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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Niterói-RJ
2023
DANIELLE FERREIRA BASTOS
Orientadora:
Marília Etienne Arreguy
Niterói - RJ
2023
1
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Profa. Dra. Marília Etienne Arreguy
Orientadora
Universidade Federal Fluminense - UFF
_________________________________________
Prof. Dr. José Antônio Sepulveda
Universidade Federal Fluminense - UFF
_________________________________________
Prof. Dra. Fernanda Ferreira Montes
Universidade Federal Fluminense - UFF
_________________________________________
Profa. Dra. Laura Chacón Echeverría
Universidad de Costa Rica
___________________________________________
Profa. Dra. Denize de Aguiar Xavier Sepulveda - Suplente
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ/FFP
Niterói - RJ
2023
2
3
OU ISTO OU AQUILO
GRATIDÃO
RESUMO
BASTOS, Danielle Ferreira. TODA CRIANÇA É QUEER? “OU ISTO OU AQUILO”.
2023. 114 fl. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2023.
Esta pesquisa se constrói a partir dos pressupostos da Teoria Queer e das contribuições da
psicanálise para a educação a fim de discutir como um professor ou uma professora podem
compreender a criança que narra suas experiências queer na educação infantil. Por meio da
pesquisa bibliográfica que possibilitou um amplo alcance de informações, o estudo pretendeu
divulgar a existência da criança que bagunça as normas de sexualidade e gênero na escola e
por isso, movimenta o imaginário dos professores que de forma inconsciente se deixam afetar
pelas normatizações, limitando a criança na expressão fluida de sua sexualidade. Foram
visitados tanto textos-chave de Freud quanto de Foucault como forma de fundamentar a
discussão sobre a temática. Autores contemporâneos como Butler e Louro, contribuíram com
a reflexão acerca da implementação de uma Pedagogia Queer para o acolhimento dessa
criança. A discussão é apresentada no texto por meio das “vinhetas escolares”, que são
narrativas dos encontros entre os professores e essa criança que ora se apresenta como “isto”,
ora se apresenta como “aquilo” no desafio de não se render ao que a norma escolar espera
dela.
Palavras-chave: psicanálise e educação; teoria queer; criança queer; sexualidade infantil.
7
ABSTRACT
BASTOS, Danielle Ferreira. IS EVERY CHILD QUEER? “EITHER THIS OR THAT”.
2023. 114 fl. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2023.
This research is built from the assumptions of Queer Theory and the contributions of
psychoanalysis to education in order to discuss how a teacher can understand the child who
narrates his queer experiences in early childhood education. Through bibliographical research
that allowed a wide range of information, the study intended to disclose the existence of the
child who messes up the norms of sexuality and gender at school and, therefore, moves the
imagination of teachers who, unconsciously, let themselves be affected by norms, limiting the
child's fluid expression of sexuality. Both Freud's and Foucault's key texts were visited as a
way of substantiating the discussion on the subject. Contemporary authors such as Butler and
Louro contributed to the reflection on the implementation of a Queer Pedagogy for the
reception of this child. The discussion is presented in the text through the “school vignettes”,
which are narratives of the encounters between the teachers and this child who sometimes
presents himself as “this”, sometimes presents himself as “that” in the challenge of not
surrendering to what the school norm expects from him.
Keywords: psychoanalysis and education; queer theory; queer child; infant sexuality.
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SUMÁRIO
I PARTE
“Vou andando pela sala...” ....................................................................................................10
Caminhos Metodológicos......................................................................................................17
Para início de conversa..........................................................................................................21
II PARTE
Teoria Queer e a criança: qual o lugar da criança no mundo?...............................................25
Vasta, diversa e não linear: as Teorias Queer........................................................................30
Movimentos Queer.................................................................................................................35
Em terras brasileiras: uma teoria de combate?.......................................................................49
III PARTE
IV PARTE
O professor melancólico......................................................................................................77
As caixinhas moldadoras de professores.............................................................................83
Quem autorizou o professor a enunciar o futuro da criança?..............................................90
Reinventando o professor....................................................................................................94
V PARTE
I PARTE
1 Os nomes das crianças apresentadas nas “vinhetas escolares” que seguem no texto deste trabalho, foram
alterados para preservar suas identidades.
2 As “vinhetas escolares” têm a característica de serem construídas por memórias e impressões daquilo que foi
vivido, portanto, portam um caráter ficcional inerente aos processos mnemônicos conscientes e, sobretudo,
inconscientes. Essa metodologia de pesquisa, pensada no seio de uma práxis psicanalítica, vem sendo
desenvolvida por pesquisadores do Grupo Alteridade Psicanálise Educação - GAP(E)/CNPq-UFF, de que faço
parte, liderado pela Professora Marília Etienne Arreguy, Orientadora deste estudo.
3 No sentido de respeitar a vertente ética da pesquisa, no texto será preservado o anonimato das instituições
escolares.
11
Baixada Fluminense até participar do concurso do município do Rio de Janeiro, no qual atuo
até hoje. Nestas andanças entre um município e outro, convivi com o Rafael e com diversas
outras crianças em Creches e Pré-Escolas nos municípios nos quais fui servidora. Conheci
essas crianças que aos olhos e nas palavras dos adultos que as rodeavam, eram muito “alegres,
despachadas e desafiadoras”. Também pude ouvir as histórias de outras crianças narradas por
seus professores e agentes de creche, ora animados com suas performances musicais, falas e
comportamentos; ora abismados com a criatividade, muitas vezes, levando a que fossem
tolhidas. Quem eram essas crianças tão espontâneas? Como se sentia o curioso menino que
sempre chorava quando lhe recusavam o deslocamento pela creche no “trem das meninas” e
que dizia que quando crescesse queria ser a Barbie? E como os professores da “estranha”
menina deveriam lidar com ela, que se negava a brincar de bonecas com as suas amigas para
jogar futebol com os meninos?
Sempre me intriguei com a forma que poderia ou deveria lidar com essas crianças,
seus amigos e familiares. Hoje este questionamento se tornou um grande incômodo quando eu
não possuo a melhor resposta para conversar com a família que indaga sobre a criança na
escola ou quando ouço os relatos dos professores do menino que solicitavam a ele que
interrompesse seu processo criativo, quando seu desejo era somente de dançar, brincar e
integrar-se ao seu grupo de amigos que não o via como diferente.
Iniciei então, minha busca e interesse pelo tema pouco divulgado e conhecido entre
os profissionais da educação infantil: os estudos queer.
No fim dos anos 1980, surgiu nos Estados Unidos a Teoria Queer que veio
possibilitar a construção de novas pedagogias que não investem apenas em uma perspectiva
binária de gênero e sexualidade, se esforçando para pensar novas estratégias pedagógicas não
normativas e, como um campo moderno, surgiu a possibilidade da criação de uma Pedagogia
Queer. A pedagogia queer “longe de pretender atingir um sujeito ideal, assumiu um caráter
inconcluso e incompleto” (LOURO, 2001b, p. 552), tal como são as infâncias na educação
infantil.
Minhas vivências nas escolas e as experiências4 com crianças que não compreendia,
hoje dialogam com os estudos queer e me levaram ao alargamento das questões: como uma
4 Conceitos retirados dos estudos de Benjamin (1933/1986; 1936/1986; 1939/1989), o termo “vivência” origina-
se do verbo alemão erleban que significa estar ainda em vida quando um fato ocorre, pressupondo a presença
viva e o testemunho ocular de um evento. O conceito de “experiência”, derivado do verbo alemão erfahrung,
pressupõe fazer uma oposição ao conceito de vivência, sendo a erfahrung um conhecimento obtido através da
experiência que se acumula e que por isso, se prolonga e se desdobra (KONDER, 1999).
12
importante criar alternativas, ou melhor, “linhas de fuga”, como define Deleuze (1992), de
modo a produzir uma investigação acadêmica mais potente.
Revendo o trajeto de minha pesquisa e refletindo sobre o impacto da pandemia na
organização do estudo, mudei a metodologia da pesquisa, optando por um estudo teórico, em
cujo escopo se encontraria um aprofundamento da pesquisa bibliográfica que possibilitou um
amplo alcance de informações, auxiliando na construção de um processo reflexivo e, também,
o desafio da construção dedutivo-criativa de um novo olhar para o tema. Contudo, os
professores que eu pretendia entrevistar e as crianças que eu iria observar, ainda ocupavam
meus pensamentos. Seguiam comigo, as histórias experenciadas e observadas na minha
trajetória profissional. Se tais histórias um dia chamaram minha atenção para que eu pudesse
narrá-las por meio das palavras de outros, a partir de então, elas poderiam ser narradas através
de minhas memórias. O vasto material que eu precisava, estava comigo durante todo o tempo,
em meio aos relatórios descritivos do desenvolvimento das crianças e, principalmente, nas
lembranças marcantes de certas crianças, sobretudo por encarnarem situações muito distintas
e peculiares.
A essa atitude narrativa, memorial e analítica, se acoplou uma dedicação mais
acirrada ao estudo teórico, revigorando a compreensão dos fatos a partir da investigação de
autores do campo queer, bem como comparando perspectivas a princípio díspares, mas que
porventura pudessem dialogar.
Pensando nas relações de poder que se dão por meio das “possibilidades dialógicas”,
como aponta Butler (1990/2019b) e Foucault (1976/1998) nas suas observações sobre a
importância da conversa e do diálogo, percebi através das leituras e estudos que tracei desde
quando iniciei minhas atividades no Mestrado, que eu poderia também embasar minha
pesquisa nas teorias da Psicanálise, ou, ao menos, em parte delas. Afinal, trata-se de áreas de
saber - Teoria Queer e Psicanálise - que supostamente estão em disputa, porém que assinalam
igualmente pontos de convergência ao tratar das questões da sexualidade.
De acordo com Foucault (1992/2015), ao se tratar da escrita, "escrever é pois
‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro" (p.150), pois seu
papel é o da constituição de um corpo, o qual não deve ser percebido como um corpo de
doutrina, mas sim aquele que fez sua respectiva verdade, visto que “a escrita transforma a
coisa vista ou ouvida em forças e em sangue” (p.143) e, nesta força, vêm estruturada,
igualmente através das leituras psicanalíticas, as vivências e as experiências relatadas no texto
deste estudo, configurado pelas vinhetas escolares como resgate dos “lugares de memórias”
14
(NORA, 1984) das escolas de educação infantil, marcadas no tempo como espaços com
memórias significativas e apreendidas pelos sentidos de forma sempre atual.
Na busca pelo embasamento teórico, encontramos o nome de Jacques Lacan (1901-
1981), psicanalista francês, associado ao de Sigmund Freud (1856-1939), não por ele ter
traçado como seu objetivo reinventar a psicanálise, porém por propor, no começo do seu
ensinamento sobre o signo de um retorno a Freud, formular que a psicanálise só é possível se
o inconsciente está estruturado como uma linguagem5 (MILLER, 2002).
Lacan, acreditava que a linguagem era a maior forma de expressão do inconsciente.
A partir de tal colocação, faz todo o sentido que esta pesquisa tome como fundamento os
estudos de Freud, passando por Lacan na construção das minhas narrativas permeadas pelas
histórias das crianças em suas relações com seus professores que advém das minhas
memórias, haja vista a importância de questões como o “nome” e a “nomeação”6
problemática em que essas crianças são ditas, definidas, determinadas e até estereotipadas por
certas designações linguageiras dos seus professores.
5 Questão fundamental e ainda válida, embora possa ser relativizada por sua “terceira fase”, quando Lacan
(1975-1976/2007) desenvolve mais suas teorias sobre o Real. Nesse momento, a partir da década de 1970,
sobretudo com a publicação do Seminário 20, Mais, ainda (1972-1973/1985), o autor passa a tratar de questões
da ordem sensível, abordando tudo aquilo que escapa à significação, caracterizando o Real como aquilo que “não
cessa de não se inscrever.”
6 O que podemos extrair do Seminário 9 sobre a identificação é que o nome próprio é um significante que
funciona como traço unário. Diferente de outros significantes, cuja função é de representação, o nome próprio
possui uma função distintiva, através da qual o sujeito poderá contar a si mesmo, reconhecer-se como um
(LACAN, 1961-1962/2003).
15
O Outro é um lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que,
anterior e exterior ao sujeito, ainda assim, o determina.
Portanto, nas suas mais variadas formas, as nomeações de algum modo marcam o
sujeito e o inscrevem de uma determinada forma no simbólico. Da mesma forma que as
identificações são constantes, se inscrevendo e reinscrevendo, não apenas na afirmação de um
nome com o qual somos apresentados à sociedade, mas em todos os momentos em que somos
convocados socialmente a dar conta de algo, quando somos interpelados pelo Outro e, ainda
assim, necessitamos fazer frente a nosso desejo (SOUZA; DANZIATO, 2014).
Sendo o inconsciente estruturado como linguagem, Lacan diferente de Freud, não vai
se interessar pelo inconsciente do sujeito, mas pelo sujeito do inconsciente. Pensar na
psicanálise lacaniana é pensar na diferença que se dá no encontro com o Outro através da
linguagem. Ademais, significa pensar na posição em que o sujeito é colocado e se coloca no
discurso.
“A psicanálise começa, quando uma mulher manda seu médico calar-se para que a
escute” (IACONELLI, 2018, p.45). Não estaria na hora do professor calar-se um pouco para
poder escutar a criança?
17
Caminhos Metodológicos
A presente pesquisa foi realizada sob uma abordagem teórica para ir ao encontro da
questão norteadora deste trabalho que é: a partir dos pressupostos dos estudos queer e das
contribuições da psicanálise para a educação, como uma professora ou um professor podem
compreender a criança que narra experiências queer na educação infantil?
Para responder à questão, utilizei a pesquisa bibliográfica que se propôs a explicar o
problema apresentado a partir de materiais elaborados anteriormente, compostos
principalmente por livros e artigos científicos que mostraram as possibilidades de
contribuição da psicanálise e dos estudos queer para a compreensão da criança que bagunça
as normas de sexualidade e gênero na escola e, por isso, de algum modo, movimentam o
imaginário dos professores.
Enfim, para se adaptar à sociedade tal como ela se apresenta, e não para questionar, se rebelar,
transformar o que está dado a partir das experiências, restando a nós a capacidade de reagir e
resgatar as narrativas.
Benjamin (1939/1989) alerta que ao consciente só é possível uma experiência cujas
marcas não se imprimem no inconsciente, resultando em ações e experiências sem verdade.
Ouvir e falar sobre essas crianças e não apenas armazenar as vivências na camada mais
superficial da consciência, possibilita uma experiência poética da vida (BENJAMIN,
1939/1989).
“Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao
passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é uma chave para tudo que veio
antes e depois” (BENJAMIN, 1933/1986, p. 37). É nesse contexto escolar que a criança queer
não tem lugar, ou seja, é atópica por ser atípica.
