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CLÁUDIA MARIA SODRÉ VIEIRA

AS RELAÇÕES TRAUMATIZANTES E SEUS EFEITOS NO


APARELHO PSÍQUICO: UMA CANTATA POLIFÔNICA DAS
IDÉIAS DE S. FREUD E S. FERENCZI

Dissertação apresentada ao Instituto de


Psicologia da Universidade de São
Paulo, como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Mestre em
Psicologia.

Área de Concentração: Psicologia


Clínica

Orientadora: Dra. Eva Maria


Migliavacca

São Paulo

2001
AS RELAÇÕES TRAUMATIZANTES E SEUS EFEITOS
NO APARELHO PSÍQUICO: UMA CANTATA
POLIFÔNICA DAS IDÉIAS DE S. FREUD E S.
FERENCZI

CLÁUDIA MARIA SODRÉ VIEIRA

BANCA EXAMINADORA

(Nome e Assinatura)

(Nome e Assinatura)

(Nome e Assinatura)

Dissertação defendida e aprovada em: ___/___/___

i
AGRADECIMENTOS

À Professora Eva Maria Migliavacca por ter sempre me estimulado a liberdade e a


responsabilidade de pensamento, orientando com segurança o desenvolvimento deste
trabalho.

Aos Professores Luiz Cláudio Figueiredo e Audrey Setton pela clareza das sugestões
apresentadas quando do exame de qualificação.

Ao Professor José T. Thomé por ter sempre oferecido condições para o


desenvolvimento profissional e intelectual.

A Othon Vieira Neto pela paciente acolhida, leitura cuidadosa e pelas perguntas
instigantes.

E, finalmente, aos colegas da Uni-FMU pelo estímulo e aos amigos pela apoio e
incentivo.
Ao meu filho querido:
Felipe

Ao meu amor, amigo e colega:


Othon

ii
Ao meu filho querido:
Felipe

Ao meu amor, amigo e colega:


Othon

Ii
ABSTRACT

VIEIRA, Cláudia Maria Sodré. The traumatic relationships and their effects in the
psychic apparel: a polyphonic cantata of S. Freud's ideas and S. Ferenczi

The dissertation presents S. Freud's conception metapsycology on the psychic


trauma, evidenced her economical aspect. It compares the trauma to the physical
pain, it discusses the effectiveness of the defences and the relationship with the
anxiety and the thought, detaching the processes related with the free and bound
energy. She works with the trauma concept in S. Ferenczi's work, emphasizing what
was denominated as traumatic relationships. She presents the metapsycology of
Ferenczi that detaches the introjection, the narcisistic spliting and the passive
adaptation, as indispensable elements for the understanding of the trauma. It
discusses the effects of the traumatic relationships in the psychic apparatus and it
proposes an understanding of the trauma through a composition of Freud's psychic
economy and of the dynamic and relational aspects in Ferenczi. It presents the
trauma as a shock provoked by the invasion of the psyche of istimulations didn't
psychical worked, through the psychic mutuality and for the action of objects of the
reality it expresses. It presents reflections on the psychotherapy, focusing the patient
- terapist relationship as an experience of traumatic repetition or overcome of the
trauma.
SUMÁRIO

LISTA DE SÍMBOLOS viii


RESUMO ix
ABSTRACT x

1. INTRODUÇÃO 1

1.1. Apresentação do tema 2


1.2. Apresentação do tema na obra de Freud 4
1.3. Apresentação do tema na obra de Sándor Ferenczi 10
1.4. Freud e Ferenczi 20
1.5. Objetivo 22

2. MÉTODO 24

2.1. Sobre o objeto de pesquisa 24


2.2. Sobre a justificativa para uma pesquisa teórica em psicanálise 25
2.3. Procedimentos e pressupostos 28
2.4. Plano de trabalho 36
2.5. Freud e Ferenczi: uma polifonia 36

3. A METAPSICOLOGIA DO TRAUMA 39

3.1. Dor física e dor mental 45


3.2. A falência dos processos de defesa 67
3.2.1. Barreira de estímulos, função materna e consciência 67
3.2.2. O trauma e as facilitações em ψ 71
3.2.3. As defesas automáticas e a aprendizagem biológica do Ego 74
3.2.4. Afetos, repressão primeva, fixação e divisão do Ego 78
3.2.5. A procedência dos estímulos, ou o corpo de dentro e o corpo de fora 86
3.2.6. Um caso ilustrativo: os olhos da lagartixa 93
vi
3.2.7. Um caso ilustrativo: os olhos da lagartixa 93

3.3. Trauma, angústia e pensamento 103


3.3.1. Processos primário e secundário segundo o Projeto 104
3.3.2 Pensamento e angústia 110
3. AS RELAÇÕES TRAUMATIZANTES 123

4.1. Os pais como ambiente 124


4.2. O mecanismo do trauma 147

5. DISCUSSÃO: O trauma e seus efeitos no aparelho psíquico 161

5.1. A conexão entre Freud e Ferenczi 162


5.2. O refluxo de Q‟η para o corpo – erogenização e doenças psicossomáticas 166
5.3. A supremacia da realidade psíquica: o seqüestro do Ego. 175
5.4. A ruptura das conexões 180
5.5. A função dos sonhos 184
5.6. A fragmentação do Ego e a introjeção do Superego 191
5.7. O ambiente é também conteúdo mental 213
5.8. O sinal de realidade como fruto de uma relação 229

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 237

6.1. Tantas palavras... 238


6.2. Últimas palavras 240

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 243

vii
1. INTRODUÇÃO

O palco está montado, mas é preciso uma cena. Um palco vazio só pode ser
preenchido pela memória ou pela imaginação. Se a luz é forte demais, ela nos cega,
se o som é alto demais, ficamos surdos, se a dor é intensa demais, não somos capazes
de pensar, desfalecemos. Mas o palco continua ali. Como representar uma cena de
excessos? Como compor os personagens em ação quando devem representar o terror,
e como representar o objeto do terror, quando este é a morte? Aquele a quem se
teme, o que mata, é possível encarnar; mas aquilo a que se teme, a própria morte,
será?
Como representar algo que é incompreensível? Talvez a única forma seja
repetir, repetir e repetir até que luz, som e dor sejam controlados, e aí sim, possamos
pensar. Se o terror é da morte, talvez possa ser substituído por outro mais conhecido,
mesmo que medonho, mas contra o qual se tenha algum tipo de defesa.
Algumas pessoas suportam intensos sofrimentos, horrores mesmo, e se
mantém íntegras. Outras, um pequeno revés da vida as abate de tal forma, que vivem
como crianças assustadas, perturbadas, doentes.
Quem decide o que deve ser tolerável para alguém? Sua constituição? A sua
história? O tipo de amor e cuidado que recebeu e o tipo de amor e confiança que foi
capaz de viver?
Há pessoas que vivem como autômatos, como se aquela parte delas mesmas
que sente dor e alegria estivesse escondida e inacessível. Às vezes nós, terapeutas, é
que secretamente choramos por elas. Ou então talvez a doença da alma se expresse
no corpo: o coração esteja partido, a pele não suporte o atrito com o mundo exterior.
Há ainda aquelas pessoas por quem os filhos sofrem, no âmago, algo daquele horror
sem nome, como uma herança maldita.

Trata-se de situações limite. Algo atinge uma intensidade tal que não pode ser
conduzido pelas vias normais. Trata-se de trauma psíquico.
Há umas tantas perguntas e hipóteses no que acabo de descrever. Descrição
imprecisa e vaga, forma apenas um pano de fundo para que se possa introduzir um
tema de pesquisa, um objetivo, uma justificativa, uma hipótese e um método de
trabalho.

1.1. Apresentação do tema

Por que trauma? Diante de tantos temas possíveis, por que trazer à superfície
algo que parece pertencer aos porões da psicanálise? Antiquado e em desuso, é como
os objetos que guardamos nos baús, esquecidos, e que ali permanecem apenas por
seu testemunho histórico. O trauma, como acontecimento drástico e marcante que
desvia a vida das pessoas da saúde para a doença, faz parte das explicações de senso
comum para os enigmas dos problemas emocionais. Uma perda súbita de alguém
muito querido, abuso sexual na infância, um assalto, uma história de repetidas
humilhações e maus tratos; os exemplos podem ser inúmeros e soam como super
simplificações de diferentes momentos da teoria psicanalítica. O que há de verdade
nessas relações de causa e efeito? O que há de substância nessas situações de
sofrimento mental que permita, ao menos, serem qualificadas como traumáticas? A
relação direta entre trauma e doença também merece questionamento, pois nos
convida a pensar sobre a possibilidade de se fazer uma outra relação, a do trauma e
desenvolvimento. As experiências de sofrimento psíquico que poderiam ser
classificadas como traumáticas seriam exceções infelizes na vida das pessoas, ou
muito mais freqüentes do que poderíamos supor? E assim sendo, não poderiam
funcionar como organizadores, que definem não a patologia, mas o caráter?
As guerras de nosso século deixaram, dentre outras seqüelas, um grande
número de doentes das chamadas neuroses de guerra ou neuroses traumáticas.
Encontra-se hoje na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) um quadro
clínico chamado de transtorno de estresse pós-traumático (F43.1), com
sintomatologia semelhante a das neuroses de guerra: revivescência da situação
traumática sob a forma de memórias intrusivas e de pesadelos, afastamento das
pessoas, entorpecimento e embotamento emocional, anodinia, estados de
hipervigilância, e outros... Segundo a Classificação Internacional de Doenças, CID-
10, esse distúrbio “Surge como uma resposta tardia ou protraída a um evento ou
situação estressante, de uma natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica,
a qual provavelmente causa angústia invasiva em quase todas as pessoas.” (1997, p.
160).
Acidentes graves, assaltos, seqüestros, situações limites onde a vida é
seriamente ameaçada, estão associados ao distúrbio de estresse pós-traumático. Esses
horrores que fazem parte de nosso cotidiano, diretamente para alguns, indiretamente
para todos nós, trazem em seu bojo a idéia de trauma e, com isto, uma pergunta: por
que associamos tão facilmente trauma e violência?
Seguindo esse caminho associativo, a violência não precisa ser explícita, do
tipo que leva as pessoas aos prontos-socorros e delegacias. Ela pode estar
seguramente escondida nos lares, mesmo naqueles que nos parecem tão insuspeitos.
Está no ódio camuflado em amor, no sadismo oculto sob certas formas de educação,
nas palavras e ações de pais que desconfirmam a percepção da realidade de seus
filhos pequenos; está na falta de acolhimento das crianças não bem-vindas nas
famílias, na vida das crianças sem família, sem teto, nas que morrem de
hospitalismo, sem afeto.
Como compreender o trauma nesse conjunto complexo? Caberia usá-lo como
conceito explicativo? Não correríamos o risco de ampliá-lo demasiadamente e
confundi-lo com frustração, com toda forma de sofrimento mental, com injustiça
social? Bion (1976) sugeria que deveríamos cuidar para que nossas palavras
estivessem em bom estado de uso, já que são nossos instrumentos. Talvez a palavra
trauma esteja necessitando um certo polimento, pois o uso indiscriminado acabou
criando camadas de diferentes momentos históricos, acúmulo de sentidos que a
deixam em mau estado de uso.
Etimologicamente a palavra trauma vem do grego traûma1 e significa
ferimento. O seu uso é bastante intenso na medicina. Na psicanálise a palavra trauma
foi inaugurada pelo próprio Freud: trauma psíquico. Ferimento psíquico, o que viria
a ser? Como uma metáfora, ferimento psíquico abre possibilidade para uma cadeia de
associações, e é como um recurso poético que Freud inicialmente lança mão da
palavra, descrevendo um fenômeno que ocupou importante lugar para a compreensão
das neuroses. Trauma vai adquirindo o status de um conceito na teoria do
desenvolvimento, na psicopatologia, na metapsicologia e na clínica psicanalítica. O
conceito de trauma carrega na história de sua evolução uma certa imprecisão: afinal,
o que é trauma? E que efeitos provoca? O que é traumático, um acontecimento ou
uma fantasia?

