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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Brendali Dias

UMA CRÍTICA À LÓGICA DO CAPITAL DA SOCIEDADE DE


CONSUMO CONTEMPORÂNEA: A CONTRIBUIÇÃO DA
PSICANÁLISE LACANIANA NA PERSPECTIVA DE SLAVOJ
ŽIŽEK

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

SÃO PAULO
2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUCSP

Brendali Dias

UMA CRÍTICA À LÓGICA DO CAPITAL DA SOCIEDADE DE


CONSUMO CONTEMPORÂNEA: A CONTRIBUIÇÃO DA
PSICANÁLISE LACANIANA NA PERSPECTIVA DE SLAVOJ
ŽIŽEK

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob
orientação do Prof. Doutor Raul Albino Pacheco
Filho.

SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora:

________________________________________________

________________________________________________

________________________________________________
É impossível fugir à impressão de que as pessoas
comumente empregam falsos padrões de avaliação
– isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza
para elas mesmas e os admiram nos outros,
subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem
valor na vida. No entanto, ao formular qualquer
juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer
quão variados são o mundo humano e a vida
mental. (FREUD, 1929/1974, p. 81)

Não lhes desenvolvo uma psico-logia, um discurso


sobre a realidade irreal a que chamamos psique,
mas sobre uma práxis que merece um nome:
erotologia. Trata-se do desejo. E o afeto através do
qual somos solicitados, talvez, a fazer surgir tudo o
que esse discurso comporta como conseqüência
para a teoria dos afetos, conseqüência não geral,
mas universal, é a angustia. É à agudeza da
angústia que temos que nos ater. (LACAN,
1962/2005, p. 24, grifos do autor)

O que torna a vida “digna de ser vivida” é o


próprio excesso de vida: a consciência da
existência de algo pelo que alguém se dispõe a
arriscar a vida (podemos chamar esse excesso de
“liberdade”, “honra”, “dignidade”, “autonomia”,
etc.). Somente quando prontos a assumir esse risco
estamos realmente vivos. (ŽIŽEK, 2003, p. 109)
Dedico este trabalho...

Ao José, por me tomar como sintoma por tanto tempo...


Ao Felipe e à Nicole, por darem sentido à minha vida...
Agradecimentos
Apesar de uma dissertação ser um trabalho solitário em relação à escrita, não
poderia ter sido realizada se não tivesse sido acompanhado e apoiado por várias pessoas a
quem tenho muito a agradecer. Alguns mestres que participaram diretamente da construção
deste trabalho na vida acadêmica nos últimos dois anos; familiares que apesar de não
participarem diretamente do trabalho, refletem o que sou; amigos e colegas de profissão,
que constantemente acolheram minhas angústias. Ou seja, todos que, direta ou
indiretamente, proporcionaram de alguma maneira a possibilidade de este trabalho
acontecer.
Começo agradecendo ao José Carlos, pois, para permanecer com um parceiro por
longo tempo é preciso encarar objetivos muito próximos e lutar por eles com cumplicidade;
é preciso dividir as responsabilidades da vida familiar e lidar com os conflitos contínuos
com a tolerância necessária para considerarem-se, reciprocamente, como sujeitos
desejantes, com defeitos e qualidades, coisas que encontro no José Carlos, além do amor,
companheirismo, apoio nos momentos difíceis ao longo do tempo e por acreditar e se
orgulhar de mim, por dizer “vai” quando eu tenho dúvidas se devo ir... E também aos meus
filhos Felipe e Nicole, principais razões da minha vida, pelo amor e paciência que têm tido
comigo, por me compreenderem, apoiarem e me darem o espaço necessário para realizar
meus trabalhos em um momento em que tenho sido tão ausente, e ainda se orgulhado de
mim.
Este trabalho aconteceu também porque o Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho,
além de me dar a oportunidade de estar em seu núcleo como mestranda, ainda teve
paciência para lidar com minhas dificuldades confiando em mim e contribuindo com
orientação cuidadosa para o desenvolvimento de minha escrita, além do rigor de seus
ensinamentos teóricos em sala de aula. Todas essas atitudes foram de central importância
para a confecção deste trabalho. Agradeço-o por tudo isso e por me apresentar à sua esposa
Ana Laura Prates Pacheco a quem também agradeço por me ajudar tão pertinentemente
com meu trabalho.
Não posso deixar de agradecer também a um amigo e parceiro de ofício, Aluísio
Ferreira de Lima, que me desafiou a “arriscar o impossível” me inspirando a dar minha
contribuição à Psicologia Social. Amigo com quem contei para estudar e discutir textos
difíceis, sobre os quais nem sempre tínhamos a mesma opinião, mas que de nossas
concordâncias e discordâncias sempre tiramos coisas importantes e únicas, que me
motivaram a realizar este trabalho. Agradeço também à sua esposa Meire Silva de Lima e
filha Stephanie Caroline Ferreira de Lima, por me receberem em seu lar e me acolherem
com tanto carinho num momento difícil deste trabalho.
Os arguidores de minha banca foram de central importância para a finalização deste
trabalho, então agradeço ao professor Dr. José Luis Aidar Prado e ao professor Dr.
Fernando Carlos Santaella Megale, que com seus apontamentos tão pertinentes,
contribuíram imensamente para a configuração deste trabalho.
Agradeço algumas pessoas da PUCSP, por sua incrível contribuição ao meu
aprendizado nos últimos três anos. Professor Dr. Conrado Ramos, que sempre se dispôs a
ler meus trabalhos me ajudando com suas contribuições tão pertinentes. Ao Prof. Dr. Luis
Guilherme Coelho Mola, por sua maneira chistosa e ao mesmo tempo rigorosa de fazer
suas colocações teóricas. À Professora Fúlvia Rosenberg que, pelo rigor de seus
ensinamentos, despertou minha capacidade de escrever. Aos colegas de núcleo, Anderson
Schirmer com quem dividi minhas angústias durante estes dois anos e pelo
companheirismo; Ana Paula da Silva Baima e Vivian Rei, pelo companheirismo e
disposição para realizar os trabalhos; Mariana Ferretti, pela amizade, simplicidade e por ler
meus trabalhos; Nadir Lara Junior, pela amizade, pelas conversas sérias e pelas
brincadeiras; Gustavo Henrique Carretero e Leonardo Zanelli Pereti, pelo carinho especial;
enfim, a todos que participaram do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade desde
2007. Não poderia deixar de agradecer também à Marlene Camargo, secretária do
Programa de Psicologia Social da PUCSP, por sua dedicação em me ajudar a organizar o
lado burocrático na academia.
Pensar na construção da minha vida me motiva a agradecer alguns familiares que
participaram de meus sofrimentos, sempre cobrando minha presença, que ficou difícil
nestes tempos. Agradeço aos meus pais, Natalino Alves Dias e Célia Meirelles das Chagas,
por me mostrarem as dificuldades da vida, fazendo o que podiam e dando seu melhor na
educação dos filhos. Agradeço à minha irmã Jaqueline Dias Pereira, pelo que me causa com
seu espírito de viver a vida intensamente, pelo seu amor, amizade e apoio e por se orgulhar
de mim. Às minhas sobrinhas Sthéfanie Dias de Sousa, Vanessa Dias Pereira e Vitória Dias
Pereira, por me darem a oportunidade de amá-las e ao Vanderlei Pereira, o melhor cunhado
que alguém pode ter, por sua atenção, alegria, afeição e por apontar minhas capacidades.
Agradeço ao meu irmão Edilberto Dias pela amizade e pelo amor que dedicou enquanto
esteve conosco... a dor de perdê-lo não pode ser simbolizada, nunca será superada,
saudades sempre...
Ao meu primo Fabrício Avamileno, pela infância compartilhada e por mesmo
depois de adultos podermos conservar este bem, e à sua esposa Melissa Manfrinato
Avamileno pela inspiração que me causa a intensidade de seu desejo.
Alguns tios não poderiam deixar de ser citados em meus agradecimentos. Tia Ana
Meirelles Avamileno e tio João Avamileno, pelo apoio que me deram na vida em
momentos difíceis e também por me ajudarem com a faculdade. À tia Seila Donizete
Meirelles Gonçalves e ao tio Ademir Gonçalves pelo longo tempo de amizade. À Tia
Clementina Maria Meirelles de Melo, pelos papos “Cabeça”. Tio Francisco Carlos dos Reis
Chagas, pela amizade e por me mostrar a importância dos estudos. Saibam que todos vocês
são pessoas muito importantes na minha vida.
Não poderia deixar de agradecer alguns amigos e parceiros de ofício tão presentes e
importantes para a conclusão deste trabalho. À amiga Simone, por ter me escutado milhares
de vezes reclamando das mesmas coisas e por me olhar feio e me chamar de “histérica”
quando eu reclamava da minha incapacidade de terminar este trabalho. Marcelo Alves dos
Santos, por ter podido compartilhar com ele as angústias da dificuldade de escrever um
trabalho acadêmico, até os últimos instantes. Ao meu amigo Adriano Perez, por nossos
momentos de descontração e por se dispor a ler e discutir textos referentes ao meu trabalho,
revelando sua amizade e companheirismo em vários momentos. Ana Paula de Carvalho,
que apesar de estar um pouco distante neste momento, sempre me apoiou e me acolheu.
João Ezequiel Grecco, pelo apoio semanal e pelas discussões pertinentes. Helena Maria
Sampaio Bicalho, por ter me acolhido num momento muito difícil da minha empreitada
pessoal do desejo. Agradeço também a um novo colega, José Umbelino Gonçalves Neto,
que topou fazer a revisão de texto de minha dissertação e o fez com extrema competência.
Desde que me formei me reúno em grupo com colegas para estudo. A lista seria
imensa se eu citasse todos os que contribuíram com meu aprendizado nestes anos. Não
citarei nomes, vocês sabem quem são. Saibam que todos vocês fazem parte da realização
deste trabalho.
Gostaria de agradecer alguns professores da graduação que tiveram grande
influência em minha vida acadêmica. Professora Alacir Villa Valle Cruces, por sua Ética,
professor Leandro Alves Rodrigues dos Santos e ao Professor Ário Borges Nunes Junior,
pela paixão com que me apresentaram a psicanálise. Pensando na graduação, não poderia
deixar de agradecer algumas colegas de realização de trabalho durante os anos de curso.
Adriana Ramos, Cristiane Lenotti dos Santos e Keller Cristina por nossa parceria.
Finalmente agradeço ao CNPq pelo financiamento de minha pesquisa.
RESUMO

DIAS, Brendali. Uma Crítica à lógica capitalista da sociedade de consumo


contemporânea: uma perspectiva da psicanálise lacaniana à luz de Žižek. Dissertação
de Mestrado. PUCSP, 2010.

Este trabalho pretende fazer uma crítica à lógica do capitalismo de consumo da


sociedade contemporânea. Nossa crítica toma como premissa principal a nocividade da
forma de manutenção desta lógica pela promessa de completude e foraclusão do objeto
a. A pesquisa foi desenvolvida a partir da teoria psicanalítica lacaniana à luz de Slavoj
Žižek, que dela se utiliza para propor uma teoria social e política crítica aos ditames da
lógica do capital. Žižek aponta que a lógica do capital se mantém a partir de uma
proposta que leva o sujeito a considerar que há uma impossibilidade de escapar desta
lógica e com isso torna-se conivente com ela ao encarar o consumo como única forma
de aplacar suas angústias. Em conseqüência dessa busca de aplacar suas angústias, o
sujeito é seduzido pela promessa de completude, encarando as ofertas de
objetos/mercadorias como uma maneira de se sentir acolhido pelo social a partir delas,
consumindo indiscriminadamente. A partir das colocações de Žižek, que usa como base
de sua crítica a teoria psicanalítica lacaniana, discutimos o lugar do sujeito nesta lógica,
e suas alternativas para escapar dela. Problematizamos o consumismo no capitalismo,
levantando um questionamento sobre o por quê de o sujeito se posicionar de maneira
tão complacente diante dessa lógica. Refletimos, ainda, sobre o uso que o sistema
capitalista faz das tecnologias aliadas à ciência, que têm sido apresentadas pela mídia
como capazes de gerar um estado de completude, que nunca é encontrado, conduzindo a
sociedade a graves patologias. Essas patologias, encaradas como sintoma pela
psicanálise, são apontadas como revolta contra essa lógica. O sintoma, portanto, revela-
se como forma de o sujeito mostrar seu descontentamento com a lógica do capital,
sendo também a chance de o sujeito escapar dela. Finalmente, apresentamos a proposta
de Žižek em fazer emergir um posicionamento político do sujeito contra o impossível da
lógica do capital para possibilitar alternativas que permitam escapar desta lógica
colocando a necessidade de se ‘arriscar o impossível’ para além do imposto pela lógica
do capital.

Palavras-chave: psicanálise; consumo; sintoma; lógica capitalista; arriscar o


impossível.
ABSTRACT

DIAS, Brendali. A criticism to the capitalist logic of the contemporary consumption


society: A perspective from the Lacanian psychoanalysis based on Žižek. Master’s
Degree Dissertation. PUCSP, 2010.

This project aims to criticize the logic of the consumption capitalism in the
contemporary society. Our criticism takes as its major premise the harmfulness of the
way this logic is kept through the promise of completeness and foreclosure of object a.
The research was developed as from the Lacanian psychoanalytic theory based on
Slavoj Žižek, which makes use of it to propose a critical social and political theory
against the dictates of the logic of capital. Žižek points out that the logic of capital keeps
itself as from a proposal which takes the subject to consider that it is impossible to
escape this logic and with that becomes conniving with it to face the consumption as the
only way to calm his/her afflictions. As a result of this pursuit to calm his/her
afflictions, the subject is seduced by the promise of completeness, facing the offers for
objects/goods as a way to feel welcomed by social through them, consuming
indiscriminately. Based on Žižek’s arguments, who uses as a base for his criticism the
Lacanian psychoanalytic theory, we discuss the place of the subject in this logic, and
his/her alternatives to escape from it. We put in doubt the consumerism in capitalism,
raising the inquiry about why the subject places himself/herself in such a complacent
way towards this logic. We reflect, yet, on the use made by the capitalist system of the
technologies associated to science, which have been presented by the media as capable
of generating in subject a completeness state, which is never found, leading the society
to severe pathologies. These pathologies, faced as symptom by psychoanalysis, are
pointed out as rebellion against this logic. The symptom, therefore, manifests itself as a
way for the subject to show his/her dissatisfaction with the logic of capital, being also
the chance for the subject to escape from it. Finally, we introduce Žižek’s proposal to
bring a political position of the subject against the impossible of the logic of capital to
enable alternatives which turn possible escaping from this logic, placing the need to
‘risk the impossible’ beyond the imposed by the logic of capital.

Key-words: psychoanalysis; consumption; symptom; capitalist logic; to risk the


impossible.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 01

CAPÍTULO I – As transformações na lógica do capital: do capitalismo de


produção ao capitalismo de consumo......................................................................... 09

a. Mercadoria, Fetiche e Alienação como Conceitos Centrais para a Análise da


Lógica do Capital.................................................................................................09
b. O Funcionamento da Lógica do Capital na Sociedade da Insatisfação
Administrada: o Capitalismo de Consumo..........................................................15

CAPITULO II – A constituição do sujeito e sua alienação ao Outro no laço


social................................................................................................................................24

a. A Constituição do Sujeito na Psicanálise Lacaniana...........................................24


b. O Sujeito da Psicanálise e o Sujeito da Ciência...................................................34
c. O sujeito neurótico no laço social....................................................................... 40

CAPITULO III – A Contribuição de Slavoj Žižek para pensar uma articulação


entre psicanálise e sociedade........................................................................................ 55

a. A formalização de Žižek quanto à característica peculiar da alienação do sujeito


frente à ideologia do impossível da lógica do capital ........................................ 55

b. Para uma subversão da lógica capitalista: arriscando outros impossíveis com


Žižek................................................................................................................... 67

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 77


INTRODUÇÃO

O interesse desta pesquisa surgiu ao observar um fenômeno muito recorrente na


sociedade contemporânea: o consumo buscado pelo sujeito a fim de estabelecer laço social
como um meio de aplacar sua angústia. Ou seja, o sujeito consome para ter aceitação social
por meio de objetos/mercadorias que pode adquirir, abrindo mão dos princípios e
sentimentos que o representam como um ser. Neste âmbito, o sujeito passa a consumir
objetos/mercadorias, não por um desejo próprio, mas por aquilo que a sociedade espera
dele, para ser admirado por seu potencial aquisitivo. Desta maneira ele atropela seu desejo
obedecendo a este fenômeno que aqui chamaremos de lógica do capital.

O fato de a postura consumista do sujeito na lógica do capital ser percebida


repetidamente em escala global e de a sociedade não buscar alternativas para escapar desta
lógica, nos traz dois interesses a serem trabalhados nesta pesquisa: primeiro, o interesse de
entender o que há nesta lógica que captura o sujeito nela; segundo, o interesse de produzir
uma crítica que permita alternativas para o sujeito escapar dela.

Nossa crítica partirá das reflexões da psicanálise lacaniana, colocando-a como


instrumento que oferece alternativas em relação à lógica do capital.

A psicanálise lacaniana foi escolhida para nortear este trabalho por contemplar
como essencial algo que julgamos de central importância em nosso tema: o objeto a. O
objeto a1, para a psicanálise lacaniana, representa uma falta inerente ao seres da linguagem,
ou seja, aos seres humanos. Essa falta causa o desejo que insiste sempre, atualizando a
busca do sujeito por um objeto perdido, o objeto a, simbolizado nos objetos da realidade.
Apesar de representar uma operação de falta para o sujeito, o objeto a é considerado pela
psicanálise como algo que impulsiona a vida, pois sua constante operação é necessária para
que o sujeito deseje, pois é através do desejo que o sujeito pode representar princípios e

1
Todos os conceitos da psicanálise citados nesta primeira parte do trabalho serão desenvolvidos no capítulo II
da dissertação.
sentimentos de seu ser. Neste contexto, estamos tratando o desejo humano como algo que
passa por um apelo ao Outro, um discurso com o qual o sujeito tem que lidar para ajustar
seu desejo à lei, que é um anseio inconsciente.

Escolhemos o autor contemporâneo Slavoj Žižek para orientar nosso trabalho pelo
fato de seus escritos críticos à lógica do capital serem construídos de acordo com os
conceitos da Psicanálise lacaniana. Slavoj Žižek nasceu na Eslovênia, é sociólogo, filósofo
e um estudioso da psicanálise lacaniana, além de um dos interlocutores mais importantes da
atualidade nos debates sobre o destino do pensamento político de esquerda. Ele é conhecido
também pelo uso que faz da psicanálise lacaniana em sua crítica da sociedade
contemporânea e por se utilizar dessa teoria para propor uma teoria social e política que
faça resistência à lógica do capital.

Em seus escritos, Žižek critica a lógica do capital por ela comportar uma ideologia
do impossível, ou seja, o impossível de uma transformação social fora das coordenadas do
capitalismo. Žižek aposta que as alternativas para uma transformação social e política, que
permita emergir o desejo do sujeito, estão fora das coordenadas do capitalismo. É nessa
medida que Žižek se lança ao debate com base na psicanálise, pois ele concorda com o
ponto de vista da psicanálise de que o objeto a é fundamental para a existência do sujeito
em sociedade. O que o autor, assim como a psicanálise, critica na lógica do capital é o fato
de ela incitar o sujeito à busca incessante pela foraclusão do objeto a, prometendo, ao
sujeito, a completude de gozo, dada como impossível pela psicanálise.

A lógica do capital, ao incitar o sujeito a buscar a completude no consumo de


objetos da realidade, desconsidera a existência do sujeito do inconsciente abordado pela
psicanálise. Em sua teoria, Žižek vem discutindo a proposta da ideologia da lógica do
capital, esclarecendo que essa é uma lógica que, ao prometer a completude através da
foraclusão do objeto a, busca anular os desejos inconscientes do sujeito.

Desse modo, ao incitar o sujeito a modelar-se ao sistema, a lógica do capital leva-o


a não questionar seu funcionamento, fazendo com que o sujeito não se arrisque a se
contrapor ao sistema. Esse efeito no sujeito é conseguido através de duas estratégias dessa
lógica: por um lado se apresenta concordando que o capitalismo não é bom para a
2
sociedade por impor uma desigualdade social abismante, por outro, se coloca como única
saída para o sujeito, afirmando não haver nada melhor, apresentando, assim, uma forma
conformista para o sujeito viver em sociedade e buscar a completude de gozo no consumo,
aí valendo consumir qualquer mercadoria apontada pela lógica do consumo.

A título de exemplo, pensemos no funcionamento deste mecanismo quanto à


indústria farmacêutica e na postura dos médicos. O que aparece com grande frequência é
que os médicos não querem dividir responsabilidades, querem dar conta de todos os
sintomas receitando medicamentos, ou seja, tratam o sintoma do sujeito como uma doença
que deve ser eliminada. Muitos sintomas, que se apresentam como sofrimentos, são
tratados com drogas farmacêuticas pelo médico, que de tudo quer dar conta pelo uso de
drogas produzidas pela indústria farmacêutica, mas inúmeras vezes o sintoma precisa ser
tratado de outras maneiras que não com remédios. Quanto a isso, Pacheco Filho (2008) vai
nos dizer que:

A importância dos conflitos existenciais do sujeito (...) e dos conflitos entre sujeito
e sociedade é substituído por uma profusão infindável de pseudo-entidades
mórbidas recém-criadas. São os TOCs, DOCs, oniomanias, síndromes e transtornos
dos mais variados tipos e graus de nocividade, que, como ocorre com tudo que
recebe uma nomeação, ‘criam’ a ‘realidade’ do que recebeu seu batismo. (p. 33)

Com estas palavras o autor nos mostra dois lados da questão: por um lado, o
médico, inspirado pela lógica do consumo, propõe as drogas como saída para todos os
males, ou seja, propõe a foraclusão do Objeto a (proposta da lógica do capital para
apropriar-se do sujeito), por outro lado, o sujeito, na dificuldade de lidar com seus
conflitos, aceita fazer uso do medicamento, contando com o desaparecimento de seu
sintoma e conseqüentemente com a foraclusão do Objeto a (é quando o sujeito se apropria
da lógica do capital).

