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APONTAMENTOS RELATIVOS ÀS MEDITAÇÕES 1ª E 2ª E SOBRE OS

PRINCÍPIOS DE FILOSOFIA REINTERPRETADOS POR SPINOZA

Inicialmente cabe frisar que para Descartes o percurso argumentativo das meditações
1 e 2 é importante e indispensável para se compreender o restante da obra e, inclusive, para
uma espécie de iniciação no exercício meditativo enquanto tal. Notamo-lo pela reação
incisiva de Descartes a uma objeção de Mersenne, quando este parece não atribuir muita
importância ao que Descartes leva a cabo, nas meditações 1ª e 2ª.

Primeiramente - escreve Mersenne - haveis de recordar-vos que não foi


atualmente e em verdade, mas apenas por uma ficção do espírito, que
rejeitastes, tanto quanto vos foi possível, as ideias de todos os corpos, como
coisas simuladas ou fantasmas enganadores, para concluir que sois somente
uma coisa pensante; de medo que talvez, assim sendo, vós considereis que se
possa concluir que de fato e sem ficção não sois nada senão um espírito ou
uma coisa que pensa; foi só o que achamos digno de observação no tocante às
vossas duas primeiras Meditações, onde mostrais claramente ser certo ao
menos que vós, que pensais, sois algo. (pp. 145-6).

Há razões históricas que justificam essa aparente leviandade de Mersenne. Ao começar


pela dúvida, Descartes segue em certa medida o padrão do tempo, diante da necessidade que
os desafia, a saber: as coisas relativas à ciência andavam todas meio confusas e, de fato, era
preciso encontrar um novo ponto de partida sólido para fundamentá-las. A dúvida enquanto
uma atitude escrupulosa, uma posição cética, há tempo já vinha sendo uma constante na
filosofia. O próprio Descartes o confirma: “embora houvesse visto há longo tempo muitos
livros escritos pelos céticos e acadêmicos sobre a matéria e não fosse sem certo fastio que
ruminava um alimento tão comum, não pude todavia dispensar-me de lhe conceder uma
Meditação inteira” (p. 152). Ele poderia ainda se desculpar por ser um texto bastante exíguo
esse seu tratado sobre a dúvida, frente aos fastidiosos tratados acadêmicos acerca do assunto.
Contudo, se pretende resolver todas as questões sobre a Filosofia Primeira num livrinho que
consiste em apenas seis breves meditações, Descartes reconhece que talvez os leitores podem
se espantar por ele ter concluído tão pouca coisa nas duas primeiras. Aliás, é importante frisar
que a única conclusão a que Descartes efetivamente chega ao final da segunda meditação é
aquela enunciada no seu título, a saber: “que o espírito, considerado sem as coisas que se
costuma atribuir ao corpo, é mais conhecido que o corpo considerado sem o espírito”.
É de notar, nesse sentido, que a proposição “sou pensante” não consiste numa
conclusão, mas sim, numa percepção indubitável oriunda do exercício meditativo. Se o leitor
não se coloca a meditar, a exemplo de Descartes, mas sim, percorre o texto como que
observando de fora o percurso traçado pelo autor, a proposição “sou pensante” não fulgura
em sua plena luminosidade filosófica cartesiana. Somente o meditante se aloja no seio dessa
luz. Já para aquele leitor que observa de fora, a imagem que sintetiza as meditações 1 e 2 é a
balança da ponderação: partindo da densidade do conhecimento sensível face ao caráter
duvidoso das coisas espirituais (no começo da primeira meditação), Descartes vai removendo
desse prato todos os pesos corpóreos, o que leva a um equilíbrio entre os dois pratos na
suspensão do juízo que caracteriza a flutuação sem apoio entre a 1ª e a 2ª meditação, donde,

