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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO – UNIFESP

Brenda Barbosa da Silva

DA RÉ-EXISTÊNCIA À RESISTÊNCIA:
diálogos e tensões entre Ensino Superior, Questão Racial e Serviço Social

SANTOS, SP
2023
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO – UNIFESP

Brenda Barbosa da Silva

DA RÉ-EXISTÊNCIA À RESISTÊNCIA:
diálogos e tensões entre Ensino Superior, Questão Racial e Serviço Social

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais –
PPGSSP na Universidade Federal de São Paulo –
UNIFESP para obtenção do título de mestre em
Serviço Social e Políticas Sociais, sob orientação da
Profa. Dra. Maria Rosângela Batistoni.

SANTOS, SP
2023

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Nome: Silva, Brenda Barbosa

Título: DA RÉ-EXISTÊNCIA À RESISTÊNCIA: diálogos e tensões entre Ensino


Superior, Questão Racial e Serviço Social

Aprovado em:

Banca Examinadora:

Profa. Dra: Maria Helena Elpídio

Instituição: Universidade Federal do Espírito Santo - UFES

Julgamento:

Profa. Dra: Priscila Fernanda Gonçalves Cardoso

Instituição: Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

Julgamento:

Prof. Dr: Tiaraju Pablo D’Andrea

Instituição: Universidade Federal de São Paulo

Julgamento:

Dr: Uvanderson Vitor da Silva

Instituição: Fundação Tide Setúbal

Julgamento:

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Ao Pedro Henrique Higuchi, sempre (in memorian).
Todes que vieram antes e que vêm e virão depois.
Às tias crecheiras e Mães periféricas. É o corre delas que me permitem tecer isso aqui, apesar de
todas as adversidades
Todes que contribuem para meu desenvolvimento intelectual crítico, incluindo Eu, estudantes com
quem atuo, artistas, intelectuais e gente orgulhosamente periférica, panfletária e cotidiana, onde,
querendo, tudo se revela.

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Agradecimentos

Esse costuma ser o pedacinho que eu mais gosto de ler em um trabalho acadêmico.
Revela tanta coisa. Por vezes humaniza a relação que desenvolveremos com o trabalho
produzido. Imaginei algumas várias vezes o texto dos agradecimentos desse trabalho. Cheguei
a concluir que eu não queria agradecer nada. No máximo desagradecer. E cá estou escrevendo
um pouquinho. Foram quatro anos esperando esse momento. Quatro anos em que só
sobrevivo e a rejeição em seguir assim. Quatro anos cuja retrospectiva revela um período
muito difícil de existir, em que a dureza da realidade se confunde com a névoa de sua
transformação. Na dureza da realidade eu não quero agradecer nada e nem ninguém. Sentiria
como se legitimando todo esse processo. Mas na névoa da transformação, seria injusto
comigo mesmo e com outras pessoas que em meio aos seus desafios individuais e coletivos
também contribuíram para eu terminar. Em dado momento a dissertação foi só DISS “certa
ação” – na cultura Hip Hop uma “diss” é um rap em que se ataca ou defende algo, uma
discussão, uma treta – , o que fez eu falar inúmeras vezes que “ou eu acabo a dissertação ou
ela acaba comigo”. E quase acabou mesmo. Mesmo. Por isso, escrever os agradecimentos
marca a minha vitória sobre ela. Não é que a dissertação foi uma guerra. Mas é que as
condições, contextos e conjunturas para seu desenvolvimento foram difíceis. Do ponto de
vista estrutural das relações sociais mesmo, sabe? Eu sei que eu não fiz menos do que pude,
mas as condições e “poder” foram poucas. As interdições postas a pessoas negras que ousam
querer produzir conhecimento são muitas e ter consciência delas não alivia as limitações
Virgínia Woolf dizia que “uma mulher deve ter dinheiro e um teto todo seu, se ela quiser
escrever ficção”. E Carolina Maria de Jesus diz que “quando percebi que eu sou poetisa fiquei
triste porque o excesso de imaginação era demasiado”. Em minha realidade, com a devida
licença poética, percebi que quando descobri que sou uma intelectual fiquei tão triste porque o
excesso de reflexão era demasiado e uma pessoa negra deve ter dinheiro, um teto todo seu, se
quiser pensar. Eu não tenho nenhum dos três e nem mesmo sou mulher. Minha orientadora,
desde o início me alertara que meu projeto não era de pesquisa, era de vida. E quem acabou
foi a dissertação, não eu. Escrever o agradecimento é o triunfo ante a todas as interdições e
desafios desses últimos quatro anos. Então tenho isso a agradecer. Especialmente a minha
Mãe que tem me parido algumas vezes e a mim mesmo, que também teve que aprender a parir
a si.

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“O pensamento é um furacão
Que move e remove tudo sem explicação
Eu me perco no tempo, me sinto ao relento
Por que todo contratempo vem com cheiro de missão, então segura que eu…

Assumo a culpa, assumo as contas, seguro as pontas, meiuca


Já fui mais tonta e cabeluda agora só meto a maluca
De tanto lidar com biruta, é tanta desculpa barata
Mexem tanto na sua cuca, todo dia isso te mata

Nem respira, parece tão comum


As poucos a mente sente que vai definhar
A sobrevida sendo apenas mais um
Que não sabe se hoje poderá voltar

Quantos mais precisam morrer


Até que essa guerra acabe
Marielle disse e ainda que o ciclo se repetisse
Mostrou o que geral já sabe

If you don't know, now you know


If you don't know, now you know
If you don't know, now you know
É tanta dor que no verso no cabe

Que Oya me guarde, fortaleça minha vontade


De viver e a você que nunca seja tarde
Nos livre da maldade, da mediocridade
De morrer na mão desses covardes

Eu só quero os pretinho bem”


(TÁSSIA REIS)

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Resumo
Esta pesquisa investiga a origem do ensino superior no Brasil, os processos de resistências de
pessoas negras e sua luta no acesso à educação com vistas a sua integração na sociedade de
classes ee os impactos advindos da ampliação do ensino superior no contexto da
contrarreforma universitária. No primeiro capítulo “As Origens da Educação Superior no
Brasil” recuperamos aspectos sócio-históricos que conformam a educação, especialmente a
formal e pública no Brasil. No segundo capítulo, “Resistências Negras, Educação e ampliação
do Ensino Superior” abordamos aspectos sócio-históricos sobre as formas de organização
política da população negra, especialmente no que se refere ao acesso à educação e ensino
superior. No terceiro capítulo, “Questão Social, Questão Racial e Serviço Social recupera
aspectos sócio-históricos sobre a gênese e institucionalização do Serviço Social no Brasil, seu
fundamento e atuação com a questão social junto a classe trabalhadora e os rebatimentos da
ampliação do acesso de pessoas negras ou pobres ao ensino superior na formação em Serviço
Social, especialmente no ensino superior público. A pesquisa é de base bibliográfica em de
fontes secundárias em uma abordagem radicalmente qualitativa.
Palavras-chave: Ensino Superior; Movimento Negro; Questão Racial; Fundamentos do
Serviço Social

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From re-existence to resistance: dialogues and stress between Higher Education, Racial
Issues and Social Work

Abstract: This research investigates the origin of higher education in Brazil, the resistance
processes of black people and their struggle to access education with a view to their
integration into class society and the controls arising from the extension of higher education
in the context of the university counter-reform In the first chapter “The Origins of Higher
Education in Brazil” we recover socio-historical aspects that shape education, especially
formal and public education in Brazil. In the second chapter, “Black Resistance, Education
and Extension of Higher Education”, we address socio-historical aspects of the forms of
political organization of the black population, especially with regard to access to education
and higher education. In the third chapter, “Social Question, Racial Question and Social
Service recovers socio-historical aspects about the genesis and institutionalization of Social
Work in Brazil, its foundation and action with the social question with the working class and
the repercussions of the extension of access for people black or poor to higher education in
training in Social Work, especially in public higher education. The research is
bibliographically based on secondary sources in a radically-qualitative approach.

Keywords: Higher Education; Black Movement; Racial Issue; Fundamentals of Social Work.

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Sumário
Prólogo - 13/01/2012 - Quando eu passei no vestibular 12
Introdução 13
Um pouquinho antes do início 13
Sobre o processo de pesquisa 23
Capítulo 1 – As Origens da Educação Superior no Brasil 31
Estado Nacional, Brasil-Império e Educação 37
Estado Nacional e Escolarização 38
As escolas étnicas 39
Educação de pessoas negras, escravizadas, mestiças e indígenas e abolição da escravatura 41
Admissão ao ensino superior e ensino profissional 44
Brasil-República (1889 – atualidade) 44
Entusiasmo pela Educação e surgimento das primeiras instituições com status de Universidades
46
Nacionalização Compulsória – Fim das escolas étnicas 50
Capítulo 2 - Resistências Negras, Educação e ampliação do Ensino Superior 54
O Movimento Negro Organizado 57
Frente Negra Brasileira - FNB (1931-1937) 61
Teatro Experimental do Negro – TEN (1944-1968) 62
Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial – MNUCDR (1978 – atualidade). 65
Capítulo 3 – Questão Social, Questão Racial e Serviço Social 82
As interpretações da gênese do Serviço Social 82
Perspectiva Endógena/Conservadora do surgimento do Serviço Social 83
Perspectiva histórico-crítica – relações sociais 87
Questão Social 91
E o que é a questão racial? 94
Livre para vender sua força de trabalho e servir ao capital 95
Determinações entre Questão Social e Questão Racial 99
Considerações Finais 102
Epílogo - Sou negro(a) e entrei na Unifesp, e agora? 107
Quem não tem crachá? 109
Vai se tratar 110
Trote 2014 110
Exposição 111
DIREÇÃO RACISTA 112
Referências Bibliográfica 115
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Antiga Poesia

Minha nova poesia


É antiga poesia Um monte de gaiato em volta ainda pequenina
Eu me fiz sozinha Porque depois dos 40 é de casa pra igreja
Força feminina, rá rá É tudo é por ninharia, pretendente Jesus, o Messias
Escrevo sem ter linha Tive que trabalhar, não pude parar
Escrevo torto mesmo Guerreira estradeira, capoeira na ginga
Escrevo torto, eu falo torto Disseram pra neta que a vó era analfabeta
Pra seu desespero O mundão tá doido!
Acaba, mas ela não
É só minha poesia, antiga poesia Minha vó formou na vida e nunca soube o que é
Repito, rasgo, colo reprovação
Poesia sem maestria, mas é a minha poesia Eis a questão: Se não me espelhou, não me
Eu não sou mais menina espelhou?
A minha poesia é poesia combativa Não chamo de educação
Eu entendi seu livro, eu entendi sua língua Manhadeua singe o nariz da esfinge
Agora minha língua, minha rima eu faço De axé tô cercado
Eu já me fiz sozinha Oyá! Iemanjá vive!
E eu tenho mais palavras Aqui não tem drama ou gente inocente
Da boca escorrendo Aqui tem mulher firme arrebentando as suas
Cê disse que tá junto e eu continuo escrevendo correntes
A planta é feminina, a luta é feminina A vida toda alguma coisa tentou me matar e eu me
La mar, la sangre y mi América Latina refiz
O meu desejo é que o seu desejo não me defina Dandara! Acotirene!
A minha história é outra Salve! Negras dos sertões negras da Bahia
Tô rebobinando a fita Salve! Clementina, Leci, Jovelina
Salve! Negras dos sertões, negras da Salve! Nortistas caribenhas clandestinas
Bahia Salve! Negras da América latina
Salve! Clementina, Leci, Jovelina Salve! Eu sei não é fácil chegar
Salve! Nortistas, caribenhas, clandestinas Salve! A gente sabe levantar
Salve! Negras da América Latina Salve! Aonde eu for é o seu lugar
A baixa auto-estima da Dona Maria Salve! Permanecemos vivas
Da sua prima, da sua filha e sua vizinha É por nós, por amor
Isso me intriga, isso me instiga Por nós amor
E cê não entendeu o que significa feminista Por nós por amor
Esquento a barriga no fogão, esfrio na bacia
Cuido do filho do patrão, minha filha tá sozinha
A mão tá no trampo, a mente tá na filha Ellen Oléria

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Prólogo - 13/01/2012 - Quando eu passei no vestibular
Já inscrita no Sistema de Seleção Unificada - SISU, eu aguardava a primeira chamada para o curso de
Serviço Social, turma vespertina, na Universidade Federal de São Paulo - Baixada Santista, prevista para dali
dois dias ainda. As inscrições haviam sido encerradas no dia anterior e meus planos eram acelerar o tempo da
espera e chegar logo domingo. Era sexta-feira, meu turno encerrou no meio da tarde e mesmo tendo sido
escalada para trabalhar no final de semana eu nem achei ruim, iria me distrair da espera. Eu sai do trabalho e ao
invés de começar a viagem de volta pra casa antes que o caos da mobilidade individual e coletiva de São Paulo
iniciasse seu show de horrores, eu fui para a Biblioteca Mário de Andrade. Poderia assistir às prateleiras de
livros, ler no local, passar horas assim e nem perceber. Já era noite quando eu saí da biblioteca, para começar a
volta pra casa. A cidade que festeja a chegada do fim de semana já estava instalada do lado de fora. Quando eu
fui pegar minha mochila no guarda-volumes um senhor, funcionário do local, acostumado a me ver absorta por
ali, fez questão de me lembrar que era noite de sexta-feira, que eu era jovem e que eu deveria estar no samba e
não ali naquele momento - dava para ouvir o samba ao vivo num bar ali perto. Eu só pensava em chegar em
casa, dali umas duas horas, e repetir o dia só mais uma vez, e tudo iria mudar. Já no vagão, meu celular tocou,
atendi e era minha irmã. Ela estava um misto de alegria e tristeza, me parabenizava entristecida, porque eu
agora teria que mudar de cidade, como é que ia ser, mas que estava feliz por mim, sua irmãzinha…. Eu a
interrompi, sem entender o que ela estava dizendo. “o- MEC antecipou a primeira chamada… você não viu? Já
saiu o resultado! Seu nome tá lá”. Nisso meus olhos pousaram na TV do metrô que noticiava sobre a
antecipação da primeira chamada do SISU, na época uma demonstração de capacidade técnica-gerencial do
Governo Dilma, ante os questionamentos ao ENEM e SiSU. Era o terceiro ano de utilização do sistema e não
estava nada fácil enfrentar os tensionamentos da ala conservadora na educação superior no Brasil contrários à
ampliação do acesso ao ensino superior que tais programadas promoviam. Meus olhos ficaram embaçados,
senti cada segundinho daquele momento, as vozes no vagão, o aviso sonoro, o abrir e fechar da porta, minha
irmã no outro lado da linha. Eu tinha passado no vestibular. Foi a primeira vez que a UNIFESP existiu em mim.
Quando entendi o que estava acontecendo comecei a chorar e rir, emocionada, tão confusa com as emoções,
quanto minha irmã, mas mais patética por estar ao celular, no transporte público. Era uma cena incrivelmente
poética para meus olhares periféricos. Algumas pessoas ao redor repararam no que acontecia, a maior parte
alheia aos arredores. Eu desliguei o celular, ainda faltava muito até chegar em casa e a bateria teria que durar
até lá. Mas não importava muito naquele momento, eu estava sorridente, distribuía sorrisos no entorno, eu
tinha passado no vestibular e com isso, mais uma vez, a interrupção de minhas jornadas no telemarketing.

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Introdução
Minha primeira experiência como Assistente Social se deu na atuação junto à
população em situação de rua no município de São Paulo, como trabalhadora assalariada
CLT, 20horas semanais, em uma histórica organização social da sociedade civil, que se
coloca na defesa de direitos da população em situação de rua- Associação Rede Rua, no
período de novembro de 2017 a fevereiro de 2019. Minha atuação se deu em um projeto
considerado “piloto”, nomeado “Chapelaria Social”, cujos recursos para sua realização
haviam sido obtidos por meio da participação da instituição em um edital de uma instituição
privada. À época, a Rede Rua prestava serviços à Prefeitura Municipal de São Paulo
executando outros dois serviços socioassistenciais para a população em situação de rua.
Embora a Chapelaria Social não usufruísse da Parceria Público-Privada, sua concepção e
tipificação regiam-se pela Política de Assistência Social, como orienta a legislação da área, e
quando essa organização enfrentou desafios, também de ordem política dada sua defesa dos
interesses da população em situação de rua, perdeu os convênios públicos e precisou
reorganizar seu quadro de funcionários, eu fui demitida. Seis meses depois eu iniciava minha
atuação em um projeto social em uma instituição confessional e com recursos próprios, com
foco no atendimento a mulheres de baixa renda no contexto da prostituição na região de Santo
Amaro, na zona sul da cidade de São Paulo.

Um pouquinho antes do início


Minha opção pelo Serviço Social, se deu nos idos de 2010. E a palavra certa é mesmo
opção. Ainda que a profissão se esforce para distanciar-se de um significado benevolente e
caritativo, ainda é muito comum receber estudantes ingressantes com a percepção de que a
profissão ajuda as pessoas, oriundas de trabalhos voluntários, grupos religiosos. Não foi meu
caso. Eu sabia que o Serviço Social era uma profissão de caráter interventivo na realidade
social, com o objetivo de realizar o enfrentamento às expressões da “questão social” e com
um posicionamento de classe, foi por isso que a escolhi. Eu tive excelentes professoras antes
da graduação. Kátia Reis, Adriana Oliveira, Lucilene Gomes, Neide Castanho, Karina
Figueiredo. Eu só não sabia que – como hoje avalio – minha trajetória até ali, no que se refere
à essa compreensão da profissão, é uma perspectiva em disputa entre projetos profissionais e
também no interior de um mesmo de um mesmo projeto profissional, o “Ético-Político’; e que
aquelas relações eram únicas.

As Assistentes Sociais que considero terem iniciado minha formação antes da


graduação profissional, não me deram aulas de fundamentos teórico-metodológico da vida
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social, nem fundamentos da formação sócio-histórica da sociedade brasileira ou fundamentos
do trabalho profissional. Não me apresentaram as dimensões do projeto profissional. Pelo
menos não no sentido tradicional de “aula”, nem no espaço privilegiado para essa formação
(estabelecimentos de ensino superior). Ainda assim, por meio do exercício profissional que
realizavam, semearam a liberdade como valor ético central e as demandas políticas dela
inerentes, a defesa intransigente dos direitos humanos, a ampliação e defesa da cidadania,
entre outros princípios fundamentais da pessoa Assistente Social.

Quando “cheguei” a essas Assistentes Sociais, eu estava com dezesseis anos e desde
os dez realizava projetos socioculturais primeiramente em âmbito escolar, depois comunitário.
Já havia sido “disputada” pelo empreendedorismo social e mundo do trabalho, estava focada
em concluir o ensino médio e ingressar em uma faculdade, atuar “com justiça” e sofrido com
as mais diversas expressões da questão social e violação de direitos – abuso sexual
intrafamiliar, trabalho infantil, violência sexual no transporte público, racismo em suas mais
variadas formas, gordofobia, pobreza e pobreza extrema, insegurança alimentar e
habitacional, acesso precário à educação, saúde, transporte e emprego... Mesmo tendo nascido
em um período sócio-histórico cujo reconhecimento de direitos e cidadania haviam sido
reconhecidos, essa não era a minha realidade, nem a de meus pais, vizinhos, colegas...

Eu não teria chegado a essas Assistentes Sociais se não existisse o Centro de Defesa
de Direitos da Criança e do Adolescente – CEDECA Interlagos. E não teria chegado ao
CEDECA Interlagos se não fosse a Dielle Fernandes, a professora Vera Lúcia e um
Coordenadora Pedagógica, nova naquela escola, de quem já não recordo o nome. À época,
compreendendo que as ações socioculturais que realizávamos na escola “teriam um fim”
quando nos formássemos, um conjunto de estudantes, eu entre eles, entendemos a necessidade
de institucionalizar nossas ações por meio de um grêmio estudantil.

Desde o início do ensino médio passamos a organizar a criação do grêmio na Escola


Estadual Santo Dias da Silva. Mas, antes mesmo de concluirmos o ensino médio, nossa
capacidade de organização foi sendo diminuída – evasão pela necessidade de trabalhar,
exaustão por trabalhar e estudar, outras demandas impostas à adolescentes periféricos... Ainda
assim avançamos nessa empreitada, de modo que no terceiro ano, a Coordenadora
Pedagógica, com horror a cultura periférica e autoritária, que não havia acompanhado nossa
formação escolar permeada por um vínculo comunitário e valorização das culturas periféricas,
não gostou da ideia de um grêmio. Menos ainda quando pontuamos que não precisávamos de
sua autorização, que era um direito nosso. Depois de um episódio em que ela rasgou o
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regimento interno do grêmio, num deliberado desrespeito à nossa organização e direitos,
calhou de a Professora Vera Lúcia, minha filósofa favorita, propor um de seus tradicionais
trabalhos em grupo, “para apresentar” e de tema livre.

A essa altura, terceiro ano do ensino médio, essas atividades eram uma das minhas
favoritas. Meu grupo de amigas, acolhendo minhas angústias e indignadas com a situação do
grêmio, aceitaram como tema falar sobre “juventude no Brasil”. Eu, pelo visto desde cedo,
profundamente aflita, propunha que abordássemos a perspectiva de que “os jovens no Brasil
não é levado a sério”. Nisso a Dielle, ao que recordo, indignada mas não tão fatalista/taxativa
quanto eu, argumentava que não era bem assim. Eu, devolvia com outras situações da
realidade, nossos desafios... Ela concordava com meus argumentos, mas não com a minha
conclusão. Até que disse “eu conheço um lugar que é assim”. É, não é, é, não é. Definimos
que falaríamos sobre os jovens no Brasil, com dados da realidade, seus desafios e como parte
da pesquisa, visitaríamos o tal lugar que a Dielle dizia que lá não era assim, em que jovens
eram levados muito à sério.

Foi assim que eu cheguei de caderninho na mão para conhecer o tal lugar, o CEDECA
Interlagos, distante quase três quilômetros de onde eu morava e estudava. Cheguei
empunhando um caderno como quem empunha uma arma, querendo conhecer esse tal de
CEDECA que diz que defende direitos de crianças e adolescentes e não estava vendo o que
estava acontecendo na minha escola. Fui recebida pela Elânia Francisca, à época educadora e
estudante de psicologia, e dentre tantas outras maravilhosidades, uma pessoa negra, de
cabelos crespos, ostentando um cabelo black armado que foi me desarmando e, após me
apresentar aquele espaço, responder minhas inúmeras dúvidas e inquietações adolescente fez
eu entender o porquê a Dielle insistia em dizer que nem em todo lugar o jovem no Brasil não
era levado a sério.

Cheguei ao CEDECA Interlagos em um ano de Conferência de Direitos da Criança e


do Adolescente, num momento em que a instituição mobilizava os atores do Sistema de
Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e crianças, adolescentes jovens vinculados
aos territórios com sua atuação para participar das conferência. No dia em que eu visitei o
local, inclusive, um grupo de adolescentes de diferentes periferias dos distritos do fundão da
zona sul - Cabeça do Socorro e Parelheiros - estavam em atividades. Educadores Populares,
Arte-Educadores, Assistentes Sociais, Psicólogos, Artistas e Advogados e outros profissionais
comprometidos com a defesa de direitos da criança e do adolescente tornaram-se meus
educadores, referências e inspirações.
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Além de ampliar minha inserção e atuação no mundo, o CEDECA Interlagos
possibilitou a ampliação da minha atuação em nível regional, municipal, estadual e nacional e
internacional uma vez que me vinculei as atividades de enfrentamento a violência sexual de
crianças adolescentes, temática em que a instituição é uma referência e foi uma das
articuladoras das políticas públicas para este fim no país, através da sociedade civil
organizada. Dessa atuação, especialmente minha participação no Fórum Estadual de Defesa
dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente - FEDHCA e no Comitê Nacional de
Enfrentamento à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, trouxeram de vez as
Assistentes Sociais que mencionei anteriormente para minha vida.

Como defensoras da participação infanto-juvenil e enfrentamento ao adultocentrismo,


a participação política desses sujeitos nas políticas de seus interesses, permitiu-me o encontro
não só com o a história de lutas e organização política das classes trabalhadoras e afirmação
da doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes, como o encontro com outros
adolescentes e jovens que como eu estavam inseridos e comprometidos com essa agenda em
todo território nacional, mas, antes de tudo na própria cidade de São Paulo.

Por mais que meu engajamento social tivesse iniciado na infância, no contexto escolar,
e tivesse a participação de outros estudantes e em alguns momentos maior ou menor apoio
institucional, a iniciativa na proposição dessas atividades era minha e não ter outros
adolescentes movidos pela mesma iniciativa e vontade fazia com eu me sentisse mais
deslocada socialmente. Encontrar outros adolescentes com trajetórias e com intenções
próximas a minha, me deu pertencimento e outra capacidade de organização e incidência
política.

Em apenas um dos projetos que desenvolvi na escola, o segundo na minha vida, havia
sido uma iniciativa da própria escola. Outros quatro projetos ainda tinham partido da minha
iniciativa junto aos demais estudantes e ainda que eu já tivesse encontrado outros pares para
realizá-los, esses projetos não diziam respeito à carreira profissional que eu queria seguir, mas
sim às necessidades e demandas imediatas ao lazer, educação e cultura. Talvez pela ausência
dessas garantias, até mesmo a perspectiva de projeto profissional ficava interditada, então,
essas eram atividades no campo do voluntariado. O máximo que minha visão de mundo me
apresentava era que justiça era coisa da área do Direito, daí meu foco para este curso nos
vestibulares. “Foco” porque a premissa de cursar o ensino superior me foi semeada em casa.
Mas as condições concretas e referências para isso, não existiam. Foi preciso muito foco para
este projeto.
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Meu pai concluiu o ensino médio por meio da Educação de Jovens Adultos - EJA
quando eu já estava formada em Serviço Social. Minha Mãe, de uma sagacidade
empreendedora incrível e dotada de um intelecto ágil e estratégico foi privada da
escolarização em função do trabalho infantil. Minha irmã, quatro anos de idade mais velha do
que eu, estava ela própria pensando mais uma vez em como trabalhar para pagar um curso
técnico quando concluísse o ensino médio, quando eu, na oitava série, já me ocupava em
busca de possibilidades de trabalho formal possível de ser conciliado com os estudos
regulares e como complementaria minha formação, pois uma faculdade, só seria possível para
mim por meio de alto desempenho em avaliações vestibulares ou programas de bolsas.

O restante da minha família extensiva, em Pernambuco, onde também cheguei a morar


em um período da minha infância, à época, tinham trajetórias escolares similares a de meus
pais O motivo pelo qual meus pais e irmã vieram para São Paulo, no final dos anos 80, estava
diretamente relacionada a busca por melhores condições de emprego, educação, renda e
melhores condições de vida. Aos dezesseis anos, para mim, isso significava cursar Direito,
para fazer justiça.

Os desafios que enfrentei para poder me candidatar ao ensino superior1 para cursar
direito já me antecipavam que este nível de ensino não era, em qualquer área, “tão justo”
assim. Uma vez inserida nele, entendi que entrar era a parte mais fácil, não era só o vestibular
que era seletivo/excludente, ele era apenas uma expressão de um processo mais amplo
relacionado à história, constituição, significado e sentido do ensino superior, particularmente
neste país.

A experiência como estudante bolsista do Programa Universidade para Todos -


PROUNI no curso de graduação em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
- PUC-SP, numa turma de matutina, apresentaram-me um pouco desse significado e com
pouco mais de uma semana de curso entendi que a justiça que eu buscava o curso de Direito
não poderia me proporcionar. Como “operador de direito” (juízes, advogado, promotor,
defensores …), o profissional utiliza a lei como instrumento, mas o objetivo, o sentido de
justiça, pareceu-me muito em aberto, discussão e relativo, está muito sob sentido do operador
do direito e não a realidade concreta. A disputa pelo sentido de justiça no contexto do Direito
não me apetecia, parecia-me um desperdício de tempo e energia e eu não tinha tempo para

1
Minha trajetória educacional até a conclusão do ensino médio por si só já foi desafiadora, até concluir o
ensino médio eu mudei de escola treze vezes, passando por dez diferentes escolas públicas.
17
isso. O sentido de justiça nessa sociedade, como toda ela, é atravessada por muitas
contradições produtoras de injustiças.

A legislação que regia o PROUNI permitia que o bolsista fizesse a transferência


interna de curso, desde que a instituição de ensino permitisse, mas isso só poderia ocorrer
depois de um ano. Permaneci um ano cursando Direito, com a intenção de fazer a troca de
curso, mas parece que para a instituição de ensino era mais interessante receber o valor da
mensalidade do curso de Direito do que a de Serviço Social, curso que durante esse período
eu decidi cursar. Se eu desistisse da bolsa e me candidatasse novamente, também não era
permitido concorrer novamente a uma bolsa do programa e eu continuava sendo uma pessoa
negra rejeitada nos postos de trabalho e sem condições financeiras de arcar com os custos de
uma mensalidade em uma universidade privada. O “para todos” do PROUNI não era tão para
todos assim, antes de tudo é em benefício das instituições de ensino privada e não para o
estudante bolsista. E novamente eu estava em busca de possibilidades de cursar o ensino
superior.

Antes de novamente estar matriculada no ensino superior eu ainda tive que enfrentar
“falhas técnicas” no Sistema de Seleção Unificada – SISU, ocorrida em 2011, que me
deixaram de fora da seleção e que eu não tive forças para recorrer, mesmo eu tendo obtido
uma nota que me habilitava a entrar pela ampla concorrência nas primeiras posições da
primeira chamada; uma depressão; conflitos familiares em razão do desemprego; empregos
precarizados e a realização, pela quarta vez, do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM,
que me habilitou na seleção do SISU do primeiro semestre de 2012, quando finalmente
ingressei na graduação em Serviço Social.

O Serviço Social, foi se apresentado de modo mais adequado para minhas


necessidades, justamente por seu projeto profissional. Quando comecei a buscar qual curso
faria, já que Direito não era o que eu queria naquele momento, procurei por um curso que me
trouxesse fundamento para uma leitura e compreensão do mundo e suas injustiças, era com
elas que eu queria trabalhar. Em meio a essas pesquisas, as Ciências Sociais e Humanas me
cativaram de vez (antes disso eu flertava com a Química e algumas Engenharias). Conforme
ia buscando as profissões, Ciências Sociais e Serviço Social foram “os finalistas” da vez, na
época alguns amigos da militância estavam envoltos nos mesmos desafios. Eu escolhi o
Serviço Social por seu caráter interventivo, por ser ciências sociais aplicadas, entediava-me a
ideia de só compreender/contemplar o funcionamento da sociedade ou só contar com a sala de

18
aula como espaço de intervenção (uma visão limitada do campo da sociologia, eu sei, mas só
fui conhecer sociólogos com posicionamento e intervenção na realidades anos depois...).

O Serviço Social, foi se apresentado de modo mais adequado para minhas


necessidades, justamente por seu projeto ético-político, projeto esse que revela a ética
emancipatória da profissão e representa uma ruptura com o conservadorismo de sua gênese.
Na síntese de de Priscila CARDOSO, o projeto ético-político é:

uma das projeções de deve ser na profissão no contexto da implantação do


neoliberalismo no Brasil, situada como projeto hegemônico a partir da década de
1990 até os das de hoje, em continuidade ao projeto de ruptura. Sua teleologia
aponta para a emancipação humana que pressupõe a transformação social,
entendendo que esta não é papel de uma profissão e sim de uma classe social. Suas
dimensões política e ética pautam-se na perspectiva emancipatória explicitada pela
assunção do compromisso com a radicalização da emancipação política, tendo como
horizonte a emancipação humana. Tem como referência teórica o materialismo-
histórico-dialético donde a incorporação de importantes categorias analíticas: práxis,
contradição, mediação, entre outras, que impactaram a compreensão sobre o Serviço
Social como especialização do trabalho coletivo e, portanto, o assistente social como
classe trabalhadora, que é contratado pela burguesia para atender às demandas da
classe trabalhadora, tendo importante papel no estabelecimento de mediações
políticas sociais como meio/instrumento nesse processo (CARDOSO, 2013, p. 212)
A essa altura as Assistentes Sociais com quem eu já convivia foram cruciais para tal
decisão. As conversas com a Dri e a Lu nas caronas que me ofereceram para as reuniões
mensais do FEDHCA-SP e a parceria na atuação com Kátia Reis no Comitê Nacional, foram
espaços fundamentais para apreender essa profissão e por ela optar.

Adentrar a formação profissional ao mesmo tempo em que significava uma conquista,


também significou meu distanciamento dos lugares e espaços sem os quais eu jamais teria
tido motivos para ir para o Serviço Social. E isso dói. Especialmente por entender que esses
mundos não deveriam e não precisam estar cindidos. O distanciamento posto a minha nova
condição de estudante universitária, se dava do ponto de vista territorial, pela necessidade de
mudar de cidade para cursar a graduação, mas também simbólico, pela ausência de referências
naquele espaço Indigna-me que a formação universitária seja tão violenta para determinados
públicos e que tal violência tente ser equiparada aos desafios que este nível de ensino
estabelece a todos os seus estudantes – como se esse modo de funcionamento não fosse
também uma escolha e construção passível de questionamento.

O contexto e conjuntura que contribuíram para minha opção por graduar-me em


Serviço Social, fizeram eu pensar e me preparar para atuar na defesa de direitos de crianças e
adolescentes – especialmente no enfrentamento à violência sexual. Esse contexto envolve a
minha vida até ali, brevemente apresentada acima, com seus processos de desigualdades

19
sociorraciais, vocação para defesa de direitos em um período de ampliação do acesso ao
ensino superior.

Uma vez formada em Serviço Social, meu primeiro vínculo de trabalho não se deu
como Assistente Social, se deu como Orientadora Socioeducativa, na região norte da cidade
de São Paulo, em um Serviço Especializado de Abordagem Social à População em Situação
de Rua – SEAS Misto, ou seja, o público atendido era adultos, crianças e adolescentes – e foi
em razão deste último que fui atuar neste serviço e território, algo que desde o processo
seletivo deixei demarcado.

A atuação como orientadora durou pouco mais de três meses, pois, ainda que eu tenha
passado no período conhecido como “de experiência”, fui desligada da instituição, após
minha participação e mobilização popular em defesa do Sistema Único de Assistência Social
– SUAS, o que incluía os interesses de trabalhadores do SUAS – que a gestão do prefeito João
Dória e o secretário Felipe Sabará, responsável pela Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social - SMADS acharam que poderiam desmontar por meio da Portaria
41/2017. Dentre outras coisas a portaria que alterava a tipificação do SEAS, algo que não
tinham a competência legal para realizar, diminuindo o horário de abordagem das equipes,
reduzindo o número de trabalhadores e por consequência de abordagem. O processo de
mobilização popular realizado por trabalhadores do SUAS nesse período ainda hoje é um dos
maiores desde a implantação do SUAS na cidade, orgulho-me de ter feito parte dele e ainda
não esgotei os aprendizados políticos dessa experiência.

Mesmo antes de ser desligada, o principal motivo que fazia eu atravessar a cidade num
percurso de pelo menos 5 horas de transporte público diariamente do lado sul para o lado
norte – que ampliava-se para 7 horas quando eu ia para as atividades da pós-graduação, na
zona leste - era a abordagem a crianças e adolescentes em situação de rua em um dos
territórios com uma problemática de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes,
reconhecida nacionalmente em razão do Terminal de Cargas da Fernão Dias, considerada um
“porto seco” – foi limitada institucionalmente. Tal limitação se dava especialmente pela
ameaça dos próprios agentes dessas redes de exploração à gestão do SEAS, de modo que para
preservar a segurança dos trabalhadores, éramos proibidos de realizar a abordagem neste
local, sem qualquer outra intervenção pensada junto a outras instâncias institucionais. Eu, que
atuara no Comitê Nacional, sabia que esse tipo de ameaça era uma realidade nacional e um
dos maiores desafios no enfrentamento à exploração sexual comercial, e exigia um
compromisso ético-político na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que não era
20
impossível de ser realizada, mas que não era assumido, nem mesmo nos serviços das políticas
sociais com esta finalidade e que tanto nos custou estabelecê-las, redundando numa opção
dos executores das políticas sociais pela manutenção da reprodução dessa realidade.