Isso acontece quando o sujeito procura um médico e ao receber um diagnóstico, ou


seja, receber uma nomeação para seu mal estar, coloca-se numa posição de doente

3
impotente, deixando-se alienar por qualquer dessas nomeações, ficando exatamente no
lugar em que a lógica do capital pretende mantê-lo. Dessa maneira, o médico se apresenta
conivente com a lógica do capital, na medida em que incita o consumo excessivo de drogas
ditas terapêuticas, como se a droga pudesse resolver todos os sofrimentos do sujeito. O
mais complicado nesta situação é que o sujeito, ao fazer uso do medicamento, se
desimplica de sua responsabilidade sobre seu sintoma e conseqüentemente de seu desejo.
Sobre isso Antonio Quinet (2006) lança a seguinte questão:

(...) até que ponto o desenvolvimento das neurociências e da psicofarmacologia se


presta ao discurso do capitalismo? O dinheiro investido em pesquisas não poderia
estar invertendo a ordem das coisas? (...) Temos aqui duas hipóteses: A evolução da
ciência psiquiátrica produz novos remédios para novos males; ou ela produz novos
males, para que sejam tratados pelos medicamentos que ela fabrica? Neste caso
vemos as neurociências a serviço do capitalista, produzindo não só novas drogas
(novos gadgets), mas também (...) novas categorias diagnósticas para justificar
assim “medica-mente” a utilização dos psicofármacos. (p. 22)

A finalidade do autor é apontar para o fato de que, com a evolução da ciência, a


indústria farmacêutica cria novos medicamentos e ao criá-los designa “novos males” para
serem tratados por estes “novos medicamentos”, visando garantir seu consumo. Podemos
entender que o capital gerado pelo consumo de medicamentos é o principal interesse da
indústria farmacêutica, que investe milhões em pesquisa, excluindo a possibilidade de que
há algo no sujeito que está para além do que a medicina pode tratar com medicamentos.

Deixemos claro que nossa finalidade não é fazer oposição à categoria médica,
sabemos que o profissional da medicina é indispensável para a sociedade. Nossa crítica
incide sobre o fato de que o médico, ao aliar-se à lógica do capital, promete um fim para
todos os males do corpo pelo consumo de medicamentos, propondo com isso a foraclusão
do objeto a.

O que a psicanálise aponta é que é preciso distribuir as responsabilidades. A


psicanálise não é contra a medicina ou a ciência, ela busca uma articulação com estes
campos, apontando que há algo que o saber da ciência (médica, por exemplo) tenta jogar
4
fora, mas que isso não quer dizer que a psicanálise joga fora a categoria médica ou
científica para substituí-la. O que a psicanálise busca é um espaço dentro da ciência para
incluir o objeto a de maneira que ele possa ser tratado ao invés de buscar foracluí-lo dos
espaços da sociedade. Mas o caso da postura médica em relação à lógica do capital
(lembrando que esta postura também não pode ser totalmente generalizada) é apenas um
exemplo entre muitos. Da mesma forma esse movimento se repete em outras áreas
tecnológicas em que a ciência atua, ou seja, ela se preocupa em produzir mercadorias para
serem consumidas, e o sujeito, nestas outras áreas, responde da mesma maneira alienada.

No exemplo aqui extraído da área médica trouxemos a discussão sobre o poder da


lógica do capital que se utiliza da tecnociência para fortalecer sua meta, mas há ainda outro
componente utilizado pela lógica do capital: a mídia através dos diversos meios de
comunicação de massa que reforçam o objetivo da lógica do capital da foraclusão do objeto
a. Assim como na área médica, a lógica do capital funciona apoiada pela tecnociência e
pela mídia, alcançando seus objetivos de acúmulo de capital em todas as áreas, atuando em
escala mundial.

É por meio das promessas de completude do consumo, ou seja, promessa de


tamponamento da falta – pois seja qual for essa falta, sempre haverá um produto que
prometa tamponá-la – em que o sujeito é suscitado a fazer laço social mediado pela
obtenção de bens materiais, que a lógica do capital alcança sua eficácia em fazer com que o
sujeito alimente o sistema capitalista.

O abuso do consumo pelo sujeito no capitalismo aponta para a busca do gozo pleno
prometido pelo sistema, mas dado como impossível pela psicanálise.

Consumir é a resposta conformista e alienada do sujeito e, também, o alimento da


lógica do capital. O sujeito alienado na ideologia da lógica do capital, na dificuldade de
lidar com sua falta, busca o tamponamento dela, ou seja, busca a plenitude de gozo,
prometido por essa lógica, pela foraclusão do objeto a. Segundo Ramos (2004):

5
Esses mecanismos sociais contribuem para que as experiências do corpo – isto é, o
prazer e a dor – sejam negadas ou distorcidas em suas significações, pois para a
perpetuação e para o fortalecimento do todo é necessário que o indivíduo aceite e
reproduza as condições de sua própria exploração. (p. 59)

A partir desta citação podemos nos perguntar: fortalecer que todo? No caso da
sociedade do capitalismo de consumo, fortalecer o acúmulo de capital em detrimento da
possibilidade de o sujeito lidar com seus conflitos e com os conflitos sociais. Ao preocupar-
se em dar um fim ao seu sofrimento, o sujeito, numa lógica individualista, deixa de lado
suas críticas ao social, abrindo mão de sua responsabilidade neste sistema, consumindo
conformadamente na busca de completude de gozo.

Consumir é uma resposta do sujeito, mas ele não responde apenas de maneira
conformista, ele responde também com seu sintoma que aparece nos sofrimentos
cotidianos, nos mal-estares, nas angústias etc. Essas são as respostas não conformistas do
sujeito. Não é à toa que a lógica do capital se preocupa tanto em calar tais respostas por
meio da mídia e da tecnociência, ofertando novos objetos/mercadorias a todo instante.

Essas respostas pelos sintomas apontam para a existência do sujeito da psicanálise


funcionando como resistência à lógica do capital, pois demonstra que a foraclusão do
objeto a, prometido por essa lógica, é impossível. Assim, é no sintoma que aparece a
chance de uma transformação social fora das coordenadas da lógica do capital.

Contra a ideologia do impossível da lógica do capital, Žižek propõe arriscar o


impossível. Ele aposta que a partir de Atos políticos é possível estabelecer alternativas que
transformem a sociedade fora das coordenadas da lógica do capital. Essas alternativas são
possíveis porque além de o sujeito ser afetado pela lógica do capital, ele é também,
enquanto sujeito do inconsciente, afetado pela linguagem. É a partir desse sujeito do
inconsciente afetado pela linguagem que Žižek aponta a possibilidade de “arriscar o
impossível” para promover uma transformação social fora das coordenadas da lógica do
capital, ou seja, tratando o objeto a simbolizado pelo sintoma e mantendo-o – ao invés de
foracluí-lo – como “dignidade do sujeito”.

6
Trouxemos nas discussões desta introdução uma crítica referente à alienação do
sujeito na lógica do capital pela busca do gozo pleno e foraclusão do objeto a, o que não
significa que a teoria psicanalítica busca a eliminação do gozo. O gozo é admissível pela
psicanálise, aliás, é uma necessidade do sujeito por sua própria constituição alienante (tema
que será tratado no capítulo II). Mas digamos que esse gozo admitido pela psicanálise seja
um gozo não-todo. O que não é admissível pela psicanálise é o encontro com o gozo pleno,
essa é a promessa impossível da lógica do capital.

A partir deste pano de fundo desenvolveremos pontos importantes para ampliar as


reflexões existentes sobre o tema.

No Capítulo I trataremos de apresentar as transformações na lógica do capital, entre


o capitalismo de produção e o capitalismo de consumo, e suas conseqüências. Teorizar
sobre esta transformação se torna importante para que possamos nos situar em relação ao
restante do trabalho.

No capítulo II faremos um aprofundamento sobre o conceito de constituição do


sujeito concebido pela psicanálise lacaniana, explorando os processos de “Alienação e
Separação”, a partir de Lacan (1964/1973) e sua comentadora Soler (1997). Achamos
importante desenvolver esses conceitos por considerarmos fundamental uma parcela de
alienação instaurada no sujeito para a construção da cultura, ou seja, do liame social, pois é
somente pela alienação à linguagem que é possível estabelecer esse liame. Trataremos de
diferenciar alienação estrutural do sujeito, intrínseca ao processo de sua constituição
decorrente do atravessamento pela ordem do significante, das alienações históricas
particulares e contingentes derivadas de modos específicos de estabelecimento dos laços
sociais em diferentes sociedades. Trataremos ainda neste capítulo a questão da estrutura
neurótica como trans-histórica e da subjetividade como histórica, por meio das
contribuições de Askofaré (2009), que embasado em Lacan mostra a importância da
distinção destes conceitos para a compreensão da sociedade contemporânea da lógica do
capitalismo de consumo.

No capítulo III trabalharemos a diferenciação entre o impossível da psicanálise


apontado por Lacan e o impossível da lógica do capital apontado e criticado por Žižek com
7
Lacan, residindo aí a diferença entre a alienação estrutural do sujeito pela linguagem e a
alienação proposta pela busca de foraclusão do objeto a da lógica do capital, abordando, em
seguida, a compreensão de Žižek quanto à formalização teórica da alienação do sujeito no
capitalismo. Ainda neste capítulo reuniremos e apresentaremos as reflexões de Žižek sobre
as alternativas de o sujeito escapar da alienação proposta pela lógica do capital, destacando
suas reflexões sobre o objeto a – entendido na teoria psicanalítica como um elemento
gerado pela pulsão – apontado por ele como o que pode gerar alternativas para uma
transformação social dando ao sujeito a possibilidade de arriscar o impossível.

Finalmente, teceremos nossas considerações finais, que mais do que um fechamento


das questões tratadas na dissertação aponta para a necessidade de maiores aprofundamentos
no futuro.

Sem desejar tomar mais tempo do leitor nesta parte do trabalho, partamos para
nossa empreitada.

8
CAPÍTULO I – AS TRANSFORMAÇÕES NA LÓGICA DO CAPITAL: DO
CAPITALISMO DE PRODUÇÃO AO CAPITALISMO DE CONSUMO

a - Mercadoria, Fetiche e Alienação como Conceitos Centrais para a Análise da


Lógica do Capital

Do ponto de vista histórico, Michel Beaud (1985) relata que a longa marcha para o
capitalismo começa no século XI, quando a sociedade feudal se vê realizada em sua forma
acabada. A organização da produção se dava pelo trabalho forçado, servidão e corvéia,
extorsão do sobre-trabalho do qual se beneficiava o senhor, dando origem ao início do
mercantilismo.

No mercantilismo, então, a partir do século XI (estendendo-se até o século XVII), o


crescimento dos países era baseado no máximo de exportação e mínimo de importação, sua
riqueza era acumulada em metais preciosos, ouro e prata. Assim, é a partir do
mercantilismo, no século XVI, que começam a ser introduzidas e desenvolvidas as
condições do desenvolvimento posterior do capitalismo, condições estas que permitem
marcar o começo da chamada “era do capitalismo”.

Segundo Michel Beaud (1985), é principalmente na França, na Holanda e na


Inglaterra que vai prosseguir, no século XVII, a marcha para o crescimento do capitalismo
a partir da ascensão das burguesias. Entretanto, será a partir do desenvolvimento das
fábricas, no século XVIII, que o capitalismo se introduz com o modo de produção que lhe é
próprio, com base na acumulação de riquezas que atinge seus objetivos a partir do trabalho
forçado dos camponeses, da exploração colonial sob forma de pilhagem, da escravidão, da
troca desigual e das taxas e impostos coloniais.

No século XIX, é principalmente através da instalação da indústria mecanizada que


se opera a extensão do modo de produção capitalista. Vejamos como isso se deu a partir da
leitura marxista da relação do sujeito com a mercadoria.
Marx (1867/1984), no Capital, afirmou que as mercadorias possuem algo para além
de sua condição material. Como na teoria psicanalítica — que propõe a impossibilidade de
acesso ao Real, ou seja, que afirma a impossibilidade de se chegar uma essência da
realidade —, Marx afirma que o valor das mercadorias “não provem de seu valor de uso,
nem tampouco dos fatores determinantes do valor.” (p. 80). Para esse autor, a equivalência
das mercadorias seria uma maneira de estabelecer um valor concreto para uma série de
mercadorias que não teriam valor isoladamente. As mercadorias, nesse sentido, seriam
produtos da relação social e possuiriam um mistério em sua constituição. Nas palavras do
próprio Marx (1867/1984):

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do


próprio trabalho do homem, apresentando-a como características materiais e
propriedades sociais inerentes aos produtos dos trabalhos: por ocultar, portanto, a
relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao
refleti-la como relação social existente à margem deles, entre os produtos de seu
próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam
mercadorias, coisas sociais com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos
sentidos. (p. 81)

Marx assegura que esse caráter misterioso provém da forma da mercadoria, pois o
caráter social das relações entre os produtores assume a forma de relação social entre os
produtos do trabalho, isto é, os produtos do trabalho irão atribuir um poder abstrato nas
relações entre os produtores. O autor chama esse processo [de atribuir um poder abstrato à
mercadoria] de fetichismo, que no vocabulário de sua época significava algo como uma
espécie de feitiço sobre a produção material, o qual, por sua vez, criaria uma “aparência”
frente à “essência”. Por isso, com o fetichismo das mercadorias, uma relação social definida
entre pessoas se materializaria como um “entre coisas”, que também adquirem uma
aparência de “equivalência”.

Essa equivalência das mercadorias estabelecida entre os homens constitui categorias


socialmente válidas da economia burguesa. Mas, para o estabelecimento das equivalências
é preciso que cada produtor invista seu produto de algo que o torne valioso socialmente, ou

10
seja, ele precisa convencer o comprador de que a mercadoria produzida tem um valor para
ele (comprador). Ele só convencerá o comprador se mostrar que a forma de sua mercadoria
tem algo para além do seu valor de uso, e esse “algo mais” deve estabelecer-se dentro de
uma equivalência social. Para Marx (1867/1984), isso tudo significa que:

De acordo com a relação social de produção que tem validade geral numa sociedade
de produtores de mercadorias, estes tratam seus produtos como mercadorias, isto é,
valores, e comparam sob a aparência material das mercadorias, seus trabalhos
particulares, convertidos em trabalho humano homogêneo. (p. 88)

Em outras palavras, isso significa que para a livre circulação das mercadorias torna-
se necessária uma alienação do sujeito frente às mercadorias. Como funcionaria o processo
de alienação frente às mercadorias para Marx? Em uma passagem dos Manuscritos
Econômico-Filosóficos, Marx (1844/2004) escreve que:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais
sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria
tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das
coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos
homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a
si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isso na medida em que produz,
de fato, mercadorias em geral. (p. 80, grifos do autor)

A alienação, nesse sentido, se mostra na divisão do trabalho capitalista e é


caracterizada pela especialização e fragmentação do trabalho para que o trabalhador não se
aproprie de sua importância na produção total das mercadorias. O trabalhador se aliena
frente ao seu trabalho e aos produtos de seu trabalho. Tomemos como exemplo um
indivíduo que se especializa em apertar um determinado parafuso. Sua função é essencial
para a concretização do produto final, entretanto, alienado nesse processo, esse sujeito
acredita que não produz de fato uma mercadoria, pensa que vende apenas sua força de

11
trabalho. Mesmo em profissões de nível superior, os trabalhadores acreditam que vendem
apenas seus serviços técnicos, como se isso não fizesse parte do processo de produção das
mercadorias, e a partir deste pensamento se submetem às condições da empresa para
garantir seu sustento. Em outra passagem, Marx (1944/2004) assinala bem essa condição de
alienação:

(...) quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza


sensível, por meio de seu trabalho,tanto mais ele se priva dos meios de vida
segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível
deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho,um meio de vida do seu
trabalho; segundo, que [o mundo exterior sensível] cessa, cada vez mais, de ser
meio de vida no sentido imediato, meio para subsistência fisica do trabalhador.
Segundo esse duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto,um servo de seu
objeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto de trabalho, isto é, recebe trabalho; e,
segundo, porque ele recebe meios de subsistência. Portanto, para que possa existir,
em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico. O auge
dessa servidão é que somente como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito
físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador. (p. 81-82, grifos do autor)

Aí aparece a dimensão dialética envolvida no processo de produção e venda das


mercadorias na lógica capitalista. Politzer (1954/ s. d.) assinala que a mercadoria mais
interessante para o capitalista é “a força de trabalho do operário, pois somente o trabalho
pode produzir valor” (p. 255). E, por possuir todos os meios de produção, o capitalista se
apropria da mercadoria “trabalho”. Entretanto, para que a força de trabalho humana se torne
uma mercadoria e para que os homens cheguem a vendê-la,

(...) é necessário que ela lhes pertença inteiramente (...) que exista o mercado (...) e
que os homens não tenham nada mais a vender a não ser sua força de trabalho, isto
é, que eles mesmos não possuam nenhum meio de produção. Tais homens, os
proletários, existem, tanto em conseqüência da desagregação econômica do sistema
feudal, como em conseqüência da concorrência que impera na produção mercantil,
concorrência que arruína os pequenos artesãos e os pequenos comerciantes, e isso
desde o início de seu desenvolvimento. (p. 255)

12
Em conseqüência desta concorrência desleal que arruína os pequenos artesãos e
comerciantes, origina-se a força de trabalho disponível de que o capitalismo necessita. Para
tanto, é preciso que se some à alienação frente às mercadorias a sensação de liberdade
frente à lógica capitalista. Como explica Politzer (1954/s. d.), a “liberdade” do sujeito
inserido na lógica capitalista se reverte em “liberdade” de vender sua força de trabalho ao
capitalista, que, por sua vez, fica aprisionado na liberdade de “explorar” o trabalhador.

Existe uma condição abstrata na mercadoria que está presente desde a época das
trocas. Apesar de a relação abstrata da mercadoria, ou seja, o fetiche da mercadoria se fazer
presente desde a época das trocas podemos observar que, com a evolução do capitalismo, o
valor de troca se sobrepõe ao valor de uso assumindo uma proporção cada vez mais
excedente sobre este último, proporcionando condições para a emergência do capitalismo
de consumo.

Diante do que foi trazido até agora, é interessante apresentar o que Haug (1977)
identificou como sendo algumas condições básicas que permitem a emergência do
capitalismo de consumo. Ele nos apresenta a relação das pessoas com as mercadorias,
desde a época das trocas até os nossos dias. Diz este autor que, para ocorrer a troca de
mercadorias:

(...) é preciso que o respectivo proprietário tenha-a “sobrando” – isto é, não tenha
necessidade nem faça uso dela – por outro lado, seu não proprietário deve precisar
dela para que pense em trocá-la. Só quando duas relações desse tipo se ajustam é
que a troca torna-se possível, isto é, adquire sentido para ambos. (p. 23)

Neste contexto, a relação abstrata aparece no momento em que cada proprietário


apresenta os argumentos sobre sua mercadoria, argumentos que excedem seu valor de uso,
para que a troca possa se estabelecer. Haug (1977) pontua que a relação de troca entre a
mercadoria e o dinheiro apresenta o mesmo tipo de fetichização. Na mesma perspectiva,
Žižek (1996) nos aponta um a priori em relação ao fetiche das mercadorias que se
estabelece desde que os seres humanos as adquiriam a partir de trocas. Vejamos:

13
Antes que o pensamento pudesse chegar à idéia de uma determinação puramente
quantitativa, um sine qua non da moderna ciência da natureza, a quantidade pura já
estava em ação no dinheiro. Essa mercadoria que possibilita a comensurabilidade
do valor de todas as outras mercadorias, a despeito de sua determinação particular.
Antes que a física pudesse articular a noção de um movimento puramente abstrato,
ocorrendo num espaço geométrico, independente de quaisquer determinações
qualitativas dos objetos em movimento, o ato social de troca já havia realizado um
movimento abstrato “puro” que deixa totalmente intactas as propriedades sensório-
concretas do objeto apanhado em movimento: a transferência de propriedade (p.
302).

Assim, há algo que permanece desde os primórdios da efetivação das trocas,


envolvendo ou não dinheiro: o fetiche. Nos dias de hoje, com o incentivo ao consumo, o
encarecimento de mercadorias por seu valor de troca, ou seja, por seu fetiche, tem se
intensificado cada vez mais, na supervalorização de uma marca, por exemplo. Segundo
Haug (1977):

A característica particular do artigo de marca baseia-se obrigatoriamente e


unicamente na sua imagem, que por sua vez se torna o fundamento do preço dado
pelo monopólio. (...) Os trustes atraem também os mercados baratos – os
compradores de menor poder aquisitivo ou, no mínimo, mais parcimoniosos –
vendendo o mesmo produto mais barato com uma outra etiqueta, através de uma
subsidiária (p. 38).

Neste caso, o que o consumidor realmente privilegia é a marca. Na atualidade, além


do fetiche da marca, a sociedade do capitalismo de consumo conta também com a
obsolescência do produto, que, aliando-se às tecnociências produzem novos produtos que
substituem o anterior para que o sujeito adquira o novo produto inutilizando o antigo
mesmo em bom estado.

