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JATAÍ - GO
2019
VANIA GOMES CARDOSO
JATAÍ - GO
2019
DEDICATÓRIA
In the present study it was sought to understand speeches about woman, present in elementary
school textbooks, considering the linguistic-imaging materialities observed in the following
pieces: “Português Linguagens” – Portuguese languages, 8th grade (CEREJA;
MAGALHÃES, 2015); “Vontade de Saber” – The will to know: geography, 8 th;
(TORREZANI, 2015); “Companhia das Ciências” – Company of sciences 8 th grade
(USBERCO et al., 2015). In addition to the mentioned also it was also used the book
“Vontade de Saber” – The will to know: history, 9th grade; (GRINBERG, DIAS,
PELLEGRINI, 2015), all belonging to the “Programa Nacional do Livro Didático” – National
Textbook Program, term 2017-2019. The history textbook was used as an instrument to a
historical analysis about the women from the 18th and 19th centuries, appearing at their
contextualization and, above all, their identity linked to the mother figure and housewife
image, wrapped with the feminine tasks. Thus, emerged the relationship between knowledge
and BioPower. According to Foucault (2002), BioPower brings a kind of power overcoming
life and the needs that affect the population and especially adult females. The research,
released the three axes, these being the stereotypical woman's body, the airing of the image of
women to the tasks typically feminine and finally, the tasks of motherhood, that is, the figure
of the woman as breeding object. Thus, in the textbook, the identity of the subjects begins to
be produced from what is assumed to be true and so does the imposition of images that
become stereotypes and then truths. The Portuguese Language Textbook – PLT, the body
emerges showing a singularity that should be taken by the teacher, in parliamentary procedure
to research the body characteristics in social-historical-ideological practices. Hence, the
importance of, with the theoretical basis proposed by Foucault, analyze the discourses about
the female body presented in the textbook, which is part of the corpus of research, in order to
understand how the truth can be manufactured, especially when it comes to discourse about
women.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
3.4 Os discursos sobre a mulher nos livros didáticos de Língua Portuguesa, História,
Geografia e Ciências: recortes e representações ................................................................. 100
INTRODUÇÃO
a idosa, as mulheres na rua e as de casa, as matronas e mães, bem como as mulheres que
exercem seus papéis enquanto moventes do sistema.
Essa perspectiva de análise vem ao encontro do que se pressupõe o trabalho com a
abordagem materializada no Ensino Fundamental, resultante da consideração de que os livros
didáticos são portadores de texto e como tal, imbuídos de discursos, do mesmo modo, seu
caráter discursivo é resultante de um contexto social.
O corpus de análise deste trabalho foram sequências discursivas, verbais ou
imagéticas, que pretenderam criar verdades sobre a figura feminina, retiradas dos quatro
livros didáticos escolhidos. Essas vozes traduzidas nos livros didáticos é que trazem para a
discussão o corpo feminino presente nos textos utilizados para o trabalho. Para tanto, o
método de abordagem foi a Análise do Discurso Foucaultiana.
Na materialização do estudo foram analisados os textos e imagens presentes nos
livros didáticos selecionados, na pretensão de alcançar os objetivos propostos no estudo,
voltados aos discursos sobre a mulher no livro didático, o corpo feminino e a imposição das
verdades cunhadas no discurso do machismo e da submissão. O olhar da pesquisa, se lançou
para os eixos de análise do corpo estereotipado da mulher, a veiculação de sua imagem às
tarefas tidas como tipicamente femininas, as atribuições da maternidade, mulher enquanto
objeto de procriação. A pesquisa foi estruturada em três capítulos, sendo o primeiro a tratar
dos caminhos teóricos-metodológicos da pesquisa, a escolha da perspectiva foucaultiana de
análise do discurso, abordando o sujeito nas malhas do discurso, as práticas de subjetivação e
objetificação; corpo, poder e gênero; relações entre verdade, saber e poder; as concepções
foucaultianas de poder e biopoder; das sociedades de soberania às sociedades de controle, o
qual finaliza com a descrição do corpus da pesquisa.
No segundo capítulo, abordou-se a construção histórica da figura feminina e o estudo
se remeteu à historiografia da mulher, abordando a construção de sua identidade enquanto
processo histórico, seu preparo para a submissão e seu lugar na sociedade moderna.
Finalizando a pesquisa, o capítulo três abordou os discursos, referindo-se à produção de
sentidos e o olhar para as representações sobre a mulher, seu corpo estereotipado, sua imagem
ligada às tarefas tipicamente femininas, maternidade e os discursos sobre a mulher nos livros
didáticos selecionados para a análise.
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Nesse capítulo, que versa sobre os caminhos da pesquisa, considerando seus aspectos
teórico-metodológicos, serão abordados os conceitos que visam sustentar a análise do
discurso sobre a mulher no livro didático. Partindo desse pressuposto, compreende-se que a
representação da mulher no livro didático possa ser interligada com essa construção
discursiva oriunda na sociedade e fomentada ao longo do tempo.
Assim como o discurso é uma construção social permeada de saberes e poderes, o
biopoder é conceituado como uma forma de fortalecimento e manutenção do poder. Desse
modo, o biopoder, ou poder pela vida, regulado pelas relações de gênero, o conceito de
homem e mulher coligado ao forte e fraco, é também utilizado para a análise das imagens das
mulheres nos livros didáticos.
Interessante observar que a relações de poder são complexas pois se revestem das
diversas imposições discursivas delineadas ao longo do percurso histórico humano.
Para melhor compreender a análise do discurso sob a perspectiva foucaultiana, abre-
se um recorte que antecipa o conceito de sujeito nas malhas do discurso, as práticas de
subjetivação e objetificação a fim de se analisar os dispositivos teórico-analíticos que
fundamentam a análise do discurso.
Sobre o discurso, Orlandi (2009) reforça que os sentidos antecedem o sujeito, ou
seja, primeiramente assumem a perspectiva histórica ou cultural, sendo reflexos ideológicos
exteriores que dependem da condição de produção. Por outro lado, os dispositivos teóricos,
podem ser dispostos na paráfrase, ou seja, repetição do mesmo, e na polissemia, constituída
enquanto meio de ruptura com o mesmo. A autora ilustra que embora um grupo social possa
ter a mesma língua, é composto por diferentes sujeitos que, por sua vez, agregam diferentes
sentidos ao discurso.
Acerca do enunciado e seu conceito, a pesquisa adota o que é apresentado por
Foucault (2008a). Para o autor, o enunciado pode ser considerado como a menor parcela do
discurso, ou mesmo acontecimentos discursivos. Assim sendo, os livros didáticos são meios
pelos quais os enunciados tomam forma e se agregam, relacionando-se aos sujeitos
discursivos e suas influências históricas. Do mesmo modo, Foucault (2008) determina que o
enunciado não precisa estar relacionado a uma condição propositiva, relacionada entre o
sujeito e seu espaço discursivo. Entre aquilo que é firmado e o que é compreendido. Assim,
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compreende-se que os enunciados necessitam de condições discursivas para que possam ser
legitimados.
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados com acontecimentos singulares. Mas o arquivo
é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa. (FOUCAULT, 2008a, p.147)
Para Foucault, existem diversos procedimentos que são vistos de forma a repreender
o discurso. A princípio é exposto que todo discurso é controlado pela interdição, que por sua
vez, é vista como um recurso capaz de limitar a enunciação do discurso. Mesmo no discurso
existem resistências, uma vez que nem tudo que pode ser dito por qualquer pessoa, em
qualquer lugar ou circunstância.
É preciso que se considere que o sujeito no discurso é histórico. Influencia e é
influenciado pelas proposições que sua historicidade carrega. Há uma tendência na repetição
dos discursos, e, portanto, atribuir importância, às vezes exagerada, à esses discursos. A
proliferação dos discursos é questionada por Foucault (2008b), ao: questionar: “Mas, o que
há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (p.8)
Por certo, o perigo não reside no fato de as pessoas produzirem seus discursos, mas
nos significados que estes possam assumir em sua proliferação. Basta que se observe a
realidade atual na qual as denominadas fake news têm chamado a atenção, tanto por sua
multiplicação, quanto pelo número de pessoas que nelas creem a ponto de terem se
transformado nas maiores aliadas do sistema político vigente. Essa atribuição de significados
torna o sujeito discursivo um portador, ele carrega consigo as ideologias nas quais acredita e
busca pelo convencimento fortalecê-las e torná-las perenes.
Por outro lado, os sujeitos vivenciam uma espécie de sociedade na qual não se
permite que os discursos sejam materializados em sua totalidade. A fala, a escrita, as
manifestações discursivas, passam pelo processo de exclusão ou de interdição. Isso significa
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Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de
tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado
ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições
que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade
complexa que não cessa de se modificar. (FOUCAULT, 2008b, p. 9)
discursos e se colocam abaixo da escala de produção dos discursos. São vistos como “servos
obedientes” das ideias difundidas como verdades.
Em relação aos sujeitos do discurso imposto nas relações de poder, Foucault (2008b)
reforça que a sociedade se reveste de hipocrisia, uma vez que se utiliza de relações
antagônicas para definir, combater e reivindicar papéis que a ela não compete.
Embora pareça, em primeiro plano, que os sujeitos do discurso são objetos passivos
do poder, é preciso que se ressalte que não é essa uma realidade geral. Ora, é preciso que o
olhar retome a história, para que se compreenda melhor tal perspectiva. São diversos os
registros em toda a história da humanidade das lutas pela resistência ao discurso do poder. As
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Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as formas
de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que
separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga
o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a
sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão). Porém mesmo
quando estão misturadas, uma delas, na maior parte do tempo, prevalece.
(FOUCAULT, 2008b, p. 235)
Discurso e poder andam juntos. Isso se torna evidente quando se analisa a realidade
ou mesmo as perspectivas históricas desde a Antiguidade. O poder sempre foi imputado
àquele que melhor construiu, significou, trabalhou com as palavras. Poderosos foram os que
conseguiram constituir no imaginário popular a necessidade de ser comandado, lapidado e
construído. Partindo de tal perspectiva, desse olhar para a aceitação (imposição) da
subjetivação e da submissão dos sujeitos do discurso, é que se compreende também as
resistências.
Muito se fala sobre a sujeição, submissão dos sujeitos do discurso. Mas, o que é
sujeição?
Considerando o léxico, por sujeição compreende-se o ato de subjugar, tornar alguém
dependente, obediente, subordinado. Como por exemplo em “A ida da mulher para o mercado
do trabalho não conseguiu livrá-la da sujeição ao homem”. Na sujeição discursiva, o sujeito se
torna cativo dos discursos impostos, precisa seguir regras que normatizam sua vida em
sociedade e, por vezes, passa a experimentar uma falsa liberdade, cerceada pelas convenções
sociais. Desse modo, é possível destacar as sujeições pelo gênero, pelas condições
econômicas, pelas hierarquias de poder, pela religiosidade, ou seja, por todos os aspectos que
se configuram na imposição de um discurso hierarquicamente instituído, ainda que sem
legitimidade.
A sujeição remonta à forma com que os discursos são recebidos. Por outro lado, na
subjetivação espera-se atividade, resistência, consciência de si e de pertencimento a uma
identidade cultural e individual. Para Foucault (2008b) os discursos seguem alguns princípios
e dentre esses, o da especificidade. Isso significa que o discurso não pode antecipar suas
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significações de forma precoce, nem se impor como simples decifração de enigmas formados
pelas palavras, registradas, ditas ou não.
[...] por ‘saberes sujeitados’, acho que se deve entender outra coisa e, em
certo sentido, uma coisa totalmente diferente. Por ‘saberes sujeitados’, eu
entendo igualmente uma série de saberes que estavam desqualificados como
saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados:
saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do
nível de conhecimento ou da cientificidade requeridos. (FOUCAULT,
2008b, p. 12)
Por outro lado, apresenta-se no discurso foucaultiano aquilo que é tido como
apropriação do discurso verdadeiro. Para sua existência, é necessária a existência de um
mestre. Assim, segundo Foucault “[...] a escuta será o primeiro momento deste procedimento
pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e recolhida como se deve, irá de algum modo
entranhar-se no sujeito, incrustar-se nele e começar a tornar-se suus (tornar-se sua) e a
constituir assim a matriz do êthos” (FOUCAULT, 2006, p. 402).
Além da técnica de escuta, Foucault ressalta a importância de outra técnica de si, a
memorização. Na subjetivação dos sujeitos discursivos, a memorização tem o papel
fundamental na reflexão que o sujeito fizer de si. Examinando sua consciência faz com que o
sujeito se aproprie de sua conduta e de tal forma, reforça os princípios adquiridos. Na
memorização, retoma-se o que se encontra marcado no consciente dos sujeitos. Segundo o
autor, é imprescindível que os sujeitos façam um exame de consciência, não para detectar e
vigar as culpas, mas como um meio de “volta-se para si mesmo e fazer um exame das
riquezas que aí foram depositadas.” (FOUCAULT, 1997, p. 129). Destaca-se que esse exame
tem a função de fazer com que os sujeitos novamente se adaptem às normas de conduta, bem
como possam retomar o que, em determinado momento, foi desejado ter sido feito.
A última técnica de si, como subjetivação dos sujeitos do discurso e citada por
Foucault, é a escrita. Embora na Antiguidade Clássica à escrita não tenha sido atribuída maior
importância, uma vez que se valorizava a oralidade como meio de se buscar as melhorias no
governo. Mais adiante, já nos séculos I e II é que as notas sobre si passaram a ser valorizadas.
