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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃ O PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE


CURSO DE PSICOLOGIA

GIORGIA BALLINI CAETANO

A influência do ambiente familiar


na construção da autonomia do sujeito

SÃ O PAULO
2023
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃ O PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA

GIORGIA BALLINI CAETANO

A influência do ambiente familiar


na construção da autonomia do sujeito

Trabalho de conclusão de curso


como exigência parcial para
graduação no curso de Psicologia,
sob orientação do Prof. Dr. Plínio
de Almeida Maciel Jr

SÃ O PAULO
2023
AGRADECIMENTOS

Aos médicos mais humanos do mundo, meus pais. Obrigada Lilian e Elesiário por me
mostrarem, mesmo que de forma inconsciente, a importância da escuta do sujeito e que sua
história vai muito além da doença. Sou muito grata por todos os diálogos e trocas que temos
frequentemente sobre a vida e o futuro. Agradeço também a todo o apoio nessa jornada de
minha escolha pela psicologia.
Ao meu irmão Gabriel que, mesmo com muitos interesses diferentes dos meus,
compartilha comigo as vivências dessa vida.
À tia Elisa que em todos os momentos não mediu esforços para me auxiliar quando
precisei. Obrigada por ser essa pessoa aberta, compreensiva e ouvinte número 1 de MPB. Todo
esse carinho faz muita diferença na jornada.
À Lorena por me mostrar de maneira tão singela a beleza das coisas simples. Nossos
encontros são sempre cheios de criatividade e potência.
Aos meus avós bacalhoeiros Alzira, Amenita e Alexandre, que abriram mão de muitas
coisas para viver no Brasil. Agradeço muito por todo o cuidado e atenção dirigidos a mim e ao
Gabriel até os dias de hoje. Estar aqui hoje não seria possível sem o apoio de vocês.
Aos meus avós Valei e Ballini que deixaram inúmeros ricos ensinamentos. Obrigada
por mostrarem que a presença não está relacionada a algo material, mas sim a histórias e
narrativas que realizamos nesse mundo.
Ao meu primo querido José Henrique pela autenticidade de ser quem é. Conviver com
você abarca infinitos ensinamentos e poesia.
À Camila por todas as conversas e compartilhamento de vivências. Obrigada pelas
trocas em muitos momentos de medo e angústia.
À Cida e Luiz, que, mesmo distantes, sempre estão presentes em forma de apoio e
torcida nas minhas conquistas.
À Sophia e Nicole, minhas francesas/brasileiras preferidas, que me mostraram de
maneiras tão singulares a importância da fala e o reconhecimento acerca da própria história.
Obrigada por compartilharem comigo essa aventura que foi morar na França e por terem sido
parte da minha família durante esse período. Espero que vocês tenham a dimensão da
importância que apresentam na minha trajetória.
À Lara que esteve sempre comigo em momentos de felicidade e tristeza, de alegria e
choro. Sou muito grata pela nossa amizade de anos (parei de contar) e como você consegue
deixar tudo mais leve e engraçado (até as broncas).
À Thais, que, com seu jeito único de ser, me acompanhou em tantas transformações da
vida. Obrigada por todas as conversas, surtos e ideias malucas nessa trajetória que fazem toda
a diferença pra mim.
Ao Hassan, meu melhor amigo, por todas as risadas, fofocas e angústias compartilhadas
que abriram espaço para que eu pudesse me expressar.
À Eva, professora que me apresentou todo o universo da história e da posição crítica
acerca do nosso mundo. Não só isso, por meio de seu jeito brilhante de educar, me mostrou as
leituras feministas e a reflexão acerca do lugar da mulher.
Aos professores da graduação e ao espaço da PUC-SP que me proporcionaram um lugar
extremamente rico e crítico sobre a realidade e a prática psicológica.
Aos meus amigos da PUC-SP que de forma singular me ensinaram a cada dia uma nova
perspectiva acerca do que é ser psicólogo. Sou muito grata por todos nossos encontros e
diálogos que com certeza me auxiliaram muito nessa jornada pessoal e acadêmica. Amo muito
vocês.
Ao Plínio, orientador deste trabalho, por toda troca, escuta e paciência nesse processo.
À mon copain, Corentin. Merci d'être toi-même toujours de ta manière unique et
sincère. Toutes nos conversations, nos appels vidéo et nos rires ont rendu le processus de ce
travail beaucoup plus agréable. Merci d'avoir soutenu mes projets les plus fous, cela fait toute
la différence.
O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”

(João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas)


A influência do ambiente familiar na construção da autonomia do sujeito
7.00.00.00-0 – Ciências Humanas
7 .07.07.02-2 Desenvolvimento Social e da Personalidade
Autora: Giorgia Ballini Caetano / e-mail: giorgiabcaetano@gmail.com
Orientador: Prof. Dr. Plínio de Almeida Maciel Jr. / Departamento de Psicologia do
Desenvolvimento Humano / Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde / e-mail:
p_macieljr@pucsp.br

RESUMO

O ambiente familiar ocupa um papel central na vida do sujeito uma vez que é a partir desse
lugar que ele terá suas primeiras interações com o mundo, a entrada na linguagem, frustrações,
desejos que reverberam de diferentes maneiras durante toda a vida. Ademais, os primeiros
cuidadores são um dos principais responsáveis por ensinar às crianças regras e valores precisos
à sua socialização, exercendo uma grande influência sobre a saúde mental delas. Dentro desse
contexto, levando em consideração que a autonomia está ligada ao processo durante a vida do
sujeito referente à capacidade de se tornar emancipado em relação aos seus próprios
pensamentos, desejos e emoções, esse trabalho procurou compreender, qual a influência da
família contemporânea na formação de um sujeito independente. A fim de atingir esse
propósito foi realizada uma revisão bibliográfica de abordagem qualitativa sobre temáticas
referentes ao assunto. Em um primeiro momento foi feito uma apresentação e retomada
histórica acerca do conceito de família, considerando-o como instituição social. Depois, o
mesmo procedimento foi realizado sobre a autonomia, a partir da articulação de autores de
referência na área da psicologia, a fim de formar uma compreensão plural do conceito. Após
uma análise sobre os dois conceitos, foi estabelecida uma relação entre eles referente à
autoridade parental, aos estilos parentais, às dificuldades e outras questões familiares que
podem aparecer no processo de separação entre os cuidadores e a criança. Por fim, foi realizada
uma discussão visando pensar como as questões de raça, classe e gênero atravessam as histórias
das famílias nas realidades brasileiras. A partir da reflexão realizada, foi possível entender o
conceito de família como histórico, ou seja, que muda ao longo do tempo de acordo com as
transformações socioeconômicas e culturais, compreender quais são os fatores que auxiliam ou
dificultam a construção da autonomia do sujeito na sociedade contemporânea e a importância
de levar em consideração o contexto sócio-estrutural de desigualdades.

palavras-chave: famílias; ambiente familiar; estilos parentais; autonomia.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 7
MÉTODO .......................................................................................................................... 12
1. SOBRE FAMÍLIA ........................................................................................................ 15
1.1 Família no contexto brasileiro .................................................................................... 19
1.2 Configurações familiares ........................................................................................... 21
2. AUTONOMIA .............................................................................................................. 24
2.1 A autonomia sob foco da psicologia .......................................................................... 25
3. AMBIENTE FAMILIAR ............................................................................................. 33
3.1 Parentalidade ............................................................................................................. 33
3.2 Estilos Parentais ......................................................................................................... 34
3.3 Dificuldades............................................................................................................... 37
3.4 Outras questões familiares – O não dito familiar e a Transgeracionalidade ................ 41
3.4.1 O não dito familiar ............................................................................................. 42
3.4.2 Transgeracionalidade ........................................................................................... 44
3.5 Para todas as famílias? – Como as opressões atuam sobre a realidade ........................ 45
CONCLUSÃO ................................................................................................................... 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 56
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 57
7

INTRODUÇÃO

Em uma sociedade que frequentemente aponta a família como uma entidade intocável
e idealizada, com discursos ''em defesa da família'' ou ''deus, pátria e família'', é preciso
questionar quais são os princípios para tal concepção. Baseada em um discurso moralista e
religioso, grande parte da sociedade neoliberal brasileira está engajada na defesa dos valores
tradicionais cristãos que sustentam a família e as relações afetivas. A direita brasileira, por
exemplo, monopoliza qualquer discussão sobre a família e cria uma abstração como se somente
eles tivessem acesso ao que chamam da ''verdadeira família brasileira''. No entanto, o que é
curioso, como aponta Duvivier (2018, p.7), é que: ''Ninguém no Brasil nunca fez merda em
nome do Capeta, da Maconha ou da Sacanagem. Toda vez que mataram, escravizaram e
torturaram no Brasil foi em nome de Deus, da Pátria e da Família''. Assim, os conservadores se
apropriam do discurso em defesa da família porque sabem que esse discurso reverbera na
sociedade brasileira e que, independentemente do espectro político, é um conceito muito
importante para os brasileiros (GREG NEWS, 2020). No país, esse ideal de família perfeita
como aquela que deve ser protegida a todo custo ainda impera muito nas narrativas dos sujeitos
e sempre há uma tentativa dos movimentos de direita em reforçar esse ideal imaginário da
''família tradicional brasileira'' composta por um casal heterossexual com filhos biológicos. No
entanto, essa concepção acerca do ambiente familiar não representa a realidade no contexto
brasileiro e exclui outras possibilidades de configurações. Segundo a psicanalista Vera
Iaconelli (PROVOCA, 2022), esse ideal é um mito, já que se baseia em uma moral
conservadora e se configura como aquela família que se fecha, não considera outras formas,
podendo ser comparada a uma milícia.

Em um contexto brasileiro que apresenta diversas configurações familiares, antes não


reconhecidas, como casais sem filhos, famílias monoparentais femininas e masculinas, famílias
homoparentais, entre outros arranjos, só nos últimos anos é que esse modelo de família
tradicional heteronormativa e biológica foi colocado em questão. O reconhecimento dessas
mudanças se apresenta, por exemplo, na área do Direito, sendo o Direito de Família o ramo do
jurídico que mais sofreu mudanças nas últimas décadas (BARRETO, 2013). Antes da
promulgação da Constituição de 1988, as leis do direito da família eram baseadas no modelo
de família patriarcal, deixando de lado outras formas de estruturas familiares, assim como
filhos que não fossem biologicamente do casal. Segundo Barreto (2013), eram consideradas
“famílias legítimas” apenas aquelas formada pelo matrimônio e, assim, toda outra forma de
estrutura familiar diferente dessa era desconsiderada. Após promulgação da Constituição de
8

19881, a família foi compreendida de maneira ampliada, como o núcleo no qual o ser humano
é capaz de desenvolver suas capacidades individuais, levando em conta os direitos humanos.
Um exemplo dessas mudanças referente ao reconhecimento de outros tipos de família é o artigo
4º que afirma: ''a família monoparental nos seguintes termos: entende-se, também, como
entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes''. Outro
artigo, o 7º, mostra que é função do Estado proteger a família: fundado nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre
decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas. É evidente que a Constituição não abarca toda a complexidade referente ao conceito
de família, mas fica claro que houve importantes transformações nesse aspecto.

Essas mudanças em relação ao que é considerado família mostra como, muito diferente
do disseminado na sociedade contemporânea, ela não se configura como um fato natural.
Durante muito tempo considerada como uma entidade orgânica, ou uma representação de uma
vontade divina na terra, de modo de ser natural e eterno, a família foi vista como um modelo
ideal a ser seguido. No entanto, segundo a psicóloga, psicanalista e pesquisadora da USP
Belinda Mandelbaum, estudos de antropologia realizados no final do século XIX evidenciaram
que a família é uma instituição social, uma vez que sua construção é baseada numa dimensão
sócio-histórica que vai sofrendo mudanças ao longo do tempo (CASA DO SABER, 2019).
Esse universo familiar é abordado em diferentes áreas do conhecimento, tais como a
Antropologia, o Direito, a Sociologia, a Filosofia e a Psicologia, já que ele não apresenta
necessariamente a reprodução biológica como função única, e contempla um papel econômico
e político. Partindo dessa perspectiva de que a família deva ser estudada a partir de suas
estruturas e funções, é possível compreendê-la como instituição social, dado que sua natureza
é influenciada pelo contexto histórico. Segundo Belinda Mandelbaum, isso significa que ela se
adapta ao longo do tempo, refletindo as mudanças sociais, econômicas e demográficas, e
assume características distintas em diversas sociedades ao redor do globo (CASA DO SABER,
2019).

As instituições se caracterizam por apresentarem não só estruturas físicas e


administrativas específicas, mas por serem uma forma de governamentalidade que moldam o
comportamento e a subjetividade dos indivíduos. Assim a família, como outras instituições,

1
Constituição atualmente em vigor.
9

impõe normas e padrões de comportamento que são considerados apropriados e desejáveis, ao


mesmo tempo em que oprime e exclui aqueles que não se enquadram nesses padrões. Ademais,
essas instituições apresentam peculiaridades como segurança e estabilidade que auxiliam na
manutenção de seus valores (FOUCAULT, 1979). Nesse sentido, elas podem ser
compreendidas como uma maneira de socialização criada pelos indivíduos a fim de controlar
as relações em sociedade. Também apresentam funções como a criação e cumprimento de leis,
papéis sociais e normas que concedem à pessoa legalidade em suas escolhas. Dessa forma, a
família pode ser compreendida como instituição, uma vez que apresenta a difusão de valores
como uma de suas principais funções e tem em si mecanismos como a socialização, que permite
a difusão de leis e normas que serão absorvidas pelos participantes, além de legitimar funções
que serão internalizadas pela criança (RAMOS; NASCIMENTO, 2008). Todos esses fatores
revelam a influência da instituição familiar na formação de sujeitos sociais.

Se por um lado é possível afirmar que cada vez mais a família vem sendo questionada
quanto à sua predominância nas relações entre sujeito e mundo, já que existem outras
instituições que apresentam uma grande influência sobre a história do indivíduo, tais como o
governo, a religião, o sistema de saúde, faz-se importante destacar que:

não foram criados dispositivos substitutivos eficazes, na presente cultura,


para substituir a família em sua função de assegurar a constituição subjetiva
de seus filhos e de garantir a eficácia da transmissão dos significantes
fundamentais da filiação e da sexualidade, de tal forma que, diante dos
entraves, escolhas e impasses, o sujeito possa construir significações e
precipitar decisões apostando no desejo. E é esse desejo que os torna, por si
mesmos, capazes de fundar laços sociais fora da família. (ROSA, 2001, p.
124)

Por mais que outras instituições exerçam influência sobre o indivíduo, esse trecho
mostra como a família apresenta um papel fundamental na formação dele. Isso porque é a partir
desse ambiente que o sujeito terá suas primeiras interações com o mundo, a entrada na
linguagem, frustrações e desejos que estão ligados a diferentes maneiras de lidar com essas
questões. Nesse sentido, faz-se necessário identificar a importância das vivências ocorridas no
interior da instituição familiar, uma vez que os cuidadores da família são um dos principais
responsáveis por ensinar às crianças regras e valores necessários à sua socialização, exercendo
uma grande influência sobre a saúde mental delas (SILVA; PEREIRA, 2018).

Outra característica importante do ambiente familiar é descrita por Ferenczi em ''A


adaptação da família à criança'' (FERENCZI, 1927/1990), no sentido da necessidade da adoção
que um grupo social deve realizar no cuidado de uma criança. Essa adoção significa que não
10

basta apenas nascer em um grupo, mas faz-se necessário que o sujeito seja incluído como um
membro digno de cuidados que obterá a herança afetiva e social do grupo que pertence. Isso
leva à reflexão sobre as situações nas quais a família não se encontra disponível com os recém-
chegados ao grupo devido a diversos motivos que podem estar relacionados com a
indisposição, frieza ou dificuldade que os adultos apresentam frente à receptividade desse ser
novo (PEREIRA; PERON, 2018). Esses aspectos mostram a capacidade ativa da criança de
perceber o que acontece ao seu redor, considerando-a como um ser social e produtor de cultura,
e não apenas influenciado pelo contexto cultural; um ser capaz de interagir, modificar e
ressignificar esse contexto.

