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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ANDREA BÁRBARA LOPES DE AZEVEDO

DOMINAÇÃO E NÃO-DOMINAÇÃO NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO


DE MAX HORKHEIMER E THEODOR W. ADORNO

Orientador: Prof. Dr. Rúrion Soares Melo

Guarulhos
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ANDREA BÁRBARA LOPES DE AZEVEDO

DOMINAÇÃO E NÃO-DOMINAÇÃO NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO


DE MAX HORKHEIMER E THEODOR W. ADORNO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da Universidade

Federal de São Paulo como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Rúrion Soares Melo

Guarulhos
2015
Azevedo, Andrea Bárbara Lopes de.

Dominação e não-dominação na Dialética do


esclarecimento de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno / Andrea
Bárbara Lopes de Azevedo. – Guarulhos, 2015.
150 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São


Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de
Pós Graduação em Ciências Sociais, 2015.

Orientador: Rúrion Soares Melo.

Título em inglês: Domination and non-domination in Max


Horkheimer's and Theodor W. Adorno's Dialectic of Enlightenment.

1. Dominação. 2. Dialética do Esclarecimento. 3. Teoria


crítica da sociedade . 4. Marxismo. I. Título
ANDREA BÁRBARA LOPES DE AZEVEDO

DOMINAÇÃO E NÃO-DOMINAÇÃO NA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO


DE MAX HORKHEIMER E THEODOR W. ADORNO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências Sociais da Universidade

Federal de São Paulo como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Rúrion Soares Melo

Aprovado em ____________________________ de 2015.

Prof. Dr. Luiz Repa


Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Gabriel Cohn


Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. Sílvio César Camargo


Universidade Estadual de Campinas
À Gabi,
pela compreensão de todas as minhas utopias mais delirantes
AGRADECIMENTOS

Esta dissertação, acalentada pela ânsia de uma sociedade emancipada, não teria sido
elaborada sem o contato afável e sensível de amigas, amigos e familiares que compartilharam de
diferentes formas seus desejos e sonhos de emancipação e liberdade nesta trajetória. Apresento
aqui breves palavras de agradecimentos a esses que me auxiliaram nessa formação – com todo seu
sentido de Bildung.
Agradeço, primeiramente, a Rúrion Melo, orientador que, para além de oferecer
companheirismo e sua experiência como teórico crítico, ampliou minha compreensão sobre os
distintos sentidos da emancipação e me possibilitou autonomia para a minha própria busca desses
sentidos. A Rúrion, meus agradecimentos mais sinceros.
Agradeço ainda os professores Luiz Repa e Gabriel Cohn, que aceitaram e participaram
com dedicação nas bancas de qualificação e defesa e me proveram de apoio e da crítica
necessária para conclusão do trabalho. Ao Prof. Cohn, ainda quero agradecer pela paciência e
dedicação inabalável em manter viva as teorias críticas emancipatórias na sociologia e por instigar
os espíritos dos estudantes às diversas possibilidades críticas.
Todas as questões teóricas e emancipatórias que me mobilizam esta dissertação não
seriam possíveis sem a instigante formação que recebi em minha graduação na Unicamp.
Agradeço, especialmente, aos professores Sílvio Camargo, Josué Pereira e Marcelo Ridenti que
me conduziram à infinitas dúvidas e instigaram o exércicio crítico. A eles, meu acalorado
agradecimento.
Não seria possível não agradecer à Unifesp que me acolheu e que instigou-me a novas
perspectivas teóricas e políticas para refletir o mundo. Agradeço aos professores Márcia Tosta,
Lindomar Albuquerque, Henry Burnet e Arlenice Pereira pelas dúvidas que me instigaram. À
professora Márcia Consolim, agradeço pela amizade teórico-política. Ainda, sem o apoio afável
de todos os funcionários da Unifesp, esta pesquisa não teria sido possível. Agradeço a eles e, em
especial, a Daniela Gonçalves pela solicitude permanente.
Quero agradecer ainda ao grupo de Teoria Crítica da Cultura do Departamento de
Filosofia da Unifesp, coordenado pelos professores Luciano Gatti e Francisco Pinheiro Machado,
que promoveu diversos debates que foram essenciais a esta dissertação e acalentaram meus
desejos éticos e estéticos da transformação social.
Agradeço à Capes pelo financiamento que possibilitou essa pesquisa.
Sendo a família o lugar onde apreendemos a sonhar, aos meus pais devo o sincero e
imenso agradecimento pelo apoio fundamental e pela compreensão da busca – nem sempre
coerente ou vísivel – que realizei pelos meus sonhos. Agradeço ainda à minha mãe a ao meu pai
por serem os responsáveis por me sensibilizar para as desigualdades sociais e por me ensinarem a
lutar contra as injustiças. Sem vocês, nada seria possível.
As amizades me ofereceram as mais belas promessas de felicidade de uma sociedade
liberada. Desse modo, agradeço a todos as amigas e todos os amigos que me conduziram com seu
apoio nesta trajetória e dividiram comigo as esperanças de outro amanhã. Em especial, agradeço a
Bruno Marco pelos embates teóricos e políticos, pelo companheirismo e paciência inefáveis que
me ofereceu e que deram forma a todos os meus sonhos de revolução. A André Oliveira e a Paulo
Rigolim, agradeço pela amizade teórica de conselhos imprescindíveis e inestimáveis. A Daniel
Ribeiro, pela amizade sincera e persistente. A Ricardo Regatieri, agradeço pelo exemplo
intelectual que me ofereceu e pela amizade generosa em que compartilhamos tema e
preocupações teórico-práticas. A Thamires Silva, agradeço pela doce amizade cultivada mesmo no
caos. Ainda, agradeço a Franceila Rodrigues pelos debates filosóficos nem sempre amenos.
Quero agradecer imensamente a aqueles que foram meus companheiros de lar e de
sonhos diários: Lucas Jardim e Rafael Freitas. Do alto de Santana – nossa própria torre de marfim
– podíamos ver que algo estava muito errado, como já nos havia dito alguém. Discos, livros,
grafites e pichações nos ofereciam, todavia, a promessa da felicidade não alcançada e nos davam a
força de continuar na intenção de, pelos caminhos benjaminianos, ao menos, poder organizar o
pessimismo. A Fernando Santana, Gabriela Muruá, Cauê Martins, Mariane Gennari e Luiza Sassi,
que também compartilham conosco nossos planos de organização do pessimismo em nossa torre
em Santana, meu sincero agradecimento.
Aos amigos da Unicamp que foram os debatedores essenciais e privilegiados conviver e
conhecer, também agradeço. Especialmente, agradeço a Fabiana Pereira, pela amizade de tempos
imemoriais; a Marília Moschkovich, musa inspiradora da luta tanto acadêmica quando política; a
Henrique Pasti, pela amizade teórica recém-descoberta; a Caroline Gomes Leme e a Daniela
Vieira, sociólogas dedicadas com afinco à cultura que me estimulam a ir sempre além.
Ainda, quero agradecer aqueles que tentam todos os dias concretizar as utopias mais
delirantes na luta política. Aprendi muito com vocês. Obrigada por compartilharem tanto. São
eles: Marcelo Chaves, Paulo Malerba, Sérgio Bianchini e Jô Azevedo.
E, uma vez mais, à Gabi, pelo afago além Atlântico.
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,


e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra


e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas


sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota


e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, ELEGIA 1938


RESUMO

Azevedo, A. B. L. Dominação e não-dominação na “Dialética do esclarecimento” de Max


Hornkheimer e Theodor W. Adorno, 2015. 150 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Escola
de Filosofia, Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2015.

Em diálogo com os intérpretes da obra Dialética do esclarecimento de Max Horkheimer e


Theodor W. Adorno, o presente estudo buscou debater e se contrapor às interpretações da obra
que a apresentavam como diagnóstico da dominação total sem possibilidades emancipatórias,
como uma teoria apocalíptica da história e como documento do abandono da teoria marxista
pelos autores. A partir de nossa leitura, defendemos que a Dialética não apresenta um
diagnóstico da dominação total e sim diagnostica a tendência da dominação, exercida pela
razão abstrata, de tornar o mundo uno e cíclico e promover a integração plena entre homem e
natureza, entre sujeito e objeto. Em vez de decretar o fim da história, problematizamos que os
autores não pretenderam realizar tal defesa, todavia pretenderam denunciar a intenção
objetiva do capitalismo de suprimir o potencial de realização da história pelos indivíduos,
tornar ilusória a perspectiva de outra realidade social e, ainda, de ocultar as contradições
sociais. Não encontramos uma recusa da teoria marxista pelos autores frankfurtianos, mas
uma crítica ao marxismo irmanado ao positivismo e uma apropriação não ortodoxa da
abordagem marxista sobre a dominação capitalista. Os projetos emancipatórios não estão
presentes na Dialética, todavia, isso não significava que os autores defendiam a
impossibilidade do fim da dominação. De acordo com a presente leitura, permanece na obra
pontos sutis em que podemos vislumbrar formas de não-dominação, que é apresentada pelos
autores como reconciliação entre o homem e a natureza.

Palavras-chave: Dominação. Dialética do Esclarecimento. Teoria Crítica da Sociedade.


Marxismo.
ABSTRACT

Azevedo, A. B. L. Domination and non-dominantion in Max Horkheimer's and Theodor W. Adorno's


Dialectic of Enlightenment, 2015. 150 f. Dissertation (Mestrado em Ciências Sociais) Escola de
Filosofia, Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2015.

Dialoguing with the critics of Dialectic of Enlightenment, by Max Horkheimer and Theodor
W. Adorno, this study intended to discuss and to set against their interpretations in regards to a
diagnosis of total domination with no emancipatory possibilities, as an apocalyptic theory of
History and as proof of the authors’s abandonment of Marxist theory. According to this thesis
interpretation, it is argued that the Dialectic does not entails such a diagnostic of total
domination but, instead, diagnoses the tendency for abstract reason exerted domination to turn
the world into a fixed and cyclic totality, which would promote a full integration between man
and nature, between subject and object. Rather than arguing for the end of history, this study
questioned if the authors, in fact, did not intend to carry out such a defense, however, intended
to expose the objective intention of capitalism to suppress the potential realization of history
by individuals, to make the possibility of another social reality an illusion and to hide social
contradictions. A rejection of marxist theory by Frankfurtian authors was not identified, but a
critique of conjunction between Marxism and positivism, as well as an unorthodox
appropriation of marxist approach to capitalist domination. Emancipatory projects are not
present in the Dialetic, nevertheless, this absence does not translate to a defense of the
impossibility of escape from domination by the authors. According to the hereby
interpretation, subtle reminders are noticeable, in the Dialectic of Enlightenment, where it
could be glimpsed non-domination possibilities, which are presented by the authors as the
reconciliation between man and nature.

Keywords: Domination. Dialectic of Enlightenment. Critical theory of society. Marxism.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO …........................................................................................................................12

CAPÍTULO 1 – ALGUMAS INTERPRETAÇÕES DA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO …..............20

CAPÍTULO 2 – ESCLARECIMENTO COMO FORMA DE DOMINAÇÃO CAPITALISTA …...................48

2.1 O pensamento alemão e a civilização como dominação …................................................48


2.2 Mito, esclarecimento e dominação ….................................................................................65
2.3 Dominação ou razão e capitalismo …................................................................................94

CAPÍTULO 3 – RAZÃO E NÃO-DOMINAÇÃO ….........................................................................116

3.1 Emancipação e não-dominação …....................................................................................116


3.2 Razão, não-dominação e utopia …...................................................................................129

CONSIDERAÇÕES FINAIS ….....................................................................................................136

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS …..........................................................................................144


INTRODUÇÃO

O trabalho apresentado aqui tem como objetivo compreender a concepção de


dominação elaborada na obra Dialética do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max
Horkheimer. Tal objetivo vem acompanhado de um não menos importante: entender as
nuances que a obra traz, de modo muitas vezes subjacente aos textos, sobre as perspectivas de
não-dominação que seus autores vislumbravam. Quer-se, desse modo, poder estabelecer
diálogo com os estudos sobre a teoria crítica da sociedade, em especial, os estudos dedicados
à Dialética do Esclarecimento e à denominada primeira geração da Escola de Frankfurt;
contribuir com as investigações sobre o marxismo ocidental e seus debates sobre a dominação
capitalista e busca pela emancipação social e; ainda, inserir esta pesquisa nos debates sobre a
teoria social e a sociologia contemporânea no que diz respeito à compreensão da relação entre
as forças societárias e a subjetividade individual.
A obra, considerada a contribuição mais relevante do Instituto de Pesquisas Sociais e
da primeira geração da teoria crítica, é majoritariamente interpretada por estudiosos como
uma teoria pessimista, apocalíptica e resignada da sociedade que teria anunciado a dominação
total da sociedade e a subordinação integral dos sujeitos e que, portanto, se aproximaria dos
escritos filosóficos anunciadores da decadência da história e da civilização, se afastando deste
modo da teoria marxista ao declarar a impossibilidade da emancipação e da transformação da
história. De acordo com suas interpretações, a Dialética1 concebera a dominação enquanto
domínio de uma razão subjetiva e instrumental que, fundamentada no poder objetivo do
capitalismo e na intenção permanente de dominação do sujeito sobre a natureza, aniquilava as
perspectivas emancipatórias, eliminava o indivíduo, decretava o fim da história e instituía à
sociedade uma dominação total. Sob o domínio da razão, não se encontravam mais classes –
nem dirigentes e nem dirigidas, ambas estariam subjugadas e não caberia mais a nenhuma
delas qualquer potencialidade emancipatória, nem qualquer poder de ação. Em tal sociedade
totalizada, os frankfurtianos teriam defendido que todos os sujeitos estariam integrados e os
indivíduos não mais poderiam mais atuar com liberdade ou buscá-la e, portanto, não se
ofereceriam as condições à tomada de consciência para a revolução ou transformação radical
que pudesse reverter o rumo que a civilização tomara. Os autores teriam manifestado, desse
1
Referimo-nos à Dialética do esclarecimento. Doravante, faremos menção a ela como Dialética.

1
modo, um abandono da teoria marxista ao não compreender a dominação como exploração de
classes, centrada no conflito capital-trabalho e ao negar as possibilidades de transformação
histórica e de emancipação. Teriam anunciado, segundo tais leituras, algo que a teoria
marxista tinha como cerne rechaçar: a conceitualização do capitalismo como transhistórico e
a instituição do capitalismo como possibilidade única, definitiva e última de modo de vida.
Desse modo, se a perspectiva crítica do Instituto de Pesquisa Sociais em sua origem era
fundamentada na teoria marxista2, a Dialética declararia uma mudança dessa perspectiva ao
recusar o marxismo e exprimiria uma resignação teórico-política, voltando-se ao
desenvolvimento de uma teoria e filosofia conservadora3.
As consequências políticas dessa suposta alteração da crítica realizada pelo Instituto
presentes na Dialética não são banais. Além de aproximar os pensadores críticos da nostalgia
romântica do mundo desencantado que era também insuflada pelo Estado Nazista e pelos
intelectuais que apoiaram o regime4, afirmar o abandono do marxismo no auge do regime
nazista que ascendera politicamente ao defender entre seus princípios o objetivo declarado de
“libertar a Alemanha do marxismo”5 significaria aproximar dois intelectuais judeus,
perseguidos e exilados devido à ascensão de Hitler, à ideologia que produzira a maior barbárie
da história e que perseguira e anquilara judeus, marxistas e demais párias da sociedade
europeia. Se tais afirmações sobre a obra forem assumidas, caberia aos estudos sobre o obra o
assentimento à interpretação de Julian Roberts sobre a Dialética que a afirmava enquanto “um
trabalho de crítica cultural conservadora que, no nível conceitual, não [seria] de forma alguma
incompatível com trabalhos que os nazistas estavam contentes em tolerar”6.
A tentativa deste trabalho é não aquiescer a esta afirmação. O esforço que se realiza
aqui tem o sentido de buscar compreender a especificidade da concepção de dominação na
2
Conforme fora anunciado no ensaio de Horkheimer “Teoria tradicional e teoria crítica” – texto fundador do
projeto crítico do Instituto –, o comportamento crítico que adotovam não o sentido crítico da crítica idealista da
razão pura kantiana, mas o “sentido da crítica dialética da economia política”. Horkheimer, M. “Teoria
tradicional e teoria crítica”. In: Horkheimer, M; Adorno, T. W.; Benjamin, W; Habermas, J. Os pensadores:
textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 130.
3
A utilização de “conservadora” para a teoria e filosofia da Dialética quer dizer, neste caso, uma teoria que
observa o mundo e suas forças como voltadas à conservação do existente e que não vislumbra a ação ou
possibilidade de movimento e mudança histórica e social.
4
Herf argumenta que estes intelectuais, tais como Martin Heidegger, Carl Schmitt e Hans Freyer, apontavam o
declínio cultural e apostavam no nazismo como possibilidade política de reverter o processo de degeneração em
curso na sociedade. Herf, J. Reactionary modernism: Technology, culture, and politics in Weimar and the Third
Reich. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 17.
5
No original, “Macht Deutschland vom Marxismus frei”.
6
Roberts, J. “A Dialética do esclarecimento”. In: Rush, F. (org.). Teoria crítica. Tradução de Beatriz Katinsky,
Regina Andrés Rebollo. 2a. Ed. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008, p. 85. A referência aqui é a edição
brasileira do célebre livro The Cambridge Company to Critical Theory onde o artigo de Julian Roberts se
encontra.

2
obra da Dialética em tensionamento direto com às leituras já realizadas sobre o tema por
diversos comentadores, a fim de provocar um diálogo com essas interpretações especialmente
no que diz respeito ao abandono ou não do marxismo pela obra de Horkheimer e Adorno.
Com parágrafos extensos que duram páginas e escritos intensos que reúnem e aproximam
menções a controles remotos, aviões, Francis Bacon, mitologia e a economia burguesa 7, a
Dialética do esclarecimento se apresenta como obra de difícil apreensão às primeiras leituras
e é considerada muitas vezes truncada e obscura em sua abordagem filosófica. Os célebres
comentadores e estudiosos da obra se tornam desencriptadores dos seus signos, tradutores de
seus hieróglifos e suas leituras acabam por se constituir como modos de interpretação dos
escritos da Dialética e consolidam formas de recepção da teoria. O diálogo com os
comentadores neste trabalho se dá numa imersão nos principais estudos e obras da recepção e
crítica da Dialética do esclarecimento no Brasil e acessada por estudiosos brasileiros em
obras de referência publicadas em língua inglesa e língua espanhola a fim de dialogar com
seus modos de interpretação da Dialética. Longe de desejar suprimir ou substituir as
interpretações realizadas e declará-las como falsas – o que caberia a uma crítica vulgar e
tomada pela lógica positivista – , queremos apenas problematizar junto a esses intérpretes que
a obra se apresenta um tanto mais complicada do que suas leituras assumem.
Para tanto, nos centramos em realizar uma leitura imanente dos textos da Dialética,
focando a questão da dominação e da não-dominação elaboradas e presentes em suas linhas e
entrelinhas, e aludindo ainda aos diálogos teóricos externos com demais pensadores que a
obra mencionava e suscitava ou que nos foram sugeridos pelos seus intérpretes e leitores. Não
pretendemos, desse modo, esgotar as inúmeras e diversas questões que a obra traz, mas sim,
nos limitarmos em tratar e selecionar aspectos do texto que poderiam contribuir às nossas
intenções.
O que apresentamos aqui é que a Dialética traz outra forma da dominação que,
surgida no século XX, se diferenciava do diagnóstico da exploração do trabalho como as
teorias marxistas que antecediam a obra enfatizavam. Horkheimer e Adorno expõem que a
dominação não estava mais centrada no trabalho, mas sim sob a mediação da razão abstrata.
Razão esta que se desenvolvera no embate entre indivíduo e natureza nos processos
civilizatórios do ocidente, incorporada pela própria ciência e pelo desenvolvimento
7
Como podemos encontrar no segundo parágrafo do capítulo “O conceito de esclarecimento”. Horkheimer, M;
Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de Almeida. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 18; Id., Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente. Frankfurt am Main:
Fischer Verlag, 2010, p. 10.

3
tecnológico, ela vinha intencionada de reduzir a realidade, de eliminar diferenças e
multiplicidades, de transformar acontecimentos e vidas em números e em lógica. Exaltava a
permanência do já realizado, do existente. Originada como protótipo em processos de troca
antes da ascensão da sociedade burguesa, a razão, sob o auge do esclarecimento, atingira seu
ápice operativo em prol da sociedade, da exaltação do modo de vida capitalista. Esta razão
tentava, com seu imenso poder de repetição e fixação, constituir a sociedade capitalista como
o mundo mitológico e, assim, bloquear as possibilidades de mudança histórica.
O que nossa leitura proporcionou da Dialética seria que esta não esta fornecia um
diagnóstico da dominação total, mas antes um diagnóstico da tendência dessa dominação
exercida pela razão abstrata de tornar o mundo uno e cíclico e promover a integração plena
entre indivíduo e natureza. Em vez de decretar o fim da história, os autores pretendiam
denunciar a intenção objetiva do capitalismo com o poder desta razão de suprimir o potencial
de realização da história pelos indivíduos, de tornar ilusória a perspectiva de outra sociedade
e, ainda, de ocultar as contradições sociais. Nesse percurso da obra, o que os autores
apresentam não seria um afastamento da teoria marxista, mas uma apropriação dela sob uma
forma não ortodoxa e não coincidente com o que fora defendido pelos estudos marxistas até
aquele momento. Em vez de afastarem-se da teoria marxista, os autores teriam buscado
afastá-la dos laços que esta havia estabelecido com a ciência positivista.
Se a concepção de dominação se alterava, suas perspectivas emancipatórias somente
poderiam ter se modificado. Nesse ponto, Horkheimer e Adorno não apenas rejeitavam a ideia
de uma revolução proletária, como realizavam crítica ao modo marxista de conceber a
emancipação, que faria concessões à razão abstrata e, portanto, reforçaria a lógica que
promovia o capitalismo. A fim de eliminar o positivismo do marxismo, os autores não davam
continuidade à sua forma de elaboração dos projetos emancipatórios como se fossem
consequências que adviram independente do curso da ação da história, reforçando sua base
teórica na perspectiva de negação determinada da dialética e, ao mesmo tempo, recusando sua
coincidência com o movimento objetivo da história. Sem assumir imagem da emancipação, a
Dialética tentava, portanto, manter a esperança viva de outra sociedade, a partir da negação
crítica e radical do presente. Enfatizava que a própria razão abstrata, condutora da dominação,
poderia ser mecanismo de não-dominação ao realizar a crítica de si mesma como força
dominadora e ao denunciar o existente como falso.
Ainda, a Dialética fornecia pequenos vestígios de possibilidades de não-dominação

4
presentes na sociedade que mantinham a promessa de felicidade que, na percepção dos
autores, deveriam ser contempladas num projeto utópico da sociedade. Seria nesse ponto que
os autores mais se apartavam do marxismo ao recusarem a apresentação de grandes planos
estruturais políticos de emancipação e, em seu lugar, se apoiarem em breves imagens, sem
contornos nítidos, que não se referiam a sociedades a serem construídas como elaboravam os
socialistas utópicos, mas buscavam aludir às atividades ínfimas, materiais e pessoais que o
indivíduo poderia realizar numa relação de não-dominação com a natureza. O que estava em
jogo não era um projeto emancipatório, mas uma reconciliação. Aqui, identificamos uma
proximidade que permanecia nos frankfurtianos herdadas de seus predecessores românticos.
Este percurso sobre a investigação da dominação na Dialética e a abordagem tênue
da reconciliação se realiza em três capítulos. No primeiro, expomos a revisão bibliográfica
que realizamos sobre os diferentes estudos e interpretações da obra. A intenção era
compreender na bibliografia de estudo brasileira e disponível de fácil acesso no Brasil,
encontrada em inglês e espanhol, os modos de interpretação crítica e a leitura que estes
estudiosos apresentavam sobre a Dialética. Dessas incursões sobre os comentadores se
desdobrou o problema que move o presente trabalho: a abordagem da dominação no livro de
Horkheimer e Adorno. Dentre os estudos abordados, pode-se encontrar posição consolidada e
enaltecida fortemente por diferentes intérpretes de que a Dialética defenderia a dominação
total, seria obra apocalíptica que não via saída para a transformação histórica, não
vislumbrava saída crítica para a teoria e renunciava à teoria marxista. O que percebemos das
leituras nos diversos comentadores foi uma virada de interpretação após a publicação da
crítica realizada por Jürgen Habermas em Teoria do agir comunicativo. Habermas, para
defender uma nova teoria crítica embasada como teoria da ação que se fundamenta na
dualidade da razão que estabelece numa reconceituação da teoria das esferas de Max Weber,
precisara reinterpretar o legado crítico da primeira geração da Escola de Frankfurt e, ao fazê-
lo, assumiu a crítica ao esclarecimento [Aukflärung] como crítica da racionalização,
aproximando, portanto, a Dialética da teoria weberiana e o diagnóstico da obra como um
diagnóstico crítico da ação racional com respeito a fins. Além das consequências para a teoria
crítica que a virada linguística habermasiana proporcionou, sua crítica à Dialética foi
assumida como única possibilidade de leitura por muitos estudiosos e, por vezes, sua
interpretação foi tomada como o próprio escrito da obra de Horkheimer e Adorno. Nossa
leitura, apresentada no capítulo segundo, tentou diretamente dialogar e indagar as

5
interpretações dadas da obra que seguiram o modo crítico habermasiano a fim de tentar
retomar o texto da Dialética para além do modo interpretativo fixado sobre ele. A revisão
bibliográfica realizada nos ofereceu, desse modo, mais que modos de leitura, mas temas e
pontos essenciais para ler e interpretar a obra.
O segundo capítulo inicia com um breve retomada das abordagens pré-românticas e
românticas alemãs. Tal retomada foi realizada no intuito de dialogar com interpretações da
Dialética que insistem em vê-la como descontextualizada do mundo filosófico e social
alemão, apresentando, por vezes, suas teses como algo inovador no pensamento crítico.
Algumas leituras da obra, em nome do rigor filosófico, realizaram a leitura imanente da obra,
o que as possibilitou grande riqueza teórica, mas também trouxe alguns assombros sobre o
conteúdo da obra que eram nada mais que debates com temas pertinentes aos pensadores
contemporâneos de Horkheimer e Adorno e à própria tradição da filosofia romântica alemã. A
recuperação sintética que se fez do romantismo e de seu movimento prévio neste início do
capítulo segundo buscou recuperar para este estudo a concepção crítica desses movimentos
alemães sobre a razão. Razão e o esclarecimento eram concebidos como uma domínio
coercitivo sobre os indivíduos que os apartava da natureza e do que era orgânico, o que levara
os pré-românticos e românticos a denunciarem e rejeitarem a civilização, seus instrumentos e
mecanismos e criticarem o sentido do progresso como formas intensivas de dominação sob a
humanidade. A afirmação de que Horkheimer e Adorno realizavam debate com a tradição do
romantismo alemão buscou situar o debate da Dialética dentro de sua estrutura filosófica sem,
no entanto, afirmar a integração completa dos frankfurtianos a esta tradição. É preciso dizer
que a abordagem sobre a concepção de razão dentro do romantismo alemão está em nosso
trabalho atenta a uma hipótese que sabemos de difícil aceitação, mas que temos forte
inclinação em nossa interpretação da obra: levantamos a hipótese de que a crítica à razão
apresentada por Horkheimer e Adorno é menos devedora da teoria weberiana da
racionalização – como haviam defendido Habermas e interpretadores afins – e é mais
inspirada pela crítica que oferece o romantismo alemão à razão. Em seguida a imersão sobre o
romantismo alemão, passamos a introduzir nossa leitura atenta da obra a fim de compreender
as relações entre mito, razão, dominação e capitalismo que encerram a especificidade da
abordagem da dominação no século XX diagnosticada na Dialética. Nossa defesa é que a
concepção de dominação está vinculada à produção da razão abstrata que se incorporou às
subjetividades de todos os indivíduos que estão sob o jugo do capitalismo e esta dominação se

6
dá sob todas as relações sociais – sejam da ciência, das relações de trabalho ou das relações
artísticas. No entanto, a dominação pela razão não se constitui como simples relação
heterônima, inescapável e natural da vida em sociedade – embora seja esta a sua aparência –,
mas sim tem origem mas mais altas e complexas estruturas de poder econômico e social do
mundo contemporâneo e tem como seus beneficiários – os reais senhores da produção da
razão como dominação – as classes proprietárias. Buscamos neste espaço dialogar com as
interpretações e críticas realizadas à Dialética e a conceituação de dominação que a obra
apresentou, tensionando no tocante às críticas que Horkheimer e Adorno elaboram à teoria
marxista que se reduz ao positivismo ou à teoria focada na luta de classes. Intentamos,
compreendendo as críticas, defender que há mais influência da teoria marxista do que se
supõe, sendo esta influência vinda diretamente da obra O capital na assimilação da razão
como mediação e domínio sistemático da produção e reprodução do capital.
O terceiro e último capítulo reune nossos esforços de compreender a rejeição à
imagem de uma sociedade emancipada que Horkheimer e Adorno assumem e, ao mesmo
tempo, apresentar a defesa de que tal rejeição não implicada na dominação total ou no
diagnóstico do bloqueio das potencialidades emancipatórias. Para nossa leitura, os autores
permaneciam na recusa de consentir na afirmação de que outra sociedade, sob outro modelo,
com outras relações, não pudesse existir ainda que não abordassem imagens sobre esta
sociedade ou apresentassem caminhos para sua implantação. Buscamos, no entanto, nas
entrelinhas dos textos que compõem a obra e na produção teórica paralela ocorrida durante a
escrita da própria Dialética, como as obras Eclipse da razão e Minima moralia e também nos
discussões, a concepção de não-dominação, ou seja, não procuramos a defesa de uma
possibilidade ou projeto de emancipação humana, mas tentamos nos concentrar nas
possibilidade de recusa a dominação ainda presentes na sociedade contemporânea que
permitia aos seus autores a realização da crítica desta sociedade e a recusa da aceitação da
sociedade tal como ela era como única ou do fim da história.
Para concluir e iniciar nosso trabalho de fato, gostaríamos de ressaltamos a
importância política que assume para nós a realização de um estudo sobre a Dialética do
esclarecimento que vai além de sua relevância acadêmica e teórica que são mais que
justificadas. No momento histórico que nos encontramos, o Estado brasileiro reafirma sua
insistência num projeto movido por numa concepção de progresso e desenvolvimento que,
sabemos por Benjamin e pela Dialética, somente nos pode levar a uma real regressão. Ainda,

7
não podemos esquecer que nós, os movimentos sociais resistentes às tentativas progressivas
de taxação da vida, nos encontramos na rua com pessoas que ali jamais estiveram e que,
insufladas por uma indústria militante de direita que tem a indústria cultural a seu favor,
ergueram cartazes e levantaram as vozes exaltando o retorno de um Estado coercitivo – cujas
mazelas ainda são sentidas nas periferias urbanas –, solicitaram a morte das pessoas de maior
vulnerabilidade da sociedade e queimaram nossas bandeiras vermelhas em nome do fim da
política, da neutralidade técnica e da moralidade. Assim, um estudo da Dialética, apesar de
todas as distâncias históricas e políticas que nos separam, nos parece mais que necessário a
fim de rememorar a história e nos atentar ao movimento progressivo da barbárie. Se
Horkheimer e Adorno apresentaram, no prefácio da Dialética de 1969, a esperança que a obra
fosse mais que uma documentação histórica, nós também acalentamos o desejo que nosso
breve estudo sobre ela possa ir além de ser um estudo acadêmico sobre uma obra do século
passado.

8
CAPÍTULO 1 – ALGUMAS INTERPRETAÇÕES DA DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO

“Para o poeta, assim como para o público de sua época, não é bem a
existência, mas, na verdade, o significado dos dados do real na obra que irá
manter-se sempre oculto. Uma vez, no entanto, que o eterno da obra se
destaca apenas sobre o fundamento desses dados, toda crítica contemporânea,
por mais elevada que possa estar, abarca na obra mais a verdade em
movimento do que a verdade em repouso, mais a atuação temporal do o ser
eterno”.
Walter Benjamin, As afinidades eletivas de Goethe

A intenção dessa revisão bibliográfica é trazermos à luz relevantes interpretações da


Dialética do esclarecimento, a fim de expor como suas leituras interpretam a obra no interior
da teoria crítica e como revelam e analisam o diagnóstico de dominação que a obra apresenta.
Queremos ler nas interpretações quais influências teóricas os estudiosos veem nesse
diagnóstico de dominação que a obra porta e como atribuem a relação da Dialética com outras
teorias e filosofias. O que nos interessa aqui é entender, em primeiro lugar, se concebem a
Dialética como um o diagnóstico da dominação, em segundo lugar, se a atribuem enquanto
ruptura da teoria crítica anunciada por Horkheimer em “Teoria tradicional e teoria crítica” e,
por último, nos interessa saber se essas leituras a associam a obra a Marx, a Nietzsche, a
Freud ou a Weber.
Nosso interesse é compreender o diagnóstico de dominação do século XX que a
Dialética apresenta, tensioná-la quanto a sua percepção ou não como uma dominação total e,
assim, questionar se ainda caberiam perspectivas marxistas para se interpretar a obra. Por trás
disso, habita nossa intenção de entender e vislumbrar se há potenciais emancipatórios na
Dialética ou, ao menos, vestígios do que se ainda poderia conceber como não-dominação. Tal
pergunta em busca dos potenciais emancipatório se filia às preocupações do materialismo
histórico-dialético, que enquanto teoria analisava as mazelas da dominação capitalista, mas
não se furtava a compreender e expor a necessária superação dessa sociedade. Para Marx, a
sociedade é produto dos indivíduos inseridos nela e imersos na história. Daí se emerge ponto
essencial que as condições sociais são sempre históricas e humanas, o desenvolvimento social
e histórico não é definitivo, natural ou eterno e, portanto, para Marx, mesmo nas condições de

9
dominação do século XIX dadas pela exploração do trabalho, que pareciam relações naturais
e eternas, haveria o potencial de se alterar o desenvolvimento histórico.
A teoria crítica da sociedade como anunciada por Horkheimer, no texto fundador da
teoria crítica da sociedade, atentava aos pontos do materialismo-histórico: compreendia a
teoria como momento da práxis, sabia-se histórica e parcial, assumia-se partidária e afirmava
que o sentido da sua tarefa “não deve ser buscado na reprodução da sociedade atual, mas na
sua transformação”1. Desse modo, a acusação que, usualmente, se atribui Dialética de fim da
história, de diagnóstico do sistema capitalista como perpétuo, de solidificação das relações
sociais reificadas, dominação não-dialética totalizada e ausência de potenciais emancipatórios,
indicaria o abandono da teoria marxista e, muito além de uma alteração de perspectiva
teórico filosófica, insinua uma real “mudança de lado” pelos autores da Dialética e membros
de Instituto de Pesquisa que almejava em sua fundação realizar estudos a partir da teoria de
Marx, ao possibilitar uma aproximação e indução da teoria crítica a uma possível acomodação
com as teorias conservadoras de perpetuação da sociedade capitalista presente. Não sendo
uma denúncia leviana, tampouco pode ser banal o objetivo desta pesquisa de realizar da
conceituação da dominação que expõe a Dialética a fim de compreender se, de fato, os
autores defendem ali a dominação total e excluem a possibilidade de emancipação ou
liberdade em seus escritos.
Ciente da dificuldade do tema, é preciso admitir, todavia, que ele não pode se
enunciar como novo. A Dialética é fruto de intensos debates entre os próprios estudiosos da
teoria crítica, entre os estudos marxistas, entre as teorias sociais contemporâneas e os estudos
estéticos. Inúmeros e célebres são seus comentadores que realizaram leituras a partir das mais
diversas perspectivas e, de fato, fornecem subsídios a qualquer leitor para adentrar nas frases
enigmáticas escritas a quatro mãos por Horkheimer e Adorno. Nossa tentativa neste capítulo é
explorar algumas dessas leituras para que nos auxiliem a enfrentar o texto da Dialética e
também nos possibilite circundar os principais pontos que devemos nos dedicar para
interpretá-la que apresentaremos no próximo capítulo.
A seleção das interpretações aqui é breve. Privilegiou a bibliografia disponível em
português, em inglês e apenas uma em espanhol, o que traz o grave defeito de não abordar as
mais recentes interpretações e aprofundamentos sobre a teoria realizados pelos teóricos
alemães e franceses. Para além de evidenciar os limites da pesquisadora que se debruçou
1
Horkheimer, M. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: Horkheimer, M; Adorno, T. W.; Benjamin, W;
Habermas, J. Os pensadores: textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 138.

10
sobre as análises, as interpretações que abordamos foram selecionadas pela relevância que
ocupam entre os estudiosos brasileiros da teoria crítica e que estão disponíveis com acesso
relativamente fácil no Brasil. Desse modo, são analisadas aqui as interpretações de: Jürgen
Habermas, Susan Buck-Morss, Martin Jay, Gillian Rose, Helmut Dubiel, Joan Alway, Axel
Honneth, Simon Jarvis e José Antonio Zamora. Buscamos ainda acrescer as intepretações
abordando importantes estudiosos brasileiros no pensamento de Theodor W. Adorno que são
Marcos Nobre e Rodrigo Duarte, e, também, se incluiu a recente dissertação de mestrado de
Adriano Januário que apresentou a mesma problemátic aque se debruça essa pesquisa, tendo,
portanto, grande afinidade de temas e abordagens com o que faremos neste trabalho. Temos
ciência que muitas interpretações relevantes ainda ficaram de fora dessa seleção, o que expõe
a possível fragilidade dessa pesquisa e na análise que fará da Dialética ao ignorar importantes
estudos da obra e da própria teoria crítica 2. Evidentemente, tais riscos são assumidos e ficam
para ser tratados posteriormente pelos desdobramentos que essa pesquisa pode ter.
Dentre as interpretações existentes, a realizada por Habermas adquire uma posição
privilegiada por dois motivos: pelo autor colocar-se como continuador do que denominou o
projeto de uma teoria crítica da sociedade iniciada pelo Instituto de Pesquisas Sociais e, desta
forma, assumir uma posição de intérprete “legítimo” da primeira geração; e também por ser
formulador da crítica da “contradição performativa” que evoca o beco sem saída para o qual a
crítica teria sido levada pela Dialética. Em sua leitura presente nas obras Teoria do agir
comunicativo (1981) e O discurso filosófico da modernidade (1985), Habermas enfatiza que
Horkheimer e Adorno nos anos 1940 pretendiam continuar a investigar o processo de
racionalização capitalista iniciada por Lukács em História e consciência de classe (1923).
Diferentemente de Lukács, que ainda concebia um limite à racionalização dado pela condição
dos trabalhadores de vivenciar as contradições na práxis originado pelo desenvolvimento
econômico objetivo e que, portanto, esperava a manifestação do potencial revolucionário do
proletariado3, os autores teriam tido que encarar na Dialética do esclarecimento a desilusão
das esperanças revolucionárias: o proletariado europeu não realizara a revolução, o Estado
soviético dera sinais de totalitarismo e o fascismo se instalara na Europa com apoio da classe

2
Esse recorte excluí, inevitavelmente, estudos importantes a Dialética como: os artigos de Gabriel Cohn
publicados na Revista Lua Nova, os ensaios de Roberto Schwarz sobre o pensamento adorniano e o livro
Modernidade e dominação de Sílvio Camargo. Também não serão analisadas na presente revisão bibliográfica as
recentes teses muito bem elaboradas de Ezequiel Ipar, Carlos Henrique Pissardo e Ricardo Pagliuso Regatieri.
3
Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: ______. História e consciência de classe:
estudos sobre a dialética materialista. Tradução de Rodnei Nacimenteo. 2a. Ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2012, p. 391-411.

11
operária4. Ao buscar entender por que a revolução não se realizara, Adorno e Horkheimer
teriam argumentado, para Habermas, que as forças produtivas evoluíram de modo a
assumirem um papel ideológico que suprimira “a energia de explosão do sistema” 5 e os
limites da dominação ideológica pensados por Lukács, dados pela própria condição de
proletariado, não pareciam permanecer plausíveis perante a realidade que demonstrava as
massas sucumbidas à racionalização social6. O que os autores teriam diagnosticado na obra
seria a coincidência entre razão objetiva e subjetividade, a expansão da reificação à psique. As
resistências subjetivas, desse modo, haveriam sido integradas e abrandadas pelo sistema e as
forças produtivas, consequentemente, intensificadas7. Se Lukács supusera que, partindo de
Hegel, a mediação dialética suprimiria na consciência da classe proletária o processo de
reificação, Horkheimer e Adorno não partiriam de Hegel, mas tentariam evidenciar
empiricamente por que o movimento não se dera e, nessa intenção, teriam realizado uma
investigação filosófica sobre a dominação da natureza, na qual demonstravam o triunfo do
pensamento identificador fruto da racionalização instrumental. O que Adorno teria apontado
nas obras seguintes sobre a dialética hegeliana como procedimento identificador e, portanto,
preso à estrutura reificadora, corroboraria tal interpretação da Dialética realizada por
Habermas8. Em suas interpretações, Habermas defendia ainda, concordando com a tese de
Susan Buck-Morss sobre a Dialética negativa9, que o pensamento de Adorno já conduzira a
mesma tese sobre a dialética hegeliana e a reificação em seus textos de juventude como em A
atualidade da filosofia.
Explicar como a razão tornara-se parte das forças produtivas adquirindo uma
dimensão predominante instrumental, de forma que reificava os procedimentos que deveriam
conduzir a verdade e, ao mesmo tempo, apostar nessa mesma razão para denunciar sua
instrumentalidade seria a contradição performativa que a Dialética incorreria de acordo com
Habermas10. A Dialética negativa, publicada por Adorno posteriormente, teria continuado o
mesmo impulso filosófico da obra de 1947 e poderia ser vista como uma “explicação de por
4
Habermas, J. Teoria do agir comunicativo: Racionalidade da ação e racionalização social. Vol. 1. Tradução de
Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 630-631; Dubiel, H. Theory and politics:
studies in the development of critical theory. Cambridge: The Mit Press, 1985, p. 68 e ss
5
Habermas, J. Teoria do agir comunicativo, op. cit. p. 632.
6
Id., Ibid., p. 634.
7
Id.. Ibid., p. 630-640.
8
Id., Ibid., p. 640-644.
9
A obra que Habermas se refere de Buck-Morss é The origin of Negative Dialectics. Ela será posteriormente
abordada aqui.
10
Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa; Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 170.

12
que temos de girar em torno dessa contradição performativa, e devemos mesmo persistir nela,
de por que somente o desdobramento insistente e incansável do paradoxo abre a perspectiva
daquela 'reminiscência da natureza no sujeito', invocada quase de maneira mágica”11. A crítica
da razão instrumental da Dialética do esclarecimento era, de fato, a crítica da relação entre
razão e poder, portanto, somente a realização desta crítica poderia manter a base que
fundamentava a própria crítica poderia e não remeter à dominação. Para responder a isso,
ressaltava Habermas que Adorno e Horkheimer a apresentariam a crítica ancorada num
fragmento da natureza remanescente e desconhecido, articulando a uma teoria da mimese que,
entretanto, a própria obra já havia relevado como de impossível existência, instituindo,
portanto, uma aporia. Adorno não teria pretensão de sair dessa aporia – a Dialética negativa
seria prova da intencionalidade de manter-se na aporia – e somente a Teoria estética teria
realizado alguma tentativa de circundar a mimese, porém, Habermas elucidava que Adorno
transferira na obra as competências cognitivas não solucionáveis da teoria para a arte12.
Ao afirmar a relação entre razão e poder como incontornável na busca de escapar do
pensamento identificador da reificação, as obras posteriores de Adorno teriam sido uma
radicalização da Dialética do esclarecimento e confirmavam a dificuldade normativa que essa
obra instaurara para o projeto crítico13. O que Adorno teria apresentado posteriormente seria
apenas uma defesa da negação determinada que fosse além de Hegel, isto é, que eliminasse a
identidade ainda visível na dialética hegeliana e se preservasse intransigente na contradição
como crítica, persistindo nos paradoxos e enfatizando que não havia nenhuma saída
possível14.
Faz-se necessário ressaltar alguns pontos da leitura de Habermas. Em primeiro lugar,
nota-se que seu diagnóstico da dominação na obra se centra sobre a razão instrumental. Nesse
ponto, Habermas argumenta que os autores apresentaram um diagnóstico fechado, de
dominação total, que revelava o fim da história e a eliminação dos indivíduos. Em segundo
lugar, cabe pontuar que Habermas apresenta que os autores continuaram Lukács na Dialética,
mas que haviam radicalizado Weber, partindo de Nietzsche. Desse modo, para Habermas, a
teoria marxista haveria sido identificada pelos autores como insuficiente para interpretação do
século XX e, portanto, a teriam abandonado15. Em terceiro, é preciso notar que Habermas
11
Id., Ibid., p. 170-171, grifo do autor.
12
Id., Teoria do agir comunicativo, op. cit., p. 657-659.
13
Id., Ibid., p. 644.
14
Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade, op. cit. p. 183.
15
Convém notar que se Jay apresentará o abandono do marxismo com um certo pesar, Habermas não apresenta
este pesar e, assume que, nesse ponto, isto é, o abandono de Marx, como ele alude a Horkheimer e Adorno, era

13
vislumbrava os potenciais emancipatórios remanescentes presentes na Dialética, mas
ressaltava que esses potenciais apareciam como “evento irônico”, como algo contraditório e
de impossível de realização. Críticava ainda Habermas a ausência de uma real base normativa
que pudesse fazer emergir e justificar o ponto de vista crítico com que Horkheimer e Adorno
realizavam a análise da dominação.
Ao abordar a Dialética, Buck-Morss enfatiza que a obra não devia ser lida uma
declaração pessimista da essência da história, mas como uma negação crítica das “visões da
história racionalista, idealista e progressiva nas quais a sociedade burguesa tornou a si própria
'segunda natureza'”16. A Dialética seria menos uma prova do crescente pessimismo dos
autores que uma “documentação das mudanças nas condições objetivas”17. A obra, segundo
Buck-Morss, era acusada de abandono do marxismo por apresentar uma dialética histórica da
razão que não partia da descrição de Marx de histórica como luta de classes. Para a autora, a
obra deveria ser lida como intenção de continuidade da tese de Benjamin de rechaçar a ideia
de o sentido da história seria progresso e isto seria positivo para o desenvolvimento humano e
social. A autora em seu estudo buscou dialogar com as leituras que viam a ida para os EUA
dos autores da Dialética como um afastamento do marxismo pelo Instituto, pela crítica e pelos
próprios Horkheimer e Adorno. Buck-Morss se contrapunha a tal afirmação dizendo que
embora talvez pudesse ser plausível o afastamento de Horkheimer do marxismo – o que se
provaria em suas obras posteriores –, para o caso de Adorno, as obras seguintes não
comprovariam um afastamento, mas sim um aprofundamento deste com a teoria de Marx.
Martin Jay, a quem apresentaremos a interpretação em seguida, seria um dos defensores da
leitura que considerava o abandono do marxismo. A autora ressaltava, se opondo e dialogando
com Jay, a polêmica tese de que a Dialética seria um aprofundamento do marxismo, o que se
comprovaria pela presença na obra da negação crítica das filosofias burguesas da história que
tomavam as transformações como parte somente da superestrutura e deixavam a estrutura de
classes intocada. A Dialética atestaria, para a autora, a inadequação de revoluções no âmbito
da razão “quando o que era preciso era uma revolução no âmbito da sociedade” 18. Em sua
interpretação, Buck-Morss centrava a dominação sobre a especificidade da razão, tal como
analisava Habermas. Entretanto, diferente do último, permaneceria vendo a Dialética uma

consequência inevitável do diagnóstico do tempo que os autores realizavam do século XX e que apresentava
complexidades que a crítica da economia política não respondia mais.
16
Buck-Morss, S. The origins of Negative Dialectics, op. cit., p. 61.
17
Id., Ibid, p. 61.
18
Id., Ibid., p. 62.

