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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL E


POLÍTICAS SOCIAIS

LARISSA RODRIGUES ZAQUEO

ABOLIR, NÃO REFORMAR:

Desigualdade racial, poder disciplinar e abolicionismo penal.

SANTOS
2021
LARISSA RODRIGUES ZAQUEO

Abolir, não reformar: Desigualdade racial, poder disciplinar e


Abolicionismo Penal.

Dissertação de Mestrado Acadêmico apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Políticas Sociais da Universidade Federal de São
Paulo, como exigência para obtenção do título de
Mestre.

Orientador: Prof. Dr. José Fernando Siqueira da


Silva.

SANTOS
2021
LARISSA RODRIGUES ZAQUEO

ABOLIR, NÃO REFORMAR: Desigualdade racial, poder disciplinar


e Abolicionismo Penal.

Dissertação de Mestrado Acadêmico apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e
Políticas Sociais da Universidade Federal de São
Paulo, como exigência para obtenção do título de
Mestre.

Orientador: Prof. Dr. José Fernando Silveira da


Silva.

Aprovado em:

_______________________________________ _____________

Profa. Dra. Fabiana Carvalho 22/09/2021

_____________________________________________ _______________

Profa. Dra. Maria Liduina de Oliveira e Silva 22/09/2021

_____________________________________________ ________________

Prof. Dr. Stéfanis Silveira Caiaffo 22/09/2021

_____________________________________________ ________________

Profa. Dra. Onilda Alves do Carmo (suplente) 22/09/2021


DEDICATÓRIA

Aos que vivem o presente, celebram o passado,


e constroem o futuro.
À Profa. Dra. Andrea Almeida Torres (in
memorian) e ao Gabriel Leistenschneider, por
terem me ensinado, cada um à sua maneira, a
tomar impulso e me jogar no novo.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente a quem pisou neste chão antes de mim e lutou, ainda que verbalmente,
pela liberdade através dos séculos, é essa luta que nos une. Agradeço aos Orixás e aos guias
espirituais que providenciaram o caminho que trilhei e colocaram felizes coincidências
quando a luz se apagou e quase desisti, agradeço aos meus pais pelo apoio moral.

Agradeço à minha querida amiga Andrea Almeida Torres pela amizade, fé em mim e
indicações de caminhos e pessoas para buscar caso nosso plano desse errado (como deu); no
mesmo pé agradeço à minha irmã Danielle Fortes por ter estado, literalmente, ao meu lado
desde o momento que decidi tentar entrar neste mestrado, que desceu a serra e torceu por mim
enquanto fazia a prova, que comemorou quando passei, que me deu todo o suporte durante o
difícil processo de luto e revisou meu texto. Valeu, Dani, por ouvir meus falatórios, rompantes
de raiva e explicações sobre este trabalho (e outros), por todo o apoio e fofuras nos momentos
complicados, e celebrações nos bons.

Aos Zaqueos que pisaram neste chão antes de mim e me ensinaram a liberdade e
questionamento a hierarquias; às mulheres Rodrigues por não aceitarem a desistência.

À minha família que mora longe, e é a que escolhi. Taís, Erich e Bielzinho
Leistenschneider, pela preocupação, pelos ouvidos e refeições divididas a milhas de distância;
à Mayara Oliveira, por todo apoio, carinho e irmandade e à Flavia Lopes, por continuar me
apoiando e acreditando em mim.

Ao Matheus Celestino, por ter sido quase que meu acompanhante terapêutico. Saímos
do buraco e chegamos à superfície, mais libertários e inteiros… Ou quase; calos só nascem
com esforço e insistência, né?

As pessoas inesquecíveis: Brenda Barbosa , Felipe Tambelli, Akanke, Valéria


Ribeirinho, Rebeca Oliveira, Cesinha, Marcelle Mirim, Aline Salinas, Aline Passos, Wildney
Moreira, Ketinho, Lucas Foster, Fernando Takahashi, Bruna Fernanda, Sheen e Olivia Hublet.

Aos amigos que me ouviram e me ensinaram a olhar a vida por outros prismas: Natalia
Figueiredo, Thais Moraes, Henrique Oliveira, Renato Faustino, Murilo Arruda, Mariana
Arraez e Thiago Dias (Archer).
Ao Wellington pelo estoque de chocolate, cafés, pizzas, massagens, paciência, carinho
e colo. Tem que ter coragem pra se meter com alguém que está na reta final de um mestrado
construído em período TÃO tenso.

Ao querido Dr. Paulo César Romão pela amizade, apoio, leitura do trabalho, cafés de
péssima qualidade, cigarros, parcerias e o constante trabalho em tentar melhorar, fazer o
“certo”, ou sei lá o que, falando em artistas, agradeço à professora e cantora Thaíni
Cavalcanti, por ter me ajudado a superar e expressar de maneira criativa tudo que me
atravessou nestes tempos doidos.

Às pessoas que toparam as aulas de inglês nestes três anos, sem incentivo à pesquisa;
vocês foram tudo. À quem confiou em mim para as revisões de suas dissertações, e ao
Lucas Delfin pela ajuda! Agradeço às mestras Juliana Laffront, Veridiana Paes de Barros e
Aline Salinas (de novo!).

À minha ex-aluna e jornalista incrível, Bárbara Libório, pelo curso de jornalismo de


Dados que salvou essa pesquisa. Meu primo Vinicius Lourenço, pelas dicas de cursos de
Python. Me senti muito “hacker” mexendo nas bases de dados do DEPEN. Agradeço também,
à todos os programadores e jornalistas que deixaram bases lindas e simples para serem
consultadas por pesquisadores desesperados e confusos com a tecnologia.

Agradeço à Bia Carvalho, pela qualificação e parceria de luta na ABEPSS e à todas as


militantes da Sul II. Construir este movimento tem sido um delicioso desafio e um exercício
contínuo de apreensão da realidade e busca de respostas coletivas em períodos tão sombrios.
Eu creio nas flores que nascem em meio ao asfalto.

Agradeço também aos militantes da AMPARAR, em especial Railda e Miriam que


compreenderam a necessidade de me afastar (ainda que isso me fizesse me sentir bem mal)
para passar por essa fase. Valeu, Miltão, pelo aprendizado; Lena, Leo, Pedro, Natalia Lago e
Fábio pela parceria. Gabrielle Nascimento e Lucas Alencar, que inclusive não me deixaram
perder de vista a luta quando fiquei presa em um apartamento, surtando e juntando peças.

Muito amor e gratidão a essas pessoas que me viram crescer, me desafiaram, puxaram
a minha orelha, acolheram e sofreram comigo. Agradeço (mais uma vez) as caronas e todas
aquelas coisas que se passam nas curvas da estrada de Santos, vocês não me deixaram desistir
e se preocuparam, se alegraram com meus retornos e minha resistência pessoal: gratidão
Liduina Oliveira , Priscila Cardoso, Claudia Mazzei Nogueira ,Rosangela Batistoni, Renata
Gonçalves, Terezinha Santos, Tania Diniz e Sonia Nozabielli. É muito doido pensar que quase
tudo que sei sobre Serviço Social foi ensinado por vocês, porque são nove anos de estudo e
trabalho; a relação que se constrói assim é muito particular, e as levarei para sempre comigo.

Deste mundão do Serviço Social, agradeço ao meu orientador Prof. Dr.


José Fernando Siqueira da Silva , sem você isso aqui não teria saído, não! Agradeço a
paciência, os empurrões e o esforço de me orientar. Acho que você me conheceu no meu pior
momento acadêmico e pessoal, mas eu duvido que tivesse alguém muito bem neste período de
2019 a 2021! Ainda assim, agradeço por aceitar o desafio de orientar uma abolicionista penal,
foucaultiana, anarquista com alma de pinscher e em crise com um mundo acadêmico, que
resolveu mostrar sua pior faceta no pior momento possível.

Fecho esses agradecimentos, muito pessoais, com o sujeito mais significativo:


Stéfanis Caiaffo , obrigada pela ajuda desde a qualificação e pela amizade e trabalho que
começaram com uma Larissa trêmula chegando em você (que estava de boa, lendo uma
revista no saguão da UNIFESP) e falando “professor, eu tenho uma ideia, você pode me
ouvir?”. Essa ideia está dando pano pra manga nesses quase dez anos, e não deve parar por
aqui. Valeu pela influência, as indicações (de leituras a discos) e paciência em entender que eu
caminho em espiral, como o rodopiar do vento de Iansã, mas não paro. O último registro de
contato que tive com Dea foi ela dizendo que tinha que seguir “com samba e abolicionismo
penal” — não é à toa que o app de músicas tocadas aleatoriamente me botou pra ouvir “O
samba é meu Dom”, de Wilson das Neves, ao escrever esta parte dos agradecimentos.

Se você, leitor buscando conhecer meu trabalho, teve a


curiosidade de ler quem eram as pessoas mais importantes
neste processo e chegou até aqui, eu te agradeço também.
EPÍGRAFE

“(...)Desde que uma teoria penetra em determinado ponto, ela se choca com a
impossibilidade de ter a menor consequência prática sem que se produza uma explosão, se
necessário em um ponto totalmente diferente. Por esse motivo, a noção de reforma é tão
estúpida e hipócrita. Ou a reforma é elaborada por pessoas que se pretendem representativas
e que têm como ocupação falar pelos outros, em nome dos outros, e é uma reorganização do
poder, uma distribuição de poder que se acompanha de uma repressão crescente. Ou é uma
reforma reivindicada, exigida por aqueles a quem ela diz respeito, e aí deixa de ser uma
reforma, é uma ação revolucionária que por seu caráter parcial está decidida a colocar em
questão a totalidade do poder e de sua hierarquia. Isso é evidente nas prisões: a menor, a
mais modesta, reivindicação dos prisioneiros basta para esvaziar o pseudoreforma *Pleven.”
Gilles Deleuze em conversa com Michel Foucault, disponível no livro “Microfísica do
Poder”.

“O corpo a morte leva


A voz some na brisa
A dor sobe pra’as trevas
O nome a obra imortaliza
A morte benze o espírito
A brisa traz a música
Que na vida é sempre a luz mais forte
Ilumina a gente além da morte
Venha a mim, óh, música
Vem no ar
Ouve de onde estás a minha súplica
Que eu bem sei talvez não seja a única
Venha a mim, oh, música
Vem secar do povo as lágrimas
Que todos já sofrem demais
E ajuda o mundo a viver em paz.”

Súplica, Nelson Gonçalves.


RESUMO

Este trabalho busca investigar as tecnologias de poder e as resistências à elas; focando no


Abolicionismo Penal. Com os objetivos de analisar os elementos principais da teoria
Foucaultiana, principalmente no que diz respeito à Biopolítica e Sociedade Disciplinar;
retomamos o processo de formação sociohistórica brasileira, a fim de compreender os
elementos fundamentais e perpetuados na desigualdade racial, que influi e consolida a
formação da classe trabalhadora no Brasil. Buscamos compreender também a relação das
estruturas do Estado Penal com o racismo, dando maior destaque aos considerados
“indesejáveis”; “underclass” e “puníveis” e, a partir do conceito de necropolítica, de
Mbembe, discutimos sobre as mudanças no poder de punir. Encerramos a discussão com o
condensamento de informações acerca dos abolicionismos penais teorizados, compreendendo
este movimento para além da lógica tribunal-prisão, colocando-o como construção de todos,
independente da atuação profissional. Este trabalho foi desenvolvido a partir de revisão
bibliográfica, com o acesso a documentos disponíveis online de algumas partes do mundo. Os
dados analisados provêm de Bancos de Dados e Hubs públicos, da internet, e foram
analisados e organizados nos programas: Google Database e Excel; dado o grande número de
informações.
Palavras-chave: Racismo, abolicionismo penal, biopolítica, necropolítica.
ABSTRACT

This work seeks to investigate the technologies of power and the resistance to them; focusing
on Criminal Abolitionism. In order to analyze the main elements of Foucault's theory, mainly
with regard to Biopolitics and Disciplinary Society; we resume the process of Brazilian
socio-historical formation in order to understand the fundamental and perpetuated elements of
racial inequality, which influence and consolidate the formation of the working class in Brazil.
We also seek to understand the relationship between the structures of the Penal State and
racism, giving greater prominence to those considered “undesirable”; “underclass” and
“punishable” and, based on Mbembe's concept of necropolitics, we discussed changes in the
power to punish. We end the discussion with the condensation of information about the
theorized penal abolitionisms, understanding this movement beyond the court-prison logic,
placing it as a construction for everyone, regardless of professional performance. This work
was developed from a bibliographic review, with access to documents available online from
some parts of the world. The analyzed data come from public Databases and Hubs, on the
internet, and were analyzed and organized in the following programs: Google Database and
Excel; given the large amount of information.
Keywords: Racism, penal abolitionism, biopolitics, necropolitics.
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14
INTRODUÇÃO 22
O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT 24
1.1 A genealogia: uma outra maneira de olhar a história 24
1.2 Poder Disciplinar 32
1.3 Biopolítica e biopoder 40
1.4 Considerações sobre uma “microfísica do poder”. 45
2. DO RACISMO AO ESTADO PENAL 47
2.1 Racistas, graças a Deus! 48
2.2 Racismo e Racionalidade 56
2.3 Racismo cultural e Estado Penal 74
3. UM MOVIMENTO CONTRA AS CORRENTES 80
3.1 A polícia da morte e a “máquina de moer pobre”. 81
3.1.1 O Estado Penal no Brasil 86
3.1.2 A Necropolítica 97
3.2 O movimento pela liberdade: a abolição das penas e prisões. 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS 115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 120
APÊNDICE A — Projeto Arquitetônico da Casa de Detenção de São Paulo 123
APÊNDICE B — Lista de QR CODES 124
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS.

Agente de Segurança Penitenciária (ASP)


Assessorias de Segurança e Informação (ASI)
Associação de amigos e Parentes de Presos (AMPARAR)
Asociación Latinoamericana de Derecho Penal y Criminología (ALPEC)
Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM)
Centro de Detenção Provisória (CDP)
Centro de Informações do Exército (CIE)
Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)
Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
Centro de Referência da Assistência Social (CRAS)
Centros de Operação e Defesa Interna (CODI)
Critical Resistance (RC)
Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP)
Destacamentos de Operação Interna (DOI)
Departamento de Informações Penitenciárias (INFOPEN)
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)
Distrito Policial (DP)
Divisões de Segurança e Informações (DSI)
Grupo de Intervenções Rápida (GIR)
Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE)
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB)
Riksförbundet för kriminalsvardens humanisering (KRUM)
Lei de Execução Penal (LEP)
Núcleo de Situação Carcerária (NESC)
OBAN (Operação Bandeirantes)
Organizações Não-Governamentais (ONG)
Organização das Nações Unidas (ONU)
Preto, Pobre e Periférico (PPP)
Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA)
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP)
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP)
Serviço Nacional de Informações (SNI)
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
14

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho é mais um passo atrás para pegar o impulso necessário para o salto que a
pesquisadora sente urgência de dar há muitos anos.1 Trata-se de uma sistematização de
acontecimentos e discursos que operam do centro à margem e dão margem ao centro. Chegar
neste Abolicionismo Penal apresentado aqui vem de um longo caminho de propostas e
construções, de mão na massa, olhos e ouvidos atentos, de desconfianças em alguns
propósitos e discursos. Aqui existem tentativas de vislumbrar qual sociedade queremos,
quando os “de baixo” se organizam e criam seus próprios mecanismos de organização e
gerenciamento de conflitos.
Não há, neste trabalho, uma pretensão de produzir uma verdade, ou alçar voos pela
ilustre academia brasileira e ocupar uma autoridade vazia, disciplinar e hipócrita. A proposta é
explícita: aproximar discussões e visões que a pesquisadora (se colocando oficialmente
enquanto autora pela primeira vez) teve contato dentro e fora do Serviço Social, e que servem
muito bem para pensarmos em questões que às vezes parecem passar despercebidas pela
profissão, ou são colocadas, quase que preguiçosamente, no balaio da “contradição” — uma
contradição que não parece estar dentro da metodologia do materialismo histórico-dialético, e
sim de defesas corporativistas que tentam se passar por “luta”.
Neste memorial da pesquisa, o esforço foi em trazer as experiências da autora do
trabalho, registradas em diários pessoais — um exercício de elaboração de acontecimentos
que veio a ser útil neste momento — e análises de bases de dados dos período de 2014 a 2018,
durante a experiência de estágio acadêmico na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, até
setembro de 2016, e do breve período de conversas e “atendimentos” com familiares na
AMPARAR (Associação de Amigos e Familiares de Presos). Neste momento introdutório,
onde é possível conhecer a pesquisadora e o cenário da pesquisa, visa explicar porque
partimos e sustentamos um abolicionismo penal onde não cabe o reformismo.
Além dos registros pessoais, neste trabalho está reunido aquilo que foi sistematizado
no arco de dez anos. Desde o filme “Leite e Ferro” (2011), que instigou a vontade — quase

1
O processo de pesquisa, elaboração e escrita desse trabalho atravessaram todos os sentidos. A música sempre
foi o elemento aglutinador e significante da minha vida, como uma forma de homenagem a dois queridos amigos
— um DJ amante de vinis e a maior conhecedora de sambas que já conheci — montei uma playlist com
músicas que me acompanharam desde 2012, quando ingressei na graduação, e me ajudaram a não desistir
quando as coisas ficaram ruins. Tive o cuidado de selecionar músicas que fariam sentido na temática e contexto
dessa dissertação; se quiser, ouça enquanto lê. Para acessá-la, basta buscar no Spotify “Abolir, não reformar”, ou
acessar https://open.spotify.com/playlist/6xyDfuwXu8IMKhEVVo0zeu?si=d78ccdc93ad041e1
15

messiânica — de uma jovem entrar em prisões e se meter no olho da briga que vai além da
guerra às drogas (problematizada pela mesma jovem desde uma repressão violenta em 2009
na Marcha pela Legalização da Maconha em São Paulo) e da violência policial. Naquele
momento, em 2012, quando o sonho da universidade pública se concretizou, a questão era o
direito à maternidade violado pelo Estado de São Paulo e o direito ao convívio com a mãe e
uma infância saudável que várias crianças não têm — pelo menos não com a mãe biológica,
porque um bebê de seis meses é rapidamente adotado.
Logo a dimensão interventiva do Serviço Social na prisão foi revelada enquanto muito
limitada pela Profa. Dra. Andrea Almeida Torres — que orientou esta pesquisadora até 2019,
quando faleceu —, a pesquisa dentro das prisões também se mostrou (quase) impossível, por
conta de um comitê de ética que parece ter receio do que se tem a dizer sobre aqueles espaços
quando analisados mais de perto pelos universitários do estado de São Paulo — o que mais
prende e condena no país.
Rapidamente, a pesquisadora curiosa e cheia daquela disposição da juventude dos 18
anos, provinda de família antimanicomial, conhece a obra de Michel Foucault em aulas de
Psicologia (“A emergência da subjetividade”, ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre Henz).
Ficou fácil, então, problematizar as reclusões, as instituições totais que nos controlam, o
capitalismo, o racismo e o controle! Só que me deparei com novos obstáculos: que eu não
entendia nem o que queria dizer “a epistemologia”, e a necessidade de embasar tudo que se
pensa, e nem tinha o tempo disponível para tanto.
Foucault e Marx “não se dão”. Os marxistas o chamam de “pós-moderno”; os
foucaultianos dizem que a questão está na ausência de uma leitura da subjetividade. Ao ver as
inquietações de uma anarquista (na época “anarco-comunista”) que entrou na universidade
para estudar, independente dos problemas que os autores tinham uns com os outros, a
professora Andrea Almeida Torres recomendou que eu fosse assistir umas aulas do Prof.
Stéfanis Caiaffo — autor de uma tese de doutorado anarquista, um abolicionista penal e
foucaultiano. Então seguimos assim, até 2014, um pé lá na Psicologia, outro aqui no Serviço
Social.
Em 2014, o estágio na Defensoria Pública de São Paulo exigiu uma redução nos
estudos em Santos, a volta para a cidade de São Bernardo do Campo (cidade natal da
pesquisadora) e um posicionamento mais firme no Serviço Social para não deixar passar a
práxis que está implicada nesta profissão. Afinal, o ingresso na universidade e escolha de
profissão não foram por hobbie, vieram da necessidade proletária (sem herança, pensão ou
mesada dos pais) de ter um emprego formal e retribuir, à classe da qual pertence, os anos de
16

estudo em instituição pública. Foram dois anos e meio atuando diretamente com a questão das
prisões e penas; como um ciclo que se fecha perfeitamente, o trabalho com mulheres na
mesma situação das que me inspiraram em 2011 se realizou, mas o resultado não foi nada
messiânico.
A apreensão do que é um processo (judicial e social), do que envolve o que
registramos em nossos laudos e pareceres, o que realmente é se posicionar a favor da defesa
intransigente dos Direitos Humanos, das políticas sociais e da classe trabalhadora levou a um
olhar cuidadoso para as mudanças no sistema. As reformas sempre estão acontecendo no
sistema penal, embora a população em geral não as acompanhe e elas não resultem em um
decréscimo da população prisional, o que já coloca em questão a eficácia destas reformas.2
Em 2014, a população prisional totalizava 622.202 pessoas (muito mais do que os
“500 mil mano” citados por Criolo)3. Só no estado de São Paulo eram 220.030 presos/as,
35,37% da população carcerária. Neste período ainda não havia audiência de custódia.4 Foi
possível acompanhar o defensor público no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Mauá,
que fazia parte do Projeto de Intervenção de Estágio. Deste período, foram registradas as
visitas em diários, como recurso terapêutico e registro de denúncias,
Estava completamente nervosa, eu não sabia o que me esperava naquele lugar, ainda
que tivesse me preparado por muito tempo pra aquilo (...) o cheiro pior do que os
rios Pinheiros e Tietê juntos, o lugar meio isolado e a torre com algum ASP5
segurando uma arma. Estava no panóptico, (...) mas esse CDP era um prédio, o que
achei estranho. Na hora de entrar vi o maior cadeado da minha vida, muitas “jaulas”
e tudo azul. Guardamos nossas coisas e passamos pelo detector de metais, óbvio que
os defensores públicos são tratados bem ali. (...) notas sobre essa primeira
impressão: todos jovens, todos relataram racismo ou algum outro abuso mais grave
da polícia, todos negros, todos pobres, todos periférios. Com a crise hídrica, não tem
água durante boa parte do dia, às vezes só por 30 min. de manhã e 30 à noite, cerca
de 20 a 30 pessoas na cela. Tinha um moço de 20 anos que foi baleado, não teve
tratamento, está com o braço pendurado, precisando de cirurgia e não vai porque não
tem escolta.6

2
Desde o começo da pandemia de Covid-19, houveram esforços para que, através de medidas emergenciais, a
população prisional diminuísse. Afinal, uma das maneiras de prevenção da doença é o distanciamento social. No
entanto, esse decréscimo da população prisional não é exclusivamente fruto de uma mudança na política de
segurança pública, e sim o mínimo que o Estado deveria fazer em uma situação de calamidade social.
3
CRIOLO. Mariô. São Paulo. Oloko Records. 2011 (3:37).
4
“A Audiência de Custódia é o momento de apresentação da pessoa presa ao juiz ou juíza competente, e deve
acontecer em até 24 horas. Os principais objetivos são avaliar a legalidade da prisão, coibir e investigar a tortura
e a violência policial e estimular o desencarceramento por meio da redução do uso indiscriminado das prisões
provisórias, que não deveriam, mas são a regra no Brasil.”.
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. ITTC EXPLICA: O que são audiências de custódia?. São
Paulo, 2016. Disponível em:
http://ittc.org.br/ittc-explica-o-que-sao-audiencias-de-custodia/?gclid=Cj0KCQjw1a6EBhC0ARIsAOiTkrH5tPB
YBSFdnPSYgepAhERZskX67keAMoXIL0eqR2_466ot5Yp2i3AaAhQAEALw_wcB. Acesso em: 30 abr. 2021.
5
Agente de Segurança Penitenciária.
6
ZAQUEO, L. R. Diário de estágio: DEPSP –CAM-Mauá e NESC. Mauá e São Paulo: [s.n.], 2014 a 2016. 1
diário de bordo. p. 6-9, “21 de outubro de 2014 – CDP – Mauá”.
17

Ao longo dos registros deste diário, são muitas denúncias de não acesso à saúde,
violência policial na hora da prisão, falta de água (inclusive potável), denúncias e mais
denúncias acerca da comida estragada, (o cheiro de feijão estragado era nítido quando
chegávamos pouco depois das 14:00), muitos trabalhadores, muitos réus primários e uma
demora de cerca de sete (7) meses para o primeiro contato com o juíz.
A estratégia que a estagiária tomou durante esses acompanhamentos foi de colher o
máximo de informações possíveis daquilo que era dito nas salas da universidade nos últimos
dois anos: que a única política social que a periferia tem contato é a polícia, que esta forja
apreensões, persegue alguns jovens e, principalmente, os egressos,
1. (...) 7 meses no CDP, ficou 10 anos preso, polícia forjou o assalto. Trabalhava há
cinco meses como ajudante de pintor e segurança na quermesse. (...) 3. (...) Acesso a
cultura não há, nem aqui, nem do lado de fora. Tem uma biblioteca [pra quem?], tem
celas com 50 pessoas, expliquei o que era o CRAS, ouviu falar do Bolsa Família,
mas não sabia como fazer.7

Foi mais ou menos nesta época que, conversando com a Profa. Andrea Torres,
decidimos que o Trabalho de Conclusão de Curso seria sobre esses pedidos que chegavam nos
defensores públicos e assistentes sociais da Defensoria, porque era nítido que nada havia
mudado dez anos depois de seu doutoramento, mas que a DPESP estava mudando algo, só
não sabíamos o quê. Aos poucos, as denúncias foram mostrando pequenas melhorias — como
uma hora de água a cada refeição e os atendimentos de saúde acontecendo um pouco mais.
Para obter o conhecimento acerca do funcionamento das prisões, foi necessário
participar mais ativamente de audiências públicas e prestar atenção no que os militantes da
Pastoral Carcerária, principalmente dos anos 90, contavam sobre suas atuações e a
proximidade construída com a população carcerária. Com a mudança de postura da estagiária,
houve uma mudança nos próprios diários registrados por ela, com casos mais detalhados e
denúncias mais elaboradas.
Houve um período que a conversa começava com “E ai, tudo bem? Não, né? Nesse
lugar não tem como estar bem, me conta o que tá pegando!”, a posição descontraída que
assumia fazia com que o atendimento fosse um pouco mais leve. Ali o aprendizado mudou,
deixou de ser confirmação de violação e passou a ser um pensar junto como agir para tornar a
sobrevivência possível. Nos diários há pedidos para famílias “trazer cigarro e minha filha para
a visita”, “prestobarba, sabonete e uma roupa de frio”, “pedir transferência pro juiz, porque
sente falta da família que não tem dinheiro para visitar”.
Em 18 de julho, em meio às anotações, uma tensão,
7
ZAQUEO, L. R. Diário de estágio: DEPSP – CAM-Mauá e NESC. Mauá e São Paulo: [s.n.], 2014 a 2016. 1
diário de bordo. p. 27-30, “03 de junho de 2015 – CDP – Mauá”.
18

*Deu merda.
15:20 ouvimos gritos.
16:00 um homem saiu acamado com as duas pernas imobilizadas.8

Mais tarde, no final de agosto de 2015, uma ligação da supervisora de estágio que
estava afastada, enquanto o estágio era cumprido em outra unidade, mudou o rumo e ritmo de
tudo. O cheiro da prisão vertical de Mauá, o funk e pagode que se ouvia nas sextas-feiras,
quando estava calor, na prisão, os defensores muito parceiros e os queridos amigos do CAM
se tornaram gratidão e registros nesta longa memória. O Núcleo de Situação Carcerária
(NESC) se tornou o novo campo de estágio, com Defensores Públicos muito críticos e
abolicionistas, sempre presentes nos eventos que frequentamos, visando aproximações com a
criminologia.
Nesse período, a população carcerária era 698.618 pessoas; só em São Paulo, a
população privada de liberdade somava 233.067, o que representa 33,37% do total no Brasil,
29,01%9 desta população estava presa sem condenação. Era o primeiro ano das audiências de
custódia, implementadas em 24 de fevereiro de 2015. São Paulo era uma “cidade chave” para
a implantação deste modelo de audiência; caso a cidade falhasse, não haveria motivo para o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implementá-lo em outros estados.10 Aparentemente, a
experiência deu certo, pois 10.678 paulistas não foram presos naquele ano e, de acordo com o
documento, vinte e um (21) presídios não foram construídos... Mas a superlotação também
não mudou muito...11
No NESC, os atendimentos eram realizados mais próximos às penitenciárias, à
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), aos movimentos sociais e aos outros
Núcleos Especializados da Defensoria Pública. Assim, foi possível conhecer outras realidades
das prisões em São Paulo, como os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (onde
maior parte dos presos eram pessoas abandonadas pelos familiares e usavam, no máximo,
medicação para controle de pressão arterial e diabetes)12; as unidades femininas de Franco da
Rocha (uma cidade construída em torno de manicômios, prisões e Fundações CASA).

8
Ibid., p. 37.
9
DEPEN: base de dados do Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em:
http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/bases-de-dados/bases-de-dados Acesso em: 30abr.
2021.
10
ZAQUEO, L.R. Diário de estágio: DEPSP – CAM-Mauá e NESC. Mauá e São Paulo: [s.n.], 2014 a 2016. 1
diário de bordo. p. 54, “02 de agosto de 2015 – Audiência Pública”
11
Brasil. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia, Brasília: CNJ, 2016. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/. Acesso em: 01 maio 2021.
12
Ao fim do cumprimento da medida de segurança, algum familiar tem que buscar quem recebeu “alta”. Como
não há nenhum tipo de trabalho eficaz previsto pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) visando o
fortalecimento de vínculos, os presos passam muito mais tempo do que “deveriam” nesses locais.
19

As questões que instigavam a sistematização do TCC ficaram ainda mais gritantes. A


colaboração com o “Mães em Cárcere” foi um dos pontos mais complexos e de maior
aprendizado, por se tratar, justamente, daquela questão das mulheres que não podiam exercer
o direito à maternidade. Em Mauá e Santo André, com frequência, o CAM era requisitado em
casos de violência doméstica, processos de adoção e restabelecimento de guarda, violações de
direitos de crianças e adolescentes e pedidos de interdição e internação compulsória. Esses
contatos permitiram uma visão mais detalhada do processo.
O tempo todo, era nítido que se tratava da força do discurso, de uma retórica e do
quanto a defesa conseguiu deixar escancarada a hipocrisia do judiciário em punir, seja quem
fosse, por motivos toscos. Nos processos que envolviam a maternidade e o uso (ou tráfico) de
drogas era possível perceber o peso da caneta dos assistentes sociais e técnicos que, sob o
discurso de “ter que ser honesto com juíz, acima de tudo”, dificultavam a defesa e facilitavam
a condenação de pobres, pretos e periféricos com a centralidade de sua condição social e
racial, mascarada por tipos penais e violações.
No último ano de estágio na Defensoria, 2016, a população carcerária no Brasil era de
722.120 pessoas. Destas, 230.152 estavam presas em São Paulo —31,87% do total do país.
Muitas mudanças ocorreram no território brasileiro com a queda da aparente democracia que
nascera em 1988. Era até estranho pensar no luto de uma democracia, porque pensando
sempre na Lei de Execução Penal e nas Desassitências da Prisão e nas inúmeras denúncias da
ONU quanto às prisões brasileiras, a democracia já não parecia algo tão real.
Até ali, o flerte com a criminologia crítica estava bastante aberto. Em 2016, notou-se
um movimento de, baseado no Marco Legal da Primeira Infância, pedir a conversão de prisão
preventiva em prisão domiciliar para mães de crianças de até 12 anos, por considerarem as
unidades prisionais lugares insalubre para mães e crianças (ainda não se sabe para quem este
ambiente é salubre). Em meio a questões políticas contraditórias da instituição, houveram
mudanças importantes na coordenação do NESC, e com o fim do estágio e apresentação do
TCC ("Desassistências na prisão e os rebatimentos no Serviço Social da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo”), trabalho pioneiro no tratamento da relação entre Serviço Social da
Defensoria e prisão, chegou ao fim o período da atuação institucional em prisões para a
pesquisadora.
O primeiro trabalho demonstrava a ingenuidade e imaturidade dos vinte e dois anos, a
veia abolicionista foi deixada para depois e a aposta em um reformismo foi o encerramento
daquele trabalho. Meses depois, já discordava de muitos caminhos percorridos ali: a
aproximação com a corrente da criminologia crítica que aproximou o trabalho desta
20

perspectiva reformista, a falta de habilidade para construir bons argumentos e uma tentativa
débil de adotar o materialismo histórico-dialético, mesmo com as inúmeras discordâncias,
problematizações e dificuldades de empregar aquele modelo de análise.
Em 2017, foi a hora de reorganizar a vida. Enquanto assistente social e abolicionista
penal, o emprego nas ONGs de São Paulo não foi possível, a maneira de trazer os
posicionamentos radicais e não permitir leituras pouco embasadas “queimou o filme”, e as
aulas de inglês na região do Carandiru, somada à militância na AMPARAR e nas ruas,
permitiu um outro olhar à mesma questão que tratava há anos.
Naquele período, pensava sobre a educação libertária (e a popular) enquanto
possibilidades melhores para acabar com a prisão, mas não só. Na AMPARAR a percepção
foi para a potência do fortalecimento comunitário e o “nós por nós”, que possibilita mudanças
muito mais significativas comparando com as soluções individualizantes, como a proposta de
educação não-punitiva no seio familiar, e a aposta em penas alternativas, como a busca por
absolvição da Justiça Restaurativa. Naquele ano, a população prisional no Brasil chegou a
726.354, sendo 226.463 em São Paulo, correspondendo a 31,18% dos presos.13
Em 2018 o “sabático” da academia acaba, e ocorre o retorno à UNIFESP, desta vez no
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais, com um trabalho que
propunha observar questões manicomiais e prisionais. O tempo fora mudou muita coisa
(menos o crescimento da população carcerária), e estávamos em um momento de governo
fascista, embora fosse recomendado (juridicamente) que não usássemos este termo.
O retorno “à casa” envolveu compreender que muita coisa havia mudado na maneira
de olhar o abolicionismo penal e que a criminologia já não fazia tanto sentido para mim, no
Serviço Social, senão como uma ferramenta oportuna para ocupar determinados espaços e
obter uma influência que nunca foi a pretendida. A reformulação do projeto e a pouca
paciência com os espaços da profissão que tratavam da questão prisional dificultaram a
construção de um projeto, além da necessidade de trabalhar 44 horas semanais, por morar só
desde os 18 anos.
Em 2019, no mês que combinamos em fechar o projeto para a qualificação, a Profa.
Andrea Torres foi internada, vindo a falecer no 1o de setembro daquele ano. Em seguida,
houve um esforço para continuar, mas a amizade que envolvia aquela parceria tornou
intragável o movimento de, em luto, observar colegas se aproveitando da morte para se

13
Este dado, do Depen, é de junho de 2017. O último relatório tabulado pelo órgão foi em junho de 2017, desde
então a instituição disponibiliza a base de dados, em modo xsl, o que requer algum conhecimento de
programação e análise de Big Data.
21

promover e deslocando do real sentido a máxima do “ciclano, presente!”, entoada para não
permitir passar despercebida a morte de negros nas mãos de policiais. “Ricardo Ferreira
Gama, presente!”, “Marielle, presente”, “Amarildo, cadê?” e, Andrea Torres, apesar de
importantíssima militante, só está presente em nossos corações.
Em 2020 há um novo retorno às atividades, com o apoio da coordenação do curso, que
não me deixou desistir, e do meu orientador José Fernando Siqueira. Apesar de bem
assessorada, senti o movimento da pesquisa muito mais solitário pois os colegas do Grupo de
Estudos do qual fiz parte desde 2013 deixaram pistas de que minha discussão não seria
bem-vinda ali. Nos movimentos de encontrar novas interlocuções em outras universidades,
chega a pandemia de COVID-19.
O começo da pandemia implicou em um novo luto. A vida que planejava retomar não
existia mais e a quarentena aumentou a insegurança, ansiedade e dúvidas se esse era um
caminho para seguir. Novamente, José Fernando e Liduina Oliveira me apoiaram e
incentivaram a não parar, mesmo com as amarguras, cansaços e elaborações tão próprias de
quem se despede de expectativas de uma outra vida.
Reescrever o projeto dentro do tempo que a gente tinha, sempre muito incerto, foi um
processo bastante duro. Sem saber bem para onde ir, mas conhecendo razoavelmente bem a
discussão Foucaultiana, eu decidi voltar pro projeto no momento que José Fernando me
perguntou “Sobre o que você sabe falar? O que você tem?”. Bom, eu tenho o abolicionismo
penal, mas a perspectiva que ganhei ao viver a realidade do movimento social não havia sido
trazida ainda.
Foram meses pensando em estratégias e tentando organizar os sentimentos e
pensamentos. Eu sabia o que não queria fazer pelo sofrimento que estava passando, e sabia
onde não deveria pisar para que o “tiro não saísse pela culatra”. Foi difícil e bastante tenso,
mas em 1o de setembro de 2020 este trabalho foi qualificado com os Professores Bia
Carvalho, Stéfanis Caiaffo e José Fernando Siqueira da Silva na banca (e Dra.
Priscila Fernanda Gonçalves Cardoso na suplência).
Após a morte de George Floyd, as interlocuções passam a ocorrer com alguns
abolicionistas norte-americanos que constroem linhas de pensamento muito próximas às que
vinha formulando. O movimento “8 to abolish” (8 para abolir, uma proposta de 8 passos para
abolir a prisão) tem muitas assistentes sociais críticas olhando para a questão das prisões
como muito além das prisões. A proximidade virtual com este grupo dá um novo fôlego, uma
22

nova cara e uma nova vontade de discutir o que vinha sendo discutido, indo mais fundo na
questão.
A proposta deste trabalho, dividido em três capítulos, procura manter a intenção inicial
de “mostrar” Foucault e o “Abolicionismo Penal Anarquista”14, mas busca também chamar o
Serviço Social para uma conversa que requer crítica e autocrítica para abandonarmos um
discurso de “abolicionismo prisional”15 em uma profissão que tem tratado da questão racial
desde 2017 a partir de muita luta do movimento negro — e ainda assim, por vezes existem
acadêmicos que tratam da decolonidade como “pós-moderna”, e a “pós-modernidade” como
uma obrigatória superação de algum período, incutido em um pensamento binário que não
cabe nos valores do Projeto Ético-Político profissional.

