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DIREITO DA FAMÍLIA

MARIA DO CARMO MEDINA


CAPÍTULO I.°
INTRODUÇÃO
O conceito genérico de família, as relações jurídicas familiares e a sua
autonomia

No âmbito do nosso estudo teremos que nos debruçar sobre o ramo de direito
que regula e disciplina as relações jurídicas familiares.
Estas relações jurídicas têm como alicerce um fenómeno social que é constituído
pela família. A família é em si um fenómeno natural inerente à sociedade humana. A
socialização da pessoa humana inicia-se na família.
O conceito de família não é, de qualquer forma, um conceito estático e imutável.
Muito pelo contrário: como os demais fenómenos humanos e sociais, está sujeito a um
processo de evolução e transformação. Não se pode entender a família como um
instituto uniforme, sendo que dentro do mesmo Estado pode haver mais de um tipo de
grupo familiar.
Dentro do Direito de Família estão englobados diversos sub-ramos de direito: o
direito matrimonial, que regula as relações jurídicas de natureza pessoal e patrimonial
que se estabelecem entre os cônjuges; o direito da filiação ou direito paterno-filial, que
estabelece os direitos e deveres entre pais e filhos; o direito de parentesco, que
determina os efeitos jurídicos existentes entre pessoas ligadas por laços de sangue
provenientes duma ascendência comum; o direito da afinidade, que regula as normas
vinculativas da aliança que se estabelece entre o cônjuge e os parentes do outro cônjuge,
ou, se quisermos entender num sentido mais lato, as normas que regulam a aliança entre
duas famílias; o direito da tutela, que visa regular as formas de substituição da
autoridade paternal; o direito que regula as relações jurídicas que provêm da adoção, a
qual, como veremos, estabelece um vínculo jurídico idêntico ao da filiação entre
pessoas não ligadas entre si por laços de filiação biológica, etc..
Dentro do Direito de Família iremos ainda estudar determinadas situações de
facto que, pela sua importância, o legislador não pode ignorar, tais como a
união livre entre um homem e uma mulher à margem do casamento, denominada
união defacto. E também a separação de facto entre cônjuges que, embora unidos
legalmente por laços do matrimónio, cessam, à margem do divórcio, a convivência
comum.
Outra situação de facto de grande relevância no Direito de Família é a chamada
posse de estado das relações jurídicas familiares, a que o legislador reconhece efeitos
legais, tais como a posse de estado de casado ou a posse de estado de filho, que atribui
ao filho uma real vivência como tal.
Delas se faz derivar importantes consequências de direito e há quem chame a
este fenómeno a juridicização das relações de facto.
Dentro da família vigoram institutos de natureza patrimonial, como os regimes
matrimoniais de bens entre os cônjuges, onde está prevista a regulação de questões
como a aquisição e a gestão patrimonial dos bens do casal, a sua alienação, e ainda a
administração do património dos filhos menores atribuída aos progenitores, etc.. A
própria estrutura e funcionamento do direito sucessório estão intrinsecamente ligados
às normas do Direito de Família.
O Direito de Família ou, se quisermos dizer, «os direitos de família» são em geral
os direitos que tutelam os interesses das pessoas que fazem parte da comunidade
familiar. A família pode

assim ser definida como um grupo social relacionado entre si por obrigações e
direitos recíprocos.
O estado familiar é a situação subjetiva da pessoa dentro da família, como titular
duma pluralidade de direitos, poderes e deveres específicos.
a) Codificação do Direito de Família
Os sistemas de direito socialista rejeitavam a divisão bipartida do direito em
direito público e direito privado, adotando uma conceção unitária do direito, dimanado
de uma fonte única do poder do Estado.
O que é importante realçar é que, nesses sistemas, o Direito de Família
consti¬tuía um ramo autónomo do direito, destacado do direito civil. Autonomizava-se
o direito de família em razão do tipo específico das instituições jurídicas que ele regula,
pelo que, nesses países, as leis de família eram leis destacadas dos códigos civis.(1)
A nível do continente africano também se nota a tendência de autonomizar o
direito de família com a publicação dos respetivos códigos Leis de Família de S. Tomé
e Príncipe (1977), os Códigos de Família da Costa do Marfim e da Argélia. As leis de
Família, Divórcio e Filiação de 1976, de Cabo Verde foram
revogadas e as normas inseridas de novo no Código Civil pelo Decreto-
Legislativo n.°12-B/97 de 30 de Junho.
Nos sistemas de direito romano-germânico, que englobam a Alemanha e países
da Europa Ocidental, as normas de direito de família estão integradas nos respetivos
códigos civis. Verificamos que num sistema jurídico que nos é próximo, o direito
brasileiro, foi aprovado pela Lei n.° 10 406 de 10 de janeiro de 2002, o novo Código
Civil que consagra o seu Livro IV ao Direito de Família, seguindo assim o sistema
romano-germânico.
No entanto na Catalunha, Espanha, existe o Código de Família que foi
autonomizado do Código Civil espanhol. O Código de Família aprovado pela Lei n.°
9/1990 de 15 de julho com alterações das leis n.° 3/2005 e n.° 10/2008.
Porque se vive numa época de profundas alterações em todo o mundo, no direito
de família, tem sido frequentemente usado o método de publicação de leis avulsas que
atualizam pontualmente importantes matérias de direito de família. No Chile foi
publicada a Lei n.° 19 947, de 17 de maio de 2004, a Lei do Casamento Civil. Na
República Popular da China vigora a Lei do Casamento de 1980 que sofreu profunda
revisão em 2001. Na Suécia foi aprovada a Lei dos Conviventes, de 2003. Em França
foi aprovada a Lei do Divórcio de 26 de maio de 2004, que entrou em vigor em 1 de
janeiro 2005.
Em Moçambique foi publicada a Lei n.° 10/2004 de 25 de agosto que aprovou a
Lei da Família e que veio revogar o respetivo Título do Código Civil. Na África do Sul
foi aprovada a Lei da União Civil que entrou em vigor em novembro de 2006 e que foi
a primeira lei no continente africano a reconhecer efeitos à união entre pessoas do
mesmo sexo. A Lei 54/2006 da Itália,
veio alterar o Código Civil na matéria relativa ao exercício da autoridade paternal
por pais separados, estabelecendo e regulando o exercício da autoridade paternal de
forma conjunta.
Na Suíça foi aprovada a Lei do Partenariado Registado, que passou a vigorar a
partir de 1 de janeiro de 2007, aplicável a uniões entre pessoas do mesmo sexo. A
Noruega aprovou a Lei do Casamento em junho de 2008 que entrou em vigor em janeiro
de 2009 e que permite casamento formal entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo
sexo.
Em Portugal foi publicada a Lei n.° 61/2008 de 31 de outubro que veio alterar o
regime jurídico do divórcio, fazendo-o por via da alteração das disposições do Código
Civil e completando-as com alterações ao Código de Processo Civil e do Registo Civil.
No ano de 2009 foram alteradas disposições relativas ao estabelecimento da filiação,
Lei n.° 14/2009 e relativas ao casamento Lei n.° 29/2009, de 29 de junho, que passou a
permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mais recentemente, a Lei n.° 2/2011
de 15 de março, veio estabelecer o precedimento a seguir no registo civil para se alterar
a mudança de sexo c de nome próprio.
já no sistema de direito anglo-saxónico o direito de família é integrado em leis
específicas sobre os seus institutos fundamentais, como o casamento, divórcio, filiação
e direitos da criança. Mesmo em países que procederam a reformas legislativas
importantes após as mudanças no mundo socialista manteve-se o direito de família em
diplomas separados.^3' Há que apontar que a República Checa apesar de muita
controvérsia, optou por introduzir a partir de 1998, as reformas do direito de família no
Código Civil.
b) Função promotora do Direito de Família
Por fim, devemos apontar a função promotora do direito de família no âmbito do
comportamento dos membros da família e na defesa dos legítimos interesses dos seus
membros tal como são tutelados por lei.
Importa reconhecer que o direito de família está proíúndamente imbricado com
questões que se prendem com a sociologia e a antropologia e que estudam as bases do
comportamento humano no meio social e em que se estrutura o direito costumeiro.
É certo que questões de natureza eminentemente política se vão repercutir no
direito de família, como sejam a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana à
liberdade e à igualdade, a posição da mulher na sociedade, a política de cada país em
relação ao aumento ou à diminuição da população.
Acontece com frequência haver um desajuste entre o conteúdo da norma
jurídicae a prática social, porque muitas vezes o peso das tradições leva à exploração e
à opressão dentro da família e ao desrespeito dos princípios defendidos por lei e ao uso
abusivo de direitos. Mas também é certo que o conhecimento, por cada pessoa, dos seus
próprios direitos permite que mais facilmente se reivindique o seu exercício e a sua
aplicação subjetiva.
Por isso as reformas no campo do direito de família têm um indiscutível impacto
no meio social e atuam como agente promotor do progresso da própria sociedade. O
direito de família confere um verdadeiro poder de intervenção pela via legal, alterando
comportamentos anteriores que deixaram de ser protegidos por lei.
Muitas vezes as normas do direito de família são, na sua essência, normas de
conteúdo ético- jurídico que definem o tipo ideal das relações familiares. Este ramo do
direito não pode, por conseguinte, ser encarado de forma passiva como a reprodução, a
nível jurídico, de uma realidade social. Ele deve antes traduzir- -se num meio de atuação
nas estruturas sociais, visando em concreto um novo comportamento e um novo
relacionamento entre os membros da família.

[2] Breve noção histórica da família e dos sistemas familiares


O estudo do direito de família exige que tenhamos, antes de mais, uma noção do
que é a família. É um conceito que não pode ser entendido de forma dogmática, porque
ele está em correlação com a própria realidade económica, cultural e social das
diferentes sociedades humanas.
A família tem a sua origem no fenómeno natural da procriação e da pro¬pagação
da espécie humana. Mas é sobretudo um fenómeno social, pois através dos tempos se
tem verificado que nela não intervêm tão somente fatores biológicos. Nela intervêm
outros fatores de ordem social e económica. Como tal, o conceito varia de acordo com
a estrutura social e política em que se insere e interessa recordar os diversos conceitos
de família que acompanharam a evolução histórica das sociedades humanas. Não existe
um conceito único de família, mas diversos conceitos.
Temos a família extensa ou a grande família estabelecida com base no
parentesco. É a família parental formada por um largo conjunto de pessoas, unidas por
uma ascendência comum, ligadas por fortes laços de solidariedade e com uma
comunidade de interesses económicos.
A família monogâmica é estruturada no casamento único e exclusivo dos
cônjuges. A família poligâmica, ou melhor dizendo, poligínica é aquela em que o
marido se apresenta ligado por laços de casamentos válidos com mais de uma mulher
simultaneamente.
No século XIX invocava-se o conceito de livre arbítrio e do predomínio da razão
para a explicação dos fenómenos sociais.
Desde cedo a humanidade começou a impor restrições às relações de procriação
entre parentes consanguíneos (pais e filhos, irmãos e irmãs), proibindo o incesto e mais
adiante empreendendo ainda a exogamia, ou seja, o casamento fora do grupo familiar.
Podemos também assinalar a importância das sociedades de economia doméstica, em
que as mulheres representam grande parte da força de trabalho, produzindo os alimentos
necessários à manutenção da família com acentuada importância social.
O clã ou grupo é constituído por grupos de descendentes provenientes de um
ascendente comum e, como vimos, pode ser estatuído por via materna, quando há a
referência a uma ascendente feminina comum, ou ser estabelecido pela via paterna,
quando a referência é feita a um ascendente masculino comum.
Numa fase posterior, a família é caraterizada pela poligamia praticada pelo
homem, tendo como contrapartida a exigência de uma rigorosa fidelidade por parte da
mulher. No entanto, a poligamia é em regra praticada pelos elementos masculinos que
detêm o poder: «A poligamia é um privilégio dos ricos e dos poderosos... a massa do
povo é monógama».(4)
Neste tipo de sociedade a mulher está subordinada ao marido e nos meios rurais
a família constitui uma unidade de produção em que cabe às mulheres executar os
trabalhos agrícolas e os serviços domésticos de manutenção do agregado familiar, como
o transporte de lenha e água, a preparação dos alimentos, os cuidados com os filhos,
etc.. Nela os laços matrimoniais não são indissolúveis.
Diferente é a sociedade familiar do tipo patriarcal que se baseia no poder
exclusivo do homem, o patriarca, e se carateriza pela organização de um grupo de
pessoas, livres e não livres, submetidas ao poder paterno de um chefe.
Este tipo de família aparece-nos retratado nos tempos bíblicos do Antigo
Testamento, na Roma antiga, na China dos mandarins e no mundo muçulmano em geral.
Nela coexistiam os escravos e os membros da família, como filhos, netos, e respetivas
mulheres e outros parentes, subordinados ao domínio paterno.
Aparece depois a família monogâmica ainda assente no predomínio do homem.
Ela tem por fim a procriação da prole, salvaguardando a paternidade indiscutível dos
filhos por parte do marido e tendo em vista a transmissão da propriedade e da posse dos
bens dentro da família.
A família monogâmica carateriza-se pela maior solidez dos laços familiares,
passando a vigorar o princípio da indissolubilidade do matrimónio, salvo em casos
excecionais, em que se possibilita o repúdio da mulher pelo marido. A monogamia não
impede que o homem pratique o heterismo, ou seja, as relações sexuais fora do
casamento, prática que é muitas vezes aprovada pelo costume c pela lei. Apesar disso,
a mulher atingiu no casamento monogâmico uma posição mais elevada. O casamento
permitiu, assim, a transmissão da propriedade privada dentro da família, consolidando
o poder da burguesia.

[3] A família na sociedade tradicional africana


Interessa apontar alguns dos carateres predominantes nos diversos tipos de
organismos familiares que se encontram no nosso continente, com especial relevo para
a sua zona austral. Os primitivos habitantes desta parte sul de África, os povos San,
indevidamente designados como bosquímanos, caraterizam-se por uma organização
coletiva do poder e pelas relações conjugais baseadas na monogamia/5*
Nos povos Bantos predomina a vida sedentária apoiada na atividade agrícola e
na criação de gado. Nestes povos negro-africanos a ideia de família é entendida nos seus
fundamentos e estruturas, tendo em conta as próprias relações que ligam o homem à
terra. Esta é explorada coletivamente pela família.
As relações de produção estão intimamente relacionadas com as relações
familiares e estas determinam o direito dos indivíduos sobre o solo e os seus produtos
e os seus direitos e obrigações de receber, dar e cooperar, como membros integrados no
grupo familiar. As relações de parentesco funcionam como relações de produção.
É nesta linha de pensamento que se enquadra o casamento, que se traduz numa
aliança de grupo a grupo e não de indivíduo a indivíduo. É uma aliança de grupos
domésticos e não entre grupos de filiação. A autoridade paternal não é forçosamente
exercida pelo progenitor mas pelo chefe da família.
No direito tradicional africano há regras próprias relativas ao parentesco, à
filiação, ao preço da noiva como integrante do casamento e ao regime matrimonial de
bens.
A responsabilidade pelo cumprimento das obrigações e pelos demais negócios
jurídicos vai recair sobre o grupo familiar e não sobre o indivíduo unicamente a título
pessoal. À mulher não é, em regra, reconhecida capacidade jurídica para ser processada
e responsabilizada sem a assistência do representante legal.
O levirato e o sororato são largamente assinalados, confirmando a direção
principal de que o casamento se estabelece por acordo entre famílias.
A fase preliminar do casamento é constituída pela entrega de prestações da
família do noivo à família da noiva, o que representa uma compensação económica pela
saída de um membro da família (a mulher passa a estar subordinada ao poder do
marido). Em contrapartida, os valores recebidos pelos familiares da mulher podem ser
aplicados no pagamento de uma prestação para a celebração do casamento de um
membro masculino da família e garante-se assim uma compensação da saída de um
membro feminino da família pela entrada de outra mulher.
Carlos Valiente Noialles, Les Bosquimanes, Peuples Oubliés de IXjrique
Australe.
Pelo casamento, o marido adquire sobre a pessoa da mulher verdadeiros direitos
in rem, pois se alguém a mata, a agride, ou com ela pratica adultério, atribui-se ao
marido o direito de exigir uma indemnização. Mas se for o marido a maltratar a mulher
ou a causar-lhe a morte, são os parentes da mulher que têm o direito a ser indemnizados.
Reconhece-se que o direito costumeiro tem um elaborado sistema de normas e
princípios que se referem às questões do noivado, cerimónia do casamento, relações
entre pais e filhos, conflitos conjugais, direito sucessório, etc.. O direito a alimentos, a
adoção e as relações de afinidade vigoram dentro da família com regras próprias. O
direito de família é, pois, o mais desenvolvido nas comunidades africanas.

[4] A família na sociedade moderna


Períodos há em que a família é profundamente afetada e até destruída por
determinados fenómenos, como a escravatura, os períodos de guerra e insta¬bilidade
que originam a deslocação maciça da população, as migrações, etc.. Dá-se um
afrouxamento ou até a rutura das relações familiares.
Mas, passados esses períodos de transformação ou convulsão social, a sociedade
familiar recompõe-se e reconstitui-se sob novas formas.
A família na sociedade moderna corresponde a um dado estágio social resultante
do desenvolvimento técnico-científico industrializado: nela coexistem os cônjuges e os
respetivos filhos, formando a família nuclear ou conjugal.
É, pois, um conceito de família de âmbito mais restrito, composta por um homem
e uma mulher, formando uma comunidade de vida, unidos com estabilidade e a sua
prole comum.
Dela resultam importantes direitos e deveres recíprocos de solidariedade entre os
seus membros, como o direito e o dever de ajuda mútua e à assistência moral e material,
que se traduz na prestação de alimentos, etc..
Embora no presente exista restrição à extensão da família ora reduzida à família
nuclear, ou pequena família em sentido estrito, não se lhe retira a sua grande
importância social. É- lhe atribuída atividade de grande relevo, pois é considerada o
núcleo básico do tecido da sociedade, e nela se encontram confundidos interesses de
natureza pessoal e social.
A família é reconhecida uma função de natureza estabilizadora cuja
pre¬servação interessa à evolução da própria sociedade. Por isso ela deve ser apoiada e
protegida pelo Estado. Incumbe especialmente à família conjugal a procriação da prole,
a educação e a formação dos filhos e, em suma, a satisfação dos sentimentos afetivos
de cada pessoa. Nela se efetivam de forma direta as necessidades básicas da convivência
humana.^
Numa forma mais reduzida de unidade familiar deparamo-nos hoje, em número
cada vez maior, com a família monoparental, composta tão somente por um único
progenitor, o pai ou a mãe, e pelos respetivos filhos. Tal ocorre no caso das mães
solteiras, dos pais separados, divorciados ou viúvos que vivem com os filhos.
Embora a pequena família moderna tenha perdido o seu valor económico, ela
não deixa de ter grande relevância no aspeto cultural, pois é nela que, de geração em
geração, se vão transmitindo, de pais para filhos, os valores culturais. Pela criação,
instrução e educação dos novos membros da família vão-se transmitindo o ensino da
língua, os conhecimentos adquiridos pelas gerações mais velhas, os hábitos de vivência,
que formam a essência de cada povo.
Postergou-se o conceito retrógrado de que a família conjugal devia ser
estabelecida sob o poder autoritário do marido sobre a mulher, consubstanciado na
tutela marital, que acarretava para a mulher uma verdadeira capitis diminutio.
Também deixou de se acatar o princípio segundo o qual, nas relações paternais,
devia prevalecer o poder do pai sobre os filhos, subalternizando a mãe.
É hoje aceite um novo conceito de família conjugal que não necessita da
preponderância de um «chefe», antes é baseada na liberdade e na individualidade dos
dois cônjuges e na convivência solidária dos seus membros. Substitui-se a família
estruturada na hierarquia pela família estruturada na diarquia (de marido e mulher) e
baseada no consenso de ambos. Ao marido e à mulher são atribuídos direitos e deveres
estruturados em igualdade, à luz da verdade essencial de que a dignidade humana é a
mesma para o homem e para a mulher.
Da mesma forma se altera a visão das relações entre pais e filhos que se entendem
dever ser exercidas com autoridade mas sem autoritarismo.
^ A. Burguière, C. Zuber, M. Segalen e E Zonabend — «E amanhã, a família?»
in História da Família — vol. IV. Edição Terramar, 1995, p. 140: «A modernização das
sociedades não foi feita contra a família, mas sim com ela. Ora grupo de residência, ora
rede, a família, é um ponto de apoio para o indivíduo que tem que se deslocar, entrar na
cidade, penetrar nos novos mercados de emprego... o estudo das transformações
familiares ligadas à modernidade põe em evidência a diversidade de respostas da
instituição face às novas condições económicas c sociais».
As uniões entre pessoas do mesmo sexo, expressão do homossexualismo, vão
ganhando espaço na consagração legal, sobretudo em países com influência de cultura
europeia. A alteração da conceção sobre as relações familiares, leva à aceitação de
novas realidades dentro da vida familiar.

[5] Princípios fundamentais do Direito de Família


No direito moderno podemos, em síntese, expressar os seguintes princípios
fundamentais comuns aos diversos sistemas jurídicos atuais:
a) O princípio da separação do Estado e das confissões religiosas no direito de
família, de que resulta em regra, o reconhecimento único do casamento laico celebrado
por um órgão estatal, seja ele o conservador do registo civil, como entre nós sucede, ou
o presidente da câmara, o juiz, o notário. Nestes sistemas todas as questões relativas à
validade e à dissolução do casamento etc., são resolvidas pelos tribunais judiciais e não
por tribunais eclesiásticos. Outros sistemas jurídicos adotam o princípio da igualdade
das diversas crenças religiosas perante o Estado, e permitem que as igrejas legalmente
reconhecidas celebrem casamento religioso ao qual são atribuídos efeitos civis, desde
que estejam conformes às normas estipuladas na respetiva legislação vigente de direito
matrimonial.
b) O princípio da liberdade de escolha da forma de constituir família e da
dignidade dos seus membros, segundo o qual assiste a cada pessoa o direito fundamental
de constituir família, sendo livre para escolher a forma como quer criar a sua própria
família, pelo casamento ou pela união de facto, ou até para a não criar, não sendo em
qualquer dos casos atingido na sua dignidade .
c) O princípio da igualdade de direitos e deveres entre o homem e a mulher em
todos os aspetos da vida família, princípio que tem a sua fonte no próprio direito
constitucional, que o assegura no seu art. 35.°, n.° 3ín). Este princípio é extensivo a
todas as relações jurídicas familiares, seja no casamento, na união de facto, nas relações
entre pais e filhos e nos demais institutos familiares.
Do princípio da igualdade de direitos no direito matrimonial deriva como
princípio de ordem pública, o princípio da monogamia ou monoandria, segundo o qual
os laços conjugais têm natureza exclusiva, não podendo aquele que se encontra no
estado de casado, homem ou mulher, contrair novo casamento, sob pena de cometer o
crime de bigamia.
Quando se fala em igualdade de direitos e deveres não se quer impôr
for¬çosamente a existência de tarefas iguais do homem e da mulher dentro da família.
Elas devem ser repartidas de forma harmónica e equilibrada dentro do princípio da
solidariedade que se deve estabelecer entre os membros da família.
A lei deve abster-se de indicar qual o papel da mulher no seio da família, pois
quando tal acontece é para a colocar numa posição de subalternidade. Hoje a tendência
é para reconhecer que não basta a simples enunciação do princípios da igualdade de
direitos, sendo necessário obviar para que permaneçam as existentes desigualdades que
se evidenciam em todos os aspetos da vida política, social e económica, com
desvantagem para a mulher.
É assim aceite o princípio da paridade que se propõe ir mais além, e
transitoria¬mente vai promover as denominadas «ações positivas», que gradualmente
vão assegurando uma efetiva paridade, ou seja uma futura igualdade, entre homem e
mulher em todos os campos da vida em sociedade.
d) O princípio da estabilidade, pelo qual se procura reforçar os laços familiares,
dando especial valor à manutenção da família de forma a estabelecer relações fortes e
duráveis, mantendo a sua união, tornando eficaz o direito-dever de ajuda mútua moral
e material entre os membros da família, na formação e educação dos filhos, na proteção
dos membros idosos ou deficientes, na prestação de alimentos, na restrição do direito
ao divórcio, etc..
e) Proteção da criança em geral, como objeto primordial da atividade dos
membros adultos da família, assegurando os direitos fundamentais da criança como
sujeito de direito, e criando órgãos do Estado, como os tribunais, Procuradoria da
República e de assistência social que acima de tudo, procuram proteger os direitos da
criança. A abolição da discriminação entre crianças nascidas dentro ou fora do
casamento, que data do fim do último quartel do século XX, foi um passo decisivo nesse
sentido. Ele vem hoje consagrado no art. 35.°, n.° 5 da Constituição, como adiante
melhor veremos.
Como corolário da concretização do direito à identidade, são facilitadas as ações
para o estabelecimento e impugnação de filiação que deixam de estar sujeitas a prazos
de caducidade.
Institui-se a adoção que deve sempre salvaguardar o interesse do menor adotado;
carateriza- se a tutela como instituto do direito público cujo fim em vista é a melhor
proteção do menor desprovido de proteção familiar. Em todos estes casos o Estado,
através dos seus órgãos judiciais e de assistência social, tem poderes para intervir nas
relações intra-familiares, caso a forma como são exercidos pelos titulares dos respetivos
direitos, prejudique a criança.
f) Princípio da proteção do Estado à família. Pela relevância que a célula familiar
tem na sociedade, ela merece especial proteção por parte do Estado.
Essa proteção desenvolve-se em múltiplos aspetos, tais como a prestação de
habitação, de serviços de saúde, de educação, a atribuição de subsídios de segurança
social em razão da maternidade, incapacidade física ou velhice; a insti-tuição de órgãos
especializados para ajudar a resolver os conflitos familiares, os órgãos de mediação
familiar, os tribunais especializados de direito de família, etc..
Tudo isto procura preservar os vínculos familiares e a estabilidade social. No
topo das questões ligadas à família está a política demográfica de cada Estado que passa
ou por incrementar o planeamento familiar com vista ao controlo do crescimento da
população ou pelo contrário, incentivar o seu aumento atribuindo abonos e prémios às
famílias numerosas.
A política demográfica de um respetivo Estado, pode contrariar o excesso de
filhos, impondo sanções fiscais e administrativas quando tal se verifique; ou ainda tomar
uma posição de mera neutralidade, deixando a questão ao arbítrio da cada cidadão.
Certo é que o crescimento descontrolado da população, sem que existam as condições
básicas de acolhimento às crianças que vão nascendo, mostra-se altamente negativo
para o desenvolvimento sustentável do Estado.
Na senda da proteção à maternidade e à criança, o Estado deve criar creches e
jardins de infância para benefício da criança e de seus pais. Em certos sistemas jurídicos
prevê-se a proteção dos indivíduos economicamente mais frágeis, por via do pagamento
adiantado de pensões de alimentos por parte do Estado, tendo este direito de regresso
sobre o devedor.
Pode ainda o Estado conceder créditos aos jovens para terminarem a sua
formação profissional, ou ainda créditos aos jovens casais para aquisição de residência
por meio de abonos reembolsáveis. As medidas de natureza social ou patrimonial que
o Estado pode tomar são múltiplas e dependem do seu próprio estágio de
desenvolvimento e da sua capacidade económica.
Atualmente nota-se a tendência duma maior intervenção do Estado nas relações
familiares, visando não só a solução consensual dos conflitos familiares, como ainda a
proteção dos membros mais débeis da família, e sobretudo intervindo na defesa dos
direitos da criança quando se mostre que os titulares da autoridade paternal não estão a
exercê-los de acordo com a lei.
Em muitos aspetos deixou-se para trás o conceito de que a vida familiar era um
reduto da privacidade do cidadão, entendendo-se que há outros valores mais elevados
que devem ser protegidos. Há quem refira este fenómeno como a «desfuncionalização
da família em virtude da sociedade e do Estado terem assumido algumas das suas
funções tradicionais, tais como a função educativa, de assistência e de segurança. »(13)
Além disso o Estado não pode ficar indiferente perante o desagregar da célula
familiar e a rutura dos laços complexos que unem os membros da família pelo que em
situações de crise, deve procurar solucionar os conflitos e assim garantir uma maior
estabilidade familiar que se vai refletir na própria sociedade em si.
Neste campo, a atividade dos órgãos judiciais especializados (como os Tribunais
de Família) e dos órgãos para-judiciais (como os órgãos de mediação, de consulta
familiar, centros de diagnóstico, assistência social à família e outros) pode ter
importante papel na prevenção e solução dos conflitos familiares.
Entre nós, a Lei do Sistema Unificado de Justiça, aprovada pela Lei n.° 18/88,
institui nos Tribunais Provinciais as Salas de Família, com a competência que lhes é
atribuída pelo art. 32.°:
«1. Compete à Sala de Família preparar e julgar os processos relativos à
constituição, anulação, alteração e dissolução das relaçõesjurídicas familiares e os
respeitantes ao exercício de direitos e deveres familiares, salvo os que por lei estejam
afetos aos órgão do registo civil 2. Em matéria de família o Tribunal Provincial não tem
alçada.»
Entende-se como tribunal de competência especializada aquele que aprecia
questões dentro de determinada área do conhecimento jurídico com qualidade técnica
específica. A relevância dada às relações familiares é evidenciada pela instituição de
tribunais de competência especializada para apreciar os respetivos litígios.
De igual modo sobressai o facto de nas ações familiares a atuação do juiz ser
acentuadamente de intervenção direta na recolha da prova, podendo promover
(u) F. M. Pereira Coelho. Casamento e Família no Direito Português, in Temas
de Direito de Família, p. 26. Livraria Almedina, 1986.
ohciosamcntc atos judiciais que considere necessários para alcançar a verdade
material, como vem previsto no art. 7.° da Lei n.° 1/88.
Por outro lado o Procurador da República tem poderes de largo alcance nas ações
familiares que versem sobre os direitos da criança, devendo obrigatoriamente intervir
em todas as ações relativa a menores. A nova Lei Orgânica da Procuradoria Geral da
República, Lei n.° 22/12 de 14 de agosto (D.R. n.° 156) integra o Ministério Público,
com magistrados e estatuto próprio. Ao Ministério Público é atribuída extensa
competência no seu art.° 36.° e na alínea a), coonferindo-lhe a representação do Estado,
dos menores, incapazes, incertos e ausentes.
O Ministério Público tem a seu cargo a defesa dos direitos do menor de forma
quer preventiva quer repressiva, sendo-lhe ainda atribuída legitimidade para a
propositura de diversas ações em representação do menor. Como oportunamente
veremos, estes poderes vêm hoje igualmente consagrados na competência atribuída ao
Ministério Público no art. 186.°, alínea b), da Constituição.
[7] Interligação do Direito de Família e outros ramos de Direito
0 direito de família está interligado a outros ramos de direito e as suas normas
vão aí repercutir-se. A ligação mais próxima é com o direito sucessório, cujas normas
da sucessão legítima lhe estão diretamente coorelacionadas.
O direito da proteção social à criança e ao jovem e o sistema de justiça juvenil
estão intrinsecamente ligados ao exercício da autoridade paternal pelos respetivos
titulares. Podemos hoje considerar que os direitos da criança se vêm autonomizando
como ramo de direito autónomo destacando-se do direito de família, de assistência
social. Em Angola tem sido dada particular atenção aos direitos da criança para cuja
efetiva concretização foi instituído pelo Dec. n.° 20/07 de 20 de abril o Conselho
Nacional da Criança (CNAC) que congrega diversos órgãos do Estado, da comunidade
e da família.
Foi aprovada a Lei n.° 25/12 de 22 de agosto (D.R. n.° 162) Lei sobre a Proteção
e Desenvolvimento Integral da Criança, composta por XI Capítulos e 93 artigos de
amplo conteúdo programático e que atribui ao governo deveres e obrigações específicas
nas suas áreas de competência. Obrigações extensivas à família, às empresas públicas e
privadas, ou de agentes económicos e da sociedade civil.
A Lei da Pessoa com Deficiência, lei n.° 21/12 de 30 de julho (D.R. n.° 145) cujo
âmbito de aplicação é extensivo a toda a pessoa portadora de deficiência congénita ou
adquirida, foi igualmente aprovada. No seu art.° 10.° estabelece que compete ao Estado
adoptar medidas que proporcionem à família de pessoa com deficiência medidas que
proporcionem a sua plena participação e no art.° 16.° determina que o Estado tome
medidas para conciliar a atividade profissional do
deficiente com a vida familiar e bem assim dos familiares do deficiente com a
respetiva atividade profissional.
De igual modo, no direito penal vamos encontrar normas sancionadoras que têm
origem na violação de deveres familiares ou em condutas criminosas na prática de atos
de natureza familiar. O direito penal insere especificamente os denominados «crimes
contra a família» que punem as condutas que de forma grave violam deveres familiares.
A Lei contra a Violência Doméstica, Lei n.° 25/11 de 14dejulho(D.R.n.° 133)
pune os factos ocorridos no meio familiar ou outro, e criminaliza diversos tipos de
violência sexual, patrimonial, psicológica, verbal e física, o abandono familiar e
condutas como a prática de casamento com menores de 14 anos ou incapazes/15)
CAPÍTULO 2.°
FONTES FUNDAMENTAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA
O Direito Constitucional
Os princípios fundamentais em que se estrutura o direito de família têm
normal¬mente assento na própria Constituição do Estado, pois estão intrinsecamente
ligados a toda a conceção política estrutural de um determinado sistema jurídico. Isso
acontece em quase todas as constituições e leis fundamentais que consagram a
importância social e política da família.
Na primeira Lei Constitucional aprovada com a proclamação da Inde¬pendência,
em 11 de novembro de 1975, de natureza mais programática e orgânica, não se fazia
qualquer menção à família.
Foi primeiramente a Reforma Parcial da Lei Constitucional (aprovada pela Lei
n.° 12/91) e depois a Lei Constitucional aprovada pela Lei n.° 23/92 que vieram
consagrar os princípios fundamentais respeitantes à família e à criança nos seus artigos
29°, 30° e 31°.
O art. 29.°, n.° 1 desta Lei reconheceu que à família, como núcleo da organização
da sociedade, deve ser dada especial proteção por parte do Estado, quer ela se fimde em
casamento quer em união de facto.

Ao Estado é atribuída a obrigação de permitir aos seus cidadãos uma vida


familiar normal. A Lei garante expressamente a igualdade de direitos entre o homem e
a mulher, conferindo-lhes os mesmos direitos e deveres no seio da família — art. 29.°,
n.° 2. À família em colaboração com o Estado, foi atribuída a obrigação de proteger e
educar as crianças e jovens — art. 29.°, n.° 3. O art. 30. conferiu à criança absoluta
prioridade e foi dada a garantia da sua proteção pela família, pelo Estado e pela
sociedade. O art. 31.» consagrou o direito dos jovens à efetivação dos seus direitos
económicos, sociais e culturais, a ser promovido pelo Estado pela família e pela própria
sociedade.
A atual Constituição no seu art. 35.° refere-se à família, ao casamento e filiação,
o art. 80.° à infância e o art. 81.° à juventude, como teremos ocasião de ver a propósito
dos diversos institutos.
A família é consagrada como «núcleo fundamental da sociedade e é objeto de
especial, proteção do Estado quer se funde em casamento quer em união de facto (...)»
e «todos têm direito de livremente constituir família (...)» — art. 35.°, n.°s l°e2°.
A Constituição atribui «absoluta prioridade à proteção dos direitos da criança,
nomeadamente ã sua educação integral e harmoniosa, à proteção da saúde, de condições
de vida e ensino.» — art. 35.°, n.° 6, pela família, pelo Estado e pela sociedade.
O direito à vida familiar, ou seja, o direito à integração da criança na família
desde o seu nascimento, é consagrado como um direito fundamental.
Estes princípios, consagrados como normas de direito constitucional, obrigam o
legislador ordinário, o que significa que o código de família tem que confirmar e
desenvolver aqueles princípios constitucionais. As normas que regem o direito de
família estão estruturalmente ligadas aos direitos fundamentais da pessoa humana e
como tal constituem a pedra angular do direito do cidadão em geral. São, portanto,
protegidas ou pelo direito constitucional ou por convenções internacionais.
É considerado como direito elementar de todo o ser humano, o direito de
constituir família, seja sob a forma de casamento seja por simples união de facto, de
forma livre e consciente, e o direito de, dentro da família, desenvolver a sua
personalidade e as suas capacidades.

O Direito Internacional e o Direito de Família


Os organismos internacionais, com especial relevância para a Organização das
Nações Unidas, têm contribuído de forma decisiva, nas últimas décadas, para a
transformação dos princípios norteadores do direito de família no sentido duma maior
consagração do direitos da pessoa humana e da elevação da sua dignidade, promovendo
maior justiça social.
Esta nova conceção do direito de família está ela mesma intrinsecamente ligada
aos princípios fundamentais do direito à liberdade e do direito à igualdade inerentes à
pessoa humana e que se repercutem no seio da estrutura familiar, postergando estruturas
familiares que se traduziam em situações profundamente discriminatórias entre os
membros da família. Desde logo optou-se por dar primazia aos direitos que assistem à
pessoa humana como tal, sobre os direitos de certos membros da família que recaiam
sobre os integrantes do seu grupo familiar.
A Carta das Nações Unidas proclamou, no seu Preâmbulo, a fé nos direitos
humanos e a igualdade de direitos entre homem e mulher, como princípio universal.
Por sua vez, a magna carta dos direitos humanos, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
em 10 de dezembro de 1948, consagra, em relação à família (art. 16.°):
«1. A partir da idade núbil, homens e mulheres têm o direito de casar e de
constituir família... Têm direitos iguais quanto ao casamento, durante ele e no caso da
sua dissolução.
2.0 casamento não pode ser celebrado sem o livre epleno consentimento dos
futuros esposos.
3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade, e tem direito à
proteção desta e do Estado. »
Esta norma além de consagrar o direito fundamental de constituir família, impõe
como regra a igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher no casamento e
vem opor-se ao casamento forçado, muito comum em sociedades tradicionais,
celebrado em idades prematuras dos futuros esposos e imposto sem ou contra a vontade
dos nubentes, que é ajustado entre as famílias, selando o futuro do casal e em regra
impedindo a jovem mulher de prosseguir na sua formação escolar e profissional,
reduzindo-a para sempre, a uma situação de dependência.
O Pacto Internacional Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais,
aprovado pelas Nações Unidas em 16 de dezembro de 1996, reconhece no seu art. 10.°
que:
«1. Uma proteção e uma assistência mais amplas possíveis serão proporcionadas
à família que é o núcleo natural e fundamental da sociedade, particularmente com vista
à sua formação e no tempo durante o qual ela tem responsabilidade de criar e educar os
filhos. O casamento deve ser livremente consentido pelos futuros esposos.
2. Uma proteção especial deve ser dada às mães durante um tempo razoável antes
e depois do nascimento das crianças (...).
3. Medidas especiais de proteção e de assistência devem ser tomadas em
benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de
razões de paternidade ou outras (...).»
Além do apoio que os Estados devem dar à família e de se reafirmar o direito à
liberdade de casar, consagra-se neste artigo o dever do Estado proteger a educação das
crianças, sem discriminação em razão do nascimento e de proteger a mulher durante a
gravidez.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado igualmente
em 16 de dezembro de 1966 no seu art. 23.°, além de reafirmar os importantes
princípios já consagrados, dispõe :
«1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem o direito à
proteção da sociedade e do Estado.

2. 0 direito de casar e defundar uma família é reconhecido ao homem e à mulher


a partir da idade núbil.
3. Nenhum casamento pode ser concluído sem o livre epleno consentimento dos
futuros esposos.
4. (...) igualdade de direitos e das responsabilidades dos esposos em relação ao
casamento, durante a constância do matrimónio e aquando da sua dissolução. Em caso
de dissolução, serão tomadas disposições a fim de assegurar aosfilhos a proteção
necessária.»
São normas cuja importância não é demais realçar e que incidem sobre os
institutos familiares estruturantes que adiante estudaremos.
A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação da
Mulher, aprovada pelas Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979, a que Angola
aderiu pela Resolução n.° 15/84 da Assembleia do Povo, consagra o seu art. 16.°
especificamente ao direito de família da forma seguinte, assegurando:
«1. (...) com base na igualdade dos homens e das mulheres:
a) 0 mesmo direito de contrair casamento.
b) (...) só contrair casamento de livre eplena vontade.
c) Os mesmos direitos e responsabilidades na constância do casamento e
aquando da
dissolução do casamento, e (...)
d) (...) enquanto pais, seja qual for o seu estado civil, para (decidir) as questões
relativas aos seusfilhos, e (...)
e) (...) decidir livremente e com todo o conhecimento de causa, do número e do
espaçamento dos nascimentos.
f) (Os mesmos direitos) em matéria de tutela, curatela, guarda e adoção das
crianças (...)
g) Os mesmos direitos pessoais ao marido e à mulher, incluindo o que respeita à
escolha
do nome de família, de uma profissão e de uma ocupação.»
Esta Convenção estatui sobre as diversas formas de que se reveste a
discriminação contra a mulher e ao focalizar as relações no seio da família vai impondo
que elas sejam combatidas e ilegalizadas nos diversos sistemas jurídicos e para tal
impõe novos princípios e regras obrigatórios.
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, aprovada pela
Orga¬nização da Unidade Africana em 1981 e ratificada pela Resolução da Assembleia
do Povo n.° 1/91, consagra o seu art. 18.° à família.
«ARTIGO 18.°
1. A família é o elemento natural e a base da sociedade.

2. (...) assistir à família na sua missão de guardiã da moral e dos valores


tradicionais (...)
3. (...) velar pela eliminação de todas as discriminações contra a mulher e de
assegurar a
proteção dos direitos da criança (...)»
Enaltcce-se o valor cultural da família sem embargo da obrigação dos Estados
porem fim a todas as formas de discriminação contra a mulher e de protegerem os
direitos da criança.
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada pelas Nações
Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada pela Resolução n.° 20/90 da Assembleia
do Povo, reserva os seus artigos 7o, 8o e 9o, ao direito de toda a criança a uma cidadania
e às relações familiares, impondo o seguinte:
«Art. 7.°
1. A criança é registada imediatamente após o nascimento e tem desde o
nas¬cimento, o direito a um nome, o direito a uma nacionalidade e sempre que possível,
o direito de conhecer os seus pais.
Art. 8.°
1. (...) o direito a preservara sua identidade incluindo a sua nacionalidade, o nome
e relações familiares (...)
Art. 9.°
1. (...) a garantir que a criança não é separada de seus pais contra vontade destes
(...) sem prejuízo de decisão judicial.»
A Carta Africana dos Direitos e do Bem Estar da Criança aprovada em 1990 e
ratificada por Angola em abril de 1992, determina o seguinte:
«Art. 18.°
1. A família é a bíise natural da sociedade (...)
2. (...) (se) tomarão medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e
responsabilidades dos cônjuges perante as crianças durante o casa¬mento e
durante a sua dissolução (...)
3. Nenhuma criança pode ser privada de meios para a sua manutenção em razão
do estatuto matrimonial dos seus pais.
Art. 19.°
1. Qualquer criança tem direito à proteção e aos cuidados de seus pais e se
possível residir com eles (...) salvo se autoridade judiciária decidir (...) que essa
separação é no próprio interesse da criança.
2. Qualquer criança separada de um dos pais ou dos dois, tem direito a manter
regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos os pais.»
A nível da organização regional Comunidade para o Desenvolvimento dos Países
da África Austral (SADC) de que Angola é membro, foi adotado em 17 de agosto de
2008 e aprovada pela Resolução n.° 30/10 de 6 de setembro da Assembleia Nacional, o
Protocolo sobre o Género e Desenvolvimento que contém normas sobre Casamento e
Direitos da Família (art. 8.°) Direitos de Viuvez das Mulheres e dos Homens (art. 10.°)
e Crianças do Sexo Feminino e Masculino (art. 11.°).0)
(,) ARTIGO 8.°
CASAMENTO E DIREITOS DA FAMÍLIA
1. Os Estados Partes deverão decretar e adotar medidas legislativas,
administrativas e outras apropriadas para garantir que as mulheres e os homens gozem
de direitos iguais no casamento e sejam considerados parceiros iguais no casamento.
2. A legislação sobre o casamento deverá garantir que:
a) nenhuma pessoa com idade inferior a 18 anos contraia casamento, salvo
disposição em contrário expressa na lei, atendendo sempre ao melhor interesse e bem-
estar da criança.
b) todos os casamentos sejam celebrados com o livre e pleno consentimento de
ambas as partes.
c) todos os casamentos, incluindo os civis, religiosos e tradicionais tenham um
assento lavrado cm conformidade com as leis nacionais.
d) enquanto durar o seu casamento, as partes tenham direitos e deveres recíprocos
para com os seus filhos, sempre no supremo interesse destes.
3. Os Estados Partes deverão decretar e adotar medidas legislativas c de outra
índole apropriadas para garantir que os cônjuges, cm caso de separação, divórcio ou
anulação do seu casamento:
a) tenham direitos e deveres recíprocos para com os seus filhos, sempre no
superior interesse destes;
b) sujeitos à escolha de qualquer regime ou contrato matrimonial, tenham uma
porção equitativa de qualquer propriedade adquirida durante a sua relação.
4. Os Estados Partes deverão decretar medidas legislativas e outras, tendentes a
assegurar que as mães e os pais honrem o seu dever de cuidar dos filhos e sejam
aplicadas decisões em matéria de obrigação alimentar.
5. Os Estados Partes deverão estabelecer disposições legais para assegurar que
as mulheres c homens casados tenham o direito de optar pela manutenção da sua
nacionalidade ou pela aquisição da nacionalidade do seu cônjuge.
Trata-se de matéria de conteúdo muito atualizado que é dirigido cspeci-
ficamente contra situações sociais que a nível das relações familiares destes países da
África Austral se mantêm e que sáo francamente atentórias dos princípios estruturantes
dos direitos humanos.

ARTIGO 10.°
DIREITOS DE VIUVEZ DAS MULHERES E HOMENS
1. Os Estados Partes deverão promulgar legislação e fazê-la cumprir, de modo a
garantir que:
a) as viúvas não sejam sujeitas a tratamento desumano, humilhante ou
degradante;
b) salvo determinação em contrário por um tribunal competente, a viúva se tome
automaticamente encarregada de educação dos seus filhos e tenha a custódia dos
mesmos em caso de morte do esposo;
c) a viúva tenha direito a viver na casa matrimonial após a morte do esposo
d) a viúva tenha acesso a emprego e a outras oportunidades para que possa prestar
um contributo significativo à sociedade;
e) a viúva tenha direito a uma porção equitativa na herança do seu esposo;
f) a viúva tenha direito de voltar a casar-se com qualquer outra pessoa de sua
escolha; e
g) a viúva esteja protegida contra todas as formas de violência e discriminação
em razão
da sua condição.
2. Os Estados Partes deverão adotar medidas legislativas para assegurar que os
viúvos gozem dos mesmos direitos que as viúvas nos termos do n.° 1 do presente artigo.
ARTIGO 11.°
CRIANÇAS DO SEXO FEMININO E MASCULINO
1. Os Estados Partes deverão adotar leis, políticas e programas para garantir o
desenvolvimento e proteção de meninas:
a) eliminando todas as formas de discriminação contra as meninas a nível da
família, da comunidade, de instituições do Estado;
b) assegurando que as meninas tenham igual acesso à educação e a cuidados de
saúde e não sejam submetidas a tratamento algum que lhes faça desenvolver uma auto-
-imagem negativa;
c) assegurando que as meninas gozem dos mesmos direitos que os meninos e
sejam protegidas de atitudes e práticas culturais danosas, em conformidade com a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Carta Africana sobre os
Direitos e o Bem-Estar da Criança;
d) protegendo as meninas da exploração económica, do tráfico de seres humanos
e de todas as formas de violência, incluído abuso sexual;

e) assegurando que as meninas tenham acesso a informação, a educação, a


serviços c a facilidades na área da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos.
2. Os Estados Partes deverão adotar medidas legislativas e outras para assegurar
que os meninos gozem dos mesmos direitos que as meninas nos termos do n.° 1 do
presente artigo.
Aliás por força do preceito consagrado no art. 26.°, n.° 2, da Constituição os
«preceitos constitucionais e relativos aos direitos fundamentais e legais devem ser
interpretados e integrados» de acordo com os princípios a que nos referimos.
Importa reter que pelo disposto no art. 21.°, n.° 3, da Lei Constitucional, se
consideravam como vigentes na ordem jurídica interna os princípios dos instrumentos
internacionais de que Angola fazia parte «ainda que não sejam invocados pelas partes».
Hoje em dia este princípio vem reproduzido no art. 26.°, n.° 3, da Constituição,
que em matéria de direitos fundamentais manda aplicar «os instrumentos internacionais
ainda que não sejam invocados pelas partes ».
De especial relevância é a questão da garantia de que os direitos fundamentais
da pessoa humana já consagrados nesses instrumentos, não possam ser postergados ou
atingidos por via de outros valores que com eles se não compadeçam, designadamente
por práticas do direito costumeiro que vindas duma sociedade marcada pelo hegemonia
masculina, são contrárias aos direitos humanos da mulher e se refletem no
desenvolvimento global dum pais.
Aliás o direito à igualdade de direitos de todo o ser humano, e portanto o da não
discriminação, seja porque razão for, além da repercussão que tem em direitos de toda
a natureza, é também invocado pelos homossexuais como fundamento para o
reconhecimento legal das suas uniões, alegando que não podem ser objeto de
discriminação «em razão da sua orientação sexual».®
[10] Acordo bilateral em matéria de Direito de Família
Em matéria de direito de família Angola não tem até ao presente celebrado
acordos nem de âmbito bilateral, regional ou internacional, sem embargo do facto de
existirem múltiplos laços familiares entre cidadãos angolanos e doutras nacionalidades.
A única exceção foi a do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre
Angola e Portugal celebrado em 30 de agosto de 1995, que incide sobre o
«Reconhecimento e Execução de Decisões Relativas a Obrigações Alimentares» a que
nos referiremos a propósito do instituto dos alimentos.
No entanto já foram firmados acordos internacionais a nível da SADC e da CPLP
na área do direito penal e processual penal.
Pela Resolução n.° 27/10 de 6 de setembro foi ratificada a Convenção sobre a
transferência de pessoas condenadas; pela Resolução n.° 28/10 da mesma
(2 Maria do Carmo Medina. «Direitos Humanos e Direito de Família». Revista
da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, n.° 4, p. 127.

data foi ratificada a Convenção sobre Extradição e a criação de uma Rede de


Cooperação Jurídica e Judiciária Internacional entre os Estados membros. Todas estas
Convenções tinham sido assinadas pelos Estados da CPLP, na cidade da Praia, Cabo
Verde, em novembro de 2005.
Direito Internacional Privado em Direito de Família
O significativo aumento das relações familiares entre cidadãos de diversos países
não só dentro dos diversos continentes mas a nível de todo o globo, têm tornado urgente
que os estados envolvidos tracem normas legais que protejam os seus cidadãos e
estabeleçam regras de procedimento.
No campo do direito internacional privado e no da unificação das normas de
direito de família dos diferentes Estados, tem vindo a ser desenvolvido um grande
esforço no sentido da solução do conflito de leis e da criação de normas comuns de
direito de família.
Os Estados compreendem que cada vez mais se torna necessário regular de forma
harmoniosa as relações familiares que se estabelecem entre cidadãos de nacionalidades
diferentes.
O principal trabalho neste campo tem sido desenvolvido pela Conferência
Diplomática de Haia, a cuja iniciativa se deve a adoção de importantes convenções em
matéria de direito de família.
Podemos citar, entre outras, a Convenção relativa ao Reconhecimento e
Execução de Decisões sobre Obrigações Alimentares e a Convenção sobre a Lei
Aplicável às Obrigações Alimentares, ambas de 1973, a Convenção sobre o
Reconhecimento dos Divórcios e Separações de Pessoas, aprovada em 1970, a
Convenção sobre Regimes Matrimoniais e a Convenção sobre a Celebração e
Reconhecimento da Validade do Casamento, ambas de 1978.
Teremos ocasião de nos referirmos a duas importantes convenções a propósito
do estudo da autoridade paternal e da adoção.
Desde já indicamos como de grande alcance internacional foi a aprovação da
Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional da Criança, (1980). Esta
Convenção incide sobre a subtração internacional de menores, ou seja sobre sequestro
de menores que são retirados do seu local de residência habitual onde estão à guarda de
pessoa física ou jurídica, que sobre eles exercia um legítimo direito de custódia e são
levados para fora do país à sua revelia. A mesma convenção aplica-se igualmente
quando o menor não é devolvido ao seu lugar de residência habitual após ter saído do
país para que o titular do direito de visita o tenha em sua companhia. Tem especial
incidência nos casos cada vez mais frequentes,
de casais mistos, de distintas nacionalidades, que após a separação disputam
entre si a posse de filhos nascidos da sua união. As autoridades dos Estados parte desta
Convenção cooperam entre si no sentido duma imediata comunicação do traslado ilícito
do menor ou da sua retenção ilícita, para que ele seja devolvido ao seu local de
residência e entregue à pessoa que legitimamente tem a sua guarda. Esta Convenção
tem tido grande sucesso na sua aplicação prática e procura pôr fim a situações
dramáticas de abrupta separação de menores do seu meio normal familiar.

A Convenção sobre a Proteção da Criança e a Cooperação em matéria de Adoção


Internacional (1993) tem tido do mesmo modo, grande relevância em matéria de adoção
internacional, para a proteção administrativa e judicial da criança que é levada para fora
do seu país de origem para o país do adotante e igualmente para impedir que a adoção
oculte um negócio financeiro subjacente, ou propicie o tráfico internacional de crianças.
Angola não é membro desta organização internacional mas aderiu a esta
Convenção pela Resolução n.° 54/12 de 14 de dezembro de 2012 do (D.R. da
Assembleia Nacional n.° 239), que aliás têm vindo a revelar-se de grande efetividade
prática em delicadas questões familiares.
Ao nível da Europa foram aprovadas a Convenção do Luxemburgo sobre o
«Reconhecimento e a Execução de Decisões Relativas à Direito de Guarda dos Filhos
e seu Restabelecimento» (1980) e a Convenção de Roma sobre «Obrigações
Alimentares» (1990). Em 28 de maio de 1998 foi assinada a Convenção Europeia de
Direito de Família que vincula os países que fazem parte da União Europeia. Em
setembro de 2001 foi constituída a Comissão de Direito de Família Europeu, cujos
trabalhos de forma mais alargada, visam a formulação dum direito comum aos diversos
países desse continente.
Também ao nível da Organização dos Estados Americanos têm sido adotadas
diversas convenções sobre os direitos humanos e o direito de família, tais como a
«Convenção lnteramericana sobre Obrigações Alimentares», aprovada em Montevidéu
em 1989, e a «Convenção lnteramericana sobre o Regresso Internacional de Menores»,
que trazem medidas de grande alcance em matéria de obrigação alimentar devida a
menores e sobre o exercício da autoridade paternal no caso de os respetivos titulares
viverem em estados diferentes.
Não temos conhecimento de que, sob a égide da Organização de Unidade
Africana, tenha sido aprovada qualquer convenção em matéria de direito de família.
Salvo o Acordo Bilateral acima referido e que incide sobre a matéria muito restrita da
obrigação de alimentos, pois não abrange sequer o direito de guarda dos filhos e pese
embora a existência de vínculos familiares com países
como Portugal, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe integrantes da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP), não foi adotada qualquer convenção comum a
esses Estados em matéria de direito de família.
Igualmente ao nível da Comunidade dos Países da África Austral (SADC) países
vizinhos entre cujos nacionais são criadas relações familiares, ainda se não obteve
qualquer instrumento internacional para a resolução das questões que se põem nessas
relações entre os cidadãos dos diferentes Estados da região, o que, dado o seu
estreitamento se vai tornando cada vez mais necessário.
CAPÍTULO 3.0
FONTES DO DIREITO DE FAMÍLIA ANGOLANO
[12] O direito colonial. A dualidade de estatutos: o indígena e o cidadão de
pleno direito. O direito escrito e o direito costumeiro
A estrutura da sociedade colonial no campo do direito de família estabelecia o
princípio da diferença de estatutos jurídicos: de um lado, o estatuto dos cidadãos de
pleno direito (que eram os colonizadores e escassos «assimilados»); de outro lado, o
estatuto dos denominados «indígenas»(l). A lei previa, aliás, para cada colónia um
estatuto «especialmente promulgado para cada uma delas» . Os designados «indígenas»
eram definidos como «os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que tivessem
nascido ou vivido habitual mente nelas, ou seja, na Guiné, em Angola ou em
Moçambique , os quais se encontravam numa situação de verdadeira tutela legal.
Era assim aplicado um duplo sistema legal, pois os primeiros, os cidadãos de
pleno direito, estavam sujeitos às normas de direito escrito privado no que concerne ao
direito de família, enquanto que os segundos, os indígenas, regiam-se pelo direito
costumeiro, limitado embora pelos princípios fundamentais do sistema
jundico vigente. A verdade, porém, é que no período colonial os princípios de
ordem pública vigentes incidiam principalmente sobre a proteção dos interesses
políticos e económicos do colonizador e, tanto quanto as estruturas familiares não
colidissem com aqueles interesses, foram mantidas intatas, tal como ocorreu com a
poligamia, o casamento sem o consentimento da mulher, etc..
O primeiro Código Civil, conhecido por Código de Seabra, publicado em 1867
e tornado extensivo às colónias em 1869, mandava já, relativamente a Angola, ressalvar
os usos e costumes das regedorias, além de mandar aplicar transitoriamente legislação
especial.
Abolido o vergonhoso sistema do indigenato em 1961, fruto aliás do deflagrar
da luta armada de libertação nacional, foi no entanto mantida a dualidade de estatutos
de direito pessoal, que se passaram a designar como Estatuto do Direito Escrito e
Estatuto dos Usos e Costumes Locais.(5
Aos agora denominados «vizinhos de regedorias» continuavam a ser aplicados
os usos e costumes locais com as já apontadas limitações, mas permitia-se a todo o
indivíduo fazer declaração irrevogável perante os serviços do registo e identificação de
que se submetia à lei escrita do direito privado.

Por sua vez, o direito escrito privado, como era designado, também foi sendo
alterado, e em 1910, com a proclamação da República, foram introduzidas importantes
reformas ao Código Civil do século XIX.
A Lei do Divórcio, de 3 de novembro de 1910, veio permitir a dissolução do
casamento por divórcio, tanto sob a forma de divórcio litigioso como sob a forma de
divórcio por mútuo consentimento. A Lei n.° 1, de 25 de dezembro de 1910, ocupa-se
do casamento, conferindo validade tão somente ao casamento civil. A Lei n.° 2, de 25
de dezembro de 1910 (lei da Proteção dos Filhos) versa sobre o direito de filiação.
Entretanto, foi celebrada entre Portugal e a Santa Sé uma Concordata (Maio de
1940), que trouxe importantes alterações em matéria de direito de família,
designadamente quanto à validade do casamento canónico, à renúncia ao direito ao
divórcio e à atribuição do conhecimento das causas relativas à nulidade do casamento
católico aos tribunais eclesiásticos.
A Concordata só entrou em vigor nas antigas colónias cerca de seis anos depois,
pelo Decreto n.° 35 461, de 22 de janeiro de 1946, mas com diversas adaptações/ *
O segundo Código Civil Português, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47 344,
entrou em vigor nas antigas colónias por força da Portaria n.° 22 869, a partir de 1 de
janeiro de 1968. O seu Título IV é dedicado exclusivamente ao direito de família e nele
se espelham as conceções retrógradas das relações jurídicas familiares, quer no campo
das relações matrimoniais (em que é reconhecido o poder marital do marido sobre a
mulher, o poder exclusivo deste como administrador dos bens do casal), quer no campo
das relações de filiação, discriminando os filhos legítimos dos ilegítimos (com
importantes restrições para estes últimos no campo dos direitos pessoais e sucessórios)
e atribuindo ao pai, nas relações paterno-filiais, poderes prevalecentes, aparecendo a
mãe como mera conselheira/ '
Toda esta matéria foi profundamente reformulada em Portugal depois do 25 de
abril, com a publicação do Decreto-Lei n.° 496/77, fruto das transformações políticas e
económicas operadas naquele país, que afastaram os anteriores princípios
discriminatórios. Aliás o direito português tem sofrido constante alterações,
modernizando-se nos seus conceitos e procedimentos, com profundas alterações
designadamente em matéria de direito de família.

[13] O Direito Positivo Angolano posterior à Independência Nacional


Com a proclamação da Independência nacional e a aprovação da primeira Lei
Constitucional, foi instituído um novo sistema jurídico e as normas de caráter
discriminatório contidas no Código Civil passaram a ser consideradas derrogadas por
inconstitucionais.
Aliás, por via do preceituado no art. 84.° dessa Lei, que norteava quanto à
legislação vigente vinda do sistema jurídico colonial, tinha que se entender como
revogada toda a legislação que contrariasse o processo revolucionário angolano.

No entanto, no campo do direito de família foram publicadas uma série de leis


de relevante importância que, em questões fundamentais, vieram alterar a legislação
colonial naquilo que se mostrava mais antagónico à nova realidade angolana.
Foram sendo aprovadas, sucessivamente, as seguintes íeis:
1 — Lei n.° 53/76, de 2 de julho, que afastou a aplicação das normas da
Concordata, permitindo a dissolução dos casamentos católicos celebrados em Angola
ou entre angolanos; autorizou a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio
e aditou novos fundamentos ao pedido de divórcio.
2 — Lei n.° 10/77, de 9 de abril, que equiparou os direitos e deveres de todos os
filhos em relação a seus pais, qualquer que seja o estado civil destes, proibiu qualquer
referência à qualidade de filho legítimo ou ilegítimo e decretou a abolição do termo
«incógnito» relativamente à situação de paternidade ou de maternidade. Continha ainda
normas quanto à composição do nome e do registo civil dos cidadãos.
3 — Lei n.° 9/78, de 26 de maio, com as respetivas retificações publicadas em
29 de julho de 1978, que versava sobre o divórcio por mútuo consentimento e revogou
os arts. 1786.° a 1788.° do Código Civil e os arts. 1419.° a 1424.° do Código do
Processo Civil.
4 — Lei n.° 7/80, de 27 de agosto (Lei da Adoção e Colocação de Menores), que
revogou todo o Título IV do Livro IV do Código Civil (arts. 1973.° a 2003.°),
respeitante à matéria da adoção.
5 — Lei n.° 10/85, de 10 de outubro, sobre a composição do nome, que alterou
o art. l.° da Lei n.° 10/77.
6 — Lei n.° 11/85, de 28 de outubro, que aprovou a Lei do Ato do Casamento e
que concedeu unicamente validade aos casamentos celebrados perante os órgãos do
registo civil. No rigor da lei, os casamentos canónicos só deixaram de ter validade a
partir da publicação desta lei, mas vinha sendo prática de há anos não serem celebrados
casamentos canónicos sem a prévia celebração do casamento civil. Continha ainda
normas sobre o processo de casamento, simplificando-as, e revogou diversos artigos do
Código Civil.
7 — Decreto n.° 14/86 de 2 de agosto (Diário da República, n.° 61), que veio
regulamentar a Lei n.° 10/85 e que aprovou o Regulamento do Ato do Casamento,
revogando diversas disposições do Código do Registo Civil. Este Decreto continua
ainda em vigor, mesmo após a publicação do Código de Família, que trouxe algumas
alterações à Lei n.° 11/85, pelo que carece de ser devidamente adaptado.
Há ainda que ter em conta que permanecem parcialmente em vigor alguns
diplomas vindos do ordenamento jurídico colonial, que não foram expressamente
revogados.
São eles os seguintes:
O Código do Registo Civil, aprovado após as reformas introduzidas pelo Código
Civil, foi publicado pelo Decreto-Lei n.° 47 678, de 5 de maio de 1967 e foi tomado
extensivo às ex-colónias pela Portaria n.° 23 101 (.Boletim Oficial de 30-12-1967,7.®
suplemento). Nessa portaria indicava-se que o código vigoraria como lei subsidiária,
até que fosse publicada lei do registo civil própria, o que, porém, nunca chegou a
acontecer.
Depois da Independência, em matéria de registo civil foram publicados alguns
diplomas que visavam facilitar a prática de certos atos de registo civil, sendo o mais
relevante o Decreto n.° 91/81, de 25 de novembro, sobre o registo de angolanos nascidos
no estrangeiro e sobre a justificação de óbito.
0 Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores, aprovado pelo Decreto n.°
417/71, de 29 de setembro, que definia a jurisdição de menores no domínio da
prevenção criminal e das providências cíveis aplicáveis no âmbito do direito familiar,
foi profundamente alterado pela publicação do Código da Família e parcialmente
revogado pelo Código de Processo do Julgado de Menores aprovado pelo Decreto n.°
6/03 de 28 de janeiro que no seu art. 86.® dispõe: «Fica revogado o Decreto n.0 417/71
de 21 de setembro, exceto quanto às disposições respeitantes aos processos cíveis que
ainda estejam em vigor (...)». Este diploma contem ainda normas vigentes em matéria
de processo relativa ao direito das relações paterno filiais.
Mais recentemente foi publicado o Decreto n.® 31/07 de 14 de maio a que
adiante nos referiremos.
[14] Antecedentes históricos do novo Código de Família, sua sistemática
a) Antecedentes Históricos
A Assembleia do Povo foi institucionalizada em 1980 e logo nos seus primeiros
trabalhos este órgão supremo do poder do Estado, reconheceu a necessidade imperiosa
de proceder a uma revisão de fundo em matéria de direito de família, a despeito das
dificuldades que tal tarefa representava para um país com limitados recursos técnico-
jurídicos.
Surgiu assim a Resolução da Assembleia do Povo n.° 2/82, de 12 de fevereiro,
que decidiu mandar proceder:
1 — À recolha de materiais sobre o casamento, a filiação, o divórcio, as
sucessões e outros para a compreensão do direito costumeiro a nível de todo o país,
devendo eles ser remetidos à Faculdade de Ciências Jurídicas e Administrativas.
1 — Lei n.° 53/76, de 2 de julho, que afastou a aplicação das normas da
Concordata, permitindo a dissolução dos casamentos católicos celebrados em Angola
ou entre angolanos; autorizou a conversão da separação de pessoas e bens em divórcio
e aditou novos fundamentos ao pedido de divórcio.
2 — Lei n.° 10/77, de 9 de abril, que equiparou os direitos e deveres de todos os
filhos em relação a seus pais, qualquer que seja o estado civil destes, proibiu qualquer
referência à qualidade de filho legítimo ou ilegítimo e decretou a abolição do termo
«incógnito» relativamente à situação de paternidade ou de maternidade. Continha ainda
normas quanto à composição do nome e do registo civil dos cidadãos.

3 — Lei n.° 9/78, de 26 de maio, com as respetivas retificações publicadas em


29 de julho de 1978, que versava sobre o divórcio por mútuo consentimento e revogou
os arts. 1786.° a 1788.° do Código Civil e os arts. 1419.° a 1424.° do Código do
Processo Civil.
4 — Lei n.° 7/80, de 27 de agosto (Lei da Adoção e Colocação de Menores), que
revogou todo o Título IV do Livro IV do Código Civil (arts. 1973.° a 2003.°),
respeitante à matéria da adoção.
5 — Lei n.° 10/85, de 10 de outubro, sobre a composição do nome, que alterou
o art. l.° da Lei n.° 10/77.
6 — Lei n.° 11 /85, de 28 de outubro, que aprovou a Lei do Ato do Casamento e
que concedeu unicamente validade aos casamentos celebrados perante os órgãos do
registo civil. No rigor da lei, os casamentos canónicos só deixaram de ter validade a
partir da publicação desta lei, mas vinha sendo prática de há anos não serem celebrados
casamentos canónicos sem a prévia celebração do casamento civil. Continha ainda
normas sobre o processo de casamento, simplificando-as, e revogou diversos artigos do
Código Civil.
7 — Decreto n.° 14/86 de 2 de agosto (.Diário da República, n.° 61), que veio
regulamentar a Lei n.° 10/85 c que aprovou o Regulamento do Ato do Casamento,
revogando diversas disposições do Código do Registo Civil. Este Decreto continua
ainda em vigor, mesmo após a publicação do Código de Família, que trouxe algumas
alterações à Lei n.° 11/85, pelo que carece de ser devidamente adaptado.
Há ainda que ter em conta que permanecem parcialmente cm vigor alguns
diplomas vindos do ordenamento jurídico colonial, que não foram expressamente
revogados.
São eles os seguintes:
O Código do Registo Civil, aprovado após as reformas introduzidas pelo Código
Civil, foi publicado pelo Decreto-Lei n.° 47 678, de 5 de maio de 1967 e foi tornado
extensivo às ex-colónias pela Portaria n.° 23 101 (.Boletim Oficial de 30-12-1967,7.°
suplemento). Nessa portaria indicava-se que o código vigoraria como lei subsidiária,
até que fosse publicada lei do registo civil própria, o que, porém, nunca chegou a
acontecer.
Depois da Independência, em matéria de registo civil foram publicados alguns
diplomas que visavam facilitar a prática de certos atos de registo civil, sendo o mais
relevante o Decreto n.° 91/81, de 25 de novembro, sobre o registo de angolanos nascidos
no estrangeiro e sobre a justificação de óbito.
0 Estatuto de Assistência Jurisdicional aos Menores, aprovado pelo Decreto n.°
417/71, de 29 de setembro, que definia a jurisdição de menores no domínio da
prevenção criminal e das providências cíveis aplicáveis no âmbito do direito familiar,
foi profundamente alterado pela publicação do Código da Família e parcialmente
revogado pelo Código de Processo do Julgado de Menores aprovado pelo Decreto n.°
6/03 de 28 de janeiro que no seu art. 86.° dispõe: «Fica revogado o Decreto n.0 417/71
de 21 de setembro, exceto quanto às disposições

respeitantes aos processos cíveis que ainda estejam em vigor (...)». Este diploma
contem ainda normas vigentes em matéria de processo relativa ao direito das relações
paterno filiais.
Mais recentemente foi publicado o Decreto n.° 31/07 de 14 de maio a que adiante
nos referiremos.

[ 14] Antecedentes históricos do novo Código de Família, sua sistemática


a) Antecedentes Históricos
A Assembleia do Povo foi institucionalizada em 1980 e logo nos seus primeiros
trabalhos este órgão supremo do poder do Estado, reconheceu a necessidade imperiosa
de proceder a uma revisão de fundo em matéria de direito de família, a despeito das
dificuldades que tal tarefa representava para um país com limitados recursos técnico-
jurídicos.
Surgiu assim a Resolução da Assembleia do Povo n.° 2/82, de 12 de fevereiro,
que decidiu mandar proceder:
2 — À elaboração de projetos de lei sobre filiação e processo de casamento.
3 — À elaboração de legislação sobre o divórcio (ser concedido quando o
casamento tenha perdido o seu sentido) e sobre as uniões de facto.
4 — A elaboração de novas leis que revogassem a legislação que, no domínio do
direito de família, fosse discriminatória cm relação à mulher.
Entretanto, no ano seguinte, pela Resolução n.° 1 /83, de 18 de março, a
Assembleia do Povo concluiu que «pelos trabalhos apresentados se pode constatar que
a comparticipação definida não é a mais desejável, não só porque impede uma visão de
conjunto mas também porque (...) iria dificultar a sua aplicação» e, consequentemente,
decidiu que até ao fim do l.° trimestre de 1983 se elaborasse um projeto global de Lei
de Família.
Esse trabalho foi efetivamente realizado e o projeto do Código de Família, depois
de devidamente elaborado, foi apreciado no âmbito da Comissão dos Assuntos
Constitucionais e Jurídicos da Assembleia do Povo.
A formulação de um novo Código de Família justificava-se por diversas razões.
Por um lado, ele veio integrar num só diploma o conjunto das normas deste ramo
de direito, com todos os benefícios que derivam da codificação das leis.
Ele trouxe igualmente a sistematização, clareza e acessibilidade do texto legal ao
cidadão comum, o que constitui uma caraterística do direito de inspiração socialista.
Note-se que não se trata da codificação de normas de direito já existentes, de uma
simples compilação de leis anteriores, mas antes da formulação de um novo direito
baseado em novos princípios, orientados para uma visão criadora de novas regras de
conduta que, por sua vez, irão exercer uma influência determinante no meio social.

Como vem expresso no Preâmbulo do Código de Família, procurou-se, através


dele, contribuir para um novo relacionamento familiar livre da opressão e da
discriminação. Ele visou estabelecer um novo tipo de relações no grupo familiar,
orientado no sentido da solidariedade e da assistência recíproca entre os seus membros
e, simultaneamente, no respeito pela individualidade e dignidade pessoal de cada um
deles.
O Código tem ainda uma função eminentemente política, no sentido da
uniformização do tratamento jurídico das relações sociais, agora tratadas de forma
unitária para todos os cidadãos do País.
Uma vez elaborado o Projeto de lei de Código de Família, foi apresentado à
Sessão da Assembleia do Povo que teve lugar em junho de 1984 e, em razão
da importância desse diploma na vida dos cidadãos, foi então decidido que o
mesmo fosse submetido à consulta popular, no âmbito da previsão legal contida no art.
45.° do respetivo Regimento.
A consulta popular processou-se em todo o País, tendo o projeto sido discutido
nas diversas Comissões da Assembleia do Povo, dos Assuntos Constitucionais e
Jurídicos, da Educação, Ciência e Cultura, nas Assembleias Populares Provinciais, nas
estruturas da organização partidária, nas organizações de massas como a Oma e a Unta
e nas organizações sociais como UEA (União dos Escritores Angolanos), a AEES
(Associação dos Estudantes de Ensino Superior) e outras.
Foi o mesmo divulgado através da imprensa escrita, da Rádio e da Televisão.
Dessa ampla discussão resultou a proposta de diversas alterações,
designadamente sobre a matéria respeitante à promessa de casamento, à idade núbil, aos
impedimentos para casamento, ao casamento urgente, aos efeitos económicos do
casamento, aos vícios do casamento e aos alimentos. Concluída a reformulação, foi
então elaborado um extenso Relatório que acompanhou a versão final do Projeto
submetido à apreciação final da Assembleia do Povo.
Consta do Relatório final: «em nenhumas das discussões foram postos em causa
os princípios fundamentais que presidem ao projeto. Pelo contrário, vários são os
relatórios que saúdam a elaboração do projeto, que permite adequar o direito de família
aos princípios políticos que regem o nosso processo revolucionário, salvaguardando as
realidades concretas do nosso país».w
A própria Comissão que elaborou o Projeto propôs determinadas alterações e a
introdução de novos artigos no sentido de uma melhor arrumação das matérias e do seu
enriquecimento.
Apresentado o novo projeto devidamente reformulado, ele foi discutido na
Sessão da Assembleia do Povo que decorreu de 12 a 14 de agosto de 1987.
Dos trabalhos da Assembleia resultaram algumas modificações de pequeno
vulto. O Código de Família foi promulgado em 27 de outubro de 1987 e publicado em
20 de fevereiro de 1988, tendo sido aprovado pela Lei n.° 1/88, para entrar em vigor na
data da sua publicação (art.

l.°).Decorridos que são mais de 20 anos sobre a sua aprovação, reconhece-se que
se torna necessário a sua adaptação às novas conceções que se vão criando sobre o
direito de família, que acelcradamente se vão processando em todo o mundo.
b) Sistemática do Código de Família
A Lei n.° 1/88, que aprova o Código de Família, contém normas de natureza
transitória e outras de natureza processual.
Convém atentar no conteúdo do Preâmbulo, pois ele traça algumas linhas mestras
que alicerçam as novas instituições do direito de família: «O novo código insere-se no
combate de toda a humanidade progressista contra o obscurantismo (...)» e deve
entender-se «como meio real da emancipação política, económica e social dos
trabalhadores angolanos>>.
Na verdade, o novo código acolheu os princípios jurídico-sociais então
consagrados no direito de família dos países progressistas, adaptando-os à nossa
realidade.
No Preâmbulo vêm enunciadas as suas linhas orientadoras, tais como a proteção
de todos os filhos nascidos ou não do casamento dos pais; o da divisão justa das tarefas
e responsabilidades no seio da família; a igualdade do homem e da mulher em todas as
relações familiares; a abolição da validade do casamento canónico; o novo conceito de
casamento com maior relevância para os seus aspetos pessoais do que para os
patrimoniais; a possibilidade da legalização das uniões de facto; a nova conceção da
dissolução do casamento por divórcio; a garantia do direito ao estabelecimento da
filiação; a simplificação dos mecanismos da tutela; o reforço da obrigatoriedade da
prestação de alimentos, mormente quando destinados a menores, etc..
A Lei n.° 1/88 contém ainda normas sobre a sua aplicação no tempo (art. 3.°);
sobre a contagem de prazos de natureza substantiva (art. 4.°); sobre a concessão de um
novo prazo para a propositura da ação de impugnação da paternidade do marido da mãe
(art. 5.°).
Os arts. 6.° e 7.° contêm normas de natureza processual de grande interesse
prático, pois mandam aplicar a todas as ações de natureza familiar a forma do processo
especial de jurisdição voluntária do art. 1409.° do Código de Processo Civil, o qual, por
sua vez, remete para as normas processuais dos arts. 302.° a 304.°, referentes aos
incidentes da instância. O art. 7.° abre ao juiz um largo poder de intervenção processual,
alterando a posição do julgador de uma posição meramente dispositiva para uma
posição de intervenção na recolha da prova. O escopo do tribunal será o de obter a
descoberta da verdade material, de forma a poder decidir o objeto da lide de uma forma
justa e de acordo com a realidade dos factos.
Compreende-se tal posição ao ter-se em conta que no direito de família estão em
jogo não só interesses pessoais mas também interesses sociais. Estas alterações
só são aplicáveis em segundo plano, pois o próprio Código de Família inclui
normas dc natureza processual em diversos dos seus Títulos.
Por outro lado, estava-se na expetativa de que se procedesse a reformas na lei
processual civil vigente, de forma a simplificá-la e a torná-la mais consentânea com a
nossa realidade e também com as exigências de celeridade do mundo moderno, o que
infelizmente até ao momento não aconteceu.
Adotou-se transitoriamente esta via para permitir maior intervenção do juiz no
desenrolar do processo, procurando-se tornar este menos formal.
No art. 8.° vem transposta a matéria que vinha consignada nos artigos 3o, 4o e
5o da Lei n.° 53/76 sobre o pedido de conversão em divórcio da separação de pessoas
e bens, normas estas que foram mantidas com caráter transitório, para a hipótese, pouco
provável, de algum interessado não ter entretanto exercido aquele direito desde a data
da publicação da lei.
O art. 9.° veio confirmar a obrigatoriedade do registo civil de todos os atos
mencionados nos diplomas pertinentes, designadamente no Código do Registo Civil.
Os atos sujeitos a registo obrigatório vêm enunciados no art. l.° do citado Código. A
publicação do Código de Família tomou necessária a adaptação das normas do registo
civil ao novo diploma, com especial relevância em questões como a união de facto, a
filiação, a adoção e outras.
E, embora tenha sido elaborado um projeto sobre tal matéria em 1993, o certo é
que ele não chegou a ser publicado, como o não foi ainda a adaptação do Regulamento
do Ato do Casamento às normas do Código de Família.
Adiante veremos a importância das normas do registo civil e como elas se
refletem sobre a prova da titularidade do estado civil das pessoas.
O art. 10.° refere-se à revogação tácita da legislação anterior com conteúdo
contrário ao da nova lei e bem assim à revogação expressa de outros textos legais, em
especial das normas do Código Civil, bem como das diversas leis publicadas após a
Independência Nacional.
O conteúdo destas últimas leis foi, aliás, no essencial, integrado nos diversos
títulos do novo Código de Família fazendo parte dos respetivos institutos.
Do Código Civil vigente foram revogados o art. 86.° do Livro I sobre o domicílio
legal da mulher casada, os arts. 143.°, 144. e 146.° sobre a tutela, e a totalidade do Livro
IV sobre o direito de família.
As novas normas contidas no Código tornam urgente a necessidade de alterar
outros ramos de direito. As normas de direito das sucessões carecem de ser adaptadas
aos novos conceitos contidos no Código de Família, designadamente o da unidade do
conceito dc filiação, o de adoção como forma de parentesco, os direitos sucessórios na
união de facto, etc..
O Código Civii contém ainda normas de conteúdo abertamente discrimi¬natório,
tanto na parte geral (as normas de conflito em direito internacional privado em que
prevalece a lei pessoal do marido), como no Livro das Sucessões, normas que, embora
revogadas por inconstitucionais, deverão ser banidas do
código.
O Código de Família está dividido em oito Títulos: — Princípios fundamentais

— Constituição da família
— Casamento
— União de facto
— Relações entre pais e filhos
— Adoção
— Tutela
— Alimentos
O conteúdo dos 8 títulos é, em síntese, o seguinte:
0 Título I contém os princípios fundamentais que norteiam todo o diploma.
O Título II tem 3 capítulos: o das disposições gerais sobre as fontes das relações
jurídicas familiares, o do parentesco por laços de sangue, o da afinidade e do conselho
de família.
0 Título III, que é o mais extenso, compõe-se de 5 capítulos: o das disposições
gerais, que inclui o conceito de casamento, a ineficácia da promessa de casamento, a
capacidade matrimonial; o da celebração do casamento; o dos efeitos do casamento; o
da anulabilidade do casamento e o da dissolução do casamento.
O Título IV refere-se à união de facto e tem 3 capítulos: o das disposições gerais
com o conceito de união de facto e seus pressupostos legais, o do reconhecimento por
mútuo acordo c o do reconhecimento em caso de morte ou rutura.
O Título V tem 3 capítulos: o primeiro sobre os direitos e deveres entre pais e
filhos; o segundo sobre o exercício da autoridade paternal c o terceiro sobre o
estabelecimento da filiação.
O Título VI abre com o capítulo que contém os princípios gerais da adoção, vindo
depois o que contém as formas da adoção e o que se refere ao processo de adoção.
O Título VII contém 4 capítulos: o que contém as disposições gerais e se refere
aos sujeitos e fins da tutela; o da constituição da tutela; o do exercício da tutela e o do
termo da tutela.
O Título VIII, concernente aos alimentos, define no seu capítulo I o respetivo
conceito e os sujeitos ativos e passivos da obrigação alimentar, a forma da sua
prestação, a sua natureza e a cessação da obrigação; o capítulo II refere-se à
obrigação de alimentos em caso de casamento e de união de facto.
[15] Princípios fundamentais do Código de Família e seus conceitos genéricos a)
Princípios fundamentais do Código de Família
O Título I, «Dos princípios fundamentais», contém normas que, pelo seu alcance
e importância normativa, se podem equipar a verdadeiras normas de natureza
constitucional.
Os princípios básicos enunciados neste Título I vão servir de estrutura e nortear
todas as demais normas contidas no Código.
Podemos, em síntese, indicá-los da forma seguinte:
1) Especial obrigação do Estado de proteção à família, pela sua importância
como núcleo fundamental da organização da sociedade, promovendo o direito à
instrução, ao trabalho, ao repouso e a seguros sociais.
2) Especial obrigação da família de promover a educação cultural e moral de
todos os seus membros dentro dos princípios do amor ao trabalho e de fidelidade à pátria
e em especial a dos jovens, em ordem à sua integração na sociedade.
3) O direito de cada membro da família ao desenvolvimento da sua personalidade
e aptidões no interesse da nova sociedade.
4) A igualdade do homem e da mulher em todas as relações jurídicas familiares.
5) A igualdade de todas as crianças perante o Estado e a especial obrigatoriedade
da sua
proteção, tanto pela família como pelo Estado.
6) A criação de uma nova moral nas relações familiares, estruturada na igualdade
de direitos, no respeito da personalidade dos seus membros e no princípio da
solidariedade recíproca.
Através da concretização destes princípios, procura-se obter uma transformação
na estrutura familiar, de forma a conseguir que, ao nível das suas relações internas, se
estabeleça uma interdependência recíproca mais justa e mais favorável aos membros
que a compõem.
b) Conceitos genéricos do Código de Família
O Código de Família recorre a diversos conceitos genéricos ou conceitos de
con¬teúdo jurídico indeterminado, que a doutrina classifica como verdadeiras normas
em branco cujos limites não são definidos com exatidão e cujo preenchimento terá que
ser encontrado, em cada caso concreto, pelo intérprete ou pelo julgador.
A entidade ou o agente a quem caiba a aplicação da lei tem que se socorrer de
ideias supra-jurídicas, como os conceitos de boa-fé e de má-fé, para decidir de questões
tão importantes como a dos efeitos do casamento anulado (cfr. art. 72.° do Código de
Família). Na fundamentação do pedido de divórcio litigioso menciona-se que deve ser
invocada causa grave ou duradoura (art. 97.°) que comprometa a vida em comum dos
cônjuges. Nas questões que têm a ver com a situação dos menores, como seja a dos
direitos e deveres paternais, menciona-se que eles devem ser exercidos no interesse e
em beneficio dos filhos e da sociedade (art. 127.°, n.° 2). Nas decisões sobre o exercício
da autoridade paternal, o tribunal deverá sempre ter em conta o beneficio e o interesse
do menor e a sua adequada inserção no meio social (art. 160.°). Nos requisitos legais
para o adotante impostos no art. 199.°, n.° 1, alínea b) menciona-se que ele tem que
possuir idoneidade moral e bom comportamento social, especialmente nas relações
familiares. Na nomeação do tutor, o tribunal terá em conta os interesses do menor e da
sociedade (art. 233.°, n.° 1).
Trata-se de expressões propositadamente amplas e de contornos difusos, que vão
permitir a quem tem de aplicar a lei ter em conta, por um lado, os sentimentos
predominantes num determinado momento histórico, e, por outro, as circunstâncias
específicas do caso concreto. Só essa valoração complexa permitirá que a lei se tome
justa ao ser aplicada. No fundo, estamos perante a aplicação do princípio da equidade,
que, em sentido restrito, consiste na «apreciação das circunstâncias de facto confiada à
consciência do juiz e que éfeita de acordo com as ideias morais e sociais do povo a que
pertence» .
A vigência da lei, prolongando-se no tempo, torna necessário que se ajuste a
decisão à nova realidade concreta subjacente à norma jurídica. A integração dos factos
à previsão da norma legal nem sempre é uniforme e depende da conceção que a dado
momento a sociedade tem sobre determinados valores e até pode acontecer que em
simultâneo, se confrontem sobre as mesmas questões posiçõesadversas.
É no momento em que a norma vai ser aplicada que se vai delimitar para aquele
caso em concreto, a forma como se integra o conceito genérico.
[16] Relevância do direito costumeiro
O facto de coexistirem no mesmo país diversas etnias com usos e costumes
diferentes, embora possa ser positivo sob o ponto de vista da riqueza cultural, pode, por
outro lado, ser usado como elemento desagregador do novo Estado, suscetível de fazer
reavivar o tribalismo, travando o processo necessário à coesão política da nação.
Também a unidade legislativa, como é óbvio, põe fim à discriminação entre dois
tipos de cidadãos dentro do mesmo país que se verificava na ordem jurídica colonial,
que contrapunha o estatuto de direito pessoal regulado pelo direito escrito e o estatuto
pessoal do direito costumeiro.
É certo que diversos Estados adotam sistemas de pluralismo jurídico ou seja,
admitem que vigorem dois ou mais sistemas jurídicos diferentes e que eles se apliquem
diferentemente aos diversos grupos étnicos que coabitam dentro do território do
respetivo Estado. Este sistema era predominantemente aceite nas colónias britânicas
que previa em simultâneo a vigência em matéria de direito de família e sucessões, das
leis inglesas, das normas do direito indiano e do direito costumeiro das populações
indígenas.
Esta não é a orientação política do Estado angolano que já se afirmava «como de
caráter unitário e laico» pela Lei Constitucional, art. 4.°, n.° 2, alínea e).
O princípio de que Angola é um estado unitário vem reafirmado na Constituição,
no seu art. 8.° «Angola é um Estado unitário que respeita, na sua organização, os
princípios da autonomia dos órgãos do poder local e da desconcentração e
descentralização administrativas, nos termos da Constituição e da lei».
Sendo certo que a unidade legislativa, como é óbvio, põe fim à discriminação
entre dois tipos de cidadãos dentro do mesmo país que se verificava na ordem jurídica
colonial, e contrapunha o estatuto de direito pessoal regulado pelo direito escrito e o
estatuto pessoal do direito costumeiro.
No entanto, o pluralismo jurídico é hoje aceite como uma realidade do direito
angolano na recente opinião dos analistas. Entende-se que as alterações a nível político
e social que se operaram no país, permitem a coexistência de pluralismos jurídicos no
Estado que na sua essência é um Estado heterogénio.
Atualmente a Constituição no seu art. 7.° veio consagrar a aplicabilidade do
direito costumeiro: « É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não
seja contrário à Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana.»
Esta redação é distinta da que vinha prevista no Anteprojeto de Constituição que
não chegou a ir por diante, de além de não ser contrário à Constituição, tampouco «ser
contrário á lei». No referido Anteprojeto da República de Angola de 2004,
posteriormente abandonado, previa-se no seu art. 6.°: «É reconhecida a validade do
costume que não seja contrário à Constituição nem à lei vigente».
É certo que o direito costumeiro permanece a vigorar em Angola pois é
indesmentível a sua força e persistência não só pelas suas raízes culturais entranha¬das
nas comunidades, mas ainda em razão dos privilégios que ele outorga a certos membros
da família que dos mesmos não querem abdicar.
Tal é reconhecido pelos estudiosos da realidade jurídica angolana que
salvaguardam a existência do costume com efetiva vigência jurídica.112)
É um facto que nesta matéria, relevantes doutrinários vinham já sustentando a
existência no quadro normativo angolano de pluralismo jurídico.
«No que respeita ao pluralismo jurídico a primeira característica é a sua enorme
riqueza e complexidade. A riqueza reside no facto de sociologicamente vigorarem em
Angola e Moçambique várias ordens jurídicas e sistemas de justiça.
Quanto ao pluralismo jurídico, cuja relação geral não unívoca com a
democra¬cia ficou feita, a reflexão diz respeito aos múltiplos mecanismos de resolver
conflitos que analisámos na cidade de Luanda. »
No Código de Família procurou-se recolher alguns institutos tirados do direito
costumeiro, aproveitando o que de rico nos ensinou a experiência do nosso povo. Como
exemplo, podemos apontar o conselho de família, órgão de natureza consultiva do
tribunal, e a união de facto, de relevante preponderância na nossa realidade social, além
de outras opções feitas quanto ao regime económico do casamento e quanto à relevância
do vínculo do parentesco, entre outros.
Em contrapartida, não foram acolhidos outros usos e costumes não conci¬liáveis
com princípios fundamentais consagrados na lei constitucional ou em convenções ou
pactos internacionais que Angola subscreveu que, em última análise, têm a ver com os
direitos fundamentais da pessoa humana.
«Em última análise os atos que o direito não impõe nem proíbe, e que são por
isso irrelevantes para ele, ficam abandonados à disponibilidade das partes, que podem
assim escolher entre vários comportamentos (...)».
Por sua vez o constitucionalista Carlos Feijó aborda diretamente o
reconheci¬mento e validade do costume e sustenta que de acordo com o art.° 7.° da
Constituição:
«A primeira ideia que ressalta é a de que a validade e força jurídica do costume
são reconhecidos pela Constituição (...) a segunda ideia imediata que ressalta do
preceito é a de que a validade e força do costume não dependem da sua conformidade
com a lei (...). Só merece tutela do Estado se não contrariarem a Constituição e não
atentarem contra a dignidade da pessoa humana.»
E em conclusão afirma: «A natureza plural do Estado e nação angolana deu
origem a um processo que culminou no pluralismo jurídico da ordem jurídica angolana
caracterizado pela presença simultânea do direito do Estado e dos diversos direitos de
origem consuetinária ordemada nas comunidades rurais.»
«Nos anos pós-Independência o posicionamento do Estado angolano face ao
direito costumeiro pode caraterizar-se dentro dos critérios usados na doutrina como
vigorando praeter legem, ou seja, para além da lei escrita, ainda que, na opinião dos
comentadores, de uma forma tímida (...). No entanto, face ao direito costumeiro, a
posição tomada não foi nem de expresso repúdio nem de repressão, porque se não
proibiu a vigência das normas contidas nos usos e costumes. Tampouco, ao inverso, se
aceitou em bloco a sua vigência como normas de direito de aplicação coerciva, tal como
as do direito escrito» .
Põe-se, porém, a questão melindrosa e delicada de saber como apreender e
atender ao direito de família costumeiro, e em que medida é compatível com os
princípios fundamentais do ordenamento jurídico vigente. Acresce a falta de recolha
documental do teor do direito costumeiro que é diversificado nas diversas etnias do
País.
A autoridade do costume coexiste em regra com dois fatores:
— a autoridade dos chefes e a autoridade dos antepassados.
Para que se possa falar em costume como fonte de direito, é necessário, como é
sabido, que se verifiquem simultaneamente os seguintes requisitos:
— a existência de um determinado comportamento social reiterado e
comummente aceite pelos membros de uma determinada comunidade;
— a convição da obrigatoriedade desse comportamento, de forma a tomá-lo
vinculativo perante os membros dessa comunidade.
A propósito das questões do dote e do alembamento, que são explicáveis sob o
ponto de vista histórico e cultural mas que se traduzem em práticas discrimina¬tórias
contra a mulher, o Presidente da República sublinhou que elas não podiam ser
eliminadas de um dia para o outro pela simples publicação de um decreto.
Reconhece-se que só com a evolução global da sociedade e com novas condições
sociais serão alteradas ou eliminadas as tradições que não se coadunem com os novos
parâmetros do desenvolvimento e do progresso.
A alteração constitucional ora operada, obriga-nos a rever em concreto em que
medida é o direito costumeiro suscetível de aplicação coerciva e de reconheci-
mento a nível dos órgãos do Estado, designadamente dos Tribunais. A regra geral
é, como sabemos, a da aplicação da lei escrita de caráter geral e de cumprimento
obrigatório para todos os cidadãos. Pode aceitar-se, no entanto, que o costume seja
aplicável, em certas condições, a título integrativo, ou seja, em complemento da lei. O
costume será porém aplicável nas comunidades sujeitas às autoridades tradicionais,
quando não contrariem princípios constitucionais.
Neste aspeto específico há que ter em conta o que vem disposto na Lei n.° 18/88,
de 31 de dezembro — Lei do Sistema Unificado de Justiça, no que se refere à
competência dos Tribunais Municipais, pois nele vamos encontrar a possibilidade legal
de aplicação do direito costumeiro pelos órgãos juridicionais.
A alínea d) do art. 38.° desta Lei dispõe que compete aos Tribunais Populares
Municipais «Preparar e julgar as questões cíveis, seja qual for o seu valor, quando as
partes estiverem de acordo com a aplicação exclusiva de usos e costumes não
codificados, sempre que a lei o permita.»
Desta disposição pode retirar-se o seguinte quanto aos limites da aplicação do
direito costumeiro, seja qual for o ramo do direito em causa, desde que englobado na
designação genérica de causa cível:
— que as partes o aceitem voluntariamente;
— que ele não contrarie os princípios fixados na Constituição.
Infelizmente, o funcionamento dos Tribunais Municipais, a nível sobretudo das
províncias do interior do país, tem impedido até há pouco, um mais amplo exercício da
sua competência, que na prática tem vindo a incidir quase unicamente na área do direito
penal.
Não temos conhecimento da aplicação em concreto desta norma no âmbito do
direito da família Cremos mesmo ser de recear que o direito costumeiro esteja a ser
aplicado mesmo contra os princípios constitucionais, lá onde existia o vazio originado
pela falta de cobertura judicial para a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos, ou nos
casos em que são estes que evadindo-se da ordem jurídica legalmente estabelecida, vão
acolher-se às suas regras.
O estudo do direito costumeiro assume, sem dúvida, importância por duas razões
fundamentais: por um lado, possibilita o conhecimento aprofundado do comportamento
social de um determinado povo; por outro lado, proporciona o enriquecimento que pode
advir de alguns dos seus princípios.
De qualquer forma, em matéria de direito de família, o direito costumeiro não
pode, por si só, ser considerado como norma jurídica com poder normativo e
vin¬culativo obrigatório. Ele pode vigorar de facto entre grupos nacionais, na medida
em que tal for aceite tacitamente pelos membros de determinado agregado social. Mas
os princípios constitucionais são iguais para todos os cidadãos e o seu cumprimento só
pode ser exigido coercivamente dos órgãos do Estado com competência legal para tal.
Desde que não integrado na norma constitucional, o direito costumeiro no geral
só pode interessar aos juristas e aos tribunais, como órgãos de aplicação do direito,
como situações de facto subjacentes ao comportamento humano, e nesse aspeto a sua
importância real é indiscutível.
Não se deve nunca perder de vista, porém, que a sua importância está
circuns¬crita a este aspeto, não sendo admissível que uma norma do direito costumeiro
se sobreponha, ou, menos ainda, contrarie uma norma constitucional.
Considera-se inaceitável que dentro do mesmo Estado funcionem duas ordens
jurídicas distintas uma reconhecendo e proclamando os direitos humanos fundamentais
aos seus cidadãos e outra que consagre a sua discriminação e a supressão dos seus
direitos. Neste sentido podemos citar alguns dos mais distintos doutrinários do direito
africano.
Assim, Kéba M’Baye reconhece que nos países saídos da situação colonial se
verificava a coexistência de duas comunidades (uma europeia, outra africana), com dois
estatutos diferentes (um moderno, outro tradicional), «mas a distinção entre os cidadãos
e os indígenas não é mais possível em razão da igualdade de todos perante a lei, pelo
que é de tentar criar um direito unificado, aplicável ao conjunto dos nacionais, qualquer
que seja a sua origem, as suas crenças e os seus estatutos anteriores. >>
Também Guy Kouassigan, no seu estudo sobre direito de família na África negra
francófona, vem afirmar que «a elaboração de um novo direito de família aparece como
uma necessidade imposta pelos imperativos do desenvolvimento económico. Trata-se
de uma verdadeira revolução, que deve substituir por um direito criador do futuro tanto
quanto possível com a codificação dos costumes que opõem a sua imutabilidade às
necessidades de mudança.» E conclui dizendo: «o progresso é na verdade o
aprofundamento de si próprio (...) é necessário que se reaproprie do seu mundo
revalorizando os seus valores e os seus conceitos e que elimine o que não se prestar à
sua restruturação (...) como por exemplo a deturpação do dote costumeiro ou do
consentimento para casamento, trata-se de dados que perderam o seu fundamento
tradicional e que não se inserem no movimento de transformação. »
A realidade mostra-nos que entre os cidadãos do país existem diversos tipos de
comportamento, uns segundo a lei moderna, outros segundo os diversos
direitos costumeiros. Para estes últimos não será certamente de um momento
para o outro que se desvanecerá a suapraxis baseada em crenças íntimas e práticas
centenárias. Importa não perder de vista que em muitos países do continente africano
continua a vigorar, em matéria de direito de família, parte do direito costumeiro
(havendo até tribunais próprios para conhecer das questões afetas a tal matéria), e que
é em si diferente do direito escrito, o qual, em muitos casos, é ainda o direito colonial,
ou seja o direito francês na África dita ffancófona e o direito inglês na África dita
anglófona.
Podemos citar a República dos Camarões, que é um estado composto por cerca
de 250 grupos étnicos, onde vigoram em simultâneo as leis francesas e inglesas e as
diversas regras do direito costumeiro.
No Zimbabwe permanece igualmente o sistema da dupla vigência do direito
escrito c do direito costumeiro, o que tem suscitado acesas questões sobre a prevalência
da lei escrita sobre normas abertamente discriminatórias do direito costumeiro.
Designadamente, foi reivindicada a aplicação da lei da Maioridade Legal, lei publicada
depois da Independência e que reconhece a todo o cidadão, homem ou mulher, plena
capacidade civil, ao contrário do que acontece no direito costumeiro, em que à mulher
é atribuído um estatuto de menor durante toda a sua vida.
Ao analisar a textura da sociedade africana no período colonial sob domínio
inglês, Martin Chanok observa que o direito costumeiro não se limita a simples regras
de comportamento de uma comunidade, mas é uma forma de manter a ordem e as
relações de poder. Mais adiante acrescenta que nas antigas colónias britânicas a lei
costumeira era aceite como a congruência de interesses entre os homens mais velhos da
comunidade e os administradores britânicos. Conclui afirmando: «Não desejo que me
compreendam como subestimando a necessidade da intervenção do estado no direito de
família, com um papel vital no reverter de iniquidades estabelecidas e na proteção dos
dependentes. Em África, como em muitos outros lugares, a vida é vivida fora da lei e
envolve valores e padrões de comportamento que são diferentes dos que vêm
enquadrados no sistema legal».
No estudo sobre o direito de família no direito costumeiro da África do Sul,
igualmente se concluiu que: «A <invenção> da <tradição> dum direito costumeiro
africano teve profundo impacto no estatuto da mulher no direito costumeiro africano
(...). A invenção dum direito costumeiro tradicional, de família africano originou uma
significativa fonte de opressão, subordinação e discriminação contra a mulher.
(...) O sistema é na verdade um legado do passado (...). Ou vai a sociedade sul-
africana estabelecer uma nova sociedade baseada num sistema de direito de família
geral moderno, baseado em valores da dignidade humana, da igualdade, do não racismo
e do não — sexismo?»
Para concluir, entendemos que o direito costumeiro ou tradicional só poderá ser
reconhecido e aceite com força vinculativa de norma de direito se for livremente aceite
pelo cidadão e desde que a sua aceitação esteja em área da disponibilidade das partes.
Ele terá forçosamente que ser rejeitado quando o seu conteúdo viole princípios
constitucionais ou internacionais, como sejam o da liberdade e igualdade de todos os
cidadãos perante a lei, ou o do mútuo consentimento para a celebração do casamento.