14
continuidade da teoria de Marx, ainda que não se baseasse numa análise de classes da
sociedade.
Jay realizara, a partir de entrevistas, acesso a documentos e cartas no final dos anos
1960, quando o Instituto ainda estava ainda em funcionamento sob a direção de Adorno, o que
viria a ser considerada uma das mais importantes biografias da Escola, A imaginação
dialética. Traçando a história dos intelectuais vinculados a ela, como Horkheimer, Adorno,
Benjamin e Marcuse, de 1923 até 1950, Jay centrava seus esforços em analisar a mudança de
perspectiva da Escola, relacionando essa mudança com a experiência norte-americana. Para o
autor, após a Dialética do esclarecimento, os escritos da escola apenas foram uma “aclaração
adicional” da “crítica radical da sociedade e do pensamento ocidental” presente na obra 19. A
afirmação que percorre a leitura de Jay seria que a Dialética marcava a transmutação do
Instituto do tema do conflito de classes “angular de qualquer teoria verdadeiramente
marxista”20 para uma abordagem do conflito entre homem e natureza21 com vínculo difícil
entre a teoria radical com a práxis radical. O foco da obra, para Jay, seria a compreensão do
processo de desencantamento do mundo – tal com o realizado por Weber –, em que os autores
teriam relevado o curso deste processo não como circundado à modernidade capitalista, mas
estendido à antiguidade clássica – o que se daria na Dialética pela análise da Odisseia de
Homero –, compreendendo-o inerente à história burguesa ocidental. Não obstante,
Horkheimer e Adorno teriam apresentado uma crítica radical contra a racionalização que
estava em curso, revelavam uma “crença residual na validade última da Vernunft [razão]”22, o
que reforçaria a recusa da Dialética de propor saídas utópicas voltadas a algum passado
idílico ou que concebessem uma nova utopia negadora do mundo existente.
Haveria, segundo Jay, uma recusa de apresentar a esperança de forma positiva, uma
vez que “não havia qualquer práxis clara, sugerida pela razão, que pudesse ajudar nessa
luta”23. A Dialética tratava da utopia possível a partir da rememoração da natureza como
lembrança da dor e do sofrimento causados pela dominação da natureza que teriam sido
recalcados com a racionalização, e da rememoração do passado enquanto resgate das
esperanças do passado para constituir a luta pela liberdade tal como Benjamin apresentava em

19
Jay, M. A imaginação dialética, op. cit., p. 320.
20
A essa crítica de Jay, Buck-Morss apresenta que Horkheimer e Adorno sempre estiveram mais voltados a
dialética do trabalho de Marx do que uma perspectiva centrada na luta de classes. In: Buck-Morss, S. The origins
of Negative Dialectics, op. cit., p. 61.
21
Jay, M. A imaginação dialética, op. cit., p. 321.
22
Id., Ibid., p. 324.
23
Id. Ibid., p. 332.

15
suas teses sobre a história. A defesa da razão, ainda que enquanto esperança tênue, traria a
aposta de ser ela que possibilitaria a retomada do projeto iluminista transviado, ao rejeitar a
identificação total ao status quo e também a divinização acrítica da natureza, permitindo
rememorações sem realizar o elogio da natureza ou da razão. A teoria crítica com a Dialética
se distanciava das visões emancipatórias que estabeleciam um plano de ação e transformava a
conceitualização da liberdade positiva em negativa: somente a razão em sua “forma
emudecida e negativa” poderia ser escolhida a fim de preservar a não-identidade com a
realidade reificada24. A teoria seriam quem surgia na Dialética do esclarecimento como a
única práxis possível por garantir o distanciamento crítico da realidade e, portanto, seria o
modelo da esperança emancipatória, porém, apartada da práxis real.
A leitura de Jay, sendo uma das primeiras, foi influência em muitas outras, inclusive,
na interpretação habermasiana. Jay, embora tenha assumido a Dialética como um afastamento
do marxismo, parece não a ler como promotora de um diagnóstico fechado em que o único
vislumbrado seria a dominação total. Antes, considera dois pontos importantes para
compreender a não-dominação: entende que os autores jamais deixaram de apostar na razão,
mesmo sabendo-a instrumental, e continuaram entendendo-a parte da construção do potencial
emancipatório; destacava Jay que a obra apresentava a conciliação com a natureza – que não
era de forma alguma no sentido de natureza originária como pretendiam os teóricos
conservadores – como possível saída, a apresentando como diretamente oposta à dominação
que diagnosticarva. Outros destaques merecem ser feitos sobre a leitura que realiza Jay. Ao
enfatizar que a dominação saira de uma esfera de luta de classes, o intérprete a compreendia
como advinda do conflito entre homem e natureza, um tema não marxista. Jay realiza em sua
leitura crítica à a-historicidade que teriam sucumbido Horkheimer e Adorno da
racionalização ao estender a interpretação do modernidade à antiguidade.
Gillian Rose também escreveu em período anterior a publicação de Teoria do agir
comunicativo e sua leitura foi trabalhada por Habermas. Em A ciência melancólica, a autora
preocupa-se em compreender o estilo que permeia o pensamento adorniano que se recusaria a
estabelecer um sistema sociológico e filosófico e, portanto, privilegiava ensaios e fragmentos
que poderiam ser lido como compondo uma única obra25. Para Rose, a intenção de Adorno
seria transferir o estilo modernista das obras de arte para a filosofia e sociologia, a fim de

24
Id., Ibid., p. 346.
25
Rose, G. The melancholy science. An introduction to the thought of Theodor W. Adorno. New York: Columbia
University Press, 1978, p. 8-11.

16
forjar um novo estilo que não confundisse o conceito – isto é, o pensado – com o objeto real.
Sua intenção seria que o conceito não se reduzisse ao objeto e vice versa, mas que a ligação
entre ambos, respeitando suas diferenças, permanecesse. Ênfases, exageros, a construção de
formulações e interpretações em quiasma indicavam, segundo Rose, uma tentativa de
“apresentar o objeto de seu pensamento e ver para além do sujeito” 26. As afirmações de
Adorno podiam ser exageradas e depois abrandadas em diferentes textos, isto, no entanto,
para Rose, não indicaria uma mudança de posição ou que o frankfurtiano constituísse um
pensamento paradoxal, mas que essas distintas ênfases revelariam sua proposição de observar
um objeto sobre diferentes paralaxes, indicando sua persistência na ideia de que “o objeto não
poderia ser capturado e que um conjunto de apresentações poderia ser a melhor aproximação
dele”27.
Seguindo sua preocupação com estilo de Adorno, a análise da Dialética de Rose
privilegia numa visão peculiar. Sua primeira observação sobre o livro de Horkheimer e
Adorno dá conta da indicação que não se poderia esquecer que a obra tratava da dualidade do
esclarecimento, da permanente dialética entre liberdade e subjugação que a razão em
progresso produz na sociedade28 e, desse modo, não poderia ser vista como uma história do
fim da liberdade. Haveria, confessadamente, uma adoção de um estilo exagerado – de
inspiração em Nietzsche, segundo Rose –, de dramatização das ideias na obra que faria
afirmações como “reificação total”, “controle total”, “fim do indivíduo”, mas “dramatizar
essas ideias, apresentá-las como se elas fossem absolutas e literariamente verdadeiras se dava
com a intenção de enfraquecê-las mais efetivamente”29. Rose fora quem observou – o que foi
posteriormente trabalhado por Habermas – que a Dialética enfatizava que a sociedade e as
consciências estariam plenamente sob a reificação, que a dominação parecia inescapável de
modo a inibir a consciência crítica e independente e tornava instável o próprio pensamento
crítico30. Desse modo, para Rose, como se justificaria a permanência da crítica? Diferente da
resposta que Habermas elaborou, Rose relativizava as afirmações da Dialética ao estar ciente
de que, em outros textos, Adorno apresentava outra intensidade às afirmações, abrindo
possibilidades a permanência do pensamento crítico não-identitário e, ao fazer isso, não se
demonstraria uma tese conflitante com a Dialética, mas seria prova da preocupação política

26
Id., Ibid., p. 12, tradução própria.
27
Id., Ibid., p. 13, tradução própria.
28
Id., Ibid, p. 20.
29
Id., Ibid., p. 26, tradução própria.
30
Id., Ibid., p. 48.

17
que teria o estilo para o pensador. O escrito de Rose argumentava que assumir exageros na
Dialética indicaria que a pretensão dos autores seria induzir o pensamento do leitor a não-
identidade, de tentar evitar a completa reificação que se antevia eminente 31. Ainda, em vez de
classificar o pensamento dos autores como pessimistas, Rose os justificava como
melancólicos, alegando que o binômio pessimismo–otimismo não poderia ser apliacado aos
frankfurtianos porque trazia uma dimensão fixa e estática da teoria que Adorno, certamente,
rejeitaria32.
Helmut Dubiel publicou Teoria e Política pouco antes da Teoria do agir
comunicativo, mas sua leitura já diferiria essencialmente das anteriores e se tornara apoio de
todo desenvolvimento crítico de Habermas sobre os teóricos da primeira geração. Articulando
a dimensão política no desenvolvimento da teoria crítica, Dubiel apresenta a Dialética como
uma teoria consequente da revolução não ocorrida na Europa e da crescente acomodação do
proletariado ao capitalismo. No contexto da burocratização progressiva das instituições, o que
se vislumbrava seria uma classe trabalhadora mais integrada e que limitava-se a reproduzir
sua condição, em vez de assumir o protagonismo da história como esperara a teoria marxista.
Para os autores da Dialética, em consequência, haveria se dissolvido a tese de uma
emancipação política conduzida pelo proletariado devido à profunda integração às estruturas e
reprodução delas pelos trabalhadores causadas pela burocracia autônoma que haveria,
inclusive, preparado a aceitação de Hitler por essas classes 33. A Dialética apresentaria,
partindo desse contexto, a tese de que a “dominação tecnológica da natureza não leva à
emancipação humana, mas em vez disso é reproduzida na forma de uma 'segunda
natureza'”34. Era um abandono, segundo Dubiel, da teoria marxista: o progresso das forças
produtivas não conduzia a emancipação e o proletariado deixava de ser o sujeito da história. A
Dialética seria uma mudança do primeiro período da teoria crítica e uma renuncia do projeto
colocado por Horkheimer que ainda mantivera as esperanças e se postulava como uma teoria
de aporte para a luta revolucionária35. Sem destinatário e sem perspectivas de saída desse
estado, a obra teria adquirido um pessimismo radical e se habilitava enquanto crítica da razão
instrumental, o que levara a mudança da análise do desenvolvimento capitalista para uma

31
Id., Ibid., p. 49.
32
Id., Ibid. p. IX.
33
Dubiel, H. Theory and politics: Studies in the developmente of Critical Theory. Tradução de Benjamin Gregg.
Baskerville: The MIT Press, 1985, p. 70-71.
34
Id., Ibid., p. 72, tradução própria.
35
Id., Ibid., p. 95.

18
investigação sobre o poder na relação entre o homem genérico e a natureza 36. Seria o
abandono completo de toda crença na mudança social revolucionária e teria marcado o fim do
período crítico do Instituto.
A leitura de Dubiel problematizou importante pontos que cabem ressaltar. Apoiando-
se num viés político, o autor via o abandono de Adorno e Horkheimer do marxismo, do
projeto inicial da teoria crítica ao terem assumido uma dominação social total, ao declararem
o fim do proletariado como sujeito da história e ao mudarem a análise de investigação de
classes para uma acerca do poder entre homem genérico e natureza. Dubiel ainda destacava
certa cegueira dos autores da Dialética por, mesmo ao vislumbrar o fim da guerra quando os
regimes fascistas estavam sucumbindo, não alterarem o diagnóstico da dominação total que
bebia nas influências pessimistas do tempo sombrio do nazismo. A desilusão e a renúncia com
o marxismo, para Dubiel, seria, deste modo, uma desilusão dos autores com a práxis.
Semelhante à leitura de Dubiel fora a leitura de Joan Alway em seu estudo sobre as
perspectivas emancipatórias em Teoria crítica e possibilidades políticas. Alway afirmava que
“não apenas não há 'caminhos garantidos para a redenção' para serem encontrados na
Dialética, mas não há quase nenhuma trilha tênue. Uma imagem de um mundo melhor e
reivindicações relativas a agentes e à ação que poderia realizar tal mundo estão quase
inteiramente ausentes”37. A autora retomava o argumento de Habermas – também presente na
análise de Dubiel – que Horkheimer e Adorno haveriam levado a dominação da razão
instrumental para a história como um todo, o que os levou a conceber uma regressão mundial
histórica e abandonar uma perspectiva de transformação da história tal como o materialismo
histórico concebera. Partindo de tal análise a-histórica, os autores só teriam vislumbrado a
razão “dissolvida em um sistema de dominação total”38 e apresentavam não uma sociedade
liberada, mas o enrijecimento do que teriam nomeado de sociedade administrada.
Seguindo o diagnóstico da Dialética e as perspectivas de liberdade na Minima
moralia, Alway concluía que “a única imagem de um mundo melhor que pode ser encontrada
na Dialética é a do mundo da mente, um mundo de somente liberdade interna em que apenas
poucos poderiam ocupar. […] Adorno e Horkheimer colocam suas frágeis esperanças de
emancipação no individual heroico que (inexplicavelmente) poderia reverter o rumo da

36
Id., Ibid., p. 96.
37
Alway, J. Critical theory and political possibilities: conceptions of emancipatory politics in the works of
Horkheimer, Adorno, Marcuse, and Habermas. Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1995, p. 31, tradução
própria.
38
Id., Ibid., p. 36, tradução própria.

19
história por recuar para uma vida da mente e resistir sem temor à atração gravitacional da
realidade vigente”39.
A leitura de Axel Honneth não poderia ser ignorada, uma vez que o autor, como
Habermas, se coloca como continuador do “projeto crítico” da primeira geração da Escola.
Em seu estudo A crítica do poder, Honneth buscou realizar uma nova abordagem sobre a
história da teoria crítica, tentando encontrar as insuficiências das propostas teóricas que o
antecederam. A Dialética do esclarecimento fora compreendida, nesse projeto, como uma
virada da teoria crítica para um modelo de crítica da dominação da natureza, em que o
trabalho, anteriormente visto como potencial emancipatório no ensaio fundador Teoria
tradicional e teoria crítica, passara a ser entendido somente como autopreservação40. De
acordo com Honneth, a obra, constituída como um conjunto de ensaios assistemáticos, seria
uma reconstrução do desenvolvimento da civilização europeia interpretada em termos do
progresso da racionalidade instrumental. Sua base teórica era “uma teoria da dominação que
faz seu ponto de partida o controle instrumental da natureza. Tal teoria vê a lógica identitária
da razão instrumental – a subsunção do particular sob o universal – o modelo original de
dominação, no qual toda outra forma de dominação é meramente derivativa”41.
Nesse processo de dominação da natureza, Honneth destacava que haveria em sua
base uma teoria da formação do ego, ressaltando, portanto, a proximidade da Dialética com
Freud. Pela coerção ao objeto externo, dada na relação entre sujeito consciente e realidade
natural, a subjetividade na sua dimensão identitária seria formada. Isso revelava que a
dominação da natureza era também uma coerção do sujeito sobre si mesmo, e ainda
ressaltaria, segundo Honneth, aspectos de uma concepção positiva da autonomia do ego, já
que se poderia ver na formulação de Adorno e Horkheimer, o aspecto utópico de vislumbrar a
possibilidade de uma relação não dominada entre espírito humano e natureza e,
consequentemente, a formação de ego voltado para a autonomia e para a própria
individualidade. No entanto, sob o progresso da razão instrumental, a relação com a natureza
“não mais permitia responder aberta e flexivelmente às impressões sensoriais que recebia

39
Id., Ibid., p. 47, tradução própria.
40
Essa abordagem, segundo Honneth, já estava presente nos dois últimos artigos de Horkheimer publicados da
revista do Instituto em 1941. O artigo Arte e cultura de massa apresentava a cultura como tendo perdido o valor
perante a cultura de massa e só vislumbrava possibilidade na identidade individual da arte moderna, enquanto o
artigo intitulado O fim da razão apresentava o trabalho como um processo de autopreservação e a razão
igualmente à serviço da preservação do sujeito. Honneth, A. The critique of power: reflective stages in a critical
social theory. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1991, p. 33-36.
41
Id., Ibid, p. 42, tradução própria.

20
desta”42. O que resultava do desenvolvimento da civilização era “a dominação social da
natureza e o enrijecimento da identidade do ego”43.
A Dialética não apresentava em sua análise do desenvolvimento da civilização
quaisquer perspectivas de liberdade; ela, inversamente, anunciava o declínio da humanidade
alienada a um estágio mais profundo. Além de dar uma vaga origem ao processo de
dominação e conceber os indivíduos humanos como passivos, sem intencionalidade, sem
capacidade de resistência e oposição, para Honneth, Adorno e Horkheimer teriam produzido
um reducionismo da teoria social ao dar os contornos da obra tal como uma filosofia
pessimista da história. Eles teriam neste caminho transformado a teoria crítica em filosofia
conservadora e a vinculada aos aspectos regressivos do romantismo alemão. A Dialética teria
stabelecido um modelo de dominação social que tinha sua base no fascismo e o explicava
enquanto apenas um período do processo de decadência progressivo da civilização. Este
horizonte de uma teoria de dominação centrada sobre o fascismo permanecera nas obras
posteriores de Adorno mesmo no período pós-guerra, de acordo com Honneth. Se a Dialética
colocava em questão a relação da teoria crítica com as ciências específicas que se moveriam
pela razão instrumental, Adorno permaneceria a enfatizar o diagnóstico de que as ciências
continuavam a objetificação da natureza e, portanto, assumiria que somente a filosofia por não
ser completamente afetada pela racionalização44 e a uma forma de dialética negativa seriam
projeto de radicalização da tarefa de uma filosofia crítica.
A filosofia, porém, não escaparia do pensamento conceitual que a Dialética do
esclarecimento havia se preocupado em desvelar, fazendo permanecer a questão sobre a
plausibilidade da teoria crítica que, ao prosseguir como conhecimento conceitual, numa
tentativa esclarecedora, se mantinha como dominação da natureza e fazia expandir a
alienação. Seria na arte, segundo Honneth, que Adorno encontraria esse médium privilegiado
de apropriação não conceitual da realidade social que a filosofia não poderia alcançar. A
Dialética já apresentava a experiência estética a partir de uma análise privilegiada sobre
outras formas de conhecimento, e, em suas obras posteriores, Adorno assumiria a estética
como modelo para alcançar o conhecimento por esta oferecer a possibilidade de relação de
não-dominação com a natureza. A arte atingiria, desse modo, “o status de uma explicação
42
Id., Ibid., p. 45, tradução própria.
43
Id., Ibid., p. 46.
44
Honneth cita uma nota da Dialética sobre a questão: “A filosofia não é síntese, ciência básica ou ciência-
cópula, mas o esforço de resistir à sugestão, a decisão resoluta pela liberdade intelectual e real”. In: Adorno, T.
W.; Horkheimer, M. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 200; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 260;
Honneth, A. The critique of power, op. cit., p. 62.

21
normativa das condições de liberdade e emancipação social”45. Honneth ressaltava que, nos
trabalhos após a Dialética, a arte, portanto, teria ganho prioridade como modelo de construção
do conhecimento, por enaltecer a relação mimética com natureza e, de tal modo, poder ser
tomada como “pressuposto de uma sociedade liberta da repressão dos instintos individuais e
do poder social”46.
Honneth foi o primeiro intérprete a vincular a Dialética a um diagnóstico freudiano e
enfatizar a dominação enquanto dominação da natureza. Ainda que vislumbrasse algumas
permanência da obra com Marx e com a perspectiva crítica centrada no trabalho, Honneth
associaria a Dialética como mais vinculada aos textos de juventude de Marx sobre a relação
homem, natureza e trabalho. É importante notar, porém, que se Honneth via que permaneceria
o trabalho como cerne da Dialética, ele considera tal permanência uma fragilidade de seu
modelo crítico.
Simon Jarvis, considerado um estudioso do pensamento de Adorno, se preocupou em
afirmar em seu estudo, em contraposição aos demais comentadores, o que a Dialética não era:
ela não seria uma tentativa de enciclopédia da história humana e cultura, não estaria tentando
abarcar filosoficamente todas as áreas do conhecimento como história, antropologia,
psicanálise e outras área, não teria prometido ser uma grande narrativa do progresso histórico
ou do declínio, não se voltaria a contar a história do início da civilização ocidental, não
rejeitaria e nem pretendia reverter o esclarecimento, e ela não seria uma teoria de sistema
filos[ofico impenetrável47. O cerne da obra, de acordo com Jarvis, seria a relação entre
esclarecimento e dominação, o que permearia todos os ensaios, que partiam de distintas
perspectivas e que compunham a obra. A Dialética fundamentatia-se numa análise do
presente, isto era, da sociedade curvada ao poder do fascismo e, o retorno às “origens” que a
obra realizava não teria a finalidade de fazer uma história universal da dominação no
ocidente, mas sim buscar entender o que na história havia possibilitado o desenvolvimento
rumo à dominação social. Além disso, segundo Jarvis, os autores não teriam a intenção de
estender a racionalidade capitalista para a antiguidade como apresentavam alguns intérpretes,
mas queriam problematizar o binômio antigo/ moderno que, apesar de serem clamados como
opostos, de fato revelavam extremas proximidades. Seria neste sentido de problematização
que os autores demonstravam ao ressaltar na Odisseia uma racionalidade esclarecedora que

45
Honneth, A. The critique of power, op. cit., p. 65.
46
Id., Ibid., p. 65, tradução própria.
47
Jarvis, S. Adorno: a critical introduction. Cambridge, UK: Polity Press, 1998, p. 20-22

22
guiava as aventuras de Ulisses e também ao apresentar os procedimentos da indústria
cinematográfica de Hollywood como produtores de novas construções mitológicas que
intentavam o retorno à natureza48.
Dedicados ao estudo da relação entre esclarecimento e dominação, Adorno e
Horkheimer teriam assumido que não haveria dominação que não era mediada pela
racionalidade, que nenhuma racionalidade estava livre de dominação e não haveria dominação
que não seria inteligível. Se partindo disso se poderia questionar acerca da plausibilidade da
crítica racional sem dominação, para Jarvis, os autores teriam mantido a posição de que toda
racionalidade permaneceria dominadora e conceberiam que o conceito de uma racionalidade
livre indicaria uma falsa reconciliação entre sujeito e objeto49. A crítica presente na Dialética,
portanto, mantinha-se atada à razão, mesmo sobre o risco do exercer coerção ao fazê-lo. Jarvis
se contrapunha às postulações críticas de Honneth que teria visto o domínio sobre a natureza
como um o modelo de poder social para Adorno e Horkheimer, uma vez que a abordagem de
Honneth partiria de uma ideia de separação fixa entre dominação social e da natureza que
seria impossível para uma teoria materialista da sociedade porque reforçava o culturalismo 50.
Os autores teriam abarcado as relações entre natureza e racionalidade, no sentido de natureza
e modernidade, para apreenderam, de acordo com Jarvis, como ambas constituíam
conjuntamente modos de dominação social e, deste modo, o modelo de dominação sobre a
natureza se colocava como um modelo social de dominação.
Importante ainda destacar a defesa de Jarvis de que Dialética deveria ser
compreendida “como uma simultânea construção e recusa da história universal” 51. A obra não
conduziria a uma fantasia de um mundo melhor, mas, em vez disso, se colocava “contra o
fechamento da possibilidade de uma nova experiência histórica” que tanto uma perspectiva
metafísica da histórica quanto a historiografia positivista pretenderiam. Ainda, “a obra rejeita
uma teoria pessimista que a natureza humana seja irrevogavelmente encontrada sob
dominação”, mas também recusaria uma visão cultural idealista que afirmasse a vida social
como totalmente cultural52. A Dialética viria a constituir não um sistema fechado de
dominação, mas exercia a crítica contra a possibilidade defendida pelos idealistas de mudança
permanente. Ela não era utópica, nem tampouco pessimista; alertaria as tendências da história

48
Id., Ibid., p. 23.
49
Id., Ibid., p. 34.
50
Id., Ibid., p. 35-36.
51
Id., ibid., p. 39, tradução própria.
52
Id. Ibid., p. 39.

23
sobre seu desenvolvimento sem fixá-las como sentidos únicos e encarava de maneira um tanto
cética que a crítica e as possibilidades de liberdade deveriam ter como influência os desastres
em progresso na sociedade.
Cabe apontar um último destaque de Jarvis. Para o estudioso, a aporia de ter
fundamentado uma crítica na razão e ter diagnosticado a própria razão como entrelaçada a um
pensamento dominador – assinalada por Habermas como a contradição performativa – seria
para Adorno não uma questão de lógica, mas de expressão política de não-integração que
envolveria a crença de que, numa sociedade objetivamente contraditória, uma teoria crítica da
sociedade deveria ser necessariamente aporética, recusando uma concepção positiva e
afirmativa53.
O livro de José Antonio Zamora, Th. W. Adorno: pensar contra a barbárie, traz
alguma proximidade da leitura de Jarvis, mas o autor acrescenta outras interpretações que
seriam importante dialogarmos. Zamora concorda com Jarvis que a Dialética traria como
questão central a relação entre racionalidade e dominação e seria essa relação que, como
anunciam os escritos de Horkheimer e Adorno, seria produtora da barbárie visível nos regimes
fascistas. A racionalidade, fruto do esclarecimento, que visava suprimir a mitologia do mundo
haveria se convertido em mito e ambas – racionalidade e mitologia – poderiam ser vistas de
forma atuante nas ideologias fascistas porque guardavam em si o pensamento identificador 54.
O mito tentava petrificar uma verdade e fazia coincidir o aspecto mitológico com a natureza
extinguindo as assimetrias e, de maneira similar, a razão moderna tentava esclarecer
organizando o saber por sua utilidade e calculabilidade, se cravando à dependência dos fatos e
crendo na equivalência deles com a realidade55. O que o mito e o esclarecimento teriam feito
fora se condicionarem às subjetividades humanas como uma segunda natureza de modo a
extirpar o que lhes fugia à lógica56.
O que Zamora traz em sua leitura da Dialética para dialogar com outros
comentadores, que apontam a obra como uma “virada”, seria a investigação dessa com
proximidade dos textos de Walter Benjamin e dos próprios Horkheimer e Adorno nos anos
1930. Quanto a Horkheimer, Zamora remete a textos anteriores em que Horkheimer já teria
apresentado críticas ao conceito de totalidade sublinhando que o conceito manteria o
materialismo próximo da metafísica e que, ainda, realizava diversas ponderações sobre a
53
Id., Ibid., p. 219.
54
Zamora, J. A. Th. W. Adorno: pensar contra la barbarie. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p. 163.
55
Id., Ibid., p. 165.
56
Id. Ibid, p. 187-192.

24
impossibilidade da harmonia de teoria e práxis e de identificação entre sujeito e objeto. Sobre
Benjamin, o autor aludiria aos textos iniciais deste filósofo que, ao trazerem o dilema entre
história e verdade, indicavam a mudança proposta por Benjamin de sair de um método de
relação classificatória abstrata para uma abordagem dos fenômenos como ideias em
constelações compreendidas em sua função salvadora, que, de tal forma, evitaria a
identificação imediata de uma ideia ao fenômeno 57. Ainda, ressaltava Zamora a concepção
adotada por Benjamin de ter a filosofia como uma ciência da origem, como um programa de
salvação dos fenômenos que intentava “dar conta daquilo que sucumbiu ao esquecimento
histórico e, ao mesmo tempo, construí-lo” para buscar a verdade que não dependeria apenas
do sujeito situado na história, mas da “representação do passado em sua atualidade” 58. Além
desta busca pela origem que Zamora sugere ser um plano parecido ao da Dialética, Benjamin,
em seus trabalhos sobre a modernidade – no caso o ensaio sobre Baudelaire e sobre Paris no
século XIX –, traria a percepção das imagens dialéticas que articulavam momentos da pré-
história em relação com os signos modernos, despertando também a relação próxima entre
antiguidade e modernidade. As imagens dialéticas também estavam presentes em suas teses
Sobre o conceito de história que, tal como a imagem do anjo de Paul Klee, retomava a visão
do passado não a fim de interpretá-la, mas de fazer vislumbrá-la como possíveis explosões do
continuum histórico que poderiam fazer justiça às vítimas esquecidas. Sobre Adorno, Zamora
analisou seu texto sobre Kierkegaard que conteria a influência desse mesmo ponto do
pensamento de Benjamin sobre dar luz às ruínas do passado que Adorno teria utilizado para
questionar a identidade entre sujeito e objeto, a qual era exigida pela dialética kierkegaardiana
centrada sobre a interioridade burguesa. Nesse texto, Adorno suscitava, para Zamora, a
relação entre mitologia e modernidade ao criticar a tentativa de Kiekegaard de recompor a
mitologia na atualidade numa tentativa de apresentar a pré-história como natural. O que já
concernia Adorno seria a preocupação desenvolvida em sua aula inaugural A atualidade da
filosofia – que Zamora destacou como central para entender o verdadeiro sentido da
Dialética59 – de que a tarefa da filosofia não consistia em reconstruir a totalidade do
descontínuo e fragmentário, mas de interrogar os fenômenos a partir da dialética entre
natureza e história. Essa dialética teria que “mostrar de modo concreto por que a história
transcorre como se possuísse um caráter natural, mas também como essa natureza segunda em

57
Id. Ibid., p. 137-139.
58
Id. Ibid., p. 140, tradução própria.
59
Id., Ibid., p. 155.

25
que se congelou a história seria na realidade uma aparência que poderia ser eliminada por
meio da explicitação de sua constituição histórica”60.
A partir dessas leituras, Zamora apresenta que o objetivo da Dialética do
esclarecimento não era, como apresentava Habermas, abandonar as categorias econômico-
políticas do materialismo histórico e reorientar a investigação para uma filosofia da história
negativa que tinha como objetivo a crítica da razão instrumental com base em Nietzsche e não
em Marx61, mas teria o objetivo de elucidar a dialética entre natureza e história, visando
romper com a aparência enganosa de um processo de civilização que anunciava se afastar do
passado mítico e avançar para a emancipação individual e social. O retorno às origens teria a
intenção, de acordo com Zamora, de compreender como o mito, tomado como natureza, havia
ampliado a distância de um projeto emancipatório. O mito seria a petrificação de um sentido,
uma funcionalização unilateral da natureza que excluía qualquer dinâmica transcendente. Ele
teria se convertido em autoconservação. Da mesma forma, poderia ser entendida a razão
moderna segundo Zamora. O processo de esclarecimento, que desencantava o mundo, seria,
de fato, o crescente domínio instrumental sobre a natureza e, portanto, a liberação prometida
do estado natural havia sido subsumida sob a função de autoconservação62.
Zamora admite que a análise da modernidade contida na Dialética está em
convergência com a tese weberiana de desencantamento do mundo, porém, a diferença
apresentada em sua leitura seria que o autor considerava que Horkheimer e Adorno teriam
uma intenção de crítica ideológica, assim, a base de que teriam partido estaria mais vinculada
à Marx. O que Horhkheimer e Adorno afirmavam era que, no mundo secular, burguês
capitalista, o mito permanecia não como irracionalidade ou como competição politeísta
irreconciliável, mas “na mesma racionalidade instrumental e de troca moderna”. Segundo
Zamora, o que estava em questão não seriam variantes históricas ou antropológicas, mas sim a
afirmação de que o mito era constituinte da estrutura da sociedade capitalista e perpetuava o
retorno do sempre igual em caráter coercitivo 63. Ainda, o autor expunha que, ao afirmarem na
obra uma sociedade integrada de modo hermético e subtraída do controle racional dos
sujeitos, um universo social sem escapatória, estariam Adorno e Horkheimer explicitando que
o esclarecimento tornado mitologia havia convertido a história em destino mítico, em coerção
generalizada. A análise crítica desse processo de conversão mítica poderia vislumbrar o que
60
Id., Ibid., p. 156-157, tradução própria.
61
Id., Ibid., p. 131.
62
Id., Ibid., p. 164.
63
Id., Ibid., p. 168.

26
nele estaria mascarado: “a história de sofrimentos e esforços do trabalho vivo e também da
desigualdade e exploração social”64. Disso, Zamora defendia que a Dialética não era uma
troca do primado marxista da economia em favor de uma filosofia do poder, em vez disso, a
obra teria suscitado a uma expansão da dominação para fatores extraeconômicos, porém,
compreendendo que “o domínio não é efetivo fora do sistema econômico, mas somente
através dele”65. Para o autor, neste sentido, o princípio da troca não haveria deixado de ser o
regulativo da sociedade capitalista e a Dialética não seria uma ruptura com a crítica da
economia política.
A aporia de questionar totalmente o pensamento esclarecedor e ainda insistir em sua
necessidade pertenceria à coisa em si e não ao somente ao conhecimento sobre a coisa, assim,
persistiriam os autores nela. Adorno e Horkheimer estariam conscientes da contradição
performativa que criaram, mas refletiriam que “a autorreflexão capaz de desencantar um
esclarecimento desmistificador até a queda na mitologia não pode adotar um ponto de vista
exterior ou absoluto”66. Para Zamora, aos autores, somente restava o caminho de lançar-se na
realidade contraditória com a arma da negação determinada. O potencial de liberdade na
Dialética estaria expresso na análise denunciativa – ainda que aporética – sobre a ideologia do
progresso que haveria conduzido à sociedade, a subjetividade, a cultura e a história. A
investigação presente na obra pretendera ler a história da modernidade a contrapelo e
remontar o seu declínio para que não se esquecesse, a fim de rememorar suas vítimas e evitar
sua repetição, de uma barbárie como Auschwitz67.
Há pouca bibliografia no Brasil que se dedique a refletir sobre o conjunto dos ensaios
da Dialética do esclarecimento. Muitos estudos aparecem sobre a indústria cultural, sua a
abordagem literária de Adorno e Benjamin e sobre a crítica musical adorniana, mas sobre o os
ensaios que compõem a Dialética pouco podemos encontrar. Portanto, a seleção que segue,
apresenta três comentadores que, ao reconstruir o pensamento adorniano, reinterpretam a
Dialética e, portanto, podem se inserir no diálogo que tentamos promover com a bibliografia
internacional. De todo modo, os pesquisadores que são apresentados trazem convergências
intensas às demais bibliografias aqui tratadas e também promovem reflexões fundamentais ao
debate sobre a questão da dominação e não-dominação.
Marcos Nobre, certamente o pesquisador de maior destaque nesses estudos, possui
64
Id., Ibid., p. 166.
65
Id., Ibid., p. 174.
66
Id., Ibid., p. 128.
67
Id., Ibid., p. 129.

27
vários escritos sobre a teoria crítica, porém nos concentraremos em três destes estudos: o livro
de introdução ao pensamento da Escola de Frankfurt denominado A teoria crítica, o livro A
dialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do estado falso e o artigo publicado em
conjunto com Inara Marin intitulado “Uma nova antropologia. Unidade crítica e arranjo
interdisciplinar na Dialética do Esclarecimento”. O que primeiramente pode ser notado é que
há na leitura de Nobre uma proximidade com a interpretação habermasiana sobre a Dialética:
a obra seria uma “investigação sobre a razão humana em amplo espectro”, anunciaria um
“sistema social que bloqueou estruturalmente qualquer possibilidade emancipatória e
transformou os indivíduos em engrenagens de um mecanismo que não compreendem e não
dominam e ao qual se submetem e se adaptam, impotentes” 68 porque vislumbraria “uma
única forma possível de racionalidade”69. Nobre concluiria disso que não seriam “mais
discerníveis as tendências reais da emancipação”70. Como Jay colocara, haveria também em
Nobre a afirmação de partida sobre a Dialética que ela representava uma virada para a teoria
crítica já que a obra teria realizado o abandono do paradigma de pesquisa centrado sobre a
economia política71, porém, apresentava Nobre que haveria, apesar de algumas “rupturas” ou
“fissuras”, continuidade no pensamento de Adorno do “paradigma” da Dialética em obras
posteriores nos anos 196072.
Em sua análise da Dialética, produzida em conjunto com Marin, Nobre apresentou
outras questões para além da interpretação habermasiana. Ressaltaram os autores a
composição da obra como fragmentos que estaria distante de apresentar uma teoria
sistemática e faria o uso de referências de pensadores e obras díspares e incompatíveis,
contribuindo para sua fragmentação73. Em contraposição, o que possibilitaria compreender a
unidade da obra, seria a mudança da base da economia política para um modelo cujo centro
estaria na psicanálise. Aproximam-se, deste modo, os dois autores da interpretação de
Honneth. A leitura realizada por Nobre e Marin propõe que há predominância de Horkheimer
no modelo crítico adotado na Dialética, uma vez que enfatizava o uso da ideia de construção
de uma antropologia filosófica que estava destacada no prefácio da Dialética e que

68
Nobre, M. A teoria crítica. 2a. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 51, grifo do autor.
69
Id., Ibid., p. 52, grifo do autor.
70
Id., Ibid. p. 52.
71
Nobre, M.; Marin, I. L. “Uma nova antropologia. Unidade crítica e arranjo interdisciplinar na Dialética do
Esclarecimento”. Cadernos de Filosofia alemã, nº 20, pp. 101-122, jul-dez/2012, p. 104.
72
Nobre, M. A dialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras,
1998, p. 16.
73
Nobre, M; Marin, I. L. “Uma nova antropologia”, op. cit. p. 103-105.

28
Horkheimer já apresentara em textos anteriores. Disso, os intérpretes atribuiriam uma nova
perspectiva para a compreensão da aporia da Dialética: a aporia da obra deveria ser buscada
em “uma nova antropologia, entendida como uma versão transformada de teses freudianas” 74.
A relação entre mito e esclarecimento, tese principal da obra, somente poderia ser entendida
se articuladas à presença de outros conceitos como “medo”, “temor”, “angústia” e “terror” 75.
Nessa apropriação de Freud por Adorno e Horkheimer, a possibilidade de liberdade estava
num comportamento mimético que poderia ser alcançado pela sua expulsão do domínio
racional como autoconservação, que, para Nobre e Marin, remetia a ideia de recalque
freudiano76. Essa possibilidade estava, no entanto, bloqueada pelo medo e pela angústia do
desconhecido que o esclarecimento visava extirpar77. Desse modo, a Dialética somente
poderia ser apreendida pela sua constelação constitutiva que seria uma “constelação do
terror”78 e seu diálogo com Freud permitiria entender o afastamento que ela apresentava da
antropologia do jovem Marx, do processo de racionalização weberiano apreendido sem a
multiplicidade de esferas e do conceito de reificação lukácsiano que não abordava a limitação
histórica do capitalismo e nem incorporava o conceito de totalidade 79. A utilização do jogo
das pulsões freudianas seria realizado de maneira sócio-histórica por Adorno e Horkheimer,
resultando na inevitabilidade da dominação80. Para Nobre e Marin, isso não indicava que a
Dialética fosse um modelo aporético somente, mas apontava para um “bloqueio objetivo da
práxis, da ação verdadeiramente transformadora”, isto é, as possibilidades de liberdade
existiriam na sociedade, mas não estavam visíveis para respaldar a práxis. Isto, todavia, não
poderia ser confundido com “ausência de potencial crítico”81.
Nobre enfatizava em seu estudo sobre Adorno que não se seria possível ignorar o
prefácio feito por Horkheimer e Adorno em 1969 à Dialética do esclarecimento em que os
filósofos anunciavam que o movimento em direção à integração total estava suspenso. Se
estava suspenso, expunha-se que algumas fissuras abertas em relação à dominação total e,
assim, o texto revelava pequenas indicações de mudanças o que poderia ser visto nos escritos
posteriores de Adorno. Um exemplo seria, para Nobre, que os textos seguintes de Adorno

74
Id., Ibid., p. 106.
75
Id., Ibid., p. 109-111.
76
Id., Ibid., p. 110.
77
Id., Ibid., p. 111-115.
78
Id., Ibid., p. 119.
79
Id. Ibid., p. 117.
80
Id. Ibid., p. 119.
81
Id., Ibid., p. 120.

29
pareceriam apresentar uma real dialética entre indivíduo e sistema social, diferentemente da
obra de 1947, onde esta relação teria aparecido como subsunção. O comentador ainda
considerou que o diagnóstico da Dialética fora fundamental para a continuidade dos textos
adornianos, de modo que estes permaneceram indagando acerca da liberdade, mas não a partir
de sua afirmação conceitual ou de situá-la em sua possibilidade de realização, mas partiam da
indagação sobre a não-realização da liberdade. Nas palavras de Nobre, os textos adornianos
seguintes continuariam a Dialética se questionando “por que a emancipação não se deu e
continua a não se dar?82”. Tal indagação era o que moveria a elaboração teórica de Adorno
para interrogar a teoria marxista. Se o marxismo, de acordo com Nobre, era guiado pela
esperança que a emancipação ocorresse pelo desenvolvimento das forças produtivas que
permanecendo em contradição com as relações de produção de modo que através da ação
política poderia se irromper a revolução, o que Adorno teria ressaltado em seus escritos e que
iniciara na publicação da Dialética em conjunto com Horkheimer teria sido que não haveria
contradição mais evidente entre forças produtivas e relações de produção. Forças produtivas e
relações de produção estavam, no século XX, vinculadas e produziriam uma unidade, o que
resultava em sua transformação em segunda natureza e na constituição de uma “aparência
socialmente necessária”83. Enquanto aparência ilusória era necessária na medida em que
continha em si a contradição e nela permanecia seu momento de verdade, sua possibilidade de
não-identidade, permitindo, portanto, vislumbrar indícios para uma possível emancipação 84.
O que a “ilusão necessária” aludia seria uma “tensão entre o sistema da dominação e a utopia
de reconciliação”, a “dialética da verdade e inverdade do princípio da identidade”, o “sentido
fluido das fronteiras entre imanência e transcendência”. A teoria da ilusão necessária,
nomeada por Adorno de “ontologia do estado falso”, indicaria a não-identidade ao sistema
enquanto possível, o que somente a dialética negativa poderia expor. Ainda que a necessidade
deste estado falso fosse diangostica na Dialética, apenas a Teoria estética e a Dialética
negativa85 de Adorno trariam a conceituação do falso necessário, abrindo as possibilidade de
compreensão de uma possível emancipação.
No mesmo rastro das leituras de Nobre, se encontra a de Adriano Januário em sua
recente dissertação. Januário analisa as obras Dialética do esclarecimento, Minima moralia e
a tardia Dialética negativa em busca de compreender os potenciais de resistência no
82
Nobre, M. A dialética negativa de Theodor W. Adorno, op. cit., p. 44.
83
Id., Ibid., p. 48.
84
Id., Ibid., p. 163.
85
Id., Ibid., p. 164.

30
pensamento de Adorno, caminho semelhante ao que pretende a presente pesquisa. Como as
duas leituras anteriores, a leitura de Januário marca a distância da Dialética do esclarecimento
do projeto da teoria crítica e anuncia a obra como portadora do diagnóstico de emancipação
bloqueada. Na obra, o horizonte estaria “completamente turvado” 86, os autores anunciariam
uma nova forma de capitalismo em que se dava como a integração total, havendo a vigência
de um bloqueio estrutural da ação transformadora, em que o aparato social dominante haveria
atingido a consciência individual87. Diante desse sistema, as possibilidades de liberdade não
se postulavam como possíveis e restaria apenas aos indivíduos a conformação ao sistema. Nas
palavras de Januário, “resta apenas aos indivíduos a autoconservação mediante a adaptação
acrítica à realidade social como esta se apresenta. Do ponto de vista do aparato social
dominante, os indivíduos são considerados nada mais do que peças de um sistema social
complexo que, em última instância, serve à troca e ao mercado”88. O autor retomava o
argumento de que o retorno ao mito grego seria uma análise trans-histórica da razão 89 e
partiria ainda da análise de Nobre de que a Dialética somente pode ser compreendida como
uma antropologia de base na psicanálise, entretanto, assumia que haveria uma preocupação na
obra em partir da especificidade de modernidade, postulando a relação entre técnica e ciência
como central na análise do esclarecimento90. A tese principal da Dialética remeteria, segundo
Januário, às relações enlaçadas entre mito e esclarecimento em que o mito trazia em sua
estrutura intenções de dominação e manipulação, constituindo-se também como
esclarecimento, e o esclarecimento teria se relevado mito, uma vez que compartilharia com os
mitos o seu conteúdo de explicação como repetição – no sentido de originada por leis –, tendo
eliminado a ilusão mágica91 e com a reafirmação do mito como “destino”, garantindo o
retorno do sempre igual, reforçando uma relação de equivalência, de identidade entre todas as
coisas92. Segundo Januário, compreender a consequência do esclarecimento se tornar mito
seria fundamental para ver o bloqueio das possibilidades emancipatórias que a Dialética
anunciava. Com base na repetição e instituindo o retorno do mesmo, o esclarecimento
igualava todas as coisas, reduzindo as possibilidades de experiência e, apesar de acabar com a
86
Januário, A. M. Th. W. Adorno e os Potenciais de Resistência no Capitalismo Tardio Industrial. 2013. 118p.
Dissertação (Mestrado em Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2013, p. 6.
87
Id., Ibid., p. 6-9.
88
Id., Ibid., p. 8, grifos do autor.
89
Id., Ibid., p. 8.
90
Id., Ibid., p. 22.
91
Id., Ibid., p. 23.
92
Id., Ibid., p. 24.

