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PSICOLOGIA

SOCIAL

Daiane Duarte Lopes


Revisão técnica:

Marcia Paul Waquil


Assistente Social (PUCRS)
Mestre em Educação (PUCRS)
Doutora em Educação (UFRGS)

L864p Lopes, Daiane Duarte


Psicologia social [recurso eletrônico] / Daiane Duarte
Lopes ; [revisão técnica: Marcia Paul Waquil]. – Porto Alegre :
SAGAH, 2017.

ISBN 978-85-9502-161-7

1. Psicologia social. I. Título.

CDU 316.6

Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052


Cotidiano e constituição
do sujeito na
contemporaneidade
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Compreender o campo e as teorias do cotidiano.


„„ Definir o conceito de cotidianidade.
„„ Explicar a constituição do sujeito na contemporaneidade: identidades
e processos de subjetivação.

Introdução
O sujeito se constitui no decorrer do seu viver. A cada interação, se
complementa por meio dos conteúdos que circulam nas relações. O
cotidiano tem a capacidade de despertar e complementar os processos
de constituição dos sujeitos.
Neste capítulo, você vai estudar sobre o campo e as teorias do
cotidiano, além de distinguir o conceito de cotidianidade e enten-
der quais processos estão implicados na constituição do sujeito na
contemporaneidade.

Teorias do cotidiano
O existir de todos os sujeitos é atravessado pelo cotidiano. O cotidiano diz
respeito a cada momento comum na rotina diária dos sujeitos, desde as tarefas
mais simples, como despertar, se vestir, comer, até as mais complexas, como
planejar tarefas, viabilizar sua concretização, atender a todas as demandas
diárias. E tudo isso em meio a uma enxurrada de emoções e sentimentos
atravessados pelo cotidiano, emoções e sentimentos das socializações, como
você vai ver em seguida sobre o conceito de cotidianidade.
2 Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade

Ao lançarmos nosso olhar sobre o cotidiano, para além de como é referido


por meio do senso comum, que o reduz a algo repetitivo ou uma rotina, vemos
uma constante produção e reprodução em sua essência. O cotidiano desperta
uma organização para o caos que está implicado ao viver. É pelo cotidiano
que se permite uma abertura para a assimilação e acomodação das diversas
informações a que você está exposto diariamente.
Karl Marx (1818-1883), filósofo e sociólogo alemão, ao desenvolver suas
teorias revolucionárias sobre o trabalho e o capital, despertou o pensamento
e a problematização sobre o cotidiano, influenciando todas as teorias sobre
o cotidiano que desenvolveram posteriormente. As inspirações teóricas
sobre o cotidiano surgiram por meio da sociologia, com o escritor, jurista,
economista e sociólogo Max Weber (1864-1920). A psicologia social se atém
ao cotidiano quando busca uma desnaturalização de questões engessadas,
seja pela prática discursiva, isto é, a linguagem, seja por costumes culturais.
Com isso, ao final da década de 1980, foram dados os primeiros passos da
psicologia do cotidiano, onde um movimento intitulado construcionista
tomou corpo quando propôs uma incessante problematização das chamadas
“verdades absolutas”.
O construcionismo, entre outras questões, possibilitou à psicologia social
entender o cotidiano como um processo no qual é possível reconsiderar atua-
ções previamente adotadas, ao mesmo tempo em que são reavaliados noções
e conceitos anteriormente construídos. Claro que não podemos dizer que se
trata de uma postura simples diante do conceito de cotidiano, mas é possível,
a partir de uma ampliação das perspectivas, produzir diversidade, principal-
mente nos campos de conhecimento sobre a constituição do sujeito. Como
está exemplificado na Figura 1, está nas mãos de cada sujeito transformar o
seu cotidiano em um gerador de potenciais.
Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade 3

Figura 1. O homem como gestor de seu próprio potencial.


Fonte: violetkaipa/Shutterstock.com.

Assim, podemos entender o cotidiano também como uma ferramenta.


