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SÃO PAULO
2022
2
São Paulo
2022
3
AGRADECIMENTOS
RESUMO
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO………………………………………………………………………6
2. OBJETIVO…………………………………………………………………………..26
3. JUSTIFICATIVA…………………………………………………………………….27
4. MÉTODO…………………………………………………………………………….28
4.1 Tipo de estudo………………………………………………………………….28
4.2 Local do estudo………………………………………………………………...29
4.3 População e amostra…………………………………………………………..29
4.4 Instrumento de coleta de dados……………………………………………...30
5. PROCEDIMENTOS………………………………………………………………...31
6.1 Irina………………………………………………………………………………34
6.2 Valmir……………………………………………………………………………46
6.3 Angélica…………………………………………………………………………59
6.4 Marcos…………………………………………………………………………..77
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………….93
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………………..96
ANEXO I……………………………………………………………………………106
ANEXO II…………………………………………………………………………..109
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1. INTRODUÇÃO
uma criança, o que está presente no imaginário social e já está posto para a maioria
dos cuidadores, e que influencia também nas concepções em torno das relações
como um todo.
A Teoria do Apego na infância foi proposta inicialmente por John Bowlby, por
volta das décadas de 70 e 80; o autor conceitua o apego como sendo um
mecanismo de sobrevivência tão básico quanto o de buscar alimento. Desse modo,
desde sempre os bebês procuram uma pessoa considerada mais apta para lidar
com o mundo, àquela que poderia oferecer respostas e promover segurança para a
sua sobrevivência. Além de procurar, os bebês desenvolvem o chamado
comportamento de apego, que possibilita o alcance e a proximidade com esse
cuidador, permitindo a construção do vínculo que vai fortalecer e concretizar essa
relação (BOWLBY, 1989).
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Uma hipótese proposta por Ainsworth (1978) para este tipo de apego inseguro, é
a de que a criança ao mesmo tempo em que recebeu cuidados e obteve
responsividade de seu cuidador, em outros momentos de necessidade não recebeu
a mesma atenção, fazendo com que perdesse, em parte, sua confiança neste adulto.
Por último, o padrão identificado por Main e Hesse (1990) relata crianças que,
provavelmente, enfrentam situações de abuso e maus-tratos com os cuidadores. No
experimento “Situação Estranha”, as crianças que apresentavam comportamentos
confusos e contraditórios (como irritação, apreensão e até expressões de transe e
perturbações) foram associadas ao padrão de apego desorganizado/desorientado.
Tais crianças indicam intensos conflitos internos para os quais não têm condições e
recursos para lidar com clareza e organização (DALBEM e DELL’AGLIO, 2005).
Por outro lado, vale ressaltar que todas as pessoas são suscetíveis às
influências variadas de experiências favoráveis ou desfavoráveis que podem alterar
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Lane (1981) fala sobre o papel institucional que a família cumpre não só em
garantir a sobrevivência do indivíduo, mas em introduzi-lo na sociedade capitalista;
então, essa família está implicada em reproduzir a força de trabalho e também em
perpetuar a preservação da propriedade privada e dos bens (levando inclusive à
instituição compulsória da monogamia), garantindo o controle social e a continuidade
do sistema do capital.
A autora caracteriza a instituição familiar como sendo regida por leis, normas
e costumes que definem direitos e deveres dos seus constituintes, instituindo e
apresentando os papéis sociais desses indivíduos, que devem reproduzir as
relações de poder presentes na sociedade (LANE, 1981).
Por fim, Lane ressalta que essa luta por poder, dentro e fora do núcleo
familiar, acontece de forma não instintiva (como se pensa com animais), mas
inconsciente, no sentido de não haver confronto e reflexão sobre os significados
atribuídos socialmente e a própria realidade vivida, sendo então modos de viver
pré-estabelecidos, assumidos e reproduzidos nas ações, de maneira intergeracional.
Este tópico tem como objetivo aproximar ainda mais os conceitos levantados
anteriormente ao campo psicossocial. Para isso, será realizada uma apresentação e
breve comparação entre variados conceitos (de diferentes bases epistemológicas,
mas que se articulam e relacionam) que dizem respeito sobre os modos de
funcionamento, significação da existência e das relações entre os indivíduos.
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Esses autores apontam, ainda, que a criança nesse contexto não constrói a
noção de que os outros podem percebê-la e entendê-la a partir dos seus
sentimentos, e vice-versa. Também é provável que seja dificultada a capacidade
dessa criança de se envolver em relações sérias e intensas, que exigem
comprometimento (FONAGY e TARGET, 1997).
Ramires (2003) diz ainda que é mais fácil e provável perceber e lembrar de
experiências que se ajustam ao nosso modelo, e não perceber ou esquecer as
experiências que não se ajustam. As pessoas estão submetidas, assim, à
perpetuação dos mesmos modos de se relacionarem ao longo da vida, se não
estiverem dispostas a rever e olhar atenta, consciente e criticamente sob as variadas
relações a que se propõem.
Como também postulado por Ramires (2003), a Teoria do Apego mostra como
se constroem e se vivenciam os vínculos afetivos e a teoria da cognição social,
agora introduzida, descreve como se pensa sobre esses vínculos e como se lhes dá
significado.
favorecer uma maior atenção e conscientização das pessoas nas suas relações, de
forma a reconhecer e discriminar padrões presentes nessas interações sociais.
que não é sustentada, e que faz com que as relações sejam facilmente descartadas
e substituídas se produzem algum desconforto ocasionado por esses contrastes
entre as pessoas (NEUMANN, 2010).
Maslow (1962 apud MARTINS-SILVA, 2013) propõe uma teoria sobre o amor,
alegando a existência de dois tipos: “deficiency-love” ou amor deficiente, que surge
em relação à outra pessoa com a finalidade de satisfazer as próprias deficiências, e
“being-love” ou apenas amor, que ocorre entre pessoas que podem amar umas às
outras pelo que elas são.
Cabe dizer que a violência verbal (como parte da violência psicológica) é a mais
comum nas relações abusivas e a mais difícil de ser identificada, pela extrema
banalização e não sinalização como violência de fato (BESERRA et al., 2016).
Portanto, brigas, discussões agressivas e falas por vezes ofensivas são comumente
ignoradas e tratadas como coisas “normais” de todo relacionamento.
A partir disso, constata-se que não é possível pensar nos sujeitos afetados
por essa problemática sem olhar e analisar as histórias de vida e os contextos em
que se inserem (DUTRA, 2014).
Por último, nessa análise da raça como fator propensor à violências, Pereira
(2013) diz ainda que a cor do parceiro não importa, mesmo homens negros
reproduzem a violência com mulheres negras, o que continua sendo uma espécie de
autorização para a dominação masculina.
Neal (2018) apresenta uma outra visão acerca dessa questão; alega que
mulheres que tiveram uma infância saudável também, muitas vezes, acabam
envolvidas em relacionamentos abusivos exatamente por não terem parâmetros
para identificar violências nos comportamentos do parceiro. Ou, por outro lado, uma
mulher com histórico familiar saudável pode reconhecer e ter para si o que é
saudável em um relacionamento, buscando e aceitando apenas isso.
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Sousa e Rosa (2006) listam alguns: convivência diária com o medo de sofrer
ameaças, o desamparo, dependência financeira (que resulta na impossibilidade de
se sustentar e sustentar filhos, em muitos casos) e emocional, preocupação com o
marido e o tempo de vida juntos; além, é claro, de sentimentos como a culpa e a
vergonha (ROSA e MOTTA, 2008).
Para além disso, existe a violência psicológica perpetrada pelo abusador que
convence a vítima constantemente de que as brigas e fases de explosões são
temporárias, de que ele irá mudar. Baptista (2020) também nomeia os sofrimentos
psíquicos (além de possíveis problemas na saúde física) envolvidos nessa dinâmica:
depressão, ansiedade, uso prejudicial de substâncias psicoativas, distúrbios do
comportamento, tentativas de suicídio e, por fim, o impacto sobre a capacidade de
tomada de decisões.
Bourdieu (2002) diz que quando as vítimas moldam seus pensamentos para
encaixar com os do abusador, acreditando por exemplo nas promessas de mudança,
estão sob uma violência simbólica que ocorre no nível inconsciente e tornam
“hipnotizantes” as manifestações, ameaças, seduções, censuras e ordens do
abusador. Para sair disso, é preciso perceber e reconhecer a violência como tal,
trazendo para a consciência e saindo desse estado “hipnótico” (BOURDIEU, 2002).
Analisando esse tipo de relação, vários estudos apontam para uma frequência
cada vez maior de relacionamentos abusivos entre casais na atualidade (CARIDADE
e MACHADO, 2006; MATOS, 2006; PAIVA e FIGUEIREDO, 2003).
2. OBJETIVOS
Objetivos específicos:
- Identificar, se possível, qual estilo de apego os sujeitos desenvolveram, e se
estes têm continuidade ou se transformaram ao longo da vida;
- Avaliar como os fatores sociais influenciam esses modos de se relacionar
(recortes de gênero, raça e classe);
- Investigar a presença de relações abusivas, a normalização destas no
cotidiano e como isso se perpetua.
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3. JUSTIFICATIVA
É importante que esse tema seja cada vez mais pesquisado e trazido ao
público, para que muitas pessoas atingidas pessoalmente por relações abusivas
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dentro e fora de suas famílias, possam cada vez mais se conscientizar para o que
realmente circunscreve essas experiências: estes podem ser os primeiros passos no
sentido da transformação dessas relações. Em adição, é claro, há a ideia de que
existem saídas e outras pessoas que passam por situações semelhantes, o que
pode trazer uma dimensão importante para as pessoas que passam por isso.
Por consequência, também se faz necessário que esta pesquisa tenha como
contribuição apontar principalmente as desigualdades de gênero, classe e raça que
demarcam essas relações, dando visibilidade aos temas e auxiliando a
transformação tanto no âmbito pessoal quanto no social, nos vários contextos de
atuação da Psicologia (como a Clínica, Educacional, Institucional, entre outras). De
um modo geral, portanto, auxiliar na luta contra a perpetuação dessas desigualdades
e modos de opressão dentro dos relacionamentos, e também fora destes,
indiretamente.
4. MÉTODO
4.3 Participantes
Os participantes deste estudo se caracterizam como um público adulto, sendo
eles 4 pessoas, com idade entre 30 e 50 anos: dois participantes são do gênero
masculino e dois do gênero feminino, de variadas condições econômicas, com o
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5. PROCEDIMENTOS
A coleta de dados a que se destina este estudo ocorreu após o projeto ter
sido avaliado pela comissão científica da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de referência da Universidade.
Por conta da flexibilização do contexto pandêmico e da vacinação em massa
da população, três das quatro entrevistas puderam ocorrer de maneira presencial,
com o uso de máscaras e certo distanciamento, em um espaço aberto no qual foi
garantida a privacidade e o sigilo dos(as) participantes e suas informações ali
trazidas. Apenas uma entrevista foi realizada de modo remoto, via plataforma
Teams, mas por escolha do próprio participante.
As entrevistas, as quais aconteceram em apenas um encontro com cada
participante, tiveram duração de uma hora, aproximadamente; também foram
gravadas com a permissão dos participantes e transcritas na íntegra.
Para ingresso na pesquisa, todos os participantes selecionados e que
decidiram participar, foram submetidos à leitura dos objetivos da pesquisa e do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Seguindo também os critérios
da Resolução nº 466/2012 complementada pela Resolução nº 510/2016 do CNS,
declaramos aos participantes da pesquisa o respeito aos seus direitos, sigilo e
privacidade das informações pela ética em pesquisa em seres humanos.
Uma vez dado o aceite, os participantes tiveram acesso ao preenchimento do
questionário sociodemográfico de coleta de informações referente à pesquisa. Com
isso, se seguiu, por fim, para a parte da narrativa auto biográfica dos sujeitos.
Foram considerados também os comportamentos não verbais e as reflexões
e sensações da entrevistadora. Além disso, antes de encerrar as entrevistas, foi
dada a continência aos sentimentos e idéias presentes, pois a atividade por vezes
mobilizou conteúdos afetivos. O cuidado com a exposição dos participantes foi
constante. A entrevistadora e sua orientadora se mostraram abertas para responder
a perguntas, curiosidades e comentários dos participantes.
