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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS


REGIONAL JATAÍ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

VANIA GOMES CARDOSO

DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER EM


LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

JATAÍ - GO
2019
VANIA GOMES CARDOSO

DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER EM


LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação, da da Universidade
Federal de Goiás – Regional Jataí, como requisito
para obtenção do título de Mestre em Educação.

Linha de Pesquisa 4 – Educação e Linguagem

Professor (a) Orientador (a): Dra. Vivianne


Oliveira Gonçalves

JATAÍ - GO
2019
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho primeiramente а Deus, pоr ser


essencial еm minha vida, autor dе mеu destino, mеu guia,
socorro presente nа hora dа angústia, à minha mãе Zélia
Maria Cardoso, à quem devo minha existência.
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Vivianne Oliveira Gonçalves, por ter acreditado no meu


potencial, respeitando e compreendendo minhas limitações. Sou grata pela sua generosidade,
afinal, recebeu esta missão de caminhar comigo por oito meses, no processo de conclusão, um
desafio tamanho, mas não mediu esforços.
Aos meus pais, Valdeson Gomes Cardoso e Zélia Maria Cardoso, em especial à
minha mãe, por ser exemplo de determinação e me inspirar a ser uma pessoa melhor a cada
dia.
À minha coordenadora de curso da Faculdade de Iporá-FAI e “Mãe”, Vilma Maria
Soares Rodrigues, pela compreensão, força e incentivo nos desafios a que me propus vencer,
na luta pelas minhas conquistas. Sem o seu apoio este sonho teria sido mais difícil de realizar.
Você demonstrou um carinho verdadeiro como pessoa e profissional. A você, toda minha
gratidão como colega de trabalho e como pessoa.
Aos meus professores do mestrado em educação da Universidade Federal de
Goiás/Regional Jataí, Camila Alberto Vicente de Oliveira, Elizabeth Gottschalg Raimann,
Michele Silva Sacardo, Renata Cristina Lopes Andrade e Ari Raimann que contribuíram com
a minha construção do conhecimento, me proporcionando novas reflexões do saber.
Aos colegas de turma pela oportunidade de conviver e dividir experiências
acadêmicas e de vida.
Aos amigos: Sheule Anne Labre Titoto, a qual tive a oportunidade de conher no
mestrado e tive o prazer de me reaproximar e nos tornarmos verdadeiras amigas para a vida,
jamais será esquecido o carinho e acolhimento que teve comigo, sem esta amizade, muitas
experiências não seria possível; a Juliana do Nascimento Farias que sempre demonstrou
consideração, e carinho por mim, com quem construí uma amizade sincera, que me
oportunizou sonhar e conquistar, desempenhou o papel de Mãe nesta caminhada, pessoa que
tenho muita admiração e respeito; ao Rômulo Renato Cruz Santana por ser esta pessoa
singular, capaz de tornar momentos de incertezas em verdadeiras gargalhadas e de um
otimismo contagiante. Obrigada a todos vocês pelos momentos de aprendizado, conselhos e
gestos de carinho!
Aos professores Guilherme Figueira Borges, Claudionor Renato da Silva, por
aceitarem participar da minha banca de qualificação e defesa, pelas importantes contribuições
com meu trabalho e pela generosidade ao compartilhar os conhecimentos.
Ao professor Guilherme um agradecimento em especial, por me apresentar a análise
do discurso, incentivar ir adiante no campo da pesquisa e acreditar no meu potencial, pois
todo este percurso de pesquisadora iniciou com suas orientações na graduação e na
especialização. É uma pessoa que admiro imensamente, tenho muito a agradecer, obrigada!
À minha tia/ prima, Dinalva Ribeiro de Sousa por me apresentar o mundo, você foi
peça fundante na minha formação enquanto pessoa, sem seus conselhos, carinho e incentivo,
jamais teria chegado onde estou. Deu broncas, mas foi para o meu crescimento, me
aconselhou da melhor forma possível, que somente mãe para fazer como fez. A você minha
admiração e gratidão!
Ao meu eterno amigo Dylan Ávila Alves, que me apoio durante todo este processo,
me deu forças, aconselhou e puxou a orelha quando necessário, me fez acreditar que daria
certo quando pensei que não seria mais possível, dividiu momentos desesperadores, me
apresentou outra forma de pensar em relação à academia e a vida. Pessoa que ganhou minha
admiração e respeito... Gratidão pela sua existência na minha vida.
Ao Thiago Rocha, pessoa que o destino por alguma razão alterou a ordem dos
fatores, saiu pela tangente, mas que nunca deixou de acompanhar, aplaudir, aconselhar e
apoiar, foi companheiro nos bastidores, mas não impede que eu reconheça o empenho e
carinho dedicado a minha pessoa.
À professora Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago que em primeira mão me
acolheu. Por questões pessoais, não pode me acompanhar no desenvolvimento deste estudo.
Desde modo, sou grata a sua pessoa. Muito obrigada!
A Deus! Por me permitir esta conquista e ter direcionado pessoas tão especiais para
dividir meus anseios nos momentos de inseguranças. Obrigada Senhor!
“Não me pergunte quem sou e não me diga para
permanecer o mesmo.”
(Michel Foucault)
RESUMO

No presente estudo foram considerados os discursos sobre a mulher, presentes em livros


didáticos do ensino fundamental, partindo das materialidades linguístico-imagéticas
observadas em obras de Língua Portuguesa, Geografia, Ciências e História pertencentes ao
Programa Nacional do Livro Didático, triênio 2017-2019. O livro didático de História foi
utilizado para uma análise histórica acerca da mulher dos séculos XVIII e XIX, observando
sua contextualização e, sobretudo, sua identidade relacionada à imagem de mãe, do lar,
envolta nos afazeres femininos. Assim, emergiu a relação entre o saber e o Biopoder. O
Biopoder, segundo Foucault (2002), traz uma forma de poder sobrepujando a vida e as
necessidades que atingem a população e principalmente a mulher. Destaca-se que a
proposição da pesquisa partiu de alguns questionamentos que se tornaram a espinha dorsal do
tema em foco, e neste aspecto, o problema de estudo se configurou nas seguintes questões: De
que forma se dá a construção da identidade feminina, na materialidade do livro didático,
considerando este um instrumento de biopoder? Quais os imbricamentos do corpo feminino
da forma como é representado no livro didático? Essas problematizações balizaram o olhar de
pesquisador para analisar os discursos que se encontram nos livros didáticos selecionados e se
relacionam à temática do corpo da mulher. A pesquisa partiu de eixos iniciais que se
desdobraram ao longo do percurso, sendo esses o corpo estereotipado da mulher, a veiculação
da imagem da mulher às tarefas tipicamente femininas e por fim, as atribuições da
maternidade, ou seja, a figura da mulher enquanto objeto de procriação. Para Foucault os
lugares de poder, bem como suas práticas, é que alimentam o biopoder. Desse modo, no livro
didático a identidade dos sujeitos passa a ser produzida a partir daquilo que se assume como
verdade e assim o faz na imposição de imagens que passam a ser estereótipos e depois,
verdades. No livro didático, o corpo emerge apresentando uma singularidade que deve ser
levada em consideração pelo professor, de modo a explorar as particularidades do corpo em
práticas sócio-históricas-ideológicas. Daí a importância de, com o embasamento teórico
proposto por Foucault, analisar os discursos sobre o corpo feminino presentes no livro
didático, sendo esse, parte do corpus da pesquisa, no intuito de compreender de que forma as
verdades podem ser fabricadas, principalmente no que tange ao discurso sobre a mulher. Os
livros didáticos, enquanto instrumentos ideológicos são muito bem utilizados pois reforçam,
inicialmente pelas ideias implícitas e depois, pelo silenciamento da mulher, não apenas a
branca, europeizada, mas as negras, pobres, velhas, gordas, indígenas ou outras que
representam o grupo oprimido ao longo da história.

Palavras-chave: Mulher. Construção. Livro Didático. Corpo. Ensino Fundamental.


ABSTRACT

In the present study it was sought to understand speeches about woman, present in elementary
school textbooks, considering the linguistic-imaging materialities observed in the following
pieces: “Português Linguagens” – Portuguese languages, 8th grade (CEREJA;
MAGALHÃES, 2015); “Vontade de Saber” – The will to know: geography, 8 th;
(TORREZANI, 2015); “Companhia das Ciências” – Company of sciences 8 th grade
(USBERCO et al., 2015). In addition to the mentioned also it was also used the book
“Vontade de Saber” – The will to know: history, 9th grade; (GRINBERG, DIAS,
PELLEGRINI, 2015), all belonging to the “Programa Nacional do Livro Didático” – National
Textbook Program, term 2017-2019. The history textbook was used as an instrument to a
historical analysis about the women from the 18th and 19th centuries, appearing at their
contextualization and, above all, their identity linked to the mother figure and housewife
image, wrapped with the feminine tasks. Thus, emerged the relationship between knowledge
and BioPower. According to Foucault (2002), BioPower brings a kind of power overcoming
life and the needs that affect the population and especially adult females. The research,
released the three axes, these being the stereotypical woman's body, the airing of the image of
women to the tasks typically feminine and finally, the tasks of motherhood, that is, the figure
of the woman as breeding object. Thus, in the textbook, the identity of the subjects begins to
be produced from what is assumed to be true and so does the imposition of images that
become stereotypes and then truths. The Portuguese Language Textbook – PLT, the body
emerges showing a singularity that should be taken by the teacher, in parliamentary procedure
to research the body characteristics in social-historical-ideological practices. Hence, the
importance of, with the theoretical basis proposed by Foucault, analyze the discourses about
the female body presented in the textbook, which is part of the corpus of research, in order to
understand how the truth can be manufactured, especially when it comes to discourse about
women.

Key words: Woman. Discourse analysis. Textbook. Subjectivation. Objectification.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Ilustração do texto Coquetel.............................................................................. 100


Figura 2. Retratos de família .………………………………………….…………......... 101
Figura 3. Pai aflito ………………………………………………………....................... 102
Figura 4. Simpatia para “catar” namorado....................................................................... 104
Figura 5. Comprar namorado ……..……………………………………….................... 104
Figura 6. Sou seu e você é minha..................................................................................... 105
Figura 7. Espaços tipicamente femininos……………………………………………..... 106
Figura 8. Responsabilidade das tarefas domésticas I....................................................... 107
Figura 9. Responsabilidade das tarefas domésticas II...................................................... 107
Figura 10. A dupla jornada de trabalho feminina............................................................. 108
Figura 11. A maternidade………………………………………………………………. 110
Figuras 12 e 13. Mulheres em situação de consumo........................................................ 111
Figura 14. Mulher comendo pizza…………………………………………………….... 113
Figuras 15 e 16. Corpo gordo e corpo magro................................................................... 114
Figuras 17 e 18. Anorexia e bulimia................................................................................ 116
Figura 19. Mulher idosa……………………………………………………................... 117
Figura 20. Família tradicional………………………………………………………….. 118
Figura 21. Retrato da família Matarazzo.......................................................................... 119
Figura 22. Mulher em frente à geladeira.......................................................................... 120
Figura 23. Maternidade……………………………………………………………….... 121
Figura 24. Desfile da Aliança Integralista Brasileira....................................................... 122
Figura 25. Participação feminina no movimento feminista............................................. 122
Figura 26. Mulher no movimento feminista..................................................................... 123
Figura 27. Mulher negra………………………………………………………………... 124
Figura 28. Presidente Dilma Rousseff………………………………………………….. 125
Figura 29. Mulher no supermercado I.............................................................................. 126
Figura 30. Saúde da mulher…………………………………………………………….. 127
Figura 31. Mulheres de países subdesenvolvidos............................................................ 128
Figura 32. Mulher na favela…………………………………………………………..... 129
Figuras 33 e 34. Escravidão indígena e negra.................................................................. 130
Figura 35. Mulher e conhecimento……………………………………………………... 130
Figura 36. Mulher no supermercado II............................................................................. 132
Figuras 37 e 38. Cuidados com a família......................................................................... 132
Figura 39. Representação da família I.............................................................................. 133
Figura 40. Representação da família II............................................................................ 134
Figura 41 e 42. Momentos de diversão e lazer................................................................. 138
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 CAMINHOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS DA PESQUISA................................. 16

1.1 O sujeito nas malhas do discurso e as práticas de subjetivação e objetificação ............. 18

1.2 Concepções foucaultianas de poder e biopoder .............................................................. 29

1.3 Corpo, poder e gênero .................................................................................................... 33

1.4 Relações entre verdade, saber e poder ............................................................................ 39

1.5 Das sociedades de soberania às sociedades do controle ................................................. 40

2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA FIGURA FEMININA .......................................... 45

2.1 A mulher nos séculos XIX e XX .................................................................................... 45

2.2 A construção da identidade feminina como um processo histórico ............................... 56

2.3 Mulher e educação: preparada para a submissão, criada na passividade ....................... 63

2.4 O lugar e o papel da mulher na sociedade moderna ....................................................... 73

2.5 O livro didático e a produção de sentidos: um olhar para as representações sobre a


mulher ................................................................................................................................... 80

3 DISCURSOS SOBRE A MULHER NOS LIVROS DIDÁTICOS.................................. 84

3.1 O corpo estereotipado da mulher .................................................................................... 88

3.2. Imagem da mulher ligada a tarefas tipicamente femininas ........................................... 92

3.3. Maternidade – objeto de procriação .............................................................................. 98

3.4 Os discursos sobre a mulher nos livros didáticos de Língua Portuguesa, História,
Geografia e Ciências: recortes e representações ................................................................. 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 139

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 141


12

INTRODUÇÃO

O livro didático tem assumido diversos aspectos em relação ao contexto de ensino,


pois se compreende que o discurso nele contido serve às representações esperadas e impostas
por sistemas nos quais os sujeitos nem sempre são tidos como os agentes de construção e
constituição crítica, isso se torna perceptível quando se trata da representação da figura
feminina.
As pesquisas sobre o Livro Didático (LD) remontam à década de 1970, mas se
aprofundaram a partir da instituição do PNLD, em 1985. Com o PNLD o livro didático
passou a ser oferecido gratuitamente nas redes públicas de ensino. Até então, os livros eram
adotados pelas escolas, mas comercializados nas livrarias. Com o advento do PNLD diversas
críticas começaram a ser construídas e a partir daí os mais variados estudos voltados para o
livro didático começaram a ser fomentados. Destaca-se que nessas pesquisas, evidenciou-se
cada área do conhecimento, mas os estudos voltados para a Análise do Discurso no Livro
Didático logo se ampliaram, uma vez que o leque de possibilidades de uma construção crítica
cada vez mais se ampliou.
Dentre os estudos acerca do LD é possível citar o de Oliveira (2008), reforçando que
o livro didático não pode ser visto como o único condutor das atividades que são aplicadas em
sala de aula. O livro didático é considerado como uma tecnologia impregnada de discursos,
tanto positivos quanto negativos.
Desse modo, tornam-se discursos de imposição de imagens e conceitos que não
correspondem às perspectivas histórico-sociais dos sujeitos, mas tornam-se presentes em seu
cotidiano de aprendizagem, sendo representações daquilo que é cunhado por Foucault (2007a)
como “biopoder”, ou seja, o poder sobrepujando a vida e suas necessidades, atingindo
principalmente os sujeitos e as populações.
Considerando a relação do livro didático com o conceito de biopoder, de imposição
de uma identidade em uma relação de desprezo a determinados grupos é que se insere o corpo
feminino como objeto de análise. Aqui, interessa a forma como os discursos sobre a mulher
são entrelaçados em livros didáticos da segunda fase do Ensino Fundamental.
De modo geral, o livro didático é visto como agente reforçador da ideologia
dominante, e na pesquisa isso se firma quando se observa as representações, não apenas da
mulher branca, mas de negras, índias, idosas e obesas. É esse ordenamento que suscita as
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indagações presentes no estudo, considerando como pressuposto a ordem estabelecida na


representação do corpo feminino, ou que ordem deve ser estabelecida neste processo.
Para Foucault os lugares de poder, bem como suas práticas é que alimentam o
biopoder. Desse modo, no livro didático a identidade dos sujeitos passa a ser produzida a
partir daquilo que se impõe como verdade e assim também se faz no uso de imagens que
passam de ser estereótipos a padrões e verdades.
A mulher evidenciada no livro didático é aquela que se encontra presente, de certa
forma, em um espaço de opressão. A ocupação desse espaço pode ser analisada como uma
espécie de “concessão” dada pela figura masculina, ampla e dominante.
Destaca-se que o livro didático é uma ferramenta de apoio ao professor em sala de
aula e, ainda que de modo superficial, sem chamar muito a atenção, denota formas e corpos
que são reflexos do modo como estes são representados também no ideário popular. Assim, as
funções de classes, gêneros, profissões, são aos poucos delineadas e marcadas pelo discurso
do biopoder.
Desse modo, de ferramenta, o livro didático passa legitimar o discurso de imposição
do que definitivamente não representa a maioria, mas que influencia diretamente nesta.
Objeto de consumo, matriz reprodutora, com características que projetam o discurso que a
própria sociedade propaga. Há no livro didático uma desconstrução da mulher. Não existe
uma mulher em sua totalidade, mas várias mulheres descontruídas ao longo dos papéis nos
quais se acreditava que esta deveria exercer em determinado momento histórico. Nessa
desconstrução, há, por outro lado, a fabricação da imagem feminina. A mulher do livro
didático é aquela que se veste de poesia para os enamorados e se traveste de dona de casa,
procriadora, quando sai para trabalhar é para enaltecer a imagem do trabalho e não da mulher
que trabalha.
Assim, no livro didático, a imagem feminina é aquela que se crê possível dentro de
uma prática de desconstrução, como uma forma de posse e posterior supressão da identidade
feminina, presente na ideia de o homem ser dono de algo, seja do corpo feminino ou do seu
trabalho. Isso é uma forma de mostrar a quem este pertence, primeiramente à sociedade e
depois, ao homem, caso se digne a isso. Esse direito é denotado por Foucault como sendo
“[...] o direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida;
culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la” (FOUCAULT, 2004, p.
128).
É sob a égide dos discursos sobre o corpo feminino estereotipado, veiculado às
tarefas tipicamente femininas e associado à maternidade é que se coloca como objetivo da
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pesquisa delinear estes aspectos e assim, compreender a construção ou reprodução dos


conceitos arqueologicamente constituídos, ou melhor, impostos nos livros didáticos. De modo
específico, pretendeu-se com o estudo evidenciar a construção histórica da figura feminina,
bem como as concepções de corpo, gênero e poder. Além disso, foi objetivo da pesquisa
relacionar verdade, saber e poder; compreender como o corpo da mulher se torna estereótipo
imposto pela sociedade e investigar os discursos sobre a mulher no livro didático.
A pesquisa expôs e analisou discursos sobre a figura feminina em livros didáticos
considerando as materialidades linguísticas observadas nos Livros Didáticos sendo
“Português Linguagens, 8º ano” (CEREJA; MAGALHÃES, 2015); “Vontade de Saber –
Geografia, 8º ano” (TORREZANI, 2015); “Companhia das Ciências – 8º ano” (USBERCO et
al., 2015). Além dos mencionados utilizou-se também o livro “Vontade de saber – História, 9º
ano” (GRINBERG, DIAS; PELLEGRINI, 2015), todos pertencentes ao Programa Nacional
do Livro Didático, triênio 2017-2019.
É relevante destacar que a proposição da pesquisa partiu de alguns questionamentos
que se tornaram a espinha dorsal do tema em foco, e neste aspecto, o problema de estudo se
configura nas seguintes questões: De que forma se dá a construção da identidade feminina, na
materialidade do livro didático, considerando este um instrumento de biopoder? Quais os
imbricamentos do corpo feminino da forma como é representado no livro didático? Essas
problematizações balizaram o olhar de pesquisador para analisar os discursos que se
encontram nos livros didáticos selecionados e se relacionam à temática do corpo da mulher.
Foucault (2008b) menciona que o discurso não é um encadeamento lógico de
palavras e frases que busca um significado em si mesmo, ainda que essa estratégia seja
aplicada, ele será uma ordem de muita importância funcional em que se estrutura um
imaginário social. Mas o discurso deixa de ser a representação de sentidos pelo que se debate
ou se luta e passa a ser ele mesmo, o objeto de desejo que se busca, dando-lhe, assim, o seu
poder intrínseco de reprodução e dominação dos sujeitos na sociedade. Desta forma,
compreende-se que o “discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, de leitura, de troca,
e essa troca, essa leitura e essa escritura, jamais põem em jogo senão os signos. Assim, pode-
se dizer que o ‘discurso se anula assim em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do
significante” (FOUCAULT, 2008b, p. 49).
Vale destacar que o livro didático representa uma mistura de discursos que irão se
materializando e formando outros contextos discursivos, impondo imagens que se fixam e
multiplicam em uma nova série de reflexos. O corpo feminino vai de menina a mulher em
construções que denotam a relutância social. Em tais construções inserem-se a moça, a obesa,
15

a idosa, as mulheres na rua e as de casa, as matronas e mães, bem como as mulheres que
exercem seus papéis enquanto moventes do sistema.
Essa perspectiva de análise vem ao encontro do que se pressupõe o trabalho com a
abordagem materializada no Ensino Fundamental, resultante da consideração de que os livros
didáticos são portadores de texto e como tal, imbuídos de discursos, do mesmo modo, seu
caráter discursivo é resultante de um contexto social.
O corpus de análise deste trabalho foram sequências discursivas, verbais ou
imagéticas, que pretenderam criar verdades sobre a figura feminina, retiradas dos quatro
livros didáticos escolhidos. Essas vozes traduzidas nos livros didáticos é que trazem para a
discussão o corpo feminino presente nos textos utilizados para o trabalho. Para tanto, o
método de abordagem foi a Análise do Discurso Foucaultiana.
Na materialização do estudo foram analisados os textos e imagens presentes nos
livros didáticos selecionados, na pretensão de alcançar os objetivos propostos no estudo,
voltados aos discursos sobre a mulher no livro didático, o corpo feminino e a imposição das
verdades cunhadas no discurso do machismo e da submissão. O olhar da pesquisa, se lançou
para os eixos de análise do corpo estereotipado da mulher, a veiculação de sua imagem às
tarefas tidas como tipicamente femininas, as atribuições da maternidade, mulher enquanto
objeto de procriação. A pesquisa foi estruturada em três capítulos, sendo o primeiro a tratar
dos caminhos teóricos-metodológicos da pesquisa, a escolha da perspectiva foucaultiana de
análise do discurso, abordando o sujeito nas malhas do discurso, as práticas de subjetivação e
objetificação; corpo, poder e gênero; relações entre verdade, saber e poder; as concepções
foucaultianas de poder e biopoder; das sociedades de soberania às sociedades de controle, o
qual finaliza com a descrição do corpus da pesquisa.
No segundo capítulo, abordou-se a construção histórica da figura feminina e o estudo
se remeteu à historiografia da mulher, abordando a construção de sua identidade enquanto
processo histórico, seu preparo para a submissão e seu lugar na sociedade moderna.
Finalizando a pesquisa, o capítulo três abordou os discursos, referindo-se à produção de
sentidos e o olhar para as representações sobre a mulher, seu corpo estereotipado, sua imagem
ligada às tarefas tipicamente femininas, maternidade e os discursos sobre a mulher nos livros
didáticos selecionados para a análise.
16

1 CAMINHOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

Nesse capítulo, que versa sobre os caminhos da pesquisa, considerando seus aspectos
teórico-metodológicos, serão abordados os conceitos que visam sustentar a análise do
discurso sobre a mulher no livro didático. Partindo desse pressuposto, compreende-se que a
representação da mulher no livro didático possa ser interligada com essa construção
discursiva oriunda na sociedade e fomentada ao longo do tempo.
Assim como o discurso é uma construção social permeada de saberes e poderes, o
biopoder é conceituado como uma forma de fortalecimento e manutenção do poder. Desse
modo, o biopoder, ou poder pela vida, regulado pelas relações de gênero, o conceito de
homem e mulher coligado ao forte e fraco, é também utilizado para a análise das imagens das
mulheres nos livros didáticos.
Interessante observar que a relações de poder são complexas pois se revestem das
diversas imposições discursivas delineadas ao longo do percurso histórico humano.
Para melhor compreender a análise do discurso sob a perspectiva foucaultiana, abre-
se um recorte que antecipa o conceito de sujeito nas malhas do discurso, as práticas de
subjetivação e objetificação a fim de se analisar os dispositivos teórico-analíticos que
fundamentam a análise do discurso.
Sobre o discurso, Orlandi (2009) reforça que os sentidos antecedem o sujeito, ou
seja, primeiramente assumem a perspectiva histórica ou cultural, sendo reflexos ideológicos
exteriores que dependem da condição de produção. Por outro lado, os dispositivos teóricos,
podem ser dispostos na paráfrase, ou seja, repetição do mesmo, e na polissemia, constituída
enquanto meio de ruptura com o mesmo. A autora ilustra que embora um grupo social possa
ter a mesma língua, é composto por diferentes sujeitos que, por sua vez, agregam diferentes
sentidos ao discurso.
Acerca do enunciado e seu conceito, a pesquisa adota o que é apresentado por
Foucault (2008a). Para o autor, o enunciado pode ser considerado como a menor parcela do
discurso, ou mesmo acontecimentos discursivos. Assim sendo, os livros didáticos são meios
pelos quais os enunciados tomam forma e se agregam, relacionando-se aos sujeitos
discursivos e suas influências históricas. Do mesmo modo, Foucault (2008) determina que o
enunciado não precisa estar relacionado a uma condição propositiva, relacionada entre o
sujeito e seu espaço discursivo. Entre aquilo que é firmado e o que é compreendido. Assim,
17

compreende-se que os enunciados necessitam de condições discursivas para que possam ser
legitimados.

Pode-se, na verdade, ter dois enunciados perfeitamente distintos que se


referem a grupamentos discursivos bem diferentes, onde não se encontra
mais que uma proposição, suscetível de um único e mesmo valor,
obedecendo a um único e mesmo conjunto de leis de construção e admitindo
as mesmas possibilidades de utilização. (FOUCAULT, 2008a, p. 91)

O livro didático é um enunciado e uma materialidade formada por frases e imagens.


O que não está explicito é o que forma o conjunto de saberes capazes de ilustrar a ideologia
imposta e a forma como a identidade dos sujeitos pode ser instituída. Por outro lado, as
ilustrações e imagens contidas em um livro didático podem assumir uma função enunciativa.

Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em


geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado
fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no
meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra
sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e
ínfima que seja. (FOUCAULT, 2008a, p.112)

A história é permeada de acontecimentos discursivos, e estes, por sua vez, são


apresentados por Pêcheux na terceira fase da análise do discurso francesa e define o
acontecimento como o encontro entre uma atualidade, algo que acontece no momento, com
uma memória. Nesse encontro, a memória tanto pode ser repetida, quanto ressignificada.
Nessa perspectiva, o interesse não está no fato enquanto um simples evento, mas na
construção de uma noção histórica relacionado ao acontecimento, nas memórias que são
originadas desse processo. (PÊCHEUX, 2006)
A ressignificação de aspectos discursivos que assumem outra conotação quando
reproduzidos em outros momentos históricos. No caso dos livros didáticos, o acontecimento
discursivo denotado pelas imagens da mulher, não somente ressignificam, como também
reforçam o discurso do poder e da relação de gênero. As memórias e suas ressignificações são
condicionadas ao momento histórico. Entretanto, o tempo e sua dinâmica nem sempre atuam
nesse processo de ressignificação, e o acontecimento discursivo pode assumir a reprodução de
ideologias e sua repetição como forma de se assegurar a instrumentalização social de poder e
imposição.
Os acontecimentos discursivos podem ser inseridos no que Foucault (2008) reporta
como formações discursivas, as quais podem ser compreendidas enquanto resultado do
18

“número de enunciados, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas, considerando


sua regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações.”
(p.43). O autor reforça que existem regras de formação discursiva e estas dizem respeito às
condições de existência de um enunciado, conceitos e temas.
Na análise do discurso, o conceito de arquivo é apresentado, não como um local para
o armazenamento de algo, tampouco o simples ato de agregar o que se creia indispensável a
algum grupo social e sua cultura. Foucault (2008a) ressignifica o conceito de arquivo quando
afirma que:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados com acontecimentos singulares. Mas o arquivo
é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa. (FOUCAULT, 2008a, p.147)

Enquanto acontecimento discursivo, o arquivo faz com que os enunciados se


modifiquem e coexistam de acordo com os espaços discursivos e ainda assim, não sejam
considerados como escrita ou representação universal de determinada cultura. O arquivo é
fragmentado, o que impede sua descrição como algo constante e coeso. É responsável por
transformar práticas em tradições ou conforme descreve Foucault (2008a, p.148), “a descrição
de um arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a partir
dos discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos.”

1.1 O sujeito nas malhas do discurso e as práticas de subjetivação e objetificação

As questões da subjetividade emergem em Foucault e nestas perpassam as ordens do


discurso que permeiam e fazem da pessoa um sujeito social. No envolvimento do sujeito com
a linguagem, na apropriação da fala como meio de imposição do discurso, reside a posse e o
controle.
Por subjetificação, entende-se o tornar-se sujeito do discurso, como resultado de um
complexo sistema de significantes construídos pela linguagem, bem como pelos sentidos
determinados historicamente (MARIANI, 2003).
Em contraponto, a objetificação é conceituada como a transformação do sujeito em
objeto. Comumente usada sob a perspectiva sexual, tornar objeto alguém, fazer com que essa
pessoa se anule, tanto emocional quanto psicologicamente, sendo este destituído de sua
posição enquanto sujeito. “A objetificação, termo cunhado no início dos anos 70, consiste em
19

analisar um indivíduo a nível de objeto, sem considerar seu emocional ou psicológico.”


(BELMIRO et. al., 2015, p. 2)
Para compreender o sujeito nas malhas do discurso Foucault (2008b) se torna
provocativo. Sendo assim, busca a compreensão de que, enquanto sujeito, o indivíduo precisa
romper com a continuidade. O sujeito, para o autor, é descontínuo, produzido pelas relações
de poder e pelo discurso. “Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se
cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem.” (FOUCAULT, 2008b, p. 52)
Considerar o discurso e seus sujeitos, sob a perspectiva de Foucault significa, de
acordo com Fischer (2001), observar com cuidado as palavras, principalmente como
representação do que foi dito. Desse modo, o discurso deve ser manuseado, e não manipulado,
dentro de sua complexidade e particularidade, considerando isso enquanto uma tarefa
cansativa, pois o discurso também se reveste de ideologia.
Fischer (2001) defende que o discurso vai além da composição de signos e atribuição
de significados. Analisar o sujeito na perspectiva discursiva exige uma ação de
desprendimento do que já foi aprendido.

É tentar desprender-se de um longo e eficaz aprendizado que ainda nos faz


olhar os discursos apenas como um conjunto de signos, como significantes
que se referem a determinados conteúdos, carregando tal ou qual significado,
quase sempre oculto, dissimulado, distorcido, intencionalmente deturpado,
cheio de reais intenções conteúdos e representações escondidos nos e pelos
textos, não imediatamente visíveis. (FISCHER, 2001, p. 198)

Compreende-se, portanto que o discurso se reveste de significados que dependem do


sujeito no momento de sua produção. Para Foucault discurso e poder são as partes
constituintes do sujeito e este, por sua vez, torna-se resultado do mesmo processo.
Destaca-se que Foucault (2008b) reforça que o discurso não pode ser visto apenas
como uma correlação entre as palavras e frases que tem como pressuposto a construção de um
significado em si. Mesmo que essa estratégia seja aplicada, será uma ordem de muita
importância funcional em que se estrutura um imaginário social. Mas o discurso deixa de ser a
representação de sentidos pelo que se debate ou se luta e passa a ser ele mesmo, o objeto de
desejo que se busca, dando-lhe, assim, o seu poder intrínseco de reprodução e dominação dos
sujeitos na sociedade. Desta forma, compreende-se que o “discurso nada mais é do que um
jogo, de escritura, de leitura, de troca, e essa troca, essa leitura e essa escritura, jamais põem
em jogo senão os signos. Assim, pode-se dizer que o discurso se anula assim em sua
realidade, inscrevendo-se na ordem do significante” (FOUCAULT, 2008b, p. 49).
20

Segundo Fischer (2001):

Ao analisar um discurso - mesmo que o documento considerado seja a


reprodução de um simples ato de fala individual - , não estamos diante da
manifestação de um sujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua
dispersão e de sua descontinuidade, já que o sujeito da linguagem não é um
sujeito em si, idealizado, essencial, origem inarredável do sentido: ele é ao
mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros se dizem.
(FISCHER, 2001, p. 204)

Foucault (2008b) busca revelar a relação entre as práticas discursivas e os poderes


que as permeiam, com artifícios que moldem e controlam os discursos na sociedade e nos
sujeitos, sejam de forma individual ou em sua atuação frente à sociedade. No ponto de vista
do autor, o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo pelo que se luta, bem como o poder de que queremos nos apoderar.”
(FOUCAULT, 2008b, p. 10).
Por meio do discurso, nas práticas sociais, o mundo pode ser compreendido,
interpretado, reorganizado, dessacralizado. Assim como tudo se reorganiza e se renova, o
discurso também pode ser refeito cada vez que é anunciado ou produzido, pois conforme
evidencia, Foucault (2008b):

Uma cumplicidade primeira com o mundo fundaria para nós a possibilidade


de falar deles, nele; de designá-lo e nomeá-lo, de julgá-lo e de conhecê-lo,
finalmente, sob a forma da verdade, é o discurso ele próprio que se situa no
centro da especulação, mas este logo na verdade, não é se não um discurso já
pronunciado, ou antes, são as coisas mesmas ou os acontecimentos que se
tornam insensivelmente discurso, manifestando o segredo de sua própria
essência. O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade
nascendo diante de seus próprios olhos; e quando tudo pode enfim, tomar a
forma do discurso, quando tudo pode ser dito a propósito de tudo, isto se dá
porque todas as coisas, tendo manifestado intercambiado seu sentido, podem
voltar à interioridade silenciosa de consequências de si (FOUCAULT,
2008b, p. 48-49).

O discurso é capaz de ter a força criadora, produtiva e possibilita que as ideologias se


materializem como verdades. Por outro lado, pode se tornar perigoso na medida em que serve
a interesses, é capaz de consolidar estratificações sociais, pode ser usado para marginalizar e
discriminar o sujeito.
Quando se considera o contexto de produção (inserção) dos textos dos livros
didáticos, ou nas mídias sociais, isso fica ainda mais evidenciado. Há uma clareza na
imposição ideológica e isso pode ser reconduzido a partir da análise dos textos veiculados em
21

determinados momentos históricos. Assim, os textos são selecionados ou produzidos com a


firme intenção de se reproduzir outros discursos, configurando-se na ideia imposta, ainda que
de forma minimizada, constituindo objetos de poder.
Nas malhas do discurso os sujeitos se encontram propensos ao domínio e ao mesmo
são invadidos pelo desejo de se apoderar de determinados objetos e dominar outros sujeitos.
Para Foucault (2008b):

[o] discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo


que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do
desejo; é visto que isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mais
aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual podemos nos apoderar,
permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo (FOUCAULT, 2008b,
p. 10-11).

