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Faculdade de Educação
Belo Horizonte/MG
2019
SYMAIRA POLIANA NONATO
Belo Horizonte/MG
2019
Dedico esta pesquisa a todos/as os/as jovens das
camadas populares que lutam, enfrentam, recusam,
recomeçam e criam outras formas de (re)existir
diante de uma sociedade tão desigual.
Esta tese representa, de fato, a recusa das palavras que me aceitam como sou. Nunca
aceitei as estatísticas que expressam uma realidade desigual e opressora de que uma mulher,
negra, estudante de escola pública durante toda a educação básica, filha de um torneiro
mecânico e de uma faxineira, dificilmente se torna doutora. Sei que sou exceção e só ocupo
este espaço/tempo porque minha (re)existência foi sustentada por diferentes indivíduos e
instituições, aos(às) quais atribuo minha eterna gratidão.
Agradeço a Deus, meu suporte divino e espiritual! A Ele toda honra e glória! Ao meu
santo de devoção, São Judas Tadeu, sustento diante das causas que, por vezes, parecem
impossíveis, agradeço a intercessão constante.
A minha família, suporte incondicional! Minha mãe e pai amados, vocês são os
verdadeiros sustentos da minha vida. A minha irmã Bréscia, pelo apoio constante e escuta as
minhas angústias e dúvidas. Trocamos muitos saberes, né? Aos meus irmãos, Layno e
Andreik, pelo carinho e confiança em mim. Agradeço, especialmente, a minha avó, Dona
Tina, por ser sustento de amor e cuidado em todos os momentos da minha vida. Amo vocês!!!
Ao Juarez, fico sem palavras para transcrever tamanha gratidão. Ju é umas das pessoas
mais humanas que já conheci. Agradeço a Deus pela possibilidade deste encontro que já
completa dez anos. Um orientador “no sentido mais amplo da palavra”. Um grande amigo!
“Me descobri educadora, coordenadora pedagógica, pesquisadora e me tornei ‘mais gente’,
graças a você! Você é um exemplo que eu quero seguir, pois consegue enxergar as pessoas
em suas singularidades e despertar o que há de melhor nelas. Você potencializa e ‘renova as
pessoas usando as borboletas’”.
À Flávia, companheira do Ju, agradeço imensamente pela acolhida generosa e pelos
ensinamentos. Você fez parte desta história contribuindo especialmente com sua leveza e
carinho. Obrigada por cuidar de nós! Agradeço a escuta, os abraços e o colo! Mulher de luta e
amiga que quero ter sempre na minha vida.
Agradeço ao Farley, meu amigo e companheiro de todas as horas. Minha gratidão pelo
orgulho e confiança que deposita em mim. Você é suporte do coração e da alma. Obrigada
pela paciência e cuidado durante todo o processo. Presença silenciosa, mas muito marcante e
significativa nos momentos de escrita. Acalento constante. Você transborda minha alma de
paixão e amor!
A minha coorientadora, Carla Corrochano, pelas leituras atentas e sugestões preciosas
que enriqueceram muito a tese. Agradeço pela convivência, receptividade em sua casa e
aprendizados que tive com você!
A minha amiga e afilhada, Carol, que sempre me apoiou, me animou, me alegrou e se
disponibilizou a me ajudar várias vezes. E que, especialmente, foi um suporte afetivo muito
relevante. Ao Daniel, afilhado querido, agradeço a tranquilidade e apoio de sempre. Amo
muito vocês!
Agradeço a todos os meus familiares que direta ou indiretamente contribuíram para
que eu chegasse até aqui, em especial, minha tia, Lúcia, pelo amor que tem por mim e ao meu
tio, Erasmo, que sempre falava que eu estudava demais e que, um dia, ele seria “igual a mim”.
Vocês chegavam “de mansinho” no “barracão” e me relaxavam.
Agradeço às amigas Natália Fraga, Nathália Abjaudi e Vanessa Fonseca, as quais eu
tive a honra de encontrar na Pró-Reitoria de Extensão. Amigas que posso “colocar no pote”,
como dizia a “Abajur”. Vocês foram suportes imprescindíveis neste processo. Com certeza,
seria mais árduo trabalhar e estudar, se minhas amigas de trabalho não fossem vocês.
Companheiras, solícitas, carinhosas, alegres e fortes. Aprendi muito com vocês. Vocês são
muito especiais para mim. Agradeço, também, à Zirlene Lemos, famosa Zizi, pelos abraços,
sorrisos e preocupação que sempre teve comigo.
Agradeço aos membros da banca, por terem aceitado compartilhar esse momento de
troca e aprendizados. Especialmente à educadora Daisy Cunha que “abriu” as portas da FaE
para mim! Aprendi muito sendo sua bolsista de monitoria. Você foi um suporte para
“desvendar” a UFMG! E, também, ao educador Geraldo Leão, do qual tive a honra de ser
bolsista de iniciação científica; espaço no qual desejei a pós-graduação, pois a arte de fazer
pesquisa foi alegre, leve e recheada de bonitezas.
Agradeço às amigas e educadoras, as quais o Observatório da Juventude (OJ) me
presenteou, Fernanda Dias, Juliana Reis, Jorddana Rocha, Álida Leal, Aline Gonçalves e
Shirlei Sales, minha especial gratidão, pelas conversas amigas, pela leitura atenta e carinhosa
dos meus escritos, pelas trocas de saberes e, sobretudo, por serem mulheres potentes que me
inspiram cotidianamente. Aos amigos Romulo e João, pelo incentivo e confiança.
Aos/Às integrantes do Observatório da Juventude da UFMG, espaço/tempo no qual
me sinto em casa! Grupo acolhedor, “jardim das borboletas”, no qual tenho enorme gratidão
por fazer parte. Agradeço pelas trocas, amizades, carinho e pela leitura e sugestões de parte
desta tese!
Aos/Às amigos/as do grupo Jovens Crismandos/as Aliados/as a Cristo (JOCAC),
agradeço pelas orações diárias, especialmente, Débora, Simone e Carol Matavelli, pela
preocupação e carinho. Ao Marcel, Gustavo e Gabriel, pelos sorrisos e diversões que me
renovavam. Vocês são amigos/as pela fé que carrego para vida.
As minhas amigas MMM – Mariluce, Marcia e Marcelle – da graduação para vida! Ao
Ricardinho, “anexo indispensável”, agradeço a energia positiva de sempre. Vocês
acompanharam todo o processo. Agradeço pelo apoio e preocupação!
As minhas vizinhas e amigas, Claudinha e Bruna, com as quais tenho a honra de
conviver e compartilhar minhas angústias e alegrias. Agradeço o apoio e incentivo de sempre.
À secretaria e ao setor financeiro do Programa de Pós-Graduação, por tornarem as
questões burocráticas simples, em especial, às queridas Dani e Rosy e ao querido Gilson, pela
gentileza, atenção e competência ao cuidar de cada detalhe.
À equipe da PROEX (Pró-Reitoria de Extensão), especialmente, às professoras
Benigna Oliveira e Claudia Mayorga, por compreenderem as minhas singularidades temporais
e permitem flexibilização de horários, o que foi primordial para conciliar estudos e trabalho.
Às amigas Zulmira e Rafaela, as quais encontrei na Rede de Desenvolvimento de
Práticas do Ensino Superior (GIZ/UFMG), agradeço pelo carinho e incentivo.
Aos trabalhadores e às trabalhadoras do Brasil que sustentaram financeiramente meus
estudos e existência em uma das instituições públicas de ensino superior mais prestigiadas do
país.
À Faculdade de Educação, instituição acolhedora e diferenciada dentro da UFMG,
espaço o qual, desde a graduação, me possibilitou ser mais que um sujeito que “vê a uva” me
possibilitou ir além da leitura das palavras: alcancei a leitura do mundo.
À “Esquerda” – entendida aqui como um posicionamento político, ideológico e
partidário que busca a igualdade de oportunidades e a justiça social, as quais são responsáveis,
dentre outras questões, pelo direito ao acesso às instituições de ensino superior, especialmente
negadas a determinados grupos sociais. Sou fruto da luta cotidiana daqueles/as que me
antecederam. Sou eternamente grata e me coloco, também, nesta luta por democratização e
inclusão, pois quero ver mais “Symairas” na Universidade pública e gratuita.
E, por último, agradeço, especialmente, aos/às queridos/as jovens que participaram
desta pesquisa e, especialmente aos/às entrevistados/as que cederam parte significativa das
suas vidas a mim. Sem vocês não existiria pesquisa.
RESUMO
Esta tese é resultado de uma pesquisa realizada com jovens ex-trabalhadores/as da Cruz
Vermelha Brasileira (CVB) que exerceram suas atividades laborais na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) entre os anos de 2011 e 2013. A presente investigação teve como
objetivo compreender, por meio do entrecruzamento entre trabalho e escolarização, como têm
se configurado os percursos de individuação dos/as jovens, levando em conta os processos de
socialização, decorridos cinco anos da saída da Universidade. A partir do diálogo com
autores/as da sociologia da juventude, do trabalho, da educação e sociologia do indivíduo, o
caminho teórico-metodológico buscou dar um “zoom sociológico” nos enredos, tramas e
dramas individuais dos/as jovens. Assim, tecemos análises que buscaram articular as
experiências dos/as jovens no âmbito da família, do trabalho e da escolarização. Quanto aos
procedimentos metodológicos, destacamos a aplicação de questionário a 95 jovens com vista
à construção de um perfil e de entrevistas individuais com nove dentre eles/as. As narrativas
biográficas foram expressas em “cenas sociológicas” que revelaram o movimento e a
dinâmica que perpassavam a vida de jovens imersos/as em múltiplas instâncias socializadoras,
evidenciando os modos como cada um/a deles/as enfrentava os desafios postos e quais eram
os suportes que encontrava. Dentre os resultados, constatamos uma homogeneidade quanto
aos trajetos laborais, por meio da inserção em trabalhos considerados precários no setor de
serviços, embora sobressaísse a maneira heterogênea em que os/as jovens viviam, lutavam e
enfrentavam o mundo do trabalho. As experiências eram marcadas por modos singulares de
(re)existir à precariedade do trabalho, tendo como base os suportes. Assim, os/as jovens
questionavam e também se recusavam a aceitar alguns trabalhos “destinados” a eles/as,
devido, entre outras questões, à experiência de trabalho que tiveram na UFMG. No âmbito
dos processos de escolarização, as narrativas refletiram, em sua maioria, as descoincidências
entre os projetos de longevidade escolar e as condições objetivas dos/as jovens. Todavia, os/as
jovens lançavam mão de diferentes suportes e estratégias para se constituírem como
estudantes e poderem alcançar o ensino superior ou outros projetos. As famílias,
principalmente as mães, assumiam um lugar significativo, funcionando como importante
suporte, mesmo que, não raras vezes, contraditório, no processo de construção dos/as jovens
como indivíduos. Em síntese, consideramos que os/as jovens construíam percursos de
individuação, tendo como suporte a expectativa de “ser alguém na vida”. Eles/as se
constituíam como “híper-indivíduos” diante da aventura permanente de enfrentar desafios.
Assim, a maneira como os/as jovens viviam tornava-se para eles/as uma solução biográfica
das contradições sistêmicas.
This dissertation results from research carried out with young former workers of the Brazilian
Red Cross (CVB) who worked at the Federal University of Minas Gerais (UFMG) from 2011
to 2013. The research aimed to understand how paths of individuation have been configured
among youth, paying attention to the intersection between work and schooling. It takes into
consideration the processes of socialization in place five years after this youth had left the
university. The theoretical-methodological pathway sought to give a sociological zoom in the
individual plots, stories, and dramas of young people by considering authors of the sociology
of youth, of work, and education, as well as the sociology of the individual. Therefore, we
wove analyses that sought to articulate the experiences of young people in the family, work,
and schooling. As for the methodological approaches, we had 95 young people responding to
a survey aiming to build their profiles, and we developed individual interviews with nine of
them. Biographical narratives were expressed in "sociological scenes" that revealed the
movement and dynamics that permeated young people lives who were immersed in multiple
socializing instances. These scenes evidenced how each one of them faced their challenges
and what were their supports. Among the results, we found a homogeneity concerning labor
paths of these youth through their insertion in the service sector taking jobs seen as
precarious. Although, the heterogeneous manner in which young people lived, struggled and
faced the world of work also stood out. The experiences of young former workers of the CVB
were marked by unique ways of (re) existing to precarious work through their supports. Thus,
young people questioned and also refused to accept some jobs which were "destined" to them.
Their reasons, among other things, were related to the work experience they had at UFMG. In
the scope of schooling processes, the narratives mostly reflected the lack of articulation
between school longevity projects and the objective conditions of the young. Nonetheless,
young people used different supports and strategies to become students and to reach higher
education or other projects. Families, especially mothers, have a significant place, functioning
as important support, but also and quite often contradictory, in the process of constructing
young people as individuals. In summary, we consider that the young people in this research
constructed their pathways of individuation, having as support the expectation of “becoming
something in life.” They constituted themselves as "hyper-individuals" in the face of the
permanent adventure of facing challenges. Therefore, the way young people lived became for
them a biographical solution to systemic contradictions.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Projeção da população brasileira por grupos etários selecionados (1980 - 2050) .............................. 64
Gráfico 2 – Sexo dos/as jovens sujeitos da pesquisa ........................................................................................... 118
Gráfico 3 – Saldo de movimentação de empregados no mercado de trabalho formal, segundo o sexo – Brasil
(2005 – 2015) ...................................................................................................................................................... 119
Gráfico 4 – Distribuição de negros/as e brancos/as, por faixa salarial ................................................................ 121
Gráfico 5 – Nível de ocupação dos/as jovens, por grupos de idade - Brasil (2005 – 2015) ................................ 132
Gráfico 6 – Taxa de desocupação das pessoas de 16, ou mais anos de idade – Brasil (2013 - 2017) ................. 133
Gráfico 7 – Taxa de participação – Brasil (2013 - 2017) .................................................................................... 134
Gráfico 8– Número de ocupados/as – Brasil (2013 - 2017) ................................................................................ 134
Gráfico 9 – Evolução do grau de informalidade contemplando todos os conta própria – Brasil (2013 - 2017) .. 139
Gráfico 10 – Taxa de desemprego – pessoas entre 16 e 65 anos – Brasil (2012 - 2017)..................................... 140
Gráfico 11 – Percentual de jovens que frequentam a escola, por grupos de idade – Brasil (2005 - 2015) .......... 143
Gráfico 12 – Taxa de frequência líquida no ensino superior de graduação da população e 18 a 24 anos de idade,
segundo o sexo e a cor ou raça – Brasil (2005 - 2015) ........................................................................................ 145
LISTA DE QUADROS
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Escolaridadede mães e pais dos/as jovens (2012 e 2017) .................................................................. 124
Tabela 2 – Renda mensal aproximada da família dos/as jovens (2017) .............................................................. 127
Tabela 3 – Empregos/trabalhos após a saída da Cruz Vermelha (UFMG) .......................................................... 136
‘
SUMÁRIO
PARTE I ........................................................................................................................................................................ 25
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 25
2 POR UMA METODOLOGIA AFETIVA: OS CAMINHOS DA PESQUISA ............................................... 33
2.1 INICIANDO O ARTESANATO: OS (DES)ENCONTROS ENTRE A PESQUISADORA E OS/AS JOVENS
INTERLOCUTORES/AS ................................................................................................................................................... 36
2.2 COMPARTILHANDO EXISTÊNCIAS SINGULARIDADES: AS BONITEZAS E TRISTEZAS DOS (CONTRA)TEMPOS DAS
ENTREVISTAS .............................................................................................................................................................. 50
2.3 OBSERVANDO AS FORMAS, ANALISANDO AS TEXTURAS E TESSITURAS: O PROCESSO DE ANÁLISE ................... 54
2.4 TECENDO E COMPONDO O ARTESANATO: A FORMA DE APRESENTAÇÃO DAS ENTREVISTAS ............................. 59
3 OS CAMINHOS TEÓRICOS: PEÇAS BASILARES DO ARTESANATO .................................................. 62
3.1 A JUVENTUDE COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL E HISTÓRICA E OS/AS JOVENS A PARTIR DE UM OLHAR
INTERSECCIONADO ...................................................................................................................................................... 62
3.2 JUVENTUDES E PROCESSOS DE ESCOLARIZAÇÃO ............................................................................................. 70
3.3 BREVES APONTAMENTOS SOBRE TRABALHO, EMPREGO E DESEMPREGO ......................................................... 77
3.3.1 Reflexões sobre as transformações do/no trabalho a partir da década de 70: focalizando o mercado de
trabalho no Brasil e os/as jovens ........................................................................................................................... 83
3.3.2 O mercado de trabalho brasileiro nos anos 2000 e os/as jovens ............................................................. 95
3.3.3 Alguns apontamos sobre a crise no mercado de trabalho a partir de 2014 .......................................... 101
3.4 “SOCIOLOGIA DO INDIVÍDUO” E A INDIVIDUAÇÃO ........................................................................................ 106
3.4.1 As sociologias do indivíduo ................................................................................................................... 112
4 PERFIL DOS/AS JOVENS EX-TRABALHADORES/AS DA CRUZ VERMELHA CÂMPUS
PAMPULHA UFMG .................................................................................................................................................. 117
4.1 CONHECENDO OS/AS JOVENS ....................................................................................................................... 117
4.2 OS/AS JOVENS E SUAS INSERÇÕES LABORAIS ............................................................................................... 129
4.3 JOVENS E PROCESSOS DE ESCOLARIZAÇÃO ................................................................................................... 142
PARTE II..................................................................................................................................................................... 148
CENAS SOCIOLÓGICAS ......................................................................................................................................... 148
1 CENA 1 – TRABALHAR PARA ESTUDAR – TRABALHADORES/AS TERCEIRIZADOS/AS E
ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS/AS: LETÍCIA E CAIO ................................................................................ 152
1.1 A JOVEM LETÍCIA E O SEU AMBIENTE FAMILIAR ........................................................................................... 152
1.2 O JOVEM CAIO E SUAS VIVÊNCIAS EM FAMÍLIA ............................................................................................ 157
1.3 O SONHO DE SER CONTRATADO NA UFMG FRENTE AO DESLIGAMENTO: O DESEMPREGO TEMPORÁRIO E O
TRABALHO ESTRATÉGICO .......................................................................................................................................... 161
1.4 INSERÇÃO PROFISSIONAL: ARTICULANDO MÉRITO E CONTATOS .................................................................... 166
1.5 INSERÇÃO NA UNIVERSIDADE: CAMINHOS DIFERENTES E DESAFIOS COMUNS ................................................ 177
1.6 SER TRABALHADOR/A E ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO/A: “EXCLUÍDOS/AS DO INTERIOR” NO ENSINO SUPERIOR
189
1.7 ENTRE FAZER O QUE GOSTA E GOSTAR DO QUE FAZ: TRABALHAR PARA PODER ESTUDAR.............................. 201
2 CENA 2 – SÉRGIO, O JOVEM CONCURSEIRO: ESTUDAR PARA TRABALHAR ............................. 207
2.1 “MINHA FAMÍLIA MINHA BASE”: O CONTEXTO FAMILIAR ............................................................................. 207
2.2 O DESEMPREGO E O CURSO TÉCNICO COMO POSSIBILIDADE DE INSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO ........ 209
2.3 A ‘VIDA’ DE UM CONCURSEIRO: PODEMOS FALAR EM “NEM NEM?” .............................................................. 214
2.4 A FAMÍLIA COMO SUPORTE PARA “SÓ ESTUDAR”: POSSIBILIDADE DE VIVENCIAR UMA MORATÓRIA .............. 224
2.5 “FACULDADE? SÓ SE EU PUDER PAGAR” ...................................................................................................... 228
3 CENA 3 – TERRENOS LABIRÍNTICOS - ENTRE OS TRABALHOS E A BUSCA DO EMPREGO
COMO CONSTRUÇÃO DE SI: A JOVEM REBECA ........................................................................................... 233
3.1 A JOVEM MÃE: AS TRAMAS E OS DRAMAS DA SUA HISTÓRIA ......................................................................... 233
3.2 INSERÇÕES NO MERCADO DE TRABALHO ...................................................................................................... 245
3.3 “MINHA VIDA ERA SÓ ESTUDAR”: CONSTRUINDO CAMINHOS PARA A INSERÇÃO NO ENSINO SUPERIOR ......... 256
3.4 O SONHO DAS FEDERAIS E A REALIDADE DA UNIVERSIDADE PRIVADA: A “MÃE COMO PROVA” ..................... 258
4 CENA 4 – BRENO: O DESENGAJAMENTO ............................................................................................... 268
4.1 “MINHA MÃE É UM AMOR”: A VIVÊNCIA FAMILIAR E O JOVEM...................................................................... 268
4.2 A EXPERIÊNCIA DE TRABALHO NA UFMG: “MELHOR EMPREGO PARA JOVENS” ........................................... 270
4.3 A PROCURA POR TRABALHO E OS (CONTRA)TEMPOS DAS NOVAS INSERÇÕES ................................................ 277
4.4 DESEMPREGO: OS SENTIDOS DA EXPERIÊNCIA .............................................................................................. 287
4.5 “SE DER EU VOU ESTUDAR MAIS”................................................................................................................. 293
5 CENA 5 – WELITON: EM BUSCA DE RECONHECIMENTO ................................................................. 299
5.1 (RE)CONSTRUINDO AS RELAÇÕES FAMILIARES: ENTRE A REJEIÇÃO E O RECONHECIMENTO ........................... 299
5.2 AS EXPERIÊNCIAS DE WELITON SOB O OLHAR DO RECONHECIMENTO ........................................................... 304
5.3 “SEM CARTEIRA EU NÃO FICO”: AS EXPERIÊNCIAS DE TRABALHO ................................................................. 307
5.4 CURSO TÉCNICO: SÍMBOLO DE SUCESSO E APROXIMAÇÃO COM O ENSINO SUPERIOR ..................................... 323
5.5 ENSINO SUPERIOR: (RE)CONSTRUINDO AS ESTRATÉGIAS .............................................................................. 329
6 CENA 6 – A JOVEM DAYANE: QUANDO SE INTERSECCIONAM CLASSE, GÊNERO E RAÇA ... 334
6.1 A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA ROUBADAS................................................................................................. 334
6.2 A UFMG COMO ESPAÇO DE TRABALHO ANTES E DEPOIS DA CVB E O DESEMPREGO .................................... 344
6.3 “MAS, EU SÓ TENHO 22 ANOS”: EXIGÊNCIAS DO MERCADO DE TRABALHO ................................................... 349
6.4 O SONHO DE ACESSAR O ENSINO SUPERIOR PÚBLICO: ENTRE O DESEJÁVEL E O POSSÍVEL .............................. 354
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................ 366
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................................... 381
APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ................................................ 411
APÊNDICE B – QUESTIONÁRIO .......................................................................................................................... 413
APÊNDICE C – POSTAGENS NO GRUPO DO FACEBOOK ............................................................................. 418
APÊNDICE D – ROTEIRO DE ENTREVISTA NARRATIVA ............................................................................ 421
25
PARTE I
1 INTRODUÇÃO
Em minhas1 conversas com Manuel de Barros, busco traduzir a maneira pela qual
construímos este grande “artesanato intelectual” chamado tese. Não usamos traço
acostumado, entendendo que, na arte de fazer pesquisa, precisamos desformar o mundo e as
pessoas do mundo. Concordamos com Alberto Melucci2 (2005) que a pesquisa sociológica é
uma possibilidade de interpretar a ação como palavra. Assim, nesta investigação, tecemos
palavras para tirar da natureza as naturalidades com o objetivo de compreender, por meio
dos entrecruzamentos entre trabalho e escolarização, como tem se configurado os percursos
de individuação de jovens ex-trabalhadores/as da Cruz Vermelha Brasileira (CVB) do
Câmpus Pampulha/ Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mesmo conscientes de que os/as jovens estão inseridos/as em múltiplos processos de
socialização, optamos pelo recorte do trabalho e dos processos de escolarização, por
1
Nos itens “Introdução” e “Por uma metodologia afetiva: os caminhos da pesquisa”, em alguns momentos,
utilizo a conjugação verbal na primeira pessoa do singular, pois se trata de uma narração marcada por
vivências e experiências subjetivas que repercutiram em minha trajetória acadêmica.
2
Na escrita desta tese, optamos por utilizar o nome e sobrenome da/o autora/autor quando essa/e é citada/o
pela primeira vez. Nas citações seguintes, manteremos somente o sobrenome, seguindo as normas da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Tal postura tem como objetivo visibilizar uma
produção científica escrita por mulheres e homens, a qual, não raras vezes, tendemos a considerar a
masculina. Além disso, como uma opção política, optamos pelo uso de uma linguagem não sexista, utilizado
a grafia “o/a”.
26
entendermos que ambos compõem, desde muito cedo, as biografias juvenis sendo, portanto,
instâncias socializadoras que “fazem juventudes”. Além disso, consideramos que tanto o
mundo do trabalho quanto a educação têm passado por modificações significativas e nos
interessa compreender como os/as jovens se constituem como indivíduos em meio a este
contexto de mudança. Não obstante, embora esse tenha sido o ponto de partida, o campo de
pesquisa trouxe a instância familiar como um espaço/tempo significativo para analisarmos os
percursos de individuação.
O desejo por uma pesquisa que articulasse juventude, trabalho e escolarização não se
deu ao acaso, pelo contrário, foi fruto de minha trajetória pessoal e acadêmica. Assim como
os/as jovens pesquisados/as, também estou enredada em diferentes espaços de socialização
que contribuíram significativamente para a escolha da temática aqui proposta, bem como para
as análises que serão desenvolvidas ao longo da tese. Afinal, deve-se
Minha juventude foi significativamente marcada pela relação com o trabalho e com os
estudos, especialmente pela conciliação entre ambos. Durante os anos finais do ensino
fundamental, já desenvolvia algumas atividades para obtenção de renda. Articulado a esses
trabalhos, eu exercia, na esfera familiar, o trabalho doméstico, para o qual eu e minha irmã,
por sermos mulheres, éramos responsabilizadas.
No período de realização do ensino médio, o trabalho se intensificou, pois consegui
um emprego numa empresa de telemarketing. Assim como dois dos/as jovens desta pesquisa,
fui aceita nesse setor sem ter experiência. Era um trabalho considerado ideal por mim, pois
era em tempo parcial e assinavam a carteira. Ou seja, estar neste trabalho me possibilitaria
continuar estudando. É interessante apontar que ter a carteira assinadaera algo muito
significativo para mim. Sendo assim, nunca faltei ao trabalho devido às demandas da escola e
estudar no horário do trabalho era questão impensável, afinal, poderia “sujar” minha carteira,
se fosse demitida.
27
No âmbito dos estudos, me lembro de que, durante toda a educação infantil e ensino
fundamental, minha mãe acompanhou de (muito) perto meu processo de escolarização. Ela ia
às reuniões, me ajudava nos deveres de casa e, junto ao meu pai, criava uma rotina de estudos
para mim. Recordo que a brincadeira e a TV eram permitidas somente após eu concluir as
atividades escolares. Neste sentido, desde muito cedo, fui muito incentivada a estudar e
também “cobrada” a ter boas notas.
Embora meus pais tenham concluído a educação básica – meu pai, o curso técnico em
Mecânica, e minha mãe, o Magistério – no período em que minha irmã, meus irmãos e eu
cursamos o ensino médio, não fomos mais acompanhados tão de perto por eles. Contudo, a
escolha da escola de ensino médio, por exemplo, foi marcada pela “imposição de meus pais”:
lembro-me de que eu queria ir para uma escola na qual todas as minhas amigas estavam se
matriculando. Meus pais “me obrigaram” a fazer uma prova de seleção na Escola Estadual
Ordem e Progresso, da polícia civil. Eu fui selecionada e comecei a estudar lá. Após minha
inserção no ensino médio, fui construindo um caminho mais autônomo como estudante,
certamente “moldado” por uma socialização primária que foi decisiva para meu gosto pelos
estudos. Meus pais foram suportes significativos na minha trajetória de escolarização.
Ainda no ensino médio, o meu desejo de “longevidade escolar” (Maria VIANA, 1998)
foi sendo costurado. Nesta costura, contei com o incentivo dos meus pais, de professores/as
que, em diferentes momentos, enfatizavam que eu deveria continuar estudando e, também, de
um dos donos da empresa de telemarketing em que eu trabalhava3. O desafio era como
acessar a universidade! Não possuía condições de pagar uma faculdade particular e não havia
as atuais políticas de democratização do acesso. Assim, optei por recusar outros trabalhos –
com melhores condições laborais e salários – para me manter trabalhando seis horas/dia e
poder me organizar para frequentar um cursinho.
Nesse contexto, fui vivenciando minha condição de jovem, mulher, negra, estudante
de escola pública e pobre; e, como aparece em diferentes pesquisas, o desejo de “ser alguém
na vida” fazia parte da minha juventude e produziu em mim um anseio por ser “um
determinado alguém”, pautado nas falas da minha mãe e de meu pai, especialmente. Trabalhei
na empresa de call centers, enquanto cursava os três anos do ensino médio e o primeiro ano
de graduação na UFMG. Estar inserida em uma universidade pública, algo distante da minha
3
Lembro-me de que ele cursava Educação Física e, durante meu tempo de trabalho, pedia para que eu fizesse
alguns trabalhos para ele. Podemos ter várias análises desse contexto, mas, naquele momento, foi um suporte
muito significativo, pois eu saía da “rotina estressante do atendimento” e podia ler e aprender coisas
diferentes. Ademais, aguçava ainda mais o meu desejo pela universidade.
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realidade, me colocava outro desafio: como permanecer nesse espaço em que, não raras vezes,
me senti “excluída do interior” (Pierre BOURDIEU, 2001)?
A minha trajetória no curso noturno de Pedagogia, a partir do ano de 2006, foi
marcada pela incerteza e pela “insegurança” das bolsas de extensão, ensino e pesquisa, em
paralelo às dúvidas de sair do emprego. Mesmo diante da instabilidade, a partir do 3º período
da graduação na UFMG, tive a oportunidade de participar de programas de ensino, extensão e
pesquisa que foram suportes para minha continuidade na graduação e fomentaram um desejo
de continuidade na pós-graduação. Daí se observa que a pesquisa aqui apresentada advém não
só, mas especialmente, da minha biografia. O meu interesse pelos/as jovens faz parte da
minha história, desde 2003, quando ingressei, como catequista da Pastoral da Juventude, da
qual ainda sou integrante. Já os estudos sobre a juventude, escola e trabalho se mostraram um
caminho para mim, logo no início da graduação, a partir de 2006. Mas só foi a mim possível
identificar tais temas como prováveis recortes de pesquisa, ao participar de diferentes
programas de ensino, pesquisa e extensão, como Ações Afirmativas4, Conexões dos Saberes5
e Observatório da Juventude (OJ)6, que problematizam questões relacionadas às relações
raciais, exclusão e juventudes, respectivamente.
Sublinho minha participação no programa Observatório da Juventude, do qual sou
ainda integrante, desde 2008. Estar inserida nele, em especial, tem me proporcionado contato
com diferentes pesquisas, mas, sobretudo, um contato direto com jovens em diversos espaços,
4
O programa Ações Afirmativas, da Faculdade de Educação da UFMG, iniciado em 2002, é um programa de
ensino, pesquisa e extensão, que busca implementar uma política de permanência bem-sucedida, destinada a
jovens negros, sobretudo aos de baixa renda. (Sistema de Informação da extensão (SIEX) e Site: Ações
Afirmativas. Disponível em: http://www.acoesafirmativasufmg.org/p/historico.html Acesso em: outubro de
2017). No programa, pude participar do Projeto da Hemeroteca, que tinha como objetivo coletar os dados
relativos à temática da questão étnico-racial, subsidiar estudos referentes à educação étnico-racial e criar
uma cultura de seleção de fontes documentais, classificação, indexação e arquivamento.
5
O programa Conexões de Saberes, atualmente da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, iniciado em
2002, também se insere no âmbito de ensino, pesquisa e extensão, e atua em duas dimensões: a primeira
delas visa aproximar as instituições públicas de ensino das comunidades populares e dos movimentos sociais
e a segunda refere-se a melhorar as condições para a permanência dos estudantes de origem popular nas
universidades federais. Este programa se estabelece a partir de três eixos: democratização da universidade,
relação entre universidades e comunidades e movimentos sociais e relações Conexões de Saberes, com o
Programa Escola Aberta. Minha participação se deu em um eixo de trabalho intitulado “Democratização da
Universidade”, que visava identificar e analisar mecanismos e lógicas de exclusão e invisibilidade na
Universidade Federal de Minas Gerais.
6
O programa Observatório da Juventude, da Faculdade de Educação da UFMG, iniciado em 2002, é um
programa de ensino, pesquisa e extensão, inserido no contexto das políticas de ações afirmativas em torno da
temática da “educação, cultura e juventude”, tendo como eixos norteadores a condição juvenil, as políticas
públicas, as políticas culturais e as ações coletivas da juventude. Busca desenvolver atividades de
investigação, levantamento e divulgação de informações sobre a situação dos jovens da região metropolitana
de Belo Horizonte/MG, além de promover a capacitação de jovens, educadores e estudantes da graduação
interessados na temática da juventude.
29
o que veio fomentando meu desejo de ampliar a compreensão sobre as juventudes, ao mesmo
tempo que alimentava novas indagações sobre a articulação entre juventude, trabalho e escola.
Costumo dizer “que me formei em Pedagogia com ênfase em Observatório da Juventude”.
Grupo querido, acolhedor, no qual venho me formando como pesquisadora, educadora,
mulher e me reconheci como negra. Um programa que descortinou as diferentes
desigualdades (etária, gênero, raça, território) que especialmente os/as jovens vivenciam
cotidianamente para se constituírem como indivíduos.
A minha participação no OJ me motivou a desenvolver uma monografia de conclusão
de curso de Pedagogia cujo foco era o/a jovem. Nesta investigação abordei as repercussões de
um projeto socioeducativo na trajetória de vida de jovens de periferia de Belo Horizonte e
região metropolitana (Symaira NONATO, 2010). No âmbito do programa, ressalto minha
atuação como bolsista de iniciação científica7, orientada pelo professor Geraldo Leão e,
também, minha participação no projeto InterAgindo.
Os achados das duas experiências de pesquisa - monografia e iniciação científica –
evidenciaram as tensões na relação “juventude, trabalho e escola”, o que me fazia indagar: o
que significava ser jovem trabalhador/a? Como os/as jovens articulavam trabalho e escola?
Como vivenciavam suas juventudes? Essas questões me acompanharam e, somente mais
tarde, com minha participação no InterAgindo, que as defini como uma possibilidade de
pesquisa.
O Projeto InterAgindo8 era uma atividade de extensão, desenvolvida pelo programa
Observatório da Juventude, em parceria com a Faculdade de Educação. O objetivo geral desse
projeto era propiciar aos/às jovens trabalhadores/as que desenvolvem suas atividades laborais
no espaço da UFMG atividades de formação e socialização que possibilitem o diálogo entre o
trabalho educativo e o trabalho produtivo. O projeto se organizava a partir de quatro
dimensões que se constituíram como eixo central: Identidade, Projeto de Vida, Trabalho e
Desigualdades. Embora eu já tivesse contato e amizades com alguns/algumas jovens
trabalhadores/as da UFMG, especialmente da Faculdade de Educação, minha participação
7
A pesquisa teve como objetivo entender as trajetórias de jovens participantes do Programa ProJovem Urbano
(Programa Nacional de Inclusão de Jovens), no ano de 2009, em Belo Horizonte/MG. Procurei compreender
a vivência da condição juvenil pelos participantes do programa, a partir de suas experiências de
escolarização, trabalho e de seus projetos de futuro, para assim compreender os significados e sentidos do
programa para eles. (LEÃO, Geraldo Pereira; NONATO, Symaira Poliana. Políticas públicas, juventude e
desigualdades sociais: uma discussão sobre o ProJovem Urbano em Belo Horizonte. Educação e Pesquisa,
v. 38, n. 4, out./dez. 2012, p. 833-849).
8
Cf. O livro “Por uma Pedagogia da Juventude: Experiências educativas do Observatório da Juventude da
UFMG” (Juarez DAYRELL, 2016) traz, em um dos capítulos, uma reflexão sobre o Projeto InterAgindo.
30
9
NONATO, Symaira Poliana. A condição juvenil dos jovens trabalhadores da Cruz Vermelha Brasileira
no câmpus Pampulha da UFMG. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, MG, 2013.
31
Uma escolha que foi se construindo, a partir do campo, mas também por considerarmos que
com as narrativas biográficas conseguiríamos apresentar de forma ímpar os percursos de
individuação simultâneos aos processos de socialização.
***
Sucintamente apresentamos a organização geral da tese. Optamos por dividi-la em
duas partes. Iniciamos a primeira parte da tese com esta introdução, imediatamente o segundo
capítulo intitulado “Por uma metodologia afetiva: os caminhos da pesquisa” buscando
evidenciar as escolhas teórico/metodológicas, os (des)encontros com os/as jovens
interlocutores/as da pesquisa, algumas situações do campo e, por fim, o processo de análise de
dados. No terceiro capítulo apresentamos os principais referenciais teóricos, conceitos e
categorias que orientam a pesquisa. Focalizamos nossos esforços por apresentar reflexões
sobre as categorias juventude, trabalho, escolarização, sociologia(s) do indivíduo e
individuação. No quarto capítulo, apresentaremos o perfil dos/as 95 jovens ex-
trabalhadores/as da Cruz Vermelha que compuseram esta pesquisa relacionando a situação
atual dos/as jovens ao contexto de quando trabalharam na CVB, em alguns casos, mas
especialmente aos dados do mercado de trabalho e processos de escolarização em âmbito
nacional.
Na segunda parte da tese, buscamos trazer as experiências dos/as jovens, a partir de
seis cenas sociológicas, alcançadas por meio das narrativas biográficas, para explicitar as
vivências, práticas, reflexões, enfim, os desafios que compõem seus percursos de
individuação. Por último, nas considerações finais, ressaltamos os principais achados da
pesquisa, expondo, também, os sentimentos e as possibilidades de aprofundamento desse
incrível processo de artesanato intelectual.
33
10
Fui inspirada pelos escritos “O antropólogo e os pobres: introdução metodológica e afetiva”, de Alba Zaluar
(1985), para a construção do título deste capítulo e, especialmente, para tentar escrever um texto detalhado e
sensível, como a autora o fez ao narrar suas experiências de pesquisa. Buscarei contar os caminhos da
pesquisa com muito cuidado, pois concordo com Charles Mills que “somente pela conversão na qual
pensadores experimentados [não que eu o seja muito] trocam informações sobre suas formas práticas de
trabalho será possível transmitir ao estudante um senso útil de método e teoria” (Charles Wrigth MILLS,
1982, p. 211). Ademais vejo essa lacuna em muitas pesquisas que leio, desde a minha participação no Estado
da Arte da Juventude – 1996 – 2006, dentre outras pesquisas e, considero que as narrativas metodológicas
“são vivas” e mostram o quão vivo e intenso foi o processo.
11
Por vezes, utilizarei a primeira pessoa do singular, reservada para indicar meus momentos e sentimentos
como pesquisadora. Em outros momentos, a primeira pessoa do plural, ressaltando a construção coletiva da
pesquisa.
12
SILVA FILHO, Antônio Bento da. (Toni Garrido); FARIAS, André José (Bino), DA GAMA, Paulo. A
estrada. Intepretação: Banda Cidade Negra. Álbum: Quanto mais curtido melhor. Warner/Chappell Music,
Inc. 1998.
13
Lançado em 2009, o WhatsApp Messenger é um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e
chamadas de voz para smartphones.
34
14
Ressalto, porém, que a pesquisa esteve de acordo com os princípios éticos exigidos pelo Comitê da UFMG.
Todos/as os/as jovens foram informados/as sobre o objetivo da pesquisa e assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido (Apêndice A).
35
15
Manter um diário de campo faz parte do “artesanato intelectual” enfatizado por Mills (1982) para que
possamos estar envolvidos em todo produto intelectual. Escrevia e refletia ao escrever, relia e indagava
minhas próprias reflexões e argumentações. Fui compondo meu trabalho intelectual com costuras e
descosturas.
36
16
Facebook é uma rede social virtual gratuita, lançada em 4 de fevereiro de 2004. O nome do serviço decorre
do nome coloquial para o livro dado aos alunos no início do ano letivo, por algumas administrações
universitárias nos Estados Unidos, para ajudar os alunos a conhecerem uns aos outros (a tradução literal
seria “livro de rostos”). A pessoa deve declarar ter pelo menos 13 anos para se tornar usuária registrado do
site, que hoje tem 2 bilhões de usuários (Raquel SOARES, 2017).
37
Confesso que foi um exercício difícil, pois, em sua maioria, os nomes cadastrados nos
perfis do Facebook não são os nomes de registro civil. Algumas pessoas utilizam os apelidos;
outras, abreviações dos nomes, ou sobrenomes; outras, ainda, a junção do nome do/a
companheiro(a)/cônjuge, e, além disso, as opções são acrescidas de símbolos. Foi um trabalho
minucioso para conseguir localizá-los/as, o que tomou muito tempo. Nas noites escuras de
frio [e dias] chorei e me preocupei por não conseguir localizá-los/as mais rapidamente.
Cheguei a ficar sem esperança. Em um determinado momento, um dos jovens me ofereceu
ajuda para localizar os/as outros/as. Sérgio17 começou a me enviar os perfis dos/as que
trabalharam na mesma época que ele, para eu conferir e fazer o convite para a participação no
17
Optei juntamente com os/as jovens interlocutores/as da pesquisa por utilizar pseudônimos, para garantir o
anonimato.
38
grupo. A partir daí, foi utilizada a estratégia intitulada “bola de neve”18: quando passei a pedir
ajuda para outros/as jovens, um/a jovem me levava ao/a outro/a. Com essa ajuda, consegui
aumentar significativamente o número de jovens localizados/as. Além disso, nos casos em
que eu os/as encontrava, mas eles/as não respondiam ao convite para participar do grupo,
estabelecia contato com familiares, namorados/as e amigos/as, pedindo o contato telefônico
e/ou que avisassem os/as jovens que eu precisava conversar com eles/as.
Em paralelo à busca por meio do Facebook, tentei contato via telefone com os/as
jovens que eu não consegui localizar na rede e com os/as que não haviam aceitado o convite
para participar do grupo. Ao final desse levantamento, consegui agrupar 85 jovens no grupo
“#Pesquisa UFMG – 2012 – Lembra?# e ter contato com outros/as 19, ou via familiares, ou
via telefone/WhatsApp, totalizando104 jovens. Destes, infelizmente, quatro haviam sido
mortos e cinco estavam presos, todos homens. A notícia das prisões e mortes veio por parte
dos/as amigos/as e, também, por suas mães. O contato com duas mães, especialmente, foram
momentos muito dolorosos, pois, sem saber do fato, telefonei para a casa dos/as jovens e as
mães responderam acerca da prisão, ou da morte, chorando ao telefone. Conversei com quatro
mães e com irmãos e tios/as, via telefone, e, em todos os casos (morte/ prisão), os familiares
relataram envolvimento dos/as jovens com o tráfico de drogas.
Após esse processo inicial, fui para a segunda etapa, que se consistiu na aplicação de
um questionário19 (Apêndice B), que tinha como objetivo investigar como estariam os/as
jovens decorridos quatro, ou cinco anos, da saída da UFMG. Com base no questionário que
construí para a pesquisa de mestrado (NONATO, 2013), o instrumento foi composto por
questões abertas e fechadas, sendo dividido em quatro blocos:
a) identificação pessoal e socioeconômica – com questões sobre idade, sexo, pertencimento
étnico/racial, local de moradia;
b) informações sobre o pai e a mãe – com questões sobre escolaridade e ocupação atual–
considerando o momento da pesquisa;
c) os percursos de trabalho dos/as jovens – quantos trabalhos tiveram; qual/ais trabalhos;
tempo na função; formalização; motivo/s das saídas e
d) questões acerca da trajetória de escolarização – conclusão ou não do ensino médio,
inserção no ensino superior, curso/s que fizeram. Ao final, um campo para comentários e
18
Ressaltamos que existe a metodologia de pesquisa qualitativa intitulada “bola de neve”, que trata-se de uma
forma de amostragem não probabilística que utiliza cadeias de referências para localização a grupos difíceis
de serem acessados, ou estudos (Juliana VINUTO, 2014). Não utilizamos essa metodologia, mas, sim, uma
das estratégias nela presentes.
19
É importante mencionar que o período de aplicação do questionário foi de quatro meses.
39
20
O Google formulários faz parte do Google docs que é um pacote de aplicativos gratuito do Google. Permite
a construção de formulário (no caso, questionário) com questões abertas e fechadas e gera uma visualização
dos dados coletados, bem como uma planilha de Excel com os resultados.
21
Spam: Termo utilizado para se referir a e-mails ou mensagens não solicitadas, que geralmente são enviados
para um grande número de pessoas, com o intuito de vender um produto ou serviço, ou, ainda, disseminar
vírus aos computadores alheios.
40
22
Meme é um termo grego que significa imitação. A palavra é conhecida e sempre utilizada nas redes sociais,
referindo-se ao fenômeno de "viralização" de uma informação, ou seja, qualquer vídeo, imagem, frase, ideia,
música que se espalhe entre vários usuários, rapidamente, alcançando muita popularidade. Há programas
disponíveis para criação de Memes a partir de uma mesma imagem, modificando-se apenas o texto.
23
Ver outras postagens no Apêndice C.
24
No Facebook é possível marcar alguém, assim, cria-se um link o qual é remetido ao perfil da pessoa marcada
e, por sua vez, ao ser marcada em alguma postagem, a pessoa é notificada. A marcação é importante, pois
necessariamente quem foi marcada verá que foi citada em determinada postagem.
42
A partir dos novos tipos de postagem e da ajuda dos/as outros/as jovens, consegui
ampliar o número de questionários respondidos. Foi um momento de muito trabalho, em que
eu ficava “on-line 24 horas”, pois, a todo momento, os/as jovens tinham dúvidas sobre a
veracidade da pesquisa e me chamavam no Messenger. Muitos deles/as não acreditavam que
alguém poderia ter interesse em conversare saber de suas histórias. A visão dos/as jovens
sobre eles/as mesmos/as diz de um lugar de inferioridade. Consideramos que tal postura
dialoga com as reflexões Gayatri Spivak (1942) que, ao refletir sobre práticas discursivas de
intelectuais, bem como sobre os apontamentos do seu grupo de estudos sobre os subalternos,
questiona: “Pode o subalterno falar?” A autora salienta para além do sentido literal, pois o
subalterno é capaz de falar; há a necessidade de um caráter dialógico na fala do subalterno.
Conclui que, contudo, ele não pode falar, pois é sempre intermediado pela voz de outrem.
Procurei romper com o silenciamento dos/as considerados/as subalternos/as e aproximar-me
da perspectiva do intelectual pós-colonial, como cita Spivak (1942), criando espaços em que
os/as subalternos/as pudessem falar e, mais do que isso, fossem, de fato, ouvidos/as.
Foram momentos ricos de aproximação com os/as jovens, de conversa sobre vários
assuntos, de desabafo e, novamente, de pedido de ajuda, por eles/as, para encontrar trabalho.
Durante todo o tempo da pesquisa, recebi mensagens dos/as jovens pedindo ajuda para
conseguir trabalho. Como já ressaltei, tentei contribuir indicando locais para
inscrição/cadastro e/ou para apresentação de currículo. Em alguns casos, elaborei os
currículos para eles/as, pois alguns/algumas me informaram que não sabiam fazer um. Todas
as vezes que recebia mensagens como essas, me sentia totalmente impotente, sem saber como
ajudar, me questionando o sentido e, ao mesmo tempo, a importância de se fazer esta
pesquisa. “Como ajudá-los/as?” Era a pergunta que eu me fazia cotidianamente. Importante
ressaltar que eu sei dos meus limites enquanto pesquisadora, mas o compromisso social de ter
que “dar retorno” também fazia parte das minhas reflexões. Assim, como Alba Zaluar (1985),
eu tinha consciência da linha tênue entre a pesquisa e os meus sentimentos com relação às
realidades postas, por isso, a todo momento, buscava um equilíbrio entre o distanciamento
enquanto pesquisadora e a aproximação como “pesquisadora/gente”.
Embora o número de respondentes estivesse aumentando, muitos/as jovens ainda não
tinham respondido, o que me inquietava, pois o prazo que havíamos definido para o término
da etapa do questionário estava acabando. Muitos diziam que responderiam e acabavam não
respondendo, mesmo aqueles/as com os quais eu conversava mais de uma vez ao dia. Optei,
então, por ligar para alguns/ algumas e convidá-los/as a responderàs questões, via telefone.
Enquanto aguardava o recebimento das respostas, optamos por iniciar o terceiro
procedimento de coleta de dados – a pesquisa exploratória – com alguns/algumas jovens já
45
respondentes, para estabelecer uma forma de aproximação e para que pudéssemos eleger
alguns/algumas para a entrevista. Esse procedimento possibilitou chegar mais perto dos
sujeitos participantes da pesquisa, para aprofundar os aspectos já respondidos no questionário
e outros elementos pertinentes. De mais a mais, a pesquisa exploratória é um espaço/tempo
para a construção de uma relação de confiança entre a pesquisadora e os/as interlocutores/as,
pois “permite o fluir da rede de relações além de possíveis correções dos instrumentos de
coleta de dados” (MINAYO, 2004, p. 103). Foi um movimento muito prazeroso e
interessante, pois, na medida em que me aproximava deles/as, as respostas ao questionário
começaram a aumentar: quem havia participado desse 3º momento, informava aos/as
outros/as sobre a conversa ocorrida na pesquisa exploratória, incentivando-os/as a responder.
Ademais, alguns/algumas jovens que não estavam entre os/as escolhidos/as para a pesquisa
exploratória me perguntaram se eu não iria conversar com eles/as também. A escolha dos/as
jovens para essa fase da pesquisa se deu a partir do questionário e já se relacionava aos
critérios para a escolha do grupo dos/as jovens para a entrevista narrativa, a qual se constituía
como a próxima etapa da pesquisa. Paulatinamente, aproximei-me de um grupo de 25 jovens
escolhidos/as entre todos/as os/as respondentes do questionário.
Para a escolha dos/as jovens, levamos em conta a diversidade de gênero, de raça, de
trajetórias de escolarização (os/as que não concluíram a educação básica; os/as que
interromperam a trajetória estudantil, após a conclusão do ensino médio; os/as que já estavam
no ensino superior, ou em outros processos educativos), de percursos de trabalho (experiência
de inserção em setores diferentes: “bicos”; inseridos em trabalhos formais, ou informais; em
situação de desemprego) e, também, o interesse e a disponibilidade do/a jovem em participar.
Nesse processo de escolha, já foi possível perceber que as trajetórias eram semelhantes, ao
menos considerando esses dados iniciais, uma vez que a maioria não havia passado por outros
processos educativos após o ensino médio e as experiências de trabalho de quase todos/as
concentravam-se no setor de serviços.
Eu conversava com esse grupo de 25 jovens, via rede social, pessoalmente e/ou via
WhatsApp. Conversávamos a respeito da vida deles/as, desde que saíram da UFMG, sobre
futebol, política, inserção no ensino superior, crianças – nos casos em que os/as jovens já
eram pais ou mães –, dentre outros assuntos. Nas primeiras conversas, eu sempre “puxava
papo”, mas, com o passar do tempo, alguns/algumas já me chamavam para conversar e até
falavam “Hoje você não vai querer conversar comigo, não?” (Caderno de campo, 2016).
Os/As jovens me interrogavam sobre a minha vida, minha família, com o que eu trabalhava,
sobre o processo de inserção na universidade e na pós-graduação. Foram experiências
46
ímpares, em que estavam cientes da minha intencionalidade, mas, ao mesmo tempo, eu não
era mais “a outra estranha”, pois “sem nunca ser considerada igual, fui ‘aceita”’ (Alba
ZALUAR, 1985) em relação àqueles/as, os/as quais eu observava e com quem tinha interação,
pois eu já era parte do campo de observação25 (DAYRELL, 2005). Alguns/Algumas jovens
começaram a me contar situações que estavam vivenciando no relacionamento, na família,
com seus/as companheiros/as, nos seus projetos de vida e pediam-me conselhos. Enquanto
pesquisadora, eu buscava manter distanciamento das histórias e experiências, pois minhas
falas poderiam influenciar nossas conversas e entrevistas. Mas, ao mesmo tempo, tive uma
postura cuidadosa com os pedidos e, finalizado o tempo da pesquisa de campo, retomei
algumas questões com os/as jovens. Marquei de almoçar com alguns/algumas, fui ao
shopping com outros/as e/ou, ainda, os/as encontrei na UFMG, para conversar sobre
diferentes situações.
Desses momentos, cito especialmente um. Refere-se a um encontro no Centro
Esportivo Universitário (CEU), em que um jovem me convidou para conversar, mas logo
percebi que ele tinha interesses, os quais extrapolavam o diálogo proposto, pois, em vários
momentos, ele me perguntou se eu tinha namorado, [dizia] que “eu era bonita, enfim...”
(Caderno de Campo, 2016). Senti-me desconfortável por não ir conversar com ele, mas como
mulher, me sentia no direito de recusar a situação. Diante do contexto, convidei uma amiga do
jovem que também fazia parte do grupo das 25 pessoas selecionadas para a pesquisa
exploratória. Contei a situação a ela que logo concordou em me ajudar. Chegamos juntas ao
CEU e o jovem falou: “O que você está fazendo aqui?” Ela respondeu: “Vim conversar
também, não pode?” Entramos no clube e ficamos conversando sobre a pesquisa. No meio da
conversa, ele disse que ela atrapalhou “o esquema dele”. Eu disse que ela não tinha
atrapalhado: eu a havia convidado ao perceber a situação. Conversamos sobre o fato, ele
pediu desculpas por fingir que queria conversar sobre a pesquisa e rimos da situação.
Atualmente, os dois são namorados (Caderno de campo, 2016).
Com o decorrer do tempo, percebi que alguns/algumas jovens me viam como alguém
que “os/as escutava”. Alguns expressaram que gostavam de conversar comigo, pois “eu
deixava eles/as falarem”.
25
Considero que a aceitação se referia a diferentes aspectos que serão explicitados no texto. Dentre eles, um
elemento “físico” que busquei me ater e me preocupava foi com as roupas que eu usaria no dia das
entrevistas, os acessórios, ou seja, como eu me apresentaria. Como afirma Melucci (2005), o corpo é um
objeto de atenção, então, ficava muito receosa de, a partir de meu corpo, me distanciar dos/as jovens.
Busquei não ir com roupas sociais, pois, para alguns, apenas pessoas ricas usavam esse tipo de roupa.
Considerei que, se eles/elas tivessem essa impressão a meu respeito, isso poderia causar algum
distanciamento.
47
Diante desse contexto, considero que busquei “escutar a voz dos/as jovens”, ao invés
de “dar a voz aos/as jovens”, como algo imperativo e hierárquico. Busquei estabelecer com
eles/elas uma relação que não os/as via como “Outros/as estigmatizados/as”, pois, como
ressalta Spivak (1942), o “mais claro exemplo disponível de violência epistêmica é o projeto
remotamente orquestrado, vasto e heterogêneo de se constituir o sujeito colonial como Outro”
(p. 47). Isso porque, como afirma Arroyo (2014), na nossa sociedade, tem-se incorporado uma
forma de pensar “os/as Outros/as”, trabalhadores/as, pobres, negros/as, como é o caso dos/as
jovens, como subalternizados/as diante da civilização, do conhecimento e da cultura.
Inspirada em Uwe Flick (2004), realizava o que eu estou nomeando de “sondagens
biográficas”, e, a partir daí, selecionamos 10 jovens para a entrevista narrativa (roteiro no
apêndice D). Um do grupo dos/as jovens escolhidos/as foi preso no dia agendado e, como ele
tinha um perfil singular ‒ por exemplo, intitular-se microempreendedor –, optei por não
entrevistar outro/a no lugar dele. Foram realizadas duas entrevistas com cada jovem,
totalizando 18 entrevistas26.
A entrevista narrativa, como menciona Inês Teixeira (2006, p. 3), “propõe-se a escutar
os sujeitos que, generosamente, emprestam e confiam suas vidas aos entrevistadores, que
delas recolhem não somente os fatos, mas os sentidos, os sentimentos, os significados e
interpretações que tais sujeitos lhes conferem”. Dessa maneira, a entrevista narrativa é um
instrumento importante para se conhecerem as dinâmicas cotidianas das relações sociais e
políticas, permitindo analisar acontecimentos partindo da subjetividade dos/as
entrevistados/as. Além disso, ao possibilitar que o/a entrevistado/a ordene e atribua sentido
aos acontecimentos, correlacionando-o aos fatos presentes, leva a uma reflexão acerca de suas
próprias vivências, em que pode correlacionar imagens de si, do/a outro/a e do mundo, além
de atribuir significados às suas experiências (Álida LEAL, 2017; TEIXEIRA, 2006).
A questão geradora foi: “gostaria que você contasse como está a sua vida, desde que
saiu do trabalho na Cruz Vermelha, no câmpus Pampulha UFMG”, que contemplou a
amplitude necessária para uma entrevista narrativa, a fim de não enquadrar a pergunta a meu
problema de pesquisa. Ao mesmo tempo, possibilitou chegar ao foco desejado, especialmente
pelo fato de que trabalho e escolarização são processos que, na maioria das vezes, fazem parte
da biografia dos/as jovens.
26
Havíamos realizado entrevistas com nove jovens (duas entrevistas com cada um/a), mas, na qualificação, a
banca avaliou que o material apresentado já era suficiente. Assim, optamos por não trabalhar com dados
empíricos de dois jovens (Sabrina e Ricardo), pois, mesmo sendo singulares, acabavam abarcando temáticas
já contempladas nas análises de dados trazidos por outros/as jovens.
48
tempo, davam equilíbrio pela alegria, coragem, maturidade e reflexividade com que relataram
lidar com a vida. Considero que as entrevistas foram recheadas de bonitezas, pois os/as jovens
narraram suas vidas, como se estivessem revivendo o momento. Havia muita emoção e
sentimento nos depoimentos. Tinham também um carinho comigo e um grande interesse em
“falar” e “ser escutado/a” (na experiência da individualidade). Da minha parte, um interesse
enorme de “escutar essas vozes”, tão singulares e, ao mesmo tempo, tão plurais.
Considero que as entrevistas foram potentes, especialmente, por três motivos: o
primeiro diz respeito às perguntas de pesquisa, provocadoras do desejo de “dizer as palavras”;
em segundo lugar, o fato de eu ser uma jovem pesquisadora27 possibilitou outro olhar dos/as
jovens, um olhar de proximidade, pois falávamos a mesma língua, eu entendia as gírias, as
piadas, as trolagens28 e até mesmo os interesses; o terceiro motivo, que se articula ao segundo
e que considero essencial, foi a relação de confiança estabelecida. Melucci (2005), ao refletir
sobre o contrato entre pesquisador/a e observado/a [interlocutor/a], afirma que:
27
Consideramos que o fato de eu ser uma jovem pesquisadora potencializou o diálogo com os/as jovens aqui
considerados/as, porém, não podemos afirmar que todo/a pesquisador/a jovem terá facilidade(s) com a
pesquisa com interlocutores/as também jovens, pois dependerá da pesquisa realizada e do contexto existente.
28
Trolagens: termo usado entre os/as jovens para brincadeiras, zoações.
50
29
São postagens em que, em sua maioria, homens buscam demonstrar poder e status, a partir de fotos retiradas
com muito dinheiro, carros e mulheres. Neste caso, as mulheres são expostas como objeto de desejo. Tais
postagens reforçam as assimetrias de gênero, pautadas em uma hierarquização do lugar das mulheres como
objeto.
51
campo:
Após a escolha por mais um jovem, fui fazer contato com o Breno. O
contato com o Breno foi pelo WhatsApp. Utilizei uma parte da mensagem
que já havia enviado a outra pessoa. Neste caso, uma mulher. Não foi um
bom começo! Acabo enviando a mensagem com o nome da menina para ele.
Imediatamente peço desculpas, e reenvio a mensagem, agora com o nome
certo. A famosa visualização do “zap” foi rápida, mas a resposta um pouco
demorada. Ao final da noite, uma novidade, o retorno: “Oi Symaira, tenho
interesse, sim, e topo fazer a entrevista. Só marcar o dia e o horário. Pode ser
na UFMG”. Em menos de 2 minutos, já retornei e consegui agendar.
Passados alguns minutos, uma nova mensagem: “Se fosse outra ocasião, não
faria isso nunca. Hoje em dia, não pode ficar confiando em ninguém. Estou
indo, porque eu te conheço”. No dia agendado, envio, logo de manhã, uma
mensagem lembrando da entrevista no final da tarde. Nenhuma resposta do
outro lado, mas uma visualização. Opto, então, por esperar a resposta.
Porém, em meio à correria do trabalho, somente às 15h (uma hora antes da
entrevista) me lembrei de que não tinha recebido confirmação. Bom, mais
um exercício da pesquisa, aprender a confiar. Fui para o local combinado
uns 20 minutos antes do horário. Arrumei a sala e fui esperar. Chegou o
horário marcado e nada, pensei: “Vou ligar? Não. Melhor esperar. Afinal,
atrasos acontecem”. Esperei por mais 20 minutos e nada. Fiz, então, a opção
de enviar uma mensagem no WhatsApp. Agora, sem visualização e sem
resposta. “É”, pensei, “infelizmente, deve ter acontecido alguma coisa”.
Optei por ligar para saber se, de fato, não teria entrevista. Liguei. Do outro
lado: “Symaira, estou chegando na UFMG. Atrasei um pouco”.
Sentei e esperei. Meu olhar ficava atento a todas as pessoas que entravam na
Faculdade de Educação. Decorridos 50 minutos, de um lado não esperado da
Faculdade, o Breno chega sorrindo! Levanto e vou cumprimentá-lo.
Enquanto andávamos para a sala, ele fala: “Mesmo já tendo conversado com
você aqueles dias tudo, eu fiquei com medo de vir aqui. Vai que era coisa
errada, tipo assalto, sequestro. Aí demorei a responder no WhatsApp,
porque fui investigar no seu Facebook. Aí, vi você com outros ‘Cruz’ que
trabalharam comigo e respondi lá”. Eu sorri e agradeci por ter ido.
Chegamos à sala e fui explicar, com mais detalhes, a pesquisa. O Breno já
foi logo falando que era gago e que iria ficar ruim na gravação. Falei que não
tinha problema, mas que poderia desligar se ele quisesse. Ele disse que não
se incomodava. Perguntou por que foi escolhido. Pediu que explicasse
novamente o que era o doutorado. Perguntou para que servia a pesquisa.
Perguntou quem foram os/as outros/as jovens. Enfim, mais um exercício de
pesquisa, nos convida a sermos questionados.
Iniciamos a entrevista depois de uma conversa que possibilitou “quebrar o
nervosismo” e a timidez dele. As falas do Breno encheram meus olhos de
lágrimas (em vários momentos) e, para não chorar, concentrava o olhar e, de
certa maneira, as lágrimas iam para minhas mãos que, debaixo da mesa,
apertavam um ferro. Literalmente lágrimas nas mãos, pois minhas mãos
suavam muito. Tentava manter atenção em deixar meu corpo tranquilo
diante de falas que demonstram a injustiça e desigualdade do mundo, mas,
ao mesmo tempo, manter a atenção a tudo que o Breno falava. Foi a
entrevista mais longa que eu fiz e, ao acabar, sentia meus ombros tensos e
um esgotamento impensado. Ao final, fiz os agradecimentos e o Breno olhou
para mim e disse. “Trouxe um presente para você e sei que pode me ajudar”.
Breno retira um envelope e me entrega algo e diz: “Pode abrir”. Fiquei sem
reação ao ver que era seu currículo. Breno me pediu ajuda para conseguir um
trabalho, pois não podia mais ficar “sem um real no bolso”, como disse.
52
Todas as entrevistas me afetaram muito e afetaram muito os/as jovens. Dos nove
entrevistados/as, seis deles/as retornaram com mensagem informando o quanto foi bom falar
de suas vidas e o quanto os/as fez refletir sobre suas trajetórias. Explicitaram que, no início,
acharam que seria um tanto de perguntas e que teriam dificuldade para responder, mas
gostaram de poder falar de suas vidas e, especialmente, de serem “escutados/as”, como
explicita Weliton em uma postagem no Facebook. Mantenho contato mais frequente com seis
deles/as.
Figura 8 – Cópia de tela de postagem do jovem Weliton em sua linha do tempo na rede social
A postagem ilustrada na Figura 8 foi do Weliton (21 anos, homem), que, desde o
início, se mostrou muito interessado em compartilhar sua história. Ele participou do Projeto
InterAgindo e fez menção a um livro do Observatório da Juventude, do qual um dos capítulos
53
foi dedicado ao projeto, como já pontuamos. Com o convite para participar da entrevista,
questionou a seriedade de ter sido escolhido, pois não acreditou que seria entrevistado.
Weliton agradeceu, ressaltando a minha capacidade de o “olhar devagar”, enquanto, na vida,
muitas pessoas o “olham depressa demais”, explicitando o quanto era julgado, sem ser
escutado. Embora, como ressalta Zaluar (1985, p. 31), “essa fala ininterrupta que meus
ouvidos e meu gravador registraram continua ainda em grande medida silenciada para o resto
do mundo”, considero que o papel e o desafio de ser pesquisador/a, é olhar devagar e enxergar
mais do que a superfície apresenta. É olhar com afeto, é desnaturalizar o olhar, é estranhar o
familiar e familiarizar-se com o estranho (Roque LARAIA, 2007). Além disso, o jovem
contribuiu muito para que eu pudesse “olhar devagar”, pois confiou em mim enquanto
entrevistadora e na possibilidade de que a entrevista fosse um espaço de afetar e ser afetado.
De maneira geral, considerei que as entrevistas possibilitaram que os/as jovens se
colocassem como “atores/as sociais reflexivos/as” de suas próprias trajetórias. Nesse sentido,
como atores/as, eles/elas “puderam ‘dar conta’ das suas práticas e a pesquisa é uma
possibilidade dialógica e reflexiva de ‘dar conta’ da ação mesma. A narração é, deste modo,
distinta da ação, mas faz parte dela como seu elemento construtivo” (MELUCCI, 2005, p. 40).
Outro fator importante acerca do campo, mas especialmente das entrevistas, refere-se
ao fato de eu ter me enxergado em várias narrativas dos/as jovens. Em alguns momentos, meu
corpo inquietava-se internamente, movido pelo desejo de conversar, ao invés de ouvir. Os
relatos do trabalho de alguns/algumas jovens no telemarketing me fizeram recordar o “meu
tempo” de operadora de telemarketing: tanto as alegrias quanto as humilhações. Os relatos
acerca da família, da divisão de tarefas domésticas somente entre as mulheres e de ser julgada
por “estudar demais”, me fizeram reviver minhas experiências familiares. Foram entrevistas
que “rasgaram a alma”, pois, naquele momento, foi possível construir, a partir da escuta, uma
reflexividade mais madura, baseada na distância dos fatos, no passar do tempo e do olhar a
partir do “outro”, perceber, ainda com mais detalhes, a perversidade da meritocracia e das
desigualdades impostas aos/as jovens. Mesmo identificando semelhanças entre a minha
história e a deles/as, considero ter tido “suportes invisíveis e visíveis” que a maioria deles/as
não teve (MARTUCCELLI, 2012).
Por último, outro aspecto, apontado de maneira mais breve anteriormente, é que
também fui entrevistada (ZALUAR, 1985; LEAL, 2017). Os/As jovens me questionaram a
respeito da minha família, do doutorado, do meu trabalho e do desejo de fazer pesquisas com
eles/elas. Ao falar da minha família, muitos/as se espantaram pelo fato de eu ter uma mãe
faxineira, um pai torneiro mecânico e uma irmã doutora em educação (FaE/UFMG), um
54
irmão graduando em engenharia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), com 100% de
bolsa ProUni, e outro irmão formado no ensino médio e realizando curso técnico.
Perguntaram sobre como meus familiares, especialmente mãe e pai, conseguiam se organizar
para a gente estudar. Em alguns casos, explicitei com mais detalhes, pois percebi que
alguns/algumas identificaram em mim algo que para eles/as era visto como impossível: como
uma jovem, pobre, estudante de escola pública, poderia estar no doutorado na UFMG. Sei que
sou exceção, mas foi fundamental falar sobre a minha trajetória para alguns/algumas. “Ser
entrevistada”, como para os/as jovens, me possibilitou reflexões sobre minha vida e, ao
mesmo tempo, sobre a “boniteza” que é fazer pesquisa, pois somos, enquanto
pesquisadores/as, “levados/as ao inesperado”. Considero que as colocações de Judith Butler
(2015) se relacionam ao que significou eu ser “entrevistada” ao mesmo tempo em que
permitiu a mim retomar a dimensão ética da pesquisa:
Talvez seja ainda mais importante reconhecer que a ética requer que nos
arrisquemos precisamente nos momentos de desconhecimento, quando
aquilo que nos forma diverge do que está diante de nós, quando nossa
disposição para nos desfazer em relação aos outros constitui nossa chance de
nos tornarmos humanos. Sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade
primária, uma angústia, sem dúvida, mas também uma oportunidade de
sermos interpelados, reivindicados, vinculados ao que não somos, mas
também de sermos movidos, impelidos a agir [...] (BUTLER, 2015, p. 171).