Autonomia
O critério da autonomia se refere ao direito dos sujeitos de pesquisa à sua
autodeterminação. Tal direito procura ser garantido nas pesquisas através do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como pela proteção a grupos
vulneráveis e a pessoas legalmente incapazes.
Beneficência
Por este critério se entende que a pesquisa esteja comprometida com o bem
de seus sujeitos individuais ou coletivos, reais e potenciais; busque, em vista disso,
prever danos e riscos; garanta a participação dos sujeitos nos resultados benéficos
da pesquisa.
Não-maleficência
Afirma o compromisso de não causar danos, desde físicos e psíquicos aos
morais e éticos. Supõe a explicitação de medidas de prevenção diante dos riscos e
de reparação diante de danos possíveis.
Justiça
Entende-se pela justiça, que a pesquisa tenha relevância social e uma
destinação humanitária, voltada para a proteção e cuidado das pessoas e do
ambiente assegura a distribuição eqüitativa dos custos e dos benefícios entre os
sujeitos da pesquisa, sendo particularmente protegidos os sujeitos vulneráveis.
Privacidade e Confidencialidade
Implícitas no critério da autonomia, a privacidade e confidencialidade são
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direitos dos sujeitos no que diz respeito aos dados da pesquisa que envolve sua
intimidade, vida privada, imagem e todas as informações obtidas pela pesquisa, que
os sujeitos quiserem ver preservadas. A privacidade e confidencialidade de tais
dados estão explicitadas no TCLE, bem está assegurado seu uso apenas dentro dos
declarados objetivos da pesquisa.
Houve atenção e cuidado com a carga emocional que pode ter sido
mobilizada nos encontros. Nos colocamos à disposição para outros contatos que
possam ser necessários para a elaboração das vivências relatadas, de forma a
garantir a beneficiência.
6.1 Irina - 34 anos, parda, casada há 9 anos e com dois filhos (6 anos e 7
meses)
● Impressões gerais
Algo marcante e significativo na entrevista de Irina foi o fato dela não ter
muitas memórias ou se recordar de detalhes importantes, principalmente acerca de
sua infância e contexto em que foi criada; falava de maneira sucinta sobre os
acontecimentos e também demonstrou nervosismo, rindo em diversos momentos
quando relatava partes delicadas da narrativa, como quando falava sobre assuntos
que explicitam seu descontentamento em casa com seu marido e situações da
infância que foram difíceis. À medida que foi sendo questionada e aprofundando os
temas, ao longo da entrevista, Irina falava mais e até mudava bastante as falas
anteriores (não sobre os acontecimentos em si, mas a sua opinião e sentimentos
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acerca deles). Também foi possível perceber sua mobilização e emoção intensa em
uma parte específica da narrativa, que será comentada mais detalhadamente nesta
análise.
Irina conta também sobre a falta de diálogo em casa, diante de todas essas
situações e contextos difíceis, quase sem possibilidade de escuta e expressão, e
que depois foi possível notar uma atualização dessa falta, mas com pessoas
diferentes. Assim, o mesmo padrão de não enfrentamento das dificuldades e
conflitos se repete, o que faz com que permaneçam sendo negados ou mascarados.
Também relata que seus irmãos eram muito protetores uns com os outros, talvez por
serem em muitos, mas também pela tensão entre os pais que normalmente se
apresenta como uma violência para as crianças.
A violência dentro da casa aparentemente sempre esteve presente, de um
jeito ou de outro, o que também é confuso em sua cabeça. Não se lembra se
apanhavam, sendo que os irmãos dizem que apanharam bastante. Parece que
reprimiu, esqueceu muitas situações de violência dentro de casa, para talvez
suportar a sua história e a própria relação com a família. É também uma
característica do apego ansioso em adultos, como visto anteriormente e postulado
por Hazan e Shaver (1987), que existam experiências conflitantes, pouco elaboradas
e essa expressiva incapacidade de Irina reconstruir e contar sobre sua infância com
clareza, coerência e detalhes.
O contexto conturbado, marcado pela violência e outros fatores de
vulnerabilidade social como a pobreza e escassez de recursos (HALPERN, 1990
apud DALBEM e DELL’AGLIO, 2005), e a maneira rígida que Irina estabeleceu o
vínculo com seus pais, produziu muito provavelmente esse estilo de apego inseguro
que constrói um modelo interno de representação mal adaptado, assim como uma
mentalização empobrecida (FONAGY e TARGET, 1997) e uma limitação da sua
capacidade de representação (COOK, 2000); da mesma forma, esse processo de
representação do que foi aprendido e vivido, aliado às ideologias vigentes, contribuiu
para a constituição de sua dimensão subjetiva da realidade, ou seja suas crenças,
valores, conhecimentos e afetos (FURTADO, 2002).
É por meio desse modelo interno de funcionamento que a participante tende,
ao longo de sua narrativa, a repetir o padrão de apego inseguro (ansioso, mais
especificamente) constituído em sua infância, estando submetida à perpetuação dos
mesmos modos de se relacionar pela falta da reflexão e da crítica sobre as relações
e conflitos que a compôs (RAMIRES, 2003), visto que a falta de diálogo e a
existência de outras prioridades de sobrevivência sempre se sobressaíram em sua
história.
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● Experiências amorosas
Iniciou sua vida amorosa um pouco antes de ir para São Paulo a trabalho
(como todos os seus irmãos), com seus 18 anos, portanto apenas quando sai de sua
cidade começa sua vida sexual - quando se distanciava de casa e de sua mãe, que
era rígida, não permitia que se relacionasse dessa forma. Parece que cria-se, então,
uma espera muito grande para que a vivência de sua sexualidade aconteça e talvez
uma frustração/desencanto com o amor romântico idealizado, permeado pela
fantasia de completude, felicidade e realização plena, como posto por Menezes e
Barros (2008). E isso só é possível de ser compreendido pois Irina relata não ter tido
uma primeira vez "dos sonhos" e, com isso, ter se desencantado com esse tipo de
ideal ou plano para sua vida.
Com isso, era uma mulher com desejos e sonhos, mas que passou a não
enxergar a possibilidade de realizá-los para si, pois conviveu com frustrações que
aparentemente transformaram sua identidade e autoestima. Quando conta sobre
suas primeiras relações afetivas, sempre fala sobre essa ideia de que pensava ser o
grande e verdadeiro “amor da vida”, se imaginava casando e construindo sonhos
com a pessoa, mas relata de uma maneira frustrada e desiludida como “ainda bem
que não era”, como se tivesse que se convencer que nunca quis aquilo de verdade
quando lhe foi negada a realização dessas expectativas. Nisso, o quão simbólica é a
frase "eu nunca tive essas coisas de amorzinho”, diz que não se apegava, mas ao
mesmo tempo tinha grande envolvimento e expectativas com seus parceiros; há
uma contradição entre essas expectativas e a maneira como se colocava para evitar
frustrações, de modo que os vazios permanecem sem afeto.
Além disso, novamente há a presença do apego ansioso, que agora se
atualiza para a fase da juventude de Irina; primeiramente, sua privação de
experiências pelo alto grau de controle de sua mãe, além da falta de estímulo e
incentivo que a levassem a construir autonomamente seu projeto de vida de acordo
com seus próprios interesses (algo que com certeza se deu pela condição
socioeconômica da família, na ideia de que é um privilégio poder escolher e realizar
suas aspirações) é algo já característico desse estilo de apego (KOBAK e COLE,
1994).
A construção da identidade de Irina se dá, então, a partir de uma falta
significativa de afeto em sua matriz de desenvolvimento, por onde há uma
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Logo em seguida, explica que parou de trabalhar também porque ele não
queria arcar com a sua parte em cuidar das crianças, mas que sua decisão de se
demitir foi mais pelo fato dos horários da família não encaixarem; mesmo assim,
diante desse contratempo, quem teve que parar de trabalhar foi ela, o que diz sobre
exatamente essa prioridade da vida do homem. Assim, de Irina é retirada a sua
autonomia, sua possibilidade de fazer escolhas, sua independência econômica,
características típicas de relacionamentos abusivos (PAIVA e FIGUEIREDO, 2003);
além disso, uma aproximação possível se faz com o conceito de violência
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patrimonial, que diz sobre a dependência financeira das mulheres de seus maridos e
a consequente submissão dessas mulheres (MARQUES, 2005).
Diz abertamente que o erro foi ter começado a morar junto depois de 3 meses
de relação, o que foi precipitado na visão dela e levou ao impulso de ter seu primeiro
filho e casar, o que ela não gostaria naquela época ou com ele, pelo menos. Nisso,
fala sobre a grande possibilidade de que hoje em dia não estaria mais com ele se
não tivessem os filhos. Desse modo, Irina parece viver sem espaço para seus reais
desejos e vontades como mulher, tendo pouca consciência sobre isso e acarretando
em frustrações e incômodos não reconhecidos.
“Mas então você acha que se não tivesse engravidado, não teria casado com
ele?” “Eu acho que eu não teria casado, não; não sei se estaríamos juntos hoje em
dia... acho que não, porque querendo ou não, homem é um pouco mais rígido, mais
grosso, você querer ser dono de alguma coisa, como se eu fosse algo, mas eu acho
que é isso, eu não sei se eu estaria casada.”
Relata, aqui, um incômodo estando diante da ideia de ser algo que pertence
ao outro, que deve servir e dar condição para o outro se desenvolver enquanto ela
não pode; a maneira como ela retrata essa situação dá a impressão de que essas
relações de poder são naturalizadas, o que acaba justificando tal dominação
masculina e mantém as mulheres nas posições de submissão (BAPTISTA, 2020). O
“rígido e grosso” que ela está falando, camuflado como uma personalidade, é
justamente sobre os papéis desempenhados e as violências atreladas a eles (LANE,
1981), papéis estes que retratam a visão social acerca dos gêneros e, assim, o
encobrimento da própria estrutura social que determina o direito do homem de
dominar e a obrigação da mulher em obedecer (RAFAEL e MOURA, 2014), além do
poder concedido aos homens para que essa dominação ocorra (PEREIRA e
PEREIRA, 2011).
Mais adiante, é possível observar a semelhança do que a mãe vivia com o
que ela vive agora. Conta sobre a relação de seu marido com o álcool e o fato de
que o pai também bebia (e inclusive estava bêbado na noite em que tentou
assassinar sua mãe), e é inegável que ambas, Irina e a mãe, passaram pela
violência de gênero (KHOURI, 2006); aqui observa-se a transmissão geracional
(WAGNER, 2014), na qual a família é o locus onde se aprende sobre as relações
afetivas e as experiências (além das normas, crenças, valores e padrões), no geral,
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O que Irina gostaria que seu marido fizesse mais, não é sobre as
responsabilidades e deveres de casa, mas sobre ser mais afetivo com os filhos e
estar mais presente com eles. "A criança cresce e acha que só tem mãe". E
justamente, na vida dela, ela sempre quase que só teve mãe e não desenvolveu
essa relação próxima com o pai, de afeto e cuidado. Conta inclusive que seu marido
tem outros filhos de outro casamento, e é distante deles por também não ter
desenvolvido uma relação íntima de cuidado e afeto. É possível ver uma falta de
questionamento de sua conduta que também faz parte da maneira como exerce o
poder e onde está o seu valor, a partir do que lhe cabe no papel de homem:
trabalhar e sustentar a casa, nada para além disso. Em seguida, explica mais sobre
como ele é perante os filhos: cumpre, mais uma vez, o papel de homem e pai
tradicional, que é caracterizado por uma presença rígida e temida, pouco afetuosa,
que tem apenas a função de "educar" através do medo e da ordem, em uma relação
vertical com os filhos, assim como com sua mulher.
“Ele é meio ogro com as crianças, mal educado, grosso, isso pesa nas
crianças; e até as crianças não vão respeitar ele, vão ter medo dele. Isso já é chato
mesmo, e eu já não gosto também disso. Você tem que conquistar o respeito dos
seus filhos, não botar medo neles.”
Por outro lado, fala que tem uma “conexão” muito forte com seu marido, que
tudo entre eles é conversado, mas para exemplificar essa conexão diz que um tem
acesso e vê o celular do outro, quando na verdade isso é uma forma de controle e a
expressão da insegurança de ambos na relação (NEAL, 2018).
