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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MULHERESNEGRAS: DAS SENZALAS AS


UNIVERSIDADES, ENTRE CARTAS E CONTOS VAMOS
SEMEANDO AUTO(TRANS)FORMAÇÃO

PROJETO DE TESE DE DOUTORADO

DANIELA DA SILVA DOS SANTOS

SANTA MARIA, RS, BRASIL,


2023
MULHERES NEGRAS: DAS SENZALAS AS UNIVERSIDADES, ENTRE
CARTAS E CONTOS VAMOS SEMEANDO AUTO(TRANS)FORMAÇÃO

Daniela da Silva dos Santos

Projeto de Tese apresentado ao Curso de


Doutorado em Educação do Programa de
Pós-Graduação em Educação, Linha de
Pesquisa Docência, Saberes e
Desenvolvimento Profissional, da
Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM, RS), como requisito parcial para
a obtenção do grau de Doutora em
Educação.

Orientador: Prof. Dr. Celso Ilgo Henz

Santa Maria, RS, Brasil


2023
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Educação
Programa de Pós-graduação em Educação

A comissão Examinadora, abaixo assinada,


Aprova o projeto de Tese de doutorado

MULHERES NEGRAS: DAS SENZALAS AS UNIVERSIDADES, ENTRE


CARTAS E CONTOS VAMOS SEMEANDO AUTO(TRANS)FORMAÇÃO

Elaborada por
Daniela da Silva dos Santos

Como requisito parcial para obtenção do grau de


qualificação de Doutorado em Educação.
COMISSÃO EXAMINADORA:

_______________________________________
Celso Ilgo Henz, Prof. Dr. (UFSM)
(Presidente/Orientador)

_______________________________________
Maria Rita Py Dutra, Profª. Drª (MNU)

_______________________________________

Santa Maria, de.... de.... 2023


Essa história se inicia no século XV
Com as grandes navegações

Onde um empreendimento de expansão se transformará em escravização de


milhões de pessoas,

Se nunca o homem branco europeu tivesse criado o sistema das grandes


navegações e o acumulo de capital...

Talvez eu não estivesse aqui contando essa história...

Se tivéssemos crescidos e nos tornados adultos nas planícies do


Congo, Guiné-Bissau, angola, Benin...

Não estaríamos contando essa história aqui nesse centro de Educação...

Mas não foi o que aconteceu...

Nós nos tornamos aqui nesse país chamado Brasil um povo triste,
amedrontado, acuado, ressentido, irado...

Destruímos nossos heróis para adotar os seus, não criamos nossos filhos para
criar os seus, não amamentamos nossos filhos para amamentar os seus, não
limpamos nossas casas mentais e físicas por lidar com vocês...

E o que isso resultou?

Um profundo ressentimento entre todos nós...

Uns porque foram cativos outros porque não conseguiram cativar...

Porque cativar depende de empatia, amor, felicidade, amizade, segurança,


bem estar, doçura, confiança...

O que vimos e sentimos foram a antipatia, infelicidade, inimizade, insegurança,


aflição, amargura, desconfiança...

E se ainda tudo isso não fosse suficiente tornaram-nos a escória da


sociedade...
Fomos tatuados com todos os grandes medos da humanidade...
Medo do escuro, medo do que não se entende, medo das possibilidades em
abertas, medo do imprevisível, medo de estar vivo, medo de viver...

Poderíamos ter acreditado e introjetado todos esses medos...


Mas, alguns de nós como uma flor de lotus decidiram se adaptar e viver no
lodo das emoções mais obscuras de uma sociedade predatória e perversa...

E assim como essa flor de lotus nos tornamos resistentes, resilientes e


adaptáveis a produzir o que há de melhor nos seres humanos...
O amor...
AGRADECIMENTOS
Ao pensar nos agradecimentos lembrei do texto da bell hooks 2020 que
hoje já não está no plano físico, mas nos deixou essa preciosidade de tudo
sobre o AMOR. Onde ela relata que AMAR é um ato de vontade – tanto uma
intenção quanto uma ação, que também implica escolha, escolha de AMAR.
AMAR para crescermos, AMAR para sermos Carinhosos, AMAR para termos
Afeição, AMAR para reconhecer, AMAR para ter respeito, AMAR para ter
compromisso, AMAR para ter Confiança, AMAR para sermos honestos, AMAR
para termos uma comunicação ABERTA.
É com AMOR que dedico essa tese aos meus familiares, minha mãe
Nelisabete, minha segunda mãe Catarina, mulheres que me deram a vida e a
psique intacta para estar aqui hoje. As minhas mães-tias que cuidaram de mim
durante a infância e preservaram minha esperança e alegria. Sem vocês mães
divinas não estaria aqui hoje.
Ao meu marido Claucio que sempre se manteve paciente frente aos
meus desejos impetuosos de chegar em lugares onde ninguém tinha chegado.
Agradeço a paciência por escutar e apoiar. Ele é o companheiro incansável das
batalhas que conquistei.
Agradeço ao meu pai por estar aqui e produzir um fortalecimento
indizível para minha psique de resiliência e aprimoramento. Aos meus
sobrinhos: Nicole, Martim, Matias, Cecilia e Joaquim, Isabela. Que fazem parte
da geração do por vir e realizar novos feitos... A todos o meu mais sincero
abraço.
Aos meus irmãos Caroline, Fernando, Felipe que me ajudaram ao longo
do caminho a revisitar todos os meus mais profundos sentimentos de empatia e
amor. Pois, tivemos muitos momentos inesquecíveis. De brigas a
aprendizagens do que é ser irmão e o que é reciprocidade. Não seria ninguém
sem nossos banhos de sanga e nossas brincadeiras em conjunto com os
vizinhos. Como a Mana e a Titi que nos acompanharam nessas peripécias por
anos.
Gratidão por ter em minha vida meu filho Eduardo. Ser Humano
generoso, amoroso, calmo, inteligente, mágico. Nossa ligação é atemporal,
temos muitas histórias juntos. Descobri com ele que somos um grão de areia
cósmico e que essa existência é sobre amar e se dedicar as coisas que nos
mantem vivos e vibrantes.
Vibrações que amplifico com a chegada da Antonia uma supernova em
minha vida. Assim como as estrelas supernovas a irradiação da Antonia
ultrapassa limites inimagináveis, pois, é uma mulher negra atenta, energizada,
forte, determinada e arrojada. Articula sua inteligência com amorosidade e veio
com uma capacidade de empatia pelos outros admirável.
Essas vibrações perpassam pelo agradecimento ao meu orientador
Celso que aceitou o desafio meio que intuitivamente. Chego a ele no meio de
uma tempestade pandêmica e faço a pergunta que o pequeno príncipe fazia
para saber com que tipo de ser humano estava lidando. O que o senhor está
vendo aqui? Se a resposta for um chapéu temos um tipo de ser humano..., Mas
se a resposta for de uma cobra que engoliu um elefante temos muitas trocas a
realizar...
Também agradeço ao professor Celso por minha irmã Caroline, a qual
nesse ano está finalizando seu doutorado na educação e, portanto, ele ajudou
duas mulheres negras da mesma família a se tornarem Doutoras... Caso vocês
fiquem emdúvida sobre a importância desse fato... É como se ele desse alforria
para duas mulheres negras da mesma família... liberdade do cativo se fosse a
alguns séculos atrás... Liberdade intelectual... nos dias de hoje. Pois ainda
somos minoria nas pós-graduações... Imaginem duas irmãs negras.
Gostaria de agradecer ao grupo Dialogus por receber uma forasteira e
deixar entrar nos seus círculos dialógicos e no aprendizado na “casa da
floresta” ou no paraíso escondidinho logo ali... Cheios de compreensão e trocas
que somam a cada novo passa da trajetória.
Sem esses apoios e carinhos a caminhada fica mais difícil. E só tenho a
agradecer a todes que cruzaram a minha trajetória na medida certa e na hora
certa. Talvez designs dessas mulheres maravilhosas que tornaram possível a
menina negra chegar até aqui.
Resumo

Projeto de Tese de Doutorado em Educação


Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal de Santa Maria

MULHERES NEGRAS: DAS SENZALAS AS UNIVERSIDADES, ENTRE


CARTAS E CONTOS VAMOS SEMEANDO AUTO(TRANS)FORMAÇÃO

AUTORA: DANIELA DA SILVA DOS SANTOS


ORIENTADOR: PROF. DR. CELSO ILGO HENZ

Data e Local da Defesa: 10 de outubro de 2023, Santa Maria.

As grandes navegações e as escravizações compulsórias trouxeram um


grande desafio para nossa sociedade: desmontar o maquinário perverso de
acúmulos indevidos e vidas vilipendiadas. E nesse interim as mulheres negras
tornam-se fundamentais nesse trabalho de tese. Onde irá se buscar trazer
equanimidade para possibilitar seu sentir-pensar-agir (HENZ, 2023) em suas
trajetórias de vida dentro do âmbito acadêmico desse país. Propondo a elas a
coautoria e espaços políticos-epistemológicos em busca de diálogos-reflexivos
coparticipativos em uma tentativa de abrir espaço para elas dizerem a sua
palavra frente aos desafios da vida na universidade ao longo de sua trajetória
acadêmica. Na busca por produzir trocas significativas com discentes que se
encontram na UFSM, UFSC, UFBA em uma pesquisa qualitativa
auto(trans)formativa com proposta político-epistemológica que é promovida
pelos círculos dialógicos do grupo Dialogus onde cada participante da pesquisa
é reconhecida como coautora. Propor-se-á a construção de trocas através de
cartas pedagógicas dialógicas. Na tentativa, de propiciar o seu espaço para
produção e escrita destas cartas em seu tempo e espaço de forma orgânica e
propositiva por constructos epistemológicos dialogicamente reflexivos
reconhecidos e sistematizados (HENZ, 2023). Nosso problema se alicerça em
como as mulheres negras encontram-se e compreendem suas trajetórias
dentro de seus espaços acadêmicos, em especial as relações estabelecidas
nesse ambiente para a produção de conhecimento e saúde mental destas.
Com o objetivo de compreender suas trajetórias dentro destas instituições
buscando ampliar as perspectivas e diálogos sobre o processo formativo,
permanência, conhecimento e saúde mental. Essa última, demasiadamente
importante para a tese que tentará analisar as possibilidades da
transgeracionalidade de sofrimento psíquico dessas mulheres ao longo de sua
vida e o quanto esses processos poderão afetar suas construções e escolhas.
A transgeracionalidade do sofrimento psíquico criptado e instalado no
inconsciente artificial e introjetado no ego (ABRAHAM; TÖROK, 1995), nos
trará o desafio de desenterrar os mais profundos medos para produzir
enlutamentos que possam dar a possibilidade de ressignificar e enterrar os
mortos e desconstruir os fantasmas que ficaram a assombrar suas vidas.
Palavras-chave: Mulheres negras, auto(tras)formação, transgeracionalidade,
saúde mental.

ABSTRACT
DoctoralThesis Project in Education
GraduateProgram in Education
Federal Universityof Santa Maria

BLACK WOMEN: FROM THE SENZALAS TO THE UNIVERSITIES,


BETWEEN LETTERS AND STORIES WE GO SELF-TRANSFORMING

AUTHOR: DANIELA DA SILVA DOS SANTOS


ADVISOR: PROF. DR. CELSO ILGO HENZ
Date and Place of Defense: OUCTUBER 10th, 2023, Santa Maria.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

MEC Ministério da Educação


UFSM Universidade Federal de Santa Maria
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
UFBA Universidade Federal da Bahia
LISTA DE ANEXOS

ANEXO A – Termo de Confidencialidade___________________________98


ANEXO B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido______________99
SUMÁRIO

MEMORIES DA TRAVESSIA… ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.


1 EM ENCONTROS E DESENCONTROS TECEMOS NOSSAS FORMAS
DE PESQUISAR ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
2 NO BALANÇO DO MAR ME FIZ MULHER
NEGRA..............................ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.6

3 NA SIMBIOSE DOS SIGNIFICAS E SIGNIFICANTES NOS


TRANFORMARÃO EM SERES MAUDITOS. ERRO! INDICADOR NÃO
DEFINIDO.8
4. MULHERES NEGRAS: LEMBRANÇAS DA TRAVESSIA
INDICADOR NÃO DEFINIDO.3
REFERÊNCIAS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
ANEXOS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
ANEXO A – TERMO DE CONFIDENCIALIDADE ERRO! INDICADOR NÃO
DEFINIDO.
ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
PARA OS ALUNOS ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.
MEMORIES NA TRAVESSIA

Se ontem eu morri e hoje não morro mais

É porque nessa vida a esperança é maior que tudo... É aquela que


anseia o nosso ser, ainda, mais...

Emicida é um guri de rima que fez da arte a sua guarida, o seu grito
um canto de alforria...

[...] E olha que Sofia é dessas meninas que fazem da fantasia a


pirraça possível para driblar um mundo que desdenha a utopia...

A caixa de memória tem o conto, o encanto, o sonho, o grito...Porque


memória guarda desde cores, amores e se faz com desenhos
coloridos, alguns apagados, outros desbotados, ou ainda aquela
memória tão antiga, mas como que uma magica tem cheiro fresco de
tinta...

Nas memórias... Se ontem eu morri... Ao resgatá-las eu ressuscito os


meus eus, os outros e outras que já fui... E ainda aquelas que estão
aí esperando ser... (CAROLINE SANTOS; MELISSA SILVEIRA, 2023,
p. 186).

Reavivar memorias ou resgatá-las é muito mais que ressuscitar os meus


eus. É fortalecer uma rede de eus e outros eus em uma sociedade que luta
incansavelmente para apagar essas memórias. Morremos ontem, mas foi
deixado um legado de possiblidades e esperanças, não sendo possível
negligenciá-los.
As palavras ganharam outros significados e significantes em nosso
período atual, as dificuldades potencializaram, os desafios ultrapassaram suas
bordas, a vida cotidiana virou de cabeça para baixo, nos desorganizamos. Mas,
também crescemos, aprendemos a nos readaptamos, refizemos nossas
bordas, reorganizamos nossos lares e repensamos nossa educação.
Tivemos que buscar nossos poetas internos e ficcionistas amadores
para dar conta dos desafios. Ao pensar em professores e formação de
professores nos deparamos com os desafios atuais das nossas escolas.
Estamos em um período pós-pandêmico onde a vida cotidiana mudou e a
preocupação com a saúde mental se fortaleceu como nunca.
Encontramos desafios ainda maiores para os professores que querem
retomar suas atividades e suas rotinas, mas dependem das mudanças e
adaptações que estão acontecendo nesse exato momento. Nossas escolas
não são mais as mesmas... Os alunos parecem perdidos... os professores
anestesiados... estamos buscando saídas para evitar um colapso da educação
e um extremo cansaço dos professores.
A tentativa de buscar alternativas que nos possibilitem reorganizar
nossas estratégias de lutas e de conquistas faz-se necessária para
reencontrarmos formas de organizar espaços, discursos e lutas. Lutas que
viraram diárias e constantes, que deixam muitos professores inquietados e
inquietantes.
Assim, pensar em pesquisa dentro do doutorado em educação está
intimamente ligado a aproveitar essas mudanças para repensarmos antigos
paradigmas. Abrindo espaço para ciclos de mudanças. Ciclo que irá trazer a
possibilidade de estarmos novamente no ciclo acadêmico e aprimorarmos
nossas potencialidades. Potencialidades que para muitas mulheres negras que
foram negligenciadas na educação, política, estética, economia, cultura e
política poderiam redirecionar nesse momento pontual da humanidade para
olhar, escutar e se sensibilizar.
Estamos em um país onde políticas públicas, melhorias sociais,
econômicas alcançadas em anos de lutas constantes podem ser destruídas em
apenas quatro anos de um governo de estrema direita, ou direita. Pois, vimos o
que vimos acontecer com políticas publicas implementadas e articuladas
socialmente serem destruídas em apenas um mandato. Deixando pessoas que
precisam delas para sobreviver e florescer a mingua.
“Ser capaz de recomeçar sempre, de fazer, de reconstruir, de não se
entregar, de recusar burocratizar-se mentalmente, de entender e viver a vida
como recesso, como vir a ser...” (Paulo Freire,2021; Bell Hooks, 2021). Tanto
aprendizado como revolução demandam de cada um a disponibilidade de
construir formas de entendimento e mudanças frente aos desafios e
disponibilidades, criando espaços de diálogos em uma sociedade de forçou
aprendizados.
Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo a vida do
intelecto, era um ato contra-hegemônico, um modo fundamental de resistir a
todas as estratégias brancas de colonização racista (hooks 2017, p.10). Pensar
alternativas mesmo em tempos obscuros é o que permite a sobrevivência da
humanidade e seu avanço para tempos melhores. E tempos melhores se
fazem também com a educação. Educação que nesse trabalho irá propor uma
desmistificação de palavras conceitos e pré-conceitos que foram inventados ao
longo dos séculos para uma manutenção de poder de uma elite eurocentrada.
Já no título utilizei Senzala com o propósito de positivar essa palavra,
pois para muitos não passa de um deposito de seres humanos arrancados de
sua terra natal e jogados em um lugar escuro. No entanto, gostaria de começar
positivando essa palavra pois, Senzala é um lugar orgânico e dinâmico onde as
pessoas retornam após uma jornada exaustiva de trabalho e criam
possibilidades nesse ambiente de sobrevivência para si e para os outros.
Senzala orgânica e proativa que irá abrigar o fogo no centro e a
capacidade de reorganização. Talvez muitas reinvindicações, cobranças,
mediações, resistência, medicações, culinária, união das famílias, reencontro
de pessoas da mesma região, religiosidade, insurreições tenham sido forjadas
em círculo ao redor do fogo em uma noite de intempéries e exaustão. Exaustão
e sofrimento que ficou registrado em suas psiques ao longo dos séculos.
Criptados em traumas, impossibilitados de simbolização onde as cadeias de
significantes se perderam e se emaranharam em suas vivencias que beiravam
a loucura de um descerramento inimaginável.
Nem em seus piores pesadelos esses povos da África poderiam
imaginar que seriam caçados, aniquilados, escravizados e transportados para
terras que para eles ainda eram inexistentes. Onde os mais fúnebres de seus
pensamentos se tronariam pensamentos insuportáveis quase ao ponto da
aniquilação. Séculos de lutas, sofrimentos, organizações e resistências nessas
senzalas nos levaram a liberdade, educação e agora as universidades. Sem
nossos antepassados forjando e lutando não alcançaríamos as bibliotecas das
casas grandes e depois as bibliotecas universidades.
Reivindicando a liberdade, uma vez que para Angela Davis (2018) a
liberdade é uma luta constante. E uma luta que ainda se efetiva nos dias
atuais, pois, estamos tentando constantemente lapidar as pautas dos que
vieram antes. Hoje além da liberdade física, luta-se por liberdade intelectual,
social, econômica, política, identitária, entre outas. Conseguimos
ficcionalmente em 1888 a liberdade dos cativeiros nas grandes fazendas, mas
continuamos cativos de uma sociedade que transmuta as linhas de chegada e
de partida no contrato social. Esse contrato social não pode manter-se
privilegiando uma parcela da sociedade e deixando a grande maioria da
população as margens e ainda criando tecnologias de poder em cima de uma
meritocracia falida e obsoleta.
A população negra é muito mais do que massa de manobra, sustentação
de mão de obra barata, sustentação de trabalho sem dignidade e
possibilidades de acessão, para setores produtivos que ainda estão
resguardado e mantendo locais de poder. No entanto, torna-se de extrema
importância desenterrar seus medos mais profundos e restabelecer um
processo de luto e reconexão consigo mesmos. Os fantasmas do passado
terão que ser enterrados e as ressignificações produzidas para que essas
populações voltem a viver (e não apenas sobreviver), e voltem a sorrir para
produzir confiança em si e nos outros.
Para Hooks (2017), Freire (2021) e Josso (2007), a educação como
pratica de liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender.
Ensinar de um jeito que respeite e assegure as condições necessárias para
que o aprendizado possa acontecer de modo mais profundo e íntimo. Em um
trabalho transformador de si.
Os seres humanos estão intrinsicamente predispostos a desenvolverem-
se e tornarem-se seres pensantes. A autônima é pré-condição para que
possamos viver como espécie pensante, dialógica e amorosa.

Assim, aprendemos a ideia-fonte socio-pedagógica e apaixonante


experiência de educador onde experiências e saber que se dialetam,
densificando-se, alongando e dando, com nitidez cada vez maior, o
encontro e relevo de sua profunda intuição central; o encontro do
educador de vocação humanista que, ao inventar suas técnicas
pedagógicas, redescobre através delas o processo histórico em que e
por que se constitui a consciência humana (Ernani Maria Fiori, 1921-
1997, p. 12).

Essas possibilidades emergem quando nos disponibilizamos a sentir-


pensar-agir (HENZ, 2003) a educação e os próximos passos que iremos dar
para um futuro com menos violência e mais amorosidade e respeito. Respeito
que perpassa por nos reconhecermos como sujeitos pensantes, propositivos e
seguros, quando nos enxergamos além dos rótulos e das cobranças do
externo.
Ser professora negra nesse sentindo torna-se um desafio nos tempos
atuais porque estamos vivenciando retrocessos que nos desumanizam e nos
adoecem. Muitos encontram-se adoecidos psiquicamente, cansados,
esgotados e desiludidos em um grau de desesperança que assusta. Notamos
uma desconexão das partes com o todo que aumenta a produção de angustia,
só vista em tempos de guerra. Fomos surpreendidos por miasmas sociais que
desafiam todas estruturas sociais, políticas e psíquicas da sociedade como um
todo. Onde o sofrimento perpassa por analisarmos o que foi feito da nossa
sociedade.
Angustia que nos constitui, mas também nos leva a um adoecimento
psíquico caso não estejamos atentas as possibilidades e aos desafios. Pensar
professoras e sua formação perpassa por pensarmos nas angustias vividas
nesse momento dentro do contexto acadêmico ao longo de sua trajetória. Essa
trajetória que na maioria das vezes é solitária e inédita, tanto para as discentes 1
quanto para sua família, trazendo em si perspectivas de ascensão social e
econômica, mas também uma busca por melhorar as condições sociais que até
ali não tinham sido alcançadas.
Tornando possível fazer parte de um todo que precisa se interligar
novamente. Através da transgressão de abordagens e das rotinas das linhas
de produção na implementação do desejo de responder ao ser único de cada
um na possibilidade de reconhecimento (Hooks, 2017). Reconhecimento que
ao se pensar mulheres negras torna-se desafio, luta e resistência. Pois, muitas
delas foram apagadas e negligenciadas em todos os âmbitos do seu ser. E
essa negligencia cria um abismo em sua subjetividade que pode ser
transformada pela educação.
O educador educa a dor da falta. Educa a fome do desejo. O
educador educa a dor da falta cognitiva e afetiva para a construção
do prazer. É da falta que nasce o desejo. Educa a aflição da tensão,
da angustia de desejar. Educa a fome de desejo. Para (re)acender o
(re) conhecimento de desejos, sonhos de vida – esperança que nasce
da apropriação do próprio pensamento – na pratica pedagógica é
necessário a presença instrumentalizadora de um educador
(MADALENA FREIRE, 2019, p. 31).

