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PUCSP
Brendali Dias
SÃO PAULO
2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUCSP
Brendali Dias
SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora:
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É impossível fugir à impressão de que as pessoas
comumente empregam falsos padrões de avaliação
– isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza
para elas mesmas e os admiram nos outros,
subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem
valor na vida. No entanto, ao formular qualquer
juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer
quão variados são o mundo humano e a vida
mental. (FREUD, 1929/1974, p. 81)
This project aims to criticize the logic of the consumption capitalism in the
contemporary society. Our criticism takes as its major premise the harmfulness of the
way this logic is kept through the promise of completeness and foreclosure of object a.
The research was developed as from the Lacanian psychoanalytic theory based on
Slavoj Žižek, which makes use of it to propose a critical social and political theory
against the dictates of the logic of capital. Žižek points out that the logic of capital keeps
itself as from a proposal which takes the subject to consider that it is impossible to
escape this logic and with that becomes conniving with it to face the consumption as the
only way to calm his/her afflictions. As a result of this pursuit to calm his/her
afflictions, the subject is seduced by the promise of completeness, facing the offers for
objects/goods as a way to feel welcomed by social through them, consuming
indiscriminately. Based on Žižek’s arguments, who uses as a base for his criticism the
Lacanian psychoanalytic theory, we discuss the place of the subject in this logic, and
his/her alternatives to escape from it. We put in doubt the consumerism in capitalism,
raising the inquiry about why the subject places himself/herself in such a complacent
way towards this logic. We reflect, yet, on the use made by the capitalist system of the
technologies associated to science, which have been presented by the media as capable
of generating in subject a completeness state, which is never found, leading the society
to severe pathologies. These pathologies, faced as symptom by psychoanalysis, are
pointed out as rebellion against this logic. The symptom, therefore, manifests itself as a
way for the subject to show his/her dissatisfaction with the logic of capital, being also
the chance for the subject to escape from it. Finally, we introduce Žižek’s proposal to
bring a political position of the subject against the impossible of the logic of capital to
enable alternatives which turn possible escaping from this logic, placing the need to
‘risk the impossible’ beyond the imposed by the logic of capital.
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 01
A psicanálise lacaniana foi escolhida para nortear este trabalho por contemplar
como essencial algo que julgamos de central importância em nosso tema: o objeto a. O
objeto a1, para a psicanálise lacaniana, representa uma falta inerente ao seres da linguagem,
ou seja, aos seres humanos. Essa falta causa o desejo que insiste sempre, atualizando a
busca do sujeito por um objeto perdido, o objeto a, simbolizado nos objetos da realidade.
Apesar de representar uma operação de falta para o sujeito, o objeto a é considerado pela
psicanálise como algo que impulsiona a vida, pois sua constante operação é necessária para
que o sujeito deseje, pois é através do desejo que o sujeito pode representar princípios e
1
Todos os conceitos da psicanálise citados nesta primeira parte do trabalho serão desenvolvidos no capítulo II
da dissertação.
sentimentos de seu ser. Neste contexto, estamos tratando o desejo humano como algo que
passa por um apelo ao Outro, um discurso com o qual o sujeito tem que lidar para ajustar
seu desejo à lei, que é um anseio inconsciente.
Escolhemos o autor contemporâneo Slavoj Žižek para orientar nosso trabalho pelo
fato de seus escritos críticos à lógica do capital serem construídos de acordo com os
conceitos da Psicanálise lacaniana. Slavoj Žižek nasceu na Eslovênia, é sociólogo, filósofo
e um estudioso da psicanálise lacaniana, além de um dos interlocutores mais importantes da
atualidade nos debates sobre o destino do pensamento político de esquerda. Ele é conhecido
também pelo uso que faz da psicanálise lacaniana em sua crítica da sociedade
contemporânea e por se utilizar dessa teoria para propor uma teoria social e política que
faça resistência à lógica do capital.
Em seus escritos, Žižek critica a lógica do capital por ela comportar uma ideologia
do impossível, ou seja, o impossível de uma transformação social fora das coordenadas do
capitalismo. Žižek aposta que as alternativas para uma transformação social e política, que
permita emergir o desejo do sujeito, estão fora das coordenadas do capitalismo. É nessa
medida que Žižek se lança ao debate com base na psicanálise, pois ele concorda com o
ponto de vista da psicanálise de que o objeto a é fundamental para a existência do sujeito
em sociedade. O que o autor, assim como a psicanálise, critica na lógica do capital é o fato
de ela incitar o sujeito à busca incessante pela foraclusão do objeto a, prometendo, ao
sujeito, a completude de gozo, dada como impossível pela psicanálise.
A importância dos conflitos existenciais do sujeito (...) e dos conflitos entre sujeito
e sociedade é substituído por uma profusão infindável de pseudo-entidades
mórbidas recém-criadas. São os TOCs, DOCs, oniomanias, síndromes e transtornos
dos mais variados tipos e graus de nocividade, que, como ocorre com tudo que
recebe uma nomeação, ‘criam’ a ‘realidade’ do que recebeu seu batismo. (p. 33)
Com estas palavras o autor nos mostra dois lados da questão: por um lado, o
médico, inspirado pela lógica do consumo, propõe as drogas como saída para todos os
males, ou seja, propõe a foraclusão do Objeto a (proposta da lógica do capital para
apropriar-se do sujeito), por outro lado, o sujeito, na dificuldade de lidar com seus
conflitos, aceita fazer uso do medicamento, contando com o desaparecimento de seu
sintoma e conseqüentemente com a foraclusão do Objeto a (é quando o sujeito se apropria
da lógica do capital).
3
impotente, deixando-se alienar por qualquer dessas nomeações, ficando exatamente no
lugar em que a lógica do capital pretende mantê-lo. Dessa maneira, o médico se apresenta
conivente com a lógica do capital, na medida em que incita o consumo excessivo de drogas
ditas terapêuticas, como se a droga pudesse resolver todos os sofrimentos do sujeito. O
mais complicado nesta situação é que o sujeito, ao fazer uso do medicamento, se
desimplica de sua responsabilidade sobre seu sintoma e conseqüentemente de seu desejo.
Sobre isso Antonio Quinet (2006) lança a seguinte questão:
Deixemos claro que nossa finalidade não é fazer oposição à categoria médica,
sabemos que o profissional da medicina é indispensável para a sociedade. Nossa crítica
incide sobre o fato de que o médico, ao aliar-se à lógica do capital, promete um fim para
todos os males do corpo pelo consumo de medicamentos, propondo com isso a foraclusão
do objeto a.
O abuso do consumo pelo sujeito no capitalismo aponta para a busca do gozo pleno
prometido pelo sistema, mas dado como impossível pela psicanálise.
5
Esses mecanismos sociais contribuem para que as experiências do corpo – isto é, o
prazer e a dor – sejam negadas ou distorcidas em suas significações, pois para a
perpetuação e para o fortalecimento do todo é necessário que o indivíduo aceite e
reproduza as condições de sua própria exploração. (p. 59)
A partir desta citação podemos nos perguntar: fortalecer que todo? No caso da
sociedade do capitalismo de consumo, fortalecer o acúmulo de capital em detrimento da
possibilidade de o sujeito lidar com seus conflitos e com os conflitos sociais. Ao preocupar-
se em dar um fim ao seu sofrimento, o sujeito, numa lógica individualista, deixa de lado
suas críticas ao social, abrindo mão de sua responsabilidade neste sistema, consumindo
conformadamente na busca de completude de gozo.
Consumir é uma resposta do sujeito, mas ele não responde apenas de maneira
conformista, ele responde também com seu sintoma que aparece nos sofrimentos
cotidianos, nos mal-estares, nas angústias etc. Essas são as respostas não conformistas do
sujeito. Não é à toa que a lógica do capital se preocupa tanto em calar tais respostas por
meio da mídia e da tecnociência, ofertando novos objetos/mercadorias a todo instante.
6
Trouxemos nas discussões desta introdução uma crítica referente à alienação do
sujeito na lógica do capital pela busca do gozo pleno e foraclusão do objeto a, o que não
significa que a teoria psicanalítica busca a eliminação do gozo. O gozo é admissível pela
psicanálise, aliás, é uma necessidade do sujeito por sua própria constituição alienante (tema
que será tratado no capítulo II). Mas digamos que esse gozo admitido pela psicanálise seja
um gozo não-todo. O que não é admissível pela psicanálise é o encontro com o gozo pleno,
essa é a promessa impossível da lógica do capital.
Sem desejar tomar mais tempo do leitor nesta parte do trabalho, partamos para
nossa empreitada.
8
CAPÍTULO I – AS TRANSFORMAÇÕES NA LÓGICA DO CAPITAL: DO
CAPITALISMO DE PRODUÇÃO AO CAPITALISMO DE CONSUMO
Do ponto de vista histórico, Michel Beaud (1985) relata que a longa marcha para o
capitalismo começa no século XI, quando a sociedade feudal se vê realizada em sua forma
acabada. A organização da produção se dava pelo trabalho forçado, servidão e corvéia,
extorsão do sobre-trabalho do qual se beneficiava o senhor, dando origem ao início do
mercantilismo.
Marx assegura que esse caráter misterioso provém da forma da mercadoria, pois o
caráter social das relações entre os produtores assume a forma de relação social entre os
produtos do trabalho, isto é, os produtos do trabalho irão atribuir um poder abstrato nas
relações entre os produtores. O autor chama esse processo [de atribuir um poder abstrato à
mercadoria] de fetichismo, que no vocabulário de sua época significava algo como uma
espécie de feitiço sobre a produção material, o qual, por sua vez, criaria uma “aparência”
frente à “essência”. Por isso, com o fetichismo das mercadorias, uma relação social definida
entre pessoas se materializaria como um “entre coisas”, que também adquirem uma
aparência de “equivalência”.
