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Departamento de Psicologia

FAMÍLIAS ADOTIVAS CONTEMPORÂNEAS: MAPEANDO A


CONSTITUIÇÃO DA PARENTALIDADE E DEMANDA DE
PSICOTERAPIA DE FAMÍLIA
Aluna: Laura Souza Eletherio de Oliveira

Orientadora: Rebeca Nonato Machado

Introdução
Podemos conceber a organização da filiação por ter três eixos estruturais: biológico,
jurídico/cultural e o psíquico. Dada as inúmeras transformações sociais, sendo uma delas a
valorização dos laços familiares socioafetivos, a formação dos vínculos de filiação está cada
vez mais se afastando da valorização do eixo biológico [1]. Ressalta-se que um dos efeitos
dessas diferentes configurações familiares contemporâneas é gerar laços de parentesco em
cadeias genealógicas cada vez mais complexas, como por exemplo, as famílias formadas pela
adoção [2].
Essa modalidade de formação da família torna-se cada vez mais frequente, o que vem
permitindo a diminuição de estigmas desqualificadores e a ampliação de estudos que possam
mapear componentes mais promotores ou não da saúde desses vínculos. Especificamente, nesta
composição de sistema os laços parentesco adotivos estão separados do eixo biológico,
exigindo o fortalecimento dos elos nos campos psíquico e jurídico-cultural [3]. No Brasil, há
fundamental respaldo legal de irrevogabilidade desta filiação formando uma equidade de
direitos e deveres nos laços de parentesco, sejam por consanguinidade ou por adoção [4].
Sob essa perspectiva, encontramos na literatura a constatação da inexorável
complexidade de elementos que estruturam os vínculos parento-filiais na adoção [5].
Observamos que um contínuo trabalho psíquico em torno da manutenção dos vínculos é
fundamental, o qual consiste no processo de elaboração das inquietações e fantasias, por meio
do aparelho psíquico familiar, a fim de simbolizá-las e transformá-las [6]. Quando esse aparelho
falha nas funções destacadas pode surgir o adoecimento dos vínculos, e consequentemente, o
sistema pode desenvolver uma dinâmica psicopatológica, que deve ser compreendida a partir
da construção de complexa rede de interações. Nestes casos, a psicoterapia familiar ocupada a
função desse aparelho mental intersubjetivo capaz de revelar as particularidades de
perturbações emocionais. A psicoterapia familiar acaba sendo um dispositivo responsável por
permitir um espaço de expressão e compreensão das dinâmicas intersubjetivas implícita [7]. É
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possível afirmar que esse espaço viabiliza a necessidade do ser humano em se comunicar para
conhecer ou reconhecer partes dos mistérios que permeiam suas vidas [8].
É raro encontrar famílias com filhos adotivos que não buscam psicoterapia, geralmente
sendo encaminhadas para psicólogos quando estão em crise, pois muitas vezes o casal parental
vivencia múltiplos dilemas frente a adoção, experimentando tais situações com emoções
intermináveis, como se estivessem em uma montanha russa, tendo momentos de grandes
alegrias e, também momentos de grandes tristezas. Essas famílias demandam maior rede de
apoio da comunidade e da sensibilidade dos profissionais [9].
Tal demanda se apresenta não porque os pais adotivos se arrependeram da adoção, mas
sim por encontrarem dificuldades em entrar em contato com sentimentos dolorosos durante a
manutenção do vínculo com seus filhos que tiveram suas vidas marcadas por perdas,
separações, as vezes traumas e dores antes de serem inseridos na família atual. A psicoterapia
familiar apresenta grande relevância nesse contexto ao trabalhar a transformação dessas
experiências e sentimentos em algo de grande valia para toda a família [9].
Atualmente, tais questões mencionadas ganharam maior destaque nas mídias e em
estudos recentes, mas isso não torna o processo menos doloroso para o grupo familiar. Muitas
vezes os pais se apegam à busca desesperada por soluções para que possam compreender o
sintoma apresentado pelos filhos. A procura por diagnósticos ou qualquer explicação plausível
oferece alívio aos pais e recursos psíquicos para não se sentirem impotentes frente ao problema.
Contudo, a incansável tentativa e esperança em resolver esses infortúnios os levam a decepção
e frustração [9]. Diante do exposto, podemos inferir a relevância da psicoterapia como
dispositivo de ajuda para as famílias adotivas.
Uma das grandes fontes de sofrimento no contexto da filiação adotiva são as perdas e
mistérios vivenciados pela criança na sua família de origem repercutindo de forma variada em
sua identidade e senso de pertencimento, mobilizando dilemas de caráter existencial que
envolvem questionamentos sobre quem eu sou, de onde eu vim e a que grupo eu pertenço [9].
Tais dilemas requerem uma capacidade mental dos pais de intenso contato emocional com a
criança, de modo que possam constantemente perceber suas angústias para assim simbolizá-las,
ajudando-a a construir e reconstruir sua história.
O filho adotivo ao longo do seu desenvolvimento apresenta interesse em saber sobre as
suas origens, este desejo e curiosidade estão inseridos no duelo da construção da sua própria
identidade [9]. Consideramos que as ansiedades referentes ao enigma da própria existência
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provocam ressonâncias no grupo familiar, convocando todos os membros a se pensarem e se


