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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO

LICENCIATURA PLENA EM PEDAGOGIA

JÚLIA CRISTINA LIMA DE ARAÚJO

CONCEPÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE:


UM OLHAR A PARTIR DO PROJETO ESCOLA SEM
HOMOFOBIA E DOCUMENTOS OFICIAIS DA
EDUCAÇÃO

Rio Claro
2020
JÚLIA CRISTINA LIMA DE ARAÚJO

CONCEPÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE:


UM OLHAR A PARTIR DO PROJETO ESCOLA SEM HOMOFOBIA E
DOCUMENTOS OFICIAIS DA EDUCAÇÃO

Orientador: Prof. Dra. Laura Noemi Chaluh

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto


de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” - Campus de Rio Claro, para obtenção do
grau de Licenciatura Plena em Pedagogia.

Rio Claro
2020
Araújo, Júlia Cristina Lima de
A663c CONCEPÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE : UM
OLHAR A PARTIR DO PROJETO ESCOLA SEM HOMOFOBIA
E DOCUMENTOS OFICIAIS DA EDUCAÇÃO / Júlia Cristina
Lima de Araújo. -- Rio Claro, 2020
73 p.

Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura - Pedagogia) -


Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de
Biociências, Rio Claro
Orientadora: Laura Noemi Chaluh

1. Educação. 2. Sexualidade. 3. Gênero. 4. Escola. I. Título.

Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do


Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a).

Essa ficha não pode ser modificada.


AGRADECIMENTOS

Inicio esse texto agradecendo aos meus pais que, da forma que puderam, me
ajudaram nesse período. Agradeço a paciência, por nunca duvidarem que eu concluiria
esse processo, mesmo com minhas dificuldades e no meu tempo. Obrigada pela vida e
pela oportunidade de ser filha de vocês. Agradeço a minha vó que foi uma base
fundamental para que eu me tornasse quem eu sou e pudesse traçar esse caminho.
Agradeço aos meus irmãos por serem minha fonte de inspiração e força para que eu não
desistisse. Lucas, você me inspira e me orgulha. Amo vocês com todo meu coração.
Agradeço as pessoas que pude conhecer através da universidade. Minhas amigas
de turma, parceiras dos trabalhos e da vida: Carols, vocês são inspiração e força para
mim. Amo vocês! Minhas companheiras de casa e vida: Cris, obrigada por me lembrar
que eu sou capaz não só dessa escrita, mas de tantas outras coisas da vida. Você esteve
comigo em todas as crises de desespero e foi essencial em todas as broncas, por me
puxar lá de baixo, enxugar minhas lágrimas e me ajudar tanto nesse processo. Bea,
obrigada por ouvir todos meus desabafos e compartilhar comigo os momentos de
aceitação de mim. Amo muito vocês.
Meu time Deliders Cheerleading, que foi a despedida mais difícil para esse ciclo
ser concluído. O esporte que me ensinou o que eu sou capaz com meu corpo e mente, a
superação de levantar a cada queda, a cuidar do outro; o esporte que foi muita terapia
nesses anos intensos de universidade e me proporcionou o mais importante: a família
que eu construí. Meus melhores amigos, não dividimos mais o tatame, mas ainda temos
a vida inteira como muito mais do que um time. Obrigada por me apoiarem tanto, eu amo
vocês!
Agradeço ao subprojeto PIBID pela experiência que me permitiu o primeiro contato
e reflexões com o tema do trabalho. Aprendi muito nesse período com os colegas no
espaço que construímos de compartilhar as experiências. À minha orientadora do
subprojeto e do TCC, Laura, você é incrível. Você me mudou como pessoa, aluna e
professora. Obrigada por me permitir e me ensinar a falar, ouvir e aprender tanto.
Finalizo agradecendo a mim mesma. Esse processo de começar a escrever foi
extremamente doloroso e sofrido. E ao longo dos estudos, esse processo foi se
associando a ansiedade, sensação de incapacidade dentro de mim. Por anos, coloquei
empecilhos para que eu não pudesse ser exposta como uma fraude de escritora, tentando
fugir dos julgamentos e ao mesmo tempo caindo num julgamento pessoal e externo de
não produzir. Demorei, infelizmente (ou não, respeitar meu processo e tempo também foi
um aprendizado) a desvincular a escrita com sofrimento, incapacidade. Já perdi a conta
das crises de ansiedade que foram desenvolvidas, pela sensação de sempre ter algo a
fazer, porém nunca conseguir concretizar. É desesperador. Mas eu consegui.
Depois de alguns meses escrevendo e muitos anos tentando escrever, o trabalho
saiu. Foi sendo construído aos poucos, sem pressa e desespero. Com cansaço, mas
muito orgulho do resultado. Nesse processo, pude entender que a dificuldade da escrita
ia além do medo acadêmico. O tema me atravessava, tocava o meu íntimo, ia além do
meu eu escritora. Desde o meu primeiro contato com gênero e sexualidade no PIBID, eu
tinha dificuldade de me entender. Eu precisei concluir primeiramente o fato de me aceitar.
Aceitar minha sexualidade, quem eu sou. Para poder ter certeza de que eu realmente
acredito no que eu estava escrevendo. Hoje, me sinto pronta para finalizar esse ciclo,
reconhecendo que as crises, medos, ansiedade que ele me trouxe, me provocou acima
de tudo, mais força e convicção de mim. Eu não teria escrito esse trabalho se fosse três
anos atrás. Hoje me sinto preparada para afirmar e defender o tema do que estudei.
Assim como no texto, eu só consegui construir esse sentimento, me alimentando um
pouquinho por dia. Aceitando que em certos dias, não ia produzir nada, só precisava
sentir e me acolher. E no dia seguinte, estava melhor, mais disposta. Esse trabalho me
ensinou a lição de não acelerar meus processos, acreditar em mim e no que eu sou.
Aceitar minha dor e medo, mas não me acostumar com eles. Eu sou capaz. Eu não
precisei de ninguém fazendo por mim, mas precisei de apoio e incentivo de quem eu amo.
Por fim, aceito que essa fase está finalizada e estou pronta para a próxima. Acho que
nunca nos sentimos completamente preparados porque nunca temos controle e noção
do que pode vir. Mas me abro às possibilidades. Olho com carinho para o que já passou,
mas não com apego para não sair de lá. Porque do outro lado, a vista é mais ampla, mais
bonita, mais clara.
RESUMO

A presente pesquisa objetivou compreender concepções de gênero e sexualidade


que circulam no meio acadêmico e que estão vinculadas ao âmbito escolar. A partir disso,
foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa considerando: a) Material Didático desenhado
no Projeto Escola Sem Homofobia (Caderno). O projeto foi financiado pelo Ministério da
Educação em 2004, contudo, quando estava prestes a ser distribuído em 2011, foi
suspenso; b) Documentos Oficiais da Educação Nacional - Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) e Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), ressaltando a
importância do assunto durante a escolarização da criança/adolescente. Para ampliar a
discussão teórica foi realizado levantamento de trabalhos publicados na Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), no GT-23 (Grupo de
Trabalho Gênero, Sexualidade e Educação) no período de 2013-2019, para elencar
dimensões que são levantadas naqueles trabalhos em relação ao tema central desta
pesquisa, que é a sexualidade e gênero. O movimento de escolha para análise dos
trabalhos se deu levando em consideração as palavras-chave: gênero e sexualidade
podendo estar contidas: a) no título e b) nos resumos. Dentre os documentos oficiais,
apenas os PCNs destacam a Orientação Sexual, ainda com uma abordagem biológica. A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e BNCC sofrem fortes influências da
bancada religiosa e excluem qualquer menção ao tema. Os trabalhos analisados da
ANPEd discutem sobre a responsabilidade política da educação de não silenciar esse
tema, visto que esse movimento reforça estereótipos e preconceitos. Ao contrário, através
do diálogo e conhecimento, a escola tem o papel de contribuir para diminuição da
violência e preconceito, além de promover o respeito, empatia e inclusão.

Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Educação. Escola.


SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................................................4
INTRODUÇÃO...........................................................................................................................6
1 DOCUMENTOS NACIONAIS .................................................................................12
1.1 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS........................................12
1.1.2 Sobre a orientação sexual na escola segundo os PCNs ..................13
1.2 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E LDB .....................................18
1.2.1 Lei de Diretrizes e Bases da Educação ....................................................18
1.2.2 Base Nacional Comum Curricular ...............................................................21
2 PROJETO ESCOLA SEM HOMOFOBIA ..........................................................24
2.1 CADERNO ESCOLA SEM HOMOFOBIA .....................................................25
2.1.1 Capítulos .................................................................................................................26
2.1.1.1 CAPÍTULO 1 – Desfazendo a Confusão .........................................................27
2.1.1.2 CAPÍTULO 2 - Retratos da Homofobia na Escola ........................................35
2.1.1.3 CAPÍTULO 3 - A diversidade sexual na escola .............................................43
3 PROBLEMATIZANDO A TEMÁTICA ....................................................................47
3.1 O CONTEXTO POLÍTICO....................................................................................48
3.2 O CONTEXTO ESCOLAR ...................................................................................64
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................70
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................73
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INTRODUÇÃO

A questão da sexualidade e as relações de gênero na atualidade são pilares es-


senciais na área de Educação. Segundo Lima e Salles (2014), os estudos sobre a temá-
tica se intensificaram a partir do século XIX, com o objetivo de estudar o comportamento
sexual e as doenças sexualmente transmissíveis. Porém, o conteúdo estudado pelo mé-
dico-científico era norteado pelas influências da religião. Os relacionamentos interpesso-
ais afetivos e sexuais foram considerados nesse mesmo século, com o surgimento do
termo sexualidade.

No Brasil, no início do século XX, surgem os primeiros estudos sobre a educação


para a sexualidade para crianças e adolescentes, com enfoque biológico. Contudo, ainda
vemos resistência e dificuldade na contribuição para o desenvolvimento de novas possi-
bilidades de relações e comportamentos a serem discutidos na escola.

Lima e Salles (2014) explicam que uma vez que a escola se exclui da responsabi-
lidade de pensar no olhar da questão de gênero por outros ângulos, ela se torna uma
reprodutora de modelos antigos e excludentes e naturaliza (des)valores e uma lógica
sexista em uma sociedade machista, na qual ainda é norteada pela moral religiosa. Lima
e Salles (2014) oferecem a discussão definindo a sexualidade como construção social.
Portanto, a partir de fundamentos biológicos, estabeleceram-se padrões de comporta-
mento, e modos de ser homem e mulher, estreitando as possibilidades de ser e relacio-
nar-se como ser humano. Além disso, presenciou-se o fortalecimento de uma hierarquia
e desigualdade entre os sexos. Enquanto instrumento sociocultural, a religião controlou
os lugares que homens e mulheres devem ocupar na sociedade.

Nos últimos 20 anos, a antropologia social trouxe a problematização dos padrões


sexuais, desenvolvendo a ideia de que a sexualidade está sujeita à modelagem sociocul-
tural. Tais aberturas possibilitaram a ocupação do movimento feminista e a militância ho-
mossexual, viabilizando um novo olhar sobre o conceito de gênero e dos comportamentos
sexuais, favorecendo transformações significativas nos discursos e políticas públicas par-
ticulares da temática (LIMA; SALLES, 2014).
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Conforme Lima e Salles (2014)

Entende-se por gênero a forma como as características sexuais são re-


presentadas ou valorizadas em determinada sociedade em um dado mo-
mento histórico. [...] ainda hoje predomina socialmente um pensamento
dicotômico, polarizado, em que homem/mulher são concebidos como po-
los opostos e numa relação de dominação/submissão que parece se per-
petuar. Desse modo, a pluralidade de formas de ser homem ou mulher
não encontra ainda espaço na sociedade. (LIMA; SALLES, 2014, p. 23).
Reconhecemos a escola como âmbito de formação que produz marcas e cons-
troem (ou desconstroem) concepções sobre a sexualidade. Portanto, ela tem em mãos o
poder de romper com os padrões construídos socialmente, no momento em que, em vez
de silenciar essas discussões, pode promovê-las. É importante refletir no papel de edu-
cador (homens e mulheres) como influenciador na concepção de alunos sobre a temática.

Mas como trabalhar essa temática na escola, em um Estado Laico, no qual ainda
recebe fortes influências religiosas (seja por políticas públicas, pelo corpo docente, ges-
tão da escola, família dos alunos)?

Uma das medidas mais conhecidas no Brasil foi a publicação dos PCNs (Parâme-
tros Curriculares Nacionais), do ano 1997, que apresenta uma abordagem do gênero que
coloca em debate o problema da relação de poder e submissão entre meninos e meninas,
respectivamente. Segundo Silva (2007), a publicação recebeu diversas críticas na esfera
acadêmica e escolar. O desconforto dos professores se refere às responsabilidades já
conferidas por eles, alegando ser uma tarefa prioritária da família. Essa atitude provavel-
mente era previsível, visto pela escassa capacitação na formação dos professores para
temas transversais.

Dialogando com Seffner e Picchetti (2014) chamo atenção à Constituição de 1988,


na qual, o país assumiu que a educação é um direito do cidadão e dever do Estado. Com
isso, crianças e adolescentes historicamente excluídos da população, ingressaram na
escola e deram início à maior reflexão e vocabulário de termos como diversidade, inclu-
são, diferença, acesso e laicidade. Hoje, percebe-se facilmente a diversidade presente
na sala de aula. "São diferenças étnicas, religiosas, familiares, físicas, de orientação se-
xual, de formas de viver feminilidades e masculinidades" (SEFFNER; PICCHETTI, 2014,
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p. 68). Com essa inclusão e alerta para o multiculturalismo, os professores devem perce-
ber a necessidade de lidar com as questões de identidade.

Além desses temas presentes internamente na escola, a Constituição de 1988


também trouxe reflexos de um aparato legal, assegurando novos direitos a grupos ante-
riormente marginalizados. No caso das identidades de gênero e sexualidade, obteve-se
uma expansão de visibilidade, o que gerou um desenvolvimento na luta pela conquista
de direitos que garantam a equidade entre o que era tido como "normal" ou "padrão" e o
"diferente", segundo Seffner e Picchetti (2014).

Levando essa questão para o âmbito escolar, portanto, os professores que se


isentam dessa discussão e dessa representatividade na sala de aula, não estão conside-
rando as particularidades de inclusão de todos os alunos, que têm esse direito por lei. A
omissão é também uma escolha política que não considera a quebra de estereótipos e o
estudo da construção social por trás dos padrões de comportamento de gênero e sexua-
lidade.

Pessoalmente, a escolha desse objeto de estudo se deu durante as reuniões do


subprojeto PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), intitulado
“A contribuição da literatura nos processos formativos no contexto escolar”, do qual par-
ticipei dos anos de 2015 a 2017, como aluna do curso de Pedagogia, vinculado ao Insti-
tuto de Biociências da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Campus
de Rio Claro, coordenado pela Profª. Drª. Laura Noemi Chaluh, também orientadora
desse estudo. O objetivo principal do subprojeto era contribuir na promoção de sujeitos
leitores, pautado em práticas de leituras e projetos interdisciplinares.

No subprojeto tivemos a possibilidade de acompanhar semanalmente na sala de


aula, professoras do Ensino Fundamental I, de uma Escola Municipal na cidade de Rio
Claro. Em parceria com a professora, desenvolvíamos um projeto de literatura com temas
diversos. Além disso, tínhamos reuniões semanais com as professoras supervisoras do
projeto, que também atuavam na escola em questão e reuniões quinzenais na universi-
dade com a coordenadora do subprojeto, Laura, nas quais refletíamos sobre nossas prá-
ticas e compartilhávamos experiências e pensamentos que obtínhamos sobre nossa
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atuação. Durante encontros semanais os bolsistas compartilhavam momentos vividos no


contexto escolar nos quais, questões de gênero e sexualidade eram presentes, mas não
discutidas.

Concordo com Souza (2015), quando o autor explicita que o PIBID contribui com
o aprimoramento da formação docente dos bolsistas (futuros professores), ao ser um
espaço que acredita na relevância de investir nas discussões sobre diferentes temáticas
vinculadas à Educação, dentre elas o gênero e sexualidade. Nós, bolsistas do PIBID ti-
vemos a oportunidade de estar inseridos completamente no contexto escolar, compreen-
dendo a sua forma de atuação. Além da presença semanal com uma turma do Ensino
Fundamental, participávamos de horários de HTPI (Hora de Trabalho Pedagógico Indivi-
dual) com a professora titular, no qual planejávamos e discutíamos os projetos; também
participávamos dos HTPCs (Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo) da escola, tivemos
oportunidade de compartilhar o nosso trabalho com toda a equipe pedagógica; além de
experenciar por completo a rotina escolar com os alunos.

No espaço de partilhar nossas experiências na universidade, tínhamos a oportuni-


dade de refletir e problematizar o papel social da escola, enquanto instituição essencial
na formação de futuros cidadãos. Nas discussões víamos que, em alguns momentos, a
escola se isentava da responsabilidade de oportunizar a discussão de questões sociais
(de gênero e sexualidade, que refletem no modelo da sociedade em que vivemos) para
contribuir para um pensamento crítico, contextualizando e conscientizando seus educan-
dos.

No PIBID, as maiores dificuldades que presenciamos para a efetivação de um tra-


balho com essa perspectiva na escola foram a resistência da gestão e o corpo docente,
a insegurança acerca da formação teórica que tínhamos para discutir sobre isto com as
crianças e o receio de não saber qual o direito legal da escola para tratar sobre o assunto.

A partir de nossas inquietações sobre o tema, que aconteciam de maneira cada


vez mais frequente, pois a sexualidade está, queira ou não, inserida no âmbito escolar,
decidimos criar um projeto de sexualidade, com os objetivos de: nos aprofundarmos
nessa temática; conhecer diferentes abordagens teóricas, contribuindo para nossa
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própria formação docente; tomar consciência e desconstruir nossos próprios preconcei-


tos. A princípio não sabíamos ao certo como poderíamos agir com esse projeto (colocar
em prática o que estudamos). Tínhamos o intuito de compartilhar com os professores da
escola em que atuávamos com o PIBID, além de pensar na possibilidade de realmente
trazer a discussão para a sala de aula.

Essa iniciativa se deu no ano de 2016, contávamos com 10 bolsistas do subprojeto


e fomos orientados por nossa coordenadora, que com muita sensibilidade percebeu
nosso anseio, nos propôs a elaboração do projeto, e direcionou nossas reuniões para
construir, dialogar, compartilhar e muitas vezes desabafar sobre nossas percepções e
aprendizados sobre o tema Sexualidade e Diversidade na escola.

O Projeto que não teve um nome oficial, pretendia alcançar diversos aspectos que
estão interligados a esse assunto no cenário escolar e os organizamos em tópicos.
 Diferenciação de sexualidade e sexo;
 Equidade de gênero;
 Questões étnico-raciais;
 Diversidades Religiosas;
 Família.