A falta como mola propulsora do desejo torna-se o combustível para


manter-se vivo, regado de esperança, no entanto, sem esperança o ser
humano pode se tornar o mais obscuro dos seres desse planeta. Nesse
1 Discentes e coautoras da pesquisa das universidades UFSM, UFSC, UFBA.
sentido, trabalhar com mulheres negras e sua trajetória de vida e acadêmica
em universidades desse país como UFSM, UFSC e UFBA torna-se ponto nodal
deste trabalho. Mulheres que ainda são minorias no chão das escolas, nas
universidades, nas pós graduações.
Em uma pesquisa qualitativa de perspectiva hermenêutica onde serão
utilizadas cartas dialógicas na busca por promover uma maior potencialidade
entre tempo e trocas. Dentro de um movimento Snowball (bola de neve) onde
as cartas e as indicações serão como trocas de sementes e aprimoramentos
direcionados por essas mulheres. Na tentativa de compartilhar e fazer circular e
semear interligações, trocas e aprendizados efetivos de mudanças. Mudanças
que as coautoras desta pesquisa que encontraremos nos percursos poderão
sinalizar e trocar as possíveis efetivações e potencialidades vistas por elas. Ser
professora nesse país é muito mais que um ato de coragem, tornando-se um
ato contra-hegemônico, como relata Bell Hooks (2017); para negros, o lecionar
– o educar - era fundamentalmente político, aprendizado como revolução.
A escola e a universidade configuram-se em espaços-tempos onde
essas mulheres negras, que não se encontram representadas e articuladas
dentro desse sistema caótico, poderão compartilhar conhecimentos e desafios
encontrados em seus percursos. Discursos sobre suas dificuldades dentro das
instituições e de seus desafios diários para manterem a saúde mental e o
equilíbrio diante das dificuldades produzidas pelo sistema nos trarão
possibilidades de represarmos a complexidades de suas trajetórias.
O primeiro capitulo em encontros e desencontros tecemos nossas
maneiras de pesquisar aprofundará a pesquisa e possibilitará a construção
das possibilidades para efetivar a pesquisa.
Já no segundo capitulo, No balaço do mar me fiz mulher negra,
discorrerá sobre minha trajetória e desafios de chegar até aqui. Trago algumas
reflexões e inquietações que foram surgindo ao longo de todo o processo e as
possibilidades intrínsecas de estar aqui.
No terceiro capitulo, Na simbiose dos significantes e significados
nos transformaram em seres malditos, tento construir um referencial que
demonstre a construção de significados e significantes impregnados de
estereótipos pejorativos e a construção do necropoder e da necropolitica em
nosso pais.
E no quarto capitulo, Mulheres Negras: lembranças da travessia,
tento construir um referencial sobre a transgeracionalidade do sofrimento
psíquico das mulheres negras e seus sofrimentos. Capitulo que perpassa pelos
medos e angustias inomináveis dessas mulheres que muitas vezes se acham
indignas de suas conquistas e vitorias.

EM ENCONTROS E DESENCONTROS TECEMOS NOSSAS


MANEIRAS DE PESQUISAR

O que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência,


mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade
está sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe
apenas por razões de lucro e facilidade de acesso(COUTO, 2011, p.
13).

Assim, propõe-se trabalhar de forma qualitativa em busca de diálogos


por cartas dialógicas com as futuras professoras negras, em formação dentro
de três universidades diferentes UFSM, UFBA, UFSC. Na busca por promover
entendimentos sobre suas trajetórias ao longo de suas formações e a busca
por entendimentos dos desafios nessas instituições para essas mulheres
negras.
Em uma tentativa de entrelaçar relatos através de narrativas de pontos
diferentes do país. Universidades proeminentes que nos trarão olhares e
proposições diferenciadas dos desafios e das trajetórias de cada mulher negra
em sua trajetória acadêmica.
Destaco aqui a importância por buscarmos entendimentos de
suastrajetórias e desafios dentro destas instituições nas suas formações e
como poderão interferir em suas vidas e processos de autonomia e
proposições para o futuro. Na busca por resgatar seus relatos sobre suas
ancestralidades através das trocas, diálogos e religações com elas mesmas e
com seus potenciais ancestrais. Na Circularidade de uma perspectiva
hermenêutica onde os meios e fins, inícios de trajetórias e fins de trajetórias,
vida, esperança, fé, amor, sorrisos, glorias, derrotas, nascimento e morte fazem
parte da trajetória de todos os seres humanos.
Retomando diversidades que foram silenciadas e roubadas por
conjunções de fatores, como relata Mia Couto: somos diversos e na
diversidade nos reestruturamos como humanos. Para Freire:

É preciso que, pelo contrário, desde o começo do processo, vá


ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem
forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e
forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir
conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito
criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado.
Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos,
apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição
de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem
aprende ensina a aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a
alguém. É por isso que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar
é um verbo transitivo relativo (FREIRE, 2021, p. 25).

Essas mulheres negras em formação hoje são discentes, mas se


tornaram ao longo do percurso docentes e nesse aprender e ensinar, ensinar
aprender irão constituindo suas formas, seus contornos criando bordas e
limites entre a sua constituição e constituição do mundo em que vivem.
Portanto, alfabetizar reescrevendo sua vida como autor e testemunha em loco
de sua história, protagonizando o biografar-se, em sua própria história (FIORI,
1921-1997, p. 12).
Biografar-se no sentido mais amplo que possamos dar a essa palavra,
pois, é contar sua história e suas trajetórias vasculhando-se nos confins de
seus mais profundos sentimentos. Trazendo para a realidade suas
possibilidades de se reescrever existenciando suas mais profundas conquistas
e dores construindo sua história com suas palavras e seus significados.

A dialética em que se existencia o ser e sua responsabilidade em se


humanizar traz a potencialidade de dizer a sua palavra, pois, com ela,
constitui a si mesmo e a comunhão humana que o constitui; instaura
o mundo em que se humaniza, humanizando-o (FIORI,1921-1997, p.
17).

Humanizando-se, humanizará ao seu redor e tornará suas palavras e


atitudes e potencialidades. Tornando-se criador e criatura. Constituindo-se na
linguagem e criando suas possibilidades de significar a existência criadora.
Trazendo a potencialidade de revivê-la e ressignifica-lá a todo o momento;
criando movimento em seu viver e seu fazer diário. Buscando alternativas de
se problematizar e compreender sua trajetória e a dos que estão ao seu redor.
Em uma continua tentativa de recomeçar e se reencontrarem consigo.
Esse desafio para as mulheres negras em formação traz o desafio para
mim de ser uma mulher negra que irá escutar e compartilhar com muita honra e
reconhecimento de suas trajetórias. Diga-se de passagem, honra por aquilo
que já presenciei pessoalmente e que me orgulho muito por ver outras
mulheres negras lutando para ocuparem esses espaços. Nesse sentido, essa
pesquisa intenciona proporcionar diálogos e trocas que poderão trazer
novamente a possibilidade dessas mulheres negras se reencontrarem consigo
mesmas; em busca de um sentido para permanência e formação como futuras
professoras traz a possibilidade de reflexão.

Onde o trabalho de reflexão a partir da narrativa da formação de si


(pensando, sensibilizando-se, imaginado, emocionando-se,
apreciando, amando) permite estabelecer a medida das mutações
sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a
evolução dos contextos de vida profissional e social. As
subjetividades exprimidas são confrontadas à sua frequente
inadequação a uma compreensão libertadora de criatividade em
nossos contextos em mutação (JOSSO, 2007, p. 414).

Mutação que vai além dos contextos, pois, estar flexionando a realidade
a todo o momento traz a essas mulheres negras a potencialidade e resistência
e aprimoramento dos desafios encontrados ao longo da trajetória acadêmica.
Ou seja, sua busca interna por entendimentos sobre o seu acontecer e
florescer nesse ambiente inóspito. Em um projeto de humanização, cidadania e
diálogos em espaços-tempos de investigação-ação que oportunizam reflexão
sobre a realidade social para possíveis mudanças nas práxis educativas. Onde
o direito de se narrar transforma através do diálogo-problematizador e da
escuta sensível em uma propositiva político-epistemológica critica-reflexiva a
possibilidade de produzir mutações saudáveis (HENZ, FREITAS, SILVEIRA,
2018, p. 837).
O diálogo problematizador e a escuta sensível trarão a possibilidade de
reconstrução de suas trajetórias de vida e de profissão. Possibilitando uma
relação circular do todo e das partes que só será possível se percorrermos o
individual de forma orgânica Gadamer (1900-2002). Organicidade que trará a
potencialidade de convidarmos essas mulheres negras para serem coautoras
da pesquisa em busca de implementação e potencialização de
auto(trans)formações permanentes com e pela pesquisa e narrativas sobre
suas trajetórias.
Portanto, a pesquisa qualitativa, dialética e construtiva, buscará
transformações pessoais, profissionais, educativas, epistemológicas e sociais
em um constructo dialógico-reflexivo, sistematizados onde as coautoras
compreendam e interpretem ressignificando narrativas dos seus processos em
uma dialética hermenêutica de fusão de horizontes pela escuta sensível e o
dizer a sua palavra a luz de suas experiencias (HENZ, 2023).
Essas experiências poderão trazer para a circularidade a possibilidade
de reconstrução de espaço e diálogos. As narrativas podem surgir e possibilitar
que a reconciliação consigo mesmas ocorra sem os mecanismos de culpas e
medos. As narrativas eclodirão para surgirem novas potencialidades, que
reverberam tanto nelas como em seus trabalhos.

O fundamental, realmente, na ação dialógico-libertadora, não é


“desaderir” os oprimidos, de uma realidade mitificada em que se
acham divididos, para “aderi-los” a outra. O objetivo da ação dialógica
está, pelo contrário, em proporcionar que os oprimidos, reconhecendo
o porquê e como de sua “aderência”, exerçam um ato de adesão à
práxis verdadeira de transformação da realidade justa (FREIRE,
2005, p. 200).

Essa transformação que está em curso tanto na nossa sociedade,


quando em nossas pesquisas nos desafia a trabalharmos com mulheres
negras e sua saúde mental. Em uma formação que passa pela pesquisa-
auto(trans)formação em um espaço investigativo-auto(trans)formativo na
interlocução para problematização dos espaços e de si mesmas.

Passando pela práxis de estudos e de pesquisas que priorizam o


dialogo problematizador na dialética “leitura de mundo-leitura da
palavra”, objetivamos refletir e pesquisar sobre a realidade social,
escolar e acadêmica de maneira proativa, a fim de gerar constructos
epistemológicos e práxis educativas que contribuam com uma vida
mais digna pessoal, profissional e social. As aprendizagens
auto(trans)formativas provocaram em n´s o reconhecimento de que
as vivencias dialógico-reflexivas, com amorosidade e rigorosidade,
buscam encorajar pesquisadoras(es) e profissionais da educação
básica para refletirem sobre si mesmas(os) na tríade profissão-
cidadania-epistemologia, sempre com perspectiva da humanização e
do ser mais na escola, na universidade e na sociedade (HENZ, 2023,
p. 37).

A pesquisa perpassará por desafios de possibilitar espaços de escuta e


diálogos a essas mulheres negras em formação que muitas vezes, para
chegarem nesses lugares, desafiam seus limites e suas crenças mais
obscuras. E uma reconstrução em uma relação circular das partes para o todo
e do todo para partes na tentativa de trazer um reequilíbrio físico, mental e
intelectual. Portanto, torna-se desafio ainda maior escutá-las dentro de seus
ambientes acadêmicos, nos quais essas mulheres querem ocupar seus
espaços de direito. Espaços de conhecimento, de emancipação e autonomia;
em uma sociedade conservadora, onde mulheres ainda não possuem os
mesmos direitos que os homens. Imaginem as mulheres negras que querem
produzir novas formas de ressignificação dentro do meio profissional a partir de
suas pesquisas.
Angela Davis (2016) fala sobre o papel multidimensional das mulheres
negras no interior da família e da comunidade e a luta atual pela sua
emancipação. Essas mulheres na atualidade, novamente e ainda, são alicerces
dos seus lares, pioneiras no meio acadêmico como novas possibilidades de
ressignificações.

As mulheres negras sempre trabalham mais fora de casa do que suas


irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida
das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os
primeiros anos de escravidão. Como escravas, essas mulheres
tinham todos os outros aspectos da existência ofuscado pelo trabalho
compulsório. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer
exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma
avaliação de seu papel como trabalhadoras (DAVIS, 2016. p. 17).

Que essas mulheres entendam e ressignifiquem suas trajetórias e


papeis na sociedade para além da subalternidade. Para além do sofrimento
transgeracional que carregam. Para além dos limites que lhes foram postos. A
luta por educação onde as mulheres negras precisavam, e ainda precisam,
adquirir conhecimento – uma lanterna para os passos de seu povo e uma luz
no caminho da liberdade. Liberdade, autonomia e emancipação nos dias atuais
para mulheres que buscam conhecimento (DAVIS, 2016).
Em uma escrita da narrativa abrindo espaços e oportunizando processos
de formação, a falar-ouvir e ler-escrever sobre as experiências formadoras,
implica em descortinar possibilidades sobre a formação através do vivido.
Inscrevendo-se na subjetividade e estrutura no tempo, que não é linear, mas a
consciência de si, das representações que o sujeito constrói de si mesmos.
Poderíamos dizer da história de vida, tal qual ela é construída na narrativa, que
é ficção verdadeira do sujeito (PASSEGGI 2017; DELORY-MOMBERGER
2006).
Na tentativa de olhar para as construções e percursos que essas
mulheres negras inquietantes produziram sobre suas vivências e saberes,
inquietações produzidas dentro dos entrepostos universitários onde elas estão
entrando como discentes-docentes, e desta vez pela porta da frente. E a luta e
conquista por lugares nunca dantes imaginados.

Alguns dentre nós não receberam na sua educação e formação de


cidadãos, de professores e educadores, o necessário preparo para
lidar com o desafio que a problemática da convivência com a
diversidade e as manifestações de discriminação delas resultadas
colocam quotidianamente na nossa vida profissional. Essa falta de
preparo, que devemos considerar como reflexo do nosso mito de
democracia racial, compromete, sem dúvida, o objetivo fundamental
da nossa missão no processo de formação dos futuros cidadãos
responsáveis de amanhã. Com efeito, sem assumir nenhum
complexo de culpa, não podemos esquecer que somos produtos de
uma educação eurocêntrica e que podemos, em função desta,
reproduzir, consciente ou inconscientemente, os preconceitos que
permeiam nossa sociedade (MUNANGA, 2005, p. 15).

Lugares de direito onde a biblioteca da universidade parece muitas


vezes a biblioteca da casa grande. Onde o acesso era proibido ou limitado para
aqueles negros que sabiam ler e escrever. Ler e escrever por muitos séculos
foi um privilégio destinado a elite, enquanto trabalhadores ficavam com os
serviços braçais, limitando possibilidades e avanços de muitos.
Assim, o problema de pesquisa perpassa pelo diálogo e escuta sensível
destas mulheres negras. Na pergunta de:
Como mulheres negras encontram-se e compreendem suas trajetórias
dentro de seus espaços acadêmicos, em especial as relações estabelecidas
nesse ambiente para produção de conhecimento e saúde mental?
Questões de pesquisa que proponho para abrirmos o leque de trocas e
diálogos:
- Quem são essas mulheres negras acadêmicas e suas instituições?
- Quais as articulações entre aprendizados e permanência dentro desses
ambientes?
- Como são suas atuações dentro do ambiente acadêmico e proposições
que poderiam desencadear mudanças?
- Em seus entendimentos, quais mudanças poderiam ocorrer para
qualificar educação e ambiente?
- Como podem descrever suas relações e interações entre professores,
instituição e produção acadêmica e sua qualidade na eficiência da
permanência?
Ao escutá-las, quais os desafios que encontraremos nos percursos e na
efetivação da permanência e formação?
O objetivo geral da pesquisa foi definido:
Compreender a trajetória de mulheres negras que encontram-se na
UFSM, UFBA e UFSC na busca por ampliar perspectivas e diálogos sobre seus
processos formativos dentro dessas instituições e as implicações para sua
permanência e aprimoramento dentro dos ambientes universitários na
promoção da saúde mental e construção do conhecimento?
Objetivos específicos, foram elencados para responder inquietações de
pesquisa:
- Identificar quem são essas mulheres negras e suas trajetórias no
espaço acadêmicos.
- Investigar quais articulações estabeleceram consigo e com os
ambientes em que estão.
- Investigar suas compreensões de mundo e do meio acadêmico, e
como tem compreendido e interrelacionado esses conhecimentos e
concepções.
- Pesquisar como compreendem seu ingresso em um ambiente
acadêmico e suas dificuldades ao longo dessa trajetória.
- Contribuir com uma escuta sensível nos processos de entendimento e
reconhecimento das complexidades encontradas ao longo de seus percursos
acadêmicos.
- Identificar os desafios que encontraremos juntas e criar proposições
que possam articular mudanças.
Buscar criar pontos analíticos que possam servir como referências para
cada uma dessas mulheres na compreensão de que nunca estiveram sozinhas
durante seu percurso. Pois, muitas mulheres negras antecederam essas lutas
para que hoje estivéssemos aqui, no entanto, elas foram apagadas das
histórias contadas pelos “vencedores”.
Criar espaços de diálogos problematizadores para enfrentamento dos
desafios de se entrar em uma universidade e chegar nas graduações e pós-
graduações torna-se carta de navegação também para outros desbravadores
que virão no futuro.
Pois, o ser humano adoece quando não consegue trazer para a
linguagem transmutando em real, o imaginário e simbólico dos seus
sofrimentos. A linguagem é o que nos diferencia dos outros animais desse
planeta, e não a usar para nos definir ou para nos recontar perante outros é o
início do fim. Doutra parte, não conseguir registrar os acontecimentos humanos
nos leva para o abismo do esquecimento de nossa humanidade.
Assim, a pesquisa-auto(trans)formação, em uma perspectiva
hermenêutica, com cartas pedagógicas dialógicas trarão a oportunidade para
essas discentes negras a brecha histórica de contarem e recontarem sobre
seus sofrimentos, raivas e angústias, tristezas e alegrias, glórias e derrotas.
Gostaria de destacar aqui o que Juliana Goelzer (2014) relata ao afirmar
que pesquisar é compartilhar e criar espaços de diálogos. E nesse sentido
minha escrita perpassa aqui por minha família e minha irmã que me ajudam a
reverberar indagações, meu orientador que me cativou e se responsabiliza por
aquele que cativa, minhas colegas de grupo que estão sempre dispostas a
ajudar e as mulheres negras que compartilham suas histórias comigo.
Cartas pedagógicas dialógicas que proporcionaram a oportunidade de
se narrar e se contar a partir de seu tempo-espaço. Sem pressões, na tentativa
de oportunizar organicidade para a preparação de seus solos psíquicos da
forma que lhe for mais sensato e cuidadoso. Com amor e carinho em sua
produção pessoal de suas próprias histórias.
Bell Hooks (2019) alerta para que, ao examinarmos as vidas dessas
mulheres, que reagiram às mudanças contemporâneas, visualizemos suas
dificuldades para construir uma subjetividade radical, pois está enraizada numa
determinação de nadar contra a corrente. Nadar contra a corrente acadêmica
convencional é dialogar com atravessamentos na escuta dessas mulheres,
com elas rememorar a travessia difícil, pois relatos de vivencias podem levar
para novos oceanos de emoções, reflexões e perspectivas. Pontuando a
resistência como ato político e ético pela equidade, apoio-me na frase da
feminista Angela Davis (2017, p. 151): ao colher o fruto do passado, vocês
devem espalhar a semente de batalhas futuras.
Estado do Conhecimento
Ao pensar em batalhas existentes busquei nas bases de dados da
Capes e da Scielo, entre outras coisas, trabalhos que me proporcionassem
indicadores para minhas inquietações de pesquisadora, e encontrei um
caleidoscópio de pesquisas.
Na base de dados da Capes encontrei com as palavras-chaves
descritores mulheres negras 30226 teses e dissertações e artigos, etc. Nesses
30226 encontramos os mais variados temas; e na base de pesquisa da Scielo
encontrei 363 títulos referenciados a mulheres negras: mulheres negras na
política, em Cuba, quilombolas, identidade sexual, feminismo, auto estima,
trabalhadoras domesticas, musica popular, poder da beleza, professoras
negras, violência doméstica, memória, gênero, símbolos, violência policial,
tempos de crise do capitalismo, assistência social, auto definições, cabelos,
corpo e beleza, marcha para Brasília, interseccionalidade e empoderamento,
MST, resistência, identidade, educação, moradia, candomblé, trajetórias e
narrativas da docência, samba, HIV, mecanismos de naturalização do
racismos, ensino superior, (in)visibilidade e (des)territorializadas, trabalho
informal, publicidade, mercado de trabalho, sarau das pretas, brancas para
casar, mulata para f..., literatura, trans negra, miomas, correção, forra, Carolina
Maria, Maya Angelou, Evaristo, ama de leite, silêncios, televisão brasileira,
entre outros temas.
Ao colocar mulheres negras: das senzalas, o número subiu
exponencialmente para 538.525. Esse aumento se deu devido ao agregamento
sobre trabalhos da história e das ciências sociais como preponderantes, mas
encontrei repetições dos temas e dos títulos anteriores, o que nos levou a uma
somatória de pesquisas. Logo depois agreguei as universidades e os números
saltaram para 704.572, subindo novamente os números; mas aparecendo a
repetição de títulos já vistos nas outras pesquisas e agregando o caleidoscópio
universidades.
Mais adiante coloquei entre cartas e apareceu o numero de 745.475 as
cartas aumentaram os trabalhos relativos à história e mantiveram os artigos já
mencionados anteriormente. Aumento significativo, mas também com
repetições e enquadramentos por área de pesquisa.
Ao colocar contos ampliou para 113.4154 o trabalho para áreas como da
linguística e história, ainda mais ficando no arcabolso da linguístico e a
produções dentro dessa área, mais repetições. E ao colocar autotransformando
o número permaneceu o mesmo e não houve alterações muito divergentes das
anteriores. Agregando as siglas da UFSM, UFBA e UFSC as modificações
numéricas das pesquisas não se alteraram, o que pode estar relacionado com
elas estarem vinculadas as pesquisas como sigla também.
A interligação com as siglas, portanto, tem muito mais a ver com as
universidades que mais aparecem no ranque de pesquisas desses temas do
que com a minha pesquisa que vai buscar entrevistar mulheres negras nas três
universidades.
E nesse sentido, encontramos um número considerável de pesquisas o
que nos demonstra a potencialidade do tema e suas múltiplas potencialidades
e peculiaridades de cada região e os desafios dessa pesquisa.
Ou seja, um caleidoscópio de pesquisas e informações sobre as mais
variadas inquietações sobre o tema mulheres negras. No entanto, muitos
desses dados não estão disponíveis diretamente na plataforma da Capes,
tendo que ser buscados em suas plataformas originais. Tive que realizar várias
buscas porque na plataforma da Capes aparecia a mensagem de:Trabalho
anterior à Plataforma Sucupira, sendo assim não disponíveis, mas citado pela
plataforma. Onde uma busca com o nome da dissertação ou tese encontrará a
pesquisa na sua plataforma local.
Também notei recorrências acentuadas de trabalhos na área de ciências
sociais, linguística, educação e ciências humanas. Muitas mulheres publicando
os mais variados temas e desafios de pesquisas. Segundo a plataforma
784.171 pesquisas em mestrados e 267.312 em doutorado. Também realizei
algumas pesquisas nas plataformas Portal Regional da BVS (informação e
conhecimento para a saúde) fiz a pesquisa na BVS-RS e BVS-Brasil, pois, é
uma plataforma muito utilizada pela psicologia para trabalhos acadêmicos e
aprimoramentos de conhecimento. Para minha surpresa, ao buscar pelas
palavras-chaves mulheres negras, obtive baixos resultados nas duas
plataformas. Só obtive o resultado de 538 trabalhos após colocar todo o título,
onde obtive trabalhos sobre encarceramento, sofrimento psíquico, resistência,
pós-parto, entre outros títulos muito parecidos aos temas já vinculados.
Temas importantes onde as pesquisas poderiam ser em maior volume e
mais direcionadas para essas mulheres negras; para seus sofrimentos
psíquicos, onde seus desafios diários, vida, sociais, educacionais, entre outros,
poderiam clarear algumas inquietações sociais na área da psicologia. Pois as
outras áreas estão a todo o vapor produzindo conhecimentos sobre essa
importante parcela da sociedade da sociedade. Contudo, o entrecruzamento de
entendimentos sobre educação, psique e história dessas mulheres em três
universidades diferentes e a construção de um referencial sobre os sofrimentos
psíquicos transgeracionais que impregnam e consomem essas mulheres não
encontrei.
Onde minha pesquisa potencializa-se na tentativa de ampliar
entendimentos com essas coautoras em busca de ampliarmos nossos campos
de trocas para os desafios encontrados.