31
antiga desigualdade – na medida em que no mercado, todos são compradores sem vínculo
com sua origem –, eternizava, de fato, as desigualdades ao mediá-las pela produção de
mercadorias; apresentava-se, desse modo, como coerção social total93. Nessa anulação de
diferenças, a individuação teria sido eliminada ao passar a ser determinada pela produção, ela
ainda tornava as pessoas massas manipuláveis, resultando na anulação da capacidade de
resistir à dominação instituída pelo esclarecimento94. O pensar tornara-se procedimento
automático, instrumento de cálculo, baseado em fórmulas matemáticas, excluindo-se da
exigência de pensar sobre o pensar. Como a verdade no esclarecimento tornou-se a
correspondência entre teoria e fatos, o pensar não mais realizava reflexão sobre o exercício do
pensamento, estando bloqueado pelo medo da ausência de fatos, ao qual estava adaptado, sem
poder ir além do mundo administrado95. Daí ressalta Januário que “recair na mitologia
significa então aceitar o mundo como é dado. O mundo totalmente esclarecido acaba se
revertendo em seu contrário. Ao invés de libertação da dominação da natureza, o
esclarecimento conduz as mulheres e os homens à dominação num sentido mais amplo” 96.
Não só a dominação social se daria sobre o indivíduo de maneira mais coercitiva, mas a
própria relação do indivíduo consigo mesmo haveria se tornado coisificada. Essa coerção
somente poderia ser vista como um integração total, que vinculada ao progresso social,
produziria um bloqueio à emancipação ao tornar impossível a resistência à dominação.
Na obra Minima moralia, apesar do horizonte ser o mesmo da Dialética, segundo
Januário, haveria a presença de nuances que se difeririam da Dialética e que abririam outras
possibilidades de diagnósticos que Adorno teria trabalhado em obras tardias. Na Minima
moralia, o que estaria em questão seriam as possíveis condições em que as tendências para a
emancipação seriam perceptíveis. A obra não traria, como a Dialética, projeções
emancipatórias, mas diferente desta, apresentaria possibilidade na experiência individual de
perceber a dominação social coomo bloqueio à autonomia individual97. Na obra, Adorno teria
indicado que a sociedade capitalista não haveria conseguido eliminar da vida a suspeita de
confundir a aparência com a própria vida, o que faz Januário apresentar a interpretação de que
“ao contrário da Dialética do esclarecimento – que não há qualquer indicação de outro ponto
de partida da crítica a não ser a própria denúncia de dominação mediante a apresentação da

93
Id., Ibid., p. 24-25.
94
Id., Ibid., p. 26.
95
Id., Ibid., p. 32.
96
Id., Ibid., p. 33.
97
Id., Ibid., p. 38-39.

32
dialética do esclarecimento – a 'suspeita' é de onde Adorno parte para organizar a crítica à
dominação, mesmo que o termo 'suspeita' tenha uma indicação um tanto indeterminada,
vaga”98. Se a contradição seria evidente sob o capitalismo liberal, em sua forma administrada,
restava somente experenciar a dominação sem aguardar por sua dissolução. Januário
ressaltava, porém, que essa percepção da “suspeita” não estava presente no diagnóstico da
década de 1940 e que ela indicava uma mudança, ainda que leve e sutil na elaboração teórica
de Adorno. A concepção da experiência – que aparece na Minima moralia – permaneceria
apoiada sobre o sujeito burguês, mesmo historicamente condenado, já que não haveria em
vista outro sujeito para sustentá-la. Os bloqueios à emancipação poderiam ser apontados a
partir dessa subjetividade em vias de dissolução que poderia vivenciar a dominação capitalista
e, assim, “encaminhar racionalmente a crítica”99. A Minima moralia ao indicar o “modo mais
concreto” para se avaliar a dominação, se afastaria da Dialética, cuja intenção era investigar
como se dava a dominação100.
Nos textos dos anos 1960, Januário identifica que aparecem nos textos a utilização
do termo “resistência” não eram presentes nos textos anterior, mas que adviria da
possibilidade de crítica anunciada na Minima. O prefácio de 1969 feito à Dialética do
esclarecimento já apresentava que o movimento de totalização estava suspenso, indicando,
portanto, resíduos da liberdade perceptíveis. Januário ressaltava que o texto Tempo livre de
Adorno ainda trazia algumas indicações sobre as possibilidade emancipatórias e de resistência
à dominação. O texto que era uma investigação sobre a aceitação das pessoas de um
casamento de uma monarquia europeia exibido pela televisão, levantava a constatação de
Adorno que, mesmo tendo sido grande o número de telespectadores do evento, em maioria, os
espectadores não consideravam o assunto relevante e avaliavam a transmissão de modo
crítico. Adorno indicava aí que a aparente aceitação contínua das pessoas sobre o que a
indústria cultural lhes oferecia não vinculava-se a uma interiorização imediata dos
espectadores sobre o transmitido, mas, ao revés, pareceria indicar algum modo de reserva
sobre o que assimilavam. Para Januário, esta análise de Adorno indicava uma mudança do
diagnóstico do tempo presente que permitia ver “potenciais de 'resistência' que se expressam
nos indivíduos”101. Na análise de outros textos adornianos, Januário apresentava a perspectiva
de emancipação como forma de maioridade [Mündigkeit], trabalhada por Adorno a partir de
98
Id., Ibid., p. 40.
99
Id., Ibid., p. 42.
100
Id., Ibid., p. 43.
101
Id., Ibid, p. 64-73.

33
um estatuto burguês que necessariamente deveria perseguido em contraposição ao estímulo
contínuo da sociedade para ações heterônimas. Para Adorno, de acordo com Januário,
somente um sujeito emancipado, no sentido de Mündigkeit, seria capaz de resistir à
dominação102. A maioridade era compreendida como um aspecto do esclarecimento que não
poderia ser extirpado, mas deveria ser estimulado pela educação 103. Essa concepção também
marcaria um afastamento da Dialética, por apresentar um tipo de pensar dado pelo
esclarecimento que iria além do pensamento matemático relatado naquela obra obra como
único. Haveria, portanto, nas obras posteriores de Adorno um pensar reflexivo na dimensão
do esclarecimento apontado como estímulo desejável.
Se Januário abordou as rupturas da obra adorniana que permitiriam ver uma abertura
maior nos escritos às possibilidades de liberdade, muito diferente se colocava a interpretação
de Rodrigo Duarte quanto à questão da ruptura. O autor, que buscava analisar a concepção de
domínio da natureza em Adorno na sua obra Mímesis e racionalidade, via o conjunto da obra
de Adorno a partir da Dialética como unidade: os temas dos anos 1960 já estavam presente
nos anos 1930 e a Dialética do esclarecimento já anunciava os temas tardios da Dialética
negativa e da Teoria estética104. A Dialética constituíria uma filosofia da história específica,
para Duarte. A obra seguiria as preocupações anteriores de Adorno apresentadas em seu
estudo sobre a história natural e seu estudo da filosofia de Kierkegaard, se moveria ainda
pelas teses da história de Benjamin e viria no rastro do conceito de desencantamento do
mundo de Weber. O que estava em questão na Dialética seria o domínio da natureza pelo
humano que se reforçara pela ciência e por seus métodos e técnicas fundamentados sobre a
substitutibilidade universal e ampliava a capacidade humana de intervir e dominar o meio
ambiente, porém, trazendo um “efeito colateral insuperável desse processo” que seria a
coisificação105. A interpretação de Duarte assumia, tal como outras interpretações, que a
coisificação advinha como vingança da própria natureza: os humanos estariam mais apartados
da natureza apesar de a dominarem, estariam alienados das relações que estabeleciam entre si
e permaneceriam desviados de sua própria natureza 106. Partindo disso, o autor apontava que
haveria na Dialética uma indicação de liberdade vinculada à relação com a natureza. A esta
indicação, o autor relacionava às concepções adornianas sobre a natureza. Primeiro, ressaltava
102
Id., Ibid., p. 79.
103
Id., Ibid., p. 80.
104
Duarte, R. Mímesis e racionalidade: A concepção de domínio da natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo:
Loyola, 1993, p. 14-16.
105
Id., Ibid., p. 59.
106
Id., Ibid., p 92-93.

34
Duarte que não haveria a concepção de natureza primeira em Adorno e que, quando alguma
conceitualização era sugerida, ela apareceria como algo a ser superado, o que se poderia
observar como sendo o motivo da recusa adorniana à filosofia heideggeriana de busca
autêntica baseada numa origem puramente natural 107. Ainda, haveria a crítica fundamental de
Adorno quanto à ideia de segunda natureza em que o progresso estava enredado e
naturalizado e que tinha levado à catástrofe da sociedade 108. Na Dialética, “as menções à
natureza como uma instância que deve ser superada, para que o Eu possa vir a se constituir
enquanto unidade, o que certamente se liga à sua preservação física, levam, entretanto, à trilha
do não-idêntico”109. Duarte indicava que a ausência de liberdade e a dominação sobre o
mundo e sobre o eu, estavam presas à categoria de natureza, assim, uma liberação só seria
possível ao se estabelecer uma relação de não-domínio com o meio ambiente, o que se
poderia vislumbrar, por exemplo, na relação entre crianças e animais, uma vez que as crianças
não os julgando a partir de sua utilidade estabeleceriam uma proximidade que não estava
submissa ao processo econômico110. O autor acrescentava que uma das posições de Adorno
que adviria da Dialética e era relacionada à capacidade dos indivíduos de resistir às
intervenções do capitalismo tardio seria o fortalecimento do ego que forneceria aos indivíduos
às condições para rejeitar a totalização social, para constituir uma relação não-identitária,
ainda que isso implicasse num processo de formação que não se afastasse da dominação 111.
Essa importância da formação do ego seria visível na Dialética na análise de Horkheimer e
Adorno do mito de Ulisses que, além de um retorno às origens, seria uma alegoria do mundo
administrado112.
Há, claramente, certo descompasso entre as interpretações apresentadas. Teóricos
fundamentais para a teoria social contemporânea como Habermas e Honneth foram colocados
ao lado de historiadores da filosofia e pesquisadores sem maiores reconhecimento no campo
científico internacional. Este feitio não teve a intenção de reduzir a importância dos autores,
mas sim colocá-los lado-a-lado como elaboradores de interpretações possível da Dialética na
aspiração de que suas leituras, mesmo em desarmonia, cada uma a sua maneira, pudesse
fornecer indícios essenciais para a releitura que se pretende.
Não remontaremos aqui as distinções entre as interpretações, mas destaquemos aqui
107
Id., Ibid., p. 61-65.
108
Id., Ibid., p. 69-72.
109
Id., Ibid., p. 66.
110
Id., Ibid., p. 74.
111
Id., Ibid, p. 89-90.
112
Id., Ibid., p. 94.

35
alguns pontos. Em primeiro lugar, todos os intérpretes ressaltam que a concepção de
dominação abordada na Dialética se alterou. Assim, o foco desta pesquisa de compreender o
estatuto da dominação que a obra apresenta, vem do entendimento que este articula e realiza
todas importantes diálogos como os intérpretes parecem observar: reinterpreta o conjunto e a
questão da unidade na teoria crítica e potencial crítico exposto Dialética do esclarecimento,
aprofunda a teoria social e sociológica em sua compreensão das relações sociais e da
existência da sociedade, reinterpreta bases fundamentais do marxismo sobre a dominação
social e o progresso da sociedade capitalista. Ainda, a questão geral que os comentadores nos
trazem sobre a dominação é que sua abordagem na Dialética passou a ser compreendida para
além de uma dominação de classes. Nas interpretações que expusemos, a dominação na
Dialética adquirira o caráter de dominação da razão ou dominação da natureza. Suas
influências, inevitavelmente, haviam expandido sua base marxista para incorporar influências
freudianas, weberianas, nietzschianas. É preciso que consideremos esses aspectos em nossa
leitura.
Vislumbrando ou não possibilidades emancipatórias, as interpretações enfatizam que
não há projeto de emancipação declarado. Muito diferente de Marx, ou das próprias intenções
iluministas, não há imagem ou conteúdo programático que pautassem para os frankfurtianos
qualquer busca a uma sociedade emancipada. Se existem vestígios de emancipação, enquanto
alguns intérpretes os apresentam somente em obras de autoria de Adorno posteriores à
Dialética, outros as veem na obra como conteúdos ínfimos e enfatizam que a Dialética teria
antes seu foco voltado mais ao diagnóstico sobre a dominação que sucumbia a sociedade do
século XX e sua denúncia, do que a intenção de fornecer qualquer indicação de não-
dominação. A referência maior de contraposição à dominação acabava, nesse sentido, por ser
a própria existência da Dialética enquanto recusa da dominação.
As diferentes leituras parecem divergir sobre a resignação ou não da obra. Mas,
algumas delas enfatizam o importante aspecto de que a ausência de perspectivas
emancipatórias, ou sua fragilidade, e ainda sua associação com um diagnóstico de dominação
que condenava a razão e o esclarecimento, colocava os frankfurtianos como fortes herdeiros
do pensamento romântico alemão. Desse modo, antes de nos dedicar a leitura da obra, parece
fundamental entender como se dava a recusa romântica da razão e do esclarecimento.

36
CAPÍTULO 2 – ESCLARECIMENTO COMO FORMA DE DOMINAÇÃO CAPITALISTA

“– […] Se não me engano, o senhor se arvora em revolucionário. Mas se


acredita que o resultado das revoluções vindouras será a liberdade, iludiu-se
redondamente. O princípio da liberdade cumpriu seu destino e chegou a ser
antiquado nos últimos quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje
pretende ser a filha do racionalismo e vê os seus meios formativos na crítica,
na libertação e no culto do eu, na destruição de formas de vida determinadas
de um modo absoluto – tal pedagogia pode obter ainda hoje passageiros
triunfos retóricos, porém o seu caráter atrasado é óbvio para os espíritos
avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras souberam
sempre o que em realidade deve ser o último objetivo da pedagogia: a
autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia
a si próprio, o domínio da personalidade. Em última análise, desconhece e
não ama à juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O
que ela aprecia mais é a obediência.
Joachim empertigou-se. Hans Castorp corou. O Sr. Settembrini torcia
nervosamente o belo bigode.
– Não senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era
não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que
deseja, o que criará é – o terror”.
Thomas Mann, A montanha mágica

2.1 O pensamento alemão e a civilização como dominação

Seria imponderado afirmar que a crítica que a Dialética faz ao esclarecimento


enquanto dominação que afasta os indivíduos de uma vida mais humana teria sido
singularidade da obra de Horkheimer e Adorno. A crítica à razão, aos princípios iluministas,
aos percursos tendentes da história da civilização e, ainda, às consequentes formas de não-
liberdade estavam presentes no pensamento alemão desde o movimento pré-romântico Sturm
und Drang1. Tal movimento, que envolveu Johann Georg Hamann, Johann Gottfried Herder e
os jovens Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller, inspirava-se na filosofia
iluminista anti-iluminista2 de Jean-Jacques Rousseau e anunciava, tal como ela, a dominação
do indivíduo pela civilização e pela razão como forma de conduta única e seu consequente
afastamento progressivo da liberdade. A célebre frase de Rousseau de que “o homem nasce

1
“Tempestade e Ímpeto” na tradução literal.
2
A filosofia de Rousseau é considerada iluminista por respaldar-se na recusa da religião como guia moral e
político da sociedade – tal como outros iluministas defendiam –, porém, Rousseau contrapunha que o
desenvolvimento das ciências e das artes, o progresso do comércio e da história não estava conduzindo os
indivíduos à liberdade, mas sim a servidão. Olhando sob o segundo aspecto, a filosofia rousseauniana também se
articula como persistente crítica ao iluminismo. Cf. Nascimento, M. M. “Rousseau: da servidão à liberdade”. In:
Weffort, F. C. (org.) Os clássicos da política. Vol. 1. 13a. Ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 189-200.

37
livre, e por toda a parte encontra-se a ferros”3 congregava o objeto que percorria sua obra ao
intentar, de forma precursora4, uma análise crítica da formação das sociedades, expondo que o
desenvolvimento destas e de seus produtos – que prometiam a liberdade, tais como a arte, a
ciência, a religião e o Estado – eram responsáveis pelo seu oposto: o declínio da vida dos
indivíduos, a limitação de sua autonomia, a decomposição das virtudes naturais, a ampliação
da desigualdade social e a constante restrição da autorrealização plena. Em seu Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau intentara
compreender como o estado de natureza, em que todos se encontravam na posse das virtudes
naturais, da força e da liberdade social, havia sido sobrepujado pela organização
civilizacional, resultando no enfraquecimento, amedrontamento, subserviência e dominação
dos indivíduos que aceitavam uma sociedade firmada em bases de exploração e
desigualdade5. Assim, Rousseau questionava como o povo pudera adquirir “uma tranquilidade
imaginária” fornecida pela artificialidade da sociedade burguesa “pelo preço de uma
felicidade real”6 que era possível na vida em consonância com a natureza.
Com crítica análoga a de Rousseau acerca da civilização como forma de dominação
que produzira a alienação dos indivíduos da vida plena natural, o movimento pré-romântico
alemão se instituiu. Ao repelir o classicismo francês, seu formalismo, suas normas e regras
racionais julgadas como frutos da artificialidade, da representação burguesa, cotejava, em
oposição, tendências irracionalistas, subjetivismo radical, exaltação da alma, expressava o
Weltschmerz – melancolia, descontentamento e angústia perante as formas que o mundo
assumia que não se mostravam coincidentes com os ideais mais sublimes almejados pelo
espírito –, colocava ênfase na poesia e nas canções populares e afirmava como projeto de
superação do automatismo e tecnicismo iluminista um retorno ao primitivo e às paisagens
arcaicas7. Rousseau exaltara na figura do bom selvagem o indivíduo “robusto, ágil, corajoso”
3
Rousseau, J. J. Do contrato social. In: ______. Os Pensadores: Jean-Jacques Rousseau. Tradução de Lourdes
Santos Machado. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 22.
4
Rousseau é apresentado por Durkheim como um dos percursores da sociologia por preocupar-se em seu
conjunto de ensaios e discursos em determinar como os indivíduos estabeleceram a sociedade. Cf. Durkheim, E.
Montesquieu e Rousseau: pioneiros da sociologia. São Paulo: Madras, 2008, p. 73, 85-97. Honneth argumenta
que, apesar de ser termo cunhado por Hobbes, Rousseau fora o fundador de fato da filosofia social ao concernir-
se sobre o processo de degeneração das sociedades consequente ao avanço da modernidade. Cf. Honneth, A.
“Patologías de lo social. Tradición y actualidad de la filosofía social”. In: ______. Crítica del agravio moral:
patologías de la sociedad contemporánea. Tradução de Peter Storandt Dillet. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econômica: Universidad Autónoma Metropolitana, 2009, p. 54-56.
5
Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: ______. Os
Pensadores: Jean-Jacques Rousseau. Tradução de Lourdes Santos Machado. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
1978, p. 241.
6
Id., Ibid., p. 235.
7
Rosenfeld, A. “Aspectos do romantismo alemão”. In: _____. Texto/ Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.

38
que não se tornara fragilizado e de costumes falseados dados pela sociabilidade, pela
educação que o moldavam na razoabilidade8 e ainda enaltecera os costumes gregos, em
especial de Esparta, em contestação à cultura cristã advinda da Idade Média9; os pensadores
envolvidos no movimento buscavam seu acalento nas paisagens naturais e bucólicas, nos
trabalhadores simples e fortes, na intensidade e naturalidade dos sentimentos, apresentavam
como refúgio um retorno à natureza original perdida, que remetia a um reino autônomo e
ético da liberdade, muitas vezes inspirado no mundo grego ou no renascimento, e aludiam aos
poetas como Homero ou às obras de Shakespeare10.
Werther de Goethe, que abriu as portas do movimento e que viria a se tornar
representante mais fiel do pensamento pré-romântico ou ultrarromântico, foi a personagem
mais emblemática dessa busca da liberdade na natureza, no irracional, nos sentimentos e do
repúdio aos domínios da civilização burguesa. O tom confessional em que o romance é
conduzido expressava o indivíduo arrebatado perante a natureza (“nunca fui tão feliz; nunca o
sentimento da natureza, ainda que me fixando em uma pedrinha, em uma pequena planta, foi
em mim tão completo e tão profundo...” 11), que renegava as cidades (“A cidade, em si, é
desagradável, mas os arredores, a natureza é incrivelmente bela”12), rejeitava as regras (“toda
regra sufoca o verdadeiro sentimento e a verdadeira expressão da natureza” 13) e também
rejeitava toda arte e forma de conhecimento que não se aproximasse da natureza, associando
essa capacidade a somente a antiguidade clássica grega (“pergunta-me se deve enviar
livros?... Em nome do céu, amigo, mantenha-os longe de mim! Não quero mais ser guiado,
excitado, animado: meu coração já se agita o bastante por si mesmo. Preciso apenas de um
canto que me embale, e já o encontrei plenamente em meu Homero. Quantas vezes meu
excitado sangue se acalma na harmonia de seus cantos!”14). Enaltecia as pessoas de origem
148.
8
Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, op. cit., p. 239-
241.
9
Rousseau, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes. In: ______. Os pensadores: Jean-Jacques Rousseau.
Tradução de Lourdes Santos Machado. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 334-342.
10
Butler, E. M. The tyranny of Greece over Germany. Cambridge: University Press, 1935, p. 85-154; Rosenfeld,
A. “Aspectos do romantismo alemão”, op. cit., p. 147-153; Rosenthal, E. T. A literatura alemã. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1980, p. 55-58. O próprio Goethe foi responsável pela difusão de
Shakespeare na Alemanha tendo escrito diversos textos sobre o inglês, associando-o sempre ao modelo clássico,
ao retorno correto à antiguidade, à natureza e pureza de forma e conteúdo. Conforme diz em um de seus textos
durante o período pré-romântico: “E eu chamo: Natureza! Natureza! Os homens de Shakespeare são a natureza.
Tomo todos eles para mim”. Goethe, J. W. “Para o dia de Shakespeare”. In: ______. Escritos sobre literatura.
Tradução de Pedro Süssekind. 3.ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 32.
11
Id., Ibid., p. 54.
12
Id., Ibid., p. 14.
13
Id., Ibid., p. 22.
14
Id., Ibid, p. 16.

39
simples, trabalhadoras, vinculadas ao campo (“um camponês saiu de uma casa vizinha e pôs-
se a consertar qualquer coisa naquele arado […]. Gostei do seu aspecto e dirigi-lhe a palavra
[…]. Logo fizemos amizade […], eu precisaria ter o talento do maior poeta para representar-
lhe ao mesmo tempo, de modo vivo, a expressão de seus gestos, a harmonia de sua voz, o
fogo celeste do seu olhar”), em contraposição à crítica que apresentava aos indivíduos
burgueses, burocratas, ligados à ciência (“o doutor, homem rígido como um fantoche, sempre
ocupado, enquanto fala, em arrumar as pregas e rendas dos punhos, considerou aquilo indigno
de um homem sensato”15; “o embaixador tem me causado muitos aborrecimentos, como eu já
havia previsto. É o tolo mais exigente do mundo” 16). Tal como Rousseau, censurava ainda os
indivíduos que buscavam o poder17 (“que gente é essa, criaturas cujas almas são absolvidas
pelas formalidades; cujos interesses e esforços, durante anos inteiros, estão exclusivamente
voltados em tentar conseguir a cadeira mais próxima da cabeceira da mesa de recepção!” 18).
Cristalizava-se em Werther o modelo heroico anti-civilização que viria a permear todo o
mundo alemão.
A aproximação dos pré-românticos alemães com Rousseau na acepção da civilização
enquanto dominação necessita ser exposta com diligência em alguns pontos. Em Rousseau, o
que fundamentava sua análise crítica de declínio civilizacional era um repúdio ao processo de
modernização, visto como uma nova forma de domínio comercial que se consolidava19. Ao
analisar a origem da desigualdade, o filósofo argumenta que de “crimes, guerras, assassínios,
misérias e horrores”20 seriam poupados os indivíduos se eles houvessem se rebelado com as
estacas daquele que cercou o primeiro terreno e o declarou propriedade privada 21. Os
15
Id., Ibid., p. 40.
16
Id., Ibid., p. 83.
17
Pode-se recordar que semelhante crítica foi realizada por Rousseau devido à proximidade dos filósofos com o
poder, em especial a relação de Voltaire com o Estado, conforme pode ser vislumbrado em Discurso sobre as
ciências e as artes.
18
Id., Ibid., p. 86.
19
Pode-se remeter ao argumento de Claeys que considera o Discurso sobre a origem e fundamentos da
desigualdade entre os homens como uma versão secularizada do pecado original em que o paraíso decaiu devido
às propriedades e posses: a propriedade comunal harmoniosa havia sido terminada pela imposição de um
contrato social que estabeleceu a dominação do rico sobre o pobre. Cf. Claeys, G. Utopia: a história de uma
ideia. São Paulo: Edições SESC SP, 2013, p. 106-109.
20
Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, op. cit., p. 259.
21
O filósofo explicita que não foi repentinamente que se progrediu do estado da natureza para o domínio da
propriedade privada, mas que foi necessário o desenvolvimento de técnicas contínuas. Constrói para explicar
esses processos de mudança argumento que parte do estado de natureza em que os indivíduos só adormeciam sob
as árvores e retiravam da terra tudo o que necessitavam para a autoconservação, passando pelos estágios de
invenção de moradias, vestimentas, de instrumentos, pela consolidação da família. Uma semelhante reconstrução
do desenvolvimento humano pautado na autoconservação, mas centrada sobre a relação entre poder e
conhecimento será encontrada na Dialética do esclarecimento. Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, op. cit., p. 259 e ss.

40
cercamentos estabeleceriam, a partir do arbítrio de quem os fez e da inocência de quem os
aceitou, as primeiras posses e a divisão entre mais poderosos e mais miseráveis 22, o que
resultara na troca, exploração e desigualdade entre eles. Assumia Rousseau que a sociedade se
formava com a origem da propriedade, o que implicava afirmar que as relações sociais eram
relações entre proprietários e despossuídos sobre riquezas e posses, voltadas à
autoconservação e que envolviam a alienação dos indivíduos da liberdade natural. Nessa
sociedade, as relações confirmavam-se como dominação. Nas palavras de Rousseau, “ergueu-
se entre o direito do mais forte e o do primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava
em combates e assassinatos”; seria desse momento que a sociedade se tornara “estado de
guerra”23 em que “o gênero humano, aviltado e desolado” não podia mais “renunciar às
aquisições infelizes que realizara”24. Em Do contrato social, Rousseau contestava o luxo
como riqueza não necessária que corrompia e subjugava os indivíduos uns aos outros 25 e
propunha que o Estado tinha como dever voltar-se para a igualdade entre o povo e enaltecia o
bom governo não como à evitava a guerra ou acumulava riquezas, mas sim enquanto aquele
que garantia a conservação e expansão da sua população, o que seria indicativo de uma boa
relação com a terra e não uma relação comercial com ela 26. A mesma crítica da civilização
como desenvolvimento comercial estava presente nas obras dos envolvidos no Sturm und
Drang. Se nos voltamos a Goethe, em Werther, é evidente o afastamento de qualquer ideia de
liberdade às noções de progresso, comércio e trabalho. O herói anti-civilização Werther sofre
na segunda parte do romance por ter obtido atividade para ocupar o tempo, o que fora
indicada a ele para que olvidasse da decepção amorosa. O trabalho conseguido teria a
finalidade de ajudar a se misturar à multidão, de tornar a pessoa mais insignificante e alternar
prazer com trabalho, fazendo com que se “avançasse” mais que outros indivíduos 27. Ao não
ser agraciado com todos os benefícios prometidos no trabalhar, Werther demonstrava toda sua
indignação contra esse mundo enaltecido progresso e centrado no desenvolvimento da técnica

22
Foi Rousseau quem utilizou os termos: plus puissant e plus misérables. Para aludir a essa diferença quanto a
propriedade de terra e as desigualdades, o autor também faz uso de riches e pauvres, respectivamente, ricos e
pobres. Rousseau, J. J. Discours sur l'origine et le fondements de l'inégalité parmi les hommes. Paris: Hatier,
2001, p. 70-71.
23
Desse argumento se pode observar como Rousseau se apartava de outros contratualistas como Hobbes.
Enquanto o segundo explicava a origem da sociedade, Estado e leis para evitar a guerra de todos contra todos,
Rousseau vê a sociedade como degeneração do indivíduo e das relações com a natureza.
24
Id., Ibid., p. 68.
25
Id., Do contrato social, op. cit., p. 85.
26
Id., Ibid., p. 98-99.
27
Conforme expresso por Werther que, em princípio, se encontrava esperançoso que tais benesses ocorressem a
ele. In: Goethe, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther, op. cit., 81-82.

41
e da especialização, o que resultava numa nefasta importância atribuída aos negócios, terras,
dinheiro e posição social. Goethe, ao expor a ideia de liberdade em sentido contrário das
formas modernas de trabalho28, indicava não apenas o advento do capitalismo liberal e as
relações sociais que o compunham – o que seria exposto com esmero na obra A riqueza das
nações de Adam Smith publicada apenas dois anos após Os sofrimentos do jovem Werther –,
mas colocava em perspectiva crítica o que as consequências objetivas da modernidade
capitalista produziam nos sujeitos. Mesmo na obra Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister, que é considerada romance de maturidade de Goethe e não mais relacionado ao pré-
romantismo29, sua crítica à utilidade burguesa das relações, aos assuntos comerciais no dilema
do jovem Meister, dividido entre a vida burguesa e a vida dedicada às artes – no romance,
dedicada ao teatro – como forma de buscar a vivência verdadeira não estão apenas presentes,
mas são o cerne do romance.
Se a causa da dominação e alienação da sociedade tinham origem no comércio e na
propriedade para Rousseau e, para os intelectuais alemães, a dominação havia se originado no
processo de modernização, as análises críticas realizadas por estes do progresso da civilização
traziam perspectivas emancipatórias que buscavam a retomada da liberdade perdida a partir
da superação do enredamento da dominação civilizacional entre os sujeitos. Nesse ponto,
temos um evidente afastamento entre Rousseau e os alemães. O filósofo 30 afirmava de partida
que, apesar da condenação do afastamento dos indivíduos da vivência harmônica com a
natureza que se deu com a origem da sociedade na fundação da propriedade privada, o estado
de natureza não era suscetível a um retorno31 e, portanto, a existência da civilização se tornara
28
Como argumenta Hill, ao estabelecer que para Werther era significativo a felicidade advinda do
relacionamento com a natureza, por exemplo, em cultivar os alimentos para consumo próprio, demonstrava não
uma rejeição ao trabalho para Goethe, mas sim ênfase significativa no trabalho não-alienado contra as formas
produzidas pela divisão social do trabalho entre tempo de trabalho e tempo livre. Cf. Hill, D. “'Die schönstern
Träume von Freiheit werden já im Kerker geträumt': The rhetoric of freedom in the Sturm und Drang”. ______.
(org.) Literature os Sturm und Drang. Rochester: Camden House, 2003, p. 166.
29
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister foi a obra que inaugurou o denominado romance de formação
[Bildungsroman], gênero culminante da vida do sujeito perante a vida fragmentada pelo advento da
modernidade. Obra de maturidade de Goethe, quando o autor abandonara a exacerbação irracionalista do
movimento Sturm und Drang e engendrava o que seria o classicismo alemão, narrava o percurso do jovem
Wilhelm Meister em busca do desenvolvimento de suas potencialidades; em busca de sua formação humanista.
30
Apesar de filhos de refugiados francês, “cidadão de Genebra” como se autodenominada Rousseau e escrever
em língua francesa, sua condenação à civilização que apresentava teses iluministas contra o iluminismo não
ressoava no mundo francês que o preteria a Voltaire; este se tornaria o modelo de intelectual iluminista para
França aderindo aos preceitos fundamentais da civilização e do modo de existência burguesa que respaldaria a
república. Como relembra Arantes, na Alemanha atrasada política e economicamente, de forma oposta, a crítica
iluminista da civilização de influência de Rousseau se tornaria regra. Cf. Arantes, P. Ressentimento da dialética:
Dialética e experiência intelectual em Hegel (Antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996, p. 178.
31
O estado de natureza, de acordo com Rousseau, talvez jamais tenha existido. Sua utilização em seus discursos

42
inexorável. Somente a sociedade, responsável pela desigualdade e pela dominação, seria
capaz de eliminar as mazelas que criara32. Daí que, para Rousseau, a emancipação possível
exigiria uma saída política33: era preciso um pacto social que fosse conduzido pela vontade
geral34, única capaz de promover o bem comum e, portanto, constituir na sociedade decaída
um estado de liberdade e igualdade social. A liberdade que se alcançaria desse pacto não seria
igual àquela natural, mas sim outra, uma convencional, que garantiria a defesa dos interesses
comuns de cada indivíduo que adentrara o pacto35.
Distinguia-se muito a concepção de emancipação nos alemães. Nem os pré-
românticos, nem a intelectualidade alemã que foi posterior ao movimento dividida em
classicismo e romantismo, promoviam qualquer potencial emancipatório vinculado a
quaisquer perspectivas políticas; inversamente, os alemães vislumbram o alcance da liberdade
a partir da cultura36. A política seria era uma máscara pública, uma inautenticidade, fruto do
fim da comunidade natural e verdadeira [Gemeinschaft], o que provocava um apolitismo
altivo nessa intelectualidade que passara a exaltar saídas no desenvolvimento da intimidade e
interioridade burguesas, na formação individual37. Ao propor a arte como condutora da
emancipação, assumiam os alemães – e nisso afastavam-se de Rousseau – a negação de
propostas políticas que contemplassem formas de governo, ações comuns e coletivas de
reorganização da sociedade. O projeto emancipatório agora estaria relacionado à retomada da
não é histórica, nem se dá enquanto busca da verdadeira origem, mas se dispunha enquanto um raciocínio
hipotético para esclarecer a essência da formação social. Cf. Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem os
fundamentos da desigualdade entre os homens, op. cit., p. 236.
32
Cf. Hawthorn, G. Iluminismo e desespero: uma história da sociologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 30-
37.
33
Podemos afirmar que o filósofo compreendia política como ações públicas que afetavam à sociedade e as
relações sociais em oposição às relações do âmbito privado. Política não dizia respeito à vontade, à
subjetividade, ao espírito, mas sim as formas públicas de organização material das vidas sociais.
34
Ao aludir à vontade geral, Rousseau expressava sua sensibilidade para que a emancipação fosse construída de
modo coletivo, de forma a unir o comum em todos os indivíduos. Cf. Rousseau, J. J. Do contrato social. In:
______. Os Pensadores: Jean-Jacques Rousseau, op. cit. p. 31-34, 43-48.
35
Podemos lembrar que o romance As afinidades eletivas de Goethe brincava com a possibilidade desse novo
pacto. As personagens principais atadas em laços convencionais do casamento ao serem expostas a novos
impulsos de relação com a natureza – no caso, o amor extraconjugal – eram chamadas a tornarem-se aptas a
constituir um novo pacto que pudesse ser mais propício aos desejos naturais. Como sabemos, as personagens
falham de forma irreparável culminando em trágicos acontecimentos. É a análise de Benjamin sobre a obra que
nos oferece abertura para tal interpretação. Cf. Benjamin, W. “As afinidades eletivas de Goethe”. In: ______.
Ensaios reunidos: Escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas cidades, Ed. 34, 2009.
36
Conforme enfatiza Lepenies, a literatura e a filosofia alemã que perdurou até o início do século XX se
postulava como “um ato político de renúncia ao próprio político e como legitimação do recuo da sociedade para
o mundo da esfera privada”. Lepenies, W. As três culturas. Tradução de Maria Clara Cescato. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1996, p. 203. Bruford argumenta que – o próprio Schlegel mencionaria – a
Bildung presente na filosofia de Fichte e na literatura de Goethe colocavam ambas – filosofia e literatura – na
mesma importância que a política. Bruford, W. H. The German tradition of self-cultivation: Bildung from
Humboldt to Thomas Mann. London: Cambridge University Press, 1975, p. 29-30.
37
Cf. Arantes, P. Ressentimento da dialética, op. cit., p. 177-183.

43
formação subjetiva dos indivíduos – o que era evidenciado pelos romances de formação como
Wilhelm Meister – e, logo, saíra do âmbito público, do coletivo, transferindo-se ao domínio do
particular.
A defesa das artes como lugar de liberdade indicava um afastamento dos projetos
públicos e políticos que Rousseau defendera, e ainda implicava outra apropriação dos
produtos da sociedade. Rousseau analisava que tanto as ciências quanto as artes haviam se
originado dos vícios humanos e eram, consequentemente, corruptoras da liberdade, dos
costumes e gostos naturais, tendo ambas nada acrescentado à verdadeira felicidade 38. O
mesmo teor crítico à ciência, assumindo-a impossível de conduzir uma vida mais livre, era
compartilhado pelos alemães. O romance Fausto revelava uma composição emersa desse
Zeitgeist alemão anti-científico: o protagonista se apresenta senhor da filosofia,
jurisprudência, medicina e teologia, mas se lamenta como um desventurado por não possuir a
sabedoria ao ignorar a experiência real39. Entretanto, não seria possível afirmar a mesma
crítica às artes; para os alemães, essas possuiriam sentidos emancipatórios. As artes, outrora
vistas como fontes da devassidão40, adotavam um caráter de oposição à ciência, à civilização e
à política, e ainda eram enobrecidas como propulsoras de relações harmônicas com a natureza
que poderiam alcançar a liberdade. Fora nesse embate que se originara uma das oposições
que, inevitavelmente, foi abrangida por poetas e filósofos alemães de todas as gerações
subsequentes: a oposição entre civilização [Zivilisation] e cultura [Kultur].
Foi o pré-romântico Herder quem primeiro utilizou a palavra cultura como exaltação
do espírito, fruição da liberdade e oposta à tecnicidade do mundo moderno 41. Até meados do
século XVIII, Inglaterra, França e Alemanha a utilizavam como sinônimo de civilização,
indicando um processo de crescimento, de desenvolvimento, de cuidado. Herder, porém,
escreveu em sua obra inacabada Sobre a filosofia da história para a educação da
humanidade42 que Cultur, como a palavra era grafada na época, não poderia ser atribuída

38
Rousseau, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes, op. cit., p. 350.
39
Nas palavras de Fausto “Ai de mim! da filosofia,/ Medicina, jurisprudência,/ E, mísero eu! da teologia,/ O
estudo fiz, com máxima insistência./ Pobre simplório, aqui estou/ E sábio como dantes sou! […] Sei ter mais tino
que esses maçadores,/ Mestres, frades, escribas e doutores; Com dúvidas e escrúpulos não me alouco,/ Não temo
o inferno e Satanás tampouco/ Mas mata-me o prazer no peito;/ Não julgo algo saber direito,/ Que leve aos
homens uma luz que seja/ Edificante ou benfazeja”. Goethe, J. W. Fausto: uma tragédia. Primeira parte.
Tradução de Jenny Klabin Segall. 2a. Ed. São Paulo: Ed. 34, 2014, p. 58-59.
40
Rousseau, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes, op. cit., p. 349.
41
Conforme William apresenta em seu estudo dos termos cultura e civilização. Williams, R. Palavras-chave: um
vocabulário de cultura e sociedade. Tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007, p.
119.
42
No original em alemão, Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menscheit.

44
igualmente a todas as nações e períodos, devendo ser pensada como multiplicidade, enquanto
estágios a serem atingidos. Vinculava-a ao conceito de cultura nacional e tradicional,
incluindo popular [Volk], e opondo-a ao que era mecânico, não-natural e tudo aquilo que
remeteria a um racionalismo abstrato; logo, o que se contrapunha ao conceito de cultura
passou a indicar o que se denominaria civilização 43. Os intelectuais pré-românticos e os
pensadores posteriores assumiram o conceito de cultura como reino da interioridade, lugar dos
sentimentos, da arte, da poesia, da comunidade, da autonomia, da liberdade; seria uma cultura
do espírito. Em sentido oposto estaria a civilização, relacionada a todas as consequências e
produtos do advento da modernidade capitalista: ela era o Estado nacional, era a política, a
ciência, os negócios e o trabalho, era produtora e movia-se pela técnica, pela racionalidade,
pelas regras e consequente artificialidade. A importância que assume o teatro e a poesia
dramática em Wilhelm Meister – para insistirmos em Goethe – como propulsoras da Bildung
por fomentar o perfeito desenvolvimento das capacidades humanas44 e das relações do
indivíduo com o meio social em confronto com as profissões burguesas vinculadas à técnica e
ao comércio às quais Meister estaria destinado pela classe que pertencia, vem corroborar a
centralidade da cultura na negação dos processos civilizacionais no pensamento alemão.
A cultura não apenas resguardaria em si as potencialidades de uma sociedade não-
dominada, mas ainda assumiriam nas formas artísticas – tais como a poesia e a literatura 45 – a
capacidade única de mediar a relação entre sujeito e objeto, podendo reconstituir a totalidade
e a organicidade da vida, que haviam sido fragmentadas pela civilização. Além do ensejo para
a emancipação, a arte se tornara forma única e adequada para a produção de conhecimento do
mundo social46, refletindo o todo de modo sensível e menos técnico e artificial como realizava
a ciência. Enquanto o projeto filosófico de Wilhelm Dilthey pretendia constituir uma filosofia

43
Williams, R. Palavras-chave, op. cit., p. 118-120.
44
Conforme o próprio Lukács ressaltava em seu ensaio sobre Goethe. Lukács, G. “Posfácio [Goethe und seine
Zeit]”. In: Goethe, J. W. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Tradução de Nicolino Simone Neto. São
Paulo: Ed. 34, 2006, p. 582.
45
Lepenies nos recorda que a Alemanha era um dos poucos países em que persistiu a distinção entre poesia e
literatura – compreendida enquanto romance – por um período superior aos de outros países europeus como
Inglaterra e França, o que se dava em virtude do desenvolvimento político-social atrasado da Alemanha. Cf.
Lepenies, W. As três culturas, op. cit., p. 205.
46
Conforme Georg Lukács em sua fase hegeliana defende em sua obra A teoria do romance, o romance teria
capacidade de reorganizar a totalidade social em sua forma histórica. A concepção de reorganizar a totalidade
social será, na obra posterior de Lukács, História e consciência de classe, transferida ao marxismo enquanto
filosofia e ao proletariado enquanto sujeito da práxis. Lukács, G. A teoria do romance: Um ensaio histórico-
filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. 2 a. Ed. São Paulo:
Duas cidades; Ed. 34, 2009, p. 69-85; ______. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética
materialista. Tradução de Rodnei Nascimento. 2a. Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 106-108; 308-
325.

45
da vida47 que aproximasse as ciências humanas – como história, filosofia – da poesia e evitar
as relações dessas com as ciências matemáticas e da natureza 48, o círculo de Stefan George
pretendia ir além da oposição simples entre poesia e ciência. Constituído em torno de George,
o grupo de intelectuais defendia o domínio do poeta sobre a sociedade, recusando os
princípios utilitaristas do entendimento aplicado que não pretendiam aperfeiçoar a beleza do
mundo49 e realizando poesia simbolista que orgulhava-se em falar das formas – de inspiração
na Antiguidade clássica – e que enaltecia a solidão poética apartada do tempo presente e da
história. Nessa pequena comunidade, tomada pelos membros muitas vezes como religião, seus
intelectuais queriam não apenas se opor à ciência, mas superá-la, criar algo que a substituísse.
Assim, tentavam embasar uma doutrina do espírito “sem regras”, um tipo de ciência superior
às demais e não-científica e ainda apropriar-se das funções da política e superá-la também, ao
projetar o estabelecimento de um “Estado-Poeta”, um “Reino Espiritual, acima dos reinos
separados por fronteiras raciais e econômicas, não limitado por montanhas ou fronteiras”50.
Somente nesse reino a liberdade sucederia e a verdade seria alcançada.
Embora a nivelação de civilização como dominação tenha ocorrido primeiramente
com os pré-românticos, essa acepção não se limitou a eles. Classicismo e romantismo que se
seguiram foram desdobramentos do seu antecessor que mantiveram em tensão sua busca pela
liberdade nas artes e a crítica do desenvolvimento da civilização. Ambos não salientavam
características como o irracionalismo e nem propunham uma volta árcade51, mas continuavam
a criticar o racionalismo tecnicista e abstrato que havia alienado os indivíduos e ainda
projetavam um aperfeiçoamento da relação entre civilização e natureza, mas prosseguiam
negando as saídas políticas. O romantismo não buscava mais o ímpeto fora da razão, mas
adquirira uma sobriedade romântica que pretendia escapar a dominação, assimilando o
processo civilizatório, mas fomentando-o numa reconciliação com a natureza reprimida, por
exemplo, nos jogos irônicos e na representação da infância na arte 52. Colocava em questão
47
A palavra “vida” tomara o lugar de “natureza” na Alemanha no fim do século XVIII, incorporando-se a crítica
às ideias centrais da ilustração francesa. Cf. Lepenies, W. As três culturas, op. cit., p. 209.
48
Lepenies, W. As três culturas, op. cit., 205-207; 214-218. Adorno ainda lembra que, neste projeto de aproximar
as ciências humanas e poesia para constituir a filosofia da vida, Dilthey temperara “ao gosto das entusiasmadas
classes médias alemãs o conceito de cultura espiritual como fim em si mesmo”. Adorno, T. W. “Teoria da
semiformação”. Tradução de Newton Ramos de Oliveira. In: Pucci, B.; Zuin, A.; Lastória, L. L. (orgs.), Teoria
crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010.
49
Ideias defendidas no primeiro volume de Blätter für die Kunst, a revista literária editada pelo círculo. Cf.
Lepenies, W. As três culturas, op. cit., p. 261.
50
Análise de Friedrich Wolters citada por Lepenies. Id., Ibid., p. 261.
51
Uma reconciliação com uma natureza não-humanizada continuava no horizonte nos românticos e as formas da
antiguidade clássica como formas de se atingir o belo na obra de arte no classicismo permanecessem atuantes.
52
Rosenfeld, A. “Aspectos do romantismo alemão”, op. cit., p. 154-162.

46
uma remitização do mundo para instituir uma sociedade livre e ausente de desigualdade:
revelava o saudosismo da totalidade e da unidade perdida, vinculada à ideia de comunidade
[Gemeinschaft], que pretendia reconstruir por meio da magificação que restabeleceria
conexões entre o passado e a vida presente e provocaria uma síntese entre natureza e
espírito53. O classicismo, por sua vez, foi fortemente influenciado pela filosofia humanista e
transcendental kantiana e esteve preocupado com a forma e o universalismo que as obras
deviam evocar, sempre vislumbrando a liberdade no bom, no verdadeiro e no belo como
características universais, tendo como meta de superação da dominação num sistema ético e
moral que conciliasse a razão e a natureza. Os dois movimentos foram centrais no século XIX
e suas diferentes abordagem da civilização como dominação provocaram a divisão dos
intelectuais alemães entre esses dois grupos.
Podemos relembrar ainda a importância que o tema adquiriu para obra de Friedrich
Nietzsche. O filósofo, que foi essencial para a Escola de Frankfurt, incorporara no foco da sua
obra a crítica da razão como dominação e do processo civilizacional, retomando o que ele
denominada como “a luta entre Rousseau e Voltaire por volta de 1760”54. Defendendo em sua
juventude, tal como os pré e os românticos, um retorno a um modelo grego – embora,
posteriormente, abandonasse tal postura –, não o concebia, porém, como lugar de harmonia e
da ingenuidade55, mas como espaço de luta, das paixões, da violência, dos sentimentos não
moldados numa convenção judaico-cristã56. Nietzsche estendia sua crítica à civilização aos
padrões e valores cristãos, associando tanto religião quanto mito à ciência, aos ideais
iluministas e os interpretando como igualmente responsáveis pela dominação dos indivíduos.
Era, porém, crítico da hostilidade alemã ao iluminismo que assumia o culto dos sentimentos
acima do culto do pensamento, por crer que este incorria no risco de “colocar o próprio
conhecimento abaixo do sentimento e – nas palavras de Kant, que assim definiu sua própria
tarefa – 'abrir novamente caminho para a fé, mostrando ao saber os seus limites'”57. A predição
de Nietzsche e os receios que demonstrava às críticas realizadas contra a ciência se
demonstrariam dolorosamente corretos durante o século XX quando Martin Heidegger, com

53
Id., Ibid., p. 162-168; Rosenthal, E. T. A literatura alemã, op. cit., 85-94.
54
Nietzsche, F. apud Moura, C. A. R. Nietzsche: cultura e civilização. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. XIV.
55
Como Nietzsche afirma que Schiller e Rousseau apresentaram. Nietzsche, F. O nascimento da tragédia. Ou
Helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 35.
56
A crítica de Nietzsche ao cristianismo é intensa, uma vez que para o filósofo este enfraqueceria o caráter dos
homens e, a partir disso, também se afasta de Rousseau que teria interpretado os selvagens a partir de moldes da
virtude cristã. Cf. Löwith, K. De Hegel a Nietzsche. La quiebra revolucionaria del pensamiento en el siglo XIX.
Tradução de Emilio Estiú. Buenos Aires: Katz Editores, 2008, p. 233-248.
57
Nietzsche, F. Aurora. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 140-142.