A partir deste entendimento e dos processos pelos quais passa essa criança, é
necessário compreender como são narradas suas experiências, buscando observar se ela
experimenta algum tipo de mal-estar por ser vista não apenas como uma criança que necessita
de apoio e respeito e sim como quem, fora da norma, têm suas histórias muitas vezes
silenciadas na educação infantil.
Para tanto, convido você a transitar por uma breve apresentação desta dissertação,
assumindo que se trata de um caminho aberto e reticente, no qual sempre será possível traçar
um novo curso. Afinal, essa criança queer que a escola desenha, existe dentro de um padrão
imposto pela sociedade na necessidade de o sujeito se identificar sistematicamente com um
gênero ou outro. Para tentar encontrar respostas para tantas indagações, a pesquisa foi
estruturada em cinco partes, que se sucedem da seguinte maneira:
- Na primeira parte é apresentado o percurso deste estudo, as inquietações que me
levaram a pesquisar a criança que nesta pesquisa é nomeada “queer” e que ao longo do texto,
implicitamente, é possível perceber que a escolha de uma definição dessa criança, segue
desconstruindo-se de qualquer tipo de nomeação, assim, como sugere o título do trabalho: “ou
isto ou aquilo” (MEIRELES, 1964). Quem sabe os dois, quem sabe nenhum (DELEUZE;
GUATTARI, 1972/2010; ERIC DROUET, 2022). Apresento os caminhos metodológicos que
se deram a princípio no início da pandemia da Covid-19 e que, como sugere a Teoria Queer,
seguiu novos rumos, descontruindo-se também.
- Na segunda parte é apresentada ao leitor a Teoria Queer e a Criança, mostrando
qual o lugar ela ocupa no mundo e no chão das escolas que foram revisitadas por meio das
minhas memórias enquanto professora da Educação Infantil. Seguimos na possibilidade de
20
enxergar os estudos queer na impossibilidade de defini-los apenas como uma Teoria, e sim
um acervo de engajamentos intelectuais e políticos e como se deu seu desdobramento
enquanto movimento e sua expansão no Brasil.
- Na terceira parte, a sexualidade infantil divulgada por aquele que poderia ter sido o
criador da Teoria Queer, Sigmund Freud, é discutida e pensada nos primórdios dos estudos do
Pai da Psicanálise e na necessidade de desconstrução de fatores tradicionais da/na psicanálise
que ainda influenciam na crença de que as divergências entre a Psicanálise e Teoria Queer
não podem “conversar” e tornarem-se convergências para, quem sabe assim, surgir a
possibilidade da criação de novas pedagogias fora da norma estabelecida. Michel Foucault
não poderia ficar de fora dessa parte do trabalho, dada a importância de suas análises a partir
da contribuição de um melhor entendimento da necessidade de combater as práticas dos jogos
da verdade no cotidiano das escolas perante as crianças e perante os professores e professoras.
- Na quarta parte é questionado: quem é o professor da criança queer? Em meio às
histórias compartilhadas através dos textos das “vinhetas escolares”, enxergamos um
professor melancólico que demonstra, mesmo que inconscientemente, o quanto se tornou
frustrado e, por isso, tenta também frustrar e castrar a criança dos afetos que ela traz dentro de
si. O professor se apresenta melancólico por uma série de fatores, entre eles a influência das
“caixinhas moldadoras” que o prendem e o paralisam na construção da própria reinvenção.
- E, na quinta parte, seguem as considerações sem fim, pois todo trabalho pautado na
Teoria Queer não está em construção, mas em desconstrução, da mesma forma como a
psicanálise que acolhe a incompletude e a falta de garantias. Será através da teimosia da
descoberta de novas possibilidades de aprender, ensinar, confrontar e ultrapassar barreiras,
sejam elas nos espaços escolares, nas teorias ou na vida, que este estudo poderá seguir além.
21
Como exposto por Foucault (1975/2007), a sociedade faz uso abusivo do poder
através das instituições, uma delas, a escola. Conversar, dialogar e ouvir, para que a criança
possa se mostrar diversa e o professor possa recebê-la tal como ela é, também é
responsabilidade da escola. Desse modo, este trabalho pretendeu compreender como a criança
combate intensamente a dominação e a discriminação do seu modo de viver na escola,
principalmente, perante seus professores.
Hoje nas escolas, existe a necessidade de compreender que o queer vai além de um
rótulo de identidade de gênero e que a teoria queer vem desconstruindo certezas do próprio
conhecimento. O que sabemos e o que não queremos saber acerca da sexualidade? Que
injunções narcísicas prepotentes nos provocam a desconhecer o outro, o diferente?
O destaque atual das teorias queer e de gênero convidam cada vez mais o professor a
revisitar suas reflexões relativas ao questionamento: a criança queer existe?
Partindo das pesquisas e leituras de conceitos destacados para meu estudo em
psicanálise e do arcabouço teórico dos estudos queer, a presente pesquisa visa problematizar a
existência da criança “queer” nas escolas da educação infantil, tomando a minha experiência
enquanto professora como forma de analisar e compreender os embates que essa diferença
radical e intrínseca ao campo da sexualidade aporta em relação a uma concepção
contemporânea de educação.
Para o desenvolvimento da pesquisa, apresento como principais teóricos de
referência, Sigmund Freud e sua teoria psicanalítica da sexualidade infantil; Michel Foucault,
no que tange o arcabouço da Filosofia da Diferença, por ser uma referência clássica no estudo
da sexualidade; e, ainda, autores contemporâneos como Judith Butler, uma das mais
conhecidas teóricas queer, escolhida por seus estudos atuais sobre a teoria e Guacira Lopes
Louro, cuja obra toma como base as questões de gênero e de sexualidade, apresentando
também contribuições relevantes acerca dos estudos queer voltados à educação escolar.
Retomando as histórias da criança queer, muitas vezes, silenciadas na educação
infantil, será possível o entendimento sobre como os estudos queer e os conceitos da
psicanálise podem auxiliar os professores na elaboração de um discurso que vá além da
afirmativa “somos todos iguais”, pensado através da subjetividade da criança a qual não pode
ter o espaço escolar como o seu “armário.”
O que chamamos de subjetividade não é mais que a cicatriz deixada pelo corte na
multiplicidade do que poderíamos ter sido. Sobre essa cicatriz assenta-se a
propriedade, funda-se a família e lega-se a herança. Sobre essa cicatriz, escreve-se o
nome e afirma-se a identidade sexual (PRECIADO, 2020, n.p.).
24
II PARTE
Não há melhor palco para um pensamento que dança do que o lado de dentro da cabeça das
crianças.
(Emicida, 2018)
Emicida, rapper, compositor e escritor brasileiro, revela no seu livro infantil “Amoras”
(2018) qual é o lugar da criança no mundo. “Amoras” nasceu das memórias de infância do
autor, que dedicou o texto da obra à sua filha Estela.
“Vencer as batalhas é importante em um mundo que vive em guerra, mas se
conseguirmos correr e chegar antes, talvez consigamos ensinar que Amoras chegam antes.”
Criança chega antes em todos os lugares, anunciando a que veio pois para ela, todos os
lugares são das crianças. No mundo do adulto, a criança não tem lugar, mesmo quando ela é
vista como um miniadulto. Muitas vezes nas unidades de educação, a criança não encontra o
seu lugar ali no chão da escola, contudo no “lado de dentro da cabeça”, a criança se situa em
todo e qualquer lugar.
Hoje a criança ocupa um espaço de valorização na cultura brasileira bem diferente de
dias anteriores. Ainda assim, é relativamente nova a busca pela interpretação das
representações da criança no mundo, objetivando entender o complexo processo de
construção social da infância e o papel que a criança desempenha na escola.
A partir do século XIX, a história da infância permitiu afirmar que a preocupação com
a criança se fez presente no Brasil, constituindo a infância como objeto de pesquisa suficiente
para tornar-se uma investigação científica. Estudos mostram que até o início da década de
1960 a história da infância era um campo distinto da história da educação (ARIÈS,
1973/1981).
Há uma negatividade constituída na infância na própria etimologia da palavra que se
encarregou de estabelecer um apagamento: infância é a idade do não-falante, o que transporta
simbolicamente o lugar do detentor do discurso inarticulado e ilegítimo (SARMENTO, 2005).
26
7 Para Butler (2011), o gênero é uma variável fluída que se desloca e se transforma em diferentes contextos e
períodos históricos.
29
vida tem grande importância nos estudos do processo da constituição psíquica para a
compreensão do adulto que nos tornamos.
A partir de uma perspectiva freudiana, o infantil diz respeito a nossa condição de criar
uma história para além do jogo das identificações imaginárias e binárias. O infantil influencia
o adulto na própria criação da subjetividade e faz dessa concepção uma noção favorável da
possibilidade de vislumbrar que nossa história é também a história da nossa criança, mesmo
que não seja ela autônoma, já que nos constituímos codependentes.
Na psicanálise a infância cronológica não pode ser confundida com o infantil que é
reconstruído no nosso discurso cotidianamente, pois ele não se pode ver, porém está no modo
de ser e agir, mesmo que de forma inconsciente, nos acompanhando até a idade adulta
(FREUD, 1900/1980; 1905/2006). Portanto, a psicanálise sustenta a existência permanente da
criança no adulto de qualquer idade e em qualquer tempo, pois nela não nos remetemos
apenas à infância e sim ao infantil, o qual também podemos encontrar nos adultos, este
infantil que escapa à racionalidade e é a fonte das experiências criativas no nosso permanente
movimento de subjetivação.
30
8 No campo da educação, entendemos haver diálogo entre a teoria queer e a educação por pedagogias e
currículos para além dos binarismos como pensado por Guacira Lopes Louro. São sexualidades
interseccionalizadas com classe, gênero, origem, raça etc. Anzaldúa (1999) articula em sua dicção sua
lesbianidade, seu feminismo, sua condição de trabalhadora e de migrante de um modo interseccional e
transnacional, o que é de fundamental importância para explicitar que o pensamento queer, desde suas origens,
está atento e aberto ao diálogo para a discussão de questões de raça, classe, etnia, nacionalidade, decolonialidade
e migração, ademais das óbvias preocupações com o gênero e a sexualidade (ALÓS, 2020).
31
Teoria Queer ou como nos apresenta Bento (2014) Teoria Transviada; San Martin
(2011) Teoria Cuir; Pelúcio (2014) Teoria Cu (COLLING, 2016, p. 13) entre outras
denominações, tratar-se-ia mesmo uma teoria ou de várias teorias?
Javier Sáez (2004) inicia o texto de sua obra “Teoría Queer y Psicoanálises”
destacando o conceito da palavra “teoria” e nos dando pistas que no campo da filosofia e da
epistemologia, o termo teoria é compreendido como “um corpo de conhecimento articulado e
sistemático para explicar um objeto determinado de estudo” (LEOPOLDO, 2020, p. 22). Bem
diferente de tudo o que for lido e pesquisado sobre a teoria queer e como bem destaca Sáez
(2004), a palavra “teoria” não caberia para enunciar a vastidão do que se pretende conhecer
enquanto teoria queer.
A teoria queer propõe um enfoque que se estabelece para além das populações
dissidentes, abarcando os processos de desconstrução da categorização sexual indagando
estruturas sociais de opressão a partir dos contextos históricos, sociais, políticos e culturais.
Como um marcador de instabilidade das identidades, a teoria vem se mostrando ativa
em não tratar necessariamente e apenas de sexualidade (GAMSON, 2006). Mesmo que a
teoria se oponha aos que defendem a noção de identidade, sua mobilização segue além da
expansão do ativismo contrário à heteronormatividade, voltando-se mais à prática queer como
rompimento de constructos sociais que ainda garantem a hierarquização e subalternização das
minorias.
A vastidão do queer já se inicia na impossível tradução da palavra. Na língua
portuguesa não temos uma palavra que dê conta de um significado ou tradução para o termo
queer. Por isso, muitos teóricos e pesquisadores de diversos países e línguas continuam
utilizando a palavra queer nos seus estudos.
Em sua obra semiautobiográfica “Borderlands, La Frontera: a nova mestiza.” Glória
Alzanduá (1999), autora que se compreende como mestiça, entre a fronteira do México e o
Texas, escrevendo suas obras tanto em inglês quanto em uma variedade do espanhol, diz que
o queer é aquele que se aproxima de uma fronteira, ou bem aquele que atravessa as fronteiras.
Fronteira não como o que divide duas identidades supostamente fixas, mas como o que une
uma passagem de um ponto ao outro, um espaço de constante transição (ANZALDÚA, 1999).
A teoria queer foi influenciada pelos movimentos feministas, também pelos estudos
da virada filosófica francesa a partir dos escritos de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix
Guattari e Jacques Derrida (LEOPOLDO, 2020), e se consolidou por volta dos anos 1990 com
a publicação do livro “Problemas de Gênero” de Judith Butler. Já, Glória Alzanduá, foi a
primeira a utilizar academicamente o termo queer, seguida por Teresa de Lauretis que se
32
9 O filme Ma Vie en Rose ("Minha Vida em Cor-de-rosa") é um drama belga de 1997 dirigido por Alain
Berliner. Conta a história de Ludovic, uma criança de sete anos de idade que é vista pela família e pela
comunidade como um menino, contudo essa criança se identifica e se comunica como menina. Ludovic, tem
33
criança preta foi hostilizada por seus pares, também crianças, e não foi defendido pelos
profissionais da escola. Ao contrário, o objetivo da instituição que deveria acolhê-lo e
protegê-lo, foi de barrá-lo da exposição de ser criança que se revela naturalmente nos seus
desejos.
É importante ressaltar a angústia10 que foi despertada nos amigos do Ariel, nos
profissionais da escola e no próprio Ariel acerca de suposições sobre sua futura sexualidade,
ao revelarem algo a mais que foi observado e destacado sobre sua vida: o fato de ser uma
criança queer e preta.
A angústia, “em primeiro lugar é algo que se sente, respondeu Freud. Uma sensação
que tem acentuado caráter de desprazer. Um pré-sentimento, como afirma Lacan, algo
anterior a qualquer sentimento e que anuncia alguma coisa (...) Angústia é um ato que
não engana” (LEITE, 2011, p 39).
Como um corte que se abre e que deixa aparecer o inesperado, a visita, a novidade -
presentimento, pré-sentimento - ante ao nascimento de um sentimento ou um sintoma
(LACAN, 1962-1963/2005), ante a presença do Ariel, a angústia naquela escola se fez
relacionada ao desemparo da criança queer e preta.