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por fim, ele faz pender a balança, ainda que talvez de modo bem efêmero, para o lado do
espírito.
Mersenne não percebera que, mantendo-se alheio ao exercício meditativo enquanto tal,
a conclusão a que se chega no final da segunda meditação não é um processo de
conhecimento consumado da coisa pensante, mas sim, o estado incipiente desse processo de
conhecimento. Com efeito, Mersenne se detém nesse ponto nos seguintes termos:
Até aí sabeis que sois uma coisa pensante, mas não conheceis ainda o que é
essa coisa pensante. E como sabeis que não é um corpo que, por seus diversos
movimentos e choques, efetua essa ação que denominamos pensamento? (...)
Eu sou, dizeis, uma coisa pensante; mas como sabeis que não sois, outrossim
um movimento corpóreo, ou um corpo movido? (pp. 145-6).

Questionamento esse que Descartes refuta como impróprio naquela altura das
demonstrações. A relação entre mente e corpo, bem como a existência do corpo, não estão
resolvidos. O que está posto é que se no ponto de partida os sentidos tinham um peso maior,
de sorte que o meu conhecimento dependia da coisa extensa, no ponto de chegada, esse peso
foi de todo removido, fazendo com que meu conhecimento dependa da coisa pensante:

Pois, embora confesse que não sabia ainda se essa coisa pensante não era diferente
do corpo, ou se o era, não confesso com isso que não a conhecia de modo algum,
pois quem jamais conheceu de tal maneira alguma coisa que soubesse nada haver
nela exceto aquilo mesmo que conhecia? Mas pensamos conhecer tanto melhor
uma coisa quanto mais particularidades dela conhecemos; assim, temos mais
conhecimento daqueles com quem conversamos todos os dias do que daqueles de
que só conhecemos o nome ou o rosto; e todavia não julgamos que esses nos sejam
inteiramente desconhecidos; nesse sentido penso ter suficientemente demonstrado
que o espírito, considerado sem a coisas que se costumam atribuir ao corpo, é mais
conhecido que o corpo considerado sem o espírito. E é tudo o que pretendia provar
nessa Meditação Segunda (pp. 152-3).

Assim Descartes responde à aparente ambiguidade identificada por Mersenne na


afirmação da existência enquanto pensamento. Do modo como o diálogo entre os dois se
desdobra até aqui, resulta bastante claro que se trata de cumprir basicamente com o protocolo
que é a motivação inicial do debate: Descartes submeteu o seu livro a uma espécie de
avaliação técnica, para obter das autoridades competentes a devida anuência para a sua
publicação. Mersenne, desempenhando no caso o papel de avaliador, ao invés de se inquietar
com as meditações iniciais, manifesta certo desencanto, no sentido de parecer algo um tanto
supérfluo e sem propósito toda essa “ficção do espírito” exposta nas meditações 1 e 2. E
justamente por não passar de uma ficção, parece que ela não se garante enquanto um
argumento definitivo contra uma questão que efetivamente estava assombrando os estudiosos
da época, a de que a alma humana talvez se deixasse reduzir à matéria, o que daria ensejo a se
colocar em dúvida também a existência de Deus.