ANDARILHAGENS
A modernidade ocidental se tornou um paradigma fundado na tensão da
regulação e emancipação, apropriação/violência, conflitos e tensões em
espaços invisíveis, feitos inexistentes não comprometendo seus autores, em
uma ordem da violência estrutural invisível, indetectável. Onde seus
responsáveis podem ser invisíveis e indetectáveis em seus universos deste
lado da linha ou do outro lado da linha para passarem desapercebidos; no
entanto, essa linha em algum momento tornar-se-á detectável novamente
(Boaventura de Sousa Santos, 2013).
Assim, fluirei como ato de resistência e ressignificação que começa na
metodologia, perpassada pela tradição oral e suas narrativas e, nesse sentido,
pelo desafio da narrativa como potencialidade da própria história e da
ressignificação que fará parte do processo de falar de si e buscar entendimento
de vida. A escrita de trajetórias e pensamentos será a pedra angular para
produção do conhecimento, e pesquisar perpassa por vários movimentos e
diálogos dentro do nosso grupo que se chama Dialogus, em conjunto com
minha irmã que também está no doutorado dentro desse grupo e nossas
conversas, principalmente dentro do carro com as crianças (Joaquim e Antonia)
nas idas para os encontros. Levantamos a possibilidade de criar registros
físicos e conscientes através da escrita de cartas com as coatoras desse
trabalho.
As cartas pensadas em conjunto no encontro no sítio “Casa da Floresta”,
casa de encontro do grupo Dialogus, conversamos com o professor Celso
sobre essa possibilidade e ele me direcionou ao trabalho da colega Juliana,
participante do grupo que já tinha utilizado as cartas. Aliás, gostaria de lembra-
los de que a história desse continente começou a ser contada e narrada por
cartas entre os conquistadores portugueses, espanhóis, holandeses, franceses,
ingleses, através de cartas onde contavam todas as possibilidades que essa
terra apresentava ao aportarem em cada ponto desse país e continente
americano.
Sendo assim, ao pedir o auxílio para Juliana, ela me disponibilizou a
dissertação e a tese dela, nas quais trabalhou com cartas e onde encontrei
ternura e dedicação de uma pesquisadora ímpar. Isso me ajudou a delinear o
rumo da pesquisa, assim como a Tese de minha irmã Caroline.
Para Juliana Goelzer (2014), o livro Cartas Pedagógicas, de Isabela
Camini, se tornou aprendizado que se entrecruzam e se comunicam, como
dizem as autoras. Que aqui vou nomear de entrelaçamentos de diálogos e
compartilhamentos importantíssimos para qualquer pesquisador. Também
gostaria de destacar aqui que Paulo Freire, em Cartas a Cristina (2020) e
cartas a Guiné-Bissau (2021), potencializou com suas experiencias mais
profundas sobre trocas e aprendizagens que trouxeram uma possibilidade
encantadora e possível.
As cartas aqui potencializarei com o nome de cartas pedagógicas
dialógicas, pois as entendo como catalizadores de seus dizeres e fazeres na
potencialidade da produção dialógica e emancipatória, e que poderão ajudar a
metabolizar as histórias dessas mulheres negras em suas vitórias e derrotas,
alegrias e tristezas, vontades e angustias. Ao escolhermos nossos caminhos
metodológicos e trocas encontramos trilhas e picadas não delimitadas, as quais
nos fazem a todo o momento ir em busca de mais orientações e de
entendimentos sobre as coisas e possibilidades relacionadas a nossa temática
de pesquisa.
A escolha das cartas perpassa pela via imaginária-simbólica de interligar
cada mulher negra a um tempo consigo mesmas e suas reflexões a partir da
conexão com um possível passado, presente futuro. Tornando esses
momentos de reflexões e conjeturas pessoais.
Intendo aqui a importância de me disponibilizar para qualquer conversa
pessoal ou suporte quando elas acharem necessário. Mas, essas questões se
colocaram durante o percurso.
Também gostaria de destacar que essa pesquisa fluirá na contramão da
alta produtividade quantitativa e buscará interligar essas mulheres de forma
orgânica qualitativa, onde também elas indicarão outras mulheres negras que
possam contribuir com a pesquisa. Para tanto, como pontapé inicial
lançaremos informações-chaves nomeadas como sementes, para localizar
essas mulheres iniciando nesse caso na UFSM e logo após essas mulheres
negras indicarão as próximas. Essa metodologia se denomina Snowball ou
bola de neve (VINUTO, 2014).
Em busca de uma interligação de contatos, características e
cumplicidades que nos levarão a interligar desde o inicio essas mulheres pelo
reconhecimento de suas presenças dentro desses espaços em que elas estão
inseridas. Optamos pela abordagem qualitativa na tentativa de compreender
aspectos mais amplos nas vidas e na vivencias dessas mulheres negras, pois
como relata Bernardete Gatti e Marli André (2013), a abordagem qualitativa
leva em conta todos os componentes de uma situação em suas interações e
influencias reciprocas, como uma modalidade investigativa qualitativa com o
desafio de compreender os aspectos formadores dos seres humanos em suas
relações e construções culturais, grupais, comunitária ou pessoais (GATTI E
ANDRÉ, 2013).
Para Boaventura de Souza Santos (2006) não há natureza humana
porque toda a natureza é humana, sendo-se imperativo descobrir formas de
inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as fronteiras que a
ciência moderna dividiu e encerrou a realidade. Assim, buscamos através de
nossas pesquisas proporcionar diversidade de olhares sobre papeis, teorias e
conceitos que já estavam dados como irrevogáveis, inabaláveis, indissolúveis.
Mas incapazes muitas vezes de traduzir ou de decodificar o sofrimento e as
dificuldades de certos âmbitos sociais e a capacidade que a nossa diversidade
cultural possui.
Assim, trazendo e construindo possibilidades em busca de
entendimentos dos contextos em que ocorrem em uma tentativa de
socialização e sociabilidade, por implicações, por mudanças e resiliências. E
nessa busca por tentar ampliar olhares sobre as mulheres negras e seus
desafios dentro de três instituições de ponta do nosso país, aventurei-me a
buscar a melhor forma de realizar essa pesquisa assumindo compreender e
interpretar hermeneuticamente os desafios da distancia e da carga acadêmica
que todas devem estar comprometidas nesse exato momento.
Em busca de trazer a possibilidades para quer essas mulheres negras a
possibilidade de autorização sobre seus saberes e possibilidades. Ou o que
Gadamer (1900-2015) vai denominar Aufkàrung de autoridade, ou seja, a
liberdade hermenêutica de todo vinculo dogmático e um ato de reconhecimento
e de conhecimento. Um ato de liberdade e ação. Ao construirmos um
entendimento sobre a tradição e a herança histórica e seu peso em nossas
construções de nossas instituições e comportamentos abrimos horizontes
impares.
Onde as próprias mulheres poderão se autorizar sobre seus
conhecimentos e possibilidades. Estamos em um campo onde os horizontes
eram dados como certos e racionais e entendemos que isso só é possível
quando buscamos compreender os horizontes dessas perspectivas. Onde a
compreensão verdadeira acontece ao se projetar-se um “espaço de jogo”; o
jogo da compreensão existencial absorvidos pela dinâmica inerentes aos
espaços abertos de jogar e de realização existencial, cientes dos limites da
compreensão e comportamento em um projeto lançado (KAHLMEYER-
MERTENS, 2017).
Abertas aos horizontes que para Gadamer (1900-2015) colocam a prova
constantemente todos nossos preconceitos e entendimentos. Colocando a
prova um passado que constituí-nos. E compreender é sempre o processo de
fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos. Relação
consigo e as nossas origens (GADAMER, 1990-2015, p. 457).
Dispostas a aprimorarmos a dinâmica do jogo e aprendizagens das
possibilidades forjadas por esses horizontes já pré-determinados e os que
poderemos construir ao longo de nossa jornada. Buscando as pistas deixadas
por aqueles que criaram as primeiras regras e tornaram-nas verdades ou
possíveis.
Precisamos entender, compreender o que foi construído para
reposicionarmos novas possibilidades e intereses. Construir esse entendimento
nos dará a possibilidade de criarmos novas perspectivas solidas e embasadas.
Onde o contexto histórico em um escopo reflexivo-analítico espalhará as
contradições de cada tempo e lugar mergulhado na temporalidade de sua
época (ROSANE BORGES, 2017).
As cartas possibilitariam uma maior autonomia e liberdade para que
pudessem contar suas histórias em seu tempo e espaço, tendo total abertura
para se expressarem da sua melhor maneira, evidenciando seus dizeres.
Buscamos aqui uma postura investigativa, mais flexível aos processos micro-
sócio-psicológico e culturais, permitindo iluminar aspectos e processos que
talvez ainda se encontrem fora da realidade de muitos, na busca por questões
problemas no âmbito multi-inter-transdiciplinares e multidimensionais (GATTI E
ANDRÉ, 2013).
Gostaríamos de propor inicialmente cinco cartas, e se ao longo dos
percursos decidirmos por aumentar o número, assim o faremos.
A primeira carta:
Conte-nos sua história...
A segunda carta:
Conte-nos sua trajetória acadêmica...
A terceira carta:
Memorias...
A quarta carta:
Repúdios...
A Quinta carta
Contribuições...
A busca por fazer perguntas iniciais abertas tem por objetivo trazer o
maior número de possibilidades tanto nas histórias quanto nas futuras
narrativas e ressignificações de memórias para as cartas seguintes. E se algo
não se equalizar, poderemos imediatamente mudar os cursos que estão sendo
conduzidos.
Estaremos em mar aberto na busca por novas formas de navegar tanto
epistemologicamente como nas trocas que poderemos produzir nesse mar de
produtividade academicista já implantado nos últimos séculos. Pois, estamos
imbrincados na história do ocidente, de sua hegemonia militar, econômica e
técnico-cientifica que é marcada pela violência, pelo crime, o racismo, e a
negrofobia e em um contexto social com essas características, as
possibilidades dos cientistas reproduzirem esses horrores de forma parcial ou
total não podem ser negligenciadas. Ou seja, quanto mais negrófoba a
sociedade, mais tolerante ela pode ser em sua praticas cientificas
(AMBRÓSIO; DIÉMÉ, 2016).
E nesse sentido tentaremos resgatar e reinventar através das cartas
pedagógicas dialógicas a criação de processos e encontros de pesquisa
auto(tras)formação, em seus espaços-tempos pelo diálogo cooperativo e
comprometido da ação-reflexão-ação e a dialogicidade na busca por
transformações permanentes (HENZ; FREITAS; SILVEIRA, 2018).
Onde poderemos organizar alguns encontros caso elas achem
necessário para poder ajudar e esclarecer dúvidas, ou angustias. Possibilitando
outras formas de trocas e também deixar outras possibilidades em aberto.
Tudo vai depender do andamento e da disponibilidade. As possibilidades se
atrelaram ao espaço-tempo de cada uma e suas inquietações e silenciamentos.
Pensando no que Joice Berth (2019) relembra sobre o poder dos
silenciamentos e como eles pode ser visto como tecnologia de opressão usada
recorrentemente nas estruturas opressoras, onde o oprimido percebe de
imediato que o grupo opressor é incapaz de assimilar o que está sendo
verbalizado.

O silenciamento dos grupos oprimidos é o endurecimento do


conveniente desinteresse dos grupos dominantes em discutir nossas
matrizes opressoras geradoras de desigualdades deixou um enorme
atraso na produção do conhecimento, visto que há uma incompletude
em quase tudo que se propõem estudar sobre temas correlatos, e
uma superficialidade generalizada que foi mutilando todas as forças
que carecem do conhecimento profundo para se atualizar e
instrumentalizar a sociedade no sentido de viabilizar práticas de
erradicação de nossos problemas históricos (BERTH, 2019, p. 57).

Nessa processualidade por meio das cartas, estaremos trazendo a


oportunidade de elas mesmas contarem sobre seus silenciamentos e desafios.
Não mais com interlocutores interpretando e fazendo o meio de campo, mas
uma narrativa e escrita clara e limpa das suas comunicações como mulheres
negras.
As mulheres precisam saber que podem rejeitar as definições sobre a
realidade em que vivem oferecidas pelos poderosos. Que podem fazê-lo,
mesmo sendo pobres, exploradas ou vivendo em situações opressivas. Que
exercer o poder pessoal básico é ato de resistência e força (HOOKS, 2019).
Rejeitando padrões e normas estabelecidas e projetadas na psique das
mulheres negras. Um ato de análise e busca de entendimento das
possibilidades reais dessas mulheres sem atravessadores. Sem as regras do
opressor.
Para Collins (2019), as mulheres afrodescendentes foram
sistematicamente distorcidas ou excluídas do conhecimento pelos homens
brancos de elite que controlam as estruturas ocidentais de validação do
conhecimento. Os temas, os paradigmas e as epistemologias da pesquisa
acadêmica tradicional são permeados por seus interesses que realizam um
profundo recorte de classe acentuado e decisivo para a chegada de alguns em
ambientes de poder e sua manutenção dentro destes ambientes.
Comportamentos, muitas vezes, desqualificam novas possibilidades ou
invisibilizam a potencialidade de pesquisas que poderiam corroborar para a
ampliação e construção de diálogos mais pontuais sobre gênero, raça e classe.

Toda a luta social que mexe em acúmulos e excedentes de


privilégios, provocando uma tensão estrutural na sociedade, pelo
incômodo premeditado de indivíduos que estão em uma posição de
conforto social, tende seguramente a ser alvo de estratégias de
autoproteção desses grupos, criando estratégias quase instintivas de
defesa aguerrida de seus interesses (BERTH, 2019, p. 65).

Mulheres que reagem ao racismo são mulheres que reagem à raiva; a


raiva da exclusão, do privilégio que não é questionado, das distorções raciais,
do silêncio, dos maus-tratos, dos estereótipos, da postura defensiva, do mau
julgamento, da traição e do cooptação (LOUDRE, 2020, p. 155).
A dor e a raiva das mulheres negras, que receberam ao longo de suas
vidas espelhamentos e discursos de incapacidade, inferioridade, mediocridade,
insuficiência, devem vir à tona. As histórias devem ser contadas e
protagonizadas por aquelas que sempre foram alvo de injúrias e abusos nunca
retratados ou sanados. Ampliaremos suas vozes e denúncias que há muitos
séculos veem sendo silenciadas, escondidas ou minimizadas, e agora fazem
parte do desafio que esta pesquisa tem como objetivo. Abrir espaços para
mulheres negras denunciarem as violências e vitorias vivenciadas por elas
também no meio acadêmico.
Ousamos dizer que o silenciamento se transformou em não dito e o não
dito em violência. Violência velada e mascarada. Aviltada em doses que muitas
vezes parecem imperceptíveis, pois encontramos nos discursos as armadilhas
que o silêncio preenchido com o não dito deixou marcado em cada mulher
negra. Não é mais possível acreditarmos e usarmos a métrica do opressor.
Enquanto os ideais cruzarem pelo pensamento branco ocidental,
heteronormativo, sexista, machista, homofóbico e classicista, não será possível
pensar e articular maneiras diferentes para uma sociedade com equidade.
Todas essas pautas levantadas ao longo do texto nos levam a repensar
nossas posturas, a importância de olharmos para esses processos e trajetórias.
E a construção de diálogos proporcionarão uma conexão com essas mulheres
na busca por uma coerência emancipatória. Coerência emancipatória que
pode se tornar analítica e permanente para os desafios que elas encontram em
suas vidas e em suas trajetórias acadêmicas. Não estamos sozinhas nessa
travessia do século XXI como nossas ancestrais estivaram no século XV a
deriva em navios negreiros fétidos. Estamos interligadas pelo objetivo de
deixarmos mapas psíquicos para as próximas gerações e que estas não
experimentem o dissabor do sofrimento transgeracional.

NO BALANÇO DO MAR ME FIZ MULHER NEGRA


Hoje eu só vim agradecer
Por tudo que Deus me fez
Quem me conhece sabe
O que vivi e o que passei
O tanto que ralei
Pra chegar até aqui
E cheguei, cheguei
Lembro de vários venenos
Eu ainda menor
Nunca sonhei pequeno
A minha coroa me criou sozinha
Levantando sempre no raiar do dia
Bem cedo
Sempre aprendi com ela
A ser grata pelo que ainda vem
Hoje tu só vê os close
Nunca viu meus corre
Mas pra quem confia em Deus
O sonho nunca morre
Fé pra quem é forte
Fé pra quem é foda
Fé pra quem não foge a luta
Fé pra quem não perde o foco
Fé pra enfrentar esses filha da puta
Fé no proceder, na luta e na lida
Enquanto a gente não conquista
Segue em frente firme
Que a nossa firma é forte
Nunca foi sorte, irmão
Sempre foi Deus, sempre foi Deus
Hoje eu sonhei
Que um dia eu estaria onde ninguém pensou
Se Ele quiser, eu piso onde ninguém pisou
Humildade e sabedoria pra me guiar
E o impossível é possível pra quem acreditar
(IZA. Fé, 2022).

Uma mulher negra sempre acredita e tem esperança porque foi isso que
nos manteve vivas por séculos e nos ajudou a manter nossos entes queridos
vivos. Ao longo da história da escravização aconteceram muitas tentativas de
suicídios, depressão, esquizofrenia, melancolia e até infanticídios em uma
tentativa de sobrevivência e de estratégias desesperadas de não deixar que a
próxima geração passasse pelos terrores implementados pela sociedade
escravocrata. Essas situações extremas foram muitas vezes usadas para evitar
mais sofrimentos, em uma tentativa vã de tentar se defender de algo
indefensável naquele momento. Pois, se tratava de um movimento maior que
suas capacidades de entendimento e reorganização de sentimentos para além
dos já vivenciados.
Ou se pensava que o sofrimento acabaria ali... essas situações não
eram pontos de chegadas a algum final, mas o ponto de partida que iria se
conectar a outras histórias a partir dali. Falo em uma possibilidade de
transgeracionalidade do sofrimento psíquico dessas famílias que perdura até
nossos dias. Há possibilidade de nossos significantes e significados estarem
enraizados nos signos de nossos ancestrais. De ao longo dos séculos a
tentativa de apagamento da escravização dos seres humanos não ter
acontecido com a eficiência que os escravocratas tanto queriam, mas também
é possível que esses fantasmas nos assombrem até os dias atuais.
Falo de uma transmissão psíquica geracional e transgeracional e seus
mecanismos articulados ao longo das gerações e suas mais intrínsecas
possibilidades de compartilhamento. Ou seja, o sofrimento não acaba com a
morte física de nossos ancestrais; ele se perpetua até que sejam revisitados e
elaborados em uma ressignificação que os compreenda e os transforme em
sublimação. Para Olga B. Ruiz Correa (2003) os mecanismos são como
pulsões, narcisismos, identificações, traumas, recalcamentos, denegações,
significantes, fantasmas entre outros. A transmissão ocorreria por processos
psíquicos inconscientes constituídos na subjetividade através da linguagem, do
simbólico, do imaginário e o real nos vínculos familiares.
Mauro P. Rehbein e Daniela S. Chatelard (2013) em sua releitura dos
processos de transmissão geracional irão nos lembrar que as modalidades da
transmissão encontram-se na modalidade interacional e a transgeracional,
onde a família é o espaço privilegiado para instalação dos processos. Minha
família e minha história não iniciam comigo, mas com minha bisavó; pois, foi
até onde consegui chegar ouvindo as mulheres da minha família. Todas
mulheres com sofrimentos gigantes que tiveram que esvanecer seus
sofrimentos para poderem permanecer vivas. Esse sofrimento esvanecido é
como uma cicuta em pequenas doses nas correntes sanguíneas de
sofrimentos intensos que foram atenuados ao longo dos séculos.
Sempre fui alguém que se guiou por algo intuitivo. Sempre pensei em
buscar e cultivar coisas que os outros falavam que era bobagem, como
humildade e sabedoria. Palavra essencial na minha vida... aqui sabedoria se
conectará ao ato cognoscente de Paulo Freire (1997-2021), onde a percepção
critica-epistêmico-analítica se conecta para superar as situações limites e
produzir uma práxis de reflexão e ação para gerar uma consciência de si.
Assim, forjando um ser cognoscente que produz entendimentos sobre si e o
mundo que o rodeia e transcende, também para ressignificar e sublimar suas
mais profundas angustias e sofrimentos, transformando-os em humos para se
tornar um adulto memorie.
Aqui quero destacar que vou diferenciar o adulto cronológico, ser que
não conseguiu superar seus sofrimentos, angustias e traumas e se protegeu ao
longo dos anos de sua vida em projeções, recalcamentos, denegações,
fantasmas entre outros. O adulto cronológico é o adulto de subsistência das
últimas gerações, seres que garantiram o sustento familiar, mas não
conseguiram na sua maioria lapidar seus afetos e inteligência emocional.
Ficando à deriva em suas mais profundas emoções e produzindo um
rastro de devastações físicas, emocionais, econômicas, sociais em seus
descendentes. Seres que acharam no conservadorismo de sua existencia uma
saída possível para enterrar seus sofrimentos mais profundos, ficando
enclausurados em seus mais profundos medos. Lutando a todo o custo para
manter o mínimo gasto de energia de forma ineficiente e insípida. No entanto,
esses sofrimentos ficaram como herança indevida para as gerações que
querem sair da “zona de conforto” desse sofrimento e alcançar outros
patamares de existencia nesse planeta.
Sofrimentos que ficaram girando na roda da compulsão a repetição
gerando adoecimentos mentais que não conseguiram um escoamento de
energia eficiente e causaram mais sofrimentos devido ao grande volume de
repetições. Luiz Alfredo Gracia-Rosa (2003) relembrará que a certeza
(subjetiva) de uma consciência só será substituída pela verdade (objetiva),
revelando retrospectivamente o que foi oculto. A verdade se dá pela
experiencia da consciência de si.
Como os adultos que aqui vou chamar de adultos memories, ou o
adulto que não aceitou os intemperes da vida e continua em busca de
respostas e de seus desejos mais profundos, procurando dar sentido e
significação para coisas que acontecem ao seu redor. Ou seja, adultos
memories possuem idade compatível com seu amadurecimento e com sua
capacidade de se tornarem seres humanos resilientes as dificuldades que irão
surgir ao longo da vida. Que continuam com sua percepção critica-epistêmica-
analítica ao longo da sua vida e com isso desenvolvem uma capacidade de
resiliência maior e vão maturando sua inteligência emocional ao logo da vida.
Inteligência emocional que perpassa pela crítica por se manter
horizontes e autorizações sobre os desafios que a vida traz. Perseverando a
maioria do tempo na tentativa de vencer o que naquele momento parece
invencível. Epistêmicos por tentar compreensão do surgimento e a tradição que
perpassa sobre as construções que ali estão. E analítica para tentar antever
algumas possibilidades e informações que não se apresentam ali de forma tão
clara ou até esvanecidas pelos processos que ali se apresentam.
Adultos memories são seres humanos que ao longo de sua trajetória irão
aproveitar cada desafio, cada oportunidade, cada momento, para se tornarem
seres melhores e mais responsáveis, em seu processo de aprendizagem.
Como relata Freire (1921-1997), seres éticos capazes de transgredir. Um ser
condicionado, mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. Onde a
ética está a serviço dos seres humanos. Humanos que conseguirão manter as
indagações presentes, como minha busca por entendimento sobre as coisas
que continuei regando cada dificuldade e angustia que surgiam ao longo da
minha vida. Em um primeiro momento possuía a crítica sobre as coisas e uma
análise básica sobre as coisas que aconteciam.
E nesse sentido, tentei aprimorar minha estrutura básica me tornando ao
longo dos anos um ser humano engajado em aprimorar a percepção critica-
epistêmica-analítica que me levou a anos de estudos e pesquisas na tentativa
de buscar entendimento sobre o processo psíquico-histórico. Mantive-me
atenta aos acontecimentos da vida desde pequena por saber que as coisas
sempre foram difíceis para os meus; até há pouco tempo achava que isso era
um defeito e não uma qualidade. Pois, como mulher e negra, ser curiosa de
mais é um defeito enfatizado por todos, que em algum momento vai te
prejudicar e causar problemas.
Fiquei em duvida se isso poderia ser verdade e passei anos passando
desapercebida para as pessoas e para vida. Na tentativa de não chamar a
atenção para mim e para o meu corpo, que desde cedo percebi que me traria
muitos problemas. Por muitos anos me camuflei em roupas largas ou
masculinas para poder transitar pelos lugares mais inóspitos possíveis e não
ser alvo, nem de abusos, nem de olhares que pudessem barrar minha
permanência nos lugares.
Como a venda do seu Salazar, botequeiro do bairro onde morei e onde
eu gostava de ir pegar doces junto com meu avô, que ia encher a cara e voltar
bêbado para casa. E criar alguma briga ou destelhar toda a casa só porque ele
era o “chefe” da família. Coisas que nunca entendi direito porque era minha avó
que sustentava a casa lavando roupa para pessoas de família rica da cidade e
mantinha onze filhos, enquanto meu avô gastava seu dinheiro com os
alimentos básicos e no bar do seu Salazar. Minha mãe sempre conta da
precariedade por ele possuir esse vício e a dificuldade de manter coisas básica
da família, e mesmo assim ter o poder de mandar, bater e humilhar todos
naquela casa. Mesmo as pessoas que ajuntavam ele da valeta e pagavam as
contas.
Pois, para as mulheres negras trabalhar é uma coisa que inicia na
infância, para poder ajudar em casa. As que tinham um pouco mais de idade,
doze anos mais ou menos, trabalham fora. As menores ficavam responsáveis
pelos afazeres da casa, onde o maior cuida do menor.
Minha avó cuidava e cuida de todos, sem exceção. Somos privilegiados
de estar em sua companhia e poder desfrutar da sua convivência. Muito séria e
rígida, não perdoava muitas coisas e nem com facilidade. Tinha uma
melancolia já instalada ali... não aceitava muito os erros das filhas e priorizava
aqueles que gostavam de estudar. Tinha uma intuição gigante, uma
psicanalista adormecida, congelada pelos sofrimentos em sua vida. Veio de
uma família humilde do interior de Dilermando de Aguiar, onde nasceu e foi
criada por sua mãe, pois perdeu o pai no trem dos loucos. Trem que levava os
“desajustados” para o hospital psiquiátrico de Porto Alegre, O São Pedro, de
onde nunca mais retornou para casa.
Evento traumático que deixa marcas profundas na família. Uma parte
fica extremamente deprimida e outra desconecta da realidade tão dolorida.
Minha avó apresenta uma melancolia profunda e nunca consegue ver brilho na
vida. A vida passa para ela com a carga emocional de ser mãe de 11 filhos e
mulher de um alcoólatra adoecido pelo mundo e por uma família igualmente
adoecida. Minha avó era uma mulher negra e meu avôbugre... ou seja,
subprodutos da escravidão e dizimação desse país, sobreviventes. Só
conseguiram reconhecimentos através do trabalho árduo e difícil... falta de
condições básicas de saúde, moradia, econômicas e assistenciais.
Em seus relatos pessoais surgem chistes de auto desgosto e
desaprovação por não terem conseguido dar algo melhor de si; para eles
próprios e para o mundo. Um desconsolo inevitável para aqueles que
experimentam o sabor de ser de uma classe financeiramente desprivilegiada e
não possuir forças para lutar por um futuro melhor. A saída só existindo de um
imaginário produzido pelo capitalismo, de que os trabalhadores irão se tornar
vitoriosos em algum tempo distante... Mesmo que seja no céu.
Minhas memories ultrapassam minhas mais remotas lembranças e
sonhos que poderia imaginar chegar. Sempre sonhei acordada, mas nem nos
meus sonhos mais fantasiosos acreditaria que chegou o momento de escrever
essas páginas que considero tão caras para mim e para as mulheres que me
antecederam.
Todos nós – adultos e crianças, escritores e leitores – temos a
obrigação de sonhar acordado. Temos a obrigação de imaginar. É
fácil fingir que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num
mundo no qual a sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que
nada: um átomo numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a
verdade é que indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de
novo, indivíduos fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam
que as coisas podem ser diferentes (Neil Gaiman, 2013, p.1).

