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SÃ O PAULO
2023
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃ O PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA
SÃ O PAULO
2023
AGRADECIMENTOS
Aos médicos mais humanos do mundo, meus pais. Obrigada Lilian e Elesiário por me
mostrarem, mesmo que de forma inconsciente, a importância da escuta do sujeito e que sua
história vai muito além da doença. Sou muito grata por todos os diálogos e trocas que temos
frequentemente sobre a vida e o futuro. Agradeço também a todo o apoio nessa jornada de
minha escolha pela psicologia.
Ao meu irmão Gabriel que, mesmo com muitos interesses diferentes dos meus,
compartilha comigo as vivências dessa vida.
À tia Elisa que em todos os momentos não mediu esforços para me auxiliar quando
precisei. Obrigada por ser essa pessoa aberta, compreensiva e ouvinte número 1 de MPB. Todo
esse carinho faz muita diferença na jornada.
À Lorena por me mostrar de maneira tão singela a beleza das coisas simples. Nossos
encontros são sempre cheios de criatividade e potência.
Aos meus avós bacalhoeiros Alzira, Amenita e Alexandre, que abriram mão de muitas
coisas para viver no Brasil. Agradeço muito por todo o cuidado e atenção dirigidos a mim e ao
Gabriel até os dias de hoje. Estar aqui hoje não seria possível sem o apoio de vocês.
Aos meus avós Valei e Ballini que deixaram inúmeros ricos ensinamentos. Obrigada
por mostrarem que a presença não está relacionada a algo material, mas sim a histórias e
narrativas que realizamos nesse mundo.
Ao meu primo querido José Henrique pela autenticidade de ser quem é. Conviver com
você abarca infinitos ensinamentos e poesia.
À Camila por todas as conversas e compartilhamento de vivências. Obrigada pelas
trocas em muitos momentos de medo e angústia.
À Cida e Luiz, que, mesmo distantes, sempre estão presentes em forma de apoio e
torcida nas minhas conquistas.
À Sophia e Nicole, minhas francesas/brasileiras preferidas, que me mostraram de
maneiras tão singulares a importância da fala e o reconhecimento acerca da própria história.
Obrigada por compartilharem comigo essa aventura que foi morar na França e por terem sido
parte da minha família durante esse período. Espero que vocês tenham a dimensão da
importância que apresentam na minha trajetória.
À Lara que esteve sempre comigo em momentos de felicidade e tristeza, de alegria e
choro. Sou muito grata pela nossa amizade de anos (parei de contar) e como você consegue
deixar tudo mais leve e engraçado (até as broncas).
À Thais, que, com seu jeito único de ser, me acompanhou em tantas transformações da
vida. Obrigada por todas as conversas, surtos e ideias malucas nessa trajetória que fazem toda
a diferença pra mim.
Ao Hassan, meu melhor amigo, por todas as risadas, fofocas e angústias compartilhadas
que abriram espaço para que eu pudesse me expressar.
À Eva, professora que me apresentou todo o universo da história e da posição crítica
acerca do nosso mundo. Não só isso, por meio de seu jeito brilhante de educar, me mostrou as
leituras feministas e a reflexão acerca do lugar da mulher.
Aos professores da graduação e ao espaço da PUC-SP que me proporcionaram um lugar
extremamente rico e crítico sobre a realidade e a prática psicológica.
Aos meus amigos da PUC-SP que de forma singular me ensinaram a cada dia uma nova
perspectiva acerca do que é ser psicólogo. Sou muito grata por todos nossos encontros e
diálogos que com certeza me auxiliaram muito nessa jornada pessoal e acadêmica. Amo muito
vocês.
Ao Plínio, orientador deste trabalho, por toda troca, escuta e paciência nesse processo.
À mon copain, Corentin. Merci d'être toi-même toujours de ta manière unique et
sincère. Toutes nos conversations, nos appels vidéo et nos rires ont rendu le processus de ce
travail beaucoup plus agréable. Merci d'avoir soutenu mes projets les plus fous, cela fait toute
la différence.
O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”
RESUMO
O ambiente familiar ocupa um papel central na vida do sujeito uma vez que é a partir desse
lugar que ele terá suas primeiras interações com o mundo, a entrada na linguagem, frustrações,
desejos que reverberam de diferentes maneiras durante toda a vida. Ademais, os primeiros
cuidadores são um dos principais responsáveis por ensinar às crianças regras e valores precisos
à sua socialização, exercendo uma grande influência sobre a saúde mental delas. Dentro desse
contexto, levando em consideração que a autonomia está ligada ao processo durante a vida do
sujeito referente à capacidade de se tornar emancipado em relação aos seus próprios
pensamentos, desejos e emoções, esse trabalho procurou compreender, qual a influência da
família contemporânea na formação de um sujeito independente. A fim de atingir esse
propósito foi realizada uma revisão bibliográfica de abordagem qualitativa sobre temáticas
referentes ao assunto. Em um primeiro momento foi feito uma apresentação e retomada
histórica acerca do conceito de família, considerando-o como instituição social. Depois, o
mesmo procedimento foi realizado sobre a autonomia, a partir da articulação de autores de
referência na área da psicologia, a fim de formar uma compreensão plural do conceito. Após
uma análise sobre os dois conceitos, foi estabelecida uma relação entre eles referente à
autoridade parental, aos estilos parentais, às dificuldades e outras questões familiares que
podem aparecer no processo de separação entre os cuidadores e a criança. Por fim, foi realizada
uma discussão visando pensar como as questões de raça, classe e gênero atravessam as histórias
das famílias nas realidades brasileiras. A partir da reflexão realizada, foi possível entender o
conceito de família como histórico, ou seja, que muda ao longo do tempo de acordo com as
transformações socioeconômicas e culturais, compreender quais são os fatores que auxiliam ou
dificultam a construção da autonomia do sujeito na sociedade contemporânea e a importância
de levar em consideração o contexto sócio-estrutural de desigualdades.
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 7
MÉTODO .......................................................................................................................... 12
1. SOBRE FAMÍLIA ........................................................................................................ 15
1.1 Família no contexto brasileiro .................................................................................... 19
1.2 Configurações familiares ........................................................................................... 21
2. AUTONOMIA .............................................................................................................. 24
2.1 A autonomia sob foco da psicologia .......................................................................... 25
3. AMBIENTE FAMILIAR ............................................................................................. 33
3.1 Parentalidade ............................................................................................................. 33
3.2 Estilos Parentais ......................................................................................................... 34
3.3 Dificuldades............................................................................................................... 37
3.4 Outras questões familiares – O não dito familiar e a Transgeracionalidade ................ 41
3.4.1 O não dito familiar ............................................................................................. 42
3.4.2 Transgeracionalidade ........................................................................................... 44
3.5 Para todas as famílias? – Como as opressões atuam sobre a realidade ........................ 45
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 56
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 57
7
INTRODUÇÃO
Em uma sociedade que frequentemente aponta a família como uma entidade intocável
e idealizada, com discursos ''em defesa da família'' ou ''deus, pátria e família'', é preciso
questionar quais são os princípios para tal concepção. Baseada em um discurso moralista e
religioso, grande parte da sociedade neoliberal brasileira está engajada na defesa dos valores
tradicionais cristãos que sustentam a família e as relações afetivas. A direita brasileira, por
exemplo, monopoliza qualquer discussão sobre a família e cria uma abstração como se somente
eles tivessem acesso ao que chamam da ''verdadeira família brasileira''. No entanto, o que é
curioso, como aponta Duvivier (2018, p.7), é que: ''Ninguém no Brasil nunca fez merda em
nome do Capeta, da Maconha ou da Sacanagem. Toda vez que mataram, escravizaram e
torturaram no Brasil foi em nome de Deus, da Pátria e da Família''. Assim, os conservadores se
apropriam do discurso em defesa da família porque sabem que esse discurso reverbera na
sociedade brasileira e que, independentemente do espectro político, é um conceito muito
importante para os brasileiros (GREG NEWS, 2020). No país, esse ideal de família perfeita
como aquela que deve ser protegida a todo custo ainda impera muito nas narrativas dos sujeitos
e sempre há uma tentativa dos movimentos de direita em reforçar esse ideal imaginário da
''família tradicional brasileira'' composta por um casal heterossexual com filhos biológicos. No
entanto, essa concepção acerca do ambiente familiar não representa a realidade no contexto
brasileiro e exclui outras possibilidades de configurações. Segundo a psicanalista Vera
Iaconelli (PROVOCA, 2022), esse ideal é um mito, já que se baseia em uma moral
conservadora e se configura como aquela família que se fecha, não considera outras formas,
podendo ser comparada a uma milícia.