Se a abordagem às crianças e adolescentes foi limitada (mas não aceita integralmente),


a abordagem à população em situação de rua adulta, até então pouco conhecida por mim,
habilitou-me para uma compreensão mais aprofundada na configuração das expressões da
“questão social” na sociedade contemporânea e de certo modo também qualificou-me para
compreender também a complexa realidade da defesa de direitos de crianças e adolescentes,
pois a trajetória de violação de direitos desses sujeitos se davam desde a infância e também
eram pais e mães de crianças e adolescentes com quem os vínculos familiares estavam
extremamente fragilizados ou rompidos. Também me trouxe subsídios para compreender a
realidade das famílias monoparentais lideradas por mulheres a quem os papéis e violências de
gênero produzidos socialmente as encarregam da responsabilidade familiar. Além da
configuração de classe e gênero que atravessava essa realidade, outra configuração se tornava
cada vez mais nítida e gritante, ao mesmo tempo em que era silenciada: a questão racial. Tal
silenciamento, inclusive, já é um indicativo dos determinantes da dinâmica das relações
étnico-raciais na conformação da sociedade.

Por mais evidente que a questão racial pudesse se apresentar, sua apreensão não era
realizada, menos ainda as ações para seu enfrentamento. Dentre os motivos para sua não
apreensão, a ausência de uma formação profissional que subsidie tal compreensão é um dos
fatores, algo que desde o pós-abolição o movimento negro organizado reivindica e realiza –
então já temos um acúmulo de pelo menos 135 anos subsidiando esse debate. Se fosse
“apenas” isso, não teríamos a atuação profissional que considera a questão racial ao investigar
e intervir na realidade social, não sofreria cada vez maiores interdições, especialmente quando
esses profissionais também são pessoas negras. Logo, não se trata necessariamente da
ausência de referências para tal motivo, mas de sua incorporação e defesa na compreensão da
própria sociedade. O desafio está ainda para além da compreensão e apreensão dessas
relações na realidade social.

Dito de outro modo: atuar nestes espaços sócio-ocupacionais, nessas condições, ainda
que não fosse com crianças e adolescentes, possibilitaram dentre outras coisas, uma maior
aproximação com a realidade social destes: encontrei os pais e mães das crianças e
adolescentes que outrora eu esperava atender e encontrei adultos cujos direitos da criança e do
adolescente haviam sido reiteradamente violados e que, na atualidade, tornavam mais
21
complexa a compreensão das expressões da questão social que os afetam. Trajetórias
complexas, cor da pele e pertencimento étnico-racial igual. Não é coincidência, é um dado da
realidade material.

Minha formação crítica na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, aliados a


formação crítica em torno da questão racial e relações étnico-raciais, educação popular
freireana, Cultura Hip Hop, culturas periféricas, movimentos populares e a formação
profissional me permitem um olhar investigativo, interpretativo e por consequência
interventivo distinto das ações habituais que materializam outros profissionais. Isso exigiu de
mim uma maior capacidade argumentativa fundamentando minha intervenção profissional. E
como não sou uma pessoa branca, não foi pouca a fundamentação. Desse movimento quatro
situações apareciam:

1. A percepção de que o modo como eu interpretava a realidade social destoava dos demais
profissionais, mesmos os comprometidos com a afirmação do projeto crítico do serviço
social. Ao considerarem a questão racial, geralmente apresentada como “recorte racial”,
esta se resumia a percepção fenotípica de que a pessoa é negra e a assunção de que esse é
um determinante que apenas a inferioriza. Quase um “carimbo” de que sua vida estará
determinada a violação de direitos, uma naturalização do lugar social vivido pelo sujeito.
E se é assim, porque a ação do Assistente Social será diferente? O “recorte racial” passa a
ser um salvo conduto que “recorta” as possibilidades de existência das pessoas negras.
Enquanto para mim, compreender a questão racial e ampliar a compreensão de classe-
raça-gênero-território-sexualidades, isso dará subsídios para pensar o enfrentamento
dessas determinações e não a naturalização e coadunação com a reprodução de
desigualdades sociorraciais.

2. Necessidade de melhor investigar/compreender a realidade social, incluindo o que me


permitia enxergar tais aspectos, uma vez que os colegas oriundos da graduação na mesma
turma e universidade e de outras, não realizavam o mesmo exercício analítico-
interventivo;

3. Dada a necessidade cada vez maior de fundamentar minha intervenção, sendo educadora
popular, fui sendo considerada mais “didática” – o que, desde o ínicio de 2020 me levou
para docência em Serviço Social em uma instituição privada na região leste da cidade de
São Paulo;

22
4. Pelo mesmo motivo do tópico anterior, também uma maior interdição de minha ação, por
“saber demais” – tanto por parte de instituições, Estado e profissionais - “sabida demais”,
“tá querendo minha vaga”, “perigo”. Meu desempenho analítico sofre maiores
questionamentos simplesmente por eu ser pela minha condição racial. A branquitude se
sente ameaçada numa esfera pessoal quando se depara com sujeitos negros destoam do
lugar social que historicamente foi determinado para brancos e negros, sendo impossível
afastar da análise minha própria presença corpórea e subjetiva neste contexto, se eu fosse
uma pessoa não negra, as resistências seriam as mesmas? Na minha experiência cotidiana
eu conheço a resposta, mas, coletivamente isso é apreendido e compreendido?

Tais reflexões pareceram-me necessárias de serem investigadas, especialmente para


dar conta de minha práxis profissional. Ao ir identificando os elementos que aparentemente
eu considerava e outros sujeitos não – a questão racial e a dinâmica das relações étnico-
raciais na reprodução da questão social nas relações sociais – organizei um processo de
pesquisa, que demandaria uma maior respaldo institucional, que apresentei ao Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, na linha de pesquisa “Fundamentos do
Serviço Social, Formação e Trabalho profissional”– atualmente “Serviço Social, Questão
Social e Políticas Social”.

Sobre o processo de pesquisa


Nesse processo de pesquisa propus revirar, no sentido de vasculhar, o Serviço Social,
em busca de uma compreensão das relações raciais, entendendo-a como uma relação social,
nos fundamentos do Serviço Social, tendo como objeto de pesquisa a questão racial nos
Fundamentos do Serviço Social.

Antes de tudo, esta pesquisa era um exercício para que eu me reconciliasse com o
Serviço Social. Das diferenças, quase incongruências, entre a formação acadêmico-
profissional e o cotidiano profissional, percebi algumas brechas que afetam demasiadamente
minha atuação profissional e que me colocam em movimento para compreender e costurar
essas lacunas.

Na última década, especialmente nos últimos cinco anos, temos visto no Serviço
Social uma série de tensionamentos quanto a formação acadêmico-profissional e questão
racial. Este tema tem sido um desafio no cotidiano da atuação profissional em diversos
espaços sócio-ocupacionais. Em minha percepção esse desafio, dentre tantos motivos, origina-
se principalmente pelo fato de o racismo ser estrutural e institucionalizado. Essas

23
características dificultam a compreensão das relações raciais na trama das relações sociais e
até mesmo a percepção dessa dificuldade, o racismo interdita nossa percepção da realidade
social..

Nesse sentido, sendo o Serviço Social parte dessa sociedade, não é de estranhar que
ele também contribua para essa reprodução. O que é de estranhar, é, sabendo que há essa
possibilidade, que a profissão, tendo o horizonte profissional que tem, tenha apresentado
tantas resistências ante a questão racial no Serviço Social. Considerando que tal, não
empreenda esforços para desvelar essas relações sociais racializadas. Tal desvelamento,
reconfigura profundamente a sociedade em que vivemos e, portanto, também as demandas
com que atuam os Assistentes Social. Esse não é um exercício fácil, já que também afeta a
autoimagem da profissão, seus significados sociais e históricos, entre outras dimensões que
impactam nos fundamentos, atualidade e identidade profissional.

Se, e é isso que considero, nos faltam camadas de informações, antigas e novas, para
compreender a realidade, e essas camadas faltantes impactam sobremaneira o ser e o fazer
profissional, como é que podemos intervir na realidade social, sem compreendê-la? Sabendo
que: o racismo é estrutural, estruturante e institucionalizado; que o Serviço Social é uma
profissão que se insere na divisão social e técnica do trabalho; que o Serviço Social é também
parte de cada tempo sócio-histórico; que é em dado contexto histórico do capitalismo que a
profissão surge, se institucionaliza e passa a atuar no enfrentamento das expressões da questão
social; e que neste mesmo período grandes mudanças, inclusive paradigmáticas, afetaram as
relações raciais no Brasil; Será que nossa profissão está conseguindo apreender essas
mudanças? Será que nossa profissão, no processo de seu surgimento e institucionalização,
também não “deixou algo de fora”, no que se refere às relações raciais? Será que os novos
conhecimentos que hoje temos sobre estes outros períodos sócio-históricos reconfiguram a
forma de ser, estar e atuar dessa profissão?

Quando o Serviço Social, como outras profissões e segmentos sociais, naturalizam


com muita facilidade os efeitos do racismo, possivelmente temos grandes na sociedade e na
profissão. Possivelmente se perde: ao não conseguir compreender/atuar no enfrentamento de
algumas expressões da questão social; ao não conseguir compreender a profissão em seu
contexto contemporâneo; ao não conseguir afirmar e reafirmar nosso Projeto Ético-Político na
intensidade e escala que necessitamos; ao nos equivocarmos na compreensão e intervenção
das demandas reais e aparentes que nosso exercício profissional requer.

24
Assim, estabeleci os seguintes objetivos para a pesquisa: objetivo geral - “Possibilitar
uma (nova?) perspectiva, reflexão e compreensão das relações raciais e sociais nos
fundamentos do serviço social incorporando às (novas?) demandas das relações étnico
raciais da sociedade contemporânea”. O alcance desse objetivo se daria a partir dos seguintes
objetivos específicos:

• Investigar a trama das relações raciais na constituição do capitalismo no


Brasil e sua configuração contemporânea; o que me levou à investigação do
escravismo pleno e tardio, bem como sua abolição e transição para o trabalho
livre e assalariado, que coincide com o advento da República, configurando a
formação das classes sociais numa sociedade capitalista.

• (Re)conhecer/ Identificar as influências das relações raciais nos Fundamentos


do Serviço Social no Brasil; que me levou à investigação do pensamento social
em relação às pessoas negras, marcado pela reconfiguração de uma hierarquia
sócio racial com base em uma sofisticação do racismo de base científica,
desenvolvimento do pensamento eugenista e de um ideário de melhoramento
da raça, assimilado como questão social e início da intervenção estatal nesta
matéria - gênese do Serviço Social no Brasil

• Investigar as apreensões e as respostas que o Serviço Social tem realizado


ante a ascensão do debate e demandas das relações étnico raciais no Brasil
contemporâneo, em especial no processo de formação acadêmico-profissional
em Serviço Social - que me levou a investigar a própria formulação do ensino
superior no Brasil, para além do Serviço Social, especialmente o público, ao
identificar que a ascensão da questão racial e relações étnico-raciais na
contemporaneidade relacionam-se com a ampliação do acesso ao ensino
superior privado e público e com o desenvolvimento das lutas do Movimento
Negro na luta pelo acesso a educação. Com isso desloquei a atenção para o
contexto que circunda o Serviço Social e não para os desdobramentos disso em
seu interior;

• Refletir e (re)interpretar o significado social e os limites e possibilidades da


profissão no enfrentamento às expressões da questão social em tempos de
desvelamento do racismo estrutural e institucionalizado; que me levou a
refletir sobre a relação entre questão racial e questão social, seus fundamentos,

25
como se implicam e o reprodução do racismo como parte do pacto narcísico da
branquitude.

A partir disso a dissertação proposta apresenta três capítulos, além desta introdução e
considerações finais.

No primeiro capítulo “As Origens da Educação Superior no Brasil” recuperamos


aspectos sócio-históricos que conformam a educação, especialmente a formal e pública no
Brasil. Para isso apresenta marcos históricos, institucionais e jurídicos do Brasil-Colônia
(1500-1822), Brasil-Império (1822-1889) e períodos do Brasil-República (1889 – atualidade).
Sempre que possível demarca-se aspectos constitutivos da dinâmica das relações raciais em
nesses “brasis”, desvelando como a situação contemporânea do acesso e permanência na
trajetória da educação de pessoas negras e indígenas foi ativamente construída pelo Estado-
Nação brasileiro. Busca responder inquietações como: Qual a origem do ensino superior no
Brasil? E o ensino profissionalizante? Que forças o instituíram? Como se dava o ingresso?
Para qual público se dirigia? Pessoas negras e indígenas eram contempladas? Havia distinções
étnicas?

No segundo capítulo, “Resistências Negras, Educação e ampliação do Ensino


Superior” abordamos aspectos sócio-históricos sobre as formas de organização política da
população negra, especialmente no que se refere ao acesso à educação e ensino superior. Para
isso recuperamos aspectos da formação étnico-social, econômica e política do Brasil,
demonstrando tópicos constitutivos das relações sociais e das relações raciais e seus
desdobramentos no âmbito da educação e da organização do Movimento Negro em suas
reivindicações. Busca responder e/ou refletir questões como: Por que e como se organizou
politicamente a população negra no pós-abolição? Que elementos constituem e determinam as
relações étnico-raciais no Brasil? Como isso afeta o acesso à educação? Que respostas
políticas foram construídas pelo Movimento Negro? Quais os impactos destas respostas?

Por fim, no terceiro capítulo, “Questão Social, Questão Racial e Serviço Social” Este
capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos sobre a gênese e institucionalização do
Serviço Social no Brasil, seu fundamento e atuação com a questão social junto a classe
trabalhadora e os rebatimentos da ampliação do acesso de pessoas negras ou pobres ao ensino
superior na formação em Serviço Social, especialmente no ensino superior público. Para isso
recuperamos elementos de sua gênese sob duas perspectivas de interpretação e apresentamos
e analisamos a questão social, que fundamenta a atuação profissional e sua relação com a

26
questão racial. Por que e como se deu a origem e institucionalização do Serviço Social no
Brasil? Que instituições contribuíram para isso? Que impactos a ampliação do ensino superior
gerou à formação e exercício profissional em Serviço Social? A pesquisa realizada, do tipo
bibliográfica, se estabelece em diálogo com pesquisadores das ciências sociais, serviço social,
bem como o acúmulo de minhas vivências e memórias como estudante da graduação, pós-
graduação e no exercício profissional em políticas sociais e na formação profissional.

Quanto à metodologia e procedimentos metodológicos, essa pesquisa abarcou pesquisa


bibliográfica com base na busca e no estudo de fontes secundárias em uma abordagem
radicalmente qualitativa. Compreendo “metodologia de pesquisa” como forma de pensar a
pesquisa e também a forma de agir na pesquisa (SILVA, B; M. VELARDI, 2018), enquanto
que os procedimentos metodológicos as ações realizadas por essa metodologia.

O modo de pensar e agir na pesquisa, por ser uma pesquisa radicalmente qualitativa
para além da articulação e realização da pesquisa bibliográfica, essa pesquisa também tomou
a minha vivência como fonte de investigação da realidade. No campo das pesquisas
qualitativas, a abordagem radicalmente qualitativa possibilita que como pesquisadora eu
também vocalize e exista na pesquisa, possibilitando um percurso investigativo que expresse
as dialeticidades e contradições desse caminho. Se opõe à noção de neutralidade científica e
de afastamento entre pesquisador e objeto.

Ao fazer a opção por uma abordagem metodológica com essas características,


possibilito abarcar minhas vivências como parte da pesquisa. Vivência aqui não como
explicitadora do mundo, numa perspectiva individualizada e autocentrada, mas como parte de
uma totalidade da vida social, que “parte de uma vivência transformada em experiência [...] A
partir dessa vivência intensa se busca produzir uma teoria que explique a vivencia, mas que
também dê conta de explicar o mundo e a totalidade a partir da vivência (D’Andrea, 2022, p.
51).

Assim, as vivências aqui são um recurso com vistas a mediação no movimento


dialético, para compreensão das particularidades entre o singular e o universal, entendendo
que a minha vivência individual e pessoal pode expressar e contribuir para a apreensão da
objetividade de parte da história social do Brasil, em que é possível encontrar o movimento
da história de uma coletividade de pessoas negras na história da classe trabalhadora.

Quanto aos procedimentos metodológicos consistiu na seleção, leitura, estudo,


fichamento, discussão e sistematização, das fontes utilizadas, ora em sessões individuais, ora
27
em espaços coletivos como as disciplinas do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Políticas Sociais2, encontros acadêmicos (Congressos Acadêmicos da UNIFESP, 1º Simpósio
de Relações Raciais e Serviço Social), grupos de estudo (Centro de Estudos Periféricos - CEP
e Grupo de Estudos de Fundamentos do Serviço Social, ambos vinculados à UNIFESP), junto
aos pares profissionais no exercício profissional e espaços em que me organizo politicamente
(Coletivo Saúde Mental nas Periferias).

A dissertação que se segue, intitulada “Da ré-existência à resistência: diálogos e


tensões entre Ensino Superior, Questão Racial e Serviço Social”, parte de uma conjuntura em
que pessoas negras vivenciavam uma condição de retrocesso em relação ao acesso à educação
e nesse sentido o prefixo “ré” tem o sentido de recuo e retrocesso em sua condição de
existência; para uma conjuntura em que pessoas negras reelaboram suas existências por meio
de processos de lutas e resistências ante as sequelas da questão racial e nesse sentido o prefixo
“re” tem o significa de intensificação, reforço, demarcando a própria mudança política
alcançada pelos sujeitos em luta.

2
Foram cursadas as seguintes disciplinas: Fundamentos do Serviço Social; Movimentos Antirracistas,
Marxismo e Serviço Social; Redes Sociais Territoriais: perspectivas teóricas e metodológicas; Serviço Social e
Política Social; Trabalho e Questão Social; Violência de Estado e a produção de conhecimento a partir do
processso de r(existir) dxs sujeitxs; além do Programa de Acompanhamento Didático – PAD na disciplina de
Fundamentos Teóricos Metodológicos do Serviço Social II e do aproveitamento de créditos da disciplina de
Estado, Mudança Social e Participação Política e de Filosofia da Ciência, no Programa de Pós-Graduação em
Mudança Social e Participação Política – PROMUSPP, na Universidade de São Paulo – USP.
28
Negro Drama Hum, nego drama de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Nego drama
Se temer é milho
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Nego drama
Que sou homem e não um covarde
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura Que Deus me guarde, pois eu sei que ele
não é neutro
Nego drama
Vigia os rico, mas ama os que vem do gueto
Tenta ver e não vê nada
Eu visto preto por dentro e por fora
A não ser uma estrela
Guerreiro, poeta, entre o tempo e a memória
Longe, meio ofuscada
Ora, nessa história vejo dólar e vários
Sente o drama
quilates
O preço, a cobrança
Falo pro mano que não morra e também não mate
No amor, no ódio, a insana vingança
O tic-tac não espera, veja o ponteiro
Nego drama Essa estrada é venenosa e cheia de morteiro
Eu sei quem trama e quem tá comigo
Pesadelo, hum, é um elogio
O trauma que eu carrego
Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu
Pra não ser mais um preto fodido
No clima quente, a minha gente sua frio
O drama da cadeia e favela Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil, fuzil
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Nego drama
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
Que sobrevivem em meio às honras e covardias Crime, futebol, música, carai'
Eu também não consegui fugir disso aí
Periferias, vielas, cortiços
Eu sou mais um
Você deve tá pensando
Forrest Gump é mato
O que você tem a ver com isso?
Eu prefiro contar uma história real
Desde o início, por ouro e prata Vou contar a minha
Olha quem morre, então
Daria um filme
Veja você quem mata
Uma negra e uma criança nos braços
Recebe o mérito a farda que pratica o mal Solitária na floresta de concreto e aço
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural Veja, olha outra vez o rosto na multidão
Histórias, registros e escritos A multidão é um monstro sem rosto e coração
Não é conto nem fábula, lenda ou mito
Hei, São Paulo, terra de arranha-céu
Não foi sempre dito que preto não tem A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
vez? Família brasileira, dois contra o mundo
Então olha o castelo e não Mãe solteira de um promissor vagabundo
Foi você quem fez, cuzão
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Eu sou irmão do meus truta de batalha Um bastardo, mais um filho pardo sem pai
Eu era a carne, agora sou a própria navalha Hei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Tim-tim, um brinde pra mim Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé
Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias
Cê disse que era bom e as favela ouviu
O dinheiro tira um homem da miséria Lá também tem uísque, Red Bull, tênis Nike e fuzil
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela Admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei fazer
São poucos que entram em campo pra vencer Internet, videocassete, os carro loco
A alma guarda o que a mente tenta esquecer
Atrasado, eu tô um pouco sim, tô, eu acho
Olho pra trás, vejo a estrada que eu trilhei, Só que tem que
mó cota Seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota Eu sou problema de montão, de Carnaval a
Entre as frases, fases e várias etapas Carnaval
Do quem é quem, dos mano e das mina fraca Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu
quintal
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Problema com escola eu tenho mil, mil fita Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho?
Inacreditável, mas seu filho me imita Agora tá de olho no carro que eu dirijo?
No meio de vocês ele é o mais esperto
Demorou, eu quero é mais, eu quero até
Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto
sua alma
Esse não é mais seu, oh, subiu Aí, o rap fez eu ser o que sou
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu Ice Blue, Edy Rock e KL Jay
Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia? E toda a família, e toda geração que faz o rap
Seu filho quer ser preto, ah, que ironia A geração que revolucionou, a geração que vai
revolucionar
Cola o pôster do 2Pac aí, que tal? Que cê
Anos 90, século 21, é desse jeito
diz?
Sente o negro drama, vai, tenta ser feliz Aí, você sai do gueto
Ei bacana, quem te fez tão bom assim? Mas o gueto nunca sai de você, morô irmão?
O que cê deu, o que cê faz, o que cê fez por mim? Cê tá dirigindo um carro
O mundo todo tá de olho 'ni você, morô?
Eu recebi seu ticket, quer dizer kit
Sabe por quê? Pela sua origem, morô irmão?
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
É desse jeito que você vive, é o negro drama
De vergonha eu não morri, to firmão, eis-me aqui
Você não, cê não passa quando o mar vermelho Eu num li, eu não assisti
abrir Eu vivo o negro drama
Eu sou o negro drama
Eu sou o mano, homem duro, do gueto,
Eu sou o fruto do negro drama
Brown, oba
Aí Dona Ana, sem palavra
Aquele loco que não pode errar
A senhora é uma rainha, rainha
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk Mas aí, se tiver que voltar pra favela
E de onde vem os diamante? Da lama Eu vou voltar de cabeça erguida
Valeu mãe, negro drama (drama, drama, drama) Porque assim é que é, renascendo das cinzas
Firme e forte, guerreiro de fé
Aí, na época dos barraco de pau lá na
Vagabundo nato!
Pedreira
Onde cês tavam? Racionais MC
Que que cês deram por mim?
Que que cês fizeram por mim?

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Capítulo 1 – As Origens da Educação Superior no Brasil
Este capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos que conformam a educação,
especialmente a formal e pública no Brasil. Para isso apresenta marcos históricos,
institucionais e jurídicos do Brasil-Colônia (1500-1822), Brasil-Império (1822-1889) e
períodos do Brasil-República (1889 – atualidade). Sempre que possível demarca-se aspectos
constitutivos da dinâmica das relações raciais em nesses “brasis”, desvelando como a situação
contemporânea do acesso e permanência na trajetória da educação de pessoas negras e
indígenas foi ativamente construída pelo Estado-Nação brasileiro. Busca responder
inquietações como: Qual a origem do ensino superior no Brasil? E o ensino
profissionalizante? Que forças o instituíram? Como se dava o ingresso? Para qual público se
dirigia? Pessoas negras e indígenas eram contempladas? Havia distinções étnicas? A pesquisa
realizada, do tipo bibliográfica, se estabelece em diálogo com pesquisadores do campo da
educação, história, ciências sociais, bem como legislações sociais.

No processo de construção do Brasil diferentes perspectivas de Educação tiveram


vigência, o que inclui o Ensino Superior. Embora esse seja um longo processo sócio-histórico,
um conflito central se reproduz nesta estrutura: “estrutura marcadamente discriminatória
caracterizava-se pelo ensino propedêutico para as ‘elites condutoras’ e o ensino profissional
para as ‘classes menos favorecidas’ (CUNHA, 2016, p 171). Tal debate, não é apenas
discursivo, ele delineia as Políticas de Educação, especialmente a pública no Brasil, e atribui
diferentes significados ao acesso à educação de modo geral e, aqui em análise, a formação no
ensino superior no Brasil.

Para além do conjunto de ações públicas no âmbito da Educação, a Política de


Educação é a ampliação e consolidação do direito social à educação e expressa a concepção
de Educação do Estado-Nação. A política de educação superior pode revelar a própria
dinâmica das relações sociais e seus conflitos, que, dentre outros elementos, se expressam no
conjunto de leis educacionais, no projeto político-pedagógico das universidades, perfil de
público, formas de acesso, concepção de educação vigente, entre outros.

Ao ser estabelecida como direito social educação passa a ser uma conquista em favor
da cidadania do povo brasileiro. Antes de adquirir status de cidadania, educação já carregava
a promessa de uma mudança de vida e diferentes atores investiram suas ações para instituir,
garantir e acessar este direito e para o desenvolvimento da educação no Brasil.

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A educação é o campo escolhido para as reflexões aqui realizadas devido ao fato de
ser um direito social, arduamente conquistado pelos grupos não hegemônicos do
Brasil e que durante muito tempo foi sistematicamente negado aos negros e às
negras brasileiros. Na luta pela superação desse quadro de negação de direitos e de
invisibilização da história e da presença de um coletivo étnico-racial que participou
e participa ativamente da construção do país, o Movimento Negro, por meio de suas
principais lideranças e das ações dos seus militantes, elegeu e destacou a educação
como importante espaço-tempo passível de intervenção e de emancipação social,
mesmo em meio às ondas de regulação conservadora e da violência capitalista
(GOMES, 2018, p.24-25).
Neste sentido, compreender a conjuntura social, política, cultural e econômica vigente
nestes contextos sócio-históricos, facilita a compreensão do significado e intencionalidade
destas políticas, o conjunto de ações públicas realizadas pelo poder público, uma vez que a
educação em si não é um campo de neutralidade, estático, necessariamente libertadora ou
conservadora.

No Brasil a Educação Nacional está organizada em dois níveis: Educação Básica, que
abarca o Ensino Infantil, o Ensino Fundamental I e II e o Ensino Médio; e a Educação
Superior, conforme a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional.

O sistema federal de educação inclui as instituições públicas e privadas e ainda os


órgãos federais de educação: Ministério da Educação – MEC e Conselho Nacional de
Educação – CNE. O Sistema abrange a oferta de cursos sequenciais por campo de saber; de
graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e
tenham sido classificados em processo seletivo; de pós-graduação, compreendendo programas
de mestrado e doutorado, cursos de especialização, aperfeiçoamento e outros, abertos a
candidatos diplomados em cursos de graduação e que atendam às exigências das instituições
de ensino; de extensão, abertos a candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos em
cada caso pelas instituições de ensino” (BRASIL, 1996).

Ao analisar o processo de instituição do Ensino Superior e do Ensino Profissional no


Brasil, uma mesma síntese desigual e discriminatória, vinculada às classes sociais, é reiterada:
“estrutura marcadamente discriminatória caracterizava-se pelo ensino propedêutico para as
‘elites condutoras’ e o ensino profissional para as ‘classes menos favorecidas’ (CUNHA,
2016, p 171).

A educação, e por consequência o ensino superior, cumprem também uma agenda


política e na história do Brasil essa agenda se modifica conforme os projetos em disputa no
poder. É especialmente no marco da República (1889 – atual) que o debate e ação em torno

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do tema “educação” irá se desenvolver, isso porque, a res pública, a coisa pública e o público
passam a ser objeto de maior intervenção política e a própria educação passa a ser um
instrumento de consolidação da república.

Apesar disso, a origem da educação formal no Brasil é anterior à República e durante


o período de Colonização Portuguesa (1500-1822) e Império (1822-1889) envolveu
especialmente a ordem dos Jesuítas que, ao todo, criaram 17 colégios no Brasil sem a
finalidade exclusiva de formar sacerdotes. Seus colégios atendiam aos filhos de funcionários
públicos, de senhores de engenho, de criadores de gado, de artesãos e de mineradores
(CUNHA, 2016), uma parcela da elite brasileira.

Embora não houvessem universidades, cursos superiores oferecidos por faculdades,


chegaram a ser desenvolvidos no Brasil-Colônia, ainda que sem o investimento da Coroa
Portuguesa e atendia as demandas imediatas das regiões em que estavam, como teologia,
matemática.

Quanto ao tipo de conteúdo lecionado:

Nesses colégios era oferecido o ensino das primeiras letras e o ensino secundários.
Em alguns acrescia-se o ensino superior em Artes e Teologia. O curso de Artes,
também chamado de Ciências Naturais ou Filosofia, tinha duração de três anos.
Compreendia o ensino de Lógica, de Física, de Matemática, de Ética e de
Metafísica. O curso de Teologia, de quatro anos, conferia grau de doutor. Em 1553,
começaram a funcionar os cursos de Artes e Teologia. No século XVIII, o Colégio
da Bahia desenvolveu os estudos de Matemática a ponto de criar uma faculdade
específica para seu ensino. Cursos superiores também oferecidos no Rio de Janeiro,
em São Paulo, em Pernambuco, no Maranhão e no Pará (CUNHA, 2016, p.152).
Aos que não pertenciam a essa elite escravocrata e eram livres, restava ao que hoje
reconhecemos como educação profissional e que, à época, era realizado por “Corporações de
Ofícios”. No Brasil, este tipo de instrução necessariamente buscou distinguir-se do trabalho
realizado pela força de trabalho de pessoas africanas e indígenas que foram escravizadas,
estabelecendo e aprofundando uma cisão racial na divisão social do trabalho:

A inserção da mão de obra escrava como um dos pressupostos básicos da dinâmica


do modelo econômico brasileiro implantado no período colonial influenciou
decisivamente a formação da nossa força de trabalho, determinada pela própria
sociedade, a partir do momento em que esta passou a classificar os ofícios segundo o
critério que se fundamentava entre trabalho escravo e atividade inerente aos homens
livros (SANTOS, 2016, p. 205).
Ao introduzir a força de trabalho escravizada

em determinadas ocupações, que eram desenvolvidas por intermédio da força física


e pela utilização da força física e pela utilização das mãos, verificou-se um
afastamento dos indivíduos livres das referidas atividades como forma de não deixar
dúvidas quanto a sua própria condição na sociedade, que era a de possuir o status de

33
não pertencer ao grupo de trabalhadores do sistema escravista e, por conseguinte não
se identificou (SANTOS, 2016, p.204)
Com isso, o preconceito contra o trabalho manual centra-se no tipo de inserção e status
do trabalhador na sociedade – escravizado ou pessoa livre, não-branco ou branco. Em função
disso, a aprendizagem profissional, realizadas por meio de Corporações de Ofícios,
diferenciou-se do mesmo tipo de ensino realizado nos países europeus e “possuíam rigorosas
normas de funcionamento, que contavam, inclusive, com o apoio das Câmaras Municipais
para dificultar ao máximo, ou até mesmo impedir, como era o caso de algumas delas, o
ingresso de escravos” (SANTOS, 2016, p. 206).

As dificuldades e impedimentos do acesso nas Corporações de Ofícios se valiam de


processos explicita e implicitamente discriminatórios, o que contribui para, subjetivamente
embranquecer determinados ofícios e atividades realizadas com base num marcador étnio-
racial:

Na realidade, ao dificultar, ou mesmo quase interditar, o acesso de negros e mulatos,


as Corporações de Ofícios no Brasil incorporaram o processo discriminatório que
permeava a sociedade brasileira na época, De forma explícita, a discriminação se
dava a partir das normas rígidas de ingresso, e de modo implícito, a distinção se
dava em função do ensino oferecido, na medida em que estava centrada única e
exclusivamente naqueles ofícios que era exercidos pelos homens livres.
Os requisitos para a admissão de aprendizes nas Corporações de Ofícios
contribuíram para aprofundar ainda mais o caráter pejorativo que caracterizava
determinadas ocupações ao reforçar, de forma subjetiva, o embranquecimento dos
ofícios, na medida em que os homens brancos e livres procuraram preservar para si
algumas atividades manuais. Nesse sentido, o aprendizado destas deveria estar no
elenco dos cursos que eram oferecidos, única e exclusivamente, pelas referidas
Corporações (SANTOS, 2016, p.206).
Exemplifica uma distinção explícita a norma estabelecida em 1752 pela Irmandade
São José, uma destas Corporações, no Rio de Janeiro:

Todo irmão em que se notar raça de mulato, mouro ou judeu, será expulso, sem
remissão alguma. O mesmo se estenderá de suas mulheres tendo qualquer das
sobreditas falta” (SANTOS, 2016, p. 206).
Inicialmente considera-se que esta discriminação não teve maiores impactos na
disponibilidade de força de trabalho, pelo contrário, demarcava os papéis e lugares sociais
com base na etnicidade dos indivíduos e o escravismo alimentava a demanda da força de
trabalho manual “não especializado”.

Nem mesmo com a Revolução Industrial, quando o “trabalho manual” nas indústrias
passa a ser operado com maquinários isso foi afetado, uma vez que Portugal freou o
desenvolvimento industrial no século XVIII no Brasil, preservando as características
agroexportadora do sistema escravocrata e ativamente atuou para a destruição da estrutura

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industrial que se instalava nos idos do século XVIII, em favor da manutenção do pacto
colonial.

Tal destruição impactou também o desenvolvimento do ensino de profissões para toda


a classe que vivia do trabalho, pela ausência do cenário, contexto e aplicação desta
aprendizagem. O desenvolvimento industrial ganha tímida retomada com a vinda da Corte
Real para o Brasil, com a permissão de abertura de novas fábricas, possibilitando assim o
contexto para o desenvolvimento da aprendizagem profissional (SANTOS, 2016), mas é só no
século XX que uma intensa industrialização irá ocorrer no Brasil.

Posteriormente, esta conjuntura – “ação discriminatória que teve como consequência a


recusa de determinados grupos sociais em desempenhar alguns ofícios, aliada ao fechamento
de indústrias e à proibição de se construir novas unidades no referido ramo” (SANTOS, 2016,
p.207) – resultou na escassez de força de trabalho em algumas ocupações.

Ainda no século XIX uma das “soluções” encontradas para a “escassez” da força de
trabalho foi a aprendizagem compulsória para crianças e jovens “órfãos e desvalidos”, sob
responsabilidade de

juízes e Santas Casas de Misericórdia, sendo enviados para “arsenais militares e da


Marinha, onde eram internados e postos a trabalhar como artífices que, após alguns
anos, ficavam livres para escolher onde, como e para quem trabalhar. O Colégio das
Fábricas, se constituiu na primeira iniciativa de D. João VI em atender às demandas
de mão de obra, verificadas a partir da permissão da implantação de novos
estabelecimentos industriais. Criado em 1809 por D. João VI no Rio de Janeiro,
possuía caráter assistencial e, portanto, a finalidade explícita de abrigar os órfãos
trazidos na frota que transportou a família real e sua comitiva para o Brasil
(SANTOS, 2016, p.208)
O Colégio de Fábricas tornou-se um modelo para as demais unidades de ensino
profissional que se desenvolveria no Brasil. Seu modelo de ensino inicialmente ocorria fora
dos estabelecimentos, nos próprios cenários profissionais, como cais, hospitais e arsenais e
posteriormente o ensino passa a ocorrer dentro dos estabelecimentos, incluindo neste ensino a
alfabetização e o ensino primário (SANTOS, 2016).

