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Giulianny Leal Russo

“Porque eu quero ser o outro”:


uma formação para a diferença.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP


2004
Giulianny Leal Russo

“Porque eu quero ser o outro”:


uma formação para a diferença.

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Banca Examinadora
como exigência parcial para a obtenção
do título de Bacharel em Fonoaudiologia
da PUC-SP, sob a orientação do prof.
Dr. Dany Al-Behy Kanaan.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP


2004

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Aos meus pais, Julio e Edineide.
Aos meus irmãos, Netinho e Karol.

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Diário de Agradecimentos

Agradeço à Ruth Ramalho Ruivo Palladino por ter realizado, promovido, o meu encontro
com a fonoaudiologia. A minha admiração e adoração chegam a ser paralisantes, quando em sua
presença, não me permitindo expressar a sua importância na minha formação. Formação no
sentido mais amplo, como trato neste trabalho. Obrigada.

Agradeço, agora, a uma pessoa que durante este ano inteiro impôs a mim diversos
“obstáculos”, questões que puseram em “xeque”, diversas vezes, minhas crenças, meus papéis,
minha lucidez. Esta pessoa exerceu um papel fundamental na minha formação, permeou e
disparou séries de reflexões que, certamente, estão contidas neste trabalho e que contribuíram
para o ser humano, a fonoaudióloga, a filha, a amiga, a aluna, a bandeirante (!), a mulher
Giulianny. Muito obrigada, Vera Mendes.

Denise Teixeira... Muito obrigada por ser tão acolhedora. Por acolher e compartilhar as
minhas questões tão inquietas e calorosas, por saber temperá-las e mostrar-me, com o seu exemplo,
como intervir com sabedoria, intervir eficazmente. Muito obrigada pelas dicas valiosas, pelo
carinho e atenção.

Dany, você é um achado da Fonoaudiologia! Acho uma injustiça com as demais alunas
que não fizeram seu Módulo. Talvez, algumas, nunca mais encontrem “sua escrita”. Este
encontro “escritor e sua escrita” possui uma potencialidade que vai muito além da linguagem
escrita. Abrange o “eu”. Como disse em um dos diários, “é como se o meu texto fosse um espelho,
me vejo refletida nele”.
Com certeza, a autoria possibilita o sentimento de segurança, a certeza de que posso transformar
tudo em conhecimento, posso me fazer ser “escutada”, via linguagem escrita, via a minha escrita.
Meu primeiro obrigada.
Este ano eu quase morri com sua tranqüilidade! Bem-feito a mim. Obrigada pela lição de
paciência, de calma, de serenidade (mas entenda, corremos 3 anos seguidos, estamos acostumadas
a correr, foi difícil me acostumar, se é que me acostumei, a fazer as “coisas” no meu tempo). Pela
oportunidade que me deu para aprender, meu segundo obrigada.

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Gostaria de escrever aqui como foi o processo de produção do meu trabalho, como é o seu esquema
de orientação para mostrar que uma outra possibilidade existe...
Desculpa por, em certo momento, ter entrado em pânico e duvidado de que seu modo era possível,
eu não conhecia o modo... Pois quem o conhece, certamente o aplaude: Em um ano trabalha com
as alunas suas autorias – que foram esquecidas, em muitos casos, ao longo de sua formação -,
promove diversas reflexões acerca do nosso papel nas diferentes instâncias, possibilitando, assim,
desenvolvermos nossos temas. Faz leituras e comentários e, novamente, nos faz refletir sobre
nossos diários! É difícil fazer seu Módulo! Temos de entrar em contato com nós mesmo! E, no
final do ano, quando todas as nossas colegas estão terminando seus TCCs e a gente, suas
orientandas, pensa que nem começou, depois do nosso susto, quando voltamos à Terra e
percebemos que não temos nada do TCC, você nos mostra onde ele está... nos diários!
Difícil compreender que enquanto umas se desesperam com o TCC durante o ano inteiro, eu o fiz,
o ano inteiro, tranqüilamente e precisando apenas, no final do ano, digitá-lo e formatá-lo! Meu
terceiro obrigada.
Obrigada também (meu quarto obrigado), pelas orientações implícitas em todas as discussões e
explícitas sempre que eu solicitava.
E obrigada principalmente por respeitar a minha escolha, o meu tempo e inclusive o meu jeito e
escrita... tão diferentes da “sutil contundência” de Clarice...

Uma das muitas conquistas que fiz na graduação foi a amizade de pessoas que
inscreveram suas presenças em meu cotidiano, em minha vida. Desde o primeiro dia de aula até o
último, Erica Molina e Patricia Cunha estiveram ao meu lado, amigas de muitas risadas e de
muitos momentos críticos na vida de cada uma. A Erica, com seu jeito meigo, sutil e,
principalmente, muito paciente. Nunca me negou sua "escuta" atenciosa. Presenciei a metamorfose
que sofreu nestes 4 anos: de moleca (macacão e piadista) virou essa mulher, apaixonada e
decidida.
Já a Pathi sempre foi uma incógnita em minha vida... Meu extremo oposto! E, por isso
mesmo, nossa amizade é tão rica.
Também há amizades que não implicaram no convívio cotidiano, mas nem por isso são
menos significativas. A Camila Scarpelli, por exemplo, é uma amiga por quem nutro muita

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admiração. Sua inteligência, suas intervenções precisas e o "toque psicanalítico" são marcas desta
garota escondida atrás da aparente fragilidade. Outro exemplo é a Tânia e a Maria Carolina das
quais fui muito próxima, nos distanciamos, mas nunca deixaram de se fazer presentes na
cumplicidade, generosidade, carinho e risadas, vocês são muito importantes para mim.
O mesmo digo à Luciana Lucchetti e à Flávia Maximiliano, amigas cujo distanciamento
fora essencial para que, através do descolamento de nossas posições, eu pudesse ter uma visão
panorâmica e, assim, conseguir produzir.
Não posso deixar de agradecer a todas as alunas do Módulo por compartilharmos nossas
questões.
Muito obrigada à todas. Que continuemos a cultivar e a colher os frutos desta amizade.

Ao Movimento Bandeirante, pelo papel basal na minha constituição como sujeito. Todas as
experiências, aí vivenciadas, refletem em todos os campos de minha vida e, principalmente, na
maneira como aspiro o mundo. Alicia, Fé, Flora, Mônica e Tati: Amo vocês!

André Marinho da Silva, mundo compartilhado... Grande amor. A sua contribuição foi
além de paciência pelas inúmeras ausências, mas principalmente na sua disponibilidade,
inteligência, interesse, vivências e cuidados despendidos a mim, nos inúmeros gestos de carinho,
atenção e escuta às minhas inquietações e ao se dispor a pensar comigo questões que derivaram
neste trabalho.Te amo, muito.

À minha família, que investiu, confiou e apostou em meu trabalho. Sem vocês, a minha
formação, em todos os sentidos, não seria possível.

À Faculdade de Fonoaudiologia, pelos inúmeros profissionais qualificadíssimos que


sempre me acolheram em minhas inquietações e que me possibilitaram refletir questões que
considerava importante.

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Terminada a última Guerra Mundial, foi encontrada a seguinte
mensagem dirigida aos professores:

Prezado professor
Sou sobrevivente de um campo de concentração
Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver.
Câmaras de gás construídas por engenheiros formados
Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas
Mulheres e bebês fuzilados e queimados por
Graduados de colégios e universidades.
Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação.
Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos.
Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou
psicopatas hábeis.
Ler, escrever e aritmética só são importantes
Para fazer nossas crianças mais humanas.

(Prof. Dr. Antonio Carlos Caruso Ronca, Reitor da PUC-SP. Trecho


do discurso de posse das chefias acadêmicas. Plano de Gestão – agosto
de 1997 a novembro de 2000.)

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Resumo

Este Trabalho tem como principal objetivo refletir sobre a


formação profissional entendida como uma formação para a diferença.
Sua base são experiências e vivências nos anos de minha graduação,
que me remete a certas características "puquianas", entre elas, o
respeito à diferença, à pluralidade e à liberdade de expressão.
Além de suscitar reflexões acerca do papel da educação, este tipo
de trabalho aponta como a escrita pode ser utilizada para dar expressão
àquilo que incomodo ou mobiliza o sujeito, como é o meu caso. Pois
tenho como premissa, uma vez fonoaudióloga, que um possível caminho
para a “cura” é a verbalização, é a transformação de situações, fatos,
fenômenos – sobretudo aqueles de certa forma traumáticos – em
linguagem.
Pretendo, com este trabalho, contribuir no sentido de mobilizar,
disparar reflexões e partilhar com o leitor a responsabilidade para uma
formação mais ampla, que abranja o sujeito que constitui o profissional
que é formado.

