindo-se a descobrir que, se colocar
uma moeda em uma máquina caça-níqueis, sairá uma caixa de fósforos, enquanto tudo o que
vai além disso é metafísica e um mal, e o critério de um cientista genuíno era a resignação.
Problemas como a forma como o cabelo comprido e os dois ovários normais se encontram
quase sempre juntos na mesma pessoa são da maior importância, mas são da competência da
fisiologia e não da morfologia. Um objetivo de uma morfologia ideal pode ser delineado de
maneira útil sugerindo que uma parte dedutiva e sintética dela não deve rastejar em buracos
no solo ou mergulhar no fundo do mar em busca de todas as espécies existentes — que é a
abordagem científica de um colecionador de selos — mas deve ser capaz de construir todo o
organismo a partir de um determinado número de partes determinadas qualitativa e
quantitativamente com precisão. Nem isso deve ser baseado em uma intuição, como um
homem como Cuvier foi capaz de fazer, mas em um rigoroso processo de prova. Para esta
ciência do futuro, qualquer organismo do qual uma propriedade tenha sido indicada com
precisão deve ser qualificado por outra propriedade que não é mais arbitrária, mas capaz de
ser determinada com a mesma precisão. Na linguagem da termodinâmica de nossos dias, isso
também poderia ser expresso exigindo que, para tal morfologia dedutiva, o organismo tivesse
apenas um número finito de “graus de liberdade”. Ou, usando uma explicação instrutiva de
Mach, poder-se-ia estipular que também o mundo orgânico, na medida em que deve ser
cientificamente inteligível e representável, deve ser aquele em que o número de equações
entre n variáveis seja menor que n (e igual para n−1 se for inequivocamente definível por um
sistema científico: dado um número menor, as equações se tornariam indefinidas, e dado um
número maior, a dependência indicada por uma equação poderia ser facilmente contrariada
por outra) .

Este é o significado lógico, em biologia, do princípio de correlação, que se revela como a


aplicação aos seres vivos do conceito de função, e é por isso que a possibilidade de sua
expansão e refinamento fornece o fundamento principal da esperança de uma morfologia
teórica. Assim, a pesquisa causal não é excluída, mas dirigida, pela primeira vez, à sua própria
província. Provavelmente terá que buscar as causas dos fatos subjacentes ao princípio de
correlação no idioplasma.

A possibilidade de uma aplicação psicológica do princípio da variação correlativa existe na


“psicologia diferencial”, ou na teoria da variedade psicológica, e a clara correlação da
aparência anatômica e do caráter mental torna-se tarefa da psicofísica estática ou fisionomia.
No entanto, a investigação em todas as três disciplinas terá que ser guiada pela questão de
como dois seres vivos que se comportaram de maneira diferente em um aspecto irão diferir
ainda mais. Fazer essa pergunta me parece ser o único “methodus inveniendi” imaginável, por
assim dizer, a “ars magna” dessas ciências, e estar bem colocado para penetrar toda a técnica
de suas operações. Agora as pessoas não vão mais trabalhar para cavar a terra dura em um
buraco, a fim de sondar um tipo psicológico apenas resmungando com a pergunta por que no
isolamento mais hermético possível(?). Eles deixarão de sangrar até a morte como os vermes
estereotrópicos de Jacques Loeb em seu vaso triangular, ou de vislumbrar sua própria visão do
que poderiam facilmente alcançar se olhassem de lado, em sua luta para encontrar a causa,
que é inacessível a qualquer ciência meramente empírica. , cheirando cada vez mais fundo em
uma linha reta. Se, sempre que uma diferença se torna visível, se resolve evitar toda
negligência e não poupar esforços em prestar atenção às outras diferenças que, de acordo
com nosso princípio, inevitavelmente também devem estar presentes, e se em todos os casos
“um observador no intelecto for nomeado” para as propriedades desconhecidas que têm uma
conexão funcional com a propriedade que já foi identificada, então a perspectiva de descobrir
novas correlações será significativamente aumentada. Feita a pergunta, a resposta virá mais
cedo ou mais tarde, dependendo da resistência e vigilância do observador e da adequação do
material escolhido para seu exame.

Em todo caso, pelo uso consciente desse princípio, não se estará mais reduzido a esperar até
que alguém, por capricho de uma constelação intelectual, seja atingido pela coexistência
constante de duas coisas no mesmo indivíduo. Em vez disso, aprenderemos a perguntar
imediatamente sobre a segunda coisa, que também estará presente. Quanto tempo todas as
descobertas estão restritas ao mero acaso de uma conjunção favorável de ideias na mente de
um homem! Quão grande foi o papel desempenhado pelas circunstâncias arbitrárias, que
podem, no momento oportuno, levar dois grupos heterogêneos de ideias a esse ponto de
cruzamento onde só a criança, que é o novo insight e experiência, pode nascer! A nova
questão, e a vontade de persegui-la em cada caso individual, é eminentemente capaz de
reduzir esse papel. Dada a sucessão de causa e efeito, o estímulo psicológico para fazer uma
pergunta aparece mais cedo porque qualquer violação da estabilidade e continuidade de um
estado psicológico existente tem um efeito imediatamente perturbador e “faz uma diferença
vital” (Avenarius). No entanto, onde a dependência é simultânea, essa força motriz não se
aplica mais. É por isso que o método aqui defendido poderia prestar o maior serviço ao
pesquisador, mesmo que ele já estivesse no meio de seu trabalho, e de fato acelerar o
progresso da ciência como um todo. O reconhecimento da aplicabilidade heurística do
princípio de correlação seria uma descoberta que poderia auxiliar o nascimento de novas
descobertas em um processo contínuo de criação.

VI — Mulheres Emancipadas
Seguindo diretamente a aplicação do princípio das formas sexuais intermediárias na psicologia
diferencial, devo tratar agora pela primeira vez da questão que este livro pretende sobretudo
resolver em termos teóricos e práticos, na medida em que não é um questão teórica da
etnologia e da economia política, ou seja, da ciência social no sentido mais amplo, ou uma
questão prática da ordem jurídica e econômica, ou seja, da política social: a questão da
mulher. No entanto, a resposta dada à Questão da Mulher neste capítulo não resolverá o
problema de toda a minha investigação. Pelo contrário, é apenas uma resposta provisória,
uma vez que é incapaz de fornecer mais do que pode ser concluído dos princípios que
estabeleci até agora. Movendo-se exclusivamente na esfera inferior da experiência individual,
não faz nenhuma tentativa de elevar-se a quaisquer conceitos gerais de significado mais
profundo. As instruções práticas fornecidas por ela não são máximas de comportamento moral
que deveriam ou poderiam regular a experiência futura, mas apenas regras para uso social
técnico, abstraídas da experiência passada. A razão é que ainda não tento examinar o tipo
masculino e feminino, tarefa que deixo para a segunda parte. Este exame provisório destina-se
a apresentar apenas os resultados caracterológicos do princípio das formas intermediárias que
são importantes para a Questão da Mulher.

O resultado dessa aplicação do princípio é bastante óbvio à luz do que disse até agora. Culmina
na noção de que a necessidade de emancipação de uma mulher e sua capacidade de
emancipação derivam exclusivamente da proporção de M nela. No entanto, o conceito de
emancipação é ambíguo, e aqueles que, com a ajuda dessa palavra, perseguiram intenções
práticas que não resistiram aos insights teóricos, muitas vezes tiveram interesse em aumentar
sua falta de clareza. Por emancipação de uma mulher não entendo nem o fato de ser ela quem
dá as ordens em sua casa enquanto o marido não ousa mais contradizê-la, nem sua coragem
de andar à noite em áreas inseguras sem a proteção de uma escolta; nem seu desrespeito às
convenções sociais, que praticamente proíbem uma mulher de viver sozinha, que não lhe
permitem visitar um homem e que proíbem qualquer referência a assuntos sexuais por ela ou
por outros em sua presença, nem seu desejo para ganhar a vida independente, quer ela opte
por frequentar uma escola comercial ou uma universidade, um conservatório ou uma
faculdade de educação para esse fim. Pode haver muitas outras coisas escondidas atrás do
grande escudo do movimento de emancipação, mas estas não serão discutidas por enquanto.
Além disso, a emancipação que tenho em mente não é o desejo de uma mulher por igualdade
externa com um homem. O problema que desejo resolver em minha busca de clareza na
Questão da Mulher é o da vontade da mulher de se tornar internamente igual ao homem, de
alcançar sua liberdade intelectual e moral, seus interesses e poder criativo. E o que vou
argumentar agora é que W não tem necessidade e, portanto, não tem capacidade para esse
tipo de emancipação. Todas aquelas mulheres que realmente lutam pela emancipação, todas
aquelas mulheres que têm alguma reivindicação genuína de fama e eminência intelectual,
sempre exibem muitas propriedades masculinas, e o observador mais perspicaz sempre
reconhecerá nelas algumas características anatomicamente masculinas, uma aproximação à
aparência física de um homem. Aquelas mulheres do passado e do presente que os defensores
masculinos e femininos do movimento de emancipação constantemente nomeiam como prova
das grandes conquistas das mulheres vêm exclusivamente das fileiras das formas sexuais
intermediárias mais avançadas, quase se poderia dizer, das fileiras daquelas formas sexuais
intermediárias que mal são classificadas como “mulheres”. Para começar, a primeira delas na
ordem histórica, Safo, é uma invertida sexual, de quem deriva a designação de amor sáfico ou
lésbico, para uma relação sexual entre mulheres. Aqui vemos como podemos nos beneficiar
das discussões do terceiro e quarto capítulos para chegar a uma decisão sobre a Questão da
Mulher. O material caracterológico de que dispomos em relação às chamadas “mulheres
eminentes”, isto é, mulheres de fato emancipadas, é tão escasso, e sua interpretação sujeita a
tantas contradições, que não podemos usá-lo com qualquer esperança de fornecer uma
solução satisfatória. Faltava-nos um princípio que nos permitisse estabelecer inequivocamente
a localização de uma pessoa entre M e W. Tal princípio foi encontrado na lei da atração sexual
entre homens e mulheres. Sua aplicação ao problema da homossexualidade levou à
descoberta de que uma mulher atraída por outra mulher é metade homem. Isso, de fato, é
quase toda a evidência de que precisamos para provar, com referência a casos históricos
individuais, a tese de que o grau de emancipação de uma mulher é idêntico ao grau de sua
masculinidade. Safo foi apenas a primeira na lista de celebridades femininas que tinham
sentimentos homossexuais ou pelo menos bissexuais. Estudiosos têm se esforçado muito para
livrá-la da suspeita de que ela teve casos de amor reais, além da mera amizade, com mulheres,
como se tal acusação, se verdadeira, fosse necessariamente um grande insulto ao caráter
moral de uma mulher. Que isso não é verdade, que um amor homossexual honre uma mulher,
em particular, mais do que relacionamentos heterossexuais, será mostrado claramente na
segunda parte. Aqui pode ser suficiente observar que a inclinação de uma mulher ao amor
lésbico é precisamente um produto de sua masculinidade, que é de fato o pré-requisito de sua
superioridade. Catarina II da Rússia e a rainha Cristina da Suécia, bem como a superdotada
surda, cega e muda Laura Bridgman e certamente George Sand são parcialmente bissexuais,
parcialmente exclusivamente homossexuais, assim como todas aquelas mulheres e meninas
com qualquer habilidade que vale a pena considerar, que tive a oportunidade de conhecer
pessoalmente.

No caso de muitas mulheres emancipadas para cujas tendências lésbicas não temos
evidências, quase sempre há outras pistas que provam que não estou fazendo uma afirmação
arbitrária nem me entregando a um egoísmo fanático e ganancioso que deseja reivindicar tudo
pelo sexo masculino , se falo da masculinidade de todas aquelas mulheres que geralmente são
convocadas, com alguma justificação, a testemunhar a aptidão das mulheres para coisas
superiores. Assim como as mulheres bissexuais têm relações sexuais com mulheres masculinas
ou com homens femininos, as mulheres heterossexuais ainda manifestarão seu conteúdo de
masculinidade pelo fato de que seu complemento sexual masculino nunca será um homem
genuíno. Os mais famosos dos muitos “casos” de George Sand foram aqueles com Musset, o
poeta lírico mais efeminado conhecido na história, e com Chopin, que era tão efeminado que
poderia ser descrito como a única musicista mulher[1]. Vittoria Colonna devia sua fama menos
à sua própria produção poética do que à admiração de Michelangelo, que de outra forma só
mantinha relações eróticas com homens. A autora Daniel Stern era amante do mesmo Franz
Liszt cuja vida e obra sempre contêm um elemento totalmente feminino, e cuja amizade com
Wagner, outro indivíduo longe de ser completamente masculino e de fato um tanto pederasta,
envolvia quase tanto a homossexualidade quanto a efusiva veneração do rei Ludwig II da
Baviera para Wagner. Germaine de Staël, cujo tratado sobre a Alemanha talvez devesse ser
considerado o livro mais significativo escrito por qualquer mulher, provavelmente teve
relações sexuais com o tutor homossexual de seus filhos, August Wilhelm Schlegel. O marido
de Klara Schumann, a julgar apenas pelo rosto, seria tomado por uma mulher e não por um
homem em certos momentos de sua vida, e em sua música também há uma grande, embora
nem sempre a mesma, quantidade de feminilidade.

Onde nenhuma informação de qualquer tipo está disponível sobre as pessoas com quem
mulheres famosas tiveram relações sexuais, ou onde tais indivíduos não são mencionados, a
lacuna é muitas vezes amplamente preenchida por breves comentários que nos foram
transmitidos sobre as mulheres exterior. Eles mostram como a masculinidade dessas mulheres
se expressa na fisionomia de seus rostos e figuras, e assim confirmam, assim como os retratos
sobreviventes das mulheres, a correção da visão aqui defendida. Lemos que George Eliot tinha
uma testa larga e maciça e que “seus movimentos e suas expressões faciais eram afiados e
determinados, mas careciam da graça da suavidade feminina”; e somos informados sobre o
“rosto afiado e inteligente de Lavinia Fontana, que nos parece estranho”. As feições de Rachel
Ruysch “têm um caráter de resolução quase masculina”. A biógrafa de Annette von Droste-
Hülshoff, a poetisa mais original, observa sua “figura esbelta e delicada”; e o rosto dessa
artista feminina tem uma expressão de masculinidade austera que lembra de longe os traços
de Dante. A autora e matemática Sonja Kowalewska, como Safo antes dela, tinha uma
cabeleira anormalmente esparsa, ainda mais esparsa do que é comum entre as poetisas e
estudantes de hoje, que a mencionam regularmente pela primeira vez quando a questão da
realização intelectual das mulheres é levantada . Qualquer um que afirmasse reconhecer um
traço feminino no rosto da mais eminente pintora Rosa Bonheur teria sido enganado pelo som
de seu nome, e a famosa Helena Petrovna Blavatsky também tinha uma aparência muito
masculina. Das mulheres produtivas e emancipadas ainda vivas, não mencionei
deliberadamente nenhuma. Mantive-me em silêncio sobre elas, embora tenham sido elas que
forneceram não apenas o incentivo para muitas das ideias que apresentei, mas também a
confirmação mais geral de minha visão de que a Mulher genuína, W, não tem nada a ver com a
“emancipação das mulheres”. A pesquisa histórica é obrigada a concordar com o ditado
popular que há muito antecipou sua descoberta: “Quanto mais comprido o cabelo, menor o
cérebro”. Este ditado está correto, exceto pelas reservas expressas no segundo capítulo.

E quanto às mulheres emancipadas: é apenas o homem nelas que quer ser emancipado.

Há uma razão mais profunda do que geralmente se supõe porque as escritoras adotam com
tanta frequência um nome masculino: elas se sentem quase como se fossem homens, e com
pessoas como George Sand isso está de acordo com sua preferência por roupas e atividades
masculinas. Seu motivo ao escolher um pseudônimo masculino deve ser a sensação de que
nada mais corresponde à sua própria natureza, e não pode estar enraizado no desejo de maior
atenção e reconhecimento público. Afinal, as produções femininas sempre despertaram mais
interesse do que, ceteris paribus, as criações dos homens, por causa do picante sexual a elas
associado; e, se foram bons, sempre receberam tratamento mais brando e elogios
incomparavelmente mais altos do que qualquer coisa igualmente boa alcançada pelos
homens, por causa das baixas expectativas que lhes são atribuídas desde o início. Este é
particularmente o caso hoje, quando as mulheres ainda estão constantemente alcançando
grandes reputações graças a produtos que dificilmente seriam notados se fossem originários
de homens. É hora de exercer alguma discriminação e separar o joio do trigo aqui. Se
tomarmos como padrão as criações estabelecidas dos homens na história da literatura,
filosofia, ciência e arte, o número não desprezível de mulheres descritas repetidas vezes como
mentes significativas encolherá lamentavelmente ao primeiro golpe. De fato, é preciso muita
caridade e frouxidão para atribuir o menor título de importância a mulheres como Angelika
Kaufmann ou Mme. Lebrun, Fernan Caballero ou Hroswitha von Gandersheim, Mary
Somerville ou George Egerton, Elizabeth Barrett-Browning ou Sophie Germain, Anna Maria
Schurmann ou Sibylla Merian. Não vou falar sobre o grau em que indivíduos femininos
anteriores citados como modelos de virago[la.] (por exemplo, Droste-Hülshoff) são
superestimados, nem criticar a medida da fama conquistada por algumas artistas mulheres
vivas. Basta dizer em geral que nem uma entre todas as mulheres (mesmo as mais masculinas)
na história intelectual pode realmente ser comparada in concreto com até mesmo gênios
masculinos de quinta e sexta categoria, por exemplo, Rückert entre os poetas, pintores de van
Dyckamong ou Schleiermacher entre os filósofos.
Se, por enquanto, eliminarmos visionárias histéricas como as Sibilas, as Pítias de Delfos,
Antoinette Bourignon e Susanna von Klettenberg, Jeanne de la Mothe-Guyon, Joanna
Southcott, Beate Sturmin ou Santa Teresa[2], ficaremos com casos como Maria Bashkirtseff.
Seu físico (tanto quanto posso dizer pela memória de sua foto) era de fato decididamente
feminino, exceto pela testa, o que me deu uma impressão um tanto masculina. Mas qualquer
um que veja seus quadros pendurados na Salle des Étrangers do Palácio de Luxemburgo em
Paris, ao lado dos de seu amado Bastien-Lepage, saberá que ela adotou seu estilo não menos
precisa e completamente do que Ottilie fez com a caligrafia de Eduard nas afinidades eletivas
de Goethe. O grande resíduo é formado pelos numerosos casos em que um talento possuído
por todos os membros de uma família acidentalmente emerge mais fortemente em um
membro do sexo feminino, que não precisa ser um gênio. Pois apenas o talento, e não o gênio,
é hereditário. Margaretha van Eyck e Sabine von Steinbach, apenas fornecem o paradigma
para uma longa linha de artistas mulheres sobre as quais Ernst Guhl, um escritor que é
incomumente bem-disposto em relação a artistas mulheres, escreve: “É explicitamente
relatado que elas aprenderam uma arte por seu pai, mãe ou irmão, ou seja, que receberam o
impulso de se tornarem artistas profissionais dentro de sua própria família. Há duzentos ou
trezentos deles, e quantas centenas mais podem ter se tornado artistas por influências
semelhantes sem serem mencionados pela história!” Para apreciar o significado dessas figuras,
deve-se ter em mente que um pouco antes Guhl fala “dos aproximadamente mil nomes de
artistas femininas que conhecemos”.

O grande resíduo é formado pelos numerosos casos em que um talento possuído por todos os
membros de uma família acidentalmente emerge mais fortemente em um membro do sexo
feminino, que não precisa ser um gênio. Pois apenas o talento, e não o gênio, é hereditário.
Margaretha van Eyck e Sabine von Steinbach, apenas fornecem o paradigma para uma longa
linha de artistas mulheres sobre as quais Ernst Guhl, um escritor que é incomumente bem-
disposto em relação a artistas mulheres, escreve: “É explicitamente relatado que elas
aprenderam uma arte por seu pai, mãe ou irmão, ou seja, que receberam o impulso de se
tornarem artistas profissionais dentro de sua própria família. Há duzentas ou trezentas delas, e
quantas centenas mais podem ter se tornado artistas por influências semelhantes sem serem
mencionados pela história!” Para apreciar o significado dessas figuras, deve-se ter em mente
que um pouco antes Guhl fala “dos aproximadamente mil nomes de artistas femininas que
conhecemos”.

Isso conclui minha revisão histórica das mulheres emancipadas. Confirmou a afirmação de que
uma necessidade genuína e uma capacidade real de emancipação em uma mulher pressupõe
masculinidade. A grande maioria das mulheres certamente nunca viveu para a arte ou para o
conhecimento, que apenas buscavam, no lugar do habitual “artesanato”, como mero
passatempo no idílio imperturbável de suas vidas, enquanto muitas outras se dedicavam
apenas a atividades intelectuais ou artísticas. numa forma de coqueteria enormemente tensa
diante de pessoas mais ou menos específicas do sexo masculino. Por uma questão de clareza,
pude, e de fato obrigado, excluir esses dois grandes grupos de meu exame. Todo o resto, visto
mais de perto, revela-se como formas sexuais intermediárias.

Por outro lado, se a necessidade de libertação e igualdade com os homens se manifesta


apenas nas mulheres masculinas, justifica-se concluir, per inductionem, que W não sente
nenhuma necessidade de emancipação. Essa conclusão é correta, embora, por enquanto,
tenha sido derivada apenas de uma observação histórica específica e não de um exame das
propriedades psíquicas da própria W. Assim, se adotarmos um ponto de vista higiênico (não
ético) sobre qual prática seria mais adequada a uma predisposição natural, chegamos a esse
juízo sobre a “emancipação da mulher”. O absurdo dos esforços emancipatórios está no
movimento, na agitação. Dada a grande propensão das mulheres à imitação, e
desconsiderando os motivos da vaidade e o desejo de pegar os homens, são essas coisas que
seduzem algumas delas a estudar, escrever, etc., mesmo que nunca tenham tido um desejo
original de fazê-lo , e nessas mulheres a luta pela educação é induzida pelo grande número de
outras que realmente parecem ter uma certa necessidade interior de emancipação. Como
resultado, estudar torna-se moda entre as mulheres e, finalmente, uma ridícula agitação das
mulheres entre si faz com que todas acreditem na autenticidade de algo que as boas donas de
casa costumam usar apenas como meio de demonstração contra seus maridos, e as filhas
apenas como uma manifestação apontada contra a autoridade de suas mães. A resposta
prática a toda a questão teria, portanto, de ser a seguinte, embora esta regra (ainda que
apenas pelo seu carácter fluido) não possa e não deva ser tratada como a base de qualquer
legislação: Acesso irrestrito a tudo para, e sem obstáculos em parte alguma no sentido de,
aquelas cujas verdadeiras necessidades psíquicas, sempre de acordo com sua constituição
física, impeli-las às atividades masculinas, ou seja, mulheres com características masculinas.
Mas ausente à formação de partidos, com qualquer revolucionar falso, com todo o movimento
das mulheres, que em tantas mulheres cria uma aspiração artificial que vai contra a natureza e
é fundamentalmente falsa.

E fora, da mesma forma, com a banalidade da “igualdade completa”! Mesmo a mulher mais
masculina provavelmente nunca contém mais de 50% de M, e é a essa delicadeza que ela deve
todo o seu significado, ou melhor, tudo o que ela talvez pudesse significar. Muitas mulheres
intelectuais parecem tirar conclusões gerais que demonstrariam não a paridade, mas sim a
superioridade do sexo feminino, com base nas experiências particulares com homens que
tiveram a oportunidade de reunir (que, como indicado anteriormente, não são típicas em
nenhum caso). Não se deve fazer isso, mas sim, como Darwin sugeriu, comparar os indivíduos
notáveis de um lado com os indivíduos notáveis do outro: “se fossem feitas duas listas dos
homens e mulheres mais eminentes na poesia, pintura, escultura, música (incluindo tanto
composição quanto performance), história, ciência e filosofia com meia dúzia de nomes sob
cada assunto, as duas listas não poderiam ser comparadas.” Se considerarmos ainda que, em
uma inspeção cuidadosa, as pessoas na lista feminina também testemunhariam apenas a
masculinidade do gênio, o desejo das feministas de se aventurar na compilação de tal catálogo
provavelmente se tornaria ainda menos ardente do que tem sido até agora.

A objeção usual, que será novamente expressa agora, é que a história não prova nada, porque
o movimento deve primeiro criar espaço para o desenvolvimento intelectual pleno e
desinibido das mulheres. Essa objeção não reconhece que em todos os tempos houve
mulheres emancipadas, uma Questão de Mulher e um movimento de mulheres, embora sua
vivacidade tenha variado nas diferentes épocas. Exagera imensamente as dificuldades que os
homens criaram em qualquer época, e supostamente estão criando agora em particular[3],
para as mulheres que desejam uma educação intelectual. Finalmente, ignora o fato de que
hoje novamente não é a Mulher real que exige a emancipação, mas invariavelmente apenas as
mulheres mais masculinas, que interpretam mal sua própria natureza e não reconhecem os
motivos de suas próprias ações, na crença de que estão falando em nome da Mulher.

Como todos os outros movimentos da história, o movimento das mulheres também estava
convencido de que era único, novo, sem precedentes. Seus pioneiros ensinaram que antes as
mulheres definhavam na escuridão e nas correntes, e só agora estavam começando a
reconhecer e reivindicar seus direitos naturais. Como em todos os outros movimentos
históricos, também para o movimento das mulheres foi possível encontrar analogias cada vez
mais antigas: não havia apenas uma Questão da Mulher no sentido social na Antiguidade e na
Idade Média, mas a emancipação intelectual também estava sendo buscada há muito tempo,
tanto por mulheres por meio de suas próprias conquistas quanto por apologistas e apologistas
do sexo feminino por meio de argumentos teóricos. Portanto, é totalmente falsa a crença, à
qual a luta feminista deve tanto entusiasmo e frescor, de que até recentemente as mulheres
nunca tiveram a oportunidade de desenvolver seu potencial intelectual de forma desobstruída.
Jacob Burckhardt escreve sobre o Renascimento: “O maior elogio que foi dado naquela época
às grandes mulheres italianas foi que elas tinham uma mente masculina e uma disposição
masculina. Basta observar o porte inteiramente masculino da maioria das mulheres dos
poemas heróicos, especialmente os de Boiardo e Ariosto, para perceber que estamos lidando
com um ideal particular. O título ‘virago’, que é considerado um elogio muito equívoco em
nosso século, naquela época não significava nada além de elogios”. No século XVI o palco foi
aberto às mulheres e as primeiras atrizes foram vistas. “Naquela época, as mulheres eram
consideradas capazes de atingir o mais alto grau de cultura, não menos que o homem.” É a
época em que um panegírico sobre o sexo feminino aparece após o outro, quando Thomas
More clama por completa igualdade entre mulheres e homens, e quando Agrippa von
Nettesheim realmente exalta as mulheres acima dos homens. E esses grandes sucessos do
sexo feminino foram perdidos novamente, pois toda a época caiu no esquecimento, da qual
não foi recuperada até o século XIX.

Não é muito surpreendente que as tentativas de emancipação das mulheres pareçam aparecer
na história mundial em intervalos constantes, sempre com o mesmo intervalo de tempo entre
elas?

Segundo todas as estimativas, houve consideravelmente mais mulheres emancipadas e um


movimento de mulheres mais forte nos séculos X, XV e XVI, e agora novamente nos séculos XIX
e XX, do que nas épocas intermediárias. Seria temerário construir uma hipótese apenas sobre
isso, mas deve-se pelo menos vislumbrar a possibilidade de uma poderosa periodicidade em
ação aqui, com mais hermafroditas, ou formas intermediárias, nascendo regularmente durante
certas fases do que nos intervalos entre elas. Tais períodos foram observados em assuntos
relacionados entre os animais.

A nosso ver, nesses momentos haveria menos gonocorismo, e o fato de que em certos
períodos nascem mais mulheres masculinas do que em outros teria que ser contrabalançado,
do lado oposto, pelo nascimento de mais homens femininos na mesma períodos. Isso, de fato,
é visto como aplicado em uma medida surpreendente. Todo o “gosto da Secessão de Viena”,
que concede o prêmio de beleza a mulheres altas e magras, com peitos planos e quadris
estreitos, talvez possa ser rastreado até isso. O enorme aumento do dandismo, assim como da
homossexualidade, nos últimos anos só pode ser consequência da maior feminilidade da era
atual. E não é sem uma razão mais profunda que tanto o gosto estético quanto o sexual desta
época buscam apoio dos pré-rafaelitas.

A existência na vida orgânica de períodos que se assemelham às oscilações da vida dos


indivíduos, mas que abrangem várias gerações, oferece uma perspectiva mais ampla de
compreensão de muitos pontos obscuros da história humana do que as iniciativas das
pretensiosas “concepções históricas” que se multiplicaram tão rapidamente nos últimos
tempos, em particular o econômico-materialista. Para a história humana, uma abordagem
biológica certamente produzirá um número infinito de insights no futuro. No entanto, vou me
restringir aqui a buscar sua aplicação prática ao caso em estudo.

Se é verdade que em certos momentos nascem mais hermafroditas e em outros menos, pode-
se antecipar que o movimento das mulheres se desintegraria em grande parte por conta
própria e não reapareceria por muito tempo, continuando a submergir e ressurgir em um
ritmo sem fim. Mulheres querendo se emancipar nasceriam em maior número em alguns
períodos e em número consideravelmente menor em outros.

As condições econômicas, que podem forçar até mesmo a esposa altamente feminina de um
proletário com muitos filhos a entrar na fábrica ou no canteiro de obras, é claro, não são o
problema aqui. A conexão entre o desenvolvimento industrial e comercial, por um lado, e a
Questão da Mulher, por outro, é muito mais frouxa do que parece, particularmente pelos
teóricos social-democratas, e uma conexão causal entre aspirações à competitividade
intelectual e econômica existe mesmo menos. Na França, por exemplo, que produziu três das
mulheres mais eminentes, um movimento de mulheres nunca realmente se enraizou e, no
entanto, em nenhum outro país europeu há tantas mulheres trabalhando independentemente
nos negócios quanto lá. Assim, a luta pela existência material não tem nada a ver com a luta
por um propósito intelectual na vida, se tal coisa está realmente sendo perseguida por
qualquer grupo de mulheres, e as duas devem ser claramente distinguidas.

O prognóstico que se fez para o segundo movimento, o intelectual, não é animador. É


provavelmente ainda mais deprimente do que seria se pudéssemos supor, como alguns
autores o fazem, um desenvolvimento progressivo da humanidade em direção à completa
diferenciação sexual, isto é, em direção ao dimorfismo sexual absoluto.

Esta última visão parece-me insustentável porque nos membros mais desenvolvidos do reino
animal nenhum aumento proporcional na separação dos sexos pode ser demonstrado. Certas
gefíreas e rotatórias, muitas aves e, entre os macacos, o mandril revelam gonocorismo muito
mais forte do que o observado, do ponto de vista morfológico, em humanos. Mas enquanto
essa suposição prevê um tempo em que pelo menos a necessidade percebida de emancipação
deixaria de existir para sempre e haveria apenas machos completos e fêmeas completas, a
suposição de uma recorrência periódica do movimento das mulheres condena mais
cruelmente todo o empreendimento das feministas à dolorosa impotência, revelando todas as
suas atividades como trabalho das Danaids, cujos sucessos, com o passar do tempo,
desaparecerão automaticamente no mesmo nada.

Este poderia ser o triste destino da emancipação da mulher se ela continuasse a perseguir seus
objetivos apenas na área social, no futuro histórico da espécie, imaginando cegamente seus
inimigos à espreita entre os homens e nas instituições legais criadas pelos homens. Se assim
fosse, seria realmente necessário formar um corpo amazônico, e nada permanente seria
ganho, pois ele se dissolveu repetidamente muito depois de sua criação. A esse respeito, o
Renascimento e seu completo desaparecimento fornecem uma lição para as feministas. A
verdadeira libertação da mente não pode ser buscada por um exército, por maior e mais
selvagem que seja, mas deve ser lutada apenas por um único indivíduo. Contra quem? Contra
o que se opõe a ela na própria alma do indivíduo. A maior, a única, inimiga da emancipação
das mulheres é a Mulher

Provar isso é a tarefa da segunda parte.


Notas:[1] - Isso também é claramente mostrado por seu retrato. Mérimée chama George Sand
de “maigre comme un clou”. Em seu primeiro encontro com Chopin, “ela” era obviamente o
macho e “ele” a fêmea: ele cora quando ela fixa os olhos nele e começa a cumprimentá-lo com
uma voz profunda.

[2] - A histeria é uma das principais causas das aspirações mais elevadas de muitas mulheres
notáveis. No entanto, seu significado comum, restrito aos excessos patológicos do corpo, é
muito estreito, como a segunda parte (capítulo XII) tentará explicar

[3] - A propósito, houve muitos grandes artistas masculinos totalmente sem educação (Burns,
Wolfram von Eschenbach), mas nenhuma artista feminina comparável.
Segunda Parte ou Parte Principal: Tipos
sexuais
I — Homem e Mulher
“Tudo o que um homem faz é fisionômico de si”
— Carlyle

O caminho fica aberto para a exploração de todos os contrastes reais entre os sexos quando
reconhecemos que Homem e Mulher só podem ser entendidos como tipos, e que a realidade
confusa, que sempre fornecerá novo combustível às controvérsias familiares, só pode ser
reproduzida por uma mistura desses dois tipos. As únicas formas sexuais realmente
intermediárias foram tratadas na primeira parte deste estudo e, como devo enfatizar agora, de
maneira um tanto esquemática. Este foi o resultado da necessidade de considerar a validade
biológica geral dos princípios que eu estava desenvolvendo. Agora que o ser humano deve se
tornar objeto de consideração ainda mais exclusivamente do que antes, e os alinhamentos
psicofisiológicos estão prestes a dar lugar à análise introspectiva, a reivindicação universal do
princípio dos estágios sexuais intermediários deve passar por uma qualificação significativa.

Entre plantas e animais, a ocorrência de hermafroditismo genuíno é um fato inquestionável.


Mas, mesmo entre os animais, o hermafroditismo muitas vezes parece significar uma
justaposição das gônadas masculinas e femininas, em vez de um equilíbrio dos dois sexos, no
mesmo indivíduo, uma coexistência dos dois extremos, em vez de uma condição totalmente
neutra no meio. entre eles. Dos seres humanos, no entanto, pode-se dizer com a maior certeza
que psicologicamente uma pessoa deve necessariamente ser homem ou mulher, pelo menos
inicialmente e ao mesmo tempo. Essa unissexualidade não está apenas de acordo com a
observação de que todos aqueles que se consideram simplesmente masculinos ou femininos
acreditam que seu complemento seja “Mulher” ou “Homem” puro e simples[1]. É também
mais poderosamente demonstrado pelo fato, cuja importância teórica dificilmente pode ser
superestimada, que dentro do relacionamento de dois homossexuais, seja homem ou mulher,
um sempre desempenha o papel físico e psicológico do homem e, no curso da uma relação
prolongada, mantém ou assume um nome próprio masculino, enquanto o outro desempenha
o da mulher, mantendo ou assumindo um nome próprio feminino ou — ainda mais frequente
e caracteristicamente — sendo dado um pelo primeiro.

Nas relações sexuais entre dois homossexuais femininos ou masculinos, portanto, um


desempenha sempre a função do masculino e o outro o do feminino, o que é um fato da maior
significância. A relação homem-mulher, no ponto decisivo, revela-se algo fundamental e
incontornável.

Apesar de todas as formas sexuais intermediárias, um ser humano é, em última análise, ou um


homem ou uma mulher. Esta milenar dualidade empírica (que não é meramente anatômica e
que em casos concretos não corresponde de forma alguma regular e precisamente aos
achados morfológicos) contém uma verdade profunda que não é negligenciada impunemente.

Ao reconhecer isso, deu-se um passo da maior consequência, que pode ser igualmente
benéfico ou desastroso para todos os insights posteriores. Tal visão estabelece um ser. A
tarefa definida para toda a investigação que se segue é investigar o significado desse ser. Mas
como esse ser problemático toca diretamente na dificuldade principal da caracterologia,
convém, antes de iniciar o trabalho com ingenuidade e ousadia, tentar uma breve orientação
sobre esse problema tão delicado, no próprio limiar do qual toda audácia vacila.

Os obstáculos enfrentados por qualquer investigação caracterológica são enormes, mesmo


que apenas por causa da natureza complicada do material. Repetidamente, o caminho que se
acredita ter encontrado através da floresta se perde na densa vegetação rasteira, e o fio não
pode mais ser desfeito da massa infinitamente emaranhada. O pior, porém, é que, à medida
que o intérprete tenta derivar princípios gerais, mesmo de inícios bem-sucedidos, surgem
repetidas vezes as mais graves dúvidas sobre o método de apresentação sistemática de
qualquer material desembaraçado, constituindo um obstáculo formidável em particular para o
estabelecimento de tipos. No que diz respeito aos contrastes entre os sexos, por exemplo, até
agora apenas a suposição de um certo tipo de polaridade e de inúmeras formas intermediárias
entre os extremos provou ser útil. Da mesma forma, na maioria das outras questões
caracterológicas — algumas das quais discutirei mais adiante — parece haver algo como uma
polaridade (já suspeitada pelo pitagórico Alcmaion de Crotona); e nesta área a filosofia da
natureza de Schelling talvez um dia colherá recompensas muito maiores do que a ressurreição
que um físico-químico de nosso tempo acredita que lhe deve.

Mas temos razão em esperar esgotar o indivíduo como tal fixando-o em um ponto particular
ao longo das linhas que ligam dois extremos quaisquer, ou mesmo acumulando uma infinidade
dessas linhas de conexão, um sistema de coordenadas com um número infinito de dimensões?
Não deveríamos recair, apenas em uma área mais concreta, ao ceticismo dogmático da auto-
análise praticada por Mach e Hume, se esperamos uma descrição completa do indivíduo
humano na forma de uma receita? E não seremos então conduzidos por uma espécie de
atomismo weismanniano dos determinantes a uma “fisionomia mosaica” quando estamos
apenas começando a recuperarmo-nos da “psicologia mosaica”?

Aqui nos deparamos com uma nova versão do velho problema fundamenta
que, como se vê, ainda está cheio de vida tenaz: há um ser unificado e simples no ser humano,
e como ele se relaciona com a multiplicidade que indubitavelmente existe ao lado dele? Existe
uma psique? E qual é a relação entre a psique e os fenômenos psíquicos? Agora entendemos
por que ainda não há caracterologia: porque a existência do objeto dessa ciência, o próprio
personagem, é problemática. O problema de toda metafísica e epistemologia, a questão
cardeal da psicologia, é também o problema “enfrentar qualquer caracterologia que possa se
apresentar como ciência”. Ou pelo menos de qualquer caracterologia que se esforce para
compreender as diferenças na natureza essencial dos seres humanos em plena consciência
crítica do status epistemológico de seus próprios postulados, reivindicações e objetivos.

Esta, diga-se, a caracterologia imodesta pretende ser mais do que a “psicologia das diferenças
individuais” que L. William Stern restaurou como objetivo da ciência psicológica, o que foi, no
entanto, um feito louvável: visa oferecer mais do que os particulares das reações motoras e
sensoriais de um indivíduo e, portanto, não deve descer imediatamente ao nível inferior de
todas as outras pesquisas modernas em psicologia experimental, que na verdade nada mais é
do que uma estranha combinação de um seminário estatístico e prática de laboratório em
física. Ela espera permanecer em estreito contato com a abundância da realidade psíquica, ao
contrário da psicologia de alavanca e parafuso, cuja autoconfiança só pode ser explicada por
seu total esquecimento dessa realidade, e não se preocupa em satisfazer os estudantes de
psicologia sedentos para esclarecimento sobre si mesmos, realizando investigações sobre o
aprendizado de palavras de uma sílaba e a influência de pequenas doses de café em fazer
contas. É um triste sinal da inadequação básica do trabalho da psicologia moderna, que, aliás,
é vagamente sentida em toda parte, que, em vista da desolação prevalecente, cientistas
respeitados que imaginavam que a psicologia era mais do que uma teoria de sensações e
associações compreensivelmente chegar à convicção de que a ciência reflexiva deve deixar
para sempre problemas como heroísmo ou auto-sacrifício, loucura ou crime, para a arte como
o único órgão capaz de compreendê-los, e abandonar toda esperança, não de compreendê-los
melhor do que os artistas (o que seria um insulto a um Shakespeare ou a um Dostoiévski), mas
pelo menos de compreendê-los de forma sistemática.

Nenhuma ciência está fadada a se tornar superficial tão rapidamente quanto a psicologia se
ela se separar da filosofia. A verdadeira causa do declínio da psicologia é sua emancipação da
filosofia. A psicologia deveria ter permanecido filosófica, certamente não em seus
pressupostos, mas em seus objetivos finais. O primeiro insight que teria então alcançado é que
o estudo das percepções sensoriais não tem qualquer relação direta com a psicologia. As
psicologias empíricas de hoje começam com o tato e as sensações em geral e terminam com o
“desenvolvimento de um caráter moral”. No entanto, a análise das sensações faz parte da
fisiologia dos sentidos, e qualquer tentativa de relacionar seus problemas especiais mais
profundamente às outras preocupações da psicologia está fadada ao fracasso.

Foi o infortúnio da psicologia científica que ela foi mais fortemente influenciada por dois
físicos, Fechner e Helmholtz, e assim falhou em reconhecer que o mundo interno,
diferentemente do externo, não é feito de puras sensações. Os dois psicólogos empíricos mais
sensíveis das últimas décadas, William James e Richard Avenarius, são os únicos que sentiram,
pelo menos instintivamente, que não se deve começar a psicologia pelas sensações da pele e
dos músculos, enquanto todo o resto da psicologia moderna psicologia é uma farsa mais ou
menos sensacionalista. Esta é a razão, não expressa com precisão suficiente por Dilthey, por
que a psicologia atual falha completamente em alcançar aqueles problemas normalmente
descritos como eminentemente psicológicos, a análise do assassinato, da amizade, da solidão
etc. aqui a velha desculpa de sua extrema juventude não serve para nada, porque ela se move
em uma direção completamente diferente daquela que poderia finalmente levá-la a eles
apesar de tudo. Portanto, o principal grito de guerra na luta por uma psicologia psicológica
deve ser: Fora o sensacionalismo na psicologia!

O empreendimento da caracterologia no sentido mais amplo e profundo, como descrito acima,


envolve principalmente o próprio conceito de personagem, entendido como o conceito de um
ser unificado constante. Assim como a morfologia, que foi invocada no quinto capítulo da
parte primeira para comparação, está preocupada com a forma da matéria orgânica, que
permanece constante apesar de toda mudança fisiológica, também a caracterologia pressupõe
como seu objeto algo que permanece constante, e que deve ser demonstrável por analogia,
em cada manifestação da vida da psique. Assim, a caracterologia se opõe principalmente à
“teoria da atualidade” dos eventos psíquicos, que se recusa a reconhecer a existência de
qualquer coisa permanente, mesmo porque se baseia na perspectiva do sensacionalismo
atomístico.

Assim, o caráter não é algo entronizado por trás dos pensamentos e sentimentos do indivíduo,
mas algo que se revela em cada pensamento e em cada sentimento. “Tudo o que um homem
faz é fisionômico dele.” Assim como cada célula contém as propriedades do indivíduo como
um todo, cada impulso psíquico de uma pessoa contém não apenas alguns “traços”
individuais, mas todo o seu ser, mesmo que a qualquer momento apenas uma ou outra de
suas peculiaridades se torne mais proeminente.

Não existe uma sensação isolada, e o objeto diante do sujeito é sempre um campo de visão e
uma totalidade de sensações, o mundo do eu, do qual ora esse item, ora aquele, se destaca
com mais nitidez. Além disso, nunca associamos “conceitos”, mas apenas momentos de nossa
vida, isto é, vários estados de consciência preenchidos de múltiplas maneiras a partir de um
passado (cada um, novamente, fixado em um ponto específico do campo de visão). Assim,
cada momento da vida da psique contém a pessoa como um todo, mesmo que em qualquer
momento a ênfase seja colocada em um aspecto diferente de seu caráter. Esse ser, que é
demonstrável em toda parte no estado psíquico de cada momento, é o objeto da
caracterologia. Portanto, a caracterologia seria o complemento essencial da psicologia
empírica, que, em estranha contradição com seu nome, psicologia, até agora se concentrou
quase exclusivamente nas mudanças no campo das sensações, o mundo heterogêneo,
negligenciando completamente a riqueza do eu. Usada dessa forma, a caracterologia poderia
ter um efeito fertilizante e regenerador na psicologia geral como a teoria do todo que resulta
da complexidade do sujeito e da complexidade do objeto (ambas só poderiam ser isoladas
desse todo por meio de uma estranha abstração). Muitas questões contenciosas em psicologia
— talvez as mais fundamentais — podem, de fato, ser decididas apenas por um exame
caracterológico, que mostraria por que uma pessoa defende essa opinião e outra aquela, o
que explicaria por que eles diferem quando estão falando sobre o mesmo tópico, e o que
demonstraria que a única razão pela qual eles têm visões diferentes sobre o mesmo evento e o
mesmo processo psíquico é que com cada um deles o evento ou processo recebeu uma
coloração individual, a marca do próprio caráter da pessoa. Assim, é apenas a teoria das
diferenças psicológicas que torna possível o acordo na área da psicologia geral.

O eu formal seria o problema último de uma psicologia dinâmica, a substância material do eu o


problema último de uma psicologia estática. E, no entanto, a própria existência do caráter é
questionada; ou deveria, pelo menos, ser negado por um positivismo total no sentido de
Hume, Mach ou Avenarius. Portanto, é fácil ver por que ainda não temos caracterologia,
entendida como a teoria do caráter específico.

O pior dano, no entanto, foi causado à caracterologia, ligando-a intimamente à psicologia. O


simples fato de que a caracterologia tenha sido historicamente ligada ao destino do conceito
de si não é justificação para ligá-lo ao mesmo factualmente. O cético absoluto difere do
dogmatista absoluto por nada mais que uma palavra, e somente aqueles que adotam
dogmaticamente o ponto de vista do fenomenalismo absoluto, na crença de que isso por si só
os libera de todos os ônus da prova a que todos os outros pontos de vista estão sujeitos
simplesmente como resultado de entrar neste campo, rejeitarão de antemão o ser que é
afirmado pela caracterologia e que de modo algum precisa ser idêntico a uma essência
metafísica

A caracterologia é obrigada a manter sua posição contra dois grandes inimigos. Toma-se como
certo o caráter e nega-se que a ciência possa capturá-lo como faz a apresentação artística. O
outro aceita apenas as sensações como sendo reais; para ele, a realidade e as sensações
tornaram-se uma coisa só, a sensação é o alicerce tanto do mundo quanto do eu, e não existe
caráter. O que então deve fazer a caracterologia, a ciência do caráter? “De individuo nulla
scientia”, “individuum est ineffabile”, é contado por um lado, que se apega ao indivíduo; e o
outro lado, que se dedica exclusivamente a ser científico e que não assegurou para si “a arte
como órgão de compreensão da vida”, informa repetidamente que a ciência nada sabe sobre o
caráter.

É em tal fogo cruzado que a caracterologia teria que se manter. Quem, então, não é dominado
pelo medo de que ela compartilhe o destino de suas irmãs e permaneça uma promessa
eternamente não cumprida como a fisionomia, ou uma arte divinatória como a grafologia?
Essa também é uma pergunta que os capítulos posteriores devem tentar responder. Será sua
tarefa examinar o significado simples ou múltiplo do ser afirmado pela caracterologia. Mas por
que essa questão geralmente está tão intimamente ligada à questão das diferenças psíquicas
entre os sexos em particular, só se tornará evidente a partir de suas descobertas finais.

Notas:

1 - Certa vez, ouvi um homem bissexual exclamar ao ver uma atriz bissexualmente ativa com
um leve indício de barba, uma voz profunda e sonora e quase sem cabelo na cabeça: “Que
mulher linda!” Para cada homem, “mulher” significa algo diferente e, no entanto, o mesmo;
em “mulher” todo poeta celebrou algo diferente e, no entanto, idêntico.

II — Sexualidade Masculina e Feminina


Mulher não revela seu segredo.
— Kant

Mulier taceat de muliere.


— Nietzsche

A psicologia como tal geralmente é entendida como a psicologia dos psicólogos, e os


psicólogos são exclusivamente homens: nunca na história registrada se ouviu falar de uma
psicóloga. É por isso que a psicologia da mulher costuma ser tratada, em um capítulo anexo à
psicologia geral, da mesma forma que a psicologia da criança. E como a psicologia foi escrita
regularmente, ainda que inconscientemente, com referência exclusiva ao homem, a psicologia
geral tornou-se a psicologia dos “homens”, e o problema de uma psicologia dos sexos só é
levantado quando surge a ideia de uma psicologia da mulher. Assim diz Kant: “Na
antropologia, a natureza das características femininas, mais do que as do sexo masculino, é
objeto de estudo dos filósofos”. A psicologia dos sexos sempre coincidirá com a psicologia de
W.

A psicologia de W, no entanto, também é escrita apenas por homens. Pode, portanto, ser
facilmente considerado impossível realmente escrever tal psicologia, que é obrigada a fazer
tais declarações sobre estranhos que não foram verificadas por sua própria auto-observação.
Supondo que W pudesse se descrever com a precisão necessária, ainda não é certo que ela
mostraria o mesmo interesse pelos aspectos que nos interessam principalmente; e mesmo
supondo que ela seria capaz e desejaria se reconhecer com a maior precisão possível, a
questão ainda permanece se seria possível levá-la a falar sobre si mesma. Ver-se-á no decorrer
desta investigação que essas três improbabilidades apontam para uma fonte comum na
natureza da mulher.

A investigação pode ser realizada apenas com a premissa de que é possível fazer afirmações
corretas sobre a Mulher sem ser mulher. Assim, por enquanto, a primeira objeção permanece,
e como não poderemos refutá-la até um estágio posterior, tudo o que podemos fazer agora é
ignorá-la. Vou fornecer apenas um exemplo. Até agora — isso é apenas mais uma
consequência da opressão do homem? — nenhuma mulher grávida jamais deu expressão às
suas sensações e sentimentos, seja em um poema, em memórias ou em um tratado
ginecológico. Isso não pode ser devido a uma excessiva timidez, pois — como Schopenhauer
corretamente apontou — não há nada tão distante de uma mulher grávida quanto a vergonha
de sua condição. Além disso, seria possível para ela confessar suas experiências psicológicas
naquele momento de memória após o término de sua gravidez. Se a timidez a impediu de se
comunicar então, não o faria mais depois, e o interesse despertado em muitos lugares por tais
revelações provavelmente seria motivo suficiente para muitas mulheres quebrarem o silêncio.
Mas nada disso aconteceu. Assim como em outras áreas devemos quaisquer revelações
realmente valiosas sobre os processos psicológicos na mulher somente aos homens, as
sensações das mulheres grávidas também foram descritas apenas pelos homens. Como eles
foram capazes de fazer isso?

Embora nos últimos tempos as declarações de três quartos das mulheres e metade das
mulheres sobre suas vidas psíquicas tenham aumentado em número, elas ainda dizem mais
sobre o Homem do que a Mulher real nelas. Podemos, portanto, confiar apenas em uma coisa:
no que há de feminino nos próprios homens. Aqui, o princípio das formas intermediárias
revela-se, em certo sentido, o pré-requisito para qualquer juízo verdadeiro de um homem
sobre uma mulher. Não obstante, será necessário posteriormente restringir e ampliar o
significado desse princípio. Pois sua aplicação não qualificada sugeriria que o homem mais
feminino está na melhor posição para descrever uma mulher, com a consequência lógica de
que uma mulher genuína está na melhor posição para ver através de si mesma claramente, o
que acaba de ser fortemente questionado. Neste ponto já percebemos que um homem pode
ter uma certa medida de feminilidade nele sem, portanto, representar uma forma sexual
intermediária no mesmo grau, e parece ainda mais notável que um homem seja capaz de fazer
declarações válidas sobre a natureza de mulher. De fato, como parecemos incapazes de negar
essa capacidade até mesmo para M, dada a masculinidade extraordinária de muitas juízas
obviamente excelentes de mulheres, a natureza problemática do direito do Homem de ter
uma palavra sobre a Mulher [1]permanece ainda mais notável, e veremos mais adiante ser
ainda menos capaz de se esquivar de resolver a dúvida metodológica fundamental sobre esse
direito. Por enquanto, no entanto, vamos, como eu disse, considerar a objeção como não
tendo sido feita e proceder à investigação do assunto em si. Perguntamos sem mais delongas:
Qual é a diferença psicológica essencial entre o Homem e a Mulher?

Pensou-se que a diferença primordial entre os sexos, da qual todas as outras diferenças podem
ser derivadas, reside na maior intensidade do impulso sexual no homem. Independentemente
de esta afirmação estar correta e se a palavra “desejo sexual” denota algo inequívoco e
realmente mensurável, a legitimidade em princípio de tal derivação é certamente muito
questionável neste estágio. Pode haver alguma verdade em todas aquelas teorias antigas e
medievais sobre a influência do “ventre insatisfeito” na mulher e do “semen retentum” no
homem, e não havia necessidade do slogan de que “tudo” não é nada além de “condução de
drive sexual sublimada”, tão popular hoje em dia. No entanto, nenhum relato sistemático pode
ser construído com base na suspeita de tais conexões vagas. Até agora não houve nenhuma
tentativa de verificar se o grau de quaisquer outras qualidades é determinado pela maior ou
menor força do impulso sexual.

No entanto, a afirmação de que a intensidade do desejo sexual é maior em M do que em W


está errada. Na verdade, o oposto também foi afirmado, e é igualmente errado. A verdade é
que, mesmo entre homens de masculinidade igualmente forte, a força da necessidade do ato
sexual varia, como varia, pelo menos aparentemente, entre mulheres com a mesma proporção
de W. Aqui, particularmente no caso dos homens, ao tentar uma classificação deve-se
considerar a contribuição de fatores bem diferentes, que pude descobrir em parte e dos quais
talvez trate em detalhes em outra publicação.

Ao contrário de uma visão popular difundida, então, não há diferença entre os sexos no que
diz respeito à intensidade do desejo sexual. Por outro lado, notamos uma diferença se
aplicarmos ao Homem e à Mulher, respectivamente, cada um dos dois aspectos analíticos da
pulsão sexual como definidos por Albert Moll: a pulsão de detumescência e a pulsão de
constrição. O primeiro é o resultado de uma sensação de desprazer decorrente do acúmulo de
grande quantidade de células germinativas maduras, o segundo é a necessidade de fazer
contato físico com um indivíduo utilizado como complemento sexual. Enquanto M tem o
impulso de detumescência e o “contrectation drive [A fase inicial do ato sexual envolvendo
contato manual e tumescência; preliminares sexuais]“, em W um impulso de detumescência
genuíno não está presente. Em um nível, isso é uma consequência direta do fato de que no ato
sexual apenas M dá algo a W, enquanto W não dá nada a M: W retém as secreções masculina
e feminina. Em termos anatômicos o mesmo se expressa através da proeminência dos genitais
masculinos, o que torna o corpo do homem inteiramente desprovido do caráter de vaso. De
qualquer forma, é possível ver nesse fato morfológico uma sugestão da masculinidade da
pulsão de detumescência, sem associar imediatamente a ela nenhuma das conclusões que são
características da filosofia da natureza. Que W não tem o impulso de detumescência também é
comprovado pelo fato de que a maioria daquelas que contêm mais de 3 M invariavelmente se
tornam viciados em sua juventude por períodos mais longos ou mais curtos à masturbação,
um vício que entre as mulheres só é praticado por aquelas mais parecidas com os homens.
Para a própria W a masturbação é algo estranho. Eu sei que ao dizer isso estou fazendo uma
afirmação que é contestada por muitas afirmações robustas em contrário. Mas uma explicação
satisfatória dessas observações aparentemente contraditórias seguirá em breve

Em primeiro lugar, porém, deve-se discutir o acionamento de contração de W. Essa pulsão


desempenha um papel exclusivo e, portanto, o mais importante no caso da Mulher, mas
mesmo assim não se pode dizer que seja maior em um sexo do que no outro. Pois o conceito
de pulsão de contração não implica o ato de tocar, mas apenas a necessidade de contato físico
como tal com outra pessoa próxima, e não diz nada sobre qual das partes está tocando ou
sendo tocada. A confusão nestas questões, onde a intensidade do desejo é sempre confundida
com o desejo de atividade, vem do fato de que em todo o reino animal é M quem procura e
adota uma postura agressiva em relação a W, o que também é visto microcosmicamente no
comportamento de cada espermatozoide animal ou vegetal em relação ao óvulo. Isso pode
facilmente resultar no erro de supor que um comportamento empreendedor com o propósito
de alcançar um objetivo e o desejo de alcançá-lo se seguem regularmente e em uma
proporção constante, e de implicar a ausência de um impulso onde não há esforços motores
que são feitos para satisfazê-la. Foi assim que o impulso de constrição passou a ser
considerado especificamente masculino e negado, de todas as coisas, à Mulher. É claro, no
entanto, que neste ponto deve ser feita uma distinção dentro da unidade de construção. Ver-
se-á que, no que diz respeito às relações sexuais, M tem a necessidade de atacar[2] e W a
necessidade de ser atacada, e claramente não há razão para que a necessidade feminina,
apenas porque seu objetivo é a passividade, seja menor que a necessidade de atividade
masculina. Seria necessário fazer essas distinções nos muitos debates em que repetidamente
se levanta a questão de qual sexo tem o desejo mais forte em relação ao outro.

O que foi descrito como masturbação na Mulher brota de outra causa que não é o impulso da
detumescência. W é, e agora estamos falando pela primeira vez sobre uma diferença real,
muito mais facilmente excitada sexualmente do que o Homem; sua irritabilidade fisiológica
(não sensibilidade) na esfera sexual é muito maior. O fato dessa capacidade de excitação
sexual fácil pode se manifestar na Mulher como desejo de excitação sexual ou em um medo
peculiar, muito irritável, aparentemente muito inseguro e, portanto, inquieto e intenso de
excitação ao ser tocado. O desejo de excitação sexual é um sinal real de uma capacidade de
excitação fácil, pois não é um daqueles desejos que nunca podem ser satisfeitos pelo destino
baseado na natureza de uma pessoa, mas, ao contrário, significa que toda a constituição de
uma pessoa pode fácil e voluntariamente entrar em um estado de excitação sexual, que a
Mulher deseja que seja tão intenso e perpétuo quanto possível, e que não termina
naturalmente, como acontece com o Homem, na detumescência alcançada pela contração.
Esses fenômenos que foram considerados como masturbação por parte da Mulher não são
ações com a tendência imanente de acabar com o estado de excitação sexual, como no
Homem; ao contrário, são todas tentativas de precipitá-lo, intensificá-lo e prolongá-lo. Do
medo da excitação sexual, cuja análise coloca a psicologia da mulher numa tarefa nada fácil,
senão mesmo a mais difícil, é possível inferir com certeza uma grande fraqueza a este respeito.

Para a Mulher o estado de excitação sexual significa apenas a maior intensificação de toda a
sua existência, que é sempre e absolutamente sexual. A existência de W gira inteiramente em
torno de sua vida sexual, a esfera da cópula e da reprodução, ou seja, em sua relação com um
homem e com os filhos, e sua existência é totalmente absorvida por essas coisas, enquanto M
não é apenas sexual. Esta é, então, na realidade, a diferença que tem sido buscada na
diferente intensidade do impulso sexual. Deve-se, portanto, tomar cuidado para não confundir
a força do desejo sexual e a força dos afetos sexuais com a amplitude dos desejos e
apreensões sexuais que absorvem um homem ou mulher humana. Somente a maior extensão
da esfera sexual através de toda a pessoa em W faz uma diferença específica da máxima
significância entre os extremos sexuais.

Enquanto W, então, está totalmente ocupada e absorvida pela sexualidade, M conhece


dezenas de outras coisas: lutar e brincar, socializar e festejar, discussões e aprendizado,
negócios e política, religião e arte. Não estou falando se isso sempre foi o caso. Isso não
precisa nos preocupar. É como a Questão Judaica: as pessoas dizem que os judeus só se
tornaram o que são, e que antigamente eram bem diferentes. Pode ser, mas nós aqui não
sabemos. Que acreditem aqueles que acreditam que a evolução é capaz de tanto, mas essas
coisas não foram provadas, e uma tradição histórica é imediatamente contrariada por outra. O
que importa é como as mulheres são hoje. E se nos deparamos com coisas que não podem ter
sido implantadas em um ser de fora, podemos seguramente assumir que sempre foi o mesmo.
Hoje, pelo menos, isso é certamente verdade: salvo uma aparente exceção (capítulo XII), W se
preocupa com assuntos extra-sexuais apenas por causa do homem que ela ama ou do homem
por quem ela gostaria de ser amada. Ela não tem nenhum interesse nesses assuntos como tal.
Houve casos de uma mulher genuína aprendendo latim; mas ela só o fez, por exemplo, para
poder, neste aspecto como em outros, ajudar e supervisionar seu filho, que frequenta uma
escola primária. O gozo de algo e o talento para isso, o interesse por algo e a facilidade em
dominá-lo são sempre diretamente proporcionais. Aqueles que não têm músculos não têm
inclinação para se exercitar com halteres ou levantar pesos; apenas aqueles com talento para a
matemática escolherão estudá-la. Assim, mesmo o talento parece ser mais raro ou menos
intenso na Mulher genuína (embora isso pouco importe, pois mesmo que fosse o contrário,
sua sexualidade seria forte demais para admitir qualquer outra ocupação séria); e é
provavelmente também por isso que a Mulher carece dos pré-requisitos para o
desenvolvimento de combinações interessantes que no Homem podem moldar, mas não
constituir, uma individualidade.

Assim, apenas os homens mais femininos estão constantemente perseguindo mulheres e não
se interessam por nada além de casos amorosos e relações sexuais. No entanto, esta
observação não pretende resolver, ou mesmo começar a resolver, o problema de Don Juan.
W não é nada além de sexualidade, M é sexual e algo mais além. Isso se mostra
particularmente claramente nas maneiras totalmente diferentes pelas quais o Homem e a
Mulher experimentam sua entrada no período de maturidade sexual. No caso de um homem,
o tempo da puberdade é sempre um tempo de crise, quando ele sente que algo estranho
entra em sua existência, algo se acrescenta aos seus pensamentos e sentimentos, sem que ele
queira. É a ereção fisiológica, sobre a qual a vontade não tem poder; a primeira ereção é,
portanto, sentida como misteriosa e inquietante por todos os homens, e muitos homens se
lembram das circunstâncias particulares com a maior precisão durante toda a vida. Uma
mulher, por outro lado, não apenas aceita facilmente a puberdade, mas sente que sua
existência foi, por assim dizer, elevada a um poder superior, sua própria importância
aumentada infinitamente. O homem, quando menino, não sente nenhuma necessidade de
maturidade sexual. A mulher, já bem jovem, espera tudo daquela época. Em um homem, os
sintomas de sua maturidade física são acompanhados por sentimentos desagradáveis, até
hostis e ansiosos. Uma mulher observa seu desenvolvimento somático durante a puberdade
com o maior suspense, com a expectativa mais febril e impaciente. Isso prova que a
sexualidade do homem não se situa na linha reta de seu desenvolvimento, enquanto na
mulher a puberdade traz apenas uma enorme intensificação de sua forma anterior de
existência. Não há muitos meninos dessa idade que não considerem a ideia de se apaixonar ou
casar (casar em sentido geral, não com uma menina em particular) extremamente ridícula e
que não a rejeitem com indignação, enquanto as meninas mais novas já parecem estar
interessadas no amor e no casamento como a realização de sua existência. É por isso que a
Mulher atribui um valor positivo apenas ao tempo de maturidade sexual, tanto em si mesma
como nos outros, e não tem relação real nem com a infância nem com a velhice. Para ela, a
lembrança de sua infância é apenas uma lembrança de sua estupidez, e a perspectiva de sua
velhice a enche de medo e repugnância. De sua infância, sua memória destaca os momentos
sexuais sozinhos por meio de uma avaliação positiva, e mesmo esses estão em desvantagem
contra as intensificações posteriores incomparavelmente maiores de sua vida — que é
precisamente uma vida sexual. Finalmente, a noite de núpcias, o momento da defloração, é o
mais importante, diria eu, o meio do caminho de toda a vida da Mulher. Na vida do homem, a
primeira relação sexual não desempenha absolutamente nenhum papel em comparação com
o significado que possui para o sexo oposto.

A mulher é apenas sexual, o homem também é sexual: essa diferença pode ser desenvolvida
em termos de espaço e tempo. No corpo do homem, os pontos a partir dos quais ele pode ser
excitado sexualmente são poucos em número e estritamente localizados. A sexualidade da
mulher se espalha difusamente por todo o seu corpo, e cada toque, em qualquer ponto, a
excita sexualmente. Portanto, a afirmação, no segundo capítulo da primeira parte, de que todo
o corpo masculino, bem como todo o corpo feminino, é determinado sexualmente, não deve
ser entendida como significando que tanto o homem quanto a mulher podem sofrer uma
estimulação sexual uniforme de todos os pontos. Na capacidade de excitação da Mulher
também existem algumas diferenças locais, mas não há uma divisão nítida, como no Homem,
entre o trato genital e todas as outras áreas do corpo.

A saliência morfológica dos genitais masculinos do corpo do homem poderia, novamente, ser
considerada um símbolo dessa situação.

Assim como a sexualidade do homem se destaca espacialmente contra os elementos


assexuados nele, a mesma desigualdade também marca seu comportamento em diferentes
momentos. A mulher é constantemente, o homem apenas intermitentemente sexual. Na
Mulher o impulso sexual está sempre presente (as aparentes exceções que sempre são
levantadas por aqueles que negam a sexualidade da Mulher serão discutidas em detalhes mais
adiante), no Homem ele sempre repousa por períodos mais longos ou mais curtos. Isso
também explica a natureza eruptiva do desejo sexual masculino, que o faz parecer muito mais
marcante do que o feminino, e que contribuiu para a proliferação do erro de que o desejo
sexual do homem é mais intenso que o da mulher. A diferença real é que para M o desejo
sexual é, por assim dizer, uma coceira com intervalos, para W uma cócega incessante.

A sexualidade física e psíquica exclusiva e contínua da Mulher tem consequências ainda mais
abrangentes. O fato de a sexualidade no homem não ser tudo, mas apenas um apêndice,
permite ao homem colocá-la psicologicamente contra um pano de fundo e, assim, tornar-se
consciente dela. Portanto, o homem pode confrontar sua sexualidade e contemplá-la
isoladamente de outras coisas. Na Mulher, a sexualidade não pode ser contrastada com uma
esfera não sexual, nem pela limitação temporal de suas erupções, nem pela presença de um
órgão anatômico no qual está visivelmente localizada. É por isso que o Homem é consciente de
sua sexualidade, enquanto a Mulher é completamente incapaz de tornar-se consciente e,
portanto, de boa fé para negar sua sexualidade, mesmo porque ela não é nada além de
sexualidade, porque ela é a própria sexualidade, como pode ser acrescentado. imediatamente
à espera de mais explicações. Porquanto a Mulher é apenas sexual, ela não tem a dualidade
que é um pré-requisito para perceber a sexualidade, ou mesmo perceber qualquer coisa;
enquanto no Homem, que é sempre mais do que meramente sexual, a sexualidade contrasta
com tudo o mais, não apenas anatomicamente, mas também psicologicamente. É por isso que
ele tem a capacidade de assumir uma atitude independente em relação à sexualidade. Se a
enfrenta, pode limitá-la ou dar-lhe mais alcance, negá-la ou afirmá-la. Ele tem o mesmo
potencial para ser um Don Juan ou um santo, e pode escolher um ou outro. Para ser franco: o
homem tem o pênis, mas a vagina tem a mulher.

Como resultado destas deduções parece provável que o Homem se conscientize da sua
sexualidade e a enfrente de forma autônoma, enquanto a Mulher parece não ter capacidade
para o fazer, e esta afirmação assenta na maior diferenciação do Homem, em quem os
elementos sexuais e assexuais se separaram. No entanto, a possibilidade ou impossibilidade de
compreender um único objeto específico não está relacionada ao conceito comumente
associado à palavra consciência, o que implica, sim, que se um organismo tem alguma
consciência, ele pode tornar-se consciente de qualquer objeto. Isso levanta a questão sobre a
natureza da consciência feminina como tal e a discussão desse tópico envolverá um longo
desvio antes que possamos retornar ao ponto que acabamos de tocar de forma tão superficial.

Como resultado destas deduções parece provável que o Homem se conscientize da sua
sexualidade e a enfrente de forma autônoma, enquanto a Mulher parece não ter capacidade
para o fazer, e esta afirmação assenta na maior diferenciação do Homem, em quem os
elementos sexuais e assexuais se separaram. No entanto, a possibilidade ou impossibilidade de
compreender um único objeto específico não está relacionada ao conceito comumente
associado à palavra consciência, o que implica, sim, que se um organismo tem alguma
consciência, ele pode tornar-se consciente de qualquer objeto. Isso levanta a questão sobre a
natureza da consciência feminina como tal e a discussão desse tópico envolverá um longo
desvio antes que possamos retornar ao ponto que acabamos de tocar de forma tão superficial.

Notas:
1 - A seguir, homem significa sempre o tipo M e mulher o tipo W, e não homens ou mulheres
como indivíduos

2 - Nota do tradutor: em alemão "Angreifen" significa tanto “atacar” quanto “tocar”.

III — Consciência Masculina e Feminina


Antes de podermos tratar mais detalhadamente de uma das principais diferenças entre a
psique masculina e feminina e a medida em que ela transforma os objetos do mundo em seus
próprios conteúdos, será necessário tomar algumas sondagens psicológicas e definir alguns
conceitos. Como os pontos de vista e os princípios da psicologia predominante se
desenvolveram sem levar em conta esse tópico em particular, seria surpreendente se as
teorias dessa psicologia pudessem ser prontamente aplicadas a ele. Além disso, ainda não há
psicologia, mas apenas psicologias, e a decisão de ingressar em qualquer escola e tratar todo o
tema com base nos dogmas dessa escola pareceria muito mais arbitrária do que o
procedimento adotado aqui, que tenta reexaminar os fenômenos tão independentes quanto
necessário, embora com a referência mais próxima possível às realizações existentes.

As tentativas de considerar toda a vida psíquica de maneira unificada e de rastreá-la até um


único processo fundamental se expressaram na psicologia empírica principalmente na relação
assumida por diferentes pesquisadores entre sensações e sentimentos. Herbart derivava
sentimentos de ideias, enquanto Horwicz afirmava que sentimentos se desenvolviam a partir
de sensações. Os principais psicólogos modernos enfatizaram a desesperança desses esforços
monísticos. No entanto, havia alguma verdade neles.

Para encontrar essa verdade, é preciso fazer uma distinção que, curiosamente, está faltando
na psicologia de hoje, embora pareça óbvia. Deve-se separar a primeira consciência de uma
sensação, o primeiro pensamento de um pensamento, o primeiro sentimento de um
sentimento, das repetições posteriores do mesmo processo, onde há a possibilidade de
reconhecimento. Essa distinção parece ser de grande significância em relação a uma série de
problemas, mas infelizmente não é feita na psicologia atual.

Toda sensação plena, clara e vívida, bem como todo pensamento nitidamente definido e
distinto, antes de ser colocado em palavras pela primeira vez, é precedida por um estágio de
indistinção, embora isso muitas vezes possa ser extremamente breve. Da mesma forma, toda
associação desconhecida é precedida por um período de tempo mais ou menos curto no qual
há apenas um vago senso de direção em relação ao que deve ser associado, um
pressentimento geral de uma associação, uma sensação de que algo pertence a outra coisa.
Leibniz, em particular, deve ter em mente processos relacionados que, tendo sido mais ou
menos bem descritos, deram origem às teorias acima de Herbart e Horwicz.

Uma vez que apenas prazer e desprazer, e possivelmente, como Wundt sugeriu, relaxamento e
tensão, repouso e estimulação, são geralmente considerados as formas básicas simples de
sentimentos, a divisão dos fenômenos psíquicos em sensações e sentimentos é limitante para
aqueles fenômenos que fazem parte do os estágios que precedem a clareza e, portanto, inútil
para descrevê-los, como logo se tornará mais evidente. No interesse de uma definição precisa,
usarei, portanto, o que é provavelmente a classificação mais geral dos fenômenos psíquicos
que poderia ser feita: a divisão de Avenarius em “elementos” e “personagens” (onde “caráter”
não tem nada em comum com o objeto da caracterologia).
Avenarius dificultou o uso de suas teorias, não tanto por sua terminologia inteiramente nova
(que contém muitos elementos excelentes e é praticamente indispensável para certas coisas
que ele foi o primeiro a notar e nomear), mas por sua infeliz obsessão por derivar a psicologia
de um sistema de uma fisiologia do cérebro que ele mesmo só obteve dos fatos psicológicos
da experiência interna (com a adição externa do conhecimento biológico mais geral do
equilíbrio entre nutrição e trabalho), e que é o maior obstáculo para a aceitação de muitas de
suas descobertas. Em sua Kritik der reinen Erfahrung [Crítica da experiência pura] os
fundamentos sobre os quais as hipóteses da primeira parte fisiológica evoluíram em sua
própria mente foram fornecidas pela segunda parte psicológica, mas seu relato inverte esses
passos e, portanto, a primeira parte impressiona o leitor como um relatório sobre uma viagem
à Atlântida. Por causa dessas dificuldades, devo aproveitar esta oportunidade para explicar
brevemente o significado da classificação de Avenarius, que se mostrou mais adequada ao
meu propósito.

Um “elemento”, para Avenarius, é o que na psicologia padrão é simplesmente chamado


“sensação”, “conteúdo de uma sensação” ou simplesmente “conteúdo” (em conexão tanto
com “percepção” quanto com “reprodução”), e o que é descrito por Schopenhauer como
“ideia”, pelos ingleses como “impressão” e “ideia”, e na vida cotidiana como “coisa”, “fato” ou
“objeto” — independentemente de um órgão sensorial ter sofrido ou não algum estímulo
externo, o que era uma noção muito importante e nova. Neste contexto, tanto para os
propósitos de Avenarius como para os nossos, é de pouca importância onde termina a
chamada análise e se se considera uma árvore inteira como uma “sensação” ou se aceita
apenas uma única folha, um único talo, ou mesmo apenas sua cor, tamanho, consistência,
cheiro ou temperatura (que é onde uma parada é mais frequentemente chamada) como
realmente “simples”. Pois se poderia ir ainda mais longe nesse caminho e, supondo que a cor
verde da folha seja ela mesma complexa, ou seja, resultado de sua qualidade, intensidade,
brilho, saturação e expansão, aceitar apenas estes últimos como elementos. Isso seria
semelhante ao que muitas vezes aconteceu com os átomos: uma vez eles tiveram que dar
lugar a “ameras”, agora novamente a “elétrons”.

Se “verde”, “azul”, “frio”, “quente”, “duro”, “suave”, “doce”, “azedo” são elementos, então o
caráter, de acordo com Avenarius, é qualquer “coloração” ou “tom emocional” que os
acompanha, e isso se aplica não apenas a “agradáveis”, “belos”, “agradáveis” e seus opostos,
mas também a “estranhos”, “confiáveis”, misteriosos”, “constantes”, “diferentes, ” “certo”,
“familiar”, “real”, “duvidoso”, etc., etc., que Avenarius foi o primeiro a reconhecer como
pertencentes psicologicamente à mesma categoria. O que eu, por exemplo, assumo, acredito
ou sei é um “elemento”, enquanto o fato de que é apenas assumido, mas não acreditado ou
conhecido, é psicologicamente (não logicamente) um “personagem”, no qual o “elemento”
está definido.

Há um estágio na vida da psique em que mesmo essa classificação mais abrangente dos
fenômenos psíquicos ainda não pode ser realizada e seria prematura. Pois em seus primórdios
todos os “elementos” parecem formar um fundo desfocado, um “rudis indigestaque moles”,
com ondas de caracterização (aproximadamente = acentuação emocional) girando em torno
do todo. Isso se assemelha ao processo que ocorre quando se aproxima de uma característica
do ambiente, como um arbusto ou uma pilha de madeira, de longa distância: para entender o
que se segue, pede-se ao leitor que pense sobretudo na impressão original criada por tal
aspecto, o primeiro momento em que se está longe de saber o que “isso” realmente é, aquele
momento da primeira e maior imprecisão e incerteza.
Nesse momento particular, “elemento” e “personagem” são absolutamente indistinguíveis
(embora, de acordo com a modificação de Petzold, sem dúvida louvável, do relato de
Avenarius, eles são sempre inseparáveis). Por exemplo, em uma multidão de pessoas, noto um
rosto que é imediatamente escondido de mim pela massa ondulante. Não tenho ideia de como
é esse rosto e seria completamente incapaz de descrevê-lo ou nomear sequer uma marca
distintiva dele; e, no entanto, isso me excita muito e me pergunto com uma agitação ansiosa e
incômoda: Onde eu vi esse rosto antes?

Se um homem, “num piscar de olhos”, vê a cabeça de uma mulher que lhe causa uma
impressão sensual muito forte, muitas vezes ele não consegue dizer a si mesmo o que
realmente viu e pode nem mesmo lembrar com precisão a cor do cabelo dela. O pré-requisito
para isso é sempre, para colocar em termos inteiramente fotográficos, que a retina seja
exposta ao objeto por um tempo suficientemente curto, ou seja, por frações de segundo.

Se alguém se aproxima de qualquer objeto de longa distância, inicialmente sempre discerne


apenas contornos bastante vagos, mas tem sentimentos muito vívidos, que diminuem na
mesma medida em que se aproxima mais e se torna mais nitidamente consciente dos
detalhes. (Isso, como deve ser declarado expressamente, não é uma questão de qualquer
“sentimento de expectativa”.) Imagine, por exemplo, a primeira visão de um esfenoide
humano desprendido de suas suturas; ou de muitos quadros e pinturas assim que são vistos de
uma posição a meio metro deste lado ou daquele lado da distância certa. Lembro-me em
particular da impressão que me causaram algumas passagens de semicolcheias em trechos
para piano de Beethoven e um tratado cheio de integrais triplas antes que eu pudesse ler
música ou ter qualquer concepção de integração. Isto é o que Avenarius e Petzold
negligenciaram: que sempre que os elementos se destacam em maior relevo, a caracterização
(ênfase emocional) é até certo ponto removida deles.

Alguns fatos estabelecidos pela psicologia experimental também podem ser vinculados a esses
resultados da auto-observação. Se, em uma sala escura, um olho adaptado à escuridão for
exposto a um estímulo momentâneo ou muito breve de luz colorida, o observador terá apenas
a impressão de um flash sem poder indicar sua qualidade cromática exata; o que ele sente é
um “algo” sem definição adicional, e o que ele relata é uma “mera impressão de luz”; e mesmo
que a duração do estímulo seja estendida (claro que não além de um certo grau), ele achará
difícil dar uma indicação precisa da cor. Exatamente da mesma forma, toda descoberta
científica, toda invenção tecnológica, toda criação artística é precedida por um estágio cognato
de escuridão, uma escuridão como aquela da qual Zaratustra chama à luz sua doutrina do
eterno retorno: “Para cima, abismal pensado das minhas profundezas! Eu sou seu galo e
alvorada, verme sonolento: levanta! acima! Minha voz em breve o despertará!” — O processo
em sua totalidade, da confusão total ao brilho radiante, é comparável à sequência de imagens
que recebemos passivamente à medida que os muitos panos úmidos enrolados em um grupo
esculpido ou um relevo são removidos um a um; um espectador na inauguração de um
monumento tem uma experiência semelhante. Mas quando me lembro de algo, por exemplo,
uma melodia que ouvi uma vez, o mesmo processo é experimentado novamente, embora
muitas vezes de uma forma extremamente curta e, portanto, menos perceptível. Todo novo
pensamento é precedido por um estágio do que eu gostaria de chamar de “pré-pensamento”,
onde estruturas geométricas fluidas, fantasmas visuais, imagens nebulosas emergem e se
dissolvem, e surgem “formas incertas”, imagens veladas, máscaras misteriosamente acenando.
O início e o fim da sequência, que em seu conjunto chamarei brevemente de processo de
“esclarecimento”, em certo sentido se relacionam como as impressões recebidas por uma
pessoa míope de objetos distantes lentes com e sem correção.

Como na vida do indivíduo (que pode morrer antes de ter percorrido todo o processo),
também na história da pesquisa científica: “suposições” sempre precedem insights claros. É o
mesmo processo de esclarecimento, espalhado por gerações. Pense, por exemplo, nas muitas
antecipações gregas e modernas das teorias de Lamarck e Darwin, cujos “precursores” hoje
estão recebendo elogios, ou nos muitos precursores de Robert Mayer e Helmholtz, ou em
todos os pontos onde Goethe e Leonardo da Vinci, talvez o homem mais versátil de todos os
tempos, antecipou o progresso posterior da ciência, etc., etc. Um desenvolvimento
semelhante, desde o tatear incerto e o equilíbrio cauteloso até as grandes vitórias, pode ser
observado em todos os estilos artísticos, tanto na pintura quanto na música. Da mesma forma,
o progresso intelectual da humanidade nas ciências também se baseia quase exclusivamente
em uma descrição cada vez melhor das mesmas coisas: é o processo de esclarecimento
estendido ao longo de toda a história humana. Comparado com isso, nossas novas descobertas
não são muito significativas.

Quantos graus de clareza e diferenciação uma impressão pode passar em seu caminho para se
tornar um pensamento completamente distinto, sem nenhuma imprecisão borrar seus
contornos, podem ser observados sempre que se tenta estudar e compreender um novo
tópico difícil, por exemplo, a teoria de funções elípticas. Quantos graus de compreensão
alguém reconhece em si mesmo (particularmente em matemática e mecânica) antes de
encontrar tudo disposto em bela ordem, organizado por completo, com harmonia perfeita e
imperturbável entre as partes e o todo, aberto a ser apreendido sem esforço pela mente
atenta. Esses graus individuais correspondem às etapas do caminho do esclarecimento.

O processo de esclarecimento também pode ocorrer ao contrário, desde a clareza completa


até a maior imprecisão. Essa inversão do processo de esclarecimento nada mais é do que o
processo de esquecimento, que geralmente se estende por um longo período e geralmente é
percebido apenas por acaso em um ou outro ponto de seu progresso. Isso se assemelha à
decadência de estradas bem estabelecidas que não foram adequadamente mantidas ou, por
assim dizer, “reproduzidas”. Assim como o “pré-pensamento” juvenil se transforma no
“pensamento” mais intensamente cintilante, o “pensamento” se transforma no “pós-
pensamento” senil, e assim como um caminho florestal que há muito não era percorrido
começa a ser coberto à direita e à esquerda por grama, ervas e arbustos, os contornos claros
de um pensamento que não é mais pensamento se tornam mais turvos a cada dia. Isso
também explica uma regra prática que um amigo meu descobriu muitas vezes: se alguém quer
aprender alguma coisa, seja uma peça de música ou um capítulo da história da filosofia,
geralmente não poderá se dedicar a este estudo sem interrupções e terá que passar por cada
parte do material várias vezes. Surge então a questão sobre a duração mais adequada das
pausas entre uma tentativa e a seguinte. Descobriu-se — e provavelmente é verdade em geral
— que a tentativa deve ser repetida antes que se volte a se interessar pelo trabalho, isto é,
enquanto se acredita que ainda conhece mais ou menos o material em estudo. A razão é que
assim que a pessoa esquece o suficiente dela para ficar novamente interessada, curiosa ou
ansiosa para aprender sobre ela, os resultados da primeira rodada de prática retrocedem, de
modo que a segunda não pode reforçar imediatamente a primeira e deve-se realizar uma
grande parte do trabalho de esclarecimento novamente.

Talvez se deva supor, de acordo com a teoria de Siegmund Exner da “violação” de uma visão
muito popular, que o paralelo fisiológico ao processo de clarificação é realmente a necessidade
de que as fibras nervosas, possivelmente suas fibrilas, sejam afetadas (seja para longo período
ou em repetição frequente) para se tornarem vias para a condução de estímulos. Da mesma
forma, naturalmente, em caso de esquecimento, o resultado dessa “violação” seria anulado, e
os elementos estruturais morfológicos desenvolvidos por ela no neurônio individual se
atrofiariam por falta de prática. A teoria de Avenarius de alguns fenômenos relacionados aos
acima — ele teria assumido diferenças de “articulação” ou “estruturação” no sistema cerebral
(as “oscilações independentes do sistema C”) — transfere propriedades da “série dependente”
(ou seja, a área psíquica) para o “independente” (físico) de forma muito simplista e literal
demais para ser de algum benefício, em particular, para a questão das correspondências
psicofísicas. No entanto, os termos “articulado” e “estruturado” parecem bem adequados para
descrever o grau de distinção dos dados psíquicos individuais e serão usados para esse fim
mais adiante.

Foi necessário traçar o processo de esclarecimento em sua totalidade para compreender a


extensão e o conteúdo desse novo conceito. Para o que se segue agora, no entanto, apenas o
estágio inicial, ou ponto de partida, de esclarecimento é importante. No momento em que o
conteúdo do processo de esclarecimento subsequente se apresenta pela primeira vez, a
distinção de Avenarius entre “elemento” e “personagem”, como observado acima, ainda não
pode ser aplicada a eles. Assim, quem aceitar essa classificação para todos os dados do
psiquismo desenvolvido terá que introduzir um nome específico para o conteúdo daquele
estágio em que tal dualismo ainda não pode ser discernido. Para dados psíquicos naquele
estado mais primitivo de sua infância, ofereço, sem fazer qualquer reivindicação além dos
limites deste estudo, a palavra “hênida”*¹ (de ἕν, porque eles não mostram nem sensação e
sentimento como dois elementos analíticos que podem ser isolados por abstração nem
mesmo por qualquer dualidade).

Neste contexto, o conceito do hênida absoluto deve ser considerado apenas como um ideal.
Quantas vezes as experiências psíquicas reais na idade adulta dos seres humanos são
indiferenciadas o suficiente para justificar chamá-los por esse nome não pode ser facilmente
estabelecido com certeza, mas isso não invalida a teoria como tal. Uma ocorrência comum,
vivida por diferentes pessoas em diferentes graus de frequência na conversa, pode muito bem
ser chamada de hênida: um tem um sentimento particular e ia dizer algo bastante específico,
momento em que, por exemplo, a outra pessoa faz uma observação, e “isso” se foi e não pode
ser recapturado. Mais tarde, porém, uma associação reproduz algo que imediatamente se
sabe ser exatamente a mesma coisa que não se conseguiu obter de antemão. Esta é uma
prova de que era o mesmo conteúdo, apenas de uma forma diferente, em um estágio
diferente de desenvolvimento. A clarificação, então, não ocorre apenas nessa direção na vida
de um indivíduo como um todo, mas também deve ser completada novamente em relação a
cada conteúdo

Temo que me peçam uma descrição mais precisa e detalhada do que quero dizer com hênida,
por exemplo, como é um. Isso seria um completo mal-entendido. É parte integrante do
conceito do hênida que ele só pode ser descrito como um todo nebuloso. Tão certo como é
que no devido tempo o hênida se identificará com um conteúdo plenamente articulado, é
igualmente certo que ainda não é esse conteúdo articulado em si, do qual difere de alguma
forma, pelo grau de consciência, pela falta de relevo, a fusão de fundo e objeto principal, a
ausência de um “ponto focal” dentro do “campo de visão”.

Assim, não se pode observar nem descrever quaisquer individuais hênidas: pode-se apenas
notar que eles estiveram lá.
Aliás, em princípio é tão fácil pensar e viver em termos de hênida quanto em termos de
elementos e personagens; cada hênida é um indivíduo e pode ser perfeitamente distinguido
de qualquer outro hênida. Por razões que serão explicadas mais adiante, deve-se supor que as
experiências da primeira infância (e isso provavelmente se aplica sem exceção aos primeiros
quatorze meses de todos os seres humanos) são hênidas, embora talvez não no sentido
absoluto da palavra. De qualquer forma, os eventos psíquicos da primeira infância nunca se
afastam muito da fase hênida, enquanto no adulto há muitos conteúdos que se desenvolvem
além dessa fase. O hênida representa claramente as sensações dos biontes mais baixos, e
talvez muitas plantas e animais. Nos humanos, por outro lado, é possível um desenvolvimento
do hênida para sensações e pensamentos vívidos e totalmente diferenciados, embora seja
apenas um ideal que eles nunca podem alcançar completamente. Enquanto o hênida absoluto
exclui totalmente a linguagem, uma vez que a estrutura da fala só pode surgir da estrutura do
pensamento, mesmo no nível intelectual mais alto acessível aos humanos há coisas que não
são claras e, portanto, inexprimíveis.

A teoria dos hênidas como um todo, então, pretende ajudar a mediar a disputa sobre se a
honra da antiguidade se deve à sensação ou ao sentimento, e tentar substituir as noções de
“elemento” e “caráter”, que Avenarius e Petzold destacada do meio do processo de
esclarecimento, descrevendo os fatos em termos de história do desenvolvimento, com base na
observação fundamental de que “elementos” não podem ser distinguidos de “personagens”
até que se tornem distintos. É por isso que as pessoas só se inclinam para “estados de espírito”
e todo tipo de “sentimentos” quando as coisas não se apresentam em contornos nítidos, e
pela noite e não de dia. Quando a noite dá lugar à luz, o modo de pensar das pessoas também
muda.

Mas qual é a conexão entre esta investigação e a psicologia dos sexos? Como — pois
obviamente essa longa colocação de fundamentos foi realizada para esse propósito — M e W
diferem em relação aos vários estágios de esclarecimento?

A resposta é a seguinte:

O homem tem os mesmos conteúdos psíquicos que a mulher, de forma mais articulada;
enquanto ela pensa mais ou menos em hênidas, ele pensa em conceitos claros, distintos,
ligados a sentimentos definidos que sempre podem ser removidos de seus objetos. Em W
“pensar” e “sentir” são apenas um, indivisível, para M eles podem ser separados. Isto é, W
ainda experimenta muitas coisas na forma hênida, quando em M a clarificação já ocorreu há
muito tempo[2]. É por isso que W é sentimental, e as mulheres só podem ser comovidas, mas
não chocadas.

A maior articulação dos dados psíquicos no Homem corresponde a contornos mais nítidos de
seu físico e rosto, em oposição à suavidade, redondeza e indeterminação da figura e
fisionomia feminina genuína. Existe ainda uma correspondência entre esta visão e os
resultados de medições comparativas da sensibilidade sensorial dos sexos, que,
contrariamente à opinião popular, têm demonstrado constantemente maior sensibilidade nos
homens, mesmo se avaliadas em média, e que certamente teriam mostrado muito maior
diferenças se tivessem sido tidos em conta os tipos. A única exceção é o sentido do tato: nesta
área as mulheres são mais sensíveis que os homens. Este fato é suficientemente interessante
para exigir uma interpretação, que de fato será tentada mais adiante. Também deve ser
observado aqui que os homens são incomparavelmente mais sensíveis à dor do que as
mulheres, o que é importante para investigações fisiológicas sobre a “sensação de dor” e sua
distinção com a “sensação de toque”.

Uma sensibilidade fraca certamente favorecerá os conteúdos que permanecem próximos ao


estágio de hênida; no entanto, um menor grau de esclarecimento não pode ser provado como
sua consequência necessária, mas apenas pode ser considerado como tendo uma conexão
muito provável com ele. Uma prova mais confiável da menor articulação da imaginação
feminina é fornecida pelo julgamento mais decisivo dos homens, embora isso não possa ser
derivado exclusiva e inteiramente da natureza menos distinta dos processos de pensamento
das mulheres (talvez ambos remontem a um comum, raiz mais profunda). Mas pelo menos
isso é certo: enquanto estamos perto do estágio hênida, tendemos apenas a saber
precisamente o que algo não é, o que sempre sabemos muito antes de saber o que algo é:
isso, a posse de conteúdos em forma hênida, é provavelmente também a base do que Mach
chamou de “experiência instintiva”. Enquanto permanecemos perto do estágio hênida, ainda
conversamos sobre o assunto, corrigindo-nos a cada tentativa de nomeá-lo e dizendo: “Esta
ainda não é a palavra certa”. A partir disso, a incerteza do julgamento segue naturalmente.
Somente com esclarecimento completo nosso julgamento também se torna claro e firme. O
próprio ato de julgar exige certa distância do estágio hênida, mesmo quando se destina a
proferir um julgamento analítico que não aumentará o patrimônio intelectual da humanidade.

No entanto, a prova conclusiva do acerto de atribuir o hênida a W e o conteúdo diferenciado a


M, e ver isso como uma diferença fundamental entre os dois, é que, sempre que um novo
julgamento deve ser feito, e não um julgamento feito por muito tempo, expresso mais uma
vez na forma de uma frase, é sempre W quem espera de M o esclarecimento de suas ideias
vagas, a interpretação de seus hênidas. Quando a Mulher tem ideias vagas e inconscientes, ela
realmente espera, deseja e exige ver na fala do homem a estruturação do pensamento, que
ela considera como uma característica sexual masculina (terciária) e que a afeta dessa
maneira. É por isso que tantas garotas dizem que só se casariam, ou pelo menos só poderiam
amar, um homem mais inteligente do que elas, e por isso podem ser surpreendidas, ou mesmo
sexualmente repelidas, por um homem que simplesmente concorda. Uma sensibilidade fraca
certamente favorecerá os conteúdos que permanecem próximos ao estágio de hênida; no
entanto, um menor grau de esclarecimento não pode ser provado como sua consequência
necessária, mas apenas pode ser considerado como tendo uma conexão muito provável com
ele. Uma prova mais confiável da menor articulação da imaginação feminina é fornecida pelo
julgamento mais decisivo dos homens, embora isso não possa ser derivado exclusiva e
inteiramente da natureza menos distinta dos processos de pensamento das mulheres (talvez
ambos remontem a um comum, raiz mais profunda). Mas pelo menos isso é certo: enquanto
estamos perto do estágio hênida, tendemos apenas a saber precisamente o que algo não é, o
que sempre sabemos muito antes de saber o que algo é: isso, a posse de conteúdos em hênida
forma, é provavelmente também a base do que Mach chamou de “experiência instintiva”.
Enquanto permanecemos perto do estágio hênida, ainda conversamos sobre o assunto,
corrigindo-nos a cada tentativa de nomeá-lo e dizendo: “Esta ainda não é a palavra certa”. A
partir disso, a incerteza do julgamento segue naturalmente. Somente com esclarecimento
completo nosso julgamento também se torna claro e firme. O próprio ato de julgar exige certa
distância do estágio hênida, mesmo quando se destina a proferir um julgamento analítico que
não aumentará o patrimônio intelectual da humanidade. No entanto, a prova conclusiva do
acerto de atribuir o hênida W e o conteúdo diferenciado a M, e ver isso como uma diferença
fundamental entre os dois, é que, sempre que um novo julgamento deve ser feito, e não um
julgamento feito por muito tempo, expresso mais uma vez na forma de uma frase, é sempre W
quem espera de M o esclarecimento de suas ideias vagas, a interpretação de seus filhos. Onde
a Mulher tem ideias vagas e inconscientes, ela realmente espera, deseja e exige ver na fala do
homem a estruturação do pensamento, que ela considera como uma característica sexual
masculina (terciária) e que a afeta dessa maneira. É por isso que tantas garotas dizem que só
se casariam, ou pelo menos só poderiam amar, um homem mais inteligente do que elas, e por
isso podem ser surpreendidas, ou mesmo sexualmente repelidas, por um homem que
simplesmente concorda com o que falam e não fala imediatamente melhor do que elas. Em
suma, é por isso que uma mulher sente como critério de masculinidade que um homem
também seja seu superior intelectual, e por isso ela é fortemente atraída por um homem que a
impressiona com seu pensamento e, ao mesmo tempo, sem perceber, dá o voto decisivo
contra todas as teorias de igualdade.