Essa concepção da criança como um sujeito em desenvolvimento com sua própria vida
psíquica e emocional (DOLTO,1985) revela a importância de a reconhecer como um indivíduo
completo, com pensamentos, desejos e emoções próprias, mesmo que ainda não tenha
adquirido plenamente a capacidade de expressá-los verbalmente. A criança é um ser autônomo
e ativo, com uma vida interior complexa. Essa ideia acerca da infância e do que é ser criança
ocorreu a partir do século XVII, período no qual a infância passa a ser vista como uma etapa
essencial do ciclo vital humano, com suas características próprias. No passado, a infância era
frequentemente enxergada como um período de preparação para a vida adulta, e as crianças
eram tratadas como miniadultos, sem levar em consideração suas necessidades específicas de
desenvolvimento (ARIÈS, 2006). Crianças trabalhando em fábricas durante a revolução
industrial e mortalidade infantil alta eram cenas frequentes. No entanto, no final do século XIX
e início do século XX, o reconhecimento da infância como uma fase distinta da vida com
características e necessidades únicas está ganhando corpo. A partir de então, vai sendo
consolidada a concepção de infância que ainda hoje vigora, na qual as crianças são vistas como
seres inocentes e frágeis que precisam ser protegidos e educados (ARIÈS, 2006).

Paralelamente a esse contexto, começam a surgir as teorias psicológicas pioneiras,


como a Psicanálise, originada pelo neurologista e psiquiatra austríaco Sigmund Freud, que
trouxe uma compreensão mais aprofundada acerca dos estágios de desenvolvimento infantil e
da importância das primeiras experiências na formação da personalidade. Suas ideias foram
essenciais para que outros notórios autores iniciassem seus trabalhos nessa temática, dando
ênfase para esse período da infância, como Françoise Dolto, Lev Vygotsky e Jean Piaget. Com
o reconhecimento da infância como um período crucial para o desenvolvimento humano,
surgiram diferentes campos de estudo dentro da psicologia, como a psicologia do
desenvolvimento, a psicologia educacional e a psicologia clínica infantil. Essas áreas se
11

concentram na compreensão dos processos de desenvolvimento, na análise das influências


ambientais e sociais na infância, na avaliação e intervenção em questões relacionadas ao
comportamento infantil, no suporte emocional e no bem-estar das crianças, entre outros temas.
A consolidação da ideia de infância como etapa singular da vida humana impulsionou o
surgimento de trabalhos em psicologia voltados para o estudo do desenvolvimento infantil,
levando ao desenvolvimento de teorias, métodos de pesquisa e práticas clínicas específicas para
compreender e promover o bem-estar das crianças.

Apesar de apresentarem diferentes concepções acerca do período da infância e de como


o ambiente familiar pode influenciar na vida do sujeito, é possível estabelecer diálogos entre
alguns autores da psicologia. Os autores já mencionados trazem em seus trabalhos a
importância de um ambiente que propicie a autonomia da criança visando a construção de um
sujeito independente, crítico e ativo, capaz desenvolver uma ideia de responsabilidade e
liberdade, a partir da tomada de consciência e de decisões (VIANA JUNIOR, 2017). Dessa
forma, levando em conta que a família se apresenta como uma agência de produção de
subjetividade (BENELLI, 2004) e tem um papel central na construção da subjetividade do
sujeito, esse projeto se propõe a: a) debater os diferentes tipos de educação parental e suas
consequências na formação do indivíduo, b) esclarecer quais são as maneiras facilitadoras e os
desafios encontrados por muitas famílias quanto à temática da autonomia;
12

MÉTODO

Visando uma formação que procure desenvolver um sujeito autônomo, crítico e ativo,
capaz desenvolver uma ideia de responsabilidade e liberdade a partir da tomada de consciência
e de decisões, essa pesquisa tem como objetivo discutir qual papel o ambiente familiar exerce
sobre a construção da autonomia do sujeito. Com essa finalidade, o trabalho foi estruturado a
partir de uma pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa, sendo dividido em quatro partes.
A análise qualitativa deste material foi realizada tendo como base artigos, livros e recursos
midiáticos. O levantamento dos artigos foi realizado em cinco bases de dados, sendo essas a
Biblioteca Virtual em Saúde (utilizando a BVS-Psi e a PePsic), Scielo, Periódicos Capes,
Academia.edu e Google Acadêmico.

Em um primeiro momento, a fim de situar o leitor acerca do que é possível compreender


como família e como esse conceito foi mudando ao longo das épocas, foi feita uma retomada
histórica. Para realizar essa retomada foram buscados artigos com as palavras-chave
"autoridade parental" + "família" + "habilidades sociais", selecionando artigos com a temática
do campo da Psicologia2. Também, para a realização dessa parte inicial, recorreu-se à obra do
historiador francês Philippe Ariès, intitulada ''História Social da Infância e da Família'' (ARIÈS,
2006)3, por se tratar de um livro publicado em português por várias edições, o que atesta sua
importância no âmbito da produção de conhecimento no Brasil. Dentro disso, foram expostos
aspectos que marcam e singularizam a família brasileira, relacionando-as com o
reconhecimento de novas configurações familiares na sociedade atual e na legislação brasileira.

Em um segundo momento, foi realizada uma análise acerca do conceito de autonomia,


relacionando-o com autores de referência nas áreas da psicologia e pedagogia. Com essa
intenção, fez-se uma breve retomada da concepção da palavra autonomia para alguns filósofos,
em especial o alemão Immanuel Kant, que levanta muito essa questão em suas obras como
"Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?" (Beantwortung der Frage: Was ist
Aufklärung?), publicado em 1784 (KANT, 1784/2022). Depois, foi feita uma relação do
conceito de autonomia com a psicologia e a educação, a partir do diálogo entre notórios autores
como Sigmund Freud, Françoise Dolto, Jean Piaget e Paulo Freire, a fim de realizar uma
abordagem mais rica acerca da temática. Esses autores foram utilizados uma vez que abordam

2
Buscou-se artigos e trabalhos publicados em periódicos brasileiros no período entre 2013-2023. Eventualmente,
em virtude da contextualização histórica dos temas trabalhados, buscou-se material mais antigo tendo como
critério sua relevância no campo da história e da formação da Psicologia brasileira.
3
A obra original foi publicada pela primeira vez em 1973.
13

de maneiras diferentes em suas obras a importância que os pais e cuidadores assumem frente à
criança, e mostram um ponto de vista afetivo, moral, social e cognitivo da autonomia,
enfatizando uma educação que visa a separação gradual entre cuidadores e sujeito, na qual o
indivíduo vai aos poucos se construindo e se transformando de maneira singular. Na realização
dessa segunda parte da pesquisa, foram buscados artigos a partir das palavras-chave
''autonomia'' + ''psicanálise'' + ''Paulo Freire'' + ''Jean Piaget'' nas fontes já citadas
anteriormente.

Feitas as retomadas históricas acerca dos conceitos de família e autonomia, o terceiro


capítulo desta pesquisa buscou fazer uma articulação entre os dois conceitos. Com o objetivo
de mostrar como o ambiente familiar interfere na construção de um sujeito autônomo, essa
parte do trabalho foi dividida em quatro momentos, sendo eles: parentalidade, estilos parentais,
dificuldades e questões familiares. Essa partilha foi pensada com a finalidade de ordenar os
objetivos visados na pesquisa. Dessa forma, foi trabalhado como é possível compreender a
parentalidade na atualidade, pensar em diferentes formas de expressões parentais e seus efeitos,
os obstáculos muitas vezes encontrados por pais e cuidadores no processo de emancipação do
sujeito, e como as questões não abordadas no convívio familiar podem voltar de outras formas.
Nessa circunstância, foram selecionados artigos com as palavras-chave: ''parentalidade'' +
''ambiente familiar'' + ''não-dito'' + ''autonomia''.

Por fim, a última parte desta pesquisa pretendeu abarcar de que maneira as opressões
de raça, classe e gênero atravessam a realidade de inúmeras famílias brasileiras. Essa
abordagem faz-se necessária na medida que, ao se realizar uma análise sem abordar esses
temas, incorre-se no lugar de um discurso universal que se aplique a todos os indivíduos, o que
é um equívoco. A fim de realizar essa análise foram utilizadas duas obras da coleção
“Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa negra brasileira Djamila Ribeiro. A primeira é
intitulado ''Lugar de fala'', da própria Djamila (RIBEIRO, 2019a), e o segundo ''Racismo
Estrutural'', do advogado e escritor negro Silvio Almeida (ALMEIDA, 2019). Além disso, foi
utilizado um artigo da antropóloga feminista argentina Rita Segato, intitulado ''O Édipo
brasileiro: a dupla negação de gênero e raça'' (SEGATO, 2006), juntamente com outras obras
que discutiam acerca da realidade brasileira.

Em suma, no total, com esse levantamento bibliográfico, foram avaliados 30 artigos no


trabalho. Além disso, foram utilizados 14 livros como auxiliadores para a pesquisa, 5 vídeos
da plataforma Youtube de entrevistas com psicanalistas e 1 episódio do podcast ''Meu
inconsciente coletivo'', do jornal Folha de São Paulo. Todas essas fontes auxiliaram na
14

realização de um trabalho plural e rico, a fim de compreender o impacto do contexto familiar


na construção da autonomia do indivíduo.
15

1. SOBRE FAMÍLIA

A família de hoje não é mais nem menos perfeita do que aquela


de ontem: ela é outra, porque as circunstâncias são outras.

Émile Durkheim

Nas últimas décadas, tem-se observado uma mudança na concepção de família, devido
a diversos eventos importantes do mundo contemporâneo, tais como as mudanças no papeis
das mulheres na sociedade, o advento da internet, o sistema político vigente, a ideologia
individualista da sociedade contemporânea, entre muitos outros fatores. Sem dúvida, é de supor
que a concepção de família também passou por reformulações simultaneamente a estas
mudanças referidas. Como a construção desse conceito se apresenta intrinsecamente nas
estruturas estatais e a família é compreendida como o berço da sociedade e a garantidora de
propagá-la de forma ordenada (GODOY et al., 2020), é preciso compreender quais foram as
transformações culturais, sociais e políticas que ocorreram no percurso da história a fim de
evidenciar o que é entendido como família atualmente e como ela se conduz em termos de
dinâmica e funcionamento.

Partindo de um breve panorama histórico, Ramos e Nascimento (2008) destacam a


entrada do mundo ocidental no sistema feudal como uma importante época de mudanças no
conceito de família na Europa, uma vez que esse modo de funcionamento estava ligado
intrinsecamente a uma doutrina religiosa. Ou seja, a sociedade era regida por um sentimento
comunitário, sob o qual a família tinha uma função produtiva e, assim, assumia um papel de
''comunidade natural vinculada pelo matrimônio religioso (de natureza perpétua) e pelos laços
biológicos oriundos da procriação'' (Ibid., p. 15). Entre os séculos V e XV na Europa, as
crianças eram vistas como miniaturas de adultos, sendo submetidas a uma educação rígida e
disciplinadora desde cedo, e não havia uma noção clara de infância como uma fase distinta da
vida (ARIÈS, 2006).

A partir do século XVII, ocorre uma mudança gradual na percepção da infância, que
passa a ser vista como uma etapa importante no desenvolvimento humano (ARIÈ S, 2006),
como é evidenciado no trecho:

A afeição tornou-se necessária entre os cônjuges, e entre os pais e os filhos.


O “sentimento de família” nasceu simultaneamente com o “sentimento de
infância”: com o objetivo de melhor cuidar de suas crianças, a família
recolheu-se da rua, da praça, da vida coletiva, em que antes se encontrava,
para a intimidade, fazendo desaparecer a antiga sociabilidade (PONCIANO;
CARNEIRO, 2003, p. 57)
16

Então, é a partir do século XVII que se vai sendo consolidado a concepção de infância
que ainda hoje vigora, na qual as crianças são vistas como seres inocentes e frágeis, que
precisam ser protegidos e educados (ARIÈS, 2006). Faz-se importante assinalar também que a
consolidação do entendimento de infância como uma fase da vida humana que apresenta suas
peculiaridades apresentou um grande impacto no entendimento do papel da mulher como mãe
e, consequentemente, no próprio entendimento de feminilidade.

A consolidação da ideia de infância como etapa singular da vida humana se deve muito
às contribuições da psicologia como ciência, na medida que, a partir dos trabalhos de Wilhelm
Wundt na Alemanha, com o primeiro laboratório de Psicologia, o período da infância começa
a ganhar destaque como um momento peculiar do ciclo vital humano que merece especial
atenção, cerne para a formação do sujeito. Não é casualmente que muitos autores reconhecidos
da área da psicologia dão a esse período da vida uma importância fundamental, como Sigmund
Freud, Jean Piaget, Melanie Klein, John Bowlby, entre outros.

Assim, com esse entendimento, a criança passa a ser considerada um fator produtivo
social. Isso porque, a partir do desenvolvimento de uma política econômica colonial, foi criado
um novo aspecto na economia libidinal, devido a três características da sociedade
contemporânea. Primeiramente, a formação da família como uma entidade natural e fechada.
Dessa maneira, cria-se uma outra ideia da família moderna e a mulher como um ser
domesticado. Essa nova concepção surge, principalmente, devido a fatores econômicos, uma
vez que é do interesse do Estado promover uma economia na qual a família passa a
compreender a função de cuidadora e mãe, tendo, portanto, na mulher, seu principal suporte.
Isso tudo promove um relacionamento libidinal, no qual tanto a responsabilidade quanto a
culpa do futuro da criança se tornam essenciais para a formação do casal. É assim que nasce a
imagem de ''Sua majestade, o bebê'' que se torna o centro do mundo familiar. O segundo fator
é a concepção da maternidade como maternagem, vista como natural no imaginário social.
Nessa concepção, a mulher ocupa um lugar central na política de conservação dos corpos dos
filhos e é sustentada pelo desenvolvimento da pediatria, que se apresenta à serviço da ideia que
assimila maternidade como maternagem, ou seja, relaciona o papel da mãe ao conjunto de
ações, comportamentos e práticas no cuidado e na criação de crianças, envolvendo diversos
encargos tais como a amamentação, alimentação adequada, proteção, estímulo ao
desenvolvimento físico e emocional, ensinamentos sobre valores e normas sociais, afeto,
segurança e acompanhamento da saúde da criança. A esse novo saber, soma-se a destituição
do saber da mãe e o corpo da criança é inserido em uma lógica científica-médica, na qual as
17

crianças podem ser divididas entre crianças sadias e doentes, com base no tipo de cuidado que
receberam da mãe (VOLNOVICH, 1993). Além disso, fatores como transformações sociais, o
aumento da alfabetização, a difusão de livros infantis e a criação de escolas destinadas
especificamente para crianças, e o surgimento de novas teorias sobre a natureza humana,
influenciaram a forma como os adultos viam as crianças, entendendo-as como indivíduos em
desenvolvimento com necessidades e interesses próprios (ARIÈS, 2006).

Nesse contexto, é possível então afirmar que com a emersão do sistema capitalista e
suas singularidades, mudanças importantes ocorreram na estrutura familiar. Essas alterações
foram ainda mais impactantes com a conquista de direitos trabalhistas pelas mulheres durante
os séculos XX e XXI, principalmente durante o período da revolução industrial. Levando em
conta que os conceitos não são estáticos e sim concomitantes à realidade sociocultural de cada
época, a infância também precisa ser compreendida como consequência de sistemas políticos,
econômicos, sociais e libidinais na sociedade (VOLNOVICH, 1993). Assim, segundo
Volnovich (1993), no século XXI, as crianças assumem um papel no imaginário social de
''esperança da humanidade'', que reflete nelas mesmas a autoestima e frustração dos adultos.

Assim, a partir de importantes transformações no contexto sociocultural-econômico,


houve mudanças significativas no conceito de família. Dessen (2010) aponta para os fatores
responsáveis pela mudança de uma estrutura familiar hierárquica (anos 1950) para uma
estrutura igualitária (anos 1980). Primeiramente, a mudança de papéis e autoridade
relacionados a homens e mulheres. Na década de 1950, as famílias eram marcadas por um
arranjo familiar no qual havia o pai, a mãe e filhos que obedeciam a esse pai, de maneira
econômica e afetiva. A partir dos anos 1960, inicia-se uma mudança na divisão de papéis entre
os sexos, com o aumento do movimento feminista que questionou o lugar da mulher na
sociedade e na família, e também por conta de mudanças resultantes de processos técnico-
científicos, como o acesso ao uso da pílula anticoncepcional para um amplo grupo de mulheres.
Ou seja, a mulher, única responsável pelos cuidados das crianças pequenas, da casa e da
educação dos filhos em idade escolar, passa, a partir do final dos anos 1960 e início dos anos
1970 e 1980, a participar mais amplamente do contexto social, político e econômico do país, e
também começa a exigir papéis mais igualitários entre homens e mulheres dentro de casa, e
entre pais e filhos. Dessa forma, as relações familiares que antes eram marcadas pela
hierarquização vão se tornando menos desiguais no âmbito doméstico.