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Descartes não se opõe frontalmente a essas duas impressões manifestadas por
Mersenne. Concorda que não é de fato e sem ficção de espírito, a afirmação de que ele existe
enquanto uma coisa pensante. Quanto a um possível vínculo dela com o mundo corpóreo (se
e como o espírito se difere do corpo, se há uma relação entre espírito e corpo), essa é uma
questão que de fato não se resolve na segunda meditação. Para atender ao protocolo que
motiva o debate, isso é o suficiente, de modo que o objetor pode bem passar a fazer suas
considerações relativas à ideia do ser soberano que aparece na terceira meditação.
Entretanto, agora é a vez de Descartes manifestar um certo desencanto com a leitura do
colega Mersenne, para o qual parecem ter escapado as sutilezas filosóficas do texto: “bem
vejo o que pretendeis dizer, a saber, que (...) os leitores se espantarão de que não conclua
nada mais senão o que acabo de declarar nesse instante, e por isso hão de achá-las demasiado
estéreis e indignas de terem sido trazidas à luz” (p. 152). Mas quanto àqueles que tiverem lido
a obra com bastante discernimento até o final, continua Descartes, não terão “ocasião de
suspeitar que eu haja malogrado no trato da matéria” (p. 152). Fica subentendido que, se, pelo
contrário, resultar uma impressão de malogro no trato da matéria, a leitura certamente não
terá sido conduzida a cabo com o devido discernimento. Ora, é justamente essa capacidade de
discernimento que as meditações iniciais pretendem promover. Com efeito, se é preciso ler
com discernimento, “pareceu-me muito razoável que as coisas que exigem particular atenção,
e devem ser consideradas separadamente das outras, fossem postas em meditações separadas
(p. 152).
Já é bastante sabido que Descartes não pratica a dúvida do mesmo modo como os
céticos acadêmicos, com o propósito último de se opor a um conhecimento excessivamente
pretencioso. Não obstante, ele assegura que é preciso de qualquer forma acostumar-se a
duvidar de tudo e principalmente das coisas corpóreas. A primeira meditação, nesse caso,
também não pode ser considerada como uma pequena escadinha a ser jogada fora logo que
se tenha encontrado uma primeira verdade indubitável. Em concordância com os céticos,
Descartes considera a dúvida um hábito salutar e imprescindível para a filosofia. Porém,
diferente deles, o autor das meditações visa convencer o leitor que se deve duvidar
principalmente das coisas corporais, o que só é possível mediante a aplicação de um método
certo. Isso que Mersenne minimiza como sendo uma mera “ficção do espírito”, Descartes
retoma e afirma explicitamente como um intenso exercício espiritual. Em primeiro lugar,
portanto, não se trata de uma abordagem rápida e provisória da dúvida enquanto posição
crítica frente a qualquer conhecimento. O esforço para se exercitar no hábito da dúvida não é
menor do que aquele outrora dedicado à leitura dos livros escritos pelos céticos e acadêmicos
- um alimento comum ruminado com certo fastio. Porém, trata-se de um esforço a ser feito
mediante outra orientação metodológica. Referindo-se à primeira meditação, Descartes
escreve: “gostaria que os leitores empregasse não apenas o pouco tempo necessário para lê-la,
mas alguns meses, ou ao menos algumas semanas, em considerar as coisas de que ela trata,
antes de passar além; pois assim não duvido que aufiram lucro bem melhor da leitura do
restante” (p. 152).
É do exercício metódico da dúvida (como que um exercício meditativo) que se adquire
uma capacidade de discernimento que até agora, na ausência de um método apropriado,
ninguém logrou obter. O exercício metódico da dúvida nos ensina que é e como é possível
segregar do nosso foco central de atenção tudo o que aparece confuso e misturado. E dessa
forma, a primeira meditação prepara o terreno para a segunda, que, por sua vez, também

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requer não somente um exame objetivo como esse feito por Mersenne, mas um esforço
prático intenso e constante.
Pareceria - conforme um ditado popular - que um leigo pretende ensinar um padre a
rezar uma missa. Mas em vez disso, pode-se dizer que Descartes se coloca na condição de um
filósofo capaz de ensinar um teólogo a meditar sobre a alma humana e Deus. É nesses termos
que ele justifica a sua segunda meditação:

Por não termos tido até agora quaisquer ideias das coisas pertencentes ao espírito
que não fossem muito confusas e misturadas às ideias das coisas sensíveis, e por
ter sido esta a primeira e principal razão pela qual não se pôde entender assaz
claramente nenhuma das coisas que se diziam de Deus e da alma, pensei que não
faria pouco se mostrasse como é preciso distinguir as propriedades ou qualidades
do corpo, e como é preciso reconhecê-las; pois, embora muitos já tenham dito que,
para bem entender as coisas imateriais ou metafísicas, é necessário distanciar o
nosso espírito dos sentidos, não obstante ninguém, que eu saiba, mostrou ainda por
que meio é possível realizá-lo. Ora, o verdadeiro e, ao meu juízo, o único meio
para isso está contido na minha Meditação Segunda; mas é de tal ordem que não
basta tê-lo encarado uma vez, cumpre examiná-lo amiúde e considerá-lo durante
muito tempo, a fim de que o hábito de confundir as coisas intelectuais com as
corporais, que se enraizou em nós no curso de toda a nossa vida, possa ser
expungido por um hábito contrário, o de distingui-las, adquirido pelo exercício de
muitos dias.