1. 2. Apresentação do tema através da obra de Freud.

O mais desconcertante em um primeiro contato com o tema é a


imprecisão, a névoa que encobre o que é considerado traumático. Ora emerge como
algo que se define pela surpresa, pelo inesperado, como um choque súbito para o
qual o indivíduo não construiu um aparato protetor, ora pela intensidade do choque
que suplanta o aparato protetor, como frustrações importantes, ora como uma
somatória de eventos que se constituem como traumáticos por seu valor cumulativo.
O que parece estar em jogo é uma relação entre aparato protetor e intensidade, que
mantém atrelado o trauma ao seu aspecto econômico.

No início da psicanálise, o trauma está intimamente relacionado com a


etiologia das neuroses. Fundamental para a compreensão das histerias traumáticas
estende-se como fator etiológico para as outras neuroses. Aparece associado,

1
Dicionário Universal da língua portuguesa, versão on-line.
inicialmente, a um acontecimento dramático que põe em risco a vida, e que pode
ocorrer na fase adulta, provocando efeitos psicopatológicos, como a histeria
traumática. Logo a relação entre trauma e etiologia torna-se mais complexa,
envolvendo fatores como o estado mental da pessoa no momento do trauma (estados
hipnóides, de dissociação da consciência) e um efeito de somatória de diversas
impressões afetivas que podem ter um efeito traumático. Há uma hipótese de Freud
(1893) que não são os acontecimentos em si que são traumáticos, mas o afeto a eles
associado: "... pois não restam dúvidas hoje de que, mesmo no caso do trauma
mecânico principal da histeria traumática, o que produz resultado não é o fator
mecânico, mas o afeto do terror, o trauma psíquico” 2.(1973, p. 42).
Posteriormente Freud (1896) defenderá a idéia de que as neuroses têm como
causas específicas perturbações da sexualidade, quer sejam contemporânea
(neurastenias e neuroses de angústia), quer sejam localizada no passado (histerias
não traumáticas, e neuroses obsessivas). Nas psiconeuroses, o trauma estaria
diretamente relacionado a experiências sexuais precoces, de caráter passivo (histeria)
ou ativo (neurose obsessiva). Encontramo-nos no período de vigência do que seria
chamada a Teoria da Sedução. Eventos efetivamente ocorridos até os oito anos de
idade teriam um efeito traumático a posteriori:

Graças à transformação devida à puberdade, a lembrança


evidenciará um poder que faltou completamente ao próprio evento.
A lembrança operará como se fosse um evento contemporâneo. O
que acontece é, como se fosse tal, a ação póstuma de um trauma
sexual.(1972, p. 283).

Em famosa carta a Fliess (Masson, 1986), Freud enumera os motivos que o


levaram a abandonar a sua Neurótika (Teoria das Neuroses). Um deles, central do
ponto de vista dos desenvolvimentos futuros da psicanálise, é o de que a freqüência
com que o desvendamento dos sintomas histérico desembocava em seduções dos
pacientes na infância, por adultos ou por crianças mais velhas, fez com que Freud

2
Todos as citações de Freud foram extraídas de Obras Completas, editadas pela Biblioteca Nueva de
Madri, traduzidas para o português pela autora, única exceção feita ao “Projeto para uma Psicologia
Científica”, que teve como fonte de consulta a Pequena Coleção das Obras de Freud, extraída da
Edição Standart Brasileira das obras completas de Sigmund Freud.
considerasse tão alta incidência pouco provável. Freud teria que acusar de
pervertidos muitos pais, inclusive o seu. Ainda, "o conhecimento seguro de que não
há indicações de realidade no inconsciente, de modo que não se pode distinguir entre
a verdade e a ficção que foram catexizadas pelo afeto”.(Idem, p.265 - 266). Não se
pode distinguir entre a lembrança de um fato e uma fantasia. Recordações não são
confiáveis, não há como certificar a sua veracidade se levarmos em conta a
intensidade de afetos a elas associadas, e a impressão subjetiva de realidade. A
Teoria da Sedução caía por terra.
No artigo publicado em 1906, "Minhas opiniões sobre o papel da sexualidade
na etiologia das neuroses", Freud retoma esse período, e reinterpreta a lembrança da
sedução como uma fantasia, ou uma recordação encobridora que tem a função
defensiva de ocultar da própria pessoa os desejos incestuosos dirigidos aos pais.
Freud põe-se no caminho de desvendar não a realidade dos fatos, mas a
realidade psíquica. A essa opção deve-se o desbravamento clínico do mundo mental
e a concepção de seus modelos de funcionamento psíquico. O conflito psíquico entre
os desejos e a censura, ou entre instintos sexuais e de autoconservação, ou ainda
entre as pulsões e as exigências externas, torna-se protagonista deixando o trauma
como coadjuvante. O trauma deixa seu traço no período de 1916 a 1925, como um
apelo para a sua compreensão do ponto de vista econômico e, com isso, deixa
também uma série de questões pendentes.
Freud passa a considerar bem mais a imaturidade emocional da criança para
fazer frente ao montante de excitação sexual que assola sua mente sob a forma de
fantasias incestuosas, o seu trabalho psíquico para encontrar um meio de
conter/expulsar as idéias como forma de elaborar esse montante de energia, e deixa
em aberto o que significa o cerne do trauma: a incapacidade de manejar ou elaborar
de forma normal, como ele descreve em 1916: "... um enorme incremento de energia
que torna impossível a supressão ou assimilação da mesma por meios normais e que
provocam, deste modo, duradouras perturbações do aproveitamento da energia.”
(1973, p. 2.294). Qual o efeito desse acréscimo de estimulação e que perturbações
permanentes são essas? Neste momento encontramo-nos acompanhando a ascensão
do Complexo de Édipo como elemento central para a compreensão do
desenvolvimento psíquico sob o reino e domínio da repressão.
Quando consideramos o trauma a partir de seus efeitos e não pela qualidade
dos fatores indutivos externos ou internos (como a sedução ou a fantasia de sedução),
somos levados a considerar os fatores predisponentes individuais: o que é traumático
para uns não o é para outros...
Para que uma vivência seja traumática dependerá... de quê? Em que consiste
o trauma? As séries complementares3 (Freud, 1917) nos fazem associar dois fatores
que estabelecem entre si uma relação em que para se produzir um mesmo efeito, o
aumento de um dos fatores deve ser acompanhado pela diminuição do outro fator.
Para que um dado conjunto de circunstâncias tenha um efeito traumático deve estar
presente o par descrito:

Uma fantasia ou um acontecimento + Predisposição X.

O que caracterizaria uma fantasia passível de produzir um efeito traumático?


O seu conteúdo ou a sua intensidade (catexia)?
O que qualificaria a predisposição? A constituição (as pulsões) ou a história
individual (as vicissitudes das pulsões)?
Em que consistiria o efeito traumático, a produção de neuroses, inibição ou
aceleração do desenvolvimento?
As neuroses traumáticas trazem um problema duplo: parecem escapar da
explicação fundada na sexualidade infantil, e fazem permanecer uma suspeita de que
deve existir um limite que nos obriga a considerar que certos acontecimentos
produzirão efeitos traumáticos em qualquer pessoa. A dificuldade é semelhante à
encontrada com relação às neuroses atuais e as psiconeuroses, que é de como
conciliá-las com as idéias referentes às fixações da libido e à construção de sintomas,
como formações de compromisso entre impulso e defesas. O narcisismo parece
despontar como uma forma de compreender sob diferente vértice o trauma e as
neuroses traumáticas.
Em seu artigo "Além do Princípio do prazer" (1920), Freud vem lançar uma
luz sobre importantes aspectos da metapsicologia do trauma. O trauma é uma ruptura
na barreira de estímulos, é o corte, a ferida, a contusão no escudo de proteção do
aparelho psíquico que vem expor um ponto nevrálgico na teoria dos instintos: a

3
S. Freud. As vias de formação de sintomas, p. 2348.
compulsão à repetição como uma forma de dominar a estimulação e que submete o
próprio Princípio do Prazer à sua ação. A compulsão à repetição que submete à sua
lei tanto a pulsão de vida como a de morte, tem nos sintomas das neuroses
traumáticas e nos sonhos traumáticos a sua expressão mais fiel. O trauma retorna à
cena.
O que aguça a curiosidade é da ordem do significado: qual a representação
psíquica ou qual a fantasia sobre o que é vivido como traumático? Como o perigo é
representado? O que está sendo ameaçado? Em "Inibições, sintomas e ansiedade"
(1926) Freud traz elementos para a compreensão do trauma pela vertente das
fantasias e da íntima relação entre trauma e angústia. A ansiedade automática seria a
resposta a uma situação traumática, o desamparo psíquico é o que qualifica a
experiência de ser engolfado por uma onda de estimulação de origem externa ou
interna.
A ansiedade como sinal vem cumprir um papel de defesa do aparelho
psíquico de um perigo já conhecido, evitando a repetição do trauma? O conteúdo da
ansiedade, o significado do temor - perda do objeto, perda do amor do objeto,
castração e perda do amor do superego - traz a causa no lugar do perigo, do dano que
é o desamparo? E haveria situações em que esse risco não pode ser definido, como
um terror de algo que não se conhece e não se entende o significado? Haveria uma
angústia sem conteúdo, um horror expresso apenas pelo corpo e registrado apenas
como uma memória sensorial tal e qual a angústia que acompanha o trauma do
nascimento? Haveria uma angústia tão intensa que seria traumática tornando nesse
momento angústia e trauma sinônimos?
Posteriormente, em “Moisés e o Monoteísmo” [1939 (1934-1938)], no final
de sua vida, Freud retoma o problema do trauma e apresenta uma síntese final de seu
pensamento quanto ao tema. Freud reconsidera o lugar que ocupa a realidade
sensível, a idéia de um evento, ou como no dizer de Bokanowski (1999) um fato
datável, que pode participar como traumático. Freud define: “Denominamos
traumas [grifo do autor] aquelas impressões, cedo vivenciadas esquecidas mais tarde,
que, segundo dissemos, tem tanta importância na etiologia das neuroses.” (1973,
p.3283)

Essas impressões traumáticas assim o são por não poderem ser tratadas de
forma normal. Elas ocorreriam até os cinco anos de idade e não podem ser
lembradas, emergindo como recordações encobridoras, ou seja, apresentam-se de
forma transformada, segundo o modelo dos sonhos, por condensações e
deslocamentos. Atentemos para o que se segue: “Referem-se a impressões de índole
sexual e agressiva; também, sem dúvida nenhuma, e, indubitavelmente, também a
danos sofridos precocemente pelo ego (ofensas narcísicas).” (1973, p.3285)

Freud está relacionando o trauma com danos ao ego, com o que poderíamos
chamar de ferida narcísica, que, como veremos é um traço forte no desenho de
Ferenczi sobre o trauma.