Poderíamos exemplificá-lo como um palco teatral, no qual a cada ensaio,
ou espetáculo propriamente dito, se cria a possibilidade de fazer algo novo,
ainda que dentro de uma métrica de tempo, fala, atuações e acontecimentos
entrecruzados.
O cotidiano está, dessa forma, consolidado ao existir de todos os sujeitos.
Não sendo possível dissociá-los, os modos de existir dos sujeitos e o coti-
diano se ajustam e complementam objetivando plenitude para constituição
de conhecimentos.
4 Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade

George Lukács (1885-1971), filósofo húngaro, desenvolveu sua teoria in-


fluenciado pelo pensamento de Marx e Weber e propõe um aprofundamento
sobre aspectos pouco explorados nas obras desses influenciadores. Lukács
propõe uma transição entre consciência coletiva e consciência individual, em
decorrência do capitalismo, geradores de forças no cotidiano.
Agnes Heller (1929-), autora e filósofa húngara, foi aluna de George Lukács
e participou de seu círculo de estudos sobre estética e ontologia do ser social,
ou seja, a sua condição de singular, em sua singularidade com relação ao
social. Heller (2004) desenvolveu seu pensamento sobre a teoria do cotidiano
pensando nas possibilidades do universo que contribui para a formação do ser
social, referindo sobre o despertar de uma consciência e atitude ética e política
atuando para e na vida social possibilitam uma vida reflexiva.
Com o auxílio desses pensadores, podemos entender o cotidiano como um
ciclo constante, em uma infinita sucessão de acontecimentos que se relacionam
entre si. Embora aparentemente caóticos, conectam o que é vivido com a vida
social. Veroneze (2013) refere sobre o pensamento de Heller sobre a impossi-
bilidade de separação entre o existir de cada sujeito e a cotidianidade, onde o
viver está intrínseco ao cotidiano. Assim, o cotidiano se desenvolve em sua
cotidianidade conforme a existência subjetiva de cada sujeito.

A teoria da vida cotidiana chamou a atenção de duas grandes escolas do pensamento:


a Escola de Budapeste, com os filósofos Agnes Heller e George Lukács, que propuseram
um abandono ao marxismo, mas um retorno ao próprio Marx e seus estudos sobre
a concepção do cotidiano e a constituição dos sujeitos, e a Escola de Frankfurt, com
os pensadores Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), com uma
visão do cotidiano inspirada por escritos de Freud e Marx.

Cotidianidade
No cotidiano, os sujeitos podem experimentar qual a melhor forma de exercer
seu existir de forma singular, conforme as oportunidades contínuas que emer-
gem no esquema frequente do repetir do cotidiano. Assim, na cotidianidade,
os sujeitos expressam seu sentido de viver, suas crenças e ideologias, seus
desejos e potencialidades. É por meio da cotidianidade que a subjetividade
dos sujeitos entra em prática no cotidiano.
Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade 5

Como uma fuga da genericidade, ou seja, do que é genérico, comum, generali-


zado, a cotidianidade se incorpora singularmente. Dessa maneira, a cotidianidade
insere o sujeito na sociedade, com toda a sua espontaneidade e intensidade.
O sujeito da cotidianidade é ativo, atuante ao mesmo instante em que tam-
bém é receptivo, possibilitando o desenvolvimento de sua socialização, uma
vez que, para expressar toda a potência do seu existir, utiliza a cotidianidade
para escapar do conformismo e da alienação.
Podemos entender então, por meio da relação do sujeito com o cotidiano,
como possibilidade de ruptura com o instituído, assim como em sua criação
da cotidianidade, uma maneira de se constituir como sujeito. A cotidianidade
permite aos sujeitos se projetar, deslocando de uma posição singular para ser
plural, sem deixar de ser único.

Para saber mais sobre os conceitos de cotidiano e cotidianidade, leia o texto “Teorias
da cotidianidade: busca de sentido ou negação de sentido?” (BOVONE; TEIXEIRA, 1992).

Constituição do sujeito na contemporaneidade


De acordo com a perspectiva da psicologia social o sujeito de constitui de
acordo com um princípio de multiplicidade e interdependência, possuindo
uma natureza relacional, onde está em constante interação com outros sujeitos.
Ao nascer, o sujeito já está inserido em um mundo cheio de significados,
consciência e expressividade. A apropriação do mundo no qual o sujeito está
imerso direciona o modo como o sujeito se desenvolverá. Assim, o sujeito
se constitui por meio da relação consigo, com a sociedade e com a natureza.
Nós nos formamos sujeitos conforme compomos nosso existir. Vamos aos
poucos desabrochando conforme nossas ações, reações e relações. O nosso existir
está em constante interação com o mundo, com os acontecimentos ou fatos que
nos estimulam, nos motivam a aprender, a buscar soluções para as adversidades.
Na contemporaneidade, a fluidez de informações torna o processo cons-
titutivo ainda mais rápido, nos integramos como “eu” constituindo uma
identidade, para em seguida desfazer o conceito de “eu”. E este processo de
formação está em constante e permanente desenvolvimento. Os conteúdos
que emergem na contemporaneidade tendem a dar contorno aos modos de
6 Cotidiano e constituição do sujeito na contemporaneidade