19881, a família foi compreendida de maneira ampliada, como o núcleo no qual o ser humano
é capaz de desenvolver suas capacidades individuais, levando em conta os direitos humanos.
Um exemplo dessas mudanças referente ao reconhecimento de outros tipos de família é o artigo
4º que afirma: ''a família monoparental nos seguintes termos: entende-se, também, como
entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes''. Outro
artigo, o 7º, mostra que é função do Estado proteger a família: fundado nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre
decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas. É evidente que a Constituição não abarca toda a complexidade referente ao conceito
de família, mas fica claro que houve importantes transformações nesse aspecto.
Essas mudanças em relação ao que é considerado família mostra como, muito diferente
do disseminado na sociedade contemporânea, ela não se configura como um fato natural.
Durante muito tempo considerada como uma entidade orgânica, ou uma representação de uma
vontade divina na terra, de modo de ser natural e eterno, a família foi vista como um modelo
ideal a ser seguido. No entanto, segundo a psicóloga, psicanalista e pesquisadora da USP
Belinda Mandelbaum, estudos de antropologia realizados no final do século XIX evidenciaram
que a família é uma instituição social, uma vez que sua construção é baseada numa dimensão
sócio-histórica que vai sofrendo mudanças ao longo do tempo (CASA DO SABER, 2019).
Esse universo familiar é abordado em diferentes áreas do conhecimento, tais como a
Antropologia, o Direito, a Sociologia, a Filosofia e a Psicologia, já que ele não apresenta
necessariamente a reprodução biológica como função única, e contempla um papel econômico
e político. Partindo dessa perspectiva de que a família deva ser estudada a partir de suas
estruturas e funções, é possível compreendê-la como instituição social, dado que sua natureza
é influenciada pelo contexto histórico. Segundo Belinda Mandelbaum, isso significa que ela se
adapta ao longo do tempo, refletindo as mudanças sociais, econômicas e demográficas, e
assume características distintas em diversas sociedades ao redor do globo (CASA DO SABER,
2019).
1
Constituição atualmente em vigor.
9
Se por um lado é possível afirmar que cada vez mais a família vem sendo questionada
quanto à sua predominância nas relações entre sujeito e mundo, já que existem outras
instituições que apresentam uma grande influência sobre a história do indivíduo, tais como o
governo, a religião, o sistema de saúde, faz-se importante destacar que:
Por mais que outras instituições exerçam influência sobre o indivíduo, esse trecho
mostra como a família apresenta um papel fundamental na formação dele. Isso porque é a partir
desse ambiente que o sujeito terá suas primeiras interações com o mundo, a entrada na
linguagem, frustrações e desejos que estão ligados a diferentes maneiras de lidar com essas
questões. Nesse sentido, faz-se necessário identificar a importância das vivências ocorridas no
interior da instituição familiar, uma vez que os cuidadores da família são um dos principais
responsáveis por ensinar às crianças regras e valores necessários à sua socialização, exercendo
uma grande influência sobre a saúde mental delas (SILVA; PEREIRA, 2018).
basta apenas nascer em um grupo, mas faz-se necessário que o sujeito seja incluído como um
membro digno de cuidados que obterá a herança afetiva e social do grupo que pertence. Isso
leva à reflexão sobre as situações nas quais a família não se encontra disponível com os recém-
chegados ao grupo devido a diversos motivos que podem estar relacionados com a
indisposição, frieza ou dificuldade que os adultos apresentam frente à receptividade desse ser
novo (PEREIRA; PERON, 2018). Esses aspectos mostram a capacidade ativa da criança de
perceber o que acontece ao seu redor, considerando-a como um ser social e produtor de cultura,
e não apenas influenciado pelo contexto cultural; um ser capaz de interagir, modificar e
ressignificar esse contexto.
Essa concepção da criança como um sujeito em desenvolvimento com sua própria vida
psíquica e emocional (DOLTO,1985) revela a importância de a reconhecer como um indivíduo
completo, com pensamentos, desejos e emoções próprias, mesmo que ainda não tenha
adquirido plenamente a capacidade de expressá-los verbalmente. A criança é um ser autônomo
e ativo, com uma vida interior complexa. Essa ideia acerca da infância e do que é ser criança
ocorreu a partir do século XVII, período no qual a infância passa a ser vista como uma etapa
essencial do ciclo vital humano, com suas características próprias. No passado, a infância era
frequentemente enxergada como um período de preparação para a vida adulta, e as crianças
eram tratadas como miniadultos, sem levar em consideração suas necessidades específicas de
desenvolvimento (ARIÈS, 2006). Crianças trabalhando em fábricas durante a revolução
industrial e mortalidade infantil alta eram cenas frequentes. No entanto, no final do século XIX
e início do século XX, o reconhecimento da infância como uma fase distinta da vida com
características e necessidades únicas está ganhando corpo. A partir de então, vai sendo
consolidada a concepção de infância que ainda hoje vigora, na qual as crianças são vistas como
seres inocentes e frágeis que precisam ser protegidos e educados (ARIÈS, 2006).
MÉTODO
Visando uma formação que procure desenvolver um sujeito autônomo, crítico e ativo,
capaz desenvolver uma ideia de responsabilidade e liberdade a partir da tomada de consciência
e de decisões, essa pesquisa tem como objetivo discutir qual papel o ambiente familiar exerce
sobre a construção da autonomia do sujeito. Com essa finalidade, o trabalho foi estruturado a
partir de uma pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa, sendo dividido em quatro partes.
A análise qualitativa deste material foi realizada tendo como base artigos, livros e recursos
midiáticos. O levantamento dos artigos foi realizado em cinco bases de dados, sendo essas a
Biblioteca Virtual em Saúde (utilizando a BVS-Psi e a PePsic), Scielo, Periódicos Capes,
Academia.edu e Google Acadêmico.
2
Buscou-se artigos e trabalhos publicados em periódicos brasileiros no período entre 2013-2023. Eventualmente,
em virtude da contextualização histórica dos temas trabalhados, buscou-se material mais antigo tendo como
critério sua relevância no campo da história e da formação da Psicologia brasileira.
3
A obra original foi publicada pela primeira vez em 1973.
13
de maneiras diferentes em suas obras a importância que os pais e cuidadores assumem frente à
criança, e mostram um ponto de vista afetivo, moral, social e cognitivo da autonomia,
enfatizando uma educação que visa a separação gradual entre cuidadores e sujeito, na qual o
indivíduo vai aos poucos se construindo e se transformando de maneira singular. Na realização
dessa segunda parte da pesquisa, foram buscados artigos a partir das palavras-chave
''autonomia'' + ''psicanálise'' + ''Paulo Freire'' + ''Jean Piaget'' nas fontes já citadas
anteriormente.
Por fim, a última parte desta pesquisa pretendeu abarcar de que maneira as opressões
de raça, classe e gênero atravessam a realidade de inúmeras famílias brasileiras. Essa
abordagem faz-se necessária na medida que, ao se realizar uma análise sem abordar esses
temas, incorre-se no lugar de um discurso universal que se aplique a todos os indivíduos, o que
é um equívoco. A fim de realizar essa análise foram utilizadas duas obras da coleção
“Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa negra brasileira Djamila Ribeiro. A primeira é
intitulado ''Lugar de fala'', da própria Djamila (RIBEIRO, 2019a), e o segundo ''Racismo
Estrutural'', do advogado e escritor negro Silvio Almeida (ALMEIDA, 2019). Além disso, foi
utilizado um artigo da antropóloga feminista argentina Rita Segato, intitulado ''O Édipo
brasileiro: a dupla negação de gênero e raça'' (SEGATO, 2006), juntamente com outras obras
que discutiam acerca da realidade brasileira.
1. SOBRE FAMÍLIA
Émile Durkheim
Nas últimas décadas, tem-se observado uma mudança na concepção de família, devido
a diversos eventos importantes do mundo contemporâneo, tais como as mudanças no papeis
das mulheres na sociedade, o advento da internet, o sistema político vigente, a ideologia
individualista da sociedade contemporânea, entre muitos outros fatores. Sem dúvida, é de supor
que a concepção de família também passou por reformulações simultaneamente a estas
mudanças referidas. Como a construção desse conceito se apresenta intrinsecamente nas
estruturas estatais e a família é compreendida como o berço da sociedade e a garantidora de
propagá-la de forma ordenada (GODOY et al., 2020), é preciso compreender quais foram as
transformações culturais, sociais e políticas que ocorreram no percurso da história a fim de
evidenciar o que é entendido como família atualmente e como ela se conduz em termos de
dinâmica e funcionamento.