10
seja, ele precisa convencer o comprador de que a mercadoria produzida tem um valor para
ele (comprador). Ele só convencerá o comprador se mostrar que a forma de sua mercadoria
tem algo para além do seu valor de uso, e esse “algo mais” deve estabelecer-se dentro de
uma equivalência social. Para Marx (1867/1984), isso tudo significa que:
De acordo com a relação social de produção que tem validade geral numa sociedade
de produtores de mercadorias, estes tratam seus produtos como mercadorias, isto é,
valores, e comparam sob a aparência material das mercadorias, seus trabalhos
particulares, convertidos em trabalho humano homogêneo. (p. 88)
Em outras palavras, isso significa que para a livre circulação das mercadorias torna-
se necessária uma alienação do sujeito frente às mercadorias. Como funcionaria o processo
de alienação frente às mercadorias para Marx? Em uma passagem dos Manuscritos
Econômico-Filosóficos, Marx (1844/2004) escreve que:
O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais
sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria
tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das
coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a
si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isso na medida em que produz,
de fato, mercadorias em geral. (p. 80, grifos do autor)
11
trabalho. Mesmo em profissões de nível superior, os trabalhadores acreditam que vendem
apenas seus serviços técnicos, como se isso não fizesse parte do processo de produção das
mercadorias, e a partir deste pensamento se submetem às condições da empresa para
garantir seu sustento. Em outra passagem, Marx (1944/2004) assinala bem essa condição de
alienação:
(...) é necessário que ela lhes pertença inteiramente (...) que exista o mercado (...) e
que os homens não tenham nada mais a vender a não ser sua força de trabalho, isto
é, que eles mesmos não possuam nenhum meio de produção. Tais homens, os
proletários, existem, tanto em conseqüência da desagregação econômica do sistema
feudal, como em conseqüência da concorrência que impera na produção mercantil,
concorrência que arruína os pequenos artesãos e os pequenos comerciantes, e isso
desde o início de seu desenvolvimento. (p. 255)
12
Em conseqüência desta concorrência desleal que arruína os pequenos artesãos e
comerciantes, origina-se a força de trabalho disponível de que o capitalismo necessita. Para
tanto, é preciso que se some à alienação frente às mercadorias a sensação de liberdade
frente à lógica capitalista. Como explica Politzer (1954/s. d.), a “liberdade” do sujeito
inserido na lógica capitalista se reverte em “liberdade” de vender sua força de trabalho ao
capitalista, que, por sua vez, fica aprisionado na liberdade de “explorar” o trabalhador.
Existe uma condição abstrata na mercadoria que está presente desde a época das
trocas. Apesar de a relação abstrata da mercadoria, ou seja, o fetiche da mercadoria se fazer
presente desde a época das trocas podemos observar que, com a evolução do capitalismo, o
valor de troca se sobrepõe ao valor de uso assumindo uma proporção cada vez mais
excedente sobre este último, proporcionando condições para a emergência do capitalismo
de consumo.
Diante do que foi trazido até agora, é interessante apresentar o que Haug (1977)
identificou como sendo algumas condições básicas que permitem a emergência do
capitalismo de consumo. Ele nos apresenta a relação das pessoas com as mercadorias,
desde a época das trocas até os nossos dias. Diz este autor que, para ocorrer a troca de
mercadorias:
(...) é preciso que o respectivo proprietário tenha-a “sobrando” – isto é, não tenha
necessidade nem faça uso dela – por outro lado, seu não proprietário deve precisar
dela para que pense em trocá-la. Só quando duas relações desse tipo se ajustam é
que a troca torna-se possível, isto é, adquire sentido para ambos. (p. 23)
13
Antes que o pensamento pudesse chegar à idéia de uma determinação puramente
quantitativa, um sine qua non da moderna ciência da natureza, a quantidade pura já
estava em ação no dinheiro. Essa mercadoria que possibilita a comensurabilidade
do valor de todas as outras mercadorias, a despeito de sua determinação particular.
Antes que a física pudesse articular a noção de um movimento puramente abstrato,
ocorrendo num espaço geométrico, independente de quaisquer determinações
qualitativas dos objetos em movimento, o ato social de troca já havia realizado um
movimento abstrato “puro” que deixa totalmente intactas as propriedades sensório-
concretas do objeto apanhado em movimento: a transferência de propriedade (p.
302).
Este tipo de movimento da tecnologia é impulsionado pela mídia que passa a idéia
de que a completude sempre está no futuro. Ou seja, após a obtenção de uma mercadoria,
14
certamente o sujeito terá que consumir novamente. Mesmo antes de consumir a próxima
mercadoria o sujeito já sabe que depois dela virá outra que a tornará obsoleta. Vemos aí que
a própria obsolescência se torna um fetiche, ou seja, há um fetiche em se livrar de um
objeto, mesmo em bom estado de uso, para obter um novo e assim sucessivamente.
Até uma ou duas décadas atrás, o sistema produção-natureza (...) era percebido
como uma constante, enquanto todos tratavam de imaginar diferentes formas de
organização social da produção e do comercio; (...) hoje, como assinalou Frederik
Jameson com muita perspicácia, ninguém mais considera seriamente as possíveis
alternativas ao capitalismo, enquanto a visão popular é assombrada pelas visões do
futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda vida sobre a terra. (...) Assim,
pode-se afirmar categoricamente a existência de uma ideologia qua matriz geradora
que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável,
bem como as mudanças nessa relação. (p. 7)
15
Nesse sentido podemos pensar a mídia como um dos elementos que favorecem a
lógica que sustenta a forma. Podemos pensar, neste caso, que a ideologia apresentada pela
mídia regula o que devemos e o que não devemos saber sobre as questões ecológicas,
favorecendo a manutenção da lógica capitalista.
É um fato bem conhecido que o botão para fechar a porta na maioria dos elevadores
é um placebo completamente disfuncional, aí colocado apenas para dar a falsa
impressão de que estão de alguma forma a participar, a contribuir para a rapidez da
viagem de elevador. Quando carregamos neste botão, a porta fecha-se exatamente
ao mesmo tempo que quando carregamos apenas no botão do andar sem apressar o
1
Analistas simbólicos são “(...) psicólogos, psicanalistas, historiadores, jornalistas, especialistas em
comunicação e cientistas que operam junto às empresas e aos mercados a fim de oferecer intervenções
discursivizadas/discursivizantes nas ações e práticas das empresas que os procuram. Essas ações podem
exigir um mapeamento semiótico dos espaços de consumo, uma redefinição da identidade nas marcas, uma
ação discursiva para mudar contratos de leitura e audiência junto a seus públicos, análises logísticas
integradas a análises de Marketing.” (PRADO, 2005, p. 82)
16
processo carregando também no botão para fechar a porta. Este caso extremo e
claro de falsa participação é, no meu entender, uma metáfora apropriada [para] a
participação das pessoas no nosso processo político pós-moderno. Os políticos
estão sempre a pedir-nos para carregar neste tipo de botões. (p. 5)
Nesta lógica o sujeito evita raciocinar sobre a lógica do capital sobre a ineficiência
dos apelos midiáticos, que, contradizendo os próprios apelos, pregam a destruição
ecológica pelo consumo. As propostas apresentadas são tomadas como ações políticas pelo
sujeito, mas na verdade não passam de propostas falsas em que, ao serem realizadas, ocorre
o mesmo que quando apertamos o botão de fechar a porta do elevador, que se fecha mesmo
que o botão não fosse acionado, ou seja, a situação política continua se passando da mesma
maneira que se passaria se essas pseudo-ações políticas não fossem realizadas.
2
Dados da pesquisa da equipe de Prado (2007) indicam que a mídia semanal “(...) ao promover tal
programação intensa em termos de consumo de auto-ajuda rumo ao sucesso, a mídia conduz o leitor ao
caminho da infelicidade ao perceber que ele jamais poderá chegar ao nível dos personagens-heróis- célebres
(pequenos ou grandes ricos) da mídia semanal”.
3
Prado (2007): Naturalização: modelos ideais a serem seguidos por todos e que são colocados como perfeitos
e imutáveis, como se fizessem parte da constituição do mundo.
18
ideais e acabam marginalizados pela sociedade, ou que se envolvem em movimentos
sociais que possam atrapalhar a fluidez do movimento capitalista. Em outras palavras, o
mau é qualquer sujeito que apresente uma atitude que apareça como de resistência frente a
busca naturalizante, portanto totalitária, implícita na lógica do capital. A crítica dessa
pesquisa nos apresenta um exemplo da forma imperativa a que somos levados a sempre
acionar botões ilusórios como nos apontou Žižek (2007) com o exemplo do falso botão de
fechar a porta do elevador.
Safatle (2008) afirma que o que proporciona a tapeação que ocorre através dos
meios de comunicação de massa e dos AIE é uma transformação na forma de
estabelecimento dos laços sociais na sociedade do capitalismo de consumo, que é diferente
da sociedade do capitalismo de produção. Diz ele que o que regia o capitalismo de
produção era a repressão e que o que rege o capitalismo de consumo é a não repressão. Em
um dos trechos de seu livro, nas palavras do autor:
4
Althusser (1970/1996) configura as seguintes instituições como Aparelhos Ideológicos do Estado: “AIE
Religioso, AIE Escolar, AIE Familiar, AIE Jurídico, AIE Político, AIE Sindical, AIE da informação e AIE
cultura.” (p. 115)
19
uma série de conseqüências fundamentais, a começar pelo fato de que os modos de
alienação necessários para entrarmos no mundo da produção não são totalmente
simétricos aos modos de alienação que fazem parte do mundo de consumo. De
maneira esquemática, podemos afirmar que o mundo capitalista da produção estava
vinculado à ética do ascetismo, da acumulação (“o prazer que submete todos os
prazeres”) e pela fixidez identitária que se manifesta como vocação para funções
específicas e especializadas. O mundo do consumo pede por sua vez, uma ética do
direito ao gozo. (SAFATLE, 2008,p. 126, grifos do autor)
A satisfação imediata permitida pelo cartão de crédito passa a ser a nova lógica do
sujeito. Após a aquisição de uma mercadoria, logo em seguida outro imperativo de
consumo é suscitado. Com isso os objetos começam a se tornar descartáveis pela má
5
Apud Safatle (2008, p. 127): “O novo capitalismo (o uso dessa palavra data dos anos 1920) continua
exigindo as regras da moral protestante no domínio da produção, ou seja, no domínio do trabalho, mas
estimula ao mesmo tempo o direito ao prazer e ao entretenimento”.
20
qualidade ou obsoletos pelo fato de que todos os dias há novos produtos com novas
tecnologias tornando os produtos adquiridos sempre ultrapassados. Quanto a isso, Safatle
(2008) afirma que:
Sobre essa busca frenética de gozo engendrada pela lógica do capital, Safatle (2008)
nos dirá que se trata de “uma sociedade na qual os vínculos com os objetos são frágeis, mas
que é capaz de alimentar-se desta fragilidade” (p. 134). Estaria aí a centralidade da
transformação da sociedade como conseqüência do estimulo do direito ao prazer, ou seja, a
busca do gozo está no consumo, consumir é trocar de objetos tornando frágeis os vínculos
com eles. É porque os vínculos com os objetos-mercadorias são frágeis que eles se tornam
descartáveis ou obsoletos movimentando a máquina do consumo na lógica do capital.