Ademais, outra transformação importante foi a mudança na compreensão de família,


considerada antes nuclear para uma rede mais extensa, isto é, levando em conta a importância
18

de outros fatores na constituição de uma família, tais como o compartilhamento da educação


dos filhos com outros grupos sociais e a consideração de diferentes configurações familiares
que sempre existiram no Brasil, mas que só passam a ter visibilidade a partir doas anos 1980-
1990. Essa nova forma de enxergar a família era reflexo das consequências de novos valores,
crenças e práticas sociais que foram emergindo nesse período. Singly (2007) sinaliza que após
os anos de 1960 o foco passa a ser a realização individual de cada sujeito e não da família como
entidade. Essa mudança está ligada à crescente onda do individualismo apoiada pelo ideal
capitalista, associada a uma busca por uma maior autonomia, relacionada às transformações
das novas organizações familiares. Apesar de todo o contexto apresentado é importante
salientar que ainda é possível observar alguns vestígios da antiga hierarquização,
heteronormatividade e patriarcado atualmente no imaginário social quanto ao entendimento de
família.

Dessen (2010) salienta a dificuldade na criação de um conceito definitivo para o que se


designa como família devido aos diversos tipos e possibilidades de conjunturas familiares na
contemporaneidade. Baseado nisso, ela afirma que, atualmente, as famílias são construídas
sobretudo nos sentimentos subjetivos concebidos pelas pessoas que estão envolvidas naquelas
conjuntura. Como a autora afirma:

Uma definição contemporânea de família, portanto, deve estar baseada na


opinião de seus membros, considerando a afetividade e a proximidade com
os entes queridos critério para a composição de família. Variáveis como
consanguinidade, continuidade ao longo da vida, relacionamento
heterossexual, divisaõ da mesma casa, etc., por si só, naõ definem o que seja
família (DESSEN, 2010, p. 211)

Levando em conta o contexto apresentado, é importante ressaltar que não há uma


concepção universal de família na atualidade. Apesar de haver aspectos comuns e
complementares entre as áreas do conhecimento referente ao assunto, o direito, a antropologia,
a sociologia e outras áreas apresentam diferentes concepções acerca da família. Na psicologia,
diversos autores propõem uma discussão acerca da temática familiar e sua interferência na
subjetividade dos indivíduos que a ela pertencem. Um autor que se destaca é Salvador
Minuchin, terapeuta familiar ítalo-americano que desenvolveu uma teoria sistêmica de família
no âmbito da intervenção clínica, isto é, um estudo profundo sobre os padrões de interação e
relacionamento e comunicação implicados na dinâmica familiar (MINUCHIN, 1982). Essa
abordagem afirma que os problemas individuais de um membro da família não podem ser
entendidos isoladamente, mas devem ser vistos dentro do contexto dos relacionamentos
19

familiares mais amplos. Ademais, enfatiza a importância da estrutura familiar e como ela
influencia a comunicação, os comportamentos e as emoções dos membros da família
(MINUCHIN, 1982).

Dessa forma, como já mencionado anteriormente, tanto o conceito de família como o


da infância estão atrelados ao contexto sociocultural vigente de uma época. Ou seja, a fim de
analisar o modo de funcionamento de uma família, é preciso entender que cada uma apresenta
suas peculiaridades, mas que ao mesmo tempo elas compartilham um universo em comum com
características únicas que irão interferir de diferentes formas na realidade de cada família.

1.1 Família no contexto brasileiro

É inegável que todas as mudanças descritas anteriormente influenciaram a dinâmica


familiar na conjuntura brasileira. Nesse sentido, Dessen (2010) reitera a incapacidade de criar
um conceito fixo para família, visto que este conceito está diretamente ligado ao contexto
histórico vigente e suas peculiaridades. Por conta disso, a pesquisadora ratifica a utilização do
termo famílias brasileiras, uma vez que não existe um único modelo de organização familiar
devido ao histórico de uma diversidade étnico-cultural no país. Apesar de o entendimento do
conceito de família no Brasil ser influenciado pelo pensamento dominante do Norte Global, é
preciso compreender quais importantes questões se apresentam singulares na conjuntura
brasileira.

A história do Brasil é marcada por uma série de peculiaridades como, por exemplo, pela
presença de povos indígenas, africanos e europeus, que se misturaram ao longo dos séculos
para criar uma cultura plural e diversa. No entanto, essa formação não ocorreu de maneira
passiva, mas sim com a presença de conflitos e tensões ao longo da história. Outra
singularidade da história brasileira é a longa duração da escravidão, sendo o Brasil o último
país do continente americano a aboli-la, em 1888, o que deixou profundas marcas na sociedade
e na sua estrutura econômica e política até os dias de hoje. Além disso, O Brasil é marcado por
complexidade e diversidade em sua formação social e política na medida que o país passou por
uma série de regimes políticos ao longo da sua história, desde o período colonial até a
atualidade, e lidou com desafios significativos em relação ao seu território e à construção de
uma identidade nacional. A partir dessa síntese, é possível afirmar que tais singularidades
marcaram a história do país e influenciam a maneira como a chamada família brasileira é
entendida atualmente (SCHWARCZ; STARLING, 2015).
20

Ainda sob a perspectiva do contexto brasileiro, Araújo (2011) procura identificar como
as mudanças sociais, culturais, econômicas e polit́ icas resultantes da modernização capitalista
influenciaram nas transformações da família no cenário brasileiro. É possível destacar
importantes marcos nesse processo de transformação, como o período pós ditadura militar, com
a aceleração da modernização capitalista e mudanças nos valores, o que acarretou uma crise no
modelo de família tradicional hierárquica e autoritária e cedeu espaço para outros tipos de
família mais igualitárias e democráticas. Nesse sentido, algumas características marcadas pelo
período pós 1964, que não podem ser entendidas de forma individual e que são determinantes
como cerne das mudanças da família, auxiliaram nessa atualização. Destacam-se o aumento da
indústria cultural e de serviços, as oportunidades de trabalho, a inserção progressiva de
mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, um questionamento referente ao papel
antes considerado ''natural'' da mulher e as relações de poder dentro do ambiente familiar. Cada
um desses fatores precisa ser compreendido de maneira dialética, ou seja, é necessário abarcar
as contradições e os conflitos do sistema socioeconômico e cultural para chegar a uma ideia
mais ampla e profunda sobre a temática. Assim, por exemplo, devido a questões de opressão,
as conquistas geradas pela modernização capitalista não foram ofertadas da mesma maneira a
todos os grupos, como explicitado nesse excerto:

No Brasil elas (as conquistas da modernização capitalista) são mais acessíveis


aos segmentos médios urbanos mais intelectualizados, onde é mais visível o
processo de democratizaçaõ das relações pessoais e familiares, no
questionamento das desigualdades de gênero e revisaõ dos papéis
tradicionalmente atribuídos ao masculino e ao feminino (ARAÚJO, 2011, p.
15)

Com isso, é possível notar que a mudança na concepção de família deve-se muito à
mudança dos papéis femininos durante os séculos. Se até a metade do século XX as mulheres
apresentavam um papel definido de casar e ter filhos, isso mudou quando foi conferida a elas
a possibilidade de separar sexo e procriação, um fator que foi decisivo para reconfigurar o papel
da mulher na família e na sociedade. A psicanalista Maria Rita Kehl (CAFÉ FILOSÓFICO
CPFL, 2018) pondera como a própria lógica de mercado da sociedade capitalista atual destruiu
as bases de sustentação da família nuclear burguesa. Segundo ela, essa transformação ocorreu
devido a dois fatores principais, sendo eles a necessidade da entrada da mulher no mercado de
trabalho, a fim de gerar mais capital para a sustentação do sistema, e a produção de
contraceptivos pela indústria farmacêutica, como a venda de anticoncepcionais que
inauguravam a oportunidade do sexo como prazer e não como um meio de procriação. É
interessante notar que, com a própria entrada da mulher no mercado de trabalho, que implicou
21

inevitavelmente em passar menos tempo em casa, as classes médias começaram a adotar novas
formas de criar os filhos, algo que as classes pobres já conheciam (BERQUÓ, 1998). Ou seja,
as classes médias começaram a utilizar um mecanismo de compartilhamento da educação e o
cuidado dos filhos com vizinhos e outras pessoas, e, no caso de famílias de classe média, a
contratação de empregadas domésticas em tempo integral, uma prática herdada da escravidão.

Nessa compreensão, Scott (2011) mostra mudanças referentes ao contorno das famílias
brasileiras e às relações de gênero durante os anos no Brasil. Em um primeiro momento,
durante a construção do país, algumas famílias brasileiras eram caracterizadas de forma
negativa com referência especial à diferenciação racial e à miscigenação. Depois, a situação é
invertida e começa-se uma idealização das famílias patriarcais como mantenedoras de uma
integração nacional em tempos de centralização do Estado. Por conseguinte, a partir da
urbanização e da aderência a um sistema desenvolvimentista e burocrático, há a formação
idealizada de famílias nucleares urbanas, retratando a maneira que a urbanização homogeneíza
e padroniza as famílias que saem do campo. Após isso, nota-se uma deterioração desse modelo
de família brasileira, devido ao histórico já apontado anteriormente neste trabalho, somada aos
processos de empobrecimento das famílias e à sobrecarga das mulheres urbanas de classes
populares trabalhadoras.

Toda essa conjuntura mostra que o Brasil apresenta características únicas de sua história
que precisam ser levadas em consideração quando do estudo das chamadas famílias brasileiras.
Isso porque essas transformações no contexto sócio-político-econômico perpassam o cotidiano
de diversas famílias. Dessa forma, é preciso analisar as famílias brasileiras levando em conta
as desigualdades e as opressões de raça, classe e gênero dentro do cenário brasileiro.

1.2 Configurações Familiares

A partir do breve histórico apresentado anteriormente é possível assinalar que família


se apresenta como instituição social uma vez que ela é histórica, ou seja, ela muda no tempo
de acordo com as transformações sociais, econômicas e à própria composição das populações,
que, segundo Belinda Mandelbaum, é diversa em diferentes formas de sociedade ao redor do
mundo (CASA DO SABER, 2019). Assim, essas importantes mudanças culminaram em
diferentes concepções do que é família e de suas formas de organização.

Nesse sentido, é possível apontar três momentos marcantes de organização familiar ao


longo da história. Primeiramente, a família tradicional, marcada pela posição da autoridade
patriarcal e do patrimônio, na qual o casamento era arranjado pelas famílias. Em seguida, há a
22

presença da família moderna (final do século XVIII até o inić io do século XX), baseada em
uma lógica afetiva, ou seja, destaca-se o amor romântico, ao mesmo tempo que o poder começa
a ser compartilhado entre o Estado, as famílias e os genitores. Por último, tem-se a família
contemporânea, fundada na conciliação de pessoas que apresentam como prioridade a
satisfação íntima ou sexual na relação. Esse bem-estar se apresenta como elemento
fundamental nas trocas afetivas e, assim, a duração das relações varia de acordo com os ideais
vigentes na sociedade (GIDDENS, 2003). Assim, essas transformações nas maneiras de
organizações familiares abriu um espaço para novas configurações de família que antes não
eram reconhecidas. Como destaca a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco:

(...) as famílias contemporâneas são, primordialmente, constituídas sob as


bases da busca pela satisfação, que passa a determinar o tempo e a estabilidade
do vínculo entre as pessoas. Nesse contexto, acompanhamos o aumento
crescente do número de separações e recasamentos, bem como, a
multiplicaçaõ do número de famílias monoparentais e homoparentais.
(ROUDINESCO, 2003, apud GORIN et al., 2015, p. 11)

Essas mudanças como também a amplitude do que é considerado família deve-se em


grande parte ao aumento dos movimentos sociais feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, que
colocaram em dúvida diversos papéis que antes eram considerados naturais e biológicos. Uziel
(2000 apud GORIN et al., 2015, p. 13), propõe o uso do termo “pluriparentalidade” a fim de
indagar uma perspectiva biológica e exclusiva e, a partir disso, reconhecer o desejo e a
convivência daqueles que exercem as chamadas “funções parentais”, independentemente de
quem as exerça, não necessariamente a ''mãe'' e o ''pai'' compreendidos de maneira
heteronormativa. Dessa forma, essas composições e recomposições questionam as funções
consideradas inatas desempenhadas por pais e filhos, a construção da subjetividade de cada
membro da família e a organização do grupo familiar. Ao longo do tempo vão surgindo figuras
que legitimam as novas configurações familiares, e termos como união estável, união
homoafetiva e multiparentalidade são nomeações dessas mudanças. Essa abordagem não só
protege os participantes daquela família como também permite que a ideia de família não fique
centrada em um modelo heterossexual, cisnormativo e monogâmico.

No entanto, apesar de todos os estudos, transformações e análises feitas nos últimos


anos referentes ao tema, o ideal de família como algo orgânico ligado ao modelo hetero cis
branco mostra-se latente de alguma maneira. Partindo do sentido de que algo latente é aquilo
que está presente mas não é evidente ou manifesto no momento, pode-se entender que essa
concepção arcaica de família ainda se apresenta em algumas esferas no coletivo e nas próprias
23

subjetividades4. No campo jurídico, por exemplo, é possível notar uma ampliação na concepção
de família, abrangendo outras possibilidades de modelos, como demonstra o artigo 226 da
Constituição Brasileira em seu parágrafo 4º, o qual afirma: “entende-se, também, como
entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL,
1988/2006). Apesar desse aprimoramento, a constituição vigente apresenta algumas
imprecisões. Por exemplo, no mesmo artigo, parágrafo 3º, segundo o qual, “para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988/2006). Nesse
exemplo é possível notar uma perspectiva heteronormativa, sendo considerada apenas a união
estável entre um homem e uma mulher. Outro aspecto que mostra um retorno ao ideal de
família obsoleto é uma proposta que chegou ao Congresso brasileiro em 2015 e que recomenda
o “estatuto da família”, que procura legislar sobre o que é família no Brasil, ou seja,
considerando a família como arranjo de um casal cisnormativo e heterossexual com filhos. A
própria realidade brasileira revela que esse arranjo não comporta nem metade da população,
marcada pela diversidade e por diferentes configurações familiares. Um exemplo da
inconsistência desse argumento conservador é o crescimento do número de crianças registradas
por mães-solo. Segundo uma pesquisa do jornal Folha de São Paulo, realizada em 2022, só nos
primeiros meses do mesmo ano, 100.717 crianças foram apresentadas no cartório por mães
solo. Esse número revela uma falha na responsabilidade paterna, marcada pelo machismo e
patriarcado estrutural (LUCCA, 2022, p. 2).

4
FIGUEIRA, S. A. O moderno e o arcaico na nova família brasileira: notas sobre a dimensão invisível da mudança
social. In: S. A. Figueira (org.). Uma nova família? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. p. 11-30.
24

2. AUTONOMIA

Apresentada em diferentes acepções, segundo o dicionário Houaiss (2015) a autonomia


pode ser definida como a tomada de decisões por vontade própria, o que faz com que o sujeito
esteja apto para tomar suas próprias decisões de maneira consciente. A origem do termo é grega
e faz alusão ao autogoverno, liberdade, independência moral ou intelectual. A palavra
"autônomo" vem da junção de “autos” (eu mesmo) e “nomos” (lei, norma, regra). Apesar
dessas definições, é evidente que ela não é suficiente para a reflexão e complexidade que a
temática do conceito apresenta para o trabalho apresentado. Por conta disso, faz-se necessário
traçar um breve histórico da noção de autonomia, assim como a compreensão e importância
dela para diferentes autores da área da psicologia.

Pode-se afirmar que a discussão referente à liberdade e autonomia sempre esteve


presente no campo da filosofia. Desde a Grécia Antiga, com os questionamentos reflexivos de
Sócrates e a alegoria da caverna de Platão, há uma busca pelo conhecimento e sabedoria
consideradas como uma forma de liberdade, podendo ser alcançada por meio do conhecimento
e da razão que permitiam ao sujeito não ficar preso a opiniões e crenças apresentadas. Assim,
com o decorrer dos séculos, as ideias de liberdade e autonomia começaram a ganhar cada vez
mais atenção nesse campo, em especial na modernidade, século XVIII, período no qual o
filósofo Immanuel Kant levanta importantes questionamentos referentes à relevância da
autonomia e ao chamado ''esclarecimento''. Segundo o filósofo (KANT, 1784/2022), o
esclarecimento pode ser compreendido como a saída do homem de sua menoridade, ou seja, o
que este alcançaria ao se tornar capaz de pensar de modo livre e autônomo, sem a tutela de um
outro. Além disso, Kant desenvolveu uma teoria da autonomia, na qual afirma que liberdade e
autonomia são dependentes, considerando a última como uma capacidade de ação dirigida pela
razão, sem a submissão de intervenções externas. Como pontua Borges (2007):

Para Kant, a autonomia é o fundamento de toda a moralidade das ações


humanas. A autonomia consiste na apresentação da razão para si mesma de
uma lei moral que é válida para a vontade de todos os seres racionais
(BORGES, 2007, p. 7).