Quem era o Ariel na escola? A forma como se aliena, quem está ao redor da criança
que se faz enigmática diz respeito ao desejo do Outro sobre como ele se mostra, diz respeito
aos primeiros discursos, como a forma que cada um é falado. Nesse sentido, Ariel é o
portador de um enigma, aguardando o momento mais oportuno para se manifestar.
De acordo com Ambra; Laufer e Júnior (2018) a normatização parte de um discurso e
um exercício de poder, que visa preencher o vazio deixado pela ilusão de que existe um
normal. “(...) Não é precisamente essa alienação que a psicanálise pretende denunciar?”
(AMBRA, LAUFER, JÚNIOR, 2018, p. 238).
E seguem assim em processo, a teoria e o Ariel, como criança queer que nem sabe da
existência de tão complexo estudo, contudo exigindo de si mesma a sua não captura, utiliza
seu impulso criativo de modo a produzir e apresentar forças que se encontram em ação no seu
corpo para driblar o poder dos adultos e criar modos de vida forjados como resistência às
uma questão urgente: "Sou um garoto ou uma garota?" Sua próxima questão é uma espécie de resposta: "Quando
me transformarei em uma garota?" Ludovic conta à sua mãe o que acredita que vai acontecer em seu futuro
porque se apaixonou por Jerome: "Ele vai se casar comigo quando eu não for um garoto." Ludovic é suspenso da
escola por conta de uma petição dos pais e responsáveis das demais crianças e o diretor pontua: "Seu gosto é
muito excêntrico para esta escola."
10 “Angústia, em alemão “angst”, embora tenha diversos sentidos em sua tradução, significa medo. Como um
sentimento de inquietude gerado por uma ameaça real ou imaginária, a angústia também é conceituada como
“receio”, “temor”, “pânico” ou “pavor” (HANNS, 1996). Como eixo fundamental da clínica psicanalítica, a
angústia é apresentada no Seminário 10 de Lacan (1962-1963/2005) através dos conceitos de inquietante
estranheza (Unheimlich) e de desamparo (Hilflosigskeit).
34
formas dos professores de governar os que são considerados fora da norma (ASPIS; GALLO,
2010).
“É preciso, portanto, um certo estremecimento dessas fronteiras excessivamente
rígidas e fixas da identificação e do desejo (...)” (ARAN; PEIXOTO JÚNIOR, 2007, p.143)
que questionem a rigidez identitária apresentando modos de subjetivação desviantes dos
regimes normativos.
35
Movimentos Queer
Sorry. Ser bicha não basta para ser queer: é necessário submeter a sua própria
identidade à crítica.
(Preciado, 2009)
11
Na perspectiva de Collins; Bilge (2020) a interseccionalidade remete a uma abordagem transdisciplinar que
objetiva apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais, recusando o fechamento e a
hierarquização de grandes eixos de diferença social.
37
12 A estratégia fundamental usada pela maioria dos movimentos LGBT’s e que está muito ligada aos discursos
em torno da igualdade, é a afirmação das identidades e o uso do essencialismo estratégico que acompanha as
suas práticas políticas. Ativistas, em geral, defendem que um grande grupo de pessoas deve ter e afirmar a
mesma identidade ou um restrito grupo de identidades, na melhor das hipóteses simbolizadas pela sigla LGBT, e
que todas devem se identificar com as mesmas características que seriam inerentes a tais identidades
(COLLING, 2015).
38
inclusive o modo com que tal norma estabelece os limites de inteligibilidade que organizam a
compreensão do homem e da sexualidade (CUNHA, 2013).
O movimento queer “opõe-se às políticas republicanas universalistas que concedem
o reconhecimento” e impõem a “integração” das “diferenças” no seio da República
(PRECIADO, 2011, p 18) e diz: não nos interessa o casamento, não queremos a formação da
família tradicional, não necessitamos da aprovação da sociedade para caminharmos pelas ruas
como desejamos, não deixaremos de nos nomear como quisermos, contudo, não permitiremos
que os outros nos nomeiem e nos julguem como querem. Como aponta Preciado (2009):
O que havia mudado era o sujeito da enunciação: já não era mais o mestre hétero que
chamava o outro “bicha”; agora a bicha, a caminhoneira e o/a trans se
autodenominavam queer, anunciando uma ruptura intencional com a norma (...). Já
não se tratava de pedir tolerância e fazer vista grossa para acessar as instituições
heterossexuais do matrimônio e da família, mas afirmar o caráter político (para não
dizer policial) das noções de homossexualidade e heterossexualidade, questionando
sua validade para delimitar o campo do social (p. 15).
13 A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Com ela, o
sexo (os órgãos chamados "sexuais", as práticas sexuais e os códigos de masculinidade e de feminilidade, as
identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das
tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida (PRECIADO, 2011, p. 11).
14 A expressão “minoria” não pretende se referir a quantidade numérica, mas sim a uma atribuição valorativa
que é imputada a um determinado grupo a partir da ótica dominante (LOURO, 2008).
39
A multidão queer não tem relação com um “terceiro sexo” ou com um “além dos
gêneros”. Ela se faz na apropriação das disciplinas de saber/poder sobre os sexos, na
rearticulação e no desvio das tecnologias sexo-políticas específicas de produção dos
corpos “normais” e “desviantes”. Por oposição às políticas “feministas” ou
“homossexuais”, a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade
natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas
(heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se
levantam contra os regimes que os constroem como “normais” ou “anormais” (...) O
que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação
sexopolíticas (PRECIADO, 2011, p. 16).
O movimento queer traz à existência, segundo Preciado (2011, p 18), “uma multidão
de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de
vida.” Nesse sentido, o movimento queer extrapola e subverte o campo de concepções sobre a
sexualidade, postulando-se como um novo paradigma que vai além da teoria.
40
Em 2001, Guacira Lopes Louro publicou um artigo intitulado “Teoria Queer: uma
política pós identitária para a educação.” Foi um marco para o início das discussões dos
estudos queer no Brasil.
É possível dizer que o termo queer relacionado à sexualidade e ao gênero surgiu
como um insulto à população LGBTIAP+, que passou a utilizar a palavra como forma de
assunção e de deboche (LOURO, 2001b).
Segundo Spargo (2017), queer em inglês pode atuar como verbo, substantivo ou
adjetivo. De insulto, o termo queer, passou a ser reivindicado e utilizado como uma expressão
de transgressão, marcando uma oposição à norma.
Não é por acaso que as “Teorias Queer” portam, no seu próprio nome, a história de
uma luta pela ressignificação do insulto, uma luta pelos naming-rights das
sapatonas, das travestis, das soropositivas, das bichas, das raras, das precárias. A
indeterminação do referente, inscrito no insulto queer, é um dos motivos pelos quais
este não é o nome de um movimento social que possa ser descrito, colocado no vidro
do laboratório acadêmico para ser dissecado, as suas partes expostas e classificadas
(LEOPOLDO, 2020, p. 15).
15 Aqui foi adotada a forma verbal do termo queer, ampliando assim o seu escopo e enfatizando o seu aspecto
de agenciamento de novas formas de devir (HALPERIN, 2000).
42
como LGBTIAP+ era GLS - gays, lésbicas e simpatizantes.16 O passar dos anos e das novas
demandas por reconhecimento de especificidades dos sujeitos que se sentem invisibilizados
ou excluídos fez com que a sigla se modificasse continuamente (LINS; MACHADO;
ESCOURA, 2016). Portanto, as letras são incluídas e alteram-se de acordo com o momento
político e as respostas que os movimentos sociais dão para as questões que emergem nos
diferentes contextos históricos.
Muitos pesquisadores defendem a exclusão da letra Q da sigla, que é utilizada em
alguns contextos, exatamente por ela representar o Q de queer. No dizer de alguns teóricos
não cabe a letra Q na sigla já que a teoria queer prega pela não identificação do sujeito e, na
sigla, cada letra exposta está seguida da representação identitária de cada grupo dissidente. “O
queer ante isto, toma uma forma: não se trata de uma identidade, mas, sobretudo, de um
questionamento contínuo das identidades, um questionamento aos processos de naturalização
e normatização” (LEOPOLDO, 2020, p. 29).
Por meio de um crescente ativismo, a sigla se encontra atualmente com variadas
possibilidades de reestruturação. Em sua versão mais conhecida, a encontramos assim:
LGBTTQQIAAP+, representando as lésbicas, os gays, os bissexuais, trangêneros, travestis,
queer, questionando, intersexuais, assexuais, aliados, pansexuais etc.
16 Sigla utilizada no início dos anos 1990 no Brasil, representando os gays, as lésbicas e os simpatizantes.
(LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016). O acrônimo GLS se referiu a um segmento de mercado para divulgar
espaços, produtos e serviços que estavam abertos a todos os públicos, diferente da sigla LGBTIAP+ que aponta
para um caráter político-social, referindo-se às minorias.
43
queer não pode representar algo estanque, tampouco deve ser percebido como caráter de
idêntico em uma sociedade diversa (FERNANDES, 2006).
Miskolci (2010, p. 10) aponta que é urgente “o fim do modelo identitário de
letrinhas” com o risco de tornar o movimento cada vez menos plural e democrático. Por outro
lado, como ficariam as questões das multidões invisibilizadas a cada dia a partir de ações de
intolerância e violência se não representadas?
É importante ressaltar que os estudos da teoria queer e os combates do movimento
queer não buscam existir em oposição aos indivíduos heterossexuais e cisgêneros, mas têm
interesses em se opor à heterossexualidade compulsória e à cisgeneridade como regimes
políticos de normalidade. Nessa perspectiva, a heterossexualidade não é compreendida apenas
como “uma prática sexual, mas como um regime político que faz parte da administração dos
corpos e da gestão calculada da vida no âmbito da biopolítica”17 (PRECIADO, 2011, p. 12).
A teoria queer no Brasil segue engatinhando, ganhando espaço e se consolidando
ainda nas pesquisas e nas ruas. O que se pretende é provocar o estranhamento até nas formas
de pesquisar ou pensar. Apesar da busca da consolidação dos conceitos da teoria queer, esta
pode ser sempre encarada como provisória, em trânsito e não como aquela que constrói, mas
que desconstrói.18
17 A biopolítica, polo complementar do biopoder (FOUCAULT, 1975/2007), volta-se à regulação das massas,
utilizando-se de saberes e práticas que permitam gerir taxas de natalidade, fluxos de migração, epidemias,
aumento da longevidade etc. (FOUCAULT, 1970/2013; 1995).
18 Sáez (2004) apresenta uma definição aproximada do conceito de desconstrução de Derrida e, ainda, indica o
uso do conceito pela teoria queer afirmando que: “a desconstrução é uma forma de intervenção de axiomas
hermenêuticos que produz uma instabilidade na segurança dos métodos, na história das ideias, nas fontes da
significação, atuando nos sedimentos das arquiteturas conceituais (...).” (SAEZ, 2004, p.84). Segundo Derrida,
para que haja desconstrução é necessário a dissolução de todas as rígidas oposições conceituais dos binarismos
como homo/hetero, homem/mulher, natureza/cultura etc. Assim, poderemos procurar a descrição justamente por
aquilo que é ou por aquilo que não é, deslocando-se da finalidade de uma posição e avançando a noção de que
não há estrutura ou centro e nenhum significado unívoco. DERRIDA, (1967/2004; 1979/2009).
44
III PARTE
Meu corpo tem cinquenta braços e ninguém vê porque só usa dois olhos.
(Paulinho Moska, 1995)
Complexo de Édipo19, quando a criança deseja a mãe para si, ao mesmo tempo que vê o pai
como aquele que vai castrá-lo, dito de outro modo: o pai como rival no amor em relação ao
amor da mãe. O pequeno Hans demonstrou curiosidade pelo órgão genital de sua irmã que
acabara de nascer, pelos órgãos genitais de seus pais e pelo seu. Ao se deparar com o órgão
sexual do cavalo, Hans fez referência ao órgão sexual de seu pai, mencionando algo do tipo “é
grande igual ao do papai” (FREUD, 1909/1996). Em forma de representação, através da
instauração do recalcamento para lidar com suas angústias edipianas e não perder o amor dos
pais, o cavalo passou a simbolizar o medo que ele tinha do pai em castrá-lo e afastá-lo do seu
objeto de desejo, sua mãe.
Desse modo, as questões acerca da sexualidade infantil e do Complexo de Édipo
predominaram na leitura freudiana no caso do pequeno Hans, estudo que abriu caminho para
descortinar a criança apresentada por Freud (1907/1976), que é dotada de sentimentos e
desejos, que vive conflitos e contradições, e, sobretudo que, é portadora de sexualidade e
escapa ao controle da educação.
No final do século XIX e início do século XX, Freud abre um campo de investigação
antes desconhecido: a noção de inconsciente, abalando a confiança que a cultura ocidental
depositava na razão. Ao apresentar a sexualidade infantil e contestar a ideia da inocência da
criança, Freud (1905/2006) provocou abalos na concepção que o ser humano tinha dele
mesmo. A psicanálise apresentava um novo discurso sobre o ser humano, não como um
sujeito objeto da ciência, mas como marcado pelo inconsciente, um ser humano passível de
sonhar, amar e desejar de forma diferente da norma judaico-cristã e da cultura vitoriana de sua
época.
A obra de Freud “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/2006), na sua
primeira versão, apresentou uma concepção como essencialmente perversa e, o que para a
época apresentou o caráter revolucionário de Freud. Nas reformulações da obra nas edições
posteriores (1910; 1915; 1920; 1924), a riqueza interpretativa observada na primeira versão,
cedeu lugar, como sugeriu Laplanche (1992), a um aspecto menos “aberrante da sexualidade.”
A partir das concepções iniciais de Freud, a criança da psicanálise se apresenta
marcada pelo inconsciente, o qual incide sobre ela com sua dinâmica pulsional. Essa criança
20 Freud (1905/2006) denominou a sexualidade infantil como “perverso-polimorfa”, uma vez que, para o
teórico, a sexualidade se manifesta de várias formas, não havendo primazia de uma zona erógena determinada,
relativando o modelo genital da relação sexual e derivando as formas de obtenção de prazer de qualquer área ou
órgão do corpo, já que, na infância, a sexualidade é submetida à ação de pulsões parciais (autoerotismo). Ao
caracterizar a infância como “perverso-polimorfa”, polivalente e autoerótica, Freud aponta que o ser humano é
um sujeito dotado de desejos proibidos e conflituosos que se abstêm deles para viver de acordo com as normas
da cultura.