Para Foucault, existem diversos procedimentos que são vistos de forma a repreender
o discurso. A princípio é exposto que todo discurso é controlado pela interdição, que por sua
vez, é vista como um recurso capaz de limitar a enunciação do discurso. Mesmo no discurso
existem resistências, uma vez que nem tudo que pode ser dito por qualquer pessoa, em
qualquer lugar ou circunstância.
É preciso que se considere que o sujeito no discurso é histórico. Influencia e é
influenciado pelas proposições que sua historicidade carrega. Há uma tendência na repetição
dos discursos, e, portanto, atribuir importância, às vezes exagerada, à esses discursos. A
proliferação dos discursos é questionada por Foucault (2008b), ao: questionar: “Mas, o que
há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (p.8)
Por certo, o perigo não reside no fato de as pessoas produzirem seus discursos, mas
nos significados que estes possam assumir em sua proliferação. Basta que se observe a
realidade atual na qual as denominadas fake news têm chamado a atenção, tanto por sua
multiplicação, quanto pelo número de pessoas que nelas creem a ponto de terem se
transformado nas maiores aliadas do sistema político vigente. Essa atribuição de significados
torna o sujeito discursivo um portador, ele carrega consigo as ideologias nas quais acredita e
busca pelo convencimento fortalecê-las e torná-las perenes.
Por outro lado, os sujeitos vivenciam uma espécie de sociedade na qual não se
permite que os discursos sejam materializados em sua totalidade. A fala, a escrita, as
manifestações discursivas, passam pelo processo de exclusão ou de interdição. Isso significa
22

que a liberdade de manifestar o pensamento em forma de linguagem em qualquer momento e


sobre todos os assuntos, precisa ser dirigida, controlada. Do mesmo modo, a manifestação do
pensamento só é livre se estiver em acordo com a ideologia dominante.
Sobre a exclusão e interdição do discurso, Foucault ressalta:

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de
tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado
ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições
que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade
complexa que não cessa de se modificar. (FOUCAULT, 2008b, p. 9)

Nesse não dizer, ou melhor, na interdição do discurso é que se compreende como o


discurso é materializado nas relações de poder. Fischer (2001) reforça que o discurso se insere
nas relações de poder e saber, tanto pelos enunciados quanto pela visibilidade destes. Assim
como falar e observar são consideradas como práticas sociais, é importante o entendimento de
que essas mesmas práticas que podem ser responsabilizadas pelas prisões em que os discursos
podem se tornar. É mais do que se referir a coisas ou à sua temporalidade. Não é
simplesmente a emissão do pensamento e seu registro em forma de letras, palavras ou frases.
O discurso emana do sujeito, por ele é produzido e para tanto, se constitui em “regularidades
intrínsecas a si mesmo, através das quais é possível definir uma rede conceitual que lhe é
própria.” (FISCHER, 2001, p. 200)
Foucault (1999) pondera a política e a sexualidade como sendo os dois principais
tabus presentes na sociedade e diz mais, que os discursos são marcados pela busca de desejo e
de poder pelo controle daquilo que enunciam, e “por mais que o discurso seja aparentemente
bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder” (FOUCAULT, 2008b, p. 10).
Nas malhas do discurso torna-se objeto da ausência de conhecimento com a qual os
sujeitos passam a conviver. Isso significa que na contramão da ideologia dominante, pensar
diferente pode ocasionar problemas. Ter um discurso diferente daquele que se espera dos
sujeitos significa novas formas de pensamento e como tal, representa perigo para aqueles que
se aproveitam da passividade dos sujeitos para impor e construir as relações de poder. Como
exemplo, basta observar os discursos de influenciadores que “fazem” a cabeça de jovens e
adolescente de hoje. Sem qualquer pausa para uma análise do contexto discursivo e de suas
condições de produção, milhares de pessoas passam a “seguir” outras, legitimam seus
23

discursos e se colocam abaixo da escala de produção dos discursos. São vistos como “servos
obedientes” das ideias difundidas como verdades.
Em relação aos sujeitos do discurso imposto nas relações de poder, Foucault (2008b)
reforça que a sociedade se reveste de hipocrisia, uma vez que se utiliza de relações
antagônicas para definir, combater e reivindicar papéis que a ela não compete.

Trata-se, em suma, de interrogar o caso de uma sociedade que desde há mais


de um século se fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente
de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os
poderes que exerce e promete liberar-se das leis que a fazem funcionar.
Gostaria de passar em revista não somente esses discursos, mas ainda a
vontade que os conduz e a intenção estratégica que os sustenta.
(FOUCAULT, 2008a, p. 14)

Os objetos do discurso vão sendo lapidados ao longo do tempo e precisam dos


sujeitos em sua legitimação. Nenhum discurso de poder toma forma sem a anuência dos
sujeitos. Do mesmo modo, não haveria a hipocrisia do discurso se não houvessem sujeitos à
espera ou submisso a eles. Tais afirmativas podem se tornar contundentes a partir do
momento em que se evidencia a fragilidade dos sujeitos oprimidos por discursos opressores.
Ora, se levantar contra tais efeitos corresponderia a uma organização ideológica que os
sujeitos que emanam do discurso não ousam ter. O repúdio ao discurso de poder tem escassos
espaços, pois a própria sociedade precisa de controle, sem o qual os sujeitos teriam as rédeas
de sua própria vida e errariam mais em seus conflitos sociais e individuais.
Ao afirmar que a sociedade incorre à hipocrisia para reforçar suas ideologias,
Foucault deixa clara uma posição dos sujeitos que se calam mediante diversas situações e
depois utilizam o próprio silêncio como justificativa às suas fraquezas. O sujeito do discurso
é, antes de tudo, histórico e depende de suas condições. Sendo assim, Foucault (2008b), ao
discorrer sobre o(s) objeto(s) de discurso reforça que:

[...] as condições para que apareça um objeto de discurso, as condições


históricas para que dele se possa "dizer alguma coisa" e para que dele várias
pessoas possam dizer coisas diferentes, as condições para que ele se
inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa
estabelecer com eles relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento,
de diferença, de transformação - essas condições, como se vê, são numerosas
e importantes.(FOUCAULT, 2008b, p. 50)

As condições para que um objeto de discurso emerja do sujeito e do grupo social no


qual se insira, faz com que as convenções sociais passem a regular o discurso. Há uma
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profanação da liberdade individual, uma vez que historicamente demarcado o espaço


constitutivo dos sujeitos discursivos demandam o poder e a vontade dos quais o poder emana.
Para Foucault (2008b) os discursos se repetem à exaustão, de uma época à outra,
séculos, décadas, anos, meses, dias...e não há nada de novo nos discursos produzidos, pois
estes são reflexos do que já foi dito, vivenciado ou produzido. “Isto significa que não se pode
falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta
abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se
iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade.” (FOUCAULT, 2008b, p.
50)
Nas malhas do discurso emerge o sujeito que, por meio dos enunciados, denota sua
prática social. Do mesmo modo, reconhece seu lugar no contexto das relações de poder. O
discurso pode ser antagônico e contraditório, mas denota um posicionamento em meio a uma
complexa relação de produção e reprodução dos discursos de poder. Há que se reforçar que os
sujeitos não são passivos nessa relação, pelo contrário, uma vez que a própria historiografia
descreve como são os movimentos de resistência à imposição dos discursos de poder, da
subjetivação e submissão.
Para Foucault o discurso de poder pressupõe a liberdade, uma vez que é preciso que
os homens sejam livres para que possam ser governados. Os não libertos já experimentam um
forma de entrelace, de prisão, seja com as convenções sociais, seja com seus próprios
propósitos. Do mesmo modo, Foucault reforça que as apropriações sociais, bem como os
rituais da palavras e as sociedades do discurso não podem ser separadas dos sujeitos do
discurso, bem como de seus objetos. Isso ocorre devido a uma estreita ligação entre os
sujeitos, seus discursos, suas produções e apropriações.

Bem sei que é muito abstrato separar, os rituais da palavra, as sociedades do


discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais. A maior parte do
tempo, eles se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes
edifícios que garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes
tipos de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de
sujeitos. Digamos em uma palavra que são esses os grandes procedimentos
de sujeição dos discursos. (FOUCAULT, 2008b, p. 44)

Embora pareça, em primeiro plano, que os sujeitos do discurso são objetos passivos
do poder, é preciso que se ressalte que não é essa uma realidade geral. Ora, é preciso que o
olhar retome a história, para que se compreenda melhor tal perspectiva. São diversos os
registros em toda a história da humanidade das lutas pela resistência ao discurso do poder. As
25

minorias, em quase toda a história, deixaram registradas os movimentos contra a imposição


do discurso de poder e da sujeição ou submissão.
Nesse aspecto, Foucault bem ressalta, afirmando que no contexto dos sujeitos é
possível distinguir três tipos de lutas.

Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as formas
de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que
separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga
o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a
sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão). Porém mesmo
quando estão misturadas, uma delas, na maior parte do tempo, prevalece.
(FOUCAULT, 2008b, p. 235)

Discurso e poder andam juntos. Isso se torna evidente quando se analisa a realidade
ou mesmo as perspectivas históricas desde a Antiguidade. O poder sempre foi imputado
àquele que melhor construiu, significou, trabalhou com as palavras. Poderosos foram os que
conseguiram constituir no imaginário popular a necessidade de ser comandado, lapidado e
construído. Partindo de tal perspectiva, desse olhar para a aceitação (imposição) da
subjetivação e da submissão dos sujeitos do discurso, é que se compreende também as
resistências.
Muito se fala sobre a sujeição, submissão dos sujeitos do discurso. Mas, o que é
sujeição?
Considerando o léxico, por sujeição compreende-se o ato de subjugar, tornar alguém
dependente, obediente, subordinado. Como por exemplo em “A ida da mulher para o mercado
do trabalho não conseguiu livrá-la da sujeição ao homem”. Na sujeição discursiva, o sujeito se
torna cativo dos discursos impostos, precisa seguir regras que normatizam sua vida em
sociedade e, por vezes, passa a experimentar uma falsa liberdade, cerceada pelas convenções
sociais. Desse modo, é possível destacar as sujeições pelo gênero, pelas condições
econômicas, pelas hierarquias de poder, pela religiosidade, ou seja, por todos os aspectos que
se configuram na imposição de um discurso hierarquicamente instituído, ainda que sem
legitimidade.
A sujeição remonta à forma com que os discursos são recebidos. Por outro lado, na
subjetivação espera-se atividade, resistência, consciência de si e de pertencimento a uma
identidade cultural e individual. Para Foucault (2008b) os discursos seguem alguns princípios
e dentre esses, o da especificidade. Isso significa que o discurso não pode antecipar suas
26

significações de forma precoce, nem se impor como simples decifração de enigmas formados
pelas palavras, registradas, ditas ou não.

Ele [o discurso] não é cúmplice de nosso conhecimento; não há providência


pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber o discurso
como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes
impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do
discurso encontram o princípio de sua regularidade. (FOUCAULT, 2008b, p.
53)

A prática de subjetivação sob a vertente foucaultiana, reforça a ideia de construção


do sujeito discursivo e parte da perspectiva do cuidado de si, do homem consigo mesmo.
Foucault (2005) provoca ao questionar quais foram as razões que justificaram a concepção de
um sujeito no qual o conhecimento de si teve preponderância sobre o cuidado de si? Suas
justificativas assomam à antiguidade clássica e a dualidade entre religiosidade e filosofia.
Para bem compreender a noção de conhecimento e subjetivação, é preciso que se
retome o que Foucault denominou “saberes sujeitados”.

[...] por ‘saberes sujeitados’, acho que se deve entender outra coisa e, em
certo sentido, uma coisa totalmente diferente. Por ‘saberes sujeitados’, eu
entendo igualmente uma série de saberes que estavam desqualificados como
saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados:
saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do
nível de conhecimento ou da cientificidade requeridos. (FOUCAULT,
2008b, p. 12)

Na imposição do saber de si em contraponto ao cuidar de si, os saberes sujeitados


servem como suporte aos discursos de poder. Na prática de subjetivação proposta por
Foucault se volta para as técnicas de si. Estas, por sua vez, representam uma forma de
fortalecimento das identidades discursivas. De acordo com Foucault (1997)

[...] poderia se chamar de ‘técnicas de si’, isto é, os procedimentos, que, sem


dúvida, existem em toda civilização, pressupostos ou prescritos aos
indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de
determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de
conhecimento de si por si. (1997, p. 109).

Foucault, no vislumbre da subjetivação, passa a descrevê-la desde a antiguidade.


Nesse período, de acordo com o autor, o exame de si pode ser favorecido pela adoção de três
técnicas, sendo estas, a escuta, a memorização e a escrita.
27

Por outro lado, apresenta-se no discurso foucaultiano aquilo que é tido como
apropriação do discurso verdadeiro. Para sua existência, é necessária a existência de um
mestre. Assim, segundo Foucault “[...] a escuta será o primeiro momento deste procedimento
pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e recolhida como se deve, irá de algum modo
entranhar-se no sujeito, incrustar-se nele e começar a tornar-se suus (tornar-se sua) e a
constituir assim a matriz do êthos” (FOUCAULT, 2006, p. 402).
Além da técnica de escuta, Foucault ressalta a importância de outra técnica de si, a
memorização. Na subjetivação dos sujeitos discursivos, a memorização tem o papel
fundamental na reflexão que o sujeito fizer de si. Examinando sua consciência faz com que o
sujeito se aproprie de sua conduta e de tal forma, reforça os princípios adquiridos. Na
memorização, retoma-se o que se encontra marcado no consciente dos sujeitos. Segundo o
autor, é imprescindível que os sujeitos façam um exame de consciência, não para detectar e
vigar as culpas, mas como um meio de “volta-se para si mesmo e fazer um exame das
riquezas que aí foram depositadas.” (FOUCAULT, 1997, p. 129). Destaca-se que esse exame
tem a função de fazer com que os sujeitos novamente se adaptem às normas de conduta, bem
como possam retomar o que, em determinado momento, foi desejado ter sido feito.
A última técnica de si, como subjetivação dos sujeitos do discurso e citada por
Foucault, é a escrita. Embora na Antiguidade Clássica à escrita não tenha sido atribuída maior
importância, uma vez que se valorizava a oralidade como meio de se buscar as melhorias no
governo. Mais adiante, já nos séculos I e II é que as notas sobre si passaram a ser valorizadas.

[...] dentre as tarefas de que definem o cuidado de si há aquelas de tomar


notas sobre si mesmo – que poderão ser relidas - , de escrever tratados e
carta aos amigos, para os ajudar, de conservar os seus cadernos a fim de
reativar para si mesmo as verdade [sic] da qual precisaram. (FOUCAULT,
2006, p. 792)

Essas práticas de subjetivação são, na concepção foucaultiana, como formas de


construção da verdade. De acordo com Foucault, por meio da subjetivação, os sujeitos
passavam a compreender o que era a verdade, e como o conhecimento verdadeiro poderia ser
instituído. Do mesmo modo, por meio das práticas de subjetivação, a conduta teria seu
controle creditado pela escuta, memória e escrita e não mais somente pela oralidade.
Foucault também descreve as práticas de subjetivação no Cristianismo. As práticas
da Antiguidade são utilizadas também no cristianismo. Além de preconizar a verdade, o
cristianismo prega a obediência como forma de manter essa verdade. A subjetivação dos
sujeitos torna obrigatória a obediência à verdade que é produzida. Interessante compreender
28

que o discurso do cristianismo reforça as relações de poder, aqui o poder sacralizado se


sobrepõe ao poder do povo.

O cristianismo exige uma outra forma de obrigação com a verdade, diferente


da fé. Requer de cada um que saiba o que é, quer dizer, que se empenhe em
descobrir aquilo que passa em si mesmo, que reconheça suas faltas, admita
suas tentações, localize seus desejos; cada um deve em seguida revelar essas
coisas, seja a Deus, seja aos outros membros da comunidade, conduzindo
desta maneira a um testemunho, público ou de caráter privado, contra si
próprio. (FOUCAULT, 2006, p. 802)

No cristianismo, a subjetivação se constrói a partir de um sistema ritualístico,


definido pelo reconhecimento do sujeito de seu pecado, antes original, e depois do batismo
relacionado à sua vivência social. O ritual pressupõe dois passos: primeiro o reconhecimento
público do pecado e em seguida o cumprimento da penitência comutada. No cristianismo a
verdade é constituída por meio da revelação.

Existem [...] duas grandes formas de revelação de si, de expressão da


verdade do sujeito, no cristianismo dos primeiros séculos [...] o
exomologêsis, ou seja, a expressão teatralizada da situação de penitente que
torna manifesto seu estatuto de pecador. A exagoreusis é a verbalização
analítica e contínua dos pensamentos que o sujeito pratica nos moldes de
uma relação de obediência absoluta a um mestre. (FOUCAULT, 2006, p.
809)

O exame de si, da própria consciência não é mais utilizado como retomada de ações,
de organização do conhecimento adquirido. No cristianismo, o exame de si serve para reforçar
a necessidade de penitência de um sujeito pecador. A verdade é somente ascendida quando os
sujeitos passam pelos rituais de purificação, que requer destes o comportamento abnegado,
visto como primeiro passo para um bem maior, sacralizado e incorruptível.
No cristianismo os sujeitos são submetidos ao próprio juízo, manifesto na análise dos
próprios atos, bem como dos pensamentos, expostos na confissão de seus pecados. Nos rituais
cristãos, a subjetivação depende do desprendimento de bens materiais e apego na salvação de
sua própria alma. Por outro lado, conforme descreve Foucault “[...] não somente os
pensamento, mas também os movimentos mais íntimos da sua consciência e das suas
intenções.” (FOUCAULT, 2006, p. 809)
Foucault considera também que a escrita seja uma prática fundamental na
subjetivação. Pela escrita ocorre uma materialização do pensamento e como tal, exige-se do
sujeito um comportamento ético. A ética, nesses casos, serve para guiar aquilo que o sujeito
29

pensa e regular o que é escrito. Por outro lado, na escrita de si o sujeito tem a oportunidade de
registrar aquilo que é ouvido e retomado. Pela escrita o sujeito também pode se apropriar das
verdades expressas nas leituras escolhidas ou impostas. A escrita, segundo Foucault, “[...] é
uma maneira de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade que
nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam o uso.” (2004, p. 151)

1.2 Concepções foucaultianas de poder e biopoder

Para Foucault, verdade e poder, poder e discurso, verdade e discurso possuem uma
sistemática própria e como tal, inserem se nas relações do sujeito discursivo com a sociedade
no qual se encontra inserido, bem como sua historicidade. Entretanto, o autor julga que a
historicidade não tem compromisso com o sentido e sim, com o poder. “A historicidade que
nos domina e nos determina é belicosa e não linguística, relação de poder, não relação de
sentido. A história não tem ‘sentido’ o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente.”
(FOUCAULT, 2007a, p. 6)
Paniago (2005) declara que a preocupação de Foucault não está em constituir um
conceito fechado, indistinto sobre o poder,

[...] mas refletir sobre os mecanismos, os efeitos, em suas relações, dos


diversos dispositivos de poder que são exercidos nos diferentes níveis da
sociedade. Ele preocupa-se em responder se se pode dizer que a análise do
poder (ou dos poderes) pode ser deduzida da economia. (PANIAGO, 2005,
p. 86)

Foucault considera que o sujeito do discurso participa do que denomina relações de


poder. Estas, por sua vez, são descritas como complexas, pois se revestem das diversas
imposições discursivas delineadas ao longo da história humana. Partindo das relações de
produção, as quais eram mediadas pela linguística1, as relações de poder não possuem uma
instrumentalização que possa ser considerada efetiva em sua análise.

O único recurso que temos são os modos de pensar o poder com base nos
modelos legais o poder com base nos modelos legais, isto é: o que legitima o
poder? Ou então, modos de pensar o poder de acordo com um modelo
institucional, isto é: o que é o Estado? (FOUCAULT, 2007b, p. 232)

Linguística: é a ciência que se ocupa em estudar as características da linguagem humana.


30

Com base na questão sobre o que legitima o poder, é possível tentar compreender
como Foucault determina as relações de poder. De modo geral, o poder é legitimado no
discurso. Na construção de relações, poder e força podem ter a mesma destinação, no contexto
discursivo dos sujeitos, a força é utilizada de uma maneira mais sutil, mas influenciando,
construído concepções do que se impondo mais bruscamente.
O poder emana do discurso, isso é inegável. As relações de poder legitimam os
discursos que são impostos, seja por meio da oralidade ou pela escrita, mas para Foucault as
relações de poder servem tanto à análise quanto à compreensão de como os sujeitos são
constituídos.
Sobre a visão foucaultiana do poder, Paniago (2005) reforça que:

O poder, para Foucault, não é algo que se possa possuir, porque não é um
bem alienável do que se possa ter a propriedade. Por isso, qualquer que seja
a sociedade, não existe divisão entre os que tem e os que não tem poder [...]
embora não haja um titular, um dono do poder, o poder é exercido sempre
em determinado sentido, não necessariamente de cima para baixo. O poder,
em outras palavras, não se possui, o poder se exerce ou se pratica.
(PANIAGO, 2005, p. 81-82)

Foucault reforça que nas relações de poder, a resistência ao poder deve ser analisada
concomitantemente à sua racionalidade interna, utilizando para isso “as relações de poder
através do antagonismo das estratégias.” (FOUCAULT, 2007b, p. 234). Por outro lado, o
autor reforça que para compreender as relações de poder, seria necessário antes, analisar o que
se denominou de lutas antiautoritárias. Pela ótica foucaultiana as lutas servem para que o
poder mude de lugar, de discurso e de mãos.
Assim, de acordo com Foucault (2007b) as lutas antiautoritárias possuem alguns
traços em comum, sendo estes:

São lutas ‘transversais’; isto é, não são limitadas a um país. Sem dúvida
desenvolvem-se mais facilmente e de forma mais abrangente em certos
países, porém não estão confinadas a uma forma política e econômica
particular de governo; o objetivo destas lutas são os efeitos de poder
enquanto tal, por exemplo, a profissão médica não é criticada essencialmente
por ser um empreendimento lucrativo, porém porque exerce um poder sem
controle, sobre os corpos das pessoas, sua saúde, vida e morte.
(FOUCAULT, 2007b, p. 234)

Considerando que em relação ao poder, as lutas são para que este não se extinga e
sim mude de mãos, Foucault reforça que as lutas antiautoritárias se revestem de imediatismos
31

e como tal, as instâncias mais próximas do sujeito são as mais criticadas, pois exercem maior
poder e maior ação sobre os sujeitos.

Elas não objetivam o ‘inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam
encontrar uma solução para seus problemas no futuro (isto é, liberações,
revoluções, fim da luta de classe). Em relação a uma escala teórica de
explicação ou uma ordem revolucionária que polariza o historiador, são lutas
anárquicas. (FOUCAULT, 2007b, p. 234)

Acerca do modo como Foucault descreve o poder, consignando-o ao saber, Deleuze


(2008) reforça que o poder é fruto do saber. Saber e poder caminham nas mesmas direções.
No entanto, conforme menciona o autor, sob a ótica foucaultiana o saber se constrói por meio
de formas, daquilo que é visível e enunciável, enquanto o poder se constitui na força e em
suas relações. “Foucault parte de uma concepção original que ele faz do saber, para inventar
uma nova concepção do poder.” (DELEUZE, 2008, p. 115)
“Ao poder não interessa a simples repressão ou dominação dos homens. Ao invés
disso, importa que suas mais detalhadas atividades sejam geridas, para fazer com que se
tornem sempre mais úteis.” (PANIAGO, 2005, p. 87)
Essa nova concepção de poder remete ao que Foucault denominou de biopoder.
Antes do conceito de biopoder, compreende-se o homem é dominado, principalmente, pelo
poder biológico. O poder imposto às minorias raciais, ou ao gênero pode ser considerado
como mostra do poder biológico, ou seja, justifica-se pela teoria da soberania, ligada ao
direito de vida e de morte.

Em certo sentido, dizer que o soberano tem direito de vida e de morte


significa, no fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso,
que a vida e a morte não são desses fenômenos naturais, imediatos, de certo
modo originais ou radicais, que se localizariam fora do campo do poder
político. (FOUCAULT, 2005, p. 286)

Quando o autor se refere ao soberano, denota-se a ideia de poder emanado,


instituído. O soberano é aquele que detém o poder sob duas perspectivas, a de quem se crê
ocupe um lugar mais alto na escala biológica, que perpassa pela ideia de superioridade, seja
pela raça, pelo gênero ou pela sexualidade. A outra perspectiva é a de que o soberano
experimenta o poder tomado, abstraído, ou instituído em instâncias maiores e mais
sacralizadas. Ao se compreender melhor a ótica foucaultiana sobre o poder, é possível migrá-
lo para o sujeito do discurso. O soberano seria, então, aquele que impõe o discurso do poder, e
32

seu direito de vida e de morte, irá depender de quanta ideologia consegue difundir e quantos o
seguem.
Por outro lado, Foucault institui outro poder a partir da “tecnologia de poder”,
instrumentalização das relações sociais a partir de suas técnicas de poder não disciplinares.
Reside aí os pressupostos do que o autor passou a denominar “biopoder”. Esse poder não é
mais exercido sobre a disciplina dos homens, mas sobre suas vidas. Não se materializa no
homem-corpo, mas no homem enquanto ser vivo. De uma forma mais simples, biopoder nada
mais é do que o exercício do poder sobre o direito de vida e de morte dos sujeitos, não
somente sobre o corpo, mas sobre sua formação biológica.
O biopoder é representado como uma forma de controle dos sujeitos. Como tal se
impõe por meio das questões biológicas. Corpos, enquanto objetos do discurso, são
considerados como instrumentos de dominação. Relembrando, para Foucault, o poder não
existe e sim, as práticas de poder. Ou seja, para que haja a imposição do discurso de poder é
preciso que haja um sujeito do poder. No biopoder, é priorizado o controle do corpo, objeto de
discurso. Quando o corpo pode ser controlado, os sujeitos se submetem às práticas de poder.

Foi a partir da constatação da articulação entre os dois mecanismos que


Foucault pode perceber por que a sexualidade havia se tornado tão
importante no século XIX. Para ele, a sexualidade está justamente no
entremeio do corpo e da população. Por um lado, a sexualidade carece de
mecanismos disciplinares de controle; por outro, depende de mecanismos
regulamentadores. (PANIAGO, 2005, p. 101)

O biopoder, para Foucault pode ser considerado como tecnologia de poder, que tem
o centro na vida dos sujeitos. Sem sua existência, a sociedade perderia sua capacidade
normatizadora. E sem essa capacidade, as relações e práticas de poder perderiam a força.
Analisando essa possibilidade, gênero, corpo e sexualidade não poderiam ser limitados pela
ordem ou controlados pelo Estado. O biopoder:

Trata de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos


óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses
processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na
segunda metade do século XVIII constituíram, os primeiros objetos de saber
e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (FOUCAULT, 2005, p.
290)
33

Acerca do biopoder, Foucault constrói uma comparação na qual poder da soberania,


tido como absoluto, dramático e sombrio e o biopoder, o poder sobre a população, as massas,
sobre o homem como ser vivo. Biopoder é, então, conceituado como o poder “fazer viver”.

A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder
que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer
viver e em deixar morrer. [...] a manifestação desse pode aparece
concretamente nessa famosa desqualificação progressiva da morte. [...] a
morte era o momento em que se passava de um poder, que era soberano aqui
na terra, para aquele outro poder, que era o do soberano do além.
(FOUCAULT, 2005, p. 295)

Em resumo, biopoder é o controle do sujeito a partir de uma perspectiva biológica


que tem como função justificar a imposição do discurso de poder.

1.3 Corpo, poder e gênero

Conforme mencionado, o corpo é discurso, e como tal, objeto das técnicas de poder.
O corpo discursivo representa ideologias, sofre influências, é contido, controlado,
normatizado. Portanto, o corpo é considerado o lugar de resistências, bem como da imposição
de forças. Le Breton (2007) reforça que o corpo é o que ancora o sujeito em sua visão e
vivência de mundo, sendo construído e transformado a partir de seu contexto social e cultural.

Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o


vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída:
atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais
dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência,
jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a
dor, com o sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal.
(LE BRETON, 2007, p. 7)

Sobre corpo, poder e gênero, Fischer (1996) discorre que o corpo e o gênero são
instrumento das técnicas de poder, sendo o corpo um lugar do qual emanam as identidades.
“Porém, se efetivamente os corpos são constituídos como efeitos de poder, não há como
ignorar que a histórica desigualdade nas relações entre homens e mulheres constitui
profundamente não só o corpo feminino como as identidades de gênero.” (FISCHER, 1996, p.
94)
34

É sob a perspectivas das desigualdades nas relações de gênero é que se torna possível
compreender os discursos que são construídos na sociedade, expressos, tanto na oralidade
quanto na escrita. Aqui, é repousado o olhar para os meios de representação do corpo da
mulher nesse antagonismo desperto pela sexualidade, e pelo homem enquanto sujeito de
poder.
O discurso de Le Breton (2007) vem de encontro com as formas de representação do
corpo da mulher. De acordo com o autor, em relação ao corpo há uma dualidade, uma vez que
esse é uma expressão social. O ato de nomear o corpo, seria o cumprimento de um fetiche e
alimentação de uma dualidade. Quando a sociedade “nomeia” o corpo feminino, chamando-o
de “belo”, “feio”, “idoso”, “obeso” há a omissão daquelas que o encarnam, do que há além
dos estereótipos ligados à mulher.

É preciso ressaltar a ambiguidade que consiste em evocar a noção de um


corpo que só mantém relações implícitas, supostas, com o ator com quem faz
indissoluvelmente corpo. Qualquer questionamento sobre o corpo requerente
a construção de seu objeto, a elucidação daquilo que subentende. O próprio
corpo não estaria envolvido no véu das representações? O corpo não é uma
natureza. Ele nem sequer existe. Nunca se viu um corpo: o que se vê são
homens e mulheres. Não se vê corpos. Nessas condições o corpo corre o
risco de nem mesmo ser um universal. (LE BRETON, 2007, p. 24)

O corpo feminino, objeto dos discursos de poder, passa a ser considerado não apenas
sob a perspectiva biológica, mas compreendido a partir das diferenças, principalmente as
sexuais. De acordo com Fischer (1996) a partir de tais diferenças que se torna possível
compreender como a desigualdade de gênero é legitimada.

[...] todo o investimento que as diferentes sociedade fizeram sobe as


mulheres, amarrando-as a seus corpos, como naturalmente deficientes, em
falta, doentes, frágeis – e tantas outras qualificadas através da concretude
biológica -, é hoje investigado justamente a partir das categorias como a de
gênero, pelo qual distinguimos o corpo sexuado e o gênero socialmente
construídos ( o modo de comportar-se, os papéis que cabem ao homem e à
mulher, as disciplinas à que cada um deve submeter-se e assim por diante) e,
sobretudo, pela qual expomos, cristalizadas e naturalizadas relações de
poder entre os sexos. (FISCHER, 1996, p. 95, grifos nossos)

Nos dizeres de Fischer, o que se destaca é a forma mais contundente de denotar as


técnicas de biopoder sendo exercidas sobre os gêneros, principalmente sobre a mulher. O
corpo feminino, o templo do machismo, uma prisão, construída nas malhas do discurso social,
35

da classificação do certo e errado, do santificado e pecador. Corpo esse que migra nas
dicotomias que criam estereótipos e classificam.
O estereótipo, conforme menciona Brito e DallaBona (2014), se origina do grego
steros + typos e até a década de 1920 era utilizado para nomear uma forma de impressão que
se utilizava de placas em uma técnica denominada estereotipia. A partir de 1920 é que o termo
deixou de ser usado no contexto da imprensa e assomou o âmbito social. Assim, o estereótipo
é definido como “uma impressão que marca determinantemente as relações sociais. Eles
podem e devem, porém ser reavaliados e remodulados, pois sofrem alterações de acordo com
o contexto e com a intenção de quem o cria ou que dele se apropria.” (BRITO;
DALLABONA, 2014, p. 17)
O corpo feminino é, ao mesmo tempo, origem do prazer e fonte de pecado. Enquanto
gênero socialmente construído, os olhares para as épocas anteriores comprovam o poder que o
discurso social exerce sobre a construção da identidade feminina. Nessas relações de poder,
aqueles que representam o discurso regulador social, os homens, exercem o poder sobre as
mulheres. Esse poder é instituído desde o nascimento e se legitima em diversas fases da vida
social feminina, continua no matrimônio e se transfigura na maternidade.

A imagem do corpo é aqui a imagem em si, alimentada pelas matérias


simbólicas que mantêm sua existência em outros lugares e que cruzam o
homem através de uma fina trama de correspondências. O corpo não se
distingue da persona e as mesmas matérias-primas entram na composição do
homem e da natureza que o cerca. (LE BRETON, 2007, p. 30)

Entre homens e mulheres existem distinções que vão além do contexto biológico,
mas perpassam pela cultura, como constituinte do gênero e da identidade.

Muitas teorias foram construídas e multiplicadas, pretendendo comprovar


“cientificamente” tais distinções. No “padrão científico”, o homem ou o
masculino tem sido a “norma” e isso se evidencia desde as elaborações
linguísticas nas quais tradicionalmente se toma o masculino como sinônimo
de humanidade. Também na produção de conhecimento, na área da
biomedicina, por exemplo, o corpo feminino é tomado como um apêndice ou
uma versão menos desenvolvida do masculino “padrão”, passando por
muitas outras simbologias. (SAYÃO, 2003, p. 122)

O peso simbólico dessas concepções fortalece o discurso sobre a ‘fragilidade’


feminina em relação à força masculina. Como as relações de gênero, são, antes de tudo, de
poder, as forças femininas e masculinas passam a compor uma dualidade antagônica,
construída na supervalorização do papel masculino e subvalorização da mulher. O discurso de
36

poder da hegemonia masculina fundamenta-se, essencialmente na fragilização do corpo


feminino. Corpo e gênero coexistem em uma sociedade na qual as manifestações de poder são
proclamadas a partir da ideia de posse sobre o corpo, no caso, o feminino.
A forma de posse do corpo feminino que primeiro é legitimada pela sociedade é a do
casamento. Foucault (2005) reforça que para o homem, o matrimônio é, antes de tudo, uma
obrigação social, que embora possa ser visto como um ato aborrecedor, é um dever que pode
abrir as portas da política, cumpre os preceitos religiosos, proporciona continuidade pela
prole, é uma forma de honrar a Deus. Por outro lado, por meio do casamento, o homem
poderá ter ao seu lado uma serva, pronta para responder à natureza ardente de seu esposo, sem
deixar de honrá-lo nos espaços sociais.

Como vemos, o princípio de ter que se casar está fora do jogo comparativo
entre as vantagens e os aborrecimentos do casamento: ele se expressa como
a exigência para todos de uma escolha de vida que se dê a forma do
universal porque é conforme à natureza e útil a todos. O casamento liga o
homem a si próprio enquanto ser natural e membro do gênero humano.
(FOUCAULT, 2005, p. 157)

Um dos grandes exercícios do poder se dá pelo casamento. O corpo feminino deixa a


posse paterna, e migra à posse do marido. O matrimônio, para o homem, não deixa de ser uma
obrigação vantajosa, uma vez que nesse espaço discursivo, o poder é reiterado. O corpo
feminino é mais para o uso e subordinação do que para as próprias vivências. Nas relações de
poder que são antagônicas, e, ao mesmo tempo veiculam proximidades, o corpo feminino é
constantemente associado às atividades domésticas, casamento, maternidade. Da mesma
forma, o gênero feminino pressupõe significações e significados que o aproxima e se
materializa pela dominação e imposição do poder masculino.
O discurso de Sayão (2003) reforça o fato de que o corpo feminino se encontra no
espaço dos estereótipos.

Por isso, as mulheres são vistas como ligadas ao mundo da casa, ao


doméstico e ao cuidado dos filhos. A capacidade corporal feminina
relacionada à reprodução da espécie humana delimita o espaço da mulher na
vida em sociedade; seu papel social de ‘cuidadora’ confere-lhe uma posição
hierárquica inferior em relação aos homens publicamente ativos e
provedores. À primeira vista e tomando representações comuns, seria
possível dizer que os homens estariam na esfera da vida produtiva, enquanto
as mulheres na esfera da vida reprodutiva. (SAYÃO, 2003, p. 123)
37

O corpo feminino, em muitos aspectos, reflete uma representatividade do poder, isso


porque é um corpo cultural e como tal, designado a papéis que são impostos. O corpo
feminino é destituído de sua forma, pois precisa assumir a forma desejada pela sociedade,
pelos homens, aqueles que detém o poder ou as técnicas e relações de poder. O corpo em
registro, seja nos desenhos artísticos seja nas imagens que compõem os livros didáticos,
assume os traços que, ao serem lidos, trazem a representação dos embates silenciosos pelo
poder.
É importante também compreender que até mesmo as imposições estéticas
pressupõem uma relação de poder entre gêneros (mulher) e sociedade (homem). Fischer
(1996) reforça que a sociedade assume um papel tirano quando se trata das exigências ao
corpo feminino. Este, deve corresponder a padrões que são instituídos, quase sempre para
agradar os grupos sociais.