O exame de si, da própria consciência não é mais utilizado como retomada de ações,
de organização do conhecimento adquirido. No cristianismo, o exame de si serve para reforçar
a necessidade de penitência de um sujeito pecador. A verdade é somente ascendida quando os
sujeitos passam pelos rituais de purificação, que requer destes o comportamento abnegado,
visto como primeiro passo para um bem maior, sacralizado e incorruptível.
No cristianismo os sujeitos são submetidos ao próprio juízo, manifesto na análise dos
próprios atos, bem como dos pensamentos, expostos na confissão de seus pecados. Nos rituais
cristãos, a subjetivação depende do desprendimento de bens materiais e apego na salvação de
sua própria alma. Por outro lado, conforme descreve Foucault “[...] não somente os
pensamento, mas também os movimentos mais íntimos da sua consciência e das suas
intenções.” (FOUCAULT, 2006, p. 809)
Foucault considera também que a escrita seja uma prática fundamental na
subjetivação. Pela escrita ocorre uma materialização do pensamento e como tal, exige-se do
sujeito um comportamento ético. A ética, nesses casos, serve para guiar aquilo que o sujeito
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pensa e regular o que é escrito. Por outro lado, na escrita de si o sujeito tem a oportunidade de
registrar aquilo que é ouvido e retomado. Pela escrita o sujeito também pode se apropriar das
verdades expressas nas leituras escolhidas ou impostas. A escrita, segundo Foucault, “[...] é
uma maneira de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade que
nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam o uso.” (2004, p. 151)
Para Foucault, verdade e poder, poder e discurso, verdade e discurso possuem uma
sistemática própria e como tal, inserem se nas relações do sujeito discursivo com a sociedade
no qual se encontra inserido, bem como sua historicidade. Entretanto, o autor julga que a
historicidade não tem compromisso com o sentido e sim, com o poder. “A historicidade que
nos domina e nos determina é belicosa e não linguística, relação de poder, não relação de
sentido. A história não tem ‘sentido’ o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente.”
(FOUCAULT, 2007a, p. 6)
Paniago (2005) declara que a preocupação de Foucault não está em constituir um
conceito fechado, indistinto sobre o poder,
O único recurso que temos são os modos de pensar o poder com base nos
modelos legais o poder com base nos modelos legais, isto é: o que legitima o
poder? Ou então, modos de pensar o poder de acordo com um modelo
institucional, isto é: o que é o Estado? (FOUCAULT, 2007b, p. 232)
Com base na questão sobre o que legitima o poder, é possível tentar compreender
como Foucault determina as relações de poder. De modo geral, o poder é legitimado no
discurso. Na construção de relações, poder e força podem ter a mesma destinação, no contexto
discursivo dos sujeitos, a força é utilizada de uma maneira mais sutil, mas influenciando,
construído concepções do que se impondo mais bruscamente.
O poder emana do discurso, isso é inegável. As relações de poder legitimam os
discursos que são impostos, seja por meio da oralidade ou pela escrita, mas para Foucault as
relações de poder servem tanto à análise quanto à compreensão de como os sujeitos são
constituídos.
Sobre a visão foucaultiana do poder, Paniago (2005) reforça que:
O poder, para Foucault, não é algo que se possa possuir, porque não é um
bem alienável do que se possa ter a propriedade. Por isso, qualquer que seja
a sociedade, não existe divisão entre os que tem e os que não tem poder [...]
embora não haja um titular, um dono do poder, o poder é exercido sempre
em determinado sentido, não necessariamente de cima para baixo. O poder,
em outras palavras, não se possui, o poder se exerce ou se pratica.
(PANIAGO, 2005, p. 81-82)
Foucault reforça que nas relações de poder, a resistência ao poder deve ser analisada
concomitantemente à sua racionalidade interna, utilizando para isso “as relações de poder
através do antagonismo das estratégias.” (FOUCAULT, 2007b, p. 234). Por outro lado, o
autor reforça que para compreender as relações de poder, seria necessário antes, analisar o que
se denominou de lutas antiautoritárias. Pela ótica foucaultiana as lutas servem para que o
poder mude de lugar, de discurso e de mãos.
Assim, de acordo com Foucault (2007b) as lutas antiautoritárias possuem alguns
traços em comum, sendo estes:
São lutas ‘transversais’; isto é, não são limitadas a um país. Sem dúvida
desenvolvem-se mais facilmente e de forma mais abrangente em certos
países, porém não estão confinadas a uma forma política e econômica
particular de governo; o objetivo destas lutas são os efeitos de poder
enquanto tal, por exemplo, a profissão médica não é criticada essencialmente
por ser um empreendimento lucrativo, porém porque exerce um poder sem
controle, sobre os corpos das pessoas, sua saúde, vida e morte.
(FOUCAULT, 2007b, p. 234)
Considerando que em relação ao poder, as lutas são para que este não se extinga e
sim mude de mãos, Foucault reforça que as lutas antiautoritárias se revestem de imediatismos
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e como tal, as instâncias mais próximas do sujeito são as mais criticadas, pois exercem maior
poder e maior ação sobre os sujeitos.
Elas não objetivam o ‘inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam
encontrar uma solução para seus problemas no futuro (isto é, liberações,
revoluções, fim da luta de classe). Em relação a uma escala teórica de
explicação ou uma ordem revolucionária que polariza o historiador, são lutas
anárquicas. (FOUCAULT, 2007b, p. 234)
seu direito de vida e de morte, irá depender de quanta ideologia consegue difundir e quantos o
seguem.
Por outro lado, Foucault institui outro poder a partir da “tecnologia de poder”,
instrumentalização das relações sociais a partir de suas técnicas de poder não disciplinares.
Reside aí os pressupostos do que o autor passou a denominar “biopoder”. Esse poder não é
mais exercido sobre a disciplina dos homens, mas sobre suas vidas. Não se materializa no
homem-corpo, mas no homem enquanto ser vivo. De uma forma mais simples, biopoder nada
mais é do que o exercício do poder sobre o direito de vida e de morte dos sujeitos, não
somente sobre o corpo, mas sobre sua formação biológica.
O biopoder é representado como uma forma de controle dos sujeitos. Como tal se
impõe por meio das questões biológicas. Corpos, enquanto objetos do discurso, são
considerados como instrumentos de dominação. Relembrando, para Foucault, o poder não
existe e sim, as práticas de poder. Ou seja, para que haja a imposição do discurso de poder é
preciso que haja um sujeito do poder. No biopoder, é priorizado o controle do corpo, objeto de
discurso. Quando o corpo pode ser controlado, os sujeitos se submetem às práticas de poder.
O biopoder, para Foucault pode ser considerado como tecnologia de poder, que tem
o centro na vida dos sujeitos. Sem sua existência, a sociedade perderia sua capacidade
normatizadora. E sem essa capacidade, as relações e práticas de poder perderiam a força.
Analisando essa possibilidade, gênero, corpo e sexualidade não poderiam ser limitados pela
ordem ou controlados pelo Estado. O biopoder:
A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder
que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer
viver e em deixar morrer. [...] a manifestação desse pode aparece
concretamente nessa famosa desqualificação progressiva da morte. [...] a
morte era o momento em que se passava de um poder, que era soberano aqui
na terra, para aquele outro poder, que era o do soberano do além.
(FOUCAULT, 2005, p. 295)
Conforme mencionado, o corpo é discurso, e como tal, objeto das técnicas de poder.
O corpo discursivo representa ideologias, sofre influências, é contido, controlado,
normatizado. Portanto, o corpo é considerado o lugar de resistências, bem como da imposição
de forças. Le Breton (2007) reforça que o corpo é o que ancora o sujeito em sua visão e
vivência de mundo, sendo construído e transformado a partir de seu contexto social e cultural.
Sobre corpo, poder e gênero, Fischer (1996) discorre que o corpo e o gênero são
instrumento das técnicas de poder, sendo o corpo um lugar do qual emanam as identidades.
“Porém, se efetivamente os corpos são constituídos como efeitos de poder, não há como
ignorar que a histórica desigualdade nas relações entre homens e mulheres constitui
profundamente não só o corpo feminino como as identidades de gênero.” (FISCHER, 1996, p.
94)
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É sob a perspectivas das desigualdades nas relações de gênero é que se torna possível
compreender os discursos que são construídos na sociedade, expressos, tanto na oralidade
quanto na escrita. Aqui, é repousado o olhar para os meios de representação do corpo da
mulher nesse antagonismo desperto pela sexualidade, e pelo homem enquanto sujeito de
poder.
O discurso de Le Breton (2007) vem de encontro com as formas de representação do
corpo da mulher. De acordo com o autor, em relação ao corpo há uma dualidade, uma vez que
esse é uma expressão social. O ato de nomear o corpo, seria o cumprimento de um fetiche e
alimentação de uma dualidade. Quando a sociedade “nomeia” o corpo feminino, chamando-o
de “belo”, “feio”, “idoso”, “obeso” há a omissão daquelas que o encarnam, do que há além
dos estereótipos ligados à mulher.
O corpo feminino, objeto dos discursos de poder, passa a ser considerado não apenas
sob a perspectiva biológica, mas compreendido a partir das diferenças, principalmente as
sexuais. De acordo com Fischer (1996) a partir de tais diferenças que se torna possível
compreender como a desigualdade de gênero é legitimada.
da classificação do certo e errado, do santificado e pecador. Corpo esse que migra nas
dicotomias que criam estereótipos e classificam.
O estereótipo, conforme menciona Brito e DallaBona (2014), se origina do grego
steros + typos e até a década de 1920 era utilizado para nomear uma forma de impressão que
se utilizava de placas em uma técnica denominada estereotipia. A partir de 1920 é que o termo
deixou de ser usado no contexto da imprensa e assomou o âmbito social. Assim, o estereótipo
é definido como “uma impressão que marca determinantemente as relações sociais. Eles
podem e devem, porém ser reavaliados e remodulados, pois sofrem alterações de acordo com
o contexto e com a intenção de quem o cria ou que dele se apropria.” (BRITO;
DALLABONA, 2014, p. 17)
O corpo feminino é, ao mesmo tempo, origem do prazer e fonte de pecado. Enquanto
gênero socialmente construído, os olhares para as épocas anteriores comprovam o poder que o
discurso social exerce sobre a construção da identidade feminina. Nessas relações de poder,
aqueles que representam o discurso regulador social, os homens, exercem o poder sobre as
mulheres. Esse poder é instituído desde o nascimento e se legitima em diversas fases da vida
social feminina, continua no matrimônio e se transfigura na maternidade.
Entre homens e mulheres existem distinções que vão além do contexto biológico,
mas perpassam pela cultura, como constituinte do gênero e da identidade.
Como vemos, o princípio de ter que se casar está fora do jogo comparativo
entre as vantagens e os aborrecimentos do casamento: ele se expressa como
a exigência para todos de uma escolha de vida que se dê a forma do
universal porque é conforme à natureza e útil a todos. O casamento liga o
homem a si próprio enquanto ser natural e membro do gênero humano.
(FOUCAULT, 2005, p. 157)
O corpo, em Foucault e para Fischer, precisa ser situado além das questões que
cercam a sexualidade da mulher. O corpo, sobretudo o feminino, é um objeto ideológico, e
como tal, instrumentalizado e tido como a materialização do saber e do poder. Estas relações,
por sua vez, são captadas nos discursos que impõem ao corpo da mulher a erotização, os
estereótipos e as construções de submissão e inferioridade. Conforme menciona Le Breton
(2007), o corpo delimita a soberania da pessoa, entretanto, há que se ressaltar que na relação
imposta à mulher, seu corpo é comunitário, objetificado e por isso, resultante da soberania
masculina.
Sayão (2003) destaca que a construção discursiva sobre o corpo, gênero e poder se dá
de forma desequilibrada, uma vez que não se observa uma igualdade quando se trata de
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homens e mulheres. As relações de poder se encontram nas mãos dos homens enquanto para
as mulheres restam o papel de subordinação, ou objetificação. Quando sacralizadas, precisam
acompanhar a vida santificada de outras mulheres, quando popularizadas, tornam-se as donas
de casa, mães, esposas, ou as prostitutas e marginalizadas cujos corpos nunca ocuparão outros
espaços para além da objetificação, da transformação de seus corpos em mercadoria de
consumo, sem qualquer valor.
A autora cita, ainda, a verdade que, de acordo com Foucault (2007a), possui cinco
características responsáveis por fazer com que a verdade seja:
É importante que se destaque que a verdade não assoma em todo lugar, pois depende
de instantes, lugares e espaços. A verdade não pode ser produzida na sombra, ela depende da
luz para se revelar, cria-se um jogo do velado e não velado. Pressupõe-se que a verdade seja
uma ínfima parte daquilo que não é velado, não se ilumina de forma natural, sendo produzida
de acordo com a necessidade de se lançar luz sobre algo. Aqui não se fala em mentiras, mas
na produção de ideias, fatos, pensamentos que materializados, e à luz da crença social,
tornam-se verdades.
Foucault (2007a) relaciona poder e verdade enquanto elementos que se encontram
condicionados, não separadamente, mas na reciprocidade. De acordo com o autor, o poder
somente poderá ser exercido se for originado na produção da verdade. Para tanto, considera-se
que exista uma luta pela verdade.