Como mencionado pela autora, me “desfiz” diante das várias interrogações e, cada vez
mais, percebia o quanto os/as jovens eram tanto semelhantes quanto diferentes de mim. Ser
interpelada, de fato, me tornou mais humana, pois senti o que significa “ceder” parte da minha
vida. A postura dos/as jovens possibilitou colocar-me ainda mais no lugar deles/as e a refletir
eticamente como eu escreveria sobre experiências tão intensas, mas, ao mesmo tempo,
marcadas por desigualdades e exclusão, sem correr os riscos de produzir violências
epistêmicas.
A forma de apresentação dos dados empíricos foi para nós um dos exercícios de
“imaginação sociológica” mais desafiadores. Como enfatiza Mills (1982), a organização do
material pode tanto alterar significativamente o conteúdo quanto silenciar os/as
interlocutores/as. Ao mesmo tempo, fazemos uma analogia às explicitações de Guimarães
Rosa (2001), em seu idílico livro “Grande Sertão: Veredas”, acerca da vida, para dizer da
importância desse momento. O autor afirma: “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Foram várias
tentativas de arranjos, que “esquentavam e esfriavam”, pois, quando achávamos que eles
tinham uma disposição interessante, várias questões nos desinquietavam novamente e nos
mostravam que não seria o melhor caminho. É necessário coragem para não acomodar nas
30
Optamos, por uma questão de foco, em não inserir na tese as informações referentes à condição juvenil (no
que tange ao lazer) e à sociabilidade, mas estas encontram-se presentes na análise, quando e se necessário.
60
31
O seminário de pesquisa é um momento rico de troca e aprendizados. Espaço em que os/as estudantes de
graduação e/ou pós-graduação apresentam suas pesquisas (em andamento) e os/as integrantes do OJ
apontam reflexões, sugestões, críticas.
61
***
Por fim, citamos um procedimento muito rico que deveria fazer parte da pesquisa, bem
como ser comprovada à pós-graduação, quando da entrega de materiais, após a defesa da tese.
Estamos nos referindo à devolução dos resultados aos/as interlocutores/as e a todos/as
àqueles/as que estiveram diretamente envolvidos/as. Achamos que esse é um procedimento
ético que permite o aumento da confiança entre pesquisador/a e interlocutores/as, mas,
especialmente, um respeito àqueles/as que cedem suas vidas e narrativas a nós,
pesquisadores/as. Como já citei, tenho construído devoluções da pesquisa com os/as jovens,
tais como: envio dos áudios da entrevista e das transcrições, recebimento de retorno sobre a
concordância de utilização das narrativas, após a leitura pelos/as entrevistados/as e conversas
com os/as jovens, a partir das entrevistas. Buscarei, ainda, formas de devolver os resultados
da pesquisa a todos/as os/as jovens, como fiz no mestrado, pois considero que é um direito
dos/as interlocutores/as e um papel importante da pesquisadora. Além disso, a comunicação
dos resultados, não somente para os pares e nos formatos acadêmicos, mas também para os/as
sujeitos, não é somente “representação dos objetos, mas contribui para constituí-los e fazê-los
viver” (MELUCCI, 2005. p. 22).
62
3.1 A juventude como construção social e histórica e os/as jovens a partir de um olhar
interseccionado
Os/as sujeitos interlocutores/as desta pesquisa são jovens, sendo, portanto, a discussão
da categoria juventude fundamental para nossas análises.
A juventude é, ao mesmo tempo, uma condição social e uma representação (Angelina
PERALVA, 1997; Nilma GOMES; DAYRELL, 2004), sendo complexo defini-la em um
único conceito. Como afirma Dayrell (2005, p. 9), nas representações da sociedade, a
juventude é vista como “um grupo dotado de interesses comuns, os quais se referem a uma
determinada faixa etária”, assumindo, assim, um caráter homogêneo. Ao contrário de tais
representações, podemos dizer que a juventude, enquanto condição social, se expressa através
das transformações físicas, psicológicas e biológicas que ocorrem a partir de uma determinada
faixa etária, mas não se resumem nesses sinais. Como bem evidenciado por Mario Margulis e
Marcelo Urresti,
juventude e sim jovens enquanto sujeitos que a experimentam e sentem segundo determinado
contexto sociocultural onde se inserem” (DAYRELL, 2007, p. 4).
Considerar a juventude como uma construção social e histórica não significa ignorar a
dimensão etária dessa etapa da vida, pois “a definição de ser jovem através de uma idade é
uma maneira de se definir o universo de sujeitos que habitaram o tempo da juventude”
(DAYRELL; Paulo CARRANO, 2014, p. 110).
No Brasil, assim como em alguns outros países da América Latina32, as pessoas jovens
são aquelas com idade entre 15 e 29 anos, de acordo com o Estatuto da Juventude (BRASIL,
2013). Cabe ressaltar que a faixa etária é um critério variável, conforme o país, ratificando as
reflexões acerca da juventude como uma construção social e cultural. Ainda no Brasil, pode-
se dizer que o reconhecimento institucional da juventude e a definição do seu recorte temporal
representa uma conquista. No ano de 2010, foi aprovada a Emenda Constitucional de número
6533 que garante a inserção do termo jovem no capítulo VII da Constituição e estabelece o
Estatuto da Juventude para regular os direitos dos/as jovens. Tendo em vista a faixa etária de
15 a 29 anos, temos no Brasil uma população de jovens de aproximadamente 51,3 milhões, ou
seja, os/as jovens representavam um quarto da população total do país, de acordo com o
Censo 2010. Porém, esses/as jovens fazem parte de um contingente populacional que, desde
1999, tem diminuído. Em 2005, a taxa de jovens de 15 a 29 anos era de 27,4% da população
e, em 2015, o número caiu para 23,6%. Ao contrário, tem-se um aumento da população
adulta, de 30 a 59 anos ‒ que, em 2005, era de 36,2% e foi para 41,0% em 2015 – e da
população de 60 anos ou mais, de 9,8% para 14,3%. De acordo com a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD, 2016), tal queda se justifica pela diminuição da
fecundidade34 e aumento da expectativa de vida da população, especialmente idosa. No
gráfico a seguir, a partir de dados do IBGE (2004), é possível visualizar a tendência de queda
32
A definição do Brasil se iguala a mais oito países da América Latina (Argentina, Bolívia, Chile, México,
Panamá, Paraguai e Peru). Em países da América Central, os jovens são aqueles com idade de 15 a 24 anos
(Anguila, Antígua e Barbuda, Bahamas, Barbados (também 15 a 29 anos), Belize, Dominica, Granada,
Guiana, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Virgens dos Estados Unidos, San kitts e Nevis, San Vicente e Santa
Lucia, Trindade e Tobago), de 15 a 30 anos (Cuba) e de 15 a 35 anos (República Dominicana). Embora a
maioria dos países da América Latina considere que a faixa etária inicial para juventude é de 15 anos, alguns
países se diferem, tais como: Colômbia (14 a 26 anos), Costa Rica (12 a 35 anos), Guatemala (14 a 30 anos),
Honduras (12 a 30 anos), Jamaica (14 a 24 anos), México (12 a 29 anos), Uruguai (14 a 25 anos) e
Venezuela (18 a 28 anos). Costa Rica é o país em que a juventude é mais estendida, contemplando 23 anos.
Por outro lado, a Venezuela contempla o menor período, de 10 anos (Dina KRAUSKOPF, 2017).
33
Aprovada em 13 de julho de 2010, com o apelido de PEC da Juventude, a Emenda Constitucional nº 65
altera a denominação do capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal e modifica o seu art. 227, para
cuidar dos interesses da juventude.
34
A taxa de fecundidade no Brasil passou de 2,09 filhos por mulher, em 2005, para 1,72 em 2015, o que
representa uma queda de 17,7% (PNAD, 2016).
64
Gráfico 1 – Projeção da população brasileira por grupos etários selecionados (1980 - 2050)
Guita Debert (2010) defende que as idades são uma dimensão essencial para a
organização social e que desta forma dificilmente rupturas de paradigmas aconteceriam sem
uma nova “cronologização da vida”, pois fazem parte da definição do status de uma pessoa.
No entanto, ressalta que a flexibilização dos parâmetros “do que seriam os comportamentos
adequados e direitos e deveres próprios a cada faixa etária é, contudo, acompanhada da
transformação das idades num laço simbólico privilegiado para a constituição de atores
políticos e redefinição de mercados de consumo” (idem, p. 61). Logo, a autora ressalta que
não podemos enquadrar os/as jovens somente em marcos etários, pois a juventude, assim
como o processo de transição para a vida adulta, é marcada por idas e vindas. A autora, ao
citar o processo de descronologização, explicita que as experiências dos/as jovens não se
ajustam a um modelo de trajetória linear.
Ainda neste debate, Margulis e Urresti (1996) afirmam que a juventude pode ser
pensada como um período da vida em que se tem um excedente temporal, tendo “mais
possibilidade de ser jovem todo aquele que possua este capital temporal como condição geral”
(idem, p. 5). Os autores chamam esse excedente de “moratória vital”. Porém, essa
potencialidade energética, se realiza nas relações sociais. Assim, “o exercício das
possibilidades abertas pela moratória vital [...] vê alteradas sua capacidade de expressão e de
realização, dependendo da posição social ocupada pelo sujeito” (Mônica PEREGRINO, 2011,
p. 280). Isso significa que os/as jovens vivenciam a moratória vital de maneiras desiguais e/ou
diferentes. A possibilidade de apropriação e uso desse excedente ou “plus” se relaciona a
outra “reserva”, esta de caráter social, uma espécie de crédito, que a sociedade, através de sua
rede de instituições, oferece a alguns/algumas jovens. Esse crédito é intitulado por Margulis e
Urresti (1996), como “moratória social”. Concordamos, então, com Peregrino (2011) que
moratória social faz referência a “um tempo doado” pela sociedade para que os/as jovens
experimentem a juventude.
Diante da complexidade da categoria juventude, Dayrell (2007) constrói uma reflexão
a partir da ideia de “condição juvenil”, considerando especialmente duas dimensões:
35
Cf. Marília SPOSITO, 2003, 2005; Ana CORTI, 2004; ABRAMO H., 2008; CARRANO 2000, 2008;
DAYRELL, 2001, 2007; LEÃO, 2004, 2011; NONATO, 2013.
67
36
Cf. Kimberlé CRENSHAW, 2002; Júlio SIMÕES; Sérgio CARRARA, 2014; Joaze COSTA, 2015.
37
Salientamos que a ordenação não significa uma hierarquia entre as condições sociais e identitárias.
68
38
A junção de pretos e pardos se baseia em estudos de pesquisas demográficas oficiais do Brasil,
embasamento empírico e estatístico consistente. Segundo Paixão e Carvano (2008), se justifica, pois: I) há
usual proximidade dos indicadores sociais dessas duas populações, tal como já descrito por uma vasta
literatura que trata do tema das relações raciais; II) esta aproximação só se torna compreensível pelo fato de
que os pardos, apesar de não apresentarem uma identidade negra, são assim identificados e discriminados
pelos demais contingentes, sendo, portanto, sujeitos às mesmas barreiras de realização socioeconômica que
os de cor ou raça preta; III) existência de uma perspectiva política no movimento negro de entendimento de
que os diversos matizes comportam uma unidade comum; [...] (PAIXÃO; CARVANO, 2008, p. 16).
39
Embora alguns/algumas expuseram orientações sexuais que não apresentam linearidade entre sexo e o
desejo heterossexual.
40
Na pesquisa de mestrado que realizei com os/as jovens, chamei a atenção para a discrepância entre a
contratação entre homens e mulheres, ressaltando que a diferença poderia estar relacionada ao estereótipo de
que certos tipos de atividades sejam para homens e outras para mulheres (NONATO, 2013).
69
ser jovem é ocupar uma posição singular, possibilitada pela escola nas
sociedades modernas e urbanas, que aparta o jovem da sociedade livrando-o
temporariamente das responsabilidades da vida adulta. Ocorre, porém, que
ao fazê-lo, este é segregado também dos “jogos sociais de poder” [...].
(PEREGRINO, 2011, p. 282)
Entretanto, a “suspensão do jogo” não acontece da mesma forma para todos/as. Os/As
jovens interlocutores/as desta pesquisa são ex-trabalhadores/as da CVB e continuam, em sua
maioria, trabalhadores/as, ou seja, já participaram e participam no jogo de poder do mundo de
trabalho, vivenciaram/vivenciam a condição de estudante e trabalhador/a, estando em meio ao
jogo da conciliação entre trabalho e escolarização. São, em sua maioria, jovens pobres e
negros/as, participando do jogo da exclusão, desigualdades e violação de direitos.
Nesse contexto, buscaremos, ao longo desta análise, articular os marcadores
identitários e estruturais às experiências dos/as jovens no campo do trabalho e da
escolarização levando em conta também a relação da família nesses processos.
70
juventude, tendo em vista que ser jovem, estudante e trabalhador/a traz outras nuances para a
condição juvenil. Enfatizamos, porém, que a relação escola e trabalho para segmentos juvenis
é bastante diversa. Estudos mostram que, nos países desenvolvidos, os/as jovens normalmente
ingressam no mercado de trabalho, depois de concluírem a educação formal. Ou seja, fazem
uma trajetória escolar relativamente prolongada (Carlos HASENBALG, 2003). Já nos países
em desenvolvimento, essa relação se manifesta de maneira contrária:
A autora pontua diferentes sentidos da escola noturna que tendem a dialogar com o
contexto mais amplo dos sentidos da escola. Dentre os sentidos apontados pela autora,
destacamos a ideia da escola como espaço de socialização, se configurando como uma
instância importante nas biografias juvenis. Em segundo lugar, a escola como esperança de
73
dias melhores, ou seja, deposita-se uma confiança na instituição escolar como possibilidade
de construção de projetos de vida e mobilidade social. Mas, Peregrino (2009) também pontua
a escola noturna como espaço de qualidade inferior e espaço dos/as excluídos/as. As
colocações da autora nos levam a questionar: como será que os/as jovens leem as suas
vivências no ensino médio, decorridos 4 ou 5 anos que frequentaram esse nível de ensino?
Quais dimensões eles/elas ressaltam de suas experiências como jovens estudantes? O que
dizem sobre a qualidade da escola e, especialmente da escola noturna, que frequentaram? O
que significou para eles/as conciliar a escola e o trabalho?
Mesmo diante de um cenário de baixa qualidade, a expansão do ensino médio
possibilitou que muitos/as jovens de camadas populares acessassem esse nível de ensino e
concluíssem a educação básica. Não obstante, como salienta Aline Ferreira (2017), o processo
de universalização do ensino médio ainda apresenta desafios consideráveis. Um deles é a
adequação da idade/série dos/as alunos/as cujas taxas de distorção chegam a 30%
(MEC/INEP, 2015). Outro desafio são as taxas de reprovação e evasão escolar. Segundo
dados do Censo escolar 2017, a repetência no primeiro ano do ensino médio, por exemplo,
chega a 15,3%. No que tange à evasão, os dados revelam que 11,2% dos/as alunos/as
matriculados/as evadiram da escola (INEP, 2018).
Os motivos da evasão escolar devem ser lidos em sua complexidade, como apontam
Dayrell e Rodrigo Jesus (2013, 2016) ao estudarem a exclusão dos/as jovens de 15 a 17 anos
no ensino médio. Embora a investigação aponte outras nuances, explicitamos as ponderações
dos autores acerca do peso do contexto socioeconômico e cultural das famílias como um dos
fatores de exclusão social. Outro motivo citado é a falta de sentido na escola, que também foi
evidenciada na pesquisa “os motivos da evasão escolar” (Marcelo NERI, 2008). Dayrell e
Jesus (2016, p. 416) constatam que os/as jovens “não entendem o que está sendo ensinado e a
utilização de adjetivos como chata, enjoativa e maçante foram comuns para expressar o
desânimo de grande parte deles” com relação à escola.
Os/As jovens pesquisados/as, em sua maioria, como veremos no próximo capítulo,
estão acima da média nacional quanto à conclusão do ensino médio. Diante da finalização
dessa etapa, todos/as os/as entrevistados/as (que ainda não se inseriram) desejavam o acesso
ao ensino superior, o que reforça que o ensino médio deixava de ser visto como etapa final de
ensino. Tal mudança se deve tanto à expansão do ensino médio quanto ao processo de
ampliação do ensino superior.
A ampliação do ensino superior no âmbito público e, especialmente, na esfera privada
ocorreu no Brasil a partir de 2004, sendo mais significativo nos dois governos de Luiz Inácio
74
Lula da Silva. Após longo período de estagnação desse nível de ensino que, assim como o
ensino médio, era restrito à elite, a expansão buscou enfrentar o histórico brasileiro de
exclusão do acesso ao ensino superior, respondendo a um duplo desafio:
42
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI
(Decreto nº 6.096 de 24 de abril de 2007) – tem o objetivo de criar condições para a ampliação do acesso e
permanência na educação superior, no nível de graduação, pelo melhor aproveitamento da estrutura física e
de recursos humanos existentes nas universidades federais (BRASIL, 2007). A meta é dobrar o número de
alunos nos cursos de graduação em dez anos, a partir de 2008.
43
Universidade Aberta do Brasil – UAB (Decreto nº 5.800, de 08 de junho de 2006). É um programa que
busca ampliar e interiorizar a oferta de cursos e programa de educação superior, por meio da educação a
distância. A prioridade é oferecer formação inicial a professores em efetivo exercício na educação básica
pública, porém, ainda sem graduação, além de formação continuada àqueles já graduados (BRASIL, 2006).
44
Financiamento Estudantil – FIES- destinado à concessão de financiamento a estudantes de cursos superiores
não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo Ministério, de acordo com
regulamentação própria (BRASIL, 2001).
45
É um programa criado pelo Ministério da Educação, em 2004. O Programa Universidade para Todos –
PROUNI (Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005) – é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e
bolsas de estudo parciais, de 50% (cinquenta por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento), para estudantes
de cursos de graduação e sequenciais, de formação específica, em instituições privadas de ensino superior,
com ou sem fins lucrativos (BRASIL, 2005).
75
(2012), salientam que a expansão desse nível de ensino se pautava numa “aposta do lugar
privilegiado da educação como via de desenvolvimento e como ferramenta de inclusão,
redistribuição de capitais (educacionais, empreendedores, simbólicos e legais) e
empoderamento societal” (p. 172). Se, esta era a proposta das universidades públicas, nem
sempre o mesmo acontecia na consequente expansão do ensino superior privado, que ampliou
substancialmente sua atuação, havendo casos de não correspondente qualidade do ensino.
Carmo (2014) pondera que se tratou de um crescimento de quase 74 % no setor
privado, em apenas uma década. Neste sentido, cabe ressaltar que, desde a década de 90,
inclusive nos governos Lula, a ampliação do acesso ao ensino superior se deu, basicamente,
pela ampla autorização de abertura de nova IES privadas, principalmente faculdades.
O ProUni é uma das causas desta ampliação do ensino superior privado46, pois é o
principal meio através do qual a maioria dos/as jovens de camadas populares acessam esse
nível de ensino. O programa possibilita bolsas em instituições privadas, a partir da nota obtida
no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Um dos critérios de participação no programa é
ter cursado todo o ensino médio em escola pública ou em escolas particulares na condição de
bolsistas. Cabe ressaltar, ainda, que o ProUni possui políticas de ações afirmativas destinadas
a estudantes pretos/as, pardos/as, indígenas e portadores/as de deficiência.
No âmbito público, explicitamos uma medida que consideramos umas das mais
representativas: a Lei de Cotas (BRASIL, 2012). Ainda no ano de 2004, houve uma
orientação do MEC para que as Instituições Federais de Ensino Superior destinassem pelo
menos 50% de suas vagas para estudantes de escolas públicas e contemplassem cotas para
negros/as e indígenas, de acordo com a composição étnica de cada unidade da Federação.
Contudo, somente em 2012, após uma série de debates, teve-se a aprovação da Lei nº
12.711/2012, que garantia de modo gradual a reserva de 50% das matrículas, por curso e
turno, nas 59 universidades federais e 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia, a alunos/as oriundos/as integralmente do ensino médio público, em cursos
regulares ou da Educação de Jovens e Adultos (MEC, 2013), contemplando, ainda, critério
socioeconômico e étnico-racial. A reserva de vagas para estudantes de escola pública,
definida pela Lei 12.711, de 2012, iniciou-se no processo seletivo para ingresso, em 2013, em
46
Como ressalta Wilson Almeida (2012), embora tenhamos críticas ao ProUni, devido a seu caráter
“privatizante” é necessário também considerar as vicissitudes do acesso e permanência de jovens de
camadas populares proveniente do ensino médio público, a pouca permeabilidade do ensino superior público
às demandas de trabalhadores-estudantes que são majoritariamente bolsistas, dentre outras questões
(ALMEIDA, 2012)
76
todas as instituições federais, tendo sido sua implementação concluída apenas no processo
para ingresso em 2016.
Dentre as medidas de acesso ao ensino superior público, chamamos a atenção também
para a implementação do Sistema de Seleção Unificada - SISU. O Sistema foi criado pelo
MEC com o objetivo de democratizar e facilitar o acesso às vagas em instituições públicas. O
SISU é uma plataforma on-line47 que tem a mesmas características da plataforma do ProUni,
em que os/as estudantes que realizaram o Enem podem se inscrever para tentar o ingresso no
ensino superior. Bréscia Nonato (2018) salienta que
o Sisu funciona como uma espécie de leilão, em que os “lances” são as notas
que cada estudante conseguiu no ENEM. Portanto, quanto maior o lance,
isto é, quanto maior a nota do ENEM, mais chances de se conseguir a vaga
em uma Universidade pública. Isso porque, durante as edições que ocorrem
diariamente, o sistema gera um ranking classificatório que permite ao
candidato verificar a nota de corte e sua posição48 no curso escolhido e, caso
desejado, alterar sua escolha para um curso ou Universidade que esteja
condizente com sua nota. Esse processo é que tem justificado a analogia do
Sisu a um leilão (NONATO, 2018, p. 73-74).
estudarem as “provas”50 enfrentadas pela população chilena, ressaltam que o trabalho é uma
das “provas sociais mais relevantes” (MARTUCCELLI; ARAUJO, 2012, p. 15). Os autores
salientam que um traço marcante do trabalho como prova é a tendência de apresentar aspectos
comuns em sociedades extremamente diferentes. Neste sentido, Álida Leal (2017) afirma que
50
Como veremos posteriormente, as provas se configuram como “um conjunto de desafios estruturais, por
isso, comum a todos os indivíduos de um coletivo (MARTUCCELLI, 2006).
79
Ainda que se reconheçam limites nessas alterações, são inegáveis as melhorias em vários
indicadores do mercado de trabalho no período, inclusive para os/as jovens.
No cenário atual, especialmente a partir do ano de 2014, retornaram algumas das
condições do mercado de trabalho anterior, especialmente a diminuição da formalização, com
o agravante da aprovação de reformas e legislações que reforçaram os processos de
precariedade e de perda de direitos. Neste contexto, tendo em vista que, para esses/as jovens,
o enfrentamento do trabalho é inevitável e “que do trabalho não se escapa”, torna-se relevante
compreender os seus percursos laborais e, principalmente, como eles/as constroem tais
percursos. Como nos lembram Sposito e Felipe Tarábola (2017, p. 6), “as eventuais reversões
de conquistas frágeis, na atual conjuntura, não significam, no entanto, um mero retorno ao
patamar anterior. Trata-se, também, de verificar como os jovens experimentam essas
mudanças e conformam suas subjetividades”.
É ainda importante considerar que o trabalho não se restringe ao mercado. A
apreensão dos percursos de individuação juvenis, a partir das experiências laborais, precisa
estar relacionada a uma visão sistêmica de trabalho. Neste sentido, entendemos o trabalho
enquanto relação social “(1) antagônica, (2) estruturante para todo o campo social, (3)
transversal à totalidade deste campo social” (Danièle KERGOAT, 1992, p. 16). O trabalho,
entendido em termos de sua relação social, é importante, pois possibilita liberá-lo de um
conceito de caráter meramente econômico, ampliando sua complexidade e situando-o em um
contexto social e histórico. Dessa maneira, corroboramos com as colocações de Angelo
Soares (2011) que expõe:
O autor cita, além disso, que essas relações sociais devem ser compreendidas em
termos de “coextensibilidade”, ou seja, as diferentes relações se interseccionam no mundo do
trabalho. Cabe lembrar que a mudança do Estatuto do Trabalho, mencionada pelo autor, se
deu ao longo dos anos e foi enriquecida especialmente a partir dos estudos feministas. Assim,
como pontua Kergoat (2016, p. 19), “de uma simples produção de objetos, de bens,
ele[trabalho] se transformou no que alguns chamam de ‘produção do viver em sociedade’ -
trabalhar é transformar a sociedade e a natureza e, no mesmo movimento transformar a si
mesmo”. As contribuições das feministas são misteres, pois deslocam nosso olhar para além
80
trabalho, o que, por sua vez, é interseccionada pelas condições familiares, socioeconômicas,
de escolarização, experiências anteriores de trabalho e emprego, bem como as dimensões de
raça, de gênero e faixa etária. Ao mesmo tempo, apreender os sentidos que eles/as atribuem
atualmente às suas experiências laborais.
As reflexões sobre o trabalho são importantes, mas cabe também apontarmos as
diferenças entre trabalho e emprego. Isso porque, se, de um lado, o trabalho pode ser lido
como uma ‘produção do viver em sociedade’, a sociedade capitalista o transforma em
trabalho assalariado, alienado e fetichizado: “o que era uma finalidade central do ser social
converte-se em meio de subsistência” (Ricardo ANTUNES, 2004, p. 8). Portanto, a força de
trabalho, conceito chave em Marx (1985), passa a ser uma mercadoria cuja finalidade é criar
novas mercadorias e gerar capital. Ruy Braga e Marco Santana (2015) ressaltam que na
sociedade capitalista existe uma “mercantilização do trabalho, isto é a transformação da força
de trabalho em uma mercadoria despojada de direitos sociais” (idem, p. 532), o que se
intensifica com as (contra)reformas aprovadas no contexto atual, como abordaremos.
É importante ressaltar que, a partir da visão burguesa, associou-se o trabalho à sua
forma institucional, ou seja, o emprego. O emprego é algo recente na história da humanidade.
O conceito surgiu na Revolução Industrial, marcado por uma relação em que os indivíduos
vendem sua força de trabalho, por alguma remuneração. Cabe lembrar, que tende a existir
uma confusão entre trabalho e emprego, mas é importante ponderar que o trabalho é
“ineliminável da existência humana” (MARX, 1985), já o emprego é uma construção
capitalista do trabalho, que pode por vezes não fazer parte da experiência do sujeito.
Articulado ao emprego, entendemos o desemprego também como uma categoria
socialmente construída51. Desta maneira, Corrochano (2008) explicita ser possível inferir que
em países como o Brasil a categoria possa ser “diversa (dadas às características do mercado
de trabalho brasileiro), isso não significa sua inexistência” (idem, p. 34). Assim, mesmo aqui,
onde o assalariamento regular não se constituiu como forma de emprego dominante e não se
erigiram mecanismos de seguridade social, a categoria parece persistir como significativa e
51
Segundo Corrochano (2008, p. 32), “sua emergência está fortemente ligada ao desenvolvimento da
sociedade salarial moderna e da imposição de uma nova forma de relação com o trabalho e diferentes
padrões de vida entre os trabalhadores. Até o século XIX, nem mesmo a palavra desemprego fazia parte do
vocabulário europeu [...]. Todos aqueles que não conseguiam prover sua existência, necessitando de algum
tipo de assistência, eram identificados como pobres, vagabundos, incapazes, inválidos ou vadios. O
desenvolvimento da relação salarial moderna separa capital e trabalho, demanda e oferta, tempo de trabalho
e não-trabalho, gestão e produção, anos de emprego contínuo e aposentadoria e até mesmo as idades da vida.
[...] para além de questões econômicas propriamente ditas, o desemprego associa-se ao desenvolvimento de
modelos de representação dos trabalhadores em variados espaços sociais, bem como à clara definição de
procedimentos e instituições para seu controle” (idem, p. 33).
82
operacional. Como reconhece a autora: “mesmo entre indivíduos que nunca vivenciaram uma
situação regular de emprego, a identificação como desempregado torna-se cada vez mais
frequente” (CORROCHANO, 2008, p. 34). Assim, estar desempregado/a pode remeter a um
sentido clássico, ou seja, relaciona-se ao fato de não ter um trabalho formal, especialmente
com carteira de trabalho assinada, ou mesmo um tempo de não trabalho. Como veremos, tanto
entre os/as jovens que responderam ao questionário quanto entre os/as jovens
entrevistados/as, muitos/as desenvolviam trabalhados remunerados, mas se afirmavam como
desempregados/as tanto porque não tinham um vínculo formal quanto porque tinham
expectativas de um outro trabalho.
Outro elemento importante quanto ao desemprego se refere à necessidadeem se refletir
que existam diferentes maneiras de vivenciá-lo. Daniel Thin (2006) reelabora o pensamento
de Pierre Bourdieu (1977) que, ao estudar as condições de subproletários nos anos 1950 e
1960, destacou os efeitos do trabalho e a desorganização que sua ausência traz no contexto da
sociedade moderna.
[...] na falta de um emprego regular, o que faz falta não é apenas a certeza de
um salário, é esse conjunto de obrigações que caracterizam uma organização
coerente do tempo e um sistema de expectativas concretas. Como o
equilíbrio emocional, o sistema de quadros temporais e espaciais nos quais
se desenrola a existência não pode se constituir na ausência de pontos de
referência fornecidos pelo trabalho regular (THIN, 2006, p. 220).
Antony Giddens (2005), por sua vez, enfatiza a importância do trabalho, ao ressaltar
que, mesmo nos lugares em que as condições são relativamente desagradáveis e as tarefas são
repetitivas, o trabalho acaba por contribuir como elemento estruturador na composição
psicológica das pessoas e nas atividades diárias.
Os autores supracitados trazem a perspectiva da organização temporal, a partir do
trabalho, bem como a importância deste para o processo de construção de si. Porém,
apontamos que, assim como a experiência do trabalho, o desemprego pode ter diferentes
sentidos e modos de experimentar (GUIMARÃES, 2002; CORROCHANO, 2008), podendo
ou não gerar falta de controle temporal, repercussão na composição psíquica, bem como levar
ou não à busca por outros trabalhos. Ademais, é importante citar que o desemprego repercute
de maneiras diferentes entre os/as jovens de camadas populares e de camadas médias,
brancos/as e negros/as, homens e mulheres. Guimarães (2002) ressalta que o desemprego
impacta com mais intensidade os/as jovens com menos recursos econômicos, escolares, e
culturais e de forma mais amena àqueles/as com mais recursos.
83
52
De acordo com a Pesquisa Emprego e Desemprego, são intitulados “desempregados aqueles indivíduos que
se encontram numa situação involuntária de não-trabalho, por falta de oportunidade de trabalho, ou que
exercem trabalhos irregulares com desejo de mudança. Essas pessoas são desagregadas em três tipos de
desemprego: a) desemprego aberto – pessoas que procuraram trabalho de maneira efetiva nos 30 dias
anteriores ao da entrevista e não exerceram nenhum tipo de atividade nos sete últimos dias; b) desemprego
oculto pelo trabalho precário – pessoas que, para sobreviver, exerceram algum trabalho remunerado de auto-
ocupação, de forma descontínua e irregular, ou não remunerado em negócios de parentes, além disso,
tomaram providências concretas nos 30 dias anteriores ao da entrevista ou até 12 meses atrás para conseguir
um trabalho diferente deste; c) desemprego oculto pelo desalento e outros – pessoas que não possuem
trabalho e nem procuraram nos últimos 30 dias, por desestímulos do mercado de trabalho ou por
circunstâncias fortuitas, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos 12 meses” (DIEESE,
2001, p. 325).
53
Segundo Medeiros (2009), a “Era de ouro” representou uma nova etapa do capitalismo tanto desenvolvido
nos EUA como na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, marcada por um crescimento e uma
prosperidade econômica jamais vistos. Essa fase teve o Fordismo como pano de fundo, pois foi
caracterizado pela produção e consumo em massa e criou um novo padrão de renda para garantir tanto a
expansão do mercado quanto a inclusão dos/as trabalhadores/as.
84
realidade brasileira, na qual a informalidade sempre foi marcante (LEITE; Sandra SILVA;
Pilar GUIMARÃES, 2017).
Como afirmam Cavalcante et al. (2008), entre o final da década de 1960 e início dos
anos 1970, o capitalismo passou a enfrentar um momento de crise no modelo de
desenvolvimento baseado em uma forma específica de organização do trabalho: a produção
em massa, um dos elementos centrais do fordismo54. Para David Harvey (2014), a palavra
rigidez traduz os motivos da crise. Segundo ele, havia problemas com a rigidez dos
investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo e sistemas de produção em
massa, nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho, nos compromissos do Estado.
Cândido Ferreira (1993) destaca também os conflitos e resistências dos/as trabalhadores/as em
relação ao tipo de trabalho ao qual estavam submetidos/as no âmbito da organização
taylorista55/fordista e, paralelamente, tornava-se cada vez mais difícil ter mão de obra que
aceitasse o trabalho desqualificado, especialmente devido à elevação do nível de instrução das
camadas populares da população desses países.
A crise do fordismo nos países centrais rompeu com o padrão de crescimento e gerou
uma restrição orçamentária, o que trouxe consequências para a configuração do mercado de
trabalho, uma vez que o Estado, como forma de controlar os gastos, começou a reduzir o
54
O fordismo, para alguns/algumas autores/as, representou um modelo de desenvolvimento e, para outros/as,
representou todo um modo de vida. Antonio Gramsci (1974) defende a ideia de um modo de vida que
demanda “[...] um novo tipo humano, em conformidade com o tipo de trabalho e processo produtivo” (p.
146), ou seja, um modo de vida marcado pela racionalidade através da capacidade do comando do capital e
disciplina. Enquanto modelo de desenvolvimento, permitiu a padronização da mão de obra, envolvendo
intensa mecanização, com uso de máquinas/ferramentas especializadas. Com essa padronização, acontecia a
separação radical entre concepção e execução. A produção fordista se estabelecia a partir da linha de
montagem, acoplada à esteira rolante, assim, o trabalhador não se desloca mantendo um fluxo trabalho. Não
obstante, cabe lembrar que embora tenha essas duas noções “deve haver uma compatibilidade entre o
paradigma dominante em determinada formação social no que se refere à organização do processo de
produção e a macroestrutura socioeconômica de acumulação (ou seja, regime de acumulação e o modo de
regulação vigentes)” (Cândido FERREIRA, 1993, p. 10). Salientamos que não existiu um modelo único e
homogêneo do fordismo nos diferentes países. No Brasil, por exemplo, a implantação do fordismo realizou-
se em termos precários, tendo em vista os contextos de exclusão e concentração de renda do país. Por esta
razão, que o fordismo dos países periféricos foi denominado “fordismo periférico” (Alain LIPIETZ, 1988)
e/ou fordismo incompleto.
55
O taylorismo pode ser analisado como uma estratégia de gestão/organização do processo de trabalho.
Antonio Cattani (1997, p. 247) afirma que tratava-se de “um sistema de organização do trabalho,
especialmente industrial baseado na separação das funções de execução e planejamento [...] no controle de
tempos e movimentos na remuneração por desempenho”. Desta maneira, o taylorismo teve como foco o
controle e a disciplina, visando o controle dos tempos ociosos como uma estratégia de assegurar um
aumento da produtividade do trabalho. Sinteticamente o taylorismo teve como princípios básicos: a
separação programada da concepção/planejamento das tarefas, pois os trabalhadores eram pagos para
executar e não pensar; a intensificação da divisão do trabalho, no sentido de ser possível recrutar o operário
mais adequado para ocupar os postos de trabalho; e o controle dos tempos e movimentos, o que possibilitava
eliminar o tempo não dedicado às tarefas produtivas.
85
ao longo deste período, reforçaram ou mesmo estenderam a identidade jovem para uma
parcela maior da sociedade:
56
Segundo o autor, a superexploração está inserida na capacidade de promover a direção moral-intelectual do
capital na produção, articulando o consentimento operário e o controle do trabalho, capaz de realizar a
subsunção da subjetividade operária à lógica do capital (ALVES, 2000, p. 159).
90
57
Cf. MONTALI, 2004; MEDEIROS, 2009; LEITE; SALAS, 2014; HARVEY, 2014.
91
Como salienta o autor, o sujeito é o único responsável por sua inserção e permanência
no mercado de trabalho. A lógica difundida é que o fracasso, a pobreza e o desemprego
podem ser resolvidos a partir do investimento em formação para o trabalho, ou seja, a
qualificação emerge como “fetiche capaz de romper a exclusão social” (Liliana SEGNINI,
2000, p. 75).
58
Frigotto (1995) afirma que a teoria teve impacto expressivo no Terceiro Mundo, sendo uma alternativa para
se alcançar o desenvolvimento econômico, para se reduzirem as desigualdades e para aumentar a renda dos
indivíduos. Cattani (1997) salienta que no Brasil a teoria (com base nas ideias de Theodore Schultz) inspirou
inúmeros autores vinculados aos governos militares pós-64. Predominou nesse período a ideia de que,
“através de políticas educacionais impostas de forma tecnocrática, seria possível promover o
desenvolvimento econômico” (idem, p. 36).
92
do capital humano, tendo em vista que, num quadro de estagnação econômica, baixo
investimento em tecnologia e precariedade do mercado de trabalho, a escolaridade não seja
suficiente para garantir a geração de trabalho (POCHMANN, 2004). Nesta mesma direção,
Frigotto (2004) nos mostra que:
59
Há uma literatura importante que analisa as transformações no mundo do trabalho, a sociedade neoliberal e
suas consequências sobre a subjetividade dos/as trabalhadores/as; sua leitura contribui para compreensão
desse processo. Cf. BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; EHRENBERG, 2010; DARDOT; LAVAL, 2016.
60
Cf. POCHMANN, 1999; CORROCHANO, 2008, Mariléia SILVA, 2014; MANZANO; CALDEIRA, 2018.
61
O JUBRA – Juventude Brasileira – é um evento voltado para a discussão acerca das juventudes. Palestra na
mesa de abertura do VII JUBRA (2017) – intitulada “Jovens e geração em tempos de crise”.
62
Menção ao livro: Geração Milénio – um retrato social e político. Cf. Vitor FERREIRA et al. (2017).
94
Assim, o empreendedorismo volta-se para determinada geração que busca saídas para
as incertezas e desigualdades do mercado de trabalho. Nenhum/Nenhuma dos/as
entrevistados/as da presente pesquisa apresentou um discurso empreendedor, mas citou jovens
amigos/as que buscavam essa via. Tendemos a considerar que, no caso dos/as jovens de
camadas populares, é um discurso perverso, pois eles/as não têm condições econômicas para
iniciar e manter um empreendimento. Livia de Tomasi (2016) pondera que, do ponto de vista
econômico, a possibilidade de sobrevivência dos empreendimentos é muito pequena – na
ótica dos direitos, em geral, representa a precariedade das relações de trabalho,
responsabilizando indivíduos pelos seus fracassos. Não obstante, também parece importante
olhar para as ambiguidades presentes nessa perspectiva. Pesquisa de Tomasi (2016) revela
que, ao mesmo tempo, a despeito dos vários problemas, alguns/algumas jovens acentuam a
possibilidade de escolha de trabalhar com o que gostam, com autonomia, sem controle dos
seus tempos e corpos.
Tendo em vista essas breves considerações, pode-se dizer, seguindo Leite e Salas
(2014), que as transformações do trabalho, provocadas por mudanças no modo de acumulação
e pautadas sobre a flexibilização da produção e do trabalho, são estruturais63, modificando “o
paradigma de expansão do assalariamento e dos direitos a ele associados” (LEITE; SALAS,
2014, p. 87). Ao mesmo tempo, ainda seguindo esses autores, também parece importante
considerar que, embora essas tendências sejam estruturais, elas também dependem “da
63
Concordamos com Leite, Silva e Guimarães (2017) quando salientam que o conceito de precariedade pode
ser usado para analisar o trabalho de forma praticamente universal; já o conceito de precarização é mais
condizente com a análise da realidade europeia, de perda de direito conquistados durante 30 anos gloriosos.
Assim, em países com questões estruturais, por exemplo, marcados pela informalidade, como os latino-
americanos, o conceito de precariedade é o mais coerente, sendo, portanto, o conceito de precarização pouco
explicativo. Não obstante, consideramos que os seis tipos de precarização da realidade brasileira, enunciados
por Graça Druck (2011), a partir do conceito de Precarização Social do Trabalho - como um processo em
que se instala – econômica, social e politicamente – uma institucionalização da flexibilização e da
precarização moderna do trabalho, que renova e reconfigura a precarização histórica e estrutural do trabalho
no Brasil -, contribuem para a análise mercado de trabalho brasileiro, especialmente a partir de 2014, sobre
os quais apresentamos uma síntese. Segundo Druck (2011), temos: “vulnerabilidade das formas de inserção
e desigualdades sociais - as formas de mercantilização da força de trabalho produziram um mercado de
trabalho heterogêneo, segmentado, marcado por uma vulnerabilidade estrutural e com formas de inserção
(contratos) precários, sem proteção social; intensificação do trabalho e terceirização - o que tem levado a
condições extremamente precárias, através da intensificação do trabalho (imposição de metas inalcançáveis,
extensão da jornada de trabalho, polivalência, etc.) sustentada na gestão pelo medo; insegurança e saúde no
trabalho - desrespeitam o necessário treinamento, as informações sobre riscos, as medidas preventivas
coletivas, etc., na busca de maior produtividade a qualquer custo, inclusive de vidas humanas; perda das
identidades individual e coletiva - fruto da desvalorização simbólica e real, que condena cada trabalhador a
ser o único responsável por sua empregabilidade; fragilização da organização dos trabalhadores -
dificuldades da organização sindical e das formas de luta e representação dos trabalhadores; a condenação e
o descarte do Direito do Trabalho – fetichização do mercado tem orquestrado e decretado uma “crise do
Direito do Trabalho” [...] cujas leis trabalhistas e sociais têm sido violentamente condenadas pelos
“princípios” liberais de defesa da flexibilização, como processo inexorável trazido pela modernidade dos
tempos de globalização” (DRUCK, 2011, p. 47-52).
95
correlação de forças entre os vários atores sociais, da sua capacidade de ação e mobilização e,
em consequência, de decisões políticas que podem ser mais ou menos favoráveis ao trabalho”
(LEITE; SALAS, 2014, p. 87). Nesse sentido, ainda que não desprezando as tendências
estruturais, especialmente considerando-se o processo de globalização e os limites impostos
para as economias de periferia, no momento em que os/as jovens aqui pesquisados/as
ingressaram no trabalho (em meados dos anos 2000), o Brasil, assim como alguns países da
América Latina, atravessava um outro contexto econômico e uma conjuntura política diversa
que, para alguns/algumas autores/as, conformou um novo modelo de desenvolvimento. Nesse
sentido, cabe refletir sobre alguns dados da inserção juvenil neste contexto e, especialmente
como os/as jovens lidavam com seus percursos laborais.
O século XXI, especialmente nos primeiros anos, tem sido marcado por mudanças na
economia internacional64, por uma nova conjuntura política e educacional tanto no Brasil
quanto em outros países da América Latina que tem favorecido o enfrentamento das
tendências neoliberais que vinham se conformando até então. Como afirmam Leite e Salas
(2014), com a chegada ao poder de grupos que faziam oposição às tendências neoliberais, a
partir de 2003 (início do governo Lula), as medidas passaram a se dirigir ao fortalecimento do
Estado para a retomada do crescimento econômico, articulado à inserção de setores
tradicionalmente excluídos da sociedade. Desta forma,
64
Segundo Leite e Salas (2014, p. 88): “a abertura de uma situação internacional favorável às economias
latino-americanas, impulsionada pela demanda de commodities produzidas na região, facilitou a ação dos
atores sociais que há muito vinham clamando pela mudança das políticas econômicas e sociais, bem como
pelo atendimento dos problemas enfrentados pelos grupos menos favorecidos”.
96
(LEITE; SALAS, 2014, p. 90). Ademais não significa que se estava livre da flexibilidade e da
precariedade das relações de trabalho, tão pouco da inexistência do neoliberalismo, mas
emergiram políticas públicas que visavam enfrentar esse contexto, na perspectiva de um
“novo modelo de desenvolvimento”. Assim, a retomada da função e da ação do Estado passa
pela necessidade de redistribuição das riquezas sociais com peso equilibrado para a melhoria
do conjunto das atividades econômicas e sociais, atribuindo à educação um lugar de
centralidade na tarefa do desenvolvimento (Antonio MARQUES; Vera CEPÊDA, 2012).
Nessa dinâmica, entre os anos de 2004 e 2014, especialmente nos dois governos de
Luiz Inácio Lula da Silva (2003), começou a ocorrer no Brasil uma significativa elevação do
ritmo de crescimento econômico. Uma série de pesquisadores/as65 evidenciaram que o novo
contexto trazia geração de empregos, redução das taxas de desemprego, aumento das
formalizações no mercado de trabalho, redução das desigualdades e inegável melhoria nas
condições de vida da sociedade. Nesta mesma direção, Paulo Baltar et al. (2010), ao
realizarem uma análise sobre a realidade do trabalho no governo Lula, enumeraram melhorias
significativas desse contexto, tais como:
65
Cf. LEITE, 2012; Anselmo SANTOS; Denis GIMENEZ, 2015; CORROCHANO et al., 2017; LEITE;
SALAS, 2017; Marcelo MANZANO; Christian CALDEIRA, 2018.
97
66
André Singer ressalta, por exemplo, que, mesmo diante de políticas de redistribuição de renda, aumento de
salário, redução da pobreza, crescimento econômico e diminuição de desemprego, havia a manutenção de
relações econômicas anteriores, bem como as alianças para a execução dessas relações. (SINGER, 2012) O
autor cita, ainda, que “ao tomar das propostas originais do PT aquilo que não implica enfrentar o capital,
como seria o caso da tributação das fortunas, revisão das privatizações, redução da jornada de trabalho,
desapropriação de latifúndios, ou negociação de preços por meio dos fóruns de cadeias produtivas, o lulismo
manteve o rumo geral das reformas previstas, não obstante aplicando-as de forma muito lenta. É a lentidão
que permite interpretá-lo como tendo um sentido conservador” (SINGER, 2012, p. 193).
98
dependendo da classe, raça/cor, sexo e território, esse afastamento é positivo, pois aponta a
possibilidade de não ter o/a jovem que conciliar trabalho e escola (SPOSITO; SOUZA, 2014).
Para Manzano e Caldeira (2018), tal alteração era um indicativo de melhoria social, pois a
diminuição envolve grupos de idade localizados nos extremos da distribuição etária (se
referindo também à queda da ocupação das pessoas com mais de 50 anos) e a ampliação
ocorre para os jovens adultos. Os autores ressaltam que a diminuição nas duas primeiras
faixas da juventude se deve tanto a fatores demográficos quanto socioeconômicos. Ou seja,
existiu uma queda da participação no mercado e ao mesmo tempo a “possibilidade de se
manterem mais tempo na condição de inatividade econômica, fato relacionado à desobrigação
dos jovens enquanto contribuinte da renda familiar” (idem, p. 11). Por sua vez, essa
“dispensa” tendia estar relacionada a melhorias das condições sociais e econômicas da
população de modo geral, especialmente melhoria da distribuição de renda, redução da
pobreza e elevação da renda média das famílias (BALTAR, 2010). Ademais, poderia estar
relacionada também à expansão educacional dos anos 1990 (GUIMARÃES; MARTELETO;
BRITO, 2016).
Tais mudanças, no entanto, não chegaram a alterar a realidade da juventude brasileira
como trabalhadora, especialmente os/as jovens de camadas populares. Assim é o/a jovem
trabalhador/a que se torna estudante, pois a postergação da entrada no mercado na faixa etária
citada não retira o trabalho da condição juvenil, seja como realidade presente (trabalho
informal ou mesmo trabalho doméstico), seja como projeto de futuro (SPOSITO; SOUZA,
2014; CORROCHANO, 2014).
Outro elemento importante desse período que aconteceu em todos os grupos etários foi
o aumento de formalização dos vínculos empregatícios, inclusive para a faixa etária juvenil
(BALTAR, 2010). A construção de um mercado de trabalho com trabalhos protegidos é
essencial numa sociedade marcada pela flexibilidade e precariedade, pois garante, a partir do
papel do Estado, a efetivação dos direitos trabalhistas regulamentados na CLT. Aconteceu
inclusive, a partir de 2003, a formalização no setor público brasileiro, seja pela administração
direta do município, seja decorrente do governo federal para reverter a lógica de contratação
precária do governo anterior (Fernando MATTOS, 2015).
Articulado ao contexto de formalização e de trabalho protegido, a partir de 1999,
houve melhoria no sistema de fiscalização do trabalho, embora não suficiente, no qual
destacamos o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo, em convênio com a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), como parte da Agenda Nacional de Trabalho Decente.
99
Tendo como base esses princípios, no ano de 2006, foi elaborada a Agenda Nacional
de Trabalho Decente. A construção da “agenda”, entendida aqui como temas e problemas que
são prioridade política do governo em determinado momento político, ratifica a importância
que o governo dava ao trabalho.
No que tange especificamente às juventudes, no ano de 2010, foi aprovada e lançada a
Agenda Nacional de Trabalho Decente para a Juventude (ANTDJ) e o Plano Nacional de
Trabalho Decente para a Juventude (PNTDJ). Discutida entre 2013 e 2016, a construção da
Agenda envolveu o diálogo entre diferentes setores da sociedade, tais como as diversas
instâncias do governo federal, organizações da juventude, centrais sindicais, confederações
empresariais, pesquisadores e outras entidades da sociedade civil, com o apoio técnico da OIT
(CORROCHANO; Helena ABRAMO; Laís ABRAMO, 2017, p. 139).
A elaboração de uma Agenda própria para as juventudes é corroborada pelo Ministério
do Trabalho e Emprego ao ressaltar que
Tais constatações vêm reforçar que no Brasil o trabalho, assim como a escola,
“faz[em] juventudes”, o que corrobora com André Mendes (2013), ao afirmar que a visão
67
Memorando do Entendimento se refere a um acordo entre duas ou mais partes para construir termos de um
entendimento. Normalmente é o primeiro passo para uma formalização de jurídico mais elaborado.
100
68
Cf. Leila JEOLÁS, 2007; CORROCHANO, 2008; Naercio MENEZES FILHO et al., 2013; SILVA, 2014;
MANZANO; CALDEIRA, 2018.
69
Apresentamos aqui uma síntese das prioridades da Agenda Nacional de Trabalho Decente para Juventude
(2011). A discussão completa traz em detalhes todas as prioridades, exemplificando a linha de ação.
101
governo federal” (DEDECCA, 2015, p. 9). Tais mudanças possibilitaram uma estruturação
domercado de trabalho, contrariando, por sua vez, as tendências especialmente de redução do
Estado e precariedade do trabalho do neoliberalismo. Salas e Leite (2017) enfatizam que as
melhorias atingiram a grupos normalmente excluídos, como mulheres e negros/as.
Consideramos também que a juventude foi beneficiada, seja com a diminuição da ocupação
especialmente em determinada faixa, como mostramos, seja na ampliação em outras, além da
ampliação do sistema educacional. É este o contexto no qual os/as jovens interlocutores/as
desta pesquisa iniciaram suas trajetórias no mercado de trabalho.
Podemos dizer que um conjunto de fatores (crise política e econômica, queda da taxa
de investimento, endividamento das empresas e das famílias, dentre outros) desarticularam a
estrutura política, institucional e econômica que vinha se configurando no Brasil, desde o
início dos anos 2000. Segundo Salas e Leite (2017),
70
Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017. Altera os dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que
dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações
de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros.
102
71
Lei nº 13.467/2017 - Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no
5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974; 8.036, de 11 de maio de 1990; e
8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.
103
Não abordaremos todos os pontos da reforma, pois consideramos que tanto a visão
do/a trabalhador/a como mercadoria quanto a prevalência do negociado são suficientes para
considerarmos que estamos diante de um cenário crítico do mundo do trabalho. A Justiça do
Trabalho, que atuava em prol dos direitos do/a trabalhador/a, deve apenas analisar a
conformidade aos elementos juridicamente formais. Carvalho (2017, p. 83) salienta que “o
legislador procura estabelecer que a ausência de contrapartidas pela retirada de direitos legais
72
Optamos por trazer um exemplo explicitado por Carvalho (2017) que concordamos ser umas das formas
disposta nessa Lei que desconsideram o trabalhador como ser humano e, especialmente sujeitos de direitos,
sendo nessa lógica, portando, uma “mercadoria como outra qualquer”. O autor expõe como “a junção de
dois ou mais dispositivos pode ter um potencial danoso ao trabalhador do que quando analisados
isoladamente. O Artigo 394 - A permite o trabalho de gestantes em atividades insalubres em graus médio e
mínimo, exceto mediante apresentação de atestado de saúde; entretanto, o item XII do Artigo 611-A permite
a negociação do enquadramento da insalubridade, o que abre a possibilidade para que gestantes trabalhem
em condições de insalubridade que atualmente sejam consideradas de grau máximo” (CARVALHO, 2017,
p. 84).
73
Acontece a introdução na CLT, do artigo 611 - A: Art. 611 - A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de
trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I – pacto quanto à jornada de
trabalho, observados os limites constitucionais; II – banco de horas anual; III – intervalo intrajornada,
respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; IV – adesão ao Programa
Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei no 13.189, de 19 de novembro de 2015; V – plano de cargos,
salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos
que se enquadram como funções de confiança; VI – regulamento empresarial; VII – representante dos
trabalhadores no local de trabalho; VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; IX –
remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por
desempenho individual; X – modalidade de registro de jornada de XI – troca do dia de feriado; XII –
enquadramento do grau de insalubridade; XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem
licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; XIV – prêmios de incentivo em bens
ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; XV – participação nos lucros ou
resultados da empresa (BRASIL, 2017).
104
não deve ensejar a nulidade dos acordos por vício do negócio jurídico”, desta forma, rompe
com a prática comum da Justiça do Trabalho que buscava anular acordos que continham
apenas cláusulas que restringiam os direitos. Conjuntamente, no início do ano 2019, com o
começo da nova gestão na presidência da república, o Ministério do Trabalho foi extinto, o
que pode contribuir para acirrar a precariedade e as desigualdades já presentes no mercado de
trabalho. Essa decisão parece desconsiderar o trabalho como elemento primordial da
existência humana, pois não se terá mais um órgão específico para refletir as estratégias,
diretrizes e a aplicação dos recursos públicos, especificadamente para o trabalho e emprego.
Ante a esse panorama de (des)construção do mercado de trabalho, concordamos que as
análises de Ricardo Antunes (2011) sobre a informalidade cabe neste contexto atual, pois o
autor ressalta que:
trabalho decente74 o que consideramos plausível visto que, parece paradoxal buscar trabalho
decente no contexto do mercado de trabalho brasileiro. Contudo, consideramos que a noção
de trabalho decente é pertinente, pois contempla várias dimensões fundamentais para a esfera
do trabalho, tais como oportunidades de trabalho, rendimento, jornada de trabalho, ambiente
de trabalho, combinação com outras dimensões da vida (vida pessoal e familiar), diálogo
social. Assim, consideramos que o conceito contribui para tensionar as lógicas do mercado e
potencializar trabalhos efetivamente decentes.
Por fim, consideramos que a contextualização que realizamos contribui para
evidenciar o quanto o mercado de trabalho brasileiro se configurou como um espaço/tempo
precário, instável e incerto que demanda dos/as trabalhadores/as buscar estratégias para
alcança-lo e permanecer inseridos/as, pois mesmo em momentos de crescimento econômico
tais características não são rompidas. E é nesse mercado que os/as jovens pesquisados/as se
inserem e enfrentando os desafios colocados pela estrutura social constroem percursos de
individuação singulares, os quais procuraremos analisar.
74
Diferentes autores/as produzem críticas ao conceito de trabalho decente. Não vamos desenvolver esse
debate, mas cabe salientar que as críticas se relacionam à concepção de trabalho decente como um trabalho
formal, à dicotomia entre trabalho decente e trabalho precário que o conceito tende a produzir, à ênfase nas
condições contratuais de trabalho desconsiderando aspectos vinculados às características intrínsecas dos
empregos, dentre outras questões (Daniel MOCELIN, 2011; Roberto ANAU, 2011).
107
aquilo, nos entremeios dos espaços, tempos, encontros e desencontros da/na vida social”
(LEAL, 2017, p. 105). Assim, pensar sociologicamente os/as jovens a partir da sociologia do
indivíduo parecia ser, de fato, uma potencialidade, pois nosso interesse estava especialmente
centrado nas experiências dos/as jovens no mundo do trabalho e nos processos de
escolarização, buscando entrever as relações com o contexto de mudança social e econômica.
Martuccelli e Singly (2012) ressaltam que “com a modernidade, as sociedades
ocidentais outorgaram um lugar mais amplo ao indivíduo” (p. 12). É importante pontuar que a
sociologia sempre se interessou pelos indivíduos, mas a análise da sociologia contemporânea
ganhou outros contornos, tendo em vista que parte do indivíduo para compreender a
inteligibilidade dos fenômenos sociais e as novas relações entre dimensões sociais e pessoais.
Assim, a escolha pelas sociologias do indivíduo mostrou-se adequada diante das múltiplas
experiências que os indivíduos estavam enredados, junto à interpretação de que exista uma
nova maneira de se fazer a sociedade. Por isso, novas abordagens sociológicas apareceram,
buscando desenvolver cuidadosamente as sociologias do indivíduo, “tendo em vista que é o
indivíduo, com sua personalidade, que dará concretude e realidade ao papel social e a
instituição. Ele é cada vez mais chamado a construir experiências do que interiorizar papéis”
(CORROCHANO, 2008, p. 27; DUBET, 1994; LAHIRE, 2004; MARTUCCELLI, 2007).
A sociologia, desde sua origem, dispõe de três grandes estratégias intelectuais para o
estudo do indivíduo, quais sejam: socialização, subjetivação75 e individuação. Tais
perspectivas proporcionam modos distintos para lermos os indivíduos, embora possam ser
feitas “hibridações76”, ou seja, mais de uma perspectiva podem estar juntas
(MARTUCCELLI, 2006). Na presente pesquisa, optamos em construir uma análise que
articula a socialização e a individuação, tendo esta última como eixo central. Logo, nossas
reflexões voltaram-se para os percursos de individuação juvenis, levando em conta os
processos de socialização, especialmente nos âmbitos familiar, escolar e laboral.
Consideramos que as práticas socializadoras e os processos de individuação são
dinâmicas imprescindíveis na análise sociológica contemporânea (MARTUCCELLI, 2007;
75
O questionamento dessa matriz teórica é “como em uma sociedade moderna racionalizada e altamente
administrada existem possibilidades de emancipação do indivíduo?” Martuccelli (2006, p. 75) afirma que
“para dar cuenta de este doble proceso de dominación y de emancipación, la subjetivación ha trabajado a lo
largo de su decurso histórico a través de un doble proceso. Por un lado, la dialéctica entre el sujeto
individual y el sujeto colectivo e histórico (en este registro la emancipación del sujeto individual depende del
sujeto colectivo o histórico). Por el otro lado a través de la dinámica entre las posibilidades de emancipación
y las capacidades crecientes de sujeción del sistema social (en este segundo eje, de lo que se trata es de
describir el juego cruzado entre los márgenes de emancipación y los procesos de racionalización, entre la
subjetivación y la sujeción).
76
Cf. Juliana Reis (2014).
108
77
Concordamos com as ponderações de Reis (2014) que enfatiza que, mesmo diante de uma produção do
século XIX, a partir da sociologia durkheimiana, cabe apontar para as mudanças do contexto atual, em que
as gerações mais novas, especialmente as juventudes, se apropriam de determinados saberes, tal como o
“manuseio de artefatos e recursos tecnológicos”, se constituem como sujeitos a e se mostram mais
habilitados para ensinar ou informar as lógicas da cibercultura.
109
análise sobre as experiências vivenciadas pelos/as jovens nos âmbitos da família, do trabalho
e da escola como tais instituições não se limitavam a exercer imposições aos indivíduos, mas
se colocavam também como recursos que os sujeitos precisavam aprender a mobilizar
(DUBAR, 2009; GIDDENS, 1997; REIS, 2014).
Neste sentido, podemos entender que os processos de socialização estão imbricados
nos processos de individuação. A perspectiva da socialização nos possibilita compreender o
papel da família, da escola e do trabalho apenas em parte, naquilo que os/as jovens hoje
expressam enquanto comportamentos, valores e visões de mundo, na medida em que se
centram no passado, no que foi experienciado e internalizado. Mas, a socialização não dá
conta da ação dos indivíduos na mobilização das instituições, não dá conta dos processos de
reelaboração constantes que os indivíduos vão fazendo na medida de suas experiências
presentes, ou seja, da ação de cada um sobre si mesmo. Significa dizer que, para compreender
como os/as jovens se constroem como indivíduos, é importante recuperar como se deram as
suas experiências socializadoras, mas é preciso também atentar para as possíveis articulações
que cada um/a vai fazendo entre o passado e o presente, entre as matrizes socializadoras e o
trabalho que cada um/a faz sobre si mesmo/a para responder aos desafios postos pela
realidade onde se insere. Neste sentido, os processos de socialização contemporâneos são
simultaneamente processos de individuação.
A noção de individuação se insere no contexto da sociologia do indivíduo, como
explicitam Martuccelli e Singly (2012),
percebidas através das experiências dos indivíduos. Isso parece fundamental, especialmente
em uma sociedade em que as mensagens são fortemente dirigidas aos indivíduos.
Cabe citar que a matriz da individuação não desconsidera as dimensões subjetivas,
pois, como salienta Leal (2017) nos estudos, pela via da individuação, “nota-se progressiva
tendência de singularização da análise sendo que, cada vez mais, se escrutina dimensões mais
subjetivas e íntimas dos indivíduos” (p. 106). Segundo Martuccelli (2006), a construção
histórica da individuação, no campo das ciências sociais, está dividida em dois momentos. O
primeiro, entre o final do século XIX até 1960, esteve articulado “aos fatores estruturais de
individuação”. Diferentes autores/as chamavam a atenção para o processo de diferenciação
social crescente “que trae como consecuencia una multiplicación de círculos sociales y de
ámbitos de acción regidos por normas disímiles” (MARTUCCELLI, 2006, p. 80). Assim, os
indivíduos vão se individualizar cada vez mais, pois são submetidos a uma pluralidade de
papéis, normas, atividades, o que tende a implicar uma diferenciação crescente das trajetórias
pessoais. Neste momento, mais que experiências singulares o foco estaria nos fatores de
individuação. Ou seja, interessa conhecer as consequências das grandes transformações
sociais e o tipo de indivíduo que forjam. Em um segundo momento, após 1960, segundo o
Martuccelli, nota-se uma inflexão nesta matriz analítica, que se consolidou na década de 1980
na Alemanha e na Inglaterra, posteriormente, na França, passando a ser denominada de
“individualização”. Para Martuccelli (2006, p. 81), se trata de “una variante de lectura
particular (y contemporánea) de la matriz de la individuación”. Ressaltamos que, por essa
perspectiva, não se abandonam as reflexões sobre os grandes fatores estruturais, mas amplia-
se o interesse pelas experiências individuais e o esforço de singularização das análises
(MARTUCCELLI, 2006; LEAL, 2017). Desta maneira, como explicita Leal (2017, p. 107),
“os estudos passam a ser mais finos e passa-se a se dar conta dos problemas sociais ao nível
dos indivíduos [...] as experiências individuais são um elemento chave da interpretação e da
análise sociológica”.
Ainda sobre a individualização, Martuccelli (2006) enfatiza que a tese central é que as
instituições estão trabalhando de outras maneiras, assim, os indivíduos se veem confrontados
a responder problemas inéditos, o que os obriga “a hacer un uso permanente de la
reflexividad” (idem, p. 82). Logo, a reflexividade se converte em um elemento fundamental
do atual processo de individuação.
Ante tais reflexões e, considerando que “na realidade, não há tanto uma juventude e
sim jovens” (DAYRELL, 2007), ratificamos que problematizar sociologicamente os/as
jovens, a partir dessas matrizes, permite apreender que os indivíduos, embora compartilhem
112
78
Segundo Dubet (1994) “cada actor, individual ou coletivo, adopta necessariamente três registos da acção que
definem simultaneamente uma orientação visada pelo actor e uma maneira de conceber as relações com os
outros. Assim, na lógica da integração, o actor define-se pelas suas pertenças, visa mantê-las ou fortalecê-las
no seio de uma sociedade considerada então como um sistema de integração. Na lógica da estratégia, o actor
tenta realizar a concepção que tem dos seus interesses numa sociedade concebida então ‘como’ mercado. No
registo da subjetividade social, o actor representa-se como sujeito crítico confrontado com uma sociedade
definida como um sistema de produção e dominação” (DUBET, 1994, p. 113).
113
devem construir o sentido das suas práticas no próprio seio da heterogeneidade” (DUBET,
1994, p. 15). Desta maneira, segundo o autor, é por meio de nossas experiências que
construímos aprendizados, fruto das ações e das interações sociais que se estabelecem. Cabe
lembrar que a experiência não se restringe a algo mecânico, pelo contrário, pressupõe a ação
do sujeito. Dubet (1994), a partir da metáfora da peça teatral, chama a atenção para o
distanciamento entre os indivíduos e os papeis sociais, enfatizando que os indivíduos
questionam tais papéis. Assim, o ator não decora o papel que irá representar, mas improvisa,
questiona a direção e o texto, abre a possibilidade do novo, do inusitado, por meio de um
processo autorreflexivo.
Fica evidente, assim, a importância das narrativas biográficas dos/as jovens nesta
pesquisa, pois, segundo Dubet (1994), “o que se conhece da experiência é aquilo que dela é
dito pelos actores, este discurso vai colher as categorias sociais da experiência” (p. 103). Da
mesma forma, Pais (2001) vai reforçar esta centralidade, afirmando que as biografias juvenis:
a todos os indivíduos de um coletivo que, por sua vez, percebem e respondem aos desafios de
maneiras diversas. As provas se articulam aos processos de socialização, já que são
vivenciadas em espaços institucionais (escola, trabalho, família), ou são relativas ao laço
social (grupos, uso do tempo, relações interpessoais) (MARTUCCELLI, 2010). Diante do
exposto, consideramos que a compreensão da individuação pelas provas busca dar conta da
singularidade de trajetórias individuais, ou seja, o trabalho pessoal de cada indivíduo em
responder aos desafios, vivenciar processos socializadores e fabricar-se (REIS; DAYRELL,
2018).
Martuccelli (2007), a partir das provas, explora a flexibilidade da vida social indicando
a articulação entre processos sociais e experiências pessoais, a história da sociedade e a
biografia dos indivíduos. O autor destaca que a vida social é uma constante prova e que os
indivíduos respondem aos desafios de maneiras diferentes. Cabe ressaltar que as
singularidades de enfrentamento são também marcadas pelas características sociais e
identitárias dos indivíduos (posição social, gênero, raça, orientação sexual). Isso porque,
como afirma Carrano (2009, p. 12), as provas “não são independentes das posições e dos
contextos sociais realmente vividos, mas são heterogêneas no interior de uma mesma posição
social e dos contextos de vida semelhantes”. Como já sinalizamos, não partiremos das provas
como um operador analítico que tem como objetivo construir uma macrossociologia da
sociedade. A partir desse entendimento, inspirados no autor, optamos por trabalhar com a
ideia de desafios que permite a apreensão dos percursos de individuação juvenil articulando-
os aos processos de socialização, sem, contudo, nos propormos a construir uma análise
macrossociológica da estrutura social brasileira. Concordamos com Martuccelli, quando
afirma que “la buena sociología no es más macro que micro, puede ir muy lejos en las dos
direcciones [...] puesto que lo que logra es justamente dar cuenta, desde una perspectiva
particular, de la articulación entre la historia y la biografía” (SETTON; SPOSITO, 2013, p.
258).
Além do conceito de prova, Martuccelli (2007) traz a noção de suporte, o qual será
muito relevante para a nossa análise79. Para tanto, o autor se coloca o seguinte
questionamento: “como o indivíduo é capaz de sustentar-se no mundo?” Na perspectiva de
Martuccelli, existe, na cultura ocidental, uma representação ou mesmo naturalização do dever
79
Cabe salientar que optamos por trabalhar com a noção de suportes, mas Martuccelli (2007) considera que há
outras dimensões inerentes à ação dos indivíduos ao perpassarem por um fenômeno, tais como: dos papéis,
do respeito, da identidade e da subjetividade. Em seu livro intitulado “Gramaticas del individuo” o autor
explicita e reflete especificamente sobre os significados e implicações de cada delas.
115
esses suportes só fazem sentido dentro de uma lógica social, não é possível
elegê-los previamente. Em torno de cada um de nós há um tecido elástico
composto de relações familiares, profissionais, afetivas, ou seja, “nosso
verdadeiro mundo”. Há necessidade de apreender as diversas geometrias
pelas quais se desenham nossa relação com o mundo e com os outros e que
nos sustentam (REIS; DAYRELL, 2018, p. 88).
Neste sentido, cabe ressaltar que todos os indivíduos têm suportes, mas nem todos
garantem o êxito da individuação, por isso é importante compreender como os suportes
contribuem para a construção de sujeitos autônomos. Os suportes podem ser materiais ou
simbólicos, próximos ou distantes, conscientes ou inconscientes, ativamente estruturados ou
passivamente sofridos, sempre reais em seus efeitos, mas sempre têm o efeito de apoiar,
sustentar e fomentar as experiências dos indivíduos. Martuccelli (2007) explicita que,
historicamente, os suportes sempre foram diversos e variáveis 80. Cabe lembrar ainda que eles
não são algo que se temou não de uma vez e para sempre. Assim, podem aparecer ou sumir
em determinados períodos da vida do indivíduo, pois estão associados à dimensão temporal.