Essa fragilidade faz com que o sujeito busque adquirir um novo produto e, assim
que o obtém, volta a lidar com a incompletude, num movimento repetitivo e contínuo,
colocando em funcionamento o mais-de-gozar6, incessantemente pela busca de
objetos/mercadorias. As conseqüências dessas transformações, de acordo com Safatle
(2008), é que em última instância “isso nos faz passar de uma sociedade da satisfação
administrada para a sociedade da insatisfação administrada” (p. 133), uma vez que o
imperativo social da lógica do capital passa a “não repressão das moções pulsionais”, em
substituição ao antigo imperativo de “repressão das moções pulsionais”, típico do
capitalismo de produção.
6
Este e outros conceitos da Psicanálise lacaniana que aparecerem neste capítulo serão trabalhados no capítulo
II.
21
Uma transformação que tornou possível a nova organização do capitalismo,
transformação que, segundo Žižek (2005), dificulta a apreensão da presença das
contradições na nova lógica do capital ou as tornam aceitáveis, a partir dos conteúdos
particulares incorporados sem nenhum problema. Nas palavras do autor “cada
universalidade hegemônica tem de incorporar pelo menos dois conteúdos particulares – o
conteúdo popular autêntico e sua distorção pelas relações de dominação e exploração”
(ŽIŽEK, 2005, p. 12, grifos do autor).
A título de exemplo, retomemos Aidar (2007), que nos mostra que a mídia semanal
indica que o corpo perfeito é o corpo magro. Portanto, para gozar é preciso seguir certas
normas, “seja magro” é uma delas. Mas, como ser magro se devo me satisfazer de todas as
maneiras, inclusive me autorizando à gula? Sem esquecer o fato de que as propagandas
alimentícias são incorporadas nas mesmas revistas que pregam que o corpo perfeito é o
corpo magro e que são extremamente sedutoras. Assim, não nos é permitido um gozo livre,
mas um gozo administrado.
Safatle (2008) entende esse tipo de contradição como “posicionamento bipolar por
ser assentado em valores contrários” (p. 136), permitindo que o consumidor funcione bem
diante desta contradição porque “os próprios consumidores são incitados a não se
identificarem mais com situações estáticas” (p. 136). Como podemos perceber, estas
estratégias têm sido eficientes em termos de manutenção do capitalismo de consumo, ao
pregar a possibilidade de que, pelo consumo, o sujeito possa dar conta de suas angústias.
Sobre a questão da busca de gozo Safatle (2008) nos dirá que:
22
Safatle (2008) nos explica que “Lacan sempre insistiu que a lei do supereu era uma
“lei insensata” que funciona como um significante desprovido de significado. Tal caráter
insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem nenhum conteúdo normativo,
ele nada diz sobre como gozar ou qual é o objeto adequado ao gozo” (p. 131, grifos do
autor). Daí podemos concluir que os objetos oferecidos pelo mercado de consumo nunca
apresentarão o objeto adequado ao gozo, ou seja, mesmo obedecendo à lei do “goze”,
buscando-o no consumo, o sujeito jamais alcançará este gozo, pois os objetos oferecidos
pela lógica do capital serão sempre inadequados. Ancorados na psicanálise lacaniana,
entendemos que os objetos/mercadorias oferecidos pela lógica do capitalismo de consumo
são estratégias de manutenção desta lógica, nunca dando conta do gozo do sujeito como
promete.
23
CAPÍTULO II - A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E SUA ALIENAÇÃO AO
OUTRO NO LAÇO SOCIAL
O Outro, a quem este apelo é dirigido, é aquele que pensamos que deseja algo de
nós, quando na verdade somos nós mesmos que desejamos e não podemos lidar com a
responsabilidade de desejar tais coisas. Em seu texto “A psicanálise e seu ensino”, Lacan
(1957/1998) ilustra essa forma de funcionar nas seguintes palavras: “O inconsciente é esse
desejo do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à promessa, sua
própria mensagem esquecida” (p. 440). Outro ponto importante a ser marcado sobre o
Outro é que ele é um discurso com o qual o sujeito tem que lidar para ajustar seu desejo à
lei, um anseio inconsciente. Assim, o inconsciente é discurso do Outro, portanto, como
disse Lacan (1962/2005) “o desejo do homem é o desejo do Outro” (p. 31). O Outro é
também o tesouro dos significantes, ou seja, é a partir do Outro que a cadeia de
significantes é instituída. O significante, por representar o sujeito para outro significante,
instaura o objeto a, o qual está para sempre perdido, pois a cadeia de significantes é
infinita. Daly (2006) nos dirá que:
25
Jules. Este objeto não pode ser visto, e há apenas uma alusão a ele no brilho
reflexivo dos rostos dos protagonistas. É esse o objeto pequeno a: algo cuja
autenticidade não pode ser representada nem materializada, e que é apenas um
reflexo da pulsão de completar o circuito (quebrado) do gozo e conciliar-se com o
próprio desejo. (ŽIŽEK, DALY, p. 10, grifos do autor)
26
do Real. O problema nesta lógica está em que o gozo do Real, lei insensata do supereu,
não pede objetos da realidade apontados pela lógica do consumo. O objeto do desejo
oferecido pelo mercado de consumo, não é o objeto a, pois este é indecifrável, é sempre
desejo de outra coisa. Safatle (2008), nos dirá que:
Tal caráter insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem nenhum
conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar ou qual é o objeto adequado ao
gozo. Diz apenas um “goze!” sem predicações, um puro “não seda de seu desejo”.
O caráter insensato desse puro gozo fica evidente se pensarmos que toda escolha
empírica de objeto é inadequada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza
de determinações, em independência em relação a toda e qualquer fixação
privilegiada de objetos. Ele só pode realizar-se no “infinito ruim” do consumo e da
destruição incessante dos objetos que nada mais faz do que atualizar um excedente
de gozo. (p. 131-132)
O desejo causado pelo objeto a, então, não é o desejo de objetos nomeáveis pela
linguagem. O desejo causado pelo objeto a ao ser instaurado no sujeito em decorrência de
seu acesso à linguagem, nunca será um objeto da realidade. O objeto a se torna
indeterminado por causa da materialidade do significante que faz com que o sujeito ignore
suas necessidades biológicas dando prioridade total à demanda, passando por um apelo ao
Outro, tesouro dos significantes. Dito de outra maneira, é o significante que determina o
desejo do sujeito, sempre como desejo de outra coisa. Lacan (1960a/1998) coloca o desejo
como o que “se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade” (p. 828).
E é por recorrer à voz do corpo tomado pela linguagem que o sujeito pode sustentar
uma greve de fome1 e anular as necessidades orgânicas, priorizando a demanda e
caracterizando o desejo. Da mesma maneira, outras necessidades podem ser anuladas a
partir de uma demanda. É claro que o sujeito vai pagar o preço que o desejo lhe impõe. No
caso da greve de fome, o preço é passar fome ou até morrer de fome. É esta a lógica do
desejo que condena o sujeito a só poder aparecer numa divisão. Esse poder de superar as
necessidades biológicas é um exemplo do que Lacan chama de materialidade do
significante.
Vejamos agora a topologia deduzida por Lacan para dar conta da constituição do
sujeito, ou seja, deste corpo simbólico. Para caracterizar a alienação estrutural pela
linguagem, Lacan recorre ao vel da reunião. Lembramos que já há uso para dois tipos de
1
Não queremos com este exemplo afirmar que a greve de fome seja um fenômeno que só se aplique aos
sujeitos neuróticos. Sabemos que os psicóticos, por exemplo, também podem se negar a comer afetados por
um delírio de que querem envenená-lo, mas neste caso seria um exemplo do que está fora do laço social.
28
vel, o vel união e o vel da exclusão2. Daí ele vai desenvolver o terceiro vel, o vel da
reunião, da escolha forçada. Lacan (1964/1998) se utiliza da lógica da teoria dos conjuntos3
para explicar o vel da alienação a partir da lógica da reunião:
A partir do exemplo de um assaltante que aponta uma arma para uma pessoa e diz:
“a bolsa ou a vida”, Lacan coloca que o sujeito vai perder de qualquer maneira, pois se
escolher a bolsa perde a vida e conseqüentemente perde também a bolsa. E se escolher a
vida, fica sem a bolsa, perdendo assim a liberdade, mas guardando uma das partes, a vida.
V V F
V F F
F F V
2
Aqui não nos aprofundaremos na questão do uso destes dois tipos de vel, pois eles não estão em jogo para os
nossos propósitos. Se houver interesse de saber mais sobre eles, ver Soler (1997, p.58 a 67), presente nas
referências bibliográficas deste trabalho.
3
Teoria dos conjuntos é a teoria matemática que trata das propriedades dos conjuntos. Ela tem sua origem nos
trabalhos do matemático russo Georg Cantor (1845–1918), e se baseia na ideia de definir conjunto como
uma noção primitiva. Também chamada de teoria ingênua ou intuitiva devido à descoberta de várias
antinomias (ou paradoxos) relacionadas à definição de conjunto. Estas antinomias na teoria dos conjuntos
conduziram a matemática a axiomatizar as teorias matemáticas, com influências profundas sobre a lógica e
os fundamentos da matemática. (http://wikipedia.org/wiki/teoria_dos_conjuntos)
29
Quando se é confrontado com alguém que diz “a bolsa ou a vida”, não se pode
escolher a bolsa, pois se escolhermos a bolsa, a vida se torna falsa: perde-se a vida.
Não se pode ter ao mesmo tempo a bolsa e a vida. E a bolsa sem a vida também é
falso. Assim, quando alguém nos diz “a bolsa ou a vida”, só temos uma única
escolha real: obviamente escolheremos a vida. Neste caso a bolsa é perdida e o vel é
verdadeiro. Existe apenas uma outra possibilidade, a última do quadro: tem-se a
possibilidade de perder as duas. Mas a principal possibilidade para nós é a escolha
da vida; logo perde-se a bolsa, e neste caso a vida é apenas uma meia vida, uma
vida em que algo (o dinheiro) está faltando. (SOLER, 1997. p. 60)
É por não poder conservar as duas, a bolsa e a vida, que o ser do sujeito se instala
subordinado pelo Outro, ou seja, algo dele se aliena ao Outro. Nesta operação o sujeito
perde o direito ao gozo pleno, por se instalar no mundo, a ao Outro pela linguagem.
Eu lhes falei da última vez, da forma da alienação, que ilustrei com vários exemplos
e que lhes disse poder articular-se num vel de natureza muito especial. Poderíamos
hoje tentar articulá-lo de alguns modos. Por exemplo – não há algo... sem outra
coisa – A dialética do escravo é evidentemente não há liberdade sem a vida, mas
não haverá para ele vida com a liberdade. De uma a outra há uma condição
necessária. Essa condição necessária se torna precisamente a razão suficiente que
causa a perda da exigência original. (p. 205/206, grifos do autor)
30
aí é que toda a liberdade o sujeito não tem. Neste caso, o trabalhador fica equiparado ao
escravo na dialética de Hegel. Ao garantir seu sustento pelo trabalho, sua liberdade fica
comprometida, evidenciando sua alienação estrutural ao Outro.