Paniago (2005) afirma que Foucault:
Estabelece uma íntima relação entre verdade, saber e poder, uma vez que por
verdade deve-se compreender o conjunto de procedimentos regulados para a
produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados
e que, por esse motivo, a verdade está circularmente ligada a sistema de
poder. (PANIAGO, 2005, p. 123)
Foucault prevê que entre poder e saber, exista uma articulação que pode ser
eternizada, considerando, essencialmente, que toda relação de poder necessita do saber. “[...]
não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre o
poder.” (FOUCAULT, 2007a, p. 142)
espaços são determinados por Foucault como constituintes dos dispositivos essenciais na
regulação e normatização de costumes, hábitos, e do mesmo modo, tudo que possa regimentar
ou padronizar a vida social.
De acordo com Paniago (2005, p. 126), “O poder, nas sociedades disciplinares em
relação às sociedades de soberania, perde um pouco de sua visibilidade, afinal já não se tem
um ponto central de poder com tanta força como antes, mas vários pontos – disciplinas – de
confinamento dos sujeitos.”
A individualização é defendida pela autora como sendo um outro meio de distinção
entre as características do poder soberano e o poder disciplinar. Citando as sociedades
medievais, Paniago (2005) reforça que nessa época a individualização somente era permitida
àqueles que se encontravam nas denominadas, regiões superiores do poder, aqueles que a
soberania estivesse em exercício.
Por outro lado, as sociedades de controle podem ser descritas como aquelas nas quais
os mecanismos de controle passam a pertencer ao que se denomina corpo social. O poder não
se restringe ao controle do espaço ocupado pelos sujeitos, mas toma conta também de seus
cérebros a partir do poder de um comando. Esse tipo de sociedade se esmera no controle pelo
adestramento, pela normatização excessiva, padrões a serem rigorosamente seguidos e
multiplicados. O controle é exercido juntamente com a ilusão de liberdade. Assim, os sujeitos
creem que são livres para pensar enquanto as verdades produzidas o induzem a seguir o que
se espera mediante o controle.
Nesse tipo de sociedade o uso da força não é essencial, uma vez que os grilhões
ideológicos materializam o que se espera dos sujeitos.
O poder na sociedade de controle é tão sofisticado, tão invisível por estar tão
pulverizado, que, embora o exercício do poder esteja muito mais eficiente,
aos ouvidos dos dominados podem chegar apenas os discursos
dissimuladores de liberdade, saúde, qualidade, bem-estar. E é assim que, em
nossa sociedade de controle, são produzidos discursos que nos governam,
que nos adestram, que disciplinam o nosso corpo, que direcionam as nossas
42
escolhas, e que são altamente eficientes porque nos dão a impressão de que
somos livres. (PANIAGO, 2005, p. 130, grifos nossos)
Quando se refere à análise do discurso, Orlandi (2009, p.63) reforça que o corpus
precisa ser constituído a partir de “montagens discursivas que obedeçam a critérios que
decorrem de princípios teóricos da análise de discurso face aos seus objetivos.” Mediante isso
é que o corpus de análise dessa pesquisa baseou-se nas sequências discursivas, verbais ou
imagéticas, cujos objetivos se fundamentaram na criação de verdades sobre a mulher,
presentes em quatro livros didáticos adotados na rede de ensino público.
Na constituição do corpus da pesquisa, destaca-se a construção de um dispositivo de
interpretação, como bem define Orlandi (2009)
Esse dispositivo tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que
o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo
com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que
ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras. (ORLANDI,
2009, p.59)
O século XIX marca a expansão do capitalismo como uma nova forma de relação
comercial e o fortalecimento da burguesia, inserindo seus reflexos no cotidiano social,
sobretudo no contexto familiar, embora as famílias ainda fossem constituídas sob a égide do
sistema patriarcal. Desse modo é importante que se faça um retrospecto histórico e se construa
um percurso historiográfico acerca da mulher desse período.
Não obstante, a partir das transformações econômicas que aos poucos foram sendo
impostas à nova sociedade emergente, o lugar da mulher ainda se caracterizava pelo exercício
de um papel secundário, ainda enraizado na prática da maternidade, subserviente,
primeiramente ao pai e irmãos e depois, ao marido.
Na sociedade burguesa em ascensão, os casamentos se tornavam uniões baseadas em
negócios, com profundos interesses das partes em manter heranças, riquezas ou ampliar a
2
A historiografia trata da escrita oficial da História, daquilo que foi documentado e registrado a partir dos relatos
orais e dos registros deixados ao longo do tempo. Quando se trata da perspectiva historiográfica da mulher, faz-
se referência aos escritos sobre a trajetória feminina e a forma de registro desse contexto. Notas da autoras.
46
possibilidade de ganhos sobre o capital. De acordo com Del Priore (2011), o matrimônio
possuía uma funcionalidade específica, e à mulher a essência dessa união, ou seja, a
procriação.
fez com a família burguesa assumisse ainda mais o espaço constituído nas cidades,
urbanizando também as relações sociais, e impondo os limites considerados necessários entre
os sujeitos que compunham e descreviam o povo, a mão-de-obra proletária e a aristocracia.
Esse contexto, obviamente, delineou também o lugar da mulher, tanto a que pertencia
à burguesia, quanto a mulher do povo. A mulher da elite passou a ser aquela esperada nos
círculos sociais, o corpo, ainda submetido às imposições capazes de restringir a liberdade do
comportamento, travestido da ideia de “liberalidade das emoções”. Esse espaço ocupado pela
mulher burguesa é descrito por D’Incao (2008) ao afirmar que:
Por ironia, o homem, embora detivesse o poder sobre a mulher, dela passava a
depender quando se tratava da imagem mantida em sociedade. Isso significava um maior
esforço em manter as convenções sociais, ilustradas na ideia de matrimônio perfeito,
frutificado nos filhos concebidos e no respeito à privacidade do interior das casas, sobretudo
na intimidade das alcovas, dos corpos virgens dados em casamento para que a ascensão social
pudesse ser garantida.
A mulher do povo, em grande parte composto pelos imigrantes pobres, pelos
escravos ou libertos, bem como pelo colonizador empobrecido, pode ser descrita como aquela
que assumia afazeres que para a burguesa eram considerados inaceitáveis. Isso porque as
atividades femininas também se dividiam de acordo com as classes, as mais abastadas
deveriam demonstrar habilidades em prendas domésticas e as pobres teriam que garantir seu
sustento. Assim, de acordo com Falci (2008):
Esse contexto alimentou o que Del Priore (2011) delineou como a história das
amantes, popularizadas no século XIX como uma alternativa para que a imagem da mulher
48
3
Miscigenação é o nome dado ao processo de mistura de diferentes etnias. (HOLANDA, 2012)
4
O Império Romano foi constituído pela antiga civilização romana cuja característica principal foi a imposição
de um governo autocrático, liderado pelo imperador. (FEIJÓ, 2010)
49
Esse modelo idealizado não era inédito, posto que já se encontrava diluído no
comportamento esperado da mulher, casada ou das filhas à espera de um pretendente, de que
deveriam ser mães exemplares e esposas impregnadas de virtudes. Ao homem era dado o
direito das amantes e os filhos bastardos acabavam se tornando símbolos de virilidade. O
adultério era ato imperdoável por parte da mulher, o corpo, utilizado para perpetuação do
nome, e era procurado enquanto houvesse a possibilidade de gestação.
Entretanto, cabia à esposa o fardo de manter a moralidade do matrimônio e a
infidelidade masculina se justificava na manutenção da imagem idealizada e constituída
50
O contexto das mulheres proletárias era constituído pelo forte apelo da imigração, do
capitalismo e a possibilidade de ascensão pelo trabalho, pelas necessidades que não podiam
ser alcançadas apenas no trabalho masculino, sendo a mão-de-obra feminina essencial para o
funcionamento de diversos setores. Destaca-se que o ideal positivista5 coloca a mulher como
capaz de gerir o lar, pois sua inteligência poderia ser complementar à do homem. Entretanto,
ainda se esperava que a mulher fosse virtuosa, filha amorosa, esposa compreensiva e
dedicada. Do mesmo modo, a mulher pobre e trabalhadora deveria primar pela virtude, para
não macular a imagem de limpa e confiável. Se não lhe era dada a sorte de nascer em família
abastada, deveria cultivar o desejo de ser esposa, mãe e assim, honrar o homem que
porventura a escolhesse.
5
A filosofia positiva surge na França no século XIX, tendo como principal representante Auguste Comte (1798-
1857), sendo uma de suas principais obras, publicada em 1830, o “Curso de Filosofia Positiva”. Notas das
autoras.
51
nos círculos sociais, representada em textos veiculados nos jornais em forma de anedotas e
piadas.
As mulheres dos últimos anos do século XIX eram descritas como desleais, infiéis,
dotadas de uma extrema ignorância acerca dos assuntos que não se referissem ao lar e à
criação dos filhos, além de presunçosas e ignorantes. “A fidelidade feminina parecia ser a
grande ‘virtude’ exigida das mulheres, pois elas tendiam a ser ‘traiçoeiras’ [...] quadrinhas,
provérbios, piadas, falavam do perigo que o sexo feminino poderia representar. ” (PEDRO,
2008, p. 309)
Por outro lado, como descreve Del Priore (2011),
Nesse novo século, a mulher não é apenas a esposa ou a proletária, sendo a ela
delegado também o oficio de chefe dos lares em que o homem não se afigurava. “Isso se
devia não apenas às dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos,
próprios da cultura popular.” (SOIHET, 2008, p. 362).
Com a urbanização ainda mais acelerada, os centros passaram a ser também os
espaços de circulação dos pobres, vindos das periferias para exercerem suas funções que tanto
podiam ser nas casas abastadas quanto nas fábricas e demais ambientes comerciais. As
habitações desses sujeitos denotavam o senso de coletividade que ia tomando o lugar da
privacidade dos lares. Os cortiços fomentavam relações que beiravam a promiscuidade, tanto
na divisão do espaço quanto na ocupação de seus corpos.
A mulher pobre do início do século XX se dividia entre o espaço de trabalho e a
coletividade cultural dos cortiços e vilas. Ali seus filhos seriam criados também de forma
coletiva, se misturando aos tantos outros, também frutos da mesma sorte. Não havia
perspectiva de ascensão social, e embora se ocupassem de atividades nas fábricas ou nas
residências, a remuneração feminina era escassa e desvalorizada, como haveria de ser por
muito tempo ainda.
A modernização econômica sugerida nos espaços ocupados pelas indústrias e
estabelecimentos comerciais fez com que houvesse a necessidade de se atribuir uma nova
identidade aos ambientes centrais das grandes cidades. Por outro lado, os projetos de
saneamento impunham uma nova realidade, a da marginalidade.
Somente nas camadas populares era permitido à mulher sair desacompanhada. Sem
uma honra ou virtude a ser defendida, não se dava muita importância aos horrores sociais que
a mulher desacompanhada poderia suscitar. Assim, desprotegida, a mulher pobre se
encontrava suscetível à violência das ruas e dos becos e foram cometidos inúmeros
assassinatos contra as desavisadas que precisavam sair para trabalhar e não desfrutavam de
uma companhia que as pudesse resguardar. Por outro lado, a falta de companhia colocava em
dúvida a honestidade das mulheres pobres, o que não ocorria com as abastadas, livres para
frequentarem alguns espaços sociais, como cafeterias, teatros, casas de chá, mas proibidas de
o fazerem desacompanhadas. “Essa exigência afigurava-se impossível de ser cumprida pelas
54
mulheres pobres que precisavam trabalhar e que para isso deviam sair às ruas à procura de
possibilidades de sobrevivência. ” (SOIHET, 2008, p. 365)
Mesmo nesse contexto sombrio, a mulher das camadas populares desfrutava de uma
liberdade sexual que a burguesa nem ousava pensar. Dada a essa liberdade, a mulher pobre
tendia a defender seu espaço com mais afinco, uma vez que sem riquezas, não havia nobreza a
ser preservada.
embora uma nova configuração social permitisse a aproximação entre homens e mulheres, em
namoros e incursões na intimidade das famílias, vistas sob a ótica do modelo a ser seguido.
Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das
mulheres. Na ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e
dedicação ao lar faziam parte da essência feminina; sem história, sem
possibilidade de contestação. A vocação prioritária para a maternidade e a
vida doméstica seriam marcas de feminilidade, enquanto a iniciativa, a
participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura
definiriam a masculinidade. (BASSANEZI, 2008, p. 609)
A mulher, então, passou a ser educada, ou ensinada, a ser uma boa esposa, afável ao
ponto de o homem se deleitar somente com sua presença. Entretanto, a intimidade partilhada
demonstrava o desejo pelo corpo, não mais somente para a concepção, uma vez que alguns
métodos contraceptivos eram utilizados.
Nos anos subsequentes, houve diversos movimentos de fortalecimento da identidade
feminina, principalmente voltados para a classe trabalhadora, além da busca pelo direito de
posse de seu próprio corpo. No entanto, esses movimentos não incluíam as mulheres negras
ou mesmo as indígenas. Havia a busca por novas perspectivas, mas essas eram delimitadas
pela cor da pele. De acordo com Davis (2016) as mulheres negras eram subjugadas às mesmas
condições do período da escravização, mas os grilhões eram outros, forjados na ideia de que
não poderiam se misturar às brancas, sendo tratadas como indignas de estarem junto às
brancas.