47
forte inspiração romântica, para uma crítica à ciência, fomentara sua filosofia da finitude sob
a fé e acabara por oferecer apoio filosófico à ideologia nazista.
Max Weber, embora certamente não possa ser postulado como pertencente ao
romantismo ou classicismo, estava também, de algum modo, mergulhado no tema. Weber não
realizara uma crítica da ciência em suas obras, nem tampouco poderia ser taxado como um
representante da ciência que era combatida pelos movimentos, mas suas obras mostravam
uma consciência dolorosa dos limites da razão 58. Ao analisar diretamente os efeitos do
processo de racionalização nos diversos fenômenos sociais, Weber afirmara que estes
produziam de forma inevitável o “desencantamento do mundo”: geravam fragmentação,
especialização, burocratização, eram movidos pela calculabilidade, acarretavam perda do
sentido imanente do mundo. Weber não propunha, porém, qualquer nostalgia ao passado e
tampouco assumia as artes como modelo para a formação do conhecimento 59. Explicitara de
forma dura em sua análise do mundo desencantado um cruel diagnóstico, no qual, resignado,
não indicava qualquer caminho para a emancipação: o racionalismo ascético do capitalismo
moderno, que prometera ser um leve manto, corria o risco de se tornar crosta rija de aço e,
assim, instituir um domínio no qual os indivíduos pareciam estar irresistivelmente atrelados 60.
Sob a mesma tese do desencantamento do mundo, Georg Lukács constituiria sua abordagem
teórica – tanto hegeliana em A teoria do romance, quanto marxista em História e consciência
de classe – e se constituiria influencia central para Horkheimer e Adorno na elaboração da
Dialética do esclarecimento.
O Zeitgeist do século XX foi o desdobramento do debate sobre civilização e
dominação que os períodos anteriores engendraram. O embate entre classicismo e romantismo
conjuntamente com a tensão entre Kant e Hegel 61 estiveram forçosamente nos escritos fossem
filosóficos ou literários do início do século. Heidegger, Hannah Arendt, Sigmund Freud,
Georg Lukács, Ernst Cassirer e, evidentemente, Horkheimer, Adorno e outros membros da
Escola de Frankfurt, e ainda escritores como Thomas Mann, Ernst Jünger, Hermann Hesse,
Bertold Brecht, Georg Trakl, estiveram imersos em seu tempo e produziram teorias, romances
e poemas que, inescapavelmente, manejavam as problemáticas da civilização e da razão
58
Cf. Lepenies, W. As três culturas, op. cit., p. 243.
59
Id., Ibid., p. 244
60
Weber, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 164-166.
61
De acordo com Almeida, ambas as tensões foram referências ao mundo intelectual alemão envolvendo todas as
obras fossem teóricas ou literárias do século XX produzidas na Alemanha. Cf. Almeida, J. “Introdução”. In:
Almeida, J.; Bader, W. (orgs.) Pensamento alemão no século XX. Volume 1. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p.
16-18.

48
enquanto dominação que movera também seus antecessores.
Sem pretender escamotear as diferenças entre os pensadores alemães tanto do século
XIX quanto do século seguinte, podemos circunscrever certa afluência entre eles nos
diagnósticos que suas obras expunham: o progresso civilizacional não levava forçosamente à
boa vida, não produzia sempre a emancipação, não infalivelmente conduzia à liberdade, e essa
aparente falha de função que colocava em dúvida a concepção de progresso era resultado da
direção da civilização pela razão como instância mediadora, técnica, regrada, que afastava os
indivíduos da natureza (uma vez que colocava fim ao orgânico, ao total, ao imediato), que
visava ordenar e minimizar os sentimentos e se colocava como “desalmada” (na sua tendência
de rejeitar os conteúdos). O que esses pensadores elaboravam, ainda que de formas distintas,
eram análises críticas da progressiva ausência de liberdade, da alienação crescente que os
indivíduos eram submetidos com o caminhar da civilização.
Sob esse modelo de crítica, cabe notar, a Alemanha se diferenciava fundamentalmente
dos pensadores franceses. Podemos explicitar essa diferença de concepção de crítica ao
remeter às distinções entre Ferdinand Tönnies e Émile Durkheim, cujas obras visavam
diagnosticar e constituir método de análise das mudanças que a modernidade produzira nas
sociedades. Tönnies, admirador confesso de Marx62 e influenciado pelos pensadores aludidos
aqui como Goethe e Herder, realiza em sua obra Comunidade e sociedade uma crítica do
percurso civilizacional que superara a comunidade [Gemeinschaft], de relações econômicas e
sociais familiares e rurais, baseadas nas vontades consensuais e estabelecera a sociedade
[Gesellschaft], onde se predominavam as cidades, as relações econômicas urbanas, anônimas
e comerciais e a vontade racional regulada por leis. Constituía, assim, uma sociologia que
bebia dos preceitos enaltecidos desde Sturm und Drang63. Durkheim, já ao resenhar a obra de
Tönnies, demonstra suas diferenças ao acusá-la de ser ideológica e de incorporar os conceitos
de forma dialética – lógica demasiado cara aos alemães, de acordo com Durkheim 64 –
ignorando os fatos. O francês em sua obra Da divisão do trabalho social, publicada cinco
anos após a obra de Tönnies, respondia diretamente a este e a alguns pensadores franceses que

62
Cf. Miranda, O. Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo: Edusp, 1995.
63
É preciso relativizar que, ainda que tenha elaborado o percurso da decadência da civilização em sua sociologia,
Tönnies enquanto marxista era otimista e acreditava na superação necessária do modelo da sociedade capitalista
para o socialismo. O autor apresenta uma teoria teleológica que postulava o necessário alcance do comunismo
pelo desenvolvimento da sociedade que, primeiramente, se constituiria como socialismo, permanecendo ainda
como um tipo de sociedade, mas que evoluiria de forma insuspeita à comunidade comunista. Cf. Tönnies, F.
Community and society: Gemeinschaft und Gesellschaft. New York: Dover Publications, 2002, p. 231-235.
64
Durkheim, E. Communauté et société selon Tönnies. Paris: Ink Book Édition, 2013.

49
adotavam críticas semelhantes à evolução da civilização 65 ao afirmar que a sociedade não
seria a decadência de uma moral natural como defendiam os herdeiros de Rousseau e a
evolução social não limitava a liberdade, mas, pelo contrário, expandia a liberdade individual,
ampliava a flexibilização das relações sociais66. Até mesmo os termos que Durkheim
empenhara para designar os tipos de solidariedade, característica de distintas sociedades,
demonstravam sua oposição ao que concebiam os alemães: as sociedades primitivas, com
diferenciação econômica e social simples, seriam movidas por laços de uma solidariedade
denominada mecânica – e não laços “naturais” conforme defendia Tönnies –, e suas
sucessoras, as sociedades complexas teriam predomínio de uma solidariedade não automática,
mas sim orgânica67, o que se contradiria a constatação do sociólogo alemão que, em seu
movimento de acompanhar Rousseau e os românticos, concebia que a sociedade era manejada
pelo racional, por leis, pela convenção, pelo artificial. A compreensão da sociedade por
Durkheim desafiava fundamentalmente a visão alemã de fragmentação do mundo e perda da
totalidade com o advento da modernidade. Ela compunha o modo crítico francês que
compartilhava o que já havia sido ilustrado por Voltaire: a modernização e o iluminismo eram
potenciais emancipatórios que encaminhariam os indivíduos à liberdade ao superar as relações
tradicionais, patriarcais, religiosas operantes na Idade Média e os modelos críticos seriam
aqueles que estariam aptos a sobrelevar quaisquer nostalgias de períodos anteriores,
assumindo as potencialidades do presente histórico como caminho que superaria as mazelas
das épocas anteriores.
Não surpreende a constatação de que a Dialética do esclarecimento, escrita por dois
alemães, compartilhe os caminhos desse modo crítico alemão e continue nos passos do que
fora iniciado pelos pré-românticos ao constituir crítica do rumo da civilização que observava
no seu condutor, o esclarecimento, não o produtor de um mundo mais livre, como apostavam
os franceses, mas um orientador de relações mais dominadas direcionadas à constituição de
um estado de barbárie. O que abisma, todavia, os estudiosos e intérpretes da Escola de

65
Pode-se lembrar que esta foi a disputa de Durkheim na Nouvelle Sorbonne contra os defensores da velha
Sorbonne que “deploravam a decadência do indivíduo criativo na moderna sociedade industrial”. Lepenies, W.
As três culturas, op. cit., p. 57.
66
Durkheim, E. Da divisão do trabalho social. 2a. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 409 e ss.
67
O uso do termo “orgânico” entre os intelectuais alemães dificilmente poderia ser associado aos efeitos da
modernidade. Podemos remeter a Lukács em A teoria do romance que explicita o fim da totalidade e
organicidade que se encontrava na Antiguidade, que resplandecia nas obras épicas de Homero, em oposição a
ascensão da modernidade e do romance como sua forma artística, concebendo a única totalidade possível após o
fim real da organicidade como “sistema abstrato”, “sistema de conceitos deduzidos”. Cf. Lukács, G. A teoria do
romance, op. cit., p. 70.

50
Frankfurt, e está como objeto consequente desta investigação sobre a dominação na Dialética
do esclarecimento, é como podiam dois pensadores que se denominavam marxistas e que se
vinculavam a um instituto de pesquisa voltado para seguir os modelos teóricos da obra de
Marx, aderirem a esta crítica que unia, além de literatos, sociólogos e filósofos, posições
conservadoras e progressistas do mundo alemão.
Conforme Lukács apontara de maneira precursora, a crítica da economia política de
Marx trazia impressa em suas linhas certas heranças do idealismo e romantismo alemão. Sua
crítica abarcava questões que haviam sido iluminadas primeiramente por Immanuel Kant: a
preocupação quanto à produção do conhecimento pelo sujeito em relação com o mundo, a
intenção de suplantar a religião pela ação humana, a dualidade entre sujeito e objeto, a
tentativa de conciliar teoria e práxis68. O intento de conceituar a natureza e história se
aproximava dos alemães rousseaunianos e ainda sua teorização do fetichismo também estava
em diálogo com todo diagnóstico de alienação humana que fora produzido por seus
antecessores69. Todavia, Marx não compartilhava a rejeição à modernidade e à técnica dos
nostálgicos alemães, mas, de modo inverso, postulava seu desenvolvimento – o
desenvolvimento das forças produtivas – condição para superação da sociedade alienada, o
que coloca Marx na contramão da crítica civilizacional alemã.
Em A ideologia alemã, Marx conjuntamente com Friedrich Engels afirma que “A
'libertação' é um ato histórico e não um ato de pensamento”, contrapondo-se, portanto, à
solução alemã de vencer o estado de dominação pelo desenvolvimento da filosofia, da
teologia e da subjetividade, e, em seguida, apresenta que a emancipação, de fato, “é
ocasionada por condições históricas, pelas condições da indústria, do comércio, da
agricultura, do intercâmbio”70. Para Marx, portanto, a possibilidade da autorrealização do
indivíduo na sociedade estaria vinculada ao desenvolvimento da civilização, ao sentido de
progresso. Fez-se fundamental em Marx a crítica que realizara aos pressupostos idealistas e
68
Cf. Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”. In: ______. História e consciência de classe, op.
cit., p. 240-308.
69
Vale notar que Marx, diferente do pensado por Rousseau em seus discursos, não concebe um momento idílico
no passado que teria sido não alienado e vivido pelos indivíduos enquanto comunidade primitiva. Se Rousseau
centra nesse passado remoto – que, no entanto, o filósofo assume não saber se realmente existiu – o momento
crítico para refletir de forma contraposta ao indivíduo na civilização, Marx não tinha sua crítica do presente
voltada a algum estágio anterior, mas sim para um estágio a ser realizado. A superação do capitalismo pelo
comunismo seria a realização do “homem enquanto homem”, seria o alcance de todas as potencialidades
individuais jamais alcançadas. O Contrato social de Rousseau, de certo modo, também intenta a realização do
homem humano no desenvolver da civilização, apostando numa vida mais orgânica, a que seria possível em
sociedade após a perda da vida em natureza. Cf. Lima, C. Genealogia dialética da utopia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2008, p. 94-105.
70
Marx, K; Engels, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 29.

51
utópicos que pretendiam superar a dominação voltando a um estado antecedente da
sociedade71, que não anteviam a marcha histórica como desenvolvimento necessário das
forças produtivas. É evidente, todavia, que Marx não era um apologeta do presente, do
capitalismo e suas formas de dominação. Ele argumentara que “no desenvolvimento das
forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio
que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de
produção, mas de destruição (maquinaria e dinheiro)”, porém, a esta afirmação, acrescentava
que tais forças criariam as condições necessárias à sua superação ao originar “uma classe que
tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens” e que,
portanto, configurando como maioria dos membros dessa sociedade, somente poderia se
impor “a consciência de uma revolução radical”72.
Situados em meados do século XX, passados cem anos da redação de A ideologia
alemã, Horkheimer e Adorno não vivenciaram a revolução rumo à sociedade emancipada que
seria realizada por essa classe, o proletariado, como apresentado por Marx e Engels, e, sim, o
seu inverso: vivenciavam estágios de barbárie promovidos pelo nazismo, fascismo e pelo
movimento socialista stalinista. Daí é manifesto que não poderiam mais dividir o mesmo
diagnóstico do momento revolucionário. Entretanto, mais que uma mudança de diagnóstico
do desenvolvimento histórico da sociedade no século XX, o afastamento de Marx pelos
autores aparece na Dialética do esclarecimento como mais profundo, uma vez que a obra
concebe a técnica e a ciência como componentes da força produtiva e declara que o
desenvolvimento dessas forças é responsável pelas formas mais enredadas da dominação
social que o século XX demonstrava. O progresso das forças produtivas as tornara somente
forças destrutivas e as constituíra como as formas de dominação deste século. Essa
discordância da teoria marxista significava, de fato, uma separação de Horkheimer e Adorno
da teoria da sociedade e da dominação como analisada por Marx? Ainda, a contestação às
teses marxistas implicava a Dialética ter sido elaborada no enlaço da crítica romântica como
uma filosofia pessimista da história73 aderindo a uma concepção de dominação como

71
Conforme fica evidente na crítica que Engels e Marx realizam aos socialismos utópicos no Manifesto
comunista. Ao que chamam de socialismo feudal – ligado às aristocracias rurais que condiz com parte da posição
dos românticos alemães –, dizem que a crítica que seria “em parte lamento, em parte pasquim; em parte ecos do
passado, em parte ameaças ao futuro. Se por vezes a sua crítica amarga, mordaz e espirituosa mordeu a burguesia
no coração, sua impotência absoluta em compreender a marcha da História moderna terminou sempre
produzindo um efeito cômico”. Marx, K; Engels, F. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 59-60.
72
Id., A ideologia alemã, op. cit., p. 41.
73
Conforme Honneth sugere em sua interpretação da obra. Honneth, A. The critique of power: reflective staves
in a critical social theory. Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1991, p. 37.

52
ressaltavam Goethe e os demais românticos?
À luz dos comentadores que se questionam como dois marxistas poderiam aderir aos
mesmos preceitos anticivilizatórios que mobilizaram, a saber, na mesma época, Heidegger, o
filósofo cúmplice do Estado nazista, podemos questionar quão profunda era a convergência
entre os frankfurtianos e os pensadores românticos alemães. E, da mesma forma, constatando
que Marx apresentara a posição divergente a essa ideologia alemã e não repudiava o
desenvolvimento civilizacional, ao confirmar que os autores resistiam a associar tal tese
marxista e elaboravam outra concepção de dominação e de sociedade não dominada,
significaria que se engajaram ao pensamento decadente alemão? Esmiuçando as teses da
Dialética, ainda cabem algumas questões sobre a obra e romantismo alemão. Como se poderia
interpretar a insistência de Horkheimer e Adorno ao não aderir às soluções políticas para
escapar à dominação total constituída pelo nazismo mesmo quando se antevia o fim da
guerra74 a não ser uma adesão à recusa da política como pretenderam Goethe ou o círculo de
George? A aproximação da investigação da dominação na modernidade como dominação do
homem sobre a natureza75 não seria um retorno aos temas pré-românticos e uma concordância
com Rousseau? A rejeição à ciência, aos métodos científicos acompanhada por um retorno às
artes como modelo para o conhecimento não-dominado realizada por Adorno após a Dialética
do esclarecimento76 e que já apresentava indícios na própria obra não era um consentimento
ao defendido por George, por Dilthey ou por Goethe? A desconfiança de qualquer
sistematização que teria sido levada ao extremo na Dialética77 não era um pronunciamento
wertheriano de que ordem e sistemas impediriam o ordenamento livre e natural que seria o
único que produzia a verdade enaltecendo a liberdade? Se estas adesões ao pensamento
romântico para conceber a dominação são pertinentes, não seria afirmar um abandono pelos
autores da crítica realizada por Marx? Afinal, restara algum posicionamento progressista na
Dialética?
A compreensão do que os autores delineiam como dominação do esclarecimento ou da
razão deve nos fornecer alguns caminhos para responder a essas perguntas. Dediquemo-nos à
tarefa

74
Como insistem as interpretações de Dubiel (1985), Jay (2008), Roberts (2008).
75
Ponto ressaltado por Jay (2008) e Honneth (2001).
76
Como critica Habermas (2010; 2012) em sua interpretação da Dialética do esclarecimento.
77
Argumento apresentado por Jay (2008).

53
2.2 Mito, esclarecimento e dominação

Foi como uma “calamidade triunfal” que Horkheimer e Adorno caracterizaram na


Dialética a sociedade totalmente esclarecida78. O projeto do esclarecimento, que prometera
uma sociedade emancipada em que os indivíduos triunfariam sobre uma natureza
desconhecida, eliminariam deuses e poderes externos e ascenderiam como únicos senhores do
mundo, revelava na ascensão dos regimes fascistas não as luzes de um idílio, mas as sombras
de uma distopia. Que calamidade distópica seria essa? No segundo parágrafo do capítulo
sobre o conceito de esclarecimento, os autores explicitam do que se trata: seria a união entre
conhecimento e poder que “não conhece barreira alguma, nem na escravização da criatura,
nem na complacência em face dos senhores do mundo”79.
Ao afirmar essa dominação da razão como “sem barreira alguma”, expõe-se a tese
emblemática da obra que afirma – contra o prognóstico kantiano, que anunciara a razão como
único meio emancipatório capaz de levar os indivíduos à maioridade 80, e o prognóstico
marxista, do desenvolvimento das forças produtivas que levaria à crise da produção e à
tomada de consciência para a revolução pelo proletariado – que o aprofundamento e a difusão
da razão, a ampliação dos processos racionalizadores e do desenvolvimento social que seria
capaz de fomentar a tomada de consciência, não estabelecerem uma sociedade permeada pela
liberdade, mas sim desenvolveram um outro modo de dominação. Contrariando parte do
pensamento marxista sobre a luta e exploração de classes, este poder não era mais o domínio
de uma classe sobre a outra – dos capitalistas, senhores do mundo, sobre o proletariado –,
todavia se constituía acima das classes e intrínseco a elas. Exploradores e explorados do
trabalho estavam dispostos a ele. A ascensão de tal poder não fora produzido por uma falha do
esclarecimento. Ao contrário, ao propagar a razão como domínio sobre a natureza, a história e
a subjetividade, o esclarecimento havia, democraticamente, realizado suas pretensões e
transformado os indivíduos em senhores, porém, em troca – sua forma de mediação das coisas
–, tinha exigido a alienação e sujeição de todos e cada um ao seu poder abstrato. O indivíduo

78
Horkheimer, M; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 17; Id., Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2010, p. 6.
79
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 10.
80
Kant, I. “Resposta a pergunta: Que é 'esclarecimento'? (Aufklärung). In: ______. Textos seletos. Petrópolis:
Vozes, 2013, p. 63 e ss.

54
deixara de ser objeto em face às instituições, à história, ao destino para ser sujeito, um sujeito
sujeitado, dominado por uma senhoria que se apresentava sem face, porém, com coração, que
tinha objetivos inequívocos: visava “o método, a utilização do trabalho dos outros, o
capital”81.
Três indagações são fundamentais a essa outra concepção de dominação que compõe a
tese primordial da Dialética. Primeiramente, cabe refletir sobre como o esclarecimento e a
razão são definidos pelos autores, a fim de tentar traçar quais elementos que os compõem e
que delineiam os motivos de não se constituírem como o caminho à liberdade e à autonomia
que anunciara o projeto iluminista. Inserido nesse aspecto, é preciso compreender a primeira
parte da tese anunciada na Dialética que declara que o esclarecimento se convertera em
mitologia. Num segundo momento, a partir da análise da contraparte dessa tese que afirmava
que o mito já era esclarecimento, queremos entender como se apresenta a exposição teórica
dos frankfurtianos sobre a declarada articulação da razão com o mito que fundamentaria seu
caráter como dominação. Tal exposição, partindo dos caminhos dos argumentos que os
autores elaboraram, deve-nos permitir reconstituir o que, afinal, seria esse outro modo de
dominação e no que ele se afastaria ou coincidiria com os modos de dominação
diagnosticados pelos herdeiros do iluminismo, pelo romantismo alemão e pela teoria marxista.
Feito este percurso, poderemos partir ao terceiro capítulo, a fim de questionar, em
tensionamento com o presente capítulo, se e como os autores refletiram acerca da não-
dominação na sociedade do século XX e de que maneira o texto afirmaria a permanência das
perspectivas emancipatórias e, portanto, não cairia num diagnóstico da dominação total ou no
assentimento à postulação romântica de coincidência entre dominação e civilização. Passemos
a elaborar tal percurso na expectativa que ele possa problematizar algumas certezas que as
interpretações apresentam da obra.
Declaram Horkheimer e Adorno que “o programa do esclarecimento era o
desencantamento do mundo”82. Pretendia emancipar os indivíduos da dominação exercida
pela natureza que inspirava o medo, que constituía poderes ocultos, que mantinha os
indivíduos atados em relações coercitivas reguladas pelas instituições tradicionais como a
igreja. Emancipar-se desses poderes significava alcançar a maioridade, isto é, – como
anunciara Kant – “servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”83. Para os teóricos do
81
Horkheimer, M; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 10.
82
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 17; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 9.
83
Kant, I. “Resposta à pergunta: Que é o esclarecimento? (Aufklärung). ______. Textos seletos. Petrópolis:

55
esclarecimento, eram os próprios indivíduos responsáveis por não estarem numa condição
emancipada e condutora do próprio destino84, cabia, portanto, a eles, libertarem-se das
instituições e dos deuses a partir da destruição do animismo, da expulsão dos deuses, da
desmistificação85. E isto se daria pela adesão à técnica, a certos procedimentos, à razão.
O que viriam a ser estes procedimentos racionais que compõem o esclarecimento?
Seriam eles: a lógica, as equações, as fórmulas, as operações, a probabilidade, o cálculo. O
esclarecimento era o caminho à liberdade por meio da razão enquanto normas, regras, como
método e – como os autores enfatizam na Dialética – como instrumento. O Discurso do
método de René Descartes, que nutre as bases de onde se erguerá o projeto iluminista da
ciência, traz manifesto a pretensão do seu autor de explicitar como, por meio de alguns
preceitos, se poderia chegar à verdade86. Preceitos que o autor firmava tomando como modelo
os geômetras e os matemáticos87. Horkheimer e Adorno não citam Descartes 88, mas sim
Francis Bacon e sua ênfase em tornar a ciência algo mais controlado, menos governado pelo
acaso, para, enfim, triunfar sobre a natureza. Bacon, segundo os autores, era alheio à
matemática, mas postulava a lógica formal como condutora necessária dessa superação 89. A
lógica seria a escola de unificação do esclarecimento, uma vez que “ela oferecia aos
esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo”90.
A despeito do alheamento de Bacon, a ciência que o prosseguirá enalteceria a
Vozes, 2013, p. 63.
84
Como Kant defende em seu ensaio “Resposta à pergunta: que é o esclarecimento”, e também Francis Bacon, o
que está explícito na passagem que Horkheimer e Adorno citam. Cf. Id., ibid., p. 63-64; Horkheimer, M; Adorno,
T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 17 e ss.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 9-10.
85
Horkheimer, M; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18 e ss.; Id., Dialektik der Aufklärung,
op. cit., p. 11 e ss.
86
Descartes, R. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 7, 22-23.
87
Id., Ibid., p. 24-25.
88
Alguns pontos interessantes sobre Descartes que cabem ser pertinentes à análise que a Dialética propõe do
esclarecimento merecem ser observados. Em primeiro lugar, Descartes diz apresentar seus métodos como
apartados da realidade, isto é, enquanto fábula. O uso da expressão fábula remete diretamente ao seu
afastamento do acontecimento histórico e seu uso como narrativa de tempo suspenso com sentido moral que está
sempre a se repetir tal como fariam os mitos. Tal assunção por Descartes parece afirmar a tese da Dialética de
que o esclarecimento se tornara mito. Ainda, pode-se notar que para Descartes relatar os preceitos do pensar para
obter a verdade, ele nos narra todo o seu processo de formação intelectual da infância ao momento presente da
escrita da obra, ressaltando os movimentos do seu pensamento na compreensão sobre o pensar. Este relato vem
explicitar justamente todo o processo formativo civilizacional, uma dominação de si, como Horkheimer e
Adorno explicitaram na Dialética, um processo de interiorização da razão a partir do surgimento do eu para
controlar os poderes externos. Poderíamos dizer que, se Bacon, citado na Dialética, explicita os procedimentos
para dominar a natureza e fazer progredir a conhecimento humano como controle dos indivíduos sobre a
natureza, Descartes expõe os procedimentos para dominar o próprio pensamento para a progressão do
conhecimento. Do ponto de vista da Dialética, seriam ambas as violências – da natureza e de si – eram
complementares e comporiam o projeto do esclarecimento.
89
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18-20.; Id., Dialektik der Aufklärung,
op. cit., p. 10-13.
90
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 20.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 13.

56
matemática como modelo. Vendo nos deuses e dogmas a causa dos indivíduos permanecerem
sob a não-liberdade, por tê-los atados a conteúdos fixos, limitados e irracionais, a razão
pretendia dominar a matéria “sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a
ilusão de qualidade ocultas”91, o que devia se dar pela adoção dos procedimentos matemáticos
que seriam neutros, exatos, imparciais. O número, desse modo, fora erigido como o cânone do
esclarecimento92 porque ele possibilitaria, num primeiro momento, neutralizar os valores e
conteúdos. Defronte aos mitos e crenças que mantinham os indivíduos crédulos à poderes
transcendentais que os colocavam numa vida heterônoma, a razão constatava com acuidade
que, sob tais mitos, se escondiam não outros poderes que não o da invenção humana
projetada. Denunciava, portanto, o antropomorfismo de todo mito, anunciando
invariavelmente, como indicam os frankfurtianos, a resposta que dera Édipo à esfinge: “é o
homem!”93. Perante esta contaminação do humano, seria somente a razão pautada sob o
número e suas derivações como o cálculo, as fórmulas, as equações, que poderiam constituir o
distanciamento necessário do objeto, a neutralidade para, de fato, instituir a verdade. Todavia,
uma verdade que não pretende ser una ou dogmática, mas uma verdade factual que
permaneceria válida até que fosse posta à prova por outro exercício do método perante novos
fatos.
Ausente de conteúdo, sem valores, sem mistério, sem busca da verdade eterna, a razão
movida pelo número não se atribuiria quaisquer intenções de deleite pelo saber, mas uma
mera operação. Seria uma “'operation', o procedimento eficaz”94. A razão deixara de possuir
fim em si, nenhum outro conteúdo lhe seria intrínseco, todavia, ela devia estar imbuída de
uma finalidade, de uma utilidade exata. Adquiria o caráter de ser forma para um fim útil.
Horkheimer, em Eclipse da razão, obra que se constituíra de uma série de palestras realizadas
na Universidade de Columbia em 1944 que trazia, sob um formato mais didático, as teses da
Dialética, apresenta que o percurso de ter um fim em si para buscar um fim, ou seja, de passar
de fim para meio, fora a mudança que se dera na história do conhecimento na transformação
da razão objetiva para a razão subjetiva. Enquanto a filosofia perseguia a razão objetiva, ela se
“se vangloriava de ser um instrumento para derivar, explicar e revelar o conteúdo da razão
como reflexo da verdadeira natureza das coisas e o modo correto de vida”95. O que ela visava

91
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 19.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 12.
92
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18-27.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 9-24.
93
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 19.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 12.
94
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 11.
95
Horkheimer, M. Eclipse of reason. Nova York: Oxford University Press, 1947, p. 14, tradução própria.

57
era “harmonizar a vida humana com a natureza, fosse em seu mundo externo ou entre o
próprio ser do homem”96. O advento da razão subjetiva teria eliminado a constituição política
da razão, seu conteúdo, para ser meramente técnica, não parte do todo social, mas para servir
a ele. Nas palavras de Horkheimer, a “razão se tornou completamente aproveitada para o
processo social. Seu valor operacional, seu papel na dominação dos homens e da natureza se
tornaram seu único critério”97. Movidas pelas astúcias dessa razão formalizada, tanto a ciência
quanto as ações cotidianas passariam a ser vistas como irracionais, ilógicas se não se
realizavam visando uma utilidade ou aludindo a outro propósito 98. Horkheimer exemplifica
que a ação de um indivíduo de sair da cidade e se retirar para as montanhas só poderia ser
compreendida por padrões utilitaristas, isto é, só seria considerada uma atividade “racional
somente se serve a outro propósito, por exemplo, a saúde ou o descanso, que ajudariam a
reconstituição dos seus poderes produtivos. Em outras palavras, a atividade é meramente um
instrumento, pois deriva seu sentido apenas por meio da conexão com outros fins” 99. É a partir
do crítica da razão enquanto meio, que realizam Horkheimer e Adorno, que tantas
interpretações apresentam a obra uma crítica da razão instrumental 100 como fazem as
interpretações de Dubiel e Habermas. Os frankfurtianos teriam, com a Dialética, dado
prosseguimento a concepção de Weber que – já aproximada por Lukács da teoria marxista em
História e consciência de classe – indicava o processo de modernização como racionalização,
isto seria, uma ampliação, sob a modernidade capitalista, de tipos de conduta prática racional,

96
Id., Ibid., p. 15, tradução própria.
97
Id., Ibid., p. 21, tradução própria.
98
Cabe uma observação pertinente sobre a rejeição à noção de utilidade pelos autores. Tal rejeição parece ter
sido fomentada pelas influências do romantismo como as primeiras obras de Goethe – que insistia em seus
romances em criticar todos os indivíduos, profissões e ações que estavam sempre voltadas a algum uso –
remetendo a uma proximidade com a crítica aristocrática que emergira contra o pragmatismo e utilitarismo
burguês. Ainda, é interessante notar certa insistência nas cartas de Adorno para Walter Benjamin em que ele
expõe ao amigo que não pode mais aceitar uma dialética materialista em que o conceito central seja o valor de
uso. Adorno argumenta para Benjamin, em crítica à concepção de dialética adotada por Brecht, que partir do
conceito de valor de uso não se realizava a adequada análise do caráter-mercadoria, mas apenas se reconduzia a
estágio anterior à origem da divisão do trabalho. Cf. Adorno, T. W. Correspondência 1928-1940. Tradução José
Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 111-112; 180-181.
99
Id., Ibid., p. 37, tradução própria.
100
Ainda que a razão seja explicitada enquanto instrumental na Dialética, a expressão “razão instrumental” não
está presente na obra. Dubiel faz uso dela para conceituar os períodos de elaboração teórica da Escola de
Frankfurt durante os anos 1940, que não mais teria definida uma tradição política intelectual que os estudos se
baseariam como em seu período inicial em que a base viria de Marx. Dubiel ainda apresenta que o período da
“crítica da razão instrumental” era a crítica da razão ocidental que concebia a história mundial como confronto
entre o indivíduo e a natureza e não o confronto entre as classes. O termo, no entanto, aparecera na tradução da
obra escrita em inglês por Horkheimer, Eclipse of reason, organizada por Alfred Schmidt nos anos 1960 e
revisada pelo próprio Horkheimer. Em alemão, o título escolhido fora Kritik der instrumentellen Vernunft. Cf.
Dubiel, H. Theory and politics: Studies in the development of Critical Theory. Tradução de Benjamin Gregg.
Baskerville: The MIT Press, 1985, p. 88 e ss.

58
em especial, de ações racionais voltadas a fins101.
A razão sendo conjunto de operações vazias, conceitos sem conteúdo e equacionáveis,
faz derivar outra característica: perseguir o objetivo da constituição de um sistema no qual “se
pode deduzir toda e cada coisa”102. Tudo deveria ser redutível a outrem, a multiplicidade
deveria ser eliminada em favor da ordem e da equiparação. O que não fosse passível de
comparação, não se reduzisse a números e não conduzisse à unidade, o esclarecimento não
aceitava em seu arcabouço, devolvia e o remetia a literatura 103. O que está em jogo para o
esclarecimento é o princípio da equivalência, uma vez que seria ele que permitiria a troca. “A
sociedade burguesa”, apresentam Horkheimer e Adorno, “está dominada pelo equivalente” 104.
Na direção do que já fora argumentado por Lukács em seu ensaio sobre a reificação das
consciências de que “a forma mercantil só se torna possível como forma de igualdade, da
permutabilidade de objetos qualitativamente diferentes pelo fato desses objetos […] serem
vistos como formalmente iguais”105, os autores expõem que a razão e seu ímpeto de esclarecer
querem reduzir o múltiplo à ordem e à forma padrão, produzindo, concomitantemente a
benesse do conhecimento útil, a possibilidade das trocas. Os últimos escritos de Platão que
equacionariam as Ideias aos números e à lógica formal que ofereceria a calculabilidade de
todas as coisas exprimiriam o mesmo ímpeto desmitologizante do esclarecimento: tornar o
heterogêneo comparável, reduzi-lo a grandezas abstratas, aproximar a justiça da matemática,
e, assim, expandir as mesmas equações que dominam “a justiça burguesa e a troca
mercantil”106. A razão demonstra aí sua união perfeita com o capitalismo. A propagação do
esclarecimento em suas diferentes faces – a modernização, o processo civilizatório, a
secularização, a racionalização – marcam a expansão das formas que interessam ao
capitalismo.
A razão como lógica abstrata não visa apenas à interpretação dos fatos passados e
presentes. Enquanto sistema, julga-se capaz de explicar e calcular todos os acontecimentos, o

101
Cf. Weber, M. Ensayos sobre sociología de la religión. Vol. 1. 2a. Ed. Madrid: Taurus ediciones, 1987, p. 18-
24. Weber define que agiria de maneira racional referente a fins quem “orienta sua ação pelos fins, meios e
consequências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às consequências secundárias,
assim como os diferentes fins possíveis entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo (e particularmente
não-emocional) nem de modo tradicional. Weber, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia
compreensiva. Vol. 1. 4a. Ed. São Paulo: Editora UnB; Imprensa oficial, 2004, p. 16.
102
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 20.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 13.
103
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 20.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 14.
104
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 20.; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 13.
105
Lukács, G. História e consciência de classe, op. cit., p. 200.
106
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 20.; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 13.

59
que faz explanando todo acontecimento como repetição do mesmo107. Daí que Horkheimer e
Adorno exprimam na primeira parte da tese mobilizada obra: o esclarecimento se convertera
em mito. Com isso, queriam dizer os autores que o esclarecimento, que eliminaria os mitos e
levaria indivíduos e sociedade à liberdade, no processo de romper com a lógica de sentenças e
destinos mitológicos, tornava-se forma de calculabilidade, colocava-se como sistema,
solidificava formas e imputava-se como método obrigatório de explicação de todo e qualquer
acontecimento, petrificando novamente as ações dos indivíduos tais como os mecanismos
mitológicos realizavam. Ao explicar pela lógica, as ações e reações como o retorno do mesmo
– se a, na condição de b, logo, c –, a razão havia apenas ocupado a função outrora realizada
pelos oráculos. O esclarecimento se tornara uma forma de dominação da razão abstrata que
exigia a redução de todas as coisas à sua lógica, o que não libertava os sujeitos, mas os
condicionava a um mundo igual, sem possibilidades de saída, de estruturas fixas tal como se
apresentava o mundo mitológico. Nas palavras de Horkheimer e Adorno, “a insossa sabedoria
para a qual não há de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo sem-sentido já teriam
sido jogadas, porque todos os grandes pensamentos já teriam sido pensados, porque as
descobertas possíveis poderiam ser projetadas de antemão, e os homens estariam forçados a
assegurar a autoconservação pela adaptação – essa insossa sabedoria reproduz tão somente a
sabedoria fantástica que ela rejeita: a ratificação do destino que, pela retribuição, reproduz
sem cessar o que já era”. O projeto iluminista no seu afã de novos tempos, próprio da
modernidade, pretendia romper com o tempo estático que predominara na Idade Média e
culminara no Absolutismo. Assim, como lembra Koselleck108, o projeto do esclarecimento
continha em si a ideia de história em movimento, transformável, que surgia como um tempo
dinâmico, em que as ideias de política, progresso e utopia estavam entrelaçadas. Seria essa
ideia de transformação do presente que o esclarecimento haveria amortecido ao solidificar a
razão como única via explicativa, tornando a fixar o mundo. Se o que concernia Horkheimer e
Adorno era a realização de uma interpretação crítica da ciência e filosofia esclarecidas que
tornaram a explicação da realidade uma análise estrutural e acabaram por reafirmar e

107
A crítica de Horkheimer e Adorno quanto à necessidade de sistematicidade do esclarecimento que busca
reduzir a realidade a leis que permitam compreender a própria realidade no passado, presente e futuro já era
realizada por Lukács. O marxista húngaro critica a proximidade da filosofia alemã com a matemática pura e
aplicada argumentando que “a relação metódica de seus axiomas com os sistemas parciais e os resultados
desenvolvidos a partir deles corresponde exatamente à exigência que o sistema do racionalismo coloca para si
mesmo, ou seja, a de que cada aspecto do sistema possa ser produzido, previsto calculado exatamente a partir de
seu princípio fundamental”. Lukács, G. História e consciência de classe, op. cit., p. 252.
108
Koselleck, R. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj,
Contraponto, 1999, p. 10-12.

60
consolidar o existente109, seria preciso colocar essa análise em suspenso e questionarmos a
própria obra dos autores que, de acordo com o que problematizam algumas interpretações,
teria incorrido no mesmo mecanismo por suprimir a possibilidade emancipatória do horizonte
histórico ao tomar o esclarecimento sob moldes de uma dominação estrutural e calar, assim,
as perspectivas de mudança da história. Voltaremos a essa problemática ao longo do texto.
Da tese de que a razão se tornara o pensamento mitológico em pleno século XX, vem
sua contraparte defendida na Dialética: o mito já era esclarecimento. “O mito”, dizem
Horkheimer e Adorno, “queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar,
explicar”110. De relato oral, o mito saltava para ser doutrina, progredindo em direção a uma
lógica discursiva que a magia ainda não conhecera. Os ritos mágicos continham a
representação dos acontecimentos e dos elementos a quem a magia remetia e permaneciam
enquanto função da repetição dos ciclos que os indivíduos estavam destinados, entretanto, a
realização da magia se dava sem a identificação do feiticeiro ao poder superior invisível ou
pelo exercício do poder sobre o objeto; na magia, a identificação se dava pela mimese111. Isto
quer dizer que o feiticeiro assumia o ar dos demônios e deuses como máscara porque se
assemelhava tanto aos deuses, quanto à natureza e aos demais indivíduos; o feiticeiro não era
representante dos deuses, nem era sua imagem e semelhança, não se comunicava com os
espíritos como igual porque o seu “eu” ainda não estava formado como caráter impenetrável
da forma como o civilizado adquiriria e que a Odisseia, de acordo com Horkheimer e Adorno,
prestava testemunho. Apesar de apresentarem a intenção de exercer influência sobre as forças
naturais, o feiticeiro a exercia não pela sua onipotência, mas pela semelhança com essas,
demonstrando assim uma não completa separação entre o sujeito e objeto. Ainda, os ritos
mágicos se destinavam às próprias forças incontroláveis – o vento, a chuva, a doença – e não
a um representante ou exemplar da espécie 112. A coisa era a coisa-em-si que permanecia em
totalidade com a natureza. O que ocorreria com o desenrolar histórico e aprofundamento
109
Como Horkheimer e Adorno argumentam na Dialética, não foi a despeito do seu programa que o
esclarecimento constituíra-se como não-liberdade enaltecido por uma ciência estruturada, cíclica e a-histórica
como o positivismo. Ao revés, o esclarecimento era permeado por lógica que, ao desprender sujeito e objeto, ao
anunciar o sujeito como portador do sentido da história, instituía-se como mecanismo de dominação da natureza
e consolidava-se enquanto segunda natureza. A lógica que o conduzia era permeada pela mesma essência de
dominação que o mito, que pretendera destruir, continha: eram ausentes da história. Koselleck, a partir da análise
das ideias políticas do iluminismo, dá concordância a mesma tese apresentando que as ideias emancipatórias do
iluminismo traziam as influências do princípio totalizante do Absolutismo. Koselleck, R. Crítica e crise, op. cit.,
p. 115 e ss.
110
Horkheimer, M. Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 20.; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 14.
111
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 22; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 16.
112
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 21-22; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 15-16.

61
desses rituais seria uma progressiva separação do sujeito e objeto e a consequente aparição da
mediação. E fora na introdução do sacrifício que esse daria o primeiro passo
Ao comentar sobre o sacrifício, Horkheimer e Adorno esboçam que, enquanto na
magia, os objetos aparecem em sua substitutividade específica, estando o próprio objeto
presente e vinculando-se firmemente à natureza, “a substituição no sacrifício assinala um
novo passo em direção à lógica discursiva” 113. Isto significava que o primogênito fora trocado
no sacrifício por um cordeiro, marcando, desse modo, o surgimento da representação – o
cordeiro está no lugar de um indivíduo específico –, o animal sacrificial se coloca como
apenas um exemplar de gênero – não é a espécie cordeiro sacrificada, mas apenas um
exemplar –, e ainda o sacrifício aparece como forma de intercâmbio com os poderes
superiores. Haveria no sacrifício ritualístico um início de perda qualitativa dos seres,
indicando uma neutralização e redução do heterogêneo a fim de fomentar possibilidades de
troca, no caso, do filho pelo cordeiro, da espécie pelo exemplar, do indivíduo com os deuses.
Todavia, mesmo nas relações dados pelo rito sacrificial permaneceria a singularidade
adquirida pelo elemento substituto, isto é, o cordeiro substituto do primogênito se tornaria
sacro, o que a ciência posteriormente depreciaria114.
O desenvolvimento da mitologia esboçava relações muito mais coincidentes com a
ciência. De acordo com os autores da Dialética, fora o mito que consolidara a diferença entre
sujeito e objeto, o que apartava teoria e prática, objetificava a natureza e instituía a mediação
por definitivo. Ao colocar-se enquanto doutrina, apontava para uma fixação de conteúdos,
que, na magia, eram tidos somente como experiência viva. Com isso, acabava por
autonomizar o elemento teórico dos rituais, lançando-se como teoria que coordenava a prática
e dando a origem às funções que mediavam as relações com os poderes superiores como o
sacerdócio. A necessidade do relato indicava que os indivíduos não mais se encontravam com
a natureza numa totalidade, o que declarava a ruptura entre sujeito e objeto. Enquanto na
magia os espíritos e demônios eram materiais e parte da natureza, no mito, eles se
transmutavam em deuses que não eram suprema manifestação da natureza, mas apenas
representantes dos elementos naturais e, enquanto tais, dominavam e coordenavam a natureza
a partir da hierarquia de poder em que se constituíam115. De em-si, as coisas se tornavam para-
si e davam fim ao imediato.

113
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 22; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 16.
114
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 22; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 16.
115
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 21; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 14.

62
Assumindo o mito como início da mediação, os frankfurtianos apresentavam sua
inserção no debate central do romantismo que concernia às relações entre mito e linguagem.
Rousseau, mais uma vez, fora o pioneiro nessa discussão ao arguir que, no estado de natureza,
não haveria necessidade da língua, visto que, no instinto, os indivíduos encontravam tudo o
que necessitavam116, mas, da sua vontade de se relacionar com outros, sons se consolidavam
em palavras que apresentavam sentido figurado117; a linguagem assumia-se, deste modo, como
mediação e as palavras, representações 118. A função que a palavra exercia enquanto signo e
imagem, a Dialética mesmo indica, passara aos mitos119. O que mobilizava esse debate – e nos
permite aproximar a Dialética dele – seria a apreensão dos alemães em compreender o
momento em que as coisas deixavam de ser em si e o entendimento natural dos indivíduos
perante elas fora abandonado para o momento em que as coisas se tornarem distantes dos
indivíduos de modo a necessitarem de representações e explicações, o que se exprimia na
preocupação com o fim da totalidade e o surgimento da alienação. Podemos rememorar
Lukács que, em A teoria do romance, explicita cissura da totalidade na passagem da tragédia à
filosofia de Platão, mas que se encontraria inabalável em Homero. A epopeia seria, para o
filósofo húngaro, o mundo homogêneo, a totalidade perfeita em que “nele tudo ocorre, nada é
excluído e nada remete a algo exterior mais elevado”120. Horkheimer e Adorno não veem na
epopeia tal totalidade, mas sim a ruptura fundamental entre sujeito e objeto que abre caminho
para a ciência. Nem na epopeia, nem em nenhum outro ponto histórico, os frankfurtianos
apontam ser lugar dessa totalidade em que sujeito e objeto seriam totalmente coincidentes.
Parecem conceber a vida histórica sempre alienada e sempre sujeita a um progresso que não
produz a liberdade, mas conduz à alienação e à barbárie. Assumiam-se, deste modo, como
discípulos das teses sobre a história de Benjamin que declaravam ser regra o estado de
exceção e que o passado, prova do estado catastrófico permanente, era coleção de ruínas das
116
Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, op. cit., p. 246-
251.
117
Rousseau, J. J. Ensaio sobre a origem das línguas. In: ______. Os Pensadores: Jean-Jacques Rousseau.
Tradução de Lourdes Santos Machado. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 163-164.
118
Podemos relembrar neste debate texto de juventude de Benjamin que assume, a partir de influências
kantianas, a linguagem como o meio de comunicação da essência espiritual dos indivíduos que o liga à natureza
e a Deus. Benjamin, W. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”. In: _______. Escritos
sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34,
2011, p. 72-73. Posição semelhante é defendida por Ernst Cassirer que insiste na não relação entre mito,
linguagem como representação de algo empírico, mas como lógica simbólica que os indivíduos desenvolveriam
para se comunicar com os deuses. Cassirer, E. Linguagem e mito. Tradução de J. Guinsburg, Miriam
Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 21-23; 29-31.
119
Horkheimer, M., Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 27; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., 23.
120
Lukács, G. A teoria do romance, op. cit., p. 30.

63
constantes derrotas dos indivíduos121.
O salto que o mito promovera em relação à magia, e que antecipa o esclarecimento de
modo a permitir que mitologia e esclarecimento filosófico pudessem ser medidos no mesmo
plano, era, como ressaltavam Horkheimer e Adorno, dado pela mesma lógica que permeava
ambos. No mito, estava contido o princípio da necessidade fatal que explicava a desgraça do
herói, anunciada pela sentença oracular, como consequência lógica, como resultado
necessário das ações dos indivíduos. Sob o mesmo modo lógico, se explicavam as constantes
superações do pensamento mágico ao esclarecimento – dos demônios naturais aos deuses, dos
deuses ao deus, do deus à ciência. Seria um perpétuo crepúsculo dos deuses visto como
necessário em virtude da ira pela desonestidade atribuída à entidade suprema anterior. Desta
equalização da ação com a reação, adviria o processo sem fim do esclarecimento: haveria uma
concepção teórica que manifestaria a verdade, ela seria indagada por uma crítica arrasadora
até passar a ser denominada como crença e ser substituída por outra 122. Duas características da
razão que perpassariam mito e esclarecimento podem ser observadas dessa intenção
permanente de crepúsculo: em primeiro lugar, a ânsia da razão de explicar todas as coisas, de
englobar todos os fatos, de não admitir contradições, de indignar-se com o erro, o que já
estava presente nos sistemas morais dos mitos quando estes afirmavam que o erro e o desvio
deveriam ser punidos; em segundo, vemos o processo de equivalência da ação e da reação que
anunciariam o modo moral do sistema de crime e pena como uma troca necessária de valores,
já que a punição deveria corresponder à gravidade do crime. Horkheimer e Adorno, nessa
arguição da lógica de equivalência que movimentava o pensamento e a história em ciclos do
mesmo, aproximavam suas interpretações às de Nietzsche sobre o tema. Para Nietzsche, tal
lógica de igualdade, em que tudo deve ter o mesmo peso, teria se originado da relação entre
121
As teses de Benjamin anunciam que, contrariamente ao que concebera a filosofia da história, não seria para a
emancipação que caminharia a história, mas sim rumo à barbárie. A tendência do progresso não era o
aprimoramento do mundo, era sua permanente decadência. A transformação social não viria do progresso, mas
aconteceria somente se os dominados fossem capazes de romper, frear o continuum do sentido da história.
Benjamin, W. “Sobre o conceito de história”. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8a. Ed. São Paulo:
Brasiliense, 2012, p. 241-252. Poderíamos ainda lembrar que Nietzsche analisa a história da moral pela
linguagem e a concebe como sucessão de violências e coerções dos poderosos sobre os outros e dos fracos sobre
si. Nietzsche, F. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2013, p. 67-73. Freud desenvolve, em seus escritos, um exame da formação do eu que, vinculado a formação da
civilização, é construído como “coerção e a renúncia dos impulsos”. O eu se forma a partir de atos de violência
que limita o impulso de prazer que estimula as relações sociais. A história se instituiria, no aparelho psíquico,
como as contínuas construções e ruínas das coerções que o indivíduo foi sujeito. Freud, S. O futuro de uma
ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 39, 46-49. As teses da história de Benjamin e a análise do mito na
Dialética do esclarecimento partilham de influências tanto de Nietzsche quanto de Freud em sua abordagem da
história.
122
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 23; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 17.