Assim, é possível demarcar que, para o filósofo, a autonomia é sinônimo da capacidade


do ser humano de se autogovernar de acordo com seus padrões de conduta moral sem que haja
influência de outros aspectos exteriores. Importante observar também que a concepção é
alinhada ao contexto histórico do Iluminismo, movimento caracterizado pelo uso da razão,
como referência e crítica em todos os aspectos da vida humana. Dessa forma, ao longo dos
25

anos a questão da autonomia e liberdade foram e são até hoje importantes temas na área, que
influenciaram muitos pensadores em outras áreas de estudo, como a psicologia, por exemplo.

2.1 A autonomia sob foco da psicologia

O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu


gesto a relaç ão dialógica em que se confirma como inquietaç ão
e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na
História.

Paulo Freire

A questão da autonomia e liberdade estão intimamente ligadas ao sujeito e sua interação


com o mundo, isso porque é a partir dessa relação que se faz possível a constituição psíquica
do sujeito. Por conta disso, o tema se tornou muito presente nos debates da psicologia, já que
essa apresenta interesse na compreensão dos processos de grupos e indivíduos. Assim, serão
apresentadas algumas concepções de autonomia segundo importantes autores que marcam a
psicologia ocidental.

Primeiramente, Freud introduz com a psicanálise uma concepção de sujeito que retira
o indivíduo de um lugar essencialmente biológico, marcado pela medicina da época, e começa
a reconhecer a importância do relato do paciente sobre ele mesmo. A partir disso, autores pós-
freudianos entendem a linguagem e a fala como cerne da atuação analítica. Nesse sentido,
Lacan (1960/2016) expõe uma compreensão de sujeito como um ser em tensão, na medida que
luta contra os desejos do Id, ao mesmo tempo que luta entre atividade do Eu e as exigências da
instância moral. Ou seja, o sujeito da psicanálise é um sujeito dividido, já que precisa lidar o
tempo todo com tensões como inconsciente/consciente, simbólico/real, sujeito/objeto e as
instâncias psíquicas. O psicanalista afirma ainda que o sujeito é constituído a partir da alienação
ao outro (um lugar, pai, mãe, amigos, código, linguagem, cultura, etc..), isto é, que a própria
formação do sujeito enquanto sujeito é a partir da imagem do outro.

Sob essa ótica, a autonomia em psicanálise pode ser compreendida como um processo
que se desenvolve ao longo da existência, relativo à capacidade do sujeito de conseguir se guiar
por si mesmo, tomando consciência e se responsabilizando por suas limitações, necessidades e
desejos (VARGAS, 2020). Ou seja, não é a razão que determina a vontade e impede a
submissão presente na condição humana, assim como naõ é por meio da negação dos desejos
que se pensa a autonomia, mas sim considerando-a como:
26

(...) tensão constitutiva do desejo e dos circuitos da atividade da pulsão que,


como potências de desestabilizaçaõ das leis internalizadas, das identificações
assumidas, dos objetos investidos está, de alguma forma, impedindo a ideia
de sujeito sujeitado. (VARGAS, 2020, p. 204)

Ou seja, comparando com a ideia de Kant sobre autonomia, há uma interessante


associação, na medida que é a partir dos circuitos pulsionais ininterruptos como submissos para
a consciência e o Eu que há a possibilidade de pensar a autonomia de forma dinâmica como:

a incessante circulaçaõ da tensão que, ao naõ permitir a estabilizaçaõ , esteja


sempre e ao mesmo tempo abrindo novas formas de se ser sujeito. (VARGAS,
2020, p. 205)

Outra figura importante dentro da psicanálise que dedicou grande parte de sua trajetória
ao estudo da autonomia das crianças em relação aos cuidadores foi Françoise Dolto. Sob
influência da psicanálise e de seu trabalho com o público infantil, Dolto desenvolveu uma teoria
original sobre a educação de crianças. A autora dedicou grande parte de sua obra aos estudos
sobre educação de pais e professores, mostrando algumas reflexões sobre os efeitos da escuta
e da ''não escuta'' de crianças. Diferentemente de outras concepções da época, Dolto coloca a
criança em um lugar de sujeito ativo que não só convive no mundo, mas age sobre ele, assim
como os adultos; reconhece que cada sujeito apresenta uma maneira única referente ao que
acontece ao seu redor. A psicanalista sempre pontuou em suas obras a conquista da autonomia
psíquica das crianças e a dificuldade no processo de separação dos cuidadores, um período
marcado por conflitos. Dolto partia do pressuposto de que a autonomia precisava ser
conquistada de maneira gradual e regular e, por isso, considerava necessário a construção de
um espaço no qual crianças e cuidadores tivessem a oportunidade de realizar essa separação
progressiva (KUPFER, 2006).

Essa separação em relação aos progenitores ou aos cuidadores que assumem uma
função em relação à criança está intimamente relacionada ao que Freud chamou de complexo
de castração, o qual o autor liga diretamente à sua teoria sexual infantil. Segundo Dunker
(CHRISTIAN DUNKER, 2018), Freud traz em suas obras sobre o período infantil da vida que
as crianças começam a levantar muitos questionamentos sobre o que observam e, dentro disso,
aparece a questão da origem dos bebês. Esse período é muito importante não só no campo
cognitivo (no nível de uma inteligência crítica para questionar certezas) como também na
produção da fantasia. Segundo a definição de Laplanche e Pontalis (2001), é possível entender
a fantasia como:
27

Roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa, de modo


mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a realizaçaõ de um
desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001, p. 169)

Dessa forma, o complexo de castração pode ser compreendido como um núcleo


fundamental do complexo de édipo. É o momento no qual a criança precisa integrar e
considerar seu progresso nos termos das teorias sexuais infantis, ao mesmo tempo que é
necessária uma inclusão simbólica referente à relação que ela tem com seus cuidadores e à
relação que estes mantêm entre si. Assim, esse conjunto de problemas é equacionado em uma
espécie de falta central. Esse complexo é central no entendimento das estruturas psíquicas,
sendo elas a perversão, psicose e neurose, consideradas como respostas ao complexo de
castração, ou seja, de admitir que os sujeitos são seres faltantes (CHRISTIAN DUNKER,
2018).

Ainda dentro dessa esfera, o epistemólogo suíço Jean Piaget se destaca por apresentar
contribuições no que concerne não só à autonomia intelectual como também moral da criança,
e a importância dessa formação para o desenvolvimento do sujeito. O autor trabalha em toda
sua obra com a ideia de que a base para o desenvolvimento da autonomia é a interação ativa
entre sujeito-objeto, ou seja, a relação ativa da criança com o mundo à sua volta. Essa interação
é básica, no sentido de que ela é essencial para o desenvolvimento do sujeito autônomo, tanto
moral quanto cognitivamente, já que é através dela que a criança poderá construir sua
perspectiva, mas sem deixar de levar em conta a perspectiva dos outros, ao mesmo tempo que
percebe diferentes ideias e a necessidade de troca e cooperação entre os pares. Não só isso, essa
relação ativa permite que a criança possa imaginar e criar, já que terá a oportunidade de
formular perguntas, buscar respostas, descobrir coisas novas e construir seu conhecimento a
partir de então (CASTRO, 2006). Desse modo, para que os sujeitos possam ser autônomos faz-
se necessário:

o desenvolvimento e aquisição de conhecimentos, atividades cooperativas,


descentração e entendimento dos pontos de vista de outros sujeitos, o que
significa que tais atitudes são adquiridas através da experiência com os outros
sujeitos e da relação dos sujeitos com o mundo à sua volta. (CASTRO, 2006,
p. 4)

Esse trecho revela um pensamento essencial da teoria piagetiana, baseado no fato de


que a criança não é um ser passivo, mas sim ativo, cuja procura por conhecimento necessita ser
instigada; a cooperação aparece nesse lugar do trabalho em grupo (relação ativa entre sujeito e
mundo) que permite a troca e colaboração com o outros. Ademais, essa experiência ativa com
28

o mundo e a interação com outros sujeitos auxilia a construção da imaginação e da criatividade


da criança, e desenvolve a cooperação e o diálogo.

Segundo Piaget, além da autonomia intelectual apresentar as características já descritas


de pensar e agir de forma independente e autônoma por meio da interação sujeito-ambiente,
essa inteligência se configura como um processo que ocorre ao longo da vida e que envolve a
aquisição de três tipos de conhecimentos: os conhecimentos declarativos (saber o que), os
conhecimentos procedimentais (saber como) e os conhecimentos estratégicos (saber quando e
por quê). Dessa forma, a fim de que um indivíduo desenvolva sua autonomia intelectual, é
necessário que ele tenha a oportunidade de explorar o mundo ao seu redor, de experimentar e
de cometer erros. É preciso também que ele seja capaz de refletir sobre suas próprias ações e
de avaliar seus resultados. Além disso, é necessário que ele seja capaz de colaborar com outros
indivíduos e de aprender com eles. Assim, a autonomia intelectual é fundamental no
desenvolvimento humano do indivíduo e uma condição essencial para o exercício da cidadania
e construção da sociedade (CASTRO, 2006),

De forma mais aprofundada na teoria piagetiana, o autor relaciona a autonomia


intelectual a três conceitos essenciais, sendo eles: estrutura, gênese e equilibração. Referente a
primeira característica, Piaget mostra um conceito de estrutura diferente de uma abordagem
determinista e caracteriza o modelo de estrutura como:

um sistema de transformaçaõ que comporta leis enquanto sistema (por


oposição às propriedades dos elementos) e que se conserva e se enriquece
pelo próprio jogo de suas transformações, sem que estas ultrapassem suas
fronteiras ou recorram a elementos exteriores. (PIAGET, 1970, p.7)

A fim de adquirir essa característica, o autor também revela a importância de esquemas


mais simples, como os sensório-motores, simbólicos e operatório-concretos. Já o segundo
conceito, apresentado como gênese, refere-se ao desenvolvimento das estruturas antes
referidas. Nesse sentido, Piaget parte de dois pressupostos fundamentais: não há conhecimentos
inatos, ou seja, que dependem somente da experiência para surgir no pensamento do sujeito, e
que a própria experiência em si não proporciona conhecimentos lógicos ou matemáticos.
Segundo o epistemólogo, o processo do desenvolvimento passará à adaptação por meio de dois
processos fundamentais de assimilação e acomodação, e a esse processo nomeia-se
equilibração, o último conceito essencial para compreender a autonomia intelectual. Quando
Piaget propõe a equilibração, ele mostra que a inteligência pode ser compreendida como uma
maneira de adaptação equilibradora na interação do sujeito com o ambiente, não somente no
29

que concerne ao conhecimento, mas sim à própria existência como um processo constante de
aprendizado (PASCUAL, 1999). Assim, a autonomia intelectual é construída a partir da
equilibração intelectual, que, por sua vez, é atingida no estágio operatório-formal. Segundo o
autor:

As operações formais fornecem ao pensamento um novo poder, que consiste


em destacá-lo do real, permitindo-lhe, assim, construir a seu modo reflexões
e teorias. Esta é uma das novidades essenciais que opõe a adolescência à
infância: a livre atividade da reflexaõ espontânea (PIAGET, 1967, p. 64).

No que tange à questão da autonomia moral, segundo Pascual (1999), Piaget acredita
que o discernimento moral não é natural, mas sim construído a partir de quatro fatores
fundamentais caracterizados por: maturação, experiência, interação social e regulação. Nesse
sentido, essa autonomia pode ser adquirida a partir do desenvolvimento, quando o indivíduo se
torna capaz de tomar as decisões baseada em princípios éticos e morais, em vez de seguir regras
externas impostas por autoridades como pais, escola e outras instituições. Como é explicitado
no trecho:

Ser autônomo moralmente significa poder analisar criticamente a


obrigatoriedade das normas. Interagindo com crianças pequenas, Piaget
acompanhava a psicogênese da noção de obrigatoriedade moral. Ao afirmar
que a obrigatoriedade moral segue uma gênese na criança, Piaget se opõe,
consequentemente, ao imperativo categórico de Kant, para quem a
obrigatoriedade da lei se constitui em categoria da razão prática. E isso quer
dizer que a noção de obrigatoriedade da moral kantiana naõ é psicogenética;
basta esperar o momento (idade da razão) para que a criança compreenda o
que deve fazer ou não deve fazer (PASCUAL, 1999, p. 6).

Referente à educação, um nome muito importante no que concerne à autonomia, é a do


educador e filósofo brasileiro Paulo Freire. Apesar do educador focar grande parte do seu
trabalho na questão da educação enquanto formação de professores e alunos, é possível realizar
uma ligação com as contribuições que ele traz referentes à autonomia, numa tentativa de aplicá-
las ao contexto familiar. Isso porque a educação das crianças e jovens não é somente papel da
escola, mas sim de uma rede de instituições que juntas contribuem para formação deles. A
teoria freiriana progressista apresenta seu cerne no diálogo, conscientização e autonomia, e tem
como foco a transformação de um sujeito ignorante, no sentido da falta de processamento de
informações, em um sujeito crítico e consciente. Paulo Freire pontua em suas obras o diálogo
como um dos aspectos principais de sua teoria, já que é a partir dele que se faz possível a
conquista da conscientização do sujeito. A comunicação com o outro como forma de troca está
na base da relação entre os seres humanos, e abre espaço para problematizar e apresentar
30

curiosidade. No entanto, se esse diálogo não acontece de maneira horizontal, isto é, em que os
sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença (FREIRE, 1996), ocorre um antidiálogo,
no sentido de não abrir espaços para críticas e impor soberania e insolência com o outro
(ARRUDA; NASCIMENTO, 2020). Como mostra o autor no trecho, o diálogo:

É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera


criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da
confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo
se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem
crit́ icos na busca de algo. Instala-se, entaõ , uma relaçaõ de simpatia entre
ambos. Só aí há comunicaçaõ (FREIRE, 1987, p.107)

O diálogo é importante também no que concerne ao ensinamento. Segundo Freire


(1996), ensinar não pode ser compreendido como transferência de conhecimento, uma vez que
ensinar alguém sobre algo é criar as possibilidades para que o sujeito possa produzir e construir
a partir do que lhe foi dado.

Outro saber necessário à prática educativa é a questão do reconhecimento da autonomia


do ser do educando, seja ele criança, jovem ou adulto. Essa autonomia está ligada à capacidade
do sujeito de pensar, refletir e agir de forma crítica e criativa, de acordo com suas próprias
convicções e valores, e não apenas de acordo com as ideias impostas pelos outros. Isso significa
que o educando deve ser encorajado a desenvolver sua própria visão de mundo, a partir de sua
experiência de vida e de sua relação com a realidade. Para Freire (1987; 1996), a autonomia
não é uma característica inata do ser humano, mas sim algo que pode ser desenvolvido ao longo
do processo educativo. O educador deve criar um ambiente propício para que o educando possa
exercer sua liberdade de expressão e de pensamento, e estimular a sua curiosidade e
criatividade. Como o autor apresenta no trecho:

Como educador, devo estar constantemente advertido com relaçaõ a este


respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo. Não faz mal
repetir afirmação várias vezes feita neste texto – o inacabamento de que nos
tornamos conscientes nos fez seres éticos. O respeito à autonomia e à
dignidade de cada um é um imperativo ético e naõ um favor que podemos ou
naõ conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos
desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é
imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode
receber outra designação senaõ a de transgressão (FREIRE, 1996, p. 31)

A partir da exposição no que concerne à temática da autonomia para alguns autores, é


possível não só traçar algumas articulações entre suas ideias, como também mostrar a
relevância de cada uma delas a fim de pensar como a família pode atuar nessa conjuntura.
Primeiramente, um ponto primordial, é uma compreensão ampla do que pode ser entendido
31

como autonomia. Isto é, romper com o senso comum de sinônimo entre a autonomia e tomada
de decisões de maneira consciente, independência, liberdade, mas entender a autonomia a partir
das influências de diversas instituições na vida do sujeito, e uma autonomia tanto cognitiva
quanto psíquica, reconhecendo dentro daquele espaço as possibilidades que se apresentam a
fim do sujeito atuar como protagonista da própria história.