A partir daí, nos dividimos em duplas para pesquisar e buscar informações em


documentos - BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e PCNs (Parâmetros Curricula-
res Nacionais). Fizemos a leitura e discussão do livro Educação Para Sexualidade (MAIA
et al., 2014), procuramos por documentários, filmes e notícias que abordassem essa te-
mática. Diante disso e, após muita discussão, pensamos em um conjunto de materiais
(registros anônimos de situações que pessoas do nosso grupo sofreram preconceito; es-
tatísticas de mortes da população LGBTQIA+; vídeos e imagens problematizando a ex-
clusão, bullying, racismo e homofobia) que poderiam dar subsídio a uma proposta forma-
tiva com as professoras da escola onde o PIBID estava sendo desenvolvido.
O projeto infelizmente não foi colocado em ação (nem compartilhado) por diversas
questões que envolveriam a consumação dele dentro da escola. Principalmente o receio
da gestão escolar, já comentado acima, que não teria segurança para abordar esse
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assunto ainda considerado polêmico por tantos. Porém, ele foi o início de um encontro
meu com a Orientação Sexual na Pedagogia, dando inspiração para a produção do pre-
sente estudo. Essa experiência me levou a querer ampliar minha compreensão sobre a
temática e se dá como um eixo norteador para a minha docência.

Reconheço que esse momento de reflexão sobre o assunto foi um privilégio du-
rante a graduação, visto que não há na grade do curso uma disciplina obrigatória para
reflexão de gênero e sexualidade. No entanto, cursei uma disciplina optativa nomeada
“Orientação Sexual na Escola”, ministrada pela Profª Drª Célia Regina Rossi, na qual
também tínhamos um espaço para nos conscientizar e avaliar o cenário escolar enquanto
oportunidade e responsabilidade de propiciar discussões e desconstruções de temas so-
ciais (especificamente gênero e sexualidade).

Entendo que futuramente vou poder contribuir com espaços de reflexão abordando
a questão de gênero e sexualidade com meus alunos de forma desmistificadora e pro-
blematizadora. Acredito na responsabilidade da escola na construção de valores e atitu-
des nas relações com o próximo, nas quais devem prevalecer o respeito. Por isso, esse
estudo tem como objetivo compreender as concepções de gênero e sexualidade que cir-
culam no meio acadêmico e que estão vinculadas ao âmbito escolar a partir de Material
Didático desenhado no Projeto Escola Sem Homofobia (Caderno) e Documentos Oficiais
da Educação Nacional (Base Nacional Comum Curricular e Parâmetros Curriculares Na-
cionais), ressaltando a importância do assunto durante a escolarização da criança/ado-
lescente, fundamentando essa discussão com trabalhos publicados na Associação Naci-
onal de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), no GT-23 (Grupo de Traba-
lho Gênero, Sexualidade e Educação) no período de 2013-2019.
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1 DOCUMENTOS NACIONAIS

1.1 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) publicados pela primeira vez em


1997, são diretrizes desenvolvidas pelo Governo Federal para nortear os professores,
fundamentando um referencial para educação no Ensino Fundamental no Brasil.

Os PCNs foram organizados da seguinte forma: o primeiro documento intitulado


Introdução; seis documentos referentes às Áreas de Conhecimento (com tratamentos
específicos e a integração delas), sendo eles Língua Portuguesa - Matemática - Ciências
Naturais - História e Geografia - Arte - Educação Física e três volumes sobre as
questões sociais que apresentam-se nos Temas Transversais (reafirmando a
necessidade de reflexão e problematização dos assuntos: Apresentação dos Temas
Transversais e Ética - Meio Ambiente e Saúde - Pluralidade Cultural e Orientação Sexual,
divididos em seis documentos.

Todos os documentos estão disponibilizados para os professores, de todas as


escolas, por todo o Brasil, para ser auxiliador na formulação do projeto educativo das
instituições.

O documento que trata da Introdução do documento traz alguns dos objetivos dos
Parâmetros Curriculares Nacionais, como: oferecer ao professor reflexões e revisões
sobre o trabalho pedagógico; a preparação de um planejamento que possa realmente
orientar o trabalho na sala de aula; identificar e produzir novos trabalhos que possam
trazer um contexto significativo na aprendizagem, entre outros; Brasil (1997). Em suma,
o documento busca orientar e mostrar ao professor possibilidades de transformação no
trabalho educacional.

A proposta constitui uma flexibilidade para a elaboração do currículo, a partir de


discussões, pesquisas e recomendações para a melhoria da pedagogia no contexto da
década de 90. Portanto, o documento não é determinado e limitado, mas reconhece:

[...] a necessidade de referenciais a partir dos quais o sistema educacional


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do País se organize, a fim de garantir que, respeitadas as diversidades


culturais, regionais, étnicas, religiosas e políticas que atravessam uma
sociedade múltipla, estratificada e complexa, a educação possa atuar,
decisivamente, no processo de construção da cidadania, tendo como
meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos,
baseado nos princípios democráticos. Essa igualdade implica
necessariamente o acesso à totalidade dos bens públicos, entre os quais
o conjunto dos conhecimentos socialmente relevantes. (BRASIL, 1997,
p.13).

O documento ressalta a importância de considerar a educação em uma sociedade


democrática, a qual não deve usá-la como instrumento de imposição. Inclusive, os PCNs
apresentam-se também para enfatizar um processo democrático para que a educação
tenha o poder de promover a melhoria e equidade de possibilidades para todos nos
papéis sociais, políticos e econômicos. Para que o exercício da cidadania seja efetuado
com êxito, evidencia-se:

[...] a relevância de discussões sobre a dignidade do ser humano, a


igualdade de direitos, a recusa categórica de formas de discriminação, a
importância da solidariedade e do respeito. Cabe ao campo educacional
propiciar aos alunos as capacidades de vivenciar as diferentes formas de
inserção sociopolítica e cultural. (BRASIL,1997, p. 27).

É importante reforçar a consideração dos Parâmetros Curriculares Nacionais nas


discussões que refletem sobre formas de discriminação. O documento trata não somente
sobre conhecimentos científicos para o currículo na educação brasileira, bem como a
construção de significados éticos e construtivos como necessários para o exercício da
cidadania. Entre eles, os temas de educação sexual e meio ambiente. "Nesse sentido, é
papel preponderante da escola propiciar o domínio dos recursos capazes de levar à
discussão dessas formas e sua utilização crítica na perspectiva da participação social e
política”. (BRASIL, 1997, p. 27).

1.1.2 Sobre a orientação sexual na escola segundo os PCNs

Inicialmente, o documento denominado Orientação Sexual apresenta a


consideração da sexualidade como algo inerte ao ser humano desde cedo, e que engloba
diversos aspectos na vida social do homem, quanto a respeito, discriminação,
estereótipos, saúde, entre outros.
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A orientação sexual foi tratada como assunto indispensável na vertente dos Temas
Transversais. O documento considera o papel e a postura do professor e da escola nesta
temática, além de propor referências necessárias para o desenvolvimento da discussão.
E apresenta, por meio de objetivos gerais, as capacidades requeridas para o aluno do
Ensino Fundamental.

A posteriori, o documento aborda quanto às especificidades pedagógicas para o


trabalho, com o objetivo de promover reflexões e discussões para essa sistematização,
levando em conta os princípios morais de cada um dos envolvidos e os Direitos Humanos.

Segundo o documento, a intensificação dos estudos na área da sexualidade no


currículo das escolas se deu a partir da década de 70, por ser considerada relevante na
formação integral do indivíduo. Caminhando lentamente, em meados dos anos 80, a
abordagem foi sendo estimulada devido à preocupação dos educadores quanto ao
aumento da gravidez indesejada entre os jovens e o com risco da contaminação pelo HIV
(Vírus da Imunodeficiência Humana), atraindo então, um caráter mais biológico e da
saúde dos jovens. (BRASIL, 1997).

Entendo pelas minhas experiências no contexto educativo (na universidade, na


escola que nos acolheu para desenvolver o subprojeto PIBID e também nos estágios
obrigatórios) e em discussões mantidas no meu contexto social que, a postura da escola
acerca das questões trazidas pelos alunos sobre a sexualidade, é reprimida ou ignorada,
se estas não fizerem parte de seu conteúdo curricular. Talvez pelo pensamento de que
esse tema deva ser discutido estritamente em ambiente familiar. De fato, a educação
sexual da criança é construída primordialmente através de sua família, direta ou
indiretamente, seja por meio de proibições, gestos, relacionamentos, e até mesmo pelo
comportamento dos responsáveis. Assim transmitem à criança ensinamentos sobre sua
própria sexualidade. Contudo, simultaneamente, a criança/adolescente sofre
intervenções e influências externas tanto da mídia, livros, pessoas, e a própria escola. As
questões conhecidas pelos alunos de fontes não confiáveis, claras, ou propícias para a
idade podem agir de forma decisiva na sexualidade desses, se elas não forem
esclarecidas de maneira crítica, reflexiva e educativa pela escola.
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Com isso, o âmbito escolar não pode exigir que seus alunos deixem do lado de
fora da escola, sua sexualidade. Assim como os demais agentes da educação não o
fazem. A sexualidade está intrínseca no ser humano, portanto, ela pode ser questionada
ou abordada a qualquer momento em uma sala de aula. O documento aponta que a
escola está, querendo ou não, sempre intervindo na sexualidade de seus alunos, mesmo
se for evitando esse assunto, ou proibindo-o, ela está transmitindo valores e conceitos
sobre o tema. (BRASIL, 1997).

A proposta do trabalho de Orientação Sexual na escola é, portanto, articulado com


uma promoção de saúde, prevenção de problemas graves (abuso sexual, gravidez
indesejada), autoconhecimento, consciência e respeito. O desenvolvimento do tema é
dividido em tópicos que serão apresentados a seguir:

 Concepção do tema

O documento apresenta o conceito de sexualidade para além da possibilidade


biológica do ser humano, considerando a relação da busca ao prazer, necessidade dos
seres humanos. A sexualidade é construída e desenvolvida em todos os momentos da
vida, e é interferida por diversas áreas externas como a história, ciência, cultura, assim
como internas, como sentimentos, afetividade, relacionamentos e a singularidade de
cada sujeito. A sexualidade pode ser definida amplamente como expressão cultural. Cada
sociedade, conforme o seu período histórico e social, cria um conjunto de regras para o
comportamento sexual de cada indivíduo. Assim, na proposta dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, a Orientação sexual “considera a sexualidade nas suas
dimensões biológica, psíquica e sociocultural”. (BRASIL, 1997, p. 81).

 Sexualidade na infância e adolescência

Como dito anteriormente, as expressões da sexualidade vêm desde os primeiros


momentos na vida de uma pessoa. Ainda quando bebê, os contatos de um filho com a
mãe apresentam prazer que não são essencialmente biológicos, e desde então, inicia-se
o seu processo de construção psíquica do indivíduo. A sexualidade segue se
manifestando de diferentes formas em cada momento da infância e ela “será construída
a partir das possibilidades individuais e de sua interação com o meio e a cultura” (BRASIL,
16

1997, p. 81).

 A Orientação Sexual na Escola

Esse tópico estabelece as possibilidades e limites de atuação do professor nessa


temática, que é justamente meu objetivo de referir-se a esse documento, pensando no
amparo que o educador tem, por direito, senão dever, de discutir esse campo na sala de
aula.

Isso não isenta a formação extraescolar que o aluno recebe, por exemplo na
família. Porém, cabe à escola, expandir os diversos pontos de vista e vertentes dos
assuntos existentes na sociedade para propiciar ao estudante reflexões e construir sua
própria referência: “O trabalho de Orientação Sexual na escola é entendido como
problematizar, levantar questionamentos e ampliar o leque de conhecimentos e de
opções para que o aluno, ele próprio, escolha seu caminho” (BRASIL, 1997, p. 83).
A orientação sexual deve ser discorrida, assim como outras disciplinas, em coletivo
com a turma. Não de maneira individual e até invasiva a intimidade de cada um. Assim,
o aluno expor seus sentimentos, conclusões e vivências sobre o assunto é um direito de
escolha do próprio.

 Postura do Educador

Segundo o documento, para o papel do educador é imprescindível ter uma


formação específica, com muitas leituras, teorias e discussões sobre a temática, mesmo
que essa não esteja estabelecida no seu plano de aula. Isso se dá porque a sexualidade
está vinculada ao processo de desenvolvimento dos indivíduos, e pode a qualquer
momento se tornar alvo de questões, perguntas, comentários durante as aulas. O
professor não deve repudiar essa curiosidade ou busca pelo prazer das crianças, então
deve manter um comportamento profissional e considerar o assunto de interesse de seus
alunos, trazendo os conhecimentos teóricos sobre Orientação Sexual, ou qualquer outro
assunto, e não suas próprias opiniões, valores e crenças já estabelecidas. A educação
pelo professor também pode ser manifesta através da sua conduta para as coisas
corriqueiras do dia a dia, por exemplo, evidenciar a equidade de gênero e dignidade de
cada um.
17

 Relação Escola-Família

O trabalho de Orientação Sexual deve ser retratado para a família, explicitando os


princípios norteadores dessa proposta. A escola deve considerar e respeitar
indefinidamente a postura, crença, valores e educação da família para com o aluno. Não
cabe à escola julgar essa educação como certa e errada, exceto em casos que violem a
segurança e direitos assegurados aos jovens e crianças (BRASIL, 1997).

 Orientação Sexual como Tema Transversal

A questão da sexualidade, embora tão particular de cada um, também não se


restringe a esse âmbito individual. É extremamente necessário trabalhar o conceito
histórico, social e cultural para entender a complexidade dessa temática. São conceitos
socialmente construídos, por exemplo, de como a mulher e o homem devem se portar e
os direitos de cada um, fundamentado a partir de seu sexo.

A presente proposta de Orientação Sexual caracteriza-se por trabalhar o


esclarecimento e a problematização de questões que favoreçam a
reflexão e a ressignificação das informações, emoções e valores
recebidos e vividos no decorrer da história de cada um, que tantas vezes
prejudicam o desenvolvimento de suas potencialidades. Ressalta-se a
importância de se abordar a sexualidade da criança e do adolescente não
somente no que tange aos aspectos biológicos, mas também e
principalmente aos aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos e
psíquicos dessa sexualidade. (BRASIL, 1997, p. 87).

Por isso, o documento atribui a Orientação Sexual aos temas transversais, os


quais estão integrados a toda a prática educativa, em cada uma das áreas de
conhecimento. Além disso, a questão da sexualidade pode também estar para além das
disciplinas – seja por serem tópicos singulares ou individuais, seja por ser um assunto
que surgiu no dia a dia – o que exige do professor uma flexibilidade e disponibilidade para
trabalhar a questão. Portanto, é proposto que o trabalho da Orientação Sexual seja
desenvolvido de duas maneiras: “dentro da programação, por meio dos conteúdos já
transversalizados nas diferentes áreas do currículo, e extraprogramação, sempre que
surgirem questões relacionadas ao tema” (BRASIL, 1997, p. 88).

 Manifestações da Sexualidade na Escola


18

Geralmente, as manifestações da sexualidade na escola se dão através da


manipulação curiosa no próprio corpo, genitais, ou no corpo do outro, brincadeiras, piadas
e músicas que se referem ao sexo, perguntas ou ainda, reprodução de gestos e atitudes
característico da sexualidade adulta.

A escola, como instituição educacional, deve se posicionar de maneira clara e


consciente, não atribuindo àqueles gestos e manifestações como certos ou errados,
contudo, não adequados ao convívio social e ao âmbito escolar. E àquelas curiosidades
dadas com músicas, piadas, comentários, o professor deve abrir espaço para discussão
e esclarecimento, tirando o tabu dessas questões.

Como sequência, o documento traz alguns objetivos de competências que os


alunos sejam capazes de atingir ao fim do ensino fundamental. O caderno também
disponibiliza uma série de conteúdos que podem ser trabalhados nessa temática, como
corpo, relações de gênero, prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, entre
outros.

1.2 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E LDB

Esse tópico tem o objetivo de constatar as leis contidas na Lei de Diretrizes e


Bases da Educação (LDB) de 1996, que estão relacionadas com o tema presente. Busco
nesse movimento o respaldo para o trabalho em sala de aula a respeito da cidadania,
empatia e respeito. Para mais, faço a mesma explanação no documento da Base
Nacional Comum Curricular, que refere-se, algumas competências (objetivos) a serem
atingidos no Ensino Fundamental que podem ser correlacionadas com o trabalho de
Orientação Sexual.

1.2.1 Lei de Diretrizes e Bases da Educação

A LDB (1996) é a legislação que define e regulamenta o sistema nacional de


ensino, público e privado. A lei foi criada com base nos princípios presentes na
Constituição Federal, que estabelece a Educação Básica como direito. A partir dessa Lei
Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, trago trechos com menções de convivência
19

humana, prática social e temas transversais que eu entendo que poderiam se mostrar
favoráveis para um possível respaldo da Orientação Sexual na escola.

TÍTULO I
Da Educação
Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de
ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade
civil e nas manifestações culturais.
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve,
predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à
prática social. [...]
TÍTULO II
Dos Princípios e Fins da Educação Nacional
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios
de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:


IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

TÍTULO V
Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino
CAPÍTULO II
DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Seção I
Das Disposições Gerais
Art. 26.
§ 7o A integralização curricular poderá incluir, a critério dos sistemas de
ensino, projetos e pesquisas envolvendo os temas transversais de que
trata o caput
§ 9o Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as
formas de violência contra a criança e o adolescente serão incluídos,
como temas transversais, nos currículos escolares de que trata o caput
deste artigo, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente), observada a produção e
distribuição de material didático adequado. [...]

Seção III
Do Ensino Fundamental
Art. 32.
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade
humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. (LDB,
Lei Nº 9.394/1996).