Este tipo de movimento da tecnologia é impulsionado pela mídia que passa a idéia
de que a completude sempre está no futuro. Ou seja, após a obtenção de uma mercadoria,

14
certamente o sujeito terá que consumir novamente. Mesmo antes de consumir a próxima
mercadoria o sujeito já sabe que depois dela virá outra que a tornará obsoleta. Vemos aí que
a própria obsolescência se torna um fetiche, ou seja, há um fetiche em se livrar de um
objeto, mesmo em bom estado de uso, para obter um novo e assim sucessivamente.

b – O Funcionamento da Lógica do Capital na Sociedade da Insatisfação


Administrada: o Capitalismo de Consumo

Até aqui, falamos da mercadoria, do fetiche e da alienação relacionando-os com um


momento do capitalismo em que ainda se cogitava outras formas de sociedade (comunismo,
socialismo, anarquismo etc.). Com a hegemonia do capitalismo, fruto da queda dos antigos
regimes, sobretudo o comunista, uma nova lógica foi instituída. Žižek (1996), para tratar da
transformação na lógica capitalista, escreve que:

Até uma ou duas décadas atrás, o sistema produção-natureza (...) era percebido
como uma constante, enquanto todos tratavam de imaginar diferentes formas de
organização social da produção e do comercio; (...) hoje, como assinalou Frederik
Jameson com muita perspicácia, ninguém mais considera seriamente as possíveis
alternativas ao capitalismo, enquanto a visão popular é assombrada pelas visões do
futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda vida sobre a terra. (...) Assim,
pode-se afirmar categoricamente a existência de uma ideologia qua matriz geradora
que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável,
bem como as mudanças nessa relação. (p. 7)

Nessas palavras Žižek assinala uma modificação da visão política, na qual as


pessoas ainda imaginavam alternativas ao capitalismo, característico dos anos 70, para um
momento em que as pessoas começam a deixar de imaginar alternativas, principalmente a
partir dos anos 90. Nesta mesma citação Žižek denuncia a existência de uma ideologia “que
regula a relação entre o visível e o invisível, entre o imaginável e o inimaginável” e oferece
o exemplo da questão ecológica que se mostra como um fantasma em nossa sociedade.

15
Nesse sentido podemos pensar a mídia como um dos elementos que favorecem a
lógica que sustenta a forma. Podemos pensar, neste caso, que a ideologia apresentada pela
mídia regula o que devemos e o que não devemos saber sobre as questões ecológicas,
favorecendo a manutenção da lógica capitalista.

As saídas apresentadas pela mídia geralmente se concretizam como ações paliativas


frente ao problema ecológico como, por exemplo, economizar algumas sacolinhas de
plástico no mercado, usar uma camiseta com dizeres em defesa da natureza, não jogar lixo
na rua e outras atitudes em favor da natureza. Essas ações são paliativas porque além de
não atacarem o ponto chave do problema ecológico, a própria aderência às ações propostas
muitas vezes envolvem de alguma forma o consumo de mercadorias (o uso de camisetas
com dizeres em defesa da ecologia, por exemplo), o que no fim das contas, a maioria destas
idéias acaba virando motivo para consumir.

Entretanto, as saídas oferecidas criam uma realidade na qual os sujeitos submetidos


a esses passos — os quais são indicados pelos analistas simbólicos1 — certamente se
sentirão numa condição de impotência por perceberem que o problema se mantém e se
agrava cada vez mais. A culpa passa a ser daqueles que não colaboram com as propostas
ecológicas, quando na verdade as propostas apresentadas como solução, nada têm de
resolutivo. Esta condição pode ser melhor evidenciada na transcrição do exemplo da ação
do sujeito frente ao elevador trazido por Žižek (2007):

É um fato bem conhecido que o botão para fechar a porta na maioria dos elevadores
é um placebo completamente disfuncional, aí colocado apenas para dar a falsa
impressão de que estão de alguma forma a participar, a contribuir para a rapidez da
viagem de elevador. Quando carregamos neste botão, a porta fecha-se exatamente
ao mesmo tempo que quando carregamos apenas no botão do andar sem apressar o

1
Analistas simbólicos são “(...) psicólogos, psicanalistas, historiadores, jornalistas, especialistas em
comunicação e cientistas que operam junto às empresas e aos mercados a fim de oferecer intervenções
discursivizadas/discursivizantes nas ações e práticas das empresas que os procuram. Essas ações podem
exigir um mapeamento semiótico dos espaços de consumo, uma redefinição da identidade nas marcas, uma
ação discursiva para mudar contratos de leitura e audiência junto a seus públicos, análises logísticas
integradas a análises de Marketing.” (PRADO, 2005, p. 82)

16
processo carregando também no botão para fechar a porta. Este caso extremo e
claro de falsa participação é, no meu entender, uma metáfora apropriada [para] a
participação das pessoas no nosso processo político pós-moderno. Os políticos
estão sempre a pedir-nos para carregar neste tipo de botões. (p. 5)

Assim como Žižek (2007) se refere à inutilidade do botão de fechar a porta do


elevador, da mesma maneira o sujeito se coloca diante da política ao responder aos apelos
midiáticos. O sujeito ao seguir as propostas ecológicas da mídia — seja porque ele, ao se
preocupar com a natureza, quer dar um bom exemplo ecológico para seus filhos, amigos ou
vizinhos — se vê numa posição de “politicamente correto”, apoiado pelas pregações
midiáticas dos analistas simbólicos, convencido de que está fazendo a sua parte e até de um
certo heroísmo.

Nesta lógica o sujeito evita raciocinar sobre a lógica do capital sobre a ineficiência
dos apelos midiáticos, que, contradizendo os próprios apelos, pregam a destruição
ecológica pelo consumo. As propostas apresentadas são tomadas como ações políticas pelo
sujeito, mas na verdade não passam de propostas falsas em que, ao serem realizadas, ocorre
o mesmo que quando apertamos o botão de fechar a porta do elevador, que se fecha mesmo
que o botão não fosse acionado, ou seja, a situação política continua se passando da mesma
maneira que se passaria se essas pseudo-ações políticas não fossem realizadas.

Essa lógica de falsa participação política aparece numa interessante pesquisa


coordenada por Prado (2007), em que vemos tal tipo de participação se estimulada pelas
revistas da mídia semanal no Brasil. Essa pesquisa denuncia as contradições de
propagandas em dois níveis.

No que chamaremos aqui de primeiro nível, elas se encaminham no sentido de


apresentarem os ideais que devem ser buscados — temas como sucesso profissional,
educação, riqueza e corpo saudável estão constantemente em pauta. Toda semana há uma
nova exigência que, por sua força imperativa, convence o leitor de que a opinião da revista
é a correta. Por exemplo, a revista “Isto é” de 11 de dezembro de 2002, apresenta a matéria
de capa com o título “Como Ficar Rico”. O leitor, ao tomar os mandamentos da matéria
como verdade, busca segui-los. A contradição neste tipo de matéria é que todos que a lêem
17
sabem que é impossível todos ficarem ricos, porém, ao não alcançar o objetivo de ficar rico
seguindo estes mandamentos, o sujeito fica infeliz e se sente impotente, ele não busca
observar que na verdade, o próprio apelo da matéria já traz em si uma impossibilidade2.

No que chamaremos de segundo nível, a mídia semanal se encaminha também no


sentido de apresentar matérias críticas a certos movimentos sociais do universo da periferia,
tornando-os inimigos das “pessoas de bem”. Esses movimentos sociais são criticados
nestas matérias por representarem uma ameaça ao capitalismo de consumo, e por esse
mesmo motivo as razões dos que estão reivindicando nunca aparecem. Um exemplo
apresentado na pesquisa é o caso do MST (Movimento dos Sem Terra). A capa da revista
“Veja” de 10 de maio de 2000, referindo-se ao MST, tem como título “A tática da
Baderna”. A opinião pejorativa que a revista almeja de seus leitores sobre o MST, é
alcançada. A contradição neste nível é que o objetivo só é alcançado porque a matéria
omite fatos históricos que apresentariam fundamentos para a existência do movimento, mas
que são encobertos para impedir que o leitor construa uma opinião crítica sobre o
movimento, ou seja, ao mesmo tempo em que é exigido um posicionamento político do
leitor, este não encontra na matéria da revista dados suficientes para produzir seu próprio
posicionamento. Esse tipo de manipulação de informações faz com que o leitor incorpore o
posicionamento apresentado pela matéria da revista, seja qual for este posicionamento.

Estes dois níveis de matérias semanalmente publicadas nas revistas designam a


força da imperatividade da mídia, que ao impor tais contratos usando estratégias de sedução
faz com que o posicionamento do leitor seja o mesmo da revista. Estas matérias semanais
separam o “joio do trigo”, ou seja, “os bons dos maus”. Os bons são aqueles que se
esforçam para cumprir as exigências das matérias naturalizantes3 e os maus são
simplesmente as pessoas que, ou não têm poder aquisitivo para buscar a realização de tais

2
Dados da pesquisa da equipe de Prado (2007) indicam que a mídia semanal “(...) ao promover tal
programação intensa em termos de consumo de auto-ajuda rumo ao sucesso, a mídia conduz o leitor ao
caminho da infelicidade ao perceber que ele jamais poderá chegar ao nível dos personagens-heróis- célebres
(pequenos ou grandes ricos) da mídia semanal”.
3
Prado (2007): Naturalização: modelos ideais a serem seguidos por todos e que são colocados como perfeitos
e imutáveis, como se fizessem parte da constituição do mundo.

18
ideais e acabam marginalizados pela sociedade, ou que se envolvem em movimentos
sociais que possam atrapalhar a fluidez do movimento capitalista. Em outras palavras, o
mau é qualquer sujeito que apresente uma atitude que apareça como de resistência frente a
busca naturalizante, portanto totalitária, implícita na lógica do capital. A crítica dessa
pesquisa nos apresenta um exemplo da forma imperativa a que somos levados a sempre
acionar botões ilusórios como nos apontou Žižek (2007) com o exemplo do falso botão de
fechar a porta do elevador.

A partir destas colocações podemos entender porque a mídia, em níveis mais ou


menos radicais, é acusada de ser a grande responsável pela regulação do consumo, assim
como constrói e sustenta a idéia de que o consumo deve ser o grande objetivo do sujeito na
sociedade contemporânea.

A mídia semanal é apenas um dos exemplos da tapeação ideológica da mídia. Esta


tapeação aparece também em outros meios de comunicação de massa como a televisão, o
rádio, a internet etc., que se encaminham no mesmo sentido, como incentivo ao consumo.
Do mesmo modo, essa tapeação é apoiada por um conjunto de elementos que sustentam os
“Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE)”4, tratados por Louis Althusser (1996).

Safatle (2008) afirma que o que proporciona a tapeação que ocorre através dos
meios de comunicação de massa e dos AIE é uma transformação na forma de
estabelecimento dos laços sociais na sociedade do capitalismo de consumo, que é diferente
da sociedade do capitalismo de produção. Diz ele que o que regia o capitalismo de
produção era a repressão e que o que rege o capitalismo de consumo é a não repressão. Em
um dos trechos de seu livro, nas palavras do autor:

Compreenderemos melhor esse ponto se lembrarmos que a mudança de paradigma


da sociedade industrial da produção para a sociedade pós industrial do consumo traz

4
Althusser (1970/1996) configura as seguintes instituições como Aparelhos Ideológicos do Estado: “AIE
Religioso, AIE Escolar, AIE Familiar, AIE Jurídico, AIE Político, AIE Sindical, AIE da informação e AIE
cultura.” (p. 115)

19
uma série de conseqüências fundamentais, a começar pelo fato de que os modos de
alienação necessários para entrarmos no mundo da produção não são totalmente
simétricos aos modos de alienação que fazem parte do mundo de consumo. De
maneira esquemática, podemos afirmar que o mundo capitalista da produção estava
vinculado à ética do ascetismo, da acumulação (“o prazer que submete todos os
prazeres”) e pela fixidez identitária que se manifesta como vocação para funções
específicas e especializadas. O mundo do consumo pede por sua vez, uma ética do
direito ao gozo. (SAFATLE, 2008,p. 126, grifos do autor)

Para Safatle (2008) essa “ética do direito ao gozo” é uma necessidade de


sobrevivência da sociedade do capitalismo de consumo, que passa a sustentar-se desta
busca de gozo pelo sujeito através do consumo de mercadorias.

É preciso que o sujeito acredite constantemente que deseja mercadorias do universo


do consumo, ou seja, é preciso que o sujeito busque o gozo no consumo
indeterminadamente para que a lógica do capital contemporâneo funcione. Na hipótese de
Safatle, o sujeito perde o desejo de julgamento e sai em busca de objetos que o levem ao
gozo. Valendo-se de uma contradição apontada por Daniel Bell5, Safatle (2008) escreve
que:

Essa contradição de imperativos marca a tensão que encontramos na passagem de


uma sociedade da produção para a sociedade de consumo. Tensão que o próprio
Bell conhece muito bem ao lembrar que “o maior instrumento de destruição da ética
protestante foi a invenção do crédito. Antes, para comprar era preciso primeiro
economizar. Mas com um cartão de Crédito, nós podemos satisfazer imediatamente
nossos desejos.” (p. 127).

A satisfação imediata permitida pelo cartão de crédito passa a ser a nova lógica do
sujeito. Após a aquisição de uma mercadoria, logo em seguida outro imperativo de
consumo é suscitado. Com isso os objetos começam a se tornar descartáveis pela má

5
Apud Safatle (2008, p. 127): “O novo capitalismo (o uso dessa palavra data dos anos 1920) continua
exigindo as regras da moral protestante no domínio da produção, ou seja, no domínio do trabalho, mas
estimula ao mesmo tempo o direito ao prazer e ao entretenimento”.

20
qualidade ou obsoletos pelo fato de que todos os dias há novos produtos com novas
tecnologias tornando os produtos adquiridos sempre ultrapassados. Quanto a isso, Safatle
(2008) afirma que:

(...) o que o discurso do capitalismo precisa é da procura do gozo que impulsiona a


plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do
consumo. Ele precisa da regulação do gozo no interior de um universo mercantil
estruturado. Para sermos mais precisos, ele precisa da instauração daquilo que
Jaques Lacan chama de um “mercado do gozo”, gozo disponibilizado através da
infinitude plástica da forma mercadoria. (p. 126, grifos do autor)

Sobre essa busca frenética de gozo engendrada pela lógica do capital, Safatle (2008)
nos dirá que se trata de “uma sociedade na qual os vínculos com os objetos são frágeis, mas
que é capaz de alimentar-se desta fragilidade” (p. 134). Estaria aí a centralidade da
transformação da sociedade como conseqüência do estimulo do direito ao prazer, ou seja, a
busca do gozo está no consumo, consumir é trocar de objetos tornando frágeis os vínculos
com eles. É porque os vínculos com os objetos-mercadorias são frágeis que eles se tornam
descartáveis ou obsoletos movimentando a máquina do consumo na lógica do capital.

Essa fragilidade faz com que o sujeito busque adquirir um novo produto e, assim
que o obtém, volta a lidar com a incompletude, num movimento repetitivo e contínuo,
colocando em funcionamento o mais-de-gozar6, incessantemente pela busca de
objetos/mercadorias. As conseqüências dessas transformações, de acordo com Safatle
(2008), é que em última instância “isso nos faz passar de uma sociedade da satisfação
administrada para a sociedade da insatisfação administrada” (p. 133), uma vez que o
imperativo social da lógica do capital passa a “não repressão das moções pulsionais”, em
substituição ao antigo imperativo de “repressão das moções pulsionais”, típico do
capitalismo de produção.

6
Este e outros conceitos da Psicanálise lacaniana que aparecerem neste capítulo serão trabalhados no capítulo
II.

21
Uma transformação que tornou possível a nova organização do capitalismo,
transformação que, segundo Žižek (2005), dificulta a apreensão da presença das
contradições na nova lógica do capital ou as tornam aceitáveis, a partir dos conteúdos
particulares incorporados sem nenhum problema. Nas palavras do autor “cada
universalidade hegemônica tem de incorporar pelo menos dois conteúdos particulares – o
conteúdo popular autêntico e sua distorção pelas relações de dominação e exploração”
(ŽIŽEK, 2005, p. 12, grifos do autor).

A título de exemplo, retomemos Aidar (2007), que nos mostra que a mídia semanal
indica que o corpo perfeito é o corpo magro. Portanto, para gozar é preciso seguir certas
normas, “seja magro” é uma delas. Mas, como ser magro se devo me satisfazer de todas as
maneiras, inclusive me autorizando à gula? Sem esquecer o fato de que as propagandas
alimentícias são incorporadas nas mesmas revistas que pregam que o corpo perfeito é o
corpo magro e que são extremamente sedutoras. Assim, não nos é permitido um gozo livre,
mas um gozo administrado.

Safatle (2008) entende esse tipo de contradição como “posicionamento bipolar por
ser assentado em valores contrários” (p. 136), permitindo que o consumidor funcione bem
diante desta contradição porque “os próprios consumidores são incitados a não se
identificarem mais com situações estáticas” (p. 136). Como podemos perceber, estas
estratégias têm sido eficientes em termos de manutenção do capitalismo de consumo, ao
pregar a possibilidade de que, pelo consumo, o sujeito possa dar conta de suas angústias.
Sobre a questão da busca de gozo Safatle (2008) nos dirá que:

A princípio, nada melhor que uma instância psíquica capaz de impulsionar


exigências de gratificação do gozo e que marcaria todos os discursos repressivos
com o selo da obsolescência. Ela seria a realização perfeita dessa modalidade
libidinal necessária à multiplicidade plástica da sociedade de consumo. No entanto
“tal ordem [goze] é impossível de ser satisfeita” e devemos nos perguntar de onde
vem essa impossibilidade estrutural. (p. 131, grifos do autor)

22
Safatle (2008) nos explica que “Lacan sempre insistiu que a lei do supereu era uma
“lei insensata” que funciona como um significante desprovido de significado. Tal caráter
insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem nenhum conteúdo normativo,
ele nada diz sobre como gozar ou qual é o objeto adequado ao gozo” (p. 131, grifos do
autor). Daí podemos concluir que os objetos oferecidos pelo mercado de consumo nunca
apresentarão o objeto adequado ao gozo, ou seja, mesmo obedecendo à lei do “goze”,
buscando-o no consumo, o sujeito jamais alcançará este gozo, pois os objetos oferecidos
pela lógica do capital serão sempre inadequados. Ancorados na psicanálise lacaniana,
entendemos que os objetos/mercadorias oferecidos pela lógica do capitalismo de consumo
são estratégias de manutenção desta lógica, nunca dando conta do gozo do sujeito como
promete.

Localizamos neste capítulo a passagem do capitalismo de produção para o


capitalismo de consumo. Mostramos o funcionamento do sujeito na lógica do capitalismo
de consumo e apontamos as contradições desta lógica (do excesso de consumo) e suas
impossibilidades. A partir de agora este trabalho tratará de fazer a crítica à lógica do
capitalismo de consumo do ponto de vista da psicanálise lacaniana. Abordaremos, portanto,
no capítulo que segue a localização o sujeito da psicanálise lacaniana e explicaremos os
conceitos que permeiam a estrutura deste sujeito para que possamos embasar nossa crítica.
Vamos a isso.

23
CAPÍTULO II - A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E SUA ALIENAÇÃO AO
OUTRO NO LAÇO SOCIAL

Žižek, em sua crítica à lógica do capitalismo, apresenta o sujeito do inconsciente da


psicanálise como sendo capaz de gerar Atos políticos apropriados para promover uma
transformação social. Vejamos então a constituição do sujeito da psicanálise e os principais
conceitos que permeiam sua estrutura.

a - A Constituição do Sujeito na Psicanálise Lacaniana

O sujeito do qual a psicanálise trata é o sujeito do inconsciente, que se constitui a


partir de duas operações de causação: alienação e separação. Estas duas operações são
efeitos da linguagem sobre os quais o sujeito, que ao constituir-se por eles, dá origem à sua
singularidade.

É no seminário XI que Lacan (1964/1998) formalizará alienação e separação. A


partir do axioma “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Lacan deduz uma
topologia para dar conta da constituição do sujeito. Sobre este axioma Lacan (1964/1998)
nos dirá que “O inconsciente, são efeitos da fala sobre o sujeito, é a dimensão em que o
sujeito se determina no desenvolvimento dos efeitos da fala, em conseqüência do que, o
inconsciente é estruturado como uma linguagem” (p. 142). O fato de o inconsciente ser
estruturado como uma linguagem, quer dizer que ele (o inconsciente) é causado por ela
(linguagem), ou seja, há uma singularidade do sujeito que o determina a revelia de sua
consciência em função de sua alienação como efeito da linguagem.

A entrada na linguagem veda o acesso ao Real, estruturando o sujeito em uma


constituição alienante. O sujeito, então, ancorado pela linguagem, ao agregar o que capta do
mundo, se constrói determinado pelas leis do inconsciente.
Para melhor compreensão desta passagem, começaremos tratando da formalização
lacaniana da operação de alienação, que é tida como forma única de inserção do sujeito na
cultura pela entrada na linguagem, pois é pela via da alienação que o sujeito existe, não há
sujeito fora dela.

O processo de alienação corresponde ao encontro do sujeito com a linguagem, que


já estava instalada nele antes de seu nascimento, nos planos que os pais traçaram para ele.
Estes planos são determinados por aqueles que virão a ser os primeiros Outros (os pais) no
início da vida da criança, aqueles para quem o sujeito apela e que lhes fornecerão os
significantes necessários para que ele possa servir-se da linguagem.