reconhecerem como um grupo de histórico comum [8]. A ressonância como um fenômeno de
comunicação inconsciente entre os indivíduos promove uma onda de compartilhamento de
emoções [10].
Destaca-se que uma das particularidades na experiência da parentalidade adotiva é a
necessidade de assumir sempre os efeitos de uma história no psiquismo do adotado, da qual não
participaram e não têm responsabilidade [9]. Pertence à parentalidade assumir o impacto da
história pré-adotiva, oferecendo sentido e articulação da “cultura estrangeira de origem” do
filho à cultura familiar adotiva [1].
A família ao viabilizar espaços de conversa sobre as origens da adoção, durante o
desenvolvimento dos filhos, mantém ativa a função transformadora. Constata-se que, para o
filho adotivo construir sua identidade, além de ser fundamental o sistema familiar legitimar seu
lugar na cadeia geracional, também é estruturante a narratividade histórica ativa, especialmente
fundamentada na contínua vivência de experiências emocionais familiares compartilhadas [11].
Quando a família se organiza sob o modelo de que toda filiação se estrutura pelo ato de
envolver-se efetivamente, maior será a capacidade de consolidar a adoção em uma concepção
de “filiação incondicional” [12]. O dispositivo clínico permite a escuta do sistema quando seus
laços encontram-se vulneráveis [8]. A psicoterapia familiar, por exemplo, proporciona a
elaboração do romance familiar construído, desimbrincando processos intersubjetivos
promotores de perturbações nas relações e nos sujeitos envolvidos [6]. Assim, é possível
afirmar que o processo psicoterapêutico viabiliza um destrinchar as experiências
intrassubjetivas intersubjetivas [8]. Por isso, é extremamente relevante ampliar estudo sobre a
eficácia da psicoterapia com famílias adotivas e a potencialidade de trabalhar clinicamente tais
questões, em uma perspectiva sistêmica e psicanalítica.

Objetivos
O objetivo geral deste estudo foi investigar a constituição da parentalidade adotiva,
buscando mapear aspectos e processos psíquicos presentes na construção das funções parentais
e no desenvolvimento da interação familiar. Além disso, pretendeu-se analisar a demanda por
psicoterapia de família e sua relação com o exercício da parentalidade adotiva. A pesquisa foi
dividida em dois subestudos: 1) A constituição da parentalidade adotiva; e 2) A demanda de
psicoterapia de família e o exercício da parentalidade adotiva.
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São objetivos específicos do subestudo 1: a) mapear conceitualmente os processos


psíquicos envolvidos na estruturação da parentalidade adotiva; b) identificar os fatores
envolvidos na construção da parentalidade; c) identificar os aspectos atribuídos pelos pais às
funções parentais.

Em relação aos objetivos específicos da subestudos 2: a) investigar as queixas manifestas


e os motivos latentes contidos na demanda por psicoterapia de famílias adotivas; b) avaliar as
relações existentes entre a busca por psicoterapia de família e o exercício da parentalidade; c)
avaliar os principais conflitos presentes nestas famílias.