É importante recuperar também que o ensino superior foi proibido por Portugal
durante o Brasil-Colônia, por entender este tipo de instituição como uma ameaça aos seus
interesses coloniais, tendo vigorado na maior parte de seu domínio uma educação para poucos
e a cargo dos Jesuítas:

Com a proibição da criação de universidades na colônia, Portugal pretendia impedir


que os estudos universitários operassem como coadjuvantes de movimentos
independentistas, especialmente a partir do século XVIII, quando o potencial

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revolucionário do Iluminismo fez-se sentir em vários pontos da América’ (CUNHA,
2016, p. 152).
Este cenário começa a se modificar com a vinda da família real para o Brasil, quando a
sede do reino de Portugal foi transferida para cá e posteriormente no Brasil-Império, com o
surgimento do Estado Nacional e uma tardia refundação do ensino superior.

A transferência da sede do poder metropolitano para o Brasil, em 1808, correlata ao


surgimento do estado nacional, gerou a necessidade de modificar o ensino superior
herdado da colônia, ou melhor, de fundar todo um grau de ensino completamente
distinto do anterior. O novo ensino superior nasceu, assim, sob o signo do Estado
nacional, dentro ainda dos marcos de dependência econômica e cultural, aos quais
Portugal estava preso, respectivamente, à Inglaterra e à França (CUNHA, 2016, p.
153)
Nesta refundação, o príncipe regente também não criou universidades, embora estas
também fossem instituições metropolitanas. A vinda da família real trouxe, além da classe
dominante, econômica e cultural - a alta burocracia civil, militar e eclesiástica - os tesouros da
Coroa, os próprios livros da Biblioteca Nacional, incentivo à manufatura, abertura de portos e
comércios às nações com quem estabelecia relações de cooperação, instituições culturais,
entre outros, que até então eram proibidas (CUNHA, 2016), mas não uma universidade.

A refundação do ensino superior se deu por meio da

criação de cátedras isoladas de ensino superior para formação de


profissionais, conforme o figurino do país inimigo naquela conjuntura: de
Medicina, na Bahia e Rio de Janeiro, em 1808; e de Engenharia, embutidas
na Academia Militar, no Rio de Janeiro, dois anos depois. Essas eram
unidades de ensino de extrema simplicidade, consistindo num professor que
com seus próprios meios ensinava seus alunos em locais improvisados [...]
Em 1827, cinco anos depois da Independência, o imperador Dom Pedro I
acrescentou ao quadro existente os Cursos Jurídicos em Olinda e em São
Paulo, com o que se completava a tríade de cursos profissionais superiores
que por tanto tempo dominaram o panorama do ensino superior do país:
Medicina, Engenharia e Direito (CUNHA, 2016, p.154).
Desde 1808 a admissão de estudantes aos cursos superiores estava condicionada à
aprovação em “exames preparatórios” ou “exame de estudos preparatórios”, aplicado por cada
estabelecimento de ensino procurado pelo candidato.

Somente no período da República este tema ganhará maior dinamismo, em função da


própria República, desenvolvendo o modelo que hoje temos de vestibulares. Antes, no
entanto, temos as mudanças advindas com o Brasil-Império, que traz para a agenda pública o
debate quanto a nação, o fim do sistema escravista, as políticas migratórias e o
embranquecimento da população, que repercutirá na política educacional.

36
Estado Nacional, Brasil-Império e Educação
Com a Proclamação da Independência, em 1822, a discussão de um projeto de nação
ganhou maior espaço na agenda política. Contraditoriamente, tal projeto era pensado a partir
do deslocamento de imigrantes europeus para cá e não a partir da população originária que
aqui estava, as que vieram sequestradas na condição de escravizados e as demais populações
que aqui estavam em função do pacto colonial.

O contexto de imigração para o Brasil ocorre no momento histórico em que


internacionalmente estão se formando as nacionalidades, não à toa, é com a Brasil-Império
que este debate ganha espaço na agenda política do Brasil. No Ocidente, esse nacionalismo
foi se constituindo desde o final do século XVIII e adquiriu contornos de afirmação de
unidade política (KREUTZ, 2016). Mas como unificar povos que foram espoliados,
sequestrados e escravizados por outros povos? A formação do Estado-Nação brasileiro vai
necessariamente se dá a partir da “adição” de outros povos, que melhor favorecesse as elites –
europeia - do país, para então “investir” na “unificação” destes:

Estabeleceu-se gradativamente um espaço hierarquizado em que se definia o que


seria entendido como verdadeiramente nacional e o que seria excluído dessa
compreensão. Buscava-se um pretenso coletivo, operava-se uma universalização no
conceito de povo e de nação em detrimento das especificidades e diferenciações
culturais (KREUTZ, 2016, p. 351).
A aposta na imigração europeia cumpria assim múltiplos interesses das elites: a
observância do rápido desenvolvimento dos Estados Unidos da América a partir das levas de
imigrantes; a ocupação do espaço geográfico, especialmente na região sul do país, dado os
conflitos em torno da bacia do Rio Prata; (SCHWARCZ, L. M & SARTLING, H. M, 2015;
KREUTZ, 2016); mas, especialmente os de ordem racial, com a finalidade de embranquecer e
manter a elite europeia sob domínio no Brasil, de modo que desde o governo imperial a opção
pela imigração europeia é realizada:

As colônias de imigrantes criadas pelo governo imperial careciam de fundamento


econômico porque o Nordeste tinha muita mão de obra. O motivo era ‘a crença na
superioridade do trabalhador europeu, particularmente daqueles cura raça era
distinta da dos europeus que tinham colonizado o país’. Houve um ideal de
branqueamento que se aglutinara ao liberalismo político e econômico dos
representantes da elite cultural brasileira. Por isso os núcleos de imigrantes teriam de
ser preservados das ‘contaminações e preconceitos’ do ambiente contra o trabalho
manual, impedindo-se os estabelecimentos de colonos nativos nos núcleos oficiais
de imigrantes a não ser em número inexpressivo (KREUTZ, 2016, p. 349).
Durante o período das políticas imigratórias, que atravessará o Brasil-Império e Brasil-
República, o investimento será na imigração maiormente as populações Italiana, Alemã,
Polonesa e, já em outro contexto histórico, também a Japonesa.

37
Estado Nacional e Escolarização
Há uma forte vinculação entre a formação do Estado Nacional e a escolarização que
importa recuperar. Sobre a formação do Estado-Nação Brasileiro e a imigração, cumpre
considerar que o nacionalismo pressupõe a afirmação de uma unidade simbólica, sendo
necessário para a modernização econômica nos rumos capitalistas. Como parte dessa
unificação a escolarização era uma instituição que tanto servia para disseminar tal unidade,
quanto promover uma escolarização dita igualitária, assumindo um papel central na
configuração de uma identidade nacional:

Apoiava-se na expansão do sistema escolar igualitário, com a função de difundir


uma cultura uniforme. Inventava culturas amplamente desprovidas de toda base
étnica, com a finalidade de unificar o imaginário das nações. Segundo Hobsbawm,
institucionaliza-se uma língua em detrimento de outras, criando-se centros de
identificação básica para a nacionalidade. Tentava-se assegurar lealdade dos
cidadãos difundindo e legitimando uma concepção de mundo semelhante, imposta
pelo Estado e transmitida especialmente pelo sistema escolar. A escola foi chamada
a ter um papel central na configuração de uma identidade nacional, sendo ao mesmo
tempo um elemento de incentivo à exclusão de processos identitários étnicos.
(KREUTZ, 2016, p. 351).
Dessa forma, a promoção da escolarização na modernidade, sob égide da formação
dos Estados-Nação, foi concebida como um instrumento político-ideológico de subordinação
ao Estado-Nação, com a imposição de uma língua, desvalorização de saberes particulares,
locais e originários, numa perspectiva homogeneizante e monocultural que favorece o
domínio ideológico e cultural, sem a qual a economia capitalista não consegue se expandir:

Em relação às diversas etnias, construía-se uma representação que melhor


correspondesse à edificação do projeto nacional. Independentemente da origem
social e cultura, de experiências vivenciadas, o aluno era simplesmente aluno,
retratando pouco a diversidade. O que para uma etnia pôde ser um recurso de
afirmação, para outras foi um processo problemático e, por vezes, traumático
(KREUTZ, 2016, p.352)
Trata-se também da negação do conhecimento e da instituição da escola como espaço
privilegiado para o conhecimento, sendo essa um domínio do Estado:

Assim, ao se promover a escolarização na modernidade, sob o movimento de


formação dos Estados Nacionais, essa mesma escolarização tornou-se fortemente
um fator de imposição da língua nacional e da desautorização e desencorajamento de
expressões regionais e de dialetos. A escola foi então concebida como um dos
instrumentos privilegiados para levar à interiorização da ideia de que os
conhecimentos tratados numa perspectiva generalizante são superiores aos saberes
particulares e locais. A escola deveria ser ativada em perspectiva monocultura,
tratando as diferenciações culturais como algo a ser superado. O Estado situava-se
no processo de formação da identidade nacional (KREUTZ, 2016, p. 352)
No processo histórico brasileiro essa formação do Estado-Nação não foi um
movimento linear. Dada a escravização, subjugação e espoliação dos povos originários da

38
África e daqui do que convencionamos chamar como Brasil, como indicado, esta formação
prescindiu recorrer a imigração, majoritariamente europeia:

Recorrendo-se à imigração com o objetivo de modernizar a economia, branquear a


população e garantir as fronteiras em disputa, certamente a elite política não seguiu
os cânones então prevalentes para a formação do Estado-nação em relação à forma
de governo (monarquia) e ao descaso com a rede pública de ensino, permitindo a
formação de escolas étnicas. Esse quadro foi modificado aos poucos, a partir do
período republicano, com maior ênfase a partir de 1920-1930 (KREUTZ, 2016, p.
352).
Se, num primeiro momento, o debate que circunda o projeto político de nação, no
século XIX, passa pela vinda de população majoritariamente europeia, em outro contexto
histórico, já no início do século XX, esse debate passará pela negação da diversidade étnica-
cultural (afinal já terá havido a abolição da escravatura), embora o padrão Cáucaso/Ariano,
majoritário entre esses imigrantes, seja o tipo ideal étnico-racial e cultural escolhido. Apesar
disso, as escolas étnicas organizadas por estes grupos sofrerão impactos do projeto de nação
da Era Vargas, quando serão incorporadas sistema educacional brasileiro.

Diante da política deficitária da educação no Brasil, estes imigrantes estabeleceram


espaços escolares em suas colônias, e por isso aqui retomaremos as escolas étnicas
desenvolvidas por estes grupos e suas principais características.

No período de maior entrada de imigrantes no Brasil, oriundo desta conjuntura,


estimava-se que mais de 80% da população brasileira fosse analfabeta, enquanto a tradição
escolar entre os imigrantes, embora bastante diversa, alcança indicadores maiores do que o da
população brasileira, o que levou tanto a uma pressão para o Estado prover escolas públicas,
quanto a auto-organização de escolas étnicas (KREUTZ, 2016).

As escolas étnicas
A organização de escolas étnicas envolve a dinâmica da tradição escolar dos
imigrantes, o local onde se fixaram, se no incipiente contexto urbano ou no rural, a
diversidade étnica entre os mesmos grupos e ainda suas religiões. Onde os imigrantes foram
concentrados em núcleos etnicamente homogêneos – “colônias alemãs”, “colônias italianas”,
“colônias polonesas” – o isolamento em relação a população brasileira favoreceu o
estabelecimento de uma estrutura comunitária em apoio ao processo escolar, religioso e
sociocultural. Essa organização adotava características do ensino do país de origem e em
muitas situações contava com o apoio dos países de origem para manutenção dessa estrutura –
por exemplo, com o material didático:

39
Para a organização física dos núcleos de imigrantes tinha-se como princípio que
determinado número de imigrantes (entre 80 e 100 famílias) pudesse organizar-se
em torno de um centro para a comunidade, com infraestrutura de artesanato,
comércio e atendimento religioso-escolar, devendo ter as condições básicas para a
integração entre os moradores (KREUTZ, 2016, p. 354)
Dada a ausência de um sistema escolar brasileiro suficiente, essas iniciativas foram
estimuladas inicialmente por diversos estados, tendo inclusive legislações permitindo o ensino
na língua estrangeira nas escolas públicas da região e desobrigando o ensino na língua
portuguesa, como foi o caso do Rio Grande do Sul, contrariando a queixa do administrador do
São Leopoldo – no município haviam apenas três escolas públicas e vinte e três escolas de
imigrantes, das quais apenas uma lecionava em português (KREUTZ, 2016).

Ainda quanto às características dessas escolas, as escolas dos imigrantes eram


comunitárias, particulares e/ou pertencentes congregações religiosas; concentravam-se em
núcleos rurais, exceto em São Paulo; havia diferenças entre as escolas dentro de um próprio
grupo étnico, geralmente em função da diversidade desse próprio grupo, especialmente em
relação a fé religiosa (KREUTZ, 2016).

Já em relação ao alcance desses sistemas escolares:

A etnia com maior número de escolas com maior número de escola de imigração no
Brasil até 1939 foi a dos imigrantes alemães, com 1.579 escolas, seguindo-se a dos
imigrantes italianos, com 396 escolas em 1913 (e 167 na década de 30). Os
imigrantes poloneses tiveram 349 escolas e os imigrantes japoneses 178. No entanto,
o número de escolas dos diversos grupos étnicos também não é uma questão
pacífica. No período da nacionalização compulsória a partir de 1938, segundo o
então secretário de Educação do Rio Grande do Sul, Coelho de Souza, havia no
estado 2.418 escolas étnicas alemãs. O então interventor do estado, Cel. Oswaldo
Cordeiro de Farias, afirmava que era 1.841. E na listagem das duas associações dos
professores da imigração alemã, na qual se específica nome e localidade das escolas,
seu número é de 1.041, em 1937. Entre outros grupos de imigrantes também houve
algumas iniciativas de escolas étnicas, porém em pequeno número (KREUTZ, 2016,
p.355).
Apesar das divergências quanto ao número de escolas, a experiência alemã foi a mais
robusta e vale observamos sua organização

com uma estrutura de apoio direto às escolas. Em nível confessional, católicos e


luteranos tiveram sua associação de professores, seu jornal do professor, sua escola
normal, suas reuniões locais e regionais de professores, cursos e semanas de estudo
e amplo incentivo à produção de material didático. Em nível interconfessional e
interestadual, professores teuto-brasileiros tiveram um fundo de pensão e
aposentadoria, realizaram congressos e criaram a Associação Brasileira de
Professores de Imigração Alemã.
No Rio Grande do Sul tiveram ainda uma revista especializada sobre o livro escolar,
editada de 1917 a 1938, e produziram mais de 150 manuais didáticos para uso
específico na escola teuto-brasileiro” (KREUTZ, 2016, p. 356).
[...]

40
Isso permitiu que nas décadas de 20 e 30, quando o índice nacional de analfabetismo
ainda estava em torno de 80%, os núcleos alemães de imigrantes tivessem poucos
analfabetos” (KREUTZ, 2016, p. 358).
Embora a escolarização fosse uma instituição de apoio para a criação de uma
identidade nacional, tanto no Império, quanto nas primeiras décadas do período Republicano,
dada as políticas migratórias, essa uniformidade nacional das escolas étnicas não foi uma
premissa. No entanto “a total liberdade de ensino concedida às escolas particulares,
juntamente com uma relativa autonomia cultural para imprensa própria e um associativismo,
era barganhado com a troca de apoio político” (KREUTZ, 2016, p. 365).

Educação de pessoas negras, escravizadas, mestiças e indígenas e abolição da escravatura


Os obstáculos à educação formal de pessoas escravizadas é uma trama complexa e
contraditória. Á grosso modo têm-se a interdição formal e discriminação, mas tanto escapam
experiências de admissão de pessoas escravizadas, quanto não necessariamente significa que
estas não conseguiram, por outros meios, desenvolver processos de ensino-aprendizagem. No
entanto, como essas experiências educacionais se deram majoritariamente no espaço escolar,
serão retomadas em tópico futuro, que recupera o processo de organização das pessoas negras
no Brasil.

Os obstáculos à educação formal abrangem desde a negação da capacidade cognitiva


da pessoa negra, impedimento de sua presença no ambiente escolar, bem como, a
desvalorização de suas formas de conhecer e interpretar o mundo, trata-se do extermínio da
episteme, de um epistemicídio. É com Sueli CARNEIRO (2005) que compreendemos o
epistemicídio e suas implicações:

o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos


povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela
negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da
inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro
como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade
cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos
processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é
possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem
desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E,
ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo”
ou legitimado (CARNEIRO, 2005, p.97)

E suas implicações:
Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a seqüestra,
mutila a capacidade de aprender etc. É uma forma de seqüestro da razão em duplo
sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em
outros casos lhe é imposta. Sendo, pois, um processo persistente de produção da
inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades

41
intelectuais, o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre
seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tecnologia que
integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por característica específica
compartilhar características tanto do dispositivo quanto do biopoder, a saber,
disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo de ligação que não mais se destina
ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações (CARNEIRO,
2005, p.97)

Ainda no Brasil-império, em 1879, em se tratando do ensino formal, a Reforma do


Ensino Primário e Secundário instituía a obrigatoriedade de ensino dos 7 aos 14 anos e
eliminava oficialmente a proibição de pessoas escravizadas frequentarem escolas públicas.
Luiz Alberto GONÇALVES (2016), em diálogo com outros pesquisadores indica que:

Há registros de que em algumas províncias os escravos não só eram incentivados a


frequentas aulas noturnas como de fato as frequentavam. (...) O fato de existirem
iniciativas com vistas à inclusão de escravos e dos negros livres em cursos de
instrução primária e profissional não nos autoriza inferir que essa tenha sido uma
experiência universal. Porque não foi. Peres nos chama a atenção para aquelas
províncias, como a do Rio Grande do Sul, onde ‘não só havia escolas que não
admitiam a hipótese de matricular escravos como também se negavam aceitar os
negros livres e libertos. A autora sugere que os cursos nos quais se registrava
alguma presença de negros, eram aqueles encabeçados por ‘abolicionista,
republicanos e, ainda, ferrenhos críticos da Igreja católica e defensores da instrução
para o povo’. Em outros termos, serviam-se desses cursos para divulgar ideias contra
o sistema escravista e aproveitavam para envolver negros (livres, escravos ou
libertos) na causa abolicionista. E ainda, como pretendiam ‘incutir preceitos de
moralidade e civilidade’, algo que se acreditava não existir nos africanos e seus
descendentes ‘as aulas não podiam prescindir da presença dos negros’ (p.326).
Cabe lembrar que a abolicionismo também sintetiza diferentes interesses e não
necessariamente tratou-se de um movimento em prol do reconhecimento da dignidade
humana de pessoas escravizadas ou mesmo antirracista. Sobre o acesso as escolas, Gonçalves
ainda analisa que como “muitos desse cursos continuaram a existir após a Abolição, era de se
esperar que as barreiras que a mentalidade escravista criara para dificultar a frequência de
negros nas aulas noturnas diminuíssem ou desaparecessem. Mas não foi isso que aconteceu”
(GONÇALVES, 2016, p. 327-328).

A Abolição da escravatura trouxe impacto na esfera produtiva e alterou a forma


jurídica das pessoas escravizadas, que recuperam a propriedade sobre si, mas as condições de
subalternização a que eram submetidas se reconfiguraram e se mantiveram, uma vez que a
Abolição aconteceu nas melhores condições para os fazendeiros-capitalistas.

Nesse sentido, a escolarização de pessoas escravizadas sofreu interdições colocadas


pela própria condição da escravização e quando de sua abolição, pelos processos engendrados
para manutenção da subalternidade dos novos livres.

42
Diante da interdição da escolarização de negras, negros e pessoas escravizadas, muitos
pesquisadores ampliam a compreensão da educação além da escola formal, como uma
tecnologia social capaz de influenciar comportamentos (GONÇALVES, 2016; GOMES,
2017). Embora, em alguma medida, eu também faça essa ampliação, vale ressaltar que ela não
é equivalente a escolarização formal, não outorga grau, não emite diploma, não habilita para
as relações de trabalho...

Do ponto de vista de compreender como a população negra construiu seu acesso à


educação, obviamente é fundamental essa compreensão. Mas do ponto de vista de
enfrentamento as iniquidades no acesso à educação, não é possível tomar essas experiências
como equivalentes a dos demais grupos, porque não são e também por estes grupos, além dos
espaços de escolarização formal, também possuírem espaços de educação além da
escolarização formal. Do ponto de vista de compreender as iniquidades no acesso educação
pública, não é possível tomar essa ampliação do significado de educação como subterfúgio
para identificar o equivalente no acesso à educação.

Feita essa ressalva e sabendo que a experiência escolar de pessoas escravizadas


existiu, mas não foram hegemônicas e representativas, importa trazer á cena, ainda que
brevemente, as Irmandades Negras que, nesse sentido ampliado de educação como tecnologia
social capaz de influenciar comportamentos, contribuiu para a educação de pessoas africanas
e mestiças:

As Irmandades eram parte da dinâmica da sociedade colonial e imperial. Não eram


uma exclusividade de pessoas escravizadas, africanas ou nascidas no Brasil. Ao
contrário, elas foram moldadas tal qual a própria sociedade da época o era:
estratificadas segundo a cor, condição jurídica e de nacionalidade. Todas essas
estratificações, correspondiam por sua vez, a divisões de caráter racial. É possível
dizer que o critério primeiro para a estruturação de uma Irmandade no mundo
colonial foi a cor da pele aliada à nacionalidade: pretos, brancos, pardos que se
subdividiam também pelo critério da nacionalidade – nascidos ou não no Brasil.
Entre africanos, havia a possibilidade das Irmandades se organizarem segundo a
etnia de seus membros. (COSTA, 2020, p.157)
GONÇALVES compreende que “As irmandades eram, para os negros e mulatos
livres, um local onde podiam exercer uma ‘atividade mais social que mística’, eram ‘um canal
de ascensão social, um meio de melhorar o status cotidiano” (2016, p.332).

Quanto a organização de pessoas por meio das Irmandade e a atuação social por elas
desenvolvidas nesse tipo de instituição, as Irmandades Negras foram espaços de protagonismo
negro, estabelecendo dinâmicas de proteção mútua e contribuindo para sua organização
política para além daquele período histórico:

43
apesar da baixa condição social de seus membros, as irmandades funcionaram como
associações de assistência e de ajuda material(...) Eram associações que integravam
e liberavam os indivíduos liberando seus anseios, ‘funcionando como um canal de
suas queixas, palco de suas discussões’ Por tudo isso podiam interferir (como
interferiram) no comportamento de seus membros, educando-os para a vida
associativa no mundo urbano. Formava-se a partir delas um embrião do que seriam
as organizações negras combativas que dominaram a primeira metade do século XX
(GONÇALVES, p. 336)
Admissão ao ensino superior e ensino profissional
Desde o período colonial, a admissão ao ensino superior tinha como condição a
aprovação em exames de estudos preparatório. Entretanto, em 1837, “os concluintes do curso
secundário do recém-criado Colégio Pedro II passaram a ter o privilégio da matrícula, sem
exames, em qualquer escola superior do Império” (CUNHA, 2016, p. 155).

O Colégio Pedro II, em seus primórdios, teve origem em uma instituição assistencial
para órfãos e desvalidos, o Seminário São Joaquim. Seu decreto de funcionamento indicava
(BRASIL, 1837) o regime de internato ou externato, o pagamento de honorários o ensino de
línguas (inglês, francês, latim e grego), geografia, história, filosofia, zoologia, mineralogia,
botânica, química, aritmética, álgebra, geometria, astronomia, além da língua portuguesa.
Poderiam ainda ser admitidos gratuitamente até 11 (onze) estudantes.

As elites regionais exerceram pressões com vistas a facilitar o ingresso no ensino


superior:

(...)no sentido da facilitação do ingresso no ensino superior, assim como a integração


dessas elites no e pelo Estado centralizados, fizeram com que fossem tomadas
numerosas medidas tendentes a diminuir os obstáculos representados pelos ‘exames
preparatórios’. Eles passaram a ser realizados perante juntas especiais, no Rio de
Janeiro, o prazo de validade da aprovação passou de instantânea para permanente; os
exames foram parcelados, permitindo-se realizar as provas de cada matéria no tempo
e no lugar mais conveniente para os candidatos (CUNHA, 2016, p. 155).
Já no ensino profissional as mudanças de ordem políticas do Brasil-Império, mesmo
tendo sido uma vitória dos liberais e a influência dos ideias da Revolução Francesa tenham
propiciado novos debates quanto ao modelo de educação, o ensino de ofícios não foi
contemplado ou teve progressos para elevar seu status, permanecendo “a mentalidade
conservadora do período colonial: destinar tal ramo de ensino aos humildes, pobres e
desvalidos, continuando, portanto o processo discriminatório em relação às ocupações antes
atribuídas somente aos escravos” (SANTOS, 2016, p. 208).

Brasil-República (1889 – atualidade)


A Proclamação da República em 15 de novembro de 1889 teve origem em um golpe
de Estado, numa conspiração que envolveu reuniu liberais, positivistas e monarquistas

44
ressentidos. (SCHWARCZ, 2015; CUNHA, 2016). A Constituição promulgada em 1891
resultou dos conflitos e composições dessas correntes político-ideológicas:

O federalismo tornou-se a orientação principal do novo regime, o que correspondia


aos interesses da burguesia cafeeira: as províncias foram transformadas em estados
regidos por constituições próprias, com seus governantes eleitos, suas forças
policiais autônomas. Ademais podiam contrais empréstimos externos diretamente,
legislar sobre questões fundamentais como imigração. Mas o regime federativo
reservava parcela de poder ao governo nacional, particularmente na área educacional
(CUNHA, 2016, p 156-157).
No período que convencionamos nomear como Primeira República (1889-1930),
especialmente no final do século XIX a defesa da liberdade de ensino não desencadeou a
criação de universidades no Brasil, isso pois embora para os liberais, estas eram vistas como
atividade do campo educativo, para os positivistas tinham-na como uma instituição
necessariamente comprometida com o conhecimento metafísico a quem a ciência deveria
substituir (CUNHA, 2016).

Com a Proclamação da República, a “explicação” que a elite do Brasil encontrará para


o “atraso” brasileiro é o encontro com pensamento eugênico e racista.

“Os problemas a serem enfrentados, quando o Brasil torna-se República, não


eram poucos, pois havia uma gama de questões que precisavam ser
resolvidas e tais empecilhos obstaculizavam que se tornasse uma ‘nação’(...)
especialmente no que tange à composição da população subalterna
considerada perigosa (...) É nesse quadro que o movimento eugenista emerge
no Brasil como expressão do pensamento conservador e espelhando-se no
modelo do branco cristão e civilizado. Os médicos, juristas, homens das
letras, ideólogos, que acreditavam na eugenia como ciência, tinham a
pretensão de racionalizar a imigração, findar a delinquência, liquidar os
degenerados, consolidar uma política de cariz sanitária, melhorar a raça,
através do branqueamento, para a construção de uma nação que
representasse o progresso. Cada um à sua moda, dentro das suas perspectivas
ideológicas, vão ganhar notoriedade no século XX realizando congressos,
produzindo livros, teses para sanar a questão social, a fim de intervir
concretamente na vida cotidiana e subsidiar o Estado com propostas para
transformar suas resoluções em políticas governamentais. Purificar e
modernizar o Brasil era preciso”. (GÓES, 2015, p. 96)
Nesse sentido, pode-se compreender que o projeto nacionalista brasileiro
necessariamente passou pela destruição e aniquilamento de pessoas africanas, indígenas e
mestiças. O projeto implementado no Brasil, seja do ponto de vista da economia capitalista,
seja do ponto de vista da dominação ideológica capitalista, a população negra e indígena, não
encontra guarida, lugar.

É com a consolidação da República, no final deste primeiro período, que instituições


universitárias irão ser criadas no Brasil.

45
Entusiasmo pela Educação e surgimento das primeiras instituições com status de
Universidades
Com o processo de instauração da República, investe-se na organização de um sistema
de ensino modelar, especialmente as forças oligárquicas de São Paulo. Assim, a escola
paulista estrategicamente torna-se uma referência modelar para os demais estados. No
entanto, o modelo paulista entra em crise, especialmente por “motivações políticas, sociais e
econômicas que confluíram para o chamado ‘entusiasmo pela educação’”(CARVALHO,
2016, p. 227).

A intenção de expandir a escola e a “nacionalização” encontrará limites com o cenário


de agitação e lutas da classe trabalhadora organizada no início do século XX. Inaugura-se um
conjunto de reformas educacionais, até então não levadas a cabo pelo projeto republicano.
Nessa nova lógica, erradicar o analfabetismo passa a ser uma meta e ao que se credita a
“inaptidão do país para o progresso”, estabelecendo a alfabetização como questão nacional
por excelência (CARVALHO, 2016).

A crise oligárquica alimenta um

‘entusiasmo pela educação’, uma das vertentes do processo de avalição da República


instituída, encetado por intelectuais, desiludidos, propunham-se a ‘republicanizar a
República’, movendo-se nos interstícios de um programa liberal sintetizado no lema
‘representação e justiça’ e de um projeto nacionalista de ‘soerguimento moral da
sociedade’. Quando essas bandeiras confluem para propostas de disseminação da
instrução popular como seu instrumento principal é que, segundo Nagle, surge
propriamente o ‘entusiasmo pela educação’ (CARVALHO, 2016, 231).
Entre indas e vindas, durante a década de 20 tal entusiasmo passou também pelo
“perigo da alfabetização”, temendo-se que o alfabeto fosse uma arma mau utilizada pela
população que se alfabetizasse, como também a crítica de que “só ensinar ler, escrever e
contar” não daria às pessoas as necessidades de subsistência, entendendo aqui uma forte
vinculação entre escolarização e acesso às relações de trabalho assalariado (CARVALHO,
2016)

No que se refere ao ensino superior, finalmente serão criadas instituições


universitárias. Já vimos que nas primeiras décadas da República houve uma facilitação na
condição de acesso aos cursos superiores oferecidos por faculdades e cátedras isoladas. A
facilitação se deu por meio da “equiparação dos estabelecimentos de ensino secundário e
superior ao Ginásio Nacional e às faculdades mantidas pelos governos federal” (CUNHA,
2016, p. 157). Com isso, a dispensa de exames de estudos preparatórios foi estendida aos

46
estudantes das escolas que apresentassem o mesmo currículo e que essas escolas era
majoritariamente escolas étnicas e sem a presença de pessoas negras e indígenas.

Como resultado, houve uma expansão no acesso ao ensino superior. “Assim, no


período que vai da reforma de 1891 até 1910, foram criadas no Brasil 27 escolas superiores:
nove de Medicina, Obstetrícia, Odontologia e Farmácia; oito de Direito; quatro de engenharia;
três de Economia e três de Agronomia” (CUNHA, 2016, p.158). Mas esta expansão
rapidamente culmina também em uma contenção, como explica Luiz Antonio Cunha:

“A função desempenhada pelo sistema educacional escolar, como fonte fornecedora


de diplomas garantidores da posse de conhecimentos ‘apropriados’ aos cargos
conferidores de maior remuneração, prestígio e poder, chegou a ser ameaçada por
aquele processo de expansão/facilitação: os diplomas superiores tendiam a perder a
raridade e, em consequência, deixavam de ser um instrumento de discriminação
social eficaz e aceito como legítimo. Além do mais, o imediatismo na busca por
diplomas escolares, principalmente do grau superior, comprometia a função do
ensino de formar os intelectuais das classes dominantes, mais necessidades deles do
que nunca, agora que a hegemonia de umas frações sobre outras e de todas elas
sobre as demais classes encontravam-se em crise” (CUNHA, 2017, pp. 158-159)
O Decreto 8659 de 5 de abril de 1911, conhecido como Reforma Rivadávia Correa,
trouxe novos elementos para este cenário: retirou o privilégio dos estabelecimentos de ensino
como o Colégio Pedro II/Ginásio Nacional e todos a ele equiparado, deixando de garantir
matrículas no ingresso de cursos superiores de qualquer natureza. Na prática era o fim da
facilitação do ingresso e o reestabelecimento dos exames de estudos preparatórios, agora
nomeados como exames vestibulares, como forma de seleção dos candidatos para ingresso no
ensino superior. Além disso, o decreto estimulara a autonomia financeira dos
estabelecimentos de ensino em relação ao governo federal, uma desoficialização e incentivo
ao desenvolvimento privado, que na prática significava a criação de taxas e pagamentos a
serem cobrados aos exames de admissão, matrícula, curso, biblioteca e certificado (BRASIL,
1911; CARVALHO, 2016).

Pouco tempo depois, nova reforma (Reforma Carlos Maximiliano,


Decreto11.530/1915) retoma a equiparação dos ginásios estaduais ao Ginásio Nacional,
exceto dos ginásios privados e a inclusão de mais um critério para o ingresso no ensino
superior: A aprovação no exame vestibular não era o suficiente, necessariamente os
estudantes aprovados precisavam apresentar o certificado de aprovação das matérias do curso
ginasial. Estabelecia também que os exames fossem rigorosos, fiscalizados. (CUNHA, 2016;
BRASIL, 1915).

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Na prática essas medidas dificultavam o acesso especialmente da população negra, já
vimos anteriormente que embora todo o sistema educacional fosse deficitário, foram as
populações escravizadas quem mais foram privadas do espaço escolar. Os investimentos da
política de educação concentraram-se em núcleos de colonização, embora a taxa de
analfabetismo fosse maior fora do grupo de imigrantes, posto que estavam alijados dos
espaços escolares.

É por isso que, relembrem minha crítica anterior, quando pensamos as iniquidades no
acesso à educação, embora reconheça-se o papel educador que outras formas de organização
dos negros no Brasil-Império e mesmo nas primeiras décadas da República, a exemplo das
Irmandades Negras, não possuem o mesmo impacto do ponto de visto formal, quando mais do
que o conhecimento sobre um assunto, que poderia ter sido aprendido de modo autodidata ou
em espaços não escolares, exige-se a certificação destes por meio das instituições escolares.

A primeira universidade criada no país, com essa nomenclatura e estatuto, ocorreu em


1909 e bem fora do eixo sul-sudeste que tanto concentravam a discussão sobre a política
educacional e o projeto de nação. Foi no norte do país, no Amazonas, durante o período de
prosperidade do ciclo da borracha, que a primeira universidade brasileira foi instituída:

A universidade de Manaus ofereceu cursos de Engenharia, Direito, Medicina,


Farmácia, Odontologia e de formação de oficiais da Guarda Nacional. O
esgotamento da prosperidade econômica na região levou ao fim da instituição, em
1926, da qual restou apenas a faculdade de direito, incorporada em 1962 à recém-
criada Universidade Federal do Amazonas (CUNHA, 2016, P. 162).
Com a margem estabelecida pela Reforma Rivadávia Correa, duas universidades
oriundas de grupos privados foram criadas, que não obtiveram sucesso. Também uma
Universidade de São Paulo privada foi criada, mas se tornou inviável financeiramente e foi
dissolvida em 1917. Outras experiências ocorrem assim em Minas Gerais, Paraná, ora
sobrevivendo apenas faculdades posteriormente incorporadas às universidades federais
décadas depois; ora sendo dissolvida.

Até que uma instituição vinga, digamos assim:

A primeira instituição de ensino superior do Brasil que assumiu duradouramente o


status de universidade – a Universidade do Rio de Janeiro – foi criada em 1920 (...)
A nova universidade resultou das faculdades federais de Medicina e de Engenharia
(descendentes das cátedras criadas em 1808 e 1810), e de uma faculdade de Direito,
resultado da fusão e da federalização de duas instituições privadas no Brasil, modelo
para quase a totalidade das que se seguiram. (CUNHA, 2016, p. 163)
Minas Gerais, em 1927, conseguiu instituir uma universidade.