Conforme demonstrado acima, a LDB não faz nenhuma menção ao ensino ou


20

disciplina relacionada à orientação sexual e/ou gênero. Em contrapartida, houve um


grande embate da Igreja Católica a favor a implementação do Ensino Religioso (ER) na
Lei.
Cunha (2018) em seu trabalho intitulado “Três décadas de conflitos em torno do
ensino público: laico ou religioso?” explica que o primeiro pronunciamento pelo fim do
ensino religioso aconteceu em 1874. Desde então ocorre um empasse nessa dicotomia
entre os apoiadores do Estado laico e os defensores do Ensino Religioso. Nessa mesma
década a laicidade foi respaldada na Constituição Republicana de 1891, que continha
uma inédita determinação: “Será leigo [isto é, laico] o ensino ministrado nos
estabelecimentos públicos” (BRASIL, 1891, art. 75, § 6º). No entanto, os governantes
ainda realizavam concessões à Igreja Católica, além do Decreto nº 19.941, de 31 de abril
de 1931 (BRASIL, 1931), que viabilizou o ER às escolas públicas, como ensino
obrigatório.
Em contrapartida, a laicidade na educação segue em luta. Cunha (2018) indica
como prosseguiu esse confronto. Em 64, com o golpe militar, a questão da laicidade foi
deixada de lado para dar mais espaço à luta contra o autoritarismo, com uma dificuldade
na defesa até mesmo de verba para escolas e universidades públicas. Foi em 84 que
essa pauta foi retomada com influências internacionais que vivenciavam mudanças no
cenário religioso e, por conseguinte, político. Contudo, na Assembleia Constituinte de
1987-1988 a Igreja Católica se aliou a pastores da igreja evangélica para sair vitoriosa
desse embate entre a religião e a laicidade perante a lei. A Constituição desse ano de-
creta as reinvindicações da bancada evangélica, com pedidos da proteção de Deus e
isenções de impostos à Instituição Religiosa. Referente ao âmbito educacional, a Cons-
tituição ressalva “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina de ma-
trícula dos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental” (BRASIL, 1988,
art. 210, § 1º).
Cunha (2018) explica que em 1996 houve uma forte pressão, originada pelas ins-
tituições católicas na câmara, sob o relator do projeto de LDB para que as demandas
religiosas fossem incorporadas, sobretudo a questão do Ensino Religioso nas escolas
públicas. No texto final da LDB, a condição facultativa do ER foi silenciada pela falta de
alternativas para substituírem essas atividades, tornando de fato o ensino obrigatório.
21

Logo em 1997, o Congresso Nacional e o Presidente da República aprovavam a


primeira alteração na LDB:
O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante
da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horá-
rios normais das escolas públicas de ensino fundamental, as-
segurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.
8 § 1º - Os sistemas de ensino regulamentarão os procedi-
mentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e
estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos
professores.
§ 2º - Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída
pelas diferentes denominações religiosas para a definição dos
conteúdos do ensino religioso. (Nova redação do art. 33 da Lei
nº 9.394/1996, dada pela Lei nº 9.475, 22 de julho de 1997).

Foi apenas em 2015 que decorreu uma votação a Ação Direta de Inconstituciona-
lidade (ADI) visando à LBD, oferecida ao Supremo Tribunal Federal (STF), na qual de-
mandava-se estabelecer limites e parâmetros para o ER:
O STF deveria pedir ao Conselho Nacional de Educação
(CNE) a elaboração de normativa que previsse de forma de-
talhada limites negativos à relação entre religião e escola pú-
blica, entre eles, a retirada de símbolos religiosos e a proibição
de orações religiosas como parte da rotina escolar das esco-
las públicas, e que também fosse demandada ao conselho a
elaboração de protocolo nacional de registro e de procedimen-
tos relativos ao enfrentamento de casos de intolerância religi-
osa, racismo, homofobia, lesbofobia, transfobia, sexismo e de-
mais discriminações ocorridas em instituições públicas e pri-
vadas de ensino. (CUNHA, 2018, p. 899).

Ainda assim, seis votos foram contrários à ADI, ou seja, em apoio a legalidade
para o ER católico e de outras confissões na escola pública, contra cinco votos favoráveis
a tal.

1.2.2 Base Nacional Comum Curricular

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo


publicado em 2015, que define “aprendizagens essenciais” que todos os alunos da
Educação Básica no país devem desenvolver ao longo das etapas de ensino. O
documento aplica-se exclusivamente à educação escolar e “está orientado pelos
22

princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à


construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2015, p.7)

A BNCC se mostra instrumento essencial para além de garantir o acesso e


permanência nas escolas, o sistema de educação tenha um norteador curricular que
equilibre e regularize em um mesmo patamar a aprendizagem conteudista de todos os
estudantes.

O documento apresenta tais aprendizagens essenciais que devem assegurar o


desenvolvimento de dez competências gerais, que consolidam os direitos de
aprendizagem e desenvolvimento. Embora em nenhuma parte do documento, aborde
especificamente sobre sexualidade e gênero, salvo breves comentários que podem ser
relacionados ao tema, dentro da área de Ciências da Natureza, dentre essas
competências, destaco algumas que podem ser desenvolvidas com o tema da Orientação
Sexual:

1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre


o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a
realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma
sociedade justa, democrática e inclusiva. [...]
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se
de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as
relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao
exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia,
consciência crítica e responsabilidade.
7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para
formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns
que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência
socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e
global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo,
dos outros e do planeta.
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional,
compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas
emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com
elas.
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação,
fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos
humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e
de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades,
sem preconceitos de qualquer natureza. (BRASIL, 2015 p. 9-10).
23

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresentou um teor valorizado do En-


sino Religioso para o Ensino Fundamental, visto que há essa disciplina juntamente com
outras obrigatórias para as idades, como explica Cunha (2018):

A pretensão da proposta atingiu o limite máximo ao propor que as discri-


minações e os preconceitos entre grupos humanos seriam desnaturaliza-
dos pelo ER, ao contribuir para a superação de violências de caráter reli-
gioso, na direção de uma convivência respeitosa com o outro na coletivi-
dade. Os professores de ER se transformariam, assim, em especialistas
na convivência e na tolerância, como se isso não fosse tarefa de toda a
escola, a partir da iniciativa dos docentes e com a participação dos funci-
onários técnico-administrativos. (CUNHA, 2018, p. 901).

A segunda e a terceira versões da BNCC, porém, não incluem mais o Ensino Re-
ligioso. À vista disso, evangélicos e católicos articularam protestos e reinvindicações não
só pelo retorno do ER, bem como a exclusão de qualquer menção a sexo e gênero na
Base. Em 2017, o Conselho Nacional de Educação apresentou o ER como área de co-
nhecimento, mas não concluíram o reposicionamento. Tendo como o primeiro objetivo
“Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e
filosóficos de vida, a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos”
(BRASIL, 2017) para o Ensino Fundamental, porém sem agregar a disciplina de filosofia
e sociologia, dando margem a interpretações incertas. (CUNHA, 2018).
Entendo a partir dessa discussão que é claro que a aliança cristã tem fortes in-
fluências na educação pública brasileira, além de desconsiderar o ensino de outras reli-
giões, como as afro-brasileiras e especialmente “não-religião”, interferindo no respaldo
legal para o professor ministrar disciplinas e até aulas sobre gênero e sexualidade.
Tendo em vista que o Brasil é o país que mais mata a população transexual no
mundo (BENEVIDES, 2020), a escola é um veículo de política pública para a tentativa de
rompimento com essa violência, através da educação empática, respeitosa e plural. Cabe
(não somente, mas também) a ela o papel social de explanar e desenvolver esse exercí-
cio de cidadania respeitando e manifestando a equidade em todas as classes sociais,
étnicas e diversidade sexual, sem discriminação, como propõe os PCNs além de discutir
a esfera individual (como o corpo, a própria sexualidade, nas relações com o outro) que
pode trazer vivências significativas para os nossos alunos, assunto que será mais apro-
fundado no terceiro capítulo.
24

2 O PROJETO ESCOLA SEM HOMOFOBIA

O Programa Brasil sem Homofobia (Conselho Nacional de Combate à


Discriminação, 2004) é uma iniciativa do Governo Federal de 2004 no qual objetiva-se o
fortalecimento do exercício de cidadania, reconhecendo a luta da comunidade que, na
época, referia-se a sigla GLBT 1 (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), pelo
combate à violência e promoção do direito à dignidade e respeito às diferenças. O Projeto
Escola Sem Homofobia foi uma proposta que seria incluída no referido programa,
produzida pelo Ministério dos Direitos Humanos junto a Órgãos Não Governamentais,
seguindo diretrizes do Ministério da Educação (MEC). O Escola sem Homofobia
(CADERNO Escola Sem Homofobia, 2004) é formado por um kit, composto por seis
boletins informativos, três audiovisuais com seus respectivos guias, um cartaz, uma carta
de apresentação, além de um Caderno que compõe um debate, oferecendo instrumentos
pedagógicos para refletir, compreender e confrontar a homofobia nas escolas.
Como referido no capítulo anterior, a bancada evangélica que representa setores
conservadores da sociedade atual, tem forças para influenciar o Congresso Nacional,
inclusive nos materiais da educação. Outrora a aprovação do Ensino Religioso como
parte das Leis de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.475, 22 de julho de 1997), em
2011, o então - na época - Deputado Federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) distribui panfletos
em escolas do Rio de Janeiro difamando o projeto com falsos discursos de que o MEC e
a comunidade LGBT estariam “incentivando o homossexualismo” e tornando “nossos
filhos presas fáceis para pedófilos”, disseminado a proposta pejorativamente de maneira
distorcida pelo nome “Kit Gay”2.
Posteriormente o ministro da Secretaria Geral da Presidência da república anuncia
no dia 25/05/2011 que o governo teria suspendido a produção e divulgação do material
às escolas3.

1 Atualmente a sigla se modificou para abranger novas orientações sexuais e identidades de gênero, se
tornando LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais ou Transgêneros, Queer, Intersexo, Asse-
xuais e + que acolhe todas as possibilidades de sexualidades).
2 Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/projeto-de-distribuir-nas-escolas-kits-con-

tra-homofobia-provoca-debate.html. Acesso em: 21 jul. 2020.


3 Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/215309-pressao-de-bancadas-faz-governo-cancelar-

kit-sobre-homossexualidade/. E em: https://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/02/11/vetado-por-bancada-


religiosa-escola-sem-homofobia-e-disponibilizado-na-rede/. Acesso em 21 jul. 2020.
25

2.1 CADERNO ESCOLA SEM HOMOFOBIA

O Caderno Escola Sem Homofobia (2004) inicia com uma apresentação do projeto,
justificando causas e motivos para sua produção, considerando o Programa Brasil Sem
Homofobia (Conselho Nacional de Combate à Discriminação, 2004) um marco histórico
pela luta de direitos políticos e sociais e respeito à comunidade LGBTQIA+ com o
enfrentamento contra a homofobia. Nesse programa, há o componente V – “Direito à
Educação: promovendo valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação
sexual” – citado no Caderno (2004), o qual apresenta possibilidades de apoio de cursos
de formação aos professores na área de sexualidade, constituição de equipes
multidisciplinares para avaliação dos materiais didáticos de modo a opor-se a conteúdos
discriminatórios por orientação sexual e produção de materiais educativos para
contemplar esse tema para os alunos e orientações para professores.
Deste modo, o governo federal afirma que a escola é participante ativa responsável
pela normalização ou, ainda, pela promoção da naturalização da homofobia, não apenas
nos materiais didáticos, mas nas interações ocorrentes na rotina de seus ambientes.
Considerando a homofobia como uma forma de desumanização do próximo, tal qual
como o racismo e o sexismo, atendando-se ao fato de que nos casos de racismo, a vítima
ao menos tem o apoio familiar, enquanto na maioria dos casos a vítima da homofobia
pode sofrer dessa discriminação até no próprio lar.
Portanto, o Projeto Escola Sem Homofobia tinha como objetivo contribuir para que
a escola se tornasse um espaço de acolhimento e respeito, favorável à garantia dos
direitos humanos independente de orientação sexual e/ou identidade de gênero.
Na introdução do documento, o Caderno (2004) apresenta uma reflexão sobre a
transformação da informação para comunicação e conhecimento. Para isso, se faz
necessário que o conhecimento se insira na vida cotidiana de quem está a aprender,
relacionando-o com as práticas culturais, o modo de vida e o contexto para que faça
sentido e se torne possível a construção e reconstrução de uma diferente percepção da
realidade a partir do novo conhecimento. E é com esse fundamento que o Caderno se
elabora, incluindo não apenas informações sobre a homofobia e o respeito à diversidade
26

sexual, mas para que os alunos efetivamente abandonem qualquer discriminação sexual,
e desconstrução de qualquer estereótipo sobre orientações sexuais e identidades de
gênero, promovendo respeito às diferenças.

• Objetivo e metodologia

O material aponta os seguintes objetivos do Projeto: alterar as práticas, didáticas


e formas de convívio social nas escolas que sustentam a prática da homofobia; promover
reflexões de maneira crítica sobre conceitos que habitam ainda que informalmente o
âmbito escola, como a noção do que é “natural”; desenvolver a consciência crítica com
relação ao o artigo V do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual: “Nenhuma
criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado,
por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” para que esse não seja
transgredido; disseminar e estimular o respeito aos direitos humanos e às leis contra
qualquer tipo de discriminação.
Quanto à metodologia, busca-se:
Desocultar a ordem que coloca a heterossexualidade como natural,
normal e única possibilidade de os sujeitos viverem suas sexualidades,
por meio de dinâmicas de trabalho com as quais se pretende subsidiar
práticas pedagógicas que favoreçam a reflexão e incentivem mudanças
(CADERNO..., 2004, p. 12).

O primeiro capítulo do Caderno (2004) denominado “Desfazendo a confusão” trata


sobre o conceito de gênero e a forma como os conteúdos disciplinares e as interações
no ambiente escolar transmitem formas de pensar, se comportar e sentir que são
adequadas ao sexo feminino e em contrapartida, quais são para o sexo masculino. Além
disso, o capítulo decorrerá explicando conceitos que podem ser equivocados para o
senso comum, esclarecendo a diversidade sexual. A abordagem também destaca a
homofobia e a importância de enfrentar o preconceito e discriminação contra mulheres e
LGBTQIA+ e a luta dessa comunidade, conquistas e desafios, explicando a importância
da sua inclusão nas políticas públicas.

2.1.1 Capítulos
27

A seguir trato das especificidades de cada um dos capítulos.

2.1.1.1 CAPÍTULO 1 – Desfazendo a Confusão

• Gênero: as desigualdades entre mulheres e homens

Desde antes do nascimento de uma criança, já se cria uma expectativa


em saber o sexo da mesma. Isso ocorre porque já existe uma “caixinha” em que ela
deverá se encaixar para seguir o que for de acordo com sua genital. Essa rotulação pode
parecer rotineira, no entanto ela interfere de fato nas vivências em que esse bebê poderá
experimentar. Se for menino, já ganhará roupas azuis, brinquedos ”de menino”, quando
crescer, será encorajado a demonstrar força e poucas emoções. Caso seja menina, rosa
será sua cor primordial nas vestimentas, ela ouvirá como é meiga e linda. Essas
reproduções já estão intrínsecas na sociedade e ouvi-las pode parecer “normal”.
Existe um processo histórico cultural que resultou na realidade de hoje,
homens e mulheres serem tratados como seres totalmente distintos. Esse desnível se
revela nos direitos e deveres dessa dicotomia, no acesso, na importância de opinião,
salário, entre outros, mas ele não existiu desde sempre. O que é próprio de feminino e
masculino, não é permanente e definitivo, por exemplo:
Quando alguém diz: ‘Isso é coisa de mulher’, em geral não se dá conta de
que está considerando universal e atemporal uma característica peculiar.
O que é próprio do feminino e do masculino é tudo aquilo que cada
sociedade assim convencionou. Mas mesmo essa divisão não é estática.
(CADERNO..., 2004, p. 20).

Essa divisão foi, por muito tempo, justificada cientificamente pela questão apenas
biológica. Acreditava-se que as combinações de cromossomos XX ou XY que produzem
os órgãos genitais e hormônios em diferentes proporções para cada sexo, também
influenciavam no comportamento específico de homens e mulheres e isso foi atribuído a
padrões de personalidades como algo “natural”. Assim foi construído um papel para
homens e mulheres determinando seu lugar na sociedade, assim como uma
hierarquização entre os gêneros.
O Caderno (2004) explica que hoje sabe-se que os papéis de gênero sofrem
mudanças conforme o passar do tempo, período, histórico e contexto político-social. Isso
28

acontece porque o ser humano se constrói em sociedade e a interferência da biologia na


determinação dos comportamentos nesse sentido, é pequena. Portanto, considera-se
mais dominante o fator de como cada sujeito é inserido e tratado na sociedade. Assim, o
conceito de gênero pode trazer reflexões quanto a consciência de discriminação e
preconceito, possibilitando diversas possibilidades de ser.
Assim, com as finalidades do Caderno (2004) definida, manifesta-se a questão:
[...] o que a escola tem a ver com tudo isso? Pois se meninas e meninos,
garotas e rapazes são tratados de modo desigual pela sociedade como
um todo, isso também ocorrerá na escola e, por inércia, a tendência será
repetir-se e perpetuar-se o mesmo padrão. Será? (CADERNO..., 2004, p.
20).

Considerando o quadro controverso no qual mulheres são tratadas de maneira


inferior aos homens, recebem um salário menor assim como oportunidade para altos
cargos, no entanto, mulheres são majoritariamente presentes no sistema educacional e
no ingresso ao ensino superior. A teoria feminista denomina relações de gênero esses
elementos de desigualdade, para utilizar opor-se as imposições e subordinação feminina
em relação ao masculino. E qual seria o papel da escola nesse aspecto?
À vista disso, o Caderno (2004) sugere que o professor observe e reflita se durante
na escola acontece algumas situações como meninos jogando vôlei, ou meninas jogando
futebol, ou ainda piadinhas quando o(a) professor(a) chama o número 24 na chamada.
Oferecendo uma definição do que chama-se dispositivos pedagógicos de gênero
“qualquer procedimento social através do qual um indivíduo aprende ou transforma os
componentes de gênero de sua subjetividade” (GARCIA, 2007, p. 13 apud CADERNO...,
2004), ainda que meninos e meninas ocupam o mesmo espaço físico na escola, lhe são
ensinadas coisas diferentes, de maneira indireta ou não, modos de pensar e agir
esperados aos alunos de acordo com seu sexo.
O documento cita uma fala de um aluno que relata não poder jogar vôlei, apenas
futebol, pois ouvia de seus colegas que era “viado” ou “bicha”. Isso acontece de diferentes
formas de acordo com o contexto escolar, porém é um preconceito velado que acontece
nas inter-relações e não aparece na organização ou diretrizes da instituição escolar e cai
ao esquecimento ou dissimulação de que não existe. Todavia, um olhar mais atencioso
permite perceber que ainda que sutis, os dispositivos pedagógicos de gênero estão
29

incorporados no currículo escolar, nas formas, expectativas e trocas entre


alunos/funcionários/professores. Como os livros didáticos nos quais as imagens
presentes representam famílias heterossexuais em todas as situações, apagando outros
modelos de famílias constituídas, reforçando esse ideal a ser seguido e com pouca ou
nenhuma objeção e reflexão proposta pela escola. Aqui, aparece como papel do
professor em estar alerto para promoção da igualdade em diversas situações para
provocar esse movimento de desconstrução crítica, conduzindo a práticas educacionais
mais inclusivas.
O Caderno (2004) disponibiliza diversas dinâmicas para sala de aula conforme o
desenvolvimento dos assuntos e conceitos discutidos. A primeira dinâmica intitulada “A
vida dentro de uma caixa: os homens devem... As mulheres devem...” tem como o objetivo
debater sobre estereótipos e expectativas de gênero, as distinções entre os sexos e
gênero observando os limites determinados a homens e mulheres. O primeiro passo da
dinâmica é perguntar aos alunos o que é “pressão de grupos”. Conforme as respostas
forem aparecendo, questionar e pedir para que deem exemplos de momentos que já
sentiram pressionados por algum grupo. Após isso, dividir a turma em duplas do mesmo
sexo e solicitar a cada dupla que escrevam comportamentos ou qualidades já
predefinidas para homens e mulheres. Feito isso, a ideia é que as duplas compartilhem
com a turma as respostas, que haja uma discussão da distinção do que é definido pelo
sexo ou pelo gênero: questionar de onde vêm as ideias listadas, senão da questão
biológica; considerar a construção social de gênero; articular o movimento feminista que
ajuda as mulheres a escaparem dessa “caixa” já constituída para elas; estimular a
reflexão dos benefícios para mulher de sair da caixa; ponderar sobre mulheres que ainda
não puderam sair de suas caixas; instigar aos homens que são agredidos ou “zoados”
por saírem da caixa; analisar a enaltecimento da virilidade masculina e de onde isso vem.
Em suma, trazer o incentivo ao rompimento com essas caixas.