INTRODUÇÃO

Este trabalho contou com uma profunda revisão bibliográfica, através do acesso a
documentos disponíveis online de algumas partes do mundo, com a finalidade de trazer o
maior número de elementos e informações possíveis acerca do tema. Boa parte das obras
foram consultadas em mídia física ou PDFs e livros disponíveis online. As notícias citadas
vieram, majoritariamente, de sites de importantes veículos de informação, a maioria vem
sendo coletado desde 2012. Os dados provém de Bancos de Dados e Hubs da internet e foram
analisados e organizados nos programas: Google Database e Excel; dado o grande número de
informações.
O objeto dessa pesquisa são as tecnologias de poder e as resistências à elas; focando
no Abolicionismo Penal. Os objetivos desenvolvidos foram: analisar os elementos principais
da teoria Foucaultiana, principalmente no que diz respeito à Biopolítica e Sociedade
Disciplinar; analisar criticamente o processo de formação da desigualdade racial e sua
influência sobre a classe trabalhadora no Brasil, dando maior destaque aos considerados
“indesejáveis”; “underclass” e “puníveis”, analisamos, também o projeto de genocídio em
curso desde a invasão dos portugueses. Por fim, discutimos a ascensão e queda do Estado

14
Uma nota do CFESS separou os abolicionismos em correntes, de uma maneira um tanto controversa, que dá a
entender que podemos falar de muitos caminhos para falar de algo que é nitidamente, e semanticamente, uma
coisa só: Abolir, de extinguir (não de deslocar poderes até se dissolverem as práticas), Penal de penas, punições
autoridades e repressões.
15
Tem se tornado cada vez mais frequente o discurso de manutenção das assistentes sociais na prisão “porque
somos as únicas que garantem os direitos humanos dos presos”, retomando a visão messiânica da profissão e, de
uma maneira cínica, encobrindo o corporativismo e os cafézinhos tranquilos tomados enquanto o Grupo de
Intervenções Rápidas espanca os presos e presas.
23

Penal, que se encontra em um momento de forte poder paraestatal, banalizando o poder de


punir; encerramos a discussão com o condensamento de informações acerca dos
abolicionismos penais teorizados, compreendendo este movimento para além da lógica
tribunal-prisão, colocando-o como construção de todos, independente da atuação profissional.
No primeiro capítulo, optamos por uma introdução conceitual de Michel Foucault, um
autor clássico da sociologia e fundamental na discussão do Abolicionismo Penal e atuação
profissional na sociedade disciplinar. Por não ser um autor amplamente estudado no Serviço
Social, consideramos importante explicitar os conceitos do autor, o método e alguns detalhes
de sua obra “Vigiar e Punir”. Analisamos três pontos importantes: a genealogia da história,
enquanto método de análise; o poder disciplinar; a biopolítica e o biopoder.
No segundo capítulo, nos dedicamos à discussão acerca das estruturas racistas
construídas no movimento da História, refletindo acerca dos discursos que sustentam as
instituições violadoras de direitos humanos às quais o abolicionismo penal, enquanto
movimento acadêmico e social, busca, sobretudo, intervir. A divisão dos subcapítulos propõe
analisar a questão racial através dos três momentos propostos por diversos autores16: o
momento místico, o momento científico e o momento cultural.
Voltarmos nossa “lupa genealógica” aos discursos que sustentaram a sujeição de povos
e corpos ao longo da história, a partir da contribuição de pensadores acerca da questão racial
(Abdias Nascimento, Aimé Cesaire, Clóvis Moura e Lilia Schwarcz), e punitiva deste período
e do decurso da “transição” para a República Velha, a partir das análises de Fernando Salla.
Ao resgatar esses autores buscamos ressaltar algumas questões essenciais para
pensarmos na abolição das penas para além da prisão, a partir de um recorte histórico: a
utilização de recursos discursivos a fim de justificar a escravidão e sequestro da população
africana para exploração da mão-de-obra barata; a reflexão crítica sobre a história formal e
suas inconsistências; o papel do eurocentrismo cristão nos primórdios da formação
socio-cultural do Brasil; a eugenia presente nos disposivitos centrais desta pesquisa e as
heranças destes períodos que perpetuam o “racismo à brasileira”.
A divisão dos pontos buscou passar, cuidadosamente, pelas bases e mecanismos das
instituições que permitiram o enraizamento da imposta sujeição dos povos africanos e
ameríndios à perversa proposta de civilização européia. Apesar das dificuldades em reunir
documentos oficiais, acreditamos que este ponto explicita a relação indivisível de raça e
classe em nosso país, pontos fundamentais para o desenvolvimentos das reflexões objetivadas
nesta pesquisa.
16
Entre eles: Aimé Cesaire, Achille Mbembe e Frantz Fanon
24

1. O PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

Michel Foucault é um autor clássico que dedicou boa parte de sua carreira pesquisando
a reclusão, em especial a relação entre o poder e conhecimento e seu uso no controle social
através das instituições e os discursos que as sustentam. Especialmente usado na Psicologia,
Filosofia e Sociologia, o pensamento crítico do autor nos permite olhar para a sociedade a
partir de uma outra perspectiva teórica.
Os trabalhos do autor trazem contextos históricos variados com um direcionamento
crítico: os efeitos das instituições em reprimir e aplanar comportamentos. Um projeto pautado
no casamento “perfeito” entre religiões cristãs e a formação do capitalismo na Europa. Apesar
da crítica à compreensão de origem, o autor ainda nos indica uma determinada origem das
coisas, não linear e com propósito, mas uma origem. Esse capítulo visa compreender a
proposta Foucaultiana em sua apreensão da História.
Buscamos explicitar os conceitos do autor, o método e alguns detalhes importantes da
análise Foucaultiana. Analisamos três pontos importantes: a genealogia da história, enquanto
método de análise; o poder disciplinar; a biopolítica e o biopoder.

1.1 A genealogia: uma outra maneira de olhar a história


A aproximação de qualquer autor supõe a compreensão de seu método e bases
históricas e filosóficas. Portanto, o resgate do método de Foucault é necessário para a
compreensão dos caminhos para a sua análise em “Vigiar e Punir”, trabalho que marca o uso
da genealogia da história enquanto método de pesquisa. Este capítulo retoma a discussão do
autor acerca dos conceitos Nietzscheanos para uma genealogia que tem sua centralidade na
história que marca, afeta e estigmatiza os corpos.
Os trabalhos iniciais de Foucault propunham uma “arqueologia do saber”. Em
“História da loucura”17 (1961), o autor sugere uma análise dos discursos produzidos nas
instituições de controle do "louco". Este movimento visa utilizar diversos discursos em torno
da loucura, a fim de compreender e demonstrar o nascimento da psiquiatria e seu serviço na

17
De acordo com Machado (2019, p. 7) “a inovação metodológica presente em “História da Loucura” é a
resolução de estudar – em diferentes épocas e sem se limitar a nenhuma disciplina – os saberes sobre a loucura
para estabelecer o momento exato e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Projeto esse que
deixou de considerar a história de uma ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir de origens que
se perdem no tempo e são alimentadas pela interminável busca de precursores. Mas que também se realizava sem
privilegiar a distinção epistemológica entre ciência e pré-ciência, tendo no saber o campo próprio de
investigação.”
25

sociedade: a sujeição e obrigação dos sujeitos a uma determinada norma, fruto de um


interesse a determinada sociedade.
Para isso, o autor usou da articulação do saber médico e das práticas de internamento
com outras instituições como a família, a igreja, a justiça e as causas econômicas e sociais da
questão em torno desta dominação do louco através do método da “arqueologia do saber”. De
certa forma, o autor revela, através desta inter-relação de saber, as transformações das
relações institucionais após a Revolução Francesa e o conceito do “privilégio de discurso” das
profissões técnicas que elaboram seus saberes movidos por uma finalidade excludente. É
através deste resgate histórico que se revela que o cerne do tratamento à loucura não é a
compreensão da loucura e o gerenciamento desta; é a dominação do louco enquanto sujeito
determinado.
Em “O nascimento da clínica” (1963), “A palavra e as coisas” (1966) e “Arqueologia
do saber” (1969) o autor tece a crítica ao nascimento da medicina moderna e sua correlação
entre discursos e práticas sociais, deixando de lado a relação entre os saberes e as estruturas
políticas e econômicas. Essa primeira parte das obras de Foucault buscava compreender a
procedência desses saberes e suas transformações, enquanto a genealogia busca compreender
o porquê. Dado que “Vigiar e Punir” é o livro que inaugura o novo caminho de pesquisa do
autor, seguiremos com a análise da genealogia em Foucault.18
Foucault (1969) discute sua abordagem da genealogia em “Nietzsche, a moral e a
história”, trabalho apresentado no colóquio em homenagem a Jean Hyppolite, que foi dividido
em sete (7) partes. O autor inicia sua leitura da genealogia com uma afirmação de Nietzsche:
“A genealogia é cinzenta”. O autor aponta uma genealogia dos documentos para compreender
os movimentos da história: “Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias
vezes reescritos”. Este entendimento do autor segue com a crítica ao naturalismo moral
inglês:
Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por
exemplo, toda a história da moral pela preocupação com o útil: como se as palavras
tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as ideias sua lógica; como se
esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas,
disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a
singularidade dos acontecimentos longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá
onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuído de história. 19

O que o autor propõe, portanto, é documentar a história não só pela mecânica das
datas, mas também pela compreensão dos tensionamentos discursivos dentro e fora das
instituições, considerando as complexidades de cada período histórico e os serviços aos quais
18
MACHADO, R., Microfísica do poder. 1 ed. Rio de Janeiro, Brasil: Paz e terra, 2019, p. 9
19
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasil: Paz e terra, 2019, p. 55
26

se dispunham as tecnologias do poder. O objetivo da genealogia da história é buscar conhecer


a “minúcia do saber”, não enquanto oposição à história, mas enquanto a uma pesquisa que
ultrapassa a ideia engessada de “origem” das coisas.
Dessa forma, a história é complexa e passível de construção através de diversos
discursos, conhecimentos e práticas. Porém, se a genealogia não busca compreender a origem
concreta e estática na história, ou da moral em Nietzsche, qual o movimento proposto por ela
ao olhar o “nascimento” das coisas? Primeiro há a necessidade de compreender que a origem
das coisas não diz respeito à verdade delas.
(...) A verdade, espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada,
sem dúvida porque o longo cozimento da história a tornou inalterável. E, além disso,
a questão da verdade, o direito que ela se dá de refutar o erro de se opor a aparência,
a maneira pela qual alternadamente ela foi acessível aos sábios, depois reservada
apenas aos homens de piedade, em seguida retirada para um mundo fora de alcance,
onde desempenhou ao mesmo tempo o papel de consolação e de imperativo,
rejeitada enfim como ideia inútil, supérflua, por toda parte contradita – tudo isso não
é uma história, a história de um erro que tem o nome de verdade? A verdade e seu
reino originário tiveram sua história na história. Mal saímos dela, “na hora da
sombra mais curta”, quando a luz não parece mais vir do fundo do céu e dos
primeiros momentos do dia. 20

Assim, Foucault compreende que a genealogia visa olhar calmamente a todos os


documentos e os intercruzamentos que levam para aquilo que se compreende enquanto
origem. Ao mesmo passo que questiona a autoridade atribuída à história, que atribui lados
positivos e negativos às partes.
É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas
surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas, que dão conta dos
atavismos e das hereditariedades (...) A história, com suas intensidades, seus
desfalecimentos, seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas
síncopes é o próprio corpo do devir.21

Temos então o fundamento da visão de verdade e história em Foucault. Trata-se de


uma visão atrelada a materialidades e movimentos diversos tomados por interesses. Se opõe,
matricialmente, à moral cristã ao definir uma complexidade maior e longe de binarismos ou
especulações em torno da origem dos fatos, de forma que não aceita alguns termos que
compreendem dicotomias, como "dominação", e não; "ideologia" e outros.
Dessa forma, observamos como o autor usa os conceitos de Nietzsche: Entestehung,
Herkunft de Ursprung:
Herkunft: é o tronco de uma raça, é a proveniência; é o antigo pertencimento a um
grupo – do sangue, da tradição, de ligação entre aqueles da mesma altura ou da
mesma baixeza.22

20
Ibid., FOUCAULT, 2019, p. 60
21
Ibid., p.62
22
Ibid., p.62
27

Ao retomar o conceito de Herkunft, Foucault nos diz respeito, de certa maneira, a sua
visão de sujeitos dentro desta história que pretende ser analisada através da genealogia,
compreendendo que a análise da proveniência não diz respeito a encontrar o indivíduo
assimilável com outros indivíduos, mas o indivíduo portador de uma própria expressão
singular de sua existência, o que permite ordená-los por suas diferenças ao invés de
semelhanças. “(...) a análise da proveniência permite dissociar o Eu e fazer pulular nos lugares
e recantos de sua síntese vazia, mil acontecimentos agora perdidos.”.23
Dessa forma, o autor nos permite visualizar uma história que leva em conta a
subjetividade do sujeito, que na genealogia é aquele que está sujeito a um dispositivo, em uma
maneira espiral, na qual o poder se desloca e coexiste entre as partes. Esta visão Foucaultiana
é um dos principais rompimentos do autor em relação às demais visões de poder da filosofia e
sociologia, na qual um o detém e o outro é oprimido. Esta visão nos permite questionar
anacronismos na história.
A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande
continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar
que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando-o ainda em segredo,
depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma delineada desde
o início. (...) é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós
somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente.24

Apesar de não compreendermos determinadas questões, como a exclusão social,


enquanto algo linear e contínuo, não deixamos de olhar para essas questões enquanto uma
herança (Erbschaft). Essa herança não diz respeito às propriedades, mas aos acúmulos de
falhas, de fissuras e instabilidades. O corpo é o lugar desta proveniência, e é sua articulação
com a história que o marca de diversas maneiras e marca os referidos acúmulos.
Ao olhar os acontecimentos através da ferramenta da genealogia, observamos que a
compreensão de emergência de algo tem uma relação direta com a utilização daquilo para
determinado fim; uma crítica à naturalização de determinadas convenções sociais.
(...) Como se o olho tivesse aparecido, desde o fundo dos tempos, para a
contemplação, como se o castigo tivesse sempre sido destinado a dar o exemplo.
Esses fins, aparentemente últimos, não são nada mais do que o atual episódio de
uma série de submissões: o olho foi primeiramente submetido à caça e à guerra; o
castigo foi alternadamente submetido à necessidade de se vingar, de excluir o
agressor, de se libertar da vítima, de aterrorizar os outros. 25

Podemos então pensar nessas construções de relações como um “jogo casual das
dominações”. Assim, ao observarmos a emergência de determinado conceito, discurso ou
pensamento, é importante mostrar também o jogo no qual ele surge. Ao não assumirmos o

23
Ibid. p. 62
24
Ibid. p. 63
25
Ibid. p. 66
28

papel de presença (como no “sujeito histórico”) daquela relação, tornamo-nos quase como
narradores de sistemas de pensamentos que têm como objetivo verticalizar as relações de
poder presentes.
O genealogista cuida de olhar para estes movimentos em um não-lugar. Compreende
que as disputas não terminam em paz, ou vitória dos “bons” contra os “maus”. Nesta análise
não cabe uma moral cristã, mas a observância das cenas onde as posições dicotômicas
parecem se distribuir e trocar suas ameaças.
A emergência e a genealogia não são passíveis de proclamação de propriedade por se
produzirem nas fendas, mas remetem a um espaço de representação da dominação e seu
movimento através da História. Em Nietzsche, é tratada enquanto o nascimento da lógica, da
dominação de classes, do homem sobre a natureza, do homem que busca satisfazer suas
necessidades para viver, etc.
E é por isso precisamente que em cada momento da história a dominação se fixa em
um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos.
Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna
responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas, ao
contrário, a satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema
tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba
por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da paz civil. A regra
é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem
cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente
repetida. 26

Ao retomar a genealogia da moral de Nietzsche, Foucault revela também sua intenção


questionadora quanto às estruturas institucionais ao colocar em cheque a naturalização das
regras para a dissolução de conflitos violentos. Para o autor, é nítido que haja um revanchismo
em regras, uma relação de força por parte de quem se apodera, ou seja, a disposição à
obediência civil implica em uma perversão da natureza dos conflitos.
Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para
servir a isto ou àquilo; elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns ou de
outros. O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem
tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para perverte-las,
utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se
introduzindo no aparelho complexo, o fizer funcionar de tal modo que os
dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras.27

Neste ponto há uma indicação, que dá o tom radical da análise do poder: a dos jogos
de poder punitivo nos tribunais, ruas e prisões, que será analisada com mais profundidade em
“Vigiar e Punir”.
Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub-repção, de um sistema de
regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, dobrá-lo a
uma nova vontade, fazê-lo entrar em um jogo e submetê-lo a novas regras, então o

26
Ibid. p. 69
27
Ibid. p. 69-70
29

devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser sua


história: história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do
conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações
diferentes. Trata-se de fazê-las aparecer como acontecimentos no teatro dos
procedimentos.28

O autor, portanto, retoma sua crítica à construção da verdade e a relação entre verdade
e história para análise das relações de poder, sob a ótica da problematização da construção de
discurso, ciência e outros dispositivos ao longo da história.
Para relacionar os conceitos de Herkunft e Entestehung explicados anteriormente com
a visão de genealogia da história, Foucault propõe um resgate da visão de sentido histórico de
Nietzsche em “Genealogia da moral”, que diz respeito à uma análise da história sob um ponto
de vista supra-histórico.
Uma história que teria por função recolher, em uma totalidade bem fechada sobre si
mesma, a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma história que nos permitiria
nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma
da reconciliação; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de
fim de mundo. Essa história dos historiadores constrói um ponto de apoio fora do
tempo; ela pretende tudo julgar segundo uma objetividade apocalíptica; mas é que
ela supôs uma verdade eterna, uma alma que não morre, uma consciência sempre
idêntica a si mesma.29

Esta visão trata da crítica ao “egipcianismo” em Nietzsche. Compreendendo o


egipcianismo enquanto uma tendência dos filósofos a mumificar em conceitos rígidos a
multiplicidade dos eventos que ocorrem. Foucault retoma a crítica do sentido histórico em
Nietzsche para entender a genealogia da história enquanto uma proposta que não se apoia em
nenhum conceito absoluto.
Ele deve ter apenas a acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa
operar as separações e as margens – uma espécie de olhar que dissocia e é capaz ele
mesmo de se dissociar e apagar a unidade deste ser humano que supostamente o
dirige soberanamente para seu passado.30

É nítido que Foucault não está tratando de uma recusa da ferramenta do saber histórico
para criar uma narrativa. A questão para o autor está nos atravessamentos desta narrativa e sua
intenção de um olhar que foge do pensamento binário e dicotômico engessado. Para isso
resgata a compreensão de Nietzsche de que a história afeta o corpo, pois é o corpo formado
pelos regimes que constrói a história e cria resistência a partir dos movimentos da vida.
Para Foucault,
A história “efetiva” se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não
se apoia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo seu corpo – é
bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o
homem se apoia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade,

28
Ibid. p. 70
29
Ibid. p. 70
30
Ibid. p. 71
30

tudo o que permite retraçar-lá como um paciente movimento contínuo: trata-se de


destruir sistematicamente tudo isso. É preciso despedaçar o que permitia o jogo
consolante dos reconhecimentos.31

A proposta do autor para contrapor a história “egipciana” é a genealogia da história,


tratada enquanto história “efetiva”. Ou seja, não se trata de aplicar conceitos a diversos
momentos da história, como se houvesse algum tipo de anacronismo, mas sim de uma análise
das batalhas no campo da batalha. Esta tem como base, não o reconhecimento do presente no
que já se foi, mas a compreensão da descontinuidade do ser.
Há toda uma tradição da história (teleológica ou racionalista) que tende a dissolver o
acontecimento singular em uma continuidade ideal – movimento teleológico, o
encadeamento natural. A história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento no que ele
pode ter de único e agudo. É preciso entender por acontecimento, não uma decisão,
um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um
poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma
dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e outra que faz sua entrada,
mascarada (...) Elas não se manifestam como formas sucessivas de uma intenção
primordial; como também não têm o aspecto de um resultado. Elas aparecem sempre
na álea32 singular do acontecimento.33

É a objeção da linearidade e justaposição dos fatos sem considerar as minúcias do


processo de construção da história, enquanto processos de construção de novas fisiologias e
novos corpos. Mesmo que sejam fisiologicamente iguais, o corpo do século XXI não é o
mesmo corpo que Foucault estudou no século XX. Houve novas tecnologias e mudanças,
movimento, adaptações necessárias e habilidades que tivemos que aprender. Embora as
questões econômicas sejam as mesmas, as subjetividades não são.
O método genealógico, como exposto anteriormente, é meticuloso e paciente. Olhar
para cada acontecimento envolve atenção plena ao que está próximo ao corpo. Segundo
Foucault, a história “efetiva” olha mais para o mais próximo, para dele se separar
bruscamente e se apoderar à distância. Não é papel desta história servir à filosofia ou “narrar o
nascimento de uma verdade ou valor”.
Por fim, o autor nos traz que a genealogia pode sim ter uma perspectiva:
Ele [o sentido histórico] olha de um determinado ângulo, com o propósito deliberado
de apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o
melhor antídoto. Em vez de fingir um discreto aniquilamento diante do que ele olha,
em vez de procurar sua lei e a isso submeter cada um de seus movimentos, é um
olhar que sabe tanto de onde olha e quanto o que olha. O sentimento histórico dá ao
saber a possibilidade de fazer, no movimento de seu conhecimento, sua genealogia.
34

Na última parte de sua introdução do método genealógico, o autor relaciona os


conceitos apresentados com a história e seu devir. Ao analisar a Herkunft da história, critica a

31
Ibid. p.71
32
Termo jurídico que diz respeito à possibilidade de ganhos e lucros em uma ação.
33
Ibid. p. 73
34
Ibid. p. 76
31

ideia de imparcialidade de determinados historiadores e a aparente demagogia daqueles que


alegam uma parcialidade dirigida ao poder popular como uma proximidade com a filosofia de
Sócrates, que busca a realidade última do homem.
Quanto à Entestehung da história, o autor aponta que olhar para a história da Europa
no século XX é um recurso que parte da necessidade de um povo que não compreende a sua
real origem.
Compreende-se então porque o séc XX é espontaneamente historiado: a anemia de
suas forças, as misturas que apagaram todas as suas características produzem o
mesmo efeito que as macerações do ascetismo; a impossibilidade em que ele se
encontra de criar, sua ausência de obra, a obrigação em que ele se encontra de se
apoiar no que foi feito antes e em outros lugares o constrangem à baixa curiosidade
do plebeu.35

Foucault busca compreender então como fugir à possível demagogia em questão e


aponta a intenção antiplatônica da história na genealogia. Assinala uma posição contrária ao
ascetismo popular dos historiadores. A proposta do sentido histórico possui, a partir desta
construção, três usos que visam “fazer da história uma contramemória”.36
Para isso, o autor aponta três usos para o sentido histórico, que se opõem às três
modalidades platônicas:
Um é o uso paródico e destruidor da realidade que se opõe ao tema da
história-reminiscência, reconhecimento; outro é o uso dissociativo e destruidor da
identidade que se opõe a história-continuidade ou tradição; o terceiro é o uso
sacrificial e destruidor da verdade que se opõe à história-conhecimento. 37

O primeiro uso seria o paródico, ou burlesco, que “oferece identidades sobressalentes


aparentemente mais bem-individualizadas e mais reais” do que a dos europeus. É essa
individualidade da visão e construção de uma determinada história que o autor critica e busca
romper em sua genealogia da história.38
O segundo uso da história para o autor é a dissociação sistemática da identidade
europeia, fruto do uso paródico desta. Há a compreensão, portanto, de que a construção da
identidade europeia se constituiu em termos mais complexos do que a construção de
máscaras.
E em cada uma dessas alas, a história não descobrirá uma identidade esquecida,
sempre pronta a renascer, mas um sistema complexo de elementos múltiplos,
distintos, e que nenhum poder de síntese domina.39

O resultado da perspectiva histórica criticada pelo autor é a compreensão de que os


sistemas semelhantes são “inteiramente determinados e como representantes de culturas
35
Ibid. p. 79
36
Ibid., p. 79-80
37
Ibid, p. 80
38
Ibid. p.85
39
Ibid. p. 83
32

diversas'', quer dizer, como necessários e modificáveis, assim o autor indica uma possibilidade
de recortes para considerar particularidades presentes nos sistemas analisados40.
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de
nossa identidade, mas, ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende
demarcar território único de onde viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos
prometem que retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades
que nos atravessam. 41

A função da dissociação sistemática auxilia na compreensão de que não há uma


linearidade da formação cultural, mas uma possibilidade de compreender as condições do
“nascimento” de determinadas questões.
Se a genealogia coloca, por sua vez, a questão do solo que nos viu nascer, da língua
que falamos ou das leis que nos regem, é para clarificar os sistemas heterogêneos
que, sob a máscara do nosso eu, nos proíbem toda identidade.42

Já o terceiro uso da história é o que Foucault reconhece enquanto “sacrifício do sujeito


de conhecimento”. Esta compreensão questiona a neutralidade da consciência histórica,
através dessa concepção o autor vê a possibilidade de encontrar os impulsos no “querer saber”
da genealogia. É a contraposição da busca por um “saber absoluto” enquanto fundamento do
ser.43 “O que não quer dizer, no sentido da crítica, que a vontade de verdade seja limitada pela
finitude do conhecimento! Mas que ela perde todo limite e toda intenção de verdade no
sacrifício que deve fazer do sujeito de conhecimento.”44
O autor então propõe um uso crítico da história em função do reconhecimento nas
multiplicidades que podem advir desta nova construção de sentido histórico. Assim, Foucault
finaliza sua análise do método utilizado nas obras de Nietzsche, e posteriormente do próprio
Foucault, considerando o movimento histórico de uma outra maneira.
Para nossa análise, a compreensão do método de Foucault é fundamental por dois
motivos: ela mantém o debate entre as tradições históricas, presentes nos setores mais críticos
do Serviço Social, ao mesmo tempo que recusa a construção de moral, concepção histórica e
individualidade dos setores conservadores. Este trabalho, no entanto, não visa a superação do
projeto hegemônico da profissão, mas sim complementar a possibilidade de radicalização ao
olhar para as instituições.

1.2 Poder Disciplinar

40
Ibid. p. 85
41
Ibid. p.83
42
Ibid. p. 81
43
Crítica a Hegel e Fichte.
44
Ibid., p. 83-85
33

Na terceira parte do livro “Vigiar e Punir”, Foucault desenvolve a análise de uma


tecnologia de poder fundamental para sua discussão: o poder disciplinar. Essa tecnologia irá
se incorporar nos dispositivos de poder a fim de docilizar os corpos através de intervenções
que visam maximizar a produção do corpo, alvo desta forma de poder.
Primeiramente nos cabe fazer considerações sobre a concepção de poder para
Foucault. Para o autor, o poder não é uma entidade unitária, centrada no Estado, e sim um
conjunto de técnicas e tecnologias exercidas em “relações de poder”; como o poder de punir
que se atualiza e se desenvolve de diversas maneiras ao longo da história.
[...] Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as
relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o
dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe
sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas
e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de
produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em
compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso
num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é
ao mesmo tempo corpo produtivo e submisso. 45

Essa relação de sujeição do corpo não se dá de maneira espontânea ou acidental, para


que o sujeito — aqui compreendido como aquele sujeitado à relação — se insira em um
conjunto de saberes, que por vezes exerce essa relação nas sutilezas. Sob essa perspectiva, o
poder não é sempre exercido pela violência ou opressão.
Essa tecnologia é difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e
sistemáticos; compõem-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza um material
e processos sem relação entre si. O mais das vezes, apesar da coerência de seus
resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso, seria
impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho de
Estado. Estes recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas
maneiras de agir. Mas diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do
poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se
coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com
sua materialidade e suas forças.46

O poder aqui é um recurso do qual se utiliza quem o tem à seu dispor, em posições
estratégicas. Portanto sua relação com a “classe dominante” é de uma recondução de recursos
possíveis, não necessariamente de maneira direta e vertical,
[...] Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma
obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e por
meio deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança.. O que significa que essas
relações se aprofundam dentro da sociedade, que não se localizam nas relações do
Estado com os cidadãos ou nas fronteira das classes e que não se contentam em
reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpo, dos gestos e dos comportamentos, a
forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade (realmente elas se
articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de complexas

45
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2014, p. 29
46
Ibid., p. 30
34

engrenagens), não há analogia nem homologia, mas especificidade do mecanismo e


de modalidade.47

Por isso, para a compreensão de poder Foucaultiana, é necessária a suspensão de


algumas considerações feitas por outras tradições acerca do poder. Não se trata de uma
entidade enlouquecedora daquele que o detém, nem ao menos se trata da posse. É uma relação
que produz um saber, onde o sujeito não tem sua liberdade colocada em cheque porque este o
conhece, sabe de seus funcionamentos e efeitos, da ação do poder na história.
Analisar o investimento político do corpo e a microfísica do poder supõe então que
se renuncie — no que se refere ao poder — a oposição e violência-ideologia, à
metáfora da propriedade, ao modelo do contrato ou da conquista; no que se refere ao
saber, que se renuncia oposição do que é "interessado" e do que é "desinteressado",
ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito. (...) Não seria o estudo de um
Estado tomado como um “corpo” (com seus elementos, seus recursos e suas forças),
mas não seria tampouco o estudo do corpo e do que lhe será conexo tomados como
um pequeno Estado. Trataríamos aí do “corpo político” como um conjunto de
elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de
comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem
os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber.48

Os elementos materiais e técnicas que operam nesse corpo político tratam de uma
retomada de regulamentos técnico-político dos corpos, que surgem com maior destaque no
século XVII na Europa. O poder-saber dos filósofos, médicos, e outros profissionais que
atuavam em espaços militares, escolares, hospitalares e afins, tem, inicialmente, a finalidade
da correção, do adestramento e, mais a frente na história, da docilidade. “É dócil um corpo
que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. 49
[...] A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em
massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo
detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo
nível da mecânica — movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre
o corpo ativo.50

A disciplina opera no indivíduo e nos detalhes, controla os comportamentos, a


linguagem (verbal e física), a organização e a compreensão de sinais. A exemplo do que
acontece nos conventos e exércitos da Europa nos séculos XVII e XVIII, e que impactam em
nossa sociedade brasileira pelas técnicas utilizadas pelos colonos, objetivando a dominação
por parte dos Impérios. É uma dominação da anatomopolítica, produzida em múltiplos
processos diferentes, em um domínio do corpo sobre outros, produzindo corpos dóceis.
Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”,
uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a
potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a
exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção

47
Ibid., p. 30
48
Ibid., p. 31
49
Ibid., p. 134
50
Ibid., p. 135
35

disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma
dominação acentuada. 51

Esse “investimento político e detalhado do corpo” busca, como nas escolas,


desenvolver ao máximo aptidões, incentivando disciplinas para adquirir habilidades para o
resto da vida, preparando-os para um mercado de trabalho e uma vida alienada, mecânica
voltada em resultados. Em nossa sociedade, lucros extraídos da exploração de mão-de-obra da
classe trabalhadora para enriquecer a burguesia.
Essa mesma fórmula é encontrada nos conventos, prisões, escolas, fábricas, exércitos,
etc... A rigidez de horários e uniformes, é um exemplo do modelo de disciplina que devemos
desenvolver de acordo com as necessidades da sociedade através do tempo.52
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de
aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a
economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles
entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época
contemporânea.