A partir do século XVII, ocorre uma mudança gradual na percepção da infância, que
passa a ser vista como uma etapa importante no desenvolvimento humano (ARIÈ S, 2006),
como é evidenciado no trecho:
Então, é a partir do século XVII que se vai sendo consolidado a concepção de infância
que ainda hoje vigora, na qual as crianças são vistas como seres inocentes e frágeis, que
precisam ser protegidos e educados (ARIÈS, 2006). Faz-se importante assinalar também que a
consolidação do entendimento de infância como uma fase da vida humana que apresenta suas
peculiaridades apresentou um grande impacto no entendimento do papel da mulher como mãe
e, consequentemente, no próprio entendimento de feminilidade.
A consolidação da ideia de infância como etapa singular da vida humana se deve muito
às contribuições da psicologia como ciência, na medida que, a partir dos trabalhos de Wilhelm
Wundt na Alemanha, com o primeiro laboratório de Psicologia, o período da infância começa
a ganhar destaque como um momento peculiar do ciclo vital humano que merece especial
atenção, cerne para a formação do sujeito. Não é casualmente que muitos autores reconhecidos
da área da psicologia dão a esse período da vida uma importância fundamental, como Sigmund
Freud, Jean Piaget, Melanie Klein, John Bowlby, entre outros.
Assim, com esse entendimento, a criança passa a ser considerada um fator produtivo
social. Isso porque, a partir do desenvolvimento de uma política econômica colonial, foi criado
um novo aspecto na economia libidinal, devido a três características da sociedade
contemporânea. Primeiramente, a formação da família como uma entidade natural e fechada.
Dessa maneira, cria-se uma outra ideia da família moderna e a mulher como um ser
domesticado. Essa nova concepção surge, principalmente, devido a fatores econômicos, uma
vez que é do interesse do Estado promover uma economia na qual a família passa a
compreender a função de cuidadora e mãe, tendo, portanto, na mulher, seu principal suporte.
Isso tudo promove um relacionamento libidinal, no qual tanto a responsabilidade quanto a
culpa do futuro da criança se tornam essenciais para a formação do casal. É assim que nasce a
imagem de ''Sua majestade, o bebê'' que se torna o centro do mundo familiar. O segundo fator
é a concepção da maternidade como maternagem, vista como natural no imaginário social.
Nessa concepção, a mulher ocupa um lugar central na política de conservação dos corpos dos
filhos e é sustentada pelo desenvolvimento da pediatria, que se apresenta à serviço da ideia que
assimila maternidade como maternagem, ou seja, relaciona o papel da mãe ao conjunto de
ações, comportamentos e práticas no cuidado e na criação de crianças, envolvendo diversos
encargos tais como a amamentação, alimentação adequada, proteção, estímulo ao
desenvolvimento físico e emocional, ensinamentos sobre valores e normas sociais, afeto,
segurança e acompanhamento da saúde da criança. A esse novo saber, soma-se a destituição
do saber da mãe e o corpo da criança é inserido em uma lógica científica-médica, na qual as
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crianças podem ser divididas entre crianças sadias e doentes, com base no tipo de cuidado que
receberam da mãe (VOLNOVICH, 1993). Além disso, fatores como transformações sociais, o
aumento da alfabetização, a difusão de livros infantis e a criação de escolas destinadas
especificamente para crianças, e o surgimento de novas teorias sobre a natureza humana,
influenciaram a forma como os adultos viam as crianças, entendendo-as como indivíduos em
desenvolvimento com necessidades e interesses próprios (ARIÈS, 2006).
Nesse contexto, é possível então afirmar que com a emersão do sistema capitalista e
suas singularidades, mudanças importantes ocorreram na estrutura familiar. Essas alterações
foram ainda mais impactantes com a conquista de direitos trabalhistas pelas mulheres durante
os séculos XX e XXI, principalmente durante o período da revolução industrial. Levando em
conta que os conceitos não são estáticos e sim concomitantes à realidade sociocultural de cada
época, a infância também precisa ser compreendida como consequência de sistemas políticos,
econômicos, sociais e libidinais na sociedade (VOLNOVICH, 1993). Assim, segundo
Volnovich (1993), no século XXI, as crianças assumem um papel no imaginário social de
''esperança da humanidade'', que reflete nelas mesmas a autoestima e frustração dos adultos.
familiares mais amplos. Ademais, enfatiza a importância da estrutura familiar e como ela
influencia a comunicação, os comportamentos e as emoções dos membros da família
(MINUCHIN, 1982).
A história do Brasil é marcada por uma série de peculiaridades como, por exemplo, pela
presença de povos indígenas, africanos e europeus, que se misturaram ao longo dos séculos
para criar uma cultura plural e diversa. No entanto, essa formação não ocorreu de maneira
passiva, mas sim com a presença de conflitos e tensões ao longo da história. Outra
singularidade da história brasileira é a longa duração da escravidão, sendo o Brasil o último
país do continente americano a aboli-la, em 1888, o que deixou profundas marcas na sociedade
e na sua estrutura econômica e política até os dias de hoje. Além disso, O Brasil é marcado por
complexidade e diversidade em sua formação social e política na medida que o país passou por
uma série de regimes políticos ao longo da sua história, desde o período colonial até a
atualidade, e lidou com desafios significativos em relação ao seu território e à construção de
uma identidade nacional. A partir dessa síntese, é possível afirmar que tais singularidades
marcaram a história do país e influenciam a maneira como a chamada família brasileira é
entendida atualmente (SCHWARCZ; STARLING, 2015).
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Ainda sob a perspectiva do contexto brasileiro, Araújo (2011) procura identificar como
as mudanças sociais, culturais, econômicas e polit́ icas resultantes da modernização capitalista
influenciaram nas transformações da família no cenário brasileiro. É possível destacar
importantes marcos nesse processo de transformação, como o período pós ditadura militar, com
a aceleração da modernização capitalista e mudanças nos valores, o que acarretou uma crise no
modelo de família tradicional hierárquica e autoritária e cedeu espaço para outros tipos de
família mais igualitárias e democráticas. Nesse sentido, algumas características marcadas pelo
período pós 1964, que não podem ser entendidas de forma individual e que são determinantes
como cerne das mudanças da família, auxiliaram nessa atualização. Destacam-se o aumento da
indústria cultural e de serviços, as oportunidades de trabalho, a inserção progressiva de
mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, um questionamento referente ao papel
antes considerado ''natural'' da mulher e as relações de poder dentro do ambiente familiar. Cada
um desses fatores precisa ser compreendido de maneira dialética, ou seja, é necessário abarcar
as contradições e os conflitos do sistema socioeconômico e cultural para chegar a uma ideia
mais ampla e profunda sobre a temática. Assim, por exemplo, devido a questões de opressão,
as conquistas geradas pela modernização capitalista não foram ofertadas da mesma maneira a
todos os grupos, como explicitado nesse excerto:
Com isso, é possível notar que a mudança na concepção de família deve-se muito à
mudança dos papéis femininos durante os séculos. Se até a metade do século XX as mulheres
apresentavam um papel definido de casar e ter filhos, isso mudou quando foi conferida a elas
a possibilidade de separar sexo e procriação, um fator que foi decisivo para reconfigurar o papel
da mulher na família e na sociedade. A psicanalista Maria Rita Kehl (CAFÉ FILOSÓFICO
CPFL, 2018) pondera como a própria lógica de mercado da sociedade capitalista atual destruiu
as bases de sustentação da família nuclear burguesa. Segundo ela, essa transformação ocorreu
devido a dois fatores principais, sendo eles a necessidade da entrada da mulher no mercado de
trabalho, a fim de gerar mais capital para a sustentação do sistema, e a produção de
contraceptivos pela indústria farmacêutica, como a venda de anticoncepcionais que
inauguravam a oportunidade do sexo como prazer e não como um meio de procriação. É
interessante notar que, com a própria entrada da mulher no mercado de trabalho, que implicou
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inevitavelmente em passar menos tempo em casa, as classes médias começaram a adotar novas
formas de criar os filhos, algo que as classes pobres já conheciam (BERQUÓ, 1998). Ou seja,
as classes médias começaram a utilizar um mecanismo de compartilhamento da educação e o
cuidado dos filhos com vizinhos e outras pessoas, e, no caso de famílias de classe média, a
contratação de empregadas domésticas em tempo integral, uma prática herdada da escravidão.