• Diversidade Sexual

O Caderno (2004) desenvolve uma analogia quanto a gosto do paladar que são
diversos para cada pessoa. Uma preferência a um tipo de comida ou uma rejeição a outra.
A relação se faz com o desejo sexual humano que é amplo e diferente para cada um. É
30

claro que são âmbitos distinto, no entanto, o primeiro não gera sofre nenhuma
discriminação e pelo contrário, existe um ramo diverso para agradar todos os tipos de
paladar. Isso não é considerado nenhum déficit genético. A sexualidade foi por muito
tempo considerada como um fenômeno natural que ocorria entre os seres humanos, tal
como entre os animais: para reprodução. A partir da década de 1960, após a descoberta
da pílula anticoncepcional, houve uma revolução sexual, na qual ainda está adentrando
outros aspectos na sociedade, como o prazer feminino e o combate a assimetria de
gênero.
O movimento feminista que busca a igualdade de gênero em todos os âmbitos,
inclusive sexual, trouxe uma nova identidade sexual: a homossexualidade. E os
indivíduos que se reconheciam homossexual eram agredidos como doentes, perversos e
pecadores, principalmente os do sexo masculino que destoam do poder e papel de
“macho”. E ainda hoje prevalece essa pressão para que homens e mulheres ajam de
acordo com o esperado para seus papéis, senão facilmente pode-se presenciar diversas
formas de preconceito e discriminação.
Faz-se aqui uma confusão do senso comum quanto ao comportamento e desejo.
Designando que se a pessoa não se identifica com o desejo heterossexual, ela quer se
tornar alguém do sexo oposto. Por isso a importância de compreender a diferença entre
identidade de gênero e orientação sexual.
O Caderno (2004) ilustra identidade de gênero como a consciência de que uma
pessoa possuir genitais de um determinado sexo, não necessariamente se identificará
como pertencente a ele. A constituição do ser humano é formada a partir de seu interior
(o que sente) e exterior (cultura, linguagens, costumes, valores). Assim, “na relação
consigo mesmo e com aquilo que está a seu redor, o indivíduo vive um contínuo processo
de socialização, que se dá em duas direções: o de modelização e o de resistência”
(CADERNO..., 2004, p.26). No processo de modelização se dá vários exemplos já citados
que constituem as “caixas” determinadas para cada sexo. Em contrapartida, a resistência
visa a individuação de cada um e a constituição de singularidades específicas.
O que cada ser humano apresenta de si em relação aos demais e sente em seu
interior é a chamada identidade de gênero, seja na condição de homem ou mulher, ou
uma mescla de ambos, as possibilidades são diversas, sem interferência de seu sexo
31

biológico. É necessário, portanto, criticar a ideia de uma divisão dos sexos exclusiva e
imutável, além de fugir dos estereótipos de gênero (como meninos são competitivos,
agressivos e dominadores, enquanto meninas são delicadas, dóceis e cuidadoras). Como
já visto, essas características são culturais e reforçam as desigualdades de gênero. É
preciso romper a repressão das individualidades que não se sentem representadas por
essa cultura.
A luta e conquista feminista tem resultado em algumas mudanças que já são
perceptíveis, por exemplo, o questionamento da obrigatoriedade exclusiva da mulher a
fazer tarefas domésticas. Contudo, é indispensável nesse processo impedir a rigidez das
normas de gênero, também na atribuição de gays e lésbicas ao sexo oposto, visto que a
orientação sexual não é necessariamente relacionada a identidade de gênero.
A seguir é apresentada a definição de orientação sexual, que está relacionada com
a atração que as pessoas sentem umas pelas outras, tanto afetiva como sexualmente. O
Caderno (2004) estabelece as atrações que podem se manifestar entre heterossexuais
(pessoas do sexo oposto), homossexuais (pessoas do mesmo sexo), ou bissexuais
(pessoas que se atraem pelos dois sexos). E destaca a importância de compreender que
“não se trata nem de uma essência – de algo que já nasce com a gente –, nem de uma
opção – de uma escolha consciente e deliberada –” (CADERNO..., 2004, p. 28), mas de
uma característica, um atributo que compõe a individualidade e desejo do ser humano.
Portanto a palavra orientação não se refere a um ensinamento, seja dado pela família,
sociedade ou qualquer outro, por quem uma pessoa deve se sentir atraída.
Esse interesse pelo outro pode desenvolver múltiplas formas de afetos, contudo
também pode se referir apenas a um contato corporal. Com a influência da religião, a
cultura da sociedade atual idealiza “normas” para os relacionamentos se desenvolverem.
Como o conceito de que a interação sexual apenas pode ocorrer sob o amor, apenas
entre relações heterossexuais para que se cumpra o destino atribuído a ideia de uma
família supostamente superior: conhecer, apaixonar, casar e ter filhos. Aqueles que não
se encaixam nesse modelo sofrem uma repressão cultural, física, histórica, cultural e até
financeira. No entanto, proibição não torna o desejo ausente, apenas talvez reprimido.
A problemática se dá a tentativa de lidar com essa diversidade sexual na escola
ou na sociedade, como ensinar e aprender que as formas de sexualidade e de se
32

relacionar são múltiplas.


Isso implica dizer também que a heterossexualidade, ainda considerada
como o padrão, continua a ser vista como a “única” maneira “correta” de
expressão do erotismo e da união conjugal. Por isso não é nada fácil para
alguém admitir que não é heterossexual, isto é, que é homossexual ou
bissexual. Quem sente um forte desejo por alguém do mesmo sexo (ou
por ambos) se vê acuado pelo clima adverso que a/o condena como
imoral ou pervertida/o, como anormal e até mesmo como doente mental.
(CADERNO..., 2004, p.29).

Essa pessoa que se vê julgada e socialmente isolada pode desenvolver um


sentimento de culpa, condenando a si mesma. Desconsiderando a sinceridade de seus
sentimentos, ela se nega, foge de si mesma, se desvaloriza, pelo encontro com o
preconceito já impregnado.
A orientação bissexual é considerada a mais incompreendida. Pela lógica do
raciocínio binário, é imposto uma exclusividade de relações hétero ou homoafetivas. O
Caderno (2004) se refere a Sigmund Freud, que sustentava a ideia de que seres humanos
nascem abertos uns pelos outros, considerando que todos são bissexuais pois a
possibilidade de atrair-se por ambos os sexos nos é inerente. A sociedade, no entanto,
impõe aos indivíduos formas fechadas de ser. Esse mecanismo ampara um controle
sobre as pessoas, reprimindo a liberdade e felicidade.
Concluindo os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual para que
não haja mais confusões, a ideia de que um rapaz é gay por ser delicado ou possuir
trejeitos considerados efeminados é um lapso, visto que esse pensamento é baseado
apenas pelo não cumprimento do padrão masculino dominante pré-definido. Em suma,
os estereótipos de gênero não definem a orientação sexual, sequer a identidade de
gênero, pelo contrário, apenas a própria pessoa compreende sua individualidade na
forma de ser e se relacionar.
A seguir o Caderno (2004) sugere a segunda dinâmica “Colocando-se no lugar
da/o outra/o”. O objetivo da atividade é que os participantes percebam situações de
preconceito e discriminação para com relações não heterossexuais. Em uma roda de
conversa, é sugerido a leitura do texto “No país de Blowminsk” no qual relata uma
sociedade em que casais heterossexuais são proibidos. Incentivar os alunos a
compartilharem o que chamou atenção no texto e enfatizar que a orientação sexual não
é uma escolha consciente, mas o resultado de um processo de construção e
33

conhecimento pessoal. Por esse motivo, não é correto o termo “opção sexual”.

• Homofobia

A cultura brasileira tem uma característica que é a tendência de até em situações


de dificuldade e sofrimento, cria-se piadas sobre a partir de comentários maldosos.
Contudo, essa atitude aparentemente inofensiva tem uma relação estreita com a violência
que acontece no cotidiano. Expressões e ditados extremamente preconceituosos e
perversos como “chuta que é macumba”, “programa de índio”, “mulher no volante perigo
constante”, “branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão” entre tantos outros, são
ignorados ou normalizados como “humor”. O fato é que essas palavras carregam um
significado extremamente ofensivo e são formas de manifestação de preconceito a
indivíduos e grupos sociais.
Nesse contexto, os comentários pejorativos dão abertura ao que é conhecido como
homofobia. Trata-se da repulsa, medo, discriminação e ódio de pessoas em relação à
homossexualidade, bissexualidade e transexualidade, ou seja, que de algum modo não
cumprem os padrões de gênero e sexualidade. É um modo de punição para aqueles que
desviam da heteronormatividade, socialmente imposta, inferiorizando esses indivíduos e
inviabilizando direitos do exercício de cidadania. Essa opressão atua pela negligência
exclusão e opressão a um grupo, garantindo vantagens aos heterossexuais, tal como o
homem com o machismo, o branco com o racismo.
A homofobia tem o argumento ilegítimo de que todos são heterossexuais, de que
é algo natural, inato ao comportamento animal, portanto não pode ser mudado. A primeira
fase da homofobia se dá na negação da existência de alguém diferente, considerando
imoral, anormal, doente e pecador. Na fase seguinte, dada a constatação dessa
existência, a prática é desenvolvida pelo ódio a esse indivíduo, excluindo-o do convívio
social e público.
Para essa discussão, o Caderno (2004) apresenta a dinâmica 3 “Homofobia em
ação”. O objetivo é identificar e compreender comportamentos homofóbicos a partir do
seguinte texto
O termo homofobia foi usado pela primeira vez pelo psicólogo George
Weinberg, em seu livro A sociedade e o homossexual saudável, publicado
em 1972 nos Estados Unidos. Indo da difamação aos atos explícitos de
34

violência física, a homofobia é uma rejeição tão forte que conduz à


incapacidade de conviver com LGBTs manifestando-se em atitudes, entre
as quais não as aceitar como colegas de escola ou trabalho, vizinhas/os,
clientes ou prestadoras/es de serviço, ocupantes de algum cargo ou até
mesmo parentes (CADERNO..., 2004, p. 34)

A proposta é questionar os participantes a refletirem e expor exemplos de


homofobia no ambiente em que convivem, o que caracteriza esses exemplos como
homofóbicos e em que meios essa ideia é transmitida.
Um fenômeno que vem chamando atenção nas escolas é o bullying, que acontece
em geral por estudantes, que ridicularizam, destratam e até machucam o outro por causa
de uma característica física ou da personalidade (cor da pele, peso, religião, classe social
etc.). O Caderno (2004) pontua sobre a isenção da escola quando o bullying acontece
pela orientação sexual do estudante. Na maioria das vezes não se discute sobre a
diversidade sexual e o silêncio da instituição compactua com a discriminação e
preconceito. É importante que haja esse diálogo e esse reconhecimento da existência
LGBTQIA+, ainda que os livros didáticos não o façam.

• A luta pela cidadania LGBT

Ao longo dos anos a comunidade LGBTQIA+ luta pelo direito de viver. A partir da
primeira Parada do Orgulho LGBT, no dia 28 de junho de 1970, o movimento despertou
e saiu de uma posição de espera pelo reconhecimento e se colocou à manifestação pela
luta dos direitos iguais. A ideia é sair do confinamento imposto pela sociedade,
aumentando a visibilidade do movimento.
Ainda hoje existem países em que, ter uma orientação sexual não hétero pode
resultar em prisão ou até a morte. No Brasil, ser homossexual não é considerado crime,
nem doença. Contudo o maior discurso enfrentado é que essa prática é um pecado
embora, de acordo com a Constituição (1988), o país seja laico.

Em relação a considerar pecado a homossexualidade, os dogmas e


ensinamentos das diversas Igrejas não devem interferir na execução de
políticas públicas, em que se incluem os bens e acessos da população
LGBT em qualquer nível. Muitas vezes essa visão de pecado é
manipulada para controlar o desejo espontâneo das pessoas por outras
do mesmo sexo, reforçando o que já vimos anteriormente quando
tratamos da visão heteronormativa da sociedade (CADERNO..., 2004, p.
44).
35

Em 2004, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) apresentou o


programa Brasil sem Homofobia (CONSELHO..., 2004). O programa surgiu a baseado
em discussões do governo federal com a sociedade civil com o objetivo de garantir à
comunidade LGBTQIA+ aos direitos humanos e de cidadania a partir da equiparação de
direitos e combate à violência e discriminação. Dentre diferentes ações do programa,
incluem apoio a projetos de instituições que atuam na promoção da cidadania LGBTQIA+
e/ou combate à homofobia; capacitação de profissionais LGBTQIA+ que atuam na defesa
de direitos humanos do movimento; além da divulgação de informações sobre direitos
humanos, autoestima LGBTQIA+ e incentivo à denúncia contra homofobia.
Evidentes os avanços, ainda há a ser feito. A possibilidade de discussão sobre a
temática nas escolas abre um caminho de educação para a paz e pode destruir as
estruturas do preconceito, discriminação e violência. Existir um espaço de conforto,
segurança e respeito não é privilégio LGBTQIA+. Ampliar o conhecimento sobre a
diversidade humana traz benefício a todos.

2.1.1.2 CAPÍTULO 2 - Retratos da Homofobia na Escola

O segundo capítulo inicia acentuando o objetivo do Caderno (2004), que busca


incentivar um processo de transformação pessoal, cultural e social nas escolas, por
consequência, na sociedade.

Especialistas vêm mapeando violências, preconceitos e discriminações


envolvendo todas/os que participam da escola e propondo uma cultura de
convivência com a diversidade sexual que pode se valer da informação,
mas que deve se utilizar, principalmente, do debate e do questionamento
para o enfrentamento dos discursos e das práticas de discriminação e
violência por preconceito de gênero e orientação sexual, conjunto de
atitudes denominado homofobia (CADERNO..., 2004, p. 49).

O combate à discriminação possui alguns mecanismos legais que são


instrumentos úteis, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos que assegura
que todos os seres humanos têm direitos iguais, sem distinção de raça, cor, sexo, língua,
religião, de ordem nacional ou classe social ou qualquer outra situação; além da
Constituição (1988) que garante o exercício dos direitos sociais e individuais para todos,
36

como a liberdade, a igualdade, a justiça, sem preconceitos.


Contudo, esses mecanismos podem não se mostrar tão funcionais caso não haja
concomitante uma educação para a diversidade. Isso não significa somente reconhecer
e aceitar as diferenças, mas se propor a fazer uma real reflexão sobre os direitos e
relação de todos. É preciso ter ciência sobre a realidade para poder mudá-la, por isso é
essencial expandir os espaços de discussão e o acesso à informação. A escola tem essa
responsabilidade como espaço no qual se constrói o conhecimento e é uma das bases
para o reconhecimento de convivência, respeito, acolhimento e diálogo com a diversidade.
A cultura escolar está permeada de conflitos, contradições e confrontos, e a escola
pode perpetuar preconceitos, mas também desconstruí-los. Essa é uma tarefa para
educadoras/es comprometidas/os com os direitos humanos. Entendemos que a escola
reproduz violações de direitos e violência contra pessoas de orientação sexual diversa
da “norma”, mas também constitui espaço privilegiado de reflexão, troca de
conhecimentos e experiências de vida e de novas aprendizagens. Trata-se de educar
para a cidadania, valendo-se da potencialidade de estudantes e profissionais da área da
educação visando à formação de uma cultura democrática que tenha como ponto de
partida o reconhecimento e o respeito às questões relativas à diversidade sexual e à
identidade de gênero.
A primeira dinâmica proposta no capítulo 2 é intitulada “Explorando o entendimento
da orientação sexual” que tem por objetivo explicitar o ambiente negativo em que as
pessoas não heterossexuais enfrentam e salientar as consequências de viver nele. Para
iniciar a discussão, solicita que o professor deixe claro o objetivo dessa atividade e
questione sobre palavras que são associadas ao termo gay e lésbica, separadamente e
escreva na lousa. O caderno propõe que o professor encoraje os alunos a exporem as
palavras negativas que ouvem e ressalta que, caso apareçam alguns risos e comentários,
é importante que o professor explique que o “humor” é usado nesse meio como
propagação de preconceito. Ao fim, explicar que essas palavras ainda que não negativas,
são apenas estereótipos e gays e lésbicas não vivem e se representam de apenas uma
maneira, é diverso.

• Preconceitos e estereótipos
37

O Caderno (2004) dispõe nesse tópico uma explicação sobre o significado de


preconceito. Trata-se de um conceito formado antecipadamente sem o conhecimento real,
sobre algo ou alguém. Esse conceito é construído socialmente, tanto a razão justificativa
da atitude preconceituosa, quanto o próprio preconceito. Esse “juízo provisório” é um
pensamento e comportamento humano cotidiano, que pode ser eliminado apenas com o
conhecimento real sobre o objeto ou alguém que está sendo julgado. Todavia, na maioria
das vezes, o preconceito é tão bem instalado que se conserva inabalável até diante de
comprovações científicas e argumentos da razão. O papel do preconceito é justamente
não permitir o diálogo, as discussões e indagações, pois a opinião já se mostra
consolidada.
Nesse sentido, a escola tem o papel de possibilitar questionamentos que abalem
até mesmo as próprias convicções dos estudantes, construindo um novo conhecimento
sobre o real, uma transformação de opiniões e vivências.
Existem também diversas definições sobre estereótipos, o Caderno (2004)
entende como uma forma de simplificar e prever nossa visão do mundo, julgando pessoas
ou situações e as classificando em determinadas categorias. O estereótipo é uma forma
de atalho para facilitar nossa ideia de mundo. Essa forma de viver pode levar a uma visão
certa, errada, neutra, positiva ou negativa. As pessoas que sofrem a consequência desse
ato são generalizadas e não são vistas ou tratadas como indivíduos singulares, com seus
próprios gostos e personalidade.
No ambiente escolar é muito comum a propagação de tais estereótipos. Por
exemplo, a ideia de que a menina que gosta de futebol já é vista como lésbica e por
consequência não desejável ou pecadora. E isso pode além de prejudicar essa menina,
influenciar todas as outras a seguirem um padrão de comportamento feminino para não
passarem pelo mesmo.