A descrição das tiranias do complexo moda-beleza, que continuamente


produzem formas patológicas de subjetividade para a mulher [...] coloca em
evidência o corpo feminino e a inscrição, nele, das lutas de poder entre
homens e mulheres. [...] Confirmando a ideia de corpo como produto
cultural de práticas que configuram, não só o corpo físico, mas um conjunto
de modos de existência. (FISCHER, 1996, p. 95-96)

O corpo, em Foucault e para Fischer, precisa ser situado além das questões que
cercam a sexualidade da mulher. O corpo, sobretudo o feminino, é um objeto ideológico, e
como tal, instrumentalizado e tido como a materialização do saber e do poder. Estas relações,
por sua vez, são captadas nos discursos que impõem ao corpo da mulher a erotização, os
estereótipos e as construções de submissão e inferioridade. Conforme menciona Le Breton
(2007), o corpo delimita a soberania da pessoa, entretanto, há que se ressaltar que na relação
imposta à mulher, seu corpo é comunitário, objetificado e por isso, resultante da soberania
masculina.

O corpo como elemento isolável da pessoa a quem dá fisionomia só e


possível em estruturas societárias de tipo individualista, nas quais os atores
estão separados uns dos outros, relativamente autônomos com relação aos
valores e iniciativas próprias. O corpo funciona como se fosse uma fronteira
viva para delimitar, em relação aos outros, a soberania da pessoa. (LE
BRETON, 2007, p. 30)

Sayão (2003) destaca que a construção discursiva sobre o corpo, gênero e poder se dá
de forma desequilibrada, uma vez que não se observa uma igualdade quando se trata de
38

homens e mulheres. As relações de poder se encontram nas mãos dos homens enquanto para
as mulheres restam o papel de subordinação, ou objetificação. Quando sacralizadas, precisam
acompanhar a vida santificada de outras mulheres, quando popularizadas, tornam-se as donas
de casa, mães, esposas, ou as prostitutas e marginalizadas cujos corpos nunca ocuparão outros
espaços para além da objetificação, da transformação de seus corpos em mercadoria de
consumo, sem qualquer valor.

Dessa forma, elas circulam como mercadorias de ínfimo valor no mercado


de bens simbólicos; precisam estar sempre belas e magras, acompanhando a
moda internacional, cumprindo também suas obrigações de mães e donas-
de-casa paralelamente ao trabalho extra-doméstico que executam para
melhorar o orçamento familiar ou para se sustentarem quando vivem
sozinhas ou na companhia de seus/uas filhos/as pelos/as quais, geralmente,
são as maiores ou únicas responsáveis. (SAYÃO, 2003, p. 125)

Essa ideia de corpo/mercadoria, sua relação com o valor ou com a objetificação,


transformando o corpo feminino em um bem simbólico, como especifica Bourdieu (1999)
apud Sayão (2003). Segundo a autora, nas relações de poder, há uma supervalorização do
papel masculino, uma vez que se considera que é impossível à mulher reagir contra a estrutura
“masculina” determinada biologicamente, fortalecida culturalmente e impostas socialmente.
O homem, a partir de sua visão acerca do corpo, gênero, poder e dominação pressupõe a
necessidade de autoafirmação, uma vez que seu papel de provedor pode ser facilmente
contestado. O essencial, para o homem nas relações de poder é manter a ideia de virilidade, de
manutenção da honra a qualquer preço. O corpo masculino não é objeto de poder, não se
fragiliza ou se permite ceder espaço, pois a sociedade não aceita que isso ocorra.
O gênero, nas relações de poder, pressupõe a dominação em sua totalidade. Isso
significa que tanto o corpo como a sexualidade são objetos de poder. No que tange ao corpo
feminino, inicialmente, a incompreensão do funcionamento de seu organismo, a sexualidade
negada, a busca pelo prazer e a maternidade representaram movimentos antagônicos, ao
mesmo tempo, de negação e afirmação. Se, por um lado, o homem necessita da afirmação de
sua virilidade, ao corpo feminino a afirmação vem pela maternidade. No entanto, é no
conhecido espaço das tarefas domésticas que as relações de poder são impostas. O poder
imposto ao gênero, refletido no campo discursivo que o corpo representa reconstrói alguns
aspectos que somente o campo do saber e do poder poderão desmistificar.
39

1.4 Relações entre verdade, saber e poder

A verdade, para Foucault se apresenta enquanto um conjunto que se voltam aos


enunciados. Esses, por sua vez, tornam-se verdadeiros a partir da disposição e autorização. A
verdade é, então, produzida, não é uma descoberta, ou uma iluminação divina. Sendo
produzida, sua materialidade irá depender da disposição dos sujeitos do discurso em crer ou
não que os discursos produzidos são verdadeiros ou não.
A priori, a relação entre verdade, saber e poder é ainda crua. Básica. A verdade se
reveste de subjetividade, para ser considerada como tal. Saber e poder se relacionam a partir
de uma perspectiva que denota que saber é poder. Aqueles que mais sabem, ou mais
convencem que sabem são capazes de manter as relações de imposição de poder sobre os
demais sujeitos.
As verdades produzidas e o poder são elementos indissociáveis. Isso se dá justamente
porque as verdades são frutos dos denominados mecanismos de poder. Foucault (2007a)
reforça que a verdade não é única, assim como os regimes de poder não são únicos. Desse
modo, cada grupo social possui aquilo que é denominado ‘verdade’. Entretanto, a existência
da verdade pressupõe que esta não exista fora do poder ou que seja destituída de poder.
De acordo com Paniago (2005), a verdade pode ser produzida considerando alguns
elementos:

Os tipos de discurso que cada sociedade acolhe e faz funcionar como


verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros;
as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da
verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro. (PANIAGO, 2005, p. 120)

A autora cita, ainda, a verdade que, de acordo com Foucault (2007a), possui cinco
características responsáveis por fazer com que a verdade seja:

Centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem;


esteja submetida a uma constante incitação econômica e política, porque
tanto a produção econômica, quanto o poder político necessitam de uma
‘verdade’; de muitas maneiras, objeto de uma grande propagação e de um
grande consumo, porque circula nos aparelhos de educação e de
informação, que, apesar de rigorosas limitações, tem imensa penetração no
corpo social; seja produzida e difundida sob o controle dominante de alguns
grandes aparelhos políticos e econômicos (universidade, exército, escritura,
meios de comunicação); seja objeto de debate político e de luta social.
(PANIAGO, 2005, p. 121)
40

É importante que se destaque que a verdade não assoma em todo lugar, pois depende
de instantes, lugares e espaços. A verdade não pode ser produzida na sombra, ela depende da
luz para se revelar, cria-se um jogo do velado e não velado. Pressupõe-se que a verdade seja
uma ínfima parte daquilo que não é velado, não se ilumina de forma natural, sendo produzida
de acordo com a necessidade de se lançar luz sobre algo. Aqui não se fala em mentiras, mas
na produção de ideias, fatos, pensamentos que materializados, e à luz da crença social,
tornam-se verdades.
Foucault (2007a) relaciona poder e verdade enquanto elementos que se encontram
condicionados, não separadamente, mas na reciprocidade. De acordo com o autor, o poder
somente poderá ser exercido se for originado na produção da verdade. Para tanto, considera-se
que exista uma luta pela verdade.
Paniago (2005) afirma que Foucault:

Estabelece uma íntima relação entre verdade, saber e poder, uma vez que por
verdade deve-se compreender o conjunto de procedimentos regulados para a
produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados
e que, por esse motivo, a verdade está circularmente ligada a sistema de
poder. (PANIAGO, 2005, p. 123)

Foucault prevê que entre poder e saber, exista uma articulação que pode ser
eternizada, considerando, essencialmente, que toda relação de poder necessita do saber. “[...]
não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre o
poder.” (FOUCAULT, 2007a, p. 142)

1.5 Das sociedades de soberania às sociedades do controle

Em sua obra, Foucault remete os sujeitos a três tipos de sociedade. Inicialmente, as


sociedades eram de soberania, depois passaram a ser disciplinares, e por último, sociedades
do controle.
As sociedades de soberania predominaram durante grande parte da história da
humanidade, sendo suprimidas a partir da Revolução Industrial. Após esse período, Foucault
(2005) menciona as sociedades disciplinares, nas quais o confinamento era o modelo de
controle dominante. Por confinamento, compreende-se o sentimento de prisão por meio das
convenções sociais representadas pela família, escola, fábrica, quartel, hospital, prisão. Esses
41

espaços são determinados por Foucault como constituintes dos dispositivos essenciais na
regulação e normatização de costumes, hábitos, e do mesmo modo, tudo que possa regimentar
ou padronizar a vida social.
De acordo com Paniago (2005, p. 126), “O poder, nas sociedades disciplinares em
relação às sociedades de soberania, perde um pouco de sua visibilidade, afinal já não se tem
um ponto central de poder com tanta força como antes, mas vários pontos – disciplinas – de
confinamento dos sujeitos.”
A individualização é defendida pela autora como sendo um outro meio de distinção
entre as características do poder soberano e o poder disciplinar. Citando as sociedades
medievais, Paniago (2005) reforça que nessa época a individualização somente era permitida
àqueles que se encontravam nas denominadas, regiões superiores do poder, aqueles que a
soberania estivesse em exercício.

[...] o poder, na proporção em que se torna mais anônimo e funcional com o


advento das sociedades disciplinares, objetiva mais fortemente a
individualização daqueles sobre quem se exerce. Através dos dispositivos de
vigilância e de exame, que aperfeiçoaram toda uma tecnologia de controle
sobre o corpo, o poder disciplinar individualiza, produz individualidades.
(PANIAGO, 2005, p. 126)

Por outro lado, as sociedades de controle podem ser descritas como aquelas nas quais
os mecanismos de controle passam a pertencer ao que se denomina corpo social. O poder não
se restringe ao controle do espaço ocupado pelos sujeitos, mas toma conta também de seus
cérebros a partir do poder de um comando. Esse tipo de sociedade se esmera no controle pelo
adestramento, pela normatização excessiva, padrões a serem rigorosamente seguidos e
multiplicados. O controle é exercido juntamente com a ilusão de liberdade. Assim, os sujeitos
creem que são livres para pensar enquanto as verdades produzidas o induzem a seguir o que
se espera mediante o controle.
Nesse tipo de sociedade o uso da força não é essencial, uma vez que os grilhões
ideológicos materializam o que se espera dos sujeitos.

O poder na sociedade de controle é tão sofisticado, tão invisível por estar tão
pulverizado, que, embora o exercício do poder esteja muito mais eficiente,
aos ouvidos dos dominados podem chegar apenas os discursos
dissimuladores de liberdade, saúde, qualidade, bem-estar. E é assim que, em
nossa sociedade de controle, são produzidos discursos que nos governam,
que nos adestram, que disciplinam o nosso corpo, que direcionam as nossas
42

escolhas, e que são altamente eficientes porque nos dão a impressão de que
somos livres. (PANIAGO, 2005, p. 130, grifos nossos)

Nessa sociedade de controle, os discursos que governam, que adestram e que


disciplinam são também responsáveis pelos discursos que são instituídos como verdades. Do
mesmo modo, há um processo de produção de verdades a ser revertido. Da sociedade
disciplinar para a de controle não houve uma grande revolução do pensamento humano, mas a
busca por meios de dirigir e reforçar as verdades produzidas de uma forma mais sutil. O
sujeito é dirigido, mas crê que detém o poder sobre suas ações.
Como o discurso do biopoder se tornou ainda mais forte, a vida dos sujeitos passou a
ser controlada. Assim, os meios de comunicação, de produção de discursos foram sendo
apropriados para a divulgação. Do mesmo modo, a escola, enquanto parte do sistema
regulador do poder e saber, passou a ter em seu espaço os instrumentos necessários a tais
ações, ou seja, os livros didáticos.

1.6 A constituição do corpus da pesquisa

Quando se refere à análise do discurso, Orlandi (2009, p.63) reforça que o corpus
precisa ser constituído a partir de “montagens discursivas que obedeçam a critérios que
decorrem de princípios teóricos da análise de discurso face aos seus objetivos.” Mediante isso
é que o corpus de análise dessa pesquisa baseou-se nas sequências discursivas, verbais ou
imagéticas, cujos objetivos se fundamentaram na criação de verdades sobre a mulher,
presentes em quatro livros didáticos adotados na rede de ensino público.
Na constituição do corpus da pesquisa, destaca-se a construção de um dispositivo de
interpretação, como bem define Orlandi (2009)

Esse dispositivo tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que
o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo
com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que
ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras. (ORLANDI,
2009, p.59)

Os livros selecionados para a investigação foram “Português, Linguagens, 8º ano”


(CEREJA; MAGALHÃES, 2015); “ Vontade de saber, Geografia, 8º ano” (TORREZANI,
2015); “Companhia das Ciências, 8º ano” (USBERCO et al., 2015). Além dos mencionados,
foi considerado como objeto de análise, o livro “Vontade de Saber, História, 9º ano”
(GRINBERG; DIAS; PELLEGRINI, 2015). A escolha dos livros didáticos do oitavo ano,
43

excetuando-se o de História, se deu a partir da consideração de que a matriz de referência


destas séries tem como eixos norteadores o estudo do fazer humano, sendo este contemplado
no que tange à mulher.
A escolha do livro didático como objeto de análise baseia-se no fato de que esse
instrumento de ensino, bem como de doutrinação, pode assumir o campo da memória e da
história, inserindo-se também no conceito de documento e monumento apresentado por Le
Goff (1996). Segundo o autor “O monumento tem como características o ligar-se ao poder de
perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória
coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos.”
(LE GOFF, 1996, p.1). O livro didático torna-se um monumento de perpetuação do discurso
do biopoder, sendo amplamente utilizado como aparelhamento ideológico do Estado. Sendo
memória, reconduz os sujeitos ao seu posicionamento sempre que esse demonstre qualquer
tentativa de liberação. Quando se trata da mulher, o livro-monumento repete, seja de forma
implícita ou explícita, os discursos histórica e socialmente instituídos e legitimados.
Enquanto documento, o livro didático transforma-se em inesgotável fonte de
investigação. Mesmo não problematizando a realidade, ou falhando diante das inquietações
sociais vivenciadas cotidianamente, é inegável que o livro didático é um objeto histórico e
como tal, tem sua perspectiva documental evidenciada. Le Goff (1996) destaca que por sua
perenidade, o documento se sobrepõe ao monumento, uma vez o primeiro pode ser eternizado
pelos registros, sem a fragilidade imposta pelo tempo e pela memória.
Conquanto memória acerca do discurso sobre a mulher, os textos utilizados na
pesquisa compuseram seu corpus e trouxeram novas perspectivas que somente algumas
leituras não poderiam ter elucidado. Do estudo proposto emergiram os textos que abordaram o
corpo e o discurso, indo de Foucault a Beauvoir, perpassando por Fisher, Del Priore, Louro e
outros teóricos que legitimaram e delinearam a partir da construção do problema de pesquisa
e suas indagações. Como uma pesquisa não pode ser estática, embora o objeto de estudo tenha
se estabelecido de forma prévia, o olhar sobre o livro didático foi se transformando a partir do
aprofundamento nas reflexões e análises, acompanhando o fato de que a historiografia da
mulher, embora pouco valorizada, é dinâmica.
Na materialização do estudo foram analisados os textos e imagens presentes nos
livros didáticos selecionados, na pretensão de alcançar os objetivos propostos no estudo,
voltados aos discursos sobre a mulher no livro didático, o corpo feminino e a imposição das
verdades cunhadas no discurso do machismo e da submissão. O olhar da pesquisa, se lançou
para os eixos de análise do corpo estereotipado da mulher, a veiculação de sua imagem às
44

tarefas tidas como tipicamente femininas, as atribuições da maternidade, mulher enquanto


objeto de procriação.
No segundo capítulo, aborda-se corpo, poder, gênero e a construção histórica da
figura feminina. O estudo remete à historiografia da mulher, abordando a construção de sua
identidade enquanto processo histórico, seu preparo para a submissão e seu lugar na sociedade
moderna.
45

2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA FIGURA FEMININA

No que tange à construção histórica da figura feminina sob a perspectiva


historiográfica2, considerando sua inserção nos grupos sociais bem como os papéis impostos
pela sociedade. Inicia-se com a análise da mulher nos séculos XIX e XX, tendo como foco o
reforço do patriarcado e da ideia de poder do homem sobre a mulher.
Destaca-se o conceito de identidade enquanto compreensão desta construção. Não
obstante, apresenta-se as ponderações acerca da mulher no contexto educacional. Há que se
reforçar que nesse aspecto, a mulher foi preparada para a submissão e criada na passividade.
Esse contexto tem como ponto de partida para as reflexões os registros da historiografia
feminina.
Do mesmo modo, há ênfase na invisibilidade imposta à mulher, não se deslocando
para além de seus ofícios de filha, esposa e mãe. Finalizando o primeiro capítulo apresenta-se
o lugar e o papel da mulher na sociedade contemporânea, destacando que houve muitas
mudanças, principalmente com a ida da mulher para o mercado de trabalho, mas que de certo
modo isso não foi capaz de equalizar a relação de gênero ou alçar a mulher a uma posição tão
privilegiada quanto a do homem.

2.1 A mulher nos séculos XIX e XX

O século XIX marca a expansão do capitalismo como uma nova forma de relação
comercial e o fortalecimento da burguesia, inserindo seus reflexos no cotidiano social,
sobretudo no contexto familiar, embora as famílias ainda fossem constituídas sob a égide do
sistema patriarcal. Desse modo é importante que se faça um retrospecto histórico e se construa
um percurso historiográfico acerca da mulher desse período.
Não obstante, a partir das transformações econômicas que aos poucos foram sendo
impostas à nova sociedade emergente, o lugar da mulher ainda se caracterizava pelo exercício
de um papel secundário, ainda enraizado na prática da maternidade, subserviente,
primeiramente ao pai e irmãos e depois, ao marido.
Na sociedade burguesa em ascensão, os casamentos se tornavam uniões baseadas em
negócios, com profundos interesses das partes em manter heranças, riquezas ou ampliar a

2
A historiografia trata da escrita oficial da História, daquilo que foi documentado e registrado a partir dos relatos
orais e dos registros deixados ao longo do tempo. Quando se trata da perspectiva historiográfica da mulher, faz-
se referência aos escritos sobre a trajetória feminina e a forma de registro desse contexto. Notas da autoras.
46

possibilidade de ganhos sobre o capital. De acordo com Del Priore (2011), o matrimônio
possuía uma funcionalidade específica, e à mulher a essência dessa união, ou seja, a
procriação.

Os casados desenvolviam, de maneira geral, tarefas específicas. Cada qual


tinha um papel a desempenhar diante do outro. Os maridos deviam se
mostrar dominadores, voluntariosos no exercício da vontade patriarcal,
insensíveis e egoístas. As mulheres, por sua vez, apresentavam-se como
fieis, submissas, recolhidas. Sua tarefa mais importante era a procriação.
(DEL PRIORE, 2011, p. 45)

Esse panorama constituído pelo casamento tornava-se um reflexo do que a sociedade


esperava de seus componentes, que fossem capazes de levar adiante o bom nome de seus
antepassados, além de amealhar novas oportunidades de expansão dos possíveis e notáveis
negócios.
A mulher do século XIX, sob alguns aspectos, é definida como uma nova “mulher”,
não por uma independência imaginável, mas por ser alçada ao ideal aristocrático, do corpo
construído com delicadeza, para ser bem aceita nos núcleos sociais, tratada como pequeno
objeto a ser cuidado por seu zeloso marido. Gestam, ainda nesse século, os primeiros passos a
uma maior independência feminina, principalmente com a ida das mulheres para as fábricas,
ainda que ocupando o posto delegado à mão de obra barata. Há então, a distinção entre as
mulheres pobres, subvalorizadas em seus empregos nas fábricas e as aristocráticas,
pertencentes às antigas classes abastadas, cujas vivências eram almejadas, alimentando os
casamentos por conveniência e criando a intimidade da casa burguesa.
Segundo D’Incao (2008), o modus vivendi da burguesia europeia impactou também a
organização sócio econômica no Brasil do século XIX. No período colonial uma vida urbana
era algo praticamente inexistente, sobretudo ao se considerar a extensão rural do país. Tal
aspecto influenciou diretamente a vida social da classe dominante.

A vida urbana no início do século XIX praticamente inexistia no Brasil,


então um enorme país rural. O estilo de vida da elite dominante na sociedade
brasileira era marcado por influências do imaginário da aristocracia
portuguesa, do cotidiano de fazendeiros plebeus e das diferenças e interações
sociais [...] a chamada família patriarcal brasileira, comandada pelo pai
detentor de enorme poder sobre seus dependentes, agregados e escravos,
habitava a casa grande [...]. (D’INCAO, 2008, p. 223)

Mais adiante, ainda no século XIX, mas já no Brasil Império, o processo de


urbanização dos centros político-econômicos, principalmente os que se avizinhavam da Corte,
47

fez com a família burguesa assumisse ainda mais o espaço constituído nas cidades,
urbanizando também as relações sociais, e impondo os limites considerados necessários entre
os sujeitos que compunham e descreviam o povo, a mão-de-obra proletária e a aristocracia.
Esse contexto, obviamente, delineou também o lugar da mulher, tanto a que pertencia
à burguesia, quanto a mulher do povo. A mulher da elite passou a ser aquela esperada nos
círculos sociais, o corpo, ainda submetido às imposições capazes de restringir a liberdade do
comportamento, travestido da ideia de “liberalidade das emoções”. Esse espaço ocupado pela
mulher burguesa é descrito por D’Incao (2008) ao afirmar que:

A mulher de elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros e certos


acontecimentos da vida social. Se agora era mais livre, não só o marido ou o
pai vigiavam seus passos. Sua conduta era também submetida aos olhares
atentos da sociedade. Essas mulheres tiveram que aprender a comportar-se
em público, a conviver de maneira educada. (D’INCAO, 2008, p. 228)

Por ironia, o homem, embora detivesse o poder sobre a mulher, dela passava a
depender quando se tratava da imagem mantida em sociedade. Isso significava um maior
esforço em manter as convenções sociais, ilustradas na ideia de matrimônio perfeito,
frutificado nos filhos concebidos e no respeito à privacidade do interior das casas, sobretudo
na intimidade das alcovas, dos corpos virgens dados em casamento para que a ascensão social
pudesse ser garantida.
A mulher do povo, em grande parte composto pelos imigrantes pobres, pelos
escravos ou libertos, bem como pelo colonizador empobrecido, pode ser descrita como aquela
que assumia afazeres que para a burguesa eram considerados inaceitáveis. Isso porque as
atividades femininas também se dividiam de acordo com as classes, as mais abastadas
deveriam demonstrar habilidades em prendas domésticas e as pobres teriam que garantir seu
sustento. Assim, de acordo com Falci (2008):

As mulheres de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do


lar. Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe [...]. Outras, menos
afortunadas, viúvas ou de uma elite empobrecida, faziam doces por
encomenda, arranjos de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano [...]
vendiam o produto de suas atividades através de outras pessoas por não
querer aparecer. [...] a mulher não precisava e não deveria ganhar dinheiro.
As mulheres pobres não tinham outra escolha a não ser procurar garantir seu
sustento. (FALCI, 2008, p. 249-251)

Esse contexto alimentou o que Del Priore (2011) delineou como a história das
amantes, popularizadas no século XIX como uma alternativa para que a imagem da mulher
48

pudesse se manter imaculada, além de preservar a virilidade masculina, manifesta no uso,


inicialmente do corpo das escravas e depois das jovens pertencentes aos grupos inferiorizados,
tanto pelo capital quanto pela miscigenação3. As amantes tomadas no meio pobre enfatizavam
a relação de domínio, antes determinado pelo senhor subjugando o corpo escravo e depois, o
corpo empobrecido. Entretanto, as amantes não surgiam somente em meio à pobreza, como
forma de sobrevivência, mas ilustravam uma sociedade caracterizada como fraudulenta,
sobretudo em meio às relações sociais, como aproximações descritas como perniciosas,
dominadas pela luxúria e lascívia cuja comparação as igualavam apenas ao Império Romano4.
(DEL PRIORE, 2011)
Em meados do século XIX a imagem da mulher instruída é delineada, entretanto,
esta não significa alguma emancipação. Ainda coligada ao homem, ao matrimônio e aos
afazeres do lar, não cabia à mulher qualquer participação no contexto político ou econômico,
pois se encontrava “destituída de qualquer noção de cidadania, não sendo considerada cidadã
política” (FALCI, 2008, p. 251).
A historiografia apresenta a mulher idealizada como mãe e esposa próxima à
perfeição. Para o “pecado” tomava-se o corpo da mulata, da mulher nascida na pobreza, das
ex-escravas que serviam os tabuleiros durante o dia e os cavalheiros à noite. A mulher ideal
estampava as publicações literárias e as revistas de cunho feminino, bem como os jornais e
periódicos, empenhados em ensinar as artes femininas, lustrar o ego masculino e firmar o
homem em seu posto visto como superior.

Em inúmeros textos, veiculados nos periódicos, virtudes e defeitos femininos


eram apresentados, assumindo formas de poemas, provérbios, comentários,
notícias, piadas. [...]. Em 1888, o Jornal do Comércio, por exemplo,
apontava os “Dez Mandamentos da Mulher”:
1º- Amai a vosso marido sobre todas as coisas.
2º- Não lhe jureis falso.
3º- Preparai-lhe dias de festa.
4º- Amai-o mais do que vosso pai e vossa mãe.
5º - Não o atormenteis com exigências, caprichos e amuos.
6º - Não o enganeis.
7º - Não lhe subtraias dinheiro, nem gasteis este com futilidades.
8º - Não resmungueis, nem finjais ataques nervosos.
9º - Não desejeis mais do que um próximo e que este seja o teu marido.
10º - Não exijais luxo e não vos detenhais diante das vitrines.
Estes dez mandamentos devem ser lidos pelas mulheres doze vezes por dia, e
depois ser bem guardados na caixinha da toillete. (PEDRO, 2008, p. 285)

3
Miscigenação é o nome dado ao processo de mistura de diferentes etnias. (HOLANDA, 2012)
4
O Império Romano foi constituído pela antiga civilização romana cuja característica principal foi a imposição
de um governo autocrático, liderado pelo imperador. (FEIJÓ, 2010)
49

Destaca-se o cunho pedagógico presente nos dez mandamentos acima descritos. Do


mesmo modo no homônimo bíblico, criado como forma de indução a um comportamento
socialmente esperado, há o reforço da ideia de superioridade masculina, delineada na imagem
do marido, alçado ao posto de glorificado de um Deus. Esse padrão de gênero, suavizado, mas
ainda presente na modernidade traz à tona a memória discursiva que na historiografia da
mulher significa o reviver do que já se encontra historicamente posto.
É importante destacar que a mulher é sujeito e, ao mesmo tempo, objeto da história e
por meio da Análise do Discurso é possível compreender qual seu papel na reprodução da
memória discursiva firmada nos padrões de gênero. A mulher é instruída a obedecer, “amar o
marido sobre todas as coisas”, não se perceber mediante o relacionamento matrimonial, mas
tornar subserviente a esse deus denominado marido. Utilizando a imagem dos mandamentos,
a mulher tem a possibilidade da santificação, de se aproximar do sagrado idealizado na
pecadora, porém perfeita, na submissão do corpo e do espírito.
No findar do século XIX, os jornais passaram a adotar um modelo ilustrativo do
comportamento feminino difundido em suas páginas concebidas para esse fim. Não obstante,
cabia ao homem decidir se a mulher poderia ter acesso ou não às páginas femininas. Caso isso
fosse permitido, a leitura deveria ser realizada a fim de se ter determinado aprendizado.
Destaca-se que não apenas a mulher era idealizada, mas os homens também, embora de uma
forma menos impactante. Assim, de acordo com Pedro (2008),

Os jornais pareciam veicular um projeto civilizador com pretensão de


construir novos homens e mulheres, divulgando imagens idealizadas para
ambos os sexos. É interessante acompanhar, nas diferentes épocas, as
mudanças dos papéis sexuais que a imprensa divulgava nas diversas cidades.
Tais mudanças, obviamente, vinham acompanhadas de uma campanha com
normas de conduta que, muitas vezes, refletia aquilo que a elite urbana
considerava “civilizado” e que, em grande parte, era a repetição daquilo que
os jornais dos grandes centros divulgavam. (PEDRO, 2008, p. 281)

Esse modelo idealizado não era inédito, posto que já se encontrava diluído no
comportamento esperado da mulher, casada ou das filhas à espera de um pretendente, de que
deveriam ser mães exemplares e esposas impregnadas de virtudes. Ao homem era dado o
direito das amantes e os filhos bastardos acabavam se tornando símbolos de virilidade. O
adultério era ato imperdoável por parte da mulher, o corpo, utilizado para perpetuação do
nome, e era procurado enquanto houvesse a possibilidade de gestação.
Entretanto, cabia à esposa o fardo de manter a moralidade do matrimônio e a
infidelidade masculina se justificava na manutenção da imagem idealizada e constituída
50

principalmente a partir da figura da virgem e santa, tanto difundida nos sacrários. “A


fidelidade conjugal era sempre tarefa feminina. A falta de fidelidade masculina, vista como
um mal inevitável que se havia de suportar. Era sobre a honra e a fidelidade da esposa que
repousava a perenidade do casal. Ela era a responsável pela felicidade dos cônjuges”. (DEL
PRIORE, 2011, p. 67).
O advento da República trouxe um conjunto de mudanças que influenciaram
diretamente no comportamento da sociedade, se refletindo também nas imagens idealizadas
acerca da figura feminina. Com a crescente urbanização, e as tentativas de sanear as cidades, a
população pobre foi sendo empurrada para as periferias. O centro das cidades passou a ser
ocupado pelos mais abastados, herdeiros ou industriais e isso intensificou ou mesmo
alimentou a presença de mulheres e crianças nos espaços constituídos pelas grandes fábricas,
embora isso tenha ocorrido, não pela emancipação, mas por se tratarem efetivamente de mão-
de-obra barata.

As imagens idealizadas de mulher, possíveis para as elites urbanas, foram


cobradas das mulheres das camadas populares; tornaram-se referências para
o julgamento de suas demandas e para a aplicação de punições por parte do
poder público. As mulheres foram, juntamente com as crianças, importante
mão-de-obra na indústria nascente. No entanto, as imagens idealizadas que
serviam de referência de distinção para a elite urbana foram utilizadas como
justificativa, por parte dos empresários, para o pagamento de baixos salários.
(PEDRO, 2008, p. 292)

O contexto das mulheres proletárias era constituído pelo forte apelo da imigração, do
capitalismo e a possibilidade de ascensão pelo trabalho, pelas necessidades que não podiam
ser alcançadas apenas no trabalho masculino, sendo a mão-de-obra feminina essencial para o
funcionamento de diversos setores. Destaca-se que o ideal positivista5 coloca a mulher como
capaz de gerir o lar, pois sua inteligência poderia ser complementar à do homem. Entretanto,
ainda se esperava que a mulher fosse virtuosa, filha amorosa, esposa compreensiva e
dedicada. Do mesmo modo, a mulher pobre e trabalhadora deveria primar pela virtude, para
não macular a imagem de limpa e confiável. Se não lhe era dada a sorte de nascer em família
abastada, deveria cultivar o desejo de ser esposa, mãe e assim, honrar o homem que
porventura a escolhesse.

5
A filosofia positiva surge na França no século XIX, tendo como principal representante Auguste Comte (1798-
1857), sendo uma de suas principais obras, publicada em 1830, o “Curso de Filosofia Positiva”. Notas das
autoras.
51

Os livros de cabeceira das mulheres traziam conselhos para a vida matrimonial,


receitas para bem servir seus esposos, pouco se diferenciando da literatura de meados do
século XIX. Mesmo com novos rumos, a sociedade ainda impunha determinado papel à
mulher, sendo aquela que pouco falava, mais escutava; não alimentava pensamentos ou
atitudes pecaminosas; que fosse menos ociosa e sua conversa interessante aos que a ouviam;
ajuizada e certa em seus amores, embora à mulher fosse dado o direito de apenas amar seu
esposo ou pretendente.
Mesmo com a proximidade do século XX, pouco havia se modificado em relação às
construções acerca do que se esperar do comportamento da mulher e ainda havia a separação
entre moças “casadoiras” e as consideradas “perdidas”. Uma das mudanças se configurou na
vigilância, voltando-se também para as mulheres das classes populares.

[...] o período posterior à proclamação da República foi também de intensa


vigilância sobre o comportamento das mulheres, especialmente das
pertencentes às camadas mais populares, das quais ficava difícil exigir
apenas a restrição aos papéis de esposa, mãe e dona de casa. O “fantasma”
da prostituição era utilizado com frequência, para lembrar-lhes que não
deveriam fugir à conduta que delas era esperada. (PEDRO, 2008, p. 304)

As prostitutas, às quais os textos se referiam, eram constantemente utilizadas como


exemplos de como as mulheres não deveriam agir. No entanto, esqueciam-se de ressaltar que
os maridos eram os principais fregueses dessas mulheres que tanto amedrontavam e
alimentavam a hipocrisia social que sempre permeou o discurso voltado para a restrição do
espaço feminino.
Na prostituição a mulher se despia da dignidade, da idealização virginal, deixavam
de lado a Virgem Maria e abraçavam Maria Madalena, a pecadora, para fugir da pobreza ou
por terem sido lançadas nessa situação. A perseguição e até mesmo o assassinato traziam
medo a estas mulheres, mas, por outro lado, podiam experimentar o poder sobre o próprio
destino que sobrepujava as alcovas, os lares e a infidelidade dos maridos abastados que as
procuravam.
O declínio econômico do final do século XIX, o empobrecimento das pessoas que
compunham a sociedade industrial e as crises que delinearam o espaço econômico dos anos
subsequentes, trouxe a perspectiva da mulher para a qual o denominado “mercado
matrimonial” passou a ser mais restrito, alcançando basicamente as “herdeiras” das grandes
fortunas. Mais do que nunca a imagem feminina se encontrava associada à frivolidade da vida
52

nos círculos sociais, representada em textos veiculados nos jornais em forma de anedotas e
piadas.
As mulheres dos últimos anos do século XIX eram descritas como desleais, infiéis,
dotadas de uma extrema ignorância acerca dos assuntos que não se referissem ao lar e à
criação dos filhos, além de presunçosas e ignorantes. “A fidelidade feminina parecia ser a
grande ‘virtude’ exigida das mulheres, pois elas tendiam a ser ‘traiçoeiras’ [...] quadrinhas,
provérbios, piadas, falavam do perigo que o sexo feminino poderia representar. ” (PEDRO,
2008, p. 309)
Por outro lado, como descreve Del Priore (2011),

O culto da pureza que idealizava as mulheres reforçava a distância entre os


casais. E não faltavam conselhos em toda parte. “Lembrai-vos também que
ainda quando no quarto e leito conjugal se dispense o pudor, a castidade,
contudo, é de rigoroso dever e conveniência, porque a mulher que se
abandona a todos os caprichos e fantasias se faz desprezível aos olhos de sua
própria consciência e aos de seu marido se ele não é um libertino
debochado”. (DEL PRIORE, 2011, p. 82)

Além de serem vistas como traiçoeiras, as mulheres também acumulavam a fama de


fofoqueiras, sendo necessário que se aumentasse a vigilância sobre seus comportamentos uma
vez que isso poderia comprometer a honra de seus maridos. Esta cautela era uma resposta ao
sistema que, de acordo com Engel (2008),

Impunha, de acordo com as expectativas e interesses dominantes, a


formulação e execução de novas estratégias de disciplinarização e de
repressão dos corpos e mentes sedimentados, por exemplo, sobre uma nova
ética do trabalho e sobre novos padrões de moralidade para os
comportamentos afetivos, sexuais e sociais. (ENGEL, 2008, p. 323)

No século XX, principalmente nos primeiros anos, a mentalidade social ainda se


encontrava arraigada no ideal de mulher pura, mas socialmente incapaz de suscitar a
confiança. “[...] sobre as mulheres recaía uma forte carga de pressões acerca do
comportamento pessoal e familiar desejado, que lhes garantisse apropriada inserção na nova
ordem, considerando-se que delas dependeria, em grande escala, a consecução de novos
propósitos (SOIHET, 2008, p. 362). “A mulher que de deixasse conduzir por excessos, guiar
por suas necessidades, só podia terminar na sarjeta, espreitada pela doença e a miséria
profunda.” (DEL PRIORE, 2011, p. 89).
53

Nesse novo século, a mulher não é apenas a esposa ou a proletária, sendo a ela
delegado também o oficio de chefe dos lares em que o homem não se afigurava. “Isso se
devia não apenas às dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos,
próprios da cultura popular.” (SOIHET, 2008, p. 362).
Com a urbanização ainda mais acelerada, os centros passaram a ser também os
espaços de circulação dos pobres, vindos das periferias para exercerem suas funções que tanto
podiam ser nas casas abastadas quanto nas fábricas e demais ambientes comerciais. As
habitações desses sujeitos denotavam o senso de coletividade que ia tomando o lugar da
privacidade dos lares. Os cortiços fomentavam relações que beiravam a promiscuidade, tanto
na divisão do espaço quanto na ocupação de seus corpos.
A mulher pobre do início do século XX se dividia entre o espaço de trabalho e a
coletividade cultural dos cortiços e vilas. Ali seus filhos seriam criados também de forma
coletiva, se misturando aos tantos outros, também frutos da mesma sorte. Não havia
perspectiva de ascensão social, e embora se ocupassem de atividades nas fábricas ou nas
residências, a remuneração feminina era escassa e desvalorizada, como haveria de ser por
muito tempo ainda.
A modernização econômica sugerida nos espaços ocupados pelas indústrias e
estabelecimentos comerciais fez com que houvesse a necessidade de se atribuir uma nova
identidade aos ambientes centrais das grandes cidades. Por outro lado, os projetos de
saneamento impunham uma nova realidade, a da marginalidade.