Essa difusão da disciplina se apega nos detalhes. Em diversos momentos do cotidiano


conseguimos pensar nesses regulamentos que existem em cada setor de nossas vidas, e o
quanto os quebramos. Quebramos porque há a ideia de regulamento, de alguém que nos
observa o tempo todo — seja Deus, a polícia, o professor, o algoritmo da rede social, ou as
ferramentas como Google home e Alexa. Se não fosse o elemento vigilante, não haveria
quebra.
A individualidade e a ideia de “célula” neste controle é outro ponto fundamental para
o exercício deste poder disciplinar. É neste corpo individual que se inscrevem essas
tecnologias, o controle do tempo e do espaço, a potência e valorização da rapidez; a repetição;
a classificação; o enquadramento e a produtividade. “As disciplinas, que analisam o espaço,
que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como
aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”.53
Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla,
quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro
características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela
codificação de atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória
(pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói
quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação
das forças, organiza “táticas”. A tática, arte de construir, com os corpos localizados,
atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das
diferentes forças se encontra mais por sua combinação calculada é sem dúvida a
forma mais elevada da prática disciplinar.54

51
Ibid., p. 136
52
Ibid., p. 137
53
Ibid., p. 155
54
Ibid., p. 164-165
36

A distribuição dos indivíduos no espaço, seja nas prisões, nas escolas, nos quartéis, ou
nas áreas da periferia com policiamento ostensivo e tanques de guerra. Há um
desenvolvimento de tecnologia de poder das prisões como as de “segurança máxima”, com
seus muros gigantescos para as prisões a céu aberto que são as “favelas” brasileiras. Como
veremos nos capítulos seguintes.
A reflexão Foucaultiana acerca da disciplina nos permite refletir acerca de estruturas
empregadas na política brasileira, principalmente durante os anos 60, com a ditadura militar.
A política, como técnica da paz e da ordem internas, procurou pôr em
funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa disciplinada, da tropa
dócil e útil, do regimento no acampamento e nos campos, na manobra e no
exercício. Nos grandes Estados do século XVIII, o exército garante a paz civil sem
dúvida porque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora,mas também
porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre o corpo
social.55

Além de elementos que figuram na relação militar nos Estados pós-revolução


burguesa, a análise do autor traz um elemento de grande relevância para compreender a
disciplina: o sonho de sociedade perfeita, atribuída ao pensamento do século XVIII, e o sonho
da sociedade militar.
(...) sua referência fundamental era não ao estado de natureza,mas às engrenagens
cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às
coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos
indefinidamente progressivos, não à vontade geral, mas à docilidade automática.56

A fim de atingir a docilidade o poder disciplinar, como dito anteriormente,


individualiza, mas não só. Para que essa individualidade se efetive, é necessário criar rótulos e
diferenças, apartar essas diferenças e tornar os sujeitos objetos e, ao mesmo tempo, exercício.
Se distingue do poder soberano e dos grandes aparelhos do Estado por estar circunscrito no
“micro”, e dessa maneira invade os “macros” e impõem novos processos através de alguns
elementos: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.57
A vigilância hierárquica se dá a partir de lentes e posições estratégicas para que todos
possam exercer algum nível de controle dentro dos espaços que citamos: hospitais, asilos,
escolas, prisões, etc.
Ao tratarmos de punição, é interessante observar como essa tecnologia de poder se
desenvolve na história, da praça pública, às masmorras de muros grossos e pedras que dá
lugar às fortalezas, e chega no hospital-edifício.
Assim é que o hospital-edifício se organiza pouco a pouco como instrumento de
ação médica: deve permitir que se possa observar bem os doentes, portanto,

55
Ibid., p. 165-166
56
Ibid., p. 166
57
Ibid., p. 167
37

coordenar melhor os cuidados; a forma dos edifícios, pela cuidadosa separação dos
doentes, deve impedir contágios; a ventilação que faz circular em torno de cada leito
deve enfim evitar que os vapores deletério se estagnem em volta do paciente,
decompondo seus humores e multiplicando a doença por seus efeitos imediatos.58

A partir deste padrão arquitetônico, o poder disciplinar exercido em instituições tem


características semelhantes, adequadas à cada instituição e continua se desenvolvendo para
maximizar a vigilância e controle. Surgem outros modelos para complementar essa
necessidade: o modelo circular, onde o centro age como farol, possibilitando a identificação
de quem está no centro, e quem está em volta; o modelo piramidal, com degraus que
estabelecem fluxos e tem relação direta com a organização das fábricas, definindo cargos e
papéis para os sujeitos inscritos nestas instituições.
A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes
"invenções" técnicas do século XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua
importância às novas dinâmicas de poder, que traz consigo. O poder disciplinar,
graças a ela, torna-se um sistema "integrado" ligado do interior à economia e aos
fins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim como um poder múltiplo,
automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos,
seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um
certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede “sustenta” o conjunto, e o
perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: fiscais
perpetuamente fiscalizados.59

Essa fiscalização é inerente aos sistemas disciplinares e tem sua lógica no mecanismo
penal com suas próprias leis, sanções e instâncias de julgamento. “As disciplinas estabelecem
uma “infrapenalidade”; quadriculam um espaço deixado vazio pelas leis; qualificam e
reprimem um conjunto de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por
sua relativa indiferença.”60
A partir deste aparato de vigilância e punição é que se garante, de certa forma, o
funcionamento da disciplina pelo esforço de evitar as sanções que se inscrevem nos corpos
em forma de castigos corporais e sutis mecanismos repressores de comportamentos.
(...) Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da
conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente e indiferentes
do sistema disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a
mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso numa universalidade
punível-punidora.61

Em nossa sociedade, esse mecanismo pode se manifestar na lógica direitos-deveres,


que compreende que os sujeitos devem ser elegíveis a partir de suas ações e histórico para
efetivar direitos, ou seja, tudo que desvia do "normal" é passível de punições. O autor trata

58
Ibid., p. 169
59
Ibid., p. 174
60
Ibid., p. 175
61
Ibid., p. 175
38

dessa “forma-prisão” enquanto pré-existente ao aparelho judiciário, justamente por se


inscrever nas instituições além da prisão.62
O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve portanto ser
essencialmente corretivo. Ao lado das punições copiadas ao modelo judiciário
(multas, açoite, masmorra), os sistemas disciplinares privilegiam as punições que
são da ordem do exercício.63

A punição disciplinar é análoga à obrigação por se inserir numa espécie de rotina.


Difere das primeiras formas de punição (suplício, guilhotina) por não ser uma maneira de
resgatar a “honra” do soberano, mas se assemelha, pois os efeitos de humilhação fazem com
que o sujeito passe pelo arrependimento. Afinal, há uma espécie de gratificação de
comportamentos considerados bons.
(...) a qualificação do comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores
opostos do bem e do mal: em vez da simples separação do proibido, como é feito
pela justiça penal, temos uma distribuição entre polo positivo e negativo; todo o
comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus
pontos.64

Essa dicotomia de valores permite uma espécie de economia que pode “absolver” os
castigos e promover hierarquias. Um sujeito que é considerado “bom”, que segue as normas
em boa parte do tempo e é constantemente recompensado, tem uma espécie de "crédito" para
seus erros. Em alguns casos pode ter uma posição hierárquica maior, deste modo o que é
punido é o indivíduo, não o ato, podendo essa punição ser um rebaixamento de posição.
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem expiação,
nem mesmo a repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas:
relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto,
que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio
de uma regra a seguir.(...) A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e
controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia,
hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.65

Nisso, difere das penalidades judiciárias que balizam o proibido e permitido, legal e
ilegal através da condenação e a partir das normas, que ditam o “normal”. O funcionamento
jurídico, ao contrário do que as teorias clássicas liberais discorrem, não parte de um
humanismo ou razão, mas da imposição e construção deste normal.66
Para manutenção do controle e vigilância, a partir da hierarquia, existe a ferramenta do
exame, que diferencia e sanciona os sujeitos.

62
Ibid., p. 223
63
Ibid., p. 176
64
Ibid., p. 177
65
Ibid., p. 179
66
Ibid., p. 180
39

No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são
percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam a superposição das
relações de poder e das de saber assumir no exame todo o seu brilho visível (...) pois
nesta técnica delicada estão comprometidos todo um campo de saber, todo um tipo
de poder.67

O ritual do exame, que nasce nos hospitais, é fundamento para essa construção de
saber-poder. O médico, a partir de seu olhar técnico e especializado, é o centro deste ritual,
aquele que dá a palavra final sobre a condição do paciente.
Na escola, os exames periódicos garantem a troca de saber e a torna local de
elaboração da pedagogia. “O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação
de saber a uma certa forma de exercício de poder”.68
A princípio o poder é algo visível, sua força está no que se exibe a partir daquilo que
se quer mostrar. O exame inverte essa lógica pois torna o poder disciplinar invisível, quem é
visto é o alvo dessa tecnologia de poder, e a condição de sempre ser visto garante que o
indivíduo mantenha-se sujeito a ele.
O exame é a técnica pela qual o poder, ao invés de emitir os sinais de seu poderio, ao
invés de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação.
No espaço que domina, o poder disciplinar manifesta, para o essencial, seu poderio
organizando os objetos. O exame vale como cerimônia dessa objetivação.69

O exame constrói um inventário sobre o objeto a ser examinado, tornando tudo aquilo
que diz respeito à individualidade parte de um documento, reduz os sujeitos à escrita e
anotações, que captam e fixam uma face da questão, captada por quem o conduz. Esse
documentário possibilita classificações e agrupamentos.
Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas
possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto
descritível analisável, não contudo para reduzi-lo a traços "específicos", como fazem
os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-los em seus traços
singulares em sua evolução particular, em suas aptidões com capacidades próprias,
sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a Constituição de um
sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais a descrição de
grupos a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos
entre si sua distribuição numa “população”.70

O autor ressalta que é importante olharmos para o nascimento da ciência no Século


XVIII a partir desta compreensão do exame, afinal, o nascimento da ciência parte de um olhar
enviesado e um discurso que tem objetivo. Coincide com o surgimento do sujeito universal e,
por isso, precisa criar a norma para universalizar. A partir destes primeiros momentos

67
Ibid., p. 181
68
Ibid., p. 185
69
Ibid., p.183
70
Ibid., p.186
40

podemos verificar comportamentos e crenças que não necessariamente correspondem à


materialidade da questão.
Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem
transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame:
código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar
dos comportamentos e dos desempenho. Esses códigos eram ainda muito
rudimentares, em sua forma qualitativa ou quantitativa, mas marcam o momento de
uma primeira formalização do individual dentro de relações do poder.71

Ademais, é a partir do exame que vemos complexas histórias de famílias (nos casos da
Vara de Família, por exemplo) reduzidas a “caso”, retirando a humanidade e subjetividade dos
sujeitos.
(...) O caso não é mais vivo como na casuística ou na jurisprudência, um conjunto de
circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra, é
o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e
isso em sua própria individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser
treinado ou retreinado, tem que ser classificados, normalizado, excluído etc.72

Essa maneira de utilização da escrita inverte a lógica das biografias heroicas e passa a
ser um atestado, ou prova, de que algo foge da norma. É o caso dos loucos e prisioneiros, que
são fonte de estudos para criar padrões de comportamento, como é o exemplo do “serial
killer”, que em seu julgamento convidam uma professora dos seus primeiros anos de infância
para que ela traga um exemplo bruto de criança que arrancava a cabeça de bonecas, batia nos
colegas e não pedia desculpas.

1.3 Biopolítica e biopoder

No livro “Em defesa da sociedade”73, Foucault discorre sobre um dos conceitos mais
importantes de sua teoria, que embasa um outro olhar para as intervenções dos dispositivos
nos corpos, em especial ao racismo de Estado, a biopolítica. O pensamento do autor é
desenvolvido a partir de um olhar sobre o poder soberano e a análise de elementos acerca do
gerenciamento da vida e da continuidade das tecnologias de poder.
Na sociologia e na filosofia existem diversas discussões acerca das teorias de
soberania (Bodin, Rousseau, Kant); a perspectiva de Foucault analisa o gerenciamento e
escolha de vida e morte no poder soberano. Para o autor, a soberania se encontra enquanto
pano de fundo para a análise do racismo, da “guerra das raças”.

71
Ibid., p. 187
72
Ibid., p. 187
73
O título original “Il faut défendre la société” tem uma ironia perdida em seu título na tradução para o
português. Na tradução livre, o título seria “Devemos defender a sociedade”. A ironia está nos temas trazidos
pelo autor ao fazer a genealogia desta sociedade, que revela ser indefensável.
41

Em certo sentido, dizer que o soberano tem o direito de vida e de morte significa, no
fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso, que a vida e a morte
não são desses fenômenos naturais, imediatos, de certo modo originais ou radicais,
que se localizariam fora do campo do poder político. Quando se vai mais além e, se
vocês quiserem, até o paradoxo, isto quer dizer no fundo que, em relação ao poder, o
súdito não é, de pleno direito, nem vivo nem morto. Ele é, do ponto de vista da vida
e da morte, neutro, e é simplesmente por causa do soberano que o súdito tem o
direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar morto.74

A partir desta análise, há muito o que pensar. Primeiro: a naturalização da morte é um


jogo perigoso, pois retira de cena a intencionalidade de quem exerce o poder de Estado. Claro
que ainda existem mortes dadas como naturais, mas em uma sociedade regida pela soberania
não há predição de sobrevivência e vida, pois quem tem o “poder de espada” é o soberano. O
poder, nesse caso, é de “fazer morrer, ou deixar viver”.
No século XIX, a Europa passava pela revolução industrial e a ampliação da disciplina
do trabalho, por meio das jornadas extenuantes em fábricas, minas e outros setores que
aqueciam o “progresso”. Nas colônias, em especial no Brasil, a exploração por meio do
trabalho escravo seguiu sem muitas alterações. A característica de economia rural e com
grande possibilidade de exploração de minérios mantinha a relação de subordinação da
população ao poder soberano.
No entanto, o atravessamento do liberalismo complementa o poder soberano com uma
nova forma de poder: o de “fazer viver” e de “deixar morrer”. Voltando o olhar para o poder
do liberalismo e os juristas, há um longo debate acerca da função do soberano e a forma de
exercer este poder (ver Kant e Rousseau), mas Foucault propõe uma outra perspectiva, a das
tecnologias de poder que são retomadas.
Nos séculos XVII e XVIII, passa a existir uma tecnologia de poder centrada no corpo
individual, objetificando sua distribuição espacial e potencializando sua força e organização
através da vigilância e hierarquização, a tecnologia disciplinar do trabalho (tópico que
analisaremos com mais cuidado no próximo ponto).
No final do século XVIII este poder individual é complementado por um outro, fora do
campo da disciplina. Trata-se de um poder massificante, dirigido ao “homem-espécie”.
Contrapondo a “anatomopolítica do corpo”, encontramos a “biopolítica” da espécie humana75,
responsável por pensar e aplicar o conjunto de processos para garantir este “fazer viver”. É
através da biopolítica que passamos a medir as taxas de mortalidade, reprodução e
fecundidade de uma população.

74
Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2010, p. 202
75
Ibid. p. 204
42

Neste período encontramos, inclusive, dados e mapeamentos de controle de


nascimentos e mortes por todo o mundo sustentando diversas práticas, a maioria visando
algum nível de monitoramento e controle da população. A medicina da época passa a ter um
papel central na higiene pública, organizando-se para atender a saúde, doença e também a
prevenção, de certa maneira.
O outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um conjunto de fenômenos
dos quais são universais e outros são acidentais, mas que, de uma parte, nunca são
inteiramente compreensíveis, mesmo que sejam acidentais, e que acarretam também
consequências análogas de incapacidade, de pôr indivíduos fora de circuito, de
neutralização, etc. Será um problema muito importante, já no início do século XIX
(na hora da industrialização), da velhice, do indivíduo que cai, em consequência,
para fora do campo de capacidade, de atividade. E, da outra parte, os acidentes, as
enfermidades, as anomalias diversas. E é em relação a estes fenômenos que essa
biopolítica vai introduzir não somente instituições de assistência (que existem faz
muito tempo), mas mecanismos muito mais sutil, economicamente muito mais
racionais do que a grande assistência, a um só tempo maciça e lacunar, que era
essencialmente vinculada à Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais,
de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade, etc.76

Essa biopolítica se inscreve em um período de crescimento das cidades e de uma


constituição de saber. É também o saber em si que determina a intervenção do poder
biopolítico, que gerencia o ser-humano entendido, a partir de alguns marcos na sociedade,
como “espécie”. Surge uma nova personagem desconhecida para as tecnologias de poder da
época — que direcionaram-se ao corpo, indivíduo e sociedade —; é a noção de população. “A
biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a
um só tempo científico e político, como problema biológico e como prova de poder.”77
Esse novo entendimento se traduz em análises de acontecimentos individuais e
aleatórios de maneira massificada, tornando possível a extração de fatos constantes quando na
perspectiva de uma população agir ou produzir determinado comportamento ou “problema”.
[...] Nos mecanismos implantados pela via política, vai se tratar sobretudo, é claro,
de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar,
igualmente, não de modificar tal fenômeno especial, não tanto tal indivíduo, na
medida em que é indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que
são as determinações desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de
global. Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a
vida; vai ser preciso estimular a natalidade. E trata-se sobretudo de estabelecer
mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão
se poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de
homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismo de
previdência em torno desse relatório que é inerente a uma população de seres vivos,
de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida: mecanismos, como vocês vêem,
como os mecanismos disciplinares, destinados em suma maximizar forças e a
extraí-las, mas que passam por caminhos inteiramente diferentes.78

76
Ibid., p. 205
77
Ibid., p. 206
78
Ibid., p. 207
43

Desta forma há um deslocamento do poder, do “fazer morrer” para o intervir em “fazer


viver”, em uma regulamentação da vida. Para isso, há a necessidade de produzir
conhecimentos com a finalidade de aumentar a vida, controlar os acidentes e os limites da
vida. A morte, que um dia foi espetáculo, vai tomando a característica de tabu.
[...] E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada no corpo,
mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massa próprios de uma
população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer
numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a
probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. É uma
tecnologia que visa portanto não o treinamento individual, mas, pelo equilíbrio
global, algo como uma homeóstase: a segurança do conjunto em relação aos seus
perigos internos. Logo, uma tecnologia de Treinamento oposta a, ou distinta de, uma
tecnologia de previdência; uma tecnologia disciplinar que se distingue de uma
tecnologia previdenciária; uma tecnologia que é mesmo, em ambos os casos,
tecnologia do corpo, mas, num caso, trata-se de uma tecnologia em que o corpo é
individualizado como organismo dotado de capacidades e, no outro, de uma
tecnologia em que os corpos são recolocados nos processos biológicos de conjunto79

Ao pensarmos nas transformações da Europa no século XIX — industrialização,


crescimento das cidades, formação da classe operária — este biopoder opera definindo
fronteiras e policiamentos, em uma relação direta (ou complementar) com a tecnologia do
poder disciplinar. No Brasil, como verificaremos mais à frente, esta relação se dá
principalmente no século XX, com particularidades.
Consideramos esses conjuntos de mecanismos — que não estão no mesmo nível e, por
isso, se articulam, como no caso das cidades — como parte de uma bioregulamentação por
parte desse Estado, com novas necessidades e naturalizações de tecnologias anteriores que são
retomadas e naturalizadas.
[...] Recorte, pôr indivíduos em visibilidade, normalização dos comportamentos,
espécie de controle policial espontâneo que se exerce assim pela própria disposição
espacial da cidade: toda uma série de mecanismos disciplinares que é fácil encontrar
na cidade operária. E depois vocês têm toda uma série de mecanismos que são, ao
contrário, mecanismos regulamentadores, que incidem sobre a população enquanto
tal e que permitem, que induzem comportamentos de poupança por exemplo, que
são vinculados ao hábitat, à locação do hábitat e, eventualmente, à sua compra.
Sistemas de seguro-saúde ou de seguro-velhice; regras de higiene que garantem
longevidade ótima da população; pressões que a própria organização da cidade
exerce sobre a sexualidade, portanto sobre a procriação; as pressões que se exercem
sobre a higiene das famílias; os cuidados dispensados às crianças; a escolaridade,
etc. Logo, vocês têm mecanismos disciplinares e mecanismos regulamentadores.80

Esse caráter policialesco da intervenção do Estado na Europa do século XIX é


retomado no século XX no Brasil. O colonialismo e o consequente eurocentrismo que
constitui nossa sociedade, a partir de um horizonte constante de civilização, intervém em
corpos e espaços. Tal ponto costuma ser discutido no Serviço Social em dois momentos,

79
Ibid., p. 209
80
Ibid., p. 211
44

prioritariamente para pensarmos neste primeiro momento de um Serviço Social conservador,


direcionado ao policiamento dos hábitos das famílias e com forte influência da igreja. E, em
um segundo momento, para pensarmos no surgimento da política social e a articulação do
Estado com as reivindicações da Classe Trabalhadora. Bons exemplos, enquanto ação estatal,
de mecanismos disciplinares e regulamentadores.
Quanto ao domínio da sexualidade trazido pelo autor, destacamos a inserção deste
biopoder nas questões de reprodução e procriação. Neste caso, extrapola a questão do controle
das práticas sexuais em espaços considerados impróprios nessas cidades, inclusive com
diagnósticos para a devassidão, além dos diagnósticos de Infecções Sexualmente
Transmissíveis (ISTs). A procriação surte efeito na população; em termos demográficos, com
o crescimento, e em termos raciais, como veremos mais adiante na discussão acerca da
miscigenação.
De qualquer forma, há uma centralidade muito bem colocada da medicina, enquanto
“(...) um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o
organismo e sobre os processos biológicos que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos
regulamentadores”81. É a partir deste saber-poder que se dá o elemento regulamentador da
“norma”.
A norma que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma
população que se quer regulamentar. A sociedade de normalização não é, pois,
nessas condições, uma espécie de sociedade disciplinar generalizada cujas
instituições disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo o espaço —
essa não é, acho eu, senão uma primeira interpretação, e insuficiente, da ideia de
sociedade de normalização.82

O último ponto, que alinhava esses elementos e incursões de poder sobre o corpo e a
população, é o racismo que, conforme veremos a seguir, toma uma nova forma para atender
ao poder político do “fazer morrer” do próprio “cidadão”. No Brasil,
O que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse
biopoder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo
fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modernos, e que faz com que
quase não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo
limite e em certas condições, não passe pelo racismo.83

Em linhas gerais, o racismo tem como função a hierarquia das raças a partir de um
recorte biológico, discursivo e cultural, que age através de sutilezas e também pela baliza de
vida e morte das raças.
De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a
morte do outro, uma relação que não é a relação militar e guerreira de

81
Ibid. p. 212
82
Ibid. p. 213
83
Ibid. p. 214
45

enfrentamento, mas uma relação do tipo biológico: “quanto mais as espécies


inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem
eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu — não
enquanto indivíduo, mas enquanto espécie — viverei, mais forte serei, mais
vigoroso serei, mais poderei proliferar”. A morte do outro não é simplesmente a
minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a
morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai
deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e pura.84

É a ideia de perigo biológico, a “raça ruim que precisa ser exterminada”, ou seja, uma
norma racial que tem enquanto imperativo a morte e eliminação do outro. Para Foucault, o
poder de morte do Estado só se faz pelo racismo. Ele é “condição para que se possa exercer o
direito de matar”85, que pode ser direto — como através de uma polícia e um judiciário que
selecionam a partir da cor quem será seu alvo — quanto indireto, como no caso da negação do
acesso às políticas sociais e mínimos para sobrevivência que iniciam com sua cor, a exemplo
dos negros “libertos” que são preteridos para o trabalho e terra em comparação com o
imigrante europeu recém chegado (questões que ressoam fortemente até hoje).
Por fim, antes de discutirmos o racismo mais a fundo, vale pensarmos na ligação entre
racismo e criminalidade, tão fortemente presente nos discursos de seletividade penal e
reclusões em nossa sociedade.
[...] Se a criminalidade foi pensada em termos de racismo, foi igualmente a partir do
momento em que era preciso tornar possível, num mecanismo de biopoder, a
condenação à morte de um criminoso ou seu isolamento. Mesma coisa com a
loucura, mesma coisa com anomalias diversas.86

1.4 Considerações sobre uma “microfísica do poder”.

A compreensão de poder para Foucault pode se relacionar com a ideia de uma negação
da sociedade de classes, justamente por ir contra categorias fundamentais para o marxismo
como ideologia e dominação. Entendemos, à luz da crítica muito presente no Serviço Social,
principalmente entre autores marxistas87, como ecletismo a utilização de Marx e Bakunin
neste trabalho, posta esta limitação teórica.
A ideia de relações de poder como parte dessa estrutura de sociedade é um ponto que
precisa ser exposto neste trabalho, por tratarmos de elementos basilares do autor. No entanto,
não é somente a partir desta concepção que este trabalho se direciona. Uma questão que nos
chama a atenção na concepção de poder Foucaultiana é sua compreensão e análise da história
84
Ibid., p. 215
85
Ibid., p.216
86
Ibid., p. 217
87
O importantíssimo trabalho de Sheilla Nadíria Rodrigues Rocha, que fundamentou em sua tese de
doutoramento o caráter sincrético do Serviço Social em sua tradição; este sincretismo diz respeito a uma junção
de muitos autores que não necessariamente dialogam, para justificar e explicar o mesmo fenômeno na sociedade.
46

através da genealogia, que nega radicalmente a metafísica e nos permite olhar para a realidade
a partir de uma materialidade.
Sob essa lógica, então, conseguimos compreender a história como um
desenvolvimento belicoso, dotado de materialidade e discursos norteadores, intenções
demonstradas pelo uso e desenvolvimento de tecnologias de poder (ainda que um poder
relacional e distante da compreensão de dominação pressuposta nas análises marxistas).
Insistimos, portanto, em uma análise que utilize os pensamentos Foucaultianos e os
exponha, com a finalidade de negar o determinismo histórico, que reforça a ideia de uma
realidade como está dada. Concordamos que vivemos numa sociedade desigual, não somente
pela centralidade das questões derivadas da relação capital–trabalho e extração de mais-valia,
mas também pelas questões que atravessam um poder que se manifesta, materialmente, como
inegavelmente violento. A violência e a autoridade são pontos que não excluímos ao pensar
em poder.
A utilização de qualquer autor supõe a crítica respeitosa. Arriscar-se sair do escopo
teórico tradicional do Projeto Ético-Político é um desafio ímpar, pois há o perigo de soar
como em defesa de um outro Serviço Social. Não é nosso objetivo. Existem críticas
anarquistas que se embasam em Michel Foucault88, e esses autores serão utilizados no
decorrer desta dissertação por apontar nossa concordância teórico-política.
É sabido que, historicamente, o socialismo libertário olhou para a sociedade e interviu
em sentido de horizontalidade, participação popular, alinhamento de teoria e prática e,
sobretudo, a defesa da liberdade. Anarquistas e comunistas historicamente — com inúmeras
divergências — lutaram e intervieram em conjunto para a transformação desta sociedade e por
uma nova ordem social. É neste sentido, do anticapitalismo, humanismo radical, ética e práxis
que há o encontro com os valores do Serviço Social que acreditamos. Com destaque para as
possibilidades de uma classe trabalhadora que fala de si, para si e utiliza de ferramentas para
que suas reivindicações e lutas sejam feitas sem intermediários.
É necessário destacar que o uso de Foucault neste trabalho diz respeito a uma lacuna
de utilização do autor no Serviço Social, na íntegra e para fora da compreensão de uma crítica
à pós-modernidade e diálogo com seus princípios libertários, a partir da crítica à reclusão e ao
saber-poder. Usamos o autor como uma “caixa de ferramentas”89, cuja a análise de uma

88
No Brasil: Abdias Nascimento, Silvio Almeida, Edson Passetti, Acacio Augusto, Margareth Rago, Silvio
Gallo, Salete Oliveira, Stéfanis Caiaffo e Thiago Oliveira. Também é importante destacar o trabalho de Salvo
Vaccaro.
89
Em “Microfísica do poder” Foucault usa esse termo em uma conserva com Deleuze; tá aí uma discussão que
pode ser usada.
47

sociedade (produzida por um homem europeu em plena guerra-fria) e métodos podem


complementar o nosso olhar para a sociedade latina-americana (aos olhos de uma mulher
latina-americana, anarquista em pleno governo fascita).
Um ponto muito importante de sua obra (e vida, pois consideramos importante
observar a coerência do autor com suas práticas) é o alinhamento ético. Algo que podemos
inferir de sua análise da microfísica do poder. Essa preocupação poderia aproximá-lo também
de autores como Errico Malatesta90, ou “anarquistas estilo de vida”, que são mais
individualistas, indo dos sabotadores a marcas e outras práticas inócuas e pontuais, aos mais
“violentos” adeptos de um tipo de ação destacada de opiniões coletivas e mais espontaneístas.
Ao selecionarmos quais conceitos e livros de Foucault iríamos trabalhar, decidimos
não abrir muito o leque — pela falta do tempo em escrever uma dissertação de mestrado — e
por isso a discussão está mais centrada na discussão que o autor desenvolve em “Vigiar e
Punir”. No entanto, a complexidade das relações entre Estado e sociedade não foi um tema
estudado pelo autor neste primeiro momento da genealogia. Compreendemos essa relação
enquanto fundamental para a discussão proposta e, portanto, optamos pelo pluralismo ao
utilizar autores marxistas que também dialogam com Foucault.
De qualquer forma, consideramos importante marcar nesta análise que essa pesquisa
trata-se de levantamentos para trabalhos futuros, como apontado nos elementos pré-textuais, e
que determinados conhecimentos aqui expostos foram muito úteis na aproximação com a
realidade prisional e periférica da pesquisadora.
A partir da compreensão das ferramentas utilizadas para a análise que segue,
entendendo, inclusive, elementos que são relevantes para compreender o caráter disciplinador
que a profissão pode ter, tanto por sua característica contraditória, quanto por projetos em
disputa que se opõem à hegemonia do Projeto Ético-Político.
No próximo capítulo, objetivamos olhar como o gerenciamento de corpos e a guerra
de raças se deu na história do Brasil. Para compreender nosso presente, é fundamental
analisarmos o que trazemos do passado e do projeto de sociedade desenhado pela classe
dominante, desde a invasão do país.

2. DO RACISMO AO ESTADO PENAL

A proposta neste capítulo é de trazer a discussão acerca das estruturas racistas


construídas no movimento da história, refletindo acerca dos discursos que sustentam as
instituições violadoras de direitos humanos às quais o abolicionismo penal, enquanto
90
Anarquista italiano que se preocupou em fazer uma discussão onde difere anarquismo e anarquia.
48

movimento acadêmico e social busca, sobretudo, intervir. A divisão dos subcapítulos propõe
analisar a questão racial através dos três momentos propostos por diversos autores91: o
momento místico, o momento científico e o momento cultural.
O primeiro ponto trata da desigualdade racial no Brasil, embasada em um discurso
teológico no período colonial. Para esta análise, é necessário voltarmos nossa “lupa
genealógica” aos discursos que sustentaram a sujeição de povos e corpos ao longo da história.
Desta maneira contamos com a contribuição de pensadores acerca da questão racial (Abdias
Nascimento, Aimé Césaire, Clóvis Moura e Lilia Schwarcz) e punitiva deste período e do
decurso da “transição” para a República Velha, a partir das análises de Fernando Salla.
Ao resgatar esses autores, buscamos ressaltar algumas questões essenciais para
pensarmos na abolição das penas para além da prisão, a partir de um recorte histórico: a
utilização de recursos discursivos a fim de justificar a escravidão e sequestro da população
africana para exploração da mão-de-obra barata; a reflexão crítica sobre a história formal e
suas inconsistências; o papel do eurocentrismo cristão nos primórdios da formação
socio-cultural do Brasil; a eugenia presente nos disposivitos centrais desta pesquisa e as
heranças destes períodos que perpetuam o “racismo à brasileira”, tema discutido no segundo
capítulo.
Fechamos esse capítulo com o levantamento de elementos que sustentam um
punitivismo de Estado e a militarização da vida social. Na discussão sobre o racismo cultural,
compreendemos como os discursos se mantiveram desde a colônia através de reformas e
propagandas que mantiveram o racismo como estrutura de nossa sociedade. Terminamos a
discussão refletindo sobre as punições do Estado na ditadura, a fim de compreender o que se
mantém desde o militarismo.
Visando a análise cuidadosa dos discursos, assimilações e práticas destes momentos,
neste primeiro capítulo, a divisão dos pontos buscou passar, cuidadosamente, pelas bases e
mecanismos das instituições que permitiram o enraizamento da imposta sujeição dos povos
africanos e ameríndios à perversa proposta de civilização europeia. Apesar das dificuldades
em reunir documentos oficiais, acreditamos que este ponto explicita a relação indivisível de
raça e classe em nosso país, pontos fundamentais para o desenvolvimentos das reflexões
objetivadas nesta pesquisa.