Primeiramente, os teóricos partem de dois pontos muito importantes: a criança como


um ser ativo e uma atenção especial sobre o período da infância. Como antes mencionado no
início do trabalho, tanto a concepção do que é a criança quanto da infância se modificaram
devido ao contexto sócio-econômico-cultural das épocas. Assim, se antes a criança era vista
como miniatura de adultos (ARIÈS, 2006) durante a Idade Média europeia, ou como uma mão
de obra infantil nas fábricas durante o período da revolução industrial, é a partir do final do
século XVIII que ela começa a ser reconhecida pelo Estado e pela família como um ser de
identidade própria que necessita de proteção deles. É possível afirmar que os autores
mencionados partem da ideia de criança como implicada no seu processo único de estar no
mundo, participante do mundo, no sentido de que elas processam os acontecimentos, aprendem
e absorvem informações que irão influenciar em suas emoções, criatividade, capacidade de
resolver problemas e pensamento crítico.

A partir da discussão proposta é possível afirmar que a autonomia é moral, social e


afetiva, no sentido de que, com base nas vivências ativas, o sujeito torna-se capaz de tomar
decisões e agir conforme seus princípios e valores éticos construídos. No que tange ao social,
ela se expressa como capacidade do sujeito de se envolver de forma independente e efetiva em
interações sociais, incluindo a comunicação, cooperação e resolução de conflitos. A autonomia
também é afetiva, uma vez que está relacionada à inteligência emocional, que envolve a
capacidade de expressar emoções de maneira autêntica e sincera, bem como à habilidade de
lidar com as emoções de maneira construtiva.

No que concerne à autonomia psíquica, se expressa como a separação das crianças de


seus respectivos cuidadores por meio do processo de castração, marcado por diversos conflitos.
Essa concepção mostra que esse desenvolvimento é marcado por frustrações, faltas e
desencantos. No entanto, é essencial que haja esse processo de separação, uma vez que é a
partir da passagem dele que será possível a formação da identidade e uma moralidade.
Também, esse complexo mostra como a sexualidade infantil se desenvolve e se mostra presente
durante toda a vida do sujeito, de maneira única, e como as normas e valores sociais são
32

internalizados. É um conceito central no entendimento das dinâmicas psicológicas que


influenciam na vida do sujeito.

Também, é possível traçar algumas articulações com a psicanálise no que tange à


autonomia como uma elaboração acerca de si mesmo por meio do processo analítico e levantar
um ponto muito importante acerca da responsabilização do sujeito. Essa responsabilização
deve ser compreendida de maneira diferente da atrelada ao senso comum de responsabilidade,
muitas vezes entendido como uma modalidade de consentimento e concordância com uma
demanda, ou, ainda, à satisfação dos semelhantes ou do Outro (LOPES; ESTEVÃO, 2019).
Faz-se necessário esclarecer também esse compromisso como diferente de uma culpabilização,
muitas vezes vista em alguns discursos neoliberais, os quais atribuem ao sujeito uma culpa para
todas as questões de sua vida e realiza tentativas de encaixá-lo numa normatividade. Ao
contrário disso, a psicanálise lacaniana, partindo do princípio dito por Lacan de que ''por nossa
posição de sujeito, somos sempre responsáveis”, entende que:

a responsabilidade do sujeito faz-se entaõ nesta conjugação onde causas


possíveis deem lugar à transmutaçaõ da determinaçaõ em contingência, de
modo que a questão do desejo possa a vir a ser continuamente recolocada,
neste campo onde o sujeito pode vir a decidir – em reconhecimento retroativo
ou em ato - por ser responsável, ou naõ , frente a sua causalidade (LOPES;
ESTEVÃO, 2019, p. 61)

A autora explicita nesse trecho a noção de causalidade não baseada na lógica cartesiana,
mas uma causalidade de ordem psíquica, uma vez que essa implica uma singularidade, isto é,
não se trata de encaixar alguém em certa posição e sim situar qual é a causalidade específica
daquele sujeito. Além disso, é importante, a partir da escuta, auxiliar o sujeito a reposicionar
seu desejo, que é apresentado no intervalo do significantes, nesse movimento da cadeia que
permite que este sujeito apareça e, a partir da análise, entenda onde se situa seu desejo. Dessa
forma, diferentemente do senso comum de que a autonomia é entendida como a capacidade de
atuar com independência, esse capítulo mostra que há uma complexidade no conceito e que ela
se expressa em diferentes esferas. A compreensão acerca da autonomia precisa levar em
consideração o âmbito moral, social, afetivo, psíquico e educativo.
33

3. O AMBIENTE FAMILIAR

3.1 Parentalidade

É notório que nos últimos anos houve um aumento no campo de estudos referente a
temáticas como educação, transmissão de valores e práticas educativas. Esse crescimento é
resultado das transformações socioculturais na sociedade contemporânea, tais como novas
maneiras de relações, leis de proteção infantil e do adolescente, e a preocupação parental sobre
o futuro dos filhos (ALMEIDA; ALDRIGHI, 2011). Nesse sentido, o estudo sobre a relação
entre a família e filhos faz-se importante, dado que, ao prestar atenção nesse período
significativo de formação, é possível realizar intervenções e promover ações de saúde que
causam importantes impactos futuros para as crianças. Desse modo, muitos artigos atuais
traçam uma relação entre autoridade parental e o desenvolvimento da autonomia da criança na
sociedade contemporânea, com o objetivo de identificar fatores favoráveis a esse
amadurecimento e, assim, mostrar como as atitudes parentais promovem a formação de
individ́ uos conscientes e atuantes na sociedade desde a primeira infância. É importante
entender também que para um desenvolvimento chamado saudável a criança necessita de um
ambiente que a motive aos poucos a fazer parte de uma comunidade sem que sua
individualidade seja esquecida (SANTOS; FREITAS, 2016).

No entanto, antes de iniciar o assunto, é importante realizar uma análise sobre a


concepção de parentalidade no cenário familiar contemporâneo. Segundo Gorin et al. (2015),
o termo foi apresentado pela primeira vez em 1961 por Paul-Claude Racamier, a fim de colocar
em evidência o processo do exercício das funções dos pais com os filhos. Atualmente, o
conceito de parentalidade vem sendo proposto em diversas disciplinas, como:

o processo dinâ mico por que passam os pais, isto é, ao processo de tornar-se
pai e mãe, que vai além do biológico, envolvendo aspectos conscientes e
inconscientes, que passam pela história da família de cada um dos pais e pelo
contexto sociocultural em questão (GORIN et al., 2015, p.8)

Apesar de uma atualização em relação ao que antes era considerado parentalidade, essa
definição ainda se apresenta insuficiente para uma compreensão mais abrangente do que é o
exercício da parentalidade, na medida que não leva em consideração os inúmeros arranjos
conjugais. Nesse sentido, a partir das significativas transformações ocorridas nesse meio, é
possível considerar que:
34

As reorganizações saõ constantes e a parentalidade continua a ser exercida,


̃ necessariamente pelo pai e pela mãe biológicos, no contexto da família
nao
nuclear tradicional, mas pelo arranjo que se compõe para exercer as funções
parentais em relaçaõ às crianças. Tais funções podem ser exercidas, por
exemplo, pelos próprios pais, por dois pais, duas mães, madrastas e padrastos,
por exemplo. (GORIN et al., 2015, p. 10)

Nesse sentido, é possível evidenciar três bases principais da parentalidade, sendo elas:
o exercício, a prática e a experiência (HOUZEL, 2004). O primeiro está ligado à transmissão
de direitos e deveres que ordenam as relações de filiação, parentalidade e de parentesco e de
pertencimento. Já o segundo suporte refere-se a como a parentalidade é exercida, envolvendo
os cuidados parentais, físicos e psíquicos, e as relações afetivas entre pais e filhos. O terceiro e
último eixo está relacionado com o exercício da parentalidade devido à transmissão de
interditos estruturantes para o sujeito, ou seja, considera-se os processos conscientes e
inconscientes que estão presentes no próprio exercer da parentalidade (HOUZEL, 2004). Ainda
nessa perspectiva, é de responsabilidade da parentalidade transmitir a função de lei que
interdita, a fim de realizar uma humanização do filho por meio da perda da onipotência. Ou
seja, esse processo é indispensável para inserir a criança nas leis da cultura, visando sua
convivência em sociedade (GORIN et al., 2015).

Dessa forma, é possível compreender o termo parentalidade de maneira mais ampla,


levando em conta diversos valores culturais incorporados ao longo da história daquela família,
como afetos, cuidados, histórias, a individualidade e a singularidade de cada membro. Também
se faz necessário reconhecer a parentalidade como uma construçaõ social em seu contexto
histórico de modo a evitar a manutenção de estereótipos e lógicas ultrapassadas. Por fim, ainda
nesse raciocínio, é necessário que as formas de ser família hoje não sejam referentes apenas a
funções paternas e maternas, mas que, independentemente do formato familiar, a parentalidade
apresente uma importância na estruturação psiq́ uica do sujeito, por meio da troca afetiva e da
transmissão dos interditos (GORIN et al., 2015).

3.2 Estilos Parentais

A questão da autoridade parental está intimamente ligada com o modo de educar mais
frequente dos pais, ou seja, com os estilos parentais, que, por consequência, podem auxiliar ou
dificultar a formação da autonomia da criança. Segundo Weber et al. (2004), a tentativa de
compreender o relacionamento entre pais e filhos a partir de estilos parentais auxilia na
prevenção de interpretações equivocadas sobre os aspectos isolados da conduta dos pais e
caracteriś ticas dos filhos. Ou seja, essa maneira de apresentar os caracteres parentais não visa
35

reduzir a singularidade de cada família, mas sim tentar compreendê-las de forma mais
ordenada, a fim de observar suas consequências para a vida das crianças. Além de mostrar a
importância de analisar os estilos parentais, Weber et al. (2004) também revelam a diferença
entre esse modo de educar com as práticas parentais. Enquanto a última se caracteriza por focar
em objetivos de socialização e encontrar estratégias para eliminar ou incentivar
comportamentos, os estilos parentais se constituem por:

(...) conjunto de atitudes dos pais que cria um clima emocional em que se
expressam os comportamentos dos pais, os quais incluem as práticas parentais
e outros aspectos da interaçaõ pais-filhos que possuem um objetivo definido,
tais como: tom de voz, linguagem corporal, descuido, mudança de humor
(DARLING; STEINBERG, 1993 apud WEBER et al., 2004, p. 324).

Faz-se importante ressaltar que esses estilos não são estáticos, ou seja, é possível que
eles se misturem e oscilem durante todo o processo educacional das crianças. Também, não é
possível dissociar essas práticas de seu contexto histórico (WEBER et al., 2004).

Dessa maneira, Weber et al. (2004) apresentam quatro tipos diferentes de estilos
parentais básicos:

Quadro 1 – Estilos parentais

Estilo Parental Características

Autoritário - Muito limite e pouco afeto


- Alto nível de exigência
- regras e limites duros

Permissivo - muito afeto


- baixo nível de exigência
- poucos limites

Negligente - pouco limite e pouco afeto


- baixo nível de exigência e responsividade

Participativo - muito limite e muito afeto


(autoritativos) - equilibrado nível de exigência
- equilibrado nível de responsividade
Fonte: autora (baseada no artigo de WEBER et al., 2004)

O estilo parental autoritário é caracterizado pela avaliação rígida de conduta da criança


a partir de regras impostas pelos pais, onde há uma alta exigência e limites severos. Os
responsáveis muitas vezes se utilizam de formas punitivas para estabelecer o controle, não
deixando que as crianças tomem decisões ou escolhas. Já no estilo parental permissivo ocorre
o oposto, no sentido de que há uma baixa exigência e limites rígidos por parte dos pais, ao
mesmo tempo que há muito afeto dos mesmos. Com essas características, os responsáveis
36

aparecem como um meio para a realização do desejo das crianças e não como um modelo ou
agente responsável por ensinar. Por outro lado, o estilo parental negligente é caracterizado por
responsáveis que não exigem ou não reparam nos comportamentos das crianças. Ou seja, esses
pais não apresentam um papel ativo ou uma tentativa de relação com a criança. Por fim, o estilo
parental participativo é descrito como uma maneira equilibrada na qual há tanto limite quanto
afeto no processo educacional; os pais incentivam o diálogo e mostram a criança o porquê das
ações que tomam, escutam a opinião da/o infante, reconhecendo que essa/e apresenta um papel
ativo, ao mesmo tempo que não baseiam suas deliberações a partir do desejo da criança
(WEBER et al., 2004).

Tendo tudo isso em vista, Silva e Pereira (2018) realizaram um estudo com o objetivo
de pesquisar sobre como as crianças entendiam, avaliavam e lidavam com os modelos
educacionais e suas estratégias de negociação. Assim, após a realização do estudo, os autores
constataram algumas informações relevantes. Primeiramente, no que se refere ao tempo de
dedicação à relação familiar, as crianças afirmam que, apesar de compreenderem a ausência de
ambos os pais que exercem atividades de trabalho extradomiciliarmente, quando eles estão
presentes passam muito tempo no celular ou resolvendo pendências do trabalho. Quanto aos
processos de troca entre as crianças e seus responsáveis, partindo da tese de que as crianças são
co-construtoras da sua vida e do contexto social em que vivem, entende-se que nesses processos
de troca e negociação há um favorecimento da criação de uma cultura de participação,
colaborando na construção da aprendizagem que influencia na formação de modelos de
relações e auxilia no desenvolvimento da autonomia infantil. Dessa forma, os responsáveis
participativos, ou seja, aqueles cujas práticas de cuidado aliam niv́ eis altos de controle, mas
ainda assim afetivos, compreensivos e envolvidos, possibilitam um relacionamento
bidirecional, isto é, situação em que as crianças têm abertura para dialogar e expor suas
opiniões. Almeida e Aldrighi (2011) ainda ressaltam que “pais autoritativos” tentam direcionar
as atividades da criança de forma racional e orientada, incentivam o diálogo e favorecem o
raciociń io, além de naõ basearem suas decisões em consensos ou desejos da criança.

Portanto, tendo em vista os resultados de diversos estudos e a análise dos modelos


parentais, é possível afirmar que o “estilo autoritativo” parece ser o que mais permite a
formação de um indivíduo autônomo por meio das práticas educativas já citadas, como o
direcionamento de atividades da criança de forma racional e orientada, o incentivo ao diálogo,
a promoção do raciociń io e o não fundamento de todos os desejos da criança para tomada de
decisões, como revela o trecho:
37

A autoridade dos pais promove a autonomia dos filhos quando as regras, os


limites e as orientações estaõ voltados para a aquisiçaõ de habilidades sociais
dos mesmos e naõ quando agem apenas para que simplesmente obedeçam. Se
os pais educam para a obediência, os filhos aprendem a controlar seus
impulsos, porém somente através de uma figura orientadora e não pela
escolha consciente e que considera o outro em sua tomada de decisão.
(ALMEIDA, ALDRIGHI, 2011, p. 267)

3.3 Dificuldades

No exercício da autoridade parental, é possível surgirem dificuldades relacionadas à


diversos fatores, como o contraste entre gerações, a comparação entre a educação recebida,
muitas vezes mais rígida e coercitiva, a falta de um exemplo para a educação e uma carência
de mecanismos para agir frente às questões trazidas pelos filhos (ALMEIDA, ALDRIGHI,
2011).

Primeiramente, a questão do conflito geracional aparece em muitos trabalhos referentes


às dificuldades no exercício da parentalidade, uma vez que esse confronto é inevitável para a
formação da autonomia do sujeito. Esse conflito ocorre por diversos fatores, entre eles é
possível pensar sobre a projeção inicial que os pais criam naquele ser, já que esses se veem
naquela figura a partir de um movimento narcisista. No entanto, os pais projetam, sonham e
desejam, mas o filho aparece com outras possibilidades de ser no mundo e o amor está entre o
que ele projetou e o que apresenta. Sendo assim, conforme Vera Iaconelli, apresenta-se um
paradoxo, já que há um processo de luto mútuo, de maneira que os pais precisam lidar com a
frustração de que o filho deseja coisas diferentes deles e os filhos precisam reconhecer os pais
como seres ''normais'' e não onipotentes, como estes lhes pareciam na infância (PROVOCA,
2022). Sobre esse confronto, VARGAS (2020) levanta:

O confronto com a autoridade é central, nessa posição, para construção de


uma real autonomia que vise negar o poder como criador de si. Há uma ordem
que atua em nossa determinação e que nos forma, mas somos palco de uma
anomalia irredutível em relaçaõ a esta ordem atuante do mundo. (...) É a
̃ eliminá vel entre as partes (para a saúde e para a doença) o espaço
tensão nao
legitimador de novas configurações. (VARGAS, 2020, p. 203)

Resumindo, essa tensão é de extrema importância para o sujeito, pois é a partir dela que
há a construção da constituição do mesmo, e é nessa tensão constitutiva que atua o aparelho
psíquico, a força que inaugura a inconsistência dos processos construídos.