A derrubada dos cortiços das áreas do centro afigurava-se como


indispensável, inclusive, porque eram considerados focos das epidemias que,
periodicamente, infestavam a cidade. [...] as mulheres sofreram o maior
ônus, já que exerciam seus afazeres na própria moradia, agora mais cara e
com cômodos reduzidos. (SOIHET, 2008, p. 365)

Somente nas camadas populares era permitido à mulher sair desacompanhada. Sem
uma honra ou virtude a ser defendida, não se dava muita importância aos horrores sociais que
a mulher desacompanhada poderia suscitar. Assim, desprotegida, a mulher pobre se
encontrava suscetível à violência das ruas e dos becos e foram cometidos inúmeros
assassinatos contra as desavisadas que precisavam sair para trabalhar e não desfrutavam de
uma companhia que as pudesse resguardar. Por outro lado, a falta de companhia colocava em
dúvida a honestidade das mulheres pobres, o que não ocorria com as abastadas, livres para
frequentarem alguns espaços sociais, como cafeterias, teatros, casas de chá, mas proibidas de
o fazerem desacompanhadas. “Essa exigência afigurava-se impossível de ser cumprida pelas
54

mulheres pobres que precisavam trabalhar e que para isso deviam sair às ruas à procura de
possibilidades de sobrevivência. ” (SOIHET, 2008, p. 365)
Mesmo nesse contexto sombrio, a mulher das camadas populares desfrutava de uma
liberdade sexual que a burguesa nem ousava pensar. Dada a essa liberdade, a mulher pobre
tendia a defender seu espaço com mais afinco, uma vez que sem riquezas, não havia nobreza a
ser preservada.

Consideradas perigosas por serem pobres, eram sujeitas a constante


vigilância, o que não as impedia de se apropriar de diversos espaços, lutando
sem destemor pelos seus direitos. Circulavam pelas ruas, em busca da
resolução de seus problemas, preocupadas com o trabalho, com os filhos,
muitas vezes surpreendendo o marido ou companheiro que as enganava.
(SOIHET, 2008, p. 398)

Há que se ter em mente que a hipocrisia moral suscitava diversos comportamentos


femininos, além de impor uma série de estereótipos, frutos da violência simbólica à qual as
mulheres eram submetidas. Três aspectos do “ser” eram constantemente questionados e
vigiados: o ser mulher, ser mãe e ser pobre. “O descompasso entre a moralidade oficial e a
realidade agia ainda de outra forma para fazer vítimas entre as mulheres pobres: promovia,
entre as mais ingênuas, a convicção de que se não podiam ser santas, só lhes restava ser
putas.” (FONSECA, 2008, p. 532).
No período das Grandes Guerras, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a mão-de-obra feminina constituiu-se em importante
papel, uma vez que o contingente militar exigia a presença dos homens nos fronts. Coube,
então, à mulher o papel de provedora, além da função de manter as fábricas funcionando. Do
mesmo modo, à mulher coube a direção dos lares, uma vez que não se podia contar
efetivamente com a presença masculina.
Após a Segunda Guerra Mundial, a sociedade experimentou o desejo de se alcançar o
futuro rapidamente e a efervescência econômica fez com que presença feminina nos espaços
de trabalho, que outrora foram ocupados, se tornasse indesejável ou desnecessária. Assim, na
década de 1950, os anos dourados trouxeram de volta o ideal de mulher, novamente submissa
ao homem.
As revistas femininas se ocuparam em moldar a mulher desejada, nascidas para
serem donas de casa, mães e esposas imaculadas, preocupadas em moldarem o lar perfeito,
cuja harmonia constante deveria ser assumida como parte das responsabilidades femininas,
55

embora uma nova configuração social permitisse a aproximação entre homens e mulheres, em
namoros e incursões na intimidade das famílias, vistas sob a ótica do modelo a ser seguido.

Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das
mulheres. Na ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e
dedicação ao lar faziam parte da essência feminina; sem história, sem
possibilidade de contestação. A vocação prioritária para a maternidade e a
vida doméstica seriam marcas de feminilidade, enquanto a iniciativa, a
participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura
definiriam a masculinidade. (BASSANEZI, 2008, p. 609)

A mulher, então, passou a ser educada, ou ensinada, a ser uma boa esposa, afável ao
ponto de o homem se deleitar somente com sua presença. Entretanto, a intimidade partilhada
demonstrava o desejo pelo corpo, não mais somente para a concepção, uma vez que alguns
métodos contraceptivos eram utilizados.
Nos anos subsequentes, houve diversos movimentos de fortalecimento da identidade
feminina, principalmente voltados para a classe trabalhadora, além da busca pelo direito de
posse de seu próprio corpo. No entanto, esses movimentos não incluíam as mulheres negras
ou mesmo as indígenas. Havia a busca por novas perspectivas, mas essas eram delimitadas
pela cor da pele. De acordo com Davis (2016) as mulheres negras eram subjugadas às mesmas
condições do período da escravização, mas os grilhões eram outros, forjados na ideia de que
não poderiam se misturar às brancas, sendo tratadas como indignas de estarem junto às
brancas.
O movimento pela liberalização da pílula marcou uma nova simbologia ligada à
mulher, representando um domínio sobre seu próprio corpo, como meio de desligamento da
sociedade machista predominante. O espaço histórico, social e econômico passa a ser ocupado
pelas trabalhadoras, designando para si um importante meio de mudança da realidade, bem
como de ação política.

Tanto as trabalhadoras urbanas quanto as rurais introduzem em sua


participação política temas de reflexão no qual o cotidiano doméstico e do
trabalho são ponto de partida para rever a divisão sexual no trabalho e a
relação de poder na representação sindical. [...]. Para as trabalhadoras é
necessário rever a maneira como seus diversos papéis são exercidos: os
papéis de esposa, de mãe, de filha, de organizadora do orçamento doméstico,
de provedora, de profissional competente. (GIULANI, 2008, p. 649)

Os anos seguintes do século XX trazem uma imagem de mulher que ora se liga aos
movimentos sociais, ora se volta aos estereótipos relidos e reconstruídos. A
56

contemporaneidade traz a mulher fruta, as odaliscas rebolantes, o culto à bunda como parte da
personalidade feminina. A mulher, em diversos aspectos, deixa de ser “mulher” e passa a ser
uma parte do corpo humano, um atributo físico apenas.
Novaes reforça essa ideia ao afirmar que:

A civilização contemporânea se caracteriza, com efeito, pela queda dos


ideais. Nossa época é marcada pela perda, ou pela extrema fragilização,
daquilo que, antigamente, balizava a cultura: tradição, virtude moral, sendo
comum, autoridade etc. Isso se traduz por um questionamento dos diferentes
componentes do humano: os temas da identificação feminina, do sexo e do
gênero, os da família moderna, à luz do abalo da função paterna. (NOVAES,
2011, p. 482)

Assim, compreende-se que a identidade feminina é uma construção histórica,


agregada à moral vigente e refletida nos espaços plurais, compostos pelo ambiente doméstico,
de trabalho que integram o espaço social designado à mulher.
2.2 A construção da identidade feminina como um processo histórico

Antes de adentrar a temática da identidade feminina, torna-se necessário se


aprofundar no conceito de identidade, principalmente ao se considerar que enquanto processo
histórico, perpassa pelos constructos antropológicos, filosóficos, sociológicos e linguísticos.
Destaca-se que na perspectiva antropológica, identidade se relaciona ao contexto cultural ou
identidade cultural, inserindo-se na perspectiva sociológica, sendo definida como uma
construção que depende de uma vivência social.
Sob o aspecto filosófico, a identidade é entendida como algo que é igual aos demais,
mas diferente em si mesmo. Que faz com que os sujeitos se destaquem em um grupo social do
qual façam parte. A identidade, de acordo com Silva (2000) advém de uma afirmação que ao
mesmo tempo cria uma negação. Quando o sujeito diz “sou homem” ele está imediatamente
negando qualquer outra identidade que não seja a masculina. Ao afirmar “sou mulher”,
espera-se que o sujeito haja realmente como uma mulher, negando qualquer outra afirmação
que caracterize o contrário.
A identidade se apresenta enquanto aquilo que define ou que torna o sujeito
pertencente a um grupo social. Esse sentimento de pertencimento tem sofrido mudanças ao
longo do tempo e na contemporaneidade, passa por uma profunda crise. Tal crise é
denominada por Bauman (2005) como algo que perturba homens e mulheres, marcando as
relações sociais constituídas na modernidade, principalmente porque estas se modificaram,
57

tanto em forma quanto conteúdo, bem como a inserção do pensamento de pertencimento,


coligado à modernidade.
Destaca-se que o autor não apenas analisa os aspectos individuais do conceito de
identidade na modernidade, como os relaciona ao contexto da identidade nacional. “A ideia
de identidade nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido
de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões
estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia.” (BAUMAN, 2005, p. 26)
Identidade, para Bauman, é um ideal inconcluso que vai sendo construído na medida
em que os sujeitos e a sociedade evoluem, devido a tais possibilidades de transformação, a
construção da identidade dos sujeitos tem sido revestida de uma verdade que, de acordo com
o autor, passou a ser ignorada ou até mesmo escondida.
De modo geral, identidade, seja cultural ou histórica, individual ou coletiva, perpassa
pelas condições de apropriação das noções de ser e estar, da inserção em um contexto
composto nas experiências e vivências, mas que de modo geral encontra-se ligada à noção de
nacionalidade ou à forma como os sujeitos lapidam seus traços mais particulares, até mesmo
enquanto meio de afirmação mediante a construção de contextos diversos. Esse conceito de
identidade é descrito por Bauman (2005) enquanto desenho do desejo de segurança, de saber
da possibilidade de descrição quando necessário, ou seja, o ser cuja identidade encontra-se
bem definida, pode ser descrito tanto de modo geral quanto particularizado. O que alimentou
a crise de identidade e ainda a sustenta é justamente esse pertencer, de forma mais singular,
considerando todas as características que torna o sujeito o que ele é e sustenta sua necessidade
de autoafirmação.

O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um


sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo,
cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não
vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar
teimosamente, perturbadoramente ‘nem-um-nem-outro’, torna-se a longo
prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. (BAUMAN, 2005,
p. 35)

Enquanto trata do conceito de identidade como um espaço ainda em definição,


dependente do contexto social no qual os sujeitos se inserem ou, pelo menos, tentam se
inserir, Bauman (2005) recorre, ao mesmo tempo, ao aspecto não individualizado ou não
generalizado da identidade, e citando Frisch, define “identidade como a rejeição daquilo que
os outros desejam que você seja.” (p. 45).
58

Analisando essa perspectiva, é possível compreender como é difícil para


determinados grupos definir suas identidades, principalmente quando se percebe que há uma
imposição de uma determinada identidade, seja cultural ou histórica, coletiva e direcionada,
disfarçada de traços individuais e de reconhecimento, quando na verdade representa um olhar
determinado pela coletividade manipuladora e influenciadora. Assim, segundo Bauman
(2005) existe uma guerra por reconhecimento que toma duas frentes, das identidades seculares
e as identidades impostas, cunhadas nos estereótipos, estigmas ou rótulos. Nessas identidades
reside um perigo, pois tanto as antigas quanto as expostas representam as vozes e discursos de
poder, e se fazem valer principalmente sobre o corpo dos sujeitos, não deixando também de
agir sobre a história e culturas coletivas.

As guerras pelo reconhecimento, quer travadas individual ou coletivamente,


em geral se desenrolam em duas frentes [...]. Numa das frentes, a identidade
escolhida e preferida é contraposta, principalmente, às obstinadas sobras das
antigas, abandonadas e abominadas, escolhidas ou impostas no passado. Na
outra frente, as pressões de outra identidade, maquinadas e impostas
(estereótipos, estigmas e rótulos), promovidas por forças inimigas são
enfrentadas e – caso se vença a batalha – repelidas. (BAUMAN, 2005, p. 45)

Embora a temática de Bauman não seja necessariamente a mulher, a forma como


consagra as forças que se interpõem nas crises de identidade ou identidades, remetem-se às
representações da imagem feminina ao longo da história, repletas dos conceitos seculares,
bem como dos estereótipos de fragilidade, os estigmas da negritude e pobreza, bem como os
rótulos das mulheres de copa e cozinha, do samba de bamba, do corpo consumido, no pecado,
no casamento, na literatura e nos livros didáticos. Há um lugar no conceito de identidade de
Bauman (2005) que incomoda, que suscita indagações e perturbações. Nesse lócus,
denominado de um espaço abaixo do fundo de um outro, criado pelas hierarquias de poder e
onde se encontram aos quais foi negado o que o autor denomina “o direito de reivindicar uma
identidade distinta da classificação atribuída e imposta” (p. 45)
Esses excluídos passam a compor uma subclasse, na qual os marginalizados
transitam. Tal espaço é ocupado pelos que são considerados inadequados, inadmissíveis e de
tal forma, sua identidade lhes é negada. Nesse espaço obscurecido as pessoas indesejadas, os
pobres, a mãe solteira, os idosos e crianças em estado de abandono e, principalmente, os que
não são mais necessários ao funcionamento da sociedade.
Olhando para a historiografia feminina, perpassando pelo modo como a mulher
esteve social e culturalmente representada ao longo de séculos de dominação e inferiorização,
59

os significados atribuídos à identidade, ou mesmo à negação do direito a uma, denotam antes


uma desconstrução de sua identidade antes de sua construção.
Traçar essa linha exigiria uma volta no tempo até o período em que a sociedade
começou a se organizar em grupos e o binômio com a Igreja começou a ser formado. Os
grupos sociais das eras primitivas possuíam na figura feminina a imagem da Deusa Mãe,
aquela que devia ser cultuada para manter as terras férteis, assim como o ventre de suas
mulheres. O matriarcado seria a forma de manter a força do sangue e as mulheres dessa época
são representadas como as sábias, conselheiras, rainhas, donas, não apenas de seu destino,
mas de todos que se encontrassem sob sua proteção.
A identidade dessas mulheres estava constituída a partir de sua ligação com a
natureza, ou seja, os filhos que delas nasciam seriam os frutos da fertilidade, dados pela terra,
assim como os alimentos que dela eram retirados. Na Antiguidade Clássica a mulher passou a
ser identificada pela capacidade de gerar filhos homens, ou servir aos deuses em seus templos,
mantendo a identidade sacralizada, que mais tarde seria a nuance principal de outra identidade
coligada à mulher, tanto no contexto da família, quanto nos demais nichos sociais. (AQUINO;
FRANCO; LOPES, 1990)
Segundo Del Priore (2013), a família foi o primeiro lugar no qual a mulher coexistiu
com o homem desde seu nascimento. E no casamento essa história foi perpetuada, a primeira
prisão foi a família, a segunda, o matrimônio. E assim, inexoravelmente sua identidade foi
sendo forjada, galvanizada, em meio ao desprezo por uma ilusão de fragilidade, à imagem da
pecadora, filha de Eva e ao mesmo tempo, da Mãe, Virgem, intocável e imaculada.

No seio da família, um nó: o casamento. No passado, ele foi o grande divisor


entre a casa e a rua, os que casavam perante a Igreja e os que viviam
amasiados. Ou entre esposas e as “outras”. [...] Apenas dentro desse tipo de
família – a sacramentada pelo matrimônio – seria possível educar os filhos
segundo os preceitos cristãos, movimentando uma correia de transmissão
pela qual passariam, de geração em geração, as normas e os valores da Igreja
católica. A Igreja católica procurava assim universalizar suas normas para o
casamento e a família. A mulher, nesse projeto, era fundamental. Cabia-lhe
ensinar aos filhos a educação do espírito: rezar, pronunciar o santo nome de
Deus, confessar-se com regularidade, participar de missas e festas religiosas.
(DEL PRIORE, 2013, p. 7)

A identidade da mulher é secular, cunhada nas tradições que a Igreja impôs, na


obscuridade da Idade Média. Na realidade, não se pode afirmar que houve nesse
obscurantismo uma identidade que realmente representasse a verdadeira essência feminina.
Considerando uma parte de sua historiografia, a identidade da mulher foi manipulada ao
60

longo do tempo. Sempre se apresentando sob os dois aspectos correntes, da identidade secular
imposta socialmente, com um papel a cumprir, e a marginalidade, pertencente a uma
subclasse estereotipada, estigmatizada, rotulada. Por outro lado, há na história da mulher a
invisibilidade cultural e social que mais tarde precisa ser modificada, revisitada. A identidade
precisa se tornar visível, pois a história impunha essa exigência e nesse contexto, as lutas
femininas por espaço se tornaram pungentes.

É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos


discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como
o "verdadeiro" universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida,
por algumas mulheres. Sem dúvida, desde há muito tempo, as mulheres das
classes trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas
fábricas, nas oficinas e nas lavouras. (LOURO, 1997, p. 17)

O papel da mulher esteve intrinsecamente ligado à sua própria condição, ou seja,


sendo considerada inferior ao homem, sua função principal seria a de manter a harmonia do
lar, e enquanto filha, obedecer à autoridade paterna. Interessante observar que mais se fala em
papel da mulher, como se sua existência precise ser ligada a uma função, do que identidade.
Isso vem de encontro à ideia de identidade enquanto pertencimento, parte de um grupo social.
O papel imposto pela sociedade termina sendo também uma identidade forçada, constituída
no exíguo espaço que a mulher ocupava na sociedade. Para Del Priore (2013) a identidade da
mulher se constituiu na santidade, sendo aquela que deveria edificar o lar e ser modelo, se
distanciando da imagem do pecado.

Pobre ou rica, a mulher possuía, porém, um papel: fazer o trabalho de base


para todo o edifício familiar – educar os filhos segundo os preceitos cristãos,
ensinar-lhes as primeiras letras e atividades, cuidar do sustento e da saúde
física e espiritual deles, obedecer e ajudar o marido. Ser, enfim, a “santa
mãezinha”. Se não o fizesse, seria confundida com um “diabo doméstico”.
Afinal, sermões difundiam a ideia de que a mulher podia ser perigosa,
mentirosa e falsa como uma serpente. Pois ela não havia conversado com
uma no paraíso? O modelo ideal era Nossa Senhora. Modelo de pudor,
severidade e castidade. (DEL PRIORE, 2013, p. 7)

Louro (1997) destaca que a mulher foi, aos poucos, assumindo novas funções.
Novamente uma identidade que lembra uma papel, algo passageiro, que pode ser
desempenhado tanto em um curto, quanto em um longo espaço temporal. É intrigante e ao
mesmo incomoda pensar que a mulher não teve uma identidade, mas somente um papel ao
longo da história. O conceito de papel pode inserir seu significado em algo transitório, que
61

pode ter valor ou não e que também corre o risco de se esvaziar de seus significados maiores.
A identidade da mulher é historicamente constituída sobre as mais diversas atividades, nos
mais diversificados papéis que foram sendo assumidos ou impostos ao longo de sua
existência.

Suas atividades, no entanto, eram quase sempre (como são ainda hoje, em
boa parte) rigidamente controladas e dirigidas por homens e geralmente
representadas como secundárias, “de apoio”, de assessoria ou auxílio, muitas
vezes ligadas à assistência, ao cuidado ou à educação. (LOURO, 1997, p. 17)

A mulher na historiografia é uma voz silenciada. Um corpo calado pelo homem.


Uma identidade pautada pela marginalização, pela objetificação. De acordo com Del Priore
(2011), ao longo do tempo, no final do século XIX, depois mais à frente, em meados do
século XX até o limiar do século XXI e sua primeira década, as lutas femininas por espaço e
visibilidade se fortaleceram, conquistaram direitos. Entretanto, tal visibilidade caminhou e
ainda marcha ao lado do estereótipo, das negras do samba, das mulatas fogosas, mulheres
frutas6 e até mesmo da loira ‘burra’ perenizada em uma música que ao mesmo tempo ofendia,
mas que poderia trazer à reflexão o debate sobre esses papéis coligados à imagem feminina.
Em sua obra, Davis (2016) ressalta que a condição da mulher negra na história foi e
ainda é ainda mais pautada no preconceito e nos estereótipos, do que a da branca. Isso porque
o gênero as uniu em suas lutas, mas a raça e a classe acabaram por separá-las. Em meio às
lutas, ainda houve mulheres brancas que não reconheciam nas negras sua identidade, criando
uma segunda marginalidade dentro da primeira. Uma nova estratificação, não pelo gênero,
mas pela cor e pela classe social que, entretanto, aos poucos foi cedendo lugar à necessidade
de se constituir uma identidade histórica para a mulher, primeiro por sua própria vida, depois
pelo direito a escolher seus mandatários, e depois, por seu espaço no mercado de trabalho e
tudo isso em meio à misoginia7 imperante.
De fato, a construção da identidade feminina foi e ainda é um processo histórico. A
própria historiografia da mulher ainda está sendo construída, uma vez que, enquanto processo,
a significação da identidade não se finda. Del Priore (2013) reforça principalmente os

6
As mulheres frutas foram assim chamadas as dançarinas de funk que em 2000 tiveram destaque na mídia por
suas medidas de quadris avantajados, sendo chamadas por nomes de frutas. Destaca-se a mulher Melancia e
mulher Melão que se apresentavam nos programas de auditório e foram capas de revistas masculinas. Hoje, o
termo mulher-fruta se relaciona também à relação mulher-comida, mulher de copa e cozinha, numa visão
machista dos lugares e papeis que as mulheres ocuparam ao longo da história. Nota das autoras.
7
Misoginia é a repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres. Esta forma de aversão mórbida e patológica ao
sexo feminino está diretamente relacionada com a violência que é praticada contra a mulher. Disponível em
https://www.significados.com.br/misoginia/
62

problemas que essa subclasse marginal trouxe à essa questão da identidade feminina. Mesmo
com as lutas e engajamentos de muitas mulheres nos movimentos políticos e sociais, existem
muitas que resistem ao movimento que a história trouxe, preferindo continuar na passividade,
exercendo seus papéis conforme a necessidade. A autora ressalta uma pesquisa realizada por
uma determinada revista, em que as participantes quando indagadas responderam preferir as
atividades do lar, mas viver uma vida tranquila ao lado de seus maridos, do que ter que
assumir as responsabilidades que uma vida com autonomia poderia impor. “Elas diziam
preferir ser objetos dos homens a sujeitos da história. Não estavam interessadas em política
nem em igualdade de salários. Davam maior importância à maternidade e à família. Contra o
aborto, eram favoráveis à contracepção.” (DEL PRIORE, 2013, p. 32)
Essa pesquisa datava de 1978 e reforçava o mito da Amélia8. Na década de 1980, já
no limiar de 1990, outra pesquisa foi realizada e de acordo com Del Priore (2013) a mulher já
não mais aceitou o papel que suas antecessoras havia deixado como legado. Essas já são
chamadas de “novas mulheres” que assumiram para si a identidade emancipada, com o poder
de escolha das funções a serem executadas, que trabalhavam fora, mas que somente em casos
excepcionais, e muitas vezes não por escolha própria, assumiam o papel de provedoras de
seus lares.
Em meio à emergência do culto ao corpo, dos físicos supercuidados, a identidade
feminina foi sendo lapidada, entretanto, ainda ligada à dependência masculina. Mas na década
de 1990 isso também foi sendo modificado. No entanto, a ascensão das mulheres frutas
colocou em questão mais uma vez as conquistas femininas e sua identidade, nas frutas, o
realce do corpo comestível, nas lutas, a necessidade de construir algo que pudesse ser deixado
como legado para as futuras gerações, das mulheres inseridas nos movimentos sociais, na
política, indo além de corpos dançantes se ofertando em banquetes.
Acerca do culto ao corpo e como isso pode ser interpretado (erroneamente, há que se
destacar) como uma certa dependência da mulher em relação ao homem, Wolf (1992) reforça
que o mito da beleza traz em si os últimos resquícios da ideologia utilizada para dominar a
mulher e tentar minimizar suas conquistas, migrando as atenções para um modelo de corpo
idealizado como forma de contenção social. Para a autora, o corpo da mulher passa a ser
representação de um ideal de beleza que somente existe enquanto aparelhagem da repressão

8
Ai, que saudades da Amélia é uma das canções mais famosas de Ataulpho Alves, composta em parceria com
Mário Lago. A partir dessa canção popularizou-se o mito da Amélia: idealização da mulher que aceita tudo por
amor, que é conformada com o destino. Alguns afirmam que a intenção dos autores era fazer de Amélia um
símbolo da mulher compreensiva, amiga, solidária. É certo, entretanto, que permanece até hoje o símbolo da
mulher dominada, humilhada, explorada e submetida, gerado também pela letra da música. (CARVALHO, 2005,
p. 5)
63

às lutas feministas. A feminista é masculinizada, despida de vaidades, os movimentos pela


emancipação feminina são considerados como reuniões de solteironas feias, que não tiveram a
oportunidade de serem “escolhidas” para viver o matrimonio.
Essa ditadura da beleza exposta por Wolf (1992) ainda se reflete na sociedade
contemporânea. No entanto, hoje o mito da beleza é precedido pelas redes sociais, pelos ditos
“seguidores”, aqueles que julgam se determinado corpo se enquadra ou não em um padrão.
Basta que se observe determinadas celebridades que postam suas vidas e aventuras nas redes
sociais, mostram corpos que, ao não se encaixarem no ideal de beleza, são duramente
massacrados. O corpo da mulher que não se encaixa nos padrões e aí se inclui o corpo magro,
jovem e atlético, bem como a pele imaculada pelo tempo, é um corpo de protesto, de
manifesto. Ainda que esses corpos inadaptados aos padrões sejam mais vistos no século XXI,
desde a década de 1980, a mulher já demarcava novos valores em detrimento dos tradicionais,
como reforça Del Priore,

Nem Amélia nem ativista, a brasileira dos anos 1980 era conservadora e
tímida, mas sabia que sua filha precisava conquistar independência. Passou a
comprar roupas feitas e esqueceu a máquina de costura. O ferro elétrico foi
pelo mesmo caminho, pois, de tudo o que fazia em casa, passar roupa era o
mais detestado. Em sua opinião, mulher devia trabalhar fora; podia romper
um casamento e iniciar outro. [...] Dividida entre valores novos e
tradicionais, rejeitava a ideia da submissão da mulher. Ao mesmo tempo, na
prática, deixava ao homem a maior responsabilidade pelo sustento da casa.
Espremida entre uma educação antiquada e os ventos de um feminismo que
ainda não entendera, a mulher casada brasileira rompeu um ciclo – fora
educada pela mãe de modo muito semelhante ao que já ensinara a avó, No
entanto dava à filha conselhos que construiriam gerações de mulheres
diferentes. [...]. As velhas expressões “prendas do lar” e “doméstica”
começavam a cair em desuso. Elas educavam as filhas para serem mulheres
preferencialmente casadas, mas independentes. (DEL PRIORE, 2013, p. 38)

Voltando para a família, a instituição que primeiro identificou o papel da mulher,


esta passou por transformações que na contemporaneidade se tornaram ainda mais profundas.
Esse fenômeno acabou por redefinir a identidade feminina.

2.3 Mulher e educação: preparada para a submissão, criada na passividade

Na historiografia da mulher há um lugar destinado à sua ocupação, determinado


exclusivamente pelos homens enquanto representantes legitimados da sociedade. Nesse
percurso histórico, a mulher esteve atada ao homem, primeiro pela obediência paterna e
64

depois, pelos laços do matrimônio, sendo gestada e criada para a submissão. A perspectiva
histórica aponta para uma “invisibilidade” preenchida por um modelo de educação da mulher
para prepará-las mediante uma finalidade bem específica.
De acordo com Louro (1997) tal invisibilidade se fortaleceu a partir da perspectiva
do privado e doméstico, que colocou a mulher em espaços distintos, que a inseriu no
cotidiano dos filhos e marido, assim, houve uma espécie de ruptura quando a mulher passou a
conhecer e atuar em outros espaços, diversos dos que haviam sido historicamente
determinados, ocupando os contextos representados pelo trabalho e novas vivências sociais.

É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos


discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como
o "verdadeiro" universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida,
por algumas mulheres. Sem dúvida, desde há muito tempo, as mulheres das
classes trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas
fábricas, nas oficinas e nas lavouras. (LOURO, 1997, p. 15)

A mulher do século XIX reflete a imagem da família constituída fim de se manter as


relações sociais, educada para servir aos homens. Enquanto filha, submissa ao pai, senhor
absoluto de seu destino. Enquanto esposa, subjugada pelas responsabilidades, passiva
mediante as mais diversas situações, considerada incapaz sequer de opinar sobre o que seria
certo ou errado até mesmo na esfera doméstica. Nesse contexto, claramente a mulher foi
representada como um objeto animado, tratada da forma mais severa possível, uma
expectadora passiva da vida que se passava fora das casas, das alcovas e dos quintais. D’Incao
(2008) reforça que a mulher do século XIX foi educada para se submeter ao autoritarismo e à
severidade masculina que beirava a violência e se mimetizava no cuidado com a imagem que
a família burguesa deveria ostentar nas esferas sociais. Já no final do século XIX a imagem da
mulher passou a ser associada ao homem, ainda pela submissão, mas como auxiliar do
homem, quase que uma pessoa de sua mais alta confiança. (TELLES, 2008)
É claro que nem todas as mulheres aceitaram a submissão imposta no contexto
familiar e muitos relatos de esposas que abandonaram seus lares em busca de autonomia,
sendo obviamente rejeitadas, desfeitos seus laços familiares. No entanto, ao que parece, a
procura por uma vida que denotasse mais liberdade passou a compensar o abandono e o
isolamento social. E ainda que tais “rebeldes” tenham seu número aumentado até o início do
século XX e pelos anos seguintes, há um verdadeiro limite imposto pelos homens, contrários
à educação da mulher para além da subserviência em mundo no qual “[...] não interessava
contrariar um modelo de sociedade que lhes havia dado o domínio. ” (TELLES, 2008, p. 406)
65

Nessa perspectiva histórica da educação da mulher, existem os movimentos de


resistência oriundos, principalmente, da rebeldia daquelas que recusaram o papel de
submissão para o qual foram devidamente instruídas. Nísia Floresta é citada como uma
mulher forte que não apenas fugiu do casamento, mas ousou publicar um manifesto9
celebrando o direito das mulheres frente a uma sociedade tipicamente masculina que
considerava a mulher não apenas subalterna, mas destituída da capacidade de ascender pela
capacidade mental e não apenas por conta da influência de um marido. No século XIX a
participação feminina nos âmbitos sociais e políticos era apenas considerada como um
capricho que poderia ser impedido pelas mãos imperiosas de um bom marido. Nesse contexto,
a educação formal seria apenas para que a esposa pudesse ler as escrituras ou os compêndios
de etiqueta e bom comportamento.

Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de


ocuparem cargos públicos, de assegurarem dignamente sua própria
sobrevivência e até mesmo impedidas do acesso à educação superior, as
mulheres do século XIX ficavam trancadas, fechadas dentro de casas ou
sobrados, mocambos e senzalas, construídos por pais, maridos, senhores [...]
a mulher no século XIX aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual
não era a autora. (TELLES, 2008, p. 408)

O binômio autoridade\autoria representa o aspecto sócio cultural da mulher que


perdura até o século XX. Destaca-se que a autoridade, ainda que de forma simbólica, emana
da figura masculina, imposta pelo homem (pai, marido, senhor). Por outro lado, a autoria, diz
respeito à negação à mulher de escrever sua própria história, tendo que representar um papel
para contentar a sociedade. Nasce mulher, tem capacidade de pensar e agir por conta própria,
mas precisa assumir outro papel, o da filha obediente, noiva dileta, esposa fiel, mãe exemplar.
Há uma negação de autoria, uma vez que persistiu durante muito tempo o silenciamento da
mulher, imposição travestida de rigor social e suas infinitas obrigações e afazeres.
No final do século XIX, com a expansão do capitalismo e consequente modelos de
sociedade transformados, a mulher deixou o lar e foi para a rua, campo de trabalho. Nesse
ínterim, a necessidade de uma educação voltada à mulher, não apenas como forma de
instrução, mas de preparo à uma vida exercida em dupla função, a de trabalhadora e dona de
casa. A educação da mulher volta-se para o preparo desta para uma sociedade em processo de
mutação “[...] vinculando-a à modernização da sociedade, à higienização da família, à
construção da cidadania dos jovens.” (LOURO, 2008, p. 447)
9
Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Nísia Floresta Brasileira Augusta apud Telles (2008).
66

Segundo Louro (2008), no século XVIII e XIX o trabalho era visto como algo
degradante, particularidade das camadas empobrecidas que não havia herdado nada que
pudesse garantir seu sustento. No final do século XIX e depois, no século XX, o trabalho
passou a ser necessidade, uma vez que a perda de títulos e posses dos ricos fez com as
mulheres precisassem também se empregar, algumas assumindo a função de preceptoras e
outras, indo para as fábricas ou plantações. A mesma autora expõe que:

A preocupação em afastar do conceito de trabalho toda a carga de


degradação que lhe era associada por causa da escravidão e em vinculá-lo à
ordem e progresso levou os condutores da sociedade a arregimentar as
mulheres das camadas populares. Elas deveriam ser diligentes, honestas,
ordeiras, asseadas; a elas caberia controlar seus homens e formar os novos
trabalhadores e trabalhadoras para o país. (LOURO, 2008, p. 447)

Embora tenha sido inserida no mercado de trabalho, a mão-de-obra feminina não


passou de mercadoria barata, principalmente ao se comparar com os ganhos do homem na
execução das mesmas atividades, sem contar que a mulher não deixou de ser esposa, filha,
mãe ou dona-de-casa, agregando a estas funções a de trabalhadora. Isso ainda é percebido nos
dias atuais, em que as oportunidades não são iguais por mais que o preparo o seja. Aliado a
isso ainda se encontra, e isso nas mais diferentes esferas.