O Outro, a quem este apelo é dirigido, é aquele que pensamos que deseja algo de
nós, quando na verdade somos nós mesmos que desejamos e não podemos lidar com a
responsabilidade de desejar tais coisas. Em seu texto “A psicanálise e seu ensino”, Lacan
(1957/1998) ilustra essa forma de funcionar nas seguintes palavras: “O inconsciente é esse
desejo do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à promessa, sua
própria mensagem esquecida” (p. 440). Outro ponto importante a ser marcado sobre o
Outro é que ele é um discurso com o qual o sujeito tem que lidar para ajustar seu desejo à
lei, um anseio inconsciente. Assim, o inconsciente é discurso do Outro, portanto, como
disse Lacan (1962/2005) “o desejo do homem é o desejo do Outro” (p. 31). O Outro é
também o tesouro dos significantes, ou seja, é a partir do Outro que a cadeia de
significantes é instituída. O significante, por representar o sujeito para outro significante,
instaura o objeto a, o qual está para sempre perdido, pois a cadeia de significantes é
infinita. Daly (2006) nos dirá que:

O objeto pequeno a de Lacan refere-se a um certo excesso que é, no objeto, mais do


que o objeto – o objeto-causa do desejo. Diríamos que ele menos é o objeto do que
o elemento desejável que pode residir em qualquer objeto: o impulso para um ponto
de consumação elusivo, que pode ser perfeitamente incidental no objeto em si (por
exemplo, uma camisa que um dia foi usada por Elvis Presley). É isto que
“autentica” o objeto e/ou a experiência de tê-lo (como a idéia de virgindade em
Esse obscuro objeto do desejo, de Buñuel). Se considerarmos Pulp fiction, de
Tarantino, veremos que a narrativa gira, em última instância, em torno de um objeto
perdido/roubado dentro de uma caixa que precisa ser recuperado por Vincent e

25
Jules. Este objeto não pode ser visto, e há apenas uma alusão a ele no brilho
reflexivo dos rostos dos protagonistas. É esse o objeto pequeno a: algo cuja
autenticidade não pode ser representada nem materializada, e que é apenas um
reflexo da pulsão de completar o circuito (quebrado) do gozo e conciliar-se com o
próprio desejo. (ŽIŽEK, DALY, p. 10, grifos do autor)

O objeto a, para a psicanálise lacaniana, representa uma operação constante de falta


que causa desejo, ou seja, não há como desejar se não houver falta, pois o que haveríamos
de desejar se nada faltasse? Esse desejo se apresenta na busca de um objeto da realidade,
mas quando se encontra este objeto da realidade, já não é mais ele. É assim que a lógica do
capitalismo coloca em funcionamento o mais-de-gozar pelo consumo, prometendo que o
próximo objeto da realidade será o objeto que trará o gozo pleno, mas o que o sujeito
encontra é seu desejo sempre mais dividido, mostrando que o objeto a é inatingível, pois
insiste apenas como operação de falta, simbolizando algo perdido. E justamente por não
poder ser encontrado, movimenta infinitamente o desejo do neurótico, sempre na busca da
completude de gozo, tido como impossível pela psicanálise, de modo que, o objeto a é o
nome desta impossibilidade. O sujeito, ao se tornar linguageiro, renuncia ao gozo pleno
estabelecendo o objeto que coloca em funcionamento o mais-de-gozar. Lacan (1968/1969)
nos diz que:

O mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso


que dá lugar ao objeto a. desde o momento em que o mercado define como
mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo
da mais-valia. Assim, o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do
objeto a. (P. 19)

Vemos aí que o mais-de-gozar é algo ineliminável por isolar a função do objeto a. Ou


seja, a função do mais-de-gozar faz parte do sujeito da linguagem, e põe em funcionamento
a busca do sujeito pelo gozo pleno, impossível aos usuários da linguagem.

A lógica do capital se apropria do mais-de-gozar ao apresentar os objetos da


realidade para serem consumidos, prometendo o gozo pleno buscado pelo sujeito, um gozo

26
do Real. O problema nesta lógica está em que o gozo do Real, lei insensata do supereu,
não pede objetos da realidade apontados pela lógica do consumo. O objeto do desejo
oferecido pelo mercado de consumo, não é o objeto a, pois este é indecifrável, é sempre
desejo de outra coisa. Safatle (2008), nos dirá que:

Tal caráter insensato indica, entre outras coisas, que o supereu não tem nenhum
conteúdo normativo, ele nada diz sobre como gozar ou qual é o objeto adequado ao
gozo. Diz apenas um “goze!” sem predicações, um puro “não seda de seu desejo”.
O caráter insensato desse puro gozo fica evidente se pensarmos que toda escolha
empírica de objeto é inadequada a um gozo que procura afirmar-se em sua pureza
de determinações, em independência em relação a toda e qualquer fixação
privilegiada de objetos. Ele só pode realizar-se no “infinito ruim” do consumo e da
destruição incessante dos objetos que nada mais faz do que atualizar um excedente
de gozo. (p. 131-132)

O desejo causado pelo objeto a, então, não é o desejo de objetos nomeáveis pela
linguagem. O desejo causado pelo objeto a ao ser instaurado no sujeito em decorrência de
seu acesso à linguagem, nunca será um objeto da realidade. O objeto a se torna
indeterminado por causa da materialidade do significante que faz com que o sujeito ignore
suas necessidades biológicas dando prioridade total à demanda, passando por um apelo ao
Outro, tesouro dos significantes. Dito de outra maneira, é o significante que determina o
desejo do sujeito, sempre como desejo de outra coisa. Lacan (1960a/1998) coloca o desejo
como o que “se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade” (p. 828).

Para entendermos como a demanda se rasga da necessidade, podemos pensar no


seguinte exemplo: quando uma pessoa faz greve de fome, é exatamente isso que acontece.
Ao abrir mão da necessidade orgânica de alimento, é a demanda quem manda, a
necessidade se anula. O desejo causado pelo objeto a, representado pela greve de fome,
anula a necessidade de se alimentar e embora o sujeito sinta fome e saiba de suas
necessidades orgânicas, ele não comerá, pois, determinado por seu significante, torna-se
mais importante não comer do que matar a fome. Há um significante determinando sua
atitude de não comer. E é claro, somente os seres usuários da linguagem é que fazem greve
de fome. Soler (2002) vai nos dizer que a partir do significante surgido do simbólico “O
27
corpo não é mais o organismo animal, é um organismo, não somente domado, mas também
transformado. Se alguém pode chamar a voz do corpo, recorrer à voz do corpo, não pode
esquecer que o corpo toma a voz da linguagem a quem recorre a voz do corpo” (p. 14).

E é por recorrer à voz do corpo tomado pela linguagem que o sujeito pode sustentar
uma greve de fome1 e anular as necessidades orgânicas, priorizando a demanda e
caracterizando o desejo. Da mesma maneira, outras necessidades podem ser anuladas a
partir de uma demanda. É claro que o sujeito vai pagar o preço que o desejo lhe impõe. No
caso da greve de fome, o preço é passar fome ou até morrer de fome. É esta a lógica do
desejo que condena o sujeito a só poder aparecer numa divisão. Esse poder de superar as
necessidades biológicas é um exemplo do que Lacan chama de materialidade do
significante.

No momento em que o sujeito é atravessado pela linguagem, há a presença de um


ato que determina sua estrutura, estabelecendo um resto de gozo para sempre perdido, mas
incessantemente buscado pelo sujeito. Este resto de gozo para sempre perdido faz nascer o
corpo simbólico, que é o corpo de que a psicanálise trata. O corpo passa a ser simbólico por
ser atravessado pelos significantes da linguagem e o gozo fica encarregado da distribuição
do prazer no corpo, sempre em falta. Desta maneira nasce o corpo simbólico que resiste
sobre o corpo orgânico através da cadeia de significantes que ocorre simultaneamente a
entrada do Outro na vida do sujeito, o corpo orgânico, passa a ser determinado pelos
significantes deste Outro e não mais por suas necessidades biológicas.

Vejamos agora a topologia deduzida por Lacan para dar conta da constituição do
sujeito, ou seja, deste corpo simbólico. Para caracterizar a alienação estrutural pela
linguagem, Lacan recorre ao vel da reunião. Lembramos que já há uso para dois tipos de

1
Não queremos com este exemplo afirmar que a greve de fome seja um fenômeno que só se aplique aos
sujeitos neuróticos. Sabemos que os psicóticos, por exemplo, também podem se negar a comer afetados por
um delírio de que querem envenená-lo, mas neste caso seria um exemplo do que está fora do laço social.

28
vel, o vel união e o vel da exclusão2. Daí ele vai desenvolver o terceiro vel, o vel da
reunião, da escolha forçada. Lacan (1964/1998) se utiliza da lógica da teoria dos conjuntos3
para explicar o vel da alienação a partir da lógica da reunião:

O vel da alienação se define por uma escolha cujas propriedades dependem do


seguinte: que há, na reunião, um elemento que comporta que, qualquer que seja a
escolha que se opere, há por conseqüência um nenhum nem outro. A escolha aí é
apenas a de saber se a gente pretende guardar uma das partes, a outra
desaparecendo em cada caso. (p. 200, grifos do autor)

A partir do exemplo de um assaltante que aponta uma arma para uma pessoa e diz:
“a bolsa ou a vida”, Lacan coloca que o sujeito vai perder de qualquer maneira, pois se
escolher a bolsa perde a vida e conseqüentemente perde também a bolsa. E se escolher a
vida, fica sem a bolsa, perdendo assim a liberdade, mas guardando uma das partes, a vida.

Para melhor entendermos o desenvolvimento deste vel, vejamos recorte de Soler


(1997):
Bolsa Vida Vel da “escolha forçada”

V V F

V F F

F V V (Nossa única escolha)

F F V

2
Aqui não nos aprofundaremos na questão do uso destes dois tipos de vel, pois eles não estão em jogo para os
nossos propósitos. Se houver interesse de saber mais sobre eles, ver Soler (1997, p.58 a 67), presente nas
referências bibliográficas deste trabalho.

3
Teoria dos conjuntos é a teoria matemática que trata das propriedades dos conjuntos. Ela tem sua origem nos
trabalhos do matemático russo Georg Cantor (1845–1918), e se baseia na ideia de definir conjunto como
uma noção primitiva. Também chamada de teoria ingênua ou intuitiva devido à descoberta de várias
antinomias (ou paradoxos) relacionadas à definição de conjunto. Estas antinomias na teoria dos conjuntos
conduziram a matemática a axiomatizar as teorias matemáticas, com influências profundas sobre a lógica e
os fundamentos da matemática. (http://wikipedia.org/wiki/teoria_dos_conjuntos)

29
Quando se é confrontado com alguém que diz “a bolsa ou a vida”, não se pode
escolher a bolsa, pois se escolhermos a bolsa, a vida se torna falsa: perde-se a vida.
Não se pode ter ao mesmo tempo a bolsa e a vida. E a bolsa sem a vida também é
falso. Assim, quando alguém nos diz “a bolsa ou a vida”, só temos uma única
escolha real: obviamente escolheremos a vida. Neste caso a bolsa é perdida e o vel é
verdadeiro. Existe apenas uma outra possibilidade, a última do quadro: tem-se a
possibilidade de perder as duas. Mas a principal possibilidade para nós é a escolha
da vida; logo perde-se a bolsa, e neste caso a vida é apenas uma meia vida, uma
vida em que algo (o dinheiro) está faltando. (SOLER, 1997. p. 60)

É por não poder conservar as duas, a bolsa e a vida, que o ser do sujeito se instala
subordinado pelo Outro, ou seja, algo dele se aliena ao Outro. Nesta operação o sujeito
perde o direito ao gozo pleno, por se instalar no mundo, a ao Outro pela linguagem.

Lacan exemplificará a alienação do sujeito pela linguagem analisando a dialética do


senhor e do escravo em Hegel. Em sua análise, ele conclui que tanto para o senhor quanto
para o escravo a liberdade é limitada. Sobre a liberdade do escravo, Lacan (1964/1998) vai
nos dizer:

Eu lhes falei da última vez, da forma da alienação, que ilustrei com vários exemplos
e que lhes disse poder articular-se num vel de natureza muito especial. Poderíamos
hoje tentar articulá-lo de alguns modos. Por exemplo – não há algo... sem outra
coisa – A dialética do escravo é evidentemente não há liberdade sem a vida, mas
não haverá para ele vida com a liberdade. De uma a outra há uma condição
necessária. Essa condição necessária se torna precisamente a razão suficiente que
causa a perda da exigência original. (p. 205/206, grifos do autor)

Para ter a liberdade de conservar a vida, o escravo paga com o trabalho,


comprometendo sua liberdade. Na atualidade, para ilustrar a alienação estrutural do
escravo, levando em conta a lógica do capitalismo, podemos exemplificá-la da seguinte
maneira: o trabalhador, no lugar de escravo na dialética de Hegel, tem a liberdade de
vender sua força de trabalho, mas ao vendê-la, ele perde sua liberdade durante o tempo em
que trabalha ao fazer coisas que não concorda, por exemplo. Mesmo assim, trabalha para
garantir sua sobrevivência por meio do ganho que terá trabalhando. O que fica evidenciado

30
aí é que toda a liberdade o sujeito não tem. Neste caso, o trabalhador fica equiparado ao
escravo na dialética de Hegel. Ao garantir seu sustento pelo trabalho, sua liberdade fica
comprometida, evidenciando sua alienação estrutural ao Outro.

Em seguida Lacan (1964/1998) coloca que as coisas não são diferentes para o
senhor, pois sua alienação fundamental aparece pelo fato de sua escolha passar pela morte.
Vejamos:

E, a olhar as coisas com um olhar que vá mais longe, vocês verão que é exatamente
do mesmo modo que se estrutura a alienação do senhor. Pois se Hegel nos indica
que o estatuto do senhor se instaura pela luta de morte de puro prestígio, é mesmo
porque é por fazer passar sua escolha pela morte que o senhor, também ele,
constitui sua alienação fundamental. Seguramente pode-se dizer que a morte não é,
mais do que ao escravo, poupada ao senhor, que ele sempre a terá no fim, que é aí
que está o limite de sua liberdade. Não é dizer pouco demais, pois a morte aí não é
morte constitutiva da escolha alienante do senhor, a morte da luta de morte de puro
prestígio. A revelação da essência do senhor se manifesta num momento de terror,
quando é a ele que se diz a liberdade ou a morte e quando ele só tem evidentemente
a morte a escolher para ter a liberdade. (p. 208)

Neste caso, o senhor só tem a morte a escolher, pois para ele é insuportável viver
sem o prestígio. Ele está alienado, ele só tem, então, a liberdade de escolher a morte.
Entendemos com isso que senhor e escravo estão submetidos à alienação fundamental.
Ainda na atualidade capitalista, para ilustrar a alienação estrutural do senhor, podemos citar
o seguinte exemplo: o capitalista, no lugar de senhor na dialética de Hegel, apesar de
alcançar a mais-valia dentro da estrutura capitalista, ao gozo pleno ele também não tem
acesso. Sua luta de morte pode ser representada pelo stress por exemplo. Afinal, muitos
empresários capitalistas sofrem desse mal e preferem morrer dele a se tratar, pois se tratar
significa diminuir sua carga de trabalho e/ou se desligarem das preocupações, e suas
preocupações geralmente são referentes a manter seu status e aumentar cada vez mais seu
poder. E disso não abrem mão e isso estabelece sua luta de morte. É claro que este é apenas
um dos exemplos.

31
Assim, o sujeito se constitui alienado à linguagem pelo significante do Outro. A
partir da alienação à linguagem há um limite de liberdade para todo ser falante, senhor ou
escravo, capitalista ou trabalhador, pois para manter a vida algo dele se aliena. Portanto, ao
capitalista é possível ter acesso à mais-valia extorquida na exploração do trabalho, porém
ao mais-de-gozar ele também não tem acesso, há como estabelecer essa extorsão (mais-de-
gozar) devido a sua alienação à linguagem.

É a partir da alienação que entra em jogo a segunda operação de causação do


sujeito, a separação, mostrando que há uma margem de liberdade, ou seja, o ser falante não
está totalmente submetido à alienação. A separação é a forma de aparecimento do desejo
do sujeito. A separação determina uma margem de liberdade a partir da alienação na
linguagem, situando o sujeito em relação à lei, instituindo o desejo recalcado, inconsciente,
dando origem ao objeto a.

Lacan coloca a separação como uma operação tão importante quanto a operação da
alienação, pois é a partir dela que o sujeito é conduzido a uma dialética e encontra uma
falta no Outro, uma margem de liberdade instituída simultaneamente à alienação à
linguagem, ou seja, aparece o desejo que determina que as situações não precisam ser
estáticas.

Tratando o termo freudiano Vorstellungsreprasentans, que é traduzido por


representante da representação por Lacan, ele o localizará em seu esquema como o
movimentador de significantes do neurótico. Mas o que seria o representante da
representação? Lacan (1964/1998) nos diz que:

Podemos localizá-lo em nosso esquema dos mecanismos originais da alienação,


esse Vorstellungsreprasentans, nesse primeiro acasalamento significante que nos
permite conceber que o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro
significante, o significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa
o sujeito para outro significante, o qual o outro significante tem por efeito a afânise
do sujeito, donde, divisão do sujeito – quando o sujeito aparece em algum lugar
como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading, como desaparecimento.
Há então, se assim podemos dizer, questão de vida e de morte entre o significante
unário e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu desaparecimento. O
Vorstellungsreprasentans é o significante binário. (p. 207)
32
É aí que Lacan localiza o Vorstellungsreprasentans como algo que questiona o
significante unário (significante da alienação) surgido do campo do Outro, impondo um
segundo significante, depois um terceiro, um quarto, e assim indefinidamente, dando
origem à cadeia de significantes, sustentando a operação do objeto a instituído para sempre
na constituição do sujeito e, conseqüentemente, na do seu desejo, sustentando sua divisão.
Este é o sujeito neurótico por estrutura. Sobre essa segunda operação, diz Lacan
(1964/1998):

Aquilo pelo que o sujeito encontra a via de retorno do vel da alienação é essa
operação que chamei, outro dia, separação. Pela separação o sujeito acha, se
podemos dizer, o ponto fraco do casal primitivo, da articulação significante, no que
ele é de essência alienante. É no intervalo entre os significantes que vige o desejo
oferecido como balizamento do sujeito, na experiência do Outro, do primeiro Outro
com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso. (p. 207)

O termo Vorstellungsreprasentans, aí, é o próprio desejo, se intrometendo a todo o


momento no ponto fraco da cola entre os significantes, dando origem à cadeia de
significantes e também à forma de o sujeito se colocar no mundo como desejante,
evidenciando a separação.

Esta via de retorno da alienação, marcada pelo significante, dá origem às formações


inconscientes, dentre elas o sintoma. Questionar o Outro pode ser uma opção do sujeito do
inconsciente, com a condição de que se opere nele a separação, tornando-o neurótico4.

4
Apesar da separação, uma outra estrutura pode ocorrer quando o sujeito se recusa à castração simbólica. Ele
cria um fetiche para lidar com o horror da castração colocando-o como alternativa a ela, assim, através do
fetiche ele desafia a lei e a transgride, traços fundamentais da estrutura perversa. Já no caso da psicose, por
algum motivo a criança não lê nos significantes apresentados pelo Outro (mãe) a possibilidade de produzir
uma cadeia de significantes. Ela não se sente causada pelo desejo da mãe. De alguma maneira o desejo dela
(mãe) fica revelado para a criança como desejo de gozar dela (criança) como um objeto. Daí essa criança
não consegue estabelecer uma cadeia de significantes, e por isso não se estabelece a operação da separação
e ela torna-se psicótica.

33
Assim, nem liberdade total, nem alienação total. Porque, em forma de desejo, o
significante se intromete tomando o sujeito, à sua revelia, nos sintomas e nas outras
formações inconscientes, levando-o a questionar suas aparições. Aquilo que ao sujeito se
apresenta como significante, e que o sujeito usa para “jogar sua partida”, deve ser tomado
no nível do Real, por trazer a todo o momento algo do inconsciente que questiona o Outro.

É a partir da instauração do corpo simbólico, já estabelecido na alienação pela


entrada na linguagem, que simultaneamente se estabelece um resto, o objeto a, causa de
desejo como efeito da separação, permitindo ao neurótico o estabelecimento dos laços
sociais.

b - O Sujeito da Psicanálise e o Sujeito da Ciência.

A ciência, desde a idade moderna, com Descartes, busca um saber absoluto que dê
conta dos conflitos do sujeito e dos conflitos sociais. Em seu texto Ciência e Verdade,
Lacan (1966/1998) nos esclarece que o nascimento do sujeito do inconsciente da
psicanálise só pôde advir a partir do sujeito da ciência de Descartes, o do cogito, “penso,
logo existo”. Lacan (1966/1998) nos diz:

Que é impensável, por exemplo, que a psicanálise como prática, que o inconsciente,
o de Freud, como descoberta, houvesse tido lugar antes do nascimento da ciência,
no século que se chamou século do talento, o XVII (...) ao contrário do que se
inventa sobre um pretenso rompimento de Freud com o cientificismo de sua época,
foi este mesmo cientificismo que conduziu Freud, como nos demonstram seus
escritos, a abrir a via que para sempre levará seu nome [a do inconsciente]. (p. 871)

Mas o sujeito da psicanálise se separa do sujeito da ciência; o sujeito da psicanálise,


ao apresentar os sintomas, mostra que algo no saber científico falha. Vejamos então em que

34
ponto eles se separam. Para a psicanálise, esse ponto de separação está em que o sujeito da
ciência de Descartes é tido como capaz de dar conta de si mesmo, é um sujeito que a partir
de seu pensamento pode administrar e dar o destino adequado aos seus sofrimentos, e assim
podendo chegar a uma estabilização de sujeito acabado – aqui equiparado ao que o
capitalismo busca no sujeito através do consumo. Por outro lado, o sujeito do inconsciente
da psicanálise de Freud é um sujeito dividido – dividido por seu sintoma que faz resistência
aos apelos dos saberes totais da ciência. É nessa divisão que Freud descobre o sujeito do
inconsciente.