Metodologia
1) Subestudo 1 - A constituição da parentalidade adotiva

Para alcançar os objetivos propostos no subestudo 1, utilizamos o método qualitativo. A


amostra de conveniência foi constituída de 24 pais adotivos (14 mães e 10 pais), não casados
entre si, das camadas médias da população carioca, assim distribuídos: sujeitos casados,
separados, recasados, monoparentais heterossexuais e homossexuais, com filhos adotados há
no mínimo dois anos, tendo ou não realizado uma adoção registrada no sistema legal.
Foram realizadas entrevistas com roteiro semiestruturado, sendo gravadas em áudio e
posteriormente transcritas. O roteiro contemplou temas relevantes concernentes à organização
psíquica da parentalidade e à adoção, nos múltiplos arranjos familiares contemporâneos. Tais
temas foram delineados a partir da fundamentação teórica e de nossos estudos anteriores. A
ordem de emergência desses temas é determinada pelo próprio fluxo da entrevista. Quando,
espontaneamente, os sujeitos não abordam alguns deles, cabe ao entrevistador formular
perguntas a eles relacionadas. A versão final do “roteiro invisível” foi formulada após a
realização da pesquisa-piloto.
Posteriormente, foi realizada uma análise intersujeitos a partir da técnica categorial do
método de análise de conteúdo de Bardin [13], buscando a compreensão dos significados
manifestos e latentes do material narrado pelos participantes, com o objetivo de evidenciar as
significações que os entrevistados atribuíam aos fenômenos. Foram utilizadas duas técnicas
complementares pertencentes ao método da análise de conteúdo, com a finalidade de obter uma
profundidade interpretativa na exploração do material de comunicação. A primeira técnica é a
clássica categorial, por meio da qual são destacadas categorias temáticas, organizadas a partir
da frequência e da semelhança entre os elementos contidos no material coletado.
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Simultaneamente, o material também foi submetido à técnica de enunciação, que se


diferencia de outras técnicas porque se apoia na concepção da comunicação como um processo
e não como um dado, considerando a expressão dos conflitos, da ambivalência e do paradoxo
presentes no psiquismo do sujeito e expressos nas narrativas. A pesquisa foi aprovada pelo
Comitê de Ética por meio da Plataforma Brasil e todas as pessoas entrevistadas assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando a divulgação dos resultados em
ensino, pesquisa e publicação. Para manter o sigilo e preservar a identidade dos participantes,
detalhes da história familiar foram ocultados. Determinadas alterações foram realizadas, sem
comprometer as análises, a fim de que fosse mantido o compromisso ético da preservação dos
entrevistados e membros das famílias.

2) Subestudo 2 - A demanda de psicoterapia de família e o exercício da parentalidade


adotiva.

No Subprojeto 2, foi utilizada uma metodologia clínico, com base de estudo de caso único
[14], a fim de analisar o tratamento psicoterapêutico de uma família adotiva atendida
semanalmente no Serviço de Psicologia Aplicada da PUC-Rio entre os anos 2014 e 2018. A
análise intrínseca foi feita a partir dos 51 relatórios referentes a cada sessão de atendimento
realizada por dois coterapeutas. Houve uma leitura de todo material com discussões centradas
nas temáticas que se destacaram, dentre elas: as vivências da parentalidade e da filiação
adotivas, as manifestações da curiosidade sobre as origens, além dos principais conflitos
familiares.
Em relação às considerações éticas, no subestudo 2, a família adotiva atendida no SPA
da PUC-Rio assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, concordando com a
utilização dos dados clínicos para fins de ensino, pesquisa e publicação científica. Como
procedimento institucional do serviço, os coterapeutas na entrevista de plantão apresentam o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a todos os pacientes.
Durante o processo de apresentação e discussão dos resultados, houve a preocupação com
as identidades e determinados conteúdos históricos serem preservados. Portanto, alguns dados
foram ocultados ou substituídos preservando o anonimato da família, sem prejuízo à
fidedignidade do material clínico.
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Resultados finais
Apresentamos no relatório anterior os resultados do Subestudo 1, por isso, vamos expor
aqui os dados encontrados e a discussão realizada referente ao Subestudo 2. Primeiramente,
devemos destacar o quanto desenvolver um estudo de caso único é relevante para o meio
científico. De acordo com Stake (2010) [14], a genuína tarefa de um estudo de caso é a busca
pela particularização e aprofundamento de uma determinada questão, não sendo seu fim a marca
da generalização. Um caso específico é relevante pois permite olhar para um fenômeno
aprofundando-o, dando ênfase sua singularidade, um entendimento único e rigorosamente
esmiuçado.
Tomando como base o método elaborado pelo referido autor, limitamos a análise à tarefa
de entender o caso, observando temas específicos que emergiram durante o tratamento.
Seguimos a proposta de nos guiarmos inicialmente a leitura por eixos temáticos com base
teórica e conceitual, relacionados às questões básicas de pesquisa como adoção, vínculos,
parentalidade e filiação, para depois nos debruçarmos em tópicos relacionados à complexidade
e ao contexto do caso analisado.
Durante o desenvolvimento do subestudo 2 surgiram algumas dificuldades, pois como
haver apenas um único caso de psicoterapia familiar no contexto da adoção no Serviço de
Psicologia Aplicada (durante o período designado no cronograma). Contudo, diante dessa
dificuldade reconhecemos a oportunidade de aprofundar nossa experiência nesse método de
pesquisa de caso único. Outro desafio foi o vasto material clínico a ser analisado, portanto
contendo informações amplas da vida familiar, a discussão dos resultados exigia muito cuidado
na preservação da confidencialidade e do anonimato dos dados. Dada a preocupação com
caráter ético na leitura e discussão dos relatórios, foi necessário maior investimento na reflexão
e criação de procedimentos de leitura e análise dos registros clínicos, de modo que não houvesse
riscos de falhas éticas.
Sobre o caso, o perfil da família deve ser caracterizado como um grupo pertencente a
camada média da população brasileira, composta por três membros: a mãe de 55 anos, o pai de
56 anos e a filha adotiva de 9 anos de idade. O processo psicoterapêutico ocorreu em um ano e
meio, sendo realizado em coterapia no Serviço de Psicologia Aplicada e supervisionado
semanalmente durante todo o período de tratamento.
Conforme mencionado, houve a preocupação em manter o caráter sigiloso dos dados no
apresentação da discussão e, a partir disso, foi fundamental o aprofundamento teórico e técnico
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em uma literatura atualizada sobre a temática da confidencialidade na escrita de casos clínicos.