Quando perguntada sobre a forma como o marido a vê, se ele a encoraja ou a
prefere em casa, ela diz que ele encoraja, mas na mesma frase conta que teve que
mentir para ele sobre participar da entrevista, pois se ele soubesse não iria gostar,
então mentiu para “não causar um desconforto”. Fala que o conflito seria porque ele
é ciumento, desconfiado, e que “isso é um saco”, concordando quando há a
sugestão de que existe uma tentativa de controle, mas que, segundo ela, “não é algo
abusivo, só é chato e desconfortante”. Demonstra claramente a não compreensão
sobre o que é abusivo, e talvez até uma certa negação, visto que a violência
psicológica e verbal é a mais comum nas relações abusivas e a mais difícil de ser
identificada, pela sua extrema banalização e normalização (BESERRA et al., 2016).
44
Além disso, como posto por Neal (2018), o ciúmes, isolamento e controle são alguns
dos principais instrumentos usados pelo abusador para controlar sua vítima.
Da mesma forma, vale lembrar que a coisificação (não humanização, visão de
que aquela pessoa é um objeto a ser dominado) faz com que o abusador enxergue a
vítima como uma extensão de si mesmo, o que explica a necessidade de se impor e
moldar aquela pessoa. Logo, qualquer situação que coloque a vítima “em vantagem”
ou contribua com a sua individualidade, como Irina indo fazer a entrevista pelo seu
interesse próprio ou continuar pondo em prática seus planos de vida, representam
uma ameaça ao abusador (PEREIRA, 2021).
Fala sobre as suas insatisfações no casamento, o quanto não tem medo de
se separar só por ficar sozinha, mas pelos filhos. Diz que não tem vontade de
separar no geral, só quando brigam, porque o marido “ajuda” com as crianças; de
todo modo, é ele quem está constituindo a família com ela, criando os filhos mesmo
que minimamente, e isso representa para ela a noção de estrutura, de maior
segurança, de talvez uma ideia de realização ligada ao ideal de amor, ao casamento
e a permanência neste (MALVEIRA, 2020). Traz a ideia de que é melhor continuar
com ele nas adversidades do que "fracassar" na função família, se separando;
novamente percebe-se a perpetuação de padrões arcaicos na visão do divórcio
como uma transgressão, que deve ser evitada a qualquer custo.
“E isso tudo é algo que te preocupa?” “Ah, eu me preocupo, mas depois de
nove anos eu nem ligo mais. Já me acostumei, mas às vezes dá uma reviravolta, um
estresse rs... um nervoso de mudar, de querer outras coisas, então…” “E você lida
como com isso de querer mudar?” “Ah, eu não faço nada, vou brincar com meus
filhos e pronto…” “Tenta esperar passar?” “É, espero passar e pronto, não fico muito
apegada naquele assunto não.”
Irina fala sobre os momentos em que tem muita vontade de mudar sua vida, o
que dá a entender que é se separar do marido; mostra o quanto é difícil e doloroso
pensar em modificar o que não gosta em sua vida, o quanto é mais fácil permanecer
com ele, por mais que não seja o que ela quer, muitas vezes, e continuar sofrendo
com a falta de amparo e cumplicidade. Por isso, ela logo se força a se distrair e fugir
desses pensamentos. Acompanhamos Sousa e Rosa (2006) quando listam alguns
motivos que influenciam na permanência em um relacionamento abusivo, como o
medo do desamparo, a dependência financeira e emocional, além de sentimentos
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Ela conta que não se sente ouvida no geral, não sente que as pessoas dão
atenção para o que fala/expressa, então por vezes deixa de falar por esse motivo.
Irina traz algo que é muito comum na vivência de mulheres: a irrelevância da fala, o
não-lugar, o desinteresse dos outros no que elas têm a dizer e nos seus sofrimentos.
Provavelmente, dessa forma vai se apartando também de seus sentimentos e
continua não tendo que enfrentar a crise que viria da sua necessidade de mudança.
E, entendendo que existe uma dinâmica de estabilidade do apego inseguro
(FONAGY, 1999 apud DALBEM e DELL'AGLIO, 2005), é compreensível que abra
mão de si por uma sensação de segurança (que inclusive pode ser falsa).
“Eu acho que eu sou fácil de me expressar, eu falo quando não gosto de algo,
mas não sei se as pessoas levam a sério ou não o que eu falo, e fica nisso. Aí fico
meio assim, às vezes é melhor ficar quieta porque não tão dando atenção.”
A família de seu marido, que mora próxima a eles, também lhe dá essa
impressão: parece que não se importam com o que ela tem a dizer, somado à falta
de intimidade e até a inexistência de uma rede de apoio, pois não se sente
confortável para pedir ajuda com as crianças, o que produz solidão e isolamento em
sua maternagem e vida cotidiana. Assim, Irina se encontra muito sozinha, em vários
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sentidos diferentes: tanto em sua responsabilidade de cuidar dos filhos, quanto com
a falta de relações próximas que a ajudem a suportar essa rotina e seus problemas
diários (além da sua família, com que às vezes pode contar, mas mora longe).
“E você acha que na sua vida você tem com quem compartilhar as coisas
(seus problemas e dificuldades)?” “Eu não compartilho, eu guardo pra mim mesma,
eu não confio muito nisso de conversar sobre essas coisas…”
Ainda nesse âmbito de sua relação com a família do marido, Irina conta que
uma de suas cunhadas vivencia uma relação abusiva, que envolve violência física.
Quando tenta desabafar com ela, a cunhada sempre reproduz o discurso de que tem
que aceitar o outro como ele é, que as brigas passarão, que é normal, e Irina não
concorda com isso e decidiu se afastar dela. A participante demonstra ter uma noção
dos problemas existentes na sua relação conjugal, e o perigo de discursos como os
da cunhada, mas não considera sua relação como abusiva, pois não envolve a
violência física, como é com a cunhada; algo muito comum, no imaginário das
vítimas, acreditar que apenas a violência física configura o abuso, pois não é tão
banalizada quanto a violência psicológica, por exemplo (BESERRA et al., 2016).
Talvez também exista uma identificação com essa cunhada, e o afastamento
acontece devido à impossibilidade de estar perto de uma situação que lhe cause
desconforto pela semelhança (mesmo não sendo consciente de que essa
proximidade existe).
● Impressões gerais
Valmir parecia tranquilo durante a entrevista, fazia falas um pouco curtas mas
que expressavam claramente o que gostaria de dizer. Falava sobre sua infância com
dor, pelas dificuldades que enfrentavam, mas também com um saudosismo da
época. Foi transparente em sua narrativa, retratando de uma maneira elaborada
suas vivências do cotidiano, assim como as do passado; no entanto, ao falar sobre
seu atual casamento, apresentava maiores contradições e sentimentos conturbados,
por talvez perceber que estava em uma situação que não desejava e não conseguia
contornar. Apesar de relatar ser tímido e dizer, durante a entrevista, que era melhor
47
para ouvir do que para falar, conseguiu falar sobre sua história e suas questões com
muita propriedade, discriminando sentimentos e se expressando muito bem.
Demonstrou estar seguro e confiante no espaço promovido para a entrevista e, com
isso, apresentou uma enorme clareza e compreensão acerca dos temas que
compõem sua narrativa, em uma dimensão muito realista e coerente.
Valmir nasceu no interior de Minas Gerais, onde morava com seus 9 irmãos e
seus pais; relata que eram tempos difíceis:
“Minha mãe não trabalhava fora e meu pai trabalhava aqui em São Paulo, só
que ganhava pouco na época, e o dinheiro que ele tinha era só pra comer mesmo. E
na zona rural que a gente morava, a gente sobrevivia na maneira que podia, que
proporcionava pra gente. E é isso, a gente passava bastante necessidade na época,
porque uma casa com 9 irmãos, uma renda baixa, a gente dependia bastante da
ajuda dos outros, do vizinho, governantes…”
“Na época era triste mesmo. Era coisa tipo assim, de sair pra pegar água em
outro lugar porque o riozinho secou, nossa era muito, muito triste aquilo ali, você não
ter água nem pra beber, tem que buscar na cabeça ali pra levar, roupa lavar em uns
rios longe”
Sua mãe trabalhava na roça, cuidando dos filhos e da casa, enquanto seu pai
trabalhava em São Paulo e alternava entre períodos curtos com a família e períodos
longos trabalhando; por isso, conta que só foi ter a primeira imagem de seu pai
quando fez 2 anos de idade, e mesmo assim não lembra muito como era. Assim, da
mesma forma que Irina, não tinha uma relação íntima de cuidado e afeto com o pai,
pois as responsabilidades de cuidado se encontram novamente no papel da mãe, e
o dever de prover é do pai. Valmir diz que, aos seus 15 anos, pôde compreender
melhor sua dinâmica familiar e estabelecer uma relação com o pai:
“Então a relação com seu pai não era muito de pai né” “Não, por causa disso
mesmo, ele não tinha uma presença muito paterna, não sentia isso. A presença
paterna dele foi lá na adolescência, dos 15 em diante que ele foi pra lá (para Minas)
e não voltou mais; até voltou depois, mas a gente já tinha uma ligação né, mas eu
48
sou mais apegado mesmo na minha mãe, nossa relação é mais forte que a dele.
Tanto que quando eu vou pra lá, não tenho uma abertura com ele igual tenho com a
minha mãe. Eu converso mais com ela, saio mais com ela do que com meu pai,
acho que por causa da infância não ter esse afeto né, aí por isso ficou essa
distância.”
Nessa parte, Valmir fala mais sobre a dinâmica familiar que possibilitou uma
aproximação e intimidade muito maior com a mãe, com quem cultiva essa relação
até hoje. Com o pai, se sente menos íntimo e próximo; a distância e longos períodos
afastados na infância deixou uma marca permanente na relação, sendo apenas na
adolescência que consegue aprofundar esse vínculo.
“Então, quando eu já comecei a entender que ele voltava, a gente tinha muita
saudade e ficava muito feliz porque ele levava presente, mas logo logo também,
passava 15 ou 20 dias e já ia embora de novo.”
Fica claro que a ausência do pai não foi uma escolha do mesmo: ele fazia
isso para conseguir sustentar a família, que se encontrava em situação de muita
vulnerabilidade, como dito por Valmir. Seu pai era dedicado a garantir a
sobrevivência da família, mesmo que isso custasse sua relação de proximidade com
os filhos e a esposa. Apesar da distância, mantinha uma boa relação e convivência
com o resto da família, contando Valmir que nunca foi uma “família de brigas”,
demonstrando que, na medida do possível, conseguiam conciliar um ambiente
saudável dentro de casa. Para exemplificar o ambiente familiar positivo, conta que
seus pais estão juntos até hoje, o que não necessariamente significa que é uma
relação saudável, visto que duração é diferente de satisfação, como pontuado por
Giddens (1993).
Em seguida, comenta mais sobre como era a relação com sua mãe:
“Esse jeito antigo de ter uma postura totalmente diferente da nossa, então era
bem rígida, não tinha moleza com a gente. Naquela época era pouca informação, ela
não teve estudos, então é tudo pra eles era tinha que falar firme pra criança poder
entender quem ta dando a ordem ali, então era rígida. Não tinha mão na cabeça
não.” “E por exemplo, se quisesse conversar de um assunto, como era?” “Não tinha
muita conversa na época né, e assim ela só sabia fazer o que aprendeu com os
pais, então os pais dela já tinham essa mania, maneira de tratar, ser educado assim
na base de rigidez mesmo, mas assim amorosa era, na maneira dela ela era.”
Depois, o participante conta um pouco sobre como era na escola. Relata que
começou a estudar com 7 anos e sempre tirou notas boas, adorava estudar. Conta
também como era ir até a escola, que no começo ficava bem próxima à sua casa,
mas a partir do quinto ano tinha que andar 10 quilômetros até a estrada mais
próxima e pegar o ônibus para a escola, que agora ficava na cidade. Tinha bastante
50
amigos, e retrata a época da escola como “muito boa, gostosa e proveitosa; é onde
você vai conhecendo, se formando sua personalidade, tudo. Então gostava demais”.
Aqui, constata-se a presença de mais modelos simétricos e hierárquicos de relação,
uma multiplicidade tão importante quanto o seu esforço e interesse na escola.
Sua mãe era exigente com os estudos também, por mais que não pudesse
ajudar a estudar; participava de reuniões na escola com as professoras, cobrava as
lições de casa e as notas baixas. É importante dizer que a autoridade representada
pela sua mãe faz com que Valmir, quando criança, pudesse saber quais são as
regras e as consequências de segui-las ou não; inclusive para questioná-las na
adolescência, porque são claras, podendo desafiar, transformá-las ou mesmo
reproduzi-las na própria vida.