Disciplinada pelos homens, a educação das mulheres continuou um


prolongamento da educação familiar e, enquanto estudavam, as jovens
aguardavam o casamento - o que realmente importava em suas vidas.
Deixaram de ser as procriadoras incultas para tornarem-se as futuras esposas
educadas, conhecedoras das necessidades do marido e dos filhos, alicerces
da moral e dos costumes, fiéis guardiãs do lar cristão e patriótico.
(ALMEIDA, 1998, p. 35, grifo do autor)

No tocante à educação, ainda se registra duas perspectivas, a que instruía a mulher


para suas funções no lar, que por sua vez deveria ser preservado de qualquer desordem. Eram
comuns as escolas para moças, locais nos quais as meninas eram iniciadas nas obrigações de
esposas, moças pelas quais os homens ansiavam, e que para serem merecedoras de atenção
deveriam se portar como pequenos pássaros assustadiços, desprovidas de cérebro.
De fato, os sujeitos da sociedade dos dois últimos séculos não foram as mulheres e
isso se refletiu em sua educação de uma forma bem singular, passando pela orientação
religiosa como forma de “libertação” do pecado, se entrelaçando à instrução rudimentar até
chegar aos modelos educativos concebidos na inserção no trabalho, sem se desvincular dos
67

rituais impostos pela educação cristã. A mulher exerceu a condição inserida no que Louro
(1997, p. 57) descreve como “instâncias ou situações de subordinação”.
Nessas condições de subordinação a mulher foi instruída para ser obediente e
abnegada, como forma de reconhecimento do poder masculino.

Certamente é possível que um sujeito viva, simultaneamente, várias


condições de subordinação. Seria um tanto simplista, no entanto, “somar”
essas subordinações, pois elas se combinam de formas especiais e
particulares. Evidentemente, há histórias mais longas e dolorosas de
opressão do que outras. Portanto, serão sempre as condições históricas
específicas que nos permitirão compreender melhor, em cada sociedade
específica, as relações de poder que estão implicadas nos processos de
submetimento dos sujeitos. (LOURO, 1997, p.57)

Inicialmente a mulher era a primeira educadora de filhos e filhas. A estes eram


ensinadas as regras de obediência ao pai. Às filhas a alfabetização era um processo
rudimentar, com a função de auxiliar também na catequização, na leitura dos textos religiosos.
Conforme mencionado, à menina eram ensinados os bordados e cozidos, o cuidado com a
casa, marido e filhos, a se portar na presença masculina, seja no lar ou em sociedade. A moça
rica era treinada para as diligências domésticas, a pobre, para servir às senhoras e senhores e
havia nesse processo educativo um ideal permeado do discurso da sagrada família e os
preceitos cristãos de aceitação, recato e pudor.
Uma nova educação emerge no século XX com o avanço dos ideais anarquistas e
socialistas. Baseado no marxismo e uma educação para formar o cidadão de modo que
pudesse lutar contra a sociedade de classes, inseriu-se os modelos educativos voltados para as
crianças, bem como a ampliação do número de escolas não elitistas. Do mesmo modo,
ampliou-se o número de publicações com artigos voltados para a mulher sem ressaltar suas
obrigações domésticas, mas reforçando sua importância na construção dessa nova sociedade.

Nos jornais libertários eram frequentes os artigos que apontavam a instrução


como uma ‘arma privilegiada de libertação’ para a mulher. Além da
imprensa e dos encontros que, à noite, reuniam mulheres e homens em
prolongadas palestras e discussões – entre outros temas, tratavam da
educação e da participação feminina no movimento operário e na sociedade -
, as escolas libertárias também se preocupavam com a instrução das meninas.
(LOURO, 2008, p. 446)

Considerando as filhas de famílias abastadas o ensino compreendia outros aspectos,


não os libertários, mas os preparatórios para a vida social. Delas, a submissão era cobrada
com um valor ainda mais alto, pois mesmo em pleno século XX, exigia-se que a imagem do
68

lar paterno fosse imaculada. Se a moça não se mostrasse prendada, a culpa era toda de sua
mãe que não soube educá-la. Caso contrário, se senhorita fosse por demais sabedora dos
segredos do lar, bem-aventurado seria seu pai, por oferecer à sociedade uma prenda de tão
alto valor.

Para as filhas de grupos sociais privilegiados, o ensino da leitura, da escrita e


das noções básicas de matemática era geralmente complementado pelo
aprendizado do piano e do francês que, na maior parte dos casos era
ministrado em suas próprias casas por professoras particulares ou em escolas
religiosas. As habilidades com agulha, os bordados, as rendas, as habilidades
culinárias, bem como as habilidades de mando das criadas e serviçais
também faziam parte da educação das moças. (LOURO, 2008, p. 446)

Na segunda década do século XX o avanço da ciência trouxe ao conjunto de


ensinamentos destinados à mulher e agregados às instruções preexistentes. No entanto, a
crítica às formas de ensino demonstra que mesmo sendo destinados às mulheres, os modelos
ainda reproduziam o discurso de poder do homem, teológica e biologicamente abordado.

A partir da constatação de que a educação formal - na sua concepção, em


suas políticas e suas práticas - havia sido e continua a ser definida e
governada pelos homens, estudiosas feministas procuraram produzir um
paradigma educacional que se contrapusesse aos paradigmas vigentes. De
uma forma muito ampla, talvez se possa dizer que a lógica subjacente a esta
proposta se assenta em alguns dualismos "clássicos":
competição/cooperação; objetividade/subjetividade; ensino/aprendizagem;
hierarquia/igualdade - dualismos em que o primeiro termo representa o
modelo androcêntrico de educação e o segundo termo aponta para a
concepção feminista. (LOURO, 1997, p. 113)

Pelas próximas décadas, a educação da mulher foi sendo desvinculada da preparação


para os afazeres domésticos e se articulando a contextos políticos e sociais aos quais não
possuía acesso anteriormente. Basta lembrar que foi pela libertação feminina que alimentou-
se a busca por direitos básicos que lhes eram negados, a começar pela escolha de como suas
famílias seriam constituídas, os trabalhos remunerados pelo seu real valor e principalmente, o
direito ao voto.
Para Almeida (1998), o século XIX terminava com novas perspectivas para a
educação da mulher, principalmente ao se considerar a criação das escolas normais com o
objetivo de ofertar formação para as preletoras, tornando o ato de ensinar uma tarefa
tipicamente feminina, embora essa tarefa tenha sido implantada por homens (jesuítas no
Período Colonial).
69

A possibilidade de aliar ao trabalho doméstico e à maternidade uma


profissão revestida de dignidade e prestígio social fez que "ser professora" se
tornasse extremamente popular entre as jovens e, se, a princípio, temia-se a
mulher instruída, agora tal instrução passava a ser desejável, desde que
normatizada e dirigida para não oferecer riscos sociais. Ensinar crianças foi,
por parte das aspirações sociais, uma maneira de abrir às mulheres um
espaço público (domesticado) que prolongasse as tarefas desempenhadas no
lar - pelo menos esse era o discurso oficial do período. (ALMEIDA, 1998, p.
28)

Ainda que o magistério tenha se travestido de uma função tipicamente feminina, os


currículos foram pensados e planejados por homens, a visão paternalista difundida a ponto de
ser necessário um modelo pedagógico que vislumbrasse o discurso feminino e feminista.
Mesmo podendo estudar e se formarem professoras, o discurso dominante ainda as colocava
no papel de submissão ao homem que, por sua vez, encontrava no processo de urbanização e
industrialização do país melhores ofertas de emprego, reforçando ainda mais o magistério
como atividade feminina. Entretanto, Louro (2008) ressalta que mesmo a inserção da mulher
no meio docente não se deu de uma forma tranquila, uma vez que o preconceito arraigado na
sociedade colocava em questão sua capacidade para ministrar disciplinas antes dominadas
pelos homens.

O processo não se dava, contudo, sem resistências ou críticas. A


identificação com a atividade docente, que hoje parece a muitos tão natural,
era alvo de discussões, disputas e polemicas. Para alguns parecia uma
completa insensatez entregar às mulheres usualmente despreparadas,
portadoras de cérebros ‘poucos desenvolvidos’ pelo seu ‘desuso’ a educação
das crianças. (LOURO, 2008, p. 450)

O apoio à mulher em sala de aula somente se justificou no discurso de que esta


nasceu para o exercício da maternidade e que a instrução de outras crianças seria a extensão
desse papel. Tal argumento tornou-se essencial nas argumentações a favor das escolas em que
as mulheres fossem as professoras. Assim, passaram a ser preparadas para exercer a
maternidade também nas escolas, tendo para si os filhos de outrem. Algo que precisa ser
ressaltado é o fato de que o grande número de mulheres nas salas de aula passou a representar
perigo para a sociedade machista, embora as professoras devessem agregar algumas
características que as tornavam “trabalhadoras dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras, o
que serviria para futuramente dificultar a discussão de questões ligadas a salário, carreira,
condições de trabalho.” (LOURO, 2008, p. 450)
70

Ser professora era uma função transitória para a maioria das mulheres, pois o
casamento era o objetivo. As que envelheciam na profissão o faziam, em muitos casos, não
por escolha própria, mas como resultado de rejeições à possibilidade de serem escolhidas para
o casamento. Durante muito tempo a imagem da professora esteve associada à figura
solteirona, envelhecida sem conhecer o amor, o casamento e sem ter sido mãe.

Na concepção que vigorou no mundo civilizado ao longo dos séculos, a


culminância da existência feminina sempre se resumiu em amar, ser amada e
cultivar-se para a vida em sociedade. Os anos iniciais do século XX
continuaram mantendo essa tradição, apesar das indiscutíveis conquistas da
ciência, do progresso da vida social e da ampliação do conhecimento
humano. Dentre as atribuições femininas não estava prevista a concorrência
com os homens em termos profissionais e intelectuais, o que possibilitaria a
ultrapassagem dos limites da segurança social. (ALMEIDA, 1998, p. 32)

Com o passar dos anos, a presença da mulher nas salas de aulas representou nova
forma de mão-de-obra barata, isso porque, conforme mencionado, a docência era vista como
uma ocupação que não duraria muito ou. por outro lado, como uma extensão do trabalho
doméstico. Quando muito, uma função exercida pelas mulheres que não se encaixavam no
que se desejava para uma esposa. “O casamento e a maternidade eram efetivamente
constituídos como a verdadeira carreira feminina. Tudo que levasse as mulheres a se
afastarem desse caminho seria percebido como desvio da norma.” (LOURO, 2008, p. 454)
Nesse sentido, de acordo com Almeida (1998):

Com o movimento feminista e na esteira das reivindicações pelo voto, o que


lhes possibilitaria maior atuação política e social, a domesticidade foi
invadida e as mulheres passaram a atuar no espaço público e a exigir
igualdade de direitos, de educação e profissionalização. Após o término do
regime ditatorial que se implantou no Brasil com o golpe de Estado em
1937, a retomada dos ideais democráticos coincidiu com o final da Segunda
Guerra Mundial e contribuiu para mudanças nas representações culturais
acerca da educação feminina e do papel das mulheres na nova sociedade que
emergia. (ALMEIDA, 1998, p. 63)

Esse movimento feminino, conforme descreve Louro, representa a necessidade de


um novo modelo pedagógico com traços feministas. A esse fenômeno, a autora denomina
“pedagogia feminista” (LOURO, 1997, p. 112), inspirado na perspectiva de subversão do
modelo de mulher educada na passividade e na subordinação ao homem. Desconsidera a
hierarquia que se impõe em uma classificação ambígua das relações sociais envolvendo
71

homens e mulheres, perpassando o doméstico e alcançando a rua, os lócus de trabalho. A


pedagogia feminista, sob a perspectiva de Louro (1997) seria, então,

[...] um novo modelo pedagógico construído para subverter a posição


desigual e subordinada das mulheres no espaço escolar, a pedagogia
feminista vai propor um conjunto de estratégias, procedimentos e
disposições que devem romper com as relações hierárquicas presentes nas
salas de aula tradicionais. A voz do/a professor/a, fonte da autoridade e
transmissora única do conhecimento legítimo, é substituída por múltiplas
vozes, ou melhor, é substituída pelo diálogo, no qual todos/as são igualmente
falantes e ouvintes, todos/as são capazes de expressar (distintos) saberes.
(LOURO, 1997, p. 113)

Essa pedagogia feminista coloca a termo, o que Almeida (1998) descreve enquanto
forte necessidade de libertação, como forma legítima de se impor sobre o destino delineado
por outros. Uma dicotomia quando se observa que em meio ao processo de urbanização,
crescimento econômico e social, vivia a mulher ainda subjugada, sub-representada, biológica
e socialmente desprezada.

As relações patriarcais e econômicas que vinham reestruturando a sociedade


em final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX tiveram
grande importância no processo de feminização da profissão, mas não
tiveram menor importância as lutas que as mulheres promoveram pelo
direito de exercer o magistério e ter acesso à educação e à instrução, assim
como a oportunidade no campo profissional. (ALMEIDA, 1998, p. 64)

Os reflexos da sociedade paternalista são percebidos naquilo que Louro (1997)


denomina de “status de representação” (p. 99), uma fabricação de professoras. A professora
não era desígnio dado a qualquer mulher. Para tanto, esta deveria ter vocação para o
magistério, o que na época compreendia dois fatos: a falta de beleza que pudesse chamar a
atenção a ponto de ser escolhida para casar e a necessidade de prover algum sustento
considerado aceitável pela sociedade, resultando na renúncia ao casamento.

O trabalho docente feminino, além do processo regulador impingido pelo


sistema capitalista, também se encontra atrelado a esse modelo de
normatização exigido pelas regras masculinas e é acentuado pelo controle
que o sistema social pretende exercer sobre as mulheres, nesses mesmos
planos. Além disso, não há como negar que os setores ocupacionais com os
menores salários são e sempre foram ocupados por mulheres, nos mais
diversos países. (ALMEIDA, 1998, p. 63)
72

A representação da professora solteira denota sisudez de quem se conformou com a


maternidade indireta, assumida no cuidado com os filhos que não são seus. Mesmo sendo
educada em casa para assumir um outro lar, havia aquelas que não se casavam. Sem a
possibilidade de assumir o controle de uma casa, passava a controlar seus alunos, dedicando-
lhes sua afetividade e sua seriedade, sem se preocupar com salários insignificantes e
condições de trabalho indignas.
A boa professora estaria pouco preocupada com seu salário, já que toda sua
energia seria colocada na formação de seus alunos e alunas. Esses se
constituiriam sua família. [...] A antiga professora solteirona podia também
ser representada como uma figura severa, de poucos sorrisos, cuja
afetividade estava de algum modo escondida. (LOURO, 2008, p. 466)

A educação da mulher, na segunda metade do século XX, não se volta mais para a
submissão ao marido. O casamento passa a ser uma opção que pode ser desfeita, não sendo
mais para sempre. Nessa linha, a docência perde parcela de sua representação enquanto mera
vocação, extensão dos afazeres domésticos e passa a pertencer aos movimentos sindicalizados
e a pedagogia feminista se fortalece. Por outro lado, ainda persistem as relações de poder,
uma vez que do mesmo modo que em outros setores, os salários das professoras nunca se
equiparam aos dos professores. (DEL PRIORE, 2008)
Ao se inserir no mercado de trabalho, a mulher passou a agregar três funções, a de
trabalhadora e a de mãe e esposa. Não mais criada na passividade, a mulher passou a ser
educada para competir, lutar pela ocupação de um espaço negado, contra a reprodução do
mito da inferioridade. Nesse espaço tipicamente masculino, a educação da mulher se fez em
meio às lutas femininas.

As lutas femininas intentaram conseguir vitórias significativas, mas o novo


estatuto social feminino no magistério fez também emergir mecanismos de
controle c discriminação contra as mulheres e enraizar as ideologias de
domesticidade e maternagem, ao transferi-las para uma profissão que
deixava de ser masculina. Como contrapartida, essa ideologia foi usada pelo
segmento feminino como um elemento de resistência. (ALMEIDA, 1998, p.
70)

Se antes havia a educação para a submissão. outra mulher emerge do avanço


histórico que a sociedade experimenta. A essa mulher é consignado um pseudodireito sobre
seu corpo, mas esse corpo representado não condiz com sua realidade. As obras literárias,
revistas femininas, livros didáticos e o universo midiático passam a demonstrar um corpo
feminino ainda atrelado a afazeres tipicamente atribuídos à mulher.
73

2.4 O lugar e o papel da mulher na sociedade moderna

Se há um lugar ou um papel da mulher na sociedade moderna, há também uma


indefinição quanto a esse aspecto, pois os lugares femininos não mais padecem da mobilidade
de antes, e da mesma forma, os papéis são variados, transitórios ou não. Assim como em
outras épocas, o lugar da mulher ainda se encontra regido pelo homem, prova disso é observar
que existem ainda muitas barreiras sociais que se interpõem à trajetória feminina. Na
contemporaneidade as pequenas revoluções femininas se tornaram mais frequentes,
entretanto, isso não significa uma ampla liberdade, não apenas de assomar aos espaços
estritamente masculinos, mas de sobreviver em um contexto no qual a dominação do homem
ainda se impõe à mulher.
No livro “O segundo sexo” de Simone de Beauvoir, a questão em torno do feminino
já se constitui a partir da pergunta sobre “o que é uma mulher?”. Quando se olha para a
historiografia da mulher, observa-se que poucos souberam ou sabem realmente responder a
esse conceito sem se aproximar da visão polarizada e machista do que seja uma mulher. Para
a autora, falta uma simetria na relação homem\mulher, justificada na própria ideia de que o
masculino sempre deverá se sobrepor ao feminino, até mesmo na definição de um ou outro. O
homem é o polo positivo enquanto que a mulher, o negativo. O homem nomeia, define,
simboliza, significa. À mulher, cabe o papel de segui-lo. Isso não se modifica na
contemporaneidade, ainda não se fala “as mulheres” como um substantivo geral, que possa
generalizar um grupo heterogêneo. Desse modo, Beauvoir (2009) passa a questionar os traços
do discurso de inferiorização que permeia a história da mulher. Quando se analisa os
discursos que refletem o lugar da mulher contemporânea, observa-se que não há um espaço
que a mulher ocupe sem que para isso precise fazer uma pequena revolução. Denota-se isso
principalmente quando se trata do espaço doméstico que se expande para o social, uma vez
que é recorrente a visão de afazeres notadamente tornados femininos.
Desse modo, segundo Kolontai (2004), na contemporaneidade ainda são recorrentes
a tentativas de manter a mulher em casa. Quando esta ascende ao trabalho fora do lar, acaba
se sobrecarregando ou construindo duas realidades distintas, pois o discurso machista indica a
dupla jornada, do trabalho e no lar.

As relações de produção, que durante tantos séculos mantiveram a mulher


trancada em casa e submetida ao marido, que a sustentava, são as mesmas
74

que, ao arrancar as correntes que enferrujadas que a aprisionavam, impelem


a mulher frágil e inadaptada à luta do cotidiano e a submetem à dependência
econômica do capital [...] as virtudes femininas – passividade, submissão,
doçura – que lhe foram inculcadas durante séculos, tornam-se agora
completamente supérfluas, inúteis e prejudiciais. (KOLONTAI, 2004, p. 17)

Em relação à mulher contemporânea, a autora citada traz a perspectiva de uma


dicotomia ligada ao processo de emancipação feminina, embora tenha se desfeito de alguns
dos fortes laços da sociedade tradicional, ainda se encontra presa à inutilidade de muitos
aspectos de sua existência. Nem tanto disfarçadamente, o machismo impera e impõe
identidades que a mulher vai acumulando. A natureza do corpo feminino aos poucos se
desvela, mas ainda suscita o sentimento de posse, visto isso é a necessidade de uma proteção
específica desse corpo que é considerado, mesmo na contemporaneidade, como posse
masculina, num ciclo de revisitação à costela retirada do primeiro homem.

O masculino e o feminino são criações culturais e, como tal, são


comportamentos apreendidos através do processo de socialização que
condiciona diferentemente os sexos para cumprirem funções sociais
específicas e diversas, essa aprendizagem é um processo social. Aprendemos
a ser homens e mulheres e a aceitar como ‘naturais’ as relações de poder
entre os sexos. (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 55)

A mulher moderna foi cunhada por inúmeras outras mulheres desde a Antiguidade,
entretanto, ainda padece do silenciamento imposto pelas vozes que ordenam o poder,
sobretudo sobre o corpo, ditando regras e modelos morais a serem seguidos, restringindo o
espaço que pode ser ocupado pelas mulheres, mesmo que esse tenha se ampliado.
É impossível discorrer sobre a mulher contemporânea sem adentrar no discurso
feminista, pois a partir de sua organização enquanto gênero e classe, é que as mulheres
delimitaram o espaço da intimidade, doméstico, cultural, político e social. Por outro lado, há
quem defenda que os conflitos entre homem e mulher se aproximam das disputas de poder, e
por isso assumem uma dimensão transitória, na qual a mulher contemporânea se torna,
também a antiquada, eternamente presa no círculo vicioso dos séculos anteriores.
Entretanto, há que se levar em conta que a voz da mulher contemporânea veio do
silenciamento de suas antecessoras. Primeiro, silenciadas as mulheres no lar, as mulheres da
rua e das senzalas, depois silenciadas as que se submeteram às condições de trabalho
degradantes, as que tiveram seus corpos maculados, subutilizados para prazeres passageiros,
as que se perderam em meio à exploração de seus corpos... Nesses silenciamentos a mulher
contemporânea construiu seu espaço, se moldou às exigência de uma sociedade em
75

transformação e se impõe contra o discurso da submissão que, de acordo com Kolontai


(2004), ainda persiste em diversos contextos, alimentando duas facetas femininas, as que
romperam com a escravização social e as que ainda vivem sob as prisões sociais. As
contemporâneas são denominadas de “mulheres do novo tipo”, conforme menciona a autora:

As mulheres do novo tipo, ao criar os valores morais e sexuais, destroem os


velhos princípios na alma das mulheres que ainda não se aventuraram a
empreender a marcha pelo novo caminho. São estas mulheres do novo tipo
que rompem com os dogmas que as escravizavam. A influência das
mulheres trabalhadoras estende-se muito além dos limites de sua própria
existência. As mulheres trabalhadoras contaminam com sua crítica a
inteligência de suas contemporâneas, destroem os velhos ídolos e hasteiam o
estandarte da insurreição para protestar contra as verdades que as
submeteram durante gerações. (KOLONTAI, 2004, p. 24)

É importante destacar que o discurso da submissão não se baseia mais nas questões
biológicas, na falsa ideia de que a mulher seria mais frágil e, portanto, precisaria da tutela
masculina para sobreviver. A naturalização do masculino como naturalmente sobreposto ao
feminino, criando uma espécie de sombra sobre a existência da mulher, inferiorizando-a. Esse
processo, de acordo com Alves e Pitanguy (1985) também é utilizado para justificar o
racismo, o reducionismo social, partindo da consideração (falsa) de que sua inferioridade os
coloca na condição de comandados, tanto na esfera política, quanto na socioeconômica e
cultural.

Da mesma forma, os teóricos da discriminação de sexo apelam para a


‘natureza’ da mulher para justificar sua posição social subalterna. Sendo ela,
por natureza’, um ser frágil e dependente, legitima-se a assimetria sexual.
Esse reducionismo biológico camufla as raízes da opressão da mulher, que é
fruto na verdade de relações sociais, e não de uma natureza imutável. O novo
debate feminista demonstra que a hierarquia sexual não é uma fatalidade
biológica e sim o fruto de um processo histórico e, como tal, pode ser
combatida e superada. (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 56)

O lugar da mulher contemporânea se estabelece entre o lar e a vida doméstica e o


cotidiano do trabalho. Transita entre escolhas que ainda não são totalmente suas. Na maioria
das decisões, principalmente quando se trata de questões polêmicas tais como o aborto, o
poder decisório encontra-se nas mãos masculinas e o debate acaba por não favorecer a
realidade da mulher. Muitos creem que as lutas são apenas por igualdade salarial, por
exemplo, mas deixa de compreender que a desigualdade é apenas uma parcela da forma como
a mulher é vista pela sociedade até hoje, pois seria natural que, exercendo uma mesma função,
76

homens e mulheres terem o mesmo reconhecimento. Por isso novamente a afirmação, não é
apenas a conquista de um espaço de dominação masculina, mas também uma disputa pelos
espaços de poder, aqueles que definem identidades ou as elimina.
Louro (1997) defende que nos estudos sobre a mulher, a argumentação deve ser
priorizada, no sentido de tentar construir uma perspectiva do espaço que provoque reflexões
que se materializem além da compreensão de suas características sexuais.

É necessário demonstrar que não são propriamente as características sexuais,


mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas,
aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o
que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado
momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens
e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos,
mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se
constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um
conceito fundamental. (LOURO, 1997, p. 21, grifo da autora)

Então, compreende-se que a mulher contemporânea tem sua identidade constituída a


partir da consideração dos papéis assumidos. Desde as lutas pela emancipação feminina e
contra qualquer tipo de discriminação, o papel da mulher se dividiu entre a representação da
intimidade, do mesmo modo, sua preservação e o corpo social, político e cultural, submetido
às relações de poder, mas ao mesmo tempo, consciente de sua função constitutiva.

A luta contra a discriminação implica, assim, na recriação de uma identidade


própria, que supere as hierarquias do forte e do fraco, do ativos e do passivo.
Identidade esta em que as diferenças entre os sexos sejam de
complementaridade e não de dominação. Em força e fraqueza, atividade e
passividade não se coloquem como polos opostos definidores do masculino e
do feminino, e sim como parte de uma totalidade dialética, contraditória do
ser humano. (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 57)

Mas a mulher contemporânea também passou a correr maiores riscos, demandando


medidas que a assegurem. Isso demonstra que talvez o comportamento da sociedade tenha se
modificado em relação à mulher, mas não significa que na individualidade machista
imperante isso tenha também se modificado. Ainda há, e isso é notável no cotidiano feminino,
a ideia de posse, de imposição da submissão. E na contemporaneidade isso é alimentado pelos
estereótipos, principalmente criados pela mídia, que não é a única responsável, mas que
exprime uma face obscura da pretensa relação de poder que o homem acredita ter sobre a
mulher. Esses papéis femininos, segundo Louro (1997) podem assim ser definidos:
77

Papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade


estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas
roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar... Através do
aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado
adequado (e inadequado) para um homem ou para uma mulher numa
determinada sociedade, e responder a essas expectativas. Ainda que utilizada
por muitos/as, essa concepção pode se mostrar redutora ou simplista.
(LOURO, 1997, p. 24)

A mulher na sociedade contemporânea fortalece sua identidade de gênero a partir de


sua integração a contexto não visitados ou parcialmente ocupados anteriormente. Qual não
tenha sido o espanto quando as mulheres começaram a pilotar veículos, representando uma
liberdade de ir e vir, o corpo na mobilidade dos espaços construídos para os homens. Tempos
depois, as lutas por melhores condições de trabalho, por reconhecimento do valor de sua mão-
de-obra. Mais tarde, outros sustos no contexto masculino; a mulher passa a exercer o direito
de votar, outro importante movimento de afirmação do gênero feminino.
Não se pode esquecer da queima de sutiãs, a libertação das garras opressivas dos
ideais de perfeição e contenção. A liberação da pílula como método contraceptivo, como
forma de apropriação da sexualidade, sem ser somente para a procriação, a mulher buscou o
sexo para o prazer. Interessante quando se percebe que a mulher precisou de um fôlego
extremo para conquista um pequeno espaço na enorme senda masculina. Na historiografia,
não existem relatos que trazem os homens lutando por uma identidade de gênero, por espaços
mais democráticos ou pelo fim da opressão como sexo frágil. Isso porque o homem nunca foi
visto como sexo frágil, mas historicamente, social e biologicamente se apresentou como o
dominante, e a mulher, a dominada. As identidades de gênero são constituídas social e
culturalmente e Louro (1997) reforça essa continuidade e sua transformação. Esses aspectos
são frutos das relações sociais e estas, por sua vez, se realizam em práticas e representações,
nos discursos e nos símbolos a eles atribuídos. É desse modo que a noção de feminino e
masculino pode ser constituída.

[...] arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas


formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e esses arranjos são
sempre transitórios, transformando-se não apenas ao longo do tempo,
historicamente, como também transformando-se na articulação com as
histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe [...]
(LOURO, 1997, p. 30)

A autora citada trabalha a perspectiva da desconstrução dos papéis atribuídos às


mulheres, como meio de também abalar as ideias que opõem homem-mulher. É com essa
predisposição de (des)construção das dicotomias e ambiguidades relacionadas ao masculino e
78

feminino que a perspectiva de dominação-dominado, submissão-submissa, pode ser avaliada e


desconstituída.

O processo desconstrutivo permite perturbar essa ideia de relação de via


única e observar que o poder se exerce em várias direções. O exercício do
poder pode, na verdade, fraturar e dividir internamente cada termo da
oposição. Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, de fato, apenas
homens e mulheres, mas homens e mulheres de várias classes, raças,
religiões, idades, etc. e suas solidariedades e antagonismos podem provocar
os arranjos mais diversos, perturbando a noção simplista e reduzida de
“homem dominante versus mulher dominada”. (LOURO, 1997, p. 33)

Concordando com Louro (1997), compreende-se que a polarização dos conceitos de


masculino e feminino e sua desconstrução pode ser um dos maiores desafios da mulher
contemporânea, uma vez que os conceitos de superior e inferior também se sobrepõem a essa
dicotomia. Há, nos dizeres de Alves e Pitanguy (1985) que “esta hierarquização entre o
masculino – superior – e o feminino – inferior é uma construção ideológica e não o reflexo da
diferenciação biológica. Esta diferenciação não implica em desigualdade.” (p. 63)
É nessa polaridade que se inserem os discursos que permeiam o universo
sociocultural de homens e mulheres e isso se reflete até mesmo nos livros didáticos. Os
movimentos feministas alertam para os processos de imposição ideológica que são notórios e
que desde a infância são impostos. Permeiam os livros didáticos e literários, sendo utilizados
para a implantação de uma ideologia baseada na inferiorização, não apenas da mulher, mas de
todos que não se adaptam aos modelos impostos socialmente. De acordo com Alves e
Pitanguy:

A mesma ideologia que interdita o exercício da sexualidade feminina,


restringe as potencialidades do desenvolvimento da mulher, colocando-a, na
prática, numa posição desigual frente ao homem. Essa ideologia é
transmitida muito cedo, pela família, escola, meios de comunicação, religião,
literatura e outros agentes socializadores. O movimento feminista procura,
portanto, através de uma nova ação pedagógica, demonstrar como os livros
didáticos reproduzem a imagem tradicional da mulher e confirmam a
diferenciação de papéis, tanto no lar quanto na esfera profissional. (ALVES;
PITANGUY, 1985, p. 63)

Essa tentativa de descontinuar o discurso dos papéis da mulher no contexto social


também alcança o espaço literário. A mulher não precisa mais ser salva pelo príncipe, aliás,
nunca precisou. Emerge as personagens que não se casam e mesmo assim, são felizes. Como
exemplo cita-se a Princesa Merida, da animação “Valente”, da Disney, que recusa o
79

casamento escolhido pelos pais a ponto de disputar sua própria mão. Esse fenômeno traduz a
descontinuidade histórica que Foucault reforça. Sua maior crítica se dirige à história
tradicional, das continuidades, dos segmentos cronológicos que percorrem uma linearidade
controlada e previsível. A expectativa da descontinuidade histórica refaz o caminho do
sujeito. Quando se trata da mulher, essa ideia se torna consonante aos dizeres de Foucault
(2008a) ao afirmar que:

[...] é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de


que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo
nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa
de que o sujeito poderá, um dia - sob a forma da consciência histórica -, se
apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela
diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar
sua morada (Foucault, 2008a, p. 14).

A passividade feminina não é espontânea, pelo contrário, é resultado de uma


imposição ideológica ou da reprodução dos paradigmas que alçaram a mulher à condição de
fragilidade e inferiorização. As imagens que se tem acerca desses papéis que a mulher exerceu
e que na modernidade são revisitados e, sob muitos aspectos reconstruídos, revelam que
mesmo o espaço da literatura sofre uma reversão, o que não acontece continuamente na
composição dos livros didáticos. Nessa representação,

[...] a mulher costura ou cozinha ou varre, o homem lê o jornal; a mulher é


enfermeira ou secretária, o homem, médico ou executivo. Demonstrar como
as histórias infantis também reproduzem os papéis diferenciados: a mulher é
passiva, espera que o homem, ativo, a salve; é passivamente dada em
casamento como prêmio, sem que se cogite de sua vontade. (ALVES;
PITANGUY, 1985, p. 64)

Há no espaço da mulher moderna uma manipulação de valores e sentidos que fazem


com que seu corpo, à medida do passado, seja tido como objeto a ser consumido. Esse espaço
é passageiro, sempre há um corpo novo a ser “comido”, se iniciou com as mulheres frutas
(melancia, pera, melão, morango...), perpassou pelas mulheres da moda e hoje transita pelas
funkeiras, pagodeiras e sertanejas, sempre obedecendo um modelo imposto, ainda que
travestido de resistência ou empoderamento. De acordo com Alves e Pitanguy, tem sido
desafiador

[...] demonstrar como a publicidade reforça a divisão sexual dos papéis


sociais, além de manipular o corpo da mulher enquanto objeto de consumo.
O que se procura, em suma, é denunciar, desvendar e transformar a
construção social da imagem da mulher. A própria mulher desenvolve um
80

papel importante enquanto mãe e professor, na transmissão desses valores


tradicionais e, portanto, na sua perpetuação. (ALVES; PITANGUY, 1985, p.
66)

Nesses espaços que se expandem e ao mesmo limitam a condição da mulher, as


ideologias de poder e submissão são quebradas e reconstruídas sob novos aspectos. Não são
necessários palanques para a imposição do pensamento de que a mulher deva somente ocupar
o espaço do lar, bastam que para isso sejam escritos livros didáticos, pois representam a
ideologia do poder e da dominação sobre os considerados inferiores, frágeis ou
marginalizados.

2.5 O livro didático e a produção de sentidos: um olhar para as representações sobre a


mulher

Um pensamento de Simone de Beauvoir, presente em seu livro, O segundo sexo pode


ser utilizado para compreender como a sociedade, em qualquer época, concebe a mulher
“Ninguém nasce mulher, torna-se” (BEAUVOIR, 1980, p. 9). As mulheres são fêmeas,
concebidas, gestadas e paridas. Entretanto, a sociedade as subjugou e, durante muito tempo,
impôs o que o patriarcado julgou como correto em relação ao “sexo frágil”, subutilizado na
procriação e como mão-obra-barata. Do mesmo modo, o corpo feminino passou a ter suas
representações, tanto na historiografia da mulher, quanto nos produtos culturais dos grupos
sociais. E é justamente nesses produtos culturais é que se inserem os livros didáticos, suas
produções de sentido enquanto instrumento de legitimação e poder.
Sobre o corpo da mulher, na forma como é apresentado nos livros didáticos, o
discurso construído se liga à imagem da senhora entretida em seus afazeres domésticos,
diligentemente cuidando de sua prole. Nas ruas, o corpo feminino se submete e constrói-se a
ideia das funções menosprezadas, nas ruas, nos becos e nas praças. As cozinheiras, lavadeiras,
as negras pobres, as parideiras, as mulheres da rua e da casa, nenhuma é mais bem valorizada,
mas nessas representações cumprem papéis designados e constituídos por homens, obedientes
à sacralidade machista, ao corpo disciplinado, obediente e passivo. (DEL PRIORE, 2008;
SOHIET, 2008; LOURO, 2008)
Nesse aspecto, entende-se por que o livro didático se torna instrumento de imposição
e regulação. Este, nada mais é do que a reprodução do discurso de poder, o mesmo que
radicaliza quando se trata dos negros, dos pobres e marginalizados. Na realidade, o discurso
do poder sobre o corpo coloca a mulher nessa mesma condição de marginalizada, ou seja, à
81

margem das perspectivas sociais. O tornar-se mulher precisa se contrapor à mulher tornada,
fabricada pelas ideologias masculinas que afetam a produção cultural, discursos pontuados de
intenções, as quais reforçam a submissão e fragilidade que se tornaram estereótipos da mulher
ao longo de sua história.
O livro didático nega o tempo de luta da mulher para sair da sombra do patriarcado,
principalmente quando traz o discurso da subordinação, afetando, quase que maligna e
irreversivelmente a forma como a identidade feminina se delineia. Enquanto recurso, o livro
didático é visto como uma manifestação ideológica ou manipulação do discurso para torná-lo
verdadeiro, o que Foucault (2007a) classifica como “regime da verdade”. O livro didático se
insere no conceito de poder e verdade, na existência de uma intersecção entre esses aspectos,
refletindo suas funções e história.