Nessa compreensão, Scott (2011) mostra mudanças referentes ao contorno das famílias
brasileiras e às relações de gênero durante os anos no Brasil. Em um primeiro momento,
durante a construção do país, algumas famílias brasileiras eram caracterizadas de forma
negativa com referência especial à diferenciação racial e à miscigenação. Depois, a situação é
invertida e começa-se uma idealização das famílias patriarcais como mantenedoras de uma
integração nacional em tempos de centralização do Estado. Por conseguinte, a partir da
urbanização e da aderência a um sistema desenvolvimentista e burocrático, há a formação
idealizada de famílias nucleares urbanas, retratando a maneira que a urbanização homogeneíza
e padroniza as famílias que saem do campo. Após isso, nota-se uma deterioração desse modelo
de família brasileira, devido ao histórico já apontado anteriormente neste trabalho, somada aos
processos de empobrecimento das famílias e à sobrecarga das mulheres urbanas de classes
populares trabalhadoras.
Toda essa conjuntura mostra que o Brasil apresenta características únicas de sua história
que precisam ser levadas em consideração quando do estudo das chamadas famílias brasileiras.
Isso porque essas transformações no contexto sócio-político-econômico perpassam o cotidiano
de diversas famílias. Dessa forma, é preciso analisar as famílias brasileiras levando em conta
as desigualdades e as opressões de raça, classe e gênero dentro do cenário brasileiro.
presença da família moderna (final do século XVIII até o inić io do século XX), baseada em
uma lógica afetiva, ou seja, destaca-se o amor romântico, ao mesmo tempo que o poder começa
a ser compartilhado entre o Estado, as famílias e os genitores. Por último, tem-se a família
contemporânea, fundada na conciliação de pessoas que apresentam como prioridade a
satisfação íntima ou sexual na relação. Esse bem-estar se apresenta como elemento
fundamental nas trocas afetivas e, assim, a duração das relações varia de acordo com os ideais
vigentes na sociedade (GIDDENS, 2003). Assim, essas transformações nas maneiras de
organizações familiares abriu um espaço para novas configurações de família que antes não
eram reconhecidas. Como destaca a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco:
subjetividades4. No campo jurídico, por exemplo, é possível notar uma ampliação na concepção
de família, abrangendo outras possibilidades de modelos, como demonstra o artigo 226 da
Constituição Brasileira em seu parágrafo 4º, o qual afirma: “entende-se, também, como
entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL,
1988/2006). Apesar desse aprimoramento, a constituição vigente apresenta algumas
imprecisões. Por exemplo, no mesmo artigo, parágrafo 3º, segundo o qual, “para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988/2006). Nesse
exemplo é possível notar uma perspectiva heteronormativa, sendo considerada apenas a união
estável entre um homem e uma mulher. Outro aspecto que mostra um retorno ao ideal de
família obsoleto é uma proposta que chegou ao Congresso brasileiro em 2015 e que recomenda
o “estatuto da família”, que procura legislar sobre o que é família no Brasil, ou seja,
considerando a família como arranjo de um casal cisnormativo e heterossexual com filhos. A
própria realidade brasileira revela que esse arranjo não comporta nem metade da população,
marcada pela diversidade e por diferentes configurações familiares. Um exemplo da
inconsistência desse argumento conservador é o crescimento do número de crianças registradas
por mães-solo. Segundo uma pesquisa do jornal Folha de São Paulo, realizada em 2022, só nos
primeiros meses do mesmo ano, 100.717 crianças foram apresentadas no cartório por mães
solo. Esse número revela uma falha na responsabilidade paterna, marcada pelo machismo e
patriarcado estrutural (LUCCA, 2022, p. 2).
4
FIGUEIRA, S. A. O moderno e o arcaico na nova família brasileira: notas sobre a dimensão invisível da mudança
social. In: S. A. Figueira (org.). Uma nova família? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. p. 11-30.
24
2. AUTONOMIA
anos a questão da autonomia e liberdade foram e são até hoje importantes temas na área, que
influenciaram muitos pensadores em outras áreas de estudo, como a psicologia, por exemplo.
Paulo Freire
Primeiramente, Freud introduz com a psicanálise uma concepção de sujeito que retira
o indivíduo de um lugar essencialmente biológico, marcado pela medicina da época, e começa
a reconhecer a importância do relato do paciente sobre ele mesmo. A partir disso, autores pós-
freudianos entendem a linguagem e a fala como cerne da atuação analítica. Nesse sentido,
Lacan (1960/2016) expõe uma compreensão de sujeito como um ser em tensão, na medida que
luta contra os desejos do Id, ao mesmo tempo que luta entre atividade do Eu e as exigências da
instância moral. Ou seja, o sujeito da psicanálise é um sujeito dividido, já que precisa lidar o
tempo todo com tensões como inconsciente/consciente, simbólico/real, sujeito/objeto e as
instâncias psíquicas. O psicanalista afirma ainda que o sujeito é constituído a partir da alienação
ao outro (um lugar, pai, mãe, amigos, código, linguagem, cultura, etc..), isto é, que a própria
formação do sujeito enquanto sujeito é a partir da imagem do outro.
Sob essa ótica, a autonomia em psicanálise pode ser compreendida como um processo
que se desenvolve ao longo da existência, relativo à capacidade do sujeito de conseguir se guiar
por si mesmo, tomando consciência e se responsabilizando por suas limitações, necessidades e
desejos (VARGAS, 2020). Ou seja, não é a razão que determina a vontade e impede a
submissão presente na condição humana, assim como naõ é por meio da negação dos desejos
que se pensa a autonomia, mas sim considerando-a como:
26
Outra figura importante dentro da psicanálise que dedicou grande parte de sua trajetória
ao estudo da autonomia das crianças em relação aos cuidadores foi Françoise Dolto. Sob
influência da psicanálise e de seu trabalho com o público infantil, Dolto desenvolveu uma teoria
original sobre a educação de crianças. A autora dedicou grande parte de sua obra aos estudos
sobre educação de pais e professores, mostrando algumas reflexões sobre os efeitos da escuta
e da ''não escuta'' de crianças. Diferentemente de outras concepções da época, Dolto coloca a
criança em um lugar de sujeito ativo que não só convive no mundo, mas age sobre ele, assim
como os adultos; reconhece que cada sujeito apresenta uma maneira única referente ao que
acontece ao seu redor. A psicanalista sempre pontuou em suas obras a conquista da autonomia
psíquica das crianças e a dificuldade no processo de separação dos cuidadores, um período
marcado por conflitos. Dolto partia do pressuposto de que a autonomia precisava ser
conquistada de maneira gradual e regular e, por isso, considerava necessário a construção de
um espaço no qual crianças e cuidadores tivessem a oportunidade de realizar essa separação
progressiva (KUPFER, 2006).
Essa separação em relação aos progenitores ou aos cuidadores que assumem uma
função em relação à criança está intimamente relacionada ao que Freud chamou de complexo
de castração, o qual o autor liga diretamente à sua teoria sexual infantil. Segundo Dunker
(CHRISTIAN DUNKER, 2018), Freud traz em suas obras sobre o período infantil da vida que
as crianças começam a levantar muitos questionamentos sobre o que observam e, dentro disso,
aparece a questão da origem dos bebês. Esse período é muito importante não só no campo
cognitivo (no nível de uma inteligência crítica para questionar certezas) como também na
produção da fantasia. Segundo a definição de Laplanche e Pontalis (2001), é possível entender
a fantasia como:
27
Ainda dentro dessa esfera, o epistemólogo suíço Jean Piaget se destaca por apresentar
contribuições no que concerne não só à autonomia intelectual como também moral da criança,
e a importância dessa formação para o desenvolvimento do sujeito. O autor trabalha em toda
sua obra com a ideia de que a base para o desenvolvimento da autonomia é a interação ativa
entre sujeito-objeto, ou seja, a relação ativa da criança com o mundo à sua volta. Essa interação
é básica, no sentido de que ela é essencial para o desenvolvimento do sujeito autônomo, tanto
moral quanto cognitivamente, já que é através dela que a criança poderá construir sua
perspectiva, mas sem deixar de levar em conta a perspectiva dos outros, ao mesmo tempo que
percebe diferentes ideias e a necessidade de troca e cooperação entre os pares. Não só isso, essa
relação ativa permite que a criança possa imaginar e criar, já que terá a oportunidade de
formular perguntas, buscar respostas, descobrir coisas novas e construir seu conhecimento a
partir de então (CASTRO, 2006). Desse modo, para que os sujeitos possam ser autônomos faz-
se necessário:
que concerne ao conhecimento, mas sim à própria existência como um processo constante de
aprendizado (PASCUAL, 1999). Assim, a autonomia intelectual é construída a partir da
equilibração intelectual, que, por sua vez, é atingida no estágio operatório-formal. Segundo o
autor:
No que tange à questão da autonomia moral, segundo Pascual (1999), Piaget acredita
que o discernimento moral não é natural, mas sim construído a partir de quatro fatores
fundamentais caracterizados por: maturação, experiência, interação social e regulação. Nesse
sentido, essa autonomia pode ser adquirida a partir do desenvolvimento, quando o indivíduo se
torna capaz de tomar as decisões baseada em princípios éticos e morais, em vez de seguir regras
externas impostas por autoridades como pais, escola e outras instituições. Como é explicitado
no trecho:
curiosidade. No entanto, se esse diálogo não acontece de maneira horizontal, isto é, em que os
sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença (FREIRE, 1996), ocorre um antidiálogo,
no sentido de não abrir espaços para críticas e impor soberania e insolência com o outro
(ARRUDA; NASCIMENTO, 2020). Como mostra o autor no trecho, o diálogo:
como autonomia. Isto é, romper com o senso comum de sinônimo entre a autonomia e tomada
de decisões de maneira consciente, independência, liberdade, mas entender a autonomia a partir
das influências de diversas instituições na vida do sujeito, e uma autonomia tanto cognitiva
quanto psíquica, reconhecendo dentro daquele espaço as possibilidades que se apresentam a
fim do sujeito atuar como protagonista da própria história.