M vive conscientemente, W vive inconscientemente. Essa é a conclusão que agora temos o


direito de tirar em relação aos extremos. W recebe sua consciência de M: a função de tornar
inconsciente consciente é a função sexual do Homem típico em relação à Mulher típica, que o
complementa idealmente.

Assim, nossa explicação chegou ao problema do talento: quase toda a disputa teórica sobre a
questão da mulher hoje é sobre quem tem o maior potencial intelectual, “homens” ou
“mulheres”. No nível popular, a pergunta é feita sem referência aos tipos, enquanto as visões
desenvolvidas aqui sobre os tipos devem ter um impacto na resposta a essa pergunta. O que
deve ser discutido agora é a natureza dessa conexão.

Notas:

*¹ - (Nota do tradutor) aqui, "henid" é um neologismo do autor, refere-se (grego) a hén (uma só
coisa) e id, porque não pode desta forma ser divido em pensamento e sentimento;
pensamentos e sentimentos formados de maneira vaga. "Henid" será traduzido em "Hênida".

1 - Dr. Hermann Swoboda em Viena.

2 - Ao mesmo tempo, não se deve pensar nem em hênídas absolutos na Mulher nem em
clarificação absoluta no Homem.

IV — Dotação e Gênio
Já que tanto foi escrito em tantos lugares sobre a natureza da predisposição para o gênio,
evitará mal-entendidos se eu fizer algumas declarações preliminares antes de iniciar uma
discussão detalhada do assunto.

Primeiro devemos traçar uma linha de demarcação do conceito de talento. Na visão popular, o
gênio e o talento estão quase sempre ligados de tal maneira como se o primeiro fosse um grau
mais alto, ou o mais alto, do segundo e pudesse ser derivado dele intensificando ou
concentrando os vários talentos de uma pessoa para um máximo, ou como se pelo menos
houvesse algumas transições mediando entre os dois. Essa visão está totalmente errada.
Embora existam certamente muitos graus e intensidades diferentes de gênio, essas gradações
não têm nada a ver com o chamado “talento”. Uma pessoa pode ter um talento, por exemplo,
um talento para matemática, em um grau extraordinário desde o nascimento. Ele poderá
então dominar com facilidade os capítulos mais difíceis dessa ciência, mas isso não significa
que ele tenha algum gênio, que é o mesmo que originalidade, individualidade e condição de
produtividade. Por outro lado, existem gênios supremos que não desenvolveram nenhum
talento específico em um grau particularmente alto. Novalis ou Jean Paul podem servir como
exemplos. O gênio, então, não é de forma alguma o mais alto superlativo de talento. Os dois
estão separados por um mundo inteiro; eles são absolutamente heterogêneos por natureza,
não devem ser medidos ou comparados entre si. O talento é hereditário e pode ser
propriedade comum de uma família (os Bachs): o gênio não é transferível, nunca é genérico,
mas sempre individual (Johann Sebastian).

Para muitas mentes medíocres e facilmente deslumbradas, especialmente as mulheres,


inteligência e gênio geralmente equivalem à mesma coisa. Embora as aparências externas
possam sugerir o contrário, na verdade as mulheres são incapazes de apreciar o gênio. Para
elas, qualquer extravagância da natureza que faça um homem se destacar visivelmente da
multidão comum é tão capaz quanto qualquer outra de satisfazer sua ambição sexual;
confundem o ator com o dramaturgo e não fazem distinção entre o virtuoso e o artista. Assim,
eles consideram um homem inteligente como tendo gênio, e Nietzsche como o protótipo do
gênio. E, no entanto, aqueles que apenas fazem malabarismos com as ideias, que seguem
todas as modas francesas do intelecto, não têm a mais remota afinidade com uma verdadeira
elevação da mente. Grandes homens levam a si mesmos e as coisas ao seu redor muito a sério
para serem “inteligentes” com mais frequência do que de vez em quando. Pessoas que não
passam de inteligentes são pessoas ímpias; são pessoas que não são realmente dominadas
pelas coisas, que nunca se interessam sinceramente e profundamente pelas coisas, em quem
não há nada lutando longa e duramente para nascer. Sua única preocupação é que seu
pensamento brilhe e brilhe como um diamante brilhantemente lapidado, não que também
ilumine alguma coisa. E isso porque seu pensamento está acima de tudo focado no que os
outros vão “dizer” sobre esses pensamentos — uma consideração que nem sempre é
“atenciosa”. Há homens que podem se casar com uma mulher que de forma alguma os atrai —
simplesmente porque outros homens gostam dela. E tais casamentos também existem entre
muitas pessoas e suas ideias. Estou pensando nos escritos maliciosos, grosseiros e ofensivos de
um certo autor vivo, que pensa estar rugindo quando está apenas latindo. Infelizmente,
também Friedrich Nietzsche em seus escritos posteriores (embora ele seja incomparavelmente
superior a esse outro escritor) às vezes parece ter se interessado principalmente naqueles
aspectos de suas ideias que ele suspeitava que chocariam as pessoas. Muitas vezes é
precisamente onde ele parece mais implacável que ele é mais vaidoso. É a vaidade do espelho
que implora fervorosamente por reconhecimento pelo que reflete: veja quão bem, quão
impiedosamente, eu reflito! Atacando os outros, mas grandes homens realmente nunca são
apaixonadamente agressivos, exceto por extrema necessidade. Não são aqueles que se
parecem com o novo membro da fraternidade universitária de duelos em busca de sua
primeira luta, ou a garota que está encantada com seu novo vestido principalmente porque vai
incomodar seus “amigos”.

Gênio! O dom do gênio! Que inquietação e desconforto intelectual, que ódio e inveja, que
ressentimento e menosprezo esse fenômeno provocou na maioria das pessoas, quanta
incompreensão e quanto desejo de imitar — de ser o “cuspe e a imagem” — trouxe à luz!

De bom grado nos despedimos das imitações do gênio, para nos voltarmos para o próprio
gênio e suas encarnações genuínas. Mas, na verdade, dada a abundância infinita de elementos
que se fundem, qualquer ponto de partida em que possamos escolher começar nossa
investigação será arbitrário. Todas essas qualidades que devem ser descritas como
pertencentes ao gênio estão tão intimamente ligadas que as examinar isoladamente, com a
intenção de subir apenas gradualmente a um nível mais alto de generalidade, revela-se a
tarefa mais difícil que se possa imaginar, pois tal exame corre o risco constante de ser seduzido
a terminar as coisas prematuramente e corre o risco de não atingir seu objetivo através do
método de isolamento.

Todas as discussões sobre a natureza do gênio até agora foram de natureza biológica e clínica
e declararam com presunção ridícula que o pouco conhecimento que possuímos nessa área é
suficiente para responder às questões psicológicas mais difíceis e profundas, ou então elas
desceram das alturas de um ponto de vista metafísico para absorver a qualidade de gênio em
seu sistema. Se o caminho a ser percorrido aqui não leva a todos os objetivos ao mesmo
tempo, é pela natureza dos caminhos.

Tenhamos em mente o quanto um grande poeta é melhor do que a pessoa média em se


colocar no lugar de outras pessoas. Considere o extraordinário número de personagens
retratados por Shakespeare ou Eurípides, ou pense na enorme diversidade de pessoas que
aparecem nos romances de Zola. Heinrich von Kleist, depois de Pentesileia, criou seu oposto
diametral, Käthchen von Heilbronn, e Michelangelo incorporou Leda e a Sibila de Delfos de sua
própria imaginação. Provavelmente não há muitos homens que tinham tão pouco do artista
visual neles como Immanuel Kant e Joseph Schelling, e ainda assim foram eles que escreveram
as coisas mais profundas e verdadeiras sobre arte.

Para reconhecer e retratar uma pessoa é preciso entendê-la. Mas para compreender uma
pessoa é preciso ter alguma semelhança com ela, é preciso ser como ela; para recriar e
apreciar suas ações, é preciso ser capaz de reproduzir em si os pré-requisitos psicológicos de
suas ações: compreender uma pessoa significa tê-la em si. Deve-se assemelhar-se à mente que
se está tentando compreender. É por isso que apenas um malandro sempre entenderá outro
malandro corretamente, enquanto uma pessoa totalmente inofensiva só pode entender uma
boa natureza igual à sua, e nunca um malandro. Um poseur quase sempre interpreta as ações
de outra pessoa como poses, e ele é mais propenso a ver através de outro poseur do que uma
pessoa simples, em quem o poseur, por sua vez, nunca é capaz de acreditar. Compreender
uma pessoa, então, significa ser essa pessoa.

Mas de acordo com esse argumento, todo mundo seria melhor compreendido por si mesmo, o
que certamente não é verdade. Ninguém jamais pode compreender a si mesmo, porque para
isso teria que sair de si mesmo: o sujeito do conhecimento e da vontade teria que ser capaz de
se tornar o objeto, assim como, para compreender o universo, seria necessário encontrar um
ponto de vista fora do universo, o que não é possível, dado o próprio conceito de universo.
Uma pessoa que fosse capaz de compreender a si mesma seria capaz de compreender o
mundo. Que esta afirmação não é apenas válida em um sentido relativo, mas abriga um
significado muito profundo, gradualmente emergirá deste tratado. No momento, é certo que
não podemos compreender nossa própria natureza mais profunda e pessoal. E é de fato
verdade que somos compreendidos, se é que somos compreendidos, apenas pelos outros e
não por nós mesmos. Para a outra pessoa, que tem uma semelhança conosco e, no entanto,
em outros aspectos não é de forma alguma idêntica a nós, essa semelhança pode se tornar um
objeto de contemplação: ele pode reconhecer, retratar, compreender a si mesmo em nós, ou
nós nele. Compreender uma pessoa, então, significa ser também essa pessoa.

O homem de gênio revelou-se nos exemplos acima como um homem que compreende
incomparavelmente mais do que a pessoa média. Supõe-se que Goethe tenha dito que não
havia vício nem crime para o qual ele não sentisse uma predisposição em si mesmo e que, em
um ponto ou outro de sua vida, ele não tivesse entendido completamente. O homem de gênio,
então, é mais complexo, mais multifacetado e mais rico; e um homem deve ser considerado
como tendo tanto mais gênio quanto mais seres humanos ele une em si mesmo e, deve-se
acrescentar, quanto mais vividamente, quanto mais intensamente ele tem os outros seres
humanos em si mesmo. Se sua compreensão de seus semelhantes fosse apenas como um
fraco lampejo, ele não seria capaz de incendiar a vida de seus heróis como uma chama
poderosa, e seus personagens seriam desprovidos de força e substância. O ideal de um gênio,
em particular do tipo artístico, é viver em todos os seres humanos, perder-se em todos e
emanar na multidão, enquanto o filósofo tem a tarefa de reencontrar todos os outros em si
mesmo e absorvê-los em uma unidade, que sempre será sua unidade somente.

Essa natureza poliforme do gênio não deve ser entendida, assim como a bissexualidade que
discuti anteriormente, como simultaneidade: nem mesmo o maior gênio tem o dom de
compreender a natureza de todos os seres humanos ao mesmo tempo, por exemplo, em um
único e mesmo dia. O potencial intelectual mais abrangente e substancial que um homem
possui só pode revelar-se passo a passo, em um desdobramento gradual de toda a sua
natureza. Parece que isso ocorre em um processo de períodos regulares. Esses períodos,
porém, não se repetem da mesma maneira no curso de uma vida, como se cada um fosse
apenas uma repetição do anterior, mas o fazem, por assim dizer, em uma esfera cada vez mais
elevada. Não há dois momentos de uma vida individual completamente idênticos, e a
semelhança entre os períodos posteriores e os anteriores é apenas aquela entre os pontos de
um segmento superior de uma espiral e os do segmento inferior homólogo. É por isso que os
indivíduos excepcionais concebem com tanta frequência o plano de uma obra na juventude,
depois o colocam de lado por anos antes de retrabalhá-lo na maturidade e, finalmente, o
completam, depois de mais um adiamento, na velhice: esses são os diferentes períodos nos
quais eles entram alternadamente e que constantemente os apresentam com diferentes
objetos. Tais períodos existem em cada pessoa, mas em diferentes forças, com diferentes
“amplitudes”. Como um gênio compreende o maior número de seres humanos com a maior
quantidade de vida, a amplitude dos períodos será tanto mais pronunciada quanto maior for a
mente do homem. Por conseguinte, muitos homens notáveis, desde a mais tenra juventude,
são acusados por seus professores de constantemente ir “de um extremo ao outro”. Como se
eles se sentissem particularmente confortáveis naquela situação! Em homens de excelência
em particular, tais transições geralmente assumem a forma de crises definitivas. Goethe falou
uma vez da “puberdade recorrente” dos artistas. O que ele quis dizer está intimamente ligado
a este tópico.

É precisamente devido à sua natureza altamente periódica que em um gênio os anos frutíferos
são sempre precedidos por anos estéreis e fases muito produtivas são seguidas uma e outra
vez por estéreis — fases em que ele não pensa nada de si mesmo e, de fato, psicologicamente
(não logicamente). Assim como seus êxtases são mais poderosos que os dos outros, suas
depressões também são mais terríveis. Todo indivíduo excepcional tem esses períodos, mais
curtos ou mais longos, nos quais pode se desesperar totalmente de si mesmo e pensar em
cometer suicídio; períodos em que ele pode ser atingido por muitas coisas e até acumular
muitas coisas para uma colheita posterior, mas em que nada aparece com a tremenda tensão
do período produtivo, ou seja, em que a tempestade não cessa. Se, mesmo assim, nesses
períodos ele tenta continuar criando, as pessoas dirão: “Como ele desceu”, “Como ele está
esgotado”, “Como ele está se copiando”, etc., etc.

Em um homem de gênio suas outras qualidades — não apenas se ele produz alguma coisa,
mas também o material e o espírito em que ele produz — estão sujeitos a mudanças e a uma
poderosa periodicidade. Ora ele se inclina mais para a reflexão e a ciência, ora para a arte
(Goethe); primeiro seu interesse se concentra na civilização humana e na história, depois
novamente na natureza (compare as Meditações Intempestivas de Nietzsche com seu
Zaratustra); agora ele é místico, depois ingênuo (sendo Bjørnson e Maurice Maeterlinck os
exemplos mais recentes). De fato, em um indivíduo excepcional, os períodos em que as várias
faces de seu caráter e as muitas pessoas que nele têm uma vida intensa se sucedem com uma
“amplitude” tão grande que essa periodicidade também se revela claramente em termos
fisionômicos. É assim que eu explicaria o impressionante fenômeno de que as expressões do
rosto das pessoas mais dotadas mudam com muito mais frequência do que as das pessoas sem
nenhum dom e, de fato, que em momentos diferentes podem ter rostos incrivelmente
diferentes; basta comparar as imagens que foram preservadas de Goethe, Beethoven, Kant ou
Schopenhauer em diferentes épocas de suas vidas. O número de rostos que um indivíduo
possui pode ser considerado um indicador fisionômico de sua dotação [1]. As pessoas que
sempre mostram o mesmo rosto totalmente inalterado existem em um nível intelectual muito
baixo. Por outro lado, os fisionomistas não se surpreenderão ao descobrir que pessoas mais
dotadas, que constantemente revelam novos aspectos de seu caráter em seus contatos com os
outros e em suas conversas, de modo que não é fácil chegar prontamente a um julgamento
firme sobre elas, também demonstram essa qualidade através de sua aparência externa.

A ideia provisória de gênio aqui desenvolvida talvez seja rejeitada com indignação porque, ao
postular que um Shakespeare tinha necessariamente também toda a vulgaridade de um
Falstaff, toda a vilania de um lago, toda a grosseria de um Caliban, rebaixa a posição moral de
grandes indivíduos, imputando-lhes a compreensão mais íntima de tudo o que é desprezível e
trivial. De fato, deve-se admitir que, de acordo com essa visão, os homens de gênio estão
cheios das paixões mais copiosas e violentas e não são poupados mesmo os impulsos mais
revoltantes (o que, aliás, é confirmado em toda parte em suas biografias).

No entanto, essa objeção é injustificada, como veremos mais adiante, quando nos
aprofundarmos no problema. Por ora, deve-se salientar que apenas um método superficial de
raciocínio pode considerar essa objeção como uma inferência inevitável das premissas
expostas até agora, o que por si só é suficiente para tornar seu oposto mais do que provável.
Zola, que conhece tão bem o desejo de assassinato sexual, nunca teria cometido um
assassinato sexual, porque também há muitas outras coisas nele. O verdadeiro assassino
sexual está à mercê de seu desejo; no escritor que o descreve, toda a riqueza de uma
disposição múltipla age contra esse impulso. Isso permite que Zola conheça o assassino sexual
muito melhor do que qualquer assassino sexual real conhece a si mesmo, mas garante
precisamente que ele o reconhecerá se a tentação realmente se aproximar dele; e assim ele já
está em oposição a isso, olho no olho, e capaz de se defender contra isso. É assim que o
instinto criminoso de um grande indivíduo se transforma em noção intelectual, tornando-se
motivo artístico em Zola ou concepção filosófica do “radical mal” em Kant, e, portanto, não o
conduz ao ato criminoso.

A riqueza de possibilidades que existe em todo indivíduo excepcional tem consequências


importantes, que nos remetem à teoria dos hênidas desenvolvida no capítulo anterior.
Percebemos mais cedo o que temos em nós mesmos do que o que não entendemos (se fosse
de outra forma, não haveria possibilidade de as pessoas se envolverem umas com as outras —
como é, elas geralmente não sabem com que frequência se entendem mal); assim, o gênio,
que entende muito mais do que a pessoa comum, também notará mais do que esta. Um
intrigante reconhecerá facilmente uma pessoa que se pareça com ele; um apostador
apaixonado perceberá imediatamente quando outro revelar um grande desejo de apostar,
enquanto as pessoas que são diferentes sentirão falta disso por muito tempo na maioria dos
casos: “o tipo dele você entende melhor”, ouvimos no “Siegfried” de Wagner. Eu estabeleci
acima que uma pessoa mais complexa pode entender qualquer outra pessoa melhor do que
ela mesma, desde que ela seja essa pessoa e ao mesmo tempo algo mais ou, para dizer com
mais precisão, desde que ela tenha tanto essa pessoa quanto o oposto dessa pessoa em si
mesmo. A dualidade é sempre o pré-requisito para perceber e compreender. Se perguntarmos
à psicologia sobre o pré-requisito mais fundamental para que qualquer coisa se torne
consciente, ou seja, para o processo de “diferenciação”, recebemos a resposta de que o pré-
requisito necessário é o contraste. Se houvesse apenas um cinza monótono, ninguém teria
consciência, muito menos conceito, de cor, e a absoluta monotonia de um som adormece
prontamente as pessoas: a dualidade (a luz que separa e distingue as coisas) é a causa da
consciência desperta.

Portanto, ninguém pode compreender a si mesmo, mesmo que reflita sobre si mesmo
ininterruptamente durante toda a vida. Só se pode compreender outra pessoa se se parecer
com ela sem ser totalmente idêntica a ela, e se tiver em si uma quantidade igual tanto da
outra pessoa quanto do seu oposto. É essa distribuição que cria as condições mais favoráveis
para a compreensão: veja o caso de Kleist, mencionado acima. Em última análise, então,
compreender uma pessoa significa tê-la e seu oposto em si mesmo.

Como regra geral, os pares de opostos devem sempre se unir na mesma pessoa para permitir
que ela se conscientize de apenas um membro de cada par. O estudo do sentido da cor do
olho fornece várias provas fisiológicas disso. Mencionarei apenas o conhecido fenômeno de
que o daltonismo sempre se estende a ambas as cores complementares: os cegos para o
vermelho também são cegos para o verde, e há os cegos para o azul e o amarelo, mas ninguém
perceberia o azul se fosse não receptivo ao amarelo. Esta lei é válida em todo o reino
intelectual: é a lei fundamental de qualquer formação da consciência. Por exemplo, uma
pessoa que está predisposta à alegria também estará mais predisposta a mudanças repentinas
para a melancolia do que uma pessoa com um temperamento permanentemente equilibrado,
enquanto muitos melancólicos só podem manter-se acima da água através de uma mania
forçada; e qualquer um que aprecie cada refinamento e sutileza tanto quanto Shakespeare
também sentirá e entenderá os extremos de grosseria e grosseria com mais precisão porque
existem, por assim dizer, como um perigo em si mesmo.

Como a compreensão leva à percepção, quanto mais tipos humanos, juntamente com seus
opostos, um indivíduo se unir em sua personalidade, menos ele sentirá falta do que as pessoas
fazem e não fazem, mais cedo ele verá através do que eles sentem, pensam e realmente
querem. Não há homem de gênio que não seja um grande juiz do caráter humano; o indivíduo
excepcional muitas vezes obtém o quadro completo das pessoas mais simples à primeira vista
e muitas vezes é capaz de caracterizá-las completamente de uma só vez.

A maioria das pessoas tem um sentido desenvolvido mais ou menos unilateralmente para isto
ou aquilo. Uma pessoa conhece todos os pássaros e é capaz de distinguir suas vozes com mais
clareza, enquanto outra desde a infância tem um olhar amoroso e seguro para as plantas; um
se sente profundamente comovido por camadas de sedimentos telúricos e toma os corpos
celestes como uma saudação amigável, mas muitas vezes não mais do que isso (Goethe),
enquanto outro, cheio de pressentimentos submissos, treme com a frieza do céu noturno e
suas estrelas fixas (Kant); um sente que as montanhas estão mortas e é fortemente atraído
apenas pelo mar com seu movimento eterno (Böcklin), enquanto outro é incapaz de se
relacionar com essa inquietação sem fim e retorna sob o poder sublime das montanhas
(Nietzsche). Assim, cada pessoa, mesmo a mais simples, encontra algo na natureza pela qual é
atraída e para a qual seus sentidos se tornam mais aguçados do que qualquer outra coisa.
Como, então, o maior gênio, que, no caso ideal, contém todas essas pessoas, pode deixar de
recolher em si seus relacionamentos e suas inclinações amorosas para o mundo exterior junto
com suas vidas interiores? Assim, não apenas a generalidade de todas as coisas humanas, mas
também de todas as coisas naturais, cresce nele: ele é o homem que tem a relação mais
próxima com o maior número de coisas; quem se impressiona com mais coisas e perde menos;
que compreende mais coisas, e as compreende mais profundamente, simplesmente porque
está em condições de fazer as mais diversas comparações e as mais numerosas distinções, e
sabe melhor como medir e definir. O homem de gênio torna-se consciente do maior número
de coisas, e ele se torna mais fortemente consciente de todas elas. É por isso que sua
sensibilidade será, sem dúvida, também a mais sutil. No entanto, isso não deve ser
interpretado, como foi feito com uma referência obviamente unilateral ao artista, meramente
em favor de uma percepção sensorial apurada, como a visão mais aguçada do pintor (ou
poeta) ou a audição aguda do compositor (Mozart). A medida do gênio deve ser buscada em
sua capacidade de resposta mental, e não sensorial, às diferenças, embora esta também seja
frequentemente voltada para o interior.

Assim, a consciência do gênio está mais distante do estágio hênida: ao contrário, é da maior e
mais deslumbrante clareza e brilho. A essa altura, a qualidade do gênio já se revela como um
tipo superior de masculinidade; e é por isso que W não pode ser um gênio. Isso decorre da
aplicação lógica do insight obtido no capítulo anterior — que M vive mais conscientemente do
que W — ao resultado essencial do presente capítulo, que culmina na proposição de que o
gênio é idêntico a uma consciência superior, porque mais geral. Tal consciência mais intensa
de tudo, no entanto, só é possível pelo enorme número de opostos que existem juntos em um
indivíduo excepcional.

É por isso que a universalidade é ao mesmo tempo a marca do gênio. Não há gênios especiais,
nem “gênios matemáticos” ou “gênios musicais”, nem “gênios do xadrez”. Existem apenas
gênios universais. O homem de gênio pode ser definido como o homem que sabe tudo sem
nunca ter aprendido. “Saber tudo” naturalmente não se refere às teorias e sistemas impostos
aos fatos pela ciência e pela aprendizagem, nem a história da Guerra da Sucessão Espanhola
nem as experiências em diamagnetismo. O artista não adquire seu conhecimento das cores da
água quando o céu está opaco ou brilhante estudando ótica, e não há necessidade de
mergulhar na caracterologia para retratar as pessoas de forma consistente. Quanto mais
dotado é um homem, mais coisas ele sempre refletiu independentemente, e mais coisas ele se
relaciona pessoalmente.

A teoria dos gênios especiais, que torna possível, por exemplo, falar de um “gênio musical”
que é “de mente doentia em todos os outros aspectos”, mais uma vez confunde talento com
gênio. Se um músico é verdadeiramente grande, ele pode, na linguagem para a qual seu
talento especial o direciona, ser tão universal, tão hábil em atravessar todo o mundo interior e
exterior, quanto o poeta ou o filósofo: Beethoven era um gênio. Por outro lado, ele pode se
mover em uma esfera tão limitada quanto uma mente científica ou artística medíocre: tal
mente foi Johann Strauss, e é estranho ouvi-lo ser chamado de gênio, por mais belas flores que
sua imaginação viva, mas muito limitada, possa ter produzido. Para voltar a esse ponto mais
uma vez, existem muitos tipos de talentos, mas há apenas um tipo de gênio, que pode
escolher e aceitar qualquer talento para trabalhar. Há algo que todos os homens de gênio,
como homens de gênio, têm em comum, por mais profunda que seja a diferença entre o
grande filósofo e o grande pintor, o grande músico e o grande escultor, o grande poeta e o
grande fundador de uma religião. O talento através do qual se revela a real predisposição
intelectual de um homem é menos relevante do que geralmente se acredita, e sua importância
é, infelizmente, muito superestimada como resultado da proximidade com que muitas vezes se
realiza um exame estético. Não apenas as diferenças de dotes, mas a mentalidade e a
weltanschauung de um homem também se importam pouco com as linhas divisórias entre as
artes. Eles saltam sobre eles e, assim, o olho mais imparcial muitas vezes descobre
semelhanças surpreendentes: em vez de procurar analogias dentro da história da música, ou
da história da arte, literatura ou filosofia, ele irá, digamos, comparar confiantemente Bach com
Kant, colocando Karl Maria von Weber ao lado de Eichendorff, ligar Böcklin a Homero, e o rico
estímulo e grande fecundidade que assim se acumulam para os poderes de observação
acabarão por beneficiar também o insight psicológico, de cuja falta todas as histórias da arte e
da filosofia sofreram mais severamente. A questão de quais condições orgânicas e psicológicas
fazem de um gênio um visionário místico ou talvez um grande desenhista deve ser deixada de
lado, pois são irrelevantes para este tratado.

Dessa qualidade de gênio, no entanto, que permanece a mesma apesar de todas as diferenças,
muitas vezes profundamente enraizadas, entre os gênios individuais, e que, de acordo com o
conceito aqui estabelecido, pode se manifestar em qualquer lugar, W é excluído. Embora não
seja decidido até um capítulo posterior se pode haver gênios puramente científicos e gênios de
nada além de ação, em vez de apenas gênios artísticos e filosóficos, há todas as razões para ser
mais cauteloso ao atribuir o predicado de gênio do que tem sido o caso até agora. No devido
tempo, será visto claramente que, se alguém quiser formar uma ideia da natureza do gênio
como tal, e chegar a qualquer ideia da mesma, então a Mulher deve ser descrita como incapaz
de ter gênio. No entanto, ninguém pode acusar minha exposição de primeiro construir um
conceito arbitrário que não se aplica ao sexo feminino, e depois apresentá-lo
retrospectivamente como a essência do gênio, apenas para evitar ter que dar às mulheres um
lugar dentro dele.

Aqui podemos recorrer às reflexões iniciais deste capítulo. Enquanto a mulher não
compreende o gênio, com a possível exceção de uma pessoa viva que o possui, o homem tem
uma relação profunda com esse fenômeno como tal, que Carlyle, em seu livro ainda tão pouco
compreendido, chamou de heroísmo e descreveu como lindo e cativante. A adoração do herói
ao homem demonstra mais uma vez que o gênio está ligado à masculinidade e representa uma
masculinidade ideal elevada a um poder superior[2]. A mulher não tem consciência original,
apenas uma consciência que lhe foi conferida pelo homem. A mulher vive inconscientemente,
o homem vive conscientemente, mas um gênio vive mais conscientemente.

Notas:

1 - Eu uso a palavra “dotação” para evitar a palavra “gênio” sempre que possível, e quero dizer
com ela uma predisposição cujo grau mais alto é a genialidade. Consequentemente, uma
distinção estrita é feita aqui entre dotação e talento.

2 - Dotação (não talento) e sexo são as duas únicas coisas que não são herdadas, mas são
independentes do “material genético” e parecem surgir, por assim dizer, espontaneamente.
Esse fato por si só torna provável que o gênio, ou a falta dele, deva estar conectado à
masculinidade ou feminilidade de uma pessoa.
V — Dotação e Memória
Para começar com a teoria dos hênidas, gostaria de relatar a seguinte observação: Acabo de
anotar, meio mecanicamente, o número da página de uma passagem de um tratado botânico
do qual pretendia copiar um trecho mais tarde. Ao mesmo tempo eu estava pensando algo em
forma de hênidas, mas o que eu estava pensando, e como eu estava pensando, o que estava
batendo na porta da minha consciência, eu não conseguia mais lembrar no momento seguinte,
embora eu tentasse muito difícil fazê-lo. No entanto, é precisamente por isso que este
exemplo — típico — é particularmente instrutivo.

Quanto mais nitidamente definido, quanto mais completamente formado for um complexo de
percepções, mais fácil será reproduzi-lo. A clareza da consciência é o primeiro pré-requisito da
memória, e a memória da estimulação é proporcional à intensidade da estimulação da
consciência. “Nunca esquecerei isso”, “lembrarei disso toda a minha vida”, “isso nunca mais
me esquecerá”, é o que as pessoas dizem sobre eventos que as excitaram muito, sobre
momentos que as tornaram mais sábias por um insight ou mais ricas por uma experiência. Se,
então, a capacidade de reprodução dos conteúdos da consciência estiver em proporção direta
à sua organização, ficará claro que o hênida absoluto não pode ser lembrado de forma alguma.

Uma vez que a dotação de um ser humano cresce de acordo com a articulação de todas as
suas experiências, quanto mais dotado for um indivíduo, melhor será capaz de recordar todo o
seu passado, tudo o que já pensou e fez, viu e ouviu, percebido e sentido, e maior será a
segurança e a vivacidade com que ele será capaz de reproduzir cada detalhe de sua vida. A
característica mais segura, mais comum e mais facilmente determinável de um gênio,
portanto, é uma lembrança universal de tudo o que ele experimentou. É uma teoria difundida,
particularmente popular entre os rabiscos que matam o tempo nos cafés, que as pessoas
produtivas (porque criam coisas novas) não têm memória, mas obviamente apenas porque
esta é a única condição de produtividade que os próprios rabiscos cumprem.

É claro que não se deve tentar refutar essa grande expansão e vivacidade da memória no
homem de gênio — que inicialmente apresento de maneira bastante dogmática como uma
inferência do meu sistema, sem fundamentar novamente pela experiência — apontando com
que rapidez eles esquecem todos os fatos históricos que foram ensinados na escola primária,
ou os verbos irregulares gregos. Estou falando de uma memória do que foi experimentado,
não de lembrar o que foi aprendido.

O que foi estudado para fins de exame só é retido na menor parte, ou seja, na parte que
corresponde ao talento especial do aluno. Assim, um decorador pode ter uma memória
melhor para cores do que o maior filósofo, o filólogo mais tacanho pode ter uma memória
melhor para os aoristos que aprendeu de cor há muitos anos, do que seu colega, que talvez
seja um poeta de gênio. Ela testemunha o desamparo patético do ramo experimental da
psicologia (e ainda mais a incompetência de muitas pessoas, que — com um arsenal de
baterias elétricas e tambores esfigmográficos atrás de si, e baseados na “exatidão” de sua série
monótona de experimentos — exigem ser ouvidos in rebus psychologicis antes de todo
mundo) que eles acreditam ser capazes de testar a memória das pessoas por meio de tarefas
como o aprendizado de letras, números multidigitais ou palavras desconexas. Esses
experimentos se comparam tão pouco com a memória real de um ser humano, essa memória
que conta quando um ser humano resume sua vida, que não se pode deixar de perguntar se
esses experimentadores esforçados sabem alguma coisa sobre a existência dessa outra
memória, ou mesmo sobre a vida da psique como tal. Esses experimentos colocam as pessoas
mais diversas em condições bastante uniformes, nas quais sua individualidade nunca pode se
expressar. Eles abstraem, como que deliberadamente, precisamente do âmago do indivíduo, a
quem tratam simplesmente como uma boa ou má máquina de gravação. Mostra uma
profunda percepção de que as palavras alemãs “bemerken” e “merken”[1] são formadas a
partir da mesma raiz. Apenas o que chama a atenção, por si só e como resultado de uma
qualidade inata, será retido. Para se lembrar de algo, deve-se ter um interesse original por
isso, e se alguém esquece algo, então o interesse não foi forte o suficiente. Uma pessoa
religiosa, portanto, lembrará com mais segurança e durabilidade os ensinamentos religiosos,
os versos do poeta, os números numerólogos.

E aqui podemos voltar ao capítulo anterior de uma maneira diferente e deduzir a fidelidade
especial da memória em indivíduos notáveis por uma segunda via. Quanto mais excepcional é
um indivíduo, mais pessoas e mais interesses se reúnem nele e, portanto, sua memória deve
se tornar mais abrangente. As pessoas em geral têm uma quantidade exatamente igual de
oportunidades externas para “perceber”, mas a maioria das pessoas “apercebe” apenas uma
parte infinitamente pequena da massa infinita. O gênio ideal seria um ser cujas “percepções”
seriam, sem exceção, também “apercepções”. Tal ser não existe. No entanto, também não há
ser humano que nunca tenha apercebido, mas apenas percebido. Esta é uma das razões mais
simples pelas quais deve haver todos os graus possíveis de gênio[2]; pelo menos nenhum ser
masculino é inteiramente sem gênio. Mas o gênio completo continua sendo um ideal: não há
ser humano sem nenhuma apercepção, e nenhum ser humano com apercepção universal (o
que poderia ser uma definição adicional de gênio completo). A memória como posse, tanto em
extensão quanto em força, é proporcional à apercepção como processo de apropriação. Assim,
há uma gradação ininterrupta que vai do indivíduo totalmente descontínuo, que vive para o
momento e para o qual nenhuma experiência poderia significar nada, porque ele não seria
capaz de relacioná-la com uma anterior — embora tal indivíduo não exista — para aquele que
vive uma vida totalmente contínua, para quem tudo permanece inesquecível (porque o afeta e
é compreendido por ele tão intensamente), e que existe tão pouco quanto o primeiro: pois
mesmo o gênio supremo não é um “gênio” a todo momento da vida dele.

A primeira confirmação dessa visão de uma conexão necessária entre memória e gênio, e da
dedução dessa conexão que tentei aqui, é fornecida pela memória extraordinária para
circunstâncias aparentemente triviais, para detalhes menores, que distingue indivíduos mais
dotados e que muitas vezes surpreende até mesmo seu dono. Como resultado da
universalidade de sua disposição, para tais indivíduos tudo tem um significado, do qual muitas
vezes podem permanecer inconscientes por muito tempo. Assim, essas coisas se apegam
obstinadamente à sua memória e se imprimem nela inextinguivelmente por sua própria
vontade, geralmente sem a necessidade de tais indivíduos fazerem o menor esforço para
lembrar dessas coisas em particular ou colocar sua atenção a serviço dessa memória
particular. Portanto, em um sentido mais profundo, que será elucidado mais adiante, já
poderíamos definir o homem de gênio como aquele que não conhece, e não poderia usar nem
para si nem para os outros, a frase que um ou outro acontecimento de há muito tempo é “não
mais verdade”. Pelo contrário, para ele não há nada que não seja mais verdadeiro, embora, ou
talvez precisamente porque, ele tenha um sentido mais distinto do que qualquer outro de
tudo o que mudou ao longo do tempo.

Portanto, o seguinte pode ser recomendado como o melhor método de testar objetivamente a
dotação, ou significado intelectual, de um indivíduo. Se não estivermos com ele por muito
tempo, podemos começar a falar sobre nosso último encontro e vincular a nova conversa aos
tópicos do último. Notaremos imediatamente quão vividamente ele absorveu aquela conversa
e quão forte e duradouro foi o efeito que teve sobre ele, e logo veremos quão fielmente ele
reteve os detalhes. O quanto as pessoas sem esse dom esquecem de suas próprias vidas pode
ser testado, com surpresa e horror, por qualquer um que deseje fazê-lo. Pode acontecer que
estivéssemos juntos com eles apenas algumas semanas atrás, e agora isso desapareceu de sua
mente. Podemos encontrar pessoas com quem tivemos muito a fazer há alguns anos, durante
uma semana ou quinze dias, por acaso ou em relação a algum negócio específico, e que desde
então não conseguiram se lembrar de nada, embora — se os ajudarmos com um relato exato
de tudo o que aconteceu, um renascimento da situação em todos os seus detalhes — é
sempre possível, contanto que esse esforço seja continuado por tempo suficiente, primeiro
lançar uma luz fraca sobre o que foi completamente extinto e então, gradualmente, para
trazer uma memória dele. Como resultado de tais experiências, passei a considerar muito
provável que a suposição de que não há esquecimento completo, que deve sempre ser feita
teoricamente, possa ser comprovada empiricamente, e não apenas pela hipnose, se
soubermos como ajudar a pessoa sendo questionada com as ideias certas.

A questão, então, é que há muito pouco que possamos contar a um indivíduo sobre sua vida,
sobre o que ele disse ou ouviu, viu ou sentiu, fez ou sofreu, que ele mesmo não sabe. Assim,
encontramos pela primeira vez um critério de dotação que pode ser facilmente verificado por
outros, sem que haja necessidade da presença de quaisquer realizações criativas do próprio
indivíduo. A frequência com que será aplicada em nossas práticas educacionais não será
discutida aqui, mas é provável que seja de igual importância para pais e professores.

A medida em que as pessoas serão capazes de notar diferenças e semelhanças, naturalmente,


também depende de sua memória. Essa faculdade será mais desenvolvida entre aqueles em
cujas vidas todo o passado sempre chega ao presente, com todos os momentos discretos de
suas vidas fundindo-se no presente e sendo comparados uns aos outros. São, portanto, eles
que têm maior probabilidade de encontrar oportunidades para usar símiles, e fazê-lo por meio
do tertium comparationis apropriado em cada caso. Pois eles sempre selecionarão do passado
o que concorda mais fortemente com o presente, uma vez que, em seu caso, os dois tipos de
experiência, a do novo e a do antigo, que é usado para comparação, são articuladas o
suficiente para garantir que nenhuma semelhança e nenhuma a diferença permanece
escondida de seus olhos; e é também por isso que, no seu caso, as coisas do passado foram
capazes de resistir ao impacto dos anos. Não é à toa que as pessoas há muito consideram a
riqueza de imagens e símiles belas e perfeitas de um poeta como um mérito particular do
gênero, procurando seus símiles favoritas em Homero, Shakespeare e Klopstock
repetidamente, ou esperando por elas impacientemente enquanto estão lendo. Hoje, quando
a Alemanha não tem nenhum grande artista ou grande pensador pela primeira vez em 150
anos, enquanto dificilmente é possível encontrar alguém que não tenha “escrito” algo, tudo
isso parece ter desaparecido: não há demanda por tal coisas, e se existissem também não
seriam encontradas. Uma época que acredita que seu caráter é melhor expresso em humores
vagos e indistintamente mutáveis, e cuja filosofia se tornou inconsciente em mais de um
sentido, mostra com demasiada clareza que não há nenhum homem verdadeiramente grande
vivendo nela; pois grandeza é consciência, diante da qual a névoa do inconsciente se dissolve
como diante dos raios do sol. Se um único indivíduo concedesse uma consciência a este
tempo, com que boa vontade ele desistiria de toda a arte atmosférica da qual ainda hoje se
orgulha. Somente na plena consciência, na qual todas as experiências do passado se fundem
mais intensamente na experiência do presente, a imaginação, o pré-requisito da criação
filosófica e artística, encontra um lugar. Assim, também não é verdade que as mulheres
tenham mais imaginação do que os homens. As experiências, com base nas quais as pessoas
tentaram atribuir uma imaginação mais viva à Mulher, derivam sem exceção das fantasias
sexuais das mulheres, mas as únicas conclusões que justificadamente poderiam ser tiradas
disso não podem ser tratadas ainda neste contexto.

A absoluta insignificância das mulheres na história da música pode ser explicada por razões
muito mais profundas, mas o que prova em primeiro lugar é que a Mulher é deficiente em
imaginação. Pois a produtividade musical requer infinitamente mais imaginação do que aquela
possuída até mesmo pela mulher mais masculina, muito mais do que é necessário para
qualquer outra atividade artística ou científica. Nada real na natureza, nada dado no domínio
empírico dos sentidos, corresponde a uma imagem musical. A música, por assim dizer, não
tem relação com o mundo da experiência. Na música, o ser humano deve criar
independentemente até os elementos mais básicos, pois na natureza não há notas, acordes e
melodias. Todas as outras artes têm relações mais distintas com a realidade empírica do que a
música, e mesmo a arquitetura, que está relacionada com ela, não importa o que digam,
trabalha com algum material por toda parte, embora compartilhe com a música (ou tenha
ainda mais do que música) a qualidade de estar livre de qualquer imitação concreta. É por isso
que a arquitetura também é uma ocupação inteiramente masculina, e a ideia de uma mestre
construtora quase não desperta nada além de pena.

Da mesma forma, o efeito “estupidificante” da música (em particular da música puramente


instrumental) sobre compositores e intérpretes, sobre o qual se ouve falar com frequência,
vem do fato de que até mesmo o olfato pode servir como um guia melhor para as pessoas se
orientarem na vida no mundo empírico do que o conteúdo de uma obra musical. É
precisamente essa total ausência de qualquer conexão com o mundo que podemos ver, tocar
ou cheirar que torna a música inadequada para a expressão da natureza da Mulher. Ao mesmo
tempo, essa característica da arte do criador da música explica por que ele precisa do mais alto
grau de imaginação e por que um indivíduo para quem as melodias ocorrem (que talvez seja
inundado por elas contra sua vontade) é visto com muito mais espanto por seus semelhantes
do que o poeta ou escultor. A “imaginação feminina” deve ser totalmente diferente da
masculina, já que não há compositora feminina que, na história da música, merecesse sequer
um lugar como o de Angelika Kauffmann na pintura.

Onde quer que haja uma clara necessidade de criar uma forma sólida, as mulheres não têm a
menor conquista a mostrar: nem na música, nem na arquitetura, nem na escultura, nem na
filosofia. Onde um pequeno efeito ainda pode ser alcançado por transições vagas e suaves de
sentimento, como na pintura e na literatura ou em um certo pseudo-misticismo e teosofia
nebulosos, eles procuraram e encontraram mais prontamente um campo para suas atividades.
A falta de produtividade nessas áreas, então, também está relacionada à falta de diferenciação
na psique da Mulher. Na música, em particular, o que importa é a sensibilidade mais articulada
que se possa imaginar. Não há nada mais definido, mais característico, mais urgente do que
uma melodia, nada que sofra mais por ser borrado. É por isso que se lembra muito mais
facilmente do que foi cantado do que do que foi falado, árias sempre melhores do que
recitativos, e é por isso que o sprechgesang [técnica de canção falada] exige tanto estudo do
cantor de Wagner.

Foi necessário insistir um pouco nisso porque na música a desculpa feita em outros lugares por
defensores masculinos e femininos dos direitos das mulheres — que têm sido acessíveis às
mulheres por um tempo muito curto para exigir deles frutos maduros — não se aplica.
Cantoras e virtuoses sempre existiram, mesmo na antiguidade clássica. E ainda assim . . .
A prática de ter mulheres pintando e desenhando já era difundida em épocas anteriores e
aumentou significativamente nos últimos 200 anos. É sabido quantas meninas hoje aprendem
a desenhar e pintar sem serem obrigadas a fazê-lo. Assim, também aqui não há há muito
tempo a exclusão tacanha, e as oportunidades externas seriam abundantes. Se, no entanto,
tão poucas mulheres têm alguma importância na história da arte, o que provavelmente está
faltando são os pré-requisitos internos. A pintura e a gravura feminina só podem significar um
tipo de artesanato mais elegante e luxuoso para as mulheres. Nesse campo, ao que parece,
elas encontram o elemento sensual, físico da cor, mais facilmente alcançável do que o
elemento intelectual e formal da linha, o que é sem dúvida a razão pela qual conhecemos
algumas pintoras, mas ainda nenhuma desenhista de alguma significância. A capacidade de
impor forma ao caos é, de fato, a capacidade do indivíduo que deve a apercepção mais
universal à memória mais universal: é a qualidade do gênio masculino.

Lamento ter que operar constantemente com essa palavra “gênio”, que separa estritamente
os “gênios” como uma casta específica daqueles que não devem ser “gênios”, assim como
apenas pessoas acima de uma certa renda anual têm de pagar um imposto específico ao
Estado. Talvez o nome “gênio” tenha sido inventado precisamente por um homem que o
merecia apenas em um grau muito pequeno. Homens maiores provavelmente consideravam
“ser um gênio” uma coisa natural demais, e provavelmente demoraram muito para perceber
que também é possível não “ter gênio”. Como Pascal observa com mais propriedade: quanto
mais original um homem é, mais original ele também pensa que os outros são. E compare isso
com a afirmação de Goethe de que talvez apenas um gênio possa entender um gênio.

Talvez existam muito poucas pessoas que nunca tiveram um momento de “gênio” em toda a
sua vida. Se houver, talvez só lhes faltou a oportunidade, como uma grande paixão ou uma
grande dor. Embora a capacidade de experiência seja inicialmente marcada pela subjetividade,
tudo o que eles precisariam era experimentar algo com intensidade suficiente uma vez, para
ter gênio, pelo menos temporariamente. Escrever poesia durante o primeiro amor é um
exemplo disso. E o amor verdadeiro é inteiramente uma questão de sorte.

Finalmente, não se deve ignorar o fato de que pessoas bastante comuns em um estado de
grande excitação, como raiva por alguma maldade, encontram palavras das quais nunca se
pensaria que fossem capazes. A maior parte do que é comumente chamado de “expressão”,
tanto nas artes quanto na fala prosaica, no entanto, baseia-se (se lembrarmos o que foi dito
anteriormente sobre o processo de esclarecimento) em um indivíduo mais dotado exibindo
conteúdos esclarecidos e estruturados em um momento em que em outro indivíduo, menos
altamente dotado, eles ainda estão no estágio hênida ou próximo dele. O processo de
esclarecimento é bastante abreviado por uma expressão que outra pessoa conseguiu cunhar, e
é por isso que sentimos prazer mesmo quando vemos outros encontrando uma “boa
expressão”. Se duas pessoas desigualmente dotadas experimentam a mesma coisa, na pessoa
mais dotada a intensidade será grande o suficiente para atingir o “limiar da fala”[3]. Na outra
pessoa, no entanto, isso apenas facilitará o processo de esclarecimento.

Se, como diz a opinião popular, o gênio fosse separado do homem sem gênio por um muro
grosso que não permitisse que nenhum som penetrasse de um reino a outro, o não gênio seria
totalmente impedido de qualquer compreensão dos feitos do gênio, cujas obras seriam
incapazes de produzir nele a menor impressão. Quaisquer esperanças culturais, portanto, só
podem ser fundadas na exigência de que não seja assim. Nem é. A diferença está na menor
intensidade da consciência: é quantitativa, e não fundamental ou qualitativa[4].
Por outro lado, é bastante inútil negar aos mais jovens o direito de expressar uma opinião e de
valorizar menos seus julgamentos porque eles têm menos experiência do que os mais velhos.
Há pessoas que podem viver mil anos ou mais sem ter uma única experiência. Somente entre
pessoas igualmente dotadas esse tipo de conversa faria sentido e seria plenamente justificado.

O homem de gênio, mesmo quando criança, leva uma vida mais intensa do que todas as outras
crianças, e quanto mais excepcional ele é, mais cedo é a parte de sua juventude que ele
consegue lembrar. De fato, em casos extremos, a memória de toda a sua vida desde o terceiro
ano de sua infância permanecerá sempre presente para ele. Outras pessoas, no entanto,
datam suas primeiras lembranças de sua juventude de um ponto muito posterior. Conheço
alguns cujas primeiras reminiscências remontam ao oitavo ano e que nada sabem de sua vida
anterior, exceto o que lhes foi dito, e certamente há muitas pessoas cuja primeira experiência
intensiva deve ser datada ainda mais tarde. Não desejo sustentar, nem acredito, que os dotes
de duas pessoas possam, sem exceção, ser medidos entre si apenas pelo fato de um deles se
lembrar de tudo de seu quinto ano e o outro apenas de seu décimo segundo, se o mais antigo
a lembrança juvenil de uma data do décimo quarto mês após seu nascimento e a do outro
apenas de seu terceiro ano. Mas geralmente, e sem impor limites muito estreitos, a regra
provavelmente sempre será vista como aplicável.

Mesmo em um indivíduo excepcional, um período de tempo mais longo ou mais curto passa
desde o ponto de sua primeira memória juvenil até o momento em que ele se lembra de tudo,
isto é, até o dia em que ele finalmente se tornou um gênio. A maioria das pessoas, por outro
lado, simplesmente esqueceu a maior parte de suas vidas. Na verdade, tudo o que muitas
pessoas sabem é que nenhuma outra pessoa viveu para elas durante todo esse tempo: de toda
a sua vida, apenas certos momentos, alguns pontos firmes, algumas estações proeminentes,
estão presentes para elas. Se alguém lhes pergunta sobre qualquer outra coisa, eles só sabem,
ou seja, calculam rapidamente, que em tal e tal mês eles tinham aquela idade, tinham este ou
aquele emprego, moravam aqui ou ali e tinham tal e tal renda. Se alguém compartilhou uma
experiência com eles anos atrás, pode ser necessário um enorme esforço para ressuscitar o
passado neles. Nesse caso, uma pessoa pode ser descrita com certeza como não tendo
nenhum dom, ou pelo menos pode ser considerada insignificante.

A esmagadora maioria das pessoas ficaria muito envergonhada se lhes pedissem para escrever
uma autobiografia: muito poucos podem dar uma explicação completa se lhes perguntam o
que fizeram ontem. A memória da maioria das pessoas é meramente desconexa,
ocasionalmente associativa. No homem de gênio, qualquer impressão que ele recebeu
permanece; mais precisamente, só ele realmente tem impressões. Ligado a isso está o fato de
que provavelmente todos os indivíduos notáveis, pelo menos de tempos em tempos, sofrem
de ideias fixas. Se compararmos a constituição psíquica das pessoas com um sistema de sinos
dispostos muito próximos, então é verdade para as pessoas comuns que cada sino soa apenas
se o próximo o tocar com suas vibrações, e o faz apenas por alguns momentos; enquanto é
verdade para o gênio que um único sino, se tocado, vibra poderosamente, produzindo um som
completo em vez de suave, e fazendo todo o sistema se mover e reverberar, muitas vezes pelo
resto de sua vida. Mas como esse tipo de movimento muitas vezes começa como resultado de
impulsos bastante triviais, até ridículos, e às vezes persiste com a mesma intensidade
insuportável por semanas, é realmente análogo à loucura.

Por razões relacionadas, a gratidão é a virtude mais rara entre os seres humanos. Às vezes,
eles podem se lembrar de quanto dinheiro foram emprestados, mas não querem e são
incapazes de pensar no problema em que estavam e no alívio que sentiram. Se a falta de
memória certamente leva à ingratidão, mesmo uma memória excelente por si só não é
suficiente para tornar uma pessoa grata. Isso requer outra condição especial, que não pode ser
discutida aqui.

Da conexão entre dom e memória — que tantas vezes foi mal julgada e negada porque não foi
procurada onde poderia ser encontrada, ou seja, na lembrança da própria vida — é possível
derivar um outro fato. Um poeta que foi compelido a escrever suas obras, sem a intenção de
fazê-lo, sem refletir e sem ter que pisar no pedal para entrar no clima, ou um músico que já foi
forçado pela investida do momento da composição a criar contra a sua vontade, e não pôde
resistir, embora preferisse descansar e dormir — tal homem carregará em sua mente o que
nasceu nestas horas, tudo o que não foi feito, toda a sua vida. Podemos ter certeza de que um
compositor que não conhece nenhuma de suas canções e nenhum de seus movimentos, um
poeta que não conhece nenhum de seus poemas de cor — sem tê-los “sem dúvida,
memorizado”, como Sixtus Beckmesser imagina Hans Sachs fazendo — nunca produziu nada
verdadeiramente significativo.

Antes de tentarmos aplicar essas sugestões ao problema das diferenças intelectuais entre os
sexos, devemos fazer uma distinção entre memória e memória. A memória de uma pessoa
dotada recebe os momentos individuais de sua vida não como pontos isolados, como imagens
de situações completamente separadas, como diferentes instantes únicos, cada um dos quais
mostra um índice específico cortado do seguinte, como o número um do número dois. Em vez
disso, a auto-observação revela que, apesar de todo sono, toda estreiteza de consciência,
todas as lacunas na memória, as experiências individuais parecem estar misteriosamente
conectadas: os eventos não se sucedem como o tique-taque de um relógio, mas correm juntos
em um fluxo unificado em que não há descontinuidade. Em pessoas sem gênio, esses
momentos, que se unem para formar a diversidade original discreta em um continuum
fechado, são poucos em número. Suas vidas se assemelham mais a um pequeno riacho do que
no caso de um gênio — um rio poderoso, no qual todos os pequenos riachos da área mais
ampla possível correm juntos e do qual, como resultado da apercepção universal, nenhuma
experiência é excluída, mas em que, ao contrário, todos os momentos individuais são
absorvidos e recebidos. Essa continuidade essencial, que sozinha pode assegurar plenamente
ao ser humano que ele está vivo, que ele existe, que ele está no mundo — que é abrangente
em um gênio e restrito a alguns momentos importantes em pessoas medíocres — está
totalmente ausente em mulheres. Quando uma mulher contempla sua vida, olhando para trás
e revivendo seus sentimentos, ela não lhe aparece sob o aspecto de um impulso e luta
inexorável e incessante, mas ela fica continuamente presa em pontos particulares.

Que tipo de pontos são esses? Eles só podem ser aqueles em que W tem interesse em virtude
de sua natureza. Comecei a considerar a direção exclusiva desse interesse de sua constituição
no segundo capítulo. Aqueles que se lembram dos resultados daquele capítulo não ficarão
surpresos com o seguinte fato.

W tem apenas uma classe de memórias: são memórias ligadas ao impulso sexual e à
reprodução. Ela se lembra de seu amante e pretendente; sua noite de núpcias; todos os seus
filhos e suas bonecas; as flores que recebia em cada baile, com o número, tamanho e preço
dos buquês; cada serenata que lhe foi dada; cada poema que (ela imagina) foi escrito para ela;
cada palavra de um homem que a impressionou; mas acima de tudo — com uma precisão tão
desprezível quanto misteriosa — cada elogio que já foi feito a ela em sua vida.

Isso é tudo que a (W)Mulher genuína lembra de sua vida.


No entanto, o que uma pessoa nunca esquece, e o que ela não consegue lembrar, torna mais
fácil conhecer sua natureza, seu caráter. Mais tarde será necessário examinar.

mais precisamente o que é indicado pelo fato de W ter essas de todas as memórias. Muita
informação pode ser esperada da incrível fidelidade com que as mulheres se lembram de
todas as homenagens e bajulação, todas as provas de galanteria que lhes são oferecidas desde
a mais tenra infância. É claro que estou ciente das objeções que podem ser feitas a essa
restrição da memória feminina à área da sexualidade e da vida da espécie, e devo estar
preparado para um desfile de todas as escolas de meninas e todos os seus certificados. No
entanto, essas dificuldades não podem ser resolvidas até mais tarde. Aqui, gostaria apenas de
sugerir mais uma vez que, para ser seriamente considerado no que diz respeito à compreensão
psicológica da individualidade, qualquer lembrança de coisas aprendidas só pode ser relevante
se o que foi aprendido foi realmente experimentado.

A falta de continuidade da vida psíquica das mulheres (que foi aqui apresentada apenas como
um fato psicológico que não pode ser ignorado, como um apêndice, por assim dizer, da teoria
da memória e não como uma tese espiritualista ou idealista) não pode ser elucidada, nem a
natureza da continuidade explorada com referência ao problema mais controverso de toda a
filosofia e psicologia, até mais tarde. Como prova dessa falta, citarei, por enquanto, apenas o
fato — que muitas vezes foi visto com espanto e que foi expressamente enfatizado por Lotze
— de que as mulheres acham muito mais fácil se alinhar e acomodar mais cedo a novas
circunstâncias do que os homens, que por muito tempo serão reconhecidos como
pervenus[expressão francesa para a pessoa que recém ascende a uma classe sócio-econômica
melhor] quando ninguém mais puder distinguir uma mulher de classe média de uma nobre, ou
uma mulher que cresceu em circunstâncias difíceis da filha de um patrício. No entanto, isso
também é algo que terei que retornar com mais detalhes mais tarde.

A propósito, agora será entendido por que (se não movidas por vaidade, desejo de fofoca ou
desejo de imitação) apenas pessoas melhores escrevem memórias de sua vida, e por que vejo
isso como a principal prova da conexão entre memória e dotação. Não que todo homem de
gênio componha uma autobiografia: para começar a escrever uma autobiografia, são
necessárias certas pré-condições psicológicas especiais e profundamente enraizadas. Mas, por
outro lado, a escrita de uma autobiografia completa, se for fruto de uma necessidade original,
é sempre sinal de um ser humano superior. Pois a reverência também está enraizada em uma
memória realmente fiel. Um indivíduo excepcional recusaria qualquer sugestão de que ele
entregasse seu passado por causa de algumas vantagens de natureza material externa ou de
natureza higiênica interna, mesmo que lhe fossem prometidos os maiores tesouros do mundo,
na verdade a própria felicidade, em troca do esquecimento. O desejo de beber das águas do
Léte é um traço de naturezas medíocres e inferiores. E enquanto, como disse Goethe, um
indivíduo verdadeiramente notável pode ser muito duro e duro com quaisquer erros que
tenha superado recentemente em si mesmo, mesmo quando vê outros se agarrarem a eles,
ele nunca sorrirá de suas ações passadas, nunca ridicularizará sua maneira anterior de pensar
e viver. A abundância daqueles que hoje afirmam ter “superado” as coisas, com justiça,
merece tudo menos esse predicado: qualquer um que zombeteiramente conta aos outros o
que um dia acreditou, e como ele “superou” tudo isso, nunca levou a sério o velho coisas e se
importa igualmente pouco com o novo. Essas pessoas estão interessadas apenas na
instrumentação, nunca na melodia, e nenhuma dessas etapas que elas “superaram” estava
realmente profundamente enraizada em seu ser. Em contraste, deve-se observar com que
solene cuidado os grandes homens em suas autobiografias atribuem valor até mesmo às coisas
aparentemente mais triviais: para eles o presente e o passado são iguais, para os outros nem o
presente nem o passado são verdadeiros. indivíduo notável sente como tudo, mesmo o menor
e o mais pequeno detalhe, adquiriu uma importância em sua vida, e como isso contribuiu para
seu desenvolvimento: essa é a razão da extraordinária reverência de suas memórias.
Certamente tal autobiografia não é escrita abruptamente, no calor do momento, como
qualquer outra ideia, e o pensamento de fazê-lo não ocorre de repente: para o grande homem
que a escreve, sua autobiografia é, por assim dizer, sempre finalizada. Ele sente que suas
novas experiências são significativas precisamente porque sua vida anterior está sempre
completamente presente para ele, e é por isso que ele, e realmente só ele, tem um destino. E
é também por isso que os indivíduos mais excepcionais em particular serão sempre muito mais
supersticiosos do que os medíocres. Assim posso resumir:

Um indivíduo é tanto mais excepcional quanto mais todas as coisas significam para ele. No
decorrer desta investigação será possível atribuir um significado ainda mais profundo a essa
afirmação, além da universalidade das relações de compreensão e da comparação pela
lembrança.

A situação da Mulher a este respeito não é difícil de descrever. Uma mulher genuína nunca
chega a nenhuma consciência de um destino, seu destino. A mulher não é heroica, porque luta
na melhor das hipóteses por seus bens, e não é trágica, porque seu destino é decidido junto
com o destino desses bens. Como a Mulher não tem continuidade, ela também é incapaz de
reverência: na verdade, a reverência é uma virtude exclusivamente masculina. A pessoa
começa com reverência a si mesma, e a reverência a si mesma é a pré-condição de toda
reverência pelos outros. Mas uma mulher precisa de muito pouco esforço para condenar seu
próprio passado. Se a palavra ironia fosse apropriada, poder-se-ia dizer que um homem não
contemplará facilmente seu eu passado de uma maneira tão irônica e superior como as
mulheres costumam — e não apenas depois da noite de núpcias — fazer. Haverá
oportunidades para apontar que as mulheres realmente querem o oposto de tudo o que é
expresso pela reverência. No que diz respeito à reverência às viúvas, prefiro ficar em silêncio
sobre esse assunto. E, finalmente, a superstição das mulheres é psicologicamente
completamente diferente da superstição dos homens notáveis.

A relação com o próprio passado, expressa em reverência e fundamentada em uma memória


contínua, que por sua vez é possibilitada apenas pela apercepção, pode ser demonstrada em
outros contextos e ao mesmo tempo analisada mais profundamente. O fato de uma pessoa ter
ou não alguma relação com seu passado está intimamente ligado ao fato de ela sentir desejo
pela imortalidade ou ser indiferente ao pensamento da morte.

O desejo de imoralidade é geralmente tratado hoje de maneira muito mesquinha e


paternalista. O problema que daí decorre, não apenas como ontológico, mas também como
psicológico, é tomado vergonhosamente de ânimo leve. Alguns tentam explicá-lo, juntamente
com a crença na metempsicose, dizendo que em muitas pessoas algumas situações, nas quais
certamente se encontram pela primeira vez, despertam a sensação de já tê-las vivido uma vez.
A outra derivação da crença na imortalidade, a derivação do culto das almas, que é geralmente
adotada hoje e encontrada em Tylor, Spencer e Avenarius, teria sido a priori rejeitada por
qualquer época, exceto a da psicologia experimental. A meu ver, deveria parecer impossível
para qualquer pessoa pensante que algo com o qual tantas pessoas se preocuparam, que tanto
se discutiu e se discutiu, pudesse ser apenas a conclusão de um silogismo baseado na
premissa, digamos, do sonho noturno aparições de pessoas mortas. E quais são os fenômenos
que Goethe e Bach pretendiam explicar concebendo uma crença sólida na continuidade de sua
vida após a morte, e a que “pseudo-problema” podemos atribuir o desejo de imortalidade que
nos fala das últimas sonatas de Beethoven e quartetos? O desejo pela continuação de uma
existência pessoal deve ter nascido de fontes mais poderosas do que aquela fonte racionalista.

Essa fonte mais profunda está intensamente ligada à relação entre os seres humanos e seu
passado. Sentir e ver a si mesmo no passado fornece uma razão poderosa para querer
continuar a sentir e ver a si mesmo. Um indivíduo que valoriza seu passado, que honra sua vida
interior mais do que sua vida física, não estará preparado para abandoná-lo até a morte. É por
isso que um desejo primário e original de imortalidade ocorre mais forte e persistentemente
nos maiores gênios da humanidade, em indivíduos com o passado mais rico. Que essa conexão
entre a exigência de imortalidade e a memória realmente existe é demonstrado pelo que as
pessoas que foram salvas do perigo mortal relatam unanimemente sobre si mesmas. Mesmo
que nunca tenham pensado muito sobre seu passado, agora revivem de repente toda a
história de sua vida em uma velocidade vertiginosa e, no espaço de alguns segundos,
lembram-se de coisas que não retornavam à sua consciência há décadas. Pois uma sensação
do que os espera — novamente por meio de contraste — traz à sua consciência tudo o que
agora está prestes a ser destruído para sempre.

Claro que sabemos muito pouco sobre o estado mental dos moribundos. É preciso um
indivíduo mais do que comum para reconhecer o que está acontecendo em uma pessoa que
está morrendo. Por outro lado, pelas razões que expliquei, são precisamente as pessoas
melhores que costumam evitar a morte. Mas provavelmente é completamente errado atribuir
o súbito sentimento religioso que surge em tantas pessoas criticamente doentes meramente à
bem conhecida consideração de “quem sabe, talvez, é melhor estar do lado seguro”, e é muito
superficial supor que a doutrina tradicional do inferno, que eles nunca antes contemplaram,
de repente ganhará tanta força na hora exata da morte que se torna impossível para uma
pessoa morrer com uma mentira[5]. Pois esta é a coisa mais importante: por que as pessoas
que têm persistentemente levado uma vida de mentiras sentem um súbito desejo pela
verdade? E por que causa uma impressão tão terrível, mesmo para aqueles que não acreditam
em punições no além, ouvir que uma pessoa morreu com uma mentira, com uma ação
perversa da qual não se arrependeu, por que tanto a obstinação até o momento do fim e a
reversão antes da morte frequentemente tiveram um apelo tão poderoso para poetas e
escritores? Portanto, a pergunta sobre a “eutanásia dos ateus”, tão frequentemente colocada
no século XVIII, não é de todo inútil e não apenas uma curiosidade histórica, como foi tratada
por Friedrich Albert Lange.

Menciono tudo isso não apenas para discutir uma possibilidade que dificilmente merece o
status de suposição. Não me parece inimaginável, já que há muito mais pessoas com algumas
das qualidades de gênio do que verdadeiros “gênios”, que as diferenças quantitativas de
dotação encontrem expressão sobretudo no momento em que as pessoas se tornam gênios.
Para um grande número de indivíduos este momento coincidiria com sua morte natural. Se
antes tínhamos razão para não considerar os gênios, como os contribuintes acima de uma
certa renda anual, como separados de todas as outras pessoas por uma linha divisória nítida,
essas novas reflexões se unem às mais antigas. A primeira lembrança da infância de um
indivíduo não está ligada a nenhum evento externo que interrompa o curso anterior das
coisas. Em vez disso, mais cedo ou mais tarde, de repente, discretamente, como resultado de
um desenvolvimento interior, chega um dia para todos em que sua consciência se torna tão
intensa que uma memória permanece. A partir de então, em proporção aos dotes do
indivíduo, persistem memórias mais ou menos numerosas — fato que por si só inverte toda a
psicologia moderna — e, assim, indivíduos diferentes precisariam de um número diferente de
impulsos para torná-los gênios. As pessoas, então, poderiam ser classificadas, de acordo com
seus dotes, pelo número desses impulsos de consciência, o último dos quais ocorreria na hora
da morte. Quero aproveitar esta oportunidade para apontar como está errada a psicologia
atual (que considera o indivíduo humano nada mais que uma máquina de gravação superior,
sem desenvolvimento intelectual ontogenético vindo de dentro) em acreditar que o maior
número de impressões é retido em uma idade jovem. As impressões que foram
experimentadas não devem ser confundidas com o material externo e estranho mantido na
memória. As crianças podem absorver este último com muito mais facilidade precisamente
porque carregam um fardo tão pequeno de impressões sentidas. Uma psicologia que contradiz
a observação empírica em pontos tão fundamentais tem todos os motivos para fazer um
balanço e refazer seus passos. O que tentei fazer aqui não é nem mesmo uma sugestão da
psicologia ontogenética ou da biografia teórica que está destinada mais cedo ou mais tarde a
substituir a ciência atual da mente humana. Todo programa contém uma convicção implícita, e
todo objetivo da vontade é precedido por ideias específicas sobre condições reais. O nome
“biografia teórica” destina-se a distinguir seu território do da filosofia e da fisiologia melhor do
que antes, e expandir aquela abordagem biológica que tem sido unilateralmente desfilada e,
em parte, muito exagerada pela mais recente escola de psicologia (Darwin, Spencer, Mach,
Avenarius). Tal ciência teria que dar conta da vida mental como um todo, que progride desde o
nascimento de um indivíduo até sua morte de acordo com certas leis, assim como o faz para o
nascer e o passar, e todas as fases discretas da vida de uma planta. E deve ser chamado de
biografia, não de biologia, porque sua tarefa é explorar as leis imutáveis do desenvolvimento
mental do indivíduo. Até agora, a história de todas as espécies só conheceu indivíduos, βioι.
Mas aqui a tarefa seria desenvolver pontos de vista gerais, estabelecer tipos. A psicologia teria
de começar a se tornar biografia teórica. Toda a psicologia existente poderia e seria absorvida
em tal ciência e só então forneceria uma base realmente frutífera para as humanidades, como
exigia Wilhelm Wundt. Seria um erro desesperar dessa possibilidade apenas porque a
psicologia de hoje, que ainda não percebeu que sua verdadeira tarefa é atingir esse objetivo, é
totalmente incapaz de oferecer a menor contribuição às humanidades. Isso pode justificar a
manutenção da divisão de Mill de ciências naturais e humanas ao lado da nova classificação do
aprendizado em ciências de “leis” e “eventos”, em disciplinas “nomotéticas” e “idiográficas”,
apesar do grande esclarecimento trazido pelos exames de Windelband e Rickert da relação
entre as ciências naturais e as humanidades.

Está em total concordância com a dedução do desejo de imortalidade, que ligava esse desejo à
forma contínua de memória e reverência, que as mulheres carecem inteiramente do desejo de
imortalidade. Podemos também deduzir disso com certeza quão errados estão aqueles que
consideram o postulado da continuação de uma existência pessoal meramente como um
produto do medo da morte e do egoísmo físico, e que assim expressam realmente a opinião
mais popular sobre toda a crença na eternidade. Pois o medo de morrer está presente nas
mulheres como nos homens, mas o desejo de imortalidade está restrito a estes.

Até agora, minha tentativa de explicar o desejo psicológico de imortalidade demonstrou uma
conexão que existe entre esse desejo e a memória, em vez de uma dedução realmente
rigorosa de um princípio superior. Que exista tal afinidade sempre será verdade: quanto mais
um homem vive em seu passado — não, como se poderia acreditar à primeira vista, em seu
futuro — mais intenso será seu desejo de imortalidade. Da mesma forma, nas mulheres, a falta
de desejo de uma vida após a morte concorda com sua falta geral de reverência por sua
própria pessoa. No entanto, assim como essa falta na Mulher exige uma explicação mais
profunda e derivação de ambos a partir de um princípio mais geral, também no Homem a
combinação de memória e desejo de imortalidade parece indicar para ambos uma raiz comum
ainda a ser descoberta. O que consegui até agora é apenas provar que, e como, a vida no
próprio passado e sua valorização na esperança de um além se encontram na mesma pessoa.
Ainda não considerei minha tarefa explorar a razão mais profunda dessa conexão. Mas agora é
hora de empreender a solução dessa tarefa.

Tomemos como ponto de partida nossa formulação da memória universal do indivíduo


excepcional. Dissemos que para ele tudo, tanto o que perdeu sua realidade há muito tempo
quanto o que desapareceu recentemente, é igualmente verdadeiro. Isso implica que uma
experiência individual não desaparece e perece com o momento no tempo em que é
estabelecida, como o próprio átomo do tempo faz, e que ela não permanece presa a um
instante específico no tempo, mas é arrancada de si mesma. isso, precisamente por meio da
memória. A memória torna os eventos atemporais: é, por definição, a superação do tempo. Os
seres humanos só podem se lembrar de coisas passadas porque a memória os libera da
influência do tempo e suscita eventos, que na natureza são normalmente funções do tempo,
acima do tempo na mente.

Mas aqui parece que nos deparamos com uma dificuldade. Como pode a memória implicar
uma negação do tempo se, por outro lado, é certo que nada saberíamos sobre o tempo se não
tivéssemos memória? Certamente é apenas lembrando de coisas passadas que nos tornamos
conscientes do fato de que há uma progressão no tempo. Como, então, uma de duas coisas
tão intimamente conectadas pode representar o oposto e o cancelamento da outra?

Essa dificuldade é fácil de resolver. É precisamente porque qualquer ser vivo — não
necessariamente humano –, se equipado com memória, não está simplesmente encaixado na
progressão do tempo, que tal ser é capaz de se opor à progressão do tempo e assim agarrá-lo
e transformá-lo em objeto de contemplação. Se a experiência individual estivesse vinculada à
progressão do tempo como um todo, se ela se tornasse escrava do tempo além da redenção
pela memória, ela teria que mudar com o tempo, como uma variável dependente muda com a
independente. Se o ser humano estivesse no meio do fluxo temporal dos eventos, ele não
poderia atingi-lo e entrar em sua consciência — já que o pré-requisito da consciência é a
dualidade — e nunca poderia ser um objeto, um pensamento, uma ideia humana. É preciso de
alguma forma ter superado o tempo para poder refletir sobre ele, de alguma forma estar fora
do tempo para poder contemplá-lo. Isso se aplica não apenas a qualquer momento específico
no tempo — nas garras da própria paixão não se pode pensar em paixão, para isso é preciso
ter ido além dela no tempo — mas igualmente ao conceito geral de tempo. Se algo atemporal
não existisse, não haveria concepção de tempo.

Para explorar essa entidade atemporal, vamos primeiro refletir sobre o que é liberado do
tempo pela memória. Vimos que é qualquer coisa que tenha algum interesse ou algum
significado para o indivíduo ou, para resumir, qualquer coisa que tenha um valor para o
indivíduo. Só nos lembramos das coisas que tiveram um valor, embora muitas vezes
inconsciente, para uma pessoa: é esse valor que as torna atemporais. Esquece-se tudo o que
não foi de alguma forma, ainda que muitas vezes inconscientemente, valorizado pela pessoa.

Atemporalidade, então, é valor. E vice-versa: uma coisa tem mais valor, quanto menos é uma
função do tempo, menos muda com o tempo. Tudo no mundo, por assim dizer, é irradiado
pelo valor apenas na medida em que é atemporal: somente às coisas atemporais é atribuído
um valor positivo. Esta, acredito, embora ainda não seja a definição mais profunda e universal
de valor, nem uma explicação exaustiva de sua natureza, é a primeira lei especial de qualquer
teoria de valor.

Uma pesquisa apressada será suficiente para demonstrar isso em todos os lugares. Estamos
sempre inclinados a pensar pouco nas convicções daqueles que só chegaram a elas
recentemente, e não daremos muita importância aos comentários de um indivíduo cujas
opiniões ainda estão em evolução e em constante mudança. Por outro lado, uma
determinação inflexível sempre inspirará respeito, mesmo que se manifeste na forma ignóbil
de vingança e obstinação. De fato, ela o faz mesmo se expressa através de objetos inanimados:
os “aere perennius” dos poetas e os “quarante siècles” das pirâmides egípcias podem servir de
exemplo. A fama ou boa reputação deixada por um homem seria imediatamente desvalorizada
pela ideia de que duraria apenas por um curto período, e não por muito tempo ou
possivelmente para sempre. Além disso, um homem nunca pode atribuir um valor positivo ao
fato de estar em constante mudança. Supondo que ele fez isso em um certo aspecto, e então
lhe disseram que ele está se mostrando de um lado diferente a cada vez, ele pode até ficar
satisfeito e orgulhoso dessa qualidade, e ainda assim seria apenas a constância, regularidade e
certeza dessas diferenças em que ele está se regozijando. Aqueles cansados da vida, para
quem não há mais valores, na verdade não têm mais interesse em nenhuma constância. O
medo da extinção de uma família e da extinção de seu nome é um exemplo disso.

Qualquer avaliação social, que aparece, por exemplo, em estatutos ou contratos jurídicos,
embora possa ser modificada pelo costume ou pela vida cotidiana, reivindica desde o início
uma validade atemporal, mesmo que sua força legal expressamente (segundo sua redação)
apenas abrange um período específico de tempo: pois aqui o tempo é especificamente
escolhido como uma constante e não considerado como uma variável, dependendo do qual as
condições acordadas podem mudar de forma constante ou instável. Na verdade, aqui também
descobrimos que quanto mais tempo algo dura, mais altamente será valorizado. Se duas
partes jurídicas chegam a um acordo de duração muito curta, ninguém acredita que qualquer
uma delas dê grande importância ao seu contrato. Neste caso, ambas as partes contratantes,
sentindo-se da mesma forma, estarão em guarda e desconfiarão uma da outra, desde o início,
apesar de todos os documentos.

A lei que formulei também contém a verdadeira explicação do fato de que os seres humanos
têm interesses além de sua própria morte. O desejo de valor se expressa no esforço geral de
emancipar as coisas do tempo, e esse impulso se estende até mesmo a condições que, “dado o
tempo”, mudarão mais cedo ou mais tarde em qualquer caso, por exemplo, riqueza e posses e
qualquer coisa que responda à descrição comum de “bens terrenos”. Aqui reside o profundo
motivo psicológico para fazer um testamento e deixar uma herança. Este fenômeno não teve
origem na preocupação com os familiares, pois os homens sem família e parentes também
fazem testamentos e, em geral, são precisamente eles que o fazem com muito mais seriedade
e empenho do que um pai de família, que sabe que a sua morte não apagará tão totalmente
seus rastros das vidas e pensamentos dos outros.

Um grande político e governante, e em particular um déspota ou um homem que encena um


golpe de estado, cujo governo termina com sua vida, tenta dotá-lo de valor ligando-lhe algo
atemporal: por exemplo, um código de lei ou uma biografia de Júlio César, todo tipo de
grandes empreendimentos intelectuais e trabalhos colaborativos de aprendizado, museus e
coleções, edifícios feitos de hard rock (saxa loquuntur) e, mais caracteristicamente, a criação
ou regulamentação de um calendário. Mas ele também tenta garantir a maior duração
possível de seu poder, mesmo em vida, não apenas por salvaguardas mútuas por meio de
contratos ou pela criação de relações familiares duradouras por meio de casamentos
diplomáticos, mas acima de tudo removendo tudo o que poderia desafiar a eterna
continuação de seu governo meramente em virtude de sua existência livre. É assim que o
político se torna o conquistador.

As investigações psicológicas e filosóficas existentes sobre a teoria do valor não prestaram


qualquer atenção à lei da atemporalidade. Em grande medida, eles foram influenciados pelas
exigências da economia, sobre as quais, por sua vez, tentaram invadir. No entanto, não
acredito que a nova lei que desenvolvi não tenha validade na economia política apenas porque
nessa área é muito mais frequentemente obscurecida por complicações do que na psicologia.
Também na economia, quanto mais durável uma coisa, mais valor ela tem. A uma hora tardia,
por exemplo, antes do anoitecer, posso obter quaisquer bens que só podem ser conservados
por um período muito limitado — que, digamos, pereceriam dentro de um quarto de hora se
eu não os comprasse — por menos dinheiro, sempre que não se pretenda elevar o valor moral
da empresa comercial acima das flutuações no tempo por meio de preços fixos. Pense também
nas muitas instalações de proteção contra os efeitos do tempo e de preservação do valor
(armazéns, depósitos, adegas, réchauds, todas as coleções com tutores). Mesmo aqui é
totalmente incorreto definir valor como aquilo que é adequado para satisfazer nossas
necessidades, como é comumente feito pelos teóricos do valor psicológico. Pois até mesmo o
humor das pessoas faz parte de suas necessidades (momentâneas), e ainda assim não há nada
mais oposto a qualquer posse de valor do que o humor. Os humores não têm valor e, no
máximo, o exigem para esmagá-lo no momento seguinte. Assim, o elemento de duração não
pode ser eliminado do conceito de valor. Mesmo aqueles fenômenos que as pessoas tentaram
explicar com a ajuda da teoria da “utilidade marginal” de Menger estão de acordo com a
minha visão (que em si de forma alguma pretende naturalmente contribuir com alguma coisa
para a economia). De acordo com essa visão, a razão pela qual o ar e a água não têm valor é
que um valor positivo só pode ser atribuído a coisas que são de alguma forma individualizadas
e recebem forma: pois tudo o que tem forma pode se tornar informe, pode ser destruído e
não precisa durar como tal. Uma montanha, uma floresta, uma planície, pode ser dada forma
por cercamento e limitação e, portanto, é um objeto de valor mesmo em seu estado mais
selvagem. O ar da atmosfera e a água sobre e acima da superfície da terra estão dispersos
difusamente, sem limites, e ninguém poderia envolvê-los dentro de limites. Se um mago fosse
capaz de comprimir o ar atmosférico ao redor do globo para uma área relativamente pequena
da terra, como o gênio no conto oriental, ou se alguém conseguisse trancar as massas de água
da terra em um grande reservatório e evitar que ela evaporasse , ambos teriam adquirido
forma imediatamente e, portanto, estariam sujeitos a avaliação. Portanto, o valor só se
predica de uma coisa onde há razão, por mais remota que seja, para temer que ela possa
mudar no tempo: pois o valor só é adquirido em relação ao tempo e estabelecido em oposição
a ele. Valor e tempo, portanto, exigem-se mutuamente como dois conceitos correlativos. A
que profundidade essa visão pode levar, até que ponto essa visão em particular pode até
constituir uma weltanschauung, prefiro não prosseguir neste ponto. Para nossos propósitos,
basta saber que qualquer razão para falar de valor cessa precisamente onde o tempo não pode
mais representar uma ameaça. O caos, mesmo que seja eterno, só pode receber um valor
negativo. Forma e atemporalidade, ou individuação e duração, são os dois fatores analíticos
que inicialmente criam e fornecem a base para o valor.

Após esta exposição minuciosa da lei fundamental da teoria do valor nas áreas da psicologia
individual e da psicologia social, posso retomar gradualmente os objetos centrais de minha
investigação e lidar com o que ainda está pendente, apesar de ser a tarefa especial deste
capítulo.

A primeira conclusão que se pode tirar do exposto é que em todas as áreas da atividade
humana há um desejo de atemporalidade, uma vontade de valor. E essa vontade de valor, que
não deve temer nenhuma comparação de sua profundidade com a da “vontade de poder”,
está totalmente ausente nas mulheres individuais, pelo menos na forma de vontade de
atemporalidade. O fato de as mulheres não desejarem a imortalidade está ligado ao hábito das
velhas de deixar instruções sobre sua herança apenas nos casos mais raros. Pois o legado de
uma pessoa é santificado por algo maior e mais universal, razão pela qual também é
respeitado pelos outros.

O desejo de imortalidade é em si mesmo apenas um caso específico da lei geral de que


somente as coisas atemporais recebem um valor positivo. É aqui que esse desejo está ligado à
memória. A persistência das experiências em um ser humano é proporcional ao significado que
elas são capazes de ganhar para ele. Por mais paradoxal que possa parecer: é o valor que cria o
passado. Somente o que foi atribuído um valor positivo é protegido pela memória dos estragos
do tempo e, assim, também a vida psíquica do indivíduo, para que lhe seja atribuído um valor
positivo, não deve ser uma função do tempo, mas deve ser elevado acima do tempo por uma
existência eternamente contínua além da morte. Isso nos aproximou incomparavelmente do
motivo mais íntimo do desejo de imortalidade. É a perda total de significado que resultaria se
uma vida plena, uma vida vivida em plenitude, terminasse completamente e para sempre com
a morte, e a insensatez de tudo nesse evento — como Goethe também colocou, embora em
palavras diferentes, para Eckermann (4 de fevereiro de 1829) — que levam à procura pela
imortalidade.

O gênio tem o mais forte desejo de imortalidade. Isso coincide com todos os outros fatos que
até agora foram descobertos sobre sua natureza. A memória é uma vitória total sobre o tempo
somente se aparece de forma universal em um ser humano universal. Assim, o gênio é o ser
humano verdadeiramente atemporal, ou pelo menos isso, e nada mais, é seu ideal de si
mesmo. Como prova seu profundo e urgente desejo de imortalidade, ele é o ser humano com
o mais forte desejo de atemporalidade, com a mais poderosa vontade de valor[6].

E agora uma coincidência possivelmente ainda mais milagrosa aparece diante do olho
deslumbrado. A atemporalidade do gênio se revela não apenas em relação aos momentos
individuais de sua vida, mas também em sua relação com o que é destacado do calendário
como sua geração e chamado de “seu tempo” no sentido mais estrito. Com este último ele não
tem, de fato, nenhuma relação. Um gênio não é criado pelo tempo que precisa dele. Ele não é
seu produto, ele não pode ser explicado por ele, e não o honramos se o usamos para dar
desculpas para ele. Carlyle apontou com razão quantas épocas faltaram a nada além de um
indivíduo excepcional, e com que urgência elas precisavam dele, e ainda assim ele não
apareceu. A vinda de um gênio permanece um mistério, e devemos ter reverência suficiente
para nos abstermos de tentar entendê-lo. Assim como as causas de seu aparecimento não
podem ser encontradas em seu tempo, tampouco suas consequências estão vinculadas a
qualquer tempo em particular — e essa correspondência é o segundo mistério. Os feitos de
um gênio vivem para sempre e não são alterados pelo tempo. O indivíduo excepcional recebe
a imortalidade na terra por meio de suas obras e, portanto, ele é atemporal em um triplo
sentido: sua apercepção universal, ou o valor que ele atribui a cada experiência, preserva essas
experiências em sua memória e as salva de serem destruídas com o momento de passagem;
ele não é produto do tempo que precede sua aparição; e o que ele criou não é vítima do
tempo em que ele está ativo ou mesmo de qualquer outro tempo que possa vir mais cedo ou
mais tarde.

Este é o ponto mais oportuno para inserir a discussão de uma questão que deve ser
respondida, ainda que, curiosamente, pareça ter sido levantada por quase ninguém até agora.
Não é outro senão se o que merece ser chamado de gênio também se encontra entre os
animais (ou plantas). Independentemente dos critérios de dotação, que já expus e cuja
aplicação aos animais dificilmente revelará a presença de indivíduos tão distintos entre eles,
temos razões suficientes para supor — como será explicado mais adiante — que há nada
remotamente semelhante entre aqueles seres. Talentos podem existir no reino animal, assim
como em humanos que não são totalmente gênios. Mas temos todos os motivos para não
estender aos animais o que sempre foi considerado a “faísca divina”, antes de Moreau de
Tours, Lombroso e Max Nordau. Essa restrição não é fruto do ciúme ou da proteção ansiosa de
um privilégio, mas algo que pode ser defendido com bons motivos.

Pois o primeiro surgimento do gênio na humanidade explica inúmeras coisas. Isso explica todo
o “espírito objetivo”, ou seja, o fato de que só o homem entre todos os seres vivos tem uma
história!

Não pode toda a história humana (naturalmente no sentido da história da mente e não, por
exemplo, a história das guerras) ser melhor compreendida através do aparecimento de um
gênio, das inspirações que dele emanam e da imitação do que um gênio fez por mais criaturas
pitecóides? Veja a construção de casas, a agricultura e, acima de tudo, a linguagem! Cada
palavra foi criada primeiramente por um indivíduo, por um indivíduo acima da média, e o
mesmo acontece ainda hoje (com exceção dos nomes de novas invenções técnicas, que devem
ser ignoradas neste contexto). De que outra forma ele deveria ter sido criado? As palavras
primitivas eram “onomatopeias” e incorporavam sem a vontade do falante, pela pura
intensidade da excitação específica, algo semelhante à causa da excitação, enquanto todas as
outras palavras eram originalmente tropos, por assim dizer, onomatopeias de segunda ordem,
metáforas, símiles: toda prosa já foi poesia. Assim, a maioria dos gênios permaneceu
desconhecida. Basta pensar em provérbios, inclusive os mais triviais de hoje, como “um favor
merece outro”. De fato, até isso foi dito pela primeira vez há muitos anos por um homem
espirituoso. Por outro lado, quantas citações dos autores clássicos mais lidos, como muitos
ditos de Cristo, parecem-nos hoje inteiramente como provérbios impessoais, e quantas vezes
devemos nos lembrar que neste caso conhecemos o autor! Portanto, não se deve falar da
“sabedoria da língua”, ou das vantagens e expressões felizes do “francês”. A linguagem não foi
mais criada por uma multidão do que a “canção folclórica”. Se usarmos tais frases, estaremos
sendo ingratos com tantos indivíduos para dar presentes excessivos a um povo. O próprio
gênio que criou a linguagem pertence, como resultado de sua universalidade, não apenas
àquela nação da qual ele provém e em cuja linguagem ele expressou sua própria natureza.
Uma nação se orienta por seus gênios e modela neles sua concepção ideal de si mesma, de
modo que essa concepção não pode ser a estrela-guia dos grandes indivíduos, mas pode ser a
de todas as outras. Por razões semelhantes, também seria aconselhável mais cautela quando,
como é frequentemente o caso, a psicologia da linguagem e a psicologia das nações são
tratadas, sem quaisquer estudos preliminares críticos, como pertencentes
juntos. A razão pela qual tanta sabedoria surpreendente está realmente escondida na
linguagem é que a linguagem é criada por grandes indivíduos. O fato de um pensador
ardentemente profundo como Jacob Böhme se preocupar com a etimologia certamente
significa um pouco mais do que muitos historiadores da filosofia parecem capazes de
entender. De Bacon a Fritz Mauthner, todos os imbecis foram críticos da linguagem[7].

Um gênio, por outro lado, não critica a linguagem, mas a criou e está sempre criando de novo,
como faz com todos os outros produtos da mente que representam a base da cultura em
sentido estrito, o “espírito objetivo”. na medida em que realmente é espírito. Assim, vemos
que o indivíduo atemporal é o indivíduo que cria a história: a história só pode ser criada por
indivíduos que estão fora de suas conexões causais. Pois só eles entram nessa relação
indissolúvel com o absolutamente atemporal, com valor, que confere às suas produções um
conteúdo eterno. E qualquer acontecimento que encontre lugar na cultura o faz sob o aspecto
do valor eterno.

Se aplicarmos o critério da atemporalidade tríplice ao gênio, teremos também o guia mais


seguro para a decisão — agora não muito difícil — sobre a quem deve ser atribuído o
predicado de gênio e a quem deve ser desaprovado. A opinião que é sem dúvida a correta
nesta ocasião, embora se encontre no meio, situa-se entre a opinião popular sustentada, por
exemplo, por Türck e Lombroso, que estão dispostos a aplicar o conceito de gênio a qualquer
pessoa acima da média. realização intelectual ou prática, e a exclusividade dos ensinamentos
de Kant e Schelling, que reconhecem a atividade do gênio somente no artista criativo. O título
de gênio só pode ser justificado no caso dos grandes artistas e dos grandes filósofos (entre os
quais também incluo os gênios mais raros, os grandes criadores de religiões[8]). Nem “o
grande homem de ação” nem “o grande homem de ciência” têm qualquer direito a isso.

Os “homens de ação”, os famosos políticos e generais, podem ter características individuais


que lembram um gênio (por exemplo, uma excelente capacidade de julgar o caráter ou uma
enorme memória para as pessoas). Sua psicologia será discutida mais adiante, mas eles só
podem ser confundidos com gênios por alguém que fica completamente deslumbrado com a
mera aparência externa de grandeza. Um gênio se distingue em mais de um sentido
precisamente por sua capacidade de prescindir de qualquer grandeza externa e por sua pura
grandeza interior. O indivíduo verdadeiramente excepcional tem o mais forte senso de valores,
enquanto o general e o político entendem pouco mais do que forças. O primeiro pode
procurar vincular o poder ao valor, o último, na melhor das hipóteses, vincular e vincular o
valor ao poder (lembre-se do que disse acima sobre os empreendimentos dos líderes). O
grande general e o grande político erguem-se como uma fênix do caos das circunstâncias para
desaparecer como aquele pássaro. O grande líder ou grande demagogo é o único homem que
vive inteiramente no presente. Ele não sonha com um futuro mais bonito e melhor e não
pensa em um passado perdido. Ele atribui sua existência ao momento e não tenta, de uma das
duas maneiras possíveis para um ser humano, transcender o tempo. O gênio autêntico, por
outro lado, não se torna dependente em seu trabalho das condições temporais concretas de
sua vida, que para o general e o político permanecem sempre a coisa-em-si, aquilo que, em
última análise, lhe dá a direção a seguir. Assim, o grande líder torna-se um fenômeno da
natureza, enquanto o grande filósofo ou artista fica fora da natureza como uma encarnação do
espírito. Assim, as obras do homem de ação geralmente terminam com sua morte, se não mais
cedo e nunca muito mais tarde, não deixando nenhum vestígio além dos relatos da crônica da
época sobre o que foi criado com o único propósito de ser destruído. O líder não cria obras
que expressem os valores atemporais e eternos com tremenda visibilidade por todos os
milênios: pois esses são os feitos do gênio. Este, e não o primeiro, cria a história, porque não
está preso a ela, mas está fora dela. O indivíduo excepcional tem uma história, o líder é tido
pela história. O indivíduo excepcional cria o tempo, o líder é criado — e morto — por ele.
O grande homem de ciência, se não é ao mesmo tempo um grande filósofo, tem tão pouco
direito ao nome de gênio quanto o grande homem de vontade, a menos que seja chamado
Newton ou Gauß, Lineu ou Darwin, Copérnico ou Galileu. Os homens de ciência não são
universais, pois a ciência lida apenas com uma disciplina ou, na melhor das hipóteses, com
disciplinas. A razão para isso não é, como geralmente se acredita, “especialização progressiva”,
que “torna impossível saber tudo”. Mesmo nos séculos XIX e XX existem estudiosos com
conhecimentos tão surpreendentemente amplos como os de Aristóteles ou Leibniz: lembro-
me de Alexander von Humboldt ou Wilhelm Wundt. A deficiência, ao contrário, está
profundamente enraizada na natureza de toda ciência e cientistas. Tentarei descobrir a
diferença fundamental que existe a esse respeito no capítulo VIII. Entretanto, já se pode
admitir que o mais ilustre homem de ciência ainda não é um personagem tão abrangente
quanto aqueles filósofos na fronteira extrema do que ainda pode ser chamado de gênio.
(Estou pensando em Schleiermacher, Carlyle, Nietzsche). Que mero cientista poderia sentir
que tem uma compreensão imediata de todos os seres humanos e todas as coisas, ou mesmo
apenas a possibilidade de alcançar tal compreensão dentro e fora de si mesmo? De fato, que
propósito teria o trabalho científico de milênios senão o de substituir esse entendimento
direto? Essa é a razão pela qual todos os cientistas são necessariamente sempre
“especialistas” em áreas específicas. Nem qualquer cientista que não seja filósofo, por maiores
que sejam suas realizações, jamais sabe nada sobre essa vida contínua na qual nada é
esquecido e que distingue o gênio. Isso se deve precisamente à sua falta de universalidade.