Fontes das relações jurídicas familiares


Podemos caraterizar como negócios jurídicos familiares todos aqueles que
constituem, modificam ou extinguem as relações familiares. A causa nestes negócios
jurídicos está num interesse familiar.
No direito de família os negócios jurídicos familiares, como adiante melhor
veremos, podem derivar de simples factos naturais, ou consistir ou em atos unilaterais,
pois se precludem numa declaração de um só declarante, ou em atos bilaterais, que se
concluem com o acordo de duas vontades.
Como factos naturais temos a procriação e o nascimento com vida que vai dar
origem ao mais importante vínculo familiar — a filiação, como adiante veremos, e a
morte que só por si faz extinguir os vínculos familiares.
Como exemplo de um ato unilateral podemos apontar a declaração de adoção do
apelido do outro nubente, declaração que qualquer dos nubentes pode lazer no ato de
celebração do casamento. Negócio jurídico bilateral é o ato do casamento. Mesmo
quando intervêm duas vontades, o ato não se resolve num contrato propriamente dito,
pois as regras que regulam o direito das obrigações não lhe são aplicáveis.
A regra é que, pela importância dos atos jurídicos familiares, que vão gerar
situações de caráter duradouro, a lei prescreva uma forma solene para a sua prática,
como se verá. Definido o que se deve entender por negócios jurídicos familiares,
podemos agora ver quais são as suas fontes, ou seja, quais são os factos jurídicos dos
quais eles derivam. São fontes dos negócios jurídicos familiares os factos ou
atos jurídicos dos quais derivam os vínculos familiares previstos na lei, ou seja,
os que constituem a família.
É interessante comparar as fontes dos negócios jurídicos familiares, tal como
vinham previstas no Código Civil, com as que constam do Código de Família.
O Código Civil, no art. 1576.°, que iniciava o Título IV, referente ao Direito da
Família, estabelecia como fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o
parentesco, a afinidade e a adoção.
Já o art. 7.° do Código de Família diz que «são fontes das relações familiares o
parentesco, o casamento, a união de facto e a afinidade». E logo a seguir o art. 8.°
explicita que «o parentesco estabelece-se por laços de sangue e por adoção».
0 parentesco tem origem derivada da própria causa natural e biológica da filiação
pois estabelece-se sempre tendo por base uma ou mais relações de filiação. Por seu lado,
também teremos ocasião de estudar que a adoção constitui entre o adotante e o adotado
um vínculo idêntico ao da filiação, mas já não por razões biológicas tendo como origem
uma sentença proferida em processo de adoção, que em razão do efeitos que produz, o
Código de Família o englobou dentro do mesmo instituto do parentesco, que passou a
abranger o parentesco por laços de sangue e o parentesco por adoção.
Ao lado do parentesco surge, como fonte de relações jurídicas familiares, o
casamento, o qual é considerado por muitos dos doutrinários que estudam o direito de
família como a única fonte com dignidade para gerar relações familia-res, sendo as
demais dele derivadas. Segundo este ponto de vista, só através do casamento se
constituem relações legítimas entre o cônjuge e os seus parentes, ascendentes e
descendentes, sendo as relações familiares constituídas à margem do casamento simples
relações ilegítimas ou para-familiares.
É evidente que este não é o ponto de vista do Código de Família, que teve em
conta o facto de na sociedade angolana ter muito mais relevância o vínculo do
parentesco baseado na filiação do que o do casamento formalizado. Daí que se tenha
indicado que, além do casamento, a união de facto constitui também uma das fontes das
relações familiares.
A união de facto carece, porém, de ser reconhecida para que lhe possa ser
atribuída a plenitude dos efeitos previstos na lei, o que não significa que a união que
não possa ser reconhecida seja totalmente postergada por lei.
Por fim, a afinidade que deriva do ato do casamento e liga o cônjuge aos parentes
do outro cônjuge também constitui fonte de relações familiares, embora de muito menor
alcance.
Dentro da metodologia do Código de Família, estudaremos sucessivamente o
parentesco e a afinidade.
CAPÍTULO 4.0
NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE FAMÍLIA
Interessa apontar alguns aspetos de caráter geral que percorrem o direito de
família e que evidenciam a existência do próprio interesse familiar, ligado não só à
célula familiar, mas também a cada um dos membros que a compõem.
São traços gerais do direito de família que caraterizam este ramo de direito e
ajudam à sua compreensão, mas que admitem, no entanto, áreas diferenciadas e
exceções, pelo que não devem ser encarados de forma monolítica e de valor absoluto.

[18] Natureza de grupo e intercorrente


O direito de família define as relações jurídicas familiares que se desenvolvem
dentro de um determinado grupo, o grupo familiar. O grupo familiar é composto por
membros ligados entre si por diversos vínculos familiares: a filiação e parentesco (por
laços de sangue ou por adoção), o casamento e a união de facto, a afinidade e a tutela.
A esta comunidade dá o Estado o apoio necessário à sua proteção e
fortaleci¬mento, pois é do reforço do núcleo familiar que depende o desenvolvimento
dos indivíduos que o integram e, portanto, da própria sociedade de que fazem parte, ou
seja, em última análise, o da própria comunidade em geral e do Estado.
O grupo familiar, porém, não tem a natureza de pessoa jurídica, não sendo,
portanto, titular de direitos e deveres de forma autónoma. E isto porque o interesse
juridicamente tutelado é o interesse de cada membro da família e não o do grupo
familiar em si.
Diz-se que o direito de família é um direito de grupo porque, tal como o direito
do trabalho e o direito cooperativo, se desenvolve dentro de um grupo restrito e porque,
em primeiro plano, regula as relações dos membros desse grupo social.
Diz-se que é um direito intercorrente porque circula de membro para membro
em reciprocidade. Ou seja, aos direitos do marido em relação à mulher correspon-
dem os direitos da mulher em relação ao marido, e o mesmo ocorre nas demais
relações, entre pais e filhos, entre parentes, etc..
Dentro das relações de grupo podem caraterizar-se como direitos de natureza
relativa, recíproca e intercorrente, que se desenvolvem entre os membros da família e
estão baseados no princípio de solidariedade.
[19] Natureza funcional
Os direitos familiares são, na sua maior parte, verdadeiros poderes funcionais,
porque devem ser exercidos de acordo com a função social que a lei lhes assinala. Diga-
se, aliás, que esta conceção do exercício do direito de acordo com a sua íunção legal é,
por alguns juristas, tornada extensiva ao próprio direito civil, não sendo assim,
considerada como específica do direito de família.
0 fim em vista do qual o direito é exercido tem que ser aquele que é permitido
por lei, sob pena de abuso do direito.
Assim, os direitos que regulam as relações familiares são, simultaneamente um
direito e um dever, pois se, por exemplo, a lei reconhece aos pais o direito de guardar,
vigiar e educar os filhos, imputa-lhes, por outro lado, o dever de assim proceder. No
exercício do seu direito, o titular não pode agir como quiser nem para fins não
consentidos por lei, mas só com vista ao fim legal para o qual esse direito foi atribuído.
Não devem, pois, ser entendidos como direitos estritamente subjetivos, porque não
devem ser exercidos tendo em vista o interesse do seu titular, mas tão só o interesse que
a lei protege.
0 interesse juridicamente protegido é o interesse social, e o exercício do direito
desviado do fim legal conduz ao abuso de direito.
O direito-dever de uma cooperação permanente torna-se mais evidente no direito
de família e determina a forma como ele deve ser exercido.
[20] Predomínio da natureza imperativa e oponibilidade
Prova de que o direito de família não deve ser considerado como pertencendo ao
direito civil é a forma como o Estado intervém na defesa dos interesses desse importante
organismo social.
Com efeito, os institutos de direito de família são regulados na sua generalidade
por normas inderrogáveis, de natureza imperativa.
As normas relativas ao instituto do casamento, à sua dissolução por divórcio, à
filiação, às relações de parentesco, à adoção, à tutela etc., não podem ser derrogadas ou
substituídas por outras estabelecidas por acordo entre as partes.
Esta caraterística do direito de família evidencia o predomínio do caráter público
deste direito e mostra também a inconsistência da divisão bipartida do direito em direito
público e direito privado.
Existe, é certo, uma importante intervenção de autonomia de vontade em
diversos institutos de direito de família.
Podem citar-se o casamento e a adoção, que dependem, para a sua constituição,
de uma declaração de vontade inicial, seja do nubente ou do adotante.
A voluntariedade na constituição de vínculos familiares é comum ainda à união
de facto, à aceitação do cargo de tutor, etc..
A vontade dos nubentes é, por exemplo, revelante na adoção do apelido do outro,
ou na opção entre os dois regimes matrimoniais de bens que a lei prevê.
Na constituição do vínculo da filiação, a vontade do progenitor não intervém,
pois ele deriva do facto natural de procriação. Há diversas vias legais que levam ao
estabelecimento desse vínculo, independentemente da via da declaração de vontade
pelo próprio progenitor.
Também o consentimento é um elemento essencial em diversos institutos
familiares.
Mas os efeitos do casamento, da adoção, da tutela, etc., são os que a lei estatui,
o mesmo acontecendo com a escolha do regime matrimonial de bens que, a partir da
celebração do casamento, já não pode ser substituído por outro. O mesmo acontece com
o consentimento para o reconhecimento da união de facto, ou do divórcio por
consentimento mútuo, cujos efeitos vêm definidos na lei, não podendo ser objeto de
disposição por vontade das partes.
Diz-se ainda que os direitos familiares são de oponibilidade absoluta porque o
respetivo titular pode opô-los erga omnes, isto é, os seus direitos podem ser invocados,
quer em relação à pessoa, membro de família, com a qual se estabelece o vínculo
intercorrente, quer em relação a qualquer terceiro, fora do grupo familiar. São direitos
estatuídos por lei e como tal oponíveis a todos.
[21 ] Natureza pessoal: titularidade exclusiva
Uma das caraterísticas essenciais do direito de família é precisamente o facto de
ser um direito eminentemente pessoal. É atribuído a alguém na sua qualidade concreta
e no seu próprio interesse, tanto moral como material. Os direitos familiares são, no
fundo, direitos essenciais da pessoa.
Têm que ser exercidos pelo seu titular de forma estritamente pessoal e exclusiva.
Mesmo quando, em certos casos, a lei permite que uma das partes seja representada
num negócio jurídico, a vontade expressa no negócio jurídico é a do

mandante e não a do mandatário. No casamento, por exemplo, é sempre a


vontade expressa pelo representado que é juridicamente relevante, e não a do
mandatário: como veremos, este atua como um simples «núncio», pois o mandante tem
que identificar a pessoa do outro nubente. A lei não admite um mandato genérico para
a celebração de quaJquer negócio jurídico familiar.
No caso de incapacidade, esta pode ser suprida pelo representante, mas quando
a lei exige o consentimento, este é dado pelo incapaz, embora autorizado pelo
representante.
O direito de família não é suscetível de uma valorização e compensação
económica. Não obstante, existem relações de natureza patrimonial dentro do direito de
família, tais como as que regulam o regime de bens, as dívidas dos cônjuges, a
administração dos bens dos filhos menores pelos seus representantes legais. Mas para
cada um deste tipo de relações patrimoniais há no direito de família normas específicas
que arredam as normas gerais do direito das obrigações e dos direitos reais.
E isto porque elas não têm como objeto relações jurídicas patrimoniais.
O direito de alimentos, como também veremos, embora possa ter como objeto
uma prestação de valor pecuniário, não é uma relação de conteúdo patrimonial, pois
tem como objeto imediato a sobrevivência da pessoa beneficiada por eles.
Da sua natureza eminentemente pessoal deriva, como consequência, o facto de
serem direitos indisponíveis, que não podem ser cedidos ou transmitidos a outrem por
vontade das partes.
Os direitos de família são intransmissíveis quer inter vivos ou mortis causa, pois
extinguem-se com a morte do respetivo titular. Excecionalmente, a lei permite que
alguns «direitos de ação» se transmitampost mortem a certos herdeiros.
Mas há manifestamente diferença entre o efetivo exercício de um direito familiar
e a mera transmissão de um direito de acionar para obter a produção de certos efeitos
de natureza pessoal ou patrimonial.
Isso sucede designadamente com a ação de anulação de casamento por falta ou
vício da vontade (art. 68.°, n.° 1), que tem que ser intentada pelo cônjuge. Mas, caso o
autor venha a falecer na pendência da causa, pode esta ser prosseguida pelos parentes
em linha reta ou pelos seus herdeiros. No caso de impugnação da declaração de filiação
feita por outrem que não o próprio progenitor, se ocorrer o falecimento deste podem os
herdeiros impugnar a declaração por via judicial — art. 189.°. Também nas ações de
reconhecimento da união de facto, em caso da morte, o direito transmite-se aos
herdeiros — art. 123.°, alínea b).
Acresce ainda que não são direitos que possam estar sujeitos a condição ou a
termo, o que impede que a aceitação dos efeitos legais esteja dependente da
verificação de determinado facto ou que esses efeitos perdurem apenas durante
determinado prazo fixado por uma ou ambas partes.
Ninguém pode pôr condições, como por exemplo fazer depender o
estabelecimento da paternidade da circunstância de o filho ser deste ou daquele sexo,
ou de ter determinados

atributos físicos ou intelectuais. Ninguém pode casar a prazo, declarando que,


findo determinado período de tempo, o casamento se considera findo.
Pela sua própria essência, são ainda, em regra, direitos irrenunciáveis, pois a lei
não consente que os seus titulares a eles renunciem, dado que, ao atribuí-los, a lei teve
em vista um interesse mais amplo do que o próprio interesse individual. São também
em regra direitos inalienáveis e imprescritíveis.
Isto vai ter relevância em relação às denominadas «ações de estado», que são
ações cujas decisões se vão repercutir no estado civil das pessoas e que produzem
efeitos em relação a terceiros — art. 674.° do Código do Processo Civil. Podemos
indicar como ações de estado as ações de divórcio, de anulação de casamento, de
reconhecimento da união de facto, as de estabelecimento judicial de filiação, as de
impugnação de filiação, de adoção, que são ações constitutivas de direitos.
Como elas versam sobre direitos pessoais e indisponíveis, estão sujeitas a um
regime processual específico.
O art. 299.° do Código do Processo Civil não permite a confissão, desistência ou
transação, quando a ação respeite a direitos de natureza indisponível. No seu n.° 2
permite a livre desistência nas ações de divórcio e separação de pessoas e bens, pois,
como veremos, estamos perante uma faculdade legal cujo titular pode ou não querer
exercer.
A confissão dos factos invocados pelas partes não é permitida quando a vontade
das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter —
art. 485.°, alínea c), do Código do Processo Civil. É porém de ter em conta que é
possível a confissão quando o facto jurídico em causa transcenda o âmbito da vontade
das partes.
Como veremos, nas ações para o estabelecimento de filiação seja do vínculo da
maternidade ou da paternidade, e que sejam propostas contra o próprio progenitor, este
pode vir aceitar ou por outras palavras «confessar» o facto. E isto porque o lacto jurídico
em que se baseia o vínculo da filiação é o da procriação c do nascimento com vida do
filho e não depende da vontade do progenitor.
Aliás no direito francês admite-se a confissão no processo de divórcio, que
configura uma das formas de dissolução do casamento, pois o mútuo acordo pode levar
à dissolução do casamento.
Temos ainda que atender ao facto de que a natureza da indisponibiiidade do
direito de família se reflete na impossibilidade da renúncia ao direito em si, mas não
impede que o titular do direito regule os respetivos litígios familiares por via da
conciliação ou recorrendo a processo de mediação preventiva ou no decorrer do
processo judicial.
Tal não significa que as partes não possam através de convénios regular os seus
próprios direitos estabelecendo regras que estabeleçam acordos em situações de
conflito. Esses acordos têm a natureza jurídica de pactos e podem ser feitos
extrajudicialmente e apresentados em tribunal ou feitos diretamente em tribunal. Se o
acordo ou pacto disser

respeito a filhos menores terão obrigatoriamente que ser sujeitos a homologação


do tribunal com prévia audição do Procurador da República.
São por natureza indivisíveis, pois não podem ser usados parcialmente: o seu
titular não pode usufruir de uma parte desses direitos e dispensar outra.
Há, no entanto, certos direitos no âmbito do direito de família, como o direito ao
divórcio, o direito a alimentos, que a lei consente que seja o titular a decidir, em
concreto, se quer exercê- los ou não. O titular é quem pode pedir ou não, que seja
decretado o divórcio ou que o obrigado seja ou não condenado a satisfazer a prestação
alimentícia.
Mas o direito em si não é afetado, dado que o que a lei proíbe é que alguém possa
renunciar ao direito que em concreto lhe é conferido por lei. Esta regra conhece uma
exceção, que respeita ao instituto da adoção, por via da qual o progenitor natural, ao dar
o seu consentimento à constituição do vínculo de adoção entre adotante e adotado, vai
fazer cessar o vínculo da filiação natural.
Da caraterística de direito de natureza pessoal resulta, por fim, o facto de os
direitos de família serem de natureza imprescritível, pois o direito não se extingue pelo
facto do decurso do tempo. Mas existe a caducidade relativamente ao direito de intentar
determinadas ações familiares, como a ação de divórcio, a ação de anulação de
casamento, a ação de reconhecimento de união de facto, etc..
O Código de Família aceita o princípio da natureza formal deste ramo do direito.
Podemos citar como exemplificativos deste princípio os que se referem à
obrigatoriedade da intervenção do tribunal nas ações do divórcio litigioso (arts. 97.° e
ss.), nas ações de anulação de casamento (art. 66.° e ss.), na constituição do vínculo da
adoção (art. 212.° e ss.), na ação de tutela — art. 224.°.
Os órgãos do registo civil são chamados a intervir, entre outros atos, na
celebração do ato de casamento (art. 33.°), na declaração de filiação, que pode também
ser feita perante o notário ou tribunal — art. 175.°.
Excecionalmente, até se prevê a intervenção do Ministro da Justiça, no caso de
validação do casamento por falta de requisitos formais — art. 73.°, alínea d).
A caraterística da tipicidade deriva da natureza imperativa do direito de família.
Os institutos do direito de família são limitados por numerus clausus o que quer
significar que só são permitidos os institutos previstos na lei, não estando dentro da
disponibilidade das partes criar outros por qualquer via.
A enumeração legal dos institutos é assim de natureza taxativa e só os que estão
previstos na lei de família podem como tal ser reconhecidos. É o que acontece com o
casamento, o divórcio, a filiação, a adoção, etc.. A lei não consente que as partes criem
institutos familiares por via contratual ou outra.
Alguns direitos de família são suscetíveis de posse, o que se traduz na detenção
em concreto e no exercício dos correspondentes direitos e deveres próprios de certa
situação familiar. Com especial relevância surge a posse de estado defilho, que consiste,
como veremos, em alguém aparecer como sendo tratado e considerado como filho de
certa pessoa. E também a posse de estado de casado, quando, por exemplo, homem e
mulher vivam como se casados fossem e como tal sejam reputados nas suas relações
sociais, embora não haja registo de casamento.
Fala-se em posse de estado quando se verifica que alguém está no exercício das
prerrogativas de uma determinada situação familiar. A posse de direito de família
constitui, no entanto, mera presunção legal da titularidade do direito respetivo.
[23] Estabilidade: o estado jurídico familiar
As relações de família são, por sua própria natureza, de caráter duradouro, delas
resultando situações jurídicas estáveis e permanentes a que se chama estados.
O status familiae, ou o estado civil, é caracterizado pela situação jurídica de cada
pessoa em relação a determinado grupo familiar em que se insere.
O estado civilé, pois, uma situação jurídica complexa e duradoura, e é formado
por um conjunto de direitos, deveres, faculdades, etc., relativos a uma determinada
pessoa enquanto membro da comunidade familiar.
Os estados de família que se reportam ao casamento são o estado de solteiro, o
estado de casado, o estado de divorciado ou de viúvo.
Em relação à filiação, temos o estado de filho\ quanto ao parentesco e à afinidade,
temos o estado de parente, o estado de afim, etc.. As falsas declarações sobre o estado
civil constituem um ilícito penal no Anteprojeto do Código Penal.(n
Os direitos pessoais familiares persistem enquanto dura a situação objetiva que
lhes serve de suporte. Assim, eles só se extinguem ou alteram por causas previstas na
lei. Por exemplo: a morte do cônjuge ou o divórcio dissolvem o casamento.
[24] Importância e obrigatoriedade do registo civil
Os direitos pessoais e os direitos familiares, pela importância social que têm na
vida de cada cidadão e da sociedade em geral, estão sujeitos a um regime especial de
registo que se denomina o registo civil.
0 registo civil toma públicos os factos pertinentes à identificação de cada cidadão
e bem assim ao seu estado familiar. Estão portanto sujeitos a registo os factos que
originam, constituem, ou modificam o estado jurídico familiar. Cabe assim ao registo
civil coligir e tornar público os dados fundamentais da vida de cada cidadão do País,
como seja o nascimento, o casamento, os outros factos decorrentes da vida familiar,
como o divórcio, o estabelecimento da filiação, a inibição da autoridade paternal, a
adoção, a tutela e a morte. É portanto pela via do registo civil que se prova a idade,
elemento integrador dos direitos civis e políticos, ou seja a capacidade civil e eleitoral
e se faz o recenseamento militar. Ele deve também servir para o Estado fazer a estatística
da sua população permitindo uma melhor planificação económica.

É pelo registo civil que se prova a condição de cidadão, por outras palavras, o
registo civil contem em si a prova da cidadania, da condição de cidadão angolano.
Na apreciação dos termos nacionalidade e cidadania há quem entenda que eles
se não confundem.(2)
Como regra o registo civil é obrigatório e consiste no único meio de prova dos
factos sujeitos a registo. Sem nos alongarmos na apreciação destas questões poderemos
adiantar que infelizmente por razões históricas e culturais, o registo civil em Angola
sofre de debilidades estruturais e não tem cumprido as atribuições que a lei lhe confere.
Para substituir a falta de registo civil, recorre-se com frequência à prova dos
factos por via de testemunhos, geralmente das autoridades tradicionais, que não se
revestem de precisão ou mesmo de veracidade. São por demais conhecidas as
dificuldades que têm advindo da falta de segurança do sistema de registo civil.
O art. 9.° da Lei n.° 1/88 mantem a obrigatoriedade do registo de todos os atos
previstos nas leis do registo civil e subsidiariamente no Código do Registo Civil em
vigor. O acesso às certidões dos atos do registo civil é, em regra, livre, mas as certidões
de cópia integral estão sujeitas a restrições. '
Os direitos familiares, pelo seu caráter estável e duradouro, estão
obrigatoria¬mente sujeitos a registo. O art. l.° do Código do Registo Civil define quais
os factos que constituem objeto do registo civil, havendo ainda a acrescer os que
importam a sua modificação ou extinção/ *
Porque são factos que se vão refletir na vida pessoal e familiar do cidadão, devem
ser objeto de registo obrigatório.
O registo civil destina-se a fazer prova dos atos sujeitos ao registo obrigatório.
Segundo a lei, na falta de registo, a prova só poderá ser feita por outro meio que conste
das ações de estado ou de registo civil — art. 4.° do Código de Registo CiviP*.
Como veremos diversos artigos do Código de Família reiteram este princípio: o
art. 38.°, n.° 1, quanto ao ato de casamento e o art. 162.°, n.° 1, quanto ao
estabelecimento da filiação.
No Código de Família foi alargada a intervenção das Conservatórias do Registo
Civil e a atribuição da sua competência em processos familiares. A elas passou a caber,
designadamente:
— receber a declaração dos nubentes sobre a adoção do regime económico do
casamento;
— o processo de divórcio por mútuo acordo que já lhe era atribuído pela Lei n.°
9/78 de 26 de maio, em certas condições;
— o processo de reconhecimento da união de facto por mútuo acordo;
— o processo de impugnação de declaração de filiação feita por terceiro que não
o progenitor;

— o processo de afastamento da presunção de paternidade do marido da mãe;


— a obrigatoriedade do envio ao Ministério Público competente da certidão do
assento de nascimento que seja omisso quanto aos vínculos da maternidade ou de
paternidade.
A prova dos factos constantes do registo quando derivem de enunciações feitas
pelo declarantes e não comprovadas diretamente pelo oficial do registo civil podem ser
objeto de prova em contrário, nos termos normais do direito.
0 registo civil está entre nós institucionalizado como função dos órgãos do
Estado de âmbito nacional. O seu fortalecimento e integração em todo o território
nacional é de importância vital para consolidação das próprias estruturas do Estado.
[25] Natureza específica da garantia
Aponta ainda alguma doutrina o facto de os direitos pessoais de família serem
direitos de garantia frágil ou resultarem de normas de juridicização de preceitos morais
fracamente coercíveis. A violação dos direitos impostos por lei fica muitas
vezes sem sanção.
Sendo normas de natureza pessoal, os comportamentos ou prestações que elas
determinam podem ou não ser realizados, sem que possa exercer-sc coação direta
sobre a pessoa que, por lei, está obrigado a cumpri-los.
qualquer outra, a não ser nas ações de estado c nas ações de registo. 2. Os factos
comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo, sem que seja pedido o
cancelamento ou a retificação dos assentos e averbamentos que lhes correspondem.»
Na verdade, sendo o direito de família eminentemente pessoal, se o próprio
titular o não quiser exercer ou o exercer ao arrepio da lei, o Estado ou o titular do direito
só por via indireta o pode coagir. O titular do direito que foi violado não pode, como
por exemplo no direito das obrigações, obter a execução específica. Mas há que
ponderar se pode ou não à face da lei obter indemnização por danos morais, dado que
nada na lei parece proibir tal ressarcimento.
Na conceção subjacente ao Código de Família vigente não era aceitável o
princípio da indemnização por danos morais em virtude da violação de deveres
familiares, dado que se não aceitava na conceção socialista do direito, o pretium doloris,
ou seja que os danos morais pudessem ser compensados com valores materiais.
Já outros sistemas jurídicos aceitavam o pedido de indemnização por danos
morais no caso de faltas familiares graves, devendo o pedido ser formulado em
simultâneo com o pedido de divórcio.
No direito português está previsto esse direito, na nova redação do art. 1792.° do
Código Civil, que lhe foi dada pela Lei n.° 61/2008 de 31 de outubro.
No entanto há certas violações dos deveres familiares que, pela sua gravidade,
constituem ilícito penal. Tanto assim é que os códigos penais tipificam crimes,
denominados crimes contra a família, tais como o crime de bigamia, o da subtração de
menores, o da não prestação de assistência moral e material à família, a violação
grosseira dos deveres paternais, etc..
A Lei n.° 2 053, de 22 de março de 1952 (Lei do Abandono da Família), pune a
não prestação alimentar ao menor ou ao cônjuge, a falta de assistência económica e
moral a filhos menores e ao cônjuge, o abandono do domicílio conjugal, desde que
preenchidas as demais condições especificadas no diploma. O certo é que essa lei se
mostrou quase totalmente inoperante e despida de valor coativo.
A própria legislação penal em matéria de violação ilícita dos deveres familiares
tem evoluído de forma sensível. O Código Penal Português, aprovado pelo Decreto-Lei
n.° 48/95, de 15 de março, previa como crimes contra a família o crime de bigamia (art.
247.°), o de falsificação de estado civil (art. 248.°), o de subtração de menor (art. 249.°),
e o de violação da obrigação de alimentos (art. 250.°). A Lei n.° 59/2007 de 4 de
setembro veio ainda punir a violência intra- familiar autonomizando a par dos maus
tratos, o crime de violência doméstica.
Teremos ocasisão de a propósito de cada instituto do direito de família, de
estudar as previsões da lei penal que recaiem sobre determinadas condutas.
O crime de adultério, por exemplo, deixou de ser punido na maior parte das
legislações penais, sendo certo que, em regra, o adultério da mulher era punido com
muito mais severidade do que o do homem.
Em compensação, alterou-se a lei, prevendo-se que o crime de violação possa
existir entre marido e mulher. Hoje procura-se proteger os membros mais débeis da
família, dar maior eficácia ao combate aos crimes ligados à violência doméstica e à falta
de assistência material que põem em causa a própria subsistência das pessoas que
compõem a família.
O Anteprojeto do Código Penal relativamente ao crime contra a liberdade sexual
pune como agressão sexual todo o ato sexual realizado por meio de violência., coação
ou colocação da vitima em situação de inconsciência ou de impossibilidade de poder
resistir — artigos I68°e 169°.
Prevê ainda especificamente Crimes contra a Família, que abrangem os crimes
contra o Casamento, o Estado Civil e a Filiação e contra Outros Bens Jurídicos
Familiares, como o Abandono Material, a Subtração ou Recusa de Entrega de Menor, a
Divulgação de Falsa Paternidade — artigos 221° a 232°.
A Lei contra a Violência Doméstica, Lei n.° 25/11 de 14 de julho a que atrás nos
referimos pune, entre outros, factos ocorridos no meio familiar.
Quando não constitua um ilícito penal, a violação dos deveres familiares pode
conferir ao titular do direito ofendido a faculdade do exercício de direitos. É o caso do
direito a pedir divórcio por violação dos deveres conjugais por parte do outro cônjuge.
No caso de violação dos deveres paternais, o Ministério Público ou o outro
representante legal do menor podem vir pedir a inibição da autoridade paternal
relativamente a quem a esteja a exercer.

No referido Anteprojeto do Código Penal prevê-se como pena acessória para os


crimes da natureza sexual a decretação da inibição da autoridade paternal do agente do
crime — art. 187.°.
Deve apontar-se que, em muitas legislações, se começa a manifestar, através de
diversos mecanismos instituídos com o propósito da proteção da família, a tendência
para assegurar maior garantia aos direitos familiares.
CAPÍTULO 5.0
O PARENTESCO
[26] Noção
O parentesco é o vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas
descender da outra ou de ambas procederem de ascendente comum.
No Código de Família, o conceito de parentesco por laços de sangue vem contido
no seu art. 9.°, nos termos do qual «parentesco por laços de sangue é o vínculo que liga
duas pessoas por virtude de uma descender da outra ou de ambas descenderem de
progenitor comum».
Tem, pois, como causa o facto biológico de alguém descender de outrem ou entre
ambos existir um comum ascendente. Tal como a generalidade dos direitos de família,
o parentesco é uma relação intercorrente entre duas pessoas que, neste caso, estão
ligadas por laços de sangue.
O conceito de parentesco é, pois, baseado, em regra, em laços carnais ou de
sangue, mas não quer dizer que ele seja assim uniformemente aceite por todos os povos,
pois em algumas estruturas familiares não são só os laços de sangue que estabelecem
as relações de parentesco.
Basta lembrar que no direito romano a família de tipo patriarcal era agnática,
pois era constituída pelos membros submetidos à patria potes tas, mesmo que não
ligados entre si por laços de sangue.
Há assim quem distinga entre a agnatio, que é o vínculo que se estabelece pela
subordinação comum dos membros da família ao respetivo chefe, e a cognatio, que é o
vínculo de parentesco baseado na comunidade de sangue. Quando se dá prevalência aos
laços de parentesco temos a família linhagem; se se atende mais aos laços de aliança,
temos afamília lar, mais restrita. Estes dois conceitos de parentesco podem aparecer nas
sociedades tradicionais africanas, nas quais, em certos casos, a mulher é considerada
como membro da família, embora não estando ligada por laços de sangue ao marido e
seus parentes.
Se forem tomadas em consideração de forma mais ampla as relações de
parentesco vamos encontrar a família extensa ou grande família. Se os laços de
parentesco forem restringidos ou limitados, temos a família estreita ou restrita que
representa a tendência das sociedades modernas.

Pode ainda aceitar-se o parentesco espiritual, como o do direito canónico, que


liga os padrinhos do batismo aos seus afilhados, figura que surge igualmente com maior
ou menor relevância quando alguém é introduzido por outrem numa determinada
comunidade.
[27] Linhas e graus de parentesco a) Linhas de Parentesco
0 conceito de parentesco do Código de Família é o mesmo que consta do Código
Civil no seu art. 1578.°, mas o Código de Família nâo consente qualquer tipo de
discriminação entre «parentesco ilegítimo» e «parentesco legítimo», ao invés do que
fazia o Código Civil. Dentro do ponto de vista que era defendido por este Código, o
parentesco legítimo era aquele que derivava de pessoas unidas pelo casamento e o
parentesco natural era o que advinha de pessoas não unidas pelo casamento. Nas linhas
de parentesco distingue-se entre a linha paterna e a linha materna que identificam a
ascendência pelo lado do pai e a ascendência pelo lado da mãe. Em certos sistemas de
parentesco predomina ou uma ou outra linha de parentesco, mas o Código de família
não faz qualquer discriminação.
Pode ainda classificar-se o parentesco em parentesco «duplo» ou «simples»,
sendo o parentesco duplo o de irmãos do mesmo pai e da mesma mãe, ou seja, de pais
comuns e com as mesmas linhas maternas e paternas de parentesco. No parentesco
simples, há só um vínculo que une o irmão a outro irmão, ou seja, só pelo lado paterno
ou só pelo lado materno.
O grau de parentesco costuma ser classificado consoante as suas linhas e pelos
seus graus.
As linhas e os graus de parentesco servem para determinar a proximidade e a
natureza do vínculo, como define o art. 10.° do Código de Família.
As linhas de parentesco são classificadas no art. 11.°, n.° 1 do Código de Família,
da seguinte forma:
a) linha reta ou estirpe, que liga as pessoas que descendem uma da outra;
b) linha colateral ou transversal, que liga as pessoas que têm um ascendente
comum.
A. Parentesco na linha reta
A linha reta liga, pois, entre si, as pessoas que descendem uma da outra ou seja
a estirpe. A estirpe é um tronco comum de pessoas que têm um ascendente comum.
Quando se considere a linha reta do ascendente para o descendente, ou seja, do
avô para o pai e para o filho, temos a linha reta descendente\ se caminharmos em sentido
inverso, a partir do descendente, ou seja filho, pai e avô, temos a linha reta ascendente
— art. 11.°, n.° 2 do Código de Família, tal como fazia o art. 1580.° do Código Civil.
Na linha de parentesco colateral, já se não encontra o encadeado de relações de
filiação, pois essa linha tem origem no facto de os parentes terem só um ascendente
comum.
Os ascendentes e os colaterais bifurcam-se em dois troncos distintos, os da linha
paterna e os da linha materna, quando o ascendente comum vem por via do pai ou por
via da mãe.
Relativamente aos irmãos é que pode haver simultaneamente a mesma
ascendência paterna e materna e temos os irmãos germanos ou bilaterais.
Mas se os irmãos têm unicamente o mesmo pai, já são consanguíneos e se têm
somente a mesma mãe são irmãos uterinos, sendo uns e outros irmãos unilaterais.
Vejamos as diferentes linhas de parentesco e a forma como podemos representá-
las graficamente para melhor apreensão deste vínculo familiar.
Tomando como ponto de partida X-EGO, temos os seus ascendentes em linha
reta materna e os seus ascendentes pela linha paterna.
Os primeiros são a mãe, os dois avós maternos, os quatros bisavós maternos e os
oitos trisavós maternos. Os da linha paterna são o pai, os dois avós paternos, os quatros
bisavós paternos e oitos trisavós paternos. Na linha reta descendente temos dois filhos,
quatro netos e oito bisnetos. Na nossa ascendência o número de ascendentes aumenta
em progressão aritmética: 2,4, 8,16,32, etc. na l.a, 2.a,
3. a, 4.*, 5.a gerações, de forma sucessiva e infinitamente. Figura 1 — Parentesco
em linha reta
B. Parentesco na linha colateral
O ascendente comum é A, que teve um filho B e uma filha B\ que são parentes
em 2.° grau, parentes na linha colateral, ou seja, irmãos. B é o pai de C e B* é a mãe de
C\ Na segunda geração temos os tios e os sobrinhos, ou seja B é tio de C’ e C é sobrinha
de B. B\ por sua vez, é tia de C e C é sobrinho de B\ Entre si, C e C são primos. Tio e
sobrinho são parentes no 3.° grau da linha colateral. C e C\ sendo primos, são parentes
em 4.° grau na linha colateral. O filho de C é D e a filha de C\ que é D’, são,
respetivamente, sobrinhos-netos de B e B\ que são seus tios- avós, parentes no 4.° grau
da linha colateral, e são primos de C e C\ parentes no 5.° grau da linha colateral e, entre
si, são parentes no 6.° grau da linha colateral, que é o limite legal do parentesco
estabelecido no art. 13.° do Código de Família.
A - PROGENITOR COMUM
Figura 2 — Parentesco na linha colateral C. Irmãos bilaterais e unilaterais

Tomemos como exemplo A (pai) que teve de X dois filhos, X’ e X”. A veio a
casar com B (mãe). A e B tiveram três filhos, respetivamente C, C’ e C”.
Posteriormente, B enviuvou de A e veio a casar com Y. De B e Y nasceram os filhos
Y* e Y”.
Relativamente a C, C’ e C”, temos que eles são entre si irmãos germanos ou
bilaterais. Já em relação a X e X’, eles são unicamente irmãos pelo lado do pai, ou seja,
irmãos consanguíneos.
E, em relação a Y* e Y”, C, C’ e C” são irmãos pelo lado de sua mãe, ou seja,
irmãos uterinos. Qualquer destes são, entre si, irmãos unilaterais.
Assim e exemplificando:
— A e B tiveram os filhos C, C’ e C” — irmãos germanos.
— A e X tiveram os filhos X e X’, que são, relativamente aC,Ce C”, irmãos
consanguíneos.
— B e Y tiveram os filhos Y’ e Y”, que são, relativamente a C, C’ e C”, irmãos
uterinos.
Os irmãos consanguíneos e os uterinos, como só têm um progenitor comum, são
irmãos unilaterais.
É de notar que X* e X” não têm qualquer vínculo de parentesco com Y* e Y”
por não terem entre si qualquer progenitor comum.
Figura 3 — Irmãos bilaterais e unilaterais
b) Graus de parentesco
0 parentesco é medido por graus, e é tanto mais próximo quanto menos são os
graus de parentesco que há entre dois parentes.
A lei define a forma do cômputo dos graus de parentesco, partindo aliás de uma
base natural de contagem das diversas gerações.
O art. 1581.°, n.° 1 do Código Civil explicava como se fazia o cômputo dos graus,
dizendo: «Entre parentes na linha reta, há tantos graus quantas as pessoas que formam
a linha de parentesco, excluindo o progenitor.»
O n.° 2 do art. 1581.° dizia que na linha colateral se contavam os graus pela
mesma forma, subindo por um dos ramos e descendo pelo outro, mas sem contar o
progenitor comum.
0 Código de Família faz por igual forma a contagem dos graus de parentesco,
embora no art. 10.° se fale de gerações e não em pessoas que compõem a linha de
parentesco.
Aplicando estes conceitos, veremos que a contagem dos graus de parentesco se
faz contando as gerações entre as pessoas em causa, ou contando os parentes incluídos
na linha de

parentesco e excluindo o progenitor comum, consoante se trate de linha reta ou


linha colateral.
Assim, entre o pai e um filho há um grau de parentesco; entre avô e neto, dois
graus; entre bisavô e bisneto, três graus.
Na linha colateral, temos os irmãos como parentes em 2.° grau; tio e sobrinho,
parentes em 3.° grau; os primos filhos dos irmãos, parentes em 4.° grau e os filhos
de primos são entre si parentes no 6.° grau.
Nesta linha somam-se os graus e exclui-se o ascendente comum.
A lei civil impõe limites ao parentesco na linha colateral, já que, na linha reta, o
parentesco não qualquer limite.
Assim dispunha o art. 1582.° do Código Civil, ao dizer que, salvo disposições de
lei em contrário, os efeitos do parentesco produziam-se em qualquer grau da linha reta
e até ao sexto grau da linha colateral.
No mesmo sentido dispõe o art. 13.° do Código de Família.
Na linha reta não há limites de parentesco, pois eles resultam do facto natural do
termo da longevidade humana, que não permite que coexistam vivas mais de três e
raramente quatro gerações.
Já na linha colateral o parentesco podia produzir-se indefinidamente, e daí o
limite previsto na lei.
O direito canónico faz a contagem dos graus de parentesco de uma forma
diferente, contando só o número de gerações entre o ascendente comum e os parentes
em causa. Segundo este critério, os irmãos são parentes em l.° grau; os primos co-
irmãos, parentes em 2.° grau; os primos segundos, parentes em 3.° grau, etc.. Havendo
dois ramos de extensão diferente, conta-se o mais extenso, como o parentesco entre tio
e sobrinho, que é do 2.° grau.
[28] Efeitos do parentesco: direitos, obrigações e incapacidades
O parentesco produz importantes efeitos de diversa natureza: dele derivam
direitos, obrigações e impedimentos.
Verifica-se que estes efeitos tendem, cada vez mais, nas diversas legislações, a
produzir-se entre parentes de graus mais próximos, pois a família extensa vai perdendo
a sua importância social e, restringindo-se o círculo familiar, vai ganhando maior relevo
a família restrita.
a) Efeito sucessório
O principal efeito do parentesco é o efeito sucessório. No caso de o autor da
herança falecer sem testamento, são chamados os sucessores legítimos — art. 2131.° do
Código Civil.

Nos termos do art. 2132.° do Código Civil, são sucessores legítimos os parentes
c o cônjuge. A ordem da sucessão legítima vem especificada no art. 2133.° e tem como
limite os colaterais do 6.° grau.
A classe dos sucessíveis vem ordenada de forma escalonada, de acordo com a
ordem e a proximidade do grau de parentesco.
O art. 2157.° do Código Civil define como herdeiros legitimários os
des¬cendentes e os ascendentes, que são especialmente protegidos.
b) Obrigação e direito a alimentos
Outro importante efeito que decorre do parentesco é a obrigação e o direito de
alimentos, que, como já temos dito, provêm do direito e dever de assistência que deve
existir entre os membros da família.
O direito e a obrigação de alimentos vêm regulados no Título VIII do Código de
Família e estabelecem-se entre pessoas ligadas por diferentes vínculos familiares, como
o parentesco, o casamento, a união de facto, a afinidade e a tutela, por vezes.
O art. 249.°, n.° 1 do Código de Família dispõe sobre quem está obrigado a
prestar alimentos ao menor, mencionando em primeiro lugar os pais e adotantes e depois
os outros ascendentes, irmãos maiores, e tios e o padrasto ou madrasta, o que significa
que a obrigação de alimentos a um menor se estende até ao 3.° grau da linha colateral e
a um afim, como veremos.
Entre maiores, a obrigação vem regulada no n.° 2 do art. 249.° e estabelece-se
entre cônjuge ou ex-cônjuge, descendentes ou adotados e irmãos, ou seja, na linha
colateral a obrigação estende-se só até aos parentes do 2.° grau.
c) Impedimento matrimonial
0 parentesco produz ainda efeitos no campo do direito matrimonial, pois pode
constituir impedimento matrimonial.
Há tipos de parentesco que importam a proibição absoluta de contrair casamento,
como é o caso do casamento entre parentes em linha reta (ex: entre pai e filha, ou entre
mãe e filho) e ainda o casamento entre parentes no 2.° grau da linha colateral, ou seja,
entre irmão e irmã. Era o que prescrevia o art. 1602.° do Código Civil e vem consignado
no art. 26.° do Código de Família.
O art. 26.° proíbe o casamento entre parentes ou afins na linha reta na sua alínea
a), e o casamento entre parentes do 2.° grau da linha colateral na sua alínea b). Os atuais
artigos 25° e 26° do Código de Família foram reformulados na sua redação após a
consulta popular efetuada sobre o projeto do Código para tornar mais compreensível o
seu conteúdo. No corpo destes artigos definc-se agora o próprio conceito de
impedimento matrimonial absoluto c relativo.

A redação do art. 26.°, alínea b) também foi alterada, pois onde antes se
mencionavam os «irmãos naturais ou adotivos» passou a dizer-se «parentes no segundo
grau da linha colateral», o que, por força do que já vem estatuído no art. 8.°, tem
precisamente o mesmo alcance.
O parentesco em 3.° grau, entre tio e sobrinho, constituía impedimento
meramente impediente segundo o que dispunha a alínea b) do art. 1604.° do Código
Civil.
Tal impedimento não vem previsto no Código de Família.
Esta questão foi objeto de controvérsia aquando da consulta popular do projeto
do Código de Família.
Houve quem sustentasse que se deveria introduzir obrigatoriamente o
impedimento de casamento entre tio e sobrinha ou entre tia e sobrinho, dado o lugar
privilegiado que tem o tio materno e a tia na sociedade em que predomina o sistema
matrilinear.
Tal tipo de união seria considerada incestuosa em diversas áreas do direito
costumeiro no nosso País.
Não obstante, essa posição não prevaleceu, porque se concluiu que não seria
necessário proibir tal tipo de casamento quando fosse o próprio direito costumeiro a
rejeitá-lo.
Os impedimentos matrimoniais relativos são fixados em normas de natureza
excecional, por serem de natureza proibitiva. Eles impedem a celebração do casamento
entre certas e determinadas pessoas e contêm restrições ao direito de casar. Ora o facto
de não se proibir não significa, como é óbvio, que esse tipo de casamento seja
favorecido pelo legislador.
O casamento entre tia e sobrinho ou tio e sobrinha poderá, pois, ocorrer entre
nubentes que não sigam as normas predominantes do direito tradicional, pelo que a
proibição não foi introduzida no Código de Família como impedimento matrimonial.
d) Exercício de funções e direito de acionar
Também veremos que o parentesco tem relevância no exercício de certas funções
de natureza familiar, como a de membro do conselho de família (art. 17.°, n.°s 1 e 2),
ou a de tutor de menor ou interdito (arts. 233.° e 235.°).
A função de membro do conselho de família é atribuída aos parentes das partes
no processo e a tutela cabe em primeiro lugar, de forma genérica, aos parentes do
tutelado.
De igual modo podem os herdeiros propor certas ações de estado, como a do
reconhecimento da união de facto por morte de um dos companheiros (art. 123.°, b)) e
de impugnação de declaração de filiação (art. 189.°), e os parentes na linha reta têm o
direito de prosseguir na ação de anulação de casamento (art. 68.°, n.° 1).
e) Impedimentos e inabilidades
O parentesco impede, por outro lado, o exercício, em determinados casos, das
funções de alguém que nelas está investido. Pode fundamentar o impedimento do Juiz,
no caso do art.

122.°, n.° 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil, que se referem cônjuge


aos parentes ou afins na linha reta ou no 2a grau da linha colateral ou ser causa de
dedução de suspeição com os fundamentos do art. 127.°, n.° 1, alíneas a) que se refere
ao cônjuge e aos parentes e afins na linha reta até ao 4o grau da linha colateral e d) que
se refere ao cônjuge e aos parentes ou afins na linha reta, do mesmo Código, nos casos
aí especificados.
O Código de Processo Civil, no seu art. 618.°, alínea b), define quais são as
inabilidades legais, por motivo de ordem moral, para depor como testemunha,
mencionando os descendentes e os ascendentes.
0 Código de Processo Penal tem normas proibindo certos parentes de serem
testemunhas (art. 216.°, n.° 3) e proíbe as perguntas sobre certos factos aos parentes,
afins e cônjuges (artigo 218°). O art. 125.° do Código de Processo Civil torna extensivos
aos representantes do Ministério Público e aos funcionários judiciais os artigos do
Código de Processo Civil que regulam os impedimentos e suspciçóes dos juízes.
f) Relevância noutros ramos do direito
O vínculo do parentesco tem também relevância no campo do direito penal, pois,
nos casos em que existe parentesco entre o réu e a vítima, tal facto pode constituir
circunstância agravante, como no caso do crime de parricídio, que prevê a qualidade de
ascendente da vítima como circunstância qualificativa do homicídio — art. 355.° do
Código Penal. No Anteprojeto do Código Penal o art. 136.°, alínea a) pune como
homicídio qualificado aquele que for cometido contra ascendente, descendente,
adotante ou adotado ou parente até ao 3ograu da linha colateral.
Quando o agente tenha agido em desafronta de parente, essa circunstância é tida
em conta para a atenuação da culpa — art. 39.°, n.° 13 do Código Penal.
O parentesco tem igualmente relevância no direito do arrendamento, pois o Dec.
n.° 43 525, de 7 de março de 1961, reconhece o direito à transmissão do arrendamento,
por morte do arrendatário, para o cônjuge, descendentes c ascendentes, nas condições
fixadas no art. 76.°.
CAPÍTULO 6.°
A AFINIDADE
[29] Noção de afinidade, linhas e graus
O vínculo de afinidade, segundo a lei, é aquele que liga cada um dos cônjuges
aos parentes do outro cônjuge. É o vínculo que deriva da aliança entre marido e mulher
e que se estende à família do outro cônjuge. Não advém de laços de sangue mas do
casamento.
É, assim, um vínculo pessoal que liga uma pessoa a todos os parentes do
respetivo cônjuge.
O art. 14.° do Código de Família diz: «Os parentes de um dos cônjuges são afins
do outro cônjuge».
A afinidade inicia-se com o casamento e só produz efeitos a partir da sua
celebração. Ao contrário do que acontece, por exemplo, com o estabelecimento da
filiação, não tem efeitos retroativos.
A afinidade não advém do facto natural da procriação e tem como causa o ato
jurídico do casamento, constituindo-se em relação a um parentesco alheio, ou seja, ao
parentesco do outro cônjuge. Mas como a afinidade não gera afinidade já não liga o
cônjuge aos afins do outro cônjuge.
A afinidade reproduz as mesmas linhas e os mesmos graus do parentesco.
O art. 15.° do Código de Família diz precisamente que a afinidade se determina
pelas mesmas linhas e graus que definem o parentesco por laços de sangue. Idêntico
teor quanto às linhas e graus de afinidade vinha consagrado no art. 1585.° do Código
Civil.
ss
Vínculo da Afinidade
AVÔ AVÓ AVÔ AVÓ w Av. Av: Av.*
(ENTEADO)
Figura 4 — Afinidade
A contraiu casamento com B.
B é filha de C e D.
B é irmã de B\ B” e B”\
B é mãe de F.
C é filho de Av. e Av.’ e D é filha de Av.” e de Av.’”.
B’ é pai de S, B” é pai de S’ e B’” é mãe de S”.
Em virtude do casamento de A e B, A passou a ter os seguintes vínculos de
afinidade com os parentes de B:
A é genro de C e D que, por sua vez, são, respetivamente, seu sogro e sogra,
sendo estes seus afins no l.° grau da linha reta, a qual é ascendente em relação a A e
descendente em relação a C e D.
A é cunhado de B, B’ e B”, que, por isso, são seus afins no segundo grau da linha
colateral.

A é padrasto de F, o qual é enteado de A, ou seja: A e F são afins no 1.° grau da


linha reta, descendente em relação a A e ascendente em relação a F.
Sogro e sogra, padrasto e madrasta, enteado e enteada e cunhados são
designações específicas do vínculo de afinidade, pois quanto aos demais afins, como
avô, tio, sobrinho e primo, a designação é a mesma que a do parentesco,
acrescentando-se «por afinidade» para expressar que o vínculo não está
estabelecido por laços de sangue.
Como se explicitou, a afinidade não se estabelece com os afins do cônjuge mas
tão só com parentes do próprio cônjuge.
Tal conceito estrito da afinidade não é aquele que predominou no passado e que
ainda predomina na sociedade tradicional africana, em que o casamento vai estabelecer
vínculos de aliança entre os próprios familiares de ambos os cônjuges.
A afinidade, tal como é reconhecida na lei vigente, restringe-se, pois, ao vínculo
que une os cônjuges aos parentes do outro cônjuge, mas não se estabelece entre os
parentes de um dos cônjuges e os parentes do outro, nem se estende aos seus afins.
Assim, os irmãos de um dos cônjuges são cunhados do outro cônjuge, mas já os
cônjuges dos irmãos não são seus afins. E igualmente os irmãos de um cônjuge são
cunhados do outro cônjuge, mas não têm qualquer vínculo com os irmãos dele.
Da mesma forma, se algum dos cônjuges tiver filhos de anteriores matrimónios,
estes filhos não são afins entre si, e por isso nada impede que venham a contrair
matrimónio.
No caso de o casamento ser declarado nulo extingue-se de imediato o vínculo de
afinidade, pois o casamento de que ele derivava foi dado sem efeito.
De igual modo, a união de facto que não chegou a ser reconhecida não é causa
de constituição do vínculo da afinidade.
Segundo o Código de Família, a afinidade também tem relevância para o
exercício de certos cargos de natureza familiar, como o de membro do conselho de
família (art. 17.°, n.° 1), o cargo de tutor do menor (art. 233.°, n.° 2).
Também o vínculo de afinidade em linha reta impede que alguém seja chamado
a depor como testemunha nas causas cíveis em que os seus afins sejam parte, e, nos
processos de natureza criminal, o impedimento abrange também os afins em 2.° grau,
ou seja, os cunhados.
Constitui igualmente caso de impedimento e de suspeição do Juiz e do
Magistrado do Ministério Público, nos termos da lei processual, já citada no capítulo do
parentesco.
[31] Não cessação da afinidade
O vínculo de afinidade está dependente do próprio casamento do qual ele deriva,
e segundo a conceção de que o casamento válido devia perdurar em princípio por toda
a vida dos cônjuges, entendia-se que a afinidade devia prevalecer depois da dissolução
do casamento.

A orientação de que o vínculo da afinidade perdurava mesmo depois da


dissolução por morte ou por divórcio do casamento é a consagrada no art. 1585.° do
Código Civil Esta é a posição adotada por outras legislações, como o direito civil
francês, italiano e espanhol.
No projeto do Código de Família propunha-se de forma diferente, entendendo-
se que em certos casos não se justificava a perduração do vínculo da afinidade para além
da dissolução do casamento.
O teor da proposta do projeto era o seguinte: «Salvo para o efeito de constituir
impedimento matrimonial, a afinidade cessa nos casos de dissolução do casamento por
divórcio e ainda nos casos de dissolução por morte quando o cônjuge sobrevivo contraia
novas núpcias».
Mas, após a discussão popular do projeto do Código de Família, prevaleceu a
opinião de que a afinidade devia continuar em todos os casos após a dissolução do
casamento, fosse ela por morte ou por divórcio.
A razão fundamental foi a do receio de que a dissolução do vínculo pudesse vir
a afetar as relações entre os afins do cônjuge e os filhos havidos durante o casamento,
ou seja, avós e tios relativamente aos descendentes do cônjuge que faleceu ou se
divorciou.
Apesar de se reconhecer que o vínculo de afinidade se torna bastante ténue no
caso da dissolução do casamento por divórcio, e que ele se não repercute em termos
jurídicos na situação que estava no centro das preocupações apresentadas,
pois o vínculo de parentesco com os menores não é afetado pelo divórcio dos
pais, o projeto foi alterado, dispondo o art. 15.°, n.° 2.° do Código de Família que: «A
afinidade não cessa pela dissolução do casamento». No entanto assinala-se que na
recente reforma do direito de família português o correspondente art. 1585.° do Código
Civil foi alterado e afinidade só não cessa pela dissolução de casamento por morte.
Em qualquer caso, é preciso ter em conta que a dissolução do casamento faz com
que os parentes do ex-cônjuge que surjam após a dissolução já não sejam afins do outro
cônjuge.
Por exemplo, os filhos do outro cônjuge tidos antes do casamento, ou os filhos
nascidos de terceira pessoa durante a vigência do casamento são enteados do cônjuge.
Mas os que nascerem depois de declarado o divórcio, já o não são.
Depois da dissolução do casamento já se não constitui o vínculo de afinidade
com os novos parentes do ex-cônjuge.
CAPÍTULO 7.0
CONSELHO DE FAMÍLIA
[32] Noção e alcance social
O novo Código de Família veio dar especial relevo ao Conselho de Família, que
surge como órgão coadjuvante das funções judiciais, chamado a intervir nas diversas
ações relativas às relações jurídicas familiares.
Ao atribuir ao Conselho de Família tal importância teve-se em mente a realidade
social subjacente à sociedade tradicional angolana.
O relevo que lhe é dado resulta do aproveitamento de um instituto familiar do
direito costumeiro a que se refere o relatório do Projeto do Código de Família.
É sabida a importância que nas relações familiares tem a intervenção dos
membros da família de uma e de outra parte, para resolver os litígios que se deparam na
vida familiar. São as chamadas «reuniões de família», que são convocadas para
apreciação e deliberação sobre questões e dissídios que surgem nas relações entre
membros da comunidade familiar. Normalmente são chamados a intervir os elementos
mais idosos ou os considerados mais idóneos pelos demais familiares.
Partiu-se da ideia de que os membros da família são os que, em princípio, melhor
devem conhecer os problemas e os factos que se processam no seu seio, suas causas e
possíveis efeitos e que, por isso, serão quem melhor poderá informar e dar parecer ao
tribunal sobre as questões submetidas a julgamento.
O Conselho de Família deve, por conseguinte, intervir nas ações em que se
discute a constituição, modificação ou extinção das relações familiares. Por esse
motivo, as normas que se lhe referem vêm inseridas no Capítulo IV do Título II,
«Constituição da Família».
O projeto do Código de Família referia-se ao Conselho de Família em dois únicos
artigos. Após a conclusão da discussão popular e em razão da importância que se
reconheceu ter este novo órgão nas ações familiares, foram introduzidas novas
disposições legais, que ampliaram a sua intervenção e vieram regular a forma
de designação dos membros do Conselho e a respetiva tomada de deliberações.
Foram então consagrados quatro artigos (art. 16.° ao art. 19.°) ao instituto do Conselho
de Família.
Quis-se deste modo sublinhar que as questões familiares nem sempre são do foro
exclusivamente pessoal das partes envolvidas e que elas se repercutem no meio social
em que as partes se inserem.
No Código Civil os poderes atribuídos ao Conselho de Família eram muito
restritos e previam- se unicamente no instituto da tutela, nos arts. 1951.° e seguintes. O
Conselho de Família era constituído unicamente por dois vogais e pelo representante
do Ministério Público, que a ele presidia.
O art. 1954.° imputava ao Conselho de Família a função de fiscalizar as funções
do tutor, devendo ser ouvido em deliberações sobre certas questões relativas à
instauração da tutela e à administração dos bens do tutelado e nas conferências de
interessados nos processos de inventário obrigatório.
Outro alcance é dado no Código de Família à intervenção deste órgão como
coadjuvante da administração da justiça, pois a sua participação junto do tribunal vai
desde logo permitir que sejam esclarecidas as questões que estão na base dos litígios
existentes, dando ao Juiz uma versão dos factos muito mais próxima da realidade do
que aquela que se pode obter através dos depoimentos de testemunhas.
[33] Natureza consultiva, constituição e indicação dos membros, funcionamento
a) Natureza consultiva
O Conselho de Família é chamado a coadjuvar o tribunal na sua função de
administração da justiça. É-lhe atribuída por lei uma função de órgão consultivo nas
ações de natureza familiar.
As deliberações do Conselho de Família não têm, assim, caráter executivo mas
meramente opinativo, pois, como a sua designação de conselho indica, trata-se de um
corpo pluripessoal que dá o seu parecer sobre a causa em apreciação, mas que não pode
decidir a questão.
No entanto, dada a composição do próprio órgão, a deliberação que vier a ser
tomada, mormente no caso de ser tomada por unanimidade, terá indiscutível peso na
apreciação que o tribunal fizer da causa.
O tribunal não está, porém, adstrito ao parecer do Conselho de Família, pois, de
acordo com os princípios que regem a função jurisdicional, o Juiz só tem que
decidir de acordo com a sua convição íntima, a partir de todos os elementos de
facto constantes dos autos e segundo os preceitos da lei a que deve obediência.
Não obstante, se o tribunal entender ser de afastar o parecer do Conselho de
Família, deverá justificar os motivos que o levaram a não o aceitar; deverá ainda o
tribunal expressar-se sobre o grau de isenção e imparcialidade que tiver sido
evidenciado pelos membros do Conselho de Família ao pronunciarem-se sobre as
questões postas à sua apreciação.
b) Constituição e indicação dos membros
O Conselho de Família é constituído por quatro membros. Dispõe o Código de
Família no art. 17.°, n.° 1 que «O Conselho de Família é constituído por quatro pessoas
que não sejam parte na ação.»
Quer-se assim dizer que os membros que compuserem o Conselho de Família
não devem ter qualquer interesse direto na decisão do caso.
A escolha deve ser feita seguindo esta ordem de prioridade: em primeiro lugar
os parentes, preferindo os de grau mais próximo, depois o cônjuge e os afins.
Quando não for possível integrar qualquer destes familiares, poderão então ser
chamados a fazer parte do Conselho de Família pessoas que convivam com as partes,
ou seja, das suas relações sociais.
Para intervir na ação pendente os membros do Conselho de Família devem ter
residência na área de jurisdição do tribunal. É que pode acontecer que as pessoas da
família das partes residam fora dessa área de jurisdição do tribunal ou até fora do País.
Neste caso, a lei permite que o Conselho de Família seja integrado por pessoas que,
muito embora não façam parte do grupo familiar, pertençam ao círculo de relações das
partes.
O art. 17.°, n.° 2 impõe a regra da representação equitativa dos membros do
Conselho de Família, por forma a garantir um justo equilíbrio no seu funcionamento.
Deste modo, se se tratar de ações em que sejam partes marido e mulher ou
companheiros de união de facto, o Conselho de Família será constituído:
— por dois membros da família do marido ou do companheiro da união de facto
e dois membros da família da mulher, como sucede designadamente nas ações de
divórcio, anulação de casamento, ou de reconhecimento de união de facto, de declaração
de presunção de morte e alimentos entre os mesmos;
Se a ação disser respeito às relações paterno-filiais, como as de estabelecimento
ou impugnação de filiação, exercício de autoridade paternal, adoção, tutela ou alimentos
entre pais e filhos:
— por dois membros da linha paterna e dois membros da linha materna do filho.
Nas demais ações, designadamente de alimentos fora dos casos atrás apontados,
por dois membros da família de cada uma das partes, segundo a mesma ordem de
precedência. 0 que se pretende é que as duas famílias, tendo como referência o homem
e a mulher, o filho ou interdito ou ambas as partes, tendo em conta a sua ascendência
paterna e materna ou as respetivas famílias, estejam representadas em igualdade de
condições.
Os membros do Conselho de Família são indicados pelas partes respetivas; se o
Ministério Público for parte na ação, deve igualmente fazê-lo, ou só por si, ou
conjuntamente com a parte junto de quem litiga.
Em princípio, a parte que pretenda que o Conselho de Família intervenha na ação
deve indicar quais os membros que, pelo seu lado, o devem integrar, identificando-os
na petição inicial, devendo a outra parte proceder de igual modo na sua contestação.
Se a parte que tenha o dever de indicar os membros do Conselho de Família o
não fizer, o tribunal poderá fixar às partes um prazo para o fazerem e, caso tal não seja
acatado, será o próprio tribunal a nomeá-los, depois de recolhidas as necessárias
informações. Permite ainda a lei que o tribunal, procedendo de forma idêntica, substitua
os membros do Conselho de Família quando necessário.
É desta forma que o art. 18.° do Código de Família regula a indicação dos
membros do Conselho de Família.
c) Funcionamento
Uma vez constituído o Conselho de Família, devem os seus membros, quando
forem chamados a intervir no tribunal, prestar juramento perante o Juiz,
comprometendo-se a desempenhar fielmente as suas funções.
Entendemos ser aplicável o disposto nos arts. 559.°, 593.° e 635.°, n.° 1, Código
do Processo Civil, que mandam prestar juramento a todos os que intervêm em tribunal,
mormente aos peritos que juram desempenhar fielmente as suas funções. São funções
de aconselhamento judicial que lhe é atribuído por lei e que se reveste de toda a
relevância na decisão da causa.
Ao serem chamados a desempenhar tão importante papel, «encargo que lhes é
confiado», e a opinar sobre o conflito em apreço do qual resultam efeitos decisivos para
as partes e até para terceiros, os membros do Conselho de Família devem pôr acima de
tudo a verdade e a justiça e desempenhar o cargo de boa fé, procedendo com isenção e
com espírito de neutralidade, de forma a ajudar o
tribunal a ter um conhecimento mais aprofundado da situação subjacente ao
litígio e a decidir com justeza.
O Conselho de Família só poderá reunir quando estiverem presentes pelo menos
um membro indicado por cada parte, e deve tomar as suas deliberações por
unanimidade. Quando tal não for possível, a decisão será tomada por maioria dos seus
membros — art. 19.°, n.° 1.
Quando não for possível obter uma deliberação, por não se conseguir maioria,
deve o tribunal mandar constar da ata o conteúdo das opiniões expressas, por forma
sucinta — assim o determina o n.° 2 do art. 18.° do Código de Família.
Admite-se deste modo que cada membro do Conselho de Família possa expressar
individualmente o seu parecer, no caso de não ser possível obter-se uma deliberação
que vincule o órgão.
[34] Intervenção obrigatória e intervenção facultativa do Conselho de Família
e nova perspetiva de intervenção
a) Intervenção do Conselho de Família
No projeto do Código de Família já se previa com bastante extensão a
intervenção do Conselho de Família nas ações de natureza familiar. Mas, como vimos,
após discussão popular a que o projeto do Código foi submetido, ampliou-se a sua
intervenção em certas ações específicas, como as ações de divórcio, ainda que de forma
facultativa.
O critério legal usado é o seguinte: a intervenção do Conselho de Família é de
caráter obrigatório, em certas ações especificadas na lei, o que significa que ele deve
ser chamado a intervir na ação, sob pena de nulidade processual. A falta de audição
deste órgão nos casos em

que a lei obrigatoriamente prevê a sua intervenção, leva à nulidade dos autos e
consequentemente da decisão que tiver sido proferida.
Noutras ações, a lei indica que o Conselho de Família poderá vir a intervir
facultativamente, seja por iniciativa das partes, seja por iniciativa do próprio tribunal,
quando o considere útil para a decisão da causa.
Convém, porém, ter em atenção que, por força do art. lé.°, n.° 2 do Código de
Família, a intervenção facultativa do Conselho de Família depende não só do facto de
as partes tal requererem mas ainda do tribunal entender que o pedido é pertinente.
A intervenção do Conselho de Família fica, pois, nestes casos, sujeita ao prudente
arbítrio do julgador.
Em síntese, podemos indicar que a audição do Conselho de Família se processa:
1 — Intervenção com caráter obrigatório
a) na autorização para casamento de menores quando houver injustificada recusa
por parte do seu representante — art. 24.°, n.° 3;
b) no reconhecimento por via judicial da união de facto - art. 125.°;
c) na escolha do nome do filho no caso de desacordo dos pais — art. 133.°, n.°
2;
d) na tutela, para a nomeação do tutor de menor e de maior interdito — arts.
232.°e235.°,n.01;
2 — Intervenção com caráter facultativo
a) nas ações de divórcio, quando for útil à conciliação dos cônjuges — art. 105.°,
n.° 3;
b) nas ações relativas ao exercício da autoridade paternal — art. 139.°, a);
c) nas ações de estabelecimento ou de impugnação de filiação — art. 195.°;
d) nas ações para instituição de adoção — art. 215.°;
c) em todas as demais ações familiares, segundo a regra geral do art. 16.°, n.°l b)
Novas perspetivas de intervenção
Como já referimos reconhece-se como necessários a existência de órgãos de
mediação familiar que possam intervir numa fase preliminar do litígio, ouvindo as
partes, propondo modos de comportamento novos, suscetíveis de atenuar os
antagonismos. Eles aparecem com uma função marcadamente neutral para pacificarem
os ânimos e elucidarem as partes sobre os seus direitos. Esses órgãos são quase sempre
integrados por técnicos especialistas, como psicoterapeutas, juristas, sociólogos, etc..
Entre nós, o Conselho de Família poderá em breve ser substituído por um órgão de
mediação e ser chamado a intervir numa fase pré- judiciária, ou seja, antes da introdução
em juízo de qualquer ação familiar, o que está em vias de ser implementado.
CAPÍTULO 8.°
A FILIAÇÃO
[35] Importância do direito da filiação; sujeitos da relação jurídica de filiação
a) Importância do direito da filiação
A filiação é a relação jurídica que se estabelece entre cada pessoa e os seus
progeni¬tores. Como os demais direitos familiares, é de natureza intercorrente e
recíproca e estabelece-se entre alguém e aquele homem e aquela mulher que o
conceberam.
A filiação constitui, por isso, o primeiro elo, certamente o mais profundo, entre
todos os que constituem as relações de parentesco.
O vínculo de parentesco é, aliás, o resultado de um encadeado mais ou menos
alargado de sucessivas filiações.
A situação jurídica do filho constitui um estado familiar que assume importância
fundamental dentro das relações de família. É nas relações de filiação que se manifesta
com maior relevo o princípio de solidariedade e cooperação que deve prevalecer entre
os membros da família de grau mais próximo, ou seja, entre pais e filhos.
Ao serem enunciados os princípios fundamentais subjacentes ao Código de
Família é sublinhado (art. 4.°) que as crianças merecem especial atenção no seio da
família e que a ela cabe, em colaboração com o Estado, assegurar-lhes a mais ampla
proteção e prover à sua educação. Este princípio tem hoje consagração no já citado art.
35.°, n.° 6, da Constituição.
O n.° 2 do art. 127.° do Código de Família explicita que: « Os direitos e deveres
paternais devem ser exercidos em beneficio dosfilhos e da sociedade».
Estamos perante verdadeiros poderes funcionais que são atribuídos ao respetivo
titular mas de que não é este o beneficiário.
O Estado, como sociedade politicamente organizada, tem interesse na defesa da
família e em especial na defesa das crianças. Essa defesa abrange a preservação
da sua vida, a saúde e o normal desenvolvimento e mais ainda a sua defesa quanto
ao aspeto da sua formação moral, inteletual e profissional. Por isso o Estado dá uma
especial atenção ao modo como são exercidos os direitos e os deveres paternais,
impedindo que eles assumam formas antissociais que prejudiquem a criança e a própria
sociedade onde ela vive.
O interesse do Estado na proteção do menor e da sociedade dentro das relações
jurídico- familiareséasseguradopela intervenção do Ministério Público nas ações
judiciais relativas à situação jurídica dos menores — consagrados na Lei n.° 22/12 da
PGR a que nos referimos. Estes poderes vêm atualmente consagrados na Constituição
— art. 186.°, alínea b).
Podemos dizer que o Estado controla a forma como os pais exercem os seus
direitos e deveres funcionais, chamando o tribunal a intervir quando eles são exercidos
contra os interesses dos filhos ou quando os pais os maltratam física ou inteletualmente,
ou são negligentes no seu exercício, abandonando-os e não lhes prestando a devida
proteção e assistência.
Tal como consta da Lei do Julgado de Menores aprovada pela Lei n.° 9/96, de
19 de abril e do Decreto n.° 6/03, de 28 de janeiro que aprovou o código de Processo de
Julgado de Menores e legislação complementar, o Estado através dos seus órgãos
judiciais e de assistência deve proteção social à criança.
Os direitos dos menores merecem pois, especial proteção por parte de todos os
órgãos estatais com competência para intervir nos assuntos que a eles dizem respeito,
tal como os Tribunais, a Procuradoria da República, as Conservatórias do Registo Civil,
os organismos de assistência, etc., constituindo uma área em que está em causa o
interesse público.
O papel dos pais na criação e educação dos filhos é considerado de primordial
importância, tendo sempre em conta que os pais têm o dever de o exercer no interesse
da sociedade em geral, colaborando com as escolas e as instituições sociais de apoio à
infância e à juventude na formação das crianças e dos jovens.
b) Sujeitos da relação jurídica de filiação
Podemos definir o instituto jurídico de filiação como o conjunto de normas que
estabelece essa relação específica entre pais e filhos, bem como as que definem os
direitos e deveres recíprocos entre uns e outros.
A palavra filiação vem do termo latino filliatio, que tem a sua raiz na palavra
fillius, da qual derivou «filho».
A situação jurídica de filho é assim um estado familiar de caráter permanente,
situação essa que, vista em sentido inverso, corresponde à situação jurídica de pai e de
mãe respetivamente.
A filiação é, pois, o vínculo jurídico que liga o filho a cada um dos seus
progenitores.
A relação jurídica de filiação desdobra-se em dois vínculos, o que se estabelece
entre o filho e o pai e o que se estabelece entre o filho e a mãe.
Pode também falar-se, com rigor, no vínculo de paternidade e no vínculo de
maternidade.
Ao falar-se de filiação pensa-se em geral na filiação natural biológica. Mas no
nosso sistema jurídico ela abrange igualmente a filiação adotiva.
Esta molda-se, aliás, precisamente nos termos em que se processa a filiação
natural, com a diferença de o vínculo de adoção ter como causa a sua declaração por
sentença constitutiva do vínculo.
No direito de filiação estão abrangidas as relações entre pais e filhos, em regra a
partir do nascimento dos filhos, mas com maior relevância durante a sua menoridade,
abrangendo o chamado direito dos menores e o complexo de direitos e deveres que
constituem a autoridade paternal.
Essas relações prolongam-se sob forma diferente após a maioridade dos filhos e
permanecem em regra durante a vida de uns e de outros.
A relação jurídica de filiação tem como causa o facto natural da procriação e não
está dependente do estado de casado ou não casado do pai e da mãe. Veremos que,
quando os pais estão unidos pelo casamento, a lei faz presumir o vínculo de paternidade
em relação ao marido da mãe.
A base da filiação é essencialmente biológica. Mas, porque nem sempre se vai
determinar diretamente a filiação biológica, a lei socorre-se de determinados critérios
legais para o seu estabelecimento.
O Código de Família afastou desta forma o sistema segundo o qual a filiação se
estabelece por reconhecimento do progenitor (pai ou mãe), que seria um ato voluntário
deste e por si só constitutivo de direito.
No Código Civil anterior este ato era designado por «perfilhação». É agora aceite
o sistema de filiação assente no facto natural da procriação, com repercussão jurídica
da filiação biológica.
O estabelecimento da filiação não depende, porém, da vontade do progenitor,
pois ele pode verificar-se por via de presunções legais, por via da declaração do
progenitor, ou de terceira pessoa, ou ainda advir de uma decisão judicial que a
reconheça.
[36] Direito ao estabelecimento da filiação
Para que os pais assumam a plenitude dos seus direitos e cumpram os seus
deveres para com os filhos, o Estado tem todo o interesse em que seja estabelecida a
filiação, quer em relação ao pai, quer em relação à mãe.
O direito ao estabelecimento da filiação vem hoje expressamente reconhecido no
art. 129.°, n.° 1, do Código de Família : «A todos é reconhecido o direito ao
estabelecimento da filiação» o qual deve ser considerado como direito fundamental da
pessoa humana.
A Convenção sobre os Direitos da Criança no seu art. 7.°, n.° 1, consagra: «A
criança será registada imediatamente após o seu nascimento e terá direito desde o
momento em que nasce a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a
conhecer os seus pais e a ser cuidada por eles.»
Este artigo consagra afinal o direito à identidade que assiste a cada ser humano,
distinguindo cada pessoa de todas as outras.
Este direito vem corroborado no art. 8.° da mesma Convenção que obriga a
«respeitar o direito da criança de preservar a sua identidade, inclusive a nacio¬nalidade,
o nome eas relaçõesfamiliares.»
Por sua vez a Carta Africana dos Direitos e Bem Estar da Criança no seu art. 6.°
assegura que a criança tem «direito ao nome, o direito ao registo e o direito a uma
nacionalidade.»
O Decreto n.° 31/07, de 14 de maio, veio no seu art. l.° determinar «Agratuitidade
do registo de nascimento e de óbito para a primeira infância (...) e na atribuição do
bilhete de identidade a menores na faixa etária prevista no artigo 7.°». Este diploma
veio tomar gratuito o registo de nascimento efetuado dos 0 aos 5 anos de idade e a
concessão gratuita do bilhete de identidade aos menores dos 8 aos 11 anos de idade.
No direito ao estabelecimento da filiação está subjacente o interesse público em
proteger o direito de todo o cidadão a conhecer os seus progenitores e o direito a que a
filiação que for estabelecida corresponda à verdadeira filiação natural. Direito hoje de
novo consagrado na Lei n.° 25/12 de 22 de agosto de 2012, a que atrás nos referimos.
Do estabelecimento da filiação paterna e materna deriva para o filho o direito à
titularidade substancial da relação de filiação.
O conceito de filiação hoje corrente como vimos, não é o que existia
anterior¬mente e que contrapunha os filhos legítimos (que advinham do casamento dos
pais) aos filhos ilegítimos ou filhos naturais, estes muitas vezes considerados como
filhos nascidos do pecado, os filhos bastardos.
Hoje aceita-se que a família tanto pode ser constituída com base no casamento,
como na união de facto, no parentesco com base nos laços de sangue, ou na adoção, não
havendo lugar à discriminação entre os seus membros em razão da sua proveniência.
Assim, todos os filhos têm, em relação aos pais, iguais direitos e deveres,
independentemente da existência ou não de vínculo matrimonial.
Aliás o atrás citado art. 35.° da Constituição veio no seu n.° 5 dispor: « Osfilhos
são iguais no seio da família, sendo proibida a sua discriminação e a utilização de
qualquer designação discriminatória relativa à filiação.»
Os pais têm, em relação aos seus filhos nascidos dentro ou fora do casamento,
iguais direitos e deveres e o Código de Família já consagrara no seu art. 128.° a
igualdade dos filhos, dispondo: «Osfilhos têm iguais direitos e estão sujeitos aos
mesmos deveres para com os pais, estejam estes unidos ou não pelo casamento.»
Chegou-se assim à aceitação de um conceito unitário de filiação, segundo o qual
a situação jurídica do filho é uma só, correspondendo a um único estado de filho.
O estabelecimento da filiação consiste essencialmente na questão jurídica de
determinar, em relação a cada pessoa, a sua filiação. Se é certo que ninguém, ao nascer,
vem externamente identificado como filho de tal pai ou de tal mãe, o legislador tem que
se socorrer de critérios legais que levem a atribuir em concreto a maternidade e a
paternidade em relação à pessoa em causa.
Sabemos que, relativamente ao direito à filiação, o Código de Família consagra
os seguintes princípios:
— cada cidadão tem direito a ver estabelecida a sua filiação;
— a filiação estabelecida deve, em regra, estar de acordo com a filiação biológica
ou natural.
Se a filiação não estiver estabelecida o filho carece do estado jurídico de filho e
o pai e a mãe carecem do estado respetivo, não podendo dejure exercer os direitos e
deveres que lhes cabem por lei. É o próprio Estado que procura assegurar o direito ao
estabelecimento da filiação a cada cidadão.
A titularidade substancial da filiação deriva do facto natural que é a procriação e
do nascimento com vida, convertendo-se em titularidade formal da filiação quando é
inscrita no assento do registo civil.
No campo da procriação da espécie humana e demais seres vivos, também os
avanços da ciência nas últimas décadas têm sido consideráveis e ela tem-se
desenvolvido de forma tão acelerada que as questões postas, de natureza jurídica, social
e ética, se tornam cada vez mais complexas.
Para o que agora nos interessa, e que é o estabelecimento do vínculo jurídico da
filiação, importa desde já aceitar que a filiação pode advir, além da forma normal da
conjugação carnal entre um homem e uma mulher, e de outras formas englobadas na
designação genérica de «procriação medicamente assistida ».
Estes métodos científicos de procriação surgiram da necessidade de tornar
possível que o homem ou mulher estéreis ou com dificuldade em terem filhos ou até em
razão do falecimento do parceiro masculino, venham a ter descendência.
As hipóteses desta procriação medicamente assistida são bastante diversificadas:
— doação de óvulos e/ou doação de esperma, com a fecundação de embriões
implantados no útero da mãe biológica;
— inseminação artificial em que a mulher é fecundada artificialmente, sendo
que, se a mulher for casada, pode dar-se o caso de a fecundação ser efetuada com o
esperma do marido, ou de dadores terceiros, com o consentimento do marido;
— fecundação em laboratório, ou seja, a fecundação in vitro, que dá origem ao
«bebé proveta», que é inserido no útero da mãe;
— situação em que intervêm mães portadoras, mães subrogadas ou mães
substitutas, situação em que a mulher que dá o óvulo que é fecundado não é a mesma
em cujo útero o embrião é inserido e no qual se processa toda a gestação e o parto;
— inseminação post-mortem na viúva a partir do esperma congelado do falecido
marido.
É evidente que as diversas situações que foram descritas exigem um
condicio¬nalismo legal que as regulem, bem como um suporte de princípios éticos em
que se baseiem e que variam consoante as convições aceites pelas diferentes
comunidades humanas.
Questões como o direito de recorrer à procriação medicamente assistida quando
não há condições para a fecundação normal pelo ato sexual, as do destino a dar aos
embriões excedentários após a fecundação artificial operada em laboratório, vão
prender-se com princípios tão importantes como o de determinar qual o momento em
que se inicia a vida do

ser humano. Sendo ainda que esses embriões guardados em laboratório poderiam
vir a ser usados para dar vida a seres humanos para além da morte dos respetivos
progenitores.
No caso das mães portadoras importa definir se o filho deve ser atribuído à
mulher que deu o óvulo ou àquela que suportou todo o processo de gestação e em cujo
útero ele se desenvolveu sucessivamente até ao nascimento. No caso de acordo prévio
com a mãe portadora sobre a entrega final do filho à mulher que deu o óvulo e em cujo
interesse se baseou a gravidez, como classificar esse acordo e qual a sua validade?
Princípios éticos e jurídicos, tais como o do anonimato dos doadores, da
gratuitidade das doações com proibição de venda de materiais genéticos, impres-
cindibilidade do consentimento dos diversos intervenientes nos procedimentos usados,
são já geralmente aceites. Definir quais os limites a pôr ao direito à procriação que
assiste a cada ser humano, e se o mesmo deve estar condicionado ao facto do progenitor
ser heterossexual ou homossexual, têm sido objeto de acesas controvérsias.
Questiona-se se o direito à procriação deve ou não ser considerado como um
direito humano fundamental, se deverá ser limitado ao condicionalismo económico-
social do genitor. Por outras palavras, como exigir tanto da futura mãe como do futuro
pai uma maternidade e uma paternidade consciente, tendo como prioritário o interesse
da criança ?
Não temos ainda no direito angolano nenhuma legislação sobre toda esta
complexa e controversa matéria e o Código de Família faz só uma breve alusão à
inseminação artificial que ocorre dentro do casamento, dizendo no art. 192.°, n.° 2 que:
« O marido da mãe não pode impugnar a paternidade do filho concebido por
inseminação artificial, à qual tenha prestado consentimento».
Pressupõe-se, neste caso, que tenha havido doação de esperma por terceiro que
não o marido, o que se costuma designar por procriação heteróloga, por vir dum dador
que não o marido.
Mas poder-se-á questionar sobre o procedimento a seguir se posteriormente o
marido vier a contestar a sua paternidade.^
Dada a omissão do nosso sistema jurídico relativo à procriação medicamente
assistida, o que não significa que cidadãos angolanos a ela não recorram, teremos
decerto que nos socorrer de normas integradoras para preencher o vazio legal.
[37] Novos métodos aplicáveis ao estabelecimento da filiação; conceitos legais
do estabelecimento da filiação
Em relação à titularidade substancial da filiação, a lei aponta critérios legais que
vão auxiliar a definir como se estabelece a filiação. Esses critérios variam consoante se
trata de estabelecer o vínculo da maternidade ou o vínculo da paternidade e ainda
consoante se está perante filho nascido do casamento ou fora do casamento.
O vínculo da maternidade vai-se estabelecer através do facto natural do parto,
que é diretamente verificável. Mas o mesmo já não acontece em relação ao vínculo da
paternidade,

que tem a sua origem no momento da fecundação do óvulo, por via sexual,
momento este que, no estado de evolução da ciência em que nos encontramos, não é
ainda determinável.
Atualmente dado os extraordinários progressos e avanços da ciência genética é
possível provar com um elevadíssimo grau de certeza a relação biológica entre pais e
filhos. Cada indivíduo apresenta o seu próprio sistema genético-cromossómico
diferente do outro.
Examinando as respetivas células com núcleo, o ADN (definido como uma
macro molécula complexa contida nas células de cada pessoa, mais precisamente no
núcleo celular) determina- se seja a identidade de cada indivíduo seja as dos respetivos
progenitores.
O gene é uma unidade na cadeia do ADN, o qual é a molécula dentro do núcleo
de cada célula. Em termos muito simples, temos que cada ser humano tem em cada
célula um núcleo que contém 23 pares de cromossomas que constituem o genoma. Por
exames específicos pode adiantar-se, com uma margem de erro praticamente nula, quem
é o pai biológico e a mãe biológica de cada ser humano.
A determinação do ADN é um verdadeiro bilhete de identidade genético.
Havia pois uma diversidade de situações, que tinham então a sua raiz na
incapacidade de determinação biológica da paternidade e que costumava ser sintetizada,
embora com manifesto exagero, na expressão latina mater semper est certa, pater
nunquam.
A mãe pode ser certa e por isso se fixa a regra segundo a qual o estabelecimento
da maternidade deriva do facto do parto.
É o que dispõe o art. 167.° do Código de Família, que estabelece: «0
estabelecimento da maternidade resulta em qualquer caso, dofacto do nascimento». Mas
o início da capacidade civil só se inicia com a vida do titular. Será pois simultaneamente
necessário que determinada mulher dê à luz uma criança, o que se traduz no facto do
nascimento, e que a criança havida desse parto nasça com vida e tenha determinada
identidade.
A prova da identidade da pessoa que nasceu pode fazer-se, na normalidade dos
casos, pela posse de estado de filho em relação à mãe.
Em suma, a maternidade estabelece-se pelo facto natural do parto e da identidade
biológica do filho.
Há conceitos legais que têm que ser tidos em conta e que eram de capital
importância para entendimento desta matéria, mostrando-se hoje com muito menor
relevância.
Esses conceitos são os de posse de estado de filho e o de período legal de
conceção. O primeiro interessa a todo o instituto do estabelecimento da filiação, quer
em relação ao vínculo da maternidade, quer em relação ao vínculo de paternidade, pois
consubstancia a situação material de filho. O conceito de período legal de conceção
interessa para fazer funcionar a regra da presunção da paternidade e releva quer haja
casamento dos pais, quer não haja.
a) A posse de estado de filho

Na introdução ao estudo do direito da família, já referimos que existem


determinadas situações de facto na vida familiar que, pela sua importância, o legislador
não pode desconhecer, sendo forçado a dar-lhes relevância jurídica.
Uma das mais importantes, no âmbito do direito da família, é a posse de estado
de filho.
A posse de estado de filho significa que este está a usufruir, de facto, da situação
de filho, estando na titularidade dos direitos e deveres que dessa posse derivam. A posse
de estado corresponde a uma situação material e aparente da situação de filho. O
conteúdo da posse de estado de filho, segundo os antigos comentadores, pode
desdobrar-se em três aspetos distintos e complementares: nomen, tratactus et fama.
O nome {nomen) significa que o filho usa o nome de família do pai ou da mãe,
evidenciando a sua integração na família e ainda simultaneamente que este, ao dirigir-
se aos seus progenitores, lhes chama respetivamente pai ou mãe, recebendo destes o
nome de filho.
O tratamento {tratactus) abrange toda a conduta específica de um pai ou mãe em
relação ao filho, como a prestação dos cuidados e desvelos próprios de tal relação
familiar e a correspondente assistência moral e material. Esse tratamento deve também
estender-se a outras pessoas ligadas por vínculos familiares, em especial pelo
parentesco.
Ayk/tfrf (/£;»*) abrange a reputação que o filho tem junto do público em geral,
e especialmente junto dos familiares da mãe ou do pai e respetivo meio social, da sua
situação de filho. É o reconhecimento da situação de filho como tal, pela família e pela
sociedade.
Para ser relevante, a posse de estado deve satisfazer determinados requisitos
legais. Ela deve ser contínua (isto é, prolongar-se no tempo sem interrupções) e deve
ser constante. Ela deve, em princípio, nascer no momento do nascimento do filho e
prosseguir no tempo, de forma pacífica e não equívoca.
A posse de estado ligada à existência de assento do nascimento, ou seja, ao
estabelecimento formal da filiação, constitui um índice probatório quase irre- fragável
da filiação.
A posse de estado de filho é um conceito que vai ser aplicado quer no
esta¬belecimento do vínculo da maternidade, quer no da paternidade. Para o
estabe¬lecimento da paternidade ele tem ainda maior relevância por constituir um
índice preferencial da filiação biológica.
Como ainda veremos, ela vai ter relevância na questão da paternidade do marido
em relação aos filhos nascidos de mulher casada, e ainda como presunção geral da
paternidade, no caso dos filhos nascidos fora do casamento dos pais.
O art. 169.° do Código de Família define o conceito de posse de estado dizendo:
«Dá-se por estabelecida a posse de estado quando ofilho seja tido e tratado como tal
pelo progenitor e assim seja considerado pelafamília deste e pelas pessoas do seu meio
social.»
b) O período legal da conceção
O período legal da conceção é um conceito jurídico fixado com a finalidade de
se poder atribuir a um homem a paternidade em relação a determinado filho. Isto deriva
do facto de

não ser possível, na generalidade dos casos, verificar direta¬mente o facto da


fecundação do óvulo, que é um processo oculto, pelo que surge a necessidade de se
indicar os parâmetros dentro dos quais ela pode ter ocorrido.
O período legal de conceção é determinado em termos latos pela lei.
Comprovado que o pretenso pai manteve, com a mãe do filho, relações sexuais com
caráter de continuidade durante o referido período, faz-se derivar desse facto a
presunção legal de que ele é efetivamente o pai. Essa presunção legal funciona
quer no caso de casamento dos pais, quer no caso de simples união de facto,
mesmo que não reconhecida. Trata-se de uma presunção júris tantum, suscetível de ser
afastada mediante prova em contrário.
Para se fixar o período legal da conceção tem que se ter em conta, como ponto
da partida, o facto certo e determinado que é a data do nascimento do filho. Vai então
contar-se retroativamente, a partir da data de nascimento, um período imediatamente
anterior de 300 dias.
O art. 166.° do Código de Família define este conceito e assume que a conceção
do filho se verifica nos primeiros 120 dias dos 300 que precederem o seu nascimento.
Em termos gerais, prevê-se que o tempo de gestação do ser humano se confine entre o
mínimo de 6 meses e o máximo de 10 meses.
A contagem para se estabelecer os limites legais de conceção opera-se da
seguinte forma:
a) não se conta o dia em que o nascimento ocorreu, como é regra do art. 279.°,
alínea b) do Código Civil, regra esta que é aplicável a todas as contagens de prazos
fixados na lei por força do art. 296.° do mesmo Código;
b) faz-se a contagem retroativa de 300 dias sobre a data do nascimento e vai
assim fixar- se o limite máximo de gestação do filho;
c) contam-se, a partir da data assim encontrada, 120 dias para diante, fixando-se
o limite mínimo de gestação, que não poderá ser inferior a 180 dias.
O período legal em que a conceção do filho se pode ter operado é, assim, todo o
período dos primeiros 120 dias que vão dos300aos 180 dias anteriores ao nascimento.
Admite-se que a fecundação se possa ter produzido em um dia qualquer desse período,
o que vai fazer funcionar a presunção de paternidade, que se pressupõe ter operado ornni
meliore momento dentro desse período de tempo.
Vejamos como exemplo o caso de uma criança nascida no dia 1 de dezembro de
um ano não bissexto. Para determinarmos qual o período legal da sua conceção, teremos
que encontrar qual o 300.° dia anterior ao seu nascimento, não contando o dia em que
ele ocorreu.
O período máximo de conceção, ou seja, os trezentos dias, vai retroativamente
cair no dia 4 de fevereiro anterior. Contam-se então 120 dias para a frente dessa data e
encontra-se o dia 2 de junho. O período legal de conceção, neste caso, é aquele que
decorreu entre os dias 4 de fevereiro e 2 de junho inclusive.

Este período de tempo não é de natureza rígida, e costuma ser fixado tendo em
conta o interesse do filho, admitindo que a conceção pode ter decorrido dentro de todo
esse período. É possível, em concreto, fixar a data provável de conceção, através da
determinação do período em que se processaram as relações sexuais de que poderia ter
decorrido a fecundaçào.(3)
Atualmente através de exames médico-legais feitos sobre a pessoa do recém-
nascido é possível determinar com limitada margem de erro, a duração da sua gestação.
Estes exames, que devem incidir sobre o peso, estatura, perímetro craniano e outros
aspetos do seu desenvolvimento físico e neurológico, podem alcançar a posteriori a
fixação da época da conceção dentro de uma margem de probabilidade de cerca de 2
semanas de diferença.
Consequentemente, a determinação feita a posteriori de que a data da conceção
e o tempo da gravidez foi mais ou menos prolongado, pode vir a afastar a atribuição da
paternidade a um pretenso pai. Mas se, durante todo o período legal de conceção, as
relações entre a mãe e o pretenso pai se mantiveram, a presunção funciona em pleno.
Ao fixar o período legal de conceção, o legislador teve em vista que o tempo
normal de gestação do feto humano é, no mínimo, de 180 dias, cerca de seis meses, e,
no máximo, de 300 dias, cerca de 10 meses. Excecionalmente, admite-se que o período
de gestação possa ser inferior a 6 meses ou prolongar-se além dos 300 dias, podendo,
segundo alguns, atingir os 302 ou 310 dias.
Se tal acontecer, terá que ser o interessado (o filho ou qualquer terceiro
legitimamente interessado) a fazer a prova de que a conceção ocorreu fora desse
período. É o que dispõe o n.° 2 do art. 166.° do Código de Família. Dá-se aqui a inversão
do ónus da prova e o tribunal, de acordo com a prova que for produzida, poderá fixar a
data provável da conceção fora do período legai.
A fixação da data provável da conceção pode ser pedida em ação específica
proposta para esse efeito, ou suscitada como questão de facto essencial em ação que
vise o estabelecimento ou impugnação de paternidade, quer para concluir que ela se
deve dar como provada, quer para a afastar no caso concreto.
[38] Filiação havendo casamento dos pais
No caso de haver casamento dos pais a filiação estabelece-se por presunção legal.
O casamento dos pais constitui a forma legal de constituição da família. Por isso
mesmo, a lei faz derivar dele, em relação ao marido e à mulher, simultaneamente,
(5) Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, p. 321. Coimbra,
1983: «A idade gestacional (...) diminuindo o período legal de conceção para um espaço
de tempo relevante muito menor e conseguindo provar que a coabitação entre a mãe e
o réu se verificou nessa altura, o autor acrescenta nitidamente o valor causal da
coabitação provada relativamcnte ao nascimento(...).»

o estabelecimento da filiação no que toca aos filhos concebidos e nascidos na


constância do casamento.
É esta a regra que vem contida no art. 163.° do Código de Família.: «0 esta-
belecimento da filiação do filho concebido e nascido na constância do casamento,
mesmo que seja anulado, resulta relativamente a ambos os pais do facto do
nasci¬mento, salvo os casos previstos nesta lei.» O facto de o casamento poder vir a ser
anulado não altera os efeitos jurídicos que ele produz em relação aos filhos.
A regra da atribuição da paternidade dos filhos nascidos de mulher casada ao
respetivo marido tem as mais profundas raízes históricas e é comum a todos os sistemas
jurídicos. É o princípio do favor legitimitatis que visa proteger a prole nascida de mulher
casada e nascida e concebida na constância do casamento. A presunção legal de que o
marido é o pai vinha já expressa no direito romano que assim se expressava: pater is est
quem nuptiae demonstrant.
Tal princípio radica no facto de que a vida matrimonial entre o marido e a mulher
estabelece entre ambos a plena comunhão de vida subjacente à própria substância
material do casamento.
A mulher casada deve manter relações sexuais com o seu marido, cumprindo o
débito conjugal, sendo certo ainda que ela está adstrita ao dever de fidelidade. Dessa
dupla situação deriva a regra legal da qual se infere que a paternidade dos filhos
nascidos de mulher casada deve atribuir-se ao marido da mãe, uma vez que é de admitir
a exclusividade das relações mantidas entre os cônjuges.
O dever de fidelidade da mulher ao marido faz derivar ope legis a regra legal de
que o marido é o pai dos filhos que nascem já na constância do casamento.
Esta regra geral só admite exceção quando não estiver estabelecida a posse de
estado de filho entre este e o marido da mãe.
Nos sistemas jurídicos que aceitam a classificação da filiação em filiação
legítima e ilegítima, entende-se que a filiação legítima é indivisível, porque,
estabelecida a maternidade da mulher casada, fica estabelecida a paternidade do marido
desta, pois ninguém pode ser filho legítimo de uma mulher unida pelo casamento a
determinado homem sem que seja este homem o pai.
Ou, a contrario, se o marido não for o pai, o filho será forçosamente ilegítimo.
Se a presunção de paternidade do marido tiver que ser afastada, o filho deixará de ter o
estatuto de filho legítimo para estar ligado à mãe por um vínculo de filiação natural.
Em Angola como já vimos, a distinção entre filiação legítima e ilegítima deixou
de ter relevância, muito embora a existência do casamento entre os pais vá fazer derivar,
por força da lei, o vínculo de paternidade em relação ao marido da mãe. É a proteção
do filho que se tem em mente ao ser estabelecida a regra contida no art. 163.° do Código
de Família.
De acordo com o conteúdo deste art. 163.°, é preciso distinguir entre o filho
concebido e o ülho nascido na constância do casamento.

Interessa agora invocar o conceito de período legal de conceção para melhor se


aplicarem as previsões deste art. 163.°.
a) Filho concebido e nascido durante o casamento
Considera-se concebido dentro do período do casamento o filho que nascer a
partir de 180.° dia após a celebração do ato do casamento. Isto porque se deve ter em
conta que o período mínimo de gestação fixado na lei é de 180 dias.
O filho que nascer antes de decorridos 180 dias após a data do casamento
(digamos, dentro dos 179 primeiros dias posteriores ao casamento) considera-se
concebido antes do casamento. O nascimento durante vigência do casamento, a partir
do 180.° dia posterior à celebração do casamento, confere ao filho o pleno direito à
atribuição do vínculo de maternidade e paternidade em relação a ambos os cônjuges.
b) Filho nascido depois de dissolvido ou anulado o casamento
Considera-se ainda concebido durante o casamento o filho que venha a nascer
até 300 dias após a dissolução ou anulação do casamento.
Se a dissolução do casamento se tiver operado por morte do marido, os 300 dias
contam-se a partir do dia seguinte à data do seu falecimento.
Se o casamento se tiver dissolvido por divórcio já pode ser entendido que não é
a data da dissolução do casamento por sentença transitada em julgado que servirá para
fixar o período de 300 dias.
Em princípio, a contagem dos 300 dias deve ser feita a partir da data do trânsito
em julgado da sentença, de acordo com o art. 81.°, n.° 1 do Código de Família. Mas
podem os efeitos pessoais do casamento cessar antes de declarada a sua dissolução
quando for fixado na sentença o fim da coabitação. No caso de divórcio por mútuo
acordo, o divórcio provisório proferido aquando da conferência dos cônjuges, faz
suspender o dever de coabitação dos cônjuges — art. 94.° do Código de Família.
No caso do divórcio litigioso, pode qualquer dos cônjuges pedir que seja fixada
na sentença que declare o divórcio, a data do fim da coabitação e pedir que cessem, a
partir dessa data, os efeitos do casamento. É o que vem consignado no n.° 2 do citado
art. 81.°. O que é fundamental em cada caso, é determinar se durante o período legal de
conceção o casal estava ou não separado de facto.
Assim, se tiver cessado entre os cônjuges o dever de coabitação, ou se a
coabitação cessou efetivamente por separação de facto, é a partir dessa data que se tem
que fazer a contagem do período de 300 dias. Nesses casos embora subsista
o vínculo formal do casamento, ele de facto deixou de existir por ter cessado a
plena comunhão de vida.

O filho que nasça até 300 dias após a cessação da coabitação beneficia da
presunção da paternidade do marido da mãe. Esta regra, como já vincámos, é suscetível
de ser afastada por prova em contrário que possa demonstrar perante
0 tribunal que a gestação em concreto durou mais ou menos tempo, através de
exames periciais efetuados após o nascimento do filho.
Também a mulher poderá usar de meios de prova tendentes a demonstrar que,
mesmo após a cessação da coabitação, voltou a manter relações sexuais com o marido.
Neste último caso, deixará de funcionar a presunção legal de paternidade do marido da
mãe, invertendo-se o ónus da prova, cabendo à mulher fazer a prova da paternidade do
marido. Estes princípios são aplicáveis mutatis mutandis ao casamento que for anulado
por sentença transitada em julgado.
c) Filho concebido ou nascido antes do casamento
Considera-se concebido antes do casamento dos pais o filho que nascer até aos
primeiros 179 dias posteriores ao casamento. Suponhamos que o filho nasceu em
1 de junho de um ano e que os pais A e B contraíram casamento em 1 de março
desse ano.
O período legal de conceção confina-se entre o máximo de 10 meses e o mínimo
de 6 meses. Ora, nesta hipótese, teríamos somente o período que abrange os meses de
março, abril e maio, o que leva a dar como certo que o filho foi concebido antes do
casamento, facto esse que afasta desde logo a presunção de paternidade do marido tal
como configurada na lei. Por maioria de razão, o mesmo acontece quando o filho nasce
antes de os pais terem celebrado o casamento.
Qualquer destas situações é hoje muito frequente. Muitas vezes, o facto de a
mulher se encontrar grávida antes do casamento leva a apressar o casamento para que
o filho nasça depois do casamento dos pais. Os filhos concebidos ou nascidos antes do
casamento estavam, segundo o critério do Código Civil, na situação de filhos ilegítimos.
O casamento dos pais operava a legitimação dos filhos. Os efeitos da legitimação,
consignados no art. 1875.° o Código Civil, eram os de conferir ao filho o estado e o
título de filho legítimo.
O Código de Família trata desta matéria no seu art. 164.°, englobando na mesma
disposição o caso de a conceção ou o nascimento do filho se ter operado antes da
celebração do casamento.
Esta disposição já não tem em vista, como é óbvio, conferir aos filhos
conce¬bidos ou nascidos antes do casamento o estatuto de filho legítimo, que não tem
hoje qualquer acolhimento legal.
Com eia visa-se o acolhimento de uma situação muito generalizada de existência
de filhos cuja proteção se pretende assegurar, pois simplifica a forma do
estabelecimento da sua filiação em relação a ambos os pais, se este, por qualquer razão,
ainda se não tiver operado. Assim, permite-se que, por declaração efetuada no processo
preliminar de casamento, os cônjuges mencionem se existem filhos já concebidos, no
caso filhos nascituros ou filhos já nascidos anteriormente a essa data.
Se tal declaração for feita, o Conservador do Registo Civil deverá lavrar,
concomitantemente com o assento do casamento, o assento ou assentos de nascimento
respeitantes aos filhos. Isto no caso de os respetivos assentos de nascimento não terem
sido lavrados, pois, se eles já existirem, será averbada a sua filiação em relação a um ou
a ambos os cônjuges consoante tenha ou não sido já estabelecida a filiação em relação
a ambos os pais.
Tem aqui plena aplicação o disposto no Regulamento do Ato de Casamento (o
Decreto n.° 14/86), que obriga os nubentes a declararem se têm ou não filhos nascidos
antes da celebração do casamento (art. 3.°, n.° 2, alínea e)). Tendo em conta que existe
muitas vezes negligência por parte dos pais em proceder aos registo dos filhos, esta via
permite, de forma expedita e simplificada, obter a declaração que leva ao
estabelecimento da filiação do filho em relação a ambos os progenitores, caso tal se não
tenha verificado antes.
d) Filho nascido do novo casamento da mãe
Esta questão irá ser abordada a propósito da não existência de impedimento
meramente impediente designado como «prazo intemupcial» podemos porém explicitar
qual a razão de ser da disposição legal contida no art. 165.° do Código de Família.
Pode acontecer que uma mulher casada dissolva o seu casamento e vá contrair
novo casamento antes de decorridos 300 dias sobre a data da dissolução do casamento
anterior. Pode até dar-se o caso de uma mulher já casada vir a contrair segundo
casamento sem estar dissolvido o casamento anterior, ou seja, em situação de bigamia.
Em tais situações, deparamo-nos com conflitos de presunção de paternidade.
Ora, dentro da regra prescrita no art. 163.° em conjugação com a do art. 166.°,
n.° 1, ambos do Código de Família, os filhos nascidos até 300 dias após a dissolução do
casamento presumem- se filhos do marido da mãe. Mas se a mãe tiver contraído novo
casamento logo a seguir à dissolução do anterior casamento, dado que o Código de
Família não instituiu nenhum prazo intemupcial, pode haver dupla presunção de
paternidade.
De acordo com o conceito de período legal de conceção que interessa para definir
o que deve entender-se por «filho concebido durante o casamento», se a mulher vier a
contrair novo casamento e se o filho nascer depois de 180 dias após a celebração do
segundo casamento e dentro dos 300 dias posteriores à data da dissolução do casamento
anterior, vão entrar em conflito duas presunções de paternidade, em relação a esse filho,
a do primeiro marido e a do segundo marido.
No caso de o segundo casamento ter sido realizado sem ter sido dissolvido o
casamento anterior, estaremos perante um casamento que está ferido de vício insanável
por falta de capacidade matrimonial da nubente. Mas, ainda que o casamento seja
anulado, esse facto não altera a presunção de paternidade em relação ao segundo
marido. Como veremos em relação aos efeitos do casamento anulado, estão
salvaguardados, pelas disposições dos artigos 71.°, n.° 3 e 163.° do Código de Família,
os direitos dos filhos dele nascidos.