A autora explicita nesse trecho a noção de causalidade não baseada na lógica cartesiana,
mas uma causalidade de ordem psíquica, uma vez que essa implica uma singularidade, isto é,
não se trata de encaixar alguém em certa posição e sim situar qual é a causalidade específica
daquele sujeito. Além disso, é importante, a partir da escuta, auxiliar o sujeito a reposicionar
seu desejo, que é apresentado no intervalo do significantes, nesse movimento da cadeia que
permite que este sujeito apareça e, a partir da análise, entenda onde se situa seu desejo. Dessa
forma, diferentemente do senso comum de que a autonomia é entendida como a capacidade de
atuar com independência, esse capítulo mostra que há uma complexidade no conceito e que ela
se expressa em diferentes esferas. A compreensão acerca da autonomia precisa levar em
consideração o âmbito moral, social, afetivo, psíquico e educativo.
33
3. O AMBIENTE FAMILIAR
3.1 Parentalidade
É notório que nos últimos anos houve um aumento no campo de estudos referente a
temáticas como educação, transmissão de valores e práticas educativas. Esse crescimento é
resultado das transformações socioculturais na sociedade contemporânea, tais como novas
maneiras de relações, leis de proteção infantil e do adolescente, e a preocupação parental sobre
o futuro dos filhos (ALMEIDA; ALDRIGHI, 2011). Nesse sentido, o estudo sobre a relação
entre a família e filhos faz-se importante, dado que, ao prestar atenção nesse período
significativo de formação, é possível realizar intervenções e promover ações de saúde que
causam importantes impactos futuros para as crianças. Desse modo, muitos artigos atuais
traçam uma relação entre autoridade parental e o desenvolvimento da autonomia da criança na
sociedade contemporânea, com o objetivo de identificar fatores favoráveis a esse
amadurecimento e, assim, mostrar como as atitudes parentais promovem a formação de
individ́ uos conscientes e atuantes na sociedade desde a primeira infância. É importante
entender também que para um desenvolvimento chamado saudável a criança necessita de um
ambiente que a motive aos poucos a fazer parte de uma comunidade sem que sua
individualidade seja esquecida (SANTOS; FREITAS, 2016).
o processo dinâ mico por que passam os pais, isto é, ao processo de tornar-se
pai e mãe, que vai além do biológico, envolvendo aspectos conscientes e
inconscientes, que passam pela história da família de cada um dos pais e pelo
contexto sociocultural em questão (GORIN et al., 2015, p.8)
Apesar de uma atualização em relação ao que antes era considerado parentalidade, essa
definição ainda se apresenta insuficiente para uma compreensão mais abrangente do que é o
exercício da parentalidade, na medida que não leva em consideração os inúmeros arranjos
conjugais. Nesse sentido, a partir das significativas transformações ocorridas nesse meio, é
possível considerar que:
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Nesse sentido, é possível evidenciar três bases principais da parentalidade, sendo elas:
o exercício, a prática e a experiência (HOUZEL, 2004). O primeiro está ligado à transmissão
de direitos e deveres que ordenam as relações de filiação, parentalidade e de parentesco e de
pertencimento. Já o segundo suporte refere-se a como a parentalidade é exercida, envolvendo
os cuidados parentais, físicos e psíquicos, e as relações afetivas entre pais e filhos. O terceiro e
último eixo está relacionado com o exercício da parentalidade devido à transmissão de
interditos estruturantes para o sujeito, ou seja, considera-se os processos conscientes e
inconscientes que estão presentes no próprio exercer da parentalidade (HOUZEL, 2004). Ainda
nessa perspectiva, é de responsabilidade da parentalidade transmitir a função de lei que
interdita, a fim de realizar uma humanização do filho por meio da perda da onipotência. Ou
seja, esse processo é indispensável para inserir a criança nas leis da cultura, visando sua
convivência em sociedade (GORIN et al., 2015).
A questão da autoridade parental está intimamente ligada com o modo de educar mais
frequente dos pais, ou seja, com os estilos parentais, que, por consequência, podem auxiliar ou
dificultar a formação da autonomia da criança. Segundo Weber et al. (2004), a tentativa de
compreender o relacionamento entre pais e filhos a partir de estilos parentais auxilia na
prevenção de interpretações equivocadas sobre os aspectos isolados da conduta dos pais e
caracteriś ticas dos filhos. Ou seja, essa maneira de apresentar os caracteres parentais não visa
35
reduzir a singularidade de cada família, mas sim tentar compreendê-las de forma mais
ordenada, a fim de observar suas consequências para a vida das crianças. Além de mostrar a
importância de analisar os estilos parentais, Weber et al. (2004) também revelam a diferença
entre esse modo de educar com as práticas parentais. Enquanto a última se caracteriza por focar
em objetivos de socialização e encontrar estratégias para eliminar ou incentivar
comportamentos, os estilos parentais se constituem por:
(...) conjunto de atitudes dos pais que cria um clima emocional em que se
expressam os comportamentos dos pais, os quais incluem as práticas parentais
e outros aspectos da interaçaõ pais-filhos que possuem um objetivo definido,
tais como: tom de voz, linguagem corporal, descuido, mudança de humor
(DARLING; STEINBERG, 1993 apud WEBER et al., 2004, p. 324).
Faz-se importante ressaltar que esses estilos não são estáticos, ou seja, é possível que
eles se misturem e oscilem durante todo o processo educacional das crianças. Também, não é
possível dissociar essas práticas de seu contexto histórico (WEBER et al., 2004).
Dessa maneira, Weber et al. (2004) apresentam quatro tipos diferentes de estilos
parentais básicos:
aparecem como um meio para a realização do desejo das crianças e não como um modelo ou
agente responsável por ensinar. Por outro lado, o estilo parental negligente é caracterizado por
responsáveis que não exigem ou não reparam nos comportamentos das crianças. Ou seja, esses
pais não apresentam um papel ativo ou uma tentativa de relação com a criança. Por fim, o estilo
parental participativo é descrito como uma maneira equilibrada na qual há tanto limite quanto
afeto no processo educacional; os pais incentivam o diálogo e mostram a criança o porquê das
ações que tomam, escutam a opinião da/o infante, reconhecendo que essa/e apresenta um papel
ativo, ao mesmo tempo que não baseiam suas deliberações a partir do desejo da criança
(WEBER et al., 2004).
Tendo tudo isso em vista, Silva e Pereira (2018) realizaram um estudo com o objetivo
de pesquisar sobre como as crianças entendiam, avaliavam e lidavam com os modelos
educacionais e suas estratégias de negociação. Assim, após a realização do estudo, os autores
constataram algumas informações relevantes. Primeiramente, no que se refere ao tempo de
dedicação à relação familiar, as crianças afirmam que, apesar de compreenderem a ausência de
ambos os pais que exercem atividades de trabalho extradomiciliarmente, quando eles estão
presentes passam muito tempo no celular ou resolvendo pendências do trabalho. Quanto aos
processos de troca entre as crianças e seus responsáveis, partindo da tese de que as crianças são
co-construtoras da sua vida e do contexto social em que vivem, entende-se que nesses processos
de troca e negociação há um favorecimento da criação de uma cultura de participação,
colaborando na construção da aprendizagem que influencia na formação de modelos de
relações e auxilia no desenvolvimento da autonomia infantil. Dessa forma, os responsáveis
participativos, ou seja, aqueles cujas práticas de cuidado aliam niv́ eis altos de controle, mas
ainda assim afetivos, compreensivos e envolvidos, possibilitam um relacionamento
bidirecional, isto é, situação em que as crianças têm abertura para dialogar e expor suas
opiniões. Almeida e Aldrighi (2011) ainda ressaltam que “pais autoritativos” tentam direcionar
as atividades da criança de forma racional e orientada, incentivam o diálogo e favorecem o
raciociń io, além de naõ basearem suas decisões em consensos ou desejos da criança.