Quinet (2003) ilustra a descoberta desta divisão a partir do sujeito da ciência, em


Freud com Lacan, da seguinte maneira:

Para Descartes o sujeito está no pensamento “lá onde penso eu sou”; para Lacan,
relendo Freud, o sujeito está no pensamento enquanto ausente, como pensamento
barrado. Lá onde penso eu não estou, não sou. O sujeito como efeito da articulação
significante é o sujeito do pensamento inconsciente, que Lacan identifica com o
sujeito como o descreve Descartes. É o ponto em que Freud e Descartes convergem.
Em Descartes, a certeza do sujeito é apreendida através da dúvida e, para Freud,
como vimos, a dúvida que aponta o lugar de um branco, que surge no pensamento,
nos fornece a certeza de que aí se encontra o inconsciente como pensamento
ausente (da consciência). Descartes parte do pensamento e chega na existência,
Freud parte do pensamento inconsciente e chega no desejo. (p. 13)

Nestas palavras, Quinet demonstra a precisão do nascimento do sujeito da


psicanálise freudiana a partir do sujeito da ciência de Descartes. Ou seja, na falha do sujeito
do cogito, da certeza cartesiana, nasce a incerteza sobre a razão humana, do pensamento
freudiano.

Essa falha demonstra que o saber total buscado pela ciência é impossível. É a partir
do sujeito do inconsciente de Freud, que representa um “para além” do sujeito do cogito de
Descartes, que Lacan aponta a impossibilidade de dizer de forma total o verdadeiro sobre o
verdadeiro na linguagem, como quer a ciência.

35
Para Lacan (1966/1998) a psicanálise responde do único lugar da verdade, porque a
verdade para a psicanálise é a verdade do inconsciente. É pela via do simbólico que aparece
a falha do saber total buscado pela ciência, mostrando através dos sintomas que a
linguagem não dá conta de dizer tudo sobre o inconsciente, ou seja, que não podemos, pela
linguagem, construir um saber total. E é mesmo porque a verdade só pode ser dita
parcialmente, que o saber absoluto, que a ciência busca, é impossível. A linguagem não
oferece recursos para a construção deste saber total, prometido pela ciência. A verdade do
inconsciente, ao ser sustentada, revela a parcialidade do saber da ciência.

Lacan afirma que é preciso conhecer outros saberes que não o da ciência para tratar
da pulsão decorrente do recalque. É preciso renunciar à noção de que a cada verdade
corresponde seu saber. Para este ponto de ruptura, o sujeito da psicanálise depende do
sujeito da ciência e é neste ponto de ruptura que a verdade age sobre o saber, causando
desejo, e por causar desejo coloca em cheque o saber absoluto do Outro (ciência).

Daí a crítica da psicanálise sobre a crença no livre e autônomo sujeito da ciência,


capaz de escapar inteiramente das angústias da vida a partir de um saber absoluto, como
que desconhecendo que o acesso à verdade é apenas parcial. Mas é nesta visão de sujeito
que a lógica do capital funciona, oferecendo o consumo como verdade absoluta e capaz de
sanar as angústias do sujeito.

A partir dessa verdade, que só pode ser tocada parcialmente, a psicanálise, de dentro
da ciência, faz a distinção entre o saber e a verdade. Se para a ciência o saber é absoluto,
para a psicanálise a verdade deve ser sustentada no sentido de não a abandonarmos como
causa do sintoma. A psicanálise explica que o sintoma mostra que algo não vai bem, e se
algo não vai bem é porque há falha no saber apresentado como total.

O sintoma, tido como resistência do sujeito, ao se manifestar, coloca todo saber em


cheque, movimento que faz circular indefinidamente o desejo inconsciente do sujeito. É
com esse desejo inconsciente, que apresenta a verdade como causa deste sujeito veiculado
pelo significante em sua relação com outro significante, que a ciência não se implica.
Pensemos essa estrutura no capitalismo: se de um lado o neurótico, alienado ao saber da
lógica do capital, nada quer saber da sua verdade inconsciente, de outro a eficácia do
36
sujeito do inconsciente aponta a todo o momento para o ponto da verdade, nos sintomas e
nas outras formações inconscientes, isto é, os objetos oferecidos pelo mercado de consumo
não conseguem apagar a angústia do sujeito.

Soler (1997) afirma que o que está em jogo para o sujeito do inconsciente em sua
ligação com o Outro “é responder sobre a questão de seu ser” (p. 68). E para responder a
essa questão o saber consciente tem uma tendência a querer se assujeitar, a tudo querer
saber sobre como foracluir o objeto a. Mas algo do sujeito não se assujeita, seu desejo
causado pela verdade inconsciente atualizado nos sintomas, denuncia, a todo momento, a
parcialidade do saber científico. Lacan (1964/1998) nos dirá que “Pelo efeito da fala o
sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí, já não persegue mais que uma metade de si
mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável
metonímia da fala.” (p. 178). É esse “desejo sempre dividido”, pelos sintomas e outras
formações inconscientes, que não permite, mesmo que o sujeito queira, que ele se assujeite,
pois o desejo sempre o interpela.

Baseada nos sintomas (e outras formações inconscientes) como uma verdade


inconsciente, que promove a veiculação do desejo do sujeito, a psicanálise faz sua exclusão
interna do sujeito ao campo da ciência. Isto é, ela não joga fora o saber científico, mas
aponta que há um resto, algo fora do campo da ciência, e é com isso que está fora do campo
da ciência que a psicanálise trabalha, e com o que a ciência não se implica.

A totalização do saber prometido pela ciência não é possível porque é a verdade


inconsciente que estabelece a maneira de o sujeito se colocar no mundo. Esta verdade
inconsciente é inseparável do sujeito, caminha junto e simultaneamente com o seu lado
consciente.

37
A melhor imagem para representar essa simultaneidade entre o consciente e o
inconsciente, entre o desejo de saber e a ação da verdade no sujeito, é a Banda de Moebius5,
mostrando que o sujeito habita os dois lados ao mesmo tempo: o lado do saber consciente
que quer ser totalizado e o lado da verdade inconsciente que interpela este saber todo o
tempo a partir dos sintomas.

Ao mesmo tempo em que o sujeito do inconsciente da psicanálise se aliena ao saber


da ciência, se separa dele nos sintomas, mostrando que nem tudo pode ser dito por meio da
linguagem, apontando para o objeto a.

Para investigar a questão do desejo inconsciente, Lacan foi atraído não só pela
ciência, mas também pela magia e pela religião, distinguindo-as umas das outras. Ao
apresentá-las, Lacan opõe a psicanálise as três, afirmando que elas não tratam da
singularidade do sujeito.

Lacan argumenta que na magia, a verdade como causa está recalcada, dissimulada,
velada, o que na magia importa é sua eficiência.

Sobre a religião, levando em conta o cristianismo católico, Lacan coloca que ela se
caracteriza pela instalação de uma verdade como causa e que em conseqüência o sujeito
entrega sua carga a Deus, submetendo-se à demanda dele, apresentando uma causa final, ou
seja, o céu depois da morte, no caso. Quando o sujeito não dá conta de responder a essa
demanda, ou seja, a essa verdade divina, a conseqüência é a instalação da culpa.

Para criticar a psicologia, enquanto ciência, e apontar seu fracasso do ponto de vista
da psicanálise, Lacan (1964/1998) explica que ela (psicologia) trabalha apenas com a
significação, como se a construção do sujeito pudesse se dar a partir de sua visão de
mundo, sem as conseqüências do significante. Mas se o sujeito, justamente por estar
alienado à cultura – a um discurso histórico automaticamente alienante – já tem sua visão

5
Não pretendemos nos aprofundar nos trabalhos realizados por Lacan sobre a Banda de Moebius. Se houver
interesse em um melhor entendimento sobre o assunto, pode-se assistir ao filme “Revirão: a topologia da
Banda de Moebius” apresentado por Magno Machado Dias, disponível na internet pelo site
http://www.youtube.com/watch?v=ewa-WUK1z8s.

38
de mundo marcada por ela (cultura), então, segundo Lacan, a falha da psicologia está na
busca de atender às demandas do sujeito, desconsiderando o Real recalcado pela entrada na
linguagem, presente nos sintomas e nas outras formações inconscientes. Em suma, a falha
da psicologia está em desconsiderar a divisão do sujeito e o que tal divisão implica.

Lacan opõe a Psicanálise à Psicologia, à Magia, à Religião e à Ciência por ela


(psicanálise) não negar a verdade do inconsciente como causa do desejo. Pelo contrário, ela
se separa destes saberes para se especificar na introdução da verdade inconsciente como
causa material. Ao revisar o estatuto da verdade tradicional, funda a causalidade psíquica
ou lógica pela linguagem que deve ser remetida à materialidade do significante, ou seja, a
materialidade do desejo inconsciente.

Essa materialidade se explica por todas as mudanças causadas no sujeito em relação


à perda de sua natureza animal com sua entrada na linguagem. Como no exemplo
apresentado anteriormente sobre a greve de fome, em que o sujeito abre mão de sua
necessidade de comer, mostrando que a materialidade do significante está acima de suas
necessidades biológicas, é essa a materialidade do significante que divide o sujeito. É por
causa da materialidade do significante que o sujeito do inconsciente da psicanálise está para
além do sujeito da ciência, da magia e da religião e dos tratamentos terapêuticos, por
manifestar-se dividido.

Até aqui tratamos de localizar a constituição do sujeito do inconsciente da


psicanálise, situando-o diante de outros saberes e diferenciando-o deles. A exploração
destas questões se deu pelo fato de entendermos que é a partir da relação do sujeito
neurótico com estes saberes que se estabelecem os laços sociais, pois o sujeito psicótico
fica fora-do-discurso. Quinet (2006) nos dirá que:

O fora-do-discurso da psicose aponta para uma impossibilidade da lógica,


estrutural, portanto real, de fazer o psicótico entrar completamente na dança dos
discursos, ou seja, de circular pelos laços sociais, participar alternadamente de um
ou de outro, dialetizar suas relações, cortar com uns e reatar com outros os laços
sociais e com isso dar conta da metabolização do gozo. (...) Ele é esse fora que nos
remete ao fato de que nós estamos presos aos discursos. Nesse sentido ele é livre:
livre dos discursos e seus avessos (p. 52).

39
O neurótico, ao contrário, por estar preso aos discursos, torna-se o responsável pela
sustentação dos laços sociais.

Diante do que foi dito até o momento, vejamos como o neurótico estabelece esses
laços na sociedade de consumo da lógica do capitalismo para que possamos tratar da
compreensão de Žižek sobre a alienação do sujeito no capitalismo de consumo e a partir daí
apresentar suas reflexões sobre as possibilidades de o sujeito escapar desta forma de
alienação.

c - O sujeito neurótico no laço social

Como já vimos no tópico anterior, o sujeito neurótico, ao escolher a via da


separação, se torna responsável pelo estabelecimento do laço social. Safatle (2008), usando
como exemplo a lei da ética protestante que tem o autocontrole como ideal de conduta, o
trabalho como vocação e o estabelecimento da culpa pelo prazer, confirma a
responsabilidade do sujeito pelos laços sociais no capitalismo, explicando que:

(...) se a lei moral que sustenta a disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de
conduta econômica é a figura do supereu, então a economia libidinal do capitalismo
como sociedade de produção seria impensável sem o desenvolvimento de uma
civilização neurótica que só poderia pensar seus processos de socialização através de
instrumentalização repressiva do sentido de culpa. (SAFATLE, 2008, p. 123)

Entendemos que o mesmo ocorre com a economia libidinal do sujeito na lógica do


capitalismo de consumo, pois o processo de socialização se dá a partir da busca de
naturalizar-se através da lei do consumo, e o sujeito se sente culpado por não gozar o
suficiente como estabelecem os imperativos da lógica do capital. Assim, a culpa neurótica

40
continua sendo o instrumento repressivo desta lógica ao reprimir o “não gozar”, ou seja,
gozar se torna uma obrigação.

O sujeito neurótico, por sua própria constituição, torna-se um ser capaz de


estabelecer laço social, pois ao não encontrar o gozo pleno em sua relação com a mãe, seu
primeiro Outro, ele passa a buscá-lo na sociedade. Ele se torna neurótico ao perceber nos
significantes apresentados pelo Outro (mãe) a possibilidade de produzir sua própria cadeia
de significantes. Ao produzi-la, ele se separa deste Outro (mãe), mas é impulsionado a
buscá-lo (Outro) no laço social.

Essa busca do sujeito neurótico pelo Outro determina sua possibilidade de


estabelecimento dos laços sociais, e desse modo a sociedade se estabelece como um todo,
na medida em que o neurótico precisa fazer laços para encontrar o Outro. Nessa busca
encontrará outros neuróticos tais como ele, dispostos a estabelecer laço social com a
intenção de encontrar o gozo pleno perdido na relação com seu primeiro Outro (mãe).

Aqui e ali o sujeito neurótico, ao estabelecer relações sociais em busca do Outro,


sempre encontra alguém disposto a encarnar o papel de Outro em sua vida, assim como
muitas vezes, em contrapartida, ele também se coloca como Outro no laço social para
outros neuróticos.

Em busca de estabelecer laços sociais, alguns neuróticos se reúnem e instituem


algumas leis a serem seguidas por um determinado grupo de pessoas e assim se
estabelecem as leis da sociedade e da cultura. As leis da sociedade contemporânea
implícitas na lógica do capital, que se apresentam como o Outro na contemporaneidade, são
um exemplo dos resultados destas reuniões.

Poderíamos pensar então que, se o que o neurótico busca é um Outro e o encontra,


isso deveria apaziguá-lo. Mas como já vimos, governado por seu desejo inconsciente, o
neurótico rebela-se e suas insatisfações aparecem nos seus sintomas, apontando uma falha
no Outro (ideologias) imposto pela sociedade. Como o que o sujeito busca conscientemente
não é o que ele deseja inconscientemente, estabelece-se sempre uma tensão.

41
É esta condição contraditória entre o consciente e o inconsciente do sujeito
neurótico, revelada pelos sintomas, que expõe a falha das teorias totalitárias da sociologia
que buscam oferecer uma forma de construção social para o bem de todos a fim de acabar
com os conflitos sociais. Se por um lado o sujeito busca um Outro que dê conta de seu ser e
o encontra nessas teorias, por outro, sua divisão faz com que ele se rebele à sua revelia,
apontando uma falha em qualquer teoria que se apresente com idéias totalitárias.

No que se refere às teorias sociológicas que falam em nome da construção do todo


para o bem de todos, Pacheco Filho (1997) vai dizer:

Sem questionar a importância da visão macro social defendida por Durkheim e por
todos os demais que se dedicaram a estudar os fenômenos sociais em um enfoque
mais abrangente, a verdade é que a ausência de interesse pelas questões da
individualidade trouxe como risco a própria possibilidade de ênfase acentuada na
imobilidade da sociedade e na perenidade das instituições sociais estabelecidas: ou
seja, um conseqüente conservadorismo social. A sociologia durkheimiana parece
ter padecido desse defeito, assim como diversas de suas correntes herdeiras
subseqüentes. (p. 126)

Sem negar a importância das teorias de visão macro social, como a de Durkheim,
Pacheco Filho (1997), ao longo de seu texto, discorre sobre a importância também de uma
teoria para tratar das questões singulares do sujeito, colocando a psicanálise neste lugar. Ele
deixa claro que a psicanálise promete a falta e que as confusões e conflitos gerados por esta
falta são concebíveis pela psicanálise, e ainda que o desejo provoque conflitos, ele é tido
como chance para sujeito.

Calligaris (1991), ajudando a ilustrar a idéia, entende que “... o ideal político nunca
é mais do que a procura de um equilíbrio instável entre uma alienação necessária para a
vida social e a resistência a uma inércia totalitária” (p. 116).

Isso considerado, podemos trazer aqui novamente a imagem da Banda de Moebius


para representar essa simultaneidade, entre o singular de cada sujeito e o particular de
sociedade, pois, no fim da contas (assim como o conflito entre o inconsciente e o

42
consciente), ambos habitam os dois lados ao mesmo tempo, já que não podemos separar o
conflito singular do sujeito dos conflitos das particularidades sociais, uma vez que o
conflito do sujeito aparece por sua rebeldia inconsciente aos ditames das demandas da
sociedade, sejam quis forem estas demandas, mostrando a impossibilidade de esgotar o
conflito de classes pela via do simbólico.

Essa dialética — sobre o conflito existente entre o particular da sociedade e a


singularidade do sujeito — pode ser ilustrada pela história de Antígona, história analisada
por Lacan (1959/1991), que dela se utiliza para denunciar a tensão entre o desejo singular
de um sujeito e a particularidade de uma cultura. Vejamos.

Antígona, tragédia escrita pelo dramaturgo grego Sófocles, mostra como duas
opiniões opostas podem ser corretas, dependendo do ângulo analisado, indicando essa
tensão entre o particular da sociedade e o singular do desejo do sujeito. Uma seqüência da
tragédia Édipo Rei, Antígona nos mostra a história dos filhos e filhas de Édipo. Sobre os
filhos homens de Édipo, Etéocles e Polinice, estes morrem numa batalha em que cada um
estava de um lado na guerra, um a favor e o outro contra o governo vigente da cidade de
Tebas, governada por Creonte. Creonte então manda enterrar honrosamente Etéocles, por
estar lutando em favor de seu governo, mas lança uma lei que proíbe que Polinice seja
velado ou sepultado, por ser considerado um traidor da cidade. Antígona, entretanto, filha
de Édipo e irmã dos falecidos, descumpre a lei imposta por Creonte e, à revelia da ameaça
de punição, presta as honras fúnebres ao irmão Polinice, sem mostrar nenhum
arrependimento após seu ato. Por ter desobedecido a lei instituída por Creonte, ela é
condenada a ser enterrada viva.

Apesar de condenar a própria sobrinha, Creonte argumenta que instituiu a nova lei
para homenagear o herói e punir o traidor, nada mais justo aos olhos do Estado. Mas em
sua defesa Antígona também trazia suas justas razões, igualmente aceitáveis, embora
contrárias às de Creonte. Ela alega que não poderia obedecer a esta lei estatal e desobedecer
à lei moral e religiosa, que ordenava prestar homenagens fúnebres aos parentes mortos.
Mesmo diante da ameaça de morte, Antígona não mostra arrependimento em seu ato e por
isso é condenada ao suplício de ser enterrada viva.

43
Sem pretender simplificar a riqueza desse clássico da literatura, o que queremos destacar da
narrativa é o sentido de que há algo que é impossível de conciliar entre a ética do bem de
todos no particular de cada sociedade e a ética do desejo na singularidade de cada sujeito.
Esse conflito envolve uma lei particular de cada sociedade para o bem de todos e o desejo
revelado na singularidade de cada sujeito que não se satisfaz com esta lei. Vejamos o que
Lacan (1959/1991) nos diz sobre Creonte: Creonte vem ilustrar aí uma função – quanto à
estrutura da ética trágica que é a da psicanálise – ele quer o bem. O que afinal é seu papel.
O chefe é aquele que conduz a comunidade, ele está aí para o bem de todos. (p. 312-213)

Porém, Antígona quer enterrar o irmão segundo a lei religiosa, indo contra a lei de
Creonte apresentada para o bem de todos. Sobre isso Lacan (1959/1991) dirá: “Antígona
nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo.” (p. 300), e mais adiante:

Essa dimensão não é uma particularidade de Antígona, posso propor-lhes olhar aqui
e acolá, vocês encontrarão outras correspondentes sem terem de ir buscar muito
longe. A zona assim definida tem uma função singular no efeito da tragédia. É na
travessia dessa zona que o raio do desejo se reflete e, ao mesmo tempo, se retrai
chegando a dar esse efeito tão singular, o mais profundo, que é o efeito do belo no
desejo. (p. 301-302)

Para Lacan (1959/1991), o belo do desejo é justamente o de não se moldar às


situações impostas. A beleza do desejo aponta para a presença do conflito onde houver
usuários da linguagem. Uma das maneiras de revelação do desejo do sujeito é o sintoma.
Quanto a isso, Lacan (1975) afirma que “O sentido do sintoma não é aquele com o qual nós
o alimentamos para sua proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real, na medida
em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem (...)” (p.186).

É por isso que o sintoma é sempre resistência, ele é a tentativa de tratamento do


gozo perdido e revela que o desejo não é domesticável pelo Outro, ou seja, o sintoma
mostra que a lógica capitalista não pode foracluir do objeto a. Pois o sintoma vivenciado
como sofrimento é o próprio questionamento ao Outro da lógica do capital e a prova da
impossibilidade de foraclusão do objeto a.

44
Apesar de funcionar sempre como resistência, nem sempre o sintoma é
revolucionário. A lógica do capital funcionando como Outro do gozo que propõe a
foraclusão do objeto a, leva o sujeito a querer se livrar do sintoma buscando harmonia no
consumo. Alienado nesta lógica, o sujeito insiste na repetição do consumo de
objetos/mercadorias como tentativa de encontrar o gozo, tentando dar conta de seu sintoma.
Dessa maneira, o sintoma não é nada revolucionário, ao contrário, é usado como forma de
alienação na lógica do capital, que promove o individualismo, um “cada um por si” que
revela uma perversão do laço social sustentado pelo sujeito de estrutura neurótica.