Em última análise, as pesquisas de um cientista estão sempre confinadas ao estado de


conhecimento que prevalece em seu próprio tempo: ele recebe um certo número e certos
tipos de experiências, aumenta ou altera esse fundo em menor ou maior medida, e o repassa
sobre. Mas suas realizações também estão sujeitas a serem reduzidas ou ampliadas em muitos
aspectos e, embora continuem a existir como livros em bibliotecas, não são criações eternas
além do alcance de correção em um único ponto. Por outro lado, através das filosofias
famosas e das grandes obras de arte, somos abordados por algo que não pode ser abalado ou
perdido, por uma weltanschauung que não se altera com a marcha dos tempos e que sempre
encontrará adeptos com uma afinidade à individualidade distintiva de seu criador que se
expressa visivelmente nele. Ainda hoje existem platônicos e aristotélicos, spinozistas e
berkeleyanos, tomistas e seguidores de Bruno, mas em nenhum lugar encontramos seguidores
de Galileu ou Hemholtz, de Ptolomeu ou Copérnico. É, portanto, absurdo, e distorce o
significado da palavra, falar de “clássicos da ciência exata” ou “clássicos da pedagogia” da
mesma forma que se fala com razão de filósofos clássicos e artistas clássicos.

O grande filósofo, então, leva o nome de gênio com mérito e honra. Se é o maior
arrependimento do filósofo em toda a eternidade que ele não é um artista, o artista inveja o
filósofo não menos pela dureza e poder de seu pensamento sistemático abstrato. Essa é a
única razão pela qual um filósofo se torna um esteticista, e não é à toa que o artista é exercido
por Prometeu e Fausto, Próspero e Cipriano, o Apóstolo Paulo e “Il Penseroso”.
Conseqüentemente, parece-me, ambos devem ser considerados iguais, e nenhum tem uma
vantagem muito grande sobre o outro.

No entanto, também na filosofia é importante não usar o conceito de gênio tão prodigamente
como é comumente o caso, caso contrário minha exposição seria justamente acusada de ser
tendenciosa contra a “ciência positiva”, que é, obviamente, a última coisa que eu quero, já que
eu teria que considerar tal ataque como sendo dirigido em primeiro lugar contra mim e grande
parte deste trabalho. Não adianta descrever Anaxágoras, Geulincx, Baader ou Emerson como
homens de gênio. Nem a profundidade não original (Angelus Silesius, Philo, Jacobi) nem a
superficialidade original (Comte, Feuerbach, Hume, Mill, Herbart, Locke, Carneades) deveriam
poder obter o direito de serem descritas por esse termo. Hoje a história da arte está tão cheia
das avaliações mais errôneas quanto a história da filosofia; bem diferente da história da
ciência, que está constantemente corrigindo seus próprios resultados e que avalia os
fenômenos de acordo com a extensão dessas correções. A história da ciência dispensa a
biografia de seus protagonistas mais valorosos; seu objetivo é um sistema de experiência
supra-individual do qual o indivíduo desapareceu. A devoção à ciência é, portanto, a maior
renúncia: pois, ao fazê-lo, o indivíduo como tal renuncia à eternidade.

Notas:

1 - Nota do tradutor: ambos os verbos significam “aviso”, mas “merken” também pode
significar “lembrar” ou “memorizar”.

2 - Que, no entanto, não têm nada a ver com talento

3 - Termo cunhado pelo Dr. H. Swoboda em Viena.

4 - Por outro lado, o momento de gênio, psicologicamente falando, é muito significativamente


separado do momento sem gênio, mesmo em uma mesma pessoa.

5 - Arrisco-me também a lembrar ao leitor com que frequência os cientistas puros começam a
se preocupar com problemas religiosos e metafísicos pouco antes de sua morte: Newton,
Gauß, Riemann, Wilhelm Weber.

6 - Muitas vezes ficamos surpresos ao ver como as pessoas de natureza comum, na verdade
comum, não têm medo algum da morte. Mas isso demonstra claramente que não é o medo da
morte que cria o desejo de imortalidade, mas o desejo de imortalidade que cria o medo da
morte.

7 - No entanto, apresso-me a pedir perdão aos bons espíritos de Bacon por esta justaposição.

8 - Eles são brevemente discutidos no capítulo XIII.

9 - P. 201.

VI — Memória, Lógica, Ética


O título que dei a este capítulo corre o risco imediato de ser fácil e gravemente mal
interpretado. Julgado por ela, o autor poderia parecer sustentar a visão de que as valorações
lógicas e éticas são exclusivamente objetos da filosofia empírica, ou fenômenos psíquicos
como sensação e sentimento, e que lógica e ética, portanto, são disciplinas especiais ou
subseções da psicologia e pode ser explicado em termos e dentro da psicologia.

Declaro imediatamente e sem reservas que considero essa visão — “psicologismo” —


totalmente errada e perniciosa: errada porque tal empreendimento nunca pode ter sucesso,
como veremos; pernicioso porque destrói não tanto a lógica e a ética, nas quais dificilmente
incide, mas a própria psicologia. Excluir a lógica e a ética do fundamento da psicologia, e
relegá-las a um apêndice desta última, é o correlato da hipertrofia do sensacionalismo e, junto
com ele, é responsável por tudo o que hoje se apresenta como “psicologia empírica”: aquela
pilha de ossos mortos que nenhuma sensibilidade e diligência pode inspirar com a vida e na
qual, acima de tudo, nenhuma experiência real pode ser reconhecida. Assim, no que diz
respeito às infelizes tentativas de colocar a lógica e a ética, como o delicado filho mais novo da
vida psíquica, no topo de um edifício psicológico hierárquico, ligado por qualquer tipo de
argamassa, não hesito ao menos em opor Brentano e sua escola (Stumpf, Meinong, Höfler,
Ehrenfels), assim como T. Lipps e G. Heymans e as opiniões correlatas de Mach e Avenarius, e
juntar-se, por princípio, àquela outra direção que hoje é defendida por Windelband, Cohen ,
Natorp, F. J. Schmidt, e mais notavelmente Husserl (que era ele próprio inicialmente um
psicólogo, mas desde então se tornou mais firmemente convencido da insustentabilidade
dessa posição). É a direção que afirma e é capaz de sustentar o pensamento crítico
transcendental de Kant contra o método psicológico e genético de Hume.

No entanto, o presente estudo não se preocupa com as normas supraindividuais de ação e


pensamento geralmente válidas e as condições do conhecimento. Tanto em seu ponto de
partida quanto em seu objetivo, ela tenta identificar diferenças entre os seres humanos, ao
invés de afirmar ser válida para quaisquer seres (mesmo os “queridos anjinhos” no céu), como
fazem os princípios básicos da filosofia de Kant. Por isso poderia, e devia mesmo ser
psicológico (não psicológico) até agora e continuará na mesma linha, embora não hesite,
quando necessário, em tentar uma reflexão formal e assinalar que aqui e ali só o método
lógico, crítico, transcendental é garantido.

A justificativa para o título deste capítulo é um pouco diferente. Minha investigação no


capítulo anterior, que foi tão trabalhosa porque teve que ser conduzida de uma maneira
inteiramente nova, demonstrou que a memória humana tem uma estreita relação com
algumas coisas com as quais aparentemente não foi considerada digna de ser relacionada.
Tempo, valor, gênio, imortalidade — minha investigação foi capaz de mostrar que tudo isso
tinha uma conexão notável com a memória, da qual nem se suspeitava de antemão. Deve
haver uma razão mais profunda para a quase completa ausência de tais indicações. Parece ser
a inadequação e o desleixo de que as teorias da memória têm sido repetidamente culpadas.

Aqui somos atingidos pela primeira vez por uma teoria que foi fundada já em meados do
século XVIII por Charles Bonnet e que ganhou impulso no último terço do século XIX, em
particular por Ewald Hering (e E. Mach). Essa teoria via a memória humana como nada mais do
que uma “função geral da matéria organizada”, ou seja, a capacidade de reagir de maneira
diferente, mais fácil e mais rápida a novos estímulos que, até certo ponto, se assemelham a
estímulos anteriores do que a uma irritação da primeira vez. Sustenta que os fenômenos da
memória humana não ultrapassam a capacidade de prática encontrada nos seres vivos, e
considera a memória como instância de adaptação ao modelo lamarckiano. Há certamente
algo em comum entre a memória humana e esses fatos, por exemplo, uma maior
excitabilidade dos reflexos resultante de uma repetição frequente de estímulos. O elemento
idêntico está no fato de que a primeira impressão continua a ter efeito além do momento, e o
capítulo XII retornará à razão mais profunda dessa afinidade. Mas há uma grande diferença
entre o fortalecimento de um músculo pela habituação a contrações repetidas ou a adaptação
de um comedor de arsênico ou morfinista a quantidades cada vez maiores do veneno, por um
lado, e a lembrança de alguém de suas experiências anteriores, por outro. No primeiro caso só
é possível reconhecer traços do velho no novo, enquanto no segundo as situações vividas
anteriormente emergem na consciência, inteiramente em sua forma antiga, como eles
mesmos eram, dotados de todas as suas características individuais e são não apenas
acostumadas a ter um efeito posterior no novo momento por meio de um resíduo. Considerar
os dois fenômenos como idênticos seria tão absurdo que posso dispensar qualquer discussão
adicional dessa visão biológica geral.

A teoria da associação como teoria da memória está ligada historicamente à hipótese


fisiológica através de Hartley e factualmente através do conceito de habituação. Ela deriva
toda a memória da ligação mecânica de idéias de acordo com uma a quatro leis. Ao fazê-lo,
ignora o fato de que a memória (a memória contínua do ser humano) é basicamente uma
manifestação da vontade. Se eu realmente quiser, posso me lembrar de coisas, por exemplo,
apesar de estar com sono, desde que esteja realmente determinado a suprimir minha
sonolência. Sob a hipnose, através da qual se pode conseguir a lembrança de qualquer coisa
do passado, a vontade de um estranho substitui a vontade muito fraca do sujeito, provando
novamente que é a vontade que busca as associações apropriadas e que toda associação é
realizada por meio da apercepção mais profunda. Aqui tive que antecipar uma seção posterior,
na qual tentarei esclarecer a relação entre a psicologia da associação e a psicologia da
apercepção, e avaliar a validade de ambas.

Uma terceira confusão, que — apesar das objeções tão acertadamente levantadas mais ou
menos na mesma época por Avenarius e, em particular, por Høffding — ainda confunde
memória com reconhecimento, está intimamente ligada à psicologia da associação, que
primeiro rompe a vida da psique e então acredita que será capaz de juntá-lo novamente em
uma dança dos fragmentos de mãos dadas. O reconhecimento de um objeto não precisa de
modo algum se basear na reprodução isolada de uma impressão anterior, embora em alguns
casos a nova impressão pareça ter a tendência de despertar imediatamente a mais antiga.
Mas, além disso, há um reconhecimento direto que ocorre pelo menos com a mesma
frequência. Nesse caso, a nova sensação não se afasta de si mesma como se estivesse ligada a
outra coisa por uma chave, mas o que foi visto, ouvido etc. apenas aparece em uma coloração
específica (James diria “tinge”[coloração]), com o “personagem” que Avenarius chama de
“notal” e Høffding “a qualidade da familiaridade”. Para um homem que retorna à sua terra
natal, cada centímetro da paisagem parece “familiar”, mesmo que ele não consiga mais dar
nome a nada, tenha dificuldade em se orientar e não se lembre de nenhum dia específico em
que caminhou por lá. Uma música pode “soar familiar” para mim sem que eu saiba quando e
onde a ouvi. Aqui, o “caráter” (no sentido de Avenarius) de familiaridade, de ser intimamente
conhecido etc., paira acima da própria impressão sensorial, por assim dizer. A análise não sabe
nada sobre associações e sua “fusão” com minha nova sensação que, segundo uma pseudo-
psicologia presunçosa, deveria criar esse sentimento imediato em primeiro lugar, e é
perfeitamente capaz de distinguir entre esses casos e aqueles outros em que a experiência
mais antiga de fato começa a ser fraca e quase imperceptivelmente associada (na forma
hênida).

Essa distinção também precisa ser feita na psicologia do indivíduo. A consciência de um


passado ininterrupto de um indivíduo superior é tão continuamente viva que se, por exemplo,
ele encontra um conhecido na rua, ele imediatamente reproduzirá seu último encontro como
uma experiência independente, enquanto em um indivíduo menos dotado o simples senso de
familiaridade que torna o reconhecimento possível, muitas vezes aparece por conta própria,
mesmo que ele pudesse recordar facilmente o encontro anterior em detalhes.

Se, em conclusão, perguntarmos se algum organismo, além dos humanos, também possui a
capacidade — que deve ser distinguida de qualquer coisa semelhante — de reviver momentos
anteriores de suas vidas em sua totalidade, essa pergunta provavelmente deve ser respondida
negativamente. Os animais não seriam capazes de permanecer imóveis e quietos no mesmo
local por horas, como fazem, se pudessem recordar sua vida passada ou antecipar um futuro
em seus pensamentos. Os animais têm qualidades de familiaridade e sentimentos de
expectativa (o cão saudando o retorno de seu dono após vinte anos de ausência, os porcos em
frente ao portão do açougue, a égua no cio sendo levada para ser coberta), mas eles não têm
lembrança nem esperança. São capazes de reconhecimento (com a ajuda do “notal”), mas não
têm memória.

Se a memória tem assim demonstrado ser uma qualidade especial que não se confunde com
as áreas inferiores da vida psíquica, e se além disso parecer ser uma posse exclusivamente
humana, não será de estranhar que esteja ligada a coisas superiores, como os conceitos de
valor e tempo; o desejo de imortalidade, que não se encontra em nenhum animal; e
genialidade, o que só é possível para os humanos. E se há um conceito integrado do ser
humano, uma essência mais profunda da humanidade manifestada em todas as qualidades
específicas do indivíduo humano, então será preciso esperar os fenômenos lógicos e éticos —
que, como a memória, são mais provavelmente ausente em outros seres — estar conectado
com a memória em algum momento. Agora devo rastrear esse relacionamento.

Para este fim, posso partir do fato bem conhecido de que os mentirosos têm memória ruim.
Sabe-se que os “mentirosos patológicos” quase não têm “memória”. Voltarei ao mentiroso
masculino mais tarde, mas ele não é a regra entre os homens. Por outro lado, considerando o
que foi dito anteriormente sobre a memória das mulheres, as muitas advertências sobre a
falsidade da Mulher, expressas em provérbios e contos, na literatura e em ditos populares,
podem ser justapostas à falta de memória nos homens mentirosos. É claro que qualquer ser
cuja memória é tão mínima que sua lembrança do que disse, fez e sofreu em uma ocasião
anterior carrega o mais baixo grau de consciência está fadado a mentir facilmente, se tiver o
dom da fala; e um indivíduo desse tipo, que não está plena e intensamente consciente do
verdadeiro evento, achará difícil resistir ao impulso de mentir quando surgir a necessidade de
alcançar algum objetivo prático. Esta tentação deve afirmar-se com ainda mais força se a
memória do ser em questão não for daquela natureza contínua que só os homens conhecem;
se este ser, como W, vive apenas em momentos, por assim dizer, de forma discreta,
descontínua, incoerente, absorvido pelos acontecimentos temporais em vez de se elevar
acima deles, ou pelo menos elevar a passagem do tempo a um problema; se o ser em questão
não relaciona, como M, todas as suas experiências a um portador integrado que as toma para
si; se falta um “centro” de apercepção, ao qual todo o passado é atribuído de forma integrada;
se esse ser não se sente e não sabe ser um e o mesmo em todas as situações de sua vida.
Provavelmente acontece a todo homem que de vez em quando ele “não entende” a si mesmo.
De fato, muitos homens, se olham para o passado — e isso não deve estar relacionado com os
fenômenos da periodicidade psíquica [1] — acham difícil, via de regra, substituir sua
personalidade atual pelo portador de suas experiências anteriores e são incapazes de
compreender como eles poderiam pensar ou fazer isso ou aquilo naquele momento. No
entanto, eles sentem e sabem muito bem que pensaram e fizeram essas coisas, e não têm a
menor dúvida sobre isso. A Mulher Genuína carece totalmente desse sentido de identidade
em todas as situações de sua vida, pois sua memória, mesmo que seja visivelmente boa, como
acontece em casos isolados, é sempre desprovida de qualquer continuidade. No homem, que
muitas vezes não compreende seu eu passado, o sentido de unidade se manifesta no desejo
de compreender a si mesmo, e imanente a esse desejo é a presunção de que ele sempre foi
um e o mesmo, apesar de não compreender ele mesmo agora. As mulheres, olhando para trás
em sua vida anterior, nunca se entendem e não têm desejo de se entender, como pode ser
visto imediatamente pelo escasso interesse que demonstram pelas palavras de um homem
que lhes diz algo sobre elas. A mulher não está interessada em si mesma — é por isso que não
há psicólogas e não há psicologia da mulher por uma mulher — e ela seria completamente
incapaz de compreender os esforços desesperados e genuinamente masculinos do homem
para interpretar seu próprio passado como uma sequência lógica de eventos contínuos,
causalmente ligados, totalmente coerentes, e estabelecer uma conexão entre o início, o meio
e o fim de sua vida individual.

A partir daqui é possível construir uma ponte para a lógica por meio de uma passagem de
fronteira. Um ser como W, Mulher absoluta, que não tem consciência de permanecer idêntico
a si mesmo em momentos sucessivos no tempo, também não teria evidência de que o objeto
de seus pensamentos permanece idêntico em momentos diferentes: pois, se ambas as partes
estão sujeitas a mudanças, não há, por assim dizer, nenhum sistema absoluto de coordenadas
com o qual a mudança possa estar relacionada e somente através do qual a mudança possa ser
notada. De fato, um ser cuja memória não chegou nem mesmo o suficiente para lhe dar a
possibilidade psicológica de julgar que um objeto ou uma coisa permaneceu idêntico a si
mesmo apesar da passagem do tempo, e permitir-lhe, por exemplo, entrar, fixar e usar uma
dada quantidade matemática como a mesma em um cálculo demorado — tal ser, no caso
extremo, também não seria capaz de usar sua memória para superar o tempo supostamente
infinitesimal que é (psicologicamente) necessário em qualquer caso para dizer que A é ainda A
no momento seguinte, isto é, para fazer o julgamento da identidade A = A, ou para pronunciar
o princípio de contradição, que exige que um A não deve desaparecer imediatamente da vista
do pensador, que de outra forma seria incapaz de realmente distinguir A de não-A, qual não é
A, e que o pensador não pode imaginar ao mesmo tempo devido à estreiteza da consciência.

Esta não é uma mera piada intelectual, nenhum sofisma malicioso da matemática, nenhuma
conclusão surpreendente de premissas dissimuladas. Certamente — isto deve ser afirmado
antes da seguinte investigação para responder a possíveis objeções — o julgamento de
identidade sempre se refere a conceitos e nunca a sensações ou complexos de sensações, e
conceitos como conceitos lógicos são atemporais: eles mantêm sua constância quer ou não eu,
como sujeito psicológico, penso neles como constantes. No entanto, um ser humano nunca
pensa em um conceito como um conceito puramente lógico, porque ele não é um ser
puramente lógico, mas também psicológico, um ser “afetado pelas condições da
sensualidade”. Em vez disso, ele só pode pensar em uma ideia geral (uma ideia “típica”,
“conotativa”, “representativa”) que evolui de suas experiências individuais através da extinção
mútua de diferenças e intensificação de semelhanças, mas que pode, no entanto, adquirir o
caráter abstrato de conceitualidade e miraculosamente são postos em prática nesse sentido.
Portanto, ele também deve ter a capacidade de manter e preservar a ideia com a qual pensa o
conceito abstrato de fato de maneira concreta: mas essa capacidade só lhe é garantida pela
memória. Se, então, lhe faltasse memória, também seria privado da capacidade de pensar
logicamente, a capacidade, por assim dizer, que só se encarna através de um meio psicológico.

Assim, provei conclusivamente que a extinção da memória é acompanhada pela extinção da


capacidade de realizar as funções lógicas. Isso não afeta as proposições da lógica: apenas
demonstra que o poder de as aplicar está vinculado a essa condição. A proposição A=A tem
sempre uma ligação psicológica com o tempo, na medida em que só pode ser enunciada em
contraste com o tempo: At1=At2. Logicamente, a proposição não contém essa conexão, e mais
tarde descobriremos por que, em termos puramente lógicos, como juízo específico, ela não
tem um significado específico e precisa tanto dessa folha psicológica. Em termos psicológicos,
portanto, esse julgamento só pode ser feito em relação ao tempo e, na verdade, acaba sendo a
negação do tempo.

No entanto, demonstrei anteriormente que a memória constante é a superação do tempo e,


portanto, a pré-condição psicológica da concepção do tempo. Portanto, o fato da memória
contínua apresenta-se como a expressão psicológica do princípio lógico da identidade.[2] A
Mulher Absoluta carece de uma memória contínua e, portanto, essa proposição não pode ser
o axioma de seu pensamento. Para a Mulher absoluta o principium identitatis (e a
contradictionis e exclusi tertii) não existe.

Mas não são apenas esses três princípios que estão mais intimamente ligados à memória:
assim é a quarta lei do pensamento lógico, o princípio da razão suficiente, que exige uma razão
para todo julgamento, uma razão que revelará a necessidade do julgamento a todas as pessoas
pensantes.

O princípio de razão suficiente é o nervo vital, o fundamento do silogismo. Psicologicamente,


porém, as premissas de uma conclusão são sempre juízos anteriores, que precedem a
conclusão no tempo e que devem ser captados pelo pensador, assim como os conceitos são,
por assim dizer, protegidos pelos princípios de identidade e contradição. As razões de um ser
humano devem ser sempre buscadas em seu passado. É por isso que a máxima da
continuidade, que domina inteiramente o pensamento humano, está tão intimamente ligada à
causalidade. Sempre que o princípio da razão suficiente entra em vigor psicologicamente, ele
requer uma memória contínua que preserve todas as identidades. Como W não conhece esse
tipo de memória nem qualquer outra continuidade, o principium rationis suffiicientis não
existe para ela.

Portanto, é correto dizer que a Mulher não tem lógica.

Georg Simmel descreveu esse velho insight como insustentável porque as mulheres eram
muitas vezes capazes da consistência mais extrema e mais rigorosa ao tirar conclusões. A
mulher pode tirar conclusões implacáveis em um caso concreto em que o considere
apropriado e imperativo para alcançar algum propósito, mas isso não prova que ela seja capaz
de se relacionar com o princípio da razão suficiente; nem o fato de ela repetir com tanta
teimosia a mesma coisa, e continuar voltando à sua primeira afirmação muito depois de
refutada, prova que ela é capaz de se relacionar com o princípio de identidade. A questão é se
reconhecemos ou não os axiomas lógicos como critérios de validade do que se pensa e como
juízes do que se diz, se os tornamos o princípio orientador constante e a norma de nosso
julgamento. Uma mulher nunca percebe que deve ser dada uma razão para tudo; como ela
não tem continuidade, ela não sente desejo de um suporte lógico de tudo o que é pensado: daí
a credulidade de todas as mulheres. Em casos isolados, eles podem ser consistentes, mas
nesses casos a lógica não é seu critério, mas sua ferramenta, não um juiz, mas geralmente um
carrasco. Por outro lado, se uma mulher expressasse uma opinião e um homem fosse estúpido
o suficiente para levá-la a sério e exigir uma prova dela, ela consideraria tal pedido como
irritante e cansativo, como algo dirigido contra sua natureza. O homem sente-se
envergonhado de si mesmo e culpado, se omitiu dar um motivo para uma ideia, quer a tenha
ou não expressado, porque se sente na obrigação de respeitar a norma lógica que colocou
acima de si de uma vez por todas. Uma mulher se sente indignada com a imposição de ter que
tornar seu pensamento totalmente dependente da lógica. Ela não tem consciência intelectual.
No caso dela, pode-se falar de “insanidade lógica”.
Se realmente testássemos a logicidade da fala feminina (algo que todos os homens tendem a
evitar, demonstrando por esse simples fato seu desprezo pela lógica feminina), o erro mais
comum seria o quaternio terminorum, o deslocamento que surge da incapacidade de se ater a
ideias definidas e de se relacionar com o princípio de identidade. A mulher não percebe por si
mesma que deve aderir a este princípio, e não é o critério supremo de seus julgamentos. O
homem sente uma obrigação com a lógica, a mulher não. Mas nada mais importa, pois só esse
senso de obrigação pode garantir que uma pessoa se esforce para sempre para pensar
logicamente. Talvez o pensamento mais profundo já proferido por Descartes — que é
provavelmente a razão pela qual foi tão pouco compreendido e na maioria das vezes
representado como uma doutrina perniciosamente falsa — é que todo erro é culpa.

A fonte de todos os erros na vida, no entanto, também é invariavelmente a falta de memória.


Assim, tanto a lógica como a ética, que convergem na exigência da verdade e coincidem no
valor supremo da verdade, estão novamente ligadas à memória. E aqui nos ocorre que Platão
não estava tão errado quando vinculou o discernimento à lembrança. A memória não é um ato
lógico e ético, mas pelo menos um fenômeno lógico e ético. Por exemplo, um homem que teve
uma sensação verdadeiramente profunda sente que está fazendo algo errado se pensar em
algo bem diferente meia hora depois, mesmo que seja forçado a fazê-lo por uma causa
externa. O homem se considera inescrupuloso e imoral se achar que não pensou em nenhum
ponto de sua vida por muito tempo. Além disso, a memória é moral pela simples razão de que
só ela torna possível o remorso. Todo esquecimento, por outro lado, é em si mesmo imoral. É
por isso que a reverência também é um preceito moral: é um dever não esquecer nada; e só
por isso deve-se lembrar em particular dos mortos. Pela mesma razão, o homem, motivado
pela lógica e pela ética em igual medida, também se esforça para aplicar a lógica ao seu
passado e organizar todos os seus pontos em uma unidade.

Assim, como que de um só golpe, chegamos à profunda conexão entre lógica e ética, que
Sócrates e Platão supuseram e que Kant e Fichte tiveram que redescobrir, apenas para se
tornar mais uma vez negligenciados e inteiramente perdidos para os vivos.

Um ser que não entende ou reconhece que A e não-A se excluem mutuamente será impedido
de mentir por nada; ou melhor, para tal ser o conceito de mentira simplesmente não existe
porque falta a medida fornecida pelo contrário, a verdade. Se tal ser, no entanto, tem o dom
da linguagem, pode mentir sem conhecê-lo, até mesmo sem ter a capacidade de perceber que
está mentindo, porque lhe falta o critério da verdade. “Veritas norma sui et falsi est[a verdade
é a norma do eu e a falsidade]”. Não há nada mais devastador para um homem do que
perguntar a uma mulher que ele descobriu estar mentindo: “Por que você está mentindo?” e
então depois perceber que ela não entende nada da pergunta dele e ou fica boquiaberta para
ele sem entender ou tenta acalmá-lo com um sorriso — ou até começa a chorar.

Pois só com memória o problema não se resolve. Mentir também é bastante comum entre os
homens. E é possível mentir apesar de lembrar dos fatos verdadeiros, que são substituídos por
outra coisa para algum propósito. De fato, apenas uma pessoa que falsifica os fatos, apesar de
seu melhor conhecimento e consciência, pode ser justificadamente considerada a mentir. Uma
pessoa deve estar ciente da ideia de verdade como o valor supremo tanto da lógica quanto da
ética para tornar possível falar de uma supressão desse valor em favor de alguns motivos
ulteriores. Onde esta consciência está ausente, não se pode falar de erro e mentira, mas no
máximo de desorientação e falsidade; não de ser antimoral, mas apenas amoral. Assim a
Mulher é amoral.
Essa total falta de compreensão do valor da verdade em si deve, portanto, ser mais profunda.
Uma vez que o homem também mente, ou, na verdade, somente o homem realmente mente,
a exigência de verdade, o desejo de verdade, o verdadeiro fenômeno básico da ética e da
lógica, não pode ser derivado, mas está apenas intimamente ligado à memória contínua.

Aquilo que permite a um ser humano, um homem, relacionar-se sinceramente com a ideia de
verdade, e que por isso é o único capaz de impedi-lo de mentir, só pode ser algo independente
de todos os tempos, algo totalmente imutável, algo que postula a velha ação no momento
novo como não menos real do que era no momento anterior, porque ele permaneceu ele
mesmo e não permite que o fato de ter realizado aquele ato dessa maneira seja alterado, nem
deseja alterá-lo. Só pode ser a mesma coisa que fornece um ponto de referência para todas as
experiências e, assim, cria uma existência contínua em primeiro lugar. É a mesma coisa que
leva um homem a um senso de responsabilidade por seus próprios atos e o faz se esforçar
para ser capaz de assumir a responsabilidade por todos os seus atos, tanto os mais recentes
quanto os mais antigos. É isso que produz o fenômeno do remorso e do sentimento de culpa, e
o que faz o homem relacionar o passado com algo que é eternamente o mesmo e, portanto,
eternamente presente. A relação assim estabelecida é muito mais sutil e abrangente do que
jamais poderia ser alcançada pelo julgamento público e pelas normas da sociedade, porque é
executada no indivíduo pelo próprio indivíduo, independentemente de qualquer coisa social. É
por isso que toda a psicologia moral que tenta basear a moralidade na coexistência social dos
humanos e traçar a origem da moralidade de volta a essa coexistência é fundamentalmente
errada e falsa. A sociedade conhece o conceito de crime, mas não o de pecado; impõe a
punição sem tentar trazer remorso. A mentira é processada pelo código penal apenas em sua
forma solene e publicamente danosa de perjúrio, e o erro nunca foi listado entre os crimes
contra a lei escrita. Portanto, a ética social, que teme que, com qualquer tipo de individualismo
ético, um semelhante receba menos do que seu quinhão, e que por isso fala dos deveres do
indivíduo para com a sociedade e todos os 1.5 milhões de seres humanos vivos, não como
acredita, amplia o escopo da moralidade, mas a restringe de forma inadmissível e condenável.

O que é então essa coisa além do tempo e da mudança, esse “centro de apercepção”?

“Não pode ser nada menos do que o que eleva o ser humano acima de si mesmo (como parte
do mundo sensível), o que o liga a uma ordem de coisas que só o entendimento pode pensar e
que, ao mesmo tempo, tem sob ela todo o mundo sensível. … Não é nada mais do que
personalidade.”

Um eu “inteligível”, diferente de qualquer consciência empírica, foi definido como origem e


legislador da moralidade pelo livro mais sublime do mundo, a Crítica da Razão Prática, do qual
essas palavras são tiradas.

Isso traz minha investigação para o problema do assunto, que é seu próximo tópico.

Notas:
1 - Que são conhecidas de um indivíduo que sempre se entende, bem como de quem
nunca o faz.

2 - Com isso espero também ter justificado a ousadia da minha transição totalmente nova
da memória para a lógica.
VII — Lógica, Ética e o Eu
É do conhecimento geral que David Hume criticou o conceito do eu como um mero “pacote”
de diferentes “percepções” em constante fluxo e movimento. Não importa o quanto ele
pensasse que isso comprometia o eu, ele apresenta sua visão em termos relativamente
moderados e cobre-se impecavelmente por sua escolha de palavras. Ele declara que alguns
metafísicos, que acreditam ter um eu diferente, devem ser ignorados: de sua parte, ele tem
certeza de que não tem nenhum, e supõe (naturalmente, tomando cuidado para não falar
sobre esses poucos excêntricos) que o o resto da humanidade também não passa de feixes. É
assim que o homem do mundo se expressa. O próximo capítulo dirá como sua ironia repercute
nele. A razão pela qual se tornou tão famosa é a superestimação geral de Hume, pela qual
Kant é o culpado. Hume foi um excelente psicólogo empírico, mas não pode de modo algum
ser chamado de gênio, como costuma ser. Não é preciso muito para ser o maior filósofo inglês,
mas Hume não tem nenhuma pretensão imperiosa de ser descrito mesmo assim. Kant (apesar
dos “paralogismos”) rejeitou o espinosismo como limine porque considerava os seres
humanos não como substâncias, mas como meros “acidentes”, e pensava que o havia
demolido junto com essa ideia “ilógica” subjacente. Portanto, para dizer o mínimo, não
gostaria de jurar que ele não teria atenuado significativamente seus elogios ao inglês, se ele
também tivesse conhecido seu Tratado, e não apenas seu inquérito posterior, no qual, é claro,
Hume não incluiu sua crítica de si mesmo.

Lichtenberg, que foi à luta contra o eu depois de Hume, foi consideravelmente mais ousado
que Hume. Ele é o filósofo da impessoalidade e, sobriamente, altera a frase “eu penso” pela
factual “It thinks[pensa]”; assim, o eu, para ele, é realmente uma invenção dos gramáticos.
Aliás, Hume o havia antecipado a esse respeito ao declarar, ao final de suas dissertações, que
todos os argumentos sobre a identidade da pessoa eram uma mera batalha de palavras.

Em tempos mais recentes, E. Mach interpretou o universo como uma massa coerente e os eus
como pontos em que a massa coerente tem maior consistência. Segundo ele, a única realidade
reside nas percepções, que se coadunam fortemente dentro de um indivíduo, mas mais
fracamente com as de outro indivíduo, que se distingue do primeiro justamente por isso. O
que importa, ele argumenta, é o conteúdo, que também é preservado em outros, com exceção
das memórias pessoais sem valor [sic]. O eu, afirma ele, não é uma unidade real, mas apenas
uma unidade prática, e é irrecuperável: portanto, podemos (de bom grado) passar sem ele. No
entanto, ele não vê nada de repreensível em se comportar de vez em quando como se
tivéssemos um eu, particularmente para os propósitos da luta darwiniana pela existência.

É estranho que um pesquisador como Mach — que não só alcançou feitos excepcionais como
historiador de sua ciência particular e como crítico de seus conceitos, mas também é
extremamente conhecedor de assuntos biológicos e teve um efeito estimulante, tanto direto e
indiretos, em sua teoria — não devem levar em conta o fato de que todo ser orgânico é
indivisível desde o início, ou seja, algum tipo de átomo ou mônada (cf. parte 1, capítulo III, p.
38). Afinal, a principal diferença entre matéria orgânica e inorgânica é que a primeira é sempre
diferenciada em partes heterogêneas que são dependentes umas das outras, enquanto
mesmo um cristal totalmente formado é totalmente homogêneo. Portanto, deve-se pelo
menos ser considerado como uma possibilidade de que o próprio fenômeno da individuação, o
fato de que os seres orgânicos geralmente não são coerentes como os gêmeos siameses,
também tenha implicações psíquicas e provavelmente tenha maiores consequências no reino
psíquico do que o eu machiano, aquela mera sala de espera para percepções.

Há razões para acreditar que tal correlato psíquico existe mesmo entre os animais. Tudo o que
um animal sente e percebe provavelmente tem, para cada indivíduo, uma nota ou coloração
diferente, que não é apenas peculiar à sua classe, gênero e espécie, sua raça e família, mas que
difere em cada indivíduo de todos os outros... O equivalente fisiológico dessa especificidade de
todas as percepções e sentimentos de cada animal em particular é o idioplasma, e em bases
análogas às da teoria do idioplasma (cf. parte 1, capítulo II, p. 20 e parte 2, capítulo I, p. 72)
devemos supor que também entre os animais existe um caráter empírico. O caçador, o criador
e o guardião, que lidam com cães, cavalos e macacos respectivamente, confirmarão não
apenas a singularidade, mas também a constância no comportamento de cada animal. Assim,
neste momento já é extremamente provável a existência de algo que vá além de um mero
encontro dos “elementos”.

Embora exista esse correlato psíquico do idioplasma, e os animais certamente tenham uma
natureza peculiar própria, este último ainda não guarda relação com o caráter inteligível, cuja
presença não temos razão de supor em outro ser que não o humano. O caráter inteligível do
ser humano, a individualidade, relaciona-se com o caráter empírico, mera individuação, da
mesma forma que a memória se relaciona com o simples reconhecimento imediato. Em última
análise, estamos lidando com identidade: em ambos os casos, o fundamento é a estrutura, a
forma, a lei, o cosmos, que permanece o mesmo quando os conteúdos mudam. As reflexões
com base nas quais se pode deduzir a existência de tal sujeito numenal, trans-empírico, devem
agora ser brevemente expostas. Eles são o produto da lógica e da ética.

A lógica trata do verdadeiro significado do princípio de identidade (e de contradição; as muitas


controvérsias das quais tomam precedência umas sobre as outras, e qual é a forma mais
correta de sua expressão, não são muito relevantes aqui). A proposição A = A é imediatamente
certa e evidente. Ao mesmo tempo, é o padrão original para a verdade de todas as outras
proposições. Se alguma proposição alguma vez a contradisse — isto é, se em algum momento
um julgamento específico contivesse um predicado que fizesse uma afirmação sobre um
sujeito que contradissesse o conceito desse sujeito — nós a consideraríamos falsa; e na
reflexão, a proposição A = A emergiria finalmente como a máxima de nosso julgamento. É o
princípio do verdadeiro e do falso, e quem, como tantas vezes acontece, o considera uma
tautologia, que nada diz e que não faz avançar o nosso pensamento, tem toda a razão, mas
não compreendeu a natureza da proposição. Isso se aplica a Hegel e a quase todos os
empiristas que vieram depois — nem é o único ponto de contato entre esses opostos
aparentemente irreconciliáveis. A = A, o princípio de toda verdade, não pode ser uma verdade
específica. Quem acha o princípio da identidade, ou o princípio da contradição, desprovido de
sentido, tem a si mesmo a culpa. Ele esperava encontrar ideias específicas neles e esperava
aumentar seu fundo de conhecimento positivo. Mas esses princípios em si não são insights,
nem atos específicos de pensamento, mas o padrão aplicado a todos os atos de pensamento.
Isso não pode ser em si um ato de pensamento que possa ser comparado de alguma forma aos
outros. A norma do pensamento não pode ser situada no próprio pensamento. O princípio da
identidade nada acrescenta ao nosso conhecimento. Em vez de aumentar uma fortuna, ele
fornece a base completa para essa fortuna em primeiro lugar. O princípio da identidade ou não
é nada, ou é tudo.

A que se referem o princípio da identidade e o princípio da contradição? Acredita-se


geralmente que eles se referem a julgamentos. Sigwart, por exemplo, formula o último apenas
da seguinte forma: “Os dois julgamentos, A é B e A não é B, não podem ser verdadeiros ao
mesmo tempo”. Ele sustenta que o julgamento “um iletrado é instruído” envolve uma
contradição, “porque o predicado ‘douto’ é atribuído a um sujeito que, quando ele foi descrito
pelas palavras de sujeito ‘homem indouto’, foi dito não ser instruído; é, portanto, baseado em
dois julgamentos, X é aprendido e X não é aprendido”, etc. O psicologismo neste raciocínio é
óbvio. Recorre a um juízo que precede no tempo a formação do conceito de homem iletrado.
No entanto, a frase acima — A não é não-A — afirma ser válida, independentemente de haver,
ter havido ou haver quaisquer outros julgamentos. Refere-se ao conceito do homem iletrado.
Ele assegura esse conceito ao excluir todas as características que o contradizem.

Esta é a verdadeira função do princípio de contradição e do princípio de identidade. Eles


constituem a conceitualidade.

É verdade que esta função diz respeito apenas ao conceito lógico e não ao que tem sido
chamado de “conceito psicológico”. Psicologicamente, o conceito é sempre representado por
uma ideia geral concreta; há, no entanto, um sentido em que o elemento de conceitualidade é
imanente a essa ideia. A ideia geral, que representa psicologicamente o conceito e em torno
da qual gira o pensamento conceitual humano, não é o mesmo que o conceito. Por exemplo,
pode ser mais rico (se eu pensar em um triângulo) ou mais pobre (o conceito de leão implica
mais do que minha ideia de leão, enquanto o oposto é verdadeiro no caso do triângulo). O
conceito lógico é o princípio norteador seguido pela atenção quando seleciona apenas
determinados elementos de uma ideia que representa um conceito para o indivíduo. Esses
elementos são precisamente os indicados pelo conceito, e o conceito lógico é a meta e o
desejo do conceito psicológico, a estrela polar para a qual a atenção se dirige ao criar o
substituto concreto do conceito: é a lei que dirige a atenção na escolha.

Certamente não há pensamento que ocorra puramente logicamente e não também


psicologicamente: pois esse seria o milagre. Por definição, apenas a divindade pensa
puramente logicamente. Um ser humano está sempre fadado a pensar tanto psicológica
quanto logicamente, porque ele possui não apenas razão, mas também sensualidade, e
porque seu pensamento procede psicologicamente no tempo, mesmo que vise a resultados
lógicos, isto é, atemporais. No entanto, a logicidade é o padrão sublime aplicado aos processos
de pensamento psicológico do indivíduo, tanto por ele mesmo quanto pelos outros. Quando
duas pessoas discutem algo, elas falam sobre o conceito e não sobre as diferentes ideias
individuais que representam o conceito para qualquer um deles: assim, o conceito é um valor,
pelo qual a ideia individual é medida. Portanto, como a ideia geral surgiu psicologicamente,
não tem nada a ver com a natureza do conceito e não tem nenhum significado para ele. O
conceito não adquire seu caráter lógico — a fonte de sua dignidade e rigor — da experiência,
que sempre mostra formas incertas e que, na melhor das hipóteses, poderia criar ideias gerais
vagas. A absoluta constância e a absoluta não ambiguidade, que não podem derivar da
experiência, são a essência da conceitualidade, essa “arte escondida nas profundezas da alma
humana, cujas verdadeiras operações podemos adivinhar da natureza e desvendar diante de
nossos olhos apenas com dificuldade,” como diz a Crítica da Razão Pura. Essa absoluta
constância e não ambiguidade não se referem a entidades metafísicas: as coisas não são reais
na medida em que participam do conceito, mas suas qualidades, logicamente, são suas
qualidades apenas na medida em que estão contidas no conceito. O conceito é a norma da
essência, não da existência.

Minha justificativa lógica para dizer que uma coisa circular é curva deriva do conceito de
círculo, que contém a curva como característica. Mas definir o conceito como a própria
essência é errado: “essência” aqui é um contraste psicológico ou uma coisa metafísica. E
igualar o conceito à sua definição é proibido pela natureza da definição, pois uma definição só
se refere ao conteúdo do conceito e não à sua extensão; isto é, indica apenas a expressão, e
não o remetido, daquela norma que constitui a natureza da conceitualidade. O conceito como
norma, como norma da essência, não pode ser ele mesmo uma essência: a norma deve ser
outra coisa, e como não é uma essência, só pode ser — não há terceira opção — existência:
nem é uma existência que revela a presença de quaisquer objetos, mas uma existência que
revela o ser de uma função.

Em qualquer debate intelectual entre seres humanos, quando na análise final se faz apelo à
definição, a norma da essência nada mais é do que as proposições A = A ou A ≠ A. O conceito
obtém sua conceitualidade, ou seja, sua constância e sem ambiguidade, pela proposição A = A,
e por nada mais. Os papéis dos axiomas lógicos são distribuídos de tal forma que a
permanente imobilidade e uniformidade do próprio conceito é garantida pelo principium
identitatis, enquanto o principium contradi- tionis o delimita claramente contra todos os
outros conceitos possíveis. Isso prova, pela primeira vez, que a função conceitual pode ser
expressa através dos dois axiomas lógicos supremos, e não é outro senão estes. A proposição
A = A (e A ≠ não-A) é o que torna qualquer conceito possível, é o nervo vital da natureza
conceitual, ou conceitualidade, do conceito.

Se pronuncio a própria proposição, A = A, claramente o significado dessa proposição não é que


um A específico, que existe, ou mesmo que todo A específico, que é realmente experimentado
ou realmente pensado, é igual a si mesmo. O julgamento de identidade não depende se um A
realmente existe, o que obviamente não quer dizer que a proposição não deva ser pensada
por uma pessoa existente; mas a proposição é pensada independentemente de algo ou
alguém existir. Isso significa que, se houver um A (pode ou não haver um, mesmo que talvez
não haja nenhum), A = A é válido em qualquer caso. Assim, uma posição é irrevogavelmente
dada, um ser é posto, a saber, o ser A = A, embora permaneça hipotético se A existe mesmo. A
proposição A = A sustenta, portanto, que algo existe, e essa existência é aquela norma da
essência que se busca. Não pode derivar do conhecimento empírico, de poucas ou quantas
experiências, como Mill acreditava: pois é completamente independente da experiência e é
certamente válido, quer a experiência lhe mostre um A ou não. Esta proposição não foi negada
por ninguém até agora; nem poderia ser negada, porque a própria negação a pressuporia
novamente ao tentar negar algo específico. Como a proposição afirma um ser sem depender
da existência de quaisquer objetos específicos ou dizer algo sobre tal existência, ela só pode
expressar um ser que é diferente do ser de quaisquer objetos reais ou possíveis. Em outras
palavras, ela só pode expressar o ser de algo que, por definição, nunca pode se tornar um
objeto.[1] Assim, a evidência da proposição revelará a existência do sujeito, e esse ser que se
exprime pelo princípio de identidade não está nem no primeiro A nem no segundo A, mas no
signo de identidade, A ≡ A. Essa proposição, então, é idêntica à proposição: eu sou.

Essa dedução difícil, mas inevitável, pode ser explicada mais facilmente em termos
psicológicos. Claramente, se quisermos dizer A = A, se quisermos estabelecer a imutabilidade
do conceito de maneira normativa e mantê-la em oposição aos fenômenos individuais da
experiência em constante mudança, deve haver algo imutável, e isso só pode ser o tema. Se eu
fizesse parte do círculo da mudança, não seria capaz de reconhecer que um A permaneceu o
mesmo. Se eu estivesse constantemente mudando e perdendo minha identidade, se meu eu
estivesse funcionalmente ligado à mudança, eu não teria possibilidade de enfrentar e
reconhecer a mudança. Faltaria-me o sistema mental absoluto de coordenadas, por meio do
qual somente uma identidade poderia ser definida e preservada como tal.

A existência do sujeito não pode ser deduzida: a esse respeito, a crítica de Kant à psicologia
racional está inteiramente correta. Mas é possível demonstrar onde essa existência também
encontra sua expressão rigorosa e inequívoca na lógica; e não há necessidade de retratar o ser
inteligível como uma mera possibilidade lógica, que somente a lei moral pode, no devido
tempo, transformar em certeza, como fez Kant. Fichte estava certo quando também encontrou
uma garantia da existência do eu na lógica pura, na medida em que o eu coincide com o ser
inteligível.

Os axiomas lógicos são o princípio de toda verdade. Eles estabelecem um ser, e é por isso que
o conhecimento se orienta e luta. A lógica é uma lei que deve ser obedecida, e o ser humano
só é completamente ele mesmo quando é completamente lógico; na verdade, ele não existe
até que não seja nada além de lógica, por toda parte e absolutamente. No conhecimento ele
se encontra.

Todo erro é sentido como culpa. Isso implica que o indivíduo não tem que errar. Ele deve
encontrar a verdade: portanto, ele pode encontrá-la. Do dever do conhecimento decorre a
possibilidade do conhecimento, a liberdade de pensamento e a esperança na vitória do
conhecimento. A normatividade da lógica contém a prova de que o pensamento humano é
livre e capaz de atingir seu objetivo.

***

Posso tratar a ética de forma mais sucinta e diferente, pois esta investigação se baseia em toda
a filosofia moral kantiana e, como vimos, as deduções e postulados lógicos precedentes
também foram conduzidos em certa analogia com ela. A natureza mais profunda do homem,
sua essência inteligível, é aquela que não está sujeita à causalidade e que escolhe livremente o
bem ou o mal. Isso sempre se manifesta exatamente da mesma maneira, através do
sentimento de culpa, através do arrependimento. Ninguém até agora conseguiu explicar esses
fatos de maneira diferente: e ninguém pode ser persuadido de que teve que cometer este ou
aquele ato. Também aqui a obrigação atesta a capacidade. Um homem pode estar plenamente
consciente dos fatores causais, dos motivos inferiores, que o puxaram para baixo, e ainda
assim — ou com mais facilidade — ele atribuirá seu comportamento ao seu eu inteligível, que
ele vê como um eu livre que poderia ter agido de forma diferente.

Veracidade, pureza, fidelidade, sinceridade para consigo mesmo: essa é a única ética
concebível. Há apenas deveres para consigo mesmo, deveres do eu empírico para com o eu
inteligível, que aparecem na forma desses dois imperativos que sempre derrotarão o
psicologismo: na forma da lei lógica e da lei moral. As disciplinas normativas, o fato psíquico da
exigência interior que exige muito mais do que qualquer moral burguesa jamais deseja ter —
isso é o que nenhum empirismo jamais poderá explicar adequadamente. O empirismo
encontra seu verdadeiro oposto em um método crítico-transcendental, não em um metafísico-
transcendental, pois toda metafísica é apenas uma espécie de psicologia hipostasiadora,
enquanto a filosofia transcendental é a lógica dos juízos avaliativos. Qualquer empirismo e
ceticismo, qualquer positivismo e relativismo, qualquer psicologismo e qualquer maneira
puramente imanentes de ver as coisas sente instintivamente que sua principal dificuldade
surge da ética e da lógica. Daí as tentativas constantemente renovadas e sempre fúteis de
colocar essas disciplinas em uma base empírica e psicológica; e quase não há nada além de
uma tentativa de testar e provar experimentalmente o principium individuationis que ainda
está faltando.

Lógica e ética são fundamentalmente uma e a mesma coisa — dever para consigo mesmo. Elas
celebram sua união no valor supremo da verdade, que se confronta de um lado com o erro e
de outro com a mentira: a própria verdade, porém, é apenas uma. Qualquer ética só é possível
de acordo com as leis da lógica, e qualquer lógica é ao mesmo tempo uma lei ética. O dever e a
tarefa do homem não é apenas virtude, mas também discernimento, não apenas santidade,
mas também sabedoria: somente os dois juntos fornecem o fundamento para a perfeição.

No entanto, a ética, cujas proposições são optativas, não pode fornecer uma prova
estritamente lógica da existência, como a lógica pode. A ética não é uma exigência lógica no
mesmo sentido em que a lógica é uma exigência ética. A lógica permite que o eu ponha os
olhos em sua plena realização como ser absoluto; por outro lado, é apenas a ética que exige
essa realização. A lógica é absorvida pela ética e se torna seu conteúdo essencial, seu
comando.

Com referência àquela famosa passagem da Crítica da Razão Prática em que Kant introduz o
ser humano como parte do mundo inteligível (“Dever! Sublime e poderoso nome…”), será,
portanto, correto perguntar como Kant pode saber que a lei moral emana da personalidade. A
única resposta que Kant dá é que nenhuma outra origem, digna dela, poderia ser encontrada.
Ele não dá mais nenhuma razão pela qual o imperativo categórico é a lei dada pelo númeno:
no que lhe diz respeito, eles obviamente estão juntos desde o início. Isso é da natureza da
ética. A ética exige que o eu inteligível aja livremente, não adulterado pelas impurezas do eu
empírico. Assim, o mesmo ser que a lógica nos pressagia, cheio de promessas, como algo já
presente de uma forma ou de outra, só pode ser plenamente realizado em sua pureza através
da ética.

A omissão mencionada acima mostra claramente o que a teoria das mônadas, a teoria da
alma, significava para Kant em seu coração. Demonstra como ele sempre se apegou a ela
como a única coisa de valor, e como sua teoria do caráter “inteligível”, que tantas vezes é
confundida com uma nova descoberta ou invenção, ou um meio de informação, da filosofia
kantiana, apenas pretendia identificar os elementos que eram cientificamente sustentáveis.

O único dever que existe é o dever para consigo mesmo: Kant deve ter tido certeza disso em
sua juventude (talvez quando sentiu o impulso de mentir).

Além de algumas afinidades com Kant que podem ser lidas na lenda de Hércules, algumas
passagens de Nietzsche e, mais ainda, de Stirner, apenas Ibsen (em Brand e Peer Gynt)
descobriu, quase independentemente, o princípio da ética kantiana. Ocasionalmente,
encontramos declarações como a epigrama de Hebbel “Mentira e Verdade”:

O que te custa mais, a mentira ou a verdade?


O primeiro te custa a si mesmo, o último, no máximo, a sua felicidade.

ou as palavras mundialmente famosas de Suleika dos Poemas do Ocidente e do Oriente de


Goethe [traduzido por John Whaley (Bern, Nova York, 1998), p. 281]:

Nações, governantes, escravos submetidos,


Todos neste ponto concordam:
A alegria dos seres humanos é aperfeiçoada
Na personalidade.
Cada vida vale a pena a escolha
Se a si mesmo a pessoa não sente falta;
Tudo vale a pena perder
Para continuar como é.

Certamente é verdade que a maioria das pessoas de alguma forma precisa de Jeová. Há muito
poucos — eles são os homens de gênio — cujas vidas são desprovidas de qualquer
heteronomia. Os outros sempre justificam suas ações, seus pensamentos e sua existência, pelo
menos em suas mentes, para outra pessoa, seja um deus judeu pessoal ou um ser humano
amado, respeitado ou temido. Essa é a sua única maneira de agir, formal e externamente, de
acordo com a lei moral.

Kant, cuja vida foi inteiramente autodirigida e independente até o último detalhe, estava tão
convencido de que o ser humano não é responsável por ninguém além de si mesmo que
considerou esse ponto particular de sua doutrina como o mais óbvio e menos aberto a
objeções. E, no entanto, é em parte devido ao silêncio de Kant a esse respeito que sua ética foi
de fato tão pouco compreendida — embora seja o único tipo de ética que é sustentável
precisamente com base na psicologia introspectiva e que não tenta afogar a voz dura e severa
do único indivíduo no barulho dos muitos.

Como se pode inferir de uma passagem de sua Antropologia, houve uma fase na própria vida
de Kant que precedeu o “estabelecimento de um personagem”. Mas houve um momento em
que lhe ocorreu com uma clareza impressionante e deslumbrante: sou responsável apenas por
mim mesmo, não preciso servir a mais ninguém, não posso me esquecer de mim mesmo no
trabalho, estou sozinho, sou livre, sou meu próprio mestre. Esse momento marca o
nascimento da ética kantiana, o ato mais heroico da história mundial.

Duas coisas enchem a mente de admiração e reverência sempre novas e crescentes, quanto
mais frequentemente e com mais firmeza se reflete sobre elas: os céus estrelados acima de
mim e a lei moral dentro de mim. Não preciso procurá-los e apenas conjecturá-los como se
estivessem velados na obscuridade ou na região transcendente além do meu horizonte; Eu os
vejo diante de mim e os conecto imediatamente com a consciência de minha existência. A
primeira parte do lugar que ocupo no mundo externo dos sentidos e estende a conexão em
que estou em uma magnitude ilimitada com mundos sobre mundos e sistemas de sistemas, e
além disso nos tempos ilimitados de seu movimento periódico, seu início e sua duração. A
segunda parte de meu eu invisível, minha personalidade, e me apresenta em um mundo que
tem o verdadeiro infinito, mas que só pode ser descoberto pelo entendimento, e reconheço
que minha conexão com esse mundo (e, portanto, com todos esses mundos visíveis também )
não é meramente contingente, como no primeiro caso, mas universal e necessária. A primeira
visão da incontável multidão de mundos aniquila, por assim dizer, minha importância como
criatura animal, que depois de ter sido por um curto período dotada de força vital (não se sabe
como) deve devolver ao planeta (uma mera partícula no universo) a matéria de onde veio. A
segunda, ao contrário, eleva infinitamente meu valor como inteligência por minha
personalidade, na qual a lei moral me revela uma vida independente da animalidade e mesmo
de todo o mundo sensível, pelo menos na medida em que isso pode ser inferido da
determinação proposital de minha existência por essa lei, uma determinação não restrita às
condições e limites desta vida, mas atingindo o infinito.

Chegada a esta conclusão, compreendemos agora esta Crítica da Razão Prática. O ser humano
está sozinho no universo, em eterna, tremenda solidão.
Ele não tem nenhum propósito fora de si mesmo, nada mais pelo qual viver — ele voou muito
além de querer-ser-escravo, poder-ser-escravo, ter-que-ser-escravo: toda a sociedade humana
desapareceu, toda ética social afundou, muito abaixo dele; ele está sozinho, sozinho.

Mas agora, pela primeira vez, ele é um e todos; e é por isso que ele tem uma lei dentro de si, é
por isso que ele mesmo é toda a lei e nenhuma vontade caprichosa. Ele exige de si mesmo que
obedeça a essa lei dentro de si, a lei de si mesmo, e que não seja outra coisa senão a lei, sem
considerar o que está atrás ou diante dele. Isso é o que é tão horrível e ao mesmo tempo tão
grande: sua obediência ao dever não tem outro propósito. Não há nada acima dele, acima dele
sozinho, acima dele todo-um. Mas ele deve cumprir a exigência inexorável, inegociável, ou
seja, categórica dentro dele. Redenção! ele grita, [2] descanse, apenas descanse do inimigo,
paz, não essa luta sem fim — e ele se assusta: mesmo no desejo de redenção ainda havia
alguma covardia, no “justo” com alma ainda havia alguma deserção, como se ele fosse
pequeno demais para esta batalha. Por quê! ele pergunta, ele grita para o universo — e
envergonha-se; pois ele voltou a desejar a felicidade, o reconhecimento de sua luta, alguém
para recompensá-lo, o outro. O ser humano mais solitário de Kant não ri e não dança, não ruge
e não aplaude: ele não precisa fazer barulho como se o silêncio do universo fosse profundo
demais para ele. Ele não deriva seu dever da falta de sentido de um mundo “acidental”, mas
seu dever, para ele, é o significado do universo. Dizer sim a essa solidão é o elemento
“dionisíaco” em Kant; isso, e nada menos, é moralidade.

Notas:

1. Deve-se notar que essa prova repousa na identificação de qualquer A lógico com o objeto
epistemológico como tal, mas a legitimidade dessa identificação não pode ser demonstrada
por si mesma. Nesta conjuntura, porém, por razões metodológicas, ignorarei o ser como tal, o
único que poderia, a rigor, ser inferido da validade do princípio de identidade. Aliás, essa prova
de um ser além da experiência, um ser independente de qualquer experiência, deveria ter sido
suficiente para refutar o positivismo (que era meu propósito). Que esse ser seja o ser de si não
pode ser explicado puramente logicamente, mas realmente apenas psicologicamente pelo fato
empírico de que a norma lógica não vem ao homem de fora, mas é dada a ele por sua própria
essência mais profunda. Essa é a única razão pela qual o ser absoluto ou o ser do absoluto, tal
como se manifesta na proposição A = A, pode ser equiparado ao ser do eu: o eu absoluto é o
absoluto.

2 - Lamenta Schopenhauer, lamenta Wagner.

VIII — O Problema do Eu e o Gênio


No início, somente o Atman era este mundo na forma de homem.
Ele olhou ao redor; então ele não viu nada além de si mesmo. No início, ele então exclamou:
“Isso eu sou!” Disso surgiu o nome “Eu” — Portanto, ainda hoje, quando alguém é chamado ou
convocado, ele primeiro diz: “Isso eu sou!” e depois disso ele pronuncia os outros nomes que
ele carrega.

— Brihadâranyaka Upanishad

Muitos argumentos sobre princípios em psicologia surgem das diferenças caracterológicas


individuais entre os competidores. Assim, como mencionado anteriormente, a caracterologia
poderia ter um papel importante a desempenhar: enquanto uma pessoa afirma que encontrou
isso em si mesma, e outra que descobriu isso, a caracterologia teria que ensinar por que a
auto-observação do primeiro transforma ser diferente do segundo; ou pelo menos para
mostrar em que outros aspectos as pessoas em questão diferem. Na verdade, não vejo outra
maneira de resolver as questões psicológicas mais controversas em particular. A psicologia é
uma ciência empírica, na qual o geral não precede o particular como acontece nas ciências
normativas supra-individuais da lógica e da ética e, portanto, o ponto de partida na psicologia
deve ser o ser humano individual. Não existe uma psicologia geral empírica, e foi um erro
embarcar nela sem colocar simultaneamente em operação uma psicologia diferencial.

A causa deste miserável estado de coisas é a dupla posição da psicologia entre a filosofia e a
análise das sensações. Não importa de qual das duas áreas os psicólogos vieram, eles sempre
afirmaram que seus próprios resultados eram geralmente válidos. No entanto, sem quaisquer
distinções caracterológicas, pode não ser possível dar uma resposta completa mesmo a
questões fundamentais, como se existe ou não um ato positivo de percepção, uma consciência
espontânea, já nas sensações.

É uma das principais tarefas deste estudo usar a caracterologia para resolver uma pequena
fração dessas anfibolias em relação à psicologia dos sexos. No entanto, os diferentes
tratamentos do problema do Eu surgem não tanto das diferenças psicológicas entre os sexos,
mas, pelo menos inicialmente, se não exclusivamente,[1] das diferenças individuais de
dotação.

A escolha entre Hume e Kant em particular também pode ser feita em termos
caracterológicos, assim como posso escolher, por exemplo, entre duas pessoas, uma das quais
tem a mais alta consideração pelas obras de Makart e Gounod e a outra pelas de Rembrandt e
Beethoven. Inicialmente, distinguirei essas pessoas em termos de seus dotes. Também neste
caso é, portanto, permissível, e de fato necessário, avaliar de forma um tanto desigual os
julgamentos sobre o eu que vêm de duas pessoas dotadas de maneira muito diferente. Não há
indivíduo verdadeiramente excepcional que não esteja convencido da existência do eu: um
indivíduo que nega o eu nunca pode ser verdadeiramente excepcional.[2]

No que se segue, esta tese se mostrará absolutamente convincente, e também será buscada e
encontrada uma explicação para a maior estima que ela tem pelos julgamentos de um gênio.

Não há, e não pode haver, nenhum indivíduo excepcional em cuja vida — geralmente, quanto
mais excepcional ele é, mais cedo (cf. capítulo V) — não chegará um momento em que ele se
torne absolutamente certo de que tem um eu de nível superior.[3] Compare as seguintes
declarações de três homens muito diferentes de extrema genialidade.

Jean Paul, em seu esboço autobiográfico “A True Story from My Life”, relata:

Jamais esquecerei aquilo que ainda não relatei a um ser humano — a experiência interior do
nascimento da autoconsciência, da qual me lembro bem do tempo e do lugar. Eu estava uma
tarde, uma criança muito pequena, na porta da casa, e olhei para os troncos de madeira
empilhados à esquerda, quando, de uma vez, aquela consciência interior que eu sou um Eu
veio como um relâmpago do céu, e permaneceu desde então. Então minha existência foi
consciente de si mesma, e para sempre. Os enganos da memória são aqui dificilmente
imagináveis, pois nenhum acontecimento exterior poderia se misturar com uma consciência
tão escondida no santuário sagrado do homem, cuja novidade por si só deu permanência às
circunstâncias cotidianas que a acompanharam.
Novalis claramente tem a mesma experiência em mente quando comenta em seus Fragments
on Miscellaneous Topics:

Este fato não pode ser demonstrado, cada um deve experimentá-lo por si mesmo. É um fato
de um tipo superior, que só será encontrado pelo homem superior, mas os homens devem se
esforçar para induzi-lo em si mesmos. A filosofia é uma maneira de falar de si mesmo da
maneira acima; é essencialmente uma auto-revelação, o despertar do eu real através do eu
ideal. A filosofia é o fundamento de todas as outras revelações. A decisão de filosofar é um
desafio ao eu real para refletir, despertar e ser espírito.

Schelling, na oitava de suas Cartas Filosóficas sobre Dogmatismo e Crítica, obra pouco
conhecida de sua juventude, discute o mesmo fenômeno nas seguintes palavras profundas e
belas:

Em todos nós… reside uma capacidade misteriosa e milagrosa de se retirar das mudanças do
tempo para o nosso eu mais íntimo, que está livre de todas as armadilhas externas e no qual
contemplamos o eterno dentro de nós na forma de imutabilidade. Essa contemplação é a
experiência mais profunda e fundamental, da qual depende absolutamente tudo o que
sabemos e acreditamos sobre um mundo suprassensorial. Essa experiência é a primeira a nos
convencer de que algo realmente é, enquanto tudo o mais ao qual aplicamos essa palavra
apenas parece ser. Ela difere de toda experiência sensível por ser produzida apenas pela
liberdade, e é estranha e desconhecida de todos os outras, cuja liberdade, esmagada pelo
poder que emana dos objetos, dificilmente basta para produzir a consciência. No entanto,
mesmo para aqueles que não possuem essa liberdade de autocontemplação, há pelo menos
uma aproximação a ela, há experiências indiretas, por meio das quais eles podem ter um
pressentimento de sua existência. Há uma certa profundidade, da qual não temos consciência
e que nos esforçamos para desenvolver em nós mesmos em vão. Foi descrito por Jakobi… Esta
experiência intelectual ocorre quando deixamos de ser um objeto para nós mesmos, quando o
eu experienciador é idêntico ao eu experienciado. Nesse momento da experiência, o tempo e a
duração se desvanecem: não somos nós que estamos no tempo, mas o tempo — ou não
realmente o tempo, mas a eternidade pura e absoluta — está em nós. Não somos nós que
estamos perdidos na experiência do mundo objetivo, mas o mundo objetivo está perdido em
nossa experiência.

O imanentista e o positivista só podem sorrir para o enganador enganado, o filósofo que finge
ter tais experiências. Bem, nada muito pode ser feito sobre isso. Nem é necessário. Mas não
sou de forma alguma da opinião de que o “fato de um tipo superior” ocorra em todos os
homens de gênio naquela forma mística do sujeito e do objeto tornando-se um, em uma
experiência integrada, como Schelling descreve. Este não é o lugar para discutir se existem
experiências indivisas, nas quais o dualismo já está superado na vida, como é testemunhado
por Plotino e os mahatmas indianos, ou se são simplesmente a mais alta intensificação da
experiência, mas em princípio igual a todas as outras experiências. Nem deve a concorrência
de sujeito e objeto, de tempo e eternidade, e a aparência visível de Deus a um homem vivo,
ser mantida como uma possibilidade ou negada como uma impossibilidade.
Epistemologicamente, uma experiência de si mesmo é inútil, e ninguém até agora tentou
utilizá-la para uma filosofia sistemática. Não chamarei, portanto, o fato de um “tipo superior”,
que assume uma forma em um indivíduo e uma forma diferente em outro, uma experiência de
si mesmo, mas apenas o evento do eu.
O evento do eu é familiar a todo indivíduo excepcional. Ele pode primeiro encontrar e tornar-
se consciente de si mesmo através do amor por uma mulher,[4] pois um indivíduo excepcional
sempre ama mais intensamente do que um menos excepcional. Novamente, com a ajuda de
um contraste, ele pode chegar a uma consciência de sua própria natureza superior — à qual se
tornou infiel por meio de uma ação da qual se arrepende — graças a um sentimento de culpa,
pois o sentimento de culpa também é mais severo e mais sutil em um indivíduo excepcional do
que em um não excepcional. Ele pode ser levado pelo evento do eu a tornar-se um com o
universo, a ver todas as coisas em Deus, ou melhor, a reconhecer o terrível dualismo entre
natureza e espírito no universo, que pode despertar seu desejo de redenção, seu desejo de
milagre interior. Em todos esses casos, o cerne de uma weltanschauung é dado junto com o
evento do eu, de forma bastante automática, sem qualquer envolvimento do indivíduo
pensante. Uma weltanschauung não é a grande síntese realizada no dia do juízo final da
ciência por algum homem particularmente industrioso, que trabalhou em uma disciplina após
a outra em sua mesa no meio de uma grande biblioteca. Uma weltanschauung é algo que foi
experimentado, e pode ser claro e inequívoco como um todo, mesmo que, por enquanto,
tantos detalhes estejam envoltos em trevas e contradições. O acontecimento do eu é a raiz de
toda weltanschauung, isto é, de toda experiência do mundo como um todo, tanto para o
artista quanto para o filósofo. E por mais radicalmente que os tipos de weltanschauung difiram
uns dos outros em outros aspectos, eles têm uma coisa em comum, se eles merecem o nome
de weltanschauung.[5] Isso é precisamente o que é mediado pelo evento do eu, a crença
possuída por todo indivíduo excepcional: a convicção da existência de um eu ou uma alma,
que é solitária no universo, que confronta todo o universo, que experimenta o todo universo.

Contando com o acontecimento do eu, o indivíduo excepcional geralmente viverá com uma
alma, mesmo que haja intervalos frequentes, repletos dos mais terríveis dos sentimentos, um
sentimento de estar morto.

Esta, e não apenas a sua exaltação por algo que acabaram de criar, é a razão pela qual quero
acrescentar aqui que os indivíduos excepcionais terão, sempre e em todos os aspectos, a
maior autoconfiança. Nada é tão errado quanto toda a conversa sobre a “modéstia” dos
grandes homens, que supostamente não sabiam o que tinham neles. Não há indivíduo
excepcional que não saiba o quanto difere dos outros (além de períodos de depressão, diante
dos quais até mesmo sua resolução de se orgulhar de si, feita em tempos melhores, pode
permanecer infrutífera) e nenhum que não considerar-se um indivíduo excepcional, uma vez
que tenha criado alguma coisa — embora também não haja indivíduo excepcional cuja vaidade
ou ambição fosse tão pequena que nem sempre se superestimou. Schopenhauer acreditava
que era muito maior que Kant. Se Nietzsche declara que o seu Zaratustra é o livro mais
profundo do mundo, também desempenham um papel a sua desilusão com o silêncio dos
jornalistas e o desejo de os aborrecer — motivos certamente não muito nobres.

Mas um elemento da teoria sobre a modéstia de indivíduos excepcionais está correto:


indivíduos excepcionais nunca são arrogantes. Arrogância e autoconfiança são provavelmente
os opostos mais extremos que podem existir, e não devem ser confundidos, como geralmente
são. A arrogância de um indivíduo é sempre proporcional à sua falta de autoconfiança. A
arrogância é certamente apenas um meio de aumentar forçosamente a autoconfiança de
alguém, rebaixando artificialmente o próximo e, de fato, tornando-se consciente de ter um eu.
Naturalmente, isso se aplica à arrogância inconsciente, por assim dizer fisiológica: às vezes até
um indivíduo superior pode ser obrigado, por causa de sua própria dignidade, a tratar alguns
personagens desprezíveis com deliberada grosseria.
A firme e absoluta convicção de que possuem uma alma é comum a todos os homens de gênio
e não requer prova no que diz respeito a eles. Já é hora de descartar a suspeita ridícula de que
um teólogo proselitista está à espreita por trás de quem fala da alma como uma realidade
hiperempírica. Uma crença na alma é tudo menos superstição. Nem é um meio de sedução
usado por todos os membros do clero. Os artistas também falam de sua alma sem ter
estudado filosofia ou teologia, e mesmo os mais ateus entre eles, como Shelley, estão
convencidos de que sabem o que querem dizer com isso. Ou alguém acredita que “alma”, para
eles, é apenas uma palavra vazia, bela, que repetem após outras sem sentimento, e que um
grande artista usa quaisquer termos sem ter clareza sobre o que eles significam, que neste
caso é a coisa mais real imaginável? O empirista imanentista, o mero fisiologista, está fadado a
considerar tudo isso como uma tagarelice sem sentido, e Lucrécio como o único grande poeta.
No entanto, por mais que a palavra tenha sido mal-usada, se os grandes artistas dão
testemunho de sua alma, eles sabem muito bem o que estão fazendo. Eles, como os grandes
filósofos, têm um certo sentimento de fronteira da realidade suprema. Hume certamente não
conhecia esse sentimento.

O cientista está abaixo do filósofo e abaixo do artista, como já foi enfatizado e em breve será
comprovado. Este último merece o predicado de gênio, o mero cientista nunca. Mas se é dada
maior importância à visão de um gênio de um certo problema do que à de um cientista,
simplesmente porque é sua visão, ele recebe uma preferência ainda não explicada sobre a
ciência, que é o que foi feito aqui. Essa preferência é justificável? Pode um gênio explorar
coisas que são negadas ao homem de ciência como tal, e pode seu olho alcançar qualquer
profundidade que o cientista nem mesmo perceba?

A ideia de gênio, como foi mostrado, inclui a universalidade. Um homem de gênio absoluto,
que é uma ação necessária, teria uma relação igualmente vital, infinitamente próxima e
fatídica com tudo no mundo. Definimos o gênio como apercepção universal e, portanto,
memória perfeita, atemporalidade absoluta. Mas, para poder apreender algo, é preciso ter
algo semelhante em si mesmo. Só se pode notar, compreender e apreender algo com o qual se
tem alguma semelhança (p. 96). Como que em defesa de toda complexidade, o gênio foi visto,
em última análise, como o indivíduo com o eu mais intenso, mais vivo, mais contínuo, mais
integrado. O eu, por sua vez, é o ponto central, a unidade da apercepção, a “síntese” de toda
diversidade.

Assim, o eu do gênio deve ser ele mesmo apercepção universal, o ponto deve abranger o
espaço infinito: o indivíduo excepcional tem todo o mundo em si, o gênio é o microcosmo vivo.
Ele não é um mosaico de muitas peças, não é um composto químico feito de um grande, mas
sempre infinito número de elementos, e não é isso que quis dizer com o relato que fiz no
quarto capítulo de sua estreita afinidade com mais seres humanos e coisas: antes, ele é tudo.
Todos os fenômenos psíquicos estão conectados no self e através do self, onde a conexão é
experimentada diretamente — sem ter que ser laboriosamente introduzida na vida psíquica
por meio de uma ciência (que se espera que faça exatamente isso em todos os assuntos
externos [6]) — e onde o todo existe antes das partes. Assim, o gênio, em quem o eu vive
como o universo, ou mesmo como o universo, contempla a natureza e a agitação de todos os
seres como um todo, ele vê as conexões e não constrói um edifício a partir de fragmentos. É
por isso que um indivíduo excepcional não pode começar a ser um mero psicólogo empírico,
para quem há apenas detalhes que ele tenta consolidar através de associações, brechas etc.
pelo suor de seu rosto, ou um mero físico para quem o mundo é montados a partir de átomos
e moléculas.
O gênio reconhece o significado das partes a partir da ideia do todo, na qual vive
constantemente. Consequentemente, ele avalia tudo, tanto dentro como fora dele, de acordo
com essa ideia; e só por isso tudo a seu ver, em vez de ser uma função do tempo, representa
uma grande e eterna ideia. Assim, um gênio é o indivíduo profundo, e somente o indivíduo
profundo é um gênio. É por isso que sua opinião é realmente mais válida do que a dos outros.
Porque ele cria a partir de todo o seu eu que contém o universo, enquanto os outros nunca
chegam a uma consciência desse seu verdadeiro eu, todas as coisas fazem sentido para ele,
significam algo para ele, e ele sempre vê símbolos nelas. Para ele, a respiração é mais do que
uma troca de gases através das paredes mais finas dos tubos capilares, o azul do céu é mais do
que a luz solar parcialmente polarizada refletida difusamente pela opacidade da atmosfera, e
as cobras são mais do que répteis sem pés, ombros cintura e extremidades. Imagine reunir
todas as descobertas científicas que já foram feitas — todas as excelentes contribuições para a
ciência de Arquimedes e Lagrange, Johannes Müller e Karl Ernst von Baer, Newton e Laplace,
Konrad Sprengel e Cuvier, Tucídides e Niebuhr, Friedrich August Wolf e Franz Bopp e tantos
outros — e deixar que um único indivíduo encontre todos eles: mesmo que um único indivíduo
tivesse conseguido tudo isso no curso de uma curta vida humana, ele ainda não mereceria ser
chamado de gênio.

Nada disso atinge qualquer profundidade. O cientista toma os fenômenos pelo que são para os
sentidos, o indivíduo excepcional ou gênio pelo que significam. Para ele, mar e montanhas,
claro e escuro, primavera e outono, cipreste e palmeira, pomba e cisne são símbolos, nos quais
ele não apenas suspeita, mas reconhece, algo mais profundo. O passeio das Valquírias não
ocorre em mudanças na pressão atmosférica, e o fogo mágico não se refere a nenhum
processo de oxidação. Tudo isso é possível para o homem de gênio apenas porque o mundo
exterior nele é tão rica e firmemente coerente quanto o interior, porque a vida exterior lhe
parece ser apenas um caso especial de sua vida interior, porque o mundo e o eu tornaram-se
um nele e ele não precisa juntar a experiência pouco a pouco de acordo com leis e regras. Por
outro lado, mesmo o maior corpo de conhecimento poli-histórico apenas acrescenta sujeitos a
sujeitos e não representa um todo. É por isso que o grande cientista é inferior ao grande
artista ou filósofo.

Uma verdadeira infinidade no peito de um gênio corresponde à infinidade do universo. Um


gênio guarda dentro de si caos e cosmos, toda particularidade e toda totalidade, toda
multiplicidade e toda unidade. Essas definições dizem mais sobre a qualidade do gênio do que
sobre a maneira como um gênio cria. Portanto, o estado de êxtase artístico, de concepção
filosófica, de iluminação religiosa permanece tão misterioso como sempre, e apenas as
condições, e não o processo, de uma produção verdadeiramente excepcional se tornaram mais
claras. No entanto, o seguinte pode ser oferecido como a definição final de gênio:

Um ser humano pode ser chamado de gênio se vive em uma conexão consciente com todo o
universo. Assim, apenas o gênio é o elemento realmente divino nos humanos.

A grande ideia da alma humana como o microcosmo, a criação mais profunda dos filósofos do
Renascimento — embora seus primeiros traços já se encontrem em Platão e Aristóteles —
parece ter sido inteiramente perdida para o pensamento mais recente desde a morte de
Leibniz. Enquanto até agora neste estudo sua validade só foi afirmada em relação ao gênio,
aqueles mestres afirmaram que era a verdadeira essência da humanidade como tal.

No entanto, essa discrepância é apenas aparente. Todos os seres humanos têm gênio, e
nenhum ser humano é um gênio. Gênio é uma ideia em que um indivíduo se aproxima mais de
perto enquanto outro permanece longe dele, e para a qual um indivíduo avança rapidamente,
mas outro talvez não até o fim de sua vida.

Um indivíduo a quem atribuímos a posse de gênio é apenas aquele que já começou a ver e que
abre os olhos dos outros. O fato de que eles podem ver com os olhos dele prova que eles
estavam parados no portão. Mesmo um indivíduo medíocre, como tal, pode se relacionar com
tudo indiretamente, mas sua ideia do todo é apenas conjectura e ele não consegue se
identificar com ela. No entanto, isso não significa que ele seja incapaz de seguir os outros
nessa identificação e, assim, formar uma imagem do todo. Ele pode se conectar com o
universo por meio de uma weltanschauung e com todas as coisas mais individuais por meio da
educação. Nada lhe é totalmente estranho e ele está ligado a todas as coisas do mundo por
um laço de simpatia. Isso não é verdade para animais ou plantas. São limitados, não conhecem
todos os elementos, mas apenas um, não povoam toda a terra, e onde geralmente se
evidenciam, é a serviço dos humanos, que lhes atribuem uma função que lhes é igualmente
distribuída em todos os lugares. Podem relacionar-se com o sol ou a lua, mas certamente
carecem dos “céus estrelados” e da “lei moral”. A lei moral vem da alma humana, que contém
toda a totalidade, e que pode contemplar tudo porque é tudo: o céu estrelado e a lei moral
também são basicamente uma e a mesma coisa. O universalismo do imperativo categórico é o
universalismo do universo, a infinidade do universo é apenas um símbolo da infinidade da
vontade moral.

Empédocles, o poderoso mago de Agrigento, já ensinou isso, o microcosmo no ser humano,


como segue:

E Plotino: … que Goethe adaptou nos famosos versos:

Eles não eram parecidos com o sol, nossos olhos,


Para a glória da luz do sol eles seriam cegos;
Não estivessem em nós, as próprias energias de Deus,
Como as coisas divinas podem mover nossa espécie? [J. W. Goethe, Poems and Epigrams,
traduzido por Michael Hamburger (Londres 1983), p. 90]

O ser humano é a única entidade na natureza, ele é aquele ser na natureza, que tem uma
relação com todas as coisas nela.

Um indivíduo em que esta relação com todas as coisas — e não com muitos, ou apenas alguns,
isolados — alcançou clareza e uma consciência mais intensa, e quem pensou em tudo
independentemente, é chamado de agenius. Um indivíduo no qual ela está presente apenas
como uma possibilidade, e no qual um certo interesse por qualquer coisa pode ser despertado,
mas que por sua própria vontade está interessado apenas em algumas coisas, é chamado de
ser humano comum. O mesmo é expresso pela teoria pouco compreendida de Leibniz segundo
a qual a baixa mônada é também um espelho do mundo, mas não se torna consciente dessa
atividade. O homem de gênio vive em um estado de consciência universal, que é uma
consciência do universal, enquanto todo o universo também está presente nas pessoas
comuns, mas não é levado a uma consciência criativa. Uma pessoa vive em uma conexão
consciente e ativa com o universo, a outra em uma conexão inconsciente e virtual. O homem
de gênio é o microcosmo real, a pessoa sem gênio é o microcosmo potencial. Somente o
homem de gênio é um ser humano completo. O que está contido em cada indivíduo como
possibilidade de ser humano, como humanidade (no sentido kantiano), como

está vivo e totalmente desenvolvido, como

no gênio.

O ser humano é o universo e, portanto, não uma mera parte dele que depende de outras
partes. Ele não está preso às leis da natureza em um determinado ponto, mas ele mesmo é a
quintessência de todas as leis e, portanto, livre, assim como o próprio universo, sendo tudo,
não é condicionado por nada, mas é independente. O indivíduo excepcional não esquece nada,
porque não se esquece de si mesmo, porque esquecer é estar funcionalmente sob a influência
do tempo e, portanto, não livre e antiético. Ele não é lançado como filho de um movimento
histórico e engolido novamente pelo próximo, porque tudo, todo o passado e todo o futuro, já
está envolvido na eternidade de sua visão espiritual. Ele tem o mais forte senso de
imortalidade, porque ele não se intimida com o pensamento da morte. Ele entra na relação
mais apaixonada com símbolos ou valores, avaliando e, assim, interpretando não apenas tudo
em si mesmo, mas tudo fora de si. Ele é ao mesmo tempo o mais livre e o mais sábio, é o
indivíduo mais moral; e essa é a única razão pela qual ele, de todos, sofre mais de tudo que
mesmo nele ainda é inconsciente, ainda caos, ainda destino.

Agora, o que dizer da moralidade de indivíduos excepcionais em seu tratamento dos outros?
Pois esta é a única maneira pela qual a moralidade pode se manifestar, segundo a opinião
popular, que só pode pensar na imoralidade em conexão com o código penal. Os homens
famosos não revelaram os traços mais duvidosos precisamente a este respeito? Não deram
muitas vezes motivos para acusações de ingratidão desprezível, dureza cruel, ardis perversos
na sedução?

Grandes artistas e pensadores têm fama de imorais, porque quanto maiores são, mais
implacavelmente mantêm a fé em si mesmos, quebrando as expectativas de muitos com quem
compartilharam temporariamente algum interesse intelectual e que, incapazes de segui-los
seu alto voo, tentam acorrentar a águia à terra (Lavater e Goethe). O destino de Friederike em
Sesenheim certamente afetou Goethe muito mais profundamente do que a própria Friederike,
embora isso de forma alguma o exonere. Felizmente calou-se sobre tantas coisas que os
modernos que acreditam possuir inteiramente o despreocupado atleta olímpico de fato só
guardam os flocos que cercam a parte imortal de Fausto, mas podemos ter certeza de que ele
mesmo examinou com mais precisão quanta culpa ele suportou, e lamentou em toda a sua
extensão. E quando detratores invejosos, que nunca compreenderam a teoria da redenção de
Schopenhauer e o significado do nirvana, censuraram o filósofo por insistir ao máximo em seu
direito à sua propriedade, seus latidos mesquinhos não são dignos de resposta.

Deveria, portanto, ficar claro que o indivíduo excepcional é mais moral em relação a si mesmo.
Para ele, o eu do outro e suas visões permanecem algo inteiramente separado do seu, e ele
não permitirá que nenhuma visão do outro lhe seja imposta e reprima seu próprio eu. Ele não
aceitará passivamente a opinião de outro e, se alguma vez o fez, achará o pensamento
doloroso e assustador. Se ele já contou uma mentira conscientemente, ele a carregará consigo
por toda a vida e será incapaz de se livrar dela de uma maneira leve “dionisíaca”. No entanto,
os homens de gênio sofrerão mais agudamente se, em retrospecto, perceberem que contaram
uma mentira, da qual não estavam cientes quando a contaram aos outros, ou com a qual se
enganaram. Outras pessoas, que não têm esse desejo de verdade, sempre permanecem mais
profundamente enredadas em mentiras e erros, razão pela qual têm tão pouca compreensão
da verdadeira opinião de grandes personalidades e da ferocidade de sua luta contra a “mentira
da vida”.

Um indivíduo superior, isto é, aquele em que o eu atemporal tomou o poder, procura elevar
seu próprio valor na estimativa de seu eu inteligível, sua consciência moral e intelectual. Sua
vaidade, em primeira instância, também se dirige a si mesmo: ele desenvolve o desejo de se
impressionar (com seus pensamentos, ações e criações). Essa vaidade é a vaidade do gênio,
cujo valor e recompensa está em si mesmo, e que não precisa da opinião dos outros para
obter uma opinião mais elevada de si mesmo por um caminho tão indireto. No entanto, não é
de modo algum louvável, e as naturezas de disposição ascética (Pascal) sofrerão muito com
isso, sem jamais poder superá-lo. A vaidade interior sempre se unirá à vaidade diante dos
outros, mas as duas estão em conflito.

Essa forte ênfase no dever para consigo mesmo não prejudica a capacidade de cumprir o dever
para com os outros? Não há uma reciprocidade entre os dois, que garante que quem mantém
a fé em si mesmo deve necessariamente quebrá-la com os outros?

De jeito nenhum. Assim como há apenas uma verdade, também há apenas um desejo de
verdade — a “sinceridade” de Carlyle — que se tem ou não em relação a si mesmo e ao
mundo, mas nunca separadamente, nunca um dos dois, nenhuma observação do mundo sem
observação do eu, e nenhuma observação do eu sem observação do mundo. Assim, há apenas
um dever, um tipo de moralidade. Agimos ou totalmente moralmente ou totalmente
imoralmente, e quem é moral em relação a si mesmo também é moral em relação aos outros.

No entanto, nada está cercado de tantas ideias erradas quanto a definição de nosso dever
moral para com nossos semelhantes e as possíveis maneiras de cumpri-lo.

Se, por enquanto, eu ignoro aqueles sistemas teóricos de ética que consideram o progresso da
sociedade humana como o princípio sobre o qual todas as ações devem se basear — sistemas
muito acima de qualquer moralidade de simpatia, porque pelo menos eles estão preocupados
com a regra de um ponto de vista moral geral, e não com sentimentos concretos no curso de
uma ação ou com os aspectos empíricos de um impulso — então, a única coisa que resta é a
opinião popular que define a moralidade de um indivíduo principalmente de acordo com o
grau de sua compaixão, sua “bondade”. Os filósofos que viram a essência e a fonte de
qualquer comportamento ético na compaixão incluem Hutcheson, Hume e Smith, e essa teoria
foi posteriormente aprofundada em um grau extraordinário pela moralidade da compaixão de
Schopenhauer. No entanto, o ensaio de Schopenhauer sobre os fundamentos da moral em seu
próprio lema — “Pregar a moralidade é fácil, fundar é difícil” — denuncia o erro fundamental
de toda ética da simpatia, que é o fracasso em reconhecer que a ética não é uma ciência
descritiva objetiva, mas que estabelece normas para a ação. Aqueles que ridicularizam as
tentativas de ouvir com precisão o que a voz interior dos seres humanos realmente diz e
descobrir com certeza o que um ser humano deve fazer, renunciam a toda ética, pois a ética
por definição é a teoria das exigências que um ser humano faz sobre si mesmo e sobre todos
os outros, e não um relato do que ele realmente alcança dando margem a essas demandas ou
abafando-as. O objeto da ciência moral não é o que acontece, mas o que deve acontecer, e
tudo o mais pertence à psicologia.

Qualquer tentativa de dissolver a ética na psicologia ignora o fato de que todo movimento
psíquico em seres humanos é avaliado por um ser humano, e que o padrão para a avaliação de
qualquer evento não pode ser ele mesmo um evento. Esse padrão só pode ser uma ideia ou
um valor, que nunca pode ser plenamente realizado ou deduzido da experiência, porque
permanece constante mesmo que toda a experiência seja contrária a ele. Agir moralmente,
então, só pode ser agir de acordo com uma ideia. Portanto, a escolha só pode ser entre
doutrinas morais que postulam ideias, ou máximas de ação, e dessas apenas duas valem a
pena considerar: por um lado, o socialismo ético ou “ética social”, fundado por Bentham e
Mill, respectivamente, e posteriormente trazido por importadores assíduos para o continente,
até a Alemanha e a Noruega, e, por outro lado, o individualismo ético, ensinado pelo
cristianismo e pelo idealismo alemão.

O segundo erro da ética da compaixão em todas as suas variedades é tentar explicar e deduzir
a moralidade. A moralidade, por definição, deve ser a causa última da ação humana e,
portanto, não deve ser explicável e dedutível. A moralidade é um propósito em si mesma e
não deve estar ligada a nada que lhe seja externo, como são os meios e os fins. Na medida em
que essa alegação da moralidade da simpatia concorda com o princípio subjacente a qualquer
ética meramente descritiva e, portanto, necessariamente relativista, ambos os erros são
basicamente um, e esse empreendimento deve sempre ser enfrentado com a objeção de que
ninguém, mesmo todo o domínio de causas e efeitos, descobriria em qualquer lugar nele a
ideia de um propósito supremo, que é o único relevante para as ações morais. A ideia de
propósito não pode ser explicada por causa e efeito: ao contrário, é descartada pela relação de
causa e efeito. O propósito reivindica a criação da ação. O sucesso e o resultado de qualquer
ação são medidos pelo propósito, e sempre serão encontrados em falta, mesmo quando todos
os fatores que a determinaram são bem conhecidos e por mais vigorosamente que se afirmem
na consciência. Ao lado do reino das causas existe um reino dos propósitos, e esse reino é o
reino dos seres humanos. A ciência perfeita da existência é uma totalidade de causas que se
esforça para elevar-se à causa suprema, e a ciência perfeita da obrigação moral é uma
totalidade de propósitos que culmina em um propósito final e supremo.

Quem atribui um valor eticamente positivo à compaixão fez um julgamento moral sobre algo
que não era uma ação, mas apenas um sentimento, não um ato, mas apenas um afeto (que
por sua natureza não se enquadra no aspecto de propósito). A compaixão pode ser um
fenômeno ético, uma expressão de algo ético, mas não é mais um ato ético do que o
sentimento de vergonha ou orgulho. É preciso distinguir claramente entre um ato ético e um
fenômeno ético. O primeiro deve ser entendido exclusivamente como uma afirmação
consciente da ideia por meio da ação: os fenômenos éticos são sinais involuntários e
espontâneos de uma direção constante da mente em direção à ideia. É apenas na luta dos
motivos que a ideia intervém uma e outra vez, na tentativa de influenciá-la e de decidir: a
mera mistura de sentimentos éticos e antiéticos, compaixão e júbilo, autoconfiança e
exuberância não contém nada de decisão. A compaixão pode ser o sinal mais seguro de uma
disposição, mas não o propósito por trás de qualquer ação. Somente conhecer o propósito,
uma consciência de valor em oposição à inutilidade, constitui a moralidade. A este respeito
Sócrates está certo, em contraste com todos os filósofos que vieram depois dele apenas Platão
e Kant o seguiram nisto). Um sentimento alógico como a compaixão nunca tem qualquer
pretensão de respeito, mas na melhor das hipóteses desperta simpatia.

Assim, devemos primeiro responder à pergunta em que sentido um ser humano pode se
comportar moralmente em relação a outros seres humanos.

Não dando assistência não solicitada, que abre caminho para a solidão do outro e rompe os
limites que nossos semelhantes traçam ao seu redor, mas mostrando respeito ao observar
esses limites. Não por compaixão, mas por respeito. Como foi articulado pela primeira vez por
Kant, o único ser no mundo que respeitamos é o humano. Foi sua tremenda descoberta que
nenhum ser humano pode usar a si mesmo, seu eu inteligível, a humanidade (não a sociedade
humana de 1.500 milhões, mas a ideia da alma humana) em sua própria pessoa ou na pessoa
de outro, como um meio para um fim. “Em toda a criação, tudo o que se quer e sobre o qual se
tem algum poder também pode ser usado apenas como meio; um ser humano sozinho, e com
ele toda criatura racional, é um fim em si mesmo”. [Crítica da Razão Prática, traduzido por
Mary Gregor (Cambridge, 1997), p. 74.]

Mas como demonstro meu desprezo e meu respeito pelos outros seres humanos? O primeiro
ignorando-os, o segundo tomando conhecimento deles. Como posso usá-los como meios para
um fim e como honrar algo neles que é seu próprio propósito? No primeiro caso,
considerando-os como meros elos da cadeia de circunstâncias com que minhas ações devem
contar, no segundo, tentando reconhecê-los. Somente interessando-se por eles, pensando
neles, tentando entender suas ações, empatizando com seu destino, tentando entendê-los
como eles mesmos, e sem realmente deixá-los ver tudo isso, pode-se honrar seus
semelhantes. Somente um indivíduo que não se tornou egoísta como resultado de seus
próprios problemas, que esquece todas as brigas mesquinhas com seus semelhantes, que
reprime sua raiva com eles e que tenta entendê-los, é verdadeiramente altruísta em relação a
eles; e age de maneira moral, porque é justamente aí que vence o inimigo mais poderoso que
dificulta a compreensão do próximo: o amor-próprio.

Como o indivíduo notável se comporta a esse respeito?

O indivíduo notável — que compreende o maior número de seres humanos porque sua
disposição é a mais universal, e que vive em contato mais próximo com o universo, que ele se
esforça mais apaixonadamente por reconhecer de maneira objetiva — também agirá mais
moralmente para com seus semelhantes. De fato, ninguém pensa tanto e tão intensamente
sobre outros seres humanos (em muitos casos, mesmo que tenha tido apenas um vislumbre
deles) e ninguém se esforça tanto para obter uma compreensão clara deles se não os ter em si
mesmo com suficiente distinção e intensidade. Assim como ele tem um passado cheio de
continuidade de si mesmo, ele também se perguntará qual era o destino dos outros antes de
conhecê-los. Ele segue a inclinação mais forte de sua natureza interior ao pensar sobre eles,
pois através deles ele está tentando obter clareza e a verdade sobre si mesmo. É aqui que
todos os seres humanos são vistos como membros de um mundo inteligível, no qual não há
egoísmo ou altruísmo tacanho. Esta é a única maneira possível de explicar como os grandes
homens entram em uma relação mais vital, mais compreensiva, não apenas com as pessoas ao
seu redor, mas também com todas as personalidades da história que viveram antes deles, e
esta é a única razão pela qual o grande artista pode compreender a individualidade histórica
melhor e mais intensamente do que o mero historiador profissional. Não há grande homem
que não tenha relação pessoal com Napoleão, Platão ou Maomé. Pois é assim que ele mostra
seu respeito e sua verdadeira reverência por aqueles que viveram antes dele. Se muitas
pessoas que se relacionaram com artistas ficaram constrangidas por se reconhecerem
posteriormente em uma de suas criações, e se, portanto, há tantas reclamações sobre
escritores usando tudo como modelo, a sensação desagradável em tais situações é
perfeitamente compreensível. Mas o artista, que não leva em conta a mesquinhez das
pessoas, não cometeu um crime. Ele, em sua própria maneira irrefletida de representar e
recriar o mundo, realizou o ato criativo da compreensão, e não há relação entre os seres
humanos que seja mais pura do que esta.