2.1 Racistas, graças a Deus!

91
Entre eles: Aimé Césaire, Achille Mbembe e Frantz Fanon
49

Para a reflexão acerca das raízes da estrutura punitivista da sociedade brasileira,


precisamos olhar criticamente para a história. Ao falarmos, por exemplo, da seletividade penal
que mira negros periféricos, não tratamos apenas de um conceito técnico do Direito, mas
histórico da sociedade brasileira em sua base racista, que tem sua função na dominação do
povo latino-americano e africano. Aqui, concordamos com Moura92 que “somente
admitindo-se o papel social, ideológico e político do racismo poderemos compreender sua
força permanente e seu significado polimórfico e ambivalente”. Neste primeiro momento, a
proposta é analisar o discurso que fundamenta e justifica o racismo, bem como suas
adequações para a manutenção dos interesses dos europeus, colonizadores.
A compreensão de qual povo e projeto de civilização construiu a identidade da
América Latina, mais precisamente do Brasil, se faz fundamental para o entendimento dos
mecanismos tratados neste trabalho. Sabemos que os portugueses a bordo de caravelas em
1500 já acumulavam 100 anos de navegações e explorações de novos territórios, em disputa
por um novo Império hegemônico e colonial. Sobretudo no território africano, onde já havia
longa disputa e exploração em Senegal, Cabo Verde, Congo, São Tomé e Príncipe… As
“grandes navegações” fundam uma expansão europeia pautada no acúmulo de riquezas e
exploração dos povos, intervindo na cultura e nos corpos.
É importante ressaltar a característica mitológica das narrativas acerca desse período
de expansão, pois faz parte da construção da identidade de um povo, ainda que a partir do
olhar branco, durante o período aventureiro de europeus alimentados por epopeias e “grandes
feitos” em registros literários.
(...) O que é, no seu princípio, a colonização? Concordemos no que ela não é; nem
evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade de recuar as fronteiras da
ignorância, da doença, da tirania nem propagação de Deus, nem extensão do Direito;
admitamos, uma vez por todas, sem fugir às consequências, que o gesto decisivo
aqui, é o do aventureiro e do pirata, do comerciante e do amador, do pesquisador e
do mercador, do apetite e da força, tendo por detrás a sombra projetada maléfica da
forma de civilização que a dado momento da sua história se vê obrigada,
internamente, a alargar à escala mundial a concorrência de suas economias
antagônicas.93

A afirmação de Césaire é facilmente comprovada no documento que, de acordo com a


educação formal, inicia os registros culturais e poéticos da língua portuguesa no Brasil. A
carta de Pero Vaz de Caminha, onde o pirata-poeta português descreve o que se conhece como
o primeiro contato entre o europeu e o indígena diz que:

92
MOURA, Clóvis. Racismo e luta de classes no Brasil:textos escolhidos de Clóvis Moura. 1 ed.. Terra Sem
Amos. 2020. p. 19
93
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. 1st ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora. 1978. p. 14-15
50

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma
alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço.
E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós
outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa.
Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de
falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e
começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como
se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de
prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá
também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo
na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a
mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.Deram-lhes ali de comer: pão e
peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo
quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.94

Diversas análises ao longo da história crítica no Brasil questionam o teor e a


veracidade deste relato. No entanto, há um propósito em cada palavra desta carta; a busca por
justificativa de massacres aos povos originários, a fim de exercer uma dominação e se
apropriar das riquezas daquele povo que, por “não conhecer” o que é tido como elementar e
cotidiano pelos europeus, regidos e escolhidos pelo deus todo poderoso e onipresente,
necessita da intervenção destes aventureiros.
Para nós, cabe observar a construção de uma imagem de indígena mística, infantil e
estranha aos valores da civilização europeia, visão que se mantém até hoje na personagem do
"índio” brasileiro. Os povos indígenas foram sequestrados de sua cultura, assassinados,
estuprados, violentados de todas as formas possíveis; incluindo a morte da linguagem e da
identidade étnica, sendo tratados enquanto “índios” ou “brasileiros nativos”; sendo a própria
alcunha de “brasileiro” muito anterior a existência destes povos.
Quanto ao genocídio indígena, sabemos que:
As populações indígenas no começo da colonização, conforme as estimativas mais
autorizadas, somavam cerca de dois milhões de seres humanos. Atualmente, como
resultado ou da extinção direta, com ou sem violência, ou dos métodos de liquidação
sutis e indiretos, aqueles números reduziram-se consideravelmente: não excedem a
duzentos mil nos cálculos mais otimistas.95

94
CAMINHA, Pero Vaz de. “A Carta.”. Domínio Público, 1500. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000283.pdf. Acesso em: 19 jan. 2021.
95
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3rd ed. São
Paulo: Perspectivas, 2016. p. 50
51

O último censo demográfico sobre a população indígena96, feito há mais de dez anos,
em 2010, contabilizou 896 mil pessoas que se declararam indígenas. Desta população, apenas
57,5% moravam em Terras Indígenas oficialmente reconhecidas.97 98
Durante o processo de expansão do império português há um outro elemento
fundamental para nossa discussão: o uso de trabalho escravo do povo capturado na África e
trazido em navios, bem como a construção da narrativa sob o território africano e seu povo
durante o período. Um exemplo destas escolhas narrativas é o episódio da “descoberta” da
Bacia do Congo, em 1482, narrada por de Barros:
Agora é chamado de Congo, pois passa pelo reino nomeado assim, descoberto por
Diogo Cão em sua viagem, porém é chamado de Zaire pelos nativos: mais famoso
por suas águas do que pelo nome; durante aquela estação do ano, inverno na região,
a água do rio vem de encontro abundantemente com o Oceano e é possível avistá-la
a vinte léguas da margem.99

Nesta ocasião, Diogo Cão marcou a chegada dos portugueses na região em uma
pedra, na primeira grande catarata do Congo. Decidiu também levar alguns nativos da região
para Portugal, a fim de anunciar sua “descoberta”, deixando alguns portugueses de sua
embarcação como garantia. No retorno, os portugueses induziram o rei do Congo a aceitar a
condecoração de Lorde por parte do Rei João e tornar-se cristão, segundo documentos
consultados. É neste período que a colonização portuguesa começa na África.
Ao tratarmos desta permuta entre os corpos portugueses e africanos, encontramos o
elemento de uma sociedade desenvolvida de sua própria maneira, que competia com os países
do continente europeu em sua expansão e fluxos migratórios. A história formal, em sua
construção de saber eurocentrada, parece esconder a história de riquezas e construção de
conhecimento do restante do mundo, em especial da África. Este apagamento histórico, que
será tratado no próximo ponto, também constrói uma narrativa e construção de um “devir
negro” construído pelo branco.
A resistência de povos originários não deve ser ignorada; no Brasil-colônia, a luta dos
povos ameríndios resulta na proibição da escravidão em 1570. Entre as consequências deste
96
A Base para este censo reuniu dados da autodeclaração e da população residente em áreas indígenas, ainda que
não se declarem parte desta população, e pessoas que se consideram indígenas. Apesar do aumento destes povos
no censo, a metodologia aponta para falhas. No período desta pesquisa, o genocídio indígena segue em plena
evolução. Com a ingerência do Estado no enfrentamento à pandemia de COVID-19, os cortes orçamentários do
governo Bolsonaro impedem o desenvolvimento de novo censo em 2021, mas as mortes de indígenas
representam 0,29% da população (1046 mortes de 378.000).
97
Fundo Nacional do Índio. Índios no Brasil: O Brasil indígena. 2010, IBGE. Disponível em:
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/o-brasil-indigena-ibge. Acesso em: 21 abr. 2021.
98
ARTICULAÇÃO dos Povos Indígenas Brasileiros. Dados covid 19: Emergência indígena. 2021, Disponível
em: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/. Acesso em: 21 abr. 2021.
99
HISTORICAL Section of the Foreign Office. The Formation of the Portuguese Colonial Empire. 1 ed.,
London, H.M. Stationery Office, 1920. (A Formação do Império Colonial Português). Disponível em:
https://www.wdl.org/pt/item/11921/view/1/1/. Acesso em: 04 fev. 2021. Tradução nossa
52

ato está a diferença dos mecanismos e efeitos deste racismo, embora muitos mecanismos
sejam os mesmos.
É difícil analisar a sociedade e os costumes indígenas, porque se lida com povos de
cultura muito diferente da nossa e sobre a qual existiram e ainda existem fortes
preconceitos. Isso se reflete, em maior ou menor grau, nos relatos escritos por
cronistas, viajantes e padres, especialmente jesuítas. Existe nesses relatos uma
diferenciação entre índios com qualidades positivas e índios com qualidades
negativas, de acordo com o maior ou menor grau de resistência oposto aos
portugueses. Por exemplo, os aimorés, que se destacaram pela eficiência militar e
pela rebeldia, foram sempre apresentados de forma desfavorável. De acordo com os
mesmos relatos, em geral, os índios viviam em casas, mas os aimorés viviam como
animais na floresta. Os tupinambás comiam os inimigos por vingança; os aimorés,
porque apreciavam carne humana. Quando a Coroa publicou a primeira lei em que
se proibia a escravização dos índios (1570), só os aimorés foram especificamente
excluídos da proibição.100

A proibição da escravização de boa parte dos povos indígenas e o crescimento das


plantações para a exploração do novo território português implicam no sequestro e escravidão
de africanos provindos, em sua maioria, da região do Congo e Cabo Verde.
Porém, a inexistência de registros acerca da “imigração” do povo africano dificulta a
compreensão exata, em termos quantitativos, do fluxo de escravos. Devido a Circular n. 29,
de 13 maio de 1891 (cinco anos após a Lei Áurea), assinada por Rui Barbosa, na época
ministro das Finanças, ordenou a destruição por meio de fogo de todos os documentos
históricos e aquivos relacionados com o comércio de escravos e da escravidão. De acordo
com registros, a queima de arquivos foi realizada em clima festivo:
Ali, no Campo da Pólvora, durante horas, o povo esteve assistindo à fogueira de um
enorme monte de papéis, para lá removido, por dois carroções da Empresa
Locomoção e Móveis precedidos pela banda de música da Polícia.101

Estima-se que cerca de 4 milhões de africanos foram importados e distribuídos pelo


Brasil com a finalidade do trabalho desmedido. O reconhecimento nos leva a crer que
Sem o escravo, a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano
escravizado construiu as fundações da nova sociedade com a flexão e a quebra da
sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria
espinha dorsal daquela colônia. Ele plantou, alimentou e colheu a riqueza material
do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca. Tanto nas plantações de
cana-de-açúcar e café e na mineração, quanto nas cidades, o africano incorporava as
mãos e pés das classes dirigentes — os latifundiários, os comerciantes, os sacerdotes
católicos — consistia no exercício da indolência, no cultivo da ignorância, do
preconceito, e na prática da mais licenciosa luxúria.102

Os colonizadores da América Latina não pareciam sentir qualquer rastro de culpa.


Uma característica declarada da colonização portuguesa e espanhola era o esteio da Igreja
Católica, que julgava um ato de benevolência e generosidade civilizatória (certificando um
100
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12 ed. São Paulo: Edusp. 2006. p. 38
101
TEIXEIRA, Cid. Apud LACOMBE, Américo Jacobina. Rui Barbosa e a queima dos arquivos. Brasília,
Ministério da Justiça: Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p.125.
102
NASCIMENTO, 2016. Op. Cit. p. 59.
53

certo ar de legalidade, aos padrões de quem mensurava a moral da época) à atuação europeia
nos territórios africanos e latino americanos.
É muito comum, neste período, a falsificação de fatos para naturalizar as violências;
um exemplo é o discurso prevalecente de que o próprio povo africano cultivava a escravidão e
a trouxe para as Américas. Neste caminho, também segue o discurso da superioridade
europeia, base para a justificar o genocídio da população africana, os saques das obras de arte
(que seguem expostas em museus franceses até hoje), e o epistemicídio.103
Em verdade, o papel exercido pela Igreja Católica tem sido aquele de principal
ideólogo e pedra angular para a instituição da escravidão em toda sua brutalidade. O
papel ativo desempenhado pelos missionários cristãos na colonização da África não
se satisfez com a conversão dos “infiéis”, mas prosseguiu, efetivo e entusiástico,
dando apoio até mesmo à crueldade, ao terror do desumano tráfico negreiro.104

Também nos cabe lembrar que o período que tratamos neste momento é o do
absolutismo da monarquia Europeia, que tem seus reis “escolhidos por Deus”, usando das
mais diversas ferramentas para justificar a superioridade de um grupo étnico sobre outro.
Desta forma, Moura (1942) indica que
(…) as tentativas feitas para justificar a dominação europeia sobre os indígenas eram
fundadas em crenças sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos, ao contrário
dos povos submetidos, nada mais lógico e natural de que o Deus todo-poderoso dos
cristãos recompensasse os seus adeptos. Os donos de escravos negros podiam
inclusive justificar a escravidão em uma passagem do Velho Testamento, no qual se
lê que os filhos de Cam foram condenados a ser lenhadores e aguadeiros.105

Esse recurso de tentativa de defesa de um sistema indefensável, utilizando-se de


argumentos presentes nos textos judaico-cristãos, através de uma leitura mística, onde há a
subtração da alma do negro, serve para justificar o corpo preto como destinado ao trabalho, e
o branco ao senhorio. Em um período marcado pela influência da Inquisição Católica, negros
africanos eram alienados de sua maneira de viver, suas crenças, nomes e famílias, tornando-se
mercadoria porque “Deus quis”. Para difundir o desejo do divino, os jesuítas cumpriam um
papel fundamental, como no exemplo de Padre Antônio Vieira,
(...) Fica evidente que a ideologia expressa por Vieira, da aceitação humilde pelo
escravo de toda sorte de abusos, mesmo os “maus e injustos”, não faz mais
concessões à desgraçada vida diária do cativo do que aquela assumida pelo sacerdote
protestante. Cristianismo, em qualquer das suas formas, não constituiu outra coisa
que a aceitação, justificação e elogio da instituição escravocrata, com toda sua
inerente brutalidade e desumanização dos africanos.106

Retomando a fábula acerca dos filhos de Cam, é importante nos atentarmos a esta
passagem bíblica e o significado do rito do batismo para o povo europeu (judaico-cristão).

103
Ibid. p. 60.
104
Ibid. p. 59.
105
MOURA, Clóvis. Apud Linton, R. Estudio del hombre. México: Fondo de Cultura Econômica, 1942, p. 59.
106
Ibid., p. 63.
54

Cam era herdeiro de Adão, filho de Noé, que após sobreviver ao dilúvio, na arca do pai,
cometeu o pecado de ver seu pai embriagado, e nu, e “quebrado o pudor do segredo da
intimidade” contando para seus irmãos sobre o que viu. Noé, então, amaldiçoou seu filho e
herdeiros, o enviando em exílio para uma terra onde seu povo exercia diversas ocupações
(inclusive na arte e filosofia). No entanto, seus filhos nunca foram batizados e, embora
trabalhassem arduamente, seguiam com esta marca dos primeiros homens pecadores.
O cristianismo acredita que o batismo é um ritual onde se “nasce novamente”;
limpando a alma dos pecados e ajustando as condutas à vontade de Deus. Até o filho de Deus,
Jesus, foi batizado para cumprir seu sacrifício (santo ofício). Os padres então se apropriaram
desta base para dizer que:
“Segundo a oratória de Vieira, as águas do batismo cristão possuíam as diversas
virtudes justificativas do escravizamento do africano e, mais ainda, tinham o poder
mágico de erradicar sua própria raça — um desgraçado limpo e branco!”.107

A associação do negro à essa passagem da Bíblia marca um discurso que os associa


com um suposto crime, além de tratar o território africano como uma espécie de periferia. O
rito do batismo se relaciona com a expiação de uma suposta culpa e cabe perfeitamente na
narrativa de salvadores e benevolentes dos colonos e senhores de escravos.
Este racismo explícito, da constituição mística das águas benzidas por padres, derruba
as alegações de que a Igreja Católica e o cristianismo nada têm a ver com “este assunto de
racismo” e a escravidão. Embora o autor da bibliografia consultada aponte que a sociedade da
época procurava ressaltar a benevolência dos senhores de escravos e demais autoridades ao
permitir rituais como o batuque (não sem alguma resistência), promovido pelas Nações —
organizações de escravos baseadas frouxamente sobre laços étnicos, com implicações de
cunho social e cultural.
No entanto, sabe-se também da firme luta em que os negros e negras
escravizados batalharam cotidianamente para que sua cultura e seus costumes
não fossem perdidos. Uma dessas resistências, foi a prática do sincretismo
religioso, onde orixás provenientes de religiões de matriz africana, foram
relacionados diretamente a santos católicos. Destarte, a ligação com a cultura
era reativada por meio das histórias contadas, das religiões e dos costumes que
sobreviviam firmemente de geração a geração. Dessa maneira, por conta dos
maltratos vividos diariamente, esses escravos e escravas almejavam retornar
para o país de origem da sua família, após a abolição, contudo não possuíam
condições para financiar tal sonho e tiveram que continuar no Brasil
vivenciando condições cada vez mais precárias.108

107
Ibid. p, 64.
108
COSTA, Duane B.; AZEVEDO, Uly C. “Das Senzalas às Favelas: Por onde vive a população negra brasileira.
Revista Socializando Número 3 1, n. 1, jul. 2016. p. 152
55

Além disso, as igrejas que se fundavam, criavam irmandades para os negros — em


geral, de Nossa Senhora do Rosário — na tentativa de provar a ausência de racismo, embora
seja importante retomar a implicação da “Santa Inquisição” nestas instituições.
sabemos que os europeus enviavam seus escravos delinquentes para esses
governadores das organizações africanas a fim de serem julgados, sentenciados e
punidos. Dessa maneira desviavam o ressentimento que o escravo, de outra maneira,
sentiria contra o seu senhor, enquanto este poderia contar com a manutenção da boa
ordem entre seu “rebanho” [...] Nos países católicos, esta função disciplinar era
monopólio das fraternidades religiosas.109

No que diz respeito à compreensão de crimes e formas de punição, as penalidades


eram criadas e executadas a partir do Livro V das Ordenações Filipinas — Código vigente em
Portugal desde 1446, parâmetro para a Colônia, que o seguiu até 1830 — as Ordenações
diziam respeito a uma diversidade de infrações possíveis: blasfêmia, feitiçaria, benzimento de
bichos, moeda falsa, sodomia, incesto, adultério, homicídio, injúria, furto, falsificação de
mercadorias, vadiagem, bailes de escravos, resgate de presos, porte de armas, jogos,
ocultamento de criminoso, incendiários, mexeriqueiros etc…110
Embora prevista a pena de morte, neste primeiro código não havia a punição por
detenção e encarceramento de maneira isolada. O mais próximo da restrição de liberdade, era
a pena aos galés — que consistia em remar em embarcações — posteriormente substituída por
serviços públicos. As penas neste período incluíam castigos corporais como: açoite, mutilação
(de mãos, língua…), queimaduras com tenazes e exposição ao ridículo. As construções
prisionais serviam para coagir a aplicação de penas, como no caso da multa, e para aguardar a
execução de penas corporais.111
Em 1765, o governador da capitania de São Paulo determinava que todo índio que
estivesse disperso por ela deveria viver em sua aldeia. Atribuía-se aos índios as
desordens que ocorriam na cidade e pela capitania, e para evitar que ficassem
perambulando à solta, ou seja, longe de suas aldeias ou das fazendas de seus
senhores, previa-se a “pena de que todo o que for achado fora de suas aldeias serem
presos e castigados a arbítrio do ilustrissimo e excelentissimo senhor general”.112 113

Além da pena de prisão e segregação dos indígenas, por parte do governador da


Capitania de São Paulo, as penas do período colonial no Brasil eram distribuídas segundo a
condição social do transgressor, definida a partir da raça. Dessa maneira, o açoite e
condenação à morte eram reservados apenas a escravos e indígenas; aqueles que tinham
“melhor condição social” poderiam pagar a multa, mandar um escravo no lugar, ou ser
degradados a outra colônia portuguesa.
109
NASCIMENTO Apud BASTIDE, R. African Civilizations in the New World. p. 91; p. 66
110
SALLA, F. As prisões em São Paulo: 1822 –1940. 2 ed. São Paulo, Anna Blume, FAPESP, 2006. p. 33-34
111
Ibid. p. 34
112
Ibid. p. 34
113
RGCSP, 1765: 174 apud SALLA, F.
56

Ao resgatar a questão dos ordenamentos que geriam um sistema penal primitivo no


Brasil, resgatamos também as motivações por trás da criação destas leis. Superficialmente,
podemos falar delas enquanto uma maneira de proteção "estatal" à propriedade privada,
costumes (cultura) da metrópole e primazia das crenças da religião católica.114

2.2 Racismo e Racionalidade

No ponto anterior, notamos um discurso em defesa da escravidão enquanto “eterno,


imutável e de acordo com as leis divinas”.115 Também demonstra que a hierarquia das raças é
fruto do sistema de exploração do trabalho escravo no Brasil, apontando para o embasamento
que o discurso religioso deu para esta prática, servindo como uma escusa. É importante
pensarmos também no papel da religião na escolha de líderes políticos na monarquia e que a
queda desta se dá (também) através de movimentos sociais que questionavam aquele sistema.
Esse ponto se dedica a discutir uma segunda forma de operar o racismo, a científica.
No primeiro momento deste ponto, se fez necessário um resgate histórico para
compreender como nossa ciência e leis se moldam. É sabido que houveram diferenças
importantes no desenvolvimento industrial, constituição de um “saber” e políticas sociais em
relação à Europa, dada as características da colonização e constituição de uma outra sociedade
pós independência. Portanto, aqui tratamos de um esforço para refletir sobre o poder
disciplinar e biopoder dentro de nossa realidade agrária e escravocrata.
Como vimos no capítulo anterior, na teoria clássica da soberania, compreendemos que
o soberano (rei, imperador) é quem decide o destino de seus súditos, ainda que apoiado por
outros dispositivos, como a igreja. Na sociedade escravocrata, é nítido que este direito de
“fazer morrer” está direcionado ao genocídio negro e indígena, a fim de manter a expansão
territorial e subordinação dos países periféricos, colônias, às metrópoles.
O tratamento dos corpos enquanto mercadorias expressa o quão descartável e
desumana é a relação de poder posta aqui. Além disso, os escravos no Brasil eram os mais
baratos do mundo. A frase “A carne mais barata do mercado é a carne negra” toma, sob essa
perspectiva, características ainda mais violentas. Outro ponto importante para pensarmos na

114
Não cabe a este trabalho aprofundar nas leituras desenvolvidas pela criminologia. Aqui há um interesse de
conhecimentos dos acontecimentos e uma reflexão acerca daquilo que persevera. De antemão, é importante dizer
que o abolicionismo penal, embora considerado por alguns autores questão de uma criminologia crítica moderna,
não está apenas neste campo e nesta episteme. Seria, inclusive, ingenuidade atribuir exclusivamente ao direito
penal (ou qualquer profissão) o papel de se implodir; assim como um apagamento das lutas sociais históricas que
estão envolvidas neste embate.
115
Ibid., p. 6
57

questão do gerenciamento da morte e do tráfico de escravos é a disciplina implicada no modo


de exploração da mão-de-obra.
Ao tratar do desenvolvimento de novas tecnologias de poder, Foucault traz a questão
dos mecanismos dos dispositivos disciplinares sendo desenvolvidos dentro — e para além —
da lógica do trabalho, na repressão e ajustamento de condutas, “(...)Uma técnica que é, pois,
disciplinar: essa centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como
foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo(...)”.
O surgimento das prisões no Brasil ocorre em um momento marcante na nossa
história, onde o “projeto civilizador" com o objetivo de “criar” uma Nação mais
Europeia (através da importação da cultura portuguesa, tal como suas instituições e
cor — branca) buscava elitizar o país e, já naquele período, enclausurar o que viria a
ser uma classe, dentro da concepção Marxista.116

A primeira prisão do Brasil foi construída em torno de 1804, o que nos indica que até
então a distribuição de castigos, a vigilância, as normas e os “tribunais” eram de
responsabilidade e balizados pelo próprio senhor de escravos, com seus funcionários:
capatazes para vigiar o trabalho e punir os escravos, os capitães-do-mato para “caçar” aqueles
que rejeitavam a condição e se organizavam para fugir. A não-conformação e busca por
domínio de sua vida é comum desde o momento do sequestro, se jogando ao mar, e durante
todo o processo de exploração. O suicidio é resistência e maneira de ser senhor de si, a fuga e
o quilombo são saídas para o retorno à sua maneira de sociabilidade e liberdade.
O termo liberdade passa a ser utilizado com outros significados no Brasil colonial a
partir dos ideais liberais que chegam ao país e penetram de maneira lenta, com algumas
expressões na classe média de Minas Gerais e Bahia. Soma a crise das monarquias, inspirada
pela Revolução Francesa (1789–1799) trazendo o início de um movimento por um novo
regime, pautado por uma suposta racionalidade e incentivado pelas teorias de livre-mercado.
No ponto discursivo, o liberalismo surge a partir do processo da revolução burguesa,
que tensiona a doutrina cristã ao, por exemplo, cortar as cabeças dos monarcas, e cria suas
próprias teorias de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Essa nova forma de governo instaura
outras instituições, ou outras tecnologias de poder para determinadas instituições, tornando o
argumento em torno da alma e salvação da população não-branca insuficiente — o que não
significa uma mudança de paradigma e um “despertar” a partir da “iluminação” de uma
determinada racionalidade, e sim a criação de novos discursos para justificar velhas práticas e
desenvolvimento de novas tecnologias de poder.

116
ZAQUEO, Larissa R. "Desassistências" na prisão: os rebatimentos no Serviço Social da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado Serviço Social). Santos. 2016. p. 20
58

No Brasil, as influências liberais se apresentaram no século XIX em decorrência da


transferência da sede da Coroa portuguesa para o Rio de Janeiro, manobra que visava proteger
a família real dos conflitos da Europa.
A vinda da família real deslocou definitivamente o eixo da vida administrativa da
Colônia para o Rio de Janeiro, mudando também a fisionomia da cidade. Entre
outros aspectos, esboçou-se aí uma vida cultural. O acesso aos livros e a uma
relativa circulação de ideias foram marcas distintivas do período. Em setembro de
1808, veio a público o primeiro jornal editado na Colônia; abriram-se também
teatros, bibliotecas, academias literárias e científicas, para atender aos requisitos da
Corte e de uma população urbana em rápida expansão. Basta dizer que, durante o
período da permanência de Dom João VI no Brasil, o número de habitantes da
capital dobrou, passando de cerca de 50 mil a 100 mil pessoas. Muitos dos novos
habitantes eram imigrantes não apenas portugueses, mas espanhóis, franceses e
ingleses que viriam a formar uma classe média de profissionais artesãos
qualificados.117

Aos poucos a Colônia perde a finalidade exclusiva de exploração, o que traz diversos
desdobramentos ao lidar com a população crescente. A existência de uma nova classe média e
das revoltas acontecendo na Colônia e Metrópole culminam em um processo de
independência no qual “muitos negros e mulatos imolaram suas vidas combatendo a tirania
portuguesa. E quando o Brasil, em 1822, se tornou independente de Portugal, continuou o
mesmo país escravizador do africano”.118
A independência do Brasil não implicou, imediatamente, em uma República com
valores liberais; seguimos com a monarquia e um imperador português, embora as pressões
para a dissolução do absolutismo fizeram com que o país passasse a funcionar com quatro
poderes (os três poderes clássicos do Estado liberal, e um poder moderador, soberano) as atas
dos conselhos do Estado119 e a constituição de 1824 trazem o tom de disputa das oligarquias
agrárias e o autoritarismo do governo.
A partir da ruptura com o antigo sistema colonial, o país poderia firmar-se e evoluir
sobre os seus próprios pés. A ausência de riquezas, que pudessem estimular outras
formas de acomodação no nível do mercado mundial e das estruturas internacionais
de poder, acabou favorecendo uma linha de desenvolvimento bem diversa da que
prevaleceu em outras regiões do globo. Por conseguinte, o poder político,
organizado em bases independentes, iria desempenhar funções socialmente
construtivas, tanto como mera condição e agente ordenador da formação de uma
economia integrada em escala nacional quanto como o fulcro imediato e o pólo
dinâmico permanente da construção de uma Nação moderna.120

O primeiro reinado é marcado por questões conturbadas, como os gastos da Coroa


(que deixa a classe média bastante incomodada); a Guerra de Cisplatina (com a finalidade de
expandir o território brasileiro e a mineração) e as diversas revoltas. A modernização do país
117
FAUSTO, 2006, Op. Cit. p. 126–127
118
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit. p. 71
119
Todas as atas do Conselho do estado estão disponíveis no site do Senado:
https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/AT_AtasDoConselhoDeEstado.asp
120
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global. 2008, p. 25
59

ocorreu de maneira desigual, enquanto boa parte da população ainda vivia a as dinâmicas de
um país colonial, as guerras para a expansão territorial e manutenção da escravidão, a fim de
extrair o maior lucro possível para a importação de bens cultivados no território.
No setor agrícola, a extinção do sistema colonial não provocou o colapso das antigas
estruturas econômicas coloniais; ao contrário, as exigências do mercado mundial e
da comercialização das matérias-primas em larga escala exigem sua persistência,
como garantia ao aumento contínuo da oferta e dos grandes lucros dos importadores
europeus. Assim, nesses países, “ revolução agrícola" continuou a ser, mesmo depois
de longo período de vida política independente e de experiência com o crescimento
do capitalismo no setor urbano, incorporação de novas áreas territoriais na produção
de matérias-primas exportáveis (nesse sentido, “áreas inexploradas” tomavam-se
ricas e prósperas, participando dos ciclos econômicos vinculados aos negócios de
exportação através de estruturas e técnicas econômicas arcaicas). Assim, as
estruturas económicas e sociais, constituídas sob a égide do sistema colonial,
permaneceram mais ou menos intactas, ao lado das novas estruturas sociais e
econômicas, criadas sob o impulso da expansão urbana e da implantação do setor
capitalista correspondente, montado através de processos de modernização
incentivados, orientados e comercializados a partir de fora. Se se atentar bem para a
natureza das evidências, a principal fase da acumulação originária de capital, nas
sociedades subdesenvolvidas, ocorreu nesse intervalo, entre a emancipação nacional
e a aceleração do crescimento econômico interno (precipitada pela inclusão no
mercado mundial ).121

O segundo reinado, por sua vez, é marcado por uma questão que muda — mas não
muito — a sociedade brasileira. As ondas liberais, provenientes das mudanças decorrentes da
industrialização da Europa, vão se tornando tsunamis neste período marcado pelas reformas
da abolição da escravatura122 e a “europeização” do país. Tal elemento nos revela um
comportamento das classes dominantes (ainda muito presente hoje em dia) de manter as
instituições e ordenações portuguesas de maneira que tais normas direcionaram o
comportamento do restante da população.123
Em semelhante contexto histórico-social, "modernização” significava mais e menos
que "europeização”. Era mais, porque estava em jogo a implantação, em bloco, de
uma civilização demasiado complexa, diferenciada e instável para as condições
ecológicas, materiais, sociais e morais dadas na situação sociocultural existente. Era
menos, porque nenhum grupo social possuía meios para saturar historicamente,
imprimindo-lhes plena eficácia, as técnicas, as instituições e os valores importados
da Europa. Um exemplo banal é suficiente para esclarecer esse aspecto: o
liberalismo, em suas conexões ideológicas e utópicas com os interesses dos
estamentos dominantes, servia como um disfarce para ocultar a metamorfose dos
laços de dependência colonial, para racionalizar a persistência da escravidão e das
formas correlatas de dominação patrimonialista, bem como para justificar a extrema
e intensa concentração de privilégios econômicos, sociais e políticos na aristocracia
agrária e na sociedade civil, que lhe servia de suporte político e vicejava à sua
sombra.124

121
FERNANDES, 2008, Op. Cit. p. 44
122
Fruto da pressão externa e interna; alguns países da Europa e diversos movimentos de resistência de africanos
e abolicionistas, que se organizavam de diversas formas (diversos quilombos, terreiros, associações como “O
clube dos mortos”, revoltas como a “Revolta dos Malês, etc…).
123
FERNANDES, 2008 Op. Cit. p. 26
124
Ibid., p. 27
60

A exemplo dessa contradição da adoção de um “liberalismo”, em 7 de novembro de


1831, por pressão do governo britânico, o tráfico de escravos foi proibido através de uma lei
que criou a categoria de “africanos livres”, designada a africanos que chegavam nos portos
brasileiros para ser comercializados. De acordo com a lei, eles deveriam ser reexportados para
a África, o que não ocorria porque a coroa achava muito custoso e o transporte difícil.
Enquanto o Estado buscava uma solução, os africanos livres eram mantidos pelo
governo. Posteriormente, na mesma década, esses africanos puderam trabalhar mediante um
salário caso fizessem serviços particulares; no caso de trabalhos para o setor público, não
havia salário. A condição de trabalho era semelhante à dos escravos africanos e, com seu
envelhecimento ou adoecimento, eram enviados às Casas de Correção.125
Nos anos seguintes, a Lei Aberdeen126 entrava em discussão no Conselho do Estado. A
análise das atas do conselho nos revela as preocupações dos majores e principais senhores de
escravos:
O Governo Britânico tem constantemente registrado todas as proposições, que não
são conformes a esse tratado, e ao que propôs Lord Howden – o Governo Britânico
fundando-se em que o Brasil não quer, ou não pode reprimir o tráfico, e armado com
o Bill de 1845, está deliberado a fazer essa repressão por si mesmo, e com os meios
fortíssimos, que tem à sua disposição, visitando, detendo, e julgando as nossas
embarcações, entrando em nossos portos, queimando nossos navios, e destruindo
toda a resistência, que se lhe opuser. Os fatos o provam. A posição em que está o
Brasil é muito perigosa. Este estado de coisas abala-o, e agita-o, e há de dar lugar a
conflitos, e represálias, que hão de agravar o mal, e que é impossível prevenir. Tira a
força moral ao Governo, paralisa o nosso comércio, influi sobre as rendas públicas, e
agrava terrivelmente as complicações dos nossos negócios no Rio da Prata.127

A defesa da liberdade de comerciar escravos e a exposição do “mal” que os ingleses


causavam ao país, naquele momento, traziam dois pontos: a dificuldade de controlar o
comércio ilegal e o contrabando; e o impacto ao comércio. A questão do Rio da Prata é,
claramente, sobre a mão-de-obra.
A reação do conselho quanto às tentativas de minar a escravidão no Brasil nos permite
analisar a reação dos “senhores da terra”, entre eles o conselheiro Limpo de Abreu, que em
novembro de 1846 fez um protesto contestando a Bill. Na ocasião, o conselheiro era
presidente de Minas Gerais e bastante ativo na campanha e exploração da região do Rio da
Prata;
os atos de violências praticados pelos cruzadores eram conseqüências, embora
exageradas, do Bill de 8 de agosto e que além disto recordava-se de que fatos
semelhantes aos que ora se estão praticando, já se tinham verificado, como

125
Op. Cit. SALLA, 2006, p. 77
126
Lei que dispõe sobre a proibição do comércio de escravos (por navios), ameaçando o Brasil de embargos.
127
BRASIL. Ata 3: Terceiro Conselho do Estado, 1842–1850. 1 ed. Vol. 6. 12 vols. Rio de Janeiro: Terceiro
Conselho de Estado. 1850, p. 110 Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/ Acesso em: 08
maio 2021.
61

acontecera dentro do porto da Bahia no ano de 1848, entendendo portanto, que a


principal, e a maior das violências era a existência do Bill. Se porém não obstante o
Bill, tanto ele Conselheiro como outros Ministros, que o sucederam não tiveram
dúvida em admitir o meio de negociar com o Governo Inglês, parecia-lhe que a
situação não estava mudada para que a resolução devesse agora ser outra, e por isso
vota pelas negociações.128

Além disso, havia a reclamação do prejuízo do comércio de africanos se tratar de


contrabando naquele momento, pois um dos argumentos era as dívidas que os agricultores
estavam fazendo para manter aquela mão-de-obra, e como era “danosa à moral pública essa
violação da lei”.129
A decisão final foi, como sabemos, a proibição total do comércio de escravos. É
comum encontrarmos análises deste ato reforçando a benevolência do senhor de escravos e o
progresso natural da política no país. No entanto, a própria maneira que o conselho tratou a
questão demonstra que a realidade era outra. De fato foi um passo, uma reforma, caminhando
para a abolição, mas demonstrando a resignação para isso.
Nesse movimento da história, percebemos que a incoerência não está no discurso e nas
leis que se criam, mas na realidade e práticas. Em que pesa a relação de individualização e a
massificação, características dessa biopolítica, apresenta-se uma crescente intervenção do
público no privado.
Em 1864, o Brasil embarcou em mais uma guerra, dessa vez com o Paraguai. Em dois
anos o exército estava exaurido, a solução de Dom Pedro II foi retomar uma estratégia
utilizada anteriormente, na guerra da independência da Bahia, por Labatut: oferecer a
barganha da alforria, em troca do serviço militar. O decreto nº 3.725-A, de 6 de novembro de
1866 dispõe o seguinte:
Hei por bem Ordenar que aos escravos da Nação que estiverem nas condições de
servir no exército se dê gratuitamente liberdade para se empregarem naquele
serviço; e, sendo casados, estenda-se o mesmo benefício às suas mulheres.130

Este decreto produz dois acontecimentos, ambos cruéis e apontando para um poder de
“deixar morrer”, voltado ao africano que foi escravizado e naquele momento estava recém
liberto. O primeiro é a morte de milhares de escravos nas guerras.
Obtinham soldados prometendo liberdade para os escravos que se alistassem no
serviço militar. Para se tornarem, mesmo que precariamente, livres, muitos se
inscreveram: buscaram a liberdade de morrer nas guerras dos colonizadores
escravocratas. A covardia de tal processo de conscrição se demostrava revoltante
através do comportamento dos filhos do senhor branco: quando convocados para

128
Id. p. 117
129
Id. p. 111
130
BRASIL. “Decreto nº 3.725-A.” In: Coleção de Leis do Império do Brasil — 1866. Legislação Informatizada
— DECRETO Nº 3.725-A, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1866 — Publicação Original. 1866 Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3725-a-6-novembro-1866-554505 Acesso em:
08 maio 2021.
62

servir o exército, enviavam em seu lugar o escravo, preferindo arriscar a vida negra
antes de sua própria vida branca.131

E o segundo, um aumento expressivo no número de “africanos livres”, que não


morriam no trabalho, no açoite ou qualquer outra violência macabra da época, mas também
não acessavam novos trabalhos.
Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado —
aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar
mantendo satisfatória capacidade produtiva — eram atiradas à rua, à própria sorte,
qual lixo humano indesejável; são chamados de "africanos livres”. Não passava, a
liberdade sob tais condições, de pura e simples forma de legalizado assassino
coletivo. As classes dirigentes e autoridades públicas praticavam a libertação dos
escravos idosos, dos inválidos e dos enfermos incuráveis sem lhes conceder
qualquer recurso, apoio, ou meio de subsistência.132

O discurso do Conselho de Estado discutia a punição das condutas dessas pessoas que
estavam apenas existindo. Porém, como dito anteriormente, esses africanos livres não se
restringiam apenas às ruas, muitas vezes eram capturados e presos nas Casas de Correção,
hospícios e seminários. Por vezes, havia famílias inteiras vivendo nestes espaços, prestando
serviços públicos para retribuir a moradia e tendo sua circulação pelas cidades rigorosamente
vigiada.133
A falta de autonomia destes indivíduos era absoluta, pois, em março de 1859 se tem
exemplo disso quando uma autoridade completamente estranha à Casa de Correção,
como era fiscal da Câmara Municipal, requisitou o recolhimento de um africano
livre de nome Cypriano, que se achava nela prestando serviços. Mais frequentes, no
entanto, eram as anotações como a seguinte, constantes dos mapas: "foi recolhido
em depósito a ordem do Dr. Delegado de Polícia o africano livre Boaventura". A
maior parte destes recolhimentos envolvia a autoridade policial à qual estava
subordinada a administração da Cadeia e das diversas delegacias.134