Imaginem se fosse possível uma criança de periferia sonhar com coisas


além de seu alcance… imaginem se todos tivessem o direito de sonhar com
coisas impossíveis… imaginem se estas coisas se tornassem realidade ao
longo dos anos… e que cada ser humano pudesse realmente ser o que ele
quisesse. Eu sonhei.
E fiz mais do que sonhar. Coloquei toda a minha energia vital para
produzir conhecimento e entendimento das coisas. Chorei muito e fiquei muito
angustiada ao longo de cada processo de aprendizagem e amadurecimento,
mas consegui me manter viva. Consegui superar e transformar a curiosidade
ingênua e me criticizar, permitindo-me repetir através da curiosidade
epistemológica, metodologicamente “rigorizando-se” na apropriação do objeto,
produzindo uma maior exatidão (FREIRE, 1997-2021). O oprimido se
transformou em uma educanda criadora, instigadora, inquieta, rigorosamente
curiosa, humilde e persistente.
Assumi a postura vigilante contra todas as práticas de desumanização.
Assumindo a responsabilidade pelo saber-fazer da auto-reflexão crítica e o
saber-ser da sabedoria exercitada para fazer as leituras críticas das
inconsistências humanas e da razão de ser do discurso fatalista da
globalização (FREIRE, 1997-2021). Acreditei no inacreditável. E assumi a
responsabilidade de repassar isso para aquelas que se esqueceram de seus
sonhos e possibilidades. Sonhei para além das possibilidades possíveis para
aquele momento e projetei o “impossível”: um doutorado.
Para uma menina preta da periferia de Santa Maria RS que estudou toda
a vida em escola pública, que vivenciou dez anos limpando banheiros porque
não conseguia passar no vestibular da UFSM. Entre limpar banheiro de
madame e pelo de cachorro para pagar as contas e subsistir na minha
realidade parece que foram cem anos. Sempre comento com os que me
conhecem que achava que aquele não era o meu lugar. Eu queria mais. E não
era ganancia. Era potência de interlocução, comunicação e dedicação que
transbordava pelos meus poros... Mas que não entendia a lógica do sistema.
Esses detalhes me levam a lembrar como nasce uma sonhadora-
pesquisadora. Poderia arriscar que toda a sonhadora-pesquisadora nasce
inquieta, afrontiva com a vida; nascem perguntadoras, fabuladoras, nascem
com milhares de perguntas na cabeça, e estas perguntas precisam de
respostas. Iniciei as perguntas em uma escola rural de ensino fundamental,
onde na minha época só cursava até a sexta série. Seis anos excelentes, mas,
sempre ficando perguntas sem respostas... Mudei para escolas na cidade,
como falávamos... e lá nunca conseguiram responder todas as questões que
eu ficava fabulando... Ensino Médio na escola estadual Coronel Pilar, onde
finalizei o ensino médio em 1996.
De 1996 em diante fiz o que toda mulher negra periférica que vai até o
Ensino Médio e consegue terminar faz: fui trabalhar de empregada doméstica e
faxineira. Por que eu queria? Não. Porque precisava dar um rumo para minha
vida. Ou seja, para a maioria que possui o meu fenótipo o caminho mais
trilhado é entrar no mercado de trabalho efetivamente, uma vez que já
trabalhava durante meu Ensino Médio; no entanto, precisava de um emprego
fixo e recursos financeiros. Narro isso não para ficarem sensibilizados ou me
vitimizar, mas para demonstrar que mesmo uma sonhadora-pesquisadora que
desde criança sonha em buscar o conhecimento, mas que possui um fenótipo
negro, muitas vezes não consegue ingressar diretamente na universidade.
Naquela época acreditava que era incompetência minha, mas hoje posso
garantir que não. O sistema tenta manter o status quo da sociedade.
Essa história começa a ganhar contornos ainda mais fortes no ano de
2006 (dez anos depois), quando ingresso na Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA) no curso de Psicologia pelo sistema de cotas Prouni com bolsa de
100%. Tínhamos um grupo que era a galera do Prouni, que fizemos toda a
graduação juntos. Parceiros inesquecíveis. Essa bolsa tinha o mesmo
problema que encontrei nas cotas: pensou-se o ingresso, mas não a
permanência. Assim, o período de cinco anos foi de trabalho e estudos.
Trabalhava para pagar passagens e xerox. Não tinha faltas e sempre
negociava xerox e lanches. Além do sustento básico.
Aprendi a amar o conhecimento e este me levou para terras
desconhecidas e inusitadas. Nunca duvidei de minha potencialidade; no
entanto, o caminho é muito difícil de ser trilhado. Na realidade nunca sabemos
no momento que está acontecendo, o quanto é difícil abrir caminho para si
próprio e para os seus, que nunca confessaram que também tinham sonhos
inalcançáveis… Assim, me coloquei em movimento, em uma trajetória que nem
mesmo eu sabia qual seria. E nunca mais parei, pois é constância...
Essa constância me leva ao conhecimento que nesse país é para
poucos, e as ajudas e os auxílios são menores que os discursos. Desafiei o
impossível, pois queria experimentar o peso da caneta e suas respectivas
possibilidades. Já tinha experimentado o trabalho braçal que está atrelado a
dor e sofrimentos indecodificaveis. Arrisquei intuitivamente pelo conhecimento
das coisas e das possibilidades do impossível o autoconhecimento e a
ressignificação.
Queria deixar rastros para os que viessem em busca de algo
inimaginado. Reescrevendo histórias, novas formas de lutas, defesas,
resistências, vivencias, transcendências, ressignificações, amores, horrores,
alegrias, tristezas, coragem. A psicologia me traz a possibilidade de olhar para
esses seres humanos em sua completude, despidos de todos os defeitos e de
todas as amarras como produtores de entendimentos simbólicos relevantes ou
irrelevantes.
Optei em fazer meus estágios no ambulatório de saúde mental, o que
me proporcionou um refinamento da escuta sensível. Conhecimento inominável
do sistema SUS e das nuances dentro do caleidoscópio saúde mental de Santa
Maria. Aqui ficaria devendo favores de várias encarnações, portanto, impagável
a meu orientador Cesar Bridi, amado ou odiado, brilhante e acolhedor. Minha
reverencia a essa alma impar e que sempre me oportunize cruzar seu caminho.
Outro momento muito importante foi a escolha de ir para a Escola
Estadual Dr. Reinaldo Fernando Cóser, onde aprendi a língua de sinais e onde
reforcei minha capacidade de lidar com o mundo dos surdos. Fiquei meu
estágio especifico todo lá. Momento de extrema oportunidade de aprendizado
com um mundo que tem muito para nos ofertar. Foi lá que decidi que meu
trabalho de conclusão de curso seria sobre meu entendimento do mundo do
sujeito surdo. Meu trabalho de TCC VISUALIZANDO VOZES possibilitou-me
pensar mais pontualmente sobre o mundo que eles estabelecem diálogo com o
todo. Esse trabalho irá agora me auxiliar a produzir conhecimento sobre o
racismo escópico que aprofundarei no próximo capitulo e que tanto assola
nossa sociedade. Pois, descobri através deste trabalho que a maioria dos atos
racista são originados por uma transmissão escópica. Onde o racismo irá
passar desapercebido e indetectável.
A psicologia amplia o meu olhar sobre a educação. Foi na psicologia que
aprendi a lidar com meus “inimigos”, ou, melhor dizendo, com pessoas que
demonstram que eu sou um empecilho em sua trajetória ou na sua forma de
agir e lidar com o mundo. Criei estratégias mais eficientes de proteção
psíquica.
Já formada no ano de 2012, mas tendo que lidar com a aprendizagem
de ser autônoma, tive que apreender com as dificuldades iniciais e neste meio
tempo pensava em voltar a estudar. Quando o Bridi, que foi meu professor me
convidou para me inscrever no PEG-UFSM (Programa Especial de Graduação
- Formação de Professores para a Educação Profissional) ele paga pela minha
inscrição e me dá de presente. Aqui quero destacar a curva do rio, onde
agrônomos, engenheiros, advogados, zootecnistas, psicólogos formavam a
curva do mate e da conversa calorosa.
Em 2013 começo a me engajar em adquirir mais conhecimento possível.
É um ano divisor de águas, pois, ingresso no grupo de pesquisa CLIO-
ENTRELAÇAMENTOS: MEMÓRIA E PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE
CIVILIDADES. A todos e a todas devo meu total respeito e amorosidade pelas
trocas e experiências. Agradeço de coração a disposição de todos.
Neste meio tempo curso, como aluna especial, o Curso de História. E
em 2014 ingresso efetivamente como aluna do curso de História, ambiente que
estou até hoje chegando a vias de fato... Curso maravilhoso. Onde amplio meu
olhar para me enxergar como negra, pois até então não tinha me questionado
profundamente sobre minha negritude. Até aqui, não sei explicar como passei
anos da minha vida ofuscada. Não me aprofundava sobre racismo, até achava
que era invenção dos outros negros que reclamavam. Lidava muito pouco, o
grupo e a graduação juntos trazem a potência de enxergar a negritude. Em
especial encontro com Maria Rita Dutra Py, que se torna lanterna para meus
passos e minhas proposições.
Aqui começo a construir meu referencial sobre negritude, desigualdades,
racismo, equidade, cotas, ser negro e negra entre outros. Mas, começo a
ampliar meu olhar e começo a pensar em meu projeto de pesquisa para o
mestrado. Meus sonhos vão ganhando corpo, ganhando vida. Fui criando a
possibilidade de entrar no mestrado, um processo que leva dois anos até
minha entrada no mestrado em 2016. Já no mestrado com o tema: NEGRO
(AUTO) BIOGRAFICO: COTAS, REAL SIMBÓLICO IMAGINARIO consigo unir
educação e psicologia. Com meu orientador, o professor Dr. Jorge Luiz da
Cunha, responsável pelo Núcleo de Estudos sobre Memória e Educação –
Povo de Clio, no Centro de educação da UFSM, a quem devo agradecimentos.
Já concluído e cheio de possibilidades de pesquisa que vou começar a
desvendar aos poucos.
Em 2019 ingresso na Especialização em Gênero, primeira turma
da UFSM. Experiência magnifica que traz inúmeras possibilidades sobre meu
trabalho na clínica e para crescimento pessoal. Aqui produzo um artigo que
seria a pedra angular da minha trajetória, A FALA DE MULHERES NEGRAS:
DESAFIOS ENTRE AUTODEFINIÇÃO E RESISTÊNCIA, no qual escrevo meu
relato de experiência dos anos em escuta sensível de mulheres que chegaram
até a mim. Minhas memories aqui são as mais intrigantes e amorosos
possíveis.
E no mesmo ano ingresso no doutorado, mais um sonho que se tornou
realidade. Alcancei algo que parecia distante e impossível. Tornei possível o
impossível. Para mim, mulher negra periférica era é inimaginável estar nesse
lugar. Até hoje me pergunto se é verdade. E aumentei a minha linha de
chegada pois, quero dois pós-doc... O doutorado é a continuação do mestrado,
onde não consegui entrevistar nenhuma mulher negra. Talvez por não ter mais
tempo hábil para encontrá-las? Talvez porque não conseguir chegar até elas e
foquei nos homens negros que aderiram as solicitações das entrevistas com
mais rapidez.
No entanto, isso me levou a desejar dedicar um doutorado
exclusivamente para elas. E esse é o objetivo aqui. Quero encontrar as
mulheres negras nas universidades e construir um olhar sobre a academia,
seus percalços, e vitórias. Nesse ambiente acadêmico aprendi a importância
de ser Mulher Negra, a importância de produzir escutas para Mulheres Negras
que estão desafiando-se para permanecer em um ambiente tão competitivo e
hostil que é o ambiente universitário. Meu trabalho aqui é desafiar a soltar e
reconhecer suas vozes, amplificar e trilhar caminhos para as próximas
gerações. Pois, percebi que essas mulheres, que muitas vezes lutam para
permanecer, ainda lidam com problemas de permanência, pois elas buscam
resolver seus problemas pessoais como: passagem, alimentação, moradia,
xerox, etc.
Gostaria de agradecer aqui especialmente ao professor Celso que é
uma pessoa impar na sociedade. Homem bondoso e gentil que consegue ter
empatia pelos outros e promover mudanças nas vidas das pessoas que
passam por ele. Paulo Freire ficaria orgulhoso do senhor por estar semeando
tanta gentileza, práxis e equidade para aqueles que vislumbram sonhar com
algo diferente e que pode ser considerado transgressão.
Transgressões que devem ser apoiadas mesmo que pareçam fora do
seu tempo, pois foi assim que esta humanidade se manteve viva. Em alguém
apostar em algo que ainda é além do seu tempo histórico. Talvez eu acreditei
ser capaz de habilitar os dois mundos, inventei criticamente novas maneiras e
cruzei as fronteiras para alterar os ambientes tóxicos burgueses universitários,
talvez me tornando ato (hooks, 2017).
Como as políticas públicas implementadas que devem ser aprimoradas
para que a permanência vire realidade e para que as próximas gerações
usufruam deste ambiente com mais qualidade, equidade e segurança. Eu,
pessoalmente, acredito que só nos narrando e contando como fizemos para
permanecer iremos superar a monopolizações da educação superior.
Educação superior não é para um núcleo eleitos, iluminados, elitizados e
detentores de capital para permanecer. É direito de todo aquele que queira
acessar a universidade e ter uma vida com outras possibilidades.
Lugar de Mulher Negra é onde ela quiser. E hoje ela quer estar em
espaços que lhe representem e mudem suas perspectivas futuras. Futuros que
sem esses avanços vão continuar monopolizando e privilegiando apenas uma
parcela da população. Se alguém em sã consciência ainda acredita em
meritocracia e esforço pessoal, talvez tenhamos que sentar e dialogar sobre os
intercruzamentos sociais, políticos e econômicos que esta sociedade
estabeleceu.
Olhando para minha trajetória posso afirmar que realizar sonhos torna os
indivíduos deste planeta mais esperançosos, pois entendemos que os desafios
nos levam a conquistar o impossível. Posso esclarecer que não tem relação
com mérito, mas, com um germe intrínseco que todos nós temos: a esperança
de mudar o mundo e as coisas que estão erradas. A sonhadora-pesquisadora
sempre sonhou com um mundo melhor. Um mundo onde acreditássemos no
amanhã. Mundo onde todos poderiam ter oportunidades, ainda mais dentro das
universidades, iguais no acesso e permanência para aqueles que querem
concluir. Mundo que busca diálogos éticos, com escutas e reconhecimentos
das alteridades.
Em um mundo sem amor, o desejo de conexão pode ser substituído
pelo desejo de poder (Hooks, 2020). Poder que não nos levará a lugar
nenhum, só a autodestruição de nós mesmos e do planeta, pois já estamos em
rota de colisão tanto ambiental como psíquica. A humanidade está adoecida e
temos que encontrar urgentemente uma forma de retroceder os miasmas
deixados pelas gerações anteriores. Sendo assim, que minhas memories
possam simbolizar e ressignificar novas formas de olhar e entender o mundo
que nos cerca. Escrevo para honrar o nome da minha vó Catarina, que já
faleceu e não pode ver eu chegar até aqui. Escrevo para criar outros
imaginários, outros olhares para os meus filhos (Eduardo e Antonia) e para os
meus familiares. Pois, os que encontrei, e até agora estavam impregnados por
um imaginário pejorativo e doente. Escrevo para que o real emerja socialmente
e torne-se uma ressignificação dos fatos tomados como “verdades”. Que meus
filhos experimentem o que é ser negro, ser amado, ser feliz.

NA SIMBIOSE DOS SIGNIFICADOS E SIGNIFICANTES NOS


TRANSFORMARAM EM SERES MALDITOS

Passei a acreditar, com uma convicção cada vez maior, que o que me
é mais importante deve ser dito, verbalizado e compartilhado, mesmo
que eu corra o risco de ser ferida oi incompreendida. A fala me
recompensa, para além de quaisquer outras consequências. Estou
aqui de pé. Uma poeta lésbica negra, e o significado de tudo isso se
reflete no fato de que ainda estou viva, e poderia não estar (LORDE,
2020, p.51).
Em uma era distante fizemos um pacto de sempre nos relembrarmos do
quanto somos poderosas, astuciosas, determinadas, organizadas, arrojadas,
imprevisíveis. Estou aqui para relembrá-las que foi através dos diálogos e do
domínio das tecnologias agrícolas, medicinais, gestacionais, biológicas que
trouxemos esse planeta e a humanidade para o patamar humano. Humano
aqui é o ser que se entende parte da terra e que respeita a si aos outros e ao
seu entorno.

O ponto de partida é a concepção de ser humano como um ser


inacabado, que precisa constituir-se, humanizar-se, pois não só tem a
capacidade de aprender a ser o que a natureza lhe faculta, como tem
a necessidade deste processo de aprendizagem. Esse aprender a ser
mulher ou homem se dá no convívio em grupos sociais que estão
desencadeando processos de humanização; o ser humano vai se
constituindo intersubjetiva e interativamente na medida em que
(re)constitui o mundo no/com o qual se humaniza econômica, política
e culturalmente. A educação é entendida como um dos muitos
processos – e talvez até de importância peculiar – pelos quais seres
vivos humanos podem ajudar (ou não) a outros seres vivos humanos
a se humanizarem. Por isto ela não pode ser concebida como
desvinculada das demais instâncias sócio-histórico-culturais pelas
quais ocorre a humanização de mulheres e homens (HENZ, 2012.
p.67).

A experiência ajuda a compreender melhor o que sentimos em relação à


transformação do silêncio em linguagem e em ação. Pois, o silêncio trás
arrependimentos por não se verbalizar e não agir em prol de si. O medo de
questionar e manifestar de acordo com as próprias crenças poderiam causar
dor e morte. Mas todas somos feridas de tantas maneiras, o tempo todo, e a
dor ou se modifica ou passa. A morte, por outro lado, é silencio definitivo. E
compreender o medo dá força (LORDE, 2020, p. 52).
Medo que os “conquistadores” usaram para implementar atrocidades e
“conquistas” de lugares que já possuíam habitantes, mas que precisavam
serem abatidos, capturados, subjulgados, massacrados, desumanizados
demasiadamente para forjar sensações de extrema desconexão e abandono
em milhares de seres humanos. Muitos seres humanos parecem crianças
brincando por tempo indeterminado, só que viraram adultos que estão
devastando o planeta criando um abismo de desigualdades entre os povos e as
sociedades, criando uma sub-humanidade (caiçaras, índios, quilombolas,
aborígenes) que vive na miséria naturalizada (Ailton Krenak, 2020).
Naturalidade que consome e paga o preço da inexistência de
humanidade e cria essa sub-humanidade que parece estar na contramão do
progresso, da conquista ilimitada de poder. Nosso inacabamento consciente
nos impede de rompantes de arrogância farisaica, malvada, com julgamentos,
arrogância que nega a generosidade, humildade (FREIRE, 1921- 1997). Como
humanos em processos contínuos e inacabados, temos que compreender
nossa finitude e nossos medos. Somos parte de um todo que a todo momento
nos desafia a lidar com nossas mais profundas angustias, e estar em
processos inacabados nos causa profunda angustia de estarmos vivos em
nossa finitude. Ao criarmos possibilidades de segurança em um mar de
angustias a cada desafio diário, podemos estar proporcionando novas
possibilidades de ressignificação.