Daí que, por força destas disposições legais, possa vir a verificar-se conflito de
presunções de paternidade. Para resolver tal conflito deve ter-se em conta o que dispõe
o art. 165.° do Código de Família. Esta disposição contém a presunção legal de que,
neste caso, a paternidade seja atribuída ao segundo marido e não ao primeiro, e isto por
uma questão de realismo, uma vez que o relacionamento com o marido do último
casamento deve ser aquele que, com mais probabilidade, levou à fecundação.
Embora o art. 165.° do Código de Família não o diga expressamente, tem que se
entender que a presunção da paternidade do segundo marido é uma presunção juris
tantum e como tal pode ser afastada em ação própria de impugnação. Nessa ação de
impugnação poderá intervir quem nela tiver legítimo interesse, ou seja, o filho,
representado pelo Ministério Público ou por si próprio, quando maior, e o primeiro ou
o segundo marido, para afastarem ou reivindicarem a paternidade do filho.
[39] Filiação não havendo casamento dos pais
Quando os pais não estão unidos pelo casamento, a lei não faz operar,
relativa¬mente a eles, o estabelecimento do vínculo de paternidade pelo facto do
nasci¬mento, pelo que há que operar o seu estabelecimento por via de presunções legais,
quando tal for o caso em concreto.
a) Vínculo da maternidade
O art. 167.° do Código de Família contém a regra geral segundo a qual o
estabe¬lecimento da maternidade resulta, em qualquer caso, do facto do nascimento,
como já foi mencionado.
Há, pois, que provar que uma mulher deu à luz determinado filho, bem como a
identidade do filho. Por nascimento deve entender-se a separação completa e com vida
do feto do ventre materno.
Se o feto se separa sem vida do ventre materno é um nado-morto, que não chega
a ter personalidade jurídica. A prova da identidade do fi lho faz-se, na generalidade dos
casos, pela posse de estado de filho, consubstanciada no tratamento próprio de filho que
a mãe lhe dispensa. Mas, na falta de posse de estado, essa prova pode ser por outros
meios (prova documental, por testemunhas, pericial etc.).
A falsa declaração sobre a existência de um parto por uma mulher que não tenha
dado à luz, constitui uma infração penal, o crime de suposição de parto, previsto no art.
340.° do Código Penal. A falsa indicação de nascimento ou morte de filho é igualmente
punida criminalmente, nos termos do art. 341.° desse Código.41
O Anteprojeto do Código Penal prevê igualmente os crimes de registo de
nascimento inexistente — art.0 226.° e o crime de parto suposto — art. 227.°.(5)
ARTIGO 340.°
(Parto suposto e substituição de infante)
1. A mulher que sem ter parido, der o parto alheio como seu, ou que tendo parido
filho vivo ou morto, o substituir por outro, será condenada a prisão maior de 2 a 8 anos.
§ Io. A mesma pena será imposta ao marido, que for sabedor e consentir.
ARTIGO 341.°
(Falsas declarações relativas a nascimento ou morte de infante)
Será punida com prisão maior de 2 a 8 anos e com multa a falsa declaração dos
pais dum infante, feita com o consentimento ou sem consentimento deles, perante
autoridade competente e com o fim de prejudicar o direito de alguém, e bem assim a
falsa declaração feita perante a mesma autoridade e com o mesmo fim, do nascimento
ou morte de um infante que nunca existiu.
ARTIGO 226.°
(Registo de nascimento inexistente)
1. Quem declarar no registo civil nascimento inexistente é punido com pena de
prisão de 1 a 3 anos ou com pena de multa de 120 a 360 dias.
2. Se a declaração for feita com a intenção de prejudicar outra pessoa a pena é de
prisão de 2 a 6 anos de prisão.
ARTIGO 227.°
(Parto suposto)
Quem der parto alheio como seu é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
A disposição do art. 167.° é bem clara ao dizer que o estabelecimento se opera,
em qualquer caso, pelo facto do nascimento, e isto tem o alcance de fazer produzir o
efeito jurídico do estabelecimento do vínculo, independentemente do facto de a mãe ter
ou não idade núbil.
Mesmo que a mãe não tenha idade núbil, a maternidade considera-se estabelecida
porque ela não depende da vontade do progenitor, antes deriva do facto jurídico do
nascimento.
b) Vínculo da paternidade
A lei estabelece dois casos de presunção da paternidade, mesmo que não haja
casamento entre a mãe e o pretenso pai.
Essas regras de presunção da paternidade vem expressas no art. 168.° do Código
de Família, que usa uma forma menos conclusiva do que aquela que consta do art. 167.°
respeitante ao estabelecimento da maternidade.
Diz o art. 168.° que a paternidade «pode resultar», expressão que indica uma
simples presunção legal, a admissão da possibilidade de que assim seja, e que o
legislador quis acolher na lei.
Trata-se de uma presunção ope legis, que a lei formula em benefício da atribuição
da paternidade aos filhos nascidos de pais não casados. Estamos perante uma disposição
inovadora que não constava do sistema jurídico anteriormente vigente. Esta disposição
do Código de Família visa fazer funcionar o beneficio da presunção legal de paternidade
em duas situações muito comuns entre nós e que em princípio devem levar a que se
considere como estabelecida a paternidade.
É o caso da posse de estado de filho e o de existência de união de facto entre a
mãe e o pretenso pai durante o período legal de conceção.
Em qualquer destes casos, o filho ou quem o represente, tem apenas que fazer a
prova de que se encontra na posse de estado de filho, ou que a sua mãe viveu em união
de facto com aquele que pretende ser o seu pai, durante o período legal da conceção.
Não se exige, como acontecia no Código Civil no caso da «convivência
notó¬ria» ou «concubinato duradouro» a que se referia o art. 1862.°, que a situação de
união de facto se tivesse prolongado para além do nascimento do filho.
Para aplicação do disposto no art. 168.°, alínea b), basta que tenha havido a
situação de união de facto durante o período legal da conceção. Não é necessário que a
união de facto tenha sido objeto de reconhecimento nem sequer se exige que reuna os
pressuposto legais para que se possa operar o seu reconhecimento.
O alcance deste art. 168.° é precisamente o de permitir que beneficiem da
presunção legal de paternidade em relação ao companheiro da mãe os filhos
nascidos de todas as uniões de facto existentes no nosso país, incluindo as uniões
poligâmicâs, que não poderão ser objeto de reconhecimento.
A força destas presunções legais não é, porém, de molde a impedir que o pretenso
pai as possa afastar e venha negar a sua paternidade. Simplesmente, se ele o quiser fazer,
terá que ser ele a provar que não é o pai.
O afastamento da presunção que deriva da posse de estado de filho, como consta
da abundante jurisprudência estabelecida sobre a matéria a propósito das disposições
pertinentes que constavam do Código Civil, não é questão de fácil aplicação.
A posse de estado de filho só pode ser afastada se o pretenso pai provar que, por
razão decisiva e convincente, veio a retirar ao filho o tratamento que lhe dispensava
nessa qualidade. Ou seja, o pai é que terá de provar o facto que alterou a situação
anterior em que considerava o filho como seu e que levou a modificar a titularidade da
posse de estado de filho que lhe atribuía.
No caso de presunção derivada de união de facto, será igualmente o pretenso pai
que terá de provar que a mãe manteve relações sexuais com outro homem durante o
período legal de conceção, ou que a união de facto se não verificou durante esse mesmo
período, ou existia impossibilidade física de o filho ser por si gerado.

[40] Estabelecimento da filiação por declaração


Não se trata propriamente de uma forma autónoma de estabelecimento da
filiação, pois a declaração de paternidade ou a declaração de maternidade deve coexistir
quer haja ou não casamento dos pais, e na generalidade dos casos coexiste com as
demais regras do estabelecimento da filiação derivadas de presunção legal.
Na verdade, quando os pais estão casados, podem e devem vir declarar o
nascimento do filho, podendo até ser só um deles a faze-lo. A declaração, nos termos
do Código do Registo Civil, que se aplica subsidiariamente, é obrigatória para os pais e
até para terceiras pessoas mencionadas na lei. Como declaração que é feita por um
cidadão perante uma autoridade pública, o funcionário do Registo Civil, ela está sujeita
às regras de direito penal no caso de falsidade.
A declaração deve pois atestar uma situação real e não fictícia}6'
^ Dccreto-Lei n.° 33 725, dc 21 de junho de 1944:
ARTIGO 22.°
Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário
no exercício das funções, identidade, estado, ou outra qualidade a que a lei atribua
efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com prisão até 6 meses.
Distingue o Código de Família entre a declaração feita pelo progenitor e a
declaração feita por terceiros. Esta declaração só se toma definitiva decorrido o prazo
para impugnação, sendo que o impugnante poderá ser, consoante os casos, ou a pessoa
indicada como progenitor ou o marido da mãe.
O pai ou a mãe têm o direito de declarar a sua situação para assumirem a
titularidade substancial do vínculo de paternidade ou de maternidade.
Este direito sofre, no entanto, restrições legais.
No caso de o filho nascer de mulher casada, já se não permite, a não ser a título
excecional, como adiante veremos, que outro homem que não o marido, venha declarar
a sua paternidade.
O outro caso dá-se quando se constitui o vínculo de adoção, entre o filho e
outrem, que assuma a posição jurídica de adotante.
Como veremos ao estudar o instituto da adoção, ele faz nascer entre o adotado e
o adotante uma situação legal em tudo idêntica àquela que une o filho ao pai ou à mãe
natural.
Ora, se for adotada uma criança em relação à qual não estivesse estabelecido o
vínculo de paternidade ou de maternidade, a lei não consente que, depois de constituída
a adoção, venha o progenitor natural declarar que é pai ou mãe do adotado (art. 202.°
do Código de Família).
No caso de os pais não serem casados, a declaração de paternidade ou de
maternidade pode ser feita em conjunto por ambos, ou separadamente. Uma declaração
não depende da outra e qualquer delas pode, indiferentemente, ser feita em primeiro
lugar.
Tal não acontece em diversas legislações que, no caso de os pais não serem
casados, não permitem que seja feita em primeiro lugar a declaração de paternidade,
nem que ela seja feita separadamente pelo pai, sem a mãe dar o seu consentimento à
declaração.
Entre nós, entendeu-se que essas restrições iriam prejudicar a situação do filho e
por isso se não faz depender a declaração de paternidade, por parte de quem se considera
progenitor natural, de qualquer condição de consentimento da mãe.
O Código de Família não restringe pois, o direito do pai ou da mãe de declararem
individualmente a sua qualidade de progenitor, não carecendo de autorização recíproca
para o fazerem. A declaração de filiação, segundo as disposições dos artigos. 171.° e
172.° do Código de Família, pode ser feita pela
§ Io. A pena será de prisão até 1 ano quando as declarações se destinem a ser
exaradas em documento oficial.
$2°. Se a falsidade a que se referem o corpo do artigo e o § Io tiver sido cometida
por negligência aplicar-se-á a pena de multa até 1000 KZ R.
mãe e pelo pai e ainda por terceira pessoa. Mas a declaração por terceiro está
sujeita a determinadas condições legais e não tem valor definitivo, salvo se não for
impugnada.
[41 ] Declaração do progenitor
Quando a declaração de filiação é feita pelo progenitor, seja este o pai ou a mãe,
tem uma natureza jurídica própria e produz efeitos jurídicos específicos, distintos da
declaração feita por terceiros.
A declaração de filiação que o Código Civil designava como «perfilhação» tinha
uma natureza jurídica diferente daquela que ora está consagrada no Código de Família.
Este não a considera já como um ato unilateral de reconhecimento e de atribuição do
vínculo da maternidade ou da paternidade, pois não é através dele que o vínculo de
filiação se constitui.
Na conceção do Código de Família, pode considerar-se a declaração feita pelo
progenitor como um ato jurídico voluntário e pessoal, mas não um negócio jurídico,
dado que não é constitutivo de direitos e os efeitos que ele produz não são determinados
pelo próprio declarante, dado que vêm estatuídos na lei. É uma declaração de ciência
emitida pelo progenitor, «uma declaração com a natureza jurídica de uma confissão».
Ela faz fé do convencimento do declarante quanto à maternidade ou paternidade que for
declarada. Pode assim dizer-se que estamos perante um ato jurídico stricto sensu.
A declaração produz efeitos retroativos pois estes vão ter início à data em que se
operou o nascimento, data em que se iniciou a relação jurídica de filiação.

É um ato pessoal, pois só pode ser levado a cabo pelo próprio ou por terceiro que
seja constituído como procurador com poderes especiais para o ato. É ainda um ato
voluntário, que deve dimanar da vontade livre e esclarecida da pessoa que emite a
declaração. Se houver vício na declaração por erro essencial, coação ou falsidade, a
declaração pode ser anulada.
Uma vez operada a declaração, esta é de natureza irrevogável, pelo que não pode
ser retirada pelo declarante, como consta do art. 173.° do Código de Família. Pressupõe
a lei que se trata de uma confissão exata e feita de acordo com a verdade dos factos.
O art. 170.° do Código de Família refere-se ao estabelecimento da filiação
operado por via de declaração no caso em que se não verifiquem quaisquer das
circunstâncias previstas nos artigos anteriores, ou quando for de afastar a presunção de
paternidade prevista na lei.
A declaração de filiação é, como na generalidade dos atos previstos no direito de
família, um ato formal segundo o qual o progenitor se assume como tal.
O art. 175.° do Código de Família estabelece as formas legais de que deve
revestir-se a declaração:
a) declaração perante os órgãos do registo civil, que deverá constar de um assento
assinado pelo declarante;
b) declaração perante o tribunal, que deverá ser reduzida a termo, de acordo com
o estatuído no art. 7.°, n.° 2 da Lei n.° 1/88, que aprovou o Código de Família;
c) declaração em documento autêntico ou autenticado lavrado pelo notário,
sendo necessário, neste caso, que se trate de documento com reconhecimento presencial
de letra e assinatura — art. 375.° do Código Civil.
A declaração do progenitor perante o funcionário do registo civil constitui a via
mais comum de reconhecimento do vínculo que o liga ao filho, e tanto pode constar do
assento do nascimento como ser feita posteriormente.
A declaração feita perante o tribunal pressupõe, como é óbvio, que esteja
proposta em juízo a pertinente ação para o estabelecimento da filiação.
Se a parte contra quem foi proposta a ação na qualidade de pretenso progenitor,
aceitar a imputação de maternidade ou paternidade que lhe é atribuída, o juiz da causa
deverá mandar exarar nos autos um termo do qual conste não só a identificação do
progenitor como a do filho e no qual seja recebida formalmente a declaração de filiação.
A declaração feita perante o notário pode constar de documento autêntico (como
escritura pública ou testamento) ou documento autenticado cujo conteúdo vise
expressamente essa declaração.
Tem-se discutido na doutrina se a declaração de filiação feita em testamento
perderá a sua validade no caso de o testamento ser revogado. O Código de Família não
aborda expressamente essa questão, mas, dada a forma como está redigido o art. 175.°,
entendemos que, se for válido o testamento quanto à capacidade do testador e à forma
usada, e desde que a emissão de vontade esteja isenta de vício, a declaração feita sobre
a filiação constante desse documento autêntico mantém plena torça para o
estabelecimento do respetivo vínculo.
Em súmula podemos concluir que a declaração de filiação é um ato pessoal,
voluntário, formal e irrevogável.
Ocorre com frequência que, aquando da celebração de casamento de um homem
com uma mulher que já tem um filho anterior relativamente ao qual não foi ainda
estabelecida a paternidade, o marido, mesmo não sendo o pai natural, faz a declaração
de ser ele o pai natural, em declaração contrária à verdade, e com a cumplicidade da
mãe.
Pretende-se integrar a criança na nova família que se constitui, prescindin¬do-se
de um processo de adoção que seria o adequado. É a paternidade por «complacência».
Pretende-se desta forma estabelecer uma relação de paternidade
sócio-afetiva que não se baseia na paternidade biológica.
A capacidade para emitir a declaração vem estatuída no art. 174.° do Código de
Família, que permite que ela seja feita por quem tenha a idade mínima para contrair
casamento. São, por conseguinte, capazes de fazer a declaração a mulher com mais de
15 anos de idade e o homem com mais de 16 anos, em conformidade com o disposto na
alínea a) do art. 174.° do mesmo Código.
No caso de incapacidade do progenitor, a declaração deve ser suprida nos termos
gerais de direito, como prevê a alínea b) do mesmo do art. 174.°. Trata-se, porém, de
ato de natureza estritamente pessoal, pelo que a declaração provém sempre do próprio
progenitor, ainda que ele seja menor ou incapaz.
A declaração de maternidade pode ser estabelecida pela própria mãe a todo o
tempo (art. 171.°, n.° 1 do Código de Família) e a declaração de paternidade pode ser
estabelecido pelo pai a todo o tempo (art. 172.°, n.° 1 do mesmo Código). Permite ainda
a lei a declaração de paternidade em relação ao filho nascituro, desde que identificada
a pessoa da mãe (art. 176.°).
Esta possibilidade de fazer a declaração a todo o tempo tem que ser, porém,
compreendida dentro dos termos legais, pois, além do caso da constituição do vínculo
da adoção, que já mencionámos atrás, há ainda outra restrição que vem prevista no art.
177.°, n.° 2, em relação a filho maior, pois neste caso a declaração não poderá ser feita
sem o consentimento do filho.
Entende-se que se o progenitor não cumpriu o seu dever de declaração da sua
qualidade de pai ou de mãe, até à maioridade do filho, ou seja na fase da infância e
juventude quando ela era mais necessária, este deve ser ouvido sobre tal declaração, e,
de acordo com o seu interesse, vir ou não a prestar o seu consentimento a tal ato.

Se, entretanto, o filho houver falecido e tiver deixado descendentes, serão estes,
por si ou pelos seus representantes legais, que deverão prestar o consentimento — art.
177.°, n.° 2, já citado. As razões para tal condicionalismo legal são as mesmas do n.° 1,
pois entendeu-se que se transmite aos herdeiros do filho falecido o direito de consentir
ou não na declaração. Se o filho já tiver falecido sem deixar descendentes, deve
entender-se que a declaração já não pode ser emitida porque já não há quem preste
consentimento.
No caso de filiação incestuosa a que se refere o art. 183.° do Código de Família,
ambas as declarações podem ser emitidas, mas a que for feita em segundo lugar será
considerada secreta. A filiação incestuosa é que resulta do facto de pai e mãe
estarem impedidos de contrair casamento em razão de laços de parentesco ou
afinidade em linha reta ou de parentesco no 2.° grau da linha colateral.
A orientação do art. 183.° é a de admitir o estabelecimento da paternidade e da
maternidade, mas com a ressalva de que um destes vínculos, indiferentemente, deve ser
considerado secreto para se não revelar perante o filho e terceiros a situação de incesto
e imoralidade em que se operou a procriação.
Não obstante, fica a permanecer, segundo o n.° 2 do art. 183.°, a obrigatoriedade
da prestação de alimentos do segundo progenitor em relação ao filho, sendo ainda a
filiação relevante para a constituição de impedimento matrimonial.
[42] Declaração feita por terceiros que não o progenitor
O Código de Família veio permitir que a declaração seja feita, em determinadas
condições legais, por terceira pessoa que não o progenitor.
Com o alargamento a terceiros da possibilidade de fazer tal declaração teve-se
em mente levar a que seja possível o estabelecimento da filiação em um maior número
de casos.
Dado, porém, o melindre que pode advir de declaração feita por terceiro, o
Código de Família concede, em contrapartida, a mais ampla possibilidade de
impugnação à pessoa que tiver sido indigitada como progenitor e que não vier a aceitar
tal imputação. Não obstante, se o progenitor tiver conhecimento da declaração de
maternidade ou de paternidade que lhe for atribuída e não a impugnar no prazo legal, a
declaração torna-se plenamente eficaz, produzindo os mesmos efeitos legais atribuídos
à declaração feita pelo próprio progenitor.
A lei estabelece distintas condições legais para o caso de declaração de
mater¬nidade ou de declaração de paternidade feita por terceiro que não o progenitor.
Relativamente à declaração para o estabelecimento de maternidade, rege a
segunda parte do art. 171.°, n.°s 1 e 2 do Código de Família. Ela pode ser operada por
declaração de terceiro, desde que se verifiquem as seguintes condições, insertas no n.°
1 deste artigo:
a) que seja feita por terceiro que tenha conhecimento do facto do nascimento;
b) que seja feita dentro do prazo de 3 anos após o nascimento;
c) que seja feita durante a vida da mãe.

De acordo com o n.° 2 deste art. 171.°, a declaração de outrem que não a mãe
deve ser notificada à mãe.
A notificação deverá ser operada pelo Conservador do Registo Civil segundo a
forma prescrita na lei, podendo a pretensa mãe impugná-la ou não.
Rdativamente à declaração de paternidade, ela só poderá ser feita por outra
pessoa se esta for a própria mãe do filho. Trata-se de uma disposição de caráter
verdadeiramente inovador. Por via de tal permissão legai, faculta a lei que seja a mulher
que deu à luz o filho que venha fazer a declaração, atribuindo a paternidade a quem ela
entende ser o pai natural.
Esta declaração feita pela mãe do filho está sujeita a condicionalismo legal mais
rigoroso e pode ser livremente impugnada pelo pretenso pai.
O art. 172.°, n.° 2 do Código de Família fixa as seguintes condições para que
possa ser declarada a paternidade do filho por terceiro:
a) que a declaração seja feita pela mãe do filho;
b) que seja feita dentro do prazo de um ano após o nascimento;
c) que seja feita durante a vida do pai;
d) que possa ser pessoalmente notificada à pessoa declarada como pai.
Previne-se desta forma a obrigatoriedade de a pessoa indicada como pretenso pai
vir a ter conhecimento da atribuição de paternidade que lhe é feita e restringe-se a
legitimidade para fazer a declaração à própria mãe, encurtando-se para um ano o prazo
dentro do qual a declaração pode ser feita. Grave é a responsabilidade que impende
sobre a mãe do filho, pois, ao fazer tal declaração, ela sabe que poderá vir a ser
impugnada pelo interessado, o que leva à posterior necessidade de fazer prova do facto
por via judicial.
Qualquer destas declarações feitas por terceiro que não o progenitor não têm a
força afirmativa do facto que é atribuída à declaração do próprio progenitor, pois é
permitida a impugnação pelo pretenso progenitor por simples declaração de oposição.
O art. 178.° do Código de Família permite, sem restrições, que a declaração de
filiação feita por terceiro seja impugnada, impondo só um limite de prazo para tal. A
impugnação deverá ser deduzida dentro do prazo de um ano após a pessoa indicada
como progenitor ter tido dela conhecimento, mas não poderá ser feita pela via do registo
civil após decorridos 5 anos sobre a data em que tenha sido lavrado o ato de registo.
Dá-se como assente que se a pessoa indicada como progenitor não impugnou,
junto da Conservatória do Registo Civil, a qualidade que lhe foi atribuída por terceiro,
de pai ou de mãe, é porque dá a sua anuência e aceita a declaração feita.
Se tiverem decorridos 5 anos após a declaração no registo, por uma questão de
estabilidade da situação do filho, que deve ser protegida, já a declaração de impugnação
não poderá ser feita junto dos órgãos do Registo Civil, como já referimos.
Não obstante, a última parte do art. 178.° é bem clara, quando salvaguarda que,
quer no caso de ter decorrido um ano sobre a data do conhecimento da declaração, quer
no caso de terem decorrido 5 anos sobre a data em que for lavrado o ato de registo, o
pretenso progenitor que quiser afastar o vínculo de paternidade ou de maternidade,
poderá sempre recorrer à impugnação por via judicial.
[43] Declaração de afastamento da presunção da paternidade do marido da
mãe
O estabelecimento da paternidade dos filhos de mulher casada é atribuído ao
marido da mãe, nos termos da regra consagrada no art. 163.° do Código de Família. Tal
disposição é de caráter genérico, mas pode sofrer ressalvas, como prevê a parte final
desse art. 163.°, que, a título excecional, permite que seja afastada a presunção legal.
É preciso ter em mente que, ao permitir-se o afastamento da presunção legal de
paternidade do marido da mãe, como atrás vimos, se estão a prever situações de
separação de facto dos cônjuges em que em regra a coabitação cessou, ou em que já não
existe entre os cônjuges uma verdadeira união de vida.
Tendo em conta certas condições excecionais em que uma mulher, embora
formalmente casada com determinado homem, tenha na realidade encetado vida marital
com outro, permite a lei o estabelecimento da verdadeira paternidade do filho de acordo
com o vínculo natural.
Instituíram-se regras de natureza excecional, que permitem, dentro de certas
condições, quer à mulher casada, quer àquele que se considere como progenitor natural,
fazer a declaração contrária à presunção de paternidade do marido.
Saliente-se que idêntica faculdade não é conferida ao marido, o qual, se pretender
afastar a presunção da sua paternidade em relação a filho nascido da mulher com quem
for casado, terá obrigatoriamente que recorrer a ação de impugnação de paternidade.
Os artigos 180.° e 181.° do Código de Família, que permitem declaração de
paternidade contrária à presunção legal, tiveram, pois, em conta situações em que os
cônjuges se encontravam separados de facto e que prevaleciam no passado quando o
divórcio era mais difícil de obter. Admite-se que possam ainda surgir no presente,
precisamente quando os cônjuges estabelecem novas uniões, sem terem a cautela de
dissolver atempadamente o casamento anterior.
Foram, pois, razões de natureza pragmática que levaram a admitir que,
inde¬pendentemente da propositura de ação judicial, como acontece na generalidade
dos sistemas jurídicos, se permitisse à mulher casada ou ao progenitor natural
afastar, por simples declaração, uma presunção legal com a força daquela que
deriva da regrapater is est quem nuptiae demonstrant.
Trata-se dum processo que deve correr na Conservatória do Registo Civil e que
permitirá repor a verdadeira identidade do genitor, afastando uma atribuição legal de
paternidade coberta pelo vínculo do casamento.
Há, porém, que ter em conta que existe um apertado condicionalismo legal a ser
observado para que a declaração seja válida.
Só tem legitimidade para fazer a declaração a mulher casada e o progenitor
natural, de acordo com o que dispõem o n.° 1 do art. 180.° e o n.° 1 do art. 181.°.
A declaração só é considerada válida e eficaz caso se verifiquem as seguintes
condições:
a) haja ausência de posse de estado entre o filho e o marido da mãe;
b) que a declaração possa ser pessoalmente notificada ao marido da mãe;
c) que o marido a não venha impugnar dentro do prazo de um ano.
A primeira condição (a não existência de posse de estado entre o filho e o marido
da mãe) é de natureza substancial e de caráter decisivo, pois deve assentar numa
situação real e concreta de que o declarante tem que ter conhecimento, e que não pode
falsear, sob pena de responsabilidade (civil e criminal) por falsas declarações.
Se o marido reconhecer e tratar o filho como tal, e se, portanto, se tiver
estabelecido entre ambos a posse de estado, já a declaração do afastamento da sua
paternidade não poderá ser feita nem pela mulher nem por aquele que se considere
progenitor natural.
Neste caso, o legislador optou por dar preferência à estabilidade das relações
íamiliarese designadamente àpatemidade social, postergando a possível paternidade
biológica ou natural. Na verdade, se o marido da mãe considerar o filho como seu e por
essa via estiver estabelecida a sua paternidade, esta só poderá ser afastada através de
ação própria, que é ação de impugnação da paternidade do marido.
A segunda condição posta na lei é a de que a declaração de afastamento da
paternidade do marido lhe possa ser notificada pessoalmente. Obsta-se desta forma a
que se faça tal declaração no caso de morte ou ausência do marido.
Por fim, a última condição para que a declaração se possa tornar eficaz consiste
no facto de, uma vez efetivada a notificação pessoalmente ao marido, este a não venha
impugnar no prazo legal, que a lei fixa em 1 ano, tanto no n.° 2 do art. 180.° como no
n.° 2 do art. 181.°.
O silêncio do notificado durante todo o prazo conferido por lei para a
impugnação é entendido, por via de presunção legal, como comprovativo da sua
concordância com a declaração feita sobre o afastamento da sua paternidade em
relação ao filho nascido de mulher com quem está ainda unido pelo matrimónio.
O art. 182.° do Código de Família atribui exclusivamente ao marido a
legiti¬midade para fazer a impugnação e define a forma que esta deve revestir.
A forma da declaração é a mesma que vem prevista no art. 179.°, relativa à
impugnação de declaração feita por terceiro que não o progenitor.
Ou seja, admite-se que o marido impugnante use de qualquer forma de
impu¬gnação oral ou escrita, sendo necessário apenas que o funcionário do registo civil
se certifique da identidade do impugnante. Havendo oposição à declaração pelo marido,
a lei considera inexistente a declaração feita pela mãe ou por quem se considere
progenitor natural, averbando-se oficiosamente ao registo de nascimento do filho a
paternidade do marido da mãe.
Se tal ocorrer, vai de novo aplicar-se a previsão legal que obriga a que a
presunção da paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe só possa ser
afastada por via de ação de impugnação judicial. Ou seja terá que ser no foro, que se
terá que averiguar qual a verdadeira filiação paterna do filho.
[44] Ações judiciais de filiação
As ações relativas à filiação são de dois tipos:
— ações de estabelecimento de filiação — que se destinam à determinação
jurídica de vínculo de filiação paterna ou materna;
— ações de impugnação de vínculo de filiação já estabelecido mas que se
entende ser contrário à verdade biológica e que portanto deve ser substituído pelo
verdadeiro.
A tendência na doutrina, hoje em dia é para considerar que os dois tipos de ações
não devem estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade ou de prescrição, pois têm a
ver com a salvaguarda dum direito fundamental da pessoa humana, o direito à
identidade própria de cada indivíduo. Domina assim na doutrina que as normas que
limitam no tempo a propositura destas ações devem ser consideradas como feridas de
inconstitucionalidade.
Por um lado interessa defender o interesse do filho em conhecer a sua verdadeira
progenitura, mas por outro lado interessa também defender a estabilidade sócio- -
afetivas em que assentam as relações familiares.^
(?1 Guilherme de Oliveira — obra citada, p. 465: «É necessário organizar um
regime que se abra à verdade biológica e que dê um ensejo para cada indivíduo descobrir
o seu lugar no sistema dc parentesco; mas a certeza e a segurança também são valores
de organização social.»
Dado o princípio já enunciado do direito ao estabelecimento da filiação, a lei
permite com a maior amplitude que, caso ele não se verifique por via das presunções
legais ou por declaração, seja o tribunal a estabelecer por sentença essa filiação.
O art. 184°, n.° 2, do Código de Família permite a propositura da ação:
a) ao Ministério Público oficiosamente, até 3 anos após o nascimento;
b) ao filho, por si próprio ou pelo seu representante legal enquanto for menor ou
por
quem for designado como seu curador especial para o efeito no caso de
incapacidade.
A ação proposta pelo filho pode ser proposta sem limite de prazo, e
independen¬temente do facto de o Ministério Público ter decaído na ação por si
proposta — art. 186.°.

A ação pode ter como fundamento de facto a existência de presunções legais


(como a posse de estado de filho, a união de facto entre a mãe e o pretenso pai, a
promessa de casamento, escrito do progenitor, simples relações de amantismo, etc.),
porque a lei não especifica qualquer fundamento específico. A causa de pedir só pode
ser o facto natural da procriação do qual a filiação deriva automaticamente.
0 Conselho de Família pode ser chamado a intervir, quer por decisão oficiosa do
tribunal, quer a pedido de qualquer das partes, segundo dispõe o art. 195.° do Código
de Família «Nas ações de filiação deve o Tribunal oficiosamente ou a pedido das partes,
sempre que o julgue conveniente, ouvir o Conselho de Família.»
E compreende-se bem como, neste tipo de ações, pode ser proveitosa a sua
intervenção, elucidando o Tribunal sobre a real situação do filho e os pretensos
progenitores. Quanto aos meios de prova, o art. 196.° expressamente abre a mais ampla
disponibilidade de investigação, consignando: « Pode o Tribunal nas ações de filiação,
socorrer-se de todos os meios de prova e designadamente:
a) Da declaração das partes, e dos seus parentes ou afins em qualquer grau;
b) De exames hematológicos, somãticos e outros.»
Quer isto dizer que desde a confissão, à declaração por depoimento de parte de
pessoas impedidas de intervir como testemunhas, prova testemunhal, documen¬tos,
gravações, fotografias e exames médico-forenses, tudo poderá ser levado a tribunal
como meio de prova. Aplica-se o princípio de liberdade de prova.
Aliás hoje em dia para salvaguarda do direito à identidade, considerado como
direito fundamental da pessoa humana, a aceitação de todos os meios de prova nestas
ações é considerado como meio legítimo e inalienável do filho.
A doutrina classifica os meios de prova em dois tipos:
— Provas históricas.
— Provas imuno-genéticas.
Como já referimos na introdução deste Capítulo, os avanços da ciência genética
vieram suplantar as demais provas que de forma circunstancial eram usadas para a
determinação da progenitura e que fizeram correr rios de tinta provocando
abundantíssima jurisprudência sobre a matéria.
Até há poucos anos, a prova pericial usada nas ações de estabelecimento de
filiação (que no Código Civil eram denominados ações de investigação de maternidade
ou paternidade) eram sobretudo os exames médicos forenses de natureza hematológica.
Os exames podem incidir sobre a pessoa da pretensa mãe, do pretenso do pai e
do filho e podem ter como objetivo apenas questões de natureza médica, biológica ou
antropométrica. Questões como a determinação de impotênciagenerandi ou coendi por
parte do homem, ou a impotência concipendi por parte da mulher, podem pôr-se no caso
de falsa atribuição de paternidade ou de maternidade.
Nas ações para o estabelecimento da paternidade era usado como meio de defesa
do «investigado» a denominada exceptioplurium concubentium\ alegava- -se o facto de
a mãe do filho se não ter mantido com estrita fidelidade durante o período de
relacionamento com o pretenso pai. Hoje não é aceitável tal alegação, que não deve
considerar-se como uma verdadeira exceção no sentido processual, que por si só possa
tornar a ação improcedente.
Se for feita a prova de que a mãe do filho manteve relações sexuais durante o
período legal de conceção com o pretenso pai e com outros homens, a determinação da
paternidade será mais difícil, mas dependerá de meios de prova mais convincentes para
o juiz formular a sua decisão.
Desde o princípio do século XX predominaram os exames hematológicos ou
serológicos, aliás mencionados no art. 196.° do Código de Família e que foram
evoluindo com o melhoramento dos sistemas usados. Incidiam sobre determinados
marcadores genéticos existentes no sangue, que é classificado em tipos sanguíneos que
são divididos em quatro grandes grupos principais.
Havia, pois, que determinar os respetivos grupos sanguíneos da mãe, do pretenso
pai e do filho, para se apurar se este podia ou não ser filho de ambos, pois as
caraterísticas do filho têm obrigatoriamente que derivar da combinação das dos dois
progenitores.
Através de um de cada vez maior número de sistemas classificativos utilizados,
foi-se tornando possível excluir, cada vez com maior rigor, a atribuição de maternidade
ou paternidade, sendo esta úJtima a que em regra, é objeto do maior número de casos
levados às instâncias judiciais.
Eram, em suma, por via exames de natureza negativa, que se podia concluir pela
impossibilidade de A ser pai de B, ou pela possibilidade da A ser pai de B.
Mas atualmente a situação inverteu-se e de provas negativas passou a ser possível
obter uma resposta positiva à questão colocada.
No estado atual da ciência genética e através do conhecimento do ADN(8) de
cada ser vivo é possível determinar o elo da hereditariedade.
Relativamente à obtenção de prova pelo exame hematológico-genético a fazer
para determinação dos respetivos padrões genéticos do filho e dos pretensos
progenitores suscitam-se questões que só por força da lei poderão vir a ser resolvidas,
e que aliás entendemos serem de evidente urgência.
A primeira que é de índole processual, tem a ver se será de prever que nas ações
para a determinação de filiação será de instituir uma fase preliminar de admissibilidade
do pedido, em que a pessoa indigitada como progenitor possa desde logo vir requerer o
exame ao ADN dos intervenientes na ação. Tal procedimento pode ser legitimado
quando da parte de quem é demandado possa haver dúvidas, justificadas ou não, sobre
se é de atribuir a qualidade de seu filho ao demandante e obter uma certeza prática de
que existe ou não, o vínculo de maternidade ou paternidade.
Para a efetuação do exame é em regra necessário que na pessoa física do
demandado seja efetuada uma recolha ou de saliva ou de sangue, sendo que
normalmente esse tipo de exame é efetuado em organismos públicos apetrechados para
o efeito. Ora a questão que mais controvérsia tem gerado, prende-se com a definição
legal sobre se o Juiz da causa pode ou não ordenar a obrigatoriedade do pretenso
progenitor, se sujeitar ao exame para determinação do ADN mesmo que seja contra a
sua vontade.
Confrontam-se neste caso dois direitos fundamentais de que são titulares as
partes em litígio, por parte do pretenso progenitor o direito à liberdade e inte¬gridade
física ao fornecer os elementos de recolha. Por parte do filho o direito à sua identidade
e a conhecer os seus pais.
Segundo um ponto de vista, o demandado não será obrigado a submeter-se ao
exame e não poderão ser usados meios coativos que a tal o obriguem. Porém, quando
se entende que o exame não pode ser imposto coercivamente jurisprudência quase
uniforme, tem vindo a considerar que nestes casos o juiz da causa se entender que é
injustificada a recusa do demandado em se submeter ao
W ADN — Ácido desoxiribonucleico que constitui o suporte da informação
genética.
exame, pode tirar desse comportamento as suas ilações para concluir em desfavor
do demandado.
Mas em posição oposta vem sendo sustentado que o exame ao ADN deve poder
ser imposto coercivamente ao demandado mesmo contra sua vontade. Em primeiro
lugar pelo facto da recolha de material a ser feita (um pouco de saliva ou de sangue)
não atingir o examinado na sua integridade física e que está em proporção com o fim a
que se destina que é o direito à identidade pessoal do demandante que é um direito
fundamental que assiste a todo o ser humano consagrado quer constitucionalmente quer
intemacionalmente, atinente ao seu status de filho.
« Aparentemente haveria apenas que questionar se o ato de recolha de material
biológico deve ser considerado uma violação à integridade física de um indivíduo ou ao
seu direito à liberdade (...) esta violação não é arbitrária pois apresenta-se como
absolutamente necessária para o exercício de um direito constitucional, o direito à
identidade pessoal (...). Como é reconhecido pelo Comité de peritos para o direito de
família do Conselho da Europa, no estado atual do conhecimento, o teste de ADN é a
melhor prova num processo de estabelecimento de filiação fundada numa derivação
genética (...) a realização desse tipo de exames não consubstancia qualquer violação da
Convenção Europeia dos Direitos Humanos por ser conforme ao interesse superior da
criança (...). A recolha de sangue por meio de uma picada num dedo, não constitui
violação à integridade física, aliás é considerado conforme à Constituição a recolha de
sangue no caso de condução em estado de embriaguez>>
A efetuação de exames desta natureza cuja complexidade de equipamentos
adequados e técnicos é reconhecida, está hoje ao alcance através da justiça angolana o
que constitui um indescutível avanço na determinação do ADN como chave para a
determinação da filiação, o que satisfaz o interesse público e a proteção do Estado em
situações desta natureza, ampliando a recurso a este meio de prova.
[45] Titularidade formal da filiação
Estabelecido o vínculo jurídico da filiação que confere ao filho a titularidade
substancial da situação de filho, esta necessita de se converter em titularidade
formal, que se traduz na inscrição no assento do registo civil. Do estabelecimento
público e formal da filiação no assento do nascimento resulta para o filho a titularidade
formal da filiação.
O art. 162.°, n.° 1, do Código de Família diz que o estabelecimento da filiação
se prova pelo ato lavrado no órgão do registo civil. Tal vem previsto no Código do
Registo Civil, art. 1 °: « Constituem objeto do registo civil os seguintes factos: (...) b)
Afiliação». Como atrás vimos, a prova dos factos sujeitos a registo «(...) só pode ser
feita pelos meios previstos neste Código» — art. 5.°.
0 assento de nascimento é um ato administrativo que não tem natureza
constitutiva. Nele é recebida uma declaração produzida por uma ou duas pessoas que
intervêm no ato. Essa declaração, como vimos, pode ser feita por um progenitor, pelos
dois progenitores simultaneamente, ou até por terceira pessoa. Neste assento, uma
autoridade pública lavra um ato administrativo do nascimento de uma pessoa, por via
do recebimento de uma declaração, ato declarativo que se não confunde com ela.
0 funcionário do registo civil recebe a declaração do facto do nascimento a qual
se for feita por quem se declare progenitor produz simultaneamente os efeitos já atrás
descritos quanto ao nascimento e quanto ao vínculo de filiação e recolhe ainda os
demais elementos de identificação referentes à pessoa que nasceu.
Como já apontámos, o declarante está sujeito a responsabilidade criminal por
crime de falsidade quando dolosamente fizer declaração contrária à verdade quer quanto
ao facto do nascimento quer quanto à identidade de progenitor que não seja quem gerou
o registado. Mas a declaração de filiação, materna ou paterna, pode ser feita
posteriormente à declaração de nascimento e ser objeto de averbamento à declaração de
nascimento.
A obrigatoriedade do registo para prova de filiação faz com que não se possa
invocar perante terceiros a situação jurídica de filho sem o título formal de filiação. Há
quem entenda que o registo constitui uma verdadeira condição de atendibilidade da
filiação.
Em 1998 decorreu, com âmbito nacional, uma campanha para o Registo Civil
gratuito das crianças angolanas até à idade de 17 anos, com o objetivo de suprir a
situação difícil criada pela falta ou desaparecimento do registo de muitos milhares de
crianças em resultado da guerra, da deslocação em massa das populações e ainda da
prática generalizada do comportamento da não prestação da declaração atempada dos
nascimentos aos órgãos do Registo Civil.
Há, porém, que ter em conta que as declarações de paternidade e de maternidade
feitas nesses assentos de nascimento por outrem que não os progenitores e não
confirmadas por estes, servem exclusivamente como elementos de «identificação
pessoal», de acordo com o art. 4.° do Decreto Executivo do Ministério da Justiça n.°
3/98 de 16 de janeiro.
[46] Efeitos do estabelecimento da filiação
a) Data da produção dos efeitos
Uma vez operado o estabelecimento da filiação, este vai ter efeitos retroativos à
data do nascimento, como vem estabelecido de forma expressa no art. 162.°, n.° 2 do
Código de Família.
Ao filho é deferido o status de filho ex tunc, pois a causa jurídica da filiação
deriva do facto natural da procriação e do nascimento com vida. Sendo assim, uma vez
verificada a maternidade e a paternidade, a relação jurídica entre o filho e os seus
progenitores considera- se iniciada a partir do momento do seu nascimento.
b) Vínculo paterno-filial
Do estabelecimento da filiação advém, como efeito primordial, a aquisição da
situação jurídica de filho com a aquisição global dos direitos e deveres que lhe
correspondem e que são de natureza pessoal, patrimonial e ainda moral. Pelo lado dos
pais, estes entram igualmente na titularidade da situação de pai e de mãe.
Deste vínculo de filiação deriva ainda, ipso facto, o estabelecimento dos demais
vínculos familiares de parentesco e de afinidade com os respetivos parentes e afins de
ambos os progenitores, por via materna e paterna.
c) Direito ao nome
O filho tem direito ao uso dos apelidos do pai e da mãe, como vem estabelecido
no art. 133.°, n.° 1 do Código de Família.
Está em vigor a Lei n.° 10/85, de 19 de outubro, que regula a Composição do
Nome e que veio revogar a Lei n.° 10/77, de 30 de abril, permitindo uma maior
flexibilidade na escolha do nome próprio e dos nomes da família ou apelidos. Quanto
aos nomes próprios, pelo menos um deles deverá ser em língua nacional ou em língua
portuguesa (art. l.°, n.° 3), podendo ir até dois vocábulos.
Os apelidos deverão obrigatoriamente pertencer à família paterna ou materna
(art. 1.°, n.° 5) e poderão ir até três vocábulos. A ordem da atribuição dos apelidos não
vem prevista na lei, mas segundo o uso predominante entre nós, o apelido paterno
aparece em último lugar.
A escolha do nome próprio dever ser feita por acordo entre o pai e a mãe. Na
falta de acordo, o nome será escolhido pelo tribunal, ouvido o Conselho
de Família — art. 133.°, n.° 2 do Código dc Família. Trata-se de um caso de
intervenção obrigatória do Conselho de Família, que se justifica para auxiliar o juiz a
proferir uma decisão equitativa para o caso em apreço.
O Código do Registo Civil (art. 120.°) atribuía em primeiro lugar ao pai e só
depois à mãe a obrigação de fazer a declaração de nascimento, e era o declarantc que
tinha o direito de declarar o nome do filho — art. 129.°.
Desta sorte, privilegiava-se o pai em relação à mãe quanto à escolha do nome do
filho, situação que veio a ser alterada com a entrada em vigor do Código de Família,
que póe os progenitores em situação de igualdade em relação a todos os direitos e
deveres relacionados com o filho.
Este preceito que é discriminatório em relação aos direitos da mãe, deve ser
considerado como ferido de inconstitucionalidade à luz do preceituado no art. 35.°, n.°
3, da Constituição e art. 127.°, n.° 1, do Código de Família.
d) Direito à nacionalidade
Como consequência de maior relevo temos a do direito à nacionalidade angolana
de origem.
Todas as leis da nacionalidade que vigoraram a partir da Independência
privilegiaram sempre a nacionalidade baseada na regra do jus sanguinis, sendo
considerado como cidadão angolano de pleno direito o filho de cidadão angolano
(homem ou mulher), quer nascido em Angola, quer no estrangeiro.
A Lei de Nacionalidade em vigor Lei n.° 1 /05 de 1 de julho prevê no artigo 9.°:
«l.£ cidadão angolano de origem:
a) o filho de pai ou mãe de nacionalidade angolana nascido em Angola;
b) o filho de pai ou mãe de nacionalidade angolana nascido no estrangeiro. »
É uma lei muito abrangente dentro do critério da transmissão da nacionali¬dade
por via hereditária, privilegiando a qualidade de cidadão de qualquer dos progenitores.
Nas relações de direito internacional privado a lei aplicável deve ser a lei
nacional do filho no momento do nascimento.
Devem considerar-se revogados os artigos 56.°, n.° 2, 57.°, n.° 2 e 58.° do Código
Civil que contêm matéria discriminatória em relação à mãe por privi¬legiarem a lei
nacional do pai e que portanto devem ser considerados como feridos de
inconstitucionalidade.
e) Direito a pensão de segurança social
A situação jurídica de filho repercute-se em toda a ordem jurídica e
designadamente na área da previdência social.
A Lei n.° 7/04 de 15 de outubro, Lei de Bases de Proteção Social, dispõe:
«Artigo. 6.°: Estão vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de
dependentes do segurado: (...) b) Osfilhos menores de 18 anos de idade ou inválidos,
bem como os filhos dos 18 aos 25 anos de idade com frequência universitária de acordo
com as disposições legais vigentes no domínio das prestações.»
O art. 6.° do Decreto n.° 38/08, de 19 de junho, que regulamentou esta Lei,
dispõe: «Estão vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de dependentes
do segurado: b) Osfilhos menores de 18 anos de idade ou inválidos, bem como os filhos
dos 18 aos 25 anos de idade com frequência universitária de acordo com as disposições
legais vigentes no domínio das prestações.»
O Decreto Presidencial n.° 8/11 de 7 de janeiro de 2011 regulamenta o art. 18.°
da Lei n.° 7/04 de 15 de outubro e constitui os seguintes subsídios inseridos no art. l.°
do Regime Jurídico das Prestações Familiares:
— Subsídio de maternidade;
— Subsídio de aleitamento;
— Abono de família;
— Subsídio de funeral.
Os três primeiros subsídios são atribuídos respetivamente à mulher trabalhadora,
aos filhos dos segurados desde o nascimento até aos 36 meses de vida, aos descendentes
dos trabalhadores e dos pensionistas de velhice a partir dos 3 anos até aos 14 anos de
idade e o último subsídio aos descendentes do segurado e ao cônjuge do segurado e do
pensionista de velhice do falecido — art. 3.°.
CAPÍTULO 9.0
AUTORIDADE PATERNAL E SEU EXERCÍCIO

[47] Âmbito, titularidade e duração da autoridade paternal


Um dos efeitos fundamentais do estabelecimento do vínculo da filiação é a
atribuição, ao pai e à mãe de filhos menores, da autoridade paternal. Ela visa a
prossecução do fim primordial da célula familiar que é a conceção, criação e educação
dos filhos. O conjunto de direitos e deveres específicos atribuídos aos pais para a criação
e educação dos filhos é, digamos, de ordem natural: existe nas sociedades humanas
desde os seus primórdios.

Nodireito romano era denominado «patriapotestas» ou «potestasgenitoria»,


caraterizada pelo poder absoluto do pai sobre os filhos, que se prolongava por toda a
vida do filho, independentemente da idade do filho e de ele ser ou não casado.
No Código Civil, a expressão legal usada era «poder paternal», significando que
era um poder especialmente exercido pelo pai, o qual era o elemento hierarquicamente
superior dentro da família, quer em relação à mulher quer em relação aos filhos. À mãe
era atribuída uma posição secundária de mera conselheira nos assuntos que dissessem
respeito aos filhos.
No direito europeu procura-se uma nova expressão — «autoridadeparental» —,
para evitar que o conceito contenha em si um sentido discriminatório em relação à mãe.
Mais recentemente privilegia-se a expressão responsabilidade parental que se
considera como «mais rigorosa e mais adequada à evolução da realidade social e
jurídica (...) de os pais em pé de igualdade e em concertação com os filhos menores se
encontrarem investidos de uma missão de prossecução dos interesses destes, sentindo-
se ambos responsáveis. »
Direito de Família
sua Recomendação N°R(84)-4 define: ZmLdespZZlão o conjunto d e dever,
o bem-estar moral e material do filho, designadamente tomando conta da ílho
mantendo relações pessoais com ele, assegurando a sua educaçao, o seu sua
representação legal e a administração dos seus bens. >>
Jigo dc Família adota a expressão «autoridade paternal», procurando ir a
igualdade dos pais e indicar que ela deve ser exercida com base no ie ambos os pais.
aridade da autoridade paternal pertence, em princípio, exclusivamcntc íáe; o seu
exercício pode, porém, depender das circunstâncias concretas so. A autoridade paternal
é, portanto, um direito atribuído ao pai e à natureza pessoal, irrenunciável e
intransmissível. Excecionalmente, a paternal é renunciável — é o que acontece no caso
da constituição do adoção.
tureza funcional, pois é atribuída ao pai e à mãe, não no seu próprio tas como se
diz no art. 127.°, n.° 2, do Código de Família: « Os deveres itemais devem ser exercidos
no interesse dos filhos e da sociedade.» Os es estão vinculados à finalidade legal
prevista na lei e não detêm um jetivo.
oder dever, um ojficium, um munus, que não é exercido sobre o filho filho.®
cicio pelos pais, no seu próprio interesse, da autoridade paternal, do o interesse
do filho, constitui abuso de direito e deve obrigar à D dos órgãos de educação e de
assistência, da Procuradoria da República mais, em defesa do menor. Dado o superior
interesse de defesa dos cnores, a autoridade paternal é, na generalidade dos sistemas so
a v igilância e controlo da sociedade e dos órgãos do Estado, a os Pa!s nao se mostram
à altura de educar os seus filhos, poderá ser leveres d ^ L^0’ SCn^° toma^as medidas
que podem alterar os ribunalintervenh '8° 'i Fam‘*la prevê Suc. » pedido do Ministério
»te à vida do 61ho7qlV“^ SSÔe*<1UeOSPaÍ*tCnham t0mad° :m geral. ^ m Csivas
mtcressc do menor c dad°—- **
APlicar uma medida sancionatória ^T * f°rmaSào morai' H1' S^MoroM ,qUC C
3 inibi^ «tal ou parcial da autoridade paternal. Em síntese: pode afirmar-se que a
autoridade paternal um poder-dever atribuído aos pais mas que deve ser exercido em
benefício dos filhos, estando sob o controlo do Estado através dos seus órgãos de
natureza administrativa e judicial.
A causa jurídica da autoridade paternal reside na incapacidade natural do ser
humano de se bastar nos seus primeiros anos de vida, no plano físico e inteletual. Ela
representa a expressão mais relevante do dever de solidariedade, de entreajuda c de
assistência moral e material que deve prevalecer nas relações familiares.
A autoridade paternal visa, no plano jurídico, suprir a incapacidade de exercício
do menor, que, em razão da sua inexperiência, carece de quem o dirija na sua formação
pessoal e de quem cuide dos seus interesses patrimoniais, por via da representação legal
que é atribuída aos pais para agir em nome dos filhos.
A autoridade paternal é exercida, consequentemente, durante a menoridade do
filho e termina quando este atinge a maioridade. A maioridade atinge-se, segundo a lei
angolana, aos 18 anos, como dispõe a Lei n.° 68/76, de 12 de outubro e está hoje
consagrado no art. 24.° da Constituição.(3)
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direitos da Criança dispõe no seu art.
l.° que «(...) considera-se criança todo 0 ser humano com menos de 18anos de idade».
O art. 134.°, n.° 1, do Código de Família explicita que a autoridade paternal é
exercida durante a menoridade do filho.
Ela perdura durante todo esse período da vida do filho e só pode extinguir-se por
duas causas, como dispõe o n.° 2 do citado art. 134.°:
— a morte do progenitor;
— a constituição do vínculo de adoção.
A morte é um facto natural que põe fim às relações familiares de natureza
pessoal. A constituição do vínculo de adoção vai criar um novo vínculo de filiação entre
adotante e adotado e como tal vai fazer cessar o vínculo de filiação naturah Os pais são,
porém, chamados a dar o seu consentimento à adoção art. 202. ^
Código de Família.
Por sua vez os deveres dos filhos para com os pais vêm expressos no art.

«Os filhos devem respeito, cuidados e assistência aos pais». São deveres e
permanente extensivos a toda a relação paterno-filial quer durante a meno ^ como
depois da maioridade.
A autoridade paternal tem como conteúdo um conjunto de poderes, de deveres e
de prerrogativas que incidem sobre a própria pessoa física e moral do filho e sobre o
seu património.
Com vista à prossecução dos fins para cuja realização se atribui a autoridade
paternal, a lei prevê o dever de obediência dos filhos em relação a seus pais. É estatuído
no art. 137.° do Código de Família o princípio genérico de que os filhos devem
obediência aos pais. A lei estabelece, porém, as linhas orientadoras desse dever, pois no
art. 137.°,n.°l menciona que: «Osfilhos menores devem obediência à legítima
autoridade paternal», o que quer enfatizar que essa autoridade tem que ser exercida
dentro da finalidade legal para a qual é atribuída (o interesse do menor), pois se o não
for toma-se ilegítima e como tal não há que pedir ao filho obediência.
De acordo com o n.° 2 do art. 137.°: «A medida do seu desenvolvimento a
personalidade e vontade dos filhos deve ser tida em conta pelos pais ».
Quis-se sublinhar aqui a necessidade de aplicar um dos princípios fundamentais
do Código de Família (consignado nos seus art. 2.°, n.° 2 e art. 6.°), e que se refere à
contribuição que todos os membros da família devem dar para que cada um possa
realizar plenamente a sua personalidade e as suas aptidões, tendo em conta o respeito
pela sua personalidade, a especial proteção à criança e o espírito de colaboração e
entreajuda.
A reforma constitucional introduzida pela Lei n.° 23/92, de 16 de setembro,
previa no art. 30.°, n.° 2, que o Estado promovesse o desenvolvimento harmonioso da
personalidade das crianças e dos jovens; e o art. 31.° vinha explicitamente consagrar o
princípio de que o Estado, a família e a sociedade deviam promover o desenvolvimento
harmonioso da personalidade dos jovens e das crianças.
No art. 80.° (Infância) da atual Constituição vem consagrado no n.° 2: «As
políticas públicas no domínio da família, da educação e da saúde devem salvaguardar o
princípio do superior interesse da criança como forma de garantir o seu pleno
desenvolvimento físico, psíquico e cultural».
Aliás, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança no seu art.
12.°, n.° 1, já confere à criança «(...) o direito de expressar as suas opiniões livremente
sobre todos os assuntos relacionados com a criança (...)» e no n.° 2 o de expressar
livremente a sua opinião em todos os assuntos que lhe digam respeito em «(...)
processojudicial ou administrativo (...) » e «<? direito a que as suas opiniões sejam tidas
em conta, de acordo com a sua idade e maturidade».
Estamos perante uma nova conceção, oposta à do autoritarismo e da prevalên¬cia
da vontade de adulto sobre a da criança e do jovem, anteriormente dominante.
Os pais devem respeitar a personalidade, as aptidões e inclinações pessoais do
filho, não lhe impondo regras de conduta ou opções na sua vida, como sejam a escolha
de fé religiosa, de profissão, da celebração ou não de casamento, etc., que contrariem a
vontade do filho.
O conteúdo da autoridade paternal engloba poderes-deveres de natureza pessoal,
de natureza patrimonial e de representação dos filhos menores.
[49] Conteúdo de natureza pessoal
O conteúdo de natureza pessoal da autoridade paternal vem expresso no art. 135.°
do Código de Família, segundo o qual «Incumbe aos pais a guarda, a vigilância e
0 sustento dos filhos menores e a prestação de cuidados com a sua saúde e
educação ». Importa analisar cada um destes poderes-deveres discriminados na lei:
1 — Poder-dever de guarda
Este poder-dever envolve, na sua materialidade, o encargo direto do filho pelos
pais e está ligado, portanto, à própria pessoa física do filho. O dever da guarda ou
custódia é da maior relevância e pode dizer-se que dele derivam os demais direitos e
deveres paternais. Este direito vem hoje de novo consagrado no art.0 9.° da Lei sobre a
Proteção Integral da Criança (Lei n.° 25/12 de 22 de agosto de 2012,
D. R. n.° 162). Os pais devem manter os filhos em convivência direta consigo,
protegendo- os na sua integridade física e moral e integrando-os no seu agregado
familiar em vivência comum.
O direito de guarda consubstancia-se assim na obrigação e no direito do filho a
viver com os pais na residência destes. Este poder-dever vem consignado no art. 136.°
do Código de Família: « Os filhos menores devem viver com os pais, não podendo
deixara residência destes sem o seu consentimento».
Por via do poder-dever de guarda, os pais estão investidos no direito de fixar o
domicílio do filho menor. O domicílio do menor é, em regra, o do seu representante
legal, como prevê o art. 85.°, n.° 1, do Código Civil.
A retirada dos filhos menores da residência dos pais sem o seu consentimento
constitui ilícito penal que pode ser tipificado na forma de subtração de menores
— art. 342.°, no constrangimento do menor a abandonar a casa dos pais ou
tutores
— art. 343.°, ou na ocultação troca ou descaminho de menores — art. 344.°,
todos do Código Penal.
O Anteprojeto do Código PenaJ prevê no art. 231.° o crime de Subtração ou
recusa de entrega de menor.
Os pais podem pedir a intervenção de meios policiais para a entrega do filho que
for ilicitamente retirado da sua guarda.
Inversamente, a lei não permite que os pais afastem os seus filhos menores da
residência familiar, seja por meio de expulsão ou de qualquer outro meio violento ou
fraudulento. O art. 18.° da Lei do Julgado de Menores, Lei n.° 9/96, de 19 de abril,
carateriza a violação do dever de proteção social ao menor e engloba na sua alínea b)
como violadora desse dever: «A ordem de saída do menor da residência familiar nào
autorizada pelo Julgado de Menores, por parte dos pais, tutores ou qualquer pessoa que
tenha o menor a seu cargo.»
O abandono dos filhos constitui igualmente um ilícito penal, sendo uma das
formas do crime de abandono de família.'
Os pais podem, no entanto, delegar os seus poderes em terceira pessoa,
colocando o filho em colégio, em casa de parente, ou instituição social, desde que seja
idónea a entidade a quem o menor é entregue.
Dá-se então a continuação do exercício do poder-dever de guarda através desse
intermediário. Esta delegação do poder-dever de guarda pela entrega material do filho
a terceiro é um ato de natureza temporária e sempre revogável.
2 — Poder-dever de vigilância
O poder-dever de vigilância atribui aos pais o dever de velarem pela integridade
física e moral dos filhos, afastando-os dos perigos que os possam atingir na sua própria
pessoa ou na sua formação moral. Os pais devem proteger o filho na sua integridade
física, não permitindo que ele seja exposto a perigos dos quais, em razão da sua
menoridade, não esteja apto a defender- se, impedindo que sofra lesões ou que a sua
vida corra algum risco.
No aspeto moral, devem velar sobre as relações do filho, impedindo que ele
conviva e acompanhe pessoas moralmente mal formadas que possam incutir-lhe vícios
ou comportamentos censuráveis. Os pais têm o direito de fiscalizar as relações sociais
dos filhos.
Este direito ter que ser exercido no interesse do filho e não deve estar submetido
a caprichos ou malquerenças dos pais. Se os pais impedirem a relacionamento com os
avós ou outros parentes próximos do menor, como irmãos, tios e primos, o tribunal pode
ser chamado a intervir, se essa proibição tiver caráter abusivo e for injustificada.
Os pais têm o direito de abrir a correspondência do filho menor, no quadro do
dever de vigilância sobre as relações sociais do filho — art. 461.°, n.° 1 do Código
Penal.
Nele está também englobado o controlo sobre a vida privada do filho e a difusão
da sua imagem ou de relatos de índole pessoal.
Do dever de vigilância resulta ainda para os pais a obrigação de impedirem que
o filho pratique atos lesivos dos direitos de outrem, sendo no geral responsáveis pelos
atos cometidos pelo filho. O art. 491.° do Código Civil responsabiliza os pais
relativamente aos danos causados a terceiros por filho menor, naturalmente incapaz,
quando não tenham exercido de forma diligente o seu dever de vigilância.

É a própria lei que estabelece a presunção de culpa in vigilando, atribuindo aos


pais ou a quem os substitui, o dever de reparar os danos causados por condutas de
natureza dolosa ou meramente culposa dos filhos menores.
A Lei do Julgado de Menores, atrás citada, veio abranger na sua jurisdição art.
3.° « b) os pais, tutores, ou quem tenha o menor a seu cargo, nos casos previstos na
presente lei». Os pais estão obrigados a coadjuvar a ação do Julgado de Menores
e a fazer cumprir as decisões que forem tomadas relativamente a seus filhos.
De acordo com o art. 50.° do Código de Processo do Julgado de Menores,
aprovado pelo Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro, se «Durante a execução das medidas
decretadas ao menores se verificar o seu incumprimento por parte dos pais, tutores ou
da pessoa que tenha o menor a seu cargo, será mandado extrair certidão dos autos para
procedimento de contravenção por violação do dever de proteção social, caso a conduta
não integre infração mais grave.»
O Código Aduaneiro aprovado pelo Decreto-Lei n.° 5/06, de 4 de outubro, no
seu art. 175.°, n.° 1, responsabiliza os pais pelas infrações fiscais e aduaneiras cometidas
pelos filhos/"
3 — Poder-dever de prestação de sustento e cuidados de saúde O dever de
sustento e prestação de cuidados de saúde faz parte, bem como o dever de educação, do
dever geral de prestação de alimentos que incumbe aos pais a favor do filho. É o dever
primordial dos pais em relação aos filhos, consignado não só no art. 135.° mas também
no art. 249.°, n.° 1, do Código de Família.
A obrigação de alimentos é uma forma do dever de assistência material e nela se
incluem a prestação de alimentação, vestuário, habitação e educação, como adiante
veremos. Esta obrigação incumbe ao pai e à mãe e é de natureza solidária, o que
significa que ela pode ser exigida na sua totalidade a qualquer um dos pais. Se for um
único progenitor a prestá-la, ele terá direito de regresso contra o outro. Entre os pais
existe uma responsabilidade solidária.
O quantitativo desta obrigação varia consoante a situação económica e social dos
pais, pois ao filho deve ser assegurado um nível de vida idêntico aos dos seus
progenitores e proporcional aos rendimentos destes. Os alimentos não devem, pois,
restringir-se ao quantitativo necessário à mera subsistência do alimentado.
A prestação de cuidados de saúde (também incluída na obrigação genérica de
alimentos) envolve tudo quanto diga respeito ao desenvolvimento físico e psíquico do
menor, protegendo-o de doenças através de vacinações c outros meios de sanidade e da
devida assistência médica preventiva e curativa. Este direito vem de novo consagrado
no art.° 14.° da citada Lei da n.° 25/12 sobre Proteção e Desenvolvimento Integral da
Criança. Cabe aos pais prestar autorização para tratamentos ou intervenções cirúrgicas
a que o menor seja submetido.
Código Aduaneiro:
ARTIGO 175.°
1. Os pais ou representantes legais dos menores são responsáveis pelas infrações
fiscais c aduaneiras por eles cometidas.

Entendemos estar fora dos poderes dos pais autorizar que o filho menor seja
objeto de esterilização ou que seja doador de um órgão a terceira pessoa dado o caráter
de mutilação física de tais intervenções.
4 — Poder-dever de educação
O fim primordial da autoridade paternal é a formação do filho menor, que em
primeiro plano incumbe ao pai e à mãe. O art. 130.° do Código de Família, já citado,
considera «a formação moral e a preparação profissional dos filhos como cidadãos
válidos e socialmente úteis» como o fim social mais relevante da autoridade paternal
(n.° 2).
O poder-dever de educação dos filhos está em consonância com as capacidades
e recursos dos pais, como menciona o n.° 3 do art. 130.°, o que implica que quanto mais
elevado for o nível de vida dos pais, maior quantitativo estes devem proporcionar aos
filhos para a sua formação e para a sua educação.
O direito da criança à educação vem consagrado no art. 28.° da Convenção dos
Direitos da Criança.;8)
É exatamente no altruísmo e espírito de abnegação dos pais, que se radica a
possibilidade de as gerações menos favorecidas permitirem que os seus descen¬dentes
ultrapassem situações de desvantagem cultural em que eles se encontrem.
No esforço de educação do filho, o pai e mãe devem colaborar com os
organismos do Estado vocacionados para a educação e assistência do menor, dado que
a importância e complexidade da tarefa não permitem que sejam só os pais a levá-la a
cabo. Mas por outro lado, os pais não podem relegar para esses órgãos do Estado essas
tarefas fundamentais.
Os pais podem escolher a educação do filho e orientá-lo nas suas opções
escolares e profissionais. O dever de educação engloba, assim, o dever de propor¬cionar
instrução ao menor, obrigando à matrícula dos filhos em idade escolar em
estabelecimento de ensino e ao cumprimento da obrigação de frequentar a escola.
Devem ser sancionados os pais que impeçam o filho de frequentar a escola, ou que
sejam negligentes na forma como acompanham o filho em idade escolar.
Foi aprovado por Despacho n.° 30/08, de 24 de janeiro, o Regulamento Nacional
de Alfabetização e Atraso Escolar, que veio permitir a recuperação de alunos que
tinham interrompido a sua formação no quadro do ensino normal. 1

A tendência nos diversos sistemas jurídicos é, como já se mencionou, no sentido


de o Estado controlar os pais na forma como estes cuidam da instrução e educação dos
filhos, estabelecendo vias de fiscalização através dos competentes
órgãos escolares e de assistência social.
A educação do filho envolve também a sua integração gradual na execução de
tarefas na vida cotidiana do lar, de acordo com os hábitos de vida de cada povo, como
forma de aprendizagem e transmissão de valores culturais.
O poder-dever de educação insere dentro de si o poder de comando sobre os
filhos, do qual decorre o poder de correção dos filhos. Já diz o velho ditado que «quem
dá o pão dá a educação». O poder de correção permite aos pais sancionar os filhos,
impondo-lhes castigos.
Os castigos revestem-se de diversas formas: corporais ou de outra natureza,
como privações de atividades ou benesses dadas pelos pais, etc..
É muito controversa a questão da aplicação de castigos corporais aos menores e
em que medida eles podem ser aplicados pelos próprios pais.
Aliás predomina o conceito de que a violência contra a criança é um flagelo a
combater e a Convenção dos Direitos da Criança no seu art. 19.°, n.° 1: «(...) manda
adotar medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas apropriadas para
protegera criança contra todas as formas de violência física ou mental (...)».
A aplicação de castigos corporais pelos pais, parentes ou professores, ou outros,
devem ser sempre considerados ilícitos. Efetivamente apartir de um novo conceito de
violência doméstica, aprovado pela Lei n.° 25/11 de 14 de julho, estão interditos todos
os atos praticados no seio da família, nas escolas, instituições que envolvam todo o tipo
de violência seja ela física, verbal ou psicológica.
Os métodos de correção de menores variam segundo os usos e costumes de cada
sociedade, sendo umas mais repressivas e dominadas pelo autoritarismo, outras mais
liberais e abertas a métodos não coercivos de educação.
O direito de correção sempre que envolva violência é punido criminalmente, pois
prejudica o menor, na sua integridade física ou psíquica.
Se, por outro lado, os filhos se mostrarem de difícil correção ou com especial
vocação para prática de condutas antissociais, os pais podem requerer ao tribunal a
imposição de medidas de correção que poderão ir até ao internamento cm instituições
educativas ou de assistência apropriadas, como vem hoje consagrado no art. 14.°, alínea
c), da Lei do Julgado de Menores (Lei n.° 9/96, de 9 de abril), que prevê a aplicação da
medidas de proteção social ao menor «que se mostre gravemente inadaptado à disciplina
da família e da comunidade».

[50] Conteúdo de natureza patrimonial


1 — Administração ordinária dos bens dos filhos

A autoridade paternal abrange em regra os poderes de administração legal dos


bens dos filhos — art. 138.° do Código de Família. A administração dos bens do menor
é um direito e um dever que o pai e a mãe devem exercer conjuntamente.
No exercício desse direito os pais têm o dever de diligência, como impõe o art.
144.°, n.° 1, do Código de Família.
Essa administração está dirigida para a conservação e frutificação normal dos
bens do menor, aproveitando os frutos e rendimentos que os mesmos produzem, sem
alterar a sua estrutura e substância. Os atos a praticar devem ter como objetivo a gestão
e conservação do património, são pois atos de administração ordinária.
O direito à administração dos bens envolve o direito ao usufruto legal dos bens
dos filhos (art. 143.° do Código de Família). Entende-se, por via desta atribuição, que
os pais custeiem as despesas necessárias com os alimentos dos filhos e, se excedentes
houver, eles revertam a favor dos pais como compensação dos encargos da
administração. No atual Código Civil Português os rendimentos do filho devem ser
aplicados no seu próprio sustento e em necessidades do agregado familiar.
O direito ao usufruto dos pais não pode porem ser alienado ou onerado pelo
próprio ou em execução movida por terceiros.
Relacionado com o direito ao usufruto, está o disposto na última parte do n.° 1
do art. 144.° do Código de Família, segundo o qual os pais «não são obrigados a prestar
contas da sua administração dos bens dosfilhos».
Na prática, seria difícil impor aos pais o dever de prestar contas dos rendimentos
dos bens dos filhos, uma vez que todos vivem em economia comum e tendo em conta
o princípio da solidariedade que rege as relações familiares.
Os pais «podem ser responsabilizados pelos atos de administração que,
intencio¬nalmente ou com grave negligência, pratiquem em prejuízo dos filhos» (art.
144.°, n.° 2 do Código de Família). Havendo violação do dever de diligência na
adminis¬tração dos bens do filho menor, além da responsabilidade civil ou criminal do
progenitor, podem ser-lhe retirados os poderes de administração e estes serem
atribuídos ao outro progenitor ou a um terceiro que seja nomeado curador.
Essa decisão tem que ser tomada pelo tribunal, no âmbito das medidas de
inibição da autoridade paternal que adiante estudaremos.
2 — Bens excluídos da administração dos pais
A administração legal dos bens dos filhos pode, porém, em certos casos, não
pertencer aos pais. É o que se verifica, de acordo com o previsto no art. 142.° do Código
de Família, quando se trate:
— de bens excluídos da administração dos pais por imposição expressa de
terceiro ou do tribunal;

— do produto do trabalho dos filhos.


No primeiro caso, encontram-se os bens que tenham sido doados ou deixados a
título sucessório ao menor, com a condição de não ficarem sob a administração dos pais,
ou com a condição de se destinarem a um fim específico da vida do menor, como seja
o seguir determinada carreira profissional, uma vocação artística, etc..
Neste caso, o autor da doação ou da herança pode indicar como administrador
um terceiro que não qualquer um dos pais.
No segundo caso, a lei prevê que seja o próprio menor a auferir rendimentos com
o produto do seu trabalho, permitindo que seja ele a administrar o montante por si
auferido.
A legislação laborai angolana permite a prestação de trabalho por conta de
outrem ao menor que tenha completado 14 anos de idade.
Já era assim na Lei Geral do Trabalho (aprovada pela Lei n.° 6/81, de 24 de
agosto), cujo art. 160.° permitia a admissão ao trabalho de menores que tivessem
completado 14 anos de idade, prevendo o art. 161.° a validade da relação jurídica laborai
estabelecida com menores dos 14 anos aos 18 anos, desde que autorizada pelo
representante legal.
Hoje, a Lei n.° 2/2000, de 11 de fevereiro, permite igualmente a celebração por
escrito do contrato de trabalho, desde que o menor faça a prova de que completou 14
anos de idade; para a validade do contrato é necessária a autorização expressa de quem
represente o menor ou a autorização tácita, caso o menor tiver completado os 16 anos
— art. 282.°.
Pela Resolução n.° 8/01 da Assembleia Nacional — D. R. de 16 de fevereiro,
Angola aderiu à Convenção sobre a Idade Mínima de Admissão ao Emprego, que fixa
que ela «não deve ser inferior à idade em que termina a escolaridade obrigatória, nem
em qualquer caso, a 15 anos».
A lei não abrange o trabalho dito «doméstico» que o menor efetua a título
permanente, a maior parte das vezes sem qualquer tipo de remuneração.
O menor que trabalhe por conta de outrem e aufira o seu próprio salário tem
direito a dispor da sua remuneração.
Mas se viver em economia comum com seus pais, deve contribuir para as
despesas comuns que constituem os encargos normais do agregado familiar.
3 — Atos de administração extraordinária
A administração legal dos bens dos filhos é, porém, de natureza restrita, pois é
exercida dentro dos limites da denominada administração ordinária, destinada à
conservação dos bens e à sua frutificação normal. Os atos que extravasem estes limites
só podem ser praticados com autorização do tribunal.
Estão sujeitos à autorização judicial os atos mencionados no art. 141.° e que são:
— alienação ou oneração de bens imóveis;

— alienação ou oneração de bens móveis de caráter duradouro;


— repúdio de heranças;
— assunção de obrigações que vinculem o filho depois dele atingir a maioridade.
Todos estes atos, que estão fora dos parâmetros da administração normal dos
bens, têm que ser especificadamente autorizados, caso por caso, peio tribunal, que,
dadas as circunstâncias, deverá ponderar se o negócio jurídico posto à sua apreciação é
patrimonialmente benéfico para o menor.
Os contratos feitos pelos pais na vigência da menoridade do filho, como o
contrato de arrendamento, de exploração ou de aluguer, cessam quando o filho atinge a
maioridade. Procura-se desta sorte que, quando cesse a menoridade, o filho não fique
vinculado a obrigações que não foram por si contraídas.
Após a adoção na sociedade angolana da chamada «economia de mercado» tem-
se posto com acuidade a questão de saber se é ou não necessária a autorização do
tribunal para os pais criarem sociedades comerciais de capital com os filhos menores,
ou fazerem com que eles intervenham nas sociedades recém-constituídas.
Não se trata do caso de o filho menor receber, a título sucessório, quotas sociais
de sociedades comerciais, mas do aparecimento exnovo do menor como detentor de
uma quota social ou ação de uma sociedade que anteriormente não existia.
A questão tem sido objeto de grande controvérsia, havendo na doutrina e na
jurisprudência dos sistemas de direito romano a opinião dominante de que a entrada de
um menor, mesmo como mero sócio de capital, numa sociedade comercial, deve ser
autorizada pelo tribunal.
Esta não era orientação da nossa jurisprudência, que entendeu estar abrangido
nos poderes de representação dos filhos atribuídos aos pais, o da aquisição pelos
menores de quotas em sociedade por quotas de responsabilidade limitada .
Dado que não se tratava de alienação ou oneração de bens havidos
anterior¬mente pelo menor, mas na realidade de uma doação indireta de valores feita
pelo
progenitor, entendeu-se que esse ato estava fora da previsão legal do art. 141.°
do Código de Família.
Esta doutrina perfilhada pela nossa jurisprudência, à face da lei então vigen¬te,
tem que ser revista em razão da entrada em vigor da Lei das Sociedades
Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro.
O art. 76.°, n.° 1, desta lei estipula que os fundadores, gerentes ou
adminis¬tradores da sociedade respondem solidariamente para com a sociedade pela
inexatidão e deficiência de quaisquer declarações que tenham prestado para a sua
constituição. E o n.° 3 desse artigo faz responder os sócios fundadores pelos danos que
causem à sociedade. Acresce que o art. 78.° dessa lei, estatui que a responsabilidade dos
sócios fundadores, gerentes e administradores é

de natureza solidária, ficando vedada qualquer cláusula que exclua ou limite essa
responsabilidade que por força do art. 79.° será declarada nula.
Ora envolvendo a qualidade de sócio fundador a responsabilidade pessoal
descrita na lei comercial, é manifesto que extravasa os poderes legais de representação
de filho menor para a constituição de uma nova sociedade em que ele apareça na
qualidade de sócio fundador.
Na verdade, como já vimos, os poderes de administração legal dos bens do filho
menor é no essencial dirigida para os atos de administração ordinária e por conseguinte,
destinada à sua conservação e frutificação normal, não podendo envolver atos dos quais
possa advir responsabilidade pessoal imputável ao menor.
Pelo atual dispositivo da lei, entendemos que a constituição duma nova sociedade
comercial, em que o menor entre como sócio fundador, nem tam¬pouco poderá ser
enquadrada como ato de administração extraordinária cuja autorização possa ser dada
pelo tribunal, como vem previsto no art. 141.° do Código de Família.
A qualidade de sócio fundador envolve responsabilidade de natureza pessoal e
só pode ser assumida por quem tenha plena capacidade civil pelos efeitos de que dela
derivam. Daí que tampouco ela não possa ser objeto de autorização judicial, sendo de
afastar por completo a intervenção de um menor no ato de constituição duma sociedade
comercial.
Por maioria de razão é também de afastar poder um menor ser investido em
qualquer cargo social na qualidade de gerente ou administrador, para os quais a mesma
Lei n.° 1/04 exige que as pessoas investidas tenham plena capacidade de agir. O menor
poderá ser sócio não fundador unicamente em sociedade de capital.
Já a situação que decorre posteriormente à constituição da sociedade e aquisição
da qualidade do sócio tem que ser encarada de forma diferente. Ao sócio menor não
poderão ser atribuídas funções de gerência comercial, mesmo
através do seu representante legal, pois são funções atribuídas em razão da pessoa
escolhida para a gerência e não podem ser objeto de delegação.
Em consequência, passam a estar sujeitos a autorização judicial quaisquer atos
que envolvam alienação ou oneração de quotas sociais ou alteração do pacto social. Mas
cabem nos atos da administração ordinária, os poderes dos pais de representarem os
filhos nos atos que decorram da vida normal da sociedade, como a aprovação de contas,
recebimento de dividendos e lucros, eleição de órgãos sociais, etc..
4 — Anulação e validação de atos praticados pelos pais
Os atos de administração praticados pelos pais dentro ou fora dos seus poderes
de administração e que sejam lesivos dos interesses dos filhos podem ser anulados —
art. 145.° do Código de Família.
A anulação pode ser pedida pelo Ministério Público durante a menoridade do
filho. E o próprio filho pode vir pedir a anulação do ato dentro do prazo de um ano após
ter atingido a maioridade.

Além de que, como já apontámos, os pais podem ser responsabilizados pelos atos
que, intencionalmente ou com grave negligência, pratiquem em prejuízo dos filhos (art.
144.°, n.° 2). Aos pais que administrem indevidamente os bens do filho, violando os
seus deveres para com este, fazendo um uso abusivo dos seus poderes, pode ser retirado
o poder legal de gestão dos bens dos menores, procedendo-se à remoção dos seus
poderes de administração.
A remoção da administração é uma sanção contra a gestão inapropriada dos
progenitores que redunde na lesão dos interesses económicos do filho, seja por
incapacidade dos pais, seja por apropriação ou dissipação indevida dos bens daquele.
Em contrapartida, os atos feridos de invalidade, por não terem sido devidamente
autorizados pelo tribunal, podem ser validados nos termos do art. 146.° do referido
Código.
Pode ocorrer que determinado ato tenha sido benéfico para o património do filho,
justificando-se que seja suprido o vício na sua celebração. A validação pode ser feita a
pedido dos pais durante a menoridade do filho ou pelo próprio filho após ter atingido a
maioridade, não impondo a lei de família um prazo para o pedido.
Quando o filho atinja a maioridade os pais devem fazer-lhe a entrega dos bens
que estejam na sua administração remetendo-os à sua posse.

[51] Representação legal


Como corolário da autoridade paternal, a lei confere aos pais o poder da
representação legal dos menores.
O art. 138.° do Código de Família atribui aos pais «opoder-dever de
represen¬tação dos filhos em todos os atos e negócios jurídicos salvo os de natureza
estritamente pessoal».
Este poder de representação tem simultaneamente natureza pessoal e patrimonial
e engloba os atos relativos à pessoa e aos bens do menor.
A representação é atribuída ao pai e à mãe indistintamente quando exerçam em
conjunto a autoridade paternal.
Na verdade, estando a autoridade paternal dividida em diarquia entre o pai e a
mãe é a eles que, em caso de coabitação, cabe a representação comum do filho menor
(art. 139.°, n.° 1 do Código de Família).
Presume-se que a vontade expressa por um é a vontade de ambos, tratando-se de
uma presunção simples, que pode ser afastada por qualquer manifestação em contrário
do outro progenitor. Esta presunção é válida perante terceiros de boa fé e, no geral, para
os atos usuais da vida do filho menor.
Para estes atos normais do dia a dia do menor seria prejudicial que fosse
necessário chamar os dois progenitores a intervir, dificultando os necessários
procedimentos para resolver cada caso.
Quando estiver em causa uma questão de natureza grave ou de caráter excecional
(como, por exemplo, a escolha de profissão, continuação de formação profissional,
autorização para o

menor ser submetido a uma intervenção cirúrgica, a saída do menor do país por
longo tempo, etc.) já é necessário que ambos os pais sejam chamados a representar o
menor.
Do poder de representação dos pais estão excluídos os atos de natureza
estritamente pessoal (art. 138.° do Código de Família) c os atos de natureza patrimonial
sujeitos a autorização judicial (art. 141.° do mesmo Código).
Os atos de natureza estritamente pessoal são aqueles que estão ligados à própria
vontade e consciência do menor, titular do direito, e em que é essa vontade própria que
tem de ser expressa.
Como atos de natureza estritamente pessoal estão englobados: o consentimento
para casamento, previsto no art. 35.° do Código de Família que tem que ser dado pelo
próprio nubente, embora tenha que ser complementado com a autorização dos pais
prevista no art. 24.°, n.° 3.
O consentimento à adoção, a que refere o art. 203.°, que é indispensável à
constituição do vínculo da adoção de menores que tenham completado 10 anos de idade.
A declaração do vínculo da qualidade de progenitor, seja de maternidade ou de
paternidade, feita por menor que já tenha a idade mínima para contrair casamento, ou
seja, 16 e 15 anos, respetivamente, para homem e mulher, como consente o art. 174.°,
alínea a), não carece de autorização. Já no caso de idade inferior àquelas a declaração é
feita pelo menor e tem que ser objeto de autorização pelo representante legal — art.
174.°, alínea b).
A audição do menor que tenha completado 10 anos de idade em todas as causas
a si respeitantes — art. 158.°, n.° 3, do mesmo Código representa também um direito
de natureza pessoal a ser exercido pelo menor.
A audição do menor constitui «uma das consequências mais importantes do
princípio favor filii que o julgador deve ter em conta como elemento relevante da sua
decisão.»
De realçar que a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança,
de 1996, no seu art. 3.° dispõe:
«A criança que segundo o direito interno é considerada como tendo o necessário
discernimento, nos processos em que seja interessado e perante uma autoridade
judiciária é titular dos seguintes direitos (...)
a) receber toda a informação pertinente;
b) ser consultada e exprimir a sua opinião;
c) ser informada das consequências eventuais da aplicação da sua opinião e das
consequências eventuais de qualquer decisão.»

[52] Relações paterno-filiais depois da maioridade dos filhos


Uma vez atingida a maioridade pelos filhos cessa o exercício da autoridade
paternal, alterando-se consequentemente as relações jurídicas paterno-filiais que
passam a processar-se entre adultos titulares dos seus direitos e deveres.
Os filhos, mesmo quando maiores, estão, porém, adstritos a certos deveres
específicos, próprios da qualidade de filho, em relação a seus pais.
São eles, como atrás vimos, os deveres de respeito, cuidados e assistência, como
prescreve o já citado art. 132.° do Código de Família.
Vemos que a lei, num vínculo familiar tão próximo como o da filiação, exige,
em primeiro lugar, o respeito dos filhos em relação aos pais.
O dever de cuidados implica o dever de ajuda e desvelo dos filhos pela pessoa
dos pais e o dever de assistência de prestação moral e material. Tal como acontece nas
relações entre os cônjuges, a lei impõe que os filhos prestem assistência de natureza
moral e material aos pais.‘l)
Esta traduz-se na obrigação de alimentos, consignada no art. 249.°, n.° 2, alínea
b) do Código de Família, que obriga os descendentes à prestação de alimentos aos seus
ascendentes.
[53] Exercício da autoridade paternal
O exercício da autoridade paternal pertence, em primeiro plano, ao pai e à mãe
como fruto de um direito natural. Não obstante, é necessário que esteja estabelecido o
vínculo da filiação em relação a ambos para existir a titularidade do direito ao seu
exercício.
No nosso sistema jurídico, e porque foi afastado o conceito de filho de mãe ou
pai «ilegítimos», a autoridade paternal é exercida consoante entre eles existe ou não
coabitação.
Deste modo, há que ter em conta o facto concreto de estarem na titularidade dos
seus direitos de progenitores, ou seja se está ou não estabelecido o vínculo da filiação
em relação a cada progenitor, independentemente de estes estarem ou não unidos pelo
casamento.
Independentemente de os pais serem casados ou não, a autoridade paternal é
exercida em igualdade, com os mesmos direitos e deveres em relação aos filhos,
sobretudo se ambos viverem em coabitação.
Nas relações entre pais e filhos teve um considerável impacte a nova perspetiva
do direito que se tem acentuado nas últimas duas décadas e que passou a encarar a
criança (abrangendo a infância e a adolescência) como titular de direitos que lhe são
diretamente atribuídos.
Em vez de dar predominância aos direitos dos pais sobre os filhos menores,
iniciou-se uma importante inversão de perspetiva e passou a centrar-se a atenção nos
direitos da criança em relação aos seus pais. Para a questão do exercício da autoridade
paternal que agora apreciamos, é fundamental o direito do filho a ter pai e mãe e a
manter, sejam quais forem as circunstâncias de cada caso, o relacionamento normal com
ambos os progenitores. Entende-se que é benéfico
(n) Francisco Rivero Hernandez. «Relaciones Personales entre Abuelos y Nictos
en las Familias Reconstituidas», in Lex Familioe — Revista Portuguesa de Direito de
Família,, pp. 36-37: «Los

abuelos y la família extensa, cn general, ofrcccn un cspacio de socializacion


idóneo que favorece un desarroilo individual y social adecuado. Los abuelos, en la
sociedad atual, desenpenam un importante papel de socializacion respecto a sus nictos.»
para a criança estabelecer com o progenitor-pai e a progenitora-mãe um
relacionamento equilibrado. Ou seja a permanência da biparentalidade.
Este princípio vem consagrado no art. 9.° da Convenção sobre os Direitos da
Criança, que protege a criança assegurando que ela « não seja separada de seus pais»,
salvo as exceções exempiificativas de ser a criança «objeto de negligência ou maus
tratos por parte dos pais» ou quando estes vivam separados. Mas quando tal acontecer
deverá ser respeitado o direito da criança de manter «relações pessoais e contato direto
com ambos os pais de modo regular», salvo se tal for contrário ao superior interesse da
criança.
É também esta orientação partilhada pelo Código de Família, que não privilegia,
nas relações com os filhos, nem o pai nem a mãe, não discriminando estes consoante se
trata de família matrimonial ou natural, e atribuindo aos filhos o direito de convivência
com ambos os progenitores em perfeito equilíbrio e paridade.

[54] Exercício conjunto da autoridade paternal


O exercício da autoridade paternal em conjunto vem assegurado quando o pai e
a mãe vivam em coabitação, ou seja, desde que vivam como marido e mulher debaixo
do mesmo teto. Ambos exercem em plenitude a autoridade paternal.
Para o nosso direito é irrelevante saber qual dos progenitores estabeleceu
primeiro o seu respetivo vínculo de filiação em relação ao filho, pois, uma vez este
estabelecido, derivam em pleno todos os efeitos das relações paternais e filiais.
O art. 139.°, n.° 1 do Código de Família dispõe que a autoridade paternal será
exercida conjuntamente pelo pai e pela mãe, em caso de coabitação, estatuindo assim o
modelo real de família nuclear composta pelo pai, mãe e filhos menores, que constituem
o cerne da estrutura familiar.
No exercício em comum da autoridade paternal, cada um dos progenitores de per
si ou os dois conjuntamente, podem praticar os atos de representação da pessoa do filho
menor ou de administração dos seus bens.
Como vimos, existe a presunção de que cada um deles está a agir com o
consentimento expresso ou tácito do outro progenitor e de acordo com a sua vontade,
que se mantém desde que exista boa fé nas relações entre os progenitores e entre estes
e terceiros. Perante terceiros de boa fé, quando o pai ou a mãe do filho menor praticam
um ato em nome deste, presume-se que o ato foi acordado entre ambos os pais.
O acordo entre os pais no exercício da autoridade paternal constitui a regra
normal e de procedimento comum, o que não significa, porém, que antes de ser
obtido não possa haver entre ambos graves desinteligências e que o acordo só
venha a ser possível depois de longas discussões e concessões recíprocas.
No caso de não ser possível obter-se o entendimento entre os pais, não
prevalecerá a autoridade de nenhum deles e a questão será posta à apreciação do
tribunal.
Ao contrário do que anteriormente acontecia, o tribunal pode ser chamado a
dirimir conflitos entre os pais, mesmo vivendo estes em comum. Antes prevalecia a
vontade do pai, como chefe de família; agora não prevalece a vontade do pai sobre a da
mãe nem a desta sobre a daquele. Hoje o art. 140.°, n.° 1, do Código de Família
estabelece que, no caso de desacordo dos pais, incumbe ao tribunal a decisão. É de
pressupor que sejam de natureza grave e de relevância para a vida do filho as questões
submetidas ao tribunal para decisão.
Tendo em vista a constituição da família nuclear e a existência de solidariedade
entre os seus membros que vivem em coabitação, o art. 139.°, n.° 2 do Código de
Família trouxe uma inovação. Ele impõe, a cada um dos membros do casal, o dever de
cooperação no exercício da autoridade paternal sobre os filhos menores do outro que
com eles coabitem.
Neste caso, estando o filho menor a coabitar com o casal e embora ele seja filho
só de um deles e de uma terceira pessoa, o equilíbrio e a harmonia do agregado familiar
impõem que não seja adotada uma postura de neutralidade ou afastamento por parte
daquele que não é o pai (ou a mãe) natural do menor.
A cooperação envolve a participação de facto na autoridade paternal exercida
pelo outro cônjuge ou companheiro de união de facto, assumindo muitas vezes o papel
de «pai» (ou de «mãe») junto do filho menor do outro. Esta realidade impõe o dever de
prestar ajuda construtiva em todos os complexos deveres que constituem a autoridade
paternal.
É preciso, porém, ter em conta que isto não significa que seja atribuída a
titularidade do direito ao exercício da autoridade paternal ao cônjuge que não for pai
(ou mãe), pois esta só é atribuída em razão de filiação natural ou adotiva.
Este a exercer em exclusivo a autoridade paternal. Se o vínculo estiver
estabelecido cm relação a ambos os pais, o exercício único verifica-se nos casos
mencionados no art. 147.° do Código de Família.
Em primeiro lugar, quando ocorrer a morte de um dos progenitores, a autoridade
paternal passa a ser exercida unicamente pelo sobrevivo que assume — art. 147.°, n.° 1
— a totalidade dos direitos e dos deveres que integram o exercício da autoridade
paternal.
O exercício exclusivo por parte da mãe, no caso de morte do pai, não era aceite
no Código Civil de Seabra: a mãe tinha que ser coadjuvada por um conselho de tutela.
Tampouco ocorre no direito tradicional africano, em que a autoridade paternal é, em
regra, exercida por um membro masculino da família.
Existem ainda outros casos de exercício único da autoridade paternal previstos
no n.° 2 do art. 147 do Código de Família e que são a ausência, incapacidade ou
impossibilidade por parte de um deles. Estamos perante situações que retiram ao
progenitor a possibilidade de exercer a autoridade paternal, seja por razões de facto, seja
por razões de direito. Se cessar a causa temporária do impedimento, pode ser
readquirido o exercício da autoridade paternal.