[...] é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder.[...] A verdade é
deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz
efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela
acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o
que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2007a, p. 10)

O que o livro didático produz é uma verdade indistinta da realidade a partir do


momento em que esta resulta na manipulação dos discursos e saberes construídos sob uma
ótica minimalista e unilateral, perceptível quando se analisa as representações da mulher nos
livros didáticos, se configurando em uma imposição, bem maior do que uma relação, de
poder.
A representação da mulher no livro didático, por vezes se liga às atribuições
tipicamente tidas como femininas. O exercício da maternidade, as tarefas do lar, a criação dos
filhos e até mesmo a abnegação santificada ganha espaço, sendo meio legitimado de
fortalecimento de um discurso baseado na submissão da mulher. ( LOURO, 1997)
Conforme se avança nas reflexões acerca do livro didático, observa-se que o
discurso se baseia na contraposição entre igualdade e diferença, naquilo que Louro (1997)
propõe enquanto processo cultural e genético. Diferenças genéticas não justificam
desigualdades culturais, do mesmo modo que a igualdade cultural não pressupõe igualdades
genéticas. Melhor definindo, a representação da mulher não pode se dar pelo viés da
desigualdade cultural, posto que não há um lugar cultural indistinto que esta possa ocupar.
82

Assim, o preconceito e os estereótipos culturais ( loira burra, mulata de sexo e samba...) vão
se multiplicando a partir da ideia de que a mulher não faz parte de um todo que pode dividir a
mesma cultura. O gênero, no livro didático, também é recriado na perspectiva macho\fêmea
que tão-somente reproduz o discurso social do forte em defesa do fraco. Compreende-se,
então, a representação da mulher submissa ou submetida ao poder masculino como uma
tentativa de se justificar a ideia de que as diferenças de gênero deveriam ser compensadas no
tratamento reservado à mulher, de uma forma mais evidenciadas, nas representações e
apropriações sobre o corpo feminino.

O corpo - o que comemos, como nos vestimos, os rituais diários através dos
quais cuidamos dele - é um agente da cultura. [...] ele é uma poderosa forma
simbólica, uma superfície na qual as normas centrais, as hierarquias e até os
comprometimentos metafísicos de uma cultura são inscritos e assim
reforçados através da linguagem corporal concreta. O corpo também pode
funcionar como uma metáfora da cultura. (JAGGAR; BORDO, 1997, p. 19)

O livro didático também se torna um produto da cultura a partir da hierarquização


das relações conforme são demonstradas em suas páginas. Tais processos vão desde a
concepção implícita ou explicita de um lugar da\para a mulher, às margens dos processos
históricos culturais que foram construindo a sociedade ao longo do tempo, à subutilização da
imagem do corpo feminino, não apenas em sua sexualidade, mas na face obscura do julgo e
poder masculino.
Sendo o livro didático uma das vertentes desse estudo, é necessário analisar o espaço
de composição ou construção da realidade no qual este se torna reprodução dos discursos de
poder. De acordo com Louro (1997) a escola não é um espaço inócuo, uma vez que é aí que s
diferenças, distinções e desigualdades são instituídas.

Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar


exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos -
tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não
tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através
de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização. A
escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por
separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez
diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os
meninos das meninas. (LOURO, 1997, p. 57)

A relação escola, livro didático, corpo e poder naturaliza o discurso de poder do


Estado. Historicamente o espaço escolar, sendo foi? constituído para fosse possível demarcar
bem o território social e quem nele poderia trafegar. Seria natural pressupor que o objeto do
83

meio educativo seria concebido para a reafirmação das diferenças sociais, expandido a
distância e refirmando exclusões. Nesse território estabelecido, o livro didático tem papel
fundamental. Em suas representações, e não apenas da mulher, mas das minorias que passam
por processos de desconstrução identitária, tornam se instrumentos efetivos de controle. Um
sistema dependente da aparelhagem reguladora do Estado que ao longo do tempo se
especializou na imposição das simbologias voltadas para as grandes dualidades forte\fraco,
livre\submisso, homem\mulher, macho\fêmea.
Para Louro (1997) a escola “delimita espaços” e nesse sentido, compreende-se que o
livro didático seja utilizado como uma forma de garantir estas delimitações. Manter às
margens do processo social aqueles que historicamente já se encontram nesse
posicionamento.

A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o


que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o
"lugar" dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através de
seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles/as que deverão
ser modelos e permite, também, que os sujeitos se reconheçam (ou não)
nesses modelos. O prédio escolar informa a todos/as sua razão de existir.
Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos "fazem sentido",
instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos. (LOURO, 1997,
p. 59)

Na escola a representação do espaço da mulher vai sendo construída. Não de forma


completamente positiva, tampouco facilitado pela sociedade. O livro didático alimenta uma
representação da mulher que foge à contemporaneidade, na qual muito já se desconstruiu em
relação ao feminino. O corpo da mulher do livro didático parece não combinar com a mulher
contemporânea, que luta por seu espaço. É que na imposição do poder, é necessário que esse
meio pare no tempo, não avance, não vá além da dualidade homem\mulher, macho\femea.
Isso porque o que impera no livro didático é o discurso do opressor, retirando do oprimido as
oportunidades e legitimando a opressão, construindo sujeitos que são submetidos a este
processo.

O processo de “fabricação” dos sujeitos é continuado e geralmente muito


sutil, quase imperceptível. Antes de tentar percebê-lo pela leitura das leis ou
dos decretos que instalam e regulam as instituições ou percebê-lo nos
solenes discursos das autoridades (embora todas essas instâncias também
façam sentido), nosso olhar deve se voltar especialmente para as práticas
cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. São, pois, as práticas
rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se
tornar alvos de atenção renovada, de questionamento e, em especial, de
84

desconfiança. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar


do que é tomado como “natural”. (LOURO, 1997, p. 63, grifo da autora)

A afirmação de Louro torna possível compreender que a representação da mulher no


livro didático pressupõe o que a autora define como banalização ou mesmo fuga do olhar
crítico acerca dos estereótipos que vão sendo construídos e desconstrui-los torna-se uma
tarefa hercúlea.
As representações da mulher no livro didático, trazem o perfil que o Estado deseja
incutir nestas, a partir da consideração de que o feminino tem despertado interesse há muito
tempo, não sendo um assunto ou um foco da contemporaneidade. Manter a mulher no espaço
doméstico significa assegurar que os trabalhos vistos como tipicamente femininos continuem
sendo executados, e mais que isso, que outras representações, mais libertas e autônomas
ocupem maiores espaços.

O Estado tenta controlar os corpos e, consequentemente, a sexualidade, o


desejo, a psique das mulheres, e as crianças que elas educam e os homens ou
outras mulheres para quem elas são as pessoas que cuidam e símbolos do
desejo. O Estado tem duas fontes principais de poder sobre as mulheres.
Regula o acesso à base material da procriação, isto é, legisla sobre a
contracepção, o aborto e a tecnologia do parto, decidindo quem terá
permissão para os mesmos, como e quando. E o Estado tenta controlar as
mentes mistificando os fatos a esse respeito. Por exemplo, parece que são as
mulheres que tomam decisões reprodutivas independentes, pelas quais se
sentem individualmente responsáveis; afinal, são adultos "individualizados".
Mas, por estarem "em relação" com o Estado, suas decisões já foram
tomadas por elas, através de leis restringindo sua sexualidade, suas escolhas
reprodutivas e seu acesso a empregos. (JAGGAR; BORDO, 1997, p. 106)

O próximo capítulo trata da análise das imagens retiradas dos livros didáticos,
considerando os estereótipos relacionados à mulher, bem como os discursos que são
construídos mediante tais representações.

3 DISCURSOS SOBRE A MULHER NOS LIVROS DIDÁTICOS

Ao longo de sua história, o livro didático combinou duas funções quase que
distintas: a de aparelhagem do Estado, como instrumentalização da ideologia dominante, além
85

de ser um bom meio para as editoras alçarem maiores ganhos com as publicações adquiridas
pelos órgãos públicos.
Destarte o aspecto financeiro voltado para a parcela de editoras que foi se
ampliando ao longo dos anos, a existência do livro didático aqui interessa a partir da
perspectiva regulamentadora e aparelhamento do Estado, enquanto sua ideologia e
necessidade de ampliá-la nos espaços escolares. E é nessa construção que a imagem da
mulher foi sendo construída ao longo do tempo, a partir do corpo estereotipado, coligada às
tarefas consideradas tipicamente femininas, alcançando nesse espaço a maternidade,
apresentada como uma obrigatoriedade, alvo do objeto de procriação, a mulher.
O que marca a trajetória do livro didático é sua opção pela aceitação dos discursos
politicamente impostos, além de representar as ideias sociais vigentes, de forma perene ou
transitória. E sempre nessa composição que as diferenças passam a ser instituídas, não de
forma natural, ao que Louro (1997) define como “produzidas” não apenas no meio social, mas
também pela escola. De acordo com a autora, a escola se tornou responsável pela produção de
mecanismos diferenciados para a classificação, ordenamento e hierarquização e cumpre
ressaltar que um desses mecanismos se compôs no livro didático. A escola, de acordo com
Louro,

[...] dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos


mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização. A escola que nos
foi legada pela sociedade ocidental moderna começou por separar adultos de
crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos
e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas.
(LOURO, 1997, p. 57)

Observando o livro didático contemporâneo, denota-se que as distinções ou


separações tornaram-se, ao longo do tempo, uma espécie de legado da escola fundamentado
nos discursos seculares que colocaram em oposição homem e mulher, masculino e feminino.
A partir destas oposições é possível compreender como o corpo da mulher é representado a
partir de estereótipos que, por sua vez, são resultados da forma como a própria mulher é
visualizada na historiografia, por mais que sua emancipação tenha se firmado com o passar
dos anos, por meio da resistência aos rótulos e busca por espaços legítimos e não legitimados
pelo discurso machista e misógino da sociedade.
Além do corpo estereotipado da mulher, o livro didático insinua, ou mesmo impõe
a(s) imagem(ns) da mulher atreladas aos afazeres domésticos ou coligadas às tarefas que
podem ser consideradas tipicamente femininas. Os antigos manuais, precursores dos livros
86

didáticos, já dispunham sobre a forma como a escola deveria tratar as diferenças, reforçando,
sobretudo, os cuidados a serem tomados para que meninas e meninos pudessem ser separados
ou segregados.
Ainda de acordo com Louro, os manuais didáticos ou comportamentais eram
pensados para que os mestres pudessem reconhecer os cuidados que deveriam ser dispensados
a alunos e alunas.

O modo de sentar e andar, as formas de colocar cadernos e canetas, pés e


mãos acabariam por produzir um corpo escolarizado, distinguindo o menino
ou a menina que "passara pelos bancos escolares". Nesses manuais, a postura
reta transcendia a mera disposição física dos membros, cabeça ou tronco: ela
devia ser um indicativo do caráter e das virtudes do educando. (LOURO,
1997, p. 62)

Considera-se que os manuais citados por Louro seriam os precursores dos livros
didáticos, agregando alguns dos mesmos objetivos, ou seja, regular, legitimar e impor
comportamentos esperados, principalmente quando se trata de mulheres. No exercício desse
papel, a autora cita as escolas femininas, cuja função primordial foi a de “treinar” as moças a
fim de galgarem os degraus sociais a partir do casamento. O processo de escolarização visava
repetir o que os manuais traziam como normas essenciais de comportamento e
desenvolvimento de habilidades manuais que, por sua vez, deveriam ser ensinadas como o
mais alto dos prazeres aos quais as jovens deveriam ansiar.
Sobre sexualidade, nem os manuais do início do século XX, tampouco os livros
didáticos que vieram depois trouxeram abordagens que não fossem ligadas às funções de
procriação, como produto do matrimônio. O corpo feminino era assim ligado à sua natureza
primordial: gerar filhos. Observa-se também que mesmo na contemporaneidade a escola não
perdeu sua perspectiva de reprodução e imposição ideológica. Pelo menos não totalmente.
Não se percebe a desvinculação de sua função de aparelhamento do Estado, em completa
vigilância sobre o comportamento social formado. Peremptoriamente, o livro didático é um
discurso construído sobre a ideologia dominante, os conceitos, as construções, representações
e imagens são concebidas e de igual modo perpassadas aos seus usuários finais, os
professores e alunos. Hoje tornaram-se uma exigência didática, as escolas brasileiras a cada
três anos “escolhem” seus livros didáticos mediante série de pontos a serem levados em conta.
Entretanto, essa escolha não é totalmente democrática, uma vez que na compra, a editora que
oferece as melhores opções é selecionada.
87

Desse modo, a escola segue perpetuando os discursos acerca da mulher, assim como
seus principais estereótipos. Sobre esse aspecto, Louro (1997, p. 63) reforça que “Sob novas
formas, a escola continua imprimindo sua "marca distintiva" sobre os sujeitos. Através de
múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes.”
Sendo o livro didático um meio discursivo, torna-se também um eficiente mecanismo
de escolarização e distinção de corpos e mentes. Além dessa distinção, é possível
compreender a existência de um processo de dissociação concomitante às construções que são
erigidas sobre a imagem da mulher. Do mesmo modo, o que Louro (1997) denomina como
“fabricação de sujeitos”, torna-se mais evidente quando se tem o discurso contido no livro
didático e seus efeitos sobre os demais discursos acerca da mulher, discursos esses que foram
sedimentados na historiografia e que por esse processo de secularização se tornaram ainda
mais difíceis de serem combatidos.

O processo de "fabricação" dos sujeitos é continuado e geralmente muito


sutil, quase imperceptível. Antes de tentar percebê-lo pela leitura das leis ou
dos decretos que instalam e regulam as instituições ou percebê-lo nos
solenes discursos das autoridades (embora todas essas instâncias também
façam sentido), nosso olhar deve se voltar especialmente para as práticas
cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. (LOURO, 1997, p. 63)

Os livros didáticos retratam essas práticas cotidianas nas quais os sujeitos se


encontram envolvidos. E ressalte-se que o problema não são as práticas cotidianas, pois essas
podem representar a diversidade cultural e como essa se encontra inserida nos meios sociais.
Entretanto, o que incomoda nos aspectos citados é como a mulher se insere ou melhor, é
inserida. Como se tratam de práticas cotidianas, os livros didáticos normalmente trazem a
imagem da mulher submetida à sociedade, seja pela execução de tarefas tipicamente
femininas ou pelos papéis que eventualmente assumem para além do contexto doméstico.
É possível compreender o processo de construção discursiva no livro didático a partir
da perspectiva apresentada por Moita Lopes (2009) quando afirma que “somos o discurso que
circulamos: eles nos constroem, ou seja, a linguagem não nos representa simplesmente, mas
nos constrói (p. 15).” Nesse aspecto o livro didático pode ser considerado como o discurso
que circula fora de suas páginas e que é construído a partir da forma como a própria sociedade
concebe seus membros. Os conceitos não são criados no livro didático, mas dele emergem
como forma de refletir o que os membros dos grupos sociais esperam de seus participantes.
Enquanto mecanismo de regulação, cumpre papel de sedimentar os discursos sem que o
usuário possa ter a percepção de que esteja sendo manipulado.
88

3.1 O corpo estereotipado da mulher

Ao longo do tempo, o livro didático passou a compor uma série de políticas


educacionais que se estabeleceram como meio de legitimação das estruturas de poder e sua
relação com o saber. Aos poucos, os livros didáticos foram se consagrando como um conjunto
de saberes que são vinculados aos discursos sociais e esses, por sua vez, aos contextos
culturais originados e dimensionados pela escola, sendo responsáveis tanto pelas identidades
quanto pelas subjetividades constituídas.

O conceito de gênero é estereotipado quando baseado em papéis socialmente


construídos e atribuídos a homens e mulheres. Tais papéis são delineados
pela sociedade e influenciados por fatores culturais, sociais, econômicos,
religiosos, políticos e étnicos, dentre outros. Os estereótipos têm sido, desde
há muito, a maneira mais rápida e confortável que nós, seres humanos,
utilizamos para padronizar pessoas, comportamentos, valores e crenças,
etnograficamente impondo a outrem identidades que nos ajudem a “explicar”
o mundo. (OLIVEIRA, 2008, p. 97)

Embora seja visto como o coadjuvante do processo educativo, o livro didático reflete
práticas educativas, a forma pela qual o sujeito é escolarizado, os arquétipos construídos e,
efetivamente, os estereótipos que ao longo do tempo são sedimentados ou secularizados.
Bourdieu (1996) reforça que não há nenhuma inocência no livro didático, uma vez que estes
se encontram saturados da construção discursiva, bem como suas contradições. Um livro, nos
dizeres do autor, “não chega jamais ao leitor sem marcas. Ele é marcado em relação ao
sistema de classificações implícitos [...], quando chega ao leitor, está predisposto a receber
suas marcas históricas.” (BOURDIEU, 1996, p. 248)
O livro didático é, antes de tudo, um objeto de consumo e como tal, representa
também as formas como o corpo é “consumido”, objetificado e utilizado para o “prazer” ou
imposição de padrões a serem seguidos. Um livro é um composto de pequenas narrativas,
meios discursivos que são agregados, materializando o que um sistema de aparelhamento
ideológico quer que seja difundido. Basta que se pense que um livro didático, de qualquer
área do conhecimento, é fruto de uma autoria que, por sua vez, se faz a partir da coletânea de
portadores de diferentes gêneros, mas que ao final servem ao mesmo propósito. Associadas
aos textos, veiculam as imagens, representações dos discursos construídos acerca da mulher,
fomentando ainda mais os estereótipos associados ao corpo feminino.
89

As imagens não são neutras, são produzidas por indivíduos que carregam
consigo seus pensamentos e ideologias, ou seja, são permeadas e concebidas
a partir de algumas intencionalidades. Elas estão presentes em todos os
lugares, inclusive na sala de aula, nos livros didáticos, em nossas roupas. Por
não serem neutras constroem estereótipos, inclusive de gênero
[...].(WASCHINEWSKI; RABELO; ALVES, 2017, p. 579)

Narrativas e imagens são agregadas de modo que o produto possa agradar o


consumidor final, e do mesmo modo, os saberes interligados possam impor ao leitor (o aluno)
um lugar e espaço ideológico notadamente polissêmico. De acordo com Barthes (2009) em
meio à essa denominada cadeia de significados, o leitor (o aluno) é levado a crer que possa
escolher alguns caminhos e ignorar outros. Entretanto, os caminhos que são colocados à sua
frente nem sempre são margeados pelo pensamento crítico, tão necessário quando se trata de
saber enxergar as intenções presentes nos livros didáticos.

Pensar nessas imagens estereotipadas e carregadas pelas marcas do gênero é


parte do importante processo sociocultural que define os lugares dos homens
e das mulheres no contexto escolar, haja vista que tais imagens invadem as
salas de aula todos os dias, por meio de livros didáticos de inúmeras
disciplinas [...] compondo o repertório dos professores/as em seu cotidiano
escolar, que por sua vez podem reforçar estereótipos tradicionais de gênero.
(WASCHINEWSKI; RABELO; ALVES, 2017, p. 581)

Em meio à polissemia, o corpo estereotipado da mulher é construído. Sob esse


aspecto Oliveira e Pereira (2017), reforçam que existe uma produção e reprodução dos
estereótipos de gênero no livro didático e são forçadamente naturalizados. Reforçam que os
estereótipos passam a circular a partir de sua legitimação e isso ocorre nos discursos
construídos em diversos espaços, dentre estes, Estado, mídia, escola, Igreja e família. Nesse
sentido, observa-se que o livro didático se encontra vinculado à uma realidade social, sendo
assim, em suas páginas o discurso recorrente vem da própria sociedade.
Desse modo, o desafio maior é, então, mudar a forma como a mulher foi retratada
pela própria sociedade. De acordo com Oliveira e Pereira (2017, p. 560) “a prática discursiva
atravessa e molda nossas práticas sociais de forma tão natural que, com o reforço diário,
cristalizamos comportamentos e atitudes, numa crença desmedida de que foram dadas
naturalmente/biologicamente.”
O corpo da mulher no livro didático traz em si a diferenciação ideológica acerca do
feminino e masculino, sobretudo quando se trata dos aspectos estéticos. As imagens
veiculadas são formadas por sinuosidades, curvas, contornos que facilmente podem identificar
o corpo feminino. Os estereótipos são construídos pelas leituras que são possíveis de ser
90

realizadas, a negra enquanto escrava, a mulata das festividades, do corpo provocante e


provocador. Quando branca, a mulher está rodeada de filhos, a face retratando o estereótipo
da mulher santificada pela maternidade.
Do mesmo modo, o corpo da mulher não se coliga à uma divisão justa do trabalho.
Nos ambientes domésticos, existe uma distinção clara do que seja a função do pai e da mãe. E
normalmente as famílias que se apresentam nos livros didáticos são nucleares, tradicionais,
formadas por homens e mulheres. Os problemas sociais são deixados de lado, as novas
configurações familiares inexistem.
O livro didático, sob alguns aspectos pode ser mais fantasioso do que os livros de
ficção pois retrata realidades que somente existem em suas páginas. Por outro lado, a forma
como o corpo estereotipado da mulher é apresentada, mostra sua objetificação, a aproximação
com o conceito de “coisa”, inutilizado quando fora do que a sociedade espera. Os padrões
para o corpo feminino se reforçam também no livro didático.
O corpo feminino gordo se encontra ligado à imagem da matrona, da mulher de
meia-idade, a qual já vivenciou os anseios da juventude e agora se entrega à gula. Do mesmo
modo, o corpo gordo feminino está ligado às questões da saúde, a obesidade representa a
negação do corpo saudável e, portanto, fora dos padrões esperados. As representações atuais
que remontam ao conceito de belo e saudável tornam compreensível que o corpo feminino
gordo seja matronal ou grotesco. Acerca desse aspecto, Silveira et al. (2012) destaca que no
livro didático:

[...] a gordura é associada a uma configuração corporal inadequada,


desviante e, por vezes, doentia. E não é apenas nas produções literárias, ou
nos livros didáticos que essa questão vem sendo tematizada. Observa-se que
na atualidade, particular atenção é dedicada à questão do “ser gordo”,
demonstrada em inúmeras produções [...]. (SILVEIRA et al., 2012, p. 264)

Nos livros didáticos, o corpo feminino idoso é estereotipado como o da avó. A


mulher velha é a que acolhe os netos, o corpo torna-se assexuado e dificilmente uma imagem
masculina estará associada à imagem da mulher idosa. Em relação ao corpo idoso no livro
didático, destaca-se o discurso de Silveira et al. (2012) ao reforçar que:

Embora o livro didático, às vezes, tenha traços inovadores em relação às


imagens de velhos, com suas ilustrações diferenciadas, traços de linguagem
atualizados, perfis narrativos jovializados, elas não fogem ao status inicial de
formação da literatura infantil, ou seja, continuam com acentuado tom
educativo. Ao fazê-lo, demarcam o velho como diferente, evocando noções
91

de tolerância e aceitação que não problematizam a centralidade da identidade


jovem. (SILVEIRA et al., 2012, p. 242)

O corpo da mulher negra é o que mais compõe os estereótipos oriundos de padrões


brancos que são impostos, além de sua própria historiografia, de identidade negada,
escravidão e servidão. Há o discurso recorrente que é difícil ser mulher na sociedade, mas é
quase impossível ser mulher e negra nesse mesmo contexto. Isso ocorre, principalmente, pela
imposição da ideologia racial calcada na ideia de supremacia branca, indo se refletir, de uma
forma bem óbvia, no livro didático.

O corpo feminino negro sofre com as normatizações sociais estabelecidas


por categorias étnico-raciais dominantes e pelas relações de gênero. A
dominação masculina, por exemplo, engendra valores, disciplinas e marcas
simbólicas em sua representação e subjetividade, de modo que o corpo da
mulher negra passe a ser visto como um corpo pronto para servir e ser
dominado –um corpo objeto. (ROSSINI, 2014, p. 42)

A mulher negra, na maioria das vezes, é apresentada como referência à escravidão. O


mais que se possa avançar é até a abolição, quando a negra deixa de ser oficialmente escrava,
mas não deixa de servir o corpo masculino branco. Os mulatos e mulatas, evidência dessa
utilização são retratados como matreiros e espertos, sujeitos de pouca confiança. A mulata é a
que transita da cozinha para o quarto, nos rebolados dos folguedos e somente essa imagem
chega à contemporaneidade.
Curiosamente, o corpo da negra desaparece após a escravidão, reaparecendo na mais
tarde na representação da Tia Nastácia, nos textos de Monteiro Lobato que sempre povoam os
livros didáticos. O corpo da mulher negra contemporânea está nas escolas de samba, em
textos que ilustram o carnaval ou algumas passagens do folclore e da cultura popular. Onde
está o corpo da negra que ama? Que constitui família? Que vai para o contexto do trabalho?
Ele inexiste, isso porque foge ao padrão da mulher negra sem traquejo social ou sem
legitimidade para percorrer os embranquecidos e fechados núcleos sociais em um doloroso
processo de silenciamento.

Espezinhada concomitantemente pelas políticas do patriarcalismo, de classe


e de raça, a mulher negra, aferrolhada pela cultura branca, experimenta
diversas violências declaradas em seu corpo. Tendo sua identidade e sua
subjetividade afetadas, carrega consigo os estigmas da história, da cultura e
da sociedade, sobretudo pela diferença simbólica contrastante que assinala
seu corpo não branco como um corpo marcado pelo “defeito de cor” e, por
isso, deixado à margem da sociedade. (ROSSINI, 2014, p. 48)
92

E em relação ao corpo da mulher branca, os discursos construídos nos livros


didáticos não denotam melhores condições relativas à forma como é representada. Não há um
alívio em pensar que o corpo da mulher, que pelo fato de ser branca a colocaria em uma
posição privilegiada. Pelo contrário, o que ocorre é que a mulher branca tem a perspectiva do
casamento e da aceitação nos núcleos sociais. Diga-se “aceitação” e não, “inclusão”. O
estereótipo do corpo da mulher branca é resultante também do patriarcado, de sua
historiografia construída sobre a ideia de submissão. Embora o livro didático nem sempre a
apresente como dona de casa, o corpo feminino é representado na execução de atividades
estritamente domésticas ou no exercício da educação de crianças, atividade também vista,
durante muito tempo, como prática feminina apenas. O estereótipo da mulher no livro didático
origina-se dos discursos cotidianos e, de acordo com Moraes (2012):

Os discursos cotidianos são um sintoma de que a sociedade ainda se pauta


em valores sexistas, porém tais discursos se manifestam de novas formas.
Uma análise dos textos que circulam atualmente na mídia (em reportagens
de revistas, por exemplo) mostra que o estereótipo da mulher submissa foi
substituído, em grande medida, pelo da mulher múltipla: que trabalha fora,
cuida da casa, dos filhos e do marido e, ainda assim, deve encontrar tempo
para cuidar de si [...] Pode-se mesmo dizer que o grau de exigência em
relação à mulher tornou-se maior no conjunto de discursos dominantes de
nossa sociedade: se antes a “mulher perfeita” era a que cuidava bem do lar e
da família, hoje ela precisa se destacar profissionalmente sem descuidar das
questões anteriores e, ainda, ter um corpo de modelo. (MORAES, 2012, p.
260)

Essa “mulher perfeita” ainda é o sonho de consumo da sociedade moderna.


Evidentemente o livro didático se encontra permeado pelo que Bordieu define como “cultura
androcêntrica” e por isso, não desvincula o corpo feminino do estabelecimento de propriedade
pelo homem. O corpo da mulher nos livros didáticos não é o liberto, ele é assexuado, e
mesmo quando se trata de livros que abordam a saúde ou anatomia feminina, isso ocorre sem
que seja possível definir a que tipo de mulher esse corpo pertence, isso ocorre não pela
necessidade de uma universalização da imagem que é veiculada, mas na negação de que as
mulheres, velhas, gordas, negras ou brancas possuem um corpo, e que esse corpo é discursivo,
relata e retrata também como o tempo influencia ou a sociedade impõe seus padrões.

3.2. Imagem da mulher ligada a tarefas tipicamente femininas


93

Ao longo da escrita dessa pesquisa, por diversas vezes houve a referência a tarefas
tipicamente femininas. Essa ideia surge a partir da consideração de que atividades femininas
passaram a ser subutilizadas, mesmo quando a mulher foi para o mercado de trabalho. Isso
ocorreu porque em uma sociedade calcada no patriarcado, as mulheres trabalhadoras, embora
contribuíssem substancialmente na manutenção dos lares, não era vista com bons olhos. Esse
discurso ainda se reflete mesmo na contemporaneidade. Por mais emancipada que seja, por
mais conquistas que obteve, a mulher que deixa filhos e marido para trabalhar, sobretudo
exercendo profissões historicamente masculinas, precisa a todo momento provar que é capaz
de não deixar seus afazeres domésticos ou mesmo seu papel de mãe e esposa de lado. Embora
o corpo feminino tenha passado por uma silenciosa revolução, como bem ressalta Del Priore
(2008) ainda há uma ausência, uma (não)existência no contexto do livro didático.
Interessante destacar que na perspectiva do trabalho com gêneros textuais, isso
quando se trata do livro didático de Língua Portuguesa, os contos-de-fada são uma das
representações que mais tipificam a mulher. Ao se observar sua utilização, nota-se que quase
sempre são utilizados contos muito populares, já pertinentes aos constructos culturais dos
grupos sociais, dos quais os alunos fazem parte. Isso seria positivo se os contos utilizados
pudessem ser reinventados pelas meninas, colocando a imagem da mulher de forma
verdadeiramente emancipada com mais escolhas e menos perdas.
O que acontece, no entanto, é a utilização de reescritas ou releituras que ainda
alimentam a ideia de que, para ser feliz para sempre, a mulher precisa ser uma princesa, se
encantar e sucumbir aos encantos masculinos. Mesmo sendo personagem principal do conto-
de-fadas, ou mesmo os príncipes às vezes nem possuírem nomes, está ali, a imposição dos
papéis da mulher e do homem. Ela, de ser feliz por meio do matrimônio e ele, sendo o
príncipe que poderá salvar sua princesa de qualquer revés.
Claro que existem inúmeras releituras dos contos-de-fadas, no entanto, sua forma
mais clássica é a mais explorada nos livros didáticos. No conto da Branca de Neve, por
exemplo, a mulher emancipada, não casada, é descrita como a rainha má, futilizada e
inutilizada. Nos livros didáticos, normalmente são utilizados alguns recortes desse conto,
principalmente os que tratam das atividades exercidas pela Branca de Neve na casa dos anões,
o beijo dado pelo príncipe (que a beija sem nunca sequer tê-la visto acordada...) e o “felizes
para sempre”, como forma de realização do papel da mulher, por mais que os séculos tenham
passado.
As tarefas tipicamente femininas são aquelas que não podem ser exercidas pelos
homens e são executadas primeiramente por suas mães e depois, por suas esposas. A cozinha
94

tornou-se reino indevassável, a não ser que o homem escolha viver sozinho, levando sua vida
de solteiro como exercício da liberdade. Já a mulher solteira não possui representatividade no
livro didático, a não ser enquanto criança ou adolescente. Do mesmo modo, o espaço privado
é descrito pela presença da família. A jovem solteira ainda depende do pai para viver, ainda
que de forma implícita, isso alimenta o discurso da necessidade do casamento para a
autorrealização.
De acordo com Del Priore houve diversas mudanças nos espaços que a mulher
transitou e passou a ocupar. Da vida privada para a pública, do contexto doméstico para o
mercado de trabalho. Assim, segundo a autora:

O espaço privado no qual tais mudanças se impuseram também mudou. A


brasileira saiu do campo e veio para a cidade. Teve que mudar o corpo e a
alma. Em meio à solidão da grande cidade, o trânsito, à corrida contra o
relógio, aprendeu a sonhar com a emoção do sentimento sincero, com o
fantasma da interação transparente e fusional. Leu preferencialmente
romances e livros de autoajuda, sempre à espera de um príncipe encantado
que a levasse de volta ao século passado. (DEL PRIORE, 2008, p. 13)

A mulher que povoa o livro didático ainda é essa detalhada por Del Priore, ainda que
ocupe cada vez mais os espaços originalmente masculinos, ainda que suas relações pessoais
tenham sido modificadas. Aos autores dos livros didáticos não interessa a mulher do povo, a
não ser para torná-la ocupante das cozinhas, ou das fábricas. É como se fosse necessário
lembrar a todo instante que há um espaço na casa, na rua, no subemprego, nas relações
afetivas que se tornou vago, pois está a espera de que a mulher deixe de lado as “sandices da
igualdade” e se conformem com a submissão ao homem. Mesmo que alguns livros didáticos
tragam grandes feitos comutados à mulher, é possível sentir que a emancipação feminina não
deixou, de certo modo, de ser uma ameaça à ideologia androcêntrica.