Contrapomo-nos então, a alguns teóricos, inclusive da psicanálise, que têm


apontado a sociedade do capitalismo de consumo como algo perverso em sua estrutura,
como se estivesse ocorrendo uma mudança na estrutura social, que passaria de neurótica a
perversa, ou seja, todos seriam perversos nesta lógica. Sem negar a perversão nesta forma
de laço social, insistimos que se trata de um pacto entre neuróticos.

A propósito desta questão, Freud (1905/1989), já nos fornecia indícios para este
pensamento com a seguinte colocação: “Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo
ao alvo sexual normal que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si
só, para mostrar quão imprópria é a utilização reprobatoria da palavra perversão.” (p. 150-
151).

Se concordarmos que quando Freud menciona “pessoa sadia” refere-se ao sujeito


neurótico da psicanálise, e se nela “não falta algum acréscimo ao alvo sexual normal”, fica
aberta a possibilidade de estabelecimento de uma perversão no laço social a partir de um
pacto estabelecido por neuróticos pela via deste “acréscimo”.

Defendemos então que o que ocorre é uma cegueira do sujeito neurótico na


alienação proposta pela lógica do capitalismo de consumo, sujeito que, ao receber a
proposta de foraclusão do objeto a pelo consumo de mercadorias, se convence de que de
fato o objeto a possa ser foracluído. A lógica capitalista se coloca para ser seguida à risca e,
do lado dos neuróticos, é eleita como uma lógica que deve ser seguida cegamente.

45
O sujeito neurótico, ao procurar um Outro, ou seja, um saber sobre o gozo pleno,
tenta se adequar a uma lógica que lhe pareça convincente – na contemporaneidade a lógica
do capital faz este papel – acreditando que ela o permitirá escapar de seus sofrimentos e
conflitos. Neste tipo de pacto elege-se “Um” para todos, o que deixa de fora o que é da
ordem da singularidade de cada sujeito, prioridade da psicanálise, que representa o furo das
teorias sociológicas em nome do bem de todos, incluindo, obviamente, o furo da lógica do
capital.

Para fundamentar essas afirmações, podemos considerar as reflexões de Askofaré


(2006) em seu texto “La Perversion Généralisée”, que discorre sobre esta questão. O autor
concorda que o que ocorre na sociedade do capitalismo de consumo é da ordem de uma
alienação estrutural, no entanto, considerando nela a separação, a segunda operação de
causação do sujeito designada por Lacan para caracterizar a neurose, portanto esse é um
laço considerado neurótico.

Nesse texto o autor faz uma leitura psicanalítica do sintagma “perversão


generalizada”, baseado nos ensinos de Lacan, como um pacto entre neuróticos, afirmando
uma mudança na imago paterna engendrada pela linguagem na sociedade atual, e não na
foraclusão ou na renegação do “nome do pai” como têm insistido alguns autores, em que a
estrutura perversa ou psicótica está se tornando norma no lugar da neurose.

Calligaris (1986), numa leitura lacaniana, apresenta essa forma de laço como uma
“montagem perversa”, explicando que ela ocorre entre dois sujeitos: “neurótico mais
neurótico ou neurótico mais perverso, juntos no mesmo fantasma, numa tentativa de chegar
a uma modalidade de gozo.” (p. 80). Pensando a sociedade do capitalismo de consumo, a
montagem perversa é aquilo que resulta de uma apropriação da lógica capitalista pelo
neurótico e do neurótico por essa lógica. Então, também na proposta de Calligaris, por ser
um pacto admissível entre neuróticos, podemos entender implícita aí a presença da função
paterna.

Parece-nos muito mais apropriado dizer que, ao invés de falência da função paterna,
o que há é a elevação de um pai que se chama capitalismo. Um pai permissivo por sua
convocação ao gozo, mas que é ao mesmo tempo esta convocação de gozo, uma ordem da
46
ideologia capitalista. O recalque agora se trata de que “é proibido não gozar”, esta é a lei na
sociedade do capitalismo de consumo.

E é a partir dessa mudança na imago paterna que julgamos ocorrer a alienação na


sociedade do capitalista de consumo, ou seja, se há uma “perversão generalizada” ela se dá
no laço social neurótico. Em relação a esse laço perverso entre neuróticos tido como
perversão generalizada, Askofaré (2006) nos explica que podemos entendê-la como uma
predisposição para todas as perversões, inclusive para a perversão de estrutura clínica, a
dita restrita por Askofaré, mas não somente a ela, pois esta predisposição indica também a
possibilidade de um pacto perverso entre neuróticos como forma de laço social.

A partir de conclusões tiradas do ensino de Freud, Askofaré (2006) nos indicará o


passo de Lacan, diz ele:

(...) para Lacan, se a neurose “se mantém nas relações sociais” (...) a perversão é “o
produto da cultura”. No ensino de Lacan, perversão então não quer dizer somente
estrutura clínica perversa (...) ao lado desse valor, que mantém evidentemente todo
seu interesse, convém acrescentar esse outro, que faz da perversão um regime de
gozo já não determinado pela estrutura clínica dos sujeitos, mas pela cultura,
portanto, um discurso do qual é produto. (p. 3)

O passo de Lacan nos revela a perversão como um produto da cultura apontando


que a “perversão generalizada” é essa predisposição ao estabelecimento de laços perversos,
mas sem pertencer à estrutura clínica perversa, apresentando-se como um regime de gozo
neurótico. Podemos entender então, do ponto de vista psicanalítico, que apesar de haver
uma perversão no laço social, esta perversão se conserva no laço entre os neuróticos,
fenômeno existente desde a linguagem, e não como um novo e atual fenômeno
desenvolvido em nossa cultura.

A partir desses pontos, Askofaré (2006) conclui:

47
A “perversão generalizada”, se ela quer dizer alguma coisa em psicanálise, só
significa a “perversão generalizada do campo do gozo”. Nem desvio, nem
aberração, nem inversão das normas, menos ainda nova norma social, ela é
fundamentalmente a tradução clínica e conceitual do fato de que o campo do gozo
do ser falante se estrutura e se ordena em torno de um impossível. (p. 6)

Por conseguinte, podemos reafirmar que o sintoma é sempre resistência, mas


quando essa perversão, “perversão generalizada do campo do gozo”, se estabelece como
pacto entre os neuróticos, impede o sujeito de, como diz Quinet (2003), “bem dizer o
sintoma” (p. 140). E o que seria bem dizer o de sintoma? Para Quinet (2003), “a ética da
psicanálise é a ética de bem dizer o sintoma” (p. 140), que seria sustentar o objeto a como
impossível de ser foracluído, ou seja, tratar o objeto a ao invés de buscar tamponá-lo com
objetos/mercadorias, tal como tem ocorrido com os sujeitos na sociedade do capitalismo de
consumo. É preciso sustentar esse impossível, essa é a proposta da psicanálise. Sustentar o
impossível significa sair do “sintoma parasita” apontado por Quinet (2003, p. 147).

Ao que Askofaré (2006) está chamando de “perversão generalizada do campo do


gozo” que “se estrutura e se ordena em torno de um impossível”, podemos articular as
declarações de Freud (1925/1976) do que seriam profissões impossíveis, isto é, governar,
educar e curar, às quais Lacan somará uma quarta impossibilidade: fazer desejar. Assim,
Lacan (1969/1992) formaliza essas quatro impossibilidades em quatro discursos – discurso
do mestre (governar, discurso pelo qual o sujeito entra na linguagem), discurso do
universitário (educar), discurso da histérica (fazer desejar) e discurso da psicanálise
(psicanalisar ou curar) 6 – como impossíveis.

Em sua formalização dos quatro discursos Lacan (1969, 1992) propõe estruturas que
conservam um lugar de impossibilidade. Vejamos o que nos diz o autor sobre a
impossibilidade:

6
Lacan desenvolve os quatro discursos no seminário XVII, “O avesso da Psicanálise”, em 1969, presente nas
referências bibliográficas deste trabalho. Não entraremos nos detalhes dos quatro discursos, mas eles foram
citados aqui apenas para apresentar as quatro impossibilidades de ordenamento do gozo. O mesmo ocorre
com o quinto discurso, o do capitalista, citado na conferência de Milão.

48
Ao propormos a formalização do discurso e estabelecendo para nós mesmos, no
interior dessa formalização, algumas regras destinadas a pô-la à prova, encontramos
um elemento de impossibilidade. Eis o que está propriamente na base, na raiz do
que é um fato de estrutura. E é isto, na estrutura, o que nos interessa no nível da
experiência analítica. (LACAN, 1969/1992, p. 43)

Considerando as palavras de Lacan sobre o fato de a estrutura do discurso conservar


uma impossibilidade, podemos entender que o discurso é sempre uma tentativa simbólica
fracassada de ordenamento do gozo. Porém, esse lugar de impossibilidade é desafiado pela
lógica do capital que pretende eliminar o sintoma foracluindo o objeto a, ou seja,
tamponando a falta.

Para “bem dizer o sintoma” é preciso que o sujeito use sua margem de liberdade
considerando seu limite. O “bem dizer o sintoma” considera esse limite que é: é impossível
foracluir o objeto a. O “sintoma parasita”, ao contrário, quer foracluir o objeto a (pelo
consumo na lógica do capital), mas ele (sintoma) volta mostrando que isso é impossível. Há
um limite em usarmos o simbólico para alcançarmos o Real. O Real só pode ser alcançado
parcialmente através simbólico, ou seja, o objeto a só pode ser tratado como uma verdade,
mas nunca foracluído.

A tentativa de ordenamento de todo o gozo pelo simbólico, que aparece na lógica do


capital pelo consumo de mercadoria, tem sido chamada de “perversão generalizada” por
atrair e capturar neuróticos no mundo todo, pois no mundo todo sujeitos tem buscado no
consumo de mercadorias/fetiches a foraclusão do objeto a, como se a impossibilidade não
existisse. Ainda assim, o objeto a persiste interrogando o Outro através do sintoma,
mostrando a impossibilidade da foraclusão do objeto a.

Todavia, a constatação da impossibilidade do sujeito de ordenamento de gozo pela


via do simbólico não implica em sujeito estático ou sequer em sociedades estáticas. As
sociedades mudam nas diferentes culturas e épocas, pois, nelas, mudam os significados dos
significantes. A fim de esclarecer o que muda e o que não muda, traremos para o interior de

49
nossa discussão o termo “subjetividade”. Askofaré (2009) esclarece que não devemos
confundir o conceito de subjetividade, histórico, como produto da linguagem em
determinada cultura ou época, com o conceito de sujeito da psicanálise, que trata de uma
estrutura trans-histórica presente em qualquer época ou cultura.

O sujeito neurótico, em temos estruturais, é trans-histórico, ou seja, desde que esteja


submetido à linguagem mantém sua alienação ao Outro em qualquer época ou cultura,
vivendo, entretanto, sua subjetividade histórica de acordo com a linguagem de seu tempo.
Logo, a subjetividade é fundamental para situarmos o sujeito do inconsciente em sua
cultura e seu momento histórico.

Se pensarmos que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o sujeito é


alienado pela linguagem de seu tempo ou cultura, e suas escolhas inconscientes passam
pela linguagem que seu momento histórico ou sua cultura lhe oferece. Cada momento
histórico, com suas múltiplas culturas, impõe diferentes leis e a particularidade de cada uma
dessas leis faz surgir uma nova forma de subjetividade. Subjetividade é aquilo que, do
sujeito, tem a ver com a particularidade social por ele vivida. O sujeito da psicanálise é
aquele que resiste com a singularidade de seu sintoma a essa particularidade. É esse
sintoma como resistência que dá origem ao conflito social e também às transformações
sociais.

Para embasar as colocações sobre a importância da subjetividade para a psicanálise,


Askofaré recorre a Lacan, vejamos:

Dentre todas as que se propõem neste século, a obra do psicanalista talvez seja a
mais elevada, porque funciona como mediadora entre o homem da preocupação e o
sujeito do saber absoluto. Isso também se dá porque ela exige uma longa ascese
subjetiva, e que jamais será interrompida, não sendo o fim da própria análise
didática separável do engajamento do sujeito em sua prática. Que antes renuncie a
isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua
época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada
soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento
simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra
contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas.
Quanto às trevas do mundus ao redor do qual se enrosca a imensa torre, que ele

50
deixe à visão mística a tarefa de ver elevar-se ali, sobre um bosque eterno, a
serpente putrefaciente da vida. (LACAN, 1953/1998, p. 322)

Desse ponto, Askofaré (2009) segue o texto destacando o que é essencial na teoria
da psicanálise lacaniana:

(...) o sujeito em psicanálise, o sujeito para a psicanálise é o sujeito do significante.


Ele é o efeito, sem dúvida ativo, mas o efeito do significante; dito de outro modo,
da linguagem. Ora, a linguagem, que se define como o sistema material dos
significantes ou como o poder de simbolização que faz passar o real ao ser, é o que
especifica o humano. O homem, portanto, é um “falaser”, um ser que fala, alguém
que sustenta seu ser da fala. Deduz-se daí, então, quase matematicamente, que todo
ser que é tomado na linguagem e que exerce a eminente função da fala seria um
sujeito. Nessa perspectiva, se poderia dizer que há o sujeito desde sempre! A outra
conseqüência é que haverá sempre o sujeito, e o mesmo, enquanto houver
linguagem, enquanto os homens continuem a falar. (p. 167)

É necessário ainda esclarecer que, mesmo havendo sujeito enquanto houver


linguagem, Askofaré (2009) declara que o sujeito da psicanálise não é reduzido a sujeito do
puro significante – a um conceito de um homem abstrato, universal, sem cultura, sem
história e sem diferença –, pois a particularidade de cada momento histórico atribui, através
dos significantes, significados concretos que causam mudanças subjetivas, uma vez que o
significante (inconsciente e abstrato) e o significado (consciente e concreto) operam no
mesmo sujeito. Esse fato faz toda diferença, pois mostra que sempre há alternativas para
qualquer situação social e obviamente não podemos descartar essas alternativas no
capitalismo, ou seja, mostra que o capitalismo não é imutável.

Para analisar estas duas operações no mesmo sujeito, Askofaré (2009) propõe que é
preciso nos atentarmos para a disposição da multiplicidade do sujeito lacaniano, evocando
os elementos decisivos que contestam esta não historicidade do sujeito barrado com sua
historicidade subjetiva.

51
Se o inconsciente é lugar do Outro, é também lugar de saber, ou seja, se o simbólico
é invariável na sua estrutura de linguagem aos seus usuários, ao mesmo tempo estes
usuários estão submetidos às mudanças de seu tempo. Dito de outra maneira, a
subjetividade – em sua forma variável, instável e histórica – se desenvolve a partir da
estrutura do inconsciente – em sua forma invariável e permanente enquanto houver
linguagem, portanto trans-histórica.

Ao articular os dois textos de Askofaré (2006 e 2009), entendemos que em qualquer


época o sujeito vai passar pelo processo de alienação inerente ao ser da linguagem (trans-
histórico), porém com modos específicos de alienação dependendo da cultura (histórica),
estando inserida aí sua predisposição trans-histórica perversa no laço neurótico, como
localizado no laço social engendrado na contemporaneidade pela lógica do capital, que
estabelece sua ideologia perversa em esfera global.

Então, graças ao sintoma singular do sujeito, que traz conflitos interpelando a


particularidade da sociedade em que ele vive, é que pode ocorrer a transformação social. O
sintoma é sempre resistência, mas é o sujeito que escolhe “bem dizer o sintoma” ou não.
Em seus escritos sobre a clínica, Quinet (2003) nos dirá que:

No início de uma análise, o sintoma é um dizer que ainda não encontrou seu dito. A
passagem do dizer do sintoma a seu dito é o que constitui propriamente falando o
processo analítico, que se alinha na ética do bem dizer o sintoma. Para que o
sintoma do sujeito se transforme, no início do processo analítico, num sintoma
analítico é preciso que seja considerado pelo sujeito como um parceiro de verdade.
(p. 140)

Esse fato faz toda diferença, pois mostra que sempre há alternativas para qualquer
situação social e obviamente não podemos descartar essas alternativas no caso do
capitalismo, ou seja, o capitalismo não é imutável. Bem dizer o sintoma, do ponto de vista
social, seria uma maneira de tratá-lo sem eliminá-lo. Quinet (2003) nos dirá ainda que é
preciso adotar o sintoma, vejamos:

52
A análise vai do sintoma parasita ao sintoma adotado. O sintoma parasita, seja ele
histérico, fóbico ou obsessivo, é o sintoma mensagem que contém uma mensagem a
ser decifrada, memorial histórico dos ditos do Outro escritos em suas cifras de
gozo, ou seja, é o sintoma que desaparece numa análise conduzida a seu termo. O
sintoma adotado é o que resta do deciframento, mas não deixa de ser sintomático
(...) constituindo aquilo com o qual o sujeito vai ter que lidar bem ou mal. Adotar o
sintoma, sabendo que ele é parte de seu gozo e de seu inconsciente, é a condição
para que o sujeito possa saber lidar com ele e tomar distância dele. (p.147)

O sintoma social quer dizer, nada mais do que, que todo sujeito tem sintoma, é por
isso que o sintoma é social, ou seja, a sociedade como um todo lida com o sintoma singular
de cada sujeito. Transpondo os dizeres de Quinet (2003) para o social, a idéia é que o
sintoma contemporâneo dos sujeitos os impele a manter o sintoma social em sua condição
de sintoma-parasita, mas que, assim como acontece com o sujeito singular, a sociedade
pode adotar o sintoma como algo que faz parte da constituição de sua particularidade, ou
seja, sintoma-adotado e tratado, e não eliminado.

É na medida em que o sintoma social tenha a possibilidade de ser adotado, passando


a ser considerado como algo ineliminável no sujeito, é que ele funciona como resistência;
sempre, pois a cada sintoma há uma nova presentificação de que as coisas não vão bem e a
possibilidade de ser adotado também no social, de bem dizer o sintoma, ou seja, a
impossibilidade de ordenamento de todo o gozo do sujeito pela via do simbólico (que
corresponde à impossibilidade de eliminar todos os conflitos de classes no social), não nos
impede de bem dizer o sintoma buscando alternativas de tratamento desses conflitos.

A analogia de Žižek (2003) sobre a impossibilidade de ordenamento de todo o gozo


do sujeito pela via do simbólico é que da mesma maneira é impossível esgotar o conflito de
classes pela via do simbólico. Porém, para Žižek (2006), é imprescindível considerarmos
alternativas de escapar das coordenadas da lógica do capital pela via do simbólico
analisando a possibilidade de uma transformação social ainda que seja ancorada na
impossibilidade de eliminar os conflitos sociais pela via do simbólico. Colocado em outros

53
termos, é preciso adotar o sintoma social considerando-o como algo que deve ser tratado e
não eliminado.

Diante do apresentado, vimos que se tratou de localizar o sujeito do inconsciente da


linguagem na sua relação com a ideologia particular nas diferentes sociedades, mostrando
que o sintoma é sempre resistência e portanto é o recurso para uma transformação social.
Julgamos este ponto importante, pois, no próximo capítulo, apresentaremos a formalização
teórica de Žižek sobre a alienação do sujeito do inconsciente no particular da ideologia da
lógica do capitalismo de consumo e as alternativas por ele apresentadas para que se possa
escapar desta lógica.

54
CAPÍTULO III: A CONTRIBUIÇÃO DE SLAVOJ ŽIŽEK PARA PENSAR UMA
ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E SOCIEDADE

a - A formalização de Žižek quanto à característica peculiar da alienação do sujeito


frente à ideologia do impossível da lógica do capital

Žižek afirma que a lógica do capital comporta um impossível. A psicanálise, como


já vimos, também comporta um impossível – o impossível da completude do gozo – com o
qual Žižek concorda. Para evitar qualquer tipo de confusão entre as diferentes afirmações
acerca do impossível, esclareceremos aqui a diferença entre o impossível da lógica do
capital, expressado nas idéias de Žižek, e o impossível proposto pela psicanálise.

Comecemos lembrando que o impossível da psicanálise é o impossível do


ordenamento de todo o gozo do sujeito pela via do simbólico. Žižek (2003) concorda
plenamente com esse postulado e afirma ainda que no que se refere ao social podemos
verificar que esse impossível do ordenamento ocorre da mesma forma, afinal, como já foi
dito, esse autor reconhece que é impossível, por exemplo, esgotar o conflito de classes pela
via do simbólico.

Por outro lado, Žižek também assinala que esse social na lógica de consumo
também tem lidado com um Outro impossível, resultante dos imperativos da lógica do
capital. Em todos os trabalhos desse autor percebemos que suas críticas estão diretamente
associadas a esse impossível de ordenamento de todo o gozo que rege a lógica capitalista.
Mais especificamente, suas críticas estão relacionadas à idéia de que é impossível escapar
da lógica capitalista, que, por sua vez, reflete a impossibilidade de uma transformação
social fora das coordenadas do capitalismo. Nas palavras do próprio Žižek (2005):
O problema, é claro, é que, nas atuais circunstâncias sócio-políticas globais, é
praticamente impossível questionar de modo efetivo a lógica do Capital: até uma
modesta tentativa social-democrata de redistribuir a riqueza além do limite aceitável
pelo capital “efetivamente” leva à crise econômica, à inflação, à queda da renda,
etc. (p. 20, aspas do autor)

O que Žižek assinala aqui é a lógica que sustenta a forma que o capitalismo de
consumo tem assumido, funciona a partir da incorporação da mais-valia como necessidade
estrutural. Sendo assim, acredita-se que não é mais possível sobreviver a uma proposta de
redistribuição de renda. Žižek escreve ainda que ao sustentar a impossibilidade de escapar
do capitalismo, a lógica do capital propõe uma compensação para o sujeito: a promessa de
que se o sujeito buscar o gozo no consumo conseguirá escapar de suas angústias, ou seja, se
lançar-se ao consumo poderá foracluir o objeto a.