Em seguida Lacan (1964/1998) coloca que as coisas não são diferentes para o
senhor, pois sua alienação fundamental aparece pelo fato de sua escolha passar pela morte.
Vejamos:
E, a olhar as coisas com um olhar que vá mais longe, vocês verão que é exatamente
do mesmo modo que se estrutura a alienação do senhor. Pois se Hegel nos indica
que o estatuto do senhor se instaura pela luta de morte de puro prestígio, é mesmo
porque é por fazer passar sua escolha pela morte que o senhor, também ele,
constitui sua alienação fundamental. Seguramente pode-se dizer que a morte não é,
mais do que ao escravo, poupada ao senhor, que ele sempre a terá no fim, que é aí
que está o limite de sua liberdade. Não é dizer pouco demais, pois a morte aí não é
morte constitutiva da escolha alienante do senhor, a morte da luta de morte de puro
prestígio. A revelação da essência do senhor se manifesta num momento de terror,
quando é a ele que se diz a liberdade ou a morte e quando ele só tem evidentemente
a morte a escolher para ter a liberdade. (p. 208)
Neste caso, o senhor só tem a morte a escolher, pois para ele é insuportável viver
sem o prestígio. Ele está alienado, ele só tem, então, a liberdade de escolher a morte.
Entendemos com isso que senhor e escravo estão submetidos à alienação fundamental.
Ainda na atualidade capitalista, para ilustrar a alienação estrutural do senhor, podemos citar
o seguinte exemplo: o capitalista, no lugar de senhor na dialética de Hegel, apesar de
alcançar a mais-valia dentro da estrutura capitalista, ao gozo pleno ele também não tem
acesso. Sua luta de morte pode ser representada pelo stress por exemplo. Afinal, muitos
empresários capitalistas sofrem desse mal e preferem morrer dele a se tratar, pois se tratar
significa diminuir sua carga de trabalho e/ou se desligarem das preocupações, e suas
preocupações geralmente são referentes a manter seu status e aumentar cada vez mais seu
poder. E disso não abrem mão e isso estabelece sua luta de morte. É claro que este é apenas
um dos exemplos.
31
Assim, o sujeito se constitui alienado à linguagem pelo significante do Outro. A
partir da alienação à linguagem há um limite de liberdade para todo ser falante, senhor ou
escravo, capitalista ou trabalhador, pois para manter a vida algo dele se aliena. Portanto, ao
capitalista é possível ter acesso à mais-valia extorquida na exploração do trabalho, porém
ao mais-de-gozar ele também não tem acesso, há como estabelecer essa extorsão (mais-de-
gozar) devido a sua alienação à linguagem.
Lacan coloca a separação como uma operação tão importante quanto a operação da
alienação, pois é a partir dela que o sujeito é conduzido a uma dialética e encontra uma
falta no Outro, uma margem de liberdade instituída simultaneamente à alienação à
linguagem, ou seja, aparece o desejo que determina que as situações não precisam ser
estáticas.
Aquilo pelo que o sujeito encontra a via de retorno do vel da alienação é essa
operação que chamei, outro dia, separação. Pela separação o sujeito acha, se
podemos dizer, o ponto fraco do casal primitivo, da articulação significante, no que
ele é de essência alienante. É no intervalo entre os significantes que vige o desejo
oferecido como balizamento do sujeito, na experiência do Outro, do primeiro Outro
com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso. (p. 207)
4
Apesar da separação, uma outra estrutura pode ocorrer quando o sujeito se recusa à castração simbólica. Ele
cria um fetiche para lidar com o horror da castração colocando-o como alternativa a ela, assim, através do
fetiche ele desafia a lei e a transgride, traços fundamentais da estrutura perversa. Já no caso da psicose, por
algum motivo a criança não lê nos significantes apresentados pelo Outro (mãe) a possibilidade de produzir
uma cadeia de significantes. Ela não se sente causada pelo desejo da mãe. De alguma maneira o desejo dela
(mãe) fica revelado para a criança como desejo de gozar dela (criança) como um objeto. Daí essa criança
não consegue estabelecer uma cadeia de significantes, e por isso não se estabelece a operação da separação
e ela torna-se psicótica.
33
Assim, nem liberdade total, nem alienação total. Porque, em forma de desejo, o
significante se intromete tomando o sujeito, à sua revelia, nos sintomas e nas outras
formações inconscientes, levando-o a questionar suas aparições. Aquilo que ao sujeito se
apresenta como significante, e que o sujeito usa para “jogar sua partida”, deve ser tomado
no nível do Real, por trazer a todo o momento algo do inconsciente que questiona o Outro.
A ciência, desde a idade moderna, com Descartes, busca um saber absoluto que dê
conta dos conflitos do sujeito e dos conflitos sociais. Em seu texto Ciência e Verdade,
Lacan (1966/1998) nos esclarece que o nascimento do sujeito do inconsciente da
psicanálise só pôde advir a partir do sujeito da ciência de Descartes, o do cogito, “penso,
logo existo”. Lacan (1966/1998) nos diz:
Que é impensável, por exemplo, que a psicanálise como prática, que o inconsciente,
o de Freud, como descoberta, houvesse tido lugar antes do nascimento da ciência,
no século que se chamou século do talento, o XVII (...) ao contrário do que se
inventa sobre um pretenso rompimento de Freud com o cientificismo de sua época,
foi este mesmo cientificismo que conduziu Freud, como nos demonstram seus
escritos, a abrir a via que para sempre levará seu nome [a do inconsciente]. (p. 871)
34
ponto eles se separam. Para a psicanálise, esse ponto de separação está em que o sujeito da
ciência de Descartes é tido como capaz de dar conta de si mesmo, é um sujeito que a partir
de seu pensamento pode administrar e dar o destino adequado aos seus sofrimentos, e assim
podendo chegar a uma estabilização de sujeito acabado – aqui equiparado ao que o
capitalismo busca no sujeito através do consumo. Por outro lado, o sujeito do inconsciente
da psicanálise de Freud é um sujeito dividido – dividido por seu sintoma que faz resistência
aos apelos dos saberes totais da ciência. É nessa divisão que Freud descobre o sujeito do
inconsciente.
Para Descartes o sujeito está no pensamento “lá onde penso eu sou”; para Lacan,
relendo Freud, o sujeito está no pensamento enquanto ausente, como pensamento
barrado. Lá onde penso eu não estou, não sou. O sujeito como efeito da articulação
significante é o sujeito do pensamento inconsciente, que Lacan identifica com o
sujeito como o descreve Descartes. É o ponto em que Freud e Descartes convergem.
Em Descartes, a certeza do sujeito é apreendida através da dúvida e, para Freud,
como vimos, a dúvida que aponta o lugar de um branco, que surge no pensamento,
nos fornece a certeza de que aí se encontra o inconsciente como pensamento
ausente (da consciência). Descartes parte do pensamento e chega na existência,
Freud parte do pensamento inconsciente e chega no desejo. (p. 13)
Essa falha demonstra que o saber total buscado pela ciência é impossível. É a partir
do sujeito do inconsciente de Freud, que representa um “para além” do sujeito do cogito de
Descartes, que Lacan aponta a impossibilidade de dizer de forma total o verdadeiro sobre o
verdadeiro na linguagem, como quer a ciência.
35
Para Lacan (1966/1998) a psicanálise responde do único lugar da verdade, porque a
verdade para a psicanálise é a verdade do inconsciente. É pela via do simbólico que aparece
a falha do saber total buscado pela ciência, mostrando através dos sintomas que a
linguagem não dá conta de dizer tudo sobre o inconsciente, ou seja, que não podemos, pela
linguagem, construir um saber total. E é mesmo porque a verdade só pode ser dita
parcialmente, que o saber absoluto, que a ciência busca, é impossível. A linguagem não
oferece recursos para a construção deste saber total, prometido pela ciência. A verdade do
inconsciente, ao ser sustentada, revela a parcialidade do saber da ciência.
Lacan afirma que é preciso conhecer outros saberes que não o da ciência para tratar
da pulsão decorrente do recalque. É preciso renunciar à noção de que a cada verdade
corresponde seu saber. Para este ponto de ruptura, o sujeito da psicanálise depende do
sujeito da ciência e é neste ponto de ruptura que a verdade age sobre o saber, causando
desejo, e por causar desejo coloca em cheque o saber absoluto do Outro (ciência).
A partir dessa verdade, que só pode ser tocada parcialmente, a psicanálise, de dentro
da ciência, faz a distinção entre o saber e a verdade. Se para a ciência o saber é absoluto,
para a psicanálise a verdade deve ser sustentada no sentido de não a abandonarmos como
causa do sintoma. A psicanálise explica que o sintoma mostra que algo não vai bem, e se
algo não vai bem é porque há falha no saber apresentado como total.
Soler (1997) afirma que o que está em jogo para o sujeito do inconsciente em sua
ligação com o Outro “é responder sobre a questão de seu ser” (p. 68). E para responder a
essa questão o saber consciente tem uma tendência a querer se assujeitar, a tudo querer
saber sobre como foracluir o objeto a. Mas algo do sujeito não se assujeita, seu desejo
causado pela verdade inconsciente atualizado nos sintomas, denuncia, a todo momento, a
parcialidade do saber científico. Lacan (1964/1998) nos dirá que “Pelo efeito da fala o
sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí, já não persegue mais que uma metade de si
mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável
metonímia da fala.” (p. 178). É esse “desejo sempre dividido”, pelos sintomas e outras
formações inconscientes, que não permite, mesmo que o sujeito queira, que ele se assujeite,
pois o desejo sempre o interpela.
37
A melhor imagem para representar essa simultaneidade entre o consciente e o
inconsciente, entre o desejo de saber e a ação da verdade no sujeito, é a Banda de Moebius5,
mostrando que o sujeito habita os dois lados ao mesmo tempo: o lado do saber consciente
que quer ser totalizado e o lado da verdade inconsciente que interpela este saber todo o
tempo a partir dos sintomas.
Para investigar a questão do desejo inconsciente, Lacan foi atraído não só pela
ciência, mas também pela magia e pela religião, distinguindo-as umas das outras. Ao
apresentá-las, Lacan opõe a psicanálise as três, afirmando que elas não tratam da
singularidade do sujeito.
Lacan argumenta que na magia, a verdade como causa está recalcada, dissimulada,
velada, o que na magia importa é sua eficiência.