Deste modo, é possível dizer que a educação produz uma imagem feminina
confinada em torno da família, situada num plano de desigualdade em
relação ao homem, no poder, nas responsabilidades e nas opções de lazer e
realização pessoal. Tais práticas culturais trazem consigo pressupostos éticos
e histórico-filosóficos, dentre os quais, relações hierarquizadas entre o
mundo doméstico e o mundo público, de que as tarefas de produção, feitas
na intimidade do lar e carregadas de afetividade, constituem repetições não
criativas do cotidiano. (TEDESCHI, 2012, p. 38)

O livro didático trata a mulher com uma dureza assustadora, mesmo que sua imagem
esteja ligada aos sentimentos mais ternos. Quando coloca a mulher sob a égide capitalista, não
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lhe dá possibilidades, mas a obriga a fazer escolhas pesadas. A mulher dos livros didáticos
existe a partir da realização de suas atividades femininas. A que trabalha, somente ocupa um
lugar no contexto do mercado. Na descrição de personagens que povoam os textos utilizados
nos livros didáticos, comumente há a ideia de doçura, meiguice ou bondade. A mulher má, as
rainhas, invejosas ou envoltas em bruxarias, sempre acabam fazendo algo de errado para
provar que necessitam estar sob o jugo dos homens. Nas escolhas femininas, não há como
associar família e trabalho, casamento e liberdade. Segundo Del Priore,

Sob o choque da modernidade capitalista, ela (a mulher) viu igualmente a


família se modificar. A crescente dissolução de casamentos que duram cada
vez menos, o aumento dos divórcios que não impedem ninguém de
recomeçar novamente, constituíram-se em novos cenários para as relações
afetivas. Ocupando cada vez mais os postos de trabalho, a mulher vê-se na
obrigação de buscar um equilíbrio entre o público e o privado. (DEL
PRIORE, 2008, p. 12)

Embora o feminismo tenha trazido uma mudança de paradigmas, o livro didático


ainda é sexista e machista. Isso significa que a ampliação dos horizontes femininos é
polarizada e contraposta ao contexto masculino. Levando-se em consideração de que o livro é
um portador de discurso e discursos, compreende-se a relutância em mostrar que a mulher
pode ser mãe e trabalhadora sem que exista ou se exija sacrifícios de sua parte. Bastos (2015)
faz uma importante reflexão ao afirmar que:

Os cuidados com os afazeres da casa e os cuidados com os/as filhos/as,


foram delegados à mulher desde os primórdios. A relação conjugal foi
construída nesse princípio, se constituindo numa sociedade de atribuições e
divisões. Ratificar nos livros didáticos, através de textos verbais, não verbais
e mistos, a noção de que a mulher constitui uma força de trabalho secundária
é um dos fatores que contribui para a manutenção do modelo “homem-
provedor” e “mulher-cuidadora”, ainda vigente, impondo às mulheres o
papel, praticamente unilateral e exclusivo de assistir e cuidar da família.
(BASTOS, 2015, p. 43)

Destaca-se que as tarefas tipicamente femininas não dizem respeito somente ao


âmbito da casa, da família. O livro didático normalmente coliga a imagem da mulher à ideia
de caridade, trazendo mulheres exemplares por seu envolvimento nas questões
sóciohumanitárias. Do mesmo modo, reproduz a mulher cuidadora fora do contexto familiar,
a enfermeira, a irmã de caridade. As mulheres contemporâneas assumiram e ainda assumem
postos que até bem pouco tempo só poderiam ser ocupados por homens, mas isso não chegou
96

ao livro didático, a não ser em pequenas referências em livros derivados das ciências sociais,
tais como os de Sociologia, Filosofia, História ou Geografia.
É importante destacar também que o livro didático não é composto por textos
escritos especialmente para seu fim. Evidentemente, é formado por coletâneas dos mais
variados gêneros textuais, poesias, narrativas, receitas, artigos científicos, curiosidades,
quadrinhos, reportagens são coletados para que possam estrutura o livro didático. Assim,
evidencia-se a função reguladora do livro em relação à mulher, são textos colhidos a partir das
percepções que se tem acerca de como a sociedade se encontra organizada, ensinando a partir
de sua composição básica.

O modo como são educados os meninos lhes dá condições de ingressar no


mundo masculino do trabalho e da competição. Da mesma maneira, o
comportamento nas meninas intenciona prepará-las para desempenhar os
seus futuros papéis no lar e na família. Assim, as meninas são encorajadas
para serem dóceis, passivas, úteis, boazinhas, prestativas, cordiais,
tolerantes, compreensivas, abnegadas, a não incomodar as pessoas e a não
dizer “não”. Ao contrário dos homens, as mulheres foram/são ensinadas a
“cuidar” de todos os familiares, menos dela, a serem guardiãs dos laços
familiares e da tradição. (TEDESCHI, 2012, p. 43)

Em todos os gêneros utilizados nos livros didáticos, mesmo sem uma referência
direta, a mulher se encontra ali. Nas poesias, são rememoradas as mulheres romantizadas,
sonhadoras. Nas narrativas, os textos chegam mesmo a descrever trechos de livros nos quais a
mulher pode ser coadjuvante ou protagonista, mas nunca emancipada e livre.
Claro que as receitas culinárias rememoram as mulheres da cozinha, da comida e do
fogão. Mesmo que a abordagem não seja diretamente sobre a mulher, sua presença é
implícita. Por vezes, os livros didáticos se parecem com as publicações voltadas para o
público feminino, sobretudo as dos anos 1950 com a perspectiva da doutrinação da mulher
sobre a importância de ser esposa e cuidar de seu lar. Até mesmo nos livros didáticos de
matemática as atividades tipicamente femininas se encontram evidenciadas. São comuns
situações problemas nas quais “Maria precisa comprar ingredientes para um bolo...” ou “A
professora comprou doces para distribuir...”.
Atividades tipicamente femininas, cozinhar, ensinar. Claro que não se deseja
demonizar tais aspectos, mas torna-se necessário uma reflexão acerca desses discursos que
são construídos, impostos não tão inocentemente, uma vez que se tratam de situações que
poderiam e podem compor o cotidiano de qualquer família, e por mais que sejam construídas
de modo a serem desafiadoras ao contexto da aprendizagem lógica, em nada contribuem para
97

a dissociação da mulher de afazeres desvalorizados justamente por serem considerados


tipicamente femininos, o mesmo ocorrendo com grande parte do que é produzido pela mídia e
veiculado, principalmente nas revistas femininas. Transformar a mulher numa caricatura de si,
voltada para o consumo tem sido um trabalho dedicado das grandes publicações. Até mesmo
os livros que as mulheres contemporâneas leem não abraçam uma perspectiva mais crítica
acerca da realidade. São poucas as que possuem acesso ou se interessam por assuntos que se
constituam foram do âmbito doméstico.

A ausência, nas revistas femininas, de debate político, de assuntos


econômico-financeiros, das estratégias e objetivos sociais, das questões
jurídicas e opinativas é extremamente expressiva quanto à participação
presumida, à capacidade de discussão e criação, ao próprio nível intelectual
das mulheres que as compram. O feminino aparece reduzido a sua expressão
mais simples e simplória: consumidoras, fazendo funcionar poderosos
setores industriais ligados às suas características “naturais”: domesticidade
(eletrodomésticos, produtos de limpeza, móveis), sedução (moda,
cosméticos, o mercado do sexo, do romance, do amor) e reprodução
(produtos para maternidade/ crianças em todos os registros, da vestimenta/
alimentação aos brinquedos). (SWAIN, 2001, p. 70)

Essa ausência percebida nas publicações se reflete nos livros didáticos e estratifica
ainda mais o papel da mulher. O discurso externo, da sociedade, invade, então o interno, o do
livro didático. Sobre as tarefas consideradas tipicamente femininas, destaca-se o pensamento
de Jaggar e Bordo,

O fato de a primeira coisa que se quer saber sobre uma mulher é se é casada
e, a segunda, se tem filhos, testemunha a convicção cultural de que todas as
mulheres deveriam fazer esse tipo de trabalho. Contudo, nesse lugar
pretensamente natural, exige-se das mulheres que executem os mais
desnaturais dos atos. Na esfera doméstica espera-se que alivie a alienação
que todo mundo experimenta na esfera pública. Deve favorecer a autonomia,
a autenticidade e proporcionar prazer e satisfação numa atmosfera de
intimidade. Ao mesmo tempo, deve alimentar ambos, o jovem e o adulto,
para que não só possam tolerar o trabalho alienado, mas também,
ironicamente, alimentar com ele seu amor-próprio. (JAGGAR; BORDO,
1998, p. 46)

Ironicamente, a mulher se inseriu no mercado de trabalho, mas não deixou de lado


as exigências maternais, obrigatórias no contexto familiar. Mesmo não tendo filhos, precisa
dedicar-se a compensar o esposo pela sua falta durante a jornada de trabalho. Seria mais
simples, então, tornar-se novamente dependente e o livro didático demonstra isso
continuamente. Considerando que existe ainda um distanciamento entre o que é pago a um
98

homem e o que é destinado a uma mulher, mesmo que ambos executem a mesma função, é
compreensível que o livro didático queira mostrar à mulher que as atividades femininas são
mais compensatórias, por mais que reforcem o caráter de submissão.

3.3. Maternidade – objeto de procriação

O corpo feminino suscitou, ao longo da historiografia feminina, diversos olhares


discursivos, ligados, inicialmente à mítica da sexualidade e posteriormente, ao seu papel nas
sociedades.
Somente o feminino é capaz de gestar. Enquanto houve mistério em torno da
gestação, a mulher não foi subjugada. Apenas quando o homem tomou consciência de que
também fazia parte do processo de concepção é que a mulher foi relegada a segundo plano.
Para piorar, o pecado original comutado a Eva e carregado por todas as mulheres passou a
justificar todas as formas de sujeição, submissão, silenciamentos e violências aos quais o
corpo feminino sofreu.
Somente a santificação a tornava digna da maternidade, somente o corpo impuro
poderia ser tomado para esse processo. Assim, para o casamento somente as virgens eram
escolhidas. Para o sexo havia as prostitutas ou mesmo as moças pobres, rejeitadas
primeiramente por sua condição social e depois, pela mácula do sexo sem laços matrimoniais.
O corpo da mulher, a princípio, é talhado para a maternidade. Os prazeres sexuais
não fazem parte da relação com o homem. Ou melhor, o homem tem direito ao gozo, mas esse
é negado à mulher, uma vez que a demonstração de desejo a faria cair em desgraça e
concomitante a isso, levar a família pelo mesmo caminho.

[...] além do aspecto mítico associado a toda mãe, que ligava a imagem de
toda mãe a de uma mulher boa, delicada e zelosa, santa, passou-se a ligar a
sexualidade feminina à procriação levando a pensar que o prazer e gozo
femininos só eram atingidos e permitidos através da maternidade. A mulher
só era vista como mulher em seu sentido completo quando tinha filhos.
Desta forma, a maioria das mulheres tinha, em seus planos e ideais o
casamento e os filhos como prioridade, para que um dia pudessem se sentir
mulheres, no sentido do ideal social construído para elas. (EMÍDIO;
HASHIMOTO, 2008, p. 30)

Ainda hoje a maternidade é vista como um assunto delicado, principalmente quando


se trata de mulheres que não desejam ser mães. Como assim? Não foram criadas para isso?
Imaginem se suas mães também tivessem decidido que não queriam ser mães? As mulheres
99

que manifestam a vontade de não serem mães, normalmente passam a ser tratadas como
assexuadas, como se ainda o desejo e o sexo precisassem estar coligados à procriação. Por
mais que a mulher seja emancipada ou independente, seus grupos sociais esperam que ela se
renda ao “amor” e que manifeste isso sendo mãe abnegada e exemplar, ou mesmo,
multifuncional.
Sendo o corpo da mulher objeto do patriarcado, natural que o discurso se paute na
perpetuação da relação de domínio do homem sobre esta. De modo geral, a mulher somente se
realizará, se tornará pessoa se puder demonstrar capacidade de procriação.

A respeito do corpo, verifica-se que na infância as mulheres aprenderam a


não manipular a genitália, a engolir falsas informações, a conviver com a
repressão. Adultas, atribuem à sexualidade adjetivos negativos e revelam um
corpo essencialmente voltado para a procriação. Dados que apresentem uma
conotação diferenciada dessa são restritos e tendem a gerar forte
discordância entre as mulheres que buscam sujeitar umas e outras à
dominação patriarcal. (GRISCI, 1995, p. 13)

O que mais causa susto é verificar que esse comportamento descrito pela autora
ainda persiste nos dias atuais. Espera-se que a mulher seja mãe. Antes ela até pode estudar, ter
uma boa formação acadêmica ou mesmo um emprego satisfatório. Mas será completa
somente se for mãe, e mesmo que adiando esse aspecto, cedo ou tarde, acabam se rendendo
aos prazeres maternais, reconhecendo sua função primordial na criação, gerar novas vidas.
O corpo da mulher precisa ser colocado à disposição da natureza, para que possa
seguir seu curso. Sendo mãe a mulher expurga qualquer pecado de suas relações, o corpo que
recebe uma vida não pode ser culpado pelos pecados da carne, pois encontra-se a serviço do
“Criador”. Esses são discursos que fundamentam a exigência de que a mulher se entregue à
maternidade. E aquelas que optam por não seguir os apelos da natureza passam a ser
consideradas como arvores secas, incapazes de produzir frutos.

Esses aspectos da sexualidade mostram-se importantes no entendimento da


mulher-mãe, já que as mulheres colocam o próprio corpo a serviço da
reprodução das relações de gênero. Inclusive, o ato sexual, para algumas
delas, ainda se justifica somente quando voltado para fins reprodutivos. E a
maternidade se constitui, muitas vezes, numa compensação pela precária
vida conjugal dessas mulheres. (GRISCI, 1995, p. 14)

Quando se volta para os grupos sociais primitivos é possível observar que as


linhagens ou descendências eram definidas a partir das mulheres. Isso por considerar que
somente as mulheres eram capazes de manter a herdade ou saberem quem seriam os pais de
100

seus filhos. Somente a partir da Idade Média é que a linhagem passou a ser definida pelos
homens, na paternidade. A mulher seria, então, pecadora demais para exercer o poder sobre os
tronos, reis e reinados. Embora até hoje somente a mulher saiba quem realmente sejam os pais
de sua prole, somente o pai é visto de forma honrosa. Mesmo na contemporaneidade, quando
tantas mulheres criam seus filhos sozinhas, o discurso ainda se volta para a supervalorização
da capacidade do homem de produzir filhos.
Atreladas as reflexões ou mesmo ao direito de ser mãe ou não, encontram-se os
métodos contraceptivos. Indo além, a ideia de interromper uma gravidez, pelo aborto, tem se
tornado um ponto nevrálgico nas discussões acerca do corpo feminino. A quem este pertence,
então? O que permeia os discursos sobre ter ou não um filho, abortá-lo sem justificativas ou
criá-lo sob a responsabilização de que seu corpo não lhe pertence.
Em uma sociedade absurdamente hipócrita, ironicamente valoriza-se mais a mãe que
tem coragem de dar o filho para a adoção do que a que resolver interromper uma gravidez não
desejada. O corpo feminino pertence ao homem e somente ele pode decidir o que a mulher
pode ou não fazer com ele. Cria-se com isso outro estereótipo, o da mãe.
Na escala de valores nos quais se insere a mulher, o posto de mãe ocupa o primeiro
lugar e o de profissional, o segundo. Assim, mesmo que a mulher coloque a profissão em
primeiro lugar, a sociedade espera que cumpra seu papel sendo mãe, tendo filhos que serão
criados para tomarem o lugar do pai ou da mãe na relação de dominante e dominado.
Beauvoir (1980, p. 09) destaca que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, indo além é
possível afirmar, sob a ótica social, todas nascem mães e espera-se que se tornem mães...

3.4 Os discursos sobre a mulher nos livros didáticos de Língua Portuguesa, História,
Geografia e Ciências: recortes e representações

Conforme mencionado, o livro didático tem se servido de instrumento de


aparelhamento do Estado desde sua adoção como material pedagógico. O tom didático e as
questões de autoria, uma vez que se trata de um compilado de textos e imagens que são
organizados de acordo com a necessidade ou orientação dos conteúdos elencados nas bases
curriculares e nos Projetos Políticos Institucionais. Para compreender como os discursos sobre
a mulher se materializam nos livros didáticos de Língua Portuguesa, História, Geografia e
Ciências, foram observadas algumas das imagens de mulheres que os livros apresentam, bem
como o impacto que estas trazem, mesmo implicitamente.
101

Destaca-se que os livros selecionados para análise fazem parte do PNLD (2017-
2019), ou seja, são obras que já deveriam trazer uma abordagem mais crítica da realidade
social, mas em primeira via, apenas reforçam a invisibilidade, os aspectos do preconceito e os
estereótipos ligados à mulher.
O livro de Língua Portuguesa escolhido é Português Linguagens, de William Cereja
e Thereza Cochar. Encontra-se dividido em 4 unidades temáticas, sendo “Humor: entre o riso
e a crítica”, “Adolescer”, “Consumo” e “Ser diferente”. Curiosamente, essa última unidade
tem um capítulo destinado ao tema do preconceito invisível, entretanto, os textos não se
voltam para questões de gênero, e sim, para uma abordagem sobre o preconceito racial.
Para início da análise foi selecionado um texto da página 40 intitulado “Coquetel”,
observa-se que esse texto faz parte de uma seção denominada “ler é divertido” cuja função é
trazer textos considerados engraçados. Nesse texto, algumas mulheres estão reunidas em uma
festa e começam a atribuir notas aos homens presentes. O texto, de Luís Fernando Veríssimo
é reproduzido abaixo:

O coquetel
Um grupo de mulheres numa festa. Uma delas propõe:
-Se vocês fossem dar notas, de um a dez, a cada homem nesta festa, que
notas vocês dariam?
-Bom. para aquele ali eu daria um três...
-Espere um pouquinho. Aquele é meu marido.
-Ai, desculpe.
-Ele merece pelo menos um quatro.
-E aquele ali?
-Aquele eu conheço. É muito bonito. Nota sete
-Eu conheço melhor que você. Além de bonito, é simpático. Nota oito
-Esperem. Eu conheço melhor que vocês duas. Além de bonito, é simpático,
e inteligente. Nota dez.
[...]
-E aquele? Tem um carro que é uma beleza. Uma Mercedes. Nota dez!
-Olha, ele vem vindo pra cá
-Alô, meninas!
-Oi, nós estávamos falando em você. Naquela sua Mercedes bárbara...
-Não tenho mais a Mercedes.
-Ah não?
-Com o preço da gasolina, resolvi trocar por um carro menor e mais
econômico.
O homem se afasta.
-Você tem razão. Ele é um dez.
Dez, nada. É dois.
-Mas você disse dez!
Dez era o conjunto. Dois ele ,oito a Mercedes
[...] (CEREJA; MAGALHÃES, 2015, p.40)
102

O texto acima reforça o estereótipo da mulher preocupada com futilidades, que


somente se interessa pelos bens materiais, ao atribuir nota 8 a um carro, denota-se a
representação da mulher frívola, desligada dos problemas que vão além das aparências ou
colocada em um espaço (a festa) no qual, em conjunto com outras mulheres, não resta outro
caminho a não ser o da superficialidade. O texto faz piada usando a representação da mulher e
mesmo que esteja visível, representa a invisibilidade política, o atrelamento do feminino ao
doméstico, ao vazio e à futilidade.
Louro (1997, p. 17) destaca que essa “invisibilidade, produzida a partir de múltiplos
discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico como o verdadeiro
universo da mulher.” A imagem associada é de uma mulher branca, maquiada, aparentemente
bem vestida, ostentando uma placa com o número 10, obviamente em referência à temática do
texto. A falta de uma imagem de mulheres negras na festa somente reforça a separação que há
para além do gênero, pontuada na inexistência de imagens que comprovem a miscigenação e
os direitos de acesso aos mesmos espaços.
Há uma expressão meio perplexa ou assustada, nos olhos arregalados e a boca
semiaberta em um vago sorriso sem graça (Figura 1). É possível compreender o lugar que a
mulher ocupa no espaço nitidamente masculino, avaliando e dando “notas” ao homem, e no
texto, quando mediante uma nota três, a esposa retruca que merece pelo menos um quatro, há
a leitura da escolha, um marido indigno de nota maior pode refletir também uma escolha
ruim.

Figura 1. Ilustração do texto Coquetel

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 40)


103

A mulher no livro didático ocupa diversos espaços, mas esses dificilmente


ultrapassam o âmbito doméstico, configurado na casa, na família, nos contextos de circulação
social, sem deixar de lado seu papel de filha, esposa ou mãe. Há que se reforçar que a
presença de imagens femininas nos livros didáticos não significa uma representação. De
acordo com Prada (2017, p. 11), “Nos livros didáticos em que mulheres e pessoas não brancas
ainda estão sub-representadas, reforçando, dentro do sistema educativo, imagens e práticas
hierarquicamente diferenciadas entre o masculino e o feminino.”
Essa sub-representação é evidenciada na perspectiva de que a imagem da mulher no
livro didático não está representada no tocante às lutas e resistência e sim, na formulação e
reforço de papéis historicamente constituídos, tanto pelo não-dito (implícito) quanto no
silenciamento (não fala). Esses aspectos fazem parte da ideologia que é construída ou
reproduzidas nos livros didáticos. Como o discurso é parte da subjetivação, encontra-se
presente no livro como meio de construção de sentidos.
A próxima imagem se encontra na página 28 do livro de Língua Portuguesa e mostra
uma fotografia, em preto e branco, de uma família, possivelmente da década de 1930 ou 1940,
que ilustra alguns versos do poema de Carlos Drummond de Andrade, denominado “Retrato
de Família” (Figura 2). Na fotografia estão presentes pai, mãe e uma filha ainda criança,
estando em primeiro plano com os pais em segundo. Essa imagem representa o modelo
familiar nuclear, cis gênero e heteronormativo, composto pelos genitores, de gêneros
distintos e sua prole. A leitura que é possível fazer remonta à ideia do casamento como forma
de constituir família e essa, o produto sagrado da união entre homem e mulher.

Figura 2. Retrato de família


104

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 28)

Destaca-se que em todo o livro, as imagens de famílias são raras, estando presentes
ou pai ou a mãe, mas não há a ideia de novas constelações familiares, ou mesmo de filhos
criados por pais solteiros. O sentido implícito é o de que o pai ou a mãe se encontra em outras
atividades, mas o ambiente doméstico se encontra preservado. A análise do discurso presente
na imagem, remonta à construção da pirâmide familiar, na qual a prole passar a ocupar o
vértice mais alto enquanto pai e mãe os ladeiam como forma de proteção. Essa imagem é
corroborada por Del Priore (2013, p. 38) “de “patriarcal”, a família tornou-se conjugal,
limitada ao pai, à mãe e aos filhos. Se no início o pai detinha todos os poderes paternais e
conjugais, pico de uma pirâmide da qual filhos e mães constituíam a base, as posições
mudaram. Hoje, no alto do triângulo encontram-se os filhos.”
Como os filhos se tornaram o ponto alto da constelação familiar, sua provisão passou
a ser feita pelo pai. Em cumprimento a esse papel, o homem, na paternidade não se encontra
representado como felicidade, pelo contrário. No livro analisado há uma imagem, situada na
página 75 que ilustra o “sofrimento” que é imposto ao pai no cuidado das necessidades dos
filhos.

O desfazimento da imagem autoritária do pai teve início a partir dos anos


1970 ou 1980. A laicização das classes mais altas; a baixa demográfica, que
reduziu o tamanho das famílias; a modificação profunda das formas de
casamento ou de trabalho na cidade e no campo; os triunfos de técnicas de
biologia (inseminação artificial e outras maneiras de concepção); a
reivindicação de liberdades novas na família; o intervencionismo do Estado,
que, por meio de leis, destituiu o poder do velho e feroz patriarca – tudo isso
105

colaborou para o fim de modelos tradicionais, embora muito do pater


familiae subsista. (DEL PRIORE, 2013, p. 38)

Explica-se, então, o porquê do pai que aparece na imagem parecer tão aflito (Figura
3). A leitura possível é a de que a educação, até certo ponto, gratuita, é uma obrigatoriedade
da família em conjunto com a sociedade e o Estado e passa a doer no pai a partir do momento
em que precisa prover sua realização. Fora da composição, não se registra a presença da
mulher responsável sozinha pelos filhos, ou mesmo a solteira que é mãe e provedora.

Figura 3. Pai aflito

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 75)

Antes de se tornar mãe, a historiografia da mulher aponta que primeiro ela precisa ser
esposa e mesmo antes do casamento há a necessidade de encontrar um namorado. Para isso,
as denominadas “moças de família” são as mais buscadas. Destaca-se o guia citado por Del
Priore (2013) que ressalta como as moças em vias de serem aceitas para o matrimônio
deveriam ser.
106

Outro ponto importante? Os predicados morais da mulher, segundo o Guia:


“seja, pois, a mulher que se procura para esposa formosa ou feia, nobre ou
mecânica – trabalhadora braçal –, rica ou pobre; porém não deixe de ser
virtuosa, honesta, honrada e discreta”. E mais: “a mulher não tem autoridade
sobre o seu próprio corpo – é o marido que a tem”. A submissão feminina
fazia parte do contrato. (DEL PRIORE, 2013, p. 12)

No livro didático em análise, as imagens das páginas 112 e 260 ilustram a busca por
um namorado por mulheres de idades distintas. Entretanto, o que marca as duas imagens é
justamente a ambiguidade no discurso. A primeira mulher, aparentemente uma adolescente,
usa o subterfúgio da simpatia para “catar” um namorado (Figura 4), enquanto que a segunda,
já mais velha, se dirige a uma loja, nos dias dos namorados para adquirir um namorado com
determinadas características (Figura 5). Novamente, a ideia de que a existência feminina
precisa estar ligada à figura do homem e embora na segunda imagem seja considerado como
produto, em primeiro plano ainda transita a imagem da mulher necessitada de alguém que
dela cuide. Ressalta-se que o namoro é o primeiro passo para o casamento, momento no qual
os enamorados têm a oportunidade de se conhecerem. O próximo passo seria o casamento,
uma forma de legitimar a relação de pertencimento entre homem e mulher. Como destaca Del
Priore (2013, p. 26), “o matrimônio se tornou uma barreira contra a imoralidade.” Há no título
dos quadrinhos uma ambiguidade ao se referir à palavra “simpatia” que tanto representa o
ritual necessário para apanhar um marido, quando à característica essencial para que isso
ocorra.

Figura 4. Simpatia para “catar” marido

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 112)

Figura 5. Comprar namorado


107

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 260)

Outra imagem que denota a ambiguidade no discurso relativo à mulher se encontra


na página 151, em que aparece um casal que ilustra o texto, também de cunho humorístico
que finaliza com o seguinte diálogo “Você sua, hein?”. E ele responde: “Eu também vou ser
seu, princesa” (Figura 6). O tom de humor que deveria chamar a atenção para a utilização do
verbo e o entendimento da colocação pronominal cria um sentido que incomoda, pelo
constrangimento que isso causa à mulher. Em um diálogo banal, ainda se torna presente as
questões relacionadas ao suposto objeto de interesse feminino, ou seja, o homem e a ideia de
posse.

Figura 6. Sou seu e você é minha


108

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 151).

Essa imagem da “posse” do masculino sobre o feminino perpassa pela sexualidade,


presente nas relações de gênero. O casamento é, então, uma forma de legitimar esse aspecto,
de afiançar o poder sobre o corpo feminino por meio da sexualidade que, conforme menciona
Foucault, 2006, p. 6) “[...] é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a
partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam, que
instauram saberes, que produzem ‘verdades’”. Sob essa perspectiva, observa-se que
ambiguidade do texto que precede a imagem serve para produzir uma verdade sobre o
propósito da mulher quando usa o verbo suar, que é transformado no pronome possessivo sua.
Na eventualidade do namoro, o casamento é o próximo passo para sacralizar a
existência feminina e para o matrimônio há que se levar em consideração uma série de
qualidades valorizadas pela sociedade, pontuadas nas escolhas feitas pelos homens. Conforme
menciona Del Priore (2013, p. 29) “Mantendo a velha regra da submissão feminina, eram os
homens que escolhiam e, com certeza, preferiam as recatadas, capazes de se enquadrar nos
padrões da “boa moral” e da “boa família”.”
Após o casamento a mulher passa a realizar as tarefas naturalmente atribuída à
esposa, o cuidado dos filhos e marido e da casa. No livro em análise, algumas imagens
pontuam as tarefas tidas como tipicamente femininas ou espaços domésticos ocupados por
mulheres, mas mantidos por homens. Na imagem da página 32, em contraponto ao filho que
109

chega da escola cabisbaixo, está a imagem da mãe, cuidando de seus afazeres com um
semblante sereno, olhos fechados denotando prazer em lidar com as panelas (Figura 7). Nesse
aspecto, caberá à mulher que a figura representa cuidar da paz do lar e é possível deduzir que
essa mãe será cuidadosa em lidar com os problemas oriundos do mundo externo.

Figura 7. Espaços tipicamente femininos

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 32)

As próximas imagens representam o casamento e como as relações são estabelecidas


após esse evento. O casal Helga e Hagar dividem o cotidiano entre as aventuras do viking e
seus papéis são bem delimitados em sua construção. Hagar é o provedor, e embora tenha
medo da mulher, não faz questão de ajudá-la nas tarefas domésticas. O ambiente doméstico é
dominado por Helga, entretanto há uma fragilização de sua imponência quando precisa
executar atividades que normalmente não são veiculadas como atividades femininas, como é
possível observar na figura da página 49 (Figura 8). O objetivo do uso dessa imagem está em
mostrar, de forma velada, que a mulher necessita do homem para prover seu conforto.

Figura 8. Responsabilidade das tarefas domésticas I


110

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 49)

Na próxima imagem, retirada da página 246, ainda com o casal Helga e Hagar, há a
demonstração do lugar que a mulher ocupa na rotina doméstica (Figura 9). Cabe a ela limpar e
cuidar e ao homem, tornar essa função significativa. O denominado “charme juvenil” citado
por Hagar pode ser lido como uma forma de demonstrar que sendo ele o escolhido para o
casamento, cabe à esposa cuidar da casa sem maiores exigências, demonstrando
conhecimento do espaço que irá ocupar no uso de suas prendas domésticas.

Figura 9. Responsabilidade nas tarefas domésticas II

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 246)


111

Notadamente, Helga não possui vida social, sendo relegada ao serviço de lavar,
arrumar, cozinhar e cuidar do marido e prole. Esse aspecto domina as representações da
mulher também em sua historiografia e Del Priore (2013) destaca que:

Sem estudo, a maior parte das jovens investia nas “prendas domésticas”. A
“moça de família” manteve-se como modelo e seus limites eram bem
conhecidos, embora atitudes condenáveis variassem desde cidades grandes
até pequenas, em diferentes grupos e camadas sociais. O bem-estar do
marido era a medida da felicidade conjugal, e esta adviria em consequência
de um marido satisfeito. E, para tal bem-estar, qual era a fórmula? A mulher
conquistava pelo coração e prendia pelo estômago. (DEL PRIORE, 2013, p.
29)

A historiografia feminina demonstra que os papéis foram sendo compartilhados entre


mães e filhas. A sociedade passou a esperar que a filha também assumisse seu lugar nos
afazeres domésticos e no livro didático isso se torna claro e sendo este instrumento de
legitimação ideológica e construção de subjetividades, as imagens também denotam o
discurso histórico do lugar que a mulher deve assumir mediante suas obrigações enquanto
filha, esposa e mãe. O trabalho, conforme observado na gravura da página 243 (Figura 10)
pode ser uma escolha feminina, entretanto o que fica claro é que esse deve ser uma segunda
atividade, impossível de ser conciliada e na iminência de um emprego a mulher deve deixar
suas atividades domésticas nas mãos de outra pessoa, aqui ironicamente representada pelo
marido.

Figura 10. A dupla jornada de trabalho feminino

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 243)


112

Conforme menciona Rago (2008) o fato das mulheres irem ao mercado de trabalho
seria, durante bom tempo, uma forma de mácula social por mais que as famílias necessitassem
de sua mão-de-obra para subsistirem.
Trabalhando fora, “as mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas
carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além de um bom número delas deixaria de se
interessar pelo casamento e pela maternidade.” (RAGO, 2008, p. 489)
Ao usar a expressão “Marido do lar”, o personagem reforça o estereótipo das
atividades tipicamente femininas. Cuidar da casa seria trabalho para a mulher, que não
exercendo outra atividade, era reconhecida como “esposa do lar”, para não dizer, escrava do
lar. Ao afirmar que sempre “quis ser marido do lar” o personagem reforça a ideia de que ao se
dedicar às tarefas relacionadas à casa, na verdade a mulher não está trabalhando e sim, se
divertindo.
Outra atividade exercida pela mulher é a de mãe. Na maternidade a mulher é
condicionada a se realizar enquanto fêmea. Na figura da página 181 chega a ser ofensiva a
comparação que se faz entre um carro ao ser abastecido e uma mãe que amamenta seu filho
(Figura 11). A objetificação da mulher fica evidenciada nessa analogia. O ato de abastecer o
carro com uma gasolina comum e aditivada, e a comparação de uma mulher que amamenta
seu filho e oferece alimento aditivado e uma mamadeira de leite que, por sua vez, representa
um alimento comum demonstra ainda a hipocrisia refletida na imagem de que a mulher é
objeto de procriação e cuidado com a prole.
O livro poderia tratar da importância da amamentação, se fosse esse o objetivo da
imagem, de uma outra forma sem que houvesse esse reforço do estereótipo da mulher objeto,
nascida para produzir uma “gasolina” de primeira. A imagem da mulher amamentando com
uma expressão feliz vem retomar a função primaz que é consignada ao feminino, a da
felicidade em ser mãe, em alcançar o nível mais alto de sua função.
113

Figura 11. A maternidade.

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 181)

Sendo criada para o ambiente doméstico, a mulher também passou a ser inserida em
uma cultura de consumo e isso também se evidencia no livro didático. Sobre cultura de
consumo Stater (2002, p. 17) reforça que “não é a única maneira de realizar o consumo e
reproduzir a vida cotidiana. Mas é, com certeza, o modo dominante, e tem um alcance prático
e uma profundidade ideológica que lhe permite estruturar e subordinar amplamente todas as
outras.”
O mercado de consumo coloca a mulher à prova e como resultado a imagem de
frivolidade se perpetra e reforça a ideia de incapacidade de gerir sua vida de forma
independente. O consumo possui um nítido viés ideológico e inserir a mulher nesse contexto é
o meio legitimado de mantê-la sob o cuidado do homem. A mulher que, de acordo com os
escritos, não teria capacidade de administrar os recursos financeiros de casa, a não ser para
adquirir seus suprimentos básicos, passa a ser tentada pelos inúmeros recursos de apelo à
vaidade e por meio do desejo de consumir se entrelaça ainda mais à imagem do homem
provedor.
De acordo com Engel (2008) a cultura do consumo articulou os discursos voltados
para a mulher, principalmente a das classes trabalhadoras. O objetivo, então, seria a de
envolver a mulher em uma ilusão criada por um pretexto universo feminino que também
abarcava o contexto doméstico. Para se sentir realizada, a mulher deveria portar objetos de
consumo, perfumes importados, roupas bem cortadas e isso somente seria possível por duas
114

vias: a do casamento bem realizado com posses ou pelo exaustivo trabalho realizado fora de
casa.

Há claramente o desenvolvimento de discursos referentes a um gosto considerado


‘próprio’ do universo feminino nos espaços públicos, inserindo as mulheres que dele
compartilhavam na dinâmica da cidade enquanto consumidoras. Nesse sentido, o
consumo viria ao progresso, a uma maior liberalização dos costumes, à variedade
opcional que o capitalismo trazia ao gênero feminino. Ao mesmo tempo, era uma
iniciativa que buscava diminuir a importância que as mulheres passaram a ter em
determinados setores, como a economia e a política. (ENGEL, 2008, p.175)

Do livro didático em análise, duas imagens de mulheres consumidoras foram


selecionadas pois mostram mulheres em situação de consumo. A primeira, constando na
página 167, mostra uma situação cotidiana, provavelmente em um supermercado, na qual
Zeus, ostenta uma lata de sopa que leva seu nome. O olhar lançado pela mulher em direção à
propaganda não denota reação, mas a boca voltada para baixo demonstra desaprovação ao
alimento, mas que pode ser adquirido em função de ser mais acessível. Já na imagem retirada
da página 163 há o que a cultura do consumo oferece de mais tentador às mulheres, os
descontos em promoções. Consumir, no livro didático é apresentado como atividade feminina,
não há outras imagens relativas a consumo que não estejam ligadas à mulher . Os espaços
ocupados são constituídos de modo que essa transite forma limitada, o consumo existe, mas
somente se concretiza na manutenção da hierarquia do lar, representada pelo supermercado. A
futilidade é sustentada pela presença da mulher no shopping center. Os outros espaços de
poder, ou mesmo diretivos, inexistem ou não são representados, trazendo a pressuposição de
que não podem ou não devem ser ocupados pelas mulheres. (Figuras 12 e 13).