Isso deveria ter tornado a observação muito verdadeira de Pascal, que já foi mencionada
antes, um pouco mais clara: “A mesure qu’on a plus d’esprit, on trouve qu’il y a plus de
différence entre les hommes. Les gens du commun ne trouvent pas de différence entre les
hommes [À medida que se tem mais espírito, descobre-se que há mais diferença entre os
homens. As pessoas comuns não encontram diferença entre os homens]. Está ainda
relacionado com o fato de que quanto maior a posição de um homem, maiores serão as
exigências que ele faz a si mesmo em relação à compreensão das manifestações dos outros.
Por outro lado, um homem que carece de dotes logo acreditará que compreende algo, muitas
vezes sem sequer sentir a presença de algo que ele não entende, e mal tendo consciência de
outra mente que se dirige a ele de uma obra de arte ou de uma filosofia. Como resultado, ele
pode, na melhor das hipóteses, estabelecer uma relação com as coisas, mas nunca chegará a
refletir sobre o próprio criador. O indivíduo excepcional, que atinge o mais alto grau de
consciência, não identificará facilmente algo que leu consigo mesmo e com sua própria
opinião, enquanto em um grau mais baixo de lucidez intelectual coisas muito diferentes
podem se fundir e parecer idênticas.

Um homem de gênio é um indivíduo que se tornou consciente de si mesmo. É por isso que ele
é mais fortemente atingido pela alteridade dos outros, é por isso que ele sente o eu do outro,
mesmo antes de se tornar forte o suficiente para se dar a conhecer ao outro. Mas somente um
homem que sente que o outro é também um eu, uma mônada, um centro do mundo por
direito próprio, com seu modo particular de pensar e sentir e seu passado particular, estará
automaticamente imune ao uso de seus semelhantes meramente como um meio para um fim.
De acordo com a ética kantiana, ele também sentirá, intuirá e, portanto, honrará a
personalidade de seu semelhante (como parte do mundo inteligível), e não apenas será
incomodado por ele. Portanto, o pré-requisito psicológico de qualquer altruísmo prático é um
individualismo teórico.

Eis então a ponte que conduz do comportamento moral em relação a si mesmo ao


comportamento moral em relação aos outros, o elo que Schopenhauer erroneamente
considerou como ausente na filosofia kantiana e cuja aparente ausência foi, portanto,
interpretada por ele como um erro inevitavelmente decorrente dos princípios essenciais dessa
filosofia.

Este elo pode ser facilmente testado. Apenas o criminoso brutalizado e o insano não têm
nenhum interesse em nenhum de seus semelhantes, e vivem como se estivessem sozinhos no
mundo, sem a menor sensação da presença do outro. Portanto, não existe solipsismo prático:
quem tem um eu em si também reconhece um eu em seu semelhante, e é somente quando
um ser humano perdeu o núcleo (lógico e ético) de sua própria personalidade que ele reagirá a
outro como se este não fosse mais humano, um ser com personalidade própria. “Eu” e “tu”
são termos recíprocos.

Um indivíduo chega à consciência mais forte de seu próprio eu quando está junto com os
outros. É por isso que ele se orgulha mais na presença dos outros do que quando está sozinho,
e é deixado para suas horas de solidão amortecer seu alto astral.

Finalmente: quem se mata, mata o mundo inteiro ao mesmo tempo; e aquele que mata outro
comete o pior crime porque se matou no outro. Portanto, todo solipsismo na prática é absurdo
e seria melhor chamar de niilismo. Se não há “tu”, então certamente nunca há um “eu”, e o
que resta então é — nada.

O que importa é o estado psicológico da mente que torna impossível usar o outro ser humano
como meio para um fim. E aqui se encontrou: aquele que sente sua própria personalidade
também a sente nos outros. Para ele o Tat-tvam-asi não é uma bela hipótese, mas uma
realidade. O mais alto individualismo é o mais alto universalismo.

Portanto, Ernst Mach, que nega o sujeito, comete um grave erro ao acreditar que um
comportamento ético, “que exclui a desconsideração do eu alheio e uma superestimação do
próprio”, não pode ser esperado até que o eu tenha sido renunciado. Acabamos de mostrar
que consequências a falta de um eu pode ter para o tratamento de um indivíduo de um
semelhante. O eu é também a pré-condição para toda moralidade social. Por razões
puramente psicológicas, nunca serei capaz de me comportar eticamente em relação a um
mero nó de “elementos”. Tal conduta pode ser afirmada como um ideal, mas está
inteiramente afastada de qualquer comportamento prático, para o qual nunca pode servir
como norma, porque elimina a condição psicológica para qualquer cumprimento da ideia
moral, enquanto a exigência moral está psicologicamente presente.

Ao contrário, o importante é conscientizar cada ser humano de que possui um eu superior,


uma alma, e que os outros seres humanos também possuem uma alma (embora, para isso, a
maioria sempre precise de um pastor de almas). Nada menos pode garantir que uma relação
ética com o próximo esteja presente, realmente presente.

Esta relação é realizada de forma genial da forma mais original. Ninguém sofrerá tanto quanto
ele com e, portanto, através das pessoas com quem convive. Pois certamente há um sentido
em que um ser humano só pode alcançar “conhecimento através da compaixão”. Embora a
compaixão em si não seja um conhecimento claro, seja abstrato e conceitual ou gráfico e
simbólico, é o impulso mais forte para alcançar todo o conhecimento. O gênio só compreende
as coisas sofrendo com elas, e só entende os seres humanos sofrendo com elas. Um gênio
sofre mais porque sofre com todos e em todos; e ele sofre mais intensamente de sua
compaixão.
Em um capítulo anterior, tentei demonstrar que o gênio é o único fator que realmente eleva os
humanos acima dos animais, e fiz uma conexão entre isso e o fato de que apenas os humanos
têm uma história (o que, argumentei, é explicado pela qualidade do gênio que existe em todos
os seres humanos, embora em diferentes graus). Devo agora voltar ao mesmo tópico. O gênio
coincide com uma atividade viva do sujeito inteligível. A história se revela apenas no domínio
social, no “espírito objetivo”, enquanto os indivíduos em si mesmos permanecem eternamente
os mesmos e não progridem como aquele espírito (eles são o a-histórico como tal). Assim,
vemos como nossos fios se unem para produzir um resultado surpreendente. Pois se — e aqui
não acredito que esteja enganado — a personalidade humana atemporal é também a pré-
condição de qualquer comportamento verdadeiramente ético para com nossos semelhantes, e
se a individualidade é o pré-requisito de uma mentalidade social, isso também explica por que
o “animal metaphysicum” e o

a criatura genial e portadora da história, são um, o mesmo ser, ou seja, o ser humano. E isso
também resolve o antigo argumento sobre o que existia primeiro, o indivíduo ou a
comunidade: pois ambos estão presentes, ao mesmo tempo e juntos.

Assim, demonstrei em todos os aspectos que o gênio é a moralidade superior como tal. O
indivíduo excepcional não é apenas aquele que é mais fiel a si mesmo, que nada se esquece de
si mesmo, que nada mais detesta e não tolera nada menos que erros e mentiras: ele é também
o mais social, o mais solitário e ao mesmo tempo o mais compartilhado dos seres humanos. O
gênio é uma forma de existência totalmente superior, não apenas no sentido intelectual, mas
também no sentido moral. Um gênio revela completamente a ideia de humanidade. Ele
manifesta o que é um ser humano — o sujeito cujo objeto é todo o universo — e estabelece
esse fato por toda a eternidade.

Não haja erros. A consciência, e somente a consciência, é moral em si mesma. Tudo que é
inconsciente é imoral, e tudo que é imoral é inconsciente. Portanto, o “gênio imoral”, o
“grande malfeitor”, é um animal mítico. Ele foi inventado por grandes indivíduos em certos
momentos de suas vidas como uma possibilidade, e tornou-se, muito contra a vontade de seus
criadores, um “bow-wow[imitação de um latido]” com que as naturezas tímidas e débeis
assustam a si mesmas e a outras crianças. Não há criminoso que seja igual ao seu próprio
crime, e que pense e fale como Hagen sobre o corpo de Siegfried em O Crepúsculo dos Deuses:
“Sim, então! Eu o matei: eu — Hagen — eu o matei!” Napoleão e Bacon de Verulam, que são
citados como exemplos em contrário, são muito superestimados em relação ao seu intelecto,
ou mal interpretados. E Nietzsche — quando começa a falar sobre os Bórgias — é o menos
confiável em tais assuntos. A concepção do diabólico, do anticristo, de Ahriman, do “radical
mal na natureza humana”, é extremamente poderosa, mas só diz respeito ao gênio na medida
em que é precisamente o seu oposto. É uma ficção, nascida naquelas horas em que grandes
indivíduos travaram a batalha decisiva contra o criminoso dentro deles.

Percepção universal, consciência geral, atemporalidade total é um ideal, mesmo para homens
de “gênio”. O gênio é um imperativo interior, não um fato que se realiza plenamente em
qualquer ser humano. Portanto, um “gênio”, e ele em particular, será menos capaz de dizer
sobre si mesmo: “Eu sou um gênio”. Pois o gênio é, por definição, nada mais que uma
completa realização da ideia de humanidade e, portanto, o gênio é algo que todo ser humano
deve ser e que deve, em princípio, ser possível para todo ser humano se tornar. O gênio é a
mais alta moralidade e, portanto, o dever de todos. Um ser humano torna-se um gênio por um
ato supremo da vontade, afirmando todo o universo em si mesmo. O gênio é algo que
“indivíduos dotados de gênio” assumiram para si: é a maior tarefa e o maior orgulho, a maior
miséria e a maior alegria possível para um ser humano. Por mais paradoxal que isso possa
parecer: um ser humano é um gênio se quiser sê-lo.

Agora, será objetado que muitas pessoas gostariam de ser “gênios originais”, mas, apesar de
todos os seus desejos, são incapazes de conseguir isso. No entanto, se essas pessoas, que
“gostariam muito”, tivessem uma ideia mais clara do que significa exatamente esse objeto de
seu desejo, se percebessem que o gênio é idêntico à responsabilidade universal — e antes que
algo esteja bem claro para nós, podemos apenas desejar, mas não o fará — a esmagadora
maioria provavelmente se recusaria a se tornar gênios.

Por nenhuma outra razão — os tolos em tais casos pensam nos efeitos de Vênus ou na
degeneração espinhal do neurastênico — tantos indivíduos com gênio sucumbem à loucura.
São aqueles para quem o fardo de carregar o mundo inteiro nos ombros, como Atlas, tornou-
se muito pesado e que, portanto, são sempre as mentes menores, menos notáveis, e nunca as
maiores, nunca as mais fortes. Mas quanto mais alto um homem fica, mais baixo ele pode cair.
Todo gênio é uma superação de um nada, de uma penumbra, de uma escuridão, e se
degenerar e se espalhar, a noite será tanto mais negra, quanto mais brilhante a luz era
anteriormente. Um gênio que enlouquece não quer mais ser um gênio; em vez de moralidade
ele quer — felicidade. Pois toda loucura é consequência da insuportabilidade da dor ligada a
toda consciência; e, portanto, foi Sófocles quem sugeriu mais profundamente os motivos de
um homem poder querer até mesmo sua loucura, quando fez Ajax dizer, antes que sua mente
finalmente sucumbisse à noite:

Encerro este capítulo com as palavras profundas de Giovanni Pico de Mirandola, que lembram
os elementos mais sublimes do estilo de Kant, e que talvez tenha ajudado a compreender
melhor aqui. Em seu discurso “Sobre a dignidade do homem”, ele faz a divindade falar ao
homem assim:

Nós não te demos um assento certo, nem um rosto próprio, nem nenhum cargo específico, ó
Adão: para que qualquer assento, qualquer rosto, quaisquer dons que você escolher, você
possa ter e possuí-los de acordo com sua vontade, de acordo com sua opinião. A natureza do
resto será determinada dentro das leis prescritas por nós: você, sem restrições por nenhuma
restrição, de acordo com sua própria vontade, em cujas mãos eu o coloquei, o predeterminará
por si mesmo. Coloquei você no meio do mundo, para que você possa ver tudo o que está no
mundo de forma mais conveniente de lá. Nem te fizemos celestial, nem terrestre, nem mortal,
nem imortal, para que te moldes, como se fosse arbitrário e honorário, e moldado na forma de
tua preferência. Você poderá degenerar nos inferiores que são brutos, poderá ser regenerado
nos superiores que são divinos, a seu próprio critério.

Ó suprema liberalidade de Deus Pai, suprema e admirável do homem


felicidade: a quem é dado ter o que deseja, ser o que deseja. Assim que os filhotes nascem,
trazem consigo do ventre da mãe o que possuem. Os espíritos supremos foram desde o início
ou logo depois o que serão nas eternidades perpétuas. O Pai colocou sementes e germes
onipotentes de vida onipotente no homem recém-nascido; O que cada um cultiva, isso é
jovem e dará seus frutos nele: se vegetal, se tornará planta, se intelectual, será anjo e filho de
Deus. E se nenhuma das criaturas, contente com a sorte das criaturas, se retirar para o centro
de sua unidade, tornando-se um espírito com Deus, nas trevas solitárias do Pai, que está acima
de todas as coisas, ele estará diante de todas as coisas.

Notas:

1. Cf. pág. 127, sobre pessoas que entendem e que não entendem

a si mesmas.

2. O que não quer dizer que todo mundo que se reconhece seja um gênio.

3. Como isso está relacionado com o fato de que indivíduos excepcionais podem amar muito
cedo (por exemplo, aos quatro anos de idade) ficará claro mais tarde (pp. 216 e segs.).

4. Este caso precisará ser investigado posteriormente (pp. 323ss.).

5. O que, portanto, não inclui o darwinismo e os sistemas monísticos que se centram na “ideia
de evolução”. A raiva pelos gêneros e relações genitais em nosso tempo não poderia ter se
exposto mais claramente do que o fez pelo fato de a teoria da descendência ter sido ligada à
palavra weltanschauung e colocada em oposição ao pessimismo.

6. É por isso que dentro do ser humano individual não existe o conceito de coincidência e, de
fato, nenhum pode sequer surgir. Uma haste aquecida se expande por um suprimento de
energia térmica e não por um cometa que é visível no céu ao mesmo tempo: eu sei disso em
virtude de longa experiência e indução, e apenas pela força delas. Aqui a conexão correta não
surge diretamente da experiência. Por outro lado, se estou aborrecido com meu próprio
comportamento em determinada companhia, então sei imediatamente o motivo de minha
insatisfação, mesmo supondo que isso esteja acontecendo pela primeira vez, e
independentemente de quantos outros eventos psíquicos intervieram simultaneamente. Estou
imediatamente certo disso, ou pelo menos posso chegar a tal certeza na primeira vez que isso
acontecer, se não tentar me enganar.

IX — Psicologia Masculina e Feminina


É hora de voltar à verdadeira tarefa desta investigação para ver até que ponto ela avançou por
minhas longas digressões, que muitas vezes pareciam distraí-la bastante.

Os princípios que desenvolvi têm consequências tão radicais para uma psicologia dos sexos
que mesmo aqueles que concordaram com minhas deduções até agora podem fugir dessas
conclusões. Ainda não chegamos ao ponto em que podemos analisar as razões desse alarme,
mas para proteger a tese que agora se segue de todas as objeções que ela provocará, eu a
fundamentarei nesta seção de maneira tão completa e com tantos argumentos conclusivos,
quanto possível.

Resumidamente, é disso que se trata. Descobri que o fenômeno da lógica e o da ética, que se
unem para formar o valor mais alto no conceito de verdade, nos forçam a supor a existência
de um eu inteligível, ou uma alma, como uma entidade do mais alto, hiper-realidade empírica.
No caso de um ser que, como W, carece de lógica e ética, não há razão para fazer essa
suposição. A mulher completa não conhece um imperativo lógico nem moral, e as palavras
“lei”, “dever”, “dever para consigo mesmo” são as palavras que lhe soam mais estranhas.
Portanto, a conclusão de que ela não possui uma personalidade supras-sensorial é
perfeitamente justificada.

A Mulher Absoluta não tem eu.

Em certo sentido, isso conclui minha investigação, tendo chegado ao ponto final a que conduz
qualquer análise da Mulher. Embora esse discernimento, articulado de forma tão concisa,
pareça duro e intolerante, além de paradoxal e radicalmente novo, dado tal assunto, é
improvável que o autor tenha sido o primeiro a chegar a esse ponto de vista, mesmo que fosse
obrigado a encontrar seu caminho para isso de forma independente antes que ele pudesse
entender a adequação de declarações semelhantes feitas por outros antes dele.

Os chineses negaram à Mulher uma alma própria desde os primeiros tempos. Se perguntarem
a um chinês quantos filhos ele tem, ele contará apenas os meninos, e se ele tiver apenas filhas,
ele dirá que não tem filhos.[1] Foi provavelmente por uma razão semelhante que Maomé
excluiu as mulheres do Paraíso e, portanto, é parcialmente culpado pela posição degradante
do sexo feminino nos países islâmicos.

Das fileiras dos filósofos, é sobretudo Aristóteles que deve ser mencionado aqui. Segundo ele,
no processo de procriação o princípio masculino é o elemento formador, ativo, logos,
enquanto o elemento feminino representa a matéria passiva. Se considerarmos que para
Aristóteles a alma é idêntica à forma, enteléquia, força motriz primordial, fica claro o quão
próximo ele está da visão aqui expressa, embora sua opinião só venha à tona quando ele fala
sobre o ato de impregnação. Em outros lugares, em comum com quase todos os gregos,
exceto Eurípides, ele não parece pensar nas mulheres e, portanto, nunca adota qualquer
posição sobre as propriedades da Mulher como tal (e não apenas no que diz respeito ao seu
papel no ato da cópula).

Entre os Padres da Igreja, Tertuliano e Orígenes em particular parecem ter tido uma opinião
muito baixa das mulheres, enquanto Santo Agostinho deve ter sido impedido de compartilhar
seus pontos de vista pelo menos por seu relacionamento próximo com sua mãe. No
Renascimento, a visão aristotélica foi frequentemente retomada, por exemplo, por Jean Wier
(1518–1588). Naquela época, essa visão parece ter sido mais bem compreendida tanto em
nível emocional quanto intuitivo, e não considerada como mera curiosidade, como é comum
na ciência de hoje, que certamente será obrigada um dia a se curvar à antropologia de
Aristóteles em várias maneiras.

Nas últimas décadas, a mesma visão foi expressa por Henrik Ibsen (através dos personagens de
Anitra, Rita e Irene) e August Strindberg (O Credor [traduzido por Mary Harned, Boston 1911]).
Mas o que tornou a ideia da falta de alma da Mulher mais popular foi o maravilhoso conto de
fadas de Fouqué, o escritor romântico, que deve o assunto ao seu estudo assíduo de Paracelso,
e através de E. T. A. Hoffmann, Girschner e Albert Lortzing, que o definiram à música. Undine,
Undine sem alma[¹], é a ideia platônica de Mulher; e a realidade, apesar de toda
bissexualidade, costuma chegar bem perto dela. Tampouco o difundido ditado “A mulher não
tem caráter” significa algo fundamentalmente diferente. Personalidade e individualidade, eu
(inteligível) e alma, vontade e caráter (inteligível) — tudo isso significa uma e a mesma coisa à
qual no domínio humano apenas M tem direito, e que W não tem.

Uma vez que a alma humana é o microcosmo e indivíduos excepcionais são aqueles que vivem
com sua alma — isto é, em quem o mundo inteiro está vivo — a disposição de W deve ser
inteiramente sem gênio. O homem tem tudo dentro de si e, segundo Pico de Mirandola, cabe a
ele estimular o desenvolvimento de uma ou outra de suas propriedades inatas. Ele pode
atingir as maiores alturas ou degenerar mais profundamente, pode se tornar um animal, uma
planta, pode até se tornar uma mulher, e é por isso que existem homens femininos,
efeminados.

Mas uma mulher nunca pode se tornar um homem. É aqui que a qualificação mais importante
deve ser adicionada às afirmações da primeira parte deste estudo. Embora eu conheça um
grande número de homens que, psiquicamente, são quase completamente — e não apenas
metade — mulheres, vi muitas mulheres com traços masculinos, mas nunca uma única mulher
que não fosse basicamente ainda uma mulher, embora sua feminilidade fosse muitas vezes
escondido dos olhos da própria pessoa, e não apenas dos outros, por muitos disfarces
diferentes. Qualquer um é (cf. parte 2, capítulo I) ou homem ou mulher, independentemente
de quantas particularidades de ambos os sexos se possa ter, e esta forma de ser, que desde o
início tem sido o problema investigado, pode agora ser definida pela relação de uma pessoa
com a ética e a lógica. Mas enquanto existem homens anatômicos que psicologicamente são
mulheres, não existem pessoas que são fisicamente mulheres e ainda psiquicamente homens,
embora em muitos aspectos externos eles apresentem um aspecto masculino e criem uma
impressão não feminina.

Portanto, a seguinte resposta final certamente pode ser dada à questão da dotação nos sexos:
há mulheres com algumas das características do gênio, mas não há gênio feminino, nunca
houve um (mesmo entre as mulheres masculinas nomeadas na história e discutidas na
primeira parte) e nunca pode haver um. Se alguém, desejando ser negligente em princípio em
tal assunto, tentasse abrir e expandir o conceito de gênio o suficiente para que as mulheres
encontrassem um espaço dentro dele, ele teria destruído esse conceito desde o início. Se
quisermos ganhar e preservar um conceito rigoroso e consistente de gênio, não acredito que
outras definições além das aqui desenvolvidas sejam possíveis. Dadas essas definições, como
poderia um ser sem alma ter algum gênio? O gênio é idêntico à profundidade. Apenas tente
conectar as palavras profundo e mulher como um atributo e um substantivo, e todos ouvirão a
contradição. Um gênio feminino, então, é uma contradição em termos, pois vimos que o gênio
nada mais era do que um tipo de masculinidade intensa, plenamente desenvolvida, superior e
universalmente consciente. Um gênio tem tudo, inclusive a Mulher, completamente dentro
dele, mas a própria Mulher é apenas uma parte do universo, e como a parte não pode conter o
todo, a mulher não pode conter o gênio. A falta de gênio da mulher inevitavelmente decorre
do fato de que a Mulher não é uma mônada e, portanto, nenhum espelho do universo.[2].

A maior parte do que posso ter conseguido estabelecer nos capítulos anteriores se soma para
provar a falta de alma da Mulher. O terceiro capítulo mostrou que a Mulher pensa em hênidas
e o Homem em formas estruturadas, e que o sexo feminino vive menos conscientemente que
o masculino. A consciência é um conceito da epistemologia e, ao mesmo tempo, o conceito
fundamental da psicologia. A consciência epistemológica e a posse de um eu contínuo, ou o
sujeito transcendental e a alma, são conceitos sinônimos e intercambiáveis. Todo eu existe
apenas na medida em que tem um sentido de si mesmo e se torna consciente de si em seu
pensamento: todo ser é consciência. Mas agora uma importante explicação deve ser
acrescentada à teoria dos hênidas. Os conteúdos articulados do pensamento do Homem não
são simplesmente os conteúdos do pensamento feminino, desembaralhados e estruturados.
Eles não são apenas a realidade do que era meramente potencial no pensamento feminino,
mas eles contêm algo qualitativamente diferente desde o início. Os conteúdos psíquicos do
Homem, mesmo na primeira fase hênida, que sempre se esforçam por ultrapassar, estão
dispostos à conceptualidade, e é mesmo possível que todas as sensações do Homem, desde
muito cedo, tendam a tornar-se conceitos. A mulher tem uma disposição totalmente não
conceitual, tanto em suas percepções quanto em seu pensamento.

Todos os conceitos são necessariamente baseados nos axiomas lógicos, que faltam nas
mulheres. As mulheres não consideram como guia o princípio da identidade, que por si só
pode dar uma clareza inequívoca a um conceito, nem adotam o principium contradiditionis,
que por si só delimita um conceito como uma entidade totalmente independente de todas as
outras coisas, possíveis ou reais, como sua própria norma. Essa falta de clareza conceitual em
todo pensamento feminino é o pré-requisito dessa “sensibilidade” nas mulheres que concede
direitos ilimitados a associações vagas e que tantas vezes faz comparações entre coisas
bastante diferentes. Mesmo as mulheres com as melhores e menos limitadas memórias nunca
superam essa afetação da sinestesia. Por exemplo, se uma palavra lhes faz lembrar uma certa
cor, ou uma pessoa um certo prato — como de fato acontece frequentemente com as
mulheres — elas ficam completamente satisfeitas com suas associações subjetivas e nem
tentarão descobrir por que foi precisamente essa comparação que lhes ocorreu e até que
ponto foi realmente sugerido pelos fatos reais, nem fazer esforços adicionais e mais
concertados para obter alguma clareza sobre a impressão que aquela palavra ou aquela
pessoa causou neles. Essa autossuficiência e complacência estão relacionadas ao que descrevi
anteriormente como a falta de consciência intelectual da mulher, que será discutida a seguir e
explicada em termos de sua deficiência no pensamento conceitual. Esse hábito de mergulhar
em ressonâncias puramente emocionais, de prescindir de conceitualidade e
compreensibilidade, de derivar sem buscar profundidade, caracteriza o estilo iridescente de
tantos escritores e pintores modernos como um estilo eminentemente feminino. O
pensamento masculino difere fundamentalmente do pensamento feminino por seu desejo de
formas sólidas e, portanto, qualquer “arte atmosférica” é necessariamente uma “arte” sem
forma.

Por essas razões, os conteúdos psíquicos do Homem nunca podem ser simplesmente os gênios
da Mulher em uma forma “explícita” mais desenvolvida. O pensamento da mulher é um
deslizar e esvoaçar pelas coisas, um mordiscar em sua superfície mais rasa, que o Homem,
“buscando as profundezas das coisas”, muitas vezes nem percebe; é uma amostragem e
degustação, um sentimento com as pontas dos dedos, em vez de uma compreensão da coisa
certa. Portanto, porquanto o pensamento da mulher é principalmente um tipo de degustação,
o gosto no sentido mais amplo continua sendo a propriedade feminina primária, o ápice do
que uma mulher pode alcançar sem ajuda e com certa perfeição. O gosto exige uma restrição
do interesse à superfície das coisas; ela busca a harmonia do todo e nunca se detém em partes
bem definidas. Se uma mulher “compreende” um homem — cuja possibilidade ou
impossibilidade será tratada mais adiante — ela terá, por assim dizer, um gosto residual dos
pensamentos que ele colocou diante dela, por mais insípida que essa expressão particular
possa ser. Como ela é incapaz de distinções nítidas de sua parte, é claro que muitas vezes ela
acreditará que o compreendeu, quando na verdade existem apenas analogias muito vagas
entre suas sensações. O que deve ser considerado como o fator decisivo nessas incongruências
é que os conteúdos do pensamento do Homem não estão situados, ainda que em um ponto
mais avançado, na mesma sequência que os da Mulher, mas que existem duas sequências
diferentes que abrangem o mesmo objeto, um masculino conceitual e um feminino não
conceitual. Portanto, a identificação implícita no termo “compreensão” pode não ocorrer
apenas entre um conteúdo posterior altamente desenvolvido e diferenciado e um conteúdo
anterior incipiente, não estruturado, ambos pertencentes à mesma sequência (como no caso
de “expressão”, discutido na página 107): ao contrário, quando se trata de entendimento
entre Homem e Mulher em particular, um pensamento conceitual em uma sequência é
equiparado a um “sentimento” não conceitual, um “hênida” na outra.

A natureza não-conceitual da Mulher, não menos que seu menor grau de consciência, é uma
prova do fato de que ela não possui um eu. Pois é apenas o conceito que transforma um mero
complexo de sensações em um objeto, tornando-o independente de eu o perceber ou não. A
existência de um complexo de sensações depende sempre da vontade do indivíduo: ele pode
fechar os olhos e tapar os ouvidos e deixar de ver ou ouvir, ou pode ficar bêbado ou dormir e
esquecer. Só o conceito é capaz de nos emancipar das sensações eternamente subjetivas,
eternamente psicológicas e eternamente relativas, e criar coisas. O intelecto produz
ativamente objetos por meio de sua função conceitual. Por outro lado, é somente quando uma
função conceitual está presente que podemos falar de um sujeito e de um objeto e distingui-
los. Em todos os outros casos, há apenas um amontoado de imagens semelhantes e diferentes
que se misturam e se fundem sem nenhuma regra ou ordem. É o conceito que transforma as
impressões que flutuam livremente em objetos, produzindo da sensação um objeto, que é
confrontado pelo sujeito, um inimigo contra o qual o sujeito mede sua força. Assim, toda
realidade é constituída pelo conceito. Isso não quer dizer que o objeto em si seja real apenas
na medida em que participa de uma ideia que reside além da experiência, em um

e que é apenas uma projeção incompleta ou semelhança malsucedida da realidade. Ao


contrário, as coisas só se tornam reais na medida em que a função conceitual de nosso
intelecto as afeta. O conceito é o “objeto transcendental” da crítica da razão de Kant, que só
pode corresponder a um “sujeito transcendental”. O sujeito, por sua vez, é a única fonte
daquela misteriosa função objetivadora que produz o “objeto X” kantiano, o objetivo de todo
conhecimento, e que se mostrou idêntico aos axiomas lógicos que, mais uma vez, apenas
manifestam a existência do sujeito. O principium identitatis separa o conceito de tudo o que
não é o conceito em si, e o principium identitatis torna possível contemplar o conceito como se
estivesse sozinho no mundo. Jamais posso dizer sobre um complexo bruto de sensações que
ele é igual a si mesmo: no momento em que aplico a ele o julgamento de identidade, ele já se
tornou um conceito. Assim, é o conceito que confere dignidade e rigor a qualquer construto
perceptivo e a qualquer tecido de pensamentos: o conceito libera qualquer conteúdo
vinculando-o. Existe uma liberdade do objeto, não menos que a liberdade do sujeito, e as duas
correspondem uma à outra. E aqui fica mais uma vez evidente que toda liberdade é uma
ligação voluntária do eu, tanto na lógica quanto na ética. Os seres humanos só se tornam livres
tornando-se a lei: essa é sua única chance de evitar a heteronomia, de serem determinados
por outras coisas e outros seres humanos, inevitavelmente ligados a qualquer arbitrário. É
também por isso que os seres humanos se honram através da função conceitual: eles se
honram concedendo liberdade e autonomia ao seu objeto, tornando-o o objeto de
conhecimento universalmente válido, ao qual se faz referência sempre que dois homens
discutem sobre algo. Só a Mulher nunca confronta as coisas, mas trata-as, e a si mesma ao
mesmo tempo, como lhe apraz. Ela não pode dar nenhuma liberdade ao objeto, porque ela
mesma não tem nenhuma.
O processo pelo qual as sensações alcançam a independência tornando-se conceitos não é
tanto um distanciamento do sujeito, mas um distanciamento da subjetividade. Um conceito é
o que eu penso, escrevo e falo. Isso implica uma crença de que tenho uma relação com isso, e
essa crença é a essência do julgamento. Enquanto os psicólogos imanentistas, Hume, Huxley,
Mach, Avenarius, pelo menos tentaram chegar a um acordo com o conceito identificando-o
com a noção de uma ideia geral e dispensando quaisquer distinções entre um conceito lógico e
um psicológico, é bastante típico deles que simplesmente ignoram o fenômeno do julgamento
e são realmente obrigados a fingir que ele não existe. De seus próprios pontos de vista, eles
não podem se dar ao luxo de mostrar qualquer compreensão daquele elemento contido no
ato de julgamento que é estranho ao monismo do sensacionalismo. Um julgamento contém
aceitação ou rejeição, aprovação ou desaprovação para certas coisas, e o padrão de aprovação
— a ideia de verdade — não pode ser situado nos complexos de percepções que estão sendo
julgadas. Para aqueles que só aceitam sensações, todas as sensações devem necessariamente
ter o mesmo valor, e nenhuma sensação tem uma perspectiva melhor do que qualquer outra
de se tornar um componente do mundo real. Assim, é o empirismo, de todas as coisas, que
destrói a realidade da experiência, e o positivismo acaba sendo o verdadeiro niilismo, apesar
de sua marca aparentemente “sã” e “honesta” — assim como muitos empreendimentos
comerciais respeitáveis provam ser um castelo fraudulento no ar. A ideia de um padrão para a
experiência, a ideia de verdade, não pode ser situada na própria experiência. No entanto, todo
julgamento contém essa mesma pretensão de verdade. Independentemente de quantas
restrições subjetivas sejam aplicadas a ela, ela exige implicitamente validade objetiva
precisamente na forma restrita que lhe foi dada por seu originador. Quem fizer uma
declaração na forma de um julgamento será tratado como se esperasse o reconhecimento
geral do que está dizendo, e se alegar que não tinha tal esperança será acusado de abusar da
forma de julgamento. Por conseguinte, é verdade que a função do juízo contém uma
pretensão ao conhecimento, isto é, à verdade do juízo.

Essa pretensão de conhecimento não significa nada mais, nem menos, do que o sujeito ser
capaz de fazer um julgamento sobre o objeto e de fazer uma afirmação correta sobre ele. Os
objetos que estão sendo julgados são conceitos: o conceito é o objeto do conhecimento. O
conceito confrontava o sujeito com um objeto: o juízo, por sua vez, afirma a possibilidade de
conexão e afinidade entre eles. A exigência de verdade significa que o sujeito é capaz de emitir
um juízo correto sobre o objeto. Assim, a função de julgamento implica a prova de uma
conexão entre o eu e o universo e, de fato, a possibilidade de sua unidade completa. Esta
unidade e nada mais, não a correspondência, mas a identidade do ser e do pensamento, é a
verdade, e nunca é realmente alcançável pelos humanos enquanto humanos,[3] mas é apenas
uma exigência eterna. A liberdade do sujeito e a liberdade do objeto são, em última análise, a
única liberdade. Portanto, a capacidade de julgar — dada a suposição mais comum subjacente,
a suposição de que um ser humano é capaz de fazer julgamentos sobre tudo — é apenas a
expressão lógica seca da teoria da alma humana como o microcosmo. E a resposta à pergunta
vexatória se o conceito ou o julgamento vem primeiro provavelmente terá que ser que
nenhum deles tem prioridade sobre o outro, mas cada um necessariamente determina o
outro. Todo conhecimento visa um objeto e toma a forma de julgamento, sendo seu objeto
um conceito. A função conceitual separou o sujeito e o objeto e tornou o sujeito solitário:
assim, o desejo na pulsão de conhecimento, como todo amor, busca reunir o que foi separado.

Se um ser como a Mulher genuína carece da função conceitual, ela necessariamente também
será deficiente na função de julgamento. Essa afirmação será considerada absurdamente
paradoxal, porque as mulheres falam o suficiente (pelo menos ninguém se queixou do
contrário) e toda conversa é considerada uma expressão de julgamentos. Mas isso não é
correto. O mentiroso, por exemplo, que costuma ser colocado em evidência contra o
significado mais profundo do fenômeno do julgamento, não julga de forma alguma (há uma
“forma interna de julgamento”[4] assim como existe uma “forma interna da linguagem”)
porque, no ato de mentir, ele não aplica o padrão de verdade ao que ele diz, e porque, por
mais universal que seja o reconhecimento que ele tenta impor à sua mentira, ele exclui sua
própria pessoa e, assim, destrói qualquer objetivo validade. Por outro lado, uma pessoa que
mente para si mesma não questiona seus pensamentos sobre sua causa legal perante um
tribunal interno, mas teria o cuidado de não os representar perante um tribunal externo.
Portanto, é possível manter a forma verbal externa de julgamento sem fazer justiça ao seu pré-
requisito interno. Esse pré-requisito interno é um reconhecimento sincero da verdade como o
juiz supremo de tudo o que se diz, e um desejo sincero de passar diante desse juiz com cada
observação que se faz. Mas qualquer relacionamento com a verdade deve ser abrangente e
duradouro, e somente esse relacionamento pode dar origem à veracidade em relação às
pessoas, às coisas e a si mesmo. É por isso que a distinção que acabei de fazer entre mentir
para si mesmo e mentir para os outros é falsa, e quem é subjetivamente inverídico — como a
Mulher, como já enfatizado e explicarei detalhadamente mais tarde — também não pode ter
interesse na verdade objetiva. A mulher não tem entusiasmo pela verdade. É por isso que ela
não é séria, e é por isso que ela não está interessada em ideias. Há muitas escritoras, mas em
vão procuramos pensamentos em qualquer coisa já criada por mulheres artistas, e seu amor
pela verdade (objetiva) é tão pequeno que, na maioria das vezes, eles consideram os
pensamentos nem mesmo dignos de serem emprestados.

Nenhuma mulher tem qualquer interesse real pela ciência, mesmo que ela possa fingir com
sucesso que tem, tanto para si mesma quanto para muitos homens bons que são maus
psicólogos. Podemos ter certeza de que por trás de cada mulher que conseguiu reivindicar
uma conquista científica independente e não totalmente insignificante (Sophie Germain, Mary
Somerville etc.), sempre havia um homem, de quem ela tentava se aproximar dessa maneira.
“Cherchez l’homme” aplica-se muito mais amplamente às mulheres do que “cherchez la
femme” aos homens.

A razão pela qual não houve conquistas significativas por parte das mulheres, mesmo na esfera
da ciência, é que a capacidade de verdade só pode surgir da vontade de verdade, e sua força é
sempre proporcional a essa vontade.

É por isso que o senso de realidade das mulheres é muito menor do que o dos homens, não
importa quantas vezes o oposto tenha sido afirmado. As mulheres sempre subordinam o
conhecimento a um propósito externo e, quando sua intenção de atingir esse propósito é
firme o suficiente, sua visão pode ser muito aguçada e inabalável. Mas o valor que a verdade
em si e por si mesma pode ter nunca será entendido por uma mulher. Portanto, onde a
decepção conflui aos seus desejos (muitas vezes inconscientes), a mulher se tornará
totalmente acrítica e perderá todo o controle sobre a realidade. Isso explica a crença firme de
muitas mulheres de que foram ameaçadas com ataques sexuais e a frequência de suas
alucinações táteis, que parecem mais intensamente reais para elas do que um homem jamais
poderia imaginar. Pois a imaginação da Mulher consiste em erros e mentiras, mas a
imaginação do Homem, se ele é um artista ou um filósofo, é feita de uma verdade superior.

A ideia de verdade é o fundamento de qualquer coisa que mereça o nome de julgamento.


Conhecer qualquer coisa é julgar, e pensar como tal é o mesmo que fazer julgamentos. A
norma de qualquer juízo é o princípio de razão suficiente, assim como o conceito (sendo a
norma da essência) é constituído pelo princípio de contradição e pelo princípio de identidade.
Já indiquei que a Mulher não reconhece o princípio da razão suficiente. Pensar é transformar a
diversidade em unidade. A ideia da função unificadora do nosso pensamento, tanto em
relação à diversidade como apesar dela, baseia-se no princípio da razão suficiente, que
condiciona qualquer juízo a uma razão cognitiva lógica, enquanto os outros três axiomas
lógicos são apenas uma expressão da existência da unidade, sem qualquer referência à
diversidade. Os dois fenômenos, portanto, não podem ser derivados um do outro: o fato de
serem duas coisas diferentes deve, antes, ser visto como uma expressão lógica formal do
dualismo no universo, a existência da diversidade ao lado da unidade. Leibniz certamente
estava certo em distingui-los, e qualquer teoria que negue a posse de lógica da Mulher deve
provar que ela não compreende e obedece nem ao princípio da contradição (e ao princípio da
identidade), que se refere ao conceito, nem ao princípio da razão suficiente, à qual o
julgamento é responsável. A prova é encontrada na falta de consciência intelectual da Mulher.
Se por acaso uma mulher tem uma ideia teórica, ela deixa de segui-la ou de conectá-la com
outras coisas: ela não pensa nas coisas. É por isso que uma filósofa é a noção mais improvável.
A mulher carece de vigor, tenacidade, perseverança no pensamento, bem como qualquer
motivação para pensar, e está totalmente fora de questão que uma mulher sofra de
problemas. Que não haja conversa sobre as mulheres em seu juízo final. O homem com
problemas quer saber, a mulher com problemas quer apenas ser conhecida.

Uma prova psicológica da masculinidade da função de julgamento é que a Mulher percebe o


ato de julgar como masculino e é atraída por ele como por uma característica sexual (terciária).
Uma mulher sempre exige convicções firmes de um homem, para que possa adotá-las. Ela não
tem tempo para duvidar em um homem. Além disso, ela sempre espera que o homem fale, e
considera o discurso do homem como um sinal de masculinidade. As mulheres têm o dom da
linguagem, mas não o dom do discurso. Uma mulher conversa (flerta) ou tagarela, mas não
fala. Ela é mais perigosa, no entanto, quando ela é muda, pois o homem está muito inclinado a
tomar a estupidez pelo silêncio.

Ficou, então, demonstrado que W carece não apenas das normas lógicas, mas também das
funções reguladas por esses princípios, ou seja, a capacidade de formar conceitos e
julgamentos. No entanto, como a conceitualidade por sua própria natureza consiste em
confrontar um sujeito com seu objeto, e como os juízos revelam o parentesco primordial e a
unidade essencial mais profunda do sujeito e seu objeto, devemos mais uma vez negar a posse
de um sujeito pela Mulher.

Tendo provado que a Mulher absoluta é alógica, devo continuar a fornecer provas detalhadas
de sua amoralidade. A profunda falsidade da Mulher, que já pode ser vista como decorrente
de sua incapacidade de compreender a ideia da verdade, e de fato de compreender quaisquer
valores, será discutida mais adiante, mas primeiro destacarei alguns outros aspectos. Ao fazê-
lo, excepcional ingenuidade e extrema cautela são constantemente exigidas, porque há tantas
imitações de comportamento ético, tais cópias aparentemente precisas da moralidade, que as
mulheres provavelmente sempre serão consideradas por muitos como mais morais do que os
homens. Já enfatizei a necessidade de distinguir entre comportamento amoral e antimoral, e
repito que, no que diz respeito à Mulher genuína, só pode haver uma questão do primeiro,
que não envolve nem um senso de moralidade nem mesmo uma tendência a ela. É bem
sabido, tanto pelas estatísticas do crime quanto pela vida cotidiana, que incomparavelmente
menos crimes são cometidos por mulheres do que por homens. É esse fato que os apologistas
atarefados da pureza moral das mulheres sempre invocam em apoio ao seu caso.
Mas, ao tentar resolver o problema da moralidade feminina, a questão crucial não é se uma
pessoa pecou objetivamente contra a ideia, mas apenas se ela tem um núcleo subjetivo que
poderia ter estabelecido uma relação com a ideia, e o valor que ela trouxe em questão ao
cometer um crime. Um criminoso do sexo masculino certamente nasce com seus impulsos
criminosos, mas ele sente, apesar de todas as teorias de “insanidade moral”, que por sua ação
ele perdeu seu próprio valor e seu direito de viver. Todos os criminosos são covardes e não há
nenhum cujo orgulho e auto-respeito tenham sido aumentados em vez de diminuídos por sua
má ação, e que assumiria a responsabilidade de justificá-la.

O criminoso masculino tem a mesma apreciação inata da ideia de valor que um homem que
quase não possui os impulsos criminosos que dominam o primeiro. A mulher, por outro lado,
muitas vezes afirma estar inteiramente certa, mesmo que seja culpada do ato mais mesquinho
imaginável. Enquanto um verdadeiro criminoso do sexo masculino responde a todas as
acusações com um silêncio vago, uma mulher pode expressar indignada sua surpresa e
ressentimento diante de quaisquer dúvidas lançadas sobre seu perfeito direito de agir como
bem entender. As mulheres estão convencidas de seus “direitos” sem nunca se julgarem. O
criminoso masculino também não faz um balanço de si mesmo, mas em vez de exigir seus
direitos, ele se apressa em evitar pensar na ideia de direito, porque isso o lembraria de sua
culpa. Isso também prova que ele já teve um relacionamento com a ideia e não quer ser
lembrado de sua infidelidade ao seu melhor eu. Nenhum criminoso do sexo masculino jamais
acreditou que sua punição fosse injusta.[5] Uma mulher, por outro lado, está convencida da
malícia de seus acusadores, e ninguém poderá provar a ela contra sua vontade que ela fez algo
errado. Se for feita uma tentativa de persuadi-la, ela muitas vezes vai chorar, pedir perdão,
“reconhecer seu erro” e, de fato, acreditar sinceramente que ela sente, mas apenas quando
está com vontade e porque dissolver-se em lágrimas lhe dá um certo prazer sensual. O
criminoso masculino é obstinado e não pode ser derrotado tão prontamente quanto uma
mulher cujo desafio espúrio pode dar lugar a um sentimento de culpa igualmente espúrio se
seu acusador souber como lidar com ela. Nenhuma mulher conhece a dor solitária da culpa, a
tortura de se sentar em sua cama, chorando e desejando morrer de vergonha pela desgraça
que trouxe sobre si mesma, e uma aparente exceção (a mulher penitente, a devota que castiga
seu corpo) também mostra no devido tempo que uma mulher só se sente pecadora se estiver
em companhia.

Portanto, não estou dizendo que a Mulher é má e antimoral. Sustento que, muito pelo
contrário, ela nunca pode ser má, mas é apenas amoral e mesquinha.

A compaixão feminina e a modéstia feminina são os outros dois fenômenos geralmente


citados pelos defensores da virtude feminina. A bondade feminina e a simpatia feminina acima
de tudo deram origem ao belo mito da alma da mulher, e o argumento final a que recorre
qualquer crença na moralidade superior da Mulher é a Mulher como enfermeira, como irmã
da misericórdia. Não gosto de mencionar este ponto e não o teria levantado, mas sou forçado
a fazê-lo por uma objeção que me foi feita oralmente e que provavelmente será seguida por
outros.

É míope considerar a enfermagem das mulheres como uma prova de sua compaixão, porque
indica exatamente o oposto. Um homem jamais seria capaz de assistir aos tormentos dos
enfermos. Ele ficaria tão desgastado por sofrer com eles que seria totalmente incapaz de
cuidar deles. Se observarmos enfermeiras, ficamos surpresos ao ver como elas permanecem
calmas e “gentis”, mesmo diante dos mais terríveis espasmos dos moribundos, e isso é bom,
porque os homens, que não suportam a dor e a morte, fariam enfermeiros ruins. Um homem
desejaria aliviar a agonia, retardar a morte, em uma palavra, ajudar. Onde nenhuma ajuda é
possível, ele não tem lugar: é aí que o cuidado se destaca, e para cuidar apenas as mulheres
são adequadas. No entanto, seria muito errado avaliar as atividades das mulheres nessa área
de qualquer ponto de vista que não seja utilitário.

Há ainda o fato de que para a Mulher o problema da solidão e da sociedade simplesmente não
existe. Ela é particularmente adequada para ser uma companheira (uma leitora, uma
enfermeira) porque ela nunca se encontra na posição de ter que sair da solidão para a
companhia. Para um homem, a solidão e a companhia sempre serão um problema, embora
muitas vezes apenas uma das duas seja uma possibilidade. Uma mulher não abre mão de
nenhuma solidão para cuidar de um paciente, como teria que fazer se sua ação fosse
realmente chamada de moral: pois uma mulher nunca é solitária, ela não conhece o amor nem
o medo da solidão. Esta é uma prova do fato de que ela não é mônada, porque todas as
mônadas têm limites. As mulheres por natureza são ilimitadas, mas não ilimitadas da mesma
forma que um gênio, cujos limites são ao mesmo tempo os limites do mundo. Pelo contrário,
elas nunca são separadas por nada real, seja da natureza ou dos seres humanos.[6]

Essa fusão é eminentemente sexual e, portanto, toda compaixão feminina se manifesta no


contato físico com o objeto de sua compaixão. É uma ternura animal, que precisa acariciar e
confortar. Aqui temos outra prova da ausência da linha nítida que sempre separa duas
personalidades. A mulher não honra o sofrimento de seu semelhante ficando em silêncio, mas
acredita que pode acabar com isso falando: tão forte é seu senso de vínculo entre eles como
seres naturais, não espirituais. Onde a sexualidade deixou de existir, toda compaixão está
ausente: em uma velha não há sequer uma centelha dessa suposta bondade, e assim a velhice
da Mulher prova indiretamente que toda a sua compaixão era apenas uma forma de fusão
sexual, mesmo quando dizia respeito a uma pessoa do mesmo sexo.

Viver em fusão, um dos fatos mais importantes e de maior alcance da existência feminina, é
também a razão do sentimentalismo de todas as mulheres, sua prontidão vulgar e
desavergonhada para derramar lágrimas com a maior facilidade. Não é à toa que existem
apenas mulheres enlutadas profissionais e que um homem que chora em companhia não é
muito bem visto. Se algumas pessoas chorarem, a Mulher chorará com elas; se os outros
rirem, exceto dela, ela rirá com eles; e isso tem a ver com uma grande parte da compaixão
feminina.

Somente a Mulher dirige realmente seus lamentos e suas lágrimas aos outros, exigindo sua
piedade. Esta é uma das provas mais conclusivas da falta de vergonha psíquica da Mulher. A
mulher provoca a piedade de estranhos para poder chorar com eles e ter pena de si mesma
ainda mais do que já fez. De fato, não é exagero dizer que a Mulher, mesmo quando está
chorando sozinha, sempre chora com os outros, a quem ela conta suas aflições em sua mente,
e se emociona muito no processo. A “autopiedade” é um atributo eminentemente feminino:
primeiro uma mulher junta-se às outras para se fazer objeto da piedade alheia e depois,
profundamente comovida, começa a chorar com elas pela “pobre mulher”, isto é, ela mesma.
Pela mesma razão, um homem nunca pode ficar mais envergonhado do que quando se pega
no ato de ser impelido à autopiedade, na qual o sujeito se torna realmente um objeto.

A compaixão feminina, na qual até Schopenhauer acreditava, é soluçar e lamentar por si


mesma, à menor provocação e sem a menor tentativa de reprimir o impulso por vergonha.
Como todo sofrimento, a verdadeira compaixão, que é um sofrimento com os outros, deve ser
modesta, se é um sofrimento real: de fato, nenhum sofrimento pode ser tão modesto quanto
a compaixão e o amor, porque esses dois impulsos nos tornam conscientes dos limites
intransponíveis de qualquer individualidade com mais força. O amor e sua modéstia serão
discutidos mais adiante, mas na compaixão, na genuína empatia masculina, sempre há
vergonha e um sentimento de culpa, porque minha situação não é tão ruim quanto a do outro
homem, porque não sou ele, mas um ser separado, que também é mantido à parte dele por
circunstâncias externas. A simpatia masculina é o principium individuationis enrubescendo de
si mesma: é por isso que toda compaixão feminina é intrusiva, enquanto a simpatia masculina
se esconde da vista.

Isso revelou parcialmente a natureza da modéstia das mulheres. O resto só pode ser discutido
mais tarde em conexão com a histeria. Dado o zelo ingênuo com que todas as mulheres usam
vestidos decotados, onde quer que as convenções sociais permitam, é difícil ver como alguém
ainda pode acreditar na virtude de uma modéstia interna inata no sexo feminino. Alguém é ou
não é modesto, e uma modéstia que é regularmente dispensada em certos momentos não é
modéstia.

A prova absoluta da falta de vergonha das mulheres (e uma indicação de onde pode vir a
exigência de modéstia externa, que as mulheres muitas vezes observam com tanto escrúpulo)
é o fato de as mulheres entre si sempre se despirem completamente sem nenhum
constrangimento, enquanto os homens sempre tentam esconder sua nudez uns dos outros.
Quando as mulheres estão sozinhas, comparam avidamente os encantos umas das outras, e
todos as apresentações são muitas vezes submetidas, não sem certa lascívia, a um exame
preciso e minucioso, permanecendo sempre a consideração principal inconscientemente
sempre o valor que um homem atribuirá a esta ou àquela atração. Um indivíduo do sexo
masculino não está interessado na nudez de qualquer outro indivíduo do sexo masculino,
enquanto toda mulher sempre despe todas as outras mulheres em sua mente e, assim,
demonstra a falta de vergonha geral interindividual do sexo. Um homem acha embaraçoso e
desagradável imaginar a sexualidade de seu semelhante. Uma mulher procura em sua mente
as relações sexuais que outra mulher pode estar tendo, assim que a conhece. Na verdade, ela
avalia a outra mulher exclusivamente em termos de seu parceiro sexual.

Voltarei a isso em grande detalhe. Enquanto isso, chegamos a um ponto em que nossa
investigação atual toca mais uma vez uma questão que foi discutida no segundo capítulo desta
parte. Para ter vergonha de alguma coisa, é preciso estar consciente disso, e um sentimento de
vergonha, como a consciência, sempre requer diferenciação. A mulher, que é puramente
sexual, pode parecer assexuada porque ela é a própria sexualidade e porque, nela, a
sexualidade não se destaca, nem física nem psiquicamente, nem no espaço nem no tempo,
como no homem. A mulher, sempre imodesta, pode dar a impressão de ser modesta, porque
não tem modéstia que possa ser violada. Assim, a Mulher nunca está nua ou sempre nua, o
que se preferir: nunca nua porque nunca atinge realmente um sentido genuíno de nudez,
sempre nua, porque lhe falta a outra coisa que precisaria estar presente para torná-la
consciente de ser (objetivamente) nua e que poderia dar-lhe um impulso interno para se
cobrir. O fato de se poder estar nu mesmo vestido é algo não compreendido por mentes
simples, mas refletiria mal para um psicólogo se ele infeccionasse a menor falta de nudez pela
presença de um manto. E uma mulher, objetivamente, está sempre nua, mesmo sob sua
crinolina e seu corpete.[7]

Tudo isso está relacionado com o que a palavra “eu” realmente significa para a Mulher. Se
alguém perguntar a uma mulher o que ela entende por si mesma, ela será incapaz de imaginar
outra coisa além de seu corpo. O eu da Mulher é sua aparência externa. O “esboço do eu” de
Mach em seu “Comentários introdutórios: antimetafísico” representa, portanto, com bastante
exatidão o eu da mulher perfeita. Se E. Krause diz que a auto-observação implícita na palavra
“eu” é fácil de realizar, isso não é tão ridículo quanto Mach acredita, com a aprovação de
muitos outros que parecem ter gostado mais dessa ilustração do filosófico ‘muito barulho por
nada’ nos livros de Mach.

A vaidade específica das mulheres também está enraizada no eu feminino. A vaidade


masculina é uma emanação da vontade de valor, e sua manifestação objetiva, a sensibilidade,
é o desejo de que a acessibilidade do valor não seja questionada por ninguém. O que confere
valor e atemporalidade a um homem nada mais é que sua personalidade. Esse valor supremo,
que não é um preço, porque, segundo Kant, não pode ser “substituído por outra coisa como
seu equivalente”, mas que “se eleva acima de todo preço e, portanto, não tem equivalente”, é
a dignidade do homem. As mulheres, apesar do que diz Schiller, não têm dignidade — a ideia
de uma dama foi inventada apenas para preencher essa lacuna — e sua vaidade será guiada
pelo que consideram seu valor supremo; isto é, lutará pela preservação, valorização e
reconhecimento da beleza física. A vaidade de W é, portanto, por um lado, um certo gozo de
seu próprio corpo, que é peculiar apenas a ela e que é estranho até mesmo ao homem com a
maior beleza (masculina).[8] É um prazer que até a menina mais feia parece ter ao se tocar ou
se contemplar no espelho, assim como em muitas sensações orgânicas. No entanto, mesmo
nesses casos, é o pensamento do homem a quem esses encantos um dia pertencerão que se
afirma com força total e uma sensação de antecipação mais excitante, provando assim mais
uma vez que a mulher pode estar sozinha, mas nunca solitária. Por outro lado, então, a
vaidade feminina é a necessidade de sentir que seu corpo é admirado, ou melhor, desejado, e
de fato desejado por um homem sexualmente excitado.

Essa necessidade é tão forte que há realmente muitas mulheres pelas quais essa admiração —
luxuriosa por parte do homem, invejosa por parte de outras mulheres — é suficiente para
viver. Eles podem lidar com isso e quase não têm outras necessidades.

A vaidade feminina, portanto, sempre envolve consideração pelos outros. As mulheres vivem
apenas em seus pensamentos sobre os outros. A sensibilidade da Mulher diz respeito a este
mesmo ponto. Uma mulher jamais se esquecerá se outra a achar feia, pois uma mulher
sozinha nunca se considera feia, mas apenas inferior, e mesmo isso só quando se lembra das
vitórias de outras mulheres sobre ela em relação aos homens. Não há mulher que não se ache
bela e desejável quando se contempla no espelho. Para a mulher, sua própria feiura nunca se
tornará uma realidade dolorosa, como acontece com um homem, mas ela tentará enganar a si
mesma e aos outros sobre isso até o fim.

Qual então pode ser a única fonte do tipo feminino de vaidade? Coincide com sua falta de um
eu inteligível, de algo que possa ser considerado permanente e absolutamente positivo, e
decorre de sua deficiência em qualquer valor intrínseco. Como as mulheres não têm valor
intrínseco aos seus próprios olhos, elas se esforçam para se tornar objetos de avaliação dos
outros, para adquirir valor aos olhos de outros que as desejam e admiram. A única coisa no
mundo que tem um valor absoluto e infinito é a alma, e é por isso que Cristo lembrou aos
seres humanos que eles “são mais valiosos do que muitos pardais”. Mas a Mulher não se avalia
na medida em que foi fiel à sua própria personalidade, ou em que foi livre, embora essa seja a
única maneira pela qual qualquer ser com um eu possa avaliar a si mesmo. Não há dúvida de
que uma mulher genuína só se valoriza tanto quanto o homem que a escolheu, e que ela
depende do casamento não apenas social e financeiramente, mas em sua essência mais
profunda, porque ela só adquire valor através seu marido ou amante. Portanto, a Mulher não
pode ter valor real, porque lhe falta o valor intrínseco da personalidade humana. As mulheres
sempre extraem seu valor de coisas estranhas, como sua riqueza e seus bens, o número e o
esplendor de seus vestidos, a posição de seu camarote no teatro, seus filhos e, acima de tudo,
seus admiradores e maridos. Se uma mulher brigar com outra, ela sempre saberá, em última
instância, ferir e humilhar seu adversário de maneira mais profunda e infalível, referindo-se à
posição social mais alta, à maior riqueza, à reputação e aos títulos, e também à maior
juventude e as mais numerosas admiradoras de seu marido. Para um homem, por outro lado,
a maior desgraça, sobretudo aos seus próprios olhos, é confiar em algo estranho a ele, em vez
de defender seu valor intrínseco em si mesmo contra qualquer ataque a ele.

Outra prova da falta de alma de W é a seguinte. Embora (de acordo com a famosa fórmula de
Goethe) ser ignorada por um homem seja uma provocação extrema para W tentar
impressioná-lo — já que a capacidade de o fazer é todo o propósito e valor de sua vida — M
encontrará uma mulher que o trata maldosamente e rudemente eo ipso desagradável. Nada
faz M mais feliz do que ser amado por uma garota, e nesse caso o risco de ele se apaixonar é
muito grande, mesmo que ela não o cative logo de início. Pois o amor de um homem de quem
ela não gosta equivale apenas a uma gratificação de sua vaidade ou a uma irritação e
despertar de desejos adormecidos. Uma mulher sempre reivindica igual direito a todos os
homens do mundo, e o mesmo vale para sua afeição por amigos do mesmo sexo, que também
envolve alguma sexualidade em todos os momentos.

O comportamento das formas sexuais intermediárias, que são as únicas empiricamente dadas,
deve ser determinado em tais casos de acordo com sua posição entre M e W. Para fornecer
um exemplo nesta parte de meu estudo, enquanto M é facilmente arrebatado e inflamado por
qualquer sorriso nos lábios de uma garota, os homens femininos geralmente prestam atenção
apenas às mulheres e homens que os ignoram, assim como W prontamente abandona
qualquer admirador de quem ela tenha certeza e que, portanto, não possa mais aumentar seu
valor intrínseco. Esta é também a razão pela qual as mulheres só são atraídas e permanecem
fiéis no casamento por um homem que tem sucesso com outras mulheres: pois elas não
podem conferir nenhum valor novo a ele e opor seu julgamento ao de todos os outros. No
caso de um homem genuíno, o exato oposto é verdadeiro.

A falta de vergonha e a falta de coração da Mulher se manifestam pelo fato de que, e pela
maneira como ela pode falar sobre ser amada. Um homem sente vergonha quando é amado,
porque sente que, em vez de ser o doador ativo e livre, recebeu um dom que o torna passivo e
que o une, e porque sabe que, como um todo, nunca merece totalmente o amor;
consequentemente, ele observará o mais profundo silêncio, mesmo que não tenha tido um
relacionamento íntimo com a garota e não tenha motivos para temer comprometê-la falando
sobre isso. Uma mulher se gaba de ser amada e se gaba disso para outras mulheres para ser
invejada por elas. Ela não percebe, como um homem, o amor de outro como uma apreciação
de seu valor real e uma compreensão mais profunda de sua personalidade. Pelo contrário, ela
sente que esse amor lhe confere um valor que ela não teria de outra forma, e que lhe confere
uma existência e uma essência que se tornam dela pela primeira vez e que ela usa para provar-
se aos outros.

Isso também explica a incrível memória das mulheres para elogios, mesmo que tenham
recebido na juventude, conforme discutido em um capítulo anterior. É sobretudo através dos
elogios que as mulheres adquirem um valor, e por isso exigem que o homem seja “galante”. A
galanteria é a maneira mais barata de conferir valor a uma mulher e, embora custe muito
pouco ao homem, é algo importante para uma mulher, que nunca esquece uma homenagem e
que se sustenta com a mais insípida lisonja enquanto vive. Lembramos apenas o que
consideramos um valor e, se for assim, vale a pena considerar o que significa que as mulheres
têm a memória mais excepcional para elogios em particular. Os elogios são algo que pode
conferir valor às mulheres apenas porque elas não têm um padrão natural de valor e não
sentem que têm dentro de si nenhum valor absoluto que despreze tudo além de si mesmo. E
assim o próprio fenômeno da cortesia e da “cavalaria” prova que as mulheres não têm alma:
de fato, é quando um homem trata uma mulher da maneira mais galante que ele está menos
preparado para atribuir a ela uma alma ou um valor intrínseco, e ele despreza e menospreza-a
mais profundamente precisamente quando ela se sente mais elevada. —

O quanto a Mulher é amoral pode ser visto pelo fato de que ela imediatamente esquece um
ato imoral que cometeu, e que um homem que se esforça para educar uma mulher é obrigado
a lembrá-la uma e outra vez. Nesse caso, como resultado do tipo específico de falsidade
feminina, ela pode realmente parecer perceber por um momento que fez algo errado e, assim,
enganar a si mesma e o homem em questão. Em contraste, um homem não se lembra de nada
tão profundamente quanto qualquer culpa em que tenha incorrido. Isso novamente revela a
memória como um fenômeno eminentemente moral. Perdoar e esquecer, não perdoar e
compreender, são a mesma coisa. Quem se lembra de uma mentira se recrimina com ela. A
razão pela qual uma mulher não se culpa por uma ação mesquinha é que ela nunca se torna
realmente consciente disso — já que não tem relação com a ideia moral — e a esquece. É por
isso que é perfeitamente compreensível que ela o negue. Tolamente, as mulheres são
consideradas inocentes e, de fato, mais morais do que os homens, porque para elas as
questões éticas nunca se tornam problemáticas. Mas tudo isso se deve apenas ao fato de que
elas nem sabem o que é imoral. Afinal, uma criança também não pode receber crédito por ser
inocente: apenas um velho pode receber crédito por sua inocência — que não existe.

A auto-observação também é um traço eminentemente masculino — uma aparente exceção, a


auto-observação histérica de algumas mulheres, não pode ser examinada neste momento -,
assim como um sentimento de culpa e remorso. As autopunições das mulheres, essas
estranhas imitações de um sentimento genuíno de culpa, serão discutidas juntamente com a
forma feminina de auto-observação. Pois o sujeito da auto-observação é idêntico ao sujeito
moral: ele só pode apreender os fenômenos psíquicos avaliando-os.

É perfeitamente aceitável, e de acordo com o positivismo, que Auguste Comte declare que a
auto-observação é uma contradição em termos e um “absurdo abismal”. Dada a estreiteza da
consciência, é óbvio e não é preciso enfatizar que não é possível que um evento psíquico e
uma percepção separada dele ocorram ao mesmo tempo: é a imagem de memória “primária”
(Jodl) que é observada e avaliado, e o que é julgado é uma espécie de pós-imagem. Mas dada
uma gama de fenômenos de mesmo valor, não seria possível selecionar nenhum para ser
objeto e afirmado ou negado, como acontece em qualquer ato de auto-observação. A
entidade que observa, julga e avalia todos os conteúdos em tal caso não pode estar contida
nos próprios conteúdos e ser um conteúdo entre outros. É o eu atemporal que leva em conta
tanto o passado quanto o presente e, assim, cria a “unidade de autoconsciência”, a memória
contínua, que falta à mulher. Pois não é a memória, como Mill supõe, ou a continuidade, como
Mach acredita, que produz a crença em um eu que eles afirmam não existir à parte da
memória e da continuidade. Pelo contrário, a memória e a continuidade, assim como a
reverência e o desejo de imortalidade, são gerados a partir do valor do eu, cujo conteúdo
nenhum deve ser uma função do tempo e pode ser aniquilado.[9]
Se a Mulher tivesse algum valor intrínseco e a vontade de mantê-lo contra quaisquer desafios,
ou se pelo menos ela tivesse um desejo de auto-respeito, não seria possível para ela ser
invejosa. Todas as mulheres provavelmente são invejosas, mas a inveja só pode existir onde
essas qualidades estão faltando. A inveja sentida pelas mães quando as filhas de outras
mulheres se casam mais cedo do que as suas é um sintoma de verdadeira mesquinhez e
pressupõe, como qualquer inveja, uma total falta de senso de justiça. É na ideia de justiça, que
é a aplicação prática da ideia de verdade, que lógica e ética estão tão intimamente associadas
quanto no valor teórico da própria verdade.

Sem justiça não pode haver sociedade. A inveja, por outro lado, é a qualidade absolutamente
anti-social. A mulher é de fato totalmente anti-social, e se em épocas anteriores a formação de
qualquer sociedade estava justamente ligada à posse de uma individualidade, aqui está o teste
desse fato. A mulher não se importa com o Estado, com a política, com o companheirismo
aconchegante, e quaisquer associações de mulheres que não admitem homens logo se
desintegram. Finalmente, a família, longe de ser um arranjo social, é o arranjo absolutamente
anti-social: quando os homens se casam, eles se retiram prontamente de quaisquer sociedades
que até então frequentavam, seja como visitantes ou como membros. Escrevi isso antes da
publicação das valiosas pesquisas etnológicas de Heinrich Schurtz, que demonstram com
riqueza de material que os primórdios da sociedade se encontram nas associações dos homens
e não na família.

Pascal explicou maravilhosamente como os seres humanos procuram a sociedade apenas


porque não querem sofrer a solidão e desejam esquecer-se de si mesmos. Isso também mostra
a completa congruência entre minha posição anterior, que negava a capacidade da Mulher de
ser solitária, e minha posição atual, que sustenta que ela é anti-social por natureza.

Se a Mulher tivesse um eu, ela também teria um senso de propriedade, sua e dos outros. Mas
o desejo de roubar é muito mais desenvolvido nas mulheres do que nos homens: os chamados
cleptomaníacos (ladrões sem necessidade) são quase exclusivamente mulheres. A mulher
aprecia o poder e a riqueza, mas não a propriedade. As cleptomaníacas femininas, quando
consideradas culpadas de roubo, geralmente explicam que tiveram uma noção de tudo que
lhes pertencia. As bibliotecas de empréstimo são frequentadas principalmente por mulheres.
Muitos deles seriam afluentes o suficiente para comprar várias bibliotecas, mas carecem de
uma apreciação mais próxima do que lhes pertence e do que apenas tomaram emprestado.
Aqui também é claramente visível a conexão entre individualidade e disposição social: assim
como é preciso ter uma personalidade para compreender a personalidade de outro, é preciso
estar interessado em adquirir propriedade própria para não tocar a propriedade dos outros.

Uma parte necessária de toda personalidade, ainda mais do que propriedade, é um nome e
uma relação próxima com ela. E aqui os fatos falam tão alto que se espanta ver quão
raramente sua linguagem é ouvida. As mulheres não têm nenhum apego ao seu nome. Isso se
prova pelo simples fato de que abandonam o próprio nome e adotam levianamente o do
homem com quem se casam, sem nunca sentir que essa mudança de nome é em si
significativa, e sem lamentar nem por um momento a perda do antigo nome; e há também
uma razão profunda, inerente à natureza da Mulher, pela qual a propriedade da mulher (pelo
menos até pouco tempo atrás) era geralmente transferida para o homem. Tampouco há
qualquer sinal de luta por parte das mulheres contra essa separação em particular: pelo
contrário, na fase do namoro elas já permitem que seu amante ou pretendente lhes dê nomes
que ele gosta. E mesmo que se casem com muita relutância com um homem que não amam,
nenhuma mulher jamais se queixou em particular de ter que se despedir de seu nome, e toda
mulher abandona e entrega seu nome sem mostrar a menor reverência pelo fato de ter sido
uma vez chamado por ele. Na verdade, ela geralmente exige novos nomes de seu pretendente
enquanto espera impacientemente o sobrenome de seu marido, mesmo que apenas por
novidade. No entanto, o nome é pensado para ser um símbolo de individualidade.
Aparentemente, apenas os membros das raças mais baixas da terra, por exemplo, os
bosquímanos da África do Sul, não têm nomes pessoais, porque a necessidade natural de
distinguir uma pessoa da outra não está suficientemente desenvolvida neles. A razão pela qual
a Mulher é basicamente sem nome[10] é que, por razões inerentes à própria ideia dela, ela
não tem personalidade. Uma observação importante que, uma vez feita, nunca deixaremos de
repetir, está ligada a isso. Se um homem entra em uma sala e uma mulher o vê, ouve seus
passos ou simplesmente suspeita de sua presença, ela imediatamente se tornará uma pessoa
completamente diferente. Sua expressão e seus movimentos mudam incrivelmente de
repente. Ela ajeita o cabelo, junta as saias e as levanta ou mexe nas roupas, e todo o seu ser se
enche de uma expectativa meio desavergonhada, meio ansiosa. A única coisa que pode ser
questionada em cada caso é se ela se envergonha mais por causa de seu sorriso descarado ou
sorri mais descaradamente por causa de seu rubor.

É uma percepção infinitamente profunda e duradoura de Schopenhauer que a alma, a


personalidade, o caráter são idênticos ao livre-arbítrio, ou pelo menos que a vontade coincide
com o eu na medida em que o eu é pensado em relação ao absoluto. Como as mulheres
carecem de um eu, elas também não podem possuir uma vontade. Somente aqueles que não
têm vontade própria, nenhum caráter no sentido mais elevado da palavra, podem ser tão
facilmente influenciados quanto uma mulher pela mera presença de outra pessoa e tornar-se
funcionalmente dependentes, em vez de compreender livremente, essa outra pessoa. A
mulher é o melhor meio, e M é o seu melhor hipnotizador. Só por essa razão, é um mistério
por que as mulheres são consideradas particularmente aptas para serem médicas, uma vez
que os próprios médicos mais exigentes admitem que a maior parte do que conseguiram até
hoje — e provavelmente continuará assim — se deve ao seu efeito sugestivo em seus
pacientes.

Em todo o reino animal, W é mais facilmente hipnotizado do que M, e como os fenômenos


hipnóticos estão intimamente relacionados com os eventos mais cotidianos será evidente a
seguir. Observe com que facilidade W é “infectado” pelo riso ou pelas lágrimas (como já
indiquei no contexto da compaixão feminina). Observe também como ela fica impressionada
com tudo o que é relatado nos jornais, com que facilidade ela cai nas superstições mais
estúpidas, com que rapidez ela tenta qualquer cura milagrosa que um vizinho lhe recomendou.

Quem não tem caráter também terá poucas convicções. É por isso que W é ingênuo, acrítico e
incapaz de entender o protestantismo. No entanto, embora seja certo que todo cristão,
mesmo antes de ser batizado, nasce católico ou protestante, ninguém tem o direito de
considerar o catolicismo feminino simplesmente porque é mais acessível às mulheres do que o
protestantismo. Para esta classificação seria necessário considerar diferentes princípios
caracterológicos, que não podem ser discutidos neste tratado.

Assim, foi amplamente provado que W não tem alma e não tem eu, nem individualidade, nem
personalidade, nem liberdade, nem caráter, nem vontade. A importância desta conclusão em
relação à psicologia dificilmente pode ser superestimada. Na verdade, significa que a
psicologia de M e a psicologia de W devem ser tratadas separadamente. A vida psíquica de W
pode ser descrita em termos puramente empíricos, enquanto qualquer psicologia de M deve
visar o eu como a empena mais alta do edifício, como Kant percebeu.
A visão de Hume (e de Mach) de que existem apenas “impressões” e “pensamentos” (A B C . . .
e α β γ [Alfa, Beta, Gama]...) tem geralmente levado ao banimento da psique da psicologia.
Essa visão proclama que o mundo inteiro só pode ser entendido como uma imagem em um
espelho angular ou um caleidoscópio; transforma tudo em uma dança sem sentido e sem
fundamento de “elementos”; destrói a possibilidade de estabelecer uma base sólida para o
pensamento; ela aniquila o conceito de verdade e com ele a própria realidade da qual afirma
ser a única filosofia. Mas, além de tudo isso, também tem a principal responsabilidade pelo
estado miserável da psicologia atual.

Essa psicologia atual orgulhosamente se autodenomina “psicologia sem alma”, como o muito
superestimado Friedrich Albert Lange colocou pela primeira vez. Acredito que minha
investigação tenha mostrado que sem a assunção de uma alma não é possível lidar com
fenômenos psíquicos, nem no caso de M, que deve ser concedido ter uma alma, nem no caso
de W, que não tem alma. Nossa psicologia hoje é uma psicologia eminentemente feminina. É
por isso que um exame comparativo dos sexos é particularmente instrutivo, e por isso tive o
cuidado especial de realizá-lo tão completamente. Pois é aqui que podemos ver mais
claramente por que somos obrigados a supor a existência do eu, e como a confusão entre a
vida psíquica do homem e a vida psíquica da mulher (no sentido mais amplo e profundo) pode
ser considerada como o fator isolado mais enganador na tentativa de criar uma psicologia
geral, embora (ou precisamente porque) não tenha sido conscientemente afirmado.

A questão que surge agora é se uma psicologia de M como ciência é possível. E a resposta, por
enquanto, deve ser não. Aqui devo esperar ser encaminhado para os estudos de psicólogos
experimentais, e mesmo aqueles que permaneceram mais sóbrios em meio ao frenesi dos
experimentos podem se surpreender com o que eu disse e perguntar se esses estudos não
contam para nada. Mas a psicologia experimental não produziu nenhuma informação sobre os
elementos mais profundos da vida psíquica do homem, e ninguém pode pensar em mais do
que referências esporádicas a essas inúmeras séries de experimentos, que nunca foram
sistematicamente analisadas. Como demonstrei, é sobretudo o método de começar do lado de
fora e tentar penetrar até o âmago a partir daí que está errado, e é por isso que a psicologia
experimental não produziu uma única explicação para as profundas conexões internas entre os
fenômenos psíquicos. Além disso, como a técnica de medição psicofísica demonstrou, a
verdadeira natureza dos fenômenos psíquicos, em oposição aos físicos, implica que as próprias
funções que talvez possam revelar as conexões e transições entre esses fenômenos devem,
mesmo na melhor das hipóteses, revelar-se descontínuas e, portanto, fechado para análise
diferencial. Com a perda de continuidade, porém, também se perde a possibilidade teórica de
alcançar o ideal absolutamente matemático de qualquer ciência. Aliás, aqueles que sabem que
o espaço e o tempo são criados exclusivamente pela psique nunca esperarão que a geometria
e a aritmética sejam capazes de dar conta exaustivamente de seu criador.

Não há psicologia científica do homem; pois é da natureza da psicologia tentar deduzir o não
dedutível, e seu objetivo final, para colocá-lo mais claramente, teria que ser provar, isto é,
deduzir, a existência e a essência de todo ser humano. Mas nesse caso todos os seres
humanos, mesmo em sua natureza mais profunda, seriam determinados e os efeitos de uma
causa, e nenhum ser humano deveria qualquer respeito a qualquer outro ser humano como
membro de um reino de liberdade e valor infinito: uma vez que eu pudesse ser totalmente
deduzido e totalmente subsumido, eu teria perdido todo o meu valor e seria de fato sem alma.
A suposição de uma determinação constante, com a qual qualquer psicologia começa sua
tarefa, é incompatível com a liberdade da vontade e (como deve ser acrescentado) do
pensamento. Portanto, qualquer um que acreditasse em um sujeito livre, como, por exemplo,
Kant e Schopenhauer, era obrigado a negar a possibilidade da psicologia como ciência,
enquanto qualquer um que acreditasse na psicologia — como Hume ou Herbart (os
fundadores da psicologia moderna) — não podia mais considerar a liberdade do sujeito nem
mesmo como uma possibilidade teórica.

Esse dilema explica a triste situação da psicologia de hoje em relação a todas as questões de
princípio. Os esforços para banir a vontade da psicologia, as tentativas constantemente
repetidas de derivar a vontade de sensações e sentimentos, estão basicamente certas em
sugerir que a vontade não é um fato empírico. A vontade nunca pode ser encontrada e
demonstrada na experiência porque é em si o pré-requisito de qualquer dado psicológico
empírico. Suponha que uma pessoa que gosta de dormir de manhã tente se observar no
momento em que decide se levantar da cama. Uma decisão contém o eu inteiro e indiviso
(assim como o ato de prestar atenção) e, portanto, falta a dualidade que seria necessária para
perceber a vontade. O processo de pensar é tão pouco quanto o processo de desejar um fato
palpável que poderia ser apreendido pela psicologia científica. Pensar é julgar, mas o que é
julgamento para a percepção interna? Nada. É um elemento inteiramente estranho, que se
soma a qualquer receptividade e que não pode ser derivado dos blocos de construção
arrastados pelos Fasolts e Fafners psicológicos: cada novo ato de julgamento destrói de novo
os trabalhos dos atomistas sensacionais. O mesmo se aplica ao conceito. Ninguém pensa em
conceitos e, no entanto, os conceitos existem, assim como os julgamentos existem. Em última
análise, os oponentes de Wundt também estão absolutamente certos ao dizer que a
apercepção não é um fato psicológico empírico nem um ato perceptível. Wundt é mais
profundo que seus adversários — apenas os mais superficiais podem ser psicólogos
associativos — e certamente tem motivos para vincular apercepção com vontade e atenção.
Mas a apercepção não é mais um fato empírico do que vontade e atenção, ou julgamento e
conceito. Se todas essas coisas, incluindo o pensar e o querer, estão presentes, e se não
podem ser demonstradas e desafiam qualquer tentativa de análise, só temos a opção de
aceitar ou não aceitar algo que por si só torna possível qualquer vida psíquica.

Portanto, devemos acabar com toda a conversa sem sentido sobre uma apercepção empírica e
perceber como Kant estava certo em aceitar apenas a apercepção transcendental. Se não
penetrarmos atrás da experiência, não nos restará nada além da disciplina infinitamente
atenuada e lamentavelmente estéril do atomismo sensacionalista com suas leis de associação,
ou então a psicologia se torna um anexo metodológico da fisiologia e da biologia, como
acontece com Avenarius, cujo tratamento sutil de um segmento bastante limitado de toda a
vida psíquica foi seguido apenas por algumas, e bastante infelizes, tentativas de
desenvolvimento posterior.

Assim, a psicologia sem filosofia provou ser totalmente inadequada para iniciar uma
verdadeira compreensão dos seres humanos, e nenhuma promessa para o futuro pode dar
uma garantia firme de que ela conseguirá fazê-lo. Quanto melhor for em psicologia, mais se
cansará de todas essas psicologias de hoje que insistem em ignorar a unidade sobre a qual
todos os eventos psíquicos são fundados, até que no final recebemos regularmente uma
surpresa desagradável por um parágrafo final. sobre o desenvolvimento de uma personalidade
harmoniosa. A “psicologia como ciência empírica” tentou construir essa unidade, que por si só
é o verdadeiro infinito, a partir de um número maior ou menor de partes componentes, e
derivar da experiência a condição de toda experiência. O empreendimento fracassará e se
renovará por toda a eternidade, porque o movimento intelectual do positivismo e do
psicologismo tende a persistir enquanto houver mentes medíocres e naturezas indolentes que
não desejam pensar as coisas até o fim. Aqueles que, como os filósofos do idealismo, não
desejam sacrificar a psique, devem abandonar a psicologia: aqueles que defendem a psicologia
matam a psique. A psicologia sempre tenta deduzir o todo das partes e apresentá-lo como
condicionado a outra coisa, enquanto qualquer reflexão mais profunda mostra que os
fenômenos parciais fluem do todo como sua fonte última. Assim, a psicologia nega a psique, e
a psique, por definição, nega qualquer estudo de si mesma: a psique nega a psicologia.

Meu relato tomou o lado da psique contra a psicologia ridícula e inútil sem alma. De fato,
permanece duvidoso se a psicologia pode ser compatível com a alma, ou uma ciência que
tenta encontrar leis causais e normas criadas por ela mesma para pensar e querer, compatíveis
com a liberdade de pensamento e a vontade. Tampouco é provável que a suposição de uma
“causalidade psíquica” específica [11] altere o fato de que a psicologia, ao demonstrar em
última análise sua própria impossibilidade, fornecerá a prova mais brilhante dos direitos do
conceito de liberdade, por mais amplamente ridicularizados e difamados que sejam
atualmente.

Isso não é de forma alguma projetado para inaugurar uma nova era da psicologia racional. Ao
contrário, minha intenção, seguindo Kant, é assegurar que a ideia transcendental da alma,
desde o início, nos sirva de guia em nossa ascensão através da sucessão de condições ao
absoluto, mas de forma alguma “em relação descida ao condicionado”. O que eu tive que
rejeitar foram as tentativas de dar o salto absoluto para fora do condicional (no final de um
livro de 500–1500 páginas). A alma é o princípio regulador que deve ser mantido em mente e
seguido por qualquer exame verdadeiramente psicológico, em oposição à análise
sensacionalista, dos fenômenos individuais. Caso contrário, qualquer relato da vida psíquica,
por mais detalhado, amoroso e simpático que seja, revelará um grande buraco negro aberto
em seu centro.

É difícil entender como alguns pesquisadores, que nunca tentaram analisar fenômenos como
vergonha e culpa, fé e esperança, medo e arrependimento, amor e ódio, saudade e solidão,
vaidade e sensibilidade, ambição e desejo de imortalidade, podem ter a temeridade de negar o
eu, porque são incapazes de encontrá-lo como a cor de uma laranja ou o sabor da água com
sabão. Ou como Mach e Hume explicariam o simples fato do estilo, senão pela
individualidade? Além disso: os animais nunca se assustam quando se vêem em um espelho,
mas nenhum ser humano seria capaz de passar toda a sua vida em uma sala de espelhos. Ou
esse medo, o medo do doppelganger[²] (do qual, caracteristicamente, a mulher é livre[12]),
também pode ser explicado em termos “biológicos” ou “darwinistas”? Basta pronunciar a
palavra doppelganger para fazer o coração da maioria dos homens bater mais rápido. Aqui,
qualquer psicologia puramente empírica necessariamente chega ao seu fim, e é necessária
profundidade. Pois como essas coisas poderiam ser rastreadas até um estágio selvagem ou
animal anterior sem a proteção da civilização, o que Mach acredita explicar o medo de crianças
pequenas como uma reminiscência ontogenética. Aliás, insinuei isso apenas para lembrar aos
“imanentistas” e “realistas ingênuos” que neles também há coisas das quais . . .

Por que ninguém está satisfeito e de pleno acordo se ele é classificado como um nietzschiano,
um herbartiano, um wagnerita etc.? Se, em uma palavra, ele é subsumido? Mach também
deve ter tido a experiência de ser subsumido por um amigo querido ou outro como positivista,
idealista ou qualquer outra coisa. Ele pensaria que foi adequadamente descrito se alguém
dissesse que o sentimento que se tem de ser assim subsumido por outros estava meramente
relacionado à quase completa certeza de uma pessoa da combinação única dos “elementos”
nela, ou era apenas mau cálculo? E, no entanto, estritamente falando, esse sentimento nada
tem a ver com desacordo no sentido em que se pode discordar de alguma hipótese científica.
Também é bem diferente e não deve ser confundido com alguém que se descreve como um
wagnerita. Tal afirmação, em última análise, sempre implica uma avaliação positiva do
wagnerismo, porque o próprio falante é um wagnerita. Assumindo que somos ou podemos ser
sinceros, devemos admitir que ao dizer isso estamos elevando também Wagner. Por outro
lado, quando outras pessoas falam sobre nós, geralmente temos medo de que eles pretendam
fazer o oposto. É por isso que um homem pode dizer muito sobre si mesmo que seria muito
doloroso para ele ouvir dos outros. Como Cyrano de Bergerac confessa sobre as piadas mais
loucas contra ele:

Eu mesmo os sirvo, com bastante entusiasmo,


Mas não permito que outro me sirva.

De onde vem então esse sentimento, que mesmo as pessoas de baixa qualidade têm? Ela vem
de uma consciência, ainda que tênue, de seu próprio eu, de sua individualidade, que recebe
menos do que seu quinhão ao ser subsumida. Essa repulsa é o arquétipo de qualquer
indignação.

Finalmente, não adianta considerar um Pascal ou um Newton, por um lado, como pensadores
de extrema genialidade e, por outro, como sendo contaminados por uma série de preconceitos
tacanhos, que “nós” há muito deixamos para trás. Somos realmente tão superiores a essa
idade, por causa de nossos trens elétricos e psicologias empíricas? Se existem valores culturais,
a cultura pode realmente ser medida pelo estado da ciência, que tem apenas um caráter social
e nunca individual, não demonstrável, ou pelo número de bibliotecas e laboratórios públicos?
A cultura é algo externo aos humanos? Não é, antes, algo principalmente dentro dos
humanos?

Algumas pessoas podem se sentir muito superiores a Euler, certamente um dos maiores
matemáticos de todos os tempos, que disse uma vez, quando estava escrevendo uma carta,
que faria exatamente a mesma coisa se por acaso se encontrasse no corpo de um rinoceronte.
Não desejo a todo custo defender a afirmação de Euler, que pode ser característica de um
matemático e nunca teria sido feita por um pintor, mas o que me parece bastante injustificável
é simplesmente zombar de Euler ou desculpá-lo com o “ inteligência limitada de seu tempo”,
sem entender suas palavras ou pelo menos fazer um esforço para compreendê-las.

Assim, mesmo em psicologia, não é possível, a longo prazo, administrar sem o conceito do Eu,
pelo menos em relação aos seres humanos. Se esse conceito é compatível com uma psicologia
nomotética no sentido de Windelband, ou seja, com as leis psicológicas, parece muito
duvidoso, mas deve, no entanto, ser reconhecido como necessário. Talvez a psicologia siga o
curso que me senti capaz de traçar em um capítulo anterior e se torne biografia teórica. Mas
nesse caso será mais provável que se conscientize das limitações de qualquer psicologia
empírica.

O fato de que nos homens sempre permanece algo inefável e insolúvel no que diz respeito a
qualquer psicologia concorda maravilhosamente com o fato adicional de que casos
francamente de “duplex” ou “personalidade multiplex”, isto é, uma duplicação ou
multiplicação do eu, têm sido observados apenas em mulheres. A Mulher Absoluta pode ser
desmontada. O homem, em toda a eternidade, nunca pode ser completamente desmantelado,
mesmo através do melhor tipo de caracterologia, muito menos através de experimentos. Ele
contém um núcleo de ser que não admite dissecção. W é um agregado e, portanto, dissociável
e físsil.

Portanto, é extremamente cômico e divertido ouvir os meninos da escola primária moderna


falar sobre a alma da Mulher (como uma ideia platônica), sobre o coração das mulheres e seus
mistérios, sobre a psique da mulher moderna, etc. Uma das qualificações necessárias de um
obstetra popular também parece ser uma crença na alma da Mulher. Pelo menos muitas
mulheres gostam de ouvir as pessoas falarem sobre sua alma, mesmo sabendo (na forma de
hênida) que a coisa toda é uma farsa. Mulher como a esfinge! Um absurdo pior quase nunca
foi articulado, uma fraude pior nunca perpetrada. O homem é infinitamente mais misterioso,
incomparavelmente mais complexo. Basta sair para a rua para descobrir que dificilmente há
uma mulher cujo rosto não a denuncie prontamente. Tão infinitamente pobre é o registro dos
sentimentos e humores das mulheres, enquanto o rosto de muitos homens exige um longo e
duro escrutínio.

Neste ponto também nos aproximamos de uma resolução da questão se estamos diante do
paralelismo ou da interação entre o psíquico e o físico. No caso do paralelismo psicofísico, W
aplica-se a plena coordenação das duas sequências: a involução senil da Mulher é
acompanhada pela extinção de sua capacidade de esforço intelectual, que apenas acompanha
e serve aos propósitos sexuais. Um homem nunca envelhece completamente no mesmo
sentido que uma mulher. No seu caso, a atrofia intelectual não é absolutamente inevitável e
está ligada à atrofia física apenas em casos isolados. Menos ainda é a debilidade senil a ser
observada em um indivíduo cuja masculinidade intelectual está plenamente desenvolvida, isto
é, em um gênio.

Não é à toa que os paralelistas mais rígidos entre os filósofos, Spinoza e Fechner, foram
também os deterministas mais rígidos. Com M, o sujeito livre e inteligível, devemos descartar
qualquer paralelismo psicofísico, que exigiria que todo fenômeno mental, em analogia precisa
com a mecânica, fosse determinado por uma cadeia de causalidades. De modo geral, então, a
questão do ponto de vista que deveria ser adotado ao lidar com a psicologia dos sexos
pareceria resolvida. No entanto, essa visão encontra uma dificuldade extraordinária em uma
série de fatos estranhos que desempenham um papel absolutamente decisivo na real falta de
alma de W, mas que, estranhamente, quase ninguém até agora parece ter tratado como um
problema sério. Esses fatos exigem uma explicação para um comportamento muito peculiar
das mulheres.

Observou-se há muito tempo que a Mulher considera a clareza do pensamento masculino, em


oposição à imprecisão feminina, como uma característica sexual do Homem, e o mesmo foi
apontado mais tarde com referência à função masculina da fala estruturada, expressando
firmes juízos lógicos. O que estimula sexualmente a Mulher deve ser uma propriedade de M. A
determinação de um caráter masculino causa uma impressão sexual semelhante na mulher, e
ela despreza um homem que cede a outro homem. Nesses casos, as pessoas costumam falar
sobre uma influência moral da Mulher sobre o Homem, embora ela esteja apenas tentando
garantir para si o complemento sexual entre suas propriedades complementares em sua
totalidade. As mulheres exigem masculinidade dos homens e se sentem no direito de mostrar
o mais alto grau de indignação e desprezo se um homem decepcionar suas expectativas a esse
respeito. Assim, uma mulher, por mais paqueradora e inconfiável que seja, ficará amarga e
zangada se vir quaisquer vestígios de flerte ou falsidade em um homem. Por mais covarde que
ela seja, o homem deve ser corajoso. É muitas vezes esquecido que isso é apenas um egoísmo
sexual, que tenta proteger seu próprio prazer puro de seu complemento. E, portanto,
dificilmente há uma prova mais conclusiva da falta de alma da Mulher a ser encontrada na
experiência do que o fato de que as mulheres exigem uma alma do homem, e que a bondade
pode ter um efeito sobre elas, mesmo que elas mesmas não sejam realmente boas. A alma é
uma característica sexual que não é exigida de nenhum outro modo e para nenhum outro
propósito que a grande força muscular ou a ponta de um bigode pontudo que faz cócegas. A
expressão grosseira pode ofender, mas o fato não pode ser alterado. Finalmente, o impacto
mais forte na Mulher é causado pela vontade masculina. E ela tem um senso notavelmente
sutil de se o “eu quero” de um homem é mero esforço e fanfarronice ou determinação real.
Neste último caso o efeito é enorme.

Mas como pode a Mulher, que em si mesma não tem alma, perceber uma alma no Homem?
Como ela pode julgar sua moralidade, já que ela é amoral? Como ela pode compreender sua
força de caráter, sem ter um caráter ela mesma? Como ela pode sentir a vontade dele, mesmo
que ela não tenha vontade própria?

Com essas perguntas formulei o problema extremamente difícil que minha investigação terá
que enfrentar daqui para frente.

No entanto, antes de tentar a solução, devo fortalecer as posições que alcancei por todos os
lados e protegê-las contra quaisquer ataques que, na opinião de algumas pessoas, possam ser
capazes de abalá-las.

Notas:

[¹]: Undine é uma novela escrita por Friedrich de La Motte na qual Undine, um espírito
aquático, casa-se com um cavaleiro chamado Huldebrand, visando ganhar uma alma.
Hoffmann fez uma adaptação da novela em sua Ópera; bem como Pyotr Tchaikovsky, Alexei
Lvov e outros.

[²]: Doppelgänger é um sósia ou duplo não-biologicamente relacionado de uma pessoa viva,


por vezes retratado como um fenômeno fantasmagórico ou paranormal e geralmente visto
como um prenúncio de má sorte, ou ainda para se referir ao "irmão gêmeo maligno" ou ao
fenômeno da bilocação.

1 - Cf. também Eclesiastes, 7:28: “Encontrei um homem entre mil; mas uma mulher entre
todas essas não encontrei.

2 - A esta altura, seria fácil pegar as criações das mulheres mais famosas e mostrar, por meio
de alguns exemplos, quão pouca dúvida pode haver de gênio nelas. Mas não tive coragem de
empreender uma pesquisa tão longa em fontes históricas e filológicas, que não só seria difícil
de executar sem qualquer pedantismo, mas que também poderia ser facilmente realizada por
qualquer pessoa que goste dessas coisas.

3 -Portanto, não deve ser assumido por nenhuma filosofia, mas apenas aspirado como marco
de fronteira final.

4 - Termo do Dr. W. Jerusalém.