47
sexualidade infantil em sua essência, o perverso-poliformo, é o que não pode ser jamais
castrado, pois “não cede à castração”, é o sujeito que cede aos seus desejos e impulsos para
poder viver em uma sociedade estabelecida pelas normas de sua cultura. (FREUD,
1905/2006; 1930/2010). A “lei” regula, mas não elimina o gozo pulsional humano. O gozo
enquanto o que passa da medida é aquele a que todo ser humano está sujeito e precisa
renunciar, de modo a não se destruir e destruir o outro em seus excessos. Aceitar o hibridismo
da criança não quer dizer abolir a “Lei” ou o fato inerente de sermos todos castrados, haja
vista não ser possível viver em sociedade sem renúncia pulsional (FREUD, 1930/2010). O
papel da escola é de introduzir e permitir a elaboração dessa normatividade social na criança
(CANGUILHEM, 1966/2000). Ademais, da Lei advém a possibilidade de desejar, diante dos
limites impostos pela sociedade. No entanto, esses limites da Lei precisam ser repensados
sempre, pois devem mudar diante do obscurantismo de épocas em que é a própria sexualidade
infantil que é eliminada junto com regras que destituem os sujeitos de sua capacidade de ser e
de desejar.
quiser. Para a escola, o outro necessita cumprir normas. Para os professores, o Baby veio
instigar.
Alguns professores preferiam que o Baby continuasse Renato, “o menino contido”;
para outros, o Baby “colorido” suscitou uma necessidade de ampliar as possibilidades de ver o
outro como ele é, e, para tanto, buscaram alinhar a prática pedagógica à realidade que ali
estava: o Baby existe.
De acordo com Freud (1905/2006), a criança passa por fases de desenvolvimento que
são bem conhecidas dos professores da educação infantil, já que elas são divulgadas entre os
conteúdos das grades curriculares do Ensino Médio na modalidade Formação de Professores e
nos Cursos Normal Superior e de Pedagogia. Freud (1905/2006), ao publicar seus primeiros
estudos sobre a sexualidade infantil e o desenvolvimento psicossocial, chocou a sociedade da
época que possuía a ideia da não existência da sexualidade infantil. Contudo, o autor explicita
que desde o nascimento o sujeito é dotado de afetos, conflitos e desejos.
Assim são divididas as fases da Teoria do Desenvolvimento Psicossocial, distintas,
porém, não estanques: fase oral, fase anal, fase fálica e fase genital. Entre a fase fálica e a
genital, Freud (1905/2006) postula um período, denominado de latência.
Antes, cabe ressaltar que, para Freud (1905/2006), a sexualidade infantil não é uma
sequência de acontecimentos que ocorrem em tempo linear. São fases possíveis de serem
observadas em determinadas épocas da infância. Segundo a teoria da sexualidade infantil, as
fases do desenvolvimento infantil estão ligadas pelo deslocamento da libido para diferentes
zonas erógenas. Por ter percebido certa organização nas pulsões sexuais infantis, o teórico
agrupou tais pulsões em fases de desenvolvimento sexual infantil.
A fase oral ocorre de 0 aos 2 anos, aproximadamente. Nesta fase, a zona de
erotização é a boca. O prazer está ligado à ingestão de alimentos e tudo o que a criança deseja
conhecer, leva à boca. A amamentação e uso da chupeta, as mordidas nos seus pares na
creche, são exemplos de ações prazerosas nesta fase.
A Fase anal vai dos 2 a 4 anos aproximadamente. Aqui a zona erógena predominante
é o ânus. Esta fase é cheia de simbolismos e fantasias, visto que as fezes vêm de dentro do
corpo e a criança estabelece um certo vínculo tanto com a capacidade de excreção como com
a retenção. O controle dos esfíncteres anal e uretral é uma fonte de prazer.
A Fase fálica vai dos 4 aos 6 anos aproximadamente. Nela, a zona de erotização é o
órgão sexual, apresentando algumas convergências dos impulsos sexuais sobre o objeto.
Nesta fase, a criança apresenta curiosidade e desejo, manipulando os seus órgãos genitais.
50
21 Segundo Freud (1925/1996), a inveja do pênis funda-se no momento da organização sexual infantil
caracterizado pela primazia fálica. A menina se veria sem pênis, reconhecendo-se como membro de um gênero
inferior. Sob a ótica de Freud, a diferença anatômica entre os sexos acarretaria consequências psíquicas, que
diferenciariam a vida das mulheres da dos homens (FREUD, 1933/1996). Após a publicação da obra Segundo
51
que se prolonga até a puberdade, se caracterizando por uma diminuição das atividades
sexuais.
A fase da latência vai dos 6 anos até a puberdade. Nesta fase há intensa atuação da
repressão e recalcamento de fantasias e questões sexuais. É neste momento que a criança, por
meio da pulsão de saber e da sublimação, dirige sua libido ao desenvolvimento social e
cultural, quando, por exemplo, na escola, vive suas experiências sociais com as demais
crianças, se interessando por temas científicos e outras atividades criativas. Embora nesta fase
ocorra uma espécie de “pausa” na “evolução” da sexualidade, não significa que a criança não
tenha interesse sexual. Porém, trata-se de um “sexual-pré-sexual” (LAPLANCHE, 1991) uma
vez que não tem a genital amadurecida o suficiente.
Finalmente na adolescência, surge a última fase do desenvolvimento, segundo Freud
(1905/2006). Trata-se da fase genital que vai da puberdade à idade adulta. O objeto de
erotização ou de desejo já não está no próprio corpo, mas em um objeto externo, no outro. Na
puberdade, até o final da vida, a libido volta a sua concentração aos genitais, haja vista o
amadurecimento do sujeito.
Segundo Freud (1905/2006), nessa fase, os meninos e as meninas encontram-se
conscientes de suas identidades sexuais como sendo distintas e iniciam a busca de variadas
formas de satisfazer as suas necessidades interpessoais e eróticas na relação com o outro. Para
atingir a satisfação de modo pleno e adequado nesta fase, é necessário o desenvolvimento do
que se pode pontuar, mas não generalizar, como um adulto que a sociedade nomeia “normal.”
Nessa perspectiva, pode-se seguir a linha em que a partir de um conjunto de fatores
biopsicossociais que se somam, resultam, finalmente, em um sujeito adulto, com maturidade
para estabelecer relações equilibradas, ou em um sujeito com alguma descompensação.
É importante ressaltar que os desdobramentos dessa teoria, por muitas vezes, são mal
compreendidos, gerando preconceitos e estigmas, por outras vezes, são malconduzidos nas
Formações de Professores e de outros profissionais de variadas áreas, levando muitos à
incompreensão do tema e a um certo preconceito em se falar sobre a sexualidade infantil,
como se a criança não fosse dotada de desejos e de um erotismo “sexual pré-sexual.”
Com seu pensamento em permanente diálogo com as obras de Freud, Butler
(1990/2019b; 2004/2022) estabeleceu conexões entre seus encontros e desencontros com a
psicanálise, mesmo entre diferentes perspectivas, em princípio, distintas. Com todos os
Sexo (BEAUVOIR, 1949) e a segunda onda do feminismo, pode-se pensar que a centralidade do falo continua
como um motor teórico, porém, agora, a partir de seu caráter simbólico (MARTINS, 2021).
52
22 Termo surgido na França em 1625, derivado do latim pulsio, para designar o ato de impulsionar. Empregado
por Freud a partir de 1905, tornou-se um grande conceito da psicanálise, definido como a carga energética que se
encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente
(ROUDINESCO, PLON, 1998).
53
elaborado pela linguagem inspirada por Austin23 (STONA; COELHO 2020). São as regras
das instituições que atuam como dispositivos de poder que, ao reproduzir atos repetitivos,
instauram no interior da linguagem uma estrutura de regulação. Para que o gênero permaneça
estável, ações performáticas são impostas para a manutenção da heteronormatividade.
Quanto à menina:
(...) O complexo de Édipo também pode ser positivo (identificação com o mesmo
sexo) ou negativo (identificação com o sexo oposto; a perda do pai, iniciada pelo
tabu do incesto, pode resultar numa identificação com o objeto perdido
(consolidação da masculinidade) ou fazer com que o alvo se desvie do objeto, caso
em que a heterossexualidade triunfa sobre a homossexualidade, e um substituto é
encontrado (BUTLER, 1990/2019b, p 111).
23 Butler inicia o uso da palavra “performativo” inspirada em Austin, pensando como faz ou se desfaz gênero
através do uso da linguagem. Austin propõe uma discussão sobre os enunciados que não são nem verdadeiros,
nem falsos, não descrevem e não servem para informar, mas sim para fazer algo, confrontando a ideia da
filosofia da linguagem de que usamos a linguagem para dizer o verdadeiro ou falso. Para Austin, o dizer é de
alguma forma performativo (AUSTIN, 1990). Através de uma leitura feminista da psicanálise, Butler destaca a
temporalidade como forma de compreensão da constituição do sujeito através dos atos de fala e de seus efeitos
de citacionalidade dissimulada (BUTLER, 1990/2019).
24 O termo "perversão" sugere a noção de uma norma moral ou da natureza da qual o perverso está se
afastando. Pelo fato de a Igreja relegar a sexualidade estritamente à finalidade reprodutiva, esse tipo de
54
como a criança se mostra, fora das normas estabelecidas. No contexto da sociedade em que
Freud viveu, o sexo heterossexual e genital eram os considerados normais. Em contraposição,
qualquer comportamento ou prática sexual apresentada como diferente, era visto como desvio
da moralidade, ideia esta que podemos observar ainda atuante nos dias de hoje. No contexto
de uma sociedade tradicional e normativa como a nossa, mal podemos observar grandes
diferenças daquela sociedade na qual Freud apresentou seus conceitos. No cotidiano escolar
continua o processo de observação e cobrança da criança em revelar-se sob um
comportamento esperado, aquele de quem a vigia a todo instante.
Voltando-se ao campo cultural, o desejo da menina ou do menino, da mulher e do
homem, desvia-se do significado que a sociedade entende como original, pois é tomado por
diversos deslocamentos. Segundo Butler (1990/2019b), as predisposições sexuais são
carregadas de discursos dotados de intenções de moldar os impulsos, através dos quais a
criança queer em um processo de negação, sofre. Cobra-se da criança uma distinção entre o
que é legítimo do ilegítimo, o que é certo do errado, o que é normal do anormal, delimitando e
construindo o campo do indizível (STONA; COELHO 2020).
Entre a psicanálise e os estudos de gênero, muitos conceitos estão avançando em um
processo de historização que, quando inseridos no entendimento de um intervalo sócio-
histórico, é possível compreender a crítica que se faz ao passado. Contudo, os apontamentos
de Freud, universais e atemporais, cuja sexualidade humana é a trama que reinventada e
respeitosa ao mundo interno do sujeito, reapropria a criança que Freud já trazia como “viada”
e que a todo custo a sociedade tenta “desviadizar.”
O termo “criança viada” ficou popularmente conhecido por intitular uma página na
rede social Tumblr (criancaviada.tumblr.com).25 Nessa página, um álbum compartilhado de
fotografias, escaneadas e enviadas espontaneamente por adultos que na infância se
consideravam crianças viadas, deram vida ao projeto/álbum fotográfico que se propõe a
discutir imageticamente a temática (MACHADO, 2021).
apreciação não considera a verdadeira dimensão do desejo sexual que, submetido às leis da linguagem, escapa a
qualquer finalidade apreensível diretamente (CHEMAMA, 1995).
25 Em 2013, a série de pinturas Born to Ahazar da artista plástica Bia Leite, reproduziu as fotos do Tumblr
Criança Viada. A proposta do trabalho era fazer uma série de pinturas em cima das fotografias do projeto
desenvolvido pela página, divulgando as imagens e os textos de referências diretas aos posts de Iran Giusti,
administrador da página. As telas da série foram expostas em quatro exposições antes da proposta chegar a Porto
Alegre em 2017, quando foi contemplada pelo edital Santander Cultural e incorporada à exposição
“Queermuseu: cartografias da diferença.” Entretanto, devido a denúncias, a exposição foi interrompida sob
ameaças de boicote de clientes do Banco. ‘Queermuseu’, a exposição mais debatida e menos vista dos
últimos tempos - BBC News Brasil. Disponível em: https:www.bbc.com/portuguese/brasil-45191250.
55
Apesar da moral repressora de sua época, Freud não deixou de afirmar e defender o
pluralismo que compõe a sexualidade, confirmando a atualidade de sua teoria.
Dos encontros e desencontros entre a psicanálise e a teoria queer possibilitados por
Butler (1990/2019b, 2022/2004), o que se está de acordo é que não há nada que evidencie que
o sexo biológico garanta representar o ser um homem ou uma mulher. O que temos é a leitura
da natureza, sob a forma de semblantes: "é menino" ou "é menina", na qual o discurso do
Outro incidirá sobre tais definições com consequências na produção de identidades
inconsistentes.
Independente de Renato ser identificado ou não como uma criança queer, ele ousou
ser quem desejava, mostrando coragem em se denominar “Baby.”
56
Meu corpo não pode mais ser assim do jeito que ficou após sua educação.
(Paulinho Moska, 1995)
Toda vez que Tomás se mostrava para as demais crianças na sua Turma da
Pré-Escola, performava sua felicidade, se colocando da forma que realmente era.
Na realização das atividades pedagógicas, ele sempre se destacava por suas
ações e brincadeiras permeadas por mil alegrias. Por diversas vezes, Tomás era tolhido
não por seus pares, mas, principalmente, pelos professores ao seu redor.
- “Sossega menino.”
- “Fala baixo”.
- “Para de dançar”.
- “Ah! Esses seus gritinhos parecem de menina”.
Na hora da saída, Tomás se transformava em outra criança: tímida, calada e
triste.
No Dia das Bruxas, as crianças causaram um alvoroço, pois queriam mostrar seus
talentos através da arte, representando personagens através da música e da dança.
Chegou o tão esperado momento da apresentação da Turma do Tomás.
A música escolhida foi “Sinais”, que relatava a história de uma bruxa exibida na
telenovela infantil “Chiquititas”.
As meninas performaram timidamente. Tomás como disseram, “chegou chegando”
e coreografou: “bruxa, fedida, tomara que te dê dor de barriga. Não quero a sopa, a bruxa
tá maluca!”
Aqui segue apenas um relato, mas se pudessem ver o Tomás em sua dança que ia
de cima para baixo, de um lado para o outro, rebolando, agachando, performando em sua
fantasia... Não teve bruxa melhor representada. Sim, o Tomás foi o sucesso do evento.
Finalizou mais uma manhã na Turma da Pré-Escola, Tomás se recolheu ao seu
“menino” exigido pela norma e seguiu para casa.
57
Na escola, Tomás se sentiu à vontade para performar sua criança queer, o que não
tinha liberdade para fazer em casa, sendo exigido dele apenas o “masculino”. Para Butler
(2011), o gênero deveria ser visto como uma variável fluída que se desloca e se transforma em
diferentes contextos e períodos históricos.