64
comprador e vendedor, entre devedor e credor. De acordo com o filósofo, “estabelecer preços,
medir valores, imaginar equivalências, trocar – isso ocupou de tal maneira o mais antigo
pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o pensamento”123. Tal equalização,
própria do mito, seria incorporada pelo logos filosófico e pela ciência positiva, explanando
todo acontecimento como repetição e imobilizando a história, num processo eterno de troca
que o tornaria intrínseco a razão, elevando-o, dessa forma, a um modo de mediação universal.
O mito era esclarecimento porque vinha a constituir um processo de dominação
abstrata da realidade. O pensamento mitológico apresentava todos os indícios do seu
desenvolvimento posterior em razão: ele queria nivelar, reduzir, calcular, medir. No entanto,
esse pensamento dominador abstrato não seria originado meramente pelo desenvolvimento
das ideias e do espírito e também não seria um processo ontológico do indivíduo geral. Se
Nietzsche atribuía o pensamento de igualdade que permeava os julgamentos morais vindos da
relação econômica entre comprador e vendedor, Horkheimer e Adorno também partiriam de
uma dominação das relações reais que teriam estabelecido tal sistema do pensamento.
Argumentam, desse modo, os autores que “a distância do sujeito com relação ao objeto, que é
pressuposto da abstração, está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista
através do dominado”124.
O que isso queria dizer? Os autores aludem que os mitos não só pela existência
indicam a separação entre sujeito e objeto, mas ainda trazem inscritos em suas tramas o
violento processo social que os possibilitaram. Apoiados em Benjamin que já denunciara que
todo documento da cultura é “simultaneamente um documento de barbárie” 125, Horkheimer e
Adorno leem a Odisseia como testemunho da violência da constituição do sujeito. Defendem,
assim, que a epopeia de Homero marcava justamente o domínio do sujeito sobre as coisas –
que somente era realizado porque sujeito e objeto não mais coincidiam –, ao expor uma época
em que o nomadismo já havia sido superado com a instauração da propriedade privada. Por
tal mudança no modo de produção, a trama trazia Ulisses, o proprietário de terra, que pode
partir para aventuras, enquanto sua terra é gerida à distância por servidores numerosos. Isto
significava que a dominação que exercia Ulisses sobre suas posses e servidores não era uma
dominação direta e imediata sobre as coisas, mas sim mediada; ela perpassava por ordens

123
Nietzsche, F. Genealogia da moral, op. cit., p. 54.
124
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 24; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 19.
125
Ou seja, os documentos culturais guardam em si todo o cortejo triunfal dos dominadores, são testemunhos e
eles próprios o marcam a violência exercida a milhares de anônimos. Cf. Benjamin, W. “Sobre o conceito de
história”, op. cit., p. 244-245.

65
fundamentadas numa lógica discursiva. São as ordens de um Ulisses ausente que fazem sua
propriedade continuar a produzir por meio do trabalho dos trabalhadores que servem a ele.
Isso indicaria que a dominação abstrata da ordem não se dera apenas como um movimento do
pensamento, mas sim, principalmente, na consolidação de um senhor real que tornara a
abstração sua forma de domínio e a instituíra como meio de sobrepujar outros indivíduos.
É certo que os servos de Ulisses são explorados pelo trabalho que exercem em terras
que não possuem, concretizando produtos que não lhes pertencem, mas o fazem porque estão
comandados e coordenados por uma ordem abstrata de um chefe ausente que os mantém
“presos à terra”, presos às coisas. Nessa sociedade, enquanto o proprietário dá ordens e
coordena – Ulisses é o comandante da nobreza armada –, pode ainda se aventurar e outros
indivíduos, em diferentes funções intermediárias – como médicos, artesãos e comerciantes –,
podem se dedicar ao intercâmbio social, no entanto, é imperativo que os servos obedeçam ao
comando onipresente126. Tal como a transformação dos demônios na hierarquia dos deuses
constituíra, a dominação presente na Odisseia indicava uma transmutação de poderes difusos
em que se confundiam sujeito e natureza para a ascensão de sujeitos reais apartados dos
objetos e que exerciam um poder organizador abstrato não imediato. Seria uma “unidade
conceptual que exprime a nova forma de vida, organizada com base no comando e
determinada pelos homens livres”127. O que os autores defendiam com essa análise seria que a
produção se realizava pela exploração do trabalho, esta exploração, todavia, já podia não
ocorrer de forma imediata – Ulisses, o homem livre, não estava presente para vigiar o trabalho
para a produção ocorrer, nem se conhecia em sua propriedade o seu paradeiro, apenas
existiam vestígios da presença de Ulisses –, e sim mediada por um ordenamento abstrato que
realizava um controle sobre os corpos – servos e escravos, não livres, ligados à produção
material – e sobre a terra. Os servos de Ulisses não obedecem porque há uma autoridade
direta, mas porque respeitam a lógica de uma autoridade superior não visível, o que fora lhes
ensinado por meio de sucessivas violências na relação com os demônios e deuses em que os
sacerdotes garantiram sua obediência. Nas palavras dos autores, “os processos naturais
recorrentes e eternamente iguais são inculcados como ritmo do trabalho nos homens
submetidos, seja por tribos estrangeiras, seja pelas próprias cliques de governantes, no
compasso da maça e do porrete que ecoa em todo tambor bárbaro, em todo ritual

126
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 24; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 19-20.
127
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 25; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 20.

66
monótono”128. A obediência aos processos naturais e eternos e ao ritmo do trabalho viria da
sujeição ao ritmo dos rituais mágicos e seus intérpretes legítimos, responsáveis pelo processo
de formação dos pensamentos – já abstrato e dominado – dos indivíduos. Se nesses rituais
ligados às forças difusas, os indivíduos eram submissos, todavia podiam partilhar da magia,
com o fim do nomadismo, o surgimento de sacerdotes e as hierarquias de deuses expressas na
mitologia, o que ocorre é que “o comércio com os espíritos e a submissão foram divididos
pelas diferentes classes da humanidade: o poder está de um lado, a obediência do outro” 129.
Daí se tem que, na passagem do caos à civilização, a divisão do trabalho gerada constituíra o
processo social da dominação que separava o poder – enquanto saber – da obediência –
enquanto submissão à matéria – sob a coerção não imediata, mas por meio da consciência dos
homens130.
Ulisses é, portanto, fruto dessa divisão do trabalho, podendo ser assumido como “um
protótipo do indivíduo burguês”131 que tem poder de vencer os mitos, coordenar o trabalho,
aventurar-se e dominar os outros não-livres e a natureza. Horkheimer e Adorno expõem o
encontro do herói com as sereias no canto duodécimo da Odisseia como alegoria que
pressagia a dialética do esclarecimento132. Ceder às sereias, seres que remetem à natureza e
prometem com seu canto o prazer do passado como algo vivo, seria condenar-se à perdição,
anular o futuro, perder o eu ao se fundir novamente à natureza. No entanto, as provações que
Ulisses já ultrajara haviam formado seu ego e o fortalecido para “resistir a outras potências de
dissolução”133. Assim, perante a promessa de felicidade e a própria morte que significavam as
sereias, Ulisses, ou como Horkheimer e Adorno dizem, “o pensamento de Ulisses” é hostil a
ambos e elabora – sob um cálculo minucioso que nos remete ao ponderação racional tanto dos
meios quanto das consequências do indivíduo que age com respeito a fins como apresentava
Weber134 enquanto característica da modernidade – um estratagema para escapar da ameaça.
Sua estratégia consiste em tapar os ouvidos dos seus marinheiros com cera e obrigá-los a
remar com força para que não sucumbam às distrações do canto. Ele, Ulisses, homem livre,
que tem poder sobre outros que remam para ele, se ata ao mastro do navio para que não jogue
a si mesmo às sereias que chamam ao prazer, mas permanece fruindo da música que, apesar

128
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27.
129
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27.
130
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 27, 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 23, 27.
131
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 47; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 50.
132
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 39-40; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 39-41.
133
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 39; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 40.
134
Weber, M. Economia e sociedade, op. cit., p. 16. Ver nota 107 deste capítulo.

67
de ter uma beleza extasiante, causa dor e o fere devido à imobilidade que o impede de atingir
tal prazer na prática. Pela violência dos outros e de si, pode Ulisses ultrajar a natureza. Sua
astúcia, prelúdio da razão ordenadora do esclarecimento, possibilitou seu progresso. Um
progresso que, de fato, argumentam Horkheimer e Adorno – se aproximando mais uma vez
das teses de Benjamin – significava uma regressão135.
Observando-o enquanto alegoria, podemos argumentar que o episódio do encontro de
Ulisses com as sereias remete diretamente à divisão do trabalho ao anunciar um indivíduo
mais poderoso que não trabalha porque pode ser substituído no trabalho por outros. Esse
dominante tem seu exercício de domínio vinculado às propriedades que possui que, por tê-las,
permitiram-no adquirir um pensamento astucioso, fruto do desenvolvimento de seu ego
indivisível formado pelas violências constantes que pode praticar contra a natureza em suas
aventuras. Por poder exercer a razão, pode apartar-se da prática, do trabalho. Esse
afastamento, entretanto, não é deleite e sim mutilação porque a renúncia o impede de atingir a
prática de forma autônoma, uma vez que – os autores argumentam mencionando Hegel – o
servo está interposto na sua relação com as coisas 136. Os servos que não sabem da beleza do
canto e não podem ouvi-lo não o libertam do mastro no qual veem Ulisses se debater na
tentativa de alcançar as sereias, marcando com o trabalho alienado que realizam a salvação a
si mesmos e do senhor. Dependente, Ulisses pode desfrutar a coisa em sua pureza sem atingi-
la, o que está negado aos outros que trabalham em seu lugar. A esses trabalhadores,
desprovidos do privilégio que o canto invoca, só restaria “olhar para a frente e esquecer o que
foi posto de lado. A tendência que impele à distração, eles têm de se encarniçar em sublimá-la
num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos”137. Permanecem assim reduzidos
ao próprio corpo e atrofiados na alma enquanto trabalham para que Ulisses desenvolva o
espírito e possa vencer a natureza. Os trabalhadores são, deste modo, limitados ao corpo, ao
físico, à coisa, à matéria e Ulisses está disposto ao seu pensamento, aos espíritos, aos deuses,
ao canto.
A alegoria traz à tona que a constituição da razão fora somente possível pela divisão
social do trabalho, implicando numa separação entre dominantes e explorados, entre alma e
corpo. Versa no seu sentido geral sobre o processo que realiza cada indivíduo burguês na sua
relação com a sociedade e também o modo como a sociedade burguesa esclarecida pode
135
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 4o; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 41.
136
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 40; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 41.
137
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 39; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 40.

68
desenvolver-se por meio de uma dominação e separação permanente da natureza, da
exploração do trabalho, da exaltação de uma razão atrofiada em relação à matéria. A Dialética
do esclarecimento – no caso, nos referimos à obra e ao próprio processo – explicitava uma
dialética entre civilização e natureza em que a constituição da civilização sobre os moldes
racionais, havia implicado em processos de violência, exploração e dominação. Sobre este
ponto, podemos questionar que se sua base era a dominação e exploração, como seria possível
atribuir a tal razão potenciais emancipatórios? Parecem Horkheimer e Adorno iniciar aí a
apresentação de indícios da sua descrença nos projetos emancipatórios enaltecidos até o início
do século XX que fundamentavam-se na razão e no desenvolvimento civilizacional.
No primeiro excurso da obra, Horkheimer e Adorno investigam, além do encontro das
sereias já analisado, as demais aventuras de Ulisses a fim de mostrar que o entrelaçamento
entre mito e trabalho racional está na epopeia toda138. O texto guardava a ambiguidade de que,
da mesma forma que o mito compunha a unidade do texto, ele descrevia toda a fuga do sujeito
dos poderes mitológicos, indicando a constituição de um indivíduo racional. Ainda que não
assumissem a epopeia como totalidade – ao revés, argumentam que a ascensão do sujeito
sobre as coisas e a formação de seu ego apenas poderia ocorrer porque sujeito e objeto
estavam separados, ou seja, a totalidade se perdera –, leem a Odisseia aproximando-a da
estrutura de um romance como faz Lukács em A teoria do romance139. Apresentam os autores
que na epopeia “o eu não constitui o oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em
sua rigidez através dessa oposição, unidade que é tão somente na multiplicidade de tudo
aquilo que é negado por essa unidade. Como os heróis de todos os romances posteriores,
Ulisses por assim dizer se perde a fim de se ganhar. Para alienar-se da natureza ele se
abandona à natureza, com a qual se mede em toda aventura, e, ironicamente, essa natureza
inexorável que ele comanda triunfa quando ele volta – inexorável – para casa, como juiz e
vingador do legado dos poderes que escapou”140. Na análise que a Dialética traz podemos ver
138
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 47; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 49.
139
Cf. Lukács, G. A teoria do romance, op. cit., p. 55-69. Não podemos deixar de notar, todavia, que a epopeia
permanece para Horkheimer e Adorno sendo relato da dominação e da exploração. A epopeia, tal como o mito,
pretendia neutralizar “a violência nua e crua”. Os autores ainda a aproximam da estrutura de um romance, mas
também do modelo de propaganda que fazia uso o regime nazista. Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do
esclarecimento, op. cit., p. 49; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 52. A Odisseia teria estrutura aproximada
de um romance por ser obra da “razão ordenadora” que exalta a destruição do mito e enaltece à ordem racional
que reflete. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 47; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 50.
140
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 50; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., 54-55. Apesar da aproximação de Homero aos romances tenha sido realizada por Lukács, a interpretação
apresentada pelos frankfurtinianos diverge da realizada por aquele. Para Lukács, “o herói da epopeia nunca é, a
rigor, um indivíduo”, porque o destino que a epopeia apresenta é de uma comunidade. Porém, baseados na
própria análise de Lukács que afirma que o herói do romance nasce do “alheamento do mundo exterior”,

69
em alguns dos episódios da epopeia que Ulisses ultrapassa a natureza ao cumprir justamente o
que ela lhe solicita, no entanto, sua entrega à natureza, é mediada por sua lógica astuciosa,
que as criaturas mitológicas ainda não podem acompanhar. Desse modo, o cumprimento dos
contratos com a natureza vem a ser um engodo, o que marca a relação danificada que os
indivíduos estabeleceriam com ela. No encontro das sereias, Ulisses pode passar por elas
cumprindo totalmente suas exigências: todos sucumbem ao seu canto se o ouvirem, porém
Ulisses reconhece a superioridade arcaica do canto e se amarra. Assim, entrega-se a elas, mas
sem perder-se nelas devido à sua estratégia. Frente ao monstro Polifemo, ele obedece à
exigência que faz a criatura mítica de exigir seu nome, no entanto, ao apresentar seu nome
como Odisseu, nome próprio que assemelhava-se a palavra “ninguém” em grego, confunde o
monstro, que ainda dominado por um pensamento lógico da coincidência de nome e coisa 141,
não pode compreender que alguém tenha por nome a palavra “ninguém”. Como enfatizam os
autores da Dialética, essa lógica astuciosa – a distância entre palavra e coisa – descoberta por
Ulisses para sobrepujar as criaturas míticas e garantir sua autopreservação viria a ser o
formalismo que se desenvolveria plenamente na sociedade burguesa, que supõe uma razão
enquanto forma isenta de conteúdo. Cabe observar que a razão que promove o domínio de
Ulisses sobre a natureza está fundamentada no logro, o que aproxima a interpretação de
Horkheimer e Adorno da conceituação rousseauniana e da nietzschiana, uma vez que a
primeira vê na astúcia da linguagem, que pode separar-se da matéria e exigir o domínio sobre
ela – no caso, sobre a propriedade – a responsável pela dominação e pela desigualdade que se
seguiriam na sociedade142, enquanto a segunda, estabelece que os judeus, ressentidos, pela
ausência de integração na sociedade, convertem, por meio da astúcia linguística, o conteúdo
de bom e mau, provocando, assim, a vitória dos valores judaicos sobre os romanos 143. A
astúcia de Ulisses que é protótipo da razão iluminista mostraria sua origem na mentira, no
Horkheimer e Adorno estão assumindo que na Odisseia já está presente tal alheamento em virtude da separação
do sujeito e objeto estar em progresso e da divisão do trabalho já haver se realizado. Esta interpretação, no
entanto, não aparta a intenção da Dialética de aproximar o destino de Ulisses ao destino da civilização racional
europeia, contemplando assim também seu vínculo com uma comunidade. Lukács, G. A teoria do romance, op.
cit., p. 66-67.
141
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 57-58; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 66-68.
142
Nas palavras de Rousseau, “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um
terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”. Para
Rousseau, portanto, o domínio da propriedade se estabeleceu a partir de uma logro também de linguagem.
Rousseau, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, op. cit., p. 246-259.
143
Nietzsche ainda diz sobre a linguagem que “o povo duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco
relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito. Os
cientistas não fazem outra coisa quando dizem 'a força movimenta, a força origina', e assim por diante – toda
nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem, não obstante seu sangue-frio, sua indiferença aos afetos, e
ainda não se livrou dos falsos filhos que lhe empurrar”. Nietzsche, F. Genealogia da moral, op. cit., p. 33.

70
engodo, na arbitrariedade.
As peripécias de Ulisses para voltar para a casa – e a casa aqui incorpora o sentido de
nostalgia, de volta ao lar, de reconciliação com a totalidade perdida 144 – exigiu que ele atuasse
como um herói, como “uma vítima que se sacrifica pela abolição do sacrifício” 145, isto é, para
sobrepujar a natureza, precisou se entregar a ela – ele amolda-se à natureza, dando a ela o que
ela pede, mas, desse modo, a logra –, introvertendo-a no seu eu, tal como o herói dos
Bildungsromane, e ao triunfar sobre a natureza, ele passa a portá-la em si ao voltar para casa,
constituindo-se, desse modo, como segunda natureza. Daí podem enfatizar Horkheimer e
Adorno que “a história da civilização é a história da introversão do sacrifício” 146. Se
recordarmos que os autores aceitam a afirmação nietzschiana segundo a qual “a troca é a
secularização do sacrifício”147, podemos começar a esboçar algum entendimento sobre o que a
Dialética expõe como dominação.
Para compreender a dominação na Dialética, nos parece fundamental a abordagem
sobre o mana que os autores delineiam. O mana, oriundo do pensamento mágico e
considerado remanescente no mito e mitologia grega pelos autores, era uma força
desconhecida que ligava o bem e o mal, a graça e a desgraça, a vida e a morte, o vir-a-ser e o
parecer. Ele transcendia “o âmbito da experiência”, que era nas coisas “mais do que sua
realidade já conhecida”148. Essa força espiritual que era atribuída ao mana e que o indivíduo
sentia como sobrenatural, não era, todavia, “uma substância espiritual oposta à substância
material, mas o emaranhado na natureza em face do elemento individual”149. Horkheimer e
Adorno tomam como base para a afirmação o ensaio de Marcel Mauss, Esboço de uma teoria
geral da magia, que apresenta que “a ideia de mana compõe-se de uma série de ideias
instáveis que se confundem umas nas outras. Ele é sucessivamente e ao mesmo tempo
qualidade, substância e atividade. — Em primeiro lugar, é uma qualidade. É algo que a coisa
mana possui, não é essa coisa, ela mesma. […] Em segundo lugar, o mana é uma coisa, uma
substância, uma essência manejável, mas também independente. […] Em terceiro lugar, o

144
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 70; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 86. O reencontro do
casal que aludiria a reconciliação com o mundo após a superação dos infortúnios com a natureza também é o
ponto de partido do ensaio de Adorno sobre a ingenuidade na epopeia. Adorno, T. W. “Sobre a ingenuidade
épica”. In: ______. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2008, p. 47 e ss.
145
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 54; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 63.
146
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 54; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 62.
147
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 51; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 56.
148
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 25; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 21.
149
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 25; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 21.

71
mana é uma força e, especialmente, a dos seres espirituais, isto é, das almas dos antepassados
e dos espíritos da natureza. Ele é que torna esses seres mágicos”150.
Partindo do ensaio de Mauss, os autores afirmavam que o mana marcava o surgimento
de uma ideia mediadora ao expor que uma coisa não era simplesmente ela, mas testemunho de
outra. Agia como mediação que duplicava a natureza como “aparência e essência, ação e
força”151. O mana se originava do grito perante o desconhecido; ele guardava em si a
materialidade do grito advinda da relação do selvagem com a natureza e fixava esse encontro
como espírito. Nas palavras de Horkheimer e Adorno, “ele fixa a transcendência do
desconhecido em face do conhecido e, assim, o horror como sacralidade” 152. Daí se explica a
afirmação de que o mana não é criação espiritual do selvagem que ele transfere a uma
instância superior desconhecida, mas sim se origina das relações reais do selvagem com a
natureza. Esse “eco real da supremacia da natureza nas almas fracas dos selvagens” está na
linguagem, nos conceitos, na ciência. O mana seria somente “a forma primitiva da
determinação objetiva na qual se separavam o conceito e coisa, determinação essa que está
amplamente desenvolvida na epopeia homérica e que se acelera na ciência positiva
moderna”153.
Ao nos voltarmos ao debate anterior realizado sobre o mana entre intelectuais de
língua alemã, é visível a distinção que oferece a interpretação da Dialética ao tema. Ernst
Cassirer não aceita que o mana tenha qualquer determinação objetiva. Embora apresente o
mana como movimento, isto é, mais como uma predicação que um predicado fixo e
determinado, Cassirer defende que as relações entre mito e linguagem que o mana compõe
são “funções mentais que não pressupõem tanto um mundo objetual” 154. Enquanto Cassirer
rejeita, como os frankfurtianos, a ideia de mera projeção – já que por funções mentais ele
entende criações e elaborações simbólicas do espírito que tem vida e sentido à parte tanto dos
objetos quanto dos seres que as desenvolveram –, Freud compreende todo espírito e demônio
como “apenas projeções as próprias emoções do ser humano”. O indivíduo para Freud
transformaria “seus investimentos afetivo em pessoas, com elas povoa o mundo, e reencontra
fora de si os seus processos psíquicos internos” 155. Se Horkheimer e Adorno podem assentir a
150
Mauss, M. “Esboço de uma teoria geral da magia” In: ______. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac
Naify, 2008, p. 143.
151
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 25; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 21.
152
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 25; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 21.
153
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 26; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., 21-22.
154
Cassirer, Ernst. Linguagem e mito, op. cit., p. 85
155
Freud, S. Totem e tabu: Algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos

72
afirmação de Freud de que uma sensação afetiva – no caso, o medo – que origina o mana e
duplica a natureza, eles atribuem a essa sensação não uma origem interna individual, mas a
própria natureza na particularidade do elemento individual. Poderíamos dizer que na
Dialética a defesa é de que o mana era produzido pela concretude das relações sociais. O
horror seria resultado da objetividade que ecoa na subjetividade. A base para tal afirmação de
Horkheimer e Adorno não parece partilhar nem de uma concepção neokantiana, nem
freudiana156, mas vir de uma análise sociológica, no caso, a própria análise de Marx sobre o
fetichismo da mercadoria.
Retornemos ao ensaio de Mauss que é referência na abordagem do mana para
tentarmos apurar essa aproximação com a Marx. Diz Mauss que a ideia de mana é “obscura e
vaga, no entanto de um emprego estranhamente determinado. É abstrata e geral, no entanto
cheia de concretude. Sua natureza primitiva, isto é, complexa e confusa, nos impede de fazer
dela uma análise lógica, devemos nos contentar em descrevê-la. Para Codrington, ela se
estende ao conjunto dos ritos mágicos e religiosos, ao conjunto dos espíritos mágicos e
religiosos, à totalidade das pessoas e das coisas que intervém na totalidade dos ritos. O mana é
propriamente o que produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor religioso e
mesmo valor social. […] A riqueza é suposta ser o efeito do mana; em certas ilhas, a palavra
mana designa inclusive o dinheiro”157. Seria leviano não vislumbrar a semelhança do mana

neuróticos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013, p. 92.
156
Certamente há uma proximidade maior com Freud pela tese apresentada na Dialética conforme ressaltado por
Nobre e Marin (2012). Os autores, como já exposto no capítulo I, defendem que a obra devia ser analisada a
partir de uma constelação freudiana que incluiria os temos “angústia”, “terror”, “medo”. Afirmam, desse modo
que a dialética do esclarecimento seria uma “dialética do terror”, explicitando que a angústia mítica do mana
“exige uma interiorização da ameaça, uma determinação do objeto perigoso, de modo a buscar sempre a sua
neutralização. Essa relativa estabilização alcançada nos sucessivos estágios ou eras ('mimético, mítico e
metafísico’') surge como medo ('Furcht’'). O medo indica que as sucessivas tentativas de interiorização da
natureza ameaçadora sempre deixam restos”. No ensaio O mal estar na civilização, Freud assume que na
formação do Eu, na disputa entre Eu-de-prazer com o desconhecido, o ameaçador, o externo, o desprazer, o Eu
adquire “os mesmos métodos de que se vale contra o desprazer vindo de fora”. Parece não haver dúvidas que
Horkheimer e Adorno tomaram elementos da psicologia freudiana para expor a introjeção da natureza no sujeito
que o constitui como um dominador da natureza. Entretanto, nosso destaque não está sobre o processo de
inserção da natureza no sujeito, uma vez que, em Freud, ele aparece como uma realização do próprio indivíduo,
mas sim no processo dialético conduzido pela própria natureza. Assim, “eco real da supremacia da natureza nas
almas dos selvagens” não é uma emoção produzida no selvagem na relação com a natureza, mas é a natureza que
atua no selvagem. Citemos os autores da Dialética no último ensaio da obra Elementos do antissemitismo: “A
sociedade é um prolongamento da natureza ameaçadora enquanto compulsão duradoura e organizada que,
reproduzindo-se no indivíduo como uma autoconservação consequente, repercute sobre a natureza enquanto
dominação social da natureza”. Nobre, M.; Marin, I. L. “Uma nova antropologia. Unidade crítica e arranjo
interdisciplinar na Dialética do Esclarecimento”. Cadernos de Filosofia alemã, nº 20, pp. 101-122, jul-dez/2012,
p. 111; Freud, S. O mal estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2011, p. 11; Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 149-
150; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 190.
157
Mauss, M. “Esboço de uma teoria geral da magia”, op. cit. p. 143.

73
com a forma da mercadoria como descrito em O Capital. A mercadoria, diz Marx, é “um
objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades satisfaz necessidades
humanas”158. Por satisfazer as necessidades, como coisa útil, possui em si um valor de uso,
que diz respeito ao caráter qualitativo do produto e, portanto, não pode ser comparado159.
Enquanto valor de uso, ao observarmos sua produção, nos é evidente que seja um produto do
trabalho humano. No entanto, no mercado, o produto do trabalho sob a forma de mercadoria
adquire “um caráter místico”160; parece ser dotado de vida própria “como figuras
independentes que travam relações umas com as outras e com os homens” 161. Ao fato de um
produto do trabalho humano ser percebido como uma coisa independente dele, Marx
denomina fetichismo. De onde vem esse caráter enfeitiçado 162 da mercadoria? O caráter
místico da mercadoria vem, não de qualquer caráter do seu valor de uso, mas da produção de
seu valor gerado pelo trabalho abstrato163. Dito de outro modo, a análise de Marx da
mercadoria quer entender como o produto do trabalho humano, uma realização material,
produzida a fim de suprir as necessidades e desejos humanos, aparece, no mercado, sob a
forma enfeitiçada, como um número que nada tem a ver com as características qualitativas da
coisa em si e que iguala todos os produtos do trabalho entre si. A indagação de Marx é: como
o produto do trabalho adquire essa forma de fetiche? Os indivíduos, ainda, confrontados com
o produto do próprio trabalho não veem nele o seu trabalho que o produziu, mas apenas uma
coisa, e atribuem a ela características superiores, mistificadas, aceitando como inerente sua
abstração em número. Esse caráter de fetiche vem da forma valor produzida pelo duplo
caráter do trabalho. Enquanto dispêndio de força humana de trabalho específica que visa à
satisfação de uma finalidade, o trabalho gera o valor de uso do produto, entretanto, sob
relações sociais de uma sociedade produzida historicamente que tem por base a troca, o
trabalho também é trabalho abstrato em geral, uma vez que pressupõe um igual dispêndio de
força de trabalho humano no seu sentido fisiológico e, assim, gera valor. Portanto, o produto
do trabalho adquire a forma de mercadoria portadora de valor por ser consequência do
trabalho e do caráter social do trabalho que é constituído por uma formação social específica,
no caso, o capitalismo. Ora, o mana parece estar imiscuído em relações semelhantes tais quais

158
Marx, K. O Capital: Crítica da economia política. Livro I, O processo de produção do capital. Tradução de
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 113.
159
Id., Ibid., p. 113-114.
160
Id., Ibid., p. 146.
161
Id., Ibid., p. 148.
162
Cabe lembrar que a palavra fetichismo vem de feitiço, magia, enfeitiçar.
163
Id., Ibid., p. 147.

74
o fetichismo da mercadoria constitui. O mana que é uma força desconhecida, sobrenatural,
complexa – qualidade, substância e atividade ao mesmo tempo –, produz valor, valor mágico,
religioso e social. Ele está na totalidade dos ritos e espírito, mas também nas coisas e pessoas
envolvidas nesses rituais. Ele faz a mediação da totalidade das relações sociais nessas
sociedades primitivas, sendo a própria riqueza um produto do mana. De forma similar a
mercadoria que é vista pelos indivíduos como algo autônomo, independente, o mana que é
produto do pensamento do selvagem também aparenta autonomia e coordena as relações
sociais como externo. Ambos são enfeitiçamentos. Conforme o próprio Mauss aponta, apesar
de “obscuro e vago”, “abstrato e geral”, o mana apresenta “determinação” e “concretude”.
Isto quer dizer que o mana é uma força espiritual que movimenta as relações sociais,
econômicas, religiosas e mágicas dessas sociedades, porém, também ele é produto dessas
relações que foi abstraído pelo pensamento selvagem – sendo o pensamento visto aqui como
um trabalho de abstração racional – e tornado um espírito de mediação. O pensamento do
selvagem criava o mana, produzindo uma duplicação da natureza, uma vez que tudo que era
concreto passava a ter um sentido espiritual e esses espíritos passaram a compreender-se
como a coisas reais, independente do pensamento. Na analogia proposta, podemos dizer que o
trabalho do homem cria a mercadoria, a totalidade social do trabalho atribui seu valor,
entretanto, seu valor é entendido como algo próprio da coisa e não fruto da sua mediação.
Como o valor não é projeção dos trabalhadores sobre seu próprio produto, também o mana
não era mera projeção dos selvagens. O valor tem origem no trabalho abstrato geral que é
também trabalho específico, e, de forma semelhante, podemos dizer que o mana tem origem
no trabalho do pensamento – como trabalho de abstração do selvagem – que se produz na
concretude do emaranhado das relações com a natureza em cada selvagem. Não ignoramos as
diferenças entre ambos os mundos ainda que sejam abstrações similares. O mana como
espírito enfeitiçado ainda é reflexo de um mundo fechado, igual, em que os selvagens
compartilham da mesma natureza, são produtos de relações horizontais na sociedade
primitiva; o fetichismo da mercadoria, porém, só se concretizou na modernidade capitalista
em que o trabalho se tornou forma total das relações sociais, baseado na divisão social do
trabalho164.
Parece imprescindível nos questionarmos por que importa para Horkheimer e Adorno
164
Horkheimer e Adorno, entretanto, já argumentavam que o mana enquanto dominação horizontal do
pensamento fora um momento breve, uma vez que ele também seria materializado à força em feiticeiros e
sacerdotes, instituindo aí uma dominação garantida pela divisão do trabalho. Cf. Horkheimer, M.; Adorno, T. W.
Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 27.

75
a análise do mana. O mana duplica a natureza em favor de uma explicação do desconhecido,
mas é o horror da natureza que está petrificado na alma do selvagem e que cria a necessidade
do mana. Assim, a transmutação do medo da natureza a algo que o explique carrega a própria
natureza. Do mesmo modo, o medo do desconhecido permaneceria no indivíduo esclarecedor
fazendo com que o conceito filosófico que suplantaria todo o mundo mitológico e mágico do
mana guardasse a mesma lógica. Isto quer dizer que, para explicar a realidade, o indivíduo
esclarecedor criava operações racionais, leis e procedimentos que se constituíam pela mesma
realidade. Desse modo, qualquer explicação retornava, afirmava e justificava a realidade dada.
A afirmação de Horkheimer e Adorno de que “o esclarecimento é a radicalização da angústia
mítica”165 apresenta como consequência a constatação que a razão era uma compulsão da
objetividade no sujeito que buscava sua própria reafirmação. O dualismo do esclarecimento
assemelhava-se ao dualismo mítico: ambos não ultrapassavam o âmbito da existência 166. O
que eles promoveriam seria ao triunfo da realidade.
A análise do mana, bem como toda análise que produzem da magia e da mitologia,
revelava protótipos de um processo de dominação de uma abstração desenvolvida e
assimilada nas subjetividades dos sujeitos. Ele anunciava indícios de uma dominação pela
razão que o sistema capitalista no século XX levaria ao desenvolvimento pleno enquanto
técnica científica. Para os autores, antes que a razão se tornasse a base da técnica e
substituísse a magia, foi imperativo que, primordialmente, o ato de pensar como abstração
estivesse incorporado aos indivíduos. Em suas próprias palavras, “para substituir as práticas
localizadas do curandeiro pela técnica industrial universal foi preciso, primeiro, que os
pensamentos se tornassem autônomos em face dos objetos, como ocorre no ego ajustado à
realidade”167. O mana apontava um início de ajustamento desse ego ao existente que, segundo
Horkheimer e Adorno, permaneceria durante o esclarecimento. Todavia, no mundo do mana,
os indivíduos duplicavam o mundo para explicá-lo, identificando-se a esse mundo e o
retornando enquanto explicação tautológica, mas ele ainda reservava a todos os selvagens a
possibilidade de relação com a natureza e com o mana 168. A Odisseia transparece sua
diferença fundamental a esse sistema porque, na obra, está disposta a existência da divisão do

165
Horkheimer, M., Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 26; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 22.
166
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 26; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 22.
167
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 22-23; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 17.
168
Conforme lembram Horkheimer e Adorno, o mana preserva tal relação até ser “materializado à força” na
figura de um feiticeiro ou sacerdote que passa a controlar o mundo dos espírito e o acesso a este saber. Id.,
Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27.

76
trabalho o que altera a relação com as entidades espirituais e a natureza; Ulisses se relaciona
com a natureza ao ser substituído por outros que trabalham em seu lugar, enquanto esses não
tem acesso à natureza, mas apenas a devem transformar com seu trabalho. Daí resultam duas
consequências: os indivíduos são submetidos à abstração do mana que não mais podem ter
acesso pelo ritmo dos tambores mágicos que os tornariam preparados ao ritmo do trabalho; e
“o sentimento de horror” de Ulisses, dos indivíduos livres, “torna-se o sinal da dominação
consolidada dos privilegiados”169. A dominação pelo trabalho, firmada por uma divisão entre
trabalho manual e intelectual, se imiscuía, desta forma, na base do esclarecimento. Se o mana
já anunciava uma tendência da abstração de promover e confirmar a realidade, e ainda, se sua
forma já se aproximada da forma fetichizada da mercadoria, com a divisão do trabalho e sua
vinculação à hierarquia e à coerção170, a razão esclarecida, base da ciência e da técnica, cujo
apogeu será o século XX, se encaminhava para constituir-se como forma de dominação do
sistema capitalista.
Ao expor magia e mito como relações primordiais dos indivíduos com a natureza, e
aproximá-los do esclarecimento, Horkheimer e Adorno os remetem como processos de
ruptura entre sujeito e objeto em que se pode vislumbrar a formação de uma astúcia do pensar
como mediação a essa ruptura. Tal astúcia surge como uma razão primitiva que já pretendia
dominar a natureza ao querer reduzir, calcular, trocar ao se constituir num processo de
abstração que trazia indícios da reificação171, uma vez que expunha que indivíduos, para
explicar a sociedade e constituí-la – a produção do mundo e a produção do conhecimento são
inseparáveis –, davam origens a espíritos, o mana, isto é, espiritualizavam as coisas, que
passavam a conduzir todas as relações entre os sujeitos que haviam se objetificado perante as
coisas-espiritualizadas. A essa relação com os espíritos que se constitui-se como mundo
fechado e cíclico, os frankfurtianos aproximam da sociedade esclarecida do século XX
dominada que técnica, pelo positivismo, pela ciência. Na argumentação enfática e pouco
comum que realizam os autores, eles afirmam, por vezes, a equivalência plena entre mito e
esclarecimento. Tal postura coloca em xeque a posição dos autores como marxistas ao retirar

169
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27.
170
Nas palavras dos autores, “a forma dedutiva da ciência reflete ainda a hierarquia e a coerção”. Id., Dialética
do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27.
171
Uma das principais crítica à Dialética vem o fato de seus autores terem atribuídos a um período anterior à
sociedade moderna capitalista a existência da reificação. É preciso ponderar que o próprio Lukács afirmava que
“o fenômeno da reificação também desempenhou um papel na sociedade grega desenvolvida”. Lukács, porém,
destacava que na sociedade grega, a reificação não foi vivenciada como totalidade, o que se sucedera apenas no
capitalismo como sistema em que a mercadoria se torna “categoria universal de todo ser social”. Lukács, G. “A
reificação e a consciência do proletariado”, op. cit., p. 240, 194-198.

77
a importância histórica do processo de modernização capitalista. Argumentar que a reificação
e o fetichismo estavam presentes em Homero e nas relações mediadas pelo mana pareciam
significar que a história da civilização era a história do capitalismo. Se os conceitos eram
ausente do seu sentido histórico-social, parecem então se aproximar da lógica que tendia o
esclarecimento, no qual o maior modelo a-histórico – criticado pelos autores desde o Teoria
tradicional e teoria crítica que teria fundamentado o projeto crítico da Escola escrito por
Horkheimer – era o positivismo. Conforme argumentava a interpretação de Habermas,
Horkheimer e Adorno teriam ampliado a razão “elevando-a no todo a uma categoria do
processo civilizatório da história mundial” e deslocando “o processo de reificação a um ponto
anterior ao início capitalista da modernidade, até o começo da humanização” 172. Antes de
concordarmos com Habermas, cabe nos debruçarmos sobre os modos da interpretação da
história que os autores concebem nessa dialética entre mito e esclarecimento.
Dois movimentos Horkheimer e Adorno realizam para compor essa dialética entre
mito e esclarecimento. Num primeiro movimento, ao colocar a magia, o sacrifício, os mitos
como processos do início da constituição da razão, Horkheimer e Adorno parecem assumir
uma postura linear da história em que se poderia se assentir que desde Homero, desde o mana,
há esclarecimento e reificação. Aqui se emaranham as distintas influências de Rousseau,
Nietzsche, Freud e Benjamin na Dialética. Rousseau está presente na medida em que também
o filósofo suíço instituiu que, desde a fundação da propriedade privada, a sociedade
caminhava para o aprofundamento contínuo de desigualdade. A história, nesta interpretação,
tem linearidade; é a história da progressiva da decadência civilizacional. Conforme já
abordamos, movimentos pré-românticos e românticos adotaram essa interpretação linear
negativa da história e assumindo a razão e a civilização como formas de dominação,
instituindo propostas de emancipatórias dessa dominação centradas no indivíduo, no retorno a
um passado remoto paradisíaco, em geral, inspirado na Antiguidade grega, ou, no caso dos
românticos, na ideia de síntese que permitisse conciliar espírito e natureza. Excetuando a
última que pretende uma tentativa de abrandamento do percurso da história, todas as demais
associavam a emancipação uma tentativa de romper com a história linear da decadência.
Também Nietzsche está intrínseco à Dialética na medida em que, na sua influência
rousseauniana, apresentava a história como acúmulo de atos de violências e logros dos
dominantes que fizeram o indivíduo sair de seu caráter forte para uma progressiva aceitação
172
Habermas, J. Teoria do agir comunicativo: Racionalidade da ação e racionalização social. Vol. 1. Tradução de
Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 630.

78
da civilização a partir de uma docilização, da aquisição de uma maleabilidade, de uma
repressão do instinto de liberdade173. Não menos presente estaria Freud na Dialética, ao
apresentar as relações com os espíritos e divindades como processos históricos da constituição
do eu174 e da constituição da civilização175 que implicavam no recalque constante da natureza.
O que era distinto em Freud seria que essa sucessão de processos na vida psíquica, tanto do eu
quanto da sociedade, eram tidos como acumulativos; isto queria dizer que permaneciam os
estágios antigos de recalque em funcionamento na mente humana ou na psique civilizacional
de forma integradas às produções mais novas. A história seria linear e conservadora de modo
que não apenas as violências na repressão da natureza seria mantidas, mas também os estágios
em que a violência era abrandada permaneceriam ainda que sob alguma modificação. O
passado histórico se conservava e atuava com o presente em Freud176. Benjamin, sob
influência também dos anteriores, pensava o progresso histórico como acúmulo de catástrofes
em que o estado de exceção é, de fato, a ordem e o sentido do progresso histórico 177. Havia
um sentido de linearidade acumulativa na história para Benjamin, mas de sentido negativo. A
história seria “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína” 178. Há,
na Dialética, um movimento de linearidade da história que se sobressai tal como atribuem
esses pensadores que os influenciaram: a história é a história da sucessão de violências, que
acumulou catástrofes, produziu a reificação, e a razão abstrata é produção dessa história que,
no século XX, se constituía como forma de dominação que vinha desde a separação entre
sujeito e objeto e a tentativa constante de domínio pelo sujeito da natureza. A história é, ainda,
a introjeção nos indivíduos dessas violências. Como Horkheimer e Adorno argumentam para
chegar à razão científica, os indivíduos estiveram dispostos às progressivas coerções dos
tambores mágicos. O mana aparece como início de uma abstração que culminará na abstração
da razão e no fetichismo da mercadoria, o sacrifício é o primeiro sistema de troca entre os

173
Nietzsche, F. Genealogia da moral, op. cit., p. 69-71.
174
Como se fazem presentes em “Psicologia das massas e análise do eu”, “O futuro de uma ilusão”, “Luto e
melancolia”. Freud, S. “Psicologia das massas e análise do eu”. In: ______. Psicologia das massas e análise do
eu e outros textos (1920-1923). Obras completas Volume XV. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia
das Letras, 2011, p. 14 – 113; Id., O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2013.; Id., “Luto e melancolia”.
In: ______. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos. Obras completas volume 12,
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 170-194.
175
Como se fazem presentes em “O mal estar na civilização”, “Totem e Tabu”. Freud, S. O mal estar na
civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011; Id.,
Totem e tabu: Algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. Tradução
de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
176
Freud, S. O mal estar da civilização, op. cit., p. 10-17.
177
Presente nas teses 8 e 9. Benjamin, W. “Sobre o conceito de história”, op. cit., p. 245-246.
178
Id., Ibid., p. 245.

79
indivíduos. Desta maneira, mana, ritos e mitos entram na Dialética como um sentido de
passos iniciais no sentido de um progresso desse mundo da razão reificada. É nesse sentido
que os autores afirmam que mito é esclarecimento. “As linhas da razão” afirmam Horkheimer
e Adorno, “se escondem incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que
datam o conceito de burguês a partir tão somente do fim do feudalismo medieval” 179. Todavia,
essa afirmação não significava que não haviam distinções entre a sociedade primitiva e o
capitalismo. Em Eclipse da razão, Horkheimer faz afirmações que contestam a ideia de
coincidência da reificação da sociedade primitiva com desenvolvida na sociedade primitiva 180.
Ele afirma que seria a reificação um “processo que pode ser traçado suas origens no início da
sociedade organizada e no uso de ferramentas”, todavia, ressaltava também que “a
transformação de todos os produtos da atividade humana em mercadorias foi alcançada
somente com a emergência da sociedade industrial” 181. Afirmar a existência da reificação no
mito mais que uma visão da história de maneira a-histórica, quer antes defender que o mito
remeteria a uma primeira forma de domínio da razão, conduzida pelo sujeito, a fim de
dominar a natureza. Uma forma de razão da sociedade primitiva que era protótipo do que se
desenvolveria na história moderna pela razão burguesa.
Todavia, a afirmação que o esclarecimento se reverte em mitologia não parece emergir
desta mesma concepção de história linear. Há, portanto, um segundo movimento na Dialética
que explicita o surgimento de um momento histórico anterior e não o progresso da regressão.
São as influências de Freud e Benjamin centrais nessa visão da história que vai além do
sentido linear e a apresenta como algo que pode ir aos saltos e que, devido à conservação dos
tempos históricos, o mais antigo pode retornar em qualquer tempo. Esse entrelaçamento do
arcaico com o moderno sem linearidade nos moldes como concebido por toda a historiografia
burguesa fora fruto de debates nas cartas entre Adorno e Benjamin que debatem e refletem
sobre o conceito de imagem dialética que Benjamin havia concebido em sua filosofia do
barroco alemão. Nas palavras de Adorno em carta ao amigo, ele exprime que “não há
verdadeira reversão ao antigo, mas antes o mais novo, como ilusão e fantasmagoria, é ele
próprio o antigo […]. Imagens dialéticas, como modelos, não são produtos históricos, mas
antes constelações objetivas nas quais a condição da sociedade é ela própria representada” 182.
179
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 48; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., 51.
180
O que também contesta às inúmeras interpretações que indicam que a obra faria tabula rasa da história como
Habermas e Honneth.
181
Horkheimer, M. Eclispe of reason, op. cit., p. 40, tradução própria.
182
Adorno, T. W. Correspondência 1928-1940, op. cit., p. 183.