Essa reação, além de desqualificar as relações não heterossexuais, leva


as garotas a serem desvalorizadas e a perceberem em suas
potencialidades uma série de incapacidades que não se verificam na
prática. O feminismo tem se posicionado, historicamente, contra esse e
outros estereótipos. (CADERNO..., 2004, p. 54).

Portanto, faz-se fundamental discutir, questionar e impedir a propagação desses


estereótipos pois eles são uma outra base para violência homofóbica.
38

• A homofobia na escola: e o que dizem algumas pesquisas

O tópico inicia apresentando algumas pesquisas brasileiras em que tem como


objeto de estudo a homofobia na escola. Em uma delas, mostra-se o resultado de que
um a cada quatro estudantes entrevistados de 14 capitais afirmam não gostariam de
estudar com homossexuais. Em outra pesquisa, foram entrevistados funcionários,
estudantes e famílias presentes no ambiente escolar de 27 estados brasileiros, e o
número alarmante no resultado de abrangência do preconceito em relação a gênero de
93,5% e a orientação sexual de 87,3%.
Essas pesquisas evidenciam que o preconceito é difundido na escola e em todos
os seus agentes. Por isso, a escola é vista como responsável por promover a discussão
e reflexão sobre a diversidade de posturas, condutas, pensamentos, visto que o silêncio
em relação a essa temática seria uma maneira de compactuar com essa propagação de
violência.
Por isso a necessidade e a emergência de um compromisso no sentido
de educar para a cidadania, baseado na vontade e na defesa da
diversidade, a fim de que estudantes e profissionais não heterossexuais
tenham seus direitos humanos assegurados. Mudança que pode e deve
começar desafiando a ideia de que ‘as coisas sempre foram assim’, para
compor outro cenário, dizendo: ‘basta de ser assim!’. (CADERNO..., 2004,
p. 57).

A segunda dinâmica do referido capítulo é intitulada “Sentir, Pensar e Agir” e


propõe que haja uma discussão sobre o termo heteronormatividade. Para isso, solicita
que o educador disponha exemplos de diferentes situações de preconceito que vivem
pessoas não heterossexuais em diversos ambientes e cada um se posicione quanto ao
que sentiu, pensou e como agiria se vivenciasse tal situação.
O Caderno (2004) desenvolve o conceito de heteronormatividade para o debate,
no qual é definida como uma ideia disseminada e aceita de que a heterossexualidade é
natural e padrão para todos os seres humanos, assim, todas as outras sexualidades
seriam um desvio da normalidade. Desse modo, o cumprimento dessa “regra” é feito
através da homofobia. Muitas vezes, o ambiente escolar sustenta esse discurso por meio
do silêncio. Esse não reconhecimento da discriminação homofóbica é também uma base
para o mantimento da heteronormatividade.
39

• A homofobia no currículo escolar

O tópico é iniciado com a etimologia da palavra currículo, que tem o significado de


corrida, caminhada e/ou carreira. Assim, currículo pode ser associado com a caminhada
que o estudante faz durante os anos de estudo, referindo-se aos conteúdos (matérias) e
atividades propostas pela instituição escolar.
[...] um relatório da Unesco amplia tal compreensão quando diz que, no
curso dessa “caminhada”, aprendemos não só o saber e o saber fazer,
mas também o ser e o conviver, e acabamos por nos tornarmos o que
somos. Nele se sistematizam os esforços pedagógicos. O currículo é, em
outras palavras, o coração da escola, o espaço central em que todos
atuamos. A partir dessa compreensão, pode-se dizer que ele imprime uma
identidade à escola e aos que dela participam. (CADERNO..., 2004, p. 61).

A partir dessa ideia de “caminhada para nos tornar o que somos”, pensa-se na
ideia de um currículo que alcança e abrange para além dos conteúdos disciplinares
explícitos nos planejamentos. Trata-se do currículo oculto, o qual compreende que diante
da rotina no cotidiano escolar e nas interações pessoais em outros ambientes são
transmitidos valores e atitudes subliminarmente, de maneira implícita.
Em seguida, o caderno propõe a terceira dinâmica chamada “De olho na
linguagem”, cujo objetivo é debater o sexismo na linguagem. Para isso, faz-se a proposta
de convidar os alunos a observarem e analisar a linguagem de textos. É relevante
destacar que na Língua Portuguesa, as atribuições de adjetivos, por exemplo, caso haja
um homem e uma ou mais mulheres, a concordância é feita no masculino plural. A partir
disso, solicita-se para os alunos reescreverem alguns trechos evitando o uso genérico
das palavras no masculino, substituindo por exemplo, “os idosos” por “pessoas idosas” /
“os jovens” por “a juventude” / “os diretores” por “a diretoria ou direção”.

Práticas e mecanismos linguísticos geram representações que


inferiorizam e subordinam a mulher, oprimindo-a. Formas e estruturas
linguísticas, seus usos e sentidos, controlam e mantêm a mulher numa
posição subalterna, silenciando-a, retirando-lhe voz e capacidade de
relatar suas próprias experiências. É preciso que educadoras/es estejam
atentas/os à linguagem para que ela se adapte e dê voz a uma realidade
feminina que existe, mas não é verbalizada. Com o passar do tempo, o
uso sexista torna-se “natural”, sendo difícil resistir-lhe. Há um conjunto
infindável de palavras e expressões que denotam claramente ideias
ligadas à superioridade do sexo masculino e à aceitação do masculino
como modelo. (CADERNO..., 2004, p. 64).
40

• Práticas e espaços escolares

No seguinte tópico é destacada a ideia de que a escola é um ambiente onde


envolve diferentes e complexos contextos e conflitos. Nela, há um conjunto de espaços
e momentos nos quais são transmitidos não apenas suas regras internas de
funcionamento, mas ainda suas intenções com a educação. Por isso, faz-se
imprescindível a responsabilidade de trabalhar com significados como o de gênero no
âmbito escolar, tendo em vista a discussão anterior de que a escola produz e reproduz
esses conceitos, reiterando injustiças e desigualdades causadas pelo preconceito e/ou
silêncio.
Desse modo, o Caderno (2004) estabelece que um dos pontos necessários para
que haja essa mudança é reconhecer a homofobia como um problema social. O que
propõe a próxima dinâmica, chamada “Definição de homofobia”. O objetivo dela é
estabelecer diferentes conceitos de homofobia. é sugerido ao professor que não somente
disponibilize algumas definições, como também que os alunos construam suas próprias.
Na discussão, evidenciar que a homofobia pode ser definida de várias maneiras, mas
nenhuma dessas se apresenta como um fenômeno natural à condição humana. Portanto,
é um aprendizado social que faz-se necessário ser descontruído.

• Pra enfrentar homofobia: rever práticas, espaços e suas intencionalidades

O Caderno (2004) prossegue com a compreensão de que a escola deve


desenvolver uma mudança nas intencionalidades pedagógicas e dos espaços em seus
ambientes, com o fundamento de que a educação pública deve pensar em todos/todas
aqueles/aquelas que por direito têm (ou deveriam ter) acesso e permanência a ela. A
seguir, apresento as propostas para que haja uma reflexão dos efeitos dos padrões de
gênero e sexualidade, nas práticas escolares.
A primeira crítica apresentada na proposta se dá devido a uma aceitação
condicionada na homofobia. A famosa ideia propagada no senso comum de “pode ser
gay, mas não precisa...”. Ou seja, uma obrigação para que a pessoa se encaixe em
determinada forma de ser que não lhe cabe, para que seja “aceita”, desde que continue
seguindo os padrões de gênero. A discriminação está presente de forma velada, mas não
41

menos prejudicial. Portanto, é imprescindível considerar que na escola, todos devem


poder se expressar e ser da sua própria maneira, identidade e sexualidade, sem que isso
interfira no tratamento, respeito e em qualquer outro direito que é garantido a todos e
todas.
Outra situação comum na rotina da escola é a divisão entre meninos e meninas na
realização de atividades corporais. Como nas aulas de educação física, por exemplo,
frequentemente há uma expectativa para que os alunos desenvolvam habilidades
motoras de acordo com seu sexo. O Caderno (2004) explica que a problemática nessa
prática é a reprodução que se dá pelo currículo oculto, que intensifica a educação
diferenciada entre os sexos, designando comportamentos e manifestações que não
podem se desviar desta conduta. Além disso, essas práticas reforçam a dualidade: força-
fraqueza, coragem-tremor; raiva-choro.
Para abordar a questão do uso do banheiro nas escolas ou em qualquer outro
lugar, o Caderno (2004) apresenta a definição de travestis e transexuais. Assim, informa
que travestis são pessoas do sexo biológico masculino, que se expressam e incorporam
alguns aspectos considerados femininos, como o uso de saias, maquiagem, além de
remoção de pelos e ingestão de hormônios femininos, dentre outros. Porém, não têm
intenção de modificar o seu genital e sentem prazer com ele. Por sua vez, transexuais
são pessoas nascidas no sexo feminino ou masculino que se identificam e se consideram
do gênero oposto.
A transexualidade tem sido tradicionalmente considerada uma patologia
(disforia de gênero). Muitas/os transexuais se identificam com essa
definição e dizem que devem ser aceitas/os, pois não têm culpa da
doença. Deixam, assim, de reconhecer sua orientação sexual como um
direito e uma construção social e política (CADERNO..., 2004, p. 72).

A partir dessas definições, o Caderno (2004) descreve uma analogia para melhorar
a compreensão da diversidade humana e a incoerência de permitir espaços e direitos
apenas a partir de uma característica. Por exemplo, supõe-se que só é permitido
frequentar alguns espaços da escola quando o aluno ou aluna possui olhos azuis. Outros
estudantes com olhos de outras cores são proibidos de usar os banheiros. Aqui, é
perceptível que essa é uma regra arbitrária e significa um abuso de poder.
O mesmo se dá com estudantes travestis, os quais têm dificuldade de frequentar
42

o banheiro que possam se sentir mais confortáveis. As pessoas do sexo masculino que
se veem como uma mulher, sua identidade deve ser acolhida, respeitada e garantida o
direito do acesso ao banheiro feminino. Dentre vários outros casos, não cabe a ninguém
além do próprio estudante, se reconhecer na própria identidade de gênero e utilizar dos
atributos para feminino ou masculino. Essa regra pode ser mudada a partir da concepção
que não há uma lei ou norma escolar para essa definição, portando faz-se de uma regra
facultativa.
Outra luta das pessoas transexuais e travestis apontada no Caderno (2004) é a
mudança civil do nome social. Pode parecer simples, mas ela significa o reconhecimento
oficial da identidade de gênero aderida. Há um empasse em algumas escolas para que
os professores chamem os nomes escolhidos que muitas vezes não aparecem na lista
oficial de chamada, por exemplo. Nesse momento, é importante a empatia com o(a)
aluno(a) que pode se sentir constrangido(a) ou envergonhado(a) por ser chamado todo
dia por um nome que não lhe representa. Para o professor, no entanto, poderia ser
apenas uma mudança simples (anotação do lado da própria chamada).

No caso da população de transexuais e travestis, o desconhecimento e a


informação incorreta são generalizadas. É importante esclarecer
conceitos e prevenir a marginalização pela linguagem usada. Se, na
sociedade atual, tratamos uma pessoa por “ela”, identificamos essa
pessoa como mulher, mas, se a tratamos por “ele”, todo seu valor como
ser humano muda, independentemente de sua cultura de origem. Não há
dúvida sobre a importância do uso da linguagem e sobre como ela atribui
ou retira estatuto social aos grupos e indivíduos que mais são alvo de
estranheza e discriminação. Novamente é necessário enfrentar uma
“regra” que está servindo apenas para acobertar ou justificar o preconceito
e a discriminação de pessoas que, de algum modo, não se conformam às
convenções de gênero e de sexualidade (CADERNO..., 2004, p. 74)

• O currículo e a transversalidade: a inclusão dos temas sociais na escola


Como já discutido anteriormente no Caderno (2004), os atuantes da escola
participam de forma direta ou indireta na construção do currículo, ou seja, na formação
das identidades humanas. Nesse sentido, a discussão para o enfrentamento da
discriminação e preconceito sexual é o tema considerado mais polêmico, porque
envolvem para além de conceitos científicos.
É necessário aqui reiterar que o material referido é do ano de 2004; Quinze anos
43

passados, os estudos desses temas vêm crescendo e se desenvolvendo, portando é


cada vez maior o conteúdo que se pode ter acesso, tal como a base bibliográfica utilizada
para o terceiro capítulo do presente trabalho.
A ideia para integrar essas questões no conhecimento escolar é concretizada a
partir dos temas transversais. Trata-se de conteúdos de caráter social que são incluídos
no currículo do Ensino Fundamental, não como áreas específicas, mas que devem ser
incluídos no interior das diferentes disciplinas já definidas no próprio currículo (CADERNO,
2004).
[...] sabemos que a escola não se resume a ser apenas o reflexo das
posturas, dos valores e das crenças da sociedade em que está inserida.
Ela também tem grande potencial para refletir sobre essa mesma
sociedade e seus mecanismos de exclusão social. É um dos espaços
privilegiados de transformação social e, nesse sentido, pode colaborar
para a construção de uma sociedade democrática, justa e igualitária
(CADERNO, 2004, p. 75).

2.1.1.3 CAPÍTULO 3 - A diversidade sexual na escola

• Os desafios da escola diante de uma sociedade que muda

Segundo o Caderno (2004), para a escola possuir êxito no trabalho de uma


educação significativa para todos, é condição sine qua non que esta seja inclusiva e
respeite a diversidade. Sobretudo no Brasil, país o qual é marcado desde sua colonização
por exclusão social, política, econômica e cultural. O atual sistema escolar é
caracterizado pelo silêncio e negação das diferenças e minorias, por consequência, essa
negligência torna-se pilar para a permanência desse sistema assimétrico de gênero, com
a dominação masculina; é imprescindível a ruptura com tal omissão.
O capítulo é desenvolvido a partir de dinâmicas:
A primeira dinâmica desse capítulo “Discutindo silêncios” tem o objetivo de
perceber situações de homofobia que habitualmente, não se enxergam. O método
recomendado para tal, é que o professor solicite aos alunos que leiam frases de cenários
como ‘casais formados por sexos opostos podem demonstrar afeto na escola, enquanto
casais de outros formatos são proibidos’ ou ‘a professora adverte quando alguns alunos
falam palavrões, mas se omite quando outros falam bicha ou sapatão’, entre outras nesse
44

sentido. Depois dessa leitura, abrir a discussão questionando aos alunos qual deveria ser
a postura dos educadores nesses casos e o que significa quando você se opõe a algo,
mas não demonstra.
A dinâmica seguinte se chama “Situações concretas de homofobia e o que seria
possível fazer para superá-las”, tem o objetivo de refletir sobre as práticas pedagógicas
e suas possibilidades de transformação. A sugestão nessa dinâmica é que o professor
prepare algumas situações-problema de homofobia, por exemplo ‘nem todos não
heterossexuais encontram apoio em suas casas’, ou ‘a escola é um agente de
socialização que majoritariamente contribui para norma heterossexual’, ou ainda ‘as
minorias presentes na sexualidade normalmente não são abordadas na escola, excluindo
esses indivíduos’. A partir dessas situações, solicitar aos alunos que leiam e reflitam em
possibilidades de ações que a escola pode tomar para resolver esses problemas.

• Projeto Político-Pedagógico e diversidade sexual na escola

O Projeto Político-Pedagógico (PPP) é um instrumento teórico-metodológico, o


qual, segundo o Caderno (2004), auxilia a escola a enfrentar os dilemas cotidianos. Esse
documento deve ser construído de maneira coletiva, desenvolvendo uma reflexão
consciente, orgânica, científica e participativa; definindo um norte para o educador,
fortalecendo o sentimento de pertencimento a todos presentes. O PPP pode abordar
questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero de estudantes e
docentes. A terceira dinâmica do capítulo é relacionada com esse tema e pode ser feita
em partes, por ser mais extensa.
A dinâmica é intitulada “Projeto político-pedagógico e diversidade”, tem o objetivo
de elaborar um PPP. A primeira parte do procedimento é distribuir uma definição do
documento, sua função e configuração para que os alunos compreendam a real proposta
da atividade. Após um período, iniciar uma discussão e a proposta para um PPP que
inclua e respeite as singularidades de cada um. Solicita ao professor que considere
alguns pontos, caso não apareçam na discussão, por exemplo, a criação de estratégias
que permitam a execução das ações pensadas; esclarecer a importância do PPP para
que não haja homofobia na escola.
45

• Plano de ação: uma escola sem homofobia

Nesse tópico o documento propõe um plano de ação com estratégias para que a
escola elabore um projeto político pedagógico emancipatório, afim de orientar as práticas
que objetivam o combate à homofobia. O plano de ação é descrito a partir de alguns
passos nos quais são utilizadas dinâmicas como metodologia.
A quarta dinâmica referente ao primeiro passo do plano de ação, denomina-se
“identificando problemas”. A partir dela, solicita-se ao professor que proponha a discussão
de como a homofobia se manifesta na escola, e a partir do debate com os estudantes,
preencham um quadro de identificação do problema e origem/processo desse problema.
O segundo passo para o plano de ação definido no Caderno (2004) é a definição
de metas e objetivos a partir da quinta dinâmica proposta. Em plenária, o professor pode
incentivar aos alunos que definam uma meta a ser alcançada através do projeto. Em
seguida, solicitar ao grupo que elaborem objetivos considerando que devem responder
aos problemas identificados; contribuir para o alcance da meta; definir prazos temporais
para o cumprimento.
Identificar pessoas que são beneficiadas a partir desse projeto é o terceiro passo
apresentado. Para tal, a dinâmica 6 “Refletindo sobre os/as beneficiários/as” tem o
objetivo de identificar o que se sabe e o que não se sabe sobre os conhecimentos,
práticas e atitudes em relação à homofobia a partir de um determinado grupo de
beneficiários (alunos, professores, família); conforme a plenária for respondendo essas
questões, o professor pode expô-las num quadro.
O quarto passo do plano de ação é identificar as atividades por objetivo e
beneficiários/as; o que é preciso fazer para que os objetivos sejam cumpridos. Na sétima
dinâmica, a plenária deve refletir sobre as atividades necessárias para cada grupo de
beneficiários. A proposta deve ser elaborada em conjunto.
Por fim, o quinto e último passo do plano de ação é realizado a partir da dinâmica
8 “elaboração do quadro lógico”, no qual os estudantes podem expor de maneira mais
organizada o resultado dos passos anteriores planejados: metas, objetivos, atividades e
grupos atingidos.
O Caderno (2004) é finalizado salientando que para que a escola tenha um ensino
de qualidade e respeito entre os integrantes de toda sua comunidade, é imprescindível
46

que os profissionais da educação tenham formação a respeito de temas como


sexualidade, afetividade e relações de gênero e que inclua conteúdos e metodologias
para a formação de uma cultura diversificada e empática.
47

3 PROBLEMATIZANDO A TEMÁTICA

Nesse capítulo, apresento os trabalhos completos pesquisados na Associação


Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), nas 36ª, 37ª, 38ª e 39ª
reuniões, no período de 2013-2019. Para o levantamento dos trabalhos utilizados na
presente pesquisa, a escolha se deu levando em consideração as palavras chaves
gênero e sexualidade sendo que as mesmas teriam que estar contempladas: a) no título;
b) nos resumos dos trabalhos. A partir desses movimentos, selecionei trabalhos que
discutiam sobre as questões de gênero e sexualidade na escola, o contexto que o tema
enfrenta no Brasil e algumas constatações e alternativas para a prática docente.
Nas reuniões em questão, foram apresentados 86 trabalhos no GT 23 - Gênero,
Sexualidade e Educação, no período contemplado. Todavia, a seleção dos trabalhos foi
realizada de forma específica aos objetivos da presente pesquisa. Por ser um tema muito
amplo e diverso, trabalhos que tratavam de disciplinas específicas, formação de
professores, curso de pedagogia ou não relacionavam o tema com a escola, não foram
analisados por não se encaixarem na discussão.
A seguir os trabalhos que foram selecionados para o estudo.