A função das Casas de Correção e Polícia no controle dos africanos livres e


ex-escravos parece guardar semelhanças fundamentais com as prisões da atualidade. A
sociedade restringe o trabalho, o território e o corpo. Pune (ainda que contra a lei) e molda sua
justiça de acordo com interesses de extração máxima de mão de obra. Desta forma, o termo
“livre” fica suspenso em um significado imaginário. A realidade, mais uma vez, nos mostra a
contradição dos discursos.
Neste mesmo período, pressões externa e interna para o fim da escravidão, somadas à
nova maneira de gerenciar a política e a vida na Europa, seguem cobrando mudanças de
paradigma da corte brasileira. Apesar do desprezo dos viscondes, barões etc. aos “africanos” e

131
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit. p. 80
132
Ibid., p. 79
133
SALLA, 2006, Op. Cit. p. 78-79.
134
Ibid., p. 82
63

“escravos”, o Brasil se vê na obrigação de prestar contas, quantificando seu sistema de


escravidão — que já durava mais de 300 anos — e buscar maneiras de abolir a prática.
Em 2 de abril de 1867, a pauta do Conselho era a abolição da escravidão. No primeiro
momento, temos as considerações do “Visconde de Abaeté” — Lima de Abreu —, citado
anteriormente:
O problema da extinção da escravatura no Brasil, visto o estado atual da opinião do
mundo civilizado, requer da sabedoria e previdência dos altos poderes do Império o
mais sério cuidado para que os acontecimentos, que vão acelerando por toda a parte
o termo desse trato, hoje condenado sem reserva, não venham colher desprevenido o
Governo em assunto tão grave e onde melhor que a ninguém lhe cabe a iniciativa a
fim de obviar grandes perturbações e desgraças. Posto isso, deseja o Governo que o
Conselho de Estado, examinando acuradamente a matéria do indicado problema, se
prepare para no dia de março ou abril, que for oportunamente marcado, emitir o seu
esclarecido parecer sobre os seguintes pontos: 1º Convém abolir diretamente a
escravidão? No caso de afirmativa: 2º Quando deve ter lugar a abolição? 3º Como,
com que cautelas e providências cumpre realizar essa medida?135

Neste momento, houveram cinco projetos de leis na temática, precedido pela


exposição e relatório para esclarecer e justificá-los. O primeiro ponto buscava analisar se o
desaparecimento da população escrava poderia ser efetuado em um curto período. A
preocupação dos governantes naquela época era a questão da crise econômica e se a ação seria
vantajosa para solucioná-la, bem como as crises sociais; preocupam-se com a afronta ao
“direito à propriedade” e o perigo à "paz pública” que a libertação dos escravos poderia gerar.
Uma das “preocupações” dos conselheiros do Estado — que parece como uma
estratégia para atrasar essa essa possibilidade de abolição da escravidão — era o fato de que o
Brasil não tinha um recenseamento desta população. Os dados de recenseamentos de outros
países, que apontavam uma taxa de óbito maior do que a de natalidade, trazia a possibilidade
dessa população ser exterminada de algumas regiões.136
De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder
que está se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras a pouco: trata-se de um
conjunto de processos, como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de
reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade,
de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII,
juntamente com a porção de problemas econômicos e políticos (os quais não retomo
agora), constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de
controle dessa política.137

Como os primeiros objetos da disciplina brasileira são os escravos, em nome da


"civilização'', são eles os primeiros alvos do biopoder. Nos exemplos presentes, podemos

135
Brasil. Ata 6 — Terceiro Conselho do Estado, 1865 — 1867. 1 ed. Vol. 6. 12 vols. Rio de Janeiro: Terceiro
Conselho de Estado. 1867. Disponível em:
https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/AT_AtasDoConselhoDeEstado.asp Acesso em 09 de maio de
2021.
136
Ibid. 93
137
Op. Cit. FOUCAULT, 2010, p. 204
64

notar as tentativas do uso da retórica, usando os dados para justificar a manutenção do modelo
de exploração, mas tendendo a entender, os escravos que estavam sob suas propriedades como
uma futura população.
Acontecerá o mesmo no Brasil? É de presumir porque o clima é análogo ao de
muitos daqueles países de escravidão, porque a natureza do trabalho é a mesma,
porque os dois sexos se acham em grande desproporção, sendo que o número de
homens está para o das mulheres na razão de 100:64, porque, finalmente, no estado
de escravidão há sempre um concurso de causas, que opõe obstáculo à procriação.
Estabelecidas estas premissas, cumpre investigar qual é provavelmente no Brasil a
população escrava (...) 138

Aqui, a criação de leis e discursos estão embebidos de um certo pensamento que toma
conta do ideário da sociedade no século XVIII, na Europa.
De uma parte, vê-se como discurso, que fora originalmente ligado a reação
nobiliária, se generalizou, não tanto, não somente pelo fato de que se teria tornado a
forma de certo modo regular, canônica, do discurso histórico, mas também à medida
que se tornou um instrumento que já não era utilizada pela nobreza, e sim, em última
análise, numa estratégia ou noutra. O saber histórico, de fato, ao longo do século
XVIII, claro que por meio de certo número de modificações nas proposições
fundamentais, tornou-se por fim uma espécie de arma discursiva utilizável, exibível
por todos os adversários do campo político.139

A manobra de dados, tão brilhante quanto o ouro e as pedras que seus escravos
mineravam, feita pelo visconde, apesar de ser completamente risível, nos mostra muito sobre
os primeiros momentos de uma preocupação com a população negra neste país.
(...) Entretanto, em um artigo que publicou na Revista dos Dois Mundos, de 15 de
julho de 1862, o Sr. Elisei Reclus diz que os negros e os mulatos reduzidos à
escravidão excedem, segundo alguns economistas, a quatro milhões de homens; que
outros indicam como mais provável o número de três milhões, e que, se estiver pelo
testemunho dos plantadores, que têm interesse em ocultar o número de escravos por
causa do imposto de capitação, não poderá fixar-se em menos de 2.500.000 o
algarismo dos africanos, e dos homens de cor condenados à escravidão. (...)

Com o discurso de intenção da preservação da vida dos escravos, baseando-se nos


fatos mais aleatórios possíveis — como a proximidade do clima do Brasil e da África ser um
fator para uma taxa de mortalidade de escravos inferior do que nos países da Europa e Estados
Unidos — o visconde segue com um cálculo da vida/morte dos escravos segundo dados da
França.
Fazendo aplicação destes cálculos à população escrava do Brasil nas duas hipóteses
que estabeleci, teremos os seguintes resultados: na 1ª hipótese, que é ser a população
escrava de 2.448.615, o número dos óbitos será no sexo masculino 36.437; no sexo
feminino, 31.073; total: 67.510. O número dos nascimentos será no sexo masculino,
30.455; no sexo feminino, 30.117; total: 60.572. Nesta 1ª hipótese haverá, portanto,
uma diminuição anual de 6.938 indivíduos. Na 2ª hipótese, que é ser a população
escrava de 3.166.666, o número dos óbitos será: no sexo masculino, 47.122; no sexo
feminino, 40.186; total 87.308. O número dos nascimentos será, no sexo masculino,
39.386; no sexo feminino, 38.950; total 78.336. Nesta 2ª hipótese haverá uma

138
Op. Cit. BRASIL, 1867, p. 94
139
Op. Cit. FOUCAULT, 2010, p.159
65

diminuição anual de 8.972 indivíduos. Para maior aproximação da realidade,


poderse-á ainda tomar as médias dos algarismos obtidos para os óbitos e
nascimentos nas duas hipóteses mencionadas, e neste caso teremos: média dos
óbitos 77.409; média dos nascimentos, 69.454, média do excedente dos óbitos sobre
os nascimentos, 7.955. Qualquer que seja entre os dois algarismos o que represente
mais aproximadamente a população escrava do Brasil, é manifesto que, pelo efeito
somente do excedente dos óbitos sobre os nascimentos, a escravidão não poderá
estar extinta no Brasil senão depois de três séculos e meio. Se, porém, o cálculo tiver
por base unicamente a mortalidade da população escrava de ambos os sexos, a
escravidão estará extinta no fim de trinta e seis anos.140

Esses dados embasam a resposta reformista que este visconde vê como a melhor
estratégia para a abolição da escravidão e não considera outras questões importantes,
atribuindo à filantropia a responsabilidade de lidar com as consequências da abolição:
Receio pelo contrário que as Juntas, a que o projeto se refere, com o aparato que as
reveste, sejam para a população livre um susto permanente e para a escrava um
incitamento perigoso. Não há dúvida que o auxílio de associações filantrópicas
poderá ser muito útil à ação da autoridade; mas quem deve criá-las não é o poder do
Governo, é a espontaneidade da opinião, ou o sentimento nacional. Somente
associações desta natureza poderão prestar uma eficaz coadjuvação à ação do
Governo.141

Quanto à paz pública, o visconde trouxe o fato (sem números) de que não haveria
força policial o suficiente para lidar com a questão. O Visconde de Abaeté não estava sozinho
em seu voto, e as preocupações seguiram as mesmas. No documento consultado, é bastante
repetitiva a questão dos escravos da união libertos para lutar na guerra do Paraguai e como
esse número aumenta. De fato, uma das medidas discutidas (dentre as cinco) é um projeto de
lei que parece apontar para a lei do ventre livre, que gerava preocupações ao Visconde de
Itaboraí:
Ninguém desconhece hoje que é forçoso pôr termo à escravidão; mas ninguém há
também, cuido eu, que pense de ver-se abolir de chofre uma instituição criada há
mais de três séculos, fazendo espiar as culpas dela por uma única geração. Assim,
penso que o meio que temos de abolir a escravidão no Brasil, e decretar a liberdade
do ventre, e contar de um prazo que dê ao Governo tempo de prover o modo de
executar esta medida. A emancipação se fará lenta e gradualmente, mas de uma
maneira eficaz e infalível, e satisfará as aspirações dos que desejam vez a raça
escrava recuperar os direitos que lhe deu o Criador, sem ser à custa do aniquilamento
de seus senhores, Não acredito, todavia, que tal medida mesma seja isenta de
perigos. E, em verdade, nem é preciso terem os escravos muito atilamento para
compreenderem que os mesmos direitos dos filhos devem ter seus progenitores, nem
se pode supor que vejam com indiferença consumir-se-lhes as esperanças de
liberdade, que têm afagado em seus corações. Os assassinatos, as insurreições mais
ou menos extensas, e quem sabe se mesmo a guerra servil, poderão ser o resultado
daquela medida, se não for acompanhada da organização de meios materiais que as
possam coibir.142

A ideia de uma abolição pela reforma, gradual e iniciando pelas crianças é uma das
crueldades postas nessa proposta. Tornar uma criança “livre”, sem garantir o mesmo para seus
140
Op. Cit. BRASIL, 1867, p. 95
141
Ibid., p. 97
142
Ibid., p .98
66

pais, é uma forma de assegurar a manutenção da sujeição, mesmo sem a atribuição do termo
“escravo”.
Outro ponto importante dessa ata do Conselho é a questão da indenização e de quem
deveria ser indenizado; além do aparente desprezo de um direito dos africanos livres desde
1831, o salário. O conselheiro Queiroz segue:
(...) é certo que em um País, em que se pode dizer que quase toda a produção era
obtida por trabalho escravo, abolir de um dia para outro a escravidão seria pôr tudo
em perigo. Essa propriedade, embora injusta e desumana foi por todo País, e há
pouco tempo por todo o mundo civilizado, e especialmente por todas as Nações que
possuíam colônias, respeitada como um direito. Assim, pois, é necessário acabá-la;
mas é necessário que esse erro, que foi geral e animado mesmo pelos legisladores,
não seja extirpado à custa unicamente dos agricultores, que foram nesse erro geral
acoroçoados; que não se lhes negue a indenização possível, e que um abuso de força
não venha a emendar outro. Sei que uma indenização completa é impossível, mas ao
menos tentemos os meios possíveis, que não são de certo uma lei emancipando de
chofre, e sem indenização, ou, o que vem a ser o mesmo, adiando a indenização para
leis futuras, que sabemos não se poderão fazer.143

Discutiu-se a possibilidade dos escravos libertos pagarem indenizações aos senhores


ou de(no caso apenas das escravas) pagarem, após os 21 anos, as dívidas oriundas de sua
criação. Em determinado momento, chega-se a cogitar o aluguel de escravos para pagar essas
dívidas. Para a questão da perturbação da paz pública que os escravos libertos de 1866
geraram e a possibilidade futura, é indicada a contratação de soldados brancos “por motivos
óbvios”.
A ata segue com mais 15 páginas com apontamentos semelhantes aos dos conselheiros
apontados. Há ainda outra tentativa de quantificar os escravos do Brasil, com o número de
mais de oito milhões. Tendemos a concordar com Torres Homem “O maior inimigo do
legislador é a lógica”, afinal neste tema não há nenhuma que não seja a manipulação de
dados, discursos e criação (ou reforço) de medos para manter o regime que durava mais de
300 anos. Esses votos parecem, na maioria das vezes, concordar em alguns eixos comum: a
abolição deveria ocorrer após a guerra, o melhor seria aguardar que todos os escravos
morressem ou fossem alforriados no ventre; e que, como consequência, poderia surgir uma
séria crise na segurança dos antigos senhores de escravos.
A discussão da abolição aparece esporadicamente nas atas do Conselho do Estado e,
em alguns momentos, há um clima de preocupação em torno do “perigo” dos escravos
rebeldes, e dos “africanos livres” e armados. A impressão que o conselho passa é de que
existe uma forte resistência e movimento de revolta dos negros, assim como algum nível de

143
Ibid., p. 99
67

“crise”, já que desde 1850 o preço dos escravos vinha subindo, dificultando a compra de mão
de obra para realizar o trabalho.
Nesse espírito, foi promulgada a Lei de Terras de 1850144, onde a monarquia e a
burguesia brasileira determinaram que a região campesina do país seria latifundiária. Essa
decisão visava coibir a aquisição de terras por parte dos africanos livres, pois desde 1823 as
doações de terras (as sesmarias) por parte da coroa foram proibidas pelo imperador. Dessa
maneira se formou parte do campesinato brasileiro, composto pela população que se
apropriou da terra e produzia para sua própria subsistência.
O preço deve ser elevado para que qualquer proletário que só tenha a força do seu
braço para trabalhar não se faça imediatamente proprietário comprando terras por vil
preço. Ficando inibido de comprar terras, o trabalhador de necessidade tem de
oferecer seu trabalho àquele que tiver capitais para as comprar e aproveitar. Assim
consegue-se que proprietários e trabalhadores possam ajudar-se mutuamente.145

Pode-se afirmar que, a partir dessa decisão, a estrutura de desigualdade no que diz
respeito ao direito de terras se firmou nos moldes coloniais. Após a aprovação da lei, muitos
camponeses perderam suas terras e a exploração por parte dos latifundiários passou a ter mais
liberdade, afinal, quando uma terra se tornava improdutiva, poderia mudar para outra ou
derrubar mais florestas e assassinar mais povos indígenas.
Em setembro de 1871, a Princesa Isabel sancionou a Lei do Ventre Livre, que
conservou muitos daqueles pontos absurdos discutidos no conselho de 1867. O objetivo da lei
era, além de conservar a escravidão em outros termos, apaziguar as revoltas e conflitos entre
escravos e senhores. No sentido das reformas, que caminham para a abolição, além das
crianças que estavam “livres”:

144
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L0601-1850.htm
145
Ibid., p. 128
68

Art. 6º Serão declarados libertos:

§ 1º Os escravos pertencentes á nação, dando-lhes o Governo a occupação que julgar


conveniente.

§ 2º Os escravos dados em usufructo à Corôa.

§ 3º Os escravos das heranças vagas.

§ 4º Os escravos abandonados por seus senhores. Se estes os abandonarem por


invalidos, serão obrigados a alimental-os, salvo o caso de penuria, sendo os
alimentos taxados pelo Juiz de Orphãos.

§ 5º Em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco annos
sob a inspecção do Governo. Elles são obrigados a contractar seus serviços sob pena
de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos
publicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto
exhibir contracto de serviço.146

Antes de chegarmos no ponto da Lei Áurea, que como sabemos não libertou ninguém
na prática, é bom olharmos para a maneira como a história “formal” é registrada e contada.
No Brasil escravocrata, em oposição à oralidade de africanos e indígenas, a fama de Dom
Pedro II de “rei filósofo”, através de mecanismos algumas vezes sutis, outros abertamente
impositivos, controlava a intelligentsia da época, especialmente os historiadores. Era uma
visão política, na área cultural, que devemos reconhecer como orquestrada em minúcias para
um fim negativo, eficiente durante o reinado de D. Pedro II.147
A fundação do primeiro Instituto Histórico e Geográfico em 1838 responde também
à lógica do contexto que segue à emancipação política do país. Sediado no Rio de
Janeiro, o IHGB surgia como um estabelecimento ligado à forte oligarquia local,
associada financeira e intelectualmente a um “monarca ilustrado” e centralizador.
Em suas mãos estava a responsabilidade de criar uma história para a nação, inventar
uma memória para um país que deveria separar, a partir de então, seus destinos dos
da antiga metrópole europeia.148

O discurso em defesa do regime era distribuído pelo Instituto Histórico e Geográfico


do Brasil (IHGB), tendo em seus membros historiadores da alta sociedade: viscondes e barões
das regiões portuárias e comerciantes de escravos. Os mesmos que aconselhavam a monarquia
brasileira, reforçando o ponto de quem produz a ciência, são justamente quem se beneficiam
dos discursos criados. Além do pensamento do "quem tem poder, tem o conhecimento", há a
questão dos caminhos e absorção destes discursos a partir dos acontecimentos através do arco
da história.

146
BRASIL. Lei n°. 2040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). In: MOURA, C. Dicionário da
escravidão negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004. p. 238-240.
147
Op. Cit. MOURA, 2020, p. 6
148
SCHWARCZ, Lilía M. O Espetáculo das Raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 6 ed. São
Paulo, SP: Companhia das Letras. 1995, p. 24
69

Um dos pontos interessantes da criação da IHGB é a transição cultural do Nordeste


para o Sudeste, o que se fortaleceu com a produção cafeeira de 1850. Nessa época, para
aqueles que não iam estudar em Coimbra ou em outra universidade europeia, foram criadas
faculdades de direito em São Paulo e Recife, trazendo ideais e social-darwinistas. Na área da
medicina, o Instituto Manguinhos, liderado por Oswaldo Cruz, passou a desenvolver
pesquisas, visando, inclusive, a sanitização das cidades.
Tendo a frente um imperador apegado às vogas científicas, sobretudo europeias, e
elites coesas ao menos quando se tratava de garantir um certo status quo, a imagem
externa do país tenderá a rapidamente mudar. Preocupação lembrada com
insistência, a representação internacional do Brasil deverá ser, nesse momento,
cuidadosamente construída. É no interior dessa lógica que se pode entender como,
ainda nos tempos da monarquia, o Império do Brasil se fez representar nas então
famosas “exposições universais”. Nesses eventos, o Brasil, que já era conhecido
como um lugar privilegiado para a visita dos viajantes naturalistas, passa a
pedagogicamente apresentar-se como um país “novo”. Não mais a “mata e a
selvageria” deveriam ser a carta de apresentação da nação, mas uma imagem
moderna, industriosa, civilizada e científica.149

Não é à toa que a “miscigenação” tenha sido citada pela primeira vez por Von Martius,
naturalista integrante do IHGB que defendeu “O Brasil de três raças”, em 1844. Além disso,
sabemos que o Brasil foi construído com um referencial (nada espontâneo) do modelo
patriarcal. O machismo implicado neste modelo objetifica as mulheres, colocando-as em
posição de inferioridade ao homem. Neste “Brasil de três raças”, a miscigenação, da qual o
brasileiro tanto se orgulha, é produzida do estupro da mulher africana. Afinal, como vimos
anteriormente, os escravos eram considerados sub humanos.
Queria isso dizer que os africanos escravizados não mereciam nenhuma
consideração como seres humanos no que diz respeito à continuidade da espécie no
quadro da família organizada. Daí que a proporção mulher para o homem estava
perto de uma para cinco, e as relativamente poucas mulheres que existiam estavam
automaticamente impedidas de estabelecer qualquer estável estrutura de família. A
norma consiste na exploração da africana pelo senhor escravocrata, e este fato ilustra
um dos aspectos mais repugnantes do lascivo, indolente e o caráter da classe
dirigente portuguesa. O costume de manter prostitutas negro-africanas como meio de
renda, como entre os escravocratas, revela que além de licencioso alguns tornavam
também proxenetas.150

O resultado desta prática é a “mulata” e o “mulato”. Aqui, o gênero define e


diferencia as “funções” destes escravos. Ao “mulato” era atribuído o trabalho da vigilância
(capataz) e serviços domésticos; a “mulata” servia “apenas para o sexo”.
O Mito da “democracia racial” enfatiza a popularidade da mulata como “prova” de
abertura e saúde das relações raciais no Brasil. No entanto, sua posição na sociedade
mostra que o fato social exprime-se corretamente de acordo com o ditado popular.151

149
Ibid., p. 31–32
150
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit., p. 73
151
“Branca pra casar,
Negra pra trabalhar,
Mulata para fornicar.”
70

Nessa versão, ao reconhecimento geral do povo de que a raça negra foi prostituída, a
previsão de baixo preço. Já que a existência da mulata significa o “produto” do
prévio estupro da mulher africana, a explicação está em que após a brutal violação a
mulata tornou-se objeto de fornicação, enquanto a mulher negra continua o legado
na sua função original, ou seja, o trabalho compulsório. Exploração econômica e
lucro definem, ainda outra vez, seu papel social.152

Se pensarmos na condição da mulher africana no Brasil, se escancara ainda mais a


inocuidade da Lei do Ventre Livre. Embora os textos e recortes que podem ser feitos sirva a
um discurso de benevolência e defesa da linhagem (quase chegando em “família”).
Em 1884, a Lei dos Sexagenários dá mais um passo à abolição “total”, garantindo a
alforria aos escravos acima de 60 e 65 anos. Não podemos deixar de registrar a ineficiência
desta lei, sabendo que, dado aos castigos e tipo de exploração do trabalho, pouquíssimos
escravos chegavam à essa idade.
A partir da década de 1880, o movimento abolicionista ganhou força, com a aparição
de associações, jornais e o avanço da propaganda. Gente de condição social diversa
participou das campanhas abolicionistas. Entre várias figuras da elite, destacou-se
Joaquim Nabuco, importante parlamentar e escritor, oriundo de uma família de
políticos e grandes proprietários rurais de Pernambuco. Entre as pessoas negras ou
mestiças, de origem pobre, os nomes mais conhecidos são os de José do Patrocínio,
André Rebouças e Luís Gama.153

Ainda assim, as reclamações acerca do perigo dos “africanos livres” tomava as


cidades, que cresciam devido ao desenvolvimento que chegava no país em processo de
desenvolvimento, fortalecido por um darwinismo social e cientificismo difundido através da
literatura.
Entre 1885 e 1888, após uma breve parada, a campanha abolicionista ganhou
ímpeto. O fato mais importante agora era a desorganização do trabalho nas fazendas
paulistas, provocada pela fuga em massa de escravos. Ativistas liderados por
Antônio Bento, membro de uma família rica de São Paulo, partiam para as fazendas
e cidades do interior, incentivando os atos de rebeldia. Em pouco tempo, Santos
converteu-se no centro onde se abrigavam os escravos fugidos. Nesse ínterim, como
vimos, a elite cafeeira paulista apressou o funcionamento do plano de imigração,
percebendo que o sistema escravista se desagregava rapidamente.154

Sabemos que, em 13 de maio de 1888, o Império Brasileiro finalmente declara a


abolição da escravidão. Os termos desta abolição estão expressos nos interesses dos senhores
de escravos que aconselhavam o Império, sem prever nada para os africanos livres além de
sua liberdade. Sendo, como indicado por Nascimento, uma estratégia de extermínio em
massa.
Atirando os africanos e seus descendentes para fora da sociedade, a abolição
exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado, e a Igreja. Tudo cessou,
extinguiu-se todo o humanismo, qualquer gesto de solidariedade ou justiça social: o
africano e seus descendentes que sobrevivessem como pudessem. “Africanos

152
Ibid., p. 75
153
Op. Cit. FAUSTO, 2006, p. 218.
154
Ibid., p. 220
71

Livres" se tornavam também aqueles aqueles escravos utilizados como soldados


para fazer a guerra de destruição dos dirigentes brancos 155

Na “Guerra das Raças” brasileira temos muitos atores, como apresentado: os donos de
escravos com suas próprias maneiras de gerir os corpos; o Estado comandado por estes
mesmos donos de escravos, que produzem dados e leis à seu favor; a ciência que busca
embranquecer o país, legitimando estupros e outras violências e, o último ponto que vamos
observar neste período, a ciência que cria as normas.
A vinda dos imigrantes europeus para o Brasil servia a dois lados da história — que
convergem em expressões do racismo na atualidade. Com a imigração, segundo Schwarz,
iniciou a lógica do “espetáculo das raças”, trazendo argumentos como o de Silvio Romero, de
que o Brasil era um país de mestiços; quando não no sangue, na alma. A intenção de trazer
mais europeus era parte de um esforço de tornar o país mais branco.
[...] Em várias oportunidades no período de 1921 a 1923, a Câmara dos Deputados
considerou e discutiu leis nas quais se proibia qualquer entrada no Brasil "de
indivíduos humanos das raças de cor preta”. Quase no fim do seu governo ditatorial,
Getúlio Vargas assinou em 18 de Setembro de 1945, o Decreto-Lei nº 7967,
regulando a entrada de imigrantes de acordo com “a necessidade de preservar e
desenvolver na composição étnica da população, as características mais
convenientes da sua ascendência europeia".156

Um ponto muito importante apontado neste período é o incentivo aos fascistas brancos
expulsos das recém liberadas colônias da África à imigração no Brasil. O discurso da ciência
e da racionalidade, por mais primitiva e infundada, sobressaia ao discurso do desalmado. Na
era da razão, a alma pouco importa, o centro da questão aqui é a maturidade intelectual e de
sua psique.
Neste período, médicos como Nina Rodrigues buscavam estudar uma “criminalidade
étnica”, baseando-se no atavismo Lombrosiano, e considerando a questão biológica central
para a “inadaptabilidade” dos povos “de pele vermelha e negra”. O médico retratava os
africanos enquanto povos primitivos, com comportamentos que beiravam a selvageria, a fim
de apontar determinismos jurídicos.157
Como as Escrituras se revelaram insuficientes, o racismo vulgar, primitivo,
simplista, pretendia encontrar no biológico a base material da doutrina. Seria
fastidioso lembrar os esforços empreendidos nessa altura: forma comparada do
crânio, quantidade e configuração dos sulcos do encéfalo, características das
camadas celulares do córtex, dimensões das vértebras, aspecto microscópico da
epiderme etc.158

155
Ibid., p. 79
156
Op. Cit., NASCIMENTO, p. 86
157
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1935, p. 409
158
FANON, Frantz. Racismo e Cultura. Brasil: Editora Terra Sem Amos, 2021.
72

Os presos nas Casas de Correção, assim como os internados nos Hospícios, eram o
objeto de estudo desta ciência que vinha quebrar a expectativa liberal do indivíduo genérico e
universal, portador de direitos.
No relatório do Dr. Luiz Vianna de Almeida Valle, de março de 1870, é saliente a
preocupação em estudar a variedade dos criminosos recolhidos à Casa de Correção
da Corte, pois tais “tipos, sem dúvida diversos... reclamão diversos meios para sua
regeneração, quando ela é possível”. Suas observações o levam a oscilar entre uma
visão determinista do crime, de cunho biológico (“os crimes são como que
constitucionais, hereditários") e outra mais de ordem social (“as desordens, vícios e
crimes, que diariamente testemunhamos, são originados dos maus exemplos, e da
falta de educação e instrução”). Seus relatórios constituem o primeiro ensaio, no
sentido de eleger o criminoso, sua vida anterior à condenação, seu comportamento
na prisão, como chave para entender o crime e propor as formas de seu combate.
Para classificar os condenados, segue uma fórmula cujo o critério é ação do
criminoso segundo grau de sua consciência, o grande crime. Acreditava, portanto,
que a aplicação das penas disciplinares seria mais justa se tivesse presente a
classificação do condenado pela sua premeditação do crime, se é um vicioso que se
entrega ao “mal” por ser indiferente ao bem ou por faltar-lhe discernimento ou ainda
se é um inepto que não entende porque foi condenado.159

Essa figura do indivíduo que rompe o pacto social por vontade própria, assume o lugar
do sujeito enfermo, atravessado por questões biológicas, psicológicas e sociais. O crime e a
prisão passam a ter uma relação muito parecida com a patologia e o hospital; sob essa
perspectiva, a polícia e o aparato penal deveriam responder a essa nova questão. Outra
consequência desta nova ciência e maneira de olhar para o crime é o aumento do aparato de
vigilância do Estado.
Por consequência da Lei de Terras (1870), os ex-escravos que saíam das terras da
burguesia brasileira iam para as cidades para tentar empregos com baixa remuneração. Uma
maneira de garantir a moradia e sobrevivência. Neste período, os imóveis nas regiões centrais
das cidades tiveram o preço inflacionado, levando os negros recém libertos para as periferias,
criando assim o que conhecemos como “favelas”.
Além das favelas nas periferias, neste período houve a criação de cortiços, casas na
região central, construídas durante o período imperial que foram ocupadas por famílias
pobres. No ideário da classe dominante, os moradores dos cortiços e favelas eram perigosos, e
se atribuía a eles as doenças que se alastraram pelas cidades, reforçando a ideia de que negros
precisavam de tratamentos hospitalares e reclusão, além do estereótipo de “malandro”,
“vagabundo” e “sujo”.
A violência e a disciplina se transformam na República, tornando-se mecanismos em
exercício dentro das instituições, fábricas, prisões, manicômios e conventos que seguiam
oferecendo o catequismo de negros como caminho para a salvação.

159
SALLA, 2006, Op. Cit. p. 129
73

O trabalho foi uma das formas de “disciplinar” a população, em detrimento


de uma civilização moderna. Para aquela época, o velho provérbio popular “O
trabalho dignifica o homem” foi levado literalmente para o ordenamento legal,
passando pela norma incriminadora.160

Para conter a crescente preocupação da burguesia agrícola e fabril, a polícia passa a ter
um treinamento especializado que integra disciplinas como “A história natural dos
malfeitores”. Ser negro, neste período, era estar em uma espécie de limbo classificatório, entre
o escravo, objeto a ser repreendido, e o sujeito livre e assalariado.
O racismo de autoridades policiais está em transcrições de depoimentos, nos
relatórios de delegados, rompendo-se em certos casos critérios classificatórios
prévios. Assim, a menção a “cor” não consta em regra das folhas de qualificação
dos indiciados com indicações impressas (nome, idade, profissão, etc.) e espaços em
branco correspondentes, a serem preenchidos. Não obstante, o qualificativo
“negro”, “pardo” é às vezes introduzido a tinta, em letras bem nítidas, na margem
das páginas.161

Por outro lado, desde quando sequestrados para o Brasil, os africanos mantiveram
organizações, como os quilombos, visando o apoio mútuo, solidariedade interna e resistência
cultural. Citamos anteriormente o sincretismo religioso e os tambores africanos, mas é
importante frisar que, no século XX, houve a criminalização de diversas manifestações
culturais como a capoeira, o candomblé e o samba.162
A preocupação da época era como eliminar os negros do Brasil e torná-lo um país
totalmente branco. Em 1911 ocorreu o Primeiro Congresso Universal de Raças, em Londres.
Na ocasião, João Batista de Lacerda especulava que até 2012 os mestiços e negros seriam
“extintos” do país. Esse pensamento aponta
[...] Que esta ideia da eliminação da raça negra não constituía apenas uma teoria
abstrata, mas, calculada estratégia de destruição, está claro nos argumentos do
mesmo teórico, na explícita sugestão de se deixar os afro-brasileiros propositalmente
indefesos: “expostos a toda espécie de agentes de destruição e sem recursos
suficientes para se manter”.163

A fala reforça e torna explícito a função de manter essa população enquanto periférica,
de direcionar os maiores sofrimentos possíveis à população negra. Nesse sentido, percebe-se
como a eugenia se estabeleceu enquanto regime discursivo e prática em diversos saberes no
século XX, no Brasil. Conforme apontamos, muitas ciências e profissões surgem nesse
processo, muitas vezes voltadas ao corpo negro, inclusive o Serviço Social.164

160
SERAFIM, Jhonatan; AZEREDO, Jeferson Luiz. “A (des)criminalização da cultura negra nos Códigos de
1890 e 1940.” Amicus Curiae 6, no. 6 (jan): 17.
161
Op. Cit. FAUSTO, 2001. p. 55
162
Cf. Decreto 847 de 1890, Capítulo XIII. “Dos vadios a capoeiras”.
163
NASCIMENTO, 2016, Op. Cit., p. 88
164
OLIVEIRA, R. Nasci errado e estou certo: a presença da Eugenia no processo de institucionalização do
serviço social brasileiro. Santa Catarina: n.I. 2019
74

Esse racismo que acusa um primitivismo intelectual e emocional, guiado por estudos
que se baseiam em genótipos e fenótipos e montam uma determinada imagem do não-branco
europeu tem seu discurso reforçado na literatura da época. Diversos autores, com alta
circulação de seus livros defendiam a eugenia como Monteiro Lobato, Oliveira Vianna,
Renato Kehl, Euclides da Cunha e outros.
A circulação de uma racionalidade existente e financiada, desde antes da colonização
— por tratar-se de herança dos colonizadores. No entanto, é dentro deste discurso que temos o
desenvolvimento de um terceiro mecanismo do racismo: a cultura.