3.3 Dificuldades
Resumindo, essa tensão é de extrema importância para o sujeito, pois é a partir dela que
há a construção da constituição do mesmo, e é nessa tensão constitutiva que atua o aparelho
psíquico, a força que inaugura a inconsistência dos processos construídos.
menos agressiva, ao mesmo tempo que hoje os cuidadores precisam lidar com questões atuais
como o acesso à internet, o manuseio de novas tecnologias e o acesso a informações. Essa
mudança requer novas posturas e outras adaptações que precisam ser incorporadas não só pelos
cuidadores como também pelos próprios indivíduos. Ainda nessa perspectiva, uma dificuldade
encontrada por muitas famílias são as diferenças nos valores disseminados pelas instituições e
o potencial que as crianças apresentam de os interiorizar (RAMOS; NASCIMENTO, 2008).
Isso se deve ao fato de que muitas vezes os espaços de sociabilidade apresentam características
diferentes das praticadas no ambiente familiar. Apesar de causar esse choque entre
aprendizados, é de extrema importância que a criança tenha um contato com essa tensão, dado
que é a partir disso que ela poderá futuramente se tornar capaz de tomar as decisões baseadas
em princípios éticos e morais, e construídas a partir de suas experiências.
Assim, faz-se necessário a desconstrução desse ideal de família perfeita, pois ele não
só não representa a realidade de diversas famílias como também se apresenta como uma grande
fonte de sofrimento em busca desse ideal. Como revela o trecho:
Esse ideal de família e a procura de sua extinção estão intimamente ligados à noção de
autonomia, já que esse modelo defende a proteção integral da família em qualquer situação, o
que não deixa espaço para o indivíduo crescer e se desenvolver nas relações com os outros que
são diferentes dele. Não só isso, pode criar um ambiente em que o indivíduo tente a todo custo
não decepcionar os progenitores, sempre tentando alcançar uma referência proposta pelo Outro,
sem dar espaço a ele mesmo. Como pontua o psicólogo e pesquisador Pedro Ambra (MEU
INCONSCIENTE COLETIVO, 2023): ''o conceito de família tradicional não pode ser tomado
com naturalidade porque você acaba ficando quase refém de um ideal”. Dentro disso, segundo
Vera Iaconelli (PROVOCA, 2022), muitos pais procuram hoje um manual de como educar os
filhos, o que se torna uma emboscada, pois essa busca por controle, garantia e predição é o que
tem adoecido os pais. Ou seja, ao invés de descobrirem uma maneira mais espontânea e
autêntica, baseiam-se em um modelo imaginário no qual eles precisam se espelhar.
em relação às suas habilidades educacionais, os pais assistem com angústia e paralisia à perda
de seus filhos, sem serem capazes de ajudá-los nesse processo.
A primeira grande mudança é a passagem dos direitos e deveres para uma busca pela
felicidade, conceito socialmente construído e variável com a época. Segundo Gorin et al.
(2015), um aspecto marcante da família contemporânea, criado a partir das transformações no
ambiente familiar, é a valorização da busca pela felicidade e pela completude, no exercício da
parentalidade, em sua dimensão afetiva. Nesse sentido, Singly (2007) aponta em seu trabalho
a influência da afetividade nas relações intrafamiliares como uma característica central e traz
uma perspectiva histórica de que, após os anos 1960, o foco passa a ser a felicidade de cada
um dos membros da família e não a felicidade da família como grupo. Assim, há uma
valorização do individualismo e uma busca por maior autonomia dos indivíduos. Roudinesco
(2003) ainda acrescenta que a partir das mudanças na organização da família durante a história,
a família contemporânea apresenta sua base na união de pessoas que apresentam interesse na
relação. Essa vontade é um elemento crucial nas trocas afetivas e, portanto, a duração dessas
relações varia de acordo com os ideais de felicidade em voga na sociedade.
esse papel não é somente reservado aos pais, mas à própria comunidade e outros ambientes de
socialização como a escola.
Por fim, segundo Luiz Alberto Hanns, essas cinco características apresentam para a
criança uma ideia de positividade que elimina a ênfase na disciplina, no autocontrole e na ética,
o que precisa ser revisto no exercício da parentalidade (CASA DO SABER, 2014).
O que é percebido hoje também é uma falência da autoridade parental devido a diversos
fatores, mas principalmente pela terceirização do cuidado das crianças. Em razão de uma lógica
dirigida ao lucro, configurando o ambiente exaustivo de trabalho, percebe-se que cada vez mais
as crianças permanecem longe do ambiente familiar e, por consequência, o trabalho da ordem,
da lei, fica sob responsabilidade de outras entidades. Para além destas dificuldades, há, ainda:
o trabalho ou profissão exercido pelos pais, o grau de escolaridade e a classe social da família,
a qualidade dos relacionamentos conjugais e as transformações ocorridas atualmente no âmbito
familiar. Assim, questões como a autoridade parental, a comunicação, demonstrações de afeto
e a participação dos pais nas atividades aparecem como facilitadores da autonomia dos filhos.
Após toda a análise, é possível afirmar que o contexto atual das famílias contemporâneas é
marcado por uma insegurança dos pais quanto à autoridade a ser exercida em relação aos filhos
e por novas dinâmicas familiares (ALMEIDA; ALDRIGHI, 2011).
Faz-se importante pontuar que o estudo referente ao ambiente familiar não se limita à
autoridade parental e suas práticas, nem só às figuras dos pais. Alguns autores mostram como
traumas, segredos, vergonhas e lutos não elaborados podem afetar a história familiar e se
alongar para futuras gerações. Portanto, a pergunta a se fazer nesse capítulo é: como pensar em
uma autonomia psíquica de um sujeito preso a uma história que não é a sua? A fim de debater
acerca dessas questões, foram utilizados dois artigos de referência: “O não-dito familiar e a
transmissão da história”, da psicóloga e pesquisadora Miriam Debieux Rosa (ROSA, 2001) e
42
Em seu artigo, Rosa (2001) aborda acerca de pais que não transmitem a história ou o
que se transmitida, configura-se como algo que deveria estar excluído, mas que retorna como
um sintoma. Segundo ela, esses pais partem de duas suposições. Primeiramente, acreditam na
ideia de que é possível a construção de um futuro com o apagamento do passado, e que esse
passado, quando carregado de um fardo, deve ser totalmente anulado e esquecido, já que, se
revelado, pode ter um potencial traumatizante para o filho. A segunda suposição é de que a
transmissão só ocorre por meio do dizer, ou seja, o não falar pode passar uma ideia de um
ambiente harmonioso e bem-sucedido, no qual os filhos vão se espelhar e, assim, se sentirem
felizes e realizados. Essa questão sobre o que transmitir aos filhos acerca dos acontecimentos
que permeiam a história da família leva a pensar sobre o modo de abordar essa transmissão,
um grande desafio aos pais. Logo, faz-se necessário abordar os efeitos da solução encontrada
pelos pais em não falar sobre o passado difícil. Por conta disso, a autora foca seu trabalho nas
histórias não-ditas, contidas como marcas daquilo que não foi elaborado ou que foi encoberto
por uma visão imaginária, que não abre espaço para que o sujeito a interrogue. Reforçando a
ideia da elaboração referente à transmissão familiar, Rosa (2001) afirma:
'O que naõ está dito, recoberto pelo já dito, é o que permite movimentar a
cadeia significante para produzir novos sentidos. Desta forma, o relato dos
fatos propicia a criaçaõ de cenas, que permitem analisar como se estrutura o
desejo na dialética da relação com o outro. Nessa articulação, é possível a
emergência de um sujeito. A história não é tomada aqui como sequência de
fatos e datas, mas como significâ ncias, como trama de sentidos. Os fatos
existem enquanto reclamam sentido. É sempre junto da falta de sentido e pela
exigência de preenchimento dessa falta que se forma o pressentimento
daquilo que será a história de cada um. (ROSA, 2001, p. 126).
Isso porque os enunciados não valem por si, pelo explić ito, pelo fato relatado
em si, mas pela enunciaçaõ concomitante e pelo posicionamento do falante.