O movimento pela liberalização da pílula marcou uma nova simbologia ligada à
mulher, representando um domínio sobre seu próprio corpo, como meio de desligamento da
sociedade machista predominante. O espaço histórico, social e econômico passa a ser ocupado
pelas trabalhadoras, designando para si um importante meio de mudança da realidade, bem
como de ação política.
Os anos seguintes do século XX trazem uma imagem de mulher que ora se liga aos
movimentos sociais, ora se volta aos estereótipos relidos e reconstruídos. A
56
contemporaneidade traz a mulher fruta, as odaliscas rebolantes, o culto à bunda como parte da
personalidade feminina. A mulher, em diversos aspectos, deixa de ser “mulher” e passa a ser
uma parte do corpo humano, um atributo físico apenas.
Novaes reforça essa ideia ao afirmar que:
longo do tempo. Sempre se apresentando sob os dois aspectos correntes, da identidade secular
imposta socialmente, com um papel a cumprir, e a marginalidade, pertencente a uma
subclasse estereotipada, estigmatizada, rotulada. Por outro lado, há na história da mulher a
invisibilidade cultural e social que mais tarde precisa ser modificada, revisitada. A identidade
precisa se tornar visível, pois a história impunha essa exigência e nesse contexto, as lutas
femininas por espaço se tornaram pungentes.
Louro (1997) destaca que a mulher foi, aos poucos, assumindo novas funções.
Novamente uma identidade que lembra uma papel, algo passageiro, que pode ser
desempenhado tanto em um curto, quanto em um longo espaço temporal. É intrigante e ao
mesmo incomoda pensar que a mulher não teve uma identidade, mas somente um papel ao
longo da história. O conceito de papel pode inserir seu significado em algo transitório, que
61
pode ter valor ou não e que também corre o risco de se esvaziar de seus significados maiores.
A identidade da mulher é historicamente constituída sobre as mais diversas atividades, nos
mais diversificados papéis que foram sendo assumidos ou impostos ao longo de sua
existência.
Suas atividades, no entanto, eram quase sempre (como são ainda hoje, em
boa parte) rigidamente controladas e dirigidas por homens e geralmente
representadas como secundárias, “de apoio”, de assessoria ou auxílio, muitas
vezes ligadas à assistência, ao cuidado ou à educação. (LOURO, 1997, p. 17)
6
As mulheres frutas foram assim chamadas as dançarinas de funk que em 2000 tiveram destaque na mídia por
suas medidas de quadris avantajados, sendo chamadas por nomes de frutas. Destaca-se a mulher Melancia e
mulher Melão que se apresentavam nos programas de auditório e foram capas de revistas masculinas. Hoje, o
termo mulher-fruta se relaciona também à relação mulher-comida, mulher de copa e cozinha, numa visão
machista dos lugares e papeis que as mulheres ocuparam ao longo da história. Nota das autoras.
7
Misoginia é a repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres. Esta forma de aversão mórbida e patológica ao
sexo feminino está diretamente relacionada com a violência que é praticada contra a mulher. Disponível em
https://www.significados.com.br/misoginia/
62
problemas que essa subclasse marginal trouxe à essa questão da identidade feminina. Mesmo
com as lutas e engajamentos de muitas mulheres nos movimentos políticos e sociais, existem
muitas que resistem ao movimento que a história trouxe, preferindo continuar na passividade,
exercendo seus papéis conforme a necessidade. A autora ressalta uma pesquisa realizada por
uma determinada revista, em que as participantes quando indagadas responderam preferir as
atividades do lar, mas viver uma vida tranquila ao lado de seus maridos, do que ter que
assumir as responsabilidades que uma vida com autonomia poderia impor. “Elas diziam
preferir ser objetos dos homens a sujeitos da história. Não estavam interessadas em política
nem em igualdade de salários. Davam maior importância à maternidade e à família. Contra o
aborto, eram favoráveis à contracepção.” (DEL PRIORE, 2013, p. 32)
Essa pesquisa datava de 1978 e reforçava o mito da Amélia8. Na década de 1980, já
no limiar de 1990, outra pesquisa foi realizada e de acordo com Del Priore (2013) a mulher já
não mais aceitou o papel que suas antecessoras havia deixado como legado. Essas já são
chamadas de “novas mulheres” que assumiram para si a identidade emancipada, com o poder
de escolha das funções a serem executadas, que trabalhavam fora, mas que somente em casos
excepcionais, e muitas vezes não por escolha própria, assumiam o papel de provedoras de
seus lares.
Em meio à emergência do culto ao corpo, dos físicos supercuidados, a identidade
feminina foi sendo lapidada, entretanto, ainda ligada à dependência masculina. Mas na década
de 1990 isso também foi sendo modificado. No entanto, a ascensão das mulheres frutas
colocou em questão mais uma vez as conquistas femininas e sua identidade, nas frutas, o
realce do corpo comestível, nas lutas, a necessidade de construir algo que pudesse ser deixado
como legado para as futuras gerações, das mulheres inseridas nos movimentos sociais, na
política, indo além de corpos dançantes se ofertando em banquetes.
Acerca do culto ao corpo e como isso pode ser interpretado (erroneamente, há que se
destacar) como uma certa dependência da mulher em relação ao homem, Wolf (1992) reforça
que o mito da beleza traz em si os últimos resquícios da ideologia utilizada para dominar a
mulher e tentar minimizar suas conquistas, migrando as atenções para um modelo de corpo
idealizado como forma de contenção social. Para a autora, o corpo da mulher passa a ser
representação de um ideal de beleza que somente existe enquanto aparelhagem da repressão
8
Ai, que saudades da Amélia é uma das canções mais famosas de Ataulpho Alves, composta em parceria com
Mário Lago. A partir dessa canção popularizou-se o mito da Amélia: idealização da mulher que aceita tudo por
amor, que é conformada com o destino. Alguns afirmam que a intenção dos autores era fazer de Amélia um
símbolo da mulher compreensiva, amiga, solidária. É certo, entretanto, que permanece até hoje o símbolo da
mulher dominada, humilhada, explorada e submetida, gerado também pela letra da música. (CARVALHO, 2005,
p. 5)
63
Nem Amélia nem ativista, a brasileira dos anos 1980 era conservadora e
tímida, mas sabia que sua filha precisava conquistar independência. Passou a
comprar roupas feitas e esqueceu a máquina de costura. O ferro elétrico foi
pelo mesmo caminho, pois, de tudo o que fazia em casa, passar roupa era o
mais detestado. Em sua opinião, mulher devia trabalhar fora; podia romper
um casamento e iniciar outro. [...] Dividida entre valores novos e
tradicionais, rejeitava a ideia da submissão da mulher. Ao mesmo tempo, na
prática, deixava ao homem a maior responsabilidade pelo sustento da casa.
Espremida entre uma educação antiquada e os ventos de um feminismo que
ainda não entendera, a mulher casada brasileira rompeu um ciclo – fora
educada pela mãe de modo muito semelhante ao que já ensinara a avó, No
entanto dava à filha conselhos que construiriam gerações de mulheres
diferentes. [...]. As velhas expressões “prendas do lar” e “doméstica”
começavam a cair em desuso. Elas educavam as filhas para serem mulheres
preferencialmente casadas, mas independentes. (DEL PRIORE, 2013, p. 38)
depois, pelos laços do matrimônio, sendo gestada e criada para a submissão. A perspectiva
histórica aponta para uma “invisibilidade” preenchida por um modelo de educação da mulher
para prepará-las mediante uma finalidade bem específica.
De acordo com Louro (1997) tal invisibilidade se fortaleceu a partir da perspectiva
do privado e doméstico, que colocou a mulher em espaços distintos, que a inseriu no
cotidiano dos filhos e marido, assim, houve uma espécie de ruptura quando a mulher passou a
conhecer e atuar em outros espaços, diversos dos que haviam sido historicamente
determinados, ocupando os contextos representados pelo trabalho e novas vivências sociais.
Segundo Louro (2008), no século XVIII e XIX o trabalho era visto como algo
degradante, particularidade das camadas empobrecidas que não havia herdado nada que
pudesse garantir seu sustento. No final do século XIX e depois, no século XX, o trabalho
passou a ser necessidade, uma vez que a perda de títulos e posses dos ricos fez com as
mulheres precisassem também se empregar, algumas assumindo a função de preceptoras e
outras, indo para as fábricas ou plantações. A mesma autora expõe que:
rituais impostos pela educação cristã. A mulher exerceu a condição inserida no que Louro
(1997, p. 57) descreve como “instâncias ou situações de subordinação”.
Nessas condições de subordinação a mulher foi instruída para ser obediente e
abnegada, como forma de reconhecimento do poder masculino.
lar paterno fosse imaculada. Se a moça não se mostrasse prendada, a culpa era toda de sua
mãe que não soube educá-la. Caso contrário, se senhorita fosse por demais sabedora dos
segredos do lar, bem-aventurado seria seu pai, por oferecer à sociedade uma prenda de tão
alto valor.
Ser professora era uma função transitória para a maioria das mulheres, pois o
casamento era o objetivo. As que envelheciam na profissão o faziam, em muitos casos, não
por escolha própria, mas como resultado de rejeições à possibilidade de serem escolhidas para
o casamento. Durante muito tempo a imagem da professora esteve associada à figura
solteirona, envelhecida sem conhecer o amor, o casamento e sem ter sido mãe.
Com o passar dos anos, a presença da mulher nas salas de aulas representou nova
forma de mão-de-obra barata, isso porque, conforme mencionado, a docência era vista como
uma ocupação que não duraria muito ou. por outro lado, como uma extensão do trabalho
doméstico. Quando muito, uma função exercida pelas mulheres que não se encaixavam no
que se desejava para uma esposa. “O casamento e a maternidade eram efetivamente
constituídos como a verdadeira carreira feminina. Tudo que levasse as mulheres a se
afastarem desse caminho seria percebido como desvio da norma.” (LOURO, 2008, p. 454)
Nesse sentido, de acordo com Almeida (1998):
Essa pedagogia feminista coloca a termo, o que Almeida (1998) descreve enquanto
forte necessidade de libertação, como forma legítima de se impor sobre o destino delineado
por outros. Uma dicotomia quando se observa que em meio ao processo de urbanização,
crescimento econômico e social, vivia a mulher ainda subjugada, sub-representada, biológica
e socialmente desprezada.
A educação da mulher, na segunda metade do século XX, não se volta mais para a
submissão ao marido. O casamento passa a ser uma opção que pode ser desfeita, não sendo
mais para sempre. Nessa linha, a docência perde parcela de sua representação enquanto mera
vocação, extensão dos afazeres domésticos e passa a pertencer aos movimentos sindicalizados
e a pedagogia feminista se fortalece. Por outro lado, ainda persistem as relações de poder,
uma vez que do mesmo modo que em outros setores, os salários das professoras nunca se
equiparam aos dos professores. (DEL PRIORE, 2008)
Ao se inserir no mercado de trabalho, a mulher passou a agregar três funções, a de
trabalhadora e a de mãe e esposa. Não mais criada na passividade, a mulher passou a ser
educada para competir, lutar pela ocupação de um espaço negado, contra a reprodução do
mito da inferioridade. Nesse espaço tipicamente masculino, a educação da mulher se fez em
meio às lutas femininas.
A mulher moderna foi cunhada por inúmeras outras mulheres desde a Antiguidade,
entretanto, ainda padece do silenciamento imposto pelas vozes que ordenam o poder,
sobretudo sobre o corpo, ditando regras e modelos morais a serem seguidos, restringindo o
espaço que pode ser ocupado pelas mulheres, mesmo que esse tenha se ampliado.
É impossível discorrer sobre a mulher contemporânea sem adentrar no discurso
feminista, pois a partir de sua organização enquanto gênero e classe, é que as mulheres
delimitaram o espaço da intimidade, doméstico, cultural, político e social. Por outro lado, há
quem defenda que os conflitos entre homem e mulher se aproximam das disputas de poder, e
por isso assumem uma dimensão transitória, na qual a mulher contemporânea se torna,
também a antiquada, eternamente presa no círculo vicioso dos séculos anteriores.
Entretanto, há que se levar em conta que a voz da mulher contemporânea veio do
silenciamento de suas antecessoras. Primeiro, silenciadas as mulheres no lar, as mulheres da
rua e das senzalas, depois silenciadas as que se submeteram às condições de trabalho
degradantes, as que tiveram seus corpos maculados, subutilizados para prazeres passageiros,
as que se perderam em meio à exploração de seus corpos... Nesses silenciamentos a mulher
contemporânea construiu seu espaço, se moldou às exigência de uma sociedade em
75
É importante destacar que o discurso da submissão não se baseia mais nas questões
biológicas, na falsa ideia de que a mulher seria mais frágil e, portanto, precisaria da tutela
masculina para sobreviver. A naturalização do masculino como naturalmente sobreposto ao
feminino, criando uma espécie de sombra sobre a existência da mulher, inferiorizando-a. Esse
processo, de acordo com Alves e Pitanguy (1985) também é utilizado para justificar o
racismo, o reducionismo social, partindo da consideração (falsa) de que sua inferioridade os
coloca na condição de comandados, tanto na esfera política, quanto na socioeconômica e
cultural.
homens e mulheres terem o mesmo reconhecimento. Por isso novamente a afirmação, não é
apenas a conquista de um espaço de dominação masculina, mas também uma disputa pelos
espaços de poder, aqueles que definem identidades ou as elimina.