2.3 Racismo cultural e Estado Penal

Após a falsa abolição da escravidão, em 1888, a notória exclusão no que diz respeito
aos “direitos sociais”, a hierarquização da raça e os elementos tratados no ponto anterior
gerararam uma relação de difícil dissolução, tratada enquanto estrutural. As desigualdades
geradas por uma sociedade na qual, juridicamente, todos os sujeitos são livres, se arrastaram
pelos 130 anos que se seguiram.
O negro e os indígenas nunca deixaram de ser, na lógica da burguesia, uma
mercadoria; um ser inferior a ser educado e domado; um indigente; um ser de cultura
criminalizável; de autonomia restringível; de subjetividade inexistente; um alvo para as
tecnologias desenvolvidas para ferir o corpo: o chicote, a arma, o fuzil, a bomba, o tanque de
guerra, a faca, a espada, o fogo atado em sujeitos pelo país a fora.
O problema na República Velha era a identidade brasileira. A literatura e os pasquins
buscavam definir como esse povo tão diverso se comportava. A cada década do século XX,
notamos uma construção de discurso de um povo que convive democraticamente com a
diferença, que assimila e constrói sua própria identidade a partir de uma visão de diversidade,
termo que não comporta a inclusão ou garantia de cidadania e dignidade para todos.
A exemplo da literatura, observamos as caricaturas e personagens que marcam este
ideário; os indígenas de “Iracema” e “o Guarani” (satirizado e ironizado em Macunaíma); o
sertanejo construído a partir de um darwinismo social da República Velha em “Os sertões”; o
negro de Freyre e Lobato — este reforçado por uma defesa da eugenia e embranquecimento
desde a literatura infantil; a busca de um “sentimento Tupi” de Policarpo Quaresma; entre
outros discursos e personagens marcados em nossa constituição cultural.
Ainda que na década de 1950 o racismo tenha passado a ser discutido com outras
lentes, as consequências do nazi-fascismo e do extermínio que ocorreu na Segunda Guerra
75

Mundial trouxeram novos posicionamentos, novos olhares, novas pesquisas e uma nova
maneira de compreender o genocídio. Em termos de como gerenciar esse Estado, que mantém
o genocídio do negro e indígena entranhado, a história do Brasil parece ser demarcada por um
constante movimento de uma instituição militar que busca ser soberana e “saltos” pela
democracia.
Aqui podemos perceber estruturas que não se vão: o capital e o processo de exploração
para acumulação de riquezas e a desigualdade fruto desse sistema; a intenção de “deixar
morrer” apenas uma parcela da população; a vigilância militar e o policiamento da população
— sempre dirigido a negros — e um discurso lírico que mantém as impressões aplanadas.
Sabemos que o racismo está institucionalizado e difundido por diversos meios, embora
tenham havido diversas maneiras de justificar o genocídio do afro-brasileiro sem abrir mão da
falácia da “democracia racial”.165
Além dos órgãos do poder — o governo, as leis, o capital, as forças armadas, a
polícia — as classes dominantes brancas têm à sua disposição poderosos
implementos de controle social e cultural: o sistema educativo, as várias formas de
comunicação de massa — a imprensa, o rádio, a televisão — a produção literária.
Todos esses instrumentos estão a serviço dos interesses das classes no poder e são
usados para destruir o negro como pessoa e como criador e condutor de uma cultura
própria. O processo de assimilação e aculturação não se relaciona apenas a
concessão aos negros, individualmente, de prestígio social. Mais grave, restringe a
sua mobilidade vertical na sociedade como um grupo; invade o negro e o mulato até
à intimidade mesma do ser negro e do seu modo de autoavaliar-se, sua autoestima.166

Ao relacionarmos estes conteúdos com os impactos de uma sociedade disciplinar,


podemos deduzir que, para além de um controle dos corpos, a questão da subjetividade e
imagem do que é “bom ou ruim” — assim como a própria concepção de um mundo
dicotômico — também se funde à formação do indivíduo que atende à necessidade dessa
sociedade. Cria-se um sujeito disciplinado de corpo e mente.
A assimilação cultural é tão eficiente que a herança da cultura africana existe em
estado de permanente confrontação com o sistema dominante, concebido
precisamente para negar suas fundações e fundamentos, destruir ou degradar suas
estruturas.167

Dessa forma, durante os séculos XX e XXI, as estruturas que consolidaram o racismo


brasileiro, a partir de uma política que objetifica e está circunscrita nos corpos, rechaçando o
coletivo e criminalizando organizações, contribuem para esse terceiro tipo de racismo.
O racismo cultural é um racismo de origem, discriminando a “maneira de existir”, ou
seja, religião, música, território e linguagem. Parece um racismo “sutil” por se incorporar em

165
Tratamos de falácia, pois é perceptível sua intencionalidade de embranquecer o negro através dos mecanismos
da miscigenação, aculturação e assimilação do branco. Cf. NASCIMENTO, 2006.
166
Ibid., p. 112
167
Ibid., p.112
76

âmbito individual, naquilo que entendemos como preferências, mas continua operando para
hierarquizar as raças.
(...) Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um
conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de
privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da
política, da economia e das relações cotidianas. O racismo articula-se com a
segregação racial, ou seja, a divisão espacial de raças em localidades específicas
– bairros, guetos, bantustões, periferias etc. – e/ ou à definição de
estabelecimentos comerciais e serviços públicos – como escolas e hospitais –
como de frequência exclusiva para membros de determinados grupos raciais,
como são exemplos os regimes segregacionistas dos Estados Unidos, o apartheid
sul-africano e, para autoras como Michelle Alexander e Angela Davis, o atual
sistema carcerário estadunidense.168

Algumas questões são centrais para pensarmos nos motivos para esse racismo sutil
operar em nossa sociedade. A primeira que podemos observar ao longo desta nossa reflexão é
o discurso da tolerância e respeito; no primeiro ponto, levantamos a questão das
manifestações culturais africanas que eram “permitidas” pelos senhores de escravos, ainda
que sob diversas críticas. Em um mundo globalizado, podemos ver movimento bastante
semelhante quando se trata, por exemplo, da tolerância desenvolvida pelo funk, novo tipo de
música de exportação do Brasil para o mundo, como foi com o samba e a bossa nova.169
Ambos os casos tratam de um exotismo moderno, semelhante à descrição absurda de
Pero Vaz de Caminha acerca do povo indígena brasileiro e às expedições portuguesas à
África, que vinham mostrar os negros como um ser completamente diferente. Somando-se à
construção de verdade da biologização no racismo primitivo, produziu-se um discurso de “eu
sei como esse povo se comporta” e uma consequente generalização do negro e do indígnena,
que segue perpetuada.
A partir de 1930, a necessidade de unificação nacional e a formação de um
mercado interno, em virtude do processo de industrialização, dão origem a toda
uma dinâmica institucional para a produção do discurso da democracia racial, em
que a desigualdade racial – que se reflete no plano econômico – é
transformada em diversidade cultural e, portanto, tornada parte da paisagem
nacional.170

É neste período também que a classe trabalhadora passa a ter um protagonismo maior
nas reivindicações e cenário social, a partir dos sindicatos e na conquista de direitos como a
legislação trabalhista. Neste cenário, o Estado passa a ter uma característica mais
intervencionista, aumentando sua característica persecutória e de busca de meios de

168
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaira. 2019. p. 22
169
Inclusive, no ano de 2021, a cantora Anitta lançou uma música e videoclipe chamados “Girl from Rio”, com
um sample de Garota de Ipanema e descrição da vida “real” no Rio de Janeiro na atualidade, mostrando um Rio
de Janeiro vivido por sujeitos periféricos — como a cantora foi até seu estrelato em 2016.
170
Ibid., p. 64
77

exploração máxima da mão de obra. O gerenciamento deste Estado intervencionista está


centralizado no indivíduo.
Aqui está inscrita a biopolítica aos moldes discutidos no primeiro capítulo, através do
gerenciamento dos corpos que vivem, e nesse “fazer viver” dos anos 30 em diante nasce um
outro discurso peculiar, no campo da criminologia e ciências sociais: o criminoso, que tem
agora a política social que garante trabalho, educação e saúde, é o responsável por não exercer
sua cidadania, pois há toda uma base para o desenvolvimento desse sujeito.
Concomitantemente, a figura do negro e do indígena no Brasil passa a ter lugar de
vivência, ocupação, traços físicos, movimentos, estampas… Mas, até agora, nenhum lugar de
garantia radical dos direitos ou algum contraponto à inferiorização reforçada pela religião,
ciência e cultura através dos séculos.
A assimilação cultural é tão eficiente que a herança da cultura africana existe
em estado de permanente confrontação com o sistema dominante, concebido
precisamente para negar suas fundações e fundamentos, destruir ou degradar suas
estruturas. (...) Tanto os obstáculos teóricos quanto os práticos têm impedido a
afirmação dos descendentes africanos como íntegros, válidos, auto-identificados
elementos constitutivos e construtores da vida cultural e social brasileira. Pois
realmente a manifestação cultural de origem africana, na integridade dos seus
valores, na dignidade de suas formas e expressões, nunca teve reconhecimento no
Brasil, desde a fundação da colônia, quando os africanos e suas culturas
chegaram ao solo americano.171

Diante dos fatores citados, notamos uma academia branca e eurocentrada ao decorrer
dos séculos XX e início do século XXI. A partir do crescimento de ações afirmativas e
inserção de negros e periféricos nas universidades públicas do Brasil, temos uma inversão das
relações raciais nesse ambiente, trazendo, inclusive, um confronto com o “estatuto de
verdade” dessas teorias e autores que negam um pensamento racializado.172
O confronto epistemológico que questiona o apagamento racial e expõe as minúciais
deste genocídio que segue em curso parece dificultar a compreensão de importantes figuras e
autoridades. Não é incomum vermos juízes progressistas defendendo, ainda que em redes
sociais consideradas informais, métodos como atavismo, campo de concentração e punições
esdrúxulas a quem pensa ligeiramente diferente. Também é frequente a atribuição do
conhecimento de “tudo que é de negro” ao negro, como se a cor definisse tudo sobre o sujeito.
Talvez por isso, tornou- se muito comum a deturpação do conceito de “lugar de fala”173
para se moldar em um “lugar que cala”, de brancos que não querem se indispor ao se

171
Op. Cit. NASCIMENTO, 2006 p. 142
172
Cf. CARVALHO, J. J. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista USP, (68), 2006. p.
88-103.
173
Cf. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de
Janeiro, n.º 92/ 93.(jan.jun.).1988.
78

posicionar contra o racismo. Há cada vez mais um fortalecimento de discurso do privilégio,


sem apontar que o significado de haver um privilegiado implica ter um preterido nas relações
postas em nossa sociedade.
Ainda assim, existem importantes vitórias históricas, de centenas de anos de luta do
povo negro, nesta maior ocupação de cargos de poder e espaços que antes eram atribuídos
apenas aos brancos.
Porém, por mais importante que seja, a representatividade de minorias em empresas
privadas, partidos políticos, instituições governamentais não é, nem de longe, o
sinal de que o racismo e/ ou o sexismo estão sendo ou foram eliminados. Na
melhor das hipóteses, significa que a luta antirracista e antissexista está produzindo
resultados no plano concreto, e na pior, que a discriminação está tomando novas
formas. A representatividade, insistimos, não é necessariamente uma
reconfiguração das relações de poder que mantém a desigualdade. A
representatividade é sempre institucional e não estrutural, de tal sorte que
quando exercida por pessoas negras, por exemplo, não significa que os negros
estejam no poder.174

Nos anos 50 o Movimento Negro Unificado, assim como demais organizações


empenhadas em garantir os direitos dos negros no Brasil, conquistou avanços importantes no
que diz respeito ao ordenamento jurídico do Estado liberal. Embora o Código Penal de 1940
mantivesse as características persecutórias e seletivas da população negra, duas leis foram
aprovadas com o objetivo de enfrentar o racismo e seus efeitos: a Lei nº 1390, de 1951, que
“Inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou
de côr.”175; e a Lei nº 2889, de 1956, que pune o crime de genocídio.176 No entanto é
importante lembrar que,
(...) A abertura do campo penal não oferece qualquer possibilidade efetiva de quebra
das práticas racistas, não as alcança de fato e quando as reconhece dilui o aspecto
racial num espectro mais amplo de discriminação. É importante compreender que
essa inércia não é solucionável por uma possível “reforma do sistema penal” que o
livraria do racismo enquanto condicionante de sua atuação, simplesmente porque o
racismo é elemento estrutural de sua constituição.177

A criminalização de práticas discriminatórias no âmbito institucional, nesse caso


tornar crime uma prática do próprio Estado, vai na direção de afirmar o mito da igualdade
racial. Ao aprovar leis que criminalizem as manifestações da questão social, parte da estrutura
e da relação do próprio capitalismo, o Estado afirma que essas práticas estão circunscritas
apenas no âmbito privado. “Genocídio é crime previsto em lei, nós não exterminamos povos
não-brancos”, mais um momento que a contradição aparece no movimento do real.

174
Op. Cit. ALMEIDA, 2019. p. 69
175
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1390.htm
176
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm
177
FLAUZIANA, Ana Luiza P. Corpo negro caído no chão: O sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado
Brasileiro. Tese de Doutorado. 2006. p. 75
79

(...) O que se percebe claramente é que a criminalização do racismo, pelo


simbolismo que carrega, é manuseada de forma a solapar as demais garantias
inscritas no texto legal em searas com potencial transformador efetivo,
demonstrando toda a impropriedade dessa seara em gerir as questões relacionadas
aos interesses do segmento negro. Além disso, uma criminalização tão severa,
poucas vezes acionada e nunca cumprida sinaliza para um recado inequívoco: o
Estado simula o repúdio à prática de discriminação racial abstratamente, tolerando
sua vigência, na prática, de maneira indiscriminada. A partir dessa dinâmica, o
institucional está resguardado e o racismo continua a cumprir suas funções. Aliás,
agravando essa condição, há uma problemática que se evidencia com a primeira
condenação à prática de racismo envolvendo ofensas aos judeus, desde uma decisão
do supremo tribunal federal em 2004. Formatado a partir de um racismo que
expropria historicamente a população negra, todo impedimento está voltado ao
reconhecimento dos pleitos desse setor em especial. A legislação de criminalizar o
racismo, nesse sentido, não é inócua em sua aplicabilidade genérica, mas tem
qualquer tipo de efeito anulado quando que está em jogo é a quebra da lógica racista
voltada a subordinação do segmento negro.178

A segunda metade do século XX no Brasil é permeada por contradições e questões que


atribuem um significado próprio para o que é considerado violência e crime. O
desenvolvimento econômico no país acompanha um crescimento da força policial, repressão e
prisões. A República brasileira é atravessada por governos autoritários com curtos períodos
democráticos, o que reforça uma cultura — ou naturalização — da morte das chamadas
classes “perigosas” e o alargamento das desigualdades.179
Antes da ditadura, a prisão de brancos era voltada principalmente àqueles parte dos
movimentos sociais, com destaque para os sindicalistas e imigrantes anarquistas que foram,
inclusive, assassinados nas décadas de 20, 30 e 40. As ações do Estado quanto aos
movimentos sociais e trabalhadores imigrantes difere daquelas dirigidas aos negros; ao negro
o crime está inscrito no corpo, como discutimos ao tratar da eugenia na criminologia clássica
(atavismo).
A repressão e coerção dirigida a brancos por seus atos políticos também ocorreu
durante a ditadura militar, iniciada em 1964. Nas literaturas que tratam desse período, há um
destaque para o aprisionamento de brancos, em geral presos políticos, que também sofreram
com as torturas, desaparecimentos e morte. De acordo com o Decreto-Lei nº 314, de 1967:
§ 3º A guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma
ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo
contrôle progressivo da Nação.180

Durante a ditadura, o paradigma do Direito Penal passou a ser a defesa do Estado de


exceção, considerando a ameaça (ainda não comprovada) da invasão da União Soviética para

178
Ibid., p. 79
179
Cf. Fausto, Boris. Crime e Cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2001.
180
Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-publicacaoorigi
nal-1-pe.html
80

instaurar o socialismo no país ( apesar do que os liberais chamariam de “avanços nas pautas
sociais”, como as legislações dos anos 50), no conjunto de legislações da época, estava
inscrita a condenação à prisão perpétua e pena de morte e a criação de um aparato militar,
incluindo a militarização da polícia, para reprimir as práticas subversivas.
Entre 1964 e 1970, a ditadura criou um sistema multifacetado para coleta de dados e
informações dessas práticas subversivas. O Serviço Nacional de Informações (SNI) coletava
dados a partir das Divisões de Segurança e Informações (DSI) e de Assessorias de Segurança
e Informação (ASI). Em maio de 1967, criou-se o Centro de Informações do Exército (CIE)
que cortava intermediários, existentes no Código Penal de 1940 e suas instituições, e reprimia
diretamente as tais práticas subversivas.
É importante lembrar do sistema de informações financiado por empresários paulistas,
a OBAN (Operação Bandeirantes), em 1969, que deu origem aos Centros de Operação e
Defesa Interna (CODI) e os Destacamentos de Operação Interna (DOI), durante o comando de
Orlando Geisel, nos piores tempos da ditadura. As informações de boa parte desses sistemas
seguem em segredo de justiça, impossibilitando saber a dimensão exata da repressão durante a
ditadura e o número de mortos.181
Com a redemocratização, em 1984–1988, o Código Penal volta a ser o de 1940, com
algumas alterações,182 mas mantendo seu caráter colonialista, com a perseguição da população
negra. É dentro deste Código Penal, inspirado em um racismo (ir)racional, que nossas
instituições jurídico-penais seguem existindo. No entanto, os anos 90 trazem um novo
panorama para o mundo todo: o neoliberalismo, que vem acompanhado de uma outra maneira
de gerir o Estado: o Estado Penal, que trata as manifestações da Questão Social com
judicialização e prioriza a criminalização e sitiamento das cidades.

3. UM MOVIMENTO CONTRA AS CORRENTES

No capítulo anterior, demos atenção às questões estruturais do racismo na sociedade


brasileira, principalmente no que diz respeito à criação de discurso e do poder disciplinar
presente na relação entre a classe que detém os meios de produção e a classe trabalhadora.
Alguns elementos apontados contribuirão muito na análise do que ocorre com os movimentos
pelo desencarceramento e os abolicionismos penais que encontramos na contemporaneidade,

181
De abril a agosto de 2021 houveram várias tentativas de recuperação de alguns documentos acerca da ditadura
pelo site do arquivo nacional (https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br). No entanto, as informações
desapareceram do site, em tenebrosa coincidência com o governo mais saudosista da ditadura militar, desde
1988.
182
Cf. FLAUZINA, 2006.
81

principalmente com os movimentos de resistência que sofreram modificações no decorrer da


história.
Neste último ponto, arrematamos o trabalho ao discutir sobre o Estado Penal, Estado
de exceção e necropolítica, o abolicionismo penal — enquanto movimento acadêmico e social
— e as possibilidades e limitações para profissões que, em sua relação contraditória de defesa
dos direitos da classe trabalhadora, fazendo parte dos dispositivos disciplinares, (como o
Serviço Social) podem encontrar ao adotar o abolicionismo penal como norte.
Para tanto, propomos uma perspectiva que corresponda às resistências e avanços
trazidos pelas pautas e lutas de movimentos sociais e do Serviço Social. Partimos da
compreensão de que não há, na história da humanidade, “direito dado” à classe trabalhadora,
mas sim conquistas que são tensionadas por movimentos coletivos e organizações coletivas ao
longo da história.

3.1 A polícia da morte e a “máquina de moer pobre”.

A partir do desenvolvimento das favelas e guetos, a sociedade segue


redimensionando-se e evoluindo em técnicas que naturalizam violências e violações dentro
dessa estrutura, que objetiva docilizar e controlar os corpos negros, para a máxima exploração
de mão-de-obra e perpetuação das desigualdades, conforme discutido anteriormente.
Para além da repressão, a desigualdade social da cidade de São Paulo dos anos 50 aos
90 acompanha o desenvolvimento industrial e econômico do país. Da cidade que não podia
parar183, devido às mudanças econômicas que priorizavam o mercado interno ao externo,
buscando atrair o capital estrangeiro por meio de incentivos fiscais centralizados no Estado184,
ao desenvolvimentismo com intenso endividamento externo do “milagre econômico” da
ditadura militar, marcado pela máxima “temos que crescer o bolo antes de reparti-lo” se
consolida o sistema de cidades, sustentadas pela indústria de bens de consumo duráveis, que
contrata e consolida diversos empregos na cidade.185

183
Lema da cidade nos anos 50 “A locomotiva do país não pode parar!”, que surge pelo aumento acelerado da
industrialização do país, centralizada na cidade de São Paulo e região metropolitana. A frase traz notória
conotação burguesa e, com a intensa migração de nordestinos no processo de urbanização e edificação da cidade
têm, em suas entrelinhas, uma classe trabalhadora que deve estar a serviço do “bem-comum”, apesar da
segregação, preconceito e falta de acesso à bens comuns e direitos sociais mínimos. São Paulo é uma cidade
construída por negros e nordestinos, mas desfrutada pelos brancos e classe média emergente de uma política
racial que privilegiou imigrantes europeus e, posteriormente, asiáticos e árabes.
184
Esse período é conhecido como “desenvolvimentismo”, presente em diversos países da América Latina, com
destaque para Brasil e Argentina conforme estudado por Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Albert
Hirschman e outros.
185
Ainda assim, os empregos formais eram preferencialmente para brancos. À população negra eram dirigidos os
trabalhos informais e mal pagos, baseados em trabalho intensivo, os chamados subempregos Op. Cit.
NASCIMENTO, 2006.
82

(...) Massas consideráveis da população foram integradas ao mercado de consumo a


partir de uma vigorosa política de crédito que, como mostrou Wells (1976), permitiu
às camadas baixas o acesso a alguns bens de consumo duráveis (como um televisor,
por exemplo) e as roupas. Essa política permite entender a presença de televisores
nas favelas e basicamente explica como foi possível expandir o mercado interno e ao
mesmo tempo manter uma distribuição desigual da renda e salários muito baixos.186

Este desenvolvimento desigual e combinado impactou também os setores das políticas


públicas. A expansão dos setores de saúde, previdência e educação ocorreu a custo da
qualidade dos serviços, em comparação às áreas mais custosas, como saneamento básico e
habitação tiveram um desenvolvimento tímido.187
(...) o Brasil tornou-se um país moderno com base numa combinação paradoxal de
rápido desenvolvimento capitalista, desigualdade crescente e falta de liberdade
política e de respeito aos direitos dos cidadãos. São Paulo é a região que melhor
representa a modernidade brasileira com todos seus paradoxos. Com seus mais de 16
milhões de habitantes, indústrias e arranha-céus, escritórios high tech e favelas,
metrôs sofisticados e altas taxas de mortalidade infantil, comunicações via satélite e
baixos níveis de alfabetização, a metrópole de São Paulo tornou-se um dos melhores
símbolos de uma sociedade de consumo industrial pobre mas moderna, heterogênea
e profundamente desigual.188

Embora a desigualdade social fosse significativa nos anos 70, a renda per capita e a
taxa de pobreza absoluta foram impactadas positivamente pelo desenvolvimentismo
(respectivamente 6,1% por ano e um queda de 53% para 27% até o final da década)189,
criando um otimismo de “tempos melhores” para os anos 80 — que ficou conhecido como a
“década perdida”.190 Como consequência da crise do Capital dos anos 70191 — da qual ainda
não saímos — durante a década de 80, o país encontrou grande dificuldade para controlar a
inflação, aumentando consideravelmente os índices de pobreza e a crise no setor industrial.

Entre as instabilidades da moeda e do mercado, o aumento da desigualdade e a falta de


perspectiva de melhora, os anos 80 carregaram o aumento dos crimes violentos (sequestro,
latrocínio, homicídio…) e, consequentemente, do “combate ao crime”. O tópico passou a ser
um discurso muito forte entre os políticos brasileiros, em contraposição ao aumento dos
acesso à "cidadania".192

186
CALDEIRA, Teresa P. Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. 3rd ed. São Paulo:
Editora 34/Edusp –Editora da Universidade de São Paulo. 2000. p. 47
187
Ibid., p. 48
188
Ibid., p. 48
189
ROCHA apud. Caldeira, Ibid., p. 49
190
Ibid., p. 48
191
Cf. HARVEY, David. O Enigma do Capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo.2010.
192
De acordo com a pesquisa desenvolvida pelo Asociación Latinoamericana de Derecho Penal y Criminología
(ALPEC), no período de 1985 a 2011 o ritmo de publicação de leis penais por ano dobrou em comparação com o
período de 1940 a 1985.
83

(...) Embora haja certamente muitos aspectos positivos na desintegração de velhas


relações de autoridade e poder no Brasil, fica claro que muitos grupos sociais
reagiram negativamente à ampliação da arena política e à expansão dos direitos.
Esses grupos encontraram no problema do crime uma forma de articular sua
oposição. O universo do crime — incluindo a falta do crime e o medo, mas também
o crescimento da violência, o fracasso das instituições da ordem, especialmente a
polícia e o sistema judiciário, a privatização da segurança e da justiça e o contínuo
cercamento e segregação das cidades — revela de uma forma sintética e marcante o
caráter disjuntivo da democracia brasileira.193

O conceito da democracia disjuntiva194 resume o paradoxo da democracia no Brasil


pós 1988. A criação de um novo “medo social” comporta os aparatos militares que se
redimensionaram e se ajustaram em torno da democracia: quanto mais “liberdade” de escolha
e direcionamento nos pactos para o bem comum, menor a condição de sobrevivência e
subsistência da classe trabalhadora, que tem sua circulação pelas cidades restrita pela
estratificação econômica.
De um lado, houve uma expansão real da cidadania política, expressa nas eleições
livres e regulares, organizações de partidos, nova liderança política e funcionamento
regular do legislativo em todos os níveis, associados a liberdade de expressão e fim
da censura aos meios de comunicação. De outro lado, no entanto, há o universo do
crime e um dos mais intrigantes fatos da consolidação democrática brasileira: o de
que a violência, tanto civil, quanto de aparatos do Estado, aumentou
consideravelmente desde o fim do regime militar.195

As tecnologias de poder disciplinar estão mais acomodadas a partir dos anos 90, com
as privatizações e sucateamento (ainda maior) das políticas sociais, ações da adoção de um
modelo neoliberal de economia durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O que resulta
na ausência de política social nas periferias das cidades.
Os novos tipos penais e o surgimento de um novo inimigo público, o tráfico de drogas,
agravam os medos sociais — alimentados pela mídia e propagandas como a campanha
“Drogas, diga não” e novelas com personagens, geralmente negros e vilões, instigando uma
associação racista no senso comum.
Para a ofensiva neoliberal funcionar, além da operação do discurso de um mal comum,
é necessário

193
Ibid., p. 55
194
Cf. HOLSTON;CALDEIRA. 1998
195
Op. Cit. CALDEIRA 2000, p. 55 –56
84

[...] expandir o Estado penal que lhes permite, em primeiro lugar, abafar e conter as
desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela simultânea
desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de segurança
social. Também permite que os eleitos para cargos majoritários contenham seu
déficit de legitimidade política com a confirmação da autoridade estatal nessa
limitada área de ação, em um momento no qual têm pouco para oferecer a seus
eleitores.196

No discurso do perigo, uma polícia ostensivamente violenta, voltada a aprisionar e


eliminar a população negra, reforça a visão de um judiciário e polícia que respondem à altura
a ameaça à ordem social que o crime traz. Somado ao discurso fomentado por programas
policiais (Linha Direta, Brasil Urgente, Alerta Nacional e afins) que alimenta a lógica de que
quanto mais presos, melhor, e que quanto maior a violação de direitos humanos, mais justiça.
Com o aval da população, que atribui aos crimes patrimoniais (furto e roubo) seu
empobrecimento197, a partir dos anos 90 há um agravamento da política encarceradora no
Brasil, a partir de ações como a Lei de crimes Hediondos que
(...) passou a limitar a progressão de regime aumentando, consequentemente, o
tempo de pena em regime fechado. Para os não reincidentes nesta modalidade de
crime, a lei restringe a liberdade condicional após o cumprimento de 2/3 da pena e
não 1/3, conforme rege o Código Penal. Além disso, a inclusão do tráfico de drogas
no rol de crimes hediondos é outro fator que pode ter impactado este crescimento
significativo da população prisional.198

Não obstante a ausência de vagas e as violações de direitos humanos na prisão,


denunciadas pela Organização das Nações Unidas em 1993 e reconhecidas pelo Supremo
Tribunal Federal. A polícia, neste período, passa a operar em diversas células. As tecnologias
de vigilância da cidade alteram quase que organizadas por sua letalidade; o policial "praça",
os policiais militares de patente alta, a guarda civil, o policial da ROTA, GATE… Cada braço
funcionando com um nível de violência e uma finalidade.
E, embora a violência nas prisões de São Paulo tenha se mantido ao longo desses trinta
anos, o massacre ocorrido em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção de São Paulo
(Carandiru), uma das maiores prisões da América Latina. O Carandiru, localizado na Zona
Norte de São Paulo, na região de Santana, teve seu projeto arquitetônico199 inaugurado em 13
de maio de 1911, no aniversário de 23 anos após a abolição da escravatura, seguindo os
ordenamentos de 1890 (citados no primeiro capítulo).

196
WACQUANT, Loic. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e
Sociedade. Ano 11, Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 203
197
Op. Cit. CALDEIRA, p. 122
198
SILVESTRE, Giane; MELO, Felipe A.“Encarceramento em massa e a tragédia prisional brasileira.” Boletim
293. Disponível em:
https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5947-Encarceramento-em-massa-e-a-tragedia-prisional-brasileira
2017. Acesso em: 28 jul. 2021
199
Apêndice 1
85

A intenção era separar réus primários de presos reincidentes e, também, segregar os


condenados de acordo com a natureza do delito. A obra foi entregue em abril de 1920, se
tornando um dos cartões-postais da cidade e um ponto turístico para os criminólogos
clássicos, filósofos e psiquiatras influenciados por Lombroso.
A penitenciária acabou atingindo sua capacidade máxima com apenas vinte anos de
vida. Entre sua inauguração, em 1920, e a chegada da década de 40, ano que atingiu
sua capacidade máxima de 1.200 detentos, o Carandiru não suportava mais receber
presos. Em uma das tentativas de suportar a alta demanda, Jânio Quadros construiu a
Casa de Detenção, em 1956, aumentando a capacidade para 3250 presidiários.
A partir de então, os governos começaram a “tapar o sol com a peneira” e, em 1973
foi inaugurada a Penitenciária Feminina da Capital e, em 1983, começou a operar o
Centro de Observação Criminológica. Todos esses edifícios juntos tornaram-se o
Complexo Penitenciário do Carandiru. Com essa mudança, o Carandiru se tornou
um dos maiores fracassos da administração pública.200

Fracasso para uns, sucesso para outros. Os números oficiais do massacre apontam para
133 mortos201 em um período de vinte minutos. Os sobreviventes passaram cerca de 12 horas
sentados nus no pátio da prisão, ocorrendo neste período vários casos de mordidas de
cachorros e outros abusos. A comoção da sociedade civil não tendeu à empatia, afinal, no
ideário, “bandido bom, é bandido morto” e, em 2021, pela recusa da construção de um
memorial respeitoso às vítimas, os frequentadores do Parque da Juventude pouco sabem da
história daquele lugar.202

200
OLIVEIRA, A. 2013
201
Até a reportagem da Folha, em 2015, eram 111. Os militantes e sobreviventes estimam mais de 250 mortos.
202
Para mais informações sobre Carandiru, há o livro de Jocenir, o sobrevivente do massacre que foi um dos
compositores da música “Diário de um detento”. O livro homônimo é facilmente encontrado. Há também os
livros de Drauzio Varella, Carcereiros e Estação Carandiru, e o filme “Carandiru”.
86

O Brasil adentra o século XXI como portador de um dos sistemas prisionais mais
cruéis do mundo, sendo denunciado constantemente por organismos de defesa dos
direitos humanos e observatórios mundiais de prisões. Faz parte desta realidade: as
torturas, os espancamentos, a corrupção e o abuso de poder por parte dos agentes do
Estado, acrescidas das inúmeras desassistências na área judiciária, social e material,
à saúde, à educação, ainda que previstas na Lei de Execução Penal (no. 7.210 de
11/07/1984)203 em vigor.204

As desassistências da prisão rebatem em todos os setores da sociedade. Existem


aqueles que lucram com a superfaturação de mantimentos — que muitas vezes nem ao menos
são entregues — e o comércio de itens relacionados à segurança pública, dado que alguns
itens como sirenes dos carros de polícia são feitos na prisão. Porém, a maioria é afetada da
maneira mais negativa possível, através do enfrentamento de estigmas, a tortura física e
psicológica e as sobrepenas.205

3.1.1 O Estado Penal no Brasil

Com o avanço da política mundial de “guerra às drogas”, que direciona boa parte do
potencial bélico mundial, e emprega a vigilância de cada sujeito à imagem do traficante, a
sociedade brasileira, em especial a paulistana, caminha para uma “generalização do poder de
punir”, ou “giro punitivo”, característica das políticas de segurança pública do neoliberalismo.
A repentina e obsessiva reafirmação do “direito à segurança" por destacados
políticos, tanto da direita quanto da esquerda, acontece ao mesmo tempo em que o
silencioso desgaste do “direito ao emprego”, na sua forma tradicional (isto é,
trabalho de tempo integral, por período indeterminado e com salário adequado), e o
crescimento dos meios de fortalecimento legal tornam-se úteis para compensar o
déficit de legitimidade sofrido pelas lideranças políticas pelo fato de terem
abandonado as tarefas do Estado no campo social e econômico.206

Neste panorama, a recorrente resposta pelo aprisionamento e a falência de políticas


sociais se choca, mais uma vez, com o caráter disjuntivo da democracia brasileira. Os anos

203
“Segundo Carvalho (2001:170), tomou corpo no Brasil, principalmente a partir de 1970, a corrente penal que
advogava a necessidade de jurisdicionalizar a execução da pena, reconhecendo à pessoa condenada seus direitos
fundamentais. Houve a reforma da parte geral do Código Penal e a elaboração da Lei Execução Penal, ambas em
1984. No entanto, somente com o advento da Carta de 1988 é que o tratamento da execução penal adquiriu
feição constitucional, como instrumento de reconhecimento de direitos e garantias individuais e sociais. A Lei de
Execução Penal em vigor determina que os condenados sejam classificados segundo seus antecedentes e
personalidade, para orientar a individualização da execução da pena. Os presos provisórios devem ser separados
dos condenados, e os primários, dos reincidentes. No Brasil a execução da pena se dá em três modalidades:
privativa de liberdade, que seria a reclusão ou detenção; pena restritiva de direitos (pena prestação pecuniária,
perda de bens e valores; pena de prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas, interdição
temporária de direitos e limitação de fim de semana e multa). As penas restritivas de direitos — também
chamadas de penas alternativas, foram concebidas para substituir as penas privativas de liberdade.” (TORRES,
2005, p. 57–58)
204
TORRES, Andrea A. 2005. Para além da prisão: Experiências significativas do Serviço Social na
Penitenciária Feminina da Capital/SP (1978 — 1983), Dissertação. N.p.: PUC/SP.
205
Op. Cit ZAQUEO, 2016.
206
WACQUANT, Loic. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo. 2018. p. 94
87

2000 traz o que alguns autores207 chamam de “neodesenvolvimentismo”, por reproduzir


algumas características dos anos 50, como a diminuição considerável da pobreza e o avanço
econômico do Brasil.
A partir dessa perspectiva, de fato vemos uma semelhança, mas os efeitos na chamada
“segurança urbana” são estarrecedores. O que podemos acompanhar a partir dos dados208 a
seguir, referentes à evolução da pena privativa de liberdade.

Fonte dos dados: Banco de dados do Governo Federal209

Os anos de 2003 - 2016 foram, sem dúvida, os fortalecedores dessa política criminal,
que resultou em um encarceramento massivo. Uma grande decepção para os militantes que,
nos anos 70, previam um crescimento das medidas alternativas de punição e, nos casos mais
otimistas, um possível abolicionismo penal.210
O aumento do encarceramento e da criminalização, levando a uma judicialização da
vida social, como veremos a seguir, foi uma tendência mundial. Nesse mesmo ritmo acelerado

207
Rodrigo Castelo e Raquel Raichellis, são bons exemplos.
208
É importante destacar que nos últimos anos, os dados do CNJ e os dados do DEPEN foram conflitantes.
Enquanto o DEPEN informou uma população prisional de 725 mil em 2019, o CNJ aponta o número de 812 mil.
Assim, o gráfico seria ainda pior se fosse utilizado esse último dado. É importante ressaltar que devido a falta de
clareza dos dados oferecidos pelo INFOPEN e o abandono dos relatórios anuais (desde 2017), os gráficos
atualizados são fruto de análise de dados feita pela pesquisadora através do método de análise de Big Data. O
INFOPEN disponibiliza dados tratados com a mesma metodologia, no entanto, há uma supressão de dados
referente à composição racial.
209
Dados referentes a dezembro de 2019, a proporção é de 1 para 1000. Além disso, nos anos 91, 95 e 98 não
houve a divulgação de dados
210
Nilo Batista
88

de encarceramento seguimos os Estados Unidos — com o maior contingente de


encarceramento em massa do mundo211.