5 - O criminoso à sua maneira sente-se culpado mesmo sem ter feito nada de errado. Ele
sempre espera ser acusado por outros de fraude, roubo, etc., mesmo que não tenha
realmente cometido o crime, porque sabe que é capaz disso. É também por isso que ele sente
que ele mesmo foi pego sempre que outro malfeitor é preso.
6 - Porque a Mulher não percebe o outro ser humano como um ser separado, ela nunca sofre
de seu próximo, e só por isso ela pode sempre se sentir superior a todos os seres humanos.

7 -Estou plenamente ciente das objeções que podem ser feitas a isso e das razões que serão
afirmadas uma e outra vez para a modéstia da Mulher. Eles serão discutidos no décimo
segundo capítulo.

8 - NB[Note bene - Note bem]. Muitos dos chamados “homens bonitos” são metade mulheres.

9 - Isso finalmente deixou bem claro o que se entende por esse valor particular que nega o
tempo criando o passado, como foi postulado no capítulo V.

10 - Cf. As palavras de Klingsor a Kundry no Parsifal de Wagner, no início do Ato II [traduzido


por Andrew Porter (Londres, 1986), p. 101]:

Surgir! Surgir! Para mim!

Seu mestre te chama, mulher sem nome,

Primeira diaba! Rosa de Hades!

Herodias era você, e o que mais?

Gundryggia, então, Kundry aqui!

Venha aqui! Venha aqui agora, Kundry!

Seu mestre chama: levante-se!

11 - É muito compreensível que as pessoas sejam facilmente levadas a uma suposição tão
errônea. Quem, por exemplo, ao ler este livro, não terá a sensação na transição entre a
primeira parte e a segunda parte de que as duas tratam de coisas bem diferentes, o primeiro
sobre conexões externas, o segundo sobre conexões internas?

12 - Ninguém nunca ouviu falar de doppelgangers femininas. As mulheres são chamadas de


sexo tímido, porque a distinção comumente feita entre diferentes tipos de medo é
insuficiente. Há um medo conhecido apenas pelos homens.

X — Maternidade e Prostituição
A principal objeção ao meu relato até agora será que ele não pode ser válido para todas as
mulheres. Será argumentado que o que eu disse pode se aplicar a algumas, ou mesmo a
muitas, mas que existem outras…

Não parti com a intenção de lidar com formas específicas de feminilidade. As mulheres podem
ser classificadas de acordo com vários pontos de vista, e deve-se certamente tomar cuidado
para não afirmar que o que é verdade de um tipo extremo, que pode ser provado existir em
todos os lugares, mas que muitas vezes é quase inteiramente oculto pela predominância de
seu exato oposto , é verdade para a generalidade das mulheres. As mulheres podem ser
classificadas de várias maneiras, e há muitos caráteres femininos diferentes, embora neste
contexto a palavra “caráter” deva ser usada apenas em um sentido empírico. Todas as
características do Homem têm notáveis analogias com as da Mulher, que muitas vezes dão
origem a anfibolias (uma comparação interessante desse tipo será feita mais adiante neste
capítulo). No entanto, além disso, o caráter do Homem está sempre imerso, e firmemente
ancorado, na esfera do inteligível, tornando mais compreensível a confusão entre a teoria da
alma e a caracterologia, que critiquei anteriormente (p. 73). As diferenças caracterológicas
entre as mulheres nunca estão enraizadas no solo primordial com profundidade suficiente
para resultar no desenvolvimento de uma individualidade, e talvez não haja uma única
propriedade da Mulher que não possa ser modificada, suprimida ou mesmo aniquilada no
curso da vida pela vontade do Homem.

Até agora, ignorei deliberadamente a questão de que outras diferenças podem existir entre
indivíduos igualmente masculinos ou igualmente femininos. Embora o método de explicar as
diferenças psicológicas de acordo com o princípio das formas sexuais intermediárias me
fornecesse apenas um guia entre milhares para essa área mais complexa de todas, concentrei-
me nele com exclusão de outros pela simples razão de que a introdução de qualquer outro
princípio, a expansão de minhas reflexões lineares em um plano, teria interrompido essa
primeira tentativa de uma orientação caracterológica completa, destinada a avançar além da
determinação de temperamentos ou tipos de mentalidade.

O desenvolvimento de uma caracterologia específica das mulheres deve ser adiado para um
estudo separado, mas meu tratado também leva em conta as diferenças individuais entre as
mulheres, e espero ter evitado o erro de fazer falsas generalizações e tirado apenas conclusões
como aplicam-se da mesma forma e no mesmo grau a todas as mulheres igualmente
femininas, sem exceção. Até este ponto, tenho me preocupado apenas com W em geral. No
entanto, como meus argumentos serão contrariados principalmente com referência a um tipo
de Mulher, devo começar selecionando um par de opostos entre muitos.

Todas as coisas ruins e odiosas que eu disse sobre as mulheres serão combatidas com a noção
da Mulher como mãe. É necessário, portanto, discutir a Mulher como mãe, mas ela não pode
ser compreendida sem que se considere ao mesmo tempo seu antípolo, o que mostra a
realização do outro, diametralmente oposto, potencial dentro da Mulher. É somente assim
que o tipo da mãe pode ser claramente definido e as propriedades da mãe podem se destacar
nitidamente contra tudo que lhes é estranho.

O oposto polar do tipo da mãe é o tipo da prostituta. A inevitabilidade dessa distinção não é
mais dedutível do que o fato de que Homem e Mulher são opostos. Assim como a última só é
vista, e não provada, a primeira também deve ser vista, ou deve ser feita uma tentativa de
encontrá-la na realidade, a fim de verificar se a realidade se encaixa prontamente no padrão.
Tratarei das qualificações que devem ser feitas oportunamente. Por enquanto, vamos supor
que as mulheres sempre têm algo dos dois tipos, às vezes mais de um, às vezes mais do
outro. Esses tipos são a mãe e a prostituta.

Essa dicotomia seria mal compreendida se não fosse distinguida de uma distinção popular.
Costuma-se dizer que a Mulher é mãe e amante[¹]. Não consigo ver nenhum ponto nessa
distinção. A qualidade de amante deve denotar o estágio que deve necessariamente preceder
a maternidade? Se assim for, não pode ser um traço caracterológico permanente. E o que o
termo “amante” nos diz sobre a própria mulher além do fato de estar envolvida em um caso
amoroso? Acrescenta-lhe um atributo essencial, e não completamente externo? É possível
amar tanto a mãe quanto a prostituta. No máximo, a palavra “amante” poderia ter a intenção
de descrever um grupo de mulheres a meio caminho entre os dois polos, ou seja, uma forma
intermediária entre a mãe e a prostituta, a menos que se sentisse necessário afirmar
explicitamente que o relacionamento de uma mãe com o pai de seus filhos é diferente de sua
relação com os próprios filhos, e que ela é amante na medida em que se deixa amar e se
entrega ao homem que a ama. Mas nada é ganho como resultado, porque isso pode ser feito
da mesma forma tanto pela mãe quanto pela prostituta, se a ocasião surgir. O conceito de
“amante” nada diz sobre as qualidades da pessoa envolvida no caso amoroso, e isso é bastante
natural, pois serve apenas para indicar a primeira etapa cronológica da vida de uma mesma
mulher, que é posterior seguida pela maternidade como segunda etapa. Além disso, como a
condição do amante é apenas um traço acidental de sua pessoa, a distinção entre ela e a mãe
torna-se bastante ilógica, porque a maternidade inclui um elemento interno e não indica
apenas o fato de uma mulher ter dado à luz. O que constitui a natureza mais profunda da
maternidade será agora o objeto de nossa investigação.

O fato de que maternidade e prostituição são opostos polares provavelmente pode ser
deduzido da simples observação de que boas donas de casa e mães têm mais filhos, enquanto
a cocotte[²] nunca tem mais do que alguns, e a prostituta é principalmente estéril. Deve-se
notar que o tipo de prostituta inclui não apenas as mulheres que se vendem, mas também
muitas meninas ditas boas e mulheres casadas, algumas das quais nunca cometem adultério
não porque as circunstâncias não são favoráveis, mas porque elas mesmas não permitem que
as coisas cheguem a esse ponto. Portanto, nenhuma exceção deve ser feita ao meu uso do
termo “prostituta”, que ainda será analisado, em um sentido muito mais amplo do que o de
mulheres que se vendem. A prostituta se distingue da cocotte mais prestigiosa e da hetaira
mais refinada apenas por uma absoluta indiferenciação e uma total ausência de memória, que
a faz viver de uma hora para outra ou de um minuto para o outro, sem a menor ligação entre
um dia e outro. Além disso, o tipo prostituta poderia se manifestar mesmo que houvesse
apenas um homem e uma mulher no mundo, pois se expressa em um tipo específico de
comportamento em relação a um indivíduo do sexo masculino.

O simples fato de uma fecundidade mais baixa me dispensaria da obrigação de discutir uma
visão comum que tenta atribuir a prostituição, fenômeno profundamente enraizado na
natureza inata de uma pessoa, a abusos sociais, como a falta de emprego das mulheres, e que
então culpa a sociedade atual em particular, alegando que é a ganância econômica dos líderes
masculinos que torna tão difícil para as mulheres solteiras levar uma vida honesta, ou que o
celibato, também dito ser exclusivamente produto de fatores econômicos, exige a prostituição
como sua necessidade complemento. No entanto, devo acrescentar que a prostituição não é
encontrada apenas entre as prostitutas pobres, mas as meninas abastadas também às vezes
renunciam a todas as vantagens de sua reputação, preferindo vagar abertamente na rua —
pois a verdadeira prostituição pertence à rua — em vez de ter escondido casos de amor; e que
as mulheres são preferidas para muitos empregos em lojas, escritórios e serviços postais,
telegráficos e telefônicos, onde é necessária uma atividade puramente mecânica, porque W é
muito menos complexo e, portanto, tem necessidades mais simples do que M, e porque o
capitalismo descobriu muito antes da ciência que as mulheres podiam receber menos por
causa de seu estilo de vida inferior. Aliás, até as jovens prostitutas costumam ter dificuldade
para sobreviver, porque têm que pagar aluguéis altos, usar roupas incomuns e manter seus
cafetões. O fenômeno frequente de prostitutas retornarem à sua ocupação anterior depois de
casadas demonstra quão profundamente arraigada está nelas a inclinação ao seu modo de
vida. Além disso, por razões desconhecidas, mas obviamente localizadas em sua constituição
inata, as prostitutas são muitas vezes imunes a várias infecções, às quais as “mulheres
decentes” costumam ser vulneráveis. Finalmente, a prostituição sempre existiu e não cresceu
em proporção a partir das conquistas da era capitalista; na antiguidade fazia até parte das
instituições religiosas de certos povos, por exemplo, os fenícios.
Assim, a prostituição não pode de forma alguma ser considerada como algo imposto à Mulher
pelo Homem. Muitas vezes, um homem é certamente o culpado se uma menina tem que
deixar o serviço doméstico e se encontra desempregada. Mas a capacidade de recorrer à
prostituição em tal caso deve estar na natureza da própria fêmea humana. Não se pode
construir no ar. Para os homens genuínos, que sofrem mais golpes financeiros e que sentem a
pobreza mais intensamente do que as mulheres, a prostituição ainda é algo estranho, e os
prostitutos masculinos (encontrados entre garçons, cabeleireiros etc.) são sempre formas
sexuais intermediárias avançadas. Assim, a aptidão e inclinação para a prostituição, assim
como a capacidade para a maternidade, está organicamente presente na Mulher desde o
nascimento.

Isso não quer dizer que toda mulher que se torna prostituta o faz exclusivamente como
resultado de uma necessidade interior. A maioria das mulheres talvez tenha ambas as
possibilidades, a mãe e a prostituta; só a virgem — com desculpas, porque sei que isso vai
aborrecer os homens — só a virgem não existe. Diante desses casos ambivalentes, o fator
decisivo só pode ser um homem, capaz de fazer de uma mulher mãe por meio de sua
personalidade, não apenas pela relação sexual, mas até mesmo por um único olhar.
Schopenhauer dizia que um ser humano deve, estritamente falando, remontar sua existência
ao momento em que seu pai e sua mãe se apaixonaram. Isso não está correto. Idealmente, o
nascimento de um ser humano deve ser datado a partir do momento em que uma mulher vê
pela primeira vez, ou apenas ouve a voz dele, o pai de seu filho. Por mais de sessenta anos, sob
a influência de Johannes Müller, T. Bischof e C. Darwin, a ciência biológica e médica, a teoria
da procriação e a ginecologia adotaram uma atitude inteiramente negativa em relação à
questão da “impressão materna”. Mais tarde tentarei desenvolver uma teoria da impressão
materna. Aqui, gostaria apenas de observar que pode não ser o caso de que o fenômeno da
impressão materna não possa existir, simplesmente porque não concorda com a visão de que
um espermatozóide e um óvulo sozinhos ajudam a criar um novo indivíduo. A impressão
materna existe, e a ciência deveria se esforçar para explicá-la, em vez de simplesmente negá-la
como algo impossível e fingir que poderia haver evidência científica empírica suficiente para
justificar tal afirmação. Em uma disciplina a priori como a matemática posso excluir a
possibilidade de 2 × 2 = 5 no planeta Júpiter, mas a biologia só conhece proposições de
“generalidade comparativa” (Kant). Ao mesmo tempo, escrevendo em defesa do conceito de
impressão materna, e considerando sua negação como mesquinha, não pretendo afirmar que
todas as malformações, ou mesmo um grande número delas, resultem dele. No momento
estou interessado apenas na possibilidade de influenciar a prole sem ter relações sexuais com
a mãe. E aqui me arrisco a dizer[1] que assim como Schopenhauer e Goethe, com sua visão
unânime sobre a teoria da cor, provavelmente estão a priori certos contra todos os físicos do
passado, presente e futuro, algo que é verdadeiro para Ibsen (em A Dama do Mar) e Goethe
(em Afinidades Eletivas) não será simplesmente provado falso pela opinião especializada de
todas as faculdades médicas do mundo.

A propósito, um homem cujo impacto sobre uma mulher pudesse ser grande o suficiente para
fazer com que seu filho se parecesse com ele, mesmo que a criança não tivesse se
desenvolvido a partir de seu esperma, teria que complementar sexualmente a mulher em um
grau extremamente alto. A raríssima ocorrência de tais casos deve-se à improbabilidade de um
encontro entre tais complementos perfeitos, e não deve ser considerada uma objeção válida à
possibilidade teórica dos fatos apresentados por Goethe e Ibsen.
Se uma mulher vai encontrar um homem que pode torná-la a mãe de seu filho através de sua
mera presença é uma questão de sorte. Nessa medida, é imaginável que os destinos de muitas
mães e prostitutas possam ter se tornado o oposto do que elas realmente se tornaram. Por
outro lado, não são apenas inúmeros exemplos de mulheres que permanecem fiéis ao tipo de
mãe mesmo sem tal homem, mas também há casos em que este homem se apresenta e
mesmo sua presença não impede a mulher de finalmente e irrevogavelmente voltar-se para a
prostituição. Portanto, não temos alternativa senão assumir duas predisposições inatas,
contrastantes, distribuídas entre diferentes mulheres em diferentes proporções: a mãe
absoluta e a prostituta absoluta. A realidade se encontra entre os dois: certamente não há
mulher completamente sem os instintos de uma prostituta. (Muitas pessoas vão negar isso e
perguntar como é possível reconhecer o elemento prostituta em muitas mulheres que
parecem ser tudo menos cocottes. Por enquanto, responderei a isso apenas apontando como
as mulheres estão prontas e dispostas a permitir que um estranho as toque indecentemente e
roce nelas. Se aplicarmos esse padrão, descobriremos que não há mãe absoluta). No entanto,
também não há mulher completamente sem impulsos maternos, embora eu deva admitir que
encontrei com muito mais frequência aproximações extraordinárias da prostituta absoluta do
que tais graus de maternidade a ponto de eclipsar todas as qualidades da prostituta nelas.

Como mostra mesmo a primeira e mais superficial análise conceitual da natureza da


maternidade, o objetivo principal da vida da mãe é realizar um filho, enquanto na prostituta
absoluta esse objetivo de cópula parece estar completamente ausente. Um exame mais
detalhado deverá considerar, sobretudo, como a prostituta e a mãe se relacionam com duas
coisas: a relação de cada uma com o filho e a relação de cada uma com a relação sexual.

Para começar, a mãe e a prostituta se distinguem pela relação da primeira com a criança. A
única preocupação da prostituta absoluta é o homem, a da mãe só pode ser a criança. O
critério mais seguro é a relação com a filha: uma mulher só pode ser chamada de mãe se
nunca invejar a maior juventude ou beleza de sua filha, se ela nunca ressentir de sua filha a
admiração dos homens, mas se identificar completamente com ela e se está tão satisfeita com
o admirador de sua filha como se ele fosse seu próprio.

A mãe absoluta, cuja única preocupação é o filho, tornar-se-á mãe através de qualquer
homem. Ver-se-á que as mulheres que em sua infância brincavam mais avidamente com
bonecas, e que mesmo quando garotas jovens amavam e gostavam muito de cuidar de
crianças, não são muito exigentes em sua escolha de homens e prontamente aceitam qualquer
marido que possa mais ou menos prover para elas e que é aceitável para seus pais e parentes.
Se tal menina se tornou mãe, não importa por quem, ela idealmente deixa de se interessar por
qualquer outro homem. A prostituta absoluta, por outro lado, abomina crianças mesmo em
sua própria infância, e mais tarde ela usa uma criança, no máximo, para atrair um homem para
si mesma por um pretenso romance de mãe e filho, calculado para comovê-lo. Ela é a mulher
que tem o desejo de atrair todos os homens, e como não há mãe absoluta, será possível
descobrir em cada mulher pelo menos um traço dessa vaidade universal, que nunca renunciará
a sua reivindicação a todos os homens no mundo.

Aqui é perceptível uma semelhança formal entre a mãe absoluta e a meretriz absoluta. Ambos
são essencialmente pouco exigentes no que diz respeito à individualidade de seu
complemento sexual. A primeira aceita qualquer homem que possa servi-la para ter um filho e
não precisa de outro homem assim que tem o filho: esta é a única razão para chamá-la de
“monogâmica”. Esta se entrega a qualquer homem que possa lhe proporcionar prazer erótico,
o que, para ela, é um fim em si mesmo. Este é o ponto onde os dois extremos se encontram, e
onde podemos, portanto, esperar obter uma visão da natureza da Mulher como tal.

Na verdade, devo declarar que a visão comum de que a Mulher é monogâmica e o Homem
polígamo, que eu mesmo compartilhei por muito tempo, está totalmente errada. O oposto é o
caso. Não se deve se deixar enganar pelo fato de que as mulheres muitas vezes esperam e, se
possível, escolhem aquele homem que pode conferir o maior valor a elas — o homem mais
magnífico e mais famoso, o “primeiro de todos”. Esse desejo distingue as mulheres dos
animais, porque os animais não se esforçam para adquirir nenhum valor, nem aos seus
próprios olhos e por si mesmos (como os homens) ou pelos outros e aos olhos dos outros
(como as mulheres). Mas só os tolos poderiam ver nisso algum motivo de louvor, pois mostra
inequivocamente que a Mulher não tem nenhum valor intrínseco. Esse desejo realmente exige
ser satisfeito, mas definitivamente não envolve a ideia moral da monogamia. O Homem está
em condições de doar e transferir valor para a Mulher. Ele pode dar e quer dar, mas nunca
pode receber seu próprio valor, como a Mulher faz, dos outros. Uma mulher, então, procura
adquirir o máximo de valor possível, avançando para ser escolhida por um homem que possa
lhe dar mais valor, enquanto os motivos de um homem para se casar são completamente
diferentes. Ele considera o casamento, pelo menos inicialmente, como a culminação do amor
ideal, como uma realização, embora seja muito duvidoso que o casamento possa realmente
alcançar tanto. O casamento, para ele, é ainda permeado pela ideia totalmente masculina de
fidelidade (que pressupõe continuidade e um eu inteligível). Costuma-se dizer que a Mulher é
mais fiel do que o Homem, porque a fidelidade, para o homem, é uma coação que se impôs a
si mesmo, ainda que de livre e espontânea vontade e com plena consciência. Ele muitas vezes
não prestará atenção a essa ordenança abnegada, mas sempre acreditará ou de alguma forma
sentirá que está errado se a infringir. Se ele comete adultério, ele não escutou seu eu
inteligível. Para a Mulher, o adultério é um jogo excitante, no qual apenas os motivos de
segurança e reputação desempenham um papel, e a ideia de moralidade nunca surge. Não há
mulher que nunca tenha sido infiel ao marido em seus pensamentos sem se repreender por
isso. As mulheres entram no casamento trêmulas e cheias de desejo inconsciente, e cometem
adultério com a mesma expectativa e descuido, porque não têm um eu que esteja fora do
alcance do tempo. A força motriz da lealdade a um contrato só pode ser encontrada no
Homem; A mulher não tem compreensão da força de ligação da palavra dada. Os exemplos
comumente apresentados para a fidelidade da Mulher pouco fazem para provar o contrário. A
fidelidade da Mulher é ou o efeito duradouro de uma relação intensiva de obediência sexual
(Penelope) ou aquela própria relação servil, canina, abjeta, cheia de devoção instintiva tenaz, e
comparável à proximidade física que é a pré-condição de qualquer compaixão feminina. (Kate
de Heilbronn).

O casamento monogâmico, então, foi criado pelo Homem. Ela está enraizada na ideia de
individualidade masculina, que persiste inalterada ao longo dos tempos e que,
consequentemente, só pode ser totalmente complementada por uma mesma pessoa. Nesse
sentido, o projeto do casamento monogâmico contém inegavelmente algo de elevado, e sua
inclusão entre os sacramentos da Igreja Católica tem certa justificativa. No entanto, não desejo
tomar partido no debate sobre “casamento ou amor livre”. Com base em quaisquer desvios da
lei moral mais estrita — e tal desvio está implícito em todo casamento empírico — uma
solução totalmente satisfatória desse problema não é mais possível: ao mesmo tempo que o
adultério matrimonial veio ao mundo.
No entanto, o casamento só pode ter sido introduzido pelo Homem. Não há instituição legal
de origem feminina. Toda lei vem do Homem, e apenas alguns tantos costumes da Mulher. (Só
por essa razão seria totalmente errado derivar a lei do costume ou o costume da lei; são coisas
bem diferentes.) Somente o Homem — la donna è mobile — poderia ter o desejo e a força de
introduzir ordem no caos da relação sexual, como de fato de introduzir ordem, regras e leis
como tais (tanto em questões práticas quanto teóricas). Realmente parece ter havido uma
época em que as mulheres podiam exercer grande influência sobre o desenvolvimento social
de muitos povos, mas naquela época o casamento era inédito: a era do matriarcado era uma
época de poliandria.

A relação desigual da mãe e da prostituta com seus respectivos filhos fornece muito mais
insights. Uma mulher que é principalmente uma prostituta perceberá antes de tudo a
masculinidade de seu filho e sempre terá uma relação sexual com ele. No entanto, como
nenhuma mulher é exclusivamente materna, não se pode negar que todo filho tem um efeito
sexual residual sobre sua mãe. É por isso que anteriormente descrevi o relacionamento de
uma mulher com sua filha como o padrão mais confiável de amor materno. Por outro lado, é
certo que também existe uma relação sexual entre cada filho e sua mãe, por mais que isso seja
escondido de ambos. Essa relação, que é reprimida na consciência desperta, aparece através
de fantasias sexuais com a mãe durante o sono (o “sonho edipiano”) nos primeiros estágios da
puberdade no caso da maioria dos homens, e de vez em quando ainda mais tarde no caso de
alguns. Mas a presença de um elemento de fusão profundamente sexual, mesmo na relação
mais estritamente maternal de uma mãe genuína com seu filho, parece ser indicada pelo
prazer sensual que uma mulher sente indubitavelmente no processo de lactação e pelo fato
anatômico de que, sob um mamilo da mulher existe um tecido erétil que, segundo as
investigações dos fisiologistas, pode ser usado para desencadear as contrações do útero. Tanto
a passividade,[2] ocasionada na mulher pela sucção ativa do filho, quanto a condição de
contato físico próximo durante a entrega do leite materno criam uma analogia perfeita com o
comportamento da mulher durante a relação sexual. Eles fazem parecer compreensível que
suas menstruações parem durante a lactação e justificam até certo ponto o ciúme vago, mas
profundo do homem por seu bebê. Mas amamentar uma criança é uma atividade totalmente
maternal: quanto mais uma mulher for prostituta, menos ela desejará amamentar seu filho e
menos poderá fazê-lo. Assim, não se pode negar que a relação entre mãe e filho em si é
semelhante àquela entre a mulher e o homem.

A maternidade é tão universal quanto a sexualidade, e difere em grau em relação a seus


objetos, assim como a sexualidade. Se uma mulher é maternal, sua maternidade está fadada a
revelar-se não apenas para seu próprio filho, mas também mais cedo e para todos, embora
mais tarde seu interesse por seu próprio filho absorva todo o resto e, em caso de conflito, a
torne completamente tacanho, cego e injusto. O fenômeno mais interessante nesse contexto é
a relação de uma menina maternal com o homem que ama. Uma mulher materna, já menina,
adota a postura de mãe em relação ao homem que ama e mesmo em relação ao homem que
mais tarde se torna pai de seu filho: em certo sentido, ele já é seu filho. Esta característica
comum da mãe e da mulher apaixonada [3] revela a natureza mais profunda deste tipo de
mulher: é o porta-enxerto duradouro da espécie formada pela mãe, o rizoma sem fim
cultivado no solo, contra o qual o homem como indivíduo se destaca e toma consciência de
sua própria transitoriedade. É este pensamento que permite ao homem, mais ou menos
conscientemente, ver no indivíduo materno, ainda menina, uma certa eternidade,[4] que
transforma a mulher grávida numa ideia elevada (Zola). É a tremenda confiança da espécie,
embora nada mais, que subjaz ao silêncio desses seres, que podem até fazer o homem sentir-
se pequeno por alguns momentos. Nesses momentos, ele pode ser dominado por uma certa
paz, uma grande calma, na qual todos os seus anseios mais elevados e profundos são
silenciados, e ele pode acreditar brevemente que realmente alcançou a conexão mais
profunda com o universo através da mulher. A razão é que para a mulher que ele ama ele se
torna uma criança (Siegfried com Brünnhilde, Ato III), que a mãe contempla com um sorriso,
para quem ela conhece uma infinidade de coisas, a quem ela cuida, a quem ela doma e
mantém sob controle. Mas apenas por alguns segundos (Siegfried se afasta de Brünnhilde).
Pois o homem só é homem pelo que o distingue da espécie, elevando-o acima dela. É por isso
que a paternidade de modo algum satisfaz sua necessidade emocional mais profunda, e o
pensamento de ser absorvido e extinto dentro da espécie o horroriza. O capítulo mais terrível
do mais desconfortável dos grandes livros da literatura humana, O mundo como vontade e
ideia, é “Sobre a morte e sua relação com a indestrutibilidade de nossa verdadeira natureza”,
onde a vontade infinita da espécie é representada como a única imortalidade real.

É a confiança da espécie que torna a mãe corajosa e destemida, ao contrário da prostituta,


sempre covarde e medrosa. Não é a coragem da individualidade, a coragem moral decorrente
do respeito à verdade e da resolutividade de um ser interiormente livre, mas a vontade de
viver permeando a espécie, que usa a mãe como indivíduo para proteger a criança e até o
homem. Assim como os conceitos conflitantes de coragem e covardia, os opostos esperança e
medo recaíram sobre a mãe e a prostituta, respectivamente. A mãe absoluta está sempre e em
todos os aspectos, por assim dizer, “grávida de esperança”: sendo imortal dentro da espécie,
ela não conhece o medo da morte, que a prostituta teme, embora não tenha o menor desejo
de imortalidade individual — um mais uma prova de quão errado é tentar explicar o desejo de
sobrevivência pessoal meramente pelo medo e consciência da morte física.

A mãe sempre se sente superior ao homem, sabendo que ela é sua âncora. Enquanto ela,
segura na cadeia ininterrupta das gerações, por assim dizer, representa o porto de onde todos
os navios voltam a navegar, o homem vagueia sozinho em alto mar. A mãe, mesmo na idade
mais avançada, está preparada para acolher e abrigar a criança. Enquanto esse fator, como
será mostrado, já está psiquicamente presente na concepção da criança, o outro, destinado a
proteger e nutrir, é claramente revelado na gravidez. Essa superioridade também vem à tona
em relação ao seu amante: a mãe aprecia a qualidade ingênua e infantil do homem, sua
simplicidade, enquanto a hetaira aprecia suas sutilezas e seu refinamento. A mãe tem o desejo
de ensinar e dar tudo ao seu filho, mesmo que este seja o homem que ela ama. A hetaira
anseia que o homem a impressione, e quer dever tudo a ele. A mãe, como representante da
espécie que atua em todos os seus membros, é gentil com todos os membros (neste sentido,
toda filha ainda é a mãe de seu pai). É somente quando os interesses de seus filhos, no sentido
mais estrito, estão em jogo que ela se torna exclusiva, e então em um grau extraordinário. A
prostituta nunca é tão amorosa e nem tão cruel quanto a mãe pode ser.

A mãe está inteiramente sujeita aos propósitos da espécie; a prostituta fica fora deles. Na
verdade, a espécie só tem essa advogada, essa sacerdotisa, a mãe. É somente nela que a
vontade da espécie se expressa de forma pura, enquanto o mero fenômeno da prostituta
prova que a teoria de Schopenhauer, segundo a qual a sexualidade serve apenas para compor
a próxima geração, não pode ser válida em geral. Que a única preocupação da mãe é a vida de
sua espécie também é demonstrado pelo fato de que as mulheres maternais, em particular,
tratam os animais com mais severidade. Basta observar a calma imperturbável e a convicção
de cumprir um dever louvável, com o qual uma boa dona de casa e mãe abate um frango após
o outro. O reverso da maternidade é a madrasta, e toda mãe de seus próprios filhos é
madrasta de todas as outras criaturas.

Uma prova ainda mais marcante da associação da mãe com a preservação da espécie é sua
relação peculiarmente próxima com tudo o que serve de alimento. Ela não suporta ver nada
que poderia ter sido comido, o menor resto, ser desperdiçado. É bem diferente com a
prostituta, que, por capricho e sem motivo, empilha grandes quantidades de comida e bebida
em um momento, apenas para deixar a maior parte intocada no próximo. A mãe é avarenta e
mesquinha, a prostituta perdulária e caprichosa. A mãe vive para preservar a espécie, e é por
isso que ela faz o possível para garantir que suas crias se saciem, e nada lhe dá tanto prazer
quanto ver um apetite saudável. Isso está ligado à sua associação com pão e qualquer coisa
conhecida como limpeza. Ceres é uma boa mãe, o que é claramente expresso por seu nome
grego Deméter. Assim, a mãe cuida do corpo, mas não da alma do filho.[5] A relação entre
mãe e filho, por parte da mãe, permanece sempre física, desde o beijo e o abraço do pequeno
até o cuidado envolvendo e envolvendo o adulto. Da mesma forma, seu deleite totalmente
irracional em todas as manifestações da vida do pequeno bebê só pode ser entendido em
termos desse único dever de preservar e proteger a existência terrena.

Isso também explica por que o amor materno não pode realmente ser tido em alta estima
moral. Que alguém se pergunte se acredita sinceramente que sua mãe não o amaria tanto se
ele fosse bem diferente, e se a afeição dela por ele seria menor se ele não fosse ele mesmo,
mas uma pessoa completamente diferente. Este é o cerne da questão, e é aqui que aqueles
que se recusam a abandonar seu respeito moral pela Mulher por causa do amor materno
devem ser desafiados. O amor materno é totalmente indiferente à individualidade da criança.
Ela se satisfaz com o mero fato da criança, e isso é o que há de imoral nela. Qualquer outro
tipo de amor entre um homem e uma mulher, e mesmo entre membros do mesmo sexo,
envolve uma determinada pessoa com propriedades físicas e psíquicas bastante específicas; só
o amor materno abrange indiscriminadamente tudo o que a mãe já carregou em seu ventre. É
uma confissão cruel para se fazer a si mesmo, assim como à mãe e ao filho, que é exatamente
isso que revela a natureza totalmente antiética do amor materno, o amor que persiste
independentemente de o filho se tornar um santo ou um criminoso, um rei ou um mendigo,
quer ele permaneça um anjo ou degenere em um monstro. No entanto, a crença de muitas
crianças de que têm direito ao amor de sua mãe, simplesmente porque são seus filhos (isso se
aplica em particular às filhas, embora os filhos geralmente também sejam negligentes a esse
respeito) é igualmente vil. O amor materno é imoral porque não se relaciona com outro eu,
mas representa uma fusão desde o início: como qualquer comportamento imoral para com os
outros, ele atravessa uma fronteira. Uma relação ética só pode existir entre um indivíduo e
outro. O amor materno, indiscriminado e intrusivo, exclui a individualidade. A relação entre
uma mãe e seu filho é em toda a eternidade um sistema de quase-reflexos ligando os dois. Se
a criança gritar ou chorar de repente enquanto a mãe está sentada na sala ao lado, a mãe vai
pular como se tivesse sido picada por uma abelha e correr para a criança (aliás, uma boa
oportunidade para dizer imediatamente se uma mulher é mais uma mãe ou prostituta), e mais
tarde, quando a criança cresce, todos os desejos e todas as queixas desse adulto também são
imediatamente comunicados ou, por assim dizer, conduzidos e transplantados para ela,
tornando-se, inquestionável e sem controle, seu próprio desejo e reclamação. A natureza da
maternidade é a de um canal ininterrupto entre a mãe e qualquer coisa que já tenha se
conectado a ela através do cordão umbilical. Portanto, não posso aderir à admiração geral do
amor materno e não posso deixar de pensar que sua característica mais condenável é
justamente o que tantas vezes se elogiam: sua falta de discriminação. Aliás, acredito que isso
tenha sido reconhecido, e apenas mantido em silêncio, por muitos pensadores e artistas
notáveis. A superestimação outrora tão difundida de Rafael diminuiu, e não há outros cantores
de amor materno acima do modesto posto de Fischart ou Richepin. O amor materno é
instintivo e dirigido: existe nos animais não menos do que nos humanos. Só isso bastaria para
provar que esse tipo de amor não pode ser amor genuíno, esse tipo de altruísmo não pode ser
moral verdadeira, pois toda moral deriva do caráter inteligível, que falta aos animais, já que
são totalmente não livres. O imperativo ético só pode ser obedecido por um ser racional: não
há moral instintiva, mas apenas consciente.

De certa forma, a hetaira é superior à mãe por sua posição fora dos propósitos da espécie, ou
seja, pelo fato de não servir apenas de habitação e recipiente ou, por assim dizer, de eterna
passagem para novos seres, e não é consumida por nutri-los — se é que é possível falar de um
nível ético mais alto quando se trata de duas mulheres. O nível intelectual de uma mulher que
está completamente absorta em cuidar e vestir seu marido e filho, ou realizar ou supervisionar
as tarefas de sua casa e cozinha ou seu jardim e campo, é quase sempre muito baixo. As
mulheres com o intelecto mais desenvolvido, todas aquelas que podem de alguma forma se
tornar musas para os homens, pertencem à categoria da prostituta. É a isso, o tipo Aspásia, a
mais destacada entre elas, que devem ser atribuídas as mulheres do Romantismo, sobretudo,
Karoline Michaelis-Böhmer-Forster-Schlegel-Schelling.

Está ligado a este fato que somente homens sem nenhum desejo de produção intelectual
sentem atração sexual pela mãe. Deve-se esperar que os homens cuja paternidade se restringe
aos filhos físicos escolham a mulher fértil, a mãe, em vez do outro tipo. Indivíduos
excepcionais sempre amaram prostitutas.[6] Eles escolhem mulheres estéreis, e eles próprios,
se é que o fazem, só produzem filhos que não podem viver e morrer cedo — para o que pode
haver uma profunda razão ética. A paternidade terrena é tão deficiente em valor quanto a
maternidade. É imoral, como será mostrado mais adiante (capítulo XIV), e é ilógico, porque em
todos os aspectos é uma ilusão, pois ninguém sabe ao certo até que ponto é o pai de seu filho.
E também é de curta duração e efêmera, pois todas as linhagens e raças humanas morreram e
se extinguiram.

Assim, a estima generalizada e exclusiva, para não dizer a reverência, concedida à mulher
materna, que muitas vezes é considerada o único tipo genuíno de mulher, é bastante
injustificada, embora quase todos os homens se apeguem obstinadamente a ela e de fato,
afirmam que nenhuma mulher pode encontrar realização exceto como mãe. Confesso que me
impressiona muito mais a prostituta, não como pessoa, mas como fenômeno.

Existem várias razões pelas quais a mãe é geralmente tida em alta estima. Acima de tudo, ela
parece mais apta a cumprir o ideal da virgindade porque não se importa com o homem como
tal, ou o faz apenas enquanto ele é seu filho. Esse ideal é meramente ligado à Mulher pelo
Homem por uma certa necessidade, como veremos. De fato, a castidade é basicamente alheia
à Mulher, tanto à mãe que deseja filhos quanto à prostituta obcecada por homens.

O homem recompensa a mãe pela ilusão de grande moralidade, elevando-a acima da


prostituta em termos morais e sociais, sem nenhuma razão válida. A prostituta é a mulher que
nunca se conformou com os valores do Homem e com o ideal de castidade que ele procura
nela, mas que sempre os rejeitou, seja pela relutância oculta da mulher do mundo, pela
resistência suavemente passiva da demi-mondaine[³], ou a demonstração aberta da prostituta.
Só isso pode explicar a situação especial, a posição fora de qualquer respeitabilidade social, na
verdade quase fora de qualquer lei e ordem, que a prostituta ocupa hoje em quase toda parte.
A mãe achou fácil submeter-se à vontade moral do Homem, porque só se preocupa com a
criança e com a sobrevivência da espécie.

A prostituta é muito diferente. Ela pelo menos vive sua própria vida plenamente,[7] mesmo se
— em casos extremos — ela é punida por isso sendo excluída da sociedade. Ao invés de ser
corajosa como a mãe é, ela é uma covarde por completo, mas ela sempre possui o correlativo
da covardia, que é a insolência, e assim ela é pelo menos descaradamente sem vergonha. Ela é
polígama por natureza e sempre atrai mais homens do que apenas o fundador de uma família.
Ela dá rédea solta aos seus impulsos e os satisfaz como se estivesse em provocação. Ela sente
que é uma rainha, e a coisa mais óbvia para ela parece ser seu poder. A mãe fica facilmente
ofendida ou indignada. A prostituta não pode ser ferida ou insultada por ninguém. Enquanto a
mãe, como guardiã da espécie e da família, tem certa honra, a prostituta renunciou a qualquer
pretensão de ser honrada pela sociedade, e é isso que a enche de orgulho e lhe permite
manter a cabeça erguida. O que ela seria incapaz de entender é não ter poder (“a amante”).
Ela espera que todos prestem atenção nela, pensem apenas nela, vivam para ela, e ela é
incapaz de acreditar em mais nada. E, de fato, é ela — a mulher como a dama — que tem o
maior poder entre os seres humanos e que exerce a maior, na verdade a única, influência
sobre qualquer aspecto da vida humana que não seja regulado por associações masculinas (do
clube de ginástica ao Estado).

A este respeito, ela é análoga ao grande conquistador na esfera da política. Como o grande
conquistador, digamos Alexandre ou Napoleão, a prostituta absolutamente grande e
fascinante talvez só nasça uma vez a cada mil anos, mas então ela cavalga o mundo em triunfo,
como ele.

Todo homem desse tipo está em alguma medida relacionado à prostituta (há um sentido em
que todo político é um tribuno do povo, e o tribunato contém um elemento de prostituição).
Como a tribuna, a prostituta, que sabe de seu poder, nunca fica constrangida quando encontra
um homem, enquanto todo homem sempre fica envergonhado quando encontra a prostituta
ou o tribuno. Como a grande tribuna, ela acredita que alegra a todos com quem fala. Basta
observar uma mulher assim pedindo informações a um policial ou entrando em uma loja. Não
importa se a loja emprega homens ou mulheres, e não importa quão pequena seja sua
compra, ela acreditará que está distribuindo presentes à esquerda, à direita e ao centro. Os
mesmos elementos serão descobertos em cada político nato. E as outras pessoas, todas as
outras pessoas, confrontadas com qualquer uma delas — até mesmo o autoconfiante Goethe
quando conheceu Napoleão em Erfurt — sentirão real e irresistivelmente que receberam um
presente (veja o mito de Pandora ou o nascimento de Vênus, que sobe do mar, já olhando ao
redor e se oferecendo)

Conforme prometido no capítulo V,[8] voltei por um momento aos “homens de ação”. Mesmo
alguém tão profundo quanto Carlyle tinha isso em alta estima e finalmente colocou “o herói
como rei” como o mais alto entre todos os heróis. Já mostrei naquele capítulo por que isso não
pode ser verdade. Posso agora apontar que nenhum grande político, nem mesmo os maiores,
como César, Cromwell, Napoleão ou Bismarck, evitam usar mentiras e enganos, e Alexandre, o
Grande até cometeu assassinato, antes de permitir prontamente que um sofista o
convencesse a fazê-lo acreditar que ele era inocente. Mas a falsidade é incompatível com o
gênio. Napoleão em Santa Helena escreveu memórias cheias de mentiras e transbordando de
sentimentalismo, e em suas últimas palavras ainda assumiu a pose altruísta de ter amado
apenas a França. Napoleão, o maior fenômeno de todos, também mostra com mais clareza
que os “grandes homens de vontade” são criminosos e, portanto, não gênios. Ele só pode ser
entendido pela tremenda intensidade com que tentou escapar de si mesmo: esta é a única
explicação possível para qualquer conquista, grande ou pequena. Napoleão nunca foi inclinado
a refletir sobre si mesmo. Ele não poderia viver uma hora sem ter algum grande objetivo fora
dele para absorvê-lo completamente. É por isso que ele teve que conquistar o mundo. Porque
ele tinha grandes dons, maiores do que qualquer líder antes dele, ele precisava de mais para
silenciar todas as vozes dissidentes dentro dele. A tremenda força motriz por trás de sua
ambição era abafar seu melhor eu. O indivíduo superior e excepcional pode compartilhar o
desejo comum de admiração ou fama, mas não tem a ambição de conectar todas as coisas do
mundo com sua própria pessoa empírica, torná-las dependentes de si mesmo, para empilhar
todas as coisas no mundo sobre seu próprio nome como uma pirâmide chegando ao infinito.
Mas é também por isso que o líder é gradualmente abandonado por seu infalível senso de
realidade (é por isso que ele se torna epiléptico): ele tira toda a liberdade[9] do objeto e entra
em uma relação criminosa com as coisas, usando-as apenas como meios, como pedestais e
estribos para sua própria pessoa pequena e seus fins egoístas e gananciosos. O grande
indivíduo tem limites, porque ele é a mônada das mônadas, e — este é o fato último — ele é
ao mesmo tempo o microcosmo consciente. Ele engloba todo o conhecimento e tem todo o
universo dentro dele. No caso mais completo, assim que experimenta algo, vê claramente
todas as suas conexões no cosmos e, portanto, precisa de experiências, mas não de indução. O
grande tribuno e a grande hetaira são os seres absolutamente ilimitados que usam o mundo
inteiro para embelezar e elevar seu eu empírico. É por isso que ambos são incapazes de
qualquer amor, afeto e amizade, porque são insensíveis e insensíveis.

Lembre-se do profundo conto de fadas sobre o rei que queria conquistar as estrelas, que
revela a ideia do líder sob uma luz brilhante e ofuscante. O verdadeiro gênio confere a si
mesmo sua própria honra e nunca entra em relação de dependência mútua com a ralé, como
faz o tribuno. O grande político não tem apenas um especulador e um multimilionário em si,
mas também um charlatão; ele não é apenas um grande jogador de xadrez, mas também um
grande ator; ele não é apenas um déspota, mas também corteja favores; ele não apenas
prostitui os outros, mas ele mesmo é uma grande prostituta. Não há político, nenhum general,
que não “solicite”, e suas famosas “solicitações” são seus atos sexuais. O cenário da verdadeira
tribuna, como o da prostituta, é a rua. Uma relação complementar com a ralé é o que
realmente constitui o político. Só a ralé é realmente útil para ele. Quanto aos outros, os
indivíduos, ele os elimina se for insensato, ou tenta desarmá-los fingindo apreciá-los, se for tão
astuto quanto Napoleão. Na verdade, Napoleão tinha uma noção muito precisa de sua
dependência da ralé. Um político não pode fazer o que quiser, mesmo que seja um Napoleão,
e mesmo que queira realizar ideais, o que não faria se fosse Napoleão. Se o fizesse, logo
receberia uma lição da ralé, seu verdadeiro mestre. Qualquer “economia da vontade” aplica-se
apenas ao ato formal de iniciativa: a vontade de um homem sedento de poder nunca é livre.

Todos os dirigentes sentem a necessidade dessa relação recíproca com as massas, e por isso
são, sem exceção, a favor das assembleias constituintes, sejam civis ou militares, e do sufrágio
mais universal (Bismarck 1866). O político genuíno não aparece na forma de Marco Aurélio ou
Diocleciano, mas na de Cléon, Marco Antônio, Temístocles ou Mirabeau. Ambitio significa
literalmente andar por aí, e é isso que fazem o tribuno e a prostituta. De acordo com Emerson,
Napoleão em Paris “ouviu os hurras e os cumprimentos da rua, incógnito”. Lemos coisas muito
semelhantes sobre Wallenstein em Schiller.

O fenômeno único do grande homem de ação sempre teve uma forte atração para artistas em
particular (mas também para escritores filosóficos). A surpreendente unanimidade
demonstrada a esse respeito talvez facilite a abordagem do fenômeno por meio da análise
conceitual. Marco Antônio (César) e Cleópatra não são totalmente diferentes um do outro.
Inicialmente, a maioria das pessoas provavelmente considerará esse paralelo bastante
fantasioso, e, no entanto, a existência de uma analogia próxima me parece estar além de
qualquer dúvida, por mais diferentes que as duas pessoas possam parecer à primeira vista. O
“grande homem de ação” renuncia a qualquer vida interior para se expressar (o termo é
apropriado aqui) plenamente no mundo externo, e sofrer o destino de tudo o que expira, em
vez de alcançar a permanência de tudo o que é interiorizado. Ele joga todo o seu valor para
trás e o mantém à distância com todas as suas forças. Da mesma forma, a grande prostituta
lança à sociedade o valor que ela poderia obter de ser mãe, não para fazer um balanço de si
mesma e embarcar em uma vida de contemplação, mas para dar total liberdade aos seus
impulsos sensuais. Tanto a grande prostituta quanto a grande tribuna são como tições que,
quando acesos, iluminam vastas extensões, empilham cadáveres sobre cadáveres à medida
que passam e desaparecem como meteoros, sem contribuir com nada de valor e significativo
para a sabedoria humana, sem deixar nada permanente para trás, sem qualquer sinal de
eternidade — enquanto a mãe e o gênio trabalham silenciosamente para o futuro. Tanto a
prostituta quanto a tribuna, portanto, são percebidas como “flagelos de Deus”, como
fenômenos anti-morais.

Isso mostra novamente que eu estava certo anteriormente ao excluir o “grande homem de
vontade” do conceito de gênio. O gênio, e não apenas o filosófico, mas também o gênio
artístico, sempre se distingue pela predominância nele do conhecimento conceitual ou
representacional sobre qualquer coisa prática.

No entanto, o motivo levando a prostituta ainda precisa ser investigado. A natureza da mãe
era relativamente fácil de reconhecer: ela é eminentemente uma ferramenta para a
preservação da espécie. A prostituição é muito mais misteriosa e difícil de explicar. Todos
aqueles que refletiram longamente sobre esse fenômeno devem ter experimentado alguns
momentos em que se desesperaram completamente de poder lançar alguma luz sobre ele.
Certamente, o que mais importa aqui é a atitude diferente da mãe e da prostituta em relação
à relação sexual. Espero que não haja grande risco de alguém considerar a discussão deste
tema, e mesmo da própria prostituição, como indigna do filósofo. É o espírito com que são
tratados que deve conferir dignidade a muitos sujeitos. As sensações de Leda ou Danae muitas
vezes causaram problemas para escultores e pintores, e para aqueles escritores que
escolheram a prostituta como tema — estou ciente da Confissão de Claude de Zola, Hortense,
Renée e Nana, A Ressurreição de Tolstoi, Hedda Gabler e Rita de Ibsen , e finalmente Sônia por
uma das maiores mentes, Dostoiévski — nunca quis retratar casos individuais, mas sempre
universais. E para coisas universais deve ser possível desenvolver uma teoria.

Para a mãe, a relação sexual é um meio para um fim. A prostituta se encontra em uma
situação especial na medida em que a relação sexual para ela se torna um fim em si mesmo.
Em toda a natureza, a relação sexual tem um papel além da reprodução, o que é indicado,
entre outras coisas, pelo fato de que muitos organismos reproduzem sem relação sexual
(partenogênese). Por outro lado, a cópula entre os animais é sempre vista como tendo o
propósito de produzir progênie, e nada sugere que a relação sexual seja buscada
exclusivamente por causa da luxúria, pois só ocorre em determinados momentos, na época do
acasalamento. Como resultado, a luxúria tem sido considerada como o próprio meio usado
pela natureza para atingir seu objetivo de preservar a espécie.
Se a relação sexual é um fim em si mesma para a prostituta, isso não quer dizer que não
signifique nada para a mãe. Há uma categoria de mulheres “sexualmente anestésicas”, que
geralmente são chamadas de “frígidas”, mas esses casos são muito menos críveis do que se
supõe. Muitas vezes, só o homem deve ser responsabilizado por não ser capaz de provocar o
contrário dessa frieza por meio de sua própria pessoa, e os demais casos não podem ser
atribuídos ao tipo da mãe. A frigidez pode ocorrer tanto na mãe quanto na prostituta: mais
tarde será explicada como um fenômeno histérico. Tampouco a prostituta deve ser
considerada sexualmente insensível porque as prostitutas (isto é, aquele contingente de
prostitutas que em geral é suprido apenas pela população camponesa, camareiras etc.) Só
porque a prostituta é obrigada a tolerar as investidas de homens que sexualmente não têm
nada a oferecer a ela, não deve ser considerado como parte de sua natureza manter-se fria em
qualquer ato sexual. Essa ilusão resulta apenas do fato de que é precisamente ela quem faz as
maiores exigências ao gozo sensual, e sua associação com seu cafetão deve compensá-la
abundantemente por todas as privações que ela sofre a esse respeito.

Que a relação sexual, para a prostituta, é um fim em si também é evidente pelo fato de que
ela, e somente ela, se entrega ao coquetismo. O coquetismo nunca está sem conexão com a
relação sexual. Essencialmente, finge que a mulher já foi conquistada pelo homem, usando o
contraste com a realidade, que ainda não mostra essa realização, como incentivo para que ele
realize a conquista. É um desafio para o homem, a quem ela apresenta uma e a mesma tarefa
em constante mudança de formas, ao mesmo tempo em que lhe dá a entender que ela não
acredita que ele seja capaz de cumpri-la. Há um sentido em que o jogo da coqueteria como tal,
mesmo naquela fase inicial, atinge seu propósito para a mulher, que é a relação sexual: ao
despertar o desejo do homem, a prostituta sente algo análogo às sensações de ser o objeto da
relação sexual e assim obtém as gratificações da luxúria a qualquer momento e de qualquer
homem. Se ela irá então até o fim, ou recuará se os eventos progredirem muito rápido,
provavelmente depende apenas se a forma de relação sexual real que ela pratica naquele
momento, ou seja, seu homem atual, já a satisfaz a tal ponto que ela não espera mais nada do
outro. E talvez a única razão pela qual a prostituta em particular não tende a ser coquete é que
ela está sempre provando as sensações que a coqueteria visa em sua medida mais alta e sua
forma mais maciça, de modo que ela pode facilmente passar sem a emoção de suas variações
mais sutis. A coqueteria, então, é um método de provocar um ataque sexual ativo por parte do
homem, para aumentar ou diminuir a intensidade desse ataque à vontade e direcioná-lo, sem
que o próprio agressor perceba, para onde a mulher o deseja... É um método de provocar
olhares e palavras que a farão sentir agradavelmente cócegas e acariciadas, ou de deixar as
coisas irem até o “estupro”.[10]

Em princípio, as sensações da relação sexual são as mesmas que quaisquer outras sensações
conhecidas pela Mulher, apenas em sua forma mais intensa. Todo o ser da mulher se revela,
elevado à mais alta potência, na relação sexual. É por isso que as diferenças entre a mãe e a
prostituta são mais pronunciadas nesta área. A mãe não vivencia a relação sexual menos do
que a prostituta, mas de forma diferente. O comportamento da mãe é principalmente
receptivo e de aceitação, enquanto a prostituta sente e saboreia o prazer ao extremo. Para a
mãe (e mesmo para toda mulher, se ela engravidar) o esperma do homem aparece, por assim
dizer, como um depósito: o elemento de absorção e proteção já está presente para ela na
sensação da relação sexual, pois ela é o guardião da vida. A prostituta, por outro lado, não
quer sentir, como a mãe, que a própria existência foi elevada e intensificada, quando ela se
levanta após a relação sexual: ao contrário, ao se envolver na relação sexual, ela quer deixar
de existir como uma realidade, ser esmagado e aniquilado, tornar-se nada e perder a
consciência pela luxúria. Para a mãe, a relação sexual é o início de uma série, enquanto a
prostituta quer terminar e desaparecer nela. O choro da mãe, portanto, é breve e se
interrompe de repente, enquanto o da prostituta é demorado, porque ela quer que toda a vida
que possui seja concentrada e condensada naquele momento. Como isso nunca pode
acontecer, a prostituta nunca está satisfeita enquanto viver, e nunca poderia ser satisfeita por
todos os homens do mundo.

Esta, então, é uma diferença fundamental na natureza dos dois tipos de Mulher. Mas toda
mulher sente igualmente que é objeto de relações sexuais, incessantemente e em todo o seu
corpo, em todos os lugares e sempre, com tudo e todos, sem exceção, porque a Mulher é
exclusiva e inteiramente sexual, e porque essa sexualidade cobre todo o seu corpo, exceto
que, na linguagem da física, é mais denso em alguns pontos do que em outros. O que é
comumente descrito como relação sexual é apenas um caso especial de extrema intensidade.
A prostituta quer ser submetida a relações sexuais por tudo — é por isso que ela se envolve
em coquetismo mesmo quando está sozinha e até diante de objetos inanimados, diante de
cada riacho e de cada árvore. A mãe está impregnada de tudo, incessantemente e por todo o
corpo. Isso explica o fato da impressão materna. O efeito de tudo o que já causou uma
impressão em uma mãe persiste na proporção da força da impressão — onde a relação sexual
que leva à concepção é apenas a mais intensa dessas experiências e tem uma influência maior
do que todas as outras — e tudo isto se torna o pai de seu filho, o início de um
desenvolvimento cujo resultado aparece mais tarde na criança.

Por isso a paternidade é uma ilusão patética, pois deve ser sempre compartilhada com uma
infinidade de coisas e seres humanos, e o direito natural, físico, é o direito da mãe. Algumas
mulheres brancas que uma vez tiveram um filho de um negro muitas vezes dão à luz a uns
filhos brancos que ainda carregam marcas inconfundíveis da raça negra. Através da polinização
das flores com um tipo díspar de pólen, não apenas os germes, mas também o tecido materno
sofre mudanças que só podem ser consideradas como uma aproximação das formas e cores
desse pólen estranho. E a égua de Lord Morton que, depois de dar à luz um híbrido de um
quagga, foi prenhe de um garanhão árabe muito tempo depois, mas produziu dois potros com
características óbvias do quagga, é famosa.

Tem havido muita especulação sobre esses casos, e argumenta-se que eles ocorreriam com
muito mais frequência se tal processo fosse possível. Para que essa chamada “infecção”
(Weismann sugeriu o excelente termo telegonia, ou seja, concepção à distância, enquanto
Focke falava de xeniae, ou seja, presentes trazidos por convidados) se revelasse claramente, o
cumprimento de todas as leis da sexualidade requer atração e uma afinidade sexual
excepcionalmente grande entre o primeiro pai e a mãe. Desde o início, há pouca probabilidade
de um encontro de duas pessoas nas quais a afinidade sexual seja poderosa o suficiente para
superar a falta de afinidade racial, e, no entanto, somente quando a diferença racial estiver
presente haverá alguma perspectiva de reconhecer divergências óbvias e geralmente
convincentes. Ao mesmo tempo, uma relação familiar muito próxima torna impossível
estabelecer quaisquer desvios inequívocos do tipo do pai em uma criança que supostamente
está sob a influência de uma gravidez anterior. Aliás, a única explicação para a resistência feroz
contra a ideia de infecção germinal é que ninguém foi capaz de acomodar os fenômenos
dentro de um sistema.

A teoria da telegonia não se saiu melhor do que a teoria da infecção. As objeções à impressão
materna e à telegonia não teriam se tornado tão vociferantes, se tivesse sido entendido que a
telegonia é simplesmente o caso especial mais intenso de impressão materna, e se tivesse sido
reconhecido que o trato urogenital não é o único, mas apenas o caminho mais eficaz para ter
relações sexuais com uma mulher, que pode se sentir possuída por um mero olhar ou palavra.
Um ser que tem relações sexuais em todos os lugares e com tudo também pode ser fecundado
em todos os lugares e por tudo: a mãe é toda concepção. Nela todas as coisas adquirem vida,
porque todas as coisas lhe causam uma impressão fisiológica e se tornam parte da criança que
criam. Nesse sentido, em sua esfera física inferior, ela pode ser novamente comparada ao
gênio.

As coisas são diferentes com a prostituta. Assim como ela quer ser aniquilada na relação
sexual, todas as suas outras ações também visam à destruição. A mãe favorece tudo o que
promove a vida humana e o bem-estar na terra. Ela mantém toda a devassidão à distância, e
ela estimula a diligência de seu filho e a atividade de seu marido. A hetaira, por outro lado,
tenta reivindicar todo o tempo e energia do homem para si mesma. Mas ela não está sozinha
em estar destinada a abusar do homem, por assim dizer, desde o início: também há algo em
todo homem que deseja esse tipo de mulher e que não encontra satisfação ao lado da mãe
mais simples e sempre ocupada com suas roupas de mau gosto e sua falta de elegância
intelectual. Algo nele busca prazer, e ele acha mais fácil esquecer-se de si mesmo com a fille de
joie. A prostituta representa o princípio da imprudência. Ela não prevê o futuro como a mãe.
Ela, e não a mãe, é a boa dançarina. Ela sozinha exige entretenimento e alta vida. Só ela quer
ser vista no calçadão e na boate, no balneário e no spa, no teatro e no show. Ela sozinha
sempre espera roupas e joias novas, dinheiro para soprar, luxo em vez de conforto, barulho
em vez de silêncio. Não para ela a poltrona no meio de seus netos e netas, mas a marcha
triunfal pelo mundo na carruagem conquistadora do belo corpo.

Assim, a prostituta como sedutora aparece ao homem diretamente pelos sentimentos que ela
desperta nele: ela sozinha, a mulher impura por excelência, a feiticeira. Ela é o “Don Juan”
feminino, aquela entidade na mulher que conhece, ensina e guarda a arte do amor

Mas isso está ligado a coisas que são ainda mais interessantes e levam a profundidades ainda
maiores. A mãe quer respeitabilidade do Homem, não por uma ideia, mas porque afirma a vida
na terra. Assim como ela mesma trabalha, em vez de ser preguiçosa como a prostituta, e assim
como ela parece sempre ocupada preparando o futuro, ela também aprecia a mentalidade
ativa do homem e não tenta desviá-lo para o prazer. Em contraste, a prostituta é mais
agradada pela ideia de um homem implacável e malandro que é avesso ao trabalho. Um
homem que esteve na prisão é abominável para a mãe e uma atração para a prostituta. Há
mulheres que ficam infelizes se o filho não vai bem na escola, e outras que ficam realmente
satisfeitas, embora finjam o contrário. O que quer que seja “bom e respeitável” atrai a mãe, o
que quer que seja “insensato e depravado” atrai a prostituta. A primeira abomina um homem
que bebe, a segunda o ama. Seria possível elencar muitas outras diferenças de tipo
semelhante, que se encontram mesmo entre as classes mais abastadas. Mencionarei apenas
como um único exemplo que a prostituta se sente mais atraída por aqueles homens que são
criminosos declarados: o cafetão sempre tem uma disposição violenta, criminosa, e muitas
vezes também é ladrão ou vigarista, se não assassino.

Isso sugere — embora a própria Mulher não deva ser chamada de antimoral, pois ela é
meramente amoral — que a prostituição tem uma conexão profunda com o antimoral,
enquanto a maternidade nunca traz tal sugestão. Não que a própria prostituta represente o
equivalente feminino do criminoso masculino. Embora ela seja tão tímida quanto o criminoso,
a existência de uma criminosa não deve ser admitida pelas razões discutidas nos capítulos
anteriores: as mulheres são muito baixas para serem criminosas. Mas que a Mulher tenha uma
relação com o antimoral, com o mal, é inegavelmente sentida pelo homem, mesmo que ele
não esteja sexualmente envolvido com ela e não possa ser acusado de meramente afastar um
pensamento lascivo próprio por tal projeção. O homem experimenta a prostituição desde o
início como algo sombrio, noturno, horripilante, estranho, e sua impressão pesa sobre ele mais
pesada e dolorosamente do que a impressão produzida pela mãe. A estranha analogia entre a
grande hetaira e o grande criminoso, ou seja, o conquistador; a relação íntima entre a pequena
prostituta e aquele modelo de moralidade, o cafetão; o sentimento que ela evoca no homem e
os desígnios que ela tem sobre ele; finalmente, e principalmente, a diferença entre sua
maneira de vivenciar a relação sexual e a da mãe — todas essas coisas se combinam para
confirmar essa visão. Assim como a mãe representa um princípio de afirmação da vida, a
prostituta representa um princípio de negação da vida. Mas, assim como a afirmação da mãe
não diz respeito à alma, mas ao corpo, a negação da prostituta, diferentemente da do diabo,
não se estende às ideias, mas apenas às questões empíricas. Ela quer ser aniquilada e
aniquilar, ela faz estragos e destrói. A vida física e a morte física, tão misteriosamente unidas
na relação sexual (veja o próximo capítulo), são distribuídas entre a Mulher como mãe e a
Mulher como prostituta, respectivamente.

Por enquanto, não posso dar uma resposta mais conclusiva à pergunta sobre o significado da
maternidade e da prostituição. Eu me encontro em um território completamente escuro, onde
nenhum andarilho pôs os pés até agora. A imaginação religiosa do mito pode ser ousada o
suficiente para tentar iluminá-lo, mas o filósofo é aconselhado a não invadir a metafísica cedo
demais. No entanto, algumas coisas precisam de maior ênfase. A significação antimoral do
fenômeno da prostituição corresponde ao fato de que a prostituição é restrita aos humanos.
Entre os animais, a fêmea está inteiramente sujeita à reprodução, e não há fêmeas estéreis.
Pode-se até acreditar que entre os animais são os machos que se prostituem, se pensarmos no
pavão abanando a cauda, no brilho do vaga-lume, no canto dos pássaros cantando ou na
exibição de namoro do tetraz. Mas essas exibições de características sexuais secundárias são
meros atos exibicionistas do macho, assim como também acontece entre os humanos que
homens no cio revelam seus genitais na frente de mulheres como um convite à relação sexual.

No entanto, esses atos por parte dos animais devem ser interpretados com cautela, na medida
em que não se deve acreditar que seu efeito psicológico sobre a fêmea seja pretendido e
calculado pelo macho antecipadamente. Eles equivalem a uma expressão instintiva do próprio
desejo sexual do macho, em vez de um meio de aumentar o da fêmea, uma aproximação da
fêmea em estado de excitação sexual, enquanto nos seres humanos que se expõem a ideia de
despertar o sexo oposto é sempre susceptível de desempenhar um papel.[11]

A prostituição, então, é algo que ocorre apenas entre os humanos. Animais e plantas, que são
completamente amorais e não têm qualquer tipo de conexão com o antimoral, não conhecem
nada além da maternidade. É aqui que se esconde um dos mistérios mais profundos da
natureza e das origens do ser humano. E agora devo corrigir o que disse antes, porque quanto
mais penso nisso, mais a prostituição parece ser uma possibilidade para todas as mulheres,
assim como a maternidade, um mero fato físico, é outra. Talvez a prostituição seja algo que
permeia todas as mulheres, que tinge a mãe animal,[12] e isso é, em última análise,
precisamente o que corresponde na mulher humana àquelas qualidades que elevam o homem
humano acima do animal masculino. Aqui, concomitantemente ao elemento antimoral no
Homem, e não sem notáveis conexões com ele, um fator que distingue completa e
fundamentalmente a fêmea humana do animal foi adicionado à mera maternidade do animal.
O significado especial que a Mulher, precisamente como prostituta, conseguiu ganhar para o
Homem será discutido no final desta investigação. No entanto, a origem e a causa final da
prostituição podem permanecer para sempre um profundo mistério envolto em escuridão
total.

Neste estudo amplo, mas de modo algum exaustivo, que nem sequer tocou em todos os
fenômenos, não tive a menor intenção de estabelecer um ideal de prostituta, como parece ter
sido feito abertamente por muitos escritores talentosos dos últimos tempos. Mas eu tive que
despojar a outra, a garota aparentemente não sensual da aura com a qual todo homem
gostaria de cercá-la, e então tive que explicar que ela é de fato a criatura mais maternal e que,
portanto, por definição, a virgindade é tão estranha para ela quanto para a prostituta. E
mesmo o amor materno foi incapaz de resistir a uma análise mais detalhada como uma
conquista moral. Finalmente, a ideia da imaculada concepção, e da virgem pura de Goethe ou
Dante, contém a verdade de que a mãe absoluta jamais desejaria a relação sexual como um
fim em si mesma, por uma questão de luxúria. Só uma ilusão poderia santificá-la por esse
motivo. Por outro lado, é compreensível que tanto a maternidade quanto a prostituição, como
símbolos de mistérios profundos e poderosos, tenham sido tratados com veneração religiosa.

Tendo demonstrado a insustentabilidade de uma visão que ainda tenta defender um


determinado tipo feminino e reivindicá-lo como prova da moralidade das mulheres em geral,
passarei agora a explorar as razões pelas quais o Homem nunca abandonará suas tentativas de
transfigurar a Mulher.

Notas:

[¹]: Amante, i.e., "Lover" na tradução inglesa.

[²] Geralmente um termo referido a prostitutas francesas de alta classe nos meados da metade
do século XIX e começo do século XX.

[³] Demi-mondane é uma mulher que participa da vida mundana enquanto é mantida. Na
França do século XIX, o termo "demi-mondaine" designava as mulheres sustentadas por
parisienses ricos.

1 - Cf. as discussões no capítulo VIII sobre o maior respeito devido ao discernimento mais
profundo de uma grande mente do que ao estado da ciência em qualquer momento específico
(p. 149).

2 - Os movimentos irrefletidos da criança, sua ânsia de apoderar-se de qualquer coisa que lhe
apeteça momentaneamente, sua maneira obstinada e cega de exigir e agarrar, estão
suficientemente ligados à passividade revelada pela mulher na esfera sexual (mais
estreitamente).

3 - Que foi reconhecido pelos maiores poetas. Lembre-se da identificação de Aase e Solveig no
final de Peer Gynt de Ibsen e da combinação de Herzeleide com Kundry na sedução de Parsifal
de Wagner.

4 - “Eu sempre fui, sempre . . . cercado por um doce desejo de felicidade – mas sempre
trabalhando para seu próprio bem” (Brünnhilde para Siegfried) [Wagner’s Ring, traduzido por
Stewart Spencer (Londres, 2000), p. 272].

5 - Cf. no Peer Gynt de Ibsen, Ato II, a conversa entre o pai de Solveig e Aase (uma das “mães”
mais bem desenhadas da literatura) durante a busca por seu filho [traduzido por John
Northam (Oxford, 1993), pp. 35-36]:

Aase: “Precisamos encontrar o rapaz!”

Pai: “Resgate alma dele”.

Aase: “Membros também!”

6 - Naturalmente, tudo isso não se refere apenas às prostitutas que se vendem.

7 - Pode haver uma conexão entre isso e o fato, que surpreenderá muitos, de que a prostituta
presta mais atenção à limpeza física do que a mãe.

8 - P. 121f.

9 - Cf. capítulo IX, pág. 166f.

10 - O autor não está em melhor posição do que o leitor se este não estiver satisfeito com esta
análise da coqueteria. O que a análise revelou é bastante superficial. A parte misteriosa do
coquetismo me parece cada vez mais um ato peculiar pelo qual uma mulher se torna objeto de
um homem e se liga a ele funcionalmente. Nesse aspecto, a coqueteria é bem como a outra
aspiração feminina de se tornar objeto da compaixão de seus semelhantes: em ambos os casos
o sujeito se transforma em objeto, na sensação de outro, que ele coloca como juiz de si
mesmo. A coqueteria é a mesma fusão específica da prostituta com coisas exteriores a ela,
como aquela representada pelo cuidado da mãe, que primeiro toma a forma de gravidez,
depois de lactação, etc.

11 - Tampouco o animal macho é motivado pela vaidade como manifestação da vontade de


valor.

12 - Se considerarmos como quase todas as mulheres, dada a sua grande liberdade hoje,
circulam pelas ruas, como tornam todas as suas formas visíveis apertando mais as roupas em
torno de si, e como usam todos os dias de chuva para tal fim, ninguém vai achar isso um
exagero.

XI — Erotismo e Estética
Com exceção de alguns pontos ainda a serem considerados, examinei agora os argumentos
que são usados repetidamente na tentativa de justificar a alta estima em que a mulher é tida e
os refutei do ponto de vista da filosofia crítica em que, pelas razões expostas, se baseia a
minha investigação. É claro que há poucas esperanças de que o debate seja realizado em um
terreno tão sólido. Não posso deixar de pensar em Schopenhauer, cuja baixa opinião sobre o
sexo, em seu ensaio “On Women”, ainda é comumente atribuída ao fato de que uma garota
veneziana com quem ele estava saindo se apaixonou pelo Byron, mais atraente fisicamente,
enquanto ele passava galopando: como se a pior opinião das mulheres fosse formada pelo
homem que teve menos sucesso, e não pelo homem que teve mais sucesso com elas.

O método de simplesmente descrever uma pessoa como misógina, em vez de refutar razões
com razões, tem muito a seu favor. O ódio nunca transcende seu objeto e, portanto, chamar
um indivíduo de odiador do que ele condena facilmente o exporá à suspeita de ser insincero,
impuro e incerto, e de tentar compensar sua falta de justificação interior através do fervor de
sua hostilidade. Esse tipo de resposta, portanto, nunca falha em seu propósito de liberar os
defensores das mulheres da obrigação de abordar a questão adequadamente. É a arma mais
engenhosa e precisa da enorme maioria dos homens que nunca querem obter uma
compreensão clara da Mulher.

Não há homens que pensem muito nas mulheres e ainda as tenham em alta estima. Existem
apenas aqueles que desprezam a Mulher e aqueles que nunca pensaram sobre a Mulher
longamente ou em profundidade. Em uma controvérsia teórica é obviamente um mau hábito
referir-se aos motivos psicológicos do oponente e usar tal referência em vez de provas.
Tampouco desejo embarcar em uma palestra teórica sobre a necessidade de ambos os
oponentes em um debate objetivo servir à ideia supra-pessoal de verdade e tentar chegar a
um resultado, independentemente de se, ou como, ambos existem como indivíduos concretos.
No entanto, se uma das partes chegou a um determinado resultado por meio de um
argumento consistentemente lógico, enquanto a outra simplesmente rejeita suas conclusões
sem seguir seu raciocínio, então ele certamente pode tomar a liberdade de confrontar
claramente o outro com os motivos de sua obstinação, em puni-lo pela indecência de sua
recusa em responder a uma dedução rigorosa. Se a outra parte estivesse consciente desses
motivos, ele os pesaria objetivamente em relação à realidade que conflita com seus desejos.
Só porque não tinha consciência deles é que não conseguiu chegar a uma posição objetiva em
relação a si mesmo. Portanto, depois de minhas próprias deduções rigorosamente lógicas e
objetivas, vou agora virar o jogo e examinar o sentimento que dá origem ao partidarismo
apaixonado dos defensores das mulheres, e até que ponto isso está enraizado em uma
mentalidade sincera ou dúbia.

Emocionalmente, as objeções levantadas aos que desprezam as mulheres derivam, sem


exceção, da relação erótica de um homem com uma mulher. Essa relação é fundamentalmente
diferente daquela puramente sexual, que dá conta de toda a interação entre os sexos no
mundo dos animais, e que quantitativamente também desempenha o maior papel entre os
humanos. É totalmente errado dizer que sexualidade e erotismo, pulsão sexual e amor são
basicamente uma e a mesma coisa, e que o segundo é um disfarce, um refinamento, um
embaçamento, uma “sublimação” do primeiro, embora todos os médicos tendem a jurar isso,
e mesmo intelectuais como Kant e Schopenhauer não acreditavam em outra coisa.Antes de
discutir as razões dessa distinção gritante, gostaria de dizer algo sobre esses dois homens. A
opinião de Kant não tem peso porque ele deve saber menos sobre amor ou desejo sexual do
que qualquer outro homem que já viveu neste mundo. Ele era tão deficiente em erotismo que
nem sequer tinha vontade de viajar.[1] Portanto, ele é muito exaltado e puro demais para se
posicionar como autoridade nessa questão: seu único amor, do qual se vingou, foi a metafísica.
Quanto a Schopenhauer, ele apreciava muito pouco um tipo superior de erotismo, e só
apreciava realmente a sexualidade. Isso pode ser facilmente deduzido da seguinte forma. O
rosto de Schopenhauer mostra pouca bondade e muita crueldade (da qual ele mesmo deve ter
sofrido terrivelmente: não se concebe uma ética de compaixão se for muito compassivo. Os
indivíduos mais compassivos são aqueles que mais se ressentem de sua própria compaixão:
Kant e Nietzche). Mas já pode ser indicado neste ponto que apenas aqueles que têm uma forte
tendência à compaixão são capazes de um erotismo fervoroso. Aqueles que “não se importam
menos” são incapazes de amar. Eles não são necessariamente naturezas satânicas. Pelo
contrário, eles podem ser altamente morais, mas não conseguem perceber o que seus
semelhantes pensam ou o que se passa dentro deles, e não apreciam um relacionamento
supra-sexual com a mulher. O mesmo vale para Schopenhauer. Ele era um homem que sofria
extremamente com o desejo sexual, mas nunca amou. Não há outra explicação para a
unilateralidade de sua famosa “Metafísica do Amor dos Sexos”, cuja mensagem mais
importante é que o propósito final inconsciente de todo amor nada mais é que “a composição
da próxima geração”.

Acredito que posso provar que essa visão é falsa. É verdade que nenhum amor completamente
desprovido de sensualidade existe no mundo da experiência. Por mais elevado que um ser
humano possa ser, ele é invariavelmente também um ser sensual. O que importa, e o que
destrói irresistivelmente a visão oposta, é que todo amor em si mesmo — mesmo sem
nenhum princípio ascético que o una — é hostil a todos os elementos de uma relação que
impulsionam a relação sexual e que ele realmente percebe como sua própria negação. Amor e
desejo são dois estados diferentes, mutuamente exclusivos, aliás, diametralmente opostos,
tanto que, naqueles momentos em que uma pessoa ama, a ideia de uma união física com a
pessoa amada lhe parece completamente impensável. Não há esperança inteiramente sem
medo, mas isso não altera o fato de que esperança e medo são opostos exatos. O mesmo se
aplica ao desejo sexual e ao amor. Quanto mais erótico for um indivíduo, menos se
incomodará com sua sexualidade e vice-versa. Se não há adoração inteiramente livre de
desejo, não se segue que possamos considerar as duas coisas como idênticas. Eles podem, na
melhor das hipóteses, ser fases opostas que um indivíduo mais ricamente dotado é capaz de
entrar em sucessão. Um homem que ainda afirma amar uma mulher quando realmente a
deseja está mentindo ou nunca soube o que é o amor: tão grande é a diferença entre o amor e
o impulso sexual. É por isso que quase sempre é considerado hipócrita se alguém fala de amor
no casamento.

As mentes embotadas que, no entanto, continuam apegadas à identidade dos dois, como se
obedecessem a um princípio cínico, devem considerar isto: a atração sexual cresce com a
proximidade física, enquanto o amor é mais forte quando o amado está ausente, e exige
separação, ou seja, , uma certa distância, a fim de sobreviver. De fato, onde todas as viagens a
países distantes não foram capazes de fazer morrer o amor verdadeiro, onde toda a passagem
do tempo não foi capaz de trazer o esquecimento, um contato físico acidental e involuntário
com a mulher amada pode despertar o desejo sexual e conseguir matar amor no local. E no
caso do homem mais diferenciado, do indivíduo excepcional, da garota que ele deseja e da
garota que ele só pode amar, mas nunca desejar, certamente têm figuras diferentes, maneiras
diferentes de andar, caráteres diferentes: são duas coisas completamente diferentes seres.

Assim, existe de fato o amor “platônico”, mesmo que os professores de psiquiatria não
pensem muito nisso. Eu diria até que só existe amor “platônico”. O que quer que seja chamado
de amor é obscenidade. Há apenas um amor: é o amor por Beatrice, a adoração de Nossa
Senhora. Para a relação sexual há a prostituta da Babilônia.

Se isso se provar correto, a lista de ideias transcendentais de Kant precisaria ser estendida. O
amor puro, elevado, sem desejos, o amor de Platão e Bruno, seria uma ideia transcendental,
que não se tornaria menos significativa como ideia só porque a experiência nunca mostra que
se realiza plenamente.

Esse é o problema de Tannhäuser. Por um lado, Tannhäuser, por outro lado Wolfram; por um
lado Vênus, por outro lado Maria. O fato de dois amantes que se encontraram para sempre —
Tristão e Isolda — irem para a morte em vez do leito nupcial prova a existência de algo
superior, talvez algo metafísico, nos seres humanos, tão conclusivamente quanto o martírio de
Giordano Bruno. faz.
Love pure and holy,
beckon me onwards to my goal.
In your celestial beauty
You have possessed my soul!
You come to us from heaven,
I follow from afar:
Lead me into love’s kingdom,
O shining, blessed star

[Richard Wagner: Tannhäuser, traduzido por Rodney Blumer (Londres, 1988), p. 80]

Quem é o objeto de tal amor? A mesma mulher que foi descrita neste estudo, a mulher sem
qualidades que possam conferir valor a um ser, a mulher sem vontade de um valor próprio?
Dificilmente: a mulher que é amada assim é uma mulher que é linda além da medida e pura
como um anjo. A questão é de onde vem a beleza e a castidade daquela mulher.

Tem havido muita discussão sobre se o sexo feminino é realmente o mais bonito, e a descrição
dele como o “sexo justo” tem sido contestada com ainda mais frequência. Será aconselhável
começar perguntando precisamente quem considera a Mulher bela e em que sentido.

É sabido que a Mulher não é mais bonita quando está nua. Quando reproduzida em uma obra
de arte, como uma estátua ou uma pintura, uma mulher nua pode ser bela. Mas ninguém
pode considerar uma mulher nua na vida real bonita, mesmo porque o impulso sexual torna a
contemplação sem desejo, que é o pré-requisito absolutamente necessário para considerar
qualquer coisa como bela, impossível. Mas mesmo fora isso, uma mulher viva completamente
nua dá a impressão de ser inacabada, de buscar algo fora de si, e isso é incompatível com a
beleza. Uma mulher nua é mais bonita nos detalhes do que no todo; como um todo, ela
inevitavelmente desperta a sensação de que está em busca de algo e, assim, causa ao
observador mais desprazer do que prazer. Esse elemento de falta de propósito intrínseco, de
ter um propósito fora de si mesma, é mais evidente em uma mulher nua quando ela fica de pé;
é naturalmente reduzido em uma posição reclinada. Os artistas que retratam a mulher nua
provavelmente sentiram isso e, se a retrataram em pé ou flutuando no ar, nunca a mostraram
sozinha, mas sempre em relação a outras figuras, das quais ela poderia tentar esconder sua
nudez com a mão dela.

Mas a Mulher também não é bela em todos os detalhes, mesmo quando representa o tipo
físico de seu sexo da maneira mais completa e perfeita possível. O elemento mais importante
para nossa teoria são seus genitais. Foi sugerido que todo o amor que um homem tem por
uma mulher é o impulso de detumescência, elevado ao cérebro, e Schopenhauer disse que
“somente o homem cujo intelecto está obscurecido por seus impulsos sexuais é que poderia
dar o nome de belo sexo a aquela raça subdimensionada, de ombros estreitos, quadris largos e
pernas curtas; pois toda a beleza do sexo está ligada a esse impulso” [“Of Women”, in The
Pessimist’s Handbook: A Collection of Popular Essays, traduzido por T. Bailey Saunders
(Lincoln, Nebraska, 1976), p. 205]. Se isso fosse verdade, teria que ser os genitais que os
homens mais amam apaixonadamente e acham mais bonitos em todo o corpo da Mulher. Não
mencionarei alguns faladores repulsivos dos últimos anos, cuja publicidade importuna da
beleza dos genitais femininos não só prova que isso nunca seria acreditado sem sua agitação,
mas também revela a falsidade de seus argumentos, dos quais fingem convencer-se. Além
disso, pode-se dizer que nenhum homem acha os genitais femininos tão bonitos, mas que todo
homem realmente os acha feios. Nos homens básicos, os desejos sensuais podem ser
despertados por essa parte específica da Mulher, mas esses são precisamente os homens que
talvez os achem muito agradáveis, mas nunca bonitos. Portanto, a beleza da Mulher não pode
ser meramente um efeito do impulso sexual; na verdade é exatamente o oposto. Aqueles
homens completamente dominados pelo impulso sexual não apreciam nenhuma beleza na
Mulher. Uma prova disso é que eles desejam indiscriminadamente todas as mulheres que
vêem, apenas em resposta aos vagos contornos de seu corpo.

A razão para os fenômenos que descrevi, a feiura dos genitais femininos e a falta de beleza de
seu corpo vivo como um todo, só pode ser que ofendam a modéstia do Homem. A estupidez
canônica de nosso tempo tornou possível derivar modéstia do fato de usarmos roupas e
assumir apenas impulsos não naturais e lascívia oculta por trás da repulsa à nudez feminina.
Mas um homem que se tornou lascivo deixou de se opor à nudez, porque isso não lhe parece
mais como tal. Ele só deseja e não ama. O verdadeiro amor, como a verdadeira compaixão, é
modesto. Há apenas um ato imodesto: uma declaração de amor que um indivíduo acredita ser
sincera no momento de entregá-la. Isso representaria a maior imodéstia objetiva imaginável.
Seria como dizer: estou com saudade. A primeira seria a ideia de uma ação imodesta, a
segunda a ideia de um discurso imodesto. Nem nunca é realizado, porque toda verdade é
modesta. Não há declaração de amor que não seja mentira; e quão estúpidas as mulheres
realmente são é mostrada pela frequência com que elas acreditam em protestos de amor.

Conseqüentemente, o padrão do que é considerado belo e do que é considerado feio na


Mulher encontra-se no amor ao Homem, que é sempre modesto. As coisas aqui não são como
na lógica, onde a verdade é o padrão do pensamento e o valor da verdade é seu criador, nem
como são na ética, onde o bem é o critério do que deve ser feito e onde o valor do bem é
investido com a pretensão de dirigir a vontade para o bem. Aqui, na estética, a beleza é criada
pelo amor. Na estética não há nenhuma norma interna que nos compele a amar o que é belo,
e o belo não se aproxima de nós com a exigência de que o amemos. (Essa é a única razão pela
qual não há gosto supra-individual, exclusivamente “correto”.) Em vez disso, a própria beleza é
uma projeção, ou emanação, do desejo de amar. Portanto, a beleza da Mulher não é algo
diferente do amor, não é um objeto ao qual o amor se dirige. A beleza da Mulher é o amor do
Homem. Amor e beleza não são dois fatos diferentes, mas um e o mesmo. Assim como a feiura
deriva do ódio, a beleza deriva do amor. O fato de que a beleza tenha tão pouco a ver com o
impulso sexual quanto o amor, e que tanto o amor quanto a beleza sejam estranhos ao desejo,
expressa a mesma coisa. A beleza é algo intocável, inviolável, que não pode ser misturado com
outras coisas. Ela só pode ser vista como se estivesse perto de uma longa distância, e recua
antes de qualquer aproximação. O impulso sensual, que busca a união com a Mulher, destrói
sua beleza. Uma mulher que foi manuseada e possuída não é mais venerada por ninguém por
sua beleza.

Isso nos leva à segunda pergunta: Qual é a inocência e qual é a moralidade da Mulher?

Faremos o melhor para começar com alguns fatos que acompanham o início de todo amor.
Como já foi sugerido, a limpeza física em um homem é geralmente um sinal de moralidade e
sinceridade; pelo menos aqueles indivíduos cujos corpos estão sujos raramente têm mentes
muito puras. Agora, pode-se observar que alguns indivíduos que geralmente não prestam
muita atenção à limpeza de seus corpos lavam-se com mais frequência e mais completamente
sempre que fazem um esforço para melhorar a moralidade de seu caráter. Da mesma forma,
alguns indivíduos que nunca foram limpos de repente desenvolvem um desejo interior de
limpeza durante a duração de um amor, e esse breve período de tempo é muitas vezes o único
em toda a sua vida em que eles não parecem sujos sob suas camisas. Passando para o reino da
mente, vemos que o amor, em muitos indivíduos, começa com autoacusações e tentativas de
autopunição e expiação. Começa um balanço moral, e a mulher amada parece irradiar uma
purificação interior, mesmo que o homem que a ama nunca tenha falado com ela e a tenha
visto poucas vezes de longe. Esse processo, portanto, não pode estar enraizado na própria
mulher amada: ela é com muita frequência uma jovem imatura, muitas vezes uma vaca,
muitas vezes um flerte lascivo, e ninguém, exceto o homem que a ama, normalmente verá
quaisquer qualidades celestiais nela. Quem pode acreditar que essa pessoa concreta é
realmente o objeto de tal amor? Ela não serve, antes, como ponto de partida de um
movimento incomparavelmente maior da alma?

Sempre que um homem ama, ele só ama a si mesmo. Não sua subjetividade, não o que ele
realmente representa como um ser manchado de toda fraqueza e baixeza, toda falta de graça
e mesquinhez, mas o que ele quer ser completamente e o que ele deve ser completamente,
sua natureza inteligível mais pessoal e mais profunda, livre de qualquer resquício de
necessidade e de qualquer resíduo de sua natureza terrena. Em suas buscas no tempo e no
espaço, esse ser está sujeito às impurezas e limitações do mundo dos sentidos, e não existe
como arquétipo puro e radiante. Por mais profundo que ele possa mergulhar em si mesmo, ele
se encontrará turvo e manchado, e o que ele busca não se apresentará a ele em nenhum lugar
em pureza branca e imaculada. E, no entanto, não há nada que ele precise com mais urgência,
nada que ele anseie com mais fervor, do que ser ele mesmo e somente ele mesmo. Mas como
ele não vê a única coisa pela qual ele se esforça, seu objetivo, brilhando intensamente e
permanecendo inabalavelmente firme nas profundezas de sua própria natureza, ele deve
facilitar a emulação imaginando-o fora de si mesmo. Ele projeta seu ideal de um ser
absolutamente valioso, que não consegue isolar dentro de si mesmo, em outro ser humano, e
só isso significa dizer que ama esse ser humano. Somente um indivíduo que fez algo errado, e
que sente isso errado, é capaz desse ato: é por isso que uma criança não pode amar. O amor
representa a meta mais elevada, nunca alcançada, de todos os anseios, como se realmente
existisse em algum lugar no mundo da experiência e não apenas no mundo das ideias, e, ao
localizar essa meta em um semelhante, revela que no próprio amante, o ideal está longe de
ser realizado. Essa é a única razão pela qual o amor é acompanhado por um novo despertar da
luta pela purificação, do desejo de alcançar uma meta que é da mais alta natureza espiritual e
que, portanto, não tolera poluição física por meio de qualquer aproximação ao ente querido
no espaço. É também por isso que o amor é a expressão mais alta e mais forte da vontade de
valor, e é por isso que revela, mais do que tudo no mundo, a verdadeira natureza do ser
humano, que está preso entre a mente e o corpo, entre a sensualidade e a moral, e que têm
uma parte em ambos: Deus e animal. Um ser humano é ele mesmo, inteiramente e em todos
os sentidos, somente quando ama.[2] Isso explica por que muitas pessoas não começam a
acreditar em si mesmas e nos outros — o eu e o tu, que há muito se tornaram conceitos
complementares não apenas na gramática, mas também na ética — até que amem. Também
dissipa o mistério de por que os nomes das duas pessoas envolvidas desempenham um papel
tão importante em qualquer caso de amor; por que muitas pessoas precisam amar antes de
tomarem consciência de sua própria existência e serem dominadas pela convicção de que têm
uma alma;[3] por que um homem apaixonado não desejaria de modo algum sujar sua amada
por sua proximidade, mas muitas vezes tenta vê-la de longe, para se assegurar de sua [dela] —
sua [dele] — existência; por que mesmo muitos empiristas obstinados, quando amam,
transformam-se em místicos arrebatados, exemplo disso foi fornecido pelo pai do positivismo,
o próprio Augusto Comte, cujo pensamento sofreu uma revolução total quando conheceu
Clotilde de Vaux. Psicologicamente, Amo ergo sum se aplica não apenas ao artista, mas ao ser
humano como tal.

Assim, o amor, como o ódio, é resultado de uma projeção e não, como a amizade, de uma
equação. O pré-requisito da amizade é o valor igual de ambos os indivíduos, enquanto o amor
sempre postula a desigualdade, o valor desigual. Amar é empilhar em um indivíduo tudo o que
gostaríamos de ser, mas nunca podemos ser completamente, e fazer desse indivíduo um
portador de todos os valores. O símbolo desta perfeição suprema é a beleza. É por isso que um
amante fica tão frequentemente surpreso e até horrorizado quando percebe que uma mulher
bonita não é também uma mulher moral, e acusa a natureza de engano porque “um corpo tão
bonito” pode conter “quanta depravação”. Ele não para para pensar que a única razão pela
qual aquela mulher ainda lhe parece bonita é que ele ainda a ama: caso contrário, a
incongruência entre o externo e o interno não o machucaria mais. A prostituta comum nunca
parece bonita, porque desde o início é impossível projetar qualquer valor nela. Ela só pode
satisfazer o gosto de um indivíduo absolutamente comum, ela é a amante do homem mais
imoral, o cafetão. Aqui vemos claramente uma relação que é diametralmente oposta à
moralidade. Em geral, porém, a relação da Mulher com qualquer coisa ética é de indiferença.
Ela é amoral e, portanto, ao contrário do criminoso masculino antimoral, a quem
instintivamente ninguém ama, ou do diabo, que todos imaginam ser feio, ela pode fornecer
uma base para o ato de transferência de valor. Como ela não faz o bem nem comete pecados,
nada nela ou sobre nela resiste a tal colocação do ideal em sua pessoa. A beleza da mulher
nada mais é do que uma moral que se tornou visível, mas a própria moralidade é a do homem,
que ele transpôs em seu mais alto grau e perfeição para a mulher.

Como a beleza não representa nada senão uma tentativa renovada de incorporar o valor
supremo, tudo o que é belo cria uma sensação de ter encontrado o que se procura, o que
silencia todo desejo e interesse próprio. Todas as formas que parecem belas a um ser humano
são outras tantas tentativas de sua parte de tornar visível o valor supremo através de sua
função estética, que traduz objetos morais e intelectuais em objetos sensuais. A beleza é o
símbolo da perfeição no mundo das aparências. É por isso que a beleza é invulnerável, é por
isso que é estática e não dinâmica, é por isso que qualquer mudança em nosso
comportamento em relação a ela a anula e destrói o conceito dela. O amor de valor intrínseco,
o desejo de perfeição, engendra a beleza na matéria. É isso que dá origem à beleza da
natureza, que o criminoso nunca percebe, porque a natureza é criada apenas pela ética. É por
isso que a natureza, sempre e em toda parte, na maior e na menor de suas formas, dá a
impressão de perfeição. Assim como a beleza da natureza é a nobreza da alma tornada visível,
as leis da natureza são os símbolos concretos da lei moral, e a lógica é a ética realizada. Assim
como o amor, para o homem, cria uma nova mulher no lugar da real, também a arte, o
erotismo do cosmos, cria a riqueza das formas do universo a partir do caos; e assim como não
há beleza natural sem forma, ou sem leis naturais, não há arte sem forma, não há beleza
artística que não obedeça às regras da arte. Pois a beleza natural mostra a realização da beleza
moral da mesma forma que as leis naturais mostram a realização da lei moral, e como a
finalidade da natureza mostra a harmonia cujo arquétipo está entronizado acima da mente do
homem. Com efeito, a natureza, descrita pelo artista como sua eterna mestra, nada mais é do
que a norma que ele mesmo cria para sua própria obra, e que não se concentra em um
conceito, mas vista graficamente no infinito. Para dar um exemplo, as proposições da
matemática são a música realizada (e não vice-versa), e a matemática é a verdadeira
representação da música, transferida do reino da liberdade para o reino da necessidade, o que
torna a meta estabelecida para os músicos uma meta matemática. Assim, é a arte que cria a
natureza, e não a natureza que cria a arte.

Depois dessas dicas sobre a arte, que, pelo menos em parte, são uma exposição e um
aprofundamento das ideias profundas de Kant e Schelling (e Schiller, que foi influenciado por
eles), volto ao meu tópico central. Para os propósitos desse tópico, agora foi estabelecido que
a crença na moralidade da Mulher, ou seja, a “introjeção” da alma do Homem na Mulher, e a
bela aparência externa da Mulher são um e o mesmo fato, este último sendo a expressão
visível do primeiro. É, portanto, compreensível, mas ainda uma inversão do estado real das
coisas, falar de uma “alma bela” no sentido moral, ou seguir Shaftesbury e Herbart na
subordinação da ética à estética. Pode-se considerar

como idênticos, como Sócrates e Antístenes, mas não se deve esquecer que a beleza é apenas
uma imagem corporal, na qual a moral se apresenta como uma realidade, e que a estética, no
entanto, sempre permanece uma criação da ética. Todas essas tentativas de encarnação
individuais e temporalmente limitadas são ilusórias por sua própria natureza, porque apenas
simulam a perfeição que se supõe ter sido alcançada. É por isso que toda beleza individual é
passageira, e qualquer amor pela mulher deve suportar ser refutado pela velha. A ideia de
beleza é a ideia de natureza, que é eterna, ainda que toda beleza individual e todo fenômeno
natural pereçam. Ver a própria perfeição no que é limitado e concreto só pode ser uma ilusão,
e vê-la na mulher amada só pode ser um erro. O amor pela beleza não deve ser entregue à
Mulher para servir de cobertura ao desejo sexual. Se todo amor por pessoas específicas se
baseia na confusão desses dois fenômenos, só pode haver amor infeliz. Mas todo amor se
apega a esse erro. É a tentativa mais heroica de afirmar valores onde eles não existem.
Somente o amor pelo valor infinito, isto é, pelo absoluto ou por Deus, mesmo que apenas se
manifestasse no amor pela infinita beleza visível da totalidade da natureza (panteísmo),
poderia ser descrito como a ideia transcendental do amor, se existisse tal coisa. O amor por
qualquer coisa individual, incluindo uma mulher, é uma queda da ideia, uma transgressão.