Louro (1997) defende que nos estudos sobre a mulher, a argumentação deve ser
priorizada, no sentido de tentar construir uma perspectiva do espaço que provoque reflexões
que se materializem além da compreensão de suas características sexuais.
casamento escolhido pelos pais a ponto de disputar sua própria mão. Esse fenômeno traduz a
descontinuidade histórica que Foucault reforça. Sua maior crítica se dirige à história
tradicional, das continuidades, dos segmentos cronológicos que percorrem uma linearidade
controlada e previsível. A expectativa da descontinuidade histórica refaz o caminho do
sujeito. Quando se trata da mulher, essa ideia se torna consonante aos dizeres de Foucault
(2008a) ao afirmar que:
margem das perspectivas sociais. O tornar-se mulher precisa se contrapor à mulher tornada,
fabricada pelas ideologias masculinas que afetam a produção cultural, discursos pontuados de
intenções, as quais reforçam a submissão e fragilidade que se tornaram estereótipos da mulher
ao longo de sua história.
O livro didático nega o tempo de luta da mulher para sair da sombra do patriarcado,
principalmente quando traz o discurso da subordinação, afetando, quase que maligna e
irreversivelmente a forma como a identidade feminina se delineia. Enquanto recurso, o livro
didático é visto como uma manifestação ideológica ou manipulação do discurso para torná-lo
verdadeiro, o que Foucault (2007a) classifica como “regime da verdade”. O livro didático se
insere no conceito de poder e verdade, na existência de uma intersecção entre esses aspectos,
refletindo suas funções e história.
[...] é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder.[...] A verdade é
deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz
efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de
verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela
acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o
que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2007a, p. 10)
Assim, o preconceito e os estereótipos culturais ( loira burra, mulata de sexo e samba...) vão
se multiplicando a partir da ideia de que a mulher não faz parte de um todo que pode dividir a
mesma cultura. O gênero, no livro didático, também é recriado na perspectiva macho\fêmea
que tão-somente reproduz o discurso social do forte em defesa do fraco. Compreende-se,
então, a representação da mulher submissa ou submetida ao poder masculino como uma
tentativa de se justificar a ideia de que as diferenças de gênero deveriam ser compensadas no
tratamento reservado à mulher, de uma forma mais evidenciadas, nas representações e
apropriações sobre o corpo feminino.
O corpo - o que comemos, como nos vestimos, os rituais diários através dos
quais cuidamos dele - é um agente da cultura. [...] ele é uma poderosa forma
simbólica, uma superfície na qual as normas centrais, as hierarquias e até os
comprometimentos metafísicos de uma cultura são inscritos e assim
reforçados através da linguagem corporal concreta. O corpo também pode
funcionar como uma metáfora da cultura. (JAGGAR; BORDO, 1997, p. 19)
meio educativo seria concebido para a reafirmação das diferenças sociais, expandido a
distância e refirmando exclusões. Nesse território estabelecido, o livro didático tem papel
fundamental. Em suas representações, e não apenas da mulher, mas das minorias que passam
por processos de desconstrução identitária, tornam se instrumentos efetivos de controle. Um
sistema dependente da aparelhagem reguladora do Estado que ao longo do tempo se
especializou na imposição das simbologias voltadas para as grandes dualidades forte\fraco,
livre\submisso, homem\mulher, macho\fêmea.
Para Louro (1997) a escola “delimita espaços” e nesse sentido, compreende-se que o
livro didático seja utilizado como uma forma de garantir estas delimitações. Manter às
margens do processo social aqueles que historicamente já se encontram nesse
posicionamento.
O próximo capítulo trata da análise das imagens retiradas dos livros didáticos,
considerando os estereótipos relacionados à mulher, bem como os discursos que são
construídos mediante tais representações.
Ao longo de sua história, o livro didático combinou duas funções quase que
distintas: a de aparelhagem do Estado, como instrumentalização da ideologia dominante, além
85
de ser um bom meio para as editoras alçarem maiores ganhos com as publicações adquiridas
pelos órgãos públicos.
Destarte o aspecto financeiro voltado para a parcela de editoras que foi se
ampliando ao longo dos anos, a existência do livro didático aqui interessa a partir da
perspectiva regulamentadora e aparelhamento do Estado, enquanto sua ideologia e
necessidade de ampliá-la nos espaços escolares. E é nessa construção que a imagem da
mulher foi sendo construída ao longo do tempo, a partir do corpo estereotipado, coligada às
tarefas consideradas tipicamente femininas, alcançando nesse espaço a maternidade,
apresentada como uma obrigatoriedade, alvo do objeto de procriação, a mulher.
O que marca a trajetória do livro didático é sua opção pela aceitação dos discursos
politicamente impostos, além de representar as ideias sociais vigentes, de forma perene ou
transitória. E sempre nessa composição que as diferenças passam a ser instituídas, não de
forma natural, ao que Louro (1997) define como “produzidas” não apenas no meio social, mas
também pela escola. De acordo com a autora, a escola se tornou responsável pela produção de
mecanismos diferenciados para a classificação, ordenamento e hierarquização e cumpre
ressaltar que um desses mecanismos se compôs no livro didático. A escola, de acordo com
Louro,
didáticos, já dispunham sobre a forma como a escola deveria tratar as diferenças, reforçando,
sobretudo, os cuidados a serem tomados para que meninas e meninos pudessem ser separados
ou segregados.
Ainda de acordo com Louro, os manuais didáticos ou comportamentais eram
pensados para que os mestres pudessem reconhecer os cuidados que deveriam ser dispensados
a alunos e alunas.
Considera-se que os manuais citados por Louro seriam os precursores dos livros
didáticos, agregando alguns dos mesmos objetivos, ou seja, regular, legitimar e impor
comportamentos esperados, principalmente quando se trata de mulheres. No exercício desse
papel, a autora cita as escolas femininas, cuja função primordial foi a de “treinar” as moças a
fim de galgarem os degraus sociais a partir do casamento. O processo de escolarização visava
repetir o que os manuais traziam como normas essenciais de comportamento e
desenvolvimento de habilidades manuais que, por sua vez, deveriam ser ensinadas como o
mais alto dos prazeres aos quais as jovens deveriam ansiar.
Sobre sexualidade, nem os manuais do início do século XX, tampouco os livros
didáticos que vieram depois trouxeram abordagens que não fossem ligadas às funções de
procriação, como produto do matrimônio. O corpo feminino era assim ligado à sua natureza
primordial: gerar filhos. Observa-se também que mesmo na contemporaneidade a escola não
perdeu sua perspectiva de reprodução e imposição ideológica. Pelo menos não totalmente.
Não se percebe a desvinculação de sua função de aparelhamento do Estado, em completa
vigilância sobre o comportamento social formado. Peremptoriamente, o livro didático é um
discurso construído sobre a ideologia dominante, os conceitos, as construções, representações
e imagens são concebidas e de igual modo perpassadas aos seus usuários finais, os
professores e alunos. Hoje tornaram-se uma exigência didática, as escolas brasileiras a cada
três anos “escolhem” seus livros didáticos mediante série de pontos a serem levados em conta.
Entretanto, essa escolha não é totalmente democrática, uma vez que na compra, a editora que
oferece as melhores opções é selecionada.
87
Desse modo, a escola segue perpetuando os discursos acerca da mulher, assim como
seus principais estereótipos. Sobre esse aspecto, Louro (1997, p. 63) reforça que “Sob novas
formas, a escola continua imprimindo sua "marca distintiva" sobre os sujeitos. Através de
múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes.”
Sendo o livro didático um meio discursivo, torna-se também um eficiente mecanismo
de escolarização e distinção de corpos e mentes. Além dessa distinção, é possível
compreender a existência de um processo de dissociação concomitante às construções que são
erigidas sobre a imagem da mulher. Do mesmo modo, o que Louro (1997) denomina como
“fabricação de sujeitos”, torna-se mais evidente quando se tem o discurso contido no livro
didático e seus efeitos sobre os demais discursos acerca da mulher, discursos esses que foram
sedimentados na historiografia e que por esse processo de secularização se tornaram ainda
mais difíceis de serem combatidos.
Embora seja visto como o coadjuvante do processo educativo, o livro didático reflete
práticas educativas, a forma pela qual o sujeito é escolarizado, os arquétipos construídos e,
efetivamente, os estereótipos que ao longo do tempo são sedimentados ou secularizados.
Bourdieu (1996) reforça que não há nenhuma inocência no livro didático, uma vez que estes
se encontram saturados da construção discursiva, bem como suas contradições. Um livro, nos
dizeres do autor, “não chega jamais ao leitor sem marcas. Ele é marcado em relação ao
sistema de classificações implícitos [...], quando chega ao leitor, está predisposto a receber
suas marcas históricas.” (BOURDIEU, 1996, p. 248)
O livro didático é, antes de tudo, um objeto de consumo e como tal, representa
também as formas como o corpo é “consumido”, objetificado e utilizado para o “prazer” ou
imposição de padrões a serem seguidos. Um livro é um composto de pequenas narrativas,
meios discursivos que são agregados, materializando o que um sistema de aparelhamento
ideológico quer que seja difundido. Basta que se pense que um livro didático, de qualquer
área do conhecimento, é fruto de uma autoria que, por sua vez, se faz a partir da coletânea de
portadores de diferentes gêneros, mas que ao final servem ao mesmo propósito. Associadas
aos textos, veiculam as imagens, representações dos discursos construídos acerca da mulher,
fomentando ainda mais os estereótipos associados ao corpo feminino.
89
As imagens não são neutras, são produzidas por indivíduos que carregam
consigo seus pensamentos e ideologias, ou seja, são permeadas e concebidas
a partir de algumas intencionalidades. Elas estão presentes em todos os
lugares, inclusive na sala de aula, nos livros didáticos, em nossas roupas. Por
não serem neutras constroem estereótipos, inclusive de gênero
[...].(WASCHINEWSKI; RABELO; ALVES, 2017, p. 579)
Ao longo da escrita dessa pesquisa, por diversas vezes houve a referência a tarefas
tipicamente femininas. Essa ideia surge a partir da consideração de que atividades femininas
passaram a ser subutilizadas, mesmo quando a mulher foi para o mercado de trabalho. Isso
ocorreu porque em uma sociedade calcada no patriarcado, as mulheres trabalhadoras, embora
contribuíssem substancialmente na manutenção dos lares, não era vista com bons olhos. Esse
discurso ainda se reflete mesmo na contemporaneidade. Por mais emancipada que seja, por
mais conquistas que obteve, a mulher que deixa filhos e marido para trabalhar, sobretudo
exercendo profissões historicamente masculinas, precisa a todo momento provar que é capaz
de não deixar seus afazeres domésticos ou mesmo seu papel de mãe e esposa de lado. Embora
o corpo feminino tenha passado por uma silenciosa revolução, como bem ressalta Del Priore
(2008) ainda há uma ausência, uma (não)existência no contexto do livro didático.
Interessante destacar que na perspectiva do trabalho com gêneros textuais, isso
quando se trata do livro didático de Língua Portuguesa, os contos-de-fada são uma das
representações que mais tipificam a mulher. Ao se observar sua utilização, nota-se que quase
sempre são utilizados contos muito populares, já pertinentes aos constructos culturais dos
grupos sociais, dos quais os alunos fazem parte. Isso seria positivo se os contos utilizados
pudessem ser reinventados pelas meninas, colocando a imagem da mulher de forma
verdadeiramente emancipada com mais escolhas e menos perdas.
O que acontece, no entanto, é a utilização de reescritas ou releituras que ainda
alimentam a ideia de que, para ser feliz para sempre, a mulher precisa ser uma princesa, se
encantar e sucumbir aos encantos masculinos. Mesmo sendo personagem principal do conto-
de-fadas, ou mesmo os príncipes às vezes nem possuírem nomes, está ali, a imposição dos
papéis da mulher e do homem. Ela, de ser feliz por meio do matrimônio e ele, sendo o
príncipe que poderá salvar sua princesa de qualquer revés.
Claro que existem inúmeras releituras dos contos-de-fadas, no entanto, sua forma
mais clássica é a mais explorada nos livros didáticos. No conto da Branca de Neve, por
exemplo, a mulher emancipada, não casada, é descrita como a rainha má, futilizada e
inutilizada. Nos livros didáticos, normalmente são utilizados alguns recortes desse conto,
principalmente os que tratam das atividades exercidas pela Branca de Neve na casa dos anões,
o beijo dado pelo príncipe (que a beija sem nunca sequer tê-la visto acordada...) e o “felizes
para sempre”, como forma de realização do papel da mulher, por mais que os séculos tenham
passado.
As tarefas tipicamente femininas são aquelas que não podem ser exercidas pelos
homens e são executadas primeiramente por suas mães e depois, por suas esposas. A cozinha
94
tornou-se reino indevassável, a não ser que o homem escolha viver sozinho, levando sua vida
de solteiro como exercício da liberdade. Já a mulher solteira não possui representatividade no
livro didático, a não ser enquanto criança ou adolescente. Do mesmo modo, o espaço privado
é descrito pela presença da família. A jovem solteira ainda depende do pai para viver, ainda
que de forma implícita, isso alimenta o discurso da necessidade do casamento para a
autorrealização.