Ainda assim, Tomás ouviu falas “antibluterianas” dos professores, que o julgaram
por se mostrar dono de seus desejos ou, simplesmente, uma criança. O que não foi percebido
pelos adultos que o cercavam é que, cotidianamente, eles usam máscaras e performam modos
de vida fantasiosos e subordinados a normas a que nem sempre se encaixam ou questionam.
Como colocado por Butler (1990/2019b), o sujeito é instável e sem lugar fixo no
mundo, o que significa dizer que ele é um construto performativo. Como exigir de uma
criança que ela se comporte de forma a não teatralizar, através de gestos corporais, falas,
movimentos, os papéis e as encenações, dando a sensação de um gênero que está em
constante transformação?
A teórica queer aponta que não é possível viver fora da norma, pois o gênero é
limitado pelas estruturas de poder e não há possibilidade de escolha totalmente livre. Contudo,
a criança que é subversiva, cria espaço potente de enfrentamento, mesmo que a cultura ou a
escola imponham práticas entendidas como femininas ou masculinas apenas, as quais a
criança novamente subverte, troca e performa ao contrário do que é esperado por seus
professores.
A escola é uma das maiores esferas de poder que ajudam a formar as percepções da
criança sobre o mundo. Enquanto a temática de gênero e sexualidade são tratadas como tabus,
crianças existem e resistem e são universos em formação. É importante pensar sobre a
formação de quem ‘forma’ a criança para não se tornar o professor que se comporta como se
fosse uma “polícia do gênero”, termo correlacionado ao texto clássico “Polícia das Famílias”
de Jacques Donzelot (1977/1980). No texto, o autor orientado por Foucault, mostra
historicamente as transformações das organizações familiares sob a intervenção do Estado ao
longo do tempo na tentativa da construção da ordem social na França do século XVII até o
século XX. Donzelot abordou as medidas educacionais propostas pelo Estado por meio das
famílias mais abastadas contra a influência das classes pobres, da coerção da liberdade e da
58
união livre. Nesse sentido, é possível perceber a inversão do papel do Estado, onde ele deixa
de ser o provedor das políticas públicas e volta-se a exercer, segundo Donzelot (1977/1980), o
papel de “polícia” vigiando o comportamento das famílias.
Assim ocorreu também no Brasil, no governo Jair Bolsonaro (2019-2022) quando
Damares Alves26 à frente do “Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do
Brasil”, a cada aparição pública se voltava às famílias conservadoras e religiosas, realizando
declarações teocráticas sem base factual e incentivando que esses grupos se colocassem em
vigilância na defesa da família tradicional e de suas crenças.
No ano de 2013, Preciado criticou uma dessas manifestações que pretendeu ditar os
comportamentos dos sujeitos. Ocorreu na França um protesto contra a adoção de crianças por
casais homossexuais ou transgêneros, liderada por Frigide Barjot,27 ativista cristã assim como
a Ministra Damares Alves. Frigide Barjot que na verdade se chama Virginie Tellene, escolheu
seu nome artístico remetendo à sonoridade do nome Brigitte Bardot, atriz francesa conhecida
por defender as causas animais e por suas opiniões conservadora e o prenome “frígida”, é uma
lembrança dos tempos em que a “assessora de imprensa de Jesus”, como ela se define,
ganhava a vida como comediante nas casas noturnas e boates gay na capital francesa nos anos
de 1980 e 1990, até sua conversão ou como Frigide Barjot prefere dizer, sua “saída do
armário cristão”. “– Vi que minha vida não fazia sentido sem Jesus”, revelou em sua
autobiografia “Confessions d’úne Catho Branchée” (BARJOT, 2011). Porta-voz do
catolicismo e líder do movimento “Manif pour Tous - Protesto para Todos”, Frigide Barjot
reivindicava “pelos direitos da criança a ter um pai e uma mãe.”
Preciado em seu texto “Quem defende a criança queer?” (2013), recorda fatos de sua
infância, expondo como foi crescer como uma criança queer, diferente daquela defendida por
Frigide Barjot e Damares Alves. Em casa, seus pais “(...) escrupulosamente garantiram a
função doméstica da ordem heterossexual” (PRECIADO, 2013, p. 99). Da escola, foi enviada
uma carta para sua família, aconselhando seus pais a levarem ao psiquiatra “(...) para
consertar o mais rápido possível o problema de identificação sexual” (PRECIADO, 2013, p.
99). Beatriz (Preciado), tinha apenas 7 anos.
O que meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as
normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizados,
através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de
26 Damares Alves é conhecida por defender ‘direito à vida’ e políticas conservadoras - Estado de Minas
Política. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/12/23/interna_politica,1015696/.
27 Outra Bardot conservadora - Estadão. Disponível em:
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,outrabardot-conservadora,1026236.
59
Cabe aqui uma reflexão acerca de que Foucault (1970/2013) deu à palavra poder uma
conotação muito mais ampla e dinâmica, além de sua origem etimológica. O poder, para
Foucault (1975/2007), não era uma manifestação isolada, mas ora a parte, ora o conjunto de
um todo complexo que se faz exercer também sobre o corpo da criança, realizando sobre ele
um controle detalhado e minucioso dos seus gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e
discursos.
61
(...) Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta
como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta
os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade? Seria errado supor
que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a
sua brincadeira e dispende na mesma emoção (p. 135).
deparamos com idades cronológicas diversas, por outro, o inconsciente remete a outros
tempos que não o cronológico, fato que aproxima a crianças dos adultos e que, talvez, a
criança perceba, mas o adulto não. Ainda assim, o adulto insiste em não permitir o acesso da
criança à fantasia, lhe impondo regras através de seu poder enquanto “autoridade.”
Para arriscar uma possível compreensão das bases da teoria queer, podemos utilizar a
teoria do Poder de Michel Foucault, (1976/1998) no qual ele abordou o sexo de forma
historicamente contextualizada e problematizou o binômio sexo/natureza e as relações entre
poder e saber, que são apresentadas em diversos espaços nos mais diferentes contextos e na
escola.
Teóricos queer se fundamentam em Foucault (1976/1998) para a desconstrução de
conceitos atualmente naturalizados, tais como a sexualidade e o gênero, propondo para estes
temas uma leitura não assimilacionista. Sedgwick (1985) afirma que em sociedades marcadas
pelo “dispositivo da sexualidade” (FOUCALT, 1976/1998), o senso comum que é
institucionalizado é caracterizado pela recusa cognitiva da homossexualidade e, em segredo,
em nome de uma sociedade heteronormativa, cria-se a identidade sexual como sinônimo de
identidade compulsória heterossexual para continuar produzindo uma identidade hegemônica.
Foucault, em sua obra “História da Sexualidade I: a vontade de saber” (1976/1998),
questiona exatamente as categorias de sexualidade que a sociedade instituiu. Sua proposta não
foi de romper com o binarismo sexual naturalizado na sociedade ocidental, mas de
compreender como poder e saber se articulam para manter uma imagem de “liberdade”,
quando na verdade, ela se dá de forma repressora sem que nós nos demos conta disso.
Segundo Spargo (2017, p. 15), “(...) um componente essencial do argumento de
Foucault é que a sexualidade não é um aspecto ou fato natural da vida humana, mas uma
categoria de experiência construída com origens históricas, sociais e culturais, mas não
biológicas”.
Não que Foucault não reconhecesse as dimensões biológicas da sexualidade, porém
ele destacava a construção sociocultural dos discursos sobre a sexualidade nas diversas
instituições, entre elas, a escola. De acordo com Halperin (2000), Foucault estava mais
63
interessado em saber como a sexualidade funcionava a partir das mais diversas construções
sociais no lugar de saber o que era a sexualidade.
Foucault não foi o primeiro a falar sobre a sexualidade como sendo construída
socialmente, porém suas ideias abriram espaço para novos estudos sobre a relação entre
sexualidade e poder, além das análises de diversas experiências essenciais para o
desenvolvimento da teoria queer. Judith Butler, por sua vez, amadureceu o trabalho de
Foucault, principalmente, na investigação por meio das teorias feministas de gênero. “O
gênero, argumenta Butler, não é uma extensão conceitual ou cultural do sexo
cromossômico/biológico (leitura feminista consagrada), mas uma prática discursiva em
andamento, atualmente estruturada em torno do conceito de heterossexualidade como norma
das relações humanas” (SPARGO, 2017, p. 42).
Governar a infância para governar a vida é uma intenção que ocorre como meio de
governar as famílias e os professores que educam a criança a partir da ideia de construção do
“futuro cidadão.”
entretanto, o ensino ministrado tinha uma função específica, que era a de afastar a criança dos
assuntos mundanos, relacionados aos prazeres do corpo e da carne (ARIÈS, 1973/1981).
A tarefa de ensinar fez com que a escola adotasse uma estrutura cada vez mais rígida
e disciplinar. A disciplina, como citada, é a “anatomia política do detalhe” (FOUCAULT,
1969/1987, p. 120), um poder disciplinar que opera sobre o corpo da criança a partir de
diferentes instrumentos, como, por exemplo, a distribuição dos estudantes no espaço e no
tempo, de forma a tornar o espaço cada vez mais visível e o tempo cada vez mais útil, tendo o
corpo como objeto e a normalização como objetivo. “A disciplina majora as forças do corpo
em termos econômicos e as diminui em termos políticos. O corpo humano passa a ser
fustigado, desarticulado, recomposto, através de uma anatomopolítica do detalhe (...)”
(PORTOCARRERO, 2009, p. 197).
O espaço fora e dentro da escola é organizado a partir da composição de verdadeiros
“quadros-vivos”, e o tempo é regido para estabelecer o que e como cada corpo irá realizar as
suas ações em cada segundo, minuto e hora. Trata-se de transformar os corpos em um único e
grande corpo produtivo, aumentando assim as forças do Estado, a fim de produzir corpos
dóceis, que podem ser submetidos e utilizados como extensões das máquinas, desde as suas
passagens pela escola. Assim, do controle disciplinar dos corpos, passa-se a uma biopolítica
de controle das massas.
criança. Isso ocorreu, entre outras formas, por meio da educação escolar (FOUCAULT,
1976/1998). O corpo da criança é, primeiramente, objeto de divertimento e de distração do
adulto (ARIÈS, 1973/1981).
Foucault (1976/1998) compreendeu que a sexualidade é um dos instrumentos mais
eficazes de controle, entendendo-a como um “dispositivo histórico do poder” (FOUCAULT,
1976/1998, p. 47). Produzidas e fabricadas no interior de um conjunto de práticas discursivas,
as leis, as medidas administrativas, os pressupostos científicos, religiosos e filosóficos,
também são dispositivos que atuam mais enfaticamente sobre alguns grupos estratégicos,
entre eles, a família que educa a criança (FOUCAULT, 1976/1998).
De tais reflexões podemos compreender que a existência do controle dos corpos das
crianças serve para criar micropoderes (mencionados por Foucault) e para manter a família
nuclear (MARCELLO, 2009). Ainda, serve à pedagogia, pois ela se reconfigura e se constrói
juntamente às representações sociais em torno da criança.
As representações sociais que discorrem na escola passando pela lógica binária dos
corpos da criança, representada por meninos que se definem por corpos masculinos e
meninas, com seus corpos femininos, é um feito da norma que barra o Ariel de se mostrar
como é. Para Butler (1990/2019b), gênero é um feito que muito traz em seus efeitos. A ideia
de uma identidade de gênero fixa e sem contestação é também cúmplice da sexopolítica.
Butler (1990/2019b) afirma que não há um gênero substantivo, e sim, performativo, já que os
corpos e a ideia binária de gênero, decorrem dos discursos que pretendem regular a estrutura
imposta pela heteronormatividade.
Por que as meninas e os meninos são diferentes? Para a criança no espaço escolar, seu
corpo representado por um gênero ou outro não é o problema. Para os professores, a escola
pode ser o lugar no qual os problemas se afixam, pois nela está estruturada um modo de
pensamento chamado "curiosidade”, um modo de pensamento que recusa a segurança
(BRITZMAN, 2010). O que está em jogo é a fantasia. Será que a escola pode lidar com essas
surpresas?
Foucault (1976/1998) argumenta que a sexualidade não é o oposto da repressão, como
mito, desejo e representação. A sexualidade tem uma historicidade e essa historicidade diz
respeito à história de como o sexo entrou no discurso e, portanto, de como se tornou
vinculado à dinâmica do aparato “saber/poder/prazer”, sendo uma das unidades estratégicas
responsáveis pela formação de mecanismos específicos do "saber/poder/prazer” a escola,
através da pedagogização do sexo da criança (FOUCAULT, 1976/1998).
66
Por uma Pedagogia Queer: o que a psicanálise tem a ver com isso?
Ninguém nasce menino ou menina. Ao longo da vida nos tornamos homem ou mulher
ao fim de um percurso que exige de cada um o abandono das disposições bissexuais
primárias, das potencialidades polimorfas e da indiscriminação infantil (FREUD 1905/2006).
Não interessa aqui, de forma alguma, tomar essa premissa como uma perspectiva
desenvolvimentista, menos ainda eliminar a possibilidade da bissexualidade enquanto prática
sexual adulta. Contudo, cabe ressaltar a importância de Freud reconhecer que na polimorfia da
sexualidade infantil, a bissexualidade se apresenta para a criança e, só depois (a posteriori), é
que a criança poderá estabelecer identificações, orientações e, até, escolhas que se façam mais
adequadas ao seu desejo.
A criança tem o direito a sua polimorfia e, muitas vezes, as identificações e
orientações já são nítidas desde o princípio. Não cabe ao adulto exigir que ela se apresente
como ele quer enquanto a própria criança não crescer e puder, por si mesma, revelar-se sobre
a constituição de sua identidade. Roberto Graña (vide ARREGUY, 2012), em sua clínica
psicanalítica com crianças, nos deu uma bela lição ao afirmar que o conceito de “Transtorno
de Identidade de Gênero”, sob o qual eram encaminhadas crianças para a sua “cura”, não faz
o menor sentido. Autores não ortodoxos ou pouco analisados da própria psicanálise já
consideram a questão de que a criança tem o direito de se tornar ou ser “isto ou aquilo.”
O conceito da diferença sexual que remete ao reconhecimento da castração simbólica,
nos leva ao reconhecimento da bissexualidade psíquica como condição própria da
subjetividade (FREUD, 1925/1996).
A noção de bissexualidade psíquica introduzida na psicanálise por Freud (1905/2006;
1925/1996; 1923/2011; 1938/2019) ultrapassa a concepção normativa de organização de uma
lógica binária restrita ao dualismo masculino-feminino. De acordo com essa noção, todo ser
humano tem disposições sexuais masculinas e femininas, o que afirma que todos nascem
bissexuais, mas através do desenvolvimento psicológico que inclui fatores externos e internos,
a maioria se torna monossexual, até por motivo de repressão social, enquanto a bissexualidade
permanece em um estado latente (FREUD, 1938/2019).