Por que os seres humanos transgridem dessa maneira já está contido no que eu disse antes.
Assim como o ódio projeta nossas próprias más qualidades em nossos semelhantes apenas
para fazer essa combinação parecer um impedimento mais eficaz, e assim como o diabo foi
inventado apenas para retratar todos os nossos impulsos malignos fora de nós e nos
emprestar orgulho e a força do lutador, o único propósito do amor é nos auxiliar em nossa luta
pelo bem, que ainda não somos fortes o suficiente para apreender como uma ideia dentro de
nós. Portanto, tanto o ódio quanto o amor são formas de covardia. Quando odiamos, nos
iludimos acreditando que estamos sendo ameaçados por outra pessoa, e fingimos que somos a
própria pureza sob ataque, em vez de admitir para nós mesmos que devemos eliminar o mal
em nós mesmos, pois ele se esconde em nossos próprios corações, e em nenhum outro lugar.
Construímos o maligno para ter a satisfação de jogar um tinteiro nele. A única razão pela qual
a crença no diabo é imoral é que é um método inaceitável de tornar nossa luta mais fácil e que
transfere a culpa. Quando amamos, transpomos a ideia de nosso próprio valor para um
indivíduo que parece apto a recebê-lo, assim como transferimos a ideia de nossa própria falta
de valor quando odiamos: Satanás se torna feio, a mulher amada se torna bela. Em ambos os
casos, achamos mais fácil se entusiasmar com os valores morais estabelecendo um contraste e
alocando o bem e o mal a duas pessoas diferentes. Mas se algum amor pelos indivíduos, mais
do que pela ideia, é uma fraqueza moral, isso também deve vir à luz nos sentimentos do
amante. Ninguém pode cometer um crime sem ser informado por um sentimento de culpa.
Não é à toa que o amor é o sentimento mais modesto: tem ainda mais motivos para ser
modesto do que a compaixão. Um indivíduo de quem tenho pena recebe algo de mim e, no
ato de ter pena dele, dou-lhe parte de minha riqueza imaginária ou real; minha ajuda é,
portanto, apenas uma encarnação visível do que já estava implícito em minha compaixão. Se
eu amo um indivíduo, sou eu que quero alguma coisa, ou pelo menos não quero que ele
perturbe meu amor por meio de gestos feios ou características mesquinhas. Através do amor
quero me encontrar, em vez de continuar buscando e lutando. Da mão de um semelhante não
quero receber nada menos, e nada mais, do que eu mesmo. O que eu quero dele sou eu
mesmo!

A compaixão é modesta porque, ao fazer os outros parecerem meus inferiores, os humilha. O


amor é modesto porque, amando, me coloco abaixo dos outros. O amor torna o indivíduo mais
esquecido de seu orgulho, e essa é a fraqueza da qual ele se envergonha. Portanto, a
compaixão está relacionada ao amor, e é por isso que somente aqueles que conhecem a
compaixão conhecem o amor. E, no entanto, os dois se excluem: não podemos amar aqueles
de quem temos pena, e não podemos ter pena daqueles que amamos. Na compaixão eu
mesmo sou o pólo fixo, no amor é o outro: as direções, ou signos algébricos, dos dois afetos
são diametralmente opostos. Na compaixão sou o doador, no amor sou o mendigo. O amor é o
mais modesto de todos os pedidos, porque implora o mais, o mais alto. É por isso que se
transforma tão prontamente no orgulho mais brusco, mais vingativo, se uma resposta
descuidada ou insensível do ente querido o torna consciente do que realmente pediu.

Todo erotismo está repleto de um sentimento de culpa. O ciúme revela a incerteza do terreno
sobre o qual se constrói o amor. O ciúme é o reverso de qualquer amor, e traz à tona toda a
sua imoralidade. Através do ciúme usurpamos o poder sobre o livre arbítrio de nossos
semelhantes. O ciúme é compreensível, sobretudo à luz da teoria que desenvolvi aqui, pois o
amor localiza o eu puro do amante no ser amado, e os seres humanos, como resultado de uma
conclusão equivocada, mas não inexplicável, tendem a acreditar que eles têm uma
reivindicação duradoura e onipresente de seu próprio eu. No entanto, o ciúme revela que se
tentou alcançar através do amor algo que não deveria ter sido exigido dessa maneira: o faz
pelo simples fato de estar cheio de medo, e medo, como o sentimento cognato de
vergonha,[4] sempre se refere a um mal feito no passado.

A culpa que um ser humano incorre pelo amor é o desejo de se libertar do sentimento de
culpa que descrevi anteriormente como pré-requisito e pré-condição de qualquer amor. Em
vez de aceitar todo o mal que fez e expiá-lo pelo resto da vida, ele usa o amor como uma
tentativa de escapar de sua própria culpa, esquecê-la e ser feliz. Em vez de realizar ativamente
a ideia de perfeição, o amor tenta mostrar a ideia como se já tivesse sido realizada. Pelo ardil
mais sutil, ele finge que o milagre aconteceu na outra pessoa, mas o fato é que o amante
espera alcançar sua própria libertação do mal sem luta. Esta é a explicação da profunda ligação
entre o amor e o desejo de redenção (Dante, Goethe, Wagner, Ibsen). O próprio amor é
apenas um desejo de redenção, e qualquer desejo de redenção é imoral (capítulo VII,
conclusão). O amor salta ao longo do tempo e ignora a causalidade; tenta alcançar a pureza
repentina e imediatamente, sem nenhuma contribuição própria. É por isso que, sendo um
milagre de fora e não de dentro, é em si mesmo impossível e nunca pode cumprir seu
propósito, muito menos no caso daqueles indivíduos que sozinhos teriam uma capacidade
imensamente grande para isso. É o auto-engano mais perigoso, precisamente porque parece
avançar mais vigorosamente a luta pelo bem. Indivíduos medíocres podem ser enobrecidos
por ela. Aqueles com uma consciência mais sutil tomarão cuidado para não sucumbir ao seu
engano.

O amante busca sua própria alma na pessoa amada. Nessa medida, o amor é livre e não está
sujeito às leis de uma atração meramente sexual, discutidas na primeira parte. A vida psíquica
da mulher adquire influência e estimula o amor quando é mais suscetível à idealização, ainda
que os encantos físicos da mulher sejam tênues e sua complementaridade limitada, e destrói a
possibilidade do amor quando contrasta muito descaradamente com a “introjeção”. No
entanto, apesar da oposição entre sexualidade e erotismo, há uma analogia inequívoca entre
eles. A sexualidade utiliza a Mulher como meio de obtenção de prazer e filho do corpo, o
erotismo como meio de obtenção de valor e filho da mente, ou seja, produtividade. É um
ditado infinitamente profundo, embora aparentemente pouco compreendido, da Diótima de
Platão que o amor não serve à beleza em si, mas ao processo criativo e produtivo inerente à
beleza, ou à imortalidade na mente, da mesma forma que o baixo impulso sexual serve a
continuidade da existência da espécie. O que todo pai, seja o pai de um filho do corpo ou o pai
de um filho da mente, procura encontrar em seu filho é ele mesmo: a realização concreta de
sua ideia de si mesmo, que constitui a essência do amor, é de fato a criança. É por isso que o
artista muitas vezes procura a mulher para poder criar a obra de arte. “Todos nós
escolheríamos crianças desse tipo para nós mesmos, em vez de crianças humanas. Nós
olhamos com inveja para Homero e Hesíodo, e os outros grandes poetas, e a progênie
maravilhosa que eles deixaram para trás, que lhes trouxe fama e memória imorredouras… Em
sua cidade, Sólon é considerado o pai de suas leis, assim como muitos outros homens em
outros estados, gregos e estrangeiros. Eles publicaram ao mundo uma variedade de nobres
realizações e criaram bondade de todo tipo. Existem santuários para essas pessoas em
homenagem à sua prole, mas nenhum para os produtores de crianças comuns.”

Não é uma mera analogia formal, nem uma superestimação de uma correspondência
linguística puramente acidental, se tentarmos falar sobre concepção e fertilidade em conexão
com a mente, sobre produtos da mente, ou, como nas palavras de Platão, sobre crianças da
mente em um sentido mais profundo. Assim como a sexualidade física é uma tentativa por
parte de um ser orgânico de colocar sua própria forma em um fundamento duradouro, todo
amor, basicamente, é uma tentativa de criar uma forma permanente da alma, isto é, a
individualidade. Esta é a ponte que liga a vontade de alcançar a eternidade para si mesmo
(como se poderia descrever o fator comum entre sexualidade e erotismo) com a criança. Tanto
o impulso sexual quanto o amor são tentativas de realizar o eu. A primeira busca perpetuar o
indivíduo por meio de uma semelhança física, e a segunda, perpetuar a individualidade por
meio de sua imagem mental. Mas só um homem de gênio conhece um amor totalmente
desprovido de sensualidade, e só ele procura gerar filhos atemporais nos quais a essência mais
profunda de sua mente se expressa.

O paralelo pode ser levado adiante. Tem sido repetido muitas vezes depois de Novalis que o
desejo sexual é sempre semelhante à crueldade. Há uma razão profunda para essa
“associação”. Tudo o que nasce da mulher deve morrer. Concepção, nascimento e morte estão
inseparavelmente ligados. Antes de uma morte prematura, o impulso sexual desperta mais
violentamente em cada ser, revelando o desejo de se reproduzir enquanto ainda há tempo.
Assim, a relação sexual, não apenas como ato psicológico, mas também do ponto de vista da
ética e da filosofia natural, está relacionada ao assassinato: nega a mulher, mas também o
homem; no caso ideal, rouba a consciência de ambos, para dar vida à criança. Aqueles com
uma perspectiva ética entenderão que qualquer coisa que tenha surgido dessa maneira deve
perecer. Mas mesmo o tipo mais elevado de erotismo, não apenas o tipo mais baixo de
sexualidade, nunca usa a mulher como um fim em si mesma, mas apenas como um meio para
um fim, isto é, como uma forma de representar o eu do amante de uma forma pura: as obras
de um artista são sempre ele mesmo, que ele fixa em vários estágios, mas que geralmente
localizou de antemão em uma mulher ou outra, mesmo que ela seja apenas uma mulher de
sua imaginação.

No entanto, a psicologia real da mulher amada é sempre ignorada no processo: assim que um
homem ama uma mulher, ele deixa de ver através dela. Amar uma mulher não é entrar em
uma relação de compreensão, que é a única relação moral entre os seres humanos. Não se
pode amar um ser humano que se reconhece completamente, porque nesse caso seríamos
obrigados a ver todas as imperfeições ligadas a ele como ser humano, enquanto o amor
sempre visa a perfeição. Portanto, o amor por uma mulher só é possível se esse amor, em vez
de tomar conhecimento de suas qualidades reais e considerar seus próprios desejos e
interesses, na medida em que contrariam a localização de quaisquer valores superiores em sua
pessoa, não se restringe a substituir um realidade completamente diferente para a realidade
psíquica da pessoa amada. A tentativa de um homem de se encontrar em uma mulher, em vez
de simplesmente ver a Mulher em uma mulher, pressupõe necessariamente uma negligência
de sua pessoa empírica. Tal tentativa, portanto, é extremamente cruel para a mulher; e esta é
a raiz do egoísmo de todo amor, bem como do egoísmo do ciúme, que considera a Mulher
como uma posse completamente dependente e não considera sua vida interior.

É aqui que se completa o paralelo entre a crueldade do erotismo e a crueldade da sexualidade.


Amor é assassinato. A pulsão sexual nega a mulher como ser físico e psíquico, e o erotismo[5]
a nega como ser psíquico. A sexualidade mais grosseira vê a Mulher apenas como um
dispositivo de masturbação ou como portadora de filhos. O tratamento mais vil que pode ser
dispensado para uma mulher é censurá-la por sua infertilidade, e o mais vergonhoso livro de
estatutos é aquele que lista a esterilidade da esposa como base legal para o divórcio. O tipo
superior de erotismo, por outro lado, exige impiedosamente da mulher que ela satisfaça a
necessidade do homem de adorar, e que ela seja tão fácil de amar quanto possível, a fim de
permitir que seu amante veja seu ideal de si mesmo realizado em ela e ter um filho da mente
com ela. Assim, o amor não é apenas antilógico porque não presta atenção à verdade objetiva
da Mulher e sua natureza real, pois se apega deliberadamente a uma ilusão intelectual e clama
pelo engano da razão, mas também é antiético porque tenta para forçar a Mulher a fingir,
desiludir e obedecer totalmente a um comando que lhe é estranho.

O erotismo precisa da Mulher apenas para tornar a luta do Homem mais suave e curta. Ele só
quer que ela forneça o galho no qual ele pode se balançar para a redenção mais facilmente.
Assim, Paul Verlaine confessa:

Maria Imaculada, amor essencial,


Lógica de fé cordial e viva,
Em te amar, que bem há que eu não faça,
Amando-te apenas com amor, Portão do Céu?
E Goethe ensina, talvez ainda mais claramente, em Fausto:

Embora inviolável, livre


Em tua glória inigualável,
Tu podes ouvir a sua história
A quem o doce pecado tentou.

Eles eram fracos, em ti eles confiam;


Quem os salvará agora?
Quem pode quebrar as correntes da luxúria
Quem vai ajudar senão tu?

[Faust, Parte Dois, traduzido por David Luke (Oxford, 1994), pp. 236–237].

Longe de mim julgar mal a grandeza heróica inerente a esta forma mais elevada de erotismo, o
culto de Nossa Senhora. Como eu poderia fechar meus olhos para a singularidade do
fenômeno chamado Dante! A vida desse grande adorador da Madona sinaliza uma
transferência de valor tão imensurável para a Mulher que mesmo o desafio dionisíaco com que
ele apresenta esse presente, contra toda a realidade da Mulher, dificilmente pode deixar de
criar uma impressão da mais alta sublimidade. Essa encarnação de todos os anseios em uma
pessoa limitada e terrena — que, além disso, era uma menina que o poeta vira uma vez
quando tinha nove anos de idade, e que posteriormente pode ter se transformado em um
xantipa ou um pedaço de gordura — implica tal aparente abnegação, tal projeção de todos os
valores que transcendem as limitações temporais do indivíduo em uma mulher sem valor
intrínseco, que hesito em expor a verdadeira natureza do processo e argumentar contra isso.
No entanto, todo erotismo, mesmo o mais sublime, permanece uma tríplice imoralidade: uma
intolerância egoísta para com a mulher empírica real, que é usada apenas como meio para um
fim, que é o próprio aperfeiçoamento do amante, e a quem, portanto, é negado um vida
independente própria; além disso, um crime contra o próprio amante, uma fuga de si mesmo,
uma fuga de valor para uma terra estranha, um desejo de redenção e, portanto, uma covardia,
uma fraqueza, uma indignidade, na verdade o oposto de heroísmo; e em terceiro lugar, um
medo da verdade, que o amante não quer, porque é uma afronta à própria intenção de seu
amor, e que ele não pode suportar porque o privaria da possibilidade de uma redenção
confortável.

Esta última imoralidade é o que impede qualquer esclarecimento sobre a Mulher, porque
deliberadamente evita a iluminação e, portanto, provavelmente frustrará o reconhecimento
da inutilidade da Mulher como tal para sempre. A Madonna é uma criação do Homem, e nada
corresponde a ela na realidade. O culto da Madonna não pode ser moral, porque fecha os
olhos à realidade, porque o amante da Madonna mente para si mesmo. O culto da Madona de
que falo, o culto da Madona do grande artista, é uma transformação total da Mulher, que só
pode ocorrer se a realidade empírica da mulher for completamente ignorada. A introjeção é
feita com referência exclusiva ao belo corpo, e não serve para nada que se destaque em
contraste com o que essa beleza pretende simbolizar.

Analisei agora o propósito dessa recriação da Mulher, ou o desejo do qual brota o amor, com
detalhes suficientes. É principalmente pela mesma razão que as pessoas se recusam a ouvir
qualquer verdade que soe prejudicial para a Mulher. Preferem jurar pela “modéstia” feminina,
deleitar-se com a “compaixão” feminina e interpretar o baixar dos olhos da jovem como um
fenômeno eminentemente moral, em vez de abandonar essa mentira e com ela a possibilidade
de usar a Mulher como meio de ceder em seus próprios arrebatamentos e de deixar de manter
aberto este caminho para sua própria redenção.

Esta, então, é a resposta à pergunta que fiz no início, sobre por que os homens se apegam tão
obstinadamente à sua crença na virtude da Mulher. Persistem em fazer da Mulher um
receptáculo para a ideia de sua própria perfeição e em imaginar que essa perfeição se realiza
na Mulher, a fim de tornar mais fácil para eles mesmos realizar seus filhos da mente e seu
melhor eu através da Mulher, a quem eles transformaram em portadora do mais alto valor.
Não é por acaso que a condição do amante é tão semelhante à do criador. Uma bondade
excepcionalmente grande para com todos os seres vivos e um desprezo por todos os pequenos
valores concretos, comuns a ambos, são condições que distinguem tanto o amante quanto o
indivíduo produtivo e que sempre os fazem parecer incompreensíveis e ridículos para o
filisteu, para quem as ninharias materiais são a única realidade.

Todo grande eróticista é um gênio e todo gênio é basicamente erótico, ainda que seu amor
pelo valor, isto é, pela eternidade, pelo universo como um todo, não possa ser acomodado no
corpo de uma mulher. Até certo ponto, a relação entre o eu e o universo, a relação entre o
sujeito e o objeto, é uma repetição da relação entre o Homem e a Mulher numa esfera mais
elevada e mais ampla, ou, mais precisamente, esta última é um caso do primeiro. Assim como
um complexo de emoções se transforma em objeto, mas somente pelo sujeito e fora do
sujeito, a mulher empírica se traduz na Mulher do erotismo. Assim como o impulso para o
conhecimento é o desejo e o amor por coisas nas quais o ser humano nunca encontra nada
além de si mesmo, o objeto de amor no sentido mais estrito só é criado pelo amante, e ele
sempre descobre seu próprio eu mais profundo no isto. Assim, para o amante, o amor é uma
parábola: é mesmo o foco, mas o que se conjuga é o infinito.

A questão que se coloca agora é quem conhece este amor, se só o Homem é supra-sexual, ou
se a Mulher também é capaz do tipo superior de amor. Vamos tentar obter uma nova resposta
da experiência, bem à parte e sem influência do que estabeleci até agora. A experiência
mostra inequivocamente que W, com uma aparente exceção, nunca é nada mais do que
apenas sexual. As mulheres querem mais relações sexuais ou querem mais filhos (mas de
qualquer forma querem se casar). A “poesia de amor” das mulheres modernas não é apenas
totalmente não erótica, mas extremamente sensual; e embora não tenha passado muito
tempo desde que as mulheres começaram a se aventurar com esses produtos, elas têm sido
mais ousadas a esse respeito do que os homens jamais ousaram ser, e seus produtos
provavelmente satisfazem até as expectativas mais deliciosas dos devotos de “ matéria de
leitura para solteiros.” Nesses produtos não há uma palavra sobre uma inclinação pura e casta,
que teme sujar o ente querido por sua própria proximidade. Não encontramos nada além das
orgias mais desenfreadas e da luxúria mais selvagem, de modo que essa literatura parece
eminentemente adequada para abrir nossos olhos para a natureza completamente sexual e de
modo algum erótica da Mulher.

Só o amor engendra a beleza. As mulheres têm alguma relação com a beleza? Não é uma mera
figura de linguagem ouvir muitas vezes as mulheres dizerem: “Oh, por que um homem deve
ser bonito?” Não é mera bajulação, calculada para pegar um homem por sua vaidade, se uma
mulher lhe perguntar quais cores de um vestido combinam mais com ela: ela não pode
escolhê-las sozinha para que tenham um efeito estético. Mesmo em seu traje, uma mulher
conseguirá, na melhor das hipóteses, um arranjo que revela bom gosto, mas nenhum senso de
beleza, sem a ajuda de um homem. Se a Mulher como tal tivesse alguma beleza intrínseca, ou
se ela carregasse pelo menos um padrão original de beleza dentro de si, ela não iria querer ser
constantemente assegurada por um homem de que ela é bonita.

As mulheres, então, não acham o Homem realmente bonito, e quanto mais falam, mais
revelam o quanto estão longe de ter qualquer relação com a ideia de beleza. A medida mais
precisa da modéstia de um indivíduo é a frequência com que ele usa a palavra “belo”, que é
uma declaração de amor à natureza. Se as mulheres ansiassem pela beleza, pronunciariam seu
nome com menos frequência. Mas elas não têm desejo de beleza e não podem ter nenhum,
porque elas só são afetadas dessa maneira pela aparência externa socialmente aceita das
coisas. A beleza não é o que agrada. Embora essa definição esteja constantemente sendo
apresentada, ela é totalmente errada e vai diretamente contra o significado da própria
palavra. O que agrada é bonito; beleza é o que o indivíduo ama. A beleza é sempre geral, a
beleza é sempre individual. É por isso que qualquer reconhecimento verdadeiro da beleza é
modesto, pois nasce do desejo, e o desejo nasce da imperfeição e da carência do indivíduo
solitário. Eros é filho de Poros e Pênia, fruto da união da riqueza e da pobreza. Para considerar
algo belo, é preciso, como para a objetividade do amor, uma individualidade e não apenas
individuação. Mera beleza é moeda social. Beleza é algo que se ama, beleza é algo que as
pessoas se apaixonam. O amor está sempre indo além de si mesmo, é transcendente, porque
nasce da inadequação do sujeito acorrentado à subjetividade. Qualquer um que pense que
pode detectar tal descontentamento nas mulheres é ruim em interpretar e fazer distinções. W
está no máximo apaixonado, M ama. A afirmação feita pelas mulheres que lamentam que a
Mulher é mais capaz de amor verdadeiro do que o Homem é estúpida e falsa: ao contrário, a
Mulher é incapaz de amor verdadeiro. Estar apaixonado não se assemelha à imagem de uma
parábola, como o amor, mas à de um círculo fechado, particularmente no caso da Mulher.

Quando um homem tem um efeito individual sobre uma mulher não é devido à sua beleza. A
beleza, mesmo que se manifeste em um homem, é apreciada apenas por um homem: a
concepção de beleza, tanto masculina quanto feminina, não foi obviamente criada pelo
homem? Ou isso também deveria ser o resultado da “opressão”? O único conceito que deve
seu conteúdo físico e suas associações vivas às mulheres, embora não possa realmente derivar
das mulheres porque as mulheres nunca criaram um único conceito, é o de “dish” ou “hunk”,
como os termos de gíria o descrevem. O que esses elogios indicam é uma sexualidade forte e
altamente desenvolvida no Homem; pois a Mulher, em última análise, considera qualquer
coisa que desvie o Homem da sexualidade e da procriação — seus livros e sua política, sua
ciência e sua arte — como seu inimigo.

Somente o aspecto sexual do Homem, não o assexual ou transexual, tem algum efeito real
sobre a Mulher, e ela exige dele não beleza, mas desejo sexual absoluto. Nunca é o elemento
apolíneo no homem que a impressiona, nem o dionisíaco, mas sempre, e em maior medida, o
elemento do fauno nele; nunca o homem, mas sempre “le mâle” (o animal macho); é acima de
tudo — e um livro sobre a Mulher como ela é não pode silenciar sobre isso — sua sexualidade
no sentido mais estrito, é seu falo. [6]

As pessoas não viram ou não quiseram dizer, ou mesmo não imaginaram corretamente, o que
o pênis do homem significa psicologicamente para a mulher, se ela é adulta ou mesmo jovem
virgem, e como ele domina toda a sua vida, embora muitas vezes ela seja totalmente
inconsciente disso. Não quero dizer que uma mulher acha o pênis de um homem bonito, ou
mesmo belo. Em vez disso, tem o mesmo efeito sobre ela que a cabeça da Medusa sobre os
seres humanos, ou uma cobra sobre um pássaro: hipnotiza, extasia, fascina. Ela o percebe
como aquela coisa para a qual ela nem sequer tem nome: é o seu destino, é do qual ela não
pode escapar. A razão pela qual ela tem tanto medo de ver o homem nu, e por que ela nunca
lhe mostra qualquer desejo de fazê-lo, é porque ela sente que se perderia imediatamente. O
Phallus é o que escraviza a Mulher absolutamente e para sempre.

Assim, é exatamente a parte que estraga completamente a aparência do corpo de um homem,


que por si só torna um homem nu feio — e que os escultores, portanto, muitas vezes cobrem
com um acanto ou folha de figueira — que excita mais profundamente as mulheres e as excita
mais poderosamente, em particular quando representa a coisa mais desagradável de todas,
em seu estado ereto. E esta é a última e mais conclusiva prova de que o que as mulheres
querem do amor não é beleza, mas — outra coisa.

Essa nova experiência, que agora foi adicionada permanentemente à minha investigação,
poderia ter sido prevista pelo que eu disse anteriormente. Como a lógica e a ética são
encontradas exclusivamente no homem, era provável, desde o início, que as mulheres não
estivessem em melhores condições com a estética do que com suas ciências normativas irmãs.
A relação entre estética e lógica manifesta-se em todos os aspectos sistemáticos e
arquitetônicos das várias filosofias, mas também na exigência de uma lógica rigorosa na obra
de arte e, mais de perto, no edifício da matemática e na composição musical... O quão difícil
para muitas pessoas é separar estética e ética já foi mencionado. Segundo Kant, não apenas a
função ética e lógica, mas a função estética também é exercida pelo sujeito em liberdade. Mas
a Mulher não possui livre arbítrio e, portanto, não pode ter a capacidade de projetar beleza no
espaço.

Isso também implica que a Mulher não pode amar. Como pré-condição do amor deve haver
individualidade, não necessariamente pura e perfeita, mas disposta a se livrar de qualquer
poeira e sujeira. Eros é uma entidade intermediária entre ter e não ter. Ele não é um deus, mas
um demônio, e só ele corresponde à posição da humanidade entre a mortalidade e a
imortalidade. Isso foi reconhecido pelo maior pensador, o divino Platão, como foi chamado por
Plotino (que sozinho realmente, isto é, interiormente, o compreendeu; enquanto muitos de
seus comentaristas e historiógrafos hoje entendem pouco mais de seus ensinamentos do que
as tesourinhas das estrelas cadentes). O amor, então, não é realmente uma “ideia
transcendental”, pois só ele corresponde à ideia de um ser que não é puramente
transcendental e a priori, mas também sensual e empírico: a ideia do ser humano.

Por outro lado, a Mulher não tem alma, não anseia encontrar uma alma, limpa de todos os
elementos estranhos a ela aderentes e em estado de perfeição, onde quer que seja. As
mulheres não têm um ideal de Homem que seja comparável à Madona. A mulher não quer o
Homem puro, casto e moral, mas — outra pessoa.

Provei agora que a Mulher não pode desejar virtude no Homem. Se ela tivesse um penhor da
ideia de perfeição dentro de si, se ela fosse de alguma forma uma imagem de Deus, ela
necessariamente desejaria que o homem fosse santo e divino, assim como ele quer que a
mulher seja. O fato de que esta seja a última coisa que ela quer novamente sinaliza que ela
não tem vontade de um valor próprio, e que ela não imagina tal valor em algum lugar fora de
si, como o homem prefere fazer, para torná-lo mais facilmente alcançável.

O único mistério que ainda permanece insolúvel é por que a Mulher em particular, e não
algum outro ser, inspira tal idolatria, a única exceção é a pederastia, onde, no entanto, o
menino que é objeto do amor também se torna mulher. A hipótese a seguir seria muito
ousada?
Quando a humanidade foi criada, o homem talvez tenha guardado a alma para si por meio de
um ato metafísico, extratemporal, embora ainda não possamos ver por que isso pode ter
acontecido. É este mal contra a Mulher que ele agora expia através das dores do amor, pelo
qual ele tenta devolver à Mulher a alma que roubou dela, ou mesmo dar-lhe uma alma,
porque se sente culpado de roubá-la. Pois é precisamente em relação à mulher que ele ama,
na verdade apenas em relação a ela, que ele é mais perturbado por um misterioso sentimento
de culpa. A desesperança da tentativa de expiar essa culpa por meio de tal restituição pode
então explicar por que não existe um amor feliz. Esse mito não seria um assunto ruim para
uma peça de mistério. Mas iria muito além dos limites de um exame científico, ou mesmo
científico e filosófico.

Esclareci acima o que a Mulher não quer. Agora vou mostrar o que ela quer mais
profundamente, e como isso, sua vontade mais íntima, é o oposto direto da Vontade do
homem.

Notas:

1. Alguns leitores, cujas perguntas surpresas tive de enfrentar, não conseguem ver a conexão
entre o desejo erótico e a ânsia de viajar que aqui se afirma. É claro, porém, que esse desejo
deve brotar de uma certa deficiência, uma espécie de vago anseio. Ao tentar uma análise
conceitual mais profunda disso, estou antecipando a teoria do erotismo, que será explicada
oportunamente. Assim como o tempo se estende ao infinito porque toda existência temporal
é infinita e os seres humanos se esforçam para escapar do infinito, o outro modo de
experiência sensorial, o espaço, é considerado infinito pela mesma razão. Mas a libertação do
tempo não consiste em uma extensão do tempo linear, por maior ou mesmo infinita que seja
essa extensão, mas na negação do tempo linear. A eternidade não é o tempo mais longo, mas
sim o mais curto: é uma abolição total do tempo. Nos seres humanos, o descontentamento
com um determinado período de tempo, com a temporalidade, corresponde a um
descontentamento com qualquer espaço específico. O desejo de eternidade em primeira
instância é respondido no segundo pelo desejo de nosso verdadeiro lar, que sabemos que não
está localizado em nenhum lugar, em nenhum ponto concreto, no universo, mas que
continuamos a buscar lá, embora nunca pode encontrá-lo: esta é a origem da infinidade do
espaço, já que não há limite para descansar e parar. É só por isso que nunca ficamos em
nenhum lugar, mas constantemente embarcamos em peregrinações a novos territórios, assim
como superamos cada período de tempo através de nossa vontade de viver. No entanto, aqui
também nosso esforço é em vão. O espaço se alarga no infinito e ainda assim permanece
espaço, e todas as nossas viagens só nos levam de um lugar restrito a outro. A escravidão
humana consiste em ser determinada pelo espaço não menos do que pelo tempo; ambos nada
mais são do que a vontade de escapar da funcionalidade, a vontade de liberdade. Mas, por
mais heroica que seja uma vida de liberdade, mesmo quando assume a forma de uma luta pela
superação do espaço, ela ainda deve ter um final trágico se se manifestar em coisas externas,
como o desejo de viajar – esse amor também é tão infeliz como é heroico.

2 - Não quando ele diverte (como diz Schiller).

3 - Cf. pág. 145f.

4 - Os dois se encontram no conceito de ideia (latim: vereri).

5 - A sucção por parte da mãe é a sucção por parte da criança. É até aí que vai a equivalência
entre maternidade e sexualidade. A mãe morre constantemente pela criança.
6. Em um sentido mais amplo e por uma razão mais profunda do que talvez se acredite, o
efeito da barba de um homem em uma mulher é psicologicamente uma cópia completa, e
apenas um pouco menos intensa, do efeito do próprio membro masculino. Mas não posso
desenvolver isso mais no momento.

XII — A Natureza da Mulher e seu Propósito no Universo


Somente o homem e a mulher juntos constituem o ser humano.
— Kant

À medida que minha análise avançava, minha estima pela Mulher despencou cada vez mais, e
fui obrigado a negar-lhe um número cada vez maior de qualidades elevadas e nobres, grandes
e belas. Como estou prestes a dar mais um passo na mesma direção neste capítulo — na
verdade, o passo decisivo e mais extremo — espero evitar qualquer mal-entendido,
observando neste estágio, embora eu deva retornar ao mesmo ponto mais tarde, que a última
coisa que desejo fazer é apoiar a abordagem asiática ao tratamento das mulheres. A esta
altura, qualquer um que tenha seguido cuidadosamente minhas discussões anteriores sobre o
mal feito às mulheres pela sexualidade e mesmo pelo erotismo terá percebido que meu livro
não implora pelo harém e que estou em guarda contra invalidar a dureza de meu julgamento
exigindo uma punição tão problemática.

Mas é bem possível exigir igualdade jurídica para Homem e Mulher sem acreditar em sua
igualdade moral e intelectual. Nem é necessariamente uma contradição condenar qualquer
barbárie do sexo masculino contra o sexo feminino e, ao mesmo tempo, reconhecer o
contraste e a diferença colossal e cósmica entre suas naturezas. Não há homem que não tenha
algo suprassensorial, algo bom, nele, e não há mulher de quem o mesmo seja realmente
verdade. O homem mais inferior ainda é infinitamente superior à mulher mais superior, tanto
que parece difícil compará-los e classificá-los. No entanto, ninguém tem o direito de
menosprezar ou oprimir de forma alguma, mesmo a mulher mais inferior. O fato de que a
exigência de igualdade perante a lei seja totalmente justificada não abalará a convicção de
qualquer juiz perceptivo do caráter humano de que os dois sexos são os opostos mais polares
imagináveis. A compreensão psicológica superficial dos materialistas, empiristas e positivistas
(para não mencionar as profundas observações dos teóricos sociais sobre a natureza humana)
pode novamente ser obtida do fato de que os defensores da igualdade psicológica congênita
do homem e da mulher vieram principalmente desses círculos e ainda são recrutados de lá.

Mas espero que meu ponto de vista ao avaliar a mulher também não seja confundido com as
opiniões banais de P. J. Moebius, que merece elogios apenas por sua reação corajosa contra a
maré predominante. A mulher não é “fisiologicamente débil mental”. Tampouco posso
compartilhar a opinião de que mulheres de realizações notáveis são degeneradas. Do ponto de
vista moral, essas mulheres, sempre mais masculinas que as demais, só podem ser
calorosamente acolhidas e creditadas com o oposto da degeneração, ou seja, de terem
progredido e superado deficiências. Do ponto de vista biológico, não são nem mais nem
menos degenerados que um homem feminino (se não for julgado em termos éticos). Entre
todos os organismos, as formas sexuais intermediárias não são patológicas, mas a norma e,
portanto, sua presença não é prova de decadência física.

A mente da mulher não é profunda nem elevada, nem aguda nem direta, mas exatamente o
oposto de tudo isso. Até onde podemos ver no momento, ela não tem “mente”: a mulher
como um todo é irracional, ou a própria irracionalidade. Mas isso não é ser débil mental no
sentido costumeiro da palavra, isto é, carecer da mais simples aquisição prática na vida
cotidiana. Quando se trata de atingir objetivos óbvios e egoístas, a astúcia, o cálculo, a
esperteza são encontrados muito mais regular e constantemente em W do que em M. Uma
mulher nunca é tão estúpida quanto um homem às vezes pode ser.

A Mulher não tem importância algum? Ela realmente não serve a nenhum propósito universal?
Ela não tem vocação e não cumpre nenhuma intenção específica no universo, apesar de toda a
sua insensatez e nada? A Mulher cumpre uma missão, ou sua existência é um acidente e um
absurdo?

Para entender o propósito da Mulher, devemos partir de um fenômeno muito antigo e


conhecido, que nunca foi seriamente considerado, muito menos devidamente reconhecido.
Não é outro senão o fenômeno do matchmaking[¹], que pode nos levar à observação mais
profunda e mais importante da natureza da Mulher.

A análise do matchmaking revela, em primeiro lugar, o elemento de provocar e sustentar uma


relação entre duas pessoas que são capazes de entrar em uma união sexual, seja na forma de
casamento ou não. Essa vontade de unir duas pessoas está presente em todas as mulheres,
sem exceção, desde a mais tenra juventude: as meninas já atuam como intermediárias para os
amantes de suas irmãs mais velhas. O instinto casamenteiro não pode revelar-se
completamente até que a mulher tenha assegurado sua própria posição, isto é, até que ela
tenha se sustentado por meio do casamento. No entanto, também está presente durante todo
o período entre a puberdade e o casamento, embora seja neutralizado pela inveja de suas
concorrentes e pelo medo de suas melhores chances na luta por um homem, até que ela tenha
conquistado felizmente seu próprio marido, ou ele foi derrotado e preso pelo dinheiro dela,
seu novo relacionamento com a família dela etc. Essa é a única razão pela qual as mulheres
não embarcam com o maior entusiasmo em casar as filhas e filhos de seus conhecidos antes
de se casarem. E quão zelosamente as mulheres idosas, que não estão mais preocupadas com
sua própria satisfação sexual, se envolvem em casamenteiros é tão conhecido que, muito
injustamente, a velha foi rotulada como a única verdadeira casamenteira.

Os esforços das mulheres para fazer os casamentos se estendem tanto aos homens quanto às
mulheres, mesmo que sejam mães dos homens envolvidos, caso em que perseguem seu
objetivo com particular vigor e persistência. O desejo e, na verdade, a obsessão de toda mãe é
ver o filho casado, sem a menor consideração pelo seu caráter como indivíduo — desejo que
muitos foram cegos o suficiente para considerar uma qualidade sobre-humana, isto é, como
outro aspecto do amor materno. , do qual concebi uma opinião tão baixa em um capítulo
anterior. Pode haver muitas mães que estão convencidas desde o início de que só podem
ajudar seu filho a alcançar a felicidade duradoura por meio do casamento, mesmo que ele seja
totalmente inadequado para isso. Mas é certo que muitos não acreditam nem mesmo nisso, e
que o motivo mais forte é sempre e em toda parte o desejo casamenteiro da mulher, sua
aversão emocional ao celibato nos homens.

A essa altura já se vê que as mulheres também obedecem a um impulso puramente instintivo,


inato, de tentar casar suas filhas. Os infindáveis esforços que as mães fazem para atingir esse
propósito não surgem de quaisquer considerações lógicas e apenas em menor grau de
considerações materiais; nem atendem a quaisquer desejos explícitos ou tácitos de sua filha
(que sua escolha específica de um homem muitas vezes contradiz). Dado que o matchmaking
nunca se restringe à própria filha da mulher, mas inclui todos os seres humanos, não pode
haver dúvida de que seja um ato “altruísta” ou “moral” de amor materno, ainda que a maioria
das mulheres, se censuradas por suas atividades de matchmaking, certamente responderiam
que é seu dever pensar em tempo útil no futuro de seu precioso filho.

Uma mãe casa sua própria filha exatamente da mesma maneira que gosta de encontrar um
homem para qualquer outra garota, uma vez que ela tenha completado essa tarefa dentro de
sua própria família. É o mesmo em ambos os casos, é matchmaking: psicologicamente, arranjar
para a própria filha não é diferente de arranjar para a filha de outra pessoa. Na verdade, eu
afirmo que nenhuma mãe tem apenas sentimentos desagradáveis se sua filha é desejada e
seduzida por um estranho, por mais vil que sejam suas intenções e por mais desprezíveis que
sejam seus cálculos.

Muitas vezes pude usar a atitude de um sexo em relação a certos traços do outro como um
critério útil para determinar quais peculiaridades são restritas a um sexo e quais também
pertencem ao outro.[1] Até agora foi sempre a Mulher que teve de testemunhar que certas
qualidades, que muitos gostam de lhe atribuir, pertencem exclusivamente ao Homem. Agora,
por uma vez, o comportamento do homem pode demonstrar que o matchmaking é genuíno e
exclusivamente feminino. As exceções são homens muito femininos ou um caso particular que
será discutido em detalhes mais adiante.[2] Todo homem verdadeiro trata as atividades de
intermediação de casamento das mulheres com repulsa e desprezo, mesmo que estas digam
respeito à sua própria filha, a quem ele gostaria de ser provido, e ele geralmente deixa as
preocupações de casar para a Mulher como sua própria província. Ao mesmo tempo, pode-se
ver aqui mais claramente que o homem não é realmente atraído pelas verdadeiras
características sexuais psíquicas da Mulher, mas na verdade é repelido quando toma
consciência delas. Enquanto as propriedades puramente masculinas como tais, e como
realmente são, bastam para atrair a Mulher, o Homem deve primeiro transformar a Mulher
antes de poder amá-la.

No entanto, o matchmaking vai muito mais fundo e permeia a natureza da Mulher em uma
extensão muito maior do que se pode acreditar por esses exemplos, que correspondem
apenas ao uso comum do termo. Em primeiro lugar, gostaria de salientar como as mulheres se
sentam no teatro, sempre se perguntando se e como os dois amantes vão “ficar um com o
outro”. Isso também é matchmaking, e não difere disso, psicologicamente, por um fio de
cabelo: é o desejo de que Homem e Mulher se unam, onde quer que seja. Mas vai ainda mais
longe: a leitura de poemas ou romances sensuais ou obscenos, e o enorme suspense com que
as mulheres aguardam o momento da relação sexual enquanto leem, nada mais é do que um
casamento entre os dois personagens do livro, uma excitação tônica pelo pensamento de
cópula e uma avaliação positiva da união sexual. Isso não deve ser considerado uma analogia
lógica e formal, mas deve-se sentir, se possível, como para a Mulher as duas coisas
psicologicamente são a mesma. A emoção da mãe no dia do casamento da filha não é outra
senão a de uma mulher lendo Prévost ou Regine de Sudermann. Acontece que os homens
gostam de ler esses romances para fins de detumescência, mas isso é algo fundamentalmente
diferente da maneira de ler das mulheres: a leitura de um homem visa uma imaginação mais
vívida do ato sexual; ele não acompanha cada diminuição da distância entre os dois
personagens com a respiração suspensa desde o início; e sua excitação não cresce, como no
caso da Mulher, continuamente e em uma proporção inversa muito alta a essa distância.
Assentimento ofegante a qualquer redução da distância da meta, decepção e depressão a
qualquer frustração de satisfação sexual, são eminentemente femininos e não masculinos, e
são despertados na Mulher igualmente por qualquer movimento que possa levar ao ato
sexual, independentemente se pessoas envolvidas são reais ou imaginárias.
Ninguém nunca se perguntou por que as mulheres tão alegremente, tão “altruisticamente”,
unem outras mulheres com homens? O prazer que derivam disso é o resultado de uma
excitação peculiar ao pensar em relações sexuais, mesmo entre outras pessoas.

Mas mesmo estendendo minha discussão ao objeto principal da leitura de W, não cobri toda a
amplitude do matchmaking. Quando os casais de namorados se refugiam nas noites de verão
em bancos ou perto dos muros de parques escuros, uma mulher que passa sempre fica curiosa
e olha para eles, enquanto um homem que é obrigado a fazer o mesmo caminho se vira com
desgosto, sentindo que seu modéstia foi ofendida. Da mesma forma, as mulheres que passam
por um casal de namorados na rua quase sempre se voltam e os seguem com os olhos. Esse
hábito de olhar e voltar é matchmaking, tanto quanto qualquer coisa que eu tenha incluído
nesse termo até agora. Se alguém não gosta de ver algo e não deseja que isso aconteça, vira-se
e não olha para ele. As mulheres gostam de ver casais namorando e, acima de tudo, de
surpreendê-los enquanto eles estão se beijando e acariciando um ao outro, porque as
mulheres querem que a relação sexual como tal (e não apenas para elas) aconteça. Só se
presta atenção a algo que considera de alguma forma um valor positivo, como mostrei há
muito tempo. Uma mulher que vê dois amantes sempre espera o que vai acontecer, ou seja,
ela espera, antecipa, espera e deseja. Conheci uma dona de casa casada há muito tempo, cuja
empregada uma vez permitiu que seu amante entrasse em seu quarto. Por um tempo
considerável a dona de casa escutou na porta com grande interesse, antes de entrar para
avisar a empregada. Ela havia afirmado internamente todo o processo e depois expulsou a
menina, obedecendo passivamente aos conceitos tradicionais de decoro, se não mesmo por
inveja inconsciente. Acredito que este último motivo muitas vezes desempenha um papel e a
inveja contribui com sua própria parte para a condenação da outra mulher, que é invejosa por
aquelas horas que ela desfruta sozinha.

A ideia de relação sexual é vividamente entretida e nunca rejeitada pela Mulher sempre e de
qualquer forma que ocorra[3] (mesmo que seja realizado por animais). Ela não o repudia, não
fica enojada com a natureza repugnante do processo e não tenta pensar em outra coisa
imediatamente. A ideia toma posse completa dela e continua a exercitá-la até ser substituída
por outras ideias de caráter igualmente sexual. Esta é certamente uma descrição correta de
grande parte da vida psíquica das mulheres, que parece ser tão misteriosa para muitos. O
desejo de ser o objeto da relação sexual é o desejo mais forte da mulher, mas é apenas um
exemplo especial de seu interesse mais profundo, na verdade seu único interesse vital, que
visa a relação sexual como tal — seu desejo de que haja tanto relação sexual possível, não
importa por quem, onde e quando.

Esse desejo, mais universal, pode ter uma inclinação mais forte tanto para o ato em si quanto
para a criança. Em primeiro lugar, uma mulher é uma prostituta e casamenteira, e seu objetivo
é imaginar o ato. No segundo caso, ela é mãe, mas não deseja apenas ser mãe: quanto mais se
aproxima do tipo da mãe absoluta, mais exclusivamente ela se interessa pela criação do filho
em cada casamento que conhece ou que uniu. A verdadeira mãe é também a verdadeira avó
(mesmo que ela tenha permanecido virgem; pense na incomparável “tia Julle” de Jørgen
Tesman em Hedda Gabler de Ibsen). Toda mãe completa trabalha pela espécie como um todo,
ela é a mãe de toda a humanidade e acolhe cada gravidez. A prostituta quer não que outras
mulheres engravidem, mas apenas prostitutas como ela.

Como a própria sexualidade das mulheres está subordinada ao seu casamento, e só pode
realmente ser considerada como um exemplo especial deste último, é claramente revelado
por seu relacionamento com homens casados. Como todas as mulheres são casamenteiras,
nada é mais repugnante para elas do que a condição de solteiro do homem, e é por isso que
todas tentam casá-lo. Mas, uma vez casado, eles perdem muito do interesse por ele, por mais
que tenham gostado dele de antemão. Mesmo que já sejam casadas e, portanto, não
considerem todos os homens principalmente como um par para si mesmas — caso em que se
esperaria que elas não prestassem menos atenção a um homem casado do que a um solteiro
— as esposas infiéis raramente flertam com o marido de outra mulher, a menos que queiram
afastá-la deste para triunfar sobre ela. Isso finalmente confirma que as mulheres estão
interessadas apenas no matchmaking em si: a razão pela qual elas tão raramente cometem
adultério com homens casados é que esses homens já satisfazem a ideia por trás do
matchmaking. Matchmaking é a propriedade mais universal da mulher humana: a vontade de
se tornar sogra é ainda mais comum do que a vontade de ser mãe, cuja intensidade e extensão
são geralmente muito superestimadas.

A ênfase particular que coloco aqui no matchmaking da Mulher pode ainda não ser totalmente
compreendida, o que pode fazer com que a importância que lhe atribuo pareça exagerada e a
veemência do meu raciocínio injustificado. Mas é essencial reconhecer do que se trata tudo
isso. Matchmaking é aquele fenômeno que explica a natureza da Mulher mais plenamente e,
portanto, deve-se tentar analisá-lo e compreendê-lo, em vez de simplesmente observá-lo e
passar para outra coisa. Certamente, a maioria das pessoas sabe que “toda mulher gosta de
fazer um pouco de matchmaking”. Mas o que realmente importa é que a natureza essencial da
Mulher se encontra aqui e em nenhum outro lugar. Depois de uma cuidadosa consideração
dos diferentes tipos de mulheres, e levando em conta algumas classificações mais específicas,
além das já postas em prática aqui, cheguei à conclusão de que é absolutamente impossível
predicar como propriedade positiva e universal da Mulher qualquer coisa além de
matchmaking, ou seja, suas atividades a serviço da relação sexual como tal. Qualquer definição
que tentasse restringir a natureza da Mulher ao desejo de ser objeto de relação sexual, e que
considerasse o desejo de ser estuprada como a única coisa genuína na Mulher genuína, seria
muito estreita. Inversamente, qualquer definição que sugerisse que o conteúdo de Mulher é a
criança, ou o homem, ou ambos, seria muito ampla. A natureza mais universal e essencial da
Mulher se expressa completa e exaustivamente pelo matchmaking, ou seja, por sua missão a
serviço da ideia de união física. Toda mulher é casamenteira, e essa propriedade da Mulher, a
necessidade de ser a emissária, a mandatária, da ideia da relação sexual, é a única que está
presente nela em todas as idades e que dura até a menopausa: uma velha ainda persiste no
matchmaking, embora não mais para si mesma, mas para os outros. Já dei uma razão para a
imagem popular da velha como casamenteira. A ocupação do velho casamenteiro não é algo
que se acrescente. Pelo contrário, é o que agora vem à tona, tendo sido deixado por conta
própria de complicações anteriores causadas por seus próprios desejos: uma pura devoção ao
serviço de uma ideia impura.

Aqui me permitem recapitular brevemente os resultados positivos que minha investigação


gradualmente trouxe à luz sobre a sexualidade da Mulher. Ela provou estar exclusivamente
interessada na sexualidade, e isso não apenas de forma intermitente, mas continuamente:
todo o seu ser, tanto física quanto psiquicamente, não era nada além da própria sexualidade.
Ela foi pega de surpresa no processo de se sentir envolvida em relações sexuais com cada
coisa, em todos os lugares, em todo o seu corpo, e incessantemente. E assim como todo o
corpo da mulher era um anexo aos seus genitais, chegamos agora ao ponto em que se
manifesta a posição central da ideia da relação sexual em seu pensamento. A relação sexual é
a única coisa a que a mulher sempre e em toda parte atribui um valor exclusivamente positivo:
a mulher é a portadora da ideia comunitária como tal. A atribuição da mulher do maior valor à
relação sexual não se restringe a nenhum indivíduo, nem mesmo ao indivíduo que atribui
valor. Diz respeito a todos os seres; não é individual, mas interindividual e supra-individual; é
— se me perdoem neste momento por profanar a palavra — a função transcendental da
Mulher. Pois se a feminilidade é casamenteira, a feminilidade é a sexualidade universal. A
relação sexual é o maior valor da Mulher, que ela procura realizar sempre e em todos os
lugares. Sua própria sexualidade é apenas uma parte limitada dessa vontade ilimitada.

A elevação máxima da inocência e pureza do homem, que se manifestaria no tipo superior de


virgindade que o homem deseja e exige da mulher como resultado de sua própria necessidade
erótica, esse ideal exclusivamente masculino de castidade, é o oposto polar do esforço da
mulher para criar comunidade. Isso certamente teria sido reconhecido pelo homem mesmo
nas agonias da ilusão erótica idólatra, mas a intervenção de um outro fator tem impedido
regularmente tal esclarecimento. Chegou a hora de explicar esta circunstância, que
obstinadamente obstrui o caminho para a compreensão do Homem sobre a natureza universal
e essencial da feminilidade, o problema mais complexo da Mulher, sua falsidade abismal. Por
mais difícil e arriscado que seja esse empreendimento, ele deve eventualmente nos levar a um
princípio último que lança uma luz brilhante sobre a raiz mais profunda de ambos os
casamentos (em seu sentido mais amplo, do qual a própria sexualidade de uma mulher é
apenas o aspecto mais marcante caso especial) e a falsidade, que oculta continuamente —
mesmo aos próprios olhos da Mulher — o desejo do ato sexual.

Agora, tudo o que pode ter parecido firmemente estabelecido é mais uma vez questionado.
Não dei crédito às mulheres com nenhuma auto-observação, mas certamente há mulheres
que observam com muita nitidez muitas coisas que ocorrem dentro delas. Neguei que
tivessem algum amor pela verdade, mas conheço mulheres que evitam escrupulosamente
proferir uma inverdade. Afirmei que o sentimento de culpa lhes é estranho, embora existam
mulheres que se culpam amargamente até por trivialidades, e embora tenhamos certo
conhecimento de mulheres penitentes e mulheres que castigam seus corpos. Eu concedia
modéstia apenas aos homens, mas é a afirmação da modéstia da Mulher, na verdade da
timidez que Hamerling via apenas na mulher, não fadada a ter algum fundamento na
experiência que tornasse possível, de fato fácil, interpretar as coisas dessa maneira? E mais:
pode faltar religiosidade à Mulher, apesar de todas as religiões, e deve ser negada a ela estrita
pureza moral, independentemente de todas as mulheres virtuosas relatadas pela poesia e pela
história? Pode a mulher ser meramente sexual e atribuir valor apenas à sexualidade, se é do
conhecimento geral que as mulheres podem se ofender com a menor alusão a questões
sexuais, que em vez de casarem-se elas muitas vezes se afastam com ressentimento e
desgosto de qualquer lugar de fornicação, que elas são muitas vezes muito mais indiferentes à
relação sexual do que qualquer homem, e também a detestam no que diz respeito à sua
própria pessoa?

Provavelmente é óbvio que todas essas antinomias giram em torno de uma mesma questão, e
que o juízo final e último sobre a Mulher depende da resposta. Claramente, se uma única
mulher muito feminina fosse internamente assexuada, ou se ela pudesse realmente se
relacionar com a ideia de valor moral intrínseco, tudo o que eu disse sobre as mulheres
perderia imediata e irremediavelmente sua validade universal como uma característica
psíquica de seu sexo, e todo o caso que faço em meu livro seria demolido com um golpe. Esses
fenômenos aparentemente contraditórios devem ser explicados satisfatoriamente e deve-se
mostrar que sua causa real, que é também uma fonte pronta de equívocos, corresponde à
mesma natureza da Mulher que até agora pude demonstrar em todos os lugares.
Para chegar a uma compreensão dessas contradições traiçoeiras, é preciso primeiro lembrar
com que facilidade as mulheres são influenciadas ou, para dizer com mais precisão,
impressionadas. Essa extraordinária acessibilidade a elementos estranhos e essa pronta
aceitação das opiniões dos outros ainda não foram suficientemente reconhecidas neste livro.
Geralmente, W se apega a M com tanta força quanto uma caixa de joias se apega às joias
dentro dela. Os pontos de vista dele se tornam os dela, ela adota tanto as preferências dele
quanto os desgostos mais pessoais dele, e ela percebe cada palavra que ele pronuncia como
um evento excitante, que a afeta tanto mais poderosamente quanto maior for o efeito sexual
dele sobre ela. A mulher não percebe essa influência do Homem como um desvio do curso de
seu próprio desenvolvimento. Ela não vê isso como uma ruptura estranha a ser evitada nem
como uma intrusão em sua vida interior da qual ela deveria tentar se libertar, e ela não se
envergonha de sua receptividade. Ao contrário, ela só se sente feliz quando pode ser
receptiva, e exige que o Homem a obrigue a sê-lo, mesmo nas questões da mente. Ela só gosta
de seguir e, enquanto espera por um homem, está apenas esperando o momento em que
possa ser completamente passiva.

Mas as mulheres emprestam suas crenças e suas ideias não apenas de seu “próprio” homem
(embora elas gostem mais disso), mas também de seus pais e mães, seus tios e tias, seus
irmãos e irmãs, seus parentes próximos e conhecidos distantes, e eles ficam felizes se uma
opinião é criada para elas. Mesmo as mulheres adultas e casadas, e não apenas as crianças
imaturas, copiam-se em todos os aspectos, como se isso fosse muito natural, desde um vestido
e penteado mais elegantes, ou uma postura marcante, até as lojas que frequentam e as
receitas que usar para cozinhar. Tampouco sentem que, copiando uns aos outros dessa
maneira, estão se rebaixando, como seriam obrigados a sentir se tivessem uma individualidade
decidida a seguir apenas suas próprias leis. Assim, o estoque teórico por trás dos pensamentos
e ações de uma mulher consiste principalmente de uma coleção aleatória de elementos
recebidos, que ela apreende com mais avidez e adere ainda mais dogmaticamente, porque ela
nunca chega a nenhuma convicção própria por meio de uma contemplação independente e
objetiva das coisas. Ela também nunca abandona livremente qualquer convicção como
resultado de uma mudança de perspectiva, já que ela nunca se eleva acima de suas próprias
ideias e sempre quer que lhe ensinem uma opinião, que ela pode continuar a sustentar
obstinadamente. É por isso que as mulheres reagem de forma mais intolerante quando ocorre
uma violação de costumes e tradições aprovados, independentemente do conteúdo dessas
instituições. Com o movimento das mulheres em mente, gostaria de citar de Herbert Spencer
um caso desse tipo que é particularmente divertido se pensarmos no movimento das
mulheres. Tal como acontece com muitas tribos indígenas da América do Norte e do Sul,
também entre os Dakotas os homens só se interessam pela caça e pela guerra e entregaram
todas as tarefas baixas e onerosas às suas mulheres. As mulheres, em vez de se sentirem
oprimidas de alguma forma, tornaram-se gradualmente tão convencidas da naturalidade e
legitimidade desse procedimento que a maior afronta e o pior insulto que uma mulher Dakota
pode infligir a outra é dizer: “Mulher infame!… vi seu marido carregando lenha para sua
cabana para fazer o fogo. Onde estava sua mulher, para que ele fosse obrigado a fazer de si
mesmo uma mulher?

Essa extraordinária propensão da Mulher a ser determinada por fatores externos a ela é, em
essência, idêntica à sua sugestionabilidade, que é muito maior e mais abrangente que a do
homem, e ambas as características correspondem ao fato de que a Mulher só deseja
desempenhar o papel passivo, e nunca o ativo, no ato sexual e nas etapas que o conduzem.[4]
É a passividade universal da natureza das mulheres que, em última análise, também as faz
aceitar e adotar as valorações do Homem, com as quais não têm qualquer relação original.
Essa capacidade de ser impregnada pelas visões do Homem, essa penetração na vida
intelectual da Mulher por um elemento estranho, essa falsa aceitação da moral, que nem pode
ser chamada de hipócrita porque não se destina a velar nada antimoral, essa absorção e uso
de um imperativo que em si é bastante heterônomo à Mulher, geralmente tomará um curso
suave e direto e facilmente criará a aparência mais enganosa de uma moralidade superior,
enquanto a própria Mulher não começar a valorizar. As complicações só podem surgir quando
esses traços colidem com o valor inato, genuíno e universalmente feminino, o valor supremo
que ela atribui à relação sexual.

A afirmação feminina da comunidade como o valor supremo é bastante inconsciente. Esta


afirmação não se opõe, como no Homem, à sua negação, de modo que falta a dualidade, que
poderia levá-la a perceber as coisas. Nenhuma mulher sabe, jamais soube, ou jamais foi capaz
de saber o que está fazendo quando é casamenteira. A própria feminilidade é idêntica à
casamenteira, e a Mulher teria que sair de si mesma para perceber que ela é casamenteira.
Assim, o desejo mais profundo da Mulher, aquele que constitui sua própria existência, nunca é
reconhecido por ela. Portanto, nada impede que a valorização negativa da sexualidade pelo
homem esconda completamente a valorização positiva que a mulher faz dela de sua própria
consciência. A receptividade da mulher chega a permitir que ela negue seu próprio ser, a única
coisa realmente positiva que ela é.

Mas a mentira que a mulher perpetra ao absorver os julgamentos sociais masculinos sobre a
sexualidade, sobre a falta de vergonha, na verdade sobre a própria mentira, e ao adotar o
padrão masculino para todas as ações, é uma mentira da qual ela nunca se conscientiza. Ela
adquire uma segunda natureza sem a menor suspeita de que não seja sua natureza genuína.
Ela se leva a sério, acredita que é alguma coisa e que acredita em alguma coisa, e está
convencida da sinceridade e autenticidade de seu comportamento e julgamentos morais: tão
profundamente arraigada nela está a mentira, o orgânico ou — como eu ficaria mais feliz em
dizer, se fosse permitido — a falsidade ontológica da Mulher.

Wolfram von Eschenbach fala de seu herói:

Ele se deitava com tão constrangimento que não serviria para muitas mulheres hoje em dia, se
fossem tratadas assim. Considere que, para atormentar um homem com desejo, elas
compensam seu comportamento modesto vestindo-se de maneira provocante! Na presença
de estranhos, comportam-se com recato, mas seus desejos internos se chocam com sua
aparência externa.

Wolfram sugere as preocupações mais profundas do coração feminino com bastante clareza,
mas ele não conta tudo. A esse respeito, as mulheres mentem não apenas para estranhos, mas
também para si mesmas. No entanto, não se pode suprimir a própria natureza, ou mesmo o
lado meramente físico dela, de maneira tão artificial e alheia sem consequências. A punição
higiênica pela negação da mulher de sua verdadeira natureza é a histeria.

De todas as neuroses e psicoses, os fenômenos histéricos certamente apresentam ao


psicólogo a tarefa mais atraente, que é muito mais difícil e, portanto, mais tentadora do que
uma melancolia relativamente fácil de entender ou uma simples paranoia.

Quase todos os psiquiatras têm uma desconfiança irresistível das análises psicológicas. Eles
consideram qualquer explicação em termos de tecidos patologicamente alterados ou
intoxicação por meio de nutrição um limite crível, mas eles não estão preparados para aceitar
que fatores psíquicos possam ter um efeito primário. Mas como nunca foi provado que o papel
secundário deve recair sobre os fatores psíquicos e não físicos — todas as referências à
“preservação de energia” foram desacreditadas pelos próprios físicos mais competentes —
esse preconceito pode ser ignorado com segurança. Uma quantidade enorme — de fato, não
há razão[5] para que não seja tudo — pode depender da descoberta do “mecanismo psíquico”
da histeria. Que essa abordagem seja provavelmente a correta também é indicado pelo fato de
que os poucos insights verdadeiros sobre a histeria até agora não foram obtidos de outra
maneira: quero dizer as pesquisas ligadas aos nomes de Pierre Janet e Oskar Vogt, e em
particular J. Breuer e S. Freud. Qualquer explicação adicional da histeria deve ser buscada na
direção tomada por esses homens, ou seja, pela reconstrução do processo psicológico que
levou à doença.

Acredito que o desenvolvimento da histeria, assumindo uma experiência sexual “traumática”


como sua causa mais frequente (segundo Freud, somente), deve ser esquematicamente
retratado como segue. Uma mulher teve uma observação ou ideia sexual, que ela entendeu,
na época ou em retrospecto, como relacionada a ela mesma. Sob a influência de um
julgamento masculino, que lhe foi imposto e totalmente adotado por ela, que se tornou parte
dela e que domina exclusivamente sua consciência desperta, ela rejeita indignada e infeliz essa
observação ou ideia como um todo, mas, dada sua natureza de Mulher, ao mesmo tempo
afirma, deseja e atribui um valor positivo a ela em seu inconsciente mais profundo. Esse
conflito apodrece e fermenta nela, até que de vez em quando explode em um ataque. Tal
mulher mostra o quadro mais ou menos típico da histeria, e é por isso que ela sente como se o
ato sexual, que ela acredita que abomina, mas que algo nela — sua natureza original —
realmente deseja, fosse um “corpo estranho em sua consciência”. A colossal intensidade do
desejo, que só é intensificada por qualquer tentativa de suprimi-lo, e a rejeição cada vez mais
feroz e indignada do pensamento — eis o intercâmbio que se dá na mulher histérica. A
falsidade crônica da Mulher torna-se aguda, quando atinge sua preocupação principal, quando
ela até absorveu a valorização eticamente negativa da sexualidade pelo Homem, e é notório o
fato de que as mulheres histéricas são mais sugestionáveis pelos homens. A histeria, então, é a
crise orgânica da falsidade orgânica da Mulher. Não nego que também existam homens
histéricos, embora sejam relativamente raros, pois uma das infinitas possibilidades na psique
do homem é tornar-se mulher e, consequentemente, ser histérico se a ocasião surgir. É certo
que também existem falsos homens, mas no caso deles a crise toma um rumo diferente (assim
como sua falsidade é sempre diferente e nunca completamente sem esperança): muitas vezes
leva à correção, embora muitas vezes apenas de tipo temporário.

Essa percepção da falsidade orgânica da Mulher, sua incapacidade de ver a verdade sobre si
mesma — que por si só lhe permite pensar de uma maneira que não é nada apropriada para
ela — parece-me, em princípio, fornecer uma solução satisfatória para o problema. as
dificuldades apresentadas pela etiologia da histeria. Se a virtude da Mulher fosse genuína, ela
não poderia sofrer com isso: ela está apenas expiando a mentira contra sua própria
constituição, que na realidade permanece tão forte como sempre. Dito isto, vários detalhes
agora precisam ser explicados e documentados.

A histeria mostra que essa falsidade, por mais profunda que seja, não está arraigada com
firmeza suficiente para reprimir todo o resto. Através da educação ou da interação social, a
Mulher adotou todo um sistema de ideias e valores que lhe são estranhos, ou melhor, ela
obedientemente permitiu que estes a influenciassem por toda parte. É preciso um impulso
muito poderoso para desalojar esse grande complexo psíquico firmemente arraigado e reduzir
a Mulher ao estado de desamparo intelectual, a “abulia”, tão característica da histeria. Um
susto imenso, por exemplo, pode derrubar todo o edifício artificial e transformar uma mulher
em um campo de batalha entre sua natureza inconsciente e reprimida e sua mente consciente,
mas, para ela, antinatural. O cabo-de-guerra que agora começa, explica sua extraordinária
descontinuidade psíquica durante uma doença histérica, suas constantes mudanças de humor,
nenhuma das quais pode ser capturada e mantida firme, observada e descrita, reconhecida e
contestada por um núcleo dominante de consciência. A prontidão excessiva das mulheres
histéricas para se assustarem está relacionada a isso. Podemos supor que muitas ocorrências,
por mais distantes que estejam objetivamente da esfera sexual, são percebidas por eles em
termos sexuais, mas quem pode dizer exatamente o que eles conectaram internamente com
essa surpreendente experiência externa de natureza aparentemente bastante assexuada?

A existência simultânea de tantas contradições em mulheres histéricas sempre pareceu


extremamente milagrosa. Por um lado, têm intelecto eminentemente crítico e juízo muito
seguro, resistem à hipnose, etc., etc. Por outro lado, elas podem ficar altamente excitados
pelas coisas mais triviais, e é possível induzir nelas as maiores profundezas do sono hipnótico.
Vistos de um ângulo, são anormalmente castas: vistos de outro, são enormemente sensuais.

Tudo isso não é mais difícil de explicar. A honestidade completa, o amor escrupuloso da
verdade, a estrita evitação de qualquer coisa sexual, o julgamento ponderado e a força de
vontade — tudo isso é apenas parte da pseudo-personalidade que a Mulher, passiva como é,
assumiu como papel para jogar para si mesma e para o mundo em geral. Tudo o que pertence
e está de acordo com sua natureza original constitui a “pessoa cindida”, a “psique
inconsciente”, que pode se entregar a obscenidades e é tão acessível à influência sugestiva ao
mesmo tempo. Os fatos descritos como “duplex” e “personalidade multiplex”, “dupla
consciência” e “duplo eu” foram apresentados como um dos argumentos mais fortes contra a
suposição de uma alma. Na realidade, esses fenômenos dão a dica mais significativa de por
que e quando podemos falar de uma alma. As “divisões na personalidade” só são possíveis
onde não há personalidade desde o início, como na Mulher. Todos os casos famosos descritos
por Janet em seu livro L’automatisme psychologique referem-se a mulheres, e nenhum a um
homem. Somente a Mulher — que não tem alma nem eu inteligível, e que, portanto, não tem
o poder de tomar consciência de tudo o que está nela e de lançar a luz da verdade em seu
mundo interior — pode ser tão enganada ao permitir-se passivamente ser completamente
infiltrada por uma consciência alheia e seguindo os impulsos inerentes ao propósito de sua
própria natureza, e assim preenchendo a pré-condição dos estados histéricos descritos por
Janet. Só ela pode assumir esses disfarces pesados, retratar a esperança da relação sexual
como medo do ato, colocar uma máscara interna para enganar a si mesma e, por assim dizer,
tecer um casulo impenetrável em torno de sua verdadeira vontade. A própria histeria é a
falência do pseudo-eu imposto superficialmente. Às vezes, quase transforma a Mulher
internamente em uma “tabula rasa”, aparentemente erradicando todos os seus próprios
impulsos (“anorexia”), até que sua verdadeira feminilidade se afirma e finalmente prevalece
contra sua negação inverídica. Se esse “choque nervoso” ou “trauma psíquico” é realmente
um susto assexual, então esse mesmo fato revela a fraqueza interior e a insustentabilidade do
eu adotado, perseguindo-o e assustando-o e, assim, criando uma oportunidade para a erupção
da natureza genuína da mulher.

A emergência dessa natureza é a “contra-vontade” de Freud, que a mulher histérica percebe


como algo estranho e que ela rechaça refugiando-se em seu antigo, mas agora frágil e
desintegrado pseudo-eu. Ela tenta reprimir a “contra-vontade”. Anteriormente, a coação
externa, que ela percebia como um dever, relegava sua própria natureza a um nível abaixo de
sua consciência, condenando-a e acorrentando-a. Agora, diante das forças que se
desprenderam e brotam nela, ela tenta mais uma vez recorrer a esse sistema de princípios
para se livrar e suprimir as tentações inusitadas, mas enquanto isso o sistema pelo menos
perdeu seu domínio exclusivo . O “corpo estranho na consciência”, o “eu depravado”, é na
realidade a própria natureza feminina da mulher, enquanto o que ela considera seu verdadeiro
eu é precisamente a pessoa que ela se tornou através do influxo de todos os elementos
estranhos. O “corpo estranho” é a sexualidade, que ela não reconhece e que ela não aceita
como pertencente a ela, mas que ela não pode mais banir, como pôde fazer quando suas
pulsões silenciavam e como se recuassem para sempre antes da invasão da moralidade.
Mesmo agora, as ideias sexuais que ela reprimiu por meio de um esforço supremo podem
“converter-se” em todos os tipos possíveis de condições e produzir essa doença multiforme,
esses saltos de uma parte do corpo para outra, essa propensão a imitar qualquer coisa e essa
falta de qualquer constância, que sempre tornaram tão difícil definir a histeria por seus
sintomas. Mas agora nenhuma “conversão” absorve completamente a pulsão, que anseia por
se expressar e que não se esgota por nenhuma transformação.

A incapacidade das mulheres para a verdade — que para mim, baseando meus argumentos
como faço no indeterminismo de Kant, decorre de sua falta de livre arbítrio para a verdade —
é a causa de sua falsidade. Qualquer um que tenha lidado com mulheres sabe com que
frequência, se forem forçadas a responder a uma pergunta na hora, elas improvisarão, não
importa quais sejam os motivos falsos para o que disseram ou fizeram. É verdade que as
mulheres histéricas mais escrupulosamente (mas nunca sem um certo deliberação na frente
de estranhos) tentam evitar qualquer inverdade: mas isso, por mais paradoxal que possa
parecer, é precisamente o que constitui sua falsidade. Pois eles não sabem que toda a
demanda pela verdade foi gradualmente implantada neles de fora. Aceitaram
submissivamente o postulado da moralidade e, portanto, como bons escravos, aproveitam
todas as oportunidades para demonstrar quão fielmente o seguem. É sempre suspeito ouvir
um certo indivíduo ser repetidamente descrito como excepcionalmente respeitável: nesse
caso ele certamente se certificou de que isso é o que se sabe sobre ele, e podemos apostar
que em segredo ele é um canalha. Não aumenta nossa confiança na autenticidade da
moralidade dos histéricos se os médicos (naturalmente de boa-fé) dão ênfase tão frequente à
nobreza de seus pacientes.

Repito que os histéricos não dissimulam conscientemente. Eles só podem perceber, sob a
influência da sugestão hipnótica, que na verdade estão dissimulando, e isso por si só explica
todas as suas “confissões” de encenação. Caso contrário, eles acreditam em sua própria
honestidade e moralidade. Nem as dores que os torturam são imaginárias. Em vez disso, o fato
de eles realmente sentirem essas dores — e de que os sintomas não desaparecem até que a
“catarse” de Breuer os torne gradualmente conscientes das verdadeiras causas de sua doença
sob hipnose — prova o caráter orgânico de sua falsidade.

As auto-acusações barulhentas das mulheres histéricas também não passam de hipocrisia


inconsciente. Um sentimento de culpa não pode ser genuíno se se estender igualmente às
coisas menores e maiores. Se os auto-torturadores histéricos tivessem dentro de si o padrão
de moralidade, e se tivessem desenvolvido esse padrão a partir de si mesmos, não seriam tão
indiscriminados em suas autoacusações e não se culpariam tanto pela omissão mais trivial
quanto pelo maior delito.
O sinal decisivo da falsidade inconsciente de suas autocensuras é o hábito de dizer aos outros
como eles mesmos são maus e quais pecados cometeram, e de perguntar aos outros se eles
(os próprios histéricos) não são criaturas totalmente depravadas. Ninguém que está realmente
sobrecarregado pela sua consciência pode falar assim. É um delírio, de que foram vítimas
notavelmente Breuer e Freud, apresentar os histéricos em particular como indivíduos
eminentemente morais. Tudo o que os histéricos fizeram foi permitir que a moralidade, que
originalmente lhes era estranha, os tomasse de fora mais completamente do que outras
pessoas. Agora eles obedecem servilmente a este código, sem examinar nada de forma
independente e refletir sobre nada em detalhes. Isso pode facilmente criar a impressão de
maior rigor moral e, no entanto, é tão imoral quanto pode ser, pois é o mais alto grau de
heteronomia alcançável. Talvez o objetivo moral de uma ética social, para o qual uma mentira
dificilmente pode ser uma ofensa se beneficiar a sociedade ou o desenvolvimento da espécie
— em outras palavras, o ideal humano de uma moral tão heterônoma — seja mais próximo
dos histéricos do que por qualquer outro indivíduo. A mulher histérica é o modelo da ética do
sucesso e da ética social, ambas geneticamente, porque os preceitos morais realmente a
atingiram de fora, e praticamente, porque ela parecerá mais facilmente agir de forma altruísta,
já que no seu caso deveres para com os outros não são um exemplo especial de seu dever para
consigo mesma.

Quanto mais as mulheres histéricas acreditam estar aderindo à verdade, mais profundamente
enraizada é sua falsidade. As mulheres histéricas nunca refletem sobre si mesmas. Eles só
querem que os outros pensem neles e se interessem por eles. Sua total incapacidade para uma
verdade própria, a verdade sobre si mesmos, é demonstrada pelo fato de serem os melhores
médiuns para a hipnose. Mas quem se deixa hipnotizar está cometendo o ato mais imoral que
se possa imaginar. Ele se submete à mais completa escravidão: ele abandona sua própria
vontade e sua própria consciência, para que outro indivíduo ganhe poder sobre ele e crie nele
a consciência que achar conveniente criar. Assim, a hipnose prova que qualquer possibilidade
de verdade depende de querer a verdade, que é o mesmo que querer a si mesmo: se alguém
recebe uma instrução sob hipnose, ele a executa acordado e, se questionado sobre suas
razões, inventa imediatamente algum motivo arbitrário para isso. Na verdade, ele tentará
justificar sua conduta, não apenas para os outros, mas até para si mesmo, por qualquer
produto da imaginação. Aqui temos, por assim dizer, uma confirmação experimental da ética
de Kant. Se uma pessoa hipnotizada simplesmente não tivesse memória, ficaria assustada por
não saber por que está fazendo algo. Mas ele inventa prontamente um novo motivo, que nada
tem a ver com a verdadeira razão pela qual ele está realizando essa ação. Ele renunciou à sua
própria vontade e, portanto, não tem mais capacidade para a verdade.

Todas as mulheres podem e querem ser hipnotizadas, as histéricas com mais facilidade e
profundidade. É até possível apagar e destruir a memória das mulheres de eventos específicos
de suas vidas — pois é o eu, a vontade, que cria a memória — simplesmente sugerindo que
elas não sabem mais nada sobre eles.

A “ab-reação” de Breuer de conflitos psíquicos por pacientes sob hipnose prova


conclusivamente que seu sentimento de culpa não era original. Ninguém que já se sentiu
sinceramente culpado pode se libertar desse sentimento tão facilmente quanto os histéricos
podem ser pela mera influência das palavras de outra pessoa.

Mas mesmo essa especiosa imputação que as mulheres de constituição histérica faz sobre si
mesmas perde sua validade no exato momento em que a natureza, isto é, o desejo sexual,
ameaça prevalecer contra a aparente contenção. O que acontece com uma mulher em um
paroxismo histérico é que ela continua se assegurando, mesmo que não acredite mais: isso
não é algo que eu realmente quero, isso é algo que outra pessoa quer, algo que um estranho
quer de mim, mas eu não quero. Ela agora relaciona qualquer movimento de outra pessoa
com a exigência que ela acredita ter sido feita a ela de fora, mas que realmente decorre de sua
própria natureza e corresponde plenamente aos seus desejos mais profundos. É por isso que
as mulheres em um ataque histérico se irritam tão facilmente com a menor coisa. Sua reação é
sempre sua última defesa inverídica contra a tremenda erupção de sua própria constituição: as
atitudes passionnelles das mulheres histéricas nada mais são que essa rejeição demonstrativa
do ato sexual, que deve ser tão alto porque não é genuíno, e muito mais barulhento do que
antes, porque o perigo agora é maior.[6] O fato de as experiências sexuais anteriores à
puberdade desempenharem o maior papel na histeria aguda é, portanto, fácil de entender. A
criança poderia ser influenciada com relativa facilidade pelas visões morais dos outros, que
não precisavam superar nenhuma forte resistência nos desejos sexuais da criança, ainda quase
completamente adormecidos. Mas agora a natureza, reprimida, mas não derrotada, retoma a
velha experiência — à qual atribuiu um valor positivo na época, embora não tenha forças para
elevá-la e afirmá-la contra a consciência desperta — e por último, apresenta essa experiência
com todo o seu poder sedutor. Agora, o verdadeiro desejo não pode mais ser separado da
consciência desperta tão facilmente como antes, e a crise segue. A razão pela qual o próprio
ataque histérico pode assumir tantas formas diferentes e constantemente se transmutar em
novos sintomas talvez seja simplesmente porque o indivíduo não reconhece a origem da
doença e, em vez de admitir que um desejo sexual está presente, e enfrentar o fato que esse
desejo emana dela, o atribui a um segundo eu.

O erro fundamental de todos os observadores médicos da histeria é que eles sempre


permitiram que os histéricos mentissem para eles, embora reconhecidamente os histéricos
também sejam enganados por si mesmos:[7] a natureza verdadeira e original dos histéricos
não é o eu que repele , mas o eu que é repelido, não importa o quanto eles finjam para si
mesmos e para os outros que este é um eu estranho. Se o eu repugnante fosse realmente seu,
eles seriam capazes de enfrentar o impulso como algo estranho a eles, de avaliá-lo
conscientemente e rejeitá-lo decididamente, fixá-lo em termos intelectuais e reconhecê-lo
novamente. Do jeito que as coisas estão, eles o mascaram, porque o eu repugnante é
meramente emprestado e, portanto, eles não têm coragem de aceitar seu próprio desejo, que
eles, no entanto, sentem vagamente como o autêntico, inato e único poderoso. É por isso que
esse desejo não pode permanecer idêntico a si mesmo onde falta um sujeito idêntico a si
mesmo; e como está ameaçado de repressão, salta, por assim dizer, de uma parte do corpo
para outra. Pois as mentiras têm muitas formas e constantemente assumem novas formas.
Essa explicação talvez seja considerada um mito, mas pelo menos parece certo que o que
primeiro aparece como contratura, depois como hemianestesia e depois até como paralisia é
sempre uma e a mesma coisa. Esta é a única coisa que a mulher histérica se recusa a aceitar
como pertencente a si mesma e que, por isso mesmo, ganha poder sobre ela: pois se ela
atribuiu a si mesma e avaliou, assim como em todas as outras ocasiões atribuiu até as coisas
mais triviais para si mesma, ela de alguma forma se encontraria fora e acima de sua
experiência. A fúria e a fúria das mulheres histéricas contra algo que elas percebem como uma
vontade alheia, embora seja sua própria, mostra que elas são de fato tanto escravas da
sexualidade quanto as mulheres não histéricas e que, sendo igualmente obcecadas por sua
destino, eles não possuem nada que o transcenda: nenhum eu atemporal, inteligível, livre.

Agora, com razão, será perguntado por que, se todas as mulheres são falsas, nem todas são
histéricas. Esta questão não é outra senão a da constituição histérica. Se a teoria que
desenvolvi aqui estiver correta, deve ser capaz de fornecer uma resposta que corresponda à
realidade. De acordo com minha teoria, a mulher histérica é uma mulher que simplesmente
aceitou o complexo de valorações masculinas e sociais em obediência passiva, em vez de
desejar dar rédea solta à sua natureza sensual no mais alto grau possível. A mulher
desobediente, então, será o oposto da mulher histérica. Não quero gastar muito tempo com
isso, porque é realmente um assunto da caracterologia específica da Mulher. A mulher
histérica torna-se histérica como resultado de sua escravidão e é idêntica ao tipo mental da
empregada. Seu oposto, a mulher absolutamente anti-histérica (que, sendo uma ideia, não
existe no mundo da experiência) seria a termagant absoluta. Este, aliás, é outro critério
possível para a classificação de todas as mulheres. A criada serve, a termagant manda.[8] Uma
mulher pode, e de fato deve, nascer para ser empregada doméstica, e muitas mulheres são
muito adequadas para essa ocupação, mesmo que sejam ricas o suficiente para nunca ter que
assumi-la. E há um sentido em que a empregada e a termagant sempre se complementam.[9]

A conclusão da minha teoria é totalmente confirmada pela experiência. A Xantipa é a mulher


que realmente menos se parece com a histérica. Ela desconta sua fúria (que provavelmente
está enraizada apenas na falta de satisfação sexual) nos outros, enquanto a escrava histérica
desconta em si mesma. A megera “odeia” os outros, a empregada “odeia” “a si mesma”. A
termagant faz seus semelhantes sofrerem por qualquer coisa que a perturbe. Ela chora com
tanta facilidade quanto a empregada, mas sempre chora para causar impacto nos outros. A
escrava também pode chorar sozinha, mas sem nunca estar sozinha — pois a solidão seria
idêntica à moralidade e, como tal, a pré-condição de qualquer verdadeira comunidade de dois
ou mais indivíduos. A megera não suporta ficar sozinha, porque deve descarregar sua fúria em
outra pessoa, enquanto a histérica persegue a si mesma. A megera mente aberta e
descaradamente, embora ela não perceba isso porque ela naturalmente acredita estar sempre
com a razão, e ela até lançará insultos a qualquer um que possa contradizê-la. A criada
obedece mansamente à exigência da verdade, igualmente alheia à sua natureza, e a falsidade
desta dócil aquiescência revela-se na sua histeria, logo que entra em conflito com os seus
próprios desejos sexuais. Essa receptividade e suscetibilidade geral foram as razões pelas quais
eu tive que discutir a histeria e a mulher histérica com tantos detalhes: é esse tipo, e não a
termagant, que poderia ter sido usado como argumento contra mim.[10]

No entanto, ambos os tipos e, portanto, todas as mulheres são caracterizadas pela falsidade,
falsidade orgânica. É bastante incorreto dizer que as mulheres mentem. Isso pressuporia que
às vezes eles dizem a verdade. Como se a sinceridade, pro foro interno et externo, não fosse
justamente a virtude da qual as mulheres são absolutamente incapazes, que elas consideram
totalmente impossível. Deve-se perceber que uma mulher, ao longo de sua vida, nunca é
verdadeira, mesmo ou precisamente quando, como a histérica, segue servilmente a exigência
da verdade, que lhe é heterônoma, e quando, portanto, diz a verdade em um sentido externo.

Uma mulher pode rir, chorar, corar ou até mesmo ficar mal à vontade: a termagant quando
quer fazer isso por algum motivo; a empregada quando esta é exigida por uma força externa,
que a domina sem que ela saiba. O homem claramente carece até mesmo dos pré-requisitos
orgânicos e fisiológicos de tal falsidade.

Se a veracidade desse tipo de mulher foi descoberta como a falsidade peculiar a ela, pode-se
esperar que suas outras propriedades tão alardeadas sejam igualmente ruins desde o início. A
modéstia da mulher, sua auto-observação, sua religiosidade são alvo de elogios. Mas a
modéstia da mulher nada mais é do que puritanismo, isto é, uma negação demonstrativa e
uma defesa contra sua própria falta de castidade. Sempre que algo interpretado como
modéstia é detectado em uma mulher, a histeria está presente exatamente no mesmo grau. A
mulher totalmente anti-histérica, que não pode ser influenciada de forma alguma, ou seja, a
megera absoluta, não corará mesmo que um homem tenha muito boas razões para acusá-la
de algo. Ela mostra o início da histeria se ela cora sob o impacto imediato do beijo de um
homem.

Uma mulher pode rir, chorar, corar ou até mesmo ficar mal à vontade: a termagant quando
quer fazer isso por algum motivo; a empregada quando esta é exigida por uma força externa,
que a domina sem que ela saiba. O homem claramente carece até mesmo dos pré-requisitos
orgânicos e fisiológicos de tal falsidade.

Se a veracidade desse tipo de mulher foi descoberta como a falsidade peculiar a ela, pode-se
esperar que suas outras propriedades tão alardeadas sejam igualmente ruins desde o início. A
modéstia da mulher, sua auto-observação, sua religiosidade são alvo de elogios. Mas a
modéstia da mulher nada mais é do que puritanismo, isto é, uma negação demonstrativa e
uma defesa contra sua própria falta de castidade. Sempre que algo interpretado como
modéstia é detectado em uma mulher, a histeria está presente exatamente no mesmo grau. A
mulher totalmente anti-histérica, que não pode ser influenciada de forma alguma, ou seja, a
megera absoluta, não corará mesmo que um homem tenha muito boas razões para acusá-la
de algo. Ela mostra o início da histeria se ela corar sob o impacto imediato da censura de um
homem, mas ela é completamente histérica apenas se corar mesmo quando está sozinha, sem
nenhuma outra pessoa presente, pois só então ela é plenamente impregnada pelo outro, ou
seja, pelos valores masculinos.

As mulheres que se aproximam do que se convencionou chamar de anestesia sexual ou


frigidez são sempre histéricas, como posso frisar de acordo com as observações de Paul Sollier.
A anestesia sexual é apenas uma das muitas anestesias, isto é, incorretas ou falsas, histéricas.
Sabe-se, sobretudo a partir dos experimentos de Oskar Vogt, que tais anestesias não são sinal
de nenhuma falta real de sensação, mas apenas de uma compulsão que distancia e exclui
certas sensações da consciência. Se o braço anestesiado de uma pessoa sob hipnose for
golpeado um dado número de vezes e ela for instruída a gritar um número que lhe apareça ao
mesmo tempo, ela gritará o número de golpes que lhe foram proibidos por uma ordem
específica para perceber em sua condição (“sonambúlica”). Da mesma forma, a frigidez sexual
surge como consequência de um comando, isto é, da força compulsiva da impregnação por
uma perspectiva assexuada que foi transferida para a mulher receptiva de seu ambiente. Mas,
como qualquer outra anestesia, isso também pode ser cancelado por um comando
suficientemente forte em contrário.

Tal como acontece com a insensibilidade física da mulher ao ato sexual, também com sua
aversão à sexualidade em geral. Tal aversão, tal aversão intensa por qualquer coisa sexual é
realmente sentida por algumas mulheres, e isso pode ser pensado para refutar a ideia de que
o matchmaking é universal e idêntico à feminilidade. Mas todas aquelas mulheres que podem
adoecer ao surpreender um casal no ato sexual são histéricas. Isso realmente confirma minha
teoria de que o matchmaking é a essência da mulher e que sua própria sexualidade é apenas
uma instância específica disso. Uma mulher pode ficar histérica não apenas se for submetida a
um ataque sexual contra si mesma, ao qual ela resiste externamente, mas falha em rejeitá-lo
internamente, mas também se ela vir qualquer outro casal praticando relações sexuais. Ela
acredita estar atribuindo um valor negativo à relação sexual dos dois, enquanto sua afirmação
inata disso já está rompendo todas as opiniões recebidas e artificiais, todas as ideias impressas
e impingidas a ela, que costumam controlar suas percepções. Pois mesmo a união sexual de
outras pessoas sempre a faz sentir como se ela mesma fosse o objeto da relação sexual.

Algo semelhante se aplica ao “sentimento de culpa” histérico que já critiquei. A megera


absoluta nunca se sente culpada, a mulher levemente histérica só se sente culpada na
presença de um homem, e a mulher completamente histérica se sente culpada diante do
homem que ela absorveu totalmente. Não adianta invocar religiosos hipócritas e penitentes
para provar que as mulheres podem ter um sentimento de culpa. Nesses casos, as formas
extremas de autopunição são precisamente o que os faz parecer suspeitos. Na maioria das
vezes, a autopunição provavelmente prova apenas que um indivíduo não superou seu ato e
não o aceitou por se sentir culpado em primeiro lugar. Pelo contrário, parece muito mais uma
tentativa de impor sem remorso que não é totalmente sentido internamente, e assim dar-lhe o
poder que não tem em si.

O que separa esse sentimento de culpa histérica da maneira verdadeiramente masculina de


fazer um balanço de si mesmo, e como as autocensuras da mulher histérica surgem, é muito
significativo e torna necessária uma clara distinção. Se tal mulher perceber que de alguma
forma transgrediu a moralidade, ela se corrigirá de acordo com o código e tentará obedecê-lo
e tornar-se aceitável a ele, esforçando-se para substituir o desejo imoral em si mesma pelo
desejo sensação prescrita pelo código. O pensamento de que ela mesma tem uma inclinação
profunda, interior e permanente para o vício não lhe ocorre. Ela não fica horrorizada com isso
e não faz um balanço de si mesma para esclarecer e resolver as coisas em sua própria mente,
mas, em vez disso, ela se apega à moralidade ponto por ponto. O que ocorre aqui não é uma
transformação completa sob o impacto da ideia, mas uma melhoria ponto a ponto, caso a
caso. Na Mulher, um caráter moral é produzido aos poucos: no Homem, se ele é bom, uma
ação moral surge de um caráter moral. Neste último caso, o homem inteiro é refeito através
de um voto, e o que acontece é algo que só pode acontecer de dentro, uma transição para
uma mentalidade que só pode levar a uma santidade que não é a santidade das boas obras.
Por isso a moralidade da Mulher não é produtiva, o que por sua vez prova que é imoral, pois só
a ética pode ser produtiva e criação de algo eterno no ser humano. É também por isso que as
mulheres histéricas não têm nenhum gênio real, embora sejam mais propensas a produzir essa
ilusão (Santa Teresa). Pois o gênio nada mais é do que uma suprema bondade e moralidade
que percebe quaisquer limitações como fraqueza, culpa, imperfeição e covardia.

Algo semelhante se aplica ao “sentimento de culpa” histérico que já critiquei. A megera


absoluta nunca se sente culpada, a mulher levemente histérica só se sente culpada na
presença de um homem, e a mulher completamente histérica se sente culpada diante do
homem que ela absorveu totalmente. Não adianta invocar os religiosos hipócritas e penitentes
para provar que as mulheres podem ter um sentimento de culpa. Nesses casos, as formas
extremas de autopunição são precisamente o que os faz parecer suspeitos. Na maioria das
vezes, a autopunição provavelmente prova apenas que um indivíduo não superou seu ato e
não o aceitou por se sentir culpado em primeiro lugar. Pelo contrário, parece muito mais uma
tentativa de impor sem remorso que não é totalmente sentida internamente, e assim dar-lhe o
poder que ela não tem em si mesma.

O que separa esse sentimento de culpa histérica da maneira verdadeiramente masculina de


fazer um balanço de si mesmo, e como as autocensuras da mulher histérica surgem, é muito
significativo e torna necessária uma clara distinção. Se tal mulher perceber que de alguma
forma transgrediu a moralidade, ela se corrigirá de acordo com o código e tentará obedecê-lo
e tornar-se aceitável a ele, esforçando-se para substituir o desejo imoral em si mesma pelo
desejo sensação prescrita pelo código. O pensamento de que ela mesma tem uma inclinação
profunda, interior e permanente para o vício não lhe ocorre. Ela não fica horrorizada com isso
e não faz um balanço de si mesma para esclarecer e resolver as coisas em sua própria mente,
mas, em vez disso, ela se apega à moralidade ponto por ponto. O que ocorre aqui não é uma
transformação completa sob o impacto da ideia, mas uma melhoria ponto a ponto, caso a
caso. Na Mulher, um caráter moral é produzido aos poucos: no Homem, se ele é bom, uma
ação moral surge de um caráter moral. Neste último caso, o homem inteiro é refeito através
de um voto, e o que acontece é algo que só pode acontecer de dentro, uma transição para
uma mentalidade que só pode levar a uma santidade que não é a santidade das boas obras.
Por isso a moralidade da Mulher não é produtiva, o que por sua vez prova que é imoral, pois só
a ética pode ser produtiva e uma criação de algo eterno no ser humano. É também por isso
que as mulheres histéricas não têm nenhum gênio real, embora sejam mais propensas a
produzir essa ilusão (Santa Teresa). Pois o gênio nada mais é do que uma suprema bondade e
moralidade que percebe quaisquer limitações como fraqueza, culpa, imperfeição e covardia.

Há também uma conexão entre isso e o erro de que as mulheres têm uma disposição religiosa,
que está sendo repetida como um papagaio por uma pessoa após a outra. Onde o misticismo
da Mulher vai além da simples superstição, ou é uma sexualidade mal disfarçada, como
acontece com muitas mulheres espiritualistas e teosofistas — essa identificação do homem
amado com a divindade foi retratada por vários escritores, em particular por Maupassant, em
cujo melhor romance a esposa de Walter, o banqueiro, reconhece Jesus Cristo nas
características de “Bel-Ami”, e depois dele por Gerhart Hauptmann em Hannele — ou,
alternativamente, ela também adotou sua religiosidade passiva e inconscientemente do
homem e tenta manter para ele tanto mais desesperadamente, quanto mais é contrariada por
seus próprios desejos naturais. Às vezes, o amante se torna o Salvador e, às vezes (como foi
observado com muitas freiras), o Salvador se torna o amante. Todas as grandes visionárias da
história (ver parte 1, p. 61) eram histéricas, e não é à toa que a mais famosa, Santa Teresa, foi
chamada de “a padroeira da histeria”. A propósito, se a religiosidade das mulheres fosse
genuína e enraizada em seu ser interior, elas poderiam, e de fato deveriam, ter mostrado
alguma criatividade religiosa, mas nunca o fizeram no menor grau. O leitor entenderá o que
quero dizer se eu formular a diferença real entre o credo do homem e o da mulher da seguinte
maneira: a religiosidade do homem é uma fé suprema em si mesmo, a religiosidade da mulher
é uma fé suprema nos outros.