Nesta perspectiva, buscamos compreender com quais suportes os indivíduos jovens desta
pesquisa contavam nos seus processos de individuação no âmbito da família, do mundo do
trabalho e dos processos de escolarização.
Por fim, diante da reflexão que realizamos, enfatizamos a potencialidade da sociologia
do indivíduo na perspectiva da individuação articulada à socialização para a análise aqui
proposta, uma vez que, esta viabiliza o alcance das trajetórias vividas de maneira fortemente
80
Martuccelli elenca alguns tipos de suportes, quais sejam: invisíveis, estigmatizantes, patológicos e
confessáveis. O autor aponta que quanto mais elevadas são as posições sociais, mais o indivíduo é
sustentado exteriormente, mas há aparência da não existência dos suportes, por isso, invisíveis. Por outro
lado, os suportes estigmatizantes permeiam a vida das classes populares. As políticas públicas de assistência
social, por exemplo, estigmatizam os sujeitos como “assistidos”, como se não tivessem condições de se
manterem autonomamente, como tutelados. Porém, o autor demonstra que, pelo contrário, quanto mais frágil
é a situação dos indivíduos, mais ele se vê obrigado a se autossustentar por uma rede de relações de
solidariedade e muito pouco pelos direitos sociais. Os suportes patológicos são aqueles socialmente vistos
como doentios ou excessivos, por isso, não desejáveis. O uso de drogas pode ser compreendido como um
suporte patológico. Já os suportes confessáveis dizem respeito às íntimas relações em que os sujeitos se
amparam no outro. O autor, inclusive, usando a ideia dos casais que dizem “se suportar” mostra como os
encontros amoroso, familiar, afetivo são sustentações para a existência humana contemporânea (REIS, 2014,
p. 36).
116
singular, as quais são atravessadas por dificuldades e êxitos, destino e sorte, oportunidades e
dominações (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2010). Portanto, sublinhando narrativas
biográficas singulares, privilegiamos um olhar para o entrecruzamento das experiências
juvenis nas vivências na família, no mundo do trabalho e nos processos de escolarização.
117
81
Optamos por apresentar brevemente o perfil dos/as jovens da pesquisa anterior para não confundir o/a
leitor/a. No que tange a alguns elementos acerca dos pais, das mães e/ou responsáveis, consideramos
pertinente abordar de maneira articulada com os dados atuais.
82
Tal faixa etária estava diretamente relacionada à característica do processo seletivo da Cruz Vermelha
Brasileira (CVB), pois os/as jovens podem fazer inscrição para participar de algum processo, via CVB, com
quinze anos, e, até serem chamados/as, podem já ter alcançado os 16 anos e três meses.
118
responsáveis “não ligam tanto para eles/elas”, não se preocupam tanto, pois consideram que,
ainda que filhos/as, já são “donos/as de seu nariz”.
Os aparatos jurídicos, a obrigatoriedade de alistamento para os homens, a finalização
da última etapa da educação básica, colocada como ideal aos 17 ou 18 anos, são dimensões de
um possível ritual de passagem, o que faz com que a população veja e lide com os/as jovens
que têm acima de 18 anos de maneira diferente da forma com que lidam com jovens de 15 a
17 anos. A expressão “agora você é homem/mulher”, “agora já é dono/a do seu nariz” e
“agora já pode ser preso/a” é algo comum de ser escutado pelos/as jovens que completam a
maioridade. Juntamente com esses enunciados, está atrelada a cobrança por definições quanto
à vida laboral e escolar, bem como a construção de uma família, para alguns/algumas que já
namoram. Se antes as cobranças giravam em torno das decisões acerca de finalizar o ensino
médio ou para alguns, que curso fazer na faculdade, ou mesmo sobre em qual lugar se deseja
trabalhar, a mudança de faixa etária parece impor aos/as jovens a construção de projetos de
vida “mais concretos” e não somente de sonhos.
Outro elemento central para refletirmos sobre a condição juvenil se refere ao gênero.
Os/As interlocutores/as da pesquisa são majoritariamente representados por jovens homens.
32%
68%
Masculino Feminino
Temos 68% (65) de jovens homens e 32% (30) de jovens mulheres. Tal diferença é
reflexo da distinção na contratação pela UFMG. A contratação da maioria de jovens homens
tem relação direta com o estereótipo de funções, ou seja, o que é considerado “trabalho para
homens e para mulheres”. Por exemplo, os homens eram contratados para o almoxarifado,
“pois [quem exerce a função, teoricamente] precisa carregar peso”, o que não era considerado
uma função para mulheres que, em sua maioria, ficavam na recepção [função que não
exigiriaforça física, por exemplo] (NONATO, 2013). Além disso, podemos considerar que os
jovens homens são muito mais incentivados a entrar no mercado de trabalho que as mulheres,
119
que, por sua vez, se ocupam com o trabalho doméstico, o qual é visto, muitas vezes, como um
não-trabalho. Os dados da PNAD (2016) mostram que tem havido uma trajetória de
crescimento de inserção das mulheres no mercado de trabalho formal, desde 2005, mas em
2014 e em 2015 novamente se registraram queda nas admissões, como veremos no gráfico a
seguir.
Os/As jovens desta pesquisa fazem parte dessa estatística, pois, no ano de 2011, ano
da contratação inicial da maioria deles/as, havia uma desigualdade nas contratações,
privilegiando os homens. De forma geral, os dados dialogam, refletindo a discrepância na
contratação formal de homens e mulheres. Os dados contribuem para percebermos uma
mudança de cenário, mas ainda é significativa a diferença da inserção no mercado de trabalho
em relação ao gênero. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem sinalizado o
crescimento do trabalho doméstico, como espaço dessa inserção, majoritariamente, pelas
mulheres, embora o trabalho doméstico ainda tenha baixa taxa de formalização, mesmo com a
Lei Complementar nº 150, de junho de 2015 (BRASIL, 2015), a qual legisla sobre a
contratação. Cabe lembrar que, mesmo com a saída para o mercado de trabalho por parte das
mulheres e com a mudança da estrutura familiar, o cuidado com o trabalho doméstico, na
própria casa, ainda fica, majoritariamente, a cargo das mulheres, tornando a jornada feminina,
com os afazeres domésticos83, o dobro da jornada dos homens, dados que não se modificaram
83
O uso dos termos “afazeres domésticos” e “atividades domésticas” é feito aqui somente para evitarmos a
repetição do termo “trabalho doméstico”, pois entendemos que se trata de um trabalho.
120
* Valores arredondados
Fonte: IBGE / Pnad Contínua 4º trimestre de 2016 (Adaptado pela autora)
84
PNAD contínua do 4º trimestre de 2016.
122
49,6%. No Atlas da Violência (2018), explicita-se que os jovens negros compõem o perfil
mais frequente de homicídios no Brasil. “Por sua vez, os negros são também as principais
vítimas da ação letal das polícias e o perfil predominante da população prisional do Brasil” (p.
41). Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados, como se estivéssemos
em situação de guerra.
A discussão do combate à violência se faz necessária e faz parte da meta 16.1 dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)85, de “reduzir significativamente todas as
formas de violência e as taxas de mortalidade relacionada em todos os lugares” (NAÇÕES
UNIDAS, 2015, p. 30). Os nove jovens citados no início da construção do perfil,
principalmente os quatro jovens mortos, fazem parte das estatísticas gerais de mortes da
juventude negra, pois, em todos os casos, foram homicídios; em um dos casos, por policiais,
segundo a mãe do rapaz. Quanto aos cinco jovens presos, todos estavam envolvidos com o
tráfico de drogas, segundo suas mães e familiares. Embora não tenhamos muitos elementos
para análise, podemos salientar que, nos casos apontados, existe uma relação entre juventude
negra, violência e violação de direitos, pois todos os jovens eram/são negros (os nove haviam
se autodeclarado pretos na pesquisa anterior). Na heteroclassificação, seriam também
classificados como pretos, devido ao fenótipo, evidenciando a relação entre raça e violência.
Em paralelo às dimensões que compõem a identidade juvenil, quais sejam, a faixa
etária, o gênero e a raça/cor, é importante trazer elementos da família e do local de moradia
dos/as jovens, os quais são relevantes para conhecermos seu lugar social.
Quanto à escolarização dos pais e mães dos/as jovens, em sua maioria, eles/as não
tinham alcançado o ensino médio. No momento da pesquisa realizada em 2012, havia com
ensino médio incompleto, 8,72% (13) das mães e 10,07% (15) dos pais; com ensino médio
completo, 16,78% (25) das mães e 15,44% (23) dos pais. Chamava a atenção o baixo número
de pais e mães que estavam cursando ou cursaram o ensino superior. Apenas 2,01% (3) das
mães tinham ensino superior incompleto e nenhum pai estava nessa condição. Com ensino
85
Foram adotados pelo Brasil, em setembro de 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
por ocasião da Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. Processo iniciado em 2013,
seguindo mandato emanado da Conferência Rio+20, os ODS deveriam orientar as políticas nacionais e as
atividades de cooperação internacional nos próximos 15 anos, sucedendo e atualizando os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM). Chegou-se a um acordo que contempla 17 objetivos e 169 metas,
envolvendo temáticas diversificadas, como erradicação da pobreza, segurança alimentar e agricultura, saúde,
educação, igualdade de gênero, redução das desigualdades, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis
de produção e de consumo, mudança do clima, cidades sustentáveis, proteção e uso sustentável dos oceanos
e dos ecossistemas terrestres, crescimento econômico inclusivo, infraestrutura e industrialização,
governança, e meios de implementação. Cf. Portal do Ministério das Relações Exteriores. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/desenvolvimento-sustentavel-e-meio-ambiente/134-
objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-ods Acesso em: 20 fev. 2018.
124
superior completo ou mais, havia 1,34% (2) das mães e 0,67% (1) de pais (NONATO, 2013).
Atualmente, é possível observar mudanças no cenário de escolarização dos pais e mães dos/as
jovens86, como vemos na tabela a seguir:
2012 2017
Mães Pais Mães Pais
Freq. % Freq. % Freq. % Freq. %
Nunca estudou 2 1,3 1 0,7 2 2,1 0 0,0
Até a 4ª série do ensino fundamental 30 20,1 25 16,8 15 15,8 13 13,7
Ensino fundamental incompleto 36 24,2 32 21,5 24 25,3 22 23,2
Ensino fundamental completo 31 20,81 19 12,8 13 13,7 14 14,7
Ensino médio incompleto 13 8,72 15 10,1 9 9,5 6 6,3
Ensino médio completo 25 16,78 23 15,4 23 24,2 21 22,1
Ensino superior incompleto 3 2,01 0 0,0 0 0,0 0 0,0
Ensino superior completo ou mais 2 1,3 1 0,7 7 7,4 2 2,1
Não sei informar 7 4,7 33 22,1 2 2,1 17 17,9
TOTAL 149 100,0 149 100,0 95 100,0 95 100,0
Fonte: Elaborada pela autora.
86
Cabe lembrar que estamos trabalhando com total de interlocutores/as diferentes, mesmo assim, é possível
perceber as mudanças.
87
Optamos por manter a nomenclatura anterior, por séries, pois, no pré-teste do questionário, os/as jovens
apresentaram dúvidas acerca da nova organização do ensino fundamental em 9 anos.
125
questionados com quem moravam, 38,9% (37) dos/as jovens da pesquisa informaram que
moravam com seus pais (pai e mãe); igualmente, 38,9% (37) deles/as moravam somente com
as mães; 9,4% (9) desses/as jovens moravam com cônjuges/companheiros/as; 3,1% (3)
moravam sozinhos/as, ou com o pai, ou com outros familiares; 2,1% (2) moravam com
amigos/as, ou financiados/as por eles/as e, por último, 1% (1) deles/as morava sozinho/a,
mantido/a por familiares.
Diferentes pesquisas apontam o quanto a família tem papel essencial na escolarização
(Maria NOGUEIRA, 2005; Mauro BRAGA, 2006; PAIXÃO, 2006; THIN, 2006), mostrando
que ter pais e mães menos escolarizados tem influência nos processos de escolarização dos/as
filhos/as, desde a dimensão de não se ter ninguém para orientá-los/as acerca dos processos
educacionais, até não se ter referência para uma continuidade de estudos, como veremos na
reflexão da cena da jovem Dayane. Nogueira (2005) ressalta que:
Aliado ao nível de escolaridade dos pais e mães, que, como afirma Nogueira (2005),
repercute nas oportunidades escolares dos filhos, vale analisar a ocupação dos pais, a qual
dialoga, embora não de forma linear, com os acessos à escolarização que tiveram. Não
obstante, se mantenham, majoritariamente, no setor de serviços, houve um processo de
formação que permitiu ocupações consideradas de prestígio social, especialmente
relacionadas à formação no ensino superior, as quais não havia antes. No caso das mães,
temos: advogada, enfermeira e professora de ensino médio. No caso dos pais, temos um
administrador e um fiscal do Detran que exige curso superior. Temos, ainda, genitores com
formação técnica em máquinas e em aparelhos odontológicos. Nas demais ocupações, as mães
estão, majoritariamente, como domésticas (no próprio lar, ou empregadas como tal). Temos,
ainda, ocupações consideradas femininas, a saber: auxiliar de lavanderia, auxiliar de
produção, cabelereira, copeira, costureira, cozinheira, cuidadora de idosos, faxineira, gerente
de loja/encarregada, recepcionista, office girl e operadora de caixa, além de aposentada e
autônoma. No caso dos pais, a maioria é pedreiro e motorista, além de aposentado, armador,
autônomo, auxiliar de estoque, auxiliar de produção, bombeiro hidráulico, carteiro,
churrasqueiro, comerciante, estofador, garçom, gari, gerente, jardineiro, marceneiro,
mecânico, mestre de obra, motoboy, porteiro, promotor de vendas, segurança, serralheiro,
126
Os territórios “usados” pelos/as jovens se situam nos mesmos espaços de quatro anos
atrás. Embora tenha havido mudança por parte de alguns/algumas, especialmente dos/as
jovens casados/as, ainda temos a grande parte morando em Belo Horizonte (57,7%) e o
restante morando na região metropolitana (42,3%), em diferentes cidades, tais como
Contagem, Santa Luzia, Ribeirão das Neves, Vespasiano, São José da Lapa e Sabará. Seus
territórios são situados em periferias, aglomerados, vilas e conjuntos habitacionais. Morar
nesses lugares é vivenciar as contradições e desigualdades nos acessos à educação, ao
trabalho, à saúde, ao lazer, entre outros.
Nas chamadas periferias, os acessos a determinados serviços são limitados, enquanto,
em outros lugares da cidade, as pessoas usufruem de uma vasta quantidade de serviços.
Regina Novaes (2006) chama a atenção para o mercado de trabalho, por exemplo, ressaltando
que o local de moradia fecha, ou abre portas, nos critérios de seleção, “pois no imaginário
social o/a jovem que mora em tal lugar de bandidos é um bandido em potencial: melhor não
empregar” (NOVAES, 2006, p. 106). Na discussão metodológica, relatamos que o jovem
Breno, ao final da entrevista, entrega a mim dois currículos com endereços diferentes,
chamando a atenção que, em determinados locais, não se contrata quem mora em região de
periferia. Assim, a estratégia é “burlar” o sistema de exclusão. Veremos a dimensão do
território presente, também, na cena do jovem Caio e da jovem Dayane. No caso de Caio, a
madrasta se preocupava com o local de moradia onde ele e o irmão estavam com a mãe, pois
tinham menos acesso à escolarização, por exemplo, e incentivava o pai a buscar os jovens
para morarem com eles em outra cidade, a qual considerava ter mais possibilidades. No caso
de Dayane, a jovem tendia a denunciar as difíceis condições do território em que vivia com a
mãe. Por outro lado, os territórios também são espaços de construir identidades, em que os/as
jovens expressam vários modos de ser jovem, suas culturas juvenis, seus ritmos e seus estilos.
127
88
Apontamos que estamos cientes de que a questão econômica é relativa e imprecisa, mas buscamos associar
diferentes elementos, quais sejam: escolaridade, local de moradia, raça, escolaridade dos pais e mães, para
refletirmos sobre o lugar social dos/as jovens.
89
O salário mínimo era de R$ 937,00 (2017).
128
Ademais, podemos refletir sobre a relação entre renda e moradia e a própria condição
juvenil: Quais são os acessos desses/as jovens a espaços/tempos de lazer e cultura? Quais são
as suas possibilidades de acesso a cursos técnicos, cursos de línguas, cursinhos pré-
vestibulares, faculdades e universidades privadas pagas? Como esses/as jovens vivenciam o
espaço da cidade?
Muitos/as jovens responderam, por exemplo, que gostariam de ficar somente
estudando, ou gostariam de ter condições de pagar uma faculdade particular, mas devido a
outros gastos ‒ tais como aluguel, água, luz, comida ‒ não podiam fazer essa “escolha”. É
importante mencionar que os condicionantes sociais, tais como escolaridade do pai, da mãe,
ou do responsável, bem como a ocupações destes/as, contribuem para a delimitação ou para a
potencialização dos campos de possibilidades desses/as jovens, que, por sua vez, se articulam
e interferem de forma singular na vida de cada um/a (DAYRELL, 2005).
Após a caracterização dos sujeitos da pesquisa e da análise dos diversos fatores que
influenciavam/influem na sua condição juvenil, retomamos a questão sobre estarem, ou não,
os/as jovens apartados/as do jogo social de poder (PEREGRINO, 2011), citado no capítulo
anterior. Consideramos que os/as jovens interlocutores/as desta pesquisa estão totalmente
imersos/as no jogo social, devido às suas condições de gênero, raça (em sua maioria
negros/as), renda familiar (baixa renda) e território (moradores/as de periferias). Outras
reflexões que seguem possibilitaram ratificar o quanto os/as jovens participam do jogo de
entrada e de saída do mercado de trabalho, bem como da busca por uma longevidade escolar.
Poder vivenciar a moratória social, como um tempo/espaço de escolarização e adiamento das
responsabilidades do chamado mundo adulto, não faz parte do cotidiano da grande parte
dos/as jovens desta pesquisa e, quando podem ter acesso à determinado tipo moratória, como
veremos na cena do jovem Sérgio, a experiência é, também, marcada por tensões e conflitos.
Assim, para muitos/as jovens desta pesquisa, eles/as não vivenciam a sua condição de
jovens – tendo como base as representações de jovens que não têm responsabilidades e
podem, por conseguinte, dispor de um tempo de fruição. Nas conversas informais e nas
entrevistas, a maioria afirmou que não é jovem, pois precisa trabalhar e garantir seu sustento.
Os/As interlocutores/as da pesquisa, embora na faixa etária de jovem, se colocam como
adultos, tendo em vista o modo com que precisam lidar com sua condição juvenil. Boa parte
deles/as trabalha desde os 16 anos – mas havia casos de atividade laboral desde os 14 anos.
Quando eles/as trabalhavam na UFMG, conciliavam o ensino médio com a jornada de oito
horas exercida, tinham/ têm responsabilidades quanto a despesas familiares e alguns/ algumas
já têm filhos/as. Assim, ao invés de buscarmos pensar os elementos da saída do mundo
129
90
Abordamos o sentido de ambiguidade, a partir da autora Marilena Chauí (1986) que afirma que
“ambiguidade não é falha, defeito, carência de um sentido que seria rigoroso se fosse unívoco. Ambiguidade
é a forma de existência dos objetos da percepção e da cultura, percepção da cultura sendo, elas também,
ambíguas, constituídas não de elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas [...]” (p.
123).
91
A CVB é uma instituição autônoma, filantrópica e de utilidade pública. No caso de Minas Gerais, a
instituição atua desde 1914, sendo uma das mais antigas do País. Embora tenha outras diferentes frentes no
estado, há mais de 39 anos, a instituição definiu que o atendimento à juventude, especialmente em situação
de vulnerabilidade social, estaria entre suas prioridades (CRUZ VERMELHA, 2016).
92
Dados do site da Cruz Vermelha: http://cvbmg.org.br e de análise de documentos.
130
e, também, que estivesse estudando – cursando a partir do nono ano do ensino fundamental.
Após passar por todas as etapas de seleção da CVB – que iam desde a triagem
socioeconômica à triagem psicológica (NONATO, 2013) –, o nome do/a jovem selecionado/a
ficava em um banco de dados e era encaminhado para as instituições, entre elas a UFMG.
Após a seleção, o/a jovem passava a fazer parte do Programa “Jovem Trabalhador”,
sob o regime da Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT), das 8h às 17h, com uma hora de
almoço, num total de 44 horas semanais, logo, não são “jovens aprendizes” ou “menores
aprendizes”93. Em sua carteira de trabalho, era registrada a função de mensageiro interno. De
acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), essa função é uma das exercidas
pelo contínuo, que também é denominada mensageiro externo e office-boy, entre outras. O
contrato finaliza quando o/a jovem completa 18 anos, exatamente no dia do seu aniversário.
Na descrição sumária da CBO, nesse cargo as pessoas:
93
No ano de 2017, o convênio entre UFMG e CVB começou a ser alterado, priorizando a contratação, por um
período de quatro ou seis horas. O salário dos/as jovens teve redução.
131
laboral dos/as jovens. Uns/ Umas tinham acesso a cursos, atividades culturais e educativas,
enquanto outros/as não tinham liberação para desenvolver nenhuma atividade. Nesse sentido,
é possível dizer que, em grande medida, embora a responsabilidade seja da própria
universidade, as experiências formativas de trabalho, pensando nos/as jovens como sujeitos de
direitos e de aprendizagens, dependiam, muitas vezes, da chefia imediata (NONATO, 2013).
O sentido que os/as jovens atribuíram ao trabalho também é interessante de ser
pontuado. A maior parte dos sentidos atribuídos dialogava com as dimensões de socialização
e de sociabilidade. Quanto à socialização, eles/as afirmaram que o trabalho proporcionou
aprendizagem voltada para: “conviver com o público, aprender a conviver com as pessoas,
aprender a conversar mais, ampliação da rede de contatos” (NONATO, 2013, p. 236). Quanto
à sociabilidade, eles/as mencionaram a possibilidade de fazer e de cultivar amizades.
Juntamente com as dimensões supracitadas, os/as jovens enfatizaram o sentido de
independência, principalmente financeira, mas não somente ela. Os/As jovens salientaram a
possibilidade de serem “donos/as de si”, pois tiveram mais autonomia, liberdade e confiança
dos pais, mães e/ou responsáveis (NONATO, 2013).
O trabalho na UFMG para muitos/as jovens significava, naquela época, uma
possibilidade de ajudar nas despesas de casa, tendo em vista que as mães, pais ou
responsáveis não conseguiam manter a casa, sem a ajuda financeira de seus/suas filhos/as.
Para alguns/algumas, subsidiar seus próprios gastos já era suficiente para contribuir com o
orçamento da família. Desta maneira, o sentido da necessidade era algo comum aos/às jovens,
devido, especialmente, à condição de serem pobres. Além dos sentidos positivos atribuídos ao
trabalho, alguns/algumas ressaltaram que este era uma “obrigação a cumprir”, pois
precisavam trabalhar e que se tratava de uma rotina pesada, mas que trabalhar na UFMG era,
de forma geral, positivo.
Esses/as jovens faziam parte de um percentual de 25,3%, de jovens de 15 a 17 anos de
idade, ocupados/as, no Brasil, no ano 2012 (PNAD, 2015), ano de entrada da maioria na
UFMG, como podemos ver no gráfico a seguir:
132
Gráfico 5 – Nível de ocupação dos/as jovens, por grupos de idade - Brasil (2005 – 2015)
94
Proporção de pessoas desocupadas em relação ao total de pessoas economicamente ativas, em um
determinado grupo etário (PNAD, 2017, p. 136).
133
Gráfico 6 – Taxa de desocupação das pessoas de 16, ou mais anos de idade – Brasil (2013 - 2017)
95
Proporção da população ocupada ou desocupada (população economicamente ativa) em relação às pessoas
em idade de trabalhar. Pessoas em idade de trabalhar: pessoa de 14 anos, ou mais, de idade na data de
referência. Na publicação citada, optou-se por selecionar apenas as pessoas de 16 anos, ou mais, de idade.
(PNAD, 2017, p.136).
134
inserção e de baixo desemprego começava a ter declínio em 2015. Assim, nos anos de 2015,
2016 e 2017 já não vivenciávamos um progresso do mercado de trabalho. Os dados da PNAD
(2016) apontam que, em 2015, pela primeira vez na década, a população ocupada sofreu
redução, diminuindo cerca de 3,7% milhões de ocupações e os mais afetados/as foram os/as
jovens de 16 a 24 anos (-15,4% na década e -10,7% em relação a 2014). Houve, assim, um
aumento da População Não Economicamente Ativa (PNEA). A partir da faixa etária da
PNEA, tem-se que “metade tinha 50 anos ou mais de idade, 21,1% entre 16 e 24 anos, 15,0%
entre 25 a 39 anos e 10,1% entre 40 e 49 anos” (PNAD, 2016, p. 68). Na PNAD de 2017,
também se reforçava que a população jovem era a mais atingida, pois o nível de ocupação
diminuiu de 59,1%, em 2012, para 52,6%, em 2016, entre os/as jovens. Diante do novo
cenário, concordamos com Salas e Leite (2017) que chamam a atenção para que, a partir de
2015, com o aprofundamento da crise econômica, aconteceu uma “deterioração dos dados da
estrutura ocupacional” (SALAS; LEITE, 2017, p. 4) e os dados reforçaram que a juventude
era o grupo etário que o contexto econômico mais impactou.
É interessante ponderar que, segundo o Ipea (2016), quase a metade da população
desocupada (comparação de 2005/2015), que vinha buscando emprego, tinha um perfil
educacional exigido no mercado de trabalho, ou seja, ensino médio completo ou superior
incompleto, porém, não encontrava trabalho diante da queda da atividade econômica. Assim,
a partir do novo cenário, e, especialmente pensando nos/as jovens que são os/as mais
afetados/as com a queda da ocupação e com o aumento da taxa de desemprego
(CORROCHANO, 2008; GUIMARÃES; MARTELETO; BRITO, 2016), retomamos a
consideração de Silva (2009), agora concordando que, diante da atual configuração, os/as
jovens são impelidos/as a buscar trabalho em um mercado que não tem lugar para todos/as.
Ou seja, se antes parecia se ter um mercado de trabalho com mais possibilidades de acesso, a
partir de 2014, com as taxas de desocupação, as possibilidades de emprego diminuíram e
os/as jovens, devido a diferentes nuances, tenderam a estar imersos/as num mercado ainda
mais seletivo, no qual era/é difícil concorrer. Como veremos nas cenas sociológicas, os/as
jovens buscaram/buscam diferentes estratégias para se inserirem, especialmente a
qualificação, mas nas análises, buscamos evidenciar que a formação é apenas um dos
elementos que compõe a complexidade da inserção.
Dos sujeitos desta pesquisa, 67,4% (64) dos/as jovens estavam trabalhando e 32,6%
(31) não estavam. É possível afirmar que os/as jovens estão acima da média da taxa de
ocupação para a faixa etária de 18 a 24 anos, apresentada no gráfico 5.
136
Como apresentado na tabela a seguir, 12,6% dos/as jovens não tiveram nenhum
emprego, desde a saída da Cruz Vermelha. Os outros 87,4% (somando os percentuais) já
tiveram alguma experiência de trabalho posterior àquela na UFMG.
Após o término do contrato com a Cruz Vermelha, uma parte dos/as jovens (38,9%)
teve dois trabalhos; 23,2% deles/as tiveram um trabalho e 16,8% tiveram três experiências.
Com menor número, 7,4% dos/as jovens tiveram quatro trabalhos e 1,1%, 5 ou mais
trabalhos. Esses dados tendem a indicar uma baixa rotatividade entre empregos e entre
emprego e desemprego, pois, como afirmamos, a maioria estava empregada. Desta forma,
apontamos que, se, para alguns/algumas autores/as, a rotatividade está associada à idade, não
é o caso dos/as jovens interlocutores/as desta pesquisa, pois a maior parte deles/as teve de um
a dois trabalhos (Felícia MADEIRA, 2004; CORROCHANO, 2008).
As ocupações dos/as jovens96, em seus primeiros trabalhos, desde que saíram da
UFMG, foram: ajudante de obra, aprendiz, atendente/operador/a de caixa, auxiliar
administrativo, auxiliar de almoxarife, auxiliar de frios, barman, cobrador/a, contínuo
(terceirizado), eletricista automotivo, estagiário (contabilidade e PBH), encarregado de
produção, estoquista, garçom/garçonete, instrutor de informática, metalúrgico, militar do
exército, operador de telemarketing, porteiro, promotora de cartão, promotora de eventos,
recepcionista, repositor, segurança, Técnico em Enfermagem, Técnico em Saúde no Estado e
vendedor. Observa-se que, em sua maioria, as inserções se deram em setor de serviços e em
ocupações consideradas de baixo prestígio. Algumas delas relacionavam-se com inserções em
cursos técnicos e a ocupação de técnico em Saúde do Estado referia-se a uma formação
técnica, para a qual havia concurso público. Cabe lembrar que o setor terciário, desde a
96
Optamos por não inserir a linguagem não sexista para ressaltar as funções exercidas pelos jovens homens,
grafadas com somente “o”, exercida pelas mulheres, grafadas somente com “a” e grafadas com “o/a” aquelas
desenvolvidas por ambos.
137
chamada “acumulação flexível”, tem ganhado peso no Brasil (DRUCK, 2011; HARVEY,
2014; SILVA, 2014). A ampliação no setor de serviços está associada ao aumento da
precarização social do trabalho (DRUCK, 2014), pois à natureza de parte de seus postos de
trabalho está associada à diminuição da formalização, das jornadas mais flexíveis e da
sindicalização, por exemplo (PNAD, 2017).
O tempo médio que a maioria dos/as jovens demorou para conseguir emprego, após a
saída da UFMG, foi de até seis meses (39 jovens). Alguns/Algumas informaram que
demoraram mais tempo, de sete a nove meses (5 jovens). Outros/as jovens não procuraram
emprego, pois estavam esperando o seguro desemprego acabar. Tínhamos, ainda, jovens que
só conseguiram trabalho a partir do tempo de um ano (13), ou a partir de dois anos (2), pós-
UFMG. A maioria dos trabalhos em que os/as jovens se inseriram, após a saída da UFMG.
Foi conseguida por indicação de familiares, especialmente, evidenciando a ideia dos laços
fortes97 (Mark GRANOVETTER, 1973) e, em alguns casos, pela indicação de colegas de
trabalho da UFMG. O “QI” – expressão popular que, em alusão à sigla do conceito de
quociente de inteligência – um critério que poderia ser utilizado para avaliar a condição de
alguém para exercer determinado cargo – significa, nesses casos, “Quem Indica” (para a vaga
de emprego) – faz parte da dinâmica do mercado de trabalho e ser indicado/a, no caso dos/as
jovens, é importante, pois nem sempre eles/as têm a experiência que o mercado exige, ou
oportunidades para inserção. A indicação, a partir dos circuitos profissionais98
(GUIMARÃES, 2009), articulada ao mérito, possibilitou a reinserção de três dos/as jovens na
UFMG, como terceirizados/as. Em duas cenas sociológicas, com os/as jovens Dayane, Caio e
97
Mark Granovetter (1973) busca compreender as redes e as maneiras como circulam as informações sobre
possibilidades de emprego. Os “laços fortes” são aqueles em que os indivíduos se conhecem, são íntimos e
próximos. Os laços fortes são eficazes para localização e acesso a empregos, tendo familiares, vizinhos/as e
amigos/as como principais interlocutores/as. Já os “laços fracos”, ao contrário, são formados por indivíduos
que são pouco íntimos ou se encontram pouco. Os laços fracos são aqueles que conseguem maximizar a
circulação da informação ocupacional, aumentando as chances individuais de localizar empregos e,
especialmente de melhores ocupações. Para o autor, os indivíduos que conseguem transitar pelos laços
fracos têm mais chances de encontrar melhores oportunidades de trabalho, pois a rede é mais ampliada. Já
nos laços fortes a tendência é ficar circunscrito em familiares, vizinhos, ou em contatos próximos que
tendem a limitar novas e melhores possibilidades de inserção no mundo do trabalho.
98
Guimarães (2009) classificou os mecanismos de procura de trabalho de modo a diferenciar um conjunto de
circuitos, quais sejam: “Circuito Doméstico” são àqueles em que as informações de trabalho provêm dos
indivíduos mais próximos; o “Circuito Comunitário” é marcado por informações ocupacionais de um círculo
minimamente mais alargado, formado por amigos e vizinhos que tendem a co-habitar com os indivíduos; o
“Circuito Associativo”, neste caso, as informações já são a partir de vínculos de outra ordem, com menor
intimidade entre os indivíduos, tendo como referências os sindicatos, comunidades de bairro e outros tipos
de associação. E, por último, o “Circuito Profissional” que também são redes mais amplas, a partir da
relação entre antigos colegas de trabalho.
138
Letícia, será possível refletir sobre as redes de contato, bem como sobre a construção dos/as
jovens como trabalhadores/as terceirizados/as.
Quanto ao tempo de permanência no trabalho, em geral, os/as jovens permaneceram
mais de um ano no novo local. No que se refere ao registro em carteira, dos/as 83 jovens,
74,7% (62) informaram que seu primeiro emprego, desde a sua saída da UFMG, foi com
carteira assinada e 25,3% (21) informaram que não adquiriram tal direito. As ocupações sem
carteira assinada foram: auxiliar administrativo, servente, estagiário, atendente, repositor,
vendedor e promotor de eventos.
Em sua maioria, a experiência laboral dos/as jovens que tiveram 2º trabalho também
se deu no setor de serviços99. O tempo médio que a maioria desses/as jovens demorou para
conseguir seu segundo emprego, após a saída da UFMG, foi de até quatro meses. No caso do
tempo durante o qual os/as jovens ficaram no trabalho, a maioria ficou por mais de um ano,
ou estão ainda inseridos/as no mercado. Quanto ao registro em carteira, dos/as 54 jovens,
68,5% (37) tiveram a carteira assinada e 31,4% (17) não tiveram o registro. As ocupações sem
carteira assinada foram: office boy e atendente de supermercado100.
Diante do exposto, enfatizamos a formalização dos vínculos da maior parte dos/as
jovens que trabalhavam. O vínculo formal, segundo Nadya Guimarães (2004), é importante,
pois
99
Ocupações: ajudante de obra, arquivista de escritório de advocacia, atendente, auxiliar administrativo,
auxiliar de contabilidade, auxiliar de mecânica, auxiliar de reposição/produção, auxiliar de saúde bucal,
auxiliar de tesouraria, auxiliar de veterinário, auxiliar merchandising, cobrador, estoquista sapataria,
exército, fiscal de loja, manobrista de estacionamento, office boy, operador de máquinas, operador de
telemarketing, porteiro, recepcionista, servidora pública, vendedor, zelador.
100
As experiências seguintes, de alguns/ algumas jovens que tiveram mais de dois empregos, se aproximaram
muito das duas experiências citadas. Ou seja, houve pouca alteração com relação ao tipo de inserção, ao
tempo de busca e ao tempo de permanência no trabalho.
139
como as ocupações de suas mães e pais, o que nos faz lembrar do termo “desejando o
desejável” (BOURDIEU, 1996), pois, “em parte, a perspectiva dos/as jovens hoje reflete as
condições gerais em que se encontram as famílias, embora possa ser, na maioria das vezes, a
reprodução da atual situação econômica e social” (POCHMANN, 2000, p. 11) Assim,
alguns/algumas jovens estão reproduzindo as mesmas trajetórias de trabalho de seus pais,
inclusive havia aqueles/as que trabalhavam com pais e familiares.
Outra questão importante é que a maioria dos/as jovens informou que conseguiu nova
ocupação a partir da indicação feita pelos locais de trabalho anteriores, mas, especialmente,
pela indicação de familiares. Em todas as cenas, será possível perceber a importância dos
“laços fortes” para procurar ingresso no mercado de trabalho. Para a maioria dos/as jovens da
pesquisa, desde a inserção na CVB às novas inserções alcançadas pelas indicações feitas pelas
famílias, especialmente as mães tiveram um papel importante na conquista da vaga.
Não podemos deixar de citar que 32,6% dos/as jovens pesquisados/as não estavam
trabalhando, fazendo parte da taxa de desemprego que tem aumentado desde 2015, como já
ressaltamos. Os/As jovens que estavam desempregados/as, majoritariamente, já estavam na
situação, havia mais de um ano, como responderam. Dez dos/as jovens desempregados/as já
estavam sem trabalhar havia mais de três anos; quatro deles/as afirmaram não procurar
emprego, ou seja, estavam em situação desemprego oculto pelo desalento. No caso dos/as
jovens que não tiveram nenhum trabalho, desde a saída da Cruz Vermelha, encaixam-se no
que Pochmann (2007, p. 49) denomina como “desemprego de exclusão”, o que consiste em
um período longo sem emprego. O gráfico abaixo possibilita um panorama da taxa de
desemprego em nível nacional:
O período analisado coincide com o contexto de saída dos/as jovens. Embora não se
trate somente da faixa etária de 15 a 29 anos, contribui para refletirmos sobre o aumento da
taxa de desemprego. Maurício Reis (2017, p. 39) afirma que a “recente deterioração do
mercado de trabalho pode representar mais dificuldades para os/as trabalhadores que se
encontram em busca de um emprego”. Consideramos que grande parte dos/as jovens ex-
trabalhadores/as, mesmo os/as que estavam trabalhando, não puderam escolher os trabalhos e
condições de trabalho, seja pelo contexto de desemprego, seja pela falta de qualificação para
buscar outras ocupações, falta de experiência, pelo local de moradia (longe dos centros de
emprego), como alguns/algumas citaram no campo de observações do questionário. Além
disso, existe um “desencorajamento com o mercado de trabalho” (IPEA, 2016), que, segundo
a OIT, relaciona-se às seguintes razões:
jovens poderiam ter dito que estavam trabalhando, desenvolvendo as atividades citadas,
mesmo que de maneira informal, como fizeram os/as outros/as. Optamos por respeitar a
resposta desses/as jovens, pois dizer que não estavam trabalhando, mesmo desenvolvendo as
atividades que listamos, parece referir-se ao sentido e significado que eles/as atribuem à
categoria trabalho. Fica explícito que, para alguns/algumas, o envolvimento com essas
atividades não significava estar trabalhando101, pois não havia carteira assinada, como foi
explicitado por eles/as. Assim, para muitos/as deles/as, o trabalho é igual ao emprego, ou seja,
se não se tem um trabalho protegido não se tem um emprego.
As ocupações e os desempregos (temporários, ou desde a saída da UFMG) dos/as
jovens nos fazem indagar sobre as políticas e programas de inserção laboral que “assumiram
sobremaneira o fetiche da capacitação do jovem para um mercado de trabalho de poucas
oportunidades” (SPOSITO; CARRANO, 2003, p. 31). Concordamos com a crítica feita por
Sposito e Carrano (2003) acerca das políticas [neste caso programa] de primeiro emprego que,
em sua maioria, não têm um acompanhamento e continuidade, após a saída dos/as jovens da
primeira experiência laboral. Isso faz com que eles/as saiam “sem rumo” para novas
inserções, como foi o caso da maioria dos/as ex-trabalhadores/as da CVB. Muitos/as jovens se
depararam com um mercado de poucas oportunidades em que não “há lugar para todos”
(SILVA, 2009), sem um ofício e sem qualificações.
Nos anos de 2012 e 2013, os/as jovens ex-trabalhadores/as da Cruz Vermelha eram,
predominantemente, estudantes do ensino médio, devido a uma escolha da UFMG, pois esta
instituição poderia optar por contratar jovens do 9º ano também. A maioria estava cursando o
terceiro ano (42,2%) dessa modalidade de ensino; 28,1%, o segundo ano e 20,1%, o terceiro e
último ano. Um número pequeno (8,0%) já havia concluído essa etapa escolar (NONATO,
2013).
No período da presente pesquisa, 87,3% (83) dos/as jovens participantes desta
concluíram o ensino médio, sendo que 78,3% (65) deles/as o fizeram no tempo regulamentado
de três anos; 13,2% (11), em quatro anos, e 8,4% (7), em cinco anos, ou mais. Onze deles/as
cursaram esse nível de ensino na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em algumas cenas,
101
Cabe lembrar que, no questionário, optamos por perguntar sobre a situação no mundo do trabalho utilizando
a palavra trabalho, por entender que esta é mais ampla que emprego, como já citamos. Silva (2012) afirma
que, no Brasil, a falta de emprego não é desemprego, tendo em vista que as pessoas permanecem buscando a
sobrevivência, por outras formas de trabalho, dessa maneira “desemprego, no Brasil, não é o reverso do
trabalho, uma vez que isso pressupõe a negação da condição de trabalhador” (SILVA, 2012, p. 148)
143
os/as jovens narram elementos das suas vivencias neste nível de ensino, articulando-as às
experiências atuais de processo e projetos de escolarização.
Ao relacionar os dados coletados aos de níveis nacionais, podemos afirmar que a
maioria estava entre os 59% dos/as jovens no Brasil que concluem o ensino médio, não
participando da estatística de que quatro a cada 10 jovens de 15 a 19 anos não o concluem
(OXFAM, 2017). O gráfico a seguir, sobre o percentual de jovens que frequentam a escola,
mostra que a maior frequência acontece na idade considerada ideal para a conclusão desta
etapa.
Gráfico 11 – Percentual de jovens que frequentam a escola, por grupos de idade – Brasil (2005 -
2015)
Podemos dizer que uma quantidade considerável dos/as jovens estava inclusa no grupo
daqueles/as que frequentavam a escola nos anos de 2011 e 2012 (83,7% e 84,1%,
respectivamente). No ano de 2016, quatro dos 12 que não concluíram o ensino médio
compunham as estatísticas de jovens que estavam frequentando a escola na faixa etária de 18
a 24 anos ‒ no caso, todos/as estavam na EJA.
Apenas dois motivos foram citados pelos/as 12 jovens que não concluíram o ensino
médio e não retornaram à escola: a falta de interesse e um caso de gravidez. A falta de
interesse pela escola é apontada por diferentes pesquisadores/as102 como um dos fatores chave
para a evasão. Como já citamos, o processo de expansão do ensino médio modificou muito o
102
Cf. DAYRELL, 2007; DAYRELL; Daniele BARBOSA, 2009; NONATO, 2013; LEÃO; DAYRELL; REIS,
2011; DAYRELL; Rodrigo EDNILSON, 2016.
144
público que passou a fazer parte da escola. O público se alterou, mas a escola continuou a
mesma, por isso, concordamos com Dayrell (2007), ao enfatizar que, para os/as jovens,
percentual de 18,4% totais (PNAD, 2015) de frequência líquida103 a esse nível de ensino. No
gráfico a seguir, podemos verificar a taxa de frequência líquida ao ensino superior
comparando 2005 e 2015:
103
É a razão entre o número total de matrículas de alunos/as com a idade prevista para estar cursando um
determinado nível e a população total da mesma faixa etária.
146
Os/As 16 jovens que estavam cursando a graduação conseguiram romper com algumas
barreiras, pois todos/as são negros/as, todavia, é importante lembrar que são exceção à regra.
Isso porque, ao pensarmos na educação brasileira, podemos dizer que, em todas as etapas, em
especial no ensino superior, ocorre um funil de alunos/as, em que alguns/algumas não
conseguem chegar a uma “longevidade escolar”, consequência dos mais variados fatores. Essa
é a realidade dos/as jovens que acessam esse nível de ensino, todavia, para o/a jovem negro/a,
tal afirmação se faz ainda mais complexa.
A questão do pertencimento étnico-racial, muitas vezes, é invisibilizada por outras
questões, tais como fatores econômicos, como afirma Santos (2007): “acredita-se que a
desigualdade racial detectada nas universidades públicas brasileiras não se deve ao aspecto
racial, mas sim, ao econômico” (p. 233). É claro que não podemos negar que a questão
econômica dificulta a entrada no ensino superior – ela está, entretanto, totalmente interligada
à questão da raça. Gomes e Munanga (2006) afirmam que existe um “abismo racial” que está
presente em vários setores da sociedade. Essa desigualdade é fruto da estrutura racista somada
à exclusão social e à “desigualdade socioeconômica, que atinge toda a população brasileira e,
de modo particular, os/as negros/as” (MUNANGA; GOMES, 2006, p. 172). Essas diferenças
trazem consequências que alimentam o círculo vicioso, pois, sem condições de estudo, os/as
jovens negros/as têm desvantagens com relação ao mercado de trabalho.
Embora saibamos das desigualdades para a inserção no ensino superior, especialmente
para determinados grupos, Bréscia Nonato (2018) aponta que as políticas de democratização
do acesso, especialmente Sisu, Lei de Cotas, mas também o ProUni e Fies (que não fizeram
parte da pesquisa da autora), têm contribuído para minimizar tais desigualdades e possibilitar
a inserção de grupos antes excluídos a esse nível de ensino. Os/As jovens interlocutores/as
dessa pesquisa, por exemplo, a partir das políticas citadas, “contrariam alguns destinos” que
são vistos como comuns a jovens pobres e negros/as no ensino superior, pois se inserem neste
nível de ensino nos mais diferentes cursos.
Lembramos, porém, que, embora o cenário esteja se alterando, observemos que ainda
existe uma inversão na sociedade brasileira, em que estudantes de escola pública acessam o
Ensino Superior em instituições particulares e jovens que estudaram em escolas particulares
acessam esse nível de ensino em instituições públicas. No caso desta pesquisa, treze jovens
cursam-no em instituições particulares e três, em instituições públicas.
Podemos dizer que o ProUni e o Fies têm sido o meio encontrado por jovens pobres
que não conseguem acessar o ensino superior público, por diferentes motivos, entre eles, a
precariedade do ensino médio público, motivo que aparece em todas as cenas sociológicas
147
dos/as jovens interessados/as em acessar o ensino superior, ou que o acessaram com muita
dificuldade. José Pinto (2004, p. 753) aponta que “há pouca esperança de saída, a não ser
ampliar ainda mais a participação do setor privado, via subsídios diretos (ProUni)”, por
exemplo. Todavia, mesmo com poucas esperanças, temos jovens que, contrariando todas as
barreiras sociais, se inseriram no ensino superior público, como é o caso do jovem Caio. A
jovem Rebeca também conseguiu passar na seleção, mas, por vários motivos, não conseguiu
se inserir.
É importante analisarmos os fatores que influenciam as oportunidades de acesso ao
ensino superior no Brasil e revelar determinantes muitas vezes invisíveis, quando se discute
os motivos pelos quais alguns/algumas alunos/as não conseguem entrar na universidade. Nas
cenas sociológicas, poderemos estreitar o nosso olhar para as maneiras singulares de busca,
inserção e permanência quanto a esse nível de ensino.
148
PARTE II
CENAS SOCIOLÓGICAS
104
A nomeação “cenas sociológicas” tem inspiração no título do livro Retratos Sociológicos (Lahire, 2004),
mas isso não significa uma adesão ao seu referencial teórico.
149
“conhecer os indivíduos”, entendendo que eles se constituem entre isso e aquilo, como já
citamos, buscamos desenvolver nas cenas
uma espécie de visão binocular, uma “dupla descrição”. Por uma parte, é
necessário um retrato da realidade interna do informante [interlocutor/a]; por
outra é preciso inscrevê-lo dentro de um contexto externo que aporte
significado e sentido à realidade vivida pelo informante [interlocutor/a]
(Antonio BOTÍA, 2002, p. 16).
As colocações do autor reforçam tanto a nossa escolha pela análise do discurso quanto
às explicitações de Martuccelli e Singly (2012), ao chamarem a atenção para o fato de que o
indivíduo da “sociologia do indivíduo” não está fora do social, como erroneamente se pensa.
Apresentaremos, na sequência, os enredos de vida de sete jovens organizados em seis
cenas. Somente dois jovens foram agrupados, pois as condições de trabalho e de escolarização
eram semelhantes, embora as formas de significar e vivenciar as experiências fossem
diferentes. Todos/as os/as outros/as são apresentados/as separadamente.
Letícia e Caio compõe a mesma cena, pois são jovens, também, trabalhador/a
terceirizado/a e universitário/a Ambos constroem suas tramas, tendo como base “trabalhar
para estudar”. Vivenciam, portanto, a relação trabalho e escolarização. No âmbito familiar,
vivenciam realidades bem diferentes. Caio não tem a família presente, devido ao falecimento
de seu pai e da madrasta; já Letícia tem o suporte familiar. Quanto ao ensino superior,
constroem diferentes estratégias, diante da difícil conciliação entre estudo e trabalho.
Sérgio, ao contrário, busca “estudar para trabalhar”. A vivência como concurseiro é
basilar em seu percurso de individuação. Vivencia a possibilidade de ser estudante, devido ao
suporte da mãe e da irmã mais velha, mas enfrenta as singularidades de ser um jovem pobre,
negro e de camada popular, o qual se dedica aos estudos, algo pouco comum.
Rebeca é uma jovem casada e mãe. O emprego para ela ocupa o “espaço de construção
de si mesma” em oposição ao trabalho doméstico. Tem uma vivência marcada pela gravidez e
pela relação difícil com a mãe. Devido à gravidez, interrompe os estudos, mas rompendo com
o “socialmente esperado”, retoma a escolarização. Rebeca vivencia caminhos labirínticos
tanto na família quanto no trabalho e na escolarização.
Breno é o único jovem que interrompeu os estudos ainda quando trabalhava na
UFMG, retoma-os, devido ao trabalho, mas também pelo incentivo da mãe. Vivencia
diferentes experiências laborais que são marcadas pela desarmonia entre os tempos. As
experiências de trabalho e de escolarização são marcadas pelo desengajamento. A mãe tem
centralidade nas vivências do jovem.
150
Trabalhando
Mora com mãe, padrasto ES EM Motorista de ES (and.)
Letícia 22 M P S Evangélica Faxineira (Secretária -
e irmão mais novo. completo completo Ônibus Psicologia
Terceirizada UFMG)
1
Mora com irmão mais
Trabalhando
velho; Pai e madrasta EF EF ES (and.)
Caio 22 H R S Católico Faxineira Falecido (Secretário -
falecidos; Mãe mora em incompleto incompleto Ed. Física
Terceirizado UFMG)
outra cidade.
CT (não
Mora com a mãe, pai e Até a 4ª Até a 4ª concluído):
2 Sérgio 22 H R S Evangélico Costureira Pedreiro Desempregado
irmão mais novo. série do EF série do EF Mecatrônica
Concurseiro
T (concluído):
Mora com marido e a Dono de Trabalhando
Meio Ambiente
Não tem própria filha; Morava EM Até a 4ª Padaria (Trabalho doméstico/
3 Rebeca 22 M R C Copeira ES (and.)
religião com mãe e irmão mais incompleto série do EF /Padeiro Atendente de
Ciências
novo. Confeiteiro Padaria)
Biológicas
Mora com mãe, irmã
gêmea e irmã mais nova; EF EM Encarregada EM Completo
4 Breno 22 H B S Católico Taxista Desempregado
Pouco contato com o completo completo de Motel (EJA)
pai.
CT (concluído):
Mora com mãe, padrasto Trabalhando
EM EF Administração;
5 Weliton 21 H P S Evangélico e irmão mais velha; Recepcionista Porteiro (Atendente de
incompleto incompleto CT (and.):
Sem contato com o pai. Telemarketing)
Enfermagem
CT (não
Não tem Mora com mãe; Até a 4ª Sem Empregada Sem concluído); Trabalhando
6 Dayane 22 M R S
religião Sem contato com o pai. série do EF informação Doméstica informação Segurança do (Recepcionista)
Trabalho
H – Homem | M – Mulher | C – Casado/a | S – Solteiro/a | P – Preto/a | R – Pardo/a | B – Branco/a | EF – Ensino Fundamental | EM – Ensino Médio | ES – Ensino Superior |
CT – Curso Técnico | T – Tecnólogo | and. – Em andamento. |
Fonte: Elaborado pela autora
152
Na cena de Caio e Letícia, será possível trazer para o debate percursos de individuação
juvenis que retratam conciliação entre trabalho e estudos. Abordaremos as experiências
laborais de jovens trabalhadores/as terceirizados/as. O trabalho é citado como central para
ambos os participantes da pesquisa, principalmente, porque possibilita a manutenção dos
estudos. Assim, o foco é “trabalhar para estudar”, embora vivenciem as ambiguidades de, ora
serem trabalhadores/as que estudam, ora serem estudantes que trabalham. A família tanto de
Caio quanto de Letícia são suportes para o processo de “longevidade escolar”, especialmente
pelo incentivo, desde a educação básica. Enquanto estudante universitário/a, tanto Letícia
quanto Caio trazem diferentes nuances que explicitam a dificuldade de conciliar trabalho e
escolarização, mas constroem estratégias e resistências para conseguirem permanecer na
universidade.
Letícia é uma jovem que, no período da pesquisa, estava com 22 anos de idade,
solteira. Ela se autodeclarou preta, heterossexual e evangélica. A jovem trabalhava como
secretária na UFMG, via contrato de terceirização. Ela morava com a mãe, o padrasto e os
irmãos: uma irmã de 20 anos e um irmão de 15 anos. Afirmou ter pouco contato com o pai,
que morava com outros familiares. A mãe de Letícia se separou do cônjuge quando esta
última ainda estava no ensino fundamental. O pai de Letícia tinha ensino médio completo e
atuava como motorista de ônibus; a mãe, ensino superior completo (Licenciatura em
Pedagogia) e trabalhava como faxineira; o padrasto possuía ensino superior incompleto, fazia
desenhos técnicos (software AutoCAD105) na empresa de engenharia que trabalhava e
prestava serviços autônomos. Moravam em uma casa própria, já quitada, em Belo Horizonte,
num bairro considerado de periferia.
105
Software utilizado principalmente para a elaboração de peças de desenho técnico, em duas dimensões (2D) e
para a criação de modelos tridimensionais (3D).
153
em conta, tais como: faixa etária, rede de contato, raça, gênero, orientação sexual, local de
moradia, aparência (especialmente no setor de serviços), dentre outras questões. Afinal, o
trabalho é uma relação social que é atravessada por outras relações sociais.
Segundo Letícia, sua mãe buscava inserção na área da Pedagogia, para conseguir
abandonar o trabalho de faxineira, mas ainda não conseguira o que intentava, o que endossa
que a formação não seja o único elemento relevante para a inserção no mercado de trabalho106.
Em análise realizada nos anos 80, a autora Sposito (1989) já pontuava que não havia garantia
entre a área de formação e o exercício da função, pois a exigência do diploma não se tratava
da necessidade do diplomado, mas, simplesmente, devido à sua disponibilidade. Na década de
90, as reflexões realizadas por Maria Letelier (1999) sobre escolaridade e inserção no
mercado reforçam as ponderações de Sposito (1989), ao ressaltar que o mercado precisa cada
vez mais de “mão de obra” mais escolarizada, não para o desempenho de determinadas
funções, mas para a competição por melhores empregos. Não obstante, segundo a autora,
existia um investimento em educação, mas não havia novos postos de trabalho, com melhor
qualidade, assim, a força de trabalho era subutilizada. Pochmann (2004), a partir de análise
realizada em 2004, na qual revelou que há “escassez de emprego e do elevado excedente de
mão-de-obra no país, termina observando a manifestação mais evidente da discriminação,
sobretudo quando se trata da população de menor renda e mais escolaridade” (p. 388).
Embora sejam pesquisas com contextos diferentes, expressam parte da realidade no momento
atual, no qual a mãe de Letícia está imersa. Inferimos que, no caso dela, a faixa etária, a
instituição de ensino que estudou, que reflete a qualidade do curso, o capital cultural
acumulado, a falta de redes de contatos, a ausência experiências na área, dentre outros fatores
possíveis, também repercutem na busca dela por um trabalho na área de formação.
Outra questão que destacamos no depoimento de Letícia é o lugar que a mãe assumia
quanto ao suporte (MARTUCCELLI, 2007) para o processo de escolarização do irmão. A
jovem citou que o irmão ganhou um curso como melhor aluno e a mãe pagou outro curso para
incentivá-lo. Se a atitude da mãe podia ser vista como um incentivo e se situava nas
possibilidades objetivas de escolarização do jovem, ilustrava, também, a inserção de jovens de
camadas populares em diversos cursos, sem uma reflexão sobre a importância de tais cursos a
longo prazo, ao contrário do que acontece nas camadas médias (Maria NOGUEIRA, 2000).
Ademais, podemos dizer que a realização de tais cursos também dialoga com o que é
oferecido aos/as jovens, especialmente jovens de camadas populares. Na década de 90, no
106
Cf. Maria LETELIER, 1999; POCHMANN, 2004; Tatiane NEVES, 2006; CORROCHANO, 2001, 2008.
155
Na minha família, por parte de mãe, depois que minha mãe entrou para
faculdade, outra tia minha também entrou. Ela ainda não formou. Ela está
fazendo [licenciatura em] Matemática. Mudou até as falas da vovó. É até
mais flexível, minha avó não fica insistindo que tem que casar... fala que tem
que estudar, tem que curtir a vida, trabalhar, conseguir uma casa, depois,
156
vocês pensam em casar. Agora, na parte do meu pai, eles não são muito,
assim, eles são ligados em outras coisas, então, assim, meus primos, a
maioria já são casados na minha idade. Eu acho que só tem uma prima
minha que fez faculdade, ela fez RH [Recursos Humanos], o resto, todo
mundo casou e parou, ninguém faz mais nada, ficou na “estaca zero”
(Letícia, 22 anos, mulher).
107
Segundo Leiliane Bhering e Marcia Fontes (2017), a partir de análise de dados da PNAD (2015), o total de
família monoparentais era de 11,7% (13.114). Desse percentual, 87,3% são de família monoparentais,
chefiadas por mulheres.
157
Caio é um jovem que, no período da pesquisa, estava com 22 anos de idade, solteiro,
se autodeclarou pardo, heterossexual e católico. Assim como Letícia, o jovem trabalhava
como secretario na UFMG, via contrato de terceirização. Era o mais novo de dois irmãos.
Caio morava com a mãe e o irmão na região metropolitana de Belo Horizonte, mas a madrasta
incentivou o pai a levar o irmão e a ele para a cidade de Belo Horizonte:
A gente não tinha muita oportunidade lá, porque o bairro era mais carente,
assim, então, não tinha muita coisa perto, em Ribeirão das Neves. E foi um
dos motivos para a gente vir morar com meu pai, por intermédio da minha
madrasta. Querendo ou não, se a gente ficasse lá, a gente ia acabar sendo
ninguém na vida. P: Lá vocês moravam com quem? Lá a gente morava com
158
minha mãe. Só que, aí, minha mãe ia trabalhar de faxineira e, aí, ela não
tinha condições para manter a gente e dar alguma opção de estudo para a
gente. Então, aí, a minha madrasta ficou falando com meu pai e meu pai
decidiu buscar a gente para morar com ele. E, aí, minha mãe foi para o Rio
de Janeiro, para a família dela. E... [silêncio]... isso eu não culpo ela, não,
porque, se a gente não tivesse vindo morar com o meu pai... Meu pai tinha
mais condição, apesar que ele era pedreiro, mas ele trabalhava em
empreiteira... A gente estaria mal. E era ele e minha madrasta também.
Então, já era dois salários e, estando aqui, em Belo Horizonte, também, a
gente tinha mais opções de escola, de curso para você fazer, diferente de lá,
em Neves, que era mais longe as coisas. E... muita coisa do que a gente é
hoje, eu e meu irmão, a gente deve a minha madrasta e meu pai. Então, foi
ela que ingressou a gente na formação, mesmo, para vida. Aí, colocou na
igreja. Ela trabalhava no posto perto na minha casa. Eu lembro que eu
ganhei um prêmio de melhor redação. Nossa, eu fiquei feliz demais o dia
que eu ganhei. Aí, eu fui lá no posto. Eu tenho a redação até hoje e o troféu
lá em casa também. eu fui lá no posto lá com a camisa, com o troféu mostrar
[para] minha madrasta. Aí, eu fui lá todo alegre. Ela ficou feliz demais
(Caio, 22 anos, homem).
reflete uma representação social, mas, ao mesmo tempo, a realidade objetiva daquele local108.
O jovem enfatizou o quanto a madrasta (faxineira) e o pai (pedreiro), mesmo com baixa
escolarização (ensino fundamental incompleto), incentivavam ao irmão e a ele a estudar e a
fazer faculdade, ratificando a importância da “mobilização dos pais na construção de
trajetórias escolares” (Mariana BITTAR, 2015, p. 48), como vimos na história de Letícia e
veremos em outras cenas.
Decorridos alguns anos, em 2012, o pai de Caio faleceu. A partir daí, segundo Caio, a
principal renda da família passou a ser a do irmão, que trabalhava como Jovem Aprendiz na
Associação Profissionalizante do Menor (ASSPROM)109. Em 2016, a madrasta também veio
a falecer, provavelmente com depressão, em decorrência da morte do pai, segundo o jovem.
Caio sentiu um esvaziamento da figura da mãe tanto devido à morte da madrasta quanto a
ausência física da mãe que estava no Rio de Janeiro, pois a distância impossibilitava uma
relação mais íntima e afetiva com estaúltima. O contato, na maior parte das vezes, era pelo
telefone e pessoalmente somente quando o irmão e ele iam visitá-la. O jovem informou que
não ter a mãe por perto era ruim, pois “ficava sem referência”. Quando a madrasta era viva,
não sentia tanto. Percebemos o quanto a figura da mãe é algo que fazia falta para Caio. São
recorrentes as pesquisas que enfatizam o quanto as mães têm um papel central nas vivências
juvenis, pois tendem a acompanhar de perto as diferentes experiências de socialização e
sociabilidades dos/as jovens (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011; TARTUCE, 2010; NONATO,
2013). Leão, Dayrell e Reis (2011) ao realizarem a discussão sobre projeto de vida com
jovens no Estado do Pará, salientam “[...] a importância da mãe no estabelecimento e reforço
de suas redes de relações, na transmissão de valores morais do grupo, constituindo-se uma
referência importante nos processos de socialização” (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011, p.
79).
Além da ausência da figura materna, Caio ressaltou que vivenciavaa distância de seus
parentes. Informou que a família é como se fosse somente o irmão e ele, pois os parentes
ficavam “cada um para o seu lado. Não temos uma relação de família. Depois que meu pai e
minha madrasta morreram, não tenho muito mais o sentido de família”. A fala de Caio
108
Enfatizamos que o processo de urbanização tende a gerar cada vez mais uma exclusão socioespacial. As
pessoas de camadas populares tendem a se deslocar para as periferias distantes que, por sua vez, apresentam
indicadores de exclusão diante do grau de escolaridade, acesso a bens e a serviços, infraestrutura, acesso a
aparatos de esporte e etc. (RIBEIRO, 2012).
109
Associação Profissionalizante do Menor é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, beneficente, de
assistência social que, desde 1975, profissionaliza e orienta adolescentes e jovens de famílias em situação de
vulnerabilidade social, por meio dos programas socioassistenciais – adolescente trabalhador e de
aprendizagem - Disponível em: www.asspromom.org.br Acesso em 03 de janeiro de 2018.
160
demonstrava a falta que ele sentia da família que, comumente, temos como padrão
socialmente construído, pautado especialmente nos laços sanguíneos, embora ele
reconstruísse o sentido de família.
Podemos dizer que a vida de Caio destoava, em alguns pontos, da vivência da Letícia,
no que tangia a aspectos relacionados à família, especialmente, a relação com a mãe. A jovem
tinha uma convivência próxima da mãe dela, o que não exigia, da parte de Letícia, assumir
tantas responsabilidades quanto aquelas que eram assumidas por Caio. Em meio a tantas
questões com que Caio precisava lidar, tais como as ausências, as responsabilidades com
relação à organização e despesas de casa, o jovem ainda precisava se preocupar com o seu
local de moradia, que, após o falecimento do pai, entrou em processo de inventário.
Mesmo em meio a um contexto adverso, especialmente de ter que “se tornar adulto
mais rápido”, como citou Caio, ele conseguiu se inserir na universidade. Cursava o 4º período
do curso de Educação Física, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no turno
matutino. É interessante ressaltar que, no ano de 2012, o jovem havia informado que não
pretendia fazer curso superior, mas buscaria estudar para fazer o concurso de bombeiro
(NONATO, 2013). Essa perspectiva era pautada num sonho de infância, o qual era reforçado
pelo pai. Todavia, ele escolheu outro percurso e seu irmão foi quem passou no concurso para
bombeiros. Caio citou que trancou um semestre da faculdade para estudar para o concurso,
mas acabou não estudando e perdeu um semestre. Mencionou que, se o pai estivesse presente,
talvez não teria sido dessa maneira, pois, certamente, teria alguém para ajudá-lo a avaliar a
situação. A partir da ponderação do jovem, salientamos a importância de uma interlocução
com o mundo adulto para a tomada de determinadas decisões. Isso não significa dizer que
os/as jovens não conseguem tomar decisões, mas ter suporte (MARTUCCELLI, 2007) é
essencial para a definição das escolhas.
Quanto ao trabalho, Caio informou que começou a trabalhar aos 14 anos, como
vendedor de salgados, e, posteriormente, como ajudante de pedreiro, junto ao seu pai. Após
amorte deste, a renda da família diminuiu muito e seu irmão tinha apenas o salário de
aprendiz, então, para ajudar nas despesas de casa, Caio ingressou na UFMG, como jovem
trabalhador, por intermédio da madrasta, que foi quem o incentivou a trabalhar.
Quando se desligou da UFMG, foi informado de que, ao surgir uma vaga, seria
chamado novamente. Por precaução, optou por trabalhar em uma empresa de telemarketing.
De fato, após dois meses, foi convidado para retornar à UFMG. No momento da pesquisa,
Caio atuava como secretário do “C”, que tem a mesma dinâmica de uma unidade acadêmica
da UFMG, sendo também terceirizado. O trabalho, assim como o de Letícia, era de 44 horas
161
semanais, com intervalo de uma hora para almoço. Como estudava no período matutino, a
jornada era à tarde e à noite.
Na época que eu entrei na Cruz Vermelha, ele era vivo ainda. Aí, ele falava:
“Que homem digno é trabalhador... Faz tudo que eles te mandarem, porque
você tem que fazer o serviço. Se o pessoal mandar você fazer o negócio,
você tem que fazer. Não pode ficar essa coisa: ‘Ah eu não vou... Não estou
nem aí para o serviço’. Você não vai ser bem valorizado e não vai ficar lá”.
Então, eu segui o exemplo dele. Tanto é que eu fazia tudo que o pessoal
pedia. A Cruz Vermelha tem essa coisa que a gente não pode. O ‘Cruz
Vermelha’ não pode carregar peso, não pode carregar computador. Então,
tinha muito ‘Cruz’, menino maior que eu, assim, que falava: “Ah eu não vou
fazer isso, porque não é minha função. Não está escrito”. Se você fala isso
com seu chefe, ele vai pensar... “Um dia você vai sair da UFMG”; ele pode
pensar em te contratar ou não. Pensava muito na contratação, porque,
desde quando eu entrei, já falavam que, no local que eu estava, contratavam
os jovens. E, tipo assim, muita parte do serviço de carregar um computador,
se pedir para um homem e você falar que não, eles não vão pensar em te
contratar. Computador não é tão pesado e, com a minha experiência de
trabalho antes da Cruz Vermelha, eu trabalhava de servente com meu pai,
meu pai era pedreiro [...] era pior e tem gente nessa situação (Caio, 22 anos,
homem).
aquele que obedece às ordens, sem questionar, e, além disso, é prestativo. Como discutimos, a
postura do pai também se alicerça em determinado conceito de trabalho, que é construído
socialmente. Como narrou Caio, ele seguiu as orientaçõesdo seu pai:
Assim como para Caio, existia para Letícia uma espera para retornar à UFMG. Ambos
foram desligados no ano de 2013 e tiveram percursos diferentes. Caio estava mais convicto de
que seria recontratado, pois conscientemente havia mantido o “perfil ideal de trabalhador”,
mas, diante da necessidade, optou por conseguir um emprego enquanto aguardava a
contratação. Letícia tinha esperanças, mas não tinha certeza de que poderia ser chamada
novamente.
Caio começou a trabalhar numa seguradora, no setor de telemarketing, como já
mencionamos. O trabalho consistia em receber ligações de clientes segurados de carro, os
quais tiveram algum acidente, e escrever toda a situação narrada por eles. Ressaltou que não
gostava do trabalho, porque não aprendia, pois sempre era a mesma coisa e o horário de
chegada era às 07h, segundo ele, muito cedo, como explicou:
Ah, muito ruim, nossa, era muito ruim. A única vantagem é porque era uma
seguradora, aí, as ligações eram demoradas. Eu não trabalhava no setor
que o pessoal fica ligando para pessoa oferecer produto, eu não tinha que
ficar ligando, não, eu só tinha que atender ligação, eu não tinha que bater
meta, não. Com relação ao trabalho que eu tinha na Cruz Vermelha, o
telemarketing é muito ruim, a começar pelo fato de ter que bater ponto e lá,
tipo, assim, se você atrasa um minuto, já tá descontando. Lá não tem dessa,
não. Eu comia muita coxinha lá [risos], era o que dava para comer, só era
15 minutos. Era o tempo de descer do prédio, atravessar a rua, comprar o
salgado, comer e subir de novo, e não pode atrasar. Aí, esse ponto lá era
puxado, assim, e o horário também, eu acho que eu pegava sete horas da
manhã, tinha que pegar o metrô para chegar lá, fazer quase uma viagem
que era lá no [bairro] Carlos Prates [...] (Caio, 22 anos, homem).