Sobre a religião, levando em conta o cristianismo católico, Lacan coloca que ela se
caracteriza pela instalação de uma verdade como causa e que em conseqüência o sujeito
entrega sua carga a Deus, submetendo-se à demanda dele, apresentando uma causa final, ou
seja, o céu depois da morte, no caso. Quando o sujeito não dá conta de responder a essa
demanda, ou seja, a essa verdade divina, a conseqüência é a instalação da culpa.
Para criticar a psicologia, enquanto ciência, e apontar seu fracasso do ponto de vista
da psicanálise, Lacan (1964/1998) explica que ela (psicologia) trabalha apenas com a
significação, como se a construção do sujeito pudesse se dar a partir de sua visão de
mundo, sem as conseqüências do significante. Mas se o sujeito, justamente por estar
alienado à cultura – a um discurso histórico automaticamente alienante – já tem sua visão
5
Não pretendemos nos aprofundar nos trabalhos realizados por Lacan sobre a Banda de Moebius. Se houver
interesse em um melhor entendimento sobre o assunto, pode-se assistir ao filme “Revirão: a topologia da
Banda de Moebius” apresentado por Magno Machado Dias, disponível na internet pelo site
http://www.youtube.com/watch?v=ewa-WUK1z8s.
38
de mundo marcada por ela (cultura), então, segundo Lacan, a falha da psicologia está na
busca de atender às demandas do sujeito, desconsiderando o Real recalcado pela entrada na
linguagem, presente nos sintomas e nas outras formações inconscientes. Em suma, a falha
da psicologia está em desconsiderar a divisão do sujeito e o que tal divisão implica.
39
O neurótico, ao contrário, por estar preso aos discursos, torna-se o responsável pela
sustentação dos laços sociais.
Diante do que foi dito até o momento, vejamos como o neurótico estabelece esses
laços na sociedade de consumo da lógica do capitalismo para que possamos tratar da
compreensão de Žižek sobre a alienação do sujeito no capitalismo de consumo e a partir daí
apresentar suas reflexões sobre as possibilidades de o sujeito escapar desta forma de
alienação.
(...) se a lei moral que sustenta a disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de
conduta econômica é a figura do supereu, então a economia libidinal do capitalismo
como sociedade de produção seria impensável sem o desenvolvimento de uma
civilização neurótica que só poderia pensar seus processos de socialização através de
instrumentalização repressiva do sentido de culpa. (SAFATLE, 2008, p. 123)
40
continua sendo o instrumento repressivo desta lógica ao reprimir o “não gozar”, ou seja,
gozar se torna uma obrigação.
41
É esta condição contraditória entre o consciente e o inconsciente do sujeito
neurótico, revelada pelos sintomas, que expõe a falha das teorias totalitárias da sociologia
que buscam oferecer uma forma de construção social para o bem de todos a fim de acabar
com os conflitos sociais. Se por um lado o sujeito busca um Outro que dê conta de seu ser e
o encontra nessas teorias, por outro, sua divisão faz com que ele se rebele à sua revelia,
apontando uma falha em qualquer teoria que se apresente com idéias totalitárias.
Sem questionar a importância da visão macro social defendida por Durkheim e por
todos os demais que se dedicaram a estudar os fenômenos sociais em um enfoque
mais abrangente, a verdade é que a ausência de interesse pelas questões da
individualidade trouxe como risco a própria possibilidade de ênfase acentuada na
imobilidade da sociedade e na perenidade das instituições sociais estabelecidas: ou
seja, um conseqüente conservadorismo social. A sociologia durkheimiana parece
ter padecido desse defeito, assim como diversas de suas correntes herdeiras
subseqüentes. (p. 126)
Sem negar a importância das teorias de visão macro social, como a de Durkheim,
Pacheco Filho (1997), ao longo de seu texto, discorre sobre a importância também de uma
teoria para tratar das questões singulares do sujeito, colocando a psicanálise neste lugar. Ele
deixa claro que a psicanálise promete a falta e que as confusões e conflitos gerados por esta
falta são concebíveis pela psicanálise, e ainda que o desejo provoque conflitos, ele é tido
como chance para sujeito.
Calligaris (1991), ajudando a ilustrar a idéia, entende que “... o ideal político nunca
é mais do que a procura de um equilíbrio instável entre uma alienação necessária para a
vida social e a resistência a uma inércia totalitária” (p. 116).
42
consciente), ambos habitam os dois lados ao mesmo tempo, já que não podemos separar o
conflito singular do sujeito dos conflitos das particularidades sociais, uma vez que o
conflito do sujeito aparece por sua rebeldia inconsciente aos ditames das demandas da
sociedade, sejam quis forem estas demandas, mostrando a impossibilidade de esgotar o
conflito de classes pela via do simbólico.
Antígona, tragédia escrita pelo dramaturgo grego Sófocles, mostra como duas
opiniões opostas podem ser corretas, dependendo do ângulo analisado, indicando essa
tensão entre o particular da sociedade e o singular do desejo do sujeito. Uma seqüência da
tragédia Édipo Rei, Antígona nos mostra a história dos filhos e filhas de Édipo. Sobre os
filhos homens de Édipo, Etéocles e Polinice, estes morrem numa batalha em que cada um
estava de um lado na guerra, um a favor e o outro contra o governo vigente da cidade de
Tebas, governada por Creonte. Creonte então manda enterrar honrosamente Etéocles, por
estar lutando em favor de seu governo, mas lança uma lei que proíbe que Polinice seja
velado ou sepultado, por ser considerado um traidor da cidade. Antígona, entretanto, filha
de Édipo e irmã dos falecidos, descumpre a lei imposta por Creonte e, à revelia da ameaça
de punição, presta as honras fúnebres ao irmão Polinice, sem mostrar nenhum
arrependimento após seu ato. Por ter desobedecido a lei instituída por Creonte, ela é
condenada a ser enterrada viva.
Apesar de condenar a própria sobrinha, Creonte argumenta que instituiu a nova lei
para homenagear o herói e punir o traidor, nada mais justo aos olhos do Estado. Mas em
sua defesa Antígona também trazia suas justas razões, igualmente aceitáveis, embora
contrárias às de Creonte. Ela alega que não poderia obedecer a esta lei estatal e desobedecer
à lei moral e religiosa, que ordenava prestar homenagens fúnebres aos parentes mortos.
Mesmo diante da ameaça de morte, Antígona não mostra arrependimento em seu ato e por
isso é condenada ao suplício de ser enterrada viva.
43
Sem pretender simplificar a riqueza desse clássico da literatura, o que queremos destacar da
narrativa é o sentido de que há algo que é impossível de conciliar entre a ética do bem de
todos no particular de cada sociedade e a ética do desejo na singularidade de cada sujeito.
Esse conflito envolve uma lei particular de cada sociedade para o bem de todos e o desejo
revelado na singularidade de cada sujeito que não se satisfaz com esta lei. Vejamos o que
Lacan (1959/1991) nos diz sobre Creonte: Creonte vem ilustrar aí uma função – quanto à
estrutura da ética trágica que é a da psicanálise – ele quer o bem. O que afinal é seu papel.
O chefe é aquele que conduz a comunidade, ele está aí para o bem de todos. (p. 312-213)
Porém, Antígona quer enterrar o irmão segundo a lei religiosa, indo contra a lei de
Creonte apresentada para o bem de todos. Sobre isso Lacan (1959/1991) dirá: “Antígona
nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo.” (p. 300), e mais adiante:
Essa dimensão não é uma particularidade de Antígona, posso propor-lhes olhar aqui
e acolá, vocês encontrarão outras correspondentes sem terem de ir buscar muito
longe. A zona assim definida tem uma função singular no efeito da tragédia. É na
travessia dessa zona que o raio do desejo se reflete e, ao mesmo tempo, se retrai
chegando a dar esse efeito tão singular, o mais profundo, que é o efeito do belo no
desejo. (p. 301-302)
44
Apesar de funcionar sempre como resistência, nem sempre o sintoma é
revolucionário. A lógica do capital funcionando como Outro do gozo que propõe a
foraclusão do objeto a, leva o sujeito a querer se livrar do sintoma buscando harmonia no
consumo. Alienado nesta lógica, o sujeito insiste na repetição do consumo de
objetos/mercadorias como tentativa de encontrar o gozo, tentando dar conta de seu sintoma.
Dessa maneira, o sintoma não é nada revolucionário, ao contrário, é usado como forma de
alienação na lógica do capital, que promove o individualismo, um “cada um por si” que
revela uma perversão do laço social sustentado pelo sujeito de estrutura neurótica.
A propósito desta questão, Freud (1905/1989), já nos fornecia indícios para este
pensamento com a seguinte colocação: “Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo
ao alvo sexual normal que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si
só, para mostrar quão imprópria é a utilização reprobatoria da palavra perversão.” (p. 150-
151).
45
O sujeito neurótico, ao procurar um Outro, ou seja, um saber sobre o gozo pleno,
tenta se adequar a uma lógica que lhe pareça convincente – na contemporaneidade a lógica
do capital faz este papel – acreditando que ela o permitirá escapar de seus sofrimentos e
conflitos. Neste tipo de pacto elege-se “Um” para todos, o que deixa de fora o que é da
ordem da singularidade de cada sujeito, prioridade da psicanálise, que representa o furo das
teorias sociológicas em nome do bem de todos, incluindo, obviamente, o furo da lógica do
capital.
Calligaris (1986), numa leitura lacaniana, apresenta essa forma de laço como uma
“montagem perversa”, explicando que ela ocorre entre dois sujeitos: “neurótico mais
neurótico ou neurótico mais perverso, juntos no mesmo fantasma, numa tentativa de chegar
a uma modalidade de gozo.” (p. 80). Pensando a sociedade do capitalismo de consumo, a
montagem perversa é aquilo que resulta de uma apropriação da lógica capitalista pelo
neurótico e do neurótico por essa lógica. Então, também na proposta de Calligaris, por ser
um pacto admissível entre neuróticos, podemos entender implícita aí a presença da função
paterna.
Parece-nos muito mais apropriado dizer que, ao invés de falência da função paterna,
o que há é a elevação de um pai que se chama capitalismo. Um pai permissivo por sua
convocação ao gozo, mas que é ao mesmo tempo esta convocação de gozo, uma ordem da
46
ideologia capitalista. O recalque agora se trata de que “é proibido não gozar”, esta é a lei na
sociedade do capitalismo de consumo.