Em um dado momento em que fala sobre sua mãe, é perguntado se ela batia
nele e nos irmãos; Valmir responde:
“Sim, mas que que acontece, não era apanhar à toa, é criança, né, muito
arteira, só que minha mãe era assim; até ontem, conversando com meu filho sobre
esse assunto, ele disse ‘ah mas hoje não pode bater’; hoje não, mas na época sim,
não tinha essas leis. Só que sua avó, se fosse lavar um prato e quebrava, a punição
era uma surra. Se mandasse na casa de alguém, e você demorasse, ela contava
nos dedos os minutos e era uma surra. Qualquer coisinha, ou responder também, na
época a gente respondia muito. Então a gente apanhou bastante (risos), mas era por
isso mesmo.”
Valmir não reproduz em suas práticas com seu filho o mesmo tipo de
educação que sua mãe dava, ele próprio parece não concordar com essa educação
que incluía bater. A educação punitivista com violência física, fundamentada na
nossa cultura de violência (SIMÕES, 2007), ainda é muito comum, mas por muito
tempo foi vista como a única forma de educar as crianças. É importante ressaltar
que a punição física institui o ciclo da violência dentro de casa, fazendo com que a
criança aprenda a ser violenta e a comportar-se de forma violenta com as outras
pessoas (SIMÕES, 2007), identificando-se com o agressor ou agressora.
e do qual não guarda memórias, pois era pequeno, e seu padrinho, de quem era
próximo e viu o corpo pendurado em uma árvore próxima de sua casa. Diz que ficou
muito abalado e que ninguém nunca soube o motivo, visto que o padrinho iria casar
em uma semana com uma prima. Estas experiências certamente tiveram influência
na subjetividade de Valmir, marcadas pela brutalidade, violência e a falta de
significado e elaboração; tendo que lidar com esses traumas precocemente, e
principalmente pela perda do padrinho próximo (que em certa medida pode cumprir
a função de um pai, na falta deste), tais perdas poderiam ter se tornado (ou se
tornaram) um luto complexo, até mesmo pela falta de reconhecimento social do
suicídio.
● Experiências amorosas
De forma muito semelhante a Irina, Valmir não tem relações amorosas
significativas até vir para São Paulo; de novo aparece a ideia de uma espera, um
não investimento na vida e nas relações da cidade natal (talvez até pela perspectiva
de perda), e a associação com as promessas no entorno da vinda para São Paulo,
de que tudo poderia acontecer só quando chegasse aqui. Assim, há uma
idealização, uma promessa de vir a ser alguém na cidade, algo muito comum e por
vezes irreal na vivência de migrantes, os quais depositam sonhos que por vezes se
dão apenas pelo desejo de mudança e da possibilidade de uma vida mais digna,
nessa vinda para a cidade (SOTERO, 2009).
“Então, as relações que tive na época de adolescente era só passageira
mesmo, ia pra festa conhecia uma menininha, ficava de beijo e só né, não tinha
aquele namoro extenso não. E era isso, na adolescência a partir dos 15 anos que
começa a desenvolver essas questões de âmbito amorosas, não tive muitas
relações, então no tempo da escola foi isso e depois que vim pra São Paulo só tive
essa relação que eu tô agora, então foi pouca coisa profunda mesmo” “E nesse meio
tempo que você não conhecia ela, não teve ninguém aqui?” “Teve, mas coisas
passageiras, só ficadas, nada que representou interesse profundo em mim”
Valmir, dessa forma, não contou mais aprofundadamente a respeito de
nenhuma outra relação que não a com sua atual esposa; nenhuma experiência além
dela despertaram "interesse profundo" nele, foram passageiras e sem significados,
segundo ele. Embora tenha vivenciado experimentações de si como sujeito
52
“Até quando eu conheci ela (a esposa), a conversa foi essa ‘vai querer ter
filho? se não quiser, então pra mim não serve’. Porque eu queria ter um filho de
qualquer maneira.”
Mais uma vez retrata como o interesse na relação estava pautado pela ideia
de ter filhos, a importância que isso tinha para ele. Talvez o fator da idade se
relacione com a predisposição de uma mulher mais velha já querer ter filhos
também. Nesse contexto, namoraram por oito meses e então começaram a morar
juntos, e pouco tempo depois engravidaram. Assim, houve a superposição de duas
53
crises que exigiram novas adaptações, novos papéis e funções com a formação da
nova família: o casamento e a vinda do filho.
Conta que sua esposa já passou por outro casamento em que foi traída, e
hoje em dia é bastante ciumenta com ele. Aparentemente, os dois são bastante
diferentes: Valmir não é ciumento, é mais fechado e não gosta muito de conversar; já
sua esposa, é desconfiada, “briguenta” e “quer conversar demais”. Comenta também
que tem uma relação muito próxima com sua família de origem, conversa todos os
dias com seus pais e irmãos, e sua esposa não é tão próxima da família de origem
dela, inclusive já teve alguns conflitos em que ficou meses sem contato.
“Não tô culpando ela, talvez porque o jeito dela é esse, é a forma que ela foi
criada no nordeste, a maneira que é criado é diferente, talvez seja isso e a traição
que ela sofreu com o ex dela, talvez atrapalhe no relacionamento atual de hoje.”
“E como é no dia a dia? Como é a rotina?” “No dia a dia não tem muito tempo
pra conversar, porque ela sai de casa às 6:30, leva o menino na escola e vai pro
trabalho, daí chega em casa quase 20h, a hora que eu tô saindo. Às vezes ela põe o
pé no portão e eu tô entrando. É oi e tchau, se tiver alguma coisa pra conversar ela
manda mensagem e eu respondo.”
Valmir trabalha como vigia noturno, e sua esposa trabalha de manhã, e nem
as folgas normalmente se conciliam no mesmo dia. Dessa forma, eles mal se
encontram em casa, o que dificulta o diálogo acontecer e a relação se fortalecer.
Também interessante como ele pontua: "se tiver alguma coisa pra conversar, ela
manda mensagem e eu respondo", exemplificando como o diálogo não parte dele, e
sim dela, cabendo a ele apenas a função de responder o que ela tem a dizer.
“A questão do amor, no início a gente tinha né, não é que não ama mais, mas
não é aquele amor avassalador, a paixão foi só no começo mas acho que eu
entendo o amor assim, se você gosta da pessoa, ama a pessoa, tem que aceitar os
55
defeitos que ela tem, tem que estar do lado, ajudar, o amor é isso, companheirismo,
parceria, a vivência do dia a dia. Isso pra mim eu caracterizo como amor; a paixão
não, é aquilo que você sente enlouquecente no dia a dia e isso passa né, não
considero como amor. O amor pra mim é a parceria, fidelidade, amizade, respeito,
companheirismo.” “E você sente que ama ela ainda?” “Eu gosto, tendeu? Pelo fato
dela ser a mãe do meu filho, é isso.”
É uma fala muito importante, pois, ao mesmo tempo em que comenta sobre
seu casamento, ele caracteriza o que é o amor para ele: deve ter companheirismo, o
que eles aparentemente não tem, já que nunca se encontram, vivem juntos e se
falam no dia a dia; deve-se aceitar os defeitos que o outro tem, parecendo ser a
mesma lógica da cunhada de Irina, de deixar passar tudo o que incomoda porque as
diferenças são naturalizadas, como se não houvesse possibilidade de
questionamento, revisão e mudança; a amizade, que eles parecem não ter, pois é
uma relação rígida, sem carinho, de forma que aparenta só estarem juntos para criar
o filho. Assim, todos os atributos que ele dá ao amor, não se encontram na relação
em que ele está; e ele reconhece isso, pois quando perguntado se a ama, ele
responde que gosta dela porque é a mãe do seu filho.
Novamente, a ideia de que não casou pela mulher que sua esposa era, mas
sim para ter um filho, parece fazer muito sentido aqui; com isso, a relação não
poderia se dar pelo afeto, admiração e interesse genuíno, o que fomenta uma
convivência quase impessoal, que só existe para que a família consiga se manter.
Algo também observado na história de Irina, o desejo explícito de não estar mais
dentro do casamento, mas se manter neste vínculo por um motivo maior: os filhos, e
a segurança que estar com o outro proporciona para isso.
Assim, este trecho em que Valmir nos permite pensar, também, o fenômeno
do amor a partir da dialética singular-particular-universal, apresentada anteriormente
(OLIVEIRA, 2005). Na categoria universal, o amor romantizado, como inerente ao
ser humano-genérico, que faz parte da nossa vivência nas relações íntimas e nos
constitui em diversas esferas, também sempre presente na história como algo que
transcende as nossas ações. Na particular, se apresenta o contexto e organização
social em que as relações amorosas são permeadas pelas normas de gênero,
sexuais, raciais e de classe, produzindo relações de poder que alteram o que se
56
“Tenho dificuldade... eu não consigo falar, se eu falar eu acho que vou magoar
a pessoa, então eu engulo, prefiro engolir do que falar pra pessoa, (...) tenho
dificuldades sim de expor o que eu to sentindo no momento, eu me fecho.” “E você
sempre foi assim?” “Sempre, desde criança, que eu sempre fui tímido né, então não
tenho esse diálogo aberto pra poder falar na hora, eu seguro muito”
Aqui, primeiro coloca esse não-falar por medo de magoar o outro, e também
sobre não ter “diálogo aberto”, como observado anteriormente com sua esposa. Mas
depois, ele aprofunda mais o que o faz não falar em muitas ocasiões, não só em seu
relacionamento:
“E essa timidez você acha que é mais vergonha ou medo?” “Eu acho que
devido à convivência que a gente teve de ser pessoas mais restritas, acho que até o
medo de se expressar mal, (...) medo de como o outro vai entender o que eu to
querendo falar. Às vezes eu me seguro, não falo com medo da interpretação que a
pessoa vai ter. Às vezes nem todo mundo está apto a ouvir aquilo que você tem a
dizer.”
Parece dizer sobre o modo em que foi criado e ensinado a se colocar, sobre o
lugar que ocupa na sociedade, com um grande medo de ser mal interpretado e
julgado. Jessé Souza (2004) traz um conceito que conversa e fala sobre essa
postura, o conceito de habitus precário. Este diz respeito aos "subcidadãos", aos
setores da classe trabalhadora, em contraposição ao habitus primário, que diz
respeito aos cidadãos, à efetiva disseminação da noção de dignidade, que torna
esse agente racional um ser produtivo e cidadão pleno. Esses dois habitus retratam
a segmentação social entre indivíduos e classes sociais, implicando a existência de
redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e os grupos sociais
precarizados como subprodutores e subcidadãos.
57
“Mas agora também a gente faz assim, ‘já que a gente não fez isso, vamos
proporcionar pro filho’ passar pra ele o máximo de educação que puder dar, cursos
58
essas coisas, pra poder lá na frente se tornar uma pessoa melhor do que a gente foi,
do que a gente é hoje.”
Aqui, é possível refletir sobre a dimensão do que pode significar, para Valmir,
o ser pai, e esse desejo tão explícito que o acompanhou por sua vida e determinou
seu interesse em se relacionar amorosamente, com tanto comprometimento. O filho
parece representar, nesta história, a possibilidade e a esperança de mudança, de,
ao se transmitir o que não teve, realizar para o filho o que não pôde ter realizado
para si próprio, no que parece ser uma tentativa de alcançar, mesmo que
indiretamente, uma condição que lhe foi negada.
“E você acha que essa questão de ser ouvido, tem muita gente que fala que
deixa de falar porque não é ouvido. Você sente isso?” “Não, até que eu demonstro
muito respeito, as pessoas quando vêm falar comigo demonstram muito respeito, eu
não sei, as pessoas elas desabafam muito comigo, eu sou mais pra ouvir as
pessoas. (...) Mais pra ouvir do que pra dar opinião, as vezes eu dou mas o medo da
pessoa interpretar totalmente errado, mas eu prefiro ouvir do que falar.”