Continuemos por mais um pouco e emergirá um notável resgate da relação


com estímulos externos e não como algo que é produto unilateral das pulsões:

Os traumas consistem em experiências somáticas ou em percepções


sensórias, em geral visuais ou auditivas; são, pois, vivências ou
impressões. A relação daqueles três atributos é estabelecida por uma
teoria emanada do trabalho analítico, único que pode provocar um
conhecimento das vivências esquecidas, o que, em termos mais
concretos, ainda que menos corretos, pode trazê-las de volta à
memória. (1973, p. 3285).

Essas reconsiderações de Freud fizeram com que Bokanowski (1999)


defendesse a hipótese, com a qual compartilho, de que Freud foi influenciado pelas
idéias de Ferenczi:

Parece que podemos construir a hipótese de um Freud que se torna


leitor não somente latente, mas patente de Ferenczi e, aqui podendo
ser em relação com a aflição dolorosa e conflitiva que aconteceu
depois do desaparecimento alguns anos antes, de seu antigo amigo,
discípulo, paciente e confidente, morto por não poder mais suportar
o peso da recusa contratransferencial.”4, 5(1999, p. 58)

4
Tradução livre de Nancy Ogura Camargo.
Diante do exposto, nota-se que o conceito de trauma na obra de Freud está
presente desde o início de seus estudos até seus últimos trabalhos, relacionando-se
com a etiologia, com a teoria do desenvolvimento, com a clínica psicanalítica e com
a metapsicologia. abrindo uma série de possibilidades de estudo. O trauma tem lugar
nas transformações radicais da teoria psicanalítica, como o abandono da teoria da
sedução, e as diferentes versões das teorias da angústia e das pulsões. Retorna
recomposto com aquilo que foi abandonado por Freud e rejeitado na voz de Ferenczi:
a sua ligação precípua com a realidade externa.

1. 3. Apresentação do tema na obra de Sándor Ferenczi.

Sándor Ferenczi. Quem é este autor? Resgato as palavras do próprio Freud


(1933) como uma apresentação de Ferenczi e seu lugar entre os pioneiros da
Psicanálise: “É impossível imaginar que a história de nossa ciência algum dia venha
a esquecê-lo”.(1973, p.3.238). Com essa frase Freud finaliza o obituário de Ferenczi,
amigo, interlocutor, teórico respeitado, cujos trabalhos publicados "... tornaram todos
os analistas seus discípulos." (idem, loc. cit.).
O que era inimaginável para Freud, quase se concretiza como uma
premonição às avessas. A obra de Sándor Ferenczi foi relegada ao esquecimento por
muito tempo. Na verdade, ela ressurgia através de outros autores que, na maioria das
vezes não lhe faziam referência. No Posfácio do Diário Clínico (1932) de Ferenczi,
obra compilada por M. Balint, publicada 36 anos após a morte de Ferenczi, Pierre
Sabourin lista alguns autores contemporâneos que não se apercebem da dívida
teórica com Ferenczi, como R. Spitz, Searles, Winnicott e Masud Khan. A lista
poderia ser aumentada por aqueles que foram influenciados por suas idéias, mas o
5
“Il me semble que l‟on peut, ici, faire l‟hypothèse d‟um Freud devenu „lecteur‟ non seulement
latent, mais patent, de Ferenczi, Ceci pouvant être em lien avec le deuil douloureux et conflictuel qu‟il
a dû faire depuis la disparition, quelques années auparavant, de son ancien disciple et patient, ami et
confident mort de návoir pu supporter le poids son refus contre-transférentiel”.(1999, Bokanowski, in
Le Coq-Héron, nº 154).
que importa marcar é que a sua obra, propriamente foi “recalcada” e, coube a E.
Jones, semelhante ao que ocorreu com W. Reich, lançar dúvidas sobre sua sanidade
mental. Vou conter meu lado passional e revoltado contra o que considero injustiças
históricas, efeitos de ciúmes e inveja das pessoas criativas, e esperar que o que for
capaz de colher da complexa obra de Ferenczi fale por si mesma.
Ferenczi foi contemporâneo de Freud e ocupou um lugar de destaque no
início do movimento psicanalítico e na vida de Freud. Houve um intenso intercâmbio
de idéias entre eles durante 25 anos. Como o próprio Ferenczi (1930) se autodefiniu,
sua posição no movimento psicanalítico fez dele uma composição entre professor e
aluno (Ferenczi, 1930). Ele influenciou toda uma geração de analistas como M.
Balint, M. Klein, R. Spitz, S. Radó e Franz Alexander, dentre outros. A relação de
Ferenczi com Freud foi marcada por uma rica troca de idéias e experiências e
também pela intensidade de emoções e pela transferência: aluno, analisando,
parceiro, filho, amigo, admirador incontestável do gênio de Freud. Relação marcada
também pela ambivalência e decepções de parte a parte, e pelo desejo de ser
reconhecido e admirado por Freud. Ao final de sua vida, sua relação com Freud
estava abalada em função de questionamentos de Ferenczi sobre a sexualidade
infantil, sobre o trauma e sobre o papel do analista.
Ferenczi foi entusiasmado com a psicanálise enquanto teoria e enquanto
forma de tratamento. Foi um autor fértil, divulgando a psicanálise para diferentes
interlocutores como educadores, juízes, artistas e o público em geral. O efeito das
idéias de Freud sobre ele pode ser descrito como estímulos que mobilizam
pensamentos, reflexões. Ferenczi não reproduzia as idéias de Freud, mas era um
parceiro teórico valioso e um clínico respeitável. Mesmo quando se tratava de
versões ou sínteses, é possível identificar algo como um estilo, um ritmo e uma
entonação que dão ao conjunto uma melodia que lhe é própria. Seu artigo sobre
“Transferência e Introjeção” (1909), por exemplo, já traz uma marca sua, pessoal e
uma contribuição valiosa, apresentando desde então o analista como alguém que
estimula respostas, e mais do que um resto diurno, o analista como um símbolo. Seus
trabalhos mais metapsicológicos como “O desenvolvimento do sentido da realidade
e seus estágios” (1913), “O problema da afirmação do desprazer. Progressos no
conhecimento do sentido da realidade” (1926), mostram um teórico consistente, que
sinaliza a sua preocupação com a representação do desprazer, elemento fundamental
na discussão do trauma, como teremos oportunidade de discutir.
Ferenczi faz alterações na técnica que seriam posteriormente muito criticadas,
mas que possibilitaram a sondagem de algo até então revestido por uma capa
protetora porque desagradável: a contratransferência, a hipocrisia profissional, o
sadismo do analista, o risco da análise se transformar em algo que eu traduziria como
iatrogênico, por uma toxicidade do analista, ou por atuar uma vez mais como o
objeto traumatizante da infância do paciente. Essas alterações foram introduzidas em
diferentes momentos de sua história como analista e que podem ser resgatadas
principalmente nos textos: “Prolongamentos da „técnica ativa‟ em psicanálise”
(1921), “As fantasias provocadas” (1924), “Contra-indicações da técnica ativa”
(1926), “O problema do fim da análise” (1928), “Elasticidade da técnica
psicanalítica” (1928), “Princípio de relaxamento e neocatarse” (1930), “Análise de
crianças com adultos” (1931) e no Diário Clínico (1932).
As experiências de Ferenczi com a técnica ativa, com o relaxamento e com a
análise mútua, colocaram-no no incômodo lugar de enfant terrible da psicanálise e
deste para aquele que é tido, veladamente, como traidor e inimigo, acenando-se com
a possibilidade de assumir o papel desempenhado por Jung no grupo psicanalítico.
Sua honestidade científica é patente em seus artigos sobre a técnica onde
reconhece erros e precipitações, dando um testemunho de sua humildade e, ao
mesmo tempo, bravura.
Os textos de Ferenczi em que a clínica é o foco, evidenciam uma atitude
diante do paciente de uma escuta confiante, um intenso desejo de ajuda, que não
escapa à sua auto-análise, um reconhecimento comovente de suas inseguranças,
vaidades e hostilidades que são um testemunho raro daquilo que é o inefável na
clínica: um espaço preenchido pelo onírico do paciente e do analista, em especial em
seu Diário Clínico. Como o nome revela, era um diário de anotações sobre as
sessões com seus pacientes, suas reflexões, seus sentimentos, suas hipóteses. Não foi
escrito como um livro para ser publicado e, se não apresenta a elaboração cuidadosa
de seus outros textos, têm algo de pulsante e intenso, são fragmentos vivos de
encontros.
Suas contribuições para a compreensão das doenças psicossomáticas, das
patoneuroses, das relações mente-corpo, simbolismo, desenvolvimento do ego, do
superego, do narcisismo, do desenvolvimento da libido, das influências do meio, da
relação paciente-analista, da teoria das pulsões, atestam uma produção fecunda,
consistente e original.
Não é necessário justificar o autor ou apresentá-lo como alguém que mereça
ser levado a sério, como se Ferenczi estivesse em um julgamento que fosse validar
ou não a importância de suas idéias para o desenvolvimento da psicanálise. Trata-se,
sim de revelar qual o propósito deste trabalho ao dedicar-se ao estudo das idéias de
Freud e de Ferenczi sobre o trauma. Façamo-lo.
Já em seus primeiros trabalhos que tratam sobre o trauma, Ferenczi traz uma
ampliação da compreensão de suas interligações com o narcisismo. Em “Psicanálise
das neuroses de guerra” (1919), Ferenczi considera a presença de sintomas
somáticos como fixações da atitude corporal imediatamente anterior ao trauma ou
dos movimentos relacionados com a expressão de emoções. O corpo participaria nos
efeitos do trauma através de conversões, e o que supõe ser manifestações corporais
relacionadas com o narcisismo, ou seja, um investimento libidinal na representação
do órgão ou de partes do corpo. A retirada da libido dos objetos também seria
responsável pela depressão hipocondríaca e pela hipersensibilidade que fazem parte
do universo das pessoas que padecem de neurose traumática. A regressão ao
narcisismo estaria, portanto na base dessas manifestações, bem como o
enfraquecimento do amor objetal e da potência sexual; uma fixação nessa fase do
desenvolvimento criaria uma predisposição pra a neurose traumática. O trauma
equivaleria a um abalo profundo na autoconfiança, que para uma pessoa com
fixações narcísicas teriam um efeito devastador. Desejos de ser cuidados, mimados,
protegidos, amparados emergem como uma forma de garantir que o choque não se
repetirá, ao mesmo tempo em que acessos de cólera são a manifestação do
equivalente inconsciente infantil: a revolta da criança contra forças que a superam. A
hiperestesia e os sonhos de angústia seriam tentativas de cura espontânea. Nota-se
nesse artigo a presença periférica de uma hipótese que posteriormente, no final de
sua obra, ocupará papel destacado:

Todos esses fenômenos mórbidos, narcísicos e de angústia,


também têm seu modelo atávico [grifo do autor]; pode-se supor
que essa neurose equivale, por vezes, a comportamentos que não
desempenharam qualquer papel no desenvolvimento individual
(simulação de morte nos animais, atitudes e modos de proteção da
descendência nos animais durante a evolução).6

Essa simulação de morte a que Ferenczi se refere será descrita posteriormente


como uma regressão a estados anteriores do desenvolvimento individual, uma
adaptação autoplástica maciça, como discutiremos no corpo deste trabalho.
No artigo “As patoneuroses” (1917) Ferenczi considera a neurose traumática
como o resultado de um choque tanto físico como psíquico, mas sem lesão corporal
séria. Os sintomas seriam uma combinação de histerias de conversão ou de angústia
e resultantes de regressões narcísicas, sendo a patoneurose como uma composição
entre neurose de transferência e neurose narcísica. Impressiona como a sua
percepção se aproxima do que hoje chamaríamos de borderline.
No artigo supracitado, Ferenczi relata um caso de um paciente que sofreu
efetivamente uma emasculação, Ferenczi demonstra uma conjunção entre fantasia e
realidade:

... a doença mental, a paranóia, foi desencadeada traumaticamente


[grifo do autor] pela castração? A castração do homem, a
„emasculação‟, é especialmente adequada, com efeito, para evocar
ou reavivar fantasias de feminilidade, a partir das lembranças
bissexuais recalcadas da infância que se exprimem em seguida no
delírio. (1992, p. 293).

É como se a percepção de algo que apresenta elementos em comum com a


fantasia dotasse esta última com um sinal de realidade. A equivalência entre a
percepção, ou o evento real vivido, e conjunção com a fantasia confere ao complexo
fantasioso validade, e impede o pensamento. O que permite o pensamento é, como
veremos, a diferença entre o traço mnêmico e a percepção.
Para Ferenczi uma doença orgânica pode provocar uma perturbação narcísica
na libido ou mesmo uma perturbação na relação de objeto, um distúrbio

6
S. Ferenczi. A psicanálise das neuroses de guerra, p. 27.
transferencial, como uma histeria (pato-histeria). O que proporciona a perturbação
traumática da libido narcísica foi delimitado por três condições que podem levar à
patoneurose histérica ou narcísica:
 Se há a presença de um narcisismo constitucional forte: “qualquer parte do
corpo, não importa qual, atinge por inteiro o ego”7 . Ou, poderíamos dizer,
o ego está totalmente identificado com o corpóreo.
 Se o traumatismo é uma ameaça para a vida da pessoa (seu ego e sua
existência ficam ameaçados, ou a pessoa crê nisso).
 Se há lesão de uma parte do corpo fortemente investida de libido e, com a
qual o ego se identifica: os órgãos genitais, as zonas erógenas, o rosto, os
olhos.

O aumento da libido investida na área lesionada seria para Ferenczi uma


forma de deflagrar processos de cura. O que definiria o processo patológico da
alteração do investimento libidinal, seria a repressão, que levaria a patoneurose
histérica, ou se o ego se identificar completamente com a ferida ou doença,
conduziria a um narcisismo de doença.
Ferenczi revela em seus textos “Fenômenos da materialização histérica”
(1919), "Tentativas de explicação de alguns estigmas histéricos” (1919) e
“Reflexões psicanalíticas sobre os tiques” (1921), uma linha de raciocínio comum,
simétrica à exposta anteriormente, que é a influência da fantasia nos processos
corporais, através do deslocamento das zonas erógenas para qualquer parte do corpo,
sendo essa a origem da simbolização. Há uma contribuição bastante original de
Ferenczi, no que ele identifica como uma regressão mais profunda que a dos sonhos,
para uma motricidade inconsciente: “... uma regressão tópica a uma profundidade do
aparelho psíquico onde os estados de excitação já não se liquidam por um
investimento psíquico, ainda que fosse alucinatório – mas simplesmente pela
descarga motora”.8 Seria uma regressão ao que Ferenczi denominou de
“protopsique”.9

7
Idem. As patoneuroses, p. 295.
8
Idem. Fenômenos de materialização histérica. P. 47
9
Idem, ibidem, p. 48.
Essa protopsique sugere algo como uma nova tópica, pois parece não ser pertinente ao Ego, nem ao
Id, mas como algo no corpo que funciona como mente.
Ferenczi chama a atenção para sua constatação de que partes do corpo tanto
se tornavam palco de encenações de tendências reprimidas (as materializações
histéricas)- como no caso das paralisias histéricas, como de uma reclusão de afetos
ligados ao trauma - no caso da hemiastesia traumática. Em ambos, o efeito tópico é o
mesmo, não há acesso `a consciência daquilo que está contido naquela parte do
corpo.
Ferenczi elevará o narcisismo ao alto da colina de sua geografia psíquica,
como algo que deve ser sempre considerado junto com a íntima relação entre os
fenômenos mentais e corporais. Em sua composição das relações entre mente e
corpo, distingue uma divisão de trabalho no orgânico: controlar e distribuir
excitações (tarefa do aparelho psíquico) e a descarga periódica de excitação
acumulada no organismo, tendo nos órgãos genitais a máxima especialização. O
órgão de controle das excitações sofreria em seu desenvolvimento uma incidência
maior da ação da pulsão de autoconservação, tornando-se sede do pensamento e o
órgão de prova da realidade. Os genitais se tornariam no transcorrer do
desenvolvimento no órgão erótico central. Na histeria teríamos uma reversão a um
estado anterior a separação funcional. A descrição que Ferenczi nos dá sobre a
formação dos sintomas histéricos em “Fenômenos de materialização histérica”
ilumina o obscuro salto do psíquico para o somático:

Poderíamos, portanto, conceber a formação de um sintoma


histérico da seguinte maneira: um movimento pulsional genital
extremamente forte quer penetrar na consciência, mas o ego sente
a natureza e a força desse movimento como um perigo e repele-o
para o inconsciente. Após o fracasso dessa tentativa de solução,
essas massas de energia perturbadora são ainda mais
profundamente rechaçadas, até atingir o órgão sensorial psíquico
(alucinação) ou a motilidade involuntária em sentido amplo
(materialização). Mas nesse percurso, essa energia pulsional entrou
em contato íntimo com camadas psíquicas superiores que a
submeteram a uma elaboração seletiva. Ela deixou de ser um
simples quantum, passou por uma diferenciação qualitativa que a
converteu num meio de expressão simbólica de conteúdos
psíquicos complexos.(1993, p. 49- 50).

Ferenczi mapeia uma regressão tópica: a repressão que conduz o material


psíquico para fora dos domínios do inconsciente. A massa de energia perturbadora
supomos que seja a libido que reativa intensamente imagos puramente psíquicas sob
a forma de antigas percepções, ou seja, alucinação. Mas quais imagos? Não mais
aquelas que estão sob o domínio do inconsciente, mas formações substitutivas. Aqui
já entraríamos em um domínio que extrapola o mental, pois afeta de alguma maneira
a intermediação com os órgãos sensoriais. O fenômeno da materialização histérica é
uma transformação interna, do próprio corpo que revela uma plasticidade
surpreendente e que se expressa através da motilidade involuntária, ou seja, já não
está mais sob o comando das camadas superiores do córtex cerebral, em termos
anatômicos. Mas essa massa de energia foi anteriormente transformada, não se
tratando, portanto de uma regressão total a uma qualidade anterior, ela mantém algo
da organização adquirida através de sua passagem pelo aparelho psíquico, ou seja,
guarda característica qualitativa que, na ausência de outra denominação poderíamos
nomear, de psíquica ou mental. Assim, as materializações histéricas são pensamentos
do corpo, são “um idioma histérico, de um jargão simbólico”10. O que podemos
considerar com relação ao trauma é que ele é um quantum no aparelho psíquico e nos
perguntarmos sobre que tipo de processos ele pode deflagrar no corpo.
Há uma contribuição característica de Ferenczi à Psicanálise que inclui um
conjunto de fenômenos de interação de pares como: paciente-terapeuta, pais - filhos,
agressor - vítima, educador-educando; todos complementares, que poderíamos
incluir em uma grande categoria como organismo-ambiente, e denominar os
fenômenos estudados como relacionais. Serão os fenômenos relacionais o enfoque
deste trabalho, no que concerne ao trauma. Os aspectos relacionais não serão
apresentados nesta pequena introdução `as idéias de Ferenczi, porque serão objetos
de um tópico específicos.
Antes de encerrar esta apresentação, faz-se necessário destacar que Ferenczi,
como Freud, é um autor complexo e que sua obra oferece múltiplas possibilidades de
leitura e múltiplos campos de investigação: há um Ferenczi metapsicológico, clínico,

10
S. Ferenczi. Fenômenos da materialização histérica. p.50.
educador, pensador da cultura, preocupado com problemas técnicos, etiológicos,
pedagógicos, éticos, e outros. Este trabalho realiza leitura definida, como a
apresentada acima.
Apesar de haver diferenças em questões importantes como sexualidade
infantil, técnicas e também quanto ao trauma, nunca houve, entretanto, um
rompimento formal entre Freud e Ferenczi não obstante, no final de sua vida a
relação entre eles tornou-se muito tensa.
Na raiz dos desentendimentos estavam divergências técnicas e teóricas.
O clímax dessa tensão ocorreu em seu último encontro com Freud, quando
Ferenczi apresenta-lhe um trabalho que seria comunicado no Congresso de
Wiesbaden em 1932: "Confusão de línguas entre os adultos e a criança". Freud teve
uma forte reação às idéias contidas no artigo:

Foi um encontro penoso, em que a incompreensão entre os dois


homens atingiu seu ponto culminante. Freud, muito chocado com o
conteúdo do artigo, pediu a Ferenczi que se abstivesse de qualquer
publicação até ter reconsiderado as posições que expressava no
artigo. (Dupont, J. 1990, p.17).