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Sumário

Senta que lá vai história .............................................................. 11

A Máquina do Tempo .................................................................. 19

Breve histórico da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP .............. 25

À guisa de conclusão ................................................................. 35

Referências bibliográficas ............................................................ 45

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Parte I

“Há limitações a nossas ações possíveis sobre o mundo (...) o


homem estende sua ação pela ação simbólica da linguagem”
(Franchi, 1986)

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“Senta que lá vai história...”

Durante a graduação em Fonoaudiologia passamos por muitos


acontecimentos. Um, em particular, marcou muito minha vida, tendo a
ver com a questão da diferença, ou melhor, como lidamos com a
diferença.
Diante deste fato, resolvi refletir sobre como a formação do
sujeito, acadêmica ou pessoal, deve passar sempre pela diferença.
Afinal, como futura fonoaudióloga, sei bem a importância da linguagem
para o sujeito, com seu papel terapêutico, curador. Conferir um sentido
às nossas vivências e experiências, dar-lhes expressão, uma linguagem
possível, é dar voz a tudo o que vamos apreendendo em nossa
constituição como sujeitos.
Dito isto, destaquei como meu objetivo, neste trabalho, refletir
sobre como a diferença é constituinte na formação dos sujeitos,
profissionais e pessoais.
Dedico-me a refletir qual seria nosso papel formador perante as
questões em que a diferença está posta, não apenas no âmbito
acadêmico, mas, sobretudo, em termos humanos. Diante daquilo que se
apresenta como dificuldade, como incompreensível, devemos tomar
uma posição crítica, levando à revisão de nossa postura educacional.
No caso de uma instituição de ensino como a PUC, em que a
questão da diferença está posta desde sua formação, qualquer forma de
discriminação é insustentável, a meu ver. É claro que vivemos, nestes
anos de sua existência, uma série de transformações em todos os
planos da cultura, inclusive em termos subjetivos, mas não podemos
deixar de nos mobilizar quando uma questão da ordem da diferença
pode se tornar discrimanação.

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A diferença está posta em todos os contextos, pois todos somos
diferentes, e é isto o que me mobiliza: se todos somos diferentes, por
que é tão difícil vivê-la na prática ou em nós? Como profissionais de
saúde, estamos lidando continuamente com a diferença, que se
manifesta, particularmente, no plano da linguagem; esta, por si, já se
situa ao lado da diferença, provoca a diferença (vejamos, só a título de
exemplo, a variedade lingüística, que tanto gera conflitos, discussões,
malentendidos, preconceitos...) (cf. Bagno, 2000).
Uma Universidade que fez, como se sabe, resistência a todo tipo
de opressão, que pagou um alto preço ao enfrentar a ditadura, não pode
ficar alheia a nenhum tipo de discriminação, seja de que tipo for.
Deste modo, numa proposta de formação mais ampla, espera-se
que todos que compõem o quadro da Universidade se posicionem
enfaticamente contra qualquer forma de discriminação, opressão,
exclusão, seja o âmbito em que for considerada.
Este trabalho surge da necessidade que percebi em mim de me
perguntar sobre qual minha implicação com minha formação, se estava
suficientemente atenta ao que ocorria ao meu redor, até que o grito de
alguém que sofria soou em meus ouvidos e me fez escutar.
A questão do preconceito, da discriminação e da falta de respeito
sempre me mobilizaram muito. Não sei explicar exatamente a que isso
se deve, não sei se fui vitimada por alguma destas formas de exclusão;
se bem me lembro, este não é o caso. O que não quer dizer que por isso
não devo me afetar, que não possa me identificar com o outro que
sofre. Aliás, na profissão que escolhi, devo estar identificada com as
formas de sofrimento e com o preconceito e a exclusão a que podem
levar. Se não me coloco atenta a isto, nunca poderia ajudar de fato meu
semelhante.

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Não posso esquecer que este outro do qual se trata, pode ser eu.
O que me leva a perguntar se as pessoas são contra o preconceito de
maneira geral ou apenas quando este as atinge.
Eu busquei até aqui traçar um certo perfil que me possibilite
aproximar de um sentido possível para pensar sobre uma formação que
contemple a diferença. Tive de pensar e vivenciar em mim o que me
mobiliza em relação a esta questão, procurando um sentido para tudo o
que vivi.
Esse sentido talvez tenha a ver com minha história, com o fato de
eu ter, por identificação, “sentido na pele” os efeitos do preconceito;
embora eu não tenha sido o alvo dele, sofri suas conseqüências. Ou
seja, eu também, constantemente, me sinto diferente, e qualquer forma
de diferença acarreta preconceito. Isto é previsto e esperado. Mas não
podemos deixar de pensar sobre isto, sobretudo no contexto
educacional.
Quando penso em identificação, aqui, estou me lembrando
daquele sentido que Clarice Lispector dá ao termo, ao se referir à sua
crônica “Mineirinho”, que trata da morte de um bandido com treze tiros,
“quando apenas um bastava”:
“Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia.”
(Lerner, 1992. p.68) “... porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o
outro.” (Lispector, 1979; p.101)
O ponto é que desde pequena me entristecia muito ver as
gozações sofridas por alguns colegas de turma. Eu me colocava no lugar
deles, imaginava como eles deviam se sentir tristes, humilhados,
rejeitados. Pensava no porque eles foram ‘escolhidos’ para serem
gozados, em como as pessoas se divertiam em ver a tristeza de
outras... Imaginava que aquelas crianças humilhadas e maltratadas não
se sentiam queridas e aceitas por aqueles que as infringiam maus tratos
e isto doía em mim.

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Passei, então, a “defender” estas pessoas, da maneira como eu
achava possível; por exemplo, quando eu percebia que ia começar a
gozação, eu começava a contar uma história ou a conversar com os
“agressores”, qualquer assunto, para fazê-los esquecer e ir magoar seus
colegas, como chamavam, nerds.
Uma certa vez, uma professora percebendo a minha “estratégia”,
dirigiu-se a mim, de maneira jocosa, como “defensora dos fracos e
oprimidos”; de fato, não entendi sua atitude, mas não liguei para a
frase. Só me recordei dela anos mais tarde, já na Faculdade, quando a
ouvi em situação semelhante. Acredito que esta frase, e tudo o que foi
exposto, serviu como disparador do meu tema de pesquisa. Tema pré-
existente e determinante na escolha do Módulo em que realizo este TCC.

Tendo em vista o que foi exposto, este trabalho está organizado


na forma de “Diários”, ou seja, momentos de meu percurso em busca de
elementos que dêem sustentação ao que pretendo discutir nas
diferentes etapas dessa pesquisa.
Refiro-me a diário aqui pensando nos diários de reflexão escritos
durante as aulas do Módulo. Ou seja, a cada aula, nós, alunos,
produzimos um diário livre sobre o que as leituras e as discussões
mobilizavam em cada um. Desde o início, meus diários, mais ou menos
diretamente, trazem esta preocupação que expus anteriormente como
pano de fundo, e todos os textos lidos e discutidos, todas as atividades
práticas propostas no Módulo só faziam reforçá-la. Aproveitei a idéia do
diário para construir meu trabalho. Diferentemente daqueles produzidos
a cada aula, aqui sintetizei o conteúdo de vários diários em três. São os
três momentos que julguei fundamentais para construir meu trabalho.
Portanto, todo o conteúdo dos diários está contido nestes três.
Na versão atual, os diários sofreram algumas alterações
necessárias à sua síntese nestes três; o que procurei manter foi sua