Quadro 1- Artigos para análise da ANPEd

Autor(es) Título Universidade Ano


Dayana Brunetto A escola como empreendimento UFPR - 2013
Carlin dos Santos biopolítico de governo dos corpos e Universidade
subjetividades transexuais Federal do
Paraná
Cláudia Pereira Lgbtfobia na escola: o beijo entre UFSC –
Vianna e Maria garotas lésbicas, homossexuais ou Universidade
Cristina Cavaleira bissexuais Federal de 2015
Santa Catarina
Raquel Alexandre Diálogos sobre homofobia com UFSC -
Pinho dos Santos jovens de Ensino Médio: uma Universidade
pesquisa com grupo focal Federal de
Santa Catarina
Bianca Salazar Avanços e retrocessos em políticas UFSC –
Guizzo e Jane públicas contemporâneas Universidade
48

Felipe relacionadas a gênero e sexualidade: Federal de


entrelaces com a educação Santa Catarina

Marcos Vinicius O ataque à discussão de gênero na UFMA –


Pereira Monteiro escola, construção identitária e a Universidade 2017
importância da liberdade docente Federal do
Maranhão
Lisiane Goettems; As diversidades sexuais na escola: UFMA –
Maria Simone (in)junções discursivas entre a Universidade
Vione Schwengber religião e o estado laico Federal do
e Maranhão
Rudião Rafael
Wisniewski
Thais C M Gava A chegada do discurso “Ideologia de UFF – 2019
Gênero” no contexto educacional Universidade
brasileiro Federal
Fluminense
Fonte: Dados produzidos pela autora

3.1 O CONTEXTO POLÍTICO

Para iniciar a discussão, o trabalho de Guizzo e Felipe (2015) “Avanços e


retrocessos em políticas públicas contemporâneas relacionadas a gênero e sexualidade:
entrelaces com a educação” investiga e analisa algumas políticas públicas
contemporâneas que articulam gênero, sexualidade e educação e discute alguns
aspectos que possam interferir na implementação dessas questões na escola. Guizzo e
Felipe (2015) se apropriam de Estudos de Gênero e Estudos Culturais a partir de um viés
pós-estruturalista.

Para tal, as autoras iniciam a discussão explanando sobre o contexto pelo qual
essa questão começou a ter espaço, a partir da metade do século XX. A educação passou
a ser questionada e reivindicada por indivíduos que estavam à margem da sociedade, tal
como indígenas, negros, mulheres, portadores de deficiências e não-heterossexuais e,
por conseguinte foram ganhando força política e representacional. À vista disso, esses
movimentos requeriam o direito de terem suas diferenças reconhecidas não como
estranhos e anormais, mas como uma forma de vida própria. Atualmente, existe uma
série de materiais, livros, programas e outros meios de comunicação que salientam a
49

importância da discussão sobre a diversidade, inclusive na escola.

No Brasil, na década de 1990 houve um marco do contexto reivindicatório por


esses movimentos sociais que denunciavam práticas discriminatórias na educação. Em
vista disso, segundo Guizzo e Felipe (2015), o Ministério da Educação iniciou a promoção
de iniciativas, debates e discussões, tal como elaboração de documentos oficiais para a
superação de preconceitos e discriminação em instituições escolares.

Por séculos, homens e mulheres foram separados por uma hierarquização em


disputas de poder, em argumentos relacionados a partir de aspectos biológicos. Todavia,
em contrapartida, novas práticas teóricas vêm sendo desenvolvidas, o que contribui para
descontruir certas “certezas” prorrogadas por todo esse tempo, buscando novos
caminhos para tratar esses temas, desde a escola.

É importante destacar que gênero é um conceito que foi desenvolvido a partir de


diferenças sexuais que influenciam não apenas em costumes e papéis assumidos por
homens e mulheres, mas sobretudo, a relação de poder de um sexo acima de outro. As
autoras salientam que a sexualidade abrange a forma como os indivíduos vivenciam seus
sentimentos, prazeres e relações com o outro e com o próprio corpo.

[...] no Brasil, tanto as questões de gênero quanto as de sexualidade têm


ganhado destaque em diversas instâncias. Tal destaque está atravessado
pelo viés dos Direitos Humanos que se fundamentam no reconhecimento
e no respeito às diferenças e às particularidades de cada sujeito ou grupo
de sujeitos. (GUIZZO; FELIPE, 2015, p. 3-4).

Tal como discutido no primeiro capítulo do presente trabalho, Guizzo e Felipe (2015)
pontuam a Constituição Federal (BRASIL, 1988) na qual em seu artigo 3º garante a
promoção do bem para todos, sem preconceitos, independente de origem, cor, sexo,
idade ou qualquer outra forma de discriminação. Além dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (BRASIL, 1997) que embora tenham sofrido fortes críticas, se tornaram uma
forte base para educação nacional e contemplavam os temas transversais, nos quais
dedica aspectos relacionados ao gênero e sexualidade em seu conteúdo e os considera
fundamentais.

Além do âmbito educacional, as autoras salientam que as políticas públicas


também foram implementadas a partir do século XXI, em favor aos indivíduos que não
50

tinham seus direitos garantidos no que diz respeito ao gênero e sexualidade. Em 2003, a
Secretaria de Políticas para as Mulheres foi criada e em 2012 as Delegacias
Especializadas de Atendimento à mulher abrangeram todo o território nacional, além das
Varas de Violência Doméstica.

Guizzo e Felipe (2015) também destacam o Programa Brasil sem Homofobia


(BRASIL, 2004) que teve a finalidade de incentivar o combate à violência e discriminação
a não-heterossexuais e promover a cidadania homossexual. Além do material analisado
no segundo capítulo desse trabalho, o CADERNO Escola Sem Homofobia (2004), foi uma
iniciativa desse Programa e foi suspensa por sofrer grandes críticas do conservadorismo
presente no governo. As autoras salientam que “as críticas e a posterior suspensão do
referido Kit muito provavelmente ocorreram pelo fato de ainda vivermos em uma cultura
em que a heterossexualidade é vista como a única possibilidade de os sujeitos viverem
sua sexualidade” (GUIZZO; FELIPE, 2015, p. 6). Esse conceito pode ser referido por
heteronormatividade, cujo implica na reiteração da marginalização de outras possíveis
sexualidades diferente da heterossexual, perseguição e até violência contra esses
indivíduos, propagando um padrão único na forma de viver.

Embora a existência dessas, dentre outras políticas públicas e documentos oficiais,


Guizzo e Felipe (2015) questionam o real efeito dessas propostas na Educação Básica e
alerta a responsabilidade dos educadores que, para além deve trabalho, precisam estar
atentos na influência transmitida a partir de seus próprios princípios, posicionamentos e
opiniões. Mesmo que não intencionalmente, os docentes estão o tempo todo ensinando
e dizendo sobre gênero, sexualidade e diferenças.

E arriscamo-nos a afirmar que muitas vezes esses posicionamentos e


essas opiniões estão indo na contramão daquilo que procuram pregar os
referidos documentos, já que – em certa medida – acabam incitando o
sexismo, o machismo, a homofobia e a misoginia. (GUIZZO; FELIPE,
2015, p. 8).

Para evidenciar essa ideia, o trabalho apresenta dados de uma pesquisa


desenvolvida pelas autoras na qual uma professora relata casos de alunos que zombam
de colegas de classe pelo modo como se comportam, com um “jeito de gay”, chamando-
os de “bichinha”, entre outros termos. A professora pontua que se posiciona dizendo para
os alunos chamarem os outros pelo nome e não por apelidos que são desrespeitosos.
51

Outro relato é apresentado, no qual professoras desenvolvem um projeto sobre


gênero e sexualidade, discutindo o tema em sala de aula e disponibilizando uma caixinha
para que os alunos depositem suas dúvidas de forma anônima, se assim o preferirem.
(GUIZZO, 2015 apud GUIZZO; FELIPE, 2015) expõe que foi convidada a discutir as
questões dos alunos nessa turma e as perguntas se referiam quase completamente a
aspectos biológicos como puberdade, gravidez, relação sexual, etc. Partindo desse
pressuposto, a autora salienta que na escola, as formas de trabalhar gênero e
sexualidade ainda estão muito vinculadas a questões reprodutivas. Essa atitude, todavia,
prossegue com a concepção de uma única forma aceitável e saudável de construir
relações: heterossexual. Assim, outras maneiras diversas de se constituir, são
marginalizadas e silenciadas. A pesquisadora conversa com os alunos, de forma a
esclarecer “uma vez que a sexualidade não se restringe à reprodução, foi exposto aos
alunos que ela pode ser vivida de variadas formas: com o próprio corpo e/ou com o corpo
do outro (sendo do sexo oposto ou não)” (GUIZZO; FELIPE, 2015, p. 10). A partir dessa
colocação, relata que os estudantes se sentiram encorajados a fazer mais perguntas
nesse sentido, sobre relações homossexuais.

A autora relata que ficou satisfeita com o resultado dessa atividade, porém lamenta
que praticamente metade da turma não compareceu à escola nesse dia, devido à falta
de autorização dos pais para participarem dessa aula. Desse modo, Guizzo e Felipe
(2015) salientam que a família ainda é um grande dificultador nessa questão, a qual
parece não compreender que além da escola, os jovens têm acesso a outros meios de
educação como internet, jornais, televisão, que podem ainda não esclarecer e instruí-los
de maneira correta. Conforme Guizzo e Felipe (2015),

Desde sua constituição, a escola é marcada por diferenças e está


implicada, também, com a produção dessas diferenças. Embora não seja
possível atribuir a ela toda a responsabilidade pela construção das
identidades sociais, ela continua sendo para crianças e jovens um local
importante de vivências cotidianas específicas e, ao mesmo tempo,
plurais. (MEYER; SOARES, 2004, p. 8 apud GUIZZO; FELIPE, 2015).

Guizzo e Felipe (2015) reconhecem que, embora haja um avanço ante as


propostas de igualdade de gênero e sexualidade, as crianças, jovens e adultos presentes
na escola ainda têm atitudes desrespeitosas com relação a pessoas que não se
52

identificam com a convencionalidade heterossexual. Não obstante, as iniciativas públicas


com o objetivo de contribuir com essa discussão, têm enfrentado dificuldades para suas
implementações, tal como o Projeto Escola Sem Homofobia (CADERNO..., 2004) que
procurava combater a discriminação e preconceito e foi vetado. Ademais, Guizzo e Felipe
(2015) questionam sobre a qualidade desses materiais e a real eficácia que são
apresentadas no contexto escolar; demonstrando a necessidade de se pensar em
estratégias para políticas mais eficazes e considerando a importância da escola no que
diz respeito à produção de diferenças e combate às desigualdades.

Monteiro (2017) em seu trabalho “O ataque à discussão de gênero na escola,


construção identitária e a importância da liberdade docente” inicialmente apresenta a
concepção de currículo como um espaço de luta e um atuante na construção identitária
das multiplicidades presentes na instituição escolar. Conjuntamente, o currículo é
considerado uma construção social, na qual estabelece relações de poder que definem
na elaboração de conteúdos que são importantes ou não para tal. A partir disso, questiona
o critério para essa definição, os objetivos e a quem beneficiam essas escolhas de
silenciamento ou evidência.

O autor salienta que nos últimos anos, o país enfrenta dificuldades governamentais
para o avanço da discussão de gênero e sexualidade no âmbito escolar. Nesse contexto,
determinados grupos detém o poder de estabelecer o que é válido para representação
de identidade e um padrão a ser seguido, decretando o outro como diferente, minoria, à
margem das decisões sociais. Em contrapartida, o multiculturalismo representa o
questionamento da reprodução de preconceitos e estereótipos, além de propiciar uma
valorização da diversidade cultural, e as implicações do papel da escola no
desenvolvimento da cidadania.

Nos últimos anos, embora as questões de gênero e sexualidade tenham ganhado


certo destaque, o trabalho analisa a perspectiva de um determinado grupo que propõe
um retrocesso ao dificultar a presença dessa temática no ambiente escolar. Um grupo
que define como “ideologia de gênero” a ideia de que as discussões na escola sobre o
tema, teriam o objetivo de doutrinar crianças, supostamente ameaçando a infância e a
família tradicional brasileira. Esse equívoco é propagado à população com conceitos
53

distorcidos do que seria essa orientação sexual, e defendem que a “educação moral”
deve ser instruída exclusivamente pelos pais. Esse movimento apresenta força e poder,
inclusive provocando uma exclusão de certos termos em documentos oficiais, como
“gênero”, “igualdade de gênero”, entre outros e a promoção de projetos de leis que
ameaçam a liberdade docente, restringindo discussões que possam estar em conflitos
com as convicções religiosas das famílias (MONTEIRO, 2017).

A cultura está presente na vida dos seres humanos desde seus primeiros
momentos, sendo que cada indivíduo pode produzir ou ser produzido por ela, tal como a
escola que pode reproduzi-la ou questioná-la e transformá-la através de seu currículo e
metodologia. Monteiro (2017) salienta que, todavia, a escola tem a atuação dominante
que prioriza o comum, normal e uniforme; as diferenças são silenciadas ou confrontadas.
À vista disso, o ambiente escolar se torna mais um espaço no qual é propagado
estereótipos, preconceitos, limitando certos padrões étnico-culturais. Para a ruptura
desse seguimento Monteiro (2017) argumenta que

[...] o currículo deve possibilitar que diferentes culturas convivam, que o


“outro”, o “diferente” se empodere e ganhe voz, que tenha a possibilidade
de divulgar a sua própria cultura, semeando a transformação cultural. Os
sujeitos envolvidos poderiam desenvolver capacidades de crítica e
questionamento das forças dominantes de representação da identidade e
da diferença, problematizando binarismos em torno dos quais essas
identidades/diferenças são estruturadas, sendo importante o papel
docente em clarificar primeiro estas construções culturais para que depois
esclareça aos discentes a importância de respeitar e admitir a diferença.
(MONTEIRO, 2017, p. 7).

O autor alerta que é incoerente, portanto, tornar como universal uma ideia que foi
construída socialmente em um determinado tempo e sociedade. A binaridade de gênero
foi um elemento criado a partir das diferenças biológicas dos sexos e a partir desse
conceito, as relações de poder foram constituídas e determinou-se uma hierarquização e
desigualdades entre um grupo e outro. Monteiro (2017) salienta a necessidade do
comprometimento da escola com a justiça social e representatividade para todos e todas,
interferindo nas relações de poder que vêm se disseminando exclusivamente a um
determinado grupo, e diminuindo as desigualdades sociais e de gênero, através de uma
abordagem na qual o multiculturalismo seja desenvolvido, não com o objetivo de dividir e
separar, porém de inter-relacionar diversas culturas e sujeitos no espaço educacional.
54

Desse modo, o trabalho pontua que não existe uma forma única de ser e se
identificar como homem e mulher, visto que considera as complexidades e
individualidades de cada um, não apenas um mesmo padrão pré-determinado a partir do
sexo com o qual nasceram. A pluralidade de identidades e culturas não permite a restrição
de um tipo correto de ser e se portar; com isso a escola possui o papel político na
transformação identitária a partir de discussões, reflexões e questionamentos sobre
gênero e sexualidade, afim de

[...] formar indivíduos mais capazes de lidar com um mundo que é


complexo, que vem passando por inúmeras transformações de ordem
tecnológica, social e cultural. Novas configurações familiares,
preconceitos em torno do diferente [...] E é importante que as contradições
apareçam para formar cidadãos que se abram para o debate e para
entender a complexidade das relações entre o “eu” e o/a “outro/a”.
(MONTEIRO, 2017, p. 9).

Monteiro (2017) destaca que o papel político da pedagogia se faz imprescindível


a partir do reconhecimento de que as escolas têm o papel de não definir e restringir os
estudantes às condições socioculturais e econômicas exclusivas de suas famílias. Não
obstante, deve propiciar um espaço no qual são permitidos e provocados
questionamentos, reflexões e mudanças que construam e descontruam suas identidades
a partir de um horizonte maior de perspectivas, contribuindo para o avanço e evolução
da sociedade.

Gava (2019) em seu trabalho “A chegada do discurso “Ideologia de Gênero” no


contexto educacional brasileiro” discute sobre como tema de gênero e sexualidade nas
escolas teve destaque público em todo o país nos anos de 2014 e 2015. Isso porque
setores conservadores da sociedade criaram um embate com a interferência em
documentos nacionais da educação afim de que retirassem qualquer menção ao tema,
com o discurso de uma suposta doutrinação da escola que dissociaria os papéis
femininos e masculinos da sociedade e comprometeria a formação moral de crianças e
adolescentes.

Essa ideia foi reconhecida como “ideologia de gênero” (como já mencionado) e


esse enfrentamento teve resultado com a exclusão desses termos em documentos
nacionais e um patrulhamento contra escolas e docentes que tratassem das questões de
55

gênero na escola. Além disso, Gava (2019) pontua que o debate alcançou a política
brasileira, de modo que o candidato eleito à presidência no ano de 2018, teve sua
campanha baseada no discurso do combate a “ideologia de gênero”. Nesse cenário, a
Educação é entendida como uma área de disputa entre setores conservadores e
progressistas, visto que de um lado os discursos são baseados em preconceitos morais
e religiosos e ignoram marcos legais no país, e do outro, a instituição escolar é tratada
como parte de um projeto que visa valores como a laicidade e ideais democráticos.

Gava (2019) contextualiza que o discurso de “ideologia de gênero” surgiu em 1990,


na Igreja Católica, que entrava um embate nas Conferências das Nações Unidas frente
às definições de gênero, sexualidade e família, nas quais a argumentação naturalista foi
confrontada a partir da teoria feminista. A Igreja Católica busca então, um contra discurso
nas bases teóricas feministas e destacam fora de contexto o termo “ideologia de gênero”
definida como estratégia de feministas radicais para o enfraquecimento da unidade social
familiar, a partir do questionamento das diferenças sexuais. A partir de então, esse
discurso é divulgado em diversos países com a intenção de questionar políticas sociais,
reformas jurídicas ou ações na área da saúde e educação que tenham o objetivo de
promover os direitos sexuais que divergem da ordem religiosa e conservadora (GAVA,
2019).