O trabalho é apresentado no Congresso. Diante da insistência de Ferenczi em


publicar esse artigo, Freud escreve a Ferenczi em 2.10.1932:

... Não acredito que você se corrija, como eu me corrigi uma geração
mais cedo... Nos últimos dois anos, você se distanciou
sistematicamente de mim... Acredito estar objetivamente em
condições de lhe mostrar o erro teórico de sua construção, mas de que
adianta? Estou convencido de que você se tornou inacessível a
qualquer reconsideração... (Idem, loc. cit.).

As críticas de Freud feriram Ferenczi profundamente. Nesse período ele já se


encontrava doente, vindo a falecer no ano seguinte de anemia perniciosa.
Mas o que havia de tão condenável no artigo de Ferenczi?
Em poucas palavras, conduz a uma nova reflexão sobre a sexualidade infantil,
sobre a técnica e o que liga esses dois aspectos é o que afirma sobre o trauma:

Em primeiro lugar, pude confirmar a hipótese já enunciada que nunca será demais
insistir sobre a importância do traumatismo e, em especial, do traumatismo sexual
como fator patogênico. Mesmo crianças pertencentes a famílias respeitáveis e de
tradição puritana são, com mais freqüência do que se ousaria pensar, vítimas de
violências e estupros.11

É a descrença com relação à realidade do trauma sexual e ao cerne da verdade


nas fantasias histéricas que opõe Ferenczi a Freud:

A nossa principal tarefa no tratamento de um caso de histeria é


essencialmente a exploração da estrutura fantasística, automática e
inconscientemente produzida. Uma grande parte dos sintomas
desaparecem, de fato, por esse procedimento. Isso nos levou a pensar que o
desvendamento da fantasia que podia ser considerada uma realidade de
espécie particular (Freud chamava-a de realidade psíquica) - era suficiente
para produzir a cura; ora, saber em que medida esse conteúdo fantasístico
também representava uma realidade, era considerado de importância
secundária para o tratamento ter êxito. Minha experiência ensinou-me,
porém, outra coisa. Adquiri a convicção de que nenhum caso de histeria
pode ser definitivamente solucionado enquanto a reconstrução, no sentido
de uma separação rigorosa do real e da pura fantasia, não estiver
consumada.12

Guinada de cento e oitenta graus? Minha hipótese é de que Ferenczi abre um


diálogo com as idéias originais de Freud. Não é um mero retorno, mas uma nova
tese, a expressão de um movimento dialético que traz profundas conseqüências.
Uma delas, mais imediata, é a de que a descrença injusta com relação ao
paciente torna o analista traumatizante, reproduzindo com seu paciente a situação
traumatogênica. Para Ferenczi, a negação da realidade do ataque pelo sedutor ou

11
S. Ferenczi. Confusão de línguas entre os adultos e as crianças. p. 101.
12
Idem. O problema do fim da análise. p. 16-17.
pelos pais da criança, o "silêncio de morte" sobre essas experiências, ou a punição
diante das reações da criança, é o que tornam o trauma patogênico (Ferenczi, 1931,
p. 79). Fazem parte da mesma série a hipocrisia profissional, a rigidez da técnica e os
efeitos no paciente da contratransferência do analista, através da crueldade
disfarçada, do amor apaixonado, do apego exagerado, da vaidade pessoal. Tais
fatores prendem o paciente em uma armadilha onde está condenado a repetir, não
recordar e muito menos elaborar.
Esses pioneiros carregam em suas divergências o protótipo de um diálogo que
não cessou, até o momento, na psicanálise, entre constitucional e adquirido, mundo
interior e realidade exterior, objeto interno e objeto externo. Nesse contexto o trauma
pode ser interpretado como uma condensação, como uma metáfora da divergência,
lugar onde confluem os elementos e forças em disputa.
Não há como sair imunes ao diálogo iniciado e seus efeitos, que se expressam
concretamente em diferentes formas de exercer a psicanálise. Não se trata, portanto,
de um mero exercício de retórica.

1. 4. Freud e Ferenczi – um panorama complexo.

Inspirando-nos no artigo de Judith Dupont, “La nocion de trauma selon


Ferenczi et recherche psycanalytique ultérier”(1999) em que ela forma um quadro
sobre o trauma, invocamos a imagem de um quebra-cabeça: vários pedaços de uma
paisagem espalhados sobre a mesa, que nos impulsiona a uni-los e colá-los, porque
imaginamos que forme um todo coerente, mesmo que cheio de imperfeições e lascas.
Por esse ângulo o que o artigo traz são os cortes, aquilo que precisa ser unido e que
se denuncia pelas múltiplas questões expressas por Dupont. Reproduz a impressão
que a pesquisa sobre esse tema causa: há uma aparente coerência e unidade, como
uma paisagem. As fraturas são os múltiplos acidentes geográficos, os lagos,
montanhas, vales... E os abismos profundos, escuros e misteriosos, que assustam por
sua imensidão e pela impressão de que não há fundo.
Dupont inicia seus questionamentos relembrando a “... controvérsia clássica
entre o trauma psicogênico e exógeno, ferida real ou fantasiada...”13 (tradução
minha). Esse questionamento é bastante pertinente no que se refere às idéias de
Freud e Ferenczi e não pode ser conduzido como se tivéssemos dois pensamentos
absolutamente distintos, sem pontos de intersecção.
Freud enuncia o trauma a partir da realidade psíquica, mas não é o seu
aportamento. Da mesma forma. dizer que para Ferenczi a relação interpessoal é o
determinante, envolve um certo grau de impermeabilidade para suas idéias, como
pretendo que a exposição de suas idéias evidencie.
O lugar para onde essa via psicogênica-exógena nos conduz é o da
problematização sobre a construção da realidade psíquica e de suas relações
múltiplas com a realidade material, ou dito de outra forma, com os objetos externos.
A realidade material, como Freud bem indicou no “Projeto de uma Psicologia
Científica” (1950 [1895]) é constituída de massas em movimento, objeto de estudo
dos físicos, e para nós, incognoscíveis a não ser através de intermediações, os objetos
externos.
Podemos identificar como Freud e Ferenczi concebem a construção da
realidade psíquica e da realidade externa tendo como base o conceito de trauma? O
que permitiria atestar ou sinalizar algo como sendo pertencente ao mundo interno e
algo advindo do mundo externo? Poderíamos desdobrar essa questão em duas: como
alguém que experiência algo pode discriminar o que é real, do que é fantasia? E
como alguém que ocupa o lugar de analista pode identificar se o que o paciente se
refere em uma dada sessão é uma recordação, um delírio ou uma alucinação?
A metapsicologia de Freud nos dá suporte para a compreensão do trauma sob
a ótica do intrapsíquico e é a um só tempo uma descrição das relações mundo
interno/externo.É o trabalho teórico de Freud que irei investigar, fruto de reflexão
sobre a clínica e do anseio de construir um modelo sobre o funcionamento mental,
uma abstração a partir das experiências clínicas, e é também o Freud que especula
que se excede, que fica (ou nos deixa) sem fôlego. As idéias de Freud serão as porta-
vozes da reflexão sobre o trauma e o trabalho com os estímulos internos e externos.
Se Freud é um bom guia para a travessia da metapsicologia, Ferenczi o é para
a compreensão de uma trama de relações, para enredos pessoais, como alguém muito

13
J. Dupont. La nocion de trauma selon Ferenczi et recherche psycanalytique ultérier. p. 42
preocupado com a psicanálise como processo psicoterapêutico. Ferenczi foi tido
como o analista de casos difíceis, sensível aos efeitos dos comportamentos e da
contratransferência na relação analítica, a sua aproximação do trauma é carregada de
descrições de experiências. Ferenczi lança luz sobre as relações interpessoais, sobre
o lugar do analista e seu incomodo papel de funcionar como alguém que corre o risco
de re-introduzir-se como objeto traumático.
As questões acima destacadas não serão, entretanto o objeto da investigação
deste trabalho, mas por via indireta serão discutidas ou estarão presentes como pano
de fundo.
Há um outro aspecto, dentre muitos do texto de Dupont, que atrai
particularmente a atenção. O traumatismo seria integrado na psique traumatizada da
mesma forma que o seria uma fantasia endógena ou se produziria alguma fratura na
coerência psíquica? Essa questão é fundamental, pois trás à tona o problema da
intermediação entre o mundo exterior e interior. Seria possível que algo penetrasse o
mundo mental sem a intermediação de nenhum tipo de trabalho psíquico? Seria a
ruptura da fronteira entre o indivíduo e o mundo da mesma ordem que um corte, uma
ferida: ruptura? Seria a ausência de intermediação, a ausência de representação, o
efeito primário e, portanto, o mais drástico do traumatismo?
Seguindo o texto de Dupont encontramos um outro problema afiliado ao
anterior: as feridas traumáticas poderiam se combinar com fantasias para deflagrar
um efeito traumático ou existiriam alguns choques traumáticos que inibiriam toda
atividade de fantasia? Seria o caráter inesperado do trauma que produziria o efeito de
inibição? Aqui está o abismo, o mistério, o horror do vazio: o efeito traumático como
um buraco negro, o estancamento da fantasia, a impossibilidade de representar. O
que ocuparia o espaço vazio?
Todas essas questões poderiam ser agrupadas em uma: quais os efeitos do
trauma no aparelho psíquico?

1.5. Objetivo.
O propósito deste trabalho é identificar os aspectos intrapsíquicos do trauma
na metapsicologia de S. Freud, em especial quanto à economia psíquica. Investigar o
trauma segundo o modelo das relações de objeto e os interpessoais na obra de S.
Ferenczi, e a partir desse levantamento discutir da ótica econômica e das relações de
objeto, como se processa o trauma no aparelho psíquico.
Serão propostas também algumas vertentes para a compreensão do trauma:

 Como uma experiência que, dada a intensidade afetiva, supera a


capacidade de elaboração do aparelho psíquico através da descarga e/ou
do pensamento, relacionada com a impossibilidade de nomeá-la.
 Com a ruptura do escudo protetor, a conseqüência imediata seria a ação
desagregadora da pulsão de morte.
 O fundamento da experiência traumática seria o desamparo psíquico.
 Seria função materna, para a criança, e do analista, para seu paciente,
favorecer a construção de significados para o trauma e suas decorrências,
compondo um enredo dramático, uma cena onde os personagens, os
objetos internos possam se apresentar no palco mental, terem voz e serem
compreendidos. Supõe-se que por mais terrificante que seja uma fantasia,
ela é mais organizadora do que a ausência de representação. Entretanto, o
efeito terapêutico da reconstrução de uma cena, da relação de objeto, só
seria efetivo se a mãe ou o terapeuta "emprestassem" suas mentes como
palco para essas representações, em uma atitude que Ferenczi descreveu
como "sentir com" (Ferenczi, S. 1932).
2. MÉTODO

Esta será uma pesquisa de caráter eminentemente teórico, devendo ser


explicitados alguns aspectos pertinentes ao método:

 O objeto da pesquisa.
 A justificativa para uma pesquisa teórica em psicanálise.
 Procedimentos e pressupostos.
 Organização do trabalho e procedimentos específicos.