É nessa dimensaõ da linguagem que o dizer pode abrir para novos sentidos,
abrir para o enigma do sujeito e retirá-lo do refúgio narcísico, fazendo-o de-
frontar-se com a equivocação. O equívoco refere-se ao fato de que o dito, o
enunciado, traz consigo uma enunciação, ou seja, vai além da intenção, e traz,
junto com a palavra recusada, aquilo que naõ se quer dizer. Ou seja, o dito
tem efeito sobre aquele mesmo que fala. (ROSA, 2001, p. 126).
Na segunda parte do texto, Rosa (2001) levanta a relação do não dizer com o pai
imaginário. Os pais não se sentem confortáveis em mostrar suas dores e falhas — dos mesmos
ou da família — aos filhos, já que assumem que podem perder o controle, a autoridade, normas
e ideais que pretendem transmitir aos filhos. Em muitos casos, o não dizer é a maneira
encontrada para essa ideia de não destruir o filho e sua relação com ele, abarcando assim fatores
como a culpa, frustração e a dívida que não foram trabalhadas pelo próprio ambiente familiar.
Dessa maneira, ao não comunicar, os pais evidenciam a pretensão de se manterem no lugar de
pai imaginário. E nesse espaço encontram seu gozo, no ideal de pais perfeitos, sem defeitos,
que não suportam sustentar falhas e dores próprias ou da família. No entanto, a transmissão do
não-dito aparece na vida da criança de outras maneiras e pode causar efeitos importantes, como
declara o trecho:
3.4.2 A Transgeracionalidade
Nesse artigo, Trachtenberg (2017) discute o que pode levar ao que intitula como
''heranças transgeracionais''. Isto é, o que ocorre quando traumas, segredos, vergonhas e lutos
não apresentam um espaço de elaboração na família e essas questões são transmitidas a partir
de criptas e fantasmas para as outras gerações, marcando-as. Assim, a autora defende a tese de
que há uma importante presença da história anterior do sujeito na constituição de sua
subjetividade. Por exemplo, em casos de violências familiares, traumas e lutos não elaborados,
violências do Estado, violência urbana entre outras questões.
Com isso, a autora trabalha durante o artigo acerca da formação das heranças
transgeracionais. Primeiramente, mostra o lugar que o silêncio e o segredo ocupam, no sentido
de uma tentativa de defesa daqueles familiares que sofreram a situação traumática de
sobreviver psiquicamente, se esquivando do trauma a fim de tentar viver uma vida normal. No
entanto, essa esquiva pode formar uma ''cripta'', que é resultado dessa defesa extrema dos
sujeitos traumatizados ou que não processaram lutos. Essa forma de defesa pode se apresentar
muito eficaz, mas, dependendo de alguns fatores, auxilia na formação de fantasmas familiares.
A ideia de fantasma levanta a ideia de que traumas não elaborados podem aparecer de outras
maneiras em gerações posteriores da família. Assim, aparece como responsabilidade das
gerações futuras de lidar com a experiência traumática que não é dela, mas sim dos ancestrais
(principalmente pais) que carregam esses traumas.
Com enfoque nisso, Faimberg (1996)5 levanta a ideia de uma identificação narcisista
alienante, que abre espaço para que os pais utilizem o espaço psíquico do filho sem realizarem
uma separação de si mesmos. Com isso, nesse tipo de identificação, aquilo que não é elaborado
no psiquismo dos progenitores é projetado no espaço psíquico dos filhos, como apresenta no
trecho:
O filho, vulnerável por sua necessidade de investimento narciś ico, fica sujeito
ao que os pais dizem ou calam, perdendo a liberdade de interpretar com seu
próprio psiquismo as verdades familiares e vinculares. Torna-se depositário,
cativo de um luto não elaborado, de um segredo ou de uma vergonha parentais
(criptas, no dizer de Abraham e Torok) que o alienam de si mesmo,
obrigando-o a viver uma história que, ao menos em parte, naõ é sua.
(FAIMBERG, 1996, apud TRACHTENBERG, 2017, p. 82)
5
FAIMBERG, H. El telescopaje de las generaciones. In: KAËS, R. et al. Transmisión de la vida psíquica entre
generaciones. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. p. 75-96.
45
Por fim, a autora levanta duas formas sob as quais há transmissão e elaboração ou não
elaboração do trauma que pode acarretar diferentes efeitos na família, sendo elas a transmissão
intergeracional e a transgeracional. Enquanto na primeira ocorre entre as gerações, havendo
uma distância, um espaço entre o transmissor e o receptor, preservando-se os limites e as bordas
da subjetividade, a transmissão transgeracional, ao contrário, é invasiva e ocorre através dos
sujeitos e das gerações. Algumas diferenças, retiradas do próprio artigo, são apontadas pela
autora, como, por exemplo:
INTERGERACIONAL TRANSGERACIONAL
4. Representação psíquica, simbolização, palavra. 4. Cripta, fantasma, silêncio, vazio, negativo, branco,
falha no simbólico, elementos não transformados.
Não palavra – Não representação
Dessa forma, cabe ao psicólogo a realização de um trabalho que abra espaço para a
elaboração de criptas e fantasmas por meio da não alienação nas crianças e na família, assim
como auxiliar no fluxo das mudanças de heranças transgeracionais em novas heranças
intergeracionais.
Gilberto Freyre
A escolha de inserir esse tema ao final do trabalho não se deu maneira aleatória, mas
sim como uma forma de reflexão acerca das oportunidades que atravessam outras realidades
presentes no contexto brasileiro.
46
Dessa maneira, o racismo no Brasil foi sendo construído de uma maneira sorrateira,
com o mito da democracia racial que impede que as pessoas tenham consciência da história de
opressão do povo negro. Essa característica dissimulada do racismo à brasileira se mostra até
hoje, como mostra Almeida (2019):
Essa realidade tem suas repercussões nos dias de hoje na realidade das famílias negras
no Brasil. Alguns dados que revelam essa exclusão foram divulgados pelo Jornal O Globo,
mostrando que, segundo o IBGE, a informalidade atinge mais pretos e pardos do que brancos.
47
O jornal mostra que, em 2021, a taxa de informais entre a população branca era de 32%; entre
os pretos, de 43%; e entre os pardos, de 47%. Ao olhar o rendimento médio, a diferença é ainda
maior. O dos trabalhadores brancos foi quase o dobro de pretos e pardos. Essa pesquisa mostra
também as diferenças de renda. De todos os pretos e pardos brasileiros, cerca de 35% viviam
com R$ 486, praticamente o dobro da proporção de brancos na linha da pobreza. A diferença
se repete entre os que vivem na extrema pobreza. Os pretos e pardos são praticamente o dobro
dos brancos.
Malu: ''Eu estava lutando pelo meu direito de trabalhar. Deixei meu filho na
casa da minha mãe e eu tô tentando fazer alguma coisa pela minha vida. Só
que tá muito difícil.''
Por meio dessa cena é possível realizar algumas observações acerca da realidade
material. Primeiramente, a incapacidade de realizar uma comparação linear entre a criação dos
filhos por mulheres brancas e negras. Isso porque essa questão perpassa por fatores estruturais
da sociedade que incidem de formas diferentes sobre as mulheres. Um exemplo disso é a
notória mudança do século XX, com a entrada do capitalismo industrial, o qual apresenta a
característica muito mostrada em livros de história referente ao aumento significativo da
participação da mulher no mercado de trabalho e ao aumento dos movimentos feministas. No
entanto, se de um lado é notório que houve realmente essa transformação, é possível se
questionar sobre onde estavam as mulheres negras todo esse tempo. Se o trabalho é um
elemento fundamental da vida humana, já que é por meio dele que os seres humanos
transformam a natureza e produzem os bens necessários à sua sobrevivência (MARX, 2004), é
possível dizer que na história brasileira as mulheres negras sempre trabalharam. Partindo desse
paradigma histórico, a teórica e ativista feminista negra estadunidense Angela Davis, ao
abordar a história do movimento sufragista nos Estados Unidos, traz no capítulo "Mulheres
trabalhadoras, mulheres negras e a história do movimento sufragista", de seu livro "Mulheres,
raça e classe" (DAVIS, 1981/2016), a exclusão das mulheres negras nesse processo. Assim, a
autora mostra que o movimento sufragista foi liderado por mulheres brancas de classe média,
que muitas vezes excluíam as mulheres negras de suas atividades e reuniões. As mulheres
negras, por sua vez, estavam mais focadas em lutar por questões econômicas e trabalhistas, já
que muitas trabalhavam em empregos mal-remunerados e sem direitos. Davis (1981/2016)
destaca nesse capítulo que a luta pelos direitos das mulheres negras foi frequentemente
ignorada ou subestimada pelo movimento sufragista branco, e que as mulheres negras muitas
vezes precisavam lutar contra o racismo e o sexismo simultaneamente. Ela discute também a
importância das lutas trabalhistas das mulheres negras, que muitas vezes se concentravam em
questões como salários iguais, condições de trabalho justas e direitos sindicais. A autora
argumenta que essas lutas foram fundamentais para a construção do movimento feminista
negro e para a luta pela igualdade de direitos no geral. Apesar de Davis pontuar a situação de
exclusão das mulheres negras nesse movimento sufragista, o mesmo fenômeno ocorreu em solo
brasileiro. Enquanto o movimento feminista foi ganhando força no Brasil, milhões de mulheres
negras foram excluídas desse processo.