De acordo com Del Priore houve diversas mudanças nos espaços que a mulher
transitou e passou a ocupar. Da vida privada para a pública, do contexto doméstico para o
mercado de trabalho. Assim, segundo a autora:
A mulher que povoa o livro didático ainda é essa detalhada por Del Priore, ainda que
ocupe cada vez mais os espaços originalmente masculinos, ainda que suas relações pessoais
tenham sido modificadas. Aos autores dos livros didáticos não interessa a mulher do povo, a
não ser para torná-la ocupante das cozinhas, ou das fábricas. É como se fosse necessário
lembrar a todo instante que há um espaço na casa, na rua, no subemprego, nas relações
afetivas que se tornou vago, pois está a espera de que a mulher deixe de lado as “sandices da
igualdade” e se conformem com a submissão ao homem. Mesmo que alguns livros didáticos
tragam grandes feitos comutados à mulher, é possível sentir que a emancipação feminina não
deixou, de certo modo, de ser uma ameaça à ideologia androcêntrica.
Deste modo, é possível dizer que a educação produz uma imagem feminina
confinada em torno da família, situada num plano de desigualdade em
relação ao homem, no poder, nas responsabilidades e nas opções de lazer e
realização pessoal. Tais práticas culturais trazem consigo pressupostos éticos
e histórico-filosóficos, dentre os quais, relações hierarquizadas entre o
mundo doméstico e o mundo público, de que as tarefas de produção, feitas
na intimidade do lar e carregadas de afetividade, constituem repetições não
criativas do cotidiano. (TEDESCHI, 2012, p. 38)
O livro didático trata a mulher com uma dureza assustadora, mesmo que sua imagem
esteja ligada aos sentimentos mais ternos. Quando coloca a mulher sob a égide capitalista, não
95
lhe dá possibilidades, mas a obriga a fazer escolhas pesadas. A mulher dos livros didáticos
existe a partir da realização de suas atividades femininas. A que trabalha, somente ocupa um
lugar no contexto do mercado. Na descrição de personagens que povoam os textos utilizados
nos livros didáticos, comumente há a ideia de doçura, meiguice ou bondade. A mulher má, as
rainhas, invejosas ou envoltas em bruxarias, sempre acabam fazendo algo de errado para
provar que necessitam estar sob o jugo dos homens. Nas escolhas femininas, não há como
associar família e trabalho, casamento e liberdade. Segundo Del Priore,
ao livro didático, a não ser em pequenas referências em livros derivados das ciências sociais,
tais como os de Sociologia, Filosofia, História ou Geografia.
É importante destacar também que o livro didático não é composto por textos
escritos especialmente para seu fim. Evidentemente, é formado por coletâneas dos mais
variados gêneros textuais, poesias, narrativas, receitas, artigos científicos, curiosidades,
quadrinhos, reportagens são coletados para que possam estrutura o livro didático. Assim,
evidencia-se a função reguladora do livro em relação à mulher, são textos colhidos a partir das
percepções que se tem acerca de como a sociedade se encontra organizada, ensinando a partir
de sua composição básica.
Em todos os gêneros utilizados nos livros didáticos, mesmo sem uma referência
direta, a mulher se encontra ali. Nas poesias, são rememoradas as mulheres romantizadas,
sonhadoras. Nas narrativas, os textos chegam mesmo a descrever trechos de livros nos quais a
mulher pode ser coadjuvante ou protagonista, mas nunca emancipada e livre.
Claro que as receitas culinárias rememoram as mulheres da cozinha, da comida e do
fogão. Mesmo que a abordagem não seja diretamente sobre a mulher, sua presença é
implícita. Por vezes, os livros didáticos se parecem com as publicações voltadas para o
público feminino, sobretudo as dos anos 1950 com a perspectiva da doutrinação da mulher
sobre a importância de ser esposa e cuidar de seu lar. Até mesmo nos livros didáticos de
matemática as atividades tipicamente femininas se encontram evidenciadas. São comuns
situações problemas nas quais “Maria precisa comprar ingredientes para um bolo...” ou “A
professora comprou doces para distribuir...”.
Atividades tipicamente femininas, cozinhar, ensinar. Claro que não se deseja
demonizar tais aspectos, mas torna-se necessário uma reflexão acerca desses discursos que
são construídos, impostos não tão inocentemente, uma vez que se tratam de situações que
poderiam e podem compor o cotidiano de qualquer família, e por mais que sejam construídas
de modo a serem desafiadoras ao contexto da aprendizagem lógica, em nada contribuem para
97
Essa ausência percebida nas publicações se reflete nos livros didáticos e estratifica
ainda mais o papel da mulher. O discurso externo, da sociedade, invade, então o interno, o do
livro didático. Sobre as tarefas consideradas tipicamente femininas, destaca-se o pensamento
de Jaggar e Bordo,
O fato de a primeira coisa que se quer saber sobre uma mulher é se é casada
e, a segunda, se tem filhos, testemunha a convicção cultural de que todas as
mulheres deveriam fazer esse tipo de trabalho. Contudo, nesse lugar
pretensamente natural, exige-se das mulheres que executem os mais
desnaturais dos atos. Na esfera doméstica espera-se que alivie a alienação
que todo mundo experimenta na esfera pública. Deve favorecer a autonomia,
a autenticidade e proporcionar prazer e satisfação numa atmosfera de
intimidade. Ao mesmo tempo, deve alimentar ambos, o jovem e o adulto,
para que não só possam tolerar o trabalho alienado, mas também,
ironicamente, alimentar com ele seu amor-próprio. (JAGGAR; BORDO,
1998, p. 46)
homem e o que é destinado a uma mulher, mesmo que ambos executem a mesma função, é
compreensível que o livro didático queira mostrar à mulher que as atividades femininas são
mais compensatórias, por mais que reforcem o caráter de submissão.
[...] além do aspecto mítico associado a toda mãe, que ligava a imagem de
toda mãe a de uma mulher boa, delicada e zelosa, santa, passou-se a ligar a
sexualidade feminina à procriação levando a pensar que o prazer e gozo
femininos só eram atingidos e permitidos através da maternidade. A mulher
só era vista como mulher em seu sentido completo quando tinha filhos.
Desta forma, a maioria das mulheres tinha, em seus planos e ideais o
casamento e os filhos como prioridade, para que um dia pudessem se sentir
mulheres, no sentido do ideal social construído para elas. (EMÍDIO;
HASHIMOTO, 2008, p. 30)
que manifestam a vontade de não serem mães, normalmente passam a ser tratadas como
assexuadas, como se ainda o desejo e o sexo precisassem estar coligados à procriação. Por
mais que a mulher seja emancipada ou independente, seus grupos sociais esperam que ela se
renda ao “amor” e que manifeste isso sendo mãe abnegada e exemplar, ou mesmo,
multifuncional.
Sendo o corpo da mulher objeto do patriarcado, natural que o discurso se paute na
perpetuação da relação de domínio do homem sobre esta. De modo geral, a mulher somente se
realizará, se tornará pessoa se puder demonstrar capacidade de procriação.
O que mais causa susto é verificar que esse comportamento descrito pela autora
ainda persiste nos dias atuais. Espera-se que a mulher seja mãe. Antes ela até pode estudar, ter
uma boa formação acadêmica ou mesmo um emprego satisfatório. Mas será completa
somente se for mãe, e mesmo que adiando esse aspecto, cedo ou tarde, acabam se rendendo
aos prazeres maternais, reconhecendo sua função primordial na criação, gerar novas vidas.
O corpo da mulher precisa ser colocado à disposição da natureza, para que possa
seguir seu curso. Sendo mãe a mulher expurga qualquer pecado de suas relações, o corpo que
recebe uma vida não pode ser culpado pelos pecados da carne, pois encontra-se a serviço do
“Criador”. Esses são discursos que fundamentam a exigência de que a mulher se entregue à
maternidade. E aquelas que optam por não seguir os apelos da natureza passam a ser
consideradas como arvores secas, incapazes de produzir frutos.
seus filhos. Somente a partir da Idade Média é que a linhagem passou a ser definida pelos
homens, na paternidade. A mulher seria, então, pecadora demais para exercer o poder sobre os
tronos, reis e reinados. Embora até hoje somente a mulher saiba quem realmente sejam os pais
de sua prole, somente o pai é visto de forma honrosa. Mesmo na contemporaneidade, quando
tantas mulheres criam seus filhos sozinhas, o discurso ainda se volta para a supervalorização
da capacidade do homem de produzir filhos.
Atreladas as reflexões ou mesmo ao direito de ser mãe ou não, encontram-se os
métodos contraceptivos. Indo além, a ideia de interromper uma gravidez, pelo aborto, tem se
tornado um ponto nevrálgico nas discussões acerca do corpo feminino. A quem este pertence,
então? O que permeia os discursos sobre ter ou não um filho, abortá-lo sem justificativas ou
criá-lo sob a responsabilização de que seu corpo não lhe pertence.
Em uma sociedade absurdamente hipócrita, ironicamente valoriza-se mais a mãe que
tem coragem de dar o filho para a adoção do que a que resolver interromper uma gravidez não
desejada. O corpo feminino pertence ao homem e somente ele pode decidir o que a mulher
pode ou não fazer com ele. Cria-se com isso outro estereótipo, o da mãe.
Na escala de valores nos quais se insere a mulher, o posto de mãe ocupa o primeiro
lugar e o de profissional, o segundo. Assim, mesmo que a mulher coloque a profissão em
primeiro lugar, a sociedade espera que cumpra seu papel sendo mãe, tendo filhos que serão
criados para tomarem o lugar do pai ou da mãe na relação de dominante e dominado.
Beauvoir (1980, p. 09) destaca que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, indo além é
possível afirmar, sob a ótica social, todas nascem mães e espera-se que se tornem mães...
3.4 Os discursos sobre a mulher nos livros didáticos de Língua Portuguesa, História,
Geografia e Ciências: recortes e representações
Destaca-se que os livros selecionados para análise fazem parte do PNLD (2017-
2019), ou seja, são obras que já deveriam trazer uma abordagem mais crítica da realidade
social, mas em primeira via, apenas reforçam a invisibilidade, os aspectos do preconceito e os
estereótipos ligados à mulher.
O livro de Língua Portuguesa escolhido é Português Linguagens, de William Cereja
e Thereza Cochar. Encontra-se dividido em 4 unidades temáticas, sendo “Humor: entre o riso
e a crítica”, “Adolescer”, “Consumo” e “Ser diferente”. Curiosamente, essa última unidade
tem um capítulo destinado ao tema do preconceito invisível, entretanto, os textos não se
voltam para questões de gênero, e sim, para uma abordagem sobre o preconceito racial.
Para início da análise foi selecionado um texto da página 40 intitulado “Coquetel”,
observa-se que esse texto faz parte de uma seção denominada “ler é divertido” cuja função é
trazer textos considerados engraçados. Nesse texto, algumas mulheres estão reunidas em uma
festa e começam a atribuir notas aos homens presentes. O texto, de Luís Fernando Veríssimo
é reproduzido abaixo:
O coquetel
Um grupo de mulheres numa festa. Uma delas propõe:
-Se vocês fossem dar notas, de um a dez, a cada homem nesta festa, que
notas vocês dariam?
-Bom. para aquele ali eu daria um três...
-Espere um pouquinho. Aquele é meu marido.
-Ai, desculpe.
-Ele merece pelo menos um quatro.
-E aquele ali?
-Aquele eu conheço. É muito bonito. Nota sete
-Eu conheço melhor que você. Além de bonito, é simpático. Nota oito
-Esperem. Eu conheço melhor que vocês duas. Além de bonito, é simpático,
e inteligente. Nota dez.
[...]
-E aquele? Tem um carro que é uma beleza. Uma Mercedes. Nota dez!
-Olha, ele vem vindo pra cá
-Alô, meninas!
-Oi, nós estávamos falando em você. Naquela sua Mercedes bárbara...
-Não tenho mais a Mercedes.
-Ah não?
-Com o preço da gasolina, resolvi trocar por um carro menor e mais
econômico.
O homem se afasta.
-Você tem razão. Ele é um dez.
Dez, nada. É dois.
-Mas você disse dez!
Dez era o conjunto. Dois ele ,oito a Mercedes
[...] (CEREJA; MAGALHÃES, 2015, p.40)
102
Destaca-se que em todo o livro, as imagens de famílias são raras, estando presentes
ou pai ou a mãe, mas não há a ideia de novas constelações familiares, ou mesmo de filhos
criados por pais solteiros. O sentido implícito é o de que o pai ou a mãe se encontra em outras
atividades, mas o ambiente doméstico se encontra preservado. A análise do discurso presente
na imagem, remonta à construção da pirâmide familiar, na qual a prole passar a ocupar o
vértice mais alto enquanto pai e mãe os ladeiam como forma de proteção. Essa imagem é
corroborada por Del Priore (2013, p. 38) “de “patriarcal”, a família tornou-se conjugal,
limitada ao pai, à mãe e aos filhos. Se no início o pai detinha todos os poderes paternais e
conjugais, pico de uma pirâmide da qual filhos e mães constituíam a base, as posições
mudaram. Hoje, no alto do triângulo encontram-se os filhos.”
Como os filhos se tornaram o ponto alto da constelação familiar, sua provisão passou
a ser feita pelo pai. Em cumprimento a esse papel, o homem, na paternidade não se encontra
representado como felicidade, pelo contrário. No livro analisado há uma imagem, situada na
página 75 que ilustra o “sofrimento” que é imposto ao pai no cuidado das necessidades dos
filhos.