Dessa maneira, procuramos artigos e relatórios de Comitês de Sigilo para manter a apresentação
e discussão dos dados de maneira ética. Para o desenvolvimento da análise intrínseca dos dados
foram utilizados relatórios descritivos de cada sessão da psicoterapia de família, elaborados
pelos coterapeutas.
O material narrativo, totalizado em 51 relatórios, abarcava a sequência dos atendimentos,
focando as principais questões discutidas na sessão, a descrição das associações grupais
realizadas no setting e das principais intervenções psicoterapêuticas realizadas. Foi realizada
uma leitura de todo material com discussões dentro do grupo de pesquisa voltadas para as
temáticas de base e singulares que se destacaram no processo psicoterapêutico, dentre elas: as
vivências da parentalidade e da filiação adotivas, as manifestações da curiosidade sobre as
origens, além dos principais conflitos familiares. Em seguida, foram realizadas revisões dos
relatórios fazendo um recorte mais aprofundado de tais questões, refletindo-as e relacionando
os dados.
Uma das questões que mais se destacaram no processo psicoterapêutico dessa família
foram as dificuldades do casal parental na função de acolher o processo de curiosidade infantil
acerca das origens. Portanto, podemos pensar que havia uma dificuldade em exercer a função
transformadora e de construção de uma narrativa histórica, tendo como efeito a inibição da
curiosidade pelo conhecimento do novo e pelo ato de buscar informar-se, movimentos ligados
ao impulso epistemofílico [15].
O prazer associado à realização do impulso da busca pelo conhecimento, se sustenta nas
indagações sobre a história de origem, que fica ainda mais intensa no contexto da adoção.
Assim, quando há uma liberdade familiar para a atitude curiosa da criança, a mesma consegue
se permitir vivenciar tal impulso e se sentir capacitada para explorar seus questionamentos, sem
que se renda à culpa ou ao medo [15].
Essa curiosidade por saber as origens é condição indelével de toda filiação, porém na
adotiva apresenta uma característica específica de dupla face. Queremos dizer que
concomitantemente existem dois enigmas a serem decifrados, o primeiro diz respeito à
compreensão sobre por que da ausência da convivência familiar com os genitores, havendo o
questionamento: “Por que se separaram de mim”? Em paralelo, existe o segundo enigma em
torno da escolha dos pais adotivos pela adoção que permite à criança reconstruir uma íntima
relação afetiva parento-filial, mas que suscita a incógnita “Por que desejaram e escolheram a
mim”? [16]
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Alguns os filhos adotivos relatam suas experiências de se sentirem divididos entre a