Apesar de não ter passado pela experiência de ter metas para bater, não ter que vender
produtos e fazer cobranças, típicas tarefas do setor telemarketing, em comparação com o que
Caio realizou na UFMG, apareciam as marcas do trabalho em sua conotação capitalista: a
cobrança do estrito cumprimento da carga horária, tendo o relógio de ponto como mecanismo
de controle; o desconto pelo atraso e o pouco tempo para alimentação. Um exemplo é o tempo
demarcado para as refeições ‒ comer coxinha, algo rápido e, obviamente, não saudável, passa
a ser uma rotina para Caio. O jovem afirmou que conseguiu trabalho rápido, pois no
telemarketing aceitavam jovens com ou sem experiência no ramo, como era o caso dele, o que
representa uma “porta aberta” para jovens, mas configura-se também como um espaço de
precariedade das condições de trabalho e de vida (BONO; LEITE, 2016), como refletiremos
na cena do jovem Weliton.
Letícia, por sua vez, não estava segura da contratação e, em meio à finalização do
processo de escolarização do ensino médio e o desligamento da UFMG, ficou completamente
165
A experiência de Letícia dialoga com as colocações dos autores, pois a jovem citou
que se sentia perdida. Isso porque tanto a escola quanto o trabalho são instituições que podem
atuar significativamente para a organização temporal dos sujeitos (THIN, 2006). Letícia não
tinha o papel social (MARTUCCELLI, 2007) de aluna nem de trabalhadora, não tendo,
portanto, nenhuma responsabilidade, na sua concepção pessoal, a não ser com o trabalho
doméstico.
Como já apontamos na discussão acerca da juventude e trabalho, tanto o emprego
quanto o desemprego são vivenciados de maneiras diferentes pelos/as jovens, como veremos.
Mesmo Letícia tendo uma condição estável e contando com o suporte (MARTUCCELLI,
2007) da família, o desemprego para ela se configurou uma experiência muito negativa. O
trabalho doméstico não supria o lugar do trabalho assalariado, pois a jovem se sentia inútil.
Como veremos na cena de Rebeca, que também questionava o trabalho doméstico, as jovens
mulheres requerem outro espaço para construírem suas experiências laborais. Quando o
166
trabalho se configura como essencial para a existência humana, como citou Letícia, faz com
que sua ausência seja um período de tensão e, de certa forma, gera um olhar desacreditado
sobre a própria vida. Letícia sentia que “não seria nada na vida, que não tinha mais nada”,
pois estava sem trabalho. A jovem compartilhava os sentimentos de vergonha e
desvalorização, relatados também por jovens belgas desempregados, da investigação realizada
por Bajoit e Franssen (1997). Outro aspecto que intensificou seu sofrimento, bem como o
tédio quanto ao desemprego, era a falta de tempo dos familiares para conversar com ela, tendo
em vista que todos estavam inseridos em contextos de trabalho e/ou escolarização. As
“agendas lotadas” dos familiares geravam uma falta de tempo para escuta, o que
intensificava a visão de Letícia sobre sua suposta “inutilidade”.
Embora vivenciada de maneiras diferentes, podemos dizer que a ausência de trabalho
para jovens de camadas populares tende a restringir muito as possibilidades de eles/as
vivenciarem a condição juvenil, que, mesmo sendo limitada pelo trabalho, é também
potencializada por ele. Em geral, a vivência do desemprego é vista como desestruturação,
gerando receios e um sentimento de vazio, como foi o caso de Letícia. O desemprego é, ainda,
um fator que prejudica a construção de projeto de vida, pois, a partir do trabalho, o/a jovem
pode ter mais possibilidades de acesso aos estudos, ao lazer e ao consumo. Porém, como
veremos nas cenas de Sérgio e Breno, cada sujeito pode vivenciar a experiência do
desemprego de uma maneira, o que tem relação com suas experiências na família e no
trabalho, suas condições socioeconômicas, representações sociais sobre emprego e
desemprego, bem como com um sistema de proteção social por parte do Estado.
Diante do contexto, podemos dizer que a experiência de trabalho na UFMG marcou
positivamente a vivência de trabalho dos jovens Letícia e Caio, pois construíram, na UFMG,
processos de aprendizado. Avistamos um processo de socialização no trabalho por parte
desses jovens que, consciente ou inconscientemente, desenvolveram estratégias que dialogam
com o perfil ideal de trabalhador, mas comum a posição crítica para os processos de
socialização no trabalho. Ambos, em menos de três meses, foram recontratados pela UFMG
na condição de terceirizados e estão há quatro anos vivenciando essa experiência de trabalho.
política institucional da UFMG. Após o desligamento, os/as jovens não têm mais nenhum
vínculo formal com a instituição.
É fundamental pontuar que, no convênio entre CVB e UFMG, não se tem nenhum
plano estratégico para o desligamento dos/as jovens. O sentimento de “estar perdida”, citado
pela jovem Letícia, aparece também para outros/as jovens, pois, após o desligamento, os/as
jovens, a princípio, não sabem como se inserir novamente no mercado, não têm uma profissão
e, além disso, em sua maioria, já finalizaram a educação básica, ou seja, os/as jovens se
desligam do trabalho e da escola, dois espaços institucionais importantes na biografia juvenil
de jovens brasileiros/as. Ademais, cabe reforçar que se trata de jovens, pobres e, em sua
maioria, negros/as, como apontamos no perfil. Os recortes etários, de classe e raça tendem a
ampliar ainda mais as dificuldades de acesso no mercado de trabalho e a continuidade dos
estudos. Vis a vis, a possibilidade de nova inserção dos/as jovens no mercado de trabalho
tende a ser alcançada a partir dos contatos pessoais. Assim, os “mecanismos mercantis”
cedem lugar a “mecanismos não-mercantis”, para a busca de um trabalho, especialmente nas
camadas populares nas quais os diferentes contextos de subalternização dificultam a
construção de “rede de laços fracos” (GRANOVETTER, 1973; GUIMARÃES, 2009).
No caso de Letícia e Caio, os vínculos que eles construíram ao longo do tempo, como
jovens trabalhadores/as e, especialmente, a postura com relação ao trabalho, considerada
importante por parte do/a empregador/a, fizeram com que ambos voltassem a trabalhar na
UFMG, como terceirizados. A inserção dos/as jovens, especialmente no setor público, como
terceirizados/as, reforça a ampliação da terceirização na dinâmica do mercado de trabalho.
Além disso, descortina, ainda, a lógica do Estado mínimo, pauta de políticas neoliberais, que
pode se fortalecer com a Lei da terceirização, como apontamos.
Para os/as jovens, a relação de trabalho anterior foi primordial para que fossem
contratados/as tanto por terem sido “conhecidos pela UFMG” quanto pela maneira que
haviam exercido suas atividades. “Tipo, foi com relação ao trabalho que eu desempenhei no
setor. O pessoal já gostava de mim, falava que eu trabalhava bem. Aí, eles/as falaram que,
quando tiver a vaga, a gente vai te chamar” (Caio). Letícia cita que foi ao antigo trabalho na
UFMG e lá falaram a ela: “Me ligaram aqui para pedir referências de você e tal [...] ele
[chefe], acredito que deve ter falado muito bem”. Caio explicitou que as pessoas gostavam
dele, pois ele trabalhava bem, e Letícia enfatizou que a ajuda do chefe foi ótima. Caio, de
forma mais consciente e estratégica, e Letícia, de forma mais inconsciente, mas sempre
buscando um perfil ideal de trabalhadora. Os depoimentos evidenciaram que a contratação se
deu na articulação dos elementos mérito e contato. Neste caso, podemos falar, também, em
168
Letícia, mesmo não considerando que algumas pressões sejam importantes para todas
as pessoas, avaliava que, para ela, foi essencial o processo de aprendizagem que vivenciou: ter
passado determinadas situações, para aprender a lidar com pessoas e aprender a se posicionar
como profissional, o que lhe trouxe amadurecimento. Por outro lado, Caio considerava que
era necessário passar por determinados sofrimentos:
quente, tinha que ficar subindo, pegava muito peso, não tinha muito “vida
mansa”, não, aí, eu sai dessa dificuldade, trabalhando com meu pai, e era
ruim, porque ele nunca me pagava direito [risos]. Aí, tá, eu sai de carregar
lata de cimento, fui pra Cruz Vermelha, que era só o serviço de andar e a
maioria dos negócios era só documento, era coisa tranquila de fazer.
Trabalhava com meu pai, era “pesado pra danar”, aí, depois na Cruz
Vermelha, era pesado também, tinha que ficar andando no sol e, hoje, eu
trabalho aqui no ar [condicionado]. Então, eu acho que foi uma conquista
que, querendo ou não, foi a base para eu estar tranquilo do jeito que eu
estou hoje, demorou um pouquinho, eu tive que sofrer um pouco, por isso,
que eu acho que é na base do sofrimento, mesmo (Caio, 22 anos, homem).
Para Caio, a dimensão do sofrimento foi a base para ele estar na função em que está
hoje, pautado na certeza de que, no futuro, teria uma recompensa, assumindo a lógica do
“adiamento das recompensas”, como já pontuamos. Interessante enfatizar a relação que o
jovem faz entre trabalhar ao sol, como ajudante de pedreiro, com o pai, depois, entregando
documentos, andando a pé pela UFMG, e, agora, estar “no ar condicionado”. Essa relação
tem como pano de fundo uma hierarquização dos espaços e funções que exerceu. Assim, o seu
trabalho mais recente tem maior status sobre os outros, na visão dele, pois não é “pesado” e
tem uma estrutura confortável. Porém, foi “necessário sofrer”. A lógica religiosa e capitalista
segundo a qual “colhemos o que plantamos” parece embasar a fala de Caio, ratificando, ainda,
a necessidade de que o plantio precisa ser doloroso para termos outras possibilidades. O
sofrimento, que sempre foi associado ao trabalho – tripalium (Suzana ALBORNOZ, 1986;
Elida LIEDKE, 1997) - e a busca pelo reconhecimento por parte da chefia faziam parte da
vivência, como trabalhador, de Caio, que se pautava o tempo todo pela busca da contratação,
o que, de fato, foi efetivado.
Podemos dizer que a reinserção dos/as jovens da UFMG se relacionou com um
processo de socialização no/do trabalho, em que ambos construíram modos de trabalho
singulares. Para eles, as instituições “não são apenas coerções que se impõem aos indivíduos,
são ainda recursos que eles devem aprender a mobilizar eficazmente” (Claude DUBAR, 2009,
p. 261).
As atribuições recentes tanto de Caio quanto de Letícia dialogam muito com o que
faziam quando eram jovens trabalhadores/as da CVB, mas envolvem questões de
responsabilidades que ambos não tinham anteriormente:
A fala de Caio dialoga com os achados de Nonato (2013, p.129) em que os/as jovens,
na pesquisa realizada em 2012, afirmaram que eram “severinos/as”, ou seja, faziam um pouco
de tudo no local de trabalho, assim como no trabalho recente. Frequentar um curso aos
sábados também remete a mais um esforço que o jovem fez, em prol da contratação,
atendendo a lógica da empregabilidade (LEITE, 1997), mas também a possibilidade de
formação, a partir do trabalho, ou seja, o trabalho educativo, em que esse trabalho é também
um locus de produção, aquisição e mobilização de saberes.
No caso de Letícia, ela disse das suas atribuições, ao descrever um pouco da sua rotina
no trabalho:
você pede marmita, ou, às vezes, você vai no banco para poder resolver e já
fica no banco 40 minutos e almoça 20, aí, é aquela correria toda na hora do
almoço. Volta ao trabalho, aí, tudo de novo, chega mais e-mail, chega mais
demanda, é assinatura, é isso, é gente querendo falar com o professor, é
gente querendo fazer reunião, é um serviço muito repetitivo (Letícia, 22
anos, mulher).
[...] quando eu vim aqui para “A” [unidade administrativa], já foi diferente,
eu sou responsável por um tanto de coisa. Tem que lidar com a diretoria,
tem que lidar com o pessoal de outras instituições e é assim diretamente. Vai
assinar qualquer coisa, é a Letícia que tem que ir lá. Letícia tem que falar
com a secretária. Se eu fosse Cruz Vermelha, eu não ia fazer isso. Então,
assim, a responsabilidade, eu creio, que deva ser nesse sentido de me passar
demandas que eu não fazia quando eu era da Cruz Vermelha e não tinha
essa responsabilidade de ter que fazer essas coisas, lidar diretamente com
autoridade (Letícia, 22 anos, mulher).
[...] a partir das minhas novas funções aqui no trabalho, a rotina está
mudando. Eles querem alguém que esteja mais como referência [...]. O
trabalho é muito simples, entendeu, agora que eu estou tendo essa coisa que
é mais complicada de ter que olhar e responder e-mail e ter contato com as
outras pessoas. Igual, têm os eventos, esse negócio de ter contato com
pessoal da reitoria, os pró-reitores, eu não gosto muito, não, eu fico meio
sem jeito. Eu não gosto muito de contato com essas pessoas muito
superiores, tenho medo de fazer alguma coisa errada, sei lá, te mandam
embora, alguma coisa assim. Por isso, eu prefiro ficar mais quietinho, no
172
meu canto, mas eu ainda estou melhorando nisso [...]. Ah, eu também abro
OS [ordem de serviço], aqui, tem que trocar aquela lâmpada lá que está
queimada. Sou eu que faço essas coisas aqui nesse prédio, também, mas é
legal. Eu estou gostando, porque é vantajoso para mim, que eu estou
mostrando serviço para a diretora. Então, eu penso que, se tiver que cortar,
eles vão olhar bem na hora de cortar e olhar quem está fazendo isso.
Querendo ou não, se for o caso, de ter que mandar embora, eu penso que
minha vaga tá meio que garantida, fazendo isso, o que volta um pouco na
questão da Cruz Vermelha, que eu sempre estava disposto pra trabalhar,
fazer tudo pra me garantir. Hoje em dia, continuo a mesma coisa. Eu
pretendo continuar aqui até formar, então, tudo que aparecer para eu fazer
eu vou fazendo, não fico reclamando, não (Caio, 22 anos, homem).
tempo. Se antes ficava calado e cumpria as ordens, agora buscava “mostrar serviço” e
participar das atividades. Sendo o desemprego uma ameaça, especialmente diante de um
contexto de corte de verbas nas universidades públicas, em que os/as trabalhadores/as
terceirizados/as tendem a ser os/as primeiros/as a serem demitidos/as, o jovem condiciona
suas práticas e sua identidade profissional às demandas do trabalho (José SOEIRO; Ricardo
FERREIRA; João MINEIRO, 2012).
A experiência de trabalho na UFMG tanto para Caio quanto para Letícia era analisada
positivamente por eles, especialmente quando comparada aos trabalhos dos seus/as amigos/as.
Caio, assim, mencionou que:
[...] aqui não tem muito o modelo de empresa, você não tem que ficar
batendo meta no trabalho. O trabalho nem exige isso, por isso, que é bom, é
mais atendimento aos professores, não tem que, tipo, mexer com processo.
Eu tenho um colega que, no trabalho dele, nem pode mexer no Facebook!
Aqui não tem dessa, não. Tipo, assim, a diferença que eu vejo é que eu sou
terceirizado, mas o trabalho mesmo é como se eu fosse concursado, porque
o trabalho é mais tranquilo, não é essa coisa de empresa. É o melhor lugar
para trabalhar, por isso que todo mundo fica “doido” para trabalhar nos
“C”, é muito mais tranquilo. Se eu fosse concursado então seria melhor
ainda [...] (Caio, 22 anos homem).
mais intensas no trabalho e tais sujeitos “estão permanentemente preocupados com a ideia de
nem sempre estar em condições de responder a elas [...] faz com que eles nunca se sintam
verdadeiramente protegidos e seguros de poder conservar seu posto de trabalho (LINHART,
2014, p. 45). Como cita a autora, o conceito pode parecer provocação diante das incertezas
que têm outros/as trabalhadores/as acerca do mercado de trabalho, mas é uma realidade, pois
esta forma de precarização tem gerado medo, ansiedade e sensação de insegurança. Isso
porque a “precarização subjetiva”, como aponta Aparecida Souza (2016), é “vivenciada como
um sentimento difuso de ser obrigado/a, em nome da autonomia e responsabilização, a atingir
objetivos, metas que intensificam de forma espetacular os ritmos de trabalho” (p. 4).
Letícia também trazia dimensões importantes ao relacionar sua experiência de trabalho
com a de outros/as jovens:
Letícia trazia em sua fala elementos sobre o espaço físico do trabalho que, às vezes,
poderiam ser negligenciados, mas que compunham sua dinâmica. É interessante pontuar que
quanto mais acolhedor for o espaço de trabalho e possibilitar estar à vontade, mais se pode
criar identidade com ele. Possibilitar espaços de trabalho que proporcionem que os/as
funcionários/as se sintam “em casa” ‒ tendo lugares para seus pertences, tendo controle sobre
os materiais com que trabalham ‒ é benéfico para os/as trabalhadores/as e para o
desenvolvimento das atividades. Ao dizer que tinha uma gaveta e dar ênfase para isso, Letícia
reforçava esse aspecto e, especialmente, pontuava a dimensão da relação de pertença com o
espaço, pois o viacomo seu. Ademais, o espaço também informava o tipo de trabalho e a
posição que se ocupava nele.
Cabe lembrar que a Letícia tinha consciência de que diferentes fatores contribuíram
para que ela estivesse na posição que ocupava. Ela também comparava o seu trabalho com os
trabalhos de seus/suas colegas. Como abordamos no capítulo 4, a maioria dos/as jovens, ex-
trabalhadores/as da Cruz Vermelha, está em trabalhos no setor de serviços, considerados de
175
baixa qualificação. Ter uma mesa com gaveta, em sala com ar condicionado, instrumentos
que, de certa forma, tendem a produzir representações sobre um espaço mais estruturado e
organizado, não é a realidade da maioria. Como afirma Letícia, “carregar caixas” tem sido a
realidade de muitos/as jovens ‒ caixas que podem, metaforicamente, representar, inclusive, as
diferentes funções degradantes, precárias, com baixos salários e muitas horas de trabalho em
que alguns/algumas jovens se inseriram, o que não é um trabalho “bacana”, segundo o crivo
estabelecido por Letícia. A jovem se interrogou se estava num lugar de privilégio, ou se havia
conquistado aquela ocupação, devido a sua força de vontade. Consideramos que, num
contexto de desemprego e de perda de direitos trabalhistas, seja um privilégio estar num
trabalho protegido, pois, mesmo que a maioria dos/as jovens esteja empregada,
alguns/algumas estão inseridos/as em espaços laborais desprotegidos e precários.
A experiência de trabalho na UFMG tanto para Caio quanto para Letícia foi, assim
como é para a maioria dos/as jovens pobres, uma necessidade para sobrevivência,
especialmente como estudantes, conforme abordaremos. Os/As jovens ressaltaram as
potencialidades do trabalho como espaço de aprendizagem, como espaço de fazer relações,
além de possibilitar tempo para estudar, mas expuseram também as limitações da condição de
serem jovens trabalhadores/as.
Como já ressaltamos, se, por um lado, o trabalho potencializa as vivências juvenis, por
outro, limita a condição juvenil, especialmente em relação à fruição do tempo. Os/As jovens
da pesquisa trabalhavam 44 horas semanais - Letícia trabalhava durante o dia e estudava à
noite e Caio estudava pela manhã e em algumas tardes, e compensava as horas de trabalho no
período da noite. Assim, o tempo de vivenciar outros elementos da juventude era muito
limitado. Não se tratava somente de tempo, pois a rotina “pesada” gerava cansaço e desânimo
para sair e ter lazer, tendo em vista que os finais de semana deveriam ser os dias de descanso.
Letícia também trazia as limitações de ser jovem trabalhadora, ressaltando o pouco tempo
para a família:
110
Cabe mencionar que, na Lei de Diretrizes da Educação Nacional, por exemplo, que traz a educação básica
como elementar, fundamental e imprescindível à formação do sujeito, no Art. 4º da referida lei, que assevera os
direitos à educação, o ensino superior não aparece.
178
Assim, se, anteriormente, o ensino superior era restrito a uma parte da população, as
políticas de democratização do acesso, especialmente após 2003, proporcionaram uma
diversificação da composição social dos/as universitários/as, como já apontamos. Porém,
relembramos que o acesso ao ensino superior merece muita atenção, pois ainda é muito
restrito, especialmente entre jovens de 18 a 24 anos. Desta maneira, podemos afirmar que
Caio e Letícia faziam parte de um grupo considerado seleto no contexto brasileiro,
especialmente sendo eles jovens de 22 anos, negros e pobres.
Caio, conforme mencionou, sempre foi incentivado pelo seu pai e pela sua madrasta,
quando ainda morava com eles, a estudar no ensino médio e a tentar sua inserção na
faculdade. Letícia disse que sempre pensou em ingressar no ensino superior, para o quê foi
incentivada pela mãe, especialmente a partir do exemplo desta de ter voltado a estudar, tendo
concluído esse nível de ensino. Ambos afirmaram que tiveram uma trajetória linear e
considerada bem-sucedida no ensino médio, o que assevera as ponderações de Maria Viana
(2000) que afirma que “êxitos escolares parciais” podem levar a “êxitos escolares
subsequentes” (p. 51). Ademais, Naercio Menezes Filho, Marcos Lee e Bruno Komatsu
(2013), ao investigarem os determinantes sobre a continuidade dos estudos e a inserção no
mercado de trabalho, sinalizam que a educação da mãe (ter entre 12 e 16 anos de estudo)
aumenta a probabilidades dos/as filhos/as de continuarem estudando e diminuiu a
possibilidade de estarem trabalhando.
Podemos dizer que Letícia teve um caminho mais complexo para a inserção no ensino
superior. Ela tinha muito interesse em acessar a universidade, mas considerava que não tinha
aprendido nada no ensino médio. Assim como a maioria dos/as jovens entrevistados/as, disse
que a tentativa de inserção no ensino superior foi marcada pela precariedade desse nível de
ensino. Segundo ela, muitos/as de seus amigos/as entraram na faculdade e ela estava muito
angustiada de não ter conseguido. Face ao perfil dos/as jovens ex-trabalhadores/as da Cruz
Vermelha, consideramos que a relação com a educação básica é atravessada por vários
condicionantes, dentre os quais enfatizamos a origem social e a raça.
Como mencionam Bourdieu e Passeron (2014, p. 27), a “origem social é, de todos os
determinantes, o único [uma determinante- chave] que estende sua influência a todos os
domínios e a todos os níveis da experiência dos estudantes e primeiramente às condições de
existência”. Articulada à origem social, a condição racial também é fundamental, pois, no
179
Quando se trata do Brasil, o sistema nunca esteve aberto para todos, nem
formalmente, e aqueles que tiveram acesso a ele vivem no seu interior
diferenças de qualidade abissais. Aos extratos mais pobres da população são
oferecidas as piores condições de estudo, em termos materiais e de qualidade
(NAKANO; ALMEIDA, 2007, p. 1091).
111
Como citado por Rodrigo Ednilson, em exposição oral (durante a defesa de dissertação de Romulo Silva,
2018), antes de serem jovens, os/as jovens são negros/as (2018), do ponto de vista da heteroclassificação, o
que altera significativamente seus modos de ser jovens estudantes.
180
112
Primeiro cabe citar que a Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, conhecida popularmente como Reforma
do Ensino Médio, foi a conversão da Medida Provisória nº 746, de 2016 o que já configura um cenário de
arbitrariedade e autoritarismo da implementação. A Reforma “altera as Leis nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que
regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452,
de 1º de maio de 1943, e o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de
agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo
Integral.” (BRASIL, 2017). Celso Ferreti (2018), em texto intitulado “A reforma do Ensino Médio e sua
questionável concepção de qualidade da educação”, já expressa que a citada reforma traz consequências
radicais e negativas para esse nível de ensino. O autor cita que, de acordo com a Lei 13.415, a “reforma
curricular tem por objetivo tornar o currículo mais flexível, para, dessa forma, melhor atender os interesses
dos alunos do Ensino Médio [...] a Lei parece insistir na perspectiva de que o conjunto dos problemas
presentes no Ensino Médio público poderá ser resolvido por meio da alteração curricular [...]. Nesse sentido,
a Lei parece apoiar-se numa concepção restrita de currículo que reduz a riqueza do termo à matriz curricular.
A instância que busca dar conta dessa questão é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que, no
entanto, não é entendida pelos seus próprios propositores como currículo” (p. 26/27). Ademais, a partir de
algumas propostas da Lei, Ferreti (2018), cita que “a reforma alinha-se aos postulados da Teoria do Capital
Humano, bem como do individualismo meritocrático e competitivo que deriva tanto dela quanto da
concepção capitalista neoliberal [...] assim a Lei 13.415 pode ser interpretada, nesse sentido, como uma ação
e proposição de afirmação da busca de hegemonia, no campo educacional, pelos setores da burguesia da
sociedade capitalista brasileira, em contraposição às de caráter contra hegemônico, representadas pelas
tentativas, formuladas no decorrer do primeiro governo Lula, de instituir no país uma educação de caráter
integrado e integral” (idem, p. 33/34).
181
é isso, eu não aprendi nada?”. Parece que no cursinho você consegue ver
ainda mais que você é ruim, que está muito aquém. Serve para você ver que
você não pode chegar. E aí, assim, eu ficava muito chateada, porque eu não
estava conseguindo entrar na universidade e eu tinha que ir de novo para o
cursinho, naquela batalha [...] (Letícia, 22 anos, mulher).
O cursinho representou para Letícia uma ocasião para ela perceber que os pares dela e
ela aprenderam muito pouco no ensino médio e, pior que isso, ela se sentiu “burra” e incapaz.
Letícia reconheceu a precariedade do ensino médio, mas, mesmo assim, se culpava por não
conseguir aprender. A postura da jovem tinha relação com sua visão de que o esforço pessoal
era o fator- chave para alcançar os objetivos, assim, ela se colocava como única responsável
pelo próprio fracasso, tendendo a desconsiderar as condições de origem social, de raça, de
gênero, bem como o contexto em que realizou o ensino médio. O cursinho era para ela um
espaço de inferiorização diante de meninos/as considerados/as, em sua leitura pessoal,
“feras”, ou seja, muito capazes, assim, percebia intimamente uma barreira visível entre
aqueles/as que poderiam acessar os projetos de vida e os/as que ficariam à margem do
processo, no caso, a aprovação no Enem. Fica evidente a perversidade da lógica meritocrática,
que quer introduzir uma ideia de igualdade de oportunidades, quando, na verdade, as
concorrências são desiguais e hierárquicas. Embora quisesse desistir, a persistência para
continuar estudando se fez pelo
A entrada da jovem no curso desejado não é algo comum, pois, normalmente, pessoas
de camadas populares fazem escolhas pelo “curso possível” e nem sempre pelo “curso
sonhado”. Com o Sisu, esse cenário se complexificou ainda mais, pois sabendo das
impossibilidades de inserção já no preenchimento da inscrição no Sistema do Sisu, muitos/as
jovens fazem trocas, buscando se inserir em algum curso, mesmo sem que este tenha relação
com a carreira que almejam, como menciona Bréscia Nonato (2018)
O candidato não tem como se iludir que será aprovado num determinado
curso, caso as simulações da primeira etapa do Sisu sugiram
sistematicamente o contrário. Além disso, ao mesmo tempo em que sonhos
impossíveis são desfeitos, opções mais viáveis são apresentadas. O candidato
não precisa, assim, sair do processo com o “peso” de ter sido, simplesmente,
reprovado. Ao contrário, o sistema, indiretamente, estimula o candidato, por
meio das simulações, a ajustar suas preferências originais ao que é
objetivamente possível, de modo a possibilitar a aprovação, mesmo que não
no curso ou na instituição mais desejados por ele (NONATO, 2018, p. 78).
Além disso, não podemos esquecer que a origem social tende a ser um fator primordial
nas escolhas. Temos visto que cursos considerados de menor prestígio social ainda são
ocupados por pobres e aqueles considerados de alto prestígio, pela elite (NONATO, 2018).
Todavia, podemos ler também como uma estratégia de acesso ao ensino superior, em que se
faz uma escolha entre cursar um curso menos desejado, ou não cursar nenhum, especialmente
num contexto em que a credencial da “longevidade escolar”, embora não seja a única, é
considerada um elemento importante no acesso ao mercado de trabalho e mobilidade social
(ARAUJO; MARTUCCELLI, 2015).
No que tange à escolha da instituição de ensino superior, na pesquisa realizada em
2012, Letícia havia informado um desejo de acessar a UFMG (NONATO, 2013), mas, na
pesquisa atual, informou que tinha essa universidadecomo a terceira opção, sendo, então, a
Faculdade de Ciências Médicas sua primeira opção, seguida da PUC. A jovem se inseriu em
uma instituição privada, com bolsa de 50%. O contexto de Letícia se assemelhava ao de
muitos/as estudantes de escolas públicas que se inserem em universidades e faculdades
privadas, com bolsa ou não, ao contrário dos/as estudantes de escolas privadas, que tendem a
184
se inserir nas universidades públicas. Tal inversão pode ser explicada, pela relação entre as
variáveis da origem social, pelo capital econômico e cultural e, também, pela diferença na
qualidade de ensino da educação básica nas escolas privadas e nas públicas. Mas, também,
devido ao número pequeno de oferta de vagas em instituições públicas, em contraposição ao
número elevado de oferta de vagas nas privadas, em razão do elevado número de instituições
privadas existentes no País. Mas é preciso situar que tal realidade começou a mudar, a partir
da Lei de Cotas e do Sisu, que vêm ampliando o acesso dos/as jovens pobres às escolas
públicas federais113, como já refletimos.
Letícia afirmou que sua inserção no curso superior foi um desafio:
113
Cf. MENEZES FILHO; LEE; KOMATSU, 2013; CORROCHANO, 2013; CARMO et al., 2014; Rosileia
NIEROTKA; Joviles TREVISOL, 2016; NONATO, 2018.
185
A inserção de Caio foi no ano de 2014, no curso de Tecnólogo em Redes, com uma
bolsa do ProUni. Não estando satisfeito com o curso, optou por sair e tentar Enem novamente.
Com uma boa nota, Caio conseguiu passar, na Universidade Federal de Ouro Preto, para o
curso de Educação Física e estava tentando se organizar para ir para outra cidade:
Já estava olhando as moradias lá. Aí, eu falei: “Não posso ficar lá, não”.
Aqui eu já trabalho, minha vida já está sendo montada aqui, aí, eu vou pra
lá sem nada. Não tem família pra me ajudar a me manter lá. “Como é que
eu vou fazer?” Aí, por isso que eu acabei desistindo. Mas, é essa questão da
liberdade do jovem também, se eu fosse um jovem que tem a família que
pudesse me ajudar, aí, eu teria ido pra lá, tranquilamente, teria ido, largado
emprego e tudo pra ir pra lá (Caio, 22 anos, homem).
Nooo! Jamais estava nos meus planos estudar na UFMG. Para começar,
que eu estava no ensino médio, ainda. Eu nem sabia dessa vida, como que
era faculdade, se pagava, não pagava. Eu nem sabia como que entrava na
UFMG, do processo que tinha que fazer, que, agora, passou para o Enem.
Mas eu sou muito grato, porque, tipo assim, abriu as portas para mim e hoje
tudo que eu conquistei foi através daquele pontinho que começou lá na Cruz
Vermelha, quando eu era Jovem Trabalhador. E, por isso, minha gratidão
com relação de ter entrando aqui, na UFMG, e ter começado a trabalhar. E,
agora, estou muito feliz de estar trabalhando aqui e de estar estudando aqui
também (Caio, 22 anos, homem).
Caio deixa claro como era distante para ele pensar numa inserção na universidade e,
especialmente, uma universidade federal. Reforçando que sua trajetória escolar, desde o
ensino médio, trouxe repercussões positivas para sua inserção no ensino superior,
especialmente pelo apoio da madrasta com os estudos e, também, sua inserção na igreja114,
114
Embora não seja foco desta análise, chamamos a atenção do quanto a religião tem repercussões nos modos
de ser dos/as jovens e exerce forte influência nas estratégias destes (BITTAR, 2015). Caio atuava em uma
ação da Igreja Católica da qual fazia parte. A religião atua também como instância de socialização juvenil,
juntamente com a família, escola e o trabalho, pois, como afirma Setton (2008, p. 15/16), é um espaço do
qual se constrói “valores morais e identitários [...], um sistema de disposições orientador de condutas”.
Novaes (2008) cita que a religião “pode ser vista como um dos aspectos que compõem o mosaico da grande
diversidade da juventude brasileira” (NOVAES, 2008, p. 263).
187
que, segundo o jovem, o ajudava a ter compromisso e organização com os estudos, mas, ao
mesmo tempo, mais um aspecto da política do Sisu que pode também possibilitar o sonho
com um curso, ou uma universidade impensada anteriormente (NONATO, 2018).
Questionado sobre a escolha do curso, Caio informou que sempre teve dúvidas entre
Educação Física e cursos relacionados a computadores, mas, devido à sua experiência
negativa no curso de Redes, optou pelo primeiro. Porém, afirmou que não abandonaria o
curso, mesmo se não estivesse gostando:
No depoimento, Caio deixava claro que o curso de Educação Física ainda não era o
que ele desejava. Tendemos a considerar que o jovem ainda não havia descoberto a carreira
que gostaria de seguir, o que realça o difícil momento de escolhas acerca do ensino superior.
Às vezes, pode se tratar de uma escolha provisória, embora, para jovens pobres, a dimensão
da experimentação nem sempre seja factível.
A partir da trajetória de Caio, visualizamos a falta de espaços e tempos que
possibilitem reflexões sobre escolhas e descobertas de habilidades para jovens de camadas
populares, seja no âmbito familiar, devido à ausência de capital cultural familiar acerca desse
nível de ensino, seja durante o percurso de escolarização, especialmente no ensino médio.
Porém, a partir do campo de possibilidades do jovem, concordamos com Rachel Almeida
(2011) que os/as jovens vivenciam “a dialética entre as oportunidades objetivas e as
esperanças subjetivas, entendendo, grosso modo, que as segundas tendem a se ajustar às
primeiras, isto é, que as aspirações se ajustam às condições e às possibilidades de se verem
concretizadas” (p. 22). Assim, o jovem fez a escolha pelo possível e dar sentido a sua
“escolha” se coloca como um desafio para ele. Cabe salientar que, mesmo não gostando do
curso, ele não o abandonava, como havia feito anteriormente, o que se justifica pela relação
que Caio estabelecia com a UFMG. Para o jovem, mais importante que o curso era estar em
uma universidade pública, pois, para ele, havia sido um sonho realizado e uma surpresa, pois
não se via capaz de passar. Sua ênfase de que nunca pensou em acessar a UFMG foi reflexo
da representação de que a universidade pública não seria para pobres, mesmo com todo o
188
Na narrativa, ficava evidente o quanto o ensino superior tinha um valor para Caio,
devido à possibilidade de estar na UFMG. A estabilidade citada, independentemente do curso:
a UFMG representava para Caio este lugar de segurança. Assim, a profissão futura não se
relacionava ao desejado, mas ao possível, tendo em vista que se inseriu naquele curso. A
mudança nem era cogitada pelo jovem, pois a universidade é que se configurava como um
diferencial para ele. Desta maneira, no caso de Caio, a ideia de provisoriedade sobre o curso
parecia ser menos possível. Não porque o jovem tivesse certeza do curso, mas devido à sua
postura estratégica; supomos, assim, que o provisório para ele só se relacionasse ao emprego.
É perceptível como o jovem é estratégico e reflexivo, pois conseguia analisar sobre
seu projeto de vida, explicitando que foi melhor não ter feito concurso, pois, se fosse
aprovado, teria, inicialmente, um salário maior, não ganharia uma bolsa e não teria uma boa
condição. Assim, como afirma Setton (2015), a postura do jovem “não são determinações do
destino tampouco são inatas; parecem estar mais próximas de estratégias ou mesmo ser táticas
de avaliação de um campo de força” (p. 1414). Como Letícia, o jovem trazia elementos sobre
o trabalho na UFMG como um espaço/tempo “de passagem” que potencializava a sua
condição de estudante, mas que não possuía sentido em si mesmo.
Podemos dizer que tanto para Caio quanto para Letícia o acesso à universidade
significava uma conquista importante. Letícia estava no curso desejado e Caio na
189
Então, eu faço as mesmas coisas quase todos os dias. Aí, saio daqui 17
horas, correndo, às vezes, 18h, às vezes, 18h30, às vezes, 19h, né? Às vezes,
eu fico um pouquinho até mais tarde, aí, vai, pega circular para ir para a
PUC, aí, chega, na PUC, é aquela correria para comer rápido, porque não
dá tempo nem da gente comer direito. Andando e comendo! Aí, vai para a
aula, aquela aula de quatro horários. Aí, às vezes, eu estou dormindo na
aula, viu; tem umas aulas que estão difíceis, viu. Tem uma aula específica
que está me matando [risos], porque a professora é muito calma, muito
“zen” e ela vai falando em um ritmo lento e, aí, você vai “caindo[no sono]”,
porque você já está cansada. Aí, eu termino a aula 22h30, eu pego um
ônibus, vou para a estação São Gabriel, chego na estação às 22h50, quase
23h, pego outro ônibus para ir para o bairro e chego em casa 23h40. Aí,
você tem que comer alguma coisa, tem que tomar banho, tem que arrumar
as coisas. Arrumo o lanche para poder trazer no outro dia, material, às
vezes, olhar e-mail, às vezes, fazer uma atividade, às vezes, precisa, vamos
adiantar, fazer atividade, aí, vai dormir 1h da manhã, né?! Uma hora da
manhã, para poder levantar às 6h30. Só que eu não estou conseguindo
levantar, né; estou acordando 7h [risos], mas enfim, a rotina é essa, muito
pesada. Aí, chega no sábado, aula 7h40 da manhã. Aí, saio de casa, às
vezes, antes das 7h, para poder chegar na PUC a tempo, aí, fico até 11h10
da manhã na PUC. Às vezes, vou para a biblioteca fazer algum trabalho,
fazer alguma coisa, quando vou, aí, saio de lá às 2h da tarde. Quando não,
vou para casa, meio-dia estou pegando o ônibus para ir para a casa, aí,
chego mais cedo. Aí, final de semana não dá para fazer nada, porque
sábado, dá 20h30 da noite, você já quer dormir, né?! Aí, você evita de ir em
muitas festas cansativas, essas coisas, porque eu não tenho pique para
poder ir (Letícia, 22 anos, mulher).
na hora que dá dez para as cinco, eu estou indo embora rápido, para chegar
na PUC e fazer o estágio. O estágio é uma hora, do estágio, eu tenho que
correr a PUC quase toda para poder chegar na aula, então, assim, é muito
maçante. Eu acredito que estudar e trabalhar, se você não tiver força de
vontade, você não aguenta, não, você não estuda, você só trabalha, você
segue o fluxo que é imposto né?! Ah, todo mundo trabalha, aí, você vai
trabalhando, você não estuda, você não pensa mais em outra coisa. Tem
outros colegas meus que não formaram, nem terminaram o ensino médio,
estão trabalhando, não fazem nada. Outros já formaram, porque fizeram
tecnólogo, ou alguma coisa né, outros vão formar, outros estão estudando
ainda, então, eu acho que é muito difícil (Letícia, 22 anos, mulher).
Estou ficando meio preguiçosa, porque eu estou ficando muito cansada, aí,
você tem aquela rotina que você tem que sair correndo e ir para faculdade,
voltar e não ter tempo para fazer nada na vida Aí, tem estágio e você fica
pensando: “ai, meu Deus, como vou fazer?”. Faço um malabarismo.
Cronômetro... Porque tem que ir para o estágio, não tem como largar o
emprego, eu não tenho renda para pagar a outra metade do curso (Letícia,
22 anos, mulher).
O sofrimento aparecia, novamente, no depoimento de Caio, o que para ele era um fator
essencial para o aprendizado e para alcançar melhores condições de vida. O jovem trazia a
todo o momento a dimensão do “adiamento das recompensas”, ou seja, era necessário sofrer,
inclusive, na faculdade, como ressaltou acerca do trabalho, para garantir um futuro melhor.
Assim como Letícia, ressaltava que dormia nas aulas, pois estava “morto” (ou seja, exausto),
o que poderia causar a diminuição da qualidade na sua formação. Todavia, ressaltava o quanto
193
Estou muito feliz de estar lá [no trabalho]. Principalmente, por ser no lugar
que eu estudo. Eu acho que, pelo fato de eu ser aluno, as oportunidades são
maiores. Tipo assim: lá, o povo, eles pensam: “Eu vou dar oportunidade
para ele estudar, deixa ele fazer um horário e pagar depois”, porque eu
tenho que cumprir a carga horária, mas eles me dão a liberdade. Eu tenho
aula à tarde, aí, eu fico devendo horas, aí, sexta-feira, que eu não tenho
[aula], eu venho mais cedo, aí, nisso aí o pessoal me ajuda. Porque eles
também veem que eu estou querendo, é diferente de quando é uma pessoa
que não quer nada. Eu estou querendo alguma coisa para a vida, assim,
então, eu falo: por que atrapalhar?! Isso, principalmente, quando eu passei,
porque, como o curso é diurno, eu trabalhava aqui durante o dia, aí, eu tive
que mudar para a noite, aí, foi o maior apoio do setor, né?, porque, senão,
eu teria que procurar outro emprego, ou, então, desistir da faculdade. Aí, eu
até pensei: “Nossa, mas eu não posso desistir, eu não posso perder”, porque
é igual eu te falei, a faculdade é o meu bem maior que eu tenho ultimamente
(Caio, 22 anos, homem).
Estar dentro da UFMG, mesmo com as limitações, era diferente de estar em outros
espaços de trabalho, pois tanto Caio quanto Letícia conseguiam se organizar para adaptar sua
rotina e ser estudantes que trabalhavam, assim, buscavam ocupar seus tempos em prol das
demandas do ensino superior. Consideramos, ainda, que o fato de Caio trabalhar e estudar na
mesma instituição era um fator- chave para que essa relação se estabelecesse de maneira
menos cansativa. A alteração do seu horário de trabalho, por exemplo, representava uma
adaptação da instituição aos horários do curso do Caio, o que não é algo comum. Cabe
lembrar, também, que, no relato de Caio, foi citado que existiria uma priorização da
faculdade, caso não conseguisse alterar seu horário. O trabalho era, para Caio, o meio para
atingir seu fim, que era sua formação universitária. Caio gostava do trabalho, mas não criava
nenhum vínculo que ultrapasse sua relação com a universidade. O mais importante era a
universidade, ratificando seu lugar de estudante trabalhador.
A díade trabalho e estudos limitava que Caio e Letícia vivenciassem a condição de
jovens universitários, experimentando as diferentes possibilidades que a academia tende a
oferecer.
Vou para aula e tenho que trabalhar. Igual, tem o projeto115 [Projeto de
Extensão: Programa de Educação Tutoria (PET)] que eu tenho muita
vontade de participar. Eu já pensei em ser integrante, eu sou meio que
integrante, pois eu venho de voluntário e me ajuda, porque eu pego
certificado. Mas, eu tenho vontade de participar mais, mas só que eu não
posso, por causa do trabalho. Para ser integrante, não pode ter outro
vínculo empregatício. Só que, aí, entra minha crítica contra as bolsas116
aqui, que a bolsa é 500 reais, assim, 500 reais pra mim não dá pra fazer
nada, até pra maioria do pessoal também não dá pra eles fazerem nada,
então, eu não posso largar o trabalho pra fazer isso. Aí, essa questão da
liberdade, até poder investir mais no curso, acaba não sobrando muito
tempo para mim fazer outras coisas. Não sei como vai ser, quando eu
formar, sem muitas experiências na área. É bem complicado ser trabalhador
e estudante (Caio, 22 anos, homem).
115
Projeto é um tipo de ação de extensão. A extensão universitária na UFMG é definida como “um processo
interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre
universidade e outros setores da sociedade” (Resolução 03/2016). São cinco os tipos de ações de extensão:
Programas, Projetos, Curso, Evento e Prestação de Serviços.
116
As bolsas acadêmicas podem ser nas três dimensões acadêmicas: Extensão, Pesquisa - Iniciação Científica -
ou Ensino, monitoria, por exemplo. As bolsas, em sua maioria, têm o valor de R$ 400,00. No caso de bolsa
acadêmica ação afirmativa, o valor é de R$ 500,00. O/A discente bolsista atua 12 horas semanais (ensino) ou
20 horas semanais (Extensão e Pesquisa). O/A bolsista não pode ter vínculo empregatício, nem acumular
bolsas.
195
inseria nesse contexto. “É bem complicado ser trabalhador e estudante”, mas Caio buscava
construir estratégias para conseguir, ao menos, cumprir os créditos necessários à sua
formação:
117
O Domingo no câmpus é um evento realizado pela Pró-reitoria de Extensão da UFMG, com a colaboração
da comunidade acadêmica, que abre a Universidade aos domingos (em período parcial), para realizar
atividades recreativas, culturais, de lazer e esporte, reforçando a dimensão pública da universidade.
Disponível em: https://www2.ufmg.br/proex/
196
Araujo e Martuccelli (2012) como uma das maiores provas para a sociedade chilena, tendo em
vista o “trabalho sem-fim”, o qual consome todo o uso do tempo. Mas, mesmo diante das
complexidades da conciliação, consideramos que ambos os jovens, Letícia e Caio, constroem
percursos de individuação pautados nas (re)existências, na autodeterminação e nas estratégias
que “sustentam” os/as jovens, em geral, diante do desafio de serem jovens, trabalhadores/as e
estudantes universitários/as.
O novo perfil de aluno/a que ingressa no ensino superior não apresenta o mesmo
capital cultural que os/a alunos/as filhos/as das elites. Segundo Valéria Belletati (2011), a
dificuldade nos conteúdos é reflexo da formação básica de má qualidade, como já refletimos,
o que faz com que os/as alunos/as do ensino médio público enfrentem maior dificuldade de
adaptação à universidade. Isso porque, “as deficiências não sanadas no ensino médio [ou
desconhecidas, como pontua Letícia] dificilmente serão resolvidas no ensino superior, onde a
abordagem e complexidade dos conteúdos são diferentes” (Erinaldo CARMO et al., 2014, p.
315). Parte-se do pressuposto de que os/as alunos/as têm uma bagagem para aprender
determinados conteúdos, mas essa não é a realidade. Letícia e Caio representam muitos/as
estudantes universitários/as que não conseguem acompanhar o conteúdo do ensino superior,
por isso, grande parte evade, mas eles dois, ao contrário, permanecem. Como aponta Felipe
Tarábola (2015) acerca dos/as jovens que ingressam na USP, se a frequência no cursinho tem
sido fundamental para corrigir determinadas lacunas para acessar o ensino superior, ela não é
suficiente para suplantar as exigências do ensino universitário, como também não o foi para
Letícia. A narrativa de Caio reforçava as explicitações de Letícia, mesmo estando em outra
universidade. Para Caio, “o problema da UFMG é que eles acham que ninguém trabalha”,
reforçando a ideia de um tipo ideal de aluno/a.
Nesse contexto, pesquisadores/as têm evidenciado que, se o Brasil não construir
políticas de permanência eficazes que levem em consideração o contexto de escolarização
pregresso dos novos sujeitos, o ensino superior se manterá, também, como um mecanismo de
reprodução das desigualdades (SANTOS; GENTIL, 2016), uma vez que a universidade abrirá
as possibilidades de entrada, mas não adequará o currículo, produzindo cada vez mais
“excluídos do interior”. Desta maneira, como cita Mesquita (2010),
para o estudo. Não se trata aqui de um ensino adequado, mas de uma política
de qualidade, que respeite sua condição de trabalhador/estudante do período
noturno (MESQUITA, 2010, p. 78).
Concordamos com a contribuição da autora e, como ela mesma ressalta, não se trata de
aligeirar o curso, ou de oferecer algo de menor qualidade, mas, sim, de ampliar o tempo
destinado à formação. Mesquita (2010) ressalta a importância da construção de currículos
“vivos” que dialoguem com as realidades e com as subjetividades dos/as novos/as
ingressantes, o que pode contribuir para que os/as graduandos/as se sintam pertencentes à
universidade e, especialmente, consigam permanecer nela. Igualmente, para os/as jovens
estudantes que já ingressaram, a autora sugere políticas de permanência, as quais devam
abranger assistência do ponto de vista econômico, acadêmico, como aqueles relacionados às
dimensões do currículo– tais como monitorias–, além do apoio psicológico, podem contribuir
para diminuir as distâncias.
As “cartas dadas” antes da chegada dos/as jovens no ensino superior contribuem para
reforçar que eles/as sejam “excluídos/as do interior” nos cursos, pois vivenciam
cotidianamente processos de exclusão visíveis e invisíveis. Ressurge a questão: como ser
pobre, trabalhador/a e cursar o ensino superior? Trata-se de uma formação universitária,
contemplando o mínimo necessário para se ter um diploma e buscar uma inserção no
mercado, a qual contemple o exercício profissional concernente com a área de formação. Caio
e Letícia estão se formando para ocupar quais espaços? Uma futura Psicóloga e um futuro
Educador Físico e/ou professor de Educação Física, com restritas experiências formativas e
escassos contatos, tendem a encontrar espaços limitados e/ ou precários de atuação
profissional. Não obstante, reforçamos que ambos representam uma exceção à regra, pois
“quebraram barreiras” e estão cursando o ensino superior. Ademais, são jovens que
(re)elaboraram estratégias e percursos, enfrentado a precariedade, a partir de novas formas de
(re)existir. A permanência de ambos na universidade significava cotidianamente “quebrar a
‘regra do jogo’”, pois o contexto desconhecido por eles foi sendo desvendado no processo:
“Dar a cara a tapa” pareceu ser uma expressão que representou, em grande medida,
as vivências de Caio e de Letícia como um/a estudante universitário/a, uma vez que, a
inserção, as “escolhas” das universidades e do curso, o processo de aprendizagem, a
participação em processos formativos foram difíceis para ele/a, pois, a todo momento, existia
um “campo de possibilidade real”, o qual “ditava as regras”.
Por último, diante do contexto exposto, é importante citar que as vivências como
jovens universitários/as extrapolam os muros da universidade, tendo, inclusive, repercussão
nas vivências cotidianas desses/as jovens. Letícia, por exemplo, mencionava como a relação
com a universidade teve impacto na sua vida social, pois
o namoro fica prejudicado, né?! Eu já tive até brigas por causa disso,
porque eu estava muito focada só na universidade, porque era tudo muito
novo para mim, né? e então, você foca no negócio. Aí, ele me cobrou mais
atenção. Mas, eu também pedi para que ele fosse mais compreensivo,
porque não é fácil universidade, não é ensino médio, não é ensino
fundamental, é diferente. Mas, eu fico tentando meio que equilibrar, porque,
também, se eu focar muito em uma coisa, você acaba prejudicando outras
da sua vida. Você deixa de sair muito com amigos. E, quando é dia de
semana de prova, eu tenho um exercício avaliativo, ou trabalho, nossa, nem
me fale de sair, que eu não saio de jeito nenhum, não saio para nada. Os
meninos ficam até falando que eu sou meio neurótica, mas eu acho que eu
sou mesmo, mas é porque, para mim, as coisas não foram fáceis, então, eu
tento me esforçar ao máximo, porque eu custei a chegar ali, então, assim, eu
não vou “fazer por fazer”, não é isso que eu quero, né? É a minha vida
profissional, meu futuro: fazer um curso deficiente, eu não quero isso para a
minha vida. Eu quero ser uma profissional competente no que eu faço,
então, eu me dedico muito no curso. Eu estou cheia de olheira, eu estou
horrorosa, porque não dá tempo nem de fazer unha, não dá tempo nem de
fazer nada, não dá, mas eu sei que eu vou ter recompensa nesse curso no
futuro. E eu acredito que você se abdicar cinco anos da sua vida em uma
universidade, ninguém morre por causa disso. Então, eu não sei se, acho
que não custa nada, são só cinco anos e eu acredito que ninguém morre por
causa disso, de abdicar esse tempinho da sua vida e eu acho que a
recompensa, depois, vai ser muito maior, muito maior do que festas, do que
essas coisas... Mas é difícil viu, sair. Eu aproveito qualquer tempo livre para
estudar. Não está fácil, não (Letícia, 22 anos, mulher).
Inferimos que priorizar os estudos não era uma escolha por não estar com o namorado,
ou com os/as amigos/as, mas uma forma de tentar sanar as lacunas tanto do ensino médio
quanto da própria formação que estava em andamento. A leitura que Letícia fazia do seu
tempo como universitária estava intimamente relacionada a todo o contexto de inserção e de
dificuldades que ela vinha vivenciando na vida acadêmica. Consideramos que, para Letícia,
sua vida fosse uma coisa e a universidade fosse outra. Para ela, era necessário “abdicar” de
viver para ser graduanda, “abrindo mão” de outros elementos da sua condição juvenil, para ter
uma recompensa no futuro. A narrativa da jovem mostrava como o tempo livre não
199
significava um tempo liberado de coerções dos tempos vividos, pois afirma Martuccelli
(2012, p. 181) “esse tempo liberado é progressivamente organizado por novas regulações
sociais deixando de ser tempo livre”. A jovem citava, ainda, que estava
cheia de olheira. Olha que isso não me incomodava, antes, não, sabe, eu
não ligava para isso, não, mas agora eu fico um pouco incomodada. Eu não
tenho tempo, olha aqui [mostra a unha], eu não faço unha, não, eu não faço
mais unha direito, quando eu faço, é um milagre, porque eu não estou tendo
tempo pra isso, aí, depois que começou a surgir as olheiras, eu fiquei muito
incomodada. Não dá para ser mulher- maravilha, não dá, a gente tenta ser,
mas não dá. É muito difícil a gente fazer cinco, seis coisas ao mesmo tempo,
é muito difícil. Ou eu faço um exercício, ou eu saio com meu namorado, ou
eu faço unha, ou eu saio com as minhas amigas, ou eu leio o livro, ou eu
faço unha, ou eu durmo melhor. Então, eu estou priorizando outras coisas,
quando dá para fazer, eu faço, quando não dá, eu não faço mais, não. Só o
que me incomoda é essa bendita olheira, eu não estou aguentando mais isso,
porque você olha e fala: “Poxa, meu rosto: que trem preto, trem fundo”
(Letícia, 22 anos, mulher).
um grupo que está mais presente, assim, de amigos. Então, a gente sempre
sai. Direto a gente saia, à noite, aí. Porque eu tenho um colega que canta,
então, direto a gente vai, porque ele canta nos barzinhos, aí, direto a gente
vai nos barzinhos que ele está cantando. P: E esses amigos você conheceu
aqui? Não, eles são amigos da igreja, mesmo. Lá da minha comunidade.
Aqui não tenho muitas amizades, porque não tenho tempo, mesmo. Aí, a
gente se conheceu lá e ficou um grupo mais unido aí. Aí, sai mais é esse
grupo mesmo [silêncio] (Caio, 22 anos, homem).
200
Caio mencionou que sempre saía com esse grupo de amigos/as e que, aos finais de
semana, priorizava se divertir um pouco, pois ficava muito tempo na universidade. É
interessante enfatizar que Caio não tinha uma relação de amizade com os/as colegas de curso,
pois, como citou, não tinha tempo para estar com eles/as.
Diversos fatores compõem as diferentes relações que Caio e Letícia estabeleceram
com a universidade, seja pela forma de inserção de ambos – uma gratuita e a outra
parcialmente paga –, seja pelo fato de Caio estudar e trabalhar na mesma instituição, seja
pelas peculiaridades da personalidade de cada um.
O contexto analisado deixa claro como o trabalho marcava e precarizava as
experiências do Caio e da Letícia como jovens estudantes universitários, mas, ao mesmo
tempo, potencializava outras experiências, pois ambos trabalhavam em uma universidade. O
trabalho marcava, pois trabalhavam para estudar. A vivência de ambos no trabalho possuía
um sentido estratégico, pela continuidade dos estudos. O fato de trabalharem na UFMG, era
relevante, pois esta universidade se configurava como um espaço possível de estudar tanto
pela existência de flexibilidade de horários quanto pela possibilidade de se estudar no horário
de trabalho, embora o tempo longo de trabalho limitasse as condições de participarem das
atividades formativas que extrapolassem a sala de aula.
Outra questão importante se referia às dificuldades que ambos ressaltaram ter com o
conteúdo, especialmente marcada pela precariedade do ensino médio que cursaram. Letícia
lidava com essa lacuna “correndo atrás”. Ela pesquisava, estudava aos fins de semana,
“abdicava da vida” em prol da universidade. Caio, porém, assumia suas dificuldades, mas
ressaltava que não estudava aos fins de semana, pois ficava muito cansado e priorizava, assim,
se divertir. Podemos dizer que Letícia naturalizava mais o “ofício de aluno” (ARROYO,
2000), enquanto Caio lidava estrategicamente com este papel, por exemplo, quando ia
trabalhar na UFMG e pegava certificados de diversos eventos. Todavia, as escolhas
individuais, que potencializavam a vivência ou não da condição juvenil, tiveram origem no
percurso de inserção e no percurso familiar de cada um, o que para Letícia era mais limitado.
O fato de pagar 50% da faculdade resultava em que Letícia cobrasse de si mesma ser o “tipo
ideal de aluna”, pois, caso contrário, teria que pagar uma dada disciplina acadêmica
novamente, quiçá mais de uma. Além disso, a bolsa do ProUni também era vinculada ao
mérito acadêmico, ou seja, ser reprovada poderia significar a perda da bolsa. Citamos, ainda,
as dificuldades de cada curso e a maneira como ambos lidavam com tais dificuldades.
Com relação ao âmbito familiar, cabe lembrar que ambos os jovens informaram pouco
acerca da rotina que possuíam em casa, pois reforçavam que “viviam no trabalho e na
201
universidade”. Letícia mencionou que tendia a ser liberada pela mãe do trabalho doméstico,
pois todos na casa viam que ela não tinha tempo, como também visto por Sposito (1989). Essa
“liberação” representava mais uma forma de suporte familiar. Já Caio, por morar com o
irmão, informou que eles mesmos davam conta do trabalho, mas mais aos fins de semana, o
que segundo ele não atrapalhava seu lazer e encontro com os/as amigos/as.
Por fim, a partir do contexto, consideramos que Caio e Letícia haviam sido produzidos
como “excluídos do interior” nos seus cursos superiores, mesmo apresentando resistências e
estratégias variadas para não serem outsiders.
1.7 Entre fazer o que gosta e gostar do que faz118: trabalhar para poder estudar
A partir das reflexões que realizamos até o momento, sobre os percursos de Letícia e
de Caio, especialmente, no que diz respeito aos processos de escolarização e de trabalho,
podemos afirmar que este ocupava um lugar central na vida de ambos, o que se confirmava,
por exemplo, no relato da fase de desemprego vivenciada por Letícia, a qual foi de sofrimento
e na qual ela se sentiu inútil, tendo pensado que “não seria nada na vida”. A jovem
mencionou:
[...] trabalho é vida. Eu não consigo me imaginar sem trabalhar, sem fazer
nada. Não que eu ache ruim uma pessoa que não trabalhe, ou critique ela
por isso, mas eu acho que, para mim, é muito importante. Você fazer uma
coisa que você goste, eu acho que é vida, o que te move, não sei. Você
acorda cedo, faz um monte de coisa e planeja; eu não penso minha vida sem
trabalhar, não, e eu comecei muito cedo, também.... Mas, de vez em quando,
é bom tirar umas férias... Mas eu não me vejo sem trabalhar, não, para mim
é minha vida (Letícia, 22 anos, mulher).
[...] realmente eu fico incomodado com essa questão [da rotina], até com a
faculdade, mesmo, que, aí, eu fico nessa rotina de UFMG, segunda a sexta.
Aí, tem vez que eu trabalho mais no sábado, aí, tem vez que venho domingo
no câmpus. Mas, a questão que me incomoda mais é a rotina de trabalhar,
mas, ao mesmo tempo, eu já não consigo ficar sem ela. É muito estranho. E
uma coisa também que eu penso nessa questão da rotina é porque, tipo
assim, como eu trabalho, tem vez que eu trabalho no final de semana, Aí,
ganhava as folga, era estranho não ir trabalhar, estar lá, no bairro, lá,
118
Cf. Jeolás, LIMA (2002); TARTUCE (2010).
202
mas não perde a faculdade”, ou seja, a universidade era mais importante para Caio que o
trabalho. Explicitou que, se fosse necessário, ganharia menos, até conseguir formar, ou seja,
mais uma vez, a prioridade era dada àuniversidade. A fala de Letícia acerca do olhar dela
sobre o trabalho dialogava com a visão de Caio:
precário. Além disso, consideramos que, devido às estratégias para “trabalhar para estudar”,
eles não se colocavam tais questões, pois o trabalho na UFMG tinha possibilitado a eles tal
conciliação – trabalhar e estudar concomitantemente –, mesmo com as dificuldades que
enfrentavam.
Ademais, os relatos tanto de Letícia como de Caio tinham em comum a centralidade
dos estudos. Para ambos, os estudos estavam em primeiro lugar, estudar era a prioridade. Se
tiver que escolher entre trabalhar e estudar, Caio escolheria “seu bem maior”que era a
faculdade. Letícia, por sua vez, também dava sentido para o trabalho, a partir dos estudos, ou
seja, o “trabalho bacana” era aquele que possibilitava estudar. Para Letícia, o trabalho era,
especialmente, a possibilidade de poder pagar a metade de seu curso, mas também um
espaço/tempo possível para estudar. Assim, o trabalho na UFMG só tinha sentido para esses
dois jovens, enquanto estivessem estudando, como relataram:
eu estou planejando, assim, eu vou fazer tudo que for possível para eu
continuar trabalhando aqui, na UFMG, até eu formar. Eu já estou aqui, se
eu for sair, vai ser empresa, aí, lá não vai ter as coisas, pelo menos, aqui,
eles deixam a gente estudar. Igual, eu venho nesse domingo no câmpus,
então, eu vejo com minha chefe, já me colocou na equipe e, agora, todo
Domingo no Câmpus você tem que vir, mas, aí, ela me ajuda que ela me dá
certificado de participação. Nessa questão de estudos, a UFMG ajuda, por
isso que eu pretendo me manter aqui, até eu terminar a graduação. Se for
para uma empresa fora, eles não vão estar nem aí, não: “você está
formando em Educação Física, não é pra trabalhar pra mim”, então, eles
“nem vão ligar”. Aqui, eles preocupam mesmo, até o próprio setor, o chefe
fica incentivando a fazer concurso, a estudar, aí, isso é legal e o chefe aqui é
bem tranquilo, a diretora também, tranquila (Caio, 22 anos, homem).
Hoje eu estou feliz com o que eu faço aqui, mas não é o que eu quero para a
minha vida. Esse trabalho é um trampolim para mim. Preciso muito, para
ter acesso aos estudos. Você tem acesso a um monte de coisa, você tem
acesso a coisas dasinstituições de pesquisa, um monte de coisa, né?! A gente
tem acesso a muitos líderes, um monte de coisa, né, mas não é uma coisa
que me preenche completamente. O que eu quero fazer na Psicologia, não
sei se vai ser “clinicar”, não sei para que lado eu vou na Psicologia. Estou
gostando de tudo, está difícil escolher, mas eu acredito que o emprego daqui
está sendo muito importante para isso: para poder me ajudar a pagar, para
ter algumas coisas também, não só pagando a universidade, mas ter coisas
materiais também, mas não é o que me satisfaz, assim, por completo. Eu
acredito que eu vá ficar aqui só até depois que eu formar, que eu acredito
que, se eu encontrar um emprego, eu acho que, nem que seja um estágio,
alguma coisa, eu acredito que eu vou sair daqui. Não acredito que vou
durar muito tempo, não, mas está sendo válido a experiência que eu estou
tendo aqui, mas, eu quero ir para a Psicologia, fazer outras coisas. Meu
projeto de futuro é outro, não é aqui, acredito que é outra coisa, mas, aí,
vamos esperar né, está faltando mais três anos, né, vamos esperar mais um
pouco, né (Letícia, 22 anos, mulher).
qual aprenderam a gostar do que faziam. Letícia afirmava que o trabalho na UFMG era “um
trampolim” e Caio registrava que ficaria na UFMG até se formar, pois “pelo menos aqui eles
deixam a gente estudar”. Ficava evidente que a experiência de trabalho lá era vista de forma
positiva, mas ambos buscavam experiências em que “farão o que gostam”, de fato. As falas
expressavam, ainda, que não se viam como profissionais e que não criaram identidade
profissional com a atividade que desenvolviam na UFMG. Para eles, o espaço era um meio
para atingir um objetivo maior que era a formação no ensino superior e, assim, terem,
posteriormente, uma profissão com que se identificariam.
Trabalhar para estudar e ser trabalhador/a que estuda, como afirmam Alvaro Comin e
Rogério Barbosa (2011) eram faces da ambígua relação que Letícia e Caio desenvolveram
com o trabalho. Ainda que não estivessem no trabalho ideal, pois
[...] falar em trabalho ideal hoje, portanto, representa, para a maioria dos
jovens, o desejo de estar empregado, ou pelo menos, trabalhando. Segundo
eles, o ideal seria unir o útil ao agradável, ou seja, trabalhar naquilo que se
gosta. No entanto, se o jovem não pode escolher “fazer o que gosta”, ele tem
que aprender a “gostar do que faz” (JEOLÁS; LIMA, 2002, p. 59).
119
Cf.: SPOSITO, 1989; LETELIER, 1999; MESQUITA, 2010; POCHMANN, 2004; SENNETT, 2006;
ALVES, 2007; SILVA, 2014; MANZANO; CALDEIRA, 2018.
206
120
Concurseiros é como se chamam, popularmente, os sujeitos que se dedicam por dois anos, ou mais, em
tempo integral, ou parcial, aos estudos, em preparação para um concurso.
121
Imagem adaptada. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2013/02/15/a-vida-de-um-concurseiro/ Acesso
em: 20 de setembro de 2018.
208
irmã, mulheres, tenderiam a buscar protegê-lo e incentivá-lo nos estudos. De outro lado, a
partir da própria construção familiar, de acordo com Cynthia Sarti (2004, p. 121), “os
discursos são distintos porque os lugares nas relações são diferenciados. O discurso muda não
apenas com quem fala, mas também a quem fala”. Nesta dinâmica, Sérgio mencionou que,
quando a irmã mais velha estava desempregada e estudando em casa, tanto o pai quanto mãe a
apoiavam. No seu caso, devido ao fato de ser homem e não ser o caçula, o discurso era
diferente e gerava tensões. O jovem citou que não gostava muito de falar das relações
familiares, pois “tem uma família complicada”, especialmente devido à relação com o pai.
Como havia informado, no ano de 2012, o trabalho começou a fazer parte da vida de
Sérgio, quando ele ainda estava com 14 anos, como ajudante do tio, em um lava a jato. A
segunda experiência laboral foi aos 16 anos, na UFMG ‒ na época, informou que trabalhava
para ser independente. Ressaltou, ao contrário de seus/suas amigos/as, que não precisava
ajudar nas despesas de casa, assim, o seu salário era para uso próprio. O jovem citou que sua
mãe que havia buscado informação sobre a CVB e o ajudado em todo o processo, o que
reforçava a ideia da importância da constituição dos “laços fortes” para jovens pobres.
Interessante pontuar que, mesmo numa família em que os estudos eram a prioridade, houve
um incentivo ao trabalho, durante o período de escolarização do ensino médio. Após ser
desligado da CVB, ele foi contratado por mais seis meses pela UFMG, para continuar
exercendo as mesmas funções. Passado esse período, o jovem foi demitido, com a justificativa
de falta de verba.
Desde o ano de 2014, Sérgio não teve nenhuma outra experiência de emprego.
Manteve-se com o seguro desemprego, as economias que fez e, especialmente, a ajuda da sua
mãe. Durante o ano de 2014 e meados de 2015, realizou um curso Técnico de Mecatrônica,
com o objetivo de conseguir um emprego na área, mas não obteve sucesso. Depois da
experiência malsucedida do curso técnico, ele resolveu estudar para passar em concurso.
[...] quando eu saí da UFMG no final de 2013, eu tentei achar emprego, mas
eu acabei não encontrando, aí, eu comecei o curso de Mecatrônica, para ver
se ajudava. Comecei a fazer o curso, e fui fazendo o curso e tentando
arrumar emprego, e não consegui. Depois que eu concluí o curso, eu tentei
só na área de Mecatrônica. Procurei estágio “pra caramba” e acabei não
encontrando também. O desemprego é a pior coisa que tem, sabe?!
Após a saída da UFMG, o jovem buscou trabalho em diferentes áreas, mas não
conseguiu, fato que ratifica a tese de que a inserção no mercado de trabalho seja mais
complexa para a juventude (CORROCHANO, 2008). Essa complexidade tornou-se ainda
mais intensa no período em que o jovem buscou emprego, ano no qual teve início a crise
econômica, como abordamos. Segundo ele, em alguns locais, nos quais entregou o currículo,
as pessoas diziam que, somente com o ensino médio, ele não conseguiria trabalho, mesmo em
locais que pediam como pré-requisito somente este nível de ensino. Denotamos que o
desemprego tendia a deixar um sentimento negativo nas vivências juvenis de Sérgio. A reação
211
Até hoje eu não concluí [risos], eu não fiz o trabalho final. Não entreguei até
hoje, que vergonha, né?! Pior que nem sei se vai valer mais. A gente sai
122
Cf. ALVES, 2007; ANTUNES, 1999; ANTUNES; POCHMANN, 2007; NEVES, 2006.