A vida no suporte não implica a linguagem nem a postura ereta que


permitiu a libertação das mãos. Mãos que, em grande medida, nos
fizeram. Quanto maior se foi tornando solidariedade entre mente e
mãos, tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida, existência. O
suporte veio fazendo-se mundo e a vida, existência, na proporção que
o corpo humano vira corpo consciente, captador, apreendedor,
transformador, criador de beleza e não “espaço vazio” a ser enchido
por conteúdos. A invenção da existência envolve, repita-se,
necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis
mais profundos e complexos do que o que ocorreria e ocorrendo
domínio da vida, a “espiritualização” do mundo, a possibilidade de
embelezar como de enfeiar o mundo, e tudo isso inscreveria mulheres
e homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de
comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de
grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também
de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade só os seres
que se tornaram éticos podem romper com a ética. (FREIRE, 2021,
p. 51)

Só seres que se tornaram éticos podem romper com a ética, e seres que
moldaram e construíram signos, significados e significantes podem
desmistificá-los, ressiginificá-los e aprimorá-los a partir de uma conscientização
profunda das tragédias geradas. Somos seres que criaram deuses e demônios
que utilizariam para subjugar sua própria espécie.
Para Silvio Almeida (2020) e Achille Mbembe (2018), o colonialismo dá
ao mundo um novo modelo de administração, que não se ampara no equilíbrio
entre a vida e a morte, entre o “fazer viver e o deixar morrer”, não decidindo
mais sobre a vida e a morte, mas tão somente o exercício da morte que passa
a ser permanente em nossas vidas. Onde o necropoder 2e a necropolitica3 são
instalados de forma irrevogável para a destruição e ocupação de territórios,
pilhando e destruindo as possibilidades desses territórios se organizarem e
prosperarem. A tentativa de domínio e extermínio é utilizada em larga escala
impedindo que esses países se estabeleçam como agentes articulados para
aproveitar as riquezas que se encontram em seus territórios.
Devemos nos lembra que os necropoderes4 e as necropoliticas5 estão
mais atuais que nunca. Estamos em um momento (Final da primeira e início da
segunda décadas do século XXI) sócio-político impregnado de uma extrema-
direita com discursos de ódio e atos de agressão e segregação. Em muitas
partes do globo há uma necropolitica em grande escala. Uma dessas inúmeras
agressões e segregações encontramos no racismo; para Almeida (2020),
Mbembe (2018) e Foucault (2010) o racismo é uma tecnologia de poder, mas
com funções especificas das demais usadas pelo Estado. E Foucault (2010)

24No passado, com efeito, guerras imperiais tiveram como objetivo destruir os poderes locais,
instalando tropas e instituindo novos modelos de controle militar sobre as populações civis. Um
grupo de auxiliares locais podia participar da gestão dos territórios conquistados, anexados ao
império. Dentro do império, as populações vencidas obtinham um estatuto que consagrava sua
espoliação. Em configurações como essas, a violência constitui a forma original do direito, e a
exceção proporciona a estrutura da soberania. Cada estágio do imperialismo também envolveu
tecnologias-chave (canhoneira, quinino, linhas de barco e vapor, cabos do telégrafo submarino
e ferrovias coloniais). A “ocupação colonial” em si era uma questão de apreensão, demarcação
e afirmação de controle físico e geográfico – inscrever sobre o terreno um novo conjunto de
relações sociais e espaciais. Essa inscrição de novas relações espaciais (“territorialização”) foi,
enfim, equivalente a produção de fronteiras e hierarquias, zonas e enclaves; a subversão dos
regimes de propriedades existentes; a classificação das pessoas de acordo com diferentes
categorias; extração de recursos; e finalmente, a produção de uma ampla reserva de
imaginários culturais [...] ou seja, o funcionamento da formação especifica do terror onde a
fragmentação territorial, o acesso proibido a certas zonas e a expansão dos assentamentos
impossibilitará qualquer movimento e implementará a segregação (MBEMBE, 2018, p. 38-43).

35Esses imaginários deram sentido à instituição de direitos diferentes, para diferentes


categorias de pessoas, para fins diferentes no interior de um mesmo espaço; em resumo, o
exercício da soberania. O espaço era, portanto, a matéria-prima da soberania e da violência
que ela carregava consigo. Soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar ao
colonizado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto[...] Nesse caso, a soberania
é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não
é [...} a violência e a soberania, nesse caso, reivindicam um fundamento divino: a qualidade do
povo é forjada pela adoração de uma divindade mítica, e a identidade nacional é imaginada
como identidade contra o Outro contra outras divindades. História, geografia, cartografia e
arqueologia supostamente apoiam essas reinvindicações, relacionando estreitamente
identidade e topografia. Em consequência, a violência colonial e a ocupação se apoiam no
terror sagrado da verdade e da exclusividade (expulsão em massa, reassentamento de
pessoas, ‘apátridas” em campos de refugiados, estabelecimentos de novas colônias
(MBEMBE, 2018, p. 38-43).

4
5
relembra que desde o século XIX os sentidos da vida e da morte ganham novo
status.

As mudanças socioeconômicas ocorridas a partir do século XIX


impõem uma mudança significativa na concepção de soberania, que
deixa de ser o poder de tirar a vida para ser o poder de controla-la, de
mantê-la e prolonga-la. A soberania torna-se o poder de suspensão
da morte, de fazer viver e deixar morrer. A saúde pública,
saneamento básico, as redes de transporte e abastecimento, a
segurança pública, são exemplos do exercício do poder estatal sobre
a manutenção da vida, sendo que a ausência seria deixar morrer
(ALMEIDA, 2020, p. 114).

Nesse sentido, estamos falando de um extermínio calculado e


intencional sobre uma população que necessita de políticas públicas e proteção
frente ao desmonte e privilégios de alguns setores sociais. Para Almeida
(2020), Mbembe (2018) e Foucault (2010) o racismo como tecnologia de poder
está intrinsecamente ligado ao poder do estado que fragmenta e divide
biologicamente os humanos introduzindo hierarquias, distinções, classificações
de raças. O racismo estabelecendo a linha divisória entre superiores e
inferiores, entre bons e maus, entre os grupos que merecem viver e os que
merecem morrer, entre os que terão vida prolongada e os que serão deixados
para morrer, entre os que vão permanecer vivos e os que serão mortos. Seja
pela morte física ou simbólica. A morte do outro vai ser positivada como o
inimigo que precisa morrer (ALMEIDA, 2020, p. 114).
Simbolicamente criamos um inimigo para odiar e atacar e agora só
precisamos decidir quem é esse inimigo. Quem são os mocinhos? Quem são
os bandidos? Como o racismo já está estabelecido e enraizado em nossa
sociedade, só precisamos criar o perfil do bandido que no nosso caso são
homens e mulheres negras e as diversidades desse país. O necropoder revela-
se (ALMEIDA, 2020):

nesse espaço que a norma jurídica não alcança, no qual o direito


estatal é incapaz de domesticar o direito de matar, aquele que sob o
velho direito internacional é chamado de direito a guerra. A
peculiaridade do terror colonial é que ele não se dá diante de uma
ameaça concreta ou de uma guerra declarada; a guerra tem regras,
guerra há limites. Mas e na ameaça da guerra? Qual o limite a ser
observado em situações de emergências, em que sei que estou perto
da guerra e que meu inimigo está próximo? Não seria um dever
atacar primeiro para preservar a vida dos meus semelhantes e manter
a “paz”? é nesse espaço de dúvida, paranoia, loucura que o modelo
colonial de terror se impõe. A iminência da guerra, a emergência de
um conflito e o estresse absoluto dão a tônica para o mundo
contemporâneo, em que a vida é subjugada ao poder da morte
(ALMEIDA, 2020, p. 119).

Estamos nos referindo aqui a uma conjuntura de fatores foram se


estabelecendo ao longo dos séculos de dominação, e que adquiriram
patamares de verdade e realidade. Realidade essa que hoje atinge e aflige
milhares de mulheres e homens negros que não tiveram suas histórias
contadas e retratadas de uma forma onde pudessem se espelhar e recontar
seus ancestrais. O surgimento de signos forjou significantes e significados de
maldade simbiótica, ou seja, uniram um fenótipo negro a termos e situações
pejorativas que o tornaram o ser mais temido e amaldiçoado deste planeta.
Amaldiçoados e temidos, mulheres e homens negros, que nunca
conseguem ser mais do que as idealizações de um homem branco e corrupto
que perverteu o sistema que ele criou para seu benefício próprio de poder.
Para a população negra não foi possível enterrar seus mortos. Não foi
possível ressignificar essa hecatombe negreira. A maioria desses povos
trazidos da África em condições insalubres e funestas vincularam a psique de
milhares de negros a sensação constante e familiar de desamparo e
negligencia. As relações se empobreceram de uma forma tamanha que muitas
dessas pessoas transferiram suas raivas e seus ódios para as próximas
gerações. Presos desde as grandes navegações em grilhões de injustiças e
impotência.
Muitas mulheres negras não enlouqueceram porque usaram ferramentas
transgeracionais como arma de resistência e sobrevivência. Tiveram que
aprender através da sabedoria de suas mães e de suas irmãs o limite entre
tecnologias de poder e uma vida mínima de possibilidades para sobrevivência
real.

Toda a mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser
útil contra opressões, pessoais e institucionais, que são a origem da
raiva. Usada com precisão, ela pode se tornar uma poderosa fonte de
energia a serviço do progresso e da mudança. E quando falo de
mudança não me refiro a uma simples troca de papéis ou uma
redução temporária das tensões, nem a habilidade de sorrir ou se
sentir bem. Estou falando de uma alteração radical na base dos
pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas (LORDE,
2020, p. 159).

Estamos falando aqui de mudanças sociais, políticas, econômicas,


educacionais, trabalhistas, cientificas, entre outras. Falamos de mudanças
efetivas e não mais paliativas para tamponar reinvindicações e “minorias” que
na verdade são maioria e que lutam por condições melhores.
Muitos, ainda nos dias atuais, relatam as reinvindicações das negras e
negros desse país como “mimimi”. Mas, a realidade é totalmente outra.
Estamos falando de um genocídio de povos da África que foram arrasados
para benefício de um acumulo de capital, e para suprir a mão-de-obra que
faltava nesse país. Pois já tinham exterminados os povos originários daqui. Nos
encontramos hoje com manchetes de racismos sistêmicos em todos os lugares
do globo, do Brasil da Espanha, nesse exato momento. Crimes contra pessoas
por gênero, raça, classe, que no século XXI, onde nos encontramos agora, não
deveria mais existir.
A ideologia da burguesia racista possui o poder de diluir as imagens
reais do terror obscuro e insignificante dissipando os sofrimentos dos humanos
inaudíveis, silenciados (DAVIS, 2016). Retificamos aqui o desenvolvimento de
tecnologias de poder ao longo dos séculos que levaram a maioria de pessoas a
margem e uma minoria que acumulou capital para o centro. Margem e centro
criados intencionalmente para manutenção de poder e benesses dessa minoria
privilegiada.
Essa minoria privilegiada que “conquistou” ou pilhou o mundo e se
autodenominou representante direto de uma divindade na terra e foi capaz de
falsear sobre sua humanidade com status de deuses e detentores de todos os
saberes possíveis. Para séculos depois forjar a morte do deus criado por eles.

É a lógica conjunta do genocídio/epistemicídio que serve de


mediação entre o “conquisto” e o racismo/sexismo epistêmico do
“penso” como novo fundamento do conhecimento do mundo moderno
e colonial. O Ego extermino é a condição sócio-histórica estrutural
que faz possível a conexão entre o Ego coquiroe o Ego cogito. Em
seguida, se sustentará que os quatro genocídios/epistemicídios do
longo século XVI são as condições da possibilidade sócio-histórica
para a transformação do “conquisto, logo existo” no racismo/sexismo
epistêmico do “penso, logo existo”. Esses quatro
genocídios/epistemicídios ao longo do século XVI são: 1. contra os
muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus em nome da
“pureza do sangue”;2. contra os povos indígenas do continente
americano, primeiro, e, depois, contra os aborígenes na Ásia; 3.
contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente,
escravizados no continente americano; e 4. contra as mulheres que
praticavam e transmitiam o conhecimento indo-europeu na Europa,
que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas
(RÁMON, GROSFOGUEL, 2016, p. 31).
Tecnologias aprimoradas ao longo dos séculos pelos colonizadores para
benefício dessa minoria privilegiada. Extermínios em massa em uma
necropolitica dentro de um necropoder de exterminar e se eximir das
responsabilidades dos atos criminosos cometidos. Culpabilizando os povos
conquistados por sua captura e dizimação.
Os povos originários da África e América que foram exterminados foram
responsabilizados pelos atos criminosos dos colonizadores. E como se não
bastasse, essa tecnologia foi refinada e hoje escutamos discursos de
meritocracia e excelência de uma população que conseguiu acumular e
guardar capital sem ser vinculada a privilégios que muitos ganharam ao longo
de gerações para a manutenção de poder. Com discursos de esforços e
dedicação que a maioria6 desse país não consegue chegar, e por esse motivo
permanece às margens. A necropolitica instaura-se como organização
necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente
sobre a vida. A morte em nome dos riscos da economia e da segurança como
fundamento ético dessa realidade. Mazelas econômicas, medos, expectativas,
afetividades entre a vida e a morte (ALMEIDA, 2020).
Somos forçados a acreditar em um inimigo implacável e alucinado que
instaura uma vigia constante e que a qualquer momento irá entrar em nossas
casas para dizimar o que hoje chamamos de famílias de bem. Constantemente
bombardeados por informações que na maioria das vezes não são reais, mas
que ganham status de realidade em redes sociais, jornais, aplicativos de
mensagens onde as Fake News se espalham como rastilhos de pólvora. O
capitalismo, ao logo dos séculos, tornou-se volátil e imprevisível; e hoje
carregamos celulares nas mãos que nos deixam vinte e quatro horas
anestesiados em notícias e propagandas ao seu bel prazer.
Mas, no Brasil, também estamos em um momento histórico que pode ser
de grande relevância para as próximas gerações. Onde um governo eleito com
pautas sociais, econômicas, educacionais, saúde e políticas derrotou um
6 Maioria que é tratada com discursos de minoria, mas que passa de 80% ou mais da população
mundial. Aqui será tratada como maioria onde se encontram negros, pardos, indígenas, LGBTQIAPN+
entre outros que foram sempre tratados nesse país como uma minoria que não tem direitos e que está
sempre as margens. Mas que nos últimos anos vem buscando seus espaços de direitos por uma
respeitabilidade acima dos discursos conservadores e preconceituosos de uma parte da população que
insiste em pleno século XXI expressar-se a partir de opiniões ultrapassadas e obsoletas de um sistema
patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista formado durante o século XVI com a conquista
das américas e o aprimoramento das tecnologias de poder (GROSFOGUEL, 2016).
governo de extrema direta que possuía discursos de um povo eleito, e
merecedor de extravasar seus conservadorismos e suas crenças contra a
ciência em plena pandemia e a urgência de aprovar vacinas. Destacamos aqui
a importância das pautas que redirecionam benefícios e condições mínimas
para a maior parcela da população que vive à margem por séculos. Estamos
falando aqui de produzir equidade social permanente e irrevogável em
governos próximos e um desses decretos foi a nova lei que criminaliza o
racismo.
Governo que no dia 11/01/2023 sancionou a lei n° 14.532/2023 que
equipara a injuria racial ao crime de racismo, pelo presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, que em cerimônia de posse das ministras Anielle Franco-Igualdade
Racial e Sonia Guajajara-Povos Indígenas, realizou no Palácio do Planalto, a
legislação que está em vigor:

A norma altera a Lei do Crime Racial (7.716/1989) e o Código Penal


(Decreto-Lei nº 2.848/1940) para tipificar como racismo a injúria
racial. A mudança aprofunda a ação de combate ao racismo, porque
cria elementos para interpretação dos contextos e evidencia algumas
modalidades de racismo que não eram, propriamente, evidentes. A
agressão a atletas, juízes, torcedores e torcidas, em um ambiente de
prática de esportes, é compreendido como racismo esportivo. O
deboche ou as piadas ofensivas disfarçadas de humor caracterizam o
racismo recreativo. O preconceito e a desqualificação das religiões
afrobrasileiras é racismo religioso [...] Conforme a nova Lei, "injuriar
alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça,
cor, etnia ou procedência nacional" pode gerar pena de reclusão (de
dois a cinco anos) e multa. A pena será aumentada quando o crime
for cometido por duas ou mais pessoas. A legislação orienta que, na
interpretação da norma, os juízes considerem como "discriminatória
qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos
minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo
ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros
grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência".

A importância dessa lei perpassa por criminalizar o racismo sistêmico


que temos no país, mas que veste camuflagens de um país miscigenado e
acolhedor para todas as raças. Falácia entoada por muitos e agora
criminalizada para criar borda em uma sociedade escravocrata que acredita ser
superior e detentora do poder.
Estamos falando aqui da implementação de políticas públicas e leis que
produzam de fato um efeito de mudança na sociedade. E que permaneçam
mesmo com as mudanças governamentais. Mudanças sociais efetivas e
garantidas para produzir equidade social, política, jurídica e econômica.
Acreditar que o Brasil não possui conflitos raciais, realidade violenta e desigual
no cotidiano ou é delírio, ou perversidade e/ou má-fé, diante do que se tem que
enfrentar o racismo no campo simbólico e pratico desmantelando seu aparato
(ALMEIDA, 2020).
Neusa Santos Sousa (1983) debruçava-se em suas pesquisas sobre
violências, e deixou evidente que é impossível para uma pesquisadora estudar
sobre as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social sem falarmos da
violência:
A violência parece-nos a pedra de toque, o núcleo central do
problema abordado. Ser negro é ser violentado de forma constante,
contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a
de encarar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de
recusar, negar e anular a presença do corpo negro. Espinha dorsal da
violência racista (SOUSA, 1983, p. 02).

Violência sem escala e sem limites, podendo ser sofrida em um ponto de


ônibus, estádio de futebol, escola, museu, universidade, shopping,
supermercado, farmácia, loja de roupas, prédios e condomínios chiques.
Quase uma onipresença onde o significado ficou simbiótico com o significante
e parecem indissociáveis.
Na simbiose do significado e do significante corrompendo o signo negro
as inqualidades pejorativas contra os negros tornaram-se sinônimo e muitas
pessoas não se perguntam mais sobre a possibilidade de estarem erradas ou
equivocadas, criando estereótipos contra seres humanos que merecem os
mesmos direitos e possibilidades. Pois, o Signo ser negro tornou-se e efetivou-
se como algo ruim, medo, morte, impossibilidades... O signo foi corrompido e
tornado pejorativo para criar tornar mais eficientes as atrocidades brancas
hegemônicas de uma sociedade pervertida. Nessa simbiose forjou-se uma
tecnologia de poder tão eficiente que as vezes os próprios negros defendem as
pautas eurocêntricas lhe acusando danos e perdas e acreditando estar
apoiando um projeto legitimo e real. O racismo é quase um crime perfeito...
Crime perfeito porque usa o estranhamento como alerta para algo
potencialmente perigoso, mas que na realidade está interligado em projeções
dos seus temores que foram introjetados. Os negros e negras desse país como
objeto de medos inenarráveis e fantasmagóricos da sociedade. Acúmulos de
medos que não são mais questionados, onde o medo de sofrer confunde-se
com o medo do desconhecido; o neurótico resiste ao novo, resiste a romper
com a recepção sintomática. O sintoma torna-se verdade, e solucionar o
compromisso permite formas de gozo, e tudo que é gozo repete-se (Maria Rita
Kehl, 2002).
Olhar o mundo pelo olhar mais aguçado, no qual se percebe o
imperceptível por outros olhos é falar com o corpo, com as expressões faciais,
podendo dar uma resposta em um simples gesto. Um amplo campo de trocas
simbólicas dentro de uma cultura que busca as melhores formas de uma
adaptação de demandas. Essas primeiras inferências nos perpassam pelo o
que Freud (1919) chamará de estranho ou Unheimlich para designar algo que
de algum modo nos é familiar. Estamos falando que passamos a rever objetos,
pessoas, impressões, eventos e situações que conseguem despertar em nós
um sentimento de estranheza, de forma particularmente poderosa e definida
que toca em alguns resíduos nossos inomináveis.
Essas pessoas, olhares, caras, jeitos, fazem como que um resgate de
situações que já foram familiares, mas para uma economia de energia da
psique ela escolhe não deixar exposta ou visível conscientemente. Na maioria
das vezes conseguimos camuflar ou esconder o racismo na nossa sociedade
porque ao longo dos séculos ele foi sendo lapidado e tornado um
comportamento normal, ou uma brincadeira. Expressões e atos como negro-
preto, negrinha, macaquinho, meu amigo negro, eu tenho pessoas negras na
família, sou casado com uma pessoa negra, meu filho é negro, meu melhor
amigo é negro, faço caridade e dou alimentos para essas pessoas, este espaço
não é seu, revistas e perseguições nas lojas, mercados, perseguição policial
sem motivo real e lógica, apenas intuição da autoridade, juízes julgando pela
cor ou por parecerem um perfil perigoso, escolas com poucos ou nenhum
negro, cursos e concursos com totalmente embranquecidos, pós-graduações
totalmente embranquecidas, shopping para ricos, cinema, teatro, boates,
cargos que ganham mais, filhos concursados e estudando na Europa ou EUA,
entre outras.
Situações que na maioria das vezes parecem discursos de empatia e
amizades tornam-se cumplicidade de um racismo velado, esvanecido pelo
discurso de quem é racista. Sinais sociais, econômicos, políticos de uma classe
eleita, elitista e mais apta a ocupar esses espaços. O racismo muitas vezes
está nas entrelinhas, nos não ditos, nos sussurros, na face desaprovadora que
julga pelo olhar. Os poderes mistificadores do racismo emanam de sua lógica
irracional e confusa, mas premeditadas. Dessa maneira a ideologia dominante
escravocrata coloca a população negra como supostamente incapaz de
processos intelectuais e inferiores comparados ao epitome branco da
humanidade (DAVIS, 2016).

O racismo/sexismo epistêmico é um dos problemas mais importantes


do mundo contemporâneo. O privilégio epistêmico dos homens
ocidentais sobre o conhecimento produzido por outros corpos
políticos e geopolíticas do conhecimento tem gerado não somente
injustiça cognitiva, senão que tem sido um dos mecanismos usados
para privilegiar projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo. A
inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres
de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os
homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade,
o que é a realidade e o que é melhor para os demais. Essa
legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens
ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o
racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e
outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais
que regem o sistema-mundo (RAMÓN GROSFOGUEL, 2016, p. 37).

Esse monopólio do conhecimento propicio à denegação 7 de gerações


negras a seus devidos direitos e deveres como cidadãos limitou-os ao
conhecimento e a lugares que poderiam ter alavancado suas trajetórias para
outros patamares de existencia e qualidade de vida.
No entanto, o que aconteceu foi o desenvolvimento de outra técnica de
limitação desses seres, o encarceramento. Pois, como se não basta esse
monopólio ainda aprimorou sua capacidade de delimitar e limitar a vida dessas
pessoas ao limitar o seu ir e vir e criminalizar com punição de encarcera-lo em
prisões.
Prisões que pós-abolição se tronaram o segundo lar para muitos dos
negros desse país e ainda hoje estão repletas de homens e mulheres negras.
Onde as estratégias de encarceramento tornaram-se formas de retirar ou
esconder o indesejável visível. Pois, não houve liberdade efetiva das
populações negras em 1888 e não há liberdade efetiva hoje. O que temos são
manobras de manutenção de populações negras inteiras a margens sociais
ainda para um abastecimento de uma mão-de-obra barata dentro de um
ecossistema ainda predatória neocolonial.