Žižek (2003) sabe, justamente por valer-se da psicanálise em sua análise, que é
impossível o ordenamento de todo o gozo do sujeito pelo consumo, ou seja, que é
impossível foracluir o objeto a. Nesse sentido, se a maneira que a sociedade do capitalismo
de consumo encontra para sustentar a manutenção da lógica capitalista é a oferta do
consumo como a consolação frente ao impossível da completude, é claro que essa é uma
alternativa que tende a fracassar em sua consolidação. Podemos dizer que Žižek inclusive é
otimista frente à possibilidade de transformação social fora das coordenadas do capitalismo.
O impossível na leitura de Žižek, aliás, pode ser entendido a partir de duas colocações do
próprio autor: a) quanto ao impossível de escapar da lógica do capital: é preciso arriscar o
impossível; b) quanto à proposta da lógica do capital de foraclusão do objeto a pelo
consumo de mercadorias, ou seja, o ordenamento de todo o gozo do sujeito pela via do
simbólico: isso é impossível.

Marquemos que todas as vezes que tocarmos na palavra consumo para criticá-la,
estaremos sempre nos referindo ao que é proposto pela lógica do capital com a finalidade
de que o sujeito busque no consumo de mercadorias a foraclusão do objeto a. É disso que
se trata nossa crítica.

56
Segundo Žižek, a proposta do impossível apresentada pela lógica do capital faz com
que o sujeito se sinta sob constante ameaça de uma crise econômica global e falência das
possibilidades de sua sobrevivência no mundo. Essa ameaça incita o sujeito a alimentar o
sistema capitalista, ou seja, alimentar o sistema imposto pela classe dominante. Žižek
(2003) afirma que não podemos nos contentar com as propostas da classe dominante,
interessada em manter o sujeito acrítico, escondendo informações que podem nos fazer
pensar, tal como nos mostra a pesquisa de Aidar (2007) sobre as revistas semanais. Com
essas ameaças de uma crise econômica global, a lógica do capital consegue convencer o
sujeito de que seus limites são uma necessidade da vida econômica. Porém, Žižek (2005)
nos dirá que:

O fato de uma crise “realmente advir” caso não sejam respeitados os limites
traçados pelo Capital não “prova”, de modo algum, que a necessidade desses limites
seja uma necessidade objetiva da vida econômica. Esse fato deve ser antes
interpretado como prova da posição privilegiada do capital na luta econômica e
política (...) (p. 20, aspas do autor).

Apontar o consumo como necessidade objetiva da vida econômica é uma posição da


lógica do capital, que convoca o sujeito ao gozo pelo consumo a todo instante, que
corresponde à busca universal de foraclusão do objeto a. Podemos ver que o sujeito
responde a estes apelos muito adequadamente do ponto de vista da lógica do capital, mas
isso não garante em nada que as crises não ocorram, muito pelo contrário, as crises têm se
intensificado cada vez mais e nessas crises podemos observar que “a corda sempre
arrebenta do lado mais fraco”.

Um dos artifícios do universo da lógica do capital para convencer o sujeito a


consumir é fazer parecer que há muitas opções, quando de fato apresenta uma única opção:
“Consuma!”. A escolha de escapar desta lógica, diz Žižek (2006), “(...) é excluída,
justamente pelo campo contemporâneo das escolhas; torna-se invisível num mundo de
opções aparentemente infinitas.” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p.129). Nesta lógica o desejo do
sujeito, diante das “opções aparentemente infinitas”, é reprovado. O sujeito ao oferecer

57
qualquer resistência ao consumo é censurado pelo social. Essa censura faz com que ele
recalque seu desejo, e esse recalque leva o objeto a a entrar em operação novamente,
indicando a impossibilidade de sua foraclusão.

Com tantas ofertas disponíveis no mercado, o sujeito tem a sensação de estar


escolhendo o tempo todo, sem querer perceber a imposição de consumo da lógica do
capital. A atenção do sujeito fica direcionada para fazer escolhas de objetos oferecidos pelo
capitalismo ao invés de sustentar sua tentativa de desejar.

O sujeito mergulha nessa lógica como se não houvesse outra maneira de viver em
sociedade, ou seja, essa lógica limita qualquer idéia que possa ocorrer ao sujeito sobre uma
transformação social fora das coordenadas do capitalismo.

O capitalismo, ao apresentar esta impossibilidade (transformação social fora das


coordenadas do capitalismo) em sua lógica, declara sua proposta de tamponamento da falta
pelo consumo, ou seja, a foraclusão do objeto a. É nestes termos que destacamos a
formação do laço social perverso, pois a lógica do capital se apropria do neurótico
propondo o consumo de mercadorias, e o neurótico se apropria desta lógica consumindo-as.
Este pacto é perverso por negar que há um limite para o gozo já estabelecido para o sujeito
pela entrada na linguagem, ou seja, ele nega a falta como uma operação constante
tornando-se um participante do que Askofaré (2006) chamou de “perversão generalizada do
campo do gozo”.

Para manter este sistema é preciso que haja uma sedução. A sedução na lógica do
capital em relação ao consumo é a idéia de que o prazer está em consumir em excesso,
como se assim o sujeito pudesse gozar plenamente. Para a psicanálise, excesso é gozo e não
prazer, esclarecendo que gozo e prazer não são sinônimos. Vejamos essa diferença com
Žižek (2006):

Quando falamos de fantasia e gozo, a primeira coisa elementar a esclarecer é que o


gozo, em termos psicanalíticos, não é igual ao prazer. O gozo está além do princípio
do prazer. Enquanto o prazer existe nos moldes do equilíbrio e da satisfação, o gozo

58
é desestabilizador, traumático e excessivo – é o prazer freudiano com a dor, e assim
por diante. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 141)

Podemos traduzir nesta citação de Žižek que o consumo proposto pela lógica do
capital é equiparado ao gozo (“desestabilizador, traumático e excessivo”) e não ao prazer
(“nos moldes do equilíbrio e da satisfação”). Assim, o sujeito, ao buscar no consumo a
foraclusão do objeto a, fica mergulhado na lógica do capital. A proposta da psicanálise é de
que o sujeito possa escapar do sintoma parasita se encaminhando para o sintoma adotado,
destacados por Quinet (2003, p.147). É nesta perspectiva que Žižek acredita na
possibilidade de o sujeito encarar a ideologia da lógica do capital de uma maneira mais
crítica.

No que se refere à alienação do sujeito frente à ideologia da lógica do capital –que


é diferente da alienação constitutiva do sujeito da psicanálise –, vale dizer ainda que Žižek,
em seus escritos, levanta várias questões que nos permitem apreender as armadilhas desta
lógica, que funciona se apropriando do sujeito e o sujeito dela. Como já apontamos, nessa
dupla e recíproca apropriação há um objetivo para ambos: a busca da foraclusão do objeto
a.

Uma dessas questões inerentes à lógica do capital é o fato de as políticas globais


através da mídia apontarem os problemas políticos como fatos imprevisíveis, ao invés de
levantarem e apresentarem um histórico das tendências sociais e políticas. É como no caso
brasileiro em que a mídia aponta o MST como “a tática da baderna”, omitindo fatos
históricos que apresentariam a possibilidade de fazermos um exame mais profundo sobre os
fundamentos para a existência do movimento. Žižek (1996), valendo-se de uma da
expressão utilizada por Salecl1 “mistificação ideológica”, levanta a seguinte questão:

1
Apud. ŽIŽEK, 1996, p. 10. Em vez de dar informações sobre as tendências e antagonismos sociais, políticos
e religiosos do Iraque, a mídia acabou reduzindo o conflito a uma briga da Sadan Hussein, a personificação
do mal, o fora da lei que excluíra da comunidade internacional civilizada. Mais do que a destruição das
forças militares do Iraque, o verdadeiro objetivo foi apresentado como sendo psicológico, como a
humilhação da Saddam, que tinha que “perder a pose”. (...) Esse processo inverso implica uma mistificação
ideológica ainda mais ardilosa do que a demonização de Saddan Hussein

59
Em que consiste, exatamente, essa mistificação ideológica? Dito de maneira um
tanto crua, a evocação da “complexidade da situação” serve para nos livrar da
responsabilidade de agir. (...) A idéia de um sujeito plenamente “responsável”

por seus atos, em termos morais e criminais, claramente atende à necessidade


ideológica de esconder a complexa trama, sempre já operante, dos pressupostos
históricos-discursivos que não apenas dão ao contexto do ato praticado pelo sujeito,
mas também definem de antemão as coordenadas de seu sentido: O sistema só pode
funcionar se a causa de sua disfunção puder ser situada na culpa do sujeito
responsável. (p. 10 e 11)

Assim, a questão da responsabilidade fica duplamente comprometida. Os


representantes da lógica do capital legitimam uma oposição ao conhecimento radical em
termos de felicidade, assegurando que o saber é gerador de infelicidade. A ideologia da
lógica do capital, ao apontar a ignorância como fonte de felicidade, propõe um paradoxo
em relação à responsabilidade do sujeito: por um lado é preciso que o sujeito se sinta
responsável por seus atos em relação à obediência ao sistema, para que se sinta culpado
caso algo dê errado. Por outro lado, há o interesse de que o sujeito não se sinta responsável
por problemas sociais para que não interfira nas decisões políticas. Em ambos os casos, a
responsabilidade do sujeito é admitida somente de maneira que favoreça a ideologia da
lógica do capital, ou seja, a lógica do capital admite o tipo de responsabilidade ligada à
culpa, mas evita o tipo de responsabilidade ligada à crítica.

Somada a essas ações efetivadas pela classe dominante que defende os interesses da
ideologia da lógica do Capital, Žižek (2003) nos atenta para outra questão – desta vez em
relação à atitude do sujeito – que mostra como tal lógica é favorecida, que é o fato de que
“Jaques Lacan afirma que a atitude espontânea do ser humano é ‘não quero saber nada
disso’ – uma resistência fundamental contra saber demais.” (p. 80).

Ao somarmos as ações efetivadas pela classe dominante que defende os interesses


da ideologia da lógica do capital – de não querer que o sujeito saiba o suficiente para

60
interferir nas decisões políticas – com a atitude espontânea do sujeito apontada por Lacan
(1972/1985) sendo a de “não quero saber nada disso” (p. 9) – buscando com isso se eximir
de sua responsabilidade política –, o resultado apresentado é exatamente a dupla e recíproca
apropriação da lógica do capital pelo sujeito e do sujeito por ela2. Assim, a lógica do capital
representada pela classe dominante, ao não oferecer informações suficientes para que o
sujeito produza uma crítica política, procede desta maneira não para manter a felicidade do
sujeito, mas sim para manter a lógica dos interesses capitalistas.

Para falar da utilidade do saber, como mantenedor ou não da felicidade, voltemos ao


exemplo brasileiro do Movimento dos Sem-Terra. É claro que se o sujeito não sabe dos
fatos históricos que apresentariam fundamentos para a existência do movimento, fica fácil
encará-lo como “A tática da baderna” como é proposto pela mídia. Através desse tipo de
informação, direcionada pelo interesse da classe dominante, é oferecido ao sujeito o
conforto de não precisar construir posições políticas, a crítica já está pronta. Não é
necessário fazer nenhuma reflexão, a notícia vem pronta e cheia de argumentos
convincentes para ser admitida pelo sujeito que a aceita, um pouco desconfiado às vezes,
que seja, mas a partir de sua atitude espontânea “não quero saber nada disso” ele afasta suas
desconfianças e eximi-se de sua responsabilidade no problema que desencadeia o
movimento, isto é, eximi-se de ter que refletir sobre e posicionar-se frente a, no caso, o
problema da concentração das terras.

Podemos dizer então que com aquilo que o discurso conservador entende como
“felicidade” é que o sujeito pode se eximir de suas responsabilidades o suficiente para não
se meter com as decisões políticas. Contudo, deve saber o suficiente para se sentir culpado
pelos resultados desta mesma decisão. Parece que é essa a estratégia manipuladora que
favorece a ideologia da lógica do capital.

Entendemos que é nesse tipo de manipulação – midiática e dos Aparelhos


ideológicos do Estado – da lógica do capital que Žižek (1996) afirma “categoricamente a

2
Contudo, sabemos que o sintoma é o que impede que se mantenha indefinidamente essa inércia entre a
apropriação da lógica do capital pelo sujeito e da apropriação do sujeito por essa lógica.

61
existência de uma ideologia qua matriz geradora que regula a relação entre o visível e o
invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como as mudanças nessa relação.” (p. 7). Por
essa via a lógica do capital se apropria do neurótico.

Ora, o sujeito neurótico, por “não querer saber nada disso” do encontro com uma
transformação social, adere à ideologia do consumo na lógica do capital para não ter que
lidar com esse encontro, dando oportunidade para que a ideologia regule o que o sujeito
deve ou não saber. Daí o sujeito se entrega ao consumo na busca da foraclusão do objeto a.
Dessa maneira, o neurótico expressa sua alienação ao sistema capitalista e busca a
completude inatingível no consumo de mercadorias, se apropriando da lógica do capital
tomando a dimensão da ideologia do impossível de escapar desta lógica, como uma
maneira de evitar o trauma de efetivamente arriscar alternativas a ela. E com essa promessa
de foraclusão do objeto a, o sujeito se descompromete com o social e é por essa via que ele
se apropria da lógica do capital numa alienação ideológica que favorece a classe dominante.

Žižek (1996) aponta que o que sedimenta o posicionamento do sujeito alienado à


ideologia da lógica do capital é o fato de ele não querer ver a realidade contraditória.
Através do “não quero saber nada disso” apontado por Lacan (1972/1972, p. 9), o sujeito
age como se houvesse algo por trás da realidade que fosse da ordem do gozo Real, algo
traumático demais para ser encontrado. Porém, ao mesmo tempo, o sujeito busca recuperá-
lo (Real) através do gozo do consumo na lógica do capital, buscando as garantias de gozo
sem correr riscos. Ele busca o gozo perdido que é suposto ter existido (mas que de fato
nunca existiu), ao invés de arriscar um novo gozo. Daly (2006) nos dirá que para Žižek:

A ideologia não apenas constrói uma certa imagem de realização, mas também se
esforça por regular um certo distanciamento dela. Por um lado temos a fantasia
ideológica de nos reconciliarmos com a Coisa (da realização total), mas, por outro,
temos a ressalva implícita de não nos aproximarmos dela em demasia. A razão
(lacaniana) disso é clara: quando nos aproximamos demais da Coisa, ela
despedaça/evapora, ou provoca uma angústia e uma desintegração psíquica
insuportáveis. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 19)

62
Por isso, o encontro com o Real é impossível, mas isso não impede que o sujeito o
busque ao mesmo tempo em que o teme. Sabemos que o Real de fato é traumático demais
para ser encontrado e, portanto, impossível. Aparece aí uma questão: se o Real é
impossível, isso não nos paralisa? O que podemos fazer? Žižek (2006) nos explica que:

De certa maneira, você realmente se depara com o impossível. Não se pode dizer
que isso seja mera ilusão transcendental de confundir um objeto empírico com a
Coisa impossível. A vagina é impossível, mas não é uma simples ilusão. A questão
é que os objetos da pulsão são esses objetos privilegiados que, de algum modo, são
duplos deles mesmos. (...) Há uma espécie de distância segura dentro do próprio
objeto: não é uma distância entre o objeto e a das Ding. (ŽIŽEK & DALY, 2006,
p. 86, grifos do autor)

Convencido da distância entre o objeto e a Coisa Real, mas também acreditando que
o impossível é Real, Žižek (2006) nos diz: “Estou cada vez mais convencido de que há pelo
menos três noções de Real” (p. 87) e nos apresenta as três noções de Real que são: Real
real, Real simbólico e Real imaginário3. Ele acrescenta que “O importante é que essas três
idéias – Real, Imaginário e Simbólico – de fato se entrelaçam num sentido radical, como
uma estrutura de cristal em que os diferentes elementos se projetam e se repetem em cada
categoria” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 88-89). Daí podemos entender que o Real não é
sempre o “Real implacável”, pois “o resultado disso tudo é que para Lacan, o Real não é
impossível no sentido de nunca poder acontecer (...) Não, o problema do Real é que ele
acontece, e esse é o trauma. A questão não é que o Real seja impossível, mas que o
impossível é Real” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 88, grifos do autor).

3
O Real real seria a Coisa horrenda, cabeça da Medusa. O Real simbólico seriam as fórmulas científicas sem
sentido. Não há nelas horizonte de significação, consistem em fórmulas que simplesmente funcionam. Isso
não é significação; é precisamente o Real sem sentido baseado num saber científico. O Real imaginário seria
um “não sei quê” que incomoda, algo impreciso totalmente insubstancial, esse é o ponto do Real no Outro, o
que leva a sociedade a conceber os preconceitos (ŽIŽEK, 2006, p. 87).

63
Isso traz consequências para a definição marxista de ideologia, na qual a idéia
predominante era de ideologia como uma ilusão, como se tivesse algo por trás dessa ilusão
ideológica, ou seja, de que os indivíduos “não sabem o que fazem”. A consequência
apontada por Žižek (1996) é que a própria ideologia se sustenta a partir de uma ilusão e que
não há nada por trás dela:

Essa, provavelmente, é a dimensão fundamental da “ideologia”: a ideologia não é


simplesmente uma “falsa consciência”, uma representação ilusória da realidade;
antes, é essa mesma realidade que já deve ser concebida como

ideológica: “ideológica” é uma realidade social cuja própria existência implica o


não conhecimento de sua essência por parte de seus participantes, ou seja, a
efetividade social cuja própria reprodução implica que os indivíduos “não sabem o
que fazem”. “Ideológica” não é a “falsa consciência” de um ser (social), mas esse
próprio ser na medida em que ele é sustentado pela “falsa consciência”. (p. 305-
306, grifos do autor)

As alterações que Žižek propõe para a leitura sobre a ideologia tradicional têm a ver
com sua maneira de descrever o Real (Real real, Real Simbólico e Real Imaginário). Por
que? Como o próprio Žižek (2006) esclarece:

É claro que o Real como impossibilidade é um a priori, mas há constelações


diferentes no tocante a como se lida com o Real. (...) O importante é que o Real
como impossível admite constelações sociais radicalmente diversas. Essa
constelação transcendental em que o Real é o vazio é apenas uma das constelações
possíveis. (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 95, grifos do autor)

Neste percurso, Žižek (2006) demonstra o significado do a priori como algo no


Real que é impossível de ser alcançado, vivido ou tocado, é apenas suposto, mas
inatingível. Por outro lado há uma constelação do Real que é simbolizável e, portanto,
modificável. Isso, aliás, nos permite fazer uma articulação com aquilo que Askofarè (2009)
abordou quando discutiu sobre o que é histórico e o que é trans-histórico. Vale destacar

64
quando ele esclarece que não devemos confundir o conceito de subjetividade, histórico,
como produto da linguagem em determinada cultura ou época, com o conceito de sujeito da
psicanálise, que trata de uma estrutura trans-histórica presente em qualquer época ou
cultura.

Essa articulação é possível ao passo que Žižek (2006) também entende essa questão
da mesma maneira, pois concorda com essa ambiguidade no Real, assinalando que há uma
constelação a priori (trans-histórica) do Real, mas que isso não significa, de maneira
alguma, que o Real represente algo imutável, pois há a constelação simbólica do Real como
uma constelação que permite modificações (históricas). Existe um a priori (trans-histórico)
na ideologia pelo fato de que a própria ideologia é uma construção a partir da linguagem,
mas há também nela algo modificável a partir deste a priori (que é a modificação histórica)
no fato de que “Ideológica” é uma realidade social cuja própria existência implica o não
conhecimento de sua essência por parte de seus participantes. Isso implica que seus
participantes “não sabem o que fazem”, ou seja, ideológico é o ser sustentado pela falsa
consciência com a condição de que não haja verdadeira consciência.

Do ponto de vista do a priori (trans-histórico) tudo é ideologia no sentido de que ela


é sempre uma falsa consciência, é sempre uma representação ilusória da realidade, isto é, a
ideologia é a própria realidade que só pode ser concebida como falsa consciência
ideológica, desde que não apostemos em que haja por trás dela uma verdadeira consciência.
Considerar a existência de algo por trás da ideologia e buscar essa verdade só acarretaria
em outra ideologia.

O Real lacaniano só existe a partir do que podemos supor sobre ele, ou seja, a partir
de um a priori ilusório, assim como a ideologia só pode existir a partir do que podemos
supor sobre ela, uma suposição sempre ilusória. Tocar no que há por trás dessa ilusão é
impossível, pois ela só pode ser suposta a partir da linguagem, nada seria suposto se não
houvesse linguagem. Assim como não há falsa consciência do Real, também não há falsa
consciência da ideologia, pois é a própria impossibilidade do encontro com o Real que
proporciona a existência dela.

65
Nesse sentido a ilusão ideológica suposta pela lógica do capital, é uma ilusão cínica
de busca do mais-de-gozar pela foraclusão do objeto a. O que eles não sabem é que a ilusão
está em que o que eles buscam (a completude) é impossível. Ou seja, eles não têm
consciência da ilusão. A ilusão vigente na lógica do capital é a do cinismo, ou seja, a ilusão
de que através do cinismo se possa alcançar o Real.