Essa longa e incisiva resposta de Descartes ao modo negligente com que Mersenne
avaliou as Meditações 1ª e 2ª nos permitem concluir sem mais delongas dois aspectos que
consideramos essenciais no estudo delas. O primeiro é o de que nelas se aloja o método em
seu primeiro fundamento; elas são - conforme as palavras do próprio autor - a matriz
verdadeira e única do método cartesiano. Sem elas, o leitor pode até se inteirar de um
conjunto de proposições que o restante da obra avança - proposições que podem ser inseridas
num debate teológico mais amplo, a fim de verificar, por exemplo, se são compatíveis com as
proposições de uma teologia que se pretende válida e irrefutável. Aliás, o que se verifica em
larga medida é essa compatibilidade, pelo que a filosofia cartesiana é perfeitamente tolerável,
porém, estéril.1 Entretanto, sem elas o leitor não terá ciência do fundamento primeiro do
método cartesiano e, na perspetiva de Descartes, do método analítico na matemática. O
segundo aspecto é o de que esse breve esboço metodológico traçado nas Meditações 1 e 2 não
deve ser apenas objeto de uma análise conceitual, mas sim um guia prático - verdadeiro e
único - para uma mudança de hábito: precisamos, efetivamente nos libertar do hábito
enraizado de confundir as coisas intelectuais com as corporais, adquirindo no seu lugar o
hábito de distingui-las apropriadamente. Não se trata, portanto, de uma “ficção do espírito
qualquer, mas de um exercício espiritual intenso e cada vez mais constante. Nesses termos,
Descartes é tão radical quanto Spinoza, no sentido de ligar a Primeira Filosofia diretamente a
uma Ética ou então a uma prática efetiva que é a de meditar.

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Malebranche, inteirado do debate, chegou a se exprimir nos seguintes termos: “Isto poderia ser dito
em quatro palavras e estaríamos todos de acordo. Se eu devesse gastar tantas palavras e tempo
para aprender uma coisa de tão pouca importância teria dificuldade de me resignar a isso”.

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Fazendo ainda uma ponte com o debate que tivemos acerca do quadro Las Meninas de
Velazquez, a partir da análise de Foucault, poderíamos também falar dessa diferença entre
uma leitura “superficial” e uma leitura “profunda” das duas primeiras meditações de
Descartes. A primeira permite que o leitor compreenda o que Foucault está a dizer quando
afirma, por exemplo, que o espectador se coloca num vínculo direto com o espaço do quadro,
de modo que se possa traçar um triângulo entre determinados pontos referenciais do quadro e
os olhos do espectador. Tal relação geométrica pode ser simulada também num desenho sobre
uma superfície plana, no qual aparece desenhado o espectador diante da obra. Desse modo,
teoricamente nós compreendemos o que Foucault diz acerca do vínculo geométrico entre o
espectador e a obra. Entretanto, a experiência de se perceber realmente arrebatado para dentro
da obra, que se oferece em profundidade, certamente consiste numa experiência estética
reservada a quem tem a oportunidade de contemplar pacientemente a obra e, quiçá, de modo
perfeito só no lugar originalmente reservado para ela no Real Alcázar de Madrid. Adentrar na
profundidade das Meditações cartesianas parece algo semelhante a essa experiência estética
que Foucault nos relata. Trata-se de uma experiência que exige do espectador/leitor uma
prática, um exercício reiterado, a aquisição de um hábito. É isso que Descartes pretende
inspirar no leitor, e é disso que ele ainda sente falta na leitura de Mersenne.