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idéia geral, de um registro sobre aquilo que fui vivendo, experienciando,
pesquisando, descobrindo... Os três diários, assim, representam
momentos de minha pesquisa, de minhas descobertas, de minhas
reflexões.
No primeiro “Diário”, apresentaremos uma breve passagem pela
história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com o intuito
de levantarmos alguns pontos que nos permita pensar a atual feição da
Universidade e como/se a sua história reflete este momento. Nosso
objetivo, portanto, não é traçar um histórico exaustivo e nem afirmar
qual ou como a PUC possui sua feição atual, mas apenas permitir uma
reflexão sobre como um fato como o exposto no “diário de base” pode
ocorrer hoje. Ou seja, como este fato é contraditório em relação à
história da PUC-SP.
Ainda neste momento, estabeleceremos um diálogo entre os
elementos destacados desta história da Universidade com elementos da
história da Faculdade de Fonoaudiologia. A este diálogo
acrescentaremos uma outra voz, aquela da autora deste trabalho,
pontuando o que na nossa leitura singular nos chama a atenção, nos
marca, segundo nosso objetivo. Eventualmente, outros autores serão
chamados a dialogar, contribuindo com nossa reflexão, criando uma
espécie de “polifonia textual”. Como no caso anterior, antes do “Diário
histórico da Faculdade de Fonoaudiologia”.
Em seguida, nossa preocupação se detém sobre alguns aspectos
das diretrizes adotadas pela Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP,
seja por meio da “Resolução CNE/CES 5, de 19 de fevereiro de 2002”,
documento que institui as diretrizes curriculares nacionais do curso de
graduação em Fonoaudiologia, elaborada pelo Governo Federal.
Ou seja, por meio da consulta a esses diferentes materiais,
pretendemos levantar se eles contêm uma proposta de formação mais
ampla, em que o acadêmico encontra-se com o humano, ou melhor, se

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sua proposta de formação profissional prevê a formação de um sujeito
crítico, capacitado teórica e praticamente, mas sobretudo um sujeito
formado com base na ética do humano, atento ao seu semelhante e às
suas reais necessidades. Assim, acreditamos, poderemos ter condições
de antever qual o sentido conferido às palavras “educação, formação,
ensino e ética”.
Em um terceiro momento, pretendemos, com base em tudo o que
foi exposto e discutido, ressituar a questão, sob nova perspectiva. A par
de nossa história e dos objetivos educacionais, faremos uma reflexão
sobre a importância de uma formação mais ampla, considerando a
singularidade de seus alunos. Para que possam atuar numa sociedade
marcada pela diferença, pela pluralidade, o que não pode e não deve
significar, sob qualquer pretexto, intolerância, discriminação, exclusão.
O que invalidaria tudo o que seu projeto de formação, ao menos
naqueles pontos de tivemos acesso, prevê.
Defendemos que a formação do aluno passa, necessariamente,
pelos diversos interlocutores que encontra nos anos de graduação, do
corpo docente ao discente, todos com um papel importante para uma
formação humana, alteritária.
Como ambição maior, pretendemos, neste momento, que estas
reflexões possam ser tomadas como contribuição para se rever até que
ponto as estamos cumprindo nosso papel educacional e formativo, não
apenas do profissional, mas sobretudo do cidadão, do sujeito humano.
Por fim, gostaríamos de frisar que, durante o texto, usamos o
tempo verbal na terceira pessoa – nós –, porque, como Clarice
Lispector, em sua ‘crônica protesto’ “Mineirinho”, já referida, queremos,
mais explicitamente, convocar o leitor a se posicionar, a refletir conosco.
O ‘nós’, portanto, não se refere apenas a mim e a meu orientador
ou a um outro alguém que concorda conosco, ou com a função apenas
de legitimar nossa ‘fala’, refere-se, sim, a mim e aos leitores. Não serei

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apenas eu que farei uma passagem pela história da PUC, mas, comigo,
todos aqueles que se aventurarem nessa história, que inclusive pode vir
a se tornar a sua. Agora mesmo, em que escrevemos, é nos possíveis
leitores que pensamos, é a eles a quem nos dirigimos, é a eles que
queremos mobilizar. O que pode ser traduzido na seguinte expressão
de Clarice Lispector (1973; p.43): “Você que me lê que me ajude a
nascer”; “... preciso depressa de tua empatia. Sinta comigo” (ibid.;
p.105). Pois é somente quando o leitor fizer desta causa, a sua, é que
eu, agora plural, terei atingido meu difícil, mas não impossível, real
objetivo.

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Parte II Aloha
(Renato Russo)

Ser que ninguém vê


O caos em que vivemos?
Os jovens são tão jovens
E fica tudo por isso mesmo
A juventude é rica, a juventude é pobre
A juventude sofre e ninguém parece perceber
Eu tenho um coração
Eu tenho ideais
Eu gosto de cinema
E de coisas naturais
E penso sempre em sexo, oh yeah!
Todo adulto tem inveja dos mais jovens
A juventude está sozinha
Não há ninguém para ajudar
A explicar por que é que o mundo
É este desastre que aí está
Eu não sei, eu não sei
Dizem que eu não sei nada
Dizem que eu não tenho opinião
Me compram, me vendem, me estragam
E é tudo mentira, me deixam na mão
Não me deixam fazer nada
E a culpa é sempre minha, oh yeah!
E meus amigos parecem ter medo
De quem fala o que sentiu
De quem pensa diferente
Nos querem todos iguais
Assim é bem mais fácil nos controlar
E mentir, mentir, mentir
E matar, matar, matar
O que eu tenho de melhor: minha esperança
Que se faça o sacrifício
E cresçam logo as crianças.

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A Máquina do Tempo

Ao observamos a história de nossa Universidade, fica claro como a


situação política e social que demandou a sua origem refletiu na
posição, historicamente conhecida, que assumiu posteriormente.1
Por fazer parte das Universidades Católicas, a PUC de São Paulo,
assim como a PUC do Rio de Janeiro – a primeira Universidade Católica
do Brasil –, foi criada com o principal objetivo de arrebanhar cristãos. O
mesmo já havia sido feito anos atrás com a criação de escolas, os
colégios religiosos, de freira, padre, jesuítas, franciscanos etc., além das
aulas de ensino religioso. Nestes difundia-se uma visão intelectual do
mundo e da sociedade, fundada em princípios filosóficos intimamente
vinculados às verdades da fé cristã.
Antes da proclamação da República, a Coroa possuía um acordo
com a Igreja. A primeira financiava as missões e estabelecia a religião
católica como a oficial, ao passo que a segunda se responsabilizaria por
incutir na população os deveres de fidelidade e obediência.
Contudo, com a proclamação da República e o surgimento de um
novo estado republicano, assumidamente anti-religioso, surgiu a
necessidade da Igreja, como instituição, redefinir seu papel, uma vez
que foi posta à margem pelo novo processo político. Ela, que em
momento algum abandonou seu conjunto de valores e a intenção de
construir uma sociedade baseada neles, viu a necessidade de mudar
para continuar a exercer influência. Para tanto, se propôs a atuar em
outras frentes:
"... converter os meios pensantes do Brasil; formar, nos colégios
católicos, uma elite de confiança; e penetrar nos círculos e escalões
governamentais, através de acordos particulares, enquanto não

1
A parte referente à origem das Universidades Católicas foi extraída de Zveibil (1999),
quando as referências remeterem a outros autores, estes serão mencionados.