Nesse sentido, a bissexualidade psíquica é motivada pelas necessidades de se
compreender as múltiplas expressões que se dão nos conflitos identificatórios e nas
dificuldades de escolha do objeto, segundo a linguagem freudiana. Evidente que não
descartamos aqui o fato, acentuado por autores do campo feminista e queer, que tem algo que
jamais se escolhe, que é a orientação. A escolha, nesse sentido, viria depois da orientação
sexual, inerente às identificações inconscientes mais primárias da criança.
69
Antes de ser vista como um fenômeno que interfere e confunde as relações do sujeito
sexual, a bissexualidade evidencia a existência de dois no psiquismo, o masculino e feminino,
em suas configurações singulares ou plurais. Configurações que, não seguem uma linha
binária e restritiva, mas uma ordem complexa e diversa, como condição própria da
experiência.
Winnicott (1961-1962/1975) sugere que a condição de maleabilidade do psiquismo
relaciona-se com a criatividade e suas origens são expostas pela integração entre os elementos
feminino e masculino da personalidade. Como propõe o autor, ela vai implicar em condições
de maior flexibilidade do ser e na possiblidade de se viver criativamente a vida. Por outro
lado, a dissociação desses elementos pode ser de tal gravidade que o sujeito pode não ser
capaz de estabelecer vínculo algum com a parte recalcada da personalidade (WINNICOTT,
1961-1962/1975), fazendo com que a criatividade deixe de existir ou se perca.
Quando a linha binária – “ou isto ou aquilo” – que a maioria dos sujeitos acredita ser a
única condição a seguir arrebenta, outros caminhos podem surgir.
Fomos educados e acostumados a pensar e compreender os sujeitos, principalmente, a
criança com apenas um caminho a seguir, como disjunção exclusiva:28 “ou isto ou aquilo.”
Por que não podem ser ambos?
Deleuze e Guattari (1972/2010) concordariam com Porchat (2014b), dizendo que o
inconsciente fala outra língua e que ao pensar além das noções estanques de feminino e
masculino para compreender o desejo, é necessário que a disjunção, também, seja inclusa,
implicando este “ou” em não oposição. A disjunção inclusiva, inclui a diferença enquanto
diferença daquilo que parece não se relacionar (DELEUZE; GUATTARI, 1972/2010).
Menino ou menina? Homem ou mulher? Quem sabe, ambos. Quem sabe nenhum. O
imaginário da criança não precisa ter limites. A criança rompe fronteiras aparentemente
impostas até pela natureza, e, fugindo de qualquer enquadramento, ela transborda.
De acordo com Erick Drouet (2022), pesquisador da Filosofia Queer, a lógica binária
se baseia em três axiomas: da identidade, o gênero é incontestável, determinado do
nascimento à morte, um homem não se torna mulher e vice-versa; da não-contradição, se é
homem não é mulher, pois são categorias opostas e do terceiro excluído, não é possível ser
homem e mulher ao mesmo tempo, o que exclui o andrógino. Ao proibir a passagem de uma
categoria para a outra, se cria um universo descontínuo. Mais ainda, na exclusividade binária
28 A disjunção exclusiva é caracterizada pelo termo “ou...ou” diferente do termo de ligação “ou” que é uma
disjunção inclusiva que trata de incluir ambas as possibilidades, onde a verdade de uma proposição não impede a
verdade da outra, como na disjunção exclusiva, onde a verdade de uma implica na falsidade da outra
(DELEUZE; GUATTARI, 1972/2010).
70
estrita cria-se uma exigência que vai muito além da renúncia pulsional freudiana, pois se cria
um impasse, um sexismo e uma impossibilidade de que uma gama gigantesca de sujeitos, que
não estão nos extremos Marilyn Monroe X Jonh Wayne, possam sequer existir.
Ainda segundo o teórico, essas contestações queer despertam incompreensão e raiva e,
para que seu pensamento fosse desenvolvido por uma base epistemológica, buscou
fundamento na lógica fuzzy29 (DROUET, 2022) ou lógica difusa, que em suas constatações
permitiram demonstrar que, no campo dos gêneros, há uma fluidez de dinâmicas
identificatórias situadas na recusa da binariedade de gênero. Há toda uma gama de
possibilidades que está entre “isto ou aquilo”.
Para Freud (1906/1996), o inconsciente é tido como um teatro, lugar das
“representações reprimidas” (SHIRAHIGE E HIGA, 2004, p. 20), enquanto para Deleuze e
Guattari (1972/2010), trata-se de uma usina impulsionada por “máquinas desejantes”,
relacionadas ao desejo subjetivo de cada um. Deleuze e Guattari (1972/2010) dialogaram
criticamente com o conceito do Édipo que é central na obra de Freud, contrapondo-se à
“estrutura edipiana”, que seria a nossa obrigação de adequar-se às normas. “Enquanto o ‘ou
então’ (como indicador de exclusão) pretende marcar escolhas decisivas entre termos não
permutáveis (alternativa), o ‘ou’ (inclusivo) designa um sistema de permutações possíveis
entre diferenças (...)” (DELEUZE; GUATTARI, 1972/2010, p. 25). Se Deleuze e Guattari
estabelecem essa crítica ao teatro de representações edipianas, isso tem mais uma função de
combate a certa ortodoxia existente na prática clínica de sociedades e de psicanalistas com
conceitos ultrapassados, que tampouco se mantiveram atualizados e a par de reformulações
feitas pelo próprio Freud ou, ainda, por autores da psicanálise contemporânea que têm sua
leitura permeada por outras teorias e por profundas transformações e avanços na construção
da teoria psicanalítica ao longo de mais de um século.
Na possibilidade de relacionar a educação com a psicanálise, tendo em vista que os
seus pressupostos em torno da infância estão relacionados com outros grupos além da família,
é possível observar que é fundamental compreender os processos de aquisição e construção do
conhecimento e da formação psíquica da criança. Por isso, a relevância em empregar a teoria
psicanalítica nas intervenções pedagógicas, no intuito de confrontar pensamentos, elaborar e
29 O termo fuzzy ou difusa foi introduzido em 1965 na teoria matemática dos Conjuntos Difusos por Loftali
Askar-Zadeh, cientista da computação estadunidense. Considerando que lógica ordinária lida com declarações de
verdade absoluta, a lógica fuzzy é um conjunto com definições subjetivas ou relativas, imitando assim, como os
seres humanos tomam decisões. No lugar de exigir que todas as declarações sejam absolutamente verdadeiras ou
absolutamente falsas, como na lógica clássica, os valores da verdade na lógica fuzzy pode avaliar conceitos não
quantificáveis, como o sentimento de felicidade (LANZILOTTI, 2014).
71
30 O “estranho”, também conhecido como o “infamiliar” (Das Unheimliche) (FREUD, 1919), termo
praticamente intraduzível para a língua portuguesa é uma palavra-conceito muito utilizada e discutida na
psicanálise, a qual por ter diversas traduções, ainda desperta variadas interpretações. Em alemão o “un” é um
prefixo de negação assim como “in” em português, heimliche poderia ser pensado em uma tradução possível
como sendo o lar, algo familiar, dessa forma, un-heimliche ou in-familiar. O infamiliar ou estranho é aquilo que
73
mas o sentimento que habita, também, o professor e é para ele desafiador como o próprio
entendimento e implementação da pedagogia queer.
Tia, já falei com todas as meninas da turma! Eu vou usar o banheiro das meninas!
(Paulinho)
deveria estar oculto e vem à tona, tornanado a estranheza um “sentimento de mal-estar e de singularidade diante
de um ser ou objeto familiar e perfeitamente conhecido.” (CHEMAMA, 1995, p. 64).
74
Calma! Calma! Tenho que falar com a Orientação Pedagógica, tem outras turmas na
escola.”
A professora do Paulinho gostaria de avançar em um tema que ela acreditou ser fácil
de debater. Por não ter dito “não” na conversa com o Paulinho, acreditou ter uma visão de
mundo diversa e acolhedora. Porém, a professora não disse “sim” ao Paulinho. Ela pensou em
quem sabe, resolver a situação colocada por meio do diálogo e de uma escuta atenta e
inclusiva. A professora esbarrou nas normas já colocadas ou não na escola. Para ela, a melhor
opção era nem mesmo que tais normas tivessem sido um dia debatidas. A professora se
esforçou para não barrar o Paulinho, mas a decisão não era somente dela. O “banheiro das
meninas” era de todo o segmento da educação infantil e não apenas de uso exclusivo de sua
turma.
Em uma Unidade Escolar regida por uma Pedagogia Queer haveria um banheiro para
meninos e outro banheiro para meninas?
No ano de 2019, no qual passamos por campanha eleitoral para Presidente do país
envolvidos em diversas fake news, a possibilidade do uso do banheiro unissex nas escolas
tornou-se alvo de intenso debate. O Projeto de Lei 5008/2020 proíbe a discriminação no uso
do banheiro público de acordo com a orientação sexual ou a identidade de gênero em espaços
públicos, estabelecimentos comerciais e ambientes de trabalho. Ao chegar na escola, o debate
transformou-se em disputa ao ser divulgado que professores faziam campanha para que não
houvesse nas unidades escolares, banheiros separados para o uso de meninas e meninos. Tal
situação, por diversas vezes nem é mesmo pensada de acordo com a real necessidade de
atendimento às crianças transgêneros, por exemplo. Casos de hostilização, e até mesmo
violência, poderiam ser evitados na possibilidade do uso do banheiro de acordo com as
identidades de gênero apresentadas por cada sujeito.
Desde o ano de 2015 a ação sobre o uso do banheiro por pessoas trans de acordo com
a sua identidade de gênero aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal - STF sem
previsão de data. Vários Estados têm apresentado e até aprovado projetos de lei que visam
proibir as instalações de banheiros unissex ou multigênero, alegando riscos às crianças ou as
mulheres cisgêneras. Existem projetos ou propostas que pretendem implementar banheiros ou
espaços de uso coletivo multigênero, mais ainda é uma demanda distante das reais
necessidades das pessoas transgêneras.
75
31 A ideologia de gênero é um termo que apareceu nas discussões sobre os Planos de Educação, nos últimos
anos, e tem sido apresentado como uma ideologia que que visa destruir as famílias. Trata-se de uma narrativa
criada no interior de uma parte conservadora da Igreja Católica e no movimento “Pró-vida e Pró-família” que, no
Brasil está centralizado em um site chamado Observatório Interamericano de Biopolítica. Para uma
contextualização mais ampla, acessar a entrevista com a professora Jimena Furlani sobre a construção da
ideologia de gênero no país. “Existe Ideologia de Gênero?” - Agência Pública (Agência de Jornalismo
Investigativo). Disponível em: http://apublica.org/2016/08/existe-ideologia-degenero/.
32 No ano de 2011 ocorreu na cena da política nacional o que foi denominado “kit gay” que dizia respeito a um
conjunto de materiais que seriam distribuídos nas escolas com o objetivo de combater a homofobia. Composto
por um caderno, boletins, audiovisuais, cartaz e carta de apresentação para os gestores das unidades de educação,
o kit era parte do Projeto “Escola sem Homofobia”, proposto pelo Ministério da Educação, à época gerido por
Fernando Haddad e por ONG’s Nacionais e Internacionais em parceria com a UNESCO que, por sua vez, estava
vinculado ao Programa “Brasil Sem Homofobia”, programa interministerial que visava o combate à homofobia
em diversos eixos, dentre esses as escolas públicas. Neste contexto, pressões realizadas por parlamentares
conservadores culminaram no veto da presidenta Dilma Rousseff ao material. “Kit Gay”: o que é mito e o que
é verdade - Gazeta do Povo. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/kit-gay-o-que-e-e-
mito-e-o-que--e-verdade-b60i8lo4osb19tsf2du8bmr54/.
33 É mentira que o PT vai implementar banheiro unissex nas escolas - Voz das Comunidades. Disponível
em: https://www.vozdascomunidades.com.br/fato/e-mentira-que-pt-vai-implementar-banheiro-unissex-nas-
escolas/.
76
Paulinha é uma criança que não faz a pedagogia da boa imagem. Ela não cessa de criar
e resistir. Criança transgênero existe. Na escola pautada por uma Pedagogia Queer, o banheiro
seria de e para todos, todas e todes.
A Pedagogia Queer pode então ser constituída e considerada como uma pedagogia
mais desenvolvida e evoluída. A partir desta ótica, faz todo sentido que a Pedagogia Queer
caminhe junto ou pelo menos se inspire ou faça referência às possíveis reflexões e
desdobramentos que permitam (re)pensar a relação entre a educação e a psicanálise, já que
ambas pretendem a promoção do humano, sendo a inclusão da criança no mundo de forma
menos traumática, o objetivo primordial.
77
IV PARTE
O professor melancólico
A infância é um chão que a gente pisa a vida inteira.
(Ariane Osshiro)
34 Na psicanálise, a melancolia é caracterizada como “afecção profunda do desejo, que Freud considera a
psiconeurose por excelência, caracterizada por uma perda subjetiva específica, a do próprio eu (CHEMAMA,
1995 p. 134).
78
35 Wittig (1992), descreve a marca do gênero na linguagem como um ato criminoso dos homens contra as
mulheres: “apropriaram-se do universal como masculino” (p.107).
79
Para Butler (1990/2019b), não é meramente o ‘caráter’ que está sendo descrito, mas
sim, a aquisição de uma identidade de gênero. Segundo a teórica, a melancolia corresponde a
um mecanismo psíquico que constitui a identidade de gênero (BUTLER, 2017)
objeto que era polimorfo, passa a ser recalcado, logo expresso pela melancolia de gênero. Para
Butller (1990/2019b), todo heterossexual é melancólico de gênero, pois não conseguiu
experenciar sua forma livre e plena de viver no mundo. A própria experiência da
heterossexualidade seria para a teoria queer, uma violência, na medida, em que uma parte da
sexualidade deve, num contexto binário hegemônico, ser extirpada do campo da experiência.
Atualmente, o termo melancolia não é mais utilizado na classificação da Organização
Mundial da Saúde - OMS, bem como no DSM V “Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Discordes” - “Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, que é
agora coberto pela categoria como depressão grave. Apenas a psicanálise continuaria a
reconhecer a melancolia como uma condição por si só e, portanto, continua aprofundando os
estudos dos aspectos inconscientes que a determinam. Os estudos de gênero vêm ampliando a
discussão sobre a melancolia de gênero.