48
Em 1931, já no período da Era Vargas, o Decreto 19.851 de 11 de abril de 1931,
estabelece o “Estatuto das Universidades Brasileiras”, ainda que só houvesse duas delas até
então, centralizando a política administrativa com a criação do Ministério da Educação (à
época, “Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública”). O estatuto organiza os
padrões de funcionamento das instituições, a administração, o corpo docente e a admissão –
de novo, além da aprovação no vestibular e certificado de conclusão do ensino secundário
exige-se prova de “idoneidade moral” (CUNHA, 2016; BRASIL, 1931).

A terceira universidade, já em 1934 no Rio Grande do Sul, teve origem em um


processo diferente das duas primeiras:

Em vez de resultar da reunião de faculdades preexistentes, ela surgiu da


diferenciação de uma única faculdade, a Escola de Engenharia de Porto Alegre. Esta
foi criada em 1896, com base no mecenato de uma baronesa, que permitiu a
contratação de 50 professores estrangeiros, principalmente alemães. Em vez do já
tradicional paradigma francês, esse estabelecimento de ensino superior tomou como
referência uma Technishe Hosschule alemã. (...)
Em 1928, a Escola de Engenharia de Porto Alegre tinha 1.200 alunos e oferecia,
além dos cursos de suas especialidade própria, os de Agronomia, Veterinária,
Química, além de cursos para formação de operários industriais e agrícolas. Em
1932 passou a se chamar Universidade Técnica do Rio Grande do Sul, mas o status
de universitário só lhe foi atribuído em 1934” (CUNHA, 2016, p. 154).
Vale lembrar o desenvolvimento das escolas étnicas alemãs na região, bem como a
proibição do ingresso de estudantes negros libertos ou não, que também teve vigência na
região.

Também em 1934 temos a criação da Universidade de São Paulo, dessa vez pública e
estatal. O contexto político da Revolução Constitucionalista de 1932 contribui para a criação
da instituição:

“Derrotada a Revolução Constitucionalista de 1932, e passada a fase mais intensa de


represálias do poder central contra seus líderes principais, alguns deles se reuniram e
fundaram a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo em 27 de maio de
193, constituída como uma fundação de direito privado, cujos cursos não pretendiam
reconhecimento de privilégio ocupacional pelo Estado.
Os cursos da nova escola eram destinados não só aos indivíduos desejosos de
aperfeiçoar estudos já realizados e aprofundar conhecimentos, mas aos que
quisessem preparar-se para ‘ocupar posições de relevo na administração das grandes
empresas particulares’, exemplificadas estas como bancos, companhias de
transportes, de serviços públicos, de indústrias, de sindicatos, de cooperativas, etc,
ou para que buscassem ‘colaborar na direção dos negócios públicos’, como técnicos
o como ‘depositários de mandatos eleitorais’” (CUNHA, 2016, p.167).
A experiência da escola livre mobilizou o governador do Estado de São Paulo,
Arnaldo Salles, também professor da Escola Politécnica, que nomeou uma comissão de
“notáveis” para criação de uma universidade estadual. Os objetivos da escola livre,

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convergiram com os da nova instituição e tinham característica e pretensão política de retomar
a hegemonia política na federação a partir da formação de uma elite intelectual. Em 25 de
Janeiro de 1934, e promulgado o Decreto estadual de criação da Universidade de São Paulo,
incorporando-lhe instituições existentes e criando outras faculdades, bem como a
incorporação de institutos de pesquisa técnico-científica e contratação de corpo docente (SÃO
PAULO, 1934; CUNHA, 2016):

Para integrar o corpo docente da nova universidade foram contratadas, logo no


primeiro ano de funcionamento, 13 professores europeus (seis franceses, quatro italianos e
três alemães). De 1934 a 1942, trabalharam na Universidade de São Paulo 45 professores
estrangeiros.

Com isso quero caracterizar o quanto, embora não seja dada formalmente a segregação
racial nos espaços escolares, especialmente nos cursos superiores, o surgimento dessas
instituições carrega o ethos de uma divisão racial e social da sociedade, produzindo maiores
desvantagens aos grupos étnicos não pertencentes (não-brancos) ao grupo étnico hegemônico
dominante (brancos). Isso não apenas no que se refere ao público que é admitido nestas
instituições, mas, primordialmente, o conhecimento, significado e objetivo da superioridade
desses cursos.

Quando o ensino superior público brasileiro passar por uma nova expansão, já no
século XXI, que será objeto de exposição e reflexão no capítulo 2 e 3, essas tensões raciais
serão trazidas à consciência, marcando o período de maior acesso coletivo de populações não-
brancas ao ensino superior brasileiro.

Nacionalização Compulsória – Fim das escolas étnicas


A autonomia que as escolas étnicas gozavam no período das imigrações, começará a
ter interferência ainda durante a Primeira Guerra Mundial, com a proibição do ensino em
línguas estrangeiras e obrigando o ensino em língua portuguesa, bem como o fechamento da
imprensa de grupos imigrantes.

A construção do Estado Novo, reprojetou a unificação do povo, após a alimentação de


suas cisões, injeção de etnias europeias e genocídio de outros. É nesse período, imbuído do
espírito da “salvação” do Brasil por meio da educação, da ascensão da eugenia e do fascismo,
que ocorre a retomada da escola pública como central para a difusão do projeto de nação por
meio do Estado. A partir de 1918, o governo federal subvenciona a nacionalização do ensino,
repercutindo numa expansão da escola pública.
50
Já na década de 1930, com a ascensão do nacionalismo, iniciam o conjunto de
legislações que poria fim às escolas étnicas, com a nacionalização compulsória. Compõem
essas legislações: Decreto 406 de maio de 1938; Decreto 1.006 de dezembro de 1939; o
Decreto 1.545 de Agosto de 1939. Juntas essas legislações ordenava que todos os materiais
didáticos fossem escritos em português, proibindo a circulação de textos impressos em língua
estrangeira, inclusão do ensino de história e geografia do Brasil, proibição do ensino de
línguas estrangeiras aos menores de 14 anos, inclusão e homenagem à bandeira nacional em
dias festivos, supervisão de todos os livros da rede de ensino elementar e de segundo grau,
construção de escolas em áreas de colonização estrangeira, estímulo ao patriotismo, proibição
de diretores estrangeiros, proibição do uso de língua estrangeira em assembleias e reuniões
públicas, direção das aulas de educação física realizada por oficial ou sargento das Forças
Armadas da região. (BRASIL, 1938; BRASIL, 1939; BRASIL, 1939; KREUTZ, 2016).

Enquanto negros eram majoritariamente analfabetos, indígenas eram dizimados e os


imigrantes já possuíam uma vantagem na escolarização, a nacionalização compulsória,
embora retirasse a autonomia dos imigrantes na decisão escoar, favorecia a criação de escolas
públicas em suas comunidades, quando não a própria escola étnica tornou-se escola pública.

É também na década de 30 que ocorre a institucionalização do Serviço Social no


Brasil, com a criação da primeira faculdade para a formação desses profissionais, no entanto,
esse processo sócio-histórico, bem como sua origem e projetos profissionais serão tema do
terceiro capítulo.

Assim, apreendemos que a origem do ensino superior no Brasil se dá de modo


fragmentado, atendendo aos interesses econômicos da elite dominante e vinculado ao projeto
político e ideológico destas elites, que ora passa pela negação da criação de universidades, ora
por sua institucionalização, mas com caráter seletivo e elitista, preferencialmente por meio do
aparato estatal. Com isso podemos compreender a origem do ensino superior no Brasil,
profundamente marcada pela questão racial que marca a sociedade brasileira e vinculada a
interesses e modelos eurocentrados.

No período analisado, a conjuntura social e política é marcada também pela mudança


da situação jurídico-político-social de pessoas africanas, negras, mestiças, indígenas e “não-
brancas”, oposta à projeção idealizada por uma elite com raízes europeias e que é
operacionalizada pelo Estado. E é sobre a atuação política de um desses grupos
historicamente destituídos do acesso à educação, a população negra, que nos dedicaremos no

51
próximo capítulo, recuperando aspectos relacionados a luta pela educação realizada pelo
Movimento Negro.

52
Pedagoginga

Orumila jogou os búzios pra ver Não é leve não, mano, pesado pique um fardo
Que futuro ia ter a ave que enfrentou o Oxossi Eu tenho amigos no outro lado, são exceções que
Índio guerreiro que era justo, que era forte eu tenho amor
Que pra defender o povo tinha apenas uma flecha Mas se tem coisa que a escola não me ensinou
em sua posse É que o amor é indispensável em qualquer lugar
E que mostrou que o impossível não era improvável que for
E o que não era tranquilo se fez favorável
E uma hora cês vão ver o inevitável Minha percepção de mundo diz que nós
Nossa fé é imensurável e transforma dor em Mesmo não vendo nada em volta, nunca estamos
motivação sós
Pra superação, tanta humilhação Faço minha oração, peço força pro meu guia
Atravessar o oceano para trampar na sua plantação E que ele não me abandone nas lutas do dia a dia
Café, algodão, cana, escravidão
Alforriaram o nosso corpo, mas deixaram as mentes Mano, vou te falar ein, ô lugar que eu odiava
na prisão Eu não entendia porra nenhuma do que a professora
Não! Abre logo a porra do cofre me falava
Não tô falando de dinheiro, eu falo de Ela explicava, explicava, querendo que eu
conhecimento Criasse um interesse num mundo que não tinha
Eu não quero mais estudar na sua escola nada haver com o meu
Que não conta a minha história, na verdade me Não sei se a escola aliena mais do que informa
mata por dentro Te revolta ou te conforma com as merdas que o
Me alimento da sabedoria de entidades de terreiro mundo tá
Sou guerreiro da falange de Ogum, zum zum zum Nem todo livro, irmão, foi feito pra livrar
Capoeira mata um, mata mil Depende da história contada e também de quem vai
Pedagoginga na troca de informação contar
Papo de visão, nossa construção Pra mim contaram que o preto não tem vez
Passa por saber quem somos e também quem eles E o que que o Hip-Hop fez? Veio e me disse o
são contrário
Não entrar em conflitos que não tragam solução A escola sempre reforçou que eu era feio
Evitar a fadiga, não dar um passo em vão O Hip-Hop veio e disse: Tu é bonito pra caralho
Quando todo campo de conhecimento é válido O Hip-Hop me falou de autonomia
Só tem que o homem pálido Autonomia que a escola nunca me deu
Nos vende que somente o seu que serve A escola me ensinou a escolher caminhos
Levanta-se a voz daquele que se atreve Dentro do quadradinho que ela mesmo me prendeu
A expor seu desconforto mesmo que o sistema não
releve (Thiago Elnino)

53
Capítulo 2 - Resistências Negras, Educação e ampliação do Ensino Superior
Este capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos sobre as formas de organização
política da população negra, especialmente no que se refere ao acesso à educação e ensino
superior. Para isso recuperamos aspectos da formação étnico-social, econômica e política do
Brasil, demonstrando tópicos constitutivos das relações sociais e das relações raciais e seus
desdobramentos no âmbito da educação e da organização do Movimento Negro em suas
reivindicações. Busca responder e/ou refletir questões como: Por que e como se organizou
politicamente a população negra no pós-abolição? Que elementos constituem e determinam as
relações étnico-raciais no Brasil? Como isso afeta o acesso à educação? Que respostas
políticas foram construídas pelo Movimento Negro? Quais os impactos destas respostas? A
pesquisa realizada, do tipo bibliográfica, se estabelece em diálogo com pesquisadores e
ativistas do campo da educação, história, ciências sociais, bem como legislações sociais e
experiências que vivenciei no contexto universitário.

Por que resistências negras?

Para compreendermos as formas de organização política da população negra, importa


considerarmos os motivos que torna necessária a organização política deste grupo. Apesar da
crise de representação política vivida em toda sociedade, e dos desafios que a miscigenação e
hierarquização racial gera para a compreensão do próprio pertencimento étnico de pessoas
negras, suas formas de organização política têm sido consistentes na reivindicação e
ampliação do direito à Educação, beneficiando um conjunto mais amplo do que o próprio
movimento representa.

Tal miscigenação não ocorreu apenas com um fato biológico, tendo se constituído
como um fato social contribuindo para a dominação dos interesses da elite branca brasileira,
dificultando a formação de um grupo étnico unificado politicamente. A filosofia étnica
organizada por meio de uma escala de valores no ordenamento da sociedade escravista,
mesmo após sua abolição ainda determinou a organização da sociedade com base na cor e
origem de nascimento (MOURA, 2014).

No Brasil o imenso grau de matizes cromáticos formados criou em contrapartida, uma


escala classificatória, considerando-se o indivíduo ou grupo tanto mais valorizado
socialmente quanto mais próximo estivesse do ideal tipo étnico imposto pelo
colonizador inicialmente e pelas elites de poder em seguida: o branco. Essa dinâmica
discriminatória foi acompanhada por uma dinâmica de julgamento social que a
completava, pela qual, à medida que esse processo discriminatório se aprofundava e a

54
população se diversificava cromaticamente via miscigenação, criava se, em
contrapartida, um julgamento de valor para cada uma dessas diferenças.
O ideal tipo das elites brasileiras, como ideologia de prolongamento do colonizador,
continuou e continua simbolicamente sendo o branco. O antimodelo étnico e estético,
como símbolo nacional, continua sendo o negro (MOURA, 2014, p. 206).

O escravismo estabeleceu tanto um aparelho de repressão material, quanto um


aparelho ideológico de dominação, garantindo assim uma dominação simbólica e estrutural da
sociedade (MOURA, 2014). Esse aparelho de dominação pode ser dividido em dois estágios,
conforme Clóvis Moura: um que vigorou durante todo o sistema escravista, pleno e tardio 3; e
outro da abolição até a atualidade. Ambos estabelecem o racismo como arma de dominação
ideológica.

Sobre o primeiro estágio, Clóvis Moura elabora que:

As barreiras jurídicas simbólicas e as limitações estruturais do sistema tiravam do


escravo todos os direitos, impunham-lhe um imobilismo total e vitalício, barravam
social e economicamente, pela coerção extraeconômica, a maioria dos habitantes do
Brasil até o início do século XIX. Os escravos, quer negros, quer pardos, só podiam
conseguir mobilidade social (vertical ou horizontal) de modo significativo e
socialmente relevante por meio das fugas, dos quilombos, das insurreições ou do
bandoleirismo quilombola. Somente através desses movimentos radicais eles
reconquistavam a liberdade, ou mediante alforrias compradas ou concedidas, muitas
vezes quando o escravo já havia chegado quase ao fim da existência ou ficava
incapacitado para o trabalho. Mesmo os libertos tinham uma série de restrições ao
exercício da cidadania. Se africanos, eram considerados estrangeiros, se crioulos
(nascidos no Brasil), podiam participar das eleições primárias, mas lhe eram vedadas
as dignidades eclesiásticas, o acesso ao Poder Judiciário, o direito ao porte de armas e
a livre locomoção noturna. Tornar-se liberto não era o mesmo que tornar-se livre.
Desta distinção encarregava-se a sociedade escravista de modo a perpetuar no ex-
escravo as marcas de sua antiga condição servil. (MOURA, 2014, p. 208-209).4

3
Por escravismo pleno, entendemos a proposição de Moura “Chamamos de escravismo pleno aquele
período de escravidão que se estende no Brasil no ano de 1500 (+ ou -) até aproximadamente 1850, é jurídico e
efetivamente extinto o tráfico internacional de escravos africanos. Abrange, portanto, todo o período colonial, a
fase do reinado de Dom João VI, o Império de Dom Pedro I e de Dom Pedro II. Nesse longo período de mais de
trezentos anos, estrutura-se o modelo de produção escravista no Brasil com todas as características que
determinarão o comportamento básico das duas classes fundamentais da estrutura social: senhores e escravos”
(MOURA, 2014, p. 62-63). Assim como escravismo tardio, também na perspectiva de Moura, tem o que
“denominamos como tardio, é o cruzamento rápido e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base
escravista. Com a particularidade de que essas relações capitalistas emergentes são dinamizadas, na sua
esmagadora maioria, por um vetor externo: capitais vindos de fora e instalados aqui como seus promotores
dinamizadores e dirigentes. Em face desse fenômeno quase todos os espaços econômicos, que poderia ser
ocupado por uma burguesia autóctone em formação, foram ocupados pelo capital alienígena, na sua esmagadora
maioria inglês. [...] O longo período de duração da escravidão no Brasil, que somente terminará já na época do
imperialismo, garroteou a possibilidade do desenvolvimento de um capital nacional não dependente, fazendo-nos
uma nação subalternizada economicamente às forças do capitalismo internacional, com todas as implicações
políticas que isto determina” (MOURA, 2014, p. 86-87).
4
Para uma compreensão dessas “fugas, dos quilombos, das insurreições ou do bandoleirismo
quilombola” ver as obras de Clóvis Moura: Rebeliões da Senzala - Quilombos, Insurreições, Guerrilha (2020);
Quilombos – Resistências ao escravismo (2020) e Os Quilombos e a rebelião negra (2022).
55
Esse preterimento às pessoas de cor teve como uma das respostas da população
preterida a imprensa mulata (Rio de Janeiro), imprensa negra (como ficou conhecida em São
Paulo)5 e outras regiões, criando uma imprensa com caráter reivindicativo e agitativo,
evidenciando as restrições sofridas em razão de sua condição. Sobre a Imprensa Negra
Paulista, MOURA irá dizer que

Durante todo o tempo em que a imprensa negra circulou, através de jornais de


pequena tiragem e duração precária, as atividades da comunidade negra de São
Paulo ali se refletiam, dando-nos, por isso, um painel ideológico e existencial do
universo do negro. Nela se encontram estilos de comportamento, anseios,
reivindicações e protestos, esperanças e frustrações dos negros paulistas. É uma
trajetória longa, dolorosa muitas vezes, a desses jornais que praticamente não tinham
recursos para se manter por muito tempo, mas sempre exprimindo, de uma forma ou
de outra, o universo da comunidade. Lá estão as festas, aniversários, acontecimentos
sociais; lá está o intelectual negro fazendo poesias; lá estão os protestos contra o
preconceito de cor e a marginalização do negro. Nessa trajetória refletem-se as
inquietações da comunidade e lá se encontram os conselhos para o negro ascender
social e culturalmente, procurando igualar-se com o branco (2019, p. 242)
Desde o período dessa imprensa6, encontraremos a principal reivindicação da
população negra desde o pós-abolição: Educação. A noção de que o negro precisa educar-se
para “subir na vida” é um ideário anterior ao próprio entusiasmo pela educação que a nação
irá viver nos anos entre 1920-1930. Essa “educação” não se refere apenas a educação escolar
institucionalizada, mas ao próprio contexto cultural e social em que os negros vivem e adquire
contornos morais puritanos de integração do negro no mundo política, econômico, social e
cultural dos brancos - e, portanto, de uma reprodução da visão dos brancos quanto aos negros,
tidos como degenerados, alcoolistas e individualmente responsabilizados por sua condição
social.

Como já mencionado anteriormente, em razão das interdições que a escravidão impôs


às pessoas africanas, seu acesso à educação sofreu grande impacto negativo. Também convém
indicar que, com uma política de embranquecimento institucionalizada, a ascensão de ideário
branco e políticas de institucionalização da questão social, a condição das pessoas da diáspora
africana na sociedade capitalista, não desfrutou das aparentes benesses da modernização da
economia, constituindo-se como uma nova fração reiteradamente subalternizada. Com isso,
até mesmo sua compreensão enquanto grupo étnico foi afetada, algo que o Estado - colonial,
imperial ou republicano - , formalmente investiu para diluir.

5
São exemplos destas imprensas: O Mulato ou o Homem de Cor, O Brasileiro Pardo, O Cabrito, O
Crioulinho, O Meia Cura, Elite, O Menelick, O Clarim da Alvorada, A Voz da Raça, O Alfinete, dentre outros,
(MOURA, 2014; MOURA, 2019; DOMINGUES, 20019)
6
Para uma análise e periodização desta imprensa ver Sociologia do Negro Brasileiro (MOURA, 2019);
Dialética Radical do Brasil Negro (MOURA, 2014); Protagonismo negro em São Paulo (DOMINGUES, 2019)
56
O mesmo pode ser considerado em relação aos povos indígenas, mas que, no entanto,
por serem originários desta terra, embora também tenham sido dizimados por estes Estados,
encontram e desenvolvem outras possibilidades de resistências a partir de suas culturas
originárias:

Quanto ao índio, particularmente, o primitivo habitante, a sua trajetória é bem


diferente do grupo português que chegou como dominador. Se fizermos uma
estimativa de 4 milhões de índios na descoberta – há quem estime em muito mais –
processo foi o inverso. Segunda Darcy Ribeiro, depois da fase genocida da ocupação
de 1900 até 1957 extinguiram-se 82 grupos tribais como comunidades étnicas. Mais
de 30% das tribos desaparecidas pertencem a zonas que foram conquistadas pela
economia pastoril e 45% pela economia extrativista (grupos de caucheiros,
seringueiros, castanheiros e outros coletores de produtos florestais).
Atualmente, esse extermínio prossegue através de grupos de garimpeiros e
representantes de empresas transnacionais. Os índios destribalizados que se
incorporaram aos camponeses pobres também são perseguidos, expulsos das terras
ou assassinados.
[...] Queremos salientar, porém, que as tribos sobreviventes estão, no momento,
reavivando a sua identidade étnica, fato que determina um nível de consciência dos
seus direitos etnopolíticos bem mais dinâmicos e abrangentes. Contudo, esse
renascimento da consciência será combatido e possivelmente neutralizado por
estratégias de controle das atuais estruturas de poder e oligarquias territoriais
(MOURA, 2014, p. 186-187).7
Esses povos, alvos de uma política sistemática de negação de suas existências,
encontram desafios inclusive no sentido de compreensão de seu pertencimento étnico-racial –
as populações indígenas8 exterminadas e/ou forçadas ao contexto urbano e destruição de suas
culturas, a população africana o apagamento de suas culturas, ambas excetuadas do ideal de
humanidade. Daí a necessidade de suas resistências a continuidade do projeto colonial e
reelaboração de suas existências.

O Movimento Negro Organizado


No que se refere à população negra, as formas estabelecidas para isso, além da
incipiente imprensa negra no pós-abolição, constituíram as experiências que nomeamos como
Movimento Negro.

7
IMPORTANTE: A primeira edição da obra citada, “Dialética Radical do Brasil Negro”, foi publicada
em 1994 e a segunda edição, utilizada nesta pesquisa, em 2014, refletindo a compreensão da questão indígena à
época. Atualmente, o Movimento Indígena ou Povos Originários, majoritariamente já não utilizam expressões
como ‘indío’, e sim indígena; “primitivos”; “tribos” e sim etnias ou povos; “destribalizados” e, a depender do
sentido “indígena em contexto urbano”, dentre outras mudanças discursivas que corroboram com a perspectiva
de retomada indígena e não colonial.
8
Para uma aproximação com a questão indígena contemporânea ver: A queda do Céu - palavras de um
xamã yanomami (KOPENAWA & ALBERT, 2015); A terra dos mil povos – história indígena do Brasil contada
por um índio (JECUPÉ, 2020) e Índios no Brasil - História Direitos e Cidadania (CARNEIRO, 2013).
57
A mestiçagem embranqueceu (e enegreceu) uma grande parte da população Africana
em diáspora que, independentemente dos traços fenotípicos e cor da pele, encontram desafios
e dificuldades na elaboração e compreensão de sua subjetividade, cultura e consciência
étnico-racial. Não à toa, as primeiras organizações de pessoas negras irão investir no
fortalecimento e valorização cultural, passando à seara político-institucional, sendo essas as
principais formas de organizações negras; culturalista, com vistas à integração nacional; e
políticas, ora pela integração nacional, ora pela discussão de um projeto de nação pluriétnico.

A essas formas organizacionais, compreendo-as como movimento social específico


que, nos termos argumentados por Nilma Lino Gomes (2017):

Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e


articulação das negras e dos negros politicamente posicionas na luta contra o
racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno na sociedade. Participam
dessa definição grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos e artísticos com o
objetivo explícito de superação do racismo e da discriminação racial, de valorização
e afirmação da história e da cultura negras no Brasil, de rompimento das barreiras
racistas impostas aos negros e às negras na ocupação dos diferentes espaços e
lugares na sociedade. Trata-se de um movimento que não se reporta de forma
romântica à relação entre os negros brasileiros, à ancestralidade africana e ao
continente africano da atualidade, mas reconhece os vínculos históricos, políticos e
culturais dessa relação, compreendendo-a como integrante da complexa diáspora
africana. Portanto, não basta apenas valorizar a presença e a participação nos negros
na história, na cultura e louvar a ancestralidade negra e africana para que um
coletivo seja considerado como Movimento Negro. É preciso que as ações desse
coletivo se faça presente e de forma explícita uma postura política de combate ao
racismo. Postura essa que não nega os possíveis enfrentamentos no contexto de uma
sociedade hierarquizada, patriarcal, capitalista, LGBTFóbica e racista (p. 23-24).
Um aspecto a ser considerado é que não dá para falar do Movimento Negro, como se
ele fosse um só. Embora no singular, reúne os movimentos cuja especificidade - questão
negra - os aproxima, mas também diverge. Como Lélia Gonzalez refletia,

Na verdade, falar do Movimento Negro implica no tratamento de um tema cuja


complexidade, dada a multiplicidade de suas variantes, não permite uma visão
unitária. Afinal, nós negros, não constituímos um bloco monolítico, de
características rígidas e imutáveis. [...] Será que dá para falar do Movimento Negro?
É claro que, se a gente adota a perspectiva delineada, não dá. Como não daria para
falar de um movimento de mulheres, por exemplo. No entanto, a gente fala.
Exatamente porque está apontando para aquilo que os diferencia de todos os outros
movimentos: ou seja, a sua especificidade (GONZALEZ, 2022, p. 25)
A essas experiências organizativas, além da relevância política que por si só
significam, também cumprem um papel social da maior importância para a população negra:
educa. Também é Nilma Lima Gomes que irá reconhecer o Movimento Negro como
educador, produtor de saberes construídos nas lutas por emancipação, reconhecendo seu valor
epistemológico:

58
Como muito do que sabemos e do que tem sido desvelado sobre o papel da negra e
do negro no Brasil, as estratégias de conhecimento desenvolvidas pela população
negra, os conhecimentos sobre as relações raciais e as questões da diáspora africana,
que hoje fazem parte das preocupações teóricas das diversas disciplinas das ciências
humanas e sociais, só passaram a receber o devido valor epistemológico e político
devido à forte atuação do Movimento Negro. Esse movimento social trouxe as
discussões sobre racismo, discriminação racial, desigualdade racial, crítica a
democracia racial, gênero, juventude, ações afirmativas, igualdade racial,
africanidades, saúde da população negra, educação das relações étnico-raciais,
intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras, violência, questões
quilombolas e antirracismo para o cerne das discussões teóricas e epistemológicas
das Ciências Humanas, Sociais, Jurídicas e da Saúde, indagando, inclusive, as
produções das teorias raciais do século XIX disseminadas na teoria e no imaginário
social e pedagógico. (GOMES, 2017, p. 17).
Assim, as organizações de pessoas negras terão o desafio de reunir a população negra,
desenvolver um senso de solidariedade étnica, promover uma consciência racial, identificar e
priorizar suas pautas e interesses políticos e atuar pela sua representação em uma sociedade
estruturada no racismo que cumpre uma função ideológica de dominação. Por estes desafios a
depender do período sócio-histórico, maiores ou menores condições para essa luta a política
se estabelece.

Como um educador para as pessoas negras, o Movimento Negro é um ator político


que no seu fazer político educa, produz conhecimentos e interfere na realidade. Além de se
fazer educador, o Movimento Negro, em todo o seu período de existência, tem como uma de
suas pautas centrais a educação:

A educação tem merecido atenção especial das entidades negras ao longo da sua
trajetória. Ela é compreendida pelo movimento negro como um direito
paulatinamente conquistado por aqueles que lutam pela democracia, como uma
possibilidade a mais de ascensão social, como aposta na produção de conhecimentos
que valorizem o diálogo entre os diferentes sujeitos sociais e suas culturas e como
espaço de formação de cidadãos que se posicionem contra toda e qualquer forma de
discriminação. (GOMES, 2012, p.735)
Assim, temos que a imprensa negra possibilitou o início de uma ruptura

com o imaginário racista do final do século XIX e início do século XX que, pautado
no ideário do racismo científico, atribuía à população negra o lugar de inferioridade
intelectual. Os jornais tinham um papel educativo, informavam e politizavam a
população negra sobre os seus próprios destinos rumo à construção de sua
integração na sociedade da época (GOMES, 2012, p. 736)
Ainda no escravismo, pleno e tardio, e em sua transição para o trabalho
livre/capitalismo, o racismo científico, que fundamenta a eugenia, constituiu-se como um dos
fatores que favoreceu a dominação europeia. Foi neste período que as bases da eugenia foram
gestadas, revelando mais um aspecto da conformação do racismo brasileiro, que se sofistica
por meio da sustentação científica e biológica, com materialidade na vida concreta e
cotidiana.

59
Com a Proclamação da República (1889), a “explicação” que a elite do Brasil
encontrou para o “atraso” brasileiro foi a formulação do pensamento eugênico e racista.

Os problemas a serem enfrentados, quando o Brasil torna-se República, não


eram poucos, pois havia uma gama de questões que precisavam ser
resolvidas e tais empecilhos obstaculizavam que se tornasse uma ‘nação’(...)
especialmente no que tange à composição da população subalterna
considerada perigosa (...) É nesse quadro que o movimento eugenista emerge
no Brasil como expressão do pensamento conservador e espelhando-se no
modelo do branco cristão e civilizado. Os médicos, juristas, homens das
letras, ideólogos, que acreditavam na eugenia como ciência, tinham a
pretensão de racionalizar a imigração, findar a delinquência, liquidar os
degenerados, consolidar uma política de cariz sanitária, melhorar a raça,
através do branqueamento, para a construção de uma nação que
representasse o progresso. Cada um à sua moda, dentro das suas perspectivas
ideológicas, vão ganhar notoriedade no século XX realizando congressos,
produzindo livros, teses para sanar a questão social, a fim de intervir
concretamente na vida cotidiana e subsidiar o Estado com propostas para
transformar suas resoluções em políticas governamentais. Purificar e
modernizar o Brasil era preciso”. (GÓES, 2015, p. 96)

Weber Lopes Góes (2020) nos explica que

A eugenia seria o estudo para o melhor cultivo da ‘raça’. O termo eugenia é


oriundo do inglês eugenics, a partir do grego eugénes, que significa ‘bem
nascido’. Etimologicamente, o eugenismo (ou eugenia) é a ciência dos bons
nascimentos; fundamentada na Matemática e Biologia, tinha como cerne
identificar os ‘melhores’ membros e estimular a sua reprodução e, ao mesmo
tempo, diagnosticar os ‘degenerados’ e evitar a sua multiplicação (p. 38).

A ascensão do pensamento eugênico no Brasil foi um desdobramento do


desenvolvimento deste pensamento na Europa e Estados Unidos da América - EUA e articula-
se com a dominação ideológica eurocentrada da elite escravocrata-industrial em formação.
Ancorado em uma abordagem positivista, as ideias de “melhoramento da raça” a partir de
ações como embranquecimento, esterilização, saneamento das ideias e educação eugênica
agitou as primeiras décadas do século XX, só perdendo força9 com os rumos que tal ideologia
alcançou com o nazi-fascimo alemão hitleriano.

Nos anos 30, a construção do Estado Novo, reprojetava a unificação do povo, após ter
alimentado suas cisões a partir da “injeção” de etnias europeias e extermínio e escravização
de outras. Como vimos, é também nesse período, imbuído do espírito da salvação do Brasil

9
Perde-se força neste período, no entanto, não desapareceu e ainda encontra formas contemporâneas no
Brasil e no mundo, especialmente por meio de projetos da extrema direita. Em “Educar, Higienizar e Regenerar:
Uma História da Eugenia no Brasil”, livro de Paulo Ricardo Bonfim (2017), realiza uma breve memória da
vitalidade desse pensamento na mídia brasileira no final do século XX e início do século XXI, anterior a
ascensão da extrema direita no país.

60
por meio da educação, de ascensão da eugenia e do fascismo, que ocorre a retomada da escola
pública como central para a difusão do projeto de nação por meio do Estado. A Era Vargas dá
forma a um projeto de nação que elege o branco/cáucaso como tipo ideal do “homem
brasileiro” e organiza a ação do Estado nesse sentido, chegando até mesmo a prever na
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, a incumbência da União,
Estados e Municípios de“estimular a educação eugênica”. Assim como um conjunto de outras
ações que permeia os debates das Sociedades Eugênica, como “adotar medidas legislativas e
administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social,
que impeçam a propagação das doenças transmissíveis”; “cuidar da higiene mental e
incentivar a luta contra os venenos sociais”, restringir a entrada de imigrantes no território
nacional para “garantia da integração étnica”. (BRASIL, 1934).

Para uma parte dos eugenistas, a mestiçagem seria uma salvação, pois possibilitaria o
embranquecimento e aumento do quantum da raça ariana na composição étnica brasileira;
enquanto para outros, como Nina Rodrigues, esta é um problema, uma vez que misturar um
tipo/raça superior à degenerescência associada aos indígenas e africanos, tornaria impura e
inferior àquela superior.

Esses são alguns dos elementos que a população negra enfrentou no pós-abolição.
Com a negação de sua integração à sociedade, desenvolver formas de integração, geralmente
à perspectiva ideológica do branco, passou a ser projeto de suas formas de organização
política.

Frente Negra Brasileira - FNB (1931-1937)


No início do século XX a instituição que alcança maior relevância na representação
dos interesses das pessoas negras tendo como foco a integração social em uma sociedade tão
hostil às pessoas não-brancas, é a Frente Negra Brasileira – FNB. A Frente Negra Brasileira,
foi uma “associação de caráter político, informativo, recreativo e beneficente, [que] surgiu em
São Paulo, em 1931 com intenções de se tornar uma articulação nacional” (GOMES, 2017, p.
30). Seus associados majoritariamente enfrentavam o analfabetismo, mas, também era
composta pela incipiente intelectualidade negra, oriunda de espaços escolares formais ou
autodidatas. Suas características organizacionais incluíam

“Vários departamentos, promovia a educação e entretenimento de seus membros,


além de criar escolas e cursos de alfabetização de crianças, jovens e adultos. Visava,
também, a integração dos negros na vida social, política e cultural, denunciando as
formas de discriminação racial (GOMES, 2017, p 30).

61
Lélia Gonzalez considera que as atividades desenvolvidas por entidade negras ou
recreativas ou culturais de massa, como afoxés, cordões, maracatus, ranchos e,
posteriormente, blocos e escolas de samba, foram relevantes para o exercício de uma prática
política, assim como a imprensa negra militante, possibilitaram que a FNB atraísse milhares
de negros para a organização, conjugando a característica cultural e política. Destaca ainda o
caráter urbano dessa organização, especialmente a partir da cidade de São Paulo e depois
outros municípios, posto que a industrialização e a modernização iniciada ali iniciará também
“o processo de integração do negro na sociedade capitalista, sobretudo nos anos 1930, quando
a imigração europeia é interrompida pelo governo Vargas” (GONZALEZ, 2022, p.31).

Em 1936 a FNB transformou-se em partido político e foi extinto em 1937, como parte
do autoritarismo de Vargas, que colocou na ilegalidade todos os partidos políticos. Antes,
porém, de ser extinto, o fato de ter uma base de sócios com altos índices de analfabetismo, por
vezes é apontado como um erro político ao transformar a organização em um partido político,
uma vez que a alfabetização era um requisito para votar. No entanto, pode-se considerar que,
esse poderia, na verdade, ser mais um impulso para o compromisso político com a educação
de seus sócios.

Quanto ao caráter político-ideológico com vistas ao nacionalismo e integralismo da


organização, também precisa ser compreendido na lógica dos desafios e possibilidades postos
à realidade social do negro naquele período. Desde o pós-abolição não havia tido integração
do negro à sociedade, impulsionando o anseio das parcelas organizadas da população negra
buscarem a realização de tal projeto. Além da FNB é importante indicar as diversas
organizações culturais, clubes e associações que serviram para o encontro, festejo e projeção
estética e pertencimento das pessoas negras em uma sociedade que reiteradamente as
negavam.