Atualmente, ainda, o trabalho de babá e de empregada doméstica é uma das formas mais
recorrentes de inserção da mulher negra no mercado de trabalho. De acordo com o IPEA, cerca
de 22% das mulheres negras são empregadas em funções desse tipo e computam 65% das
trabalhadoras domésticas no país (AGÊNCIA BRASIL, 2022). Esse número é resultado de um
processo histórico nacional profundamente ligado as raízes da escravidão no Brasil.
Antigamente enunciadas como amas de leite, as mulheres negras escravas que já tinham filhos
cumpriam a tarefa de amamentar a criança quando a mãe biológica não conseguia produzi-lo.
Nesse processo, as amas de leite eram anunciadas em jornais da época tais como outros
produtos alimentares e eram obrigadas a realizar esse serviço, não obtendo nenhum tipo de
lucro com essa prática. Como mostra Carula (2011) no trecho a seguir, a mudança dessa prática
não se deveu à violência em relação ao corpo da mulher negra, mas sim a uma prática
higienista:
Esse trecho revela que a substituição da tarefa realizada pelas amas de leite pela ama-
seca, hoje conhecida como babá, deve-se a uma política higienista. Durante o período da
escravidão no Brasil, a maioria das mulheres negras tinha obrigação de criar os filhos dos casais
brancos da elite do país e muitas vezes perdia seus próprios filhos, que eram vendidos a outras
famílias e não tinham o direito de ficar com a mãe. Após a abolição da escravidão, não houve
nenhuma política de integração da população negra, ou seja, as mulheres negras continuaram
a ocupar a função de cuidadoras dos filhos dos casais de classe média alta. Atualmente, muitos
patrões obrigam as babás a utilizarem uma roupa branca, diferenciando-as dos pais. Essa
diferenciação por meio da vestimenta mostra a perversidade por trás da tentativa das famílias
ricas de diferenciar aquela que cuida dos pais biológicos da criança. Em trabalho muito
importante, Segato (2006) explora como ''magicamente'' é apagado da historiografia brasileira
a temática da mãe preta. A autora pontua a existência de uma ferida colonial emergente da
50
Dentro desse espectro, o filme ''Que horas ela volta'' (2015), dirigido por Anna
Muylaert, mostra a questão de como as mulheres da classe trabalhadora, em grande parte as
negras, são forçadas a abandonar suas famílias e não criar seus filhos para criar os filhos de
outro. Essas informações mostram que a sociedade brasileira ainda vive a continuidade de se
alimentar do corpo da mulher negra, se nutrir do afeto do corpo da mulher negra e recusar essa
posição, rejeitando essa realidade histórica (SEGATO, 2006).
— Minha babá é uma fada. É o que diz Myriam quando fala da aparição de
Louise no cotidiano deles. Ela deve ter poderes mágicos, só assim para ter
transformado esse apartamento abafado, exíguo, em um lugar calmo e claro.
(SLIMANI, 2018, p. 34)
Louise é uma soldado. Avança, custe o que custar, como um animal, como
um cachorro que teve as patas quebradas por crianças malvadas. (SLIMANI,
2018, p.102)
51
A obra também levanta diversas outras questões muito importantes, tais como a relação
conturbada da babá com sua filha, uma vez que não tinha tempo de cuidar da menina, já que
trabalhara toda a vida sendo empregada doméstica de outra família; e a separação simbólica da
babá com a família, já que ela não é considerada como um membro família. Também mostra o
circuito de afetos entre a babá e as crianças, e como em um primeiro momento essa relação era
agradável, mas depois foi se tornando um fardo.
policial e medo de ser recusado em uma vaga de emprego não é computado pela branquitude.
Isso porque, segundo Ribeiro (2019),
Dessa forma, fica evidente que ao tocar no assunto referente ao ambiente familiar é
preciso compreender como as opressões estruturais de raça, classe e gênero atravessam as
realidade brasileiras. Se esses fatores não forem levados em consideração numa análise,
incorre-se no lugar de um discurso universal que se aplica a todos os indivíduos, o que é um
equívoco. Devido a esse contexto, fica evidente que a influência do ambiente familiar na
autonomia dos indivíduos aparece em todas as situações, mas os fatores estruturais apresentam
obstáculos que necessitam ser combatidos e analisados.
53
CONCLUSÃO
sua identidade psíquica separada dos outros. Nesse caminho é importante permitir que a criança
experimente e explore suas próprias emoções e pensamentos, e que o ambiente familiar a
auxilie na promoção dessa autonomia psíquica, permitindo que ela se torne um indivíduo
autônomo, capaz de tomar decisões e expressar sua individualidade (DOLTO, 1985).
Importante pontuar que ser autônomo não significa o abandono do infantil, até porque esse se
perpetua por toda a vida do sujeito, já que se trata de algo estrutural, um solo fundante, arcaico
e originário. Como pontua Dolto (1985, p. 06), ''é um escândalo para o adulto que o ser humano
em seu estado de infância seja igual a ele''6. Por fim, o trabalho revelou também que a
autonomia está diretamente relacionada com a educação, pois é por meio do diálogo e de um
processo não violento que o indivíduo pode refletir de forma autônoma no sentido de ter
liberdade para formular suas próprias ideias a partir do que lhe foi apresentado.
6
Tradução livre da autora. No original, “C'est un scandale pour l'adulte que l'être humain à l'état d'enfance soit
son égal”.
55
Portanto, a partir de toda a análise realizada neste trabalho, é possível dizer que a
autonomia está ligada ao processo único do sujeito de vir a ser no mundo, um movimento
contínuo ao longo da vida que nunca estaciona. Esse processo ocorre por meio da experiência
em diversos ambientes e a família tem um papel fundamental, já que é o primeiro contato da
criança com o mundo. Isso tudo requer uma grande força de deslocamento, como afirma
Guimarães Rosa: ''O que a vida quer da gente é coragem''. E Vera Iaconelli afirma:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é somente o ambiente familiar que exerce uma influência sobre a vida do sujeito e
sua autonomia. Pelo contrário, os sujeitos estão o tempo todo sendo perpassados por diferentes
instituições como governo, educação, religião, economia, saúde e mídia, por exemplo. Essa
reflexão a partir de diferentes discursos pode auxiliar na estimulação do pensamento crítico, já
que há uma diferença entre os ditos das instituições e o que ajuda na criação de possibilidades
para que o sujeito possa produzir e construir a partir do que lhe foi dado. É claro que tudo isso
irá depender de diversos fatores, de como esses ambientes foram apresentados e quais
capacidades do sujeito foram exploradas durante esse processo. Conforme o contexto, esse
desenvolvimento pode se configurar como algo penoso e fonte de grande sofrimento.
A partir da pesquisa realizada, foi possível notar que apesar de uma grande discussão
acerca do conceito de família e suas reformulações, muitos artigos ainda se referiam à
parentalidade sob uma perspectiva heterocisnormativa. Assim sendo, diversos trabalhos
apresentavam uma abordagem sobre o que é ser pai e mãe a partir de uma perspectiva ligada
aos papéis sociais hegemônicos de gênero, o que é curioso, já que cada vez mais há debates
que buscam desconstruir os estereótipos e os privilégios de que se servem os grupos que detêm
esta hegemonia. Ademais, em muitos trabalhos procurados, o questionamento acerca de raça,
classe e gênero não eram mencionados. A carência do debate nesse campo mostra a importância
de realizar questionamentos acerca das realidades brasileiras e como as opressões atravessam
o ambiente familiar em diferentes conjunturas sociais.
Por fim, é preciso reconhecer que o trabalho apresenta limites no que concerne a
abordagem destas diferentes temáticas. No estudo sobre o ambiente familiar há muitos
conteúdos a serem trabalhados, tais como a pressão da maternidade para as mulheres e como
os papéis femininos são vistos nos dias de hoje, levando em conta todas as opressões presentes.
Assim, esse estudo propôs a discussão de importantes temáticas que certamente não se
esgotam. Fica o convite para o aprofundamento de questões levantadas ao longo do trabalho
em futuras pesquisas.
57
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