(...) para Lacan, se a neurose “se mantém nas relações sociais” (...) a perversão é “o
produto da cultura”. No ensino de Lacan, perversão então não quer dizer somente
estrutura clínica perversa (...) ao lado desse valor, que mantém evidentemente todo
seu interesse, convém acrescentar esse outro, que faz da perversão um regime de
gozo já não determinado pela estrutura clínica dos sujeitos, mas pela cultura,
portanto, um discurso do qual é produto. (p. 3)
47
A “perversão generalizada”, se ela quer dizer alguma coisa em psicanálise, só
significa a “perversão generalizada do campo do gozo”. Nem desvio, nem
aberração, nem inversão das normas, menos ainda nova norma social, ela é
fundamentalmente a tradução clínica e conceitual do fato de que o campo do gozo
do ser falante se estrutura e se ordena em torno de um impossível. (p. 6)
Em sua formalização dos quatro discursos Lacan (1969, 1992) propõe estruturas que
conservam um lugar de impossibilidade. Vejamos o que nos diz o autor sobre a
impossibilidade:
6
Lacan desenvolve os quatro discursos no seminário XVII, “O avesso da Psicanálise”, em 1969, presente nas
referências bibliográficas deste trabalho. Não entraremos nos detalhes dos quatro discursos, mas eles foram
citados aqui apenas para apresentar as quatro impossibilidades de ordenamento do gozo. O mesmo ocorre
com o quinto discurso, o do capitalista, citado na conferência de Milão.
48
Ao propormos a formalização do discurso e estabelecendo para nós mesmos, no
interior dessa formalização, algumas regras destinadas a pô-la à prova, encontramos
um elemento de impossibilidade. Eis o que está propriamente na base, na raiz do
que é um fato de estrutura. E é isto, na estrutura, o que nos interessa no nível da
experiência analítica. (LACAN, 1969/1992, p. 43)
Para “bem dizer o sintoma” é preciso que o sujeito use sua margem de liberdade
considerando seu limite. O “bem dizer o sintoma” considera esse limite que é: é impossível
foracluir o objeto a. O “sintoma parasita”, ao contrário, quer foracluir o objeto a (pelo
consumo na lógica do capital), mas ele (sintoma) volta mostrando que isso é impossível. Há
um limite em usarmos o simbólico para alcançarmos o Real. O Real só pode ser alcançado
parcialmente através simbólico, ou seja, o objeto a só pode ser tratado como uma verdade,
mas nunca foracluído.
49
nossa discussão o termo “subjetividade”. Askofaré (2009) esclarece que não devemos
confundir o conceito de subjetividade, histórico, como produto da linguagem em
determinada cultura ou época, com o conceito de sujeito da psicanálise, que trata de uma
estrutura trans-histórica presente em qualquer época ou cultura.
Dentre todas as que se propõem neste século, a obra do psicanalista talvez seja a
mais elevada, porque funciona como mediadora entre o homem da preocupação e o
sujeito do saber absoluto. Isso também se dá porque ela exige uma longa ascese
subjetiva, e que jamais será interrompida, não sendo o fim da própria análise
didática separável do engajamento do sujeito em sua prática. Que antes renuncie a
isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua
época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada
soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento
simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra
contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas.
Quanto às trevas do mundus ao redor do qual se enrosca a imensa torre, que ele
50
deixe à visão mística a tarefa de ver elevar-se ali, sobre um bosque eterno, a
serpente putrefaciente da vida. (LACAN, 1953/1998, p. 322)
Desse ponto, Askofaré (2009) segue o texto destacando o que é essencial na teoria
da psicanálise lacaniana:
Para analisar estas duas operações no mesmo sujeito, Askofaré (2009) propõe que é
preciso nos atentarmos para a disposição da multiplicidade do sujeito lacaniano, evocando
os elementos decisivos que contestam esta não historicidade do sujeito barrado com sua
historicidade subjetiva.
51
Se o inconsciente é lugar do Outro, é também lugar de saber, ou seja, se o simbólico
é invariável na sua estrutura de linguagem aos seus usuários, ao mesmo tempo estes
usuários estão submetidos às mudanças de seu tempo. Dito de outra maneira, a
subjetividade – em sua forma variável, instável e histórica – se desenvolve a partir da
estrutura do inconsciente – em sua forma invariável e permanente enquanto houver
linguagem, portanto trans-histórica.
No início de uma análise, o sintoma é um dizer que ainda não encontrou seu dito. A
passagem do dizer do sintoma a seu dito é o que constitui propriamente falando o
processo analítico, que se alinha na ética do bem dizer o sintoma. Para que o
sintoma do sujeito se transforme, no início do processo analítico, num sintoma
analítico é preciso que seja considerado pelo sujeito como um parceiro de verdade.
(p. 140)
Esse fato faz toda diferença, pois mostra que sempre há alternativas para qualquer
situação social e obviamente não podemos descartar essas alternativas no caso do
capitalismo, ou seja, o capitalismo não é imutável. Bem dizer o sintoma, do ponto de vista
social, seria uma maneira de tratá-lo sem eliminá-lo. Quinet (2003) nos dirá ainda que é
preciso adotar o sintoma, vejamos:
52
A análise vai do sintoma parasita ao sintoma adotado. O sintoma parasita, seja ele
histérico, fóbico ou obsessivo, é o sintoma mensagem que contém uma mensagem a
ser decifrada, memorial histórico dos ditos do Outro escritos em suas cifras de
gozo, ou seja, é o sintoma que desaparece numa análise conduzida a seu termo. O
sintoma adotado é o que resta do deciframento, mas não deixa de ser sintomático
(...) constituindo aquilo com o qual o sujeito vai ter que lidar bem ou mal. Adotar o
sintoma, sabendo que ele é parte de seu gozo e de seu inconsciente, é a condição
para que o sujeito possa saber lidar com ele e tomar distância dele. (p.147)
O sintoma social quer dizer, nada mais do que, que todo sujeito tem sintoma, é por
isso que o sintoma é social, ou seja, a sociedade como um todo lida com o sintoma singular
de cada sujeito. Transpondo os dizeres de Quinet (2003) para o social, a idéia é que o
sintoma contemporâneo dos sujeitos os impele a manter o sintoma social em sua condição
de sintoma-parasita, mas que, assim como acontece com o sujeito singular, a sociedade
pode adotar o sintoma como algo que faz parte da constituição de sua particularidade, ou
seja, sintoma-adotado e tratado, e não eliminado.
53
termos, é preciso adotar o sintoma social considerando-o como algo que deve ser tratado e
não eliminado.
54
CAPÍTULO III: A CONTRIBUIÇÃO DE SLAVOJ ŽIŽEK PARA PENSAR UMA
ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E SOCIEDADE
Por outro lado, Žižek também assinala que esse social na lógica de consumo
também tem lidado com um Outro impossível, resultante dos imperativos da lógica do
capital. Em todos os trabalhos desse autor percebemos que suas críticas estão diretamente
associadas a esse impossível de ordenamento de todo o gozo que rege a lógica capitalista.
Mais especificamente, suas críticas estão relacionadas à idéia de que é impossível escapar
da lógica capitalista, que, por sua vez, reflete a impossibilidade de uma transformação
social fora das coordenadas do capitalismo. Nas palavras do próprio Žižek (2005):
O problema, é claro, é que, nas atuais circunstâncias sócio-políticas globais, é
praticamente impossível questionar de modo efetivo a lógica do Capital: até uma
modesta tentativa social-democrata de redistribuir a riqueza além do limite aceitável
pelo capital “efetivamente” leva à crise econômica, à inflação, à queda da renda,
etc. (p. 20, aspas do autor)
O que Žižek assinala aqui é a lógica que sustenta a forma que o capitalismo de
consumo tem assumido, funciona a partir da incorporação da mais-valia como necessidade
estrutural. Sendo assim, acredita-se que não é mais possível sobreviver a uma proposta de
redistribuição de renda. Žižek escreve ainda que ao sustentar a impossibilidade de escapar
do capitalismo, a lógica do capital propõe uma compensação para o sujeito: a promessa de
que se o sujeito buscar o gozo no consumo conseguirá escapar de suas angústias, ou seja, se
lançar-se ao consumo poderá foracluir o objeto a.
Žižek (2003) sabe, justamente por valer-se da psicanálise em sua análise, que é
impossível o ordenamento de todo o gozo do sujeito pelo consumo, ou seja, que é
impossível foracluir o objeto a. Nesse sentido, se a maneira que a sociedade do capitalismo
de consumo encontra para sustentar a manutenção da lógica capitalista é a oferta do
consumo como a consolação frente ao impossível da completude, é claro que essa é uma
alternativa que tende a fracassar em sua consolidação. Podemos dizer que Žižek inclusive é
otimista frente à possibilidade de transformação social fora das coordenadas do capitalismo.
O impossível na leitura de Žižek, aliás, pode ser entendido a partir de duas colocações do
próprio autor: a) quanto ao impossível de escapar da lógica do capital: é preciso arriscar o
impossível; b) quanto à proposta da lógica do capital de foraclusão do objeto a pelo
consumo de mercadorias, ou seja, o ordenamento de todo o gozo do sujeito pela via do
simbólico: isso é impossível.
Marquemos que todas as vezes que tocarmos na palavra consumo para criticá-la,
estaremos sempre nos referindo ao que é proposto pela lógica do capital com a finalidade
de que o sujeito busque no consumo de mercadorias a foraclusão do objeto a. É disso que
se trata nossa crítica.
56
Segundo Žižek, a proposta do impossível apresentada pela lógica do capital faz com
que o sujeito se sinta sob constante ameaça de uma crise econômica global e falência das
possibilidades de sua sobrevivência no mundo. Essa ameaça incita o sujeito a alimentar o
sistema capitalista, ou seja, alimentar o sistema imposto pela classe dominante. Žižek
(2003) afirma que não podemos nos contentar com as propostas da classe dominante,
interessada em manter o sujeito acrítico, escondendo informações que podem nos fazer
pensar, tal como nos mostra a pesquisa de Aidar (2007) sobre as revistas semanais. Com
essas ameaças de uma crise econômica global, a lógica do capital consegue convencer o
sujeito de que seus limites são uma necessidade da vida econômica. Porém, Žižek (2005)
nos dirá que:
O fato de uma crise “realmente advir” caso não sejam respeitados os limites
traçados pelo Capital não “prova”, de modo algum, que a necessidade desses limites
seja uma necessidade objetiva da vida econômica. Esse fato deve ser antes
interpretado como prova da posição privilegiada do capital na luta econômica e
política (...) (p. 20, aspas do autor).
57
qualquer resistência ao consumo é censurado pelo social. Essa censura faz com que ele
recalque seu desejo, e esse recalque leva o objeto a a entrar em operação novamente,
indicando a impossibilidade de sua foraclusão.