Com o fechamento do partido, bem como as ações do Estado Novo, outros elementos
para a compreensão enquanto grupo étnico emergiram. Entre os anos 40 e 60 outra forma de
organização política alcança relevância como forma de organização política das pessoas
negras: o Teatro Experimental do Negro.

Teatro Experimental do Negro – TEN (1944-1968)


O Teatro Experimental do Negro “nasceu para contestar a discriminação racial, formar
atores e dramaturgos negros e resgatar a herança africana na sua expressão brasileira”
(GOMES, 2017, 30). Para isso,

62
alfabetizava seus primeiros participantes, recrutados entre operários, empregados
domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários públicos, e
oferecia-lhes uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava também a
indagar o espaço ocupado pela população negra no contexto nacional (GOMES,
2017, p. 30).
Por dois anos o TEN também manteve o Jornal Quilombo, apresentando em todas as
edições a declaração com o programa político do grupo:

“Nosso Programa”. A reivindicação do ensino grutito para todas as crianças


brasileiras, admissões subvencionadas de estudantes negros nas instituições de
ensino secundário e universitário – onde o segmento étnico-racial não entrava
devido à imbricação entre discriminação racial e pobreza -, o combate ao racismo
com base em medidas culturais e de ensino e o esclarecimento de uma imagem
positiva do negro ao longo da história eram pontos importantes do programas
educacional dessa organização” (GOMES, 2017).
O TEN, como laboratório de experimentação cultural e artística, abrigou o embrião de
outros espaços organizativos da população negra, como o Conselho Nacional da Mulher
Negra, a organização de Congressos Nacional do Negro:

Paralelamente à atividade teatral, o TEN propõe a reflexão e o debate em torno de


temas ligados à cultura afro-brasileira e promove uma série de encontros, como a 1ª
Reunião da Convenção Nacional do Negro, em 1945, e o 1º Congresso do Negro
Brasileiro, em 1950. Funda o Instituto Nacional do Negro, em 1949, departamento
de estudos e pesquisas do TEN e publica, entre 1948 e 1950, dez números do jornal
Quilombo, com notícias sobre as atividades do TEN e de outras entidades do
movimento negro (ITAÚ CULTURAL, 2023, s/n).
Segundo Abdias do Nascimento, um dos fundadores do TEN,

o TEN organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro para atuar a nível político,


reivindicando medidas específicas para melhorar a qualidade de vida de nossa gente.
O objetivo imediato do comitê era o de inserir as aspirações específicas da
coletividade afro-brasileira no processo de construção da nova democracia que se
articulava após a queda do Estado Novo. O comitê era composto de um núcleo de
negros ativistas a que se agregaram líderes estudantis, e seu local de reunião era uma
sala na sede da UNE. O comitê passou um tempo inicial lutando pela anistia aos
presos políticos (na sua maioria brancos). Entretanto, quando chegou a hora de tratar
das preocupações específicas à comunidade negra, o projeto foi vítima da patrulha
ideológica de supostos aliados que acabou desarticulando o comitê. Invocaram o
velho chavão de que o negro, lutando contra o racismo, viria a dividir a classe
operária. (NASCIMENTO, 2004, p. 221-222).
Importante observar que, o período de atuação do TEN ocorre num momento histórico
em que já temos institucionalizado o Serviço Social como profissão e temos notícias de pelo
menos duas pessoas vinculadas ao TEN que também eram Assistentes Sociais.

Embora tenham tido uma relevante atuação política no movimento negro, movimento
de mulheres e movimento sindical, incluindo a produção de conhecimentos sobre a realidade
social brasileira, propondo e realizando respostas a tal realidade, o apagamento da
contribuição destas pessoas ao Serviço Social vigorou por mais de meio século e só começará

63
a ser rompido a partir da segunda década do século XXI, com ampliação do acesso de pessoas
negras ao ensino superior público no Serviço Social.

Nesse sentido, temos a presença atuante de Maria de Lourdes Vale Nascimento,


Assistente Social, ativista e jornalista, que esteve à frente da coluna “Fala Mulher” no Jornal
Quilombo10 e que presidiu o Conselho Nacional de Mulheres Negras - CNMN (1950), além
de ter sido uma das fundadoras do TEN. É pioneira em articular as intersecções de raça,
gênero e classe, no entanto o patriarcado e o racismo, silenciou suas contribuições no Serviço
Social e mesmo no Movimento Negro, sua biografia costumava ser rememorada por ter sido
uma das esposas de outro importante militante e intelectual negro, Abdias do Nascimento.

Maria do Nascimento foi responsável por articular a criação do Departamento de


Serviço Social tanto no TEN, quanto no CNMN. Andrea Pires ROCHA (2022) ao analisar a
atuação de Maria de Lourdes, compreende que

Ao analisarmos esses documentos em uma perspectiva histórica torna-se evidente o


quanto essa Assistente Social apresentava uma leitura que vinculava dialeticamente
a questão racial, de classe e de gênero. Suas análises eram imensamente críticas,
principalmente se tratando das particularidades teórico metodológicas do Serviço
Social anos 1940–1950 (p. 278)
Outro Assistente Social que contribui com o TEN e para o debate da questão negra no
âmbito do serviço social, foi Sebastião Rodrigues Alves que chega a publicar em 1966 o livro
“A Ecologia do Grupo Afro-Brasileiro”. No livro, o autor realiza um diagnóstico da situação
no negro no Brasil e como o Serviço Social pode contribuir para a melhoria dessa situação.
Sebastião também contribuiu com a fundação do Sindicato dos Assistentes Sociais e também
a Secretaria do Movimento Negro do Partido Democrático Trabalhista - PDT, além de ter
contribuído ativamente para a campanha de Abdias do Nascimento à Câmara de Deputados
(IPEAFRO, 2023).

Com a ditadura civil-militar-empresarial que dominou o Brasil de 1964 a 1985, a


situação do TEN é afetada:

Em 1966, já no período da ditadura militar, o TEN é impedido pelo Ministério das


Relações Exteriores de se apresentar no 1º Festival de Arte Negra no Senegal com a
peça Além do Rio – uma adaptação de Medeia, de Eurípides (484- 406 a.C.), feita
por Agostinho Olavo. O espetáculo é considerado pelas autoridades como não
representativo da cultura brasileira. Com a repressão política, as estratégias de ação
do TEN tornam-se restritas. Nascimento fica à frente do Teatro Experimental do
Negro até 1968, mas, em decorrência do endurecimento do regime militar e da

10
Todas as edições do Jornal Quilombo encontram-se disponíveis no sítio eletrônico do Instituto de
Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros - IPEAFRO. Disponível em:
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inclusão do seu nome em vários inquéritos policiais militares, acaba por exilar-se
nos Estados Unidos. (ITAÚ CULTURAL, 2023, s/n).
Abdias do Nascimento, ao refletir sobre o TEN conclui que este foi:

Fiel à sua orientação pragmática e dinâmica, o TEN evitou sempre adquirir a forma
anquilosada e imobilista de uma instituição acadêmica. A estabilidade burocrática
não constituía o seu alvo. O TEN atuou sem descanso como um fermento
provocativo, uma aventura da experimentação criativa, propondo caminhos inéditos
ao futuro do negro, ao desenvolvimento da cultura brasileira. Para atingir esses
objetivos, o TEN se desdobrava em várias frentes: tanto denunciava as formas de
racismo sutis e ostensivas, como resistia à opressão cultural da brancura; procurou
instalar mecanismos de apoio psicológico para que o negro pudesse dar um salto
qualitativo para além do complexo de inferioridade a que o submetia o complexo de
superioridade da sociedade que o condicionava. Foi assim que o TEN instaurou o
processo de revisão de conceitos e atitudes visando à libertação espiritual e social da
comunidade afro-brasileira. Processo que está na sua etapa inicial, convocando a
conjugação do esforço coletivo do presente e das futuras gerações afro-brasileiras.
(NASCIMENTO, 2004, p 223).
Além do TEN, Lélia Gonzalez, nos anos 80, ressalta que:

Ao lado do teatro negro, a poesia também foi uma das mais vigorosas expressões
das elites negras daquela fase, que, sem perda de continuidade, marcou as novas
gerações. Solano Trindade de certo modo sintetiza esses dois aspectos, tanto pela
criação do seu Teatro Popular, quanto por sua extraordinária produção poética.
Afirmação de identidade cultural e denúncia da exploração dos oprimidos
constituíram a temática da poesia revolucionária de Solano. O movimento poético
dos dias de hoje não perde de vista a perspectiva de que racismo e exploração
socioeconômica estão muito bem articulados quando se trata de limitar e reprimir a
comunidade negra.
Acrescento à essas reflexões que nas décadas seguintes, especialmente a partir dos
anos 90, esse movimento poético se amplia por meio da Cultura Hip Hop, coletivos culturais,
saraus, batalhas de poesia, batalhas de rima, entre outros espaços de expressão poética
mediados pela oralidade (SILVA, 2019), constituindo-se, inclusive, em um elemento
mediador da práxis política e da formação das pessoas moradores das periferias (DANDREA,
2022).

Ainda contexto da ditadura, com a repressão militar ampliada e institucionalizada para


toda a sociedade, a situação da população negra se agravam. O “milagre econômico” não é
capaz de atenuar a disparidade racial que funda a sociedade brasileira e dará o contexto em
que emerge outra força política da comunidade negra organizada em resposta a repressão
ditatorial somada a repressão vigente contra as pessoas negras: o Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação Racial – MNUCDR.

Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial – MNUCDR (1978 – atualidade).


O Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial - MNUCDR ou apenas
Movimento Negro Unificado - MNU, nos termos de Lélia GONZALEZ, é um novo estágio na

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mobilização política negra (2020). Esta intelectual irá situar o Movimento Negro Unificado
contra a Discriminação Racial – MNUCDR, em sua relação com Frente Negra Brasileira -
FNB e o Teatro Experimental dos Negro – TEM, mas compreendendo que o período histórico
em que ele emerge, distingue-o das formas de organização anteriores.

Para explicitar essa distinção ela recupera que o processo de industrialização e


urbanização do Brasil ocorreu em dois estágios: o capitalismo competitivo, até meados de
1950, e o capitalismo monopolista com apogeu em 1968. O primeiro foi subordinado ao
segundo, gerando dois mercados de trabalhos distintos que também exigia forças de trabalho
qualitativamente distinta, gerando um desenvolvimento desigual combinado que integrava
diferentes época (GONAZALEZ, 2020):

Grande parte da população excedente se tornou massa marginal sob o sistema


monopolista e um exército industrial de reserva para o setor competitivo
subordinado. Uma vez que a capacidade de absorver mão de obra manual desse setor
é muito baixa, uma massa marginal também existe em relação a ele. Claramente,
condições relacionadas ao desemprego e ao subemprego tiveram efeitos
especialmente severos sobre esse excedente populacional. A novidade do MNU
reside no fato dele reconhecer esses problemas relacionamos à integração dos
sistemas (relações harmoniosas ou conflituosas entre as partes de um sistema), sua
articulação com os problemas da integração social (relações harmoniosas ou
conflituosas entre os atores) e os efeitos dessa articulação sobre a população negra.
É esse reconhecimento que distingue o MNU da FNB e do TEN, cuja abordagem se
preocupava principalmente com os problemas da integração social. O MNU
combina problemas de raça e classe como foco de sua preocupação” (GONZALEZ,
2020, pp.112-113)
O MNU em si apresenta-se como

O Movimento Negro Unificado (MNU) é uma organização pioneira na luta do Povo


Negro no Brasil. Fundada no dia 18 de junho de 1978, e lançada publicamente no
dia 7 de julho, deste mesmo ano, em evento nas escadarias do Teatro Municipal de
São Paulo em pleno regime militar. O ato representou um marco referencial
histórico na luta contra a discriminação racial no país. (MNU, 2023).
Seu Programa de Ação, aprovado no IX Congresso Nacional, 1990, em Belo
Horizonte, estabelece como Lutas Prioritárias

1– Por um movimento negro independente.


2– Pelo o fim da violência policial e contra a “indústria” da criminalidade.
3– Pelo fim da discriminação racial no trabalho.
4 – Por uma educação voltada para os interesse do povo negro e de todos os
oprimidos.
5– Pelo fim da manipulação política da cultura negra.
6– Contra a exploração sexual, social e econômica da mulher negra.
7– Pelo fim da violência racial nos meios de comunicação.
8 – Pela solidariedade internacional à luta de todos os oprimidos. (MNU, 1990).
No mesmo programa, desenvolve-se o significado de cada luta e suas propostas.
Assim compreendem que a educação é o “ato de aprender e ensinar, de saber para fazer, para

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ser ou para conviver faz parte da vida, ocorre no dia-a-dia”(MNU, 1990, s/n), que vai além das
escola, mas que essa,

da pré-escola ao 3º Grau, enquanto organizadora da cultura, tem um papel


importante na formação do cidadão. É por seu intermédio que a sociedade educa os
seus dirigentes, pois, a escola é um dos principais instrumentos da classe dominante
para impor a sua ideologia alienante a toda a sociedade brasileira” (MNU, 1990,
s/n).
O MNU critica e estabelece uma relação entre o modelo de educação vigente, o
reforço dos valores dominantes e a exclusão do patrimônio cultural da população negra, que
favorece a conivência com a violência policial, afinal, não se valoriza o povo negro.

Assim, o Movimento reflete que

se o que se quer é extinguir o racismo de uma vez por todas, o MNU não pode
restringir-se apenas a defender princípos gerais sobre o direito à educação e a defesa
da cultura negra;[tem que] formular sugestões curriculares que atendam às
exigências educacionais da população negra ; indicar a dívida dos poderes públicos
com o povo negro. É PRECISO MUITO MAIS. Afinal de contas, ao longo da
história do Brasil, o RACISMO, mais que a escola, já deu muitas e duras lições. A
prática pedagógica, que conspira contra crianças, jovens e adultos negros, tentando
silenciá-los enquanto cidadãos, realiza-se no interior das escolas. Sejam públicas ou
particulares, estejam no centro ou na periferia, nas zonas urbanas ou rurais. Essa
violência praticada dentro da escola traz consequências sempre fundamentais da
pessoa humana, quanto para o cidadão negros em formação. É fato que os negros
que conseguem concluir algumas etapas da escolarização são submetidos a
humilhações que dificultam, ou até impedem, a formação de uma identidade racial
negra. No período escolar, o negro é obrigado a aceitar um processo de
embranquecimento, que busca atingi-lo em sua essência. Não raro, e por razões já
sabidas, muitas crianças e jovens afastam-se de sua comunidade, de seu povo,
rejeitando-o em consequências da violência racial de que foram vítimas. É o preço
que pagam por terem permanecido na escola” (MNU, 1990, s/n).
Compreendem que a educação não significa apenas a negação da pessoa negra e
quando não está a serviço dos interesses de dominação pode favorecer novos caminhos para a
população negra e fortalecer a organização político-cultural, percebendo a educação como
uma tecnologia para ampliação da cidadania e poder político:

a escolarização não produz tão só o silêncio, a negação. Ela gera, ainda que não seja
o seu objetivo, o inconformismo e a indignação. Muitos negros resistem aos
ensinamentos racistas e, em lugar de afastarem-se de seu povo, reforçam junto a ele
a identidade racial negada pela escola. EDUCAM-SE NEGROS O Movimento que
insurge, e não cessa, contra a violência racial, coloca outras questões sobre educação
e aponta novos caminhos. Dentre esses, assinala-se aquele que indica que a
educação de crianças, jovens e adultos negros, para além da escola, passa pelas
organizações político-culturais negras. Portanto, é preciso investir, cada vez mais,
em experiências significativas em educação, que apontem para a formação da
cidadania que convém ao interesse do negro, enquanto o grupo oprimido que se
organiza na perspectiva de participar do PODER (MNU, 1990, s/n)
E concluem, indicando a relevância da reivindicação da educação escolar e popular
para o povo negro:

67
Sem dúvida, esta é uma razão soberana para que a comunidade aproprie-se de seu
processo educacional e, soberanamente, imponha um projeto de cidadania baseado
na educação de crianças, jovens e adultos para a luta de libertação do povo negro.
Neste sentido o MNU propõe duas linhas de atuação. UMA, que dê continuidade às
pressões para a redefinição da escola, seus métodos e conteúdos ; a OUTRA,
prioritária, que busque construir uma proposta de EDUCAÇÃO AUTÔNOMA,
sustentada pelo povo negro. Através dessas experiências, o MNU buscará mostrar ao
NEGRO que ele é capaz de entender e modificar o mundo, que é ativamente livre
para agir, julgar, compreender e criar. Além desta descoberta de que É GENTE NA
HISTÓRIA, o negro também poderá perceber-se como AGENTE DA HISTÓRIA,
com poder para intervir na realidade que o cerca (MNU, 1990, s/n)
Para dar conta desta tarefa orienta seus militantes a:

- DESENVOLVER PROJETOS AUTÔNOMOS de alfabetização, tendo como base


a questão racial.
- MOBILIZAR o povo negro para, junto com o MNU, criar escolas alternativas
onde, o ensino esteja associado a história e à cultura do negro brasileiro. –
- ELABORAR um currículo afro-brasileiro para as escolas alternativas e como
subsídio paras as escolas formais. Estimular a produção de material didático anti-
racista, em especial para os cursos de Magistério de Pedagogia.
- DESENVOLVER projetos para crianças e adolescentes onde a educação e a
cultura sejam enfocadas como forma de resistência, organização e resgate da
negritude.
- DESENVOLVER, ORIENTAR E MINISTRAR cursos, palestras, seminários
dirigidos à comunidade escolar. (MNU, 1990, s/n)
E acrescenta na agenda política dessa luta prioritária:

CABE AINDA AO MNU LUTAR:


- CONTRA a discriminação racial nas escolas e POR condições de ensino.
- PELA inclusão da disciplina História da África e do Povo Negro no Brasil nos
Currículos Escolares. - POR um ensino voltado para os valores e interesses do Povo
Negro e de todos os oprimidos.
- POR um Ensino Público e gratuito em todos os níveis (MNU, 1990, s/n).

Não é à toa que desde sua fundação o MNU é responsável pela formação direta e
indireta de parte da intelectualidade negra contemporânea. Com a redemocratização, o MNU
passou por uma reconfiguração, acentuando seu caráter educador, com ênfase especial na
educação:

alguns ativistas conseguiram concluir a graduação e, com a expansão paulatina da


pós-graduação em educação, cursaram o mestrado, e futuramente, o doutorado.
Alguns deles iniciaram uma trajetória acadêmico-política como intelectuais
engajados e focaram suas pesquisas na análise do negro no mercado de trabalho e no
racismo presente nas práticas e rituais escolares, analisaram estereótipos raciais nos
livros didáticos, desenvolveram pedagogias e currículos específicos, com enfoque
multirracial e popular e discutiram a importância do estudo da história da África nos
currículos escolares (GOMES, 2017, pp.32-33).
Nilma Lino GOMES (2017) considera que num primeiro momento a reivindicação do
MNU pela educação tinha uma caráter universal, mas, conforme as políticas universais iam
68
sendo implementadas e não alcançavam a realidade das pessoas negras, a pauta do movimento
mudou: “Foi nesse momento que as ações afirmativas, que já não eram uma discussão
estranha no interior da militância, emergiram como uma possibilidade e passaram a ser uma
demanda real e radical, principalmente sua modalidade de cotas” (p. 33).

Em meio a realidade agravada pela ascensão da agenda neoliberal, na década de 90,


em 1995 o MNU realiza a “Marcha Nacional Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela
Cidadania e a Vida”. A Marcha marca também a entrega do presidente Fernando Henrique
Cardoso o “Programa para superação do racismo e da desigualdade étnico-racial”11 e
apresentava as demandas por educação superior, trabalho e ações afirmativas.

Na virada do milénio, a preparação da delegação brasileira para a III Conferência


Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de
Intolerância, narrada por Sueli Carneiro (2022) como “uma batalha”, mobiliza o movimento
negro. O Movimento Negro, especialmente o movimento de mulheres negras, apresentaram
uma articulação e incidência custosa, dado o fato de que países colonizadores participavam da
mesma conferência e não estavam dispostos a reconhecer marcos normativos que pudessem
incorrer em pedidos de reparação, o que exigiu uma grande capacidade estratégica,
articuladora e política para o reconhecimento do racismo e seus impactos.

Contudo, no Plano de Ação de Durban (ONU, 2001), do qual o Brasil é signatário, foi
a primeira vez em que o “Estado Brasileiro reconheceu internacionalmente a existências
institucional do racismo em nosso país e se comprometeu com medidas para sua superação.
Entre elas, as ações afirmativas na educação e no trabalho” (GOMES, 2017, p. 34). De volta
ao Brasil, tal adesão política do país foi um importante subsídio para ação do Movimento
Negro.

No início dos anos 2000, como resultado da incidência do Movimento Negro notamos
e creditamos algumas medidas em diálogo com a agenda política da luta prioritária pela
educação: algumas universidades adotam políticas afirmativas de cotas raciais, apesar do
debate em contrário; a criação de uma secretaria especial com status de ministério na estrutura
de governo nas gestões petistas, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial –
SEPPIR…

11
Como resultado dessa incidência, meses depois, em fevereiro de 1996 o presidente FHC cria o Grupo
de Trabalho Interministerial pela Valorização da População Negra.
69
Mas a conquista até então mais representativa desse período, que subsidiou e
instrumentalizou outros estágios para o enfrentamento do racismo no Brasil, toma por espaço
justamente a política educacional: a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas dos ensinos
Fundamental e Médio. Em 2008 ela foi alterada pela Lei 11.645 para incluir também a
questão indígena (BRASIL, 2003; BRASIL, 2008; GOMES, 2017), com isso temos
instrumentos legais para fortalecer o enfrentamento ao epistemicídio de negras e indígenas no
Ensino Básico e Médio12, bem como valorizar o patrimônio histórico-cultural destes povos.
Isso exigiu pesquisar, documentar, produzir conhecimentos, sistematizar e disseminar uma
perspectiva sobre história e cultura afro-brasileira e indígena deslocando o olhar e
interpretação quanto a própria história brasileira. Também ampliou o espaço de ação política
do Movimento Negro, exigindo de seus membros novas ações políticas, como o próprio
processo de formação acadêmica, mobilização e formação popular, incidência e relação com o
Estado, mobilização de recursos e orçamento público, entre outros.

A partir dessas legislações, a “questão racial” entrou na agenda política educacional,


entretanto, isso não significa que ela tenha sido plenamente atendida. Porém, o grau de
organização, pesquisa, sistematização, disseminação e politização instado por meio dessas
leis, mesmo que a reivindicação por seu cumprimento ainda seja pauta das gerações
contemporâneas do Movimento Negro, favoreceu o fortalecimento político institucional desse
movimento.

Gomes (2012) identifica que é no campo educacional que reivindicações históricas do


Movimento Negro têm sido incorporadas na forma de leis, políticas e de órgãos do legislativo
e judiciário “É possível perceber que o Estado brasileiro, ao reconhecer a imbricação entre
desigualdades e diversidade, vem incorporando, aos poucos, a raça de forma ressignificada

12
Diferentes projetos culturais, educacionais e sociais terão a referida lei como expressão e motivação.
No âmbito educacional, cabe destacar a experiência do projeto “A cor da cultura” que formou mais de 26 mil
professores num processo formativo baseado nos princípios de equidade, respeito às diferenças, pluralidade,
diversidade, diálogo e trocas, o projeto tem como objetivo contribuir para a valorização do patrimônio cultural
afro-brasileiro. Como parte do projeto, foram realizadas pesquisas e produzidos diversos recursos didático-
pedagógicos audiovisual, formação e acompanhamento de professoras/es em 14 estados brasileiros, por meio da
Fundação Roberto Marinho/Canal Futura com o apoio de onze instituições formadoras com acúmulos na área de
educação e relações étnico-raciais: Ação Educativa (SP), Geledés (SP), Associação Centro de Estudos Afro-
Asiáticos da Universidade Candido Mendes – ACEAA (RJ), Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas – CEAP (RJ), Instituto de Juventude Contemporânea – IJC (CE), Instituto de Desenvolvimento
Cultural Nova Iguaçu – INDEC (RJ), Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal do Paraná –
NEAB/UFPR (PR), Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia – NEAB/ UFU
(MG), N’Zinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte (MG), Instituto Odara (BA) e Inclusão TECX
(PA)..
70
em algumas de suas ações e políticas, especialmente na educação “ (p.711). Nilma atribui isso
ao Movimento Negro organizado por meio de suas diversas organizações e elenca alguma
destas reivindicações:

o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da


Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (2009); a inserção da questão étnico-racial, entre as outras
expressões da diversidade, no documento final da Conferência Nacional da
Educação Básica (Coneb), em 2008, e da Conferência Nacional de Educação
(Conae), em 2010; a inserção, mesmo que de forma transversal e dispersa, da
questão étnico-racial e quilombola nas estratégias do projeto do Plano Nacional de
Educação (PNE) em tramitação no Congresso Nacional; a Lei federal n. 12.288, que
institui o Estatuto da Igualdade Racial, a aprovação do princípio constitucional da
ação afirmativa pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 26 de abril de 2012, e a
sanção pela presidenta da República da Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que
dispõe sobre cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio (GOMES, 2012, p.740-741).
Dentre esses marcos, nenhum gerou maior acirramento político e expressão do
conservadorismo supremacista branco da sociedade brasileira no que se refere à trajetória
educacional de pessoas negras, indígenas e pessoas não-negras pobres no ensino superior
público como a referida Lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas.

Desde Durban, com o reconhecimento do racismo no Brasil e a ampliação da


incidência e atuação política do Movimento Negro, o debate sobre políticas afirmativas, e
dentre elas a política de cotas com reserva de vagas para pessoas negras, cindia a sociedade
brasileira. Em 1999 e 2000 já haviam sido apresentados Projetos de Lei visando a criação de
políticas de cotas e a do Estatuto da Igualdade Racial, o que mobilizou um debate social sobre
as cotas, mas em condições muito díspares de debate.

A síntese a que foi reduzido o debate sobre cotas na sociedade brasileira no início do
século XXI, tinha de um lado uma tese contrária às cotas, defendendo que pessoas negras não
seriam capazes de absorver o saber universitário em razão da baixa qualidade de sua formação
escolar, o que resultaria no rebaixamento da qualidade acadêmica, com espaço e projeção
midiática e defendido por uma elite intelectual; e de outro uma tese que defendia a inserção
de negros e indígenas como reparação histórica e contrapondo que não haveria um
rebaixamento na qualidade, sem o mesmo apoio e projeção midiático (NASCIMENTO, 2020)
– e de fato não houve, pelo contrário nota-se desde uma virada epistemológica;
aprofundamento crítico, criativo e científico; surgimento de novas intersecções e
interdisciplinaridades a partir da inserção destes grupos em todas as áreas das ciências… No
âmbito do Serviço Social, vive-se uma virada étnica com desdobramentos na formação e
exercício profissional.
71
Tamires Guimarães do Nascimento (2020) recupera que mesmo diante da oposição
posta pela defesa ou ataque às políticas de cotas raciais no ensino superior:

No ano de 2001, o estado do Rio de Janeiro criou a lei n° 3.708 que institui a cota
mínima de até 40% (quarenta por cento) para a população negra, para preenchimento
das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), que
passou a vigorar no vestibular dessas universidades em 2002. Na mesma trincheira,
a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) passou a ofertar para todos os cursos de
graduação e pós-graduação, presenciais e à distância, 40% do seu total de vagas para
negras/o egressas/os da rede pública de ensino e outros 5% para indígenas. A
Universidade de Brasília (UnB) entrou para a história sendo a primeira universidade
federal brasileira a implantar o sistema de cotas no ano de 2003 e passou a reservar
20% das vagas do seu vestibular tradicional. Outras universidades, como a
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em 2004 e a Universidade Federal
da Bahia (UFBA), em 2005, seguiram neste mesmo caminho. (NASCIMENTO,
2020, p. 61)
E analisa que

Essas iniciativas representam um grande avanço, pois possibilitam uma maior


inclusão social do segmento composto por pretas/os e pardas/os. A iniciativa destas
universidades em adotar as cotas raciais antes mesmo de se tornarem medidas do
Estado, foi de extrema importância, pois de forma direta e indireta, pressionaram e
chamaram a atenção do Estado para torná-las constitucionais, evidenciando a sua
importância social (NASCIMENTO, 2020, p. 61).
É importante que se observe e analise a reação contrária às cotas raciais no acesso ao
ensino superior público, pois essa reação não foi a mesma em relação a todo o ensino
superior. As cotas raciais no ensino superior privado, por meio da ação estatal federal
conciliando os interesses de ampliação do acesso ao ensino superior e o mercado privado da
educação, não gerou a mesma reação e resistência por parte da sociedade brasileira.

Ações como o Fundo Financiamento Estudantil - FIES, criado ainda em 199913,


durante o governo de Fernando Henrique Cardoso; e o Programa Universidade Para Todos -
PROUNI, criado em 2004, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, permitiram um

13
Segundo o Sistema de Seleção do FIES - SISFIES “O Fundo de Financiamento Estudantil(Fies) é um
programa do Ministério da Educação destinado a financiar a graduação na educação superior de estudantes
matriculados em cursos superiores não gratuitas na forma da Lei 10.260/2001. Podem recorrer ao financiamento
os estudantes matriculados em cursos superiores que tenham avaliação positiva nos processos conduzidos pelo
Ministério da Educação. Em 2010, o FIES passou a funcionar em um novo formato: a taxa de juros do
financiamento passou a ser de 3,4% a.a., o período de carência passou para 18 meses e o período de amortização
para 3 (três) vezes o período de duração regular do curso + 12 meses. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE) passou a ser o Agente Operador do Programa para contratos formalizados a partir de 2010.
Além disso, o percentual de financiamento subiu para até 100% e as inscrições passaram a ser feitas em fluxo
contínuo, permitindo ao estudante o solicitar do financiamento em qualquer período do ano. A partir do segundo
semestre de 2015, os financiamentos concedidos com recursos do Fies passaram a ter taxa de juros de 6,5% ao
ano com vistas a contribuir para a sustentabilidade do programa, possibilitando sua continuidade enquanto
política pública perene de inclusão social e de democratização do ensino superior. O intuito é de também realizar
um realinhamento da taxa de juros às condições existentes no ao cenário econômico e à necessidade de ajuste
fiscal” (2023, s/n).
72
período de ampliação do acesso ao ensino superior privado. Até 2020, ano mais recente em
que os dados abertos sobre o programa foram informados, o PROUNI havia concedido
aproximadamente 2,9 milhões de bolsas parciais ou integrais14; enquanto o FIES concedeu
esse montante na segunda década do século XXI. Ambas as políticas contam com vagas
afirmativas, anteriores a Lei de Cotas de 2012.

A inserção de pessoas negras ou pobres no ensino superior privado atendeu, antes de


tudo, uma demanda do próprio capital à medida em que necessita de uma força de trabalho
com maior qualificação, mas que não a deseja criticamente qualificada. – a velha síntese que
marca a educação no Brasil se reitera. Sob a direção privada o controle da formação superior
da força de trabalho esteve sob maior influência e alinhamento com os interesses do capital,
ampliando a exploração como mercadoria de um bem que deveria ser um direito: a educação.

As mais 6 milhões de bolsas parciais, integrais e/ou financiadas no ensino privado


possibilitou a reestruturação do setor e, atualmente, cada vez sua financeirização por meio de
conglomerados educacionais nacionais e internacionais, abertura de capital na bolsa de
valores e um intenso processo de maximização dos lucros de um conjunto diverso e
combinado de ações que resultam numa precarização do processo formativo – os ditos
“ensalamentos” – reunião de turmas em semestres distintos em uma única disciplina/sala de
aula, “economizando” docentes; vínculos empregatícios instáveis, como pessoa jurídica ou
professores horistas, dificultando o desenvolvimento e continuidade de atividades como
pesquisa e extensão, além das de ensino; corpo docente reduzido e/ou insuficiente;
virtualização da exploração do trabalho, e ainda o endividamento dos estudantes.

Essa inserção de pessoas negras ou pobres no ensino superior não gerou a mesma
reação como quando se tratou do ensino superior público.

Márcia Lima (2010) indica que

O tema da educação superior que mais mobiliza o debate público sobre ações
afirmativas, gerando extensa produção acadêmica não é somente sobre o princípio
das ações afirmativas, mas também sobre os processos de implementação das
políticas de cotas nas instituições públicas de ensino superior e análises sobre os
estudantes cotistas. A forte reação à política de cotas, no entanto, não teve a mesma
repercussão quando o governo implementou um programa de ações afirmativas no
sistema privado, responsável por cerca de 80% das matrículas no ensino superior
brasileiro. O que está em jogo, portanto, não é apenas o uso do critério o racial, mas
o tipo de recurso mobilizado e o público afetado por essas políticas (p. 86).

14
Da origem até 2020, foram 2.859.373 bolsa (dois milhões e oitocentos e cinquenta e nove mil e
trezentos e setenta e três) por meio do PROUNI

73
É importante que se considere essa reação profundamente vincula com o pacto
narcísico da branquitude. Essa talvez tenha sido a ação política do Movimento Negro que
mais tensionou a cisão racial desse país desde a abolição.

Cida Bento, psicóloga, intelectual negra e uma das principais especialistas em relações
étnico-raciais e relações de trabalho, desenvolveu suas análises a partir de suas experiências
profissionais na área da psicologia organizacional, e identificou que

As instituições públicas, privadas e da sociedade civil definem, regulamentam e


transmitem um modo de funcionamento que torna homogêneo e uniforme não só
processos, ferramentas, sistemas de valores, mas também o perfil de seus
empregados e lideranças, majoritariamente masculino e branco. Essa transmissão
atravessa gerações e altera pouco a hierarquia das relações de dominação ali
inscrutadas. Esse fenômeno tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo
se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa
manter seus privilégios. E claro que eles competem entre si, mas é uma competição
entre segmentos que se consideram “iguais”.
Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação,
como se o “diferente” ameaçasse o “normal”, o “universal”. (BENTO, 2022, p. 18).
Para ela, a grande questão “sempre foi o não reconhecimento da herança escravocrata
nas instituições e história do país” (BENTO, 2022, p. 14) e indica que

Não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre
negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude, uma relação de
dominação de um grupo sobre outro, como tantas que observamos cotidianamente
ao nosso redor, na política, na cultura, na economia e que assegura privilégios para
um dos grupos e relega péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a morte, para
o outro (BENTO, 2022, p. 14-15).
Em sua produção de conhecimento, BENTO elabora o modo como essa discriminação
é reiterada por meio das organizações, funcionando como um pacto. Em suas elaboração ela
foi

consolidando uma perspectiva sobre o modo de operacionalização das


discriminações dentro das organizações, em que questões éticas, morais e
relacionadas com a democratização de espaços institucionais sempre são tratadas
através de uma perspectiva “racional”, que busca justificar as desigualdades a partir
da ideia de mérito. Ou seja, se constatamos representação excessiva de pessoas
brancas nos lugares mais qualificados é porque elas merecem isso, e a ausência de
negras e negros e de outros segmentos deve-se ao fato de não estarem devidamente
preparados. (BENTO, 2022, p. 19).
Assim é que a realidade da supremacia branca nas organizações públicas e privadas
da sociedade brasileira é usufruída pelas novas gerações brancas como mérito de seu
grupo, ou seja, como se não tivesse nada a ver com os atos anti-humanitários
cometidos no período da escravidão, que corresponde a 4/5 da história do país, ou
com aqueles que ainda ocorrem na atualidade (BENTO, 2022, p. 23-24). (...)
O desconhecimento da herança escravocrata e suas implicações na atualidade e o mito
da meritocracia que privilegia as pessoas brancas, sustenta o tal pacto: “uma aliança que
expulsa, reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e recordado pelo

74
coletivo. Gera esquecimento e desloca a memória para lembranças encobridoras comuns. O
pacto suprime as recordações que trazem sofrimento e vergonha, porque são relacionadas à
escravidão (BENTO, 2022, p. 25).