7 Denegação: aqui usaremos como a mobilização do NÃO-QUERER – SABER. Acreditando na


realidade externa, apesar de não quere saber. Preferir-se-ia que que não existisse, mas se
sabe que existe. Há uma contradição nesse pensamento, que é demarcado por uma negação e
certa afirmação da realidade perceptiva (SCHLACHTER; BEIVIDAS, 2010).
Devido ao poder persistente do racismo, “criminosos” e “malfeitores”
são, no imaginário coletivo, idealizados como pessoas de cor. A
prisão, dessa forma, funciona ideologicamente como um local
abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da
responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que
afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos
em números tão desproporcional. Esse é o trabalho ideológico que a
prisão realiza – ela nos livra da responsabilidade de nos envolver
seriamente com problemas de nossa sociedade, especialmente com
aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo
global (DAVIS, 2020, p. 16-17)

Resta ao negro o desejo de recusar esse significante, que representa o


significado que ele tentar negar, engando-se dessa forma a si mesmo e seu
corpo (Nogueira, 2017). Mas, vou além, é imperativa reconexão dos negros ao
signo do que é ser negro e reorganizar os significantes e significados em suas
psiques através das reconstruções de seus imaginários e trajetórias.
Ao tentar reconectar-se raízes com as ancestralidades esvanecidas,
muitas vezes deparamos com núcleos de dores e sofrimentos transgeracionais.
Muitas mulheres negras que encontramos ao longo da jornada verbalizam
sofrimentos inimagináveis. Não sendo alternativa deixar esse mal-estar de
lado, recusá-lo, recalca-lo, fingindo que não aconteceu, apagando a faísca com
água gélida. O que se propõe é fornecer combustível adequado, dando mais
oxigênio para criar proporções suficientes para aquecer sem queimar com seus
potencias incendiários (KON, 2017).
Sofrimentos, raivas, rancores, iras como combustíveis de partida, mas
não como combustível diário em suas vidas. Pois, muitas vezes passaram por
não verbalização e não-ditos que causaram estranhamentos nas
decodificações. Grada Kilomba (2019) explana que o passado colonial foi
“memorizado”, pois, não foi esquecido. Segundo a autora, foi se forjando uma
ideia da plantação onde a história coletiva de opressão racial, insultos,
humilhação e dor registrados em racismos cotidianos que impossibilitam o
esquecimento. Temos a dimensão da devastação psíquica implementada onde
o racismo se estabelece como trauma como fantasma.
Estamos nos referindo aqui a Pulsão como uma força constante,
irremovível, com estímulos externos e internos, em cuja relação os primeiros
impõem ao organismo a tarefa de subtrair-se deles. Assim, temos um princípio
do prazer, no qual a sensação de desprazer está relacionada ao aumento de
estímulos e de desprazer com a diminuição destes (FREUD, 1915/1996). Essa
pulsão, essa força constante, permanece acompanhando cada ser que sofre
alguma sanção ou trauma ao longo da vida. Seja em situações externas, seja
em sensações internas alocadas após algum evento.
Ou seja, a meta é sempre a satisfação, que só poderá ser obtida quando
a fonte pulsional é suspensa. O objeto é o meio pelo qual a pulsão alcança a
sua meta. A fonte é o processo somático em algum órgão ou parte do corpo
originando estímulos representados na vida psíquica pela pulsão. Assim,
podemos acreditar que heranças arcaicas em épocas primitivas possuíam
núcleos geradores e que não havendo mudanças participavam da vida psíquica
do indivíduo (FREUD, 1915, p.156). Alocando-se muitas vezes na psique por
situações do cotidiano racista escravocrata desde muito cedo. Instalando-se na
tenra idade da primeira infância onde a capacidade de detectar coisas através
da percepção da face das pessoas. Os bebes que ainda não entraram no
mundo da linguagem verbal desenvolvem uma capacidade aguçada de
entendimentos ou de conexão com essa mãe.
Essa conexão, essa mesma capacidade utilizada pela introjeção por
espelhamento e depois aprimorada para a entrada no âmbito escolar, é a
mesma usada depois de ficarmos adultos para entendermos o que as pessoas
desejam ou querem quando não verbalizamos. Criando um manancial de
informações guardadas e registradas para fins de adaptações e preservação
da vida. Onde a função escópica, o olhar com intencionalidade começa a
redirecionar-se e ele se apresenta quase em um “estado de alerta” ou de
“inspeção” quando alguém está diante dele e se move. É através do olhar que
se darão as trocas.
Para poder compreender a especificidade desta pulsão invocante,
adotada pelo sujeito do inconsciente, é importante marcar a diferença
essencial que existe entre a demanda e a invocação. Na demanda, o
sujeito está numa posição de dependência absoluta em relação ao
Outro, porque ele lhe favorece o poder de ouvi-lo bem ou não. A
demanda é compreendida como uma exigência absoluta feita ao
Outro para manifestar-se aqui-e-agora. Ao contrário, o sujeito
invocante é retirado dessa dependência, pois não se trata mais de
uma demanda endereçada a um outro, aí disponível, mas bem de
uma invocação supondo que uma alteridade possa advir, de onde o
sujeito, pura possibilidade, seria chamado a tornar-se. A questão da
invocação nos permite repensar as estratégias do “sujeito-suposto-
saber”, que no processo, torna-se “sujeito-suposto-saber-que-há-do-
sujeito”, e que ao lhe supor o chama a advir. A suposição do
psicanalista reduz-se então (mas nessa redução condensa-se toda a
ética da psicanálise) ao fato de que, apesar dos sintomas que
entravam o paciente, há um sujeito que é chamado a ex-istir (Jean-
Michel Vives, 2009, p. 187-188).

Sendo assim, possuímos a capacidade de registrar e significar através


do olhar, as possibilidades que estes seres subjugaram sobre a psique desse
ser. Registramos o desconfortável mesmo que inconscientemente. Datamos
sua primeira chegada e quando esse ato se repete é como se todos os outros
registros automaticamente se religassem em sequência.
Os registros de racismos não são apagáveis automaticamente, ficam no
inconsciente consumindo energia psíquica e buscando escoar de alguma forma
mais eficiente. Mas, na maioria das vezes isso não ocorre por causa do
excesso de estímulos e sequencias repetitivas. Registrados por estarem
ligados a afetos. Esses afetos serão responsáveis pela interligação e potência
desses sentimentos, traumas, fantasmas. Se registrados em grande
quantidade e potência poderão mover mais angustias e sofrimentos psíquicos.
Ficam registrados como tatuagens e marcas, ou feridas abertas que poderão
trazer pontos de imersão desse sofrimento futuramente. O corpo pra nós
humanos é uma história nas relações, seja o Outro materno, seja o Outro
sociedade criando inscrições, marcas em nosso corpo, voz, psique em um
roteiro que perpassa pela pulsão sexualidade.
Em Freud, encontramos a designação “A Coisa” (das Ding), fora e
dentro do campo das representações que se dão ao mesmo tempo. Os objetos
releem e buscam “A Coisa” na história de uma estrutura incognoscível. Onde a
pulsão irá rastrear objetos em conjunto com o corpo, revisa esse objeto,
esgota-se nele e transforma-se em traços significantes na ordem da linguagem,
chegando ao destino (MOTA, 2011). É como se fosse um vírus buscando por
pontos frágeis, ou fragilizados onde as inscrições foram feitas e que poderão
imergir agora em outra forma. Ou se, terão que ficar mais tempo escondidas ou
submersas para não causarem um gasto psíquico e energético desnecessário
para esse sujeito.
A pulsão invocante, ou vociferante, que vem do latim “invocare” é um
chamamento, “o ser chamado”, invocado pela voz a um olhar especular. E para
que isso ocorra o ser já deve ter sido alvejado anteriormente por esse olhar.
Olhar que é impregnado por projeções de um sujeito que é suposto e que na
maioria das vezes detém uma capacidade de subjugação e julgamentos
perante ao estranho embasadas em suas narrativas fantasiosas de
superioridade. Onde a invocação permite-nos repensar as estratégias do
sujeito-suposto-saber que se tornou “sujeito-suposto-saber-que-há-do-sujeito
(VIVES, 2009. P.187).
Surgindo a questão para a constituição e lapidação de transmutação de
um racismo velado que é imposto e articulado em nossa sociedade nos dias
atuais. Pois, muitas vezes, os negros desse país se sentem amedrontados e
acuados com posicionamentos racistas que não passam pela verbalização.
Mas por posturas e atitudes escópicas que são lapidadas desde a infância.
Sujeitos supostos-saberes que articulam a manutenção e aprimoração do
racismo na sociedade. Ficando enraizadas desde a tenra infância. E nesse
sentido, a linguagem, a cadeia simbólica, determina o ser do nascimento a
morte. Onde o infans vem ao mundo marcado pelo discurso, no qual inscreve-
se a fantasia dos progenitores, a cultura, a classe social, a língua, a época, ou
seja, o campo do Outro, sujeitado ao discurso (COUTINHO, 2005).
Infância submersa em angustias e medos inomináveis que muitas vezes
são sentidos, mas, não havendo possibilidade de nomeação por não entender
do que se está falando, qual o seu sentido. Enfrentando um racismo velado que
muitas vezes irá passar impune, e ainda terá a gota perversa da articulação da
mentira sobre os atos daquele que cometeu o crime. Pois, o outro ainda possui
intrinsicamente o desejo de manter a subalternidade desse ser ao seu bel
prazer. Trazendo o desafio para aquele que sofre o racismo de convoca-lo para
entrar no real e produzir significação na forma de resposta e criando um ponto
mítico de nascimento em conjunto de ambos para construção de uma realidade
onde essa questão submerge e se torna visível.
Desenterrando seus mortos e sofrimentos e a humanidade revê e
realoca suas fantasias de superioridade e poder sobre seres que eles
subjugaram e deixaram às margens para seu benefício próprio. A palavra cala
a voz. A linguagem significa e ressignifica os significantes nesses seres.
Referimo-nos ao constructo escravocrata/racista/genocida de uma cultura que
propagou mentiras e disseminou desconfianças sobre outras culturas que
queria subjugar. Inventando teorias de superioridade e eugenia contra milhões
de seres, dizimando milhares em sua gradual busca por expansão e acúmulos.
Muitos dos sofrimentos da humanidade foram transmitidos e gestados
dentro da compulsão, pela repetição e pelo não-dito. Causando tamanho
desconforto e uma incapacidade de decodificá-los, fazendo que muitas
mulheres negras se culpem por não serem capazes e serem insuficientes em
muitas situações das suas vidas. Encontramos dentro desse caleidoscópio de
culpas como o racismo, o sexismo, o machismo, a opressão de classe, ou seja,
uma sistematização dentro de um patriarcado, que serão questionados por um
processo decolonial8 que desbravaram e descortinaram vários pré-conceitos
que foram sendo forjados ao longo dos séculos para que essas mulheres
negras se encontrassem ainda hoje abaixo da linha da; ou ainda em serviços
de mão-de-obra qualificada, mas nunca especializada.
Em um círculo vicioso de manutenção e apropriação de direitos e
deveres forjado e banhado no sangue de milhares de homens, mulheres,
crianças, tradições, culturas, tecnologias, intelectualidade, politicas, economias,
trocas culturais, trocas comerciais criou-se uma dessimbolização de culturas já
existentes e simbolizadas. Essa circulação e dessimbolização direciona o ser
humano para atos de crueldades mais profundos e demasiadamente
perversos, a ponto de transformarem outros seres humanos em mercadoria e
estes serem desqualificados de sua humanidade. O que no animal
denominamos um comportamento simbólico é o fato de um segmento
deslocado assumir um valor socializado e servir ao grupo animal como
referência para certo comportamento (LACAN, 2005).

8Nesse sentido, ao argumentarmos em favor da decolonidade como projeto político-acadêmico


que está inscrito nos mais de 500 anos de luta das populações africanas (Ndlovu-Gatsheni;
Zondi, 2016) e das populações Afrodiaspóricas, é preciso trazer o primeiro plano a luta politica
das mulheres negras, dos quilombolas, dos diversos movimentos negros, do povo de santo,
dos jovens da periferia, da estética e a arte negra, bem como uma enormidade de ativistas e
intelectuais, tais como: Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis, José do Patrocínio, Abdias do
Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzáles, Beatriz do Nascimento, Eduardo de Oliveira e
Oliveira, Clóvis Moura, Sueli Carneiro, Frantz Fanon, Césaire, Du Bois, C.L.R. James, Oliver
Cox, Angela Y. Davis, bell hooks, Patrícia Hill Collins, etc. Não há duvidas de que um dos
méritos do grupo de investigação modernidade/colonial foi o de sistematizare apresentar com
clareza discussões que estavam dispersas em alguns autores da tradição do pensamento
negro, bem como em outras tradições terceiro-mundiais formuladas, seja no interior, seja no
exterior das fronteiras dos países norte-cêntricos. Outro mérito foi trazer para o primeiro plano a
discussão a importância da raça como dimensão estruturante do sistema-mundo
moderno/colonial. Racismo, como apresenta de forma contundente o texto de Ramón
Grosfoguel neste livro, é um “princípio constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as
relações de dominação da modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as
hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas”. Como o capitalismo histórico podem
ser encontradas na longa tradição do pensamento e da luta dos povos Afrodiaspóricas
(COSTA; TORRES, GROSFOGUEL, 2020, P. 10-11)
Assim foram tornando o ser negro em simbiótico/simbólico com o
obscurantismo do crime que estavam cometendo. Projetaram no negro os seus
mais profundos medos e angustias, os profundos dos terrores que eles
causariam nas próximas décadas e nas próximas gerações. Assim, formulamos
que um comportamento pode se tornar imaginário, quando a partir das imagens
e seu próprio valor de imagem, projetem em outro sujeito, tornando-o
suscetível de deslocamentos fora do ciclo que assegura a satisfação de uma
necessidade natural. A partir daí o comportamento neurótico pode ser
considerado elucidado no nível da economia instintiva [...] O elemento
imaginário tem valor estritamente simbólico (LACAN, 2005).
No entanto, diferentemente do animal, temos a linguagem como forma
de simbolização e ressignificação dos desafios dentro de uma sociedade
neurótica. E reestabelecer contato conosco leva ao caminho da auto cura onde
a linguagem será a forma eficiente de escoarmos significados e significantes
que não puderam ser simbolizados de maneira adequada anteriormente. E
onde nossa aprendizagem sobre o que é ser foi predeterminada...

Para grupos dominantes, o autoamor é construído ao longo da vida,


seja pelo reforço positivo da masculinidade – no caso dos homens -,
seja pelo reforço positivo estimulado pela visão de si mesmo em
todos os espaços, principalmente como padrão de tudo de melhor
que a pele branca significa. Mas, para o grupo de oprimidos, o
desgaste na relação desenvolvida consigo mesmo é tremendamente
afetado pela pressão social negativa, tanto pela ausência de sua
autoimagem como reforço positivo quanto pela insatisfação
alimentada pela cerca que assimilam das estratégias dos grupos
dominantes, de inferioridade e subalternidades “naturais”. Em outras
palavras, eles passam por processos contínuos de desqualificação,
enfraquecimento sistematicamente suas possibilidades de
desenvolver o amor por si mesmos e o reconhecimento de seus
pontos positivos até de sua humanidade (BERTH,2019. p.143).

Ao reconectarmos com nossa humanidade, sensibilizando-se, criamos


entendimentos dos processos que foram perdidos, dizimados das nossas
possibilidade e projetos. Quando um povo é deixado a deriva da busca por um
horizonte ou sonho, torna-se necessário reestabelecer contatos intrínsecos e
externos, em uma tentativa homérica para se reencontrar consigo mesmo.

O negro pode ser consciente de sua condição, das implicações sócio-


políticas do racismo, mas isso não impede que ele seja afetado pelas
marcas que a realidade sociocultural do racismo deixou inscritas em
sua psique. Embora juridicamente capazes de ocupar um espaço na
sociedade, os negros foram, na prática, dela excluídos e impedidos
de desfrutar de qualquer beneficio social. Foram marginalizados,
estigmatizados, marcados pela cor que os diferenciava e discriminava
por tudo quanto essa marca pudesse representar (NOGUEIRA, 2017,
p.122).

O desafio permanente está em decodificarmos as projeções,


transgressões, crimes, holocaustos, degenerações, assédios, corrupções,
pilhagens, desapropriações, assassinatos, enredos endereçados, fantasias
construídas por um imaginário branco perverso e com danos cataclísmicos
para vários povos desse planeta; reconectar-se com o que é mais precioso
para a humanidade: a verdade e a esperança. As histórias não serão mais
contadas pelos vencedores, e sim pelos que sofreram as atrocidades e estão
cansados de serem vítimas, e agora buscam por justiça e equidade. O tempo
dos reis, rainhas, generais, capitães, capitães do mato, coronéis, mandatários,
tutores perpassa pelo “acovardamento” de reivindicar e resistir; não podendo
mais consentir com atrocidades e fingir que nada está acontecendo. Não é
possível que o estranhamento possa ser transformado em fantasia e a
perversão social continuar acalentando um sonho de um ideal
hetero/normativo/branco/europeus/epistêmico.

MULHERES NEGRAS: LEMBRAÇAS DA TRAVESSIA


“Abena”, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no
convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava
para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de violência
metaforiza a povoação das Américas. A história da colonização do
continente americano foi marcada pelo estupro das mulheres
indígenas e africanas escravizadas. A errância de Tituba é um dos
aspectos que compõem a vida da personagem. Ela reside em vários
lugares, pelas circunstâncias da escravização. Tem saudade do local
de origem dos seus, embora seja, recalcada, como se não existisse.
[...] A memória da escravidão vivida pelos povos africanos diversas
vezes é conclamada pela personagem, na mediação dos sofrimentos
pelos quais ela passa no presente. [...] A personagem, sujeito
diaspórico, avalia as dores do presente em consonância com as
dores de seu povo no passado e concluía que: “[...] os sofrimento e
humilhação tinham plantado seu império. A vil esquadra de navios
negreiros continuava fazendo girar a roda da miséria. Quebre,
moinho, com a cana, ante meus braços e que meu sangue tinja seu
doce sumo!” O processo de escravidão de um povo se eterniza no
tempo, em cada negro que tem sua vida ceifada. (CONCEIÇÃO
EVARISTO, 2021, p. 9)

A trajetória de mulheres negras nesse país se inicia com requintes de


extrema crueldade e violência. Não foi em nenhum momento perguntado a elas
se queriam ser escravizadas para outro continente em navios fétidos, escuros,
frios, sem alimentação e com requintes sádicos de violências físicas e
simbólicas.
Gostaria muito de iniciar esse capitulo com outra história, onde todos
os seres humanos que embarcaram para as novas terras encontradas tivessem
escolhido estarem aqui. Que desejaram buscar uma vida nova com boas
perspectivas, almejando criar suas próximas gerações em um país distante
com inúmeras possiblidades. No entanto, não é assim que a história se
estabeleceu. Tivemos ao longo de 388 anos, aproximadamente, inúmeras
dificuldades de estabelecer e viver nesse novo lugar chamado Brasil para
essas mulheres e homens que foram escravizados e arrancados para cá.
Não contar essas histórias com interlocutores negros e suas
perspectivas frente a esse genocídio é deixar que os algozes contem essa
história e consentir a esses algozes minimizarem o que fizeram para trazer
mais de vinte milhões de seres humanos; mais a dizimação de uma população
indígena já existente nesse continente. Além dos altos lucros que
estabeleceram frente ao que denominaram imperialismo espanhol, inglês,
português e francês. Não foram oferecidos privilégios e benesses de terras, ou
um novo lugar para morar e reconstruir as suas vidas. Em campos cheios de
novas possiblidades, muito menos um lugar seguro para criar suas crianças e
construir uma nova vida em um novo mundo.
Não foram dados os privilégios de explorar essas terras e as riquezas
que daqui retirassem e as usassem para prosperar e se tornarem donas de
suas vidas e das próximas gerações que pudessem usufruir das conquistas
econômicas aqui conquistadas. Não foram protegidas por leis fortes e
confiáveis que lhes garantiriam uma igualdade de direitos e deveres sobre seus
corpos, suas propriedades e seus herdeiros. Não foram eleitas como povo
escolhido e com características de superioridade angelicais. Não eram
detentoras de uma estética branca angelical que lhes beneficiasse e
privilegiasse.
Pelo contrário, estamos falando de um período onde os homens
forjaram características boas e más, onde um ser é superior e outro inferior.
Estamos falando de um volume de terras roubadas e pilhadas por um povo
branco e europeu que dizimou milhares de seres humanos e abarrotou navios
negreiros para obter lucro e acumular mais capital. Poderia ter sido uma
imigração pacifica, solidaria e emancipatória, mas não foi. Foram 388 anos de
violência e acumulo de capital, o que impressiona qualquer pessoa. Trata-se de
lucros extraordinário em que apenas um navio negreiro que realizasse seu
percurso dentro do tempo estimado e não perdesse nenhuma peça humana
lucraria valores que poderiam aposentar esse capitão.
Merece ênfase o saque indevido e usurpação de riquezas e territórios
pelas coroas europeias e seus cumplices no maior holocausto da terra, pois
esteve presente em todos os continentes. Novamente trazemos as tecnologias
de poder lapidadas ao longo dos séculos para manutenção desse poder e
permanência de privilégios. Ademais, muitas pessoas veem as mulheres
negras como se “faltasse algo”, como se fossem inferiores quando comparados
aos brancos. É impressionante quando pensamos em trabalhos acadêmicos
contemplando a questão do auto-odio dos negros, examinando as formas como
a colonização e a exploração de pessoas negras é reforçada pelo ódio racial
internalizado via pensamento supremacista branco (HOOKS, 2019, p. 48).
Esse ódio é auto-odio que só é possível se perpetuar porque
acreditamos nessas falácias construídas pelo sistema imperialista, que foi se
especializando e se refinando e se tornou sistema capitalista. E suas bases
estão enraizadas na exploração máxima e acúmulo indevido de capital a
qualquer custo.

Desde a independencia aos dias atuais, todo um pensamento e uma


pratica político-social, preocupados com questão nacional. Têm
procurado excluir a população negra de seus projetos de construção
da nação brasileira. Assim, sendo, não foi por acaso que os
imigrantes europeus se concentraram em regiões que, do ponto de
vista politico e econômico, detêm a hegemonia quanto à
determinação dos destinos do país. [...] Uma divisão racial do espaço
em nosso país, uma espécie de segregação, com acentuada
polarização, extremamente desvantajosa para a população negra:
quase dois terços da população branca (64%) se concentram na
região mais desenvolvida do país, enquanto a população negra,
quase a mesma proporção (69%), concentra-se no resto do país,
sobretudo nas regiões pobres caso do nordeste e minas gerais (Lélia
Gonzalez, 2020, p. 94).

Sendo assim, estamos diante de uma divisão política, social, econômica,


geográfica, pela qual ainda nos dias atuais encontramos as desvantagens
forjadas, estabelecidas e perpetuadas de uma divisão, que para além de
invisibilizar o negro ainda o deixa a margem social.
Gonzales (2020) ressalta que 92,4% das trabalhadoras negras
encontram-se nas ocupações manuais, baixos níveis de rendimentos e de
escolaridade. Em ocupações rurais (agropecuária e extrativismo), urbanas
(prestação de serviços). Ou seja, uma dificuldade de mobilização social
ascendente para mulheres negras. Nesse sentido, persiste a preponderância
desse sistema de exclusão e impossibilidade de ascensão e desenvolvimento
destas mulheres e sua permanência, ainda no século XXI, em ambientes
subalternizados e precarizados ao custo de suas vidas sem perspectivas e
possibilidades.
O que estamos nos referindo aqui é uma construção de sistemas de
aparatos impeditivos para o avanço destas mulheres a locais de poder que
sempre foram disputados e ocupados pela parcela branca da sociedade; seja
ela, masculina ou feminina e, portanto, inacessíveis para essas mulheres.