Na visão marxista tradicional a ilusão é situada no saber: “eles não sabem o que
fazem”, esta é a fantasia ideológica da busca de harmonia social, ou seja, a fantasia
ideológica de nos reconciliarmos com o Real. Žižek (1996), por sua vez, aposta na
ideologia do cinismo proposta por Peter Sloterdijk: “eles sabem muito bem o que estão
fazendo, mas mesmo assim o fazem”4. Neste caso, a ilusão é situada no fazer. A ideologia
do cinismo se caracteriza pela busca de benefícios para a classe dominante, e na
manipulação da sociedade levando o sujeito ao descomprometimento com as questões
sociais, priorizando somente seus próprios interesses, permitindo que a sociedade mergulhe
num pacto perverso de busca da foraclusão do objeto a.

Porém, o Real real é impossível para todos, e a ilusão do capitalista reside no fato
de eles acharem que o Real real pode ser alcançado através da mais-valia como se ela
(mais-valia) pudesse proporcionar o mais-de-gozar. O mais-de-gozar, no entanto, é
inatingível também para o capitalista. Sendo assim, apoiado na teoria lacaniana, Žižek
(2006) afirma que é a linguagem que proporciona a existência do Real real, ou seja, o Real
real só existe enquanto inatingível, enquanto aquilo que pode ser dito através da linguagem.
Nas palavras do autor: “A cisão está no próprio objeto” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 86). Se
a cisão está no objeto significa, mais uma vez, que a promessa de gozo pleno proposta pela
lógica do capital é impossível.

No início de nosso trabalho assinalamos como Safatle (2008) afirma que na


sociedade da insatisfação administrada, “ninguém realmente acredita nas promessas de
gozo veiculadas pelo sistema de mercadorias (já que são postas para serem descartadas), a
começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada vez mais auto-irônica.” (p.

4
Apud Žižek, 1996, p. 313.

66
133). Uma das contribuições desse autor foi nos ensinar que a ideologia cínica da lógica do
capital está em seduzir o sujeito a buscar o objeto a no consumo de mercadorias
incessantemente, sabendo de antemão que essa busca serve apenas para sustentar a lógica
do capital. Daí, podemos entender que a ideologia é cínica, mas que o neurótico, nesta
“perversão generalizada”, nutre essa ideologia quando busca a foraclusão do objeto a pelo
consumo, sendo assim, ele (neurótico) também é politicamente responsável pela
manutenção desta ideologia.

Enfim, essa dupla e recíproca apropriação da lógica do capital pelo sujeito —


valendo-se de sua posição “não quero saber nada disso” — e do sujeito pela lógica do
capital — valendo-se do fato de não oferecer subsídios para que o sujeito componha seu
particular e substancial posicionamento político —, ambos na busca da foraclusão do objeto
a, somam-se como características fundamentais da alienação do sujeito frente à ideologia
da lógica do capital de não responsabilidade do sujeito.

b – Para uma subversão da lógica capitalista: arriscando outros impossíveis com


Žižek

Até agora assinalamos que quando Žižek fala de “Arriscar o Impossível”, sua
proposta não é de completude, mas sim, de um projeto sempre inacabado que permita
arriscar quantas vezes for necessário, e que sempre será necessário já que o desejo do
sujeito sempre insiste nos sintomas em relação a qualquer proposta. A proposta de Žižek é
de que não há e nunca haverá uma teoria social que possa ser considerada acabada já que o
próprio sujeito é um ser inacabado por excelência e que, pensada a possibilidade de
harmonia social, isso não é possível levando em conta que o sintoma é social porque todo
sujeito tem sintoma.

O sintoma como formação substitutiva é a própria barra do sujeito aparecendo como


impossibilidade de tocar no recalcado. Assim, não há como o sujeito se livrar do sintoma,
pelo fato de que o sintoma de todos os sujeitos aparece na ideologia social, da mesma

67
maneira que ocorre com o social, ou seja, não se pode levantar todas as amarras da
ideologia. Desse modo, para Žižek, arriscar o impossível é uma forma de manter a tensão
necessária para possibilitar mudanças políticas e sociais constantes, sempre entendidas
como um projeto inacabado. Portanto, manter a tensão é uma necessidade para que se possa
sempre estar disponível para criar o novo ao invés de nos mantermos no impossível do
capitalismo que é sempre estar disponível numa direção repetitiva: consumir.

Mas o que ainda faltaria dizermos? Falta apresentarmos o que Žižek propõe para a
subversão da lógica capitalista. Em linhas gerais poderíamos dizer aqui que a proposta de
Žižek (2006) é de que é possível uma transformação social fora das coordenadas do
capitalismo, ele defende que é preciso que o sujeito se implique com sua margem de
liberdade para poder arriscar outros impossíveis, diferentes do impossível da lógica do
capital, apontando que “é preciso correr o risco de tomar uma posição (ŽIŽEK & DALY,
2006, p. 60)”.

A possibilidade encontrada por Žižek frente ao impossível do capitalismo é o Ato


político. E o que seria o Ato político? Afinal, como o próprio Žižek (2006) reconhece,
nem todo ato é um Ato político. O autor marca que o que autentica um Ato é a posição do
sujeito diante do impasse simbólico, afinal, o que o sujeito pretende com seu ato somente
é compreensível após a realização do mesmo. Na concepção de Žižek, um ato praticado
apenas para evitar uma situação aparentemente sem solução simbólica é falso. Ele aponta
que “evidentemente um Ato é sempre uma intervenção especifica num contexto sócio-
simbólico; o mesmo gesto pode ser, dependendo desse contexto, um Ato ou uma postura
vazia e ridícula.” (ŽIŽEK, 2003, p. 175). Na seqüência Žižek (2003) dirá que um Ato:

(...) é um passo no desconhecido, sem garantias quanto ao resultado final – por quê?
Porque um Ato altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere.
Essa falta de garantia é o que os críticos não podem suportar: querem um Ato sem
risco. (...) Resumindo, parafraseando Robespierre, os que se opõem ao “ato
absoluto” se opõem também ao ato como tal, querem um ato sem ato. (...) O Ato
acontece numa emergência em que alguém tem que assumir o risco e agir sem
legitimação engajado numa espécie de aposta pascaliana de que o Ato em si há de
criar as condições para sua própria legitimação “democrática retroativa.” (p. 175-
176)

68
Como podemos perceber na citação anterior, para Žižek (2006) o verdadeiro Ato é o
Ato sem garantias. Ou seja, a essência do verdadeiro Ato é que ele ocorra sem certeza de
que as coisas irão ocorrer do jeito que se espera. Que o ato ocorra e que só depois
poderemos saber o resultado. Sendo assim, podemos inferir que um Ato que não se
configura em Ato pode ser percebido quando um movimento social busca garantias apenas
para aqueles que esse movimento defende, ou seja, fica parecendo que ao resolver o
problema determinado por um movimento, todos os problemas estarão resolvidos. Como os
movimentos ecológicos já citados neste trabalho, que podem se tornar nocivos por dois
motivos: primeiro por se adaptarem à lógica do capital concebendo algum tipo de consumo
e segundo por fazer as pessoas pensarem que seus movimentos paliativos são um Ato
político.

Os movimentos multiculturalistas se encaminham no mesmo sentido, e também


podem conter os mesmos elementos problemáticos: primeiro por sempre admitirem o
consumo de mercadorias como forma de promover laço social, segundo porque os sujeitos
acreditam que ao resolverem seu problema não há mais nada a fazer, quando de fato as
pequenas lutas só fazem seus militantes fecharem os olhos para uma dimensão mais
profunda do problema. Os movimentos multiculturalistas acabam muitas vezes por se
concretizarem como “ato sem Ato”, pelo fato de a lógica do capital admitir estes
movimentos de acordo com certas normas determinadas, admitindo-os desde que se
adéquem à sua lógica. Ou seja, os movimentos multiculturalistas acabam se associando à
lógica do Capital.

Žižek aborda problemas inclusive nas formas de crítica ao elitismo multicultural,


por elas correrem o risco de abonar o populismo neoconservador através de suas noções de
comunidade e cidadania como forma de resistência ao capitalismo, sem perceber que está
sendo cooptado por ele. Nas palavras do autor:

69
O que esses defensores de esquerda do populismo não percebem é que o populismo
de hoje, longe de representar uma ameaça ao capitalismo global, continua sendo seu
produto inerente. Paradoxalmente, os verdadeiros conservadores de hoje são antes
os “teóricos críticos” de esquerda que rejeitam o multiculturalismo liberal e também
o populismo fundamentalista, os que percebem com clareza a cumplicidade entre o
capitalismo global e o fundamento étnico. (...) O problema é que essa própria forma
de espaço político está cada vez mais ameaçada pela investida da globalização.
(ŽIŽEK, 2005, p. 38)

Žižek (2005) afirma que a politização de lutas particulares deixa intacto o processo
global da lógica do capital, justamente por serem admitidos por ele (processo global).
Dessa maneira, os militantes de determinadas lutas particulares têm a sensação de estarem
obtendo a mudança requerida, sem “querer perceber” (o “não quero saber nada disso” de
Lacan) que eles (adeptos das lutas particulares) é que estão admitindo, no interior de sua
luta, as regras da lógica do capital.

O que na verdade ocorre é que essas lutas particulares (multiculturalismo liberal,


novo populismo e tentativa de abertura do espaço político), que se mostram como
resistência à lógica do capital, são pseudo-lutas que oferecem pseudo-resistências a ela, já
que, no fim das contas, essas pseudo-resistências acabam caindo nas armadilhas da dialética
ideológica das aparências.

Mas como a lógica do capital administraria essa aparência das pseudo-resistências?


A lógica do capital faz pequenas concessões aos requerentes de algumas exigências –
concessões admitidas apenas na aparência, mas a situação permanecendo a mesma, com a
finalidade de atraí-los para que se associem à lógica do capital e ajudem a sustentá-lo – e
seus requerentes, na maioria das vezes, as percebem como concessões legítimas, quando o
que na verdade ocorre é o contrário: essas pseudo-resistências é que se adéquam às regras
da lógica do capital. Nas palavras de Žižek (2005), “a politização da série de lutas
particulares que deixa intacto o processo global do capital é insuficiente” (p.39). Aliás, o
fato de as tais lutas particulares não afetarem o processo global da lógica do capital leva
Žižek (2005) a levantar uma questão: “como reinventar o espaço político nas atuais
condições de globalização?” (p. 39).

70
É certo que Žižek responde essa questão em vários de seus textos e seria pouco
interessante repetir seus exemplos aqui. Como síntese de sua posição talvez seja importante
assinalar que o autor insiste em afirmar que o problema não está somente no fato de que
essas soluções são falsas, mas também porque não existem soluções verdadeiras. O
importante é que a estrutura do sujeito o permite questionar toda e qualquer transformação
que venha a ocorrer, e ainda devemos contar com a possibilidade de uma resistência contra
a transformação social fora das coordenadas da lógica do capital, e isso é admissível pela
psicanálise.

A ambiguidade da linguagem permite o questionamento do sujeito a partir de


qualquer que seja a proposta de transformação social, como no conflito entre Creonte e
Antígona, mas é isso que é o Ato sem garantias, um Ato de desejo, e Antígona estava
disposta a pagar com sua vida, e pagou. Assim como Antígona, é preciso estar disposto a
correr riscos, pois as mudanças verdadeiras geralmente são dolorosas.

Žižek (2005) concorda plenamente com a postura de Antígona quando afirma que
não podemos ser imparciais, que é preciso tomar partido. Para o autor, permanecer
imparcial é tomar o partido vigente da lógica do capital, ou seja, a própria imparcialidade
denota uma tomada de partido, pois não interferir no social significa concordar com o que
está vigente, portanto, ficar imparcial é impossível.

Já que não há imparcialidade, ficam duas opções: concordar ou não com a sociedade
vigente da lógica do capital. Se o sujeito opta por concordar, ele não precisa fazer nada,
basta aceitar a situação e buscar a foraclusão do objeto a no consumo, essa é a proposta
vigente, mas se o sujeito não concorda, não basta abster-se, é preciso tomar posição.

Em seus escritos, Žižek aponta todo o tempo para a ambiguidade da linguagem e


torna explícita a idéia do quanto o poder da linguagem é convincente quando não nos
pomos a pensar, pois através dela é possível obter “dois pesos e duas medidas”. Pensando a
opção do sujeito em aceitar a sociedade vigente da lógica do capital, Žižek (2006) traz a

71
ética utilitarista5 para o interior de sua discussão, apontando que ela se utiliza da seguinte
estratégia: “se eu souber o que move você, se conhecer as causas determinantes do seu
modo de agir, poderei manipulá-lo de acordo com essas causas” (ZIZEK, DALY, 2006, p.
164), mas aí temos novamente o aparecimento da questão do “não quero saber nada disso”
no sujeito, pois é esta opção do sujeito que o torna manipulável, opção que permite à ética
utilitarista a se utilizar da linguagem para propor pesos e medidas que favoreçam a classe
dominante.

Porém, se o sujeito optar por não concordar com a sociedade vigente da lógica do
capital, não poderá mais aceitar o que Žižek (2003) chamou de “análises viciadas” (p. 144),
é preciso buscar análises mais realistas ao invés de aceitar as análises repetidas. Ou seja, na
sociedade contemporânea há a lógica do capital exercida pelos políticos dominadores com
seus pesos e medidas que são usados de acordo com seus interesses. Žižek (2003) traz o
exemplo da catástrofe do “11 de setembro”, trazido pela mídia como uma tragédia acolhida
pelo mundo todo, e é claro que o acontecimento foi uma tragédia. Mas o fato é que todos os
dias, principalmente nos países do terceiro mundo acontecem tragédias muito mais
horripilantes, com número de vítimas muito maiores e para as quais também deveríamos
abrir nossos olhos se optarmos por não aceitar as análises viciadas.

Para discutir este aspecto ambíguo da linguagem e como ele é utilizado pela mídia
numa situação brasileira, podemos pensar na seqüência de tragédias ocasionadas pelas
chuvas a vários anos. Todos os anos somos convocados, através da mídia, a fazermos
doações para ajudar as vítimas dessas tragédias. Ano após ano, nada é feito para resolver
esse problema e as vítimas, muitas vezes, são consideradas culpadas por residirem em
locais de risco. Ainda assim, as tragédias causadas pelas enchentes têm tomado proporções
mais graves a cada ano que passa. E a pergunta que devemos formular para além das
análises viciadas – que consideram essas tragédias como causa natural (já que não podemos
parar as chuvas), ou, em última instância constroem os chamados “piscinões” para abafar as

5
Na ética utilitarista: “a preocupação central é saber como um governante sábio deve levar em conta aquilo
que move as pessoas, a fim de organizar uma sociedade em que elas estejam condicionadas a agir de tal
modo que seus atos tragam o máximo benefício possível, não só para elas, mas para a sociedade” (ŽIŽEK &
DALY, 2006, p. 164).

72
poucas críticas ao setor político, mas que não passam de soluções paliativas – talvez seja:
Por que isso acontece todos os anos? A nível político, por que nada é feito de consistente
em relação a essa repetição?

Aí aparece novamente a dupla que permite a “perversão generalizada”. O governo


não toma providência e propõe apenas as soluções paliativas e “análises viciadas” – de
como devemos ser solidários com as vítimas – e a sociedade não busca análises mais
realistas da situação. Este é apenas um dos problemas graves que envolve nosso país e que
é tratado como qualquer outro problema deste nível de gravidade: não há interesse para a
lógica do capital resolver tais questões.

Para Žižek (2006), contra a universalidade das análises viciadas, a proposta é a da


única universalidade que realmente trata da autonomia do sujeito: a universalidade do
negativo, ou seja, da pulsão de morte. A pulsão de morte, como indica Lacan, deve ser
entendida, não apenas como algo destrutível, mas também como a possibilidade de criar o
novo, como uma força de criação a partir do vazio. Tratando deste vazio, Žižek (1996)
assinala ainda que:

A ideologia não é tudo, é possível assumir um lugar que nos permita manter
distância em relação a ela, mas este lugar de onde se pode denunciar tem que
permanecer vazio, não pode ser ocupado por nenhuma realidade positivamente
determinada; no momento em que cedemos a essa tentação voltamos à ideologia.
(ŽIŽEK, 1996, p. 22-23)

Este lugar vazio é a aceitação da negatividade do sujeito enquanto dividido. A


pulsão de morte é vista como autonomia verdadeira por buscar o desejo sem garantias e por
não poder ser manipulada no sentido da impossibilidade de eliminar o sintoma. A
psicanálise, nesse sentido tem muito a contribuir, pois como o próprio Žižek (2006)
escreve: “A psicanálise é a mais vigorosa afirmação de autonomia. A pulsão de morte é o
nome da autonomia.” (ŽIŽEK & DALY, 2006, p. 167).

Do mesmo modo, é preciso que o sujeito esteja disposto a reconhecer a nocividade


da lógica do capital e trocar o “não quero saber nada disso” pelo “é necessário saber disso”,
73
que pode ser doloroso. Nas palavras de Žižek (2008), “seria preciso concentrar-se na
demanda como caminho para a pulsão, ou seja, o que se precisa é de uma “demanda que
não se dirija mais a um Outro” (p. 392). Para subverter a lógica do capital devemos
efetivamente arriscar o impossível, somente assim conseguiremos promover uma
transformação social radical que nos leve a outros impossíveis e assim sucessivamente.

Antes de finalizarmos nosso trabalho vale transcrever uma última contribuição de


Žižek (2006):

Para realmente modificarmos a sociedade vigente, a mudança não se produzirá nos


termos dessa tolerância liberal, explodirá como uma experiência mais
despedaçadora. É disto, creio, que necessitamos hoje em dia: dessa consciência de
que as verdadeiras mudanças são dolorosas. (...) Se definirmos a violência política,
não como aposta ao trabalho, mas justamente como a suprema versão política do
“trabalho negativo” (...) a violência deverá ser primordialmente concebida (...)
como uma reforma violenta da própria substância do ser do sujeito. (ŽIŽEK &
DALY, 2006, p. 150)

74
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Contra o imperativo do ter, a psicanálise propõe a ética da


falta-a-ter, que se chama desejo, e a gestão, não do capital
financeiro, mas do capital da libido, por definição sempre
no negativo. Contra o imperativo da competitividade
neoliberal, a ética da diferença. (QUINET, 2006, p. 22)

Como vimos no decorrer do trabalho, lutar contra a lógica do capitalismo de


consumo não é tarefa fácil, pois verificamos a influência da tecnociência aliada à mídia e
aos Aparelhos Ideológicos do Estado, em favor do capitalismo, como fatores importantes
que geraram a transformação do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo.

Porém, promover uma transformação social fora das coordenadas do capitalismo,


além de não ser impossível é urgentemente necessário para que se possa trazer à tona a
dignidade do status de sujeito desejante da psicanálise, na qual a proposta de Žižek é que
somente a partir dele, do sujeito desejante, é possível promover uma transformação social
fora das coordenadas da lógica do capitalismo, “arriscando o impossível”.

Para tanto, é preciso que o sujeito veja no capitalismo um inimigo por sua busca
pela foraclusão do objeto a, ou seja, pela busca da eliminação de seu status de sujeito
desejante. Para ver o Capitalismo como inimigo é preciso que o sujeito se implique com
sua contribuição e condescendência com a lógica do capital. É preciso que o sujeito se
implique com o social para promover mudanças verdadeiras na sociedade, deixando de
aceitar as análises viciadas promovidas pelos analistas simbólicos que buscam beneficiar a
classe dominante.

De forma geral, com este trabalho buscamos afirmar a inconciliabilidade dos


conflitos sociais e apontar o fato de que o sujeito deve buscar uma análise mais profunda do
que as “análises viciadas” apontadas pela mídia e pelos Aparelhos Ideológicos do Estado ou
do que as discussões intelectuais contraproducentes. Além disso, buscamos afirmar que o
sujeito deve olhar para a situação de maneira global, incluindo a questão dos excessos do
capitalismo como provocador das situações desastrosas em todo o mundo.

Não podemos mais deixar a lógica do capital de fora da responsabilidade das


catástrofes globais. Consequentemente, isso indica a necessidade de nossa implicação e
responsabilidade em criticar o capital e promover Atos que façam resistência de fato à sua
lógica. Diferente, por exemplo, das lutas multiculturais que, paradoxalmente, alimentam a
lógica do capital ao invés de buscar combatê-la. É pelo fato de a via da separação estrutural
instaurar a margem de liberdade expressa pelo objeto a como causa de desejo no sujeito, é
que ele, o sujeito, pode promover uma transformação social que escape do universalismo
pregado pela lógica do capital. Isso considerado, “a universalidade deve ser entendida como
uma tarefa sem fim de tradução, uma constante reorganização da posição particular de cada
um” (ŽIŽEK, 2003, p. 85), onde cada um deve buscar arriscar outros impossíveis.

A idéia, certamente, não é propor que a psicanálise seja a solução de todos os


problemas sociais implícitos na lógica do capital a ponto extingui-lo e tomar seu lugar, mas
queremos propô-la como uma teoria que busca alternativas para que o sujeito não fique
totalmente mergulhado nesta lógica. É preciso entender que as verdadeiras mudanças são
dolorosas, mas que administrar a realidade não significa ausência de desconforto. Para
perceber isso basta observar as condições miseráveis da maioria dos seres da linguagem no
planeta, e para ver mais de perto ainda, podemos olhar para as condições dos seres da
linguagem em nosso próprio país.

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