[56] Exercício da autoridade paternal em separado


a) Regime dijuntivo
O exercício da autoridade paternal em separado resulta do fim da coabitação dos
pais. A título de exemplo, o art. 148.° do Código de Família menciona que isso pode
ocorrer no caso de separação de facto, de anulação de casamento ou de divórcio dos
pais.
O fim da coabitação nem sempre é fácil de determinar, pois esta, como situação
de facto que é, pode interromper-se e ser retomada uma e mais vezes, ou até ser mantida
tão só em razão da existência dos filhos comuns.
Operada que seja a separação de facto dos progenitores, ela vai repercutir-se
sobre a pessoa do filho menor, que, em princípio, terá que ficar entregue à guarda de
um dos progenitores. A separação de facto dos pais não vai atingir a titularidade do
direito dos pais à autoridade paternal. Eles continuam a ter os direitos que lhes são
atribuídos em razão do vínculo de filiação existente. Mas vai ter efeitos, sem dúvida,
quanto à forma como esse exercício se vai realizar em concreto.
Uma das mais profundas transformações operadas no atual direito de família
incide precisamente no relacionamento entre o filho e os pais após a separação destes.
As estatísticas, sobretudo nos estados europeus e americanos, demonstravam
que, após a separação dos pais, mormente peio seu divórcio, os filhos na maioria das
vezes eram entregues à mãe, que ficava no quase exclusivo exercício dos direitos e
deveres da autoridade paternal, passando o pai a não ter quase nenhuma intervenção na
vida do filho e a distanciar- se cada vez mais no relacionamento com este, passando à
figura do «pai ausente».
Esta situação tinha perniciosos reflexos na vida emocional do filho e na sua
formação, sendo que por parte do pai se verificava muitas vezes uma fuga ao
cumprimento das suas obrigações paternais, não satisfazendo a pensão de alimentos c
cortando o relacionamento com o filho.
Daí que atualmente se procure inverter tal procedimento, tendo em vista que o
fàcto de os pais viverem em separado não deve afetar os respetivos direitos e deveres
paterno-filiais.
Teve influência nesta nova maneira de ver o facto de se ter deixado de
conside¬rar o divórcio como uma sanção para a má conduta de um dos cônjuges, com
o inerente castigo que envolvia a «perda» dos filhos para o cônjuge declarado
«culpado».
A nova visão do divórcio como resultado de uma situação objetiva de rutura do
vínculo conjugal, desdramatizou a situação anterior, tomando o interesse do filho e o
seu normal desenvolvimento como ponto fulcral a ter em conta.
Os conflitos familiares que surgem do exercício em separado da autoridade
paternal são fontes de desestabilização e causa de sofrimento para os filhos e para os
pais.
Para dirimir os conflitos familiares lança-se mão, cada vez mais, de formas de
mediação que visam tomar possível que sejam os próprios pais a encontrar acordos que
beneficiem todas as partes envolvidas.
Acresce ainda que cada vez mais ganha relevância, a questão de saber como se
vai processar o exercício da autoridade paternal em separado, quando o pai e a mãe são
nacionais de diferentes estados ou têm residência permanente em diferentes estados, o
que acarreta para um dos pais a perda mais ou menos efetiva de manter as relações
pessoais com o filho.
Dado o número crescente de casamentos entre cidadãos de nacionalidades
diferentes e o facto de o pai ou a mãe, a quem não foi atribuído a guarda do filho,
enveredar pelo rapto do próprio filho e levá-lo para o seu país, fez com que se procurasse
dar uma solução a situações muito melindrosas através da Convenção da Haia de 1980
sobre «Aspetos Civis do Rapto Internacional da Criança». A mesma preocupação levou
à celebração de convenções regionais sobre esta matéria, por parte dos países latino-
americanos e europeus.
Angola não é parte em qualquer tratado ou acordo internacional que estipule os
compromissos inter-Estados no caso de crianças angolanas serem levadas para fora de
Angola pelo progenitor de nacionalidade estrangeira, o que tem sido fonte de graves
casos de ruturas familiares em que normalmente impera a lei do mais forte sob o ponto
de vista económico.
No exercício da autoridade paternal em separado há que determinar, em primeiro
lugar, a qual dos progenitores fica entregue a guarda e custódia do menor e como ficarão
distribuídos os demais poderes que compõem a autoridade paternal, como o da
vigilância, prestação de cuidados de saúde e educação.
Estas obrigações devem ficar repartidas entre os dois progenitores, e o progenitor
a quem o filho não for entregue conserva o direito de visita, que se consubstancia no
direito a ter o filho na sua convivência durante determinados períodos de tempo.
Entende-se que, ao determinar qual é o superior interesse da criança, o tribunal
deve decidir qual dos pais é mais capaz de promover e assegurar o seu bem-estar físico,
moral, emocional e espiritual...
Os critérios são os seguintes:
— o amor, afeição e outros laços emocionais que existem entre os pais e o filho
e a sua compatibilidade com o filho;
— as capacidades, caráter e temperamento dos pais e o seu impacte sobre as
necessidades e os desejos da criança e a capacidade para o guiar;
— a possibilidade de cada um dos pais prover às necessidades físicas da criança
(como comida, vestuário, habitação e outras necessidades materiais) e prover à sua
educação e bem- estar.
A obrigação de alimentos é cumprida de formas distintas. O progenitor a quem
for entregue o filho cumpre essa obrigação ao integrar o menor no seu agregado
familiar, ao passo que o progenitor que com ele não conviver deve prestar-lhe alimentos
na forma de prestação pecuniária e por outros bens e serviços de que o menor possa
beneficiar.
O art. 149.° do Código de Família diz que ao progenitor a quem for atribuído o
exercício da autoridade paternal vai caber em especial o exercício dos direitos e deveres
para com o filho.
O outro progenitor terá em regra a obrigação de prestação de alimentos, como
indica a parte final do art. 149.°.
Já o art. 150.° explicita que o progenitor a quem não for atribuído esse exercício,
mantém o direito às relações pessoais com o filho, devendo cooperar na sua formação
e acompanhar o exercício da autoridade paternal por parte do outro.
Arredou-se a expressão direito de fiscalização e adotou-se o termo cooperar para
deixar claro que o exercício da autoridade paternal pelo outro progenitor não se limita
a uma espécie de <direito de vigiar >.
Com estes princípios procurou-se alterar a situação prevalecente no Código
Civil, que era omisso quanto a questão tão importante. Procurou-se salvaguardar, com
a maior latitude possível, os direitos e deveres do progenitor a quem o filho não for
entregue, de forma a que ele se não sinta afastado do filho, criando uma situação de
perda e amputação no relacionamento recíproco.
Ao mencionar-se na lei que o progenitor tem o direito a manter as relações
pessoais com filho quis-se enfatizar que o relacionamento do menor com o pai ou a
mãe, com quem ele não coabite, deve manter-se tão normal e tão próximo quanto
possível, de forma que a vivência humana entre ambos não seja atingida.
O direito às relações pessoais é um direito da personalidade diretamente
vinculado às próprias pessoas entre quem se estabelece.
O progenitor que não conviva com o filho, terá o direito a visitas, a contatos
telefónicos, à correspondência, a indagar da sua situação de saúde ou a saber da sua vida
escolar, etc. Manterá assim o direito a ter o filho junto de si e a comunicar com ele
quando estiver longe.
Além disso, cabe-lhe cooperar plenamente, dentro das suas capacidades e
possibilidades, na formação e educação do filho, pois, mesmo vivendo em separado,
deverá exercer o fim último da autoridade paternal. Ambos os pais deverão, no interesse
do filho, acompanhar sempre a evolução da vida do menor.
No exercício da autoridade paternal em separado as questões a resolver são
csscncialmente três: a entrega do filho a um progenitor, o direito da visita por parte do
outro e a obrigação de alimentos.
Ganha cada vez mais relevância a questão que se prende dos direitos de
convivência de outros parentes próximos, como avós e irmãos no caso de famílias
destruturadas, como a de pais separados ou porque se divorciaram ou porque não
chegaram a estabelecer comunhão de vida. Nestes casos a tendência vai no sentido de
reconhecer estes parentes como titulares de direito a manter relações pessoais com a
criança.
No Código de Família da Catalunha o direito dos avós a manterem relações
pessoais com os netos, salvo a existência de justa causa que o impeça, vem reconhecido
no art. 135.°, n.° 2, o mesmo acontecendo em diversos sistemas legais europeus que
reconhecem esse direito «em relação a pessoas consideradas com especial
relacionamento com a criança». A questão é encarada sobretudo, sob o prisma do
interesse da criança.
b) Regime da guarda conjunta
A forma como se vai regular o exercício da autoridade paternal em separado tem
sido objeto de estudo e evolução nos diversos sistemas de direito, com vista a dar
solução a questão de tão grande melindre nas relações familiares.
Surge agora como modelo a adotar, sempre que tal seja possível, a designada
guarda conjunta, em que o filho menor pode ter residência em casa de um dos pais, ou
ficar alternadamente com um e com outro, mas em que ambos os progenitores mantêm
o direito de serem chamados a intervir em todas as questões de particular importância
para a vida do filho.
Esta nova tendência visa substituir a posição anterior da entrega do filho a um
dos progenitores e da atribuição de alguns direitos e deveres ao outro a quem o filho
não era entregue, que fiscalizava como o outro progenitor exercia a sua autoridade
paternal, dando agora lugar a uma verdadeira participação dos dois progenitores no
exercício da autoridade paternal.
Defendendo o regime da guarda conjunta, entende-se ser ela aquela que
funcionalmente mais se aproxima da estrutura familiar anterior, estrutura essa que é a
mais estabilizante e digna de crédito para a criança e que corresponde ao seu ideal de
família, ou seja, a «afirmação de que ambos os pais permanecem para lá da separação,
reforçando a continuidade da família».^
A guarda conjunta pressupõe que tanto o pai como a mãe são igualmente capazes
e responsáveis no exercício dos seus deveres e que, mesmo separados, será do interesse
do filho que ambos continuem a prestar-lhe toda a contribuição necessária à sua criação
e educação.
«A repartição do exercício das responsabilidades parentais deverá promover
também no interesse do menor, a co-parentalidade (art. 1905.° do Código Civil)
Interessará, designadamente assegurar a comunicação c a informação entre os pais a
respeito da criança, em especial sempre que os seus interesses essenciais sejam ou
possam ser afetados »
só poderá ser feito a título exeedonTTM “T“'8" ü<> "“T' :to o iustifiouem C
<luando razôcs ponderosas do stqaemsituaçãodeaexercerporforlTcr“^10^“'0^011
F iorça de circunstâncias concretas. Sc o
menor for entregue a um terceiro, o tribunal deve igualmente regular os direitos
e deveres de cada um dos pais em relação ao filho.
A mesma disposição do art. 151.° prevê ainda a atribuição do exercício da
autoridade paternal a terceira pessoa quando estiver em perigo a segurança física ou
moral do menor. Neste caso, estamos já no campo da fundamentação legal da inibição
do poder paternal, que pode ser declarada expressamente ou derivar implicitamente da
atribuição da autoridade paternal a outrem que não o progenitor.
Na escolha da terceira pessoa a quem deva ser atribuído o exercício da autoridade
paternal o tribunal deve ter em conta fundamentalmente o interesse do menor e, de
preferência, escolher um parente próximo do menor, os avós, tios, irmãos mais velhos,
para que o menor se mantenha, tanto quanto possível, dentro do meio familiar onde se
sinta integrado. E, na falta de parentes, alguém que demonstre particular afeição pelo
menor e que seja idóneo.
Em último caso, se não puder ser entregue a terceira pessoa, dispõe o citado art.
151.° que o menor deverá ser entregue a estabelecimento de assistência.
Neste caso, os pais mantêm em relação aos filhos os direitos contidos no art 150
° do Código de Família, independentemente do dever de alimentos.
Como vemos, o exercício da autoridade paternal deve corresponderem concreto
àsituação real vivida pelo filho menoreàcapacidadeeresponsabdida^
dos pais de responderem pelo cumprimento dos seus deveres. O pnncqno erd
de que deve ser assegurada a ^"^^
o interesse do filho menor, contido noa . • >
permitir que sejam tomadas decisões que podem ser diferentes para cada caso.
i o disposto no art. 77.°, § 2.°, do Código Penal: « Os condenados ulo crime de
lenocínio ficam definitivamente incapazes de exercer
i a tutela.»
autoridade paternal não se opera de pleno direito, mesmo em ão penal do
progenitor por crime doloso cometido contra a
(art. 152° do Código de Família).
to do Código Penal prevê-se a condenação por crimes sexuais inibição da
autoridade paternal.“61 Neste caso a inibição da nal será decretada como pena acessória
da condenação pelo
i sexual.
isos, o art. 152.° obriga a que, seja necessário um procedimento >, procedendo-
se ao envio da certidão da sentença, que condenou ribunal competente para
procedimento.
>is tipos de inibição do poder paternal, e que são, respetivamente, jue se refere a
situações de incapacidade jurídica ou de ausência,
, que abrange os casos em que haja impedimento de facto para o de idoneidade
ou negligência reiterada por parte do progenitor, evistos no art. 153.° a extinção da
inibição opera-se ipso facto . incapacidade do progenitor em razão de menoridade ou
de ssar a ausência, de acordo com o art. 154.° do Código de Família, ibição resulta de
uma outra situação jurídica de incapacidade ou genitor e não foi ocasionada por
nenhuma ação judicial dirigida izão da falta de exercício da autoridade paternal.

-, l°g° que cessar a causa jurídica de que deriva a inibição ela cessa lenoridade
do progenitor, da incapacidade ou da ausência), cessa :to a inibição, assumindo o
progenitor a plenitude do seu exercício Código de Família). s do art. 152.°, acima
mencionado, e do art. 155.° a inibição é ialmente e terá que ser levantada ou alterada
também judicialmente ipetente processo. E isto porque só o tribunal pode decidir se se
que a decisão anterior seja alterada.
A declaração da inibição pode ser total ou parcial, sempre depois de
devida¬mente apreçadas as circunstâncias do caso. O mesmo se passa com o
levantamento
da inibição.
Estas disposições do Código de Família quiseram acautelar todas as mais
diversas situações que podem surgir nas relações entre pais e filhos e em que seja
necessário proteger a pessoa do filho.
A alínea a) do art. 155.° menciona a circunstância de o progenitor estar impedido
de facto de exercer a autoridade paternal. Tal pode ocorrer no caso de enfermidade
prolongada, de ausência do País por período longo, embora sendo conhecido o paradeiro
do progenitor, condenação a pena de prisão, etc..
A alínea b) desse artigo refere-se a toda a conduta do progenitor que possa
envolver perigo moral para o filho, tais como atos de crueldade, maus tratos físicos e
morais e condutas socialmente condenáveis, que possam refletir-se no seu
relacionamento com o filho.
A negligência do progenitor em relação ao cumprimento dos seus deveres para
com o filho vem mencionada na alínea c) do citado art. 155.°. Abrange o abandono e
desamparo mais ou menos completo do menor.
A negligência pode também revelar-se na má administração do património do
filho, praticando atos lesivos ou omitindo deveres de proteção dos seus interesses, o que
levará à remoção dos poderes de administração de bens por parte dos pais por decisão
judicial.
Maior gravidade tem a prática de crime doloso cometido contra a pessoa do filho
e a condenação do progenitor em pena maior, sobretudo se disser respeito à prática de
crime de ofensas corporais graves ou atentado contra a vida, ou de crimes de natureza
sexual.
Mesmo nos casos de maior gravidade, a inibição da autoridade paternal traduz-
se numa suspensão dos direitos e não retira aos pais em definitivo a titula¬ridade desses
direitos.
Ela é, assim, de natureza temporária, muito embora a sua extensão e duração
variem consoante a natureza do caso concreto.
A declaração de inibição não exonera o progenitor da sua obrigação e prestar alimentos
ao filho, pois a prestação de alimentos é um dever que a sempre, em primeiro plano, aos
pais.
Por essa razão, o art. 157.« do Código de Família consagra o principio de que,
mesmo depois da inibição, o progenitor deve prestar alimentos ao .
A situação do menor em relação à sua família e, em especial, aos seus pais, o seu
enquadramento social e todo o processo que visa o seu crescimento físico e inteletual
são questões de tão magna relevância que se não podem circunscrever ao âmbito das
relações jurídicas privadas.
A criança e o adolescente carecem de proteção legal em todo o período que
antecede a maioridade e essa proteção cabe ao tribunal no qual o Procurador da
República intervém sempre em representação dos interesses do menor.
0 tribunal pode intervir, não só durante a coabitação dos pais no caso do art.
140.°, mas também quando os pais estejam separados de facto, como estabelece o art.
148.°, ou sempre que for necessário declarar ou levantar a inibição da autoridade
paternal — arts. 155.° e 156.°, todos do Código de Família.
Como regra genérica estatui o art. 158.° deste Código que o tribunal deve tomar
as medidas necessárias à proteção do menor e decidir sobre as questões que a este
respeitem, sempre que as circunstâncias de facto o exijam.
As decisões serão tomadas depois de audição obrigatória, em todos os casos, de
acordo com o n.° 2 e 3 desse mesmo artigo:
— do representante do Ministério Público;
— do menor que tenha completado 10 anos de idade nas causas a si respeitantes.
Estabeleceu-se, com caráter facultativo, a audição, decidida oficiosamente pelo
tribunal ou a pedido das partes, dos órgãos de natureza consultiva que são o Conselho
de Família ou organismos de assistência social de apoio à juventude — art. 159.° do
mesmo Código.
Como fim último a ter em vista por todas as decisões judiciais, está o benefício
e interesse do menor e o da sociedade onde ele se insere^17*
A prevalência deste interesse superior da criança sobre o dos pais, tutores ou
outros interventores na causa não pode sofrer qualquer desvio, como imperativa¬mente
vem consignado no art. 160.°. Definir o que constitui « o superior interesse da criança»
tem sido objeto de aprofundamento.
(,7) «O critério do interesse do menor não pode deixar de ser ligado ao
pressuposto da valorização c adaptação das circunstâncias concretas; De facto um voto
de preencher, de quando em quando, enquanto critério de natureza subjectiva que esta
ligado a identidade pessoal e particular daquele menor particular c não da natureza
objectiva c predeterminada nem determinável...a audição do menor estabelece a
diferença, pois representa na minha opinião e indubitavelmente o instrumento
processual mais eficaz para tentar senão realizar pelo menos tê-lo em vista.» — Lea
Querzola, in Ricercatore deWUniversità di Bolonha, pg. 1361.
Como já referimos, o conceito do superior interesse da criança que é
pre¬valecente em todas as decisões quer judiciais quer administrativas que lhe digam
respeito, é um conceito jurídico indeterminado que se concretiza para cada caso de
acordo com as suas circunstâncias específicas.
A lei deixa em branco as delimitações para que ao ser aplicada ela possa atender
ao condicionalismo do momento nos aspetos individuais e sociais.
As decisões judiciais tomadas em processos desta natureza são transitórias e
suscetíveis de ser alteradas sempre que se modifiquem as próprias circunstâncias de
facto que lhes serviram de fundamento, como aliás acontece em todas as decisões
proferidas em processos de jurisdição voluntária. Mas o art. 161.° do Código de Família
entendeu expressar de novo este princípio.
O tribunal competente sob o ponto de vista territorial é o da residência do menor
no momento da instauração do processo — art. 6.°, n.° 1 do Código de Processo do
Julgado de Menores.
a) Intervenção judicial no caso de coabitação dos pais
O tribunal deverá intervir a pedido de um ou de ambos os pais quando a
divergência destes seja sobre questão de natureza grave.
Nestes litígios o tribunal terá que exercer o papel de um árbitro do conflito,
procurando obter dos pais uma solução conciliatória, sem nunca perder de vista a
primazia do interesse do filho menor.
Em todos os casos de dissídio dos pais, o juiz tem que executar o trabalho
deli¬cado de um conselheiro das partes, procurando esclarecer-se sobre as condições
de vida da família, quais as normas de conduta até aí seguidas em situações idênticas,
qual a finalidade em vista por cada um dos pais, etc..
b) Intervenção judicial no caso de separação de facto dos pais
O exercício da autoridade paternal em separado pode ser estabelecido por via de
acordo entre os pais, como já vimos, vem previsto no art. 148.°, n.° 1 do Código de
Família, como veremos em relação ao divórcio por mútuo acordo (art. 85.°, alínea a)) e
em relação ao divórcio litigioso (art. 109.°, n.° 1 do mesmo Código).
Em todos estes casos, qualquer dos progenitores ou terceira pessoa, através do
Ministério Público, podem ir a tribunal suscitar a sua intervenção, sendo a decisão
obrigatória para os progenitores, para o filho e para terceiros.
c) Intervenção judicial no caso de inibição da autoridade paternal ou de
necessidade de aplicação de medidas de proteção social
A intervenção do tribunal no caso de ser necessário declarar a inibição da
autoridade paternal é da iniciativa do Ministério Público. As normas processuais são,
além das que vêm contidas no Código de Família, as do Decreto n.° 6/03, de 28 de
janeiro, do Código de Processo do Julgado de Menores.
Em termos latos, podem participar ao Ministério Público para que este venha a
agir em juízo em representação do menor, qualquer parente deste, afim, ou pessoa que
o tenha a seu cargo, tal como funcionário público ou entidade privada que tenha
conhecimento da necessidade do procedimento judicial.
Estamos perante uma situação em que sobreleva o interesse público da defesa do
menor, esbatendo-se a estrutura familiar, por incapaz de exercer o papel que lhe está
reservado na lei, e em que é o direito social de defesa do menor que tem de ser assumido
pelos órgãos judiciais e órgãos sociais para tal vocacionados.
A Lei n.° 9/96, de 19 de abril (Lei do Julgado de Menores) estabelece no seu art.
14.° quando devem ser aplicadas as medidas de proteção social aos menores,
especificando, além do mais, nas suas alíneas a) e b), que tal ocorre quando eles «sejam
vítimas de maus tratosfisicos ou morais ou de negligência por parte de quem os tenha à
sua guarda ou se encontrem em situações de abandono ou desamparo». Nestes casos,
será o Julgado de Menores a intervir para tomar as medidas adequadas e previstas no
n.° 18, e não a Sala de Família do Tribunal Provincial, como acontece sempre que
estejam em causa as relações familiares.
Por sua vez o Julgado de Menores quando aplica qualquer medida que envolva
alteração ou inibição no exercício da autoridade paternal, deve dar conhecimento do
facto ao Ministério Público junto da Sala de Família competente para procedimento —
art. 22.° da Lei n.° 9/96.
CAPÍTULO I0.°
O CASAMENTO
[59] Breve história da evolução do casamento
Uma breve retrospetiva histórica do instituto do casamento mostra que, durante
um longo período da vida do homem, o casamento não se formalizava por qualquer ato
solene. Era o estabelecimento da vida em comum de forma plena entre homem e mulher,
feito no propósito de fundarem a família, que caraterizava o casamento. No direito
romano já se distinguia o simples concubinato do casamento, pela affectio maritalis,
elemento subjetivo que evidenciava o propósito comum de convivência duradoura entre
homem e mulher.
Com o advento do cristianismo, as convições religiosas passaram a dominar por
inteiro o instituto do casamento, o qual passou a ser considerado como um sacramento
em que intervinha a vontade divina. O casamento devia, pois, revestir-se de forma
canónica e era o ministro do culto que autorizava a celebração. Só numa época mais
recente, ou seja, a partir

do Concílio de Trento, no século XVI, passou o sacerdote a intervir na sua


celebração, sendo as questões relativas à validade do casamento do conhecimento das
autoridades eclesiásticas.
Entretanto, o advento do protestantismo e o seu predomínio em muitos países
europeus veio retirar o casamento do controlo da igreja católica, submetendo-o ao poder
do Estado, como assunto terreno. É o poder absoluto do monarca que se vai afirmando.
Em países como a Inglaterra, a necessidade da dissolução de um casamento real levou
à rutura das relações entre o rei e a igreja católica, o que foi um passo para o caminho
do absolutismo. A secularizaçào do direito matrimonial começou nos países onde se
verificou a contra-reforma, mas nos países predominantemente católicos o casamento
era da competência da igreja.
Foi com a Revolução Francesa, no final do século XVIII, que se alterou esta
situação e se passou a adotar a conceção de que o casamento é um ato meramente civil,
baseado na vontade livre dos nubentes e como tal não sujeito à intervenção obrigatória
da igreja. Surgiu nessa data o casamento civil de natureza laica,
independente do casamento religioso, e da competência dos representantes do
estado.
No direito português, o casamento civil só foi introduzido no Código Civil do
século XIX, com caráter meramente facultativo, mantendo-se em plena validade o
casamento canónico a ser celebrado por quem professasse a religião católica. Com a
proclamação da República em 1910, o casamento civil tornou-se obrigatório e deixou
de se atribuir efeitos civis aos casamentos católicos.
Posteriormente, com a celebração da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, em
1940, foi reintroduzida a dualidade de formas de casamento, o civil e o canónico, o qual
passou de novo a produzir efeitos civis, deixando de ser obrigatória a celebração do
casamento civil.
Este sistema perdurou com o Código Civil de 1967, que admitia as duas
modalidades de casamento, o casamento canónico e o casamento civil (art. 1587.°). Ao
casamento católico era reconhecido valor e eficácia nos termos das disposições do
Código. Esta dualidade de formas de casamento mantém-se ainda no direito português.
Aliás, a conceção canónica do casamento influenciou os juristas católicos, que
procuram definir o casamento como uma instituição. Nesta perspetiva, o casamento,
dando origem à constituição da família, corpo organizado composto pelos cônjuges e
filhos, é considerado indissolúvel durante a vida dos cônjuges.
A vontade individual dos cônjuges não pode ultrapassar os interesses da própria
instituição.
O Código de Família reconhece unicamente como casamento válido o casamento
civil, pois, como já vimos, o Estado angolano afirma-se constitucio¬nalmente como um
estado laico, não sendo reconhecidos quaisquer efeitos ao casamento celebrado segundo
os ritos das diferentes confissões religiosas.
Consequentemente, o casamento celebrado perante os órgãos do registo civil não
tem caráter subsidiário, mas sim caráter obrigatório, pois só ele produz efeitos legais.
Na verdade, o Código de Família só reconhece validade ao casamento celebrado ou
reconhecido nos termos nele
previstos (art. 27.°) c a única entidade com competência para a celebração do
casamento é o conservador do registo civil — art. 34.°.
O Código de Família no seu art. 20.° define: «O casamento é a união voluntária
entre um homem e uma mulher, formalizada nos termos da lei, com o objetivo de
estabelecerem uma plena comunhão de vida.»
Neste conceito estão evidenciados os seguintes elementos essenciais:
— o elemento subjetivo da voluntariedade do ato do casamento por parte dos
nubentes, homem e mulher.
— a necessidade da sua formalização segundo a forma estabelecida na lei, o que
constitui o traço fundamental que distingue o casamento da união de facto.
— a finalidade legal do casamento, que é o estabelecimento da plena comunhão
de vida. [60] A promessa de casamento no direito positivo e no direito costumeiro
Constitui fenómeno comum a diversos povos e culturas, o facto de o casamento
ser antecedido pela existência de uma promessa recíproca de casamento por parte dos
noivos.
O noivado ou os esponsais têm tanta mais relevância quanto maior é a
impor¬tância económica, social ou até mesmo política dos noivos, pois nesses casos o
casamento cumpre uma função de estabelecimento de alianças para reforço de
influência política ou para acumulação de capital. Dentro desta ótica, o casamento era
normalmente antecedido de protocolos de entendimento concertados pelos conselheiros
familiares e só mais recentemente pelo noivo e pela noiva.
Em regra, buscava-se o acordo de ambas as famílias sobre a celebração do
casamento e sobre as disposições de caráter patrimonial que iriam vigorar durante o
casamento. Os esponsais, como eram denominados, eram um verdadeiro pactum in
contraendum. Os franceses designam-nos como «fiançailles» e os ingleses chamam à
promessa recíproca de casamento «engagement».
Nos nossos dias, embora com muito menos relevo, ainda é atribuído ao noivado
importância social, podendo ver-se em jornais de grande tiragem na Europa os esponsais
serem anunciados e tornados públicos.
Por outro lado, toma-se cada vez mais frequente a convivência pré-nupcial dos
noivos, sobretudo nos países germânicos e nórdicos. Entre nós também se acentua o
fenómeno do estabelecimento da união de facto entre um homem e uma mulher, com
vida marital comum mais ou menos prolongada e que é transformado em casamento
formal, dispensando o processo de reconhecimento de que adiante falaremos.

O noivado consiste na convivência que antecede a vida em comum e traduz-se


num compromisso mútuo que se destina a um melhor conhecimento dos futuros
nubentes. Na tradição ocidental o noivado costuma expressar-se com a entrega pelo
noivo do anel de noivado à noiva, que passa a simbolizar o compromisso recíproco. No
entanto, a importância do noivado vai sendo cada vez menor à medida que se
individualiza o ato de casamento e o mesmo se despe de formalismo
social, ou seja, à medida que se reforça a noçáo de casamento como ato de
vontade do foro pessoal dos nubentes, cada vez menos entendido como um acordo entre
os familiares destes. E isto porque, nas sociedades mais desenvolvidas, a emancipação
económica e política do homem e da mulher assegura-lhes maior independência no
exercício dos seus direitos pessoais.
Em contrapartida, e de acordo com o seu desenvolvimento económico e social,
na sociedade tradicional angolana a promessa de casamento tem ainda acentuado relevo,
expresso nas entregas feitas pelo noivo ou pela sua família à família da noiva, a título
de ilembo ou alembamento.
Desde há muito, e unanimemente, os diversos sistemas jurídicos consideram
como não relevante, sob o ponto de vista de obrigar a contrair casamento, o facto de
haver uma promessa de casamento, pois esta não dá direito a exigir a sua celebração.
Aliás, em todos os ordenamentos que incluem normas referentes à promessa de
casamento, há o cuidado de determinar que ela não constitui o promitente na obrigação
de casar.
Note-se que nas leis de família publicadas após a independência de Cabo Verde
e de S. Tomé e Príncipe omite-se qualquer referência à promessa de casamento, o que
significa que se lhe nega qualquer relevância jurídica. A reforma legislativa operada em
Cabo Verde com a introdução do Direito de Família no Código Civil alterou a omissão
deste instituto no direito de Cabo Verde.
Procura-se deste modo respeitar a liberdade dos nubentes, permitindo-lhes que
eles mudem de vontade até ao momento da celebração do casamento.
A lei estipula que os nubentes prestem o seu consentimento no momento em que
o casamento é celebrado, ou seja, que se verifique a atualidade do mútuo consentimento
nesse preciso momento, e isto porque se considera que o casamento é um ato de
demasiada importância e por isso ele deve ser celebrado em plena aceitação e liberdade
por parte de ambos os nubentes.
Há que precisar o que se deve entender por promessa de casamento, tanto no
conceito genérico e comum aceite universalmente, como no caso específico do direito
tradicional angolano e das suas diversas etnias.
A promessa de casamento é em si um ato já revestido de certa ressonância social,
realizado com seriedade entre os noivos, mas também conhecido dos seus familiares e
pessoas do seu meio social.
É óbvio que não é qualquer promessa de casamento, feita de forma leviana e
revestida de secretismo, que pode ser considerada como tal. Houve até jurispru¬dência
francesa que entendeu ser necessário que a promessa, para ser entendida como tal,
deveria tomar a forma escrita, mas esse entendimento foi afastado pela doutrina. O
namoro não é em si uma promessa de casamento, mas uma simples forma de
convivência afetiva.
No direito tradicional, a promessa de casamento é um preliminar do casamento
em si e reveste-se de formalismo mais ou menos rigoroso. As praxis diferem de etnia
para etnia, mas envolvem sempre a intervenção da família dos futuros esposos e é
sempre levada ao conhecimento público na comunidade de residência da noiva e do
noivo, através de atos externos que a assinalam.
Traduzem-se no envio de mensagens verbais ou escritas, na entrega e
recebi¬mento de ofertas, conciliábulos entre os parentes dos noivos, festejos de
celebração e outros sinais que vão variando mas que conservam uma essência idêntica.
Podemos dizer que são no fundo, preliminares do próprio casamento tradicional.
No direito positivo anterior a promessa de casamento era regulada nos arts.
1591.° a 1595.° do Código Civil. Em súmula, no art. 1591.° estabelecia-se o princípio
da ineficácia da promessa, dispondo-se que «não dá direito a exigir a celebração do
casamento». O art. 1592.° definia o direito à restituição dos donativos feitos pelos
promitentes ou por terceiros em virtude da promessa ou na previsão do casamento. O
art. 1594.° previa o direito à indemnização que assistia ao «esposado inocente». Era
fixado o prazo de um ano para as respetivas ações de restituição ou de indemnização no
art. 1595.°.
Outra é a posição adotada no Código de Família, ao afirmar a ineficácia jurídica
da promessa de casamento, mesmo que ela seja acompanhada da entrega de bens ou
valores ao outro nubente ou à sua família Como está expresso claramente na lei, art.
22.°: «\. A promessa de casamento, seja ou não acompanhada da entrega de bens ou
valores ao outro nubente ou à sua família., não produz quaisquer efeitos jurídicos e não
dã direito a exigir a celebração do casamento.»
De forma redundante, acrescenta-se que, por via dela, qualquer dos nubentes está
impedido de exigir que se celebre o casamento. A irrelevância da promessa permanece,
sem embargo de terem sido feitas entregas de bens ou valores ao outro nubente ou à sua
família.
Tal posicionamento foi tomado precisamente tendo em conta que, na prática do
alembamento, as ofertas são feitas no geral aos familiares da noiva, traduzindo- -se
muitas vezes na entrega de bens fungíveis e rapidamente consumíveis. Quis-se
primordialmente impedir que essas entregas fossem usadas por via indireta, como forma
de coação por parte desses familiares sobre a noiva, obrigando-a a celebrar o casamento
e coarctando a sua liberdade. É evidente que se a situação for inversa e se foi o noivo
quem recebeu as ofertas, ele não pode de igual modo ser coagido à prática do ato do
casamento.
Ora, não prevendo o Código de Família a obrigação de restituição dos bens ou
valores entregues com vista à celebração do casamento, deveremos entender que a lei
deliberadamente não quis reconhecer o direito à restituição desses bens, dando primazia
legal à liberdade pessoal dos nubentes sobre o interesse patrimonial daquele que tiver
feito essas ofertas.
Deparamo-nos com uma obrigação que não é juridicamente exigível, que
podemos classificar como uma obrigação natural. «A obrigação natural\ contra¬pondo-
se à civil distingue-se desta em ser desprovida de ação, não podendo assim o devedor
ser compelido diretamente ao cumprimento da prestação>>.(1)
Hoje, a obrigação natural vem prevista no Código Civil, que a define como a
obrigação que se funda num dever moral ou social, cujo cumprimento não é
juridicamente exigível, mas que corresponde a um dever de justiça (art. 402.°).
Este tipo de obrigação — a obrigação natural — desdobra-se em três aspetos:
— é uma obrigação;
— é fundada em meros deveres que correspondem a um dever de justiça;
— não é exigível juridicamente.
Para que exista uma obrigação natural é essencial que exista uma disposição legal
que vede por quaisquer razões o recurso aos tribunais.
Podemos assim entender que a restituição dos bens ou valores recebidos pelo
outro nubente ou pelos familiares dele é uma simples obrigação natural, que poderá ser
satisfeita voluntariamente pelos interessados, mas cujo cumprimento não poderá ser
exigido coativamente.
É o que se verifica no direito vigente, já que, por disposição expressa da lei, não
pode exigir-se a restituição dos bens ou valores recebidos. Porém, se a outra parte
espontaneamente operar essa restituição, devolvendo tudo quanto houver recebido, essa
restituição é efetivamente válida, não dando lugar à repetição do indevido — art. 403.°
do Código Civil.
Já quanto ao direito à indemnização, ele é reconhecido, mas só nos termos
restritos do n.° 2 do art. 22.°. É necessário, em primeiro lugar, que exista a rutura
injustificada por parte de um dos nubentes, o que significa que é necessário que o seu
procedimento não tenha sido causado por conduta indevida por parte do outro nubente,
justificativa da desistência do propósito anterior.
Portanto, ter-se-á que determinar a causa da rutura, havendo que ter em conta
que no Código de Família se afastaram, nos diversos institutos familiares, os conceitos
de culpa e inocência que a cada passo surgiam como linha divisória de condutas nas
disposições do Código Civil relativas ao direito de família.
O comportamento dos nubentes deverá, pois, ser apreciado, tanto quanto
possível, em termos objetivos e não com base em preconceitos discriminatórios. O
direito à indemnização referido neste artigo 22.° circunscreve-se aos próprios nubentes,
cuja legitimidade para a ação haverá que determinar em cada caso, não sendo extensivo
a terceiros, como os pais ou parentes dos nubentes, os quais terão que ser indemnizados
nos termos gerais de direito. Entre os nubentes, os limites da indemnização estão
circunscritos às obrigações contraídas com o acordo do outro nubente.
Também dentro da orientação do direito civil socialista, no art. 22.°, n.° 2, não
está prevista qualquer indemnização a título de danos morais. Este artigo refere-se às
obrigações de natureza patrimonial, designadamente as que possam ter sido contraídas
com a aquisição de mobiliário, da residência do casal, de bens para a festividade da
boda, etc.. Também aqui se pode pôr a questão de saber se poderá haver indemnização
por danos morais sofridos pelo nubente que tenha sido vítima de rutura injustificada ou
que tenha justificadamente posto termo à promessa de casamento, uma vez que a
conceção do direito atrás referida, subjacente a esta disposição legal foi alterada.
A promessa de casamento, como questão de facto, pode ainda ter relevância no
estabelecimento da paternidade do filho nascido das relações sexuais mantidas pelos
nubentes no período de convivência pré-nupcial.
É sabido que a promessa de casamento constitui um meio idóneo, diríamos
mesmo o mais idóneo, para a sedução da mulher e para dela obter o consentimento para
a prática de relações sexuais antes do casamento. Embora não venha expressa na lei
qualquer presunção de paternidade atribuída ao noivo, a promessa de casamento
constitui, sem dúvida, elemento de facto preponderante para a decisão judicial a tomar
em ação para o estabelecimento da filiação.
[61 ] Natureza jurídica do casamento
O casamento ou matrimónio pode ser caraterizado como um negócio jurídico
solene, ou seja, formal, mediante o qual um homem e uma mulher aceitam voluntária e
reciprocamente estabelecer entre si convivência comum de caráter duradouro. Estas
relações caraterizam-se pela estabilidade e intercorrência de direitos e deveres
complexos, entre os quais avulta o de assistência e ajuda mútuas.
Assim, o casamento pode ser entendido como o ato em si, pelo qual ele se
formaliza, ou como o estado familiar que decorre para os intervenientes, marido e
mulher, da celebração do ato do casamento.
O casamento como estado é, pois, um vínculo familiar que une marido e mulher
e é constituído por um complexo de direitos e deveres que se estabelece entre ambos.
Interessa debruçarmo-nos sobre a natureza jurídica do ato de casamento,
determinando qual o seu verdadeiro conteúdo e qual a intervenção da vontade das partes
na sua celebração e na produção dos efeitos que dele derivam. Predomina na doutrina
civilista a conceção segundo a qual o casamento é um contrato civil no qual intervêm
duas vontades contrapostas mas harmonizáveis, e que, ao contrário dos demais
contratos, pressupõe a diversidade de sexos.
Nesta mesma orientação há quem sustente que o casamento pode ser definido
como um contrato entre duas pessoas de sexo diferente, pessoal, consensual, solene e
indivisível.

Autores há que, embora atribuindo ao casamento uma natureza contratual,


reconhecem que ele é um negócio jurídico familiar, onde a autonomia da vontade
concedida às partes tem uma margem limitada.i5)
Há ainda quem opine que o casamento deve ser enquadrado como a soma de dois
atos jurídicos simples... incompatível coma ideia de vinculação contratual.^ A
atribuição da essência contratual ao casamento vem aliás do direito canónico, que
enfatiza a importância da vontade das partes na sua celebração.
O próprio Código Civil definia expressamente o casamento como um contrato
entre duas pessoas de sexo diferente (art. 1577.°).
Mais do que discutir se deve ou não usar-se a expressão contrato, cremos que o
que na verdade é relevante é distinguir em substância, qual o limite e o alcance da
intervenção das partes.
Concluímos que existe por parte dos nubentes liberdade para celebrar ou não
celebrar o casamento. A liberdade matrimonial como vimos, constitui um direito
fundamental da pessoa humana.
Mas já não existe por parte dos nubentes liberdade de estipulação relativamente
aos efeitos que o casamento produz. Estaríamos, pois, perante um ato jurídico stricto
sensu e não perante um negócio jurídico.
Há, porém, quem entenda ser de afastar o conceito de que o casamento possa ser
encarado como um contrato, porquanto o casamento não é um ato de natureza
patrimonial, mas sim um negócio jurídico do qual resulta a constituição
de relações de natureza patrimonial. Ao casamento não se aplicam as normas
gerais da disciplina contratual.
Legislações como a francesa, italiana e alemã abstêm-se de definir o que é o
casamento, partindo do princípio de que ele é um conceito que vem dos primórdios da
humanidade e cuja definição legal pode criar mais dificuldades do que benefícios.
No Código de Família de Cuba o casamento vem definido como uma união
estabelecida voluntariamente entre um homem e uma mulher, dotados de capacidade
legal para tal, e com o fim de fazerem vida em comum.
Arredando-se da polémica teórica sobre a natureza jurídica do casamento, o
legislador cubano quis expressamente que o matrimónio deixasse de ser conside¬rado
como um contrato civil, embora se reconheça ser ele um negócio jurídico.
O mesmo entendimento foi aceite no Código de Família, que rejeitou a
designação do casamento como um contrato, para o definir como uma união.
O casamento como ato não deve, pois, ser encarado como um contrato stricto
sensu, pois a declaração de vontade emitida pelos nubentes vai produzir unicamente os
efeitos jurídicos já previstos na lei e que são de natureza imperativa. Existe, na verdade,
uma convergência de

duas vontades para a aceitação dos efeitos que vão derivar do ato praticado, que
são comuns e recíprocos e que vão instituir entre ambos relações de natureza pessoal e
familiar próprias do vínculo conjugal.
Há, no entanto, que ter em conta que a autonomia da vontade das partes se
circunscreve a dois pontos, que são aliás de decisiva importância:
— cada pessoa é livre de casar ou não casar;
— cada pessoa é livre de escolher a pessoa do outro sexo com quem quer celebrar
o casamento.
O direito à livre celebração e à livre escolha do nubente é reconhecido nos
instrumentos internacionais já mencionados relativos aos direitos humanos.
À declaração de vontade expressa no ato de casar são aplicáveis subsidiaria-
mente alguns princípios essenciais a todos os negócios jurídicos em geral,
designadamente os que se referem à nulidade por falta ou vício de vontade.
Mas, uma vez emitida a vontade, é a lei reguladora do direito matrimonial que
determina todos os efeitos jurídicos que derivam da celebração do ato do casamento.
Nenhum dos nubentes pode celebrar o casamento impondo condições ou
cláusulas que alterem ou modifiquem os efeitos legais. Por exemplo, a lei não
consentiria que fosse celebrado um casamento em que os cônjuges se
comprome¬tessem a não viver juntos.
A lei não consente também que os nubentes imponham prazos à convivência
conjugal.
A vontade dos nubentes não pode, pois, impor-se para além da celebração do ato
de casamento, pois os efeitos do ato estão previamente estabelecidos na lei.
Estamos perante uma declaração de vontade dirigida a produzir certos efeitos
previstos na lei, efeitos esses que não podem ser nem restringidos nem alargados.
No consentimento não existe, por conseguinte, a liberdade de estipular quais os
efeitos jurídicos a produzir pelo ato, caraterística do direito das obrigações .
Aliás, como veremos, está previsto que durante a celebração do casamento o
oficial do registo civil proceda perante os nubentes à leitura dos artigos do Código
respeitantes aos direitos e deveres que derivam para os cônjuges do ato de casamento.
Isto pressupõe que os nubentes devem estar previamente esclarecidos dos efeitos do ato
que vão praticar e que antecipada e conscientemente os aceitem.
Como definir, pois, a natureza jurídica do casamento?
Cremos que o casamento deve ser entendido como um negócio jurídico familiar
bilateral, com a natureza de um pacto, celebrado entre os nubentes. É o ato jurídico
condição da aceitação do estado de casado, que dele decorre, estado de casado que se
estabelece em reciprocidade entre os dois nubentes.
Através da celebração do casamento os nubentes comprometem-se a
estabele¬cer uma convivência mútua integral e recíproca de vida, de natureza estável e
duradoura, ou seja, a convivência familiar do tipo marital. Comprometem-se a cumprir
os seus deveres pessoais e matrimoniais, quer entre eles, quer em relação aos filhos
comuns.
Mas põe-se ainda a questão de saber quantas vontades intervêm no ato jurídico
do casamento: apenas as dos dois nubentes ou ainda a do Estado através do funcionário
do registo civil que celebra o casamento?
Será então o casamento um negócio jurídico plurilateral, em que é necessária a
intervenção da vontade do Estado ao declarar os nubentes casados?
Esta opinião é afastada pela corrente doutrinária representada por aqueles que
encaram o casamento como um contrato civil: a vontade do Estado não intervém no ato
da celebração do casamento de forma diferente daquela em que intervêm os notários ao
lavrarem os documentos autênticos.
O oficial do registo civil seria, segundo este ponto de vista, mera testemunha
privilegiada, pois a causa do vínculo matrimonial estaria na permuta das declara- çócs
de vontade dos nubentes e o ato de casamento fica perfeito logo que o consentimento é
prestado.
Cremos que esta conceção não traduz de forma cabal a intervenção do Estado no
ato solene do casamento, cujo processo formal teremos de estudar mais adiante.
O funcionário do registo civil tem que verificar se estão reunidos os
pressupos¬tos legais para autorização do casamento, ou seja, a capacidade dos
nubentes, e tem que lavrar despacho a autorizar a sua celebração.
E no ato da celebração do casamento é indispensável a intervenção dos
nuben¬tes e do oficial do registo civil, além de duas testemunhas que certifiquem a
prática do ato e a identidade e capacidade matrimonial dos nubentes.
Expresso o consentimento dos nubentes, o casamento considera-se celebrado e o
oficial do registo civil proclamará que os nubentes estão unidos pelo casamento. É certo
que a vontade do conservador do registo civil não intervém no ato em si, mas a sua
intervenção tem natureza certificativa e a sua participação é indispensável à própria
existência jurídica do ato.
Vemos, pois, que o Estado intervém no ato do casamento antes da sua
celebra¬ção, estando presente ao ato através do conservador do registo civil e recebendo
na ordem jurídica a declaração dos cônjuges para lhe atribuir eficácia legal. A
declaração emitida pelo conservador do registo civil, proclamando o ato, é, em nosso
entender, elemento indispensável à sua eficácia jurídica.
Entendemos, porém, que é juridicamente mais correto fazer a distinção entre o
vício de inexistência jurídica e o da nulidade absoluta.
Do conteúdo das normas do Código de Família consideradas essenciais à própria
existência jurídica de casamento, podemos estabelecer os pressupostos de existência do
ato de casamento em si, da seguinte forma:
a) Diversidade do sexo
É essencial que o ato de casamento seja celebrado entre duas pessoas de sexo
diferente. Este requisito deriva da própria natureza substancial do casamento, que a lei
define como a união plena entre a homem e mulher. Afasta-se a aceitação legal ou a
equiparação ao casamento de qualquer tipo de união, estabelecida entre pessoas do
mesmo sexo, como seja o homossexualismo.
No Código de Família, o próprio conceito de casamento (art. 20.°) implica que
este ato pressupõe a união de um homem e uma mulher em plena comunhão de vida,
conceito legal que arreda, sem dúvida, qualquer tipo de união entre pessoas do mesmo
sexo.
Aliás este conceito de obrigatoriedade de diversidade de sexo está atualmente
reforçado com o já citado art. 35.°, n.° 1 da Constituição que ao definir a família
expressa que tanto o casamento como a união de facto devem ser constituídos «entre
homem e mulher».
Devemos acrescentar que se tem acentuado a nível de muitos sistemas jurídicos
a alteração do próprio conceito de casamento definindo-o com a união entre duas
pessoas, mas omitindo que elas devem ser de sexos diferentes, precisamente para
permitir que o casamento se celebre entre pessoas do mesmo sexo.
Mais complexos para o nosso sistema jurídico, poderão ser os casos de
intersexualismo e transexualismo, em que pode ocorrer ser uma pessoa portadora de
genes intermédios entre o género masculino e o feminino (intersexualismo) ou ser
suscetível de alteração de morfologia de um sexo para outro (transexualismo).
Na verdade, num caso destes, pode um dos nubentes apresentar-se como sendo
de um determinado género, quando mais tarde se verifique haver uma alteração quanto
ao género a que pertence.
Em casos como estes já não se estaria perante a inexistência jurídica do
casamento, mas perante um caso de anulabilidade do casamento por erro quanto às
qualidades físicas essenciais do outro nubente, se tivesse havido ocultação dessas
circunstâncias.
b) Duas declarações de vontade
No momento de celebração do casamento é essencial a existência de uma
declaração de vontade por parte de cada um dos nubentes.
O casamento, como negócio jurídico bilateral, pressupõe que sejam emitidas
duas declarações de vontade e a omissão de declaração por parte de qualquer dos
nubentes é causa de inexistência. No caso do casamento celebrado por procuração, pode
esta ter deixado de produzir efeitos em virtude da sua revogação por parte do mandante
ou por caducidade em virtude da morte deste, ou por estar a procuração ferida de
falsidade. A falta de declaração de

vontade por parte do nubente, torna inexistente o mútuo consentimento em que


ele se vai estruturar.
É evidente que a exigência da existência de duas declarações de vontade
pressupõe a presença fisica de duas pessoas presentes ao ato por parte dos nubentes, e
se por absurdo, o casamento for realizado com a presença de um só, ele será obviamente
inexistente.
O Código de Família determina expressamente no art. 35.°, n.° 1 que «É
essencial para a validação do casamento que cada um dos nubentes manifeste de forma
expressa, a vontade de contrair o casamento com o outro nubente.»
Não basta o simples assentimento gestual de qualquer dos nubentes, impondo a
lei que haja uma declaração verbal que revele a existência de vontade de contrair
casamento. No diploma que regulamenta o ato de casamento, o Decreto n.° 14/86, de 2
de agosto, no art. 26.°, n.° 3 prevê os casos de casamento de mudos ou surdos mudos
ou de os nubentes não dominarem a língua em que o ato é celebrado.
O que é essencial é a existência da declaração expressa de vontade de cada um
dos nubentes no ato de celebração do casamento da aceitação voluntária do ato em si, o
que constitui o próprio substractum do ato do casamento.
c) Intervenção do Conservador do Registo Civil
O casamento deve ser celebrado por funcionário competente do registo civil, que
é em regra o conservador ou o seu substituto legal.
A intervenção do funcionário com competência para a prática do ato é outro
requisito essencial à existência do casamento. A cerimónia celebrada perante pessoa
despida dessa competência, mesmo que investida em autoridade pública, ou até por um
terceiro sem quaisquer poderes para o ato, é irrelevante perante a ordem jurídica. Este
princípio vem consignado no art. 34.° do Código de Família: «No ato de celebração do
casamento é essencial a intervenção: a) dos nubentes, podendo um ser representado por
procurador; b) dofuncionário do Registo Civil;».
Pode acontecer que ambos os nubentes, de boa fé, julguem estar perante o
funcionário do registo civil no momento da cerimónia, ou pode acontecer que
um dos cônjuges esteja de má fé e pactue com terceiro para simular uma farsa de
casamento com o intuito de ludibriar o outro consorte/10) A celebração do casamento
sem competência para tal integrará uma infração penal.
Só o casamento urgente, que adiante estudaremos, permite a celebração do
casamento sem a presença do competente funcionário do registo civil, mas em
condições especiais e sujeito a homologação posterior.
Podemos dar como assente que, à luz do Código de Família, persistem
determinados pressupostos de existência do casamento, sem os quais o casamento não
chega sequer a existir na ordem jurídica. Quando se verifica a inexistência jurídica do
casamento não há necessidade de propor qualquer ação para a declaração de
inexistência.

A inexistência jurídica pode ser invocada em qualquer tempo, seja por via de
ação seja por via de exceção.
[63] Validade do casamento: elementos de fundo e elementos de forma
O casamento, como negócio jurídico bilateral e solene, é constituído por
elementos de natureza substancial e de natureza formal, que podem ser classificados
como:
a) Condições de fundo, englobando a capacidade matrimonial e o mútuo
consentimento;
b) Condições de forma, que se referem ao processo preliminar do casamento e à
celebração do ato do casamento.
As condições de fundo referem-se à aptidão natural para contrair o casamento e
englobam a diferença de sexo, a idade púbere, a saúde física, a inexistência de
impedimentos previstos na lei e em concreto aplicáveis aos nubentes, e que se fundam
em razões de ordem genética e social.
A vontade de contrair casamento e a capacidade das partes para o celebrarem é
também um elemento essencial à validação do casamento.
As condições de forma reportam-se ao processo preliminar que antecede o
casamento e à forma solene e pública da celebração.
(10) Anteprojeto do Código Penal:
ARTIGO 224.°
(Simulação de competência para celebrar casamento)
Quem se fizer passar por autoridade competente para celebrar casamento e, nessa
condição o celebrar é punido com a pena de prisão de 1 a 3 anos ou com a multa de 120
a 360 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição penal.

[64] Capacidade matrimonial


Embora à primeira vista pareça ser um dado assente que toda a pessoa humana
que preencha as condições legais deverá ter direito a casar, o certo é que tem havido
através dos tempos e em diferentes sociedades uma série de medidas discriminatórias
impostas por razões de índole religiosa, ou políticas (como no caso do regime do «
apartheid», que proibia o casamento entre pessoas de raças diferentes), ou ainda por
preconceitos de índole social.
Em certas profissões, como as de enfermeira, hospedeira aérea, professora
primária, eram incluídos nos contratos de trabalho ou de admissão à função pública
cláusulas que proibiam o casamento. Atualmente, tais prescrições são consideradas
contrárias aos direitos fundamentais da pessoa humana e nulas de pleno direito.
Dentro de certas áreas do direito costumeiro angolano, a tendência é para que os
casamentos tradicionais se celebrem entre primos ou entre pessoas da mesma aldeia.
A capacidade matrimonial oferece uma situação especial em relação à
capacidade em geral para celebrar negócios jurídicos de outros ramos de direito.
Atendendo aos fins sociais específicos do casamento, a lei estabelece condições naturais
para que, em princípio, este se vá celebrar entre pessoas que estejam aptas para a
propagação da espécie humana. Essa aptidão revela-se por condições de maturidade
física e ainda por maturidade psíquica que permita que os futuros cônjuges possam estar
em condições de arcar com as responsabilidades derivadas do casamento.
Não quer isto dizer que uma pessoa fisicamente incapaz de procriar não possa
contrair casamento. A impotência, seja por razão natural ou fisiológica, seja provocada
por doença ou mutilação, não impede o homem de contrair casamento, tal como a
mulher estéril por razões fisiológicas, cirúrgicas ou outras também não está inibida de
contrair casamento.
Só que, em casos como esses, o outro nubente deve ter conhecimento cabal de
qual a situação fisiológica da pessoa com quem vai casar para saber se aceita, mesmo
assim, celebrar o casamento.
Se o vício for ocultado ao outro nubente até ao momento da celebração, isso
constitui, como veremos, um erro essencial sobre a qualidade do outro nubente e pode
acarretar a nulidade do casamento.
A lei não exige só condições físicas ou psíquicas adstritas a cada nubente, mas
impõe ainda restrições ao casamento entre pessoas ligadasporvínculos familiares ou por
práticas delituosas, por razões de ordem moral e até de eugenia.
Há, por outro lado, que ter em conta que existem certas incapacidades para a
prática de negócios jurídicos, como a dos inabilitados por cegueira, surdez-mudez e
prodigalidade, previstas nos arts. 138.° a 152.° do Código Civil, que em nada afetam a
capacidade matrimoniai.
1 — A idade núbil
A puberdade, ou seja, a maturidade sexual é a condição biológica primeira para
a celebração do casamento.
O casamento leva à plena comunhão de vida entre homem e mulher, e, além do
aspeto de convivência física e sexual dos cônjuges, há ainda que ter em conta o
desenvolvimento psíquico que é de exigir a quem vai constituir família, assumindo com
responsabilidade os inerentes direitos e deveres.
Não interessa, pois, favorecer os casamentos precoces nem por parte do homem
nem por parte da mulher. Os casamentos entre indivíduos demasiadamente jovens não
traz em regra qualquer benefício nem ao nubente nem à sociedade, pois impede o seu
desenvolvimento físico global e a sua preparação profissional como cidadão
socialmente útil.
Na generalidade dos países faz-se coincidir a idade núbil com a maioridade, ou
seja, esta é reconhecida aos 18 anos. Há países que estabelecem idade superior, como
na República Popular da China, por exemplo, onde não é encorajado o casamento com
a idade inferior a 25 anos, posição que visa combater o excesso demográfico daquele
país, o mais populoso do mundo.
O Código Civil dispunha que a idade núbil era de 16 anos para o homem e de 14
anos para a mulher (art. 1601.°, alínea a)).
O art. 24.° do Código de Família estabelece a regra de que a idade núbil se atinge
aos 18 anos, sendo permitido excecionalmente o casamento com idade inferior quando
tal se mostrar preferível. Adotou-se, assim, como idade núbil, a maioridade fixada na
Lei n.° 68/76, de 12 de outubro, e atualmente contida no art. 24° da Constituição.
Vemos que a lei estabelece um padrão normal de idade mínima de casamento,
que é a idade de 18 anos, mas prevê que, excecionalmente, o casamento se possa
celebrar quando o homem tiver 16 anos e a mulher 15 anos.
Neste caso, é necessária uma autorização do representante ou representantes
legais do menor. Deve, no entanto, existir uma causa ponderosa que justifique ou torne
mais benéfico para o menor que seja dada a autorização para a celebração do casamento.
Isto pode acontecer, por exemplo, pelo estado de gravidez da mulher ou, por parte do
jovem, pelo facto de este ter mantido relações sexuais das quais resultou a gravidez da
nubente. Nestes casos está evidenciado que os nubentes
têm já aptidão física natural para a celebração do casamento, embora em muitos
casos não tenham ainda maturidade psíquica para tal.
O menor púbere de 16 anos do sexo masculino ou de 15 anos do sexo feminino
pode, portanto, ser autorizado a casar, sendo a menoridade de 18 anos uma incapacidade
meramente relativa.
A lei, por uma questão de preservação do casamento, não fere de nulidade
absoluta os casamentos celebrados por pessoas com incapacidade matrimonial ou sem
a idade núbil.
Poder-se-á dar o caso da celebração de casamento de menor não núbil, ou seja,
de menor com idade inferior a 16 ou 15 anos, idades mínimas previstas pelo Código de
Família. Nem por isso o casamento será, por si só, nulo, pois a lei permite a sua
convalidação posterior, e sujeita a ação de anulação do casamento a prazos de
caducidade.
O casamento de menor núbil carece de autorização, que deverá ser dada por
ambos os pais, dada a importância do ato do casamento para a vida do menor. Na falta
de ambos os pais, caberá ao tutor legalmente instituído, e, na falta deste, à pessoa que
tiver o menor a seu cargo.
Quando a autorização para o casamento for negada pelo representante legal do
menor, ou por quem o tiver a seu cargo, será o tribunal que decidirá, ouvido
obrigatoriamente o Conselho de Família, podendo, se assim o entender suprir
judicialmente a falta de autorização e garantir a celebração do casamento.
Ao tomar a decisão, o tribunal deve ter sempre em conta o interesse e beneficio
do próprio menor.

Estado de saúde
Na legislação de muitos países é exigido aos nubentes um certificado médico
comprovativo de que eles não padecem de doenças contagiosas ou hereditárias, tendo
em vista a proteção da saúde da sociedade em geral.
Nesses casos, não se pode celebrar o casamento sem ser apresentado um
certifi¬cado pré- nupcial, emitido por um médico, que declare o nubente fisicamente
apto a contrair matrimónio e atestando não ser ele portador de doença hereditária ou
contagiosa.
O esclarecimento sobre a globalidade da situação física de cada nubente é um
dever que se impõe a ambos os nubentes que pretendam vir a celebrar casamento, dado
que do casamento irá resultar uma plena comunhão de vida que envolve a vida sexual
recíproca e em regra, a procriação de filhos comuns.
É assim fundamental que os nubentes saibam se há risco de contaminação de
doenças contagiosas ou de genes de doenças hereditárias, transmissíveis à
descendência.
A questão põe-se com especial acuidade na região sub-sahariana do continente
africano onde se instalou o flagelo da propagação do vírus V1H e do Síndroma da
Imunodeficiência Adquirida — SIDA. A Lei n.° 8/04, de 1 de novembro, que tem como
finalidade a proteção integral da saúde na prevenção, controlo, tratamento e
investigação do VIH/SIDA impõe o dever aos infetados de informarem sobre a sua
situação os respetivos parceiros sexuais.111*
Ora de acordo com o disposto no art. 15.° da mesma lei, o portador que não
cumpra os citados deveres que lhe são impostos incorre nas penalidades nele
previstas/12*
A transmissão dolosa do vírus é punida como crime de envenenamento e a
meramente negligente como o crime de homicídio negligente Já o Anteprojeto do
Código Penal prevê uma punição menos rigorosa/13*
Entre nós predomina a opinião médica de que não deviam ser permitidos
casamentos entre duas pessoas portadoras de doença de sangue, predominante em países
de clima tropical, a drepanocitose, comummente designada como de «células
falsiformes», dado que o facto de caso ambos os progenitores serem portadores do genes
dessa doença, isso levará a que a mesma seja transmitida por via hereditária aos
descendentes. «Estima-se importante a implementação no País, de forma sistmática, do
aconselhamento genético, como via de gradualmente se diminuir e diluir o Gene S nas
comunidades mais afetadas. >>
Já a impotência ou esterilidade dos nubentes não leva, por si só, como vimos, à
impossibilidade de contrair o casamento.
A condição comprovativa do estado de saúde do nubente não era exigida pelo
Código Civil, nem o é pelo Código de Família, pelo que não há que fazer a prova da
aptidão física do nubente para o casamento.
Aliás, é de ter em conta que as pessoas eventualmente portadoras de doenças
hereditárias e contagiosas podem manter uma união de facto, o que não evitaria os
malefícios da transmissão dessas doenças entre si e aos descendentes.

2 — Impedimentos matrimoniais
Além da idade núbil, a lei exige, como elemento definidor da capacidade
matrimo¬nial, a circunstância negativa de que se não verifiquem em relação aos
nubentes quaisquer impedimentos matrimoniais.
As normas que estabelecem os impedimentos matrimoniais devem ser
consi¬deradas como normas de natureza excecional e portanto de interpretação restrita,
pois de facto restringem um direito fundamental da pessoa humana que é o direito de
casar.
Os impedimentos matrimoniais podem ser classificados como impedimentos
dirimentes absolutos, impedimentos dirimentes relativos, ou impedimentos meramente
impedientes.
Podemos assim concluir, a contrario sensu, que existe capacidade matrimonial
quando se verifica a inexistência de qualquer impedimento matrimonial previsto na lei.
Era este o entendimento do artigo 1600.° do Código Civil, que definia a regra geral de
que tinham capacidade para contrair casamento todos aqueles em que se não verificasse
algum dos impedimentos matrimoniais nele previstos.
Regra idêntica vem consignada no Código de Família (art. 23.°): «Têm
capacidade para contrair casamento todos aqueles em que se não verifique algum dos
impedimentos matrimoniais previstos nos artigos seguintes ou em lei especial». No
recente diploma que aprovou o Estatuto do Diplomata, Decreto Presidencial n.° 209/11
de 3 de agosto, foi aprovada a interdição aos funcionários diplomáti¬cos de contrairem
matrimónio ou de terem ligação marital com pessoa de nacionalidade estrangeira ou
que receba qualquer tipo de remuneração de Estado estrangeiro — art. 41.°, n.° 2.
A doutrina costuma distinguir entre impedimentos dirimentes e impedimentos
não dirimentes ou meramente impedientes. Os impedimentos são em geral factos
jurídicos que obstam à realização do casamento.
Os impedimentos dirimentes são aqueles que dirimem, ou que destroem os
efeitos do casamento.
Os impedimentos dirimentes são, pois, os que proíbem que o casamento se
celebre e costumam ser classificados em duas categorias:
a) impedimentos dirimentes absolutos;
b) impedimentos dirimentes relativos.
Os primeiros impedem a pessoa em causa de casar seja com quem for: dizem-se,
por isso, impedimentos dirimentes absolutos.
Os impedimentos dirimentes relativos impedem unicamente que duas pessoas
casem uma com a outra, mas não impedem que casem com outrem. Mas tanto uns como
outros impedem que se realize o casamento. Em sentido lato, todos os impedimentos
constituem obstáculos à celebração lícita e válida do casamento.

a) Impedimentos dirimentes absolutos

Demência
O primeiro impedimento dirimente absoluto é o da demência. Esta proibição de
contrair casamento funda-se simultaneamente em duas razões: não permitir que o ato
de casamento seja celebrado por quem não tenha capacidade de discerni¬mento para
compreender o alcance do ato que pratica e portanto os efeitos pessoais e sociais do
casamento e impedir que indivíduos portadores de taras psíquicas as vão transmitir à
sua descendência.
A incapacidade por demência abrange não só a interdição por demência
decretada por sentença judicial, e reconhecida sob o ponto de vista jurídico, mas ainda
a demência notória, o que quer dizer, a que se evidencia como facto público, e que
portanto é geralmente conhecida no meio onde o nubente vive. A demência será
considerada notória quando seja do conhecimento público das pessoas do meio social
em que vive o portador da doença, mesmo que esta seja desconhecida do outro nubente.
Em sentido jurídico, a demência abrange todas as diversas doenças do foro
psiquiátrico, sejam elas de que natureza forem, e não só a demência em sentido clínico.
A demência constitui causa de incapacidade matrimonial mesmo que o
casamento seja celebrado num intervalo lúcido da doença mental. Aliás discute-se se é
possível falar em intervalos lúcidos num doente mental pois cientistas há que sustentam
que a doença está sempre subjacente, embora possa ter períodos de crise em que ela se
acentua. Procura-se assim proteger interesses sociais que são lesados pela celebração
de um casamento de consequências nefastas para o outro cônjuge e até para o próprio
demente e para a possível prole.
Em certas legislações a demência é encarada como causa de nulidade absoluta
do casamento em razão de vício do consentimento.
Se houver sentença de interdição ou inabilitação por anomalia psíquica anterior
ao casamento, ela impede em absoluto a celebração do casamento, enquanto não for
levantada a interdição.
Se a sentença de interdição for posterior, mas nela for fixado o início da doença
mental em data anterior ao casamento, este fica ferido de nulidade. O artigo 1601.°,
alínea b), do Código Civil previa este impedimento, expressando que ele abrangia a
demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação
por anomalia psíquica.
No mesmo sentido dispõe o Código de Família, que proíbe em absoluto o
casamento no caso de demência, quando esta for notória, ou no caso de interdição ou
inabilitação por anomalia psíquica (art. 25.°, alínea a)).
b) Casamento anterior ou união de facto legalmente reconhecida
O segundo impedimento dirimente absoluto provém do facto da existência de
casamento anterior não dissolvido ou de união de facto legalmente reconhecida, que,
como veremos, produz os efeitos do casamento.
O casamento pode ter sido celebrado no país ou no estrangeiro ou ter sido
celebrado sob a forma civil ou canónica, desde que em condições legais de produzir
efeitos civis. A alínea b) do
citado art. 25.° do Código de Família dispõe que o casamento ou união de facto
legalmente reconhecida impedem o casamento com qualquer outra pessoa enquanto o
casamento ou a união anterior não forem dissolvidos.
Este impedimento visa a consagração do princípio da monogamia, comum a
todos os países democráticos. Ele deriva do conceito de igualdade de direitos e deveres
do homem e da mulher no casamento, complementando-o com o próprio conceito do
casamento, que assenta numa plena comunhão de vida entre marido e mulher.
A bigamia ou poligamia, que pressupõem a existência simultânea de dois ou mais
casamentos celebrados seja por um homem com mais de uma mulher, seja por uma
mulher com mais de um homem, não são consentidos na nossa ordem jurídica. Há quem
fale em poligamia sucessiva quando alguém dissolve um casamento anterior, por
divórcio, para, após a dissolução, contrair novo casamento com outro cônjuge.
Quem tiver o estado de casado não pode celebrar novo casamento enquanto o
anterior não for dissolvido, pelo que só pode contrair casamento quem estiver no estado
de solteiro, viúvo ou divorciado.
A união de facto, para produzir efeitos como tal, carece de um processo de
reconhecimento.
O reconhecimento da união de facto para o fim de constituir impedimento
matrimonial tem que ser anterior ao casamento e resultante do mútuo acordo dos
companheiros, mediante um processo proprio e um despacho administrativo de
reconhecimento, devendo depois ser objeto de registo no livro próprio, como adiante
estudaremos.
Não obsta, porém, à celebração de casamento, a existência de união de facto,
ainda que reunindo os pressupostos legais de reconhecimento, desde que o
reconhecimento se não tenha previamente operado, por via do comum acordo dos
companheiros. O acordo mútuo para o reconhecimento da união de facto é essencial
para o seu reconhecimento, como veremos.
c) Impedimentos dirimentes relativos
Estes impedimentos matrimoniais fundam-se na existência de certos vínculos
familiares existentes entre duas pessoas e ainda na existência de facto ilícito penal grave
(crime de homicídio voluntário cometido por um dos nubentes contra o cônjuge do
outro). Embora sejam designados como impedimentos dirimentes relativos, eles
impedem em absoluto que se celebre o casamento entre as pessoas em causa.
Se a despeito do impedimento, o matrimónio vier a ser celebrado, a existência
do impedimento é causa de invalidade e conduz à anulabilidade do casamento.
Os impedimentos dirimentes relativos vêm definidos no corpo do art. 2° o
Código de Familia como aqueles que «impedem a celebração do casamento entre si das
pessoas a que respeitam». ,

Eles incidem sobre os parentes e afins na linha reta (alínea a) do artigo) e so


os parentes no 2.» grau na linha colateral, ou seja os irmãos por laços de sangue
ou adotivos (alínea b) do preceito). ;rr
A alínea c) do mesmo art. 26.“ refere-se à pronúncia como autor ou por
homicídio doloso contra o cônjuge do outro. „undo o ^... *rr - grau da linha colateral
fúnda-se na interdição q > ^ sociedades humanas levantaram contra a prática do inc .
.1^16^ Desde
O repúdio do incesto é um dos tabus mais Pr^^^^^l^^nstjtuir família os tempos
mais recuados, o ser humano sentiu a exoeamia como
com elementos novos, encontrados fora da família, optando pela exogam forma
de mais salutar propagação da espécie hum
"^ITanCarhnnnier. Droit Civil- La FamilUp. - >•
Como vimos, as sociedades humanas baniram desde sempre as relações
incestuosas entre ascendentes e entre irmãos, tendo estas persistido cm certas classes
aristocráticas ainda nos tempos históricos.
São razões de ordem ética que punem o incesto, nuns casos como ilícito civil,
noutros até como ilícito penal.
Há quem distinga entre o incesto absoluto, que será aquele que advém das
relações entre parentes em linha reta ou no segundo grau da linha colateral, e o incesto
relativo, que se refere às relações entre parentes no terceiro grau da linha colateral, entre
tio-sobrinha ou tia- sobrinho.
A lei civil, ao falar em «parentesco», explicita que não é necessário que ele esteja
estabelecido e formalizado em termos de registo civil, bastando a existência do simples
parentesco de facto.
Este é o entendimento consagrado no artigo 1603.° do Código Civil, segundo o
qual o parentesco, mesmo não reconhecido, constitui impedimento quando apurado no
processo preliminar de publicações anterior à celebração do casamento. Por isso, uma
vez suscitada a questão da existência do parentesco, embora este não esteja devidamente
estabelecido, o Conservador do Registo Civil deverá sustar o processo para a
averiguação do facto. Se ele se provar, o casamento não poderá ser celebrado. A prova
feita nesse processo preliminar não poderá valer para qualquer outro efeito (art. 1603.°
do Código Civil). O resultado deste apuramento poderá por seu lado, ser impugnado em
ação comum pelas pessoas que mostrem ter legitimidade para impugnar o parentesco.
O Código de Família não contempla expressamente esta hipótese. Apesar disso,
deve entender-se que o parentesco, mesmo que não estabelecido formalmente, constitui
impedimento à celebração do casamento, pois o fim da lei é impedir que se realize o
casamento entre pessoas ligadas por laços de sangue muito próximos.
Relativamente ao Código de Família, temos ainda que ter em conta que o
parentesco se estabelece quer por laços de sangue quer por adoção. Por isso, a proibição
abrange os parentes por adoção em linha reta, ou seja adotante e respe¬tivos
ascendentes e descendentes e o adotado e seus descendentes.
A proibição do casamento entre irmãos é extensiva a todos os irmãos, sejam eles
bilaterais ou germanos, sejam irmãos unilaterais, uterinos ou consanguíneos, sejam
irmãos adotivos.
Por outro lado, o adotado, embora pelo efeito da constituição do vínculo da
adoção veja extinguir os laços de parentesco natural com os seus anteriores parentes —
o que pode acontecer simultaneamente em relação ao ramo paterno e materno, ou só em
relação a um dos ramos, como teremos ocasião de ver, fica impedido de contrair o
casamento com os seus parentes naturais em linha reta ou no segundo grau da linha
colateral, entendendo-se que o vínculo do parentesco natural não se extingue para efeito
de constituir impedimento matrimonial.
Na verdade, o art. 206.° do Código de Família dispõe que «a adoção dupla do
menor faz extinguir os laços de parentesco entre o adotado e os seus parentes naturais,
os quais só serão de atender para o efeito de constituírem impedimento matrimonial».
O vínculo de afinidade em linha reta constitui igualmente impedimento
dirimente, já não constituindo impedimento a afinidade no segundo grau da linha
colateral. É pois, proibido o casamento entre sogro-nora, genro-sogra, padrasto- -
enteada, enteado-madrasta, mas é permitido o casamento entre cunhados. Certas
legislações, como por exemplo a legislação italiana, preveem o impedimento do
casamento entre afins do segundo grau da linha colateral, sendo este, no entanto, de
natureza dispensável.
O impedimento em razão do vínculo da afinidade perdura mesmo que o
casamento do qual ele deriva tenha sido dissolvido, uma vez que o vínculo da afinidade
não se extingue com a dissolução do casamento. É esta a posição legal adotada pelo art.
15.° do Código de Família.
Já não existe impedimento matrimonial entre um afim e o cônjuge respetivo,
podendo por exemplo o padrasto de um indivíduo vir, por morte deste, a contrair
casamento com a respetiva viúva.
O conjugicídio é o impedimento dirimente relativo a que se referia a alínea d) do
art. 1602.° do Código Civil e que vem previsto na alínea c) do art. 26.° do Código de
Família.
Segundo o art. 1602.°, alínea d), a condenação por homicídio devia constar de
decisão com trânsito em julgado, devendo tratar-se de condenação em razão da prática
de homicídio doloso e não de homicídio involuntário. Nesta proibição está abrangida
tanto a forma de participação criminosa por autoria como por cumplicidade. Também
estão abrangidas as diversas formas de execução do crime, ou seja a forma consumada,
frustrada ou tentada.

Esta regra funda-se em princípios de ordem moral e é comum a muitas


legislações.
Por ela se impede que, por exemplo, o cônjuge viúvo venha contrair casamento
com o autor do crime de homicídio de que foi vítima o cônjuge falecido, e o
impedimento dirimente subsiste quer o cônjuge sobrevivo tenha participado na ação
criminosa, quer seja em relação a ela completamente alheio.
Seria chocante para a consciência dos cidadãos, permitir que um cônjuge viesse
a contrair matrimónio com o assassino de seu marido ou mulher.
No Código de Família a redação é diferente porque se fundiu numa única
disposição legal o que vinha contido no disposto na citada aJínea d) do art. 1602.° e o
que constava da alínea c) do art. 1604.°, ambos do Código Civil.
E isto operou-se porque se eliminou no Código de Família a referência expressa
aos impedimentos impedientes.
Por tal razão, o impedimento surge desde que tenha sido proferido o despacho
de pronúncia do nubente pela prática do crime de homicídio doloso contra o cônjuge do
outro, e perdura enquanto o réu não vier a ser despronunciado ou absolvido por decisão
transitada em julgado — art. 26.°, alínea c) do Código de Família.
Do que se infere que, a contrario sensu, se houver condenação com trânsito em
julgado do outro nubente, o impedimento perdura, prejudicando em absoluto a
possibilidade de o casamento se realizar.
O Anteprojeto do Código Penal pune como crime a celebração de casamento
com indução em erro sobre impedimento e também quando haja conhecimento e
ocultação de impedimento por parte de um dos nubentes.(I7)
d) Impedimentos impedientes
O artigo 1604.° do Código Civil previa ainda os impedimentos meramente
impedientes: aqueles cuja existência obstava à realização do casamento mas não
afetavam a sua validade, se o casamento tivesse sido celebrado. O funcionário do
Registo Civil sofreria sanção disciplinar, estando os nubentes sujeitos às sanções
especiais previstas nos artigos 1649.° a 1650.° do Código Civil (na generalidade de
natureza económica).
O Código de Família eliminou, como se disse, a referência específica aos
impedimentos impedientes.
Mas o art. 23.°, ao referir-se à capacidade matrimonial, menciona não só os
impedimentos previstos no próprio Código mas ainda os que constarem de lei especial.
Deixou-se, assim, em aberto que determinadas leis pudessem vir a condicio¬nar o
direito de contrair casamento à obtenção de determinadas autorizações.
Efetivamente, existem determinadas situações em que se pode impedir que se
contraia o casamento (como no caso de prestação de serviço militar ativo), ou se pode
impor que seja obtida licença para a sua celebração.

Deixou-se desta forma em aberto que leis especiais, tal como o Estatuto do
Diplomata, restrinjam a capacidade matrimonial.
Interessa comparar como foram ou não acatados no Código de Família os
impedimentos meramente impedientes previstos no Código Civil.
Eram eles os seguintes: Prazo intemupcial
Não vem previsto na maioria das atuais legislações. O n.° 1 do 1605.° definia o
conceito de prazo intemupcial como o espaço de tempo que decorria entre a data da
dissolução, declaração de nulidade ou anulação de um casamento e a data a partir da
qual podia o ex- cônjuge vir a contrair novo casamento. Esse prazo intermédio vinha
fixado na lei em 180 dias para o homem e em 300 dias para a mulher.
A razão de ser deste impedimento fundava-se em razões do foro social, que
visavam impedir que alguém que terminou a vida conjugal com uma pessoa, viesse a
reatar de seguida um casamento com outra.
Certas legislações designam este prazo como «delai de viduité» ou de «luto
vedovile».
Em relação à mulher invoca-se a questão da turbatio sanguinis, ou seja, a
incerteza sobre a verdadeira paternidade do filho nascido nos trezentos dias que
decorressem após a dissolução do primeiro casamento.
Como tivemos oportunidade de aprofundar, a lei fixa o denominado «período
legal de conceção» para, a partir desse conceito, poder atribuir a paternidade do marido
relativamente aos filhos concebidos e nascidos durante o casamento.
Ora, o Código de Família no seu art. 165.° prevê a hipótese em causa, na parte
relativa às regras gerais do estabelecimento da filiação, dizendo que, no caso de segundo
casamento da mãe, antes de dissolvido o casamento anterior ou dentro dos 300 dias
posteriores à sua celebração, presume-se que a paternidade é do marido do casamento
celebrado em último lugar. Trata-se, porém, de mera presunção suscetível de ser ilidida
pela parte interessada.
O artigo 1605.°, n.° 2 do Código CiviJ permitia que a mulher contraísse
casamento dentro de prazo de 180 dias após a dissolução do casamento anterior, desde
que obtivesse declaração judicial de não estar grávida ou se entretanto tivesse tido um
filho após a dissolução do casamento ou da declaração de nulidade ou da anulação.
Esta matéria já tinha sido objeto de alteração pelo artigo 8.° da Lei n.° 53/76, que
estipulava que o prazo internupcial era contado a partir do trânsito em julgado da
sentença de separação de pessoas e bens, que tivesse sido convertida em divórcio, ou
da data do abandono do lar ou da separação de facto, desde que a mesma tivesse sido
reconhecida em sentença com trânsito em julgado.

A sanção legal para a celebração do novo casamento sem a observância do prazo


internupcial vinha prevista no art. 1650.°, n.° 1 e consistia em fazer perder ao cônjuge
os bens que tivesse recebido por doação ou sucessão do primeiro cônjuge.
0 parentesco em terceiro grau da linha colateral
Este impedimento obstava ao casamento entre tio e sobrinha ou tia e sobrinho, e
vinha previsto na alínea b) do art. 1604°. Mas aqui o Código Civil tomava uma posição
diferente relativamente ao estabelecimento do parentesco, pois este tinha que estar
legalmente reconhecido, não bastando a prova do vínculo do parentesco natural.
Este impedimento era, porém, suscetível de dispensa, pois o art. 1609.° permitia
que o Ministro da Justiça ou o tribunal, se o nubente fosse menor, autorizassem o
casamento.
São razões de eugenia que levam a que, em princípio, se não permita casamento
entre parentes tão próximos. Mas se, ouvido parecer médico, se concluir não haver
razões de saúde que desaconselhem o casamento, este pode ser autorizado. Já atrás
mencionámos por que razão o Código de Família não inclui o parentesco no 3.° grau da
linha colateral entre os impedimentos matrimoniais.
O art. 1604.° do Código Civil mencionava ainda os impedimentos do vínculo da
tutela, curatela e administração legal de bens, que são de natureza temporária, e o art.
1608.° do Código Civil referia o vínculo da adoção restrita, que é uma figura jurídica
que não subsiste entre nós desde a aprovação da Lei n.° 7/80, de 7 de agosto.
[65] O consentimento, seu caráter pessoal e atual
O segundo elemento substancial que integra o ato do casamento é o elemento
psicológico e subjetivo: a vontade do nubente.
A autonomia da vontade na celebração do casamento, que se traduz na liberdade
matrimonial, é considerada como um direito fundamental da pessoa humana, um
verdadeiro direito de personalidade.
O consentimento tem que revestir, por isso mesmo, um caráter eminentemente
pessoal. É esta a regra consagrada no art. 1619.° do Código Civil e agora contida no n.°
1 do art. 35.° do Código de Família segundo o qual «É essencial para a validação do
casamento que cada um dos cônjuges manifeste, de forma expressa, a vontade de
contrair casamento com o outro nubente».
Postulando a lei a essencialidade da vontade dos futuros esposos, afasta-se, em
absoluto, a vontade das famílias.
Quando um dos nubentes estiver representado no ato de casamento por um
procurador, a lei impõe que a procuração seja de natureza especial, o que quer dizer que
ela é válida tão somente para a celebração do ato, devendo mencionar expressamente
qual a pessoa do outro nubente. É o que prescreve o n.° 2 do art. 35.°: «No caso de um
dos nubentes estar representado por procurador a procuração deve ter poderes especiais
para o ato e especificar

a pessoa do outro nubente». Daqui se infere que só um dos nubentes se pode


fazer representar por procurador e não os dois simultaneamente.
O consentimento no casamento, como veremos ao estudarmos o formalismo da
sua celebração, expressa-se pela frase que é dita após a pergunta feita pelo
Con¬servador do Registo Civil, e que consta do Regulamento do Ato do Casamento,
ora em vigor. Isso não impede que possa ser substituída por outra forma de expressão
da qual se infira, sem dúvidas, a existência da vontade do nubente.
Como atrás vimos, admite a lei, no caso de casamento de surdo-mudo, que ele se
expresse por intérprete, tal como no caso de nubentes que não compreendam a língua
em que é celebrado o ato. A declaração de aceitação do casamento tem que ser pura e
simples, não sendo possível que se formulem quaisquer condições ou termo para
aceitação do negócio jurídico do casamento. Se o nubente quiser aditar alguma condição
ou cláusula, tal não deve ser consentido e não deve ser aceite a declaração. Mas se,
porventura incorretamente, tiver sido aposta alguma cláusula, há quem entenda que tem
de se optar por uma de duas soluções: ou a cláusula é nula e válido o casamento, ou é
válida a cláusula e nulo casamento.
Para ser válido, o consentimento tem ainda que ser atual, o que significa que ele
tem que existir no momento em que é celebrado o casamento. Esta é a razão
fundamental do afastamento do princípio que atribui qualquer relevância à promessa de
casamento que haja sido formulada antecipadamente.
A vontade de casar tem que existir no momento em que se celebra o ato de
casamento, sendo irrelevante que ela tenha ou não existido antes. Se o casamento tiver
sido celebrado por intermédio de procuração, é necessário que a procuração seja válida
no momento da celebração, ou seja, que não tenha caducado ou que não tenha sido
objeto de revogação. O art. 1621.° do Código Civil regulava o caso de revogação ou
caducidade da procuração especial para o casamento, permitindo a sua revogação em
qualquer tempo, mas responsabilizando o nubente que o fizesse, pelos prejuízos que
causasse no caso de o casamento vir a ser celebrado.
A morte do mandante extingue os poderes conferidos pelo nubente ao
constituinte tal como a morte deste extingue os poderes que lhe tiverem sido outorgados
na procuração.
O Código de Família não prevê estas hipóteses, que devem ser regulada nos
termos gerais da revogação e da caducidade do mandato com representação,
permitindo-se sempre a sua revogabilidade nos termos gerais do direito, mas impondo
ao mandante e ao mandatário o dever de dar conhecimento da revogação com a maior
diligência ou do facto que tiver feito caducar a procuração.
CAPÍTULO I I.°
FORMA DO ATO DE CASAMENTO
[66] Formalidade
O terceiro elemento essencial à validade do ato do casamento é a forma do
casa¬mento, forma esta a que o legislador confere a maior importância e que se
carateriza pela existência de um processo administrativo preparatório do casamento e
pela forma solene e ritual a que está sujeita a celebração da cerimónia e, por fim, pela
obrigatoriedade de se proceder ao registo do ato que se acabou de efetuar.
Este princípio legal vem consagrado no Código de Família, art. 27.°: «0
casamento só é válido quando celebrado perante os órgãos do Registo Civil ou
reconhecido de acordo com as regras da presente lá».
Nesta disposição reconhece-se validade jurídica, por um lado, aos atos de
casamento que revestem a forma legal prevista na própria lei e, por outro lado, àqueles
que venham a ser reconhecidos pela via legal. Quis-se assim abranger os casamentos
que sejam objeto de transcrição no Registo Civil, bem como aqueles que venham a ser
reconhecidos por decisão judicial, como ocorre no caso de se verificar a falta do ato do
registo.
As disposições do Código Civil e do Código do Registo Civil foram alteradas
quanto ao ato do casamento pela Lei n.° 11/85, de 25 de outubro, que veio afastar a
validade do casamento canónico, além de introduzir importantes alterações às normas
que regulam o processo de casamento e o próprio processo da celebração do casamento,
designadamente quanto à adoção dos apelidos por parte dos nubentes.
A Lei n.° 11 /8 5 foi, como nela estava previsto, objeto de regulamentação pelo
Decreto n.° 14/86, de 2 de outubro. Foram assim alteradas e consequentemente
revogadas as disposições que no Código do Registo Civil (arts. 166.° a 236.°) diziam
respeito à matéria em causa.
Este Decreto n.° 14/86, que contém o Regulamento do Ato do Casamento
(abreviadamente, R. A. C), publicado antes da entrada em vigor do Código de
Família, carece de ser adaptado a este Código, em tudo quanto ele veio alterar os
dois diplomas anteriores (o Código Civil e a própria Lei n.° 11/85); no entanto o R. A.
C. continua em vigor e como tal terá que ser objeto do nosso estudo.
As formalidades a que está sujeito o casamento podem subdividir-se em:
— Formalidades preparatórias do ato do casamento;
— Formalidades da celebração do casamento.

[67] O processo preliminar


O processo preliminar constitui uma formalidade preparatória do casamento que,
como dispõe o art. 28.° do Código de Família, se destina a comprovar a capacidade
matrimonial dos nubentes.

No Código Civil (art. 1610.°) dizia-se que a celebração do casamento era


precedida por um processo de publicações; hoje, o Código de Família fala em processo
preliminar.
A diferença entre estas duas disposições está na eliminação, a que se procedeu
no Código de Família, do termo «publicações», o que corresponde a uma simplificação
que se operou no próprio processo que corre perante os órgãos do Registo Civil, por ter
sido suprimida a fase da publicação dos editais.
A finalidade do processo preliminar é a de garantir à entidade que vai celebrar o
ato de casamento (que tanto pode ser a que organizou o processo preliminar como outra)
que os nubentes possuem capacidade matrimonial para o ato. Essa capacidade será
demonstrada não só pela documentação necessária à instrução do processo como ainda
pela declaração sob juramento que é exigida aos nubentes.
Procura-se obstar a que venha a ser celebrado casamento ferido de vício
substancial, que possa acarretar a sua anulação, com as graves consequências que dela
resultam. Também, em certa medida, o formalismo necessário à prática do casamento
permite que os nubentes tenham um determinado lapso de tempo para sopesar as
consequências do ato que vão celebrar e os efeitos ponderosos que, por via dele, irão
incidir na vida pessoal de cada um, procurando evitar resoluções precipitadas.
O processo preliminar desdobra-se nas seguintes fases: a) Declaração inicial
Trata-se de uma declaração cujo modelo vem publicado no final do R.A.C. e que
é subscrita por ambos os nubentes. O art. 29.° do Código de Família, indevidamente,
menciona que o processo se inicia a «requerimento» dos nubentes, quando devia antes
dizer por «iniciativa» dos nubentes, dado que, uma vez elaborada a declaração inicial,
o processo fica oficialmente aberto na respetiva Conservatória.
De acordo com o art. l.° do R. A.C., a organização do processo preliminar é da
competência da Conservatória do Registo Civil da área de residência de qualquer dos
nubentes nos últimos 30 dias. A declaração para casamento deve ser feita pessoalmente
por cada um dos nubentes ou por procurador com poderes especiais para tal — art. 2.°.
Essa declaração deve conter os elementos essenciais à identificação pessoal dos
nubentes, dos seus ascendentes, do tutor, se houver tutela instituída. No caso de
segundas núpcias, deve mencionar-se o nome do cônjuge anterior e a causa da
dissolução do casamento. Deve indicar- se se algum dos nubentes tem filhos, como
preceituam as alíneas a), b), c) e e) do n.° 2 do art. 3.°.
A alínea f) deste art. 3.° está revogada, pois o Código de Família não prevê a
celebração de convenções antenupciais.
No caso de os nubentes pretenderem optar pelo regime de separação de bens,
devem desde logo fazer essa menção na declaração inicial — art. 29.°, n.° 3 do Código
de Família.
Com a declaração para casamento devem ser entregues diversos documentos
comprovativos da sua capacidade matrimonial, o mais importante dos quais é a certidão
de registo de nascimento dos nubentes (art. 4.° do Decreto n.° 14/86).
De acordo com a legislação anterior (Código do Registo Civil) o processo que
antecedia o casamento designava-se por processo de publicações e continha a forma de
publicidade destinada a dar conhecimento a terceiros do projeto de casamento, a fim de
que, se alguém soubesse da existência de impedimento matri-monial, pudesse vir dar
conhecimento do facto ao funcionário do Registo Civil.
Este formalismo foi herdado do direito canónico, que obriga à publicação dos «
banhos » proclamados oralmente nos lugares de culto durante as 3 semanas que
antecedem a celebração do casamento.
No casamento civil passaram a publicar-se editais afixados à porta das
Conservatórias do Registo Civil. Mas porque o público não tem o hábito de ler esses
editais, tal formalismo só servia para sobrecarregar o serviço das Conservatórias, já em
si muito carentes de recursos, quer em funcionários, quer em meios materiais.
Para obviar a este excessivo formalismo foram abolidas as «publicações»,
substituindo-as por uma declaração sob juramento.
Note-se que, hoje em dia, tal formalismo já não é aplicado cm grande número de
legislações. Em certos países como no Brasil os anúncios de casamento a contrair são
publicados na imprensa o que se torna mais eficaz.(1)
O atual processo preliminar impõe que o Conservador esclareça os nubentes de
quais são os impedimentos matrimoniais previstos na lei — art. 29.°, n.° 1: «O processo
preliminar é iniciado a requerimento dos nubentes, que serão previamente esclarecidos
dos impedimentos matrimoniais.»
Depois de estarem cientes de quais são esses impedimentos, os nubentes devem
declarar sob juramento se estão ou não abrangidos por qualquer deles.
«A declaração para casamento éprestada sobjuramento e afalsa declaraçãofaz
incorrer o nubente em responsabilidade criminal e civil» — art. 29.°, n.° 2.
b) Oposição ao casamento
Após a apresentação da declaração de casamento, a lei prevê que possa ser
suscitada oposição à sua celebração.
A legitimidade para deduzir oposição vem prevista no Código de Família (art.
30.°, n.° 1), que impõe a qualquer cidadão que tenha conhecimento da existência de
algum impedimento à realização do casamento, o dever cívico de vir declarar o facto
até ao momento da celebração. O n.° 2 deste art. 30.° diz que a declaração é obrigatória
para funcionários do Registo Civil.
Por maioria da razão, nas suas funções de Ministério Público, o representante do
Procurador Geral da República deve deduzir oposição ao casamento quando tiver
conhecimento da verificação de impedimentos.
O art. 9.° do R. A. C. prevê, quer o caso de dedução de impedimento por qualquer
pessoa, quer o facto de o Conservador, dessa ou doutra forma, chegar a ter
conhecimento da existência de impedimento.
A oposição pode ser deduzida de diferentes formas, designadamente pelos pais
do nubente menor a quem não tenha sido concedida autorização para casar, pelo cônjuge
do nubente que pretenda contrair novo casamento sem ter dissolvido o anterior, etc..
Deduzida oposição, ou havendo conhecimento de impedimento, o Conservador
deve proceder a diligências de prova e suspender o andamento do processo. Se concluir
pela procedência da existência de impedimento, deve recusar a celebração do
casamento. Do seu despacho que recusar a celebração do ato, cabe recurso para o
tribunal competente.
O recurso das decisões dos conservadores e notários deve ser interposto para o
respetivo Tribunal Provincial como vem previsto no art. 31.°, n.° 1, alínea c), de 18/88
de 31 de dezembro, que define a competência geral da Sala do Cível e Administrativo.
No entanto dada a natureza específica deste recurso que se prende com o
exercício de direitos de família, ele está abrangido pela competência atribuída à Sala de
Família de acordo com o art. 32.° da mesma Lei.
Se não houver oposição ou se esta for considerada improcedente, entra-se na fase
final. c) Despacho final
O art. 31.° do Código de Família diz no seu n.° 1: «Verificados os pressupostos
legais, cabe ao funcionário do Registo Civil autorizar por despacho a celebração do
casamento.»
Foi alongado o prazo de validade do despacho que autoriza a celebração do
casamento, por se atender à dificuldade na obtenção da documentação necessária à
constituição do processo preliminar e à falta de registo civil de grande parte da
população já atrás apontada. Pode adiantar-se que, na maioria dos casos, são essas
mesmas dificuldades, acrescidas da falta de recursos económicos, a causa que leva a
que a maior parte da população se afaste da celebração do casamento e opte pela
vivência marital em comum, não formalizada.
Uma vez concluído o processo preliminar, se os nubentes pretendem celebrar o
casamento em conservatória diferente daquela por onde correu o processo, podem pedir
o certificado para esse efeito — art. 13.° do R. A.C.
[68] Celebração do casamento
Concluído o processo preliminar, pelo qual se apurou a não existência de
impedi¬mentos, e lavrado o despacho de autorização, segue-se a celebração do
casamento.
A cerimónia do casamento carateriza-se pela sua solenidade e publicidade — art.
32.°, n.° 1.
a) Intervenção das testemunhas
A solenidade corresponde a um verdadeiro rito que é seguido durante o ato, no
qual são chamados a intervir os nubentes e o Conservador do Registo Civil, bem
com duas ou quatro testemunhas, que servem, como se disse, para fazer prova da
identidade dos nubentes e da realização do próprio ato.
As testemunhas servem ainda para atestar a capacidade matrimonial dos
nubentes e como demonstração da importância social que é dada ao ato do casamento,
como ato que não se circunscreve à esfera privada dos nubentes e repercute-se no meio
social em que eles vivem.
O art. 25.°, n.° 1 do R. A. C. indica que é indispensável a presença dos nubentes
ou de um deles e a do procurador do outro, do funcionário do Registo Civil e das
testemunhas que devem ser no mínimo duas e no máximo quatro.
No mesmo sentido, o art. 34.° do Código de Família indica quais devem ser os
intervenientes no ato do casamento, devendo ter-se em conta, porém que, ao contrário
do que diz o corpo do artigo, a presença das testemunhas não constitui condição
essencial à validade do ato de casamento, como adiante veremos ao estudarmos a
anulabilidade do casamento.
b) Línguas e local de celebração
O ato pode ser celebrado em português ou em qualquer das línguas nacionais —
art. 32.°, n.° 2 e art. 26.°, n.° 1 do R. A. C.
O local da celebração do casamento vem previsto no art. 33.° do Código de
Família e no art. 24.° do R. A. C.. Em princípio, ele deve ser realizado em local
condigno que permita que o ato se desenrole com a dignidade que a sua importância
social requer.
Poderá ser em salas próprias para o efeito das Conservatórias, nas sedes do
governo local, ou em instituições culturais e recreativas legalmente reconhecidas. É
também permitido que o casamento se realize em residências, desde que tal seja
autorizado pelo órgão do Registo Civil — n.° 2 do art. 33.°.
Também vem previsto no n.° 3 deste artigo que, nos meios rurais, sejam adotadas
formas de celebração adaptadas aos condicionalismos locais, pelo que, nesse caso, a
cerimónia poderá ter lugar no local de reunião da população (um «jango», uma árvore
majestosa, etc.),
c) Forma pública e solene
O formalismo a ser usado no decorrer da cerimónia vem estabelecido no já citado
art. 26.° do R. A. C., o qual estipula as diversas fases do ato, que obrigatoriamente tem
que decorrer de forma pública.
Com efeito, além de ser um ato solene, o casamento é um ato públicoy como
expressa o já citado art. 32.°, n.° 1, o que significa que o público deve ser admitido
livremente no local.
As portas da sala do edifício onde ele se celebre, seja a repartição do Registo
Civil, seja uma residência ou outro local, têm que se conservar abertas, para permitir
que, até ao momento da celebração, quem assim o pretender possa vir dizer algo sobre
a existência de impedimentos à realização do casamento. O público deve ter livremente
acesso ao local da celebração do casamento, o que exclui a possibilidade de qualquer
forma de casamento secreto.
As diferentes fases da celebração do casamento consistem essencialmente no
seguinte:
a) a leitura das peças que instruíram o processo preliminar;
b) a prestação de autorização, no caso de casamento de menores, quando ainda
não
tenha sido prestada, ou da declaração de oposição, por quem tiver que a prestar;
c) a interpelação aos presentes sobre se alguém tem conhecimento de algum
impedimento que obste à realização do casamento, o que, a acontecer, levará à
suspensão da celebração do ato;
d) se tal não ocorrer, serão então interpelados os nubentes sobre se aceitam o
outro nubente por consorte;
e) cada um dos interpelados deverá expressamente proferir a frase legal: «É da
minha livre vontade casar com <F> », indicando o nome completo do outro nubente.
Uma vez prestado o consentimento pelos nubentes, o funcionário do Registo
Civil declarará, em nome da República de Angola, os nubentes — identificados pelos
nomes completos — unidos pelo casamento.
Ao apreciarmos a natureza jurídica do ato do casamento já analisámos a questão
respeitante ao momento em que se deve dar como celebrado o ato do casamento. Se
aquele em que os nubentes expressam formalmente o seu consentimento ou aquele em
que o funcionário proclama a sua união. Entendemos que a declaração do funcionário é
indispensável à eficácia jurídica da declaração dos nubentes, porque é ele que declara
os nubentes unidos pelo casamento.
d) Declarações facultativas
Efetuada a celebração do casamento e recebida a declaração dos nubentes pelo
Conservador do Registo Civil, há duas declarações de natureza facultativa que podem
ser feitas ato contínuo e que são respetivamente:
— declaração sobre a adoção do nome, que vem prevista no art. 36.°, n.° 1, do
Código de Família. E que, como veremos, pode ser a adoção do apelido do outro ou de
um nome comum de família.
— declaração a confirmar a sua opção pelo regime de separação de bens, se for
esse o regime que quiserem que vigore no seu casamento — art. 49.°, n.° 2 do Código
de Família.
De relevância prática é ainda o que consta do art. 164.° do Código de Família,
que prevê a existência de filhos comuns dos nubentes cuja declaração de filiação não
tenha sido ainda efetuada.
Como adiante veremos, este preceito visa a efetiva proteção do interesse dos
filhos nascidos ou concebidos antes do casamento, prevendo que os progenitores
efetuem a declaração de filiação logo que celebrado o ato de casamento, ficando a cargo
do Conservador do Registo Civil fazer o respetivo averbamento ao assento de
nascimento, se tal for o caso, sendo tal averbamento de natureza oficiosa.

[69] Casamento urgente


A lei permite que, em certos casos de natureza excecional, o casamento se celebre
sem o formalismo normalmente exigido para o ato.
Segundo o Código Civil, os casos excecionais em que isso podia acontecer eram
os dos casamentos in articulo mortis, ou seja, o de perigo de morte próxima de algum
dos nubentes ou a iminência de parto — art. 1622.°.
Hoje, o casamento urgente vem previsto no artigo 37.° do Código de Família,
que prevê tal forma excecional de celebração de casamento quando:
a) haja fundado receio de morte próxima de algum dos nubentes, ainda que
derivada de circunstâncias externas;
b) haja iminência de parto.
O receio de morte próxima pode advir do facto de um dos nubentes se encontrar
em perigo de vida ou de facto externo à pessoa dos nubentes que faça recear pelas suas
vidas, como seja a situação de guerra, a de perigo de epidemia ou catástrofe natural,
etc..
Todas estas situações relacionadas com qualquer dos nubentes ou resultantes de
circunstâncias externas objetivas podem justificar a celebração urgente do casamento.
Neste caso, pode não ter havido processo preliminar c o funcionário do Registo Civil
ser chamado a celebrar a cerimónia ou pode até acontecer que o funcionário não esteja
presente e o casamento seja celebrado na sua ausência.
Não obstante, o casamento urgente tem de obedecer a determinado forma¬lismo
que vem expresso no art. 27.° do R. A.C..
O art. 28.° do R. A. C. manda proceder ao assento provisório do casamento
urgente. O n.° 2 deste art. 28.° refere-se ao casamento urgente que tenha sido celebrado
em campanha ou em viagem por mar ou a bordo de navio ancorado.
Posteriormente, terá que ser organizado o processo de averiguação da capacidade
matrimonial dos nubentes, pois esta é condição essencial à validade do casamento. O
ato do casamento urgente só é validado quando o funcionário do Registo Civil proferir
o despacho de homologação.
A homologação pode ser recusada quando se não verifiquem os requisitos legais,
não tenham sido observadas as formalidades legais ou exista algum impedimento
dirimente — art. 31.° do R. A.C..
O casamento urgente que não for homologado é considerado juridicamente
inexistente.
[70] O registo do casamento: registo por inscrição e registo por transcrição
Terminado o ato solene da celebração do registo civil, deve realizar-se o ato
instrumentário que consiste em lavrar o assento do casamento — art. 40.° do Código de
Família e art. 38.° do R. A. C.
Ele é redigido pelo funcionário do Registo Civil e deve ser assinado pelos
nubentes, pelas testemunhas e pelo funcionário do Registo Civil. Se algum dos nubentes
for menor, deverá ainda assinar a pessoa que tenha autorizado o casamento — art. 39.°
do R. A. C.
O registo do casamento é de natureza obrigatória (art. 38.°, n.° 1 do Código de
Família) e constitui meio de prova privilegiado do estado conjugal.
O registo tem efeitos retroativos à data da celebração do casamento, o que tem
especial relevância nos casos em que o registo só venha a efetuar-se depois do
casamento.
É pelo registo que se prova a realização do casamento e se demonstra erga omnes
a situação jurídica do estado de casado, situação que, sem ele, não pode ser invocada
nem inter-partes, nem perante terceiros.
Pode excecionalmente ocorrer a perda do registo, quando, por hipótese, tenha
havido a destruição do livro de registo onde ele foi lavrado, quando o funcionário o tiver
indevidamente lavrado numa folha volante que tenha perdido, etc..
Mas pode dar-se o caso de o ato não ter sido lavrado por má-fé do próprio
funcionário do Registo ou por causa de força maior. Estaremos então perante a falta de
registo, situação que é diferente da do seu desaparecimento posterior.
Pode acontecer que os cônjuges vivam na convição da existência do registo e na
posse do estado de casados e só muito tarde se venham a dar conta de que o registo do
ato não existe ou foi destruído. O art. 41.° do Código de Família prevê a forma de suprir
quer a falta quer o desaparecimento do registo. Tal pode até acontecer após a morte de
um ou de ambos os cônjuges e serem os filhos a verificar a inexistência ou a perda do
registo. A lei prevê o reconhecimento judicial do casamento no caso de falta de registo
e o suprimento do registo desaparecido, nos termos previstos no Código do Registo
Civil.
Os efeitos destes procedimentos serão efeitos retroativos à data da celebração do
casamento. Esses efeitos, porém, podem não se produzir em relação a terceiros, como
tem entendido a jurisprudência.
O registo do casamento pode revestir-se de duas formas: o registo por inscrição
e o registo por transcrição.
O art. 39.° do Código de Família distingue entre o casamento registado por
inscrição e o casamento registado por transcrição.
O casamento lavrado por inscrição é aquele cujo assento é lavrado logo após a
celebração do casamento (art. 40.° do Código de Família) o que ocorre:
a) nos casos de celebração do casamento perante o funcionário do Registo Civil,
ou seja, de casamento celebrado em Angola;
b) nos casos de celebração do casamento perante agente diplomático ou consular
angolano, ou seja, de casamento celebrado no estrangeiro.
O art. 38.° do R.A.C. menciona a forma do registo do casamento celebrado pelo
Conservador do Registo Civil, dizendo que ele é lavrado e assinado logo após o ato
solene. O casamento celebrado perante o agente diplomático ou consular angolano vem
previsto nos arts. 32.° e seguintes do R. A.C.. Os agentes diplomáticos e consulares
angolanos no estrangeiro que celebrarem o casamento devem inscrevê-lo no livro
próprio (art. 44.°) c remeter o duplicado à Conservatória dos Registos Centrais (art.
46.°).
O casamento é registado por transcrição quando é reconhecida eficácia jurídica
a um casamento que não foi celebrado perante os órgãos do Registo Civil.
O art. 41.° prevê os casos em que o registo de casamento é lavrado por
transcrição:
a) O casamento urgente que for homologado;
b) O casamento de angolanos no estrangeiro, fora da representação diplomá¬tica
angolana;
c) O assento mandado lavrar por decisão judicial, no caso de omissão do
respetivo assento;
d) O casamento canónico que tenha validade civil por ser anterior à vigência da
Lei n.° 11/85;
e) A transcrição de um assento de casamento de uma repartição de Registo Civil
ou representação diplomática.
O casamento de cidadão angolano celebrado em Angola, quer com cidadão
nacional quer com estrangeiro, pode ser celebrado pela forma e nos termos previstos no
art. 35.° do R. A. C..
Os cidadãos estrangeiros podem livremente celebrar casamento perante as suas
representações diplomáticas ou consulares, desde que igual competência seja
reconhecida aos agentes diplomáticos e consulares angolanos (art. 36.° do
R.A.C.).
CAPÍTULO I2.°
NULIDADE DO CASAMENTO

[71 ] Graus de invalidade


Depois de terem sido estudados os elementos constitutivos do ato do casamento
no que diz respeito ao fundo e à forma, é mais fácil compreender quando o vínculo
matrimonial contraído com a violação de qualquer dos preceitos previstos na lei se pode
considerar eivado de vício.
Atendendo a que o vício que afeta o casamento pode ser mais ou menos grave, a
doutrina tem-se inclinado no sentido de distinguir entre casamento inexistente,
casamento nulo e casamento anulável.
a) Inexistência do casamento
Já estudámos os pressupostos da existência do casamento, pelo que podemos
definir como casamento inexistente todo aquele a que faltar qualquer dos pressupostos
atrás enunciados. É juridicamente inexistente o casamento que foi celebrado entre
pessoas do mesmo sexo, aquele que foi celebrado por pessoa que não tinha poderes
funcionais para tal (ou seja, o casamento «farsa») ou aquele em que faltou a declaração
de vontade de um ou de ambos os nubentes.
A doutrina considera como inexistente o matrimónio em que faltam os elementos
essenciais requeridos para a identificação da fattispecie negociai do casamento.
Sabemos já que o Código de Família não consagra nenhuma disposição que se
refira diretamente à questão da inexistência do casamento. Mas, através das suas normas
imperativas, podemos concluir sobre o que, do ponto de vista da lei, é essencial à
estrutura do casamento.
O conceito de casamento consta do art. 20.° do Código de Família, que o define
como a união entre um homem e uma mulher e agora do texto da Constituição, art. 35.°,
n.° 1.
O que significa que só uma união entre pessoas de sexo diferente pode ser
considerada como casamento. A diversidade de sexo pode ser patente ou encoberta, mas
a sua ausência é, em qualquer caso, causa de inexistência do casamento.
De igual modo, os arts. 34.° e 35.° do Código impõem como essencial a
intervenção dos dois nubentes e a sua manifestação de vontade no ato de casamento,
bem como a intervenção do funcionário do Registo Civil, o que claramente nos indica
que se trata de elementos sem os quais o casamento não chega sequer a ter existência
jurídica.
A manifestação de vontade tem que ser expressa, tem que se dirigir ao outro
nubente e tem que ser produzida perante a autoridade pública com competência para o
ato.
Este entendimento é corroborado à luz do conteúdo das disposições referentes à
anulabilidade do casamento — Capítulo IV do Título III do Código, art. 65.° e alíneas
a), b) e c) —, que indicam os casos em que o casamento pode ser anulado e nada dizem
quanto à inexistência do casamento.
Ora se tal acontece é porque o casamento não chegou a ser introduzido na ordem
jurídica. Como vimos, a doutrina inclui entre os casamentos inexistentes o casamento
urgente não

homologado. Cremos que esta espécie de casamento inexistente pode ser


abrangida pela previsão que se refere aos casos de inexistência por falta da intervenção
do funcionário do Registo Civil no próprio ato do casamento ou a posteriori,
reconhecendo por despacho a sua validade.
O facto de o casamento inexistente não produzir qualquer efeito civil e de a sua
inexistência poder ser invocada em qualquer tempo e por qualquer via tem inegável
efeito prático quanto à distinção entre esta figura jurídica e a que se reporta ao
casamento ferido de nulidade.
A falta de qualquer dos elementos que a lei reputa como essenciais leva a que o
casamento seja considerado juridicamente inexistente, não sendo em regra necessário
que se declare a sua inexistência.
«Quando há inexistência, o ato, como nada é, não produz consequência jurídica
alguma e o juiz tem um papel meramente passivo e secundário na sua apreciação.
Apenas verifica a inexistência como verifica qualquer outro facto cuja verificação lhe
seja pedida. Pelo contrário, se o facto chegou a ter existência jurídica, o juiz, para lhe
não atribuir o efeito que normalmente devesse produzir, terá que atuar de forma ativa e
principal, pronunciando a nulidade. Verificar a existência epronunciara nulidade.>>w
0> Pires de Lima, 0 Casamento Putativo, p. 130. b) Nulidade do casamento
Quando o vício é a nulidade a situação jurídica do ato do casamento é
inteiramente diferente, pois o ato existe mas foi contraído com violação das regras
estabelecidas, quer quanto à capacidade matrimonial dos nubentes, quer quanto ao
mútuo consentimento, quer quanto à forma prescrita na lei.
Quando se verifique vício que possa ser causa de anulabilidade do casamento, o
vício de nulidade terá que ser declarado em ação judicial de natureza impugnativa
proposta expressamente para esse efeito. O art. 6é.° ressalva que, sem ser declarada a
nulidade do casamento, ela não é invocável para nenhum efeito e de nenhuma forma e
que, antes de ser anulado, o casamento produz os efeitos do casamento formal constante
do registo.
A diferença entre o casamento inexistente e o casamento ferido de nulidade
reside cm que o primeiro nem tão pouco existe como tal e não produz qualquer efeito.
No segundo caso, tem que ser o juiz a pronunciar-se sobre a nulidade em ação própria
e a determinar os efeitos que ele produziu de acordo com as circunstâncias concretas de
cada caso. Embora o Código de Família não se refira à inexistência do casamento, o
certo é que, em qualquer das hipóteses apontadas, a lei não lhes reconhece qualquer
efeito jurídico, ao passo que o casamento nulo ou anulável pode produzir efeitos, sendo-
lhe até aplicável a fattispecie do casamento putativo, em certos casos.
A despeito da lei se referir tão somente à anulabilidade do casamento, a doutrina
distingue, consoante os vícios de que enferma o ato, entre a nulidade absoluta e a
nulidade relativa ou mera anulabilidade.
Estariam feridos de nulidade absoluta os casamentos celebrados com violação de
impedimentos dirimentes (absolutos ou relativos) e estariam feridos de mera
anulabilidade os casamentos celebrados com violação de disposição meramente
proibitiva ou com falta ou vício de vontade.
A nulidade absoluta seria invocável não só por qualquer dos cônjuges mas ainda
por terceira pessoa cujo interesse em obter a anulação esteja protegido por lei e também
pelo Ministério Público, porque com tal casamento foi violado um princípio de ordem
pública.
Já na nulidade relativa só certas pessoas, os próprios cônjuges e os representantes
do menor ou do interdito, poderão vir pedir a declaração de nulidade.
Além de que, nestes casos, o casamento, mesmo ferido de nulidade, pode ser
validado.
São, pois, critérios de uma mais larga ou mais restrita legitimidade para a
propositura da ação de anulação ou de uma maior ou menor dilatação do prazo fixado
na lei para a ação de anulação ser proposta, que nos servirão de indicadores para
determinarmos se estamos perante uma nulidade absoluta ou uma nulidade meramente
relativa.
O Código Civil fazia somente distinção entre a inexistência jurídica e a
anulabilidade, não reconhecendo a figura da nulidade absoluta.
Já no direito canónico se reconhece a anulação do casamento cuja sanção do
reconhecimento do vício pode ser aplicada aos casamentos católicos que tivessem
produzido efeitos civis segundo o Código Civil. Daí que, neste Código, haja diversas
disposições referentes a casamentos «declarados nulos» ou «anulados».
No Código de Família fala-se igualmente de anulabilidade do casamento e de
casamento anulável, não havendo qualquer menção a casamento nulo.
Podemos indicar como casamentos nulos os que contenham vício de incesto,
bigamia e conjungicídio. E ainda os que, embora possam ser suscetíveis de validação,
contenham os vícios de impuberdade e de demência.