Exatamente como articulado por ele, “demonstrar muito respeito”, que leva ao
ser ouvido, é algo que normalmente só é lido na figura de um homem. Porém, é
preciso explicitar a diferença entre as masculinidades existentes na sociedade
(JUNIOR, 2006); primeiramente, há a masculinidade hegemônica, a qual é mais
exaltada do que as outras dentro de um tempo histórico e cultural. Tal masculinidade
59
6.3 Angélica - 50 anos, branca, divorciada, dois filhos (filha com 20 anos e
filho com 12 anos)
● Impressões gerais
60
divisão do trabalho e os papéis de gênero quando diz que a mãe se dedicou a vida
toda a cuidar dos filhos e do marido, na mesma medida em que o pai proveu
materialmente, e isso a participante denomina como “troca”, o que justamente fazia
com que fossem tão unidos.
Apesar de começar falando isso, logo depois Angélica conta sobre algumas
atitudes de seu pai direcionadas à sua mãe que a incomodavam bastante. Seu pai
era mais “controlador”, diz que tudo deveria ser feito do jeito dele e na hora que ele
queria. Para exemplificar, conta uma situação que se repetia bastante, na qual todo
sábado depois dos almoços e confraternizações em família, o pai sempre gostava de
dormir à tarde e fazia a mãe o acompanhar, mesmo quando ela não queria e
gostaria de ficar mais um pouco com o resto da família. Ao comentar sobre o que ela
achava disso, a participante traz:
“E eu ficava indignada ‘você deixa ele mandar em você assim?! Você vai ficar
e pronto!’. Mas eu era menina, eu era muito ‘ninguém vai mandar em mim’, mesmo
porque ele mandava muito em mim.”
Traz a dimensão sobre o controle do pai e as relações hierarquizadas que se
criavam a partir disso, que se estendia da mãe até os filhos, e principalmente com
Angélica, a qual desafiava muito o pai. É possível perceber o quanto esse controle
está ligado ao prover, de novo retomando os papéis de gênero tradicionais, como se
por sustentar a família tivesse o direito e dever de ditar como as coisas
aconteceriam. Portanto, sendo o cuidado desvalorizado em relação ao prover a
subsistência, embora ambos os papéis sejam de extrema importância numa família,
o pai, aos olhos de Angélica, assumia uma autoridade exercida de forma absoluta e
opressiva, como ilustra a seguir:
“A gente brigou muito, muito, muito, até uma vez que eu fugi de casa, fiquei
dez, quinze dias e voltei. Depois que eu voltei, no dia seguinte eu passei a trabalhar,
e aí ele parou de controlar a minha vida, porque eu não podia ir viajar com meus
amigos; desse dia em diante eu falei ‘pai, eu posso?’, e ele falou ‘faz o que você
quiser.’” “Quantos anos você tinha?” “16, 17, eu comecei a trabalhar com uns 15
anos... e aí ele parou de pegar no meu pé. Então, diálogo com meu pai, zero.”
“Uma época eu fiquei presa, ele saía com uma chave e me trancava (...) por
causa de um monte de coisa que foi acontecendo, de eu falar que ia voltar e não
62
E fica claro como, a partir do momento em que ela começou a trabalhar e ter
seu próprio dinheiro (apesar de ainda ser uma adolescente e morar com seus pais),
passou a ter o direito de sair quando e como quisesse, com uma maior liberdade e
autonomia. Percebe-se como o trabalho pode ser um instrumento que promove a
independência, levando, assim, à possibilidade de fazer escolhas e exercer o
protagonismo em relação à própria vida.
Fala, também, sobre o diálogo com seu pai, dizendo que não havia algum;
mesmo após as brigas, pediam desculpas para encerrar a discussão e continuar a
convivência, mas não havia um diálogo mais profundo que permitia elaborar,
resolver o conflito e assumir responsabilidades (algo visto, até agora, em todas as
narrativas). Também conta que quando ele a impedia de fazer algo, ela perguntava
por quê e ele nunca justificava, o que a deixava muito brava e incomodada.
“E assim foi nossa relação, era não e porquê não. Eu perguntava ‘mas por
quê?’, e eu nunca engoli esse porquê não. Tanto que eu nunca fiz isso com meus
filhos, desde pequenos, eu falo que não podem fazer porque tal coisa, não porque
não quero, eu que mando. Eu tinha pavor, odiava, esse ‘porque eu não quero,
porque não’.”
“Quando eu descobri que eu tinha voz, eu queria me impor né, por isso as
brigas. A minha irmã mais velha, meu pai não deixava nada e ok, meu irmão tudo
podia, a outra irmã só queria saber de jogar basquete e namorar em casa, ou ir com
o namorado pro jogo de basquete, e eu queria sair. E eu comecei a falar que ia e
não queria saber, eu apanhava, ficava presa, mas eu ia, então eu acho que quem
mais tentou me calar foi quem eu mais questionei né, que foi meu pai.”
Importante como a participante aponta essa relação com o pai como o que lhe
proporcionou ter voz, à medida que quem mais tentou calá-la foi, ao mesmo tempo,
quem a ensinou a falar, ainda que a contragosto. Fica explícito como é contrariando
que Angélica aprende a se impor, e assim cada vez mais consegue constituir e dar
forma a pessoa que é, assim, ela sai do silenciamento que lhe foi imposto, podendo
afirmar-se. Nessa fala aparece novamente a desigualdade de gênero e o duplo
padrão em relação às filhas e filhos; o irmão não precisou, como Angélica,
conquistar voz e autonomia, ele já gozava delas pelo fato de ser homem. Quando
ela diz que a irmã namorava em casa, pode-se supor que havia também um controle
sobre a sexualidade das filhas, o que poderia levar a uma sexualidade culpada por
parte delas (DESSER, 1993).
Em contrapartida, relata que com sua mãe havia um vínculo mais íntimo, com
mais diálogo e trocas; conversavam abertamente sobre assuntos como a
sexualidade, por exemplo, em uma relação transparente e de confiança. Todavia,
tiveram brigas sobre o uso de drogas, quando sua mãe descobriu que Angélica
fumava maconha; em um movimento contrário ao diálogo, vasculhava suas coisas
todos os dias e jogava fora toda vez que encontrava a substância, muito
provavelmente pela preocupação e grande tabu que existe em torno das drogas
64
ilegais. Mesmo com essa situação, Angélica diz que com sua mãe, o diálogo existia
muito mais do que com seu pai, o que se tornou um espaço importante para ela.
Adentrando mais a relação com sua mãe, Angélica conta que no período
conturbado da sua adolescência, sua mãe por vezes não concordava com a
autoridade e imposição do pai, mas não se sobrepunha a isso de maneira alguma:
“E na sua adolescência, que o seu pai era mais rígido e com sua mãe tinha
mais diálogo, você acha que tinha uma disputa entre eles?” “Ela falava amém pra
ele. Era ele que mandava, ela chegava a falar pra mim ‘eu sei minha filha, eu acho
que não tem nada demais vc sair, mas não tem o que fazer...’”
Adentrando mais a relação com sua mãe, uma das primeiras falas da
participante é sobre o atual relacionamento entre ela e a mãe, visto que moram no
mesmo apartamento, junto com os dois filhos de Angélica. É interessante observar
como, no início de sua narrativa, coloca sua mãe como sendo mais inflexível e o pai
como sendo mais carinhoso (o que forma grandes contradições não só em sua
narrativa, mas prováveis confusões em relação aos sentimentos opostos de raiva
pela opressão e o de amor pelo carinho recebido), talvez pela atualização que as
relações tiveram em sua memória, depois do falecimento do pai e do
envelhecimento somado ao adoecimento da mãe, que precisa de muitos cuidados
fornecidos por Angélica.
65
“Em relação à minha mãe, que eu tô cuidando dela agora, e agora ela tá
muito velhinha, quando eu vim morar com ela logo que meu pai morreu, tinha uma
relação de troca: ela fazia uma comidinha, ela lavava uma roupinha, eu chegava à
noite ‘tá cansada? Quer um sanduíche?’ e tal; agora é zero.”
(...) “Eu percebo que hoje ela me enxerga como uma cuidadora dela, não
mais como filha. E eu tava ficando muito mal, porque eu fazia, fazia, mas não tava
bom pra ela sabe? Sempre ‘ai como você é ruim, ai como você é chata, ai como
você tá sempre reclamando’, e chegou uma hora que eu não podia mais olhar pra
cara dela. E, conversando com a minha terapeuta, ela falou ‘e como era isso com o
seu pai?’, e meu pai não, meu pai era muito preocupado, ‘você tá bem minha filha?’
era carinhoso de beijar, abraçar. E eu só fui perceber isso agora, conversando com a
minha terapeuta, que era ele quem acarinhava, amava, ajudava (...), apesar de ser
controlador.”
Percebe-se aqui a mudança nos papéis: agora é a filha quem cuida e a forma
de exercer esse cuidado tem relação com a maneira de ter sido cuidada, com o
acréscimo de outras variáveis, como o contexto atual, por exemplo. A questão do
cuidado, para Angélica, é muito importante e tem um espaço significativo em sua
vida; tanto com sua mãe, no presente, quanto com seu ex-marido (o que será
explicitado nos tópicos que se seguem). De novo, a expectativa dela de ser cuidada,
que tem tudo a ver com o que representava o amor para ela: traz isso novamente
quando fala sobre as trocas que existiam entre ela e a mãe, e que hoje não existem
mais e a relação se resume aos cuidados com a mãe, o que a deixa desgastada,
incomodada e atrapalhando no bom convívio em casa.
Parece que o amor é lido como o ser cuidada, mas também como a troca,
com o dar e receber; então, quando passa a só cuidar e não receber nada em troca,
o amor da relação é afetado e não corresponde ao ideal e desejo dela. É possível
pensar nas normas de gênero e no papel da mulher de sempre fornecer o cuidado e
sem receber isso no mesmo sentido, e o quanto isso não serve para Angélica, como
ela mesma diz quando conta sobre a relação entre os pais de cuidado da mãe e
sustento do pai, deixando claro que uma relação como esta não cabe mais no
presente.
66
Por último, Angélica conta de algo que tem sido tema de sua terapia
atualmente, e o reconhecimento de consequências de um modo que sua mãe a
enxergava e falava sobre ela:
“Minha mãe sempre foi muito exibida, só usava coisa colorida, aquele monte
de brinco, pulseira, e ela desde pequena me falava ‘ai como você é sem graça’ ‘olha
mãe o brinquinho que eu comprei’ ‘ai que brinco sem graça’.” (...) “Agora eu tô
tratando isso porque sem ela perceber, não, tenho certeza que ela não fazia para me
deixar mal, mas eu passei a acreditar nisso, de alguma forma que eu era sem graça.
Então talvez essa coisa de eu ter começado a beber, fumar, foi de autoafirmação,
sabe? Pra eu não me sentir sem graça.”
● Experiências amorosas
Angélica experienciou alguns relacionamentos amorosos antes de casar-se
com seu ex-marido, o qual ela caracteriza como sua principal relação afetiva durante
sua vida. Sua primeira paixão foi com 13 anos de idade, por um menino mais velho
que também tinha casa na praia, que sua família frequentava nas férias e feriados;
conta que se via como “bobona, submissa” em relação a ele, pois o menino parecia
não corresponder com reciprocidade os afetos, então só ficavam quando ele queria,
e isso passou a deixá-la chateada e se sentir “usada” com o tempo. Aqui, observa-se
o modelo parental do homem controlador e da mulher submissa, mesmo que em
contextos e relações completamente diferentes.
“E isso durou sei lá, não durou nada porque nem existia, era tudo da minha
cabeça. Mas eu lembro que no final eu me senti muito usada, a gente parou de se
ver porque meu pai vendeu a casa e comprou outra em outra praia, e nunca mais
nos vimos (...) e foi isso. É isso, eu me senti muito mal, e depois eu não me
apaixonei mais por um tempão.”
É interessante como, por se ver mais investida na relação do que ele,
Angélica quase desconsidera a relação por inteiro, como se só tivesse acontecido na
cabeça dela, como ela diz. O vínculo acaba abruptamente, pela mudança de casa, e
respondendo a uma observação da entrevistadora sobre isso, a participante ainda
acrescenta:
“Então meio que não teve fim, não teve um término” “É, porque não teve um
começo, a gente ficava de vez em quando só.”