Explica-se, então, o porquê do pai que aparece na imagem parecer tão aflito (Figura
3). A leitura possível é a de que a educação, até certo ponto, gratuita, é uma obrigatoriedade
da família em conjunto com a sociedade e o Estado e passa a doer no pai a partir do momento
em que precisa prover sua realização. Fora da composição, não se registra a presença da
mulher responsável sozinha pelos filhos, ou mesmo a solteira que é mãe e provedora.
Antes de se tornar mãe, a historiografia da mulher aponta que primeiro ela precisa ser
esposa e mesmo antes do casamento há a necessidade de encontrar um namorado. Para isso,
as denominadas “moças de família” são as mais buscadas. Destaca-se o guia citado por Del
Priore (2013) que ressalta como as moças em vias de serem aceitas para o matrimônio
deveriam ser.
106
No livro didático em análise, as imagens das páginas 112 e 260 ilustram a busca por
um namorado por mulheres de idades distintas. Entretanto, o que marca as duas imagens é
justamente a ambiguidade no discurso. A primeira mulher, aparentemente uma adolescente,
usa o subterfúgio da simpatia para “catar” um namorado (Figura 4), enquanto que a segunda,
já mais velha, se dirige a uma loja, nos dias dos namorados para adquirir um namorado com
determinadas características (Figura 5). Novamente, a ideia de que a existência feminina
precisa estar ligada à figura do homem e embora na segunda imagem seja considerado como
produto, em primeiro plano ainda transita a imagem da mulher necessitada de alguém que
dela cuide. Ressalta-se que o namoro é o primeiro passo para o casamento, momento no qual
os enamorados têm a oportunidade de se conhecerem. O próximo passo seria o casamento,
uma forma de legitimar a relação de pertencimento entre homem e mulher. Como destaca Del
Priore (2013, p. 26), “o matrimônio se tornou uma barreira contra a imoralidade.” Há no título
dos quadrinhos uma ambiguidade ao se referir à palavra “simpatia” que tanto representa o
ritual necessário para apanhar um marido, quando à característica essencial para que isso
ocorra.
chega da escola cabisbaixo, está a imagem da mãe, cuidando de seus afazeres com um
semblante sereno, olhos fechados denotando prazer em lidar com as panelas (Figura 7). Nesse
aspecto, caberá à mulher que a figura representa cuidar da paz do lar e é possível deduzir que
essa mãe será cuidadosa em lidar com os problemas oriundos do mundo externo.
Na próxima imagem, retirada da página 246, ainda com o casal Helga e Hagar, há a
demonstração do lugar que a mulher ocupa na rotina doméstica (Figura 9). Cabe a ela limpar e
cuidar e ao homem, tornar essa função significativa. O denominado “charme juvenil” citado
por Hagar pode ser lido como uma forma de demonstrar que sendo ele o escolhido para o
casamento, cabe à esposa cuidar da casa sem maiores exigências, demonstrando
conhecimento do espaço que irá ocupar no uso de suas prendas domésticas.
Notadamente, Helga não possui vida social, sendo relegada ao serviço de lavar,
arrumar, cozinhar e cuidar do marido e prole. Esse aspecto domina as representações da
mulher também em sua historiografia e Del Priore (2013) destaca que:
Sem estudo, a maior parte das jovens investia nas “prendas domésticas”. A
“moça de família” manteve-se como modelo e seus limites eram bem
conhecidos, embora atitudes condenáveis variassem desde cidades grandes
até pequenas, em diferentes grupos e camadas sociais. O bem-estar do
marido era a medida da felicidade conjugal, e esta adviria em consequência
de um marido satisfeito. E, para tal bem-estar, qual era a fórmula? A mulher
conquistava pelo coração e prendia pelo estômago. (DEL PRIORE, 2013, p.
29)
Conforme menciona Rago (2008) o fato das mulheres irem ao mercado de trabalho
seria, durante bom tempo, uma forma de mácula social por mais que as famílias necessitassem
de sua mão-de-obra para subsistirem.
Trabalhando fora, “as mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas
carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além de um bom número delas deixaria de se
interessar pelo casamento e pela maternidade.” (RAGO, 2008, p. 489)
Ao usar a expressão “Marido do lar”, o personagem reforça o estereótipo das
atividades tipicamente femininas. Cuidar da casa seria trabalho para a mulher, que não
exercendo outra atividade, era reconhecida como “esposa do lar”, para não dizer, escrava do
lar. Ao afirmar que sempre “quis ser marido do lar” o personagem reforça a ideia de que ao se
dedicar às tarefas relacionadas à casa, na verdade a mulher não está trabalhando e sim, se
divertindo.
Outra atividade exercida pela mulher é a de mãe. Na maternidade a mulher é
condicionada a se realizar enquanto fêmea. Na figura da página 181 chega a ser ofensiva a
comparação que se faz entre um carro ao ser abastecido e uma mãe que amamenta seu filho
(Figura 11). A objetificação da mulher fica evidenciada nessa analogia. O ato de abastecer o
carro com uma gasolina comum e aditivada, e a comparação de uma mulher que amamenta
seu filho e oferece alimento aditivado e uma mamadeira de leite que, por sua vez, representa
um alimento comum demonstra ainda a hipocrisia refletida na imagem de que a mulher é
objeto de procriação e cuidado com a prole.
O livro poderia tratar da importância da amamentação, se fosse esse o objetivo da
imagem, de uma outra forma sem que houvesse esse reforço do estereótipo da mulher objeto,
nascida para produzir uma “gasolina” de primeira. A imagem da mulher amamentando com
uma expressão feliz vem retomar a função primaz que é consignada ao feminino, a da
felicidade em ser mãe, em alcançar o nível mais alto de sua função.
113
Sendo criada para o ambiente doméstico, a mulher também passou a ser inserida em
uma cultura de consumo e isso também se evidencia no livro didático. Sobre cultura de
consumo Stater (2002, p. 17) reforça que “não é a única maneira de realizar o consumo e
reproduzir a vida cotidiana. Mas é, com certeza, o modo dominante, e tem um alcance prático
e uma profundidade ideológica que lhe permite estruturar e subordinar amplamente todas as
outras.”
O mercado de consumo coloca a mulher à prova e como resultado a imagem de
frivolidade se perpetra e reforça a ideia de incapacidade de gerir sua vida de forma
independente. O consumo possui um nítido viés ideológico e inserir a mulher nesse contexto é
o meio legitimado de mantê-la sob o cuidado do homem. A mulher que, de acordo com os
escritos, não teria capacidade de administrar os recursos financeiros de casa, a não ser para
adquirir seus suprimentos básicos, passa a ser tentada pelos inúmeros recursos de apelo à
vaidade e por meio do desejo de consumir se entrelaça ainda mais à imagem do homem
provedor.
De acordo com Engel (2008) a cultura do consumo articulou os discursos voltados
para a mulher, principalmente a das classes trabalhadoras. O objetivo, então, seria a de
envolver a mulher em uma ilusão criada por um pretexto universo feminino que também
abarcava o contexto doméstico. Para se sentir realizada, a mulher deveria portar objetos de
consumo, perfumes importados, roupas bem cortadas e isso somente seria possível por duas
114
vias: a do casamento bem realizado com posses ou pelo exaustivo trabalho realizado fora de
casa.
Há que se destacar que o próprio corpo feminino passou a ser objeto de consumo. A
preocupação com a forma, o cuidado para não envelhecer e todos as outros meios para se
manter um padrão ou padrões esteticamente aceitáveis pela sociedade fez com que cada vez
mais as mulheres passassem um bom tempo tentando se ver ou construir suas identidades a
partir do olhar do outro, do homem.
É sobre esse corpo feminino que as próximas imagens tratam. Nessas, denota-se o
que Wolf (1992) delimitou como parte da ideologia da beleza, uma representação construída
para descontruir as lutas das mulheres alcançadas nos movimentos feministas.
Em dois momentos, o livro didático de Língua Portuguesa traz referências à saúde.
Mas o que mais impacta é a forma como o discurso sobre o bem-estar se confunde com o
preconceito contra as pessoas obesas ou fora dos padrões estéticos. Na página 209 há a
imagem de uma mulher magra comendo um pedaço de pizza, mas o texto está associado aos
problemas que podem ser originados da obesidade (Figura 14). Nota-se que a imagem da
mulher é utilizada como se somente as mulheres pudessem ter problemas relativos ao ganho
de peso ou a relação com a comida.
O texto que acompanha essa primeira imagem se inicia da seguinte forma “ O povo
diz que os gordos são mentirosos e preguiçosos, andam pouco e comem mais do que
confessam.” Com esse discurso bastante ofensivo o texto continua discorrendo sobre a
dificuldade que a medicina possui em tratar a obesidade. Para quem o lê e o público ao qual se
destina, essas palavras iniciais são suficientes para derrubar qualquer resquício de autoestima
que um corpo gordo possua. Desse modo, é possível compreender o reforço da gordofobia,
termo cunhado em referência ao preconceito contra as pessoas que se encontram fora dos
padrões de peso estabelecidos pela sociedade.
O livro didático reforça o fato de o corpo gordo não ser aceito pela sociedade, pois o
corpo disciplinado é aquele moldado para demonstrar esse aspecto. O corpo gordo é tratado
como resultado do descuido, do desleixo e despreocupação com a saúde. Não é aceito por
fugir dos padrões estéticos, assim como é recusado pela estranheza em se considerar que um
obeso possa estar alinhado com a boa saúde. O corpo magro, independentemente quem o
habita, é visto como o ideal, que enaltece uma beleza imposta, que pode ser mostrada e
apreciada.
Conforme menciona Vasconcellos, Sudo e Sudo (2004),
para isso, elas tenham que passar por intervenções cirúrgicas (plásticas),
dietas de todos os tipos ( do sangue, da melancia) ou exercícios físicos dos
mais variados. (VASCONCELLOS; SUDO; SUDO, 2004, p.68)
Perdido em seu ideal de beleza, o que o livro didático não retrata é que o corpo
obeso se tornou resistência, pois passou a representar a mulher que não se preocupa com os
padrões, usa sua afirmação e autoestima para ir contra a imposição estética. O corpo obeso
não foge do padrão de beleza, afirmar isso seria confirmar que não há beleza onde não impera
a magreza. Ele se afirma enquanto belo, por ser único, na inaceitação de uma padronização. É
nisso que o discurso sobre a mulher no livro didático se perde, na insistência do binômio
saúde/magreza, doença/obesidade.
De acordo com Pereira (2013) no corpo as marcas do poder e do saber são inseridas.
Os corpos são demarcados enquanto dispositivo de sujeição. Nesse sentido, o corpo obeso é
limitado, sendo transmutado em ordinaridade, inutilizado a partir do sistema de dominação,
mas resistente a esse mesmo meio, tornando-se novo e por isso, inovador. Segundo Pereira
(2013):
No corpo encontramos as marcas do poder-saber, presentes na constituição
do dispositivo de poder. Para um corpo ser útil torna-se necessário aplicar
sobre ele um sistema de dominação e, para isso, impõe-se medidades
disciplinares, sob formas de naturalizações, a partir de saberes estratégicos e
eficazes. Assim, o corpo é visto como acontecimento, pois traz em si a
presença do novo. (PEREIRA, 2013, p.104)
aparece, essa relacionada ao texto mencionado e se encontra na página 210 e eis que na
página 212 (Figuras 15 e 16) esse corpo gordo encontra seu contraponto em um texto que
trata da prática de exercícios físicos para manutenção da saúde, como se os gordos realmente
fossem todos sedentários e, portanto, não pudessem se manter saudáveis mesmo distantes do
padrão exigido pela sociedade.
No livro didático em análise, observa-se que não somente o corpo gordo precisa se
adequar aos padrões que são impostos pela ideologia da beleza. As páginas finais do livro de
língua portuguesa trazem um projeto denominado “Viver com saúde” e se dedicam a discorrer
sobre os maiores problemas ligados à autoimagem, a anorexia e a bulimia. Há uma definição
médica, mas o texto não reforça que essas doenças acometem mulheres ainda na adolescência
e que podem ser resultados da angústia oriunda da crença de não adaptação, principalmente
aos padrões de magreza ou surgidas do medo de não serem aceitas pela gordura ou por outros
aspectos vistos como defeitos pelas jovens. O texto, embora seja informativo, não
problematiza as questões que podem fomentar o debate sobre a ditadura da beleza e como
119
essa pode atingir de forma mais diretas as meninas, adolescentes e jovens. As imagens da
página 270 representam uma moça com anorexia e outra supostamente bulímica (Figuras 17 e
18).
Por fim, destaca-se que o livro didático de língua portuguesa não apresenta imagens
de mulheres indígenas, e são poucas as negras que aparecem. A imagem da idosa aparece
apenas na página 17 e também representa a mulher negra, que por sua vez ocupa o lugar
dentro de casa, na segunda função da mulher ao ser mãe, assumindo a função de avó (Figura
19).
Ainda como parte das análises sobre as representações da mulher nos livros
didáticos, foram observadas as imagens presentes no livro de História do 9º ano do Ensino
Fundamental, intitulado “A vontade de saber História”, da autoria de Adriana Machado Dias,
Keila Grinberg e Marco Cesar Pelegrini, o livro também foi adotado no triênio 2017-2019 e
se encontra dividido em 4 unidades temáticas.