O sujeito mergulha nessa lógica como se não houvesse outra maneira de viver em
sociedade, ou seja, essa lógica limita qualquer idéia que possa ocorrer ao sujeito sobre uma
transformação social fora das coordenadas do capitalismo.
Para manter este sistema é preciso que haja uma sedução. A sedução na lógica do
capital em relação ao consumo é a idéia de que o prazer está em consumir em excesso,
como se assim o sujeito pudesse gozar plenamente. Para a psicanálise, excesso é gozo e não
prazer, esclarecendo que gozo e prazer não são sinônimos. Vejamos essa diferença com
Žižek (2006):
58
é desestabilizador, traumático e excessivo – é o prazer freudiano com a dor, e assim
por diante. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 141)
Podemos traduzir nesta citação de Žižek que o consumo proposto pela lógica do
capital é equiparado ao gozo (“desestabilizador, traumático e excessivo”) e não ao prazer
(“nos moldes do equilíbrio e da satisfação”). Assim, o sujeito, ao buscar no consumo a
foraclusão do objeto a, fica mergulhado na lógica do capital. A proposta da psicanálise é de
que o sujeito possa escapar do sintoma parasita se encaminhando para o sintoma adotado,
destacados por Quinet (2003, p.147). É nesta perspectiva que Žižek acredita na
possibilidade de o sujeito encarar a ideologia da lógica do capital de uma maneira mais
crítica.
1
Apud. ŽIŽEK, 1996, p. 10. Em vez de dar informações sobre as tendências e antagonismos sociais, políticos
e religiosos do Iraque, a mídia acabou reduzindo o conflito a uma briga da Sadan Hussein, a personificação
do mal, o fora da lei que excluíra da comunidade internacional civilizada. Mais do que a destruição das
forças militares do Iraque, o verdadeiro objetivo foi apresentado como sendo psicológico, como a
humilhação da Saddam, que tinha que “perder a pose”. (...) Esse processo inverso implica uma mistificação
ideológica ainda mais ardilosa do que a demonização de Saddan Hussein
59
Em que consiste, exatamente, essa mistificação ideológica? Dito de maneira um
tanto crua, a evocação da “complexidade da situação” serve para nos livrar da
responsabilidade de agir. (...) A idéia de um sujeito plenamente “responsável”
Somada a essas ações efetivadas pela classe dominante que defende os interesses da
ideologia da lógica do Capital, Žižek (2003) nos atenta para outra questão – desta vez em
relação à atitude do sujeito – que mostra como tal lógica é favorecida, que é o fato de que
“Jaques Lacan afirma que a atitude espontânea do ser humano é ‘não quero saber nada
disso’ – uma resistência fundamental contra saber demais.” (p. 80).
60
interferir nas decisões políticas – com a atitude espontânea do sujeito apontada por Lacan
(1972/1985) sendo a de “não quero saber nada disso” (p. 9) – buscando com isso se eximir
de sua responsabilidade política –, o resultado apresentado é exatamente a dupla e recíproca
apropriação da lógica do capital pelo sujeito e do sujeito por ela2. Assim, a lógica do capital
representada pela classe dominante, ao não oferecer informações suficientes para que o
sujeito produza uma crítica política, procede desta maneira não para manter a felicidade do
sujeito, mas sim para manter a lógica dos interesses capitalistas.
Podemos dizer então que com aquilo que o discurso conservador entende como
“felicidade” é que o sujeito pode se eximir de suas responsabilidades o suficiente para não
se meter com as decisões políticas. Contudo, deve saber o suficiente para se sentir culpado
pelos resultados desta mesma decisão. Parece que é essa a estratégia manipuladora que
favorece a ideologia da lógica do capital.
2
Contudo, sabemos que o sintoma é o que impede que se mantenha indefinidamente essa inércia entre a
apropriação da lógica do capital pelo sujeito e da apropriação do sujeito por essa lógica.
61
existência de uma ideologia qua matriz geradora que regula a relação entre o visível e o
invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação.” (p. 7). Por
essa via a lógica do capital se apropria do neurótico.
Ora, o sujeito neurótico, por “não querer saber nada disso” do encontro com uma
transformação social, adere à ideologia do consumo na lógica do capital para não ter que
lidar com esse encontro, dando oportunidade para que a ideologia regule o que o sujeito
deve ou não saber. Daí o sujeito se entrega ao consumo na busca da foraclusão do objeto a.
Dessa maneira, o neurótico expressa sua alienação ao sistema capitalista e busca a
completude inatingível no consumo de mercadorias, se apropriando da lógica do capital
tomando a dimensão da ideologia do impossível de escapar desta lógica, como uma
maneira de evitar o trauma de efetivamente arriscar alternativas a ela. E com essa promessa
de foraclusão do objeto a, o sujeito se descompromete com o social e é por essa via que ele
se apropria da lógica do capital numa alienação ideológica que favorece a classe dominante.
A ideologia não apenas constrói uma certa imagem de realização, mas também se
esforça por regular um certo distanciamento dela. Por um lado temos a fantasia
ideológica de nos reconciliarmos com a Coisa (da realização total), mas, por outro,
temos a ressalva implícita de não nos aproximarmos dela em demasia. A razão
(lacaniana) disso é clara: quando nos aproximamos demais da Coisa, ela
despedaça/evapora, ou provoca uma angústia e uma desintegração psíquica
insuportáveis. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 19)
62
Por isso, o encontro com o Real é impossível, mas isso não impede que o sujeito o
busque ao mesmo tempo em que o teme. Sabemos que o Real de fato é traumático demais
para ser encontrado e, portanto, impossível. Aparece aí uma questão: se o Real é
impossível, isso não nos paralisa? O que podemos fazer? Žižek (2006) nos explica que:
De certa maneira, você realmente se depara com o impossível. Não se pode dizer
que isso seja mera ilusão transcendental de confundir um objeto empírico com a
Coisa impossível. A vagina é impossível, mas não é uma simples ilusão. A questão
é que os objetos da pulsão são esses objetos privilegiados que, de algum modo, são
duplos deles mesmos. (...) Há uma espécie de distância segura dentro do próprio
objeto: não é uma distância entre o objeto e a das Ding. (ŽIŽEK & DALY, 2006,
p. 86, grifos do autor)
Convencido da distância entre o objeto e a Coisa Real, mas também acreditando que
o impossível é Real, Žižek (2006) nos diz: “Estou cada vez mais convencido de que há pelo
menos três noções de Real” (p. 87) e nos apresenta as três noções de Real que são: Real
real, Real simbólico e Real imaginário3. Ele acrescenta que “O importante é que essas três
idéias – Real, Imaginário e Simbólico – de fato se entrelaçam num sentido radical, como
uma estrutura de cristal em que os diferentes elementos se projetam e se repetem em cada
categoria” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 88-89). Daí podemos entender que o Real não é
sempre o “Real implacável”, pois “o resultado disso tudo é que para Lacan, o Real não é
impossível no sentido de nunca poder acontecer (...) Não, o problema do Real é que ele
acontece, e esse é o trauma. A questão não é que o Real seja impossível, mas que o
impossível é Real” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 88, grifos do autor).
3
O Real real seria a Coisa horrenda, cabeça da Medusa. O Real simbólico seriam as fórmulas científicas sem
sentido. Não há nelas horizonte de significação, consistem em fórmulas que simplesmente funcionam. Isso
não é significação; é precisamente o Real sem sentido baseado num saber científico. O Real imaginário seria
um “não sei quê” que incomoda, algo impreciso totalmente insubstancial, esse é o ponto do Real no Outro, o
que leva a sociedade a conceber os preconceitos (ŽIŽEK, 2006, p. 87).
63
Isso traz consequências para a definição marxista de ideologia, na qual a idéia
predominante era de ideologia como uma ilusão, como se tivesse algo por trás dessa ilusão
ideológica, ou seja, de que os indivíduos “não sabem o que fazem”. A consequência
apontada por Žižek (1996) é que a própria ideologia se sustenta a partir de uma ilusão e que
não há nada por trás dela:
As alterações que Žižek propõe para a leitura sobre a ideologia tradicional têm a ver
com sua maneira de descrever o Real (Real real, Real Simbólico e Real Imaginário). Por
que? Como o próprio Žižek (2006) esclarece:
64
quando ele esclarece que não devemos confundir o conceito de subjetividade, histórico,
como produto da linguagem em determinada cultura ou época, com o conceito de sujeito da
psicanálise, que trata de uma estrutura trans-histórica presente em qualquer época ou
cultura.
Essa articulação é possível ao passo que Žižek (2006) também entende essa questão
da mesma maneira, pois concorda com essa ambiguidade no Real, assinalando que há uma
constelação a priori (trans-histórica) do Real, mas que isso não significa, de maneira
alguma, que o Real represente algo imutável, pois há a constelação simbólica do Real como
uma constelação que permite modificações (históricas). Existe um a priori (trans-histórico)
na ideologia pelo fato de que a própria ideologia é uma construção a partir da linguagem,
mas há também nela algo modificável a partir deste a priori (que é a modificação histórica)
no fato de que “Ideológica” é uma realidade social cuja própria existência implica o não
conhecimento de sua essência por parte de seus participantes. Isso implica que seus
participantes “não sabem o que fazem”, ou seja, ideológico é o ser sustentado pela falsa
consciência com a condição de que não haja verdadeira consciência.
O Real lacaniano só existe a partir do que podemos supor sobre ele, ou seja, a partir
de um a priori ilusório, assim como a ideologia só pode existir a partir do que podemos
supor sobre ela, uma suposição sempre ilusória. Tocar no que há por trás dessa ilusão é
impossível, pois ela só pode ser suposta a partir da linguagem, nada seria suposto se não
houvesse linguagem. Assim como não há falsa consciência do Real, também não há falsa
consciência da ideologia, pois é a própria impossibilidade do encontro com o Real que
proporciona a existência dela.
65
Nesse sentido a ilusão ideológica suposta pela lógica do capital, é uma ilusão cínica
de busca do mais-de-gozar pela foraclusão do objeto a. O que eles não sabem é que a ilusão
está em que o que eles buscam (a completude) é impossível. Ou seja, eles não têm
consciência da ilusão. A ilusão vigente na lógica do capital é a do cinismo, ou seja, a ilusão
de que através do cinismo se possa alcançar o Real.
Na visão marxista tradicional a ilusão é situada no saber: “eles não sabem o que
fazem”, esta é a fantasia ideológica da busca de harmonia social, ou seja, a fantasia
ideológica de nos reconciliarmos com o Real. Žižek (1996), por sua vez, aposta na
ideologia do cinismo proposta por Peter Sloterdijk: “eles sabem muito bem o que estão
fazendo, mas mesmo assim o fazem”4. Neste caso, a ilusão é situada no fazer. A ideologia
do cinismo se caracteriza pela busca de benefícios para a classe dominante, e na
manipulação da sociedade levando o sujeito ao descomprometimento com as questões
sociais, priorizando somente seus próprios interesses, permitindo que a sociedade mergulhe
num pacto perverso de busca da foraclusão do objeto a.