A possibilidade de uma reparação histórica no âmbito do ensino superior público


realmente afetou a supremacia branca brasileira, desfazendo três mitos centrais para sua
organização: o mito de neutralidade e racionalidade científica, que a ciência e universidade
reivindicam para si; da meritocracia sob qual se funda os exames vestibulares; e o mito da
democracia racial que ainda encontra apoio social e político. Essa reparação também revelou
os limites cognitivos que a intelectualidade científica brasileira possui na hora de articular
pensamentos complexos, como a intersecção entre raça, classe, origem e território, gênero e
sexualidade na realidade brasileira, a exemplo da intelectualidade contrária às cotas e
intelectualizada que atuou como amicus curiae, argumentando contrariamente às cotas.
Tivemos especialistas no âmbito da educação, antropólogos, sociólogos, dentre outros
intelectuais oriundos do próprio ensino superior público que argumentaram, se não por uma
má-fé e defesa ideológica de um privilégio branco, um desconhecimento e incapacidade de
inteligibilidade da dinâmica do racismo na realidade própria realidade brasileira. O que me
faz questionar, que tipo de conhecimento essa intelectualidade produz? Sua resistência às
cotas, se não uma expressão racista e defesa de seus próprios interesses, trata-se de uma
intelectualidade estéril, cujo racismo estrutural e institucional interdita e torna-os incapazes de
lidar com a leitura, formulação, interpretação e articulação de fatos e conhecimentos
complexos sobre a própria realidade brasileira. Quando, por exemplo, supõem que o
vestibular não operava uma barreira racial, sendo o não acesso de pessoas negras mais
relacionados à baixa qualidade educacional do que ao sistema universitário em si. Nesse
sentido, a melhora da educação superaria esta barreira. Mas porque a qualidade da educação
ofertada às pessoas negras é inferior? Há muitas formas de uma prova, aparentemente
igualitária operar uma barreira racial. O desconhecimento sobre isso não é o que mais me
espanta, mas a negação da escuta quando pessoas negras apontam tais impedimentos. E
porque não há uma escuta política de pessoas negras, mesmo?

O próprio processo seletivo para ingresso nesse programa de mestrado apresentava um


conjunto de elementos que configuram barreiras raciais aos candidatos, que passavam ao
largo do programa – e ainda passam. Durante o processo seletivo, candidatos organizados e

75
negros15 apresentaram alguns desses elementos, pois, ao nosso ver, havia a possibilidade de
serem diminuídos ainda durante o processo de seleção, sem ferir o que já estava posto no
edital. No entanto, não houve o atendimento dessa demanda naquela seleção e entendo que a
mudança posterior em relação a um dos tópicos – a possibilidade de apresentar recursos por
email e não apenas presencialmente - esteja mais relacionada com a aceleração digital
provocada pela pandemia, do que com o a demanda anterior apresentada por um conjunto de
estudantes.

A constitucionalidade de cotas raciais no ensino superior público foi objeto de


discussão da Corte do Superior Tribunal Federal - STF, dada a reação contrária a sua adoção.
Em abril de 2012, o Supremo julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
- ADPF 18616 que foi ajuizada pelo partido Democratas - DEM contra a Universidade de
Brasília. A UNB realizava a reserva de 20% das vagas previstas no vestibular para
preenchimento a partir de critérios étnico-raciais.

Por unanimidade o Tribunal, julgou totalmente improcedente a arguição apresentada


pelo DEM. O julgamento aprofundou o debate sobre cotas raciais para além daquele que
havia reduzido, promovendo um amplo debate naquela corte. Destaco (e agradeço) aqui a
atuação no papel de amicus curiae17 que arguiram em defesa da das cotas junto ao STF.
Cumpre lembrar que, como já havia indicado Lélia Gonzalez, o movimento negro não é um
bloco monolítico e apesar das organizações que atuaram como amicus curiae
majoritariamente façam parte do movimento negro, parcelas do movimento negro também se
colocaram contrárias às cotas, a exemplo do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro e do
Movimento Negro Socialista.

Assim, compreendo que é especialmente quando se reivindica o acesso ao ensino


superior público que a tensão racial que cindi as relações sociais no Brasil revela os

15
A solicitação apresentada ao PPGSSP e a resposta obtida encontram-se nos anexos. Cinco
estudantes assinaram a solicitação, no entanto, éramos cerca de vinte candidatos organizados e muitos
temiam que assinar nominalmente a solicitação pudesse acarretar prejuízos a sua participação naquele
e em processos seletivos futuros. Diante da negativa da solicitação, organizamos nossas redes pessoais
para garantir que candidatos de territórios afastados pudessem apresentar seus recursos, diminuindo o
impedimento que a seleção “igualitária” proporcionava.
16
O inteiro teor do acordão de arguição da ADPF 186 esta disponível em: Em 2017 também a reserva de
vagas em concursos públicos foi objeto de debate no STF, dessa vez a Ação Declaratória de Constitucionalidade
41 e o inteiro teor do acordão, favorável às cotas e o reconhecimento de sua constitucionalidade, pode ser
consultado em:
17
Expressão em latim para “amigos da corte”, admitida como uma terceira parte que pode realizar
sustentação oral
76
antagonismos raciais em sua expressão contemporânea. Rememorando-se a origem do ensino
superior, não é difícil compreender as bases reacionárias e supremacistas ante a medida e a
reiteração do pacto narcísico da branquitude.

Tal tensão jamais se expressaria não fosse o legado histórico de luta e organização do
Movimento Negro, em suas diferentes fases e conjunturas. A disputa por políticas afirmativas
no âmbito da educação superior pública possibilitou um avanço na compreensão da dinâmica
das relações étnico-raciais, à medida em que especifica e reconhece-se as interdições que as
pessoas negras sofrem em um país que tem em sua estrutura e institucionalidade as bases do
racismo. Seus desdobramentos extrapolam a seara educacional e ainda estão em
desenvolvimento.

Na análise de Nilma

Ao ressignificar e politizar a raça, compreendida como construção social, o


movimento negro reeduca e emancipa a sociedade e a si próprio, produzindo novos
conhecimentos e entendimentos sobre as relações étnico-raciais e o racismo no
Brasil, em conexão com a Diáspora africana (GOMES, 2017, p. x)
Por fim, quero lembrar ainda que a aprovação da Lei de Cotas também reverberou nos
estudantes que já haviam ingressado nas universidades, inserindo novas pautas em sua agenda
política, como a integração e pertencimento ao contexto universitário; estratégias de
permanência material e simbólica; ampliação da força política nos espaços de representação
política; criação e ampliação de cursinhos preparatórios para o vestibular18; fortalecimento de
áreas de pesquisa e extensão; ampliação da sociabilidade; ampliação do acesso a pós-
graduação, especialmente nos níveis de mestrado e doutorado19.

18
No final de 2012 dediquei-me a criação de um Cursinho Pré-Universitário no âmbito da UNIFESP
Baixada Santista. A criação e desenvolvimento do cursinho não foi fruto de ação do coletivo negro ou em
decorrência direta da aprovação da Lei de Cotas, mas certamente contou com o negro em movimento e
minhas motivações e compromisso com o seu desenvolvimento passava pela luta prioritária 4. O grupo que
instituiu o Cursinho Cardume era formado por trabalhadores, estudantes e docentes. Elegemos a educação
popular freireana como abordagem, bem como a opção por ser um cursinho com vistas a preparação para o
Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM. Durante o ano de 2013 ocupamo-nos com a concepção, articulação,
aprovação do projeto em âmbito institucional, bem como e seleção dos estudantes, dando início a primeira
turma no início de 2014. Fui educadora no eixo Redação durante três anos, quando diminui minha atuação em
razão da finalização da graduação. Em 2023 o Cursinho Cardume, iniciou sua décima turma prepatatória para o
ENEM e iniciou turmas preparatórias, com vistas no ingresso ao “vestibulinho” das escolas técnicas estaduais.
19
No bojo das mudanças em razão da lei de cotas, recordo que também foi objeto de nossa reflexão no
NERP a preocupação com o ingresso e permanência na pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. A
reflexão era simples e objetiva: a biblioteca não possuía a bibliografia que abarcassem discussões no campo
das relações étnico-raciais, fossem autores brancos ou não; não haviam pessoas que naquela época se
autodeclarava ou fosse heteroidentificada como negras e/ou indígena, a exceção era a líder do grupo; com isso
havia uma maior dificuldade suporte ao desenvolvimento de nossas pesquisas, desde o nível da graduação,
quem dirá na pós-graduação. A época a Profa. Renata Gonçalves sistematizou e articulou o envio de uma
77
Nilma nos indica que:

à medida que o movimento negro aprimora a sua luta por emancipação social e pela
superação do racismo, mais se intensifica a variedade de formas de opressão e de
dominação contra as quais ele tem que se contrapor, bem como se amplia a
multiplicidade de escalas (local, nacional e transnacional) das lutas em que ele se
envolve. Esse processo exige a construção de outras formas de organização política,
que produzirão novos conhecimentos e pedagogias (GOMES, 2012, p. 741).
Menos de dois meses após a aprovação da Lei de Cotas, criamos o Núcleo Reflexos de
Palmares. Já narrei esse surgimento em outro texto e o recuperarei aqui:

Numa unidade curricular de Metodologia do Trabalho Científico com uma turma de


ingressantes no curso de Serviço Social uma professora propôs aos estudantes a realização
de um trabalho que dialogasse com a realidade social do território da universidade – eram os
primeiros meses de funcionamento da UNIFESP naquele prédio recém-inaugurado na Rua
Silva Jardim, em Santos. Com a intenção de ensinar o processo de pesquisa a partir da
realidade, a Professora Renata Gonçalves, propôs que as/os estudantes caminhassem ao
redor da universidade, observando a região, para identificarem um tema de pesquisa que
pudesse se constituir como um objeto de pesquisa, que desenvolveríamos durante o curso
daquela unidade curricular. Realizada em grupo, a caminhada ao redor do prédio possibilitou
a identificação de diferentes temas de pesquisas entre as/os estudantes. Num desses grupos,
as/os estudantes – eu entre eles - observaram a população negra. Apesar da Lei nº 12.711,
conhecida como Lei de Cotas, ter sido sancionada em 2012, somente no ano posterior é que a
composição das/os estudantes começa a ser diversificada. Portanto, para a turma
ingressante em 2012, a presença de pessoas negras na universidade ainda não era comum
(...) Então, não foi difícil os arredores do prédio chamar a atenção dado o contrastes com o
perfil da comunidade acadêmica. De volta à sala de aula, as reflexões trazidas pelos grupos

proposta de formação com vistas ao ingresso de pessoas negras ou pesquisadores no campo das relações
raciais, submetendo-a a um edital do governo federal. A proposta foi aprovada em 2015, no entanto, com a
conjuntura política desse período a financiamento deste projeto ocorreu apenas em 2018, por meio do
Programa de de Desenvolvimento Acadêmico Abdias do Nascimento – PDAAN, uma espécie de “cursinho
preparatório” para ingresso na pós. Eu havia sido uma estudante da graduação que esperava encontrar uma
formação como esta quando concluísse minha graduação, mas, com a demora, minha vinculação se deu como
tutora, uma vez que eu estava finalizando meu primeiro mestrado. O programa contou apenas com 1 edição,
com três turmas nas unidades Baixada Santista, Guarulhos e São Paulo. Há a expectativa de que o programa
possa ser parte das ações institucional da UNIFESP. Mas, como tutora e posteriormente mestranda nessa
instituição e que também se graduou por aqui, entendo a necessidade de um “cursinho preparatório” para os
programas de pós-graduação. A dificuldade no ingresso e permanência de estudantes negras não está
relacionada a capacidade técnico-científica dos estudantes e sim a reprodução do racismo institucional,
estrutural e também interpessoal no modo de organização e funcionamento dos programas, da seleção à
defesa.
78
foram sendo desenvolvidas e amadurecidas. Conforme as aulas avançavam, as investigações
sobre a população negra naquela região também se desenvolviam e foi desvelando
processos históricos da cidade de Santos, Brasil e África e de diversos eventos ocorridos
naquele lugar. Quilombo, abolicionistas, escolas de samba, blocos de carnaval, terreiros,
Bantus... O tema extrapolou o trabalho em sala de aula, a sala de aula e aquele semestre. A
partir das descobertas e reflexões do grupo e da turma, alguns estudantes, negras e negros,
sujeitas/os periféricas/os, e também não-negros/as (importante que se recorde, já que
durante o período de sua maior força política, o grupo que se constituía foi acusado de
“sectarismo”) e não-periféricos/as, propuseram encontros para dar continuidade aos
estudos sobre o assunto. Com alguns encontros após às aulas vespertinas, o grupo havia
firmado o interesse em criar um núcleo de estudos. Na mesma época, parte dessas/es
mesmas/os estudantes também fomentaram outros espaços na universidade. Procuraram
por grupos que já existiam, como o Núcleo Heleieth Saffioti e o Núcleo sobre Violência Social.
E fomentaram a criação de um grupo de estudos em Antropologia Urbana. No entanto, dos
grupos demandados por estudantes, apenas o de relações raciais foi instituído. Nomeamo-
nos como Reflexos de Palmares em referência a necessidade de sermos vistos, termos
reflexos espelhos, numa inspiração e referência direta ao texto “Espelhos” de Osvaldo
Faustino e também em referência ao Quilombo de Palmares, evocando a trajetória de lutas
sociais das negras/os no Brasil. Em 2013 o Núcleo de Estudos Reflexos de Palmares oficializou
suas atividades propondo atividades formativas e culturais, a exemplo da Semana da
Consciência Negra, hoje parte do calendário acadêmico da universidade. O grupo passou a
realizar o estudo sistemático de intelectuais negras/os invisibilizados na produção
acadêmica, bem como acabou aglutinando estudantes negras/os da universidade,
conferindo, em muitas vezes, uma condição considerada peculiar no contexto acadêmico
por reunir características de “núcleo de estudo e extensão” e “coletivo estudantil”, dada a
atuação política de seus membros – e lá existe intelectual que não seja político? - Além das
Semanas da Consciência Negra, o grupo realizou pesquisa e estudos, sistemáticos em
matérias de relações raciais; recebeu estudantes de graduação e pós-graduação que
desenvolveram pesquisas de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e
dissertações de mestrado; realizou projetos de extensão; visitas pedagógicas; organizou
eventos acadêmicos e culturais; e ofertou disciplinas na graduação e na pós-graduação e

79
contribuiu para a revisão do conteúdo das unidades curriculares da matriz de formação do
Serviço Social. Também nesse período, as/os participantes do NERP enfrentaram
sindicâncias, processos judiciais e a hostilização, fosse por suas pesquisas tidas como
“panfletárias”, mesmo quando atendiam aos quesitos do dito “rigor acadêmico”, fosse por
um posicionamento antirracista ante as expressões do racismo no contexto universitário.

80
COTA NÃO É ESMOLA E nem venha me dizer que isso é vitimismo
Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu
Existe muita coisa que não te disseram na escola racismo
Cota não é esmola E nem venha me dizer que isso é vitimi
Experimenta nascer preto na favela, pra você ver Que isso é vitimi
O que rola com preto e pobre não aparece na TV Que isso é vitimismo
Opressão, humilhação, preconceito
A gente sabe como termina quando começa desse E nem venha me dizer que isso é vitimismo
jeito Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu
Desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais racismo
Cuida de criança, limpa a casa, outras coisas mais E nem venha me dizer que isso é vitimi
Deu meio-dia, toma banho, vai pra escola a pé Que isso é vitimi
Não tem dinheiro pro busão Que isso é vitimismo
Sua mãe usou mais cedo pra correr comprar o pão
E já que ela ta cansada quer carona no busão São nações escravizadas
Mas como é preta e pobre, o motorista grita: Não! E culturas assassinadas
E essa é só a primeira porta que se fecha A voz que ecoa no tambor
Não tem busão, já tá cansada, mas se apressa Chega junto, e venha cá
Chega na escola, outro portão se fecha Você também pode lutar
Você demorou, não vai entrar na aula de história E aprender a respeitar
Espera, senta aí, já já da uma hora Porque o povo preto veio para revolucionar
Espera mais um pouco e entra na segunda aula
E vê se não se atrasa de novo, a diretora fala Não deixem calar a nossa voz não!
Chega na sala, agora o sono vai batendo Nascem milhares dos nossos cada vez que um
E ela não vai dormir, devagarinho vai aprendendo nosso cai
que Nascem milhares (Marielle Franco, presente)
Se a passagem é três e oitenta, e você tem três na Dos nossos
mão Nascem milhares dos nossos cada vez que um
Ela interrompe a professora e diz: Então não vai ter nosso cai
pão E é peito aberto, espadachim do gueto, nigga
E os amigos que riem dela todo dia samurai!
Riem mais e a humilham mais, o que você faria?
Ela cansou da humilhação e não quer mais escola
E no natal ela chorou, porque não ganhou uma bola Experimenta nascer preto, pobre na comunidade
O tempo foi passando e ela foi crescendo Cê vai ver como são diferentes as oportunidades
Agora lá na rua ela é a preta do suvaco fedorento E nem venha me dizer que isso é vitimismo hein
Que alisa o cabelo pra se sentir aceita Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu
Mas não adianta nada, todo mundo a rejeita racismo
Agora ela cresceu, quer muito estudar Existe muita coisa que não te disseram na escola
Termina a escola, a apostila, ainda tem vestibular Eu disse, cota não é esmola
E a boca seca, seca, nem um cuspe Cota não é esmola
Vai pagar a faculdade, porque preto e pobre não vai Eu disse, cota não é esmola
pra USP Cota não é esmola
Foi o que disse a professora que ensinava lá na Cota não é esmola
escola Cota não é esmola
Que todos são iguais e que cota é esmola Eu disse, cota não é esmola
Cota não é esmola
Cansada de esmolas e sem o dim da faculdade Cota não é esmola
Ela ainda acorda cedo e limpa três apartamentos no Cota não é esmola
centro da cidade
Experimenta nascer preto, pobre na comunidade Bia Ferreira
Cê vai ver como são diferentes as oportunidades

81
Capítulo 3 – Questão Social, Questão Racial e Serviço Social
Este capítulo visa recuperar aspectos sócio-históricos sobre a gênese e
institucionalização do Serviço Social no Brasil, seu fundamento e atuação com a questão
social junto a classe trabalhadora e os rebatimentos da ampliação do acesso de pessoas negras
ou pobres ao ensino superior na formação em Serviço Social, especialmente no ensino
superior público. Para isso recuperamos elementos de sua gênese sob duas perspectivas de
interpretação e apresentamos e analisamos a questão social, que fundamenta a atuação
profissional e sua relação com a questão racial. Por que e como se deu a origem e
institucionalização do Serviço Social no Brasil? Que instituições contribuíram para isso? Que
impactos a ampliação do ensino superior gerou à formação e exercício profissional em
Serviço Social? A pesquisa realizada, do tipo bibliográfica, se estabelece em diálogo com
pesquisadores das ciências sociais, serviço social, bem como o acúmulo de minhas vivências e
memórias como estudante da graduação, pós-graduação e no exercício profissional em
políticas sociais e na formação profissional.

As interpretações da gênese do Serviço Social


O surgimento do Serviço Social está profundamente ligado à Igreja Católica de modo
geral e ao Estado Novo em particular. Em toda a América Latina, essa profunda relação com a
Igreja Católica (e dela com o Estado) está na gênese do Serviço Social (YAZBECK, 2009),
recebendo forte influência do Serviço Social que se desenvolveu em alguns países da Europa,
também por meio da Igreja Católica.

No contexto brasileiro, a demanda por alguma forma de assistência à população que


sofre as sequelas advindas da expansão do capitalismo e encontra como resposta os interesses
da Igreja Católica, também interessada na situação dos operários e na recuperação de sua
autoridade no que se referia à questão social e econômica (PIO XI, 1931; LEÃO XIII, 1891),
demandando ao Estado uma intervenção extraeconômica (NETTO, 1996). Apesar das
particularidades do Brasil, essa resposta é impulsionada pela resposta que havia sido
construída principalmente na Europa.

A compreensão da gênese do Serviço Social no Brasil encontra pelo menos duas


interpretações: uma perspectiva endógena, que explicita e interpreta essa gênese como uma
evolução da caridade; e outra perspectiva histórico-crítica, que explicita e interpreta a gênese
do Serviço Social do ponto de vista das relações sociais na ordem capitalista essa origem, que
é a que busca-se adotar aqui.
82
Perspectiva Endógena/Conservadora do surgimento do Serviço Social
Numa compreensão endógena, o Serviço Social tem sua origem vinculada as vastas
mudanças sócio-históricas promovidas pelo próprio desenho do capitalismo e o poder e
influência da Igreja Católica:

No século XIX, na Europa, os operários viviam, em grau extremo, a miséria e a


exploração decorrentes da industrialização e desenvolvimento do capitalismo. Essa
situação dá uma grande dimensão à questão social, levando a Igreja a se posicionar.
Esta via a época como de grande crise, decadência da moral e dos costumes cristãos.
Essa situação decorre - segundo a Igreja - do liberalismo e do comunismo. Tendo
em vista sua missão - encaminhar o homem a conquista da felicidade eterna - ela
intervém na situação que é de desordem e que impede as pessoas de cumprir sua
tarefa de dar glória a Deus, dadas as condições em que viviam (AGUIAR, 1995, p.
17).
Na Europa, o operariado era formado pela população europeia despojada de suas terras
e meios de subsistências, mas a apreensão desse fato não é tida como uma sequela do
capitalismo a partir do ponto de vista da classe trabalhadora.

Ande essas mudanças, a Igreja Católica se coloca na perspectiva de reforma da


sociedade, remetendo ao ideal da Idade Média, onde exerceu maior poder e não havia o
liberalismo e comunismo, organizando-se contra a situação operária e para reconstrução da
sociedade (AGUIAR, 1995). Em 1891, o Papa Leão XIII, da Igreja Católica Apostólica
Romana, promulga a Encíclica Papal Rerum Novarum, falando da condição dos operários.

Na referida encíclica o Papa até tece considerações associadas as mazelas do


capitalismo, mas, repele a respostas da classe trabalhadora aquela realidade, crítica o largo
desenvolvimento do capitalismo, valoriza a importância da família, imputa responsabilidades
a ação do Estado e propõe a concórdia entre as classes, indicando as obrigações dos patrões,
operários e Estado, além do seu próprio como forma de solucionar resolver as discrepâncias
que sujeitavam os operários à miséria:

É com toda a confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do
Nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não
apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução
eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão confiadas a salvaguarda da
religião e a dispensação do que é do domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos olhos
de todos trair o Nosso dever. Certamente uma questão desta gravidade demanda
ainda de outros a sua parte de actividade e de esforços; isto é, dos governantes, dos
senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja sorte se trata. Mas, o que nós
afirmamos sem hesitação, é a inanidade da sua acção fora da Igreja. E a Igreja,
efectivamente, que haure no Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito
ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e
áspero; a Igreja, que se não contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas
também se esforça em regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada
um; a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende
a melhorar a sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que
todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à
83
questão operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a
autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com
prudência, a sua parte do consenso” (LEÃO XIII, 1891,s/n).
A resposta que a Igreja propõe é a da caridade, seria uma solução definitiva e
organizado, lhe atribuindo autoridade para essa ação. Essa resposta já estava sendo
experimentada em algumas regiões, como a Inglaterra, por meio de Sociedades de
Organização da Caridade – SOC, como uma evolução da filantropia:

Burguesia, Igreja e Estado uniram-se em um compacto e reacionário bloco político,


tentando coibir as manifestações dos trabalhadores eurocidentais, impedir suas
práticas de classe e abafar sua expressão política e social. Na Inglaterra, o resultado
material e concreto dessa união foi o surgimento da Sociedade de Organização da
Caridade em Londres, em 1869, congregando os reformistas sociais que passavam
agora a assumir formalmente, diante da sociedade burguesa constituída, a
responsabilidade pela racionalização e pela normatização da prática da assistência.
Surgiam, assim, no cenário histórico os primeiros assistente sociais, como agentes
executores da prática da assistência social, atividade que se profissionalizou sob a
denominação de “Serviço Social”, acentuando seu caráter de prática de prestação de
serviços (MARTINELLI, 1989, p. 67).
Na Inglaterra, esse arranjo da alta burguesia inglesa com a Igreja e o Estado, que
passam a racionalizar a assistência como forma de controlar os operários por meio das
Sociedades de Organização da Caridade, que cria:

(...) a primeira proposta de prática para o Serviço Social no final do século XIX.
Entendia a Sociedade que só coibindo as práticas de classe dos trabalhadores,
impedindo suas manifestações coletivas e mantendo um controle sobre a “questão
social” é que se poderia assegurar o funcionamento social adequado (
MARTINELLI, 1989, p. 99).
A principal bandeira dessas Sociedades era a organização científica da assistência,
crendo que por este meio seria possível ter controle sobre a questão social:

o que a levava a uma posição bastante alienada do agravamento da “questão social”


propriamente dita. Não se dando conta de que eram 'úteis e inclusive necessários por
causa da deficiente organização da sociedade’ e de quem deviam ‘sua existência à
existência dos males sociais’ (Marx, 1979:206), os agentes lutavam pela expansão
da Sociedade e pela ampliação de seu próprio efetivo (MARTINELLI, 1989, p.
104).
No final do século XIX, com o fortalecimento das Sociedades de Organização da
Caridade, imigração europeia e expansão do capitalismo, este modelo é levado para os
Estados Unidos da América20, incluindo a criação de escolas de Serviço Social. É por meio da

20
Não é objeto de análise a configuração do Serviço Social neste país, mas, importante indicar que a transição do
escravismo para o capitalismo naquele país se dá em meados do século XIX, tendo por conflito a Guerra da
Secessão (1861-1865). Em 1965 é publicada a 13ª Emenda à Constituição EUA, abolindo a escravidão, no
entanto, tal como no Brasil, a abolição não alterou substancialmente a situação economica dos novos livres. À
época, o Brasil, e em especial o Estado de São Paulo, recebeu mais de 2 mil americanos “descontentes” com o
resultado da referida Guerra, ou seja a abolição da escravidão, concentrando-se na região de atual dos municípios
de Santa Bárbara d’Oeste, Americana, Nova Odessa.
84
Sociedade de Organização da Caridade de Baltimore que Mary Richmond promoveu a
aprendizagem da aplicação científica da filantropia, como ela postulava o Serviço Social
(MARTINELLI, 1989). Com essa expansão, a ação assistencial referenciada em
conhecimentos técnicos especializados, extrapolava a prática assistencial unicamente à
motivação religiosa.

No caso brasileiro, essa atuação da Igreja Católica também já não era inédita, uma vez
que católicos que não participavam do clero, desde o período colonial, atuou de forma
assistencial no campo da educação, sociedade e saúde, por meio das Irmandades, Confrarias e
ainda Ordens religiosas.

Quando o capitalismo se adensa no Brasil, também o Serviço Social será


institucionalizado, em apoio ao desenvolvimento da burguesia e conciliação das classes
sociais, revelando seu cariz ideológico;

Da função econômica da assistência, conforme concebida pela burguesia - garantir a


expansão do capital -, decorre então outra igualmente importante - a função
ideológica - que aderiu fortemente à prática social, expressando-se através da tácita
ou explícita repressão sobre a organização da classe trabalhadora e sobre sua
expressão política” ( MARTINELLI, 1989, p. 99).
No caso Brasileiro, o Serviço Social também recebe a influência doutrinária direta da
Igreja Católica, colocando em prática não apenas as orientações da Rerum Novarum, mas,
também, pela encíclica que a atualiza, a Quadragesimo Anno, promulgada em 1931 pelo Papa
Pio XI.

Nessa encíclica, Pio XI trata da restauração da ordem e social em conformidade com a


Lei Evangélica no quadragésimo aniversário da encíclica do Papa Leão XII, a Rerum
Novarum. Para isso faz uma avaliação positiva e elogiosa tanto do conteúdo Rerum Novarum,
quanto de seu autor, enaltecendo o desenvolvimento de uma sociologia católica; a prática de
associações; a ação da autoridade civil (Estado) na garantia do bem comum, interferindo no
liberalismo econômico e na evolução do comunismo, entre outros.

Dada a importância da Rerum Novarum, o Pio XI se refere ao documento como


Magna Carta, que contém as bases para um sólido fundamento de toda atividade cristã no
campo social. Também acentua a incompatibilidade entre o catolicismo e o socialismo
“Socialismo religioso, socialismo católico são termos contraditórios: ninguém pode ser ao
mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista” (PIO XI, 1931, s/n)

Assim, a Igreja Católica teve um o papel ativo na gênese do Serviço Social, sob o
mando de sua doutrina social e por meio de seus fiéis – o laicato. Junto a orientação da
85
doutrina docial da Igreja Católica, a institucionalização do Serviço Social também recebe a
influência do pensamento social positivista, articulando o arranjo teórico-doutrinário que
caracteriza o projeto profissional e sua intervenção na questão social nesse período.

“Questão social” e práticas de assistência já existiam mesmo antes da


institucionalização da profissão, que ocorre como parte das instituições necessárias para o
desenvolvimento capitalista e com o apelo técnico-científico da caridade aplicado a
conservação da ordem capitalista.

Nesse sentido, não é o argumento religioso que demanda o surgimento do Serviço


Social nem no Brasil, nem no mundo. Essa é a forma como o Estado, associado à burguesia
industrial e à Igreja, organiza o Serviço Social para intervir na questão social em um sentido
favorável aos interesses da burguesia.

Mesmo numa perspectiva endógena/conservadora, o fundamento do Serviço Social é a


questão social, mas essa relação e vinculação é ocultada e o posicionamento profissional ante
essa realidade se dá na reprodução e conservação da ordem capitalista e das expressões da
questão social.

Assim, o laicato mobilizado pela Ação Católica organizado por meio do Centro de
Estudos e Ação Social – CEAS funda a primeira Escola de Serviço Social, em São Paulo,
instalada em 15 de fevereiro de 1936. Em 1937, no Rio de Janeiro21, ocorre a fundação do
Instituto de Educação Familiar e Social, que se encarregará da formação de mulheres, de
todas as classes sociais e contará com a Congregação das Filhas do Coração de Maria, ordem
francesa recém-chegada ao Brasil e que organizará a escola com base no trabalho social
realizado na França (AGUIAR, 1995.

Em outras cidades a influência da Igreja Católica também vai institucionalizando o


Serviço Social: “A exemplo das escolas de São Paulo e do Rio de Janeiro, a maioria das
escolas até 1950 terá a influência direta da Igreja Católica, tais como: Natal, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Escola Masculina do Rio de Janeiro e de São Paulo22 (AGUIAR, 1995, p. 30) e

21
Importante indicar que, embora seja inegável a influência da Igreja Católica no Serviço Social brasileira,
retomadas histórico-sociais tem apresentado se não uma nova interpretação, novos elementos para compreender
esse processo, como a reivindicação de uma origem negra e laica do Serviço Social no Rio de Janeiro, como
provocado por Graziela Scheffer (2016).
“No início, o Serviço Social era destinado só para as mulheres. Depois surgem escolas masculinas, no período
22

noturno. Só com o tempo é que teremos escolas para rapazes e moças” (AGUIAR, 1995, p.30).
86
estimulando a entrada de docentes católicos nas escolas que não tinham orientação, alargando
a influência do arranjo teórico-doutrinário

Em 1940, o Serviço Social no Brasil vai receber maiores contribuições do Serviço


Social norte-americano, a partir da concessão de bolsas de estudos para estudantes brasileiras
em instituições de ensino norte-americana, realizando intercâmbio nas instituições norte-
americanas de orientação católica. Esse intercâmbio, o Serviço Social no Brasil receberá forte
influência no aspecto técnico - caso, grupo e comunidade - contudo, mantendo uma doutrina
católica (AGUIAR, 1995). Também nesta década temos a criação da Associação Brasileira de
Serviço Social - ABESS, permitindo um maior esforço na construção de uma unidade no
ensino do Serviço Social brasileiro.

Ainda sob influência do pensamento social conservador, o desenvolvimento da


profissão envolverá a organização de diferentes projetos profissionais: Tradicional –
Conservador; Modernização do Conservadorismo; e, embora já apresentando elementos de
outro pensamento social, mas ainda nos limites conservadores, Intenção de Ruptura.

O desenvolvimento destes diferentes projetos profissionais23 responde uma conjuntura


social, política e econômica determinada histórica mais ampla e complexa do que uma mera
evolução do Serviço Social, expresso no movimento de renovação e reconceituação do
Serviço Social no Brasil e na América Latina.

Perspectiva histórico-crítica – relações sociais


Nessa perspectiva, a gênese do Serviço Social não se explica como uma evolução da
caridade e filantropia, mas, necessariamente vinculada as relações sociais pelo qual se produz
e reproduz a ordem capitalista e tem referência no pensamento social materialista-histórico-
dialético.

Compreende que o desenvolvimento do capitalismo produz um conjunto de mazelas


sociais, posto que em seu processo de produção e reprodução social expropria a classe
trabalhadora, num processo de desumanização/desvalorização dessa classe e valorização do
capital sua concepção tem como núcleo central é a compreensão da história a partir das

23
O desenvolvimento de cada um destes projetos profissionais não será objeto deste trabalho, no
entanto, ante a ampla abordagem da literatura profissional, IAMAMOTO (2019; 2006), NETTO (2005)
e a síntese de CARDOSO (2013).

87
classes sociais, seus conflitos, o reconhecimento da centralidade da categoria trabalho e dos
trabalhadores. (IAMAMOTO, 2019).

Esse conjunto de mazelas, as expressões da questão social, será objeto da burguesia,


por meio da conservação de seu domínio. No entanto, não é o próprio capitalista que vai se
ocupar dessas expressões da questão social, é oposto, vai mobilizar a Igreja incorporando e
atualizando seu papel aos interesses da nova ordem social e demandar uma refuncionalização
do Estado, uma vez que sua intervenção teria que ser continuada, conforme seus interesses:

Até então, o Estado, na certeira caracterização marxiana, o representante do


capitalista coletivo, atuará como o cioso guardião das condições externas da
produção capitalista. Ultrapassava a fronteira de garantidor da propriedade privada
dos meios de produção burgueses somente em situações precisas - donde um
intervencionismo emergencial, episódico, pontual. Na idade do monopólio, ademais
da preservação das condições externas da produção capitalista, a intervenção estatal
incide na organização e na dinâmica econômicas desde dentro, e de forma contínua
e sistemática. Mais, exatamente, no capitalismo monopolista, as funções políticas do
Estado imbricam-se organicamente com as funções econômicas” (NETTO, 1996,
20-21).
E

O mais significativo, contudo, é que a solução monopolista - a maximização dos


lucros pelo controle dos mercados - é imanentemente problemática: pelos próprios
mecanismos novos que deflagra, ao cabo de um certo nível de desenvolvimento, é
vítima dos constrangimentos inerentes à acumulação e à valorização capitalista.
Assim, para efetivar-se com chance de êxito, ela demanda mecanismos de
intervenção extra-econômicos. Daí a refuncionalização e o redimensionamento da
instância por excelência do poder extra-econômico, o Estado (NETTO, 1996, p.20).
A interpretação da origem do Serviço Social vinculado às relações sociais da ordem
capitalista e a mudança de seu posicionamento em relação a esta ordem, expressa o
amadurecimento político da categoria profissional na compreensão de seu próprio processo de
inserção na classe trabalhadora e foi “ alimentado teoricamente pela tradição marxista — no
diálogo com outras matrizes analíticas — e politicamente pela aproximação às forças vivas
que movem a história: as lutas, organizações e movimentos sociais” (IAMAMOTO, 2019, p.
451).