212
fazendo tudo sem ter muita noção e não dá continuidade, né? Aí, não peguei
o diploma. Eu acabei desanimando, pois, quando eu acabei o curso, em
2015, também começou a crise no Brasil, eu não consegui arrumar estágio,
aí, acabou que eu fiquei “desanimadão”, mas eu pretendo voltar. Já fiz,
né?! Dezoito meses de curso [risos]... No finalzinho desistir...
Sérgio tinha consciência de que o curso técnico não tinha se constituído como um
projeto refletido, tendo inicialmente se baseado na crença do diploma como garantia de
emprego, pois afirmou: “a gente sai fazendo tudo sem ter muita noção e não dá
continuidade”. Fazer curso técnico foi uma “válvula de escape” para Sérgio, diante do
desemprego e do término do ensino médio. Podemos dizer que o curso não teve, para Sérgio,
um sentido de profissionalização, como era a expectativa dele. A falta de espaço para estágio
tinha relação com o que Richard Sennett (2006) nomeou como “sociedade voltada para as
capacitações”, na qual o sistema educacional possibilita a formação de um grande número de
jovens, mas não tem espaço no mercado que dialogue com tal formação.
Neste sentido, as dificuldades de inserção no mercado de trabalho, por parte de Sérgio
e seus/suas colegas, corroboraram com a análise de que embora “posser un título escolar
certificado por el Estado se ha convertido encriterio básico para la regulación de los puestos
de trabajo” (Oscar LEÓN, 2017, p. 13) a qualificação não deve ser colocada como a
“salvação” frente ao desemprego. Afinal, esta é somente um dos elementos que compõe a
complexa relação do mercado de trabalho, que envolve, dentre outros aspectos, as dimensões
de gênero, raça, classe e o local de moradia (ALVES, 2007; Tatiane NEVES, 2006). Logo, a
não inserção do jovem Sérgio se relaciona a um mercado de trabalho que não seja capaz de
absorver toda a mão de obra qualificada, pois são escassas as ofertas de emprego (SENNETT,
2006) e “o mercado não é para todos/as” (ALVES, 2007, p. 253), especialmente num
momento de desaquecimento da economia.
O desemprego causou ao jovem um descrédito quanto ao curso técnico e a inserção
dele, de maneira geral, fazendo com que ele buscasse novas estratégias, como enfatizou: “Eu
não conseguia nada nem na área do curso nem nada mesmo, aí, o desemprego me fez pensar
em concurso. Pensar em não ter que passar por essa busca mais. Então, o concurso entrou
mais ou menos na minha vida, acho que foi em 2015”.
A resposta singular de Sérgio, diante do desemprego, foi a busca pelo concurso
público, a qual representava para o jovem “uma alternativa para lidar com o sentimento de
insegurança mobilizado frente à instabilidade encontrada no mundo do trabalho” (Pricila
ALBRECHT; Edite KRAWULSKI, 2011, p. 15). Portanto, o concurso era para Sérgio a busca
por estabilidade, o que, por sua vez, tendia a contestar a ideia de que os/as jovens não
213
Ahh... Trabalhar é essencial, não sei, não sei. [pausa]. Acordar cedo, por
exemplo... É engraçado que, esses dias, eu estava até lá, em casa,
comentando que faz falta; esses dias, eu estava sentindo falta de acordar
cedo e fazer alguma coisa, sabe, de, assim... No meu caso, não, porque eu
continuo acordando cedo e estudo o dia inteiro. Mas, eu estava sentindo
bastante falta de acordar cedo e ser útil para alguma coisa, sabe? Eu acho
que a gente chega num determinado tempo do estudo que... No começo,
assim, você estuda bastante, você está “emocionadão” com o conhecimento,
aí, a partir do momento que você chega na caminhada do conhecimento,
parece, assim... “Pô, estou estudando isso aqui, há tanto tempo, e ainda não
foi”. Você começa a repetir a matéria demais, não tem nada novo, aí, você
começa a sentir que você não tá sendo útil, sabe? Que você está ali,
repetindo aquela rotina todo dia, que aquilo dali não vai dar em nada, e,
você sente bastante falta de trabalhar, de se sentir útil, sabe? Acho que... Sei
lá [pausa]... É mais ou menos isso. E, também, tem uma rotina de estudo,
mas é diferente, porque é com você mesmo, no trabalho tem seus colegas,
214
O fato de estudar sozinho em casa fazia com que Sérgio não estabelecesse os contatos
sociais, os quais poderiam ser construídos no trabalho. Além disso, faltava a ele o retorno em
dinheiro, pelo salário, que seria um elemento importante e motivador para a continuidade do
trabalho. A identidade pessoal, especialmente, de ser visto como trabalhador era um elemento
para o jovem, pois não gostava de se sentir “inútil” e, como salientou, não gostava de estar em
casa, devido às falas do pai, pois isso significava ser lembrado, o tempo todo, que só
estudava. Ser estudante para concurso é lidar a todo o momento com o adiamento das
recompensas (LECCARDI, 2005). Ele tem consciência quer ser estudante “dá trabalho”, mas
não garantia a ele os retornos que o emprego o dava.
A escolha de Sérgio pelos estudos se relacionava com a visão de que seria através da
123
O termo surgiu na Inglaterra, em meados dos anos 90, com a seguinte denominação inglesa: NEET (not in
indication, employment or training) (María FEIJOÓ, 2015). No Brasil, a denominação tem sido utilizada
para caracterizar jovens que nem trabalham nem estudam – nem nem.
215
escolarização que ele iria conseguir “ser alguém na vida”, como mencionou. Essa visão
também era compartilhada e reproduzida na sua família. A experiência que Sérgio teve no
trabalho na UFMG e a ocorrência do desemprego, como vimos, foram marcantes para que ele
optasse pelo concurso público:
No depoimento, as falas da mãe tendiam a expressar que ela não queria que Sérgio
reproduzisse sua história, projetando sobre ele uma perspectiva de mobilidade social.
Interessante ponderar o quanto o foco do jovem, inicialmente, não fossem o trabalho e os
estudos. Para ele, o essencial era usufruir de outras vivências da juventude. Todavia, as
experiências do mundo do trabalho, quais sejam emprego e desemprego, fizeram com que
Sérgio visse “como é a realidade”, o que anteriormente não fazia parte de suas preocupações.
Quando trabalhou na UFMG, em 2012 e 2013, pôde vivenciar um pouco da rotina de trabalho
dos/as servidores/as públicos/as124 e considerava que ela era “maravilhosa”, por isso, desejava
ser “concursado”, pois, no setor público, “não era tão pesado trabalhar”, na visão de Sérgio.
Não era como via seus/suas colegas e familiares dizendo acerca das empresas privadas. Sérgio
parecia ter uma visão “romântica” acerca do serviço público, como um espaço/tempo em que
ele não teria que seguir regras, não teria horário a cumprir e receberia muito bem, um
pensamento coerente com representações existentes na sociedade brasileira sobre o trabalho
124
Dallari (1989), de modo sintetizado, traz a definição de que “servidor público é quem trabalha para a
administração pública em caráter profissional, não eventual, sob vínculo de subordinação e dependência,
recebendo remuneração paga diretamente pelos cofres públicos” (p. 16).
216
neste setor125.
Outra questão importante seria a relação que Sérgio estabelecia com os estudos.
Estudar, para ele, era a possibilidade de se inserir num concurso público e, consequentemente,
“melhorar de vida”, numa relação instrumental, ou seja, estudar não tinha sentido em si, mas
apenas para atingir determinado fim, relação essa observada por Atahualpa Fernandez e Marly
Fernandez (2005), em estudos sobre o significado dos estudos para concurso com jovens e
adultos. Todavia, passar em um concurso era, também, para o jovem, a possibilidade de ter
estabilidade e acessar o ensino superior, a longo prazo, buscando a “longevidade escolar”.
Quanto à escolha pelos concursos, ele ressaltou:
No depoimento de Sérgio, ficou evidente que não era ele quem escolhia os cargos em
que almejava trabalhar, mas “era escolhido pelo concurso” tendo em vista as matérias que
exigia, próximas àquelas por ele estudadas. Para Sérgio, não era importante passar no
concurso desejado, mas, sim, passar em um concurso público, independente da carreira a se
desempenhar a partir da aprovação. O posicionamento do jovem corroborava com as
explicitações de Albrecht (2010) que afirma que “critérios para escolher quais concursos
dedicar a sua preparação são balizados por questões referentes ao salário ofertado; ao nível de
concorrência do concurso e o aprofundamento das matérias a serem estudadas” (p. 84).
A relação de Sérgio com os concursos era estratégica, pois, assim como outros
concurseiros, ele elegeu a área administrativa, com exigência de nível médio, e estudava os
conteúdos daquela área. Ele buscava focar em concursos de diferentes órgãos, desde que
contemplassem as mesmas matérias que ele já estava estudando, tais como: Direito
Constitucional; Direito Administrativo; Ética no Serviço Público; Língua Portuguesa;
Raciocínio Lógico, entre outras. As matérias nem sempre eram as mesmas, por isso, o jovem
125
Cabe lembrar que, desde o final da década de 90, a partir da Emenda à Constituição número 19, houve
mudanças significativas no regime jurídico do setor público, com a implementação de mecanismos de
avaliação dos/as trabalhadores/as, aumento do tempo de experiência, possibilidade de demissão, em
decorrência de avaliação periódica, e a exoneração de servidores/as não estáveis, em caso de se exceder o
limite de despesas com pessoal. Além disso, como afirma Aparecida Souza (2016) cada vez mais o setor
público tem incorporado métodos de gestão desenvolvidos no setor privado, pautado na eficácia e eficiência.
Não podemos esquecer também que existe, por parte da mídia, uma campanha para desqualificar os/as
servidores/as públicos/as com vista a contribuir para a redução do Estado.
217
afirmou que o estudo começava pela leitura do conteúdo programático, pois era isso que
determinava se tentaria ou não dado concurso. Embora fosse estratégico em sua decisão, o
jovem ressaltou o quanto era difícil manter o foco, o que para ele se relaciona à dimensão da
autoestima. Ou seja, nem sempre o jovem acreditava na possibilidade de inserção dele no
serviço público o que, segundo ele, comprometia a rotina de estudos elaborada.
Sérgio afirmou ter construído uma rotina de concurseiro que poderia resumida da
seguinte maneira:
Ficava muito claro como a sua rotina era próxima a de um trabalhador. Segundo o
jovem, ela era pautada no “horário comercial”, ou seja, ele a iniciava na parte da manhã, fazia
o “horário de almoço”, depois, retornava ao estudo e, na sequência, fazia uma atividade física
e retomava, novamente, os estudos. Percebemos uma estratégia quanto à organização de
estudos, pois, de acordo com ele, na parte da noite, fazia exercícios e estudava matérias novas
e, durante o dia, mantinha o foco nas matérias que já vinha estudando. Sérgio deixou claro
que não era uma rotina fácil: “Tem dia, assim, que acordar é difícil, o relógio desperta sete
horas da manhã, aí, você fala: Poxa, hoje eu vou acordar para estudar, eu não acredito que
eu estou acordando para estudar”. Mas, mesmo com o desafio de acordar cedo, explicitou
que de, certa maneira, já tinha se adaptado a esse processo de estudar durante a semana. Já,
aos fins de semana, era um período mais complicado, como ressaltou:
Percebemos que existe, por parte de Sérgio, um “controle” acerca da vivência dos
tempos dele, mas também a consciência de que seria necessário “tirar um tempinho” para
fazer outras coisas. A cobrança sobre si mesmo ficava evidente, o que fez com que ele tivesse
disciplina sobre a própria rotina, mas, ao mesmo tempo, tal cobrança gerava sentimento de
culpa, quando ele optava por fazer outras coisas que não estudar. Além disso, a cobrança se
relacionava, ainda, ao sentimento de “inutilidade” que Sérgio sentia: “eu estou indo para 23
anos e eu sou homem e isso é preocupante [risos]. Aí, você acaba pensado: ʻpô, eu já tenho
22 anos e estou dependendo da minha mãe’. Você acaba querendo fazer alguma coisa, para
pagar uma conta”. Salientamos o quanto a colocação do jovem expressava a força das
representações sociais sobre o que um/a jovem de camada popular, de 22 anos, deveria estar
fazendo, como “tensionavam” o pai e o irmão mais velho. Desta forma, o jovem ressaltou que
buscava, a todo o tempo, “manter o foco”, pois estudar em casa requeria muita disciplina e
responsabilidade:
Estudo sozinho e on-line. Comprei cursos on-line. Nossa, meu Deus, são
matérias que você nunca viu na vida. Nossa, muito diferente. O difícil é se
manter focado. Precisa de disciplina. Você estudar para o imprevisível,
sabe, é um desafio, mesmo. Tem gente que começa a estudar depois que o
edital sai, né? Aí, não adianta nada, você vai lá só para ver a prova. Gastar
seu tempo àtoa. Eu sempre, eu comecei a estudar antes do edital sair. Pego
uma carreira e foco nela e, o dia que sair edital, eu tenho que estar
preparado.
126
Importante mencionar o surgimento de empresas dos ramos de cursos on-line que se beneficiam com a crise
econômica, pois vendem um produto abaixo do preço dos cursos presenciais, embora garantindo altos
lucros, pois têm baixos custos na produção dos materiais. Além de estratégias de não reprodução do produto,
o que tende a obrigar outras pessoas a adquirir.
219
garantia alguma de que estivesse devidamente preparado nem de aprovação, gerando tensão
na espera pela abertura de um edital de concurso que fosse na área na qual ele já estivesse
estudando. O jovem afirmou que pesquisava sobre a abertura de concursos, mas o contexto de
cortes públicos que o Brasil vinha vivenciando diminuía o número de concursos e nem
sempre as previsões eram cumpridas127. Cabe ressaltar que, desde a época em que começou a
estudar, o jovem prestou provas de dois concursos. Um, para auxiliar administrativo da
Prefeitura de Belo Horizonte, e outro, para Técnico do Seguro Social do INSS. No primeiro,
ele não atingiu metade dos pontos da prova. Já, no segundo, errou somente 10 questões, mas
não foi classificado, pois eram somente quatro vagas e os primeiros colocados erraram, no
máximo, quatro questões.
Outro aspecto importante que fazia parte da vivência de Sérgio como concurseiro se
relacionava à precariedade da experiência dele como aluno do ensino médio. O jovem
enfatizou essa dimensão ao narrar sobre umas das suas tentativas de inserção:
Esse concurso que fiz [INSS] eram 11 matérias. Se você for pensar, 11
matérias para o tempo que eu estudei parece muito, mas é pouco. Parece
muito tempo, mas é bem pouco tempo, porque é matéria que você nunca viu
na vida. Você sai do ensino médio e vai ver Direito Constitucional, Direito
Administrativo, um tanto de matéria... Aí, você descobre que seu Português
e sua Matemática do ensino médio não valeram de nada, que você tem que
aprender tudo de novo, aprender de verdade, pois, você descobre que não
sabe nada. Aí, é muito triste, porque você tem que estudar o que você não
aprendeu e as matérias do concurso. Gente, não aprendemos nada do
Português, mesmo, e olha que eu já achava difícil.
127
Na década de 1990, houve um período chamado enxugamento da “máquina administrativa” iniciado no
Governo do Presidente Fernando Collor de Mello, o que diminuiu a inserção de pessoal no setor público.
Todavia, a partir de 2003, no governo de Luís Inácio Lula da Silva, houve uma retomada para a admissão em
cargos públicos, nas mais diversas áreas (Ver: Neves, 2005; Nogueira, 2005). Porém, a partir 2015, retoma-
se o discurso do Estado mínimo, com o governo de Michel Temer, havendo a redução do número de
concurso e a extinção de cargos públicos, por meio do Decreto nº 9.262, de 10 de janeiro de 2018.
220
que ficava aquém de candidatos/as que tiveram um ensino médio de qualidade e tinham
acesso a diferentes formas preparatórias para um concurso.
Ser concurseiro limita Sérgio quanto às vivências de aspectos da condição juvenil,
especialmente no que tange à sociabilidade, pois ele afirmava ter poucas amizades:
pois não tenho muito tempo para estar com eles [amigos/as]. Fiz escolhas
que são bem diferentes. Eles me acham doido, né? Me acham louco de parar
de trabalhar. A maioria dos amigos tem carro e eu não tenho. Falam assim:
“Você é doido, estudando...Vai trabalhar, comprar suas coisas, fica aí,
sustentado pela mãe”. Ficam me ‘zuando’, mas eu falo: “gente, tem que
estudar, né? Melhor pagar o preço agora, enquanto eu estou novo ‒ novo
mais ou menos ‒ pagar o preço agora”. Abro mão de muita coisa. Às vezes,
se um amigo chama para sair, eu tenho que estudar, às vezes, você quer
sair, mas pensa: “não, eu tenho que estudar”.
especialmente aos jovens de 15 a 17 anos somente estudar, o jovem Sérgio pode(ria) ser
considerado uma exceção nas camadas populares, em que essa possibilidade não é comum,
sobretudo para concursos.
Cabe mencionar que ele construiu o projeto de vida, a partir do trabalho, ou seja,
passar em um concurso levaria-o a ter condições de pagar uma faculdade e de começar a
estudar. A visão de Sérgio era reflexo do seu contexto familiar, que “é apertado”, como
afirmou, sendo necessário “correr atrás e trabalhar”, pois, a mãe não teria condições de
oferecer o que ele chamava de “vida melhor”. Segundo o jovem, o sonho dele era passar em
um concurso, para dar uma vida melhor à mãe e à irmã, retribuindo tudo que faziam por ele, o
que ratificava a dimensão da moral da reciprocidade, ou seja, necessidade de “dar, receber e
retribuir” que constitui as relações sociais humanas (Marcel MAUSS, 1974). Destarte,
podemos afirmar que, se, de um lado, o jovem tinha uma visão romântica acerca do concurso
público de nível do ensino médio, pois imaginava que proporcionaria a ele pagar uma
faculdade privada, constituir uma família e, ainda, ajudar a mãe/ irmã, por outro lado, a feitura
do concurso se constituía como uma possibilidade “mais rápida” de ter acesso a melhores
condições de vida, mesmo tendo somente o ensino médio. Pelo concurso, ele poderia ter um
trabalho seguro e estável, além de condições de mobilidade social.
Diante do exposto, consideramos que a trajetória de escolarização e busca por trabalho
do jovem Sérgio nos convidam a questionar a categoria nem nem, ou seja, jovens que nem
estudam nem trabalham. Poderíamos falar de jovens nem nem no contexto brasileiro?
Nas reflexões que realizamos sobre o mercado de trabalho, mostramos como o
desemprego tem aumentado, desde o início do ano de 2014, o que é mais grave ainda para
população jovem. A falta de emprego e de busca por emprego – numa articulação de ambas as
ausências, caracterizando inatividade – bem como o não envolvimento com os estudos
representariam a chamada geração nem nem. A categoria é uma construção social, baseada
numa determinada compreensão de juventude quanto à relação com o trabalho, construção
esta pautada num conceito de trabalho, restrito a dimensão do mercado de trabalho, ou seja,
mediatizado pelas relações mercantis.
De acordo com o Censo 2010, o grupo de nem nem teria aumentado de 16,9% para
17,2%. Já no ano de 2018, uma pesquisa do IPEA revelou que 23% dos jovens brasileiros não
trabalham e nem estudam (jovens nem nem). Cabe enfatizar que a condição nem nem é
vivenciada de maneira diferenciada pelos/as jovens. Ana Camarano e Solange Kanso (2012)
ressaltam que tende a existir uma dinâmica diferenciada entre sexo, sendo as mulheres as mais
presentes na categoria nem nem. Joana Monteiro (2013) reforça as explicitações das autoras
222
128
Maternidade social envolve o cuidado com irmãos, sobrinhos e outros entes mais novos da família (FEIJOÓ,
2015).
223
as taxas de desemprego disparariam. Neste sentido, chamamos a atenção que a apreensão dos
dados não pode ser lida com total correspondência à realidade.
A construção da categoria nem nem parece ter como alicerce uma ideia de linearidade,
ou seja, espera-se que para um/a jovem a saída da escola seja seguida da entrada no mercado
de trabalho. Linearidade que não aconteceu para Sérgio e, certamente, não é diferente para a
maioria dos/as jovens brasileiros/as das camadas populares, pois, como já discutimos, a
escolarização não é garantia de trabalho.
Outra questão importante é que esta categoria desconsidera o trabalho informal que
cada vez é mais presente nas vivências juvenis. Como já afirmamos, em um contexto de
redução do trabalho protegido, os/as jovens são impelidos/as “a serem menos seletivos em
relação às escolhas de emprego, posto que as ofertas caracterizam-se por vínculos temporários
e regime parcial” (Mariléia SILVA, 2016, p. 120). Desconsidera-se o trabalho doméstico não
remunerado exercido, em sua maioria, por mulheres e também se despreza a realidade
daqueles/as, como Sérgio, que investem no estudo informal para prestar concursos. Todas
estas situações aqui descritas contestariam as estatísticas oficiais. Ademais, reforçam que o
uso da categoria se pauta num conceito restrito de trabalho.
Cabe citar ainda que o termo nem nem traz consigo um julgamento de valor, como se
os/as jovens não desejassem trabalhar e/ou estudar. Ratificando a explicitação Silva (2016)
que menciona que
[...] levantaremos uma breve reflexão sobre a expressão nem nem, utilizada
pela mídia para designar os jovens que não estudavam e nem trabalhavam,
não pelo tom anedótico que possa estar associado a tal expressão, mas pelo
julgamento moral que parece embutido. Começaríamos com a ideia
representada de que poderia se tratar de uma geração nem isso, nem aquilo,
ou seja, jovens que nada fazem: não tomam iniciativa, não são proativos,
desistem com facilidade e, por suposto, estariam na contramão do discurso
da empregabilidade (SILVA, 2016, p. 122).
Assim sendo, a utilização do termo tende a culpabilizar os/as jovens pela falta de
acesso ao trabalho e à educação, como se existisse, por parte deles/as, um desinteresse
(CORROCHANO; ABRAMO H.; ABRAMO L., 2017). Mas, no contexto brasileiro, no qual
o fenômeno do desemprego, especialmente juvenil, e a falta de acesso à educação são
estruturais, teria sentido falar somente em desinteresse? Afirmamos que não, pois, como já
ressaltamos, tanto no campo educacional quanto no mercado de trabalho não há espaço para
todos/as. Assim, como sinaliza Feijoó (2015, p. 31), “o uso do termo está se convertendo
como um estigma e obstáculo para melhor compreensão do problema”, uma que vez que
224
diferentes variáveis devem ser analisadas, para refletirmos sobre a relação juventude, trabalho
e educação.
Em vista disso, reforçamos que o percurso no mundo do trabalho – e, especialmente,
de escolarização – do jovem Sérgio contribuiu para refutar o termo nem nem, uma vez que
este tende a mascarar um problema social tanto do desemprego quanto da inatividade dos
sujeitos jovens. Tendemos a considerar que as nomenclaturas “geração que vive à deriva”
(SENNET, 2003), ou “uma juventude com vida interditada ou em suspenso” (FRIGOTTO,
2011), ou mesmo “jovens sem sem”, ou seja, que estão sem estudos e sem ocupação no
mercado de trabalho (CORROCHANO; ABRAMO H.; ABRAMO L., 2017), são mais
coerentes, pois buscam explicitar que o problema não é do indivíduo, mas, sim, de uma
estrutura complexa e relacional que se intensifica ainda mais em contextos como este que
presenciamos na conjuntura atual do mercado de trabalho. Destarte, tendo como base o
contexto dos 95 jovens pesquisados/a, apontamos que a expressão “jovens sem sem” tende a
explicitar, de forma mais fidedigna, que os/as jovens estão inseridos/as em contextos em que
estão sem direito tanto à educação quanto ao mundo do trabalho.
2.4 A família como suporte para “só estudar”: possibilidade de vivenciar uma
moratória
Assim, na minha família, se você for pensar, minha família, poxa, família
humilde, assim: meus primos, ninguém tinha estudado, minha irmã foi a
primeira a formar na faculdade. Aí, você pensa assim: “poxa, na família de
todo mundo, ninguém está querendo estudar. Ninguém está nem aí pra nada.
Ninguém está querendo “correr atrás” de nada. Querem trabalhar num
serviço para ganhar um salário mínimo e viver normal, trabalhando para
pagar conta. Não pode viajar, não pode fazer nada, não sobra dinheiro para
nada”. Minha mãe sempre falava para estudar e minhas tias deixavam pra
lá. Não deixava a gente faltar de aula. Não conseguia entender a matéria,
mas obrigava a gente a fazer [lição] para casa e tudo.
A primeira questão é a diferença que Sérgio percebia entre seu núcleo familiar e o dos
parentes dele. A dimensão moral e de suporte acerca dos estudos, pela mãe, era central na
225
vivência de Sérgio. Ela tinha a 4ª série do ensino fundamental e, mesmo assim, participava do
processo de escolarização do filho, situação que aparentava não ter ocorrido entre os parentes.
Outra questão importante no depoimento de Sérgio, que também dialogava com a
discussão anterior, se referia à dimensão do desejo. O jovem deixou explícito que
seusfamiliares não queriam estudar e que sua irmã foi a primeira a fazer faculdade, mas o
desejo de estudar, ou não, está diretamente relacionado ao campo de possibilidades, o que, por
sua vez, limita ou potencializa as possibilidades de experiências. A partir da narrativa de
Sérgio, problematizamos que “querer, em maior parte, não seja sinônimo de poder” para os/as
jovens de camadas populares, como Sérgio afirmou ser o contexto dos familiares dele. O
desejo pelos estudos é construído e pautado na realidade concreta. Muitos/as jovens, por
necessidade, caem no círculo vicioso de um trabalho precário, porque não têm qualificação,
que, por mais que não garanta, possibilita melhor posição na “fila do desemprego”. O quadro
de ausência de possibilidades se perpetua, porque esses/as jovens não têm condições
econômicas para estudar. Então, ter o que Sérgio considerava uma “vida normal”, em que se
trabalha para pagar conta, é a alternativa para muitos/asdeles/as, para os/as quais, muitas
vezes, o trabalho precário seja a regra. A situação de Sérgio era diferente da realidade dos
familiares e de alguns/algumas amigos/as, como citou, ainda:
social”, entendendo que o estudo para concurso era uma forma de trabalho. Mas, era um tipo
de moratória na qual o jovem podia fazer a escolha se ser “somente” estudante e se dedicar e
essa atividade. No depoimento, ao criticar o trabalho que consumia o dia todo, o que ele via
como inviável para a conciliação com os estudos, o jovem acabava por reforçar a ideia de
vivenciar um tipo de moratória. Além disso, a julgamento era pertinente, pois mostrava que
outras nuances também compunham a disputa pelo concurso, não se tratando somente da
bagagem adquirida no ensino médio, mas dos tempos de dedicação e das condições para isso.
Sérgio enfatizava o apoio que recebiada família, o que não ocorria com seus/suas colegas:
É bom demais quando você tem o apoio da família, é bem mais fácil. Eu fico
vendo meus colegas, meus colegas têm que trabalhar. Às vezes, o pai não
tem condição, às vezes, também não apoia. Lá em casa, graças a Deus,
minha mãe me dá bastante apoio, mas não é a realidade de muitos jovens,
aí, que têm que ajudar em casa, que a mãe cobra trabalhar.
O jovem reconhecia que a realidade vivenciada por ele não era semelhante à da
maioria dos/as jovens, os/as quais nem sempre contavam com o suporte familiar, ratificando
que esta moratória acontecia de maneira diferente e desigual, não sendo garantida a todos/as
os/as jovens de nossa sociedade. Ao se referir-se à falta de apoio, usou o exemplo do pai,
como aconteceu com ele. O papel da mãe, referente tanto ao suporte moral quanto econômico,
como estamos descrevendo aqui, foi ressaltado em várias de suas falas.
O ambiente familiar de Sérgio se configurou para ele como um espaço propício para
os estudos. É interessante apontar, a partir deste caso em análise, algo que parece ser
recorrente nas famílias de camadas populares: os/as irmãos/ãs mais velhos/as tendem a
participar dos processos educativos dos/as mais novos/as, seja moralmente, seja
economicamente. Podemos considerar o fato como uma dimensão estratégica das camadas
populares, pois os/as mais velhos/as são incentivados/as a trabalhar, não raras vezes, por
necessidade, o que pode, em tese, estar possibilitando que os/as mais novos/as possam
usufruir das conquistas alcançadas e, com maior probabilidade, vivenciar a “moratória
social”, ficando isentos/as do emprego, por exemplo, como vemos no caso de Sérgio
(HEILBORN, 1997; CORROCHANO, 2008; TARTUCE, 2010).
Sérgio reforçou, por vezes, que sua trajetória destoava da dos/as jovens de camadas
populares tanto em relação à realidade que vivenciavam quanto em relação às representações
e opiniões. Para muitos/as de seus/suas amigos/as, Sérgio “é um à toa”, como afirmou ouvir.
“Somente” estudar já foi naturalizado por muitos/as jovens como algo impensado. Logo, para
a maioria dos/as jovens na faixa de 22 anos, o “lugar” de Sérgio seria no trabalho e, no
máximo, ele deveria conciliar o trabalho com o estudo.
227
Apontamos que Sérgio se via confrontado a dar conta do paradoxo entre o destino
socialmente esperado para ele – o “imperativo moral do trabalho, através do qual cabe ao
jovem, como signo de transição para vida adulta, o dever de trabalhar” (Maria, HEILBORN;
Cristiane CABRAL, 2006, p. 239) – e as próprias apostas nos estudos para passar em um
concurso público, a fim de conseguir “ser alguém na vida”, como ele afirmava em suas falas.
Assim, mesmo que tenhamos considerado que Sérgio vivenciava a possibilidade da moratória,
não podemos negar que ele sofria uma “pressão”, especialmente por parte do pai e do seu
meio social, para se inserir no mercado de trabalho, pois, muito embora as linhas de transição
estejam mais fluidas há um tempo, o trabalho ainda se constitui num momento privilegiado
para a transição para vida adulta, pois “ele é condição de possibilidade para que outras
dimensões da passagem da adolescência à vida adulta se efetivem” (GUIMARÃES, 2006, p.
171). Podemos dizer que Sérgio vivia a sua moratória.
A trajetória de Sergio nos traz elementos para problematizar a compreensão da
transição para a vida adulta. Tradicionalmente esta foi pensada de forma linear: escolarizar-se,
entrar no mercado de trabalho, sair da casa dos pais, casar-se e ter filhos. Porém, diferentes
autores/as129 já reconhecem que a transição não pode ser lida de maneira harmoniosa uma vez
que
Ao pensarmos na trajetória de Sérgio, fica evidente que a transição para vida adulta se
complexifica, acontecendo um processo de dessincronização, uma vez que estamos imersos
em contextos cada vez mais diversos, com modos de ser jovem singulares, com
“temporalidades e ritmos sociais imbricados e diferentes” (PAIS, 2003, p. 58). Consideramos
que o jovem conseguia elaborar novas formas de ação que permitia o dinamismo e ajuste de
sua transição, uma vez que escolhia, a partir dos seus suportes, continuar estudando. Não é
demais reforçarmos que a permanência do jovem na casa dos pais era marcada pela presença
familiar em seus projetos de vida, especialmente pelo suporte da mãe que era quem “sustenta”
129
Cf. FORACCHI, 1972; PAIS, 1993; Sandra ANDRADE; Dagmar MEYER, 2014; CAMARANO et al.,
2006.
228
os desejos do jovem, o que tem sido evidenciado em diferentes pesquisas130. Podemos dizer
ainda que o prolongamento da transição vivenciado pelo jovem Sérgio é marcado pela
ambiguidade (CHAUÍ, 1986). devido às dimensões das possibilidades e das tensões que
apontamos aqui, o que exemplifica que a experiência da moratória deva ser repensada, a partir
de múltiplos olhares que contemplem os/as diferentes jovens que têm distintas formas de
experimentar esse prolongamento.
Articuladas a essas questões, não podemos deixar de mencionar as mudanças no
contexto social, tais como aquelas relativas ao mundo do trabalho e à educação que, de
maneira geral, já têm contribuído para o prolongamento da juventude (CAMARANO; MELO,
2006; PAIS, 2003; CAMARANO et al., 2006). De um lado, tem ocorrido a relativa
democratização do sistema escolar, a qual permite uma ampliação no tempo de estudos dos/as
jovens, especialmente de camadas populares, vimos no perfil geral dos/as jovens. De outro
lado, no campo do trabalho, refletimos sobre a ampliação do assalariamento e das formas de
acesso ao mercado, como também sobre a diminuição do desemprego. Tais mudanças têm
repercussão tanto para a juventude quanto para seus familiares, o que propendem a
possibilitar que alguns/ algumas jovens, como Sérgio, possam vivenciar a moratória, devido
às melhorias das condições de vida de seus pais ou responsáveis. Todavia, a partir de 2015,
começamos a experimentar uma redução do incentivo aos processos educacionais e a
ocorrência de um mercado de trabalho em crise, com o aumento do desemprego, o qual tem
gerado espaços de trabalho precários, o que, por sua vez, dificulta a inserção do/a jovem no
mercado de trabalho. Significa dizer que o contexto que possibilitou a experiência de Sergio
está em transformação, certamente interferindo nos processos de transição para a vida adulta
de significativas parcelas dos/as jovens brasileiros/as.
Vimos o quanto a família de Sérgio se preocupava com o processo vivenciado por ele
de escolarização na educação básica e com os estudos dele para a feitura de um concurso
público, proporcionando ao jovem a experiência da moratória, mas a inserção no ensino
superior parecia ser algo que não era tão incentivado e, para o jovem, remetia a um projeto
que poderia ser alcançado somente com a aprovação no concurso, por razões financeiras:
Eu penso muito em fazer faculdade, mas não agora. Penso demais. Só que
faculdade é meio difícil. Você trabalhar, como eu vejo alguns amigos meus,
130
Cf. LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011; LEÃO; NONATO, 2012; Zenaide ALVES, 2013; NONATO, 2010,
2013; Jorddana ALMEIDA, 2017.
229
ganha pouco e não tem uma profissão, sabe?! Trabalha lá, ganha, às vezes,
um pouco mais de um salário, para pagar a faculdade; às vezes, sai do
serviço e tem que trancar a faculdade. Eu quero buscar uma estabilidade.
Eu fiz o curso técnico e fico pensando assim: “poxa, pelo menos eu vou ter
uma profissão, vou ganhar um pouquinho mais, vai dar para eu pagar a
faculdade e não ficar tão apertado. Se eu sair do serviço, eu tenho a
profissão, caço outro lugar e não vai atrapalhar tanto”. Mas, assim, eu não
consigo ver eu estudando, ganhando, aí, mil... Mil e pouco [reais] igual a
maioria da galera e pagando R$ 900,00 de faculdade. É um preço bem alto,
acho quem tem cara para isso, mas eu prefiro estudar em casa, mesmo, on-
line e tentar uma estabilidade no concurso público, ou, pelo menos, se eu
não conseguir serviço público, se eu conseguir na área que eu fiz o técnico.
Sei lá... Eu acho que é muito difícil você trabalhar ganhando pouco e pagar
faculdade, sabe? Não sei, às vezes, eu estou pensando errado, né? O que
acha?
quais são abordadas por todos/as os/as outros/as jovens da pesquisa –, Sérgio nem
vislumbrava a possibilidade de tentar. Isso exprimia a naturalização da incapacidade, bem
como o sentimento de inferioridade. Ademais, em 2012, o jovem já havia informado que
trabalhar e estudar atrapalhava bastante os estudos, pois ficava muito cansado e não conseguia
assistir às aulas, ou por falta de concentração, ou porque dormia (NONATO, 2013). Havia
dito, inclusive, que não “tinha pique” para estudar fora do horário de aula.
Trabalhar e estudar é muito puxado. Eu acho que, se você quer, se você tem
vontade de entrar para a faculdade, se você tiver condição de não trabalhar
e, se você tem uma escola boa que tem um ensino bom, eu não acho legal
você trabalhar, não, sabe? Mas, não é a realidade da maioria. Se você tem a
oportunidade de estudar, entra de cabeça, porque estudar... Não tem outra
saída. Você tem que estudar. Você estuda ou você vai ficar aí pelo resto da
sua vida na mesma. Não vai conquistar nada, vai ver os outros conquistando
e você não tendo nada. Estudar é o único caminho para você ter uma vida
melhor né? Se trabalhar, a gente já sai mais atrás. Acho que um “Enem da
vida” a gente está bem atrás, mas acho que, se lutar bastante, eu vou
conseguir, se Deus quiser, pois ensino superior é necessário para a gente ter
melhores empregos, né?
Em sua fala, Sérgio enfatizou que o ideal para os/as jovens que queriam acessar o
ensino superior era não trabalhar, ao mesmo tempo em que reconhecia que não era esta a
realidade da maioria. A dificuldade de conciliação entre trabalho e estudos poderia ser umas
das justificativas da opção do jovem, por “ser somente” concurseiro e decidir-se por protelar a
inserção no ensino superior, o qual, segundo ele, se articularia ao trabalho. Além disso, a
postura familiar quanto à moratória do trabalho para inserção no ensino superior não teria o
mesmo contexto, pois não representaria um retorno em curto prazo.
Por fim, mesmo consciente da dificuldade de estudar, o jovem explicitou que “a única
maneira para se ter um futuro melhor é os estudos” e que “com luta” se poderia ingressar no
ensino superior. O depoimento de Sérgio ratificava o lugar da escolarização, vista como
“único” meio de mobilidade, o que faz parte da construção histórica do mercado de trabalho,
como vimos, desconsiderando que a educação seja credencial importante, mas que se articula
a outras tão necessárias quanto.
Outro ponto relevante, quando refletimos sobre a relação que Sérgio estabeleceu com
o ensino superior, diz respeito à estratégia ou à ausência de estratégia para a inserção:
Sérgio acreditava que a estratégia que tinha para estudar para concurso não poderia ser
transposta para os estudos para o Enem, pois, segundo ele, os objetivos eram diferentes. Ele
afirmou que o objetivo com o concurso era ser remunerado para ajudar a família dele. Já a
faculdade seria um investimento a longo prazo, pois iria estudar para se inserir nela e, depois,
continuar a estudar para conseguir um trabalho. Consideramos que o jovem não buscava
estratégias variadas de mobilidade, pois depositava todas as expectativas na inserção em um
concurso. A visão do concurso “como salvação” evidenciava uma postura pautada no
“presente estendido” (LECCARDI, 2005), pois suas tentativas ocorriam a partir de
“facilidades” de estudo e inserção, escolhendo, assim, concursos sem uma relação com um
possível curso superior. O jovem parecia não construir a possibilidade de conciliar os estudos
para o concurso e para o Enem, por exemplo. Novamente, Sérgio ressaltava em sua fala o
quanto era complexo ser estudante e ser sustentado pela mãe, por isso, segundo narrou,
precisava de algo que tivesse resultado a curto prazo, pois não poderia mais ficar na situação
de dependência. Enfatizou que os planos que alimentava se dirigiam em direção ao objetivo
de passar em um concurso para, somente depois, acessar a faculdade:
Hã... Eu quero muito ser aprovado... [risos]... Eu quero muito ser aprovado
em um concurso, entrar para faculdade e continuar estudando. Entrar na
faculdade, formar e tentar um concurso de nível superior. Acho que a gente,
quando conquista uma coisa, a gente tem que buscar sempre conquistar
mais, né? Acho que faz parte da vida, a gente faz um plano, quando a gente
conquista, a gente pensar em outra coisa. Se eu conseguir ser aprovado no
concurso, eu vou entrar para faculdade. Está nos meus planos entrar numa
faculdade e fazer uma faculdade e tentar um outro concurso para nível
superior. Eu acho que carreira pública é o melhor que tem.
O depoimento do jovem nos faz concluir o quanto o concurso público era prioridade
para Sérgio, mas, ao mesmo tempo, ele alimentava o desejo de, em longo prazo, poder
trabalhar e estudar, para acessar um concurso de nível superior. Na pesquisa realizadano ano
de 2012, o jovem havia afirmado o interesse em cursar Educação Física, na UFMG, mas
mencionou recentemente que não pensava mais nesse curso, pois havia poucos concursos na
área. Disse que, provavelmente, fizesse Administração, pois este curso apresentava relação
com a área para a qual ele estava estudando para concurso. Todavia, enfatizou que faria um
232
concurso de nível superior, mesmo sem relação com o seu curso de formação, sendo o estudo
somente um meio para o trabalho.
A trajetória do jovem Sérgio tendia a representar um ideal de indivíduo como “dono e
senhor de si mesmo” – sujeito autônomo – como salienta Martuccelli (2007), o qual, mediante
as complexidades do mundo do trabalho, busca (re)construir outras possibilidades de
vivências, por meio do(s) suporte(s) que possui. O desemprego forçado, articulado à recusa de
ter que viver em meio às incertezas do mercado de trabalho, serviu como mote para que o
jovem optasse por buscar outros caminhos de inserção. Desta maneira, mesmo não estando
inserido no mercado de trabalho, a todo momento o jovem dialogava com a expectativa de
inserção, via concurso público. O trabalho ganhava centralidade nos projetos de vida dele,
especialmente na constituição como jovem estudante. Sérgio era capaz de sustentar-se como
concurseiro, fazendo referência à questão de Martuccelli (2007) sobre como o indivíduo seja
capaz de sustentar-se no mundo, pois, no caso de Sérgio, por exemplo, ele tinha a família e,
especialmente a mãe e a irmã como suporte. O suporte, primordialmente da mãe, garantia que
Sérgio experimentasse a este tipo de moratória, o que tendia a ser algo distante para jovens de
camadas populares. Porém, como explicitamos, havia tensões, marcadas especialmente pela
cobrança do pai/irmão e do próprio jovem acerca do lugar dele, sendo vivenciada nas suas
ambiguidades. A experiência do jovem como estudante que buscava inserção no mercado de
trabalho por meiode concursos contribuiu para questionar a construção da categoria nem nem
e ratificara complexidade da chamada transição para vida adulta.
233
Rebeca é uma jovem, a qual estava com 22 anos no período da pesquisa. Casada, se
autodeclarou parda, heterossexual e sem nenhuma religião. A jovem tem uma filha que, na
época da entrevista, estava com um ano e nove meses de nascida. A gravidez ocorreu dois
anos após o término do ensino médio. Estava sem emprego, mas era responsável pelo trabalho
doméstico e pelos cuidados com a filha. A mãe de Rebeca tinha ensino médio incompleto, o
pai cursou até a 4ª série do ensino fundamental. O marido de Rebeca tinha o ensino superior
131
QUINO, Joaquín. Lavado. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
234
incompleto (Engenharia de Sistemas). A mãe de Rebeca trabalhava como copeira, o pai como
padeiro/confeiteiro em padaria própria e o marido da jovem como motorista de transporte
público.
No momento da primeira entrevista, Rebeca morava com a mãe, com o irmão e com a
filha. O marido permanecia no imóvel dos pais dele, contudo, o casal estava construindo uma
moradia própria.
Quanto à família, Rebeca declarou que os pais dela não foram casados, tiveram um
relacionamento curto e, por isso, ela e o pai sempre tiveram pouco contato. Mas, teve a
oportunidade de uma experiência de proximidade, por sete meses, ainda na adolescência,
como narrou:
Eu morei com o meu pai sete meses, só para terminar o meu ensino
fundamental, porque a minha mãe mudou de bairro e eu fiquei com o meu
pai para não ter que trocar de escola. No começo, foi mil maravilhas, sabe?
Ah, estou morando com meu pai, nunca xinga, nunca fala nada. Minha
madrasta era muito boa. Com o passar do tempo, foi estranho, porque eu
não tinha o meu quarto, eu não tinha nada meu separado. Eu não tinha
privacidade, pois eu saía do banho e ia para o quarto, não podia trocar de
roupa sozinha. Meu irmão, por parte de pai, ele abria a porta do quarto a
hora que ele queria. Na casa da minha mãe, não era assim, tinha os limites,
até hoje tem. Minha mãe corrigia a gente, meu pai deixava tudo. Eu não
tinha intimidade com meu pai para conversar coisas de mulheres, como
menstruação. Minha mãe fazia falta. Não tinha afeto com meu pai.
ele nunca estava em casa, porque ele sempre trabalhou na padaria, então,
ele saía de casa três horas da manhã e voltava meia- noite, aí, eu nunca via
ele. Eu tinha uma meia- irmã, mas sempre eu que tinha que fazer comida,
limpar a casa e lavar roupas. E minha irmã nem ligava, pois falava que eu
sabia fazer mais coisas, por ser mais velha. E o meu irmão nem era
obrigado a fazer nada, um absurdo, né? Quando alguma coisa estava suja, a
minha madrasta reclamava com meu pai e ele reclamava comigo, porque eu
era moça e estava dentro de casa e “a moça tem que cuidar da casa”. Hoje
235
O depoimento mostrava que morar na mesma casa não significou uma aproximação
entre pai e filha. Parecia que a madrasta se “desresponsabilizou da jovem”, inclusive,
delegando somente a esta última os cuidados da casa. A partir do depoimento, é possível
evidenciar as desigualdades de gênero tanto na relação entre os irmãos, pois o irmão não era
demandado quanto ao trabalho doméstico (não-remunerado), quanto na relação entre Rebeca
e a irmã.
Diferentes autoras/es132 problematizam a invisibilidade do trabalho doméstico, bem
como o uso do termo para designar as atividades desenvolvidas no âmbito privado.
Alguns/Algumas ressaltam que o trabalho doméstico, a partir da cultura machista, é tido como
uma tarefa de responsabilidade da mulher e, consequentemente, é menos valorizado (Cristiane
SOARES, 2008; Claudio DEDECCA; Camila, RIBEIRO; Fernando ISHII, 2009; Jéssica
AGUIAR, 2017).
A invisibilidade do trabalho doméstico está articulada à inferioridade do papel da
mulher na sociedade, o que é histórico no Brasil. Historicamente construiu-se uma imagem do
papel feminino assentado na reprodução biológica e fixado na esfera privada, ou seja, dentro
de casa, enquanto aos homens cabe o espaço de trabalho na esfera pública. Ademais, tal
historicidade tem raízes no processo de abolição da escravatura, momento em que a mulher,
negra especialmente, encontrou oportunidade como trabalhadora doméstica - nem sempre
remunerada (Joaze COSTA, 2015). Helena Hirata e Danièle Kergoat (1994), ao
problematizarem que a classe operária tinha dois sexos, já chamavam a atenção para que “as
práticas, a consciência, as representações, as condições de trabalho e de desemprego de
trabalhadores e trabalhadoras são quase sempre assimétricas” (p. 94). Neste sentido, o termo
usado para designar as atividades desenvolvidas no âmbito privado tem um papel de
contribuir para minimizar as desigualdades de gênero.
Rafaela Cyrino (2009) reflete que alguns/algumas autores/as têm dificuldade de
reconhecer como trabalho as atividades domésticas, quando estas não são remuneradas, mas
trabalham com a ideia de trabalho social, que trata-se da articulação entre o assalariado e o
doméstico. Dedecca (2004) se aproxima da autora citada, ao defender a ideia de trabalho para
a reprodução social, a qual, segundo o autor, incorpora a dimensão econômica, para consumo
próprio e para a organização familiar. Munich Santana e Magda Dimenstein (2005) afirmam
132
Cf. HIRATA; KERGOAT, 2004; Claudio DEDECCA, 2004; Munich SANTANA; Magda DIMENSTEIN,
2005; Cristiana BRUSCHINI, 2006; Hildete MELO et al., 2007; Cristiane SOARES, 2008; Rafaela
CYRINO, 2009.
236
que as atividades domésticas são uma forma de trabalho. Cristina Bruschini (2006) defende o
uso do termo trabalho não remunerado, ao invés de inatividade, como é considerado nas
pesquisas censitárias, ou PNAD, por exemplo. Por fim, Hirata (2002) enfatiza o caráter
multidimensional do trabalho, entendendo o trabalho não somente no campo profissional, mas
também no doméstico. Concordando com as defesas dos/as autores/as para que as atividades
desenvolvidas no âmbito familiar (mesmo aquelas não remuneradas) sejam nomeadas como
trabalho e não como “dupla jornada”, “segundo turno”, ou “acúmulo”, como se fossem
apêndices do trabalho assalariado, como chamam a atenção Hirata e Kergoat (2007),
assumiremos tal conceito nesta tese, isto porque não nomear o trabalho doméstico como
trabalho tende a reforçar ainda mais as desigualdades de gênero.
A problematização sobre o termo é importante, pois contribui para contestar as
desigualdades e as assimetriasde gênero. Retomando o depoimento de Rebeca, é possível
denotar que ela explicitava a sua insatisfação, mas, embora discordasse, realizava as
atividades. Isto porque a jovem tinha treze anos e seguia as imposições do mundo adulto.
Contudo, assim como as jovens interlocutoras da pesquisa realizada por Jéssica Aguiar
(2017), Rebeca afirmava que já não aceitaria a diferença de tratamento, pois passou a
compreender como as relações socialmente construídas reforçavam estereótipos de gênero e
aumentavam as assimetrias entre os sexos. Desse modo, a jovem passou a enfrentar e
propunha a não aceitação de uma realidade parecida nos tempos atuais. Concordamos com a
autora supracitada que “essas práticas generificadas que são reproduzidas, reforçam as
assimetrias e demarcam espaços e posições socialmente definidos como ‘naturais’,
fabricando, assim, sujeitos em relações desiguais” (AGUIAR, 2017, p. 64). Na narrativa da
jovem, foi possível perceber uma diferença entre as irmãs, o que refletia que a “identidade de
‘mulher’ não foi capaz de gerar solidariedade no interior do lar” (COSTA, 2015, p. 152). Com
isso, não queremos dizer que não exista sororidade133 entre as mulheres, mas que a identidade
de gênero é entrecortada por outras diferenças, tais como idade, como é o caso aqui exposto,
mas, também, classe e raça. Ao longo da cena, será possível retomar a dimensão de gênero
que atravessava a vida da jovem Rebeca, com mais intensidade que no caso de outros/as
jovens.
133
Conceito presente no feminismo definido como união, cumplicidade e aliança entre mulheres e busca por se
alcançar um objetivo comum. Representando a "união entre mulheres que se reconhecem irmãs formando
um grupo político e ético na luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres". Disponível em:
www.movimentovamosjuntas.com.br
237
Após o término do ensino fundamental, Rebeca voltou a morar com a mãe. A distância
geográfica, articulada à escassa relação entre pai e filha, afastava ainda mais os dois.
Decorridos alguns anos, o pai se separou da madrasta e se envolveu com outra mulher.
Segundo Rebeca, o pai retomou o contato com ela, mas ainda com pouquíssima frequência.
Quando a jovem já estava com cerca de 19 anos, eles ampliaram o contato. Rebeca afirmou
que tentava ter uma relação mais próxima com o pai, mas não aceitava algumas atitudes dele,
especialmente quanto ao não comprimento do “papel” de pai. Assim, a jovem questionava,
por exemplo, o trabalho que o pai gostaria que ela exercesse, pois, segundo ela, “ele sonhava
muito pouco para ela, pois não a conhecia. Ele queria que eu trabalhasse como garçonete de
padaria. Gente, eu faço um curso e ele queria que eu trabalhasse de garçonete da padaria
dele. Eu falava: ‘como que me rebaixa tanto assim?’” Mesmo diante das insatisfações que
tinha a jovem ressaltou:
hoje em dia, eu vejo a falta que ele fez. Ter um pai presente deve ser muito
diferente. Talvez eu seria mais incentivada. Teria um homem para me dar
conselhos, pois tem outras ideias. Nossa, ele nunca ajudou em nada. Ele só
me via uma vez por ano, que era no meu aniversário. Eu nunca contei com
nada do lado paterno, mas era melhor não contar, porque, se eu contasse,
eu sairia no prejuízo, sempre quando ele falava que iria me dar alguma
coisa, eu saía no prejuízo, porque ele não me dava. Ele só atordoou a minha
vida.
A ausência do pai não era algo que havia sido superado pela jovem. Em diferentes
momentos, Rebeca fazia leituras do seu passado explicitando o quanto seria diferente se
tivesse contado com a presença do pai. Interessante apontar que a jovem requeria do pai uma
relação de confiança e intimidade, “para dar conselhos”, a partir do ponto de vista
masculino. A ausência do pai tende a ser algo recorrente entre os/as jovens de camadas
populares, na realidade, há uma ausência presente, como vimos também com Sérgio, pois o
pai teve a oportunidade de assumir seu papel, mas não o fez. O distanciamento do pai, entre
outras consequências, gerou o afastamento da família paterna, cujos membros não faziam
parte da trajetória de Rebeca.
No que tange à relação com familiares maternos, a jovem afirmou que sempre foi
muito próxima de todos/as, os/as quais a ajudavam em tudo o que ela precisava. Como sua
mãe engravidou aos 21 anos e não teve apoio do namorado, a família as ajudava sempre.
Como apontado por Acácia Dias e Estela Aquino (2006), um argumento recorrente na
literatura sobre gravidez é que alguns filhos/as tendem a repetir a história reprodutiva da
família, o que aconteceu com Rebeca. A jovem engravidou na juventude e narrou como a
relação com a família se alterou, após anunciar a sua gravidez:
238
Estela Aquino (2006) ponderam que, até na literatura sobre a temática, existe uma tendência
de circunscrever a questão ao universo feminino.
Desse modo, esse acontecimento nos indicava e ratificava como há a regulação da
vivência da sexualidade na juventude, especialmente se estamos nos referindo à jovem
mulher. Rebeca era considerada “perfeita”, “quietinha”, “trabalhadora” e “estudiosa”, até
que existiu uma evidência (a gravidez) de que ela estabelecia relações sexuais com o
namorado. A partir daí, ela passou a “ser nada”. Nesse sentido, a forma como a vivência da
sexualidade e a gravidez, mais especificamente, foram encaradas pela parentela de Rebeca
nos mostra que há, sim, uma relação direta com a moral, pois espera-se determinado
comportamento das jovens mulheres e outro comportamento dos jovens homens, conforme
explicitado anteriormente.
Nesse contexto de julgamentos e distanciamento das pessoas, a jovem informou que,
desde que descobriu que estava grávida, teve, especialmente, o suporte (MARTUCCELLI,
2007) da mãe, do namorado e da família do namorado. Diferentes autores 134 ressaltam a
contribuição das famílias, enfocando o papel da mãe em torno do apoio para a
parentalidade135. Rebeca salientou, ainda, que a mãe não aceitava as críticas feitas e a
defendia, em diferentes ocasiões, com outras pessoas, contudo, a relação entre ambas era
diferente, pois
A jovem Rebeca afirmou que a mãe dela sempre falava que não queria a reprodução
de seu destino para a filha, que não queria que “esse tipo de coisa [gravidez] acontecesse”.
Como ressaltam Ana Dias e Marco Teixeira (2010), a gravidez tende a ser colocada como um
“desvio de percurso”, como ficou explícito no depoimento da jovem e, no caso na mãe de
Rebeca, parecia ser uma frustação ainda maior, pois ela projetava na filha algo que não havia
conseguido para si mesma.
Rebeca citou que tinha uma relação próxima com a mãe, mas que ela sempre a
controlava muito. “Quando eu comecei a namorar e ela viu ‘que ia para frente’, ela viu que
134
Cf. HEILBORN; CABRAL, 2006; HEILBORN et al., 2002; DIAS; AQUINO, 2006.
135
Termo que engloba a ideia de maternidade e paternidade (HEILBORN; CABRAL, 2006, p. 225).
240
eu ia acabar saindo de casa mais cedo, então, piorou; eu não podia sair para canto nenhum,
não tinha escapatória, sabe? A minha vida era estudar, pois eu não tinha para onde sair, e
minha mãe me prendia demais”. A jovem queria muito sair de casa para
condições, mas também ao medo de magoar a mãe, a jovem não saiu de casa, mas afirmou
que a gravidez foi uma maneira de diminuir a vigilância.
Casei com a pessoa que namorei desde a época de UFMG. Aí, ficamos, aí,
tivemos Karen [risos], não planejado, inesperado, mesmo. Tive a Karen,
pela teimosia de ser muito naturalista da vida. A teimosia leva a algumas
coisas não muito boas, mas a gente aprende com os erros, mas não foi uma
coisa que eu achei absurda, porque, assim, foi um meio de escapar da minha
rotina, da loucura da minha mãe, de me prender em casa, porque, nesse
tempo, eu era meio assim, de estudar muito, eu era muito focada no estudo,
tanto que eu passei em duas [universidades] federais e não pude cursar
nenhuma das duas, porque a minha mãe não me deixou sair de casa de jeito
nenhum. Então, assim, quando eu engravidei, foi “aquela loucura”, foi uma
loucura total, assim, “o que que eu vou fazer agora?”. Porque eu não tinha
casa, não estava casada, estava namorando, estava fazendo faculdade,
então, assim, estava começando a construir a minha caminhada.
A gravidez de Rebeca “foi aquela loucura”, especialmente porque não tinha passado
por alguns ritos considerados “padrão”, para antes de se ter um filho, quais sejam: o
casamento, a saída da casa dos pais, juntamente com uma moradia, e, no caso dela, com a
faculdade.
A narrativa da jovem colocava em questão o discurso da “gravidez indesejada”, pois,
mesmo sem planejar, a maternidade representava para Rebeca a “liberdade” com relação à
autoridade da mãe. Com a gravidez, a jovem mencionou que teve mais liberdade, pois a
“mãe, já pensou assim: já fez, não tenho mais nada que possa fazer, já está grávida, então,
não posso impedir de fazer mais nada. Já aconteceu o pior”. Nesse contexto, é necessário
enfatizar que a situação de parentalidade precisa ser lida em sua complexidade, pois revela
uma “diversidade de razões, causas, motivações e perfis desses sujeitos, retratando uma
peculiar heterogeneidade” (DIAS; AQUINO, 2006, p. 1448).
Concordamos com Dias e Teixeira (2010) que apontam que a gravidez pode ser uma
alternativa para lidar com questões e problemas presentes no contexto socioafetivo, no caso
da jovem Rebeca, o controle excessivo por parte da mãe. Destarte, como abordam as autoras,
a gravidez “pode fazer parte de um projeto de vida das adolescentes uma vez que funciona
como um ‘passaporte’ para entrar na vida ‘adulta’; [...] é tida como uma via de acesso a um
novo estatuto de identidade e de reconhecimento através do papel materno” (idem, p. 128-
129). Ainda tendo como referência os/as autores/as citados/as, apontamos que problematizar a
gravidez, especialmente na juventude, somente como algo indesejado ou não esperado, pode
deixar de fora elementos variados do fenômeno, como o explicitado por Rebeca, ou como
uma “alternativa de vida”, trazendo à tona outros modos de viver a juventude, sendo que a
parentalidade pode fazer parte desses modos de ser jovem. Em consonância com essa
242
perspectiva, o documentário “Meninas” (2006), dirigido por Sandra Werneck, também nos
traz essas experiências vivenciadas por jovens mulheres. Algumas chegam a citar a
importância de se ter o/a filho/a para, na configuração familiar existente, deixar a posição de
ser mais uma “filha que cuida dos/as irmãos/ irmãs” para passar a ser “mãe que cuida apenas
de uma criança, seu/sua próprio/a filho/a”.
Se a gravidez se constituiria, para Rebeca, como uma possibilidade de ter menos
controle da mãe e poder sair mais, a realidade se apresentou bem distinta, pois, devido às
limitações da gestação e aos posteriores cuidados com a filha, a jovem continuou limitada
quanto ao anseio por sair. Porquanto, independente de ser desejada/planejada, ou não, a
maternidade se impõe, especialmente, na vida das jovens mulheres. A vida das jovens passa a
se vincular com as demandas dos/as filhos/as, atrelada ao discurso de que a mãe seja
responsável por todos os cuidados com a criança (Joan SCOTT, 1995; HEILBORN et al.,
2002; AGUIAR, 2017), o que acirra ainda mais a internalidade feminina.
Após o nascimento da filha, Rebeca e o namorado se casaram, corroborando com Dias
e Aquino (2006) que citaram que a existência de filhos/as parece motivar a conjugalidade. A
jovem enfatizou que já pretendia casar-se com seu namorado, mas que antecipou a ideia do
casamento, devido à gravidez, e por compreender que esta era a oportunidade de ela sair de
casa e se distanciar da vigilância materna. Guimarães, Marteleto e Brito (2016) enfatizam que,
no Brasil, houve um rejuvenescimento do padrão de fecundidade, ao mesmo tempo em que
ocorreu uma diminuição das taxas de fecundidade em outros grupos etários (Cíntia SIMÕES;
Luanda BOTELHO; Pedro MORAES, 2018). Também mencionam que o país ocupa o quarto
lugar em uniões conjugais para idades abaixo de 19 anos.
Embora tenha se casado, devido ao não planejamento, mas também à necessidade de
ajuda para cuidar da filha, a jovem Rebeca ficou na casa da mãe, durante toda a gestação e no
período puerpério. Afirmou que, durante o período de gestação, os familiares maternos foram
aceitando a sua gravidez e passaram a ajudar em tudo o que ela precisava.
Rebeca e o namorado, no período em que se realizava a entrevista, estavam
construindo um imóvel no lote da família dele e, enquanto a casa não fica pronta, estariam,
segundo ela, “igual cigano, assim, toda hora na casa de uma pessoa, porque ninguém dá
conta, é muita pessoa para uma casa só, aí fica, vai para a casa de um, vai para a casa de
outro, constrói, vai terminando”. É importante mencionar que, mesmo com as críticas e a não
aceitação inicial com relação à gravidez, os familiares maternos de Rebeca contribuíram com
a construção da casa, alguns/algumas financeiramente, e outros/as, com mão de obra.
243
No início do ano de 2017, Rebeca passou a morar com o marido e com a filha e
comentou que ainda estava aprendendo a ser jovem, casada e mãe, pois era tudo muito novo.
A jovem mencionou que a relação com a mãe havia mudado muito:
Sair de casa é outra coisa. Muito bom! Qualquer coisa que ela fala eu ainda
me sinto afetada, mas não muda as coisas que eu tenho que fazer, porque já
sou mulher, eu tenho uma família. Eu já sou casada, eu já tenho minha vida
e agora é minha vida. Então, assim, são minhas decisões, não são mais dela.
Agora é muito difícil eu consultar e aceitar imposição dela para alguma
coisa, porque, hoje em dia, a gente tem que começar a andar com as
próprias pernas, sabe? E já aceitei muito. Eu pergunto a ela coisas que eu
realmente não sei dentro de casa, quando eu fico com dúvida. Quando é
alguma coisa que eu tenho que comprar, está caro e eu não tenho a mínima
noção, que são coisas de mãe, né?
a gente não nasce mãe, né? Muda a nossa vida toda. A minha “biologia” da
vida, como eu sempre digo, tive que passar ela para frente, né? Tive que
parar, coisa que eu amo, como a faculdade, e querer outro amor, minha
filha. Foi desesperador, porque eu parei, estagnou, aí, eu fiquei assim: “e
agora? O que que eu faço da minha vida? Como que eu toco?”. Aí, passou
dois meses e eu pensei assim: “continuar, né? O fruto está aqui [mostra
barriga], ele vai vir”. É difícil ser mãe, porque todo mundo acha que temos
que saber e dar conta de tudo. Passei tanta frustração na amamentação. Foi
um desastre, eu não sabia nada. Colocava o peito na boca dela, mas não
estava rolando, ela não mamava. Chorei horrores, litros, falei: “gente, não
é possível; eu sou muito incompetente”. Você se sente incapaz, literalmente,
porque você tem alguém para alimentar. Bom que tive meu namorado do
meu lado. Então, assim, agora é tocar a bola para frente, procurar emprego,
continuar a faculdade.
244
“moratória social”. Embora tenhamos salientado, na cena do jovem Sérgio, que a transição
para vida adulta não se trata de uma linearidade nem tem marcadores específicos, tendo como
base a vivência de Rebeca, concordamos que a maternidade pode ser uma etapa de transição,
mas, ao mesmo tempo, pode representar um outro modo de vivenciar a juventude.
Concordamos com Heilborn et al. (2002) que enfatizam que “o diferencial de gênero é
um demarcador fundamental na modulação das biografias no que tange a experiência da
parentalidade” (p. 42). O recorte de gênero e a maternidade alteraram as posturas, as decisões
e reconfiguravam a identidade e os projetos de vida da jovem.
Quanto ao trabalho, Rebeca teve duas experiências de emprego, após ser desligada da
UFMG. A primeira foi como recepcionista de um consultório odontológico e a segunda como
estagiária na prefeitura, devido ao curso de Meio Ambiente que havia feito. Além disso, a
jovem citou que trabalhou alguns dias como recepcionista de uma empresa de turismo. Após o
nascimento da filha, parou de trabalhar fora e estava desempregada, desde 2015. No momento
da segunda entrevista, estava trabalhando, temporariamente, como balconista, na padaria do
pai. Informou que era somente um “bico”.
No que se refere ao estudo, a jovem realizou o curso de Tecnólogo em Meio Ambiente
e se formou. Tentou ingressar em universidades federais, passou em duas, mas a mãe não a
deixou ir, por estarem localizadas em outras cidades. No ano de 2015, ingressou em uma
faculdade privada, mas trancou a matrícula, devido à gravidez. No ano de 2017, retomou à
faculdade e cursava bacharelado em Meio Ambiente ‒ estava no 3º período.
A vida da jovem Rebeca foi marcada por “terrenos labirínticos” (PAIS, 2001), mas
consideramos que ter se tornado mãe foi algo central da sua trajetória.
Rebeca havia informado, em 2012, que trabalhava e recebia ajuda da família. A jovem
disse que sua mãe foi quem orientou sobre a CVB e a ajudou no processo seletivo. A
contribuição da família é algo recorrente na trajetória dos/as jovens, confirmando, uma vez
mais, a importância dos “circuitos domésticos” (GUIMARÃES, 2009). Rebeca trabalhava em
uma unidade acadêmica, no setor que fazia atendimento ao público externo.
Na pesquisa atual, a jovem citou que havia começado a trabalhar para ser
independente financeiramente e ter a possibilidade de sair de casa, pois a mãe a “controlava”
muito, como abordado. Assim, como afirma Felipe Tarábola (2015), o início do trabalho e a
busca por independência financeira coincidem com a busca por autonomia.
246
A jovem mencionou que sua experiência de trabalho na UFMG foi muito positiva e
considerou que este teria sido o “melhor emprego que já teve”. Os elementos ressaltados por
Rebeca quanto ao emprego se referiam à dimensão da socialização e do aprendizado no
ambiente laboral, aspectos que se relacionavam aos sentidos que muitos/as jovens dão ao
trabalho, como abordado por Corrochano (2001) e Nonato (2013). A jovem comentou, ainda,
sobre aspectos da dimensão educativa do trabalho, em que era ensinada a realizar a função,
destacando a paciência que as pessoas que a orientavam tinham. Porém, a diferença
geracional parecia gerar relações hierárquicas e de desrespeito no ambiente, mas Rebeca lidou
com a situação, também, como uma possibilidade de aprendizagem. Ela enfatizou que
aprendeu muito durante o período de trabalho na UFMG:
Trabalhar em outros locais se relacionava à postura da jovem diante da vida, pois não
gostava de “ficar parada”, mas sugerimos que outros dois fatores também justificavam a
busca por mais de um local para trabalhar. O primeiro fator era a possibilidade de, a partir das
experiências diversificadas de trabalho, vivenciar outros espaços/tempos, isso porque existia,
por parte da mãe dela, uma “abertura” quando se tratava de trabalho e estudo, mas não para
outros campos. O excesso de trabalho era uma solução e não um problema, tendo em vista
que permitia maior chance de circulação (CORROCHANO, 2008; Lia PAPPÁMIKAIL,
2013), pois se configurava como um “atributo suplementar, como meio de fuga da monotonia
doméstica e do controle familiar” (HEILBORN, 1997, p. 333). O segundo fator seria a própria
necessidade, pois a jovem tinha desejos de consumo, como tirar a carteira de motorista, assim,
seria necessário agir daquele modo, uma vez que, somente com o salário da UFMG, não seria
possível ter acesso aos bens desejados. Por último, é importante ressaltar o paradoxo da
relação com o tempo vivenciado pela jovem, pois gostava de ter o tempo ocupado com o
acúmulo de atividade, mas “arrumava tempo” para viver.
A jovem mencionou que seu contrato na UFMG se encerrou e, em razão de trabalhar
bem, as pessoas a indicaram para trabalhar com um professor/dentista no consultório dele,
como narrou:
O perfil proativo certamente foi ponto-chave para a indicação, pois, no novo trabalho,
a jovem desempenharia uma função que não tinha aprendido na UFMG: “fui contratada
como recepcionista, de 8h às 18h, às vezes, mais. Tinha uma hora de almoço. Eu recebia um
salário. Ele não queria pagar a insalubridade, então, ele me pagava a ‘merreca’ por fora,
que não dava os 20%, que era o certo”. A indicação da jovem, assim como para Letícia e
Caio, perpassou a relação dos intitulados “circuitos profissionais”, ou seja, se constituiu a
partir das redes desenvolvidas no trabalho. Como afirma Guimarães (2009), os/as jovens nem
sempre têm circuitos profissionais, pois ainda são pouco experientes no mercado de trabalho.
Segundo ela, no consultório, manteve a postura que teve na UFMG.