Isso deixa apenas a auto-observação, que muitas vezes se diz ser extremamente desenvolvida
em mulheres histéricas. No entanto, nesse caso, o observador ainda é um homem que
penetrou profundamente na mulher, como demonstra a forma como a auto-observação foi
imposta sob hipnose por Vogt, que aplicou, de forma mais ampla e precisa, um procedimento
usado pela primeira vez por Freud. A influência estranha da vontade do homem cria um auto-
observador dentro da mulher hipnotizada por meio de uma “restrição sistemática do estado
de vigília”. Mas, mesmo fora da sugestão hipnótica, na vida saudável das mulheres histéricas, o
observador dentro delas é o homem de quem foram impregnadas. Consequentemente, a
compreensão das mulheres sobre o caráter humano também nada mais é do que a
impregnação de um homem julgado corretamente. Durante o paroxismo histérico, sua auto-
observação artificial se desvanece diante do violento avanço da natureza.

Exatamente o mesmo se dá com a clarividência dos médiuns histéricos, que sem dúvida ocorre
e que tem tão pouco a ver com o espiritismo “oculto” quanto com os fenômenos hipnóticos.
Assim como os pacientes de Vogt eram perfeitamente capazes de se observar sob a forte
vontade do hipnotizador, também o clarividente torna-se capaz de proezas telepáticas sob a
influência da voz ameaçadora de um homem que sabe como forçá-la a fazer qualquer coisa,
por exemplo, ler obedientemente , vendada e de longe, alguns documentos nas mãos de
estranhos, como uma vez tive a oportunidade de ver claramente em Munique. Pois na Mulher
a vontade do bem e do verdadeiro não se opõe a paixões muito fortes e inextirpáveis, como no
Homem. A vontade masculina tem mais poder sobre a Mulher do que sobre o Homem: pode
realizar na Mulher algo que em si mesma resiste a demasiadas coisas. Nele, um elemento
antimoral e antilógico está em ação contra o esclarecimento. Ele nunca quer apenas
conhecimento, mas sempre algo mais. Mas sobre a Mulher, a vontade do Homem pode ganhar
um poder tão completo que pode até dotá-la de uma segunda visão, de modo que ela seja
libertada de todas as limitações dos sentidos.

É por isso que a Mulher é mais telepática do que o Homem, porque é mais provável que ela
pareça sem pecado do que ele, e porque ela pode alcançar mais do que ele como vidente,
embora não antes de se tornar uma médium, isto é, um objeto no qual o Homem a vontade
para o bem e para o verdadeiro é mais fácil e completamente realizada. Vala pode se tornar
sábia, mas não até que tenha sido dominada por Wotan. Nisso ela o encontra no meio do
caminho, pois a única paixão que ela tem é por ser forçada.

O tema da histeria, na medida em que teve de ser abordado para os propósitos desta
investigação, está agora esgotado. As mulheres que são citadas como prova da moralidade da
Mulher são sempre histéricas, e a falsidade e a inverdade de sua moralidade consistem
precisamente em sua obediência à moralidade, em seu hábito de se comportar como se a lei
moral fosse a lei de suas próprias personalidades, em vez de algo que tomou posse sem
cerimônia, sem pedir seu consentimento. A constituição histérica é uma imitação ridícula da
alma masculina, uma paródia da liberdade de arbítrio, que a Mulher assume como uma pose
diante de si mesma no mesmo momento em que a influência do Homem se apodera dela com
mais força. No entanto, as mulheres mais destacadas são histéricas, embora não consigam
reprimir a sexualidade compulsiva que as eleva acima das outras mulheres por suas próprias
forças e em uma brava luta contra um adversário que elas detêm. Mas a falsidade das
mulheres histéricas pelo menos se vinga delas, e nessa medida elas podem ser aceitas como
substitutas, embora adulteradas, do trágico, para o qual a Mulher de outra forma carece de
qualquer capacidade.

A mulher não é livre: em última análise, é sempre derrotada pelo desejo de ser estuprada pelo
homem, tanto na sua pessoa como na dos outros. Ela está sob o feitiço do falo e
irremediavelmente sucumbe ao seu destino, mesmo que não consiga uma união sexual
completa. No máximo, a Mulher pode ter uma vaga sensação desse cativeiro, um presságio
sombrio de um destino que paira sobre ela, e como não há Mulher absoluta na realidade, isso
só pode ser o último vislumbre do sujeito inteligível livre, o resíduo escasso de masculinidade
inata, nela, que lhe permite sentir a necessidade, ainda que fracamente, através do contraste.
Também é impossível para a Mulher chegar a uma clara consciência de seu destino e da
coerção que age sobre ela: só o indivíduo livre reconhece um destino, porque ele não está
incluído na necessidade, mas pelo menos uma parte dele — um observador e um lutador —
está fora e acima de seu destino. Nenhuma outra prova da liberdade humana é necessária
além do fato de que o indivíduo humano foi capaz de formar o conceito de causalidade. A
mulher costuma considerar-se totalmente desvinculada precisamente porque está totalmente
vinculada, e não sofre de paixão porque ela mesma não passa de paixão. Só o Homem foi
capaz de falar da “dira necessitas[A extrema necessidade]” dentro de si, de conceber uma
Moira e uma Nêmesis, de criar as Parcae e as Norns, porque ele não é apenas um sujeito
empírico determinado, mas também um sujeito inteligível, livre.

Mas, como eu disse, mesmo que uma mulher comece a ter uma noção de sua própria natureza
determinada, isso ainda não pode ser chamado de consciência clara ou avaliação e
compreensão dela, porque isso exigiria a vontade de um eu. Em vez disso, ela fica com um
sentimento sombrio e opressivo, que a faz recuar em desespero, mas que não a leva a
embarcar em uma luta determinada que oferece a possibilidade de vitória. A mulher é incapaz
de superar sua sexualidade, que sempre a escraviza. Vimos que a histeria é uma tentativa tão
inútil por parte da Mulher de afastar sua sexualidade. Se sua luta contra seu próprio desejo
fosse honesta e genuína, se ela quisesse sinceramente derrotá-lo, ela seria capaz de fazê-lo.
Mas o que as mulheres histéricas querem é a própria histeria: elas realmente não tentam ser
curadas. É a falsidade dessa demonstração contra a escravidão que a torna tão sem esperança.
Os espécimes mais nobres do sexo podem se sentir escravizados justamente porque desejam
sê-lo — lembre-se da Judith de Hebbel e da Kundry de Wagner — , mas mesmo isso não lhes
dá forças para resistir à coerção de fato: no último momento eles ainda beija um homem que
as está violando, ou tenta fazer de um homem seu mestre se ele hesita em estuprá-las. É como
se a mulher estivesse trabalhando sob uma maldição. Em alguns momentos ela pode se sentir
oprimida por ele, mas nunca pode escapar dele, porque o fardo parece doce demais.
Basicamente, todos os seus gritos e fúria são falsos. É precisamente quando ela finge estar
recuando de sua maldição com o maior horror que ela deseja sucumbir a ela com mais paixão.

***

Não fui obrigado a retirar, ou mesmo a qualificar, nenhuma das minhas numerosas afirmações
anteriores sobre a falta de uma relação inata e inalienável da mulher com os valores. Meus
argumentos não foram derrubados nem mesmo pelo que as pessoas geralmente chamam de
amor da mulher, piedade da mulher, modéstia da mulher e virtude da mulher, e eles resistiram
ao ataque mais poderoso de todo um exército de imitações histéricas de todos os bens
masculinos. A mulher, ou seja, a única mulher receptiva que importa nesse contexto, é
preenchida, impregnada e transformada desde a mais tenra juventude pela consciência
masculina e também pelo clima social, e não apenas pelo poder do esperma masculino, que na
verdade é capaz de telegonia com a Mulher, e que certamente é a causa primária das incríveis
mudanças mentais em todas as mulheres casadas. É por isso que todas as propriedades do
sexo masculino que não pertencem ao sexo feminino como tal podem ser tão servilmente
copiadas pelas mulheres, o que torna mais fácil entender os erros que são abundantes sobre a
maior moralidade da Mulher.

Mas esta espantosa receptividade da Mulher continua a ser um facto empírico isolado que
ainda não associei às outras qualidades positivas e negativas da Mulher, como me parece
desejável do ponto de vista teórico. O que a maleabilidade da Mulher tem a ver com seu
casamento, e sua sexualidade com sua falsidade? Por que tudo isso se encontra justamente
nessa combinação na Mulher?

Também ainda é necessário explicar porque a Mulher pode absorver tudo. Quais são as causas
dessa falsidade que faz a Mulher imaginar que acredita realmente no que só ouviu dos outros,
que possui realmente o que só recebeu dos outros e que é verdadeiramente aquilo que só se
tornou através dos outros?

Para responder a isso, devo divagar uma última vez. Deve ser lembrado como distingui o
reconhecimento entre os animais, o equivalente psíquico da capacidade orgânica geral para a
prática, da memória humana, descrevendo-o como algo completamente diferente e, no
entanto, semelhante. Argumentei que ambos representavam, por assim dizer, um eterno
efeito posterior de uma única impressão de duração limitada, mas que a lembrança, em
oposição ao reconhecimento passivo imediato, era caracterizada pela reprodução ativa de
eventos passados.[11] Mais tarde, distingui a mera individuação, como propriedade de toda
matéria orgânica, da individualidade, que só existia nos seres humanos.[12] E, finalmente, tive
que fazer uma distinção clara entre o impulso sexual e o amor, dos quais, novamente, apenas
o primeiro poderia ser atribuído aos não humanos[13], e suas manifestações sublimes (como
esforços visando a autoperpetuação).

Eu também mostrei repetidamente que a vontade de valorizar é característica dos humanos,


enquanto os animais só conhecem o desejo de luxúria, e o conceito de valor é estranho para
eles.[14] Existe uma analogia entre luxúria e valor, mas os dois fenômenos são completamente
diferentes. A luxúria é desejada, enquanto o valor deve ser desejado, embora eles ainda
estejam misturados sem razão aceitável, de modo que a maior confusão continua a reinar
tanto na psicologia quanto na ética. Mas tal confusão não ocorreu apenas entre o conceito de
luxúria e o conceito de valor. As distinções entre personalidade e pessoa, reconhecimento e
memória, impulso sexual e amor não se saíram melhor. Todos esses opostos estão
constantemente sendo agrupados e, o que é mais típico, quase sempre pelas mesmas pessoas,
com as mesmas visões teóricas, e como que com a intenção de borrar a diferença entre
humanos e animais.

Algumas outras distinções que mal mencionei até agora também são geralmente
negligenciadas. A estreiteza da consciência é característica dos animais, enquanto a atenção
ativa é puramente humana: qualquer um pode ver claramente que os dois têm algo em
comum, mas também são diferentes. O mesmo se aplica à maneira como o instinto e a
vontade são tão freqüentemente agrupados. O instinto é comum a todos os seres vivos, mas
nos humanos é acompanhado pela vontade, que é livre e não um fato psicológico, pois está
subjacente a todas as experiências psicológicas específicas. A propósito, o fato de instinto e
vontade serem quase sempre considerados idênticos se deve não apenas à influência de
Darwin, mas quase tanto ao conceito pouco claro de Vontade de Arthur Schopenhauer, que o
faz parecer pertencer a uma filosofia geral da natureza sobre por um lado, e ser
eminentemente ético, por outro.

Eu ofereceria a seguinte tabela:

Também encontrado em animais, i.e., geralmente orgânicos[à esquerda]:

individuação — Reconhecimento — Luxúria — Impulso Sexual — Estreiteza de consciência —


Instinto

Somente encontrado apenas em humanos, i.e., peculiar ao macho humano[à direita]:

Individualidade — Memória — Valor — Amor — Atenção — Vontad

Pode-se ver como nos seres humanos toda propriedade que pertence a todos os seres vivos é
sobreposta por outra, que em certo aspecto está relacionada a ela, mas está situada em um
nível superior. A identificação tendenciosa e secular das duas colunas e, inversamente, o
desejo constante de separá-las indicam que os membros de cada coluna têm algo em comum
que os liga entre si e os separa de todos os membros da outra coluna. Parece que nos
humanos uma superestrutura de propriedades superiores foi erguida acima das inferiores
correlatas. Alguém poderia se lembrar do budismo esotérico indiano e sua teoria da “onda de
vida humana”. É como se no ser humano uma qualidade, relacionada a ele, mas pertencente a
uma esfera superior, se sobrepusesse a todas as propriedades meramente animais, da mesma
forma que uma vibração se acrescenta a outra: essas propriedades inferiores não estão de
forma alguma ausentes nos seres humanos, mas algo mais se juntou a eles. Qual é esse novo
elemento? Como difere e como se assemelha à primeira? Minha tabela mostra
inequivocamente que cada membro da coluna da esquerda tem uma semelhança com cada
membro da coluna da direita no mesmo nível e que, por outro lado, todos os membros de
cada coluna pertencem intimamente. Qual é a causa dessa estranha correspondência, apesar
de uma diferença tão profunda?

Os itens listados à esquerda são propriedades fundamentais de toda vida animal e vegetal.
Toda essa vida é uma vida de indivíduos, não de massas desestruturadas, e se manifesta em
pulsões que servem para satisfazer certas necessidades, particularmente a pulsão sexual, cujo
objetivo é a reprodução. Assim, a individualidade, a vontade, a memória, o amor podem ser
considerados como propriedades de uma segunda vida, que se relacionarão até certo ponto
com a vida orgânica, mas dela diferirão toto coelo[completamente].

O que nos confronta aqui é a justificação profunda da ideia de uma vida nova, eterna, superior,
encontrada nas diversas religiões, e particularmente no cristianismo. Além da vida orgânica, os
humanos também participam de outra vida, a zv| a-Qniow da Nova Aliança. Assim como a
primeira vida se alimenta de nutrição terrena, a segunda requer sustento espiritual
(simbolizado pela Comunhão). Assim como no primeiro há nascimento e morte, o segundo
também conhece um começo — o renascimento moral do indivíduo humano, a “regeneração”
— e um fim: a entrega final à loucura ou ao crime. Assim como o primeiro é governado
externamente pelas leis causais da natureza, o segundo se vincula internamente por
imperativos normativos. O primeiro é funcional de forma limitada, o último é perfeito em sua
glória infinita e ilimitada.[15]

As propriedades listadas na coluna da esquerda são comuns a toda vida inferior: as


características na coluna da direita são os sinais correspondentes da vida eterna, arautos de
uma existência superior, na qual os seres humanos, e apenas os seres humanos, têm uma
parcela adicional. A eterna confusão e a separação constantemente renovada das duas
colunas, da vida superior e inferior, é o tema principal de toda a história da mente humana: é o
tema da história mundial.

Esta segunda vida pode ser considerada como algo que se desenvolveu nos seres humanos em
adição às outras propriedades anteriores. Não tentarei decidir esta questão aqui. Mas se
tivermos uma visão mais profunda, provavelmente não acreditaremos que a vida mortal
sensual e visível seja a criadora da vida eterna, espiritual e superior, mas, ao contrário, como
sugerido no capítulo anterior, que a primeira é uma projeção deste último para os sentidos,
sua imagem no mundo da necessidade, sua descida e redução a esse mundo, sua queda em
desgraça. Pois nada além do último pálido reflexo da ideia superior de uma vida eterna caindo
sobre uma mosca irritante pode me impedir de matá-la. Se consegui agora encontrar uma
expressão precisa para a ideia mais profunda de humanidade, a ideia em que a humanidade
capturou verdadeiramente a sua própria natureza, a ideia do pecado original — visto que
aquilo que se perde e se atira, o ser vivo essencial ser, ainda em certa medida permanece em
processo de se tornar uma realidade empírica e uma vitalidade orgânica, como mostra minha
tabela — então surge a questão de por que esse pecado é cometido. E aqui minha investigação
se depara com o problema último, o único problema que realmente existe, o único problema
que nenhum ser humano ousou responder, o problema que nenhum ser humano vivo jamais
será capaz de resolver. É o mistério do mundo e da vida, o desejo do sem espaço em direção
ao espaço, o atemporal em direção ao tempo, o espiritual em direção à matéria. É a relação
entre liberdade e necessidade, a relação entre algo e nada, a relação entre Deus e o diabo. O
dualismo no mundo é a coisa incompreensível, a força motriz da queda da graça, o mistério
primordial, a causa, o significado e o propósito da queda precipitada da vida eterna para uma
existência transitória, da intemporalidade para a temporalidade terrena, e o interminável
lapso do totalmente inocente em culpa. Nunca consigo entender por que cometi o pecado
original, por que o livre pode se tornar não-livre e o puro sujo, e por que a perfeição pode
errar.

O que pode ser provado, no entanto, é que nem eu nem qualquer outro ser humano jamais
entenderemos isso. Só posso entender um pecado quando deixei de cometê-lo, e paro de
cometê-lo no momento em que o reconheço. É por isso que não posso compreender a vida
enquanto vivo, e o tempo é o enigma em que naufrago enquanto vivo nele e continuo a pô-
lo.[16] Só depois de vencê-la é que a compreenderei e, portanto, somente a morte pode me
ensinar o sentido da vida. Nunca houve um momento em que eu não tenha desejado, entre
outras coisas, a inexistência: como então eu poderia ter experimentado esse desejo como
objeto de contemplação ou objeto de conhecimento? Se eu tivesse entendido alguma coisa, já
estaria fora dela, e não posso compreender minha pecaminosidade porque ainda estou
pecando. A vida eterna e a vida inferior não se seguem, mas existem lado a lado, e a pré-
existência do bem é valiosa.

Agora podemos dizer que a Mulher absoluta, que carece de individualidade e vontade, que
não tem participação no valor e no amor, é excluída da existência metafísica superior,
transcendente. A existência inteligível e hiperempírica do Homem está além da matéria, do
espaço e do tempo. Nele há mortalidade mais do que suficiente, mas também alguma
imortalidade, e ele tem a possibilidade de escolher entre elas: entre a vida que termina com a
morte terrena e a vida que só a morte restitui à plena pureza. A vontade mais profunda do
Homem é dirigida para esta existência perfeita e atemporal, para o valor absoluto, e é o
mesmo que o desejo de imortalidade. Por fim, isso mostra claramente por que a Mulher não
deseja a continuação de sua existência pessoal: nela não há vestígio da vida eterna que o
Homem deseja e deve afirmar contra sua cópia barata no mundo dos sentidos. Uma certa
relação com a ideia do valor supremo, a ideia do absoluto, a ideia da liberdade total — que ele
ainda não possui, porque está sempre em alguma medida determinado, mas que pode
alcançar porque o espírito tem poder sobre a natureza — , uma relação deste tipo com a ideia
como tal, ou com a divindade, é inerente a todo homem: sua vida na terra o separou e o
privou do absoluto, mas sua alma anseia por escapar desta mancha, deste pecado original.

Assim como o amor entre seus pais não era um amor puro pela ideia, mas buscava mais ou
menos uma corporificação no mundo dos sentidos, assim também o filho, fruto desse amor,
desejará não só a vida eterna, mas também a temporal, enquanto ele viver. Ficamos
horrorizados com a ideia da morte, resistimos a ela, nos apegamos à existência terrena e
provamos que queríamos nascer quando nascemos ainda desejando nascer neste mundo.[17]
Um indivíduo que deixasse completamente de temer a morte terrena morreria naquele exato
momento, pois não lhe restaria senão a pura vontade de vida eterna, que o ser humano deve e
pode realizar em si mesmo de maneira autônoma: a vida eterna cria a si mesma, como toda a
vida o faz.
Mas como todo homem tem uma relação com a ideia de valor superior, sem estar
inteiramente de posse dela, nenhum homem é feliz. Só as mulheres são felizes. Nenhum
homem se sente feliz, porque todo homem tem um relacionamento com a liberdade e, no
entanto, está sempre em algum grau de escravidão enquanto está na terra. Só um ser
totalmente passivo, como a verdadeira Mulher, ou um ser totalmente ativo, a divindade, pode
sentir-se feliz. A felicidade seria uma sensação de perfeição, que um homem nunca pode ter,
embora algumas mulheres realmente pensem que são perfeitas. O homem sempre tem
problemas atrás de si e tarefas pela frente: todos os problemas estão enraizados no passado e
a terra das tarefas é o futuro. Para a Mulher o tempo não tem direção, não tem sentido. Não
há mulher que se pergunte sobre o propósito de sua vida, mas a unidirecionalidade do tempo
é uma manifestação do fato de que esta vida deve e pode adquirir um sentido.

Felicidade, para o homem, só poderia ser atividade total, pura, liberdade completa, nem
mesmo um pequeno grau de escravidão, muito menos o mais alto: pois quanto mais ele se
afasta da ideia de liberdade, mais culpado ele se torna. Para ele, a vida na terra é sofrida e
deve sê-lo, até porque os seres humanos no processo de receber sensações são passivos,
porque são afetados por fatores externos e porque a experiência precisa não apenas de forma,
mas também de matéria. Não há ser humano que não precise de nenhuma percepção
sensorial. Mesmo um gênio não seria nada sem ela, apesar do fato de que ele preenche e
penetra suas percepções com os conteúdos de si mesmo com mais força e rapidez do que
outros, e não requer nenhuma indução completa para reconhecer a ideia de uma coisa. A
receptividade não pode ser abolida por nenhuma ação surpresa fichtiana: em suas sensações o
indivíduo humano é passivo, e sua espontaneidade, sua liberdade, só pode se afirmar em seu
julgamento e na forma daquela memória universal que é capaz de reproduzir todas as suas
experiências como motivado por sua vontade. Ao homem, o amor e a criação intelectual
oferecem aproximações ao mais alto grau de espontaneidade, onde a liberdade total já parece
uma realidade. É por isso que é mais provável que eles lhe dêem uma ideia do que é a
felicidade e, mesmo que apenas momentaneamente, façam-no sentir, tremendo de excitação,
que ela está pairando bem acima dele.

Para a Mulher, que nunca pode ser profundamente infeliz, felicidade é realmente uma palavra
vazia por isso mesmo. O conceito de felicidade foi criado pelo Homem — o homem infeliz —
embora nunca seja adequadamente realizado nele. As mulheres nunca hesitam em mostrar
sua infelicidade aos outros, porque não é uma infelicidade genuína apoiada pela culpa, muito
menos pela culpa da vida na terra como pecado original.

A prova final, absoluta, da total inutilidade da vida da Mulher, de sua total falta de ser
superior, é fornecida pelo modo como as mulheres cometem suicídio. Uma mulher
provavelmente sempre comete suicídio pensando em outras pessoas, imaginando o que elas
pensariam, como teriam pena dela, o quanto lamentariam — ou o quanto ficariam
aborrecidas. Isso não quer dizer que a Mulher, no momento de se matar, não esteja
firmemente convencida de sua infelicidade, que a seu ver é sempre imerecida. Pelo contrário,
antes de seu suicídio, ela se compadece intensamente de si mesma, mas, na verdade, seguindo
o padrão de autopiedade que expliquei anteriormente, ela simplesmente se junta aos outros
para chorar sobre o objeto de sua compaixão e deixa completamente de ser um sujeito. Como
uma mulher poderia considerar sua infelicidade como sendo sua, se ela é incapaz de ter um
destino? O fato terrível, que é decisivo para o vazio e o nada das mulheres, é que mesmo
diante da morte elas não conseguem enfrentar o problema da vida, da sua vida, porque
nenhuma vida superior da personalidade jamais quis realizar-se nelas.
Agora é possível responder à questão que foi formulada como problema central no início desta
segunda parte, a questão sobre o que significa ser Homem e ser Mulher. As mulheres não têm
existência nem essência, não são e nada são. Alguém É Homem ou É Mulher, dependendo se
alguém é ou não alguém.

A mulher não tem participação na realidade ontológica, e é por isso que ela não tem relação
com a coisa-em-si, que, em uma visão mais profunda, é idêntica ao absoluto, à ideia ou a Deus.
O homem em sua atualidade, o gênio, acredita na coisa-em-si. Para ele, ou é o absoluto
incorporado em seu conceito supremo de valor essencial, caso em que ele é um filósofo, ou é
o milagroso mundo de conto de fadas de seus sonhos, o reino da beleza absoluta, caso em que
ele é um artista. Mas ambas as coisas significam o mesmo.

A mulher não tem relação com a ideia, que ela não afirma nem nega. Ela não é nem moral nem
antimoral. Matematicamente falando, ela não tem sinal algébrico. Ela não tem direção e não é
boa nem má, nem anjo nem demônio. Ela nem mesmo é egoísta (é por isso que ela pode ser
considerada altruísta). Ela é amoral, assim como é alógica. Mas todo ser é moral e lógico.
Portanto, a Mulher não é.

A Mulher é falsa. Os animais têm tão pouca realidade metafísica quanto a mulher genuína,
mas não falam e, portanto, não mentem. Para ser capaz de falar a verdade é preciso ser
alguma coisa, pois a verdade é sobre ser, e ninguém que não seja algo pode ter uma relação
com o ser. O homem quer toda a verdade, ou seja, ele só quer ser. Em última análise, o desejo
de conhecimento é idêntico ao desejo de imortalidade. Porém, um indivíduo que faz uma
afirmação sobre um fato sem ter a coragem de afirmar um ser, a quem se dá a forma externa
de julgamento sem a interna, que é tão mentiroso quanto a Mulher, deve necessariamente
estar sempre mentindo. É por isso que a Mulher sempre mente, mesmo quando
objetivamente está dizendo a verdade.

Mulher é casamenteira. As unidades da forma de vida inferior são indivíduos, organismos. As


unidades da forma de vida superior são individualidades, almas, mônadas ou
“metaorganismos”, para usar o termo apropriado de Hellenbach. Cada mônada é diferente de
todas as outras mônadas e tão separada dela quanto quaisquer duas coisas podem ser. As
mônadas não têm janelas: em vez disso, elas têm todo o universo em si mesmas. O homem
como mônada, seja potencial ou atual, isto é, individualidade dotada de gênio, quer diferença
e separação, individuação e divergência, tanto para si quanto em qualquer outro lugar: o
monismo ingênuo é exclusivamente feminino. Cada mônada é uma unidade fechada, um todo;
mas também trata o eu do outro como uma totalidade perfeita, na qual não invade. O homem
tem limites, e ele afirma e quer limites. A mulher, que não conhece a solidão, é incapaz de
perceber e entender, respeitar ou honrar a solidão de seus semelhantes, nem pode aceitá-la
sem invadi-la. Como não conhece a solidão, não conhece companhia, mas apenas um estado
indistinto de fusão com os outros. Porque a mulher não tem eu, ela não percebe o tu e,
consequentemente, ela acredita que eu e tu pertencemos como um casal, como uma unidade
indistinguível: é por isso que a mulher é capaz de unir os outros, é por isso que ela é capaz de
casar. O objetivo de seu amor é o mesmo que o objetivo de sua compaixão: a comunidade, a
fusão de tudo.[18]

A mulher não conhece limites para si mesma, que poderiam ser penetrados e que ela
precisaria guardar. Isso explica, em primeiro lugar, a principal diferença entre amizade
masculina e feminina. Toda amizade masculina é uma tentativa de união sob o signo de uma e
mesma ideia, que cada um dos amigos persegue separadamente e por conta própria, mas
ainda assim unidos um ao outro. “Amizade” feminina significa ficar junto e isso, como deve ser
enfatizado, tendo em mente o matchmaking. Pois o matchmaking é o único fundamento
possível de uma interação próxima e sincera entre as mulheres, assumindo que elas não
procuram a companhia feminina apenas para fofocas ou alguns interesses materiais.[19] Se
uma das duas meninas ou mulheres é geralmente considerada muito mais bonita, a feia obterá
uma certa satisfação sexual da admiração concedida à mais bonita. A condição primordial de
qualquer amizade entre mulheres, então, é a impossibilidade de qualquer rivalidade entre
elas, e não há mulher que não compare imediatamente seu corpo com o de todas as outras
mulheres que conhece. A mulher feia só pode admirar a mulher mais bonita se a desigualdade
entre elas for muito grande e qualquer competição de sua parte for inútil; caminho para sua
própria satisfação sexual: de fato, ela sente, por assim dizer, que é ela mesma quem está
tendo relações sexuais na pessoa do outro.[20] A vida totalmente impessoal das mulheres,
bem como o propósito supra-individual de sua sexualidade — o matchmaking como sua
característica fundamental — é claramente refletida nesse fato. As mulheres agem como
casamenteiras para si mesmas como o fazem para os outros, e agem como casamenteiras para
si mesmas nos outros. O mínimo que até a mulher mais feia exige, e isso lhe dá uma certa
satisfação, é que qualquer membro de seu sexo seja admirado e desejado.

Existe uma estreita ligação entre essa fusão total na vida da Mulher e o fato de que as
mulheres nunca são realmente ciumentas. Por mais vis que sejam o ciúme e a vingança, eles
têm uma certa grandeza, da qual as mulheres são tão incapazes quanto de qualquer grandeza,
seja boa ou má. O ciúme implica uma reivindicação desesperada de um suposto direito, e o
conceito de direito transcende as mulheres. Mas a razão mais importante pela qual uma
mulher nunca pode sentir ciúmes de nenhum homem em particular é um pouco diferente. Se
um homem, mesmo aquele por quem ela está loucamente apaixonada, abraçasse e possuísse
outra mulher ao lado dela, o pensamento disso a excitaria sexualmente a tal ponto que não
haveria espaço nela para o ciúme. Se um homem tomasse conhecimento de tal cena, ficaria
revoltado e repelido por ela e acharia nauseante permanecer nas proximidades. Uma mulher
fica quase frenética com a afirmação interna de todo o processo, ou fica histérica se se recusa
a admitir para si mesma que no fundo de seu ser ela também desejou essa união.

Além disso, um homem nunca é completamente dominado pelo pensamento da relação sexual
dos outros. Ele está fora e acima de tal experiência, que, a rigor, nem mesmo é uma
experiência, no que lhe diz respeito. A mulher, por outro lado, acompanha o acontecimento
quase passivamente, com uma excitação febril e como se arrebatada pelo pensamento do que
está acontecendo tão perto dela.[21]

O interesse do homem por seus semelhantes, que são mistérios para ele, muitas vezes se
estende à vida sexual deles, mas o tipo de curiosidade que, por assim dizer, força os outros à
sexualidade é peculiar às mulheres e é praticado por elas em geral, nas mulheres. e homens
em igual medida. O que interessa a uma mulher nos outros indivíduos são, antes de mais nada,
seus casos de amor, e intelectualmente ela deixa de se sentir intrigada e fascinada por eles
quando fica clara sobre esse ponto particular.

Tudo isso novamente sugere claramente que feminilidade e casamento são idênticos, e um
exame puramente imanente do tópico teria que terminar com essa afirmação. Porém, eu me
propus a fazer mais do que isso, e acho que já dei uma dica de como a Mulher como algo
positivo, como casamenteira, está ligada à Mulher como algo negativo, como um ser
totalmente desprovido da vida superior de uma mônada. A mulher realiza apenas uma ideia,
da qual, portanto, ela nunca pode se tornar consciente, e que é diametralmente oposta à ideia
da alma. Seja ela é uma mãe que anseia pelo leito matrimonial ou uma prostituta que prefere
o bacanal, quer ela queira constituir família com um homem ou quer ela busque as massas
emaranhadas do Venusberg, ela sempre age de acordo com a ideia de comunidade, a ideia que
vai mais longe obliterando os limites dos indivíduos ao misturá-los todos.

Então uma coisa aqui torna a outra possível: só um ser sem individualidade, sem limites, pode
ser o emissário da relação sexual. Não foi sem razão que apresentei meus argumentos de
forma tão extensa, como certamente nunca foi feito em qualquer tratamento deste assunto
ou em qualquer outro estudo caracterológico. O tema é tão fértil porque aqui a conexão entre
toda a vida superior, por um lado, e toda a vida inferior, por outro, deve se revelar. Aqui toda
psicologia e toda filosofia encontram um excelente critério para se testar. Só por isso o
problema do Homem e da Mulher continua sendo o capítulo mais interessante da
caracterologia, e por isso o escolhi como objeto de uma investigação tão abrangente e
compreensível.

Neste ponto da discussão, alguns leitores, sem dúvida, farão abertamente uma pergunta que
até agora podem ter considerado apenas como uma possível objeção em suas próprias
mentes: se, vistas sob essa luz, as mulheres são de fato seres humanos ou se, de acordo com
para a teoria do autor, eles realmente não precisariam ser classificados como animais ou
plantas. Será apontado que, na opinião do autor, as mulheres não são menos deficientes em
qualquer existência supra-sensorial do que animais ou plantas, e que sua participação na vida
eterna é tão pequena quanto a de qualquer outro organismo que não tenha nem a desejo de,
nem a possibilidade de continuação pessoal após a morte. Ambos os tipos são igualmente
desprovidos de qualquer realidade metafísica, e nenhum, nem mulheres, nem animais, nem
plantas, realmente existe — todos são mera aparência e nada têm da coisa-em-si sobre eles.

O indivíduo humano, de acordo com a compreensão mais profunda de sua natureza, é um


espelho do universo, o microcosmo, mas a Mulher não tem absolutamente nenhum gênio e
não vive em um nexo profundo com o universo.

Neste ponto da discussão, alguns leitores, sem dúvida, farão abertamente uma pergunta que
até agora podem ter considerado apenas como uma possível objeção em suas próprias
mentes: se, vistas sob essa luz, as mulheres são de fato seres humanos ou se, de acordo com
para a teoria do autor, eles realmente não precisariam ser classificados como animais ou
plantas. Será apontado que, na opinião do autor, as mulheres não são menos deficientes em
qualquer existência supra-sensorial do que animais ou plantas, e que sua participação na vida
eterna é tão pequena quanto a de qualquer outro organismo que não tenha nem desejo de,
nem a possibilidade de continuação pessoal após a morte. Ambos os tipos são igualmente
desprovidos de qualquer realidade metafísica, e nenhum, nem mulheres, nem animais, nem
plantas, realmente existe — todos são mera aparência e nada têm da coisa-em-si sobre eles.

O indivíduo humano, de acordo com a compreensão mais profunda de sua natureza, é um


espelho do universo, o microcosmo, mas a Mulher não tem absolutamente nenhum gênio e
não vive em um nexo profundo com o universo.

Em uma bela passagem do Pequeno Eyolf de Ibsen, a mulher fala ao homem:

Rita: Somos criaturas da Terra, afinal.


Allmers: Também temos algum parentesco com o mar e o céu, Rita.
Rita: Você, talvez. não eu
Esta passagem revela concisamente a percepção do dramaturgo (que, surpreendentemente, é
frequentemente considerado um adorador da Mulher) de que a Mulher não tem relação com
a ideia do infinito, com a divindade, porque ela não tem alma. Segundo os índios, o Brahman
só é alcançado por meio do Âtman. A mulher não é um microcosmo, ela não foi criada à
imagem de Deus. Ela, então, ainda é um ser humano? Ou ela é um animal? Ou uma planta?

Os anatomistas devem achar essas questões um tanto ridículas e considerarão um ponto de


vista que pode lançar tais problemas como errôneo desde o início. Para eles, a Mulher é homo
sapiens, claramente distinta de todas as outras espécies, e atribuída ao macho humano, assim
como as fêmeas de todos os outros gêneros e espécies são atribuídas a seus machos. E o
filósofo certamente não deve dizer: O que me importa os anatomistas? Embora ele possa
esperar muito pouco entendimento do que o move daquele lado, ele está falando aqui de
questões antropológicas, e se ele acha a verdade, os fatos morfológicos também devem ter
recebido o devido reconhecimento.

De fato! As mulheres estão mais próximas da natureza em seu inconsciente do que o homem.
As flores são suas irmãs, e estão menos distantes dos animais do que do homem, como prova
o fato de que elas são certamente mais fortemente inclinadas à bestialidade do que ele
(lembre-se dos mitos de Leda e Pasiphae; e a relação das mulheres com seus cachorrinhos
também é muito mais sensual do que geralmente se acredita).[22] No entanto, as mulheres
são seres humanos. Mesmo W, que imaginamos não ter nenhum traço de eu inteligível, é pelo
menos o complemento de M, e o fato de que a mulher humana é o complemento sexual e
erótico específico do homem humano — embora não seja o fenômeno moral que os
defensores do casamento tagarelam — tem uma enorme importância para o problema da
mulher. Além disso, os animais são meros indivíduos, enquanto as mulheres são pessoas
(embora não sejam personalidades). As mulheres são dotadas de uma forma externa de
julgamento, embora não de sua forma interna, de uma linguagem, embora não de um discurso
coerente, de uma certa memória, embora não de uma consciência contínua e homogênea de
si mesmas. Para tudo no Homem eles têm substitutos peculiares que persistem em promover
as confusões às quais os devotos da feminilidade são tão propensos. O resultado é uma certa
anfissexualidade de muitos termos (vaidade, vergonha, amor, imaginação, medo,
sensibilidade, etc.) que têm um significado tanto masculino quanto feminino.

Isso parece levantar novamente a questão sobre a natureza última da diferença entre os sexos.
Os papéis desempenhados pelo princípio masculino e feminino no reino animal e vegetal não
serão considerados aqui: estamos preocupados apenas com os seres humanos. Que tais
princípios de masculinidade e feminilidade devem ser tratados como conceitos teóricos, e não
como ideias metafísicas, foi demonstrado por todo o meu exame desde o início. O
prosseguimento da investigação mostrou as enormes diferenças que existem entre macho e
fêmea, muito além da diferença meramente fisiológica e sexual, sem dúvida pelo menos em
humanos. Portanto, a visão de que o dualismo dos sexos nada mais é do que um mecanismo
para a distribuição de diferentes funções para diferentes seres, resultando em uma divisão
fisiológica do trabalho — uma visão que acredito dever sua excepcional popularidade ao
zoólogo Milne Edwards — parece totalmente inaceitável, e nada mais precisa ser dito sobre
sua superficialidade, que beira o ridículo, e sua pobreza intelectual. O darwinismo tem sido
particularmente favorável à popularização desse ponto de vista, e tem havido até uma
suposição bastante geral de que os organismos sexualmente diferenciados evoluíram de um
estágio anterior de uniformidade sexual, como resultado da vitória daqueles seres que assim
abandonaram alguns de seus funciona sobre as espécies mais primitivas, sobrecarregadas,
assexuadas ou bissexuais. No entanto, Gustav Theodor Fechner, muito antes dos modernos
besouros de cemitério de Darwin, demonstrou com argumentos irrefutáveis que tal “origem
do sexo” por meio das “vantagens da divisão do trabalho” ou “diminuição de carga na luta pela
existência”, é uma proposição totalmente impraticável.

O propósito de Homem e Mulher não pode ser explorado isoladamente: seu significado só
pode ser reconhecido em comparação e determinado em contraste um com o outro. A chave
para a natureza de ambos deve ser encontrada em seu relacionamento mútuo. Já me referi
brevemente a isso quando tentei explicar a natureza do erotismo. A relação entre Homem e
Mulher não é outra senão a relação entre sujeito e objeto. A mulher busca sua realização
como um objeto. Ela é a propriedade, seja do homem ou da criança, e tudo o que ela quer é
ser considerada uma propriedade, apesar de todas as suas tentativas de esconder isso. Não há
maneira mais certa de entender mal o que a Mulher realmente quer do que interessar-se pelo
que se passa dentro dela e simpatizar com suas emoções e esperanças, suas experiências e sua
natureza interior. Mulher não quer ser tratada como sujeito. Tudo o que ela sempre quer — e
é isso que a torna Mulher — é permanecer passiva e sentir uma vontade dirigida a ela. Ela não
quer ser tratada com timidez ou delicadeza. Ela também não quer ser respeitada. Em vez
disso, ela precisa ser desejada meramente como um corpo e ser a posse exclusiva de outro.
Assim como uma mera sensação só assume realidade quando se torna um conceito — isto é,
um objeto — assim também a Mulher só adquire sua existência, e um sentido de sua
existência, quando é elevada por um homem ou uma criança — um sujeito — ao seu objeto, e
assim tem uma existência concedida a ela.

O contraste epistemológico entre sujeito e objeto corresponde à oposição ontológica entre


forma e matéria. A última oposição é apenas uma tradução do primeiro contraste do
transcendental para o transcendente, da crítica da experiência para a metafísica. A matéria,
aquilo que é absolutamente não individualizado, aquilo que pode assumir qualquer forma, mas
não tem qualidades próprias definidas e permanentes, carece de essência tanto quanto a mera
sensação, a matéria-prima da experiência, por sua vez carece de existência. Enquanto,
portanto, o contraste entre sujeito e objeto é um contraste de existência (uma vez que a
sensação só adquire realidade como um objeto diante do sujeito), o contraste entre forma e
matéria é uma diferença de essência (a matéria informe é absolutamente desprovida de
qualidades). É por isso que Platão foi capaz de descrever a materialidade — a massa maleável,
o

sem forma em si, a massa amassada de

aquilo que recebe a forma, seu lugar, seu

o eterno segundo e eterno outro, o


— também como não-ser, como

Aqueles que, muitas vezes, fazem parecer que esse pensador mais profundo acreditasse que o
não-ser é o espaço, o arrastam para o nível mais baixo da superficialidade. É certo que nenhum
grande filósofo atribuirá ao espaço uma existência metafísica, mas também não poderá
considerá-lo um não-ser em si. Tomar o espaço vazio para ser “ar” ou “nada” é característico
do falastrão ingênuo e atrevido. É apenas em uma reflexão mais profunda que o espaço
adquire alguma realidade e se torna um problema. O não-ser de Platão é justamente o que
para o filisteu aparece como a coisa mais real imaginável, como a soma total dos valores
existenciais: não é outra coisa senão a matéria.

O próprio Platão descreveu sua concepção daquilo que é capaz de assumir qualquer forma
como mãe e ama-de-leite de todo o devir, enquanto Aristóteles, discutindo o ato de procriação
em sua filosofia natural, alocou o papel material ao princípio feminino e ao papel ao princípio
masculino. Posso então ser acusado de um ato arbitrário de flagrante descontinuidade se,
seguindo e ampliando as visões de Platão e Aristóteles, eu sugerir que o significado da Mulher
para a humanidade consiste em ela ser a representante da matéria? O homem, o microcosmo,
é composto tanto da vida superior quanto da inferior, do que existe em sentido metafísico e
do que não tem essência, de forma e matéria: a mulher não é nada, ela é apenas matéria.

Esse discernimento finalmente fornece a pedra angular do edifício. A partir daqui tudo o que
ainda era incerto torna-se claro e forma um todo coerente e arredondado. O desejo sexual da
Mulher visa o contato físico, é apenas a pulsão de contração e não a pulsão de
detumescência.[23] Assim, seu sentido mais refinado, na verdade o único que é mais
altamente desenvolvido nela do que no homem, é o tato.[24] O olho e o ouvido conduzem ao
ilimitado e transmitem insinuações do infinito. O sentido do tato requer a maior proximidade
física para funcionar. Mistura-se com o que se toca: o tato é eminentemente sujo e parece
quase expressamente desenhado para um ser que foi feito para a proximidade física. O que ela
comunica é uma sensação de resistência, uma percepção do palpável; e, como Kant mostrou, a
matéria é precisamente o que só podemos descrever como um preenchedor de espaço que
oferece uma certa resistência a qualquer coisa que tente penetrá-la. A experiência de
“obstáculos” criou tanto o psicológico (não o epistemológico) da coisa e o excessivo grau de
realidade que a maioria das pessoas atribui aos dados fornecidos pelo tato, que consideram
qualidades mais sólidas, “primárias” do mundo da experiência. Mas a razão pela qual o
homem emocionalmente nunca deixa de olhar para a matéria como a verdadeira realidade
não é outra senão o último resquício de feminilidade ainda agarrado a ele. Se existisse o
Homem absoluto, ele não atribuiria nenhum tipo de ser à matéria, mesmo psicologicamente (e
não apenas logicamente).

O homem é forma, a mulher é matéria. Se isso for correto, também deve encontrar sua
expressão na inter-relação entre suas experiências psíquicas individuais. Os conteúdos
estruturados da vida psíquica do Homem, em oposição à imaginação inarticulada e caótica da
Mulher, de que falei há muito tempo, proclamam o mesmo contraste entre forma e matéria. A
matéria quer formar-se: por isso a Mulher exige do Homem uma clarificação das suas ideias
confusas, uma interpretação das suas hênidas.[25].
As mulheres são matéria capaz de assumir qualquer forma. Os resultados dessas investigações
que demonstraram que as meninas têm uma memória melhor do que os meninos, em
particular para as matérias ensinadas na escola, só podem ser explicados pela inanidade e
nulidade das mulheres, que podem engravidar de qualquer coisa, enquanto os homens só se
lembram do que realmente interessa a eles e esquecem todo o resto (cf. parte 2, pp. 102,
115s.). Mas, acima de tudo, o que chamei de apego da Mulher, sua extraordinária
suscetibilidade aos julgamentos dos outros, sua sugestionabilidade, sua total transformação
pelo Homem, decorre do fato de ela ser apenas matéria, de sua falta de qualquer forma
original de si mesma. A mulher não é nada, e essa é a razão, a única razão pela qual ela pode
se tornar tudo, enquanto o homem só pode se tornar o que ele é. Uma mulher pode ser
transformada no que ela quiser: um homem pode, no máximo, ser ajudado a se tornar o que
ele quiser. É por isso que realmente só faz sentido, no verdadeiro sentido da palavra, educar
mulheres, não homens. No homem, nada de essencial jamais é mudado por qualquer tipo de
educação; na mulher, mesmo sua natureza mais básica, sua alta estima pela sexualidade, pode
ser totalmente reprimida por influência externa. A mulher pode parecer tudo e negar tudo,
mas ela nunca é realmente nada. As mulheres não têm esta ou aquela qualidade: sua
peculiaridade é não ter nenhuma qualidade. Essa é toda a complexidade e todo o mistério da
Mulher, e é isso que constitui toda a sua superioridade e incompreensibilidade aos olhos do
Homem, que busca nela um núcleo firme.

Mesmo aqueles leitores que podem ter concordado com minhas deduções até agora irão
reclamar que elas não dão nenhuma indicação do que o homem realmente é. É possível
predicar para ele alguma qualidade geral, como o matchmaking e a falta de essência poderiam
ser predicados da Mulher? Existe um conceito real de Homem, como existe de Mulher, e esse
conceito pode ser definido de maneira semelhante?

A resposta deve ser que a masculinidade consiste precisamente no fato da individualidade, a


mônada essencial, coincidindo com ela. Mas cada mônada é infinitamente diferente de todas
as outras mônadas e, portanto, nenhuma mônada pode ser incluída em um conceito mais
abrangente que contenha qualquer coisa comum a várias mônadas. O homem é o microcosmo
e contém todas as possibilidades que existem. Isso não deve ser confundido com a
suscetibilidade universal da Mulher, que pode se tornar tudo sem ser nada, enquanto o
Homem é tudo e se torna mais ou menos disso, dependendo de seus dotes. O homem também
tem em si elementos da Mulher, da matéria, e pode permitir que essa parte de sua natureza se
desenvolva, ou seja, pode se deteriorar e degenerar. Ou ele pode reconhecê-la e combatê-la
— e é por isso que ele, e somente ele, pode chegar à verdade sobre a Mulher (parte 2, p. 75s.).
A mulher, ao contrário, não tem possibilidade de se desenvolver senão através do homem.

O significado de Homem e Mulher só ficará claro se examinarmos suas inter-relações sexuais e


eróticas. O desejo mais profundo da Mulher é ser formada, e assim criada, pelo Homem. A
mulher deseja que o homem ensine a ela opiniões totalmente diferentes das que ela teve
antes, ela quer que ele derrube tudo o que ela antes considerava certo (o oposto de
reverência, p. 111), ela quer ser provada errada e completamente reformada por ele. A
vontade do Homem sozinha cria a Mulher, a governa e a muda completamente (hipnose).
Aqui, finalmente, também podemos encontrar a explicação da relação entre o físico e o
psíquico em Homem e Mulher. Anteriormente, assumi para o Homem uma interação entre o
psíquico e o físico, ainda que apenas no sentido de que o corpo foi criado unilateralmente
através da projeção da alma transcendente no mundo das aparências, e para a Mulher um
paralelismo de relações meramente empíricas fatores psíquicos e físicos. Agora está claro que
uma interação também é eficaz na Mulher. Mas enquanto no Homem, de acordo com a mais
verdadeira teoria de Schopenhauer de que o ser humano é a sua própria obra, é a sua própria
vontade que cria e recria um corpo para si, a Mulher é fisicamente influenciada e transformada
pela vontade do outro (sugestão hipnótica, impressão materna). Assim o Homem forma não só
a si mesmo, mas também a Mulher, e ela mais facilmente. Os mitos do Gênesis e outras
cosmogonias, nas quais a Mulher é criada a partir do Homem, proclamavam uma verdade mais
profunda do que as teorias biológicas da descendência, segundo as quais o macho evoluiu da
fêmea.

Neste ponto posso também tentar responder à questão mais difícil que deixei em aberto no
capítulo IX (p. 187), a questão de como a Mulher, que não tem alma nem vontade própria,
pode, no entanto, descobrir até que ponto o Homem possui essas coisas. Para fazer isso, tudo
o que é preciso ter percebido é que o que a Mulher percebe e é capaz de apreciar não é a
natureza específica de um homem, mas apenas o fato geral e, possivelmente, o grau de sua
masculinidade. É bastante incorreto e hipócrita ou erroneamente derivado da subsequente
impregnação pela natureza de um homem, afirmar que a mulher tem uma compreensão inata
da individualidade do homem.[26] Um homem apaixonado, que é facilmente enganado pela
simulação inconsciente de uma compreensão mais profunda por parte da Mulher, pode
acreditar que uma garota o entende. Mas nenhum homem menos facilmente satisfeito poderá
ignorar o fato de que as mulheres só têm um sentido da presença da alma, mas não do que ela
é, e do fato formal geral da personalidade, mas não de sua especificidade. Para perceber e
apreender uma forma específica, a própria matéria precisaria ter uma forma, mas como a
relação entre a Mulher e o Homem é a mesma que entre a matéria e a forma, a compreensão
da Mulher sobre o Homem nada mais é do que uma vontade de ser formada como com a
maior força possível, ou a atração instintiva pela existência daquilo que não tem. Essa
“compreensão”, então, não é teórica. Não é um compartilhamento, mas um desejo de
compartilhar. É intrusivo e egoísta. A mulher não tem relação com o homem e não aprecia o
homem, apenas aprecia a masculinidade, e se ela pode ser considerada mais exigente
sexualmente do que ele, essa grande demanda nada mais é do que um forte desejo de ser
formada da maneira mais ampla e poderosa: é a expectativa da maior quantidade possível de
existência.

Finalmente, casamento também não é nada além disso. A sexualidade das mulheres é supra-
individual, porque as mulheres não são entidades claramente diferenciadas, formadas e
individualizadas no sentido superior. O momento supremo na vida de uma mulher — no qual
seu ser primordial, a luxúria primordial, se manifesta — é o momento em que o sêmen do
homem flui para dentro dela. Naquele momento, ela abraça apaixonadamente o homem e o
pressiona contra ela. Este é o desejo supremo de passividade, ainda mais poderoso do que o
sentimento de felicidade sob hipnose, é a matéria em processo de formação, recusando-se a
deixar a forma ir e se esforçando para vincular a forma a si mesma para sempre. É por isso que
a Mulher é tão excessivamente grata ao homem pela relação sexual, seja esse sentimento de
gratidão restrito ao momento, como com as prostitutas que não têm memória, ou seja mais
prolongado, como com as mulheres mais diferenciadas. O fundamento mais profundo do
matchmaking é esse esforço interminável da pobreza para se unir à riqueza, a aspiração
totalmente informe e, portanto, supraindividual do desestruturado de adquirir uma existência
fazendo contato e retendo permanentemente uma forma. O fato de a Mulher não ser mônada
e não ter limites torna o matchmaking meramente possível: a razão pela qual o matchmaking
se torna uma realidade é que ela representa a ideia do nada, da matéria, tentando
incessantemente e de todas as maneiras possíveis seduzir a forma para se misturar a ela.
Matchmaking é o eterno esforço do nada por algo.

É assim que a dualidade do Homem e da Mulher gradualmente se desenvolveu no dualismo


como tal, o dualismo da vida superior e inferior, o sujeito e o objeto, a forma e a matéria, o
algo e o nada. Todo ser metafísico, todo ser transcendental é lógico e moral: a mulher é
alógica e amoral. Mas ela não implica uma rejeição da lógica e da moralidade, ela não é
antilógica ou antimoral. Ela não é a negação, mas o nada. Ela não é nem sim nem não. O
homem tem a possibilidade de ser absolutamente alguma coisa e absolutamente nada, e é por
isso que todas as suas ações são dirigidas a um ou a outro. A mulher não peca, porque ela é o
próprio pecado, que é uma possibilidade no Homem.

O homem não adulterado é a imagem de Deus, do algo absoluto. A mulher, incluindo a mulher
no homem, é o símbolo do nada: esse é o significado da mulher no universo, e é assim que o
homem e a mulher se complementam e se condicionam. Como o oposto do Homem, a Mulher
tem um propósito e uma função no universo; e assim como o homem humano vai além do
macho animal, a mulher humana vai além da fêmea da zoologia.[27] Nos humanos, não é um
ser limitado que luta contra o não-ser limitado (como no reino animal): os oponentes aqui são
o ser ilimitado e o não-ser ilimitado. É por isso que só o Homem e a Mulher juntos constituem
o ser humano.

O propósito da Mulher, então, é ser sem propósito. Ela representa o nada, o pólo oposto à
divindade, a outra possibilidade na humanidade. É por isso que, com toda a razão, nada é
considerado mais desprezível do que um homem que se tornou mulher, e esse homem é ainda
menos respeitado do que o criminoso mais estúpido e grosseiro. E isso também explica o
medo mais profundo do homem: o medo da mulher, ou seja, o medo da insignificância, o
medo do tentador abismo do nada.

É a velha que revela inteiramente o que é a Mulher na realidade. Como mostra também a
experiência, a beleza da Mulher só é criada pelo amor do Homem: a mulher torna-se mais bela
quando o homem a ama, porque ela cumpre passivamente a vontade envolvida no seu amor.
Por mais místico que isso possa parecer, é uma simples observação cotidiana. A velha
demonstra que a Mulher nunca foi bonita: se a Mulher existisse não haveria bruxas. Mas a
Mulher não é nada, ela é um vaso oco coberto por um tempo de maquiagem e cal.

Todas as qualidades da Mulher dependem de sua inexistência, de sua falta de essência: é


porque ela não tem uma vida verdadeira e imutável, mas apenas terrena, que ela auxilia a
procriação nesta vida por meio de seu casamentismo, e que ela não pode só será
transformada por um homem que tenha um efeito sensual sobre ela, mas que seja receptivo a
todas as influências possíveis. Assim, as três qualidades fundamentais da Mulher, que foram
reveladas neste capítulo, unem-se e unem-se na sua inexistência.

Dessas três qualidades, duas negativas, que podem ser deduzidas diretamente do conceito de
inexistência, são a mutabilidade e a falsidade. Apenas matchmaking, a única qualidade positiva
da Mulher, não decorre deste conceito com a mesma rapidez através de uma simples análise.

Isso é bastante compreensível. A existência da própria Mulher é idêntica ao casamenteiro, à


afirmação da sexualidade enquanto tal. Matchmaking nada mais é do que sexualidade
universal, e o fato de a Mulher existir significa precisamente que há uma inclinação radical
para a sexualidade universal no mundo. Traçar o matchmaking ainda mais para trás em termos
causais é o mesmo que explicar a existência da Mulher.
Se abordarmos isso da minha tabela sobre a vida dual, encontraremos um movimento da vida
mais elevada em direção à vida terrena, um recurso ao inexistente em vez do existente, uma
vontade de nada, a negação como tal, mal em si. O antimoral é a afirmação do nada: o desejo
de transformar a forma em informe e em matéria, o desejo de destruir.

Mas a negação está relacionada com o nada, e é por isso que existe uma conexão tão profunda
entre tudo o que é criminoso e tudo o que é feminino. O antimoral e o amoral, que separei
explicitamente no início desta investigação, encontram-se no conceito comum de imoral, de
modo que a costumeira confusão dos dois se mostra agora com certa justificativa. Pois o nada
sozinho é realmente — nada. Não é, e não tem existência nem essência. É apenas um meio de
negação, é aquilo que, pela negação, se opõe a algo. A mulher não adquire existência até que
o homem aceite sua própria sexualidade, negando o absoluto e voltando-se da vida eterna
para o inferior. Somente se algo dá em nada nada pode dar em alguma coisa.

Afirmar o falo é afirmar o antimoral. É por isso que o falo é percebido como a coisa mais feia. É
por isso que sempre foi imaginado em conexão com Satanás: o centro do inferno de Dante (o
centro interior da terra) é o órgão sexual de Lúcifer.

Esta é a explicação do poder absoluto da sexualidade masculina sobre a Mulher. [28] É


somente quando o Homem se torna sexual que a Mulher adquire uma existência e um
significado: sua existência está ligada ao falo, e é por isso que o falo é seu mestre supremo e
seu governante absoluto. Quando o homem se torna sexo, ele se torna o destino da mulher:
Don Juan é o único homem que a faz tremer toda.

A maldição que suspeitávamos pairar sobre a Mulher é a má vontade do homem: o nada é


apenas uma ferramenta nas mãos da negação. Os pais da igreja expressaram a mesma coisa de
forma mais dramática quando chamaram a mulher de instrumento do diabo. Pois a matéria
em si não é nada até que a forma tente dar-lhe uma existência. A queda da forma em desgraça
é a contaminação que ela traz sobre si mesma por meio de seu desejo de agir sobre a matéria.
Quando o homem se tornou sexual, ele criou a mulher.

A existência da Mulher, então, significa precisamente que o Homem afirmou a sexualidade. A


mulher é apenas o resultado dessa afirmação, ela é a própria sexualidade.

A existência da mulher depende do homem: tornando-se homem, como oposto da mulher,


tornando-se sexual, o homem põe a mulher e a chama à existência. É por isso que é de
suprema importância para a Mulher garantir que o Homem permaneça sexual: pois o grau de
sua existência corresponde ao grau de sexualidade do Homem. É por isso que a Mulher quer
que o Homem seja inteiramente falo, é por isso que a Mulher é uma casamenteira. Ela é
incapaz de usar outro ser como nada além de um meio para um fim, sendo o fim a relação
sexual, porque o único propósito para o qual ela mesma é usada é tornar o homem culpado. E
ela estaria morta no momento em que o homem superasse sua sexualidade.

O homem criou a mulher e sempre a criará de novo, desde que permaneça sexual. Assim como
ele deu a consciência da Mulher (parte 2, final do capítulo III), ele deu a existência dela. Ao não
renunciar ao intercurso sexual, ele evoca a Mulher. Mulher é culpa do homem.

O homem quer o amor para ajudá-lo a reparar sua culpa. Isso lança luz sobre o significado do
mito obscuro que apresentei no final do capítulo anterior. Isso mostra claramente o que ainda
estava escondido de nós na época: que a Mulher não existe antes da e sem a queda do
Homem, que ela não tem riqueza anterior que ele rouba dela, e que é ele quem coloca a
Mulher como a própria pobreza desde o princípio. O homem como erótico pede desculpas à
mulher pelo crime que cometeu e continua cometendo, ao criá-la, isto é, ao endossar a
relação sexual. De onde viria a generosidade inesgotável de todo amor? Por que outro motivo
o amor estaria tão ansioso para dar à Mulher, e a nenhum outro ser, uma alma? Por que o
amor, do qual a criança ainda não é capaz, aparece pela primeira vez junto com a sexualidade
no período da maturidade física, quando a Mulher é novamente colocada e a culpa renovada?
A mulher, em toda a sua extensão, é apenas um objeto criado pela pulsão do homem como
seu próprio objetivo, como uma alucinação que seu delírio luta eternamente para capturar. Ela
é a objetivação da sexualidade masculina, a personificação da sexualidade, a culpa do homem
que se fez carne. Todo homem, ao encarnar-se, cria também uma mulher para si, pois todos
também têm um lado sexual. A mulher, por sua vez, não existe por sua própria culpa, mas por
culpa de outrem: tudo de que ela pode ser acusada é culpa do homem. O amor do homem
destina-se a encobrir sua culpa em vez de superá-la: eleva a mulher em vez de eliminá-la. Um
algo abraça um nada, na crença de que, ao fazê-lo, está livrando o mundo da negação e
reconciliando todas as contradições, quando na verdade o nada só poderia desaparecer se o
algo se mantivesse afastado dele. Assim como o ódio do homem contra a mulher é apenas um
ódio contra sua própria sexualidade que ele ainda não aprendeu a ver, o amor do homem é
apenas o mais ousado, sua última tentativa de salvar a mulher como mulher para si mesmo,
em vez de negá-la como mulher. A razão pela qual esse amor é acompanhado por um
sentimento de culpa é que o amor visa eliminar, não expiar, a própria culpa.

Pois a mulher é apenas culpa do Homem e é apenas ATRAVÉS da culpa do Homem; e se


feminilidade significa casamento, é apenas porque toda culpa se esforça por si mesma para se
multiplicar. O que a Mulher realiza por sua mera existência, por toda a sua natureza, sem
poder fazer mais nada e sem nunca ter consciência disso, é apenas uma inclinação no Homem,
sua segunda inclinação inerradicável e inferior: ela é, como a Valquíria, a “ferramenta
cegamente eletiva” [Richard Wagner, The Valkyrie, in Ring of the Nibelung, traduzido por
Stewart Spencer, Londres 2000, p. 155] da vontade de outro. A matéria parece ser um mistério
tão inexplicável quanto a forma, a Mulher tão infinita quanto o Homem, o nada tão eterno
quanto a existência. Mas esta eternidade é apenas a eternidade da culpa.

Notas:

[¹] - Matchmaking é o termo que se dá à união arranjada entre duas pessoas numa relação
matrimonial.

1 - Uma lista encontra-se no capítulo IX, na p. 186f.

2 - Capítulo XIII.

3 - A única exceção aparente que existe será amplamente discutida mais adiante neste
capítulo.

4 - O ovo estacionário, inerte e grande é procurado pelo ágil, rápido e pequeno


espermatozoide.

5 - Além do fato de que ninguém ainda viu nenhum tecido alterado pela histeria.

6 - É por isso que (de acordo com Janet) as mulheres podem ser tão facilmente transpostas
para o sonambulismo de um ataque histérico, porque naquele momento elas já estão sob a
influência externa mais convincente.
7 - A velha crença de que a mulher histérica dissimula e conta histórias conscientemente é
bastante superficial. A falsidade da mulher está inteiramente em seu inconsciente. De fato, a
mulher não é capaz de uma mentira real, o que é o oposto da possibilidade da verdade.

8 - Analogias para isso também podem ser encontradas entre os homens: nascem criados do
sexo masculino, e também existem termagants do sexo masculino, por exemplo, policiais. Vale
ressaltar que um policial geralmente encontra uma empregada como seu complemento
sexual.

9 - A megera absoluta nunca perguntará ao marido o que fazer, por exemplo, o que cozinhar,
enquanto a mulher histérica está sempre desamparada e precisa de inspiração externa.
Menciono isso apenas para indicar uma marca distintiva extremamente banal de cada tipo.

10 - A criada, não a megera, é também a mulher que, apesar do capítulo XI, se poderia julgar
capaz de amar. No entanto, o amor dessa mulher é apenas o processo de ser intelectualmente
saturada pela masculinidade de um homem específico e, portanto, só pode ocorrer no
histérico. Não tem e não pode ter nada a ver com amor verdadeiro. Até a modéstia da mulher
implica tal obsessão por um homem: é isso que a torna inacessível a todos os outros homens.

11. P. 125.

12. P. 134.

13. Pp. 211, 221.

14. Pp. 118f., 151.

15 - As analogias entre a vida superior e a inferior poderiam ser multiplicadas. Não foi, como
comumente se acredita hoje, apenas uma conclusão superficial e errada postular uma relação
especial perene e onipresente entre a respiração e a alma humana. Assim como a alma
humana é o microcosmo e vive em conjunção com o universo, a respiração, de uma forma
ainda mais geral do que os órgãos sensoriais, fornece uma conexão entre cada organismo e o
universo como um todo, e quando a respiração é extinta, o vida baixa também está no fim. A
respiração é o princípio da vida terrena, assim como a alma é o princípio da vida eterna.

16 - Cfr. capítulo V, pág. 116. O tempo pode se tornar problemático se a pessoa ficar até certo
ponto fora dele. Só pode tornar-se claro se estivermos completamente fora dele.

17 - Assim se pode entender, creio eu, a cadeia da pulsão sexual, do nascimento e do pecado
original. Anteriormente (p. 220), eu aludi a forma específica na qual a vida inferior tenta se
afirmar como uma queda da ideia, uma transgressão. No entanto, o pecado não é a
individualidade infinita, mas o indivíduo limitado.

18 - A individualidade é sempre inimiga da comunidade, e onde ela se manifesta mais


visivelmente, como em um homem de gênio, isso é particularmente perceptível em relação à
sexualidade. Não pode haver outra explicação para que todos os homens de gênio, se sua
sexualidade estiver suficientemente desenvolvida, sofram sem exceção das mais poderosas
perversões sexuais (seja “sadismo” ou, no caso dos maiores, “masoquismo”). Isso certamente
se aplica a todos os indivíduos excepcionais, sejam eles capazes de expressá-lo de forma
velada, como fazem os artistas, ou sejam obrigados a se calar sobre uma infinidade de coisas,
como os filósofos, o que os leva a serem considerados como secos. e sem paixão. O que todas
essas inclinações têm em comum é uma evitação instintiva da união física completa, um
desejo de evitar a relação sexual. Pois nunca haverá, não pode haver um indivíduo
verdadeiramente excepcional que veja a relação sexual como mais do que um ato bestial,
imundo e repugnante, muito menos que a idolatre como o mistério mais profundo e sagrado.

19 - A amizade masculina evita derrubar paredes entre amigos. Amigas sempre exigem
confidências por causa de sua amizade.

20 - Nesses casos, a mulher mais bonita trata a menos bonita ou menos notada com uma
mistura de pena e desprezo, o que, além de sua necessidade de um contraste para compensar
suas próprias atrações, a encoraja a manter tais relacionamentos por longos períodos.

21 - E aqui também está a diferença entre o matchmaking da Mulher e o matchmaking da


pessoa criminosa. Ela também pode ser um matchmaking, mas para ela o casamento é apenas
um caso especial. Ela apóia o crime e a sensualidade, onde quer que ocorram. Ela fica satisfeita
com qualquer assassinato, qualquer morte e desastre, qualquer conflagração e destruição:
pois ela está em toda parte em busca de uma justificativa para sua própria rendição ao não-
ser, à vida inferior.

22 - Isso não deve ser confundido com a capacidade de abarcar toda a natureza, que pertence
ao homem porque ele não é apenas natureza. As mulheres estão na natureza como uma parte
da natureza e estão causalmente inter-relacionadas com todas as outras partes: elas são muito
mais dependentes do que o Homem da lua e do mar, do clima e das tempestades, da
eletricidade e do magnetismo.

23. Cfr. pág. 77.

24. Cfr. pág. 89

25. Cf. pp. 88, 89

26. Cfr. também pág. 165.

27 - Cfr. a conclusão do capítulo X.

28 - Cfr. conclusão do capítulo XI. É também por isso que as mulheres superiores devem ser
bissexuais, ou seja, não dominadas exclusivamente pela regra do falo (parte 1, p. 58s.). Por
outro lado, a histeria parece desempenhar um papel considerável no amor lésbico.

XIII — Judaísmo
Aqui devemos enunciar claramente algo que realmente existe, em vez de tentar dar uma vida
artificial a algo que não existe por meio de alguma fantasia.

— Richard Wagner

Não seria surpreendente se alguns leitores sentissem que em toda a minha investigação até
agora os “homens” receberam boa anuência e foram coletivamente colocados em um pedestal
muito alto. Talvez minha investigação seja poupada de objeções baratas e não me perguntem,
por exemplo, quão surpreso este filisteu ou aquele patife ficaria ao saber que ele tem todo o
universo nele, mas meu tratamento do sexo masculino ainda pode ser considerado muito
brando, e meu tratado acusado de uma negligência tendenciosa de todos os lados revoltantes
e mesquinhos da masculinidade em favor de seus picos mais altos.

Tal acusação seria injustificada. Não tenho a intenção de idealizar os homens para
menosprezar as mulheres mais facilmente. Independentemente de quanta inanidade e
mesquinhez possam ser abundantes nos representantes empíricos da masculinidade, estamos
lidando com as melhores possibilidades que existem em cada homem e das quais ele toma
consciência, seja com uma clareza dolorosa ou com um ódio vago, se ele as negligencia —
possibilidades que, como tais, não têm importância para a Mulher, nem na realidade nem em
seus pensamentos. Nem poderia estar essencialmente preocupado com as distinções entre os
homens, embora minha mente esteja longe de estar fechada à importância de tais distinções.
Quis estabelecer o que a Mulher não é, e de fato ela provou carecer de uma quantidade
infinita do que nunca falta por completo, mesmo no homem mais medíocre e mais plebeu. O
que a Mulher é, as qualidades positivas da Mulher (se é possível falar de qualquer ser,
qualquer coisa positiva, na Mulher), também serão encontradas em muitos homens. Como
enfatizei repetidamente, há homens que se tornaram mulheres, ou que permaneceram
mulheres, mas não há mulher que possa transcender certos limites morais e intelectuais que
são claramente circunscritos e não particularmente elevados. Repito, portanto: a mulher mais
superior ainda é infinitamente inferior ao homem mais inferior.

No entanto, as objeções poderiam ir mais longe, e minha teoria seria passível de críticas, caso
ignorasse um determinado ponto. Em alguns povos e raças os homens, embora não possam
ser interpretados como formas intermediárias, aproximam-se tão levemente e tão raramente
da ideia de masculinidade, como aqui retratada, que os princípios, aliás, todo o fundamento
sobre o qual se apoia este estudo, poderiam parecer ser severamente abalados. Por exemplo,
o que devemos pensar dos chineses, com sua carência feminina de quaisquer necessidades e
qualquer forma de aspiração? Aqui pode-se até ser tentado a acreditar na feminilidade de
toda uma nação. Pelo menos não pode ser um mero capricho de uma nação inteira que os
chineses usem rabo de cavalo, e eles também têm uma barba muito escassa. E os negros?
Provavelmente nunca houve um gênio entre os negros, e sua moralidade é geralmente tão
baixa que os americanos, como sabemos, estão começando a temer que tenha sido um
movimento imprudente emancipá-los.

Mesmo que a teoria das formas sexuais intermediárias tivesse alguma perspectiva de se
mostrar significativa em uma antropologia racial (dado que uma quantidade geral maior de
feminilidade parece ter sido distribuída entre alguns povos do que entre outros), devo admitir
que minhas deduções até agora foram principalmente em relação ao homem ariano e à
mulher ariana. Até que ponto as condições que produzem os pináculos da humanidade são
encontradas nas outras grandes tribos, e o que por tanto tempo impediu essas tribos de se
aproximar delas, ainda precisaria ser elucidado através de um estudo psicológico mais
detalhado e extremamente gratificante das características raciais.

Judaísmo — que escolhi discutir principalmente porque, como veremos, é o inimigo mais difícil
e formidável não apenas das visões que desenvolvi e ainda mais daquelas que desenvolverei
aqui, mas de todo o ponto de vista que torna essas visões possíveis — parece ter uma certa
relação antropológica com as duas raças que mencionei, tanto os negros quanto os mongóis. O
cabelo encaracolado dos judeus aponta para o negro, e a forma chinesa ou malaia do crânio
facial, regularmente acompanhada por uma tez amarelada, tão frequentemente encontrada
entre os judeus, sugere uma mistura de sangue mongol.

Essa percepção não é mais do que o resultado da experiência cotidiana, e minhas observações
não devem ser entendidas de outra maneira. A questão antropológica da origem do judaísmo
é extremamente difícil, e mesmo uma tentativa tão interessante de resolvê-la, como a
empreendida por H. S. Chamberlain em seu famoso Fundamentos do Século XIX, sofreu muita
oposição nos últimos tempos... Não tenho o conhecimento necessário para lidar com esta
questão: o que quero analisar aqui brevemente, mas o mais profundamente possível, é apenas
a peculiaridade psíquica do judaísmo.[1] Essa é a tarefa da observação e análise psicológica.
Pode ser resolvido sem recorrer a quaisquer hipóteses sobre processos históricos que não são
mais verificáveis. Tudo o que é preciso é objetividade, tanto mais que quase se pode dizer que
a questão mais importante e mais visível nos formulários oficiais que todos são obrigados a
preencher para uso público hoje é perguntar se ele é ou não judeu, e que este parece ter se
tornado o critério de classificação mais comum usado por pessoas civilizadas. Tampouco se
pode alegar que a loja geralmente definida por uma declaração honesta a esse respeito seja
inadequada à sua seriedade e significado e exagere sua importância. O fato de encontrarmos
essa questão em todas as esferas, seja cultural ou econômica, religiosa ou política, artística ou
científica, biológica ou histórica, caracterológica ou filosófica, deve ter uma causa profunda, na
verdade a mais profunda, na natureza do judaísmo em si. Nenhum esforço para descobrir essa
causa deve parecer grande demais: pois as recompensas são infinitas.[2]

Antes, porém, explicarei exatamente o que quero dizer com judaísmo. Não me refiro a uma
raça ou nação, e muito menos a uma fé religiosa legalmente reconhecida. O judaísmo deve ser
considerado como um estado de espírito, uma constituição psíquica, que é uma possibilidade
para todos os seres humanos e que só encontrou sua mais magnífica realização no judaísmo
histórico.

Que isso é assim é provado por nada senão pelo anti-semitismo.

Os arianos mais genuínos, mais arianos, mais confiantes não são antissemitas. Geralmente,
eles não podem nem mesmo entender a forma hostil de antissemitismo, por mais
desagradável que seja a impressão que as características judaicas evidentes certamente
causam neles. Eles são aqueles a quem os defensores do judaísmo gostam de chamar de
“filosemitas”, e cujas observações surpresas e desaprovadoras sobre o ódio aos judeus são
citadas quando o judaísmo é menosprezado ou atacado.[3] O anti-semita agressivo, por outro
lado, sempre exibe certas peculiaridades judaicas; às vezes isso pode até mostrar em sua
fisionomia, enquanto seu sangue pode estar inteiramente livre de qualquer mistura semítica.

Nem poderia ser de outra forma. Assim como amamos nos outros apenas o que gostaríamos
de ser completamente, mas nunca somos completamente, assim odiamos nos outros apenas o
que nunca queremos ser, mas sempre somos em parte.

Não odiamos nada com o qual não tenhamos nenhuma afinidade. Muitas vezes a outra pessoa
só nos faz perceber os traços feios e mesquinhos que temos em nós mesmos.

Isso explica por que os antissemitas mais raivosos são encontrados entre os judeus. Pois
apenas os judeus completamente judeus, como os arianos totalmente arianos, não têm
qualquer disposição anti-semita. Entre os demais, as naturezas mais baixas aplicam seu anti-
semitismo apenas aos outros e os julgam sem nunca se examinarem nesse assunto. Muito
poucos começam com seu antissemitismo em si mesmos.

No entanto, uma coisa permanece certa: quem odeia o caráter judeu o odeia primeiro em si
mesmo. Ao persegui-lo no outro, ele está apenas tentando se separar dele, e ao tentar
localizá-lo inteiramente em seu semelhante, para dissociar-se dele, ele pode se sentir
momentaneamente livre dele. O ódio, como o amor, é o resultado da projeção: só odiamos
aqueles que nos lembram desagradavelmente de nós mesmos.[4]
O anti-semitismo do judeu, então, prova que ninguém que conhece o judeu o considera
adorável — nem mesmo o próprio judeu. O anti-semitismo do ariano fornece a percepção não
menos significativa de que o judaísmo não deve ser confundido com os judeus. Há arianos que
são mais judeus do que muitos judeus, e há realmente alguns judeus que são mais arianos do
que certos arianos. Dos não-semitas que tinham muito judaísmo neles, não quero listar nem os
menores (como o conhecido Friedrich Nicolai no século XVIII) nem os medianos (onde
Friedrich Schiller dificilmente pode ser ignorado). e analisá-los em relação ao seu judaísmo.
Mas mesmo o anti-semita mais profundo — o próprio Richard Wagner — não pode ser
inocentado de ter um elemento judaico, mesmo em sua arte. Isso é verdade, embora a
impressão de que ele é o maior artista da história da humanidade não possa ser enganosa, e
seu Siegfried é, sem dúvida, a coisa mais anti-judaica que se poderia imaginar. No entanto,
ninguém é antissemita à toa. Assim como a aversão de Wagner à grande ópera e ao teatro
está enraizada na forte atração que ele próprio sentia por eles, uma atração que é claramente
reconhecível mesmo em Lohengrin, sua música, a mais poderosa do mundo no que diz
respeito aos seus motivos individuais, em questão, não pode ser inteiramente limpa de uma
certa ostentação, volume e impetuosidade que está relacionada com seus esforços na
instrumentação externa de suas obras. Tampouco pode ser esquecido que a música de
Wagner causa a impressão mais forte tanto no antissemita judeu, que nunca consegue escapar
completamente do judaísmo, quanto no indo-europeu antissemita, que tem medo de cair sob
o feitiço do judaísmo. A música de Parsifal, que sempre permanecerá quase tão inacessível ao
judeu completamente genuíno quanto o poema de Parsifal, o coro dos peregrinos e a viagem a
Roma em Tannhäuser, e sem dúvida muitos outros exemplos, devem ser totalmente
desconsiderados neste contexto. Também é certo que nenhum indivíduo que não seja nada
além de um alemão poderia se tornar tão consciente da natureza da germanidade quanto
Wagner em The Mastersingers of Nuremberg.[5] Finalmente, deve-se lembrar aquele lado de
Wagner que se sentiu atraído por Feuerbach, em vez de Schopenhauer.

Não pretendo menosprezar aquele grande homem pelas minúcias da psicologia. O judaísmo
foi de grande ajuda para ele entender e afirmar claramente o outro pólo nele, abrindo
caminho para Siegfried e Parsifal dentro dele, e dando ao espírito germânico a mais alta
expressão que provavelmente já encontrou na história. Um homem ainda maior do que
Wagner teve que superar o judaísmo em si mesmo antes de encontrar sua missão, e, como
posso colocar neste estágio, o significado histórico mundial e o imenso mérito do judaísmo
talvez não seja outro senão que ele persiste em tornar o Arian consciente de sua própria
individualidade e lembrando-o de si mesmo. Isto é o que o ariano deve ao judeu. Graças ao
judeu, ele sabe o que observar: o judaísmo como uma possibilidade dentro de si mesmo.

Este exemplo terá demonstrado muito claramente o que deve ser entendido pelo judaísmo na
minha opinião. O judaísmo não é uma nação nem uma raça, nem uma fé nem uma sociedade
de escritos. A partir de agora, quando falo do judeu, não me refiro a um indivíduo específico
ou a um coletivo, mas a todo ser humano enquanto tal, na medida em que participa da ideia
platônica do judaísmo. E minha única preocupação é entender o significado dessa ideia.

Para fins de diferenciação, esta investigação deve ser conduzida no contexto atual de uma
psicologia dos sexos. Se pensarmos na Mulher e no Judeu, sempre nos surpreenderemos ao
perceber até que ponto o Judaísmo em particular parece estar impregnado de feminilidade,
cuja natureza até agora apenas tentei explorar em contraste com a masculinidade como um
todo, sem levar em consideração a quaisquer diferenças dentro dele. Alguém poderia estar
inclinado a atribuir ao judeu uma parcela maior de feminilidade do que ao ariano e, em última
análise, assumir que mesmo o judeu mais masculino tem um

platônico na Mulher.

Essa visão seria errônea. No entanto, como alguns dos pontos mais importantes em que a
natureza mais profunda da feminilidade parecia se manifestar são, curiosamente, também
encontrados no judeu como se fosse pela segunda vez, é essencial estabelecer os acordos e
divergências entre eles com a maior precisão quanto possível.

As confluências chamam a atenção à primeira vista, para onde quer que se olhe. De fato, as
analogias parecem rastreáveis a extensões tão excepcionais que podemos esperar tanto
confirmações de nossos resultados anteriores quanto muitas novas contribuições
interessantes para nosso tópico principal. E parece bastante irrelevante com o que
começamos.

Assim, para começar com uma analogia com a Mulher, é muito notável como os judeus
preferem bens móveis — mesmo nestes dias, quando são livres para adquirir outros — e
como, apesar de sua ganância, eles não têm nenhum desejo real de propriedade, menos ainda
em sua forma mais sólida, a propriedade fundiária. A propriedade está indissoluvelmente
ligada a uma identidade pessoal, à individualidade. O fato de que os judeus estão se voltando
para o comunismo em número tão grande está relacionado a isso. O comunismo como
tendência à comunidade deve ser sempre distinguido do socialismo como aspiração à
cooperação social e ao reconhecimento da humanidade em cada ser humano. O socialismo é
ariano (Owen, Carlyle, Ruskin, Fichte), o comunismo é judeu[6] (Marx). A razão pela qual as
idéias da social-democracia moderna se afastaram tanto do socialismo cristão pré-rafaelita é
que os judeus desempenham um papel demasiado importante nele. A vertente marxista do
movimento operário (ao contrário de Rodbertus), apesar de suas inclinações coletivistas, não
tem relação com a ideia de Estado, e isso certamente só pode ser atribuído à total
incompreensão dessa ideia por parte do judeu. O Estado é muito intangível, a abstração
envolvida nele é muito distante de todos os propósitos concretos, para que o judeu se apegue
a ele. O Estado é a totalidade de todos aqueles propósitos que só podem ser realizados por
uma parceria de seres racionais que se comportam como tal. Mas essa razão kantiana, o
espírito, é o que tanto o judeu quanto a mulher parecem carecer mais.

É por isso que o sionismo é tão desesperador, embora tenha reunido as emoções mais nobres
entre os judeus: o sionismo é a negação do judaísmo, cuja ideia implica sua expansão sobre
toda a terra. O conceito de cidadão transcende totalmente o judeu. É por isso que nunca
houve um estado judeu no sentido estrito da palavra, e nunca pode haver um. A ideia de
Estado implica algo de positivo, uma hipostatização de propósitos interindividuais, uma
decisão voluntária de aderir a uma ordem jurídica autoimposta, da qual o chefe de Estado é
um símbolo (e nada mais). É por isso que o oposto do Estado é a anarquia, com a qual o
comunismo ainda hoje está intimamente relacionado como resultado de sua falta de
compreensão do Estado, por mais que a maioria dos outros elementos do movimento
socialista contrastem com isso. Embora a ideia do Estado não seja realizada em nenhuma
forma histórica, qualquer tentativa histórica de formar um Estado contém algo, embora talvez
apenas um mínimo, que eleva tal entidade acima de ser uma mera associação para fins de
negócios ou poder. Um exame histórico de como um determinado Estado surgiu não diz nada
sobre a ideia subjacente a ele, na medida em que é de fato um Estado e não um quartel. Para
compreender essa ideia, será necessário fazer mais justiça à tão difamada teoria do contrato
social de Rousseau do que tem sido o caso. Um Estado, se é um Estado, só pode ser a
expressão de uma aliança de personalidades éticas para a prossecução de tarefas comuns.

O fato de o judeu ser um estranho ao Estado, não apenas desde ontem, mas mais ou menos
desde o início dos tempos, sugere que o judeu, como a mulher, não tem personalidade, e isso
de fato se mostrará gradualmente. Pois a insociabilidade do judeu, como a da mulher, só pode
ser derivada de sua falta de um eu inteligível. Os judeus gostam de ficar juntos, assim como as
mulheres, mas não interagem como seres independentes, separados, sob o signo de uma ideia
supra-individual.

Assim como na realidade não existe a “dignidade da mulher”, é


igualmente impossível imaginar um “cavalheiro” judeu. O judeu genuíno é deficiente na
nobreza interior que gera a dignidade de si e o respeito pelo eu do outro. Não há nobreza
judaica, o que é ainda mais notável porque os judeus praticaram a consanguinidade por
milhares de anos.

O que é chamado de arrogância judaica também é explicado pela falta de autoconsciência do


judeu e seu desejo violento de aumentar o valor de sua própria pessoa humilhando seus
semelhantes. O judeu genuíno não tem um eu e, portanto, nenhum valor intrínseco. Daí,
apesar da sua incompatibilidade com tudo o que seja aristocrático, a sua obsessão feminina
pelos títulos, que vai ao encontro da sua tendência para ostentar, seja o seu camarote no
teatro ou os quadros modernos da sua sala, os seus conhecimentos cristãos ou sua erudição.
Esta, de fato, é também a principal razão para a incapacidade do judeu de compreender
qualquer coisa aristocrática. O ariano tem o desejo de saber quem foram seus antepassados.
Ele os respeita e se interessa por eles porque foram seus ancestrais, e os aprecia porque
sempre considera seu próprio passado mais alto do que o judeu que muda rapidamente, que é
irreverente porque não pode dar valor à vida. O judeu carece totalmente do orgulho de seus
ancestrais que até mesmo o ariano mais pobre e plebeu possui até certo ponto. Ele não honra,
como faz o ariano, seus ancestrais porque eles são seus ancestrais, ele não honra a si mesmo
neles. Seria errado contestar isso apontando a extraordinária extensão e força da tradição
judaica. Para o descendente de judeus, a história de seu povo, mesmo que pareça significar
muito para ele, não é a soma do que aconteceu em tempos anteriores, mas apenas uma fonte
pronta de novos sonhos esperançosos: o passado do judeu não é realmente seu passado, mas
sempre apenas seu futuro.

Muitas vezes tem sido tentado, não apenas por judeus, atribuir as falhas dos judeus à opressão
brutal e à escravidão que eles sofreram desde a Idade Média até o século XIX. Argumenta-se
que a subserviência foi introduzida no judeu pelos arianos, e há muitos cristãos que, portanto,
consideram seriamente o judeu como sua própria culpa. Mas tais autocensuras vão longe
demais: não é lícito falar de mudanças provocadas nos seres humanos por influências externas
ao longo das gerações, sem levar em conta que deve haver algo em seu interior que atendeu
às oportunidades externas nesse ínterim e de bom grado deu-lhes uma mão amiga. Até agora
não foi provado que as propriedades adquiridas possam ser herdadas, e nos humanos, apesar
de todas as suas pseudo-adaptações, o caráter tanto do indivíduo quanto da raça é mais certo
de permanecer constante do que em qualquer outro ser vivo. É um sinal da mais superficial
superficialidade acreditar que os humanos são formados por seu ambiente, e é degradante ser
forçado a dedicar uma única linha para argumentar com tal visão, que tira o fôlego de
qualquer percepção livre. Um ser humano só pode mudar por dentro; caso contrário, nunca há
nada de real nele e, como na Mulher, é o seu ser nada que permanece para sempre o mesmo.
A propósito, como alguém pode pensar que o judeu foi criado pela história, visto que o Antigo
Testamento já relata com aprovação óbvia como Jacó, o patriarca, mentiu para seu pai
agonizante, Isaque, enganou seu irmão Esaú e enganou seu sogro Labão?

No entanto, os defensores dos judeus têm razão em dizer que os judeus cometem crimes
graves mais raramente do que os arianos, como também mostram as estatísticas relevantes. O
judeu não é realmente antimoral, mas, deve-se acrescentar, também não representa o tipo
ético mais elevado. Em vez disso, ele é relativamente amoral, nunca muito bom e nunca muito
mau, basicamente nenhum dos dois, mas, mais exatamente, mesquinho. É por isso que o
judaísmo carece do conceito de anjos e do diabo, a personificação do bem e do mal. Esta
afirmação não pode ser refutada por referência ao Livro de Jó, a figura de Belial ou o mito do
Éden. Não me sinto qualificado para participar dos debates da moderna crítica de fontes na
tentativa de separar os elementos genuínos dos emprestados, mas o que sei muito bem é que
na vida psíquica do judeu de hoje, seja ele “esclarecido” ou “ortodoxo”, nem um princípio
diabólico nem angélico, nem céu nem inferno, desempenha o menor papel religioso. Se,
então, o judeu nunca atinge as maiores alturas morais, ele certamente cometerá assassinatos
e outros crimes violentos muito mais raramente do que o ariano. E é isso que explica
totalmente sua falta de medo de um princípio diabólico.

Os defensores das mulheres citam o nível mais baixo de criminalidade não menos
frequentemente do que os defensores dos judeus como prova da moralidade mais perfeita das
mulheres. A homologia entre os dois tipos parece cada vez mais completa. Não existe demônio
feminino, assim como não existe anjo feminino: só o amor, a negação desafiadora da
realidade, pode fazer o Homem ver a Mulher como um ser celestial, e só o ódio cego pode
fazê-lo declará-la corrupta e vilã. De fato, o que tanto falta à Mulher quanto ao Judeu é
grandeza, grandeza em qualquer aspecto, seja como vitoriosos notáveis na esfera moral ou
como magníficos servos da antimoral. No homem ariano, os princípios do bem e do mal da
filosofia religiosa kantiana estão ambos juntos e, no entanto, tão distantes quanto possível, e
ele é combatido por seu demônio bom e seu demônio mau. No judeu, quase como na mulher,
o bem e o mal ainda não se diferenciam: não há assassino judeu, mas também não há santo
judeu. Portanto, provavelmente é verdade que os poucos elementos de uma crença no diabo
na tradição judaica derivam do parsismo e vêm da Babilônia.

Os judeus, então, não vivem como indivíduos livres e autônomos que escolhem entre a virtude
e o vício, como fazem os arianos. Os arianos são automaticamente retratados por todos como
uma assembleia de homens individuais, os judeus como um plasmódio coerente espalhado por
uma ampla área. O anti-semitismo erroneamente transformou este último em um fechamento
teimoso e consciente de fileiras e chamou isso de “solidariedade judaica”. Esta é uma confusão
compreensível de coisas diferentes. Se alguma acusação for levantada contra um indivíduo que
pertence à raça judaica e todos os judeus, sem realmente conhecê-lo, apoiá-lo interiormente,
desejando, esperando e tentando provar que ele é inocente, não se deve, de forma alguma,
acreditar que ele os interessa de alguma forma como um indivíduo judeu e que seu destino,
por ser o destino de um judeu, despertará neles mais piedade do que o de qualquer ariano que
seja injustamente perseguido. Este certamente não é o caso. É apenas a ameaça ao judaísmo,
o medo de que uma sombra vergonhosa possa cair sobre o judaísmo como um coletivo, ou,
mais precisamente, sobre qualquer coisa judaica como tal, sobre a ideia do judaísmo, que
produz esses sintomas de partidarismo involuntário. É exatamente o mesmo que quando as
mulheres ficam encantadas ao ouvir cada membro individual de seu sexo ser menosprezado e,
na verdade, ajudam a menosprezá-la, desde que a própria mulher não seja mostrada sob uma
luz ruim, nenhum homem é dissuadido de desejar as mulheres em geral, ninguém perde a fé
no “amor”, mas os casamentos continuam a acontecer e o número de velhos solteiros não
aumenta. O que se defende é apenas a espécie, o que se protege é apenas o sexo ou a raça,
não os indivíduos, que são considerados apenas na medida em que são membros do grupo.
Tanto o judeu genuíno quanto a mulher genuína vivem apenas na espécie, não como
individualidades.[7]

Isso explica porque a família (como uma unidade biológica, não legal) é de maior importância
para os judeus do que para qualquer outro povo no mundo, com os ingleses, que são parentes
distantes dos judeus, seguindo a seguir, como será visto. A família nesse sentido tem origem
feminina, materna e nada tem a ver com o Estado ou a formação da sociedade. Um
sentimento de pertencimento que une os membros de uma família, embora seja apenas o
resultado de uma atmosfera compartilhada, é mais forte entre os judeus. É característico de
todos os homens indo-europeus — dos mais dotados em um grau mais elevado do que dos
medíocres, mas encontrados até mesmo nos lugares mais comuns — que suas relações com
seus pais nunca sejam inteiramente harmoniosas. Cada um deles, por mais leve que seja, sente
uma raiva consciente ou inconsciente contra o indivíduo que o obrigou a viver e lhe deu o
nome que achou por bem dar-lhe ao nascer, de quem dependia pelo menos nestes aspectos e
que deve ser considerado mesmo no sentido metafísico mais profundo como estando ligado
ao fato de que ele queria entrar na vida na terra. É apenas entre os judeus que o filho está
profundamente enraizado na família e se sente confortável em uma comunidade próxima com
seu pai, enquanto é quase apenas entre os cristãos que pai e filho se relacionam como amigos.
Mesmo as filhas dos arianos são mais distantes de suas famílias do que as judias e muitas
vezes seguem carreiras que as distanciam e as tornam independentes de seus parentes e de
seus filhos pais.

Aqui também podemos testar os argumentos do capítulo anterior, que sugeria que viver sem
qualquer individualidade e sem estar separado dos outros indivíduos pelos limites da solidão
era o pré-requisito indispensável do casamento (p. 259). Casamenteiros masculinos sempre
têm um elemento de judaísmo neles, e é aqui que chegamos ao ponto de correspondência
mais próxima entre feminilidade e judaísmo. O judeu é sempre mais lascivo, mais lascivo do
que o homem ariano, embora, estranhamente e possivelmente em conexão com o fato de que
ele não tem uma disposição antimoral, ele seja menos potente sexualmente e certamente
menos capaz de qualquer grande luxúria do que o último. Somente os judeus são genuínos
corretores de casamentos, e a intermediação de casamentos por homens não é tão difundida
quanto entre os judeus. Claro, os judeus têm uma necessidade mais urgente desse tipo de
atividade, porque, como já observei (parte 1, p. 41), não há outra nação em que o casamento
por amor seja tão raro quanto entre eles: mais uma prova da falta de alma do judeu absoluto.

Que o casamento é uma disposição orgânica do judeu também é sugerido pela falta de
compreensão do judeu de qualquer tipo de ascetismo. É substanciado pelo fato de que os
rabinos judeus gostam de especular detalhadamente sobre o negócio da procriação e mantêm
uma tradição oral com relação à geração de filhos. Na verdade, dificilmente se poderia esperar
o contrário dos representantes supremos de um povo cujo dever moral, pelo menos de acordo
com sua tradição, é “sair e se multiplicar”.

Finalmente, matchmaking é um borrão de limites, e o judeu é o borrador de limites


Ele é o polo oposto do aristocrata. O princípio de qualquer aristocracia é a observação estrita
de todos os limites entre os seres humanos, mas o judeu é o comunista nato e sempre quer
comunidade. A informalidade do judeu em companhia e sua falta de tato social são resultados
disso. As boas maneiras nada mais são do que uma maneira sutil de enfatizar e proteger os
limites das mônadas pessoais, mas o judeu não é um monadologista.

Embora deva ser óbvio, quero enfatizar mais uma vez que, apesar de minha avaliação
desfavorável do judeu genuíno por essas observações, ou qualquer uma que ainda esteja por
vir, nada poderia estar mais longe de mim do que desejar brincar nas mãos de um teórico,
muito menos, a perseguição prática dos judeus. Estou falando sobre o judaísmo como uma
ideia platônica — o judeu absoluto não existe mais do que o cristão absoluto — e não sobre
quaisquer judeus individuais, muitos dos quais eu lamentaria ter ferido e alguns dos quais
sofreriam uma grande injustiça se o que eu dissesse fosse aplicado a eles. Slogans como
“Compre apenas de cristãos” são judeus, porque consideram e avaliam o indivíduo meramente
como um membro de uma espécie, da mesma forma que o termo judaico “goy” simplesmente
descreve e imediatamente inclui o cristão como tal.