Figuras 12 e 13. Mulheres em situação de consumo


115

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 163 e 167)

Há que se destacar que o próprio corpo feminino passou a ser objeto de consumo. A
preocupação com a forma, o cuidado para não envelhecer e todos as outros meios para se
manter um padrão ou padrões esteticamente aceitáveis pela sociedade fez com que cada vez
mais as mulheres passassem um bom tempo tentando se ver ou construir suas identidades a
partir do olhar do outro, do homem.
É sobre esse corpo feminino que as próximas imagens tratam. Nessas, denota-se o
que Wolf (1992) delimitou como parte da ideologia da beleza, uma representação construída
para descontruir as lutas das mulheres alcançadas nos movimentos feministas.
Em dois momentos, o livro didático de Língua Portuguesa traz referências à saúde.
Mas o que mais impacta é a forma como o discurso sobre o bem-estar se confunde com o
preconceito contra as pessoas obesas ou fora dos padrões estéticos. Na página 209 há a
imagem de uma mulher magra comendo um pedaço de pizza, mas o texto está associado aos
problemas que podem ser originados da obesidade (Figura 14). Nota-se que a imagem da
mulher é utilizada como se somente as mulheres pudessem ter problemas relativos ao ganho
de peso ou a relação com a comida.

Figura 14. Mulher comendo pizza


116

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 209)

O texto que acompanha essa primeira imagem se inicia da seguinte forma “ O povo
diz que os gordos são mentirosos e preguiçosos, andam pouco e comem mais do que
confessam.” Com esse discurso bastante ofensivo o texto continua discorrendo sobre a
dificuldade que a medicina possui em tratar a obesidade. Para quem o lê e o público ao qual se
destina, essas palavras iniciais são suficientes para derrubar qualquer resquício de autoestima
que um corpo gordo possua. Desse modo, é possível compreender o reforço da gordofobia,
termo cunhado em referência ao preconceito contra as pessoas que se encontram fora dos
padrões de peso estabelecidos pela sociedade.
O livro didático reforça o fato de o corpo gordo não ser aceito pela sociedade, pois o
corpo disciplinado é aquele moldado para demonstrar esse aspecto. O corpo gordo é tratado
como resultado do descuido, do desleixo e despreocupação com a saúde. Não é aceito por
fugir dos padrões estéticos, assim como é recusado pela estranheza em se considerar que um
obeso possa estar alinhado com a boa saúde. O corpo magro, independentemente quem o
habita, é visto como o ideal, que enaltece uma beleza imposta, que pode ser mostrada e
apreciada.
Conforme menciona Vasconcellos, Sudo e Sudo (2004),

Em nenhuma outra época, o corpo magro adquiriu um sentido de corpo ideal


e esteve tão em evidencia como nos dias atuais: esse corpo, nu ou vestido,
exposto em diversas revistas femininas e masculinas, está definitivamente na
moda: é capa de revistas, matérias de jornais, machetes publicitárias, e se
transformou em um sonho de consumo para milhares de pessoas, nem que,
117

para isso, elas tenham que passar por intervenções cirúrgicas (plásticas),
dietas de todos os tipos ( do sangue, da melancia) ou exercícios físicos dos
mais variados. (VASCONCELLOS; SUDO; SUDO, 2004, p.68)

Perdido em seu ideal de beleza, o que o livro didático não retrata é que o corpo
obeso se tornou resistência, pois passou a representar a mulher que não se preocupa com os
padrões, usa sua afirmação e autoestima para ir contra a imposição estética. O corpo obeso
não foge do padrão de beleza, afirmar isso seria confirmar que não há beleza onde não impera
a magreza. Ele se afirma enquanto belo, por ser único, na inaceitação de uma padronização. É
nisso que o discurso sobre a mulher no livro didático se perde, na insistência do binômio
saúde/magreza, doença/obesidade.
De acordo com Pereira (2013) no corpo as marcas do poder e do saber são inseridas.
Os corpos são demarcados enquanto dispositivo de sujeição. Nesse sentido, o corpo obeso é
limitado, sendo transmutado em ordinaridade, inutilizado a partir do sistema de dominação,
mas resistente a esse mesmo meio, tornando-se novo e por isso, inovador. Segundo Pereira
(2013):
No corpo encontramos as marcas do poder-saber, presentes na constituição
do dispositivo de poder. Para um corpo ser útil torna-se necessário aplicar
sobre ele um sistema de dominação e, para isso, impõe-se medidades
disciplinares, sob formas de naturalizações, a partir de saberes estratégicos e
eficazes. Assim, o corpo é visto como acontecimento, pois traz em si a
presença do novo. (PEREIRA, 2013, p.104)

A ideologia da beleza que com o passar do tempo se tornou ditadura é evidenciada


nas imagens que acompanham o texto sobre saúde e obesidade. Sobre o poder que a beleza
tem em relação a vida da mulher a ponto de se tornar uma busca constante, Wolf (1992)
ressalta que:

Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens,


situação esta necessária e natural por ser biológica, sexual e evolutiva. Os
homens fortes lutam pelas mulheres belas, e as mulheres belas têm maior
sucesso na reprodução. A beleza da mulher tem relação com sua fertilidade;
e, como esse sistema se baseia na seleção sexual, ele é inevitável e imutável.
(WOLF, 1992, p. 15)

Logicamente não há, nessa análise, a intenção de glamourizar os problemas, reais,


que o excesso de peso pode ocasionar. Entretanto, o preconceito, o silenciamento do corpo
gordo e não apenas nos livros didáticos não podem passar sem uma análise, pois significa que
os padrões de beleza impostos pela sociedade ainda estão longe de se adaptar à realidade de
várias mulheres. Destaca-se que, no livro todo, somente uma imagem de mulher gorda
118

aparece, essa relacionada ao texto mencionado e se encontra na página 210 e eis que na
página 212 (Figuras 15 e 16) esse corpo gordo encontra seu contraponto em um texto que
trata da prática de exercícios físicos para manutenção da saúde, como se os gordos realmente
fossem todos sedentários e, portanto, não pudessem se manter saudáveis mesmo distantes do
padrão exigido pela sociedade.

Figuras 15 e 16. Corpo gordo e corpo magro.

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 210 e 212).


Sobre os padrões de beleza que são impostos à mulher Wolf (1992) discorre que:

A "beleza" é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro. Como


qualquer, sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna no
mundo ocidental, consiste no último e melhor conjunto de crenças a manter
intacto o domínio masculino. Ao atribuir valor às mulheres numa hierarquia
vertical, de acordo com um padrão físico imposto culturalmente, ele
expressa relações de poder segundo as quais as mulheres precisam competir
de forma antinatural por recursos dos quais os homens se apropriaram.
(WOLF, 1992, p. 15)

No livro didático em análise, observa-se que não somente o corpo gordo precisa se
adequar aos padrões que são impostos pela ideologia da beleza. As páginas finais do livro de
língua portuguesa trazem um projeto denominado “Viver com saúde” e se dedicam a discorrer
sobre os maiores problemas ligados à autoimagem, a anorexia e a bulimia. Há uma definição
médica, mas o texto não reforça que essas doenças acometem mulheres ainda na adolescência
e que podem ser resultados da angústia oriunda da crença de não adaptação, principalmente
aos padrões de magreza ou surgidas do medo de não serem aceitas pela gordura ou por outros
aspectos vistos como defeitos pelas jovens. O texto, embora seja informativo, não
problematiza as questões que podem fomentar o debate sobre a ditadura da beleza e como
119

essa pode atingir de forma mais diretas as meninas, adolescentes e jovens. As imagens da
página 270 representam uma moça com anorexia e outra supostamente bulímica (Figuras 17 e
18).

Figura 17 e 18. Anorexia e bulimia

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 270)

Por fim, destaca-se que o livro didático de língua portuguesa não apresenta imagens
de mulheres indígenas, e são poucas as negras que aparecem. A imagem da idosa aparece
apenas na página 17 e também representa a mulher negra, que por sua vez ocupa o lugar
dentro de casa, na segunda função da mulher ao ser mãe, assumindo a função de avó (Figura
19).

Figura 19. Mulher idosa


120

Fonte: Cereja; Magalhães (2015, p. 17)

Ainda como parte das análises sobre as representações da mulher nos livros
didáticos, foram observadas as imagens presentes no livro de História do 9º ano do Ensino
Fundamental, intitulado “A vontade de saber História”, da autoria de Adriana Machado Dias,
Keila Grinberg e Marco Cesar Pelegrini, o livro também foi adotado no triênio 2017-2019 e
se encontra dividido em 4 unidades temáticas.
De modo geral, o livro traz poucas imagens de mulheres e em seu contexto não
existem referências à historiografia feminina, constituindo-se o silenciamento da mulher, do
mesmo modo que ocorreu na história. Vale ressaltar que esse silenciamento é fonte de
diversas pesquisas que visam trazer uma outra perspectiva para a história da mulher, não pela
visão androcêntrica, de submissão, mas pela ótica de suas lutas conquistas. Embora seja vazio
de maiores representações, no livro didático de história há um pequeno texto que se refere à
luta feminina contra o machismo, embora não tenha teor crítico e nem provoque maiores
reflexões.
A primeira imagem analisada se encontra na página 64 e retrata um grupo familiar,
no qual se evidencia a figura paterna ladeada pelo que se supõe serem os filhos (Figura 20).
Destaca-se a face carrancuda paterna, assim como a imagem de resignação nos braços
cruzados das duas meninas que compõem a fotografia. É interessante que os irmãos, postados
ao lado e atrás do pai trazem também o semblante fechado, repetindo a mesma postura do
progenitor. Não há uma mãe, nenhuma mulher adulta compõe a imagem, o que pressupõe
uma viuvez e orfandade materna, como era comum, uma vez que muitas mulheres morriam
no parto ou em consequência desse.
121

Figura 20. Família tradicional

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 64)

Na verdade, o livro de História não apresenta a historiografia feminina e isso


contribui para sua invisibilidade. De acordo com Scott (1992), embora as mulheres tenham
sido incluídas como objeto de estudo e não apenas isso, se tornando sujeitos, ainda se observa
que a história das mulheres se pauta na defesa de um espaço em confronto com a ideia desse,
pertencer ao homem branco dominante.

A história das mulheres, sugerindo que ela faz uma modificação da


“história”, investiga o modo como o significado daquele termo geral foi
estabelecido. Questiona a prioridade relativa dada a “história do homem”,
em oposição a “história da mulher”, expondo a hierarquia implícita em
muitos relatos históricos. (SCOTT, 1992, p. 78)

Enquanto objeto de doutrinação e imposição ideológica, obviamente não há que se


esperar que mesmo na contemporaneidade o livro didático de história traga um viés crítico de
problematização cultura para seu contexto. Portanto, nesse aspecto reside a explicação para as
poucas imagens femininas contidas no livro em análise.
A próxima imagem, contida na página 71 retrata a família Matarazzo dona de uma
das maiores fortunas do século XX, bem como mostra as mulheres empregadas em uma de
suas indústrias (Figura 21). Destaca-se que tanto as mulheres da família, bem-apessoadas e
ricas, quanto as empregadas se apresentam com trajes que pouco denotam a diferença social.
Isso decorria do fato de que algumas fábricas não apenas empregavam mulheres proletárias,
mas jovens moças herdeiras de fortunas falidas, que não mais se integravam à sociedade rica e
eram empregadas por seus bons modos e sociabilidade.
122

Figura 21. Retrato da família Matarazzo

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 71)

Os anos que antecedem a Grande Depressão (1929-1933) são denominados como


“Anos Felizes” no livro de história em análise. O texto que acompanha a imagem da página
101 destaca o crescimento econômico, principalmente dos Estados Unidos, os avanços
científicos, o crescimento do consumo e a ampliação da propaganda veiculada nos meios de
comunicação (Figura 22). A mulher é retratada em frente a uma geladeira, bem vestida,
observa seu eletrodoméstico que, por sua vez, está repleto de alimentos.
De luvas, chapéu e saltos altos, essa mulher representa a sociedade ascendente,
assim como ainda reflete sua posição no espaço doméstico. Na legenda da imagem, reforça
que a figura trata de uma dona de casa e seu novo e amplo refrigerado, reforçando a cultura de
consumo, embora esteja implícito que não tenha sido ela, com seu trabalho e seu dinheiro, a
responsável pela compra.

Figura 22. Mulher em frente à geladeira


123

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p.101)

A próxima imagem, da página 119 está associada a um texto intitulado “O papel da


mulher no nazismo” (Figura 23). Curiosamente esse texto foi suprimido em sua totalidade e o
excerto utilizado discorre que a mulher era responsável pela reprodução da raça, cabendo a ela
suas funções relacionadas à sua natureza, ou seja, procriar, cuidar dos filhos e da família.
Eram identificadas com a maternidade e as atividades domésticas. O texto não faz referências
às mulheres que resistiram ao domínio nazista e se recusaram a observar placidamente o
avanço das tropas de Hitler.
O texto é concluído reforçando que mesmo sendo pobres as mulheres podiam
desfrutar d regalias ao se tornaram mães da raça, e dentre essas havia a disponibilidade de
maternidades consideradas as mais bem equipadas da Europa. É com certo horror que se
conclui a leitura desse texto quando se sabe os horrores pelos quais as mulheres alemãs, assim
como as judias foram submetidas. Simplificar essa questão em um livro de didático é, de certa
forma, relativizar o sofrimento dessas mulheres que se estendeu para além dos campos de
concentração. Exercendo seu papel de instrumento da aparelhagem ideológica, o livro em
análise efetiva com maestria essa designação. A imagem utilizada para ilustrar o texto traz
uma mulher com duas crianças, uma alemã, como é possível observar, sob a legenda “O ideal
nazista. Uma mãe feliz, da obra: Alemanha, o Ano Olímpico.”

Figura 23. Maternidade


124

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 119)

É notável que as mulheres fizeram parte de grandes momentos históricos embora


nem todos sejam retratados nos livros didáticos, uma vez que sua construção se baseia na
narrativa masculina, androcêntrica e unilateral. No entanto, o livro analisado traz algumas
imagens que demonstram a participação das mulheres em alguns movimentos, sendo citadas
como parte dos integralistas, movimento no qual mulheres e crianças foram recrutadas para
engrossar suas fileiras, ou melhor, se colocarem na linha de frente em caso de qualquer forma
de repressão por parte da polícia. Do mesmo modo, há uma imagem que mostra mulheres
participando de um Congresso da Federação Comunista da União Feminina do Brasil.
De acordo com o livro de história, os Integralistas pregavam o lema Deus, Pátria e
Família e isso fez com muitos passassem a seguir suas ideias. Como reforçava a aliança
religiosa e o fortalecimento das famílias, fez com que diversas mulheres e crianças fossem
recrutados. A imagem contida na página 144 retrata um desfile da Aliança Integralista
Brasileira, com mulheres de todas as idades à frente dos demais participantes (Figura 24).

Figura 24. Desfile da Aliança Integralista Brasileira


125

Fonte: DIAS, GRINBERG e PELEGRINI, 2015, p.144

A imagem da página 145, conforme mencionado, retrata a participação feminina no


movimento comunista. Embora represente um avanço no que diz respeito à ação política da
mulher, essa representação é generalizada, pois não há menção a uma voz feminina que se
destaque em meio ao movimento. O discurso veiculado é que a mulher tenha participado de
congressos com temática comunista, isso se deu de forma generalizada (Figura 25).

Figura 25. Participação feminina no movimento feminista

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 145)

A participação da mulher na política ainda é um problema considerado delicado, uma


vez que mesmo diante das grandes transformações, a sociedade ainda é deliberadamente
126

machista e corrobora a ideia da incapacidade feminina de intervir partidária e politicamente.


De acordo com Neves (2015) a dificuldade de inserção da mulher na política tem sido tema de
diversas pesquisas, principalmente das que abordam as questões de gênero.

Uma das principais contribuições dos estudos e pesquisas baseadas no


gênero é a abordagem crítica sobre as dificuldades de inserção das mulheres
na política. O epicentro dessa discussão está na dicotomia entre público e
privado, que tem como pilar principal o sistema político democrático
baseado em concepções liberais de liberdade e igualdade. Na concepção
liberal, a existência de duas esferas, uma privada e outra pública, para se
pensar a sociedade, contribui para que haja uma separação entre aqueles que
estão na esfera pública e, portanto, assumem um papel de atuar na política, e
aqueles que se regulam por regras de convivências próprias aos tipos de
relações sociais estabelecidos e que não possuem atuação decisiva na
política, por exemplo, o casamento, as relações familiares. (NEVES, 2015, p.
132)

A imagem da página 248, representa a mulher nos movimentos feministas que


ganharam força a partir da década de 1960 (Figura 26). O texto que acompanha a imagem
discorre sobre o movimento feminista cujo ponto alto foi a liberação sexual e com isso, a
verdadeira posse de seus corpos. Destaca-se a importância que o movimento feminista teve e
ainda tem sobre a vida das mulheres.

Figura 26. Mulher no movimento feminista

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 248)


Com a escolha do momento considerado certo para ter filhos, a partir do uso de
contraceptivos, condenados pela Igreja, mas liberados nas farmácias, a mulher passou a olhar
127

para seu corpo como uma forma de estabelecimento de uma identidade ou mesmo de uma
resposta cultural. Claro que o preconceito e os estereótipo também se fortaleceram na mesma
medida, mas a crença em ser dona de suas próprias escolhas fortaleceu significativamente a
ação da mulher na sociedade, desde o ambiente doméstico até o social, bem como o mercado
de trabalho. O corpo feminino, então, passa a ser uma identidade, embora nesse processo
também passe a se sujeitar aos padrões que são impostos. De acordo com Louro (2000),

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por força, a


identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si; em
consequência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambiguidades
nem inconstância. Aparentemente se deduz uma identidade de gênero, sexual
ou étnica de "marcas" biológicas[...]. (LOURO, 2000, p. 8)

O livro tem um capítulo que discorre sobre a independência da Ásia e África. Nesse
capítulo é rememorada toda luta e os homens que se destacaram. No capítulo todo há apenas
uma imagem na página 183 que representa a mulher negra, e se encontra vinculada às
condições impostas aos negros pelos brancos, principalmente na segregação racial (Figura
27).

Figura 27. Mulher negra

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 183)

A última imagem retirada do livro didático de História é da então presidente Dilma


Rousseff (Figura 28). Na legenda que acompanha a figura há o destaque para o fato de que
128

Dilma foi a primeira mulher a alcançar o posto de presidente no país. Seria interessante se o
livro também destacasse que nem mesmo o alto cargo fez com que a presidente fosse poupada
do preconceito e da misoginia da sociedade. Por diversas vezes chamada de incompetente ou
mesmo burra, Dilma Rousseff ainda padeceu da dificuldade de expressão e de se fazer
entendida em seus discursos, o que alimentou ainda mais o preconceito, generalizando mais
uma vez a ideia de que a mulher não é capaz de gerir um país.

Figura 28. Presidente Dilma Rousseff

Fonte: Dias, Grinberg e Pelegrini (2015, p. 317)

O próximo livro didático em análise é o de Geografia, da coleção Vontade de Saber,


do programa do livro didático 2017-2019 e autoria de Neiva Torrezani. O que será analisado
nesse livro é o espaço em que a mulher é representada, ou seja, o território e a forma como
sua imagem se encontra inserida em no espaço cultural, histórico e social. A primeira imagem
selecionada na página 108, volta a fazer referência à cultura de consumo e apresenta a mulher
no corredor de um supermercado, fazendo compras. Essa representação retoma as atividades
consideradas femininas e domésticos, da mulher que precisa cuidar de um lar, constituindo
também o espaço do trabalho.

Figura 29. Mulher no supermercado 1


129

Fonte: Torrezani (2015, p. 108)

Os estudos sobre o gênero voltam-se tanto para geografia cultural e histórica, quanto
para o que os pesquisadores denominaram de Geografia Feminista. De acordo com Ornat
(2008) a transversalidade contida no gênero possibilita o diálogo com diversos aspectos socio
culturais e do mesmo modo, possibilita a compreensão e problematização de diversos
aspectos dos discursos de poder das estruturas dominantes.

O gênero possui conectividades transversais com a classe, etnia, idade e


sexualidade, e que estas se colocam como estruturas dominantes da relação
de poder, a metodologia feminista direciona atenção à diversidade, à
reflexão crítica dos sujeitos investigados e à própria responsabilidade com
essas vozes. (ORNAT, 2008, p. 317)

Tendo esse pressuposto como ponto de análise, observa-se que o livro didático de
geografia não problematiza a forma como o gênero se insere nos espaços culturais, embora se
reconheça que não seja essa sua função. Entretanto, apenas constar de imagens que retratam
mulheres em alguns contextos reforça o discurso do poder e a ideia de silenciamento das
vozes femininas em meio aos problemas que o não reconhecimento das conectividades
transversais ocasiona. Para Reis (2015) o que marca a relação de gênero e o discurso de poder
é justamente o contexto de aplicação do conceito de patriarcado.

O conceito de patriarcado é uma das abordagens mais importantes do


feminismo para ciências sociais e se define como um sistema econômico
social em que os homens se apropriam do trabalho das mulheres em
benefício próprio. As relações de patriarcado entre os sexos implicam que
estas são exploradas economicamente pelos homens, que se apropriam do
seu trabalho e de sua ideologia. (REIS, 2015, p. 15)
130

A imagem da página 109 traz a legenda de uma pessoa idosa sendo vacinada em
Toronto no Canadá (Figura 30). Essa imagem transmite a ideia do cuidado, isso feito por um
homem que assume paternalmente seu papel de mantenedor da saúde da mulher, fragilizada
pela idade. Essa posição, de acordo com Ornat (2008) advém do discurso social de que
homem deve proteger a mulher, estendendo esse comportamento a suas esposas, irmãs e
filhas. Conforme o autor: “Os homens são vistos como protetores das mulheres e da força
feminina, protetores das esposas, irmãs e filhas, um sujeito que participa da esfera pública e
da política do trabalho, e que não participa da esfera doméstica.” (ORNAT, 2008, p.318)

Figura 30. Saúde da mulher

Fonte: Torrezani (2015, p. 109)

No livro analisado existem diversas imagens que retratam a pobreza dos países
subdesenvolvidos e nessas, as mulheres estão em primeiro plano. Para a análise foi
selecionada a imagem que consta na página 113, que representam mulheres negras, pobres em
países subdesenvolvidos (Figura 31).

Figura 31. Mulheres de países subdesenvolvidos


131

Fonte: Torrezani (2015, p. 113)

Cumpre lembrar que discurso da ideologia de poder, colocar as mulheres nos espaços
de pobreza significa reforçar a ideia da superioridade masculina, embora os homens também
circulem nesses espaços carentes de recursos. Os corpos negros, no livro didático analisado,
demarcam um espaço que também limita a ascensão feminina, traçam suas identidades
coligando o fato de serem negras ao problema do subdesenvolvimento. De modo implícito
esses corpos são responsabilizados pela prole que também é lançada nesse contexto de
pobreza, criando uma identidade entrelaçada a essa condição.
Sobre os corpos que são marcados dentro do espaço geográfico, Ornat (2008) reflete
que esse processo alimenta também a marginalização pois os espaços de pobreza não são
tidos como normais. A mulher, mostrada nesse contexto passa a ser vista como marginal, pois
não transita pelos demais espaços.

Determinados corpos são marcados identitariamente como sendo diferentes


ou marginais, e estando associados a espaços particulares, enquanto outros
são considerados normais e muitas vezes colocando-se como neutros no
discurso dominante. O corpo tem se colocado como um espaço social e
político, indo além de um espaço biológico. (ORNAT, 2008, p. 318-319)

Também para ilustrar o espaço designado à mulher no livro didático de geografia, foi
selecionada a imagem da página 174, que mostra uma mulher branca em uma favela (Figura
32).

Figura 32. Mulher na favela


132

Fonte: Torrezani (2015, p. 174)

Novamente o corpo feminino é alocado para o espaço da pobreza, e nesse elemento


não há referência ao homem. Do mesmo modo, representar a mulher nesse espaço configura-
se em alimentar, tanto a opressão (que tem suas bases na cultura e sociedade), quanto a
exploração (sob a égide econômica). Segundo Reis (2015),

Opressão é a atitude de se aproveitar das diferenças que existem entre os


sujeitos para impor desvantagens em relação aos outros, ocasionando uma
situação de desigualdades de direitos, de discriminação social, cultural e
econômica. A exploração é um fato econômico e dá origem à divisão da
sociedade em classes. Existe uma relação direta entre a exploração e a
opressão, quando surge a exploração econômica, esta tem a oportunidade de
associar diversas situações de desvantagens e de opressões já existentes.
(REIS, 2015, p. 13-14)

O livro didático de geografia traz duas imagens que representam a escravização


indígena e negra (Figura 33 e 34). Nessas imagens o que compõe o primeiro plano são as
mulheres que seguem desoladamente ao lado de suas crianças. Embora seja necessário
problematizar sobre o modo de exploração do espaço geográfico, principalmente no contexto
da escravização e ocupação dos territórios, o uso da imagem da mulher traz a relação
dominante-dominado. Incorre a ideia de que o homem, negro ou índio, superou a condição de
escravo enquanto que a mulher não o conseguiu justamente pela ideologia de poder que a
insere em uma fragilidade inexistente. Reis (2015, p. 14) destaca que “no caso das mulheres,
suas características físicas e biológicas, serviram de fatores para sua inferiorização, mantendo-
a subjugada e, dessa forma, mais disponível à exploração.”
133

Figuras 33 e 34. Escravidão negra e indígena

Fonte: Torrezani (2015, p. 117 e 206)

A última imagem, retirada da página 225, destaca uma imagem dicotômica mediante
as representações que o livro didático traz acerca da mulher (Figura 35). Nessa imagem consta
uma mulher, negra, que contrariando todas as imposições sociais concluiu o Doutorado no
Kansas (EUA) e voltou ao Quênia, seu país de origem para aplicar o que aprendeu, seu nome
é Wangari Maathal e representa a verdadeira imagem que deveria ser veiculada nos livros
didáticos, pois coloca por terra todas as ideologias de poder, inferiorização da mulher e sua
submissão.
Figura 35. Mulher e conhecimento

Fonte: Torrezani (2015, p. 225)


134

O próximo livro didático analisado é o “Companhia das Ciências” de João Usberco


et. al.. O livro também faz parte do PLND 2017-2019 e se encontra dividido em cinco
unidades temáticas. No livro didático de ciências observa-se o corpo feminino no seu contexto
biológico e social, principalmente no que diz respeito às divisões de contexto do homem e da
mulher.
Destaca-se que a maioria das imagens traz a mulher em contextos domésticos outrora
já discutidos e do mesmo modo, os entrelaces com a maternidade, dando ênfase à família
nuclear. O livro não problematiza as questões do corpo feminino e as formas de sua
objetificação e quando se trata do sistema reprodutor não há também espaço para a discussão
da sexualidade para além das doenças que são sexualmente transmissíveis. O papel de mãe é
repetidamente afirmado ao longo do livro, em diversas imagens que trazem a mulher
amamentando o cuidando de crianças. A mulher idosa quando aparece, está ladeada por
homens, repetindo o sentido da proteção. As famílias que aparecem no livro são nucleares,
não existem relacionamentos homoafetivos, o que reforça a ideia de padronização social. Do
mesmo modo, os corpos gordos ficaram de fora do livro, mesmo no capítulo que trata do
sistema endócrino, resultando no silenciamento dos corpos fora dos padrões impostos pela
ideologia da beleza. (WOLF, 1992)
A primeira imagem, retirada da página 24 mostra uma mulher escolhendo alimentos,
em uma clara reprodução da ideologia do consumo, uma vez que observa alimentos enlatados
(Figura 36). Embora a temática da unidade seja alimentação e nutrição, ainda persiste a
associação da imagem feminina com a cultura de consumo, marcada, principalmente pela
frivolidade e irresponsabilidade. Do mesmo modo, a imagem remonta à divisão entre homens
e mulheres e, de acordo com Silva (2016, p.15) “com a distribuição de papéis, as chamadas
divisões de gêneros, os homens vão para o mercado de trabalho, as mulheres realizam
atividades do lar.”
135

Figura 36. Mulher no supermercado II

Fonte: Usberco et al. (2015, p. 24)

Nas imagens das páginas 34 e 105, são demonstrados os cuidados com a família
designados à mulher (Figuras 37 e 38). Primeiro, o cuidado em prover o alimento por meio da
amamentação, e depois a manutenção da saúde da prole. Essa imagem reforça diversas outras
reflexões, sobretudo acerca do discurso de poder. Quando insere a mulher no plano familiar, a
ideologia dominante-dominado é ainda mais reforçada.

Figuras 37 e 38. Cuidados com a família

Fonte: Usberco et al. (2015, p. 34 e 105)


136

Segundo Silva (2016), os livros didáticos ainda relutam em atualizar as imagens de


famílias que são veiculadas. Nessas obras, não existem relações homoafetivas, pais ou mães
solteiros, núcleos regidos e mantidos pelas mães trabalhadoras, famílias compostas somente
pelo pai e mãe, sem filhos. Isso decorre, de acordo com a autora, da negação de que a família,
enquanto instituição social se transformou, bem como ainda persiste a ideia de que o ideal é a
grupo familiar nuclear no qual o pai é o chefe.

É possível fazer uma análise sobre a estrutura familiar, vista nos livros
didáticos como uma família nuclear caracterizada por ilustrações de árvores
genealógicas, mostrando em seu contexto histórico as gerações formadas por
avós, pais e filhos, sendo retratadas como famílias felizes, participativas na
criação e desenvolvimento uns dos outros. (SILVA, 2016, p. 15)

A imagem da página 129 do livro didático de ciências mostra famílias nucleares,


sorridentes e felizes. Embora sejam famílias diversas, não demonstram os outros modelos
familiares e reforçam que o ideal é a família constituída por pai, mãe e prole (Figura 39).

Figura 39. Representação da família I

Fonte: Usberco et al. (2015, p. 129)


137

O mesmo ocorre com a imagem da página 221, que mostra uma mulher idosa
ladeada por o que supõe serem sua família (Figura 40). Aqui a mulher é cuidada, a idosa se
encontra na posição de dependência e seu semblante sorridente denota que aceita e tem prazer
em ser cuidada, reforçando que a mulher carece dos cuidados dos outros porque não consegue
viver com independência. A temática da unidade poderia ser abordada com imagens que
demonstram mulheres fora do contexto familiar, uma vez que se trata de genética. Entretanto
ainda se observa a repetição imagem inferiorizada da mulher, que ainda precisa estar atrelada
ao grupo familiar para que possa construir alguma identidade.

Figura 40. Representação da família II

Fonte: Usberco et al. (2015, p. 221)

O livro traz também, nas páginas 139 e 161 algumas imagens que mostram a mulher
em momentos de diversão e lazer (Figuras 41 e 42). O que chama a atenção é que essa se
diverte somente em companhia de um homem ou da família. Novamente isso demonstra a
forma como os papéis são determinados no livro didático. A mulher somente pode ser feliz se
tiver um homem do seu lado. Isso reforça ainda mais que os livros didáticos se encontram
atrelados à imagem da mulher subserviente, coligada ao patriarcado.
138

Figuras 41 e 42. Momentos de diversão e lazer

Fonte: Usberco et al. (2015, p.139 e 161)

A partir das análises realizadas, de posse das imagens retiradas dos livros didáticos,
observa-se que a historiografia sobre a mulher caminha a passos lentos, isso talvez ainda se
reflita na produção material e nos discursos presentes nos livros didáticos.
139

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar essa pesquisa talvez seja possível compreender por que a temática
escolhida, mesmo com tantos outros estudos já realizados, possa ser inesgotável. Isso ocorre,
primeiramente, porque a historiografia feminina, uma as bases do estudo, ainda carece ser
retomada, retocada e mesmo reescrita, para que seja possível a desconstrução dos discursos
sobre a mulher que foram secularizados e que ainda no século XXI insistem em ser
retomados.
Esses discursos se principiam na ideia do patriarcado, do poder e da opressão e se
repetem ao longo do tempo, se multiplicando em uma sociedade que em relação à mulher
pouco avançou, por mais que os contextos históricos a tenham inserido em outros espaços que
não o da casa. Seria justo afirmar que a mulher ainda se encontra sufocada pelos papéis que
lhe são impostos, envolvida pela obrigatoriedade de ser boa filha, esposa ou mãe. No discurso
contemporâneo sobre a mulher pouco coisa se modificou, ainda não possui domínio sobre o
corpo, o casamento ainda é uma via legitimadora para o sexo, não pode escolher ter ou não
filhos e por mais que as lutas femininas tenha sido importantes para sua emancipação, as que
se engajam nessas organizações recebem a alcunha de feminazi, às vezes, simplesmente por
defenderem o espaço que naturalmente deveria ser delas.
Por outro lado, observou-se que o discurso da opressão se baseia, de uma forma
organizada e por isso, contundente, na imposição do forte (homem) sobre o fraco (mulher).
Ao longo do tempo, o homem não conseguiu e nem admitiu se desvencilhar da imagem de
protetor, mesmo não mais exercendo esse papel. Aliado à opressão também se configurou o
discurso da misoginia, atravessando a história e tornando a contemporaneidade um lugar
perigoso para a mulher viver, bastando que se observe as mais diversas notícias de violência,
comprovando isso.
Conquanto a pesquisa tenha partido de alguns questionamentos que se tornaram a
base do estudo. Estes, por sua vez, configuraram-se nas seguintes questões, respondidadas no
desenvolvimento da pesquisa: de que forma se dá a construção da identidade feminina, na
materialidade do livro didático, considerando este um instrumento de biopoder? Quais os
imbricamentos do corpo feminino da forma como é representado no livro didático? No
desenrolar da pesquisa observou-se o corpo feminino passou ser objeto de representações de
poder. Primeiramente o poder do pai, do esposo. Depois, o discurso da regulação social, das
regras criadas para manter o controle sobre o corpo feminino. Nesse ínterim os meios
140

utilizados foram os mais diversos, desde a mídia, religião, instituições seculares como o
casamento e a maternidade, culminando no uso dos livros didáticos para disseminar, instruir e
constituir estereótipos voltados para o corpo feminino. O olhar da pesquisa se lançou a três
eixos, sendo estes o corpo estereotipado da mulher, a veiculação da imagem da mulher às
tarefas tipicamente femininas e por fim, as atribuições da maternidade, ou seja, a figura da
mulher enquanto objeto de procriação.
Os livros didáticos, enquanto instrumentos ideológicos são muito bem utilizados pois
reforçam, inicialmente pelas ideias implícitas e depois, pelo silenciamento da mulher, não
apenas a branca, europeizada, mas as negras, pobres, velhas, gordas, indígenas ou outras que
representam o grupo oprimido ao longo da história.
A história feminina inexiste no livro didático, as imagens analisadas demonstram
isso. Quando utilizadas terminam reforçando atividades que normalmente são atribuídas às
mulheres. Mesmo que a realidade possa demonstrar outro viés, são poucas as imagens que
trazem a mulher em ambientes de liderança, no mercado de trabalho ou fora dele. As
mulheres que escolhem não estarem à sombra de seus matrimônios são excluídas dos meios
pensados para formar opiniões. O que mais surpreende é que existem livros didáticos que são
organizados por mulheres, mas essas não aproveitam esse veículo de uma melhora forma,
pelo menos na melhor escolha das imagens que irão compor suas páginas.
Essas imagens analisadas, por sua vez, remeteram a pesquisa à uma reflexão de que
os livros deveriam ser repensados, não no sentido de não apresentarem imagens pensadas para
incutir o discurso do poder criando verdades que irão consolidar o preconceito e a opressão
contra a mulher. Mais que isso, essas imagens deveriam suscitar problematizações acerca da
realidade vivenciada pelas mulheres em uma sociedade que não aceita sua inserção ou
distanciamento dos papéis determinados.
No contexto educativo, a pesquisa trouxe a perspectiva de uma reescrita da história
das mulheres, tanto no mercado de trabalho, quanto na formação. Na formação de professores,
o estudo pode ressignificar a visão que se tem do livro didático, não desprezando sua
funcionalidade, mas, partindo de um aspecto mais crítico, principalmente considerando que a
primeira responsabilidade na escolha do livro didático é do professor. Ao se valer desse olhar
crítico e se recusar a alimentar os estereótipo sobre a mulher, o educador poderá reescrever,
pelo menos em uma pequena parte a história das mulheres, não apenas como um sonho a ser
alcançado, e sim representado uma realidade.
141

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