Aqui, se mantém sob a perspectiva de que a relação não se deu justamente
pela falta de reciprocidade, e por isso não pôde ter um começo, meio e fim. Dessa
forma, é desconsiderada e menosprezada toda essa primeira experiência, com uma
frustração muito grande a respeito de uma expectativa e uma fantasia, talvez, de
68
uma primeira vivência perfeita, como observado também em Irina. Nota-se que não
existe uma humanização das experiências, uma elaboração coerente principalmente
com a idade e a falta de bagagem existente, no sentido de que tudo que foge à
fantasia do amor romântico (GIDDENS, 1993) e de uma espécie de conto de fadas,
não é válido e deu totalmente errado.
Sua segunda relação amorosa foi aos 17 anos, aproximadamente, momento
em que já estava inserida no grupo de amigos de que se aproximou “para não se
sentir sem graça”, como foi comentado anteriormente; foi quando começou a beber
álcool, fumar e ter mais vivências amorosas casuais. Se apaixona, então, por um
amigo desse grupo que lhe causou grande interesse:
“Foi uma paixão louca, ele da turma dos porra loucas era o mais certinho,
fazia facul, era um cara super misterioso, caladão, na dele... tinha uns olhos verdes
rasgados de gato assim... o que mais me atraía era o jeito dele, dele ser quietão.
Mas quando a gente conversava ele era super agradável, educado, delicado, e foi
isso.”
Fala que, no começo, ele não se relacionava apenas com ela, o que a fez se
relacionar com outras pessoas ao mesmo tempo também. Se relacionava tanto com
quem realmente tinha interesse, quanto apenas pelo ambiente de festa, de fazer o
que todos ali do grupo se propunham a fazer. Essa dinâmica diz sobre os novos
modos da atualidade em se relacionar, com vínculos personalizados, de acordo com
os interesses dos envolvidos e pautados pela satisfação imediata, por exemplo
(NEUMANN, 2010). Nesse momento em que começa a se comportar como o garoto,
ele se apaixona por ela e eles decidem ficar juntos monogâmicamente. Chama
atenção o fato de, ao se colocar nas mesmas possibilidades que ele, isso o faz
querer se comprometer só com ela e abrir mão de ficar com outras pessoas; algo
muito comum nas relações heteronormativas, o homem ser mais “livre” na relação e,
ao perceber a igual liberdade da parceira, optar por se comprometer afetivamente e
estabelecer limites na relação. Soa como uma sensação de ameaça, tangenciando a
ideia de ter posse sobre aquela pessoa, e deixar a liberdade acontecer é permitir
que outros conquistem o que está em jogo.
envolver com o chefe, responde: “bebida”. Relata que isso influenciou sua tomada
de decisão quando o chefe flertou com ela e então se beijaram.
“Eu acho que eu não queria ver, eu mentia pra mim que só aquilo bastava ‘ah,
só sexo tá bom’. Apesar que eu acho que se houvesse mesmo um envolvimento da
gente ficar mais junto, não sei se teria dado certo. Porque, de verdade, ele não era
um bom caráter.” (...) “Então eu não sei se o meu inconsciente falava ‘ah eu só gosto
de transar porque ele é mau caráter’ entendeu? Pra me proteger.”
Aqui, talvez seja possível fazer uma relação com o ser “sem graça” que lhe
incomodava tanto no discurso da mãe sobre ela. Possivelmente, Angélica escolhe
andar por caminhos que desviam do esperado, fora do comum e do tradicional, para
de alguma forma se destacar e fugir de enquadres que lhe colocavam em posições
ordinárias e reforçando assim que tinha o controle sobre quem era, sobre a própria
70
“E você se sentia usada ou algo assim?” “No começo não; mas depois, sim.
Eu não sei te falar se na época eu sentia, não eu sentia, mas deixava eu ser usada
porque como eu gostava eu me sujeitava aquilo.” “De alguma forma você também
estava usando ele?” Eu achava que sim, mas hoje eu percebo que não. Assim, se
eu tivesse essa cabeça de hoje, talvez eu conseguisse só usá-lo também, sem me
envolver, mas aquilo me machucava e eu fingia que não. Eu nem queria ficar com
ele, por conta do caráter, por saber que se ele pudesse vender a mãe pra ter
dinheiro ele faria, então eu não ficaria com um cara desses, mas eu acho que eu
queria sentir que ele quisesse, pra eu poder falar que não queria.”
A participante fala sobre se sentir usada por ele e, teoricamente por estarem
em uma relação que se dá na superficialidade, com início e fim na satisfação dos
desejos sexuais de ambos, poderia também o estar usando. Mas percebe que não
estava, não conseguia se colocar nessa posição de igual para igual, porque também
o recorte de gênero e a hierarquia existente entre os dois (por ele ser chefe dela),
somados ao sentimentos reprimidos que não enxergava, não permitiam que uma
horizontalidade existisse, podendo inclusive se configurar como uma situação
abusiva. No trecho a seguir, pontua melhor sobre a dinâmica entre eles:
“E você acha que em alguma dessas relações houve algum tipo de controle,
violência, chantagem?” “Acho que a do meu chefe tinha de controle, não controle,
ele sabia que me tinha a hora que quisesse, e ele praticava isso, esse domínio (...)
na sedução, né, joguinhos... quando ele via que tava esfriando, ele vinha fazia
alguma coisinha, voltava... era mais nas entrelinhas.”
Fica clara a representação dele como alguém maior, mais poderoso, que
portanto pode exercer o domínio, o controle e a manipulação, o que inclusive remete
e se assemelha à conduta de seu pai; talvez por isso tenha se mantido na relação,
pois era uma dinâmica já conhecida, representada internamente e que reflete
também quando diz que “aquilo machucava e eu fingia que não”, retratando que os
71
formatos da relação e o jeito que ele a tratava não a agradavam, e mesmo assim
não eram um determinante para que escolhesse se afastar.
Da mesma forma, enunciar que “não ficaria com um cara desses, mas acho
que eu queria sentir que ele quisesse, pra eu poder falar que não queria”, fala sobre
a importância do se sentir desejada para ela. Angélica conta que se sentiu insegura
na maior parte da sua vida, principalmente quando se tratava de relações amorosas,
e que o seu principal medo era de ser deixada.
“E algum medo tinha?” “Nossa, pergunta difícil; acho que talvez de ser
deixada né. Talvez de quando eu estava gostando, que a pessoa não quisesse mais,
deixasse de gostar de mim.”
“Eu saía, ficava, e eu não tinha segurança; eu achava que a pessoa não
queria ficar comigo, que eu não era capaz de segurar alguém, entendeu? Eu não
tinha essa confiança.”
“Mas acho que foi minha grande paixão, não, foi uma paixão e que eu acho
que foi correspondida né, diferente do primeiro da praia que não era.”
Falando do menino da praia, que não retribuía o que ela sentia por ele,
também está falando do chefe, por mais que tenha negado enquanto estava na
relação que existissem sentimentos por parte dela. A própria negação pode ser
também uma forma de defesa para não se sentir da mesma forma quando tinha 13
anos, então se não admite e não assume para si que gosta, não tem problema o
outro não gostar. Novamente, a temática do ser desejada e o quanto a falta de
reciprocidade a machuca.
Por fim, Angélica conta que sempre se envolveu muito rápido nas relações,
mas também, quando não davam certo, superava muito rápido.
“Eu sempre fui de me jogar nas coisas, então não deu certo, ok vou tentar de
novo. Eu nunca sofri muito tempo, não sei se isso era uma fuga ou se eu não amava
mesmo.” (...) “Não vou cortar pulso, ficar em casa sofrendo. Punha minha melhor
roupa e saía. O que também não é muito bom né, porque eu nunca curti fossa, lambi
ferida, o que é muito importante, hoje eu sei disso.” “Você acha então que você
evitava mesmo sofrer?” “Eu acho; porque do jeito que eu me jogava, eu saía.”
73
“Eu acho que eu criei essa expectativa que hoje eu acho que, até pela
posição da mulher, não existe mais isso, existe estar junto porque está gostoso, se
74
não está gostoso, tchau. Não tem porquê a mulher hoje ficar com uma pessoa que
não agrega.”
conhecê-lo a muito tempo e dizer, ainda, que com uma maior maturidade passou a
confiar mais nela mesma. Porém, antes de se casarem, Luciano teve um AVC que
deixou graves sequelas, prejudicando sua mobilidade do lado esquerdo do corpo.
“Mas, a partir do momento que ele teve o AVC, eu passei a cuidar dele, e eu
achei que fosse ser uma coisa momentânea, que ele fosse melhorar, não que ele
fosse ficar 100%, mas a coisa tomou uma proporção que eu passei a só cuidar.
Então eu cuidava do meu marido e da minha filha. E aí acabou a troca que a gente
tinha (...) eu só cuidava, eu não era cuidada; e independente dele ter tido o AVC ou
não, eu acho que eu criei expectativas de relacionamento que não existe.”
“Eu tinha a expectativa que eu fosse ser cuidada, que eu fosse ser bajulada
como minha mãe era.”
Ela queria ser cuidada como a mãe era cuidada pelo pai, mas a partir do
momento em que o marido teve o AVC, ela teve que ser a principal cuidadora da
casa, se ver na posição que sua mãe estava, e com isso também um desencanto.
Ao mesmo tempo que queria um amor próximo ao que seus pais tinham, não queria
estar na posição de cuidadora que sua mãe estava. Além disso, o "cuidado" que o
pai tinha com a mãe, de “ser bajulada”, tem tudo a ver com ser provida, o que foi
analisado anteriormente.
“E, no final, depois dos 13 anos que estávamos juntos, não tinha mais
diálogo, troca, talvez eu por estar de saco cheio de cuidar, as pessoas mudam, eu já
não fazia com prazer, talvez eu tenha começado a ficar estúpida. Não sei, só sei que
ele ficou mudo, eu falava ‘você conversa mais com a vizinha do que comigo, não é
possível’. Ter que falar sozinha, não ter ninguém pra trocar, pra que eu vou aguentar
isso? Melhor estar sozinha e saber que eu tô sozinha do que ser viúva de marido
vivo.” “E foi uma decisão mútua?” “Foi; chegou uma hora que a gente brigava tanto
que eu falei que era melhor a gente se separar antes que a gente se odiasse, e ele
disse ‘você tem toda a razão, e agora quem não quer mais sou eu’.” “E vocês têm
uma boa relação hoje?” “Muito. Eu amo muito o Luís, mas como meu irmão; é uma
pessoa que eu faria tudo, qualquer coisa que ele precisar eu vou estar aqui, e é
como pessoa, nem como pai dos meus filhos. Um cara sensacional, um ótimo
coração, do bem mesmo. Mas como pessoa, não como homem-mulher.”
● Impressões gerais
Marcos foi, da mesma forma, um participante muito solícito e disposto a
realizar a entrevista. Por outro lado, foi o único participante que solicitou que a
entrevista fosse remota, e foi pouco flexível nas possibilidades de agendamento.
Algo bastante observado foi a sua facilidade em se comunicar, fazendo falas longas
e por vezes desviando os assuntos, abrangendo até mesmo outros temas variados
sem relação com a proposta. Sua linguagem, no geral, é mais formal comparada aos
outros participantes, muito provavelmente pelo fato de Marcos ser um psicólogo e
utilizar-se de termos da área. Quando falava da sua família de origem, fazia falas um
pouco mais sucintas e tendia a minimizar circunstâncias negativas que aconteceram
em seu passado, em relação aos pais principalmente; desta forma, focou-se muito
em levantar e frisar partes positivas de sua história e também sobre a elaboração e
“superação”, em certo sentido, dos acontecimentos negativos a partir da terapia.
Também foi possível observar uma certa indiferença ou mesmo desprezo com
relação às demais experiências amorosas que não a atual, mesmo que o
relacionamento em si tenha sido saudável e proveitoso, de forma a sempre
evidenciar os lados ruins das histórias. Ao final, Marcos se desligou com pressa da
entrevista devido ao horário e à rotina de sono de sua filha.