Não apoio boicotar, expulsar ou desqualificar os judeus de qualquer cargo e dignidade. A


questão judaica não pode ser resolvida por tais meios, que não obedecem à moral. Mas o
“sionismo” também não está à altura dessa tarefa. O sionismo é uma tentativa de reunir os
judeus que, como mostra H. S. Chamberlain, muito antes da destruição do templo em
Jerusalém, em parte escolheram a diáspora como sua vida natural, a vida de um tronco
rastejando por todo o mundo e eternamente frustrando a individuação. O sionismo, então,
quer algo não-judaico. Os judeus teriam que superar o judaísmo antes que pudessem estar
maduros para o sionismo.

Para isso, porém, seria necessário antes de tudo que os judeus se entendessem, se
conhecessem, lutassem contra si mesmos e quisessem vencer o judaísmo em si mesmos. Mas
até agora o autoconhecimento dos judeus só se estendeu a fazer e apreciar piadas sobre si
mesmos — e nada mais. Inconscientemente, o judeu respeita o ariano mais do que a si
mesmo. Somente uma determinação firme e inabalável de tornar possível para si mesmo
sentir o maior respeito próprio poderia libertar o judeu do judaísmo. Mas tal decisão só pode
ser tomada e realizada pelo indivíduo e não por um grupo, por mais forte e honroso que seja.
Assim, a questão judaica só pode ser resolvida no nível individual, e cada judeu deve procurar
respondê-la por sua própria pessoa.

Não há outra solução para a questão, e não pode haver nenhuma. O sionismo nunca será
capaz de resolvê-lo.

Por outro lado, um judeu que tivesse vencido, um judeu que tivesse se tornado cristão, teria
todo o direito de ser tomado pelo ariano por um indivíduo e não mais ser julgado como
membro de uma raça que ele há muito desde então transcendeu através de seus esforços
morais. Ele podia ter certeza de que ninguém iria querer contestar uma afirmação tão bem
fundamentada de sua parte. O ariano superior tem sempre o desejo de respeitar o judeu, e
seu anti-semitismo não o agrada nem o diverte. É por isso que ele não gosta que um judeu
faça alguma confissão sobre os judeus, e qualquer judeu que o faça pode esperar ainda menos
agradecimentos dele do que dos judeus, que sempre são extremamente sensíveis a esse
respeito. Muito menos o ariano quer que o judeu admita que o anti-semitismo está correto ao
se converter. Mas um judeu com a intenção de sua libertação interna não deve permitir que
nem mesmo o perigo de seus esforços mais sinceros, totalmente mal interpretados o assuste.
Ele deve parar de tentar alcançar o impossível, isto é, estimar-se como judeu — que é o que o
ariano quer que ele faça — e lutar para ganhar o direito de se honrar como ser humano. Ele
ansiará por alcançar o batismo interior pelo espírito, que só então poderá ser seguido pelo
batismo externo simbólico do corpo.

Uma compreensão do que realmente é o Judeu e o Judaísmo, de que o judeu tanto precisa,
resolveria um dos problemas mais difíceis. O judaísmo é um mistério muito mais profundo do
que se imagina em muitos catecismos anti-semitas e, em última análise, provavelmente
permanecerá envolto em uma certa escuridão para sempre. Mesmo o paralelo com a Mulher
logo nos decepcionará, embora por enquanto ainda seja capaz de nos ajudar.

No cristão, orgulho e humildade, no judeu, altivez e bajulação estão em conflito entre si, assim
como autoconfiança e contrição no primeiro, e arrogância e devoção no segundo. A falta de
compreensão do judeu sobre a ideia de misericórdia está ligada à sua total falta de humildade.
Sua disposição servil é a fonte de sua ética heterônoma, os Dez Mandamentos, o livro de leis
mais imoral do mundo, que promete bem-estar na terra e a conquista do mundo como
recompensa para aqueles que obedecem mansamente à poderosa vontade do outro. A relação
do judeu com Jeová, o ídolo abstrato que ele teme como um escravo e cujo nome nem se
atreve a enunciar, caracteriza-o, em analogia com a Mulher, como um ser necessitado do
domínio de uma força estranha. Schopenhauer escreveu certa vez: “A palavra Deus significa
um ser humano que fez o mundo”. Isso é realmente verdade sobre o Deus dos judeus. Do
divino na humanidade, o “Deus que vive em meu peito”, o judeu genuíno nada sabe. Ele não
tem compreensão do que Cristo ou Platão, Mestre Eckhart ou São Paulo, Goethe ou Kant, e
todo ariano, desde os sacerdotes védicos até as magníficas linhas finais dos Três Motivos e
Fundamentos da Crença de Fechner, significam o divino, ou das palavras “estou sempre com
você, até o fim do mundo”. O que é dado a um ser humano por Deus é sua alma, mas o judeu
absoluto não tem alma.

Assim, é inevitável que o Antigo Testamento careça da crença na imortalidade. Como aqueles
que não têm alma podem desejar a imortalidade da alma? Os judeus, assim como as mulheres,
geralmente não desejam a imortalidade: “Anima naturaliter christiana”, diz Tertuliano.

Pela mesma razão — como H. S. Chamberlain reconheceu corretamente — os judeus também


são desprovidos de qualquer misticismo real, exceto por uma terrível superstição e
interpretação mágica, chamada “Cabala”. O monoteísmo judaico não tem nada a ver com uma
crença genuína em Deus. Na verdade, é a negação de tal crença, uma farsa do verdadeiro
serviço do princípio do bem, e a homonímia do Deus judeu e do Deus cristão é a pior zombaria
deste último. Esta não é uma religião baseada na razão pura, mas sim na crença de uma velha
que surge do medo esquálido.

Mas por que o escravo ortodoxo de Jeová se torna tão fácil e prontamente um materialista,
um “livre pensador”? Por que um conhecido trocadilho de Lessing, identificando a iluminação
com o lixo, parece feito sob medida para o judaísmo, apesar das objeções de Dühring, que era
anti-semita e provavelmente por boas razões? Aqui a mentalidade escrava deu lugar ao seu
perene avesso, a insolência: as duas são fases alternadas de uma e mesma vontade no mesmo
indivíduo. A arrogância em relação às coisas que não são percebidas, ou mesmo vagamente
sentidas, como símbolos de algo mais profundo, a falta de verecúndia em relação aos
processos naturais, também leva ao tipo de ciência judaica, materialista, que infelizmente hoje
adquiriu um certo domínio e a tornar-se intolerante com qualquer tipo de filosofia. Se, como é
o caminho necessário e o único correto, o judaísmo é considerado como uma ideia na qual o
ariano também pode ter uma participação menor ou maior, pode haver pouca objeção a
querer substituir a “história do materialismo” pela “natureza do Judaísmo.” Wagner discutiu os
“judeus na música”. Aqui algo precisa ser dito sobre os “judeus na ciência”.

O judaísmo no sentido mais amplo é aquele movimento na ciência que considera a ciência
acima de tudo como um meio para eliminar qualquer coisa transcendente. O ariano percebe o
esforço de compreender e explicar tudo como uma desvalorização do mundo, porque sente
que é justamente o insondável que dá valor à existência. O judeu não respeita os mistérios,
porque não os sente em parte alguma. Sua aspiração é fazer o mundo parecer o mais plano e
comum possível, não para garantir através da clareza os direitos eternos do eternamente
escuro, mas para tornar o universo terrivelmente óbvio e remover qualquer coisa que obstrua
o livre movimento de seus próprios cotovelos, mesmo em questões da mente. A ciência
antifilosófica (não afilosófica) é basicamente judaica.

Os judeus também foram menos avessos a uma visão de mundo mecanicista e materialista,
porque sua adoração a Deus não tem nada a ver com a verdadeira religião. Assim como foram
eles os que mais avidamente adotaram o darwinismo e a ridícula teoria da descendência dos
seres humanos dos macacos, também se tornaram quase criativos quando estabeleceram a
concepção econômica da história humana, que suprime o papel do espírito no
desenvolvimento da humanidade mais completamente. Tendo sido os adeptos mais fanáticos
de Büchner, eles são agora os defensores mais entusiásticos de Ostwald.

Também não é coincidência que uma parte tão grande da química hoje esteja nas mãos dos
judeus, como já esteve nas mãos de seus parentes raciais, os árabes. Uma absorção total na
matéria e um desejo de absorção total de tudo na matéria implica a falta de um eu inteligível
e, portanto, é essencialmente judaico.

O curas Chymicorum! o quantum in pulvere inane!

Reconhecidamente, este hexâmetro foi escrito pelo cientista mais alemão de todos os tempos:
seu nome é Johannes Kepler.[8]

Certamente também está relacionado com a influência da mentalidade judaica que a


medicina, para a qual hordas de judeus estão se voltando agora, tomou seu curso atual. Dos
selvagens à naturopatia de hoje, que os judeus, caracteristicamente, evitaram totalmente, a
arte de curar sempre teve um elemento religioso, e o curandeiro sempre foi o sacerdote. A
abordagem exclusivamente química na medicina é o judaísmo. No entanto, certamente nunca
será possível explicar o orgânico pelo inorgânico, mas no máximo este último pelo primeiro.
Não há dúvida de que Fechner e Preyer estão certos ao acreditar que o inanimado evoluiu do
vivo, e não o contrário. O que vemos diariamente na vida do indivíduo — que a matéria
orgânica torna-se inorgânica (a morte já é preparada na velhice por várias formas de esclerose,
como a arteriosclerose senil e
atheromatosis), enquanto ninguém jamais viu nada vivo surgindo de algo morto — também
deve ser aplicado à totalidade da matéria inorgânica, de acordo com o paralelismo
“biogenético” entre ontogenia e filogenia. Se a teoria da abiogênese, de Swammerdam a
Pasteur, foi obrigada passo a passo a abandonar tantas de suas posições, ela também terá de
abandonar o último ponto de apoio que parece ter no desejo generalizado de monismo, se
esse desejo puder ser satisfeito de uma forma diferente e melhor. As equações que descrevem
processos inorgânicos sem vida podem um dia se tornar casos liminares das equações que
descrevem processos orgânicos vivos, se certos valores de tempo forem inseridos, mas nunca
será possível representar os vivos através dos mortos. Na grande obra de Goethe, Fausto não
se importava com as tentativas de criar um homúnculo: não é por acaso que essas tentativas
ficaram reservadas para seu aprendiz Wagner. Na verdade, a química só pode lidar com os
excrementos da matéria viva: afinal, a própria matéria morta é apenas um excremento da vida.
A maneira química de ver as coisas coloca o organismo no mesmo nível de suas emissões e
excreções. De que outra forma poderíamos explicar coisas como a crença de que é possível
influenciar o sexo de um embrião alimentando-o com mais ou menos açúcar? O tratamento
descarado daquelas coisas que o ariano, no fundo de sua alma, sempre percebeu como
providência foi introduzido pela primeira vez nas ciências naturais pelos judeus. O tempo
daqueles cientistas profundamente religiosos para quem seus objetos sempre tiveram uma
parcela, por menor que fosse, de uma dignidade supra-sensorial, para quem havia segredos,
que mal conseguiam superar seu espanto com o que se sentiam abençoados por descobrir — o
tempo de Copérnico ou Galilei, Kepler ou Euler, Newton ou Linnaeus, Lamarck ou Faraday,
Konrad Sprengel ou Cuvier — parece ter desaparecido há muito tempo. Os espíritos livres de
hoje, livres de qualquer espírito e, portanto, incapazes de acreditar na revelação imanente de
algo mais elevado na totalidade da natureza, talvez por isso mesmo, não podem igualar-se e
ocupar o lugar daqueles homens mesmo em suas próprias especialidades científicas.

Essa falta de profundidade também explica por que os judeus são incapazes de produzir
homens realmente grandes e por que o judaísmo, como a mulher, é negado o mais alto grau
de genialidade. O judeu mais destacado dos últimos 1.900 anos, de cuja ascendência
puramente semítica não há dúvida e que é certamente mais importante que Heine, um poeta
desprovido de quase qualquer grandeza, ou Israel, um pintor original, mas nada profundo, é o
filósofo Spinoza. No entanto, mesmo ele é extremamente superestimado em todos os lugares,
devido menos a um estudo mais profundo de suas obras do que à circunstância acidental de
ser o único pensador que Goethe leu com algum detalhe.

Para o próprio Spinoza, a rigor, não existiam problemas. Isso mostra que ele era um judeu
genuíno, ou então não poderia ter escolhido o “método matemático” que parece calculado
para fazer tudo parecer óbvio. O sistema de Spinoza era seu refúgio, no qual ele se refugiava
porque evitava pensar em si mesmo mais do que em qualquer outra pessoa. É por isso que
este sistema foi capaz de acalmar e refrescar Goethe, que provavelmente pensou sobre si
mesmo mais extensamente e mais dolorosamente do que qualquer outra pessoa. Pois o
indivíduo verdadeiramente excepcional, não importa o que esteja pensando, basicamente só
pensa em si mesmo. Além disso, embora Hegel estivesse certamente errado ao tratar a
oposição lógica como repugnância real, em um pensador mais profundo, psicologicamente,
mesmo o mais seco problema lógico certamente surgirá de um feroz conflito interno. O
sistema de Spinoza, com seu monismo e otimismo incondicionais, e com sua harmonia perfeita
que Goethe achou tão higiênica, não é inegavelmente a filosofia de um indivíduo poderoso: é a
reclusão de um homem infeliz que busca o idílio, mas não é realmente capaz disso porque ele
não tem senso de humor.

Spinoza repetidamente prova a genuinidade de seu judaísmo e revela claramente as perenes


limitações da mente puramente judaica. Refiro-me menos à sua incompreensão da ideia do
Estado e à sua adesão à alegação hobbesiana de que a condição humana original é “guerra de
todos contra todos”. Em vez disso, o que atesta o nível relativamente baixo de suas visões
filosóficas é sua total incompreensão da liberdade da vontade — o judeu é sempre um escravo
e, portanto, um determinista — e, acima de tudo, o fato de que para ele, como um judeu
genuíno , os indivíduos são apenas acidentes, não substâncias, apenas modos irreais de uma
substância infinita, a única real e alheia a qualquer individuação. O judeu não é monadologista.
É por isso que não há contraste maior do que entre Spinoza e seu contemporâneo muito mais
importante e universal, Leibniz, o representante da teoria das mônadas, e o ainda maior
criador dessa teoria, Bruno, cuja semelhança com Spinoza foi exagerada por comentários de
observadores superficiais de uma maneira que beira o grotesco.[9]

Assim como o judeu (e a mulher) carece tanto do “radicalmente bom” quanto do


“radicalmente mau”, também ele carece tanto do gênio quanto do elemento “radicalmente
estúpido” na natureza do macho humano. O tipo específico de inteligência que é louvado
tanto nos judeus quanto nas mulheres é, por um lado, apenas uma maior vigilância devido ao
seu maior egoísmo e, por outro lado, resultado da infinita adaptabilidade de ambos a
quaisquer propósitos externos, porque eles não têm nenhum padrão original de valor, nenhum
reino de propósitos em seu próprio seio. Por outro lado, eles têm instintos naturais mais
puros, que não se repetem no homem ariano da mesma forma para ajudá-lo quando o
elemento supra-sensorial em sua inteligência o abandonou.

Este também é o lugar para lembrar a semelhança entre o inglês e o judeu, que tem sido
frequentemente enfatizada desde que Richard Wagner a notou pela primeira vez. Entre todos
os povos germânicos, os ingleses provavelmente têm uma certa afinidade com os semitas. Isso
é sugerido por sua ortodoxia, incluindo sua interpretação estritamente literal do sábado. A
religiosidade dos ingleses geralmente envolve hipocrisia, e seu ascetismo, muito puritanismo.
Como as mulheres, eles nunca foram produtivos nem na música nem na religião. Pode haver
poetas irreligiosos — que não podem ser muito grandes — mas não há músico irreligioso, e há
também uma conexão entre a religião e o fato de que os ingleses nunca produziram um
arquiteto importante e muito menos um filósofo notável. Berkeley é irlandês, assim como
Swift e Sterne, enquanto Erigena, Carlyle e Hamilton, como Burns, são escoceses. Shakespeare
e Shelley, os dois maiores ingleses, ainda estão longe dos pináculos da humanidade e não
chegam nem perto de Dante ou Ésquilo. Se considerarmos os “filósofos” ingleses, veremos que
foram eles que forneceram a reação contra qualquer profundidade desde a Idade Média,
desde Guilherme de Occam e Duns Scotus, passando por Roger Bacon e o chanceler de mesmo
sobrenome, parente espiritual de Spinoza, Hobbes e o superficial Locke, para Hartley,
Priestley, Bentham, os dois Mills, Lewes, Huxley e Spencer. Esta lista contém todos os nomes
importantes da história da filosofia inglesa, pois Adam Smith e David Hume eram escoceses.
Nunca esqueçamos que a psicologia sem alma chegou até nós da Inglaterra. O inglês
impressionou o alemão como um empirista eficiente e como expoente da Realpolitik em
termos práticos e teóricos, mas isso é tudo o que pode ser dito sobre sua importância para a
filosofia. Nunca houve um pensador profundo que parou no empirismo, e nunca um inglês que
o transcendeu por conta própria.

No entanto, o inglês não deve ser confundido com o judeu. O inglês tem muito mais do
transcendente nele do que o judeu, mas sua mente é direcionada do transcendente para o
empírico, ao invés do empírico para o transcendente. Caso contrário, ele não teria esse senso
de humor, enquanto o judeu, que não tem senso de humor, é de fato o alvo mais produtivo de
qualquer sagacidade e, nesse aspecto, perde apenas para a sexualidade.

Sei como é difícil o problema do riso e do humor: tão difícil quanto tudo o que se encontra
apenas nos humanos e não nos animais, e tão difícil que Schopenhauer não tem muito, e
mesmo Jean Paul nada inteiramente satisfatório, a dizer sobre isto. Humor contém muitas
coisas diferentes. Para alguns parece ser uma forma mais sutil de autopiedade ou de pena dos
outros, mas isso não nos diz o que é característico exclusivamente do próprio humor. Pode ser
a expressão de um “pathos da distância” consciente — em um indivíduo que é imune a
qualquer patho — mas, novamente, nada foi ganho com relação ao fator decisivo para o
humor em particular.

O mais importante do humor parece-me ser uma ênfase excessiva no empírico, com o objetivo
de tornar mais visível a sua insignificância. Basicamente, qualquer coisa que seja realizada é
ridícula. Esse é o fundamento do humor, e é isso que o torna a antítese do erotismo.

O erotismo aproxima o ser humano do mundo e dirige


tudo neles em direção ao objetivo: o humor os faz seguir direções opostas, e dissolve todas as
sínteses para mostrar o que é o mundo sem nuances. Pode-se dizer que o humor e o erotismo
se relacionam, assim como a luz não polarizada e a polarizada.[10]

Enquanto o erotismo tenta passar do limitado ao ilimitado, o humor se fixa no limitado, que
ele destaca e expõe ao observá-lo de todos os lados. O humorista não tem vontade de
viajar.[11] Só ele aprecia as pequenas coisas e a inclinação para elas. Seu reino não é o mar
nem as montanhas, mas a terra plana. É por isso que ele gosta de buscar o idílio e se
aprofunda em cada coisa individual, mas apenas para revelar a desproporção entre ela e a
coisa-em-si. Ele mostra a imanência desvinculando-a totalmente da transcendência e nem
mesmo mencionando o nome desta última. A sagacidade procura a contradição na
experiência, enquanto o humor a fere mais ao representá-la como um todo fechado, mas
ambos mostram tudo o que é possível e, assim, comprometem o mundo da experiência da
maneira mais completa. O trágico, ao contrário, demonstra o que é impossível em toda a
eternidade, e assim tanto o cômico quanto o trágico, cada um a seu modo, negam o mundo
empírico, ainda que pareçam ser o oposto do outro.

O judeu — cujo ponto de partida não é o supra-sensível como do humorista, e cuja meta não é
o supra-sensível como do erótico — não tem interesse em menosprezar o que é dado. É por
isso que a vida, para ele, nunca se torna uma fantasia ou um hospício. O humor, que conhece
valores superiores a qualquer coisa concreta, mas que astuciosamente se cala sobre eles, é
essencialmente tolerante, enquanto a sátira, seu oposto, é essencialmente intolerante e,
portanto, mais adequada à verdadeira natureza do judeu e da mulher. Tanto os judeus quanto
as mulheres são sem humor, mas inclinados à zombaria. Em Roma havia até uma escritora de
sátiras, chamada Sulpicia. Como a sátira é intolerante, ela rapidamente torna um indivíduo
inaceitável para a sociedade. O humorista, que sabe como evitar que ele e os outros se
preocupem seriamente com as trivialidades e mesquinharias do mundo, é o hóspede mais
bem-vindo em qualquer sociedade. O humor, como o amor, pode mover montanhas. É o tipo
de conduta muito favorável a uma existência social, ou seja, a uma comunidade unida por uma
ideia superior. O judeu não tem disposição social, enquanto o inglês a tem em alto grau.

A comparação entre o judeu e o inglês falha ainda mais cedo do que a comparação entre o
judeu e a mulher. A razão pela qual me senti obrigado a entrar em detalhes em ambos os
aspectos foi o debate acalorado que há muito se trava sobre o valor e a natureza do judaísmo.
Nesse contexto, posso citar também Wagner, que foi exercitado com mais intensidade pelo
problema do judaísmo ao longo de sua vida, e que pensou poder reencontrar um judeu não
apenas no inglês, mas inequivocamente a sombra de Ahasverus também cai sobre seu Kundry,
a mais profunda figura feminina em toda a arte.

Nenhuma mulher no mundo representa a ideia de Mulher tão perfeitamente quanto a judia, e
isso não apenas aos olhos do judeu. Isso parece confirmar o paralelo entre o judeu e a mulher
e leva ainda mais a uma aceitação precipitada disso. Até o ariano se sente assim: lembre-se de
The Jewess of Toledo, de Grillparzer. Essa ilusão é tão facilmente criada porque a mulher
ariana exige um elemento metafísico como uma das características sexuais do homem ariano e
está tão aberta a ser imbuída de suas convicções religiosas quanto ela está de suas outras
qualidades (cf. capítulo IX, em direção ao desfecho, e capítulo XII). Na realidade, é claro,
existem apenas cristãos do sexo masculino e nenhuma cristã do sexo feminino. Mas a judia
pode parecer representar mais plenamente ambos os polos da feminilidade, como uma dona
de casa com muitos filhos e como uma odalisca lasciva, como Cipris e como Cibele, porque o
homem que é seu complemento sexual e cuja mente a engravida, que a criou, que a criou para
si mesmo, contém tão pouco que é transcendente em si mesmo.

A congruência entre judaísmo e feminilidade parece tornar-se completa assim que se começa
a refletir sobre a infinita capacidade de mudança do judeu. O grande talento dos judeus para o
jornalismo, a “agilidade” da mente judaica, a falta de quaisquer convicções profundamente
enraizadas e originais — essas coisas não provam que tanto os judeus quanto as mulheres não
são nada e, portanto, podem se tornar tudo? O judeu é um indivíduo, mas não tem
individualidade. Estando inteiramente comprometido com a vida inferior, ele não deseja
qualquer continuação pessoal após a morte. Ele carece de um ser verdadeiro, imutável e
metafísico, e ele não tem participação na vida eterna superior.

E, no entanto, é precisamente aqui que o judaísmo e a feminilidade divergem de maneira


decisiva. A falta de ser do judeu e sua capacidade de se tornar tudo são diferentes da mulher.
A mulher é matéria, que assume passivamente qualquer forma. No judeu há inegavelmente
uma certa agressividade. Sua receptividade não é resultado de nenhuma grande impressão
causada por outros, e ele não é mais sugestionável do que o ariano. Em vez disso, ele se
adapta ativamente a diferentes circunstâncias e exigências, a qualquer ambiente e a qualquer
raça, como um parasita que muda e assume uma aparência completamente diferente com
qualquer hospedeiro, de modo que é constantemente confundido com um novo animal,
embora sempre permaneça o mesmo. O judeu assimila tudo e assim assimila tudo a si mesmo.
Ao fazê-lo, ele não é submetido pelo outro, mas sujeita o outro a si mesmo.

Mas a crença é tudo. Pode-se ou não acreditar em Deus, e isso não importa muito, desde que
pelo menos acredite em seu ateísmo. Mas a questão é justamente que o judeu não acredita
em nada. Ele não acredita em sua crença e duvida de sua dúvida. Ele nunca é completamente
dominado pela alegria, mas não é menos incapaz de ser totalmente dominado pela miséria. Ele
nunca se leva a sério e, portanto, não leva nenhum outro ser humano ou qualquer outra coisa
a sério. É internamente confortável ser um judeu, e ele deve suportar algum desconforto
externo em troca.

Finalmente identifiquei a diferença essencial entre o judeu e a mulher. A semelhança deles


está mais profundamente enraizada no fato de que o judeu não acredita em si mesmo mais do
que a mulher acredita em si mesma. Mas ela acredita nos outros, em seu homem, em seu
filho, no “amor”. Ela tem um centro de gravidade, embora situado fora dela. O judeu, ao
contrário, não acredita em nada, nem dentro nem fora de si. Ele não encontra apoio e não
finca raízes nos outros, como faz a Mulher. Sua profunda incompreensão de qualquer
propriedade fundiária e sua preferência pelo capital móvel são símbolos de seu completo
desenraizamento. E sua falta de uma apreciação profunda e imutável da natureza também
está ligada a isso.
A mulher acredita no homem, seja o homem fora dela ou o homem dentro dela, ou seja, o
homem que engravidou sua mente e, portanto, ela pode até se levar a sério.[12] O judeu
nunca considera nada genuíno, inabalável, sagrado e inviolável. É por isso que ele é sempre
frívolo e faz piada de tudo. Ele não acredita no cristianismo de nenhum cristão, muito menos
na sinceridade do batismo de um judeu. Mas ele também não é realmente realista e um
empirista genuíno. É aqui que devo acrescentar a qualificação mais importante às minhas
declarações anteriores, que em parte seguiram H. S. Chamberlain. O judeu não é realmente
um imanentista como os filósofos ingleses da experiência. O positivismo do mero empirista
acredita que todo conhecimento humano possível está contido no mundo dos sentidos, e ele
espera a conclusão do sistema de ciência exata. O judeu também não acredita no
conhecimento, embora isso de forma alguma o torne um cético, porque ele não é mais
convencido pelo ceticismo. Em contraste, mesmo o sistema inteiramente a-metafísico como o
de Avenarius é dominado por um cuidado solene, e mesmo as visões relativistas de Ernst Mach
são envolvidas por uma piedade confiante. O empirismo pode não ser profundo, mas não há
razão para chamá-lo de judeu.

O judeu é irreligioso no sentido mais amplo. A religiosidade não é algo ao lado e fora de outras
coisas: é o fundamento de tudo, o fundamento sobre o qual tudo o mais é construído. O judeu
é injustamente considerado prosaico, simplesmente porque não é entusiasta e não anseia por
uma fonte primordial de existência. Qualquer cultura interna genuína — o que quer que um
indivíduo considere como verdade, de modo que possa haver cultura para ele, verdade para
ele, valores para ele — é profundamente fundamentada na crença e requer piedade.
Tampouco a piedade é algo que só se revela na mística e na religião: ela também está no cerne
de qualquer ciência e de todo ceticismo, de tudo o que o ser humano significa seriamente
dentro de si. Não há dúvida de que a piedade pode se expressar de várias maneiras: paixão e
lucidez, grande entusiasmo e profunda seriedade são as duas formas mais nobres em que ela
aparece. O judeu nunca está em êxtase, mas também não está realmente sóbrio. Ele não está
em êxtase, mas também não está seco. Ele não se embriaga nem por coisas baixas nem por
coisas elevadas, e não é alcoólatra nem capaz de êxtases superiores, mas isso não o torna frio
e ainda o deixa muito longe de um raciocínio calmo e persuasivo. Seu calor transpira e sua
frieza fumega. Suas limitações sempre se transformam em escassez, sua riqueza em
pomposidade. Se ele tenta alcançar as alturas do entusiasmo sem limites, ele nunca vai além
do histrionismo, mas se ele decide permanecer dentro dos confins mais estreitos do intelecto,
ele ainda não se abstém de sacudir ruidosamente suas correntes. E mesmo que ele
dificilmente se sinta impelido a beijar o mundo inteiro, ele não o molesta menos.

Toda separação e todo abraço, toda severidade e todo amor, todo desapego e todo fervor,
toda emoção verdadeira e genuína do coração humano, seja ela séria ou alegre, baseia-se, em
última análise, na piedade. A religião é a colocação de si e do mundo junto com si mesmo.
Portanto, a crença não precisa sempre se relacionar com uma entidade metafísica, como
acontece com o gênio, o indivíduo mais piedoso. Pode dizer respeito a algo empírico e parecer
estar totalmente absorvido nisso: em última análise, é uma e a mesma crença em um ser, um
valor, uma verdade, um absoluto, um deus.

Este conceito mais abrangente de religião e piedade poderia facilmente ser mal interpretado
de várias maneiras. Gostaria, portanto, de acrescentar mais algumas observações para explicá-
lo. A piedade não é meramente posse, mas também a luta para obter a posse. Não apenas o
profeta convicto de Deus (como Händel ou Fechner) é piedoso, mas também o errante e
duvidoso buscador de Deus (como Lenau ou Dürer).[13]
A piedade não precisa encarar o universo como um todo em eterna contemplação (como faz
Bach): ela pode se manifestar como um sentimento religioso que acompanha todas as coisas
individuais (como em Mozart). Finalmente, não está vinculado à aparência de um fundador: os
gregos eram o povo mais piedoso do mundo e, portanto, tinham a mais alta cultura conhecida
até então, mas certamente nunca houve um fundador notável de uma religião entre eles (nem
precisa de um, cf. p. 299).

A religião é a criação do cosmos, e tudo o que existe no ser humano é nele apenas como
resultado da religião. Portanto, o judeu não é o indivíduo religioso que tantas vezes se afirma
falsamente, mas o indivíduo irreligioso…

Preciso dar motivos para isso? Preciso explicar longamente que o judeu não tem uma crença
zelosa e que, portanto, a fé judaica é a única que não faz proselitismo, de modo que os
convertidos ao judaísmo são a causa da maior perplexidade e da maior alegria entre os
próprios judeus? [14] Preciso elaborar sobre a natureza da oração judaica, enfatizando seu
caráter puramente formal e sua falta do tipo de fervor que o momento sozinho pode produzir?
Finalmente, preciso repetir o que é a religião judaica: nenhuma doutrina sobre o sentido e o
propósito da vida, mas uma tradição histórica, que pode ser resumida na única travessia do
Mar Vermelho e que, portanto, culmina no agradecimento de um covarde em fuga para seu
poderoso salvador? Em todo caso, ficaria claro que o judeu é totalmente irreligioso e o mais
distante possível de qualquer crença. Ele não se põe e, consigo mesmo, o mundo, que é a
essência da religião. Toda crença é heroica, mas o judeu não conhece coragem nem medo
como sensação de crença ameaçada. Ele não é nem parecido com o sol nem demoníaco.

Portanto, não é o misticismo, como pensa Chamberlain, mas a piedade que falta ao judeu. Se
ao menos ele fosse um materialista honesto, se ao menos fosse um adorador tacanho da
evolução! No entanto, ele não é um crítico, mas apenas um localizador de falhas. Ele não é um
cético à imagem de Descartes, e não duvida para passar da maior desconfiança à maior
certeza. Ele é um ironista absoluto, como — e aqui só posso citar um judeu — como Heinrich
Heine.

O criminoso também é ímpio e não tem apoio em Deus, mas por isso afunda no abismo,
porque não consegue ficar ao lado de Deus, para o que o judeu tem um jeito peculiar.
Portanto, o criminoso está sempre desesperado, mas o judeu nunca. O judeu não é um
revolucionário genuíno (pois onde encontraria a força e o gosto interior pela rebelião) e isso o
distingue do francês: ele é meramente subversivo, mas nunca realmente destrutivo.

Agora, o que é o próprio judeu, se ele não é nada de tudo o que um ser humano pode ser? O
que realmente se passa dentro dele, se lhe falta algo último, algum fundamento que o fio de
prumo do psicólogo finalmente acertaria alto e bom som?

Há um sentido em que todos os conteúdos psicológicos do judeu são duplos ou múltiplos, e ele
nunca pode transcender essa ambiguidade, essa duplicidade ou mesmo multiplicidade. Ele
sempre tem uma outra possibilidade, ou muitas outras possibilidades, onde o ariano, que
tanto vê, se decide com firmeza e escolhe. Acredito que essa ambiguidade, essa falta de
realidade interna imediata de qualquer processo psíquico, essa deficiência nesse ser-em-e-
para-si, o único que pode dar origem à forma mais elevada de criatividade, deve, a meu ver,
ser considerado como a definição do que chamei de judaísmo como uma ideia.[15] É como
uma condição anterior ao ser, um eterno vagar de um lado para o outro diante do portão da
realidade. Não há nada com o qual o judeu possa se identificar verdadeiramente, nenhuma
causa pela qual ele possa arriscar sua vida sem reservas.[16] O que falta ao judeu não é o
zelote, mas o zelo, porque tudo o que não é dividido, tudo o que é inteiro, lhe é estranho. É a
simplicidade da crença que lhe falta, e é porque lhe falta essa simplicidade e não representa
nada de positivo que ele parece ser mais inteligente do que o ariano e é flexível o suficiente
para escapar de qualquer opressão.[17] A ambiguidade interior, repito, é absolutamente
judaica, a simplicidade é absolutamente antijudaica. A questão do judeu é a questão dirigida a
Lohengrin por Elsa: a incapacidade de acreditar em qualquer anunciação, mesmo por uma
revelação interior, a impossibilidade de simplesmente acreditar em qualquer tipo de ser.

Pode-se objetar que tais contradições são encontradas apenas naqueles judeus civilizados nos
quais a velha ortodoxia ainda é eficaz ao lado da mentalidade moderna. Isso estaria longe de
ser verdade. A educação do judeu apenas revela sua natureza ainda mais claramente, porque
se envolve em muitas coisas que devem ser consideradas mais seriamente do que meras
transações financeiras. Que o judeu não é inequívoco em si mesmo pode ser provado pelo fato
de que o judeu não canta. Isso não é por modéstia, mas porque ele não acredita em seu
próprio canto. A peculiar repulsa do judeu por cantar, ou mesmo por palavras altas e claras,
tem tão pouco a ver com reserva genuína quanto sua ambiguidade tem com qualquer
sofisticação ou gênio real. A modéstia é sempre orgulhosa, enquanto aquela aversão ao judeu
é sinal de sua falta de dignidade interior: ele não tem compreensão do ser espontâneo, e o
simples ato de cantar o faria sentir-se ridículo e comprometido. A modéstia compreende todos
os elementos que têm um vínculo estreito e contínuo com o eu, mas o constrangimento do
judeu se estende a coisas que não podem ser sagradas para ele e que, portanto, não correria o
risco de delinquir se levantasse a voz em público. E isso coincide novamente com a impiedade
do judeu: pois toda música é absoluta e existe como que separada de qualquer base, e é por
isso que de todas as artes ela tem a relação mais próxima com a religião e por que uma
simples canção, que preenche uma única melodia com toda a alma, é tão não-judeu quanto a
própria religião. Isso mostra como é difícil definir o judaísmo. O judeu carece de dureza, mas
também de doçura — ao contrário, ele é tenaz e brando. Ele não é grosseiro nem sutil, nem
rude nem educado. Ele não é um rei ou um líder, mas também não é um súdito ou um vassalo.
Ele não pode ser profundamente abalado, mas é igualmente deficiente em equanimidade. Ele
nunca toma nada como certo, mas qualquer espanto verdadeiro é igualmente estranho para
ele. Ele não tem nada de Lohengrin nele, mas talvez ainda menos de Telramund (que se
levanta e cai com sua honra). Ele é ridículo como membro de uma sociedade de duelos
estudantis e ainda assim não é um bom filisteu. Ele nunca é impassível, mas também não é
totalmente imprudente. Porque não acredita em nada, refugia-se nas coisas materiais, e só aí
está a origem da sua avareza: é aqui que procura uma realidade e tenta convencer-se através
dos “negócios” de que algo existe — por isso o único valor que ele realmente reconhece é o
dinheiro que ele “ganha”. No entanto, ele nem mesmo é um verdadeiro homem de negócios:
pois o elemento “desonesto” e “duvidoso” na conduta do negociante judeu é apenas a
manifestação concreta da falta de identidade interna do judeu, mesmo nessa esfera.
“Judaico”, portanto, é uma categoria que não pode ser psicologicamente rastreada e
determinada. Metafisicamente, pode-se descrevê-lo como uma condição anterior ao ser.
Introspectivamente, não se supera a ambivalência interior, a ausência de qualquer convicção,
a incapacidade para qualquer tipo de amor, isto é, para qualquer dedicação e sacrifício
indiviso.

O erotismo do judeu é sentimental, seu humor é sátira. Mas todo satírico é sentimental, assim
como todo humorista é apenas um erotista às avessas. A sátira e o sentimentalismo contêm a
duplicidade que constitui basicamente o judaísmo (pois a sátira esconde muito pouco e
distorce o humor), e ambos têm em comum o sorriso que caracteriza o rosto judaico: nem
alegre, nem doloroso, nem orgulhoso, nem sorriso contorcido, mas aquela expressão vaga (o
correlativo fisionômico da ambiguidade interior) que indica uma prontidão para responder a
qualquer coisa e na qual falta toda reverência do indivíduo por si mesmo, a reverência que por
si só fundamenta todas as outras verecúndia.

Acredito que agora fui claro o suficiente para não ser mal interpretado sobre o que quero dizer
com a verdadeira natureza do judaísmo. O Rei Håkon de Ibsen em The Pretenders e seu Dr., a
trombeta, o motivo de Siegfried, a criação do eu pelo eu, a palavra eu sou. O judeu é
verdadeiramente “filho órfão de Deus”, e não há judeu (masculino) que, mesmo que
vagamente, não sofra por ser judeu, isto é, fundamentalmente, por sua incredulidade.

O judaísmo e o cristianismo mostram, portanto, o maior e mais imensurável contraste. De


todas as formas de ser, a primeira é a mais dividida e a que mais carece de identidade interior,
enquanto a última tem a crença mais firme e a maior confiança em Deus. O cristianismo é o
mais alto grau de heroísmo: o judeu, por outro lado, nunca é integrado e inteiro. É por isso que
o judeu é um covarde e o herói é seu oposto diametral.

H. S. Chamberlain disse muitas coisas verdadeiras e apropriadas sobre a terrível e estranha


incompreensão do judeu genuíno de Cristo, de sua pessoa e sua doutrina, do guerreiro e do
sofredor paciente nele, de sua vida e sua morte. Seria errado, porém, pensar que o judeu
odeia a Cristo. O judeu não é o anticristo: ele simplesmente não tem nenhuma relação com
Jesus. Estritamente falando, existem apenas arianos — criminosos — que odeiam Jesus. O
judeu só se sente perturbado e irritado por ele, como por algo que não pode atacar com sua
inteligência porque está além de sua compreensão.

No entanto, a lenda do Novo Testamento, a flor mais madura e a conclusão suprema do


Antigo, juntamente com a adaptação artificial deste último às promessas messiânicas do
primeiro, tem sido útil para os judeus: tem sido sua proteção externa mais forte. O fato de
que, apesar de sua oposição polar, o cristianismo evoluiu do judaísmo de todas as coisas é um
dos mistérios psicológicos mais profundos: o problema com o qual estamos lidando aqui não é
outro senão a psicologia do fundador de uma religião.[18]

Qual é a diferença entre um gênio que funda uma religião e todos os outros gênios? Que
necessidade interior o leva a fundar uma religião?

Só pode ser que ele mesmo nem sempre tenha acreditado no Deus que anuncia. Buda e Cristo
foram expostos a tentações muito maiores do que todos os outros seres humanos. Outros
dois, Maomé e Lutero, eram epiléticos. A epilepsia é a doença do criminoso: César, Narses,
Napoleão, os “grandes” criminosos, todos sofriam dela, e Flaubert e Dostoiévski, que pelo
menos tinham uma inclinação para ela, ambos tinham uma quantidade extraordinária de
criminoso neles, mesmo embora, é claro, eles não fossem criminosos de verdade.

O fundador de uma religião é o indivíduo que uma vez levou uma vida completamente sem
Deus e ainda lutou para chegar à fé mais elevada. “Como é possível que um ser humano
naturalmente mau se transforme em um ser humano bom ultrapassa qualquer conceito nosso.
Pois como pode uma árvore má dar bons frutos?”, pergunta Kant em sua filosofia da religião,
mas, no entanto, em princípio, afirma esta possibilidade: “Pois, apesar dessa queda, o
mandamento de que devemos nos tornar seres humanos melhores ainda ressoa inabalável em
nossas almas; consequentemente, também devemos ser capazes disso”. A possibilidade
incompreensível do renascimento total de um indivíduo que foi depravado durante todos os
anos e dias de sua vida anterior, esse alto mistério, é realizado naqueles seis ou sete indivíduos
que fundaram as grandes religiões da humanidade. É isso que os distingue do gênio
propriamente dito, em quem predomina desde o nascimento a disposição para o bem.

O outro tipo de gênio recebe a graça antes de seu nascimento: o fundador de uma religião o
faz ao longo de sua vida. Nele, um ser mais velho morre completamente e dá lugar a um
inteiramente novo. Quanto maior um indivíduo deseja ser, mais coisas há nele que ele deve
condenar à morte. Acredito que, a esse respeito, Sócrates (como o único grego) se aproxima
dos fundadores das religiões. Talvez ele tenha travado a batalha decisiva contra o mal no dia
em que ficou sozinho por vinte e quatro horas em um único e mesmo lugar perto de
Potidaea.[19]

O fundador de uma religião é o indivíduo para quem nenhum problema foi resolvido em seu
nascimento. Ele é o indivíduo com menos certezas próprias. Nele tudo é arriscado e
questionável, e ele é obrigado a conquistar para si não apenas isto ou aquilo, mas tudo,
durante sua vida. Geralmente, uma pessoa tem que lidar com a doença e sofre com sua
fraqueza física, enquanto outra treme de medo do crime porque existe nele como uma
possibilidade, e todos fazem algo errado e se sobrecarregam com algum pecado no
nascimento. O pecado original é apenas formalmente o mesmo para todos, mas
materialmente diferente para todos. Uma pessoa escolheu uma coisa insignificante e sem
valor, outra pessoa outra, quando deixou de querer, quando sua vontade repentinamente se
tornou instinto, quando sua individualidade se tornou meramente um indivíduo, quando seu
amor se tornou luxúria, quando ele nasceu; e é isso, seu próprio pecado original específico,
esse nada em sua própria pessoa, que ele percebe durante sua vida como uma culpa e uma
mancha e uma imperfeição, e isso se torna um problema, um enigma e uma tarefa para sua
mente pensante. Em contraste com estes, apenas o fundador de uma religião deve expiar o
pecado original como um todo: para ele tudo, todo o universo, é problemático, mas ele resolve
todos os problemas e se redime em todo o universo. Ele responde a todos os problemas e se
liberta inteiramente da culpa. Ele alcança o ponto de apoio mais firme sobre o abismo mais
profundo, supera o nada como tal e apreende a coisa-em-si, isto é, o ser como tal. Nesse
sentido, pode-se dizer que ele foi realmente liberto do pecado original, e que nele Deus se
tornou completamente homem, mas o homem também se tornou completamente Deus. Pois
nele tudo antes era culpa e problema, mas agora tudo vira expiação e solução.

Todo gênio nada mais é do que a mais alta liberdade das leis naturais.

“Quem se supera, se liberta da força que prende todos os seres.

Se isso for verdade, o fundador de uma religião é o maior gênio. Ele conseguiu o que os
pensadores mais profundos da humanidade apenas apresentaram como uma possibilidade,
com hesitação, para preservar sua visão ética e evitar ter que abandonar a liberdade de
escolha: o renascimento completo do ser humano, sua “regeneração” a reversão total da
vontade. Outras grandes mentes também têm que lutar contra o mal, mas no caso delas a
balança está carregada a favor do bem desde o início. Não é assim com o fundador de uma
religião. Nele há tanto mal, tanta vontade de poder, tanta paixão terrena, que ele é obrigado a
lutar com o inimigo em si mesmo por quarenta dias no deserto, incessantemente, sem comida,
sem dormir. Só então ele venceu: ele não entrou na morte, mas libertou a vida suprema em si
mesmo. Se fosse de outra forma, não haveria impulso para fundar uma religião. A esse
respeito, o fundador de uma religião é exatamente o polo oposto do governante, o imperador
é o oposto do galileu. Em Napoleão também ocorreu uma inversão em certo ponto de sua
vida, mas em vez de se afastar da vida terrena ele finalmente escolheu seus tesouros, seu
poder e suas glórias. Napoleão é grande em virtude da colossal intensidade com que deixa a
ideia para trás, da enorme tensão de sua rejeição do absoluto e da magnitude de sua culpa
não expiada. O fundador de uma religião, por outro lado, não pode e não precisa trazer para a
humanidade nada além do que ele, o indivíduo mais sobrecarregado, conquistou: uma aliança
com a divindade. Ele sabe que está sobrecarregado de culpa e expia a maior quantidade de
culpa por meio de sua morte na cruz.

No judaísmo havia duas possibilidades. Antes do nascimento de Cristo, eles estavam unidos e
nenhuma escolha ainda havia sido feita entre eles. Havia uma diáspora e ao mesmo tempo
pelo menos uma espécie de estado: negação e afirmação coexistiam lado a lado. Cristo foi o
indivíduo que superou a negação mais forte, o judaísmo, dentro de si, e que assim criou a
afirmação mais forte, o cristianismo, como o oposto mais extremo do judaísmo. Fora da
condição antes de ser, ser e não ser separados. Agora os dados foram lançados: o antigo Israel
dividido em judeus e cristãos, e o judeu, como o conhecemos e como o descrevi, surgiu ao
mesmo tempo que o cristão. A diáspora agora se tornou completa e o judaísmo perdeu a
possibilidade de grandeza: desde então o judaísmo não foi capaz de produzir homens como
Simson e Joshua, os judeus menos judeus do antigo Israel.

O cristianismo e o judaísmo são interdependentes na história do mundo como afirmação e


negação. Israel realizou as maiores possibilidades já concedidas a uma nação: a possibilidade
de Cristo. A outra possibilidade é o judeu.

Espero não ser mal interpretado: não quero imputar ao judaísmo nenhuma relação com o
cristianismo que lhe seja estranha. O cristianismo é a negação absoluta do judaísmo, mas tem
com o judaísmo a mesma relação que liga todas as coisas aos seus opostos, cada afirmação à
sua negação, que por ela é superada.[20] Ainda mais que piedade e judaísmo, cristianismo e
judaísmo só podem ser definidos um pelo outro e por sua exclusão mútua. Nada é mais fácil
do que ser judeu, nada mais difícil do que ser cristão. O judaísmo é o abismo sobre o qual se
ergue o cristianismo, e é por isso que o judeu é o maior medo e a mais profunda aversão do
ariano.[21]

Não posso compartilhar a crença de Chamberlain de que o nascimento do Salvador na


Palestina poderia ter sido uma mera coincidência. Cristo era judeu, mas apenas para superar o
judaísmo em si mesmo da forma mais completa, pois o crente mais firme é aquele que
superou a dúvida mais poderosa, e o afirmador mais positivo aquele que se elevou acima da
negação mais sombria. O judaísmo foi o pecado original específico de Cristo, e é a vitória de
Cristo sobre o judaísmo que o torna mais rico do que Buda, Confúcio e todo o resto. Cristo é o
maior ser humano porque lutou com o maior adversário. Talvez ele seja, e continuará sendo, o
único judeu que conseguiu derrotar o judaísmo. O primeiro judeu teria então sido o último a
se tornar totalmente Cristo, mas talvez o judaísmo hoje ainda tenha a possibilidade de gerar
Cristo, e talvez o próximo fundador de uma religião também tenha que passar pelo judaísmo
em primeiro lugar.

Isso por si só torna possível entender a existência prolongada dos judeus, que sobrevivem a
todas as outras nações e raças. Os judeus não poderiam ter persistido e preservado a si
mesmos se não tivessem pelo menos uma crença, e essa crença é o sentimento vago, vago e
ainda assim desesperadamente certo de que deve haver algo, mesmo que apenas uma coisa,
sobre o judaísmo e a partir do judaísmo. Esta única coisa é o Messias, o redentor. O redentor
do judaísmo é o redentor a partir do judaísmo. Todas as outras pessoas realizam uma certa
ideia única e especial, e é por isso que todas as outras nações finalmente perecem. Só o judeu
não realiza nenhuma ideia especial, porque se pudesse realizar alguma coisa, seria apenas a
ideia-em-si: do meio da Judeia deve sair o divino ser humano. A vitalidade do judaísmo está
ligada a isso: o judaísmo vive do cristianismo em mais do que apenas o sentido de exploração
material. Metafisicamente, o único objetivo do personagem judeu é servir de pedestal para o
fundador de uma religião. Isso explica ainda mais o fenômeno mais estranho nos caminhos dos
judeus, seu método especial de prestar homenagem ao seu Deus: nunca como indivíduos, mas
sempre em multidão. Eles só podem ser “piedosos” junto com os outros e precisam de alguém
com quem “orar”, porque sua esperança é a possibilidade permanente de ver sair de sua
espécie o maior conquistador, o fundador de uma religião. Este é o significado inconsciente de
todas as esperanças messiânicas na tradição judaica: o propósito dos judeus é o cristão. Se,
então, o judeu talvez ainda contenha as mais altas possibilidades, ele certamente contém as
realidades mais baixas. De todos os seres humanos, é provavelmente aquele que tem o
potencial de realizar mais e, ao mesmo tempo, a capacidade interior de realizar o mínimo.

Nossa era atual mostra o judaísmo no pico mais alto que já escalou desde os dias de Herodes.
O espírito da modernidade é judaico, onde quer que se olhe. A sexualidade é afirmada e a
ética da espécie de hoje canta o hino do casamento para a relação sexual. O infeliz Nietzsche
certamente não é responsável pela grande união da seleção natural e da fornicação natural,
cujo desprezível apóstolo se chama Wilhelm Bölsche. Ele apreciava o ascetismo e achava seu
oposto mais desejável apenas porque sofria demais com o próprio. Mas mulheres e judeus são
casamenteiros: seu objetivo é tornar a humanidade culpada.

Nossa época não é apenas a mais judaica, mas também a mais efeminada de todas as épocas;
uma época em que a arte apenas fornece um sudário para seus humores e que derivou o
impulso artístico nos humanos dos jogos dos animais; uma era do anarquismo mais crédulo,
uma era sem qualquer apreciação do Estado e da lei, uma era da ética da espécie, uma era da
mais superficial de todas as interpretações imagináveis da história (materialismo histórico),
uma era do capitalismo e do marxismo, uma era para o qual a história, a vida, a ciência, tudo,
tornou-se nada além de economia e tecnologia; uma época que declarou o gênio uma forma
de loucura, mas que não tem mais um grande artista ou um grande filósofo, uma época que é
mais desprovida de originalidade, mas que persegue freneticamente a originalidade; uma
época que substituiu a ideia de virgindade pelo culto do Demi-vierge. Esta época também tem
a particularidade de ser a primeira a não só afirmar e venerar a relação sexual, mas
praticamente fazer dela um dever, não como forma de alcançar o esquecimento, como faziam
os romanos ou gregos em suas bacanais, mas em para se encontrar e dar um sentido à sua
própria melancolia.

Mas, oposto ao novo judaísmo, um novo cristianismo está se esforçando para a luz. A
humanidade está esperando pelo novo fundador de uma religião, e a luta está chegando ao
auge, como aconteceu no primeiro ano. A humanidade mais uma vez tem a escolha entre o
Judaísmo e o Cristianismo, entre os negócios e a cultura, entre a Mulher e o Homem, entre a
espécie e a personalidade, entre a inutilidade e o valor, entre a vida terrena e a vida superior,
entre o nada e a divindade. Estes são os dois polos: não há terceiro reino.

Notas:

1 - A mentalidade da raça judaica realmente me parece bastante peculiar, uniforme e muito


distinta de qualquer tendência da mente e do coração que encontramos nos outros povos da
terra, ou pelo menos será o resultado final da minha investigação. É também por isso que não
acredito que o caráter judeu possa ser explicado, em termos de química racial, como um
cruzamento e mistura de diferentes povos, pois quaisquer desses componentes teriam de ser
rastreados psicologicamente. O judaísmo é provavelmente algo completamente uniforme, e
qualquer tentativa de derivá-lo e reuni-lo empiricamente parece inútil. Alguém pode ser
qualquer coisa menos um filosemita e ainda assim admitir que, a esse respeito, há alguma
verdade na crença dos judeus de que eles são um “povo escolhido”.

2 - Neste ponto, o autor deve observar que ele próprio é de origem judaica.

3 - Tal homem, quase livre do judaísmo e, portanto, um “filosemita”, era Zola. Via de regra, no
entanto, os indivíduos mais excepcionais quase sempre foram anti-semitas (Tácito, Pascal,
Voltaire, Herder, Goethe, Kant, Jean Paul, Schopenhauer, Grillparzer, Wagner) porque, tendo
muito mais coisas em si do que outros, eles também compreender melhor o judaísmo (cf.
capítulo IV).

4 - Cfr. capítulo XI, pág. 220.

5 - Cfr. pág. 96.

6 - E russo. No entanto, os russos normalmente têm apenas uma leve disposição social e, entre
todos os povos europeus, a menor simpatia pelo Estado. Isso, à luz do exposto, concorda com
o fato de que eles são, sem exceção, anti-semitas.

7 - A crença em Jeová e no ensino de Moisés é meramente uma crença nesta espécie judaica e
em sua vitalidade. Jeová é a personificação da ideia do judaísmo.

8 - Aqui me preocupei em dar lugar à ânsia química dos judeus. Não tenho intenção de
ofender o outro tipo de química, a ciência de Berzelius, Liebig ou van t'Hoff.

9 - Spinoza não era um gênio. Não há filósofo intelectualmente mais pobre e sem imaginação
entre todas as figuras singulares da história da filosofia, e o espinosismo é totalmente
incompreendido por aqueles que - enganados pelo pensamento de Goethe - podem vê-lo
como a expressão modesta de uma relação extremamente profunda com a natureza. Se
alguém quer abraçar o universo, não pode começar com definições. A relação de Spinoza com
a natureza era, na verdade, excepcionalmente frouxa. Isso corresponde ao fato de que ele
nunca encontrou arte em toda a sua vida (cf. capítulo XI, p. 219).

10 - Para explicar isso a si mesmo, pode-se pensar na diferença entre Shakespeare e


Beethoven, que é um dos maiores contrastes da psicologia. 11. Cfr. pág. 212.

11 - Cf. p. 212

12 - Cf. chapter XII, pp. 237, 242.

13 - O judeu não é o Tomás de Verrocchio (na igreja de Or San Michele em Florença), que
ainda não está inspirado e que ainda não vê, mas que nada mais gostaria do que acreditar e
que simplesmente ainda não é capaz de fazê-lo. Em vez disso, o judeu percebe sua própria
incredulidade como um sinal de sua superioridade, como uma piada que só ele conhece.

14 - A intolerância judaica não é argumento válido contra isso. Pessoas verdadeiramente


religiosas são sempre zelosas, mas nunca fanáticas. Em vez disso, a intolerância é idêntica à
incredulidade. Assim como o poder é o substituto mais enganoso da liberdade, a intolerância
surge apenas da falta de confiança de um indivíduo em sua própria crença.
15 - Esta é realmente a explicação da falta de gênio do judeu (cf. pp. 158ss.): somente a crença
é criativa. E talvez a potência sexual inferior do judeu reflita o mesmo fato na esfera inferior.

16 - É o Homem que cria a Mulher. É por isso que as mulheres judias são conhecidas por não
possuírem a simplicidade das mulheres cristãs, que se entregam prontamente ao seu
complemento sexual.

17 - Mas isso não deve ser considerado como uma predominância da vontade e como uma
retirada anormal do intelecto, como foi interpretado por Schopenhauer e, posteriormente,
usando distinções psicológicas inadequadas de Schopenhauer, por H. S. Chamberlain. O judeu
não tem uma vontade realmente forte, e sua indecisão interior poderia facilmente e
erroneamente ser confundida com o “masoquismo” psíquico, isto é, inércia e desamparo no
momento da decisão.

18 - Neste ponto tratarei finalmente do que tive de deixar deliberadamente de fora das
discussões dos capítulos IV–VIII

19 - Nietzsche provavelmente estava certo em não o ver como um heleno genuíno, enquanto
Platão é novamente um grego por completo

20 - O leitor deve se lembrar de minhas observações sobre o significado psicológico dos pares
de opostos (p. 96s.) e sobre o papel da polaridade na caracterologia (p. 70ss.).

21 - Esta é também a causa da diferença e da fronteira entre o anti-semitismo do judeu e o


anti-semitismo do indo-europeu. O anti-semita judeu simplesmente não gosta do judeu. O
ariano anti-semita, por outro lado, por mais bravamente que lute contra o judaísmo, no fundo
de seu coração, é sempre o que o judeu nunca é: um "Judaeophobe".

XIV — A Mulher e a Humanidade


Agora, finalmente, limpos e armados, podemos mais uma vez enfrentar a questão da
emancipação das mulheres. Limpos, porque nosso olho não está mais nublado pelas
ambiguidades que fervilham em torno do assunto como mil mosquitos; armados, porque
estamos de posse de conceitos teóricos firmes e visões éticas seguras. Longe do playground
das controvérsias comuns e muito além do problema das diferenças de dotação, minha
investigação alcançou alguns pontos que prenunciam o papel da Mulher no universo e o
significado de sua missão para a humanidade. Portanto, mais uma vez me absterei de discutir
quaisquer questões excessivamente específicas, especialmente porque não sou otimista o
suficiente para esperar que meus resultados tenham qualquer influência na condução dos
assuntos políticos. Em vez de elaborar sugestões sobre a higiene social, abordarei o problema
em termos da ideia de humanidade que domina a filosofia de Immanuel Kant.

Essa ideia está sob considerável ameaça da feminilidade. As mulheres estão equipadas em alto
grau com a arte de criar a ilusão de que são realmente assexuadas e que sua sexualidade é
apenas uma concessão ao homem. Pois se essa ilusão acabasse, o que seria da competição de
vários, ou mesmo muitos, homens por uma mulher? No entanto, com o apoio de homens que
acreditaram nelas, as mulheres hoje quase conseguiram persuadir o sexo oposto de que a
necessidade mais importante e característica do homem é a sexualidade, que ele pode esperar
a satisfação de seus desejos mais verdadeiros e profundos apenas de Mulher, e essa castidade,
para ele, é algo antinatural e impossível. Quantas vezes os jovens — que não parecem tão
feios e pouco promissores — que encontram satisfação em um trabalho sério são
aconselhados pelas mulheres a não estudar muito, mas a “aproveitar a vida”. Essas amistosas
admoestações revelam a sensação, naturalmente inconsciente, da Mulher de fracassar em sua
missão — que se dirige exclusivamente à cópula — e de se tornar nada e perder todo o seu
significado junto com todo o seu sexo, assim que um homem começa a se interessar por
qualquer coisa. além das questões sexuais.

É duvidoso que as mulheres algum dia mudem a esse respeito. Nem se deve acreditar que elas
jamais foram diferentes. Hoje o elemento sensual pode ser mais proeminente do que
costumava ser, porque uma parte tão infinitamente grande do “movimento das mulheres” é
apenas um desejo de trocar a maternidade pela prostituição:

o movimento como um todo é mais uma emancipação das prostitutas do que uma
emancipação das mulheres, e seu principal resultado é certamente a emergência mais ousada
do elemento cocotte na Mulher. Mas o que parece novo é o comportamento dos homens. Sob
a influência do judaísmo, entre outras coisas, os homens hoje estão perto de concordar e, de
fato, se apropriar da avaliação que as mulheres fazem de si mesmos. A castidade masculina é
ridicularizada e não mais compreendida, a mulher não é mais percebida pelo homem como
seu pecado e seu destino, e o homem não tem mais vergonha de seu próprio desejo.

Agora está claro onde a demanda pela falta de contenção, o conceito de cafeteria do
dionisíaco, o culto a Goethe na medida em que Goethe é Ovídio, toda a cultura moderna da
cópula. Chegamos a um ponto em que quase ninguém tem coragem de confessar sua crença
na castidade, e quase todo mundo prefere se comportar como se fosse um libertino. Os
excessos sexuais são o tópico mais popular para se gabar, e a sexualidade é tão bem avaliada
que o fanfarrão tem dificuldade em fazer as pessoas acreditarem nele. A castidade, por outro
lado, inspira tão pouco respeito que o homem verdadeiramente casto muitas vezes se esconde
atrás da aparência do roué[libertino]. É verdade que os modestos têm até vergonha de sua
modéstia: no entanto, o pudor de hoje não é o pudor do erotismo, mas a vergonha de uma
mulher que ainda não encontrou um homem e ainda não recebeu seu valor do sexo oposto. É
por isso que todo mundo está ansioso para mostrar aos outros com que fidelidade e com que
prazer obediente ele exerce suas funções sexuais. Assim, a decisão sobre o que é masculino é
hoje tomada pela Mulher, que por sua natureza é capaz de apreciar apenas o lado sexual do
Homem, e os homens recebem a medida de sua masculinidade por ela. E assim o número de
cópulas e a “querida” ou “namorada” tornaram-se os meios pelos quais um indivíduo do sexo
masculino se mostra diante de outro. Mas não, porque então não haveria mais homens.

Por outro lado, a alta estima em que a virgindade é tida originalmente veio dos homens, e
ainda o faz onde ainda há homens: é a projeção do Homem de seu próprio ideal imanente de
pureza imaculada no objeto de seu amor. Não se deve ser enganado pelo medo e terror das
mulheres de serem tocadas, que tão facilmente se transformam em confiança no menor
tempo possível, ou por sua repressão histérica de desejos sexuais, ou por sua compulsão
externa para atender à demanda do homem por pureza física para garantir que o comprador
não deixe de aparecer, ou mesmo por sua necessidade de receber valor, que muitas vezes as
faz esperar tanto tempo pelo homem que pode dotá-los de maior valor (o que geralmente é
interpretado erroneamente como uma alta auto-estima por parte dessas meninas). Desde o
início, dificilmente podemos ter dúvidas sobre o que as mulheres pensam sobre a virgindade,
se lembrarmos que o objetivo principal das mulheres é provocar a relação sexual como tal, a
única que pode fornecer-lhes uma existência. Que a Mulher só quer relações sexuais e nada
mais, por mais desinteressada que pareça ter pela sua própria pessoa, já foi provado por sua
onipresente casamenteira.
Para nos convencer disso novamente, devemos considerar como a mulher considera a
virgindade em outros membros de seu sexo.

Aqui notamos que a condição das mulheres solteiras é muito pouco valorizada pelas próprias
mulheres. Aliás, esta é a única condição feminina a que a Mulher atribui um valor negativo. As
mulheres realmente não apreciam nenhuma mulher até que ela se case. Mesmo que ela seja
“infelizmente” casada com um homem feio, fraco, pobre, comum, tirânico, pouco atraente, ela
ainda é casada, ou seja, ela recebeu um valor e uma existência. E se uma mulher, ainda que
brevemente, experimentou os esplendores da vida de uma amante, ou mesmo se ela se
tornou uma prostituta, ela é mais bem avaliada do que a velha solteirona costurando ou
cerzindo sozinha em seu quarto sem nunca ter pertencido a um homem, seja em uma união
legal ou ilegal, seja por um longo período ou em um frenesi passageiro.

Da mesma forma, se uma menina muito jovem se distingue por seus encantos físicos, ela
recebe um valor positivo da Mulher não por causa de sua beleza — a Mulher não tem
capacidade de reconhecer a beleza, porque ela não tem valor para projetar — mas apenas
porque ela tem uma perspectiva melhor de cativar um homem. Quanto mais bela é uma
virgem, mais confiável é a promessa que ela mantém para outras mulheres, mais valiosa ela é
para a mulher como casamenteira destinada a ser a guardiã da comunidade: só esse
pensamento inconsciente faz com que uma mulher tire proveito de uma bela menina. Já
discuti como isso pode aparecer de forma não diluída apenas quando o indivíduo feminino que
está julgando tiver recebido uma existência (porque, caso contrário, essas emoções seriam
superadas por sua inveja de seu concorrente e a sensação de que este último está reduzindo
suas próprias chances de ganhar a luta pelo valor). As mulheres devem fazer casamentos para
si mesmas antes que os outros possam esperar que elas atuem como casamenteiras em seu
nome.

O desprezo pela “solteirona”, que infelizmente se tornou tão comum, é inteiramente da


Mulher. Os homens costumam falar com respeito de uma solteirona idosa, mas toda mulher e
toda menina, casada ou solteira, não terá nada além do mais extremo desprezo por ela,
embora em alguns casos possam não estar conscientes disso. Certa vez, ouvi uma senhora
casada — que era considerada dotada de considerável inteligência e numerosos talentos, e
que tinha tantos admiradores graças à sua aparência atraente que não poderia haver inveja no
caso dela — zombar de seu simples e idoso professor de italiano , que repetidamente
declarou: Io sono ancora una vergine (que ela ainda era virgem).

No entanto, assumindo que sua observação foi reproduzida corretamente, deve-se admitir que
a mulher mais velha provavelmente só fez uma virtude de necessidade e teria ficado muito
feliz em perder a virgindade de alguma forma sem perder sua reputação na sociedade.

Esta é a coisa mais importante: as mulheres não apenas desprezam e ridicularizam a


virgindade de outras mulheres, mas também têm uma opinião extremamente baixa de sua
própria virgindade como uma condição (que consideram altamente apenas como uma
mercadoria muito procurada e do mais alto valor em olhos masculinos). É por isso que elas
olham para qualquer mulher casada como se ela fosse um ser superior. Que o ato sexual, em
particular, é o que mais importa para a mulher, pode ser visto na veneração absoluta que as
meninas têm por mulheres recém-casadas, pois é a estas últimas que o propósito de sua
existência acaba de ser revelado e que foram levadas ao seu cume. Por outro lado, toda jovem
considera todas as outras jovens como um ser incompleto que, como ela, ainda está em busca
de sua vocação.
Assim, acredito ter demonstrado com que perfeição minha inferência do matchmaking — que
o ideal de virgindade deve ser de origem masculina e não pode ser feminina — corresponde à
experiência. O homem exige a castidade tanto de si mesmo como dos outros, e exige-a
sobretudo do ser que ama. A mulher quer poder ser impura e exige sensualidade, não virtude,
também do homem. Mulher não aprecia “bons meninos”. Pelo contrário, é do conhecimento
geral que ela sempre cai nos braços de um homem que tem a maior fama de ser um Don Juan.
A mulher quer o homem sexualmente, porque é somente através da sexualidade dele que ela
pode ganhar uma existência. O erotismo do Homem, fenômeno que implica distância, é
incompreensível para as mulheres, que só compreendem aquele lado dele que
implacavelmente se apodera e se apropria do objeto de seu desejo, e que não se impressiona
com aqueles homens nos quais quaisquer instintos brutais são apenas ligeiramente
desenvolvido ou não. Mesmo o amor platônico superior do Homem é basicamente indesejável
para as mulheres: ele as lisonjeia e acaricia, mas não significa nada para elas. E se uma oração
de joelhos dobrados durasse muito, Beatrice ficara tão impaciente quanto Messalina.

A mulher é mais profundamente degradada pela relação sexual e mais elevada pelo amor. O
fato de a mulher exigir a relação sexual e não o amor significa que ela quer ser rebaixada e não
elevada. O oponente final da emancipação das mulheres é a Mulher.

A relação sexual é imoral, não porque seja lasciva, não porque seja o epítome de toda
felicidade na vida inferior. Um ascetismo que declara a luxúria como a essência da imoralidade
é ele próprio imoral, porque busca o padrão para o mal que está sendo feito em uma
consequência concomitante e externa do ato, e não na atitude mental: é heterônomo. Um ser
humano tem o direito de lutar pela luxúria e tem todo o direito de tentar tornar sua vida na
terra mais fácil e feliz, desde que não sacrifique nenhum mandamento moral no processo.
Mas, ao recorrer ao ascetismo, o ser humano tenta extorquir a moralidade por meio da
autodilaceração. Ele espera que a moralidade decorra de uma razão e, em seu próprio caso,
seja o resultado e a recompensa por ter se negado tanto. Portanto, o ascetismo, tanto por
princípio quanto por disposição psicológica, é condenável, pois torna a virtude dependente do
sucesso de outra coisa, tornando-a o efeito de uma causa, e deixando de ambicioná-la por si
mesma e como um fim em si mesmo. O ascetismo é um sedutor perigoso: muitos caem
facilmente em seu engano porque o prazer é o motivo mais comum para abandonar o
caminho da lei e, portanto, é fácil sucumbir ao erro de que escolher a dor em vez do prazer é o
guia mais seguro para o caminho certo. Mas o prazer como tal não é nem moral nem imoral. É
somente quando a vontade de prazer conquistou a vontade de valor que um ser humano caiu.

A relação sexual é imoral porque em tal momento não há homem que não use a mulher como
um meio para um fim e que não coloque a luxúria antes do valor da humanidade, tanto na
pessoa dele quanto na dela. Na relação sexual, a luxúria faz com que o homem se esqueça de
si mesmo e da mulher, que ele não considera mais como tendo uma existência psíquica, mas
apenas física. Ele espera dela um filho ou a satisfação de sua própria luxúria, e em ambos os
casos ele a está usando não como um fim em si mesma, mas para um propósito estranho. Por
esta razão, e nenhuma outra, a relação sexual é imoral.

A mulher é certamente a missionária da relação sexual, e ela sempre se utiliza, como tudo no
mundo, como nada mais que um meio para esse fim. Ela quer que o Homem seja um meio
para o fim de sua própria luxúria ou filho, e ela mesma quer ser usada pelo Homem como um
meio para um fim, como uma coisa, como um objeto, como sua posse, e ser mudada e
moldada por ele como bem entender. No entanto, não apenas nenhum ser humano deve
permitir que outro ser humano o use como um meio para um fim, mas também a atitude do
homem para com a mulher não deve ser determinada pelo fato de que ela realmente deseja a
relação sexual e de fato não anseia por nada mais dele, mesmo que ela nunca admita isso
totalmente para ele ou para si mesma. É verdade que Kundry apela à compaixão de Parsifal
para o seu anseio, mas isso revela precisamente toda a fragilidade da ética da compaixão que
nos obrigaria a satisfazer todos os desejos do nosso semelhante, por mais injustificáveis que
sejam. Uma moralidade total de simpatia é tão absurda quanto uma ética social total, porque
ambos fazem o que deveria ser dependente da vontade (seja a vontade do indivíduo em
questão, a vontade de outro indivíduo ou a vontade da sociedade) em vez de tornar a vontade
dependente do que deveria ser. Ambos escolhem como padrão de moral um destino humano
concreto, uma felicidade humana concreta, um momento humano concreto, em vez da ideia.

A pergunta é: Como o Homem deve tratar a Mulher? Como ela mesma quer ser tratada ou
como exige a ideia moral? Se ele quer tratá-la como ela mesma quer ser tratada, ele deve ter
relações sexuais com ela, porque ela quer ser objeto de relações sexuais, bater nela porque ela
quer ser espancada, hipnotizá-la porque ela quer ser hipnotizada, mostrar-se pela galanteria o
quão pouco ele a valoriza em si mesma porque ela quer elogios em vez de ser respeitada em si
mesma. Se, por outro lado, quer encontrar a Mulher como exige a ideia moral, deve procurar
ver nela o ser humano e respeitá-la. W é uma função de M, uma função que ele pode postular
ou cancelar, e as mulheres não querem ser mais nada além disso. Diz-se que na Índia as viúvas
se deixam queimar com prazer e convicção e até insistem nesse tipo de morte, mas isso não
torna o costume menos bárbaro.

Assim como com a emancipação das mulheres, também com a emancipação dos judeus e dos
negros. A principal razão pela qual esses povos foram tratados como escravos e sempre tidos
em baixa estima é certamente sua própria disposição submissa, pois eles não têm um desejo
tão forte de liberdade quanto os indo-europeus. Embora na América de hoje os brancos
tenham sido obrigados a se segregar totalmente dos negros, que fizeram um uso perverso e
indigno de sua liberdade, na guerra entre os estados do norte e os confederados que resultou
na liberdade dos negros, a justiça estava inteiramente do lado do primeiro. No judeu, mais no
negro e ainda mais na mulher, a disposição para a humanidade está carregada de um maior
número de impulsos amorais e é obrigada a lutar com mais obstáculos do que no homem
ariano, mas mesmo neles o A ideia de humanidade (isto é, não a ideia de sociedade humana,
mas o fato de ser humano, a alma como parte de um mundo inteligível) deve ser honrada, por
menor que seja seu último remanescente. Ninguém além da lei deve reivindicar qualquer
poder até mesmo sobre o criminoso mais degradado, e nenhum ser humano tem o direito de
linchá-lo.

O problema da mulher e o problema do judeu são completamente idênticos ao problema da


escravidão e devem ser resolvidos da mesma maneira. Ninguém deve ser oprimido, mesmo
que só se sinta feliz sob a opressão. Se eu domestico um animal doméstico, não o privo de
liberdade, porque ele não a tinha antes de eu começar a domesticá-lo, mas a Mulher ainda
tem uma sensação impotente de não ser capaz de fazer de outra forma um último, embora
extremamente insignificante, traço de liberdade inteligível, provavelmente porque não existe
Mulher absoluta. As mulheres são seres humanos e devem ser tratadas como tal, mesmo que
elas mesmas nunca desejem isso. A Mulher e o Homem têm direitos iguais.

Aliás, isso não significa que as mulheres devam receber imediatamente uma participação no
poder político. Do ponto de vista da utilidade, tal concessão, por enquanto e possivelmente
para sempre, é certamente desaconselhável. Na Nova Zelândia, onde o princípio ético foi tão
elevado que deu às mulheres o direito de voto, os resultados foram desastrosos. Assim como a
nenhuma criança, imbecil ou criminoso seria concedida qualquer influência sobre o governo da
comunidade, mesmo que de repente eles alcançassem uma paridade numérica ou mesmo
uma maioria, então é legítimo, por enquanto, manter as mulheres fora do assuntos em que há
todos os motivos para temer que uma influência feminina só faça mal. Assim como os
resultados científicos são independentes de todos concordarem ou não com eles, os direitos
ou não da mulher podem ser determinados com bastante precisão sem envolver as próprias
mulheres na decisão, e elas não precisam ter medo de serem enganadas se essa decisão for
feita segundo o ponto de vista da justiça e não do poder.

A justiça é uma e a mesma tanto para o Homem como para a Mulher. Ninguém deve ter a
presunção de negar ou proibir nada à Mulher como sendo “não feminino”, e é um julgamento
vil considerar inocente um homem que matou sua esposa adúltera, como se, legalmente, ela
fosse sua posse. A mulher deve ser julgada como um indivíduo e de acordo com a ideia de
liberdade, não como uma espécie, não de acordo com um padrão derivado do mundo
empírico, nem das necessidades do amor do Homem, mesmo que ela nunca se mostre digna
de um julgamento tão elevado.

Portanto, este livro é a maior homenagem já prestada às mulheres. O homem só pode adotar
uma atitude moral para com a mulher, como para com tudo o mais: não a sexualidade e não o
amor — ambos a usam como um meio para fins estranhos -, mas apenas a tentativa de
entendê-la. A maioria das pessoas teoricamente finge respeitar a Mulher e na prática despreza
ainda mais as mulheres: eu inverti essa relação. Tornou-se impossível atribuir um valor
elevado à Mulher, mas a mulher não deve ser excluída de qualquer respeito de uma vez por
todas desde o início.

Infelizmente, alguns homens muito famosos e excepcionais realmente tiveram opiniões


bastante mesquinhas sobre esse assunto. Lembre-se da atitude de Schopenhauer e
Demóstenes em relação à emancipação das mulheres. E o de Goethe:

Assim, a donzela está sempre ocupada e amadurece em segredo


Para a virtude doméstica, para fazer feliz um homem inteligente.
Se ela finalmente quiser ler, certamente escolherá um livro de receitas

Não é melhor que o de Molière:

“Une femme en sait toujours assez,


Quand la capacité de son esprit se hausse
A connaître un pourpoint d’avec un haut-de-chausse.”

O homem deve superar a aversão contra a mulher masculina em si mesmo, que nada mais é
do que egoísmo comum. Se a mulher se tornasse masculina, tornando-se lógica e ética, ela não
se prestaria mais tão bem como uma tela passiva para projeções, mas isso não é motivo
suficiente para educá-la, como se faz hoje, apenas para seu marido e seu filho, e impor-lhe
uma norma que a proíbe de tudo o que é masculino.

Ainda que a Mulher absoluta não tenha possibilidade de ser moral, não decorre do
reconhecimento dessa ideia de Mulher que o Homem deva permitir sucumbir a mulher
empírica total e irremediavelmente, e menos ainda que contribua para a tornar cada vez mais
conforme para isso. Para adotar a terminologia de Kant, teoricamente deve-se supor que “um
germe do bem” esteja presente na mulher humana viva, e é esse resquício da natureza livre
que permite que ela sinta vagamente seu destino.[1] Teoricamente, nunca se deve afirmar
categoricamente que é impossível enxertar algo mais naquele germe, mesmo que na prática
isso certamente nunca tenha sido alcançado, e mesmo que nunca o seja no futuro.

A causa e propósito mais profundos do universo é o bem, e o mundo inteiro está sujeito à ideia
moral. Até os animais são avaliados como fenômenos, sendo atribuído aos elefantes um valor
moral superior ao das cobras, embora não sejam responsabilizados como pessoas, por
exemplo, pela morte de outro animal. A mulher, porém, é responsabilizada, e isso implica a
exigência de que ela mude. E se toda feminilidade é imoral, a Mulher deve deixar de ser
Mulher e se tornar Homem.

A este respeito, em particular, deve-se ter o maior cuidado para evitar o risco de imitação
externa, que sempre joga a mulher mais firmemente de volta à feminilidade. As chances de
realmente emancipar as mulheres, ou seja, de dar-lhes uma liberdade que não é obstinação,
mas vontade, são extremamente pequenas. A julgar pelos fatos, as mulheres parecem ter
apenas duas possibilidades. Elas podem aceitar falsamente as próprias criações do homem,
acreditando que elas próprias querem algo que contradiz sua própria natureza ainda não
enfraquecida, e tornando-se falsamente indignadas com a imoralidade, como se fossem
morais, e com a sensualidade, como se quisessem um amor casto; ou podem admitir
abertamente [2] que o conteúdo da Mulher é o homem e a criança, sem perceber o que estão
de fato admitindo, e que descaramento e a derrota estão implícitos nessa afirmação.
Hipocrisia inconsciente ou identificação cínica com o instinto natural: parece não haver outra
escolha à disposição da Mulher.

No entanto, o que é necessário não é a afirmação nem a negação da feminilidade, mas sua
rejeição e sua conquista. Por exemplo, se uma mulher realmente quisesse que o homem fosse
casto, ela teria conquistado a mulher em si mesma, porque a relação sexual não seria mais seu
maior valor e seu objetivo final. Mas o problema é que é impossível acreditar na autenticidade
de tais exigências, mesmo que sejam realmente feitas de tempos em tempos. Uma mulher que
exige castidade do homem, além de histérica, é tão estúpida e incapaz de qualquer veracidade
que já nem suspeita que está negando a si mesma e destruindo absoluta e irremediavelmente
sua própria existência. Dificilmente se sabe o que preferir: a falsidade infinita da mulher em
subscrever o ideal ascético, que é a coisa mais estranha para ela, ou a admiração
desavergonhada pelo notório libertino, a quem ela simplesmente se entrega.

Mas como a verdadeira vontade da Mulher em ambos os casos é igualmente dirigida para
tornar o Homem culpado, este é o cerne da Questão da Mulher; e nessa medida a Questão da
Mulher coincide com a questão da humanidade.

Em um ponto de seus escritos, Friedrich Nietzsche diz:

Errar no problema fundamental do “homem e mulher”, negar aqui o antagonismo mais


abismal e a necessidade de uma tensão eternamente hostil, talvez sonhar aqui com direitos
iguais, educação igualitária, direitos e deveres iguais: este é um sinal típico de mente
superficial, e um pensador que provou ser superficial nesse ponto perigoso — superficial de
instinto! — pode ser considerado suspeito em geral, mais ainda, traído, descoberto: ele
provavelmente será muito “baixo” para todas as questões fundamentais da vida, também as
da vida futura, incapazes de profundidade. Por outro lado, um homem que tem profundidade,
tanto em seu espírito como em seus desejos, e também aquela profundidade de benevolência
que é capaz de dureza e severidade e é facilmente confundida com elas, só pode pensar na
mulher de uma maneira oriental. — ele deve conceber a mulher como uma posse, como uma
propriedade com fechadura e chave, como algo predestinado para servir e alcançar sua
plenitude no serviço — nesta questão ele deve se posicionar na tremenda inteligência da Ásia,
na superioridade da Ásia de instinto, como outrora os gregos: eles foram os melhores
herdeiros e alunos da Ásia e, como se sabe, de Homero à época de Péricles, com o aumento de
sua cultura e a amplitude de seus poderes, também se tornaram passo a passo mais rígidos
com mulheres, enfim, mais orientais. Quão necessário, quão lógico, quão humanamente
desejável era isso: que cada um ponderasse por si mesmo!

Aqui Nietzsche, o individualista, está pensando inteiramente em termos de ética social: sua
teoria das castas e grupos e sua teoria da reclusão, como tantas vezes, rompem a autonomia
de seu ensinamento moral. A serviço da sociedade e da paz imperturbável dos homens, ele
tenta submeter a mulher a uma relação de poder em que ela praticamente deixará de
expressar qualquer desejo de emancipação e nem mesmo repetirá a falsa e insincera exigência
de liberdade apresentado pelos defensores dos direitos das mulheres de hoje, que não têm
ideia do que realmente consiste a servidão da mulher e quais são suas causas. No entanto, não
citei Nietzsche para condená-lo por uma incoerência, mas para mostrar, com suas próprias
palavras em mente, como o problema da humanidade não pode ser resolvido sem resolver o
problema da Mulher. Aqueles que consideram uma exigência desnecessariamente alta que o
Homem respeite a Mulher por causa da ideia, do númeno, e não a usem como um meio para
um fim fora dela, e que pensam que consequentemente o Homem deve conceder à Mulher os
mesmos direitos mas também os mesmos deveres (educar-se moral e intelectualmente) que
para consigo mesmo, deve ter presente que o Homem não pode resolver o problema ético
para a sua própria pessoa se persistir em negar a ideia de humanidade na Mulher, usando-a
apenas como uma mercadoria a ser consumida e apreciada. Do ponto de vista asiático, a
relação sexual é o preço que o homem deve pagar à mulher por sua opressão. E por mais que
seja característico da Mulher sua ânsia de se submeter até à pior escravidão por esse preço, o
Homem não deve aceitar o acordo, porque moralmente ele também seria o perdedor.

Mesmo tecnicamente, então, o problema da humanidade não pode ser resolvido apenas pelo
homem. Mesmo que ele quisesse se redimir apenas a si mesmo, ele deveria levar a Mulher
consigo e tentar fazê-la abandonar seus desígnios imorais sobre ele. A mulher deve renunciar à
relação sexual internamente e com verdade, por sua própria vontade. Mas isso realmente
significa que a Mulher como tal deve perecer, e não há perspectiva de estabelecer o Reino de
Deus na terra até então. É por isso que Pitágoras, Platão, Cristianismo (em oposição ao
Judaísmo), Tertuliano, Swift, Wagner, Ibsen defenderam a libertação e redenção da Mulher, ou
seja, não pela emancipação da mulher do Homem, mas pela emancipação da Mulher da
Mulher. E em tal companhia é fácil tolerar o anátema de Nietzsche.

No entanto, é difícil para a Mulher alcançar tal objetivo por suas próprias forças. Teria de ser
possível que a centelha que nela é tão fraca pudesse ser acesa repetidamente pelo fogo do
Homem: seria necessário dar um exemplo. Cristo deu o exemplo. Ele redimiu Madalena
retornando àquela parte de seu passado e expiando-a como fez com todo o resto. Wagner, o
maior indivíduo desde Cristo, entendeu isso profundamente. Até que a Mulher deixe de existir
como Mulher para o Homem, ela mesma não pode deixar de existir como mulher: Kundry só
pode ser realmente libertada do feitiço de Klingsor por Parsifal, o homem imaculado e sem
pecado. Esta dedução psicológica concorda com o filosófico tão completamente quanto aqui
com o Parsifal de Wagner, a obra mais profunda da literatura mundial. É a sexualidade do
homem que dá à mulher uma existência como mulher em primeiro lugar. O grau em que a
matéria existe corresponde à quantidade de culpa no universo, e a Mulher também viverá
apenas até que o Homem tenha expiado totalmente sua culpa e realmente superado sua
própria sexualidade.

Esta é a única maneira de derrotar aqueles que se opõem a todas as tendências antifeministas,
argumentando que é necessário chegar a um acordo com a Mulher porque ela é como ela é e
não pode ser mudada, e que não há sentido em travar uma batalha perdida. Eu mostrei que a
Mulher não é, e que ela morre no momento em que o Homem não quer nada além de ser. O
que se combate não é uma questão de existência e essência eternamente inalterável: é algo
que pode e deve ser eliminado.

A velha solteirona é a mulher que não é mais encontrada por um homem que a cria. Como
resultado, ela perece, e a velha é tanto mais perversa quanto mais ela é uma velha solteirona.
Se um homem e uma mulher criados por ele se reencontram em más condições, ambos devem
morrer: se eles se reencontram em boas condições, o milagre acontece.

Para aqueles que entenderam, a Questão da Mulher só pode ser resolvida dessa maneira, e de
nenhuma outra. A solução será considerada impossível, seu espírito inflado, sua reivindicação
exagerada, suas exigências intolerantes. E de fato: nossa preocupação há muito deixou de ser
a Questão da Mulher de que falam as mulheres. É sobre isso que as mulheres se calam e
devem se calar eternamente: a escravidão inerente à sexualidade. Esta Questão da Mulher é
tão antiga quanto a própria sexualidade e não mais jovem que a humanidade. E a resposta é
que o Homem deve redimir-se da sexualidade para redimir a Mulher. Ele não pode fazer isso
de nenhuma outra maneira, e sua castidade — e não sua falta de castidade, como ela acredita
— é sua única salvação. No processo, ela obviamente perece como Mulher, mas apenas para
ressurgir das cinzas, recém-nascida, rejuvenescida, como o ser humano puro.

A Questão da Mulher persistirá enquanto houver dois sexos e não se calará até que a questão
da humanidade o faça. Isto é o que Cristo quis dizer quando, de acordo com o testemunho de
Clemens, o pai da Igreja, ele disse a Salomé, sem disfarçar alegremente a sexualidade, como
São Paulo e Lutero fizeram depois dele, que a morte prevaleceria enquanto as mulheres
trouxessem adiante e que a verdade não seria vista antes que os dois fossem feitos em um
único, e macho e fêmea se tornassem um terceiro, que era o mesmo, mas nem Homem nem
Mulher.

Assim, finalmente, a exigência de abstinência por parte de ambos os sexos é plenamente


explicada do ponto de vista supremo do problema da Mulher, visto como o problema da
humanidade. Derivar essa demanda dos efeitos prejudiciais da relação sexual sobre a saúde é
superficial e pode ser contestado para sempre pelos defensores do corpo; fundamentá-lo na
imoralidade da luxúria é errado, porque isso introduz um motivo heterônomo na ética.
Quando Santo Agostinho exigiu a castidade de todos os seres humanos, foi-lhe dito que a
humanidade logo desapareceria da face da terra. Esse estranho medo, que parece sugerir que
o mais terrível seria a extinção da espécie, não apenas revela uma extrema falta de crença na
imortalidade individual e na vida eterna do indivíduo moral, como também é
desesperadamente irreligioso: é também um sinal de covardia e incapacidade de viver fora do
rebanho. Aqueles que pensam assim não podem imaginar a terra sem a massa abundante de
seres humanos nela, e eles têm medo não tanto da morte quanto da solidão. Se a
personalidade moral dentro deles, que é em si imortal, tivesse força suficiente, eles teriam
coragem de enfrentar esta consequência: não temeriam a morte do corpo e não recorreriam à
certeza da continuação da espécie como um substituto insignificante para sua falta de crença
na vida eterna. A negação da sexualidade mata apenas o ser humano físico, e isso apenas para
dar uma existência plena ao espiritual.

Portanto, não pode ser um dever moral assegurar a continuação da espécie, como tantas
vezes se argumenta. Essa desculpa é uma mentira tão obviamente descarada que hesito em
fazer papel de bobo perguntando se algum ser humano já teve relações sexuais com o
pensamento de ter que evitar o grande perigo do fim da humanidade, ou se alguém já
acreditou ele mesmo se justificou ao acusar um indivíduo casto de agir imoralmente. A
fecundidade nada mais é do que repugnante, e ninguém que se pergunte sinceramente sentirá
que é seu dever garantir a continuidade da existência da espécie humana. Mas o que não é
sentido como um dever não é um dever.

Pelo contrário: é imoral transformar um ser humano no efeito de uma causa, produzir um ser
humano condicionado, como faz a paternidade, e a fonte última da servidão e da
determinação que acompanham a liberdade e a espontaneidade de um ser humano é o fato
de ter sido criado de maneira tão imoral. A razão não tem nenhum interesse na continuação
eterna da humanidade. Quem quer perpetuar a humanidade quer perpetuar um problema e
uma culpa, aliás, o único problema e a única culpa que existem, pois, o objetivo é a divindade e
o fim da humanidade na divindade, uma separação pura entre o bem e o mal, entre algo e
nada. Portanto, as tentativas que algumas vezes foram feitas para santificar a relação sexual
(que, reconhecidamente, precisa muito), inventando um ato sexual ideal em que apenas a
procriação da espécie humana é considerada, revelam-se mais um disfarce afetuoso do que
uma defesa adequada. Pois o motivo que supostamente o permite e o santifica não só não é
nenhum mandamento e não se encontra em nenhum lugar como um imperativo no ser
humano, mas é ele mesmo moralmente condenável, já que não se pede o consentimento de
um ser humano a quem se é pai ou mãe. Quanto ao outro tipo de relação sexual, em que a
possibilidade de procriação é artificialmente impedida, mesmo essa justificação extremamente
débil perde sua validade.

Assim, a relação sexual, em todo caso, contradiz a ideia de humanidade; não porque o
ascetismo seja um dever, mas sobretudo porque na relação sexual a mulher quer se tornar um
objeto, uma coisa, e o homem realmente lhe faz o favor de considerá-la uma coisa e não um
ser humano vivo com processos psíquicos internos. É por isso que o homem despreza a mulher
assim que a possui, e a mulher sente que agora é desprezada, embora dois minutos antes
fosse idolatrada.

A única coisa que um ser humano pode respeitar em um ser humano é a ideia, a ideia de
humanidade. O desprezo pela Mulher (e pelo próprio Homem), que se segue à relação sexual,
é a indicação mais segura de que a ideia foi violada. E quem não consegue entender o que
significa essa ideia kantiana de humanidade pode pelo menos considerar que as mulheres em
questão são suas irmãs, sua mãe, suas parentes femininas: é para nosso próprio bem que a
mulher deve ser tratada e respeitada como um ser humano e não degradada, como ela
sempre é através da sexualidade.

No entanto, o Homem não teria justificação para honrar a Mulher até que ela mesma
desistisse de querer ser objeto e matéria para o Homem, e até que realmente começasse a
cuidar de uma emancipação que fosse mais do que a emancipação da prostituta. Embora
ninguém tenha dito isso abertamente até agora, a servidão da Mulher deve ser buscada
precisamente em sua adoração ao poder soberano do falo do Homem sobre ela. É por isso que
a emancipação das mulheres só foi desejada sinceramente por homens, homens que não eram
muito sexuais, que não tinham muita necessidade de amor, que não tinham uma visão muito
profunda, mas homens que eram nobres e apaixonados pela justiça, como não se pode
duvidar. Não quero encobrir os motivos eróticos do homem nem fazer com que sua aversão às
“mulheres emancipadas” pareça menos do que realmente é: é mais fácil deixar-se arrastar,
como Goethe, do que ascender para sempre na solidão, como Kant. Mas muito do que é
interpretado como hostilidade do homem à emancipação é, na verdade, apenas desconfiança
e dúvida sobre sua possibilidade. O homem não quer a mulher como escrava, mas muitas
vezes procura principalmente uma companheira que o compreenda.

A educação recebida pela Mulher hoje não é do tipo que leva a mulher a decidir superar sua
verdadeira escravidão e isso tornaria mais fácil para ela fazê-lo. O dispositivo final da
pedagogia de uma mãe é ameaçar a filha, que se recusa a fazer isto ou aquilo, com o castigo
de que ela não encontrará um marido. A intenção da educação transmitida às mulheres nada
mais é do que o casamento, e um casamento bem-sucedido é sua maior glória. Enquanto o
Homem não pode ser significativamente mudado por tais influências, a Mulher é ainda mais
confirmada por elas em sua feminilidade, sua falta de independência e sua servidão.

A educação da Mulher deve ser tirada da Mulher e a educação da humanidade como um todo
deve ser tirada da mãe.

Este seria o primeiro pré-requisito para colocar a Mulher a serviço da ideia de humanidade,
que ela mais do que ninguém obstruiu desde o início.

Uma mulher que realmente renunciou, uma mulher que buscou a paz em si mesma, não seria
mais uma mulher. Ela teria deixado de ser Mulher e teria finalmente recebido o batismo
interno além do externo.

Isso pode acontecer?

Não existe Mulher absoluta e, no entanto, uma resposta afirmativa a essa pergunta parece a
afirmação de um milagre.

Tal emancipação não tornará a Mulher mais feliz: não pode prometer-lhe nenhuma bem-
aventurança, e o caminho para Deus permanece longo. Nenhum ser que existe entre a
liberdade e a servidão conhece a felicidade. Mas poderá a Mulher decidir abandonar a
escravidão para se tornar infeliz?

Não pode haver dúvida de santificar a mulher em um futuro próximo. A questão é apenas se a
Mulher pode chegar honestamente ao problema de sua existência, isto é, ao conceito de
culpa. Ela vai pelo menos querer liberdade? A única coisa que importa é fazer valer o ideal,
reconhecer a estrela-guia. A questão crucial é se o imperativo categórico pode ganhar vida na
Mulher. A mulher se sujeitará à ideia moral, à ideia de humanidade?

Pois só isso seria a emancipação das mulheres.

Notas:

1 - Cfr. capítulo XII, pág. 248f.

2 - Assim como, por exemplo, Laura Marholm.

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