Professores inseridos em uma cultura de melancolia de gênero, sem que percebam ou
que se importem, geram crianças melancólicas, atravessadas por um estado de consentimento
que a relegam à falta de vontade, à apatia, à indiferença e ao tédio, muitas vezes, permeadas
por dinâmicas ocorridas nos espaços da escola que engendram a impossibilidade de se
defrontarem com as frustrações que a vida apresenta. Certos de que não desejamos gerar na
criança um ‘coração partido’ e com a sensação de que não é suficientemente boa para que seja
abandonada, não queremos contribuir com uma dor e sofrimento que acarrete a perda da
pulsão de vida a ponto de que medidas extremas possam ser pensadas como saída. O objeto de
sua autoestima que faz parte do seu próprio ser, quando repudiado ainda na infância, de forma
real ou imaginária pode um dia retornar como sensação de abandono. O professor certamente
não possui a noção do quão se faz importante seu empenho no lidar com a criança na escola.
Como saber se a criança queer já está através da arte e da dança, por exemplo, sublimando os
motivos das diferenças que por ela não é percebida, mas que pelo professor além de ser
percebida é desmerecida?
As crianças que esta pesquisa apresenta na maioria das vinhetas, ao contrário da
representação de uma criança com características melancólicas, se mostra ativa e alegre.
Contudo, em outras vezes, há relatos de situações que as constrangem. Negar seus
sentimentos, não os elimina, pois a criança queer está ávida para se lançar ao mundo de forma
autêntica. Por meio da falta de afeto que não seja o professor que a impeça de se revelar
verdadeira.
81
Que falta é essa que, constituída em nós, nos leva e leva o outro ao adoecimento? A
psicanálise nos apresenta o amor como o motor da transferência.36 Na escola, portanto, o
professor, independentemente de sua ação, pode despertar afetos na criança para além daquilo
a que ele próprio tem noção conscientemente. O mesmo pode acontecer ao professor, por
parte da criança. Tal fenômeno pode se estabelecer nos dois sentidos.
Freud (1914/1969), afirma sobre o que passam a ser, os professores, no fenômeno
transferencial:
(...) nossos pais substitutos. Transferimos para eles o respeito e as expectativas ligadas
ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos
nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido
em nossas próprias famílias, e ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de
lutar com nossos pais em carne e osso (p. 249).
Essa via de mão dupla entre o excesso praticado pelo professor castrador do desejo da
criança e o professor que precisa renunciar a esse lugar, é sem dúvida a linha tênue
desafiadora para aqueles que enxergam sua prática como algo voltado para o respeito ao
outro.
A transferência é o momento em que a criança se relaciona com seu professor da
mesma maneira que se relaciona com seus pais. Entretanto, nas relações afetivas ocorrem
variações emocionais, na medida em que criança e professor, transferem um para o outro uma
forma de se relacionar que é transposta de suas relações parentais. Nesse sentido, as relações
transferenciais portam uma carga afetiva inconsciente já marcada por identificações e
traumatismos psíquicos prévios. Nesse impasse relacional, é que o professor pode se tornar
para a criança, inconscientemente, uma figura depositária de seus afetos de amor ou ódio,
ocupando um lugar especialmente importante de poder sobre a criança (RIBEIRO, 2014).
Lacan expõe a relação melancólica como uma espécie de “falha no que concerne à
realização disso que se chama de amor” (LACAN, 1975, p.13).
Como pensar essa falha amorosa na melancolia? De que falha o professor melancólico
seria vítima, levando à criança a tornar-se melancólica também?
“De acordo com a narrativa da melancolia provida por Freud, o eu ‘se volta sobre si
mesmo’ quando o amor falha em encontrar o seu objeto e toma a si mesmo não apenas como
um objeto de amor, mas também de agressão e de ódio” (BUTLER, 1990/2019b, p. 168).
36 Vínculo afetivo intenso, que se instaura de forma automática, entre o paciente e o analista, comprovando que
a organização subjetiva do paciente é comandada por um objeto. Fora da situação da análise, o fenômeno de
transferência é presente nas relações, sejam elas profissionais, hierárquicas, amorosas etc. Nesse caso, a
diferença com o que ocorre em uma análise está em que os dois parceiros estão presos, cada um por seu lado, a
sua própria transferência, da qual, com muita frequência, não têm consciência; motivo pelo qual não é
organizado o lugar de um intérprete, tal como o encarnado pelo analista, na situação de um tratamento analítico
(CHEMAMA, p. 2017, 1995).
82
Por isso, a criança queer tanto desafia o professor e a professora. Ela não necessita de
autorização para realizar seus desejos, ainda que pudesse se mostrar mais feliz se de seus
professores recebesse acolhimento, implicada em uma relação de amor e confiança.
83
Ideologia de gênero, Escola sem Partido37 “kit gay”, “menino veste azul e menina
veste rosa38” etc. Ao falarmos em crianças, estamos falando, também, sobre os adultos, o que
significa admitir que preocupações baseadas na sustentação do caráter normativo e idealizado
da infância atuam também para prevenir ou evitar a formação de adultos desviantes das
normas estabelecidas (FAVERO; MARACCI, 2021).
Desde seu surgimento, a expressão “ideologia de gênero” carrega um
sentido pejorativo para um grupo conservador, principalmente, religioso, que tenta a todo
custo responsabilizar profissionais da educação por controvérsias estabelecidas a partir de
protestos de um grupo que nega a importância de debater temas como direitos humanos e
educação sexual nas escolas.
No Brasil, a expressão tornou-se famosa a partir do ano de 2014, quando o Ministério
da Educação - MEC buscou incluir educação sexual, combate às discriminações e a promoção
da diversidade de gênero e orientação sexual no Plano Nacional de Educação - PNE. Após
muitos protestos por parte da população mais conservadora, liderada por grupos religiosos e
pelo Movimento “Escola sem Partido”, o PNE foi aprovado sem fazer menção a gênero e
orientação sexual. Fazendo um balanço parcial da política moldada pela criação e
disseminação da noção de “ideologia de gênero”, é possível confirmá-la como um campo
37 O Movimento Escola sem Partido - MESP, foi criada em 2004 com o objetivo de dar visibilidade à
instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários, utilizando-se de um site como
principal suporte que funciona como um meio de divulgação de ideias, de instrumentalização de denúncias e de
disseminação de práticas de vigilância para apontar a criminalização das ações dos professores que deverão ser
vigiados em seus espaços de trabalho, ao que os responsáveis pela organização do movimento que são pais e
responsáveis pelos alunos e os próprios alunos, entendem como “prática de doutrinação comunista e de gênero”
que seriam identificáveis em aulas, livros didáticos e programas formativos (FRIGOTTO, 2017).
38 No ano de 2018, após a vitória do candidato da direita à Presidência, Jair Messias Bolsonaro, em
comemoração Damares Alves declarou para a imprensa que a partir daquele momento firmava-se para os
conservadores a certeza de que “meninas vestiam rosa e meninos vestiam azul” em contraponto à ideia de que
acreditavam existir da defesa de uma suposta “ideologia de gênero” que divulgavam como sendo projeto da
esquerda.
84
discursivo de ação conservadora que objetiva barrar avanços dos direitos humanos voltados às
demandas que envolvem direitos sexuais e reprodutivos e a incorporação da categoria gênero
e orientação sexual nas políticas públicas (MILSKOLCI, 2017).
Em cumprimento das disposições da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB
(BRASIL, 1996), o primeiro Plano Nacional de Educação - PNE, foi elaborado e vigorou
entre 2001 e 2010. A proposta do novo PNE foi apresentada na Câmara dos Deputados em 20
de dezembro de 2010 e em 17 de dezembro de 2013, o Plenário do Senado aprovou o
Substitutivo ao Projeto de Lei, no qual retirou da redação do inciso III do artigo 2º a frase
“promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (BRASIL, 2013).
De volta à Câmara dos Deputados, aflorou-se nas audiências e debates sobre o Projeto de Lei,
o fenômeno da crítica à “ideologia de gênero”, com calorosas manifestações a favor e contra,
até sua sanção presidencial em 25 de junho de 2014, com flexão de gênero, porém sem
especificação de formas de discriminação (BRASIL, 2014).
É importante destacar que nenhum dos Documentos Finais das Conferências de
Educação de 2008, 2010 e 2014, nem a versão inicial do Plano Nacional de Educação, fazem
menção ao termo “ideologia de gênero”, e sim, têm por objetivo garantir o alcance da
equidade entre os gêneros e o respeito à diversidade sexual.
Professora L.:
- “Depois da Reunião Pedagógica de ontem, percebi o quanto estou despreparada
para lidar com as diferenças. A Rede não me dá suporte e a escola muito menos. Lá vou eu
mais uma vez procurar por conta própria uma formação que dê conta de me preparar.
Professora G.:
- Te preparar pra quê? Você teve que se preparar para lidar com as crianças
especiais? Por que “esses” diferentes precisam de destaque? Quanto mais se fala sobre
isso, mais tem que se preparar. As coisas não podem acontecer naturalmente?
Professora B.:
- Não. Tem lei. Ou não tem lei?
Professora T.:
85
- Tá vendo nosso despreparo? Não sabemos de nada! São crianças muito pequenas.
A Família não pode dar conta disso?”
“Disso” o quê? A família tem que dar conta de quê? E a escola tem que dar conta de
quê? A vinheta escolar descrita acima é um relato de uma conversa realizada não na Reunião
Pedagógica, mas após a reunião ser encerrada. A proposta da Reunião era a implementação de
temas voltados a trabalhar a Diversidade na Unidade de Educação Infantil. Até então, os
temas abordados no início de cada bimestre eram os mesmos dos anos letivos anteriores. A
“novidade” nesse ano foi a chegada de uma criança “diferente.” Toda a escola mobilizou-se
para se “preparar” para acolher uma criança diversa nunca recebida na Unidade.
Professora L.:
- “Tantos anos de Magistério, já vi menino afeminado e menina sapatinha. Mas,
trans é a primeira vez. Tô Perdida! Não sei lidar!”
Professora G.:
- “Tá muito cedo pra dizer que é trans. Só tem 6 anos! Ainda bem que no ano que
vem, ela vai para o Ensino Fundamental. Aqui no Pré nem vejo sentido levantar essa
questão.”
Professora L.:
- “Ano que vem pode chegar mais crianças desse tipo.”
Como se fosse um tema proibido, nenhuma das professoras demonstraram cuidado nas
falas sobre “Cat”. A criança tinha um nome, nome esse que a família solicitou que evitassem:
Carlos. Foi nela inscrito um novo nome, nome esse que a família solicitou que enunciassem:
Catarina.
Afinal, existe sexo biológico? Todos nascemos com determinados sexos que dentro
das Ciências Médicas são reconhecidos como sexo biológico, este é reconhecido pela maioria
da sociedade como sexo masculino ou feminino. Hoje as compreensões estão expandidas,
pois as possibilidades de sexo são diversas. Dentro da intersexualidade, por exemplo, há mais
de quarenta variações nas quais, um sujeito pode não se encaixar ao padrão binário masculino
e feminino. O sexo social é construído sobre um modelo binário. De outro modo, os “sexos
biológicos” claramente definidos, possuem uma ampla gama de situações intermediárias,
como os sujeitos “intersexo”, que coloca fora nossas certezas sobre a estabilidade das
categorias “homem” e “mulher”.
Desde 1º de março do ano de 2018 no Brasil, transgêneros e travestis puderam
expandir até mesmo as compreensões da Biologia, quando obtiveram a garantia de se
apresentarem como sendo do sexo masculino ou feminino. O Supremo Tribunal Superior
Federal - STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 4275, reconheceu os
transgêneros, independente de cirurgia de redesignação sexual, de tratamentos hormonais ou
da apresentação de documentos médicos ou psicológicos, o direito à substituição do pronome
e do gênero diretamente nos Cartórios de Registro Civil mediante à autodeclaração. Sem
dúvida essa mudança de paradigma para alteração do nome e do gênero trouxe efetividade
prática para a vida de centenas de pessoas, talvez milhares de pessoas trans.
Criança transgênero existe e não pode ser excluída do direito de retificação de nome
e de gênero, principalmente, dentro da escola. A criança queer entra na escola, mas é
garantido seu direto de permanecer nela?
É a partir das “caixinhas limitadoras”, que muitos professores se eximem da aceitação
do outro e, sem que percebam, excluem a criança que os assusta por ser quem deseja.
O que a maioria dos professores não compreendem, ou até mesmo não sabem, é que
há respaldo legal para que eles possam lutar pela permanência de toda e qualquer criança na
escola, independentemente de como se apresentam.
Professora X.:
- “Mas, e o gênero da ou do Cat? É masculino ou feminino?”
- “É menino ou menina? É a tal da Ideologia de Gênero?”
87
A professora que questiona a existência de uma “ideologia de gênero” que para ela é
disseminada na escola não se dá conta de que o que o conceito de gênero faz é, justamente,
lançar luz sobre uma série de “ideologias” que hoje regulam os modos de ser e de pensar os
corpos, as identidades, as sexualidades e tantas outras dimensões da vida a partir de ideias
historicamente cristalizadas sobre masculinidade e feminilidade.
De acordo com o parecer da Resolução nº 12 do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação de pessoas LGBT (BRASIL, 2015), o conceito de identidade de gênero
permite que se possa reconhecer o direito de cada pessoa à livre construção da sua
personalidade na relação com as concepções de masculinidade e feminilidade disponíveis na
cultura. O texto reitera o direito ao próprio corpo, o que constitui uma peça fundamental para
compreender a experiência de pessoas transgêneras e travestis, embora não se restrinja a elas.
A construção da dimensão das identidades é um processo permanente e mutável,
complexo e dinâmico, realizado por todos os sujeitos mesmo que isso não seja evidente
(LOURO, 2008), o que significa que todas as pessoas têm uma identidade de gênero.39 A
identidade de gênero não necessariamente tem relação com o sexo atribuído no nascimento e
não tem nenhuma relação com orientação sexual.40
Apesar de tais debates se mostrarem vivos dentro das unidades escolares, muitos
professores ainda temem falar sobre suas inseguranças quando se sentem ameaçados e com
medo do que está posto ao redor a partir de uma sociedade conservadora e que se mostra
vigilante das ações dos professores dentro das escolas, como faz o Movimento Escola sem
Partido.
O Movimento vem realizando desde a sua criação, a divulgação de ações e orientações
que visam coibir a apresentação de determinados temas que são abordados no processo de
ensino e aprendizagem, principalmente nos momentos em que são ministradas as aulas. Com
esta atuação, a organização apresenta condições de visibilidade e de penetração social que
forjam a percepção de uma ampla preocupação social e ocultam a sua verdadeira intenção em
termos políticos (FRIGOTTO, 2017).
39 “É a maneira como o indivíduo se enxerga em relação ao seu próprio gênero, ou seja, é com a pessoa se
reconhece: homem, mulher, de ambos os gêneros, ou ainda não se identificando com nenhum dos gêneros. É um
processo de construção ou desconstrução em relação ao seu comportamento social” (SEPULVEDA; CORREA;
FREIRE, 2021, p. 49).