A expressão desse amadurecimento e encontro com a tradição marxista tem como


marco o III Congresso Brasileiro de Assistente Sociais - CBAS, conhecido como “Congresso
da Virada” que marcada a virada ética-política da categoria profissional e expressa:

a sintonia do Serviço Social brasileiro com as mobilizações de trabalhadores e


entidades combativas da sociedade civil, numa aproximação com as lutas,
organizações e movimentos sociais que portam a defesa dos direitos, interesses e
projetos societários das classes subalternas — na criação de forças de resistência à
ditadura do grande capital e no apoio ao processo de construção democrática
(IAMAMOTO, 2019, p. 441).

88
É a existência dessas forças políticas que torna possível a contestação, expressa
massivamente pelos assistentes sociais brasileiros no III CBAS (IAMAMOTO, 2019). Tal
virada ressoa o movimento de reconceituação do Serviço Social na América Latina que dentre
outros elementos, preocupou-se com:

o reconhecimento e a busca de compreensão dos rumos peculiares do


desenvolvimento latino-americano; a criação de um projeto profissional abrangente,
atento às características latino-americanas, em contraposição ao tradicionalismo; a
necessidade de atribuir um estatuto científico ao Serviço Social; a explícita
politização da ação profissional, solidária com a libertação dos oprimidos e
comprometida com a “transformação social” (IAMAMOTO, 2019, p. 446)
Em razão disso, dentre outras preocupações, a formação acadêmico-profissional
pautada no ensino-pesquisa-extensão e a produção crítica de conhecimento, majoritariamente
desenvolvida no ensino superior, torna-se um espaço estratégico e observamos a conquista da
hegemonia do projeto ético-política nessa área, como por exemplo a consolidação da pós-
graduação em nível de mestrado e doutorado; Lei de Regulamentação da Profissão e Código
de Ética da/o Assistente Social; a formulação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS (1996) e
Política Nacional de Estágio em Serviço Social (ABPESS, 2010).

O processo de contrarreforma do ensino superior no Brasil iniciado na década 1990 e


aprofundado nas primeiras décadas do século XXI é caracterizado pela expansão e exploração
de serviços de educação no ensino superior privado por meio de políticas como FIES e
PROUNI e pela expansão do ensino superior público por meio do REUNI. Essa
contrarreforma apresenta desafios para a formação acadêmico-profissional na perspectiva do
projeto ético-política, dada a subordinação da formação acadêmico-profissional à educação
privada e alinhada aos interesses do capital que ela operacionaliza.

Por outro lado, é por meio dessa mesma contrarreforma que ocorre a ampliação do
ensino superior com a inserção massiva de pessoas negras, indígenas e de baixa renda. Por um
lado, precariza-se a formação histórico-crítica e por outro inclui-se pessoas alijadas do ensino
superior privado subordinado à ordem do capital.

É nessa conjuntura em que ocorre a ascensão do debate da questão racial no Serviço


Social. Tal debate irrompe-se a partir da inserção coletiva de pessoas negras e indígenas no
Serviço Social que em suas experiências enquanto sujeitos não-brancos no ensino superior,
especialmente o público, inserem e aprofundam o debate da questão racial na formação da
sociedade brasileira, tensionando a dinâmica das relações raciais numa ordem capitalista
racializada.

89
Temos como expressão desse processo a criação do Grupos Temáticos de Pesquisa
(GTP) - Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Feminismos,
Raça/Etnia e Sexualidades24 (2010) no âmbito da Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino
em Serviço Social – ABEPSS; ; a publicação “Subsídios para o debate da questão étnico-
racial na formação em Serviço Social” (ABEPSS, 2018); a publicação da série Assistente
Social no combate aos preconceitos, com um caderno temático dedicado ao Racismo (2016), a
campanha “Assistente Sociais no combate ao racismo”, bem como o livro desta campanha
criação da Frente Nacional Assistentes Sociais no Combate ao Racismo (2020) realizado pelo
Gestão 2017-2020 do CFESS; organizada pelo conjunto CFESS-CRESS, bem como a
produção de conhecimento incorporando da questão racial na área do Serviço Social

Nesse sentido destaca a retomada da produção de Assistentes Sociais articulavam a


questão racial em sua produção de conhecimento, mesmo antes dessa ascensão, e também a
novo estágio do debate do tema no âmbito do Serviço Social, como a produção de Maria de
Lourdes, Sebastião Gonçalves, Elizabete Pinto, Joílson Santana, Tereza Cristina, Mabel Assis,
Maria Helena Elídio, Marcia Eurico, Ana Paula Procópio, Magali Almeida, Renata
Gonçalves, Rachel Gouveia, Gracyelle Costa. Também contribui para essa ascenção a
incorporação da produção intelectual de pessoas de pensadores que embora não sejam
assistentes sociais, a produção de conhecimento realizada têm contribuído para o
aprofundamento da compreensão da questão racial no âmbito do Serviço Social como Clóvis
Moura, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Jurema Werneck,
Sueli Carneiro. E também grupos de estudos e de formação como o Grupo de Estudo das
Relações Étnicos Raciais e o Serviço Social - GERESS e o trabalho formativo realizado por
grupos como Kilombagem, Movimento Negro Unificado e Circulo Palmarino. A atuação e
produção dessas pessoas permitiram os subsídios e inspiração para que a geração que
adentrou esse espaço coletivamente tivesse reflexos, histórias e um conhecimento crítico para
disputar e afirmar projeto aqui pelas bandas sudestinas-paulista.

Também o Movimento Estudantil de Serviço Social - MESS, base da Executiva


Nacional dos Estudantes de Serviço Social - ENESSO, reúne um série de marcos como
protagonista desse debate e aqui destaco a Comissão Organizadora do Encontro Regional de

24
Criado em dezembro de 2010 durante o XII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social - ENPESS
realizado no Rio de Janeiro, como uma estratégia coletiva de fortalecimento e visibilidade das discussões sobre
as relações sociais de gênero, raça/etnia, geração e sexualidades no âmbito do Serviço Social, bem como “forma
de resistência contra o produtivismo, a pressão e o isolamento dos(as) pesquisadores(as), mediante a
coletivização dos debates de ponta e a indicação dos temas relevantes para a área” (ABEPSS, 2013)
90
Estudantes de Serviço Social - ERESS da VII Região da ENESSO, região que corresponde ao
Estado de São Paulo e abrange o maior número de escolas de Serviço Social que organizou
um encontro histórico no ano de 2013.

A Comissão Organizadora FAFA, formada por estudantes da Faculdade FAMA e da


Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul - FAPSS SCS, foi responsável
pela realização do 35º ERESS Região VII que trazia em seu tema o verso de José Carlos
Limeira "Por menos que conte a história. Não te esqueço meu povo. Se Palmares não vive
mais. Faremos Palmares de novo". A qualidade política e organizativa do encontro foi um
marco no processo de formação daquela geração.

Como parte da ascenção do debate da questão racial e investigação da questão social e


como estes se relacionam, tornou-se objeto de discussão no interior da profissão e no diálogo
com os processos sociais externos a ela. Assim, no tópico seguinte, recupera-se aspectos
constitutivos da questão social e da questão racial.

Questão Social
A questão social é/foi objeto de reflexão de diferentes pesquisadores desde o final do
século XIX, mas ganhou maior espaço de discussão no século XX, dada a ampliação de suas
expressões capitalista quanto a sua compreensão/interpretação - ora ameaça, ora próprio do
capitalismo, ora um atraso…

Sobre isso, Octávio Ianni indica que:

Vista em perspectiva histórica ampla, é possível constatar que a questão social


recebe não só diferentes denominações como distintas explicações. A influência do
evolucionismo, darwinismo social, arianismo, positivismo, catolicismo, liberalismo,
neoliberalismo, estruturalismo, marxismo e outras correntes de ideias revela-se nos
termos que alguns autores procuram descrever, explicar, resolver ou exorcizar as
manifestações da questão social (IANNI, 1989, p. 148).
Além das diferentes correntes e denominações, o autor sintetiza que “Conforme a
época e o lugar, a questão social mescla aspectos raciais, regionais e culturais, juntamente
com os econômicos e políticos. Isto é, o tecido da questão social mescla desigualdades e
antagonismos de significação estrutural” (IANNI, 1989, p. 147).

Quando se torna conveniente equacionar a questão social, as propostas apostam na


pedagogia do trabalho (IANNI, 1989) - na exploração da força de trabalho. No entanto, é
justamente no/do processo de exploração da força de trabalho que se originam/reproduzem as
desigualdades que expressam a questão social. É um querer apagar incêndio com gasolina.

91
No Serviço Social, também encontramos diferentes tratamentos quanto à questão
social, especialmente em razão de sua vinculação ao surgimento da profissão, interpretação
possível a partir dos trabalhos de José Paulo Netto (1996) ao identificar que foi justamente no
processo de ampliação das expressões da questão social, em razão da fase monopólica do
capital, que além destas serem notadas e discutida, também foram mobilizadas as condições
para intervenção na questão social, se prepara que a citação é longa:

o capitalismo monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições cria condições tais


que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política através do jogo
democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que podem fazer
incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatas. E que este processo é
todo ele tensionado não só pelas exigências da ordem monopólica, mas pelos
conflitos que esta faz dimanar em toda a escala societária.
É somente nestas condições que as sequelas da "questão social" tornam-se - mais
exatamente: podem tornar-se - objeto de uma intervenção contínua e sistemática por
parte do Estado. É só a partir da concretização das possibilidades econômico-sociais
e políticas segregadas na ordem monopólica (concretização variável do jogo das
forças políticas) que a "questão social" se põe como alvo de políticas sociais. No
capitalismo concorrencial, a "questão social", por regra, era objeto da ação estatal na
medida em que motivava um auge de mobilização trabalhadora, ameaçava a ordem
burguesa ou, no limite, colocava em risco global o fornecimento da força de trabalho
para o capital - condições externas à produção capitalista. No capitalismo dos
monopólios, tanto pelas características do novo ordenamento econômico quanto pela
consolidação política do movimento operário e pelas necessidades de legitimação
política do Estado burguês, a "questão social" como que se internaliza na ordem
econômico-política: não é apenas o acrescido excedente que chega ao exército
industrial de reserva que deve ter sua manutenção "socializada"; não é somente a
preservação de um patamar aquisitivo mínimo para as categorias afastadas do
mundo do consumo que se põe como imperiosa: não são apenas os mecanismos que
devem ser criados para que se dê a distribuição, pelo conjunto da sociedade, dos
ônus que asseguram lucros monopolistas - é tudo isto que, caindo no âmbito das
condições gerais para a produção capitalista monopolista (condições externas,
internas, técnicas, econômicas e sociais), articula o enlace, já referido, das funções
econômicas e políticas do Estado burguês capturado pelo capital monopolista, com a
efetivação dessas funções se realizando ao mesmo tempo em que o Estado continua
ocultando a sua essência de classe (NETTO, 1996, p. 26).
E é nesta demanda posta que o Serviço Social emerge e se institucionaliza como
profissão e que o Estado, à disposição da burguesia, passa a intervir de maneira extra-
econômica na vida social.

É na Lei Geral da Acumulação Capitalista, contida no livro “O Capital” de Karl Marx,


que encontramos uma das explicitações para compreender a lógica mistificada pelo qual o
modo de produção capitalista em seu processo de produção e reprodução permite acumulação
de capital por meio da exploração e apropriação da força de trabalho ao mesmo tempo em que
permite também o seu inverso, a pauperização e empobrecimento coletivo. Sobre isso,
NETTO considera:

92
Ora a ‘questão social’ é determinada por essa lei, tal ‘questão’, obviamente, ganha
novas dimensões e expressões à medida que avança a acumulação e o próprio
capitalismo experimenta mudanças. Mas ela é insuprimível nos marcos da sociedade
onde domina o MPC (modo de produção capitalista). Imaginar a solução da ‘questão
social’ mantendo-se reproduzindo-se o MPC é o mesmo que imaginar que o MPC
pode se manter e se reproduzir sem acumulação do capital (2007, p. 97)
Iamamoto e Yazbeck, compreendem que a ‘questão social’ expressa a banalização do
humano, resultante de indiferença frente à esfera das necessidades das grandes maiorias e dos
direitos a elas atinente” (2019, p.37) e que:

A ‘questão social’ é inerente à sociedade de classes e seus antagonismos,


envolvendo uma arena de lutas políticas e culturais contra as desigualdades
socialmente produzidas, com o selo das particularidades nacionais. A gênese da
‘questão social’ encontra-se no caráter coletivo da produção e da apropriação
privada do trabalho, de seus frutos e das condições necessárias à sua realização. É,
portanto, indissociável da emergência do trabalhador livre, que depende da venda de
sua força de trabalho para a satisfação de suas necessidades vitais. Trabalho e
acumulação são duas dimensões do mesmo processo, fruto do trabalho pago e não
pago da mesma população trabalhadora como já alertou Marx(1985) (p.38).
Também IAMAMOTO e CARVALHO já haviam indicado que “a ‘questão social’,
seu aparecimento diz respeito diretamente a generalização do trabalho livre numa sociedade
em que a escravidão marca profundamente seu passado recente” (2005, p.59) mas saltará suas
análises e explicitações para um período em que esta modalidade de exploração da força de
trabalho já está generalizada e não se detem na análise/explicitação do processo sócio-
histórico desta generalização, indicando Martins como referência. Também com base em
Marx, sintetizam que:

Contraditoriamente, portanto, a classe trabalhadora, ao fazer crescer a lucratividade


da classe capitalista, reduz as possibilidade de obter os meios de vida do conjunto da
população trabalhadora, já que, neste mesmo processo em que cria riqueza para
outros, cria também as condições para que se reproduza parcela da população
excessiva para as necessidades médias do capital. Isto é, em proporção, à intensidade
e extensão do processo de acumulação (IAMAMOTO. CARVALHO, 2005, p. 59).
Em todos os sentidos aqui apresentados, a questão social é compreendida como uma
sequela que surge no processo de produção e reprodução capitalista, que recai sob a classe
trabalhadora, revela um conflito entre os interesses de classe - Burguesia/Capital e
Trabalhadores/Força de trabalho. A depender das forças sociais que estas classes mobilizam,
as respostas de enfrentamento/reprodução da questão social são mais ou menos
atendidas/mediadas pelo Estado - mas, o próprio Estado é um dispositivo da classe burguesa.
Mas, mais do que isso, a trama das relações sociais estão organizadas de modo a fazer fluir a
sociedade capitalista. Também a classe trabalhadora só encontra condições de existência se
sua força de trabalho for explorada pelo capital, que conforme expropria o valor da classe que
vive do trabalho, despoja-a, acumula e concentra riquezas.

93
Deve-se observar que as/os autores brasileiros citados coadunam quanto a origem da
questão social, compreendem-na como indissociável do trabalho livre e própria do conflito
capital/trabalho, mas, com exceção de Octávio Ianni, nenhum destes autores dedicam atenção
para compreender a formação da classe trabalhadora no Brasil e o trabalho livre no Brasil.
Concentram suas análises já no contexto de generalização do trabalho livre, ainda que se
referenciam em autores que o fizeram - como o próprio Octávio Ianni e José de Souza
Martins.

E o que é a questão racial?


Não há uma definição quanto ao que é a questão racial no Brasil no âmbito do Serviço
Social, embora ela tenha esteja sendo objeto de debate de diferentes intelectuais na atualidade.
Algo comum que pode se inferir é a de que ela é indissociável do período de escravismo - ou
seja do sequestro, destruição e escravização de povos africanos e indígenas. Também algumas
abordagens consideram os povos originários ao pensar a questão racial, embora o modo como
ela irá se expressar possa ser distinto em relação aos africanos escravizados.

No Brasil diferentes formas de organização da população negra permitiram a


apresentação da questão racial, mas, especialmente a Frente Negra Brasileira, Teatro
Experimental do Negro e o Movimento Negro Unificado possibilitaram a organização em
torno da identidade racial, seja para afirmá-la positivamente, seja para enfrentar seus ônus.

Nesse sentido, “questão racial” seriam as contradições e problemáticas advindas do


processo de escravização, especialmente a preocupação quanto ao que fazer com o “negro”,
no contexto do pós-abolição. Por isso, investigar a transição do escravismo para o
capitalismo, pareceu-me importante, por ser a partir disso que o “problema do negro” torna-se
uma “questão racial”; esse mesmo evento histórico também possibilitou a formação da
chamada classe trabalhadora no Brasil; e ainda por esta abolição ser considerada como “falsa
abolição” pela militância negra/indígena, já que se assemelha abolição que era reivindicada
pelos próprios negres/indígenas no contexto do escravismo.

Tal contexto é engendrado na transição do modo de produção escravista para o modo


de produção capitalista, onde o trabalho livre e assalariado é condição necessária para a
exploração da força de trabalho. Nesta transição, não houve uma ruptura com o modo de
produção escravista, mas, um ajuste de seu funcionamento ao modo capitalista. Este ajuste, se
relaciona ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil e, apesar da abolição da escravatura
ter sido fortemente reivindicada pelas/os próprias pessoas escravizadas, indígenas e africanas,

94
e também por outros sujeitos sociais, ela atende aos interesses dominantes de senhores de
escravo-capitalista, motivo que os levou a organizar tal transição da forma mais lucrativa
possível. É necessário atenção na compreensão desse arranjo no modo de produção, do
mesmo modo que, no campo ideológico, racismo e eugenia sustentam estes arranjos.

Livre para vender sua força de trabalho e servir ao capital

O trabalho liberta, ou não? C'essa frase quase


que os Nazi varre judeu em extinção
(EMICIDA - Boa Esperança)

O reconhecimento da liberdade das pessoas até então escravizadas define a


subordinação do Brasil ao modo de produção da vida capitalista, com a instituição do trabalho
livre e assalariado. O que não significa que anteriormente a isso o Brasil estivesse fora da
esfera econômica do capital, pelo contrário, a espoliação das Américas, África e da própria
classe trabalhadora da Europa, é justamente o modo como a Europa acumula o capital
primitivo que lançam as condições para instituição e mundialização do capitalismo.

Neste contexto é engendrada a transição do modo de produção escravista para o modo


de produção capitalista, onde o trabalho livre e assalariado é condição necessária para a
exploração da força de trabalho. Nesta transição, não houve uma ruptura com o modo de
produção escravista, mas, um ajuste de seu funcionamento ao modo capitalista.

Tal arranjo contou com o papel ativo do Estado, especialmente por meio de um
conjunto de Leis, que desde meados do século XIX preparavam esta transição, a saber: Lei
Feijó (1831), Lei Eusébio de Queiroz (1850), Lei de Terras (1850), Lei do Ventre Livre
(1871), Lei do Sexagenário (1885) e Lei Áurea (1888).

A Lei Feijó, Lei de 7 de novembro de 1831, que “declara livre todos os escravos
vindos de fora do Império e impões penas aos importadores dos mesmos” (BRASIL, 1831).
Conhecida como “lei para inglês ver”, mais cumpriu um papel diplomático com a Inglaterra
do que efetividade na libertação das pessoas escravizadas - mas esta lei foi subsídio para que
Luiz Gama argumentasse pela alforria de centenas de escravizados.

A Lei Eusébio de Queiroz (Lei nº581 de 4 de setembro 1850), proibindo a entrada de


africanos escravizados no Brasil, “estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos
neste Império” (BRASIL, 1850).

Duas semanas depois, é promulgada a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850,


conhecida como Lei de Terras, que dispõe sobre as terras devolutas do Império (BRASIL,
95
1850). Por meio dessa lei o acesso a terra, até então amplamente compreendido como posse,
passa a ser por meio de títulos de compra. A lei estabelece como serão emitidos os títulos,
incluindo como os colonos terão acesso a estas, desde que naturalizem-se brasileiros.

Na prática significou a titulação do latifúndio e a dificuldade do acesso de africanos


livres ou liberto às terras, especialmente porque, quando da emissão desses títulos,
majoritariamente feito por meio das paróquias, requisitava-se que o possuidor do título de
propriedade fosse, homem, branco e católico, além do pagamento financeiro da emissão do
título.

Já a Lei nº2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre,


declarava livre os filhos de mulheres escravizadas, libertando os escravizados que nasciam
brasileiros e dava providências sobre a criação e tratamento dessas crianças. Elas ficariam sob
a autoridade dos senhores de suas mães, até os oito anos completos, quando os senhores
teriam a opção de receber do estado indenização financeira ou utilizar-se dos serviços do
menor até os 21 anos completos. No primeiro caso, o governo receberia o “menor” em
associações que deveriam criar e tratá-los, podendo alugar os seus serviços até os 21 anos,
devendo estabelecer um pecúlio (seguro) em seu favor, conforme estabelecido pela mesma lei
(BRASIL, 1871) - à ´época as instituições dedicadas à criação de crianças desvalidas,
rejeitavam crianças negras e isso exigiria uma mudança nessas instituições. Não encontrei na
literatura informações quanto ao impacto da referida Lei nessas instituições. No entanto, o
fato da abolição ter ocorrido apenas 10 anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, pode
indicar que essa mudança não chegou a produzir tal impacto.

A Lei nº 3.270 de 28 de Setembro de 1885, regula a extinção do elemento servil.


Conhecida como Lei do Sexagenário, por ter alforriado as pessoas escravizadas com idade
entre 60 e 65 anos, a referida lei, na verdade, vai bem além do que o motivo pelo qual ficou
conhecida, uma vez que um dos principais mecanismos que ela estabelece é a criação de um
“Fundo Municipal de Emancipação” e convoca os senhores de escravos a atualizarem os
registros e matrículas dos escravizados que possuem. O fundo criado a ser formado por meio
da cobrança de imposto destinou-se a três objetivos, sendo organizados em três partes:

1ª parte seria aplicada à emancipação dos escravos de maior idade, conforme


estabelecido em regulamento pelo Governo;

2ª parte seria aplicada para a libertação, até a metade do seu valor, dos escravos de
lavoura e mineração cujos senhores quisessem converter em livres;
96
3ª parte seria destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de
transporte de colonos que forem efetivamente colocados em estabelecimentos agrícolas de
qualquer natureza.

Ou seja, o Fundo de Emancipação indenizava senhores de escravo, financiava a


colonização imigrante, e, libertava pessoas escravizadas idosas (quando completava 60 anos
elas deveriam prestar serviços aos seus senhores por mais três anos ou até completar 65 anos,
a título de indenização/alforria) (BRASIL, 1885).

Por fim, a Lei 3353 de 13 de maio de 1888, Lei Áurea, declarou extinta a escravidão
no Brasil. Diferente das legislações citadas anteriormente, que especificaram a
operacionalização das referidas leis, a lei da abolição nada legislou quanto ao destino da
população liberta (BRASIL, 1888).

Este conjunto de leis fundamentam desigualdades sóciorracias que se complexificam e


são perpetuadas até a contemporaneidade do Brasil, por meio da produção do abandono da
infância negra, exploração da força de trabalho de crianças, adolescentes e jovens negros,
abandono e exploração da força de trabalho de idosos, desmonte de núcleos familiares negros,
impedimento do acesso de negros aos meios produtivos (à época, a terra), entre outros. A
articulação dessas leis, concomitante ao desenvolvimento de uma política migratória com
vistas a um embranquecimento da nação e subordinação ao trabalho livre e assalariado na
lógica capitalista, estabelecem cisões raciais no processo de formação da classe trabalhadora
no Brasil.

No caso de São Paulo, os ajustes para a instauração do modo de produção capitalista


tratou-se de ajustes na economia de produção do café, que deu lugar ao regime de colonato,
antes das condições concretas do capitalismo. Para o colonato poder existir, era necessário
que houvesse a possibilidade do trabalho livre, no escravismo haviam possibilidades de
trabalho livre, mas eram formas que dependiam da escravidão, por isso essa “liberdade” era
de uma qualidade diferente da qualidade necessária ao colonato.

A primeira diferença entre estes dois tipos de trabalho livre é que, apesar de ambos
estarem separados dos meios de produção, no escravismo a força de trabalho e o trabalhador
não eram separados, eram uma coisa só; enquanto no colonato (e depois no capitalismo) força
de trabalho e trabalhador, são estatutos diferentes.

A qualidade de “livre” no trabalho livre realizado no colonato, também não era do


mesmo tipo de “liberdade” de trabalho de uma sociedade capitalista. José de Souza
97
MARTINS (2017) aponta que a forma como o colonato foi produzido é numa lógica
capitalista (a produção era subordinada ao comércio), mas sua produção não atende às
características de produção não capitalista.

O regime do colonato foi uma estratégia capitalista, criada pelo capital personificado
pelo fazendeiro, por uma necessidade de atender ao comércio, sem a necessidade de
transformar drasticamente a forma de produção, sem perdas econômicas da passagem de um
modo para o outro.

O cativeiro determinava a sujeição de pessoas escravizadas, como cativo ela era


propriedade mercadoria e produtora, gerava lucro antes mesmo de produzir. Não era
considerado um capital (meio econômico para movimentar a produção) e sim como
equivalente de capital (renda capitalizada/tributo ao fornecedor da mão de obra, o fazendeiro).
A pessoa escravizada representava uma expectativa de lucro, considerando sua capacidade de
produção. A renda era associada a ela, era capitalizada na pessoa escravizada (MARTINS,
2017).

As relações de produção entre o senhor e as pessoas escravizadas gerava um


capitalista muito específico que conseguia a sujeição do trabalho ao capital baseada não nos
meios de produção, mas no monopólio do próprio trabalho (contido/capitalizado na pessoa
escravizada) por meio do cativeiro.

O fazendeiro tinha no trabalhador escravizado essa mesma lógica de renda


capitalizada concentrada no trabalhador escravizado (que até pode produzir valor, mas, antes
mesmo disso ele já era uma mercadoria com preço): pagava-se por ele um tributo para
remunerar (de modo não capitalista) o monopólio de seu trabalho. Este trabalho poderia criar
mais valor, mas era uma expectativa. Então, além de pagar com sua força de trabalho a renda
capitalizada em si, o trabalhador escravo também gerava lucro com a circulação da
mercadoria que ele produzia com a força de trabalho.

Por isso, José Martins vai indicar, o regime escravista era mais sujeito ao comércio do
que à produção: “A escravidão definia-se, portanto, como uma modalidade de exploração da
força de trabalho baseada direta e previamente na sujeição do trabalho, através do
trabalhador-mercadoria, ao capital comercial” (MARTINS, 2017, p. 10)

Diferente do feudalismo, em que o senhor feudal era um arrecadador e consumidor de


rendas de seus vassalos (forma pré-capitalista europeia), o escravismo se trata já de uma

98
forma capitalista de renda, e portanto, o fazendeiro não é um senhor feudal, como por vezes
alguns intérpretes do surgimento do capitalismo no Brasil sugerem.

Dessa forma, o fim da escravidão e instituição do capitalismo significou para o


escravo o ganho da propriedade de sua força de trabalho (Brasil/via colonial); enquanto que,
para o imigrante europeu a instituição do capitalismo significou a expulsão da terra e
despojamento de toda propriedade que não fosse a sua própria força de trabalho (Europa/Via
Clássica); e transferência do valor antes concentrado na posse de escravos, para a posse de
propriedades – a Lei de Terras foi basilar para isso. Logo, liberdade teria diferentes
significados para ambos: para o trabalhador escravizado a liberdade seria o contrário do
trabalho, ele passava a ser livre para recusar-se a vender sua força de trabalho; para o
migrante europeu significou a condição para conseguir liberdade (voltar a possuir
propriedade, além de sua própria força de trabalho) (MARTINS, 2017).

No capitalismo, a liberdade de ambos significava unicamente a liberdade de vender


sua força de trabalho, mas o imigrante encontraria maiores vantagens ao exercer “a liberdade”
de vender sua força de trabalho do que a pessoa escravizada liberta, em razão da sofisticada
dialética das relações raciais no Brasil.

Por fim, vale lembrar ainda que, teria sido impossível a expansão do capitalismo sem a
escravidão colonial.

O sistema colonial amadureceu, como numa estufa, o comércio e a navegação. As


sociedades monopólio foram poderosas alavancas da concentração do capital. As
colônias asseguraram um mercado de escoamento às manufaturas em crescimento e,
pelo monopólio do mercado, uma acumulação potenciada. O tesouro capturado fora
da Europa, directamente por pilhagem, escravização, assassínio seguido de roubo,
refluiu para a mãe pátria e transformou-se aí em capital. A Holanda, que foi quem
primeiro desenvolveu completamente o sistema colonial, já em 1648 estava no foco
da sua grandeza comercial. Estava na posse quase exclusiva do tráfico da Índia
Oriental e do comércio entre o sudoeste e o nordeste europeus. As suas pescarias,
marinha, manufaturas, ultrapassavam as de qualquer outro país. Os capitais da
República eram talvez mais significativos do que os do resto da Europa juntos
(MARX, 1890).

Determinações entre Questão Social e Questão Racial


Assim, podemos considerar que o advento da classe trabalhadora no caso brasileiro foi
efetivamente engendrado como um projeto que marginaliza, que temia, que não incorporava a
população negra, um projeto anti escravos, ou seja anti negras/os e anti-indígenas, condição
para o desenvolvimento do capitalismo da forma mais segura, duradoura, lucrativa e
racializada. E essa população que vai sendo marginalizada e interditada de postos de trabalho,

99
encontrando maiores dificuldades em ter sua força de trabalho comprada pelo novo modo de
produção. É dessa cisão racial no interior da própria classe que é instituída que forma-se o
exército industrial de reserva e sob a qual recaem principalmente as mazelas do conflito
capital/trabalho.

Considerar isso significa inferir, no mínimo, que é necessário compreender como a


formação da classe trabalhadora se particulariza no Brasil; e como a organização da classe
trabalhadora sintetiza tais contradições. Sem esta atenção, o risco (e interpreto que é o que
têm ocorrido) é a reprodução de um apartheid invisibilizado para os mais cômodos, pois suas
expressões são dilacerantes, materiais e expressivas no nosso cotidiano. “Tamo junto, mas
não tamo misturado”, o Welligton já me explicava.

Não compreender tais desdobramentos na formação da classe trabalhadora nos


empurra a compreensão de classe trabalhadora quase que como um ente abstrato, que
homogeneiza todas/os aquelas/es que vivem da venda da força de trabalho. A inclusão
mecanicista da população ex-escravizada, agora população negra - que inclui pretos e pardos -
e população indígena à classe trabalhadora é negação da liberdade, é fingir que somos todos
iguais, é a manutenção da dominação. Os considerados avanços da classe trabalhadora não
necessariamente se traduzem em avanços para o conjunto da população negra, por estar
marginalizada dessas relações; assim como o avanço de pessoas negras não é tido como
avanço da classe trabalhadora hegemônica, ainda que ambos beneficiam pessoas que vivem
da venda de sua força de trabalho.

A transição do escravismo para o capitalismo sintetizou o conflito racial que


fundamentou, justificou e legitimou o mercantilismo, a colonização e por consequência
acumulação primitiva do capital. Como síntese deste conflito temos a questão racial
escamoteada/incorporada à questão social; embora a questão racial seja constitutiva da e
anterior à questão social, contraditória e conservadoramente tem sua aparência reduzida à
questão social - “cotas sociais, não raciais”. Mas, assim como a questão social está vinculada
ao trabalho livre e assalariado, o trabalho livre e assalariado está vinculado ao trabalho
escravizado, de modo que não considerar a questão racial - a dinâmica das relações raciais -
na análise da realidade social, compromete e limita a compreensão da questão social para
além de sua aparência.

Como expressão disso, temos formas do que convencionamos chamar de racismo. O


racismo age ainda como um recurso para dominação ideológica, é uma tecnologia social

100
sofisticada que favorece a manutenção da supremacia branca, e que pode se manifestar como
uma das formas específicas de expressão da questão social; embora também seja um elemento
constitutivo da própria questão social.

Esta compreensão não está suficientemente dada na literatura da área. Encontramos


abordagens que compreendem a questão racial como uma forma específica pela qual a
questão social se expressa - como situações cotidianas de racismo; quem a considere de modo
independente da questão social (leia-se, do conflito capital/trabalho) - desvinculando-a do
fundamento econômico que ela também carrega. Em comum, talvez apenas a compreensão
de que o racismo (expressão material destes arranjos) deve ser combatido (mas a ausência de
nitidez sobre sua dinâmica interdita esta intenção).

Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton, dois militantes do movimento negro norte-


americano, autores do livro “Black Power: the politics of liberation”, apresentaram uma
distinção entre racismo individual, racismo estrutural e discriminação racial nos Estados
Unidos. Eles entendiam que o racismo se apresenta de uma forma aberta e associada aos
indivíduos, e, de outra forma, não declarada e institucional. “O importante dessa análise é que
ele permite dissociar o racismo de atos e intenções ou da consciência de alguns atores”
(SANTOS, 2013). Wieviorka, influenciado pela concepção de Carmichael e Hamilton, dirá
que o racismo institucional permite que o racismo funcione sem que opiniões ou preconceitos
estejam em causa, havendo uma dissociação entre o ator e o sistema. Esta abordagem permite
imaginar uma sociedade cujos segmentos dominantes não tenham consciência do seu racismo
- ou resistam trazer à consciência -, em que suas práticas já foram “naturalizadas” (SANTOS,
2013).

Assim, Ivair Augusto Alves dos Santos, constata que:

o racismo institucional é revelado através de mecanismos e estratégias presentes nas


instituições públicas, explícitas ou não, que dificultam a presença de negros nesses
espaços. O acesso é dificultado não por normas e regras escritas e visíveis, mas por
obstáculos formais presentes nas relações sociais que se reproduzem nos espaços
institucionais e públicos. A ação é sempre violenta, na medida que atinge a
dignidade humana (p.27)
E que:

Há racismo institucional quando um órgão, entidade, organização ou estrutura cria


um fato social hierárquico – estigma visível, espaços sociais reservados , mas não
reconhece as implicações raciais do processo. O problema não é demonstrar a
existência ideologia e doutrinas que as pessoas utilizam para justificar suas ações. É
no funcionamento da sociedade que o racismo se revela como uma propriedade
estrutural inscrita nos mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a
inferiorizarão dos negros, sem que haja necessidade de teorizar ou de tentar justificá-
*las pela ciência (p. 27)
101
Dessa forma, a discriminação pode ser sistêmica em vez de pessoal, e, por conseguinte, mais
difícil de identificar e de compreender, quando está internalizada e naturalizada por discursos
de que se vive em um país “miscigenado”. O racismo institucional gera hierarquias através de
práticas profissionais rotineiras, ditas “neutras” e universalistas dentro de instituições públicas
ou privadas que controlam espaços públicos, serviços ou

Considerações Finais
Tal como na Europa a Igreja Católica desenvolveu o Serviço Social para se ocupar
com os operários, também no Brasil essa vai ser sua preocupação, bem como suas famílias
Inicialmente, inicialmente apreendidos como classes subalternas e, posteriormente, com base
nas concepções teóricas, políticas e ideológicas assentadas em base nas formulações da
tradição marxista, apreendida como classe trabalhadora, tendo como objeto de seu trabalho a
questão social.

Assim o Serviço Social sempre atuou com as expressões da questão social, no entanto,
ao longo desse período, modifica-se a compreensão do significado da questão social, suas
diversas expressões, o posicionamento e sentido da profissão em face delas.

No caso brasileiro, “operários” têm particularidades distintas do operariado europeu.


Em razão do escravismo, a formação da classe trabalhadora no Brasil guarda uma cisão
étnico-racial, criando diferentes condições de existência das classes operárias e pauperizadas
– e também da ação do Estado direcionada para elas.

Diferente da Europa, em que o operariado se constitui de trabalhadores livres no


contexto urbano, despojados de suas terras e ameaçados pelo desenvolvimento das indústrias,
o conjunto do operariado do Brasil se constitua tanto de migrantes europeus, cuja a vinda para
o Brasil contou com franco apoio de fazendeiros e capitalistas e desde o século XIX com
substanciais financiamentos do Estado; mas, também, é composto pela população africana,
indígenas e mestiça, que desde a escravidão não havia ainda encontrado lugar social, político
e econômico na sociedade brasileira. Essa é a parcela da população que com a expansão do
capitalismo, terá menos possibilidades de inserção enquanto classe trabalhadora, sendo alvo
da ação assistencial do Estado, por meio do Serviço Social.