família de origem e a família adotiva, apontando que a cada tomada de decisão são colocados
de um lado ou de outro. Cabe ressaltar a relevância de compreender que a separação dos pais
biológicos é sentida como uma perda fundamental, mesmo que esses pais apresentem
comportamentos nocivos à criança. Assim, não é possível exigir que o adotado seja grato a essa
separação [9]. Em relação aos pais adotivos, a autora aponta a dificuldade deles em exercerem
a função da parentalidade sem uma rede de apoio profissional, pois há um sentimento pregnante
de medo e ansiedade persecutória da família de origem do filho tirá-los de seus braços. Então,
torna-se notável a necessidade de ter um espaço adequado para expressar o medo de perder seu
filho para a família de origem [9].
Os fenômenos relacionados ao movimento da curiosidade sobre as origens podem
despertar ansiedade nos pais quando eles próprios vivenciam experiências conflitantes acerca
das próprias famílias de origem. A partir da análise do caso clínico, observamos que havia um
padrão de não reflexão sobre as origens, o qual enfraquecia a busca pelo conhecimento em nível
grupal [15]. Cabe mencionar que o impulso acerca das curiosidades da própria história impõe
uma disponibilidade interna da família para criar um espaço de pensar em conjunto e buscar o
reconhecimento uns dos outros. Contudo, quando ocorre a inibição deste pudemos perceber que
o desejo por falar sobre as origens torna-se ainda mais pungente, tomando um caráter repetitivo
e sintomático [15].
A queixa inicial da família centrava-se nas dificuldades escolares da filha adotiva. Ela
tinha baixo rendimento escolar e, por vezes, apanhava sem autorização objetos dos colegas de
classe. Inicialmente, os pais também ressaltaram a resistência da filha em acatar ordens, tanto
no contexto escolar quanto em casa, sendo definida como uma pessoa rígida pela mãe. Após
esse comentário, a filha automaticamente repetiu: “Sou rígida”. Quando questionada pelos
coterapeutas sobre o que isso significava, não sabia explicar. Ao ser estimulada a pensar,
respondeu que nem sempre obedecia a mãe, complementando que estava melhorando.
Concebemos que a família descrevia o processo da menina como uma tentativa para
singularizar-se e ao mesmo tempo estabelecer identificações com seus pais. Para criar a própria
identidade, respeitando sua alteridade, a filha precisava desacatar as ordens. Por outro lado,
identificava-se com os pais adotivos, mas para isso recorria ao mecanismo de ‘imitação’ sendo
a cópia do discurso dos pais para agradá-los e talvez assegurar a filiação. O processo de
identificação é elementar para a construção da identidade, sendo promovido via função de
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espelhamento nas relações humanas. Porém, se ocorre por meio de uma fantasia de
incorporação, não há espaço para a separação, para o desenvolvimento da mente própria [17].
À medida que o tratamento avançava, as brigas conjugais se intensificaram, levando a
ataques às origens de cada um sem qualquer tipo de inibição perante a filha. Argumentavam
que não se entendiam por serem de origens diferentes. Contaram que a família da mãe adotiva
era mais humilde, diferente da família do pai, que pertencia a um nível socioeconômico mais
alto. A relação conflituosa conjugal desencadeava um modelo relacional intolerante ao
reconhecimento da alteridade. As interações tanto em nível do mundo interno quanto externo
se configuravam em um modelo relacional indiferenciado e persecutório [18].
Verificamos por meio da análise do caso que um dos fatores dificultadores para os pais
atendidos estabelecerem conversas sobre a filiação adotiva com a filha envolvia conflitos e
segredos relacionados às suas próprias histórias familiares. Portanto, compreendeu-se que o
processo de elaboração dos enigmas relacionados à filiação adotiva estava relacionado à
qualidade conflitante da relação interna que os adotantes estabeleciam com suas próprias
origens. Percebemos que o tratamento no dispositivo de psicoterapia de família permitiu
observar entraves nos laços de parentesco, levando em consideração múltiplos elementos.
No processo psicoterapêutico da família, pudemos observar a necessidade de oferecer um
espaço que viabilizava mais do que a fala e a escuta, tornando-se a representação de permitir
entrar em contato com experiências emocionais difíceis de serem vividas. Dessa maneira, o
dispositivo clínico também se apresentou importante em auxiliar a família a suportar certo grau
de separação, sem que esta seja vivenciada como perda ou abandono.
Em paralelo, outro fator fundamental foi proporcionar a liberdade de expressão da pulsão
epistemofílica da criança, conforme apresentada anteriormente, permitindo ao grupo familiar