Passemos agora a considerar alguns aspectos do modo como Spinoza avalia essas
mesmas meditações cartesianas. Veremos que as conclusões que ele tira parecem tão ou até
mais negligentes do que as de Mersenne. Porém, o que ocorre com Spinoza provavelmente
não é essa espécie de cegueira relativamente ao artifício metodológico fundamental posto em
marcha nas primeiras meditações. Com efeito, se o autor da Ética considera estar vivendo
naquele momento feliz em que as matemáticas revelam aos homens uma nova norma de
verdade, sem a qual eles talvez jamais pudessem se libertar da ignorância, ele não deixaria de
perceber a fundação matemática das meditações cartesianas. Ocorre, porém, que Spinoza
trava uma disputa com Descartes no que diz respeito ao modo como a matemática se vincula
diretamente com a filosofia. Como já sabemos, para Descartes é pela análise; para Spinoza, é
a síntese. O que motiva Spinoza a tratar das meditações 1ª e 2ª de modo tão opaco é,
certamente, esse se plano pressuposto de mostrar que é, na verdade, pela síntese, e não pela
análise, que podemos entender esses aspectos essenciais da nossa existência, quais sejam, a
relação entre alma e corpo e a nossa união com Deus. Vejamos, pois, como se afigura a
proposição fundamental da filosofia cartesiana na leitura de Spinoza.
Percorrendo ligeiramente a dúvida metódica de Descartes, Spinoza enfatiza o caráter
inquestionável da primeira verdade que afinal é descoberta e que se impõe como fundamento
de todas as ciências. Referindo-se ao meditante na terceira pessoa, Spinoza escreve:

Restava algo, porém, que havia de ser explorado: ele mesmo, por certo, que assim
duvidava… E examinando-o cuidadosamente ficou sabendo não poder duvidar
disso por nenhuma das razões precedentes, pois, embora pense dormindo ou
acordado, pensa, porém, e é… A tal ponto que, para onde quer que se volte para
duvidar, é coagido, não obstante, a irromper nestas palavras: duvido, penso, logo
existo (...) Mas, na verdade, acerca desse fundamento é de notar aqui, em primeiro
lugar, que esta oração duvido, penso, logo existo não é um silogismo em que a

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proposição maior foi omitida; pois, se fosse um silogismo, as premissas deveriam
ser mais conhecidas que a própria conclusão logo existo, e por isso eu existo não
seria o primeiro fundamento de todo o conhecimento; além do que não seria uma
conclusão certa, pois sua verdade dependeria de premissas universais, as quais há
muito o autor colcara em dúvida; e por isso, penso logo existo é uma proposição
única que equivale a esta: eu sou pensante.

É importante notar que, em sua narrativa, Spinoza passa por alto do caráter
estritamente subjetivo do percurso que leva ao referido fundamento de todas as ciências.
Nesse sentido, e a contragosto de Descartes, ele é tão negligente quanto os autores das
segundas objeções no que diz respeito ao exercício meditativo propriamente dito, em prol do
qual Descartes recomenda que as meditações I e II sejam lidas durante semanas ou meses a
fio, a fim de se criar o hábito de distinguir mente e corpo. Em contrapartida, Spinoza livra
Descartes do problema do solipsismo que se lhe opõe como um paradoxo insistente. Com
efeito, não são pequenas as dificuldades que Descartes enfrenta para garantir que há um
mundo físico no qual “eu, sujeito pensante” me depare efetivamente com interlocutores
semelhantes a mim, já que, quando vejo chapéus e camisas desfilando na rua, eles podem
estar simplesmente cobrindo um mecanismo engendrado por diversas molas, não sabendo eu
ao certo se realmente abrigam também uma coisa pensante, como esta que sou eu.
Tal suspeita de solipsismo, bem como o menor vislumbre de um dualismo entre
corpo e mente, Spinoza rejeita desde o princípio. Num escólio aposto às quatro proposições
iniciais dedicadas à demonstração geométrica da existência do sujeito pensante, Spinoza é
ainda mais enfático no sentido de afirmar real e como que positivamente a coisa pensante:

Qualquer um percebe com a maior certeza que ele afirma, nega, duvida, conhece,
imagina etc; quer dizer: que ele existe enquanto duvidante cognoscente, afirmante
etc. Numa palavra: que ele é pensante e que não pode colocar isso em dúvida (...)
E para avançar com a maior prudência possível, de início nada admitirei como
tendo clareza e evidência equivalentes, senão aquelas coisas que cada um observa
em si mesmo enquanto pensa; como, por exemplo, que ele vê isto e aquilo, que ele
tem determinadas ideias.

Note-se que isso que Descartes “ficou sabendo” em um percurso meditativo que ele
fez ad placitum (ou seja, segundo uma qualquer ficção do espírito) consiste numa afirmação
necessária e universal - uma percepção absolutamente necessária de cada um de nós: a
percepção imediata da nossa necessária existência.
É curioso que um procedimento tão essencial e necessário, constitutivo da filosofia
cartesiana, seja considerado, em última instância, supérfluo para Spinoza. Na verdade, o que
desponta nesse tratamento diferente que um e outro filósofo dão à busca, descoberta e/ou
afirmação do existente é a diferença metodológica que motiva Spinoza a expor e debater a
filosofia cartesiana. É que, para Descartes, o caminho filosófico da descoberta de verdades é
a análise, enquanto que, para Spinoza, é a síntese. Descartes parte do pressuposto de que a
percepção imediata que eu tenho da minha própria existência (em meio a um mundo
igualmente existente) é complexa e confusa, de sorte que, somente por um processo de
análise, eu chego a um conhecimento claro e distinto da minha existência em sua realidade

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elementar. Consigo superar a percepção confusa da minha existência (uma mistura de corpo e
alma), da qual parto como de um dado imediato, fazendo uma análise, dividindo e
segregando as partes constitutivas desse dado imediato (o mundo que percebo pelos sentidos,
o meu próprio corpo que percebo, as opiniões que tenho por estudar e ouvir dizer); donde
resulta uma divisão do material primário desse dado imediato relativo à minha existência no
mundo: a divisão/separação entre extensão e corpo de um lado e, do outro, pensamento e
mente. O dualismo cartesiano é uma consequência necessária do método analítico.
Spinoza, por seu turno, rejeita a análise como via filosófica e, em vez dela, adota a
síntese. Para ele, a análise só pode ser um desdobramento a posteriori do que, anteriormente,
há e se conhece como síntese. Por exemplo, a proposição de que todos os pontos de um
círculo são equidistantes do centro é uma consequência que se deduz da natureza do círculo,
cuja definição precisa ser sintética: círculo é a figura engendrada por um segmento de reta
donde uma das extremidades é fixa e a outra se move em sentido rotatório. Assim se
define/conhece o círculo pela sua causa e não por um dos seus efeitos. Da mesma forma,
segue-se da natureza humana que ela é constituída de alma e corpo. Portanto, não se trata de
uma constituição confusa, fruto da nossa imaginação, que precisaria ser superada para então
se conhecer a natureza humana em sua essência pura e simples - enquanto pensamento. Em
vez disso, para Spinoza, o conhecimento depende de uma correta compreensão da relação
entre alma e corpo, bem como da relação entre a minha própria natureza e a do mundo que
me cerca. Por isso, Spinoza não considera filosoficamente relevante o percurso cartesiano da
dúvida metódica e, em seu próprio percurso, ele parte dali onde Descartes havia chegado. E
uma vez dispensando esse percurso que conduz Descartes à descoberta da coisa pensante,
Spinoza não tardará em fazer alusões ao corpo, pelo que ele afirma uma unidade essencial de
mente e corpo: ambos não pertencem a substâncias diversas (no caso, o pensamento e a
extensão), o que daria ensejo a considerá-los como duas coisas numericamente distintas, mas
são uma só e a mesma coisa expressa por atributos diversos (o pensamento e a extensão).
Mente e corpo são numericamente um. Essa tese fundamental, Spinoza também não a
descobrirá no fim de um percurso longo de reflexão ou dedução, mas sim, afirma-a como
algo indubitável que cada um há de observar em si mesmo enquanto pensa. Isso se
evidenciará mais abaixo, quando tratarmos dos modos de percepção.
Antes de nos dirigirmos a TIE, queremos ainda dar sequência à leitura do escólio
que acima já citamos parcialmente.
Líamos, no final da citação anterior, que todos nós, na medida em que pensamos,
vemos isto e aquilo e temos determinadas ideias. Agora cumpre notar que,
independentemente do que cada um de nós pensa e vê ao acaso, há certas características
bastante gerais que permitem, de certa forma, classificar, coordenar ou subordinar esses
“modos de percepção” aleatórios - a saber:

que uma ideia contém mais realidade e perfeição do que outra; da mesma forma,
aquela que contém objetivamente o ser e a perfeição da substância é muito mais
perfeita do que a que tem somente a perfeição objetiva de um acidente; enfim, a mais
perfeita dentre todas é aquela que tem por objeto o ser sumamente perfeito.

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Essas são características axiomáticas que nos permitem como que mensurar as
nossas ideias. Para conseguirmos retê-las com mais facilidade, talvez seja útil procurarmos
alguns exemplos por conta própria. Há duas formas de se medir a perfeição das nossas ideias.
Uma referente às ideias de uma coisa que formamos em nós e outra referente às ideias das
coisas em si mesmas. Quanto ao primeiro caso, podemos retomar aquele que Descartes expôs
a Mersenne: se, por exemplo, conheço pela primeira vez uma pessoa que se apresenta
simplesmente pelo nome num breve encontro, formo uma ideia dessa pessoa. Mas se passo a
conviver com essa pessoa e se posso observar seus hábitos e a ouço falar bastante da sua vida,
dos seus afetos etc., a ideia que então formo dela é mais perfeita do que a inicial. Ou se
procurei saber como é uma cidade através de fotos panorâmicas e imagens de satélite, faço
uma ideia da cidade. Mas se, em seguida, tenho oportunidade de visitá-la efetivamente,
percorrer algumas das suas vias e adentrar em vários estabelecimentos, a ideia da mesma
cidade que então terei é mais perfeita do que a primeira. Tal perfeição gradativa das ideias
naturalmente nos leva a conceber também o que seria a ideia mais perfeita: é aquela que nos
daria a conhecer a coisa tal como é em si mesma, ou conhecê-la pela sua causa. Nesse caso,
conheceríamos como Deus conhece. Quanto ao segundo caso - e é a esse que Spinoza faz
referência explícita na passagem citada acima - se mede pelo que a ideia contém
objetivamente. Nesse sentido, por exemplo, a ideia de mamífero é mais perfeita do que a
ideia de ser humano, porque tem mais realidade objetiva: além do ser humano, abrange os
cães as vacas etc. Da mesma forma, a ideia de animal é mais perfeita do que a de mamífero,
porque inclui também os peixes e as aves etc.
Aqui, porém, cumpre notar uma peculiaridade na teoria do conhecimento de
Spinoza, pela qual ela se distingue daquele esquema de conhecimento das coisas que parte de
algo genérico e assinala a sua diferença específica. Nesse esquema, o conhecimento se
aprofunda e aperfeiçoa pelas diferenças específicas. A noção de mamífero, por exemplo é
menos confusa, mais distinta do que a noção de animal, pois define-se pelo acréscimo de uma
diferença específica: mamífero é um animal que mama. Tal esquema de conhecimento é
rejeitado tanto por Descartes quanto por Spinoza. Justamente por isso na frase “penso, logo
existo” não se tira uma conclusão de um silogismo, que seria o seguinte: Dentre todos os
seres existentes, há o grupo daqueles que pensam. Eu sou um ser que pensa. Logo, eu existo.
A teoria de conhecimento de Spinoza opera uma inversão desse esquema de
conhecimento segundo o qual o conhecimento avançaria em profundidade e perfeição na
medida em que o todo complexo se desmembra em partes cada vez mais elementares, até se
chegar a uma unidade elementar indivisível. Em vez disso, o conhecimento se aprofunda e
aperfeiçoa na medida em que uma unidade ou ideia inicial se reconhece como parte de um
organismo mais complexo.
É também esse aspecto da teoria do conhecimento de Spinoza que a diferencia da de
Descartes. No caso deste, a coisa pensante é dada de uma vez por todas em sua forma simples
e indivisível - sendo por isso mesmo uma ideia clara e distinta. O conhecimento que então a
coisa pensante pode obter não interfere diretamente na essência dela equanto uma unidade
simples e indivisível. Já para Spinoza o conhecimento confere realidade e perfeição ao
cognoscente. Por isso se trata de uma ética, cujo escopo final é a suma felicidade, que
coincide na união com Deus.