2. 1. Sobre o objeto da pesquisa.

O objeto é um conceito. Não se trata do trauma psíquico, mas do conceito de


trauma psíquico, uma abstração. Ora, se objeto de estudo fosse o trauma e não o
conceito de trauma, toda a pesquisa seria diferente: as fontes, os procedimentos, as
hipóteses, os instrumentos... Os fatos responderiam de outra forma. A descrição
inicial de trauma poderia se revelar inadequada, a teoria explicativa, infundada, os
procedimentos poderiam ser revistos em função das dificuldades empíricas, enfim, os
fatos seriam régios.
O que pensar de conceitos? Por que não buscar a realidade, sem tantas
intermediações, como são as teorias? Se o objeto é uma representação da realidade e
não a realidade em si, o que se pode esperar como produção de conhecimento sobre o
objeto?

Não existe na realidade algo que seja o trauma psíquico. Esta noção como as
outras são construídas como uma forma de, por meio de um conjunto abstrato de
elementos, tornar possível, pelo pensamento, articular, compreender, para poder
controlar parcelas da realidade, criar condições de comunicação. Denominar trauma
um conjunto de elementos que se conjugam em determinadas relações não seria
possível na Idade Média, por exemplo. O que seria psíquico? O que seria afeto? O
que seria a noção complexa de sujeito? O que seria neurose? Isto significa que
anteriormente as pessoas não sofreriam traumas psíquicos? O conceito de trauma não
criou um fato, mas distinguiu-o como uma unidade de significado, como um
fenômeno, e estabeleceu relações com outros fenômenos de um contexto mais amplo
como o é uma teoria.

2. 2. Sobre a justificativa para uma pesquisa teórica em psicanálise.

Para quem tem uma formação clínica, é difícil manter-se distanciado do


questionamento da relação entre o conceito e o fenômeno, entre teoria e prática.
Como profissional, como psicoterapeuta, há uma preocupação com o paciente, com o
ser traumatizado. Esse questionamento parece fazer parte da história do
desenvolvimento da psicanálise, que vem conjugando conceito e fenômeno, teoria e
prática. A própria palavra psicanálise carrega um triplo sentido: uma teoria, uma
forma de tratamento psíquico, um método de investigação do inconsciente.

Se foi a resistência aos métodos terapêuticos o que funcionou como uma


alavanca para desenvolvimentos teóricos e técnicos na psicanálise, demonstra-se que
a teoria não foi se construindo só a partir das reflexões de seus pioneiros. A teoria foi
se constituindo a partir da práxis. Qual seria a função da teoria nessa relação com a
prática?

Em primeiro lugar, o exercício da psicanálise sem a teoria, resultaria


impossível. Não se trata de, como esclarece Renato Mezan (1993), uma aplicação da
teoria no tratamento, mas que sem um referencial metapsicológico a própria escuta
psicanalítica ficaria comprometida:

(...) um analista completamente virgem de qualquer contato com a

teoria simplesmente não escutaria nada capaz de possibilitar

intervenções eficazes. Na situação analítica, a teoria funciona como a


estrela polar para o navegante: fornece coordenadas para o percurso,

permite alguma idéia do rumo a tomar, mas não é o alvo que se quer

atingir; Colombo não queria chegar à Ursa Menor, mas às Índias - e,

como muitas vezes acontece na análise, chegou à América.14

A prática da psicanálise descuidada da teoria põe em risco a sistematização


do conhecimento, sua transmissão e seu efeito cumulativo. Pode gerar primorosos
artistas, sem constituir uma linhagem. O trabalho que visa compreender e explicar a
experiência analítica enquanto um processo ou um conjunto de mecanismos, e que já
não tem mais por interlocutor o paciente, é uma outra função da teoria: “Neste
momento, a teoria tem por função vincular a singularidade do experimentado à
universalidade dos conceitos, e no caso da psicanálise isto é realizado através da
noção de mecanismos psíquicos”.15

Há uma outra possibilidade sugerida por Mezan que é “... o estudo das teorias
por si mesmas, como conjuntos de hipóteses, deduções e elaborações sobre certos
fenômenos psíquicos que cada uma delas tome como objeto de reflexão”.16

Se os objetos de estudo deste trabalho são conceitos teóricos, aparentemente


enquadra-se na situação acima descrita: um estudo da teoria por si mesma, como os
conceitos se hierarquizam, quais são as hipóteses, como são demonstradas. Poderia
ser feita uma analogia com a procura de identificação das regras que regem a teoria,
como se fosse uma função em que se pudesse discernir que se trata, por exemplo, de
uma progressão geométrica: dados dois elementos em uma seqüência, o
imediatamente posterior na série será sempre multiplicado pela razão x.. Porém essa
investigação desconsidera se o que está sendo produzido é verdadeiro ou não. A
ciência se preocupa com a verdade. Será que a psicanálise também? Ser verdadeiro é
corresponder àquilo que se representa? A verdade por correspondência é uma das
teorias da verdade e não parece ser a mais apropriada para a validação de conceitos
psicanalíticos. A psicanálise nos ensina que não fazemos um retrato fiel daquilo com

14
R. Mezan. A sombra de Don Juan e outros ensaios. p. 92.
15
Idem, loc. cit.
16
Idem, ibidem, p. 94.
que nos relacionamos, seja algo de nosso mundo interior ou exterior, e que o desejo e
a angústia interferem na nossa apreensão da realidade. Poderíamos até afirmar que
não haveria a possibilidade de representação não fosse a ação do desejo e da
angústia, da mesma forma que não haveria possibilidade de relação não fosse a
transferência.

Discutir sobre o conceito de trauma em que nos informa sobre a verdade?


Corresponderia o conceito de trauma ao fenômeno que descreve? Essas questões
referem-se à relação entre o conceito e o fenômeno, em última instância entre teorias
e os fenômenos que pretendem explicar. Há aqui dois caminhos que se entrecruzam:
um diz respeito à correspondência entre o conceito e o fenômeno, outro, aos modelos
explicativos. Seria o trauma apenas um conceito descritivo ou também explicativo?

Descrever um fenômeno, oferecer dados de observação minuciosos não nos


informa sobre o significado do fenômeno, isto só é possível a partir de uma ação
mental que é a interpretação. Observamos, interpretamos, explicamos. Não toleramos
o caos. Nossas teorias são tentativas de ordenar o mundo, de criar um cosmos, não
por um impulso sobrenatural, mas por uma tendência a criar agrupamentos de acordo
com características específicas. A criança organiza o mundo de acordo com suas
experiências de prazer-desprazer, ou de prazer-bom-amado, desprazer-mau-odiado.
É, simultaneamente uma forma de agrupar e de separar, discriminar. Para que? Para
conhecer e para controlar, para reencontrar o prazer e para evitar o trauma.

A construção do conhecimento científico é um tipo de formação de


compromisso que visa dar um peso maior à realidade externa, ou àquela parte do
conteúdo que não foi produzido por nossas alucinações e nem obedece aos nossos
delírios, e que para ser mantido não exige a negação de nossas percepções, nem de
nossas emoções, nem de partes de nós mesmos.

Freud e Ferenczi não nos brindaram apenas com descrições de fatos, de


observações, mas dotaram de significado essas observações, elaboraram uma teoria
que explicava aquilo que observavam e vivenciavam, construíram uma
metapsicologia. A teoria possibilitou intuir fatos que até então não eram concebíveis.
As experiências acumuladas criaram condições de reinterpretar os fatos, elaborando
assim novos conceitos e assim sucessivamente, num movimento em espiral. As
construções teóricas de Freud (e Ferenczi) não brotaram de sua mente apenas em
função de sua experiência com seus pacientes, como se formassem pares isolados do
resto da humanidade. Saber o que as experiências emocionais significam, interpretar
os fatos, deduzir formulações gerais, essa tarefa árdua, é em um sentido restrito,
como um saber que é fruto de uma produção de conhecimento científico. Um saber
que é sempre uma aproximação, que é uma quase verdade, que nunca se constituirá
como uma verdade de correspondência porque quando se trata de fenômenos
humanos. Quando o objeto de conhecimento é a psique, o produto do conhecimento
será sempre um objeto transicional entre o sujeito do conhecimento e o seu objeto.

A psicanálise, esse obscuro objeto multifacetado, deixa de ser tão


inapreensível na medida em que é pensado como um objeto transicional, como o
representante de um paradoxo que não pode ser resolvido porque lhe retiraria a
função de ponte entre mundo interno e mundo externo, entre eu e o outro
fundamentalmente o lugar da relação, e não das coisas-em-si. Qual a relação entre o
conceito de trauma e o trauma, aquela experiência que urge por um registro de
sentido? O conceito é a ponte, é o que nos permite pensar sobre, re-conhecer o que
concerne ao nosso mundo interno, é o que nos permite comunicar uma forma de
ordenação dos fenômenos que realizamos como as relações entre os conceitos, das
teorias, das leis e princípios gerais. Os conceitos são constituídos de palavras que ,
como objetos de transferência, carregam um afeto, nomeiam seres e experiências,
permitindo-nos interpretar partes de nossa experiência, para poder transformá-las,
elaborá-las. Por sua constituição, por ser um pensamento fruto do processo
secundário, por ser expresso em palavras, é uma linguagem que nos transcende
enquanto indivíduos e nos inclui em um campo social. Dessa maneira, os conceitos
funcionam também como ponte entre as pessoas, possibilitando a transmissão de
conhecimento e sendo veículos para introjeção. Os conceitos são tipos de pontes que
tentamos construir da forma mais segura que somos capazes, como um conhecimento
científico, formando leis, hipóteses e teorias.

2. 3. Procedimentos e pressupostos.

Qual a matéria-prima desta pesquisa? São textos, produções de duas pessoas.


Criações que foram entregues ao mundo, como bebês que vingaram. Como bebês,
não são iguais a seus pais, não são sonhos que se sonham, e a ninguém se revela.
Fica-se diante de bebês sábios - tomando emprestada uma expressão de Ferenczi -
bebês que tentam dar conta de abismos e da imensidão, tentativas de estabelecer um
cosmos. Como dialogar com eles?

Não se trata de psicanalisar os textos. Estes não fazem associações-livres e


não reagem às possíveis interpretações, não resistem e não têm insights. Estão ali,
disponíveis, sempre iguais, e ao mesmo tempo sempre tão novos. Há uma invariância
que são as palavras, as frases, os períodos, um fundo estável. O que faz com que esse
material aparentemente sempre o mesmo, algo que É, possa ao mesmo tempo se
transformar, ser novo, mudar? Um deciframento inusitado de um segredo nunca
dantes percebido, escondido nas minúcias de um capítulo não muito visitado? Ou,
seria a forma de organizar a leitura, os cortes? Seria a pergunta que é dirigida aos
textos? Ou ainda os preconceitos e pressupostos do leitor? A impureza da leitura
macularia a pureza essencial do texto, nessa relação com o leitor, ou a combinação
com outros referenciais traria a possibilidade de gerar o novo?