O conflito geracional ocorre também pela mudança de contexto e de época e suas


respectivas características. Dessa maneira, os pais de outra geração que receberam uma
educação mais coercitiva apresentam dificuldades na transmissão de valores de uma maneira
38

menos agressiva, ao mesmo tempo que hoje os cuidadores precisam lidar com questões atuais
como o acesso à internet, o manuseio de novas tecnologias e o acesso a informações. Essa
mudança requer novas posturas e outras adaptações que precisam ser incorporadas não só pelos
cuidadores como também pelos próprios indivíduos. Ainda nessa perspectiva, uma dificuldade
encontrada por muitas famílias são as diferenças nos valores disseminados pelas instituições e
o potencial que as crianças apresentam de os interiorizar (RAMOS; NASCIMENTO, 2008).
Isso se deve ao fato de que muitas vezes os espaços de sociabilidade apresentam características
diferentes das praticadas no ambiente familiar. Apesar de causar esse choque entre
aprendizados, é de extrema importância que a criança tenha um contato com essa tensão, dado
que é a partir disso que ela poderá futuramente se tornar capaz de tomar as decisões baseadas
em princípios éticos e morais, e construídas a partir de suas experiências.

A ideia de família perfeita criada no imaginário coletivo se configura como um grande


motivo para o sofrimento de tantas famílias. Apesar de algumas mudanças nos últimos anos
referentes à abordagem de diferentes tipos de família, é inegável a contribuição da mídia e
outros meios de comunicação na propagação de um ideal de família hetero cis branca, sem
conflitos, sem frustrações e com o bordão ''family first'', ou seja, a pessoa é capaz de realizar
tudo em prol da família. Esse discurso também é muito utilizado por movimentos
conservadores visando manter a ordem e o poder baseados em uma enunciação de cunho
religioso, visto que outras formas de família colocariam em risco esse modelo, como aponta o
trecho:

O libertarianismo original, por sua convicção de que a autonomia individual


deve ser sempre respeitada, levaria a posições avançadas em questões como
consumo de drogas, direitos reprodutivos e liberdade sexual. Mesmo nos
Estados Unidos, porém, tais posições tendem a estar mais presentes em textos
dogmáticos do que na ação política dos simpatizantes da doutrina. Seus
principais aliados são cristãos fundamentalistas, e o discurso costuma
apresentar o reforço da família tradicional como compensação para a
demissão do Estado das tarefas de proteção social – Estado que é o inimigo
comum, seja por regular as relações econômicas, seja por reduzir a autoridade
patriarcal ao determinar a proteção aos direitos dos outros integrantes do
núcleo familiar. (MIGUEL, 2015, p. 19)

Assim, faz-se necessário a desconstrução desse ideal de família perfeita, pois ele não
só não representa a realidade de diversas famílias como também se apresenta como uma grande
fonte de sofrimento em busca desse ideal. Como revela o trecho:

Por essa leitura, um passo fundamental para a derrubada do capitalismo e da


“civilização ocidental” seria a dissolução da moral sexual convencional e da
estrutura familiar tradicional. Afinal, “a família é a cellula mater da
39

sociedade”; se destruída, faz todo o edifício romper. Daí deriva que, na


interpretação difundida por uma das referências intelectuais da direita
brasileira, o filósofo e astrólogo Olavo de Carvalho, a estratégia gramsciana
é “apagar da mentalidade popular, e sobretudo do fundo inconsciente do senso
comum, toda a herança moral e cultural da humanidade”. O mesmo tipo de
raciocínio é exposto por parlamentares da extrema-direita, como maneira de
sustentar sua oposição a qualquer iniciativa para reduzir as desigualdades de
gênero, e chega às redes sociais na forma de denúncias contra a “ditadura
comunista gay " em formação. (MIGUEL, 2015, p. 21)

Esse ideal de família e a procura de sua extinção estão intimamente ligados à noção de
autonomia, já que esse modelo defende a proteção integral da família em qualquer situação, o
que não deixa espaço para o indivíduo crescer e se desenvolver nas relações com os outros que
são diferentes dele. Não só isso, pode criar um ambiente em que o indivíduo tente a todo custo
não decepcionar os progenitores, sempre tentando alcançar uma referência proposta pelo Outro,
sem dar espaço a ele mesmo. Como pontua o psicólogo e pesquisador Pedro Ambra (MEU
INCONSCIENTE COLETIVO, 2023): ''o conceito de família tradicional não pode ser tomado
com naturalidade porque você acaba ficando quase refém de um ideal”. Dentro disso, segundo
Vera Iaconelli (PROVOCA, 2022), muitos pais procuram hoje um manual de como educar os
filhos, o que se torna uma emboscada, pois essa busca por controle, garantia e predição é o que
tem adoecido os pais. Ou seja, ao invés de descobrirem uma maneira mais espontânea e
autêntica, baseiam-se em um modelo imaginário no qual eles precisam se espelhar.

Outra dificuldade encontrada no ambiente familiar é a imposição de limites aos filhos,


necessária para o convívio em sociedade. Na medida que educação e vínculo familiar são
conceitos interligados, ao mesmo tempo que a família desempenha a função de cuidado, é ela
também responsável, mas não a única, por impor limites e disciplina na vida do sujeito.
Segundo Rosa (2001), é possível observar nas relações sociais e na clínica a dificuldade que os
pais apresentam em lidar com as manifestações, angústias e sintomas que os filhos apresentam,
não sabendo como agir em diversas situações. Embora a resposta imediata seja colocar limites,
os métodos tradicionais utilizados por outras gerações são agora insuficientes e, em muitos
casos sabidos, prejudiciais ao desenvolvimento das crianças e jovens. Assim, os pais
apresentam dificuldade em substituir a força e imposição por um método educativo mais eficaz.
Eles desejam que os filhos sejam bons alunos, responsáveis e felizes, mas não querem ser
dominadores ou submeter seus filhos a eles. Apesar disso, não são capazes de tomar medidas
que possam desapontar ou causar sofrimento aos jovens, e, mesmo quando tomam, muitas
vezes parecem ineficazes no atual contexto desafiador. Nessa cena de desconfiança e suspeita
40

em relação às suas habilidades educacionais, os pais assistem com angústia e paralisia à perda
de seus filhos, sem serem capazes de ajudá-los nesse processo.

Nesse sentido, o psicólogo e pesquisador Luiz Alberto Hanns (CASA DO SABER,


2014) aponta a educação ativa transmitida às crianças como um dos pilares da existência do
sujeito e mostra como nos últimos anos o ambiente construiu cinco grandes mudanças que
estão coletivamente ocasionando algumas dificuldades para a educação das crianças hoje,
sendo preciso repensar a maneira de as educar.

A primeira grande mudança é a passagem dos direitos e deveres para uma busca pela
felicidade, conceito socialmente construído e variável com a época. Segundo Gorin et al.
(2015), um aspecto marcante da família contemporânea, criado a partir das transformações no
ambiente familiar, é a valorização da busca pela felicidade e pela completude, no exercício da
parentalidade, em sua dimensão afetiva. Nesse sentido, Singly (2007) aponta em seu trabalho
a influência da afetividade nas relações intrafamiliares como uma característica central e traz
uma perspectiva histórica de que, após os anos 1960, o foco passa a ser a felicidade de cada
um dos membros da família e não a felicidade da família como grupo. Assim, há uma
valorização do individualismo e uma busca por maior autonomia dos indivíduos. Roudinesco
(2003) ainda acrescenta que a partir das mudanças na organização da família durante a história,
a família contemporânea apresenta sua base na união de pessoas que apresentam interesse na
relação. Essa vontade é um elemento crucial nas trocas afetivas e, portanto, a duração dessas
relações varia de acordo com os ideais de felicidade em voga na sociedade.

A segunda grande mudança é a passagem da obediência e do cumprimento para a busca


de uma escolha com responsabilidade. Essa está intimamente ligada à terceira transformação,
relacionada ao conceito de lazer para as crianças, que, conforme Luiz Alberto Hanns (CASA
DO SABER, 2014), diz respeito à diferença de uma época na qual se era ensinado aos filhos a
''diversão com modéstia'', ou seja, sem muitos custos; no entanto, afirma ele, a mensagem que
se passa hoje aos filhos é a de ''divertir-se consumindo''. Essa ideia está articulada com o
contexto contemporâneo capitalista no qual a felicidade se encontra atrelada à conquista de
artigos materiais.

A quarta grande transição é a passagem de um ambiente no qual as crianças antes


viviam isoladas, no sentido de não haver tamanha globalização e um acesso a diferentes
espaços, para uma época de socialização. Atualmente, é necessário ensinar às crianças como
aprender a fazer amigos, formar grupos e lidar com as diferenças entre os sujeitos e, no entanto,
41

esse papel não é somente reservado aos pais, mas à própria comunidade e outros ambientes de
socialização como a escola.

A última mudança encontra-se no '' ônus da motivação'', ou seja, se antes o esforço de


ser feliz estava na criança, nos dias de hoje, é papel do adulto fazer com que ela seja motivada
o tempo todo. Essa concepção da sociedade contemporânea baseada nesses discursos positivos
deposita um peso sobre a autoridade parental no sentido de que o ambiente não tem mais
capacidade de educar, e agora esse papel é preferencial dos pais. Assim, o ambiente não tem
mais a função educativa; essa ficou reservada aos pais.

Por fim, segundo Luiz Alberto Hanns, essas cinco características apresentam para a
criança uma ideia de positividade que elimina a ênfase na disciplina, no autocontrole e na ética,
o que precisa ser revisto no exercício da parentalidade (CASA DO SABER, 2014).

O que é percebido hoje também é uma falência da autoridade parental devido a diversos
fatores, mas principalmente pela terceirização do cuidado das crianças. Em razão de uma lógica
dirigida ao lucro, configurando o ambiente exaustivo de trabalho, percebe-se que cada vez mais
as crianças permanecem longe do ambiente familiar e, por consequência, o trabalho da ordem,
da lei, fica sob responsabilidade de outras entidades. Para além destas dificuldades, há, ainda:
o trabalho ou profissão exercido pelos pais, o grau de escolaridade e a classe social da família,
a qualidade dos relacionamentos conjugais e as transformações ocorridas atualmente no âmbito
familiar. Assim, questões como a autoridade parental, a comunicação, demonstrações de afeto
e a participação dos pais nas atividades aparecem como facilitadores da autonomia dos filhos.
Após toda a análise, é possível afirmar que o contexto atual das famílias contemporâneas é
marcado por uma insegurança dos pais quanto à autoridade a ser exercida em relação aos filhos
e por novas dinâmicas familiares (ALMEIDA; ALDRIGHI, 2011).

3.4 Outras questões familiares – O não dito familiar e a Transgeracionalidade

Faz-se importante pontuar que o estudo referente ao ambiente familiar não se limita à
autoridade parental e suas práticas, nem só às figuras dos pais. Alguns autores mostram como
traumas, segredos, vergonhas e lutos não elaborados podem afetar a história familiar e se
alongar para futuras gerações. Portanto, a pergunta a se fazer nesse capítulo é: como pensar em
uma autonomia psíquica de um sujeito preso a uma história que não é a sua? A fim de debater
acerca dessas questões, foram utilizados dois artigos de referência: “O não-dito familiar e a
transmissão da história”, da psicóloga e pesquisadora Miriam Debieux Rosa (ROSA, 2001) e
42

“Transgeracionalidade: sobre silêncios, criptas, fantasmas e outros destinos”, da psicanalista


Ana Rosa Trachtenberg (TRACHTENBERG, 2017).

3.4.1 O não dito familiar

Em seu artigo, Rosa (2001) aborda acerca de pais que não transmitem a história ou o
que se transmitida, configura-se como algo que deveria estar excluído, mas que retorna como
um sintoma. Segundo ela, esses pais partem de duas suposições. Primeiramente, acreditam na
ideia de que é possível a construção de um futuro com o apagamento do passado, e que esse
passado, quando carregado de um fardo, deve ser totalmente anulado e esquecido, já que, se
revelado, pode ter um potencial traumatizante para o filho. A segunda suposição é de que a
transmissão só ocorre por meio do dizer, ou seja, o não falar pode passar uma ideia de um
ambiente harmonioso e bem-sucedido, no qual os filhos vão se espelhar e, assim, se sentirem
felizes e realizados. Essa questão sobre o que transmitir aos filhos acerca dos acontecimentos
que permeiam a história da família leva a pensar sobre o modo de abordar essa transmissão,
um grande desafio aos pais. Logo, faz-se necessário abordar os efeitos da solução encontrada
pelos pais em não falar sobre o passado difícil. Por conta disso, a autora foca seu trabalho nas
histórias não-ditas, contidas como marcas daquilo que não foi elaborado ou que foi encoberto
por uma visão imaginária, que não abre espaço para que o sujeito a interrogue. Reforçando a
ideia da elaboração referente à transmissão familiar, Rosa (2001) afirma:

'O que naõ está dito, recoberto pelo já dito, é o que permite movimentar a
cadeia significante para produzir novos sentidos. Desta forma, o relato dos
fatos propicia a criaçaõ de cenas, que permitem analisar como se estrutura o
desejo na dialética da relação com o outro. Nessa articulação, é possível a
emergência de um sujeito. A história não é tomada aqui como sequência de
fatos e datas, mas como significâ ncias, como trama de sentidos. Os fatos
existem enquanto reclamam sentido. É sempre junto da falta de sentido e pela
exigência de preenchimento dessa falta que se forma o pressentimento
daquilo que será a história de cada um. (ROSA, 2001, p. 126).

Assim, de uma perspectiva psicanalítica, mostra-se a relevância de realizar uma


restituição da cadeia simbólica por meio de três dimensões: historicização da história de uma
vida vivida, subordinação às leis da linguagem e o jogo intersubjetivo, pelo qual a verdade do
desejo entra em uma dimensão na qual o sujeito necessita da articulação com o outro para que
possa existir dentro dela. Levando em conta toda essa trama, fica clara a importância dos pais
de falar sobre o passado ou sobre si mesmos, já que a fala pode auxiliar na elaboração dessa
história e sua transmissão, como mostra o trecho:
43

Isso porque os enunciados não valem por si, pelo explić ito, pelo fato relatado
em si, mas pela enunciaçaõ concomitante e pelo posicionamento do falante.
É nessa dimensaõ da linguagem que o dizer pode abrir para novos sentidos,
abrir para o enigma do sujeito e retirá-lo do refúgio narcísico, fazendo-o de-
frontar-se com a equivocação. O equívoco refere-se ao fato de que o dito, o
enunciado, traz consigo uma enunciação, ou seja, vai além da intenção, e traz,
junto com a palavra recusada, aquilo que naõ se quer dizer. Ou seja, o dito
tem efeito sobre aquele mesmo que fala. (ROSA, 2001, p. 126).

Na segunda parte do texto, Rosa (2001) levanta a relação do não dizer com o pai
imaginário. Os pais não se sentem confortáveis em mostrar suas dores e falhas — dos mesmos
ou da família — aos filhos, já que assumem que podem perder o controle, a autoridade, normas
e ideais que pretendem transmitir aos filhos. Em muitos casos, o não dizer é a maneira
encontrada para essa ideia de não destruir o filho e sua relação com ele, abarcando assim fatores
como a culpa, frustração e a dívida que não foram trabalhadas pelo próprio ambiente familiar.
Dessa maneira, ao não comunicar, os pais evidenciam a pretensão de se manterem no lugar de
pai imaginário. E nesse espaço encontram seu gozo, no ideal de pais perfeitos, sem defeitos,
que não suportam sustentar falhas e dores próprias ou da família. No entanto, a transmissão do
não-dito aparece na vida da criança de outras maneiras e pode causar efeitos importantes, como
declara o trecho:

(...) o não-dito comparece na subjetividade da criança através dos processos


de identificaçaõ e construçaõ de valores e ideais, no resultado da trajetória
edipiana. Ao não dizer, os pais não calculam outros riscos: que a supressão
de significantes fundamentais da filiaçaõ tem efeitos no andamento da
constituição subjetiva, dado que dificulta a inserçaõ simbólica na genealogia;
e que a transmissão ocorre apesar do não-dito, dado que fundamentada não
nas palavras, mas no desejo do Outro. Em alguns casos, em especial, a
transmissao ̃ opera-se não pelo ideal do ego, mas pela via da identificação, e
os pais são então tomados como um modelo a ser replicado. (ROSA, 2001, p.
127).