De modo geral, o livro traz poucas imagens de mulheres e em seu contexto não
existem referências à historiografia feminina, constituindo-se o silenciamento da mulher, do
mesmo modo que ocorreu na história. Vale ressaltar que esse silenciamento é fonte de
diversas pesquisas que visam trazer uma outra perspectiva para a história da mulher, não pela
visão androcêntrica, de submissão, mas pela ótica de suas lutas conquistas. Embora seja vazio
de maiores representações, no livro didático de história há um pequeno texto que se refere à
luta feminina contra o machismo, embora não tenha teor crítico e nem provoque maiores
reflexões.
A primeira imagem analisada se encontra na página 64 e retrata um grupo familiar,
no qual se evidencia a figura paterna ladeada pelo que se supõe serem os filhos (Figura 20).
Destaca-se a face carrancuda paterna, assim como a imagem de resignação nos braços
cruzados das duas meninas que compõem a fotografia. É interessante que os irmãos, postados
ao lado e atrás do pai trazem também o semblante fechado, repetindo a mesma postura do
progenitor. Não há uma mãe, nenhuma mulher adulta compõe a imagem, o que pressupõe
uma viuvez e orfandade materna, como era comum, uma vez que muitas mulheres morriam
no parto ou em consequência desse.
121
para seu corpo como uma forma de estabelecimento de uma identidade ou mesmo de uma
resposta cultural. Claro que o preconceito e os estereótipo também se fortaleceram na mesma
medida, mas a crença em ser dona de suas próprias escolhas fortaleceu significativamente a
ação da mulher na sociedade, desde o ambiente doméstico até o social, bem como o mercado
de trabalho. O corpo feminino, então, passa a ser uma identidade, embora nesse processo
também passe a se sujeitar aos padrões que são impostos. De acordo com Louro (2000),
O livro tem um capítulo que discorre sobre a independência da Ásia e África. Nesse
capítulo é rememorada toda luta e os homens que se destacaram. No capítulo todo há apenas
uma imagem na página 183 que representa a mulher negra, e se encontra vinculada às
condições impostas aos negros pelos brancos, principalmente na segregação racial (Figura
27).
Dilma foi a primeira mulher a alcançar o posto de presidente no país. Seria interessante se o
livro também destacasse que nem mesmo o alto cargo fez com que a presidente fosse poupada
do preconceito e da misoginia da sociedade. Por diversas vezes chamada de incompetente ou
mesmo burra, Dilma Rousseff ainda padeceu da dificuldade de expressão e de se fazer
entendida em seus discursos, o que alimentou ainda mais o preconceito, generalizando mais
uma vez a ideia de que a mulher não é capaz de gerir um país.
Os estudos sobre o gênero voltam-se tanto para geografia cultural e histórica, quanto
para o que os pesquisadores denominaram de Geografia Feminista. De acordo com Ornat
(2008) a transversalidade contida no gênero possibilita o diálogo com diversos aspectos socio
culturais e do mesmo modo, possibilita a compreensão e problematização de diversos
aspectos dos discursos de poder das estruturas dominantes.
Tendo esse pressuposto como ponto de análise, observa-se que o livro didático de
geografia não problematiza a forma como o gênero se insere nos espaços culturais, embora se
reconheça que não seja essa sua função. Entretanto, apenas constar de imagens que retratam
mulheres em alguns contextos reforça o discurso do poder e a ideia de silenciamento das
vozes femininas em meio aos problemas que o não reconhecimento das conectividades
transversais ocasiona. Para Reis (2015) o que marca a relação de gênero e o discurso de poder
é justamente o contexto de aplicação do conceito de patriarcado.
A imagem da página 109 traz a legenda de uma pessoa idosa sendo vacinada em
Toronto no Canadá (Figura 30). Essa imagem transmite a ideia do cuidado, isso feito por um
homem que assume paternalmente seu papel de mantenedor da saúde da mulher, fragilizada
pela idade. Essa posição, de acordo com Ornat (2008) advém do discurso social de que
homem deve proteger a mulher, estendendo esse comportamento a suas esposas, irmãs e
filhas. Conforme o autor: “Os homens são vistos como protetores das mulheres e da força
feminina, protetores das esposas, irmãs e filhas, um sujeito que participa da esfera pública e
da política do trabalho, e que não participa da esfera doméstica.” (ORNAT, 2008, p.318)
No livro analisado existem diversas imagens que retratam a pobreza dos países
subdesenvolvidos e nessas, as mulheres estão em primeiro plano. Para a análise foi
selecionada a imagem que consta na página 113, que representam mulheres negras, pobres em
países subdesenvolvidos (Figura 31).
Cumpre lembrar que discurso da ideologia de poder, colocar as mulheres nos espaços
de pobreza significa reforçar a ideia da superioridade masculina, embora os homens também
circulem nesses espaços carentes de recursos. Os corpos negros, no livro didático analisado,
demarcam um espaço que também limita a ascensão feminina, traçam suas identidades
coligando o fato de serem negras ao problema do subdesenvolvimento. De modo implícito
esses corpos são responsabilizados pela prole que também é lançada nesse contexto de
pobreza, criando uma identidade entrelaçada a essa condição.
Sobre os corpos que são marcados dentro do espaço geográfico, Ornat (2008) reflete
que esse processo alimenta também a marginalização pois os espaços de pobreza não são
tidos como normais. A mulher, mostrada nesse contexto passa a ser vista como marginal, pois
não transita pelos demais espaços.
Também para ilustrar o espaço designado à mulher no livro didático de geografia, foi
selecionada a imagem da página 174, que mostra uma mulher branca em uma favela (Figura
32).
A última imagem, retirada da página 225, destaca uma imagem dicotômica mediante
as representações que o livro didático traz acerca da mulher (Figura 35). Nessa imagem consta
uma mulher, negra, que contrariando todas as imposições sociais concluiu o Doutorado no
Kansas (EUA) e voltou ao Quênia, seu país de origem para aplicar o que aprendeu, seu nome
é Wangari Maathal e representa a verdadeira imagem que deveria ser veiculada nos livros
didáticos, pois coloca por terra todas as ideologias de poder, inferiorização da mulher e sua
submissão.
Figura 35. Mulher e conhecimento
Nas imagens das páginas 34 e 105, são demonstrados os cuidados com a família
designados à mulher (Figuras 37 e 38). Primeiro, o cuidado em prover o alimento por meio da
amamentação, e depois a manutenção da saúde da prole. Essa imagem reforça diversas outras
reflexões, sobretudo acerca do discurso de poder. Quando insere a mulher no plano familiar, a
ideologia dominante-dominado é ainda mais reforçada.
É possível fazer uma análise sobre a estrutura familiar, vista nos livros
didáticos como uma família nuclear caracterizada por ilustrações de árvores
genealógicas, mostrando em seu contexto histórico as gerações formadas por
avós, pais e filhos, sendo retratadas como famílias felizes, participativas na
criação e desenvolvimento uns dos outros. (SILVA, 2016, p. 15)
O mesmo ocorre com a imagem da página 221, que mostra uma mulher idosa
ladeada por o que supõe serem sua família (Figura 40). Aqui a mulher é cuidada, a idosa se
encontra na posição de dependência e seu semblante sorridente denota que aceita e tem prazer
em ser cuidada, reforçando que a mulher carece dos cuidados dos outros porque não consegue
viver com independência. A temática da unidade poderia ser abordada com imagens que
demonstram mulheres fora do contexto familiar, uma vez que se trata de genética. Entretanto
ainda se observa a repetição imagem inferiorizada da mulher, que ainda precisa estar atrelada
ao grupo familiar para que possa construir alguma identidade.
O livro traz também, nas páginas 139 e 161 algumas imagens que mostram a mulher
em momentos de diversão e lazer (Figuras 41 e 42). O que chama a atenção é que essa se
diverte somente em companhia de um homem ou da família. Novamente isso demonstra a
forma como os papéis são determinados no livro didático. A mulher somente pode ser feliz se
tiver um homem do seu lado. Isso reforça ainda mais que os livros didáticos se encontram
atrelados à imagem da mulher subserviente, coligada ao patriarcado.
138
A partir das análises realizadas, de posse das imagens retiradas dos livros didáticos,
observa-se que a historiografia sobre a mulher caminha a passos lentos, isso talvez ainda se
reflita na produção material e nos discursos presentes nos livros didáticos.
139
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar essa pesquisa talvez seja possível compreender por que a temática
escolhida, mesmo com tantos outros estudos já realizados, possa ser inesgotável. Isso ocorre,
primeiramente, porque a historiografia feminina, uma as bases do estudo, ainda carece ser
retomada, retocada e mesmo reescrita, para que seja possível a desconstrução dos discursos
sobre a mulher que foram secularizados e que ainda no século XXI insistem em ser
retomados.
Esses discursos se principiam na ideia do patriarcado, do poder e da opressão e se
repetem ao longo do tempo, se multiplicando em uma sociedade que em relação à mulher
pouco avançou, por mais que os contextos históricos a tenham inserido em outros espaços que
não o da casa. Seria justo afirmar que a mulher ainda se encontra sufocada pelos papéis que
lhe são impostos, envolvida pela obrigatoriedade de ser boa filha, esposa ou mãe. No discurso
contemporâneo sobre a mulher pouco coisa se modificou, ainda não possui domínio sobre o
corpo, o casamento ainda é uma via legitimadora para o sexo, não pode escolher ter ou não
filhos e por mais que as lutas femininas tenha sido importantes para sua emancipação, as que
se engajam nessas organizações recebem a alcunha de feminazi, às vezes, simplesmente por
defenderem o espaço que naturalmente deveria ser delas.
Por outro lado, observou-se que o discurso da opressão se baseia, de uma forma
organizada e por isso, contundente, na imposição do forte (homem) sobre o fraco (mulher).
Ao longo do tempo, o homem não conseguiu e nem admitiu se desvencilhar da imagem de
protetor, mesmo não mais exercendo esse papel. Aliado à opressão também se configurou o
discurso da misoginia, atravessando a história e tornando a contemporaneidade um lugar
perigoso para a mulher viver, bastando que se observe as mais diversas notícias de violência,
comprovando isso.
Conquanto a pesquisa tenha partido de alguns questionamentos que se tornaram a
base do estudo. Estes, por sua vez, configuraram-se nas seguintes questões, respondidadas no
desenvolvimento da pesquisa: de que forma se dá a construção da identidade feminina, na
materialidade do livro didático, considerando este um instrumento de biopoder? Quais os
imbricamentos do corpo feminino da forma como é representado no livro didático? No
desenrolar da pesquisa observou-se o corpo feminino passou ser objeto de representações de
poder. Primeiramente o poder do pai, do esposo. Depois, o discurso da regulação social, das
regras criadas para manter o controle sobre o corpo feminino. Nesse ínterim os meios
140
utilizados foram os mais diversos, desde a mídia, religião, instituições seculares como o
casamento e a maternidade, culminando no uso dos livros didáticos para disseminar, instruir e
constituir estereótipos voltados para o corpo feminino. O olhar da pesquisa se lançou a três
eixos, sendo estes o corpo estereotipado da mulher, a veiculação da imagem da mulher às
tarefas tipicamente femininas e por fim, as atribuições da maternidade, ou seja, a figura da
mulher enquanto objeto de procriação.
Os livros didáticos, enquanto instrumentos ideológicos são muito bem utilizados pois
reforçam, inicialmente pelas ideias implícitas e depois, pelo silenciamento da mulher, não
apenas a branca, europeizada, mas as negras, pobres, velhas, gordas, indígenas ou outras que
representam o grupo oprimido ao longo da história.
A história feminina inexiste no livro didático, as imagens analisadas demonstram
isso. Quando utilizadas terminam reforçando atividades que normalmente são atribuídas às
mulheres. Mesmo que a realidade possa demonstrar outro viés, são poucas as imagens que
trazem a mulher em ambientes de liderança, no mercado de trabalho ou fora dele. As
mulheres que escolhem não estarem à sombra de seus matrimônios são excluídas dos meios
pensados para formar opiniões. O que mais surpreende é que existem livros didáticos que são
organizados por mulheres, mas essas não aproveitam esse veículo de uma melhora forma,
pelo menos na melhor escolha das imagens que irão compor suas páginas.
Essas imagens analisadas, por sua vez, remeteram a pesquisa à uma reflexão de que
os livros deveriam ser repensados, não no sentido de não apresentarem imagens pensadas para
incutir o discurso do poder criando verdades que irão consolidar o preconceito e a opressão
contra a mulher. Mais que isso, essas imagens deveriam suscitar problematizações acerca da
realidade vivenciada pelas mulheres em uma sociedade que não aceita sua inserção ou
distanciamento dos papéis determinados.
No contexto educativo, a pesquisa trouxe a perspectiva de uma reescrita da história
das mulheres, tanto no mercado de trabalho, quanto na formação. Na formação de professores,
o estudo pode ressignificar a visão que se tem do livro didático, não desprezando sua
funcionalidade, mas, partindo de um aspecto mais crítico, principalmente considerando que a
primeira responsabilidade na escolha do livro didático é do professor. Ao se valer desse olhar
crítico e se recusar a alimentar os estereótipo sobre a mulher, o educador poderá reescrever,
pelo menos em uma pequena parte a história das mulheres, não apenas como um sonho a ser
alcançado, e sim representado uma realidade.
141
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