19
chegasse a hora oportuna das reivindicações, sob pressão das massas
populares, mobilizadas pela hierarquia eclesiástica" (Lustosa, 1991;
p.47).
No seio do amplo projeto de restauração, a realização máxima,
era a criação da Universidade Católica, pois tratava-se da formação de
lideranças intelectuais que, pela formação católica recebida na
Universidade, restaurariam a influência católica na sociedade brasileira.
Portanto, a criação das universidades católicas no Brasil teve o intuito
de consolidar e ampliar a influência da Igreja.
Na década de 1940, período no qual a Igreja instituiu suas
primeiras Universidades, a primeira no Rio de Janeiro (1941) e outra,
logo a seguir, em São Paulo (1946), o país presenciava um
fortalecimento da política educacional autoritária, apoiado por um
governo cada vez mais centralizado que assumia o controle político e
ideológico do ensino superior. Porém esta tendência centralizadora
facilitou a iniciativa da Igreja, pois havia interesse do Estado na
fundação da Universidade,
"... desde que fosse um empreendimento particular, independente
do Estado em termos administrativos, mas portador de ideologias que
integrassem o vasto repertório autoritário" (Cunha, 1980, apud Zveibil,
1999. p.50).
Neste contexto surgiu a PUC-SP, que seguia os moldes previstos:
instruir “os mais aptos para dirigir os outros”, fazendo uso de um
discurso humanista (Anuário PUC-RJ, 1946, p.75-80; apud Zveibil,
1999). A Universidade Católica, apesar de não abdicar dos princípios e
da doutrina da Igreja, assume um outro compromisso ligado à
sociedade que se modernizava. Pe. Leonel Franco ilustra em seu
discurso:
“... a finalidade da Universidade é formar os que vão dirigir a
sociedade (...) pela sua natureza própria e específica a missão da

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Universidade é ensinar os mais aptos para dirigir os outros (...) daí a
necessidade de uma formação humana total. Por ela (formação integral)
firma-se a alta missão social das Universidades Católicas. Preparar
chefes em que a vida intelectual e a vida moral se tenham
compenetrado na harmonia de uma síntese equilibrada (...) Professores
da Universidade Católica, congratulo-me convosco: aqui (...) ireis
colaborar no grande esforço de elaboração concreta de uma cristandade
ajustada às exigências da história que transforma: trabalhais na obra
criadora de uma civilização cristã”. (Discurso do reitor Pe. Leonel Franca
ao assumir a primeira reitoria da PUC-RJ. Anuário PUC-RJ, 1946, p.75-
80; apud Zveibil, 1999) (grifo meu).
A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo foi fundada em 13
de agosto de 1946, pelo cardeal dom Carlos Carmelo de Vasconcelos
Mota, a partir da junção da Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento
com a Faculdade Paulista de Direito. A PUC-SP foi reconhecida como
Universidade no dia 22 de agosto do mesmo ano. No ano seguinte,
várias instituições isoladas de ensino superior se agregaram à PUC-SP,
recebendo do Papa Pio Xll o título de Pontifícia.
A PUC-SP, na sua constituição, teve uma característica distinta das
demais Universidades Católicas: ela deu abertura para a participação do
leigo e de diversas Ordens: os beneditinos, agostinianos, jesuítas e os
laicos – um modelo mais plural e menos centralizador, que a dirige para
um modelo mais laico na sua relação com a ciência e a sociedade. Estas
características não só dão uma outra cor ao caráter católico e
evangelizador da instituição como também se acentuarão e marcarão a
sua história (Casali, 1995; p. 215).
O surgimento da PUC-SP se deu num período turbulento da
história brasileira e mundial, situado no final da segunda guerra, fim da
Era Vargas com o golpe de Estado, início do processo de
redemocratização do país e a promulgação de uma nova constituição

21
(Constituição de 1946), com o presidente Dutra, cujos traços principais
foram o retorno da democracia, assegurando mandato presidencial de
cinco anos, eleições diretas e a manutenção de inúmeros direitos
trabalhistas conquistados ao longo da Era Vargas. Em âmbito
internacional, houve a bipolarização da ordem mundial: a disputa
ideológica entre capitalistas, liderados pelos Estados Unidos, e
socialistas, pela antiga União Soviética. Este foi um período muito
intenso, com fatos muito significativos e que, certamente, mobilizaram
sentimentos diversos no povo brasileiro.
As duas primeiras Reitorias da PUC-SP (de 1946 a 1964)
caracterizaram-se pelo perfil religioso e doutrinário. Somente 18 anos
depois que começam uma série de mudanças em sua feição: os
representantes da Reitoria não mais são vinculados à Igreja; em 1980
inaugurou a prática democrática de escolha através de eleições de seus
representantes; e “... em 1982 instituiu uma constituinte para modificar
seus antigos estatutos visivelmente defasados e deslocados da prática
democrática vivida na instituição". (Nagamine, 1997 apud Zveibil, 1999;
p.50).
A PUC-SP também foi um dos grandes focos de resistência contra
a ditadura, num dos episódios que marcou para toda a sociedade qual
era o espírito que norteava esses duros anos.
Em 1977, tanques de guerra subiram a rua Monte Alegre e o
campus foi invadido pela polícia militar e civil, em cenas de guerra
declarada. Pelas salas de aula, pelos centros acadêmicos, pelas
secretarias, na "rampa", na "prainha", no "pátio da cruz", na "curva do
rio"2, por toda parte, bombas de gás e cassetetes foram usados contra
alunos, professores e funcionários.

2
Locais de encontros, passagens e ponte entre o "prédio velho" e o "prédio novo", todos são
marcos e referências para estudantes, ex - estudantes, professores e funcionários da PUC.

22
As universidades públicas eram obrigadas a acatar os desmandos
da ditadura, uma vez que o governo é o seu mantenedor. Já as
privadas, ao menos aquelas com compromisso social, de fato
significavam uma alternativa aos alunos e professores de poderem
estudar e se manifestarem. Muitos professores da USP foram cassados e
proibidos de dar aula pelo regime militar. Eles se tornaram, então,
professores da PUC-SP.
Como podemos ver, no momento da ditadura, a PUC já possuía
características muito diversas daquelas que a constituíram. Estas
características iniciais foram se perdendo com o passar do tempo, foram
apagadas da memória coletiva, uma vez que atualmente não é com a
origem da PUC que nos identificamos, mas sim com o episódio da
ditadura militar. Porém, mesmo agora, quando nós, alunos, nos
referimos e nos identificamos com este período, fazemos isto de
maneira descontextualizada, a ponto de se dizer que existe uma
democracia universitária, mas sem nenhuma base real, e que muitas
vezes é confundida com atos irresponsáveis e mesmo atitudes de
vandalismo, ocasionando a depredação do patrimônio institucional em
nome da liberdade de expressão. (Isto pode ser notado nas constantes
– quase já uma tradição – invasões da reitoria, por conta de aumentos
de mensalidade, sobretudo.)
O secretário de segurança na época da ditadura, coronel Erasmo
Dias3, responsável pela invasão, disse na ocasião: "Já que a PUC não
tem autoridade sobre os alunos, a polícia teve que fazer essa operação"
(grifo meu). No momento da invasão, a PUC-SP abrigava a reunião
anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a
primeira reunião para a retomada da União Nacional dos Estudantes
(UNE), que havia sido fechada pelo governo ditatorial. O que a polícia

3
Erasmo Dias é atualmente vereador (PP) da cidade de São Paulo.

23
não queria permitir era um ato público na frente da universidade,
marcando a reabertura da União Nacional dos Estudantes, proibida de
funcionar desde 1968.

As universidades, de maneira geral, tinham o curso como princípio


básico de organização, voltado para o ensino e a formação de pessoal
qualificado, que confere diplomas que habilitam o exercício de uma
profissão. Neste modelo, a comunicação se dá com maior intensidade no
interior de cada faculdade, determinada pela necessidade de integração
curricular. A relação entre as faculdades é mínima, pois dispõem de
ampla autonomia didática e conseqüentemente a interdisciplinaridade é
episódica. Configurou-se, portanto, modelo de Universidade enquanto
federação de escolas autônomas. As Universidades Católicas, portanto,
possuíam as mesmas características expostas acima.

24
Breve histórico da Faculdade de Fonoaudiologia da
PUC-SP

Inicialmente, para caracterizar a história da Faculdade de


Fonoaudiologia da PUC-SP, procedemos a uma pesquisa de textos que
tratassem, de maneira geral, da fonoaudiologia e de sua história...
Encontramos alguns muito interessantes, que inclusive já havíamos lido
em outros momentos.
O primeiro que lemos foi do professor Mauro Spinelli (2001; p.
259-64), intitulado “História da fonoaudiologia na PUC-SP”. O texto é
bem simples e pontual. Conta que o médico Júlio Bernaldo de Quirós
(argentino) foi quem inspirou os primeiros estudos da área no Brasil e
na América Latina.
Em 1961, o médico Américo Paulo Morgante, do serviço de
otorrinolaringologia (ORL) do Hospital das Clínicas (HC), especializou-se
em foniatria, na Argentina, com Quirós, e abriu o primeiro curso de
fonoaudiologia no Brasil, com duração de um ano. No ano seguinte, o
curso foi instalado na Clínica de Psicologia da PUC-SP, com a
colaboração do setor de ORL da Santa Casa.
Até então não se usava a palavra fonoaudiologia, mas sim
ortofonia. Essa palavra é bastante representativa da concepção que se
tinha (e em alguns lugares ainda se tem) de fonoaudiologia. Pois o
prefixo “orto” deixa bem clara a idéia de um “molde” ideal para a fala,
remetendo à idéia de correção, de norma.
Matérias não específicas de linguagem eram ministradas por
professores brasileiros, as específicas eram ministradas por Vera Vispo
(a primeira coordenadora do curso – formada na Argentina) e por Ana
Maria Poppovich (do setor de psicologia da PUC-SP). As práticas
ocorriam na Santa Casa e na Clínica de Psicologia. Mauro Spinelli foi