Não há comunhão com a idéia de que um texto seja um sistema fechado em si


mesmo, já definido a priori e nem que o trabalho de interpretação a ser feito seja o
de desvendar sua essência. Figueiredo (1999) analisa diferentes concepções sobre a
interpretação e a leitura de textos, no capítulo de seu livro "Palavras cruzadas entre
Freud e Ferenczi", onde discute precisamente a metodologia. As considerações a
seguir têm como base as idéias expressas nesse capítulo.

Figueiredo demonstra que a concepção clássica de que interpretar é desvendar


o sentido do texto, é baseada em pressupostos metafísicos: o sentido é transcendente
ao texto, e a unidade de sentido prevalece sobre a multiplicidade. Sobre esses
pressupostos: “... supõe-se que o que é inteligível é idealmente inequívoco e as
ambigüidades e polissemias são acidentes e defeito a serem evitados por quem
escreve e por quem lê”.17(Op. Cit. p. 10)

Esse pressuposto metafísico traz uma incompatibilidade com o pensamento


psicanalítico, como se o ato de interpretar e o ato de escrever absolvessem um e
outro, leitor e autor, do próprio inconsciente. Como ler um texto da psicanálise,
abstraindo que a sua produção pode trazer semelhanças com a elaboração secundária
17
L. C. Figueiredo. Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. p. 10.
de um sonho, que visa, em nome da censura, eliminar os equívocos, as lacunas, a
aproximação de um outro sentido possível, aquele que é da ordem do desejo? O
idealmente inequívoco seria uma igualdade entre manifesto e latente ou, se usar o
modelo da segunda tópica, ausência de tensão entre id, ego e superego. A psicanálise
é um campo de conhecimento "atravessado de lado a lado pelo seu objeto- o
inconsciente- mediante sua personificação no sujeito que pensa e escreve"18

Continuando com a análise de Figueiredo:

... supõe-se que a unidade ideal (a unidade da intenção autoral e/ou a

unidade do referente) seja a condição da possibilidade das entidades

singulares e compostas dotadas de sentido: só tem sentido o que um

autor produziu querendo dizer algo que estava sendo por ele

visado.(Figueiredo, 1999, p. 10).

Uma construção de sentido que seja produto de um diálogo fica excluída,


assim, por essa concepção. Seria equivalente a dizer que, em uma situação analítica,
o analista iria desvendar a intencionalidade inconsciente, que está presente, só que
oculta, e não que a própria relação analítica fosse favorecendo construir um sentido
para experiências que sequer haviam sido antes nomeadas. Por outro lado, essa
intencionalidade, esse querer dizer algo, mesmo que seja uma "intencionalidade
inconsciente", enfatiza o sentido e não a comunicação.

Um texto inequívoco, uniforme e que forma uma unidade, parece mesmo a


descrição de um objeto ideal. Um objeto ideal só poderia ser produzido por um ego
ideal, igualmente coeso e formando uma unidade. Essa parece ser uma ilusão
narcísica.

Se uma pesquisa teórica não é uma psicanálise de seus autores, algo do


método psicanalítico deve ser levado em conta. Os textos são representações.
Podemos nos sentir convidados a re-encontrar o conhecido, mascarar o que nos

18
Idem, ibidem. , p. 118.
assombra e saboreá-lo como uma fantasia optativa, ou suportar o equívoco, as
imperfeições, as brechas, e não mascarar o que não se ajusta às nossas expectativas.
Há algo na leitura de textos psicanalíticos que nos obriga a tolerar o fato das teorias
não funcionarem sempre como um sonho submetido à elaboração secundária. As
teorias são, em última instância, ficções. Talvez isso nos cause horror. Mas, ao
mesmo tempo, as teorias podem nos colocar face a face com algo negado na
realidade e aí estará o inesperado, o nunca antes pensado. Por que quando lemos
Freud temos a impressão de que há sempre algo novo com que nunca tínhamos nos
deparado? Mas há outras brechas, a que a leitura analítica revela. Ali onde algo
falhou e emergiu algo como que advindo de uma intencionalidade de um outro
dentro de cada um de nós. Esse outro de nós mesmos, o estranho que nos habita,
deixa suas pegadas nas lacunas, nas falhas, nas incongruências, nos "acidentes e
defeitos". De uma forma clara, Figueiredo discute o lugar do texto para o leitor como
um não-eu, um Outro e é ao mesmo tempo “um outro para si mesmo”:

O problema do encontro da e com a alteridade do texto só pode ser


enfrentado, como veremos adiante, quando se assumir que o texto é
um outro para si mesmo e que nem agora, nem jamais seja como
algo submetido a um exame empírico nem em um plano ideal e
transcendente, ele poderá ser reduzido a uma homogeneidade de
sentido, resistindo assim a uma compreensão globalizante.19 (grifo
do autor)

Assim, essa alteridade do texto evoca uma relação. Esse contato com o outro,
é um contato com o novo, com o insuspeitado, com o estranho, gerando ansiedade e
acionando mecanismos de defesa. Pode-se camuflar as diferenças, mascará-las,
exagerá-las, negá-las, ou, permitir alguma transformação no esquema referencial de
quem lê. Trata-se, em qualquer circunstância de estabelecer uma relação de objeto
com o texto, ou um vínculo, no sentido que Pichon-Rivière (1998) dá ao termo,
englobando a relação de objeto como estrutura interna do vínculo e os aspectos
pertinentes ao campo grupal, como papéis, status. Esse campo grupal define funções
e outorga significados, mesmo que estes não sejam explicitados. Os referenciais do
19
L. C. Figueiredo. Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. p. 17.
campo grupal extrapolam o indivíduo e sua história pessoal, mas interferem e se
entrelaçam com o que se constitui como uma produção individual. Assim, a pesquisa
em questão realiza-se em um determinado contexto, em uma Instituição específica,
sob a influência de uma política nacional educacional específica, em um dado
momento da evolução das idéias, da psicanálise.....

Em que pensar em um texto, um conjunto de textos, ou uma obra, como


objeto interno, facilita a compreensão sobre os procedimentos em uma pesquisa
teórica? Essas relações não estariam mais propriamente dedicadas à análise pessoal
do pesquisador? Não se trata de explicitar quais os processos psíquicos que estão em
ação quando alguém lê ou interpreta um texto, mas enfatizar a idéia de que negar a
presença de tais fatores como se fosse possível atuar como se não existisse um
inconsciente, entra em confronto com um pressuposto que já foi, inclusive indicado:
o inconsciente perpassa o autor do texto, bem como seu leitor, então não há um
sentido inequívoco. Assim, a relação que pensamos estabelecer com o texto é de
mutualidade, se há brechas elas podem provocar o desejo de negá-las ou um trabalho
para reconhecê-las e superá-las, e se não for possível aspirar a tanto, suportar a
ausência de respostas.

Se for possível pensar que se estabelece uma relação de objeto com o texto,
este será elaborado, compreendido, ampliado, em função do estilo de relação que se
estabelece e a forma como o objeto está constituído: não há como conhecer o objeto
externo em si mesmo, ou o texto em si mesmo.

Se no processo de interpretar e de ler não é possível desfazer-se dos próprios


referenciais internos, dos próprios preconceitos ou da própria subjetividade, como
lidar com ela? Essa questão parece semelhante ao manejo técnico da
contratransferência. No início da psicanálise a contratransferência foi tida como
elemento perturbador da análise, algo que deveria ser evitado, combatido, só
posteriormente passou a ser considerada como instrumento de trabalho, mesmo
havendo autores que não a considerem dessa forma. A semelhança com a relação
com o texto refere-se ao espaço e a função da subjetividade no conhecimento sobre
um objeto, seja ele um paciente ou um texto. Figueiredo refere-se a um „bom-
mocismo‟ metodológico que é uma vertente que critica:
A solução não é boa em termos operacionais, pois parece depender de

um certo „bom-mocismo‟ metodológico que levaria o leitor a

renunciar espontaneamente a seus preconceitos em favor de uma

disponibilidade para deixar-se perturbar pela „ novidade‟ do texto.20

Como em uma situação analítica o trabalho sobre um texto não tem por meta
uma transformação interna do analista, mas a operacionalização de interpretações, ou
seja, algo que possa ser oferecido a um outro, como uma forma de conhecimento que
foi metabolizado, transformado, digerido pelo analista, algo que é ao mesmo tempo
do paciente e do analista, mas que é dirigido claramente a um interlocutor que é um
outro e para este outro. Pode ocorrer que o paciente traga para o analista algo que
provoque um efeito desorganizador e que para compreendê-lo seja necessária uma
mudança de referencial, uma transformação interna do analista. Essa transformação
pode ser parte do processo de conhecimento ou da experiência de estar se
relacionando com aquele paciente, mas não é o resultado a ser oferecido para o
paciente. O que se oferece ao paciente são interpretações e uma forma de estar junto
que é resultante das transformações do par paciente-terapeuta. Não importa no
preciso contexto de uma pesquisa teórica a elaboração interna do pesquisador, seu
processos psíquicos, mas o seu resultado operativo: como é o seu trabalho de
interpretação. O texto, como um objeto interno, é como uma sombra que comprova
algo tridimensional, um corpo que se manifesta à luz da consciência. Pode-se preferir
ler a "sombra", mas isto dependerá dos objetivos do leitor, não o é o da pesquisa. Se,
na situação analítica o outro para quem se fala é o paciente, no presente contexto, é o
leitor. O que resulta da relação da autora com o texto como objeto interno e externo é
oferecido a um terceiro, o leitor deste trabalho. A existência do leitor que representa
os muitos outros, impõe uma ordem específica: é preciso considerar como
compartilhar e como ser compreensível, articular aquilo que nos põe em contato com
o que é individual, já que há um sujeito do conhecimento, e o que é a expressão, a
manifestação dos efeitos de um grupo e de um patrimônio cultural.

20
L. C. Figueiredo. Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. p.17.
Temos então textos, com os quais estabelecemos vínculos, aos quais
respondemos contratransferencialmente, o que impede uma captação totalmente
objetiva do que seja o objeto de estudo; um objeto que também foi produzido por
uma mente que também não pode ser dotada de plena objetividade e que não pode
escapar de si mesma. O produto dessas mentes não é um objeto ideal, portanto
apresenta cicatrizes, fendas, lacunas "impurezas", irregularidades e "fraturas".... Qual
seria, então a proposta de leitura?