Porém, o Real real é impossível para todos, e a ilusão do capitalista reside no fato
de eles acharem que o Real real pode ser alcançado através da mais-valia como se ela
(mais-valia) pudesse proporcionar o mais-de-gozar. O mais-de-gozar, no entanto, é
inatingível também para o capitalista. Sendo assim, apoiado na teoria lacaniana, Žižek
(2006) afirma que é a linguagem que proporciona a existência do Real real, ou seja, o Real
real só existe enquanto inatingível, enquanto aquilo que pode ser dito através da linguagem.
Nas palavras do autor: “A cisão está no próprio objeto” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 86). Se
a cisão está no objeto significa, mais uma vez, que a promessa de gozo pleno proposta pela
lógica do capital é impossível.
4
Apud Žižek, 1996, p. 313.
66
133). Uma das contribuições desse autor foi nos ensinar que a ideologia cínica da lógica do
capital está em seduzir o sujeito a buscar o objeto a no consumo de mercadorias
incessantemente, sabendo de antemão que essa busca serve apenas para sustentar a lógica
do capital. Daí, podemos entender que a ideologia é cínica, mas que o neurótico, nesta
“perversão generalizada”, nutre essa ideologia quando busca a foraclusão do objeto a pelo
consumo, sendo assim, ele (neurótico) também é politicamente responsável pela
manutenção desta ideologia.
Até agora assinalamos que quando Žižek fala de “Arriscar o Impossível”, sua
proposta não é de completude, mas sim, de um projeto sempre inacabado que permita
arriscar quantas vezes for necessário, e que sempre será necessário já que o desejo do
sujeito sempre insiste nos sintomas em relação a qualquer proposta. A proposta de Žižek é
de que não há e nunca haverá uma teoria social que possa ser considerada acabada já que o
próprio sujeito é um ser inacabado por excelência e que, pensada a possibilidade de
harmonia social, isso não é possível levando em conta que o sintoma é social porque todo
sujeito tem sintoma.
67
maneira que ocorre com o social, ou seja, não se pode levantar todas as amarras da
ideologia. Desse modo, para Žižek, arriscar o impossível é uma forma de manter a tensão
necessária para possibilitar mudanças políticas e sociais constantes, sempre entendidas
como um projeto inacabado. Portanto, manter a tensão é uma necessidade para que se possa
sempre estar disponível para criar o novo ao invés de nos mantermos no impossível do
capitalismo que é sempre estar disponível numa direção repetitiva: consumir.
Mas o que ainda faltaria dizermos? Falta apresentarmos o que Žižek propõe para a
subversão da lógica capitalista. Em linhas gerais poderíamos dizer aqui que a proposta de
Žižek (2006) é de que é possível uma transformação social fora das coordenadas do
capitalismo, ele defende que é preciso que o sujeito se implique com sua margem de
liberdade para poder arriscar outros impossíveis, diferentes do impossível da lógica do
capital, apontando que “é preciso correr o risco de tomar uma posição (ŽIŽEK & DALY,
2006, p. 60)”.
(...) é um passo no desconhecido, sem garantias quanto ao resultado final – por quê?
Porque um Ato altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere.
Essa falta de garantia é o que os críticos não podem suportar: querem um Ato sem
risco. (...) Resumindo, parafraseando Robespierre, os que se opõem ao “ato
absoluto” se opõem também ao ato como tal, querem um ato sem ato. (...) O Ato
acontece numa emergência em que alguém tem que assumir o risco e agir sem
legitimação engajado numa espécie de aposta pascaliana de que o Ato em si há de
criar as condições para sua própria legitimação “democrática retroativa.” (p. 175-
176)
68
Como podemos perceber na citação anterior, para Žižek (2006) o verdadeiro Ato é o
Ato sem garantias. Ou seja, a essência do verdadeiro Ato é que ele ocorra sem certeza de
que as coisas irão ocorrer do jeito que se espera. Que o ato ocorra e que só depois
poderemos saber o resultado. Sendo assim, podemos inferir que um Ato que não se
configura em Ato pode ser percebido quando um movimento social busca garantias apenas
para aqueles que esse movimento defende, ou seja, fica parecendo que ao resolver o
problema determinado por um movimento, todos os problemas estarão resolvidos. Como os
movimentos ecológicos já citados neste trabalho, que podem se tornar nocivos por dois
motivos: primeiro por se adaptarem à lógica do capital concebendo algum tipo de consumo
e segundo por fazer as pessoas pensarem que seus movimentos paliativos são um Ato
político.
69
O que esses defensores de esquerda do populismo não percebem é que o populismo
de hoje, longe de representar uma ameaça ao capitalismo global, continua sendo seu
produto inerente. Paradoxalmente, os verdadeiros conservadores de hoje são antes
os “teóricos críticos” de esquerda que rejeitam o multiculturalismo liberal e também
o populismo fundamentalista, os que percebem com clareza a cumplicidade entre o
capitalismo global e o fundamento étnico. (...) O problema é que essa própria forma
de espaço político está cada vez mais ameaçada pela investida da globalização.
(ŽIŽEK, 2005, p. 38)
Žižek (2005) afirma que a politização de lutas particulares deixa intacto o processo
global da lógica do capital, justamente por serem admitidos por ele (processo global).
Dessa maneira, os militantes de determinadas lutas particulares têm a sensação de estarem
obtendo a mudança requerida, sem “querer perceber” (o “não quero saber nada disso” de
Lacan) que eles (adeptos das lutas particulares) é que estão admitindo, no interior de sua
luta, as regras da lógica do capital.
70
É certo que Žižek responde essa questão em vários de seus textos e seria pouco
interessante repetir seus exemplos aqui. Como síntese de sua posição talvez seja importante
assinalar que o autor insiste em afirmar que o problema não está somente no fato de que
essas soluções são falsas, mas também porque não existem soluções verdadeiras. O
importante é que a estrutura do sujeito o permite questionar toda e qualquer transformação
que venha a ocorrer, e ainda devemos contar com a possibilidade de uma resistência contra
a transformação social fora das coordenadas da lógica do capital, e isso é admissível pela
psicanálise.
Žižek (2005) concorda plenamente com a postura de Antígona quando afirma que
não podemos ser imparciais, que é preciso tomar partido. Para o autor, permanecer
imparcial é tomar o partido vigente da lógica do capital, ou seja, a própria imparcialidade
denota uma tomada de partido, pois não interferir no social significa concordar com o que
está vigente, portanto, ficar imparcial é impossível.
Já que não há imparcialidade, ficam duas opções: concordar ou não com a sociedade
vigente da lógica do capital. Se o sujeito opta por concordar, ele não precisa fazer nada,
basta aceitar a situação e buscar a foraclusão do objeto a no consumo, essa é a proposta
vigente, mas se o sujeito não concorda, não basta abster-se, é preciso tomar posição.
71
ética utilitarista5 para o interior de sua discussão, apontando que ela se utiliza da seguinte
estratégia: “se eu souber o que move você, se conhecer as causas determinantes do seu
modo de agir, poderei manipulá-lo de acordo com essas causas” (ZIZEK, DALY, 2006, p.
164), mas aí temos novamente o aparecimento da questão do “não quero saber nada disso”
no sujeito, pois é esta opção do sujeito que o torna manipulável, opção que permite à ética
utilitarista a se utilizar da linguagem para propor pesos e medidas que favoreçam a classe
dominante.
Porém, se o sujeito optar por não concordar com a sociedade vigente da lógica do
capital, não poderá mais aceitar o que Žižek (2003) chamou de “análises viciadas” (p. 144),
é preciso buscar análises mais realistas ao invés de aceitar as análises repetidas. Ou seja, na
sociedade contemporânea há a lógica do capital exercida pelos políticos dominadores com
seus pesos e medidas que são usados de acordo com seus interesses. Žižek (2003) traz o
exemplo da catástrofe do “11 de setembro”, trazido pela mídia como uma tragédia acolhida
pelo mundo todo, e é claro que o acontecimento foi uma tragédia. Mas o fato é que todos os
dias, principalmente nos países do terceiro mundo acontecem tragédias muito mais
horripilantes, com número de vítimas muito maiores e para as quais também deveríamos
abrir nossos olhos se optarmos por não aceitar as análises viciadas.
Para discutir este aspecto ambíguo da linguagem e como ele é utilizado pela mídia
numa situação brasileira, podemos pensar na seqüência de tragédias ocasionadas pelas
chuvas a vários anos. Todos os anos somos convocados, através da mídia, a fazermos
doações para ajudar as vítimas dessas tragédias. Ano após ano, nada é feito para resolver
esse problema e as vítimas, muitas vezes, são consideradas culpadas por residirem em
locais de risco. Ainda assim, as tragédias causadas pelas enchentes têm tomado proporções
mais graves a cada ano que passa. E a pergunta que devemos formular para além das
análises viciadas – que consideram essas tragédias como causa natural (já que não podemos
parar as chuvas), ou, em última instância constroem os chamados “piscinões” para abafar as
5
Na ética utilitarista: “a preocupação central é saber como um governante sábio deve levar em conta aquilo
que move as pessoas, a fim de organizar uma sociedade em que elas estejam condicionadas a agir de tal
modo que seus atos tragam o máximo benefício possível, não só para elas, mas para a sociedade” (ŽIŽEK &
DALY, 2006, p. 164).
72
poucas críticas ao setor político, mas que não passam de soluções paliativas – talvez seja:
Por que isso acontece todos os anos? A nível político, por que nada é feito de consistente
em relação a essa repetição?
A ideologia não é tudo, é possível assumir um lugar que nos permita manter
distância em relação a ela, mas este lugar de onde se pode denunciar tem que
permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente
determinada; no momento em que cedemos a essa tentação voltamos à ideologia.
(ŽIŽEK, 1996, p. 22-23)
74
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Para tanto, é preciso que o sujeito veja no capitalismo um inimigo por sua busca
pela foraclusão do objeto a, ou seja, pela busca da eliminação de seu status de sujeito
desejante. Para ver o Capitalismo como inimigo é preciso que o sujeito se implique com
sua contribuição e condescendência com a lógica do capital. É preciso que o sujeito se
implique com o social para promover mudanças verdadeiras na sociedade, deixando de
aceitar as análises viciadas promovidas pelos analistas simbólicos que buscam beneficiar a
classe dominante.
76
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