Mesmo essa menor possibilidade de inserção será a maior possibilidade de integração


da população negra na sociedade de classes, desde a Abolição (GONZALEZ, 2022). Isso
porque a formação da classe trabalhadora no Brasil trará contradições inerentes ao legado
escravista, reunindo determinantes de uma sociedade capitalista à determinantes de uma
102
sociedade escravista. As sequelas de uma sociedade capitalista dão origem à questão social,
objeto de trabalho de Assistentes Sociais. Enquanto que as sequelas da sociedade escravista
dão origem à questão racial, que historicamente não foi um determinante compreendido
articulado à questão social, apesar da questão racial modificar a compreensão da questão
social.

No contexto da ampliação do ensino superior por meio de uma contrarreforma do


ensino superior, a inserção de grupos historicamente excluídos deste nível de ensino
possibilita um salto no debate da questão racial na realidade brasileira, apesar dos desafios
postos pelo pacto narcísico da branquitude.

É importante considerar os limites postos à organização de estudantes não-negros no


âmbito do ensino superior privado, pois, nestes espaços as possibilidades de organização são
minoradas em todos os sentidos (de desenvolvimento acadêmico, produção de conhecimento,
coletivos estudantis) e os que ousaram fazê-lo, especialmente sendo negros, não raro tiveram
sua atuação política punida com expulsão, sem direito de se defenderem em situação regadas
por racismo interpessoal, institucional e estrutural. Eu não sei o que significa ser expulso de
uma universidade para você, mas para um conjunto de estudantes que foram “os primeiros da
família a entrar na universidade”, essa punição é uma forma de morte física, mental e
intelectual. Quando não expulsos, constrangimentos, humilhações, práticas persecutórias e
proselitismo intelectual sedimentaram essas mudanças. A ampliação que o debate da questão
racial logra na atualidade não foi obtida facilmente.

Assim como o Movimento Negro radicalizou sua atuação ao se apropriar da questão


de classe (GONZALEZ, 2022), uma vez que essa sintetiza a transição do escravismo para o
trabalho livre; também o Serviço Social (e a sociedade de modo geral), tendem a alcançar
maior nitidez e possibilidades de radicalização quanto a compreensão e enfrentamento das
expressões da questão social, ao incorporar a questão racial à sua dinâmica.

Compreender o escravismo e sua transição para o capitalismo revelou questões


importantes do processo sócio-histórico do Brasil, especialmente para as populações que
foram escravizadas, mas vai muito além disso, é um movimento necessário para a
compreensão da lógica capitalista em sua totalidade.

Se o capitalismo estabelece uma cisão de classes e estabelece a organização das


classes sociais, o escravismo estabelece uma cisão racial e estabelece uma organização racial
das classes sociais. Em termos históricos, a cisão racial é anterior a de classes e sem a cisão
103
racial/escravismo a cisão de classe/capitalismo não teria as condições históricas para emergir.
A organização da sociedade em classes sociais não eliminou a organização racial, de modo
que ela é reconfigurada, incorporada, determina e dinamiza também a cisão de classes sociais.
Ou seja, a dinâmica das relações étnico-raciais conforma a formação das classes sociais, de
modo que deveria ser impossível compreender classes sociais sem compreender o sistema de
hierarquização racial. Apesar dessa aparente impossibilidade, este não foi o modo de
interpretar e compreender este processo sócio-histórico que se convencionou - e obviamente
oculta/revela o próprio processo da hierarquização racial que funda a organização social do
país e da própria economia capitalista, que adquire um caráter supremacista branco.

Diante destes percursos, tenho entendido que embora raça seja um fenômeno anterior
à formação da classe, a invenção da raça é uma lógica específica que sustentou as bases
fundantes do capitalismo por meio da escravidão. Num embate dialético com sua negação, o
trabalho livre e assalariado, seus antagonismos podem incorporar, objetivar, reproduzir,
multiplicar ou resistir, contestar, repelir, combater a dialética racial. Uma vez incorporada à
nova ordem instituída, o ônus do conflito capital/trabalho é o que convencionamos nomear
como “expressões da questão social”. Seu fundamento é também a divisão racial e a divisão
social que sustenta a supremacia branca desde a escravidão colonial. Daí a dualidade de
apresentar-se como expressão e também como constitutiva da questão social; e ainda de se
fazer presente em qualquer esfera da vida social.

Por fim, quero refletir que a compreensão e incorporação da questão racial à dinâmica
da questão social só se torna uma tensão quando da negação da questão racial, e essa encontra
maior resistência nos espaços hegemônicos da elite, como a universidade e isso, obviamente,
não excetua o Serviço Social.

Em outros espaços de produção do conhecimento, como os movimentos sociais, a


compreensão da dinâmica de raça e classe possui maiores acúmulos e expressão e também
pauta e disputam esse debate25. Nesse sentido, chamo a atenção para a produção de
conhecimento com base na tradição marxista que parte da compreensão de raça e classe que

25
Eu cresci em uma periferia urbana na cidade de São Paulo - Grajaú - e fui formada por movimentos sociais,
organizações da sociedade civil, coletivos cultuais e elementos da Cultura Hip Hop que em suas práticas,
apresentavam-me esses fundamentos - a exemplo das canções “Leis”, Face da Morte; Brasil com P de GOG,
Castelo de Madeira de A Familia, Negro Drama de Racionais, Homem na Estrada de Racionais, Mudar o Mundo
de Face da Morte, Zumbi de Tocais MCs, todo o album “A Peste Negra” do Clã Nordestino, todo o álbum
Sobrevivendo no Inferno do Racionais MC’s.
104
tem sido apreendida pela classe trabalhadora e que contrasta com os limites postos com a
interpretação posta pelos no contexto acadêmico.

Sobre isso, Tiarajú Pablo D’Andrea (2022), na esteira de Helena Silvestre, que dá
origem ao termo, indica que:

Na formulação do marxismo favelado, não cabe a pergunta se o principal é raça ou


classe. Discutir classe social no Brasil é necessariamente colocar preponderância no
debate racial. Assim como o debate racial no Brasil não pode ser realizado
dissociado de um debate sobre o lugar ocupado pela imensa maioria de negras e
ngros na estrutura produtiva. Nas últimas décadas, os principais intelectuais
orgânicos das quebras são negras e negros. Por meio de suas palavras e ações, os
Racionais MC’s se tornaramm um dos principais formuladores da classe
trabalhadora, capazes de conscientizar negros e brancos pobres. O grupo foi o
exemplo mais bem sucedido de como a experiência racial e urbana da classe poderia
conscientizar a classe trabalhadora como um todo (D’ANDREA, 2022, p. 57-58).
E, nesse sentido:

Em um país como o Brasil, é impossível dissociar os debates de raça e classe.


Separar essas discussões é um discurso liberal, mas que tem ressoado em diversos
setores progressistas. Grande parte da classe trabalhadora é negra. Os mais
precarizados internamente à classe trabalhadoras são negras e negros. Em paralelo,
por mais que cada vez mais se estruture no Brasil uma burguesia negra, a grande
maioria de negras e negros brasileiros pertence à classe trabalhadora, é pobre e mora
nas periferias urbanas. (D’ANDREA, 2022, p. 251).

105
Ismália Primeiro cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles
Nega o deus deles, ofende, separa eles
Com a fé de quem olha do banco a cena Se algum sonho ousa correr, cê para ele
Do gol que nós mais precisava na trave E manda eles debater com a bala que vara eles, mano
A felicidade do branco é plena Infelizmente onde se sente o sol mais quente
A pé, trilha em brasa e barranco, que pena O lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescente
Se até pra sonhar tem entrave Quis ser estrela e virou medalha num boçal
A felicidade do branco é plena Que coincidentemente tem a cor que matou seu ancestral
A felicidade do preto é quase Um primeiro salário
Duas fardas policiais
Olhei no espelho, Ícaro me encarou: Três no banco traseiro
"Cuidado, não voa tão perto do sol Da cor dos quatro Racionais
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei" Cinco vida interrompida
O abutre quer te ver de algema pra dizer: Moleques de ouro e bronze
"Ó, num falei?!" Tiros e tiros e tiros
No fim das conta é tudo Ismália, Ismália O menino levou 111
Ismália, Ismália Quem disparou usava farda (Ismália)
Ismália, Ismália Quem te acusou nem lá num tava (Ismália)
Quis tocar o céu, mas terminou no chão É a desunião dos preto junto à visão sagaz (Ismália)
Ismália, Ismália De quem tem tudo, menos cor, onde a cor importa demais
Ismália, Ismália "Quando Ismália enlouqueceu
Ismália, Ismália Pôs-se na torre a sonhar
Quis tocar o céu, mas terminou no chão Viu uma lua no céu
Ela quis ser chamada de morena Viu outra lua no mar
Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena No sonho em que se perdeu
A raiva insufla, pensa nesse esquema Banhou-se toda em luar
A ideia imunda, tudo inunda Queria subir ao céu
A dor profunda é que todo mundo é meu tema Queria descer ao mar
Paisinho de bosta, a mídia gosta E num desvario seu
Deixou a falha e quer migalha de quem corre com fratura Na torre, pôs-se a cantar
exposta Estava perto do céu
Apunhalado pelas costa Estava longe do mar
Esquartejado pelo imposto imposta E, como um anjo
E como analgésico nós posta que Pendeu as asas para voar
Um dia vai tá nos conforme Queria a lua do céu
Que um diploma é uma alforria Queria a lua do mar
Minha cor não é uniforme As asas que Deus lhe deu
Hashtags #PretoNoTopo, bravo! Ruflaram de par em par
80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo Sua alma subiu ao céu
Quem disparou usava farda (Mais uma vez) Seu corpo desceu ao mar"
Quem te acusou nem lá num tava (Banda de espírito de
porco) Olhei no espelho, Ícaro me encarou:
Porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada: "Cuidado, não voa tão perto do sol
Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei"
O abutre quer te ver no lixo pra dizer:
Olhei no espelho, Ícaro me encarou: "Ó, num falei?!"
"Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei" No fim das conta é tudo Ismália, Ismália
O abutre quer te ver drogado pra dizer: Ismália, Ismália
"Ó, num falei?!" Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
No fim das conta é tudo Ismália, Ismália Ter pele escura é ser Ismália, Ismália
Ismália, Ismália Ismália, Ismália
Ismália, Ismália Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Ter pele escura é ser Ismália, Ismália (Terminou no chão)
Ismália, Ismália Ismália
Ismália, Ismália (Quis tocar o céu, terminou no chão)
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
(Terminou no chão) Emicida

106
Epílogo - Sou negro(a) e entrei na Unifesp, e agora?26
“Sou negro(a) e entrei na Unifesp e agora?” Era esse o tema da roda de conversa que aconteceria
como parte da programação da II Semana da Consciência Negra na Unifesp Baixada Santista, em 2014.
Confesso que não gostava do nome da atividade, por considerá-la meio alarmista. Mas talvez eu tenha
subestimado a complexidade que é ser pobre, preto e periférico no ensino superior público. O que a
memória me permite lembrar, é que nosso convidado para mediar a atividade teve um imprevisto e
por isso indicou outra pessoa para cobrir sua ausência. A nova pessoa utilizava cadeira de rodas para
se locomover e chegaria de carro. Quando chegou, a pessoa teve dificuldades para utilizar o
estacionamento da UNIFESP, que era essencial para facilitar seu acesso ao campi. A mediação para a
autorização da entrada do carro da pessoa convidada, estava demorando e entre nosso público
tínhamos adolescentes que para nós eram muito importantes. Eram adolescentes que moravam nas
adjacências periféricas do campi e que não conheciam a universidade. Eram adolescentes e jovens que
tínhamos nos empenhado em cativar para que ocupassem a universidade, mas que só havíamos
conseguido acessá-los pelo vínculo afetivo e comunitário que tinham com o Ricardo. Como parte da II
SCN, realizamos um ato em memória do Ricardo, realizando percurso que envolvia a Unifesp, a
delegacia e o local em que Ricardo morou. Ricardo Ferreira Gama era um trabalhador terceirizado que
atuava na equipe de limpeza da Unifesp. Pouco mais de um ano antes, o Ricardo estava em frente a
faculdade em seu horário de almoço, quando presenciou uma intervenção policial num imóvel vizinho
à Unifesp. Apesar do Ricardo estar num contexto em que as abordagens policiais se dão de modo
diferenciado, os policiais trataram-no como o tratavam há duas quadras dali, onde ele residia. Naquela
área, periférica, a violência policial é uma velha conhecida. Então, mesmo o Ricardo estando
uniformizado e em seu local de trabalho, os policiais que realizavam uma intervenção no imóvel
vizinho à UNIFESP, tratou o Ricardo como o trataria há duas quadras dali: com violência. Incomodados
com o Ricardo ali, agrediram-no e estavam levando-o no camburão sem qualquer motivo. Dois
estudantes decidiram intervir no que acontecia, questionando os policiais sobre o que estava
acontecendo, para onde e o motivo pelo qual Ricardo, já machucado, estava sendo conduzido. Um
outro estudante gravou parte da cena. Os estudantes não foram respondidos e os policiais levaram
Ricardo ferido no camburão. Os estudantes que haviam se envolvido na cena foram procurar por
Ricardo na delegacia e no pronto-socorro. Em nenhum dos dois lugares encontraram informaçõees
oficiais de Ricardo. Na delegacia, a pessoa que foi procurar informações, ao não conseguí-las informou
que queria prestar queixa e denunciar o que havia assistido. Enquanto ouviam o depoimento, os
agentes da segurança constrangiam e insinuavam ameaças, ao ponto da pessoa desistir de registrar a
denúncia. De volta a universidade, encontraram o Ricardo. Ele estava com curativos nos ferimentos e
mesmo após o ocorrido, havia voltado para realizar sua jornada de trabalho. Abalado, ele pediu aos
estudantes que não divulgassem o vídeo realizado quando ele foi levado ferido pelos policiais. Sobre o
período em que ele ficou desaparecido, sabe-se que os policiais levaram-no ao pronto-socorro para
fazer os curativos e depois levaram-na até a casa de Ricardo, bairro em que atuavam e aterrorizavam a
população dali. A delegacia, a moradia do Ricardo e a universidade localizavam-se há cerca de três

26
Esta narrativa é a reprodução integral, revista e ampliada de um dos ensaios que formam o Caderno
“Universidade: produção e reprodução do conhecimento OU de opressão por meio do conhecimento” que é parte
de minha dissertação de mestrado intitulada “‘Faz isso por nóis, faz essa por nóis’: reflexões sobre a periferia
como sistema cultural e a universidade pública contemporânea”, defendida em 2019 no Programa de Pós-
Graduação em Mudança Social e Participação Política - PROMUSPP na Escola de Artes, Ciências e
Humanidades - EACH da Universidade de São Paulo - USP.
107
quadras de distâncias entre si, formado um triângulo. Os estudantes, compreendendo que Ricardo
havia sido ameaçado e possivelmente torturado no período em que ficou desaparecido e em poder da
polícia, respeitaram o pedido de não divulgarem o vídeo. No entanto, pelo abuso e violência, havia o
desejo de se refletir como enfrentar essa situação, se formalizavam a denúncia, entre outros. No dia
seguinte ao ocorrido, na quinta-feira, os estudantes continuaram sem divulgar o vídeo, mas
organizavam uma reunião mais restrita para refletir o ocorrido. Eu não recordo com exatidão se essa
reunião ocorreu mesmo, mas se ocorreu acredito que deva ter sido reunião com público restrito,
considerando a gravidade do caso. Na época eu era engajada em diversos espaços da universidade,
inclusive os de organização de estudantes, mas não compunha a elite branca do movimento estudantil
e se essa reunião tivesse acontecido de modo mais aberto, eu certamente teria participado. Não foi o
caso. Na quinta-feira Ricardo continuou a trabalhar mesmo ferido. Na madrugada de quinta-feira para
sexta-feira, já em casa, o Ricardo se dirigia para um trailer de lanches próximo de sua casa, quando um
carro com vidros escuros passou por ele dando-lhe tiros e executando-o. Na manhã de sexta-feira, o
campi da Unifesp, estava completamente mobilizado e envolvido no ocorrido. Não tinha como não
associar a execução aos episódios ocorridos menos de 48 horas antes. Um clima de medo envolveu a
universidade, mesmo sabendo que a maior parte daquele público nunca sofrera ou mesmo sofrerá
violência policial. Mas esse medo foi bem presente naqueles que historicamente são alvos da polícia.
Houve também uma preocupação imediata com os estudantes que haviam interagido com os policiais,
sendo necessário retirá-los da cidade de Santos, temendo-se pela integridade física deles. Num
primeiro momento a universidade teve uma postura de não dar publicidade ao caso, temendo-se pela
segurança de toda a comunidade acadêmica, especialmente a que se envolveu no episódio da
agressão. A preocupação também residia no fato de ser sexta-feira, portanto véspera do fim de
semana, período em que a comunidade acadêmica não estaria na universidade e também período em
que “acertos de conta” poderia ser realizados. Contudo, em dado momento, nós, estudantes,
percebemos que a intenção da universidade também indicava um silenciamento sobre o ocorrido,
divergindo da intenção de estudantes, de não normalizar e naturalizar a execução nas periferias.
Muitas ações e histórias ocorreram (e ocorrem) em torno desse assassinato. Mas, para o que preciso
contar, acredito que essas informações são suficientes para compreender um dos desdobramentos
desse cenário, que foi a aproximação do e fortalecimento no território periférico do campi e a luta por
justiça e memória de Ricardo Ferreira Gama. Assim, em 2014, como parte das atividades da II Semana
da Consciência Negra na UNIFESP Baixada Santista, uma caminhada em memória de Ricardo foi
realizada, percorrendo-se o quadrante onde ele vivia e trabalhava, mobilizando movimentos sociais,
familiares e comunidade acadêmica.
O término da caminhada era na própria UNIFESP, na sala do Espaço Estudantil, onde ocorreria
também a nomeação do centro acadêmico de Serviço Social em memória ao Ricardo – passando-se a
chamar Centro Acadêmico Livre Ricardo Ferreira Gama – CARFG. Somente nessa atividade
conseguimos atrair alguns adolescentes para a universidade, mesmo desde o ano anterior termos
realizado diversas outras ações com essa intencionalidade. No dia seguinte a caminhada, os
adolescentes tornaram a ir à universidade, o que para muitos de nós era uma conquista e
esperávamos fortalecer esse vínculo e a possibilidades de construção de uma universidade pública que
disso poderiam surgir.

108
Quem não tem crachá?
Então, enquanto aguardávamos a mediação para a entrada de nossa convidada para a roda de
conversa sobre negras/os na universidade, os adolescentes que aguardavam para participar da
atividade foram incentivados a conhecer o campi. Eles viram o saguão, a biblioteca, o espaço
estudantil... E chegaram ao laboratório de informática. Aberto e sem nenhum informação que
restringisse o acesso ao laboratório, os adolescentes adentraram esse espaço e começaram a utilizar
alguns computadores. Outras pessoas também estavam na sala e utilizavam os computadores quando
a diretora do campi, Regina Spadari, acompanhadas por seguranças patrimoniais chegaram ao
laboratório e de forma hostil anunciou para as pessoas que quem não fosse estudante da UNIFESP se
retirasse daquele ambiente. Estudantes questionaram-na quanto ao motivo de se retirarem, já que
aquele espaço era público e nunca houve qualquer forma de restrição ao seu uso. Em resposta, a
diretora interpela a estudante que a questionou perguntando “você pode entrar na prefeitura e usar
uma sala da prefeitura? Podem entrar no palácio da república e usar?” E insiste, que, “por favor,
saiam, isso não é uma lan house”, que ali era um local “público de caráter determinado. Não é para
qualquer pessoa de fora entrar e usar (...) aqui não é uma lan house”. Obviamente que o pedido se
dirigia aos adolescentes, que constrangidos e entendendo que ali não era um lugar para eles estarem,
cabisbaixos e sem titubear ou responder uma palavra à diretora, levantaram-se e retiraram-se do
ambiente. Nisso, alguns estudantes, avisados do que estava acontecendo e considerando a medida
violenta, dirigiram-se até o laboratório para mediar o conflito que a diretora estava gerando. Quando
chegam nesse espaço, já encontram os adolescentes sendo convidados a se retirar de modo
constrangedor. Dirigem-se à diretora tentando contextualizá-la sobre quem eram os adolescentes, o
que estavam aguardando, etc, mas não são ouvidos e sem margem para diálogos, se alteram e
discutem com a diretora. A diretora, novamente volta sua atenção para dentro do laboratório de
informática e torna a repetir que quem não fosse estudante da UNIFESP que se retirasse e como
ninguém mais se retirava, ela dirige-se à duas estudantes, negras, as únicas pessoas negras na sala, e
pedi-lhes os crachás. Confusas com os acontecimentos e constrangidas pela inquisição, procuram o
crachá para apresentar à diretora, ao mesmo tempo em que estudantes não-negros questionam a
medida da diretora. Uma estudante não-negra dirige-se à diretora e pergunta o motivo delas terem
que apresentar o crachá, já que havia outras pessoas na sala que não estavam com crachá visível e nem
por isso estavam sendo questionadas. A diretora responde-lhe que não pediu o crachá para a
estudante que a questionou, pois a conhecia, mas que pediria o de outras pessoas também, que
aquela era a primeira fila. A resposta quase teria convencido, não fosse o fato que na primeira fileira
antes das estudantes negras e antes da estudante que a diretora dizia reconhecer como pertencente à
comunidade acadêmica havia ainda mais uma estudante, a primeira pessoa da primeira fila, não negra,
sem crachá e que também compreendeu que o que acontecia ali era um processo discriminatório. A
primeira estudante da fila dirige-se à diretora dizendo que elas não se conhecem, que ela nunca havia
visto a diretora na vida e um novo conflito surge. Estudantes identificam o racismo se expressando, as
estudantes vítimas ficam confusas sobre como reagir, os adolescentes se retiram da universidade – e
pelos três anos que eu ainda segui ali, sei que nunca voltaram. As estudantes vítimas do racismo
expressado pela diretora, tão concreto que gerou a intervenção de pessoas não-negras no momento
em que o ato discriminatório ainda acontecia, decidiram e foram apoiadas à registrar o boletim de
ocorrência e dirigiram-se à delegacia – a mesma delegacia envolvida no caso de Ricardo. Depois de um
longo período de espera, não foi registrado o boletim de ocorrência pelo crime de racismo, pois, na
compreensão do delegado, a diretora poderia fazer o que quisesse na instituição em que dirige.

109
Vai se tratar
Os estudantes organizadores da II SCN, bem como estudantes que haviam se mobilizado para
participar da roda de conversa cujo tema era “Sou negro(a) e entrei na UNIFESP e agora?”, cientes de
que o que acontecera naquele início de tarde era justamente expressões do cotidiano que motivara a
proposição daquela roda de conversa, tornam a atividade uma atividade de denúncia ao ocorrido.
Enquanto narravam o que tinha acontecido no espaço em que seria a roda de conversa, um estudante
branco se aproxima da roda. Com os braços para trás, riso no rosto, posiciona-se de modo imponente
e ri do que ouve e vê. Reconhecido por ter sido o responsável pela prática de um trote de teor racista
na semana de recepção daquele mesmo anos, algumas/ns que estavam na roda de conversa dirige-se à
ele e questionam-o, perguntando do que ele estaria rindo, se ele achava o racismo engraçado. Ele
responde que se eles não achavam, o problema é deles. E um novo conflito se instala, com
intimidações, posturas corporais, discussões verbais. O estudante autor do trote racista recebe o
apoio de alguns amigos que em sua defesa dirige-se aos estudantes negras/os dizendo que eles tinham
que esquecer o trote, que já fazia tempo aquela história. Seus amigos são informados de que o
conflito em curso não se relacionava ao episódio do trote e sim a provocação que ele havia lançado aos
estudantes negros em um momento de fragilidade. Seus próprios amigos tem dificuldade em
defendê-lo nessas circunstâncias, e passam a tentar retirá-lo daquele ambiente. Ele ainda segue
algumas estudantes, constrangendo-as, intimidando-as. Uma delas chega a tentar desferir-lhe um
soco, mas não o alcança – esse estudante é alto e de porte atlético. Ele ciente de que uma agressão
física poderia complicá-lo, apenas segue as estudantes, com braços para trás e peitoral para frente,
curvando-se em direção a elas e despejando-lhes agressões verbais. Em dado momento ele leva as
mãos para a frente do corpo, segura seu saco escrotal e força sua pelvis em direção à uma das
estudantes que também é dissuadida a se afastar do conflito.
Antes de se retirar da cena conflituosa esse estudante ainda tem tempo de virar para alguns
estudantes negras, eu entre eles, e dizer que isso estava acontecendo por terem inveja dele, por ele
ter olhos verdes, que estava sofrendo racismo reverso e que precisávamos ir nos tratar, pois o racismo
estava em nossas cabeças. Finalmente algumas amigas dele conseguem retirá-lo do ambiente. Ao
fundo, o futuro diretor do campi assiste toda a cena, literalmente de braços cruzados.
Trote 2014
O trote a que faziam menção refere-se ao episódio ocorrido no início daquele ano. Durante o
período de matrícula da calourada, estudantes veteranos costumam celebrar esse momento. Trata-se
de um momento importante na vida do estudante que iniciará sua vida acadêmica e quando não-
violento, o trote pode ser um momento importante para o acolhimento e integração de novos
estudantes. Sabendo-se que os trotes também ocorrem de modo violento e ao invés de significar o
início de uma nova fase pode se tornar uma prática vexatória, violenta e humilhante, cada vez mais as
universidades mobilizam-se para combater trotes nesses moldes. Como as matrículas ocorrem antes
do início das aulas, nem todas/os as/os calouras/os se mobilizam para esse momento, por estarem no
período de férias. Contudo, por conta da greve realizada em 2012, os anos letivos seguintes foram
afetados, de modo que no início de 2014, quando ocorriam as matrículas, ainda estávamos concluindo
o ano letivo de 2013 e por isso muitas/os estudantes mobilizaram-se para realizar o trote. Eu sempre
me envolvi com as atividades de recepção de estudantes e isso incluía o trote. Acompanhei muitos
momentos dedicados ao trote, para fazer a defesa de que quem não queria passar por aquilo não seria
obrigada/o. Como eu me envolvia em outras atividades de recepção, não era incomum as/os
110
calouras/os me reconhecerem das redes sociais e do momento da matrícula – aproveitávamos o
tempo em que aguardavam na fila da matrícula para conversar com quem chegava, tirar dúvidas,
prestar apoio, parabenizá-las/os, entre outros – era comum que depois que a matrícula desse certo me
procurassem para agradecer, comemorar e, conforme fosse o caso pedir proteção contra o trote ou
também para “aplicar o trote”. Por ser uma universidade no litoral, era comum aplicarmos o tema
marítimo/litorâneo em TUDO que desenvolvíamos – Cursinho CARDUME (que tem peixessores e
peixestudantes), Coletivo CONTRA-MARÉ (coletivo LGBT), Centro Acadêmico NAUTILUS .... No trote de
2014 alguém apareceu com alguns potes de tinta branca e como geralmente as cores pintadas nos
estudantes relacionam-se com as cores do curso em que são calouros, para aproveitarem a tinta
branca, veteranas/os estavam pintando calouras/os de qualquer curso com aquela tinta. Pintavam-as
com marcações simulando o protetor solar, afinal, era a “federal no litoral”. Contudo, ao aplicar o
trote numa caloura de Fisioterapia, negra, um veterano de Educação Física, de características
caucasiana, passou-lhe tinta branca, mas ao invés de fazer menção ao filtro solar disse à garota que
agora ela poderia entrar na universidade, pois “a universidade é branca”, mencionando de forma
descontextualizada a frase que havia num cartaz-denúncia que havia no campi. Eu não presenciei essa
cena, já havia “encerrado meu turno” naquele dia. Apesar de não ter presenciado, logo me
informaram sobre isso, pois algumas pessoas sentiram-se desconfortáveis com aquela frase e
perceberam que a estudante e sua família, haviam ficado desconcertadas com o teor racista do trote,
mas ninguém conseguiu interferir/mediar a situação. Eu não conhecia/tinha conversado com essa
estudante, mas havia visto-a durante o dia. Sua presença no campus foi percebida por mim e outras
estudantes negra/os e/ou periféricas/os. Sabendo das particularidades que nos afetam, a cada nova
turma, procurávamos reconhecer entre àquelas/es que chegavam, quem compartilhavam dessas
particularidades, procurando ampliar as possibilidades de permanência, especialmente simbólica. Mas
nem precisava estar atenta à isso para ter notado aquela estudante e sua família já que eram a única
família negra acompanhando uma estudante naquele dia.
Exposição
Sabendo do ocorrido, entrei em contato com a estudante pelas redes sociais. Procurei
orientação junto ao Núcleo de Apoio ao Estudante, que não apresentou nenhuma estratégia de busca
ativa para alcançar e acolher e estudante vítima. Também fiz uma postagem em minha rede social no
Facebook em que eu desabafava e problematizava o ocorrido. Apesar da postagem não ter sido
pública, uma pessoa copiou o texto e publicou a reflexão no grupo de facebook mais utilizado pela
comunidade acadêmica da UNIFESP Baixada Santista, no facebook: o Unifespianos. Acredito que quem
realizou a postagem não tinha a intenção de me expor, tanto que não postou que era uma postagem
minha, provavelmente intencionava chamar a atenção para o fato, promover a reflexão, sei lá.... Só sei
que essa postagem gerou um grande desgaste e exposição do caso e do texto, tanto para mim,
quanto para quem reproduziu minha postagem. Na postagem, eu não falava quem fez o que, eu
focava a reflexão na expressão do racismo naquele gesto, nem mesmo caracterizava o autor do trote,
exceto com a informação de que ele era caucasiano – o que, na época, ainda significava a maior parte
das/os estudantes. Nos comentários a discussão foram intensas e colocaram o racismo em questão.
Havia uma diversidade de comentários e posicionamentos sobre o ocorrido, em apoio à estudante e
em apoio ao veterano, ainda que desconhecido. Em alguns comentários falava-se em um pedido de
desculpas à estudante. O autor do trote, incomodado por ter sido interpretado como racista resolveu
ele mesmo se identificar, reivindicando a autoria do trote numa nova postagem. A postagem pedia
desculpas à comunidade unifespiana. Mas não eram desculpas pelos fatos ocorridos. Eram desculpas
111
por terem que ler o texto de algum negro que distorcia a realidade. Pedia desculpas às pessoas que
foram incomodadas com um texto daqueles. E afirmava que não pediria desculpas pelo trote, afinal,
ele não era racista a postagem seria um ataque que tinha apenas a intenção de “denegrir” a imagem
dele. A postagem gerou a comoção da branquitude unifespiana que rapidamente se reconheceu nesse
estudante. Eu não desejo que seus olhos leiam tudo que foi escrito naqueles comentários, embora eu
mantenha em arquivo pessoal todas estas postagens. Como parte do apoio surgido ao estudante
autor do trote racista, duas valem a pena de serem mencionadas: o estudante adicionou seu pai, um
policial civil, no grupo do facebook e o pai passou a fazer a defesa do filho nos comentários e também
a se posicionar em outras assuntos no grupo27; e no dia seguinte, no trote, veteranos pintaram-se com
tinta preta, fotografaram-se, postaram no Unifespianos, protestando contra o racismo reverso. A
estudante que sofreu o trote racista nunca deu início ao curso e evadiu.
DIREÇÃO RACISTA

Depois que adolescentes foram expulsos,


que as estudantes não conseguiram registrar o
boletim de ocorrência do conflito entre estudantes,
que algumas respostas institucionais não existiram –
procuramos aconselhamento junto ao Núcleo de
Apoio aos Estudantes, mas, assim como no caso do
trote do início do ano, não encontramos
possibilidade de respostas institucionais - e com o
histórico que esse campi possuía em matéria de
relações étnico e raciais, diferentes estudantes
entenderam que se não houvesse um fato político
que marcasse a gravidade do que havia acontecido,
o caso poderia ser distorcido ou ser rapidamente
abafado sem qualquer mudança cultural. Conforme
chegavam à universidade e atualizavam-se sobre o
ocorrido naquele dia, um grupo de cerca de trinta pessoas decidiram realizar pixação-intervenção na
porta da diretoria acadêmica. A pixação dizia “DIREÇÃO RACISTA”. Obviamente que a pixação preta na
porta branca gerou mais indignação do que o que a motivou ou mesmo a tinta branca que meses
antes havia sido utilizado de modo racista na estudante negra. A diretora abriu um processo
administrativo contra sete estudantes por conta da pixação. Como não sabia individualizar quem
havia realizado a pixação, a diretora ofereceu a denúncia contra as duas estudantes que ela havia
pedido o crachá, mesmo que na hora da pixação elas estivessem na delegacia; dois estudantes que
faziam parte da organização da IISCN e que foram até ao laboratório tentar mediar a situação com
adolescentes; a estudante não negra que a questionou sobre o critério para pedir o crachá no
laboratório; e duas lideranças do movimento estudantil. Também ofereceu denúncia na Delegacia de
Santos da Polícia Federal. O processo administrativo gerou uma sindicância contra os estudantes e seu

27
Inclusive nas postagens sobre furtos na região, dizendo que se fosse o território de atuação dele, os
furtos não estariam impunes. Quando questionado se aquilo insunuava a execução de assaltantes ele
respondeu apenas que “Deus é quem encomende, eu só passo”
112
resultado absolvia os estudantes acusados pela diretora. Já na Polícia Federal, foi necessário constituir
defesa das/os acusadas/os, depois de algumas oitivas de recursos, o processo foi arquivado, não sem
antes nos gerar muito trabalho para levantar recursos financeiros para pagar advogados para realizar
a defesa dos estudantes, revitimizar as estudantes e gerar danos psicológicos e morais ainda hoje não
reparados

113
Os pretinhos bem

Dizem que eu sou agressivo mas mano eu não acho O pensamento é um furacão
De perto de mim racistas eu despacho Que move e remove tudo sem explicação
Cêis vêem despacho e dizem Deus me livre Eu me perco no tempo, me sinto ao relento
Eu faço despacho, Eu sou um preto livre Por que todo contratempo vem com cheiro de
missão, então segura que eu…
Na fé de quem me orienta que é meu Orixá
Cêis calarem nossa voz eu não posso deixar Assumo a culpa, assumo as contas, seguro as
O que é bom e tem minha cor eles querem pintar pontas, meiuca
De branco, é dizer que é deles pra depois lucrar Já fui mais tonta e cabeluda agora só meto a maluca
De tanto lidar com biruta, é tanta desculpa barata
A muito tempo eles caçam nosso povo Mexem tanto na sua cuca, todo dia isso te mata
Usando nosso próprio povo como cão de caça
E o nosso povo morde o nosso próprio povo Nem respira, parece tão comum
Pois mano, pro nosso povo a carne e sempre As poucos a mente sente que vai definhar
escassa, desgraça A sobrevida sendo apenas mais um
Que não sabe se hoje poderá voltar
E as orações pra um Deus pintado de branco não
surtem efeito Quantos mais precisam morrer
Um defeito de cor Até que essa guerra acabe
E as orações pra um Deus pintado de branco não Marielle disse e ainda que o ciclo se repetisse
surtem efeito Mostrou o que geral já sabe
Pelas pretas e máscaras brancas
If you don't know, now you know
Então procure por mim na tempestade If you don't know, now you know
Que no vento de Oya eu vou causar tumulto If you don't know, now you know
Eu causo alarde pois a causa é alarmante É tanta dor que no verso no cabe
E dessas lagartixa eu não aceito insulto
Que Oya me guarde, fortaleça minha vontade
Ofensivo né? Viu como é ruim? De viver e a você que nunca seja tarde
E cêis ainda chamam os preto de macaco Nos livre da maldade, da mediocridade
Eu recolho meus cacos feito uma Fênix com uma De morrer na mão desses covarde
tocha no bico
E que a cada agressão eu me refaça, eu renasço Eu só quero os pretinho bem

Eu só quero os pretinho bem


Thiago Elnino e Tassia Reis

114
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