40 “Esse termo diz respeito à forma como o sujeito vivencia seus desejos e deleite corpóreo. Nesse sentido,
pode praticá-los de diversas maneiras, com pessoas do mesmo sexo, de sexo diferente (...)” (SEPULVEDA;
CORREA; FREIRE, 2021, p. 13).
89
As pessoas devem poder viver a identidade que lhes parece mais cabível.
(Laerte)
Supor que a infância pode expressar-se perpassada pela experiência da linguagem nos
leva a pensar em uma criança que nos convida a refletir sobre o mundo por meio de suas
irregularidades, levando o professor a lidar com um outro campo discursivo que se faz pelo
que vaza, pelo que existe e resiste na criança.
A imprevisibilidade da criança instala no professor a dúvida e a incerteza como
possibilidade de ainda conhecer o desconhecido e assumir a postura diante do mundo da
criança que coloca o professor em um lugar de quem nem tudo sabe, nem tudo é devido saber
e nem tudo pode (LIMA, 2008).
A expectativa predominantemente do professor de capturar a infância marca suas
diferentes narrativas. Mais do que saber o que é uma criança, é preciso pensá-la como algo
desconhecido. A infância “(...) pode arriscar-se a percorrer por caminhos não traçados,
experimentar as surpresas do incerto e do inesperado” (LOURO, 2004, p. 16). Ao pensar a
infância como um trajeto desconhecido e como experiência, o professor aproxima-se da
criança na tentativa de não se ver como o sujeito soberano que tem a sua voz e fala imposta no
lugar da voz de criança. A estranheza (Das Unheimliche) (FREUD, 1919/1996) produzida
causa a sensação de não saber por onde começar e caminhar.
Diferentes saberes são produzidos sobre a infância como experiência, sendo hoje a
criança o sujeito que pretendemos nomear, por meio das diferentes áreas de conhecimento.
92
Contudo, continuamos a nos esforçar em controlá-la em nome do que está por vir
(LARROSA, 2004) através dos diferentes discursos produzidos nas práticas escolares.
O encontro do professor com essa criança que o lança para uma experiência com o
desconhecido e o estranho, também o desafia pelo fascínio de arriscar-se no desejo de
normatizar e capturar a criança e expõe sua preocupação com o futuro dela, de como ela será
quando crescer, de que gênero ou orientação ela irá se apresentar.
Por fim, o professor na realidade, expõe sua própria dificuldade em relação à
sexualidade. Sua vivência do que se considera como “castração”, em psicanálise, aponta para
certa rigidez em lidar com sua própria orientação sexual ou sua própria identidade de gênero,
pois o recalque do componente homossexual de sua sexualidade talvez não seja tão estável
quanto parece. Um exemplo disso está em Freud (1913/2012), quando fala do “homem
ciumento” e “machão” como uma forma de se defender inconscientemente do retorno de sua
homossexualidade (mal) recalcada.
Se o sentimento de estranheza se produz “(...) quando os complexos infantis que
haviam sido recalcados revivem uma vez mais por meio de alguma impressão” (Freud,
1919/1996, p. 266), não é o adulto que pode enunciar sobre a criança queer hoje ou no seu
futuro, é a criança que nos desestabiliza a todo momento e nos incita a pensar sobre quem nós
somos. É a infância que não pode ser dita, pois a todo tempo se movimenta de forma
descontínua, se finalizando e se recriando a cada instante que tentamos nomeá-la.
Ao professor cabe o cuidado de não permitir que seja a educação que o afaste da
infância como possibilidade de experiência. A infância como experiência nos provoca a ter
um encontro com o nosso ‘si’, no que podemos nos reportar, também, ao conceito de
experiência em Foucault (1984/2021) que considera o saber, o poder e a subjetividade como
elementos que ajudam a definir o conceito de experiência estruturalmente. Trata-se de “(...)
entender os diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se
sujeitos” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 231), o que nos leva a voltar ao conceito de
experiência em Benjamin (1939/1989) onde é possível destacar a convergência entre os
filósofos na ênfase da dimensão histórica da experiência em Foucault (1984/2021) e das
formulações das experiências benjaminianas.
Experiência para Foucault não é outra coisa senão os discursos e as práticas que nos
levam a criação de um sujeito não como sujeito universal, mas como uma forma singular de
sujeito, com uma subjetividade difusa e diversa. Não se trata de descobrir a verdade por trás
de cada um, mas de compreender os jogos da verdade e as práticas concretas através das quais
cada um se constitui historicamente (FOUCAULT, (1984/2021).
93
Embora a enunciação dos professores possa se estender infinitamente, ela tem o limite
de não poder dizer tudo. Só dirá parcialmente, já que a realidade e o saber estão além de seus
domínios.
Reinventando o professor
Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro da tarde (...) A gente se
forma como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobrea prática.
(Paulo Freire, 1991, p. 58)
41 Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) é um documento da década de 1990, que atuou no sentido de
uniformizar o currículo nacional da educação básica (GALIAN, 2014).
42 Sigla utilizada para representar a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, intersexos
e agêneros (LINS; MACHADO; ESCOURA, 2016). O símbolo de adição representado pelo sinal + representa as
múltiplas possibilidades de inserção de outras letras na sigla.
43 A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi aprovada no dia 22 de dezembro de 2017, por meio da
Resolução n° 2 do Conselho Nacional de Educação que institui e orienta sua implantação, a ser respeitada
obrigatoriamente, ao longo das etapas e modalidades da educação básica. Apesar do texto se apresentar como
conquista prevista em Lei, desde a Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), movimentos e associações do setor educacional se opuseram à sua aprovação (ALBINO;
SILVA, 2019).
95
Na sua concepção, a BNCC leva ao ambiente escolar, uma percepção restrita e que
censura as singularidades, como se a escola fosse um espaço no qual fosse possível
desenvolver “(...) um modelo de aluno que corresponde à norma social: um menino ou uma
menina com as características de gênero, heterossexualidade e estrutura familiar compatíveis
com o que é esperado pela sociedade” (FRANÇA; CALSA, 2011, p. 111).
A verdade é que, se existe uma “ideologia de gênero” dentro das escolas, ela já existe
há muito tempo, mesmo antes da divulgação da palavra gênero que hoje se tornou tão
corriqueira na fala dos professores, sejam eles a favor ou contra o debate de. A escola sempre
ensinou a ser menino e menina. Sempre ensinou também a como se portar diante das
diferenças, na maneira de ser, agir, se portar e brincar. Antes mesmo da divulgação de uma
“ideologia de gênero”, a escola separava brincadeiras e brinquedos de meninos e meninas,
filas, uso dos banheiros, entre tantas outras situações e espaços que foram e são separados
pelo gênero, não apenas entre as crianças, mas também, entre os professores, sendo vistos e
tratados de formas diferentes.
Essa “ideologia” é sexista e transfóbica porque condena qualquer possibilidade de
trânsito entre posições definidas já antes mesmo do nascimento, obrigando cada criança ou
qualquer outro sujeito a assumir uma identidade de gênero pré-determinada (BORTOLINI,
2008).
Como professores, pensamos em nós de forma a colocar o outro sempre em uma
posição pedagógica, principalmente a criança. Para Foucault (1981-1982/2006), o lugar do
96
V PARTE
Nesse contexto ainda incerto de busca de novas pedagogias, esta pesquisa procurou
compreender o papel do professor da educação infantil que precisa ser repensado através de
uma atitude reflexiva e aprendente que se propõe a uma prática pedagógica queer.
Se até os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/2006), particularmente
em sua primeira versão, constituem o que podemos chamar de uma “obra aberta”, em que
diferentes teses a sexualidade, muitas vezes, contraditórias entre si são apresentadas sem uma
preocupação com qualquer tipo de síntese conclusiva, dando margem a diversas
interpretações, como concluir um trabalho pautado na Teoria Queer, que veio para
desconstruir e não construir? E como concluir uma pesquisa fundamentada nas contribuições
da psicanálise que, apesar de sua tradição, vem se permitindo avançar na ampliação e na
discussão de seus conceitos?
Não busquei com as perguntas apresentadas na introdução desta pesquisa trazer
respostas e soluções para o lidar do professor da educação infantil com as crianças que
subvertem as normatizações da escola, contudo proponho pensar, discutir e organizar uma
pedagogia queer.
Para tanto, é necessário pensar em uma prática dentro das escolas que promova a
transição da teoria para a prática na construção de uma pedagogia que contemple as relações
que democratizam as diferenças, baseada no compromisso em erradicar a ideologia da
dominação em seus variados níveis, como no sexo, na raça, na classe e na sexualidade e pela
busca da práxis no ensino e a na aprendizagem (HOOKS, 2014) de modo a romper com a
invisibilidade da criança queer.
Os atravessamentos provocados pelas enunciações das “vinhetas escolares" ao longo
do texto deste trabalho, buscou não obter respostas prontas para lidar com as crianças nas
99
salas de aula de educação infantil, já que não há modos verdadeiros de práticas pedagógicas.
Contudo, pensar como possíveis práticas pedagógicas atravessadas pelas teorias queer podem
estimular diariamente as práticas na escola e além dela, nos faz refletir sobre a viabilidade da
construção e implementação de uma pedagogia queer.
Como em uma perspectiva foucaultiana, é preciso antes de tudo “recusar as
explicações unívocas, as fáceis interpretações e igualmente a busca insistente do sentido
último ou do sentido oculto das coisas” (FISCHER, 2012, p. 73). O fato é que a possibilidade
de uma pedagogia queer implica em um rompimento epistemológico. Os estudos queer nos
propõem repensar a criança e a não definição das identidades. “Pensar queer significa
questionar, problematizar, contestar todas as formas bem-comportadas de conhecimento e
identidade. A epistemologia queer é, neste sentido, perversa, subversiva, impertinente,
irreverente, profana, desrespeitosa” (SILVA, 2010, p. 107), tal como é toda criança.
Nos alinhavos de uma (in)conclusão, (re)existir enquanto criança queer e progredir
enquanto professor desconstruidamente queer se traduz na seguinte inquietação: “como um
movimento que se remete ao estranho e ao excêntrico pode se articular com a educação,
tradicionalmente o espaço da normalização e do ajustamento?” (LOURO, 2008, p. 47).
Ressurge, então, o questionamento: como é possível traduzir a teoria queer para a
prática pedagógica? Como nos aponta Couto Junior; Pocahy; Oswald (2018), a escola não é
unicamente uma instituição de sequestro, ela é também a possibilidade de devir outro” (p.71).
Butler relata a angústia de Freud que admitiu sua confusão sobre o que é exatamente
uma “predisposição masculina ou feminina”, ao interromper sua reflexão a meio caminho
com uma dúvida entre travessões: “- o que quer que seja isso -” (BUTLER, 1990/2019, p.
111).
Freud, pai da psicanálise e por que não, um possível teórico queer que tanto nos
ensinou sobre a sexualidade infantil e segue até os dias de hoje inspirando e auxiliando nossos
fazeres enquanto professores, se viu confuso e, portanto, na busca de respostas. Nós,
professores, imbuídos de uma prática ainda em construção e desejosos de romper com as
normatizações estabelecidas ao questionar a criação da realidade a partir da produção de
subjetividades, assinalamos novos caminhos para o pensamento, avaliando até que ponto
queremos conservar algo ou não sobre o que conhecemos ou desconhecemos (BASTOS;
ARREGUY, 2020).
A perversidade polimorfa da criança configura um caminho que permite a psicanálise
e a teoria queer dialogarem por um mesmo lugar de resistência e a criança, sendo “isto ou
aquilo” na escola, nos inspira a pensar em formas de insurgências e a contestar as noções
100
essencializadas de infância e do que é e pode ser uma criança queer. A escola nomeia e
significa as experimentações das crianças, através dos (pré)conceitos e enunciações que
insistem em projetar um futuro seguro para governar as infâncias e conduzir suas vontades,
limitando-as em seus desejos e devires, tolhendo a liberdade de ser quem se é, permitindo que
as normatizações se estabeleçam para classificar, separar, nomear e punir aquelas que ainda
estão se descobrindo ou apenas brincando.
As epistemologias queer nos ajudam a escapar de formas de representações
identitárias para compreender que a criança é o que é, o que deseja ser e por si só, já é queer
cotidianamente.
Ao se forjar as noções de gênero e sexualidade é revelada a importância do papel do
professor na produção de uma criança (in)viável e (im)possível. No entanto, os esforços
normativos não são de todo incorporados, e diante dos jogos de verdade (FOUCAULT, 2010),
enunciamos como são entendidos os conjuntos de regras que compartilhadas, são constituídas
por uma convenção em um determinado contexto como o que regula o modo de produção dos
discursos nas escolas.
Ao intentarmos forjar a criança ideal, algo escapa. Se a escola ousar falar em criança
queer, a instituição assumirá um compromisso que pressupõe o alargamento das margens de
liberdade dentro e fora da escola.
No início deste trabalho foi compartilhado um poema da Cecília Meireles, intitulado
“Ou isto ou aquilo.” Professores e professoras são demasiadamente sonhadores. E, seja na
expressão de um poema, utopia ou desejo, o futuro está sempre à mostra nos nossos mais
variados planos.
De acordo com Bastos; Arreguy (2021) não é possível na educação infantil definir os
próximos passos de uma criança. Porém, é possível acolhê-la com uma visão de mundo de
que ali está alguém que deseja ser exatamente quem é e como é, desidentificada dos padrões
instituídos.
Na aposta da possibilidade de se construir novas pedagogias que desestimulem
discursos normatizadores dos corpos, das identidades, dos gêneros, das sexualidades, das
brincadeiras infantis e até mesmo dos processos de ensino e aprendizagem, que será possível
surgir o esforço comum dos interessados pela pedagogia queer.
Preciado (2014) não pensou muito diferente ao nos apresentar os “Princípios de uma
Sociedade Contrassexual”, que renuncia a uma identidade sexual fechada e determinada
naturalmente. No texto é revelado como se darão os corpos no futuro, onde as denominações
masculino e feminino, que correspondem às categorias biológicas, homem e mulher não mais
101
existirão, ficando cada corpo na apropriação de ser nomeado assim como desejar, como
corpos falantes fora das marcas de gênero.
De acordo com Preciado (2014), em tal sociedade será abolida a família nuclear
como célula de reprodução, modificando as instituições educativas tradicionais para o
desenvolvimento de uma pedagogia livre das amarras normatizadoras.
No âmbito da sociedade contrassexual e da pedagogia queer, os corpos falantes se
chamarão “pós-corpos” (PRECIADO, 2014, p. 43) ou quem sabe “Baby.”
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história.
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