Sempre reforça o quão saudável foi sua infância, também no que parece ser
uma tentativa de generalizar as experiências positivas sobre as negativas, como dito
nas impressões gerais e exemplificado a seguir, quando conta sobre a parte de
cuidado afetivo:
“Meus pais sempre tiveram uma conduta muito ética e moral diante das
coisas da vida né, isso até trouxe um pouco de rigidez na minha forma de pensar e
agir durante muitos anos… (...) Mas o que eu quero te dizer é que meus pais ficaram
muito naquilo que tinha que ser feito, agora afetivamente, até pela história de vida
dos pais deles, meus avós, não tinha muito essa troca afetiva mais declarada, de
abraço, beijo, falar te amo, essa coisa toda... então isso impactou de alguma forma
tanto a mim quanto a minha irmã, isso eu tenho certeza né. Mas agora a gente
ressignificou isso substancialmente…”
Fala, inclusive, que até hoje sua mãe tem essa dificuldade, por mais que
tenha melhorado um pouco, se sentindo até incomodada quando Marcos fala que a
ama, por exemplo. Assim, existe um fenômeno em sua família que diz respeito à
dificuldade de demonstrar e receber afeto, desde os seus avós; ele reconhece e fala
sobre a transmissão geracional dessa conduta, que inclusive parece se estender por
toda a família pois, em outro momento, comenta sobre um primo que também fica
desconfortável diante demonstrações de afeto.
“Acho que é uma coisa transgeracional, que vem de geração pra geração (...)
porque sai de uma geração, faltou isso, então não tem como você exigir que meus
pais tivessem essa conduta mais afetiva porque eles não tiveram esse ensinamento
nesse sentido. Um exemplo bem nítido, minha avó quando eu era moleque, ela
virava o rosto quando você ia dar um beijo nela.”
“Mas a gente tentou remodelar isso daí, um upgrade de geração, eu sou pai
né, eu consegui me tornar um pai mais afetuoso, carinhoso, com a minha esposa
também, meus amigos... transferir e receber afeto de uma maneira mais... mas na
infância faltou, isso é fato. E essa exigência de desempenho, minha mãe sempre foi
muito ligada a essa questão de desempenho 'você tem que ser um bom aluno, tem
que dar o seu melhor, tem que tirar boas notas’ e eu sempre fui um cara de jogar
bola né, me divertir, eu ia pro colégio basicamente pra jogar bola e interagir com
meus amigos, minha irmã não, sempre foi certinha, estudiosa, só tirava 9 e 10, e eu
era o cara da recuperação.”
e minimizar a autoridade imposta pela mãe, dizendo que não era autoritária (mesmo
depois de tê-la caracterizado desse jeito), comparando o comportamento dela
quando se tratavam de estudos/regras da casa e quando o deixava brincar
livremente na rua do condomínio.
Sua adolescência também foi uma fase bastante conflituosa, em que Marcos
conta ter se sentido bastante perdido, tendo passado por muitos períodos de
mudanças e adaptações difíceis. Nesse momento, fala sobre a relação entre os pais:
seu pai era diferente de sua mãe e era colocado em uma posição mais baixa,
hierarquicamente falando.
81
Teve que mudar de escola, deixar para trás os amigos de quem gostava tanto.
Além disso, na nova casa do pai, este conheceu outra mulher e ela, segundo
Marcos, era muito parecida com sua mãe. Era algo que o incomodava, pois não
acreditava que seu pai havia saído de um relacionamento para se colocar em outro
em que havia a mesma dinâmica de ser controlado e obedecer as decisões da
companheira. Desse modo, o participante fica apenas três meses morando com o
pai e não aguenta, volta para São Paulo; diz que sentia muita saudade dos amigos e
da escola, e por isso quis voltar.
Marcos também relata ter passado por outra mudança de colégio, antes
dessa separação, mas dessa vez porque seus pais não tinham mais condições
financeiras de arcar com os custos da escola que ele gostava muito e estudava
82
desde o maternal. Com isso, muda-se para outra escola que também à qual não
consegue se adaptar;
Ele lida, assim, com muita dificuldade as fases de mudança e transição, tendo
que sustentar as instabilidades, surgimento de inseguranças e até mesmo a vivência
de lutos, devido às perdas envolvidas; tudo isso em meio à adolescência, época em
que já ocorre a necessidade construir sua identidade por meio dos encontros fora do
núcleo familiar e a revisão dos valores provindos deste (CRITTENDEN, 2002),
movimento complexo e que exige uma segurança e acolhimento em seu entorno.
No final desse trecho, Marcos parece admitir que seus pais não tinham muitos
recursos para lidar com as demandas que ele trazia; em outro momento da
entrevista, diz que sua mãe até reconhecia algumas dessas necessidades, mas não
conseguia acolhê-lo.
Depois que se formou na escola, passou por um longo período até descobrir o
que gostaria de fazer na faculdade. Passou por variados cursos e não gostava de
nenhum, falando sempre dessa sensação de “estar perdido”;
“Então meu pai falou ‘chega’ e eu fui fazer orientação vocacional. Eu acho
que eu precisava mais de terapia naquela época do que qualquer outra coisa - risos.
Hoje eu vejo que eu estava precisando entender o que estava acontecendo comigo.”
poder construir sua própria identidade, visto que escolher uma futura profissão não é
só escolher o que fazer, mas também quem ser e qual espaço ocupar no mundo.
Por último, Marcos conta que sempre teve um vínculo muito forte com a irmã,
sempre brincaram juntos na infância e estenderam essa relação de modo que se
tornaram grandes amigos no futuro.
“A gente era muito unido, continua sendo bastante unido, sempre tive até
minha irmã como uma referência de afeto, porque a gente se conectou de uma
forma mais afetiva, às vezes eu chamo minha irmã de mãe, cometo esse ato falho. E
às vezes minha mãe chamo de irmã…”
o que é muito representativo. Ele recorria mais à irmã para ser ouvido e apresentar
suas demandas, até sobre a própria mãe, mas também sobre questões variadas
como o que acontecia com ele na escola.
“Depois, na adolescência, eu tinha ela mais como uma figura de mãe, até o
papel que minha mãe nunca soube cumprir de saber ouvir, escutar minhas
demandas, até minhas principais demandas vinham da minha mãe, ela não me
entendia…”
Então, Marcos passa por uma história marcada pela falta de afeto, por um
ambiente não muito propício a lidar com as questões emocionais que surgem ao
longo do desenvolvimento, e com isso tem dificuldades de conquistar uma
autonomia e independência (que se apresentam a partir da adolescência e sua
sensação de estar perdido), de modo que isso se estende até o fato de ter saído da
casa de seus pais apenas com 36 anos de idade, insinuando uma forte dependência
emocional em relação aos cuidadores e uma relação em que parece também ser
cômodo para eles manter o filho em casa, com um maior controle e acesso sobre o
decorrer de sua vida. Porém, como sempre, não aprofunda essa questão, e diz
apenas que foi expulso de casa pois marcou um paciente na hora em que sua mãe
estava limpando a casa, e isso a deixou muito brava; parece ter havido, desse modo,
uma indiscriminação entre o espaço profissional e o doméstico, parental, algo que
talvez diga respeito à confusão entre a identidade e autonomia de Marcos, e o
quanto isso ainda estava estritamente ligado ao ambiente familiar.
● Experiências amorosas
A primeira experiência de Marcos foi quando tinha 18 anos: teve uma primeira
namorada com quem perdeu sua virgindade e conheceu no antigo bate papo da Uol.
No início, conversavam por telefone e depois marcaram de se encontrar; namoraram
por três meses, aproximadamente, e o fim foi bastante nebuloso e não esclarecido.
Ela teria dito que iria viajar nas férias, e nisso Marcos decide ligar para ver como ela
está, e descobre que não foi viajar e que está na casa de um tio. Diz que não foi
viajar por causa do chefe do trabalho, e depois fala que tem outro namorado; várias
justificativas vão se sobrepondo e deixando Marcos confuso. Ele fica muito bravo
quando ela conta ter outra relação, e sua primeira atitude é pedir o telefone do
85
suposto namorado para falar com ele. Ou seja, mesmo ela aparentemente mentindo
para ele, o que mais o preocupa e chama atenção é a existência desse outro
homem, então desloca o conflito para isso, ao invés de se entender e resolver com
ela.
Marcos conta também que era “pegajoso” com ela, o que possivelmente fez
com que ela quisesse romper desta maneira, e fala sobre ela provocá-lo e não
passar confiança:
“Ficamos acho que uns três meses, quatro, eu enchi o saco dela também, era
muito pegajoso, inseguro né, já trabalhei bastante essa coisa do abandono mas
acho que por isso ela me deu um tchau.”
“Não sei se era pegajoso, foi a minha primeira experiência sexual né? Não sei
se era curiosidade, e ela me provocava muito, fingia que não podia transar comigo
porque tinha não sei o que na casa, morava com o tio, depois me ligava falava que
ele não tava lá mas também não deixava eu ir... era uma coisa que ela me instigava
e eu caía nos joguinhos dela. Eu falei que era pegajoso mas não sei se era mesmo,
eu era inseguro talvez, na relação com ela, porque ela não passava muita confiança,
tanto que esse final foi esse desfecho sem pé nem cabeça.”
É possível ver como com essa primeira moça, elabora o fim de uma maneira
a depositar nela a culpa de não ter dado certo, dizendo que ela provocava, não dava
confiança, jogava com ele. Por mais que isso fosse verdade, não era o que
ocasionava o fato dele ser inseguro na relação, pois essa é uma postura que foi
construída anteriormente em seu desenvolvimento. Mais adiante, Marcos conta
como lidou com esse término:
“Depois dessa ligação não teve mais nada, ficou uma coisa meio mal
entendida, gerou um mal estar pra caramba comigo, e eu caí na vida... repeti um
padrão do meu pai, meu pai sempre se relacionou com garota de programa, e eu
falei ‘dane-se, eu vou fazer isso’. Fiquei nisso por uns 3 anos só me relacionando
casualmente com as pessoas.”
medida que estes não se sentem confortáveis para aproximar-se muito dos outros,
não confiam plenamente nas pessoas e não se permitem estar em relações de
compromisso (HAZAN e SHAVER, 1987).
“Comecei a curtir mais com meus amigos, compartilhava isso, mas eu sempre
fiquei tentando achar um relacionamento afetivo, nunca tinha engatado nada,
namorei 3 vezes só na minha vida, o resto foi experiência sexual sem muita
relevância.”
“Antes eu acho que eu era muito inseguro, por essa questão que eu já
elaborei, com relação ao abandono lá na infância (...) e minha mãe sabia disso sobre
mim, ela conseguia identificar demandas minhas mas não conseguia acolher. Isso
acabou sendo uma ferida emocional que eu consegui elaborar hoje, eu comigo
mesmo, e não que isso me gerasse uma dependência, nunca fui dependente, mas
me sentia muito vulnerável diante das relações, a coisa da insegurança.”
relacionamento, de modo muito breve e sucinto, como se tivesse sigo uma relação
passageira e pouco importante em sua vida, também logo em seguida falando de
sua atual esposa:
“A gente chegou a casar, morar junto, e é isso. Foi legal, eu acho, foi um dos
mais longos. Agora é o mais longo né, casado com a Camila, são 4 anos também.”
Parece ter um certo receio de falar sobre essa relação, talvez por se sentir
desrespeitando a atual mulher. E esta é uma característica que permeia o decorrer
inteiro de seu relato sobre suas relações afetivas, sempre comparando e deixando
sobressair seu atual casamento.
Aqui, Marcos traz sobre sua tendência de se envolver com mulheres como
sua mãe, que se impõe, e ele se vê no lugar do pai. É interessante como ele não
admite sua carência emocional, e como ele acaba procurando o afeto em figuras
mais agressivas, impositivas e que representam para ele o que lhe é conhecido.
Também, ao mesmo tempo que procura isso e se encontra com essas pessoas, não
gosta dessa característica ou personalidade nas mulheres com quem que se
relaciona (como diz em vários momentos da entrevista).
Observa-se como ele introjeta o modelo de relação dos pais, mesmo não
gostando desde a sua infância, quando se incomodava bastante com tal modelo.
Também existe a insegurança afetiva, de terminar e voltar várias vezes, algo
também presente no casamento de seus pais. Diz sobre a dificuldade, de novo, em
se sentir vulnerável - não pode estar vulnerável pois assim se sente mais ameaçado
e inseguro ainda, sobretudo com a possibilidade da perda.