O racismo se torna um fantasma, assombrando-nos noite e dia. Um


fantasma branco. Vivê-lo é tão excessivo e intolerável para a
organização psíquica, que a violência do racismo assombra o sujeito
negro de maneiras que outros eventos não o fazem. É uma estranha
possessão que retorna, de maneira intrusiva, como conhecimento
fragmentado. Somos assombradas por memórias e experiencias que
causam dor desumanizante, uma dor da qual se tem pressa em fugir
(KILOMBA, 2019, p. 2019).

Fantasmas que podem ser desmantelados ou ressignificados através de


cadeias de significantes ressignificadas e aprimoradas ao longo das gerações
ancestrais dessas mulheres negras. Cartas marítimas de estados psíquicos
conquistados e alcançados de solidariedade por aquelas que já navegaram por
mares obscuros e temorosos da vida.
As mulheres não precisam eliminar suas diferenças para construir
vínculos de solidariedade. Não precisamos viver sob a mesma opressão para
combatermos a opressão em si. Não precisamos sentir hostilidades contra os
homens para nos unirmos, tão grandes são as riquezas das experiências,
culturas e ideias que podemos compartilhar umas com as outras. Podemos nos
unir pelo compartilhamento de interesses e crenças, unidas em nosso apreço
pela diversidade, unidas em nossas lutas para acabar com a opressão sexista,
unidas pela solidariedade política (HOOKS, 2019, p. 109).
Referimo-nos aqui ao que Patrícia Hill Collins (2019) escreveu sobre a
proximidade dos problemas globais e locais que milhares de mulheres
enfrentam como pobreza, violência, questões reprodutivas, falta de aceso a
educação, trabalho sexual, suscetibilidade a doenças. As ações exemplificam a
conexão entre experiências vividas e opressão, devendo haver um ponto de
vista próprio sobre estas experiencias e os atos de resistência. Essas
experiencias históricas coletivas com a opressão poderiam motivar a formação
de um ponto de vista autodefinido, ativismo (COLLINS, 2019).
Sendo assim, trago aqui a importância para além das resistências,
autodefinições, empoderamentos, experiencias, experiencias histórias, busca
por entendimentos como talvez o ponto nodal de tudo isso, a mulher negra e
sua psique. Criando entendimentos sobre a psique e suas nuances onde foram
germinados seus medos, derrotas, insensatez, felicidades, glorias, mas onde
também muitas delas se sentem aprisionadas e indefesas, tanto do externo
quanto do interno. Esse último avassalador caso não equilibrado, equalizado e
revisitado, em uma tentativa de produzir significação destas mulheres em
constante movimento que precisam produzir mecanismos frente à cognição, à
imaginação, à fantasia, ao amor, à linguagem e à representação.
Temos que buscar conhecimentos mais profundos sobre seu estar no
mundo e sua saúde mental, com o objetivo de nos sofrimentos destas mulheres
encontrarmos espaço intelectual e político para a discussão do “inferno” que
elas enfrentam (COLLINS, 2019). Este inferno perpassa pelo social, mas
principalmente por elas mesmas, ou seja, sua psique foi impregnada e
alimentada por estereótipos pejorativos que as levaram para um submundo
intrapsíquico empobrecido. Consideradas, muitas vezes, negras barraqueiras,
deprimidas, maléficas, mesmo quando eram responsáveis pela vida de
milhares, do trabalho, ao cuidado, a alimentação.
Estamos falando aqui de registros, transformações e substituições que
estarão intrinsecamente ligadas ao que Lacan (2005) chamará de Real,
Simbólico e Imaginário, tríade absolutamente indissociável, pois se entrelaçam
e juntos dão consistência e existência ao psiquismo. Onde existe relação com o
semelhante, relação a dois, relação narcísica, há sempre para o sujeito algo
esvanecido. Ele sente que é o outro, e o outro é ele. Esse sujeito definido
reciprocamente é um dos tempos essenciais da constituição do sujeito
humano. Tempo insubstituível, que pode emergir nas estruturas neuróticas
indagadas no reflexo de si mesmo (LACAN, 2003, p. 43).
Esse reflexo só pode se tornar totalidade em si quando aprendemos a
narrarmos a nós mesmos e trazer para a autoria a possibilidade de significação
e reconstrução da trama humana de nossas vidas. E nesse caso são milhares
de séculos contados através de espelhos quebrados e danificados que
distorceram nossa auto-imagem e produziram imagens trincadas, quebradas,
evanescentes.
Nesse contexto lidamos com a possibilidade de transgeracionalidade,
sobre a qual nos falam Nicolas Abraham e Maria Törok (1995) e Olga Correia
(2001), Mauro Rehbein, Daniela Chatelard (2013), psicanalistas que
conceitualizam sobre as possiblidades de uma transmissão psíquica geracional
e seus mecanismos. Nessa encontramos uma transmissão psíquica
intergeracional que é transmitida pela geração próxima, como os pais, e essa
sendo possível ser transformada e metabolizada. E a transgeracional, onde o
material psíquico da herança genealógica é inconsciente e não simbolizado; e,
portanto, não sendo integrado ao psiquismo apresentando lacunas, elementos
foracluídos, ecriptados e transmissíveis para outras gerações.
Sendo assim, abre-se a questão para as possibilidades de transmissões
psíquicas intergeracionais e transgeracionais, onde a família se torna o
epicentro dessas mulheres negras, onde seus sofrimentos psíquicos vão além
de um sofrimento dos dias atuais. Dessa forma, podendo estar interligados com
as transmissões tanto de seus país como de seus bisavós e tataravós, entre
outras. Aqui nos referimos a identificações que levam a profundos e complexos
cenários como pulsões, narcisismos, traumas, recalcamentos, denegações,
somatizações, abortos, violências sociais, clivagens, projeções, boicotes.
Muitas mulheres negras possuem sistemas complexos de auto-
violências profundas, onde inconscientemente colocam-se em xeque-mate em
várias situações da sua, vida. Essas violências muitas vezes são repetições de
vivencias e violência constituídas na infância, que são recolocadas na sua
trajetória de vida adulta.

Pois caso as heranças psíquicas não forem assumidas e


simbolizadas, ou processadas pela família, e assim transmitidas
dando continuidade geracional e manutenção das lacunas, de
proibições, de segredos, de recalcamento e esquecimento da História
da família, ou, ainda, provocando o surgimento de novas rachaduras.
Como se trata de simbólico, o que importa do segredo não é
necessariamente o seu conteúdo, mas a interdição de falar.
(REHBEIN; CHATELARD, 2013, p. 566).
Segredos que foram enterrados, mas não ressignificados, não havendo
luto e significação dos eventos traumáticos. E se pensarmos em mais de 400
anos de escravidão (pois, a escravidão ultrapassa as datas comemorativas),
notaremos que muitos dos lutos e fantasmas das famílias negras ainda se
encontram em luto.
Não enterraram seus mortos, não realizaram seus ritos de passagens,
não lidaram com seus traumas, não ressignificaram suas perdas. Tumbas
egípcias com milhares de labirintos de sofrimentos que deixaram as feridas
abertas, pulsantes e latejantes até os dias atuais, encontrando-se sem
simbolização, significação e ressignificação. Quando algum acontecimento
torna-se segredo familiar, enquanto organização patológica, via recalcamento
“conservador”, está ligado ao luto e remete à vergonha da perda do objeto,
impossibilitando a comunicação social.
Em busca incessante por um menor gasto energético que levou a
recalcamento dinâmico onde o criptóforo guarda um desejo já realizado sem
desvios que encontra-se enterrado, incapaz de renascer ou de virar pó
(ABRAHAM; TÖROK, 1995).

A cripta significa o que está oculto, velado, secreto, obscuro,


ininteligível, e o “criptóforo” é portador em si de uma cripta, de um
segredo, está como um tumulo, a realidade para ele nasce com a
exigência de permanecer escondida. Para o criptóforo, trata-se de um
desejo realizado e que já se encontra sepultado, porém incapaz de
renascer e de virar pó. A cripta corresponde a um lugar definido,
situado entre inconsciente e o ego da introjeção. Inconsciente artificial
instalado no ego, o qual cumpre papel de guardião desse tumulo. E o
que se mantem na cripta são palavras sepultadas vivas, indizíveis. As
atitudes que favorecem a espessura das paredes do tumulo
favorecem também a eclosão da psicose (REHBEIN; CHATELARD,
2013, P. 568).

A cripta como sintoma patológico impede o luto adequado e eficiente


pelo qual esses sujeitos poderiam seguir suas vidas e reorganizarem suas
psiques. O trauma que se instalou através da introjeção da identificação
impediu que esse sepultamento fosse feito. Impedindo o sepultamento e
ressignificação.
Sem sepultamento, sem luto, sem significação, sem possibilidades de
seguir em frente, traumatizados e punidos a sofreram sem perspectiva de
antídotos para sanar a dor das grandes perdas sofridas. Assim negligenciaram
ou impediram que os povos que foram arrancados da África pudessem enterrar
seus mortos e se enlutar pelas suas perdas como família, cultura, vivencias,
amores, filhos, mães, avós, avôs, terra, ligações simbólicas entre outras coisas.
Criaram um trauma transgeracional para essas populações, estilhaçaram seus
futuros, enlutando esses povos por séculos em significações e elaborações
insuficientes e precárias para o tamanho do trauma.
Como uma mãe superará a perda de um filho arrancado de seus braços
e levado para outro continente sem saber onde? Como? Ou de uma família
inteira separada sem a menor ideia de onde estão? E como estão? Como
lidaram com a perda de seus meios simbólicos de significação, Como religiões,
rituais, ligação com a terra, com o ecossistema? Ou seja, traumatismos
cumulativos que Olga Correia (2000) irá relatar afirmando que esses acúmulos
não metabolizados criaram mecanismos defensivos obscurecidos, ou no não
dito, pois transgridem as regras culturais do grupo. Séculos de acúmulos, de
não ditos, que causariam falhas na estruturação psíquica clivada, não
favorecendo aos processos de constituição dos objetos internos estáveis,
confiáveis.
Nesse sentido, a metáfora do “cortar” ou “cortar sua personalidade”
expressa o segundo elemento do trauma, ou seja, sentimento de ruptura, corte
e perda causada pela violência do racismo cotidiano privando o sujeito de
conceções sociais (KILOMBA, 2019). Por conexões falhas, identificações,
contratos intersubjetivos e introjeções falhas e insuficientes encontraríamos
sujeitos incompletos, inacessíveis, adoecidos, trincados. Em busca de
comprovarem a todo custo suas falhas, o que é o caleidoscópio em que as
mulheres negras se encontram.
Perdidas e impossibilitadas de reescreverem suas próprias histórias por
não saberem quais são suas verdadeiras histórias, por terem permanecido
séculos em um limbo de mentiras e falácias sobre suas trajetórias e conquistas.
Impossibilitadas de reconstruírem seus percursos e de seus ancestrais,
relegadas a uma cripta de sofrimento inenarrável, inominável. Nesse contexto,
a dor não tem mais nome, só se transformou em uma dor anestesiada
constantemente por mecanismos paliativos de proteção em busca de gerar
menos sofrimento do que já existe em suas vidas. Ou na busca por
amplificarem esse sofrimento para comprovarem que não são dignas de serem
amadas e amar.
Mulheres fortes, mas intrinsecamente feridas e machucadas por uma
sociedade perversa e extremamente manipuladora, com ideais inalcançáveis e
como meta que nunca irá se realizar. Em uma repetição constante e uma
resistência de elaboração titânica. Kaës (2001) esclarece que o pacto
denegativo cria conjuntos do não-significável, do não transformável, zonas de
silêncios, bolsões de intoxicação, espaços-lixeiras, linhas de fuga que mantem
o sujeito estrangeiro de sua própria história. O recalcamento e a repetição são
válvulas ineficientes de gerenciamento e organização de energia destes
sujeitos. Muitas mulheres negras encontram em seus casamentos, família,
grupos e alianças contratos e pactos inconscientes que forjaram relações
espelhadas com as anteriores.
Ainda persistem os assombros de abusos, conceções, sabotagens,
frustações incapacidades, impossibilidades que as farão duvidar e rechaçar
suas capacidades mais intrínsecas e seus potenciais mais promissores. Aqui
se encontra a importância dos registros que Vicente Clavurier (2013) designa
como um ternário de registros onde R (real) S (simbólico), I (imaginário) onde o
registro de atos e sua inscrição tornam-se o lugar do dito, do ser falante.
Essa tríade RSI trará a possibilidade de trazermos para o dito e para o
significável o que muitas vezes ficou nos registros imaginários individuais e
coletivos. Nesse sentido, criptado em seu amago mais profundo inelegível,
inscrevermos e simbolizarmos esse imaginário perpassa pela metabolização
desses estereótipos e traumas, onde as palavras expressaram esse interdito,
esse inominável, esta cripta humana que só se ressignificará através do
diálogo e das trocas humanas saudáveis comprometidas com descodificações
registradas em símbolos ininteligíveis. Ou seja, uma ressignificação dos
significados e significantes de signos originais que ao longo dos séculos foram
corrompidos pelo imaginário social adoecido/pervertido dos seres humanos.
A herança deixada em representações e afetos manifestados através de
discursos e repetições nas relações emocionais e passionais dessas famílias
são passiveis de alterações através de representações conscientes e
inconscientes dos movimentos psíquicos de inibição e atualização do desejo
(ALMEIDA, 2008). Para a Psicanalista Maria Emília Sousa Almeida (2008), os
não ditos, que relembram os segredos, da cripta aos fantasmas, a clivagem; o
mal dito, à maldição herdada leva o ser dividir-se entre ser o fim em si, ou o elo
da cadeia intersubjetiva como porta voz do desejo, interditos e ideais do grupo.
Muitas mulheres negras tornaram-se porta vozes do sofrimento e dos
interditos familiares dessas gerações que ficaram interditadas por não dizerem
suas palavras e suas verdades. Acabaram criando um ciclo vicioso de
adoecimentos inigualáveis para as gerações futuras, pois não puderam enterrar
seus mortos, nem fazer seus enlutamentos, muito menos contar suas histórias,
tamponando possibilidades de ressignificação. Inscritos na linguagem,
submersos em um inconsciente coletivo emergirá o ser que não reconhece sua
proposição nas mudanças a serem efetivadas, adquirindo uma passividade
notória na tentativa de não produzir um gasto psíquico avassalador, ou
destruidor.

É fato que devemos entender o simbólico de que se trata na troca


analítica. Quer se trate de sintomas reais ou atos falhos, ou o que
quer que seja que se inscreva no que encontramos e reencontramos
incessantemente, e que Freud manifestou como sendo sua realidade
essencial, trata-se ainda e sempre de símbolos, e de símbolos
organizados na linguagem, portanto funcionando a partir da
articulação do significante e do significado, que é o equivalente da
própria estrutura da linguagem. (LACAN, 2005, p. 23).

Esses significantes e significados são o fio condutor até os signos


originais transportados por vários séculos como significados e significantes
contaminados por imaginários impregnados de estereótipos que contaminaram
a sociedade em suas mais profundas inscrições.
E nesse caso foi transmitido e criptado o desejo avassalador de morte
que o humano carrega consigo desde os primórdios, mas que de tempos em
tempos é intencionalmente direcionado para uma parte da população. E nesse
periodo elegeu-se o ser negro como artífice da manutenção da humanidade e
da retaliação na tentativa de invisibilizar a maldade humana. Seres humanos
são cruéis e precisam a todo o momento se relembrar, através da significação
e ressignificação pela linguagem, o quanto a psique humana pode se tornar
seu inimigo mais cruel. Os sete pecados capitais são características
intrínsecas, sinalizadores das mais profundas potencialidades e perversidades
que pode ser alcançada.
A cripta como constituição psíquica onde o ser é induzido a simbolizar
em relação ao outro, onde o desejo psíquico custará sua vida pulsional. O
trauma sem possibilidade de elaboração, mas introjetado. Um fantasma
inconsciente, com lacunas, não simbolizado, causando uma ferida narcísica,
um morto sem sepultura produzindo sintomas patológicos que constituíram
esses seres (CORREIA, 2008; ABRAHAM; TÖROK, 1995; REHBEIN;
CHATELARD, 2013). Embotado em seu próprio sofrimento, enlutado em um
luto transgeracional que nem ele mesmo pode alcançar o signo. Traumatizado
em busca de uma cura ou de uma culpa para significar a dor.
O trauma que transbordará nos sintomas perpassa pelo registro
corpóreo, onde cada registro torna-se senha que decodifica, designa (LACAN,
2005). Ou, signo linguístico que une um conceito a uma imagem acústica
(marca física do som), marca psíquica, representação (DOR, 1989).

“marca psíquica” e “representação”, que prefiguram a distinção


fundamental entre: a “linguagem”, “a língua” e “a fala”. As unidades
linguísticas enquanto entidades “psíquicas” participam, assim, do
registro da “língua” e não procedem da fala. É por essa razão que a
“linguagem” deve ser considerada como a utilização/articulação de
uma “língua falada” por um sujeito. O signo linguístico aparece, então,
como uma “entidade psíquica de duas faces,” cujos elementos são
instituídos, de imediato, numa relação de associação. Se, portanto, o
signo linguístico é antes de mais nada “relação”, essa relação, que é
aparentemente fixa no sistema da língua, é suscetível de
modificações na dimensão da linguagem. (DOR, 1989, p. 28).

Essas senhas e registros sinalizadores das dores, dos sofrimentos e das


potencialidades para ressignificar. Sofrimentos esses que na maioria das
vezes não representa a vida atual, desencadeando sofrimentos que
ultrapassam a inteligentibilidade da carga psíquica encontrada no momento
atual. Muitas mulheres negras, não conseguindo significar ou ressignificar seus
sofrimentos por não reconhecer sua origem, ou não tendo ideia do tamanho da
sua potencialidade, ou não entendendo como os grupos que conseguirem
estabelecer essas senhas poderão decodificar e utilizá-las de forma
decodificadas, podem buscar angariar artefatos sublimatórios dos limites
humanos e não precisaram se alienar ou vivenciar a neurose social. Então a
chegada como objeto torna-se a pergunta,o descobrir os sentidos das coisas,
da origem do mundo, ou objeto de outros objetos (FANON, 2008).
Para que isso se efetive temos que buscar criar novos caminhos
humanos e psíquicos, onde cada mulher negra encontrará seus medos e
angustias mais intrínsecos e projetará para fora de si. Criam a possibilidade de
reassistir as atrocidades cometidas e buscar um entendimento analítico sobre o
que aconteceu, o que de fato lhe atinge, que faz parte da cripta; o que não foi
decodificado, mas também foi herdado. Persiste a pergunta: Onde se
encontram nesse exato momento de suas vidas atuais?
Para que isso ocorra temos que parar de mentir e ajudar a sociedade a
parar de mentir de que não aconteceu nada, que tudo foi pacifico, que não
houve atrocidades cometidas, que somos uma sociedade miscigenada, que
não existe racismo, que todos somos iguais perante a lei, que filhos de pais
negros recebem as mesmas oportunidades que os filhos de pais brancos
economicamente abastados nesse país, que nossas escolas estão educando,
que nossas crianças negras estão protegidas... o que é a meritocracia nesse
país, que há privilegiados brancos.
São questões que ainda estão criptadas, enterradas, ocultadas, mas que
produzem fantasmas que perambulam pela sociedade. As cobranças das
dívidas escravocratas desse país terão que ser trazidas à luz da
responsabilidade humana para que seja sanada essa dívida e para que
possamos seguir em frente. Aqui relembro do efeito surpresa para criar um
alarme, um sinalizador, um farol que irá guiar a humanidade, pois essa precisa
encontrar essas inscrições e senhas para alertar os seres. O efeito surpresa
como signo, fio condutor do trauma, passando novamente no presente e
encontrando a intersecção no ponto de angustia (DOR, 1989).
A angustia criada a partir do olhar branco, como peso extra, que não
deixa definir seu esquema corporal e, portanto, negando e criando incertezas
avassaladoras. Ficaram rastros, sensações, percepções táctil, espacial,
cenestésicas e visual imersas em detalhes, anedotas e relatos (FANON, 2008).
Um povo indigno foi capturado em sua terra natal para abastecer a mão de
obra faltante deste país; homens e mulheres negras foram arrancados de suas
casas, subjulgados, acorrentados, vilipendiados, massacrados; homens
brancos acorrentaram mulheres, crianças, pais, filhos, filhas... Não foi dado a
oportunidade de escolha, não foram libertados quando chegaram, foram
maltratados, amedrontados, espalhados, humilhados. Foram transformados em
signo amaldiçoado, mau dito, indignos, signo negativo.
O sentido semântico de ser negro nesse país torna-se a ação contínua
de maus tratos, de abusos, de atos agressivos, de injurias, de ofensas, de
violência constantes, por aqueles que cometeram o ato criminoso de execrar
humanos a níveis objetais. O ser negro pejorativo passa a existir e torna-se
significado e significante negativado. Não se tendo mais limites sobre o
imaginário branco adoecido, o simbólico criado levou aos confins dos medos
inconscientes dessa parcela da população que já havia lavrado um pacto com
o capital. E a possibilidade de estabelecer novamente algum vínculo saudável
entres todos os atores deste drama humano perpassa pela fala mediadora.
Lacan (2005), Freire (1921-1997), Angela Davis (1944-2021) definem sobre a
potencialidade da fala mediadora que permite entre os seres, transcender a
relação agressiva fundamental como miragem do semelhante, onde o humano
será exposto ao surgimento das fraquezas que só serão lapidadas na
experencia da transcendência.
Para chegar à transcendência cada mulher negra precisa primeiro saber
seus pontos fracos, seus pontos nodais. Pois, sem isso elas até podem chegar,
mas, não efetivam nos lugares, pois, serão cooptadas pelo sistema. Sistema
esse organizado e projetado para dificultar sua ascensão e permanência.
Esses pontos interseccionais perpassam pelo auto-conhecimento dos fatores
sociais que as levaram as construções psíquicas, sociais, politicas e
econômicas. Sim, as mulheres negras forjaram e extraíram das circunstancias
opressoras que vivenciaram a força necessária para resistir à desumanização
diária da escravização, mas também da pós-escravidão, onde suas
experiências acumuladas através do trabalho, da família, da luta contra a
escravidão, na qual foram espancadas, estupradas, mas nunca subjugadas. A
pós-escravidão também possibilitou a transmissão às próximas gerações de
um legado de trabalho duro, perseverança e autossuficiência, um legado de
tenacidade, resistência e insistência na igualdade sexual, ou seja, uma nova
condição de mulher (DAVIS, 2016).
O conhecimento da transcendência fortalece, capacita, aprimora,
podendo ser usado como força de impulsão para o auto-conhecimento para a
autotransformação e o aprimoramento frente aos desafios de nossa sociedade.
Sociedade essa que, segundo Felipe, M, Saramago, Maria João Abrantes, Inês
Lobo Madureira, Ana Alexandre, Marina Lencastre (2020) ressaltam, carrega o
legado psíquico e o herdeiro das histórias, da cultura e de experiencias
ancestrais onde as vivencias podem o pressionar em uma história que não é
sua.