25
chamado, em 1963, para lecionar anátomo-fisiologia – até então ele era
médico voluntário do serviço de ORL da Santa Casa de Misericórdia de
São Paulo.
Em 1964, o curso foi incorporado à Universidade – primeiro
informalmente, com a presença do atual coordenador (Mauro Spinelli)
nas reuniões diretivas da faculdade de Ciências e Letras de São Bento
(onde estava inserido o curso de Psicologia); depois, o curso, com o
apoio de Nagamine (na época secretário da Universidade e, atualmente,
nomeado funcionário emérito) passou a ser integrante regular da
Universidade. Nesta época, ainda, o curso passou a ter dois anos e eram
aceitos no máximo trinta alunos.
Em 1968, ocorreu a primeira Reforma Universitária, na qual
discutia-se uma nova inserção da fonoaudiologia, nesta época foi criado
um centro para a fonoaudiologia – o de Educação – e o curso passou a
ter 3 anos de duração, sendo ampliado, em 1974, para 4 anos.
O segundo texto que encontramos é de autoria de Ana Paula
Berberian, uma fonoaudióloga que escreveu um artigo para a revista
Distúrbios da Comunicação (2001, p. 265-78) baseando-se em sua
dissertação de mestrado. O texto intitula-se "Linguagem e
Fonoaudiologia: uma análise histórica". A cada frase lida,
"automaticamente” fazíamos uma alusão à questão central deste TCC.
Em seu mestrado, Berberian realiza um estudo sobre as condições
sociais, políticas e econômicas sobre as quais a fonoaudiologia foi
constituída e encontra-se fundamentada.
"... evidências históricas que deflagram como as práticas
fonoaudiológicas se constituíram como práticas de normatização da
linguagem, as quais, de uma forma geral, reproduziram mecanismos de
exclusão, de discriminação e de aculturação de diferentes grupos sociais
que compunham e que compõem a sociedade brasileira. Diante da
complexidade e, sobretudo, mediante a violência simbólica e expressas

26
nas práticas de normatização da linguagem". (Berberian, p.266) (grifos
meus).
O ponto de intersecção entre esta questão e a que estamos
desenvolvendo neste trabalho é a diferença e as estratégias elaboradas
para "liquidá-las". Ou seja, há uma história e esta influencia e marca
lugares. Apesar dos avanços é preciso atentar para certas repetições,
traços, cenas históricas que podem confinar o sujeito a lugares fixos,
rígidos, "patológicos", inclusive o próprio curso.
Talvez um outro ponto interessante para se refletir seja como
agimos diante da questão da diferença, se de fato exercemos nosso
papel formador para a diferença, ou se procuramos nos furtar a ela.
Berberian relata que o objetivo da fonoaudiologia era "eliminar
diferenças de linguagem existentes entre os diferentes grupos que
compunham a nossa sociedade, em nome do progresso e da unidade
nacional" (ibid; op.cit.). Esta frase pode ser relacionada com o discurso
do Pe. Leonel Franca, ao assumir a primeira reitoria da PUC-RJ, referido
anteriormente: "... a missão da Universidade é ensinar os mais aptos
para dirigir os outros...”; ou, então, o do coronel Erasmo Dias, também
referido anteriormente, que disse, na ocasião da invasão da PUC-SP: "Já
que a PUC não tem autoridade sobre os alunos a polícia teve que fazer
está operação”. Devemos atentar, aqui, para o um possível sentido de
“operação”, que significa “extirpar” aquilo que ameaça, incomoda; e
esta “operação” deve ser realizada pelos “mais aptos”. Portanto, temos
aqui duas mostras de discursos autoritários vindos de duas instâncias
distintas e aparentemente contraditórias, excludentes entre si.
Em uma outra associação, ainda, podemos lembrar do prefixo
“orto”, referido acima, com seu caráter marcadamente corretivo,
normativo. Ou seja, em certo sentido, estas três referências remetem à
correção de um modo de manifestação dos sujeitos avaliados como
“incorretos”, “inadequados”, “insuficiente” e que deve, portanto, ser

27
corrigido, em nome de uma norma cujo padrão não encontra
justificativa em bases reais.
O que esse tipo de questão nos coloca é que em todas as
situações haviam um grupo de sujeitos “ruins” e um grupo de sujeitos
que se julgavam “bons” e acreditavam deter uma certa sabedoria, um
certo poder para fazer uma cisão entre o que é “certo” e “errado” e
impor ao considerado errado um certo padrão para o seu
comportamento.
"Diante da multiciplidade racial e cultural expressa nos diferentes
comportamentos, valores e falares da população, a fonoaudiologia surge
atrelada a um conjunto de instituições e agentes para combater as
diversidades lingüísticas, classificadas como sinal de anormalidade e
patologia social que colocavam em risco o progresso do país" (ibid.,
p.274).
É possível escutar este mesmo discurso advindo de diversos
setores, por exemplo, pode-se entender a homossexualidade, a
pobreza, as deficiências físicas, mentais, a velhice, entre outros, como
"sinal de anormalidade, patologia social", ou seja, como um câncer,
deve-se extirpá-las.
"Refletir acerca desta tradição torna-se fundamental, pois, caso
contrário, a fonoaudiologia se encontra desprovida das ferramentas
necessárias para a crítica de suas ações, além de contribuir para a
imposição de projetos e valores formulados por grupos dominantes"
(ibid; p. 274).
Esta autora segue em seu texto dizendo que durante a
constituição do curso, as práticas fonoaudiológicas foram desenvolvidas
principalmente no âmbito escolar, articuladas às áreas da Medicina e da
Psicologia. A partir das décadas de 1940 e 1950 a ação fonoaudiológica
assumiu um caráter mais clínico, que enfocava o atendimento individual.
Neste momento, a fonoaudiologia vincula-se à área médica e, assim

28
como o médico pretende corrigir os defeitos do coração, rins, pulmões
etc., a fonoaudiologia pretendia corrigir os defeitos da fala, numa ação
técnica e organicista. De acordo com Berberian, uma das possibilidades
para romper com esta tendência seria priorizar a análise da inserção da
fonoaudiologia em contextos sociais, políticos, econômicos e históricos.
"... resgatar a história do conhecimento não é um exercício de
erudição, nem um fim em si mesmo. Tampouco é um privilégio dos
historiadores. É uma obrigação dos estudiosos e amantes de uma
ciência-arte. Conhecer a safa do conhecimento na área em que
trabalhamos dá mais sentido ao pedaço da caminhada que nos
propormos a fazer hoje, e a vislumbrar melhor onde queremos chegar.
Portanto, resgatar a história ou conhecer a safa é, antes de tudo, uma
atitude. De humilhação? Sim, mas muito mais de dispormos as nossas
forças, a nossa inteligência e o nosso compromisso - temporais,
limitados e finitos -, na perspectiva do eterno, do ilimitado e do infinito.”
(Renê Mendes apud Costa, s/dados)
Portanto, é preciso que estejamos sempre atentos à história que
constitui nosso curso e nossa vida, para entendermos que tipo de
formação queremos, desejamos e possamos brigar por ela. Se há um
sentido, há como ser simbolizado, e temos condições de transformar a
história.
Ruth Palladino (2001), em seu artigo “Quem será o fonoaudiólogo
de amanhã?", logo no parágrafo inicial afirma:
"... imaginar o futuro é experiência que convoca um tempo já
flexionado, o passado e o presente, tempos preliminares que nos fazem
recordar e nos fazem criar porque recolocam inequivocamente um
desejo que se mostra eterno, porque é o desejo que nos alimenta, o
desejo do bem-estar, da beleza e da felicidade. O futuro não é,
portanto, outra coisa senão este desejo que se apresenta a cada tempo
e o inaugura: é o começo de tudo, inaugurou o que se passou,