[72] Regime de nulidade


Discute-se na doutrina se a sentença que decreta a nulidade tem natureza
meramente declarativa ou se tem natureza constitutiva de direitos. Em nosso entender,
a resposta não pode ser uniforme, pois a figura do casamento putativo (art. 71.° do
Código de Família) faz com que, nesse caso, a sentença, muito embora anulando o
casamento, vá ser constitutiva de direitos, reconhecendo aqueles que se produziram
durante o período da sua anterior vigência, ou seja, durante determinado lapso de tempo,
ao passo que, quando a sentença vai destruir retroativamente todos os efeitos produzidos
desde o início do casamento anulado, entendemos que ela tem natureza meramente
declarativa.
Importante, porém, é ter em conta que, uma vez decretada a anulação do
casamento, em razão de causa mais grave ou menos grave, o casamento como tal deixa
de existir na ordem jurídica.
Consequentemente, os efeitos que produz a nulidade do casamento são os
mesmos, independentemente de se tratar de nulidade relativa ou de nulidade absoluta.
Importa igualmente ter em atenção que não são aplicáveis à nulidade do
casamento os princípios gerais estabelecidos relativamente à nulidade dos negócios
jurídicos em geral (arts. 285.° e ss. do Código Civil), uma vez que impera o princípio
dofavor matrimonii, que procura, tanto quanto possível, salvaguardar a validade do ato.
Caso não venha a ser declarada a nulidade do casamento, este, como é óbvio,
produz todos os efeitos. Mesmo que seja anulado, ele pode, como já vimos, produzir
efeitos, o que contraria as regras gerais dos efeitos da anulação que vêm previstas para
os demais negócios jurídicos.
Os casos de anulabilidade do casamento vêm previstos na alínea a) do art. 65.° e
abrangem os que violem o disposto nos arts. 24.°, 25.° e 26.°, todos do Código de
Família, e ainda os mencionados nas alíneas b) e c) do art. 65.°, que se referem à falta
de vontade ou ao vício de vontade, à finalidade que se teve em vista ao praticar o ato e
à inobservância da formalidade da alínea c) do art. 34.°.
A — Falta de capacidade matrimonial 1. Falta de idade núbil
O art. 24.° fixa a idade núbil aos 18 anos, mas, excecionalmente, permite o
casa¬mento do homem com 16 anos e da mulher com 15 anos. No caso de se tratar de
menor púbere, o casamento só pode ser celebrado mediante autorização dos pais, dos
tutores ou de quem tenha o menor a seu cargo, podendo ainda ser suprida judicialmente
a falta de autorização.
O casamento do menor não núbil estará em princípio ferido de nulidade absoluta.
2. Demência
A alínea a) do art. 25.° dispõe que os dementes estão em absoluto proibidos de
casar. Esta proibição é extensiva não só aos interditos em razão de enfermidade mental
mas também àqueles dementes que, sendo-o à data do casamento, só posteriormente
venham a ser declarados como tal, e ainda aos que forem notoria¬mente dementes à
data da celebração do casamento, embora não íbrmalmente interditos.
3. Bigamia
Consiste na violação à norma contida na alínea b) do art. 25.°, que contém um
princípio de ordem pública. Ocorre quando alguém é casado e vai contrair novo
casamento antes de dissolvido o anterior, facto que acarreta para o segundo casamento
o vício de nulidade absoluta. O primeiro casamento é válido e eficaz na ordem jurídica,
enquanto o segundo está ferido de nulidade. Não é permitida a coexistência de dois
vínculos matrimoniais que comprometam a mesma pessoa.
Por outro lado, a união de facto que for reconhecida por mútuo acordo produz
efeitos retroativos desde a data do início da união, se ela estiver em conformidade com
a lei, o que implica, como veremos, que ambos os companheiros tenham capacidade
matrimonial. Ora, desde que se opere o reconhecimento, ele vai
precisamente produzir os mesmos efeitos do casamento, de acordo com o que
dispõe o art. 119.° do Código de Família.
4. Incesto
O casamento incestuoso vem interdito nas disposições das alíneas a) e b) do art.
26.°, que consagram também um princípio de ordem pública. O incesto abrange os
ascendentes naturais ou adotivos, os afins na linha reta, bem como os irmãos naturais
ou adotivos, sendo que este vício vai ferir o casamento de nulidade absoluta.
5. Conjugicídio
Vem estatuído na alínea c) do art. 26.°, o qual se refere à autoria ou cumplicidade
de um dos nubentes em crime de homicídio doloso contra o cônjuge do outro nubente.
O vício surge desde que haja pronúncia com trânsito em julgado ou decisão final
condenatória. Trata-se igualmente de nulidade absoluta. Entende a doutrina que este
impedimento (designado como impedimentum criminis) deve dar-se como verificado
mesmo que a condenação seja posterior ao casamento, desde que o delito tenha sido
cometido antes da celebração do casamento. Mas ele não abrange as formas de
homicídio preterintencional ou meramente culposo.
6. Falta ou vício de vontade
Na alínea b) do art. 65.° vêm mencionados os seguintes vícios, que se referem
ao elemento de fundo do ato do casamento, o mútuo consentimento. São eles:
a) a falta de vontade;
b) o vício da vontade;
c) a celebração do casamento com finalidade diversa da prevista na lei.
Ao analisarmos os elementos essenciais do ato do casamento vimos que um deles
é o mútuo consentimento, o que simultaneamente impõe que haja uma declaração de
vontade por parte de cada um dos nubentes e que essa declaração esteja isenta de vícios.
É essa uma das razões que determina a proibição do casamento por quem seja demente,
uma vez que não há, por parte do demente, consciência e vontade lúcidas que lhe
permitam abarcar o conteúdo e os efeitos legais do ato do casamento.
Torna-se necessário adaptar a teoria geral dos vícios da vontade à natureza
específica do instituto do casamento dentro dos princípios do direito de família.
a) Falta de vontade
Diz-se que existe falta de vontade no caso de incapacidade acidental do nubente,
por privação da vontade de caráter temporário. É o que pode ocorrer no caso de o
nubente se encontrar em estado de embriaguez completa, no estado de drogado, no
estado de hipnotizado, ou em estado de sonambulismo. Situações dessas, embora pouco
verosímeis, podem porventura escapar à observação do Conservador do Registo Civil
ou verificar-se na celebração do casamento urgente. Mais verosímil pode ser o caso em
que um tóxico-dependente vá celebrar o ato do casamento em estado de parcial
incapacidade e sem a plena consciência do ato que pratica.
b) Vício da vontade
A patologia do consentimento dá-se ainda quando se verifica o vício da vontade,
porque neste caso a vontade existe, foi expressa a declaração, mas ela estava viciada na
sua formação ou na sua liberdade de expressão, prevalecendo ou o erro ou a violência
quando ela foi expressa. Também aqui os vícios da vontade no casamento diferem
substancialmente dos vícios suscetíveis de invalidar os negócios jurídicos em geral.
No Código Civil estipulava-se que, uma vez emitida a declaração de vontade,
existia a presunção legal de que ela era válida e isenta de vícios e, portanto, quem
alegasse o vício tinha sobre si o ónus da prova da sua existência. Cremos que este
princípio se mantém válido.
Os vícios da vontade que podem ser considerados como relevantes em matéria
que afeta o mútuo consentimento no casamento são fundamentalmente o erro e a
coação.
O erro pode incidir sobre a identidadefísica do outro nubente ou sobre as suas
qualidades essenciais e pode incidir sobre aspetos de natureza física ou de natureza
moral. O erro tem que se traduzir numa falsa representação da realidade, seja ela
referente à identidade propriamente dita do outro nubente ou a qualidades consideradas
essenciais ao desenvolvimento normal da vida conjugal ou ainda ao comportamento
moral do outro.
Como relevantes no erro que envolve a situação física do outro nubente, podemos
apontar doenças físicas como a epilepsia, o sida, as doenças venéreas, a esclerose em
placas, e doenças psíquicas como a paranóia, a esquizofrenia, o alcoolismo, a
toxicodependência, ou anomalias sexuais como a impotência, a homossexualidade e as
que sejam de caráter permanente e irreversível. A impotência pode ser a impotência
coendi, que impede a prática de relações sexuais, ou impotência generandiy quando tão
só impede a procriação.
A gravidez de mulher casada por facto de terceiro c oculta ao outro nubente,
desde que não seja manifestamente aparente no momento da celebração do ato do
casamento, constitui erro relevante suscetível de viciar a vontade do noivo.
O erro sobre as qualidades morais do outro nubente tem que ser igualmente de
natureza essencial e manifestamente incompatível com o comportamento moral desse
nubente. Pode consistir no facto de o outro nubente ter sofrido condenação penal em
pena maior e ter ocultado o facto, ou ter-se dedicado a práticas ilícitas ou desonrosas,
como a prostituição, o tráfico de droga, etc..
Para ser relevante, o erro tem que ser essencial, isto é, tem que incidir sobre
qualidades essenciais do outro nubente ou sobre a identidade da própria pessoa. Isto
pode acontecer quando alguém falsamente se intitula com determinada identidade civil
e casa sob falso nome.
Mas o erro tem também que ser desculpável, o que implica dizer que o cônjuge
cuja vontade foi viciada não deve ter sido negligente em se inteirar da verdade e
aperceber-se da realidade. A ignorância das circunstâncias que configuram o vício de
vontade tem que ser desculpável e não fruto de negligência de quem o invoca.
A coação física não é muito de admitir na celebração do casamento, embora seja
admissível no casamento urgente. Já a coação moral ou a violência é mais admissível.
Para que a coação se verifique, porém, é necessário que exista uma ameaça com
cominação de dano, uma ameaça usada intencionalmente pelo autor para forçar a
vontade do nubente e o levar à celebração do casamento.
A coação moral (violência) pode concretizar-se por pressões, situações de guerra,
perseguições políticas, etc., devendo revestir a forma de ameaça efetiva da prática de
um facto ilícito, seja sobre a pessoa do próprio nubente seja sobre terceira pessoa.
O art. 1638.° do Código Civil estipulava: «É anulável o casamento celebrado sob
coação moral contanto que seja grave o mal com que o nubente é ilicitamente ameaçado
e justificado o receio da sua consumação.» A coação moral vem prevista no art. 255.°,
n.°s 1 e 2 do Código Civil.
Dela está excluído tanto o exercício normal de um direito bem como o temor
reverenciai (n.° 3). Por conseguinte, o simples temor reverenciai que consista no
acatamento da vontade dos pais ou de outros parentes mais velhos, não é suscetível de
ser relevante como gerador de vício de consentimento.
Já o dolo não é admitido como vício atendível, pois, segundo o velho provérbio,
acontece em regra que « no casamento engana quem pode ». Faz parte da natureza
humana a necessidade de cada um dos nubentes se apresentar perante o outro nubente
revestido de mais qualidades e atributos do que aqueles de que realmentc é dotado.
Irrelevante é também, por si só, a reserva mental.
7. Simulação
O vício da simulação opera-se quando os nubentes estabelecem entre si um pacto
simulatório que os leva a celebrar o casamento como um verdadeiro simulacro de
cerimónia, tendo ambos acordado entre si que não querem estabelecer reciprocamente
uma verdadeira vida conjugal. Desta sorte, externamente mostram querer casar, mas a
vontade oculta de ambos coincide em não quererem viver nem considerar-se como
verdadeiros cônjuges.
O fim em vista pode ser o de obter algum benefício através do casamento, como
a mudança de nacionalidade, o da evasão fiscal, o direito a uma pensão da segurança
social, o direito à transmissão do direito ao arrendamento. Mas estes objetivos não
cabem na finalidade do casamento, imposta imperativamente na lei (art. 20.°): a de
estabelecer uma plena comunhão de vida. No casamento simulado há absoluta ausência
da convivência conjugal.

No Código de Família os vícios de vontade não vêm especificados, sendo que o


art. 68.° explicita, a propósito da legitimidade para a propositura da ação de anulação,
que ela pode ser proposta pelo cônjuge cuja vontade faltou, ou que foi vítima de erro ou
coação.
O vício da simulação vem referido na alínea b) do art. 65.°, na sua parte final,
quando se refere ao casamento celebrado com «finalidade diversa da prevista na
presente lei» e ainda no art. 68.°, quando menciona quem tem legitimidade para a
propositura da ação de anulação no caso de simulação.
8. Casamento celebrado sem testemunhas
Vem inserido na previsão da alínea c) do art. 34.° do Código de Família. Como
vimos, a falta de testemunhas, embora não possa ser causa de inexistência jurídica do
casamento, pode ser causa de nulidade. Já mencionámos o importante papel que as
testemunhas desempenham na celebração do casamento, mormente para atestarem que
o ato se efetivou em determinado local e em determinada data. O casamento sem
testemunhas pode ser equiparado a um casamento clandestino.
Trata-se de um vício de forma a que a lei dá relevância como potencial gerador
da nulidade do casamento. Diferentemente, outras irregularidades verificadas no
processo do casamento, quer no processo preliminar, quer na cerimónia da celebração
do ato em si, embora possam ser objeto de procedimento disciplinar contra o
funcionário do Registo Civil que as praticou, não põem em causa a validade do ato.
[73] Legitimidade e prazos para a propositura da ação de anulação A —
Legitimidade
A legitimidade para a propositura da ação de anulação do casamento é
circunscrita na lei a certa pessoa a quem é reconhecido um interesse juridicamente
relevante para lhe ser permitido ir obter o efeito legal da anulação do casamento.
Nos casos em que se entende que houve violação de um princípio considerado
de ordem pública, permite-se sempre que o próprio Estado, através do seu representante,
o Ministério Público, venha propor a ação de anulação. De resto, as restrições à
legitimidade para a propositura da ação são baseadas no princípio de que se deve
defender a estabilidade do casamento. Daí que as normas que atribuem legitimidade
para vir a juízo sejam de natureza expressa e restrita e não suscetíveis de interpretação
por analogia. Trata-se duma faculdade legal renunciável e de um direito indisponível.
1. Ação de anulação por incapacidade matrimonial
a) Legitimidade nos casos da alínea a) do art. 65.°, quando a ação seja baseada
na falta de idade núbil e em demência, de acordo com o disposto no art. 67.°, alíneas
a) , b),d)ee):
— Qualquer dos cônjuges;
— Os pais, adotantes, ou a pessoa que, no caso concreto, devia ter dado a
autorização para o casamento prevista no art. 24.°, n.° 3;
— O Ministério Público;
— Outra pessoa cujo interesse na anulação seja juridicamente protegido, como
um herdeiro legítimo de um dos cônjuges.
A legitimidade por quem não seja cônjuge cessa quando o menor atinge a
maioridade ou quando cessa a interdição por demência — art. 70.°, n.° 1, alínea a).
b) Legitimidade no caso da alínea a) do art. 65.°, quando a ação seja baseada na
existência de incesto, de acordo com o disposto no art. 67.°, alíneas a), b) e c):
— Qualquer dos cônjuges, mesmo o cônjuge conhecedor do vício;
— O Ministério Público;
— Outra pessoa cujo interesse na ação seja juridicamente protegido. O interesse
pode ser de ordem moral, com o objetivo de pôr fim a uma situação escandalosa, de
ordem patrimonial, quando se trate de defender interesses sucessórios ou outros.
c) Legitimidade no caso de bigamia ou conjugicídio, em que vigoram os mesmos
princípios previstos na ação anterior, alíneas a), b), c) e e) do art. 65.°:
— Qualquer dos cônjuges, mesmo o cônjuge culpado;
— O Ministério Público;
— O cônjuge do anterior casamento no caso de bigamia e no de conjugicídio não
consumado e, quando consumado, os herdeiros do cônjuge falecido;
— Outra pessoa cujo interesse seja juridicamente protegido. 2. Ação de anulação
por falta ou vício da vontade
No caso de ação de anulação por falta ou vício da vontade só o cônjuge cuja
vontade faltou ou que foi vítima de erro ou coação tem legitimidade para intentar a ação,
segundo o estatuído no art. 68.°, n.° 1, dado que tratando-se de questão do foro próprio
e subjetivo do titular do direito este não é suscetível de ser exercido por terceiros.
Mas a lei faculta que uma vez intentada a ação se o autor falecer na pendência
da causa, possam prosseguir nela os seus parentes na linha reta e os seus herdeiros,
última parte do citado art. 68.°, n.° 1.
3. Ação de anulação por falta de testemunhas
No caso de anulação por falta de testemunhas que devam estar presentes à
celebração do casamento, como vem referido na alínea c) do art. 34.°, a ação só pode
ser intentada pelo
Ministério Público, em conformidade com o que preceitua o art. 69.°, e que se
refere à falta de requisitos formais do ato do casamento.
Relativamente a todas as ações atrás mencionadas, há sempre que ter em atenção
que, muito embora eles indiquem de forma expressa quem pode, por sua iniciativa, pôr
a ação para obter a anulação do casamento, no caso de a ação já ter sido proposta, a lei
atribui sempre aos herdeiros do autor legitimidade para prosseguir na ação, a qual não
se extingue com a morte do respetivo interessado. Isto é aplicável quer a ação tenha sido
proposta pelo cônjuge quer por terceiro a quem a lei permita a propositura da ação.
É o que dispõe o corpo do art. 67.°, que menciona quem pode prosseguir na ação
e bem assim o art. 68.°, n.° 1, que permite aos parentes em linha reta e aos seus herdeiros
prosseguir na ação se o autor falecer na pendência da causa.
B — Prazos da propositura da ação
A ação de anulação está sujeita a prazo, o que é também revelador de que a lei
procura salvaguardar, tanto quanto possível, a estabilidade do casamento, mesmo
quando ferido de nulidade. Na verdade, uma vez precludido o prazo legal, já a ação não
pode ser proposta e o casamento, embora tenha sido suscetível de ser
anulado, a partir de então deixou de o ser.
Os prazos, como já vimos, são mais dilatados ou mais diminutos consoante a
própria natureza e gravidade do vício de que enferma o ato do casamento. Por outras
palavras, conforme é maior ou menor o interesse do Estado em que o casamento possa
ou não vir a ser anulado.
A matéria relativa aos prazos para a propositura da ação de anulação vem
regulada no art. 70.° do Código de Família, que estatui o seguinte:
a) Nos casos de incapacidade por falta de idade núbil, demência ou interdição
por anomalia psíquica:
1. Quando for proposta pelo próprio incapaz, até um ano após ter atingido a
maioridade ou ter sido levantada a interdição;
2. Quando for proposta pelo Ministério Público ou por terceira pessoa, até dois
anos após a celebração do casamento, mas nunca depois de o nubente ter atingido a
maioridade, ser levantada a interdição ou inabilitação ou ter cessado a demência.
b) Nos casos de falta ou vício de vontade, de simulação, de condenação por
homicídio doloso na pessoa do cônjuge do outro, ou de formalidades essenciais, até dois
anos após a celebração do casamento.
c) Nos casos de incesto ou de bigamia, em qualquer tempo, mas nunca depois de
dois anos após a dissolução do casamento. No caso de bigamia a ação de anulação não
pode ser instaurada nem pode prosseguir enquanto estiver pendente a ação de anulação
do casamento anterior.

[74] Validação do casamento


Tendo sempre em vista a salvaguarda da estabilidade da família assente no
casamento, a lei permite que um casamento, apesar de eivado de vício que afeta a sua
validade e existente à data da sua celebração, possa ser sanado por facto confirmativo
posterior ou pela anulação de um ato anterior que obstaculizava a que ele fosse válido.
Estamos perante mais uma derrogação ao regime geral que rege a nulidade absoluta dos
atos jurídicos.
Nos casos em que é permitida a validação do casamento (os indicados no art.
73.° do Código de Família), quando a validação se verifica o casamento ressurge na sua
plenitude e passa a ser considerado válido desde a data da sua celebração.
O ato confirmativo de que vai decorrer a validação do casamento tem, porém,
que ocorrer antes do trânsito em julgado da sentença que venha a decretar a anulação
do casamento.
A lei considera sanada a nulidade quando, antes do trânsito em julgado da
sentença de anulação, ocorrer algum dos seguintes factos:
a) ser o casamento do menor não núbil ou do demente, interdito ou inabilitado,
confirmado pelo próprio interessado perante o funcionário do Registo Civil e duas
testemunhas, depois de ter atingido a maioridade, de ter sido levantada a interdição ou
de ter sido judicialmente verificada a sua sanidade mental;
b) ser anulado o primeiro casamento do bígamo;
c) ser a falta de requisitos formais devida a circunstâncias atendíveis,
reconhecidas pelo
Ministro da Justiça, desde que não haja dúvidas sobre a celebração do ato.
Em todos estes casos prevê-se que, por virtude de um facto posterior, possa vir a
ser sanada a nulidade do ato do casamento e, por conseguinte, eliminado o vício que se
verificava no momento da sua celebração. Já no caso de impuberdade o facto de ter
havido autorização posterior não convalida o casamento. Também no caso de bigamia
o facto de ocorrer entretanto a morte do cônjuge do anterior casamento não convalida o
segundo casamento do bígamo.
Além do mais, devem ser considerados como validados todos os casamentos que,
muito embora celebrados com vício que os invalide, não venham a ser anulados por
quem tenha legitimidade para o fazer, desde que precludidos os prazos legais para a
propositura da respetiva ação de anulação.
[75] Efeitos da anulação do casamento — O casamento putativo
À anulação do casamento deveriam ser aplicados os efeitos que constam das
regras gerais de nulidade dos negócios jurídicos em geral, ou seja, a sentença de
anulação deveria destruir retroativamente todos os efeitos produzidos desde a data da
celebração até à data do trânsito em julgado da sentença que declare a anulação.
Mas, porque estamos no campo das relações de natureza pessoal e não
patrimonial, os efeitos não são aqueles que produz a anulação dos negócios jurídicos
em geral.
Na verdade, o ato do casamento é de tal relevância na vida das pessoas que o
celebraram que a lei, uma vez verificadas determinadas condições, vai proteger o
casamento, preservando os efeitos produzidos durante a sua vigência.
É verdade que, uma vez declarada a anulação do casamento, independentemente
da causa que tenha sido invocada, seja ela mais grave ou menos grave, a produção dos
efeitos já não vai depender da causa que levou à declaração da nulidade mas da questão
de ter havido ou não boa fé por parte de um ou de ambos os cônjuges. Isto quanto ao
período anterior à sentença, pois que, a partir da data do seu trânsito em julgado, o efeito
é o mesmo, deixando o casamento de produzir efeitos a partir de então. A anulação
envolve sempre o fim da produção de efeitos do ato anulado a partir do respetivo trânsito
em julgado.
A lei vai atender ao facto de os cônjuges terem agido de boa fé, ou seja, ao facto
de, no momento da celebração, estarem na plena convição de que estavam a celebrar
um ato da maior importância para as suas vidas e de que esse ato era plenamente válido.
Quando se verifique a boa fé de um ou de ambos os cônjuges, a anulação do
casamento só vai produzir efeitos sem eficácia retroativa, isto é, a partir do trânsito em
julgado da sentença que o anulou, salvaguardando, porém, os efeitos anteriormente
produzidos entre o período que tiver decorrido desde a data da celebração até à data da
sentença que o anulou.
A lei considera de boa fé o cônjuge que contraiu o casamento no
desconhecimento do vício causador da nulidade — art. 72.°, n.° 1. É necessário que essa
ignorância seja desculpável, pois a negligência no esclarecimento da verdade não é
protegida por lei. Também a lei protege o cônjuge cuja vontade tenha sido extorquida
por coação física ou moral.
Ao analisar o que deve entender-se por boa fé em matéria de casamento putativo,
Pires de Lima adianta o seguinte: « a violência e o erro em nada diferem ainda sob este
ponto de vista, pois o que interessa para justificar os efeitos do casamento putativo é a
situação material criada pelo suposto casamento, que em ambos os casos é contrária à
vontade dos contraentes (...)». «O erro, para merecer proteção, deve ser desculpável.
Não pode ser protegido aquele que ignorou culposamente por não ter usado da
diligência normal e usual. »(2)
O erro tanto pode ser erro de facto como de direito, que se pode traduzir na
ignorância de uma disposição legal que proibia o casamento.
Tal ignorância não pode ser invocada se o Conservador do Registo Civil tiver
cumprido rigorosamente o disposto no art. 29.°, n.° 1 do Código de Família, que manda
que os nubentes sejam previamente esclarecidos de quais os impedimentos
matrimoniais, logo após a instauração do processo preliminar.
Está de boa fé o cônjuge que ignorava a causa de invalidade ou que foi vítima de
violência ou de temor relevante.
Entretanto, por via do alargamento da proteção dos cônjuges, n.° 3 do art. 72.°
consagra a presunção da boa fé dos cônjuges, devolvendo o ónus da prova a quem vier
alegar a má fé na ação de anulação. Mais: a boa fé tem que verificar-se apenas Pires de
Lima, ob. cit.y p. 180. no momento da celebração do ato e não carece de prolongar-se
até ao período da convivência matrimonial.
A figura jurídica que permite que o casamento anulado produza efeitos é
designada como casamento putativo.
O casamento putativo foi introduzido desde há séculos nos ordenamentos
jurídicos ligados ao direito canónico, por se entender proteger os cônjuges convictos de
que celebraram um ato válido e da maior importância na sua vida pessoal. As
consequências da anulação seriam de tal maneira graves e injustas que se optou por
derrogar as regras do efeito da anulação e se criou o instituto do casamento putativo.
O termo putativo vem do termo latinoputare que significa «julgar» e que é usado
para invocar a convição dos cônjuges de estarem a celebrar um casamento válido
quando, de boa fé, o celebraram.
No fundo, a boa fé unilateral ou bilateral é a trave mestra do casamento putativo
e as razões em que a lei se fundamenta para o invocar podem considerar-se baseadas no
princípio da equidade, no da proteção da prole inocente, etc..
Discute-se qual a natureza jurídica do casamento putativo. Há quem o considere
uma fição e há quem o considere uma instituição autónoma que produz efeitos pelo
facto material da aparência de um casamento. Reconhece a doutrina que a diversidade
de efeitos do casamento putativo gera uma situação complexa que procura atenuar os
efeitos da nulidade do casamento.
Entendemos que é a teoria da aparência a que melhor se coaduna com a figura
do casamento putativo. Na verdade, o comportamento pessoal e social dos cônjuges,
procedendo como se casados fossem, a despeito do vício do ato, leva a que se lhe não
possam aplicar na íntegra os efeitos que derivariam da anulação do casamento. No
fundo, reconhece-se que havia um matrimónio « aparentemente» válido. Mas é preciso
ter em conta que o instituto do casamento putativo só é aplicável se se verificar, como
pressuposto indispensável, a existência de um matrimónio aparente, que formalmente o
distinga de outra qualquer união e desde que tenha existido também a intenção de facto
de contrair casamento.(3)
Entende-se que o instituto do casamento putativo só é aplicável desde que se
verifiquem os seguintes pressupostos:
— que exista um casamento;
— que o casamento venha a ser declarado nulo;
— que exista o elemento subjetivo da boa fé por parte de ambos ou de um dos
nubentes. (J) Juan Jordano Barea, «Matrimonio Putativo como Aparência Jurídica
Matrimonial», em Anuário deDerecho Civil, tomo XIV, fase. II, p. 248.
1. Efeitos em relação aos cônjuges
a) Efeitos em relação ao cônjuge ou cônjuges de boa fé
Se ambos os cônjuges estavam de boa fé o casamento produz efeitos até ao
trânsito em julgado da sentença que declara a sua anulação, ou seja, ex-nunc, e os efeitos
produzidos antes são salvaguardados quer em relação aos próprios cônjuges quer em
relação a terceiros — art. 71.°, n.° 1.
O mesmo ocorre quando um só dos cônjuges estava de boa fé, pois ele pode
arrogar-se a produção dos benefícios do casamento perante o outro pseudo ex-cônjuge
e perante terceiros — art. 71.°, n.° 2.
Desta sorte, o instituto do casamento putativo significa que o casamento anulado
vai produzir, até ao momento da sua anulação, ou seja, em relação ao passado, os
mesmos efeitos que teria produzido um casamento válido, cessando os seus efeitos a
partir da anulação.
Assim, os pseudo-cônjuges passam ao estado civil anterior, que pode ser o estado
de solteiro, se esse fosse o estado civil que tinham à data da celebração do casamento,
ou ao estado de viúvo ou divorciado.
Cessa o direito ao uso do nome e cessa igualmente o vínculo da afinidade.
Mantém-se o direito à nacionalidade angolana adquirida pelo casamento, nos termos do
art. 12.°, n.° 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.° 1/2005). Mantém-se também o direito
à prestação de alimentos.
Já no que diz respeito aos efeitos patrimoniais que tenham decorrido durante a
vigência do casamento, como sejam as doações entre cônjuges ou feitas por terceiros,
elas mantêm-se, não se operando a caducidade. O mesmo sucede se, durante a vigência
do casamento anulado, o cônjuge tiver sido chamado à sucessão do outro cônjuge, pois
o efeito sucessório permanece. Se a sucessão ocorrer após ter sido proferida a sentença
de anulação, o direito sucessório desaparece. Procede-se à liquidação dos interesses
patrimoniais de acordo com o regime de bens que tiver sido adotado.
Se o cônjuge tiver sido emancipado pelo casamento, a emancipação permanece.
b) Efeitos em relação ao cônjuge ou cônjuges de má fé
Em relação ao cônjuge ou cônjuges de má fé o casamento anulado não produz
efeitos, pois não pode ser invocada a figura jurídica do casamento putativo.
Consequentemente, não adquirem o direito a qualquer benefício que lhes tenha advindo
da celebração do casamento. Não se origina a afinidade, perde-se o direito à
nacionalidade que tenha sido adquirida, o direito ao uso do nome, o direito a alimentos
e o direito à emancipação.
Nas relações patrimoniais, desaparece retroativamente o regime económico que
tiver vigorado e opera-se a liquidação do património como se de uma sociedade de facto
se tratasse.
O(s) cônjuge(s) de má fé perde(m) o direito às doações que se tenham verificado
em razão do casamento ou durante ele, as quais devem ser consideradas caducas, o
mesmo acontecendo a

eventuais direitos sucessórios de que tenham beneficiado, devendo restituir tudo


quanto houverem recebido.

2. Efeitos em relação aos filhos


À luz da legislação anterior à proclamação da República em Portugal, entendia-
se que os efeitos do casamento anulado se repercutiam na situação dos filhos e que,
cessando estes retroativamente, os filhos passavam a ser considerados como «filhos
naturais» e não legítimos, podendo ainda, consoante os casos, ser tidos como filhos
adulterinos ou incestuosos.
Foi a Lei de Família de 25 de dezembro de 1910 que alterou essa situação,
declarando sempre legítimos os filhos nascidos de casamento anulado.
Esta posição foi depois introduzida no Código Civil e veio a ser confirmada de
pleno no Código de Família, ao dispor que a anulação do casamento não prejudica por
qualquer forma «os direitos dos filhos nascidos e concebidos na constância do
casamento» (art. 71.°, n.° 3). Daí que, em relação aos filhos, a declaração de nulidade
do casamento seja juridicamente irrelevante.
Isto vem confirmado pela regra geral contida no art. 163.° do Código de Família,
segundo o qual o estabelecimento da filiação do filho concebido e nascido na constância
do casamento resulta para ambos os pais do facto do nascimento, mesmo que o
casamento venha a ser anulado. dívidas comunicáveis por força da lei, situação em que
os bens de ambos os cônjuges podem ser chamados à responsabilidade pelo pagamento
da dívida.
Em relação ao cônjuge de má fé, este já não pode arrogar-se os benefícios do
casamento em relação a terceiros, devendo antes ser considerado responsável pelos
prejuízos que possam ter resultado para terceiros da anulação do casamento.
Convém sublinhar que o instituto da anulação do casamento revestia-se de
grande relevância e fez correr rios de tinta na doutrina que sobre ele se debruçou, nos
sistemas jurídicos em que vigorava a indissolubilidade do casamento canónico.
Hoje em dia, por se terem alargado os fundamentos da dissolução do casa¬mento
por divórcio, as ações de anulação de casamento são em número cada vez menor. Além
de que a experiência mostra que as ações de anulação por falta ou vício de vontade são
em regra de difícil prova, dada a natureza subjetiva subjacente aos factos invocados.
Daí que, na prática, elas sejam substituídas por ações de divórcio em que se invocam
factos posteriores ao casamento de natureza externa e objetiva, cuja prova se toma mais
fácil.
Os efeitos da anulação do casamento no caso do casamento putativo, são, aliás,
como iremos ver, idênticos, em muitos aspetos, aos da dissolução do casamento por
divórcio.
CAPÍTULO 13.0
EFEITOS PESSOAIS DO CASAMENTO

[76] Princípios reguladores das relações conjugais


A — Igualdade de direitos e deveres
Do casamento como ato jurídico decorre a situação jurídica familiar de caráter
duradouro pela qual os cônjuges adquirem o estatuto jurídico do estado de
casados.
Longa tem sido a evolução do instituto do casamento quanto à questão das
relações pessoais entre marido e mulher, mas neste momento só nos interessa analisar
os princípios consagrados no Código de Família, que são aqueles que representam as
novas tendências das legislações progressistas que começam a preponderar em muitos
países do mundo e que foram consagrados em convenções internacionais e na
Constituição angolana.
Postergado que foi o Código Civil e os princípios retrógrados e discriminatórios
que consagrava em relação à mulher, o Código de Família veio proclamar a igualdade
do homem e da mulher em todas as relações jurídicas familiares, mormente nas relações
matrimoniais.
A Constituição de 5 de fevereiro de 2010 consagra expressamente esse princípio
no seu art. 35.°, n.° 3: « O homem e a mulher são iguais no seio da família da sociedade
e do Estadoy gozando dos mesmos direitos e cabendo-lhe os mesmos deveres.»
Hoje, o princípio da igualdade dos cônjuges na celebração do casamento, durante
a sua vigência e aquando da sua dissolução, constitui a linha mestra em que assenta toda
a estrutura das relações pessoais dos cônjuges.
Já tivemos a ocasião de mencionar este princípio fundamental de matriz
constitucional (consagrado no art. 3.°, n.° 1 do Código de Família e expresso no art.
21.° do Título III) segundo o qual o casamento se funda na igualdade recíproca dos
direitos e deveres dos cônjuges.
Ao Falar em deveres e não em obrigações quis a lei focalizar o aspeto moral
subjacente às condutas estabelecidas na lei.
As relações conjugais são, pois, baseadas em direitos e deveres recíprocos de tal
forma que a cada direito corresponde a assunção de um dever. Tal como as demais
relações familiares, são de natureza solidária e intercorrente. Nas suas relações
matrimoniais devem os cônjuges também obediência ao princípio consagrado no n.° 2
do art. 2.° do Código de Família, nos termos do qual os membros da família devem
contribuir entre si para o seu desenvolvimento harmonioso, por forma a que cada um
possa realizar plenamente a sua personalidade e as suas aptidões no interesse de toda a
sociedade.
O vínculo matrimonial é por sua natureza estável e duradouro: através do
casamento, marido e mulher criam uma nova família, à qual devem dar o melhor de si
mesmos.

B — Plena comunhão de vida


O que a relação matrimonial tem de específico é o estabelecimento de uma plena
comunhão de vida entre um homem e uma mulher.
A plena comunhão de vida, embora a lei o não diga expressamente, envolve
relações de caráter físico, afetivo e inteletual entre marido e mulher, o que corresponde
à expressão latina more uxorio.
A palavra cônjuge deriva da palavra latina conjunx ou conjugis, que significa
«ligar por meio de jugo» ou «emparelhar». Quer dizer: em virtude do casamento, marido
e mulher passa a estar «juntos com», ou seja, unidos entre si. No direito antigo
considerava-se que vir et uxor censentur in lege una persona, querendo com isto dizer-
se que marido e mulher eram, à face da lei, considerados como uma só pessoa.
Se, por um lado, é certo que o casamento tem relevância na liberdade dos
cônjuges, impondo restrições que são voluntariamente aceites por eles, e que a família
matrimonial, o casal, constitui sob muitos aspetos uma unidade, também não é menos
verdade que os direitos fundamentais de cada cônjuge são salvaguardados.
Do casamento advêm para os cônjuges efeitos pessoais diretos, em primeiro
lugar o do relacionamento físico, que abrange a convivência sexual comum. Esta
obrigação conjugal é comummente designada como débito conjugal (da expressão
latina debitum conjugale). Considera-se como consumado o casamento em que os
cônjuges mantêm relacionamento sexual após a celebração do casamento.
A recusa injustificada às relações sexuais por parte de um dos cônjuges ou a
impotência para a sua consumação constituem factos que podem ser considerados
como violação dos deveres conjugais ou causa de nulidade do casamento,
consoante os casos.
No entanto, a recusa à prática de relações sexuais pode ser fundamentada, com
base em razões de saúde (v.g;, ser um dos cônjuges portador de doenças transmissíveis),
ou com base em razões de ordem moral (v.g., se um dos cônjuges tiver um
comportamento culposo em relação ao outro).
A plena comunhão de vida, que constitui a finalidade legal do casamento, tem
como substrato o facto material de os cônjuges viverem em coabitação, isto é, terem
uma residência comum. A comunhão de vida implicará a comunhão de cama, mesa e
habitação, ainda que não seja forçoso que se verifiquem expressamente estes três
elementos, pois o que é essencial é que permaneça o facto de os cônjuges poderem e
quererem comunicar entre si.
Por questões meramente conjunturais (de índole profissional, de saúde, etc.), os
cônjuges podem, durante algum tempo, deixar de viver juntos, desde que mantenham
entre si todos os outros laços que evidenciam a comunhão de vida.
A escolha da residência comum é um dos passos mais importantes da vida de um
casal. Na legislação anterior, a mulher casada tinha obrigatoriamente o domicílio do
marido. Era o que dispunha o art. 86.° do Código Civil, revogado pela alínea a) do art.
10.° da Lei n.° 1/88. O Código Civil de 1867 obrigava a mulher casada a seguir o
domicílio do marido onde quer que ele se encontrasse, só ressalvando tal obrigação
quando o marido residisse no estrangeiro ou nas colónias. O marido gozava do direito
de requerer a «entrega judicial» da mulher quando esta saísse do domicílio conjugal.
No Código Civil de 1966 modificou-se em parte esta situação, discriminando-se em que
condições podia a mulher não ter a mesma residência do marido, e mantendo-se o direito
da mulher de exigir ser recebida na residência comum.
No art. 44.° do Código de Família dispõe-se que os cônjuges devem viver juntos
eainda que devem de comum acordo escolhera residência dafamília.
Ao fazerem essa escolha, e segundo o mesmo art. 44.°, devem ponderar as
exigências da vida profissional de ambos e os interesses dos filhos.
É assim concedido aos cônjuges direito igual de intervir na decisão, afastando a
situação anterior, em que era só o marido a decidir.
A escolha do local de residência comum é de decisiva importância na vida dos
cônjuges e será pouco admissível que os cônjuges não cheguem a acordo sobre tal
questão, que é pressuposto material da vida em comum.
C — Decisão comum
Outro princípio fundamental pelo qual se passam a reger as relações entre os
cônjuges, e que é resultante do princípio da igualdade entre marido e mulher, é o da
decisão comum das questões da vida familiar. Segundo a conceção anterior- mente
aceite, a família era um corpo hierarquizado sujeito à autoridade de um chefe, o marido.
Substituindo este conceito de hierarquia dentro das relações familiares, surge,
como corolário lógico do princípio da igualdade entre os cônjuges, o princípio da
diarquia, que atribui aos dois iguais direitos e deveres, quer nas relações entre si quer
nas relações dos cônjuges com os filhos comuns.
Também no exercício da autoridade paternal sobre os filhos menores o pai e a
mãe são titulares de direitos e deveres iguais, não se sobrepondo a vontade de um à do
outro — art. 127.°, n.° 1 do Código de Família, já citado.
O princípio da decisão comum vem expresso no art. 48.° do Código de Família:
«Os cônjuges decidem em comum os assuntosfundamentais da família (...).»
Ao tomarem as suas decisões comuns, os cônjuges deverão procurar obter o
consenso entre si, não predominando a vontade ou o capricho de um deles.
Questões relevantes como a conceção dos filhos, número e espaçamento de
gravidez, uso de contracetivos, devem ser decididos por ambos, não impondo a vontade
de um à do outro.
Eles têm o dever de agir de acordo com o interesse da própria família, tendo em
vista o benefício desta e não o seu próprio interesse pessoal e egoísta.
Ao tomarem as deliberações comuns da vida da família, cada um dos cônjuges
deve respeitar a personalidade do outro e o interesse dos filhos do casal, agindo numa
base de mútua transigência.
A plena comunhão de vida exige a partilha entre os cônjuges de uma vida em
comum que tem de assentar numa convivência matrimonial harmónica e mutuamente
frutuosa.
[77] Poderes e deveres matrimoniais
Do estado de casado deriva um conjunto de poderes a que correspondem os
correlativos deveres e que são específicos das relações matrimoniais. Estes direitos e
deveres consagram princípios de ordem pública, de natureza indisponível e
inderrogável, insuscetíveis de ser afastados pela vontade das partes.
Os poderes-deveres matrimoniais de conteúdo predominantemente ético- -
jurídico vêm sem dúvida limitar a liberdade pessoal de cada cônjuge, refletindo- -se na
sua vida individual, que passará a ser decidida a dois.
Essas restrições são, porém, compensadas pelo enriquecimento que advém da
vida comum, baseada no espírito de solidariedade e entreajuda.
Ao mencionar os deveres recíprocos dos cônjuges, o art. 43.° estabelece que
ambos estão vinculados pelos deveres de respeito,fidelidade, coabitação, cooperação e
assistência. A ordem pela qual são enunciados estes deveres também evidencia que o
legislador quis dar particular realce aos que se referem à posição moral de um cônjuge
perante o outro, entendendo ser essa postura muito importante no relacionamento
comum.
A — Poder-dever de respeito
Normalmente não vem enunciado nas diversas legislações, embora tenha um
alcance fundamental, por ser o substractum das relações conjugais e permitir a sua
estabilidade e continuidade. Ele envolve o dever de prestar ao (e o direito de exigir do)
outro consorte o respeito pela personalidade moral e física, abstendo-se de qualquer
conduta ofensiva ou atentatória da integridade física ou moral do outro cônjuge. Cada
um dos cônjuges deve ter em conta que o outro é uma pessoa humana dotada de
personalidade e de dignidade próprias.
A violação do dever de respeito em relação ao outro cônjuge pode consistir em
diversas condutas, tais como as agressões físicas, as ofensas morais, as humilhações, o
uso direto de expressões ofensivas, a difamação perante terceiros, a falsa atribuição ao
outro cônjuge de condutas desonestas ou ainda a propagação não justificada perante
terceiros de aspetos íntimos da vida do casal.
B — Poder-dever defidelidade
Em virtude do casamento, os cônjuges obrigam-se à convivência sexual comum,
ficando simultaneamente inibidos de manter relações sexuais com terceira pessoa. O
dever de fidelidade envolve, pois, a obrigação de vida sexual exclusiva entre os
cônjuges.
No conceito estrito do dever de fidelidade está a obrigação do cônjuge de não
manter relações carnais fora do casamento, o que consubstancia o conceito de adultério.
O ato sexual praticado pelo cônjuge com terceira pessoa tem que conter o
elemento subjetivo, ou seja tem que ser um ato voluntário no sentido de que tem que
ser consciente e livre. Se for um ato obtido por violência ou fraude, o adultério não se
consubstancia.
No sentido objetivo o adultério abrange a prática com terceira pessoa de qualquer
atividade que vise satisfação sexual^. No Anteprojeto do Código Penal (1) Jorge Duarte
Pinheiro, obra citada, p. 449.
vêm no Capítulo relativo aos Crimes Sexuais contidas definições de atos
puníveis e que integram atividade sexual. ^
Há, porém, quem entenda que a infidelidade pode traduzir-se numa mera relação
amorosa com terceira pessoa ou numa conduta de que possa resultar presunção de
adultério, fazendo a distinção entre a infidelidade material, que é o adultério
consumado, e a infidelidade moral, que pode consistir numa relação amorosa de simples
namoro. Esta última conduta é na opinião de alguns como uma violação do dever de
respeito, acima mencionado.
Também se discute se deve entender-se como violação do dever de fidelidade a
prática de relações de natureza homossexual de um cônjuge com outra pessoa do mesmo
sexo, ponto de vista que perfilhamos dado que existe aqui a prática de ato sexual, mesmo
que seja considerado como de contra natura.
A relação matrimonial é, na essência, uma relação de confiança. Nenhum dos
cônjuges pode coercivamente obrigar o outro ao dever de fidelidade, sendo-lhe, porém,
permitido reagir em relação ao outro se houver quebra desse dever, pois tal pode
constituir uma causa de divórcio.
O adultério foi e continua a ser considerado em muitas legislações como um
ilícito penal. O Código Penal vigente em Angola consagra esta infração penal no seu
art. 401.°, consubstanciando uma conceção retrógrada do casamento. Essa norma
altamente discriminatória contra a mulher (pois através dos tempos foi sempre contra
quem ela se dirigiu) foi revogada pela Lei do Divórcio de 1910, que incrimina
igualmente o adultério do marido e o da mulher.
Hoje em dia o adultério é considerado em geral como um ilícito civil. O Ante- -
Projeto do Código Penal já não prevê o adultério como ilícito penal.
Em muitas legislações estabelece-se o direito do cônjuge ofendido a uma
indemnização pelos danos morais infligidos.
O dever de fidelidade a que a mulher casada está adstrita é um dos pontos
essenciais em que assenta o princípio legal de que os filhos que ela tiver na constância
do casamento, são filhos do marido.
C — Poder-dever de coabitação
Como já vimos, o dever de coabitação consiste na convivência material de
marido e mulher em comunhão de cama, mesa e habitação, segundo o modelo social de
convivência conjugal.
A coabitação pressupõe, pois, a residência familiar comum, um teto sob o qual
os cônjuges devem manter o seu relacionamento recíproco. O local onde coabitam os
cônjuges, ou seja, a residência familiar, é, pela sua importância para a estrutura familiar,
especialmente protegida por lei. Os cônjuges têm o dever de viver juntos, diz o art. 44.°
do Código de Família.
O poder-dever de coabitação aparece, no seu aspeto externo, representado pelo
facto de os cônjuges viverem numa residência, o que leva a presumir que dentro dela os
cônjuges mantenham o demais relacionamento normal próprio da vida matrimonial.
Como vimos, os cônjuges podem suspender transitoriamente a obrigação da vida em
comum por razões de diversa índole (razões de saúde, de formação profissional, o
interesse dos filhos etc.), sem que com tal pensem pôr fim ao seu relacionamento
conjugal.
Já o facto de um dos cônjuges resolver pôr fim à coabitação com o outro ou o
facto de ambos, de comum acordo, resolverem fazer vida em separado, é um ato de toda
a relevância e evidenciador da ruína das relações conjugais a que o Código de Família
vai atender para diversos efeitos quando não haja reatamento da vida em comum e se
vier a operar a dissolução do casamento por divórcio.
Ele produz desde logo, efeitos em relação ao exercício da autoridade paternal
sobre os filhos menores do casal.
O conceito jurídico de coabitação entre homem e mulher radica sempre numa
situação objetiva da vida comum e releva não só nas relações familiares matrimoniais
mas também nas de simples união de facto.
O direito-dever de coabitação dos cônjuges na residência comum do casal é o
suporte do direito ao arrendamento, no caso de dissolução do casamento, e do direito
de cada um dos cônjuges a manter-se no domicílio conjugal independentemente da
vontade do outro cônjuge, durante a permanência do vínculo conjugal.
cônjuges não auferir salário ou rendimento próprio, essa prestação pode ser
consubstanciada na prestação de serviços ou na produção de bens.
A participação dos cônjuges nos encargos da vida familiar deve estar de acordo
com os rendimentos por eles auferidos, permitindo ao agregado familiar um nível de
vida consentâneo com as suas disponibilidades económicas.
O dever de assistência material durante a vida em comum traduz-se em
prestações de natureza económica que, em princípio, são feitas de comum acordo entre
os cônjuges. Qualquer dos cônjuges está obrigado a ajudar a sustentar o outro quando
este involuntariamente esteja privado de meios de subsistência, por razões de saúde ou
por qualquer outra razão que o impossibilite de os angariar.
O art. 46.°, n.° 1, do Código de Família dispõe: «Os cônjuges devem con¬tribuir
conjuntamente para os encargos da vida familiar, de harmonia com as possibilidades de
cada um», devendo
entender-se como encargos da vida fami¬liar os que abrangem os custos com o
sustento, vestuário, habitação e todos os necessários à vida normal da família, tais como
despesas de manutenção de viatura, combustível, de água e eletricidade, de empregada
doméstica, compra de mobiliário, eletrodomésticos, etc.
Mas podem também abarcar os encargos de natureza excecional, como os
decorrentes de necessidades de tratamento médico, de um óbito, etc..
O n.° 2 do art. 46.° permite que qualquer dos cônjuges possa recorrer a tribunal
para exigir que lhe seja entregue diretamente a parte dos rendimentos ou proventos do
outro: «Não sendo prestada a contribuição devida, qualquer dos cônjuges pode exigir
que lhe seja diretamente entregue a parte dos rendimentos do outro que o tribunalfixar».
Tal pode ocorrer quando o outro, dispondo de recursos, deixar de os prestar
voluntariamente.
Esta disposição permite a intervenção direta do tribunal na vida fami caso de
violação do dever de assistência material, quando um dos cônjuges deixar de contribuir
para os encargos da vida familiar.
O facto de um dos cônjuges violar o dever de assistência e deixar eco para os
encargos da vida familiar pode colocar a sua família numa sir Ç económica desesperada.
Trata-se de uma ação de jurisdição voluntar q í prevista no art. Í416, do Código do
Processo Civil, o qual vir pedir a tribunal a entrega direta dos rendimentos o man o,
despesas domésticas, devendo entender- se, agora, que este e um l^p|
a ambos os cônjuges. conduta anómala por
o recurso a tal ação especial é em regra fru ^ responsabilidades
Parte de um dos cônjuges, que, tendo perdido a noç Q |Qgo de azar, ctc..
matrimoniais, se deixa dominar por um vicio com
O poder de assistência reveste-se ainda de um aspeto moral, impondo aos
cônjuges um dever de ajuda espiritual, participando nos momentos difíceis da vida do
outro, como no caso de doença, desgostos familiares, reveses da vida profissional, etc..
Ele abrange, igualmente, o dever de ajudar o outro no progresso da sua vida profissional
e social.
O dever de assistência como veremos pode prolongar-se mesmo quando cesse a
coabitação dos cônjuges em virtude de separação de facto ou da dissolução do vínculo
matrimonial por morte ou divórcio, e concretiza-se por via da prestação de alimentos.
F —- Direitos pessoais dos cônjuges
Este conjunto de poderes e deveres reflete-se sem dúvida na vida pessoal dos
cônjuges e impõe, como se vê, restrições à liberdade individual de ambos. Mas é preciso
ter sempre em conta que eles não os atingem na sua personalidade própria e nos seus
direitos pessoais, que se mantêm intactos, tal como o direito à sua inte¬gridade moral e
física, e em geral, os direitos próprios de toda a pessoa humana.

O direito à integridade física e moral obsta a que qualquer dos cônjuges exerça
violência corporal ou ameaças sobre o outro. O marido, pelo facto de o ser, não pode
agredir corporal e voluntariamente a mulher, porque esse comportamento ilícito,
penalmente relevante (crime de ofensas corporais voluntárias) não é «justificado» pelo
facto de existência do vínculo matrimonial.
Aliás, hoje vem tipificado nos modernos sistemas penais o crime de violência
doméstica exercida entre pessoas que coabitam no mesmo lar, cujo âmbito vem definido
na Lei n.° 25/11 de 14 de julho, no art.° 2.°.
A anterior tese sustentada com base no Código Penal, de que o crime de violação
não pode ser praticado pelo marido sobre a mulher, pelo facto de não se tratar de cópula
ilícita, também não tem já acolhimento na lei penal moderna.
O Anteprojeto do Código Penal prevê o crime de agressão sexual com penetração
que é punido mesmo que praticado por cônjuge do agente^
O direito a dispor do seu próprio corpo pertence em exclusivo ao próprio
cônjuge, entendendo-se que a mulher casada pode livremente decidir sobre a
interrupção voluntária da gravidez e sobre o uso de métodos de planeamento familiar.
Igualmente, o marido pode decidir sobre os métodos contracetivos de que entenda fazer
uso.
Tais questões, pelo seu melindre e importância na vida do casal, devem, tanto
quanto possível, ser decididas por consenso dos cônjuges, mas em nenhum caso poderá
um dos cônjuges coagir o outro a um determinado comportamento contra a sua vontade.
A integridade moral do cônjuge tem que ser respeitada pelo outro, preservando
o direito de cada um à honra, à vida íntima, à imagem, à correspondência própria, aos
contatos telefónicos próprios, enfim, o direito ao relacionamento no seu meio familiar
e social.
Cada cônjuge tem o direito às liberdades fundamentais de natureza política,
cívica, sindical, cultural ou religiosa, podendo os cônjuges ter as suas próprias
convições, o que não impede que, em caso de falta de espírito de tolerância, isso não
possa redundar em litígio entre o casal.
Os direitos pessoais do marido ou da mulher devem ser exercidos pelo próprio
cônjuge lesado por ação de terceiro, em ação de natureza criminal ou civil.
Deve considerar-se revogada a legislação penal que permitia ao marido
constituir-se assistente em ação penal em que seja ofendida a mulher (art. 4.°, n.° 3 do
Decreto-Lei n.° 35 007),(6) não só por ser uma norma discriminatória, mas porque o
direito à ação penal ser de natureza pessoal e não transmissível.
O mesmo sucede com a permissão de poder o marido ter acesso à
correspon¬dência da mulher (art. 461.°, §1.° do Código Penal, já revogado na legislação
portuguesa pela reforma de 1977).
Entre nós, esta disposição deve considerar-se tacitamente revogada pela
legislação constitucional e pelo Código de Família, que constituem a base da legislação
angolana posterior à Independência nacional.
Sabido que o relacionamento entre marido e mulher é estabelecido numa base de
confiança recíproca e permite o acesso à intimidade do outro, é a própria lei a proteger
os segredos do casal: um cônjuge não pode testemunhar contra o outro
a constranger a sofrer penetração sexual por terceiro é punido com pena de prisão
de 2 a 10 anos de prisão.
ARTIGO 4.°
(Assistentes)
Podem intervir no processo como assistentes:
(...)
4.° — O marido nos processos por infração contra a mulher, salvo oposição
desta. (art. 216.°, n.° 3 do Código de Processo Penal), nem pode ser perguntado por atos
puníveis ou desonrosos que o outro cônjuge haja praticado (art. 218.° do mesmo
Código).(7)
O direito ao exercício de profissão ou atividades vem consignado no art. 47.° do
Código de Família e é uma emanação da preservação dos direitos fundamentais que
cada cônjuge mantém para além do casamento.
Cada cônjuge conserva o direito à imagem, à intimidade, à honra, às suas
relações familiares e sociais. Há, no entanto, que ter em conta que a plena comunhão de
vida dos cônjuges implica que, em regra, os dois atuem em conjunto na vida social e no
seio da família, família esta que vem alargada para cada um deles pelo novo vínculo da
afinidade derivado do vínculo do casamento.
A compatibilidade e o equilíbrio entre os direitos e os deveres de natureza
profissional e as atividades dos cônjuges e os seus deveres dentro do matrimónio têm
que ser encontrados de forma a que não haja prejuízo de uns em relação aos outros.

[78] Representação comum


A família conjugal constitui um grupo social que mantém relações jurídicas de
diversa natureza com terceiros. Nessas relações a família matrimonial é representada
indistintamente por qualquer dos cônjuges, tratando-se de um poder de representação
tácito, pois assenta no princípio de que, quando um dos cônjuges atua perante terceiros,
está a atuar em resultado da vontade de ambos. Assim, se um deles celebra um negócio
jurídico, ou toma uma resolução pertinente à vida dos cônjuges e dos filhos, presume-
se que representa a vontade comum.
É o que dispõe a parte final do art. 48.° do Código de Família: «(...) podendo
cada um deles representá-la perante terceiros». Trata-se de mera presunção que pode
ser afastada perante

terceiros, mesmo que de boa fé, por simples declaração do outro cônjuge que não
tenha intervindo no ato em causa, devendo, porém, fazê-lo em tempo útil para não
prejudicar terceiros de boa fé.
(7) ARTIGO 216.°
(Incapacidade para ser testemunha)
Não podem ser testemunhas:
(...)
3.° — (...) o marido ou mulher do ofendido da parte acusadora ou do
ARTIGO 218.°
(Factos que não podem ser perguntados às testemunhas e aos déclarantes)
As testemunhas não serão perguntadas por factos puníveis ou desonrosos por elas
praticados ou por (...) marido ou mulher.
No Código Civil anterior (art. 1674.°), o marido, dentro do seu poder marital,
tinha, por força direta da lei, o de poder de representação da família.
Hoje, porque tanto o marido como a mulher têm plena capacidade civil, o Código
de família permite que qualquer dos cônjuges, indistintamente, represente a família
perante terceiros, por mera presunção de agir segundo o consenso de ambos.
O poder de representação dos cônjuges vem consignado em diversas normas da
nova Lei das Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro, que permite a
representação dum cônjuge sócio de sociedade pelo outro, designadamente em
assembleias gerais (artigos 191.°, n.° 4,277.°, n.° 3 e 400.°, n.° 1), bem como no caso
de contitularidade de quotas (art. 245.°, n.° 1).(8)
Isto não impede, como veremos, que qualquer dos cônjuges possa, através de
mandato, constituir um terceiro como administrador dos seus bens (art. 54.°, n.° 2,
alínea b) do Código de Família).

[79] Direito ao nome, emancipação, nacionalidade A — Direito ao nome


Quando se atribuía ao casamento o privilégio de ser a única forma de constituição
legítima da família, dava-se ênfase à unidade de nome pelo qual ia ser designada a nova
família constituída pelo matrimónio. Havia a preocupação de definir o
(8) ARTIGO 191.°
(Deliberações dos sócios) (...)

4. Nas Assembleias Gerais o sócio só poderá fazer-se representar pelo cônjuge


(...).
ARTIGO 277.°
(Representação dos sócios nas Assembleias Gerais)
Salvo disposição do contrato de sociedade em contrário, o sócio só pode conferir
poderes representativos ao seu cônjuge (...).
ARTIGO 400.°
(Representação de acionistas)
1. O contrato de sociedade não pode proibir que qualquer acionista se faça
representar na Assembleia Geral, desde que o representante seja o seu cônjuge (...).
ARTIGO 245.°
(Representação comum)
1. Quando não for designado por lei ou disposição testamentária ou representante
comum é nomeado e pode ser destituído pelos contitulares podendo ser nomeado
representante comum qualquer contitular ou o cônjuge de qualquer deles.
nome de família pelo qual esta passava a ser conhecida no meio social em que
vivia. A unidade de nome refere-se neste caso ao apelido ou nome de família ou
patronímico e não ao nome próprio. Na generalidade dos países europeus predo¬minava
o costume de a mulher adotar o apelido de família do marido, sobretudo na burguesia.
Nalguns países a mulher perdia mesmo o direito de usar o seu apelido de solteira,
para usar somente o apelido de família do marido. Noutros casos conservava o seu
apelido e a este juntava o apelido do marido.
Segundo o Código Civil português, o uso do apelido do marido por parte da
mulher casada era uma faculdade legal de que a mulher podia ou não usar, consoante
quisesse.
Esta praxis tradicional foi transformada a partir do novo direito de família
soviético, que veio permitir que qualquer dos cônjuges adotasse o apelido do outro.
Dentro desta nova linha de orientação, que é comum à generalidade das modernas
legislações, qualquer dos cônjuges é livre de adotar os apelidos do outro. Esta é também
a regra adotada pelo art. 1677.° do atual Código Civil português, que, após a reforma
de 1977, permite que os cônjuges conservem os seus apelidos ou acrescentem apelidos
do outro, até ao máximo de dois.
Esta matéria vem regulada no art. 36.°, n.° 1 do Código de Família, que dispõe:
«No ato do casamento pode um dos nubentes declarar que adota o apelido do outro ou
podem ambos optar pela adoção de um apelido comum, a partir do apelido dos dois».
Esta declaração tem que ser efetuada logo após a celebração do ato do casamento.
Consagra- se assim o princípio de que os cônjuges podem optar pela constituição de um
apelido de família comum formado pelos apelidos de ambos e usado em conjunto por
marido e mulher. A declaração feita pelos nubentes pode consistir num ato unilateral de
vontade, se consistir na adoção do apelido do outro, o qual tem que dimanar de um só
dos cônjuges.
Ou pode consistir num ato bilateral, resultante do acordo de vontades, se consistir
na formação de um apelido comum de família.
Trata-se dumafaculdade legal de que cada cônjuge pode ou não usar, mantendo
o seu nome anterior ou acrescentando o nome do outro ou formando um nome comum.
Em qualquer dos casos, a declaração é voluntária e de natureza irrevogável, só
podendo ser alterada em circunstancias previstas na lei.
O nome de família é atribuído aos filhos comuns.
Como veremos, o direito ao uso do nome perdura durante a vigência do
matrimónio e após a sua dissolução por morte, cessando no caso de dissolução por
divórcio, como prevêem os n.°s 2 e 3 do citado art. 36.°.
B — Emancipação
O casamento de menor de 18 anos celebrado em obediência ao disposto no art.
24.°, n.°s 2 e 3 do Código de Família leva à emancipação do menor (art. 132.°, alínea
a) do Código Civil), o qual adquire a plena regência da sua pessoa e bens.
C — Nacionalidade
A primeira lei da nacionalidade angolana, aprovada em novembro de 1975, não
atribuía a nacionalidade angolana ao cidadão estrangeiro que casasse com cidadão
angolano, pelo simples facto do casamento. Também a mulher angolana não perdia a
nacionalidade pelo facto do casamento com cidadão estrangeiro, ao contrário do que
acontecia com outras legislações de natureza discriminatória. Este princípio foi
salvaguardado pela Lei n.° 8/84 e manteve-se tanto na Lei n.° 13/91, de 11 de maio,
como na atual Lei n.° 1/05 de 1 de julho.
Já o art. 12.°, n.° 1 da Lei n.° 13/91 foi alterado pelo art. 12.°, n.° 1 da Lei n°
1/05 que passou adispor o seguinte: «O estrangeiro casado com nacional, por mais de
cinco anos, pode na constância do casamento e ouvido o cônjuge adquirir a
nacionalidade angolana, desde que o requeira».
Se o cidadão estrangeiro perder a sua cidadania pelo facto do casamento, adquire
ipso facto a nacionalidade angolana. Acrescenta este art. 12.°, n.° 3 que: «A declaração
de nulidade ou anulação do casamento não prejudica a nacionalidade adquirida pelo
cônjuge que o contraiu de boa fé.»
O art. 15.°, n.° 2 desta Lei «Determina a perda da nacionalidade, obtida por
naturalização: c) quando obtida por falsificação ou outro meio fraudulento, ou
induzindo em eiro as autoridades competentes.»
No campo das relações de direito internacional privado deve considerar-se como
inconstitucional o disposto no art. 52.° do Código Civil, que manda aplicar às relações
matrimoniais a lei nacional do marido, dado o seu con¬teúdo discriminatório em relação
à mulher. Essa é a posição adotada na nossa jurisprudência*^.
Em princípio a lei aplicável às relações matrimoniais em caso de nacionalidades
distintas dos cônjuges, será a da última residência comum.
D — Outros efeitos
A lei n.° 17/12, de 19 de julho (in D.R. n.° 92) que aprovou o Estatuto do
Deputado, permite no seu art. 7.°, n.° 2, alínea a) a ausência do País no caso de doença
do próprio ou do cônjuge, ascendente ou descendente. O art.° 18.° desta lei concede ao
cônjuge, ascendentes e filhos menores do deputado determinados direito e regalias.
(9) Cfr. Maria do Carmo Medina, Código de Família Anotado, p. 9. [80] Tutela
dos direitos matrimoniais
Os poderes-deveres que integram a vida matrimonial são, pois, de natureza ético-
-jurídica e correspondem a prestações de natureza eminentemente pessoal, pelo que o
seu cumprimento é normalmentc de natureza espontânea e resultante da vontade de cada
um dos cônjuges de fortalecer e salvaguardar o vínculo conjugal.
A violação dos deveres conjugais não está em regra expressamente protegida por
lei, embora em certos casos extremos possa haver responsabilidade criminal, como no
caso de ser punível o adultério como crime, bem como quando haja a violação do dever
de assistência material e a correspondente falta de prestação de alimentos.
A Lei n.° 2053 (Lei do Abandono de Família), de que já falámos, tipifica certas
condutas relativas à falta de prestação de alimentos ao cônjuge e ao abandono do
domicílio conjugal.
A violação grave ou reiterada dos deveres matrimoniais, quando não for causada
pela conduta do outro cônjuge, confere ao cônjuge ofendido a faculdade de pedir o
divórcio, obtendo por esta forma a dissolução do vínculo conjugal.
Muitas vezes existem problemas de comportamentos psíquicos anormais por
parte de um dos cônjuges que são menos detetáveis para a vida social externa do casal
mas que tomam grande relevância na vida íntima do casal e que devem ser objeto de
terapia psíquica adequada.
As diferenças e clivagens culturais tornam também difícil a vida conjugal,
criando obstáculos quase intransponíveis. Os conflitos de mentalidade na nossa
sociedade em transição, são causas de grande número de conflitos, por partirem de
diferentes conceções acerca da relação homem-mulher no âmbito do casamento.
Muitas vezes ocorre também a intromissão de terceiros, designadamente dos
familiares de um ou de outro cônjuge, na vida do casal.
Os conflitos que surgem na vida conjugal podem ter uma procura de solução na
fase pré- judicial ou quando já há recurso ao tribunal pela relevância dada à fase de
reconciliação dos cônjuges.

Nos diversos sistemas jurídicos procura-se cada vez mais o recurso às medidas
de conciliação, evitando a rutura dos laços matrimoniais ou o menor desgaste sob o
ponto de vista psicológico e emocional entre os cônjuges, o que, na maior parte das
vezes, se vai refletir na sua atividade laborai e no meio social a que pertencem.
O combate à violência doméstica, por meios legais envolvendo entidades
judiciais, policiais, médicas, terapeutas e outros, é hoje considerado essencial a uma
convivência mais sã e equilibrada entre marido e mulher.
Legislação específica sobre a violência doméstica no campo do Direito Penal e
do Direito de Família tem vindo a ser adotada em muitos países dos diversos
Continentes , incluindo Angola.
A questão da violência doméstica, pela sua importância e repercussão no meio
social, deixou de ser considerada do « foro privado» para ser por inteiro atribuída à
responsabilidade do Estado, que deve obrigatoriamente intervir, não deixando as
vítimas da violência entregues à sua sorte e desamparadas.
Medidas são tomadas contra os cônjuges que têm comportamentos censuráveis
sob o ponto de vista familiar ou até criminal, tais como a proibição de certas condutas:
molestar o outro por palavras ou por gestos, proibição de entrar em áreas específicas da
residência familiar ou mesmo proibição de entrada em toda a residência, etc..
Podem ser dadas ordens de proteção pessoal em relação a membros da família,
em regra a mulher e os filhos, no caso de ameaça de uso da violência ou quando esta já
tenha sido usada. É o que acontece na presente legislação inglesa, que, de acordo com
a lei da Violência Doméstica e Procedimento Matrimonial, prevê que o tribunal possa
proferir injunções que proíbam a um dos cônjuges determinados comportamentos
censuráveis. O não acatamento de uma ordem do tribunal é punido com prisão como
crime de desobediência.
Na esfera das relações íntimas e pessoais dos cônjuges reconhece-se a
dificul¬dade da ingerência de terceiros, designadamente do tribunal, para o
apazigua¬mento dos conflitos. Cada vez mais se procura ajudar a resolver esses litígios
pela mediação ou conciliação, que, como vimos, pode existir numa fase pré-judicial ou
ser já atribuída aos órgãos judiciais.
Os organismos de mediação são neutros por natureza e procuram encontrar as
causas do desentendimento entre os cônjuges de forma a alcançar a sua concilia¬ção.
Quando tal não for possível e houver irredutibilidade de parte a parte, procura-se então
obter a negociação amigável da separação ou do divórcio. Na primeira fase têm tido
grande relevo os terapeutas especializados, os consultórios de diagnóstico matrimoniai
entregues a psicólogos ou a juristas, bem como orga¬nismos de natureza social.
Quaisquer destes órgãos devem poder analisar com imparcialidade os dissídios
na vida do casal, investigando as diversas causas que lhes dão origem e que, como
vimos, podem ser de múltipla natureza e carecerem de tratamento médico ou de
recuperação, como no caso do vício inveterado de alcoolismo.
Podem ter também natureza psicológica ou mesmo cultural.
Na fase judicial dos conflitos também se dá relevância à conciliação, que pode
ser levada a cabo pelo tribunal.
Na legislação italiana prevê-se a intervenção do juiz num âmbito bastante
restrito, mais de natureza arbitrai do que jurisdicional.
Tanto no processo de divórcio por mútuo acordo como no processo de divórcio
litigioso, a nossa legislação de família só prevê a conciliação dos cônjuges na fase
judicial, fase durante a qual ela se mostra pouco profícua.
De igual modo, a legislação processual não foi objeto de revisão depois da
publicação do Código de Família, pelo que se mostra cheia de lacunas em matéria das
providências cautelares e das providências específicas que protejam efetivamente os
direitos dos cônjuges, tais como o direito à integridade física, o direito à permanência
na residência familiar, etc..
CAPÍTULO 14.0
EFEITOS PATRIMONIAIS DO CASAMENTO

[81 ] Sistemas do regime económico do casamento


O casamento, além dos efeitos pessoais que produz na vida dos cônjuges e que
já foram especificados, produz ainda efeitos de grande relevância na sua vida
patrimonial. A regulamentação jurídica da situação patrimonial dos cônjuges constitui
o regime económico do casamento, que define e regula os poderes dos cônjuges quanto
à aquisição, disposição e gestão dos bens durante a vigência do vínculo matrimonial.
Define também o regime de responsabilidade pelas dívidas tanto em relação a terceiros
como em relação aos cônjuges entre si.
Como vimos, o casamento implica uma plena «comunhão de vida» entre os
cônjuges (consortium omnis vitae). Daí vai forçosamente derivar uma comunhão de
interesses patrimoniais, que, pela sua natureza específica e particular, fica em regra
sujeita a um regime jurídico patrimonial de natureza especial.
Em razão desta natureza especial é que os interesses patrimoniais do casal
aparecem em todos os ordenamentos jurídicos regulados de forma diferente dos
princípios gerais que regem as relações dos direitos patrimoniais abrangidos pelo direito
das obrigações e pelos direitos reais.
O regime económico do casamento ou regime matrimonial regula não só as
relações patrimoniais dos cônjuges entre si mas também as relações dos cônjuges com
terceiros.
A própria constituição do lar leva os cônjuges a necessitarem de uma base
económica para fazer face às despesas comuns, como a subsistência dos pró¬prios
cônjuges e de seus filhos e de outros elementos que compõem o respetivo agregado
familiar.
O dever de contribuir para as despesas do lar é um dos aspetos de que se reveste
o dever de assistência material dos cônjuges entre si. Hoje consagrado o princípio da
igualdade entre o cônjuges, esse dever de contribuição económica cabe tanto ao marido
como à mulher, seja qual for o regime de bens do casal, e está em correlação com a
condição económica de cada cônjuge. Essa contribuição pode ser dada com o produto
do rendimento do trabalho, provir de rendimentos pessoais ou consistir na prestação de
serviços a favor do agregado familiar. Tudo isto está em correlação com o próprio nível
de desenvolvimento económico e profissional do casal.
No meio familiar em que a mulher não possui recursos nem exerce atividade
profissional fora do lar, todo o trabalho dito «doméstico» que ela desenvolve com vista
à subsistência do agregado familiar é subestimado, não lhe sendo atribuído valor
económico. Porque gratuito, ele não é valorizado, entendendo-se, por razões ancestrais,
como um dever que incumbe à mulher e que deverá ser acumulado com o trabalho fora
do lar, se for o caso.
No pretérito, incumbia ao marido o dever de manter a mulher.
E quando a mulher não exercia uma atividade produtiva estava instituído o dote,
que consistia em determinado valor económico que a mulher levava consigo para o
casamento.
No atual regime matrimonial, além da contribuição dos cônjuges nas despesas
do lar, com valores ou serviços, prevê-se ainda a situação jurídica dos bens cuja
titularidade na pessoa dos cônjuges é anterior ou posterior ao casamento, define-se o
poder de administração desses bens por parte do cônjuge, o poder para contrair dívidas
durante o casamento, a responsabilidade pelo seu pagamento, etc..
Os regimes económicos do casamento têm evoluído através dos tempos e de
acordo com a evolução da própria estrutura da família. Nas sociedades de tipo feudal e
capitalista, dentro da classe detentora do poder económico era dada muito maior
relevância aos efeitos patrimoniais do casamento do que aos efeitos pessoais, pois o
casamento era uma das formas de acumulação de património.
Já no direito romano se distinguia, quanto ao regime económico, o casamento
cum manu, em que vigorava o regime de absorção dos bens da mulher por parte do
marido, do casamento sine manu, em que os bens da mulher permaneciam na família
de que provinha.
No sistema jurídico inglês e naqueles que nele se baseiam, vigora a regra da
separação de bens. Cada cônjuge conserva a propriedade individual de todos os bens,
quer anteriores quer posteriores à celebração do casamento.
Também no direito tradicional africano predomina o regime patrimonial de
separação de bens e isto resulta do facto de a mulher não se integrar na família do marido
e permanecer ligada à sua família de origem. Aliás, a existência do casamento
poligâmico não se coaduna com o regime de comunhão de bens.
Noutros sistemas jurídicos predomina o regime de comunhão de bens, que se
carateriza pela existência de uma massa de bens que é pertença comum dos dois
cônjuges e que está adstrita a uma afetação especial, como veremos.
O regime de comunhão de bens pode ter maior ou menor extensão, ser total ou
parcial, apresentando diversas formas:
— o regime de comunhão geral ou universal de bens, que abrange a quase
totalidade dos bens dos cônjuges;
— o regime de comunhão de móveis e de adquiridos, que abrange todos os
móveis anteriores ou posteriores ao casamento e os imóveis adquiridos a títulos oneroso
depois do casamento;
— o regime de comunhão de adquiridos, que abrange os bens adquiridos a título
oneroso depois do casamento, sejam eles direitos, bens móveis ou imóveis.
Existem ainda outros sistemas em que funcionam o regime de separação e de
comunhão combinados, como por exemplo o regime de comunhão de bens futuros ou
de participação nos adquiridos. Segundo este regime, que vigora no direito alemão, os
cônjuges conservam o direito à fruição e à disposição de todos os seus bens, mas,
aquando da dissolução do casamento, cada cônjuge tem direito a uma parte dos bens
adquiridos durante o casamento. A participação nos adquiridos traduz-se numa
avaliação do património inicial dos cônjuges no momento em que contraíram o
casamento e o património final no momento da sua dissolução/
Por vezes a lei impõe o regime único: só é permitido aos cônjuges adotarem o
regime legal de bens obrigatoriamente estatuído na lei. Outras vezes a lei impõe o
regime convencional de bens, segundo o qual os cônjuges podem estatuir previamente
as normas que regularão no futuro o regime económico do seu casamento. Há ainda os
sistemas típicos, que oferecem vários sistemas pre¬estabelecidos na lei.
Em alguns casos a opção feita é imutável, tem que perdurar durante todo o
casamento; em outros casos o regime é mutável durante a vigência do casamento.
O regime de bens adotado no casamento é oponível a terceiros e por isso deve
ser objeto de registo.

[82] O regime económico do casamento no Código Civil


No Código Civil anterior vigorava o sistema da autonomia da vontade das partes,
pois, em regra, era dada aos cônjuges a possibilidade de optar pelo regime de bens
(1) Esperança Pereira Mealha — Acordos Conjugais para Partilha de Bens
Comuns, p. 29: «O regime da participação nos adquiridos é uma das soluções
encontradas noutros ordenamentos que procura combinar as principais vantagens do
regime separatista com a grande vantagem da comunhão.» Ed. Almedina, 2009. que
lhes aprouvesse. Este sistema, afirmado como princípio no art. 1698.° do Código Civil,
sofria, no entanto, importantes restrições legais.
O regime da liberdade de convenção antenupcial estava sujeito às limitações
enunciadas no art. 1699.° e seguinte, que salvaguardava na sua alínea c) os princípios
considerados de ordem pública, que consagravam a situação privilegiada do marido
como chefe de família e como tal, com o direito à administração dos bens do casal.
Outras restrições à liberdade de convenção antenupcial vinham previstas neste
art. 1699.° e referiam-se à regulamentação da sucessão hereditária dos cônjuges ou de
terceiros, à alteração dos direitos e deveres paternais ou conjugais e à estipulação da
comunicabilidade de certos bens.
Em certos casos específicos, era a lei que impunha imperativamente o regime de
separação de bens. Era o que vinha mencionado no art. 1720.°, que impunha
obrigatoriamente o regime de separação de bens quando:
a) o casamento tivesse sido celebrado sem precedência do processo de
publicações, como no caso do casamento urgente;
b) quando os nubentes tivessem atingido já determinada idade, norma em que
mais uma vez a mulher era discriminada;
c) quando houvesse filhos legítimos do casamento anterior por parte de um ou
de ambos os cônjuges.
Com estas regras procurava-se impedir que o casamento fosse celebrado na mira
da obtenção de vantagens económicas. No entanto, o n.° 2 deste art. 1720.°, permitia
que os nubentes fizessem doações entre si e que o futuro marido constituísse um dote
em benefício da mulher.
A regra no sistema vigente no Código Civil era a de o regime de bens ser
convencional e imutável, pois nem o regime supletivo nem as convenções antenupciais
podiam vir a ser alteradas durante o casamento.
O Código Civil admitia um único caso de alteração do regime económico do
casamento, no âmbito do instituto de separação de pessoas e bens (art. 1776.°, n.° 2
deste Código).
Quando ocorresse a reconciliação dos cônjuges que se tivessem separado
judicialmente de pessoas e bens, passaria a vigorar, após a reconciliação, o regime de
separação de bens, ficando os bens dotais a ser administrados pela mulher.
O princípio da imutabilidade do regime de bens vinha consagrado no art. 1714.°
do Código Civil, segundo o qual as convenções antenupciais não podiam ser alteradas.
Para garantir que este princípio não seria desrespeitado, a lei proibia as vendas entre os
cônjuges e as sociedades entre marido e mulher (antenupcial. 1714.°, n.° 2), salvo nas
sociedades de capitais (n.° 3 desse art. 1714.°).
A — As convenções antenupciais
As convenções antenupciais, também designadas convenções matrimoniais ou
pactos nupciais («contraí de mariage» no direito francês, «capitulaciones
matrimoniales» no direito espanhol) constituem o acordo celebrado entre os nubentes
no qual é fixado o regime aplicável às relações patrimoniais recíprocas dentro do
casamento e às relações dos cônjuges com terceiros.
É um verdadeiro contrato que precede o casamento e que tem natureza acessória
em relaçáo a este. A sua eficácia está, porém, dependente do facto de se vir a celebrar
o casamento e do facto de o próprio casamento ser válido.
Nas convenções antenupciais podem os nubentes fixar livremente, com as
restrições previstas na lei, o regime de bens, ou adotando um dos diversos regimes
previstos no Código, ou aplicando parte desses regimes, combinando as diversas regras
neles previstas ou instituindo outras.
Como contrato que é, a convenção antenupcial tem como requisito de fundo a
capacidade das partes e o consentimento dos nubentes. E, mesmo que estes sejam
menores, o consentimento é prestado pelo próprio e não pelo respetivo representante
legal, devendo este prestar a autorização para a celebração do contrato. A capacidade
para celebrar a convenção antenupcial é a mesma que é exigida para a celebração do
casamento.
As convenções antenupciais surgem nos sistemas jurídicos em que os aspetos
patrimoniais do casamento assumem grande relevância, por estarem em jogo elevados
valores económicos detidos pelos nubentes ou suas famílias.
Elas estão previstas no direito de família nos diversos sistemas jurídicos
europeus e designadamente no Código Civil português. O Código de Família, como
adiante veremos, eliminou todas as disposições respeitantes às convenções
antenupciais.
Interessa, porém, ver como o Código Civil ora revogado dispunha sobre a
matéria (no essencial, o que prevêem as demais legislações).
Os artigos 1708.° e 1709.° do Código Civil mencionavam os requisitos de fundo
necessários à celebração das convenções antenupciais.
Ao contrário do que acontecia na celebração do casamento, as convenções
antenupciais podiam estar sujeitas a condição ou a termo, de acordo com o prescrito no
art. 1713.°.
O art. 1719.° do Código Civil permitia expressamente aos cônjuges
con¬vencionar que, no caso de existirem descendentes comuns, a partilha de bens,
aquando da dissolução do casamento, se fizesse segundo o regime de comunhão geral
de bens, qualquer que fosse o regime de bens que tivesse sido adotado.
Quanto ao requisito de forma, e segundo o art. 1710.°, as convenções
antenupciais só eram válidas quando fossem celebradas por escritura pública.
As convenções antenupciais estavam obrigatoriamente sujeitas a registo para
poderem produzir efeitos em relação a terceiros — art. 1711.°, n.° 1 do Código Civil e
art. 233.° do
Código do Registo Civil. Elas produziam, porém, efeitos plenos entre as partes
e herdeiros, independentemente de registo (art. 1711.°, n.° 2 do Código Civil).
As convenções antenupciais estavam sujeitas às mesmas causas gerais de
nulidade e anulabilidade prescritas nos artigos 285.° e seguintes do Código Civil para
os atos jurídicos em geral, podendo designadamente ser anuladas por erro, dolo ou
coação.
O art. 1709.° do Código Civil continha uma exceção às causas gerais da
anulabilidade, pois permitia considerar sanada a anulabilidade derivada da falta de
autorização por parte do representante do incapaz, quando o casamento viesse a ser
celebrado depois de findar a incapacidade.
A convenção antenupcial estava também sujeita a caducidade nos dois casos
previstos no art. 1716.°. A sua eficácia estava subordinada ao facto de o casamento entre
os nubentes vir a ser celebrado dentro do prazo de um ano. A caducidade operava-se
também se o casamento celebrado viesse a ser considerado nulo, pois, sendo a
convenção antenupcial um contrato acessório do ato do casamento, se este viesse a ser
anulado ela perdia a sua finalidade legal.
Ressalvava-se, no entanto, a produção de efeitos da convenção dentro das
normas aplicáveis ao casamento putativo, ou seja, as que aproveitavam ao cônjuge que
tivesse celebrado o casamento de boa fé.
B — As doações para casamento e entre casados
O Código Civil previa que fossem feitas doações para casamento a um ou a
ambos os nubentes, e que essas doações podiam ser feitas por um dos nubentes ou por
terceiros — art. 1753.°. As doações para casamento deviam constar da convenção
antenupcial, de acordo com o art. 1756.°, n.° 1.
As doações para casamento estavam sujeitas às causas de caducidade
mencionadas no art. 1760.°. Elas caducavam pelas mesmas causas que levavam à
caducidade da convenção antenupcial ou quando ocorresse o divórcio ou separação
judicial de pessoas e bens por culpa do donatário.
As doações entre casados, ou seja, as posteriores ao casamento, eram livremente
consentidas pelo art. 1761.° do Código Civil, só não sendo permitidas quando vigorasse
imperativamente o regime de separação de bens.
As doações só podiam ter como objeto os bens próprios do doador (art. 1764.°,
n.° 1) e os bens doados não eram comunicáveis fosse qual fosse o regime de bens (n.°
2 do mesmo art. 1764.°).
As doações entre casados eram livremente revogáveis e não estavam, portanto,
sujeitas ao regime geral de revogação das doações, pelo que a revogação não carecia de
ser fundamentada — art. 1765.°.
Estavam ainda sujeitas ao regime das doações em geral prescrito nos artigos
940.° e seguintes do Código Civil e podiam ser reduzidas por inoficiosidade. A
revogação da doação tinha efeitos retroativos, o que conferia um caráter muito precário
a este tipo de doações.
As causas da caducidade destas vinham mencionadas no art. 1766.° e eram: o
falecimento do donatário, sem ter havido confirmação por parte do doador; a anulação
do casamento; a existência de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por culpa
do donatário.
Às doações mortis causa era aplicável o regime geral dos testamentos.
C — Regimes de bens no Código Civil
Eram quatro os tipos legais de regimes de bens adotados pelo Código Civil:
a) o da comunhão de bens adquiridos;
b) o da comunhão geral de bens;
c) o da separação geral de bens;
d) o regime dotal.
Eles caraterizavam-se pela extensão, em cada caso, das categorias de bens
comuns e de bens próprios.
2. Comunhão geral
O regime de comunhão geral de bens (também chamado de comunhão absoluta
ou universal) vinha regulado no art. 1732.° e seguintes. Este regime de bens já foi
historicamente muito importante, pois era o regime-regra previsto no Código Civil de
1867, conhecido por Código de Seabra.
Era ainda o regime-regra adotado na legislação brasileira e holandesa. Depois da
aprovação da lei do divórcio, no Brasil passou a ser adotado como regime supletivo o
regime de comunhão parcial.
O atual Código Civil brasileiro, aprovado pela Lei n.° 10 406/02, mantêm o
regime de comunhão parcial como o regime supletivo geral — art. 1640.°.
Segundo o regime de comunhão geral de bens existe um único património no
casamento, que é o património comum, constituído por todos os bens presentes e
futuros, salvo os excetuados por lei — art. 1732.° do Código Civil. Só são excetuados
da comunhão os bens indicados no art. 1733.° e no n.° 2 deste artigo, que mesmo assim
prescreve que a incomunicabilidade dos bens não abrange os respetivos frutos nem o
valor das benfeitorias úteis.
Há, pois, uma comunhão total de bens não só quanto ao domínio mas também
quanto à sua posse e fruição.
Este regime, que era o regime tradicional português e vigorava mesmo antes do
primeiro Código Civil — que o adotou por ser segundo «os usos e costumes do Reyno»
—, está intrinsecamente ligado ao conceito da indissolubilidade do casamento.
Foi aplicado como regime supletivo geral até à entrada em vigor do Código Civil
atual. Portanto, os casamentos celebrados em Angola até 1 de janeiro de 1968 devem
considerar-se celebrados segundo este regime de bens, se outro não tiver sido adotado
por convenção antenupcial ou imposição legal.
Pelo contrário, hoje ele só vigorará se tal vier a ser estipulado em convenção
antenupcial.
3. Regime de separação de bens
Este regime caraterizava-se pela existência de separação absoluta entre os bens
dos cônjuges. Não existiam bens comuns e, mesmo que algum bem pertencesse a ambos
os cônjuges, vigorava entre eles o regime da compropriedade e não o da comunhão.
Este regime, segundo o art. 1735.°, podia vigorar entre os cônjuges quando fosse
obrigatoriamente imposto por lei ou quando fosse adotado em convenção antenupcial.
Por este regime era assegurado aos cônjuges não só a separação de bens, ou a
existência unicamente de bens próprios de cada cônjuge, mas ainda os poderes de livre
administração e de disposição dos bens e dos frutos ou rendimentos percebidos.
O art. 1736.° estipulava a presunção da propriedade dos bens móveis e o art.
1737.° dispunha sobre as regras da administração de bens do outro cônjuge que não
fosse o titular do respetivo direito de propriedade.
4. Regime dotal
Este regime de bens caraterizava-se pela existência de um dote atribuído à
mulher, que, segundo o disposto no art. 1740.°, só podia ser constituído por bens
imóveis ou por títulos nominativos. O dote era um conjunto de bens próprios que a
mulher levava para o casamento e que se procurava ficassem a coberto da má
administração por parte do marido. Os restantes bens que não constituíssem dote
ficavam a reger-se pelas normas do regime de comunhão de adquiridos (art. 1738.°, n.°
1), sendo um regime misto de separação de bens na parte relativa aos bens dotais, com
um regime de comunhão parcial quanto aos demais.
Os bens dotais ficavam em regime especial quanto aos poderes de disposição
(art. 1747.°) e de responsabilidade pelas dívidas (art. 1750.°).
Este regime de bens, que evidenciava a situação de discriminação da mulher na
vida matrimonial, já tinha caído em desuso, tendo sido suprimido em Portugal pelas
reformas trazidas pelo Decreto-Lei n.° 496/77, que veio abolir a discriminação de
direitos e deveres entre marido e mulher.

[83] Os regimes de bens no Código de Família


O Código de Família afastou-se do sistema de diversidade de regimes
patrimoniais acolhidos no Código Civil e preferiu orientar-se pelo sistema da tipicidade:
os regimes aceites no Código vêm nele regulados. No entanto, o Código não institui
nenhum caso de imposição imperativa de determinado regime de bens, o que significa
que os nubentes são sempre livres de escolher entre os dois tipos de regime de bens
estatuídos por lei, não havendo regimes obrigatórios de bens em certos casos
específicos.
O art. 49.° permite no seu n.° 1 que os nubentes escolham entre:
— o regime de comunhão de adquiridos e
— o regime de separação de bens.
Essa opção é feita na declaração inicial para casamento — art. 49.°- n.° 2. Aliás,
essa declaração só se torna necessária quando os nubentes queiram optar pelo regime
de separação de bens — art. 29.H, n.° 3.
A declaração sobre o regime de bens deverá ser confirmada pelos nubentes no
ato de casamento — art. 49.° n.° 2.
Na falta de declaração dos nubentes, o casamentos considera-se contraído
segundo o regime de comunhão de adquiridos — art. 49.°, n.° 3.
Vê-se, pois, que o regime supletivo geral é, tal como no Código Civil, o regime
de comunhão de adquiridos. É este o regime-regra.
A adoção de outro regime de bens, o de separação de bens, passa a fazer-se por
declaração perante o funcionário do Registo Civil e não necessita de constar de
convenção antenupcial, que é uma figura jurídica de larga tradição nas sociedades em
que predomina o regime da propriedade privada de bens.
À data da elaboração do Projeto do Código de Família não se mostrava
necessário, numa sociedade que se propunha em transição para o socialismo, uma
grande diversidade de regimes de bens. Preferiu-se a simplicidade na forma de
declaração perante o funcionário do Registo Civil que constitui o processo de casamento
e prescindiu-se da necessidade da celebração de escritura pública autónoma em relação
a esse mesmo processo de casamento. É a lei que estipula os efeitos da declaração dos
nubentes, regulando os sistemas legais nela previstos.
O Código de Família também nada diz especificamente quando às doações para
casamento e às doações entre casados, sendo que as normas que lhes diziam respeito
foram revogadas. No silêncio da lei, deve entender-se que esse tipo de doações passará
a reger-se pelas normas aplicáveis às doações em geral, previstas no art. 940.° do
Código Civil.
Poder-se-á questionar a razão por que o Código de Família permite a existência
simultânea de dois regimes de bens no casamento e não apenas o regime único de
comunhão de adquiridos.
Nos sistemas jurídicos dos ex-países socialistas adotava-se a regra do regime de
comunhão de adquiridos, embora se admitisse, com certas limitações, a fixação de outro
regime de bens, por via contratual. Da mesma forma as primeiras Leis de Família de
Cabo Verde e de S. Tomé e o Projeto da Lei de Família de Moçambique admitiam como
regime único o da comunhão de adquiridos.
Podem ver-se no relatório que antecedeu o Projeto do Código de Família as
razões que levaram o legislador a consentir na dualidade do regime de bens.
Em certos casos, como ali se diz, os nubentes podem achar mais adequado
celebrar o casamento com separação de bens, atendendo a factos como a pouca
estabilidade do casamento, a existência de filhos de uniões maritais ou de simples
uniões de facto anteriores de um ou de ambos os nubentes, a desigualdade económica
dos nubentes, etc.. Deve ter-se em conta também o peso do direito tradicional angolano,
que estatui como regime-regra o regime de separação de bens, em razão da existência
do casamento poligâmico.
Escolhido um dos regimes previstos, ele é imutável durante a vigência do
casamento, o que leva a que a declaração feita, quer na declaração inicial quer no
momento da celebração do casamento, seja bilateral, pois deve ser feita em
concordância por ambos os nubentes, e de forma expressa e irrevogável, não podendo
ser alterada posteriormente.
Adota-se assim o sistema da imutabilidade do regime de bens. É este o sistema
que ainda vigora no Código Civil português — art. 1714.° n.° 1, ainda que com algumas
exceções não previstas no Código de Família, designadamente a separação judicial de
bens e a separação judicial de pessoas e bens.
O art. 50° do Código de Família estabelece que o regime económico do
casamento considera- se existente desde o momento da sua celebração e perdura até à
extinção do vínculo matrimonial, salvo os casos previstos na lei, exceção esta que pode
surgir na dissolução do casamento por divórcio.
Tal não obsta a que, em certos casos de execução por dívidas exclusivas de um
só cônjuge, possa ser pedida a divisão dos bens comuns e a sua separação em duas
meações, como veremos mais adiante.
O princípio da imutabilidade do regime de bens é defendido por se entender que
constitui uma segurança não só para os cônjuges mas também para terceiros. Esta
posição legal tem como fundamento no essencial, por um lado o receio de que depois
do casamento um dos cônjuges possa desfrutar de grande influência sobre o outro e
levá-lo a alterar o regime económico do casamento em seu desfavor. E por outro, a
proteção de interesses de terceiros que podem defrontar-se com novas situações de
regime económico que lhes sejam desfavoráveis.
Há, no entanto, sistemas jurídicos que permitem a mutabilidade dos regimes
patrimoniais, como o direito brasileiro , espanhol, alemão e sueco.
Podemos adiantar que a tendência é no sentido de permitir a alteração do regime
económico do casamento tendo em conta que a vida conjugal pode trazer situações que
impliquem a alteração do regime económico aceite antes do casamento e por ser de
respeitar o princípio da liberdade contratual.
Quando estudarmos os efeitos da dissolução do casamento por divórcio teremos
ocasião de ver os casos em que a lei considera como antecipado o fim da vigência do
regime económico do casamento.
A atual Lei das Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro, permite
a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação de ambos na
mesma sociedade, desde que só um deles seja sócio de responsabilidade ilimitada —
art. 9.°, n.° 1: «Épermitida a constituição de sociedade entre cônjuges, bem como a sua
participação na mesma sociedade, desde que só um deles seja sócio de responsabilidade
ilimitadz.» Desta forma passou a ser permitida a participação dos cônjuges em qualquer
tipo de sociedade comercial, com a ressalva de que só um deles pode nela assumir
responsabilidade ilimitada.
No Código de Família, quando provada a data do fim da coabitação dos cônjuges
na sentença que declara o divórcio, dá-se por finda, retroativamente, a vigência do
regime económico do casamento.