Ficar à mercê do texto. Introjetá-lo e identificar-se com ele para


posteriormente transformá-lo. Seria, em um primeiro momento um mimetismo. Há,
portanto a proposta de uma leitura sistemática que vai em busca do intencional do
texto, de sua construção como um sistema coerente. Didaticamente, a leitura
sistemática seria o primeiro momento ou movimento em direção aos textos, o passo
seguinte seria não a leitura desconstrutiva, como propõe Figueiredo, mas uma forma
de composição. A leitura desconstrutiva possibilita uma amplificação, uma
contextualização e uma forma de trabalhar nas rupturas, ela é crítica e disjuntiva. O
propósito deste trabalho é acercar-se de uma possível conexão e a questão proposta
favorece esta atitude: quais os efeitos do trauma no aparelho psíquico.

A etapa de minetismo é uma forma de fidelidade ao texto, fidelidade


entendida como a descreve Figueiredo (1999) em “Filosofia e psicanálise. Usos e
abusos” : “... capacidade de manter-se próximo e acompanhar detidamente a marcha
de uma demonstração..." (Op. cit, p. 126).

A etapa posterior constitui-se como um diálogo com os textos. Um diálogo


que em um sentido lato pode ser um método ultraquista. O ultraquismo foi o método
descrito por Ferenczi em “Thalassa – Ensaio sobre a teoria da genitalidade” (1924).
É uma aproximação de diferentes campos de conhecimento como a biologia e a
psicanálise, e que não é adequado para descrever processos, mas o é para evidenciar
significados. Para tanto, são construídas analogias em domínios ultra, ou seja, “para
além de”. 21 Esse método, Figueiredo qualifica como um “abuso fecundante”22 muito
utilizado também por Freud. Mesmo correndo o risco de distender demasiadamente o
termo, poderíamos denominar de ultraquista o método que vai buscar em outros

21
A. G. Cunha. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
22
L. C. Figueiredo. Filosofia e Psicanálise. Usos e abusos. p. 124.
textos de outros períodos um ultra temporal. Questões são feitas e podemos buscar o
que originalmente não estava ali. Perguntar ao “Projeto de uma psicologia
científica” em que pode nos auxiliar para a compreensão do trauma é uma ação
dessa ordem. Buscar em Problema econômico do masoquismo algo que esclareça
sobre as Q‟η do Projeto, também. Quando perguntamos à dor e esperamos que
responda como trauma, idem. Mas, especialmente quando solicitamos que o textos
de Freud se expressem com as idéias de Ferenczi e vice-versa. Seria um
ultraquismo? Ou seria uma violência e um abuso? Consideramos que possa se
constituir como “abuso fecundante”. Figueiredo menciona o abuso fecundante
quando há uma transdiciplinaridade, o que não é o nosso caso. Há sim uma „trans-
textualidade‟, uma transgressão de limites tanto temporais, por exemplo,
relacionando as idéias de Freud de distintas épocas em torno do problema econômico
do trauma, como entre os textos de Freud e de Ferenczi.

Qual a resultante? Creio que enxertos, construções de homólogos, de


„metaconceitos‟. Definimos um metaconceito como um conceito construído por
intermediação, por mistura ou por sucessão.23 Essa etapa seria descrita como uma
mutualidade da autora com os textos. Mutualidade como referência às experiências
clínicas de análise mútua, onde um intenso intercâmbio se estabelecia entre o
analista e o paciente: de papéis, de informações e de conteúdos psíquicos. A
mutualidade se refere à possibilidade de ser transformado pelo texto introjetado e
transformá-lo.

Finalizando este tópico, convém complementar a concepção de leitura que


definirá este projeto. Renato Mezan contrapõe à idéia de leitura como deciframento,
a de leitura como trabalho, de forma a enfatizar não os procedimentos com relação ao
texto, mas a relação com o objeto texto, conforme descrito abaixo:

A leitura não é descerramento, mas trabalho, ou seja, negação determinada


do dado imediato e construção de um novo objeto, que mantém com a
„matéria-prima‟ relações muito complexas.A obra é feita para ser lida por
alguém que não é o seu autor, e comporta, não uma pluralidade de

23
Segundo o Dicionário Etimológico da língua portuguesa, meta é um prefixo do grego meta, que “...
expressa as idéias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão...”.
significados que o deciframento viria a desvendar, mas uma potencialidade
de suscitar novas significações mediante o trabalho da leitura, e que só vêm
a ser se esse trabalho for realizado.A história de uma obra é a história das
leituras sucessivas que ela suscita, as quais em primeiro lugar só podem ser
efetuadas porque, devido a circunstâncias que lhe são exteriores, ela se
tornou interessante ou enigmática, e em segundo lugar lhe propõem
questões novas e a fazem dar respostas a estas questões, movimento pelo
qual surge uma faceta dela capaz de significar algo para o leitor e para seus
contemporâneos. Esse movimento não equivale, porém a retirar mais um
véu na direção da transparência absoluta; esta faceta resulta da negação do
texto imediato por meio de um trabalho - e não de uma simples mudança de
ângulo de visão.24

Há algo de antropofágico nessa proposta de leitura, ela destrói o original, o


texto é usado como um alimento, ou ainda é uma relação fecunda com o texto, onde
o produto final, esse bebê oferecido ao mundo não é mais posse de ninguém e é "um
outro de si mesmo" (Figueiredo, 1999) É preferível essa relação do que manter um
texto como uma obra de arte para ser visitada em museus, distanciada do público,
catalogada, morta ... As obras devem ser cuidadas, cultivadas, preservadas e, ao
mesmo tempo, engolidas, digeridas, transformadas, mantidas vivas.

2. 4. Plano de trabalho

2. 4. 1. Freud e Ferenczi: uma polifonia?

Os guias, ou se preferirmos, a espinha dorsal deste estudo será em Freud o


“Projeto para uma Psicologia Científica” (1950[1895]), complementado por “Além
do Princípio do Prazer” (1920) e em Ferenczi o “Diário Clínico” (1985[1932]).

24
R. Mezan. A vingança da esfinge. Ensaios de psicanálise. p. 68-69.
Freud em Projeto para uma Psicologia Científica, que de agora em diante
chamarei sinteticamente de Projeto, buscava descrever os processos mentais como
fenômenos naturais, orgânicos. O que à primeira vista aparece como um modelo
calcado em um substrato orgânico, como uma ficção sobre o sistema nervoso, revela
uma surpresa, dele emerge a mente. Uma mente que vai além dos neurônios e de suas
funções diferenciadas: as trocas entre os sistemas, o registro mnêmico, os afetos, o
prazer, a dor...
Pode parecer anacrônico resgatar o Projeto nos dias de hoje, diante de tantos
avanços das neurociências e da psicanálise. O próprio Freud renegou o Projeto que é
quase condenado ao ostracismo, não fosse o cuidado de Maria Bonaparte que o havia
adquirido junto com parte da correspondência entre Freud e Fliess (Garcia-Roza,
1991). Se o intuito fosse compreender as relações entre cérebro e mente, este retorno
teria um caráter arqueológico, mas o objetivo é identificar uma certa concepção de
funcionamento mental que enfatiza o aspecto econômico e que se mantém no
pensamento de Freud, emergindo, revigorada pela experiência da clínica
psicanalítica, 25 anos depois em Além do Princípio do prazer. Há uma continuidade
entre esses dois textos: ambos são metapsicológicos e tratam de problemas muito
semelhantes, incluindo o trauma. É possível estabelecer um diálogo entre eles para
identificar a construção do conceito de trauma, suas particulares dificuldades e
aspectos obscuros, bem como a inserção do conceito no quadro mais específico dos
efeitos na representação e, mais geral, da construção do mundo interno e externo.
Assim, a primeira parte deste trabalho terá o Projeto como fundamento
básico, complementado por “Além do Princípio do Prazer”. Essa complementação
não implica necessariamente em ausência de incongruências entre os textos. Ambos
dão particular importância para princípios gerais que norteiam o funcionamento
mental, são especulações – “Além do Princípio do Prazer” assumidamente o é -, e
são modelos que se propõem descrever um padrão de funcionamento mental e tanto
em um quanto no outro, enfatizam o aspecto econômico.
A opção de destacar textos metapsicológicos e voltados para a administração
de quantidades visa exacerbar as diferenças de concepção do trauma entre Freud e
Ferenczi. Não traduzem a plenitude do pensamento nem de um, nem de outro, sobre
o tema e é preciso que isto seja dito com todas as palavras. O trabalho teórico destes
dois autores é complexo demais para que possam ser colocados lado a lado para uma
comparação simples, como relações biunívocas. É de tal forma questionável essa
forma de conduzir a relação entre as produções desses autores que teríamos que
sonegar a importância de suas mútuas influências. Há muito de Freud em Ferenczi,
mas também há muito de Ferenczi em Freud. Essa opção constitui bem mais uma
forma de desenhá-los em preto e branco, para fixar uma primeira imagem de
contraste, para que posteriormente se possa pintar um quadro, se não mais fiel, mais
complexo e menos polarizado. Uma forma de garantir isto é partir do econômico em
Freud, aproximarmo-nos do fenomenológico e do clínico em Ferenczi e retornar a
Freud, já em outro momento, tentando resgatar as relações, as fantasias em
“Inibições, sintoma e angústia” (1926 / 1925) e preocupado com o cerne da verdade
nas fantasias e nos mitos, em “Moisés e o Monoteísmo”. (1939/1934-1938). Este
último texto, entretanto, não será foco de nossa análise. Há um trabalho bastante
interessante, já citado25, que traça as relações entre as idéias de Ferenczi e as dessa
obra testamentária de Freud e que pode ser uma fonte de consulta.
Quanto a Ferenczi, será evidenciada sua contribuição mais original, qual seja,
a da importância das pessoas do mundo da criança enquanto objetos traumatizantes.
A principal fonte de pesquisa será o Diário Clínico, escrito em 1932, mas publicado
apenas em 1985, na França e os textos teóricos que lhe dão suporte, como “A
adaptação da família à criança” (1928), “A criança mal acolhida e a sua pulsão de
morte” (1929), “Confusão de línguas entre os adultos e a criança “ (1933).
A maneira de conduzir esse projeto será o de tentar compor através dos ecos
das vozes de Freud e de Ferenczi uma sinfonia que cante em várias modulações a
tragédia do trauma. Isto significa que não pretendo opor um ao outro, mas buscar em
cada uma deles um vislumbre de resposta daquilo que para o outro foi negado,
desconsiderado ou minimizado. Essa forma de expressar talvez dê a idéia de que eles
são complementares. Não afirmaria isso porque também é uma visão parcial. Não
vou me antecipar porque não posso prever o que resultará deste trabalho.
Assim, o plano de trabalho se compõe quatro etapas:
A) A metapsicologia do trauma: baseado no “Projeto de uma Psicologia
Científica” e em “Além do Princípio do Prazer”.
B) As relações traumatizantes: baseado nas anotações do “Diário Clínico” e
textos relacionados.

25
T. Bokanowski. Entre Freud e Ferenczi: le “trauma”.
C) Discussão: um desenvolvimento e uma conjugação das idéias de Freud e
Ferenczi apresentadas nos itens anteriores e acrescidas de outras para
compor um quadro de como se processa o trauma no aparelho psíquico.
D) Considerações finais.

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