Esse trecho mostra que o encobrimento da história tenta impedir a elaboração da


história vivida. Dessa forma, o ocultamento pode apresentar a função de uma dupla alienação,
pois mantém o sujeito em seu amparo narcísico, sem a necessidade de lidar com situações
difíceis, ao mesmo tempo que lhe restringe ao acesso de um significante próprio e submetido
a um comando instituído como condição para a participação no coletivo familiar. Um dos
efeitos desse comportamento é o filho viver o imaginário dos pais de maneira a realizar seu
gozo e não seu ideal. Em muitos casos, o sujeito encontra-se tão aprisionado que não apresenta
um repertório para lidar com outras experiências. Por fim, faz-se necessário elaborar o não-dito
familiar e abrir espaço para a escuta já que a queixa, se escutada, pode ocasionar a
historicização do sujeito, e assim, por meio da fala e da escuta, existir.
44

3.4.2 A Transgeracionalidade

Nesse artigo, Trachtenberg (2017) discute o que pode levar ao que intitula como
''heranças transgeracionais''. Isto é, o que ocorre quando traumas, segredos, vergonhas e lutos
não apresentam um espaço de elaboração na família e essas questões são transmitidas a partir
de criptas e fantasmas para as outras gerações, marcando-as. Assim, a autora defende a tese de
que há uma importante presença da história anterior do sujeito na constituição de sua
subjetividade. Por exemplo, em casos de violências familiares, traumas e lutos não elaborados,
violências do Estado, violência urbana entre outras questões.

Com isso, a autora trabalha durante o artigo acerca da formação das heranças
transgeracionais. Primeiramente, mostra o lugar que o silêncio e o segredo ocupam, no sentido
de uma tentativa de defesa daqueles familiares que sofreram a situação traumática de
sobreviver psiquicamente, se esquivando do trauma a fim de tentar viver uma vida normal. No
entanto, essa esquiva pode formar uma ''cripta'', que é resultado dessa defesa extrema dos
sujeitos traumatizados ou que não processaram lutos. Essa forma de defesa pode se apresentar
muito eficaz, mas, dependendo de alguns fatores, auxilia na formação de fantasmas familiares.
A ideia de fantasma levanta a ideia de que traumas não elaborados podem aparecer de outras
maneiras em gerações posteriores da família. Assim, aparece como responsabilidade das
gerações futuras de lidar com a experiência traumática que não é dela, mas sim dos ancestrais
(principalmente pais) que carregam esses traumas.

Com enfoque nisso, Faimberg (1996)5 levanta a ideia de uma identificação narcisista
alienante, que abre espaço para que os pais utilizem o espaço psíquico do filho sem realizarem
uma separação de si mesmos. Com isso, nesse tipo de identificação, aquilo que não é elaborado
no psiquismo dos progenitores é projetado no espaço psíquico dos filhos, como apresenta no
trecho:

O filho, vulnerável por sua necessidade de investimento narciś ico, fica sujeito
ao que os pais dizem ou calam, perdendo a liberdade de interpretar com seu
próprio psiquismo as verdades familiares e vinculares. Torna-se depositário,
cativo de um luto não elaborado, de um segredo ou de uma vergonha parentais
(criptas, no dizer de Abraham e Torok) que o alienam de si mesmo,
obrigando-o a viver uma história que, ao menos em parte, naõ é sua.
(FAIMBERG, 1996, apud TRACHTENBERG, 2017, p. 82)

5
FAIMBERG, H. El telescopaje de las generaciones. In: KAËS, R. et al. Transmisión de la vida psíquica entre
generaciones. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. p. 75-96.
45

Por fim, a autora levanta duas formas sob as quais há transmissão e elaboração ou não
elaboração do trauma que pode acarretar diferentes efeitos na família, sendo elas a transmissão
intergeracional e a transgeracional. Enquanto na primeira ocorre entre as gerações, havendo
uma distância, um espaço entre o transmissor e o receptor, preservando-se os limites e as bordas
da subjetividade, a transmissão transgeracional, ao contrário, é invasiva e ocorre através dos
sujeitos e das gerações. Algumas diferenças, retiradas do próprio artigo, são apontadas pela
autora, como, por exemplo:

Quadro 2 – Diferenças entre as transmissões familiares intergeracional e transgeracional

INTERGERACIONAL TRANSGERACIONAL

1. A serviço dos vínculos, da elaboração, da 1. A serviço do esquecimento (morte), da repetição,


historicização do sujeito. da não história.

4. Representação psíquica, simbolização, palavra. 4. Cripta, fantasma, silêncio, vazio, negativo, branco,
falha no simbólico, elementos não transformados.
Não palavra – Não representação

6. Memória, historicização, herança intergeracional, 6. Esquecimento, não história, herança


fantasias, imagos. transgeracional, histórias colapsadas.

10. Repressão, negação. 10. Clivagem, cisão, desmentidas.

Fonte: autora (baseada no artigo de TRACHTENBERG, 2017)

Dessa forma, cabe ao psicólogo a realização de um trabalho que abra espaço para a
elaboração de criptas e fantasmas por meio da não alienação nas crianças e na família, assim
como auxiliar no fluxo das mudanças de heranças transgeracionais em novas heranças
intergeracionais.

3.6 Para todas as famílias? - Como as opressões atuam sobre a realidade

O Brasil é um país de contrastes extremos, onde a desigualdade


social se manifesta de maneira gritante, deixando uma ferida
aberta em nossa sociedade.

Gilberto Freyre

A escolha de inserir esse tema ao final do trabalho não se deu maneira aleatória, mas
sim como uma forma de reflexão acerca das oportunidades que atravessam outras realidades
presentes no contexto brasileiro.
46

Após apresentar todo o contexto do ambiente familiar, da autonomia e de como outras


questões podem influenciar na história do sujeito, é necessário se questionar sobre como esses
fatores atravessam as realidades brasileiras. É evidente que cada sujeito e cada família
apresentam diferentes modos de agir e compreender a realidade apresentada, mas, como já
abordado neste trabalho, os sujeitos compartilham um espaço comum e são afetados por fatos
materiais que demarcam a sociedade. Por esse motivo, faz-se necessário compreender como
opressões estruturais tais como raça, classe e gênero influenciam na rotina das famílias
brasileiras e o impacto dessas desigualdades na dinâmica familiar.

Partindo de um aspecto racial, faz-se importante mostrar como, a partir da história do


Brasil, o racismo foi sendo estruturado e esse fenômeno atravessa de diferentes maneiras a
sociedade atual. Isso porque o contexto brasileiro teve sua economia por 388 anos ligada ao
trabalho escravo e mão de obra indígena, que só foi formalmente banido (embora não de fato)
no ano de 1888. No entanto, apesar de ser decretado ''o fim da escravidão'', não houve nenhuma
política de integração da população negra na sociedade brasileira, pelo contrário, houve a
tentativa de apagamento da história do povo e o incentivo da vinda de imigrantes europeus
brancos como uma medida higienista de embranquecer o país (SCHWARCZ; STARLING,
2015). Como explicita o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro:

O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade


intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de
desigualdade, de descaso. (RIBEIRO, 2014, p. 35).

Dessa maneira, o racismo no Brasil foi sendo construído de uma maneira sorrateira,
com o mito da democracia racial que impede que as pessoas tenham consciência da história de
opressão do povo negro. Essa característica dissimulada do racismo à brasileira se mostra até
hoje, como mostra Almeida (2019):

O racismo se manifesta no campo econômico de forma subjetiva. Como


lembra Michael Reich, o racismo, de formas não propriamente econômicas,
ajuda a legitimar a desigualdade, a alienação e a impotência necessárias para
a estabilidade do sistema capitalista. O racismo faz com que a pobreza seja
ideologicamente incorporada quase que como uma condição “biológica” de
negros e indígenas, naturalizando a inserção no mercado de trabalho de
grande parte das pessoas identificadas com estes grupos sociais com salários
menores e condições de trabalho precárias (ALMEIDA, 2019, p. 105)

Essa realidade tem suas repercussões nos dias de hoje na realidade das famílias negras
no Brasil. Alguns dados que revelam essa exclusão foram divulgados pelo Jornal O Globo,
mostrando que, segundo o IBGE, a informalidade atinge mais pretos e pardos do que brancos.
47

O jornal mostra que, em 2021, a taxa de informais entre a população branca era de 32%; entre
os pretos, de 43%; e entre os pardos, de 47%. Ao olhar o rendimento médio, a diferença é ainda
maior. O dos trabalhadores brancos foi quase o dobro de pretos e pardos. Essa pesquisa mostra
também as diferenças de renda. De todos os pretos e pardos brasileiros, cerca de 35% viviam
com R$ 486, praticamente o dobro da proporção de brancos na linha da pobreza. A diferença
se repete entre os que vivem na extrema pobreza. Os pretos e pardos são praticamente o dobro
dos brancos.

Esse contexto atravessa a realidade de milhares de famílias brasileiras e revela a


impossibilidade da realização de uma análise generalista acerca do ambiente familiar. Em
relação a criação dos filhos, por exemplo, o seriado de televisão ''Coisa mais linda'' apresenta
uma cena em que expõe a disparidade racial ligada à diferença de oportunidades. De forma
resumida, o seriado é ambientado no final da década de 1950 no Brasil e conta a história de
Malu, uma dona de casa de São Paulo que se muda para o Rio de Janeiro atrás do marido, que
a abandona ao chegar na cidade. Sozinha, ela decide transformar a antiga casa noturna que o
marido havia comprado em um clube de bossa nova. Ao longo da primeira temporada, Malu
conhece Adélia, uma empregada negra que trabalha no clube, e Thereza, uma escritora carioca
que sonha em ser independente e trabalhar em uma revista feminina. Então, as três mulheres
se unem em uma jornada de autoconhecimento e luta contra o machismo e o racismo da época.
Dentro desse contexto, em uma cena marcante, Malu, uma mulher de classe média branca
reclama com Adélia, uma empregada doméstica negra, sobre o peso e a dificuldade que
enfrenta ao querer cuidar dos filhos ao mesmo tempo que deseja trabalhar e ter uma carreira
(COISA MAIS LINDA, 2019). Então, o diálogo se desenvolve como:

Malu: ''Eu estava lutando pelo meu direito de trabalhar. Deixei meu filho na
casa da minha mãe e eu tô tentando fazer alguma coisa pela minha vida. Só
que tá muito difícil.''

Adélia: “Chega, Malu! Lutando pelo meu direito de trabalhar? Eu trabalho


desde os 18 anos de idade. A minha avó nasceu numa senzala e é difícil. Eu
trabalhei seis, sete dias na semana. Saía de casa às 4:00 da manhã. Ficava
mais de uma hora no ônibus na ida e mais de uma hora no ônibus na volta.
Chegava em casa e minha filha estava dormindo. Tudo isso para colocar um
prato de comida na mesa. Isso sim pra mim é relevante. Eu sinto falta da
minha filha todas as horas do meu dia. Seu filho já te pediu alguma coisa que
você nunca vai poder dar? A minha já”.

Malu: “Você tem razão, a gente não é igual”.

(COISA MAIS LINDA, 2019)


48

Por meio dessa cena é possível realizar algumas observações acerca da realidade
material. Primeiramente, a incapacidade de realizar uma comparação linear entre a criação dos
filhos por mulheres brancas e negras. Isso porque essa questão perpassa por fatores estruturais
da sociedade que incidem de formas diferentes sobre as mulheres. Um exemplo disso é a
notória mudança do século XX, com a entrada do capitalismo industrial, o qual apresenta a
característica muito mostrada em livros de história referente ao aumento significativo da
participação da mulher no mercado de trabalho e ao aumento dos movimentos feministas. No
entanto, se de um lado é notório que houve realmente essa transformação, é possível se
questionar sobre onde estavam as mulheres negras todo esse tempo. Se o trabalho é um
elemento fundamental da vida humana, já que é por meio dele que os seres humanos
transformam a natureza e produzem os bens necessários à sua sobrevivência (MARX, 2004), é
possível dizer que na história brasileira as mulheres negras sempre trabalharam. Partindo desse
paradigma histórico, a teórica e ativista feminista negra estadunidense Angela Davis, ao
abordar a história do movimento sufragista nos Estados Unidos, traz no capítulo "Mulheres
trabalhadoras, mulheres negras e a história do movimento sufragista", de seu livro "Mulheres,
raça e classe" (DAVIS, 1981/2016), a exclusão das mulheres negras nesse processo. Assim, a
autora mostra que o movimento sufragista foi liderado por mulheres brancas de classe média,
que muitas vezes excluíam as mulheres negras de suas atividades e reuniões. As mulheres
negras, por sua vez, estavam mais focadas em lutar por questões econômicas e trabalhistas, já
que muitas trabalhavam em empregos mal-remunerados e sem direitos. Davis (1981/2016)
destaca nesse capítulo que a luta pelos direitos das mulheres negras foi frequentemente
ignorada ou subestimada pelo movimento sufragista branco, e que as mulheres negras muitas
vezes precisavam lutar contra o racismo e o sexismo simultaneamente. Ela discute também a
importância das lutas trabalhistas das mulheres negras, que muitas vezes se concentravam em
questões como salários iguais, condições de trabalho justas e direitos sindicais. A autora
argumenta que essas lutas foram fundamentais para a construção do movimento feminista
negro e para a luta pela igualdade de direitos no geral. Apesar de Davis pontuar a situação de
exclusão das mulheres negras nesse movimento sufragista, o mesmo fenômeno ocorreu em solo
brasileiro. Enquanto o movimento feminista foi ganhando força no Brasil, milhões de mulheres
negras foram excluídas desse processo.

Em relação às mulheres negras, as consequências da história de exclusão e opressão se


revelam na atualidade e nas famílias brasileiras. Um exemplo da extensão da escravidão é o
papel assumido pelas empregadas domésticas até hoje em famílias de classe média alta.
49

Atualmente, ainda, o trabalho de babá e de empregada doméstica é uma das formas mais
recorrentes de inserção da mulher negra no mercado de trabalho. De acordo com o IPEA, cerca
de 22% das mulheres negras são empregadas em funções desse tipo e computam 65% das
trabalhadoras domésticas no país (AGÊNCIA BRASIL, 2022). Esse número é resultado de um
processo histórico nacional profundamente ligado as raízes da escravidão no Brasil.
Antigamente enunciadas como amas de leite, as mulheres negras escravas que já tinham filhos
cumpriam a tarefa de amamentar a criança quando a mãe biológica não conseguia produzi-lo.
Nesse processo, as amas de leite eram anunciadas em jornais da época tais como outros
produtos alimentares e eram obrigadas a realizar esse serviço, não obtendo nenhum tipo de
lucro com essa prática. Como mostra Carula (2011) no trecho a seguir, a mudança dessa prática
não se deveu à violência em relação ao corpo da mulher negra, mas sim a uma prática
higienista:

Aqui está um ponto recorrente no discurso médico da época: a valorização do


aleitamento materno em oposição ao efetuado por escravas. Incentivar esse
tipo de alimentação situava o Brasil no rol dos países considerados
civilizados, nos quais os médicos também incentivavam, com base em
discursos científicos, a amamentação materna. Entretanto, em terras
brasileiras, havia a peculiaridade de a maioria das amas de leite serem
escravas - alugadas ou pertencentes à própria família. Tal fato proporcionava
um argumento a mais aos médicos nacionais. O aleitamento materno garantia
que as crianças brancas não fossem amamentadas por mulheres consideradas
racialmente inferiores, haja vista a crença de que o leite transmitiria
qualidades morais aos bebês. A possibilidade de infectar moralmente os
infantes, deturpando seu caráter, demonstra o perigo que os cativos
representavam para as famílias brancas no imaginário desses homens de
ciência (CARULA, 2011, p. 201)

Esse trecho revela que a substituição da tarefa realizada pelas amas de leite pela ama-
seca, hoje conhecida como babá, deve-se a uma política higienista. Durante o período da
escravidão no Brasil, a maioria das mulheres negras tinha obrigação de criar os filhos dos casais
brancos da elite do país e muitas vezes perdia seus próprios filhos, que eram vendidos a outras
famílias e não tinham o direito de ficar com a mãe. Após a abolição da escravidão, não houve
nenhuma política de integração da população negra, ou seja, as mulheres negras continuaram
a ocupar a função de cuidadoras dos filhos dos casais de classe média alta. Atualmente, muitos
patrões obrigam as babás a utilizarem uma roupa branca, diferenciando-as dos pais. Essa
diferenciação por meio da vestimenta mostra a perversidade por trás da tentativa das famílias
ricas de diferenciar aquela que cuida dos pais biológicos da criança. Em trabalho muito
importante, Segato (2006) explora como ''magicamente'' é apagado da historiografia brasileira
a temática da mãe preta. A autora pontua a existência de uma ferida colonial emergente da
50

identidade do povo brasileiro baseada na tentativa de apagamento de uma violência estrutural.