[84] O regime de comunhão de adquiridos


Este é o regime-regra ou regime supletivo geral de bens no casamento, ele aplica-
-se ipso iure na falta de opção pelo regime alternativo. Trata-se duma comunhão de bens
parcial que vai abranger os bens especificados na lei. O legislador entendeu que é ele
que melhor assegura à família matrimonial a base patrimonial que lhe é indispensável.
E isto dada a permanência de interesses patrimoniais que se iniciam com o casamento
e se desenvolvem no decorrer da vida em comum, através dos bens obtidos pelo trabalho
de ambos os cônjuges.
Conforme a designação indica, este regime prevê que durante o decurso da união
conjugal vão sendo adquiridos bens, seja pela atividade exercida pelos cônjuges seja de
rendimentos havidos não só de bens comuns como ainda de bens próprios. Por outras
palavras, prevê-se um incremento do património.
Discute-se na doutrina sobre qual a natureza do regime de bens supletivo,
havendo quem sustente que ele assenta na vontade presumida dos nubentes. Se os
nubentes nada declararem quanto aos regime de bens, presume-se que a sua vontade
tácita é a de adotar o regime supletivo.
Predomina, porém, a posição segundo a qual a lei aproveita o silêncio dos
nubentes para fixar ela própria, fazendo abstração da vontade dos cônjuges, o regime
de bens que lhe parece mais vantajoso sob o ponto de vista social.
Neste regime distingue-se fundamentalmente, a natureza dos seguintes
patrimónios:
Pelo lado ativo abrange os bens adquiridos por um ou ambos os cônjuges de
forma conjuntiva ou disjuntiva, a título oneroso.
Como caraterística temporal refere-se aos bens adquiridos depois dc celebrado o
casamento e em princípio, durante a vigência do casamento. Ou seja, «ingressam no
património comum de forma automática, os efeitos da sua aquisição por um cônjuge
comunicam-se de imediato ao outro cônjuge.»w
Abrange os salários e rendimentos do trabalho de cada um dos cônjuges, bem
como os rendimentos e frutos produzidos tanto pelos bens próprios de cada cônjuge
como pelos bens comuns.
Pelo lado passivo abrange as dívidas comuns.
No regime de comunhão de adquiridos coexistem pois, três patrimónios
distintos:
— O património próprio do marido, que engloba os bens e dívidas que tinha antes
da data do casamento e as próprias posteriores a este e os demais bens excetuados pela
lei da comunhão, entre os quais os recebidos a título gratuito depois do casamento;
— O património próprio da mulher, que abrange, da mesma forma que o do
marido, os bens e dívidas anteriores ao casamento, os bens recebidos depois do
casamento a título gratuito e os excetuados por lei da comunhão, e as dívidas anteriores
e próprias posteriores;
— O património comum, que engloba os bens adquiridos depoisdo casamento a
título oneroso, os rendimentos regulares e os frutos produzidos pelos bens próprios e
comuns dos cônjuges, os salários e as dívidas comuns que podem ser anteriores ou
posteriores ao casamento.
A — Natureza jurídica da comunhão matrimonial de bens Não é pacífica a
questão de saber qual a natureza jurídica do direito dos cônjuges sobre o património
comum. O Código Civil falava em bens comuns, enquanto o Código de Família fala em
património comum. Há quem sustente que esse património é um património autónomo,
dotado de personalidade jurídica.
Outros pretendem que se trata de uma sociedade civil e que, através da prestação
de bens ou serviços, se desenvolve uma atividade económica específica. Mas é
manifesto que o regime legal das sociedades é incompatível com o da comunhão
matrimonial de bens.
O que interessa é definir, no âmbito das relações internas dos cônjuges, como se
caraterizam os seus direitos sobre o quinhão comum.
Entende-se que este direito tem caráter de comunhão de propriedade do tipo
germânico, ou propriedade coletiva, a «comunhão de mão comum»(5). Segundo
(4) Esperança Pereira Mealha, ob. cit., p. 41. s) Em alemão: «gesamte hand».
esta doutrina, os titulares não têm qualquer direito à divisão dos bens, idêntico
ao que existe normalmente no direito de propriedade. Eles teriam um único direito a
incidir sobre todos os bens.
É este o entendimento do Prof. Pereira Coelho, que sustenta que os bens comuns
constituem uma massa patrimonial, à qual, tendo em vista a sua especial afetação, a lei
concede certo grau de autonomia, massa que pertence aos dois cônjuges em bloco,
sendo eles titulares de um único direito sobre a sua totalidade.
Haveria, pois, uma propriedade coletiva, pertença dos dois cônjuges, mas sem se
repartir em quotas ideais, pois o património coletivo, diferentemente da comunhão, não
permite a divisão do direito, mesmo ideal.
O Prof. Eduardo Santos perfilha a doutrina segundo a qual se trata de uma
comunhão especial do direito de família, que não encontra paralelo em qualquer outro
ramo de direito .
O Prof. Antunes Varela define com clareza que, na constância de sociedade
conjugal, marido e mulher são simultaneamente titulares de um único direito sobre
todos e cada um dos bens. Cada um dos cônjuges tem direito em abstrato a metade do
património comum.
O Código Civil dizia expressamente que «os cônjuges participam por metade no
ativo e passivo da comunhão» (art. 1730.°, n.° 1).
O Código de Família não tem disposição equivalente, mas o art. 75.°, n.° 2
menciona que a partilha de bens, após a dissolução do casamento, se opera com a
meação dos bens comuns. Esta disposição é aplicável à dissolução do casamento por
divórcio, por força do art. 80.° do mesmo Código.
Este direito à metade virtual de todos os bens comuns permanece enquanto não
for dissolvido o vínculo conjugal.
Ao património comum é aplicável um regime específico tendo em conta o fim
legal que lhe é atribuído, o da afetação às necessidades materiais da vida conjugal.
Esse património comum a que os cônjuges estão ligados por vínculo pessoal
subsiste, pois, enquanto esse vínculo perdurar, porque, enquanto o casamento se
mantiver, as razões para a afetação especial desses bens permanece. É, segundo a
opinião prevalecente, um direito de propriedade coletiva ou de mão comum.
Os cônjuges são contitulares de um único direito sobre a totalidade de todo o
património.
Assim, enquanto não for dissolvido o casamento, os cônjuges não podem dispor,
por venda ou por doação, da sua meação nos bens comuns, tal como lhes não é permitido
pedir a partilha desses bens.
Era este o princípio adotado nos artigos 1688.° e 1689.° do Código Civil,
mantendo-se no Código de Família (artigos. 75.°, n.° 1 e 80.°, n.° 1), traduzindo- -se na
impossibilidade de divisão do património comum durante a vigência do casamento.
A indivisibilidade traduz-se na impossibilidade de, em regra, se proceder à
divisão do património enquanto durar a sociedade conjugal. Daí que nenhum dos
cônjuges possa considerar como sua propriedade qualquer bem durante a sua vigência.
Cada um dos cônjuges participa, assim, no património comum, na proporção de
metade. Mas esse direito ideal à metade dos bens só se concretiza no momento em que
se vier operar a partilha. A partilha é impossível durante o casamento e é sempre
posterior à sua dissolução. Até lá, os cônjuges são titulares do único direito que incide
sobre todos e cada um dos bens comuns, indistintamente.
Cada cônjuge tem pois direito à meação ou seja tem direito a uma quota ideal
com o valor de metade da totalidade dos bens. « 0 direito a metade é assim o direito ao
valor de metade. »
O património comum está em regra legalmente protegido pela moratória legal,
que não permite a partilha desses bens antes da dissolução do casamento, por serem eles
o principal sustentáculo da sociedade conjugal. Era o que dispunha o art. 1696.°, n.°s 1
e 2 do Código Civil, e é o que dispõe atualmente o art. 64.° do Código de Família.
No entanto deve assinalar-se que a proteção da moratória legal em beneficio do
património dos cônjuges e em prejuízo da cobrança da dívida pelo credor, não encontra
acolhimento na maior parte dos sistemas legais. E já não subsiste no atual Código Civil
português por alteração do citado art. 1696.°, n.° 1.
Neste mesmo sentido, o direito angolano com a alteração ao Código Comercial
pela Lei n.° 6/03, de 3 de março, no seu art. 10.° veio dispor: «Não há lugar à moratória
estabelecida no n.° 1 do art. 64.0 do Código de Família quando for exigido de qualquer
dos cônjuges o cumprimento de uma obrigação emergente de ato de comércio, ainda
que o seja apenas em relação a uma das partes.»
B — Os bens comuns
O art. 51.° do Código de Família diz quais os bens que integram o património
comum dos cônjuges:
a) os bens e direitos adquiridos a título oneroso durante a constância do
casamento;
b) os salários, pensões ou quaisquer outros frutos ou rendimentos regulares,
recebidos pelos cônjuges durante o casamento.
O n.° 2 deste art. 51.° dispõe: « Presumem-se comuns os bens dos cônjuges que
não se prove que são próprios de cada um dele.» A regra é pois segundo a presunção
legal, de que os bens dos cônjuges são comuns, o que constitui um preceito decisivo, e
que faz incidir o ónus da prova da natureza de bens próprios sobre o cônjuge nisso
interessado.
Por conseguinte, a regra geral é a de que os bens são comuns, sendo exceção os
bens próprios de cada cônjuge.
Os bens comuns abrangem todos os bens que tenham sido adquiridos a título
oneroso, depois da celebração do casamento, o que envolve uma comunhão parcial, uma
vez que todos os bens que os cônjuges tiverem antes dessa data são considerados como
bens próprios, e só os que forem adquiridos a título oneroso posteriormente passam a
estar integrados no património comum. A aquisição pode ser feita de forma conjunta
por ambos os cônjuges, ou por forma disjuntiva, por um só cônjuge.
Entre os bens adquiridos estão os salários auferidos como produto do trabalho
dos cônjuges, as pensões (v.g; pensões de reforma), os frutos e os rendimentos
produzidos por todos os bens próprios e comuns, imóveis e móveis (por ex.: rendas de
prédios urbanos, dividendos de dinheiro depositado a prazo em instituições bancárias,
as colheitas anuais das propriedades agrícolas, etc.).
Passam a ser bens comuns os bens adquiridos com o produto desses frutos ou
rendimentos.
Temos assim como bens comuns, todos os bens adquiridos por um ou por ambos
os cônjuges, desde que tenham sido adquiridos durante a vigência do casamento e não
estejam excluídos por lei da comunhão, por serem bens próprios.
A presunção da natureza comum dos bens do casal contida no n.° 2 do art. 51.°
visa sobretudo a proteção do interesse de terceiros. O cônjuge interessado ou os seus
herdeiros é que terão de fazer a prova de que determinado bem é próprio e não comum.
Em regra, basta a confissão do outro cônjuge de que o bem é próprio para o não integrar
na comunhão.
Mas ela é por si só insuficiente, perante os credores, sejam eles de dívida comum
ou exclusiva. No caso de aquisição a título oneroso com o dinheiro ou valores que sejam
bem próprio de um dos cônjuges, o outro cônjuge deve ser chamado a intervir e a fazer
a declaração no ato da aquisição.
C — Os bens próprios
O elenco dos bens próprios tem caráter taxativo, só sendo bens próprios os que
forem expressamente referidos na lei.
O art. 52.° define os bens próprios de cada cônjuge:
a) Os bens móveis e imóveis e os direitos que cada cônjuge tiver antes do
casamento. Interessa para a caraterização da natureza de bens próprios que o título de
aquisição seja anterior à celebração do casamento. É indiferente que tenham sido
adquiridos a título gratuito ou a título oneroso; o que interessa é que a data da aquisição
seja anterior ao casamento e que o bem tenha sido levado pelo cônjuge para o
casamento.
Se o bem for adquirido durante o matrimónio mas por direito próprio anterior, o
bem tem a natureza de bem próprio.
O art. 1722.° do Código Civil português indica, a título exemplificativo, que
constituem bens próprios dos cônjuges os que vierem de direitos a patrimónios ilíquidos
partilhados depois deles (ex.: liquidação de bens de uma sociedade comercial), os
adquiridos por usucapião fundada em posse anterior ao início do casamento, os
comprados antes do casamento com reserva de propriedade, os adquiridos no exercício
anterior de um direito de preferência.
b) Os bens e direitos adquiridos por cada um dos cônjuges durante o casamento
a título gratuito e os sub-rogados no lugar dos próprios.
São os bens que advêm aos cônjuges em razão de sucessão ou doação. Pode
acontecer que os bens sejam deixados por testamento, ou sejam doados aos dois
cônjuges simultaneamente. Mas, ainda que tal aconteça, a quota-parte de cada cônjuge
nesse bem não deve ser considerada como bem comum.
O Código de Família não contém nenhuma disposição com teor idêntico ao art.
1729.° do Código Civil, que previa que os bens havidos por sucessão ou doados podiam
ser integrados na comunhão, se tal fosse a vontade expressa do autor da liberalidade e
que ressalvava os bens ou deixas que integrassem a legítima do donatário. Daí que, em
nosso entender, deve aplicar-se a regra geral de que são bens próprios todos aqueles que
sejam adquiridos a título gratuito durante o casamento.
São considerados como próprios os bens que tomam, por substituição, o lugar
dos próprios. É o caso da sub-rogação real, que leva a que uma coisa vá ocupar o lugar
de outra, devendo haver conexão entre a perda de uma e a aquisição da outra. Há uma
substituição de um bem por outro, como nos casos da troca de um prédio por outro, da
indemnização recebida por via de um contrato de seguro relativo a bens próprios, das
benfeitorias feitas com valores próprios do cônjuge, etc..
Seria injusto que, pelo facto de o novo bem ser adquirido a título oneroso, a lei
o considerasse comum, uma vez que ele foi obtido na constância do matrimónio, mas à
custa de bens próprios. Isso iria prejudicar os interesses do cônjuge titular do direito e
os interesses de terceiros, eventuais credores.
Por conseguinte, como vimos, se no título de aquisição for declarado que o bem
adquirido a título oneroso provem de anteriores bens próprios do cônjuge adquirente,
esse bem continua a manter a qualidade de bem próprio.
Procura-se que o património próprio de cada cônjuge se mantenha e que a saída
de determinado bem ou valor seja compensada pela entrada de outro de valor
equivalente.
c) Os direitos de autor, os prémios e as recompensas recebidas resultantes da
atividade pessoal de cada um dos cônjuges.
Os direitos de autor, tanto quanto ao seu conteúdo estritamente pessoal, como
quanto ao seu conteúdo patrimonial, são considerados como bem próprio. Eles
abrangem os direitos sobre a propriedade literária, científica e artística, os direitos sobre
a propriedade industrial, etc..
Igualmente são considerados bens próprios, os prémios atribuídos aos
trabalhadores destacados nas empresas, os prémios das competições desportivas, a
recompensa por uma ação benemérita ou altruísta, etc., desde que resultem de atividade
pessoal de um dos cônjuges, etc..
d) Os bens adquiridos em virtude de direito pessoal de cada cônjuge.
O direito inerente à pessoa humana é estritamente pessoal e os direitos
patrimoniais que dele possam derivar em relação aos cônjuges mantêm a natureza de
bem próprio. As quantias havidas a título de indemnização por danos causados à sua
integridade física ou moral e as pensões por invalidez, derivadas de acidente de trabalho
ou outras, são bens próprios do cônjuge.
e) Os bens de uso pessoal e os objetos de trabalho exclusivo de cada um dos
cônjuges. Incluem-se aqui os bens de uso pessoal, como o vestuário, adornos e outros
objetivos privativos, desde que não tenham valor económico considerável.
E ainda os instrumentos usados no exercício da profissão ou ofício, desde que
usados em exclusivo por um dos cônjuges e que não tenham elevado valor económico.
Pode ser o caso do estetoscópio usado pelo médico, os códigos dos juristas, a máquina
fotográfica do fotógrafo, etc., que sejam unicamente usados pelo cônjuge no exercício
da sua atividade profissional ou no seu mister.
Se os objetos de trabalho estiverem integrados em estabelecimento ou exploração
desenvolvida como empresa ou profissão liberal ou outra, deixam de ter natureza de
bem próprio.
D — Os bens em parte comuns e em parte próprios
Os bens podem ser em parte comuns e em parte próprios. Aliás, no desenvolver
da vida patrimonial dos cônjuges, os bens vão sendo substituídos por outros ou vão
sendo adquiridos em parte com bens próprios e em parte com bens comuns e nem
sempre é fácil fazer a respetiva destrinça.
Tem que se atender ao maior valor que foi integrado no novo bem: o valor da
prestação mais valiosa é que irá definir a natureza própria ou comum do bem. Poderá
haver lugar a compensação entre o património comum e o património próprio de cada
cônjuge quanto à parte que exceda a prestação menor. O reembolso da prestação deverá
ser feito aquando da partilha dos bens.
Tal pode acontecer, por exemplo, quando se efetuam, com dinheiro comum,
benfeitorias úteis em bem imóvel que seja próprio de um dos cônjuges, ou quando um
instrumento exclusivo de trabalho, que é bem próprio, for adquirido com um bem
comum.
Nestes casos o cônjuge titular do bem próprio ficará devedor da respetiva
prestação ao património comum. Pode dar-se o inverso, e ser o novo bem adquirido a
título oneroso durante o casamento com uma prestação maior de bens comuns e uma
prestação menor de bens próprios, ficando, neste caso, credor do património comum o
cônjuge que era titular do bem próprio.
A reintegração da prestação do cônjuge deve ser feita pelo valor que tiver à data
da liquidação. Se houver aumento de valor em consequência da prestação investida,
esse fator dever ser tido em conta aquando da restituição.

[85] O regime da separação de bens


O art. 53.° do Código de Família prevê que, se o regime adotado pelos nubentes
for o da separação de bens, cada um deles conserva o domínio, fruição egestão dos seus
bens presentes e futuros, podendo deles dispor livremente, com as restrições previstas
na lei.
Os rendimentos desses bens, tal como os frutos e dividendos regulares que eles
produzam, os salários e retribuição por trabalho são património exclusivo de cada
cônjuge. Segundo este regime, existem duas massas patrimoniais absolutamente
separadas, uma de cada cônjuge, ou seja, os bens próprios do marido e os bens próprios
da mulher.
Neste regime predomina, pois, como ideia central, a absoluta separação entre os
património dos cônjuges. Aqui só há bens próprios, que englobam tanto os bens de que
o cônjuge seja titular antes do casamento, como aqueles que for adquirindo durante a
sua vigência. Neles se integram pois, os respetivos frutos, rendimentos ou quaisquer
benefícios patrimoniais.
E a separação é completa, não só no domínio e fruição de bens, mas também —
como consequência daquelas premissas — no que toca em geral, ao poder de disposição
e de oneração de bens, tendo os cônjuges a livre administração dos bens, que podem
gerir de forma autónoma.
Esta circunstância não exonera os cônjuges do dever de contribuir para os
encargos da vida familiar, essa contribuição como dever essencial à vida conjugal,
permanece seja qual for o regime de bens adotado e é proporcional à capacidade
económica de cada cônjuge.
No regime da separação de bens não há património comum. Há, por um lado, os
bens da mulher e, por outro, os bens do marido. Apesar de não haver bens comuns, pode
suceder que haja alguns bens que sejam pertença de ambos os cônjuges em regime de
compropriedade.
Essa compropriedade está sujeita às regras gerais dos direitos reais, e não ao
regime específico da comunhão matrimonial de bens, razão pela qual qualquer dos
cônjuges pode pedir, a todo o tempo, divisão do bem de que é coproprietário, através
do processo de divisão da coisa comum.
O cônjuge pode também dispor livremente da sua quota-parte desses bens.
O n.° 2 do art. 53.° prevê que, em caso de dúvida, se presume a compropriedade
dos bens móveis. Essa presunção pode ser ilidida através de prova em contrário. No
Código Civil previa- se que os cônjuges podiam fazer constar da convenção antenupcial
cláusulas sobre a propriedade de certos bens móveis (art. 1736.°).
Tal previsão não consta do Código de Família, mas nada impede que os nubentes
assinem, antes da celebração do casamento, se assim o quiserem, documento de que
conste a natureza própria de certos bens móveis. A eficácia de tal declaração em relação
a terceiros será certamente limitada e não impedirá que estes usem quaisquer meios de
prova para afastar o valor de tal declaração.
O Código de Família impõe algumas exceções quanto ao poder de livre
disposição e administração de bens. Essas restrições à regra da liberdade e autonomia
dos cônjuges quanto ao seu património próprio são impostas pela lei em razão do fim
específico a que tais bens estão afetos, e que tem a ver com a estabilidade do lar
conjugal.
Essas exceções, que restringem o poder de disposição de bens mesmo existindo
o regime de separação de bens, são as que vêm consignadas:
a) no art. 56.° n.° 2, alíneas a) e b) — que se refere «a bens móveis utilizados
pelo outro cônjuge como instrumentos próprios ou comuns de trabalho ou
utilizados na vida do lar»;
b) no art. 57.°, que se refere «à disposição do direito ao arrendamento da
residência defamília».
Na alínea a) procura-se proteger não só os bens usados pelo outro cônjuge na sua
atividade profissional, mas ainda os móveis que constituem o recheio da casa e são
usados pelo agregado familiar. Eles englobam ao mobiliário, eletrodomésticos, roupas,
objetos de adorno, etc.
Na alínea b) protege-se o direito à residência familiar, que é atribuído aos dois
cônjuges simultaneamente. O Código de Família não prevê essa proteção legal no caso
de a residência familiar estar estabelecida em bem imóvel que seja propriedade de um
só cônjuge.
No regime de separação de bens entendeu-se que, para se determinar a
titularidade dos bens como propriedade de um dos cônjuges, basta a confissão do outro.
Mas tal confissão não poderá prejudicar direitos de herdeiros ou credores do cônjuge
em causa. No caso de dúvida sobre a titularidade dos bens móveis, pertencerá metade a
cada cônjuge, não em regime de comunhão, mas em regime de compropriedade.
No património próprio de cada cônjuge incluem-se ainda as dívidas próprias e as
dívidas comuns de ambos como adiante veremos.

[86] Os poderes de administração dos bens; responsabilidade do cônjuge


administrador; poderes de oneraçáo e de disposição de bens.
A vida matrimonial implica, na sua prática diária, a celebração de atos jurídicos
correntes que se revestem de caráter patrimonial, sendo necessária uma certa
organização interna que regule os efeitos e implicações jurídicas de tais atos.
A família constitui um núcleo ou célula social, que é uma unidade em relação a
terceiros, unidade que possui em regra um património comum, que pode ser variável
mas que em princípio deve existir. Toma-se necessário, por isso, que os atos jurídicos
que interessam à vida da família estejam devidamente vinculados.
Essa vinculação pode ser definida através das consequências que tais atos vão ter
em relação ao património comum, ainda que praticados unicamente por um cônjuge, ou
através do concurso dos cônjuges que a lei exige no momento da própria celebração do
ato.
Os poderes de administração de bens conferidos aos cônjuges variam,
obviamente, de acordo com as conceções ideológicas subjacentes aos diferentes
ordenamentos jurídicos, pois reside aí uma das pedras de toque para aferir a existência
(ou não) de igualdade dos cônjuges no casamento.
Os poderes de administração, oneração e alienação de bens dos cônjuges
dependem igualmente do regime económico do casamento.
Em qualquer desses regimes, os cônjuges podem individualmente abrir contas de
depósito em instituições bancárias e movimentá-las livremente. Podem ainda gerir
títulos de crédito, em seu nome ou ao portador, estando todas as operações bancárias
salvaguardadas pelo sigilo bancário, mesmo relativamente ao outro cônjuge.

A — No regime de comunhão de adquiridos


1. Administração ordinária e administração extraordinária
No regime de comunhão de adquiridos existem os bens próprios de cada cônjuge
e os bens comuns de ambos, e a regra geral é a de que cada cônjuge administra os seus
bens próprios (art. 54.°, n.° 1 do Código de Família),dispondo dos respetivos frutos e
rendimentos. No entanto, e como exceção, um cônjuge pode administrar os bens
próprios do outro ou os bens comuns quando sejam por si usados exclusivamente como
instrumento de trabalho.
O cônjuge tem ainda a administração dos bens comuns, designadamente dos que
constituem o produto do seu trabalho e a administração ordinária dos bens comuns do
casal (art. 54.°, n.° 3).Pode assim dispor de bens móveis cuja titularidade ou posse lhe
pertença, tal como viaturas automóveis, títulos de crédito, numerário, etc.
Como exceção, o cônjuge pode ter a administração dos bens próprios do outro
cônjuge quando ele se encontrar ausente, ou de qualquer forma impedido de os
administrar (art. 54.°, n.° 2, alínea b)). Estes poderes derivam ope legis sem necessidade
de constituição de mandato.
Porem qualquer cônjuge, em relação aos seus bens próprios ou comuns, pode
sempre escolher mandatário para os administrar, outorgando procuração a terceiro ou
ao outro cônjuge se assim o quiser.
A impossibilidade de administração pelo próprio pode decorrer do facto da
ausência do cônjuge ou de qualquer impedimento do exercício da administração (por
exemplo, doença, prisão, etc.).
Esta disposição veio afastar expressamente largas discussões na doutrina sobre
se o cônjuge proprietário podia ou não conferir procuração a terceiro para administrar
os seus bens. Se o fizer, o outro cônjuge já não pode ser chamado à administração dos
bens próprios dele, mas caso o não faça, o cônjuge pode, por força do poder legal,
exercer a administração sem necessidade da outorga de qualquer procuração.
Na mesma linha de orientação, o citado art. 9.°, n.° 3 da Lei n.° 1/04 permite que
o sócio que esteja impossibilitado de exercer os respetivos direitos possa ser
representado pelo cônjuge.
Quanto aos demais bens comuns, importa fazer a distinção entre:
— atos de administração ordinária e
— atos de administração extraordinária.
Para os primeiros, qualquer dos cônjuges tem legitimidade para os praticar
separadamente (fala-se de administração disjuntiva). Para os atos de administração
extraordinária, a regra é a da administração conjunta. O que significa que a
administração é exercida em comum por ambos os cônjuges, que têm legitimidade ativa
conjunta.
A distinção entre atos de administração ordinária e atos de administração
extraordinária radica no facto de se tratar de ato normal dentro dos atos que representam
a gestão dos bens, ou de um ato fora do normal ou extraordinário.
A gestão de qualquer património concretiza-se mediante atos que podem
qualificar-se como atos de administração ordinária e atos de administração
extraordinária.
São atos de administração ordinária os que dizem respeito:
a) à conservação dos bens administrados;
b) à promoção da sua frutificação normal.
Neles se englobam o cultivo de uma quinta, a colheita de café numa roça, a venda
de crias de um rebanho. Ou atos que se destinem à conservação de imóveis, como a
substituição de um telhado, de um tubo de canalização, ou de móveis, como a reparação
de uma viatura automóvel, etc.
Como atos de conservação podem indicar-se as capinas e limpeza de prédio
rústico. Como atos que se destinam à frutificação normal de um bem, os que se referem
à compra de sementes, às vacinas para gado, etc.
Os atos de administração extraordinária envolvem a transformação da própria
natureza do bem, como seja a destruição de um pomar para o substituir por um aviário,
a construção de benfeitorias num prédio rústico ou a destruição das já existentes, como
a feitura de um armazém, a demolição de um estábulo, a construção de um açude.
Os atos de administração extraordinária envolvem a alteração da substânciada
própria coisa ou a substituição de um bem por outro, e podem envolver poderes de
disposição sobre os bens.
2. Responsabilidade do cônjuge administrador
O art. 55.°, que regula o exercício da administração, dispensa o cônjuge
administrador da obrigação de prestar contas da sua administração relativa a bens
comuns ou próprios do outro cônjuge. Goza, pois, de um estatuto especial, diferente
daquele que é instituído por lei para os administradores de bens alheios.
O legislador reconhece, neste caso, como no caso da administração dos bens de
filhos menores atribuída aos pais, que se torna muito difícil exigir prestação de contas
entre pessoas que vivem em economia comum. Além de que, se impusesse a obrigação
periódica de prestação de contas entre os cônjuges, esse regime iria causar perturbação
na sua vida pessoal.
Embora não haja a obrigação de prestar contas, o outro cônjuge tem o direito à
informação e deve manter-se informado sobre os negócios da família, tendo acesso à
documentação que esteja na posse do outro.
Não obstante, a parte final do art. 55.° prevê que o cônjuge administrador possa
ser responsabilizado pelos atos que pratique em prejuízo do outro cônjuge ou do casal,
intencionalmente ou com grave negligência. Tal pode acontecer quando a aplicação dos
bens tenha sido feita para fins distintos dos encargos da vida familiar ou de forma a
lesarem os interesses da família.
A lei exige que os atos sejam intencionais, visando o prejuízo do outro cônjuge
ou do casal, considerando-se abrangida nesta disposição não só a conduta dolosa, com
fraude, violando os interesses da família, mas também a conduta gravemente negligente,
envolvendo a negligência consciente.
Se um dos cônjuges lesar ou tentar lesar gravemente os interesses da família, o
outro pode recorrer a tribunal e pedir que sejam tomadas providências de caráter urgente
na defesa dos seus interesses.
O Código Civil português prevê até que o cônjuge prejudicado pela
admi¬nistração lesiva do outro, possa requerer a simples separação judicial de bens.
Esta disposição, como vimos, não tem equivalente no Código de Família, pelo que,
perante tal situação, o cônjuge só poderá reagir pedindo a anulação do ato ou atos
lesivos dos seus interesses e prejudiciais ao interesse de família, ou propondo contra o
outro cônjuge ação de indemnização pelos danos sofridos.
Em síntese: a regra é que a administração ordinária dos bens comuns é atribuída
a qualquer dos cônjuges (art. 54.°, n.° 3 do Código de Família) já que a administração
extraordinária é atribuída em conjunto a ambos os cônjuges.

3. Os poderes de disposição e oneração de bens


Vimos já que a gestão de um património implica, por um lado, atos de
administração e, por outro, atos de disposição ou de oneração.
Interessa fixar quais os poderes de disposição e de oneração que os cônjuges
detêm e que vêm expressos no art. 56.° do Código de Família.
A regra vem no n.° 1, que diz: «Qualquer cônjuge tem legitimidade para alienar
ou onerar por ato entre vivos os bens próprios ou comuns de que tenha a administração,
salvo o disposto no n.°2.»
Daí que o cônjuge possa, em regra, dispor livremente de qualquer bem móvel
próprio (ex.: dos direitos de autor auferidos), ou comum (ex.: salários auferidos, rendas
de imóveis, etc.). Já em relação aos bens próprios do outro cônjuge o administrador só
pode praticar atos que envolvam administração ordinária.
Incluídos no poder de disposição de bens móveis estão os valores monetários,
títulos de crédito, depósitos bancários, estes protegidos pelo sigilo bancário, etc..
As exceções aos poderes de livre disposição de bens móveis vêm consignadas
no n.° 2 do art. 56.° e aplicam-se qualquer que seja o regime de bens (comunhão de
adquiridos ou separação de bens). São normas específicas que foram inseridas no direito
de família de diversos países e que têm por finalidade proteger em especial certos bens
considerados essenciais à vida do lar ou à atividade profissional do outro cônjuge. São
elas as referentes:
a) aos bens móveis próprios de um cônjuge exclusivamente utilizados pelo outro
como instrumento de trabalho — alínea a) do n.° 2 do art. 56.°;
b) aos bens móveis próprios ou comuns utilizados conjuntamente pelos cônjuges
na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho — alínea b) do n.° 2 do art.
56.°.
Os instrumentos de trabalho englobam os móveis usados na atividade
profissional do cônjuge, sozinho, ou em comum com o outro. Os bens utilizados na vida
do lar são aqueles que constituem o recheio da casa e são usados pela família.
Isto significa que o cônjuge que tenha como bem próprio uma viatura automóvel
que o outro cônjuge use como motorista profissional não a pode alienar sem o
consentimento deste. Da mesma forma, os bens que constituem o recheio da casa
(mobílias, fogões, louças, etc.), quer sejam próprios de cada cônjuge quer sejam
comuns, só podem ser alienados com o consentimento de ambos.
Relativamente aos bens imóveis e ao estabelecimento comercial, considerados
de especial relevância para a economia familiar, dispõe a regra contida no n.° 3 do art.
56.°. Os imóveis próprios ou comuns e o estabelecimento comercial só podem ser
alienados ou onerados por ato entre vivos, com o acordo de ambos os cônjuges, salvo
se vigorar entre eles o regime de separação de bens.
É compreensível que a lei exija o consentimento de ambos os cônjuges para atos
de disposição que tenham por objeto bens imóveis ou estabelecimento comercial. É que,
mesmo que se trate de bens próprios de um dos cônjuges, os rendimentos ou frutos por
eles produzidos são considerados bens comuns, por força do n.° 2 do art. 51.°. Daí o
interesse de ambos os cônjuges quanto ao destino desses bens.
Considera-se porém que hoje em dia os valores mobiliários podem traduzir-se
numa maior relevância económica do que os imobiliários, pelo que a proteção que a lei
dá a estes últimos não tem muita razão de ser.
Pela sua especial relevância na vida do lar, o Código de Família impõe que todo
o ato de disposição relativo ao arrendamento da residência de família seja deliberado
por acordo de ambos os cônjuges. Segundo a regra do art. 57.°, o acordo de ambos os
cônjuges é exigido para:
a) a alteração, resolução e denúncia do contrato de arrendamento, por parte do
arrendatário;
b) a cessão da posição jurídica do arrendatário;
c) o subarrendamento ou o empréstimo total ou parcial.
Mesmo que o direito ao arrendamento pertença a um só dos cônjuges, por ter
sido adquirido anteriormente ao casamento, o titular do direito não poderá praticar
nenhum ato de modificação ou de alienação desse direito sem o consentimento do outro
cônjuge.
É evidente que o que tem de existir é um direito ao arrendamento da residência
onde vive o casal. Se nenhum dos cônjuges for o arrendatário da casa de habitação onde
residem, a questão da alienação não se pode pôr.

Como atrás apontámos, o Código de Família não prevê o direito à atribuição de


residência familiar se ela se situar em imóvel que for bem próprio de um dos cônjuges.
Se tal acontecer, são de aplicar as regras gerais do direito da propriedade de cada um,
com as restrições já apontadas quanto aos poderes de alienação e de oneração dos bens
imóveis contidas no já citado art. 56.° n.° 3, aplicáveis ao regime de comunhão de bens
adquiridos.
O consentimento do cônjuge pode ser expresso ou tácito. Mas, se o ato estiver
sujeito a forma prevista na lei, o consentimento tem de revestir essa mesma forma ou
deve ser dado no próprio ato.
Protege-se, no art. 57.°, o direito ao arrendamento feito a terceiros de imóvel
destinado à residência do agregado familiar, procurando-se salvaguardar o direito à
habitação de todos os membros da família, essencial à sobrevivência da pessoa humana.
Quanto ao regime de aceitação de doações, heranças ou legados, a regra
constante do art. 58.°, n.° 1 é a de que cada um dos cônjuges não necessita do
consentimento do outro para o fazer. Em princípio, tais atos irão enriquecer o
património familiar. Pode acontecer que a aceitação de tais bens acarrete encargos, mas,
se assim for, são de aplicar as regras gerais previstas no Código Civil, que limitam a
responsabilidade do donatário ou herdeiro.
Em contrapartida, o repúdio de herança ou legado só pode ser feito por ambos os
cônjuges. Neste caso, o cônjuge que não seja o beneficiário do direito de herança ou
legado tem que dar o seu acordo — art. 58.°, n.° 2. E isto porque o repúdio pode implicar
a perda de um valor patrimonial.
As ações de que possa resultar a perda de um direito que só possa ser alienado
com o consentimento de ambos os cônjuges devem ser propostas contra o marido e a
mulher verificando-se nesse caso um litisconsórcio necessário, de acordo com o
estipulado nos artigos 18.° e 19.° do Código do Processo Civil.
B — No regime de separação de bens
A cada um dos cônjuges é atribuído o poder de livre fruição e domínio dos seus
bens, uma vez que cada um dos cônjuges conserva a titularidade dos bens anteriores ou
posteriores ao casamento. Cada cônjuge pode administrar livremente os seus bens e
dispor deles a título individual, e sem o consentimento do outro, qualquer que seja a
natureza do bem, móvel ou imóvel.
Não são assim aplicáveis as restrições constantes do n.° 3 do art. 56.°, referentes
a bens imóveis e ao estabelecimento comercial, nem a referente ao repúdio de herança
ou legado, mencionada no art. 58.°, n.° 2.
As restrições aos poderes de alienação ou de oneração de bens quando vigora o
regime de separação de bens são as já mencionadas e que se referem:
a) aos bens móveis usados como instrumento de trabalho pelo outro cônjuge ou
por ambos conjuntamente — art. 56.°, n.° 2, alínea a);
b) aos bens móveis utilizados na vida do lar — art. 56.°, n.° 2, alínea b);

c) ao direito ao arrendamento à residência de família — art. 57.°. [87]


Suprimento judicial do acordo e impugnação judicial
O art. 59.° permite que o acordo do outro cônjuge seja suprido: a) no caso de
recusa injustificada;
b) no caso de impossibilidade de obtenção.
Pode ocorrer que o cônjuge que deva dar a autorização para a prática de
determinados atos se recuse, sem fundamento, a dar esse consentimento, ou que esteja
em situação que o impossibilite de dar esse consentimento (por estar ausente, por estar
doente ou por qualquer outro motivo).
Nestes casos, o tribunal é chamado a intervir e a ponderar se é ou não de autorizar
a prática do ato. Este processo de suprimento vem regulado como processo de jurisdição
voluntária nos artigos 1425.° e 1426.° do Código de Processo Civil. Ao ponderar se
deve ou não suprir o consentimento, o tribunal deve ter em conta o interesse da família.
A prática de qualquer dos atos mencionados na lei por um só cônjuge sem o
consentimento do outro leva, consoante os casos, à sua anulabilidade ou nulidade.
O cônjuge pode pedir judicialmente que o mesmo seja anulado nos termos do
art. 60.° do Código de Família.
São atos anuláveis os que envolverem alienação ou oneração dos bens descritos
no art. 56.°, n.° 2: os bens próprios usados pelo outro como instrumento próprio ou
comum de trabalho e os usados na vida do lar; os imóveis, próprios ou comuns, e o
estabelecimento comercial, salvo se vigorar o regime de separação de bens; o direito ao
arrendamento da residência familiar; o repúdio de herança ou legado.
O direito à impugnação judicial dos atos lesivos do património de um dos
cônjuges é transmissível aos seus herdeiros, como permite a última parte do art. 60.°,
n.° 1.
Os atos praticados por um só cônjuge que devessem ser praticados com o acordo
dos dois estão feridos de anulabilidade.
Embora nada se diga quanto à confirmação posterior do ato nulo, ela é possível,
nos termos gerais de direito (art. 288.° do Código Civil), tomando a forma tácita ou
expressa, o que fará cessar a anulabilidade. Se a autorização for posterior, ela toma a
forma de ratificação.
Quando o cônjuge pretender impugnar o ato deve fazê-lo dentro do prazo de um
ano a partir da data em que o requerente dele teve conhecimento, mas nunca depois de
decorridos três anos sobre a sua celebração — art. 60.°, n.° 2.
O prazo concedido conta-se assim da data em que o cônjuge interessado teve
conhecimento da prática do ato pelo outro cônjuge e não da data da sua celebração,
beneficiando-se o cônjuge em relação ao interesse de terceiros. É posto o limite de
tempo de três anos, dentro do qual a anulação pode ser pedida, para também desta forma
se proteger o interesse do adquirente do bem em causa.
O n.° 3 do art. 60.° ressalva os direitos do adquirente de boa fé relativos a coisa
móvel não sujeita a registo, que fica a salvo do pedido de anulabilidade.
Os interesses do cônjuge que não interveio no ato são assim postergados cm
relação ao terceiro adquirente. O cônjuge que praticou o ato sem consentimento do outro
cônjuge, com intenção de o prejudicar ou com grave negligência, poderá ser
responsabilizado caso se verifique o condicionalismo do já citado art. 55.° do Código
de Família.
Situação distinta é a referida no n.° 4 do art. 60.°, que manda aplicar à alienação
ou oneração de bens próprios do outro cônjuge as regras relativas à alienação de coisa
alheia. Estamos perante um ato nulo, ferido de nulidade substancial.
Esta disposição refere-se a uma situação ainda mais grave, aquela em que um
dos cônjuges aliena um bem que lhe não pertence, por ser próprio do outro cônjuge. E,
embora exista um vínculo matrimonial entre os cônjuges, isso não impede que o bem
seja alheio em relação ao outro cônjuge.
Os artigos. 892.° e seguintes do Código Civil contêm as normas gerais aplicáveis
à venda de bens alheios, dizendo que ela é nula. As regras quanto aos prazos de
impugnação são as da nulidade e não as da mera anulabilidade, podendo ela ser arguida
a todo tempo. Isto significa que as normas aplicáveis são as normas gerais dos negócios
jurídicos contidas na lei civil e não as normas especiais do direito de família.

[88] As dívidas dos cônjuges


A legitimidade para cada cônjuge contrair dívidas sem o consentimento do outro
cônjuge vinha assegurada pelo n.° 1 do art. 1690.° do Código Civil. Este princípio não
vem contido no Código de Família, mas devemos dar como assente que é um princípio
também aceite por este Código, que não vem expresso por desnecessário.
Está implícito no princípio da igualdade dos cônjuges, consagrado no art. 21.°,
que é extensivo a todos os direitos e deveres conjugais, quer respeitem à esfera pessoal
quer à esfera patrimonial.
Pode dizer-se que tanto o marido como a mulher mantêm, mesmo depois de
casados, os mesmos poderes patrimoniais para contrair dívidas, sem necessidade do
consentimento do outro.
As dívidas podem ser contraídas pelos cônjuges em relação a terceiros ou pelos
os cônjuges entre si.
O que varia consoante o regime de bens é a natureza da dívida, é o caráter
solidário ou conjunto da obrigação, e ainda o complexo de bens que respetivamente
respondem pelas dívidas contraídas pelos cônjuges.
Consoante os casos, podem ser chamados ao pagamento das dívidas os bens
próprios, os bens comuns ou o direito à meação nos bens comuns.
No Código de Família as dívidas são classificadas, qualquer que seja o regime
de bens, em:
a) dívidas comuns;
b) dívidas exclusivas.

A — As dívidas comuns
No regime de comunhão de adquiridos, a responsabilidade dos cônjuges pelas
dívidas comuns é solidária — art. 61.°, n.° 2; no regime de separação de bens, a
responsabilidade é meramente conjunta — art. 63.°, n.° 2 do Código de Família.
As dívidas comuns vêm contidas no art. 61.° do Código de Família e podem ser
contraídas por ambos ou por um só cônjuge, mas são comunicáveis ao outro. Na verdade
desviando-se das regras comuns do direito de obrigações segundo as quais só o próprio
pode contrair dívidas que o vinculem, no âmbito das relações matrimoniais pode um só
cônjuge vir a contrair dívidas que o obriguem a ele e ao outro cônjuge que não interveio
no negócio jurídico.
Tal acontece em relação aos gastos decorrentes da vida familiar normal que têm
que ser feitas para acorrer às necessidades do agregado familiar e devem corresponder
ao padrão económico-social de vida do casal.
Estas dívidas são dívidas comunicáveis pois vão responsabilizar o outro cônjuge
que não interveio no contrato de que a dívida deriva.
São elas:
a) As dívidas contraídas por ambos ou por um deles para ocorrer aos encargos
da vida familiar — art. 61.°, n.° 1.
Embora o Código o não diga expressamente, pode admitir-se que a dívida seja
anterior ao casamento, como por exemplo as despesas com a viagem de núpcias, com a
aquisição de mobiliário para a residência familiar, etc..
É importante precisar o conceito de encargos da vida familiar, porque eles
englobam o maior caudal de despesas do agregado familiar. Algumas legislações, como
a francesa e a espanhola, discriminam na lei o que deve entender-se por «cbargesdu
mariage» ou «cargos dei matrimónio».
Eles abrangem os gastos necessários à subvenção das necessidades da família (o
casal, os filhos e outros integrantes do agregado familiar), necessidades que englobam
o sustento, alimentação, educação dos filhos, as despesas de habitação, de instalação,
de férias e descanso, os gastos com assistência médica, as despesas judiciais, sejam elas
feitas no interesse de um ou de ambos os cônjuges, etc..
Essas despesas devem pois estar em consonância com os usos e a situação
económica dos cônjuges ou seja com o respetivo trem de vida e não devem ser
excessivas, sendo em regra de natureza periódica, sem embargo de por vezes surgirem
esporadicamente por contingências da vida familiar.
Se algum dos cônjuges tiver filhos de união anterior que façam parte do agregado
familiar, os encargos respeitantes ao sustento, habitação e educação desses filhos estão
incluídos nos encargos normais da vida familiar.
A contribuição de ambos os cônjuges para os encargos normais da vida familiar
é, como já tivemos ocasião de ver, a concretização de um dos deveres conjugais, o dever
de assistência material recíproco, entre marido e mulher.
Os alimentos devidos aos descendentes comuns, bem como aos de cada um dos
cônjuges anteriores ao casamento, são considerados como encargos normais da vida
familiar.
Na verdade, por força do disposto no n.° 4 do art. 61.° foi tornado mais amplo o
conceito de encargos normais da vida familiar, pois agora abrange os alimentos devidos
aos descendentes comuns e aos descendentes de cada um dos cônjuges, havidos antes
do casamento.
Nesta disposição equiparam-se todas as despesas havidas com os alimentos dos
descendentes comuns e dos descendentes que qualquer dos cônjuges tenha tido antes do
casamento, quer o alimentado viva em economia comum com os cônjuges, quer viva
em economia separada. Por exemplo, os filhos nascidos de uma união de facto anterior
que vivam com o outro progenitor, mas que recebam pensão de alimentos de um dos
cônjuges.
Esta obrigação, que é solidária para ambos os cônjuges, revela a importância da
declaração inicial para o casamento, que obriga a que se indiquem os filhos havidos
antes da sua celebração e que vem expressa no art. 3.°, n.° 2, alínea e) do R.A.C.
Procura-se desta forma proteger os interesses dos filhos, pois a obrigação de alimentos
vai ser extensiva ao outro cônjuge, mesmo não sendo ascendente do alimentado.
A comunicabilidade da dívida deriva por conseguinte da finalidade que se teve
em vista, independentemente do facto de terem sido contraídas por um só cônjuge.
b) As dívidas contraídas em proveito comum do casal — art. él.°, n.° 1.
As dívidas abrangidas por esta previsão têm que ser constituídas depois da
celebração do casamento e dentro dos poderes normais da administração atribuídos ao
cônjuge. O proveito comum do casal afere-se pelo fim visado ao ter sido contraída a
dívida, e não pelo resultado efêtivamente obtido com a transação.
O proveito comum do casal é um conceito jurídico distinto do dos encargos
normais da vida familiar. Ele pressupõe, por parte do cônjuge, que ele contraiu
a dívida no exercício dos seus poderes de administração de bens e que haja uma
situação objetiva da qual possa inferir-se que a intenção era obter um determinado
proveito ou beneficio para o casal.
A atividade exercida deve ter em vista um determinado beneficio para o casal
Por outras palavras, deve ser uma atividade lucrativa, da qual, segundo as regras da
experiência comum, deverá resultar uma vantagem material para o casal. Ora, segundo
os princípios do risco ou da probabilidade, os dois cônjuges, que podem auferir o lucro,
também serão responsáveis pelo prejuízo, se tal ocorrer.
Por exemplo: um dos cônjuges contrai uma dívida para a instalação de um
aviário, com a mira de obter lucro de tal exploração; se essa exploração vier a cessar
por ocorrer uma epidemia que dizime as aves, a dívida deve considerar-se contraída em
proveito comum do casal, muito embora a empresa não tenha dado lucro, mas sim
prejuízo.
O proveito comum do casal engloba não só interesses de ordem material mas
também interesses de ordem inteletual. Como exemplo destes últimos pode indicar-se
o da formação profissional superior de um dos cônjuges. É o fim visado pelo devedor
que deve ser tido em conta, mas esta intenção deve ser apreciada dentro das regras
normais da experiência comum e corresponder a uma atividade da qual se possa
legitimamente esperar beneficio para o casal.
O Código de Família nada diz sobre as dívidas contraídas pelo cônjuge no
exercício do comércio, ao contrário do que dispunha o art. 1691.°, alínea d) do Código
Civil.
A Lei n.° 6/03 veio alterar e revogar diversos artigos do Código Comercial, ainda
vigente, designadamente dando a seguinte redação ao art. 15.°: «As dívidas comerciais
do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio».
Esta nova redação segue a que foi adotada pela lei portuguesa, o Decreto-Lei n.°
363/77, de 2 de setembro, e fez desaparecer a presunção que havia na redação anterior
do mesmo artigo de que as dívidas do cônjuge comerciante se presumiam contraídas
em proveito comum do casal.
O anterior art. 1691.°, n.° 1, alínea d), do Código Civil que responsabilizava
ambos os cônjuges peias dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do
comércio, foi revogado por ter sido revogado todo o seu Livro IV e o art. 61.° do Código
de Família não tem disposição equivalente.
Nesta conformidade, entendemos que desaparecida a presunção legal, incumbirá
sempre ao credor do comerciante o ónus de alegar e de provar que a dívida contraída
no exercício do comércio, entendendo-se o exercício do comércio como prática
reiterada e habitual, resultou em proveito comum do casal.
Este regime não se aplica, porém, se entre os cônjuges vigorar o regime de
separação de bens.
A Lei n.° 6/03 veio ainda no seu art. 3.° revogar os artigos 9.° e 16.° do Código
Comercial de conteúdo abertamente discriminatório em relação à mulher, consagrando
agora no art. 7.° que «tem capacidade para praticar atos de comércio toda a pessoa com
capacidade civil».
O proveito comum do casal não se presume, salvo quando a lei o declarar, como
era o caso da lei especial que regulava e protegia as relações comerciais.
Mesmo neste caso, deve entender-se que a lei se refere ao cônjuge comerciante
e não a atos isolados de comércio. São também de excluir os atos de mero favor, mesmo
se praticados no exercício de atividade comercial.
O ónus da prova do proveito comum, quando a lei não fizer presumir a sua
existência por força de disposição especial, recai sobre o credor. Cabe ao cônjuge
interessado fazer a prova do afastamento da presunção legal, quando ela existir, e cabe
ao credor a sua prova, no caso de falta de presunção — art. 61.°, n.° 3.A regra é a de
que o credor deverá fazer a prova da existência do proveito comum do casal, cabendo
ao cônjuge ou cônjuges interessados fazer a prova do afastamento da presunção, quando
existir lei especial a presumir esse proveito comum.
c) Dívidas que onerem bens próprios ou bens comuns.
As dívidas que recaiam sobre bens próprios de um dos cônjuges mas que
produzam rendimentos comuns que vão beneficiar ambos são também consideradas
como dívidas comuns. É porém necessário que vigore o regime de comunhão de bens
entre o casal.
Devem ser incluídas nas dívidas contraídas em proveito comum do casal as que
onerem doações, heranças ou legados, que vinham mencionadas no art. 1693.°, n.° 2 do
Código Civil, e ainda as que recaiam sobre bens próprios ou bens comuns, desde que
esteja em causa a perceção dos rendimentos ou frutos desses bens.
Compreende-se que os encargos que recaiam sobre bens comuns (quando a
doação, herança ou legado venha a ingressar nos bens comuns) ou sobre os bens
próprios (quando esteja em causa a perceção de rendimentos) sejam encarados pela lei
como uma dívida comunicável. Há, porém, que restringir este caráter de dívida comum
no caso de doação, legado ou herança, pois a dívida só poderia ir até ao valor do bem
ou direito em causa e não para além desse valor.
No caso de encargos sobre bem próprio de um cônjuge, só há comunicabilidade
da dívida se este produzir fruto ou rendimento, pois se assim não for a dívida não é
comunicável.
d) São ainda consideradas como dívidas comuns as queforam contraídas por
ambos os cônjuges ou por um deles com o acordo do outro — art. 61.°, n.° 2 do Código
de Família.
Neste caso não é relevante saber-se qual a natureza da dívida nem qual a sua
finalidade, porque existe a vontade de ambos os cônjuges no negócio jurídico de que
resultou a dívida, e, como tal, nos termos gerais de direito, a dívida é de ambos, como
sujeitos da relação jurídica em causa.
Os factos imputáveis ao cônjuge podem ser ilícitos ou lícitos, sejam factos
culposos ou não culposos.
As dívidas que derivem de atos ilícitos praticados por um dos cônjuges são
sempre incomunicáveis.
e) Dívidas que derivem da responsabilidade objetiva de um dos cônjuges.
No caso da responsabilidade meramente civil, dispõe a segunda parte da alínea
b) do art. 62.° que, se eles estiverem abrangidos pelo disposto no art. 61.°, n.°s 1 e 2,
podem obrigar ambos os cônjuges, desde que entre eles vigore o regime de comunhão
de bens.
Por exemplo: a responsabilidade por acidente de viação na qualidade de
proprietário da viatura que o ocasionou, quando a viatura circulasse em benefício
comum do casal. Quando a responsabilidade civil não derivar de dolo ou culpa do
cônjuge devedor, mas de

responsabilidade pelo risco em razão de atividade lucrativa por ele desenvolvida,


a dívida é comunicável.
B — As dívidas exclusivas
As dívidas exclusivas podem também designar-se por dívidas singulares,
próprias ou dívidas pessoais.
São as dívidas incomunicáveis e contraídas por um só dos cônjuges.
Vêm expressas no art. 62.° as dívidas que são de exclusiva responsabilidade do
cônjuge que as contraiu:
a) Dívidas contraídas por cada um dos cônjuges, sem o acordo do outro.
Desde que a dívida tenha sido contraída apenas por um dos cônjuges, sem o
consentimento do outro, e não tenha sido contraída para atender aos encargos da vida
familiar ou em proveito comum do casal (n.°s 1 e 2 do art. 61.°), ela só obriga o cônjuge
que assumiu individualmente a obrigação.
b) Dívidas provenientes de condenações por crimes, indemnizações, restituições,
custas judiciais ou multas por factos imputados a cada um dos cônjuges.
São todas as dívidas provenientes da responsabilidade criminal e civil conexa
com a responsabilidade criminal, bem como as provenientes da responsabilidade civil
extracontratual, quando resultantes da atividade pessoal do cônjuge.
c) As dívidas por alimentos não incluídas no n.° 4 do art. 61. °.
São as dívidas que se referem a qualquer das obrigações alimentares
genericamente previstas nos artigos. 249.° e 261.° do Código de Família.
Abrangem a prestação de alimentos a descendentes havidos depois do
casamento, a outros parentes (ascendentes, irmãos, etc.), a ex-cônjuge ou ex-
companheiro de união de facto.
Esta obrigação alimentar recai unicamente sobre o cônjuge que tenha o dever de
a prestar e é incomunicável ao outro cônjuge.
A última parte desta alínea c) do art. 62.° ressalva o caso de o alimentado viver
em comunhão de mesa e habitação com os cônjuges.
Neste caso estamos dentro da previsão geral contida no n.° 1 do art. 61.°, que
atribui à responsabilidade solidária dos cônjuges as dívidas contraídas para ocorrer aos
encargos normais da vida familiar. Como vimos, esses encargos abrangem todo o
dispêndio feito com os membros que constituem o agregado familiar.
d) São também dívidas exclusivas, como já mencionámos, as que recaem sobre
bens próprios de um dos cônjuges, desde que não esteja em causa a perceção de
rendimentos que sejam comuns e as dívidas que recaiam sobre liberalidade que tenha
sido atribuída a um dos cônjuges. Pelo disposto no art. 58.°, n.° 1 do Código de Família,
o cônjuge pode aceitar
doações, heranças ou legados sem o consentimento do outro, justificando-se que
os encargos sobre a liberalidade recebida recaiam sobre o cônjuge que a aceitou.

[89] Responsabilidade e garantia das dívidas


Como já assinalámos, a responsabilidade do casal pelas dívidas comuns é de
natureza solidária quando estiverem casados segundo o regime de comunhão de
adquiridos, e é meramente conjunta caso estejam casados no regime de separação de
bens.
O art. 63.° do Código de Família faz responder pelas dívidas comuns:
a) os bens comuns do casal;
b) os bens próprios de cada um.
Respondem em primeiro lugar os bens comuns. No caso de estes serem
insuficientes, cada conjunto de bens próprios do outro cônjuge é chamado para o
pagamento da dívida. A obrigação de satisfazer a dívida é extensiva solidariamente a
cada um dos cônjuges.
O art. 64.° do Código de Família refere-se aos bens que respondem pelas dívidas
que sejam da exclusiva responsabilidade de cada cônjuge.
Pelas dívidas exclusivas respondem:
a) os bens próprios do cônjuge devedor;
b) (ao mesmo tempo) o produto do seu trabalho;
c) a sua meação nos bens comuns.
Os bens próprios de cada cônjuge — tal como o produto do seu trabalho, que é
um bem comum (art. 51.°, n.° 1, alínea b)) — são chamados imediatamente para
satisfazer o pagamento das dívidas exclusivas. Entendeu-se retirar da proteção da
moratória legal o produto do trabalho, para não prejudicar os credores de forma tão
onerosa.
De resto, vigora quanto às dívidas exclusivas o princípio de que a meação nos
bens comuns só é determinável quando se operar a dissolução ou anulação do
casamento. Até lá, permanece a moratória legal que impõe que o cumprimento da
obrigação exclusiva de um dos cônjuges só é exigível quando o casamento for
dissolvido ou anulado — última parte do n.° 1 do art. 64.°.
Como já vimos quando estudámos a natureza jurídica da comunhão
matrimo¬nial de bens no casamento, esta moratória é instituída tendo em vista a
afetação dos bens comuns à satisfação das necessidades da vida da família.
É cada vez mais controverso saber se é de dar prevalência ou não aos interesses
da família sobre o interesse dos credores. Daí a determinação de restrições ao princípio
da moratória legal.
Além do facto já mencionado de a moratória não abranger o produto do trabalho
do cônjuge devedor, há ainda a ressalva do n.° 3 do art. 64.°, que fez arredar a moratória
quando se tratar de dívida que for uma das enunciadas na alínea b) do art. 62.°, que
engloba as provenientes de crimes, indemnizações ou outras dívidas por factos
imputáveis a cada um dos cônjuges.
Não há também lugar à moratória legal prevista no art. 64.° do Código da Família
quando for exigida ao cônjuge, o cumprimento de uma obrigação emergente de ato de
comércio, ainda que esta seja apenas em relação a um dos cônjuges, conforme já vimos,
conforme o que dispõe o art. 10.° da Lei n.° 6/03. Assim as dívidas contraídas no
exercício do comércio passam a ser imediatamente exigíveis, demonstrando a tendência
para o afastamento da moratória legal que favorece os cônjuges, mas prejudica os
legítimos interesses do credor.
Nestes casos, ponderou-se que o interesse das vítimas, dos credores do direito à
indemnização e do Estado como credor de multa ou custas judiciais e os de atividade
comercial, devia prevalecer sobre os interesses da família.

[90] Fim da comunhão de bens por execução judicial


Quando não haja lugar à moratória legal, e o credor não tiver que aguardar a
dissolução do casamento para obter a cobrança da dívida, pode este no processo de
execução movido contra um só dos cônjuges, pedir a citação do cônjuge do executado
para requerer, querendo, a separação de bens ou provar que ela já foi pedida noutro
processo, para que se opere a partilha de bens e se determine qual a meação de cada
cônjuge.
Ou seja, quando há lugar à moratória legal, a execução movida contra um só
cônjuge fica suspensa depois de penhorado o direito do devedor à meação nos bens
comuns (art. 825.°, n.° 1 do Código de Processo Civil), esperando que se opere a
dissolução do casamento.
Esta disposição deixou de estar em vigor no direito português tendo sido alterado
pelo Decreto-Lei n.° 38/2003, de 8 de março, que veio permitir que a questão da
comunicabilidade ou não comunicabilidade da dívida ao outro cônjuge seja aceite ou
não por este no próprio processo executivo.
O cônjuge devedor pode igualmente estar interessado em chamar à ação o outro
cônjuge e responsabilizá-lo pelo pagamento parcial da dívida alegando o fim para o qual
ela tenha sido contraída.(9)
Mas pode acontecer, de acordo com a lei do processo civil, que prossiga a
execução quando não haja lugar à moratória legal, devendo o credor pedir a citação do
cônjuge do devedor para requerer a separação de bens — art. 825.°, n.° 2 do Código do
Processo Civil/ ^
De igual modo se prevê, tanto no instituto da falência como no da insolvência,
que se proceda à separação de bens dos cônjuges. No art. 1237.°, n.° 1, alínea b) do
Código Processo Civil(11) prevê-se que o cônjuge do falido venha reclamar o seu
direito a separar da massa falida os seus bens próprios ou a sua meação nos bens
comuns.
No caso de declaração de insolvência de devedor não comerciante, o art. 1319.°
do Código do Processo Civil(12) prevê a separação das meações dos cônjuges.
Como se vê, nestes casos específicos, e de acordo com a parte final do art. 50.°
do Código de Família, «(...) salvo os casos previstos nesta lei» pode ocorrer o fim da
comunhão de bens no casamento, mesmo durante a sua vigência.
Mais adiante, a propósito da dissolução do casamento, veremos que esses efeitos
podem deixar de se produzir quando se verificar o fim da coabitação dos cônjuges e
esse facto constar da sentença que declarar o divórcio.
2. Não havendo lugar à moratória podem ser imediatamente penhorados bens
comuns do casal, conquanto que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação
do executado para requerer a separação de bens.
(11) ARTIGO 1237.°
(Restituição e separação de bens)
1. O processo e prazos para a reclamação e verificação de créditos são igualmente
aplicáveis:
(...)
b) À reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa
os seus bens próprios ou dotais ou a sua meação nos bens comuns.
(12) ARTIGO 1319.°
(Efeitos da declaração de insolvência do devedor casado)
1. A declaração de insolvência tem como consequência a separação das meações,
se o insolvente for casado em regime de comunhão.
2. Finda a apreensão, cita-se o cônjuge do insolvente para a separação de bens e
esta é processada por apenso, servindo de descrição de bens os autos de apreensão.
3. A falta de citação do cônjuge importa a anulação dos atos que se praticarem
posteriores à apreensão.
CAPÍTULO 15.0
A DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO

[91 ] Extinção do vínculo


O vínculo matrimonial, como fenómeno humano que é, está sujeito a diversas
vicissitudes. Por vezes as próprias relações entre os cônjuges chegam a deteriorar-se de
tal maneira que não é possível manter o casamento para os fins para que foi constituído.
Entre marido e mulher surgem situações de antagonismo e de desinteligência tais, que
tornam impossível a manutenção da vida em comum.
Outras vezes são factos naturais (como a morte), fenómenos sociais (como a
guerra) ou condutas produto da vontade humana (como o afastamento pessoal) que
sujeitam o casamento a contingências que vão atingi-lo na sua substância fundamental.
Todas estas questões põem em causa o casamento. A que mais debate tem
suscitado é a questão de saber se, em vida dos cônjuges, deve ou não ser mantido o
vínculo conjugal, ou, noutra perspetiva, a questão de saber como deve ser aceite na
ordem jurídica essa realidade de facto que é a cessação da vida em comum dos cônjuges.
As causas de dissolução do casamento são, em síntese, duas: a morte de um ou
de ambos os cônjuges simultaneamente, e o divórcio.
A morte dissolve ipsofacto o casamento; a data de morte é a data da dissolução
do casamento.
O Código de Família (artigo 74.°) prevê como causas de dissolução do
casamento a morte ou a declaração judicial de presunção de morte (que se equipara à
morte) e o divórcio.
Em certos Códigos de Família é considerada ainda como causa de extinção do
vínculo matrimonial a declaração da nulidade do matrimónio pela via judicial.
Na nossa conceção, o casamento ferido de invalidade é um ato que deixa de
existir na ordem jurídica após a sentença que declara a nulidade, muito embora se lhe
atribuam determinados efeitos jurídicos familiares no caso do «casamento putativo»
invocável pelo nubente que tenha contraído o casamento de boa fé.
Se é certo que se pode falar em extinção do vínculo matrimonial, quer ele se
opere por dissolução quer por invalidade, a verdade é que, no caso da anulação, o vício
do casamento vai reportar-se ao próprio ato que lhe deu origem, ou seja, defere-se ao
momento da sua celebração.
Na extinção por dissolução estamos perante um casamento que é válido e que
como tal é reconhecido na ordem jurídica.
Neste caso, o casamento válido vai ser extinto ou dissolvido em razão de factos
supervenientes, a morte ou uma causa legal de divórcio, a que a lei dá relevância para
operar a dissolução.
A dissolução do casamento por morte, que hoje surge como efeito óbvio do fim
do vínculo matrimonial, nem sempre o foi em tempos recuados. A morte do marido nem
sempre permitia à mulher contrair novo casamento. Em algumas sociedades, como na
índia, a viúva lançava-se viva para a pira onde ardia o corpo do marido defunto, para o
acompanhar na morte.
Na África, inclusivamente em certas zonas de Angola, ainda em tempos recentes,
quando morria um chefe importante, uma ou mais das suas mulheres eram imoladas em
sacrifício para o «servirem » para além da morte.
Também o sistema do levirato mantinha a mulher vinculada à família do marido,
mesmo depois da morte deste.
A viuvez é o estado civil do cônjuge que decorre da morte do outro cônjuge,
sendo a morte a causa da dissolução da maioria dos casamentos. É uma forma de
dissolução que decorre da ocorrência de facto natural, e que não suscita em regra
dificuldades de ordem jurídica.
O casamento dissolve-se no momento do falecimento do outro cônjuge, o qual
marca o início do estado de viuvez para o cônjuge sobrevivo.
[92] Separação judicial de pessoas e bens
A dissolução do casamento pode operar-se fundamentalmente por morte ou pelo
divórcio. Mas é importante também a figura jurídica da separação de pessoas e bens,
instituto específico do direito de família reconhecido em diversos países e que tinha
acolhimento no Código Civil anterior.
A aceitação de que o casamento se pode dissolver pelo divórcio não foi sempre
uma questão pacífica, sobretudo em países onde mais fortemente se fazem sentir as
convições de índole religiosa, predominantemente a católica.
Foi precisamente a conceção canónica do casamento que influenciou o sistema
jurídico português, segundo o qual o casamento tem a natureza perpétua de um
sacramento, sendo, portanto, indissolúvel.
O princípio da indissolubilidade do casamento canónico vinha expresso no art.
1790.° do Código Civil.
Não sendo o casamento dissolúvel, a lei só permitia aos cônjuges a sua separação
legal, a qual só era em regra concedida quando se verificasse que se tinha tornado
«impossível a manutenção de vida comum dos cônjuges», ou que se «tomara intolerável
o vínculo conjugal», conforme expressões usadas respetivamente pelos legisladores
português e italiano.
A separação judicial mantém o vínculo matrimonial entre os cônjuges, sendo
uma forma de suspensão da vida conjugal, que não dissolve o casamento.
Pela separação, os cônjuges deixam de ter a obrigação de vida em comum quanto
a cama, mesa e habitação (quod thorum, mensam et habitationem), mas mantêm os
outros deveres conjugais, como o dever de fidelidade, estando os cônjuges impedidos
de contrair novo matrimónio.
O instituto da separação judicial de pessoas e bens já não é reconhecido na maior
parte dos ordenamentos jurídicos, designadamente dos países de expressão portuguesa,
como Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe.
No direito angolano, a Lei n.° 9/78, que veio regular o divórcio, não permitia a
separação judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento, mas tão somente o
divórcio. O art. 15.° desta Lei revogou expressamente os arts. 1786.° a 1788.° do Código
Civil, onde a separação judicial por mútuo consentimento vinha prevista. O Código de
Família não acolheu também o instituto da separação judicial de pessoas e bens.
No entanto, em países onde mais se faz sentir a influência católica, como
Portugal, Espanha, Itália e Brasil, o instituto da separação de bens, designado como o
«divórcio dos católicos», ainda persiste na legislação vigente.
O Código Civil do Brasil reconhece no seu art. 1571.°—III como pondo fim à
sociedade conjugal, a separação judicial.
A separação judicial segundo o art. 1575.° do mesmo Código «importa a
separação de corpos e a partilha de bens». Em traços breves importa analisar este
instituto tal como vinha estatuído no Código Civil.
A separação judicial de pessoas e bens, como o nome indica, traduz-se numa
alteração legal da vida dos cônjuges, que pressupõe sempre a existência do
procedimento contencioso e que tem de ser declarada por sentença judicial.
Como tal, reporta-se ao exercício de um direito estritamente pessoal, que tem de
ser exercido pelo próprio cônjuge.
Só em caso de interdição este poderia ser representado pelo respetivo
repre¬sentante legal, necessitando este de estar autorizado pelo conselho de família,
como dispunha o art. 1781.° do Código Civil.
Os efeitos legais da separação litigiosa de pessoas e bens são muito diferentes
dos do divórcio. Enquanto este dissolve o vínculo conjugal, a separação limita-se a
suspender alguns dos deveres recíprocos dos cônjuges.
O artigo 1774.° do Código Civil definia os efeitos da separação dizendo que ela
não dissolvia o vínculo conjugal.
Os cônjuges deixavam de estar sujeitos aos deveres de coabitação e assistência,
sem prejuízo do direito a alimentos que poderiam ter.
A mulher continuava a ter direito ao uso do apelido do marido (art. 1675.° do
Código Civil), mas podia ser privada dele no caso de comportamento indigno e por
decisão judicial.
Já no campo patrimonial, os efeitos da separação judicial de pessoas e bens eram
precisamente os mesmos da dissolução do casamento por morte ou por divórcio (arts.
1688.° e 1774.°).
Findas as relações patrimoniais entre os cônjuges, operava-se então a partilha
dos bens comuns, conferindo cada um o que devia a este património e liquidando-se
previamente o passivo — art. 1689.° do Código Civil.
A separação litigiosa de pessoas e bens tinha entre os cônjuges ainda os mesmos
efeitos que o divórcio, quer em relação aos filhos, quer relativamente ao direito
sucessório.
Como situação familiar de caráter estável, a separação de pessoas e bens
constituía um estado civil e estava sujeita a registo, devendo o tribunal que a declarasse,
comunicar oficiosamente a sentença à Conservatória do Registo Civil competente, para
ser oficiosamente averbada tanto ao assento do casamento dos cônjuges, como ao
respetivo assento do nascimento (art. 101.°, art. 87.° n.° 1, alínea a) e art. 88.° n.° 1,
alínea e), do Código do Registo Civil).
A separação de pessoas e bens era uma situação de natureza transitória.
Ela podia terminar pela morte de um ou dos dois cônjuges, pela reconciliação
dos cônjuges, e pela conversão da separação em divórcio.
O art. 1793.° do Código Civil, que regulava a conversão da sentença de separação
judicial em divórcio, foi revogado pela Lei n.° 53/76, de 2 de julho.
O art. 4.° desta Lei permitia a conversão da separação de pessoas e bens em
divórcio por simples requerimento de um dos cônjuges.
Embora esta disposição tivesse em vista a conversão em divórcio das sentenças
de separação proferidas antes da sua entrada em vigor, nada impedia que ela fosse
aplicada num sentido mais amplo, permitindo a sua aplicação extensiva às senten¬ças
de separação que viessem a ser pronunciadas após a entrada em vigor da lei.
Como já se acentuou, a separação judicial de pessoas e bens não é um instituto
jurídico que se coadune com uma conceção laica do casamento, por criar uma situação
entre os cônjuges que, em regra, proporciona ambiguidades e gera muitas vezes
situações de facto à margem da lei.
Decretada a separação judicial de pessoas e bens e uma vez transitada a sentença,
qualquer dos cônjuges, independentemente da sua situação processual na respetiva
ação, e independentemente mesmo de ter sido considerado como cônjuge culpado,
podia vir pedir a conversão da separação judicial em divórcio, e isto sem ter que
aguardar o decurso de qualquer prazo, após o trânsito da sentença. Só podia obstar à
conversão, o facto de se ter operado a reconciliação dos cônjuges.
O artigo 5.° da Lei 53/76 explicitava a forma processual do pedido de conversão,
que era de extrema simplicidade.
Se não se tivesse operado a reconciliação dos cônjuges, a conversão da separação
em divórcio era de natureza obrigatória, não podendo o juiz denegá-la.
O art. 8.° da Lei n.° 1/88, de 20 de fevereiro, que aprovou o Código de Família
contém disposições de natureza transitória que consagram os mesmos princípios da Lei
n.° 53/76.
Nas ações de separação de pessoas e bens pendentes à data da entrada em vigor
do Código de Família, podia o A. ou o R. vir pedir a conversão do pedido de separação
em divórcio (n.° 1 do art. 8.°).
Nas ações em que a sentença já tenha transitado em julgado, qualquer das partes
pode vir pedir a conversão, bastando para tanto um simples requerimento (n.°s 2 e 3 do
mesmo art. 8.°).
A conversão da separação judicial de pessoas e bens em divórcio é permitida no
atual Código Civil português a qualquer tempo mediante requerimento de ambos os
cônjuges e decorrido 1 ano sobre a sua decretação a requerimento de um só cônjuge, se
não tiver havido reconciliação e se for requerida por ambos os cônjuges não é necessário
o decurso do referido prazo — redação do art. 1795.° pela Lei n.° 61/2008, de 31 de
outubro.
No direito brasileiro qualquer dos cônjuges pode pedir a conversão da separação
em divórcio desde que tenha decorrido 1 ano sobre a sua decretação — art. 1580.° do
Código Civil.

[93] Declaração judicial de presunção de morte


Na grande maioria dos casos, a morte de um dos cônjuges pode ser provada
através do ato do registo civil comprovativo do óbito, pelo que pareceria desnecessário
prever a lei, como segunda causa da dissolução do casamento, a declaração judicial de
presunção de morte.
Às vezes tal não acontece, pois a morte do cônjuge não surge provada com
clareza pelo facto de o falecimento não poder ser diretamente verificado.
São os casos em que o outro cônjuge se ausenta em sentido lato e em que se
verifica o seu desaparecimento.
Quando alguém desaparece sem se saber do seu paradeiro, e há,
simultanea¬mente, fortes indícios de que não se trata de uma simples ausência, mas sim
de um caso de morte, a lei socorre-se do instituto da morte presumida.
A diferença entre a simples ausência e a presunção de morte reside em que, neste
caso, as circunstâncias em que ocorreu o desaparecimento da pessoa em causa são de
natureza tal que levam a presumir a sua morte.
Quando a morte é presumida, como o termo indica, é porque não há uma certeza
absoluta de que a morte tenha ocorrido. Não houve a verificação direta do facto, mas
presume-se a ocorrência da morte, fazendo derivar de tal presunção os mesmos efeitos
jurídicos que resultam do facto da morte. A data da dissolução do casamento é a data
que na sentença for fixada como a data provável em que ocorreu a morte.
O instituto da morte presumida interessa não só ao direito da personalidade como
ao direito de família, mas também ao direito sucessório.
O Código Civil regula o instituto da morte presumida no seu Livro l.° — Parte
Geral (art. 114.° e ss.). A morte presumida tem que ser objeto de decisão judicial e só
poderá ser declarada se se verificarem os pressupostos fixados na lei.
São eles: o decurso de dez anos sobre a data das últimas notícias; o ter
completado o ausente, se fosse vivo, 80 anos de idade; o decurso de cinco anos, caso o
ausente, se fosse vivo, tivesse atingido a maioridade.
No Código de Família a declaração judicial da presunção de morte vem regulada
nos artigos 76.° e 77.°. Ela poderá ser requerida pelo cônjuge interessado, desde que
verificados os seguintes pressupostos de facto:
a) O decurso do prazo de três anos sobre as últimas notícias;
b) A existência de fortes indícios de que ocorreu a morte.
A questão terá obrigatoriamente que ser decidida pelo tribunal em processo
próprio, e este terá que proferir decisão que declare a presunção de morte. Importa
assinalar a distinção a fazer entre o facto de alguém estar ausente sem dele haver notícias
pelo período de três anos e a declaração de morte presumida, que exige
cumulativamente que se apurem factos que levem a convencer, por fortes indícios, de
que a morte se produziu.
O que fundamenta a presunção de morte por parte do tribunal é o
desapareci¬mento de um dos cônjuges operado em circunstâncias tais que delas se
possa inferir com razoabilidade que a morte ocorreu.
É este segundo pressuposto que estabelece a diferença entre a ausência e a
presunção de morte. Trata-se, como a expressão indica, de uma presunção
judi¬cialmente declarada de que certo facto se produziu.
O artigo 76.° do Código de Família define os efeitos legais que derivam da
declaração de presunção de morte relativamente ao casamento anteriormente contraído.
O n.° 1 do artigo 76.° diz que a declaração judicial de presunção de morte de um
dos cônjuges dissolve o casamento a partir do trânsito em julgado da decisão.
Daí que a decisão a proferir pelo tribunal que julgue provados os factos que
integrem a presunção de morte deva declarar dissolvido o casamento.
Perante tal decisão judicial, várias situações podem ocorrer: ou vir a provar-se
diretamente que a morte ocorreu, ou, pelo contrário, haver notícias de que o ausente está
vivo, ou verificar-se o regresso do ausente.
O n.° 2 do artigo 76.° ressalva a hipótese de, após o trânsito da decisão de
declaração judicial de presunção de morte, o cônjuge ausente reaparecer, ou porque o
ausente regressa in personnae, ou porque foram conhecidas notícias do seu paradeiro.
O reaparecimento do cônjuge não implica só por si que o casamento que haja
sido dissolvido com base na presunção de morte retome ipso facto a sua validade legal.
Em princípio, os efeitos da sentença que declarou a dissolução do casamento mantêm-
se.
No entanto, prevê-se o caso de os ex-cônjuges quererem retomar a situação
anterior pela revalidação do casamento. Este só pode ser revalidado nas condições
previstas no n.° 2 do artigo 76.°, ou seja, desde que:
a) Nenhum dos cônjuges, nem o que pediu a declaração da presunção de morte,
nem o ausente, tenha contraído novo casamento;
b) ambos requeiram judicialmente a continuidade do seu casamento.
É necessário, por conseguinte, que se verifique a situação matrimonial
imediatamente posterior à declaração de dissolução por morte, e que ambos expressem
a sua vontade na revalidação do vínculo. Segundo se infere desta disposição, o pedido
deve ser deduzido junto do tribunal que tenha declarado a dissolução do casamento com
base na presunção de morte.
Declarada judicialmente a continuidade da validade do casamento, este é
considerado para todos os efeitos como não tendo sido dissolvido, c a decisão de
validação tem efeitos retroativos, operando ex tunc.
Mas pode dar-se o caso de, antes ou depois do regresso do cônjuge ausente, um
deles ter contraído novo casamento, ou de, em qualquer caso, ambos quererem manter
a dissolução do casamento.
No primeiro caso, diz o n.° 3 do art. 76.° que, se algum dos cônjuges tiver
contraído novo casamento, este será considerado válido.
Esta disposição mais não é que a aplicação direta dos efeitos produzidos pela
declaração judicial de presunção de morte, que constitui uma das formas de dissolução
do casamento.
Convém, no entanto, vincar a distinção entre este processo judicial de
disso¬lução de casamento e um processo administrativo, que é da competência das
conservatórias do registo civil, e que é o processo de justificação de óbito.
Não há, pois, que confundir o processo da morte presumida que corre perante o
tribunal, e o de justificação de óbito, que é de natureza administrativa.
O processo de justificação de óbito, como os demais processos administrativos
de justificação, é um processo que é usado quando há a certeza de que determinado
facto ocorreu, mas ele não pode ser provado pela forma legalmente prevista no Código
do Registo Civil ou em outras disposições legais.
No caso da justificação de óbito, há a certeza de que a morte se verificou, mas
falta a verificação do cadáver, atestada pelo respetivo certificado médico.
O processo de justificação de óbito vem regulado pelo Decreto 91/81, de 25 de
novembro (D.R., L* Série, n.° 277), o qual, nos seus artigos 10.° e seguintes, regula o
respetivo procedimento.
O despacho final cabe ao Departamento Nacional dos Registos e Notariado do
Ministério da Justiça. Se a pretensão do requerente merecer deferimento, é lavrado o
respetivo assento de óbito — artigo 18.°.
Neste caso o casamento será dissolvido por morte, nos termos gerais de direito.
Ao passo que, para o caso que agora nos interessa, o da dissolução do casamento
por presunção de morte, este considera-se dissolvido por ser de presumir a morte do
cônjuge e por esta presunção ter sido declarada por sentença judicial seguindo- -se os
termos específicos, já citados, do art. 77.° do Código de Família.

[94] Evolução histórica do conceito de divórcio


O conceito de divórcio pode exprimir-se como a dissolução do vínculo conjugal,
declarada pela via legal, operada em vida dos cônjuges. Geralmente, a doutrina define
o divórcio como a dissolução do vínculo conjugal, declarada por via judicial e operada
em vida dos cônjuges. Como veremos, entre nós o divórcio pode ser declarado em certos
casos sem a intervenção do tribunal.
O divórcio surge quando a vida matrimonial se deteriorou de tal forma que se
tornou impossível manter a comunhão de vida material e espiritual entre marido e
mulher.
O divórcio opera para o futuro a dissolução do vínculo e faz cessar as relações
pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, as quais só mantêm relevância em casos
específicos, como no da obrigação de prestação de alimentos. Deixa, porém, intactos
todos os efeitos legais produzidos durante a sua vigência.
Dissolvido dejure o vínculo matrimonial, os cônjuges deixam de estar casados,
podendo, consequentemente, contrair novo matrimónio.
A aceitação da dissolução do casamento por divórcio não tem sido pacífica, e
contra ela se têm levantado todos os que propugnam pela perpetuidade do vínculo
matrimonial.
No entanto, se nos debruçarmos para efetuar uma análise histórica sobre a
persistência da aceitação ou não aceitação do divórcio pelos diversos meios sociais, uma
vez mais verificamos como o conjunto de determinantes socioeconómicas se reflete nas
relações familiares.
Em termos simples, podemos dizer que o divórcio, como dissolução de facto do
casamento, é tão antigo como este, e existiu desde os tempos mais remotos.
No direito romano, o casamento era instituído, como vimos, com base na affectio
maritalis, ou seja, no propósito comum dos cônjuges de quererem manter laços
duradouros de vida em comum como marido e mulher.
A cessação do casamento podia operar-se quando deixasse de existir a vontade
de manter o vínculo conjugal. O divórcio operava-se, pois, pelo ato unilateral, o repúdio,
que era o produto da vontade de um só cônjuge. Tanto o marido como a mulher podiam
pôr termo ao casamento por meio de repúdio, o qual não necessitava da intervenção de
um tribunal para ser válido.
O divórcio já era também admitido no antigo direito germânico. No Antigo
Testamento o repúdio da mulher era possível no caso de infidelidade desta.
O direito muçulmano admite, em regra, o repúdio feito pelo marido em relação
à mulher com grande amplitude. O marido pode operar, assim, arbitrariamente e sem
recurso ao tribunal, a dissolução do casamento. O divórcio é também reconhecido no
direito muçulmano, como ato de natureza judiciária, sendo a via facultada à mulher
para, em certos casos de inexecução das obrigações do casamento, obter a dissolução
do casamento.
Nos países de influência protestante, começou a afastar-se a conceção de que o
casamento tinha a natureza perpétua de um sacramento e a encarar-se o casamento como
assunto da competência do Estado e não da Igreja.
Daí que a introdução das ideias da reforma protestante tenha sido acompa¬nhada,
desde o início, pela aceitação da dissolução do casamento pelo divórcio.
Nos países predominantemente católicos, a França foi o primeiro a reconhecer o
divórcio, como consequência da conceção contratual e laica do casamento.
A Revolução Francesa instituiu o divórcio no final do século XVIII, em lei que
permaneceu em vigor até 1816, data em que ele deixa de ser aplicado, para só ser
reintroduzido de novo na legislação francesa perto do fim do século XIX.
Em Portugal, onde o casamento civil só foi introduzido pelo Código Civil de
1867, o divórcio é uma das primeiras medidas legislativas tomadas após a implantação
da República, pela Lei do Divórcio, de 3 de novembro de 1910.
Esta lei, com aspetos bastante progressistas e inovadores para a sua época, veio
introduzir o divórcio por mútuo consentimento simultaneamente com o divórcio
litigioso.
Com a queda da República e a implantação do fascismo, as leis da família foram
todas reformuladas, e a Concordata de agosto de 1940, veio ditar a regra da renúncia do
direito ao divórcio pelos cônjuges casados catolicamente após essa data.
Esta Concordata foi, porém, alterada por protocolo adicional entre Portugal e a
Santa Sé, em 1975, passando a ser permitida a dissolução por divórcio dos casamentos
católicos, a partir da publicação do Decreto-Lei n.° 261/75.
Em Angola estava então instaurado o denominado governo de transição,
instituído pelos Acordos de Alvor, razão por que tal medida se não repercutiu na
legislação interna angolana.
Após a proclamação da Independência, foi publicada a Lei n.° 53/76 de 2 de
julho, em cujo preâmbulo se explicita bem claramente que, sendo a República Popular
de Angola um estado laico e não confessional, nenhuma razão subsistia para que
continuasse a vigorar no direito interno uma norma que impedia os cônjuges casados
canonicamente de obter o divórcio.
Como se reconheceu, dessa norma resultaram situações de natureza
discriminatória entre cidadãos do mesmo país, e criaram-se situações à margem da lei
civil para cônjuges separados e para os filhos nascidos de novas uniões de facto (ver o
Preâmbulo de Lei n.° 53/76).
Em países predominantemente católicos, como a Itália, foi necessário proceder-
se a um referendo a nível nacional, e foi a Lei de 1 de dezembro de 1970 que aprovou
a introdução do divórcio no direito italiano.
O direito brasileiro só veio a reconhecer o divórcio pela Emenda Constitucional
n.° 9 (Junho de 1977), e mesmo assim este só passou a ser concedido judicialmente no
caso de separação de facto anterior dos cônjuges.
O Código Civil brasileiro no seu art. 1571.°-IV prevê expressamente o divórcio
com causa de dissolução do casamento, o qual pode ser pedido por forma direta ou por
conversão da separação judicial.
Todos os estados laicos, em contrapartida, admitem uniformemente o divórcio.
A maior ou menor liberalização do divórcio está muitas vezes ligada a
fenóme¬nos sociais como as revoluções, tal como a Revolução Francesa, que instituiu
o divórcio nos países do tipo do direito romano, e a Revolução de outubro de 1917, na
Rússia, que abriu a possibilidade de o divórcio ser declarado por órgãos de natureza não
judicial, facilitando grandemente os seus termos.
A legislação dos países da comunidade socialista foi, nos primeiros anos, muito
liberal na dissolução do casamento por divórcio. Mas, após a 2.a Guerra Mundial, a
então União Soviética sentiu a necessidade de contrabalançar a sangria humana sofrida,
através de uma maior consolidação do casamento, tendo-se retomado a necessidade de
intervenção dos tribunais na generalidade dos processos de divórcio.
Entre os extremos que vão da proibição legal do divórcio à sua declaração por
órgãos administrativos, podemos situar os diversos sistemas jurídicos consoante são
maiores o alargamento ou as restrições às causas legais de dissolução do casamento, o
que, em suma, vai acompanhando a própria evolução do instituto do casamento.

[95] O atual conceito de divórcio


Em Portugal pelo Decreto-Lei n.° 163/95, de 13 de julho, foi introduzido o
divórcio por mútuo consentimento, por via administrativa e pela Lei n.° 47/98, de 10 de
agosto, permitiu-se que ele fosse pedido a todo o tempo, sem necessidade de decurso
de prazo obrigatório.
O sentido de liberalização do divórcio em Portugal veio consubstanciar-se com
a publicação da Lei n.° 61/2008, de 31 de outubro, que introduziu alterações radicais
em todo o instituto do divórcio.
Alterou-se a designação de divórcio litigioso para divórcio sem consentimento
do outro cônjuge; afastou-se o conceito de culpa na decretação do divórcio. O pedido
de divórcio passou a ser fundamentado em causas objetivas, tais como a separação de
facto, a ausência, a doença mental, cujo prazo ficou reduzido a 1 ano consecutivo e
ainda quaisquer outros factos que independentemente da culpa dos cônjuges mostrem a
rutura definitiva do casamento (atual redação do art. 1781.° do Código Civil).
Eliminaram-se «(...) as causas subjetivas, dependentes da culpa, exclusiva ou
predominante de um dos cônjuges (...). Não quer dizer que os deveres conjugais não
continuem a merecera tutela do direito (...)• A violação culposa dos deveres
conjugais deixa pois de constituir um dos fundamentos para a ação de divórcio, para
passar a constituir apenas fundamento de ação de responsabilidade civil, destinada ao
ressarcimento do cônjuge lesado.»(1)
No direito português foram ainda introduzidas importantes alterações nos
processos de divórcio, introduzindo-se a mediação familiar antes da propositura da
ação, ainda que sem caráter obrigatório.
Alteraram-se as disposições relativas ao divórcio por mútuo consentimento,
ampliando-se os poderes de decisão das Conservatórias do registo civil. Ampliaram-se
os poderes de decisão e intervenção do Juiz sobre os acordos firmados pelos cônjuges.
Se apreciarmos os diversos sistemas jurídicos comparativamente, vemos que o
divórcio é hoje uma realidade da quase totalidade deles, mas que existem diferenças na
forma como ele é encarado. Uns sistemas legais são mais liberais, abrindo o leque dos
fundamentos legais do divórcio e as formas processuais de o obter, outros menos
liberalizantes, restringindo-o a casos típicos previstos na lei.
É unanimemente aceite por todos os Estados que deve ser favorecida a
estabilidade da família, porque isso favorece a própria contextura da sociedade e por
isso se entende que o divórcio é um mal, ainda que muitas vezes se reconheça que é um
«malnecessário».
Genericamente, podemos distinguir dois sistemas distintos quanto às causas
invocáveis como fundamento de divórcio: os que aceitam o sistema da causa genérica
e os que aceitam o sistema das causas taxativas.
O posicionamento da própria lei relativamente ao divórcio pode, em termos
gerais, ser classificado em dois tipos diferentes.
Por um lado, aquele que encara o divórcio como «sanção » imposta à conduta
culposa de um dos cônjuges, violadora dos deveres conjugais. Esta conceção vem
normalmente ligada àquela que encara o casamento como instituição.
Mais recentemente vem predominando a conceção que encara o divórcio como
o «remédio» ou «solução final» para uma situação em que o casamento deixou de
preencher os fins sociais e pessoais para que foi instituído. Neste caso, a rutura da vida
matrimonial entre os cônjuges pode ter sido causada pelo comportamento culposo de
um deles, ou de ambos, ou seja, por motivo proveniente da vontade subjetiva dos
cônjuges, ou resultar do prolongamento da separação de facto por determinado período
de tempo relevante. Mas pode advir de uma simples causa objetiva, independente da
vontade dos cônjuges, como a demência incurável de um deles.
Na conceção do divórcio como remédio, que também é designado como divórcio
«falência» ou «constatação de rutura», estão abrangidas todas as causas de dissolução
do casamento que fazem com que este se não possa manter, quer por culpa de um dos
cônjuges ou de ambos, quer mesmo sem culpa de qualquer deles.
O que interessa verificar é se houve rutura do vínculo conjugal e falência do
casamento. Neste caso, a dissolução do divórcio limita-se a certificar que a união
conjugal deixou de existir como realidade pessoal e social.
No sistema de divórcio «remédio, falência ou constatação de rutura», o que
interessa é que o tribunal que declara o divórcio tenha chegado à conclusão de que, por
culpa de um dos cônjuges ou por causas objetivas (como a ausência sem notícias, a
demência, a separação de facto), se criou uma situação que impede o prosseguimento
da vida conjugal.
Pode haver culpa, como pode não haver culpa do cônjuge contra quem se pede o
divórcio, mas na base do pedido de divórcio está o desiderato de remediar a situação
objetivamente criada, que destruiu os alicerces do vínculo conjugal.
O divórcio é, assim, o corolário do facto de o matrimónio ter deixado de
funcionar como tal, deixando de servir o fim social para que foi instituído. Há mesmo
quem diga que o divórcio mais não é do que a «certidão de óbito» de um casamento que
deixou de o ser.
O Código Civil anteriormente vigente privilegiava o conceito do divórcio
sanção, pois este aparecia como castigo para o cônjuge que violara algum dos deveres
conjugais. Tanto assim era que o artigo 1783.° do Código Civil impunha que a sentença
que declarasse o divórcio ou a separação estabelecesse qual era o cônjuge «culpado» e,
se concluísse que havia culpa de ambos os cônjuges, definisse qual o cônjuge que era o
«principal culpado».
Como vimos, no direito português operou-se uma viragem radical e deixou de
ser aceite o critério da culpa na decretação do divórcio.
Na verdade esta forma de encarar o direito ao divórcio corresponde a uma nova
visão das relações matrimoniais cada vez mais preponderante em muitos sistemas
jurídicos.
No direito inglês o divórcio é permitido quando baseado na verificação pelo
tribunal do « breakdown »(falência, colapso) do casamento, designando depois, a título
exemplificativo, certos factos como o adultério, mau comportamento do outro cônjuge,
abandono, e a separação de facto, que podem justificar o pedido.
A jurisprudência italiana vai no sentido da liberalização do divórcio. Entende-se
que o casamento é celebrado com consenso dos nubentes e deve perdurar e tão só,
enquanto subsistir esse consenso. O direito de separar-se é considerado como direito de
nível constitucional. O fator subjetivo concede legitimidade «vontade de separar-se de
um só cônjuge bem podendo a fratura depender de condição de desafetaçáo e de
distanciamento espiritual de uma das partes.» Reconhcce-se ao Juiz um poder
discricionário na valoração dos factos suscetível de um exame assético e objetivo do
«Modo de sentir comum (tese objetivista) ou por outro lado, no reflexo desse
comportamento sobre um só cônjuge (tese subjetivista) (...) a sociedade (conjugal) vive
e opera só enquanto o sentimento comum Ibe dá corpo (...) >>.
No direito francês reconhecia-se o divórcio por rutura prolongada da vida em
comum, ou seja, pela separação de facto por seis anos, ou pela alteração das faculdades
mentais de um cônjuge, podendo o tribunal rejeitar o pedido se houver
0 risco de o divórcio ter graves consequências na doença do cônjuge — arts.
237.° e 238.° do Código Civil francês.
Entretanto foi aprovada a Lei de maio de 2004 que entrou em vigor em
1 de janeiro de 2005. Esta Lei simplificou o processo de divórcio por mútuo
consentimento e no divórcio contencioso prevê três tipos de ação de divórcio:
fundamentado na culpa, na deterioração definitiva do vínculo conjugal e na aceitação
do pedido do outro cônjuge. Procura-se que os cônjuges consigam harmonizar o conflito
pós conjugal encontrando acordos para a resolução das questões dos seus direitos
pessoais e patrimoniais. Nesta lei o divórcio por culpa deixou quase de ter expressão
pois destacaram-se as causas do divórcio das consequências na vida conjugal. A
separação de facto por 2 anos é fundamento neutral para o pedido e no divórcio por
aceitação, o cônjuge demandado vem aceitar o pedido do outro reconhecendo a falência
do casamento, o que torna esta espécie de ação, num divórcio por semi-mútuo
consentimento. -3
No Código Civil brasileiro passou a considerar-se como fundamento de pedido
de divórcio o decurso de 1 ano sobre a conversão da sentença de separação judicial de
separação de facto ou do decurso de 2 anos de separação de facto — art. 1580.°.
Atualmente passou-se a reconhecer o direito dos cônjuges porem fim à relação
matrimonial quando se tornou intolerável a convivência comum. A razão subjetiva da
intolerabilidade da convivência pode provir de ambos os cônjuges ou de só de um deles
e pode derivar de factos exteriores visíveis ou ser produto de afastamento afetivo e
espiritual entre ambos.
Entende-se que mais importante do que os factos que ocorreram na vida do casal,
são as consequências que esses mesmos factos tiveram no seu relacionamento tornando
intolerável a convivência comum.

[96] Conceito de divórcio no direito angolano


No direito angolano veio desde o início, a encarar-se o direito ao divórcio como
o resultado duma situação em que o vínculo matrimonial se mostrava destruído na sua
essência.
Aliás a Lei n.° 53/76 publicada logo a seguir à Independência, introduziu novos
fundamentos de divórcio, previstos no seu artigo 6.°: a separação de facto por cinco
anos consecutivos e o abandono do país por parte do outro cônjuge. Estes fundamentos
apontam para a nova conceção do divórcio como remédio, ou constatação de rutura.
O divórcio é outorgado no caso de se ter produzido o rompimento da união
matrimonial, independentemente da determinação ou mesmo da existência da culpa a
atribuir a um cônjuge.
Corroborando esta orientação, a Resolução n.° 2/82 da Assembleia do Povo se
direcionava muito claramente no sentido da nova conceção do divórcio, ao mandar
elaborar nova legislação sobre o divórcio, de forma a que este fosse concedido quando
o casamento tivesse perdido o seu sentido.
Interessa agora definir como é encarado o divórcio no Código de Família.
Os fundamentos gerais que estruturam o direito de qualquer dos cônjuges de
pedir o divórcio, em conjunto ou separadamente, vêm previstos no artigo 78.° do
Código de Família.
Estabelece-se como conceção básica que o divórcio dos cônjuges só pode surgir
quando tenha havido entre ambos a deterioração completa e definitiva das relações
conjugais, independentemente das causas que tenham concorrido para tal deterioração.
Impõe a lei que se apure com firmeza que as relações entre ambos os cônjuges
se encontram atingidas no âmago da sua estrutura, tendo deixado de subsistir o essencial
e específico das relações conjugais.
Em conformidade, o artigo 78.° exige que se verifiquem simultaneamente as
seguintes condições:
a) deterioração completa e irremediável dos princípios em que se baseia a união
conjugal, compreendendo todas as causas que levam à destruição das relações
matrimoniais que devem ser baseadas no respeito, fidelidade, cooperação e assistência
material e moral recíprocas;
b) que o casamento «tenha perdido o seu sentido», o que significa que o
casamento foi esvaziado do seu conteúdo pessoal e social, passando a constituir um
mero vínculo formal sem o conteúdo substancial de uma verdadeira «plena comunhão
de vida», como prescreve o art. 20.° do Código de Família.
Esta expressão «terperdido o seu sentido» deve, pois, ser entendida no sentido
de que o casamento ficou desprovido da sua finalidade legal, que é a constituição da
célula familiar. Era a expressão que vinha já consignada na Resolução n.° 2/82 da
Assembleia do Povo a que já nos referimos, e que ordenou que se procedesse à revisão
da legislação vigente em matéria de direito da família, apontando esta situação, na parte
especificamente respeitante ao divórcio, como a essência da sua fundamentação.
Essa perda de sentido refere-se às relações inter-conjugais, mas também aos
reflexos desse relacionamento em relação aos filhos e às suas repercussões no meio
social.
Vemos que o conceito de divórcio acolhido no Código de Família é o que
corresponde ao do divórcio «remédio, falência ou constatação de rutura», pois a tónica
fundamental em que assenta a declaração do divórcio e a consequente dissolução do
casamento, é o ter-se apurado que cessou a plena união de vida entre os cônjuges e que
as relações entre marido e mulher se deterioraram de uma forma que se afigura
irreversível.
Dentro deste sistema jurídico de conceção de divórcio, este pode resultar de facto
ou factos imputáveis a um só cônjuge, ou de factos imputáveis a ambos, ou ainda ter
surgido com o concurso ou sem o concurso da vontade dos cônjuges.
A noção de culpa como elemento de valoração da ação violadora dos deveres
matrimoniais e geradora do direito ao pedido de divórcio, que é inerente ao conceito de
divórcio sanção, foi afastada do Código de Família.

[97] Fundamento de divórcio — causa genérica


Como adiante veremos, o Código de Família, para decisão de certas questões
específicas, manteve a menção de causa de divórcio que serve para o aferimento de
direitos a quando da dissolução do vínculo conjugal, como seja o direito a alimentos do
casal e a atribuição do direito à residência familiar.
O papel do juiz neste sistema legal de causa genérica de divórcio é bastante mais
amplo, dispondo de maior poder discricionário. Incumbe-lhe apurar não só a causa ou
as causas que em concreto são invocados como pedido do divórcio, mas também as
consequências que dela ou delas derivarem para a vida dos cônjuges, de forma a poder
concluir estar destruído o vínculo conjugal.
Já quando vigora o sistema das causas peremtórias, em que são apontados na lei
os fundamentos taxativos do divórcio (como, por exemplo, o adultério, a condenação
pela prática de crime doloso em pena de prisão maior, ou outra), uma vez verificada a
causa, o juiz tinha em regra, que conceder o divórcio, sem embargo de se apurar se elas
tornaram impossível a manutenção do vínculo conjugal.
No sistema da causa genérica, o fundamento do divórcio baseia no facto de se
reconhecer a deterioração definitiva do vínculo.
Predomina a conceção do divórcio remédio, falência ou constatação de rutura,
pois a causa genérica detonadora do direito ao divórcio é fundamentalmente o
reconhecimento da desunião irremediável dos cônjuges. Por outras palavras, não há
neste sistema uma enumeração, descriminada e taxativa, dos fundamentos em que se
pode basear o pedido do divórcio, pois a única causa genérica consiste no fracasso
definitivo e na rutura irremediável do vínculo.
No sistema adotado no Código de Família podemos dar como assente que
predomina o sistema de causa genérica, que pode ser invocada por iniciativa comum
dos cônjuges na modalidade que adiante veremos do divórcio por mútuo acordo, ou que
pode ser invocada por um dos cônjuges contra o outro, no caso do divórcio litigioso.
Esta conceção impediu que o Código de Família indicasse fundamentos taxativos
do divórcio. Estes vêm enunciados na lei a título meramente exemplifica- tivo,
indicando em princípio situações que podem servir de base à declaração do divórcio e
que não são mais que a tipificação de certas situações de caráter duradouro que podem
levar à dissolução do casamento por divórcio. Como já referimos, estamos perante
normas em branco que o juiz, intérprete da lei, irá aplicar em concreto ao caso sub
iudice.
A lei angolana foi assim percussora da conceção de divórcio baseado em causa
genérica e no fracasso do vínculo conjugal pois invoca tão somente a existência de uma
causa que deteriorou as relações conjugais, omitindo a atribuição de «culpas» ao decidir
o fim do casamento entre os cônjuges.
Forçoso é porém reconhecer, que ao serem invocadas as causas do divórcio nas
ações de divorcio litigioso o Código de Família se encontra ainda num patamar
intermédio de aceitação do divórcio face às atuais tendências de liberalização do direito
ao divórcio que atrás se mencionaram.
Podem também classificar-se as causas do divórcio aceites no Código de Família,
em causas de natureza subjetiva e causas de natureza objetiva. As primeiras são as que
derivam de uma determinada conduta pessoal, consciente e voluntária de um dos
cônjuges; as segundas são as que se reportam a factos concretos verificáveis de per si,
com realidade própria.