248
A jovem já tinha avaliado que a postura proativa nem sempre era vista de maneira
correta nas relações de trabalho, mas, mesmo assim, a manteve, pois este era o seu perfil
como trabalhadora. Consideramos que, embora as dinâmicas de trabalho não sejam lineares e
as posturas sejam diferentes, as experiências de primeiro emprego contribuem para
socialização no trabalho. Porém, no novo trabalho, a rotina de Rebeca foi totalmente alterada,
pois “eu era só secretária, mas virei tudo lá”, como narrou:
ensinar alguém a desempenhar sua função, às vezes, até depois do horário. A jovem tinha
consciência de que seu perfil passava a ser um “defeito”, tendo em vista que estava se
submetendo a condições de trabalho desgastantes, pois, mesmo ocupando várias funções,
dava conta do trabalho, como vemos na sua narrativa:
Minha mãe chegou um tempo e falou assim: “você vai sair de lá, eu vou
ligar para ele e você vai sair. Como a UFMG te indica para um trabalho
desse? Tinha que ser um trabalho melhor!” Minha mãe começou a falar
muito, pois ela via que eu não estava dando conta mais, eu tinha que tomar
cápsula de vitamina, para poder ficar o dia todo acordada, porque eu não
estava conseguindo repor o que eu aprendia no outro dia, nossa, era
“confusão; gente, a minha vida era conturbada nessa época, porque ele era
muito exigente. Eu passava mal, antes de chegar no serviço, eu tinha
problema de cabeça todos os dias, eu desmaiava. Era exame para lá e para
cá, mas ninguém sabia o que eu tinha de jeito nenhum. Eu tive problema de
pressão, todo dia, eu passava mal, todos os dias, de tanto que eu trabalhava.
Quando eu fui no médico, ele falou: “você está com acúmulo de estresse do
trabalho”.
A mãe de Rebeca questionava a UFMG, por ter sido esta responsável pela indicação,
pois teria a expectativa de que se trataria de um trabalho formativo e não degradante.
Destacamos o adoecimento pelo trabalho como um fator importante para que houvesse a
intervenção da mãe. Todavia, há diferentes situações de trabalho que, por vezes, são
degradantes, mas não são vistas pelos familiares de jovens com tais contextos, pois nem
sempre essas situações geram um adoecimento visível, como foi o caso de Rebeca.
250
Rebeca afirmou que sua condição de jovem foi um dos motivos por ter chegado em
uma situação exaustiva de trabalho, pois tinha dificuldades para falar não. Como afirma
Corrochano (2001), “além de enfrentarem as dificuldades de uma organização do trabalho que
á pouca voz aos trabalhadores de maneira geral, a idade e a pouca experiência acabam criando
mais dificuldades para que sejam ouvidos de fato” (p. 121).
Articulada à idade, como ressalta a autora, a jovem citou que o chefe a explorou ainda
mais, porque sabia que ela pagava o curso de tecnólogo com o salário. A aceitação do
trabalho desgastante e exaustivo se devia ao desejo de continuar estudando. Sair do trabalho
significaria ter que sair do curso, tendo em vista que a mãe não teria condições de ajudá-la a
pagar. Assim como os/as outros/as jovens, Rebeca via na educação a garantia de um futuro
melhor, como citou:
Aí, no dia, fui sair mesmo, para mim, foi muito triste, porque você vê que
você não é nada. Sai um e coloca outro. Porque o meu salário era o mesmo,
eu não recebia vale-alimentação, não recebia [adicional de] insalubridade,
não recebia nem lanche da tarde [...].
251
Nossa, era outra vida; na verdade, outra, não, pois não tinha vida antes.
Era meio- horário, eu ganhava a metade do que eu recebia [antes], mas eu
tinha tempo de fazer tudo o que eu queria. Tinha tempo de estudar, tinha
tempo de sair, tinha tempo de voltar para casa e ver minha mãe, olhar para
o povo, fazer tudo; coisa que eu não tinha, quando eu trabalhava de 8h às
18h, de segunda a segunda. Era bom demais, que era na área que eu estava
estudando.
Não me sentia muito bem, não, sinceramente. Eu não me sinto muito bem,
ficando sem fazer alguma coisa. Quando eu ficava o dia inteiro dentro de
casa, eu já não tinha paciência nem comigo mesmo. Ah... É muito chato, eu
acho que não tem nem explicação, é muito chato, meu Deus, não dou conta.
Eu fico tentando dormir, à tarde, para descansar, nem isso eu consigo fazer,
porque eu acho que é perca de tempo dormir à tarde. Então, sei lá, é uma
coisa horrível ficar sem trabalho e eu me sentia uma inútil. É bom trabalhar,
sabe, é bom você ocupar a cabeça. Eu falo: “gente, ficar dentro de casa o
dia todo é meio conturbado”. Você começa até esquecer das coisas que você
tem que fazer de tanto que não tem rotina.
O trabalho doméstico e o cuidado com filha eram considerados, pela jovem Rebeca,
como um trabalho, mas ela enfatizava que não se configurava como um trabalho para ela.
Assim, se, por um lado, existia um reconhecimento de que o trabalho doméstico era um tipo
de trabalho, por outro lado, existia uma negação deste, pautada em diferentes elementos. O
primeiro era o perfil da jovem que, desde a adolescência, buscava romper com a construção
sócio-histórica da “internalidade feminina”. O segundo elemento dizia respeito à falta de
reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho, sendo, assim, desvalorizado. O não
reconhecimento gera invisibilidade ao trabalho e a quem o desenvolve (BRUSCHINI, 2006;
CYRINO, 2009), o que ficava explícito na narrativa, quando a jovem enfatizava que as
pessoas dizem que ela estivesse “à toa”, o que reforçava seu sentido de “inutilidade”, o qual
foi descrito no depoimento anterior. Por último, consideramos que a narrativa trazia as
frustações da jovem quanto às dificuldades com a maternidade, bem como expressava a
253
realidade vivenciada por muitas mulheres que desenvolvem a maioria do trabalho doméstico
sozinhas.
Diferentes autores/as136 ressaltam o quanto as mulheres respondem por uma jornada de
trabalho doméstico muito superior a dos homens. Bruschini (2006) afirma que as cônjuges
têm mais horas de trabalho doméstico, se comparado o tempo de trabalho doméstico do
cônjuge. Dedecca (2004) pondera que, mesmo nos casos em que há situação de desemprego
dos homens, as mulheres despendem mais tempo com o trabalho doméstico. Reflexões
desenvolvidas pela Organização Internacional do Trabalho (2016, 2017) reforçam os achados
da pesquisa desenvolvida pela Fundação Perseu Abramo (2001): mesmo com obstáculos para
acessar o mercado de trabalho, as mulheres desejam trabalhar fora e dedicar menos tempo em
casa, questionando o papel tradicional dado às mulheres, o que era compartilhado por Rebeca.
A jovem requeria um emprego com carga horária fixa, com salário digno e com possibilidade
de se sociabilizar, o que não era possível no espaço do trabalho doméstico: “preciso sair de
casa, fazer outras coisas, me tornar mais ‘útil’; eu me sinto mais útil fazendo as coisas, como
se diz, ficando um pouco sem tempo, sabe?”
Interessante apontar que a jovem sublinhava a dificuldade que estava vivenciando na
experiência da maternidade, desmistificando uma visão romântica quese tem no senso
comum, como se a maternidade “fosse só flores”, como citou. Mesmo sendo algo trabalhoso,
Rebeca não estava satisfeita com aquele trabalho, “de ser mãe”. Para ela, o trabalho
doméstico não garantia a relação com o tempo, a qual ela sempre buscou ter e, especialmente,
não garantia uma rotina, como mencionou:
136
Cf. DEDECCA, 2004; Hildete MELO; Claudio CONSIDERA; Alberto SABBATO, 2007; DEDECCA;
RIBEIRO; ISHII; 2009.
254
não dão às pessoas o mesmo sentido de realização, além de fazê-las sentir-se à margem dos
acontecimentos”. Desta maneira, a jovem se reconhecia a partir do emprego, pois este
englobava diferentes fatores: saída de casa, socialização, salário, visibilidade, rotina e,
especialmente, o reconhecimento da jovem como alguém “útil”.
Rebeca mencionou que, no tempo em que estava desempregada, recebia auxílio da
mãe e do marido tanto para se manter quanto para as necessidades da filha. Rebeca explicitou
que não era incentivada a buscar emprego, pois não teriam condições de pagar alguém para
olhar a filha e a mãe não queria que colocassem a neta em uma escolinha, tão precocemente.
Tal questão corrobora com a tese de que, para mulheres, o acesso ao mercado de trabalho se
relaciona, também, à aprovação da família, tendência apontada nos estudos da OIT (2017).
Assim, o marido trabalhava fora, enquanto ela cuidava da criança, demonstrando a
importância do trabalho doméstico e do cuidado com a criança, para haver a externalidade
masculina, ao mesmo tempo em que reforça a internalidade feminina. Ou seja, o trabalho
doméstico contribui para a dinamização do trabalho assalariado, pois o homem consegue
trabalhar fora, a partir da internalidade da mulher, de certa maneira, o primeiro cumpre um
papel funcional para o segundo (KERGOAT, 1992; HIRATA, 1994; DEDECCA, 2004;
SOARES, 2011).
Após um período de desemprego, a jovem conseguiu um trabalho de recepcionista, em
uma agência de turismo, quando sua filha estava com um ano e dois meses de nascida.
Informou que buscou emprego tanto para colaborar com a quitação das despesas da
construção da casa e com aquelas geradas com o cuidado da filha quanto para se
responsabilizar, também, por tais demandas, mas isso teria alterado em muito a dinâmica da
casa e da filha, por isso, teria resolvido pedir demissão, inclusive, porque era necessário a mãe
dela ficar com a neta, mas a mãe de Rebeca não tinha paciência e ficava reclamando. A jovem
Rebeca ainda informou que não considerou a nova experiência como um emprego, pois havia
ficado lá menos de três meses.
Outra experiência de trabalho da jovem, a qual ela citou como um “bico”, foi a de
balconista, na padaria do pai, nos períodos da manhã. Segundo a jovem, o pai começou a
fazer contato com ela e pedir favores. Inicialmente, ela ignorou, mas, depois, aceitou a
proposta, pois não queria fazer com o pai o que ele teria feito com ela, como mencionou. O
pai solicitou a jovem que trabalhasse na padaria, por um mês, até que ele contratasse outra
pessoa para o trabalho. Assim, a reaproximação entre Rebeca e o pai aconteceu, por meio da
vivência do trabalho. A jovem começou a trabalhar com o pai, mas mencionou que ficaria
somente um mês, pois, depois, se iniciariam as aulas. Afirmou que a mãe não aceitou a
255
situação de ela trabalhar com o pai e ficou chateada com a escolha da filha, mas, depois, a
mãe não havia interferido mais. Rebeca ressaltou que se tratava de algo temporário, pois
padaria não é coisa muito boa, não. Nunca pensei na minha vida em sentar
numa cadeira de balcão, para trabalhar; acho que não é um serviço para
mim. Não é desmerecendo quem faça, não, mas é uma coisa, assim, que eu
não me vejo fazendo o resto da vida, sabe? É chato, é algo sem futuro. Não
tem futuro o negócio, ou você está ali, no balcão, ou você está ali, no
balcão, o resto da vida, não tem como você sair dali, sabe? Aí, eu estou lá
“ajudando, por ajudar”.
Minha relação com o meu pai é uma coisa um pouco vaga, pois é muito
tempo de distância. Eu tento conversar mais com ele, mas, toda hora, na
padaria, tenho que ir para a produção fazer as coisas, toda hora, tem que
atender o caixa. A gente conversa, mas, assim, não é a mesma coisa que
seria, se eu tivesse tido a presença dele desde a infância, sabe? Ter
conversado sobre tudo, tudo que aconteceu, sobre tudo que eu já fiz, as
coisas que eu gosto, então, assim, eu acho que ele nem tem noção das coisas
que eu gosto, mesmo. Eu espero que, quando eu pare de trabalhar lá, a
relação continue, eu espero, mas acho que não vai acontecer, mas ainda
tenho esperança.
novamente, vinha à tona, pois era a jovem que precisava “abrir mão” das oportunidades de
trabalho e emprego, para cuidar da filha.
3.3 “Minha vida era só estudar”: construindo caminhos para a inserção no ensino
superior
Desde o ensino médio, Rebeca tinha uma relação de desejo e de interesse pelos
estudos.
137
O Programa de Educação Profissional (PEP) foi criado em 2007 pelo governo do Estado de Minas Gerais e
tem como objetivo facilitar o acesso a cursos de capacitação gratuitos para jovens estudantes ou concluintes
do ensino médio que não se inseriram no ensino superior. São ministrados de acordo com a demanda de mão
de obra da região. Disponível em: pep.educacao.mg.gov.br
258
Minas Gerais, mas os cursos eram ofertados somente no período matutino ou diurno: “aí, eu
pensei, ou eu trabalho e pago um curso, ou eu só estudo e faço curso de graça. Então, optei
por pagar, para não voltar a depender da minha mãe de novo”.
A jovem iniciou o curso de Tecnólogo em Meio Ambiente, no período noturno, com
duração de dois anos. Segundo ela, a escolha pelo curso se relacionava ao desejo de cursar
bacharelado em Ciências Biológicas no ensino superior. Ao contrário dos/as outros/a jovens
entrevistados/as, que realizaram cursos, Rebeca tendia a demonstrar maior articulaçãoentre o
curso escolhido, a área de desejo do ensino superior e a atuação profissional. A opção por
trabalhar e estudar se relacionava a três circunstâncias: às condições econômicas da família,
pois sabia que a mãe não dispunha de meios para ajudá-la com passagens e lanches para os
cursos gratuitos. Ao fato de considerar que a mãe já a havia sustentado por muito tempo. Ao
contexto de não poder contar com o auxílio do pai.
Mesmo sem condições financeiras, o suporteda família foi essencial para que a jovem
pudesse conseguir terminar o curso de Meio Ambiente, reforçando que os suportes
(MARTUCCELLI, 2007) não são somente de ordem econômica. Rebeca morou na casa da
avó, que era perto do local do curso, durante grande parte do processo. A mudança para a casa
da avó foi em virtude do desgaste gerado pelo deslocamento, o qual, muitas vezes, era
negligenciado, pois, morando na casa da mãe, chegava a casa à uma hora da madrugada,
arrumava os materiais e lanche para o trabalho, dormia às 2h e saia às 05h30 para trabalhar.
Quando passou a dormir na casa da avó, chegava às 23h, ou seja, duas horas de diferença,
tempo este que passou a ser essencial para descansar. Importante relembrar que, juntamente
com o curso, Rebeca trabalhava no consultório de Odontologia, com uma rotina de trabalho
exaustiva, como já discutimos. A jovem considerou que só conseguiu manter-se nos dois
lugares, porque queria muito concluir o curso, uma vez que já havia dedicado muito tempo a
ele. A jovem concluiu o curso e ingressou na faculdade, para o fim de cursar bacharelado em
Ciências Biológicas.
Rebeca informou também que, decorridos uns oito meses do nascimento da filha, ela
estava estudando por conta própria, para tentar um concurso público. Tentou na área
administrativa, foi classificada em dois concursos, mas não foi chamada, devido a estar fora
do número de vagas. Informou que não se via sem estudar, mesmo com a rotina pesada de ser
mãe.
3.4 O sonho das federais e a realidade da universidade privada: a “mãe como prova”
O desejo de ingressar no ensino superior fez parte da vida da Rebeca, desde muito
259
cedo. A jovem afirmou que tinha em mente que gostaria de fazer algum curso relacionado ao
meio ambiente, mas não sabia muito bem qual seria a melhor opção. A falta de suporte para
ajudar nas escolhas é algo que perpassa o contexto de todos/as os/as jovens entrevistados/as, o
que não foi diferente com Rebeca. Segundo ela, foi no ensino médio que teve a certeza de
qual curso faria, pois ela sabia o que queria estudar, mas não sabia em qual curso poderia ter
acesso ao que gostaria de vivenciar no campo profissional. Salientou que, no segundo ano,
teve contato com uma professora de Biologia que a ajudou muito na decisão, pois lhe deu
informações sobre vários cursos que poderiam ter relação com o desejo quanto ao trabalho
com o meio ambiente. Ressaltamos o papel da professora como incentivadora, mas
especialmente, como fonte de informação acerca das possibilidades que Rebeca detinha, ou
seja, um suporte que a jovem não possuía, pois, em sua família, somente uma tia tinha
cursado o ensino superior, mas não tinha conhecimentos sobre os cursos da área ambiental. É
importante ponderar que Rebeca tinha com seus/as professores/as uma boa relação,
especialmente porque, segundo ela, cumpria bem seu ofício de aluna (ARROYO, 2000).
O papel da professora foi essencial, mas consideramos que a articulação ensino médio
e projetos de vida dos/as jovens estudantes, especialmente no que tange ao mundo do
trabalho, ainda está aquém das expectativas dos/as jovens e das promessas do arcabouço legal
desse nível de ensino. Assim, concordamos com Corrochano (2014) que explicita que os/as
jovens, ao terminarem o ensino médio, parecem sentir falta do que ela nomeia de “mapa de
orientações”. Ou seja, assim como apontam outros/as autores/as, a escola poderia ser um
espaço de conhecimento e de atitudes acerca dos projetos de vida, os quais, por sua vez, não
se restringem ao mercado de trabalho138. Da mesma forma, Corrochano (2014) ressalta que
“com isso, não quer dizer que a escola deve responder a todas as questões, mas parece
importante considerá-las, o que pode ampliar o significado de uma de suas finalidades –
preparação para o mundo do trabalho” (p. 223) – especialmente num contexto capitalista,
marcado pela lógica de culpabilização individual dos sujeitos.
Após a escolha do curso, a jovem fez o Enem e passou na Universidade de Ouro Preto,
como já pontuamos:
Passei, nem acreditei quando eu vi. Saiu UFOP para Engenharia Ambiental.
Aí, eu falei: “nossa, muito top e ainda tem a ‘vagabundagem’” em Ouro
Preto. UFOP é ótima, é maravilhosa, ainda mais Engenharia Ambiental,
que é um sonho de qualquer pessoa”. Não tinha pensado nesse curso
incialmente, mas iria aprender a fazer cálculos na marra. Falei: “Mãe,
138
Cf. LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011; NONATO; Sara VILLAS, 2011; LEÃO; NONATO, 2011; DAYRELL,
et al., 2015.
260
Minha mãe perguntou “o que que você vai tentar?” Aí falei: “a mesma
coisa”. Você via Rebeca? Você não via Rebeca. Rebeca ficava estudando
todos os dias, ficava até de madrugada. Aí, passei na [Universidade] de
Viçosa, aí, não tinha desculpa, porque a minha tia, caçula da família, ela
mora em Setiba-ES. Aí, como a minha tia morava em Setiba-ES, eu pensei:
“é pertinho, então nós vamos, falei, esse ano vai dar certo, eu vou”. Aí,
fiquei esperando sair o resultado. Aí, quando saiu, eu passei em Ciências
Biológicas e Biologia Marinha. Era um sonho de consumo. Falei: “eu vou
para Biologia Marinha em Viçosa, sabe?” Olhei assim e falei: “é para lá
que eu estou indo”. Aí, falei para a minha mãe. Aí, ela: “han? Você vai para
longe desse jeito? Olha, esse lugar lá mata toda hora”. Aí, eu murchei. Foi
pior do que flor, eu murchei todinha. Falei: “acabou. Eu não tento mais
faculdade nenhuma, não me mato de estudar de novo, porque tudo que eu
estudei foi em vão”. Era para eu ter tido essa continuidade da vida que eu
tive, era para eu estar fazendo outra coisa, era para eu estar formando.
Falei: “a minha tia mora lá, mãe, é perto, eu durmo”. Ela: “não, você vai
morar na casa da sua tia, vai ter despesas”. Aí, foi outro 'não'. Aí, eu não
fui.
A partir das colocações do autor, tendemos a considerar que a mãe, como parte da
família, atuava “como prova” quanto aos processos de escolarização da jovem. Todavia, não
podemos negar que a mãe foi, também, suporte quanto ao incentivo, ouseja, era uma relação
marcada pela ambiguidade. A impossibilidade de cursar o ensino superior, devido à não
autorização da mãe foi muito frustrante para a jovem Rebeca, pois foram
duas faculdades no lixo, sabe? Muito tempo dedicado, muito estudo para
nada. Eu falo “para nada”, porque foi para nada, mesmo. Eu nem pude ir,
nem ver como que é que era. O sonho, ó, “puffff”, furou, morreu. Acabou
tudo. Falei, ah, não estudo mais, não. Estudo agora só na faculdade,
acabou.
Após decidir-se por não estudar mais para ingressar em uma universidade pública,
Rebeca optou por estudar em uma faculdade particular. A jovem afirmou que atualmente
compreende a atitude da mãe, pois diferentes fatores teriam interferido na decisão dela, tais
como: ausência de condições econômicas para manter a filha em outra cidade ou estado; não
existência da contribuição do pai da jovem e o fato de serem Rebeca e ela mulheres. Porém, a
compreensão não estava ligada à aceitação da postura da mãe. Uma expressão da não
aceitação foi que a jovem se inseriu no curso de Ciências Biológicas, a partir do FIES, e
afirmava que era a mãe quem pagava os boletos de juros e iria pagar após a conclusão do
curso: “eu realmente não assumo o compromisso de pagar, porque eu tive duas
oportunidades, e foi esforço, não foi, assim, sorte, foi esforço... Ai foi um suor, mas eu não
pude ir, então, minha mãe que paga”. É importante ressaltar que a jovem também
responsabiliza o pai pela impossibilidade de ir para outra cidade, pois segundo ela, se o pai
fizesse a parte dele talvez a mãe poderia deixá-la ir.
Por ter decidido estudar numa faculdade particular, a jovem ressaltou que todo mundo
a questionava por não ter tentado para a UFMG, mas ela afirmou que o curso na faculdade
particular era mais interessante, como explicitou
Foi bem triste ter que trancar [matrícula na faculdade], foi, assim, o que me
“afundou”. Tentei fazer tudo on-line, mas não tinha suporte de professor
nenhum, não tinha auxílio da instituição. Engravidar é ser esquecida.
Ninguém quer saber. Então, para mim, estava ficando, assim, muito
cansativo. Aí, eu cheguei ao ponto de ficar chorando todos os dias. Não
dava mais para continuar, se eu continuasse, ia “tomar pau” em todas as
matérias e ter que pagar, mesmo assim. Achei melhor “trancar”, mas com o
coração triste, pois já tinha tido tanta frustação com relação à faculdade.
139
Cf. FONSECA; ARAÚJO, 2004; DIAS; AQUINO, 2006; DIAS; TEIXEIRA, 2010.
264
narrativa também evidenciava a discussão sobre a solidão140 que a maternidade pode gerar.
Rebeca contou que, a cada mês de idade completado pela filha, ela ficava feliz e, ao
mesmo tempo, muito triste, pois comparava esse tempo com aquele que perdia na faculdade.
A jovem retomou os estudos no primeiro semestre de 2017, quando a filha tinha em torno de
dois anos.
A vida de Rebeca, segundo o depoimento dela, “só” tinha sentido a partir dos estudos
e do trabalho (remunerado). Parece que estudar era o que direcionava a vida da jovem.
Enfatizamos o “terreno labiríntico” em que a jovem esteve imersa. A sua trajetória de
escolarização, assim como toda sua vida, foi marcada por um cenário de idas e vindas, em que
a jovem precisou refazer seus projetos e estratégias. Assim, apontamos que, embora seja
complexa a retomada dos estudos, especialmente de jovens mães pobres, é necessário
“considerar que as alterações pela maternidade nas carreiras [e vida] femininas podem ser
apenas temporárias” (HEILBORN, et al, 2002, p. 37). A jovem enfatizou a diferença do seu
ritmo com o dos/as novos/as colegas de sala, ressaltando que “as coisas estavam rápidas
demais” para ela. Nesse sentido, Rebeca chamou a atenção para a diferença etária, mas, mais
que a idade, a diferença estava no modo com que cada um vivenciou/vivenciava a juventude
e, no caso de Rebeca, uma vivência marcada pela mudança na rotina e responsabilidades, a
partir da gravidez.
Diante do cenário, a jovem mencionou que retomar os estudos era um desafio, pois,
depois que a filha nasceu, ela perdeu o prazer de estudar, porque é muito cansativo ser mãe e
estudante e, não existia uma iniciativa por parte da instituição, uma preocupação com o fato
de ela ser mãe, pois
140
A solidão que a maternidade tende a trazer não é vivenciada somente por Rebeca, mas apontada por outras
jovens. Como vemos nos vídeos e alguns textos: Solidão materna. RUBIM, Flávia, 06 mai. 2018, disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=J_NDjYzwF08, acesso em: 04 ago. 2018; Quem escuta a mãe?
Precisamos falar sobre a solidão materna, 18 ago. 2017, Redação – Portal Catraquinha, disponível em:
https://catraquinha.catracalivre.com.br/geral/familia/indicacao/solidao-materna/, acesso em 20 ago. 2017;
OLIVER, Diana. Quão solitária pode ser a maternidade no século XXI, 19 jan. 2018, disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/11/actualidad/1515682730_474645.html, acesso em: 05 ago. 2018.
265
depois que você entra para a faculdade, todo mundo é tratado do mesmo
jeito. Ninguém quer saber se eu não entreguei trabalho, porque minha filha
passou mal e dormi no hospital. Você é meio que obrigada a tudo e seu
prazer vai acabando ainda mais. O seu prazer morre ali, ó, o seu professor
fala: “80 páginas para amanhã, tá?” Acabou, você não tem prazer. Tem
obrigação. Antes eu tinha mais prazer. Talvez, volte.
exige “24 horas” de trabalho (GIDDENS, 1991), na qual o tempo livre se torna foco de
julgamento.
Por último, Rebeca considerou que retomar os estudos era o que havia feito a vida dela
ter sentido, mas também era a possibilidade de ter outras oportunidades, pois
casa se afirme como valor” (HEILBORN et al., 2002, p. 42) para algumas mães de camada
populares, Rebeca buscava, a todo momento, a reconstrução de seus projetos de vida, mesmo
com os limites que sua realidade lhe impunha. Apontamos que a trajetória da jovem era
marcada por “terrenos labirínticos”, pois expressava a “complexidade inteligente: por um
lado, o prazer do extravio frente à inextricabilidade; por outro, a expectativa de se sair do
labirinto, com as astúcias da razão (ou do sentido)” (PAIS, 2001, p. 55). Rebeca articulava
essa complexidade inteligente, pois ora sua trajetória foi marcada pelo extravio, ora pela
busca da saída, sendo necessário, portanto, “ir e vir”, já que, na sua condição de jovem mulher
e mãe, o cenário que se aliava a esse labirinto dizia que nem tudo poderia ser escolhido.
Assim, em meio às vivências marcadas por lutas diárias, ela se refazia, se reeelaborava e
começava novamente a busca pela saída.
268
Minha família é bem tranquila. “Todo mundo ajuda todo mundo”, mas
“todo mundo quer cuidar da vida de todo mundo” também. Minhas tias
269
Aparecia no depoimento uma relação que tende a ser comum nas famílias de camadas
populares, que diz respeito ao envolvimento dos diferentes membros da família em todos os
assuntos O jovem ressaltou que as tias se envolviam nas definições sobre os estudos da irmã
mais nova e sobre sua inserção no mercado de trabalho, por exemplo. Tal envolvimento tem
correspondência com as condições objetivas das famílias, pois, às vezes, moram no mesmo
espaço físico, ou mesmo em residências separadas, mas têmos parentes como suporte
(MARTUCCELLI, 2007).
A participação dos parentes “nas questões, tanto as boas quantos as ruins”, como
explicitava Breno, corrobora com as colocações de Maria Heilborn e Cristiane Cabral (2006)
que afirmam que “os vínculos entre membros da unidade familiar, aliadas às condições
materiais de existência, fazem com que a família seja concebida como um sujeito coletivo
para a qual a participação de todos é esperada” (p. 242). Não obstante, o pai de Breno não
participava da unidade familiar. O pouco contato com o pai e com a família paterna se
justificava inicialmente pela distância geográfica.
A culpa é mais dele; até ele morando com a gente, ele era distante. Meu pai
nasceu para ser solteiro. Só que a minha mãe é muito dedicada, ela
conseguiu suprir essa falta do pai, então, ela foi mãe e pai. Minha mãe fazia
aniversário para gente e meu pai estava no bar, ela tinha que chamar ele.
Ele não fazia questão da gente. Ele que tinha, desde pequeno, se aproximar
mais de mim. Ele era meio “gelado”. Eu sou bem tranquilo; a minha irmã
que “puxou ele”, tem pavio curto, aí, ela fala assim: “você quer cobrar
postura de filho e não tem de pai?”. Eu concordo, mas não falo isso. Ele
não foi muito presente de dar, assim, carinho, amor. Ele fala assim: “eu
sempre dei amor a vocês, nunca faltou nada para vocês. Vocês sempre
tiveram seus desenhos para assistir e tudo”. Aí, eu falo: “não, pai, isso é
verdade, mas você podia ser mais presente, conversar mais e tudo”. Se eu
não for atrás dele, ele também não vai atrás de mim. Aí, quando eu não ligo
para ele, minha mãe cobra isso.
Há vários pontos para reflexão sobre a relação entre Breno e o pai. Primeiramente,
podemos pontuar que o distanciamento entre pai e filho não se dava com a separação dos pais,
pois já era uma situação que fazia parte do contexto familiar. Outro ponto diz respeito ao
questionamento do jovem acerca do estado civil do pai, pois, para Breno, ele não cumpria
com seu papel de marido nem de pai. O jovem não aceitava a forma como o pai lidava com a
mãe na relação afetiva, como mencionou, e brigava com ele, em favor da mãe. Assim como
nas cenas de Sérgio e Rebeca, denotamos a “ausência presente” da figura paterna, ou de
270
alguém que cumprisse esse papel na vivência do jovem. Isso porque o pai tinha uma presença,
mas não assumia suas responsabilidades, tampouco a participação requerida e considerada
ideal pelo jovem. É importante pontuar que o papel do pai nas famílias das camadas populares
tem surgido nesta investigação como uma questão que merece um aprofundamento posterior.
Ao contrário da relação com o pai, a relação com a mãe era muito próxima:
A forma com que a mãe lidava com o jovem, especialmente com uma postura de
atenção e preocupação, possibilitava uma relação de proximidade entre os dois, o que é
comum a praticamente todos/as os/as jovens entrevistados/as. A conversa também era algo
mencionado por Breno, o que parecia não se tratar de algo hierárquico, com a mãe impondo
sua opinião por sua autoridade, mas, de fato, dialógico.
Quanto ao trabalho, o jovem havia informado, no ano de 2012, que começou a
trabalhar com 15 anos, como vendedor na loja da tia. Aos 16 anos, começou a trabalhar na
UFMG. Após o desligamento da UFMG, teve diferentes experiências de trabalho, mas
também períodos de desemprego.
Com relação ao processo de escolarização, Breno não havia concluído o ensino médio
e ingressou na Educação de Jovens e Adultos, decorrido um ano de sua saída da UFMG.
Informou que tinha vontade de se inserir no ensino superior, mas antes pensava em fazer um
curso técnico.
Breno começou a trabalhar na UFMG aos 16 anos, segundo ele, para ser independente.
Sua inserção na universidade se deu num órgão vinculado à reitoria. O jovem tinha como
atribuições: entrega de documentos nas diferentes unidades, conferência de malotes recebidos
e organização do arquivo. Ele informou que gostou muito da experiência de trabalho na
UFMG. Ao contrário de Letícia e Caio, pontuou que nunca pensou na possibilidade de ser
contratado, especialmente por considerar que sua postura não atendia às expectativas do local
de trabalho, como abordaremos. Afirmou que era um trabalho que não tinha muita cobrança,
por isso, acabava ficando“relaxado com o horário”:
271
[...] em relação ao trabalho aqui [UFMG], olha, só para você ver, eu tinha
que estar às 8h na UFMG na época. Eu tinha que ter vergonha de falar isso,
mas eu chegava aqui 9h, umas 9h10, mas a minha chefe não falava nada.
Mas, ela chegava aqui às 10h, também, então ela nem via. Mas, só que tinha
um pessoal que falava para ela. Mas, comigo falavam assim: “ô, Breno,
depois que você sair daqui que você vai ver, porque lá é pior, porque aqui,
tipo assim, entre aspas, você está começando, você está aprendendo”. Me
davam conselhos. A pessoa segue, se quiser, e eu não seguia, não. Eu
conversava com o pessoal direito... Aí, eu gostava daqui, porque não tinha
muita cobrança de horários e nem das coisas para fazer. Não tinha horário
para fazer nada. Parece que eu nem tinha chefe. Era bom demais. Eu ficava
“de boa”, fazia as coisas quando estava a fim. Às vezes nem fazia.
tempo do trabalho, tendo em vista o não cumprimento dos horários e regras, tendia a ser a
forma como ele se comportava em casa, imputando à mãe o papel de controle.
O jovem afirmou que era desorganizado, sempre acordava atrasado para a escola e não
fazia as tarefas de casa no tempo estipulado. Após o início do trabalho na UFMG, sua mãe
“achou” que ele iria melhorar, como afirmou, mas ele ficou do mesmo jeito. Segundo ele:
Aqui [UFMG] era um emprego diferente. Era “de boa” demais. Só que, se a
pessoa já for relaxada ‒ e eu confesso que eu era, na verdade eu sou, eu sou
relaxado nesse sentido de acomodar ‒, aí já era. Fica acostumado com tudo
errado. Eu sou relaxado e a pessoa não cobrar ‒ porque aqui eles não
cobram muito, né? Então, principalmente para a gente que é jovem tem que
ter alguma coisa, tipo horário definido, as “atividades certinhas” para fazer
se não, o jovem não faz. Mas, aqui [UFMG]é bom, é o “melhor emprego do
mundo” para o jovem, porque você fica mais tranquilo, você não tem tantas
obrigações, então, você fica mais tranquilo para fazer as coisas e tudo,
então, aqui eles não vão te cobrar.
O depoimento nos possibilita afirmar como o jovem conseguia fazer uma reflexão
sobre o trabalho como uma relação social. De certa maneira, ele retratava o quanto as posturas
individuais ou a ausência destas poderiam repercutir na forma como o trabalho é
desenvolvido. Mesmo demonstrando reflexividade, consideramos que a narrativa é ambígua,
pois, ao mesmo tempo em que ele requeria liberdade, citava a importância de se ter certo
limite. Assim, de um lado, “ter um emprego diferente” dizia respeito à falta de cobrança e à
liberdade que era dada ao jovem. Por outro lado, podemos afirmar que a disciplina, entendida
aqui como um comportamento internalizado, o qual está de acordo com as regras e
regulamentos do trabalho, que tende a ser vista de forma negativa, era algo que fazia parte das
expectativas de Breno e de sua mãe. Ademais, podemos citar que Breno considerava que o
“trabalho para jovem” deveria ter os horários e tarefas definidas, manifestando uma
representação de que jovens não lidariam bem com a liberdade no espaço de trabalho; o que,
por seu turno, reforçava o estereótipo de que “jovem é irresponsável por natureza” e, assim,
quiçá, justificasse a postura que ele mantinha no trabalho.
Ainda com relação ao trabalho na UFMG, chamamos a atenção para a experiência do
Breno quanto ao uso do seu salário:
Eu trabalhava para ter meu dinheiro. Melhor parte do trabalho era receber.
O salário que eu recebia aqui [UFMG] eu gastava todo com roupa, com
futebol, que eu gosto muito, saídas com os amigos, né. Nessa época, os
meninos [amigos] não trabalhavam, não, aí, eu que “bancava tudo”. Eu
gastava muito mais do que eu recebia, pois queria as coisas para chamar
atenção e ficar igual os ‘playba’141. Eu andava ‘só nos panos’142, só com
141
Referência a jovens de camadas médias – playboy.
273
O jovem valorizava aquilo que o trabalho oferecia como retorno, diante da “venda da
força de trabalho”, ou seja, o salário e as possibilidades de uso deste. A dimensão do
consumo143 a partir da experiência do trabalho, estava posta no discurso de Breno. Ter acesso
a bens materiais e a diferentes espaços foi uma experiência possível para o jovem, a partir do
momento em que começou a receber um salário. Todavia, embora a sociedade de consumo
tenda a se colocar como um espaço aberto e democrático, “el consumo coordina y ocupa un
rol importante en la reproducción sistémica, en la integración y la estratificación social”
(Omar MARÍN, 2010, p. 140). Assim, o consumo não é acessível a todos/as, se restringindo
para alguns/algumas, devido à faixa etária, condição econômica, local de moradia e cor/raça,
por exemplo. Desta forma, consumir é participar de um campo de disputa por aquilo que a
sociedade produz e pela maneira de utilizar (Néstor CANCLINI, 2015). Os/As jovens são
citados/as por Márcia Grohmann, Luciana Battistella e Carolina Lutz (2012, p. 914) como
“grandes consumidores/as do futuro”, mas consideramos que estes/as nem sempre vão ocupar
essa posição. O depoimento do jovem Breno nos possibilita pensar as diferentes nuances que
o consumo na juventude apresenta.
A primeira questão se refere à reflexão sobre a identidade a partir do consumo.
Diferentes autores144 exploram a dimensão do consumo como um elemento que faz parte do
processo de construção de identidade, pois
142
Gíria utilizada para dizer que se vestia bem, especialmente em alusão a roupas de marcas.
143
Entendemos por consumo “como um conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação
e os usos dos produtos” (Nestor CANCLINI, 2015, p. 60).
144
Cf. NUNES, 2007; MARÍN, 2010; Lia PAPPÁMIKAIL, 2013; CANCLINI, 2015; PEREIRA, 2016.
274
buscando atender os desejos de consumo do filho. Breno narrou sua experiência quanto ao
consumo:
sabia que estava errado, mas parece que você é rico. Eu não tinha limite e
não tinha ninguém para me frear, nem a minha mãe. Ela jogava o cartão na
minha mão e eu ia para o shopping com os meninos. Ela só avisava para ter
cuidado. O cartão dela e da minha vó tinham um limite altíssimo, se você
quisesse comprar uma moto, tem como [...].
Novamente o jovem demonstrava uma reflexão sobre suas ações passadas, mas o
desejo do consumo e, de certa maneira, a experiência de se ver em outra posição econômica
parecia ser mais forte. Ter um cartão para gastar garantia status perante aos/as amigos/as e
uma busca pelo reconhecimento, via consumo (MARÍN, 2010). Assim, a consciência era
negligenciada em prol do prazer imediato, o que se articulava auma forma de lidar com a
dimensão temporal, tendo o tempo presente como marcador. O jovem confirmou seu
descontrole, mas, ao mesmo tempo, culpabilizou a mãe por não cerceá-lo, o que remetia a
uma representação da mulher como responsável pelo filho e, tão logo, por suas atitudes. Ao
atribuir a responsabilidade à mãe, o jovem outorgava a ela o poder de “(in)validação imediata
do destino ao dinheiro solicitado [uso do cartão], constituindo um meio suplementar de
controle e vigilância” (PAPPÁMIKAIL, 2013, p. 175). Logo, como afirma a autora citada,
seria “dever dos pais refrear esses desejos [gastar mais do que recebe, por exemplo] com
referência àquilo que objetivamente se pode ter” (idem, p. 162). Mas questionamos a
dimensão do “dever”, pois a mãe também parecia ser vítima da lógica imperativa do consumo
e daquilo que socialmente se prescrevia para uma “boa mãe”. As ações, narrativas e,
especialmente, as reflexões de Breno tendiam a evidenciar que, ao mesmo tempo em que ele
buscava limites, tanto no trabalho quanto na família, ele não conseguia lidar com os conselhos
que recebia, o que parecia apontar para dissonâncias entre os conselhos e a visão de mundo do
jovem.
Nesse contexto, o jovem argumentou, ainda, que a UFMG
tinha que ser diferente na parte de orientação sobre o dinheiro. Sobre como
comprar. A UFMG tinha que dar uma estrutura. Com 16 anos, você é
imaturo, você não tem a cabeça, aí, torra o dinheiro. O quê que eu fiz com o
dinheiro? Nada! Nada, nada. “Cabeça ruim” demais. A única coisa que eu
fiz com o salário foi curtir e comprar, mas, se for pensar assim, com “outra
cabeça”, para investir, para eu estudar, para eu fazer outras coisas, a não
ser assim, shopping, ajudar a mãe, outras coisas, eu não fiz nada. Não
guardei nada. Poucos chefes conversam sobre isso, eles só chamam para
conversar, se o jovem estiver aprontando, são mais profissionais. Tinha que
ser além do profissional que é o mais importante. A gente já ia aprendendo
desde cedo. Mas, foi bom gastar [risos].
276
A ponderação é coerente, pois muitos/as jovens têm a UFMG como primeiro espaço
de emprego, ou seja, pela primeira vez, recebem um salário e não sabem como administrar.
Assim, em meio a uma sociedade que estimula o “consumo expressivo orientado para o prazer
em detrimento da ética de poupança que justifica o consumo somente na necessidade”
(PAPPÁMIKAIL, 2013, p. 188), o jovem cobrava ter acesso ao aprendizado sobre como
utilizar o dinheiro. Ao mesmo tempo em que buscava se redimir, atribuindo ao outro, a mãe
ou à UFMG, a culpa pela falta de limite no consumo.
Breno expressava um sentimento de culpa, por não ter feito investimentos mais
concretos e, quiçá, palpáveis, o que dialoga com as ponderações de Canclini (2015), ao propor
reconceituar o consumo, para além da dimensão dos gastos inúteis, como “espaço que serve
para pensar”. O jovem afirmou que, nas outras experiências de trabalho que teve, também não
fez nenhum investimento, pois, só a partir do desemprego, com a falta de dinheiro, passou a
refletir sobre a importância de se utilizar melhor o salário.
Diante do exposto, consideramos que o jovem desenvolveu uma postura de
desengajamento acerca do trabalho na UFMG. Desengajamento entendido aqui como uma
vivência possível acerca do trabalho. Neste sentido, desengajar-se refere-se a uma postura de
recusa, especialmente aos tempos coercitivos do emprego e a determinados tipos de trabalhos,
a qual se materializou na ausência de cumprimento dos horários e regras, desinteresse,
distanciamento das atividades desenvolvidas no trabalho, não construção de relações
interpessoais no âmbito do trabalho e, ao mesmo tempo, na ausência de sentido que extrapole
o emprego como um espaço/tempo somente para se ter um salário. As narrativas de Breno
trouxeram poucos elementos acerca das experiências vividas no fazer cotidiano do trabalho,
das sociabilidades, das angústias, embora não possamos deixar de citar que, em alguns
depoimentos, o jovem mencionou questões que se referiam aos aprendizados e reflexões que
teve na sua vivência laboral.
O desengajamento implica, também, a possibilidade de vivenciar outras
temporalidades na relação com o trabalho. Partimos da ideia, inspirados em Ana Cardoso
(2007), que os tempos são múltiplos. Segundo esta autora,
Significa dizer das multiplicidades de tempos, tais como o tempo da família, tempo do
trabalho, tempo de lazer, tempo de consumo, sendo que um mesmo tempo possa ser
vivenciado de maneiras diferentes. Assim, se para alguns/algumas o “o tempo de trabalho
ocupa de modo tão efetivo o lugar central a ponto de ocultar a possibilidade de se perceber
outras temporalidades” (idem, p. 27), para outros/as, como Breno, esse tempo imposto pode
ser questionado, buscando-se vivenciar a subjetividade, mas sem o controle temporal do
mercado de trabalho. O posicionamento do jovem reforçava que o tempo é, antes de tudo,
uma experiência subjetiva, antes mesmo de se constituir uma medida de duração, ou um
objeto de reflexão (idem, 2007). Desta maneira, cada sujeito pode vivenciar o tempo à sua
maneira, sofrendo as possíveis consequências de tal postura. Assim, apontamos que a maneira
do jovem lidar com o tempo se associava a um tempo presente, com arco temporal mais curto
(LECCARDI, 2005).
A experiência de trabalho do jovem na UFMG trouxe repercussões para suas vivências
laborais em outros espaços de trabalho. Como afirmam Heilborn e Cabral (2006, p. 231), o
primeiro trabalho é uma das “sucessivas experiências de primeira vez, que ‘modulam [não
determinam] a socialização’” e atuam como “um conjunto de pequenos rituais de passagem
em torno de determinados marcos valorativos bastante fortes, ainda presentes na sociedade
brasileira” (TARTUCE, 2010, p. 160). Nas discussões a seguir, refletiremos como a maneira
do jovem de lidar com o tempo, bem como a experiência de trabalho anterior, tendia a
repercutir nas suas experiências de trabalho, desemprego e escolarização.
O jovem Breno entrou na UFMG em dezembro de 2011 e saiu em julho de 2013. Após
um mês do desligamento, Breno afirmou que começou a sentir a falta do trabalho, pois já
tinha se acostumado com a rotina (com a sua maneira de lidar com a “rotina”) e ficou
preocupado com o fato de não ter dinheiro para comprar roupas e sair, quando o seguro
desemprego acabasse. Como vimos até aqui, os/as jovens atribuem diferentes sentidos para o
trabalho. No caso de Breno, tendemos a considerar, como salientamos, que o sentido central
se relacionava à dimensão da renda.
Após a saída, o jovem tentou se inserir no mercado de trabalho, mas ficou
desempregado durante um ano, até iniciar novo trabalho.
O jovem afirmou que participou de vários processos seletivos e que “todo dia tinha
entrevista de emprego e eu me dou bem, pois fui em várias. Nossa, eu já perdi as contas de
entrevista que eu fui, que minha mãe mandava eu ir”. A avaliação que fazia da sua atuação
278
nas entrevistas de emprego era ambivalente, pois ir bem nas entrevistas significaria a
possibilidade de ser contratado, o que não era o caso. É importante frisar que a mãe de Breno
tinha participação ativa na busca por trabalho para ele, como narrado:
Eu não tenho, assim, problema de ficar bem no lugar, mas tinha um menino
que era “folgado”, ele “ralava” [trabalhava], assim, comigo, só que ele
começava a “encher o saco”, porque eu era “meio avacalhado”, mas só
que eu “ficava na minha”, eu não caía em briga dele. Porque ele ficava no
meu pé, às vezes, me xingava, se eu fizesse um “trem errado”. Ele falava
assim: “nó véi, você é ‘ruim demais de serviço’ e ainda só chega atrasado”.
Isso me atrapalhou um pouco lá, mas eu precisava de dormir e sair também,
né?
Tendemos a considerar que “ser avacalhado” tinha relação também com outras
formas de viver as temporalidades, pois, ao contrário dos/as colegas que pareciam estar de
acordo com o “tempo do trabalho” e tudo o que essa temporalidade carrega, Breno não se
submetia. Concordamos com Bajoit e Franssen (1997, p. 86) que explicitam que uma “relação
dessacralizada com o trabalho se [traduz] também em outra relação com o tempo”. Significa
dizer que o jovem tendia a não aceitar a relação dominante na qual o “tempo social é
subordinado ao tempo econômico” (tempo do trabalho) (Claudio DEDECCA, 2004, p. 08). Se
acreditamos, com Cardoso, (2007 p. 35) que “é justamente a existência de tempos
280
Meu chefe falou assim: “ô, Breno, a partir desse momento a gente não conta
mais com você na empresa. Passa no RH e, depois, pode ir embora”. Eu
assustei. Foi ruim, não faziam questão de mim. Na UFMG teve festinha e
tudo. Aí, ele não falou o motivo, mas eu acredito que era corte de
funcionários. Mas, eles mandaram outras pessoas embora também. Eu estou
desviando o foco. Eu saí de lá por causa que eu chegava atrasado. Se eu
fosse mais dedicado, se eu chegasse cedo, eu podia estar lá até hoje.
Na narrativa do jovem, foi possível inferir que ele tinha expectativa de ter a mesma
postura desengajada que teve na UFMG e se manter no trabalho. Mesmo sabendo que tinha
uma postura considerada inadequada, esperava “festinha” de despedida. A demissão fez com
que ele questionasse sobre o seu lugar e sua importância para a empresa, tendo como base a
experiência na UFMG. Inicialmente não queria expor o motivo da demissão, mas acabou
reconhecendo que o seu perfil de trabalhador não estava de acordo com a expectativa da
empresa. O jovem tinha consciência de que sua demissão foi devido ao não cumprimento dos
horários e normas. Diante desse contexto, podemos citar que a experiências com
temporalidades diferentes é complexa, pois, para o empregador, o tempo “ao ser vendido por
certo período ao empregador, este passa a ter o direito de utilizá-lo da forma que lhe convier,
guardados, é claro, os limites da legislação, do poder dos trabalhadores” (CARDOSO, 2007,
281
p. 32), mas o jovem Breno requeria ter direito à maneira que utilizava seu tempo. E pagava o
preço por tal postura.
Após a saída da distribuidora, Breno ficou sete meses desempregado e novamente, por
intermédio da mãe, conseguiu outra inserção laboral:
escala, mas recebia 50 reais por isso e poderia folgar posteriormente. Sobre seu processo de
trabalho, Breno citou:
modificou o cenário, o que estava relacionado ao fato de o jovem não ter uma relação boa
com ele e não ouvir muito seus conselhos, como disse. Interessante reforçar que o Breno se
mostrava muito reflexivo e o tempo todo expressava consciência de suas ações, mas não as
mudava, o que pode reforçar a dimensão da recusatanto a uma organização temporal do
mercado quanto aos tipos de trabalho a que tinha acesso.
Face ao explicitado, corroboramos com Antonia Colbari (1995) que afirma que
Logo, mesmo diante dos conselhos no espaço de trabalho da UFMG, das conversas
com as chefias na distribuidora de medicamentos e da insistência de mudança por parte da
mãe e do pai de Breno, a adesão ou não ao emprego cabia especialmente ao jovem. É
importante trazer essa dimensão, não para culpabilizar o jovem acerca do seu
desengajamento, mas para pontuar que o desengajamento é uma saída possível, sim, para os
indivíduos, embora com consideráveis consequências, tal como a demissão, que desejam,
assim como Breno, “de ter tempo para própria vida, de que o tempo todo não seja consagrado
à recuperação da ‘força de trabalho’” (BAJOIT; FRANSSEN, 1997, p. 87).
O jovem afirmou que não estava trabalhando “fichado”, mas buscava fazer “bicos”
para ganhar algum dinheiro. A situação de trabalho de Breno corrobora com as explicitações
de Guimarães (2002; 2008) que afirma que a saída da condição de desemprego nem sempre se
dá com uma ocupação estável, apresentando uma tendência de fragilização dos vínculos. O
trabalho informal contribui consideravelmente para a fragilização, pois os/as trabalhadores/as
não têm proteção da legislação trabalhista, tendendo a relações precárias de trabalho.
Com relação à informalidade, Carlos Corseuil e Maíra Franca (2015) apontam que, de
2006 e 2013, a taxa de informalidade caiu de 52,1% para 38,6%, respectivamente. Não
obstante, a partir de 2014, o cenário que ainda apresentava lacunas começou a retroceder,
como já abordamos, e a informalidade passou a ser uma das formas de inserção,
especialmente dos/as jovens, no mercado de trabalho, pois eles/as tendem a estar mais
propensos/as a aceitar trabalhos que não aceitariam (GUIMRÃES, 2009; REIS, 2017).
Breno se insere no contexto de informalidade e sua primeira experiência com “bicos”
foi de freelancer, no estádio de futebol, na qual fazia distribuição interna nos bares. “A gente
284
distribuía refrigerante, assim, salgados, tinha uma sala onde que tinha o depósito de
refrigerante e salgados, aí, a gente pegava no carrinho e distribuía nos bares todos, era isso
o serviço, ok”. O jovem fez esse trabalho em alguns dias de jogos, mas, depois, não foi mais
chamado. Breno afirmou que ganhava R$ 60,00 por dia, mas pagavam a cada 15 dias.
Informou que, ao receber, foi com um amigo para o Rio de Janeiro e “torrou” o dinheiro
todo. Mais uma vez, a dimensão do consumo se destacava na vida de Breno, agora, porém,
articulada ao tempo livre para gastar.
A partir da experiência de trabalho no estádio, ele conheceu um senhor que precisava
de pessoas para ajudar no carregamento de gesso. Foi o segundo “bico” do jovem. No
trabalho com gesso,
Minha tia ia arrumar um emprego para mim, de servente, pois ela conhecia
o pedreiro. Eu fiquei meio assim... “Ah, não, tia, ‘sai fora’, eu não quero
trabalhar de pedreiro, não”. Ter que acordar cedo demais. Todo mundo
vendo. Aí, eu não fui, não, mas não é desfazendo, não. Eu não quero isso
para mim.
agiria da mesma forma, o que ratifica que o não cumprimento das regras tinha relação com a
falta de sentido do trabalho.
Como vimos, Breno teve duas experiências de emprego, após o seu desligamento da
UFMG. Depois de ficar um ano sem trabalho, foi contratado por uma distribuidora de
medicamentos, da qual foi demitido. Na sequência, ficou sete meses desempregado, até
começar no supermercado, tendo sido demitido novamente O jovem era o único entrevistado
que estava na situação de desemprego. Cabe citar que ele mesmo considerava estar
desempregado, pois não reconhecia as atividades de “bicos” que desenvolvia como um
emprego. Embora cientes de que as categorias e as estatísticas não dão conta do fenômeno do
desemprego (PAIS, 2001), como já sinalizamos, consideramos que o jovem vivenciou tanto o
“desemprego oculto pelo trabalho precário” quanto o “desemprego oculto pelo desalento”
(DIEESE, 2001).
Como abordamos anteriormente, com a crise econômica, o desemprego tem
aumentado significativamente e os/as jovens são os mais afetados com as instabilidades do
mercado de trabalho145. Segundo os dados do estudo sobre Tendências Globais de Emprego
para Juventude 2017, divulgado pela OIT, o Brasil atingiu a maior taxa de desemprego juvenil
em 17 anos, chegando aos 30% de pessoas de 15 a 24 anos. Interessante apontar que a faixa
etária não contemplava jovens de até 29 anos, faixa etária estabelecida para juventude no
Brasil, o que aumentaria ainda o percentual de desempregados. Com exceção de Caio,
todos/as os/as interlocutores/as da pesquisa tiveram em situação de desemprego, mas Breno,
além de ficar mais tempo desempregado, vivenciava a experiência de maneira singular.
Como abordamos no item anterior, o jovem foi demitido do emprego e passou a
desenvolver “bicos”, se inserindo na condição de desemprego oculto pelo trabalho precário,
pois tendia a aceitar trabalhos informais com baixos salários e desprotegidos. O jovem, há
sete meses, não exercia função remunerada. Devido ao contexto de desistência da mãe em
“ser agência de emprego”, como ele citou, bem como o desengajamento do jovem, ele não
procurava trabalho, o que nos levou a inseri-lo também no desemprego oculto pelo desalento.
Informou que a situação de desemprego “vinha atrapalhando muito”, pois ele não podia
ajudar em casa, não tinha condições de sair com a namorada e não podia acompanhar o time
de futebol para o qual torcia. Ressaltou ainda:
[...] o mais importante é você ter um dinheiro no mês, porque essa coisa de
acordar cedo, ter que ir todo dia, eu não sinto falta, não. Tenho dificuldade
com esse “trem”. Melhor me dar um serviço e poder ir embora quando
145
Cf. GUIMARÃES, 2002; CORROCHANO, 2008; Marco CADONÁ; César GÓES, 2013; LEÃO;
NONATO, 2014; SANTOS; GIMENEZ, 2015; OIT/IPEA, 2015.
288
acabar.
A partir das considerações de Breno, é possível dizer que a ausência de renda era o
elemento-chave para ele quanto ao desemprego. Ao contrário dos/as outros/as jovens que
experimentaram a situação de desempregados/as e apontavam a falta que sentiam da rotina,
Breno ressaltou que não sentia falta, pois não sabia lidar com ela. A sua postura diferenciada
denotava que o jovem elaborasse outra maneira de experimentar o tempo, como já citamos,
pois ele tendia a requerer uma dinâmica de trabalho que não tivesse horários fixos e controle.
Assim, a busca por um trabalho protegido não era o centro das atenções do jovem, como visto
por Corrochano (2008), com alguns/algumas jovens de sua pesquisa.
O jovem informou que ficar desempregado era ainda pior quando se tinha a
consciência de que ele foi o responsável pela situação de desemprego. Além disso, narrou que
na sua família eles/as já não ficavam preocupados/as com ele, pois,
quando eu falei com minha mãe que eu fui despedido do supermercado, ela
falou assim: “tá vendo, você ‘caçou’”. Ninguém lá de casa “deu ideia”. Eu
fiquei reclamando que fui despedido, que eu ia ficar desempregado, eu
cheguei a sonhar, isso é verdade, cheguei a sonhar mais de sete vezes que eu
estava lá repondo [mercadoria]. Eu falava isso com minha mãe e ela falava:
“ah, Breno, quero saber, não, você no seu terceiro emprego foi despedido
por causa de horário?” Eu falava: “não, mãe, não foi por causa disso”. E
ela falava: “Breno, você foi despedido por causa de horário, sim, não quero
saber do seu sonho, não. Agora vai ficar à toa em casa. Não quero saber de
você me pedindo um real”.
ele não fala assim: “ô, Breno, você está desempregado, você quer um
dinheiro para você olhar emprego, o que você está precisando?”. Ele não
faz isso. Minha mãe fala: “ele conhece muita gente e não arruma emprego
para você, ele pode, sim, conversar com outras pessoas”. Meu pai é assim,
se ele ficar desempregado, no outro dia, ele arruma emprego. Meu pai é
289
difícil por causa disso, ele sabe que estou desempregado e não manda um
dinheiro pra você ir pagar passagem pra olhar um emprego. Ele fala assim:
“arrumar para quê? Você não quer saber de nada”. Ele e minha mãe falam
assim: “ih, Breno ó, se você continuar assim, você vai ficar com uns 40
anos, vai estar trabalhando de ‘oreia seca’ no supermercado, de repositor,
de faxineiro e vivendo assim para sempre”.
Embora a mãe do jovem ainda faça crítica à postura do pai, ela tinha a dimensão do
desengajamento do filho. Tanto o pai quanto a mãe afirmavam que o jovem não iria mudar de
postura e teria poucas possibilidades de trabalho. A expressão “oreia seca”, que apareceu em
narrativas do jovem, parecia ser reiterada pelos pais, numa clara associação com trabalhos
precários e de baixo status. Sublinhamos que, devido à culpabilização do jovem, por parte da
família, o “circuito doméstico” (GUIMARÃES, 2009), que é um importante suporte para a
inserção no mercado de trabalho, tendia a desaparecer, pois os pais e os parentes já não
buscavam conseguir trabalho para Breno. Cabe lembrar que a situação de desemprego de
Breno não podia ser lida apenas a partir da culpabilização do jovem, pois diferentes nuances
compõem a complexidade do desemprego, como já apontamos.
Outra questão vivenciada por Breno, com a experiência do desemprego, segundo ele,
foi o afastamento dos/as amigos/as. O jovem afirmou que
Eu tenho amigos, mas tenho pouco contato. Tenho eles no Face [Facebook],
WhatsApp e tudo, mas de ir na casa deles e eles irem na minha, jogar vídeo-
game, jogar bola igual era, não. Antes, a gente ficava junto, aí, depois,
acabou isso. Depois que não tinha mais como sair e pagar as coisas, eles
sumiram. Aí, hoje em dia, os meus amigos, assim, mesmo, é Deus, minha
família, a minha mãe e a minha namorada. Mas, de resto, eu não tenho
amigos, não.
Avaliamos como plausível o apontamento do autor, pois, ao se colocar como “um bem
de consumo”, o jovem Breno tendia a justificar o afastamento dos/as amigos/as a partir do
desemprego, sem levar em conta que tal afastamento não poderia ser interpretado somente
pela falta de dinheiro, além disso, ele tinha um perfil mais tímido, o que poderia minimizar as
290
possibilidades de se fazer amigos/as. Essa internalização fazia com que o próprio jovem se
afastasse das amizades da infância, pois segundo ele, antes, buscava sempre ir ao antigo bairro
em que morava para visitar os/as amigos/as, mas, desde que ficou desempregado, não
retornou ao local.
Quanto ao lazer, o jovem informou que saía pouco, pois não estava trabalhando e a
mãe raramente dava dinheiro para ele sair. Ele afirmou que suas raras saídas eram para ir ao
campo de futebol, pois era “torcedor fanático” e não poder ir ao jogo estava o deixando
muito mal. De acordo com Breno, sua mãe afirmava que ele tinha que sair para procurar
emprego e estudar, reforçando as colocações da Pappámikail (2013) que, na reflexão sobre o
uso do dinheiro, na visão dos pais, “o dinheiro pode ser gastolivremente, mas não pode ser
mal gasto, sendo mal gasto remete para o universo do imaterial, do lazer e do supérfluo, ao
passo que o bem gasto se reveste do caráter de investimento na carreira escolar e laboral [...]”
(p. 160). Corrobora também com Alexandre Pereira (2013) que, ao investigar os
“rolezinhos”146 nos centros comerciais de São Paulo, ressalta que havia uma condenação ao
evento, pois os/as jovens deveriam trabalhar ou estudar, ao invés de estarem no shopping,
evidenciando a “visão de que os/as jovens não teriam direito de encontrar e desfrutar do ócio”
(p. 555).
Ficava evidente como o desemprego afetava as relações de Breno com os/as amigos/as
e suas possibilidades de lazer. Tal contexto vinha reforçar “o quanto o desemprego afeta o
processo de filiação social, pois [os] jovens se afastam dos processos coletivos, demonstrando
um empobrecimento das relações fora do âmbito familiar” (Romilda GUILLAND; Janine
MONTEIRO, 2010, p. 152), além de impossibilitar o próprio ato de circular pela cidade
(TARTUCE, 2010). Estar desempregado era um constrangimento para ele, pois o desemprego
trazia várias questões, tais como: um julgamento do desemprego, como se fosse uma escolha
individual; a valorização social da figura do trabalhador, que se contrapõe a figura do
“vagabundo”; também a ética do trabalho que reforça que a dignidade é alcançada pelo
trabalho. O constrangimento se dava, pois, embora o jovem não se incomodasse com o
estatuto de trabalhador, ele não queria receber rótulos.
Atrelado a essas questões consideramos que o constrangimento também poderia estar
presente para Breno, pois o desemprego afetava suas condições de consumo, sentido central
146
O fenômeno dos “rolezinhos” foi a ocupação de shopping centers em várias grandes cidades brasileiras por
adolescentes e jovens, em sua maioria, moradores de periferia. Eles articulavam esses encontros por meio de
redes sociais com propósitos diversos de diversão, deboche e/ou protesto, chegando a reunir 3000 jovens,
sendo duramente reprimidos (NONATO; DAYRELL, 2018, p. 108). Cf. Ivan FARIA; Moises GERALDO;
Warley SANTOS, 2014; FERREZ, 2014a, 2014b.
291
do trabalho para Breno. Existia uma valorização da estética e do uso de roupa de marca,
devido às imposições da sociedade de consumo, assim, concordamos com Nunes (2007) que
não se tratava de fazer parte do mercado de trabalho com todas as nuances de um espaço
laboral, mas especialmente de fazer parte do mercado de consumo. “Ficar desempregado não
é tão grave como ficar sem consumir” (NUNES, 2007, p. 668).
Mesmo assim, a vivência do desemprego, por parte de Breno, parece ter sido menos
dolorosa que a experiência dos/as outros/as jovens. Todavia, não significa que ele não fosse
afetado, como mencionou:
Se você me perguntar: “ô, Breno, como você está?”, hoje em dia, eu estou
aí, eu estou, assim, sem pensar no futuro, eu estou “tipo assim”, à margem
de sorte mesmo, porque eu não tenho um real no bolso, realmente eu não
tenho um real no bolso para fazer nada. Se eu preciso de fazer alguma
coisa, eu peço à minha mãe, igual um cartão de ônibus, para eu pagar uma
passagem de ida e volta para ir buscar emprego. Mas, ela só dá dinheiro
para essas coisas, também. Aí, eu com a namorada, eu já saí muito com ela,
mas hoje em dia, eu não estou saindo mais com ela e ela entende. Hoje em
dia, se eu quiser, se ela quiser tomar um sorvete, eu não posso ir com ela,
porque eu estou desempregado e eu não tenho dinheiro. Igual, eu cortei o
cabelo outro dia, a minha avó tinha 15 reais para eu ir cortar o cabelo, ela
me deu. Aí, é isso aí. O meu pai, ele nunca foi de me ajudar em nada. Não
posso comprar nada. Igual, já comprei uma camisa de 300 reais, mas, hoje
em dia, tem que usar umas roupinhas mais humildes.
entrevistados/as por Jardim (2009). Ademais, como salienta Corrochano (2008), a recusa por
determinados trabalhos parece não poder [continuar] fazer parte da vida do jovem e o
“reconhecimento de que [os/as jovens] fariam qualquer trabalho sinaliza de modo muito forte
os limites de suas capacidades de escolha” (p. 239). Assim, como alude Heilborn (2002, p.
29), “o estreito horizonte de oportunidades restringe a possibilidade de planejamentos futuros
e de previsões a médio ou longo prazo, resultando numa espécie de presentificação da vida”, e
o projeto de vida tende a dar lugar aos sonhos. É o que parece nos dizer abaixo:
Eu sei que ser jogador não tem como. A família que tem que incentivar o
menino e a pessoa tem que ter uma noção, também, um domínio, mas se
você coloca na escolinha de futebol, desde pequenininho, ela vai
aprimorando. Então, assim, eu nunca tive esse contato com bola, acredito
que, se tivesse desde pequeno, eu poderia ter conseguido, mas não sou
frustrado com isso, não, isso daí é da vida mesmo. Umas pessoas têm
oportunidade e outras, não, mas o pior é que eu nem sabia como fazer para
chegar nesses treinos e tal... Mas “é de boa”, mesmo. A gente sonha outras
coisas e tá bom. Estamos aí para sonhar “outras paradas”, mesmo. Ruim é
ficar mudando toda hora de sonho, mas é isso aí... Comentarista eu posso
ser ainda. Entendo bem de futebol. Quem sabe, né?
como tempo de reflexão” (CORROCHANO, 2008, p. 40) para Breno, pois conseguia pensar
sobre suas ações e elaborava o sentido para o seu desengajamento quanto às experiências de
emprego.
Por fim, apontamos que a experiência de desemprego e também da falta de trabalho de
Breno era vivenciada por ele de maneira apática, ou seja, o jovem não estava satisfeito com a
falta de dinheiro, com a impossibilidade de sair e de pensar no futuro, mesmo assim, não
buscava trabalho. Porém, a apatia não se referia à falta de ação, mas uma ação consciente, de
indiferença, que caracterizava o desemprego oculto pelo desalento, acerca do mundo do
trabalho, ou seja, o jovem se desengajava, em recusa ao que estava posto como opção e
caminho para ele. A experiência de desemprego de Breno contribuiu para ratificar “a
multiplicidade dos modos de viver e dos modos de significar a ausência de trabalho”
(CORROCHANO, 2008, p. 311).
[...] eu repeti de série por quatro vezes. Uma na sexta, uma na oitava e duas
no primeiro. Aí, a minha mãe falava assim: “ô, Breno, você pode ter 30
anos que você nunca vai sair da escola, eu nunca vou deixar você parar de
estudar sem terminar o colégio. Você pode repetir mais umas 10 vezes que
você não vai sair da escola”. Eu repeti uma série trabalhando aqui, na
UFMG, mas só que eu não contei para ninguém, não, eu acho que ninguém
ficou sabendo. Aí, foi na oitava série, mas isso aí não é desculpa que eu
trabalhava aqui, que eu repeti, não, porque dava muito bem para levar os
dois juntos, o trabalho e o estudo. Foi assim, falta de vergonha minha,
mesmo. O pessoal podia pensar: “você é burro demais”, mas não era. É
porque eu não fazia os trabalhos, não fazia nada, mas era incrível, nas
provas eu chegava, eu era só 7 para cima, por causa que eu não gostava de
fazer os trabalhos e atividades, mas eu prestava atenção nas aulas, então, eu
tenho, assim, uma certa facilidade de aprender. Repeti o primeiro ano mais
duas vezes. Aí, apareceu a oportunidade de fazer EJA e foi a minha mãe que
foi atrás, assim, para mim. A minha mãe é um anjo na minha vida.
Breno havia informado que trabalhar “atrapalhava” seus estudos, pois ficava muito cansado.
Mas, desta vez, informou que a questão era que ele
Embora sob o olhar de Breno o trabalho não fosse o motivo da reprovação, é possível
considerar que o cansaço fosse um fator que contribuísse para isso. A reprovação foi ocultada
pelo jovem, o que pode estar relacionado a uma estratégia de não ser cobrado pela CVB
(ademais, a reprovação poderia causar afastamento do trabalho) e pela própria mãe.