existir, provocando recorrentes transformações, que podem muitas vezes


moldar a subjetividade dos sujeitos.
As identidades estão sempre expostas a rupturas na contemporaneidade. À
medida que o fluxo das comunicações se acelera, os sujeitos constituem sua
identidade influenciando a sociedade de forma cíclica, com novas demandas
de produção e consumo. As identidades na contemporaneidade se constituem
na associação de ideias e encontros de sentidos, o que por diversas vezes pode
contribuir com uma certa superficialidade nas relações e conhecimentos.
Porque, com tamanha demanda, não é possível estabelecer a profundidade
necessária para uma fixação.
Os processos de subjetivação acontecem em um movimento contrário
aos engessamentos dos discursos e práticas, potencializando a diversidade, a
pluralidade, dando ênfase ao popular, ao cotidiano, minimizando os limites
entre arte e vida. No entanto, a velocidade à qual os sujeitos estão expostos na
contemporaneidade pode oferecer uma fragmentação de si, com uma incerteza
sobre o curso de vida, sendo este causador de certo mal-estar.
Na contemporaneidade, as identidades e os processos de subjetivação,
são estruturadas no tempo presente. Passado e futuro, bem como os proje-
tos de vida, perderam sua grandiosidade. Na contemporaneidade o agora
é valorizado, privilegiando a atenção e envolvimento para o cotidiano e a
cotidianidade.
Na atualidade com o fluxo de informações, a constante exposição dos
modos de ser, pensar e agir, além da sobreposição de julgamentos e normas
sempre flexíveis de acordo com o fluxo midiático imponente pelas demandas
de consumo, podem tanto viabilizar um existir mais livre e em consonância
com a verdadeira essência de cada sujeito, ao mesmo tempo em que podem
aniquilar o modo de ser e existir se este não estiver em conformidade com o que
o “corpo social midiático” dita no momento. E quando pensamos em momento,
podemos referir a instantes, pois o tempo inteiro do viver na atualidade requer
uma conexão com o mundo globalizado engessado pelo consumo, onde este
comanda o existir, mesmo dos mais atentos a este jogo de forças.
Mesmo o sujeito mais resistente às forças de consumo acaba por entrar
no jogo. Basta observar como os objetos tecnológicos, como computador e
telefones, se tornam obsoletos conforme novas demandas tecnológicas. Sendo
tal demanda, imperativa no mundo atual onde o fluxo de informações convoca
estar conectado para conseguir se desenvolver socialmente. Assim, Bauman
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(1925-2017), professor e sociólogo polonês, para falar sobre estas relações e


a demanda mercantilista da atualidade, usou o termo “modernidade líquida”.
O autor se referiu a “líquido” por lembrar a fluidez e acentuada adap-
tabilidade desse estado físico, que atende perfeitamente às formas de viver
atualmente, onde a vulnerabilidade e constante mutação impossibilitam uma
permanência da identidade, destacando a fragilidade das relações sociais
atuais. A contemporaneidade implica uma constante constituição do sujeito
que se molda, se inventa, se reinventa, se transforma e se adapta em fluxo
continuo e ininterrupto.

Para saber um pouco mais sobre as formas de se constituir e se relacionar na contem-


poraneidade, leia o livro “Modernidade líquida” (BAUMAN, 2001).

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.


BOVONE. L.; TEIXEIRA. M. C. S. Teorias da cotidianidade: busca de sentido ou negação
de sentido? Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 264-282, jul./
dez. 1992.
HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
VERONEZE, R. T. Agnes Heller, indivíduo e a ontologia social: fundamentos para a cons-
ciência ética e política do ser social. 2013. 279 f. Dissertação (Mestrado em Serviço
Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.

Leitura recomendada
KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.
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