[98] Natureza jurídica do direito ao divórcio


O direito ao divórcio carateriza-se em primeiro lugar por se tratar de uma simples
faculdade legal. Como faculdade que é, a lei deixa ao titular do direito ao divórcio a
decisão de querer ou não usar desse direito , e por esta razão se pode concluir que
ninguém é obrigado a exercê-lo.
As faculdades refletem um interesse do titular, não têm um objeto específico e
têm diante de si sujeitos meramente passivos com obrigações sem direitos. Mesmo que
se verifiquem num determinado casal factos que podem constituir fundamento legal
para declarar o divórcio, não se torna obrigatório que ele se venha a operar.
Pelo contrário, a experiência da vida familiar mostra que, dos inúmeros conflitos
conjugais que ocorrem, só alguns deles vão produzir o efeito extremo da dissolução do
vínculo por divórcio.
O direito ao divórcio carateriza-se ainda por ser um direito potestativo, o que
implica que ele pode ser exercido independentemente da vontade do outro cônjuge.
O cônjuge titular do direito ao divórcio, se quiser obtê-lo, deve expressar essa
vontade na competente ação judicial. Obtida a confirmação judicial de que os
fundamentos invocados existem, é proferida a sentença judicial que declara, com base
neles, a dissolução do casamento por divórcio.
O outro cônjuge, contrariamente a um entendimento erróneo muito difundido,
não tem que conceder ou não conceder o divórcio, mas sim suportar os efeitos jurídicos
que vão advir do exercício do direito ao divórcio pelo outro cônjuge.
O direito ao divórcio não é um direito subjetivo no seu sentido estrito, pois não
vai exigir do outro cônjuge determinada conduta positiva, mas sim produzir efeitos na
esfera jurídica de ambos os cônjuges e independentemente da vontade de um deles.
Define-se assim o direito potestativo como aquele que assegura um determinado
efeito jurídico, que no caso do divórcio é o da alteração da situação jurídica familiar, ou
seja, a extinção do vínculo. É, pois, um direito que vai resultar não em prestação
negativa ou positiva por parte do cônjuge contra quem a ação é proposta, mas na
obtenção da declaração judicial da dissolução do casamento.
Como direito inserto nas relações jurídicas familiares, é um direito de natureza
pessoal, pois o seu exercício reporta-se à pessoa ou pessoas do(s) cônjuge(s). Há até
quem o designe como direito «pessoalíssimo», o que inclusivamente impede que
qualquer dos cônjuges possa estar representado na ação de divórcio através de um
terceiro, representante voluntário. É um direito de natureza irrenunciável, não podendo
os cônjuges fazer antecipadamente qualquer declaração de renúncia ao direito ao
divórcio, seja essa renúncia feita de forma genérica, seja por forma específica,
renunciando previamente ao direito ao divórcio, por este ou aquele fundamento legal.
O caráter irrenunciável do direito em si não impede que, em concreto, o cônjuge
que podia exercer o seu direito ao divórcio opte por não o exercer ou por desistir, nos
termos da lei do processo, da ação de divórcio que tenha intentado.
As ações de divórcio, como as demais ações de estado, porque se repercutem no
estado civil das pessoas, não podem ser objeto de confissão ou transação judicial, mas
tão somente de desistência — art. 299.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Civil.
É, porém, de salientar que em alguns sistemas jurídicos é permitida a confissão
como meio de prova. No direito francês desde 1975, passou a ser possível a aceitação
dos factos tal como o outro cônjuge os descrevia na sua «mémoire»(relatório), tendo a
Lei de 2004 simplificado esse procedimento pois circunscreveu o pedido ao facto de
ambos concordarem que o casamento «fracassou».
O direito ao divórcio não pode ser transmissível a terceiros, quer inter vivos quer
mortis causa.
Tal significa que ele só pode ser exercido pelo próprio cônjuge e que não se
transmite por morte. De facto, o direito ao divórcio extingue-se com a morte do seu
titular.
Também no nosso direito a ação de divórcio não pode ser exercida por meio de
mandato outorgado a terceiro, e só no caso de interdição ela pode ser exercida pelo
representante legal do interdito, nos termos aliás previstos para os poderes de acionar
contidos no art. 238.°, alínea c) do Código de Família.
No Código Civil já revogado, o representante legal do interdito necessitava da
autorização do Conselho de Família para poder propor a ação de divórcio — art. 1781.°
do citado Código.
No Código de Família não existe regra específica relativa à ação de divórcio,
pelo que se aplicam as regras gerais respeitantes à tutela de maiores. Segundo o que
dispõe o art. 238.°, alínea c) do Código de Família, o tutor só pode propor ações em
tribunal com autorização deste.
No direito português atual a ação de divórcio não se extingue com a morte do
cônjuge, pois nela podem prosseguir os seus herdeiros, quer ele tenha sido autor ou réu.
Tal posição tem plena justificação, porquanto, tendo o cônjuge a qualidade de sucessível
em relação ao outro cônjuge, a declaração do divórcio tem efeitos patrimoniais,
designadamente porque pode envolver a perda da qualidade de sucessível.

[99] Modalidades de divórcio — o divórcio por mútuo acordo.


A conceção do direito ao divórcio vai refletir-se também no facto de o legislador
aceitar no ordenamento jurídico uma só forma de divórcio (o divórcio litigioso) ou
aceitar duas formas (o divórcio litigioso e o divórcio por mútuo consentimento ou por
mútuo acordo). Esta última forma de divórcio é mais liberalizante e permite a escolha
em liberdade de vontade da decisão da dissolução do casamento.
O Código de Família, na esteira do que já foi introduzido no sistema jurídico
angolano com a publicação da Lei n.° 9/78, de 26 de maio, permite as duas modalidades
de divórcio. Nos termos do art. 79.° do Código de Família, o divórcio pode ser pedido:
a) por ambos os cônjuges na base do mútuo acordo;
b) por apenas um dos cônjuges com base nos fundamentos previstos nesta lei.
No primeiro caso, estamos perante uma resolução bilateral tomada
concerta¬damente por ambos os cônjuges, que é invocada como fundamento de
divórcio.
No caso do divórcio litigioso, a ação é proposta por um dos cônjuges com base
na causa genérica, mas invocando em concreto a causa ou causas que levam a pedir a
dissolução do vínculo. O cônjuge que propõe a ação litigiosa tem o ónus da prova dos
factos que alegar e ainda das consequências que eles tiveram na vida conjugal.
No divórcio por mútuo acordo, já a lei permite que os cônjuges deliberem em
comum e decidam pedir em conjunto que seja declarado o divórcio. Nem o legislador
nem consequentemente o tribunal exigem que os cônjuges justifiquem a sua deliberação
comum invocando esta ou aquela causa. Não são reveladas as razões subjacentes que
levaram os cônjuges à tomada de tão importante resolução sobre a vida comum.
Esta forma de divórcio por mútuo acordo é chamada na doutrina divórcio por
mutuus dissensus, pois o acordo que é exigido é o de que já não querem continuar
casados.
A lei parte da presunção de que, se os cônjuges pedem a dissolução do casamento
por mútuo acordo, é porque reciprocamente reconhecem que a sua união conjugal se
encontra irremediavelmente comprometida, e, assim sendo, a melhor solução
terapêutica será reconhecer a falência do casamento e promover a declaração da sua
dissolução.
No fundo, a aceitação do divórcio por mútuo acordo envolve, no entender de
alguns, uma conceção contratualista do casamento, pois, em última análise, o que se
permite é que o casamento seja resolvido por comum acordo das partes, tal como pode
acontecer com qualquer outro contrato.
Há também quem veja no divórcio por mútuo acordo uma forma de divórcio por
repúdio recíproco entre marido e mulher.
A verdade é que, também no divórcio por mútuo acordo, existem sempre causas
justificativas que são determinantes na deliberação tomada pelos cônjuges. Só que a lei
não impõe que essas causas sejam invocadas para alicerçar a deliberação tomada. A lei
entende que é melhor não as averiguar, por reconhecer aos cônjuges maturidade para
tomarem ou não tomarem essa resolução.
Na verdade, o divórcio por mútuo acordo é uma via para desdramatizar o
divórcio, tornando-o menos traumatizante para os cônjuges e também, indiretamente,
para os filhos e demais membros da família.
Esta forma de divórcio revela-se mais benéfica no relacionamento dos cônjuges
posterior ao divórcio, por impedir que sejam feitas acusações degradantes de um para o
outro, dificilmente recuperáveis.
O Código de Família regula a modalidade do divórcio por mútuo acordo nos seus
artigos 83.° a 96.°. O fundamento do divórcio por mútuo acordo assenta «na deliberação
comum e pessoal dos cônjuges de porem fim à vida conjugal» — art. 84.° do Código
de Família.
O exercício do direito ao divórcio por mútuo acordo está condicionado na lei.
Para impedir resoluções de natureza precipitada ou imatura, são impostos
condicionalismos na lei relativos à duração do casamento e à idade dos cônjuges.
Os pressupostos legais para o pedido de divórcio por mútuo acordo vêm
expressos no art. 83.° do Código de Família, e são:
a) que o casamento tenha sido celebrado há mais de três anos;
b) que ambos os cônjuges tenham completado 21 anos de idade.
Na Lei n.° 9/78, de 26 de maio, a idade mínima exigida aos cônjuges era de 22
anos (art. 19.°). Foi a Lei n.° 9/78 que introduziu a importante alteração ao direito
anterior, permitindo que, em certos casos, o divórcio por mútuo acordo fosse declarado
pelas Conservatórias do Registo Civil (art. 4.°).
O Código de Família retomou esta posição, permitindo que, além da via judicial,
o divórcio por mútuo acordo possa ser declarado pelo órgão do registo civil da área de
residência de qualquer dos cônjuges (art. 86.°).
O art. 87.° do Código restringe a competência das Conservatórias do Registo
Civil aos casos em que:
a) o casal não tenha filhos menores;
b) havendo filhos menores, haja decisão com trânsito em julgado sobre a
regulação da
autoridade paternal proferida pelo tribunal competente.
Deste modo, é possível usar a via administrativa para a declaração do divórcio,
quando não estiver em disputa o direito ao exercício da autoridade paternal sobre os
filhos menores do casal. Pelo melindre e delicadeza da questão, havia que acautelar o
seu conhecimento pelo tribunal competente, que é hoje a Sala de Família do Tribunal
Provincial.
Já a simples apreciação de verificação dos pressupostos legais relativos à idade
dos cônjuges e à duração do casamento — que permitem a declaração do divórcio por
mútuo acordo — está manifestamente ao alcance do conservador do registo civil.
Há que ter em conta, pois, que, segundo a lei, o divórcio por mútuo acordo pode
ser sempre pedido pela via judicial e que a via administrativa só é possível nos casos
especificados na lei.
Quanto ao procedimento processual, o Código exige não só que os cônjuges
expressem o seu acordo no requerimento inicial quanto ao pedido de declaração de
divórcio, mas que apresentem ainda os acordos complementares — art. 85.° do Código
de Família.
É que, como adiante veremos, a dissolução do casamento vai produzir diversos
efeitos na esfera pessoal e patrimonial dos cônjuges. Não basta, por isso, que os
cônjuges estejam de acordo em relação ao divórcio; é necessário também que eles
dirimam amigavelmente as questões que derivam do divórcio, as questões de natureza
pessoal e patrimonial resultantes da dissolução do casamento.
Nestes termos, o art. 85.° do Código de Família impõe que os cônjuges
apresentem os acordos respeitantes a:

a) Exercício da autoridade paternal sobre os filhos menores do casal, se os


houver, e se tal não estiver decidido pelo tribunal;
b) Prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça;
c) Atribuição da residência familiar.
Além de que, em obediência ao art. 89.°, alínea a), os cônjuges têm ainda a
obrigação de apresentar a relação especificada de todos os seus bens próprios e comuns,
o que implica a existência de prévio acordo sobre a descrição e atribuição dos bens, ou
ao casal em comum, ou próprios de cada um dos cônjuges.
Quanto ao procedimento processual descrito nos arts. 90.° e seguintes, há que
realçar a imposição da presença obrigatória dos cônjuges na conferência — art. 91.°.
O tribunal procurará obter a conciliação dos cônjuges, devendo diligenciar no
sentido de eles desistirem do propósito de se divorciarem — art. 93.°. Se o não
conseguir, deverá proceder à apreciação dos acordos complementares apresentados.
Quanto à homologação ou não do acordo sobre o exercício da autoridade
paternal, há que aplicar o regime geral do art. 109.°, n.° 1, por força do n.° 3 do citado
art. 93.°.
Antes de homologar o acordo, o tribunal deverá dar cumprimento ao disposto no
art. 158.° e recolher o parecer do Ministério Público e promover a audição do menor
que tenha completado 10 anos de idade.
É declarado então o divórcio provisório, que será convertido em divórcio
definitivo se, no prazo de 90 dias, nenhuma das partes vier a desistir do pedido.
Declarado o divórcio, a decisão judicial é oficiosamente comunicada aos órgãos
do registo civil que tenham celebrado o casamento e àqueles onde tenham sido lavrados
os assentos de nascimento dos cônjuges.
O procedimento perante a Conservatória do Registo Civil é idêntico dado que os
arts. 93.° e seguintes são aplicáveis tanto ao processo judicial como ao processo
administrativo que corre perante o órgão do registo civil
O Conservador deverá promover a conciliação dos cônjuges tal como o juiz, e,
se não o conseguir, deve dar andamento ao processo, homologar os acordos se for caso
disso, e declarar o divórcio provisório. A declaração do divórcio definitivo e as
comunicações aos demais órgãos do registo civil seguem igualmente o que consta dos
arts. 95.° e 96.° do Código de Família.

[100] O divórcio litigioso; fundamentos a título exemplificativo


O divórcio litigioso, conforme o que vem previsto no art. 79.° do Código de
Família, é aquele que épedido por apenas um dos cônjuges, com base nos fundamentos
previstos nesta lei. A ação de divórcio litigioso é proposta unicamente por um cônjuge
contra a pessoa do outro, devendo aquele que põe a ação invocar a existência de uma
causa.
Os fundamentos previstos na lei vêm inseridos na disposição de caráter geral do
art. 78.°, que abrange a causa genérica que vai produzir a dissolução do vínculo, ou seja,
a da deterioração completa e irremediável da sua união, e a perda do sentido ou
finalidade do casamento.
Esta disposição genérica é integrada, quanto ao divórcio litigioso, pelo art. 97.°,
que a transcreve, especificando que esta forma de divórcio é legalmente possível quando
«esteja comprometida a comunhão de vida dos dois cônjuges e impossibilitada a
realização dosfins sociais do casamento».
Os factos invocados como fundamento do divórcio têm que ser posteriores à
celebração do casamento, pois os factos anteriores, quando previstos na lei, só poderão
ser invocados como causa do pedido de anulação do casamento.
No divórcio litigioso, os fundamentos são os que vêm contidos nos arts. 97.° e
98.°, que mais não são do que duas disposições complementares.
O artigo 97.° expressa como fundamento do pedido de divórcio litigioso que
exista uma causa grave ou duradoura que veio atingir e atentar contra a comunhão de
vida dos cônjuges e tomar impossível a realização dos fins sociais do casamento. Essa
causa pode ser, em alternativa, ou grave ou duradoura.
De acordo com esta disposição, a causa genérica tem uma grande amplitude, pois
o legislador preferiu não enumerar, caso a caso, os fundamentos legais do pedido de
divórcio litigioso. A causa, como é dito na linguagem da lei, pode existir tanto em razão
da produção de um único facto que deva ser considerado grave, como em razão de uma
situação repetida que, pela sua continuidade e reiteração, venha a destruir a contextura
do vínculo matrimonial.
Umfacto grave pode ser o adultério, o atentado contra a vida do outro cônjuge,
etc..
Um facto duradouro pode consistir no facto de os cônjuges deixarem de se dirigir
a palavra ou deixarem de manter as relações normais de cônjuges durante largo período
de tempo, por exemplo.
Pode, por conseguinte, haver um único facto que seja tão grave que torne
impossível a continuação da vida em comum, mas pode também verificar-se uma
acumulação de factos que conduza ao mesmo resultado.
A reiteração de pequenos atos de violência física ou verbal, a recusa injustificada
de manter relações sexuais, a frieza no relacionamento afetivo, podem tornar intolerável
a convivência conjugal e ser causa de pedido de divórcio.
Segundo a conceção do Código, deve verificar-se, por parte do cônjuge contra
quem é proposta a ação de divórcio litigioso, a violação de forma grave ou duradoura
dos deveres impostos pelo casamento, violação que pode traduzir-se, por exemplo, na
recusa por parte de um dos cônjuges em consumar o casamento, na violação dos deveres
enunciados na lei de fidelidade, de respeito, de coabitação, de cooperação e de
assistência moral ou material.
A natureza grave ou duradoura do facto invocado deverá ser apreciada e dada
como verificada pelo juiz da causa, sempre tendo em conta o condicionalismo a que se
refere o artigo 99.° do
Código de Família. Isto é, ao aferir da gravidade e importância do facto para a
vida dos cônjuges, o juiz deve ponderar qual a formação cultural deles, pois determinada
expressão entre pessoas de cultura rudimentar pode não se traduzir em ofensa, e ser
altamente injuriosa entre pessoas com outro nível cultural.
Na mesma linha de pensamento se manda atender «à formação dos cônjuges, ao
grau de educação e à sensibilidade moral dos cônjuges». A relevância do fundamento
invocado não é, pois, uniforme para todos os casos. Têm que ser apreciadas em globo
todas as circunstâncias da vida conjugal e da pessoa dos cônjuges, que interessem para
a decisão a proferir pelo tribunal.
Dentro das circunstâncias a que o tribunal deve atender para declarar ou não o
divórcio são também incluídas questões como a duração do casamento, a idade dos
cônjuges, o seu estado de saúde, etc.
O art. 97.° exige ainda para a declaração do divórcio litigioso que a causa grave
ou duradoura tenha produzido os efeitos negativos sobre a união conjugal enunciados
na parte final deste artigo e que são, em última análise, os mesmos que vêm contidos
no já citado art. 78.°.
O art. 98.°, que contém uma enunciação meramente exemplificativa, limita-se a
indicar situações fatuais que, a verificarem-se, permitem a conclusão de que se encontra
comprometida a comunhão de vida dos cônjuges e impossibilitada a realização dos fins
sociais do casamento.
Por outras palavras, as previsões do art. 98.° são todas elas referentes a causas
de natureza duradoura que se refletem sobre a estrutura matrimonial e que levam a que
possa ser pedido o divórcio litigioso.
A causa grave ou duradoura invocada como fundamento do pedido de divórcio
pressupõe, como a expressão indica, a existência de jactos materiais que um cônjuge
pode invocar contra o outro. Esses factos materiais constituem, pois, a causa de pedir
na ação de divórcio litigioso.
Os factos invocados podem ser de natureza subjetiva ou objetiva.
Se se trata de facto subjetivo, tem que consistir num jacto ilícito violador de
algum dos deveres conjugais.
O facto tem que ser juridicamente imputável ao cônjuge contra quem a ação é
proposta. É o cônjuge que põe a ação que tem o ónus de provar os factos que integram
a causa ou causas e ainda as consequências dos factos invocados.
A conduta ilícita, porque violadora dos direitos do outro cônjuge, tem que se
concretizar na forma de dolo ou de negligência, o que significa que tem que reportar-se
a factos perpetrados com consciência e vontade.
São aplicáveis aqui os conceitos aceites na doutrina do direito penal sobre a
tipificação da conduta do agente como elemento integrador da infração criminal.
Os factos integradores da causa grave ou duradoura têm que ser praticados pelo
cônjuge contra quem a ação é proposta, de forma consciente e voluntária, o que implica
que o conceito de imputabilidade do cônjuge prevaricador é aqui também necessário.
Deve entender-se, porém, que nem sempre é necessário que o cônjuge que pratica
o ato esteja em pleno uso das suas faculdades mentais, pois pode praticá-lo em estado
de embriaguez, em estado de drogado, etc.. Mas se o cônjuge contribuiu
voluntariamente para se pôr em tal situação, é igualmente responsável por ter criado o
estado psíquico determinador da sua conduta.
O cônjuge que propõe a ação de divórcio litigioso tem também de provar que
entre as causas que invoca para fundamentar o seu pedido de divórcio e a destruição do
vínculo conjugal existe um nexo de causalidade, ou seja, que foram elas que
desencadearam a causa genérica que consiste na destruição ou rutura irremediável do
vínculo conjugal.
O que a realidade nos mostra é que a deterioração da vida conjugal não se produz
em regra de forma abrupta, e que ela é produzida por um somatório de factos, em estilo
de respostas sísmicas que, de forma recíproca, se vão avolumando num crescendo que,
quando não é atempadamente controlado e dominado, vai fazer ruir os alicerces da
união conjugal.
Como já fizemos referência, o Código de Família não adotou o sistema das
causas taxativas de divórcio tal como fazia o Código Civil. Este, no seu art. 1778.°,
indicava que, como fundamento de separação litigiosa, eram aplicáveis ao divórcio, por
força do art. 1792.°, os factos seguintes:
a) adultério do outro cônjuge;
b) práticas anticoncecionais ou de aberração sexual exercidas contra a vontade
do requerente;
c) condenação definitiva do outro cônjuge, por crime doloso, em pena de prisão
superior a dois anos, seja qual for a natureza deste;
d) condenação definitiva pelo crime de lenocínio ou por homicídio doloso, em
certas condições;
e) vida e costumes desonrosos do outro cônjuge;
f) abandono completo do lar conjugal por parte do outro cônjuge por tempo
superior a
três anos;
g) qualquer facto que ofendesse gravemente a integridade física ou moral do
requerente.
Alguns destes factos são, na realidade, os que são mais frequentemente
invocados como fundamento do pedido de divórcio litigioso, e daí que haja interesse
em definir alguns dos respetivos contornos. Vejamos, a título exemplificativo, quais os
factos que podem integrar estes fundamentos invocáveis em juízo. Usando a
classificação de causas previstas no art. 97.° do Código de Família, mencionemos
algumas que podem ser apontadas como graves.
A — Adultério
Consiste na consumação de relação sexual de um cônjuge com terceira pessoa,
praticada por ato voluntário. Daí que para a configuração do adultério seja necessário
que se verifiquem simultaneamente os dois elementos, o objetivo e o subjetivo. É
necessário, por um lado, que se verifique a prática do ato carnal, não bastando práticas
libidinosas, ou simples namoro. Estas condutas poderão integrar, como veremos, uma
injúria grave contra o outro cônjuge. É necessário que o ato sexual seja cometido
voluntariamente pelo cônjuge faltoso, pois, se resultar de coação física, como no caso
de violação, ou se for mantido em estado de inconsciência ou por erro, não se prefigura
o adultério.
O adultério constitui um facto ilícito civil, e dele pode derivar para o cônjuge
ofendido o direito de indemnização por danos não patrimoniais. No caso de o adultério
ocorrer durante a vida em comum dos cônjuges, o Código Penal em vigor considerava-
o crime. Como já vimos, tal disposição foi alterada pela Lei de 3 de novembro de 1910,
no seu art. 61.°. Hoje em dia a maioria das leis dos diversos países deixou de considerar
o adultério como um crime.
Discute-se ainda se no conceito de adultério se deve unicamente prever a prática
de relações sexuais entre pessoas de sexos diferentes ou se ele deve abranger
igualmente, relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Tendo em vista que o
relacionamento sexual mantido quer com pessoas de sexo diferente quer do mesmo sexo
envolve práticas libidinosas de caráter íntimo, a tendência é no sentido de englobar estas
últimas na prática de adultério.
B — Vida e costumes desonrosos Considera-se que estamos perante uma injúria
indireta feita por um cônjuge ao outro. É um comportamento que deve traduzir-se em
hábitos de vida que sejam arreigados e envolvam a degradação moral e social do
cônjuge que os pratique e que vai refletir-se sobre a pessoa do outro cônjuge. Pode
indicar-se como exemplo o facto de o cônjuge ser um viciado no consumo da droga ou
de álcool, viver de mendicidade, dedicar-se habitualmente à prática de jogo de azar,
etc..
Não basta uma prática isolada censurável, pois é necessário um teor de vida que
envolva a desqualificação moral do cônjuge que tem uma conduta desonrosa. O cônjuge
ofendido em consequência do comportamento do outro cônjuge sente-se atingido na sua
própria dignidade, pelo facto de o meio social em que os cônjuges vivem desprezar e
desconceituar o outro cônjuge, em virtude do comportamento vergonhoso ou imoral do
prevaricador.
C — Abandono completo do lar conjugal
Este fundamento era invocado com grande frequência na vigência do Código
Civil, que não permitia o divórcio pela simples separação de facto, tendo hoje muito
menos relevância. É uma figura jurídica complexa, que comporta diversos elementos
de natureza objetiva e subjetiva. Para a sua verificação importa que se verifiquem os
seguintes elementos:
— saída livre e espontânea do lar conjugal;
— feita sem o consentimento do outro cônjuge;
— feita com o propósito de romper a comunhão de vida;

— o decurso ininterrupto do prazo legal, que, segundo a alínea f) do art. 1778.°


do Código Civil, era de três anos.
O lar conjugal é a residência comum e própria dos cônjuges. Se os cônjuges
vivem em casa de parentes, entende-se que não chegou a ser constituído o lar conjugal.
A saída do lar tem que ser da iniciativa de quem sai e é preciso que nessa saída não haja
qualquer culpa por parte do outro cônjuge. Se o cônjuge provoca essa saída, expulsando
do lar o outro cônjuge, ou tornando a vida em comum insustentável, já se não configura
o abandono por parte do cônjuge que deserta do lar conjugal. O abandono também não
se verifica quando a saída do lar resultou de acordo estabelecido entre ambos os
cônjuges, acordo que pode ser de natureza expressa ou tácita.
Quando um dos cônjuges sai de casa com o propósito de voltar, tomando
posteriormente a resolução de não voltar à vida comum, o abandono inicia-se a partir
da data em que o cônjuge expressa o propósito de não reatar a vida em comum.
De igual forma acontece quando a saída do lar conjugal for efetuada pelo cônjuge
com a intenção de pôr fim à comunhão de vida e de não voltar a reatar a vida conjugal,
pois este propósito, como elemento integrador do conceito de abandono, deve ser
concomitante com o facto da saída do lar para o efeito de se contar, a partir de então, o
prazo previsto na lei para a separação de facto.
Há ainda que distinguir entre o abandono do lar e a ausência do outro cônjuge
sem dele haver notícias. O abandono do lar é caraterizado, desde o seu início, pelos
elementos que indicamos, ao passo que a ausência se define como o desconhecimento
do paradeiro do outro cônjuge, acompanhado da falta de notícias.
D — Ofensas graves à integridadefísica ou moral
Esta disposição da lei é de caráter genérico e abrange uma larga gama de atos
ofensivos, que podem ser de natureza física (na anterior lei do divórcio denominavam-
se sevícias), ou de natureza moral (na mesma lei eram denominadas injúrias). As
ofensas à integridade moral constituem injúrias, tomado este conceito em sentido lato,
devendo as ofensas, de acordo com a lei, ser consideradas graves.
As ofensas praticadas antes do casamento, mesmo que o cônjuge só delas venha
a ter conhecimento depois da sua celebração, não têm relevância, já que não visaram
alguém que tivesse a situação jurídica de cônjuge.
Têm ainda que visar diretamente a pessoa do cônjuge, embora não seja
necessário que sejam proferidas na presença do outro cônjuge.
Estas práticas, designadamente a violênciafísica, violência psicológica e
violência sexual estão hoje tipificadas como crime e integram o crime de violência
doméstica, alterando a situação anterior que silenciava estas condutas que decorriam no
interior da vida conjugal, atribuindo- lhe tão somente relevância como fundamento no
pedido de dissolução do vínculo conjugal. A ofensa dirigida a parentes próximos do
outro cônjuge pode, segundo alguns, constituir ofensa indireta. 2. Ofensas à integridade
moral

Podem ser constituídas por violência psicológica como ameaças e coação, ou por
injúrias dirigidas contra o outro cônjuge, podendo ser proferidas na presença deste ou
de terceira pessoa que leve o seu teor ao conhecimento do cônjuge ofendido.
Têm também que ser proferidas com o propósito de ofender o outro cônjuge,
ou seja com animus injuriandi.
Fundamentalmente, podem apresentar-se sob três tipos diferentes:
— Injúrias verbais, que consistem em expressões proferidas ou escritas pelo
outro cônjuge;
— imputação caluniosa, que consiste em atribuir ao outro cônjuge um
procedimento indigno;
— injúrias reais, que consistem num comportamento do outro cônjuge em si
mesmo ofensivo da integridade moral do cônjuge ofendido.
Neste tipo legal de fundamento de divórcio é muito importante considerar
atentamente as circunstâncias concretas de cada caso, a gravidade objetiva da ofensa, o
comportamento do cônjuge ofendido, o grau de preparação, os hábitos de linguagem e
outros elementos que vão condicionar a maior ou menor gravidade a atribuir à ofensa.
Ela tem que ir repercutir-se profundamente nas relações pessoais dos cônjuges, de forma
a que a vida em comum fique efetivamente comprometida.
O Código de Família, na esteira do que já tinha sido iniciado pela Lei n.° 53/76,
veio indicar certas causas objetivas de divórcio (art. 89.°, alíneas a), b),
c) e d)), que se reportam, como vimos, a factos que se prolongam no tempo e são
de natureza duradoura.
E — A separação de facto por três anos
Neste fundamento previsto no art. 98.°, alínea a), não há que atender às
circunstâncias ou motivos que levaram os cônjuges à separação. Nem sequer interessa
saber se ela foi ou não iniciada por acordo de ambos os cônjuges. Daí que não haja que
ter em conta a intenção de pôr fim à vida em comum, como era exigida para o abandono
do lar.
A separação de facto traduz-se na violação, por ambos os cônjuges, do dever de
coabitação, e a sua continuidade no tempo demonstra a vontade dos cônjuges no corte
das relações conjugais. Não basta uma suspensão temporária da convivência conjugal
em que se mantêm relações e interesses comuns, e que como vimos pode ser motivada
por razões atendíveis, como seja a atividade profissional de um dos cônjuges, a
necessidade da sua formação profissional, motivos de saúde, etc. Para se configurar este
fundamento a lei exige:
— a separação dos cônjuges durante um mínimo de três anos, com suspensão
total e completa de todas as relações pessoais entre os cônjuges como tal;
— que o tempo de separação tenha decorrido de forma contínua e ininterrupta.

O facto de os cônjuges manterem contatos em razão do interesse dos filhos ou


de interesses comuns, ou por razões de relações patrimoniais, não suspende o decurso
do prazo. Mas ele é interrompido pelo reatamento de relações de natureza pessoal,
mesmo que não tenha sido reatada a coabitação. A simples separação de facto é em si
uma situação anómala no casamento, perante a qual a lei não fica indiferente, vendo
nela um fundamento do pedido de divórcio.
F—Abandono do pais por parte do outro cônjuge
Este fundamento foi introduzido pela Lei n.° 53/76, e consta hoje do art. 98.°,
alínea b) do Código de Família. Ele surgiu em virtude do êxodo que se verificou no
País, aquando da saída de centenas de milhares de pessoas no fim da colonização. De
tal fenómeno resultou a separação de inúmeros casais, porquanto acontecia um dos
cônjuges resolver ausentar-se do país e o outro optar por permanecer, tornando
impossível o prosseguimento da vida conjugal.
Os elementos constitutivos deste fundamento são:
— que um dos cônjuges tenha abandonado o país;
— que o tenha feito com o propósito de não regressar;
— que a saída tenha sido feita sem o consentimento do outro cônjuge. G — A
ausência do cônjuge
Este fundamento do divórcio constava já da Lei do Divórcio de 1910, ainda que
prevendo um prazo de ausência mais longo, e está mencionado no art. 98.°, alínea c) do
Código de Família. A ausência distingue-se da presunção de morte. Como já dissemos,
neste caso há fortes indícios de que a morte se verificou, enquanto que na ausência o
que sucede é que o outro cônjuge está em paradeiro incerto e não se sabem notícias dele.
O que carateriza a ausência é que o ausente não só está em lugar afastado (que é
desconhecido), mas também dele não há notícias, seja por ele as não querer dar, seja
por não as poder dar.
O cônjuge que invocar a ausência tem que alegar e provar que não tem quaisquer
notícias do outro cônjuge e que não sabe de ninguém que lhe dê notícias
dele. Esse estado de ausência tem que se prolongar pelo tempo mínimo de três
anos, pelo que, se entretanto o ausente voltar ou se simplesmente der notícias, o prazo
decorrido fica sem efeito.
A ausência distingue-se da separação de facto, porquanto neste caso os cônjuges
têm paradeiro certo.
H — Demência do cônjuge
0 art. 98.°, alínea d) prevê como fundamento do divórcio a alteração das
faculdades mentais do outro cônjuge, desde que clinicamente verificada. A lei impõe
que:
a) a alteração psíquica seja profunda;
b) que dure há mais de três anos;
c) que pela sua gravidade comprometa a possibilidade de vida em comum.
Exige a lei que a doença seja de tal forma grave que impossibilite o cônjuge de
uma vida normal, tomando-o na verdade, uma pessoa incapaz para a convivência
matrimonial. Embora haja quem censure que se possibilite a obtenção do divórcio em
razão de uma doença psíquica de que o cônjuge dela portador não tem culpa, a verdade
é que se considerou injusto que o cônjuge são tivesse, contra sua vontade, de manter de
pé um vínculo com alguém que já não podia continuar a exercer os direitos e os deveres
conjugais.
No caso de se obter o divórcio com este fundamento, deve, em princípio, manter-
se o dever de assistência ao cônjuge doente, a quem o outro cônjugeficará obrigado a
prestar alimentos.
1 — Relevância dos fundamentos
O cônjuge que propõe a ação de divórcio litigioso, tem ainda o ónus de provar a
relevância dos fundamentos invocados na vida conjugal, tendo em conta os parâmetros
do art. 99.° do Código de Família (a formação dos cônjuges, o seu grau de educação,
sensibilidade moral e todas as demais circunstâncias inerentes ao caso concreto).

[101] Legitimidade na ação de divórcio litigioso e suspensão do direito de ação


Ao mencionarmos que o direito ao divórcio é de natureza pessoal, quisemos
desde logo frisar que ele só pode ser exercido pelo próprio cônjuge titular do direito, ou
no caso de ser ele interdito, pelo seu representante legal, devidamente autorizado pelo
tribunal, e depois de ouvido o Conselho de Família.
A legitimidade para a propositura da ação de divórcio está em correlação com a
causa que for invocada como fundamento.
Se se tratar de causas subjetivas (aquelas que se traduzem na violação dos
deveres conjugais por parte do outro cônjuge), só tem legitimidade para propor a ação
o cônjuge ofendido por essas violações. Isto significa que é o cônjuge lesado nos seus
direitos conjugais que pode propor a ação contra o cônjuge que infringiu os seus
deveres.
Já se o divórcio tiver por fundamento uma causa objetiva, como seja a da
separação de facto, qualquer dos cônjuges indistintamente tem legitimidade para a
propositura da ação. Trata-se de um direito de natureza bilateral, do exercício de um
direito potestativo que não tem origem em qualquer facto ilícito praticado pelo outro
cônjuge.
Se o cônjuge contra quem a ação for proposta não contestar, o cônjuge que
propôs a ação deverá suportar o encargo das custas judiciais — art. 449.°, n.°s 1 e 2,
alínea a), do Código do Processo Civil.
Já se for invocado o abandono do país por parte do outro cônjuge deve entender-
se que o divórcio só pode ser pedido pelo cônjuge que não saiu do País e que está sob
jurisdição dos tribunais angolanos.
O mesmo, obviamente, no caso de ausência. No caso de demência é o cônjuge
não doente que pode invocar a doença, pois trata-se de causa objetiva não imputável a
qualquer dos cônjuges.
A legitimidade tem a ver com a determinação de qual foi a ação ou omissão
voluntária que originou a situação de crise nas relações conjugais, e quem teve a conduta
lesiva não pode invocá-la para com ela obter a dissolução do vínculo. Será o cônjuge
vítima dessa conduta que a pode invocar como causa de pedir no processo de divórcio.
Como já mencionámos a propósito da natureza pessoal do direito ao divórcio,
ele não é transmissível aos herdeiros do cônjuge, pelo que a morte de um deles, seja
Autor ou Réu, leva a que a ação termine ipso facto, uma vez que a morte produz, por si
só, a dissolução do casamento.
O direito ao exercício de ação de divórcio litigioso por parte do marido pode ser
suspenso no caso de gravidez da mulher.
O Código de Família introduziu esta inovação legislativa quanto ao exercício do
direito ao divórcio no seu art. 103.°. Esta disposição impede que o marido proponha
ação de divórcio contra a mulher durante todo o período de gravidez da mulher, e até
que tenha decorrido um ano após o parto.
Esta norma visa proteger a mulher em estado de gravidez ou de parto recente e
que, com os encargos próprios da maternidade, se veja ainda a braços com a situação
difícil que o divórcio sempre acarreta para ambos os cônjuges.
Procura-se poupar à mulher em estado de gestação ou em período de
amamentação, o ter que enfrentar uma ação de divórcio litigioso com as inerentes
consequências de perturbação de índole psicológica e familiar que ela acarreta.
A experiência mostra como eram frequentes as ações de divórcio propostas pelo
marido a despeito do estado de gravidez da mulher.
A disposição legal ressalva, porém, dois casos em que o marido pode, mesmo
nestas circunstâncias, exercer o seu direito ao divórcio.
O primeiro caso é o de a mulher dar o seu consentimento à ação, ou de forma
expressa, antes da suapropositura, ou de forma tácita, não suscitando o seu direito a
pedir a suspensão da instância.
O segundo caso refere-se ao facto de vir o marido impugnar a paternidade do
filho. Quer numa situação quer noutra, a ação pode ser proposta e prosseguir, pois a lei
previu, por um lado, que pode ser a mulher a estar interessada na dissolução do seu
casamento por divórcio, sem embargo do seu estado de gravidez ou pós- parto, e
admitiu, por outro lado, que devia defender-se o interesse do marido quando este
pretendesse afastar a presunção legal da sua paternidade.
Trata-se, no entanto, como se vê, de mera suspensão legal do exercício de um
direito, que não afeta a sua subsistência.

O n.° 2 do art. 103.° esclarece a forma de contagem do prazo de caducidade do


direito ao divórcio previsto no art. 102.°, no caso de ser suspenso o exercício do direito
ao divórcio por pane do marido, de acordo com o n.° 1 desse artigo.
Havendo causa de suspensão legal, o prazo de caducidade também se interrompe
pelo exato período que durar a suspensão.

[102] Causas de extinção do direito ao divórcio A — Instigação


A instigação verifica-se quando a conduta faltosa do cônjuge deriva do
comporta¬mento deliberado do outro. Deste modo, muito embora se verifiquem factos
que podiam constituir causas legais de divórcio por infração de deveres conjugais,
sucede que eles decorreram de instigação ou provocação por parte do outro. Estamos
perante causas de justificação, ou causas de exclusão da ilicitude, pelo que o
comportamento do cônjuge deixa de ser ilícito, em razão do comportamento que, em
relação a essa falta, teve o outro cônjuge.
Nas ofensas cometidas por um cônjuge contra o outro, dada a natureza estrita da
sociedade conjugal, que possui uma unidade própria, é por vezes muito difícil dissociar
a conduta de um cônjuge da conduta do outro, e ainda determinar em cada caso quando
a conduta de um dos cônjuges teve a influência determinante na conduta do outro.
Se, por exemplo, um dos cônjuges tem um comportamento indigno para o outro,
o cônjuge ofendido pode, debaixo de transtorno emocional, proferir expressões
ofensivas contra o que prevaricou.
Se um dos cônjuges cometer adultério, por a isso ter sido levado por conselho ou
pedido do outro, o cônjuge que instigou o outro ao cometimento da falta, não pode vir
invocá-lo contra o faltoso.
O art. 100.° do Código de Família exclui o direito à obtenção do divórcio por
parte do cônjuge que tiver instigado o outro a praticar o facto invocado como
fundamento do pedido, ou que tenha criado intencionalmente condições propícias à sua
verificação.
Prevê esta disposição não só a instigação direta à prática de um facto, mas
também a criação voluntária, dolosa, de circunstâncias que, em condições normais,
conduziriam, previsivelmente, ao ilícito. Esta disposição deriva da que já constava do
art. 1780.°, alínea a) do Código Civil revogado.
Em virtude dela, deixa de haver o direito ao divórcio, quer quando um dos
cônjuges possa ser considerado moralmente cúmplice do outro, ou quando o cônjuge,
pela sua conduta, tenha criado condições para a reação do outro cônjuge, ou tenha
propiciado a sua conduta ilícita.
Constituindo matéria de exceção, em ação de divórcio a prova dos factos
invocados tem que ser feita pelo Réu que os invocar ou pelo Autor em caso de resposta
à reconvenção — art. 342.°, n.° 2 do Código Civil
B — O perdão e reconciliação

O Código de Família (art. 101.°) refere como causa da perda do direito ao


divórcio, ou seja, como causa extintiva desse direito, o perdão do cônjuge ofendido.
Igual previsão existia na alínea b) do art. 1780.° do Código Civil
O perdão é um ato jurídico unilateral, que se insere no âmbito da vontade do
titular do direito ao divórcio. O cônjuge pode livremente considerar que prefere
esquecer a ofensa e manter a vida conjugal com o outro cônjuge.
O perdão do cônjuge ofendido revela-se pelo seu comportamento posterior ao
conhecimento que teve da falta cometida pelo outro cônjuge, e pode revestir a forma
expressa ou tácita.
O perdão tem que ser o produto de uma expressão de vontade clara e
incontro¬versa, e não pode constituir um facto puro e simples emanado da vontade de
um dos cônjuges independente do comportamento do outro.
Na verdade, em regra, o cônjuge que concede o perdão relativamente a
determinado facto toma essa atitude na expetativa de mudança do compor¬tamento do
outro cônjuge, e não constitui de forma nenhuma a «carta de alforria » para que o
cônjuge que prevaricou, venha a cometer novas faltas.
O perdão pode ser concedido sob condição de o cônjuge culpado não reincidir.
O cônjuge que concede o perdão deve exigir garantia e segurança de que o outro não
volta a prevaricar.
O perdão tem que ser provado por factos concludentes e a sua existência não se
presume. Assim, o facto de os cônjuges continuarem a manter a vida em comum na
mesma habitação ou de ter decorrido determinado tempo sobre a prática da falta não
significa que esta tenha sido perdoada.
Cabe ao réu, em princípio, fazer a prova da existência do perdão, por ser facto
extintivo do direito do autor. Mas há quem entenda que a matéria em causa cabe no
âmbito da apreciação oficiosa pelo tribunal, quando este entender que o facto não
comprometeu o prosseguimento da vida comum dos cônjuges.
Além do perdão, existe ainda a reconciliação dos cônjuges como causa extintiva
do direito ao divórcio. A reconciliação é já um acordo da vontade de ambos os cônjuges
e consiste simultaneamente na verificação de dois elementos: o elemento moral e o
elemento material.
O primeiro elemento traduz-se na concordância dos cônjuges em esquecer a
ofensa ou ofensas recíprocas, reconhecendo as próprias culpas quando as houver de
ambos. O segundo elemento, o material, consubstancia-se no facto de a vida em comum
dos cônjuges ser retomada em toda a sua plenitude.
Tanto o perdão como a reconciliação excluem o direito ao divórcio, mas só
relevam quanto a factos anteriores, traduzindo-se numa renúncia tácita de requerer o
divórcio perante uma situação concreta. Não tem relevância quanto a factos
supervenientes ou quanto a factos cujo conhecimento seja posterior ao perdão ou
conciliação.
O perdão e a reconciliação, como atos jurídicos, estão sujeitos a ser anulados no
caso de se apurar que a sua concessão ou produção se verificaram em virtude de erro,
dolo ou coação.
O cônjuge que na ação de divórcio invocar factos que integrem o perdão por
parte do outro ou a reconciliação dos cônjuges terá sobre si o encargo do ónus da prova
desses factos, de acordo com a regra geral do art. 342.°, n.° 2 do Código Civil já citado.
C — A caducidade do direito ao divórcio
O exercício do direito ao divórcio está ainda sujeito a caducidade se não for
exercido no prazo legal. O legislador entendeu que o cônjuge que se sinta atingido pela
conduta do outro cônjuge deve ter um período dentro do qual tem de reagir. Também a
estabilidade da família não aconselha a que se venham invocar contra o outro cônjuge
factos antigos, pelo que não se permite que, por razões de mero oportunismo, se venha
mais tarde a invocá-los como fundamento de um pedido de divórcio.
O Código Civil fixava o período de um ano para a propositura da ação (art.
1782.°). Este artigo foi revogado pelo artigo 7.° da Lei n.° 53/76, que dizia o seguinte:
«O direito à separação de pessoas e bens ou divórcio litigioso caduca no prazo de dois
anos a contar da data em que o cônjuge ofendido ou o seu representante legal, teve
conhecimento do facto suscetível de fundamentar o pedido».
Hoje, o art. 102.° do Código de Família mantém o prazo de dois anos para o
exercício do direito ao divórcio. A contagem do prazo inicia-se com o conhe¬cimento
do facto que serve de fundamento ao pedido por parte do cônjuge que o formula, e não
da data do seu cometimento por parte do outro cônjuge.
A contagem do prazo pode apresentar-se, por vezes, difícil, quando se trata de
factos continuados e que se prolonguem por um determinado decurso de tempo.
Se se tratar de um facto continuado, o direito ao divórcio mantém-se desde que
o facto se continue a produzir, independentemente da data do conhecimento por parte
do outro cônjuge. O prazo de caducidade só começa a contar a partir do momento em
que o facto cessou.
É o que dispõe o n.° 2 do art. 102.° do Código de Família.
Por exemplo, no caso da prática do adultério continuado por parte de um dos
cônjuges que seja do conhecimento do outro cônjuge, enquanto o adultério se mantiver
persiste o direito ao divórcio, que só caduca quando se perfizerem dois anos sobre a
data da cessação do adultério.
A regra geral para a contagem do prazo de caducidade vem contida no artigo
329.° do Código Civil. Em princípio, cabe ao réu fazer a prova do decurso do prazo
como facto extintivo do direito do autor (art. 343.°, n.° 2 do Código Civil).
Mas se houver no processo elementos dos quais se possa concluir que se
verificou a caducidade, ela deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal (n.° 1 do
artigo 333.° do Código Civil), uma vez que estamos perante matéria legalmente
excluída da disponibilidade das partes. É esta a posição legal acolhida no Código de
Família, cujo art. 102.°, n.° 2 determina que, tratando-se de facto continuado, o prazo
só corre a partir da data em que houver cessado.

[103] Formalismo processual do divórcio litigioso


1. Processo especial
O Código de Família, tendo em vista uma aplicação mais eficaz do direito, bem
como uma maior efetivação dos fins por ele prosseguidos, viu-se na necessidade de
introduzir no seu texto determinadas normas de natureza processual.
Elas visam fundamentalmente obter uma intervenção mais dinâmica e ativa do
tribunal, permitindo um melhor apuramento da verdade material, e ainda uma justiça
mais pronta, afastando o excessivo formalismo dos processos declarativos ordinários
que eram os aplicáveis a todas as ações de estado de pessoa, passando a ser aplicadas
às ações de natureza familiar normas de processo especial.
De acordo com esta orientação, a Lei n.° 1/88, que aprova o Código de Família,
determina que, enquanto não for revista a legislação em vigor, as ações previstas no
Código seguirão o formalismo dos processos de jurisdição voluntária previsto no artigo
1409.° do Código de Processo Civil — art. 6.°, n.° 1.
Embora o processo de divórcio litigioso seja de natureza contenciosa e não
graciosa, o processo aplicável é o deste art. 1409.°, que, por sua vez, remete para os
arts. 302.° e 304.°, todos do Código Civil.
As normas de processo de jurisdição voluntária aplicam-se, porém,
subsidiariamente, pois em primeiro lugar são aplicadas as normas de processo civil
constantes do próprio Código de Família, como dispõe o n.° 1 do citado art. 6.° da Lei
n.° 1/88.
Ora, em matéria de divórcio, o Código de Família consigna também normas de
natureza processual e especificamente algumas que dizem respeito ao divórcio litigioso.
2. Cumulação de pedidos
Em primeiro lugar, o artigo 104.°, n.° 1 vem permitir cumular o pedido de
divórcio com qualquer dos seguintes pedidos:
a) o pedido de alimentos;
b) o de regulação do exercício da autoridade paternal e prestação de alimentos
aos filhos menores do casal;
c) o da atribuição de residência familiar.
O n.° 2 deste artigo 104.° vem ainda permitir que, contrariamente ao que dispõe
o art. 274° do Código de Processo Civil quanto à natureza do pedido reconvencional, o
cônjuge contra quem for posta a ação possa deduzir ou não novo pedido de divórcio, e,
mesmo não o fazendo, deduzir qualquer dos pedidos expressos no n.° 1, pela via de
reconvenção.
Ao atribuir-se a um único tribunal o conhecimento das questões relativas às
relações conjugais, como o divórcio, e o das questões referentes às relações entre pais
e filhos, como as de regulação da autoridade paternal, está-se já em consonância com a
Lei do Sistema Unificado de Justiça, que prevê a existência de Salas de Família nos
Tribunais Provinciais com competência para decidir todas as questões de natureza
familiar, de acordo como o art. 32.°, n.° 1 da Lei n.° 1/88, de 31 de dezembro, já citada.
Através dos contatos com as partes, com os membros do Conselho de Família se
tal for o caso, da prova produzida nos autos e dos inquéritos sociais que mande realizar,
o Juiz da Sala de Família terá de obter um mais profundo conhecimento da realidade
fatual que abrange a globalidade das questões postas à sua consideração e assim
encontrar para cada uma delas uma decisão que se espera seja a mais adequada.
3. Conciliação dos cônjuges
De particular relevância é a intervenção do tribunal na conciliação dos cônjuges.
O artigo 105.° torna obrigatório que o juiz proceda sempre à tentativa de conciliação,
desde que ambos os cônjuges vivam no país. Daí que, uma vez proposta a ação de
divórcio e finda a fase dos articulados, o juiz deva designar essa audiência de
conciliação a que os cônjuges devem comparecer ou fazer-se representar, mesmo que
não residam na área da Província onde o tribunal se situa.
Essa tentativa de conciliação é muito importante, por permitir a um órgão do
Estado procurar salvar a estabilidade da família.
A tentativa de conciliação pode ser efetuada pela forma que o juiz entender mais
eficaz, como seja ouvindo cada um dos cônjuges separadamente e depois em conjunto,
e explicando quais as consequências pessoais e económicas do fim de vida conjugal e
os seus efeitos em relação aos filhos.
A experiência evidencia, porém, que, na grande maioria das vezes, a conciliação
por via judicial é ineficaz. Noutros sistemas legais a tentativa de conciliação antecede a
fase dos articulados da ação, ou do despacho de citação para contestação da petição
inicial.
O juiz pode mesmo sustar o andamento do processo por tempo não superior a
três meses, quando assim considerar justificado — artigo 105.°, n.° 2. E, quando o
julgue útil à conciliação dos cônjuges, pode o tribunal, oficiosamente ou a pedido das
partes, convocar o Conselho de Família para o ouvir — art. 105.°, n.° 3.
Hoje em dia, defende-se cada vez mais, o processo de mediação familiar que tem
especial relevância nas ações de divórcio. A mediação é dirigida não só no sentido de
obter a conciliação dos cônjuges mas sobretudo para atenuar os efeitos do divórcio e
obter acordos nas diversas questões que se suscitam com a dissolução do vínculo
conjugal.
4. Conversão da ação
Se o tribunal chegar à conclusão de que os cônjuges não querem conciliar-se e
se mantêm irredutíveis nas suas posições, deverá tomar a iniciativa de obter o acordo
de ambos para converter a ação de divórcio litigioso em ação de divórcio por mútuo
acordo — art. 106.°, n.° 1.
Considera-se preferível a opção por esta forma de divórcio, obtido o consenso
das partes, sem recurso ao conhecimento dos factos litigiosos.
Tal só será possível, porém, se se verificarem os respetivos pressupostos legais,
isto é, se estiverem preenchidos os requisitos respeitantes à idade dos cônjuges, à
duração do casamento e aos acordos complementares, como vem previsto nos arts. 83.°
e 85.° do Código de Família.
Se os cônjuges acordarem em prosseguir o divórcio por mútuo acordo e
estiverem verificados os pressupostos legais, o processo segue os termos desta
modalidade de divórcio.
Isto é, o juiz pode fixar um prazo para os cônjuge trazerem a tribunal os acordos
complementares previstos no art. 85.° e designar dia para nova conferência de cônjuges,
se for caso disso.
Se o processo for convertido em divórcio por mútuo acordo e algum deles vier a
não cumprir o prazo que for fixado ou vier depois a desistir após a declaração do
divórcio provisório, deve entender-se que o outro cônjuge tem o direito de vir prosseguir
com o pedido de divórcio litigioso, que tenha anteriormente formulado, salvaguardadas
as regras processuais.
5. Medidas provisórias
Se os cônjuges não chegarem a acordo, o processo de divórcio prossegue,
tornando-se necessário tomar medidas que regulem a vida dos cônjuges nesta nova fase
durante a pendência da ação. Se tal tiver sido pedido ao tribunal, pode este decidir
provisoriamente sobre os pedidos mencionados no art. 104.°, ou seja, sobre o pedido de
alimentos ao cônjuge, sobre a regulação da autoridade paterna e alimentos aos filhos
menores e sobre a atribuição da residência familiar, como permite o art. 107.° do Código
de Família.
A fixação dos alimentos ao cônjuge e aos filhos menores terá caráter provisório,
como vem previsto no art. 256.° do Código de Família.
Antes de decidir provisoriamente, o juiz pode proceder às diligências que repute
necessárias ao esclarecimento dos factos, como seja mandar proceder a inquéritos
sociais, requerer informações junto de organismos públicos ou entidades privadas, etc..
Embora este art. 107.° não o diga expressamente, o Juiz pode tomar outras
medidas provisórias de caráter urgente que para cada caso se mostrarem necessárias,
tais como a entrega dos bens de uso pessoal do cônjuge, a proibição de certas condutas
ofensivas, etc.
Aliás nas leis que em diversos sistemas jurídicos têm vindo a ser adotadas, estas
medidas de caráter provisório são desencadeadas logo de início dos processos derivados
de queixas pelo crime de violência doméstica.
6. Efeitos e registo da sentença
A sentença que decretar o divórcio deve, sempre que possível, declarar qual a
data em que ocorreu o fim da coabitação dos cônjuges, pois a separação de facto é
juridicamente relevante, quer quanto aos efeitos pessoais quer quanto aos efeitos
patrimoniais da dissolução por divórcio — arts. 81.°, n.° 1, e 82.°, n.° 1 do Código de
Família.
A sentença proferida na ação de divórcio litigioso, tal como a do processo de
divórcio por mútuo acordo, está obrigatoriamente sujeita a registo, por envolver
modificação no estado civil das pessoas — artigo 2.°, n.° 1 do Código Registo Civil.
Assim, logo após o trânsito em julgado da sentença, deverá ser enviada certidão
à conservatória competente (artigo 101.°), para o efeito do averbamento previsto no
artigo 88.°, n.° 1, alínea b), ambos do citado Código.
Se o casamento tiver sido efetuado no estrangeiro e não tiver sido transcrito ou
só disser respeito a cidadãos estrangeiros, não há lugar à comunicação a que se refere
artigo 101.° do Código do Registo Civil.
Em relação a terceiros, os efeitos de natureza patrimonial só se produzem a partir
do registo da sentença, como prevê o art. 82.°, n.° 2 do Código de Família.
CAPÍTULO l6.°
EFEITOS DA DISSOLUÇÃO DO CASAMENTO

[104] Efeitos genéricos


O vínculo conjugal desaparece com a dissolução do casamento, seja ela operada
por morte ou por divórcio. O estado civil do cônjuge sobrevivo altera-se para o estado
de viúvo, no caso de morte do outro cônjuge; ambos os cônjuges passam ao estado de
divorciado no caso de dissolução do casamento por divórcio.
Os efeitos da dissolução do casamento só se operam em relação ao futuro, ou
seja, a partir da data da morte como facto material ou a partir da data que a sentença
fixou como a da morte presumida, ou do trânsito em julgado de sentença de divórcio,
se não for dado como verificado antes o fim da coabitação.

Os efeitos da dissolução do casamento podem ser de natureza pessoal, que se


refletem nas relações entre os cônjuges e entre eles e os filhos, e de natureza patrimonial,
pois a dissolução do casamento marca o fim do seu regime económico. Cessam os
poderes e deveres entre os cônjuges, sendo que, para além da dissolução, a única
obrigação que pode subsistir é a obrigação de alimentos, que se pode manter por
assentar no princípio da solidariedade pós- conjugal.
O Código de Família confere à dissolução do casamento por morte um
tratamento mais favorável do que à dissolução do casamento por divórcio.

[105] Efeitos da dissolução do casamento por morte 1. Efeitos de natureza


pessoal.
O estado de viuvez inicia-se com a morte do outro cônjuge, verificada
diretamente pela data constante do assento de óbito ou indiretamente pela data
presumível da sua verificação declarada pelo tribunal. A partir desse momento cessam
em relação ao cônjuge supérstiste os direitos e deveres que decorriam do casamento.
No entanto, o viúvo conserva na sua titularidade vínculos pessoais próprios do
casamento anteriormente contraído.
a) Direito ao nome
O cônjuge viúvo conserva o direito ao uso do nome. Esse direito já vinha
consagrado no Código Civil, na vigência do qual a mulher conservava o direito de usar
os apelidos do marido em caso de viuvez e até passar a segundas núpcias (art. 1675.°).
O art. 36.°, n.° 1 do Código de Família prevê indistintamente que o marido ou a
mulher adotem o apelido do outro ou optem por um apelido comum de família. Por isso
mesmo, coerentemente, o n.° 3 do art. 36.° dispõe que, no caso de dissolução do
casamento por morte de um dos cônjuges, o cônjuge sobrevivo mantém o direito ao uso
do nome, enquanto não contrair novo casamento.

b) Vínculo da afinidade
O vínculo da afinidade, que liga o cônjuge aos parentes do outro, não cessa com
a dissolução do casamento por morte. É esta, como já vimos, a regra do art. 15.°, n.° 2
do Código de Família. Este vínculo mantém-se mesmo que o cônjuge sobrevivo venha
a contrair novas núpcias.

c) Direito de voltara casar


Como vimos, há legislações que prevêem o prazo internupcial como
impedimento impediente e impõem um período durante o qual o cônjuge viúvo ou
divorciado não pode voltar a casar por razões de decoro social ou para evitar a
sobreposição de presunções de paternidade em relação à mulher casada.
Esse prazo não existe no Código de Família, pelo que nada obsta a que o cônjuge
sobrevivo, homem ou mulher, contraia novo casamento logo que dissolvido o anterior.
Se tal acontecer, deverá funcionar a regra citada no art. 165.° do Código de Família, que
atribui a presunção de paternidade ao marido do casamento celebrado em segundo lugar.
Também a lei não impõe qualquer limite quanto ao número de vezes que uma
pessoa pode contrair casamento, pelo que cada um pode voltar a casar quantas vezes
quiser, desde que se não verifiquem impedimentos legais.
Na jurisprudência europeia, designadamente a francesa e a portuguesa, têm sido
julgadas nulas as disposições testamentárias que impõem ao cônjuge sobrevivo a
obrigação de não voltar a casar.
d) Direitos em relação aosfilhos Quando estudamos as relações entre pais e filhos
vimos que a autoridade paternal é exercida em igualdade de direitos, deveres e
responsabilidade pelo pai e pela mãe.
E no caso de falecer um dos progenitores, o progenitor sobrevivo passa a exercer
em exclusivo a autoridade paternal.
Isto significa pois, que, no caso da morte do pai ou da mãe, cabem ao progenitor
sobrevivo todos os direitos e deveres que integram a autoridade paternal e que os pais
detêm relativamente aos seus filhos menores, quer quanto à pessoa destes quer quanto
à administração dos bens.
A morte dum dos progenitores vai assim levar a que ela recaia na totalidade sobre
o outro progenitor, mas no entanto, deve sempre ter-se em conta a natureza funcional
da autoridade paternal, que como vimos, impõe no art. 127.°, n.° 2 do Código de
Família, que: «Os deveres e direitos paternais devem ser exercidos no interesse
dosfilhos e da sociedade.»

e) Obrigação de alimentos
Pode acontecer que o cônjuge sobrevivo não disponha de recursos para se manter
pelo facto de os bens do de cujus terem sido atribuídos post mortem a outros herdeiros
ou legatários, nem tenha direito a pensões de segurança social ou outros meios que lhe
permitam sobreviver com um nível de vida idêntico ao que mantinha durante a vigência
do casamento.
Eventualmente, se o cônjuge viúvo carecer de alimentos estes podem vir a ser
retirados dos rendimentos dos bens deixados pelo falecido. Quando tal ocorre, estamos
perante o prolongamento do dever de assistência entre os cônjuges para além da
dissolução por morte, pois entendeu-se que o defunto se preocuparia com as condições
de vida do cônjuge viúvo depois da sua morte.
Este princípio vem expresso no art. 261.°, n.° 1 do Código de Família, nos termos
do qual, em caso de morte de um dos cônjuges ou do companheiro de união de facto
judicialmente reconhecida, o viúvo ou companheiro sobrevivo têm direito a ser
alimentados pelos rendimentos dos bens deixados pelofalecido.
Este princípio já vinha consignado no art. 2018.° do Código Civil. Este encargo
recai sobre todo o património que foi objeto da sucessão, deverá ser suportado pelos
herdeiros na proporção das respetivas quotas hereditárias e não pode exceder os limites
destas. Este direito a alimentos do cônjuge sobrevivo é designado como «apanágio do
cônjuge viuvo».
2. Efeitos de natureza patrimonial
O art. 75.° do Código de Família contém as regras aplicáveis à dissolução do
casamento por morte no seu aspeto patrimonial. Do confronto deste preceito com o do
art. 80.°, que estabelece os efeitos patrimoniais da dissolução por divórcio, fica claro o
tratamento mais favorável que a lei dá ao cônjuge viúvo.
a) Direitos e benefícios
O cônjuge sobrevivo mantém os direitos e benefícios que haja recebido em razão
do casamento, como refere o art. 75.°, n.° 1 do Código de Família. Entre esses direitos
podemos mencionar as regalias de natureza social do defunto que sejam transmissíveis
ao seu cônjuge e que não se extingam com o casamento, o direito a pensões de segurança
social que se transmitem para o cônjuge viúvo pela morte do titular do direito. Os
benefícios havidos em razão do casamento podem ser de diversa natureza, tal como as
doações feitas pelo outro cônjuge ou por terceiro, antes ou durante o casamento, os
valores dos prémios de seguros ou prestações de natureza assistencial e feitas pelo
cônjuge falecido.
Dentro dos objetivos da Proteção Social do trabalhador encontra-se a
necessidade de «garantir a sobrevivência dos seus familiares em caso de morte». — Lei
de Bases da Proteção Social, Lei n.° 7/04, de 15 de outubro {Diário da República, n.°
83), art. l.°, alínea a).
O regime jurídico desta lei foi, como vimos, definido pelo Decreto n.° 38/08 de
19 de junho (Diário da República, n.° 112) que estabelece no seu art. 6.° «Estão
vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de dependentes do segurado: a)
o cônjuge ou pessoa em união de facto.»
Garante-se desta forma o direito à pensão de sobrevivência ao cônjuge do
trabalhador falecido. O companheiro da união de facto tal como o cônjuge, tem direito
à pensão de sobrevivência, no caso de falecimento do trabalhador — art.° 6-° alínea a)
do Decreto n.° 38/08 de 19 de junho.
O Decreto Presidencial n.° 8/11 de 7 de janeiro, atribui o subsídio de funeral ao
cônjuge do segurado — art. 3.°, já atrás citado.
Em certos casos é atribuído ao cônjuge viúvo o direito de representação a título
póstumo, designadamente na defesa dos direitos pessoais relativos ao respeito pela
memória do falecido.
b) Direito sucessório
O cônjuge viúvo tem a qualidade de sucessível do de cujus em relação à sua
herança, surgindo na 4.a classe dos sucessíveis, conforme vem disposto no art. 2133.°,
alínea d), do Código Civil.
Na legislação portuguesa atual tal situação está alterada, porquanto o cônjuge
viúvo surge como herdeiro sucessível, tanto na l.a como na 2.a classe dos sucessíveis,
conjuntamente com os descendentes e os ascendentes.
Pelo que dispõe o Código Civil ainda vigente, o cônjuge sobrevivo, no caso de
não haver descendentes ou ascendentes do de cujus, tem direito ao usufruto vitalício
dos bens da herança como legatário legítimo (art. 2146.°).
Além de que o cônjuge viúvo mantém o pleno direito a todas as deixas
testamentárias outorgadas pelo cônjuge pré-defúnto. As liberalidades não sofrem
qualquer restrição, salvo as que respeitem às reservas dos herdeiros legitimários.
c) Liquidação do património
O fim do regime económico do casamento tem particular importância quando o
regime de bens do casamento for o de qualquer tipo de comunhão de bens, seja ele o de
comunhão geral de bens (que era o regime-regra antes da entrada em vigor do anterior
Código) ou o da comunhão de adquiridos, que, a partir de então, é o regime supletivo
geral.
No regime de separação de bens os patrimónios de cada cônjuge estão separados,
mas pode haver igualmente a necessidade de liquidação do passivo ou de divisão de
bens adquiridos em comum. A cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges
opera-se em regra em duas fases:
— liquidação do passivo;
— partilha dos bens comuns.
A liquidação do passivo é feita procedendo-se em primeiro lugar ao pagamento
das dívidas contraídas perante terceiros. A dissolução do casamento fàz cessar a
moratória legal sobre as dívidas exclusivas de cada cônjuge, as quais passam logo a ser
exequíveis — art. 64.°, n.° 1 do Código de Família.
Todas as dívidas a terceiros, comuns ou exclusivas, devem ser liquidadas. Em
segundo lugar são liquidadas as dívidas contraídas pelos cônjuges entre si.
Estes encargos são satisfeitos sucessivamente pela meação do devedor no
património comum e depois pelos bens próprios do devedor — art. 75.°, n.° 3 do Código
de Família.
Uma vez liquidado o passivo, passa-se à partilha dos bens comuns e à
determinação do património pessoal de cada cônjuge, o qual é integrado pelos
respetivos bens próprios e pelos bens que passam a integrara sua meação. Como a
palavra indica, a meação consiste no direito a metade dos bens comuns do casal.
Importa distinguir entre a liquidação e partilha dos bens do casal e a liquidação
e partilha sucessória do património do de cujus. Esta liquidação e partilha pode ser
realizada conjuntamente no mesmo ato, mas uma coisa é a titularidade do direito do
cônjuge sobrevivo sobre os bens do dissolvido casal e outra é a titularidade dos direitos
dos herdeiros ou legatários aos bens do falecido.
Neste caso são aplicadas as regras da devolução sucessória e são chamados os
herdeiros ou legatários, entre os quais pode estar ou não incluído o cônjuge viúvo, e
então estes são chamados a receber os bens próprios e os bens que passem a integrar a
meação do defunto.
Ao operar-se a partilha dos bens comuns, o cônjuge sobrevivo goza do direito de
preferência que lhe é concedido pelo art. 75.°, n.° 2 do Código de Família.
Esse direito de preferência consiste em poder integrar a sua meação sobre os bens
especificados na lei e que são:
a) os bens que tenham sido usados na vida do lar;
b) os bens que tenham sido usados como instrumentos próprios ou comuns de
trabalho.
Mais uma vez se entendeu que, dado o fim especial a que estão adstritos tais
bens, e em beneficio dos fins para que foi constituído o matrimónio e a sua correlação
íntima com a estabilidade da família, se deveria dar uma proteção especial na afetação
desses bens, beneficiando o cônjuge sobrevivo, que poderá preferencialmente querer
que eles passem a fazer parte da sua meação.
O direito de propriedade e de fruição de tais bens deve estar afeto a este cônjuge
e, para que ele não seja privado deles, concede-lhe a lei o direito de preferência sobre
os demais herdeiros do falecido.
d) Transmissão do direito ao arrendamento da residência familiar O direito à
residência familiar constitui um dos direitos mais relevantes que deriva do casamento e
que tem o seu prolongamento legal aquando da sua dissolução.
Em todas as legislações se atende cada vez com maior atenção ao destino da
residência familiar depois de extinto o vínculo matrimonial.
O direito ao arrendamento da casa destinada à habitação transmite-se ao cônjuge
viúvo, desde que não separado de facto, de acordo com o que vem consi¬gnado no
Decreto n.° 43 525, de 7 de março de 1961 (Lei do Inquilinato), ainda em vigor. O
Decreto n.° 43 525 dispõe que a transmissão da posição jurídica do inquilino se defere,
em primeiro lugar, ao cônjuge sobrevivo (alínea a), n.° 2 do art. 76.°).
Este princípio foi inserto no n.° 4 do art. 75.° do Código de Família, que atribui
a transmissão do direito ao arrendamento da residência familiar ao cônjuge sobrevivo,
mas ressalvando que essa transmissão se opera nos termos que foram fixados na lei.
Esta, como é óbvio, é a lei civil sobre o direito de arrendamento, onde se determinam
os pressupostos legais de tal transmissão do direito, como a efetiva convivência
conjugal à data da morte do cônjuge titular do arrendamento, ou outras que a lei entenda
fixar.
[106] Efeitos da dissolução do casamento por divórcio
Os efeitos da dissolução do casamento por divórcio são no geral idênticos aos da
dissolução por morte. Mas o art. 80.° exceciona alguns aspetos de natureza patrimonial
que aplicam um regime de desfavor à dissolução do casamento por divórcio.
Ao afastar a conceção do divórcio sanção e a declaração na sentença de divórcio
de qual o cônjuge culpado ou principal culpado, procurou-se desdramatizar o divórcio
e impedir que se exacerbassem os antagonismos entre os cônjuges, que muitas vezes
faziam das ações de divórcio litigioso uma verdadeira arena onde eram expostas as
misérias físicas e morais de um e de outro, produzindo sequelas de ódio recíproco
irreversíveis.
Daí que o divórcio por mútuo acordo se revele uma forma menos desgastante das
relações pós-conjugais e torne possível que sejam os cônjuges a regular, por acordo,
diversos efeitos decorrentes da declaração do divórcio.
No divórcio litigioso também é possível serem os cônjuges a estabelecer por
acordo as questões relativas aos direitos sobre os filhos menores, ainda que sob
homologação do tribunal, e a direitos patrimoniais como a partilha de bens, atribuição
da residência familiar, etc., minimizando os efeitos do litígio. Há que ter em conta que,
se for proposta ação de divórcio e se os cônjuges se reconciliarem e desistirem da ação,
ou se o cônjuge que a propôs vier a decair na ação, se restabelece de pleno toda a
situação pessoal e patrimonial anterior.
a) Data de produção dos efeitos em relação aos cônjuges
Os eleitos da dissolução do casamento por divórcio produzem-se, regra geral, a
partir do trânsito em julgado da sentença, quanto aos efeitos nas relações pessoais dos
cônjuges (art. 81.°, n.° 1 do Código de Família) e no que diz respeito às relações
patrimoniais (art. 82.°, n.° 1 do mesmo Código).
Mas estes artigos permitem que certos efeitos pessoais e patrimoniais deixem de
processar-se no caso de a sentença de divórcio fixar a data do fim da coabitação dos
cônjuges em data anterior à sentença. O fim da produção desses efeitos pode retrotrair-
se à data em que cessou a coabitação, quando tal for fixado na decisão que declarar o
divórcio (arts. 81.°, n.° 2 e 82.°, n.° 1).
Aliás, na modalidade do divórcio por mútuo acordo a declaração do divórcio
provisório suspende o dever de coabitação dos cônjuges (art. 94.°) que se presume
termina a partir de então.
A cessação da produção dos efeitos pessoais do casamento tem particular
rele¬vância quanto à presunção da paternidade dos filhos nascidos da mulher casada.
A cessação da produção dos efeitos patrimoniais faz-se sentir tanto quanto aos
bens adquiridos a título oneroso a partir da data do fim da coabitação, como quanto às
dívidas comuns que tenham como causa jurídica a satisfação dos encargos da vida
familiar ou o proveito comum do casal. Cessando a coabitação dos cônjuges e passando
estes a viver numa situação de separação de facto, já não pode proceder qualquer dessas
causas que tornam comunicáveis as dívidas. Entendemos que a data de propositura da
ação de divórcio deve ser tida em conta para efeitos patrimoniais, designadamente
quanto à natureza das dívidas contraídas por um só cônjuge.
Em alguns sistemas jurídicos os efeitos patrimoniais da dissolução do
casa¬mento por divórcio produzem-se entre os cônjuges a partir da data da propositura
da ação, permitindo que eles cessem a partir da data do fim da coabitação dos cônjuges,
Mas essa ressalva não podia ser invocada pelo cônjuge a quem fosse atri¬buída a culpa
exclusiva e principal responsabilidade na declaração do divórcio(,).
Tendo em conta que a ação de divórcio pode vir a ser proposta meses ou anos
após se ter verificado a separação de facto entre os cônjuges e que o processo judicial
se pode prolongar por longo período, seria injusto que um dos cônjuges se viesse a
aproveitar da atividade desenvolvida pelo outro cônjuge sem a sua contribuição, ou que,
ao invés, viesse a ser prejudicado por dívidas de que não beneficiou.
A sentença que vier a declarar o divórcio e que fixar a data do fim da coabitação
como a data em que cessaram as relações de ordem pessoal e patrimonial entre os
cônjuges, vai assim produzir efeitos retroativos a essa data.
b) Data de produção dos efeitos em relação a terceiros
Os efeitos da dissolução do casamento por divórcio só se produzem muito mais
tarde em relação a terceiros, ou seja, após o registo de sentença que, como vimos, é de
natureza obrigatória, devendo o tribunal comunicá-la oficiosamente à Conservatória
competente.
É o que vem disposto no n.° 2 do art. 82.° do Código Família e que está de acordo
com a natureza secreta do processo de divórcio, a que, em princípio, só os cônjuges têm
acesso. Esta disposição pode não ser aplicada em relação a terceiros que se prove terem
conhecido a existência do divórcio e que tenham agido intencionalmente em prejuízo
de um dos cônjuges, ou quando tenha havido concertação fraudulenta entre um dos
cônjuges e terceiros, para prejudicar o outro cônjuge.
1. Efeitos de natureza pessoal
a) Em relação ao nome
O direito ao uso do nome adquirido em razão do casamento, seja quanto ao
apelido do outro cônjuge, seja quanto ao nome comum da família, cessa totalmente
quando se dá a dissolução do casamento por divórcio — art. 36.°, n.° 2 do Código de
Família.
No Código Civil (art. 1675.°) era a mulher que perdia o direito ao uso do nome
do marido, pois só esta podia optar pelo uso do apelido deste. Mas hoje a situação é
recíproca quer quanto à aquisição do direito ao uso do nome por parte de ambos os
cônjuges quer quanto à perda desse direito em razão da dissolução do casamento por
divórcio.
A nossa lei não prevê que um dos cônjuges, geralmente a mulher divorciada,
continue a usar o apelido adotado em razão do casamento, como acontece noutros
sistemas jurídicos.
b) Vínculo da afinidade
Depois da discussão popular de que foi objeto o projeto de Código de Família,
ficou a constar do art. 15.°, n.° 2, como já referimos, que o vínculo da afinidade se
mantém mesmo para além da dissolução do casamento.
Aliás, o impedimento matrimonial fundado no vínculo da afinidade em linha reta
irá sempre perdurar, mesmo que dissolvido o casamento, como constava do texto do
projeto. Permanecem assim todos os efeitos já referidos e que derivam da existência
deste vínculo.
c) Direito de voltar a casar
Como já dissemos, é o principal efeito que deriva da dissolução do casamento
por divórcio e ele pode ser exercido após o trânsito em julgado da sentença do divórcio.
Operado o trânsito da sentença, qualquer dos cônjuges pode voltar a casar sem ter que
aguardar por qualquer prazo intemupcial, que o nosso Código de Família não
estabelece. A nossa lei também não estabelece limites no número de vezes em que se
pode obter o divórcio, nem proíbe os cônjuges que se divorciaram de se voltarem a
casar.
O facto dc existir adultério de um cônjuge com terceira pessoa praticado na
vigência do casamento também não impede que o cônjuge, depois do divórcio, venha
precisamente a contrair casamento com essa pessoa.
d) Presunção da paternidade do marido
Caso a mulher que obteve o divórcio venha a contrair casamento logo após a
dissolução do anterior e venha a haver conflito de presunções de paternidade quanto a
filho que venha a nascer nos 300 dias após a dissolução do casamento, é chamada a
regra contida no art. 165.° do Código de Família, que atribui a presunção de paternidade
ao marido do casamento celebrado em segundo lugar.
No caso de divórcio, importa ainda reter o facto de que o prazo de 300 dias de
presunção de paternidade do marido do casamento anterior se conta, não do trânsito em
julgado da sentença, mas da data do fim da coabitação do casal, caso esta conste da
sentença.
e) Efeitos em relação aosfilhos
Os direitos e os deveres dos pais em relação aos filhos não se alteram pelo facto
do divórcio, pois o direito-dever de velar, manter e educar os filhos menores mantém-
se em relação aos progenitores, seja qual for o estado civil destes.
Como já referimos, para as relações entre pais e filhos não releva, segundo o
Código de Família, o facto de os pais serem ou não casados entre si, mas sim o de
coabitarem ou não.
Sem embargo de se manterem os direitos dos pais sobre os filhos, quer após o
divórcio quer após o fim da coabitação, a verdade é que, na generalidade dos casos, é
sobre os filhos que mais negativamente se refletem os seus efeitos.
Cessando a coabitação dos cônjuges, a autoridade paternal deixa de poder ser
exercida em comum pelo pai e pela mãe, passando a ser exercida em separado (art.
148.°, n.° 1 do Código de Família).
Como já foi referido, os pais podem chegar a acordo sobre o exercício em
separado da autoridade paternal, mas esse acordo deve sempre ter em conta os interesses
do menor e a melhor garantia da sua educação e desenvolvimento. Se os pais
estabelecerem o acordo sobre o exercício da autoridade paternal, definindo os direitos
de cada um deles ao convívio pessoal com os filhos, a obrigação de cada um referente
aos alimentos do menor, a forma de intervenção e decisão sobre as questões mais
importantes da vida dos filhos, etc., o tribunal deverá examinar esse acordo e homologá-
lo quando entenda que ele satisfaz os interesses do menor — art. 109.°, n.° 1 do Código
de Família. Esse acordo pode ser obtido quer durante a ação de divórcio quer dentro de
30 dias após o trânsito em julgado da sentença que declara o divórcio — art. 109.°, n.°
2.
Se os pais não tiverem chegado a acordo, e se o pedido sobre o exercício da
autoridade paternal tiver sido formulado conjuntamente com o pedido de divórcio, o
juiz decidirá de acordo com o que vem previsto no art. 108.°, n.°s 1 e 2, em conjugação
com as disposições dos arts. 148.° a 151.° do Código de Família. O tribunal só decidirá
sobre o exercício da autoridade paternal no processo de divórcio se tal lhe for pedido
por qualquer das partes. De salientar que, ao proferir a sua decisão, o tribunal não tem
que ter em conta as causas de divórcio, como acontece relativamente às questões do
direito a alimentos e do direito à atribuição da residência familiar.
Quis-se, deste modo, fazer a distinção entre o comportamento dos cônjuges entre
si, e nessa recíproca qualidade, e a conduta de cada um deles para com os filhos, na sua
qualidade de pai ou mãe.
O efeito mais importante que deriva do exercício em separado da autoridade
paternal é, na generalidade dos caso, o da entrega do filho a um dos progenitores, pois
será este que manterá com o menor o convívio quotidiano. A ele caberá em especial a
sua guarda e vigilância, bem como a sua formação e educação.
Estas decisões judiciais são suscetíveis de ser alteradas sempre que se
modi¬ficarem as circunstâncias em que se fundamentaram (art. 161.° do Código de
Família), pois são decisões proferidas em processo de jurisdição voluntária e mais no
espírito de uma decisão graciosa que obtenha, para o caso concreto em análise, a melhor
solução.
Se as circunstâncias que determinaram os cônjuges ou o tribunal a decidir ser de
certa forma se alterarem substancialmente, a decisão pode também ser alterada, para
melhor atender à nova situação.
f) Direito a alimentos
O direito-dever de assistência material entre os cônjuges pode não se extinguir
com a dissolução do casamento e perdurar para além dele a obrigação recíproca de
alimentos.
A atribuição do direito a alimentos entre cônjuges divorciados vem prevista no
art. 111.° do Código Família, e é recíproca em relação ao marido e à mulher. O art.
262.° do Código de Família vem reconhecer o direito a alimentos entre ex-cônjuges,
dizendo que esse direito será exercido nos termos do art. 111.°. Procura-se por esta
forma que, após a dissolução do casamento, o cônjuge menos favorecido
economicamente mantenha um nível de vida equivalente àquele que tinha.
Os critérios de atribuição do direito a alimentos são, de acordo com este art.
111.°, os que dizem respeito à situação social e económica dos cônjuges, à necessidade
de educação dos filhos e às causas do divórcio.
O que sopesará na decisão a tomar pelo tribunal é a questão de saber se o cônjuge
divorciado que vai receber alimentos está ou não a carecer deles para manter a sua
sobrevivência em condições económico-sociais idênticas às que tinha durante a
vigência do casamento, por não ter recursos próprios nem capacidade profissional para
os angariar.
Em regra é a mulher que ocupando-se do trabalho doméstico e da criação dos
filhos e dos cuidados a ter com outros membros do agregado familiar, deixa de ter uma
carreira profissional em que possa progredir, e que fica em situação desvantajosa
aquando da rutura da relação conjugal.
E haverá ainda que ponderar o interesse pela educação dos filhos a impor que
um dos ex- cônjuges, em geral a mãe, se mantenha a cuidar deles provendo às suas
necessidades diretas de cuidados com a alimentação, vestuário, habitação e outras.
A duração do casamento é igualmente um fator importante a ter em conta na
decisão a proferir.
A causa ou causas de divórcio, que ainda melhor explicitaremos, também devem
ser atendidas na atribuição do direito a alimentos.
O direito a alimentos por parte do cônjuge divorciado garante-lhe o direito à
pensão de sobrevivência, nos termos da alínea d), n.° 1 do art. 46.° da Lei do Sistema
de Segurança Social (Lei n.° 18/90, de 27 de outubro).
As decisões sobre alimentos a ex-cônjuges estão sujeitas a alteração, como aliás
todas as decisões sobre obrigações alimentícias, como prescreve não só o art. 111.°, n.°
2 mas também o art. 257.°, n.° 1 do Código de Família.
A cessação da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, que veremos adiante,
vem prevista no art. 263.° do Código de Família, e opera-se quando o ex-cônjuge
contraia novo casamento ou constitua nova união de facto, e bem assim quando se
verifique grave atentado contra a vida ou contra a honra do obrigado.
2. Efeitos de natureza patrimonial
A dissolução do casamento por divórcio produz os efeitos patrimoniais
mencionados nas alíneas a), b) e c) do art. 80.° do Código de Família e dá lugar ainda,
quando tal for o caso, ao direito ao arrendamento da residência familiar,
a) Liquidação do passivo e partilha de bens
Os efeitos quanto à partilha de bens comuns e liquidação do passivo são no geral
inteiramente idênticos aos da dissolução do casamento por morte.
Tal como neste caso, deixa de haver património comum e cada cônjuge passa a
ter a titularidade dos seus bens próprios.
A partilha de bens ocorre quando o casamento tenha sido celebrado segundo o
regime de comunhão geral de bens ou o regime de comunhão de adquiridos. Se o regime
económico adotado no casamento for o da separação de bens, não há que proceder à
partilha de quaisquer bens, salvo se se tratar da divisão de bens havidos em regime de
compropriedade.
Antes de receber a sua meação, cada cônjuge deverá conferir o que deve ao
património comum ou ao outro cônjuge.
São liquidadas em primeiro lugar as dívidas para com terceiros e depois as
dívidas dos cônjuges entre si, cessando a moratória legal.
Satisfeito o passivo, é então dividido em duas partes iguais o que restar dos bens
comuns, como estabelece o n.° 3 do art. 75.°, aplicável por força do art. 80.°, ambos do
Código de Família.
A cada cônjuge é igualmente atribuída a titularidade dos seus bens próprios que
eventualmente tenham estado sob administração ou usufruição do outro cônjuge.
A diferença que a lei estabelece entre a dissolução por morte e por divórcio,
reside em que, neste último caso, nenhum dos cônjuges tem direito de preferência sobre
certos bens comuns, como vem mencionado no n.° 2 do art. 75.° quanto aos bens usados
na vida do lar ou como instrumento próprio ou comum de trabalho.
b) Perda do direito sucessório
No direito civil anteriormente vigente dava-se particular relevância à declaração
de culpa atribuída a um dos cônjuges, para dela fazer derivar efeitos patrimoniais, que
eram como que uma sanção legal para o cônjuge considerado culpado ou principal
culpado do divórcio.
c) Perda de benefícios
Hoje, o Código de Família, ao dar preferência à conceção de uma causa genérica
única como fundamento do divórcio, já não procura culpabilizar os cônjuges para daí
tirar consequências patrimoniais. No entanto, o art. 80.°, alínea c) menciona que a
dissolução do casamento por divórcio faz perder os benefícios recebidos em razão do
casamento.
Importa fixar o alcance desta disposição e o seu âmbito de aplicação, tendo em
conta que o conceito de divórcio sanção foi afastado enquanto fonte geradora de
consequências de natureza patrimonial.
Podem considerar-se benefícios todas as formas de enriquecimento material e até
mesmo de estatuto social que qualquer dos cônjuges obtém em conexão direta com a
sua situação jurídica derivada do estado de casado.
Em primeiro lugar, podem mencionar-se as doações efetuadas ao cônjuge pelo
outro cônjuge ou por terceiros, antes ou depois da vigência do casamento, mas em razão
do matrimónio.
Igualmente se devem englobar as deixas testamentárias feitas com a mesma
finalidade pelo de cujus.
No conceito de benefícios podem ainda incluir-se os prémios de seguros ou outra
forma de prémios, pensões ou subsídios atribuídos a um dos cônjuges, ou por
designação do outro cônjuge ou por via de disposição legal.
Como benefício social podemos indicar, a título de exemplo, o direito a uso de
passaporte diplomático, o direito de usufruir de direitos associativos ou institucionais
de pessoas coletivas públicas ou privadas de que o outro cônjuge fosse membro, etc..
Interessa agora definir como se opera a perda de benefícios que vem prevista na
lei. Aqui haverá que distinguir duas situações distintas. Se o benefício patri¬monial
adveio de ato de vontade do outro cônjuge ou de terceiros, entendemos que a perda
dessa liberalidade não se opera ex oficio pela simples declaração do divórcio.
Será necessário que o cônjuge ou o terceiro que fez atribuição de liberalidade
venha revogá-la por ato expresso, pois a declaração do divórcio não leva desde logo a
entender que a vontade anterior que levou à prática do ato de liberalidade tenha deixado
de existir.
O ex-cônjuge ou o terceiro que a outorgou pode até estar interessado em manter
o benefício concedido ao ex-cônjuge. A perda do benefício deve, pois, resultar de um
ato de vontade do autor da liberalidade.
Já quando o benefício ou o direito resulte de disposição legal ou estatutária que
seja atribuída ao outro cônjuge como tal, é manifesto que, perdida a qualidade de
cônjuge, desaparecerá ipsofacto, obrigatoriamente, o direito a esses benefícios.
d) Atribuição da residência familiar
Extinto o matrimónio, cessa o direito-dever de coabitação dos cônjuges, que
passam a viver em habitações separadas. O direito à habitação da residência familiar é
hoje um valor económico e social de acentuado realce, que é protegido na maioria dos
sistemas jurídicos.
Durante a vigência do casamento, é especialmente protegido o direito ao
arrendamento familiar e, aquando da dissolução do casamento, a atribuição de
residência familiar é um bem que, pela sua importância, tem um estatuto especial, dada
a sua afetação material à convivência do agregado familiar, o que justifica que ele seja
protegido não só durante a permanência do casamento mas também para além da sua
dissolução.
Em alguns destes sistemas o direito à habitação da residência familiar c protegido
não só quando ele se baseia num contrato de arrendamento celebrado por qualquer dos
cônjuges, mas também quando o casal reside em habitação que seja propriedade de um
só dos cônjuges ou bem comum do casal.
Nestes últimos casos, o tribunal pode atribuir o direito ao arrendamento ao
cônjuge que não seja proprietário e mandar constituir um contrato de locação forçada
entre o ex-cônjuge proprietário e o ex-cônjuge que passa a ocupar a posição de locatário.
No Código de Família só vem prevista a atribuição da residência familiar a
residência seja propriedade comum dos cônjuges ou o direito de habitação resulte de
contrato de arrendamento celebrado entre qualquer dos cônjuges e um terceiro.
O direito à atribuição de residência familiar vem mencionado no art. 85.°, alínea
c), no art. 104.°, alínea c), e no art. 110.°, todos do Código de Família.
É um direito que, inter-partesy tem de ser discutido no âmbito das relações
patrimoniais dos cônjuges e que, nas relações com terceiros, requer a intervenção
obrigatória do marido e da mulher conjuntamente, dado ser um bem que só por ambos
pode ser alienado. Da mesma sorte, em todas as ações em que se discuta o direito ao
arrendamento ambos os cônjuges têm que ser chamados a juízo, sob pena de
ilegitimidade, quer os cônjuges sejam autores quer sejam réus, como atrás referimos.
Os cônjuges podem dirimir entre si esta questão por via de acordo, dada a sua
natureza patrimonial, solução que é obrigatória nas ações de divórcio por mútuo acordo
(art. 85.°, alínea c) do Código de Família) e facultativa nas ações de divórcio litigioso.
Podem ainda deixar que o tribunal decida a questão quando esta lhe for posta — art.
104.°, n.° 1, alínea c), dentro dos parâmetros do art. 110.° do Código de Família.
De acordo com os parâmetros previstos neste art. 110.°, o tribunal, ao operar uma
atribuição preferencial do direito à residência familiar a um dos cônjuges, deve ter em
conta:
a) as condições de vida dos cônjuges;
b) o interesse dos filhos do casal;
c) as causas do divórcio.
Nas condições de vida dos cônjuges estão incluídas as de natureza profissional,
económica e até social.
Nas condições de natureza profissional podem incluir-se o local de trabalho, ou
o facto de ser exercida atividade profissional na residência familiar.
Nas condições económicas, inclui-se, por exemplo, na maior ou menor
solvabilidade de um dos cônjuges; nas condições sociais poderá atender-se ao facto de
o cônjuge ter no local outros membros da sua família, de desenvolver atividade
relevante na área de residência, etc..
Em segundo lugar, há que atender ao interesse dos filhos do casal, o que
representa, em última análise, determinar a qual dos progenitores deve ser feita a entrega
da guarda dos filhos, para, em razão disso, atribuir a esse progenitor o direito de
permanecer na residência familiar.
Em terceiro lugar, a lei refere que o tribunal, ao fazer a escolha sobre qual dos
dois cônjuges justifica a atribuição da residência, deverá ponderar sobre as causas do
divórcio. De novo a lei faz menção às causas do divórcio, como já o fez em relação ao
direito de alimentos.

[107] Efeitos das causas específicas do divórcio.


Vimos já que as causas do divórcio são, em concreto, os factos apurados no caso
subjudice e que foram considerados como fundamento da declaração do divórcio, por
serem os factos que estão na origem da causa genérica que se consubstanciou na
deterioração completa e irreversível do vínculo conjugal. O fundamento para a
decretação da dissolução do casamento é efetivamente este ter deixado de cumprir o fim
pessoal e social para que ele foi constituído, ou seja, como diz a lei «terperdido o seu
sentido».
Mas para certos efeitos esses factos têm que ser apurados tendo em conta cada
caso concreto, para se decidirem questões com consequências na vida pós-conjugal de
cada um dos ex-cônjuges, e tiver cessado a vivência comum, designadamente quanto
aos encargos gerais da vida familiar e a coabitação.
O julgador terá que sopesar as condutas de cada cônjuge relativamente aos seus
deveres conjugais e a sua contribuição para a dissolução do vínculo, em questões que
se vão colocar, tais como o direito a alimentos e o direito à residência familiar.
Massimo Bianca define com clareza e profundidade o conceito de causas do
divórcio :
«Na questão do divórcio a lei também atribui relevo, mesmo que seja para fins
meramente patrimoniais, à responsabilidade pelafalência do matrimónio e a indagação
respetiva deve ter em vista sobretudo as causas de irreversabilidade da desagregação da
comunhão material e espiritual da família, que constitui a destruição de uma relação
inter-pessoal de caráter tão absoluto como é o vínculo matrimonial, o ordenamento não
pode ficar inerte no que diz respeito à valoração das causas que levaram à sua
destruição, apreciando-o não como um simples fenómeno, mas ainda no que diz respeito
à sua imputabilidade. Muito embora a responsabilidade dos cônjuges pela falência do
matrimónio não possa ser reconduzida ao paradigma da culpa em sentido técnico,
porque a lei prescinde dela, é, por outro lado, inegável que as relações conjugais, pelo
seu caráter eminentemente pessoal, se estruturam em regras morais de comportamento.
Por isso mesmo, quando a transgressão a tais regras for verificada, ela deve ser levada
a débito do cônjuge e, consumada a rutura, é inevitável que se proceda a um balanço
das respetivas responsabilidades imputáveis a cada um dos cônjuges».
Ao indicar os critérios que deverão nortear o tribunal na sua decisão, o art. 110.°
do Código de Família não dá prioridade a um em relação aos outros, e todos devem ser
tidos em conta na sua globalidade.
A atribuição do direito ao arrendamento da residência familiar vinha já regulada
no Decreto n.° 43 525 (Lei do Inquilinato), que permanece em vigor.
O art. 75.° deste Decreto refere-se à situação patrimonial dos cônjuges, às
circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, aos interesse dos filhos, à culpa do
arrendatário e ao facto de o arrendamento ser anterior ou posterior ao casamento, como
critérios que o juiz, ao decidir, deve tomar em conta.
Na sua essência, estes indicativos não diferem substancialmente dos que vêm
contidos no art. 110.° do Código de Família.
O tribunal deverá ter em conta todas as questões pertinentes e tomar uma decisão
segundo um juízo de equidade.
Existe já jurisprudência dos nossos tribunais sobre esta questão, a qual, dados os
prementes problemas de habitação que se põem nos nossos centros urbanos, se vai
revestindo de uma cada vez maior acuidade.
Quanto ao pedido de atribuição da residência familiar, já se decidiu que ele deve
ser formulado na pendência da ação de divórcio e não em ação proposta perante o
extinto Tribunal de Menores (Acórdão do Tribunal Supremo de 26 de julho de 1990);
que o pedido pode ser feito na pendência de ação de divórcio, e que, se nada tiver sido
decidido ou acordado pelos cônjuges, deverá ser operado em processo de inventário e
partilha dos bens do dissolvido casal (Acórdãos do Tribunal Supremo de 19 de outubro
de 1990 e de 6 de setembro de 1991, respetivamente).
A nossa legislação sobre o direito de habitação encontra-se muito desajustada
relativamente às atuais exigências de atribuição do direito à residência no caso de
divórcio, porquanto é omissa quanto à forma de salvaguarda deste direito económico-
matrimonial.
Não está previsto na lei como se deve proceder, caso a residência familiar seja
bem comum do casal, compensando o cônjuge que fique sem o uso e fruição do direito
à habitação.
No caso de atribuição do direito ao arrendamento também se devia sempre
salvaguardar o direito de preferência a atribuir ao ex-cônjuge no caso de o outro
pretender vir a rescindir o contrato, ou ceder a terceiros o seu direito.
Na partilha dos bens do casal há sempre que ter em conta que o cônjuge que ficou
sem direito à residência familiar deve ser compensado no seu património por um valor
equivalente, sempre que a capacidade patrimonial dos cônjuges tal permita.
e) Indemnizações por perdas e danos e prestações compensatórias O Código de
Família, dentro da já apontada linha do conceito da causa genérica do divórcio, e
afastando o conceito de divórcio sanção, não penaliza o cônjuge culpado no sentido de
ter o dever de indemnizar o cônjuge dito «inocente» dos prejuízos de ordem moral ou
material que lhe advieram da declaração do divórcio.
Aliás, dentro da conceção socialista do direito, eram geralmente afastados os
conceitos de atribuição de um valor pecuniário aos danos morais, por se entender que o
sofrimento humano não é valorizável em quantitativos materiais.
Mas esse entendimento não é seguido em muitos sistemas jurídicos que
defendem o direito da vítima do divórcio a ser indemnizada pelos danos morais sofridos.
Já a subsistência material de um dos cônjuges no período pós-divórcio é questão que
vem prevista em diversas leis, que procuram permitir ao cônjuge divorciado que ficar
em situação económica desvantajosa manter o nível de vida que tinha durante a vigência
do casamento.
Em regra consagra-se a entrega de um determinado valor patrimonial pelo
cônjuge cuja situação económica é mais favorecida, em benefício do cônjuge
economicamente mais débil. O direito italiano fala de «assegno post-matri- moniale»,
podendo a entrega ser feita de uma só vez, ou através de prestações compensatórias,
como são designadas no direito francês.
Através deste sistema, procura-se precaver o futuro do cônjuge divorciado,
dando-lhe um capital que, à partida, o proteja do desamparo em que pode ficar em razão
do divórcio, e que, melhor do que as prestações de alimentos pagas mês a mês, poderão
dar-lhe uma garantia de subsistência.
A prestação compensatória tem como fundamento material o facto de os
cônjuges terem conseguido, durante a vigência do matrimónio, melhorar a sua situação
económica e social, ajudando-se reciprocamente, o que nem sempre vem traduzido na
partilha dos bens. Normalmente, é a mulher que se vê prejudicada por se ter dedicado
aos interesses do lar e à educação dos filhos, sacrificando a sua vida profissional, o que,
depois do divórcio, se traduz em menor potencialidade para obter rendimentos. A
prestação compensatória entregue por um cônjuge ao outro consiste em valores que
permitam a este último iniciar uma nova atividade.
Com uma nova visão de que o divórcio se não baseia na pesquisa da culpa e na
atribuição de «penas espiatórias» para o cônjuge dado como culpado, procura-se
encontrar formas de garantir que, após a dissolução do casamento, cada ex-cônjuge
possa continuar a sua vida sem grandes ruturas no aspeto económico.
Daí a tendência para a atribuição de determinadas «prestações
compensa¬tórias», que o direito inglês designa como «lump sum» no facto de o cônjuge
mais favorecido sob o ponto de vista económico entregar ao outro capital ou outros
bens, de uma só vez, para início duma atividade económica.
Quanto à forma como se opera a partilha dos bens do casal, ela depende de haver
ou não acordo entre os cônjuges.
Ela pode efetivar-se por via extra-judicial e constar de escritura pública, caso
existam bens imobiliários, cotas sociais, etc. quando a transmissão desses direitos ou
bens dependa dessa forma legal, ou por via de inventário judicial, que correrá por
apenso ao processo de divórcio, depois do trânsito em julgado da respetiva sentença
quando não haja acordo.
Nas ações de divórcio por mútuo acordo, o art. 89.°, alínea c) prevê que no
requerimento inicial os cônjuges juntem «a relação especificada dos bens próprios e dos
bens comuns». Desta forma, ao fazer essa relação, os cônjuges devem indicar todos os
bens, definindo qual a sua natureza, não podendo com credibilidade vir, a posteriori,
alegar pretensas omissões nessa relação.
Discutiu-se se são ou não válidos os contratos-promessa entre os cônjuges feitos
durante a pendência da ação de divórcio, tendo sido defendido que eles eram
desprovidos de qualquer valor vinculativo entre as partes.
O entendimento hoje predominante é o de que, se não são interditos tais
contratos-promessa e se eles obrigam os respetivos signatários nas mesmas condições
de forma e de fundo a que estão sujeitos os demais contratos-promessa, então eles estão
sujeitos à condição de o divórcio vir a ser declarado e de a sentença transitar em julgado.
Neste sentido, vem a ser considerado que o contrato de promessa representa:
«uma partilha sob condição suspensiva válida a partir do património comum,
feita na pendência do processo de divórcio litigioso ou consensual que opera de
facto no momento do trânsito em julgado da sentença.»
CAPÍTULO 17.0
A UNIÃO DE FACTO

[108] Natureza do instituto


A união de facto consiste na convivência sexual comum entre um homem e uma
mulher como se de marido e mulher se tratasse, sem a existência de um casamento
formalizado. Na sua essência, a união de facto encerra uma vivência de caráter
duradouro entre um homem e uma mulher segundo 0 figurino marital, o que significa
que entre eles se estabelece comunhão de cama, mesa e habitação {quod thorum,
mensam et habitationem), sem que, todavia, tenham entre si celebrado casamento.
Como situação de facto que é, pressupõe uma continuidade no tempo que a torna
relevante no meio social e que, consequentemente, não pode ser ignorada pelo direito.
Se é certo que a união de facto, a união não formalizada, foi desde os pri¬mórdios
da humanidade a forma de constituição da família natural, como vimos a propósito da
evolução histórica do instituto do casamento, também é verdade que, nos séculos mais
recentes, e graças à influência do cristianismo, se procurou favorecer o casamento como
forma privilegiada e até única de constituição da família.
Assim, a convivência marital entre o homem e a mulher fora do sacramento do
casamento passou a ser considerada como pecaminosa e objeto direto de sanção
religiosa e até pecuniária.
A situação de mancebia ou de concubinato era estigmatizada. O termo concubina
vem da expressão latina cum cubare, que significa «deitar-se com», o que desde logo
indica o elemento material de união entre homem e mulher.
Nos países desenvolvidos, o casamento legalmente celebrado perante os órgãos
estatais competentes é prioritariamente a forma de constituir família. O mesmo acontece
em todos os países cujo direito de família está subordinado à religião do próprio estado,
pois nestes é o casamento religioso que vai produzir efeitos civis.
Ao invés, acontece em alguns países que o casamento religioso não produz
efeitos civis, sendo, por isso, irrelevante.
O Código Civil anteriormente vigente só reconhecia a família estruturada no
casamento. Incidentalmente, fazia menção, a propósito das então designadas ações de
investigação de paternidade ilegítima e como um dos pressupostos destas ações, às
situações de «concubinato duradouro» e de «convivência marital notória», cujos
conceitos vinham definidos no art. 1862.°.
É, porém, importante realçar que, nos nossos dias, esta posição radical se alterou
e, mesmo nos países que não reconhecem o instituto da união de facto como gerador de
relações jurídicas familiares, já se afastou a noção de que tal união à margem do
matrimónio tenha um caráter de ilicitude e deva ser considerada como pecaminosa.
Costuma-se, no entanto, ter em conta a circunstância de o homem ou a mulher
que vivem em união de facto não serem casados com terceira pessoa, pois, quando tal
acontece, surge o adultério como elemento que vai inquinar a união.
A união de facto, como fenómeno juridicamente relevante, já ganhou expressão
na legislação de diversos países. Em Portugal, após a reforma de 1977, veio definir-se
a união de facto como a comunhão duradoura de vida entre duas pessoas de sexo
diferente em condições análogas à dos cônjuges, atribuindo-lhe a lei alguns efeitos,
designadamente quanto à presunção de paternidade, quando tenha havido essa
comunhão duradoura de vida durante o período legal de conceção — art. 1871.°, alínea
c), do Código Civil. O art. 2020.° do atual Código Civil português já menciona a união
de facto ao prever o direito de alimentos a ser exercido sobre a herança deixada pelo
companheiro.
No direito francês, onde a união é designada como «união livre», o princípio de
liberdade sexual permitida entre cidadãos de maior idade leva à sua admissão como um
fenómeno à margem do casamento, caraterizado pelo facto de existir uma certa
estabilidade de vida em comum que subsiste enquanto tal for da vontade livre dos
companheiros e que, portanto, pode ser livremente interrompida. Quando um casal vive
perante a sociedade como sendo casado sem o ser, é designado como «faux ménage».
A união livre pode produzir efeitos patrimoniais, designadamente quando foi
desenvolvida atividade económica comum, no direito à partilha de bens e no direito à
residência comum, e é reconhecida como produtora de efeitos na legislação social,
tornando os benefícios extensíveis ao companheiro do respetivo titular.
No direito inglês, o casamento meramente consensual, designado como o
casamento segundo a «common law», também pode, excecionalmente, vir a produzir
efeitos.
No direito brasileiro também se vem acentuando o interesse do legislador em dar
certa proteção jurídica às uniões estáveis, constituídas à margem do casamento
— art. 226.°, § 3 da Constituição da República Federativa do Brasil, aprovada
cm 1988. Hoje o atual Código Civil brasileiro consagra a «união estável» nos seus
artigos 1723.° a 1727.° Ela é definida como: «A convivência pública, contínua e
duradoura estabelecida entre homem e mulher, com o objetivo de constituir família »
— art. 1723.°. Prevê-se o regime económico de comunhão parcial de bens, salvo
se houver contrato escrito entre os companheiros — art. 1725.° e a possibilidade de
conversão em casamento a pedido dos companheiros — art. 1726.°.
De igual modo, nos Estados Unidos da América alguns Estados adotaram,
recentemente, leis que regulam a designada «Domestic Partnership» (companhei¬rismo
doméstico), as relações entre companheiros da união de facto, e que permitem a
celebração de «contratos de coabitação», que regulem as relações de convivência
marital entre duas pessoas adultas e disponham sobre os direitos e obrigações
recíprocas, estabelecendo normas de caráter patrimonial para o caso do fim da relação,
no que diz respeito à compensação indemnizatória, partilha de bens, etc..
No direito de países africanos como Cabo Verde está previsto o reconhecimento
da união de facto dentro de determinadas condições legais. Permite o art.01712.° do
Código Civil, de Cabo Verde, que a a união de facto seja reconhecida registralmente
quando o homem e a mulher tenham vivido em comunhão de cama, mesa e pelo período
mínimo de três anos, e que ambos os requerentes sejam maiores de 19 anos, não existam
impedimentos matrimoniais e que a vida comum garanta a estabilidade, unicidade e
seriedade próprias do casamento. Quando haja um ou mais descendentes comuns do
casal não é exigido o período mínimo de convivência.
Na legislação vigente em Macau os art.° 1471.° e 1472.° do Código Civil releva
a adoção da união de facto como convivência voluntária de duas pessoas, maiores de
18 anos, que convivam depois da maior idade, pelo prazo de dois anos. Este prazo só
contado no caso de algum dos conviventes ser casado apartir da sua separação de facto
e desde que não haja outros impedimentos matrimóniais.
No Código de Família de Cuba também está previsto o reconhecimento judicial
do matrimónio não formalizado, o que requer a existência da capacidade matrimonial
do homem e da mulher e ainda a singularidade e estabilidade.
Uma vez reconhecida a união matrimonial, a sentença produz efeitos
retro¬ativamente desde a data do seu início.