Interessante apontar que a postura de Breno no processo de escolarização também apontava
para a dimensão do desengajamento. Tendemos a considerar que, mesmo a escola sendo
caracterizada por um tempo e espaço específico (THIN, 2006) em que se ensina a respeitar e
cumprir horários (Mariano ENGUITA, 1989), dentre outros objetivos, a interiorização da
disciplina, hierarquias e preparação para o mercado (ENGUITA, 1989; WICKERT, 2006),
para Breno, essa instituição não cumpria essa função. Havia um círculo de desengajamento,
pois o trabalho parecia não contribuir para que Breno repensasse seu ofício de aluno, nem a
escola contribuía para que o jovem se engajasse. Tendemos a considerar que ambas as
instituições possuem lógicas socializadoras pautadas nas regras temporais e no controle dos
corpos e, no caso da escola especialmente, há “determinação de adiar para um tempo
vindouro a satisfação possível que o tempo presente pode garantir, em vista dos benefícios
que esse adiamento torna possíveis” (LECCARDI, 2005, p. 35), ou seja, “adiamento das
recompensas”, o que destoava da perspectiva do presenteísmo de Breno, contribuindo
significativamente para o desengajamento do jovem. Como explicita Pedro Abrantes (2003), a
recusa à escola é uma arte de sobrevivência, uma maneira de adaptação que pode se constituir
também por uma “adesão distanciada”, no caso do jovem em questão, o desengajamento.
Diante da reprovação e do desinteresse (causado por diferentes motivos, como já
abordamos), o jovem abandonou a escola regular e ficou um ano sem estudar e, somente a
partir do suporte da mãe, retomou os estudos. Segundo Breno, a mãe o obrigava a estudar,
pois, para se inserir em alguns trabalhos, precisava ter a certificação do ensino médio. Assim,
295
se matriculou na Educação de Jovens e Adultos (EJA)147 aos 21 anos e considerou que foi
uma boa oportunidade.
Eu fui lá para o grupão, na rua de baixo, aí, eu fui e fiz esse EJA aí. Salvou.
P. Salvou? Uaiiii... Eu fiz três séries em um ano e meio, comecei no começo
de 2014, formei no meio de 2015, em julho, fiz o primeiro e o segundo ano
em um ano, mais seis meses, eu fiz o terceiro ano e eu formei. Bem melhor.
“Rapidão”, acabou esse “trem”, aí, minha mãe parou de falar na minha
cabeça.
O término da educação básica para Breno era uma obrigação a ser cumprida. Cursar a
EJA foi para ele foi algo que “salvou”, pois possibilitou a conclusão dessa etapa da carreira
estudantil em um período reduzido, ou seja, um período menor que 3 anos. Consideramos que
a dificuldade que o jovem tinha em gerir as rotinas e regras também pode ter contribuído para
sua trajetória de reprovações e evasão do ensino médio regular. Ademais, “as relações dos
jovens com a escola são complexas, pois vão além de aprender e ser disciplinado” (LEÃO;
Jorddana ALMEIDA; NONATO, 2014). Existe um distanciamento entre a cultura escolar e as
experiências sociais vivenciadas pelos/as jovens em diferentes espaços e tempos (DAYRELL,
2007), o que tende a contribuir para que o/a jovem, visto/a, não raras vezes, somente como
aluno/a, abandone a escola. A dimensão do tempo reaparecia na fala de Breno, por meio da
expressão “rapidão”, o que corroborava com o significado do tempo presente para o jovem,
no máximo, um presente um pouco mais ampliado.
Após a conclusão do ensino médio, o jovem afirmou que não conseguiu participar de
nenhum outro processo educativo formal. Breno salientou que sua mãe sempre participou do
seu processo de escolarização, que conferia se ele fazia as atividades, mas que, no ensino
médio, ela foi se distanciando desse papel. O distanciamento poderia estar relacionado tanto à
diferença de nível de escolarização do jovem e da mãe, mas também a uma tentativa de
contribuir para a construção de autonomia por parte de Breno no que tangia aos estudos. Ele
salientou que a mãe e a namorada o incentivam a fazer faculdade, pois a titulação em nível
superior facilitaria na busca por empregos. Ele afirmou que sempre falava com a mãe que
ensino superior não era garantia de nada, não era certeza de ter um trabalho, o que corrobora
com as reflexões que realizamos de que a formação não seja a única credencial importante
147
É importante ressaltar, embora não seja o nosso foco, que tem acontecido um processo de “juvenilização da
EJA” (SILVA, 2009; CARRANO, 2007), ou seja, historicamente, o público da EJA era composto de
trabalhadores/as mais velhos/as [em idade] que tiveram poucas oportunidades de inserção nos estudos e de
contato com a escola. Na atualidade, tem aumentado o número de jovens excluídos/as do ensino regular por
diferentes motivos, mas que retornam à escola em busca de conclusão da educação básica e de melhores
condições de trabalho (CORROCHANO, 2008; JARDIM, 2009), especialmente, pois para eles/as a escola
ainda “representa uma possibilidade de aprendizado que os leve ao mercado de trabalho e os inclua na
sociedade” (Claúdia COSTA; Nayara ARAÚJO; Miriam ALVES, 2016, p. 32).
296
para o mercado de trabalho O jovem mencionou ainda que, antes da faculdade, faria um curso
técnico:
ser exclusivo só para os estudos. Hoje eu não tenho como ser só exclusivo,
porque a minha mãe não tem como bancar os livros meus, o estudo, a
passagem. Então, pensar na faculdade não tem como, porque eu não ia ter
como “bancar” essa faculdade, porque eu preciso ajudar em casa para
começar a faculdade, então aí, eu vou, assim, pensar em um “trem” mais
imediato, aí, depois que eu tiver, eu tenho 21 anos, a partir que eu tiver uns
26, 27, aí, eu vou fazer um ”bocado” de faculdade. Tem pessoa que começa
a faculdade com 17 anos e com minha idade está formada. Mas, aí, nunca é
tarde também, mas só que eu não vou focar só em empreguinho, eu já com
uns 23 eu já vou ter uns cursos, aí, eu já vou começar já a crescer e posso
parar de trabalhar, e também fazer um ”bocado” de concurso público, né,
quem sabe também...
rejeitava o trabalho, mas o trabalho a que tinha acesso. Nesse contexto, consideramos que a
sociedade, em grande parte, tem produzido jovens “feitos pela escola e pelo trabalho”
(SPOSITO, 2005; DAYRELL, 2007) que se submetem aos tempos do trabalho e da escola,
especialmente no caso de jovens das camadas populares, o que, por sua vez, parecia ser
questionado por Breno, ao querer vivenciar outras formas de organização do tempo e do
espaço.
Ante o exposto, a experiência de desemprego de Breno, embora vista de maneira ruim
pelo jovem, não era colocada como um “tempo de vazio”, ou de inutilidade, como expressado
por outros/as jovens da presente pesquisa. Para ele, parece que a centralidade não estava na
sua identidade de trabalhador, mas, sim, na possibilidade de viver o presente tendo a
dimensão da renda como foco. Na relação com a escolarização, ficou evidente que o jovem
“não estava naturalmente disposto a fazer o papel de aluno” (DUBET, 1997, p. 223).
Ademais, existia uma recusa aos tempos da instituição, pois o jovem não aceitava as
promessas da escola (em longo prazo), assim, a EJA, por ser “rapidão”, fez mais sentido para
ele.
Por último, ressaltamos que o desengajamento era basilar em seu percurso de
individuação, pois expressava o modo do jovem (re)existir e de responder singularmente aos
desafios familiares, no trabalho e nos estudos, especialmente marcados por tempos
controlados e por regras. O jovem se recusava a se submeter a um ao tempo de trabalho e de
estudos que consumisse grande parte do tempo da vida. Cabe citar ainda que era um
desengajamento reflexivo e marcado por ambiguidades.
299
Guimarães Rosa
A cena do jovem Weliton nos possibilita(va) refletir sobre como o jovem “era
‘rasgado’”, no sentido de ser rejeitado e inferiorizado, em diferentes espaços de socialização e
buscava “remendar-se” reelaborando seus percurssos de individuação em meio aos desafios
familiares, laborais e escolares. A experiência de trabalho na UFMG era marcada pela relação
com a chefia que atuava como um suporte para o jovem. O trabalho e a escola se tornavam
espaços de busca por reconhecimento, especialmente diante da denegação do reconhecimento
no âmbito familiar. O percurso laboral do jovem trazia a especificidade da inserção no
trabalho de telemarketing, o qual, mesmo sendo um espaço de precariedade do trabalho e do
trabalhador, era reelaborado por Weliton a partir de respostas singulares. Quanto ao processo
de escolarização, o jovem expressava uma reflexão significativa sobre seu projeto de vida e
campo de possibilidades. Tanto para o campo trabalho quanto para o da escolarização era
possível afirmar que Weliton operava com diferentes estratégias para “fabricar-se como
sujeito”.
não era próximo dos meus parentes, devido a problemas sérios, eu não era
amigo da minha família. Tipo, a gente tinha os nossos problemas, até mesmo
por causa da minha opção sexual148. Eu fazia as minhas coisas por mim e
não dava muita satisfação. Morava na mesma casa com minha irmã e mãe e
parecia que eu morava sozinho. Não tinha relação nenhuma mesmo.
148
Mantivemos a expressão original usada pelo jovem, mas optamos pelo uso do termo orientação sexual.
300
indiferença, o insultavam e às vezes o agrediam, devido ao seu modo de falar e vestir, mas
que ele tentava ignorar a situação.
No passado, a relação de Weliton com a mãe também não era de proximidade e se
agravou, especialmente após o jovem contar para ela sobre a sua orientação afetivo-sexual.
Ele narrou a respeito:
Ela me mandou para fora de casa, naquele primeiro momento, depois, ela
me aceitou, mas teve todo aquele “show de mãe”. E eu falei para ela: “nós
gays, homossexual, já sofremos o preconceito da sociedade, se a gente não
tem o apoio da família, não precisa de mais nada. Se não posso ser gay
aqui, não posso mesmo ficar aqui”. Eu fiz a minha parte de falar, de lançar
a verdade e não querer esconder nada. Eu falei, mesmo não concordando,
pois minha irmã nunca falou com ninguém que era hetero. Agora, se você
não puder ser mãe de homossexual, não precisa ser minha mãe, pois eu sou.
Ela me deixou ficar em casa, mas não me aceitava de jeito nenhum. Deixou
por dó. E eu não fui embora, porque não tinha para onde ir.
Hoje não faz diferença nenhuma na minha vida, mas, assim, no período, foi
uma época difícil o que eu vivi, que foi a questão da rejeição do meu pai e
entender que eu precisava e poderia viver sem ele. Não que eu sinto falta
hoje, mas senti muito. Ele me rejeitou desde quando ele descobriu que a
minha mãe estava grávida de mim. Minha mãe tinha acabado de ter a minha
irmã, estava recente, primeira filha, aí, minha mãe engravidou de mim. Ele
falou: “não quero. Eu acabei de ter uma filha para ter outro, não quero, não
é meu. Como vou assumir?” Terminou com a minha mãe e foi embora. Ele
buscava a minha irmã para sair e levava para o parque, e eu via tudo. Ele
falava: “eu vim buscar a Daiana”. E minha mãe perguntava: “você não vai
levar o Weliton? Ele é seu filho”. Ele: “eu sei, mas não vou levar, eu não
quero ele, mesmo com o DNA, eu não sou obrigado a ter ele como filho.
301
Registrei, porque o juiz me obrigou. Não quero relação nenhuma com ele”.
Foi bem assim mesmo, ele foi bem direto. E, aí, ficou nessa aí, eu fui ficando
“só na minha”, também com todo mundo.
A rejeição pelo pai, na visão do jovem, era um dos fatores que contribuíram para o
distanciamento familiar. Como explicitou no depoimento, havia algumas interferências da
mãe, mas o pai se negava a reconhecê-lo como filho. Weliton afirmou que na adolescência
tinha uma péssima relação com a irmã, pois considerava que ela era responsável pelo pai não
gostar dele. Como a irmã também sofria com a situação e era muito retraída, os dois não
tinham muito diálogo. Com o passar dos anos, o pai foi se distanciando de todos, inclusive da
irmã. Com a perda de contato e, especialmente o crescimento do jovem, a mãe de Weliton
contou a ele como ocorreu todo o processo de rejeição do qual ele recordava de alguns
momentos, ajudando-o a compreender e a lidar com a situação.
As narrativas do jovem sobre sua relação familiar expressavam um cotidiano marcado
por tensões, constrangimentos e conflitos. Assim, como para Rebeca, as situações familiares
se configuraram como desafios, os quais o jovem precisava enfrentar constantemente. No
caso de Weliton, o desafio se agravava ante as rejeições, especialmente acerca da sua
orientação sexual, o que consideramos que se tratasse de um drama social também
compartilhado por outros sujeitos, sobretudo os que rompem com a lógica heteronormativa.
Desta maneira, concordamos com Araujo e Martuccelli (2012) que afirmam que
los individuos enfrentan solos, en todo caso más solos que en otros lugares,
la vida social, puesto que se ven obligados a buscar respuestas por sí mismos
a una serie de falencias […]. En este contexto, los soportes y el apoyo no se
encuentran principalmente en las instituciones, sino que tiene que ser
producido (o al menos sostenido y recreado) por el proprio individuo
(ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012, p. 243).
assim antes. Aí eu falo ‘querida, pergunte para o seu ex-marido’. Por mais que eu não queria
ser assim, o mundo me fez assim, ele me fez eu ficar assim”.
Conjuntamente a dimensão do sofrimento, a atitude do jovem parecia se relacionar à
aproximação com o padrasto que, para ele, ocupava o lugar de pai. A falta que sentia do pai
foi sanada pela figura do padrasto que, desde sua adolescência, o tratava com afeto e atenção.
O jovem afirmou que, depois de alguns anos do término do pai com a mãe, quando ele estava
com cerca de dez anos, a mãe começou a se relacionar com o padrasto. Segundo ele, o
padrasto “lutou ‘horrores’ para ele [o pai] pelo menos me dar um amor de pai, mesmo que
ele não pagasse a pensão, porque é uma coisa que ele nunca fez, porque eu sempre fui
sentimental e virei o ogro que eu sou”. Weliton estabeleceu com o padrasto uma relação de
amor e amizade e decidiu que não teria mais nenhuma relação com o pai biológico, o que
tendia a minimizar o enfretamento solitário dos desafios familiares.
O distanciamento da mãe quanto à Weliton se alterou, a partir das intervenções do
padrasto. Além disso, uma possível mudança de contexto também contribui para mudar a
relação, como mencionou:
namorados. Segundo Weliton, às vezes, ele quer contar suas intimidades para ela que o
adverte: “eu sou sua mãe, não precisa de contar os detalhes dos seus relacionamentos”.
Talvez a relação entre ambos não fosse tão distante, pois a narrativa da reaproximação
pareceu expressar que foi um processo rápido. Não significava que o jovem não tivesse sido
rejeitado por ela, mas podemos supor que a relação não foi rompida, como aconteceu entre ele
e o pai.
Nesse contexto, Weliton estabeleceu novos laços com seus parentes, especialmente
tias e avó, e passou a ocupar um lugar de referência na família. “Lá em casa, agora, sou eu
quem resolvo tudo, qualquer problema que dá, ‘liga para o Weliton’. Problemas nas contas,
briga de alguém, festas, tudinho mesmo”. Avistamos o jovem como um suporte importante na
manutenção dos laços familiares. Cabe enfatizar que o jovem, às vezes, se cansava de estar
nesse papel, pois “antes era ninguém, agora é muita responsabilidade”. Pontuamos que,
assim como a mulher, os homossexuais, quando aceitos, tendem a ser referência no espaço
familiar, especialmente sendo responsabilizados pelo trabalho doméstico e pela gestão da
casa.
Da mesma forma, Weliton explicitava que a sua casa: “virou o ponto de encontro”,
depois que sua relação com a sua mãe mudou, pois ela começou a ficar próxima dos seus/as
amigos/as e chamá-los/as para frequentar a casa.
Porque, agora, ela gosta muito dos meus amigos, ela gosta de ser amiga dos
meus amigos. Ela não gosta de ser aquela mãe que “ah, é amigo do Weliton
e tal, fica à vontade”, não. Ela chega, entra na conversa, ela bate papo, ela
brinca. Ela gosta que eles vão lá em casa para saber com quem eu ando. A
minha mãe fica nervosa quando eles não deixam eu estudar. É normal, ela
cobra mesmo.
Os/As amigos/as do jovem chamavam a mãe dele de mãe, o que demonstrava que
houvesse uma boa relação dos/as amigos/as de Weliton também com a mãe dele. Articulado à
relação de intimidade e proximidade, podemos perceber o controle da mãe quanto às
amizades do filho sobretudo visando garantir que ele possa estudar sem interferência.
Quanto ao trabalho, o jovem havia informado, em 2012, que seu primeiro emprego foi
aos 13 anos, no qual ajudava numa creche perto de sua casa, caracterizando-se como trabalho
infantil, o que é ilegal149. Entrou na UFMG aos 16 anos, por intermédio da mãe e de uma
amiga que já trabalhava na CVB, o que ratificava a importância dos “circuitos domésticos”
como principal forma de busca e acesso ao emprego (GUIMARÃES, 2009). Ao final do
149
Pois, de acordo com o ECA (Lei 8.069/90), artigo 60, é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze
anos, com exceção na condição de aprendiz.
304
contrato, no ano de 2013, ficou cinco meses desempregado. Após seis meses do desligamento
da CVB, começou a trabalhar como assistente administrativo em um escritório de
contabilidade. Ficou durante três meses nesse trabalho e pediu para sair, pois não assinaram
sua carteira. Decorridas duas semanas, o jovem iniciou trabalho numa empresa de
telemarketing e estava nesse trabalho já há dois anos.
No que tange ao processo de escolarização, Weliton fez um curso técnico de
Administração entre os anos de 2013 e 2015. No ano de 2014, o jovem passou no curso
superior de Enfermagem, numa universidade na cidade de Januária/MG, mas não foi cursar,
atendendo ao pedido da mãe. Iniciou um curso de Publicidade em uma faculdade privada,
com 50% de bolsa, mas avaliou que não tinha relação com seu desejo. No ano de 2016,
iniciou o curso técnico em Enfermagem, pois afirmou ser a área em que pretendia dar
continuidade no ensino superior.
Tendo como base a relação que o jovem estabeleceu no contexto familiar e a maneira
com que lidou com as instâncias educativas e de trabalho, como veremos, consideramos que a
cena do Weliton nos possibilita(va) fazer uma análise a partir da Teoria do Reconhecimento,
desenvolvida por Axel Honneth. Para tanto, consideramos importante apresentar brevemente
a formulação teórica desse autor.
O foco da teoria de Axel Honneth é a categoria Reconhecimento Intersubjetivo e
Social, pois assume a ideia de que o reconhecimento é uma necessidade humana. Assim,
enfatiza que a luta pelo reconhecimento aparece como elemento fundamental da gramática
moral dos conflitos (HONNETH, 2003). Podemos dizer que a Teoria do Reconhecimento de
Honneth (2003) “defende a ideia de que a identidade dos indivíduos é construída por meio do
reconhecimento intersubjetivo, através do qual os sujeitos garantem a plena realização das
suas capacidades e uma relação positiva consigo mesmos” (DAYRELL, 2014 p. 3). Desta
forma, sendo o reconhecimento recíproco o ponto- chave da teoria, Honneth interessa-se em
investigar as experiências morais dos sujeitos humanos envolvidos em situação de
desrespeito, ou seja, denegação desse conceito, explicando que o conflito se perfaz a partir da
luta por reconhecimento (HONNETH, 2003).
Axel Honneth constrói a Teoria do Reconhecimento se pautando na ideia de que “na
sociedade moderna haveria três esferas decisivas para a integração e reprodução social: a
família, a sociedade civil e o Estado” (Emil SOBOTTKA, 2015b, p. 35). Em cada uma dessas
esferas, o reconhecimento intersubjetivo assume uma dimensão específica, quais sejam: o
305
Weliton. Nesta circunstância, o jovem foi, no primeiro momento, colocado para fora de casa,
mas a mãe reconsiderou e o deixou ficar por lá. A convivência na casa da mãe juntamente
com familiares gerou ao jovem maus-tratos físicos por parte dos tios maternos que não
aceitaram o fato do jovem ser homossexual, como mencionou. Como aponta Albornoz
(2011),
Ou seja, sendo o amor, uma dimensão elementar do reconhecimento, ela interfere nas
outras dimensões. Assim, inicialmente, Weliton tendeu a não demonstrar uma autoconfiança,
pois era muito afetado, mas, posteriormente, assumiu uma postura de luta por reconhecimento
nas instâncias educativas e do trabalho, fato que ratifica a ponderação de Honneth (2003): a
experiência social do desrespeito pode gerar luta por reconhecimento.
A segunda dimensão diz respeito à esfera jurídico-moral, ou dimensão dos
direitos/respeito. Se historicamente existia uma valorização dos direitos individuais ligados à
noção de honra, passa-se a falar em respeito e dignidade (DAYRELL, 2014; ALVES, 2015).
A partir dessa esfera, Honneth (2003) se refere ao reconhecimento dos direitos. Para o autor,
direitos podem ser lidos como “as pretensões individuais com cuja satisfação social uma
pessoa pode contar de maneira legítima” (p. 216), tendo em vista que ela participa de uma
coletividade e tem igual valor na sua ordem institucional.
É esse reconhecimento jurídico intersubjetivo que possibilita a manifestação da
própria autonomia do indivíduo, pois só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos
como portadores de direitos, quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais
obrigações temos que ter em relação aos outros. Segundo Dayrell (2014), esse processo gera a
consciência de poder respeitar a si mesmo (autorrespeito), uma vez que merece o respeito de
todos/as os/as outros/as. Logo o autorrespeito é, para a relação jurídica, o que a autoconfiança
é para a relação afetiva (HONNETH, 2003). Salientamos que a “dimensão dos direitos parte
de uma fórmula básica: só se possui autorrespeito se se é respeitado, só se reconhecem os
deveres se se têm garantidos os direitos, constituindo-se uma via de mão dupla” (DAYRELL,
2014).
Por último, Honneth (2003) aponta a esfera da estima social, ou da solidariedade. Essa
dimensão é também essencial, pois possibilitaria a construção do sentimento de autoestima. O
307
estudar não é uma coisa ruim, mas aprendi isso aqui [UFMG]. Também,
você vê todo mundo estudando, né?! Acho que contagia a gente. Ter contato
com pessoas que estudam, com pessoas que falam para você estudar, parece
que te obriga a estudar também [risos]. Você não quer ser o diferente. Aí, eu
comecei a me empenhar mais, foi quando eu fui para o primeiro ano do
ensino médio. Minha chefe me dava livros. Comecei a ter interesse em ler,
porque eu odiava ler livro. Comecei a ler livro. Hoje em dia eu amo livro.
Então, tipo assim, fui aprendendo, fui, tipo assim, aprimorando tudo, os
meus conhecimentos, aquela vontade de estudar, aquela sede de estudar.
309
Minha chefe tinha preconceito em questão de cabelo. Fui avisar para ela
que faria luzes no cabelo. Eu falei assim: “eu estou querendo fazer umas
luzes, assim, umas mechinhas, umas coisas poucas”. Mentira, porque era
311
muito loiro [risos]. Ela “já olhando torto” e falou: “não. Eu não acho
“bacana” esse pessoal negro com o cabelo loiro”. Aí eu: “é preconceito?
Não estou entendendo, vou ler o meu contrato para ver se não pode pintar o
cabelo de loiro. Está no contrato?”, No dia que eu cheguei com o cabelo
loiro, ela falou: “Weliton o quê que é isso?” Eu não vou deixar você
entregar nada desse jeito”. Eu falei: “eu descolori a cabeça toda igual os
favelados fazem? Não. Não estou igual toddy, fiz mechas. Por que você não
vai deixar eu entregar documento? Você vai achar que eu sou bandido de
uniforme?” Ela falou: “Weliton, não é assim, mas você não vai entregar”.
Falei: “Uai querida, então, beleza, se for assim, eu não vou trabalhar, né?
Porque o meu serviço é entregar documento... Eu vou fazer o quê? Você vai
me deixar de braço cruzado? Não vai. Vai deixar eu sem trabalhar, por
causa do cabelo? Porque raspar eu não vou”. Aí, ela ficou com raiva uns 15
dias, mas deixou eu levar os documentos, mas falou que isso não era perfil
de trabalhador.
Existia uma tensão entre o perfil de trabalhador construído pela chefia com a negação
de rótulos por parte do jovem. Para ele, o fato de pintar o cabelo não interferia na sua função.
Porém, a postura da chefia se relacionava a uma preocupação com a aparência, algo que é
muito forte no setor de serviços, visto que, como afirma Soares (2012, p. 44), uma
característica fundamental do setor de serviço “é a interação entre o trabalhador e o indivíduo
para quem produz o serviço”. Logo, a visão das pessoas acerca do jovem, além do
preconceito, marcava a postura da chefe. Cabe lembrar que Weliton também construiu
determinados estereótipos (Erving GOFFMAN, 1988), pois se comparava com jovens
moradores/as de periferia que pintavam/pintam todo o cabelo, atribuindo a estes/as um juízo
de valor negativo.
É interessante pontuar que o jovem considerava que, para o trabalho na UFMG, não
era necessário ter um padrão, pois não tinha uma função específica ‒ “boy não tinha um
padrão, mal as pessoas conversavam com você”. Assim, apontava que não tinha sentido não
poder fazer com o seu corpo o que desejasse. Avaliou que, se trabalhasse na área de
enfermagem, teria que cumprir um padrão, pois era uma profissão que já possuía suas regras.
Ponderamos que o trabalho como mensageiro interno tendia a não ter uma identidade para o
jovem. Na visão dele, não era uma profissão o que desempenhava, por isso, não compactuava
com uma identidade corporal e nem regras consolidadas para tal. Ademais, a invisibilidade
também poderia ser um elemento da falta de identidade, tendo em vista que as pessoas não
conversavam com ele. Embora o jovem não tivesse compartilhado da visão da chefia e
mantivesse sua aparência como considerava correto, o ocorrido possibilitou uma reflexão das
regras e comportamentos exigidos no mundo do trabalho, o que era um aprendizado
importante.
312
O jovem Weliton foi desligado da UFMG no ano de 2014 e optou por descansar por
um tempo, pois
Para o jovem, a situação do desligamento foi um momento para vivenciar uma espécie
de moratória, com tempo definido, possibilitada tanto pela mãe quanto pelo próprio Estado,
via benefício do seguro desemprego que é garantido pela Constituição federal. Weliton não se
via como desempregado, pois, segundo ele, fez uma opção de não procurar trabalho. A rotina
cansativa de trabalhar e estudar impossibilitava que ele vivenciasse outros aspectos da
condição juvenil. Desta maneira, a finalização da educação básica, aliada ao desligamento do
emprego, proporcionou ao jovem tempos para sair e se divertir. Assim, podemos afirmar que
o direito ao seguro-desemprego também é um elemento que altera a experiência com o não
trabalho, pois tende a ser um marco para alguns/algumas jovens para voltarem ao trabalho.
Ademais, podemos dizer que o seguro-desemprego é um dos direitos que ter a carteira
assinada gera como expectativas para alguns/algumas jovens, ou seja, o desejo da carteira
assinada, para além de um símbolo, está atrelado aos direitos que a mesma garante
(CORROCHANO, 2008).
A retomada ao trabalho aconteceu cinco meses após a saída da UFMG e o jovem não
teve mais nenhum período de não trabalho. O trabalho foi em um escritório de contabilidade.
Weliton foi indicado pela agência de emprego vinculada à empresa na qual em fazia um curso
técnico de Administração. Ao contrário do que ocorreu com alguns/algumas jovens, esse
trabalho foi alcançado a partir de “mecanismos mercantis” (GUIMARÃES, 2009). Necessário
apontar que Weliton fazia o curso técnico de forma concomitante ao trabalho na UFMG.
Iniciou esse curso no ano de 2013 e tinha aula todos os sábados, de 8h às 17h. Assim, o jovem
fez um curso técnico, fez o estágio para cumprir a carga horária do curso e na sequência foi
contratado. “Contrataram em termos, porque não assinaram a minha carteira. Fiquei lá um
período de três meses e não teve contrato e nem teve carteira assinada. Eles falavam:
‘estamos esperando ter recurso para isso’ e nada”. O jovem afirmava que foi contratado para
a função de assistente administrativo, mas assumia outras funções:
313
E, aí, eu comecei a fazer serviços que não eram da minha área. Eu estava
responsável pela área administrativa do escritório de contabilidade. Só que
eu estava fazendo os mesmos trabalhos que eu fazia aqui [UFMG], como
mensageiro interno. Eu tinha que entregar e pegar documentos, tirar cópias,
atender telefone. Falei: “ou assina a minha carteira como mensageiro
interno, ou como assistente administrativo, que é o que me chamaram para
fazer, porque eu tenho que fazer o que me chamaram para fazer”. Claro que
eu não me importo de fazer outras coisas, mas “fugir demais” do que eu
estou ali para fazer já não é a minha função. Eu não fiz o curso à toa, queria
trabalhar na área, mas lá tinha administrador também e ele fazia tudo.
As colocações do autor reforçam a ideia do trabalho como uma relação social, sendo,
portanto, perpassado por outras relações (KERGOAT, 1987). Posto isso, tanto a maneira de
atender quando de ser atendido é perpassada pelas condições de raça, gênero, classe e
314
orientação sexual. Não obstante, mesmo seguindo os padrões, o jovem mencionou que sofria
preconceitos na empresa:
Num contexto de transformações das relações de trabalho e cada vez menor proteção
do trabalho e do/a trabalhador/a, como discutimos, a precariedade do trabalho juvenil é ainda
mais intensa e o jovem Weliton explicitava a importância da carteira de trabalho. Ele
apontava três aspectos: primeiro, a relação com o Estado, ou seja, somente com a carteira se
315
tem os direitos de trabalhador/a resguardados, tais como, recebimento dos salários, condições
de trabalho mínimas, proteção caso sofra algum tipo de acidente, seguro-desemprego
(CORROCHANO, 2008); segundo, a relação com o/a empregador/a, já que, na visão do
jovem, a carteira garante que o/a trabalhador/a desenvolva as funções de acordo com a
contratação, não se submetendo, assim, a condições precárias; e, a terceira é a carteira como
memória, como meio de registro e comprovante das experiências realizadas, já que “contar
não adianta”. A carteira atua como mecanismo de segurança e comprovação.
Apontamos que o registro da carteira parecia se constituir como um suporte para o
jovem, tendo em vista que o registro possibilitava acesso ao direito, tal como o
reconhecimento do outro, pois o jovem citava que: “você não é trabalhador de verdade sem
carteira” e, especialmente, se “você não tem carteira assinada, você não é ninguém”. A
importância dada à carteira por ele nos remete ao conceito de “cidadania regulada”,
construído por Wanderley Santos (1979):
Nem fiquei sem trabalho. Já entrei logo assim “de cara”, porque a minha
prima trabalhava no RH. Falei assim: “eu não quero ficar parado”. Aí ela:
“você sabe o que é telemarketing. Você quer?” Respondi: “querer, querer,
não. Sei que é “ralação”... Não dá para respirar, ne? Mas, vai ser difícil
arrumar outro lugar. Quero porque eu preciso estudar e tem que ser uma
coisa que vai conciliar”. Então, eu já saí de um para o outro, foi questão de
semana. Aí, eu queria trabalhar de segunda a sexta, só que não tinha esse,
aí, ela falou: “Weliton, tem um de segunda a sábado, não trabalhar feriados
e nem aos domingos e você pode ganhar uma comissão, pode tirar um por
fora”. Aí, eu falei: “Não. Beleza”. Porque eu não estava podendo escolher.
150
Os call center, conhecidos como Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC), na escala global, têm uma
ampla capacidade de criação de emprego no setor de serviços (BONO; LEITE, 2016). Adriana Vieira (2005)
afirma que as centrais de teleatendimento foram criadas com a finalidade de executar a atividade
telemarketingdas empresas, sendo caracterizada por toda e qualquer atividade desenvolvida através do
sistema de telemática; que compreende telecomunicações e informática; e, múltiplas mídias, objetivando
ações padronizadas e contínuas de marketing (p. 14).
317
prévia, mas, sim, de optar por um/a trabalhador/a que possa “produzir muito mais em menos
tempo”, por ter mais energia física e esquemas mentais mais flexíveis para enfrentar as
exigências do local de trabalho, estar disposto/a a correr riscos e, ainda, receber salário baixo.
Assim, a alta contratação de jovens para o telemarketing se refere à maior capacidade em
“assimilar o treinamento básico necessário [que, em sua maioria, acontece em um curto
período] [...] e, principalmente, no caso daqueles oriundos de famílias de baixa renda, de
suportar as pressões para o cumprimento de metas de atendimento” (CORROCHANO;
NASCIMENTO, 2007, p. 17). Ou seja, é necessário trabalhadores/as capazes de se adequar às
exigências e, como Sennet (2008) já apontava, para o mercado, “flexibilidade equivale à
juventude; rigidez, a idade” (idem, p. 110).
A segunda questão diz respeito à possibilidade de conciliação trabalho e estudos,
como veremos na discussão sobre a vivência do jovem no curso técnico. Mas, cabe salientar
que, embora não seja o caso do jovem Weliton, muitos jovens trabalhadores/as do
telemarketing tendem a trabalhar em dois turnos, ou trabalham em outro local também. O
trabalho em dois turnos e nos fins de semana é fomentado pela própria empresa que busca não
parar de lucrar e atender o “fetiche dos serviços 24 horas” (GIDDENS, 1991), o que, por sua
vez, tem repercussão na saúde dos/as trabalhadores/as151 e na limitação da vivência da
juventude. Tanto o trabalho em outro turno quanto em outro local é uma tentativa de cobrir a
lacuna dos baixos salários desse setor.
Mesmo com todas as nuances expostas, Weliton já estava como atendente há três
anos152, embora tenha afirmado que não pensava que conseguiria ficar por tanto tempo, como
relatou:
Imagina uma pessoa que não tem paciência e vai trabalhar com
telemarketing. Daí você já entende que está no lugar errado. No início, eu
passava tanta raiva que eu chorava todos os dias. Lá é um rio de lágrimas,
você não imagina. As meninas e a gente é choro o tempo todo. Agora eu
choro, mas é menos. É cobrança demais, cobrança de meta, do tempo que
você levanta, tempo de comer, cada segundo é controlado. Você é cem por
151
Corrochano e Nascimento (2007) citam que “o uso excessivo do computador e do telefone e o cumprimento
de dupla jornada ou de horas extras para complementar a renda, são as responsáveis pela grande incidência
de doenças psicossomáticas (estresse, depressão e síndrome do pânico) e outras relacionadas ao esforço
repetitivo (inflamações nos tendões, dores no pescoço e na coluna etc.), desencadeando uma alta rotatividade
de mão-de-obra no setor” (p. 18).
152
O tempo que Weliton está no telemarketing chama a atenção para as ponderações de Daniel Mocelin e Silva
(2008) ao analisarem o contexto de call center em Porto Alegre: enfatizam que os vínculos dos/as
operadores/as podem não são se caracterizar por contratos determinados ou temporários, ou seja, o caráter
temporal do telemarketing pode ter relação com os desligamentos por iniciativa dos/as trabalhadores/as ou
demissões. A partir da cena do Weliton, não podemos generalizar, mas consideramos importante enfatizar,
pois o jovem está há um tempo considerável no setor.
319
153
Angelo Soares (2011, 2012) afirma que a dimensão emocional está muito presente no setor dos serviços,
mas é raramente considerada. Segundo o autor, as “emoções são corporalizadas, isto é, desencadeiam e se
traduzem em manifestações corporais” (SOARES, 2012, p. 48). Desta maneira, o trabalho exige
frequentemente uma gestão da expressão das emoções, ou seja, o trabalho emocional. “O trabalho emocional
pode ser definido como gestão dos sentimentos a fim de criar uma aparência facial e/ou corporal que é
observada publicamente” (SOARES, 2011, p. 96).
154
Qualificação entendida aqui como “todo o saber (in)consciente que um indivíduo possui para desempenhar
seu trabalho. Este saber é acumulado durante toda a vida, não somente através da educação formal, da
formação profissional, treinamentos, mas também através do processo de socialização vivido pelo indivíduo
(SOARES, 1998, p. 128).
320
suscitava pensar que as mulheres e os homossexuais poderiam chorar e os homens não, o que,
por sua vez, asseverava uma divisão sexual do trabalho emocional. A partir desta questão,
ressaltamos que o trabalho emocional da mulher tende a não ser considerado como
qualificação, por isso, não remunerado, pois, por vezes, a educação e a paciência, por
exemplo, são consideradas de “natureza feminina” (SOARES, 1998).
Outra questão trazida pelo jovem se refere ao controle do tempo e dos corpos dos/as
trabalhadores/as, o que é uma marca forte do trabalho no telemarketing (VENCO, 2006;
BONO; LEITE, 2016). Concordamos com Venco (2006) quando afirma que o software tem
um papel importante na sofisticação do processo de trabalho com bases tayloristas155, pois
informa com detalhes tudo que o/a operador/a faz, dita o ritmo de trabalho, pois as ligações
(no caso de ativo, como o jovem Weliton) são realizadas de maneira automática ao termino da
anterior e até o tempo de saída do Posto de Atendimento (PA) é calculado156. Cabe lembrar
que o tempo no telemarketing não é pautado no tempo que precisam para repassar as
informações e/ou demandas dos/as clientes, mas, sim, determinado na possibilidade de se
executar um número cada vez maior de ligações, o que aumenta os lucros, intensifica o
trabalho e reduz o tempo livre do/a trabalhador/a.
E, ressaltamos, ainda, a dimensão das metas que se refere ao número de ligações, bem
como de negociação aceita para o pagamento da dívida, no caso do jovem Weliton. As metas
são mais uma forma de pressão, pois não alcançar o estipulado tem como consequência
intimidação constante e até mesmo demissão, o que mais uma vez remete à lógica da
flexibilização. O assédio moral quanto ao cumprimento das metas é muito intenso,
especialmente com jovens por terem menor experiência no mercado (CORROCHANO;
NASCIMENTO, 2007). Como cita Cavaignac (2011):
155
Concordamos com Venco (2006, p. 155) que “há certas constâncias tayloristas na organização do trabalho
em telemarketing – o fracionamento das tarefas, o controle do tempo e dos movimentos [...]”. Vieira (2005)
também afirma que o símbolo contemporâneo da extensão do taylorismo são as centrais de atendimento.
156
Lembro de uma experiência, dentre as várias que vivenciei, como jovem trabalhadora do telemarketing. Eu
tinha 3 minutos para ir ao banheiro. Registrava minha saída no sistema e o tempo começa a ser contato. O
que éramos obrigados/as a fazer. Trabalhava em uma baia localizada ao fundo da empresa e, assim, mais
longe do banheiro. Saia correndo para não ultrapassar o tempo. Um dia, fui ao banheiro correndo e estava
ocupado. Esperei para utilizar. Quando retornei ao posto de trabalho, me deparei com um “morcego”
batendo asas na tela no computador com os dizeres “morcegando”. Foi um enorme constrangimento, as
pessoas rindo e eu saí chorando. Para sair da situação, era necessário chamar o/a supervisor/a que colocaria a
senha de desbloqueio. A partir daí, bebia menos água para não ir ao banheiro.
321
Neste cenário, inicialmente o jovem Weliton estaria mesmo no “local errado”, pois
como afirmou, não sabia lidar com pressão, tampouco silenciar-se diante das imposições que
eram colocadas a ele, como vimos o ocorrido com a chefia da UFMG. Contudo, com o passar
do tempo, segundo ele, começou a gostar da experiência do trabalho:
Hoje eu gosto muito, muito de trabalhar lá. Primeiro que meu estresse, eu
acho que eu soube controlar lá. Hoje eu respiro, pego e coloco no mute
[modo em que o cliente não ouve o atendente], espero o cliente terminar de
xingar, aí, eu acalmo. Ele pergunta: “você tá na linha?” Respondo: “eu
estou na linha, pode falar que estou escutando”. Então, por mais que seja
telemarketing, eu aprendi a ignorar a fala do cliente e ter paciência. Mas, a
parte de ser todo o dia a mesma coisa é desgastante e correria demais. Mas,
vendas seria pior, que é um “saco”, eu também falei que eu não queria,
porque não estou preparado para mentir. Não quero ser mentiroso, devido
ao trabalho. Então, minha prima me colocou na cobrança. Mas eu aprendi,
pois antes era “na lata” ‒ me estressou, “levou”.
Assim como na UFMG, o jovem assumiu uma postura protagonista com relação ao
trabalho. A busca por aprendizados que ultrapassam sua função já fazia parte do perfil do
jovem. A postura do Weliton se relacionava também com a falta de auxílio para entender os
processos no trabalho. Ele explicitou que havia um treinamento inicial, mas que era somente
teoria, e “quando você começa a trabalhar que as dúvidas aparecem”. Assim, era necessário
esperar a boa vontade e a paciência do/a colega de trabalho para tirar suas dúvidas, ou
“aprender ‘quebrando a cara’”, como afirmou. Nesse quadro, Weliton assumiu a postura do
trabalhador ideal, pois fazia sua função e a todo momento procurava participar de todas as
outras atividades da empresa. O jovem desenvolvia estratégias para lidar com as condições
intensas de trabalho e, ao mesmo tempo, ser reconhecido naquele espaço. O jovem construiu
um percurso de individuação próprio na forma como lidava com o trabalho que se
configurava como um desafio constante que “o forja a partir do encaixe aos encargos
esperados em sua função” (REIS, 2014, p. 127). Há três anos no telemarketing, o jovem “se
virava” para bater as metas, como afirmou, e passou a ser reconhecido por suas chefias.
A partir do exposto, consideramos que a postura do jovem retratava novamente uma
busca por reconhecimento, neste caso, ligado à estima social, o que era alcançado. Mesmo em
condições degradantes, o jovem lutava para mostrar suas capacidades e “o bom desempenho
serve como afirmação individual” (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012, p. 48). É importante
dizer que, depois da experiência de trabalho na UFMG, a postura do jovem já era mais
autoconfiante. Tendemos a considerar que o reconhecimento intersubjetivo que teve na
relação com sua chefia (UFMG) contribuiu significativamente para a construção e o reforço
da sua autoconfiança. Ademais, a relação de desrespeito quanto à esfera do direito também
deu elementos para que o jovem questionasse a realidade. Ao mesmo tempo, apontamos que o
reconhecimento na esfera da solidariedade possibilitou ao jovem autoconhecimento das suas
potencialidades e se “ver reconhecido nelas, se aceitando e se tornando, através delas, um
sujeito singular, único” (DAYRELL, 2014, p. 25).
Todavia, cabe ressaltar que, mesmo sendo reconhecido no espaço de trabalho, o jovem
deixou explícito que não pretendia ficar na empresa por muito mais tempo. O trabalho era
visto de maneira positiva, mas não tinha sentido em si, e, sim, como possibilidade de estudar,
assim como para a maioria dos/as jovens entrevistados/as. A relação com o trabalho corrobora
323
A continuidade de estudos não era algo que Weliton “tinha traçado” enquanto projeto
de vida, embora ele já tivesse o sonho de se tornar médico. O jovem afirmava que sua
trajetória no final do ensino fundamental foi difícil e que estava desistindo de continuar
estudando, pois
157
Para Paulo Nogueira, “a zoação serve para “quebrar o clima” da sala de aula. Dar um outro sentido ao que se
passa no interior da escola, acrescentando-lhe novas dinâmicas, investindo em atuações não prescritas aos
papéis de aluno que não são, entretanto, de todo descartados. O que se engendra na sala de aula é uma
alternância significativa entre velhas e novas inserções que, além de não eliminar as já consagradas pela
dinâmica escolar, traz para essa uma tensão, pois “zoar” é por o clima da sala de aula em questão. É
modalizar o enquadre primário atribuindo-lhe outros sentidos aos modos de estar em sala e torná-la
significativa para os alunos e as alunas” (NOGUEIRA, 2006, p. 110).
325
Honneth faz aos sentimentos como chave de ação para a luta porreconhecimento. Assim, “se,
por um lado, o rebaixamento e a humilhação ameaçam identidades, por outro, eles estão na
própria base da constituição de lutas por reconhecimento” (ARAÚJO NETO, 2013, p. 57). O
próprio jovem salientou o quanto a ação do professor funcionou como um “cutucão”, ou seja,
um estímulo para retomar sua confiança e querer provar suas capacidades.
Em paralelo ao ensino médio e ao trabalho, o jovem iniciou o curso técnico em
Administração.
Fiz o curso técnico de Administração por fazer. Não vou falar que eu fiz
porque eu quis, fiz por inveja da minha irmã. A minha irmã formou neste
curso. Eu não tinha nenhum curso e ter algum curso é bom para o currículo.
Fui até o final, mesmo não gostando, mesmo sabendo que aquela não seria a
minha área, eu formei.
escola não teve aquela formatura de beca. Eu sempre achei lindo. Eu acho,
assim, que uma formatura significa sucesso. Você venceu naquilo que você
tanto lutou. Você está sendo prestigiado por uma coisa que você se esforçou
e eu não tive isso no meu ensino médio. No meu ensino médio que eu resolvi
engrenar, me dediquei, que eu realmente resolvi ser um bom estudante, não
tive formatura para mostrar que eu venci na vida. Quando eu era ruim na
escola, minha mãe falava. Eu fiz porque eu queria mostrar, pelo menos para
mim mesmo, que eu tinha a capacidade de passar por tudo e, no final,
vencer, de estar ali, sim, e ser prestigiado pelas pessoas.
mediante la proyección de la opinión que otros tienen sobre el sí mismo del sujeto, en la
medida en que le son significativamente importantes, a la hora de construir y reafirmar su
identidad”. Ele desejava participar de uma cerimônia de formatura como um rito de passagem
e expressão de “sucesso” e o curso técnico aparecia como tempo/espaço propício para esse
fim. Interessante apontar que Weliton queria também ser reconhecido pelo seu empenho no
ensino médio, pelo fato de ter “resolvido ser bom aluno”, pois ressaltou que quando era
“ruim” isso tinha visibilidade. O uso da beca se referia, então, à busca do reconhecimento da
solidariedade (ou estima social), pois se baseava em uma realização individual que, ao ser
exposta, é reconhecida no plano das relações intersubjetivas ou sociais (ALBORNOZ, 2011).
Com a saída do escritório de contabilidade e inserção na empresa de telemarketing, o
jovem percebeu que o curso o ajudou a conseguir um trabalho, mas que não serviria “para
mais nada”, pois não queria essa área. Assim, no ano de 2016, iniciou o curso de técnico em
Enfermagem, pois “esse, sim, é um curso que eu quero fazer, mas para chegar em outra coisa
que é a Medicina”, como narrou:
Aí ano passado [2016] eu peguei e falei assim: não, quer saber? A minha
vontade mesmo é ser médico cirurgião plástico, mas eu não estou preparado
para encarar uma Medicina agora, o que que eu vou fazer?” Enfermagem,
que é uma área da saúde. Ia fazer a faculdade mesmo, mas sem chance,
porque eu também não estava com condições, resolvi a fazer o [curso]
técnico. Falei: ”vou fazer o técnico, vou formar, me estabilizar na área,
trabalhar, talvez, fazer um concurso, ficar assim, fixo, me estabilizar em
questão financeira e também na prática para eu ter certeza de que eu quero
ser um cirurgião plástico, mas a área da saúde é certeza”. Aí eu vou ficar e
depois disso eu vou começar Medicina. Vou estudar, vou estudar “igual um
cachorro”, igual um “bobo”, mas eu vou estudar e vou atrás dos meus
objetivos para lá, que é fazer a Medicina, que é ser cirurgião plástico.
A falta de preparação citada por ele se relacionava à pouca bagagem que havia do
ensino médio, especialmente para tentar acessar o curso mais concorrido nas universidades
federais. Juntamente, a ausência de condições financeiras para se manter no curso de
Enfermagem em uma Instituição de Ensino Superior. O curso técnico seria para o jovem uma
“escada”, como disse, para depois acessar a faculdade e ter certeza dos seus desejos, o que
lemos como uma estratégia. Desta maneira, o curso técnico não era um obstáculo, mas um
recurso. Diante dessa estratégia e da postura do jovem, podemos dizer que ele se
responsabilizava individualmente tanto por seus sucessos quanto pelo seu fracasso,
especialmente ao explicitar que vai estudar igual “‘um cachorro’, igual um ‘bobo’ [...] e vou
atrás dos meus objetivos”.
327
porque você fica muito cansado trabalhando e estudando. Alguma coisa fica
a desejar. Aí é o trabalho, porque meu foco é o estudo. É uma sobrecarga
muito grande. E Enfermagem é bem mais complexo, então, tipo assim, ela
requer mais esforço. Sexta-feira eu não tive aula e eu tinha uma prova,
então, o que acontece, eu tive que estudar o final de semana inteiro. Estudo
nas minhas pausas [do trabalho], eu não almocei, eu não tomei café, não fiz
lanche, não fiz nada, eu fiquei por conta do estudo. Realmente a gente não
vive direito só estuda, em termos assim, por isso, optei, às vezes, de não sair,
de ficar na minha, mesmo, de me fechar para poder estudar, pois eu fico
muito cansado. Aí eu virei uma pessoa super- preguiçosa em sair, quando eu
saio eu fico perguntando: “nossa, para que eu fui sair?” Porque realmente
eu fiquei preguiçoso, prefiro descansar.
A relação trabalho e estudos para o jovem não era uma conciliação fácil. O
depoimento do jovem confirmava que o trabalho no telemarketing não garantia uma
conciliação de qualidade entre trabalho e estudos, pois não era somente o tempo de trabalho
que se deve avaliar, mas também as condições de trabalho. Na relação com os estudos, o
jovem mudou seu discurso acerca da conciliação explicitada quando optava pelo trabalho no
telemarketing. Logo, a ideia de conciliação era, na verdade, uma “ilusão”, pois a
intensificação do trabalho gerava alto estresse e problemas de saúde. Weliton deixava claro
que não era possível um equilíbrio entre ambos e sua decisão era privilegiar os estudos. O
jovem se culpava por ter se tornado uma pessoa “preguiçosa”, assim como Letícia, quando,
na realidade, era a rotina que fazia com que tivesse outros hábitos. Trabalhar e estudar
328
Então, sair, assim, eu saio, não como antes, porque eu saía muito, mas é
bem de vez em quando, porque eu também fico cansado, pois trabalhar e
estudar é pesado. Chega final de semana e eu quero dormir e tenho que
cuidar da minha cachorra, e me arrumar porque eu não sou obrigado a
ficar igual a um lixo. E eu trabalho sábado. Aí, quase não tenho tempo para
sair, porque o final de semana eu prefiro descansar e estudar.
tenho amigos que não concordam de eu deixar de sair para estudar, eles
falam assim: “você já tem o seu horário de aula para isso, para estudar,
saiu dali, você não precisa estudar mais”. Como se fosse fácil, né? Você
está ali na sala de aula e está tudo na sua cabeça. E, depois que você sai,
como é que fica? Então, tipo assim, perdi muitas amizades, na verdade, é
igual a minha mãe fala: “era colegas, né? Porque amigo nunca foi”. Mas,
eu também entendo porque “direto” eu não posso sair, pois tenho muito
trabalho do curso.
Se, por um lado, ele compreende os questionamentos dos/as amigos/as, por outro lado,
Weliton expressava a tensão entre a relação com eles/as e sua vivência como jovem estudante
e trabalhador. Para ele, os/as amigos/as seriam aqueles/as que estariam ao seu lado, mas
acreditava que a falta de compreensão da sua situação de estudante se referia ao perfil de
329
amigos/as que tinha, pois nem todos/as estudavam e, por isso, não entendiam a lógica do
tempo de quem trabalhava e estuda.
Por último, com relação às amizades, o jovem afirmou: “as minhas amizades
reduziram bastante, em vista da época que eu saí daqui [UFMG]. As amizades estavam em
alta, porque eu não estava trabalhando nem estudando, então, tudo eu podia fazer”, o que,
por sua vez, era totalmente diferente da vivência de Breno. Ou seja, atribuía à falta de tempo
para a convivência com os/as amigos/as à redução de suas amizades. A diminuição das
amizades se articula “as escolhas” que Weliton fazia, ou seja, trabalhar e estudar, assim
precisava definir as prioridades para conseguir conciliar.
entrega eliminam muitas pessoas. A mudança de cidade também demandaria um suporte que
o jovem não teria, pois não tinha ninguém para mantê-lo em outra cidade. Weliton afirmou
que estava disposto a ir e buscar meios de se virar por lá, mas sua mãe pediu para que ele não
fizesse essa escolha. Assim, como no caso de Rebeca, vemos o papel das mães, mas, no caso
de Weliton, parecia que ele podia escolher. O jovem enfatizou que “abriu mão” da faculdade
pelo amor que tinha à sua mãe, mas
arrependi muito de não ter ido. Fazer faculdade é meu sonho. Quero muito e
hoje está ainda mais difícil passar. Se eu tivesse ido, hoje eu já seria
formado em Enfermagem. Eu tenho certeza que eu ia amar minha escolha, e
que eu ia estar feliz com que eu escolhi. Mas, eu me arrependo de não ter
ido, porque estava novo. A vida é feita de oportunidades, e hoje eu vejo que
infelizmente eu perdi uma oportunidade e querendo ou não a gente precisa
crescer, e eu não posso ficar preso na asa da minha mãe para o resto da
vida. Naquela época aconteceram várias coisas, teve problema com
documentação também, mas, talvez, se eu tivesse dado meu “jeitinho”, se eu
tivesse pensado no meu futuro, eu já estaria do lado dela formado. Eu não
estaria do jeito que eu estou, fazendo curso ainda, entendeu? Então,
querendo ou não, perdi tempo de estudo.
Eu sempre quis a área da saúde, sempre quis a área da saúde, mas você
cansa de esperar sua vez. Aí meus familiares e especialmente minha prima
falava assim: “ah, você tem cara de Publicidade, faz Publicidade, é a sua
cara. Aí eu falei assim: “aí gente, eu vou seguir as pessoas, eu vou fazer
Publicidade”. Me inscrevi na faculdade. Fiz os negócios “tudo direitinho”,
fiz o Enem na época e tal, ganhei bolsa de 70% na UNA [Centro
Universitário UNA]. Aí, eu fui fazer Publicidade. Fiz três períodos, não era
o que eu queria. Aí, eu fui e estudei, comecei a trabalhar no telemarketing
fazendo a Publicidade, só que, aí, eu cheguei no terceiro período e falei:
“gente, o que eu estou fazendo aqui? Não estou gostando”. Aí, saí.
331
Sabemos que esta não é a decisão de grande parte dos/as jovens que se inserem em
cursos superiores desconexos dos seus desejos, pois ter “qualquer graduação” já é algo que
não faz parte da realidade da maioria e tendem a continuar nos cursos, mesmo não gostando.
Na narrativa do jovem fica claro o contexto meritocrático em que vivia, pois, a falta de
expectativas fazia com que Weliton “fosse escolhido” por um curso que não tinha relação
alguma com seus desejos. A família atuava como incentivadora, pensando no perfil dinâmico
no jovem. Mas, especialmente por estar imersa em uma realidade de falta de oportunidades,
ter um membro da família no ensino superior, independente dos desejos, já seria um
diferencial. Ao mesmo tempo, deixa explícitos os desafios que significavam a escolha de um
percurso escolar.
O jovem afirmou também que iniciou num curso que não queria, pois desejava se
“formar, ser um cara bem rico e mostrar para o meu pai que ele não me ajudou em nada,
para ele ver o tanto que eu dei a volta por cima, que eu não precisei dele para nada”. Ou
seja, uma inserção para ter o reconhecimento do pai, mas, ao mesmo tempo, demonstrava o
quanto a ausência do pai repercutia ainda na vida do jovem.
Após a saída do curso de Publicidade, o jovem optou por fazer curso preparatório para
o Enem, pois continuava o seu desejo de ingressar no curso de Medicina. Afirmou que já
estava com uma boa relação com sua mãe, já tinha conversado, já tinha “preparado a minha
mãe: eu sei que, se realmente eu passasse, ela ia dar outro ‘piti’”, mas ele já tinha certeza do
que queria e afirmou que iria para qualquer lugar, se passasse.
Resolvi fazer cursinho. Fui para ter alguma chance de passar na faculdade,
pois com o que eu tinha do ensino médio não ia rolar, né?! A experiência foi
média, para o horrível, porque eles olham a gente com indiferença, pois são
pessoas que têm condições melhores. Quando eu entrei lá, eu não sabia de
nada. Então, muitas perguntas que eu fazia, eles já sabiam, então, eles
faziam chacota, “zuavam” e isso desmotiva um pouco a gente e deixa a
gente triste. Quando o pessoal achava ruim, eu falava: “Se você não tem
dúvidas, o problema é seu, se está achando ruim, sai da sala, quando eu
terminar, você volta”. Mas, assim, até eu acostumar, até eu pegar o ritmo,
até eu entender o jeito que eles eram, eu sofri bastante. Tinha dia que eu
falava: “gente, o que eu estou fazendo aqui?” Eu sofria indiferença em
tudo, na hora do lanche, por exemplo, eu levava alguma coisa para comer,
porque eu não ia ter dinheiro para gastar todo dia, aí, eu ficava na sala, aí,
eles vinham e falavam: “não vai na lanchonete comprar nada, não? Você
não tem dinheiro?”[...] eu ficava meio, assim, meio triste... Às vezes eu ia,
gastava dinheiro que eu não tinha, só para aparecer, então, foi bem puxado.
alunos/as, como vimos no caso de Letícia e veremos com a jovem Dayane. Outra questão
importante era a diferença econômica, pois o jovem escolheu frequentar um dos melhores
cursinhos preparatórios, o qual tinha uma taxa de mensalidade e matrícula acima do seu
padrão de vida. Assim, só conseguiu comprar todo o seu material, quando já estava na metade
do curso, em razão de estar juntando dinheiro, por isso, ficou “muito perdido”. Em virtude da
situação econômica, o jovem não dispunha de recursos para lanches, por exemplo, o que o
distanciava ainda mais dos/as outros/as alunos/as. Porém, mesmo assim, gastava dinheiro
“para aparecer”, como disse, o que remete novamente ao desejo do jovem por
reconhecimento. O contexto citado refletia, mais uma vez, desrespeito, neste caso, revestido
da exclusão e ofensas, ou seja, o não reconhecimento na esfera do direito e da estima social.
Weliton participou do cursinho durante o ano de 2016 e, com o término do curso,
resolveu doar os materiais que havia comprado, pois queria ajudar alguém. No dia que foi
levar os materiais para doação, foi roubado na porta do cursinho sob as vistas de todos.
Foi um roubo, assim, que eu não sei te explicar, porque eu fui o único da
turma que quis doar. Roubaram meus materiais, celular, documentos
pessoais, dinheiro e outras coisas. Então, quando eu vi aquilo, eu perdi as
esperanças de tudo. Tipo, eu não quero fazer Enem, eu não quero fazer
nada. Então, eu já estava bem focado em tudo, eu realmente estava disposto
a ir, eu ia tentar pela mesma faculdade de novo, mas só que, aí, eu não quis,
eu não tive cabeça para fazer o Enem.
Segundo o jovem, a violência sofrida fez com que ele desistisse de fazer o Enem três
dias antes da prova e optasse pelo curso técnico em Enfermagem, que iniciou no ano de 2017.
A desistência reforça as colocações de Honneth, ao afirmar que uma situação de desrespeito
“atua como freio social que pode levar a paralisia do indivíduo” (SOBOTTKA, 2015, p. 29).
Consideramos que, diante da sua falta de preparo e da necessidade do reconhecimento do
outro, Weliton justificava a desistência a partir do ato de violência, para, provavelmente, não
ter que responder por um possível “fracasso” no processo seletivo do Enem diante de
familiares e amigos/as.
Weliton afirmou que tentou bolsas em universidades particulares, sem ser via ProUni,
mas o máximo que conseguiu foi 50%, e, devido as suas condições econômicas não daria para
se manter na faculdade.
Nos anos de 2016 e 2017, o jovem não tentou o Enem e, como já vimos, informou que
ia terminar o curso Técnico em Enfermagem, para depois tentar se inserir no curso de
Medicina. Weliton considerava que o curso que escolheu era difícil, pois
para fazer a Medicina, tem que ter uma realidade que não é a minha. Com
tempo, porque é muito estudo, e uma boa situação financeira, pois quem é
333
estudante de Medicina tem que se dedicar. Eu não estou preparado pra isso,
provavelmente eu teria que me afastar do trabalho, pra eu poder me
dedicar, eu teria que viajar pra fazer alguns estudos, coisa que, que hoje eu
sei que eu não tenho isso, eu não tenho, toda essa... As oportunidades, né,
que eu também não tenho, e eu não vou tá preparado financeiramente pra
isso. Então, antes de tudo, eu queria estar na área da saúde. Vou fazer
Enfermagem, trabalho, me estabilizo e, depois, eu engreno na Medicina. Um
médico que se preze, o mínimo eu tenho que ter um bom conhecimento da
minha área. Então, nada melhor que começar lá debaixo. Ser um técnico de
Enfermagem, assim, quando eu chegar lá, eu vou ter conhecimento.
158
Slam é uma competição em que poetas leem ou recitam um trabalho original. As performances são, em
seguida, julgadas por membros de uma comissão ou selecionados por uma comissão de jurados. Slam da
Guilhermina-final 2017 - Tawane Theodoro - Poesia - Eu não queria ser feminista. Acesso em: 4 de
setembro de 2018. Disponível em: https://youtu.be/PQIbbDKzehw
337
afirmar que morar no local descrito pela jovem interferia significativamente nas suas
vivências enquanto jovem, afinal, como ressalta o autor, o território é o espaço vivido. Maria
Alves e Igor Oliveira (2014) ressaltam a relevância do território para entendermos os modos
de ser dos/as jovens e os acessos que esses/as jovens têm quanto à escolarização e podemos,
aqui, incluir a dimensão do trabalho. O território vivido por Dayane representava mais uma
das formas de violações que ela vivência, pois tratava-se de um local precário, insalubre e
com poucas possibilidades de acesso à educação, saúde e bens culturais, como a jovem citou.
A jovem narrou um pouco das suas vivências da infância:
Então... Quando a minha mãe conheceu o meu pai, o meu pai era abusivo,
né? Agredia ela e tal. Aí, ela veio para BH, eles foram morar juntos e
acabou que a minha mãe engravidou. Ele era muito abusivo com ela, aí, ela
foi ficando. A gente passou fome demais. A gente morava na favela. A gente
morou lá de favor. A dona cedeu a casa para a gente morar a parede e
meia, mas assim, ela [a dona] tinha muito envolvimento com drogas, então,
era muita polícia. A minha mãe ficou com o meu pai uns quatro ou cinco
anos, mais ou menos, e aí, acabou que, um dia, como ela apanhava muito,
ela tomou a decisão de me deixar com ele e ir embora. Ainda bem que ela
decidiu assim, porque eu acho que, se ela tivesse ficado, ela não tinha
sobrevivido, porque foi condição, assim, bem trágica.
Ele simplesmente vendeu a casa, vendeu tudo que era nosso e, aí, a gente foi
morar em Montes Claros [MG] com a minha avó. Mas, assim, a minha avó
também era “bem ruinzinha”. Ela me batia, o meu pai também me batia. Ele
me humilhava, batia na minha cara, esfregava comida na minha cara. De
Montes Claros a gente foi para Uberlândia [MG] e a minha mãe ficou no
Jardim Leblon [BH] com as irmãs dela. A minha mãe não sabia onde que eu
estava e nem com quem eu estava, porque o meu pai, quando ligava para
ela, ele fazia muito aquele drama de: “ah, fala com a sua mãe. Sabia que
ela tem outra família?” Ele falava muito disso comigo, que ela tinha me
deixado, porque ela tinha assumido outra família. Eu fiquei com ele um ano.
E, aí, lá em Uberlândia, eu fui morar com ele em uma ocupação. Aí, eu
passava fome demais. A gente morava em um barraco de lona, não tinha
nada. A gente ficou lá por um tempo e, assim, ele me deixava muito nas
casas de outras pessoas que ele nem sabia quem era, e, nisso, eu tinha uns
338
seis, sete anos mais ou menos. Era uma bagunça. Não tinha horário para
nada. Então, assim, eu fiquei muito sujeita a condições vulneráveis, a certas
condições com homens e tal, de abuso sexual. Só sofrimento mesmo [respira
fundo e chora]. Um pai deixar a filha nessas condições é só tristeza, né?
Nem sei se é pai. Um traste.
No depoimento, Dayane trazia as diferentes violências que sofreu ao viver com o pai.
A jovem informou que, decorrido um ano que estava com o pai, a mãe dela fez contatos com
parentes dele, até descobrir onde a filha estava e foi buscá-la. Dayane lembrou que ficou
muito feliz e imaginou que sua mãe tinha uma casa, tudo organizado, mas, na verdade, a mãe
era alcoólatra e tinha outro parceiro abusivo. Afirmou que a mãe “ficou pelejando” muito
para conseguir terminar o relacionamento, pois o parceiro não aceitava. Diante do contexto de
alcoolismo, uma adolescente para cuidar e um parceiro abusivo, Dayane afirmou que as irmãs
da mãe não as acolheram, fazendo com que mãe e filha ficassem “vagando” de um lugar a
outro. Decorridos alguns meses, elas foram acolhidas pela dona da casa em que moram.
Desde então, a mãe de Dayane conseguiu largar o vício do álcool e iniciou em um trabalho
como empregada doméstica, no qual estava até a data da entrevista.
Dayane explicitou que, após conseguir se organizar, a mãe começou um novo
relacionamento e, mais uma vez, o parceiro era abusivo:
159
Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. “Cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências” (BRASIL, 2006).
339
[...] eu e a minha mãe, a gente sempre se deu bem. Minha relação com
minha mãe é tudo, porque ela é pai e mãe. Sempre conversamos sobre a
vida... Hoje eu meio que ajudo ela a resolver as coisas dela, porque desde
sempre minha mãe nunca se impôs, deixava tudo. Até comigo mesmo.
No depoimento, assim como para os/as outros/as jovens, vemos a centralidade da mãe
na vida de Dayane ‒ mesmo com a história de separação e violência que vivenciaram, não
houve ruptura do laço materno. Importante ressaltar a nova postura da filha diante da mãe,
pois, se antes não conseguia interferir e ajudá-la, o cenário se alterou e a jovem passou a
contribuir na resolução “das coisas da mãe”. Dayane mencionou que, embora morassem
sozinhas, elas cuidavam de um tio materno que morava no cômodo ao lado e que era
alcoólatra. Cabe ressaltar que, ao contrário da maioria dos/as outros/as jovens, que
vivenciavam uma ausência presente do pai, no caso de Dayane, a figura masculina era
totalmente ausente. Após a mãe buscá-la, ela não teve mais nenhum contato com o pai e
afirmou que rejeitaria qualquer possibilidade de contato.
Nesse contexto, a responsabilidade da casa, bem como da própria sobrevivência,
passou a ser da mãe de Dayane com a contribuição desta jovem, assim como vimos com o
jovem Weliton. Segundo Dayane, desde que ela teve seu primeiro emprego, a divisão das
contas da casa era realizada entre ela e a mãe:
Eu e minha mãe dividimos as contas, mas não é igual. Sobra dinheiro para
mim, a maior parte das coisas, por exemplo, aluguel, água e luz é minha
mãe quem paga. Eu ajudo com 100 reais. Minha mãe paga aluguel, mas lá
em casa o aluguel é baratinho e eu ajudo com 100 reais e com o meu ticket
de alimentação para minha mãe fazer as refeições. É pouco, mas sem minha
ajuda ficaria difícil. Mas, a maior parte fica para minha mãe, mesmo. Aí do
meu dinheiro, sobra uma parte para mim, eu também pago internet, porque
eu que faço o uso, e eu tenho gatos[animais de estimação], aí, eu tenho
gasto com eles.
Por meio da narrativa de Dayane, era possível evidenciar que o salário da jovem se
constituía como parte significativa para a gestão da casa. Mesmo não sendo uma divisão
340
desde 2014, alimentava o sonho de se inserir no ensino superior público, o que tentou por três
vezes, mas, até a realização da presente pesquisa, não havia logrado êxito.
A jovem compartilhou que o dilema cotidiano que enfrentava era o de ser jovem
mulher tanto pelo contexto de violação que viveu quanto pela forma machista na qual a
sociedade foi construída:
Nossa, ser mulher é tenso! Ainda mais jovem. É muito difícil. Mulher não
pode nada. Tem que é se preocupar em não engravidar. Você ainda pode ser
desrespeitada. Ser mulher é muito difícil, é muito injusto, pois você carrega
todo peso social e físico da gravidez. Socialmente é aceitável que o homem
tenha filhos e abandone, agora a gente [...].
E, os cuidados que a gente tem que ter na rua, que as pessoas acham no
direito, que, por ser homem, tem direito de “mexer”. O direito sobre seu
corpo não é do outro. O problema é que o pessoal sempre arruma uma
justificativa para dizer que a mulher que está errada. Assim, eu tenho spray
de pimenta que eu carrego comigo dentro da bolsa, mas eu sei que, se
alguém me atacar na rua, homem, que é a maior probabilidade, não tem
como eu reagir, porque eu não tenho força. Então, assim, você tem uma
preocupação de não andar sozinha, de vestir uma roupa e repensar se
aquela roupa que você quer sair não vai ser muito assediada. Se é um dia
que você quer colocar sua roupa curta lá e não interessa o motivo, você tem
que repensar se você está muito “a fim de tolerar assédio”. Então, é
horrível. Você ter que pensar na sua roupa todos os dias. Pensar no modo
que vai falar para não parecer que você está dando uma brecha para o cara
achar que você está “dando em cima dele” ou “dando mole para ele”. Tudo
que você tem que fazer é pensado, então, para mim, eu acho pesado,
bastante. Pronto, falei.