29
inaugurou o que está se passando, inaugurou o que se passará. Este
desejo é de todos e para todos porque está engendrado numa existência
tal do homem que o exclui da solidão, da unicidade, colocá-o numa
existência em que sempre está junto a um outro. Desejante e
convergindo ao outro, eis a força de Eros constituindo a humanidade."
(ibid., p. 283 e 284).
Neste artigo, Palladino faz uma reflexão sobre a fonoaudiologia do
futuro e, para tanto, diz que é necessário "sonhar com a tecnologia
avançada e a globalização" (ibid., p. 284). Comenta que a globalização
coloca uma nova situação na humanidade, pois rompe com o que ela
chama de "máxima condição de existência do homem", que é o contato
com o outro homem. Diz que a TV, computador, rádio, telefones - meios
mais usados para a comunicação atravessa as relações, faz com que as
pessoas não se deparem como que diferencia os homens; o sentido, não
das sensações, mas "aqueles que os conformam, a cada um de um
jeito, a cada um em um tempo".
Mais adiante em seu texto, comenta que a tecnologia oferece ao
homem exatamente o contrário do que lhe oferece a humanidade: bem-
estar, beleza e felicidade -, conseqüentemente, uma existência sem
perigos e sofrimento. Porém, estes - o perigos e o sofrimento - lançam a
pessoa no universo da cultura, "são prenúncios da criação (...) porque
há perigo e dor, há criação, e há criação para não haver mais perigo e
dor".
A autora afirma que a tecnologia está cada vez mais avançada e
representa modos cada vez mais rápidos e econômicos para alcançar o
bem-estar, a beleza e a felicidade. Porém, a rapidez e a economia
antecipam os acontecimentos com o objetivo de minorar ou cancelar a
dor e o perigo, portanto, preveni-los. Escreve que, ao atingir este ponto,
a humanidade estará comprometida, uma vez que o que a move é o
desejo, a busca incessante para "encontrar o Éden (...) ele é o

30
impossível necessário, a força motriz de toda tecnologia que
inventamos". Esta tecnologia por sua vez anula o tempo e o espaço,
dispensam a "obrigatoriedade" das relações empiricamente sociais.
Palladino remete estas questões às técnicas preventivista -
destinadas a uma multidão que se desconhece. São técnicas destinadas
a qualquer um, a qualquer tempo, em qualquer lugar - resultante de um
tratamento homegeneizador aplicado aos homens. Refere que a
linguagem pode furar a regra - "a possibilidade estabilizada". A única
solução para estes furos é a relação terapêutica, afirma, e acrescenta
que esta relação poderá dar-se de outra forma: atravessada pela
tecnologia, na qual a relação terapeuta versus paciente se dará pela
mera conveniência "e não por um acordo comum". O terapeuta, por sua
vez, não poderá "perceber e acatar" as diferenças que furam a regra.
Para a autora, quanto mais as pessoas forem contempladas em
seu desejo maior (bem-estar, beleza e felicidade) mais apagados serão
seus traços que as diferem e as identificam. "... tentando com cada vez
mais capacidade reencontrar o Éden, o homem se afasta de si e, aí, não
valerá a pena encontrá-lo".
O homem deve ambicionar a tecnologia e a vida cada vez
melhores, comenta Palladino, mas que a fonoaudiologia ao imaginar seu
futuro deve "cobiçar o passado para projetar o devir, criar tecnologia,
renovando o compromisso com a idéia de relação terapêutica". Segundo
ela, a relação terapêutica "maximiza as condições de humanidade", uma
vez que nesta instância busca-se felicidade, bem-estar e beleza a cada
vez que se prenuncia a dor e o sofrimento.
"E se há algo que qualifica no limite a humanidade é que o homem
se constitui na diferença" (ibid., p. 287).
"... A fonoaudiologia terá sonhos diferentes, e isso é pertinente:
vamos fazer a prevenção, vamos tratar a multidão, mas não deixaremos
sucumbir diante do desejo da perfeição, porque a linguagem nos mostra

31
o furo na certeza, ela traz a dúvida, e é isso que cria o nosso ideal de
perfeição: em nosso campo, o futuro se fará a cada um dos perigos e
sofrimentos de um modo especial, distinto. Ainda que a cultura de nosso
campo nos empurre para a criação outras, para a prevenção e para as
massas, devemos reconhecer a diferença que constituem a área
impõem, e sonhar, então, com futuros diferentes". (ibid., p. 287)
Palladino finaliza o artigo dizendo que no caso contrário do que
afirma acima corre-se o risco de se promover uma homogeneização que
pode nos fazer perder de vista a quem este desejo (bem-estar etc.) se
anuncia e deverão sempre haver outros e outros desejos. Neste
momento, faz uma referência à carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de
Portugal, quando chegou no Brasil, a qual relata que os índios não
possuíam nenhuma idolatria, nem adoração e que, por isso, o que o rei
lhes pedisse seria realizado. "E, assim, o desejo de Vossa Alteza foi
mote para a técnica escolhida". (ibid., p. 288).
Este texto de Palladino é interessante, pois explicita uma
possibilidade de retrocesso na direção, novamente, da homogeneização,
alertando para que isto não aconteça.
É também importante para ilustrar, neste caso através da
linguagem, a relevância da diferença, que é, de certa forma, constituída
pelo desejo.
Seu artigo também nos faz pensar sobre a fonoaudiologia que
fazemos hoje, em que devemos sempre proceder a um exercício de
reflexão sobre seu fazer, reflexão autocrítica (e não
"autocontemplativa", como pode ocorrer).
O artigo de Palladino, ainda, nos remete a pensar que não
devemos proceder ao apagamento das diferenças, de evitamento
daquilo que incomoda. A prática fonoaudiológica, por si só, é uma
prática do incômodo, pois questiona constantemente nossos saberes

32
instituídos, ao lidarmos com seres em sofrimento e com características
sempre diferentes.
Este aspecto é fundamental para não cairmos no engodo de
pregarmos a diferença, defendê-la, e na prática desconsiderá-la. Isto no
âmbito da clínica fonoaudiológica, das relações familiares, sociais, no
convívio universitário etc.
Não podemos correr o risco de que as histórias da PUC-SP e da
Faculdade de Fonoaudiologia sejam esquecidas, apagadas. Essas
histórias são histórias de luta por legitimação, por reconhecimento,
inclusive naquilo que diferem de outras histórias, de outras posições,
sejam políticas sejam normalizadoras, “ortopédicas”. Deste modo,
devemos tomar uma posição diante de tudo o que aprendemos,
vivenciamos, entender o que se passa, e transformar isso em
conhecimento, aprendizagem, em linguagem.
Se procedemos assim, estamos construindo um conhecimento
sempre renovado, um novo modelo de aprendizagem, baseado na
diferença, no sujeito, e totalmente dentro das novas diretrizes
curriculares sugeridas pelo Governo Federal. Diretrizes que prevêem a
diferença, o respeito pelo outro, pela alteridade, pelo sujeito na sua
singularidade. Que pregam um conhecimento sempre construído na
relação com o outro, mesmo, e sobretudo, “quando este outro somos
nós”, “porque eu sou o outro, porque eu quero ser o outro”.

33
Parte III
Há Tempos
(Renato Russo)

Parece cocaína, mas é só tristeza, talvez tua cidade


Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.

Há tempos tive um sonho


Não me lembro não me lembro
Tua tristeza é tão exata
E hoje em dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso.
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito.

Disseste que se tua voz tivesse força igual


À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.

E há tempos nem os santos têm ao certo


A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.