A transmissão psíquica geracional implica olharmo-nos numa cadeia


de memórias. Olhar o nosso papel, nosso lugar, aquele que nos foi
reservado numa corrente que vai além da história, do legado e da
esperança material, um lugar inscrito numa estória família que, se
incompreendida e irrepresentável, atravessa as gerações sem por
elas passar, aplainando-as e criando espaços vazios na psique, onde
os fantasmas inconscientes ganham forma, agrilhoando-nos a
repetição insalubre de um sofrimento que não é nosso (SARAMAGO;
ABRANTES; MADUREIRA; ALEXANDRE; LENCASTRE, 2020, p. 47)

Essas são transmissões inconscientes que ultrapassaram o tempo e o


espaço, cristalizando-se em uma psique adoecida e vilipendiada durante os
séculos de escravização e usurpações. Assim o oprimido se identificou com o
opressor, por este ter dizimado qualquer possibilidade de identificação com os
seus entes mais próximos ou queridos.
A escravização de milhões de seres humanos não permitiu que famílias
ou entes queridos ficassem juntos. Todos foram espalhados e se tornaram
inconectáveis, para não criarem motins ou rebeliões. As separações, já nos
massacres realizados nas aldeias e depois nas costas marítimas onde os
navios negreiros estavam, implementaram um desfalecimento das vivencias
mais próximas, seja por alianças familiares, seja por alianças tribais, seja por
dialetos.

O narcisismo primário forma a base para o narcisismo secundário,


vulgarmente conhecido como a dose essencial de estima que o ego
dedica asi mesmo. O qual, por sua vez, é tributário das desilusões
sofridas pelos pais em relação às suas próprias fantasias narcisistas:
os filhos representam uma renovação das velhas esperanças infantis
dos adultos, contrariadas pela realidade da vida. Outra parte do
narcisismo secundário resulta de suas eventuais experiências
exitosas – tanto no sentido dos investimentos em direção aos ideais
do ego quanto nas buscas de satisfação da libido objetal (KEHL, 200,
p. 13)

As esperanças não foram renovadas. Os pais não conseguiram repassar


suas desilusões ou fantasias narcísicas, não puderam renovar as velhas
esperanças infantis. Os ideais de ego foram interrompidos. Corrompeu-se um
dos processos de constituição do inconsciente humano onde o trauma instalou-
se através de uma experiência de estresse ou choque extremo. O estresse
como evento fisiológico, interno ou externo que exige adaptação do corpo. Mas
estamos falando da neurofisiologia de uma luta não resolvida, em algum
momento da história do ser, onde a fuga foi impossibilitada, provocando um
congelamento dos centros de excitação do cérebro afetando a homeostase
(SONIA GOMES, 2021).
O equilíbrio que até ali se efetivava de alguma maneira, mesmo que
precária na vida desses seres foi interrompido, sonegado, eliminado. A
possibilidade de viver suas vidas, não existia mais. O que traz a instabilidade
que agora em diante irá ser uma constante. A impossibilidade de defesa, a
impossibilidade de fugir, a impossibilidade de retornar ao que era, a
impossibilidade de retomar suas vidas, ligada a incapacidade de assimilar e
acomodar o volume significativo de experiencias vivenciadas em grande
volume marcou as psiques. O regulador interno impossibilitado de reorganizar
o funcionamento interno e os sistemas corpo e mente se desconectando. O
equilíbrio, a memória, o sistema musculo-esquelético em extremo alerta
dissociam-se. Dissociação que causa a distorção da realidade objetiva, tempo
percepção, continuidade de experiencia, como desconexão fundamental:
pensamentos, emoções, sensações, memoria (GOMES, 2021).
Causando assim, um registro, um selo, uma marca, uma ideia, uma
imagem, um representante ideativo carregado de energia, ou um representante
das pulsões. E esse representante, depois de carregado uma vez, tem a
particularidade de ficar prolongadamente ativado como se fosse uma pilha, e
qualquer tentativa de reabsorver a excitação ou eliminar a tensão é uma
tentativa fadada ao fracasso. Fracasso que, se repetido inúmera vezes com
intensidades excessivas, forjará um simulacro de uma descarga parcial
(NASIO, 1995).
Tudo isso nos leva a conjecturar os selos, os registros, as marcas, as
ideias, os representantes ideativos que ficaram interligados e pulsantes nesse
inconsciente individual e no inconsciente coletivo de homens e mulheres
negras que foram escravizados e trazidos além mar, produzindo constantes
embates entre o princípio de prazer e desprazer e o de realidade. Portanto,
criando-se representações revestidas de energias impossibilitadas de serem
descarregadas de forma saudável, ou normal para um aparelho psíquico
adoecido. O adoecimento do aparelho psíquico, ou a sobrecarga de energia
acumulou ou deslocou o sofrimento para outros patamares de recalcamentos,
condensação, deslocamentos, representações, afetos, fantasias.
Uma herança dos conteúdos inconscientes em uma matriz de
investimentos, predisposições a sinais de reconhecimentos, designação de
lugares, objetos de satisfação, meios de proteção e ataque, vias de realização,
limites e interditos, sustentando o recalcamento de representações, suprimindo
afetos. Um ser nomeado, representado, situado ao desejo do emissor, com
interditos e ideais do grupo (MARIA EMILIA SOUSA ALMEIDA, 2008). Foram
registrados, anotados, marcados com signos corrompidos e adoecidos e
transmitidos pelas linhas significantes e significas em proporções inimagináveis
as atrocidades mais profundas de nossa humanidade; transformando o
humano em objeto, em peça de um quebra cabeça desumano de lucro e poder.
Mulheres negras foram transformadas em prostitutas, bruxas, maléficas,
indesejáveis, escravizadas, usurpadas, empregadas, amas de leite, raparigas,
impuras, indignas, humilhadas. Registros, signos incorretos e indignos para as
mulheres que carregaram esse país no útero, na teta. Mulheres que deixaram
seus filhos em casa sozinhos para cuidar dos filhos dos brancos, das casas
dos brancos; deixaram seus filhos à mercê do adoecimento da periferia para
onde foram jogados.
Tiveram que registrar signos corrompidos, e para não sobrecarregar
suas psiques compactuaram inconsistente em esconder suas tragedias em
mitos, segredos, maldições, lacunas de representações, repassando para a
próxima geração. Ligados pela força da tragedia e pelos lutos, onde os filhos,
pais e avós interligam-se pelo trauma (Almeida, 2008; André, 2008).
Trauma que precisa repassar, permanecer vivo, nas histórias desses
seres para que não esqueçam o que acometeu em suas psiques adoecidas.
Porque adoeceram... E as informações e delações serem contadas,
repassadas para as próximas gerações. Para a psicanalista Maria Rita Kehl
(2013) para o melancólico queixar-se é dar queixa. A lamentação da melancolia
é uma acusação contra alguém, um outro que não sabe identificar.

O trabalho psíquico empreendido pelo enlutado, embora empobreça o


ego e torne o sujeito inapetente para quaisquer outros investimentos
libidinais, pode ser considerado um trabalho da ordem da saúde
psíquica. É um trabalho de paulatino desligamento da libido em
relação ao objeto de prazer e satisfação narcísica que o ego perdeu,
por morte ou abandono. Ter sido arrancado de uma porção de coisas
sem sair do lugar: eis uma descrição precisa e pungente do estado
psíquico do enlutado. A perda de um ser amado não é apenas perda
do objeto, é também a perda do lugar que o sobrevivente ocupava
junto ao morto. Lugar de amado, de amigo, de filho, de irmão. (KEHL,
2013, p.14).

Na medida que esse mundo, esses lugares não existiam mais ficando
apenas o estranhamento, o vazio e um desinteresse profundo por tudo que
circunda. Apáticos frente a tudo que os rodeia. Uma libido fadada a ter que
encontrar novos significados e significantes para produzir sentido em suas
vidas. As escolhas não estão mais a seu alcance, o trauma já se estabeleceu e
a cripta já esta pronta para receber o enlutado e sua jornada frente aos
desafios de permanecer vivo. Mas, não na plenitude do ser humano e sim de
uma forma apática e indisponível para a vida.
Criptado em um enterro intrapsíquico de uma vivencia vergonhosa e
indizível, traduzindo-se num fantasma de incorporação, por causa desse
segredo inconfessável. Objeto psíquico interno em estado de decomposição.
Onde essa não vida poderá eclodir como estruturas Borderline, distúrbios
psicossomáticos, pulsões de morte, pensamentos intrusivos, ansiedades
inlocalizáveis, clivagens, enigmas... sendo assim, um alto custo nos percursos
do desejo e na construção subjetiva (CORREIA, 2003). Altos custos que
perpassam por melancolias, depressões, bipolaridades, transtornos de déficit
de atenção, alto índice de boicotes, não merecimentos, transtornos de
ansiedade, personalidades Borderline, tentativas de suicídio, pulsões de morte,
não merecimentos, não lugares.
Maria consolação André (2008) já relatava o sofrimento dos
escravizados e as consequências dos traumas instaurados e o possível
surgimento de uma resistência passiva denominada por ela Banzo (desgosto,
nostalgias) instalando a inanição espiritual, ou seja, suicídio por falta de
vontade de viver atrelados ao medo, vergonha, raiva, isolamentos em
contraponto com a humilhação social, injustiça política, invisibilidade publica,
política atrelados a violência material e simbólica (ANDRÉ, 2008, p. 16-166)
Essas modificações intrapsíquicas, cada uma em sua intensidade e
proporção, acarretará e acarretou ao longo dos séculos instabilidades nas
vidas e nos lares dessas pessoas. Assim foi encontrando terrenos férteis para
proporcionar desajustes, financeiros, álcool, drogas ilícitas, trafico, roubos,
crime organizado, subalternizados, escolaridade baixa, natalidades
desajustadas, incapacidades de criar os filhos, incapacidade de amar os entes
queridos, temperamentos agressivos e explosivos entre tantos outros indícios
de adoecimentos mentais. Muitas vezes sendo estereotipada como triste, louca
ou má. Isso gera sofrimento que transborda, loucura que extrapola, maldade
embricada em sofrimentos e angustias pelas impossibilidades de nomear e
caracterizar seus mais profundos sentimentos.
Seres humanos que sofrem maus-tratados, injustiçados, inferiorizados e
desrespeitados, adquirem uma tonalidade triste e sofrem desamparos intensos
e acabam reagindo em um primeiro momento com perplexidade e revolta, mas,
a em seguida embotam-se em apatia, desistência e impotência. Vítimas de
discriminação poderão se tronar mortos-vivos ou vivos-mortos, assassinados.
Kon (2017).
Vivos-mortos conclamando por voltar a viver e sorrir em uma sociedade
que lhes negou tudo, até a dignidade. Não foi possível ser agente político,
social e humano, pois foi vetado seguir em frente mesmo pós-abolição. Os
diretos foram arrancados dos sonhos e dos imaginários destas famílias, desses
seres e o mais perverso foi criar um ideal meritocrático.
Um mito dentro da democracia racial impregnado de violência simbólica
contra as mulheres negras deste país. Em uma conexão com o sistema
simbólico que o lugar de mulher negra em nossa sociedade é de inferioridade e
pobreza codificado pelo étnico e racial deste país. Logica simbólica que a
transformará em objeto sexual (GONZALES, 2020). As mulheres negras
sempre foram tratadas como objeto de fetização e brutal desprezo de nossa
sociedade. E como todo o fetiche cria-se um lugar mítico/mágico para elas. O
carnaval.

Carnaval. Rio de Janeiro. Como sempre, o leitmotiv é bebida,


mulheres e samba. É mágico, como um conto de fadas, dizem os
comentaristas de rádio e televisão. Há penachos, lantejoulas, muita
extravagância e luxúria, empreendedores, bandeirantes e
exploradores, deuses africanos e indígenas, animais, gays, reis e
rainhas, marajás, escravos, soldados, baianas, ciganos, havaianos, -
todos sob o comando dos toques de tambor e do remexer dos quadris
das mulatas que, na opinião de muitos, são de “outro mundo”. Olha
elas naquele carro alegórico chique ali. Que pernas, cara! Olha
aquela passista remexendo. Que bunda! E olha como ela remexe o
umbigo. Ela deve ser muito boa de cama! Está me enlouquecendo!
(GONZALES, 2020, p. 164).

Corpos transformados em mão-de-obra barata e sexualizada para


fetiche de uma classe branca, elitizada, predatória, perversa, heteronormativa,
amaldiçoada a viver eternamente em busca de acumulo de capital e
fetichização de tudo que lhes proporciona estranhamento e inveja.
Embora ainda não decodificado, mas pairando sobre os mais temerosos
medos e angustias, em algum momento da nossa história assinamos um pacto
narcisista de não contar a transgeracionalidade de nossos sofrimentos, medos,
afetos embotados, angustias, tristezas, incertezas, rancores, raivas. Incertezas
e medos que levaram a submissão e pactos com o homem branco em
esconder suas atrocidades. Assinando o contrato de seu pacto narcísico de
destruição de tudo que nele se encontra, e não conseguisse controlar e
dominar. Portanto, a sua própria existencia. O homem branco é autodestrutivo
e predatório, obsessivo, perfeccionista, arrogante, presunçoso e, sendo assim,
gera-se o aniquilamento e sua bandeira maior. Mas ele precisou convencer
milhares de seres humanos de que isso não era verdade. E depredou tudo que
viu pela frente, seja ecossistema ou outros seres humanos. Sacrificou sua
dignidade e sabedoria por um quinhão de ouro, diamante, soja, milho, vidas
humanas.
Um contrato inconsciente que manteve vivos milhares de seres
humanos, que assegurou a continuidade do investimento libidinal de auto-
conservação para cada sujeito e seu conjunto familiar, ou o que restou do que
fez parte. As crianças e adultos que compartilharam enunciados dos seus
ancestrais, assegurando a continuidade geracional, transgeracional muitas
vezes pagaram o preço com sua integridade psíquica e até somática. Mas os
enunciados denunciaram a incoerência.
O inconsciente trabalhou para manter o vínculo intersubjetivo necessário
para recalcar ou denegar os seres envolvidos (CORREIA, 2003). O preço da
proteção desses enunciados-signos-sementes em muitos momentos da
humanidade foram a produção de um encapsulamento das angustias e medos
de que esses signos-sementes não chegassem as próximas gerações.

O silêncio da violência ou ruptura dos diversos vínculos geracionais,


assim como os mecanismos da repetição, constituem o denominador
comum que percorre a falta de inscrição do sujeito na sucessão das
gerações e no tecido grupal comunitário, limitando ou impedindo o
acesso aos processos de simbolização que organizam uma cadeia de
significantes. Uma referencia significativa na clinica é a intensidade
de sofrimento psíquico [..] retraduzidos no silencio do indizível a
vivencias da ordem da psicose. A urgência de gerenciar a fratura dos
vínculos geracionais e sociais leva a defesas especificas do tipo
denegação, clivagem, identificação projetiva, ou seja, mecanismos
que tendem a minimizar ou eliminar o elemento traumático
(CORRÊIA, 2003, p. 41- 42).

O silencio da violência custou a psique adoecida de milhares de


mulheres e homens negros. Devastação inimaginável, só revista nos
momentos mais sóbrios da humanidade. A angustia derivada dos excessos
traumáticos tornou-se normalidade. A vida precária tronou-se natural. A
discriminação e o racismos se tronaram um defeito de cor, tolerável. A jornada
de trabalho excessivo tronou-se adjetivo qualitativo humano. A vida destroçada
pela violência é rotina. Doença mental naturalizada como se a humanidade
adoecida é sinônimo de trabalho árduo.
O pacto narcísico causou uma exclusão moral e a desvalorização como
seres humanos. Sem valor, indignos, passiveis de serem prejudicados ou
explorados. A exclusão moral ainda pode acarretar genocídios, discriminações
excluindo até os limites permitidos entre membros da família amigos e
extrapolando com membros inimigos e membros negativamente
estereotipados. As falhas justificam utilitarismo, exploração, descaso e
desumanidade, bem como missões, silêncios suspeitos, benesses indevidas
(MARIA APARECIDA SILVA BENTO, 2002).
Reivindicar, resistir, espalhar aos quatros ventos as violências tronou-se
imperativo para a saúde mental de milhares de negros deste país. O pacto que
foi assinado está com os dias contados. Não há mais espaço para permanecer
Criptados em sofrimentos que não foram forjados por aqueles que ainda
permanecem vivos e pulsantes para renascer em uma vida para além dos
estereótipos e misérias. Grada Kilomba (2019) veio nos relembrar que nossos
ancestrais foram obrigados a se calar e a enterrar suas memórias em suas
psiques. E, esse esforço de tentar deixá-las vivas dentro de seu inconsciente,
para serem contadas depois, trouxe as feridas abertas do sofrimento e do
adoecimento mental.
É chegada a hora de relembrá-los, recontar para os que hoje estão em
sofrimento. É hora de levantar as vozes e denunciar sem medo que as vozes
sejam punidas ou silenciadas. Entramos em um momento histórico propicio
onde as denúncias serão aceitas e acolhidas. Se séculos foram preciso para
que esse momento histórico chegasse, sempre será uma incógnita. Contudo,
chegou. Lutar e resistir contra opressões torna a luta mais complexa e mais
desafiadora para aquelas que não se identificam com um ideal de ego branco,
onde não se veem representadas ou visibilizadas; onde os espelhos não
refletem suas potencialidades e trajetórias.
As mulheres negras precisavam urgentemente adquirir conhecimento –
uma lanterna para os passos de seu povo e uma luz no caminho para a
liberdade. As negras que recebiam instrução acadêmica inevitavelmente
associavam o conhecimento à batalha coletiva de seu povo por liberdade
(DAVIS, 2016, p. 112). Não enlouquecemos porque mantemos alguns signos
deixados por nossas ancestrais intactos. Mas quero lembrá-las de que muitas
mulheres negras morreram para estarmos aqui. E os signos deixados intactos
foram suficientes para sobrevivermos a genocídio escravocrata e florescermos
novamente, pois nunca conseguiram matar a essência.
A proteção das batidas do tambor, do canto, do fogo no meio da
senzala, da vida em grupo, da ajuda mutua, das conversas altas, dos risos
fortes e persistentes, das lutas de capoeira, da vida comunitária, dos almoços
entre muitos, da felicidade mesmo em momentos tristes, da decodificação
pelos olhares, dos chistes, dos não ditos, da resistência física e mental, das
comidas saborosos, das ervas que curaram nossas feridas e nossas almas
serenou aqui.

Convido vocês a refletir não apenas sobre seu próprio tempo e seus
esforços, mas também sobre a luta de seus antepassados, que
tronaram possível vocês estudarem nessa universidade, tivessem
uma educação e recebessem o diploma no dia de hoje. Vocês
alcançaram um ponto da vida em que se torna necessário voltar ao
seu tempo e seus esforços a causas e lutas que vão preparar o
caminho para aquelas pessoas que virão depois de vocês – as
próximas gerações --, para que elas vivam em um mundo pacifico,
livre da ameaça de destruição nuclear, e qual possam um dia refletir
sobre a vida, a educação e o futuro que vocês lhes oferecem (DAVIS,
2017, p. 155)

Educação como efeito surpresa para o reestabelecimento da dignidade,


da sabedoria da ancestralidade de cada mulher negra desse planeta. Signo
educação, reconectado ao signo corrompido reorganizara o sintoma e
produzirá um deslace do sintoma através do dialogo aberto e genuíno.
Que as memories das mulheres negras retornem a iluminar suas vidas e
a vida dos seus. Mulheres adultas memories cheias de sabedorias sobre si e
os outros, potencializadas pelos conhecimentos técnicos, racionais, amorosos
e vividos. Mulheres negras como signo da potencialidade, determinação,
ousadia, da germinação amorosa e acolhedora que sempre foram, mesmo em
momentos difíceis. Mesmo tendo suas vidas arrancadas delas mesmas,
mesmo sendo obrigadas a se tornarem o avesso do que elas realmente são.
Mas sempre em processo de transformação em seu entendimento de seu
inacabamento.

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ANEXO
Anexo A – Termo de Confidencialidade

Universidade Federal de Santa Maria


Centro de Educação – CE/UFSM
Programa de Pós-Graduação em Educação
Doutorado em Educação

TERMO DE CONFIABILIDADE
Termo de confiabilidade

Titulo de projeto: Mulheres negras: das senzalas as universidades entre


cartas e contos vamos semeando auto(tras)formação
Pesquisadora: Daniela da Silva dos Santos
Pesquisador/orientador responsável: Profº. Dr. Celso Ilgo Henz
Instituição departamento: Departamento de Administração escolar/Centro de
Educação/Universidade Federal de Santa Maria
Local de coleta de dados: UFSM, UFSC, UFBA
Os pesquisadores do presente projeto se comprometem a preservar a privacidade
dos participantes desta pesquisa, cujos dados serão coletados por meio de cartas
pedagógicas dialógicas dos Investigativas-auto(trans)formativas com discentes
negras das universidades UFSM, UFSC, UFBA. Informam, ainda, que estas
informações serão utilizadas, única e exclusivamente, para execução do presente
projeto. As informações só poderão ser divulgadas de forma anônima e serão
mantidas por três ano no centro de educação sob a responsabilidade do professor
pesquisador Celso Ilgo Henz. Após este período os dados serão destruídos.
Santa Maria...............de............................ 2023.
--------------------------------------------------------------------------------------------
Pesquisadora/Daniela da Silva dos Santos CI – 1060678776
--------------------------------------------------------------------------------------------
Pesquisador Responsável/Celso Ilgo Henz CI -1010620779

Anexo B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para os


Alunos

Universidade Federal de Santa Maria


Centro de Educação – CE/UFSM
Programa de Pós-Graduação em Educação
Mestrado em Educação

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título do estudo: Mulheres negras: das senzalas as universidades entre


cartas e contos vamos semeando auto(tras)formação
Pesquisadores responsáveis: Prof. Celso Ilgo Henz e Daniela da Silva dos
Santos
Instituição/departamento: Departamento de Administração Escolar (ADE),
Centro de Educação/ Universidade Federal de Santa Maria.
Telefone para contato: (55) 99995010/(55) 91783963
Local da coleta de dados: Universidade Federal de Santa Maria
Prezado (a)
Você está sendo convidado (a) a participar desta pesquisa de forma
voluntária. Antes de concordar com a sua participação, é muito importante que
compreenda as informações contidas neste documento. Os pesquisadores
deverão responder todas as suas dúvidas antes da sua decisão de participar.
Você tem o direito de desistir de participar em qualquer momento, sem
nenhuma penalidade ou prejuízo a seus direitos.

Objetivo do estudo: compreender a partir cartas pedagógicas dialógicas


auto(tras)formativas alunas negras e suas trajetórias dentro das instituições
UFSM, UFSC, UFBA na busca por ampliar horizontes e diálogos sobre seu
processo de permanência, conhecimento e saúde mental.
de alunos Negros que ingressaram através do sistema de cotas a partir no ano
de 2009 suas proposições frente às políticas públicas as questões afirmativas e
étnico-raciais nos cursos de licenciatura da UFSM.
Procedimentos: Sua participação será através de cartas pedagógicas
dialógicas, que será posteriormente dialogada, problematizadas e analisadas.
Riscos: A sua participação nesta pesquisa não representará nenhum risco
para você, nem de ordem física e nem psicológica. De qualquer modo você
terá a total liberdade de optar por não participar ou de responder os
questionamentos se assim desejar.
Benefícios: Acredita-se que com os resultados que vierem a ser obtidos com
essa pesquisa será possível uma reflexão das discentes Negras e sua forma
de entendimento de suas estratégias nesses ambientes para promoção do seu
conhecimento e saúde mental.
Sigilo: As informações fornecidas por você terão privacidade garantida, sendo
que os sujeitos da pesquisa não serão identificados em nenhum momento.
Nomes fictícios serão utilizados ao longo do texto para que sua identidade seja
preservada, mesmo nos momentos quando os resultados da pesquisa forem
divulgados.

Ciente e de acordo com o que foi anteriormente exposto, eu


___________________________________________ estou de acordo em
participar desta pesquisa assinando este consentimento.
Santa Maria, _____ de _____________ 2016.

_____________________________________________
Assinatura

Responsáveis pela pesquisa

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