A autora salienta que para a Igreja, um conceito que pode enfraquecer a instituição
tradicional de “família”, significa sua própria fragilização, à vista disso, diante do avanço
de ideais democráticos nos quais o indivíduo livre é considerado, a Igreja investe em seu
discurso na defesa de uma moralidade social e política. A estratégia utilizada pelo setor
conservador para a ruptura da democracia liberal, é um sistema institucional eficaz: o
medo; a produção de um pânico moral. Segundo Gava (2019)

[...] criar elementos que fossem capazes de romper as referências dos


direitos humanos, em especial os direitos sexuais e reprodutivos, a partir
do questionamento do gênero como um conceito e a retomada de valores
religiosos tradicionais em detrimento de valores democráticos. Em outras
palavras, para se falar de gênero é necessário explicar e justificar o
componente teórico em contraposição aos inúmeros preconceitos e
estruturas naturalizadas/essencializadas alocadas num discurso religioso
e de fé dogmática. (GAVA, 2019, p. 2).

A disputa se tornou uma construção mais complexa e envolveu diversas esferas


56

sociais, de modo que o discurso da “ideologia de gênero” ganhou força para derrubar
direitos e políticas já consolidados, na área da saúde, educação e cidadania, como os
Direitos Humanos.

Segundo Gava (2019), especificamente no Brasil, o discurso da “ideologia de


gênero” é considerado por uma disputa para inclusão ou exclusão de temas relacionados
a gênero e sexualidade nas políticas públicas. Diferentes grupos de interesses constroem
a partir desse discurso uma pauta conservadora, em combate com pautas morais –
direitos sociais – e valorização das políticas econômicas ultraliberais. O discurso teve
uma forte associação de questionamento às gestões do Partido dos Trabalhadores (PT),
partido identificado no campo progressista, o que resultou numa polarização entre as
vertentes partidárias do país.

O movimento conservador articulou como estratégia a “preocupação” com as


crianças, no sentido de formação moral, questionando o papel pedagógico da instituição
escolar. Gava (2019) retrata que a educação escolar foi questionada por pessoas adeptas
ao discurso da “ideologia de gênero”, de modo que deveria ser “neutra” ideologicamente,
direcionando à família o papel da educação moral e sexual das crianças e dos jovens. O
argumento de que a escola deve concentrar em conteúdos disciplinares, de modo acrítico,
censurando a liberdade docente.

É importante destacar que a escola se torna uma ferramenta estratégica de disputa


e controle, visto que é reconhecida como um espaço com acesso a conhecimentos
capazes de ampliar a visão de mundo, propor novas ideias e com potencial para
transformação social, todavia, concomitantemente, pode ser reprodutora de normas e
valores tradicionais, propagando estereótipos e hierarquias. Gava (2019) salienta que
esse debate desloca as questões de gênero que dizia respeito às minorias de acordo
com os direitos humanos, a partir de um espaço identitário, e atualmente abrange um
espaço político mais geral, visto que os discursos da “ideologia de gênero” questionam
as discussões no ambiente escolar, a partir do embate político e ideológico. Desse modo,
o papel do Estado na construção de valores sociais é contestado, especialmente na
instituição escolar.

O trabalho esclarece que esse questionamento do papel socializador da escola


57

centraliza o papel do educador, visto que ele é a personificação da possibilidade de


corroborar ou enfraquecer essas questões. Embora a escola possa possuir esse caráter
reprodutor, normativo, Gava (2019) destaca

[...] a escola também é o espaço de construção das resistências a esses


processos de controle, um local onde se constrói estratégias de
enfrentamento e novas relações, no qual as pessoas estão num processo
intenso de participação e num investimento continuado e produtivo na
determinação de suas formas de ser e viver. (GAVA, 2019, p. 4).

Assim, os discursos defendidos pela “ideologia de gênero” também reconhecem a


escola como instituição potencializadora, capaz de questionar a ordem heteronormativa
e familiar como organização social, contestando essa estrutura da sociedade. A autora
menciona que a ascensão das pautas conservadoras no legislativo sucede um evento
que marcou as discussões de gênero no país: o veto dos materiais didáticos do projeto
Escola Sem Homofobia (CADERNO, 2004), o qual buscava o combate à homofobia e
promovia a diversidade sexual como valor democrático. O projeto foi difundido pela
expressão “kit gay” pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, e utilizado na sua
campanha formal e informal a partir de notícias falsas, termos jocosos e injúrias.
Conforme Gava (2019)

A retórica da "ideologia de gênero" é amplamente utilizada nos discursos


oficiais do atual governo, que se autodefine como conservador e de direita,
associado à necessidade de desvinculação de uma postura ideológica
adotada pelo governo anterior, definido como de esquerda e progressista,
visando fazer frente a um novo projeto de país e sociedade (GAVA, 2019,
p. 4).

O trabalho considera que é possível que essas ações sejam mais frequentes,
reforçando a ideia da escola como um espaço de disputas. No entanto, é necessário
considerar o espaço que a discussão de gênero e sexualidade constrói como conceito
que pode contrapor esse processo construído desde 1990, como um caminho possível
de exploração da escola por seu papel potencializador de transformação social.

O trabalho “As diversidades sexuais na escola: (in)junções discursivas entre a


religião e o estado laico” de Goettems, Schwengber e Wisniewski (2017) promove o
pensamento da diversidade na educação escolar, questionando sobre as aproximações
ou distanciamentos da educação religiosa e o Estado Laico, a partir da perspectiva de
58

Foucault de discurso e formação discursiva, a qual envolve aspectos que articulam o


pensamento, a atenção e a linguagem. As autoras destacam que o discurso é marcado
pelo tempo e espaço de cada sociedade, e por meio da determinada cultura, circulam as
emergências de pensamento e por consequência, de linguagem. Desse modo, as
formações discursivas possibilitam a produção de saber e poder, além de estabeleceram
a relação do homem como ser social, situando-o historicamente.

As autoras utilizam para análise, primeiramente, uma charge de Carlos Henrique


Latuff de Sousa, que produz em suas criações uma crítica à repressão do Estado aos
movimentos sociais, defendendo os direitos humanos e a cidadania.

A charge materializa a Constituição da República Federativa do Brasil (1988),


destacando as cores da bandeira nacional e na parte superior da charge, o brasão
brasileiro, evidenciando os símbolos do nosso país. Goettems, Schwengber e Wisniewski
(2017) reiteram que a Constituição (1988) é um marco brasileiro, no qual o Estado deixa
de estar em uma posição autoritária, para resgatar os ideais democráticos silenciados
durante o regime militar, se tornando um Estado Democrático de Direito; além disso,
garante a ampliação de direitos fundamentais ao povo brasileiro, como acesso à saúde,
educação, trabalho, moradia, lazer, proteção à maternidade e infância; tal como a
premissa de que todos são iguais perante à lei.

Segundo Goettems, Schwengber e Wisniewski (2017), a charge utiliza a


sobreposição de imagens, na qual a Constituição (1988) recebe sobre si a imagem da
Bíblia Sagrada, livro organizado em Antigo Testamento (datado entre 1500 a.C e 450 a.C)
e Novo Testamento (datado entre 45 d.C e 90 d.C). Esse livro de caráter doutrinatório,
representa textos religiosos de valor sagrado para o Cristianismo. O brasão brasileiro
também é ocultado em parte, por uma cruz: outro símbolo religioso. Outra figura em
destaque é revelada por um homem, que aparece utilizando um martelo e uma escada,
com uma etiqueta nas costas sinalizando “bancada religiosa”, relacionando à imagem de
Jesus Cristo sendo pregado à cruz.

A charge apresenta, portanto, duas publicações - Bíblia Sagrada e Constituição


(1988) - que abordam discursos e formações discursivas de tempos históricos distintos,
contudo concomitantes, pois são circulados e de livre acesso na contemporaneidade.
59

Enquanto discursos, Goettems, Schwengber e Wisniewski (2017) relacionam-os por duas


escritas (religiosa e da lei), as quais contemplam seus próprios valores, regras e
justificativas. Ambos os documentos que interferem no modo de pensar, agir e ser dos
sujeitos e, consequentemente, na vida social, familiar e profissional.

A Constituição Nacional (1988) como lei fundamental e suprema do Brasil


permite a participação do poder Judiciário sempre que houver lesão ou
ameaça de lesão a direitos. [...] o Brasil deixou de ter uma religião oficial
que, outrora, tinha o Catolicismo Romano como modelo. Com a separação
Estado-Igreja, a extensão do direito à liberdade religiosa foi ampliada e
atualmente é vetado ao Estado recusar fé ou criar algum tipo de distinção
ou preferência religiosa para alguém. (GOETTEMS; SCHWENGBER;
WISNIEWSKI, 2017, p. 7).

Os autores salientam, porém, que a existência dos livros não exime as lacunas
entre legalidade e realidade, tal como as interpretações possíveis de ambos os
documentos. Mesmo passados 28 anos da promulgação da Constituição (1988), o
Congresso Nacional ainda apresenta confusões no que diz respeito a abordagem ao
Estado Laico. Como ilustração, o texto relaciona dados estatísticos, nos quais evidenciam
a realidade de um número significativo de políticos que se nomeiam mais pela
religiosidade, do que pelo próprio partido, dadas mobilizações da bancada evangélica,
católica e familiar. Goettems, Schwengber e Wisniewski (2017) reiteram os
questionamentos dessas bancadas que defendem uma formação familiar padrão, pela
figura do pai (homem), mãe (mulher), e filhos, além de discursam abertamente contra o
casamento de pessoas do mesmo sexo, expõem preconceitos homofóbicos e outras
questões sociais, a partir da justificativa religiosa. As autoras chamam atenção para

[...] o Estado Laico e os discursos a ele vinculado, vão sendo atravessados


pelos discursos e formações discursivas das bancadas religiosas [...]
revelam primeiro a si mesmas, se contam através de articulações
geralmente de boicote, de resistência a todo e qualquer pensamento que
se apresentar, minimamente, de acordo com temáticas que reivindiquem
visibilidade às diferenças. O lugar do pensar, do conviver vão, pouco a
pouco, inibindo votações que tenham na emergência de debate as
abordagens que tratem das diferenças [...] (GOETTEMS; SCHWENGBER;
WISNIEWSKI, 2017, p. 8-9).

O segundo recurso utilizado para análise no trabalho de Goettems, Schwengber e


Wisniewski (2017) tem como debate central a educação e as emergências da diversidade
sexual. Trata-se de uma troca de uma aluna matriculada no Programa de Educação para
60

Jovens e Adultos (PROEJA), que recebe o nome (fictício) de Leila. Essa aluna relata para
um colega de classe sobre a conversa que teve com sua filha de 9 anos de idade. Na
conversa, a mãe instrui a criança para caso receba o kit anti-homofobia (CADERNO...,
2004) na escola, deve rasgá-lo em mil pedaços, proibindo-a de manusear o material.

A conversa de Leila com sua filha indica que a temática da sexualidade ou


orientação sexual são abordadas de forma de controle, proibição e vigilância. Esse
discurso pode refletir em uma educação que não se desenvolve a partir do diálogo e
contém (ou não) aproximações entre escola, família e igreja. Goettems, Schwengber e
Wisniewski (2017) destacam a semelhança do discurso que defende a
heterossexualidade, a partir do modo de pensar e agir. Enquanto certas famílias
incorporam o que ouvem na igreja como doutrina de vida, seguindo todo discurso à risca,
a escola tem o papel de considerar o tempo e espaço para construção do saber científico,
filosófico, entre outros, para ampliar as visões e desenvolver a capacidade de
argumentação.

O Caderno (2004) não conseguiu chegar as escolas, enfrentando ataques


calorosos no Congresso Nacional Brasileiro e ficou popularmente conhecido como “kit
gay” como instrumento de incentivo à homossexualidade. Desse modo, Goettems,
Schwengber e Wisniewski (2017) alertam sobre os representantes políticos negaram o
lugar de voz dos docentes sobre o assunto e difamaram o material que não possui
posição de incentivo à nenhuma sexualidade, todavia cumpria o papel de conscientização
sobre o tema, desmistificando-o.

Com relação à educação e o cotidiano escolar, se pode prospectá-los


como modo e lugar em que sujeitos se envolvem com o conhecimento de
diversas áreas, tendo o debate da sexualidade e suas interfaces, como
um entre tantos conhecimentos a estudar. Um lugar não apenas para
conviver com a diversidade de (sujeitos, classes, orientação sexual, etnia,
conceitos), mas para construir consciência acerca da(s) cultura(s), de
respeito à diferença. (GOETTEMS; SCHWENGBER; WISNIEWSKI, 2017,
p. 12).

A aluna Leila em questão parece ter sido influenciada pelo discurso de políticos e
reagiu contra um material que não chegou a conhecer, talvez nem questionar. Goettems,
Schwengber e Wisniewski (2017) atenta que nos estudos escolares, Leila não
necessariamente mudará sua posição em relação às orientações sexuais diferentes da
61

sua, porém poderá ter uma reflexão sobre o assunto e começar a olhar para o outro,
diferente, sem ter que julgá-lo a partir do preconceito.

As autoras ressaltam a importância das formações discursivas na educação


escolar amparadas pelo discurso da Constituição (1988), que defende os direitos
humanos, assegurando minimamente a liberdade de expressão e respeito à diversidade
na presença de um Estado Laico. Dessa forma

Os currículos escolares cumprem (ou deveriam cumprir) a função de


dialogar com as questões de mundo (local e global), com os tempos
históricos, com as emergências. Não só a filosofia e a sociologia escolar
como responsáveis dessa tarefa, mas, as diversas áreas do
conhecimento científico, em interlocução com as formações discursivas.
Construir estratégias para proporcionar saber sobre o atualmente vivido,
o devir, o já ocorrido. (GOETTEMS; SCHWENGBER; WISNIEWSKI, 2017,
p.13).

Proporcionar o diálogo em torno do que foge à norma, rompendo com o uniforme,


segundo Goettems, Schwengber e Wisniewski (2017), é um exercício pedagógico que
cria condição para esse olhar para o outro-diferente, despertando mais empatia,
sensibilidade e coletividade.

O trabalho intitulado “A escola como empreendimento biopolítico de governo dos


corpos e subjetividades transexuais”, de Santos (2013), procura dialogar com conceitos
de Michel Foucault, no que diz respeito a presença transexual e travesti e o agenciamento
biopolítico do âmbito escolar, na perspectiva do controle desses corpos e subjetividades.

A autora apresenta a problemática por um paradoxo inventado, no qual por um


lado, existem os movimentos sociais de transexuais e travestis que lutam para
conseguirem registros escolares utilizando seus nomes sociais. Essa conquista é
importante para que transexuais e travestis sejam reconhecidas como estudantes, e
tenham minimamente tenham o direito e acesso à educação. Essa exclusão escolar de
pessoas que não apresentam o nome acordado com o gênero e corpo, gera além de
tantas violências, a escassez de oportunidade no mercado de trabalho, o que pode inseri-
las a um único tipo de ganha pão: a prostituição.

Todavia, há no outro lado, a ideia de que esse reconhecimento possa ser uma
estratégia biopolítica de governo para um controle e processo de subjetivação dos corpos
62

LGBTQIA+. O artigo evidencia a importância das conquistas desses movimentos sociais,


pois é a partir delas que se torna cada vez mais palpável a presença trans dentro da
escola. Entretanto, a preocupação faz-se pertinente acerca das formas de configuração
das redes de poder e controle que estão articuladas ao agenciamento biopolítico do
dispositivo da sexualidade, conceito de Michel Foucault.

Vejamos: os movimentos sociais pautam as instituições para que os


sujeitos trans sejam incluídos nas escolas, por meio da utilização de seus
nomes sociais. As normativas são elaboradas, e a partir delas as
instituições escolares produzem estratégias de controle e governamento
dos corpos, apagando a diferença, criando, em conjunto com os saberes
psicológicos, a verdade sobre o sexo de transexuais e travestis e
interditando determinados espaços a esses corpos e subjetividades
transformados, aos quais ainda consideram abjetos. (BUTLER, 2000, p.
161 apud SANTOS, 2013).

Santos (2013) apresenta o contexto histórico, no qual até 1950, transexuais não
eram consideradas sujeitos, por isso, não havia definições, nem diferenciações. A
experiência transexual era considerada uma patologia, visto que a sociedade foi fundada
no conceito binário feminino e masculino e, concomitantemente, a escola era
compreendida como um empreendimento biopolítico, justaposta às redes de controle-
poder que constituíram as condições para que o dispositivo da sexualidade fosse
reconhecido como uma questão político-epistemológica.

A compreensão social de gênero era disposta na crença da existência de apenas


um corpo, perfeito ou imperfeito, no qual poderia representar um dos dois papéis
delimitados a partir de seus atributos de nascimento. Desse modo, a mulher que foi
definida como um corpo imperfeito (com um pênis interno) se defrontou em posição
inferior aos homens. Santos (2013) explana que a partir desse pressuposto, a
transgressão de gênero era considerada perigosa e proibida, pois isso poderia tornar
possível que mulheres assumissem o lugar de homem e tivessem os privilégios
exclusivos dessa posição social.

A partir do século XVIII ocorre um deslocamento de reconhecimento de dois corpos


diferentes, providos da natureza. A autora salienta que essa passagem ocorreu em meio
a uma rede de disputa de poderes no campo político. A partir de então, as redes de poder-
saber produziram essa diferenciação sexual subdivididas nas categorias opostas,
63

feminino e masculino, em condições específicas, tal como a construção da experiência


transexual. “Desta forma, é possível compreender que o dimorfismo sexual funciona
como um mecanismo que enreda a todas e todos nós nas redes de poder-saber sobre o
corpo, o sexo, o gênero e a sexualidade” (SANTOS, 2013, p. 5).

O trabalho se baseia em Foucault ao desenvolver o conceito de que a sexualidade


surge a partir de um dispositivo de controle de corpos articulado a diversas estratégias.
Essa sexualidade criada sustenta e dá fundamento para discursos, práticas e regras e a
hierarquização entre os indivíduos. A homossexualidade, por exemplo, foi estruturada a
partir dessa patologização das condutas, como forma de controle da rede, tal como a
transexualidade, considerados doentes mentais. “[...] é possível compreender que somos
todas e todos alvos de investimento desses mecanismos de poder que visam a produção
da heterossexualidade hegemônica como única possibilidade viável e inteligível”
(SANTOS, 2013, p. 7).

Essa lógica da heterossexualidade como sexualidade única, persiste sendo


controlada e regrada, inclusive no interior de instituições como a escola. Nesse sentido,
a presença transexual nesse âmbito é ameaçadora, visto que não é possível ocorrer o
retrocesso à sexualidade e conduta da norma heterossexual e aponta um escape à
eficiência política do governo sob os corpos e subjetividades no funcionamento escolar.
Santos (2013) considera a escola como autora de discursos e práticas que foram e ainda
são articulados com as relações de saber-poder para a produção de corpos utilizáveis,
úteis e governáveis.