Meu amor, disciplina é liberdade


Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse:
Lá em casa têm um poço, mas a água é muito limpa

34
À guisa de conclusão

Savater (2002) afirma que a educação é sempre uma “educação


impossível”, ou seja, um projeto sempre inacabado, imprevisível, mas
essencial: “A verdadeira educação consiste não só em ensinar a pensar
como também em aprender a pensar sobre o que se pensa, e este
momento de reflexão (...) exige que se constate nossa pertença a uma
comunidade de criaturas pensantes” (p.42).
Segundo o objetivo de nosso trabalho, devemos estar atentos ao
preconceito e às formas de discriminação como tentativas de destituir o
outro de sua possibilidade de pensamento, de uma linguagem que lhe
permita se ver e se constituir como sujeito, portanto combater as
formas de submissão que podem querer lhe imputar. Nesse sentido, nos
passos deste autor, educar é ajudar o outro na construção de sua
humanidade, pois nascemos humanos, mas ainda não o somos
totalmente e nunca terminaremos de sê-lo, somos um projeto inacabado
sempre e, justamente por isso, estamos sempre propensos a aprender,
somos sempre amadores, tanto na arte de aprender e ensinar quanto na
arte de viver.
Se somos sempre amadores, devemos brigar contra todas as
formas preestabelecidas que visam nossa acomodação, a qual pode
gerar, inclusive, como em nosso caso, a discriminação.
O papel dos cursos de graduação como instâncias formadoras
seria, acompanhando Savater, o de pregar o “otimismo”, ou seja,
daquela que acredita que sempre é possível ir mais além do que está
dado, “é crer na perfectibilidade humana, na capacidade inata de
aprender e no desejo de saber que anima, em que há coisas (símbolos,
técnicas, valores, memórias, fatos...) que podem ser sabidas e que

35
merecem sê-lo, em que nós, homens, podemos melhorar uns aos outros
por meio do conhecimento” (ibid.; p.24).
Esperamos, neste sentido, que os cursos de graduação exerçam o
papel de educador, como discutido por Kanaan (2004), entendido como
mediador entre o sujeito e o conhecimento na construção de sua
humanidade, somente possível na relação com os outros (e outro aqui
quer dizer justamente aquele que é sempre diferente de mim, portanto
‘igual’); assim, o educador deve ‘emprestar’ seus olhos e seu ouvidos
aos aprendizes, para que possam ver e escutar aquilo que ainda não
sabem, que desconhecem, isto é considerá-los, e considerar-se, de fato
sujeitos e não objetos; agentes, protagonistas da vida, e não meros
participantes.
Acompanhando as discussões de Kanaan (2004) e seu diálogo com
Savater e outros autores, devemos considerar o papel do educador e da
educação, portanto o papel formador das instituições de ensino, ao lado
da idéia foucaultina de ‘estética da existência’. Nesta direção, podemos
pensar que, diante de tudo o que temos exposto, educar não é tarefa
unicamente pedagógica, e sim existencial. “O primeiro título requerido
para poder ensinar formal ou informalmente e em qualquer tipo de
sociedade, é ter vivido” (Savater, 2002; p.36).

Ainda na direção das discussões aqui propostas e dos autores


citados, uma prática educativa estaria ao lado da construção de uma
“estética da existência”,

“... um modo de agir sobre o mundo, o desejo de interferir na


ordem das coisas, construindo uma existência bela diante dos próprios
olhos e dos olhos dos outros, ou seja, uma existência significativa, que
nos torne ‘memória viva da humanidade’; esta é a arte de viver e
ensinar: a con-vivência com o outro, conosco, e nesta convivência,

36
poder aprender e ensinar, ou seja, nunca nos esquecermos que as
coisas têm um significado, um sentido, que deve ser interrogado,
questionado, com-prendido” (Kanaan, 2004).

Ou, nas palavras de Hannoun (apud Savater, 2002; p.108) “...


educamos para não morrer, para preservar uma certa forma de
perenidade, para nos perpetuar através do educando, tal como o artista
tenta perdurar por meio de sua obra”.

Cabe lembrar, portanto, que já não somos mais figuras


individuais, “pessoas físicas”, somos parte de um todo, nossa existência
é parte de uma coletividade e só aí faz sentido; é justamente por nossa
existência deixar de ser obra individual e ser obra coletiva que podemos
falar em uma “estética da existência”. E, portanto, combater qualquer
forma de alienação, discriminação, pensando num projeto formador
efetivo, e não apenas informador, em que somos instruídos em uma
série de teorias, técnicas, mas que muitas vezes nos deixa fora do
processo, não nos torna autores delas e nem de nossa vida, de nossa
existência, conseqüentemente.

Devemos, assim, estar atentos ao que diz Kanaan (2004), quando


diz que os educadores devem

“... se colocar desprevenidos diante de si e do outro; revissem


seus lugares já-dados e seguros; se prontificassem a escutar a si e ao
outro; acolhessem a si e ao outro durante o percurso; pudessem se
colocar como autores da própria vida e de sua prática; abdicassem dos
julgamentos morais em favor de uma postura ética, estética, criativa,
etc.”

Sua proposta é que os educadores possam abrir

37
“... mão da satisfação imediata, da receita, em prol de uma aposta
mais longa, que os implicasse e os fizesse refletir sobre a própria
existência-experiências biográficas e profissionais. Que abrissem mão da
necessidade em prol do desejo, tornando-se sujeitos renovados
continuamente, ou seja, sujeitos do próprio desejo, portanto, atores e
autores da própria existência e de suas práticas, de seu desejo, sempre
vivido com os outros e para os outros.”

O autor considera, aqui, o papel fundamental do desejo e da


linguagem no projeto formador, educacional, seguindo os passos de
Françoise Dolto, com quem dialoga.

“Não há como ser educador e procurar afastar-se das


responsabilidades e das representações que este lugar implica; é preciso
estar atento a ele e procurar responder a cada solicitação que lhe é
feita, de modo implicado, para poder conduzir seu trabalho em direção à
vida/Vida e não pactuar com a morte, a falta de sentido, o descrédito
etc. Educar é então travar uma batalha contra as sombras da ignorância
e contra a morte.”

Nos termos de nosso trabalho, devemos brigar pela diferença, por


um fazer da diferença, como acompanhamos no texto de Palladino.
Somente assim, estaremos brigando “contra a morte”, em prol da vida.

“... precisamos abandonar um modelo familiar em prol de um


modelo coletivo, social, existencial, sem contudo negar nossas marcas,
nossa história pessoal e coletiva; como precisamos deixar esta família
primeira para fazermos parte de uma família coletiva...” (Kanaan, 2004)

Ainda, na esteira de Kanaan (2004), podemos acrescentar:

38
“A cultura propõe muitas vezes um apagamento das condições de
produção dos fenômenos, naturalizando-os. Apesar disto não ser
novidade, há uma dimensão mais sutil, aquela que nos enreda e procura
nos “vencer pelo cansaço”, ou seja, que procura nos arrastar para o
consumo rápido de informações e produtos, sem que nos demos conta
de nossas ações. Apesar, ainda, de até nos darmos conta disto, nossa
rotina e nosso meio procuram nos arrastar para uma “alienação em
pequenas doses”, como a alienação sobre nós mesmos, nossa história, o
que compõe nossa rotina deste jeito e não de outro, procurando nos
convencer, de modo quase inconsciente, da banalização de tudo isto (a
dimensão auto/biográfica, nossos gostos e desejos etc.), não nos dando
tempo para pensar; até nosso tempo é roubado pelo imediatismo de
alimentos prontos ou semiprontos, pelas notícias, propagandas e
novelas de televisão, pelos resumos de fatos, numa espécie de resumo
de nossa existência (na medida em que nunca paro para questionar
minha rotina, meu modo de pensar, agir, sentir etc.); o discurso, já
gasto, de responsabilizar o outro (governo, em diferentes âmbitos:
municipal, estadual, federal; as instituições de ensino...) pelas
dificuldades da educação hoje é um modo de também de eximir da
responsabilidade sobre a própria vida, a própria existência e seu papel
de educador. Isto é também de certo modo o que certos governos
esperam, pois ele continua no lugar de desejante pelo outro, que leva
este outro ao descrédito de si mesmo, a uma acomodação no negativo.”

Esta discussão me parece bastante importante, pois não nos deixa


cair no vazio. Minha proposta é justamente questionar o que incomoda
em mim, dando um sentido a isso, uma linguagem possível, uma forma
de expressão, de comunicação com o outro. Ou, como diz Dolto (1999:
45), aliando desejo e educação:

39
“O desejo é o que se fala e nunca é satisfeito completamente. É
um impulso de vida que vai sempre mais longe do que a satisfação
encontrada. (...) O desejo, como a necessidade, é de dar fruto. Mas o
desejo é o que pode recusar essa necessidade de espécie em nome do
humano. (...) A libido diz respeito à vida do sujeito, e a necessidade, à
vida do indivíduo anônimo. O sujeito tem a ver com a libido, a qual é
linguagem. Ele deve assumir como humano seu desejo inconsciente,
compatível com os desejos de outrem, e de si mesmo com outrem.
Portanto, deve dizê-lo, falá-lo, o que não significa satisfazê-lo, mas ser
reconhecido como quem o disse, e que esse dizer tenha valor para
todos. Ele não vai realizar esse desejo se este for ilegal, mas se
reconhece como tendo a fantasia deste. É isso, ‘assumir
conscientemente um desejo’ e, por causa de sua dignidade humana de
homem ou de mulher, não passar ao ato.”