encarar sua realidade psíquica grupal. O processo psicoterapêutico possibilitou um
amadurecimento de recursos interpsíquicos, fomentando discussões e questionamentos que
permitiram o reconhecimento do sujeito como pertencente ao grupo.
Durante o tratamento clínico foi possível observar diversas questões relacionadas a
curiosidade sobre as origens. De maneira lúdica, a menina trouxe para uma das sessões um livro
infantil sobre o nascimento, o qual fora caracterizado por ela como um livro de muitas páginas.
Ao ler o livro para todos, a criança relatou que a personagem encontrou um bebê dentro da lata
de lixo; o que nos fez compreender a integração do seu mundo interno ao tentar encontrar sua
história e dar um novo sentido a ela, fortalecendo os laços de filiação. Ao expressar sua fantasia
de que também havia sido descartada como a personagem, ganhava espaço o processo de
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simbolização de seu nascimento nessa família, oferecendo novos recursos para transformações,
esperança e resiliência [19].
Como recurso para a questão das origens serem ainda mais aprofundadas, os coterapeutas
aplicaram o genograma, ampliando a narrativa sobre a história familiar. A partir do uso desse
instrumento, a família pôde contar e elaborar as mortes de recém-nascidos vivenciadas por três
gerações: nessa família e no grupo familiar de origem do casal. Assim, em uma cumplicidade
inédita do subsistema conjugal, puderam relatar a experiência da morte de um filho deles que
antecedera a chegada da filha adotiva.
Cabe ainda ressaltar outra experiência transformadora que aconteceu durante o processo
psicoterapêutico, quando a família se deparou com uma caixa de brinquedos e a mãe questionou
se era para eles, logo sendo interrompida pela menina que disparou “Tira o olho, é meu!”. Nesse
sentido, inferimos que tal fala marcava o seu espaço pessoal e se diferenciava dos demais
membros, tornando-se capaz de se apropriar dos conteúdos externos e representar seus
conteúdos internos.
Por fim, devemos sublinhar que este relatório finaliza o subestudo 2, e consequentemente
a investigação mais ampla. Fazendo uma reflexão geral sobre tudo que foi investigado,
entendemos que na filiação adotiva é fundamental identificar as manifestações da pulsão
epistemofílica ao longo de todo o desenvolvimento vital, se tornando ainda mais pungente no
contexto familiar que impede tais atitudes.
A noção das características singulares da adoção de uma única criança, tendo como base
a análise intrínseca de estudo de caso e a discussão dos resultados encontrados, fomentou
discussões de grande valia que levaram à elaboração de um novo projeto de pesquisa, intitulado
“Parentalidade na adoção conjunta de irmãos: constituição dos vínculos familiares”. O referido
projeto tem como objetivo geral investigar crenças e expectativas relacionadas à parentalidade
e à formação dos vínculos familiares na adoção conjunta de irmãos, no momento anterior à
chegada das crianças e após a inserção do grupo fraterno no contexto familiar.
Entendemos que o novo estudo apresenta grande relevância ao buscar ao compreender a
ampliação da complexidade por adotar mais de uma criança, seja por recursos financeiros ou
psíquicos. Visto que a presença simultânea de múltiplas questões ligadas a subjetividade de
cada filho exige do casal parental maior trabalho psíquico na construção dos vínculos.
Pretendemos como fruto dessa ampla investigação sobre a parentalidade e filiação no
contexto da adoção, elaborar de um projeto de pesquisa e extensão, a ser apresentado para as 1ª
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e 2ª Varas da infância, da juventude e do idoso da comarca da capital do Rio de Janeiro. A


proposta consistiria em oferecer atendimento clínico supervisionado, no SPA da PUC-Rio, a
famílias adotivas em situação de vulnerabilidade. Desse modo, estabeleceríamos uma parceria
com os referidos juizados, contemplando ensino, pesquisa e extensão, proporcionando
psicoterapia às famílias no contexto da adoção, buscando compreender os principais conflitos
manifestos e latentes presentes na dinâmica intersubjetiva.

Referências
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[11] SOUZA, H. P. DE, & CASANOVA, R. P. de S. Adoção: o amor faz o mundo girar mais
rápido. Curitiba, PR: Juruá, 2011.
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(orgs.). Adoção – Desafios da contemporaneidade (pp. 235-248). São Paulo: Bucher, 2018.
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[15] KLEIN, M. O desenvolvimento de uma criança. In M, Klein Amor, culpa e reparação.
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[16] WROBEL, G. M.; HELDER, E. & MARR, E. The Routledge Handbook of Adoption.
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