Além dessa repetição de padrão, em suas falas Marcos parece ser querer
estabelecer um padrão hierárquico em suas relações, querendo ser quem está por
cima; remete muito a postura da masculinidade hegemônica, justamente por querer
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Marcos não sabe ao certo porque terminaram, e ao longo de sua fala tenta
achar as justificativas. Traz, novamente, a temática do abandono, mais uma vez em
um movimento de colocar a causa de sua insegurança aqui, ignorando a falta de
afeto que permeia todo o resto de sua infância e juventude. Da mesma forma, de
novo fala que a mulher que o provocava, atingia propositalmente seu ponto fraco e
não era confiável, em uma tentativa de culpá-la por sua falta de segurança dentro da
relação. Também tenta justificar o fim com o fato dela não querer ter filhos (algo que
comenta em seguida), sendo que ele não tinha certeza se queria, contando que
pensava que não aconteceria com ele ou não seria “interessante”.
Fala que, em um dos momentos em que não estavam bem, chegou a trair
essa companheira. Diz se sentir muito mal e não conseguir, de fato, praticar a
atividade sexual com essa outra mulher; com isso, decide interromper e a manda
embora. Parece que estava se sentindo tão inseguro e ameaçado, talvez por uma
possibilidade de perda, ou mesmo uma enorme frustração por não estar dando
certo, que decide arriscar por outros caminhos que não resolver e entender o que
estava acontecendo, como já visto também com outros participantes desta pesquisa.
89
Nas idas e vindas dessa relação, conhece outra mulher; uma mulher mais
velha que lhe desperta o interesse e é recíproco:
“Tinha uma menina, menina não, mulher bem mais velha que eu, que podia
ter engatado; na época que tava solteiro cheguei a fazer uma sondagem com ela,
super legal, bacana, acho que teria dado samba com ela, mas sei lá hoje to muito
feliz com a minha esposa. Mas essa seria uma possibilidade, se eu e ela
estivéssemos solteiros, ela mesma falou isso pra mim e eu fiquei feliz de ouvir.”
“E não chegou a se envolver com ela?” “Não, saí duas, três vezes com ela,
era muito legal, cabeça aberta, mais saudável psicologicamente falando assim,
sabe? Mas eu tinha me estremecido com a namorada e fiz contato com ela... sei lá,
acho que acabei frustrando ela também porque ela tinha gostado de mim, e fica
nessas coisas de ciscar daqui e dali, voltava com a namorada e falava que não ia
dar com ela…”
Falando sobre esta outra mulher, com quem não chegou a desenvolver uma
relação, se refere a ela como “mais saudável psicologicamente falando”,
comparando com as outras mulheres de sua vida, como se todas elas fossem
loucas, manipuladoras, já que o provocavam e faziam jogos com suas inseguranças.
Essa postura e também o fato de sempre atribuir, em partes, a elas o fato das
relações não funcionarem (até mesmo como uma causa de sua própria insegurança)
refletem uma perspectiva um tanto quanto machista, que tende sempre a visualizar
mulheres como loucas e perversas em relacionamentos afetivos frustrados.
90
passaram em suas vidas pessoais, pois da mesma forma que Angélica, Marcos só
coloca a possibilidade e a concretude de ter filhos a partir do momento em que
passam pelas crises da relação e se estabilizam, têm a certeza do que querem ali,
levando a pensar o quanto esse tipo de consciência e reflexão acaba se tornando,
de certa forma, um privilégio.
Tal privilégio está, dessa forma, na contramão do que acontece muitas vezes
e acaba causando arrependimento e/ou conjunturas desfavoráveis como um todo
para a família: ter filhos pelo impulso do desejo, pela paixão e intensidade do início
das relações, pelos sonhos em comum, ou também pela via do acidente, de algo
que não foi planejado mas também não foi prevenido.
Marcos continua:
“Tá legal, mais saudável, mais maduro, um respeitando o outro, ela tem essa
tendência também de querer mandar um pouco mas é o perfil dela, mas eu não
entro mais na pilha dela.”
Mais uma vez, uma mulher que ele considera “mandona”, característica esta
que não o agrada, apesar de repetidas vezes se envolver com mulheres que se
encaixam neste padrão. É de se pensar se a questão principal é o fato dessas
mulheres se assemelharem à mãe dele, no sentido de serem mais controladoras e
se colocarem à frente das decisões do lar, ou se apenas mulheres que se impõem e
são mais firmes, obstinadas em suas maneiras de se colocar já são o suficiente para
incomodá-lo e ser um motivo de conflitos. Existe uma linha tênue, e que na verdade
se mescla, entre o que é constitutivo de sua história de vida, com relação à
introjeção do modo de se relacionar de seus pais, inclusive se colocando na posição
de seu pai - e não gostando disso - e do que é condizente com uma postura mais
sexista e referente à necessidade de se utilizar dos papéis de gênero desiguais
dentro de uma rela, como na masculinidade hegemônica (CONNELL, 1995).
Ao final, Marcos fala mais sobre como se vê diante das relações afetivas,
incluindo o momento presente com sua esposa; diz que tem facilidade em se
expressar e normalmente reflete e elabora suas ideias antes de comunicar o que
pensa ou quer, dessa forma evitando confrontos. Sobre ser dependente ou não
dessas pessoas e relações, responde:
92
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o objetivo geral do trabalho como compreender como as
pessoas constroem e atualizam seus modos de se relacionar intimamente,
considerando dialeticamente os seus contextos e a estrutura social, foram
constatados resultados coerentes com a base teórica da pesquisa; foi possível
observar as relações existentes entre os vínculos afetivos construídos na infância e
após, na vida adulta, de maneira que os da infância (assim como a própria relação
entre os cuidadores e o restante do ambiente familiar) de fato serviram como base
para a formatação de novas relações.
Tendo como norteador as determinações sociais e especificidades de cada
uma das histórias dos participantes, observa-se que algumas formatações e
maneiras de se relacionar puderam ter a chance de serem revistas e transformadas,
sob a perspectiva de que a reflexão autocrítica e a possibilidade de encarar as
histórias, inclusive por meio da psicoterapia, podem ser um privilégio; de maneira
mais explícita, Angélica e Marcos colocam as associações com as experiências da
infância e o que viveram com suas famílias com a maneira como buscam
companheiros(as) e que se percebem nas relações. Porém, com Irina e Valmir, isso
não se dá da mesma forma e inclusive ambos apresentam menos conexões entre
essas duas épocas, e portanto as apresentam mais separadamente em suas
especificidades.
Da mesma forma, os relatos de Valmir e Irina se cruzam e se assemelham de
outras formas, que dizem respeito ao recorte de raça e de classe, como na maneira
como evitam se expressar e se colocar para os outros, principalmente em suas
relações amorosas atuais com seus companheiros. Algo interessante que também
surge é o fato de Marcos e Angélica, ao se perceberem em relações, mais
especificamente nos casamentos em que não estavam felizes, puderam tomar a
atitude de sair destes, demonstrando uma maior liberdade e autonomia sobre as
decisões acerca da própria vida; diferentemente de Irina e Valmir, que expõem
muitas insatisfações no matrimônio em que vivem (e desde muito tempo,
aparentemente), e mesmo assim não conseguem, com a mesma facilidade, assumir
posturas mais radicais e transformadoras.
Sob o recorte de gênero, Angélica e Irina têm em suas narrativas a temática
do cuidado e da responsabilidade afetiva sobre a família aparecendo bastante,
mesmo que Valmir e Marcos não sejam pais ausentes ou negligentes com seus
94
filhos. Assim, é possível também entender como estar em relações conjugais com a
presença de filhos, reforçando o papel desigual de gênero acerca da
responsabilidade de cuidar dos integrantes da família, é algo que recai sobre e
pressiona mais as mulheres do que os homens, influenciando a permanência na
relação e sobretudo a saúde mental dessas mães e esposas.
Importante mencionar, no entanto, que a identificação dos estilos de apego
que os sujeitos desenvolveram e atualizaram (ou não) ao longo do ciclo vital, como
previsto nos objetivos específicos, não foi algo fácil de ser discernido. Muito
possivelmente pelo fato de que se trata de um conceito complexo e que exige um
maior conhecimento acerca da história pessoal dos sujeitos, e que portanto não
pode ser definido a partir, somente, de um encontro de uma hora de duração. Assim,
foram levantadas hipóteses e sugestões sobre os estilos de apego, de acordo com
os conteúdos trazidos pelos próprios participantes, mas que de forma alguma podem
ser confirmados de maneira absoluta.
A respeito das entrevistas, a diferença entre as que foram realizadas
presencialmente e a de Marcos, que foi em modo remoto, foi algo importante para a
forma como a conversa e o encontro como um todo se deu; o encontro presencial,
em um espaço isolado e seguro, implica em um maior foco e impede que
adversidades do modelo remoto aconteçam e atrapalhem as linhas de raciocínio,
como por exemplo a interrupção por algum elemento do ambiente ou mesmo pela
própria internet, o que por vezes culmina em falhas na comunicação. Outra diferença
é a maneira como o contato se dá, visto que todas as entrevistas presenciais
aconteceram de forma a se perceber um ambiente mais favorável, de maior
intimidade e conforto para os participantes compartilharem suas narrativas
autobiográficas; já a entrevista online foi a mais rápida e que se assemelhou mais a
um modelo mais rígido e menos espontâneo de entrevista.
Cabe pontuar o processo da pesquisa qualitativa e as percepções que foram
possíveis a partir da realização desta; trata-se de um processo que é construído
conjuntamente, de forma que, à medida que a pesquisa toma forma, é transformada
e adaptada pelas contribuições dos participantes, das reuniões com a orientadora do
trabalho, de novos materiais vistos e novas ideias que surgem no decorrer do tempo,
não sendo algo fixo e totalmente planejado antecipadamente. Além disso,
compreende-se, aqui, que o modelo de pesquisa acadêmica formal e rígido, assim
como as normas e regras que circunscrevem tal produção, muitas vezes acabam por
95
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOWLBY, J. Apego e perda: Separação. São Paulo: Martins Fontes, vol. 2., 1984.
BUTLER, J. (1999). Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (pp.
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FEIDER, O.; GOLBY, B.; POSADA, G. Discriminant validity of the adult attachment
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DAVILA, J.; BURGE, D.; HAMMEN, C. Why does attachment style change? Journal
of Personality and Social Psychology, vol. 73, nº 4, pp. 826-838, 1997.
DENZIN, N.K.; LINCOLN, Y.S. Introduccion entering the field of qualitative research.
In: DENZIN. Norman K., Yvonna S.(Org.) Handbook of qualitative research (pp.
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LEVINSON, D. J. The seasons of a man’s life. New York: Ballantine Books, 1978
NEAL, A. Relações destrutivas: Se ele é tão bom assim, por que me sinto tão
mal? Tradução de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo : Editora Gente, 2018.
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Acesso em: 21 mai. 2022.
SOUSA, P.A; ROSA, M.A. Os motivos que mantêm as mulheres vítimas de violência
no relacionamento violento. Revista de Ciências Humanas, n. 40, p. 509-527,
2006.
1. Idade:
2. Gênero:
( ) Feminino
( ) Masculino
( ) Outro:
3. Orientação sexual:
( ) Heterossexual
( ) Homossexual
( ) Bissexual/Pansexual
4. Religião:
5. Raça autodeclarada:
( ) Branco (a)
( ) Pardo (a)
( ) Negro (a)
( ) Indígena
( ) Amarelo (a)
( ) Outra:
6. Ocupação:
( ) Desempregado(a)
( ) Estudante
7. Profissão:
8. Estado civil:
107
( ) Solteiro(a)
( ) Casado(a)
( ) Viúvo(a)
( ) Divorciado(a)
( ) Moro sozinho(a)
( ) Uma a três
( ) Quatro a sete
( ) Oito a dez
( ) Mais de dez
( ) Própria
( ) Alugada
( ) Cedida
( ) Ensino Superior
( ) Especialização/Mestrado/Doutorado/Pós Graduação
( ) Não estudei
( ) Nenhuma renda
● Infância
○ Onde morava, escola, amizades;
○ Relação com os pais (ficava muito sozinho? tinha autonomia? já
apanhou? havia muitas brigas? como era a relação entre os pais?);
● Relações amorosas
○ Primeiras experiências;
○ Experiências mais marcantes (sendo atual ou não);
○ Como era? No início, meio e fim;
■ Essa pessoa te dava liberdade/encorajava/incentivava? e você
com ela?
■ Essa pessoa te deixava confiante e seguro, ou não?
■ Como era o diálogo?
■ Se envolveu rápido ou devagar na relação?
■ Relações com a família/amigos do companheiro e vice-versa;
■ Relação no cotidiano/dia a dia;
■ Havia algum tipo de controle/chantagem emocional/violência?