Para Dolto (1999), a educação é fundamental na constituição dos


sujeitos e os educadores devem estar atentos a seu papel formador.
Seu projeto, a meu ver, caminha na direção do que proponho quando
penso a questão da diferença, que deve sempre nos desestabilizar,
tirando-nos de nossos lugares seguros. Ou seja, não devemos e nem
podemos nos acomodar, com o risco de morte, como alertou Kanaan
(2004) acima citado.

“A educação tem um papel positivo. Um gesto ou uma palavra


educativa sempre devem estimular um comportamento positivo, ativo e
rico em si mesmo de satisfações para a criança, se ela ouve ou obedece
o adulto. Esse papel de colaboração com a vida, de apoio das forças
morais naturais, que algumas vezes dobram a criança, esse apelo ao
desenvolvimento do espírito e do corpo para a conquista de um domínio
do corpo, é isso a educação, e nem sempre é fácil. Cada criança é um

40
ser original, com um ritmo pessoal, com dons correspondentes à sua
natureza, à sua hereditariedade e à sua saúde. A educação é uma arte e
uma ciência, ao mesmo tempo. (...) O papel da educação é ajudar a
criança a estabelecer uma hierarquia de seus desejos que lhe permita
evoluir voltando-se cada vez mais para a vida social e desenvolvendo a
potência de sua personalidade.” (Dolto, 1999: 57)

Esta discussão de Dolto (ibid.:68) vem ao encontro, realmente, de


nossa proposta, o que fica claro no seguinte trecho de sua discussão:

“... a educação é obrigada a pensar, a preparar as crianças para


uma vida que não sabemos como será, que está em contínua
mudança... (...) E é com isso que a educação deve se preocupar o
tempo todo, em sustentar sempre o desejo do novo, e, em
contrapartida, não satisfazer os desejos que, tão logo satisfeitos, entram
na escala das necessidades que vai ser preciso repetir, e com uma
sensação cada vez mais forte, porque a necessidade é um hábito e o
hábito não nos interessa mais, é uma coisa mortífera. (...) É essa a
nossa função de educadores: satisfazer a necessidade, porque senão se
morreria, e falar de desejo para que o próprio sujeito busque uma forma
de satisfazê-lo; ele sozinho, não para satisfazer a nós, seus pais ou seus
educadores, mas porque se sente talhado para aquilo que lhe foi
revelado por um exemplo de alguém radiante de alegria por ter
encontrado um sentido no próprio trabalho.”

Bem, pretendo que este meu percurso possa ajudar a todos a


pensarem e repensarem constantemente nosso papel de educador, seja
no lugar em que estivermos ou ocuparmos, na clínica, na prática
acadêmica, na vida...

41
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere
qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está
querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um
modo ou de outro...” (Shalom, 1992)

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Perfeição
(Renato Russo)

Vamos celebrar a estupidez humana


A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo


Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar o nosso governo
E nosso estado que não é nação

Celebrar a juventude sem escolas


As crianças mortas
Celebrar nossa desunião

Vamos celebrar Eros e Thanatus


Persáphone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade

Vamos comemorar como idiotas


A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
E os mortos por falta de hospitais

Vamos celebrar nossa justiça


A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
E o voto dos analfabetos

Comemorar a água podre


Todos os impostos, queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo e nosso pequeno universo

Toda a hipocrisia e toda a afetação


Todo o roubo e toda a indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã

Vamos celebrar a fome


Não ter a quem ouvir

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Não se ter a quem amar

Vamos alimentar o que é maldade


Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos

Tudo o que é gratuito e feio


Tudo o que é normal

Vamos cantar juntos o hino nacional


(A lágrima é verdadeira)
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão

Vamos festejar a inveja


A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada

Vamos celebrar a aberração


De toda nossa falta de bom senso

Nosso descaso por educação

Vamos celebrar o horror de tudo isso


Com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
JÁ aqui também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou essa canção

Venha, meu coração está com pressa


Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão

Venha, o amor tem sempre a porta aberta


E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha, que o que vem é perfeição

44
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Pudesse Existir. Campinas, SP. Papirus Editora.

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Projeto Educacional e a Cultura Acadêmica. Tese de Doutorado
apresentada no Programa de pós Graduação de Antropologia Social
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo.

47
Anexo

Dany,
Considero importante fazer no TCC a passagem pela história da
PUC-SP, primeiro para compreendermos melhor a história de que tanto
nos gabamos e por que nos gabamos, entender de onde vem esta
paixão pela PUC, que é transmitida a cada novo aluno por meio do
sentimento que já existe nos velhos alunos, pelas convivências em um
campus relativamente pequeno e muito charmoso. Acho que os
pequenos eventos, os pequenos sustos e surpresas que temos aqui é
que reavivam os espíritos daqueles que fizeram a PUC em cada um de
nós. Como eventos podemos citar as “baladas” que temos na “prainha”
e que interrompem o que qualquer um está fazendo, quer a pessoa
queira ou não; os ruídos no corredor, na biblioteca; os laboratórios de
informática no qual fazemos os usuários terem de passar primeiro no
laboratório que dá acesso à internet, gravar o trabalho que está no e-
mail no disquete, depois ir até o laboratório de digitação. Quando a
pessoas precisam mandar o trabalho por e-mail, tornam a voltar para o
laboratório de informática. Agora imagine tudo isso com filas para usar
os computadores!; mesmo as invasões da reitoria, greves em virtude
dos baixos salários para professores e funcionários, em razão do
aumento das mensalidades – aqui os alunos também fazem greve!; a
confusão com o áudio-visual, com a secretaria... Acho que tudo isso cria
um espírito de coletividade, às vezes de revolta, de união.
Acho que deve ser por isso que as alunas da Fonoaudiologia são
tão desunidas em relação a outros cursos, pois passam uma boa parte
do curso fora do campus e, apesar de sofrermos, sofremos uma em
cada lugar.

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Acredito que a PUC tem deixado suas origens, suas histórias de
lutas, cair no esquecimento; o que resta é uma espécie de mentalidade
de que só o aluno da PUC, professores etc. é que são transformadores,
que possuem "diferencial". No entanto, esta mentalidade aparece no
discurso e não na prática, pois fica como algo descontextualizado.
Aprendemos a cultuar a PUC como pólo diferenciado de produção
de conhecimento e na formação de seus profissionais, com um olhar
agudo para a realidade, engajados socialmente, atentos às diferenças, à
singularidade que caracteriza os sujeitos. Aprendemos, desde cedo, que
somos os melhores, e o que pude verificar ao longo de minha formação
é que nem sempre o que aprendemos se efetiva na prática.
Por exemplo, aprendemos uma série de teorias, técnicas, somos
incentivados a “pensar por nós”, sempre respeitando as diferenças, que
a prática deve contemplar a singularidade dos sujeitos, seu contexto
social, cultural, econômico etc.
Contudo, na prática, nota-se como os alunos lidam mal com a
diferença. Este fato pode ser observado em diversas ocasiões, por
exemplo, quando se menospreza as diferentes concepções teóricas que
fundamentam diferentes práticas que não aquelas que a maioria dos
professores do nosso curso seguem, nas assembléias realizadas no
campus pelos alunos, nas quais, por vezes, assistimos nossos colegas se
xingarem e se baterem, pois não toleram opiniões divergentes, por não
conseguirem lidar com suas diferenças, fazendo uso da linguagem oral.
Parece haver uma ausência de linguagem, que conduz à violência física
ou moral. Sim, pois quando falta a linguagem, surge a violência, como
nos ensina Julia Kristeva. Diante daquilo que discordamos, em vez de
procuramos entender, julgamo-nos superior, e tudo o que se apresenta
como diferente passa a ser, na verdade, ruim, negativo, pois “eu não
concordo”.

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