Fonte dos dados: https://www.prisonstudies.org/

Como tratamos anteriormente, o aprisionamento no Brasil foi dirigido, quase que


exclusivamente, aos corpos negros, que tiveram seus territórios sitiados e passaram a ser o
maior alvo das abordagens policiais. Os dados do INFOPEN (Sistema de Informação do
Departamento Penitenciário Nacional) são incompletos, tendo aproximadamente 64.900
respostas, um valor significativamente baixo em comparação com a população total.

211
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel. 2020.
89

Fonte: Banco de dados do Governo Federal.

Dentro dessa lógica de seletividade penal, e para além — ou antes — do


aprisionamento, que cresceu de maneira vertiginosa dos anos 90 até 2019, destacamos o
crescimento da letalidade policial:
90

Mais uma vez, e sem surpresa alguma, levando em consideração os destaques e


análises que desenvolvemos nesse trabalho, o alvo da letalidade policial foi o corpo negro:

Um último dado importante para nossa análise acerca da relação do Estado Penal,
polícia, judiciário e prisão é o aumento de crimes violentos desde os anos 90.
91

Evolução dos crimes violentos

Fonte: Atlas da violência 2020 212

Este aumento dos crimes violentos, embora seja multifatorial, se evidencia nas
periferias. Nas últimas décadas, houveram diversas chacinas e ações deliberadamente
violentas por parte da polícia militar — e outros dispositivos semelhantes. Este ajustamento
da tecnologia do poder de punir, enquanto dispositivo biopolítico, é um dos três aspectos
levantados por Wacquant em sua discussão acerca do Estado Penal, a despacificação213 da
vida diária e a erosão do espaço público.

212
Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/17
213
Um importante elemento para a despacificação da vida nas periferias, apresentado por Wacquant, é a
emergência de poderes paraestatais, responsáveis por gerir a vida nesses espaços. Sabemos que a população
periférica é preterida em diversos aspectos da vida social, como por exemplo, empregos formais (é comum o
argumento da não contratação de profissionais moradores de periferias por conta da possibilidade de tiroteios,
toques de recolher, enchentes no caminho do trabalho e “atrasos”), e, por conta disso, muitos vivem de maneira
marginalizada; sem acesso à nenhum tipo de política social. Nos espaços onde os poderes paraestatais têm maior
atividade, as execuções ganham o espaço da punição, como em um retorno aos suplícios e forcas. Todos sabemos
que existem milícias, comandos e partidos responsáveis pelo gerenciamento da vida na periferia, no entanto, o
máximo que temos são tropas em determinados territórios, tornando-os verdadeiros cenários de guerra, mas sem
- pelo até o presente momento - resolver ou, de fato, pacificar a vida nesses espaços. O que há, é, portanto, uma
despacificação e crescimento de uma violência “ilegal”, afinal, para quem denunciaríamos um poder paralelo,
compactuado com governantes, e com seus advogados em cargos importantes do judiciário federal?
92

Em certos conjuntos habitacionais públicos do gueto, tiroteios são tão frequentes que
as crianças aprendem ainda pequenas a se jogar no solo para evitar balas perdidas,
tão logo ouvem tiros; quanto às meninas, elas também aprendem a se proteger dos
estupradores. (...) Os perigos a que se expõem as crianças desses bairros são em
ordem decrescente, tiros, extorsão por gangues e escuridão, propícia a toda espécie
de violência — ao passo que uma amostra aleatória de mães suburbanas indica o
medo de sequestro, acidentes de caso e drogas como as principais ameaças contra
seus filhos.214

Durante o isolamento social, ao qual apenas uma parcela da população teve acesso,
houve uma evidência maior deste fator e sua relação com a desigualdade social. Enquanto
garotos e garotas passavam dias tediosos em frente à seus computadores e smartphones nos
bairros de classe média, crianças como João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, eram mortas
com tiros de fuzil dentro de sua própria casa.215
Ao mesmo passo, em um Brasil de “Deus acima de todos” com um Ministério da
mulher, família e Direitos Humanos comandado por uma pastora evangélica de ações e
discursos extremamente retrógrados, uma criança de 10 anos que sofreu diversos abusos
sexuais em sua casa sofria todo o tipo de violência dos fundamentalistas religiosos216, ao
exercer seu direito ao aborto legal.

Taxa de homicídio entre jovens de 15 a 29 anos:

214
Ibid., p. 37
215
Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/25/joao-pedro-mandou-mensagem-para-mae-momentos-a
ntes-de-ser-baleado-estou-dentro-de-casa-calma.ghtml
216
Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-15/estuprada-desde-os-6-gravida-aos-10-anos-e-num-limbo-inexplicavel
-a-espera-por-um-aborto-legal.html
93

Fonte: Atlas da violência 2017

Analisando os dados trazidos até aqui, percebemos que há um crescimento importante


na taxa de crimes violentos e homicídios217 por parte do Estado, assim como do
aprisionamento. Sabemos que a polícia se encontra ostensivamente no território periférico
quando se trata de executar e prender os jovens. Decidimos trazer o comparativo dos dados de
Boletins de Ocorrência em dois bairros de São Paulo:

217
O Atlas de 2019 traz uma seção inédita, sobre a violência contra a população LGBTQIA+. Segundo uma das
bases utilizadas pela pesquisa (o canal de denúncias Disque 100), houve um forte crescimento nos últimos seis
anos das denúncias de homicídios contra a população LGBTQIA+, que subiram de cinco em 2011 para 193 em
2017, ano em que o crescimento foi de 127%. Os pesquisadores compararam esses dados com informações do
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde, e encontraram um mesmo
resultado qualitativo. Em mais de 70% dos casos, os autores do crime são do sexo masculino, enquanto que a
maioria das vítimas é de homo ou bissexuais do sexo feminino.
94

Fonte dos Dados: Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP).218

O Distrito Policial (DP) de Jardim Herculano é considerado o mais perigoso da cidade,


está localizado na região sul da cidade e comporta bairros como Jardim Ângela, que foi
considerado uma “zona de guerra” durante boa parte dos anos 90 e 2000. Enquanto o DP da
Casa Verde é considerado o mais seguro, além do grau de periculosidade do território, há uma
diferença considerável entre o poder aquisitivo de cada uma das regiões, pois trata-se de
periferia e bairro nobre, respectivamente.
Quanto a esse processo, há também um paralelo semelhante no Rio de Janeiro onde
O crescimento ostensivo do contingente policial e da sua presença nas ruas
representa uma realidade de insegurança e a existência de um território de medo. As
propagandas até agora foram eficientes para criar um senso comum que não
corresponde a uma prática objetiva de alteração da segurança ou da polícia. As
alterações, como a redução das incursões policiais nos locais que foram instalados as
UPPs, podem ser consideradas mudanças pontuais, sem constituir, até agora,
alterações estruturais de qualidade que, de fato, alterem a realidade.219

Em outras palavras, ainda que não haja em São Paulo uma unidade de pacificação no
mesmo modelo que no Rio de Janeiro, a taxa de letalidade da polícia e a diferença pequena na
notificação dos crimes220 da região considerada mais perigosa para a mais segura nos trazem

218
Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Pesquisa.aspx
219
Op. Cit. FRANCO, 2014, p. 45
220
Os dados acerca do tráfico de drogas não constam na tabela consultada. Ainda assim, é sabido que, no estado
de São Paulo, boa parte dos crimes estão relacionados à propriedade privada, considerado o “crime de moda”.
95

indícios do que Wacquant chama de “a desertificação organizacional do gueto”. Tal


desertificação se relaciona diretamente a ausência de Políticas Sociais, ou
No nível municipal, houve profundos cortes seletivos no orçamento dos serviços
públicos nos quais os negros residentes em bairros pobres são os que mais
dependem, entre eles o transporte público, o subsídio para a moradia, os serviços
médicos e sociais, as escola ou os serviços urbanos.

Esse panorama remonta a situação trazida nas considerações iniciais deste trabalho, na
realidade dos sujeitos aprisionados no CDP de Mauá que, muitas vezes, tinham como política
social mais presente a de segurança pública.
Nesse processo, a punição, que dá estrutura à arquitetura do Estado penal, não de
forma isolada, mas na complexidade da sua combinação com a assistência, deve ser
vista além do foco da repressão. Novas categorias foram articuladas, no campo das
políticas públicas, buscando a combinação das alternativas no campo da assistência
e no âmbito do combate à criminalidade. Para isso, são forjadas políticas de
governos e vários tipos de tecnologias governamentais, apresentando-se como um
modelo moderno e qualificado. 221

A informalidade crescente e o subemprego, ou “uberização”222, figuram o terceiro


aspecto trazido por Wacquant em sua contextualização do Estado Penal.
O leviatã neoliberal, que não está pautado apenas pela modernidade tardia, mas pela
dinâmica modernizadora da produção capitalista e das trocas de mercado, nos leva a
crer que pode ser abarcado por governos de esquerda ou de direita, com indicações
que nos levam a articular duas assertivas teóricas fundamentais: 1- Aparato penal é
um órgão essencial do estado, expressão da sua soberania e fundamental na
imposição de categorias na sustentação de divisões materiais e simbólicas e na
modelagem de relações e comportamentos através da penetração seletiva do espaço
físico e social. A polícia, os tribunais não são meros apêndices técnicos destinados
ao cumprimento da ordem legal (como a criminologia afirmaria), mas sim veículos
para a produção política da realidade e para a vigilância das categorias sociais
desfavorecidas e difamadas e dos territórios que lhe são reservados.223

Este cenário, na contemporaneidade, tem intensificado o genocídio da população


não-branca no Brasil, por meio de uma seletividade penal dirigida prioritariamente ao corpo
negro, o que, nossa história mostra em diversos detalhes, não é acidental.
Ao criar uma alcunha de propaganda para uma ideia diferenciada no campo das
políticas públicas, carimbando o modelo como Unidade de Polícia Pacificadora,
busca-se reforçar a ideia de outra atuação. Contudo, a ideia da “guerra” e a
propaganda política do programa delineia-se de forma presente.224

Nossos estudos indicam uma relação direta entre o modelo da violência, no período
ditatorial de Estado dos anos 70 e o modelo atual gerido por militares. Talvez a
descontinuidade seja apenas para a classe média (branca), que pôde voltar a criticar seu
governo sem o medo da repressão. Não negamos os avanços em políticas sociais e

221
Ibid., p. 45
222
Cf. ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo:
Boitempo, 2018.
223
Op. Cit, WACQUANT, 2008, p. 29
224
Op. Cit. FRANCO, 2014, p. 46
96

possibilidades de representação no atual modelo, mas questionamos a quem a democracia e o


Estado de direitos servem nessa democracia disjuntiva.
Nesse sentido, vale recordar da discussão de Wacquant sobre a underclass. A gênese
dessa categoria, na acadêmia (branca e conservadora), tem relação com esse modelo de
Estado neoliberal e corresponde aos sujeitos dos “guetos”.
Esse “grupo”, pode ser supostamente identificados por uma série características
intimamente interligadas — desordem: uma sexualidade fora de controle, famílias
chefiadas por mulheres, altas taxas de absenteísmo e a reprovação nas escolas,
consumo e tráfico de drogas, além de proteção ao crime violento, "dependência"
persistente em relação ao auxílio público, desemprego endêmico (devido, de acordo
com algumas versões, a rejeição ao trabalho e a recusa em ajustar-se às estruturas
convencionais da sociedade), isolamento em áreas com alta densidade de famílias
problemáticas etc.225

Há uma disputa de narrativa em torno desses sujeitos, mas algo que chama a atenção
do autor, e também a nossa, é a atribuição do termo apenas às pessoas negras. Na academia
brasileira e nas Organizações Não-Governamentais (ONG), existe um termo semelhante, o
“Preto, Pobre e Periférico”, ou “PPP”.
Os Jornalistas da Times haviam encontrado o termo no novo discurso desenvolvido
pelas principais organizações filantrópicas do país, para as quais a "descoberta" de
um novo grupo de favorecido, definida por sua Indiferença a "qualquer tipo de
tentativa de contato" (como afirmou Mitchell Sviridoff, vice presidente da Fundação
Ford), oferecia uma desculpa perfeita tanto para o fracasso dos programas de
combate à pobreza quanto para uma nova agenda de intervenção dirigida.226

Esse discurso guarda características que devemos nos atentar, pois sujeita todos que
não estão na norma desta sociedade a respostas filantrópicas e messiânicas. Afinal, há o
reconhecimento de falência das instituições como prisões, comunidades terapêuticas e afins,
alternando os discursos entre “sujeitos perigosos” que arruinarão a vida de quem não está
nessa dinâmica e sujeitos dignos de pena e salvação.
O perigo das intervenções de ONGs e sujeitos cooptados por esse discurso é a própria
dinâmica do Estado neoliberal em responder às manifestações da questão social por duas vias:
a da ausência de respostas, ou a da terceirização. Nesse contexto, diversas agências de
pesquisa em Direitos Humanos e institutos de pesquisa e cultura nas regiões periféricas
financiam ações, pesquisas e até pautas sociais para "combater a violência”, ou “combater a
pobreza”.
Essa relação com o terceiro setor é, sem dúvidas, contraditória e delicada. A ausência
de políticas sociais e direitos sociais para apenas uma parcela da população não é uma
condição abstrata e, na materialidade, é violenta por diversos ângulos. No entanto, não

225
Op. Cit., WACQUANT, 2008, p. 44
226
Ibid., p. 45
97

podemos ignorar que esta é uma outra tecnologia de poder. Ou uma atualização de algo que já
houve no passado.
Dos "teórico” das questões de raça do final do século XIX até Charles Murray,
passando por Edward Banfield, existe uma longa tradição de analises
pseudo-científicas que visam a reforçar a representação estereotipada dos negros do
gueto como seres preguiçosos, transviados, anormais e instáveis que se banham em
uma cultura patogênica radicalmente divergente da cultura norte-americana
dominante. 227

A manutenção de um de um dispositivo que divide as cidades por seu território e poder


aquisitivo, de maneira tão ostensiva que cria medos sociais subjetivos, é, também, uma forma
de garantir a máxima exploração do Capital. Essa estratificação de classe funciona de maneira
semelhante e coordenada com o racismo. É necessário evadir da periferia, ou evitar a perda do
poder aquisitivo e “cair” na periferia, e a única forma de conseguir esse objetivo é através do
trabalho, seja qual for.
O discurso sobre underclass é um instrumento de disciplina no sentido dado ao
termo por Foucault, tanto para os pobres quanto para todos aqueles que lutam para
não cair no purgatório urbano simbolizado pelo nome (ou seja, a classe trabalhadora
em seus vários componentes, especialmente o negro e o latino), e a melhor
justificativa da política de abandono de fatco do gueto, levada adiante pela classe
dominante do país longe de esclarecer novo nexo que une raça, classe e Estado nas
metrópoles norte-americanas, afecção da underclass contribui para mascarar a causa
primeiramente da sensibilização do gueto no sentido proposto por Elias: à vontade
política de deixá-lo apodrecer 228

3.1.2 A Necropolítica

O biopoder Foucaultiano olha para as mediações de exercício da soberania e poder


sobre a vida e a morte. O Estado Penal é, a partir dos elementos trazidos, essencialmente um
Estado voltado à morte. A maneira que gerenciamos conflitos e buscamos soluções é,
essencialmente, pelo poder de espada; a utopia da prisão é a reforma do sujeito, a
ressocialização; a utopia da polícia é a garantia de segurança aos sujeitos; e a do judiciário, a
justiça e “reparação” dos danos.
Achille Mbembe, em seu famoso ensaio “Necropolítica”, apresenta a insuficiência dos
conceitos de biopoder e biopolítica no arranjo social que vivemos hoje. Os elementos
levantados pelo autor são fundamentais para os dois últimos pontos de discussão deste
trabalho: o abolicionismo penal e o Serviço Social diante desse complexo panorama. Para
compreender melhor alguns conceitos trazidos pelo autor, iremos articular a discussão com
mais uma leitura deste Estado violento: o Estado de exceção, de Agamben.

227
Ibid., p. 49
228
Ibid., p. 51
98

Além disso, devemos nos atentar ao que realmente diz respeito ao termo
“necropolítica”. Na compreensão de biopolítica de Foucault, há uma impressão de que o
direito - e o gerenciamento - da vida era para todos, independente de seus extratos de classe.
No entanto, Mbembe aponta um aspecto perdido pelo autor: Nos países que não houveram um
Estado Social, como Socialismo ou Estado de Bem-Estar Social existe uma parcela da
população que nem ao menos é considerada.
Aos que estão à margem resta apenas a luta pela ascensão social, a fuga desta condição
de morte - não apenas do corpo, mas da subjetividade, da razão, da cultura, linguagem etc… -
é a única saída possível. É o sujeito que nunca conseguiu, por exemplo, alcançar a cidadania
mas é objeto dos projetos de extermínio estatais e paraestatais. Essa condição tende a se
agravar durante o neoliberalismo, exibindo a fragmentação da democracia e do Estado de
Direito, que operam na contradição da exclusão.
O Estado de exceção moderno está entre a política e o Direito, se apresentando como
“a forma legal do que não pode ter forma legal” em cenários de crises como guerras civis e
movimentos significativos de resistência. “(...) é a resposta imediata do poder estatal aos
conflitos internos mais extremos”.229
De acordo com o autor, após o totalitarismo da II Guerra Mundial e o genocídio dos
judeus, os Estados modernos criaram um regime de emergência permanente para eliminar os
grupos que não se adequassem ao regime disciplinar de suas instituições.

229
AGAMBEN,Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 10 -11
99

Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o
estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória
e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente — e,
de fato, já transformou de modo muito perceptível — a estrutura e o sentido da
distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção
apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre
democracia e absolutismo.230

Existem diversos exemplos, a maioria envolvendo os EUA, dessa política. O autor


exemplifica com as atuações de George Bush em 2001, após os atos terroristas contra o World
Trade Center, ao perseguir estrangeiros de países de capitalismo periférico. No entanto,
atualmente o que acontece com os dreamers (filhos de latinos nascidos nos Estados Unidos e
perseguidos pela ICE), remonta o campo de concentração da II Guerra Mundial.231
E, não rara é a atuação de exércitos como polícia do mundo, por meio de exércitos
nacionais ou enclaves de vários exércitos como as forças de paz da ONU
(Organização das Nações Unidas), que atuam em situações de conflito que não
caracterizam, exatamente, uma guerra entre nações e, tampouco, contenção de uma
fração rebelde da população, mas, apenas, administração policial de conflitos pelas
armas, aparelhos eletrônicos de georreferenciamento e políticas de reconstrução de
governos democráticos, configurando um estado geral de controle e reforma.
Expande-se não só a busca por segurança dos Estados e do conjunto dos corpos
como a população, articulando polícias com funções militares e exércitos com
função de repressão interna de motins, como o anunciado crescimento da
criminalidade, a panacéia chamada violência urbana, enfim, tudo repetido como
mantra por intelectuais midiáticos nas TVs, jornais escritos e sites da Internet.232

Mbembe, ao discutir a relação entre colonialismo, ressalta o direito — jurídico — de


fazer guerra de cada Estado,

O direito de fazer guerra significava duas coisas. Por um lado, reconhecia-se que
matar ou negociar a paz eram funções proeminentes de qualquer Estado. Isso ia dep
ar com o reconhecimento de que nenhum Estado deveria exercer qualquer poder
para além de suas fronteiras. Em troca, o Estado não reconheceria nenhuma
autoridade superior à sua dentro de suas fronteiras. Por outro lado, o Estado se
comprometeria a “civilizar” os modos de matar e atribuir objetivos racionais ao
próprio ato de matar.233

Desta maneira, quando falamos do período colonial do Brasil, falamos de um


momento onde a soberania é exercida pelo direito de espada. Para Mbembe, não há uma
ruptura total desse modelo na modernidade; o Estado carrega em si características como a
imposição de fronteiras e desprezo pela vida nessas regiões.

230
Ibid., p. 12
231
Conforme noticiado em:
https://noticias.r7.com/internacional/fotos/a-vida-dos-dreamers-jovens-imigrantes-ameacados-nos-eua-31012018
e https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/os-campos-de-detencao-da-era-trump/.
232
SEBASTIÃO Júnior, Acácio Augusto. Política e polícia: medidas de contenção de liberdade: modulações de
encarceramento contra os jovens na sociedade de controle. 2009. 181 f. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
233
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona. 2017. p. 126
100

Um fator determinante é a relação de razão e liberdade na modernidade — a


compreensão que surge no século XX de que o exercício da razão equivale a um exercício de
autonomia.

Entre as favelas com seus becos, vielas e cantões as pessoas sobrevivem em meio a
ação policial, os projetos sociais, a atuação de ONGs e o governo das empresas do
tráfico. Entregam suas vidas aos pastores da ocasião venham eles na pele de líderes
das igrejas pentecostais (a ostentação do luxo cafona nas periferias), na pele dos
líderes de posses ou grupos de rap (como o mais ilustres deles, Mano Brown), na
pele dos líderes comunitários (da vida real ou da novela), na pele do bem
intencionado estudante universitário (mesma que ele esteja apenas trabalhando ou
comprando alguma coisa), na pele do policial militar comunitário (mesmo que ele
esteja armado), na pele do chefe do tráfico (mesmo que ele vá levar alguém à
execução mais tarde), na pele do pastor da comunidade científica com os respingos
ordinários da linguagem policial-acadêmica, enfim, uma pluralidade de pastores para
todos os gostos, que mantém cada um no seu devido lugar e amando o lugar onde
nasceu, dissolvendo potenciais singularidades.

3.2 O movimento pela liberdade: a abolição das penas e prisões.

Anteriormente apontamos que, na teoria Foucaultiana, as relações de poder implicam,


obrigatoriamente, a possibilidade de resistência. Poderia soar como uma condescência de
nossa parte seguir, neste último momento, para uma análise cuja a conclusão é óbvia: temos
que acabar com as prisões, pois são ruins, remontam à toda a escravidão e subalternização do
negro e da classe trabalhadora, alarga as desigualdades no país etc.
No entanto, a proposta neste ponto é refletir sobre os elementos trazidos neste
trabalho, compreendendo o longo desenvolvimento desta tecnologia penal sob a via da
resistência que se instala em dois pontos: a academia e o movimento social. Tratamos aqui
dos Abolicionismos Penais, que têm recebido maior atenção na academia e mídia nos últimos
dois anos.
Usamos o termo no plural porque compreendemos que é um movimento com muitas
vertentes. O ponto de encontro está na crítica do modelo de punição (centrado no fim das
prisões) e vai até a crítica da naturalização da punição, questionando a necessidade de penas.
É importante apontarmos que, além das diversas bases para as reflexões desses diferentes
abolicionismos, as divergências existem por conta da pergunta que todo militante
abolicionista já teve que responder na vida: “Se não punirmos, o que fazemos?”. Algumas
vertentes nos apontam caminhos, outras nos chamam para a construção dessa sociedade não
punitiva que buscamos.
Pautar o fim das penas não é algo novo no Brasil, ou no mundo. O abolicionismo
penal, enquanto movimento social, é derivado de alguns movimentos importantes: as
reivindicações anarquistas, a partir de William Goldwin (1793); os movimentos negros pelo
101

mundo, a exemplo do “Black Power” nos Estados Unidos, que reivindicavam seus direitos
civis; e os movimentos de esquerda que, através da crítica ao Estado de bem-estar social, nos
anos 60, passaram a questionar a razão da pena e prisão.
No século XVIII já havia a crítica à razão moderna e sua relação com a intenção
corretiva da pena. As influências cristãs na punição ditavam a lógica dessa suposta redenção,
afinal, Goldwin já utilizava o exemplo da punição de Damiens para apresentar a
intencionalidade e estudo por trás da punição, ressaltando a finalidade de empregar o
sofrimento na medida do crime.234
Além disso, o autor ressalta a defesa da propriedade privada nas penas, trazendo a
discussão de um judiciário (ou juiz) corrupto e pouco inclinado ao que os autores
contemporâneos consideravam justiça. Se a ofensa, ou crime, era dirigida ao rei, ninguém
teria coragem de contrariá-lo; quando dirigida ao direito de propriedade do burguês, não é
diferente. Nessas primeiras críticas às punições do Estado, há uma importante crítica: a
desigualdade de classes onde, quem tem os meios de produção dita, não só a maneira — e
quantidade — de exploração da mão-de-obra, mas também o funcionamento da legislação e
das instituições às quais elas têm domínio.235
Dessa forma, as considerações do autor acerca das punições e liberdades eram
direcionadas às possibilidades dos indivíduos e influenciaram libertários que também
buscavam estudar as penas e instituições burguesas, incluindo Proudhon, anos mais tarde, que
trazia suas discussões sob um ponto de vista mais coletivo.
Devido às discussões que associam os crimes à propriedade privada e soberania,
existem abolicionistas penais que tratam do tema como uma utopia a ser alcançada em outra
sociedade, preferencialmente após a revolução socialista. No entanto, sabemos — pelos
elementos trazidos anteriormente — que a abolição das penas é uma urgência. As reformas
das penas (do suplício à forca, da forca à masmorra, da masmorra à prisão, da prisão à pena
alternativa, da pena alternativa à justiça restaurativa…) não alteram a incidência de violência.
Ademais, a definição de punição do autor, resume a dinâmica das penas sob os
sujeitos.

234
O livro “Vigiar e Punir” abre com a descrição rica em detalhes do suplício de Damiens, um longo processo de
punição em praça pública, com a presença da Igreja para expiar os pecados em terra. A crença, na época, era de
que o sofrimento em terra seria descontado no pós vida. Segundo Goldwin, o último crime de Damiens foi contra
a vida do rei Luis XV, talvez a maior ofensa possível na época, contornar o direito de espada, trocando as
posições com o soberano.
235
GOLDWIN, William. Enquiry Concerning Political Justice. Washington: Domínio Público. p. 8
102

A punição inevitavelmente excita no sofredor, e deve excitar, o senso de justiça. Que


seu propósito seja me convencer da verdade de uma posição que atualmente acredito
ser falsa. Não é abstratamente considerado da natureza de um argumento e, portanto,
não pode começar produzindo convicção. Castigo é um nome comparativamente
especioso; mas nada mais é do que a força imposta a um ser por outro que parece ser
mais forte. Mas a força aparentemente não constitui justiça. O caso da punição, na
visão em que agora o consideramos, é o caso de você e eu divergimos em opiniões, e
você me dizendo que deve estar certo, já que tem um braço mais forte, ou aplicou
mais sua mente à habilidade de adquirir em suas armas do que eu.236

Devido à correlação de forças implicada no castigo, para o autor, a punição tem, em si,
mecanismos para moldar o comportamento dos sujeitos — como discutido por Foucault, anos
mais tarde. A questão posta neste raciocínio do século XVIII é que a punição aponta o erro,
mas não o corrige, apenas cria a dicotomia utilitária para a sociedade guiada pela propriedade
privada.237
O tema da punição é talvez o mais fundamental na ciência da política. Homens
associados em prol da proteção e benefício mútuo. Parece que os assuntos internos
de tais associações têm uma importância inexprimivelmente maior do que os
externos. Aparentemente, a ação da sociedade, em garantir recompensas e
supervisionar a opinião, é de efeito pernicioso. Daí se segue que o governo, ou a
ação da sociedade em sua capacidade corporativa, dificilmente pode ser de alguma
utilidade, exceto na medida em que é necessário para a supressão da força pela
força; para a prevenção de ataque hostil de um membro da sociedade, a pessoa de
seu patrimônio ou outro, prevenção essa que costuma se chamar Justiça Criminal, ou
punição.238

Há um anacronismo na teoria de Goldwin ao estabelecer esta relação entre a sociedade


de classes, o funcionamento do liberalismo e a centralidade da punição no funcionamento
desta sociedade.
Para os anarquistas, verdadeiramente maior é o presente, vida como uma existência
pautada na crítica à autoridade centralizada do poder pastoral ao poder de Estado.
Alheios ao mito da fênix, os anarquismos estão presentes nos escombros dos
regimes tanto quanto nas liberdades inventadas no cotidiano; eles não renascem de
tempos em tempos, apenas existem.239

Foucault, anos mais tarde, discutiu, como vimos, essa punição que move as
engrenagens de nossa sociedade ainda hoje. Embora William Goldwin não seja um autor
traduzido no Brasil, seu pensamento é fundamental para compreendermos a dimensão social
do abolicionismo penal, desvinculando a ideia de um pensamento exclusivo — e iniciado —
pela criminologia crítica.
Assim como Proudhon, Goldwin é considerado um “anarquista de estilo de vida”, ou
reformista. O que indica que as mudanças propostas por esses militantes estão relacionadas

236
Ibid., p. 56 (tradução nossa)
237
Ibid., p. 122 (tradução nossa)
238
Ibid., p. 243 (tradução nossa)
239
PASSETTI, Edson. 2000. Anarquismo e Sociedade de Controle. Colóquio Foucault/Deleuze. 2000. p. 4
103

aos micropoderes, ao que podemos fazer hoje a partir de nossos recursos objetivos e
subjetivos, mantêm em sua práxis o questionamento da autoridade e instituição.
Se os anarquismos não esperam pelo futuro, mas operam pelo presente, fazendo
existir vida livre e igualitária no presente diante de uma política da qual não se
aparta, a vida somente pode ter existência libertária mediante a abolição do súdito.
Abolir a condição de súdito é por si a abolição da soberania, seja ela centralizada no
Estado ou no indivíduo autônomo. Não se trata de inverter sinais, do Estado para o
sujeito autônomo, o que seria algo semelhante ao que faz acontecer a continuidade
da democracia no capitalismo por meio da representação renovada por eleições e
exercício do sufrágio universal.240

A abolição do súdito é, em essência, a construção de uma ação direta. A compreensão


de que não é necessário um intermediário ou norma para executar uma ação necessária.
Embora seja atribuída a ações onde há violência ou algum tipo de “dano” ao patrimônio
público, uma ação direta pode ser tão sutil e pacifista quanto palavras em uma folha de papel.
Os libertários buscam afirmar o local e o heterogêneo. Sabem que o Estado é
domínio e não se define por maximização ou minimização de
governamentabilizações. Mas os libertários não se preservam no interior dos
programas de preparação para a nova sociedade, está-se livre, também de utopias
consoladoras. São heterotópicos que atuam no presente procurando soluções
singulares na batalha cotidiana da vida, atravessando como nômades os relevos e
superfícies lisas, enfrentando desafios e procurando, diante de uma
situação-problema, resposta-percurso.241

Portanto, compreendermos que existem abolicionismos (assim como anarquismos) é


partir do pressuposto de que estes estão em todos os lugares, não apenas em prisões ou
centrais de penas alternativas. Sendo assim, um educador que se recusa a exercer uma
autoridade vertical em sala de aula; assistentes sociais que questionam o próprio lugar de
autoridade e buscam a construção de um poder popular (como der); psiquiatras que buscam
construir um gerenciamento da “loucura”; mães e pais que não castigam… Todos são,
essencialmente, abolicionistas penais.
Há uma importância muito grande em olhar para cada caso, cada dano e erro com o
cuidado que a singularidade requer. Portanto, no reconhecimento da heterogeneidade da
sociedade e das situações a que estamos sujeitos, é fundamental que haja a compreensão de
que não existe, nessa compreensão de uma sociedade sem penas, a possibilidade de um
"messias'' que irá nos guiar para a “paz mundial”.
A partir da reflexão anarquista desse movimento social e acadêmico, compreendemos
também que a radicalidade é a construção de uma liberdade que envolve destruir a autoridade.
Ou seja, uma profissão, enquanto conjunto, dificilmente consegue tornar-se, ou apropriar-se
do abolicionismo penal. Afinal, sabemos que, ainda que tenha um código de ética, os

240
Ibid., p. 5
241
PASSETTI, Edson. Curso livre de abolicionismo penal. São Paulo: Editora Revan. 2004. p. 30
104

movimentos profissionais são hegemônicos, heterogêneos e estão inseridos em meios de


garantir a subsistência através do trabalho remunerado.
Mais a frente na história, ainda entre os autores fundamentais para compreender o que
entendemos por dimensão acadêmica do abolicionismo penal, há, na contemporaneidade,
outras construções abolicionistas. Após as críticas anarquistas ao regime totalitário soviético
— que manteve vários militantes anarquistas aprisionados, deportados e mortos — e a
Segunda Guerra Mundial, as mudanças no mundo trazem uma nova discussão em torno de
punições.
Nos anos 60 e 70, após a crise do Estado de bem-estar social, com o crescimento da
violência e a ascensão da criminologia crítica, outros abolicionismos aparecem nos debates.
Davis, Foucault, Hulsman e Mathiesen são autores importantes deste período e apontam
muitas respostas-percurso possíveis, trazendo inquietações e questionamentos importantes
sobre nossa sociedade, o neoliberalismo e as possibilidades de construção de uma sociedade
sem penas.242
As contribuições da criminologia crítica são importantes para nossas reflexões acerca
do que é punível, e como funcionam os mecanismos de punição. O debate desenvolvido
questiona, por exemplo, o que é punível. Sabemos que, com o tempo, a criminalização muda;
o lança-perfume era vendido em lojas pelas ruas nos anos 70 no Brasil e usado em festas de
crianças, mas, hoje, quem vende lança-perfume é considerado traficante (e se enquadra em
crime equiparável ao hediondo); ser homossexual é crime em alguns países, assim como o uso
da maconha, inclusive para o uso medicinal.
Não há nada na natureza do fato, na sua natureza intrínseca, que permita reconhecer
se se trata ou não de um crime — ou de um delito. O que há em comum entre uma
conduta agressiva no interior da família, um ato violento cometido no contexto
anônimo das ruas, o arrombamento de uma residência, a fabricação de moeda falsa
(...) Você não descobrirá qualquer denominador comum nas definições de tais
situações, nas motivações dos que nelas estão envolvidos, nas possibilidades de
ações visualizáveis no que diz respeito à sua prevenção ou à tentativa de acabar com
elas.243

Ou seja, “a lei cria o criminoso”. Se hoje houvesse a descriminalização das drogas, por
exemplo, o varejo das substâncias deixaria de ser equiparado a crime hediondo, e aqueles que
são tratados como “delinquentes” passariam a ser apenas “bons vendedores”. Na questão de
drogas, temos mais uma questão — levantada por Hulsman — fundamental no que tratamos
enquanto seletividade penal.