80
Enquanto Benjamin concebia tais imagens como possibilidade de rememorar a história a
contrapelo e buscar nas ruínas do progresso histórico das violências os gritos dos vencidos –
como as teses em Sobre o conceito da história enaltecem –, Adorno defende183 que elas sejam
“fantasmagorias do inferno”184.
Essa apreciação da histórica como modelo, que remete a uma história aos saltos sem
coordenação lógica à forma positivista nos parece complementar e essencial à historicização
linear que Dialética também contém. Enquanto a maioria dos comentadores se centra sobre o
aspecto linear – levando inclusive Axel Honneth a afirmar que os autores abandonam os
pressupostos críticos e passam a realizar uma filosofia pessimista da história que pretendia
expor a gênese da dominação total185 –, nos parece fundamental compreender a Dialética
nessas duas apreensões de história, uma vez que somente a primeira nos dá dimensão do mito
enquanto esclarecimento e somente a segunda nos oferece arcabouço necessário para
compreender que o esclarecimento convertera-se em mito. Pelo conceito de imagem dialética,
podemos explicitar como a razão moderna no século XX apresentava tendências à subsunção
do sujeito ao objeto que criava uma nova mitologia ao pretender tornar o mundo cíclico, igual,
em que o eu individual correspondia ao todo, aos moldes do que foram as sociedades antigas
fechadas ou, como Tönnies as denominava, as comunidades. Ainda, é preciso dizer que, se
concebermos a Dialética somente como uma história linear da razão, não conseguimos
explicar por que está ausente da obra uma análise das religiões como continuidade dos
processos de racionalização das condutas iniciada nos processos mitológicos que levariam ao
esclarecimento moderno tal como realizara Weber186, uma vez que esta abordagem daria
respaldo a uma filosofia da história postulada sobre a regressão da razão se era o que os
autores pretendiam. Por fim, conceber a história como imagem dialética não apenas surge
como um recurso da obra na qualidade de crítica à razão no século XX que ameaçava ser

183
Adorno, de fato, defende uma ideia que teria vindo do próprio Benjamin. Como as cartas entre os dois
filósofos apresentam, Benjamin altera progressivamente sua concepção para um sentido revolucionário prático, o
que Adorno não concorda e sempre realiza tentativas trazer o amigo de volta ao que já defendera.
184
Id., Ibid., p. 179.
185
Honneth, A. The critique of power: reflective stages in a critical social theory. Cambridge, Massachusetts: The
MIT Press, 1991, p. 37. Podemos notar ainda que os frankfurtianos demonstram ciência das dificuldades de
identificar a história universal ao esclarecimento, uma vez que também a realizava a postura neorromântica. Para
os autores, tomando a história somente neste sentido, os neorromânticos sucumbiam a ideologia de reivindicar a
liquidação do esclarecimento, o que prestaria uma reverência involuntária ao próprio esclarecimento.
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 48; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., 51.
186
Da mesma forma, a ausência da abordagem da racionalização das religiões, aspecto central na abordagem
weberiana do desencantamento do mundo, nos faz questionar as interpretações que apresentaram até o momento
a Dialética como continuidade da investigação weberiana sobre a racionalização.

81
petrificada, mas vinha da análise real dos autores das condições objetivas que, aproximando-
se a meados deste século, continha duas fábricas de poder imensurável voltados à produção de
mitos: a indústria cultural e o nazismo. Portanto, entender a noção da história presente na
Dialética para além de uma historiografia linear nos auxilia a compreender o que perpassa os
diversos ensaios da obra que são, em geral, assumidos como de tênues conexões.
Por fim, cabe articular a relação entre mito e esclarecimento traçada pelos autores na
Dialética ao que nos importa. Ambas as teses da Dialética estão a confirmar processos de
dominação social. Afirmar que o mito era esclarecimento era assumir que nele já havia uma
separação entre sujeito e objeto e que o sujeito pretendia adquirir autonomia perante o objeto;
o sujeito pretendia dominar a natureza. A análise da Odisseia nos confirma que já na
sociedade grega, distante historicamente da sociedade esclarecida, havia uma vinculação do
poder, que o sujeito exercia, com o processo de abstração do conhecimento, que o indivíduo
adquirira na relação com a natureza. Diante disso, esse processo de domínio pela abstração –
do espírito no mana, da linguagem no mito – resultava num giro em falso, uma vez que a
própria construção da abstração no pensamento, que daria o poder de dominar a natureza ao
sujeito, tinha a natureza como medida. A razão, portanto, já despontava aí como mediação que
era dominação e que consolidava esse mundo como eterno. Declarar que a sociedade grega e
as comunidades primitivas produziam em suas relações sociais processos de mediação dos
indivíduos por uma abstração que exercia domínio, significa afirmar que elas não eram nem
exemplos de comunidades íntegras e harmônicas – conforme o comunismo primitivo era
percebido como Tönnies enaltecia ou como o pré-romântico Goethe atribuía à antiguidade –,
nem exemplos da totalidade perfeita – como enaltecia o jovem Lukács. Ainda, é preciso
mencionar a dimensão política que implicava a associação do mundo mitológico enquanto
dominação perante o tempo histórico que Horkheimer e Adorno vivenciavam que fora
testemunha no enaltecimento da sociedade grega como modelo da nova sociedade nazista 187 e
da ênfase na síntese entre indivíduo e natureza como base da teoria das raças defendida pela
ideologia do regime nazista.
Ao afirmar que o esclarecimento se tornara mito, Horkheimer e Adorno estavam

187
Para Horkheimer e Adorno, os intelectuais fascistas tinham afinidades com a poesia clássica, mas rejeitavam a
epopeia por considerá-la demasiado racional. Tal postura seria reflexo da tomada conservadora anterior a guerra
das ideias de Nietzsche sobre a antiguidade. Nas palavras dos autores, esses intelectuais “farejam na descrição
homérica das relações feudais um elemento democrático, classificam o poema como uma obra de marinheiros e
negociantes e rejeitam a epopeia jônica um discurso demasiado racional e uma comunicação demasiado
corrente”. Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 48; Id., Dialektik der
Aufklärung, op. cit., 51.

82
expressando que a razão que conduziria à liberdade e à autonomia dos sujeitos havia se
petrificado, convertendo-se num mundo fechado. A fim de consolidar o domínio pleno do
sujeito sobre a natureza, a razão se tornara formalizada, calculável, ordenadora, previsível. Ela
instituía o que já se antevira no mito: uma abstração formal e obrigatória que mediaria as
relações entre sujeito e objeto. Entretanto, se a razão já enquanto astúcia de Ulisses, continha
a natureza em si, o que significava no mundo mitológico que a dominação do herói grego era
a reprodução da própria natureza; no esclarecimento, a razão abstrata como técnica que atuava
nos sujeitos adviria não apenas das relações com a natureza, mas, após Ulisses, da segunda
natureza instaurada pela divisão do trabalho e, assim, reproduziria também esse próprio
mundo. O mundo reproduzido não mais era o dos ciclos naturais, mas sim do ritmo social da
produção que movia o sistema capitalista. A razão enquanto técnica se tornara parte do
sistema produtivo.
Antes de prosseguirmos, é importante tomarmos nota de algumas questões.
Horkheimer e Adorno estão afirmando que o projeto do esclarecimento já continha em si o
potencial de se tornar dominação, uma vez que pretendia aproximar-se da matemática,
equalizar, tornar-se preciso e exato para controlar o arbitrário da natureza e das forças
tradicionais. Nesse ponto, a razão retoma o protótipo já presente no mito, o que exprime uma
linha histórica de decadência constante da relação entre sujeito e natureza. No entanto, esse
projeto não imediatamente se realiza. Almejada por Bacon, a condução do mundo pela razão
não se dera nem em seu século, nem nos imediatamente seguintes, mas, de acordo com os
autores, se dera no século XX num estágio avançado do capitalismo. Isso significa que o
capitalismo que a razão reproduz não é o capitalismo do diagnóstico de Marx da exploração
do trabalho, mas um capitalismo em outro estágio que tem a razão como centro, influindo,
inclusive, na produção. E seria este modelo de capitalismo que traria a tendência à
cristalização total do mundo que revelava sua tentativa de tornar o mundo mitológico, isto é,
tornar a fechá-lo a fim de fazer coincidir novamente sujeito e objeto.

2.3 Dominação ou razão e capitalismo

Podemos retomar nossa questão. O que, afinal, compreendem por dominação


Horkheimer e Adorno na Dialética do esclarecimento? A dominação que os autores
explicitam na obra seria uma dominação exercida pela razão abstrata. Na separação entre

83
sujeito e objeto, os sujeitos, perante o horror que a natureza apresentava, a fim de se
autopreservarem, desenvolviam mecanismos mentais de abstração – como demonstravam as
análises das sociedades do mana – que visavam a compreensão e a dominação da natureza, o
que resultava na submissão dos próprios sujeitos a esses mecanismos. O esclarecimento, a fim
de desencantar o mundo e libertar os indivíduos das forças superiores e mágicas, pretendera
desenvolver plenamente esta razão e fazê-la triunfar nos sujeitos afastando quaisquer
conteúdos ou fins em si que ela guardasse. Ela deveria, portanto, reduzir, equalizar, calcular o
mundo, tornando o pensar um “procedimento matemático”188. No entanto, da mesma forma
que o mana absorvia a natureza em sua forma, a razão esclarecida materializava a realidade
que era produzida. E esta realidade não permanecia sendo a sociedade de relações horizontais
entre os selvagens, em que todos tinham acesso ao rito mágico, mas sim a sociedade
estratificada e desigual do capitalismo, fundamentada na divisão social do trabalho e na
produção de mercadorias. O esclarecimento clamava o desenvolvimento da razão enquanto
um mero exercício do pensar, entretanto, esta razão demonstrava vínculos bem materiais: ela
estava enredada com a processo produtivo. Nas palavras de Horkheimer e Adorno, “a ordem
lógica em seu conjunto – a dependência, o encadeamento, a extensão e união dos conceitos”,
a base da ciência movida pela razão “baseia-se nas relações correspondentes da realidade
social, da divisão do trabalho”189. Além de ser moldada nas relações do próprio capitalismo, a
forma abstrata era condição obrigatória ao desenvolvimento do sistema produtivo. Se a
abstração no mundo primitivo era a espiritualização das coisas e a substitutividade e a
representatividade do sacrifício e do mito tinham a função de relação com os deuses, no
capitalismo, a abstração era a coisificação dos espíritos, o que era central à expansão das
relações de troca e à extensão da forma mercadoria a todas as coisas. A razão abstrata
constituía-se, portanto, como técnica moldada, partícipe e reprodutora da produção de
mercadorias. A dominação exercida por essa razão garantiria a dominação capitalista.
A citação que os autores trazem de Bacon logo no início da obra nos explicita como se
realiza essa conexão entre capitalismo e o desenvolvimento da razão. Bacon indicava que o
progresso a ser realizado pelo esclarecimento para apropriação do saber que constituiria a real
superioridade do homem implicava na dominação de si, devendo eliminar “a credulidade, a
aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber, a timidez no

188
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 33; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 31.
189
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27-28.

84
contradizer [...]190. Tal como Ulisses, era preciso aos indivíduos burgueses, filhos do
esclarecimento, dominar a natureza do espírito e ter domínio sobre demais indivíduos para
superar as ameaças da natureza externa. Para tanto, fazia-se imprescindível estabelecer
estratégias, cálculos a fim de ponderar as ações, prever os acontecimentos, evitar o “acaso” 191.
Este era o chamado do esclarecimento para libertar-se da menoridade: desenvolver a
capacidade de calcular e de abstração. A razão e seus portadores, os indivíduos racionais,
adquiririam tais capacidades como o herói grego: ao entregar-se à natureza, pelo “o casamento
feliz do entendimento humano com a natureza das coisas” 192. Esta entrega, bem como o horror
que a natureza suscitava consolidado no mana, significa que, na busca de conhecer e dominar
– duas ações que são complementares no esclarecimento e não se separam –, exigia-se o
entregar-se ao dado, ao fato, ao natural, à segunda natureza, à sociedade tal como ela era. Essa
“subsunção ao factual”, apontam Horkheimer e Adorno, “seja sob a pré-história lendária,
mítica, seja sob o formalismo matemático, o relacionamento simbólico do presente ao evento
mítico no rito ou à categoria abstrata da ciência, faz com que o novo apareça como algo
predeterminado, que é assim na verdade o antigo”193. A dominação de si para constituição da
razão esclarecedora implicava na introjeção e subordinação à realidade, implicando na
“ratificação do mundo como sua própria medida”194 e na resposta do novo como o mesmo. A
razão, desse modo, ratificava o capitalismo enquanto medida de todas as perguntas e enquanto
a única resposta.
Ainda é preciso considerar que, diferente de Ulisses, o esclarecimento não pretendia
dominar a natureza para encontrar o retorno ao lar e felicidade que ele promete 195, mas sim,
como Bacon deixava explícito em seus exemplos, buscar o saber, a real superioridade dos
homens, voltado ao desenvolvimento da ciência, da guerra, das finanças, do comércio e da
navegação. A razão abstrata buscava o domínio de si e da natureza, mas o realizava
constituindo aparelhos sociais de dominação em que a razão mesma se tornara instrumento
190
Bacon, F. apud Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 17; Bacon, F. apud
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 9.
191
Como o próprio Bacon diz, todas as características citadas faziam que os indivíduos não avançassem e o
progresso do conhecimento ainda fosse vítima do acaso.
192
Bacon, F. apud Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 17; Bacon, F. apud
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 9.
193
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 35; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 34.
194
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 34; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 33.
195
Adorno é quem ressalta à felicidade cotidiana que a Odisseia guarda como reconciliação em ensaio de 1943
em estudo que realizou com Horkheimer para a escrita da Dialética do esclarecimento. In: Adorno, T. W. “Sobre
a ingenuidade épica”. ______. Notas de literatura I. Tradução de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas
cidades; Ed. 34, 2008, p. 47-48.

85
desses aparelhos. Daí podemos afirmar que essa razão subjetivada, apartada da objetividade,
conforme exaltada pelo esclarecimento, sob o capitalismo do século XX, não realizava seu
potencial emancipatório constituindo-se como autonomia do sujeito, e sim implicava na
subordinação do sujeito, tornando-o presa da razão que se tornara parte constituinte dos
aparelhos de dominação. É importante notar que é neste ponto que se encontra a distinção do
diagnóstico dos frankfurtianos sobre o capitalismo: este não estava mais o centrado na fábrica
e no poder senhorial imediato do capitalista sobre o trabalho e sobre os trabalhadores. No
século XX, os autores se viam defronte a um capitalismo cuja base se constituíra de
conglomerados empresariais em que a dominação estava mediatizada por escritórios de
negócios. E seria nesse maquinário que a razão se alçava como instrumento de dominação.
Como os autores enfatizam, “a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem
econômica que a tudo engloba. Ela é usada como instrumento universal servindo para a
fabricação de todos os demais instrumentos. Rigidamente funcionalizada, ela é tão fatal
quanto a manipulação calculada com exatidão na produção material e cujos resultados para os
homens escapam a todo cálculo”196. Em outras palavras, a razão abstrata estava subjetivada
nos indivíduos como ausente de objetividade, mas era coordenada pelo próprio mundo
objetivo, sendo parte do próprio sistema de produção de mercadorias. Isso significava que,
enquanto razão subjetiva, ela realizava a dominação exercida pelo sujeito sobre a natureza
interna e externa, porém, seu caráter abstrato era garantia também da dominação da
“aparelhagem econômica” sobre os sujeitos.
É evidente que o que está em jogo aqui são as reificações das subjetividades, ou das
consciências conforme aludira Lukács. Embora Bacon, que convocava os indivíduos a superar
sua condição limitada de conhecimento, e Kant, que atribuíra aos indivíduos a
responsabilidade pela sua própria menoridade197, o que Horkheimer e Adorno defendem é que
não haviam sido os próprios sujeitos que produziram e eram responsáveis pelas próprias
reificações das consciências, isto é, pela própria dominação. No século XX, o mundo
funcionava como uma aparelhagem; a preponderância da fábrica e do trabalho no capitalismo
liberal fora substituída pela fusão de grandes indústrias e escritórios empresariais. Desse
modo, a razão que está em questão é a que é produzida nas engrenagens dessa fusão que, de
modo imperativo, se colocava acima dos indivíduos e intrinsecamente a eles, uma vez que ela
tinha seus tentáculos em cada uma das consciências. Os autores expressam que essa “ratio
196
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 37; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 36-37.
197
Kant, I. “Resposta à pergunta: Que é o esclarecimento? (Aufklärung), op. cit., p. 63.

86
alienada”,“sob a forma das máquinas”, “move-se em direção a uma sociedade que reconcilia o
pensamento solidificado, enquanto aparelhagem material e aparelhagem intelectual, com o ser
vivo liberado e o relaciona com a própria sociedade como seu sujeito real” 198. Essa razão
abstrata era subjetivada, mas não eram os sujeitos que a conduziam. Eles eram antes
portadores desse maquinário que a razão constituía.
É importante notarmos uma diferença elementar entre o diagnóstico de Lukács e o
diagnóstico dos frankfurtianos. Conforme Lukács apresenta, as consciências se reificavam ao
adquirirem o caráter de procedimento racional e de cálculo e ao serem submetidas à forma
mercadoria que seria dominante na sociedade mercantil199. A forma mercadoria penetrava “no
conjunto das manifestações vitais da sociedade”, transformando “tais manifestações à sua
própria imagem”200. Essa universalidade da forma mercadoria, que condicionaria tanto o
aspecto objetivo quanto o subjetivo, era adquirida, para Lukács, na relação concreta do
trabalho no processo de produção das mercadorias. Nessa relação, “o homem é confrontado
com sua própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e
que o domina por leis próprias que lhe são estranhas” 201. Pela análise histórica da
racionalização do trabalho que tinha como fim a universalização da mercadoria, a análise
lukácsiana afirma que há “uma racionalização continuamente crescente, uma eliminação cada
vez maior das propriedades qualitativas, humanas e individuais do trabalhador”202. Apesar de
somente duas décadas separarem o ensaio de Lukács e a Dialética, os frankfurtianos
observam um capitalismo não mais centrado na fábrica tal como era no período liberal do
capitalismo que a teoria lukácsiana ainda faz a análise. Na Dialética, o processo de reificação
é analisado a partir da expansão dos processos de troca que grandes indústrias e centros
empresariais gerenciavam. Assim, na obra, é a troca que ocupa a posição central da análise. A
abstração e consequente reificação dos sujeitos eram originadas pelos processos de trocas,
conforme testemunhavam o mana, o sacrifício e as relações astuciosas de Ulisses com os
deuses. O processo produtivo estava implícito nas relações de troca, mas a produção da razão
abstrata, que reificava as subjetividades, era tomada como resultado da circulação das
mercadorias. Horkheimer e Adorno parecem querer entender aquilo que Marx apresenta como
necessário para a realização da troca entre os guardiões das mercadorias que seria “um ato de

198
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 44.
199
Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”, op. cit., p. 194-203.
200
Id., Ibid., p. 196.
201
Id., Ibid., p. 199.
202
Id., Ibid., p. 201.

87
vontade comum a ambos”203. A constituição desse ato jurídico para Marx antecederia a troca
porque os indivíduos teriam que se encontrar nessa esfera como iguais, como portadores de
mercadorias204. Na análise realizada na Dialética, a realização do ato teria de pressupor que os
sujeitos houvessem aceitado em sua consciência a equivalência entre si como os portadores
das mercadorias e também a igualdade dessas mercadorias. A troca, desse modo, se realizaria
porque a razão abstrata moldava os sujeitos para um pensar voltado à equivalência das coisas.
Enquanto Lukács entendia que a reificação dos sujeitos tinha sido originada pela
racionalização progressiva do processo de trabalho, ao aplicar a análise de fetichismo da
mercadoria do primeiro capítulo de O Capital a uma interpretação do processo produtivo, na
Dialética, a reificação dos sujeitos aparece como produzida na esfera da circulação, tal como
Marx realizara no capítulo seguinte à análise da mercadoria. Não são, no entanto, análises que
se contradizem. O valor, que a mercadoria apresenta na troca, que faz com que os indivíduos
não reconheçam nela seu próprio trabalho, mas a vislumbrem como algo independente,
ocultava em si o trabalho que era verdadeira fonte de valor na mercadoria 205. Tal trabalho,
produtor do valor, tem um duplo caráter, específico e geral, e em sua dimensão abstrata geral
e não qualitativa – a que produz o valor ou valor de troca – é apontado por Lukács como
origem do processo de reificação dos trabalhadores que, progressivamente, se expandia ao ser
racionalizado e reduzia sua dimensão qualitativa. Ainda, como enfatiza Marx, o valor
originado na produção só se concretiza na troca206, o que se correspondia, portanto, também à

203
Marx, K. O capital, opacite., p. 159.
204
Ruben enfatiza que a igualdade entre as mercadorias que permitiria a troca conforme Marx analisa em O
Capital, se realizava na “vinculação entre os produtores de mercadorias enquanto sujeitos econômicos iguais,
autônomos e independentes”. Rubin, I. I. A teoria marxista do valor. Tradução de José Bonifácio de S Amaral
Filho. São Paulo: Editora Polis, 1987, p. 102. Importante frisar que tal “alheamento mútuo” não existe, segundo
Marx, para a “comunidade natural-espontânea” como a família patriarcal, a comunidade indiana antiga. A troca
de mercadorias só se daria nos períodos primitivos entre comunidades, como diz Marx “a troca de mercadorias
começa onde as comunidades terminam”. Marx, K. O Capital, op. cit., p. 162. Cabe notar que Horkheimer e
Adorno parecem sugerir o mesmo que Marx sobre um alheamento que começa onde a comunidade termina. Na
passagem que já citamos (p. 32) em que dizem o ritmo dos rituais mágicos servir a inculcação do ritmo do
trabalho, os autores enfatizam que tal atitude coercitiva se dava na relação coercitiva com tribos estrangeiras, ou
seja, fora da comunidade. A isto, porém, acrescentam que tal coerção também se poderia dar pelo próprio grupo
que governa [eigenen Cliquen]. Na tradução em português Cliquen aparece como “cliques de governantes”.
Convém observar que Clique, de origem francesa [clique] é um termo pejorativo que se refere a um grupo de
pessoas unidos por interesses de conveniência e afinidade que se contrapõe aos outros. Geralmente, se refere a
grupos de interesse intelectual ou político. Portanto, além de relacionarem a troca as relações entre comunidades,
Horkheimer e Adorno a pensam como também originada na comunidade quando há divisão de trabalho em que
um grupo apresentaria preponderância sobre os outros indivíduos. Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do
esclarecimento, op. cit., p. 30; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 27.
205
Valor de uso enquanto trabalho específico e valor ou valor de troca enquanto trabalho abstrato geral.
206
Nas palavras de Marx, “somente no interior da troca os produtos do trabalho adquirem uma objetividade de
valor socialmente igual, separada de sua objetividade de uso, sensivelmente distinta”. Marx, K. O Capital, op.
cit., p, 148.

88
análise presente na Dialética. Podemos frisar que Marx apontava a troca como momento
mediador entre produção e distribuição, mas que era “manifestamente incluída como um
momento da produção”207.
A distinção entre as esferas que analisam Lukács e os autores da Dialética suscitam
diferenças no que concebem como dominação e, consequentemente, como pressupõem a
emancipação. Primeiramente, apontemos que Marx, em textos anteriores a Para a crítica da
economia política, mantém sua análise da dominação capitalista centrada sobre a dimensão
objetiva dada na diferença entre classes, a saber, dos possuidores dos meios de produção e dos
possuidores da força de trabalho (capitalistas e proletariado), que implicava na alienação do
trabalhador e na sua exploração pelos capitalistas. No entanto, em período posterior, o exame
de Marx não se volta à posse ou não dos meios de produção e das forças produtivas 208 e sobre
as relações entre os agentes dadas na produção, mas na investigação do modo das relações de
produção na economia capitalista209, isto é, centrava-se no modo de produção capitalista e na
sua determinação estrutural das relações de dominação (capital e trabalho). Isso quer dizer
que Marx, partindo de uma teoria da exploração de classes, passa na obra O Capital a uma
teoria das estruturas de dominação do modo de produção capitalista 210. Se há, em Marx,
sujeitos da dominação, eles poderiam ser identificados como sendo os capitalistas, num
primeiro momento, mas quem apareceria enquanto sujeito, no momento posterior, seria o
próprio capital211. Lukács e os frankfurtianos compartilham a preocupação de compreender
como as estruturas objetivas foram subjetivadas pelos sujeitos; interessam a eles entender as

207
Marx, K. “Para a crítica da economia política”. In: ______. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos
escolhidos. Karl Marx. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 115.
208
A obra de Moishe Postone enfatiza como os marxismos tradicionais mantiveram sua interpretação sobre a
posse ou não dos meios de produção, o que, para o autor, teria levado a teoria da produção capitalista de Marx a
uma interpretação enquanto teoria da distribuição capitalista. Cf. Postone, M. Tempo, trabalho e dominação
social. Uma interpretação da teoria crítica de Marx. Tradução de Amilton Reis e Paulo Cézar Castanheira. São
Paulo: Boitempo, 2014, p. 15 e ss.
209
Conforme Rubin apresenta. Rubin, I. I. A teoria marxista do valor, op. cit., p. 16.
210
De acordo com Vandenberghe, do ponto de vista sociológico, o conjunto da obra marxista seria uma passagem
de uma teoria da alienação a uma teoria da exploração e da última a uma teoria da reificação. Aponta ainda que
Marx rumo à obra O Capital teria caminhado de uma teoria voluntarista a uma “teoria predominantemente
determinista do social”. Vandenberghe, F. Uma história filosófica da sociologia alemã: Alienação e reificação.
Vol. 1. São Paulo: Annablume, 2012, p. 117-118. Podemos lembra ainda o estudo de Michael Löwy sobre os
textos do jovem Marx em que ele explicita a teoria política de Marx como passagem de uma teoria da revolução
comunista para uma teoria do partido, tendo ambos os períodos o cerne do potencial de ação revolucionária
capaz de transformar o sistema. Cf. Löwy, M. A teoria da revolução do jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012.
211
Conforme nos lembra Ruy Fausto, o objeto central do Capital não é o homem, mas o próprio capital. O
capital é, de fato, o sujeito que domina; operário e capitalista “são suportes do capital, por serem suportes do
dinheiro e das mercadorias”. Fausto, R. “Dialética marxista, antropologismo e antiantropologismo”. Discurso. n.
8, p. 67-105, 1978, p. 71.

89
consequências subjetivas da objetivação do mundo realizada pela modernização capitalista 212.
Lukács, porém, ao centrar sua análise sobre a esfera da produção, vendo a objetividade
incorporada pelos sujeitos na abstração do processo de trabalho, assumiria como dominação o
processo de trabalho dominado pelo capital. O sujeito da dominação se converte no próprio
processo de trabalho no modo de produção capitalista, isto é, o trabalho reificado. Aí,
permanece a ideia em Lukács, tal como estivera presente em Marx, que, para se atingir um
estágio emancipado, o trabalho deveria ser libertado da sua forma reificadora realizada pelo
capital. Ainda poderíamos dizer que se mantém em Lukács a ideia que o sujeito da dominação
pela forma reificada do trabalho seria a classe capitalista, proprietária dos meios de produção
e organizadora dos processos produtivos, uma vez que o filósofo guarda ao proletariado a
função de ser o sujeito da emancipação por sofrer as consequências da objetivação produzida
pelo capitalismo, sendo o sujeito-objeto da história que poderia indicar o caminho “para o
qual ocorre objetivamente a dialética do desenvolvimento”213.
O diagnóstico dos frankfurtianos se distancia de Marx e Lukács quanto à dominação e
seu sujeito e a abordagem sobre as classes, uma vez que a análise que apresentam tem seu
cerne no processo de troca. A dominação na Dialética, conforme já ressaltamos, seria exercida
pela razão abstrata. Convém indagarmos quem seria o sujeito vinculado a essa dominação
expressa pelas frankfurtianos. A princípio, podemos dizer que não há nenhum sujeito além da
própria razão e que nenhuma classe aparece como associada a essa dominação, tal como
haviam diagnosticado Marx e Lukács. A razão como aparelho de dominação conduziria, para
os autores, todos e cada um dos indivíduos sem “barreira alguma” 214. Tal afirmação ainda
marcaria um distanciamento da reificação como concebida por Lukács, uma vez que o autor
não estava preocupado em revelar qualquer reificação que acometesse o proprietário dos
meios de produção. A reificação das consciências se realizava naqueles que tinham posse
somente de sua força de trabalho e estavam dispostos à objetivação desse processo.
Entretanto, na Dialética, vinculada à “superioridade do saber” que evocara Bacon215, a razão
estaria “à disposição” de qualquer um e coordenava desde reis e empresários 216 ao trabalhador

212
O que nos leva a pensar que tanto Lukács quanto Horkheimer e Adorno permanecem devedores da tradição
romântica alemã que sempre abordara como tema o sujeito perante o mundo moderno racionalizado.
213
Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”, op. cit., p. 391.
214
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 10.
215
Bacon, F. apud Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 17; Bacon, F. apud
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 9.
216
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 18; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 10.

90
moderno na fábrica217. Em tal afirmação, expunha-se importante distanciamento da Dialética
à abordagem teórica de Marx, ao não mais conceber a dominação como dominação de uma
classe, a classe proprietária dos meios de produção, sobre outra classe, a que possui a força de
trabalho, o que fora lido por algumas interpretações da obra como um abandono da teoria
marxista pelos frankfurtianos218. Apesar de não interpretarem a dominação em termos de
exploração de classe, isso não indica que os frankfurtianos vissem a sociedade sem quaisquer
divisões econômico-sociais ou sem diferenças de poder entre os indivíduos que estavam
dominados pelo maquinário da razão. Sem menções à classe, os autores da Dialética, todavia,
indicam distinções entre os “governantes”219, os “senhores”220, “os administradores”, os
“empresários”221, os “diretores gerais”222, os “grandes”223 e os “remadores”224, os
“pequenos”225, os “dóceis proletários”226, o “resto supérfluo, a massa imensa da população” 227.
Essas diferenças não consistem na posse ou não dos meios de produção, mas parecem estar
atreladas às variações de poder que os indivíduos possuem na estrutura da aparelhagem
constituidora da razão.
Dois momentos na alegoria assumida pela Odisseia são expostos por Horkheimer e
Adorno em que a divisão do trabalho aparece como variação de estruturas de poder. Num
primeiro momento, na trama geral da obra, Ulisses é o senhor e pode lançar-se para a guerra
real e contra as criaturas mitológicas porque possui propriedades e tem sobre seu jugo
indivíduos que trabalham no seu lugar e, logo, podem continuar a produzir enquanto ele está
ausente. São apenas os deuses míticos que coordenam seu destino de ida à guerra, de ser
vitorioso, de retorno à casa. Seus servos, todavia, ainda estão dispostos a ele como senhor que
217
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 43.
218
Martin Jay (2008) é um dos autores que faz tal afirmação.
219
No original em alemão, “den Oberen”. Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit.,
p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 42.
220
No original em alemão, “des Gebieters”. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 43.
221
No original em alemão, Unternehmer. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 44.
222
No original em alemão, Generaldirektoren. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 44.
223
No original em alemão, “die Groβen”. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 42.
224
No original em alemão, Ruderer. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 43.
225
No original em alemão, “der Kleinen”. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 42.
226
No original em alemão, “den fünsamen Proletarien”. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id.,
Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 43.
227
No original em alemão, “die den Herren der Gesellschaft zur Verfüngung”, “der überflüssige Rest”. Id.,
Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 44.

91
os coordena à distância e, ainda, certamente, devem submissão às instâncias míticas. Um
segundo ponto a ser recordado é a alusão ao encontro com as sereias, em que Ulisses pode
fruir da natureza porque outros o substituíam no trabalho movendo os remos da embarcação.
Enquanto Ulisses violenta sua natureza e está exposto à beleza do canto sedutor, os servos se
reduzem a ser corpo e ao trabalho que realizam. Horkheimer e Adorno afirmam que, “desde o
astucioso Ulisses até os ingênuos diretores-gerais”, a limitação do pensamento à organização
e à administração não só acomete os “pequenos” os que só estão submetidos ao trabalho, mas
também traz a esses, que desde Ulisses se beneficiam da divisão do trabalho, a redução da
experiência. O que os iluministas insistiram se cumprira nesses administradores e senhores: “o
espírito torna-se de fato o aparelho da dominação e do autodomínio” 228. E isso, porém, não era
fonte de regojizo, mas de sofrimento e sujeição à razão.
Entretanto, os autores explicitam que “os ouvidos moucos, que é o que sobrou aos
dóceis proletários desde os tempos míticos, não superam em nada a imobilidade do senhor” 229.
A afirmação aqui remete e confronta Lukács. Para os autores da Dialética, a objetivação a que
estavam submetidos os proletários não os colocaria numa posição de vantagem, não seria uma
posição emancipatória da práxis230, mas sim em uma situação de pobreza que os limitaria a
mera existência e a sucumbir-se e integrar-se ao próprio sistema. Os remadores, bem como os
indivíduos nas fábricas estão relegados ao próprio corpo, um corpo já ajustado ao sistema de
produção231. Estes corpos não possuem poder nem ao menos para usufruir da natureza, da arte
como pode Ulisses, ao contrário, sua vida tende a assemelhar-se à vida do “mundos dos
anfíbios”232. Enquanto os diretores gerais – que Horkheimer e Adorno chegam até mesmo de
denominar de “os dominadores”233, indicando aí que exercem domínio sobre os outros e,
portanto, estariam numa posição diferenciada do maquinário social – se encontravam sobre o
poder da objetividade do sistema, mas “se arvoram em engenheiros da história universal” e
não mais apostam na objetividade das leis para garantir seu domínio, mas enaltecem a própria

228
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 42
229
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 42-43.
230
Conforme afirmava Lukács, “O pensamento proletário é, antes de tudo, apenas uma teoria da práxis”, que
com o desenvolvimento dos processos sociais poderia “metamorfosear-se gradualmente (é verdade que muitas
vezes aos saltos) numa teoria prática
231
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 43.
232
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 43.
233
No original em alemão, Herrschenden. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 44.

92
subjetividade234, os pequenos – também apontados como os “dominados” 235 pelos autores –
aceitam como natural e intangível à objetividade que amplia a sua impotência, ou seja, veem
os movimentos objetivos como consequências inescapáveis e aceitam a fraqueza de sua
subjetividade perante tal sistema objetivo236.
Esta diferenciação econômico-social exposta pelo frankfurtianos, em primeiro lugar,
parece vir inspirada do diagnóstico de Friedrich Pollock apresentado em seu artigo
“Capitalismo de Estado: suas possibilidades e limitações”. Tal como Pollock, Horkheimer e
Adorno indicam a presença de uma nova classe dominante que não é dada somente pelos
capitalistas, mas por administradores, gerentes, agenciadores, financistas, empresários das
grandes indústrias. Pollock apresentava que no capitalismo de Estado, este seria “instrumento
de poder de um novo grupo dominante, que era resultado da fusão dos mais poderosos
interesses velados: o alto escalão da administração industrial e de negócios, o mais alto estrato
da burocracia de Estado (incluindo a militar) e figuras de liderança da burocracia do partido
vitorioso. Todo mundo que não pertença a esse grupo é mero objeto de dominação”237.
Há, entre as interpretações da Dialética, forte argumentação que apresenta a obra
como herdeira, afirmativa e continuadora do diagnóstico do capitalismo de Estado238 como
fora compreendido por Pollock. O fato é que o texto de Pollock fez parte de uma série de
debates promovidos pelos frankfurtianos emigrados realizados na Universidade de Columbia
que tinham como intenção a compreensão do presente histórico que estava defronte o Estado
nazista. Behemoth de Franz Neumann, Tendências tecnológicas e estrutura econômica sob o
nacional-socialismo de Arcadius Gurland, ensaios de Herbert Marcuse, textos de Otto
Kirchheimer e alguns de autoria do próprio Horkheimer fizeram parte desses estudos 239.
Embora, certamente, as estruturas de poder que a Dialética expõe venham da proximidade

234
Segundo Horkheimer e Adorno, favorecem-se as decisões conscientes em detrimento das leis objetivas do
mercado, todavia “a decisão consciente dos diretores gerais, como resultante tão fatal quanto os mais cegos
mecanismos de preços, leva a efeito a velha lei do valor e assim cumpre o destino do capitalismo”. Id., Dialética
do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 44.
235
No original em alemão, Beherrschten. Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42; Id., Dialektik der
Aulfklärung, op. cit., p. 45.
236
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 42-43; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 44-45.
237
Pollock, F. “State capitalism: its possibilities and limitations”. In: Arato, A.; Gebhardt, E. (orgs,) The essential
Frankfurt School Reader. Nova York: The Continuum Publishing Company, 1982, p. 73, tradução própria.
238
Interpretações de Dubiel, Habermas, Nobre, por exemplo, enfatizam a importância do diagnóstico de Pollock
na composição da Dialética.
239
Os referidos debates são aludidos por Helmut Dubiel como antecessores da Dialética. Dubiel, H. Theory and
Politics, op. cit., p. 78. Regatieri faz uma análise minuciosa desses debates que teriam antecedido a obra de
Horkheimer e Adorno e traça em que pontos a Dialética seria devedora desses diagnósticos. Regatieri, R. P.
“Sobre a natureza do presente histórico. A crítica da dominação no Instituto de Pesquisa Social no início dos
anos 1940”. Sociologia & Antropologia. Rio de janeiro, v.03, n. 05, p. 119 – 149, junho, 2013.

93
com o ensaio de Pollock, nos parece, no entanto, que a afirmação de Pollock quanto ao fim
das leis econômicas em virtude da preponderância do político no capitalismo de Estado não
parece coincidente com o diagnóstico da Dialética, uma vez que os autores ressaltam que a lei
do valor continua a operar mesmo nas ordens políticas e, ainda, que as tendências sociais
objetivas da economia estavam corporificadas nas “intenções subjetivas dos diretores
gerais”240. A análise da Dialética sobre a razão abstrata não é possível de ser reduzida somente
às diferenciações do Estado e da estrutura econômica, já que a análise cultural e as
transformações da subjetividade são também constitutivas do seu escopo241.
Parece-nos fundamental compreender a proximidade da abordagem benjaminiana
sobre o declínio da experiência e a dominação da razão nas diferenças de poder entre os
indivíduos que Horkheimer e Adorno expõem. Na alegoria que a Odisseia apresenta, Ulisses é
senhor de terras, tem servos, pode ouvir a natureza e acessar a arte, mas sua experiência do
mundo esta danificada por se realizar tendo como pressuposta a divisão social do trabalho.
Sendo o indivíduo que possui a “astúcia”, Ulisses encerra em si o indivíduo que possui a
razão e a técnica que o permite não sucumbir às coerções naturais e materiais da natureza,
assim, por ter outros que trabalham por ele, tem a possibilidade de apenas ver/ ouvir à
natureza. Sua experiência não vem da práxis, mas é somente contemplativa. Perante o
progresso “monstruoso” da técnica, “uma nova miséria recaiu sobre os homens”, diz
Benjamin242, os “telescópios, aviões e foguetes transformaram os homens antigos” 243 – aqueles
com capacidade para a experiência sensível, coletiva, capazes de narrar244 – “em criaturas
inteiramente novas”. Os indivíduos se tornavam imersos e integrados à frieza da organização
capitalista do trabalho245, o que significava, para Horkheimer e Adorno, “a unificação da

240
Horkheimer, M., Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 101; Id., Dialektik der Aulfklärung,
op. cit., p. 130.
241
Regatieri argumenta que a Dialética, perante os debates realizados em Columbia, foi o texto de fechamento da
discussão e que não assumia a herança de nenhum dos textos, mas era uma posição inteiramente nova. Regatieri,
R. P. “Sobre a natureza do presente histórico”, op. cit., p. 138-139.
242
Benjamin, W. “Experiência e pobreza”. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8a. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2012,
p. 124.
243
Id., Ibid., p. 126
244
Conforme Benjamin enfatiza em seu ensaio O narrador, a experiência da narração que vinculava a memória
passada coletiva às gerações futuras se perdera diante do progresso que era regressão e da guerra técnica que
emudecera os homens. Benjamin, W. “O narrador”. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8a. Ed. São Paulo:
Brasiliense, 2012, p. 218.
245
Jean-Marie Gagnebin expõe que Benjamin vê tanto nos romances, onde o indivíduo acompanha uma narrativa
que oferece sentido à sua vida e lhe vincula a sua capacidade perdida de narrar, quanto no interior da casa
burguesa, a tentativa de preencher a interiorização da casa e da psiquê com objetos que remetam à intimidade
que desaparecera do mundo público. Transmutavam, desse modo, sua experiência [Erfahrung] coletiva

94
função intelectual”, “a dominação dos sentidos”, “a resignação do pensamento em vista da
produção da unanimidade”, “o empobrecimento do pensamento bem como da experiência
[Erfahrung]”246 a que estavam dispostos todos os indivíduos burgueses. Podemos remeter aqui
a obra de Adorno de período próximo a Dialética que foi a Minima moralia, que apresentava
o objetivo de exprimir tal declínio da experiência, o que anunciava em seu subtítulo Reflexões
sobre a vida lesada. Nela, Adorno expunha em pequenos fragmentos, a partir de sua
experiência individual, análises do social realizadas pelo encontro entre as potências objetivas
e o indivíduo. Assumia, desse modo, sua experiência intelectual também como também refém
do declínio que o mundo objetivo promovia247.
Se o indivíduo burguês que representava Ulisses perdera a capacidade de narrar, seus
remadores perdiam até mesmo a capacidade de ouvir. A técnica que dominara Ulisses e os
diretores gerais que não os permitira mais possuir uma relação que não fosse danificada com a
natureza, tornava os remadores “meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento
na coletividade governada pela força”248. Isso significava que estavam reunidos enquanto
massa submissa e não relacionada ao compartilhamento de relações sociais, mas sim sob uma
igualização que vinha da pobreza e isolamento das vidas individuais249. Os trabalhadores se
encontravam relegados à pobreza da vivência que, como explicita Benjamin, “o impele a
partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem
olhar nem para a direita nem para esquerda” 250. Enquanto o espírito de Ulisses era aparelho da
dominação da razão, os corpos dos remadores estavam adaptados à técnica produtiva. Nas
palavras dos autores, o “manejo do corpo já há muito ajustado pelo sistema de produção
quanto mais empobrecidas as vivências [Erlebnisse] de que ele é capaz” 251. Parece inevitável
assumir que a razão abstrata afeta de formas distintas os indivíduos: enquanto os burgueses se

danificada pelo constante desenvolvimento técnico em vivência [Erlebnis] reduzida a vida do indivíduo
particular, isolado na sociedade. Cf. Gagnebin, J. M. “Não contar mais?”. In: ______ História e narração em
Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 59-60; Id., “Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta”.
In: Benjamin, W. ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras
escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8a. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 9.
246
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 42.
247
Adorno, T. W. Minima moralia: reflexões a partir da vida lesada. Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2008.
248
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 43.
249
Podemos lembrar que essa é a crítica que Horkheimer e Adorno aludem ao cinema e a indústria cultural como
um todo, assumindo que estes realizam a mesma coletividade que a fábrica. Seria uma massificação dos
isolamentos falsamente tomados como sentidos comuns de coletividade social.
250
Benjamin, W. “Experiência e pobreza”, op. cit., p. 125.
251
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 41; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 43.

95
encontram sobre uma experiência que caminha para ser somente vivência, os indivíduos que
estão atrelados ao trabalho concreto e não intelectual já estão condicionados apenas às
vivências. Ainda, se aos diretores gerais cabe acreditar na subjetividade e a possibilidade de
tomar decisões – mesmo que elas impliquem na concretização das leis objetivas –, os
trabalhadores estão apartados da decisão, de toda ação que não seja a reprodução do trabalho
e do mundo e, portanto, estão subjugados e impossibilitados de participar da história. Daí não
poderem afirmar, Horkheimer e Adorno, a possibilidade de revolução que partisse desses
indivíduos.
Podemos voltar a nossa questão do sujeito da dominação. Se, num primeiro momento,
assumimos que não há sujeito definido ou único da dominação a não ser a própria razão
abstrata, nossa investigação das distinções de poderes entre os indivíduos, inclusive no
tocante às consequências perdas distintas subjetivas que a dominação da razão impõe aos
indivíduos – se reduz a sua experiência ou se o limita à vivência –, nos leva a refletir que há,
no entanto, para Horkheimer e Adorno, “categorias” sociais que encontrariam maiores
possibilidades de movimento dentro da aparelhagem da razão abstrata, que poderiam exercer
domínio sobre os demais indivíduos e que possuem, ainda que de forma ínfima, alguma
possibilidade de decisão sobre o sistema. Permanece, porém, a imagem que a razão abstrata
em seu viés e vínculo com o capitalismo seria o sujeito desse domínio. Se essa assunção
afasta os frankfurtianos de Lukács e do marxismo centrado na teoria da exploração, da mesma
forma, guarda alguma proximidade com o Marx da obra O Capital, que afirma que as figuras
do capitalista e do proprietário fundiário importam na crítica da economia política apenas
como “personificação de categorias econômicas”. Diz Marx que seu “ponto de vista, que
apreende o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo
histórico-natural, pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por relações
das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa
se colocar acima delas”252. Os indivíduos e suas posições econômicas seriam máscaras
produzidas pelo próprio sistema, não podendo, portanto, se colocar acima dele. De forma
similar, a Dialética apresenta que os indivíduos são produtos da sociedade que não se
colocam acima dela como seus criadores e gestores – já que são criaturas dela –, porém,
distintamente de Marx, estabelecem que a dominação do sistema capitalista não se daria
somente sobre os indivíduos reduzidos ao ato de trabalhar como expresso no conflito capital e

252
Marx, K. O Capital, op. cit., p. 80.

96
trabalho em O Capital. A dominação estaria estendida a todos os indivíduos, uma vez que as
próprias decisões dos capitalistas seriam dadas pelos fluxos objetivos do sistema que os
indivíduos haviam interiorizado. Mesmo admitindo somente enquanto máscaras econômicas a
posição reservada ao capitalista, Marx não se preocupava em assumir os capitalistas também
enquanto vítimas desse sistema. Tanto ele quanto Lukács atribuem à burguesia uma
dominação ideológica, porém, continuam a lhe atribuir papel decisório na dominação do
sistema.
No capítulo sobre a indústria cultural, Horkheimer e Adorno apresentam, de forma
mais nítida, mecanismos técnicos que produziam formas enaltecedoras da razão abstrata na
indústria cultural e se constituíam como órgãos produtores e responsáveis pela dominação,
assumindo tal indústria, portanto, certa função de sujeito da dominação253. A indústria cultural,
fusão entre a indústria cinematográfica, as empresas de rádio e televisão e a indústria da
música, fundamentava-se no processo técnico, realizava a produção em série e massificada
em que equalizava e universalizava seus produtos. Apresentam os autores que, por seus
produtos, a indústria cultural visava substituir o esquematismo kantiano enquanto
multiplicidade sensível prévia aos conceitos fundamentais por “um mecanismo secreto
destinado a preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura”
produzido por essa indústria e imposto à sociedade254. Seus produtos continham em si a
mesma técnica que os produzira, isto é, traziam de modo intrínseco a forma da razão abstrata
253
Não nos deteremos nos mecanismos de produção da cultura industrializada como Horkheimer e Adorno
dispõem no capítulo “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”. As obras de Rodrigo
Duarte, Teoria crítica da indústria cultural, Gabriel Cohn, Sociologia da comunicação, além do livro de Fábio
Durão, Antônio Zuin e Alexandre Vaz, A indústria cultural hoje, são abordagens aprofundadas do tema de
maneira muito mais detida e precisa do que a exposição sintética presente realiza. O que nos interessa aqui é
apreender que a cultura passara a ser gerenciada e administrada por meio da técnica, como desdobramento do
processo de esclarecimento. Isso significava que os produtos culturais que tinham vinculação direta entre seus
produtores e consumidores – tal como as relações no capitalismo liberal nas fábricas – passavam, no século XX,
a ser realizadas pela mediação de grandes indústrias e centros de negócio, atendendo, portanto, os interesses
desses. Havia uma ilusão de que tal indústria traria visibilidade a produtos produzidos por populares, fazendo
com que produtos culturais que fossem uma experiência limitada geograficamente, atingissem amplos aspectos
da sociedade. Segundo Horkheimer e Adorno, isto seria uma falácia, uma vez que a indústria já havia decidido
de antemão os perfis culturais a serem estimulados por ela, cuja relação não estava baseada em aumentar o
acesso a um bem cultural ou tornar conhecido um aspecto novo da cultura que seria limitada espacialmente, mas
sim, voltada a gerar crescimento econômico dos centros mediadores e produtores desses bens. Desse modo,
todas as escolhas da indústria cultural seriam pautados nas fórmulas de sucesso já consolidas. A técnica que
selecionava e produzia os produtos culturais se refletia nos próprios produtos que, difundidos amplamente pela
indústria – o que era possível pela sua produção em massa –, se eram promotores da razão abstrata ao assumir
um produto em formato fechado, não aberto ao pensar, repetitivo, controlado, calculado, o que estimulava a
passividade com o existente e o reproduzia como eterno e como única via cultural, fazendo a apologia do sistema
capitalista. Apesar dos amplos aspectos dessa indústria trabalhados na obra, nosso interesse se reduz a sua função
enquanto mecanismo industrial de produção da razão abstrata que expandia e fortificava a dominação capitalista
sobre o mundo.
254
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 103; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 132.