Enfatizamos que o fato de ela ter que andar com um spray já denota uma realidade violenta e
opressora contra as mulheres. Comentou a possível consequência de uma casual escolha por
uma mulher de vestir uma roupa curta, o que poderia estar “chamando a atenção” e a
sujeitando ao assédio, ou seja, fazia uma representação da responsabilização da mulher, pois a
violação de direitos se justificaria pela roupa utilizada e não pelo ato em si. Tendemos a
considerar que as relações de poder que permeiam o gênero, como afirma Joan Scott (1995),
são a base para “ler” o corpo da mulher como um objeto que pode ser tocado e assediado. No
caso da jovem Dayane, consideramos que as violações eram ainda mais intensas, pois se
tratava de uma jovem, mulher e negra. Como afirmam Nilma Gomes e Shirley Miranda
(2014, p. 86), “o cenário de hierarquização que articula gênero e raça incide diretamente sobre
os corpos” e, articulado à idade, se interseccionam gênero, raça e idade.
Ainda com relação à dimensão de gênero, Dayane disse que via diferenças da sua
criação em relação a de seus primos que não tinham sido ensinados a “se virarem” sozinhos,
pois eram homens. Segundo ela: “isso, para mim, foi ótimo. Eu sei fazer quase tudo. Eu sei
me virar sozinha, faço muita coisa. Eu tenho consciência que você tem que se manter, que
você tem que se organizar na vida, que você tem que gerir seu dinheiro, essas coisas”. O
depoimento da jovem sublinhava a construção social do gênero, em que as famílias têm um
papel importante, mas tendem a reproduzir as mesmas lógicas de “internalidade feminina” e
externalidade masculina (HIRATA; KERGOAT, 2007), como já analisamos anteriormente na
cena da Rebeca.
É importante ressaltar que a jovem afirmou que seu posicionamento acerca das
relações de gênero se alterou significativamente, após sua inserção na Universidade como
jovem trabalhadora, pois conversava muito com os/as colegas de trabalho e também com
os/as discentes com as quais fez amizades, especialmente após sua entrada no Projeto
InterAgindo160. A jovem citou que os debates contribuíram para deslocar seu olhar sobre as
construções sociais e sobre “ser mulher” e “ser homem” na sociedade.
Por último, considerando-se as dimensões da feminilidade, Dayane mencionou que os
abusos sofridos pela mãe e as diferentes violações sofridas por ela, bem como a constituição
machista da sociedade, trouxeram impactos na maneira com que vivenciava sua afetividade:
160
Como já ressaltamos na introdução da tese, o projeto foi uma ação de extensão desenvolvida pelo Programa
Observatório da Juventude que possibilitou, dentre outras temáticas, um espaço de reflexão sobre as relações
de gênero na sociedade contemporânea.
343
princípio, sofri muito com isso, mas hoje eu vejo que eu sou uma pessoa
mais resistente, eu me superei, eu tenho um controle emocional maior,
porque eu estou acostumada com a perda e com a violência. Hoje eu acho
que tenho maturidade em cima do que eu já passei. Acho que sou mais
resistente hoje. Assim, mesmo sendo resistente, eu tenho dificuldade, como
eu não tive um modelo de referência do sexo masculino, de lidar... Então, eu
sei lá, eu acho que eu tenho um pouquinho de dificuldade de lidar, assim,
com homens, acho que eu tenho um pouquinho de medo também. Eu quero
ser dona de mim, não quero depender de ninguém, assim, precisar dos
outros, mas, assim, eu acho que para eu casar, sei lá, casar e, a partir daí
dividir minha vida financeira, eu acho muito difícil. Acho que prejudicou só
nisso, assim, eu acho que só tenho dificuldade com isso, mas, de resto, eu
acho que eu consegui superar bem e resistir. Acho que eu fiquei “fechada”,
mas, para mim, está sendo bom, ao mesmo tempo, eu estou me protegendo
de cair numa relação abusiva, mas não sei, eu acho que eu fiquei muito
“fechada” e acho que é normal, pelo contexto que eu vivi.
A dificuldade de se relacionar revelada por Dayane, mais que ser apreendida como um
problema da jovem, expunha o contexto de violação de direitos por que passou. O lugar de
fragilidade construído socialmente para as mulheres – o qual, por sua vez, tendia a ser
naturalizado por ela – e as violências que o pai a fez sofrer – o que reforçou a referência
negativa quanto à figura masculina – contribuíram para que Dayane tivesse medo de relações
abusivas. O desejo da jovem de ser “dona de si”, em contraponto a “ter um homem como
dono”, pode ser um reflexo dos relacionamentos violentos da mãe, mas, especialmente, uma
necessidade da jovem de romper com as hierarquias “valores, comportamento e papéis,
associados ao homem e a mulher” que são a base do sexismo (NOGUEIRA; D’ANDREA,
2014, p. 23). Lemos que o “fechamento” da jovem para relacionamentos amorosos foi uma
forma de proteção que a mesma encontrou. Sua trajetória, segundo ela, fez com que fosse
mais madura e que possuísse “maior controle emocional”, pois, segundo ela, teria se
acostumado a vivenciar perdas e violências. O contexto de desumanização vivenciado por
Dayane “desumanizava” a sua percepção acerca da violação – pois a jovem parecia considerar
“positivo” retrair-se, porque, assim, se “protegia” e avaliava, portanto, que “tornou-se
resistente e superou”. Tal postura demonstrava, ainda, que, mesmo num contexto social de
ampliação dos direitos das mulheres – com legislação de proteção –, ainda é necessário lutar e
(re)existir a um sistema sexista e machista. Perante o explicitado por Dayane sobre as
vivências como mulher pobre e negra, retomamos a poesia de Tawane Theodoro para
salientar que as diferentes violações contra as mulheres ainda são muito atuais e ser feminista
passa, de fato, a ser um “desespero” diante de um cenário tão complexo.
344
A jovem Dayane havia informado, em 2012, que começou a trabalhar para ser
independente. Ficou sabendo da CVB por uma vizinha que já trabalhava na UFMG. Sua mãe
a ajudou no processo de inserção, evidenciando o peso dos laços fortes (GRANOVETTER,
1974) e dos circuitos domésticos, como vimos em todas as cenas. A jovem trabalhava em uma
unidade acadêmica na recepção da pós-graduação. Após o desligamento, foi contratada como
estagiária do laboratório da mesma faculdade, devido ao fato de fazer curso Técnico em
Segurança do Trabalho. O horário de trabalho era de seis horas diárias, das 10h às 16h.
Segundo Dayane, no laboratório ela “digitava laudos, cadastrava exames, fazia envio
de notas fiscais de orientações de coletas”. As funções que desenvolvia não dialogavam com
o que aprendia no curso que fazia. O técnico em Segurança do Trabalho atua na elaboração,
orientação e coordenação da política de saúde e segurança do trabalho. A jovem, assim como
Sérgio, resolveu fazer o curso técnico, por acreditar que conseguiria se inserir mais facilmente
no mercado e por ter sido incentivada pelos/as colegas de seu setor, pois, assim, conseguiria
continuar na UFMG.
O estágio foi o meio possível para garantir a contratação da jovem, mas não contribuiu
para sua área de formação. Parece que a postura de Dayane frente ao mercado de trabalho foi
estratégica, mas, ao mesmo tempo, não refletida a longo prazo, pois o contrato era somente
por dois anos e ela não teria condições de praticar e experimentar a atuação na área do curso.
Ademais, como já enfatizamos, especialmente na cena de Sérgio, é importante chamar a
atenção para que a qualificação profissional não pode ser lida como sinônimo de ingresso no
mercado de trabalho161. Ou seja, a qualificação profissional é apenas um elemento para a
inserção e permanência no mercado de trabalho.
Decorrido um ano e meio, o contrato de estágio foi encerrado, pois o curso técnico
acabou. A jovem informou que, mesmo assim, continuou trabalhando na UFMG, porém,
como terceirizada. Conseguiu uma indicação por meio de um colega de trabalho, da época em
que ela estava como estagiária. Essa forma de inserção, assim como ocorreu com Caio,
Letícia e Rebeca, traduz a importância dos “circuitos profissionais” (GUIMARÃES, 2009)
para contribuir para o processo de inserção no mercado de trabalho. E, assim como Caio e
Letícia, a indicação de Dayanne se relacionava à dimensão do mérito. A função da jovem se
relacionava ao que ela fazia quando trabalhava na UFMG, via CVB, como vemos:
161
Cf. LEITE, 1997; ANTUNES, 1999; SEGNINI, 2000; ALVES, 2007; NEVES, 2006, ANTUNES;
POCHMANN, 2007; ARAGÃO, 2008.
345
Ao contrário de Letícia e Caio, que também eram terceirizados, a jovem trouxe à tona
outras dimensões do trabalho como terceirizada na UFMG. Questionou essa lógica, mesmo
dentro da universidade, o que destoava das vivências dos jovens supracitados e ratificava o
trabalho como relação social, sendo diferentes os modos de experienciar o trabalho, mesmo na
mesma instituição. Com relação à falta de equipe, parecia ser este um fator que podia
comprometer a socialização e a sociabilidade nos espaços de trabalho, pois cada funcionário
estaria submetido a uma regra e teria que responder a uma chefia diferente. Assim, as relações
interpessoais, os contatos, as afinidades e o trabalho em equipe poderiam ser limitados, e até
inexistentes, com processos de trabalho cada vez mais individualizados tanto do ponto de
vista do desenvolvimento das atividades quanto na organização institucional.
Tal contexto retrata a intensificação do trabalho sustentada pela gestão do medo, o que
é uma marca do processo de flexibilização. No caso de Dayane, parece que o processo de
terceirização apresentava impactos mais visíveis e intensos, pois revelavam as múltiplas
formas de precarização dos/as trabalhadores/as terceirizados/as, tais como: tipos de contratos,
346
diferença de remuneração para as mesmas funções, condições de trabalho e até mesmo perda
de identidade coletiva (DRUCK, 2011; SILVA, 2014).
As experiências de trabalho de Dayane na UFMG foram diversas no que tange ao tipo
de vínculo. A jovem trabalhou, via CVB, em seguida, como estagiária e, posteriormente,
como terceirizada e trazia sua visão acerca dos tipos de contratação:
Eu acho que é uma cobrança muito diferente. Quando eu era da CVB, era a
primeira experiência; não que eu não tivesse responsabilidade nem
cobrança naquele tempo, mas as pessoas chegavam assim: “primeiro
emprego dela, ela ainda está aprendendo, vamos cobrar menos”. Mas eu
acho que, assim, não sei se por ser universidade, ou por causa das pessoas,
o trabalho era uma forma não só de eu ganhar dinheiro, mas também de
desenvolver em todos os sentidos. Então, alguns erros que eu cometia, eu
era chamada atenção, mas tudo muito compreensivo e me falavam porque
eu errei e eu aprendi. Aí, depois disso, é: “foi você que fez isso, então vai
consertar”. Quando eu fui terceirizada, eu vi que o mundo era
completamente diferente, tipo assim, eu já esperava dificuldade, mas, mesmo
dentro de uma universidade, você ser terceirizada, você vê um peso muito
grande, né? E quando eu era da CVB e estagiária, às vezes, eu precisava
sair mais cedo, essas coisas; o pessoal ajudava e compreendia, depois disso,
ninguém não está nem aí. Eu acho que a cobrança mudou muito.
O percurso na UFMG foi avaliado pela jovem de maneira positiva, apesar dos
diferentes vínculos que trouxeram para Dayane distintas lógicas de trabalho:
[...] o tempo que eu passei aqui, esses quatro anos, né, de CVB, até
terceirizada, para mim, foram ótimos. Conheci muita coisa, conheci pessoas
que até hoje me dão conselhos e algumas são minhas amigas. Aprendi o que
é o mundo capitalista, o preconceito, a desigualdade... Nossa, tanta coisa.
Foi aí que eu comecei a traçar os projetos de área acadêmica, essas coisas,
foi mais ou menos isso. Foi o que me direcionou, porque quando eu estava
no ensino médio, eu sempre quis mudar de vida, ser alguém, sabe? Sei lá,
fazer um curso superior; e, aí, eu fui aprendendo como que eu ia fazendo e
tal. Você acha que no ensino médio, se eu soubesse, sei lá, acho que desde
sempre, se eu soubesse o que era um projeto de vida, o que sentar e escrever
sobre projeto, onde você pretende chegar daqui a cinco anos, o que você vai
fazer, como você vai fazer, nossa, me faria diferença demais. Então, assim, a
partir do ingresso na universidade e através do projeto InterAgindo, que eu
fui aprender a fazer um projeto de vida. Para mim, foi muito importante,
porque eu aprendi, compreendi o que é, como tem que ser feito, porque, às
vezes, a gente sonha, mas a gente não sabe como faz. Então, depois que eu
entrei na universidade, que eu fui tendo contato e, aí, eu aprendi a traçar
minha vida, não sei se eu aprendi exatamente, né?! Eu acho que sim, estou
traçando. Eu sei que não é assim, tintim por tintim, mas precisamos saber o
que queremos para pensar nas estratégias. Temos que pensar nas
possibilidades e saber que não é somente você sozinho que vai conseguir.
Vamos ver.
No relato, Dayane demonstrou o quanto foi ruim passar pelo processo do desemprego.
O sentido da independência citado pela jovem desde o início do seu trabalho na UFMG foi o
fator que mais contribuiu para o seu constrangimento, pois não aceitava o fato de a mãe ter
que pagar suas contas. Mais do que ela não aceitar, pontuamos, também, a falta de condições
da mãe de contribuir com a jovem. Para Dayane, distintamente de todos os/as outros/as
jovens, seu desemprego tinha repercussões nas condições básicas de sobrevivência de sua mãe
e dela mesma. Concordamos com Guimarães (2008) que salienta:
Assim, para a jovem, a necessidade familiar se sobrepunha aos seus desejos, pois não
podia deixar de trabalhar “sob pena de padecerem por necessidades básicas para a
manutenção da vida” (SANTOS; GENTIL, 2016, p. 65).
349
Outra questão pontuada pela jovem se referia à falta de dinheiro como algo que
provocava estagnação, pois impossibilitava determinados acessos. Quanto à dimensão
temporal, a falta de ocupação gerava a sensação de um “tempo mais demorado”. A expressão
“barata tonta”, usada pela jovem, enfatizava a reflexão de Thin (2006) sobre o trabalho como
uma categoria importante no controle do tempo, dependendo do trabalho, formas de trabalho e
relações. Mas não podemos esquecer que o tempo de trabalho, como um tempo de rigidez e
controle (CARDOSO, 2007), tem sido significativamente alterado com o processo de
flexibilização do trabalho.
Desta maneira, diante da flexibilização, os tempos são mais intermitentes, ocorre a
intensificação do trabalho, a ampliação dos bancos de horas e do excesso de hora extras,
assim, a separação entre tempo de trabalho e de não trabalho tende a diminuir, como aponta a
autora supracitada, o que nem sempre contribui para organização temporal. Todavia, assim
como para Letícia e Sérgio, a experiência do desemprego foi para Dayane um momento de
sofrimento e de frustração. Uma característica comum aos/as jovens, com exceção de Breno,
foi o sofrimento pelo retorno à dependência financeira da mãe e/ou pai, após a saída da CVB.
O desemprego trazia sofrimento, mas o período mais tenso, segundo a jovem, foi o fim do
seguro desemprego. A jovem lembrou que recebeu quatro parcelas do seguro e que, nesse
período, investiu no primeiro cursinho pré-vestibular e nas despesas de casa. Porém, o tempo
do seguro acabou e ela continuou sem trabalho.
Após 8 meses de desemprego, a jovem conseguiu uma inserção numa empresa
privada. Trataremos com detalhe dessa inserção, pois Dayane estabeleceu um sentido muito
dissonante da sua experiência na UFMG, via CVB, estágio e terceirização para a nova
ocupação.
muito cedo. Trabalhar meio horário e perto de casa eram fatores positivos, o que, por sua vez,
não diziam do trabalho de maneira geral. Quanto à rotina do trabalho, a jovem mencionou:
[...] você é um número, né?! Então, não importa quantas vezes eu fiquei
para solucionar um problema de um cliente, ou que eu fiquei para ajudar
meus colegas de trabalho, você é um número, ou você fez 65 mil [valor da
meta que tem que bater], ou você não fez, ou você vende muito, ou você não
vende. A forma que você faz e o meio que você faz não interessa. Você bate
meta, ou não bate. Para mim é horrível, porque eu acho que eu deveria ter
reconhecimento por algumas coisas que eu já fiz, sabe? Por exemplo, de
ajudar, de atender, de compreender o cliente e meus colegas de trabalho,
mas não tem. Nem sei se posso chamar de trabalho. Deveria ser legal, né?
Uma marca do sistema capitalista atual é lidar com a força de trabalho humana como
uma mercadoria como qualquer outra. Assim, como apontam Gaudêncio Frigotto e Maria
Ciavatta (2003)
Onde eu estou hoje, eu só tenho aquele caminho. Não tem muita gente se
importando com o que eu vou fazer, né, com o que eu falo. Por exemplo, na
universidade eu tinha professores com quem eu podia conversar, com quem
eu podia questionar a ordem das coisas, né? Preocupados com minha
formação. Mas, empresa privada é meio que você sentar lá e fazer o seu
serviço, ir embora e não questionar mais nada. E, assim, como eu sou muito
curiosa, sabe, eu sou muito questionadora das coisas. Assim... Então, assim,
você tem que ter muito cuidado com quem você fala e o que você fala, né? O
negócio em empresa privada é realmente isso, sentar lá, fazer o seu, fazer
dinheiro, enriquecer alguém e ir embora para a sua casa.
[...] onde eu trabalho, assim, eu acho que é meio alienante. E você não tem
nenhum outro desenvolvimento, nada que você possa se... sabe? Não sei,
parece que, sei lá, porque está todo mundo tão focado ali. Era diferente de
trabalhar aqui [UFMG]. Tinha pessoas com um nível de instrução maior
que o seu, então, você aprendia mais coisas. Mas lá, não, é todo mundo com
o ensino médio, eu também tenho, mas, assim, um pessoal pouco instruído,
então, é meio que alienante. Você faz aquilo ali da sua vida, sei lá, lá eu não
vejo caminho de ter nem uma promoção. Então, assim, às vezes, eu não fico
tão animada de investir numa carreira, sei lá, vou fazer um curso de gestão
financeira, algum curso na área de gestão, ou da área que o laboratório
atua, para conseguir uma promoção que não tem perspectiva. Então, você
fica ali; ou você pega aquele dinheiro do “trabalhinho” ali e investe em
352
alguma coisa para você mudar de cargo em outra empresa. Vou ficar lá por
um tempo, não é onde eu quero ficar por muito tempo, mas, enquanto eu não
arrumo outro, eu vou ficando. É alienante por conta disso, você não vê uma
perspectiva de mudança, então, aí, você vai ficando, aí, só tem aquilo ali
para você, e aí, para mim, é serviço repetitivo, né? Então, para mim fazer
aquilo ali, aquele serviço repetitivo, você faz “no automático” todo dia e
pronto, não tem mais nada a fazer não. E ainda tinha a questão de ser
terceirizada novamente. Trabalho lá, porque não tenho outro, é sem sentido,
sabe.
Os sentidos que a jovem estabeleceu com o último trabalho destoavam muito das
experiências como jovem trabalhadora (CVB), estagiária e terceirizada que teve na UFMG.
Ela afirmou que já buscou outras inserções, mas não conseguiu e, devido à necessidade, não
podia sair do trabalho. A dificuldade de encontrar novo trabalho poderia ter relação também
ao tipo de trabalho que era oferecido a ela e, devido a ter começado a trabalhar muito cedo,
tinha dificuldade diante de um campo de possibilidades mais restrito tanto do ponto de vista
das redes de contato quanto da formação que era também importante. A jovem afirmava que,
cada vez em que atuava, o trabalho era mais alienante, com poucas possibilidades de
crescimento pessoal e profissional, sem sentido, mas as exigências para a inserção eram cada
vez maiores:
realidade do mercado quanto por se sentir ainda mais aquém diante exigências dele.
Salientamos que o fato de ter somente 22 anos, como mencionado pela jovem, enfatizando
especialmente a insuficiência de suas qualificações, não poderia ser entendido de maneira
isolada, pois, diante do mercado de trabalho, ela poderia acumular requisitos e/ou credenciais
e, mesmo assim, ficar sem trabalho, pois, como já citamos, em praticamente todas as cenas,
diferentes fatores repercutiram na inserção no mercado de trabalho.
Chama a atenção a consciência que a jovem detinha acerca da importância de suas
escolhas. Afirmava que uma escolha errada, especialmente no campo do trabalho, poderia
trazer consequências para sua vida. Sua estratégia era conversar com os/as mais experientes,
para conseguir traçar melhor seus projetos. Mencionamos que as incertezas da jovem se
referiam a um contexto mais amplo de globalização marcada pelas desigualdades de
oportunidades, que são ainda mais fortes para mulheres jovens e pobres, como é caso da de
Dayane e também pela “fragilização dos vínculos institucionais” (CARRANO, 2009).
Vivenciamos um paradoxo de um mercado que impõe “um perfil para o jovem que envolve
características nunca antes exigidas” (Aline DORNELLES; Carlos REIS; Vanessa
PANOZZO, 2016, p. 87), mas, ao mesmo tempo, apresenta um mercado que não tem vaga
para todos/as associado a precariedade das condições de trabalho quando se alcança uma vaga
no mercado.
planejamento e, não raras vezes, por um processo sem sentido, pautado em um discurso
corrente de que os cursos e os diplomas são garantias de melhores inserções. Diante disso,
fica notória a importância de suportes que possibilitem espaços de reflexão acerca do campo
de possibilidades da jovem e contribuam para sua tomada de decisões.
Nesse contexto, a universidade aparecia como um sonho para Dayane e a distância que
ela via em relação a sua inserção na universidade foi minimizada com sua entrada na CVB,
como pontuou:
Fazer faculdade ainda está distante, mas era mais. Antes um pouco de
entrar no ensino médio e principalmente aqui [UFMG/CVB] eu nem sabia
como fazia, como funcionava entrar na universidade, eu sempre achei que
era pago. Então, quem ia fazer é quem teria dinheiro. Eu não sabia o que
era universidade pública, não conhecia universidade pública, não sabia
como funcionava, aí, assim, depois do ensino médio que eu comecei a ter
uma noção de como que funciona o negócio, como você faz para ingressar
na universidade, para você fazer um curso superior. O pessoal do trabalho
também explicava tudo...Parecia distante, porque eu não sabia como
funcionava, né? Achei que tinha que pagar e, aí, agora, eu ainda acho
distante, porque eu tenho uma educação básica defasada. Então, assim, eu
tenho que “correr atrás” do prejuízo agora, não está tão acessível, tem
muita coisa que eu tenho que voltar lá no básico. Agora eu tenho que correr
atrás do que eu não aprendi.... Ah, sim, então, eu sempre quis fazer
faculdade, né?! Não sei se é pior [risos]...Porque agora sei que preciso
passar é nessa pública [Universidade Pública] e não passo. Não posso
justificar que não tenho dinheiro para pagar, tem pública... Nossaaaaaa [faz
um gesto de ter que se esforçar e suar].
É interessante apontar que, para Dayane, o trabalho não foi uma causa da defasagem
no aprendizado no ensino médio, mas, sim, a precariedade do próprio ensino. Desde o ano de
2012, a jovem havia informado que trabalhar e estudar era difícil, mas, na UFMG, era
possível conciliar as duas atividades.
[...] gente, eu não tinha tempo para estudar. Cursinho é para você revisar
três anos de ensino médio e eu chegava lá e não sabia. Eu estava atrasada,
não estava revisando, mas vendo aquela matéria a primeira vez. Dois
fatores, eu acho, que o que mais pesaram em geral foi o ritmo do cursinho,
muito acelerado. Porque, assim, Matemática eu estou tendo uma dificuldade
muito grande para acompanhar, porque Matemática é prática, e você tem
que saber o básico. Se você não sabe o básico, você não faz o resto. Você
não segue, e para mim eu tenho muita dificuldade porque o básico eu fui
rever umas aulas aí, quando eu fui ver eu não estava sabendo fazer nem as
operações básicas, o básico do básico eu estava com dificuldade. Então,
assim, esse lado da área de exatas, eu sinto que eu estou muito desfalcada.
As outras [matérias] eu ainda consigo desenvolver, mas exatas eu me sinto
muito prejudicada. E o outro era mesmo a falta de tempo para estudar.
Os fatores que a jovem mencionou acerca da sua inserção no cursinho têm relação
com o ensino médio e com o trabalho. O primeiro, sobre o ritmo do cursinho, o qual ela não
conseguia acompanhar, respalda a ideia que o tempo é uma construção subjetiva, pois o
162
O curso preparatório para o Enem se configura como um projeto de extensão da UFMG. O projeto é gratuito
organizado por alunos/as de algumas engenharias da UFMG e supervisionado por professores/as.
358
Aí, esse ano eu não fiz cursinho, porque eu não consigo acompanhar
cursinho, e financeiramente também pesou para mim, porque eu trabalho só
meio horário. Aí, assim, eu tenho que ajudar em casa, né, a minha mãe paga
aluguel, aí, meio que não sobra, não sobra mais. Aí, depois eu vou para
casa, e eu estou tentando estudar em casa, só que eu tenho muita dificuldade
com procrastinação. Eu procrastino demais. Mas, assim, aí, a partir de 13h
mais ou menos, eu já estou em casa e, aí, eu tento estudar. Eu preciso entrar
na universidade, mas saio do trabalho e durmo [risos]. Primeiro eu vejo
séries, eu estou tentando estudar, mas, assim, você estudar em casa é muito
difícil, sozinha é muito difícil.
Parece-nos que a falta de disciplina de Dayane para estudar teria relação com a sua
dificuldade de aprender determinadas matérias, o que desestimulava os estudos. Mas também
teria vínculo com o seu contexto familiar, pois, como a jovem expôs, em sua infância não
havia horário para nada, era tudo muito livre tanto na vivência com a mãe quanto com o pai.
As condições de vida da infância e da adolescência, bem como os limites dados, tendem a
repercutir diretamente nas vivências da juventude.
Dayane tinha o sonho de entrar numa universidade, mas mesmo tendo consciência do
seu projeto, não conseguia estabelecer para si uma disciplina. Cabe lembrar ainda que,
segundo a jovem, o trabalho não era mais a justificativa para o não estudo, pois ela trabalhava
seis horas no dia. Todavia, como já enfatizamos na cena de Weliton, o fato de trabalhar seis
horas não garante o tempo de estudos, pois, como salienta Cardoso (2007),
Eu quero estudar na UFMG... Ah, para mim, tem que ser aqui [UFMG]
porque, assim, como é só eu e a minha mãe, eu não tenho a possibilidade e
nem quero ir para outro estado, ir para outra cidade, cursar outra
faculdade. E ProUni eu não considero, porque, gente, eu tenho que entrar
em uma universidade pública, não é possível, entendeu? ProUni eu já
considerei, mas assim, eu sei que eu tenho potencial, eu não sou, eu estou é
desleixada, mas, se eu estudar, eu entro para uma universidade pública. É,
eu sei que eu tenho potencial, sabe?! Eu já fiz um cálculo de nota mais ou
menos, já sei, né, eu tenho um planejamento, eu tenho um plano, eu tenho
um planejamento. O que que eu vou fazer em uma universidade particular?
Tem uma universidade pública. Então, é aqui que eu tenho que estar. É ter
acesso ao que é direito meu, essa universidade é financiada com dinheiro
meu e de todo mundo e é uma universidade pública, então, é acesso ao que é
direito meu, o que o estado deveria garantir para todo mundo.
gosto, seria a Veterinária, mas eu não tenho condição de fazer isso, não. É,
mas assim, não que eu não goste de Direito, mas, aí, também, eu tive que ir
não só pelo que eu gosto. E eu tive também que avaliar a carreira, né? Eu
queria fazer o que eu gosto, mas dentro das condições eu vou fazer o que dá
e quem sabe lá na frente não dá... Eu também estou nova, eu tenho 22 anos,
é, então, assim, lá na frente que eu vou ver, às vezes, ainda dê para fazer,
vou optar pelo que dá para fazer e para mim, só de não estar estagnada, né?
Só de fazer um projeto e botar ele em curso, está bom, não é o que eu sonhei
não, mas vai dar para fazer.
Na minha família não tenho com quem conversar sobre o meu projeto de
fazer ensino superior. Se eu soubesse desde sempre eu já ia me organizando,
mas quando descobri já estava no ensino médio. Aí, que fui começar a
pensar em cursinho, em ver se eu tinha como entrar... Para mim, é meio
isolante...Aí, é por isso que eu não converso tanto, porque, assim, os
163
Cf. Ricardo HENRIQUES, 2001; Danielle VALVERDE, 2011; GOMES; MIRANDA, 2014; OXFAM,
2017.
362
assuntos não batem com as ideias do pessoal. Mas, também, eu não culpo, o
pessoal da família da minha mãe é muito simples, não teve acesso à
educação e tal, então, assim, eu entendo que eles não compreendem, mas
para mim é ruim. E parece assim, os meus primos também, ninguém está
muito interessado, e, aí, para mim, eu converso, mas nada de sentar, assim,
bater papo, ter intimidade, conversar sobre projeto de vida, essas coisas,
nada. Converso.... Não ter ninguém para conversar sobre faculdade, para
mim é normal porque eles não sabem, né?! Eles não entendem.
A falta de diálogo na família sobre o ensino superior era algo presente na vivência de
Dayane e de outros/as jovens da pesquisa. Por um lado, é possível afirmar que, assim como
para alguns/algumas jovens, o projeto de “longevidade escolar” aparecia para a jovem de
maneira tardia. Anteriormente, dentre as características centrais de escolarização das famílias
de camadas populares, como afirma Viana (2000), tinha-se uma ausência de projeto a longo
prazo, marcada tanto pela imprevisibilidade quanto pela aleatoriedade. No cenário atual, com
a inserção de políticas de democratização do acesso, a possibilidade de sonhar com a
universidade e buscar projetar estratégias de inserções no ensino superior tendem a ser mais
palpáveis. Assim, embora Bréscia Nonato (2018, p. 59) evidencie um processo de
“democratização segregativa”, especialmente no ensino superior público, ressaltando que “a
abertura do Ensino Superior não se dá de forma igualitária para todas as áreas do
conhecimento e que há diferenças quanto à origem social, raça e gênero”, o perfil dos/as
ingressantes tem se alterado e a possibilidade de vislumbrar o ensino superior como
possibilidade tem adentrado as vivências de jovens de camadas populares, como a mesma
autora cita. Por outro lado, vale a pena enfatizar que, mesmo na ausência de práticas
familiares, pode acontecer longevidade (VIANA, 2000). Como aponta Zago (2003):
os desejos que apoiam esse projeto não surgem do acaso nem são isolados
das relações históricas e sociais dos sujeitos singulares, mas são construídos
no curso da vida a partir de sua primeira infância sob o efeito da coexistência
com outros, fixam-se progressivamente na forma que o curso de sua vida
determinar, no correr dos anos, ou, às vezes também de maneira brusca, após
uma experiência particularmente marcante (ZAGO, 2003, p. 37).
A minha mãe, ela não entende muito, né? Eu explico para ela que quero
entrar em uma universidade e minha mãe me incentiva do jeito dela. Por
minha mãe não conhecer, eu sinto que ela ainda fica assim: “ah, um
concurso seria tão bom, né?!” O acesso seria mais rápido e uma graduação
é investimento a longo prazo. Eu não vou sair da universidade ganhando
bem ou concursada. A longo prazo que eu vou ter um retorno do que eu
investir para estudar por um tempo. Assim, eu tento explicar para ela, mas
eu sinto que ela não entende tanto, não vê como realmente uma garantia de
que isso vai mudar em alguma coisa. Mas, ela fica feliz por eu estar me
esforçando. Eu acho que, assim, tudo que eu faço, assim, relacionado a
estudos, eu, por mais que ela não compreenda, eu vejo que ela fica feliz,
então eu explico para ela mais ou menos de uma forma que ela entende. O
que eu falo ela apoia. Ela não intromete, mas o que eu falo ela apoia, que
nem eu estou falando tudo que ela me vê fazendo para chegar em algum
lugar, geralmente ela me dá apoio. Eu sei que ela torce muito por mim, de
qualquer forma. Sei lá... Acho que se já tivesse alguém na faculdade, eu
procrastinaria menos [risos].
Eu ainda acredito que um dia minha vida vai ser melhor e o caminho que eu
vejo para ser melhor é através de ensino superior, para eu ter uma
profissão, né? Com um trabalho mais digno, menos explorador. Ser mais
informada como pessoa, como cidadã. Então, para mim, educação, ensino
superior é um caminho.
Eu quero outra vida, sabe... Sonho com isso, mesmo. Não ter condições é
complicado, mesmo. Tudo é mais difícil para quem é de baixa renda. Nada é
escolhido. Mas, é complicado “nadar... Nadar e não ver retorno”. O que eu
tenho pensando ultimamente é procurar outros significados para vida que
não seja dinheiro também, claro que eu quero trabalhar e ter condições. A
gente pensa muito nessas coisas, mas a gente tem que buscar outras formas
de dar significado para a vida. Nossa, gente, se for pensar, estudar e
trabalhar é muito chato, muito chato, você faz um querendo melhorar o
outro durante a vida toda. Mas, assim, eu tento procurar outros significados
para minha vida que não seja na base do dinheiro, sei lá, dança, arte, eu
acho muito interessante, dança ou fotografia e o que você vê mais
significado, a arte, eu acho muito bom, eu acho um caminho ótimo.
Dayane foi categórica ao dizer do seu desejo de ter outra vida, demonstrando sua
insatisfação com a vida que tem. O principal fator para o desejo de mudança se referia à sua
condição de jovem pobre. Porém, mesmo tentando tirar o dinheiro do foco, a jovem
mencionou que desejava comprar uma casa para a mãe, para que ela tivesse segurança em
morar em um imóvel próprio. Assim, como para os/as outros jovens, existia um desejo de
retribuição da família, especialmente à mãe. A busca pela inserção no ensino superior, diante
das diferentes narrativas da jovem, pode ser uma das estratégias que a jovem possuía para
“ter outra vida”, confiando à formação a mobilidade social. Cabe ressaltar que procurar
outros significados para vida é uma maneira também de não ficar somente submetida ao
tempo de trabalho e estudos que era socialmente imposto.
365
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreenda-me assim
em tempo de alinhavo
pontos leves
e presentes
feito bailarino
beija-flor
Aperta-me assim
sem machucar os braços
em tempo de asas necessárias
afetos, tristezas, medos e lutas que se movem nos diferentes espaços/tempos de socialização.
O trabalho não pode ser mais lido como um conceito monolítico, pois é uma relação social
atravessada por várias outras relações, tais como de gênero, de raça, de classe e de idade. Os
indivíduos produzem o trabalho e são produzidos por ele. As diferentes formas de existir
podem ser compreendidas também levando em conta os processos de globalização e a
inserções das novas tecnologias de informação e comunicação, tendo em vista que estas
provocam alterações nas maneiras de vivenciar o tempo/espaço. O tempo do trabalho, por
exemplo, não se relaciona somente a um espaço físico e a uma carga horária específica, pois
as temporalidades são cada vez mais fluídas e dinâmicas. As Tic’s têm um papel significativo
nesse processo, mas temos o surgimento de outras formas de organização dos tempos laborais
(algumas marcadas pela precariedade) e o aparecimento de novas ocupações e profissões.
Nesse contexto, é preciso atentar que o processo de construção dos indivíduos se desenvolve a
partir das potencialidades, limites, contradições, continuidades e rupturas o que, por sua vez,
vai se conformando as novas urdiduras do social.
No mercado de trabalho brasileiro, principalmente a partir de 2004, e no âmbito
educacional, observamos modificações, tendo em vista o crescimento econômico, o que
possibilitou a construção de políticas voltadas para melhoria das condições de ocupação e dos
processos de escolarização. Assim, os/as jovens interlocutores/as estavam inseridos/as num
contexto de mercado com aumento de rendimentos, diminuição das taxas de desempregos, do
assalariamento e das taxas de formalização do emprego. Tal conjuntura era positiva para
eles/as, pois houve redução da ocupação dos/das jovens especialmente na faixa etária de 15 a
17, garantindo a estes/as a possibilidade de “somente estudar”, o que se articulou também ao
processo de massificação escolar, e, especialmente ampliação do ensino médio. Vinculada ao
crescimento econômico, especialmente devido à exigência por profissionais qualificados,
mas, inclusive, em razão da cobrança por “longevidade escolar”, podemos situar a ampliação
do ensino superior – tanto público quanto privado – e a construção de políticas de
democratização do acesso, as quais ampliam as possibilidades dos/as jovens de camadas
populares. Não obstante, especialmente a partir de 2014, aconteceu uma deterioração do
mercado de trabalho, com o agravante da aprovação de reformas e legislações que reforçaram
os processos de precariedade, significando, na verdade, o desmonte das mediações jurídicas,
políticas e institucionais. E, nesse cenário marcado pelas descontinuidades, incertezas e perda
de direitos que os/as jovens buscavam retornar ao mercado. Assim, as condições estruturais
do trabalho juvenil, tais como desemprego, trabalho precário, informalidades eram acirradas
pela conjunta.
369
intensificar a afirmação, por meio de outros referenciais fora da família, como parte do
processo de individuação (SARTI, 2007).
A avaliação dos/as jovens acerca do trabalho na UFMG trazia à tona palavras
ambíguas. Por um lado, os/as jovens expunham características de um trabalho de qualidade,
de aprendizados, de socialização e sociabilidade. Praticamente todos/as eles/elas explicitavam
o desejo de voltar a trabalhar na UFMG. Ao contrário de muitos/as jovens que têm suas
primeiras experiências em ocupações marcadas pela precariedade, os/as nossos/as
interlocutores/as experimentam e “modulam sua experiência de primeira vez” (TARTUCE,
2010) num trabalho protegido, dentro de uma Universidade, o que repercute nas suas
maneiras de ler e se socializar nos espaços de trabalho atuais. Podemos dizer que esse fato se
constituiu como um suporte simbólico para os/as jovens.
Por outro lado, o trabalho juvenil nesse espaço apresentou insuficiências quanto às
dimensões formativas (NONATO, 2013) e, para muitos/as deles/as, pouco contribuiu para
uma nova inserção no mercado de trabalho. Neste sentido, eles/as nos apontaram uma
fragilidade dos programas de emprego juvenil que, na sua maioria, não propiciam espaços de
reflexão sobre o mundo do trabalho, muito menos a construção de uma rede de apoio/suporte
e acompanhamento posterior ao desligamento, o que poderia contribuir para a construção de
circuitos profissionais e laços fracos.
A busca por uma nova inserção ocorria para a maioria em meados de 2013, ou início
de 2014, quando o mercado de trabalho já dava sinais de crise. Nesse contexto, apresentamos
achados de um alinhavo ora certo, ora incerto, labirinto sem tempo no qual os/as jovens
enfrentaram os diferentes desafios, lançando mão dos suportes que detinham e (re)elaboraram
respostas singulares para o enfrentamento de um mercado marcado pela precariedade, com
altas taxas de desemprego, trabalhos desprotegidos, terceirização e flexibilização do trabalho,
entendida aqui como flexibilização dos direitos.
Após o desligamento da UFMG, praticamente todos/as os/as jovens empregados/as
conseguiram apoio para acessar o mercado de trabalho nas redes de laços fortes. A
centralidade das famílias dos/as jovens na busca por emprego revelava novamente a família
como um suporte significativo, mas, ao mesmo tempo, denunciava uma sociedade com
insuficiência de políticas públicas para inserção e permanência dos/as jovens no mercado de
trabalho, sobretudo, em um trabalho decente, o que, por sua vez, retratava que inúmeras
questões sociais não foram equacionadas mesmo depois do contexto de crescimento
econômico, especialmente entre os anos 2002 e 2013, deslocando a busca de soluções para o
âmbito privado.
371
Consideramos que este suporte da família se perfaz como algo ambíguo. É positivo,
pois potencializa a inserção de jovens que só podem contar com a família para conseguirem
retornar ao mercado de trabalho. Mas, pode ser lido também como um “suporte frágil”, pois
são redes fortes que conduzem a inserções precárias, de baixa qualificação, as quais as
famílias e, especialmente as mães têm acesso, pois relacionam-se aos contextos laborais que
elas estão inseridas. Ou seja, contribuem para um “ciclo de exclusão” (POCHMANN et al.,
2005). Não é sem razão que a inserção da maioria dos/as jovens ocorreu no setor de serviços,
em trabalhos considerados de baixo prestígio social.
Neste contexto, as experiências de trabalho dos/as jovens entrevistados/as foram as
mais variadas, bem como os sentidos atribuídos a essas experiências. Ao mesmo tempo, cada
um expressava uma determinada faceta do mercado de trabalho, compondo um mosaico que
caracterizava, de alguma forma, a realidade do trabalho para os/as jovens brasileiros/as.
Dayane, por exemplo, trazia à tona a realidade da terceirização que se acirrava na
conjuntura recente e atual e se intensificava para os/as jovens. Evidenciava a precariedade do
trabalho, seu caráter alienador, ao desenvolver atividades repetitivas, sem construção de
novos conhecimentos; também caracterizada pela ausência de trabalho coletivo no qual ela
tinha que se responsabilizar individualmente por atividades, sem poder contar com a ajuda
dos/as colegas de trabalho e a falta de sociabilidade no espaço de trabalho. Mesmo
insatisfeita, a jovem não podia sair do trabalho, pois este era a garantia da sobrevivência
familiar, construindo um sentido ao trabalho baseado na necessidade.
Já Caio e Letícia revelaram outra faceta da terceirização, isso porque o trabalho na
Universidade, mesmo como terceirizados, ofereceu condições muito melhores, diferente
daquela situação em que muitos/as de seus/suas amigos/as estão inseridos/as, relativizando a
realidade da precariedade. Um exemplo era a possibilidade e até mesmo o incentivo para
conciliarem o trabalho com os estudos, mesmo reconhecendo as dificuldades desta vivência.
Para ele/a, o trabalho possuía o sentido de garantir os estudos.
A experiência da jovem Rebeca apontava para os desafios enfrentados no mundo do
trabalho, interseccionado pela dimensão de gênero. Sua inserção como secretária revelava o
quanto o trabalho juvenil e especialmente aqueles exercidos por mulheres podem se
configurar como um espaço de intensificação e exploração do/no trabalho. Na vivência da
experiência da maternidade, externou o conflito de não se reconhecer no trabalho doméstico,
sublinhando a distância entre o que culturalmente se convencionou como o “lugar da mulher”
e seus desejos. Rebeca se construía como indivíduo questionando e reelaborando suas formas
de existência ante uma sociedade machista e sexista. Em contraposição ao trabalho doméstico
372
– que a jovem reconhecia como tal, mas não era reconhecida como trabalhadora –, ela
ressignificava-o e buscava o emprego, diferenciando-o do trabalho doméstico, como espaço
de construção de seus projetos de vida e de si mesma.
Outra faceta nos é apresentada pelo Breno, marcada por uma forma de
desengajamento que se expressava na recusa aos tempos de trabalho em detrimento às outras
temporalidades e também a um determinado tipo de trabalho. O sentido do trabalho para ele
estava na possibilidade do acesso à renda para se afirmar como consumidor. Compreendemos
o jovem como um sujeito único, singular, reflexivo que respondia às contradições sistêmicas
desengajando-se, ou seja, a maneira como ele vivia era uma solução possível, diante de uma
lógica capitalista de “trabalho sem fim”.
Já Weliton nos revelava a realidade do trabalho em telemarketing, setor visto como
uma “porta de entrada” para os/as jovens sem experiência de trabalhos anteriores.
Caracterizava-se também como espaço que absorvia os/as excluídos/as do mercado de
trabalho (jovens, homossexuais, negros/as, mulheres, gordos/as e etc.), na medida em que
eram “invisibilizados/as”. Para ele, o sentido do trabalho era dado pelo reconhecimento de si,
sendo o espaço privilegiado de construção de autoconfiança, apesar da consciência que tinha
da precariedade, dos constrangimentos e assédios vivenciados no telemarketing.
Essas diferentes formas de inserção dos/as jovens revelavam as novas/velhas facetas
da precariedade do trabalho e do/a jovem trabalhador/a, reflexo dos processos de
flexibilização que se intensificam. Expõe, ao mesmo tempo, maneiras singulares de (re)existir
por parte dos/as jovens. É possível entrever as demandas dos/as jovens, seja na forma que
lidam com o trabalho, seja pelos suportes que mobilizam para enfrentar os desafios no
mercado de trabalho. É muito significativo como eles/as enfrentavam a vulnerabilidade, os
assédios, a exploração e a instabilidade permanentes. Todos/as demonstram uma reflexividade
do quanto o trabalho era “um vir a ser”, pois nenhum/a deles/as possuía interesse em
continuar exercendo a função, que não era vista como uma profissão, o que parece sustentar
esses/as jovens em seus espaços de trabalho eram as expectativas, sonhos e projetos de um
outro trabalho, quase sempre articulado ao sonho do ensino superior; para uns/umas, mais
próximo, para outros/as, mais distante. Desta maneira, o trabalho era para maioria dos/as
empregados/as, um “trampolim” para alcançar a profissão projetada.
Outro aspecto que atravessava a experiência laboral da maioria deles/as era a
dimensão moral do trabalho. Os/as jovens se preocupavam muito com o “estatuto de
trabalhador/a” (CORROCHANO, 2008). Ser trabalhador/a, para eles/as, significava ser
visto/a como alguém digno/a, que “corre atrás”. A moral se revelava no âmbito do sofrimento,
373
“sendo, portanto, necessário sofrer” para se alcançar determinado fim. Alia-se, para outros/as,
a dimensão da obediência e respeito às hierarquias como elementos- chave na relação com o
trabalho; alguns/algumas ainda traziam a lógica da produtividade como uma postura de
trabalhador ideal. Tais questões indicavam a força da socialização no âmbito do trabalho,
muito influenciada pela experiência na esfera familiar. Mas, nem todos/as compartilhavam
dessa lógica, se recusando e tensionando-a, construindo outras formas de existir no trabalho.
As diferentes experiências de trabalho dos/as jovens reforçavam o trabalho como uma
relação social interseccionada por relações de gênero, raça, classe e idade. Evidenciamos o
quanto os/as jovens, devido a sua faixa etária, passavam por constrangimentos, assédios e
tendiam a ser silenciados/as. As narrativas das jovens mulheres revelavam situações de
exploração e “polivalência” menos expressivas para os jovens homens. Ademais, os tipos de
ocupação dos/as jovens também evidenciavam a estrutura generificada do mercado de
trabalho. Foi possível denotar também a dimensão racial, seja nas ocupações possíveis para
os/as “corpos negros/as”, seja nos estereótipos no cotidiano do trabalho acerca deste segmento
social, jovens negros/as. A presente pesquisa buscou olhar para as dimensões identitárias, mas
uma possibilidade de aprofundamento está em construir análises que desde o início tenham o
foco na interseccionalidade, pois tais dimensões especialmente interseccionam os percursos
de individuação juvenis.
Outra dimensão comum a praticamente todos/as os/as jovens pesquisados/as foi a
experiência do desemprego, para alguns/algumas, por um período mais longo, para outros/as,
mais curto. Para boa parte deles/as, o desemprego foi vivenciado como um momento de
sofrimento, preocupação e constrangimentos, como foram os contextos vivenciados por
Leticia e Dayane por exemplo. Para Rebeca, o sentimento mais forte foi o de desorganização
temporal e ausência de rotina, além do incômodo com a lógica da “internalidade feminina”.
Para Sérgio, o desemprego forçado possibilitou a ele um determinado tipo de moratória.
Breno se diferenciava, pois estava imerso na perspectiva do desengajamento e, embora
considerasse a vivência ruim, não buscava novas possibilidades de inserção.
As experiências de desemprego dos/as jovens reforçavam as colocações de
Corrochano (2008) de que existem diferentes maneiras de lidar com o desemprego, assim, a
experiência do desemprego deve ser compreendida como multidimensional, a qual pode se
alterar ao longo do tempo (BAJOIT; FRANSSEN, 1997). Destacamos que os/as jovens
lidavam com o desafio estrutural de ausência de emprego ampliado pela conjuntura de crise,
dando respostas singulares a essa experiência, o que, por sua vez, se relacionou à pluralidade
de suas posições nos espaços socializadores, às diferentes estratégias, mas também aos
374
suportes que detinham para vivenciar esse momento. No âmbito da pesquisa, identificamos
que uma das demandas de aprofundamento foi a necessidade de compreender melhor as
experiências do desemprego. Embora tenhamos trazido alguns elementos, não conseguimos
apreender toda a complexidade desta experiência que se anunciou nos depoimentos dos/as
jovens.
Quanto aos achados acerca dos percursos de escolarização, alinhavaremos palavras
amargas, reflexivas e sonhadoras para tentar traduzir como a relação com a escola do ensino
médio, especialmente, os cursos e o ensino superior compuseram os percursos de
individuação dos/as jovens.
Como vimos, praticamente todos/as os/as jovens, com exceção de Breno, concluíram a
educação básica no tempo considerado regular, sem descontinuidades. Tal realidade poderia
ser atribuída ao suporte que tinham das famílias, fato comum à maioria dos/as pesquisados/as,
às políticas de ampliação do ensino médio e ao discurso recorrente da escolarização, como
forma de mobilidade social, via alcance de um emprego melhor, articulado ao desejo de não
ser “igual aos familiares”. Porém, a conclusão do ensino médio era citada pela maioria dos/as
jovens com palavras amargas que denunciavam a precariedade desse nível de ensino.
Praticamente todos/as eles/as afirmaram que só perceberam o quanto o ensino médio foi ruim
diante das dificuldades enfrentadas nos cursinhos preparatórios e/ou no Enem. Foi comum a
crítica à falta de infraestrutura da escola, à ausência e à rotatividade excessiva de
professores/as e ao processo de ensino e de aprendizagem deficiente e distante da realidade,
além do fato de que a escola não levava em conta a realidade deles/as como trabalhadores/as,
muito menos jovens. Expressavam o que já analisamos sobre a expansão do ensino médio no
Brasil, marcada pela lógica do “mais com menos”, ou seja, se o ensino médio se abriu para as
camadas populares, mas não veio acompanhado de políticas e recursos para construir uma
escola de qualidade. Considerando que na sociedade brasileira a escola se converteu como um
fator central para o projeto de mobilidade social, o fato de ser oferecida para alguns/algumas
uma educação precária repercute diretamente tanto nas trajetórias escolares quantos nos
projetos de vida. Afinal, como diz Dubet (2003), qual o valor da credencial de uma escola
precária?
É importante reforçar que os/as jovens, ao mesmo tempo em que criticavam a escola a
qual tiveram acesso, se colocavam como responsáveis pelas deficiências escolares pessoais.
Expressavam, assim, uma lógica meritocrática que fazia parte da cultura escolar. Como nos
lembra Dubet (2004), a escola inserida numa sociedade que postula a igualdade entre todos/as
também se coloca como justa e igualitária. O mérito se configurava, então, como o único
375
modo de construir desigualdades justas. Essa lógica tendia a ser naturalizada, sendo assim,
aqueles/as que fracassavam não eram vistos/as como vítimas, mas como responsáveis pelos
seus fracassos, na medida em que a escola seria justa e garantiria a igualdades de todos/as.
Além do ensino médio, quatro dos/as jovens pesquisados/as realizaram cursos
técnicos. Chama a atenção a forma da escolha de tais cursos, sem levar em conta o desejo, as
habilidades individuais, não tendo ocorrido uma reflexão sobre as possibilidades de inserção
futura. A escolha do curso técnico constituiu-se como um desafio diante do qual os/as jovens
possuíam poucos suportes. Explicitava também o quanto a relação entre qualificação e
garantia de trabalho esteve presente nos discursos e nas ações dos/as jovens. Ou seja, retratava
o quanto a lógica da empregabilidade e da teoria do capital humano estava ainda presente,
impelindo especialmente os/as jovens de buscar qualificações para um mercado de trabalho
exigente, mas que não caberia todo mundo, inclusive os/as considerados/as qualificados/as.
As trajetórias escolares dos/as jovens expressam que a instituição escolar contribui
significativamente para mantê-los nas mesmas posições sociais de seus pais e mães, sendo
parte de um círculo vicioso de precariedades. Como nos lembra Dubet (2003):
Nesse contexto, reforçamos que o sistema escolar fabrica uma “geração enganada”
(BOURDIEU, 2007), pois a escola e/ou a continuidade a partir de cursos técnicos, por
exemplo, não pode cumprir suas promessas de garantia de inserção no mercado de trabalho e
tão logo de mobilidade social. Sabemos que os vínculos entre formação e emprego são
complexos e se relacionam à situação do mercado, a aspectos demográficos e não seria
“possível acusar a escola de estar na origem do desemprego dos/as jovens. Mas isso também
não significa que a escola seja totalmente ‘inocente’ a respeito” (DUBET, 2004, p. 548).
Podemos constatar que a educação é um desafio para os/as jovens e a escola, especialmente
no ensino médio, tendendo a ser um suporte ilegítimo, uma “vez que pueden conspirar contra
el sostenimiento del individuo” (MARTUCCELLI, 2006, p. 39).
Os/as jovens traziam palavras reflexivas acerca de seus processos de escolarização e
salientavam os desafios para implementar os diferentes projetos de longevidade escolar.
Significa dizer que eles/as não se encontravam passivos/as diante dos desafios estruturais
postos pela realidade educacional. Nesse sentido, a “longevidade escolar” aparece nas
376
enfrentar um novo desafio que era a permanência, o que evidenciava os mecanismos que
fazem com que os/as jovens sejam “excluídos do interior”. É/Era a dificuldade para conciliar
o trabalho e o estudo; é/era a crítica da jovem Rebeca ao “não lugar” que as jovens mães têm
no ensino superior; é/era o limite em acessar o que a universidade oferece de experiências
extraclasse tais como ações de extensão, estágios, seminários ou mesmo a construção de redes
sociais. É/Era o que Caio denunciou, se intitulando “disciplinário”, quando só conseguia fazer
as disciplinas do seu curso. A realidade desses/as jovens apontava para a necessidade de se
ampliarem as políticas de permanência, que no caso das instituições públicas, são
insuficientes. Podemos dizer que as trajetórias aqui descritas, patentes nas expressões nativas
“dar a cara a tapa” e “correria”, compõem/compunham os modos próprios de ser e se
constituir universitários.
De maneira panorâmica, os percursos e maneiras de enfrentar os processos de
escolarização nos levaram a pensar que eles/as são jovens “voando em gaiolas”. Estão
imersos/as em uma estrutura desigual de escolarização – as gaiolas – que, desde a educação
básica, parece se interessar em fabricá-los/as como qualificados/as desqualificados/as, ou seja,
há uma inclusão excludente. Vencem esse nível de ensino se debatendo nas gaiolas e
(re)existindo de outras formas a elas avistando que sairão das gaiolas com o diploma de
conclusão do ensino médio. As gaiolas tendiam a ter outras trancas, pois a conclusão desse
nível de ensino tende a ser insuficiente. Nas frestas os/as jovens almejavam os cursos técnicos
para romper a gaiola, mas ainda há trancas. Vislumbravam, então, o ensino superior para
saírem das gaiolas. Olhavam o caminho percorrido e viam que precisavam abrir as trancas
com mais cuidado, caso contrário, as portas tenderiam a se fechar. Recomeçavam buscando
aperta-se assim sem machucar os braços em tempo de asas necessárias. Refaziam-se e
construíam novas estratégias alinhavando com cuidado as linhas frouxas de bem querer. Eram
estas diferentes respostas aos desafios enfrentados que iam compondo os percursos de
individuação aqui apontados.
Dentre os achados desta pesquisa, trazemos o alinhavo de palavras amadas para
explicitarmos “o lugar” da família. A família se constituiu como um suporte significativo
aos/às jovens em meio ao enfrentamento dos desafios do trabalho e da escola. Nesse contexto,
era a figura da mãe que assumia a centralidade tanto devido às famílias serem monoparentais,
mas especialmente porque existia uma “ausência presente” dos pais. Estes não assumiam a
responsabilidade e o apoio com relação aos/às filhos/as. Assim, eram as mães que, nos limites
de cada uma, se faziam sustento, apoio, afeto e referência. De forma geral, evidenciamos o
quanto, nas camadas populares, mesmo com a ampliação das políticas sociais na primeira
378
década dos anos 2000, as famílias continuavam sujeitas à instabilidade e ainda se viam
responsabilizadas a garantir a reprodução de seus membros, não dispondo de quem as pudesse
“ajudar a se ajudar” (SARTI, 1999).
As famílias também se configuravam, na maioria dos casos, como um desafio a se
enfrentar. Neste sentido, enunciavam palavras ambíguas, pois era na esfera familiar que
surgiam as precariedades da vida, as dificuldades do sustento financeiro, a rejeição, as
posturas autoritárias, como no caso da Rebeca, com a proibição de deixá-la estudar em outra
cidade, as tensões por serem somente estudantes, no caso de Sérgio, e as violações de direitos,
como vimos com Dayane. Os/As jovens tinham as famílias como um “desafio cotidiano” que
precisa ser enfrentado.
Citamos, ainda, a dimensão temporal como um desafio a ser enfrentado pelos/as
jovens. O tempo assumia lugar significativo para as vivências juvenis, fosse a partir da “falta
de tempo”, fosse a partir da dificuldade de organização dos tempos, ou da recusa de alguns
tempos, ou mesmo do desejo de ter mais controle sobre suas temporalidades. O que
evidenciamos é que a maioria dos/as jovens vivenciava suas diferentes temporalidades
submetendo-as aos tempos de trabalho e/ou estudos, fazendo com que o tempo da vida fosse
praticamente dedicado a estudar e trabalhar. Era explícito a dimensão do “adiamento das
recompensas” como algo praticamente naturalizado. Breno erao único jovem que se afastava
dessa lógica, pois se recusava a vivenciar somente o tempo de trabalho e de estudos. Mas, no
cotidiano, os/as jovens iam descobrindo brechas e o tempo livre, ou o tempo do lazer se
inscreviam nos interstícios dessas duas atividades, mostrando-se muitas vezes como uma
forma de (re)existir às coerções temporais. A dimensão do tempo foi uma realidade que se
mostrou fortemente presente, a partir da análise que fizemos das cenas, não sendo possível
aprofundar seus múltiplos significados, perfazendo-se como um tema potente que demanda
aprofundamentos posteriores.
As diferentes experiências dos/as jovens no mundo do trabalho e também nos
processos de escolarização refletiam o quanto a condição juvenil tendia a ser circunscrita por
essas dimensões. Tal constatação reforça a importância da construção de políticas públicas
que reconheçam os/as jovens como sujeitos de direitos e de demandas. Retomamos aqui a
proposta da Agenda Nacional de Trabalho Decente para a Juventude, que sintetiza os
diferentes aspectos que deveriam ser levados em conta quanto ao trabalho juvenil. Uma delas
é o reconhecimento do/a jovem em suas múltiplas facetas, quais sejam: estudante,
trabalhador/a, filho/a, mãe/ pai e etc. Significa dizer que um trabalho decente para os/as
jovens deve contemplar um arranjo no espaço/tempo de trabalho de tal forma que não
379
desconsidere essas diferentes esferas sociais. Outro aspecto que ressaltamos é a busca da
superação da dicotomia entre estudos e trabalho. As propostas se pautaram na qualidade da
educação, a fim de garantir mais e melhor educação, mas também no debate que o acesso ao
mercado de trabalho, por parte dos/as jovens, não pode se dar em espaço precários, mas com
inserções dignas.
Os/As interlocutores/as desta pesquisa revelaram que, mesmo sendo jovens, pobres,
estudantes de escolas públicas e, em sua maioria, negros/as, o que os/as levavam a enfrentar
desafios comuns; eles/as articulavam histórias de vidas diversas e ao mesmo tempo
singulares. O que eles/as tinham em comum, além das condições objetivas, era o desejo e a
busca constante por ser alguém na vida, como todos/as, de alguma forma, afirmaram.
Alguns/Algumas dispõem de mais suportes outros menos, mas todos/as tecem os alinhavos de
seus percursos de individuação, tendo como suporte essa expectativa. O trabalho e a
escolarização sem-fim eram para a maioria a possibilidade de ser um determinado alguém
que, ao haver reconhecimento e valorização, possa levar esse reconhecimento para suas
famílias, especialmente suas mães, retribuindo assim àqueles/as que sustentaram e sustentam
sua existência no mundo. Assim, podemos dizer que, mediante os desafios estruturais e
conjunturais, os/as jovens se construíam como “híper-indivíduos”, frente à “aventura
permanente de enfrentar os desafios”, dando respostas singulares aos desafios que enfrentam.
Eles/as construíam outros modos de (re)existir, portanto, a maneira como os/as jovens viviam
tornava-se para esses/as jovens uma solução biográfica das contradições sistêmicas
(ARAUJO; MARTUCCELLI, 2012).
Por último, salientamos que o exercício de pesquisa não tem fim. A construção do
artesanato intelectual se mostra como algo dinâmico, vivo e constante. Assim, tecemos nossa
arte “a partir de perguntas, buscando conhecer, identificar, compreender, analisar, examinar,
explicar (e tantos outros verbos) para, enfim, chegar às respostas. E, quando pensamos tê-las
encontrado, o que nos salta aos olhos são muitas outras perguntas” (Zulmira MEDEIROS,
2011, p. 182).
***
Avistamos tantas outras possibilidades de investigação diante das continuidades e
novos percursos dos/as jovens. Atualmente, Caio e Letícia continuam como trabalhadores/as
terceirizados e universitários, ambos se aproximando do final do curso. Sérgio se mantém na
tarefa árdua de concurseiro, segundo ele, quase passou no concurso do corpo de bombeiros.
Rebeca se mantém articulando trabalho doméstico, cuidados com a filha e estudos
universitários. Breno retornou ao mercado de trabalho como repositor em outro supermercado
380
e afirmou que vai se manter nesse trabalho. Weliton continua na empresa de telemarketing e
está finalizando o curso de Técnico em Enfermagem. Dayane continua no laboratório e
vivenciando a tão sonhada vida universitária na UFMG, ingressou no curso de Gestão de
Serviços de Saúde. Esses percursos de trabalho e educacionais nos remetem a novas
perguntas, como ressaltado por Medeiros (2011), reforçando que cada pesquisa não possui um
início e um fim em si mesma, mas seja um elo numa grande cadeia, respondendo ao que lhe
precede e buscando respostas no que está por vir.
381
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registrados apenas por um código numérico. E a gravação das entrevistas (áudio) será mantida
em posse da equipe da pesquisa, resguardando também a identificação dos entrevistados.
Sua contribuição para essa pesquisa é voluntária e, caso você queira retirar este
consentimento, tem absoluta liberdade de fazê-lo a qualquer tempo. O estudo pode causar
constrangimento na aplicação dos questionários e realização das entrevistas, por trata-se uma
pesquisa qualitativa que busca compreender como tem se configurado os processos de
individuação de jovens ex-trabalhadores/as da Cruz Vermelha no câmpus Pampulha da
UFMG. Por isso as entrevistas e os questionários só serão realizados mediante ao seu
consentimento. Sua participação é de suma importância tanto para a qualidade dessa
investigação quanto para a sociedade de modo geral.
Eu __________________________________________________, RG_________________,
declaro que fui consultado/a pelos responsáveis do projeto de pesquisa, Juarez Tarcísio
Dayrell, Maria Carla Corrochano e Symaira Poliana Nonato, e respondi positivamente à sua
demanda de realizar a coleta de dados de sua pesquisa por meio questionário e/ou entrevistas.
Declaro ainda que recebi uma via do presente Termo.
APÊNDICE B – QUESTIONÁRIO
Olá,
No ano de 2012 foi realizada uma pesquisa na UFMG sobre a “Condição juvenil dos/as jovens
trabalhadores/as da Cruz Vermelha na UFMG”. Você me ajudou respondendo a um questionário, se
lembra?
Resolvi continuar a pesquisa e tentar conversar com alguns/algumas jovens que participaram da
pesquisa naquela época. O objetivo é saber como estão os/as jovens que trabalharam ou ainda
trabalham na UFMG decorridos 4 anos depois.
Esse questionário é o primeiro passo. Após todos/as os/as jovens (total de 149 jovens) que
participaram da pesquisa preencherem o questionário, vou analisar as respostas e escolher algumas
pessoas para a entrevista (quem se interessar!).
Você não terá nenhum custo com a pesquisa.
Gostaria de esclarecer que o uso do material coletado será destinado exclusivamente para a realização
desta pesquisa e que sua identidade ficará assegurada por meio do uso de um nome fictício.
CASO VOCÊ NÃO TENHA PARTICIPADO DA PESQUISA ANTERIOR, POR FAVOR, NÃO
RESPONDA A ESSE QUESTIONÁRIO.
Desde já agradeço.
Symaira Nonato
*Obrigatório
Identificação
Nome completo:*
1) Sexo:*
Masculino
Feminino
2) Idade (anos):*
19
20
21
22
23
24
3) Estado civil:*
Solteiro/a
414
Casado/a
União estável
Divorciado/a
Viúvo/a
Outro
7. Qual a renda mensal aproximada da sua família, incluindo todos os rendimentos de todos os
membros de sua família? (Lembrando que o salário mínimo é de R$ 937,00)
Até um salário mínimo.
De 1 e meio a 2 salários.
De 2 e meio a 3 salários.
De 3 e meio a 4 salários.
4 e meio ou mais.
10.1) Quantos empregos/trabalhos você já teve desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG)? *
Nenhum
1
2
3
4
5
6 ou mais
10.2) Qual foi seu primeiro trabalho/emprego desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG)? (Se não
teve nenhum trabalho/emprego escreva apenas "Não tive")*
10.2.1) Quanto tempo você levou para encontrar seu primeiro trabalho depois que saiu da Cruz
Vermelha (UFMG)? Como encontrou seu primeiro trabalho (indicação, buscou sozinho, etc.)?
10.2.2) Quanto tempo (meses ou anos) você ficou no seu primeiro trabalho? Se já saiu, por que saiu?
10.2.3) Seu primeiro trabalho/emprego depois que saiu da Cruz Vermelha (UFMG) foi com carteira
assinada?
Sim
Não
10.3) Qual foi seu segundo trabalho/emprego desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG)? (Se não teve
segundo trabalho/emprego escreva apenas "Não tive").*
10.3.1) Quanto tempo você levou para encontrar seu segundo trabalho? Como encontrou seu segundo
416
10.3.2) Quanto tempo (meses ou anos) você ficou no seu segundo trabalho? Se já saiu, por que saiu?
10.3.3) Seu segundo trabalho/emprego depois que saiu da Cruz Vermelha (UFMG) foi com carteira
assinada?
Sim
Não
10.4) Qual foi seu terceiro trabalho/emprego desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG)? (Se não teve
terceiro trabalho/emprego escreva apenas "Não tive").
10.4.1) Quanto tempo você levou para encontrar seu terceiro trabalho? Como encontrou seu terceiro
trabalho (indicação, buscou sozinho, etc.)?
10.4.2) Quanto tempo (meses ou anos) você ficou no seu terceiro trabalho? Se já saiu, por que saiu?
10.4.3) Seu terceiro trabalho/emprego depois que saiu da Cruz Vermelha (UFMG) foi com carteira
assinada?
Sim
Não
10.5) Qual foi seu quarto trabalho/emprego desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG)? (Se não teve
quarto trabalho/emprego escreva apenas "Não tive").*
10.6) Se teve mais de quatro trabalhos/empregos desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG) escreva
todos os outros. Tinham carteira assinada? Quanto tempo demorou para encontra-los? Como
encontrou? Tempo (meses ou anos) que ficou nesses trabalhos? Se já saiu, por que saiu? (Se não teve
escreva apenas "Não tive").
10.8) Você fez/faz alguma coisa para ganhar dinheiro (que não falou nas perguntas sobre
trabalho/emprego) desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG)? Se sim, o que fez/faz? *
10.9) Se você NÃO está trabalhando e NÃO fez/faz alguma coisa para ganhar dinheiro, como se
mantém?
12.2) Se está estudando escreva quando iniciou e quando terminou (se já tiver concluído). Observação:
Se estiver cursando curso superior (graduação) escreva qual período está cursando.
12.3 Se NÃO está estudando, pretende estudar? Se pretende, o que pretende fazer?
12.4) Desde que saiu da Cruz Vermelha (UFMG) você participou de algum curso, atividade? *
Sim
Não
12.4.2) Se SIM, quanto tempo de duração do curso/atividade? Escreva quando iniciou e quando
terminou (se já tiver concluído).
Endereço de e-mail:
418
Identificação inicial
Questão geradora: Gostaria que você contasse como está sua vida desde que saiu do trabalho
na Cruz Vermelha Brasileira, no câmpus Pampulha da UFMG.
-Como é o seu cotidiano? O que normalmente faz durante a semana? E aos finais de semana?
- Tem muitos/as amigos/as? Sai muito com eles/as? Ritmo do cotidiano: gosta?
- Você mora com seus pais? Se não, mora com quem? O que dizem sobre sua vida, suas
escolhas (de trabalho, de escolarização, etc.).
- Quais experiências de trabalho/emprego você já teve? Como você avalia a sua trajetória de
trabalho? Detalhes do emprego atual. O que tem significado para você tais ocupações: está
satisfeito/a? Está feliz?
- Você terminou o Ensino Médio? Se não, por quê? Se sim, continua estudando?
- Como você avalia a sua trajetória escolar? Detalhes da experiência escolar atual. O que
significa (ou significou) a escola para você?
- O que significou trabalhar e estudar ao mesmo tempo? (Se não fizer nenhuma referência à
relação escola e trabalho, perguntar).