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Essa diferença assumida relativamente a Descartes, Spinoza a coloca na sequência
do escólio que estamos examinando. Se percebemos as coisas em diferentes graus de
perfeição, isso modifica a percepção que temos de nós próprios. “Digo que percebemos essas
coisas não somente com uma evidência igual, uma clareza e distinção iguais, mas talvez
ainda mais distintamente. Pois elas não somente afirmam que nós pensamos, mas também de
que modo nós pensamos”. Ainda que mitigada por um “talvez”, essa afirmação é um
flagrante testemunho de certa infidelidade de Spinoza para com Descartes em seus Princípios
da Filosofia Cartesiana. Com efeito, para o autor das Meditações, a verdade “sou pensante”
se dá a conhecer numa clareza e distinção definitivas, garantindo-se como régua matriz para
medir a clareza e distinção de outras ideias que porventura revelem clareza e distinção
equivalentes.
Em suma, Spinoza concorda com Descartes acerca da certeza da verdade “penso,
logo existo” ou “sou pensante”. É uma verdade da qual não se pode duvidar. Entretanto, as
propriedades da clareza e distinção, por mais que possam ser de pronto atribuídas a essa
primeira verdade, não o podemos fazer, segundo Spinoza, de modo estritamente adequado.
Em princípio um cartesiano fiel poderia alegar que essa constatação de uma evidência apenas
relativa da primeira verdade “penso, logo existo” se deve justamente ao caráter negligente
com que Spinoza lê as Meditações primeira e segunda. Em vez de ponderar seriamente a
resistência dessa verdade ante à dúvida hiperbólica, ele parte da evidência geral de que, de
qualquer forma, ninguém poderá jamais negar que existe na medida em que sente, deseja etc.,
ou, numa palavra, que é uma coisa pensante. E no lugar do percurso laborioso de Descartes,
ele subscreve à coisa pensante um caráter funcional, pelo que, para além da certeza originária
da sua existência, a perfeição dela varia de acordo com os diferentes “modos de pensar”.
No que diz respeito aos pressupostos metodológicos, podemos então reafirmar a
diferença entre os dois filósofos nestes termos: Descartes opera uma análise para chegar a
uma primeira verdade indubitável e, portanto, clara e evidente. Spinoza, por sua vez, parte
imediatamente dessa verdade indubitável (verdade, tal como precisa ser reconhecida
imediatamente e sem maiores reflexões por quem quer que seja), para, a partir dali, unir
sinteticamente à coisa pensante os diferentes modos de percepção, que farão com que a coisa
pensante seja mais ou menos perfeita e, portanto, tenha um conhecimento de si próprio mais
ou menos evidente (ou segundo as expressões do Tratado da emenda do intelecto, mais ou
menos adequado).
Essa problemática Spinoza desenvolve em sua doutrina dos modos de percepção.

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