97
e tentavam proporcionar a integração e a adaptação ao existente, promoviam a apologia da
realidade, escamoteavam o que era múltiplo e heterogêneo e provocavam o retorno do
mesmo255. Assim, o que os autores parecem articular é que a indústria cultural tomava as
formas de uma real indústria da produção e difusão da razão abstrata, a partir dos
esquematismos prontos que seus produtos ofereceriam256. Se a dominação exercida pela razão
não parecia ter sujeito a não ser em seu vínculo mais geral com a produção capitalista, nesse
capítulo, os frankfurtianos parecem apresentar que a indústria cultural assumia, no século XX,
uma certa agência na produção da dominação257.
Assumindo um papel de agente fundamental de gerenciamento da produção da
dominação da razão, a indústria cultural não era independente nessa agência, e sim envolta em
um complexo de relações de poder que a constituíam, conforme os autores não deixaram de
expor. Apresentam aí três asserções sobre essa indústria que revelavam como se dava a
estrutura da produção da dominação. Em primeiro lugar, se caracterizaria por possuir poucos
centros de produção e uma recepção ampla258, o que indicava que sua estrutura consistia numa
hierarquia desigual, em que poucos e raros decidiam e comandaram uma imensidão de
receptores passivos e sem capacidade de ação para atuar sobre o sistema. Num segundo ponto,
Horkheimer e Adorno apresentam que a técnica dos produtos culturais não era uma realização
da evolução da própria técnica da imanência dos produtos – tal como a arte realizava em
255
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 101, 111; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 130, 142.
256
Convém notar que o mesmo mecanismo de produção e difusão da razão abstrata analisada na indústria
cultural fora vislumbrado pelos autores na indústria militante do fascismo que produzia o ticket reacionário. O
ticket antissemita ou produzido por Hollywood eram a produção de blocos de pensamento prontos,
estereotipados, que excluíam a experiência e obrigavam os indivíduos a subsumir as particularidades de cada
coisa para decidir – uma falsa decisão, visto que seria predeterminada – entre dois blocos: ou amigo ou inimigo,
ou herói ou vilão, ou bom ou mal. A indústria fascista estaria imersa para autores na mesma lógica capitalista de
equalização, redução e cálculo, fazendo uso, assim, das abstrações subjetivadas pelo sujeito na separação entre
sujeito e objeto que tendiam a dominação do sujeito. Estimulando essas etiquetas, o fascismo tinha estimulado as
massas à oposição ao judaísmo e encaminhado os indivíduos etiquetados de judeus para as câmaras de gás. Id.,
Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 164 e ss.; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 209 e ss.
257
O que nos levaria a supor que se ela deixasse de existir – supondo a possibilidade improvável de suprimir seus
diversos polos industriais – a dominação pela razão como diagnosticada pela Dialética poderia deixar também de
existir. Porém, o diagnóstico frankfurtiano não é tão simples. Como já ressaltado, a dominação da razão se dava
ao ser produzida pelas relações concretas e difundidas pelo sistema capitalista no século XX, no entanto, sua
sustentação, para além da multiplicidade de instituições que os estimulavam, estava interiorizada nos sujeitos
que se tornavam promotores da razão abstrata. Parece, desse modo, pouco possível que a ausência das estruturas
externas eliminasse as estruturas subjetivadas da razão nos indivíduos. Todavia, cabe ressaltar que a abordagem
da Dialética mantêm certa ambiguidade, uma vez que enfatizam que a sujeição dos indivíduos a tal dominação
se dava pela constante coerção dessas instituições sobre eles. Assim, talvez, a ausência de coerção quanto à razão
pudesse também vir a liberar as subjetividades reificadas. No entanto, a questão maior que não podemos perder
de vista é que, com a difusão completa desses mecanismos de dominação por distintas indústrias –, o indivíduo
está disposto à lógica técnica da fábrica, mas também em seu tempo livre por inúmeras indústrias que são parte
do complexo industrial cultural –, difícil seria a articulação de uma completa eliminação de todas essas estruturas
de coerção.
258
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 100; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 129.

98
séculos anteriores –, mas sim uma decisão realizada pelo sistema econômico, dada pela
importância de função que a cultura passara a ocupar na economia 259. Isso quer dizer que a
racionalização do produto cultural não era desenvolvimento natural do próprio objeto ou
desdobramento do processo de racionalização intrínseco às relações sociais na modernidade.
Ao revés, a abstração e tecnicidade que os produtos assumiam eram decisão da indústria, da
economia, dos centros econômicos que gerenciavam o sistema capitalista. Um terceiro ponto
ressaltado pelos autores seria que a indústria cultural não possuía poder ilimitado e nem
atuava de forma autônoma: ela era submissa aos “setores mais poderosos da indústria: aço,
petróleo, eletricidade, química”260.
Isso nos leva a refletir que, se a razão abstrata era originada nos sucessivos processos
de troca que os indivíduos estavam condicionados desde a separação entre sujeito e objeto, a
qual, no entanto, se aprofundava ao ser estimulada pelo esclarecimento, e os objetivos deste,
compartilhados pelo capitalismo, que visavam estimular o progresso técnico, no capítulo
sobre a indústria cultural, então Horkheimer e Adorno apresentam um diagnóstico de tempo
do século XX em que veem o complexo industrial cultural aproveitar das tendências de
abstração do pensamento consolidado historicamente para estimular, por meio de seus
produtos, a razão abstrata que mantinha os indivíduos presos aos esquemas do pensar, às
relações e à realidade produzida e que interessavam ao capitalismo para sua própria
manutenção. Examinando minuciosamente os mecanismos da indústria cultural – essa que
vinha a ser a indústria em que se podia ver a produção das formas que reificavam os sujeitos
–, os autores afirmam que ela era hierarquizada e administrada por um pequeno grupo voltado
aos interesses da economia capitalista. Movida pela técnica, era a concretização do projeto do
esclarecimento que se voltava a dominar a natureza interior e exterior dos sujeitos a fim de
atender as necessidades de domínio da grande indústria do “aço, petróleo, eletricidade,
química”, ou seja, da ciência, da guerra das finanças, do comércio, da navegação como Bacon
anunciara. O aprofundamento da razão abstrata constituída enquanto técnica e ciência que
dominava a natureza e reificava os indivíduos, não era, portanto, uma consequência natural da
racionalização em progresso pela modernidade, mas o resultado de decisões de grupos de
poder vinculados à produção capitalista. Conforme Horkheimer e Adorno enfatizam, “o
terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os
economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade”. Portanto, podemos assumir que
259
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 100; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 129.
260
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 101; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 130.

99
todos os sujeitos estão dominados pela razão abstrata e essa razão é produzida por um
complexo de instituições e poderes, entretanto, é ao grupo dos economicamente privilegiados
que ela serve. Aos demais, somente cabe à obediência. Não falam Horkheimer e Adorno de
classes, mas claramente concebem que há hierarquias econômicas de poder que coordenam a
sociedade, produzem a razão abstrata e constituem a dominação. Ainda que a dominação seja
sistemática e que todos os indivíduos se encontrem imersos nela, há um grupo que tem
preponderância na aparelhagem constituidora da razão e que se beneficia dela perante uma
maioria condicionada somente às suas mazelas.
A razão se tornara uma forma de domínio abstrata. Dominação da razão significa que
os indivíduos foram transformados em sujeitos, como pretendera o esclarecimento, sem
poderes mágicos, sem ideias transcendentes, sem objetividade que coordenasse a vida dos
indivíduos. No entanto, enquanto sujeitos por possuírem a razão, os indivíduos se
encontravam sujeitados. Seu poder havia sido alienado para uma instância superior, ardilosa e,
supostamente, invisível que passara a coordenar todas as ações individuais a partir dos
próprios sujeitos. O que acontecera, após a ascensão do esclarecimento advindo da revolução
burguesa, era a proclamação de autonomia maior do sujeito perante a natureza por meio da
razão abstrata, o que significava o perpétuo enredamento do indivíduo nessa razão. A
invisibilidade desse ente que se tornara a razão era, porém, concreta. Tinha origem no poder
econômico, nas grandes indústrias, nas estruturas produtivas do capitalismo. O que acontecera
fora que o capitalismo, em especial o modelo que este assumia no século XX, tomava as
estruturas da razão constituidoras do pensamento para si, transformando cada indivíduo em
portador da forma que o reproduzia. A questão seria que, nas palavras de Horkheimer e
Adorno, “o senso de realidade, a adaptação ao poder, não é mais resultado de um processo
dialético entre sujeito e a realidade, mas é imediatamente produzido pela engrenagem da
indústria”261.
O projeto da Dialética parece ser uma contraposição ao projeto lukácsiano e, ao
mesmo tempo, sua continuidade. Continua-o na medida em que o que permanecia na
preocupação dos frankfurtianos, era a compreensão de como as consciências se tornaram
coisas, isto é, como assumiram a objetividade do mundo externo. Sua resposta, no entanto, se
contrapunha a Lukács ao afirmar que a própria razão era processo de abstração e que o
capitalismo se apropriara de sua estrutura para sua continuidade, reduzindo as experiências

261
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 169; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 215.

100
dos sujeitos e os tornando imobilizados e integrados ao sistema, o que impossibilitava a
tomada de consciência que transformaria o sistema 262. Horkheimer e Adorno dizem que o
capitalismo agora “só precisa de todos”263, o que significa que ele não está sob o comando de
uma classe ou que exige a exploração de apenas uma delas como apresentado por Marx, mas
sim subordinou e utiliza todas elas a partir da razão que fez os sujeitos incorporarem. Se
alguns, sob o domínio dessa razão, podiam comandar e a outros restava obedecer, a nenhum
deles estava disponível a liberdade. Ofuscados pela razão que os iluminaria, os indivíduos se
conformavam ao existente e à própria dominação.
A dominação da razão seria, portanto, como as interpretações da Dialética insistiam,
uma dominação total? Indivíduo e sociedade, sujeito e objeto haviam se tornado coincidentes
por meio da razão abstrata? Horkheimer e Adorno não apenas negam tal asserção, afirmando
que seria ilusório a constituição da sociedade como um todo, como também acusam que seria
justamente essa ideia que o esclarecimento e o capitalismo ofereciam à sociedade. Os autores
afirmam que “toda ilusão mística permanece um logro, o vestígio impotentemente
introvertido da revolução malbaratada”264. Isto quer dizer que, em primeiro lugar, a ideia de
negar a distância entre sujeito e objeto somente poderia falsa, uma vez que julga possível a
subsunção do indivíduo na sociedade como a completa integração entre sujeito e objeto, como
um retorno à pequena comunidade, em que a própria ideia de indivíduo não era existente, em
que os seres seriam completamente socializados, que não haveria a diferença entre público e
privado e em que os pensamentos seriam todos socializados. Tal realização seria afirmar o
restabelecimento da comunidade da razão orgânica conforme fora exaltada por Tönnies e
decretar o fim, não apenas do indivíduo, mas da ideia de sociedade. Toda a investigação da
Dialética contradiz essa tese ao apresentar que a própria Odisseia era testemunha da ruptura
entre sujeito e objeto, colocando em dúvida mesmo se esta unidade houvesse realmente
existido em algum período histórico. Em segundo lugar, condenam os autores aí também as
ideias revolucionárias que pretendiam reconstruir a totalidade. A ideia de fim da mediação
somente poderia constituir-se barbárie, uma vez que ela suprimia a ideia de liberdade ao
condenar todos os indivíduos a um destino comum, sem variabilidade, sem aspectos
262
Lukács afirmava, se contrapondo aos marxistas que acreditavam que a mera contradição do sistema capitalista
levaria a abertura de saídas da sociedade capitalista, que, além da contradição e seu desenvolvimento automático
produzido pelas leis capitalistas, era “preciso acrescentar algo de novo: a consciência do proletariado que se
torna ato”. Tal consciência se daria pela ação livre do proletariado que em si já seria prática, uma vez que era a
consciência do objeto. Lukács, G. “A reificação e a consciência do proletariado”, op. cit., p. 357.
263
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 46; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 49
264
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 44; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 46.

101
qualitativos. A defesa da totalidade por diferentes teóricos marxistas 265 seria para os
frankfurtianos uma concessão que faziam ao senso comum reacionário, visto que, ao
proclamar a totalidade, confirmavam sua inserção na lógica do sistema capitalista que, sob a
forma mercadoria, pretendia eliminar todas as diferenças, igualar e equalizar todas as coisas.
Se o ideal socialista pretendia buscar a igualdade, perdendo a multiplicidade, corria o risco de
eliminar a liberdade. O desejo de tudo igual e equiparável – que os regimes socialistas e
nazistas compartilhavam – fomentava a mesma lógica que o capitalismo e sua dominação
precisavam para se reproduzir.
Afirmava Adorno na obra Minima moralia: “o todo é o não-verdadeiro”266. Significava
isso que qualquer ideia de todo somente poderia ser falsa, já que pressupunha a subsunção de
uma complexidade ao uno. Seria impossível a definição e explicação do todo porque elas
somente poderiam se concretizar se ignorassem e reduzissem as multiplicidades infinitas que
estariam dispostas no mundo. E este era o programa do esclarecimento, em especial da ciência
positivista, e do capitalismo; ambos precisavam reduzir e igualar. Sendo assim, se Horkheimer
e Adorno assumissem a dominação total, incorreriam numa contradição teórica porque tal
assunção implicaria na realização do mesmo pensamento reducionista do esclarecimento e das
formas científicas que os autores haviam se dedicado a criticar na Dialética. Ainda, cabe
lembrar que seria do interesse do capitalismo afirmar-se como o único mundo possível e
enfraquecer todo e qualquer pensamento que contestasse a realidade existente. O que o
capitalismo pretendia, portanto, era conformar os indivíduos que a dominação seria
impassível, total, sem saídas, que lhes restava apenas integrar-se, conformar-se e apostar em
tentativas de reformas do sistema. O que os frankfurtianos estão a assumir não seria a
dominação total, mas justamente adverti-la enquanto tendência que o capitalismo tentava
realizar ao se aproximar do mito. Tal proximidade com o mito seria trazer de volta aquela
totalidade perdida, promover o mundo como cíclico e eterno, e com isso promover a
eliminação da história. Eliminar a história significaria excluir o potencial de transformação da
sociedade, bloquear a ação dos indivíduos, negar o potencial de erupção do novo. O
esclarecimento se tornara mito ao tentar, desesperado, explicar todo o novo como continuação
265
Podemos pensar no próprio Lukács que, se em A teoria do romance vê o fim da totalidade perfeita da
sociedade grega, em História e consciência de classe defende a revolução como forma de superar a ruptura da
totalidade em progresso devido aos progressos da modernidade racionalizadora. Mesmo sua ideia de
proletariado, confere a ele um caráter de sujeito-total, um sujeito-objeto, que por ser o objeto da dominação
capitalista e sofrer todas as mazelas do sistema poderia assumir – e somente ele o poderia – o ponto de vista de
todo o sistema e realizar a revolução. Podemos recordar que Tönnies defendia em sua obra que a comunidade
voltaria a se realizar no comunismo, o que era destino inequívoco da sociedade capitalista.
266
Adorno, T. W. Minima moralia, op. cit., p. 46.

102
do antigo porque precisava integrar todo o diferente ao mesmo, transformando o tempo vivo e
mutável em que os indivíduos podiam agir, num tempo morto, dado, previsível, que eliminava
a ação ou a apresentava como mero reflexo das estruturas. A produção da sociedade capitalista
queria se instituir como reprodução, mimese do morto e sobrepor ao tempo vivo o tempo
estático. Sua intenção era o bloqueio da história. Nesse sentido, se Horkheimer e Adorno não
estão afirmando nem a dominação total, nem o fim da história, mas justamente fazendo a
crítica às tendências do esclarecimento e do capitalismo, é preciso que perguntemos o que,
portanto, os autores aludiriam como não-dominação que permitiria a afirmação de que a
expansão da razão abstrata não seria a dominação total e que a história da civilização ainda
poderia ser transformada.
Antes de prosseguirmos, convém refletir a proximidade da crítica da razão abstrata ao
repúdio dos seus antecessores românticos à modernidade e ao progresso civilizacional. É
bastante visível certa concordância da crítica do esclarecimento de Adorno e Horkheimer à
crítica romântica. Ao analisarem que a razão fixava conteúdos, mecanizava o pensamento,
destituía as qualidades e equalizava a multiplicidade – o que se assumia na afirmação do
esclarecimento como mito –, apontavam toda a tendência manifesta da razão moderna como
dominação. Assumiam, como seus antecessores, que o progresso da civilização era seu
regresso, que implicava no declínio das experiências e na objetivação das subjetividades.
Denunciavam como eles a dominação da civilização e a razão como dominação que afastava
os indivíduos da natureza, os postulando em relação de domínio com ela. Porém, as
semelhanças se rompem aí. Porque, diferente do pensamento romântico e pré-romântico,
Horkheimer e Adorno estão criticando a instituição da razão enquanto mito e, ao mito, se
referem como mundo cíclico, lógico, eterno, que realiza a coincidência entre indivíduo e
sociedade. Esta concepção se contrapõe diretamente à abordagem pré-romântica, classicista e
romântica dos mitos. Estes viam na mitologia uma compreensão natural da totalidade do
mundo, não violenta, não dominadora, mas que remeteria diretamente à tradição oral e que
vincularia um mundo em que sujeito e objeto ainda seriam coincidentes e manifestariam uma
vivência harmoniosa. Enquanto pré-romantismo e classicismo defendem os modelos
mitológicos da antiguidade, retomando a ideia de totalidade – seja clamando por um retorno a
ela, seja a exigindo enquanto forma – e desenvolvendo uma ideia nostálgica da antiguidade
clássica, Adorno e Horkheimer demonstram rejeição à qualquer nostalgia que pretendesse
fazer os relógios voltarem para trás. Assim, veem nos modelos da antiguidade e em Homero,

103
produtos admirados pelos alemães, histórias não de harmonia, mas de violência, de
dominação, que marcam já um mundo rompido entre sujeito e objeto que trazia em si todas as
potencialidades da razão abstrata que seria tão essencial ao esclarecimento e à expansão
capitalista e que produziria o pensamento nazista. A rejeição aos mitos e sua tomada como
exemplo de não liberdade seria, além de uma inserção teórica, uma afirmação política dos
frankfurtianos.
Há ainda um aspecto fundamental que afasta os frankfurtianos dos seus antecessores.
Se Horkheimer e Adorno realizavam, como os românticos, a crítica à razão, associando-a à
dominação, assumem também, todavia, que seria a razão que promoveria à liberdade. Já no
prefácio da Dialética afirmam conscientes que realizavam uma aporia que “a liberdade na
sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor”267. Portanto, apesar da crítica que
realizavam à razão na obra, não pretendem rejeitá-la ou eliminá-la. A liquidação da razão
como postularia o romantismo, para os autores, acabava por prestar à própria razão uma
“reverência involuntária268. É fato que o romantismo, de certo modo, e o idealismo alemão
também afirmavam a razão como possibilidade de síntese entre natureza e espírito. Tal
síntese, todavia, era a mesma que condenavam os frankfurtianos como tendência mitológica
em vista da sua tentativa de reconstrução da totalidade. Isso significa que os autores
criticavam à razão como dominação – acordando com os românticos – e a admitiam como
caminho da liberdade – se desvencilhando dos antecessores – e, ainda, rejeitavam seu
potencial de liberação como síntese, defendendo, em contraposição, o potencial emancipatório
da razão enquanto recusa de qualquer caráter afirmativo e enquanto capaz de realizar a
delação dessas sínteses como falsas e de denunciar a dominação exercida pela razão.
Compreender essa relação complexa entre razão, dominação e não-dominação que parece
levar à Dialética à contradição teórica, ainda permanece como questão aberta a ser
investigada.

267
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 13; Id., Dialektik der Aulfklärung, op.
cit., p. 3.
268
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 48; Id., Dialektik der Aulfklärung, op. cit., p. 51.

104
CAPÍTULO 3 – RAZÃO E NÃO-DOMINAÇÃO

“– […] Nesse ponto, ao meu ver, foram alcançados os mais extremos acentos
do pesar; exprime-se o auge da desolação, e – hesito em dizê-lo, já que seria
uma ofensa à intransigência da obra e sua mágoa irremediável, se alguém
afirmasse que em sua última nota ela oferece outro consolo que não aquele
que não jaz na própria expressão e no poder de proferir o lamento; que,
portanto, provém do fato de a criatura dispor de uma voz para manifestar sua
tristeza. Não, esse sombrio poema tonal não admite até ao fim nenhum
conforto nenhuma reconciliação, nenhuma transfiguração. […] Ouçam então
o final, ouçam-no junto comigo: um naipe de instrumentos após outro esvai-
se, e o que resta, quando a obra se acaba, é o sol agudo de um violoncelo, a
última palavra, o derradeiro som que plana no ar e se extingue, lentamente
sumindo numa fermata em pianíssimo. Nada mais acontece. Silêncio e noite.
Mas o som ainda suspenso no silêncio, esse som que já não existe, que
unicamente a alma prossegue escutando, e que arrematou a aflição, ele muda
de sentido e se ergue como uma luz na noite.”
Thomas Mann, Doutor Fausto

3.1 Emancipação e não-dominação

Se, na análise que apresentavam Horkheimer e Adorno, a razão abstrata fora


corporificada pelos sujeitos e se constituíra como uma dominação sem fronteiras, que
coordenava todo e qualquer indivíduo no século XX e que era administrada por uma
aparelhagem composta por diversas instâncias de poder econômico e social controladas por
grupos privilegiados economicamente, de que maneira ainda se poderia pensar a emancipação
dessa sociedade? A dominação tal como esboçada na Dialética contradizia a aposta iluminista
de que a razão levaria inevitavelmente à liberdade, se contrapunha à tese marxista de que o
progresso das forças produtivas levaria automaticamente à contradição e desencadearia a
revolução, via como fracassada a ideia de tomada de consciência do proletariado – fosse
espontânea como apostava Lukács, fosse organizada pelo partido como defendera Lênin. O
diagnóstico da Dialética não afirmava apenas que a dominação do século XX era distinta
daqueles que marxismo e iluminismo apresentaram, mas ainda que seus projetos
emancipatórios tendiam ao fracasso, uma vez que a nova forma de dominação encerrada na
razão havia também atingido os princípios exaltados como caminhos para a emancipação.
É preciso assumir, primeiramente, que a Dialética estabelece a crítica dos projetos

105
emancipatórios dos antecessores, mas não traz em seu texto qualquer declaração direta sobre a
emancipação. Nem a emancipação do sujeito como o projeto kantiano, nem a emancipação da
classe trabalhadora como nas teses marxistas eram assumidas eram pretendidas na Dialética.
A recusa dos projetos emancipatórios anteriores e a ausência de definição do que conceberiam
como emancipação da dominação da razão abstrata fora exaustivamente trabalhadas pelas
interpretações da obra que a compreenderam como uma afirmação da dominação total e do
fim da história, de um abandono do marxismo e da resignação dos seus autores à sociedade
capitalista1. O próprio Lukács argumentara que os trabalhos de Adorno após a Dialética que
seguiam suas consequências eram um “conformismo disfarçado de não conformismo”, visto
que o frankfurtiano parecia se alojar confortavelmente no “Grande Hotel Abismo”, à beira “do
nada, do absurdo”2. Habermas expunha que a redução da razão a um caráter instrumental
levava à concepção consequente de admitir toda a práxis como reificada, o que impedia
qualquer vislumbre emancipatório, resultando numa teoria que abandonava o projeto
horkhemiano de teoria crítica e assumia traços de uma “contemplação mais tradicional,
negadora de referências à práxis”3. Honneth, de forma semelhante, acusava a Dialética de ser
uma teoria funcionalista da dominação total que acabava por negar o poder de resistência dos
sujeitos4, constituindo-se como filosofia da história voltada à decadência da civilização
produzida pelo processo tecnológico de dominação da natureza.
Faz-se necessário consentir às interpretações e ressaltar que, de fato, não há
1
Podemos recordar a interpretação de Dubiel que apresenta que a perspectiva de luta revolucionária fora
abandonada pelos autores em virtude da Dialética não mais realizar uma análise do desenvolvimento da
sociedade capitalista, mas sim se centrar na relação entre indivíduo e natureza, se desvinculando, portanto, de
Marx e do modelo de crítica da economia política. Dubiel, H. Theory and politics: Studies in the development of
Critical Theory. Tradução de Benjamin Gregg. Baskerville: The MIT Press, 1985, p. 92-97. Jay também
postulava como um afastamento da práxis radical e do que seria a verdadeira abordagem marxista de luta de
classes. Jay, M. A imaginação dialética: História da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais
1923-1950. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 320-321. Para Alway, qualquer ideia de redenção, mesmo
tênue, não se fazia presente na Dialética. Alway, J. Critical theory and political possibilities: conceptions of
emancipatory politics in the works of Horkheimer, Adorno, Marcuse, and Habermas. Westport, Connecticut:
Greenwood Press, 1995, p. 31. Podemos ainda mencionar Whtitebook que associa a ausência de perspectivas
emancipatórias na Dialética a certa proximidade à resignação da “inevitabilidade da jaula de aço” tal como
realizara Weber. Whitebook, J. Perversion and utopia: a study in psychoanalysis and critical theory. Cambridge,
Massachusetts: The MIT Press, 1995, p. 78-80.
2
Lukács, G. A teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de
José Marcos Mariani de Macedo. 2a. Ed. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2009, p. 18.
3
Habermas, J. Teoria do agir comunicativo: Racionalidade da ação e racionalização social. Vol. 1. Tradução de
Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 630.
4
Segundo Honneth, Horkheimer e Adorno por interpretar a história da civilização e termos de dominação da
natureza, dominação de classe social e dominação dos instintos individuais, ignoravam a “existência de uma
esfera intermediária da ação social” que só pode levar à compreensão dos sujeitos “como passivos e sem
intencionalidade, vítimas da mesma técnica de dominação que são destinadas à natureza”. Honneth, A. The
critique of power: reflective stages in a critical social theory. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1991,
p. 55.

106
referências definitivas e expressas sobre a emancipação na Dialética, isto é, não há nenhum
prognóstico, programa, imagem ou sujeito da emancipação que houvesse sido postulado pelos
autores no texto. Todavia, temos que discordar das interpretações no tocante à asserção que
fazem sobre a resignação frankfurtiana, uma vez que vários vestígios presentes na obra trazem
à percepção de que permaneceria para seus autores a possibilidade da liberdade, bem como a
de uma sociedade liberada. Aquiescer à adjetivação de resignação seria confirmar que os
autores teriam cedido à crítica romântica e conservadora da sociedade, o que nossa
investigação da dominação na Dialética colocava em dúvida.
Conforme trabalhamos no capítulo anterior, defender que a obra afirmara a decadência
como inexorável e a dominação como total seria contraditório e redutor da complexidade do
diagnóstico que a Dialética apresentava sobre a dominação. Horkheimer e Adorno parecem
longe de afirmar a totalização da sociedade, visto que tal realização seria improvável em
virtude da própria concepção e constituição da sociedade necessariamente compreender a
separação entre sujeito e objeto e a ascensão dos processos de individualização. O que os
autores afirmavam com a tese de que o esclarecimento se convertera em mito seria que a
razão abstrata enquanto mediação entre sujeito e objeto, desenvolvida nos processos
históricos da relação entre indivíduo e natureza no ocidente, se tornara, na sociedade
capitalista do século XX, parte do sistema de produção e, nesse sentido, pretendia realizar o
programa do capitalismo de converter-se no modo transhistórico e único de vida possível. Tal
asserção não era a proclamação da dominação total, mas a denúncia da tendência do
capitalismo de dissimular as contradições da sociedade e de petrificar as relações sociais nesse
modo de sociedade. Perante a emergência da tentativa de totalização liderada pela razão
abstrata, os autores não eram inocentes, mas sim compreendiam que qualquer passo
demasiado forte podia se converter em recurso de força às intenções da razão de consolidar o
capitalismo e dar fim à história. E, segundo os frankfurtianos, seria neste caminho que
haveriam incorrido os projetos emancipatórios da teoria marxista, já que suas intenções de
escapar ao destino capitalista se postulavam no desenvolvimento das forças produtivas e no
potencial emancipatório do proletariado. Não apenas o conteúdo dessas postulações tidas
como libertárias era contestado pelo desenvolvimento que o século XX produzira, mas a
própria forma como elas haviam sido formuladas enquanto emancipação na teoria marxista
portava, para os autores da Dialética, sua adesão à mesma lógica da razão abstrata que
movimentava o capitalismo e, por conseguinte, traziam a ameaça de não se constituírem um

107
modelo de sociedade livre, mas perpetuarem o modo de dominação.
Postas essas particularidades, a ausência de projeto emancipatório da Dialética precisa
ser compreendida enquanto asserção teórico-política consequente dos autores concernente às
dificuldades imputadas pelo diagnóstico da dominação no século XX, mais que taxadas como
resignadas ou finadas enquanto teorias tradicionais contemplativas. Partindo da compreensão
de que a emancipação não está declarada e de que a Dialética não é teoria resignada, o que
esboçamos nesse capítulo é uma tentativa de explicitar, primeiramente, diagnósticos e
motivos que produziram a ausência da dominação na obra, e ainda, expor os vestígios que o
texto alude ao que ainda permaneceria potencial na sociedade, se não de uma emancipação,
pelo menos de uma não-dominação. O termo não-dominação não está presente na Dialética,
mas é recurso de que lançamos mão a fim de problematizar o que escaparia ao enredamento
que tomava forma com a dominação exercida pela razão abstrata. Na tarefa de compreender a
ausência da emancipação e de recolher os indícios de uma não-dominação, esperamos poder
problematizar as interpretações que explicitam a obra enquanto renúncia ao pensamento
crítico e, além disso, promover um diálogo sobre as consequências da análise frankfurtiana à
teoria marxista.
Em primeiro lugar, faz-se necessário explicitar que a ausência de clareza sobre a
emancipação não é fortuita. Algumas interpretações que não concebem a Dialética como
teoria resignada apresentam que tal ausência adviria do próprio diagnóstico da sociedade dos
anos 1940, em que, perante os regimes totalitários do nazismo e do fascismo, os autores
somente poderiam aferir uma dominação que realizava o “bloqueio estrutural da prática”5.
Porém, concebemos que, para além de ser consequência de um diagnóstico do tempo, a não-
definição de caminhos emancipatórios teria origem em uma assertiva teórico-política de
Horkheimer e Adorno de crítica à epistemologia das teorias marxistas que permaneceriam
afeitas à lógica positivista em seus diagnósticos e, consequentemente, também em seus
projetos emancipatórios. Para os frankfurtianos, as teorias marxistas se agarravam “com
5
Nobre, M. A teoria crítica. 2a. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 51-52. Luciano Gatti e Adriano
Januário também compartilham dessa interpretação. Essa asserção dos três estudiosos vincula-se diretamente a
tese que defendem – ainda que com algumas nuances de diferenciações entre elas – de que a Dialética seria o
bloqueio da emancipação e o diagnóstico da dominação total, o que, no entanto, na continuidade das pesquisas
realizadas no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, sob direção de Adorno, após o retorno do exílio norte-
americano, teria sido abandonado e a teoria crítica adorniana passara a não mais expressar o bloqueio da
possibilidade de emancipação, mas sim vislumbraria possibilidades práticas de liberação, demonstrando uma
alteração do diagnóstico de tempo. Gatti, L. “Theodor W. Adorno: indústria cultural e crítica da cultura”. In:
Nobre, M. (org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas, SP: Papirus, 2008; Januário, A. M. Th. W. Adorno e os
Potenciais de Resistência no Capitalismo Tardio Industrial. 2013. 118p. Dissertação (Mestrado em Filosofia).
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.

108
excessiva rigidez à herança da filosofia burguesa”6 e, da mesma forma que essas, restringiam
o surgimento do novo como uma consequência do que estava em movimento no existente. Tal
afirmação teria origem numa teoria da história que era proposta pelo marxismo que
permaneceria vinculada a uma ideia de progresso, centrada no desenvolvimento objetivo da
história. Em “Teoria tradicional e teoria crítica”, era essa concepção de história e de projeto
emancipatório marxista que se fazia presente. No texto, Horkheimer afirmara que, seguindo
os passos argumentativos de Marx e Engels no Manifesto comunista que condenaram os
socialismos utópicos, a ideia de transformação do todo social para a qual uma teoria crítica
teria que se orientar “se diferencia da utopia”, uma vez que a postura crítica firmava a
possibilidade de transformação “pela prova de sua possibilidade real fundada nas forças
produtivas humanas desenvolvidas”7. Se o primeiro momento da teoria crítica confirmava tal
vinculação com Marx e mantinha suas concepções de crítica e emancipação, na Dialética,
porém, essa perspectiva se altera. Dizem os autores que “a imaginação revolucionária se
envergonha de si mesma como utopismo e degenera numa confiança dócil na tendência
objetiva da história”8. Ao afirmar isto, Horkheimer e Adorno estavam criticando a postura
teórica marxista de coincidir a necessidade com a esfera da liberdade, aceitando tal relação
como mecânica e quantitativa e, desse modo, demonstrando um respeito mítico pelo dado 9.
Contra esta concessão marxista à lógica da razão abstrata, os frankfurtianos argumentam que
“não são as condições materiais de satisfação nem a técnica deixada à solta enquanto tal” que
colocam em questão a práxis revolucionária. Em vez de limitar-se ao dado, de restringir-se às
condições existentes e vincular-se ao desenvolvimento histórico, a práxis revolucionária
dependeria, para os autores, da intransigência teórica que evitasse o enrijecimento da lógica
em curso. Duas observações são pertinentes para compreendermos a contraposição que os
autores levantam contra o marxismo e a próprio projeto crítico que aderia o Instituto de
Pesquisa Social em seu início. Primeiramente, se sobressai aqui que a crítica dos autores ao
marxismo vem influenciada pelas teses benjaminianas da história que desaprovavam um
6
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 45; Id., Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2010, p. 47.
7
Horkheimer, M. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: Horkheimer, M; Adorno, T. W.; Benjamin, W;
Habermas, J. Os pensadores: textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 134, 138.
8
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 45; Id., Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2010, p. 48.
9
Id., Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006, p. 45; Id., Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente. Frankfurt am Main: Fischer
Verlag, 2010, p. 48.

109
marxismo conformado e voltado ao desenvolvimento do progresso como saída à liberdade, e
que ainda assumia, em contraposição, as possibilidades emancipatórias enquanto explosões do
continuum da história, que refreariam seu progresso catastrófico 10. A segunda observação que
podemos fazer seria que os autores estão rejeitando a lógica da imanência que o marxismo
acolhia para refletir a possibilidade de liberação da exploração capitalista. Ainda que realizem
uma crítica imanente – a razão é criticada em sua própria estrutura intrínseca –, rejeitam a
relação da normatividade com a imanência do dado como era assumida por Marx, que
coincidia o possível com o necessário – a coisa é algo e tem o potencial de ser outro, logo, ela
será outro –, uma vez que isso implicava na aceitação da objetividade histórica, na afirmação
do existente e na identidade do possível com o dado 11. Horkheimer, numa nota intitulada “A
confiança na história”, de 1946, escrita como estudo da Dialética12, arguia ao citar uma
passagem da obra O Capital que o sentido de progresso na teoria presente não era
descontinuidade, mas era composto por um tempo histórico contínuo que antevia a revolução
socialista como consequência de um período de dominação direta e sem verniz do capital. Tal
confiança, realçava Horkheimer, seria uma reconfiguração da confiança em Deus, como
realizara o realismo da Idade Média, o que implicava num conformismo e adaptação à
sociedade presente. Ela ainda mantinha um elemento heterônomo, já que algo dado, a
despeito dos indivíduos, os guiaria à emancipação. A sociedade justa, nesse sentido, não
adviria da liberdade13 e era enaltecida como lógica inexorável do injusto. Como as leis do
positivismo promoviam, as coisas derivavam umas das outras, o novo já era o existente, todos
os períodos históricos guardavam equivalência entre si e todas as possibilidades eram

10
Benjamin argumentava que a classe proletária fora convencida que nadava contra a correnteza quando
apostava no desenvolvimento técnico das forças produtivas, o que fora responsável pelo seu conformismo e na
sua aposta do desenvolvimento progressivo do trabalho – ou seja, na dominação da natureza – como explosão do
sistema. A fé no progresso havia se tornado hábito e deveria ser rompida. É, para Benjamin, portanto, o
rompimento com a ordem, com o existente que está em jogo, uma vez que ele somente produziria o bloqueio da
crescente ruína que o capitalismo levava os indivíduos. Benjamin, W. “Sobre o conceito de história”. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. Tradução de
Sérgio Paulo Rouanet. 8a. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 246-249. Teses 10, 11 e 14.
11
Não estamos sozinhos nessa observação. Seyla Benhabib afirma em sua obra Critique, norm, and utopia que a
Dialética rejeitava a lógica da imanência da crítica da economia política, já assumindo o caráter de uma dialética
negativa. Benhabib, Seyla. Critique, norm, and utopia: a study of foundations of critical theory. Nova York:
Columbia Universitu Press, 1986, p. 171-174.
12
Esta nota e outros esboços que não estão presentes na versão final da Dialética, forma publicadas
posteriormente na obra completa de Horkheimer. A versão que utilizamos aqui é sua tradução francesa que foi
publicada numa obra que reuniu os debates entre Horkheimer e Adorno, e também outros membros do Instituto,
bem como essas notas, todos dedicados ao tema da Dialética do esclarecimento. Horkheimer, M.; Adorno, T. W.
Le laboratoire de la “Dialectique de la raison”: discussions, notes et fragments inédits. Tradução de Julia Christ
e Katia Genel. Paris: Éditions de la Maison de sciences de l'homme, 2013, 291-300.
13
Id., Ibid., p. 293-294.

110
limitadas à realidade. Portanto, a não afirmação pelos autores das possibilidades imanentes de
emancipação não era apenas consequência do diagnóstico da sociedade dominada dos anos
1940, mas sim uma recusa teórica por parte dos frankfurtianos do que consideravam uma
condescendência do marxismo ao positivismo e, consequentemente, à lógica capitalista.
Não podemos deixar de notar que a não aceitação da busca da emancipação pela
análise imanente do existente não resulta na defesa dos autores da Dialética de uma análise
transcendente; seria na imanência que os autores continuam a apostar como modelo crítico.
Cabe distinguir que a crítica que os autores realizam à relação que o marxismo e o
positivismo mantém com a lógica da imanência diz respeito à sua subordinação ao dado, ao
fato. Esta subordinação transformava o objetivo do projeto emancipatório em mera busca da
autoconservação. O que, em contraste, Horkheimer e Adorno defendem, seria a não
subordinação do possível ao dado, mas sim à experiência. Ou seja, não exaltavam a derivação
do possível da objetividade, mas sim da relação constituída e preservada entre sujeito e
objeto. Tal como Benjamin, os autores querem refletir sobre a possibilidade na “tensão
infinita entre o saber presente do passado e um saber também presente do possível”. Desse
modo, a experiência do novo deve ser erupção das “experiências passadas” 14. A intransigência
teórica que defendem como fundamentação da práxis revolucionária deveria, para os autores,
buscar o apelo do passado preservado na experiência para constituir o novo, tal como –
Horkheimer e Adorno mesmo que o mencionam nos debates que antecediam à Dialética – o
Manifesto comunista realizaria, porém sem a manutenção da crença do sentido objetivo da
história15.
A fim de liberar o marxismo do positivismo e do pragmatismo que o acompanham 16 e
de não apresentar uma imagem da emancipação que fosse um desdobramento histórico do
existente, os autores se fiavam numa postura do judaísmo de proibição da imagem de Deus e
da recusa da imagem de salvação. Como Zamora e Jay haviam notado em suas
interpretações17, é a proibição de imagens do judaísmo que é suscitada a fim de argumentar
14
Discussão de 15 de novembro de 1939, intitulado de “O conhecimento como relação entre essência e
aparência”. Id., Ibid., p. 117, tradução própria.
15
Discussão de 18 de outubro de 1939, intitulada de “O núcleo temporal da verdade. Experiência e utopia na
teoria dialética”. Id. Ibid., p. 101.
16
Como Horkheimer ressalta em diálogo com Adorno, não deveria eliminar o marxismo, mas “combater no
marxismo, o que é pragmático nele”. Discussão de 20 de novembro de 1939, intitulada “Relatório sobre o
marxismo. Esboço do manifesto”. Id., Ibid., p. 119, tradução própria.
17
Jay ressaltara que a relutância de nomear e descrever o “outro” de Horkheimer e Adorno era um assentimento
ao tabu judaico de enunciação do sagrado. Jay ainda afirma a proximidade que tal asserção teria com Marx que
afirmava que o “'reino da liberdade' não podia ser contemplado por homens que ainda não eram livres, Até que
as condições sociais sofressem uma alteração drástica, a filosofia teria um papel limitado a desempenhar”. Jay,

111
sobre a ausência da ideia de emancipação. Dizem os autores na Dialética, “o mundo
desencantado do judaísmo reconcilia a magia através de sua negação na ideia de Deus. A
religião judaica não tolera nenhuma palavra que proporcione consolo ao desespero de
qualquer mortal. Ela associa a esperança unicamente à proibição de invocar o falso como
Deus, o finito como infinito, a mentira como verdade. O penhor da salvação consiste na
recusa de toda a fé que se substitua a ela, o conhecimento na denúncia da ilusão” 18. Os autores
tomavam da teologia judaica tal ausência de exposição positiva da salvação e a tornavam base
da teoria crítica que a Dialética passara a elaborar, a colocando contra uma imagem de
emancipação imanente, como pretendia a teoria marxista. Argumentavam os frankfurtianos,
dessa forma, que, mais fundamental que expor qualquer programa prático de contraposição à
sociedade dominada, seria a explicitação do sofrimento e mazelas que ela provocava, a fim de
que tais denúncias abrissem os caminhos para a recusa do estado de não-liberdade em que os
indivíduos estavam enredados. Horkheimer e Adorno explicitavam em seus debates que
contra o fetichismo das mercadorias, da teoria e, inclusive, dos projetos emancipatórios, era
preciso esta teologia negativa que visava “não mencionar o objeto positivo”, entretanto, não
deixar “qualquer dúvida quanto ao fato que ele existe”19. Assim, em vez de abrir as portas do
paraíso, cabia, diz Adorno a Horkheimer, que todos soubessem que “o mundo é hoje um
inferno”20. A crítica deveria expor que “não havia mais felicidade nessa sociedade” e que se
devia recusar qualquer imagem de felicidade originada dessas relações sociais, uma vez que
ela traria todas suas deformações21. Se não havia um programa de ação declarado na Dialética
que se voltasse à concretização de uma sociedade liberada, seus autores, porém, continuavam
a afirmar a possibilidade do fim da dominação, assumindo que tal possibilidade devia se dar
na insistência de uma utopia que seria agora a “a crítica do existente”22.
A religião não era tema completamente ausente dos debates sobre o capitalismo no
M. A imaginação dialética, op. cit., p. 328. Zamora lembra que uma teologia negativa era debate constante entre
Adorno e Benjamin em que afirmavam a necessidade de captar a negatividade da sociedade para dela captar “a
possibilidade de que exista algo completamente outro frente à essa negatividade”. Como veremos a Dialética
também defendia essa negatividade perante o existente para pensar o novo. Zamora, J. A. Th. W. Adorno: pensar
contra la barbárie. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p. 283.
18
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 32; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 30.
19
Discussão de 18 de outubro de 1939, intitulada “O núcleo temporal da verdade. Experiência e utopia na teoria
dialética”. Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Le laboratoire de la “Dialectique de la raison”, op. cit., p. 98,
tradução própria.
20
Discussão de 25 de outubro de 1939, intitulada “Aspectos da teoria política. Esboço do manifesto (I)”.
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Le laboratoire de la “Dialectique de la raison”, op. cit., p. 108, tradução
própria.
21
Id., Ibid., p. 107, tradução própria.
22
Id., Ibid., p. 108, tradução própria.

112
Instituto de Pesquisa Social. Fora Benjamin quem insistira na relação entre crítica moderna e
religião, demonstrando influência das concepções de outros teóricos que também promoviam
o mesmo diálogo como os socialistas utópicos, por exemplo Charles Fourier 23, ou filósofos do
romantismo alemão como Friedrich Schlegel e Novalis e ainda estudiosos da teologia
judaica24. Nas teses “Sobre o conceito da história”, que, como temos desenvolvido durante o
texto, foram de influência fundamental na construção da forma e na elaboração dos conteúdos
da Dialética, Benjamin promovia a reunião do impulso messiânico judaico e do impulso
revolucionário. As cartas entre Adorno e ele, não poucas vezes, empreendiam temas que
envolviam a relação da teologia com uma postura crítica. Adorno, nas cartas do ano de 1934,
já demonstrava uma predileção pelo entrelaçamento do marxismo e da teologia que Benjamin
promovia, e apresentava severas críticas à elaboração marxista de uma “teoria de classes
como deus ex machina”25. Ou seja, Adorno questionava a assunção mecânica da classe
trabalhadora como salvadora e também a teoria de classes como modelo explicativo do estado
de dominação da sociedade. Ao revés, ele argumentara que lhe parecia “indispensável que
justamente os temas remotos, o do 'sempre-igual' e do inferno, sejam expressos com força
plena, e igualmente que o conceito de 'imagem dialética' seja exposto em toda a sua
claridade”26, ressaltando que adotar a imagem dialética era adotar que “cada sentença está e
deve estar carregada de dinamite política; mas quanto mais profundamente ela estiver
enterrada, maior seu poder de explosão”27. O que se destaca aí seria que a teologia
benjaminiana assumia um caráter de recurso dialético de análise da sociedade porque, de
acordo com Adorno, ela significaria uma radicalização da dialética que permitia “ao mesmo
tempo um aguçamento extremo dos temas sociodialéticos e mesmo econômicos” 28. As
imagens dialéticas construídas com base na teologia deviam expor o pior do mundo, não na
tentativa de recusa crítica e de abandono às coisas como elas eram, mas sim a fim de fazer

23
Interessante notar que Fourier tinha asserção sobre o inferno material e terreno tal como Adorno insistira na
frase que apresentamos acima. Fourier dizia que “o Estado civilizado é, pois, o antípoda do destino, o mundo às
avessas, o Inferno Social”. Fourier, C. apud Lima, C. Genealogia dialética da utopia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2008, p. 118. Conforme Löwy nos lembra, Benjamin era um grande admirador de Fourier. Löwy,
M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo:
Boitempo, 2005, p. 107.
24
Löwy, M. Walter Benjamin, op. cit., p. 19-22.
25
Carta de Adorno a Benjamin datada de 6 de novembro de 1934. Adorno, T. W. Correspondência 1928-1940.
Tradução José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 112.
26
Adorno fazia tal apelo a Benjamin para que no trabalho de Passagens não aderisse a dialética materialista de
Brecht que os seus ensaios começavam a demonstrar. Fazemos uso do apelo de Adorno na intenção que expunha
como o autor concebia a tarefa da crítica. Id., Ibid., p. 112-113.
27
Id., Ibid., p. 113.
28
Carta de Adorno a Benjamin datada de 2 e 4 de agosto de 1935. Id., Ibid., p. 181.