242
Desses autores, apenas Mathiesen não tem uma versão brasileira de seus livros, e, embora Davis tenha sido
uma referência na crítica abolicionista, seus livros chegaram no Brasil há apenas dois anos.
243
HULSMAN, Louk. Penas Perdidas. Rio de Janeiro: LUAM. 1993. p. 64
105

Se um grande número de vítimas não denuncia os fatos puníveis à polícia, esta


também não transmite todos os fatos que lhe são comunicados (...) Isto quer dizer
que o sistema penal, longe de funcionar na totalidade dos casos em que teria
competência para agir, funciona em um ritmo extremamente reduzido. (...) Com uma
ponta de humor, pode-se desde logo dizer que as pesquisas sobre a "cifra negra" se
voltam contra o sistema: pode haver algo mais absurdo do que uma máquina que se
deva programar com vistas a um mau rendimento, para evitar que ela deixe de
funcionar?244

A cifra negra diz respeito àqueles crimes que não são denunciados e são resolvidos
dentro da comunidade, de maneira que as duas partes entendem um erro como parte da
natureza humana e negociam formas de lidar com os danos. Trata, dos casos como acidentes
de trabalho, que são, no máximo, indenizados, sem que o dono da empresa seja preso (porque
seria considerado, na visão de muitos, como um exagero, afinal “foi um acidente, não houve
intenção”). Sabendo que a seletividade penal, além da questão da raça, tem um ponto de
preferência, podemos inferir que abolir as penas e resolver os conflitos fora das instituições, e
da compreensão no lugar da punição, é uma realidade, não utopia.
Assim como há uma sede de punir em nossa sociedade, também encontramos uma
flexibilidade e compreensão das instituições com determinados crimes, como helicópteros
com quilos de cocaína pousando em fazendas de políticos, crimes do colarinho branco que são
ignorados, tráfico de drogas de jovens brancos de classe média e outras ações que passam
direto pelo sistema penal; além da baixíssima taxa de resolutividade de crimes como os de
homicídio, que têm uma taxa de resolutividade de 30%.
(...) Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão
marginal, estatisticamente tão desprezível? Todos os princípios ou valores sobre os
quais tal sistema se apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça,
etc...) são radicalmente deturpados, na medida em que só se aplica àquele número
ínfimo de situações que são os casos registrados.245

Dessa forma, o sistema penal funciona a partir da criação de um culpado. Essa


dinâmica não é nova ou exclusiva das tecnologias modernas de punir; a forma como as
audiências são realizadas remontam os sistemas inquisitórias europeus. Existe, na busca pelo
culpado, a característica cristã do pecado e absolvição.
Ao longo dos anos, as profissões foram sendo criadas e se desenvolveram para esse
fim, afinal, o que é o relatório de um assistente social ou psicólogo que levanta todos os
aspectos da vida do sujeito para levá-lo ao juiz? Sob o argumento da ética e neutralidade da
justiça, ingenuamente participamos do ritual de tortura do judiciário, que Foucault chama de
“suplício da verdade”246.
244
Ibid., p. 65
245
Ibid., p. 66
246
O suplício, de acordo com Foucault, é uma técnica que quantifica a raiva, ou desejo de vingança, em leis e
procedimentos dentro de um ritual que destina marcar o corpo da vítima (do suplício), ou torná-la infame, de
106

(...) Em primeiro lugar, o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a


qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é
cruel, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a um
procedimento bem-definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados,
comprimentos das cordas, peso dos chumbos, números de cunhas, intervenções do
magistrado que interroga, tudo segundo os diferentes hábitos, cuidadosamente
codificados. A tortura é um jogo judiciário estrito. (...) o “paciente” — é o termo
pelo qual é designado o supliciado — é submetido a uma série de provas, de
severidade graduada e que ele ganha “aguentando” ou perde confessando.247

Essa dominação do sujeito em busca de culpa remonta a própria cosmologia


escolástica teológica do judiciário, pautado na visão de mundo cristão. No Brasil, os
crucifixos nem ao menos foram retirados das salas do judiciário, ou seja, nossa visão de
justiça ao dano é pautada em dicotomias: bom–ruim; inocente–culpado; vítima–ofensor…
Essas dicotomias criam estigmas, exclusões e alteram toda a vida do sujeito submetido à esse
jogo de poder.
Dessa forma, até pela maneira que é constituído o rito do processo, onde as “partes”
não têm voz, as representações de defesa e a narrativa sobre os fatos, vida etc. são feitas pelo
“filtro” do advogado, policial, promotor, assistente social, psicólogo e outros. Receber e
emitir essas informações podem, muitas vezes, passar por construções estereotipadas, que não
dizem respeito à realidade e exercem a função de, apenas, condenar ou absolver.

Neste abolicionismo penal libertário, proposto por Hulsman, não há coerência entre a
humanização das prisões e o que é, de fato, possível para construir uma sociedade sem penas.
O que ocorre nessas iniciativas é um ciclo vicioso, pois a situação não melhora na prisão —
afinal é impossível humanizar um projeto que se pauta em tortura e já inicia falido — e nem
para os sujeitos apenados.
Outro ponto importante é a questão da linguagem: abolir estruturas de linguagem,
como o discurso sobre danos e erros. O termo crime, assim como criminalidade e justiça
criminal retiram o contexto de interações sociais e pressupõem um culpado e uma vítima, e o
pertencimento do primeiro ao mundo dos “maus”.248

maneira pública ou que pode ser constatada pela sociedade. O suplício original era a tortura em praça pública
(exemplo do Damiens, citado por Goldwin e Foucault); e é essa tecnologia que foi reformada até chegar às
prisões.
247
Op. Cit. FOUCAULT, 2014. p. 42-43
248
Op. Cit. HULSMAN, 1993, p. 95-96
107

Seria preciso se habituar a uma linguagem nova, capaz de exprimir uma visão não
estigmatizante sobre as pessoas e situações vividas. Falar de "atos lamentáveis",
"comportamentos indesejados", "pessoas envolvidas", "situações problemáticas", já
seria um primeiro passo no sentido de se formar uma nova mentalidade, derrubando
as barreiras que isolam o acontecimento e limitam as possibilidades de resposta, que
impedem, por exemplo, que se compare, do ponto de vista emocional ou do
traumatismo experimentado, um "furto com arrombamento" a dificuldades no
trabalho ou nas relações afetivas. Livre da compartimentalização institucional, uma
linguagem aberta facilitaria o surgimento de novas formas de enfrentar tais
situações.249

Alterar a linguagem tem um efeito sob o estigma. No entanto, é necessário que as


ações tenham efeito na estrutura. A descriminalização de comportamentos, a exemplo do
aborto, traz benefícios à preservação da vida da mulher e respeita seu direito à escolha. A
descriminalização das drogas, também iria preservar a vida de milhões de pessoas e permitiria
tratamentos adequados aos usuários que não gostariam de manter a frequência de uso.
Para o autor, a mudança na linguagem requer também uma mudança na maneira de
agir na situação-problema a partir de suas experiências e relações naquele momento, sendo
um caminho para nos tornarmos uma sociedade mais tolerante, que lida com as diferenças e
dificuldades de maneira mais autêntica e, de certa forma empática. Encarar a realidade é
assumir que a sociedade não é, na realidade, regida pela normalidade, e sim pelas diferenças.
Mathiessen e Davis são os teóricos marxistas do abolicionismo penal, ambos dirigem
suas críticas ao Estado democrático e suas falhas quando tratamos de prisões. No entanto, o
território e as relações sociais de cada autor é bastante diferente.
Mathiessen, em “Politics of Abolition”250, trata do modelo de abolição adotado pelos
países nórdicos com a criação da KRUM (Riksförbundet för kriminalsvardens
humanisering)251, uma organização com representação direta de profissionais da área penal e
ex-detentos com a finalidade de reformar e alterar todo o sistema penal entre os anos 1968 e
1974. A associação tinha dois objetivos: a longo prazo, mudar a ideia de punição e substituir o
sistema com medidas mais atuais e adequadas e, a curto prazo, derrubar o que não fosse
necessário visando a humanização da prisão e diminuir o sofrimento decorrente do modelo.252
Vale ressaltar que a KRUM tinha um projeto inicial diferente do que foi aplicado. A
compreensão do autor é que a associação, para todos envolvidos, tratava-se de uma
experiência de aprendizado e que, devido a alguns imprevistos, fatores importantes tiveram
que ser abandonados.

249
Ibid., p.96
250
Política da abolição (tradução nossa).
251
Associação Nacional Sueca para Humanização do Sistema Criminal.
252
MATHIESEN, Thomas. The politics of abolition: essays in political action theory. Oslo: Universitetsforlaget,
1974.
108

A partir dessa experiência, alguns conceitos centrais para compreender a teoria do


autor se formaram, como “unfinished”253: o “inacabado” é um “rascunho”, ou uma tentativa
de alterar o que está dado através de uma intervenção que é parcial, ou incompleta.
Qualquer tentativa de mudar a ordem existente em algo completamente acabado,
uma entidade completamente montada, é destinada a falhar (...) Uma alternativa é
uma “alternativa” que não está baseada na premissa do sistema antigo, mas em suas
próprias premissas.254

Ou seja, para que a nova proposta seja viável, ela tem que contrapor algumas
premissas do sistema antigo, enquanto compete com ele para substituí-lo. No entanto, para
que seja minimamente aceita, a alternativa tem que guardar alguma semelhança com esse
sistema. Qualquer proposta muito “acabada” poderia ser reprovada de início, por ser
irreconhecível e, portanto, pouco crível.
O conceito de competição requer, como ponto de partida, um ponto fixo subjetivo de
satisfação do sistema-membro que é confrontado com a oposição. A tarefa política é
expor a esse membro a insuficiência da satisfação com o sistema como está. Quando
há essa exposição, a oposição compete.255

A teoria e proposta de Mathiesen foi revisitada e criticada por outros autores (como
Justin Pinché, no Canadá), por caracterizar-se enquanto reformista e, portanto, servir à
reformas “progressistas” da prisão, ou até mesmo às reformas das alas mais conservadoras do
modelo, como as prisões privadas. Porém, o autor se considera abolicionista — e outros
abolicionistas também o consideram — pois, a partir da negação do que está posto se tem a
possibilidade de construção de outro sistema.
Nils Christie, também referência na discussão do abolicionismo em países nórdicos,
compartilha da ideia de que é necessário criar alternativas à pena de prisão para, assim, abolir
a prisão. Nota-se que a proposta do autor é de uma reformulação do sistema penal desde sua
base, focando na assistência material e psicológica da vítima e no estigma que carrega aquele
assujeitado à pena que, mesmo após o cumprimento, não consegue retomar suas atividades.256
O fator decisivo é o crime ou delito (o pecado), não os desejos da vítima, nem as
características individuais do culpado, nem as circunstâncias particulares da
sociedade local. Ao excluir todos esses fatores, a mensagem oculta do
neoclassicismo se converte em uma negação da legitimidade de toda uma série de
opções e possibilidades que devem ser levadas em consideração.257

Além disso, Christie aponta que a criminalização de determinadas condutas não


impede que o sujeito cometa um crime, e que o foco na solução do problema é uma visão
etnocêntrica, que segue a ideia de “normalidade”. Por isso, sua proposta não é abolir as penas,
253
Inacabado (tradução nossa)
254
Ibid. p.13-14 (tradução nossa)
255
Ibid., p.14-15 (tradução nossa)
256
CHRISTIE, Nils. Limites da dor. 1981.
257
Ibid., p. 60
109

e sim a prisão, ou, nas palavras do autor, "olhar para as alternativas à punição, não punição
alternativas”.258
As contribuições dos autores de países nórdicos para o abolicionismo penal são, sem
dúvida, muito importantes. No entanto, ao longo desse debate houve, por muito tempo, o
apagamento de importantes autores e de um movimento fundamental para as motivações
brasileiras (e estadunidenses) para abolir as prisões: o movimento dos Panteras Negras.259
Fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale, jovens negros da California, o
movimento Panteras Negras pautava o fim da violência policial contra os jovens negros,
principalmente após os movimentos pelos Direitos Civis. Com influências de Marx e Fanon,
suas reivindicações eram:

1.Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de nossa


comunidade negra.
2. Queremos emprego pleno para nosso povo.
3. Queremos o fim da roubalheira dos capitalistas brancos contra a comunidade
negra.
4. Queremos casas decentes para abrigar seres humanos. Queremos educação
decente para nosso povo. Uma educação que exponha a verdadeira natureza da
decadência da sociedade americana. Queremos que seja ensinada a nossa verdadeira
história e nosso papel na sociedade atual.
5. Queremos educação decente para nosso povo. Uma educação que exponha a
verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos que seja
ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual.
6. Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar.
7. Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos de pessoas
negras.
8. Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias
federais, estaduais, distritais e municipais.
9. Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam julgadas por
seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras, tal como definido pela
Constituição dos Estados Unidos.
10. Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz.260

O grupo patrulhava os bairros pobres de Oakland para evitar a violência policial. De


acordo com entrevista com George Jackson, em 1967, as ações do grupo, que cresciam

258
Ibid., p. 126
259
Existe, inclusive, uma polêmica de que Michel Foucault conheceu o movimento nos anos 70 em visita aos
Estados Unidos, o que chegou a render uma foto com jovens militantes do movimento. Segundo militantes do
movimento, o autor aprendeu muito com eles, mas nunca deu os devidos créditos à Davis e Jackson, que
discutiam o abolicionismo na época.
260
Disponível em: https://www.ucpress.edu/blog/25139/the-black-panther-partys-ten-point-program/. Acesso em:
28 ago. 2021
110

rapidamente nos Estados Unidos, haviam resultado em mudanças importantes para os negros
do sistema prisional no país.261
Outra ação importante através do Jornal do partido era a de abaixo-assinados para a
soltura de militantes presos por motivos pífios. Além de denúncias e exposições de decisões
arbitrárias dentro das prisões, como a divulgação de documento proibindo que um militante
visitasse a prisão por “comportamentos disruptivos” e por ter “inflamado os outros
aprisionados durante uma visita, contra os oficiais, os chamando de assassinos”.262 No caso,
uma semana antes da divulgação do jornal ao qual nos referimos, George Jackson havia sido
assassinado por um guarda da prisão com um tiro. 263

Hoje em dia o coletivo estadunidense Critical Resistance (Resistência Crítica) mantém


um jornal semelhante, o The Abolitionist (O abolicionista) com distribuição aos sujeitos
encarcerados por meio de doações. As críticas à prisão e ao modelo de encarceramento nos
Estados Unidos se mantém, assim como as informações sobre o que os movimentos
abolicionistas vêm tomando.
As ações do RC confrontam a ideia de Mathiesen, e do KRUM, de que os sujeitos
apenados não deveriam fazer parte do movimento contra as prisões, pelo risco de confrontos
— entre quem está preso e quem não está, apesar de cometerem os mesmos crimes — e
quebra da visão simbólica da prisão.
É irônico que a prisão tenha sido um produto de esforços coordenados dos
reformadores no sentido de criar um melhor sistema de punição. Se as palavras
“reforma prisional” saem com tanta facilidade dos nossos lábios, é porque “prisão” e
“reforma” estão indissociavelmente ligadas desde o início do emprego do
encarceramento como o principal meio de punir aqueles que violam as normas
sociais.264

Davis traz a discussão sobre abolicionismo penal, orientada pela teoria marxista e com
importantes críticas ao recorte de gênero no sistema penal desde o século XVII, quando
mulheres eram punidas no âmbito doméstico. As torturas em praça pública também eram
torturas dentro das casas, como o amordaçamento, e por vezes essas mulheres eram obrigadas
a desfilarem pelas ruas da Inglaterra.

261
The black panther, august 28th 1971, Disponível em:
http://www.freedomarchives.org/Documents/Finder/DOC513_scans/George_Jackson/513.BPP_paper_GJ.8.28.7
1.pdf. Acesso em: 28 ago. 2021
262
Ibid., p.71
263
A história de George Jackson foi documentada através de suas cartas no livro “Soledad Brother”. Disponível
em: https://libcom.org/files/soledad-brother-the-prison-letters-of-george-jackson.pdf. Acesso em: 28 ago. 2021
264
DAVIS, Angela Y. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel. 2020, p. 43
111

(...) os condenados punidos com o aprisionamento em sistemas penitenciários


emergentes eram sobretudo homens. Isso refletia a estrutura profundamente
influenciada por gênero dos direitos econômicos, políticos e legais. Como o status
público de indivíduo de direitos era amplamente negado às mulheres, elas não
podiam ser punidas com a privação desses direitos por meio do encarceramento.265

A autora relaciona a violência doméstica com a permanência dessas punições do


século XVIII, quando as mulheres casadas sofriam a “morte civil”, sendo o marido
responsável por elas, e os homens brancos eram priorizados para trabalhar e exercer uma vida
pública. Nessa lógica, não faria sentido punir as mulheres em praça pública.
Dentre as discussões das reformas, a autora aponta o caráter proposital da baixa taxa
de educação e trabalho nas prisões contemporâneas. O isolamento é adoecedor e preventivo,
nesse cenário, pois presos podem se comunicar nesse sistema, se organizando e criando
possibilidades de reivindicações de direitos, como no caso de Malcom X, que estudou na
prisão e posteriormente publicou sua autobiografia. Tal obra é fundamental para a
compreensão dos crimes cometidos nos Estados Unidos contra a população afro-americana.
Após a morte de George Floyd, há um aumento considerável na discussão histórica
dos Panteras Negras, a violência policial e sua letalidade retornam ao debate público por
alguns meses, comovendo o mundo todo. Foram inúmeras pessoas na rua lutando contra o
Estado fascista de Donald Trump e muitos militantes virtuais (e quarentenados) pelo mundo
postando uma imagem preta em respeito às vidas negras, no movimento “Black Lives Matter”
(Vidas Negras Importam).
A partir deste movimento, popularizou-se a frente 8 to abolition (8 para abolição), com
oito propostas urgentes para o fim do aprisionamento e das penas a médio e longo prazo:
1. Cortar a verba da polícia
2. Desmilitarização das comunidades
3. Remover a polícia das escolas
4. Libertar as pessoas das prisões e cadeias
5. Revogar leis que criminalizem a sobrevivência.
6. Investir na auto-governança das comunidades
7. Providenciar habitações seguras para todes
8. Investir em cuidados, não polícia.266

No Brasil, desde 2016, há um movimento semelhante, de nível nacional. A agenda


pelo desencarceramento reúne centenas de militantes e organizações investidas em
transformar — e abolir — o sistema prisional como ele está. Para isso, o movimento propõe:

265
Ibid., p. 48
266
(tradução nossa). Disponível em: https://www.8toabolition.com/why Acesso em: 28 ago. 2021.
112

1. Suspensão de qualquer verba voltada para a construção de novas unidades


prisionais ou de internação
2. Exigência de redução massiva da população prisional e das violências produzidas
pela prisão
3. Alterações legislativas para a máxima limitação da aplicação de prisões
preventivas
4. Contra a criminalização do uso e do comércio de drogas
5. Redução máxima do sistema penal e retomada da autonomia comunitária para a
resolução não-violenta de conflitos
6. Ampliação das Garantias da LEP
7. Ainda no âmbito da LEP: abertura do cárcere e criação de mecanismos de
controle popular
8. Proibição da privatização do sistema prisional
9. Prevenção e Combate à Tortura
10. Desmilitarização das polícias e da sociedade

Recentemente, a discussão dos minimalismos penais e das alternativas penais têm


crescido consideravelmente no Brasil. Em 13 de maio de 2021, por exemplo, o estado de São
Paulo instituiu a Política Estadual de Alternativas Penais, com o decreto no. 65.691.
Artigo 3º – São objetivos da Política Estadual de Alternativas Penais:
I – incentivar a participação da comunidade e da vítima na resolução de conflitos;
II – promover dignidade, autonomia e liberdade das partes envolvidas nos conflitos;
III – buscar a responsabilização da pessoa submetida à alternativa penal e a
manutenção de seu vínculo com a comunidade, garantindo seus direitos individuais
e sociais;
IV – fomentar mecanismos horizontalizados e autocompositivos, a partir de soluções
participativas e ajustadas às realidades das partes envolvidas;
V – buscar a restauração das relações sociais e a promoção da cultura de paz;
VI – desenvolver ações de sensibilização da sociedade e do sistema de justiça
criminal quanto à necessidade de aplicação das alternativas penais e o custo social
do aprisionamento em massa;
VII – ampliar e qualificar a rede de serviços de acompanhamento das alternativas
penais, com promoção do enfoque restaurativo das medidas;
VIII – fomentar o controle e a participação social nos processos de formulação,
implementação, monitoramento e avaliação da política de alternativas penais;
IX – qualificar a gestão da informação.

Além da luta dos movimentos sociais e empenho da Defensoria Pública no direito à


saúde da população encarcerada, uma questão que motivou fortemente essa decisão e a
acelerou foi a pandemia de COVID-19. No último ano, as medidas alternativas à prisão têm
sido recomendadas como as que devem prevalecer nos julgamentos e o CNJ aponta para um
desencarceramento significativo durante o período.
Os avanços são importantes para acabar com os horrores que ocorrem nos muros das
prisões, no entanto, o problema é muito mais extenso que nosso otimismo. Isso porque, a
exemplo do que ocorre desde o desencarceramento baseado na lei da primeira infância, não há
uma política que acompanhe esses casos de maneira pacífica.
Em conversas informais com assistentes sociais que trabalham na política de
assistência social foi relatado, com alguma frequência, casos onde mulheres reincidiam ou
regrediam de regime por não ter como se sustentar — afinal, a maioria é presa por tráfico,
113

muitas vezes dentro de casa, e retornam ao domicílio sem maneiras de subsistência — e, por
vezes, não podiam acompanhar os filhos na escola ou consulta médica por causa da distância
que era permitido circular sem acionar a tornozeleira eletrônica.
Além disso, tem se tornado comum a promoção da Justiça Restaurativa em casos da
assistência social, como na cidade de Santos, associando a prática ao abolicionismo penal. Foi
a partir dessa informação que passamos a dividir Abolicionismo Penal de Abolicionismo
Prisional.
A Justiça Restaurativa é um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos,
técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais,
institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os
conflitos que geram dano, concreto ou abstrato são solucionados de modo
estruturado.267

A Justiça Restaurativa não altera a lógica do sistema penal por ainda partir da lógica
“ofensor” e “vítima”; propõe a discussão acerca do “dano” com todos os envolvidos —
incluindo família — e representantes que foram direta ou indiretamente atingidos, além dos
mediadores que são capacitados para lidar com a dinâmica. O foco é a satisfação para ambas
as partes, e responsabilização por quem cometeu o ato.
§ 2° A aplicação de procedimento restaurativo pode ocorrer de forma alternativa ou
concorrente com o processo convencional, devendo suas implicações ser
consideradas, caso a caso, à luz do correspondente sistema processual e objetivando
sempre as melhores soluções para as partes envolvidas e a comunidade.268

Da maneira como está disposta, a Justiça Restaurativa pode ser interpretada como uma
“sobrepena” que, em um país onde as verbas de saúde e atenção à saúde mental são cortadas
de maneira significativa, pode resultar em maior sofrimento para ambos os lados. Basta
imaginar um sujeito que passa dois anos em regime fechado, sob as condições mais
degradantes possíveis, paga a sua “dívida com a sociedade” e tem que buscar o perdão e
satisfação da outra parte.
Art. 7º. Para fins de atendimento restaurativo judicial das situações de que trata o
caput do art. 1º desta Resolução, poderão ser encaminhados procedimentos e
processos judiciais, em qualquer fase de sua tramitação, pelo juiz, de ofício ou a
requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, das partes, dos seus
Advogados e dos Setores Técnicos de Psicologia e Serviço Social.269

O debate no Serviço Social sobre a Justiça Restaurativa é pertinente, mas ainda inicial.
No entanto, a profissão tem compactuado atualmente que o sistema punitivo no Brasil propõe

267
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/. Acesso em 23 ago. 2021.
268
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=2288. Acesso em: 28 ago.
2021
269
Ibid.
114

algo que não cumpre: a ressocialização270, o que aproxima o Serviço Social da prática, por
compactuar de seus princípios — a priori.
No entanto, há uma divergência importante que tange a discussão da mediação de
conflitos: toda a característica de Justiça Restaurativa trazida pelo CNJ aponta para uma
prática à qual o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) se posicionou contra em
2016271, por considerar, na época, que não havia um debate aprofundado da questão, e de seus
recursos metodológicos.

A discussão da Justiça Restaurativa enquanto atribuição para a profissão deve partir de


um debate profundo acerca do modelo cristão que ela segue, quais direitos humanos
defende272, quem irá acessá-la e quais os limites e possibilidades de uma práxis ético-política
nesta intervenção. Ademais, é necessário que a profissão tenha maiores subsídios
teóricos-metodológicos para um agir estratégico na questão, guardando a coerência com
resoluções anteriores de seus próprios conselhos, federais e estaduais.
Afinal, qual o melhor caminho para a abolição das penas? Para nós, o melhor caminho
é o que se constrói em conjunto e agora, nas heterotopias. Sem dúvidas há bons exemplos no
movimento negro norte-americano e brasileiro, que se baseiam em mutualidade e uma análise
crítica das situações-problemas e suas finalidades. Davis e Hulsman são, nessa compreensão,
autores tão fundamentais quanto Foucault.
Porém, não descartamos os caminhos propostos pelos autores minimalistas. Há, na
verdade, um receio que buscamos demonstrar desde o primeiro capítulo deste trabalho: A
punição e seletividade penal que existe hoje, é resultado de reformas que buscavam minimizar
o sofrimento. Ademais, as estratégias minimalistas podem fortalecer discursos e propagandas
de prisões “humanizadas” (geralmente privadas) e outros eufemismos, como no caso da
Justiça Restaurativa.
É importante recordar também, conforme trouxemos no capítulo anterior, que toda a
nossa construção de linguagem e compreensão do que pode ser um conflito grave, incluindo
quais sujeitos não devem escapar à pena, corresponde aos padrões europeus. Talvez seria
interessante buscarmos quais eram as soluções e conflitos dos povos indígenas e africanos,
devolvendo a solução dos nossos conflitos aos primeiros (e mais importantes, em termos
culturais) habitantes dessa terra.

270
Op. Cit. TORRES.
271
Disponível em: http://cress-sp.org.br/wp-content/uploads/2016/03/cress_nota_mediacao_online.pdf
272
A justiça restaurativa é promovida pela ONU a partir da resolução 2002/12.
115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na finalização deste trabalho, consideramos a discussão possível para uma dissertação


de mestrado, com o tempo que tivemos, insuficiente para alcançar os objetivos traçados no
projeto desta pesquisa. No entanto, embora a temática do Serviço Social tenha sido suprimida
ao final do trabalho, dada as condições objetivas limitantes, consideramos que há importantes
debates a serem desenvolvidos em trabalhos subsequentes. O tema é extenso e delicado,
atravessados por dinâmicas complexas e limitações que dizem respeito à segurança dos
próprios envolvidos, devido ao período que passamos no país, com crescente repressão e
censura; ainda assim, buscamos levantar os elementos mais importantes para a reflexão, por
vezes de maneira muito sutil.
Em nossa percepção, os elementos trazidos no capítulo um, investigando a teoria
Foucaultiana, em principal o poder disciplinar, foi importante para compreendermos que as
questões que envolvem pena e punição não são exclusivas de um fazer profissional apenas
sócio-jurídico. A compreensão das tecnologias de poder enquanto elementos que se atualizam
e configuram novas dinâmicas a partir das mudanças na sociedade, nos permitiu seguir neste
trabalho com o olhar investigativo voltado para as possíveis atualizações e perpetuações de
dinâmicas seculares.
Nos capítulos dois e três, buscando manter o diálogo com o Serviço Social e demais
profissões que atuam diretamente nas Políticas Sociais, trouxemos elementos que possibilitam
a relação dos conceitos e fatos com a realidade cotidiana a partir de seu território, como no
caso das políticas de Assistência Social; saúde e educação.
A bibliografia apresentada, embora extensa, deu o suporte necessário para
alcançarmos o objetivo geral. A metodologia de fichamentos e análise de bases de dados com
grande volume de informações auxiliou a nossa visão do problema que cercamos, assim como
nos permitiu trazer elementos que nos permitissem a visualização da questão de maneira
ampla ao leitor; voltando nossa lupa genealógica e relacionando os fatos com a teoria
apresentada.
No que diz respeito às políticas sociais, acreditamos que trouxemos elementos
suficientes para a reflexão e debate de como lidamos com as questões de violência e
penalização, bem como os impactos de algumas mudanças recentes em legislações e práticas
resultaram em uma manutenção de dinâmicas que existem e resistem ao longo dos séculos.
Um importante resultado de nossa pesquisa até agora, é a associação - de difícil
negação - do racismo como estruturante das violências e disciplinas, e da presença de uma
116

necropolítica no lugar do Estado de direitos. Compreendemos que a travessia para uma


sociedade que garanta a dignidade humana, e algum nível de liberdade - física e subjetiva - se
dá na construção de uma sociedade diferente, que quebra as estruturas em sua raíz - a longo,
ou médio prazo. As heterotopias se apresentam como uma solução no agora, que pode,
inclusive, nos unir e manter algum nível de saúde mental em tempos de fascimo e
negacionismo.
A respeito das diferenças entre Foucault e Marx, apresentadas no início deste trabalho,
foi possível observar diversas limitações na teoria foucaultiana. Limitações teóricas são
esperadas e nos fazem seguir pesquisando e buscando possibilidades e leituras do mundo. No
entanto, a diferença que um olhar para a totalidade - sob a compreensão marxista - nos fez
abrir um pouco mais o leque e trazer elementos de outras teorias. O que nos fez perguntar em
um determinado momento: Será que a pluralidade, justificada e embasada, com respeito às
limitações presentes nas teorias, é algo tão negativo? Em tempos que, até mesmo
academicamente, as opiniões se misturam com fatos, se faz necessário detalhar tanto quanto o
possível os elementos de uma questão. No final, esse foi nosso maior foco.
Alguns nós que ficam em nossa mente: ao adotarmos a teoria Foucaultiana,
poderíamos considerar o corpo negro o primeiro alvo da disciplina no Brasil? Ou seria o
indígena, que enfrenta outras dinâmicas ao resistir? As diversas coincidências nos 13 de maio
do nosso país (de atar fogo nos documentos da escravidão, com presença de exército e música
festiva; à inauguração da maior prisão da América Latina) são coincidências, ou reiteradas
formas de demonstração de superioridade racial construída no imaginário das elites? A
presença de poderes de resistência e extermínio paraestatais, que sempre estiveram aí, mas
parece se fortalecer nos últimos tempos, nos indica apenas uma falência do Estado Penal? Ou
trata-se de algo mais? Ou seria, a reiterada forma de operar de nossos militares que, desde a
República Velha se encontraram ao lado da monarquia, sempre dando margem ao centro? E o
Serviço Social?!
De fato, por ser um tema discutido quase que nos sussurros pela profissão, que dá
conta de inúmeras discussões nesses tempos de barbárie, a profissão apareceu em comentários
e ligações muito pontuais neste trabalho. Compreendemos como norte aqui, a inexistência de
trabalhos que tratam exclusivamente do Abolicionismo Penal, desta forma, por vezes, parecia
difícil ligar os elementos expostos à atualidade da profissão.
Outro ponto que dificultou a presença do debate com o Serviço Social foi a dificuldade
que tivemos em obter um parecer favorável do comitê de ética da Plataforma Brasil para a
execução de nossas entrevistas, que seriam fundamentais para trazermos a visão de
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profissionais que lidam com a realidade das violências dirigidas à Classe Trabalhadora no
cotidiano. Para nós, a experiência é o berço da teoria, e não seria de bom tom distribuir
conclusões baseadas em opiniões de uma ou duas pessoas.
Porém, encontramos nos elementos para a disciplina um farto território de articulação
com práticas profissionais que vêm sendo desenvolvidas e precarizadas em tempos de
neoliberalismo. É difícil falarmos sobre o exame e não pensarmos sobre como vem sendo
conduzidas as perícias judiciais, onde temos profissionais autônomos, sem nenhuma estrutura,
criando discursos acerca de famílias para decidir o futuro delas. Esse é só o começo da
uberização da profissão, que pode voltar a se ver a serviço da caridade através da terceirização
das políticas sociais, e o crescimento da desigualdade.
A atuação do assistente social é bastante peculiar, quando pensamos nas relações de
poder, pois pode tender a algo punitivo e disciplinar (sob os prismas mais conservadores da
profissão), ou elementar para a construção de um poder popular. O caráter contraditório da
profissão também diz respeito às limitações presentes em nossa atuação; por vezes é melhor
fazer o possível e manter a forma de subsistência, do que resistir só e perder seu emprego.
Outro ponto que nos reforça a necessidade de lutar pelos serviços públicos e autonomia da
profissão (ainda que seja relativa).
De toda forma, as relações de poder que construímos com os usuários se alteraram ao
longo do tempo, e nisso o curso deste trabalho segue próximo do Serviço Social. Em todos os
momentos de resistência e construção de algo novo, de reflexão e ação, estivemos presentes
em nossas heterotopias; palavra que parece definir não apenas um tipo de abolicionista penal,
mas também a nossa profissão, compromissada com a mudança social.
Esse trabalho nasceu, inclusive, em meio a importantes mudanças e retomadas de
discussões na profissão. Nos anos 50, quando o Movimento Negro Unificado seguia com
conquistas importantes, o Serviço Social discutia a questão racial atrelada aos elementos de
desigualdade entre as classes, em 2016 começou (pelo menos no sudeste do país), um forte
movimento de discussão do elemento racial na composição da classe trabalhadora.
Há uma relevância, portanto, em citar trabalhos como o que relaciona Serviço Social e
seu “nascimento” em tempos de eugenia sob a análise foucaultiana, e em nosso resgate
histórico dos diferentes tratamentos de raças no país. É nítido que o tema requer
aprofundamentos e adensamentos teóricos ainda maiores, mas para a reflexão crítica de nossa
visão de mundo (que sempre está mudando), os elementos de cada momento do racismo no
Brasil nos da expectativa de subsidiar discussões que extrapolam o teor de nossa discussão
neste trabalho.
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O terceiro ponto, no que diz respeito à discussão com a profissão, invoca reflexões
acerca do caráter policialesco e de nossas possibilidades de atuações “contra as correntes”. A
esperança aqui é do último ponto ter inspirado aos leitores microações, possíveis de serem
construídas coletivamente, com a participação dos usuários de serviços, para enfrentar as
assoladoras estatísticas e dados da primeira parte. De toda forma, acreditamos que esse
trabalho seja relevante para a profissão por se comprometer com nossa melhor parte: os
esforços para a mudança social.
Por fim, acreditamos que há muito a ser investigado em próximos trabalhos sobre os
enclausuramentos e dinâmicas da sociedade de controle. Sabemos que a existência de
mecanismos paraestatais são assustadoras para os profissionais que estão na linha de frente,
não de uma pandemia de saúde como a covid, mas de banalização de um poder de punir. Se
por um lado a medicalização e o estupor por substâncias lícitas e ilíticas parece crescer, por
outro lado, acordamos todos os dias, há alguns anos, com duas dúvidas: Por que ninguém se
move para derrubar um presidente genocida? E quem mandou o morador do condomínio de
uma notória figura de poder matar Marielle Franco?
Será que essas questões dizem respeito ao Estado? Ou será que elas dizem respeito às
organizações que pagam o gás do morador da periferia, e dão o toque de recolher das cidades?
Quem está controlando as prisões e por que a violência que, até meados dos anos 2000, era
presente nas prisões de São Paulo estão cada vez pior na região norte e nordeste do país? Será
que há um caminho entre as fronteiras, aéreo, terrestre ou aquático, que financia a violência
neste país do tráfico (varejo de crime hediondo?)?
Além disso, talvez devêssemos começar a pensar sobre o que significaria o fim das
prisões em uma sociedade de celulares com GPS, tornozeleiras eletrônicas, chips
localizadores, periferias sitiadas, reconhecimentos faciais e um poder paralelo de execução.
Pode parecer distópico pensarmos nisso, mas cada dia mais nos parece urgente. Como ficarão
os CRAS, CREAS, UBS, USF, CAPS e afins após o grande desencarceramento? Qual será o
papel que o Serviço Social será designado a atuar? Quais são nossas possibilidades agora para
evitar que haja um regresso em nosso projeto de profissão?
Sabemos que levantamos mais questões do que respostas neste último momento, mas
acreditamos que construções importantes são assim: partem de perguntas e chegam em novas
perguntas. De toda forma, é com muito respeito por profissionais que são comprometidos com
a Classe Trabalhadora que levantamos esses questionamentos, mas acabamos com uma única
certeza: O abolicionismo penal é uma realidade e um movimento no qual o Serviço Social
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está, ainda que sem saber, inserido a todo momento que age em seu princípio de defesa
intransigente dos direitos humanos, assim como outras profissões.
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APÊNDICE A — Projeto Arquitetônico da Casa de Detenção de São Paulo

Fonte: https://www.saopauloinfoco.com.br/historia-carandiru/
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APÊNDICE B — Lista de QR CODES

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