A escola é vista, portanto, como um empreendimento biopolítico que, com o


governo dos corpos e da mente, é pautada na governamentalidade neoliberal. É tomada
como um investimento para o agenciamento que pretende tornar os corpos
potencializados para a produção e consumo. Em contrapartida, estão os corpos
transexuais e travestis que possuem corpos e identidades independentes, fora dos limites
sobrepostos, por isso para as redes de controle-poder, é interessante que esses
indivíduos sejam vistos com olhares acusatórios.

Com isso, o que se percebe é que a simples presença desses sujeitos


perturba e desestabiliza o empreendimento biopolítico da escola, uma vez
que diferentemente da saúde, a escola não encontrou ainda meios de
64

capturar esses corpos e torná-los viáveis para o consumo e a produção.


Dentro do imperativo da inclusão escolar, a presença trans na escola
deflagraria um processo de reorganização da instituição sobre
modulações até então impensadas. Entretanto, isso não ocorre,
produzindo, ao contrário, os processos de exclusão (SANTOS, 2013, p.
11).

Por fim, o artigo constata que a resistência dos corpos e identidades transexuais
operam uma perturbação ao agenciamento biopolítico, enquanto consequentemente
pode resultar na própria exclusão e rejeição desses sujeitos justamente por fugirem da
norma e controle. Como alternativa, Santos (2013) sugere um desafio à educação e à
escola moderna que consiste em buscar alternativas para legitimar esses corpos e pensar
a partir da diferença e da multiplicidade. Desse modo, a educação pode cumprir seu papel
de resistência ao controle, como ato político de liberdade.

3.2 O CONTEXTO ESCOLAR

Dialogando sobre a realidade do tema gênero e sexualidade na escola, o trabalho


de Vianna e Cavaleiro (2015) intitulado “Lgbtfobia Na Escola: O Beijo Entre Garotas
Lésbicas, Homossexuais Ou Bissexuais”, examina em pesquisa, o modo como garotas
de 16 a 17 anos, que se consideram lésbicas, homo ou bissexuais, vivenciam, elaboram
suas experiências, constroem suas identidades e, muitas vezes enfrentam LGBTfobia no
ambiente escolar.

Para iniciar a discussão, as autoras recorrem ao cenário brasileiro das escolas, no


qual a heterossexualidade e a binaridade dos gêneros ainda são difundidas e reforçadas.
Ao que se esquiva dessa norma é prejudicado de alguma forma, seja pelo silenciamento
ou opressão. Por consequência, os jovens não-heterossexuais sem nenhum
reconhecimento e referência, precisam buscar construir uma identidade social para si,
em meio a ambientes e situações que os degrada e assedia.

O trabalho aborda especificamente sobre as garotas que sofrem essa


discriminação, identificando a repressão diferente que elas sofrem, pelo fato de serem
mulheres; o objetivo do referido busca compreender o papel das relações de gênero e
sexualidade no âmbito escolar, analisando os significados e normas produzidos
culturalmente, tal como os modos como as feminilidades são vividas e produzidas dentro
65

desse espaço.

A pesquisa ocorreu em uma escola pública de Ensino Médio, na região periférica


da cidade de São Paulo, na qual o material era produzido através de observações,
questionários, entrevistas individuais e grupos de discussão, além do acesso às
dependências da instituição. Vianna e Cavaleiro (2015) chamam atenção a um fato
narrado por uma integrante da equipe gestora, no qual uma aluna da escola preparou
uma surpresa para alguém que amava: outra estudante. A homenagem aconteceu com
um carro de som, recitando poesias e declarações e, segundo a interlocutora, a ‘escola
parou’. Essa explicitação da sexualidade não heterossexual no ambiente escolar foi
definitiva para a escolha dessa escola para a pesquisa, segundo Vianna e Cavaleiro
(2015).

As notas de campo constatam que os beijos, abraços e trocas afetivas são


comumente presentes nessa escola; aconteciam no ambiente externo e interno da escola,
e em momentos diversos de encontros de amigas ou casais. As autoras pontuam que
esse gesto afetivo é significativo nas experiências para os processos de socialização no
aprendizado da sexualidade. Contudo,

As observações realizadas e os depoimentos colhidos permitiram


perceber que para vivenciar o beijo há práticas e sentidos que estruturam
e limitam a sexualidade e mais amplamente a vida social no cenário onde
muitas vezes prevalece a LGBTFobia. (VIANNA; CAVALEIRO, 2015, p. 7).

O depoimento de uma professora foi relatado no trabalho, no qual a docente se


refere a duas alunas que se beijavam no pátio e foram chamadas à coordenação para
saber o que seria feito, com o discurso de que a conversa seria para protegê-las de uma
exposição e que aquele ato era um exagero. As autoras chamam atenção à conotação
de escândalo para um gesto que foi observado corriqueiramente na instituição. Ainda
salientam que houve uma conversa com essas alunas, na qual a mesma docente fala a
elas que não passariam mais desapercebidas, que seriam apontadas e chamariam muita
atenção.

Esse fato, todavia, ilustra em nome de um “cuidado”, a proibição desse gesto de


carinho entre duas meninas, que não deveria ser feito em público, nem sequer percebido.
Existe prontamente a suposição de uma heterossexualidade e constitui por si só, uma
66

violência simbólica contra aqueles que não se encaixam nesse padrão. O afeto das
meninas se tornou um “problema” na medida que requeriam uma visibilidade e
pertencimento social, e foram recebidas com uma postura LGBTfóbica como recompensa:
“foi uma conversa para dizer que não tinham como continuar com esse temperamento [...]
evitar que tivessem problema, e que não viessem mais para a escola [...] (Professora,
grupo de discussão)” (VIANNA; CAVALEIRO, 2015, p. 8).

A mensagem transmitida pela escola foi de silenciamento e rejeição de seus


próprios sentimentos e identidade, caso contrário, apenas restaria às meninas o
preconceito. Vianna e Cavaleiro (2015) salientam que esse não foi um caso isolado. Em
entrevistas para a pesquisa, os alunos denunciam a repressão, desqualificação e até
ameaças pelos funcionários da escola. Um aluno conta de uma inspetora que declarou a
ele “’aqui eu deixo namorar, desde que não seja menina com menina e menino com
menino. Porque se quiser fazer isso, que faça fora da escola’ Ela contou que deu
advertência para duas alunas que estavam se beijando [...]” (VIANNA; CAVALEIRO, 2015,
p.8).

As autoras esclarecem que esses depoimentos revelam uma transformação da


diferença em desigualdade: enquanto outros jovens são permitidos a viverem a
experiência do afeto e beijos, os alunos não-heterossexuais são repreendidos. As
entrevistas com algumas professoras explicitam que ficam chocadas ao presenciarem
esse afeto. Por consequência, para aliviar olhos alheios, as meninas devem ocultar seus
sentimentos.

O trabalho considera que essa pesquisa é um recorte da realidade da maioria das


instituições escolares, visto que os jovens não-heterossexuais têm em comum a vivência
desse processo por contingência histórica: nascidos em uma sociedade oponente à
homossexualidade e estarem presentes em ambientes que reforçam essa discriminação.

Todavia, a discriminação é uma violação aos direitos humanos, já assegurados. A


escola deveria ser sobretudo, um espaço de respeito a cidadania, reconhecimento de
igualdade a todos. O contexto cultural da escola, interfere diretamente nas experiências
de reconhecimento público ou privado da sexualidade de jovens não-heterossexuais,
predestinando-os a dissimulação e intolerância (VIANNA; CAVALEIRO, 2015).
67

O trabalho “Diálogos sobre homofobia com jovens de Ensino Médio: uma pesquisa
com grupo focal” de Santos (2015) objetiva realizar uma breve análise das discussões
que ocorrem entre os jovens de uma escola pública de Ensino Médio, do Rio de Janeiro,
sobre a diversidade sexual. Para tal, Santos (2015) realizou uma dinâmica focal, na qual
dezesseis estudantes - que se inscreveram por escolha própria - responderam questões
por escrito; as questões foram propostas a partir de um dilema moral apresentado aos
participantes, no qual era descrito uma narração apresentada por duas partes de uma
mesma história.

A partir do conceito de uma educação que atenda a uma qualidade intelectual,


cultural, social, ética e política, a autora ressalta a importância de compreender como os
jovens debatem sobre a diversidade sexual, identificam situações homofóbicas e se
posicionam nesse sentido. Além disso, provoca o questionamento de como a escola tem
atuado em relação à autorreflexão e conscientização dos jovens, e cumprindo a tarefa
educativa de justiça, igualdade, liberdade, respeito e tolerância.

O dilema proposto ao grupo focal possui três personagens (Fernando, Silas e


Diego) e duas situações que requeriam uma decisão de um deles. A história é
apresentada: Silas é um jovem tímido e amigo de Fernando, que é um menino popular.
Diego é intimidador. Primeiramente, Diego pressiona Silas para lhe passar uma “cola”
(resposta) durante uma prova de Português. Silas se sente assustado e Fernando precisa
decidir se vai ajudar seu amigo ou se omitir. Em um segundo momento, Diego insinua a
turma que existe um relacionamento entre Silas e Fernando e ameaça Fernando por um
bilhete. Novamente, Fernando deve decidir se vai intervir ou não na situação.

Santos (2015) certifica que na primeira parte, segundo os dados analisados, os


estudantes usaram a noção de justiça baseada no cuidado, priorizando a amizade. As
respostas demonstram uma flexibilidade para a quebra de regra, desde que seja para
beneficiar um amigo – a cola deveria ser passada apenas para um amigo. E relacionam
a amizade com uma relação de proteção; se o amigo não pode se defender, você deve
ajudá-lo. A questão da intimidação foi resolvida pelos participantes através da intervenção
da professora da sala dos personagens. A autora explica que esse comportamento ocorre,
pois geralmente, os jovens não são estimulados a resolverem seus próprios conflitos,
68

transferindo a responsabilidade aos adultos.

Na segunda parte do dilema, Santos (2015) revela que os alunos divergiram das
opiniões sobre sexualidade. A priori, os estudantes tiveram certa dificuldade para iniciar
essa discussão, visto que não comentaram sobre a questão e enfatizaram a parte da cola
e da ameaça. Quando questionados sobre essa parte específica, a resposta de alguns
estudantes demonstrou uma negação da homossexualidade. Responderam que não
havia provas e caso acontecesse essa situação com eles, não falariam nada pois não
são gays.

Faz-se necessário perceber que ao nem considerarem a possibilidade da


sexualidade homossexual, os estudantes também se esquivam da discussão sobre
homofobia. Santos (2015) esclarece que o silêncio é um elemento intrínseco ao
preconceito sexual. A partir dessa ideia, a autora questiona o que estabelece o que é dito
ou silenciado e quais são os efeitos desse silenciamento e negação, e pontua sobre a
manipulação dos processos heteronormativos reiterados durante todo o processo de
socialização desses jovens.

As instituições e as relações sociais marginalizam as práticas


homossexuais e, ao não falar delas, espera-se que os jovens não as
descubram. Enquanto isso, a heterossexualidade é reforçada por suas
práticas discursivas, inclusive pelo silêncio. Por consequência, ocorre a
reiteração da subalternidade aos homossexuais, o que reforça o tabu e o
preconceito (SANTOS, 2015, p. 8).

Desse modo, muitos jovens apresentam dificuldade de reconhecer a possibilidade


de seus pares serem diferentes. Esse movimento foi construído por diversos meios da
sociedade, e devem ser desconstruídos e ressignificados através das práticas educativas
mais inclusivas à diversidade.

Segundo Santos (2015), em muitos momentos os jovens manifestaram que


poderiam resolver esse conflito a partir da violência contra o Diego. A autora analisa que
a violência parece surgir a partir de duas vias: a) ódio cultivado a partir da intolerância
perante as diferenças sexuais; b) dificuldade de conseguir expressar sentimentos.
Posteriormente, nas entrevistas individuais, um dos participantes revelou ser
homossexual; ele compartilhou que não tinha um espaço para dialogar sobre isso, nem
em cassa, nem na escola, e por isso o enraiveceu muito quando essa questão apareceu
69

e acreditava que a violência seria a única alternativa para resolver a ameaça.

Embora os estudantes tenham reconhecido a prática homofóbica de Diego,


também sugeriram de “virar” a ameaça contra Diego e também chamá-lo de gay como
forma de ataque e ofensa. Santos (2015) salienta que essa forma de “brincadeira” ou
“zoação” também faz parte da violência homofóbica. E pode ser considerada inofensiva
por muitos jovens, que partem para um julgamento de juízo e valor sem sequer
conseguirem explicar o motivo para tal.

A partir da análise dos dados da pesquisa, Santos (2015) provoca a reflexão


acerca do espaço para os jovens debaterem sobre sexualidade na escola. Enfatiza,
portanto, que esse espaço é indispensável para superação do preconceito, a partir da
habilidade de pensar no diferente, a empatia, o trabalho ao respeito e igualdade. Dessa
forma, os educadores podem contribuir efetivamente para que os estudantes tenham a
oportunidade de viver e construir uma sociedade mais inclusiva.
70

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema da presente pesquisa me atravessa em diversos aspectos, porém foi


através das reuniões do subprojeto Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência (PIBID) que tive a oportunidade de questionar e repensar a responsabilidade
docente de abordar a questão de gênero e sexualidade em sala de aula. Na escola em
que nós bolsistas fomos acolhidos para desenvolver o trabalho docente, entrei em contato
com a realidade de uma gestão que demonstrou receio em abordar a temática por conta
da possível reprovação dos familiares, além do desconhecimento sobre os direitos legais
sobre a orientação sexual na escola e a falta de conhecimento e segurança para essas
discussões.

Todavia, a pesquisa me levou a problematizar a questão de forma mais profunda,


buscando o contexto político educacional e compreendendo de onde vem essa
resistência e dificuldade para inclusão desse tema, bem como o papel e posicionamento
necessário do Estado.

Por isso, o movimento que fiz nesse estudo se iniciou a partir de uma pesquisa
nos documentos oficiais da educação, Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), LDB
e Base Nacional Comum Curricular. Os PCNs registraram um marco nos documentos
educacionais brasileiros, visto que desenvolveu volumes que tratam sobre temas
transversais, disponibilizando um documento exclusivo à orientação sexual. Todavia,
esse documento apresenta discussões com uma abordagem mais especificamente
biológica: na promoção de saúde dos jovens, prevenção de problemas graves (abuso
sexual, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis), autoconhecimento e
respeito. Embora o documento busque abordar a questão da sexualidade como tema
inerente ao ser humano desde seu nascimento, não faz uma discussão muito específica
e não desenvolve muita criticidade no aspecto social, sobre orientações sexuais e
identidades de gênero. Contudo, o documento que foi publicado no ano de 1997 se
apresenta como um passo inicial para o desenvolvimento de estudos sobre o tema.

Em contrapartida, a LDB não faz nenhuma menção ao ensino ou disciplina


relacionada à orientação sexual e/ou gênero. Entretanto, houve um embate entre
apoiadores do Estado Laico e defensores do Ensino Religioso para inclusão dessa
71

temática, que no fim foi designada com uma condição facultativa e propensa a diferentes
interpretações.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também não possui uma discussão
específica sobre gênero e sexualidade, mas são destacadas algumas competências
incluídas na disciplina de Ciências da Natureza que fazem menção aos Direitos Humanos,
como liberdade, respeito, posicionamento ético em relação ao outro, acolhimento e
valorização à diversidade humana. O documento também sofreu ataques de religiosos
que reivindicavam a inclusão do Ensino Religioso e exclusão de qualquer menção sobre
gênero e sexualidade.

Portanto, na dimensão legislativa, as leis não são tão claras no que diz respeito
especificamente a educação sexual. Contudo contribuem para o papel de assegurar
direitos já conquistados, como o reconhecimento do Estado Laico e os Direitos Humanos,
no qual todo e qualquer tipo de discriminação é vetado, inclusive a discriminação pelo
sexo e/ou orientação sexual. Além disso, apresentam grandes influências da bancada
evangélica e católica e evidenciam a continuidade desse embate entre a laicidade e
religiosidade.

No segundo capítulo, apresento o CADERNO (2004), que é um material didático


que foi vetado como programa federal, todavia está disponível a fácil acesso pela internet.
É interessante que o documento seja atualizado e adaptado para cada realidade, porém
não deixa de ser um instrumento adequado para o trabalho e discussão pedagógica
acerca do tema. Possui diversos conceitos e noções primordiais para a introdução desse
assunto e diferentes ideias a serem abordadas em classe. A partir da correlação com
outros materiais e instrumentos, a escola pode contribuir com seu papel de promover a
reflexão, igualdade, inclusão.

Mediante o movimento de pesquisa de trabalhos acadêmicos através da


Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPed), pude
contemplar o crescimento das discussões e pesquisas sobre o tema gênero e
sexualidade. Isso ocorreu devido ao contexto no cenário político brasileiro, no qual os
ataques contra esse tema se tornaram muito intensos por meio de uma divulgação
equivocada e ardilosa do material CADERNO Escola sem Homofobia, que ficou
72

popularmente conhecido como “kit gay”. O movimento conservador nacional articulou um


conceito inventado de “ideologia de gênero” para causar pânico à população, propagando
a ideia de que esse material ameaçaria a inocência das crianças. Todavia, essa discussão
também se mostrou uma ferramenta para assegurar os profissionais da educação através
do desenvolvimento de pesquisas, respaldo acadêmico e científico acerca do tema.

Os trabalhos analisados comprovam que a escola muitas vezes se isenta do


papel social de contribuir para o direito de seus estudantes, a respeito da igualdade e
liberdade, visto que o tema da diversidade sexual é constantemente silenciado e
censurado. Esse fato contribui para que a homofobia continue presente e reproduzida no
espaço escolar, tal como na sociedade, visto que a não discussão sobre o assunto,
salienta a reprodução de estereótipos de gênero, da norma padrão heterossexual e
machista.

É importante salientar que embora haja um receio e desconhecimento sobre o


assunto dentro do corpo docente, a escola é um veículo de política pública e tem o papel
de contribuir para o rompimento da violência e promover uma educação empática,
respeitosa, inclusiva e diversa. A Educação está incluída em uma área de disputa entre
setores conservadores e apoiadores do Estado Laico. Todavia, é parte de um projeto que
visa valores democráticos e de Direitos Humanos, por isso deve resistir a essa utilização
estratégica de controle e poder. A escola pode ser transformadora da realidade, através
de seu currículo e metodologia, promovendo o diálogo e conhecimento sobre
multiculturalismo, descontruindo conceitos e atribuições sociais que foram inventados
para determinado tempo e sociedade. O âmbito escolar tem a possibilidade de abranger
os horizontes de seus estudantes para além do que lhes foi oferecido, propiciando um
espaço no qual os questionamentos e discussões sejam presentes para contribuir na
evolução da sociedade.
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