113
emergir seu potencial político de explosão deste mundo infernal. Assim, o que queremos
destacar é que tal a abordagem teológica de Adorno que se consolidava na Dialética com
Horkheimer não era uma defesa de uma saída por uma ética religiosa 29, embora, talvez, para
Benjamin, pudesse ser atribuída tal assertiva30. Ainda, se Horkheimer, em período posterior ao
retorno à Alemanha após exílio, desenvolveria uma teologia e enalteceria um sentimento
religioso como modelo crítico em contraposição à dominação da razão abstrata, não é este o
sentido que a teologia engendra na Dialética.
Todavia, há uma ambiguidade na obra com relação às religiões. Conforme já notamos,
os frankfurtianos não associam às religiões um processo de racionalização tal como fizera
Weber. Os momentos em que se desdobram em análise crítica dos dogmas religiosos como
parte responsável pelo progresso da razão são curtos e raros no texto da Dialética. Parece-nos
sobre isso que cabe duas asserções. Em primeiro lugar, haveria uma postura política dos
autores de não associarem a religião ao processo de dominação perante o momento crítico que
se encontravam de perseguição à religião judaica e a outras pelos regimes nazistas, fascistas e
soviéticos. Em segundo, podemos ressaltar que as religiões cristãs eram essencialmente
antimitológicas, ou seja, ainda que seus dogmas se petrificassem, que seus rituais se
tornassem circulares como o procedimento mitológico, elas eram históricas. Por conseguinte,
para elas, a temporalidade era fundamental. Tanto os acontecimentos religiosos tinham
temporalidade quanto as ações dos indivíduos poderiam modificar-se no tempo. A
incorporação da teologia judaica à dialética marxista parece essencialmente vinculada a este
aspecto temporal que a teologia guardava e que fora abandonado pelos preceitos do
esclarecimento que o marxismo adotara31.
Se a teologia judaica fornecia a possibilidade de afirmar a existência de Deus sem
elaborar uma imagem, Horkheimer e Adorno apresentam que não somente a teologia tinha
esse mecanismo, mas também o conceito de negação determinada da filosofia hegeliana
realizava a acusação das imagens como falsas. De acordo com os autores, “a negação
determinada rejeita as representações imperfeitas do absoluto, os ídolos, mas não como o

29
Nesse ponto, discordamos da interpretação de Zamora sobre o papel da religião no pensamento de Adorno.
Zamora, J. A. Th. W. Adorno, op., cit., p. 279 e ss.
30
Os intérpretes benjaminianos se dividem sobre o tema. Para Löwy, existem três grandes linhas de interpretação
dos escritos de Benjamin: uma leitura materialista, uma leitura teológica, uma leitura que se centra na
contradição do materialismo e da teologia. Löwy, todavia, diz defender uma postura à parte e interpretar as teses
da história considerando Benjamin como marxista e teólogo. Löwy, M. Walter Benjamin, op. cit., p. 36.
31
Como lembra Horkheimer no texto “A confiança na história” que citamos acima, era também da concepção de
história da religião cristã que defendia a espera na salvação que viria de forma inevitável que o marxismo
retirava sua confiança da salvação da revolução do porvir.

114
rigorismo, opondo-lhes a Ideia que elas não podem satisfazer” 32. Ela denunciava a falsidade
das imagens sem compará-las a ideias estereotipadas que tenderiam a reduzir a multiplicidade
e as imperfeições. Haveria, portanto, na dialética, que era produto filosófico do
esclarecimento, o potencial de negação da constituição da imagem. A dialética, enfatizam os
autores, revela “toda imagem como forma de escrita”, e nesse feito, “ensina a ler em seus
traços a confissão de sua falsidade, confissão essa que a priva de seu poder e o transfere para a
verdade”33. No entanto, criticavam os autores que Hegel limitara seu potencial ao associar o
processo de negação à totalidade do sistema e da história.
Além de vermos um esboço do que viria a se desdobrar na Dialética negativa de
Adorno, se colocam aqui importantes questões. Num primeiro plano, notamos que apontam os
autores o seu objetivo com a Dialética do esclarecimento: explicitar as imagens como falsas.
E, nesse sentido, podemos ver que a tarefa foi longa, incluía as imagens de liberdade do
esclarecimento, de autonomia dos sujeitos, de imparcialidade do positivismo, de naturalidade
da razão abstrata, de domínio da natureza, de bem estar produzido pela técnica. Ainda, porém,
incluía as imagens de dominação total da razão abstrata, do fim da história, da coincidência
entre sujeito e objeto, do declínio da cultura, da harmonia do mito e da natureza. Todas tidas
como imagens que falseavam a realidade e que a Dialética do esclarecimento em seu
procedimento dialético pretendia denunciar sem compará-las ou analisá-las a qualquer ideia
salvacionista que se contrapusesse e pretendesse superá-las. A dialética da Dialética do
esclarecimento se recusava a realizar a síntese e confrontar sua análise à totalidade do sistema
ou da história. Todavia, num segundo plano, não podemos deixar de perceber que, apesar de
toda a crítica que expõem à razão e ao esclarecimento, seus autores não pretendiam realizar a
crítica irracional da razão, mas a crítica racional dela. Não pretendiam, portanto, se libertar
dos mecanismos filosóficos – todos produtores e produtos da dominação –, mas exigir deles
seu potencial de não-dominação. No caso da dialética hegeliana, os autores demandaram a
renúncia da sua intenção sistemática. Isso não queria dizer que a dialética deixara de ser
mecanismo de dominação. Pelo contrário, os autores afirmam que ela continuaria a promover
a dominação. Entretanto, ao realizar a crítica à inserção no sistema e recusar sua coincidência
com a totalidade histórica, ela se reabilitaria como não-dominação, uma vez que passara a
trazer em si a denúncia do que era ilusório e promovia sua autocrítica enquanto portadora da

32
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 32; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 30.
33
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 32; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 30.

115
dominação. Convém salientar que a não-dominação não recebe aqui um sentido dogmático do
que seria a afirmação de uma ausência de dominação tal como uma forma pura – lembramos
ainda que Horkheimer e Adorno recusavam qualquer ideia de todo, de puro, de dogmatismo,
Não-dominação seria aquilo que trazia a crítica do seu potencial dominador, portanto, se
engajando num sentido contrário ao que lhe era intrínseco, assumindo um sentido de
redenção.
Desdobra-se daí a denominada aporia da Dialética que resultaria na contradição
performativa, como Habermas explicitava34 Horkheimer e Adorno, já no prefácio da obra,
assumiam conscientes a aporia de que diagnosticavam a razão como dominação, mas
continuavam a acreditar na mesma razão como produtora da liberdade. Para Habermas, esse
“evento irônico” apontava o caminho para possibilidade da superação e, ao mesmo tempo, o
contestava como impossível de realização35. Assim, a Dialética denunciaria a dominação e
intentaria produzir a liberdade sendo dominadora, acalentaria a esperança de uma mimese que
expunha como impossível de atingir36, indicaria o caminho de verdade que denunciara que
não mais existia37. Com a acusação de contradição performativa, parece-nos que Habermas
não podia aceitar a ambiguidade contida na própria razão que os autores da Dialética estavam
ressaltando e exigia da obra uma saída da dominação que fosse pura, ou não maculada pela
dominação. Os autores estavam cientes da contradição, mas a concebiam como uma
contradição empírica e, por conseguinte, se realizassem uma harmonização teórica a fim de
tornar mais palatável a contradição, incorreriam no mesmo mecanismo do positivismo. Com
isto queremos dizer que os autores não poderiam sobressair o potencial emancipatório da
razão e reduzir seu caráter de dominação38. No mundo empírico, os potenciais não se
separavam, mas se davam um em virtude do outro. A ideia de Benjamin de que todo
documento de cultura é um documento de barbárie torna explícito o problema. É evidente que
as obras de arte guardavam a experiência histórica da sociedade, produziam, portanto, o
conhecimento sobre a realidade e guardavam todo o potencial emancipatório porque
denunciavam as mazelas de sua época, como veríamos em Goethe, em Mozart, em Manet, em

34
Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa; Rodnei
Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 170.
35
Habermas, J. Teoria do agir comunicativo: Racionalidade da ação e racionalização social. Vol. 1. Tradução de
Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 659.
36
Id., Ibid., p. 658.
37
Habermas, J. Teoria do agir comunicativo, op. cit., p. 659.
38
Conforme Habermas parece exigir de Horkheimer e Adorno ao cobrá-los de reduzir a modernidade a um
processo de domínio, ignorando o potencial criativo que estava imbuído a modernidade estética. Habermas, J. O
discurso filosófico da modernidade, op. cit., p. 172.

116
Flaubert. No entanto, é preciso compreender que o fato de guardarem o potencial
emancipatório não excluía que somente puderam ser realizadas porque implicavam em
distintos modos de dominação social, isto é, para serem realizadas e serem, portanto,
emancipatórias, elas eram frutos das mais diversas estratificações, exclusões e desigualdades
sociais. Elas somente puderam ser produzidas porque tinham o privilégio da unicidade numa
sociedade de dominação. Tal como para Benjamin, para Horkheimer e Adorno não seria
possível tomá-las em seu potencial emancipatório sem compreender que este existia porque
tais obras faziam parte da dominação social. Não poderiam escolher apenas um dos lados da
arte e subsumir o outro sobre um conceito totalizador porque isso reduzia a multiplicidade que
incide sobre todas as coisas – e este era o mesmo procedimento realizado pelo pensamento
positivista.
Desse modo, podemos dizer que os autores da Dialética estavam conscientes da
aporia, mas viam no conceito de razão uma ambiguidade desde seu surgimento. A razão era
concebida como dupla: tendia à libertação e à dominação, da mesma forma como Marx já
anteriormente concebera o trabalho que era a produção da mercadoria e a alienação dos
sujeitos, logo, dominação, mas ao mesmo tempo em que se colocava como fonte de
autorrealização dos indivíduos e, desse modo, libertador. Seria neste sentido que, já em Kant,
diziam Horkheimer e Adorno, “os conceitos são ambíguos. A razão contém enquanto ego
transcendental supraindividual a Ideia de uma convivência baseada na liberdade, na qual os
homens se organizam como um sujeito universal e superem o conflito entre a razão pura e a
empírica na solidariedade consciente do todo. A Ideia desse convívio representa a verdadeira
universalidade, a Utopia. Mas ao mesmo tempo, a razão constitui a instância do pensamento
calculador que prepara o mundo para os fins da autoconservação e não conhece nenhuma
outra função senão a de prepara o objeto a partir de um mero material sensorial como material
para a subjugação”39. O que acontecera para os autores fora que a harmonização do particular
com o universal do esquematismo se tornara instrumento da sociedade industrial e, desse
modo, pretendia não a solidariedade do todo, mas a sua subjugação. Para superar tal estado, o
que restava à razão era se ater ao seu resquício que guardava de utopia e promover sua
autocrítica denunciando seu enredamento à sociedade industrial e sua funcionalização como
força de dominação.
Vislumbrando que a razão abstrata, no século XX, teria atingido níveis mais profundos
39
Horkheimer, M.; Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 73; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 90.

117
que tendiam a eliminar toda liberdade social e individual, a Dialética continuava a apostar na
razão como forma de liberdade, sem, todavia, acreditar em seu papel de síntese ou de
realização histórica como o idealismo alemão sustentava. A força afirmativa da razão passara
a servir somente à objetividade social. Perante isso, à razão somente restava apegar-se ao seu
potencial negativo, de denúncia da dominação que produzia para que, assim, contestasse a
dominação na qual a sociedade e indivíduos sucumbiam.

3.2 Razão, não-dominação e utopia

Se a razão podia assumir-se como não-dominação, isso não significava que ela
dissiparia as forças de dominação presentes na sociedade. Horkheimer e Adorno não titubeiam
em afirmar que a dominação, que subtraía o poder dos sujeitos, “não pode ser dissipada pelo
pensamento”40. Os autores não o dizem, mas parecem indicar aqui que o fim da dominação
somente se daria pela práxis revolucionária, pela mudança material. Ainda que
permanecessem marxistas neste ponto, os frankfurtianos se abstinham de expor tal práxis, o
que desiludia seus comentadores e colocava em xeque o marxismo de que eram herdeiros,
mas mantinha a obra sob a convicção das teses apresentadas segundo a qual expressar os
projetos emancipatórios os limitaria ao dado, à lógica do domínio capitalista e enalteceria a
sociedade existente. Dessa práxis, mal balbuciada pelos autores, dizem apenas que ela
dependeria da “intransigência da teoria”41. Assumiam os frankfurtianos, nesse sentido, que o
pensar e a razão, ao denunciar a dominação, detinham papel fundamental na constituição
dessa práxis revolucionária. Se a razão, porém, era quem conduzira o domínio dos sujeitos no
século XX, sua intransigência somente adviria quando ela se dedicava à sua autocrítica.
O programa do esclarecimento continha a exigência de realizar a crítica a si mesmo,
de refletir a razão racionalmente, dimensão que em seu processo de abstração permanente e
controlada pelas instâncias de poder econômico e social da sociedade, havia sido debilitada.
Caberia recuperar o potencial de não-dominação da razão contido no ato dela refletir sobre si
mesma, a fim de produzir sua própria denúncia enquanto instância de dominação. Expressam
os frankfurtianos que “enquanto o esclarecimento prova que estava com a razão contra toda
40
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 43; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 43.
41
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 45; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 48.

118
hipostasiação da utopia e proclama impassível a dominação sob a forma da desunião, a
ruptura entre o sujeito e o objeto que ele proíbe recobrir, torna-se, ela própria, o índice de
inverdade dessa ruptura e o índice da verdade”42. O que querem dizer aqui os autores é que o
processo do esclarecimento que, a partir da razão, colocava-se como desmistificação do
mundo, anunciava-se, ao mesmo tempo, como inverdade e verdade, ou seja, promovia a
dominação ao denunciar o místico, mas o que desmistificava tinha o potencial de verdade.
Assim, Horkheimer e Adorno parecem realizar a autocrítica própria da obra, cujo objetivo era
desmistificar o processo de desmistificação do esclarecimento: a Dialética era dominadora no
ponto que se fiava a pretensão senhorial do esclarecimento de desnudar, mas seu
desnudamento era a não-dominação na medida em que se fazia intransigência teórica contra o
próprio esclarecimento dominador. Nas palavras dos autores, “a condenação da superstição
significa sempre, ao mesmo tempo, o progresso da dominação e seu desnudamento. O
esclarecimento é mais que esclarecimento: natureza que se torna perceptível em sua
alienação”43.
Como já expusemos, os frankfurtianos não apostam nem na irracionalidade como
contraponto à razão, nem numa negação do esclarecimento a partir de uma volta à natureza
como pretendiam os românticos. A aposta dos frankfurtianos não era na negação da
civilização, mas no próprio potencial crítico de seus mecanismos, permanecendo, portanto,
esclarecedores e realizando, como Rousseau havia iniciado, a critica iluminista ao
iluminismo. Adorno ressaltara no fragmento intitulado “Os selvagens não são melhores” da
Minima moralia que “a mentalidade intransigente é o contrário da condição primitiva ou de
neófito ou então de 'espaços não-capitalistas'. Ela pressupõe experiência, memória histórica,
pensamento alerta e, sobretudo, um grau básico de impaciência”. Aludia, desse modo, que não
era a rejeição e a negação da civilização que promovia sua crítica efetiva. Seria, diz Adorno,
“preciso ter a tradição dentro de si para melhor odiá-la”44. Era somente a própria razão
dominadora que realizaria a sua crítica porque guardava internamente todo o próprio processo
que promovia. Ao realizar a desmistificação desse processo, portanto, ela fazia emergir a
natureza, não mais àquela intacta, mas a uma natureza danificada. E seria essa natureza
danificada enquanto marca do sofrimento real que preservava as marcas dos processos de
dominação e abria as possibilidades de superação.
42
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 44; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 46.
43
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 44; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 46.
44
Adorno, T. W. Minima moralia reflexões a partir da vida lesada. Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2008, p. 48.

119
Horkheimer e Adorno, de forma alguma, aludiam como contraposição à razão um
período no passado ou uma natureza imaculada. Afirmavam que “todo progresso da
civilização tem renovado, ao mesmo tempo, a dominação e a perspectiva de seu
abrandamento”45. Contudo, eram conscientes de que esse progresso não havia promovido a
liberdade, e sim reduzido os potenciais de eliminação da dominação. A fim de fomentar esses
potenciais, dependia-se, de acordo com os autores, do conceito, pois “ele é não somente,
enquanto ciência, um instrumento que serve para distanciar os homens da natureza, mas é
também, enquanto tomada de consciência do próprio pensamento que, sob a forma da ciência,
permanece preso à evolução cega da economia”, mas, entre economia e tomada de
consciência, o conceito se assumia como “um instrumento que permite medir a distância
perpetuadora da injustiça”46. Seriam firmados nesse potencial como instrumento de denúncia
que Horkheimer e Adorno aludiam que “o esclarecimento se opõe à dominação em geral”47.
A razão era potencial de não-dominação ao reconhecer “a presença da dominação
dentro do próprio pensamento”48. Somente desta forma ela seria capaz de denunciar o falso
absoluto, isto é, sua solidificação enquanto mundo mítico que a sociedade do século XX
pretendia se tornar. O que Horkheimer e Adorno estão indicando para o procedimento
esclarecedor não sucumbir a ser mero adminículo da dominação era que a razão tomasse a si
mesma como objeto, como natureza, e exercesse sobre si violência a fim de extinguir seu
entrelaçamento natural e sua integração sistemática ao capitalismo, exigindo a explicitação da
dominação. Adorno apresentava na Minima moralia o que consistia essa tarefa com a qual o
pensador dialético devia se comprometer: “a tarefa do dialético consiste em aplicar um
piparote nas sadias concepções que potentados posteriores entretêm sobre a impossibilidade
de modificar o curso do mundo e decifrar nas suas 'proporções' a imagem especular fiel e
reduzida das más condições ampliadas em desmedida. Contra a razão dominante a razão
dialética é a não-razão: é apenas ao ultrapassar e por em suspenso aquela que ela própria se
torna racional”49. Assim, a razão era não-dominação quando colocava ela própria e o sistema
que a constituía enquanto objetos de análise e extraía deles a confissão da sua inverdade.
A arte, para os autores, também se comprometia à confissão da inverdade do mundo.
Se, com a divisão do trabalho, a ciência assumira sua função enquanto signo, enquanto
45
Horkheimer, M.; Adorno, T. W. Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 44; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 46.
46
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 44; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 47.
47
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 44; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 47.
48
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 45; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 47.
49
Adorno, T. W. Minima moralia, op. cit., p. 68.

120
palavra, e vinculava-se diretamente à produção do conhecimento, a arte assumia sua função
enquanto imagem e fora afastada de ser compreendida como conhecimento. Tornada domínio
particular, mantinha-se nessa esfera com leis próprias em que pudera guardar a herança
mágica50, ou seja, a arte podia realizar o mesmo procedimento mágico e primitivo da mimese.
Ela tinha o potencial de se aproximar dos objetos, sem pretender a subsunção deles e duplicar
o mundo a partir de sua espiritualização, tal como o mana. Pelo procedimento mimético, a
arte produzia a imagem da relação entre o sujeito e objeto não pautada pela violência do
sujeito sobre a natureza, mas pela proximidade e uma proximidade com a natureza não
mediada pela coerção. Ainda que Horkheimer e Adorno, indiquem que a arte tinha a virtude
de não sucumbir à dominação da razão, estão atentos ao fato de que, com o aprofundamento
do esclarecimento, somente as artes autênticas, que preservavam o procedimento mimético e
rejeitavam a tecnicização, puderam escapar de se tornarem meras cópias da natureza ou ainda
puderam resistir a funcionalização que lhe exigiam os processos civilizacionais51, como o
advento da indústria cultural comprovava.
É interessante notar o aspecto ambíguo que os frankfurtianos assumem ao analisar as
obras de arte. Horkheimer e Adorno acusavam tanto a Odisseia de Homero quanto os contos e
obras de Marquês de Sade de enaltecerem e promoverem a dominação, entretanto, ao mesmo
tempo, tomavam as obras como denúncias da dominação. Na narrativa de Homero, os autores
indicavam que ela guardava a nostalgia do lar perdido, a promessa da felicidade 52 e
ressaltavam o desnudamento que promovia e a tomada de consciência que a narrativa
provocava ao relatar as atrocidades míticas. Adorno, ainda, em seu estudo paralelo da
Odisseia para a elaboração da Dialética, ressaltava a ingenuidade da épica que se produzia no
procedimento narrativo, ao aplicar um esforço iluminista para a reprodução fiel dos
acontecimentos, temporalizava o mito, tornando-o singular. Tal singularidade, diz Adorno,
“não é simplesmente uma teimosa resistência contra a abrangente universalidade do
pensamento, mas também o mais íntimo anseio do pensamento, a forma lógica de uma
efetividade não mais cerceada pela dominação social e pelo pensamento classificador que nela
se baseia: a reconciliação do conceito com seu objeto. Na ingenuidade épica vive a crítica da
razão burguesa”53. Ainda, para falar do Marquês de Sade, podemos dizer que os frankfurtianos

50
Horkheimer, M., Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 27-28; Id., Dialektik der Aufklärung,
op. cit., p. 23-25.
51
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 27-28; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 23-25.
52
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 68-70; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 84-87.
53
Adorno, T. W. “Sobre a ingenuidade épica”, op. cit., p. 49-50.

121
denunciavam seus contos como tentativas de contraposição à lógica do esclarecimento e à
moralidade burguesa que acabavam por promover a dominação da razão pela ênfase
exagerada na razão subjetiva como medida única moral54. Todavia, os autores ressaltam que a
insistência de Sade na razão individual, abstrata, sem transcendência alguma, de maneira mais
decidida que o positivismo, tivera “o sentido de liberar de seu invólucro a utopia contida”55.
A emancipação como confiança na objetividade histórica como provida pela teoria
marxista, para Horkheimer e Adorno, se tornava negação dos potenciais utópicos e uma
atrofiação da fantasia. Não pretendiam com isso enaltecer a transcendência ou retornar aos
delírios que promoviam alguns dos socialistas utópicos que antecederam Marx. A Dialética
trazia, no entanto, a crítica à subordinação à razão que o marxismo promovia em sua luta
apoiada em estratégias, em seu Estado planejador, em sua eliminação da singularidade. A
crítica que aferem ao marxismo seria que ele havia tornado a busca pela sociedade livre, uma
questão de autopreservação, na medida em que a consolidação da liberdade estava vinculada à
continuidade da dominação da natureza. A Dialética ao recusar a imagem de emancipação
como totalidade histórica, queria lembrar que a luta por uma outra sociedade era originada
pela rememoração da relação de não-dominação entre sujeito e natureza. Na análise alegórica
que realizam do encontro de Ulisses com as sereias, os autores expunham que no percurso de
formação do ego racional e dominador de Ulisses, a todo momento a promessa de felicidade
ameaçava o processo racionalizador da civilização 56. Esta ameaça, dizem os autores,
aconteceria a cada instante da civilização e, com a Dialética, parecem querer promover esse
instante de rememorar essas promessas de felicidade.
A ausência da proposição de uma imagem de emancipação definida e a crítica que os
autores realizam à ideia de coincidência entre emancipação e totalidade histórica guarda ainda
a crítica de que os projetos emancipatórios que o marxismo promovera estavam voltados a
constituição de mudanças objetivas, da constituição de instituições, dos grandes planos
econômicos, mas eram ausentes da reflexão sobre a materialidade cotidiana da vida entre os
sujeitos. Assim, a ideia de promessa de felicidade que promovem os frankfurtianos refletia
justamente a preocupação com as subjetividades, a atenção com as relações entre os
indivíduos e a natureza, todos âmbitos esquecido e ignorados pelos grandes projetos
emancipatórios.
54
Podemos lembrar ainda que esta crítica que os autores fazem a Sade, também fazem ao niilismo de Nietzsche.
55
Horkheimer, M., Adorno, T. W., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 98; Id., Dialektik der Aufklärung, op.
cit., p. 127. Nietzsche, segundo os autores, teria feito o mesmo mecanismo ao negar a compaixão.
56
Id., Dialética do esclarecimento, op. cit., p. 39; Id., Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 40.

122
Horkheimer e Adorno nos diálogos que compuseram a Dialética, ressaltavam: “nós
não somos desiludidos e não abandonamos a ideia de possibilidade” 57. Enquanto Adorno
aludia “a experiência da possibilidade da felicidade” 58, Horkheimer mencionava a
possibilidade de que “os homens acessem ao prazer”59. Nas entrelinhas do texto, eles
apresentam ínfimos exemplos do que ainda promoveria essa possibilidade de não-dominação.
Ressaltemos aqui dois deles que não estão na Dialética, mas nos projetos paralelos que foram
realizados com ela, Eclipse da razão de Horkheimer e Minima moralia de Adorno. Ambos
nos auxiliam a compreender o que os autores queriam explicitar ao aludir a utopia em vez de
emancipação, e nos ajudam a falar sobre o que a Dialética não diz.
Expressa Horkheimer em Eclipse da razão que, ainda sob a civilização moderna,
existiam de modo latente “essas velhas formas de vida” que ainda proviam “o calor inerente
de qualquer prazer, de qualquer amor de uma coisa por si mesma, e não relacionada a outra
coisa”. Formas de vida que não tinham outro fim além delas mesmas, que escapavam ao
domínio da razão abstrata, que guardavam o resquício de felicidade material ausente nos
grandes projetos emancipatórios e não realizada na sociedade esclarecida. “O prazer de cuidar
de uma jardim” é o que apresenta Horkheimer como essa forma de prazer. Diz que cuidar do
jardim “remete a tempos antigos quando os jardins pertenciam aos deuses e eram cultivados
por eles”. Nesses jardins, o que importava era o senso de belo que “está conectado entre arte e
natureza, por um milhares de delicados fios, àquelas velhas crenças” 60. O ato de cuidar de um
jardim, de realizar uma atividade com fim em si, somente voltada ao belo e não a utilidade,
seria o que garantiria a dignidade do homem e que deveria ser “certamente aplicável aos
conceitos de justiça e igualdade”61. Assim, Horkheimer explicita que o que promove a
felicidade, o que evita a dominação, são ideias que “devem preservar o elemento negativo,
como o elemento de negação dos estágios antigos de injustiça ou desigualdade e, ao mesmo
tempo, conservar o significado absoluto original, enraizado nas suas origens aterrorizadoras.
De outro modo, elas se tornam não apenas indiferentes, mas inverdades”62.
Na Minima moralia, no aforismo intitulado “Em paz”, fala diretamente Adorno sobre a
sociedade emancipada. Expõe que muitos, se perguntados sobe o alvo da sociedade

57
Id., Le laboratoire de la “Dialectique de la raison”, op. cit., p. 102, tradução própria.
58
Id. Ibid., p. 102, tradução própria.
59
Discussão de 23 de outubro de 1939, intitulado “Concernente a questão da dominação da natureza no homem”.
Id. Ibid., p. 104, tradução própria.
60
Horkheimer, M. Eclipse of reason. Nova York: Oxford University Press, 1947, p. 35-36, tradução própria.
61
Id., Ibid., p. 36., tradução própria.
62
Id., Ibid., p. 36, tradução própria.

123
emancipada, traziam nas respostas “a realização das possibilidades humanas ou a riqueza da
vida”63. Tais respostas revelavam as lembranças, segundo Adorno, da social-democracia
construída no final do século XIX e seu sentido histórico de expansão da produção.
Excetuando a delicadeza de tais projetos ao incluírem a virtude de pensar que não mais
pessoas passariam fome nessa sociedade emancipada, Adorno vê nessas imagens a tendência
da aceitação das ideias de progresso, de desenvolvimento produtivo, projetos que estão
voltados à construção de totalidades. A eles, responde Adorno que deveria se perceber que “as
forças produtivas não oferecem o substrato último da humanidade, mas sim a sua constituição
historicamente moldada conforme a produção de mercadorias”64. Reivindica, nesse sentido,
Adorno que a sociedade emancipada devesse se libertar da ideia de necessidade. Expressa,
então, uma imagem de utopia que contrariava a ideia de produção, de desempenho, de
processo. A utopia devia ser “Rien faire comme une bête, nada fazer boiando na água e fitando
pacificamente o céu, 'tão somente ser, sem qualquer outra ordem ou cumprimento'”65.
Cuidar do jardim ou boiar fitando o céu são experiências que aludem a semelhantes
expressividades do que seria a promessa de felicidade. Ela devia ser o oposto da dominação
que a razão abstrata produzia. Esta felicidade tinha de contrariar a esta razão: ser oposta à
utilidade, à abstração, ao cálculo, ao planejamento, à produção. A promessa de felicidade
estava vinculada às flores, ao jardim, à água, ao céu, aos animaizinhos e não à técnica e não à
ciência. Horkheimer e Adorno se mostravam preocupados com os substratos da dignidade
humana que, ainda que materiais e ínfimos, nem o capitalismo conseguira prover e nem os
projetos emancipatórios marxistas davam pistas que conseguiriam. Todavia, se a denúncia da
sociedade dominada, a autocrítica da razão e as imagens infernais, associadas às promessas
latentes de felicidade, poderiam produzir a intransigência necessária à práxis revolucionária
para superar aparelhagem de dominação constituída por centros políticos e econômicos e pela
razão abstrata incorporada em cada sujeito, não é questão a ser respondida, mas que
permanece para reflexão.

63
Adorno, T. W. Minima moralia, op. cit., p. 152.
64
Id., Ibid., p. 153.
65
Id., Ibid., p. 154.

124
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Que me importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?


– O que eu vejo é o beco.

Manuel Bandeira, Poema do Beco

A investigação que empreendemos tinha duas intenções. Em primeiro lugar, queríamos


compreender a concepção de dominação elaborada na Dialética do esclarecimento escrita por
Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Entender as nuances da dominação exposta pelos
autores nos ofereceria a possibilidade de realizar nossa segunda intenção de buscar nas
entrelinhas do texto se haviam indicações – se não de modo explícito, mas subjacente aos
escritos – de perspectivas emancipatórias da sociedade dominada a fim de que, talvez,
pudéssemos oferecer um entendimento da obra para além da resignação e pessimismo que
eram lhe atribuídos em diversas interpretações. Desde o princípio, partimos do entendimento
que a Dialética diagnosticava a dominação específica em desenvolvimento no século XX e
que esta, como ressaltavam seus intérpretes, não coincidia com a dominação conforme havia
sido elaborada nas teorias marxistas no século anterior. Ainda, entendíamos que em vez de
procurar prognósticos ou programas de emancipação no texto, era preciso examiná-lo de
modo mais fino, buscando vestígios do que poderia ser entendido como não-dominação pelos
autores.
Nossa leitura apresentou que, de fato, a compreensão de dominação na Dialética se
apresentava em outra forma. Os autores diagnosticavam que a dominação no capitalismo
avançado do século XX era exercida pela razão abstrata. Se as teorias marxistas
argumentavam a dominação em termos de exploração de classe e da contradição em termos de
capital e trabalho, a Dialética insistia que não seria o trabalho o central na mediação da
dominação, mas sim a razão. Essa razão, que tivera desenvolvimento nos processos
civilizatórios do ocidente, na relação entre indivíduos e natureza, pretendia reduzir a
complexidade da realidade pelo cálculo, pela igualização de todas as coisas, pela equalização
de todos os atos, pela previsão numérica e lógica dos acontecimentos. A estrutura dessa razão
que enaltecia o poder do sujeito sobre a natureza era diretamente funcional ao capitalismo.

125
A sociedade do século XX não mais estava centrada na sociabilidade e na exploração
dada nas fábricas que tinham a dominação numa forma direta dada no encontro e luta entre o
capitalista, proprietário dos meios de produção, e o proletariado, dono da força de trabalho.
Neste século, a dominação se transformara de domínio direto senhorial numa dominação que
ganhava forma em diferentes instituições de poder econômico e social em que não se podia
ver mais um sujeito definido da dominação. Não exercia pela coerção direta seu domínio
sobre os indivíduos, mas esse conglomerado de poder tinha como mediação a razão abstrata
que, por fim, era lapidada por esse poderio difuso como um produto e era incorporada pelos
indivíduos como se fossem formações próprias e autônomas de seu pensamento. O mundo
desmagificado pelo esclarecimento, que exaltara a razão como única condução da vida,
elevara, de fato, a razão enquanto o meio exclusivo de sociabilidade. Entretanto, se o
esclarecimento a postulara como força da autonomia do pensamento dos sujeitos individuais,
no século XX, essa razão subjetiva estava corporificada nos indivíduos, mas era controlada
pelo sujeito real dessa sociedade que era constituído por esse conglomerado de poder. A
reificação das consciências produzida nas relações de trabalho cada vez mais racionalizadas
como fora pensada por Lukács, para Horkheimer e Adorno, se intensificara no século XX de
modo que as consciências se tornaram mediadas pela razão abstrata em todas as esferas de
sociabilidade.
A essa dominação exercida pela razão abstrata coordenada por conglomerados de
poder econômico e social, as interpretações da Dialética atribuíam que ela se constituíra como
dominação total, que bloqueava os potenciais emancipatórios e, ainda, eliminava os próprios
indivíduos1. Alguns intérpretes a justificavam como reflexo dos tempos de nazismo em que os
autores estavam imersos na Dialética e que teriam abandonado – em especial Adorno o teria –
em períodos posteriores2. Nossa leitura tentou defender que a dominação diagnosticada na
Dialética não era total, uma vez que esta asserção seria impossível porque exigiria a
compatibilidade total entre sujeito e objeto e a destruição da própria existência da sociedade.
O que os autores defendiam, ao nosso ver, seria a tendência do capitalismo, sob a forma de
dominação da razão abstrata, de tentar fechar o sistema e apresentar-se como modelo único de
vida. A dominação não era total, entretanto, além de tentar fechar o sistema, esse modelo

1
Não vamos nos deter em comentá-los novamente, já que acreditamos que o texto já apresentou esses
comentadores com exaustão. Citamos apenas aqui as interpretações que esboçaram a ideia a Dialética como
diagnóstico da dominação total que foram Habermas, Honneth, Dubiel, Alway, Roberts, Benhabib, Nobre,
Januário, Gatti, Zamora.
2
Como o fazem Nobre, Gatti e Januário.

126
capitalista queria convencer os indivíduos que essa dominação era natural e inevitável e que
não haveriam outras possibilidades de existência para além da que ele promovia. Nesse
sentido, a teoria que Horkheimer e Adorno apresentam na Dialética não aceita a dominação
total de forma a resignada, ao revés, a afirma como tendência que era preciso ser freada, uma
vez que se dava no sentido do movimento da história.
Ainda, sobre essa nova forma de dominação, é preciso dizer que as interpretações da
Dialética tem enfatizado que ela seria um abandono do marxismo e uma assunção pelos
autores de outros modelos de dominação baseados em Weber, em Freud e em Nietzsche 3.
Nossa investigação compreende que a dominação que os autores elaboram apresenta outra
forma que não era àquela forma central da teoria marxista que antecedera Horkheimer e
Adorno. Todavia, a leitura aqui privilegiou por dialogar com as interpretações que afirmam o
abandono do marxismo para ressaltar que se há abandono das concepções de dominação como
exploração de classe e da contradição capital-trabalho, há ainda uma permanência latente de
Marx na Dialética no que se refere à teoria do fetichismo das mercadorias. A formação da
razão abstrata nos sujeitos partilha, certamente, das concepções freudianas de formação do
ego, mas também se prende às concepções de relações de troca tal como interpretara Marx
sobre a esfera da circulação. Se havia influência de Nietzsche na crítica da razão como neutra
e imparcial que, de fato, promovia os interesses econômicos dos aparelhos de poder, havia
também a influência da crítica à ideologia marxista, já que anunciava necessariamente essa
condição como falsa4. Comentar a proximidade do diagnóstico da dominação da Dialética
com Weber traz, porém algumas dificuldades maiores. Como sabemos, Weber concebe a
dominação para além de fins econômicos; o interesse econômico poderia ser um dos fins da
dominação5. Ainda, sabemos que a Dialética está dialogando com o diagnóstico de Pollock do
3
Habermas associa o modelo de dominação pela razão instrumental da Dialética como sendo influência de
Weber e Nietzsche; Jay argumenta que a obra seria um afastamento de Marx e uma aproximação de um modelo
weberiano; Dubiel também argumenta que na obra os autores postulavam um abandono total do marxismo e
tomado a razão do modelo weberiano; Honneth assume uma permanência da crítica marxista na obra, mas a
revela como modelo de dominação da natureza que viria de uma base freudiana de Horkheimer e Adorno;
Benhabib enfatiza o legado weberiano da Dialética; Nobre argumenta que o modelo de dominação da Dialética
seria fundamentado na psicologia de Freud e na análise dos processo de racionalização de Weber.
4
Cabe lembrar que para Nietzsche não interessa a declaração do falso, uma vez que a denúncia de tudo como
interpretação e nada como coisa em si, se dava para o filósofo como originada de uma necessidade do modo de
vida que o indivíduo se imiscuíra. Anunciar o falso, implicava em existir o verdadeiro o niilismo de Nietzsche
negava. Cf. Moura, C. A. R. Nietzsche; civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 53-54.
Recordemos em contraposição que os frankfurtianos anunciam que queriam denunciar o falso absoluto em que
se constituía a sociedade esclarecida. Ainda, somente para reforçar, podemos lembrar a célebre frase de Adorno
na Minima moralia: “Não há vida certa na falsa”. Adorno. T. W. Minima moralia: reflexões a partir da vida
lesada. Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 36.
5
Weber, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Brasília: Editora da UnB;
São Paulo: Imprensa Oficial, 2004, p. 187-188.

127
capitalismo de Estado que, partindo da racionalização weberiana, enfatizava que houvera uma
mudança do capitalismo liberal para o monopolista em que as leis econômicas não estavam
mais na centralidade da mediação das relações societárias, mas haveria uma preponderância
das decisões políticas, mediadas pelo Estado, que controlavam, inclusive, a economia. A
Dialética se apresenta um tanto ambígua sobre isso, uma vez que ela vê as mediações dos
“diretores gerais”, da “indústria cultural”, da “indústria militante”, sujeitos não econômicos de
mediação, mas afirma que as leis econômicas funcionavam nas consciências desses diretores
gerais, que a indústria cultural responderia às grandes indústrias produtivas como indústria
química, de aço, etc., e que militância nazista dava cabo aos veredictos econômicos. Logo,
Horkheimer e Adorno parecem afirmar que existem as instituições políticas, não movidas por
um direcionamento econômico, no entanto, elas realizariam a dominação econômica.
Entretanto, a esta asserção, ainda poderíamos compreender a influência weberiana que diz que
“na grande maioria das formas de dominação”, a dominação de poder econômico estaria
“muitas vezes numa proporção tão grande que, por sua vez, o modo como os meios
econômicos são empregados para conservar a dominação influencia, decisivamente, o caráter
da estrutura de dominação”6. Cabe notarmos a isso que a dominação permanece para Weber
como elemento de ação social7 e, ainda, é concebida como “possibilidade de impor ao
comportamento de terceiros a vontade própria”8, havendo, portanto, em Weber, o
entendimento da dominação como relação entre sujeitos e imposição de interesses de um ao
outro. Na Dialética, o que visualizamos é distinto: a dominação não está relacionada a
imposição de interesses e, ainda, ela se constitui como relação estrutural e histórica em que
não há a preponderância consciente de um sujeito da estrutura sobre outro, parecendo-nos,
portanto, que ainda há uma proximidade relevante a se considerar da obra como a dominação
conforme fora pensada por Marx na obra O capital, em que o sujeito era o próprio capital
acima de todos os indivíduos, tanto dos capitalistas, os reais senhores econômicos, quanto dos
proletários.
Se a dominação era compreendida em uma nova forma, era evidente que o projeto
emancipatório marxista de revolução empreendida por uma classe deveria se alterar. A isto, a
Dialética, para além de conceber a dominação mais que a exploração de classes e, portanto,
intuir que a dominação não seria suprimida somente pelo alcance ao poder da classe que era

6
Id., Ibid., p. 188.
7
Id., Ibid., p. 187.
8
Id., Ibid., p. 188.

128
dominada, realizava uma crítica direta aos projetos emancipatórios das teorias marxistas que
em suas estruturas lógicas faziam concessões à mesma razão abstrata que movia o capitalismo
no século XX. Ainda, além de um diagnóstico do bloqueio das possibilidades de
emancipação, os frankfurtianos insistiam que a forma marxista que instituía a luta
revolucionária como saída e a imagem da sociedade comunista, estava presa a um modelo
epistemológico positivista que se atava aos fatos, ao desenvolvimento histórico como
inexorável e à realidade existente. A escolha, que os autores realizavam para se contrapor às
imagens de emancipação que o marxismo elaborara, era pela recusa de não expressão de
qualquer imagem. Com base na teologia judaica e na negação determinada sem a sua
coincidência histórica, os autores defendiam a crítica da sociedade existente sem, no entanto,
abordar qualquer imagem de salvação ou instituição de projeto de superação das relações de
dominação. Não se resignavam à dominação, mas se recusavam a apresentar um lado positivo
da crítica e insistiam nessa existência sem provas de uma sociedade liberada.
Horkheimer e Adorno não apresentavam imagem e projeto de emancipação, mas ainda
estabeleciam que se permaneciam aspectos de não-dominação na sociedade. A própria razão
abstrata que diagnosticavam como reificante e como produtora da dominação, podia assumir
um papel de não-dominação ao realizar a crítica a si mesma e denunciar sua dominação. O
que a Dialética enfatizava nesse ponto era que a razão, a ciência e a filosofia tinham que
rejeitar sua função de dominação que se dava de forma intrínseca em suas estruturas de
origem burguesa. A razão permaneceria portadora da liberdade, portanto, da não-dominação,
ao promover sua autocrítica e ao denunciar e recusar a sociedade existente como falsa.
Algumas peculiaridades devem ser notadas. Em primeiro lugar, é preciso compreender que
Horkheimer e Adorno rejeitavam qualquer dogmatismo. Isso quer dizer que quando pensam a
razão como portadora da não-dominação, eles afirmam que ela continua a ser dominação. O
que estava em questão era justamente sua duplicidade do seu caráter que não poderia ser
separado. Dominação e não-dominação eram promovidas ao mesmo tempo pela razão. A
própria concepção da Dialética, portanto, era dominação no sentido em que promovia a razão
abstrata, continha herança e vínculo burguês, seu método racional ainda trazia a intenção de
desmistificar o mundo e dominar a natureza, e era não-dominação por realizar a crítica da
dominação, a crítica de si enquanto promotora da razão abstrata, por recusar a dominação na
sociedade. Em segundo lugar, os autores estabeleciam que esse potencial da razão de
denunciar a si mesma e ser também não-dominação não seria um projeto prático de mudança

129
da realidade. Os frankfurtianos argumentavam que a razão e a teoria poderiam insistir na
intransigência teórica de não integração com o existente a fim de abrir as possibilidades para a
prática, porém, não estava com isso atribuindo a teoria uma função prática que assumisse a
mudança real da sociedade. Os autores concebiam que a razão e o pensamento não poderiam
modificar a realidade, esta ainda dependia das mudanças práticas.
Podemos lembrar que os autores ainda ressaltavam como fundamental para a
contraposição à dominação da razão abstrata, tudo o que mantinha a promessa de felicidade.
Mais que um projeto emancipatório de planos estruturais par mudança da sociedade, os
frankfurtianos apresentam pequenas imagens utópicas que remeteriam a uma relação
harmônica com a natureza, tal como era a mimese. Essa promessa de felicidade para os
autores não estava ausente do processo contínuo de dominação da razão abstrata, mas seria
ameaça constantemente presente nas relações civilizatórias. Haveria, por conseguinte, mesmo
sob a sociedade dominada pela razão, essa lembrança da felicidade que permaneceria nos
pequenos atos com fim em si mesmos, que negavam sua utilidade e, assim, não se integravam
à lógica diretamente produtiva.
Gostaríamos de nos deter sobre a essa relação de não-dominação e utopia que
permanece na obra. Primeiramente, apontemos que essas imagens, mais uma vez,
demonstravam que Horkheimer e Adorno não viam a sociedade sob o jugo de uma dominação
total, mas sim concebiam que o sistema de dominação se aprofundava progressivamente, o
que fazia com que os vestígios de liberdade estivessem mais velados. Concebemos, assim,
distintamente de algumas interpretações9 que mesmo na Dialética essas possibilidades estão
presentes, mesmo que ínfimas. Não haveria para nós, portanto, uma mudança de perspectiva
nos textos posteriores de Adorno no Instituto de Pesquisa Social nos anos 1950 como alguns
comentadores insistem. Apenas nos parece que o caráter de denúncia da Dialética, perante o
desenvolvimento dos regimes nazistas, fascistas e stalinistas, adquirira preponderância no
texto. Insistimos no texto que Horkheimer e Adorno tinham uma proximidade com seus
antecessores românticos e, ao mesmo tempo sua crítica se diferenciava fundamentalmente
deles ao aproximar-se de uma crítica marxista e ao continuar a apostar na razão como
liberdade. Todavia, nos parece inegável que essas perspectivas utópicas comungavam com a
crítica romântica. Longe de afirmar que se tornaram críticos românticos ou assumiam a
resignação comum a deles, o que queremos dizer é que essas perspectivas guardavam a

9
Como realizam Gatti e Januário.

130
mesma recusa romântica de não se fiar a projetos políticos emancipatórios. A análise crítica
que Horkheimer e Adorno parecem fornecer estava menos firmada na filosofia política de
Rousseau que pretendia um novo contrato social, e mais voltada à concepção sociológica
presente em Goethe e Mann que se mantinha preocupada com o indivíduo e a sociabilidade no
mundo fragmentado. Não era característica exclusiva dos frankfurtianos certamente, uma vez
que Lukács e Simmel guardavam também em suas teorias tal preocupação da relação do
indivíduo com o mundo moderno. Nesse sentido, nos parece haver nas ideias de utopia da
Dialética, algum vestígio de Bildung, uma vez que permanece na concepção de promessa de
felicidade, a intenção de que provoquem um processo formativo no indivíduo que o
permitisse ver a sociedade como dominada, como falsa. Essas rememorações utópicas
parecem, ainda, mais voltadas a transmitir mais que conteúdo, mas sim experiência histórica.
Um último ponto parece-nos essencial não renunciar. Surge-nos como latente na
Dialética, sobre seu tema de dominação e não-dominação, a preocupação com a história. O
diagnóstico da razão abstrata que convertia-se em mito trazia a denúncia pelos frankfurtianos
de que esta razão, a razão do esclarecimento, do positivismo que movimentava o capitalismo,
tinha como intenção fundamental o fim da história. Ela intentava petrificar as relações, torná-
las cíclicas como o tempo mitológico e eliminar a dinamicidade do tempo. O capitalismo, por
meio da indústria cultural, de seus conglomerados políticos e econômicos, tentava cravar nos
sujeitos à a-historicidade e não-temporalidade das coisas. Já abordamos que a ideia de que o
mito conteria a formação da razão também parecia comungar de uma a-historicidade – ou ao
menos assim fora acusada a obra –, mas guardava uma ideia de dinamicidade da história que,
fundamentada em Benjamin, pensava não no seu fluxo contínuo, mas na ideia de rupturas do
tempo e de imagem dialética. Ainda, convém perceber que a crítica, que Horkheimer e
Adorno realizaram a dominação do século XX sob sua forma de razão abstrata, continha em si
a denúncia que essa sociedade excluía o poder dos indivíduos sobre a história. A preocupação
que os autores nutrem pelas consequências subjetivas dessa dominação vem da crítica de que
a razão abstrata oferecia aos indivíduos o mais-do-mesmo, o existente, o dado e lhes retirava o
poder do novo, o poder de participar da história. Excluía, desse modo, o potencial do
indivíduo de participar, de conhecer, de realizar e transformar a história.
Para concluir e remeter à proposta que alimentamos nessa pesquisa, nos parece
essencial declarar que a Dialética do esclarecimento que se fez crítica do bloqueio histórico
ao qual sucumbiam os sujeitos na forma que tomava a dominação capitalista no século XX

131
permanece, com toda as suas distinções, um desdobramento de uma teoria marxista que não
se pretendia ortodoxa. Ainda, sua denúncia e recusa da dominação e dos mecanismos da razão
que queria solidificar o tempo não vem a ser uma crítica resignada, mas justamente o seu
contrário.

132
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