Nesse sentido, mostra como é preciso entender as relações de parentesco no Brasil e a
existência de relações múltiplas de maternalidade. Durante muito tempo no Brasil, a mãe
biológica não é a mãe de criação, de amamentação dos filhos (a mãe de direito e a mãe de
afeto). O que é rejeitado na babá é ao mesmo tempo o trabalho de reprodução e a negritude,
como explicita a antropóloga:

É, contudo, nas estatísticas, que podemos rastrear a persistência


contemporânea da instituição da mãe preta, já na sua função de mãe seca e
polivalente criadeira dos filhos da classe média. Com efeito, embora o Censo
Brasileiro de 2000 revele uma crescente presença das mulheres na população
economicamente ativa (PEA), esta presença concentra-se nas atividades
domésticas. O encarecimento progressivo do trabalho doméstico leva à
expressiva substituição de mulheres por meninas como forma de manter a sub
remuneração desse tipo de emprego, o que indicaria a prevalência de
''continuidades históricas'' nesse tipo de trabalho: a evitação da alocação de
investimentos no setor social graça à permanência do 'trabalho invisível das
mulheres (SEGATO, 2006, p. 4)

Dentro desse espectro, o filme ''Que horas ela volta'' (2015), dirigido por Anna
Muylaert, mostra a questão de como as mulheres da classe trabalhadora, em grande parte as
negras, são forçadas a abandonar suas famílias e não criar seus filhos para criar os filhos de
outro. Essas informações mostram que a sociedade brasileira ainda vive a continuidade de se
alimentar do corpo da mulher negra, se nutrir do afeto do corpo da mulher negra e recusar essa
posição, rejeitando essa realidade histórica (SEGATO, 2006).

Referente às trabalhadoras domésticas, esse ambiente mostra como existe também


dentro dessa realidade uma ambiguidade posta nessa relação, uma vez que as denominadas
''babás'' ocupam o lugar de cuidadora e desenvolvem um afeto pela criança, ao mesmo tempo
que é sabido que ela não é a mãe legal e que por trás do cuidado há o capital. No livro Chanson
Douce (SLIMANI, 2018), a autora marroquina Leila Slimani explora diversas questões
relacionadas a essa relação entre a babá e as crianças. Alguns trechos do conto mostram esse
vínculo e apego que a babá tem com as crianças, ao mesmo tempo que não é enxergada como
alguém da família:

— Minha babá é uma fada. É o que diz Myriam quando fala da aparição de
Louise no cotidiano deles. Ela deve ter poderes mágicos, só assim para ter
transformado esse apartamento abafado, exíguo, em um lugar calmo e claro.
(SLIMANI, 2018, p. 34)

Louise é uma soldado. Avança, custe o que custar, como um animal, como
um cachorro que teve as patas quebradas por crianças malvadas. (SLIMANI,
2018, p.102)
51

A obra também levanta diversas outras questões muito importantes, tais como a relação
conturbada da babá com sua filha, uma vez que não tinha tempo de cuidar da menina, já que
trabalhara toda a vida sendo empregada doméstica de outra família; e a separação simbólica da
babá com a família, já que ela não é considerada como um membro família. Também mostra o
circuito de afetos entre a babá e as crianças, e como em um primeiro momento essa relação era
agradável, mas depois foi se tornando um fardo.

Dentro dessa lógica, Berquó (1998) traz um apontamento interessante referente à


terceirização da educação das crianças. Se hoje em dia muitas mães de classe média alta
utilizam de outros espaços de cuidado, juntamente com as babás, as mulheres mais pobres
sempre realizaram essa atividade. Isso porque essa parte da população nunca deixou de
trabalhar, ou seja, a criança era cuidada por outras instituições ou pela própria comunidade.

Partindo dessa perspectiva, Minuchin, Colapinto e Minuchin (2004) mostram que o


trabalho com as famílias pobres exige um estudo acerca das complexidades presentes no
contexto de cada ambiente familiar, como também a importância de envolver as famílias no
processo terapêutico a fim de trabalhar com elas seus ambientes singulares, como na casa ou
na comunidade, ao invés do ambiente clínico tradicional. Os autores discutem também acerca
das barreiras estruturais enfrentadas pelas famílias pobres, como o acesso limitado a serviços
de saúde e educação. Nesse sentido, fortalecem a importância da realização de um trabalho em
rede com essas famílias a fim de lhes fornecer um atendimento amplo.

Nesse contexto apresentado, é preciso questionar sobre como as diferenças estruturais


que aparecem na sociedade brasileira agem nas relações familiares e na autonomia dos sujeitos.
Partindo das características significativas para a construção da autonomia como a interação
ativa entre sujeito-objeto e a exposição a diferentes ambientes, pode-se se ilustrar que essa
interatividade ocorre de maneira desigual. Enquanto crianças de classe média-alta têm
privilégios de acesso a clubes, esportes, colégios particulares e lazer, outras dependem de ações
estatais para as mesmas possibilidades. Nesse sentido, as classes sociais mais pobres ficam
refém do Estado para garantia de direitos básicos, como a educação, saúde, alimentação,
segurança, trabalho e moradia.

Também se faz necessário o questionamento sobre a possibilidade de uma autonomia


em um cenário racista, já que esse espaço é tomado por privilégios brancos. Ensinar os filhos
a sair com documentos na rua, ter medo de que ele seja assassinado por uma negligência
52

policial e medo de ser recusado em uma vaga de emprego não é computado pela branquitude.
Isso porque, segundo Ribeiro (2019),

A branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios


construídos a partir da opressão de outros grupos. Devemos lembrar que este
não é um debate individual, mas estrutural: a posição social do privilégio vem
marcada pela violência, mesmo que determinado sujeito não seja
deliberadamente violento. (RIBEIRO, 2019, p. 17)

Em relação ao ambiente familiar, é preciso questionar sobre a exaustão imposta às


mulheres negras. Em muitas situações essas mulheres ocupam diversos papéis
simultaneamente, como os de mãe, cuidadora, avó, babá, sem sobrar tempo para elas mesmas.
Normalmente, são essas mulheres que demoram para chegar em casa e ainda precisam preparar
comida para aqueles que a esperam. Isso mostra como o próprio tempo, uma necessidade, se
tornou um privilégio (ITO, 2017), na medida que pessoas com uma renda menor não têm o
direito de desfrutar de um momento livre, e o ócio e a preguiça são vistos como uma virtude
frente a condição laboral apresentada. Em um país no qual negros são 75% entre os mais
pobres, é necessário questionar se e o quanto essa população tem o direito ao lazer, ao ócio e à
preguiça. Outra questão é como se faz possível a criação de independência, no sentido de uma
liberdade de ter possibilidades de ser nesse mundo, com todas as pressões estéticas e falta de
representatividade de pessoas pretas? Em um contexto marcado pela predominância do
discurso branco, qual o espaço de pertencimento que cabe às pessoas pretas?

Dessa forma, fica evidente que ao tocar no assunto referente ao ambiente familiar é
preciso compreender como as opressões estruturais de raça, classe e gênero atravessam as
realidade brasileiras. Se esses fatores não forem levados em consideração numa análise,
incorre-se no lugar de um discurso universal que se aplica a todos os indivíduos, o que é um
equívoco. Devido a esse contexto, fica evidente que a influência do ambiente familiar na
autonomia dos indivíduos aparece em todas as situações, mas os fatores estruturais apresentam
obstáculos que necessitam ser combatidos e analisados.
53

CONCLUSÃO

Com a intenção de refletir sobre a influência do ambiente familiar na construção da


autonomia do sujeito, a partir das informações abordadas durante o trabalho, é possível realizar
alguns apontamentos.

Primeiramente, a compreensão de família não como um fenômeno natural, mas


construído historicamente e que apresenta transformações em sua estrutura, dependendo do
contexto no qual está inserido. Isso significa que toda ideia de parentalidade, parentesco e
família são socialmente construídas e por isso precisam ser entendidas em sua totalidade a
partir das mudanças ocorridas durante diferentes períodos. Essa compreensão é necessária a
fim de não se realizar análises que recorram ao senso comum ou a um discurso moral. Nesse
sentido, cada vez mais fatores biológicos não vêm sendo utilizados como referência do que é
considerado família, ao mesmo tempo que há uma tentativa de reconhecimento das instituições
acerca do direito e reconhecimento de diversificadas formas de relações (VILHENA et al.,
2011). Apesar disso, ainda se faz necessária uma importante transformação nessa discussão
visando desnaturalizar categorias já estabelecidas acerca da parentalidade e da família, e olhar
para essas questões como um fenômeno e não como algo determinista. Soma-se a isso uma
resistência necessária frente à imposição incessante da extrema-direita da política brasileira
que busca impor uma concepção de família baseada em fatores biológicos e morais, rejeitando
a compreensão de que esse conceito é mutável e socialmente construído.

Assim como na discussão sobre o conceito de família, foi realizado um levantamento


histórico sobre a autonomia. O estudo mostrou algumas acepções da autonomia, sendo essa
questão muito trabalhada no campo da filosofia. Apesar de não haver um consenso universal
dentro da psicologia acerca deste conceito, foi possível traçar um diálogo entre alguns autores
que o discutem e apontar que a compreensão do conceito precisa ocorrer em diferentes esferas.
A autonomia é moral, social e afetiva, e está ligada ao processo de construção do conhecimento
durante o ciclo vital, no qual o sujeito adquire a capacidade de agir de forma autônoma e
independente em diferentes áreas, abrangendo a esfera moral, as interações sociais e a
regulação emocional. Ela também está relacionada ao psíquico, no que se refere à capacidade
da criança de se tornar um sujeito autônomo em relação aos seus próprios pensamentos, desejos
e emoções. Para que isso ocorra, é necessário que haja uma separação gradual entre a criança
e cuidadores, de modo a que ela possa desenvolver sua subjetividade. Esse processo implica
que a criança não somente adquira habilidades físicas e cognitivas, mas também desenvolva
54

sua identidade psíquica separada dos outros. Nesse caminho é importante permitir que a criança
experimente e explore suas próprias emoções e pensamentos, e que o ambiente familiar a
auxilie na promoção dessa autonomia psíquica, permitindo que ela se torne um indivíduo
autônomo, capaz de tomar decisões e expressar sua individualidade (DOLTO, 1985).
Importante pontuar que ser autônomo não significa o abandono do infantil, até porque esse se
perpetua por toda a vida do sujeito, já que se trata de algo estrutural, um solo fundante, arcaico
e originário. Como pontua Dolto (1985, p. 06), ''é um escândalo para o adulto que o ser humano
em seu estado de infância seja igual a ele''6. Por fim, o trabalho revelou também que a
autonomia está diretamente relacionada com a educação, pois é por meio do diálogo e de um
processo não violento que o indivíduo pode refletir de forma autônoma no sentido de ter
liberdade para formular suas próprias ideias a partir do que lhe foi apresentado.

A partir do conceito apresentado e da concepção de instituição familiar como uma das


principais formadoras da constituição subjetiva do sujeito e da necessidade da inclusão da
criança em uma comunidade como membro digno de cuidados, foi possível apontar alguns
desafios nesse processo. Os estudos revelaram que as principais dificuldades encontradas no
decurso do desenvolvimento das crianças são a idealização de uma família perfeita
(inexistente), o reconhecimento do filho como um ser separado, a imposição de limites, o
conflito geracional e a cultura da positividade propagada na sociedade atual. Ademais, os
diferentes autores mostram a importância do diálogo e da historicização do sujeito a fim de
atravessar as criptas e fantasmas que muitas vezes ficam escondidos pelo não-dito familiar,
essencial para que o sujeito não fique preso a uma história que não é sua. Lidar com esses
fatores é essencial para a autonomia do sujeito, pois é o que torna possível uma elaboração
única e subjetiva a partir do que foi construído no processo.

Em todo esse estudo faz-se necessário o reconhecimento de uma desigualdade estrutural


construída historicamente no Brasil. Questões de raça, classe e o gênero são fatores interligados
e inseparáveis na análise das desigualdades sociais, ou seja, para que haja a luta por justiça
social deve se considerar e combater as opressões (DAVIS, 1981/2016). Isso significa que em
qualquer estudo é preciso se questionar sobre o que os autores consideram como universal e se
é possível estabelecer esse paradigma na realidade material apresentada. O presente trabalho
evidencia a necessidade de uma análise profunda nesses quesitos a fim de evitar interpretações
gerais esvaziadas que podem ser aplicadas em qualquer contexto. Pelo contrário, o estudo

6
Tradução livre da autora. No original, “C'est un scandale pour l'adulte que l'être humain à l'état d'enfance soit
son égal”.
55

mostrou a importância de entender a realidade brasileira atravessada por muitas desigualdades


e como elas podem afetar o ambiente familiar de diferentes famílias. É claro que cada uma
apresenta suas singularidades e modos de compreensão diferentes acerca dos fenômenos, mas
todas são atravessadas pelo contexto estrutural marcado por opressões.

Portanto, a partir de toda a análise realizada neste trabalho, é possível dizer que a
autonomia está ligada ao processo único do sujeito de vir a ser no mundo, um movimento
contínuo ao longo da vida que nunca estaciona. Esse processo ocorre por meio da experiência
em diversos ambientes e a família tem um papel fundamental, já que é o primeiro contato da
criança com o mundo. Isso tudo requer uma grande força de deslocamento, como afirma
Guimarães Rosa: ''O que a vida quer da gente é coragem''. E Vera Iaconelli afirma:

A liberdade dá um medo tremendo, ela te coloca em contato com o seu desejo,


e se você não souber lidar com ele, pode ficar com muito medo do que vai
aparecer. (...) Colocar no outro a responsabilização pelo meu desejo, pelo que
eu faço ou deixo de fazer, é o truque mais velho que existe. (....) A liberdade
causa medo porque é um abismo de possibilidades de encontro com você,
daquilo que você não sabe. (PROVOCA, 2022)
56

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A formação de um sujeito se dá desde a infância no seio de sua


família, mas não é apenas em casa que a criança forma sua
identidade.

Maria Rita Kehl

Não é somente o ambiente familiar que exerce uma influência sobre a vida do sujeito e
sua autonomia. Pelo contrário, os sujeitos estão o tempo todo sendo perpassados por diferentes
instituições como governo, educação, religião, economia, saúde e mídia, por exemplo. Essa
reflexão a partir de diferentes discursos pode auxiliar na estimulação do pensamento crítico, já
que há uma diferença entre os ditos das instituições e o que ajuda na criação de possibilidades
para que o sujeito possa produzir e construir a partir do que lhe foi dado. É claro que tudo isso
irá depender de diversos fatores, de como esses ambientes foram apresentados e quais
capacidades do sujeito foram exploradas durante esse processo. Conforme o contexto, esse
desenvolvimento pode se configurar como algo penoso e fonte de grande sofrimento.

A partir da pesquisa realizada, foi possível notar que apesar de uma grande discussão
acerca do conceito de família e suas reformulações, muitos artigos ainda se referiam à
parentalidade sob uma perspectiva heterocisnormativa. Assim sendo, diversos trabalhos
apresentavam uma abordagem sobre o que é ser pai e mãe a partir de uma perspectiva ligada
aos papéis sociais hegemônicos de gênero, o que é curioso, já que cada vez mais há debates
que buscam desconstruir os estereótipos e os privilégios de que se servem os grupos que detêm
esta hegemonia. Ademais, em muitos trabalhos procurados, o questionamento acerca de raça,
classe e gênero não eram mencionados. A carência do debate nesse campo mostra a importância
de realizar questionamentos acerca das realidades brasileiras e como as opressões atravessam
o ambiente familiar em diferentes conjunturas sociais.

Por fim, é preciso reconhecer que o trabalho apresenta limites no que concerne a
abordagem destas diferentes temáticas. No estudo sobre o ambiente familiar há muitos
conteúdos a serem trabalhados, tais como a pressão da maternidade para as mulheres e como
os papéis femininos são vistos nos dias de hoje, levando em conta todas as opressões presentes.
Assim, esse estudo propôs a discussão de importantes temáticas que certamente não se
esgotam. Fica o convite para o aprofundamento de questões levantadas ao longo do trabalho
em futuras pesquisas.
57

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