[109] Enquadramento do direito angolano; relevância do casamento segundo


o direito costumeiro.
A primeira menção à união de facto no direito angolano foi feita na Lei n.° 7/80,
de 27 de agosto, a Lei da Adoção e Colocação de Menores. No art. 5.° desta Lei dá-se
à união de facto estabelecida entre homem e mulher com caráter permanente e exclusivo
relevância jurídica idêntica à do casamento. O casal que vivesse em união de facto nas
condições previstas nessa Lei tinha a capacidade de operar a adoção dupla de um menor,
situação que se mantém no Código de Família atual.
Depois, como já tivemos ocasião de mencionar a propósito dos antecedentes
históricos do Código de Família, a Resolução n.° 2/82 da Assembleia do Povo deu
prioridade, na revisão legislativa a operar na lei de família, à legislação do instituto da
união de facto.
No Relatório que antecedeu o projeto do Código de Família dizia-se a propósito
(fls. 11): «A união defacto é a união entre um homem e uma mulher com o fim de
fazerem vida comum, distinguindo-se do casamento apenas por não haver formalização
ou legalização da união.»
Os fundamentos da existência de uniões de facto no nosso país diferem
substancialmente dos fundamentos da sua existência nos países europeus e nos países
desenvolvidos. No nosso país, a maioria da população vive em união de facto não por
questões ideológicas ou de princípios, mas por razões de cultura e de tradição e de
inexistência dos órgãos do registo civil necessários à legalização da sua união ou ainda
por razões económicas (nas zonas urbanas).
O objetivo do Estado é, evidentemente, «o de legalizar o maior número possível
de uniões pela junção social que o casamento desempenha na sociedade».(1)
Foi de acordo com esta diretriz legislativa que o instituto da união de facto veio
a ser consagrado no Código de Família e mencionado nos princípios fundamentais como
uma das formas de constituição da família, sendo-lhe consagrado todo o título IV do
Código.
Posteriormente, foi publicada a Lei do Sistema de Segurança Social (Lei 18/90,
de 27 de outubro e Decreto n.° 49/91, de 16 de agosto, que a regulamentava), a qual,
como já mencionámos a propósito dos efeitos da dissolução do casamento por divórcio,
atribuía o direito à pensão de sobrevivência ao companheiro sobrevivo da união de
facto, desde que esta estivesse registada.
A Lei Constitucional cuja revisão foi completada pela Lei n.° 23/92, dc 16 de
setembro, consagra no seu art. 29.°, n.° 1 o princípio de que a família tem direito à
proteção do Estado, quer se funde em casamento quer em união dc facto, dando assim
pela primeira vez consagração constitucional a esta forma de constituir família.
A consagração legal da união de facto vem sendo acentuada em todo o sistema
jurídico angolano. A recente Lei das Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04, de 13 de
fevereiro, nas suas Disposições Finais e Transitórias, art. 525.° dispõe: «Sempre que
nesta lei, se faça referência a cônjuge deve entender-se que a expressão é extensiva aos
companheiros da união de facto, ainda que não reconhecida». Ora os poderes de
representação conferidos aos cônjuges do sócio são múltiplos, como já referimos.
Podemos questionar-nos sobre se o casamento segundo os usos e costumes, ou
seja, celebrado segundo o direito costumeiro que permanece em diversas regiões do
país, deve ser equiparado à união de facto e ser como tal reconhecido, desde logo para
produzir efeitos civis.
Em muitos países africanos é usado tal procedimento, designadamente naqueles
em que ainda prevalecem vários estatutos de direito pessoal, coexistindo o direito
costumeiro a par do direito escrito positivo.
O reconhecimento do casamento celebrado segundo o direito costumeiro foi
tornado possível através da declaração conjunta de marido e mulher feita perante a
autoridade competente. Mas, para o reconhecimento ou verificação da existência do
casamento costumeiro, o legislador exige que sejam respeitadas as condições de fundo
do casamento segundo a lei escrita, com especial relevância quanto à idade núbil e
quanto à não existência de outros vínculos conjugais não dissolvidos.
Em países como o Senegal e a Côte d’Yvoire a lei veio permitir que os cônjuges
viessem registar a sua união de facto ou união livre, declarando a data em que ela tinha
sido iniciada e, por via desse registo, foram regularizadas grande número dessas uniões.
A República da África do Sul aprovou a Lei n.° 120/1988 do Reconhecimento
do Direito Costumeiro que entrou em vigor em 15 de novembro de 2000. O direito
costumeiro é definido como os usos e costumes dos povos indígenas africanos. Esta lei
especifica os requisitos de validade do casamento segundo o direito costumeiro, o
respetivo registo, determina a igualdade de estatuto e capacidade dos esposos, o regime
económico, a dissolução do casamento e alteração do regime do casamento do direito
costumeiro para o regime do direito escrito, prevendo disposições regulamentares
complementares à lei.
Na verdade, não há inteira sobreposição entre o conceito de união de facto, tal
como vem recortado no Código de Família, e o casamento segundo o direito costumeiro.
A caraterística fundamental da união de facto é a voluntariedade, o que significa que a
união de facto se constitui pela vontade comum de ambos e pode terminar pela vontade
de um só, unilateralmente.
Já no casamento tradicional há regras estritas que devem ser cumpridas por parte
dos familiares e pelo próprio casal e que se referem à celebração do acordo de
casamento, à sua manutenção e dissolução. Em regra, a mulher não é chamada a
expressar o seu consentimento quando é constituído o compromisso do casamento.
Em termos gerais, pode dizer-se que, quando tal for a vontade de ambos os
companheiros, homem e mulher, e uma vez preenchidos os pressupostos legais, nada
impede, no nosso país, que a grande maioria das uniões de facto sejam reconhecidas e
formalizadas ao abrigo da nova lei.

[110] Conceito de união de facto e pressupostos legais


O artigo 112.° do Código de Família define a união de facto como o
estabeleci¬mento voluntário de vida em comum entre um homem e uma mulher.
Neste conceito estabelece-se, por um lado, o elemento subjetivo da
volunta¬riedade, que é essencial, e, por outro lado, o elemento objetivo, que é
representado pela situação material de convivência, segundo o modelo matrimonial.
Há, pois, que distinguir entre a união de facto e a convivência dentro do mesmo
agregado familiar de diversas pessoas que vivem sob o mesmo teto. É a convivência
como marido e mulher que define a união de facto como tal.
Perante uma determinada união de facto, duas situações distintas podem ocorrer:
ou ela preenche os pressupostos previstos na lei, e nesse caso a união de facto é
suscetível de ser reconhecida, ou não os preenche e então ela não poderá ser
reconhecida, sem embargo de poder produzir determinados efeitos legais, e como tal
ser atendida pela lei.
Importa ainda realçar que, enquanto perdura a união de facto, ela só é suscetível
de ser reconhecida quando tal for a vontade dos dois companheiros. E isto pela razão
evidente de que ninguém, contra a sua vontade, pode ver transformada a sua união de
facto não formalizada num ato equiparado ao casamento e produzindo os mesmos
efeitos que este.
Já quando cessa a união de facto a lei veio permitir que, uma vez verificada
judicialmente a posteriori a existência dos pressupostos legais, esse reconhecimento
venha a produzir os vastos efeitos que a lei confere à dissolução do casamento.
E este é, sem dúvida, o efeito mais relevante que o novo instituto passou a ter no
meio social, permitindo que, aquando da rutura, a vivência anterior, querida por ambos,
venha a produzir efeitos e não seja ignorada pela ordem jurídica.
É verdade que a voluntariedade da união de facto se manifesta no momento em
que ela se inicia, permanece durante toda a sua duração e termina quando tal for querido
por um só ou por ambos os companheiros. Mas a lei também não descura a proteção
dos companheiros que criarem entre si interesses familiares comuns, entrelaçando
relações pessoais e patrimoniais e tendo muitas vezes filhos comuns.
Os companheiros de união de facto podem, em qualquer momento, fazer cessar
a vida em comum sem necessidade de recorrer a qualquer decisão judicial, dado tratar-
se de uma relação familiar consensual que também não necessitou de qualquer
formalismo no seu início.
O fim da convivência mútua marca, no entanto, a definição dos direitos
adquiridos durante ela pelos companheiros, os quais advêm para cada um deles a partir
do momento da rutura por via do reconhecimento de que essa união existiu e, embora
extinta, se considera juridicamente relevante para produzir os efeitos previstos na lei.
Os pressupostos legais impostos na lei para o reconhecimento da união de facto
são os que vêm expressos no art. 113.°, n.° 1 do Código de Família:
— a coabitação marital do homem e da mulher pelo período consecutivo de pelo
menos três anos;
— a capacidade matrimonial de ambos os membros do casal;
— a singularidade da união.
A coabitação marital, cujo conteúdo jurídico já foi definido, pressupõe a
comunhão de cama, mesa e habitação, com a criação de laços de interdependência
afetiva, social e económica entre companheiros.
A união de facto revela-se como tal e ainda perante terceiros, pois consiste numa
realidade percetível no meio social onde se insere.
Se houver uma relação de amantismo sem coabitação comum não se configura a
união de facto.
O tempo mínimo de coabitação comum é de três anos consecutivos, ou seja sem
soluções de continuidade. É a natureza estável da união e a sua perduraçáo no tempo,
que é tomada em conta para ser operado o reconhecimento.
É exigida ainda a capacidade matrimonial do homem e da mulher, o que implica
que ambos tenham capacidade para contrair casamento em geral e também que entre
eles não existam impedimentos dirimentes relativos.
Compreende-se que se trate de uma condição sinequa non do reconhecimento,
dados os efeitos que a lei atribui à união de facto e que correspondem aos do próprio
casamento. Seria incompatível com matéria imperativa da lei fazer produzir efeitos
próprios do casamentos à união em que se verificassem causas de incapacidade
matrimonial.
Exige ainda a lei que a união de facto seja exclusiva, o que implica que ela seja
singular, de um único homem com uma única mulher. Tal reflete a aceitação do
princípio da monogamia, que é fundamental ao instituto do casamento e,
consequentemente, ao instituto da união de facto reconhecida.
O que é importante ter em conta é que, para que se opere o reconhecimento da
união de facto, não é imprescindível que durante toda a sua vigência se configurem os
pressupostos legais do reconhecimento relativos à capacidade matrimonial, ao mútuo
consenso e à singularidade.
Designadamente, ela pode ser iniciada não tendo a mulher idade púbere, ou
sendo um dos companheiros casado com outrem, sem ter havido consentimento inicial,
etc.. Mas se, a partir de determinado momento, tanto o homem como a mulher passaram
a ter capacidade matrimonial ou passaram a aceitar voluntaria¬mente a união, contar-
se-á a partir de então o prazo de três anos necessário para que se produza o
reconhecimento.
O mesmo pode acontecer em relação à singularidade, pois a união de facto pode
ser de início não singular (como, por exemplo, quando há poligamia) e passar, a certa
altura, a ser singular, o que permitirá o seu reconhecimento em tempo oportuno.
O reconhecimento é feito a pedido de ambos os interessados (art. 115.° do
Código de Família) e é da competência dos órgãos do registo civil da área de residência
respetiva.
O formalismo a usar neste caso vem descrito no art. 116.° do Código de Família.
Trata-se de um processo administrativo em que será necessário provar primeiramente,
tal como no processo de casamento, a capacidade matrimonial dos companheiros de
união de facto, além de ter de se provar cumulativamente a singularidade da união e sua
duração ao longo de três anos.
Para a prova destes pressupostos legais estabelece o art. 116.°, n.° 2 que poderão
ser oferecidas testemunhas ou documento emitido pelo órgão da administração local. O
que interessa é que, ou junto da conservatória onde corre o processo, ou junto do órgão
da administração local da área de residência do casal, seja feita a prova de que os
interessados conviveram em exclusividade, como marido e mulher, durante pelo menos
três anos, sem interrupção.
O n.° 3 do art. 116.° prevê que os interessados venham declarar o regime de bens
por que optam. À semelhança do que vem previsto no n.° 3 do art. 29.° sobre a
declaração inicial para casamento, esta declaração não é de caráter obrigatório, mas
facultativa, pois se os interessados nada disserem deve aplicar-se a regra supletiva geral
do art. 49.°, n.° 3, ficando a união de facto reconhecida sujeita ao regime económico da
comunhão de bens adquiridos.
Ao processo de reconhecimento da união de facto por mútuo acordo são
aplicáveis subsidiariamente as disposições respeitantes ao processo de casamento, isto
quanto à fase preliminar de iniciação do processo: juramento por parte dos
companheiros da união de facto sobre a não existência de impedimentos, possibilidades
de ser deduzida oposição, etc..
A diferença mais saliente entre um e outro processo reside em que no processo
de reconhecimento da união de facto não se dá a celebração, ou seja, não existe a parte
ritual e solene da cerimónia do casamento. Isto porque se entende que a prévia
existência de vida em comum torna supérflua a declaração solene de aceitação do outro
como cônjuge, tanto mais que o facto de se requerer o reconhecimento vem confirmar
esta mesma vontade.
Concluída a instrução, o conservador, se considerar verificados os pressupostos
legais constantes do art. 113.°, n.° 1 do Código de Família, reconhece, por despacho, a
união de facto, tal como vem consignado no art. 118.° do Código de Família. Trata-se,
portanto, de um ato administrativo. Se se der o caso de o conservador entender que não
estão preenchidos os pressupostos legais, deverá indeferir o pedido, seguindo-se, se for
caso disso, os demais trâmites previstos na lei, que permitem recorrer dos atos dos
conservadores.
Uma vez reconhecida a união de facto, ela produz todos os efeitos próprios do
casamento, mas com retroatividade à data do início da união. Mas tão só a partir do
momento em que se tenham dado como verificados os três pressupostos legais.
Estes efeitos retroativos vão ser especialmente relevantes para os filhos nascidos
da união de facto, cuja filiação em relação a ambos os progenitores fica desde logo
estabelecida (art. 163.° do Código de Família), mas ainda quanto aos efeitos
patrimoniais, designadamente quanto ao direito sobre bens comuns.
Poderá questionar-se se, não havendo celebração, ao contrário do que acontece
com o casamento, será de aplicar-se o que consta do art. 36.°, n.° 1 do Código de Família
quanto à adoção de apelidos ou de nome de família.
Cremos que, formalmente, tal não vem previsto na lei, mas não repugna aceitar
que esta declaração seja feita no requerimento que inicia o processo de reconhecimento,
o que poderá vir a constar do diploma que vier regulamentar a matéria no quadro das
normas do registo civil.
Uma vez lavrado o reconhecimento da união de facto, ficam os interessados em
situação jurídica equivalente à de casados e o ato está sujeito a registo a efetuar em livro
próprio, pois houve alteração do estado familiar — art. 120.° do Código de Família. O
seu registo é obrigatório e é através dele que a união de facto se toma oponível a
terceiros.
Por fim, dispõe o art. 121.° que o reconhecimento da união de facto está sujeito
a anulação, nos termos gerais previstos para a anulação do casamento.
Os termos em que pode ser operada a anulação do casamento são os que constam
do art. 65.° e seguintes do mesmo Código.
A aplicação das regras relativas à anulação do casamento tem que ser feita com
as necessárias adaptações, pois, havendo um período de coabitação mínima de três anos,
não poderá ser invocado o erro, quando é certo que a existência deste vício tem que ser
alegada dentro do prazo de dois anos após a celebração do casamento — art. 70.°, alínea
b) do Código de Família.
Também não poderá ser invocada a falta de requisitos formais, que não tem
cabimento no reconhecimento da união de facto feito por via administrativa. A falta ou
vício de vontade, para ser fundamento da anulação do reconhecimento da união de facto,
tem que respeitar ao momento da formulação do requerimento.
No relatório feito para a apresentação do projeto do Código de Família
reconheceu-se que o facto de ser exigido todo o formalismo que se descreveu para o
reconhecimento da união de facto por mútuo acordo iria levar a que a maioria dos
interessados viesse a optar pela celebração do casamento.
Não se quis, porém, deixar de prever na lei esta forma de reconhecimento por
mútuo acordo, deixando ao critério dos interessados optarem por esta via quando
entenderem que ela acautela melhor os seus interesses, designadamente pela produção
de efeitos retroativos nos termos previstos na lei.

[112] Reconhecimento por via judicial


O aspeto de maior relevância trazido pelo Código de Família relativamente a este
instituto é precisamente o de a união de facto poder vir a ser reconhecida depois de ter
cessado.
A cessação da união de facto pode dar-se, tal como a dissolução do casamento,
pela morte de um ou de ambos os companheiros, e ainda pelo facto da rutura da união.
A rutura é um ato voluntário que será um ato unilateral se partir de um só dos
companheiros, e será um ato bilateral se resultar da vontade de ambos. Como
apontámos, o traço dominante da união de facto é o de ela assentar na voluntariedade,
e ser o resultado da vontade dos dois de permanecerem no quadro da união não
formalizada. Quando qualquer deles quiser pôr termo à união de facto, esta terá o seu
termo igualmente de forma desprovida de formalismos.
A grande diferença trazida pelo Código de Família é a de que, como já vimos,
após o fím da união de facto é possível ela vir a ser reconhecida para vir a produzir
efeitos a posteriori, quer em relação aos filhos, quer de natureza patrimonial.
Pelo largo número de efeitos que advêm do reconhecimento da união de facto, o
Código de Família impõe que ele se opere por via judicial. Exige-se que seja o tribunal,
através de uma ação própria, proposta para o efeito, a proferir uma sentença por via da
qual se declare ter existido entre A e B, determinado homem e determinada mulher,
uma situação jurídica de união de facto.
O reconhecimento por via judicial é aplicável, quer no caso de morte em que
falta a vontade do companheiro que faleceu para manifestar o seu acordo ao
reconhecimento, quer no caso de rutura quando se tenha gerado uma situação de dissídio
entre ambos os companheiros.
Tem que ser feito em processo específico que determine e reconheça que a união
de facto existiu durante determinado lapso de tempo e que cessou, além de se pronunciar
sobre a verificação dos pressupostos legais mencionados no art. 113.°, n.° 1 do Código
de Família.
a) Legitimidade para a ação
A legitimidade para a propositura da ação vem expressa no art. 123.° do Código
de Família e é atribuída unicamente aos respetivos interessados ou aos seus herdeiros
no caso de morte destes.
1. Em caso de morte — tem legitimidade para a propositura da ação o
companheiro sobrevivo ou seu representante legal quando ele for incapaz ou os
herdeiros do companheiro falecido — art. 123.°, alíneas a) e b) do Código de Família;
2. Em caso de rutura — a ação pode ser proposta por qualquer dos companheiros
da união de facto, ou pelo respetivo representante legal, no caso de incapacidade — art.
123.°, alínea a) do Código de Família.
No caso de morte transmite-se aos herdeiros do companheiro falecido o direito
de ação, que irá permitir que se opere o reconhecimento posterior da união havida.
Embora o direito de família seja, no fundamental, como se disse, um direito de natureza
pessoal, a lei reconhece em certos casos excecionais a transmissão não do exercício do
direito em si, mas a do direito de ação que se irá repercutir na esfera jurídica dos
herdeiros do titular desse direito.
A lei salvaguarda não só o direito da propositura da ação por parte dos herdeiros
do interessado mas também o direito de estes prosseguirem na ação no caso de vir a
falecer o companheiro que propôs a ação ou contra quem a ação for proposta.
Ao contrário do que ocorre na ação de divórcio, a ação de reconhecimento da
união de facto não se extingue com a morte de qualquer das partes, pois em ambos os
casos os herdeiros do falecido podem prosseguir na ação.
b) Prazo de propositura da ação e formalismo processual
O art. 124.° do Código de Família prevê que a ação de reconhecimento da união
de facto deve ser proposta dentro do prazo de dois anos, sob pena de caducidade, prazo
este que é do conhecimento oficioso do tribunal — art. 333.°, n.° 1 do Código Civil.
Pode verificar-se que no Código de Família se consagra, em regra, o prazo de
dois anos para o exercício de determinados direitos de ação, embora noutros casos seja
até fixado o prazo de 1 ano, quando se entende que há que preservar com prevalência a
situação jurídica anterior.
No caso do reconhecimento da união de facto, entendeu-se que se devia balizar
o tempo dentro do qual os interessados deveriam exercer a faculdade legal de propor ou
não propor a ação. Na verdade, a circunstância de a lei atribuir ao reconhecimento da
união de facto amplos e importantes efeitos impõe que os interessados venham a juízo
com certa presteza reivindicar os seus direitos para se poder definir os direitos do outro
companheiro e ainda os eventuais direitos de outros interessados.

É novamente o princípio da segurança das relações jurídicas que faz com que
seja indicado um prazo para o exercício deste direito, findo o qual cessa o direito ao seu
exercício.
O prazo de dois anos é contado a partir do fim da união, pelo que, se ela findou
por morte de um dos companheiros, é essa a data relevante. Se findou por rutura, o prazo
conta-se a partir da data em que definitivamente cessou a coabitação.
O processo judicial para o reconhecimento ou mero atendimento da união de
facto segue os trâmites do processo especial, já mencionados em termos gerais para o
processo de divórcio, ou seja, os que vêm previstos nos arts. 6.° e 7.® da Lei n.° 1/88.
Como norma específica, temos o art. 125.® do Código de Família.
Na averiguação judicial de existência da união de facto é obrigatória a
intervenção do Conselho de Família, como já mencionámos, pelo que a falta de
constituição e audição do Conselho de Família constitui uma nulidade processual
insanável. Esta nulidade é do conhecimento oficioso do tribunal e, uma vez verificada,
leva à anulação do processo a partir do momento em que ele devia intervir, nos termos
dos arts. 201.® e 202.® do Código do Processo Civil O Conselho de Família deverá ser
constituído por dois membros escolhidos entre os familiares do homem, e dois
escolhidos entre os familiares da mulher — art. 17.°, n.° 2 do Código de Família.
Compreende-se que a lei considere imprescindível ouvir o parecer do Conselho
de Família, pois melhor que ninguém serão os familiares do casal que poderão ou não
confirmar a existência e a permanência da união de facto, caraterizada pela sua natureza
de facto público no respetivo meio social dos companheiros.
Ao analisar a prova produzida, o tribunal deverá apurar se estão verificados todos
os pressupostos legais para que a união de facto possa ser reconhecida quanto à
capacidade matrimonial dos companheiros, o início e o término da união de facto, para
o preenchimento do período legal, e ainda o da singularidade da união.
Mesmo que a união de facto tenha sido iniciada sem o preenchimento dos
pressupostos legais, ela pode vir a ser reconhecida, como já vimos, se, a partir de
determinado momento e pelo menos durante o período mínimo de três anos
consecutivos, eles se verificarem.
Também se pode dar o inverso, ou seja, preencher a união os requisitos legais, e,
a partir de determinado momento, tal deixar de acontecer (por exemplo, se deixar de ser
singular em relação ao homem que inicia simultaneamente outra união de facto com
outra mulher).
Neste caso, se se der a rutura da primeira união, o companheiro ou compa¬nheira
da união que foi válida para produzir efeitos, pode vir, dentro do prazo de
dois anos, pedir o respetivo reconhecimento. c) Efeitos do reconhecimento
Uma vez provada a existência da união de facto que preencheu os pressupostos
do art. 113.°, n.° 1, o juiz deve reconhecer essa união, indicando, tanto quanto possível,
quando ela se iniciou e quando veio a terminar para, assim, determinar o período em
que ela produziu efeitos, designadamente quanto à aquisição de bens comuns,
responsabilidade por dívidas, presunção legal de paternidade por parte do companheiro
dos filhos nascidos da união, etc.
A data do fim da união marca a cessação das relações pessoais e patrimoniais
dos companheiros, uma vez que esta termina por simples ato de vontade de um ou de
ambos.
Não obstante, não é demais realçar o largo alcance da sentença que vier a
reconhecer a união de facto que tenha preenchido os pressupostos legais, uma vez que
os efeitos dessa união são equiparados por lei aos do casamento dissolvido.
Assim, se a união de facto terminou por morte de um dos companheiros, os
efeitos do reconhecimento são os mesmos da dissolução do casamento por morte — art.
126.° do Código de Família.
Como vimos, a Lei de Bases da Proteção Social, Lei n.° 7/04 de 15 de outubro
cujo regime jurídico foi definido pelo Decreto n.° 38/08 de 19 de junho (Diário da
República, n.° 112) estabelece no seu art. 6.° «Estão vinculados à Proteção Social
Obrigatória na condição de dependentes do segurado: a) o cônjuge ou pessoa em união
defacto.»
Garante-se desta forma o direito à pensão de sobrevivência ao companheiro da
união de facto tal como ao cônjuge, no caso de falecimento do trabalhador — art. 6.°
alínea a) do Decreto n.° 38/08 de 19 de junho.
Se a união de facto terminou por rutura, os efeitos que o reconhecimento produz
são os mesmos da dissolução do casamento por divórcio, como indica o citado art.
126.°.
Os efeitos pertinentes da dissolução do casamento são aqui de aplicar, salvo
quanto aos efeitos de natureza pessoal do casamento que se não chegam a produzir na
união de facto e que estão intrinsecamente ligados ao casamento como ato, como sejam
o nome de família, a afinidade e a aquisição de nacionalidade. Em relação aos filhos,
dado o fim da coabitação, são de aplicar, por inteiro, as regras já mencionadas contidas
nos art. 147.° e seguintes do Código de Família.
No campo das relações patrimoniais os efeitos são praticamente os mesmos.
Haverá o direito a partilha dos bens comuns adquiridos a título oneroso durante a união,
pois é de aplicar supletivamente o regime de bens da comunhão de adquiridos.
A responsabilidade pelo passivo segue igualmente as mesmas regras da
dissolução do casamento, devendo em primeiro lugar proceder-se à liquidação do
passivo.
O direito à atribuição da residência familiar verifica-se também nas mesmas
condições dos artigos. 75.°, n.° 4 e 110.° do Código de Família.
As regras aplicáveis do direito a alimentos são igualmente as previstas para o
caso de dissolução do casamento por morte. O art. 261.°, n.°s 1 e 2 atribui ao
companheiro sobrevivo de união de facto reconhecida o direito de ser alimentado pelos
rendimentos deixados pelo falecido.
No caso de rutura da união de facto que reuna os pressupostos legais, o
companheiro que não tenha dado causa exclusiva à rutura tem direito a alimentos, como
prescrevem as disposições dos artigos. 260.° e 262.°, n.° 2 ambos do Código de Família.
Por outro lado, a constituição de nova união de facto por pane do companheiro
que tinha direito a alimentos, faz cessar esse direito, como prescreve o an. 263.° do
Código de Família.
A decisão que reconhecer a união de facto dissolvida por mone ou por rutura está
sujeita a registo, pois é constitutiva de relações jurídicas familiares, como
expressamente estipula a parte final do art. 126.° do Código de Família.
Ela deverá ser comunicada oficiosamente pelo tribunal à conservatória do registo
civil da área da última residência comum dos companheiros da união de facto, aplicando
por remissão o disposto no an. 120.° do Código de Família e o art. 101.° do Código do
Registo Civil.

[113] Atendimento da união de facto que não preencha os pressupostos legais.


O art. 113.°, n.° 2 refere-se à união de facto que não possa ser reconhecida por
falta de pressupostos legais, o que nos põe perante todas as situações que podem ocorrer
em que existe efetivamente a vida marital comum entre homem e mulher, mas ela não
pode ser subsumida à previsão legal do n.° 1 do mesmo artigo, por falta de qualquer dos
requisitos legais (tempo de duração, incapacidade matrimonial, singularidade).
Nesta situação estão todas as uniões de facto poligâmicas, ainda muito frequentes
no país.
Fala-se aqui da « união defacto que não pode ser reconhecida » para a distinguir
da união de facto que pode ser reconhecida. Mas é preciso ter em conta que ela, em
rigor, pode ser reconhecida, não para produzir efeitos que na sua plenitude produz a
união de facto (n.° 1 do art. 113.°), mas apenas para produzir os efeitos restritos
previstos na segunda parte do art. 113.°, n.° 2, e ainda o efeito presunção de paternidade
do companheiro relativamente aos filhos nascidos da união de facto (art. 168.°, alínea
b) do Código de Família).
Com o propósito da proteção dos filhos nascidos ou concebidos na vigência da
união de facto, este art. 168.° estabelece a presunção legal de que os filhos nascidos da
companheira são filhos do homem com quem ela convive nessa união, mesmo que a
união não esteja reconhecida. Aos filhos nascidos destas uniões de facto estabelecidas
entre os respetivos pais atribui a lei esta presunção legal de paternidade, estando nesta
situação a maior parte da população no nosso país.
Interessa agora destrinçar as previsões especificadas no citado n.° 2 do art. 113.°,
que devem ser atendidas mesmo que a união de facto não preencha os pressupostos
legais.
O enriquecimento ilícito, nos termos gerais da lei civil, corresponde ao
enriquecimento sem causa previsto nos artigos 479.° a 482.° do Código Civil.
A sua verificação depende das seguintes condições: — condições de ordem
económica:
1 — o enriquecimento do réu,
2 — o empobrecimento do autor; — condições de ordem jurídica:
1 — nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento,
2 — ausência de causa,
3 — ausência de ação apropriada.
Na vigência da união de facto podem ocorrer circunstâncias em que se produza
o enriquecimento sem causa de um dos companheiros à custa do património ou das
prestações de serviços por parte do outro, feitos com propósito de vida em comum. Pode
concretizar-se em factos tais como liberalidades, consumo de bens ou mercadorias,
prestação de serviços domésticos ou de assistência, prestação de trabalho por conta do
outro sem remuneração, etc.
Há que averiguar se houve um enriquecimento não legitimado pelo direito por
uma das partes e um empobrecimento direto ou indireto pela outra parte.
Esse reconhecimento, para produzir efeitos inter-partes ou em relação aos
herdeiros de um dos companheiros, deverá ser sempre feito por via judicial e pode
acontecer que só na fase de julgamento o tribunal possa apreciar e decidir que os
pressupostos de união de facto estão preenchidos, para se pronunciar sobre qual a
natureza da união de facto que se verificou no caso concreto e daí retirar a conclusão
sobre quais os efeitos legais que ela produz.
Na verdade, se faltar um dos pressupostos, a união de facto já não produz os
efeitos da dissolução do casamento por morte ou por divórcio, pois a situação vivida,
dada a falta de qualquer dos requisitos legais referidos (a estabilidade da união, a
capacidade matrimonial de qualquer dos companheiros ou a singularidade), impede que,
mesmo a posteriori, ela seja equiparada ao casamento.
No entanto, esses efeitos são sem dúvida relevantes na esfera de relações de
natureza patrimonial dos ex-companheiros da união de facto, pois reportam-se a três
situações que são em si distintas:
— ao enriquecimento sem causa;
— à partilha dos bens comuns;
— à atribuição do direito à residência comum.
Neste aspeto, os efeitos patrimoniais do atendimento da união de facto que não
reúne os pressupostos legais, podem, em essência, ser comparados aos que, nas demais
legislações, são hoje atribuídos às uniões de facto tidas como união livre ou
concubinato.
Quem fez a prestação teve em vista a situação de convivência marital, pelo que
o fim desta retira à prestação feita o seu objeto mediato, devendo quem recebeu a
prestação proceder à sua restituição em espécie ou em valor equivalente.

Ao referir-se à partilha de bens comuns, a lei não está a equiparar os bens


adquiridos durante a união de facto aos bens comuns dos cônjuges casados sob o regime
da comunhão de adquiridos.
Neste tipo de união de facto o que existe entre os companheiros não é um regime
matrimonial de bens, mas antes uma sociedade de facto, como se entende
predominantemente na doutrina. Ao desenvolverem uma vida em comum sob o ponto
de vista social, os companheiros da união de facto desenvolvem também, na maioria
dos casos, uma série de relações de natureza patrimonial entre si e relativamente a
terceiros.
São adquiridos bens com valores de ambos, são desenvolvidas atividades
económicas com a contribuição de ambos (em serviços ou em prestações pecuniá¬rias),
e esta atuação pressupõe o propósito de participar nos lucros respetivos.
Os patrimónios são na verdade dois, pois, neste caso, é como se entre os
companheiros da união de facto vigorasse o regime da separação de bens. Mas, dado o
decurso da vida em comum, esses patrimónios estão imbricados um no outro, pelo que,
no momento em que a união de facto vier a terminar, torna-se necessário operar a
partilha dos bens.
Estamos, porém, perante uma partilha de cada um dos bens tidos em
compropriedade e não perante a partilha por meação dos bens comuns, como acontece
aquando da dissolução do casamento ou da união de facto reconhecida e que preenche
os pressupostos legais.
Na falta de prova por documento escrito da titularidade dos bens a dividir, terá
que ser feita prova, por outra via legal, de que o bem em causa foi adquirido com a
participação de ambos os companheiros.
O ónus da prova recai sobre o autor do pedido.
Quanto à atribuição da residência familiar, também mencionada no citado artigo
113.°, n.° 2, são de aplicar as mesmas regras que vêm previstas no art. 110.° do Código
de Família e as respeitantes à dissolução do casamento por divórcio. A finalidade da lei
é a mesma: salvaguardar o direito do cônjuge ou companheiro a quem deve ser atribuída
a preferência legal de continuar a residir na mesma casa onde o casal coabitou.
Relativamente a terceiros, a união de facto também produz efeitos patrimo¬niais,
pois devem entender-se de responsabilidade solidária as dívidas contraídas por qualquer
dos companheiros para satisfazer os encargos normais da vida familiar ou em proveito
comum do casal. Tem sido entendido que, com base na denominada teoria da aparência,
o casal que, não sendo casado, se comporta perante a sociedade como o se fosse, deve
suportar os riscos de tal comportamento e constituir-se devedor de forma solidária
perante terceiros, como se se tratasse de um casamento válido.
CAPÍTULO l8.°
A ADOÇÃO

[114] Evolução do instituto da adoção.


O vínculo da adoção carateriza-se pela constituição de um vínculo idêntico ao da
filiação entre duas pessoas que não estão ligadas entre si por laços de filiação de sangue.
Há quem entenda que a adoção deve ser vista e definida tanto como o vínculo
que estabelece a filiação entre adotante e adotado como, simultaneamente, o instituto
que opera a rutura do vínculo da filiação biológica existente entre o adotado e a sua
família natural.
A adoção visa, em essência, a substituição da família natural pela família adotiva.
O vínculo da adoção foi evoluindo através dos tempos quer quanto à forma como
pode ser constituída, quer quanto aos fins visados pela sua constituição. No direito
romano, foi largamente usada e podia ser constituída por contrato e por testamento ou
por decreto da cúria. Tinha como fim principal assegurar a sucessão do adotante pelo
adotado.
Tal como os demais institutos jurídicos, a sua aceitação foi dependendo das
conceções religiosas e das opções políticas de determinado momento histórico. O
predomínio do cristianismo fez praticamente desaparecer a adoção durante a época
medieval e até à Revolução Francesa. Também o direito muçulmano a rejeita, por
entender que ela contraria a primazia que deve ser dada aos laços de sangue, embora
aceite a instituição da «Kafala », que lhe é afim e que consiste em colocar as crianças
em lugares de guarda.
O Código Civil Napoleónico do princípio do século XIX reintroduziu a adoção,
ainda que de forma muito restrita. Entretanto, o primeiro Código Civil Português não
permitiu a adoção, pois se entendeu que ela estava «muitofora dos costumes do Reyno
».
Só com a entrada em vigor do atual Código Civil reapareceu o instituto da
adoção, mas mesmo assim com todo um apertado condicionalismo legal quanto ao
estado civil de casado dos adotantes, da duração do casamento, da não existência de
filhos, etc.. O Código Civil consagrava ainda a distinção entre adoção plena e adoção
restrita, que é uma forma de limitados efeitos legais.
Nas últimas décadas tem sido notória a evolução da adoção no sentido de ser ela
usada tanto no interesse dos adotantes de verem, por via dela, realizado o seu desejo de
criar laços idênticos aos da filiação em relação a um menor que biologicamente não é
seu filho, como no interesse do adotado, por lhe permitir encontrar uma família
substituta que melhor assuma a função própria da progenitura.
A adoção que integra em plenitude o adotado na família do adotante, é designada
pela doutrina como adoção legitimante.
No entanto, o princípio norteador de todo o instituto da adoção, quer nas
convenções internacionais quer nos sistemas jurídicos dos diversos países, é o de que o
fim primordial da adoção é o de proteger o «superior interesse da criança ».
A evolução vai no sentido não só de ter em conta o bem- estar da criança mas
ainda a garantia da defesa dos direitos da criança enquanto individualidade, princípio
da dignidade da pessoa humana.
Diferem as soluções consagradas quanto à autoridade competente para autorizar
a adoção: alguns estados permitem que seja tratada por autoridades administrativas,
enquanto outros estados, como o Estado angolano, conferem exclusiva competência à
autoridade judicial.
Nos sistemas legais dos países socialistas foi dada grande amplitude à adoção,
procurando-se com ela obviar a situações dramáticas criadas pela guerra e pelas
perturbações sociais vividas, que resultaram na perda de inúmeras vidas humanas e no
desagregar de grande número de famílias.
Também nos países economicamente mais desenvolvidos a adoção foi objeto de
nova regulamentação legal que veio ampliar os seus efeitos jurídicos e simplificar os
seus condicionalismos.
Em regra, o processo de adoção é iniciado com um procedimento
adminis¬trativo por parte dos serviços de assistência social que preliminarmente fazem
uma entrega da criança aos futuros adotantes, denominado como procedimento
pré-adotivo, para ser avaliado o grau de adequabilidade destes à constituição do futuro
vínculo de adoção.
O menor é confiado à pessoa ou ao casal selecionado para a adoção por um
determinado período, o que serve de teste ao êxito da adoção. Este sistema vem previsto
no direito português, espanhol e italiano.
No atual Código civil português a identidade do adotante em princípio, não pode
ser revelada aos pais biológicos do adotado, para impedir que estes venham
posteriormente a intervir nas relações entre adotante e adotado. Noutras legislações é a
mãe biológica que proíbe que seja revelada a sua identidade ocultando perante a
sociedade o facto da sua maternidade.
O instituto da adoção, como os demais de direito de família, tem sido objeto de
controvérsia, dado o próprio desenvolvimento de questões trazidas da evolução da
própria sociedade.
Assim, para dar solução jurídica à situação da «mãe portadora» ou «mãe de
aluguer» de óvulo fecundado originário de outra mulher e fecundado pelo marido desta,
obrigando-se a mãe substituta a desenvolver em si todo o processo de gestação do
embrião e do feto até ao momento do parto e consequente nascimento da criança, tem
se vindo a entender que a criança que nascer deverá ficar ligada à mulher dadora do
óvulo mas que a não gerou, pelo vínculo da adoção, renunciando a mãe portadora que
suportou o período de gestação e o parto, a quaisquer direitos como mãe biológica.
Tem sido objeto de acesa controvérsia a pretensão de casais de homossexuais de
lhes ser permitida a adoção de criança. Mesmo em países onde são reconhecidos já
alguns direitos a casais de homossexuais, designadamente o de contraírem casamento,
é recusado o direito à adoção pelos dois membros da união, por se entender ser tal
adoção prejudicial ao equilíbrio natural da criança que se confrontaria com a existência
simultânea de dois pais ou duas mães.

[115] A realidade sociojurídica angolana


Angola é um exemplo significativo da repercussão de efeitos negativos das
perdas sofridas pelas lutas de libertação, pelo fenómeno da descolonização e pela
contínua situação de guerra que se lhe seguiu, sobre a situação familiar de milhares de
crianças.
ao estado civil de casado dos adotantes, da duração do casamento, da não
existência de filhos, etc.. O Código Civil consagrava ainda a distinção entre adoção
plena e adoção restrita, que é uma forma de limitados efeitos legais.
Nas últimas décadas tem sido notória a evolução da adoção no sentido de ser ela
usada tanto no interesse dos adotantes de verem, por via dela, realizado o seu desejo de
criar laços idênticos aos da filiação em relação a um menor que biologicamente não é
seu filho, como no interesse do adotado, por lhe permitir encontrar uma família
substituta que melhor assuma a função própria da progenitura.
A adoção que integra em plenitude o adotado na família do adotante, é designada
pela doutrina como adoção legitimante.
No entanto, o princípio norteador de todo o instituto da adoção, quer nas
convenções internacionais quer nos sistemas jurídicos dos diversos países, é o de que o
fim primordial da adoção é o de proteger o «superior interesse da criança ».(1)
A evolução vai no sentido não só de ter em conta o bem- estar da criança mas
ainda a garantia da defesa dos direitos da criança enquanto individualidade, princípio
da dignidade da pessoa humana.
Diferem as soluções consagradas quanto à autoridade competente para autorizar
a adoção: alguns estados permitem que seja tratada por autoridades administrativas,
enquanto outros estados, como o Estado angolano, conferem exclusiva competência à
autoridade judicial.
Nos sistemas legais dos países socialistas foi dada grande amplitude à adoção,
procurando-se com ela obviar a situações dramáticas criadas pela guerra e pelas
perturbações sociais vividas, que resultaram na perda de inúmeras vidas humanas e no
desagregar de grande número de famílias.
Também nos países economicamente mais desenvolvidos a adoção foi objeto de
nova regulamentação legal que veio ampliar os seus efeitos jurídicos e simplificar os
seus condicionalismos.
Em regra, o processo de adoção é iniciado com um procedimento
adminis¬trativo por parte dos serviços de assistência social que preliminarmente fazem
Cláudia Lima Marques — «A Convenção da Haia de 1993 c o ECA representam
uma nova visão da adoção internacional, concentrada agora nos direitos humanos da
criança, no seu bem estar e no seu interesse superior. Supera-se, assim, a visão anterior,
concentrada nos interesses patrimoniais da família, no eventual direito de procriação
dos pais adotivos e seus interesses na continuação da família. A interpretação pós- -
moderna do princípio do interesse superior da criança hoje deve incluir a realização dos
seus direitos fundamentais de identidade cultural.» Estudos em homenagem à Prof.a
Magalhães Colaço Vol. I, p. 281.
(2) Cláudia Lima Marques — idem, p. 281.
uma entrega da criança aos futuros adotantes, denominado como procedimento
pré-adotivo, para ser avaliado o grau de adequabilidade destes à constituição do futuro
vínculo de adoção.
O menor é confiado à pessoa ou ao casal selecionado para a adoção por um
determinado período, o que serve de teste ao êxito da adoção. Este sistema vem previsto
no direito português, espanhol e italiano.
No atual Código civil português a identidade do adotante em princípio, não pode
ser revelada aos pais biológicos do adotado, para impedir que estes venham
posteriormente a intervir nas relações entre adotante e adotado. Noutras legislações é a
mãe biológica que proíbe que seja revelada a sua identidade ocultando perante a
sociedade o facto da sua maternidade.
O instituto da adoção, como os demais de direito de família, tem sido objeto de
controvérsia, dado o próprio desenvolvimento de questões trazidas da evolução da
própria sociedade.
Assim, para dar solução jurídica à situação da «mãe portadora» ou «mãe de
aluguer» de óvulo fecundado originário de outra mulher e fecundado pelo marido desta,
obrigando-se a mãe substituta a desenvolver em si todo o processo de gestação do
embrião e do feto até ao momento do pano e consequente nascimento da criança, tem
se vindo a entender que a criança que nascer deverá ficar ligada à mulher dadora do
óvulo mas que a não gerou, pelo vínculo da adoção, renunciando a mãe ponadora que
suportou o período de gestação e o parto, a quaisquer direitos como mãe biológica.
Tem sido objeto de acesa controvérsia a pretensão de casais de homossexuais de
lhes ser permitida a adoção de criança. Mesmo em países onde são reconhecidos já
alguns direitos a casais de homossexuais, designadamente o de contraírem casamento,
é recusado o direito à adoção pelos dois membros da união, por se entender ser tal
adoção prejudicial ao equilíbrio natural da criança que se confrontaria com a existência
simultânea de dois pais ou duas mães.

[115] A realidade sociojurídica angolana


Angola é um exemplo significativo da repercussão de efeitos negativos das
perdas sofridas pelas lutas de libertação, pelo fenómeno da descolonização e pela
contínua situação de guerra que se lhe seguiu, sobre a situação familiar de milhares de
crianças.
O número de menores cujos pais faleceram ou desaparecerem, ou que foram
abandonados pelos pais é, como todos sabemos, tremendamente elevado.
Tanto assim que já em 1980 se sentiu a urgente necessidade de alterar a lei e
revogar o Código Civil, que, em matéria de adoção, se não coadunava com as
necessidades então vividas. Foi portanto publicada a Lei n.° 7/80, de 27 de agosto (Lei
da Adoção e Colocação de Menores), que veio revogar os artigos 1973.° a 2002.° do
Código Civil.
Tal como consta do respetivo preâmbulo, ela «procurou minorar os efeitos que,
sobre a vida de milhares de crianças do nosso País, tiveram as duas guerras de
Libertação Nacional, lançando-as à orfandade e ao abandono (...)». Ela visou ampliar o
instituto da adoção por forma a que este viesse a corresponder às novas condições sócio-
familiares existentes, simplificando o mecanismo processual, sem no entanto minimizar
a importância da intervenção judicial.
A Lei n.° 7/80 foi revogada pelo art. 10.°, alínea g) da Lei n.° 1/88 na parte
respeitante à adoção (que constava dos seus Capítulos I e II ), embora, no fundamental,
esta lei passasse a estar integrada no novo Código de Família. E a Lei n.° 19/96 de 19
de abril, no seu art. 28.° revogou o Capítulo III da Lei n.° 7/80, pelo que esta lei se
encontra totalmente revogada.
Importa realçar que o vínculo da adoção veio a aprofundar-se grandemente na lei
atual, pois logo no art. 8.° do Código de Família se equiparou o parentesco por laços de
sangue ao parentesco por adoção.
Ora, conhecida a extrema relevância que o parentesco por laços de sangue
assume na família tradicional angolana, pode aferir-se por aí o que significou esta
equiparação.
Não tem sido grande, no nosso país, a expansão do instituto da adoção.
A sociedade tradicional angolana não desconhece o instituto da adoção, ainda
que ele seja pouco praticado. A adoção está condicionada à aprovação pela família do
adotante ao ato da adoção. Mas, uma vez obtido o consentimento e efetuada a adoção,
o adotado passa a ficar integrado como membro da família para todos os efeitos. A
escassez de casos de adoção levados às instâncias judiciais pode, a nosso ver, ter
diversas justificações.
Em primeiro lugar, o facto de o próprio conceito de «filho» ter, na família
tradicional, um âmbito mais alargado do que no direito positivo. É chamado e
considerado como filho, o filho do irmão ou irmã inserido na família biológica,
como se fosse o herdeiro direto.
Ocorre com frequência que, quando morre o verdadeiro pai ou a verdadeira mãe,
é o tio ou o irmão mais velho ou a tia ou a irmã mais velha, respetivamente, que
assumem o papel do progenitor. De toda a sorte, é a própria estrutura da
família extensa que se encarrega de preencher o vazio criado e de trazer para o
lugar de «filho» quem necessita de proteção, sem necessidade de se ir para além do
círculo familiar buscar um menor para ser adotado.
Prevalece também a «adoção de facto» operada à margem de intervenção dos
tribunais, tal como em outras instituições do direito de família, o que é o produto de
vivência do próprio meio social, onde é escasso o acesso à documentação formal e à
assistência jurídica, seja por razões de índole cultural, seja por razões económicas.
Sem embargo deste circunstancialismo, a adoção tem, do ponto de vista
sociológico, um grande alcance na ordem jurídica angolana, pois ela pode ser usada
como a via mais adequada para integrar em novas famílias as crianças vítimas de
situação de guerra cujos pais desapareceram, assimilando-as aos filhos naturais e
permitindo aos adotantes estabelecer vínculo de filiação voluntariamente escolhido, seja
por falta de descendência, por especial afeição por uma criança, ou para estabelecer
nova relação com filho do outro cônjuge, ou outra razão válida.
As formas mais comuns usadas para de forma fraudulenta substituir o instituto
da adoção são:
— o envio de crianças para o exterior do País, subtraindo-as à proteção do Estado
de origem;
— o agenciamento criminoso de crianças para a adoção, através de compensação
financeira;
— o falso registo de nascimento com declaração de filiação feita pelo adotante.
A adoção está consagrada, pela primeira vez, em diploma constitucional, no
âmbito das normas protetoras da criança, pois a recente Constituição dispõe no seu art.
80.° (Infância), n.° 4: «O Estado regula a adoção de crianças, promovendo a sua
integração em ambiente familiar sadio e velando pelo seu desenvolvimento integral.»
[116] Conteúdo legal da adoção
O art. 197.° do Código de Família define a adoção dizendo que ela constitui entre
adotado e adotante vínculo de parentesco igual ao que liga osfilhos aos pais naturais.
Afastou-se assim o conceito de adoção plena e adoção restrita que é aceite
noutros ordenamentos jurídicos. Uma vez constituída a adoção, os respetivos efeitos
produzem-se na sua totalidade entre adotante e adotado.
O vínculo da adoção, pela importância dos efeitos que dele derivam, está
dependente da observância de apertados requisitos legais e tem que ser
obrigatoriamente constituído por via da intervenção do tribunal, através do ato
jurídico solene de uma sentença.
O art. 212.°, n.° 1 estatui que a adoção é constituída por sentença judicial
proferida em processo de jurisdição voluntária. A sentença tem pois efeito constitutivo
A constituição da adoção só produz efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença
e não produz efeitos retroativos, ou seja, só produz efeitos ex nunc.
Para proteger os interesses em jogo (em primeiro lugar, o interesse da criança,
mas também o dos próprios adotantes, bem como os da família natural), é através da
via judicial firmada na lei que a adoção pode validamente surgir. Entende-se assim que
é um ato de concessão judicial. Não é possível, pois, a constituição da adoção por via
contratual ou por testamento.
Uma vez constituído o status do adotado e integrado este na nova família adotiva,
a adoção tão pouco pode ser revogada por vontade das partes, conforme preceitua o art.
211.° do Código de Família. A irrevogabilidade da adoção permanece mesmo que se
alterem as condições familiares do adotante, como seja a da superveniência de filhos.
a) Requisitos legais do adotante
É exigido na lei com rigor que, em relação ao adotante ou adotantes, se
verifiquem determinados requisitos subjetivos que demonstrem a sua idoneidade para
exercer as atribuições legais que a lei lhes confere, substituindo o progenitor natural.
Ao adotado, como é óbvio, nenhuma condição é exigida para lhe serem atribuidos todos
os direitos e deveres paternais por parte dos adotantes.
Mas a criação artificial de um vínculo tão importante como o da filiação faz
exigir toda a cautela na verificação das condições legais na pessoa do adotante.
Sob o aspeto da pessoa do adotante em si, a capacidade para o investimento na
nova situação jurídica vem definida no art. 199.°, n.° 1 do Código de Família, exigindo
a lei que o adotante tenha mais de 25 anos e esteja no pleno gozo dos direitos civis,
tenha idoneidade moral e bom comportamento social, especialmente nas relações
familiares, e capacidade económica para prover o sustento e educação do adotado.
Exige ainda a lei que o adotante tenha saúde mental e física, procurando desta
forma que o adotante possa vir a cumprir o elevado encargo da criação c educação do
filho adotivo e que seja pessoa mentalmente sã, no pleno gozo das suas faculdades
mentais.
A diferença de idade entre adotante e adotado tem que ser, pelo menos, de 16
anos, o que implica que entre os dois tem que haver o espaço considerado mínimo para
uma geração. Ao contrário de alguns sistemas jurídicos, não há limites de idade a partir
dos quais seja vedada a adoção.
Permite a lei que sejam afastados os requisitos das alíneas c) e e) do art. 199.°,
que respeitam à capacidade económica e à diferença de idade, quando a adoção disser
respeito ao filho do cônjuge ou do companheiro de união de facto.
Em relação aos adotantes, a lei impõe ainda condições legais que respeitam ao
seu estado civil e à sua efetiva situação matrimonial e de união de facto reconhecível.
Desta forma, para a adoção dupla, que é obrigatoriamente constituída,
simultaneamente, pelos dois cônjuges ou pelos dois companheiros de união de facto, o
art. 205.°, alínea a) do Código de Família impõe que:
— os cônjuges não podem estar separados de facto;
— os companheiros da união de facto têm de viver em situação que preencha os
pressupostos legais para o reconhecimento.
A razão de ser destas condições está no facto de o legislador querer que o adotado
possa ser recebido na nova família por um casal nas condições de facto e de direito que
permitam a ambos assumir o papel de verdadeiros pais, convergindo as vontades de
adotantes e adotado para a constituição do novo vínculo. Pretende-se seguir o modelo
da família biológica e que o casal dos adotantes dê garantias de estabilidade,
representando um lar acolhedor, com comunhão material e espiritual.
A lei permite também a adoção unipessoal, que como a expressão indica, é feita
por uma só pessoa em duas situações distintas — art. 205.°, alíneas b) e c):
— quando se trate de filho do cônjuge ou do companheiro da união de facto;
— quando for feita por pessoa não casada.
No primeiro caso, a adoção é feita no interesse do estreitamento da família
nuclear, permitindo que se estabeleça o vínculo de filiação entre o cônjuge ou
companheiro de união de facto e aquele menor que é filho do outro membro do casal.
No segundo caso, tem que se tratar de pessoa só, solteira, viúva ou divorciada, que não
viva em união de facto, e que, para constituir com o adotado uma família monoparental,
demonstre vontade e disposição afetiva, além dos demais requisitos legais, de vir a
substituir a progenitura do menor.
Embora a nossa lei não o proíba, omitindo a referência a essa questão,
entendemos que não deve ser permitida a adoção entre parentes por laços de sangue,
pelo menos nos casos em que a proximidade de parentesco é, por força da lei,
impedimento matrimonial.(5) De outra forma, ir-se-ia constituir um vínculo de filiação
adotiva onde a lei quer afastar a possibilidade de um vínculo de filiação natural.
b) Requisitos legais do adotado
Por parte do adotado, a lei exige apenas que o adotado seja menor, de acordo
com o art. 200.°, o adotado deve ter menos de 18 anos de idade. O estado de
adoptabilidade refere-se obrigatoriamente a uma idade inferior a 18 anos.
No entanto entendemos que esse requisito de adoptabilidade tem que se referir à
data da propositura da ação e não da prolação da sentença constitutiva do vínculo.
Não prevê a lei qualquer condição de ordem física, psíquica, económica ou outra,
em relação ao adotando.
A lei tão-pouco exige que se verifique qualquer período obrigatório de
convivência entre adotante e adotado antes do estabelecimento do vínculo, muito
embora, na realidade, quase sempre tal ocorra, pois em regra a entrega da criança é feita
por entidade da assistência social ou foi processada sem formalismo decorrendo de
circunstâncias factuais.

[117] Consentimento à adoção


A vontade de adotar por parte do adotante manifesta-se pela própria propositura
da ação respetiva mas ela tem que ser complementada pela manifestação de vontade dos
representantes legais do adotado, ou na sua falta pelos parentes próximos e por ele
próprio se já tiver completado 10 anos de idade.
Uma vez que, como veremos, a constituição do vínculo da adoção vai pôr fim às
relações familiares entre o adotado e os seus pais e parentes naturais, não é necessário
enfatizar a relevância que advém para a situação do menor em relação
à sua família natural. Daí a necessidade da prestação do consentimento livre e
consciente por parte de quem por lei, o deve outorgar.
Quando a lei impõe a existência do consentimento à adoção, este é um requisito
indispensável à validade do ato jurídico.
a) Dispensa de consentimento
A lei prescinde do consentimento por parte dos progenitores e outros parentes,
nos seguintes casos taxativos: «Do menor em situação de abandono, tal como vem
definido no n.° 2 do art. 200.0 do Código de Família, isto é, aquele em relação ao qual
os pais e outros parentes se tenham manifestamente desinteressado do exercício dos
seus deveres por período superior a um ano.»
O abandono pode ocorrer por os pais não terem estabelecido, desde o nascimento
do filho, o vínculo de filiação, nem tão-pouco a posse de estado de filho. É necessário
que o complexo de deveres dos pais, como a guarda, a vigilância, e a criação e educação
do filho, não esteja a ser exercido. Pode também ocorrer que, embora de início os pais
tenham exercido os seus deveres, cessem de o fazer a partir de determinado momento,
deixando de prestar assistência material e moral ao filho.
O conceito de abandono envolve a falta de assistência moral e material tanto por
parte dos progenitores do menor como dos demais parentes que integram a denominada
«família parental».
O abandono concretiza-se quando todos os deveres que englobam o conceito de
autoridade paternal deixam de ser, ou nunca foram exercidos, pelo respetivo titular,
evidenciando um corte no relacionamento familiar. Pelas consequências legais de tal
comportamento, que vêm expressas tanto no instituto da adoção como no da tutela, o
abandono tem que ser declarado por decisão judicial.
Ele é diferente do conceito de negligência que envolve um comportamento
insuficiente, nocivo ou errado do progenitor em relação aos seus deveres para com o
filho.
A situação de abandono ocorre por omissão dos responsáveis no exercício da
autoridade paternal em assumirem os seus deveres paternais em relação ao menor,
omissão que se verifica também por parte dos demais parentes.í6)
Não se pode considerar como verificada a situação de abandono se ela derivar de
circunstâncias de força maior, como a situação de guerra que se viveu no País. O
abandono tem que resultar de conduta voluntária dolosa ou meramente negligente, por
parte daqueles a quem a lei incumbe dos deveres de guarda,
(6) Paola Accuosto L’ adozine — Na legislação italiana esse dever vai até aos
parentes no 4.° grau, p. 395 — Diritto de Famiglia. IPSOA, 1996.
vigilância e assistência ao menor, e que são os pais e outros familiares próximos
do menor. Os casos de força maior impeditivos do exercício da autoridade paternal têm
que se revestir de natureza temporária e devidamente sanados quando as condições de
vida regressem à normalidade.
O abandono há de resultar objetivamente de não haver quem preste ao menor o
tratamento previsto na lei.
O abandono é uma situação de facto cuja verificação tem que ser declarada pelo
tribunal de acordo com o caso concreto sob apreciação.
Declarado o menor em situação de abandono, a lei prescinde do consentimento
por parte quer dos progenitores quer de outros parentes do menor — art. 200.°, n.° 1,
alínea b) do Código de Família.
Quando o menor está em situação de abandono, a lei prevê que sobre ele seja
instituída a tutela. Se não for possível a nomeação de tutor, como adiante veremos, o
menor será declarado abandonado e deverá ser entregue a um estabelecimento de
assistência.
2. Do menor filho de pais desconhecidos
Se ambos os pais forem desconhecidos por não estar estabelecida a filiação,
também não há que obter o consentimento à adoção.
a) Adoção por consentimento dos pais
A lei permite que se proceda à adoção de menor cujos pais deem o seu
consentimento à adoção. O consentimento tem que ser dado pelo progenitor de forma
pessoal e direta, com consciência e vontade livre de coação e esclarecida — art. 201.°
do Código de Família.
O consentimento pode ser prestado pelo progenitor perante o tribunal ou por
meio de documento autêntico em que se identifique a pessoa do adotante, como
prescreve o art. 213.° do citado Código.
O consentimento do progenitor é condição sine cjua non da viabilidade do pedido
de adoção e o tribunal não pode prescindir dele.
É que o consentimento significa a renúncia à situação legal relativa ao estado
civil de pai ou de mãe, pelo que tal declaração de vontade tem que ser recebida com as
devidas garantias pelo tribunal.
O consentimento dos pais não pode ser, pois, dispensado nem suprido pelo
tribunal. b) Consentimento do menor
A lei exige que o menor que tenha completado 10 anos de idade, mesmo que tal
ocorra depois de ter sido proposta a ação, preste o seu consentimento à adoção — art.
203.° do Código de Família. Este consentimento é igualmente imprescindível à validade
do ato e deve ser prestado pessoalmente pelo menor, depois de devidamente elucidado
pelo tribunal do alcance do ato jurídico da adoção e suas consequências na sua vida
familiar.
c) Consentimento por outros parentes
Se faltarem ambos os pais, por falecimento, ausência ou incapacidade, prevê o
art. 214.° do Código de Família que o consentimento à adoção seja dado perante o
tribunal por outros parentes do menor, indicando, por ordem de preferência, os avós, os
irmãos maiores e os tios.
Em igualdade de circunstâncias, indica a lei que terá preferência o parente que
tiver o menor a seu cargo. Se estiver instituída a tutela deverá ser o tutor a prestar o
consentimento. No caso do menor estar a cargo de pessoa que não seja parente,
entendemos que embora a lei não o preveja expressamente, deverá ela ser igualmente
ouvida.
Nestes casos poderá, porém, o Juiz prescindir da prestação de consentimento dos
parentes do menor quando se verifique a previsão estabelecida no n.° 2 do art. 214.°.
a) quando o considerar conveniente para o menor;
b) quando se verifique grande dificuldade na sua obtenção.
No primeiro caso, o Juiz deve decidir segundo o seu prudente arbítrio,
justificando devidamente os fundamentos de facto que o levam a prescindir do
consentimento dos parentes do menor a adotar.
No segundo caso, a decisão tomada deve igualmente estar radicada nas
circunstâncias concretas que impossibilitem o chamamento a juízo dos parentes do
menor, seja por se desconhecer o seu paradeiro, seja por se encontrarem fora do país,
etc. Quando tal ocorrer, incumbe ao tribunal explicitar por que razão foi dispensado o
consentimento dos parentes do menor.
[118] Autorização da adoção internacional
O Código de Família veio acrescentar um importante condicionalismo legal à
adoção, impondo a intervenção do órgão político máximo, a Assembleia do
Povo, hoje Assembleia Nacional, no processo de adoção quando o adotante seja
cidadão estrangeiro.
O art. 204.° impõe que exista prévia autorização da Assembleia do Povo antes
da constituição do vínculo de adoção de um menor de nacionalidade angolana por parte
de um cidadão de outro país.
Esta norma tem uma dupla finalidade.
Em primeiro lugar, procura proteger o menor que por via da adoção, pode vir a
perder a sua nacionalidade de origem, por passar a ter a nacionalidade do adotante.
A Lei n.° 1/05 de 1 de julho (Lei da Nacionalidade) no seu art. 15.°, n.° 1, alínea
d), prevê a perda da nacionalidade angolana, estabelecendo: «os adotados por cidadãos
estrangeiros se, ao atingirem a maioridade, manifestarem a pretensão de não ser
angolanos.»
O objetivo desta disposição legal era ainda o de proteger o menor na medida em
que constituiria um entrave ao tráfico internacional de crianças dos países menos
desenvolvidos para os países mais ricos através de processos menos escrupulosos.
Como se sabe, as taxas demográficas evidenciam que os países mais
desenvolvi¬dos apresentam um fraco (nulo ou mesmo negativo) crescimento da
população, havendo portanto menos crianças em condições de serem adotadas.
Estamos convitos de que em Angola a saída ilegal de menores (sem adequada
proteção familiar e social) para fora do País constitui uma ameaça maior do que a
possibilidade de eles virem a ser adotados por cidadãos estrangeiros, por via de um
procedimento legal.

Dado o acréscimo de responsabilidades atribuídas à Assembleia Nacional e o


facto de Angola ter aderido a importantes instrumentos internacionais, entendemos ser
injustificada esta imposição legal que tem vindo a redundar no retardamento do
processo de adoção.
No direito brasileiro, no ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) são
estabelecidas normas específicas para a adoção de criança brasileira por adotante
estrangeiro ou domiciliado fora do país, que envolvem a certificação de que está
habilitado à adoção e de que tem condições psicossociais para a efetuar.
Aliás, é de ter em conta que Angola por Resolução n.° 22/02 de 13 de agosto, da
Assembleia Nacional, aderiu ao Protocolo Facultativo à Convenção dos Direitos da
Criança relativo à Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis, que no seu
art. 3.° manda punir criminalmente «ii — a indução do consentimento de forma
indevida, como intermediário para a adoção duma criança (...)» e que impõe o seguinte:
«5 — Devendo os Estados Partes garantir que todas as pessoas
envolvidas na adoção duma criança atuam em conformidade com os
instrumentos jurídicos internacionais aplicáveis.»
Na definição de tráfico deve entender-se: «tratar-se uma criança como se um
objeto fosse, objeto para ganhar dinheiro, para obterfavores, viagens, presentes,
doações, status e não ver a criança e o seu bem-estar como o fim da adoção mas como
um meio para alguma vantagem individual, do grupo ou do país.»
Como a Convenção da Haia, relativa à Proteção e a Cooperação em Matéria de
Adoção Internacional, de maio de 1993, faz parte do direito interno angolano pela
Resolução n.° 54/12 da Assembleia Nacional, como referimos, e será necessário
proceder à adaptação das normas legais a esta importante Convenção Internacional.
Ela permite à criança nacional de um estado encontrar noutro estado estrangeiro
uma nova família em que se integre plenamente, tendo em conta o interesse superior da
criança e a defesa dos seus direitos fundamentais, obstando a que seja objeto de rapto,
venda ou tráfico ilícito.
Na fase preliminar do processo de adoção, terá que se averiguar que não há
possibilidade de colocação da criança no Estado de origem.
É indispensável que haja consentimento livre e devidamente aconselhado por
parte das pessoas que o devam prestar e que não houve pagamentos indevidos.
Deve ainda ser certificado que os pais adotivos estrangeiros estão nas condições
legais para proceder a adoção e que a criança adotada terá autorização para rescidir com
permanência nesse Estado.
O art. 4.° Impõe regras para a prestação do consentimento à adoção por parte das
pessoas e instituições que devem prestá-lo, bem como do consentimento da criança,
enfatizando na alínea d) a necessidade de que «o consentimento não tenha sido obtido
mediante pagamento ou compensação de qualquer espécie».
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, no seu art. 21.°
dispõe que a adoção deve ser «a) (...) autorizada pelas autoridades competentes (...) e
que as pessoas interessadas tenham dado, com conhecimento de causa, o seu
consentimento; d) (...) garantir que em caso de adoção em outro país a colocação não
permita benefíciosfinanceiros indevidos a terceiros que nela intervenham.»
É fundamental em todo o tipo de consentimento à adoção, obviar que ele seja
prestado sob coação ou com contrapartidas financeiras para os intermediários,ou para
aquele que presta o consentimento.
[119] Tipos legais de adoção
Tomando como referência a forma simultânea ou individual como é operada a
adoção, a lei prevê dois tipos de adoção:
— adoção dupla
— adoção unipessoal
O primeiro tipo de adoção surge quando são dois os adotantes que, de forma
simultânea e concertada, vão adotar o mesmo menor.
A adoção dupla exige, como já atrás referimos, que os adotantes estejam no
estado civil de casados e que não estejam separados de facto, ou que vivam em união
de facto e que esta reuna os pressupostos legais de reconhecimento.
Neste tipo de adoção, exige a lei que o pedido de adoção seja feito em conjunto
e que os dois adotantes preencham; cada um deles, os requisitos subjetivos que são
impostos no art. 199.° do Código de Família.
A adoção unipessoal é efetuado por um único adotante, mas pode configurar duas
situações inteiramente distintas.
No primeiro caso a adoção unipessoal é efetuada por um só cônjuge ou um só
companheiro da união de facto e terá que incidir obrigatoriamente sobre menor que seja
filho do outro cônjuge ou companheiro da união de facto.
Neste sub-tipo da adoção unipessoal, a lei só exige que o adotante reuna os
requisitos das alíneas a), b) e d) do n.° 1 do art. 199.°, prescindindo das alíneas c) e e)
que se referem à capacidade económica e à diferença de idade entre adotante e adotado,
como adianta o n.° 2 desse artigo. Manteve-se tão só a exigência da idade mínima de
25 anos e da capacidade civil, as condições de idoneidade moral e saúde mental e física.
Este tipo de adoção procura harmonizar a situação do agregado familiar,
colocando no lugar do progenitor natural ausente, o cônjuge ou companheiro do
progenitor com quem o menor coabite.
No outro sub-tipo de adoção unipessoal, o adotante é uma pessoa só que esteja
na condição de não casada, segundo o modelo da família monoparental e pode incidir
sobre qualquer menor que esteja em condições legais de ser adotado.

[120] Efeitos legais da adoção.


Como inicialmente mencionámos, a constituição da adoção assimila o menor
adotado ao filho natural e biológico e dela decorre a plenitude de efeitos da própria
filiação natural. O art. 198.°, n.° 1 do Código de Família estatui claramente que os
direitos e deveres recíprocos entre adotante e adotado são os mesmos que existem
entre pais e filhos.
Por via da constituição do vínculo de adoção é estabelecida entre adotante e
adotado uma situação inteiramente similar à que une um progenitor ao seu filho natural,
sem qualquer tipo de discriminação em relação ao filho natural.
O adotado passa a estar integrado na família do adotante na qualidade de filho e
são cortados os laços de filiação e parentesco com a família natural.
De sublinhar, como vimos, que à luz do Código de Família os efeitos são sempre
plenos em relação quer ao adotante quer ao adotado, só variando, no caso da adoção do
filho do cônjuge ou do companheiro de união de facto. Em que são preservados os
direitos do outro progenitor que não for substituído.
Consequentemente, podem-se estabelecer os seguintes efeitos da adoção: a) Em
relação ao adotante
No caso da adoção dupla, os adotantes exercem a autoridade paternal de pleno,
como se fossem os pais naturais.
Quando se tratar de adoção unipessoal de filho do cônjuge ou do companheiro
de união de facto, a autoridade paternal é exercida em conjunto com este.
Quando se trate de adoção unipessoal feita por pessoa não casada, a autoridade
paternal será exercida em exclusivo pelo adotante. É o que dispõe o art. 207.°, n.° 1 do
Código de Família.
Os adotantes têm o direito de transmitir o seu apelido ao adotado e, embora a lei
o não diga expressamente, o direito de escolher o nome próprio do adotado, caso o
tribunal tal venha a autorizar, se considerar que é do interesse do menor.
Existe obrigação de alimentos por parte dos adotantes, como estabelece o art.
249.°, n.° 1 do Código de Família. Sob o ponto de vista do direito sucessório, o adotante
é sucessível do adotado como seu ascendente.
Os vínculos do parentesco e afinidade por adoção constituem impedimento
matrimonial tal como o de filiação natural.
O vínculo da adoção é extensivo à família do adotante, que integra o adotado
como seu novo membro, passando a ter com ele os mesmos laços de parentesco c
afinidade que teria com um filho natural do adotante — art. 198.°, n.°2.
b) Em relação ao adotado
Os direitos e deveres paterno-filiais são de natureza recíproca: o que se disse
quanto aos efeitos que se produzem ao relação aos adotantes, aplica-se, em sentido
inverso, ao adotado.
Este é assimilado ao filho natural, usufruindo dos mesmos direitos e deveres, e
tem obrigação de alimentos em relação ao adotante como os demais descendentes —
art. 249.°, n.° 2, alínea b). Por outro lado, passa a ser herdeiro sucessível do adotante e
demais parentes deste, na classe dos descendentes.
Por sua vez, os descendentes do adotado passam a estar integrados na família do
adotante, como estabelece o art. 198.° n.° 2 do Código de Família.
O adotado passa a usar, por direito próprio, o apelido do adotante ou adotantes,
consoante se trata de adoção unipessoal ou de adoção dupla (art. 208.° do Código de
Família).
Da constituição do vínculo da adoção pode ainda derivar o facto constante do
art. 209.° do Código de Família, que prevê seja lavrado um novo assento de nascimento
do adotado, permitindo que esse novo assento substitua o anterior por completo,
passando o adotante ou adotantes a figurar como pai ou mãe do adotado.
É desta forma tornado oculto o anterior registo referente à filiação biológica do
adotado.
O tribunal deve ter em conta as circunstâncias específicas do caso concreto e, se
entender ser assim mais benéfico para o menor e desde que os interessados o venham
pedir, pode autorizar a substituição do assento de nascimento.
Se tal acontecer, o registo anterior passará a ser considerado secreto para os
efeitos da lei. Isto significa que dele não poderá ser dado conhecimento público, tal
como acontece com os demais atos do registo civil, sem autorização expressa da
autoridade pública que superintende no registo ou por ordem judicial.
A violação deste dever acarreta responsabilidade criminal e civil para o autor da
conduta ilícita. c) Direito do adotado à identidade
Tem sido discutido se é ou não de permitir ao adotado ter conhecimento da sua
situação de filho adotivo, tendo predominado a posição dos que defendem que será
melhor para o menor, desconhecer que não é filho natural do adotante ou adotantes.
A questão só se põe se o menor for adotado pouco depois do seu nascimento ou
ainda de tenra idade, de forma a que não possa manter a recordação dos seus
progenitores ou parentes naturais.
Receia-se que o conhecimento do facto da falta do vínculo de sangue, possa criar
ao adotado problemas de identidade e prejudicar o seu relacionamento afetivo com os
seus pais adotivos, procurando deste modo protegê-los contra essas eventualidades.
Mas em certos sistemas jurídicos procede-se diferentemente e permite-se ao
adotado, depois de atingir a maioridade, o acesso pleno ao seu registo civil e a ter
conhecimento de todos os factos deste constantes. Hoje surge a posição de que o direito
ao conhecimento da própria origem e identidade deve prevalecer.
Aliás, é garantido à criança, no art. 8.° da Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos da Criança, «o direito a preservar a sua identidade, incluindo a
nacionalidade, o nome e as relaçõesfamiliares».
O direito à identidade é atualmente considerado como um direito fundamental da
pessoa humana. Operada a adoção, embora se extingam os vínculos legais com a família
natural, o adotado, se o desejar, deverá ter acesso a esses elementos identificadores da
sua pessoa e origem familiar e nacional.
d) Em relação à família natural
Em relação à família natural, a adoção vai produzir a extinção do vínculo.
O art. 206.° do Código de Família menciona que adoção dupla faz extinguir os
laços de parentesco entre o adotado e os seus parentes naturais. Os efeitos da extinção
do vínculo que liga o adotado à família natural também se produzem na adoção
unipessoal, mas essa extinção só se verifica em relação ao progenitor que for substituído
e respetiva família natural — art. 207.°, n.° 1 do Código de Família.
O n.° 2 deste art. 207.° teve o cuidado de ressalvar que se mantêm as relações de
parentesco entre o adotado e o pai ou mãe natural que não for substituído pelo adotante.
O único efeito que se mantém relativamente à família natural é o de o
paren¬tesco continuar a constituir impedimento matrimonial.
Outro importante efeito decorrente da adoção é o de impedir que o progenitor
natural possa vir venha a fazer declaração de filiação em relação ao adotado.
Uma vez constituído o vínculo de filiação adotiva entre adotante e adotado, filho
de pai ou pais desconhecidos, estes não podem depois vir reivindicar os seus direitos
paternais, estabelecendo por meio de declaração a paternidade ou a maternidade — art.
202.°.
Embora a lei não o diga expressamente, e por maioria de razão, não é permitida
a propositura da ação para o estabelecimento judicial da filiação.
O processo de adoção segue as formalidades e a tramitação descritas nos art.
212.° e ss. do Código de Família que, nesta parte, veio completar o disposto nos art.
84.° e ss. do Decreto n.° 417/71. Visa-se acautelar a observância da lei, para assim
proteger os importantes interesses familiares que estão em jogo.
O art. 212.° mantém, nos seus n.°s 1,2, e 3, o que já constava do art. 84.° e ss. do
Decreto n.° 417/71, pois o processo a usar é o de jurisdição voluntária, na medida em
que ao juiz são dados poderes para orientar o processo no sentido da obtenção de toda
a verdade material.
Consoante os casos, o processo da adoção tem de ser proposto simultaneamente
pelos dois adotantes, no caso de adoção dupla, ou por um só adotante, no caso da adoção
unipessoal.
No caso da adoção dupla estamos perante um caso de litisconsórcio necessário
ativo em que a legitimidade para a ação tem que ser assegurada pela intervenção
conjunta de ambos os adotantes — art. 28.°, n.° 1 do Código do Processo Civil.
O inquérito judicial é um elemento indispensável à decisão a proferir pelo juiz,
tanto mais que a lei não prevê que haja um período de experiência de vivência anterior.
O inquérito deve incidir sobre:
— os pressupostos de facto que integram os requisitos previstos nas alíneas b),
c) e d) do art. 199.° do Código de Família e que dizem respeito aos adotantes;
— os pressupostos de facto relativos à situação pessoal e familiar do adotado,
incluindo, se possível, informação sobre o seu estado de saúde, desenvolvimento físico
e psíquico, eventuais inabilitações, caraterísticas familiares quanto à identidade e
número de irmãos, terra de origem, integração religiosa, etc..
No entanto, a sentença que for proferida é de natureza contenciosa e não graciosa,
pois é constitutiva de um novo direito e só poderá ser alterada nos casos específicos
previstos na lei.
Duas importantes alterações contém o art. 212.°. Uma é a do n.° 4, que manda
que a sentença descreva pormenorizadamente os factos e circunstâncias em que se
fundamenta e que especifique os motivos que determinam a constituição da adoção.
Deve ter-se em atenção o n.° 5 deste art. 212.°, que torna obrigatório que, no caso
de adoção de menor abandonado, a sentença declare verificada a situação de abandono.
A declaração dc abandono torna dispensável o consentimento dos pais ou outros
parentes do menor, mas, pelas consequências que daí advêm na decisão, há que precisar
com maior rigor, sob pena de nulidade, que o menor se encontra abandonado.
Em muitos sistemas jurídicos existe um procedimento prévio à adoção, que se
destina precisamente à obtenção da declaração judicial do abandono, em que são
chamados a intervir os progenitores e parentes do menor, se forem conhecidos e se for
conhecido o seu paradeiro.
O Código de Família optou por uma solução mais simplificada, permitindo que
a questão do abandono do menor seja suscitada na própria ação da adoção, devendo o
juiz da causa averiguá-la cuidadosamente. Só havendo tal declaração nos próprios
autos, o tribunal pode prescindir do consentimento.
Quando o menor não for declarado abandonado, o processo terá que prosseguir
com a intervenção dos progenitores, e, na falta destes, dos demais parentes, para virem
aos autos prestar, ou não, o seu consentimento.
O consentimento, como referimos, deve ser prestado pessoalmente perante o
tribunal ou por meio de documento autêntico em que se identifique a pessoa do adotante
(art. 213.° do Código de Família), só sendo permitido o consentimento prestado por
meio de documento, no caso do interessado não residir na área jurisdição do tribunal
para aí prestar o consentimento.
Terá que ser uma declaração de vontade livre e consciente prestada por quem
tenha legitimidade para tal, e que deverá ser emitida depois de o declarante ter sido
devidamente esclarecido pelo Juiz dos efeitos legais da sua declaração.
O Conselho de Família poderá ser chamado a intervir, de forma facultativa,
quando o tribunal considere tal conveniente, tendo em vista a salvaguarda do interesse
do menor — art. 215.° do Código de Família.
Transitada em julgado a sentença constitutiva da adoção, ela está
obrigatoriamente sujeita a registo, pois envolve a alteração do estado familiar do
adotante e do adotado — art. l.°, alínea c) do Código do Registo Civil.

[122] Revisão da sentença de adoção.


Como já vimos, uma vez constituída a adoção, ela não pode ser revogada por
vontade das partes, ou seja: por mero acordo entre adotante e adotado não pode ser
anulado o vínculo de filiação adotiva.
Não obstante, a lei permite que, por duas vias, possa vir a ser declarado sem
efeito esse vínculo: ou pela revisão da sentença da adoção, nos casos em que o vício
tenha ocorrido no próprio ato de constituição de adoção, ou pela sua revogação,
quando factos posteriores justifiquem, pela sua gravidade, que o vínculo, válido
na sua constituição, deve deixar de subsistir.
Tanto a revisão como a revogação da adoção têm que ser operadas por meio de
sentença judicial, proferida em processo próprio. Têm legitimidade para propor a ação
de revisão de sentença de adoção o adotante, no caso de haver erro essencial quanto à
pessoa do adotado, bem como quando aquele que devia ter prestado o consentimento o
não prestou, ou tenha sido coagido a prestá-lo.
A revisão de sentença de adoção é, pois, permitida em razão de factos que
invalidem a vontade expressa para a constituição do vínculo por parte do adotante, em
razão de erro essencial em relação à pessoa do adotado viciando a declaração prestada
pelo adotante de que pretendia proceder à adoção de determinado menor. O erro
considera-se essencial quando recaia sobre as qualidades de natureza física, psíquica e
moral do menor que sejam consideradas fundamentais; por outro lado, é preciso que o
erro seja também desculpável por parte do adotante, como estabelece o art. 216.° do
Código de Família.
É também de admitir que possa haver revisão de sentença de adoção no caso de
simulação, ou seja quando o vínculo tenha sido constituído para um fim diferente do
previsto na lei, que é o de criar entre adotante e adotado um verdadeiro vínculo de
filiação.
Quando a lei exige o consentimento, seja por parte dos pais, seja por parte de
outros parentes ou do próprio adotado, a sua falta ou a prestação de consentimento com
o vício de vontade resultante da coação podem levar à revisão de sentença, tendo
legitimidade para a ação a pessoa cujo consentimento faltou ou cuja vontade foi viciada
ou, no caso de incapacidade, o respetivo representante legal.
O prazo para a ação de revisão de sentença é de um ano, nos termos do art. 217.°
do Código de Família, o qual se conta a partir da data de cessação do vício da vontade
por erro ou coação ou da data do conhecimento da adoção no caso da falta de
consentimento, como prevê o n.°1, ou quando houver falta de consentimento do menor,
até um ano após ter este atingido a maioridade, como dispõe o n.° 2.0 tribunal deve
sempre ponderar os interesses do menor e avaliar se é ou não aconselhável que se
proceda à revisão da sentença que declarou a adoção, mesmo que se verifique o
fundamento legal para o pedido de revisão.
O n.° 3 do art. 217.° dá um poder amplo de decisão ao Juiz da causa para optar
ou não pela dissolução do vínculo, devendo sempre justificar a decisão tomada, de
acordo com os superiores interesses do menor que estejam em jogo.
Anulada a adoção, a sentença produz efeitos retroativos, ou seja ex tunc,
anulando-se todos os efeitos que ela tenha produzido anteriormente.

[123] Revogação da sentença de adoção


A revogação da sentença de adoção pode ser operada quando se verifique
qualquer dos pressupostos de facto que vêm expressos no art. 218.° do Código de
Família e que se reportam a factos supervenientes à constituição do vínculo.
É de notar que, tal como ocorre quanto à revisão, a revogação não é imposta
como resultado obrigatório, pois o corpo do art. 218.° menciona que ela pode resultar
dos factos que menciona.
Os factos que permitem a revogação da adoção são os seguintes:
a) o abandono voluntário do menor, ou a submissão deste, por parte do adotante
ou adotantes, a um tratamento incompatível com a situação de filho;
b) atentado contra a vida ou grave atentado contra a honra, quer por pane do
adotante quer por parte do adotado;
c) absoluta incompatibilidade entre adotante e adotado, após este ter atingido a
maioridade.
A alínea a) do art. 218.°, ao mencionar o abandono do menor, tem o mesmo
alcance jurídico do art. 200.°, n.° 2, que se refere ao abandono do menor por parte dos
progenitores naturais.
A última parte da alínea a) foi acrescentada após a consulta popular a que se
procedeu antes de aprovação do Código de Família, e refere-se ao facto de o adotado
não ser objeto, por parte do adotante, de um tratamento compatível, nos seus diversos
aspetos, com aquele que deve ser prestado a um filho.
Pretendeu-se deste modo obviar a situações em que o menor adotado possa vir a
ser usado como mão-de-obra não remunerada, sobretudo em trabalhos domésticos ou
outros.
Tal disposição poderá ainda ser aplicada quando o adotante estabelecer com o
adotado um relacionamento sexual incompatível com as relações paterno-filiais.
A alínea b) prevê casos de extrema gravidade, como o de atentado contra a vida
ou grave atentado contra a honra, quer por parte do adotante quer por parte do adotado.
A alínea c) refere-se ao caso de surgir entre adotante e adotado
incompatibili¬dade irredutível de tal forma profunda e irremediável que deixe de ter
razão de ser a manutenção do vínculo da adoção. A lei exige que tal aconteça depois de
o adotado ter atingido a maioridade.
Têm legitimidade para pedir ao tribunal a revogação da sentença de adoção o
adotante ou o adotado (por si ou, sendo menor, por intermédio do seu representante
legal, do Ministério Público ou de qualquer herdeiro legitimário), quando sc verifique
atentado contra a vida ou grave atentado contra a honra do adotante ou do adotado.
Como já se apontou para o caso de revisão de sentença, a revogação pode operar-
se quando o tribunal o julgue conveniente, de acordo com as circunstâncias específicas
do caso e tendo em conta o interesse das partes.
A revogação da sentença de adoção só produz efeitos ex nunc, ou seja, a partir
do respetivo trânsito em julgado permanecendo válidos os efeitos anteriormente
produzidos.
Uma vez decretada a revisão ou a revogação da adoção, o art. 219.° do Código
de Família prevê que sejam tomadas medidas de proteção ao adotado menor.
Deverão ser ouvidos os progenitores naturais sobre o restabelecimento do
vínculo da filiação natural, nos termos da alínea a) deste art. 219.°.
Quando não for possível tal restabelecimento, deverá o tribunal enviar certidão
da sentença ao representante do Ministério Público junto do tribunal competente para a
instituição da tutela do menor — alínea b) do mesmo artigo.
Sem embargo destas medidas, o tribunal deverá sempre decidir provisoriamente
sobre a guarda e destino do menor, enquanto não houver quem assuma o exercício da
autoridade paternal.

[124] Normas de conflitos.


O Código Civil no seu art. 60.° manda em regra, aplicar à constituição da filiação
adotiva a lei pessoal do adotante.
No entanto tendo em vista a proteção dos direitos da criança, será a lei nacional
do adotado aplicável às condições legais para a constituição do vínculo de adoção por
parte do adotado. Será a lex fori aplicável ao processo de adoção que é, em regra, o do
domicílio do adotado no caso da adoção internacional.
São normas de ordem pública de cumprimento obrigatório.
Neste caso, em regra a sentença de adoção deve ser revista no país do adotante,
para aí produzir os efeitos legais.

CAPÍTULO 19/
A TUTELA

[125] Evolução do instituto da tutela e seu conteúdo.


A tutela é uma instituição de guarda que vem do direito romano. A tutela incide
sobre menores e outros incapazes, dando proteção à sua pessoa e aos seus bens. Por
direito natural é atribuída ao pai e à mãe a autoridade paternal para suprir a incapacidade
dos filhos menores. Mas circunstâncias há em que nenhum dos progenitores está em
condições de exercer essa autoridade. Daí que, através dos tempos, se tenha recorrido
ao instituto da tutela.
No direito feudal era o senhor da terra que exercia o poder de tutela sobre os
menores nascidos dos seus vassalos.
No século XIX, com o advento da burguesia, a tutela aparece como um meio
indispensável à conservação dos bens dentro da família, impedindo que, com a
alienação dos bens imobiliários, fosse enfraquecido o poder económico da família.
Então o conselho de família era chamado a intervir para salvaguardar os interesses
económicos das respetivas linhagens.
A partir daí e na mesma senda da proteção do interesse do menor, detentor de
património integrado na família, são criados institutos como 0 da administração legal
de bens sob controlo judiciário e o da curatela.
Este instituto visava em primeiro lugar a preservação do património familiar e
tinha uma finalidade em que predominava o interesse privado.
A curatela era um instituto que se aplicava quando era a mulher a detentora dos
bens, ou se tratava de menor púbere ou interdito por prodigalidade. Era também o caso
da mãe viúva e da mãe do filho nascido fora do casamento, que não tinham a
administração legal dos bens dos filhos, sem serem coadjuvadaspor um órgão de
controlo.
O Código Civil previa o instituto da administração de bens nos seus artigos
1967.° e seguintes, decalcado no instituto da tutela, atribuindo ao administrador dos
bens os mesmos direitos e deveres do tutor.
O direito tutelar é, em termos gerais, um direito de incapacidade.
Em alguns sistemas jurídicos o instituto da tutela, tal como o da curatela, é
alargado para situações em que um dos pais poderia exercer a autoridade paternal,
fazendo intervir o conselho de família e o tribunal no acompanhamento do
exercício dessa autoridade.
O Código de Família arredou por completo o instituto da tutela sempre que um
dos progenitores esteja em condições de exercer a autoridade paternal. Na verdade, ao
estudarmos este instituto, vimos que, em conformidade com o art. 147.° do Código de
Família, em caso de morte, ausência, incapacidade, ou impossibilidade de um dos pais,
cabe ao outro progenitor o exercício único da autoridade paternal.

O Código de Família, ao regular o direito tutelar — que, repetimos, é um direito


de incapacidade —, refere-se não só à tutela do menor mas também à do maior interdito
— art. 220.°, alíneas a) e b).
Restringiremos, porém, o nosso estudo à tutela do menor no âmbito das relações
familiares.
A tutela do menor surge quando falta o progenitor que exerça a autoridade
paternal, seja pela morte, seja por não estar estabelecida a paternidade e a materni¬dade
do menor, seja porque os progenitores estão ausentes ou impossibilitados de facto de a
exercer.
Ao mencionar a finalidade legal do instituto da tutela, o art. 221.° do Código de
Família sobre a epígrafe Fins da Tutela, dispõe: «A tutela visa o suprimento da
autoridade paternal e a guarda, educação, desenvolvimento e proteção de interesses
pessoais e patrimoniais dos menores.»
A designação do tutor vai suprir a falta do representante natural do menor, o
progenitor, encarregando alguém de exercer essas funções. O termo tutela deriva da
palavra latina tueri, que significa «defender» e «proteger». O menor tutelado, em
algumas legislações, é designado como pupilo.
[126] A tutela e o direito público
O instituto da tutela inserto no Direito de Família é, na sua essência, um instituto
de direito público. A proteção dos menores é uma função do próprio Estado, que vem
expressamente consignada na Constituição.
O art. 35.° (Família, casamento e filiação ), n.° 6, consigna: «A proteção dos
direitos da criança, nomeadamente a sua educação integral e harmoniosa, a proteção da
sua saúde, condições de vida e ensino constituem absoluta prioridade da família, do
Estado e da sociedade.»
Acrescendo a esta diretriz constitucional, o art. 80.° (Infância), n.° 1 dispõe: «A
criança tem direito à atenção especial da família, da sociedade e do Estado, os quais em
estreita colaboração, devem assegurar a sua ampla proteção contra todas as formas de
abandono, discriminação, opressão, exploração e exercício abusivo de autoridade na
família e nas demais instituições.»
Daí que, para a proteção do menor desamparado, o Estado tem o dever de intervir
na constituição da tutela e durante todo o percurso do seu funcionamento e até à sua
conclusão. O tutor exerce um verdadeiro cargo público sob vigilância de um órgão de
soberania (o tribunal) e de um órgão de natureza familiar (o Conselho de Família).
Está subjacente à tutela o princípio de que cuidar, criar e educar um menor é um
munus eminentemente social que incumbe ao Estado supervisionar ou exercer, por
intermédio do tutor ou pelos seus órgãos de assistência e de educação, no caso de falta
dos pais ou de quem exerça o cargo de tutor.
Hoje o princípio constitucional que obriga o Estado a guardar e proteger toda a
criança exige que, em consequência, sejam criados e postos em funcionamento os
órgãos que tal assegurem, e que são, em primeiro lugar, os tribunais e, quando
necessário, os órgãos de

assistência que substituam os pais ou tutores. No entanto, o tutor deve ser


escolhido, de preferência, no seio da família do menor, e agir sob fiscalização do Estado.
É a solução de longe preferível, porque não vai retirar ao menor o direito a ter
uma família. A maior ou menor intervenção do Estado nas instituições de tutela dos
menores depende, assim, da própria conceção política adotada, mas neste instituto
predominam as normas imperativas do direito público, pois a proteção e defesa do
menor incapaz e carecido de alguém que supra o exercício normal da autoridade
paternal sobrelevam os demais interesses em jogo.
O art. 236.° do Código de Família dispõe no seu n.° 1 que «A tutela deve ser
exercida no interesse do tutelado e da sociedade.» A finalidade legal do instituto da
tutela é, pois, a defesa dos interesses do menor e do meio social em que ele se insere.
Consoante os sistemas jurídicos, o instituto da tutela aproxima-se mais de um
instituto de natureza privada, em que o tribunal se limita a exercer a vontade dos
parentes ou familiares ou de um instituto de natureza pública, em que prevalece a
autoridade do tribunal. Este intervém nas diversas fases da tutela, designando a pessoa
do tutor, prosseguindo no acompanhamento da tutela, na remoção do tutor e na extinção
da tutela.
Esta foi a orientação prevalecente no Código de Família, que atribui ao tribunal
toda a relevância no instituto da tutela.

[127] Classificação da tutela quanto à forma de escolha do tutor.


A doutrina costuma classificar a tutela, quanto à forma de designação do tutor,
em três categorias:
a) tutela testamentária;
b) tutela legítima;
c) tutela dativa.
A tutela testamentária é aquela que é instituída por testamento ou outro
documento autêntico ou autenticado, lavrado como ato de última vontade pelo pai ou
pela máe do menor, no qual é designado um futuro tutor para quando sobrevier a sua
morte ou incapacidade. Como documento emanado da vontade unilateral do seu autor,
ele pode ser revogado e alterado sucessivamente.
Em princípio, será o último progenitor sobrevivo do menor que poderá fazer tal
declaração, ou pelo menos ela só produzirá efeito depois da morte ou incapacidade de
ambos os progenitores.
Aliás, a designação do tutor estava intrinsecamente ligada ao direito sucessório
e às disposições post-mortem.
A tutela legítima é aquela que deriva da própria lei, ou seja, do vínculo de
parentesco ou de afinidade entre o tutor e o tutelado. Em regra, a tutela legítima é
deferida segundo uma determinada ordem, conforme a proximidade do grau de
parentesco, vindo em primeiro lugar os avós, paternos e maternos, sem distinção, depois
os irmãos mais velhos, os tios e outros parentes, etc.
A tutela dativa é aquela que é atribuída por decisão do tribunal, de acordo com
as circunstâncias de cada caso que for levado à sua apreciação.
Foi este o critério seguido pelo Código de Família, que atribui ao tribunal
competência para a nomeação do tutor — art. 224.°, n.° 1: « Compete ao Tribunal a
nomeação do tutor».
O n.° 2 deste art. 224.° permite que: «Os pais podem indicar tutor ao filho menor
ou incapaz para o caso de virem a falecer ou de se tomarem incapazes, estando a
indicação sujeita à homologação do Tribunal», como aliás acontece sempre que está em
jogo a apreciação do superior interesse do menor.

[128] Tutela obrigatória e ação pública de tutela.


Como instituto de direito público, a tutela do menor é de natureza obrigatória
sempre que ocorra qualquer das circunstâncias de facto mencionadas no art. 222.° do
Código de Família.
Diz este art. 222.°: «Está obrigatoriamente sujeito à tutela o menor:
a) cujos pais sejam desconhecidos, estejam ausentes ou tenham falecido;
h) cujos pais estejam inibidos da autoridade paternal;
c) cujos pais estejam há mais de um ano sem exercer de facto a autoridade
paternal;
d) cuja adoção tenha sido revogada.»
Em qualquer destas circunstâncias o menor não tem quem exerça a autoridade
paternal, pelo que, para suprir essa falta, tem de ser obrigatoriamente instituída a tutela.
A instituição da tutela é um dever que incumbe ao Estado e que é efetivado
através dos seus órgãos judiciais. O tribunal competente é o tribunal da residência do
menor à data em que o processo é instaurado.
É o que consta do já citado art. 6.°, n.° 1 do Código de Processo do Julgado de
Menores aprovado pelo Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro relativamente à competência
para aplicação de medidas a menores.
Pela Lei n.° 18/88, que aprovou o Sistema Unificado de Justiça, a competência
para conhecer das ações que julguem todas as relações familiares está atribuída à Sala
de Família do Tribunal Provincial.
Para que seja instaurado o respetivo processo, sempre que se verifique qualquer
caso de tutela obrigatória, a lei impõe o dever de participar o facto ao representante do
Ministério Público por parte das pessoas e entidades mencionadas no n.° 2.
Segundo o disposto no art. 229.°, n.° 2 do Código de Família esse dever de
participação incumbe:
a) a qualquer parente ou afim do menor;
b) à pessoa que tenha o menor a seu cargo;
c) ao membro da organização social ou de massas ou trabalhador de organismo
estatal
que, em razão da sua atividade ou função tenha conhecimento da situação do
menor.
Quem tem a legitimidade para propor a ação é o Ministério Público, desde que,
por qualquer interessado ou participante, lhe seja dado conhecimento da situação do
menor, como imperativamente prescreve o art. 230.° do Código: «Sempre que, por
qualquer forma, tenha conhecimento de situações em que a tutela seja obrigatória, o
representante do Ministério Público promoverá a sua instituição.»
O Ministério Público tem nestas ações a mesma posição jurídica que tem quanto
ao dever de proceder na ação penal. É uma ação proposta em nome do interesse público
que se concretiza na defesa da criança desprotegida.
Por seu lado, uma vez instaurado o processo de tutela, como vem previsto no art.
231.° « 0 Tribunal tem o dever de promover oficiosamente o prosseguimento dos autos
(...)» com poderes de iniciativa processual que permitam que o processo prossiga os
seus termos legais, independentemente de intervenção do Ministério Público como
autor da ação.
É, pois, atribuído um verdadeiro poder de guarda do interesse do menor, que se
traduz no dever de impulsionar ex-ojficio o procedimento da ação tutelar. Como dispõe
o citado art. 231.° do Código de Família, o tribunal pode requisitar aos organismos
competentes os documentos necessários, pode convocar o Conselho de Família, pode
mandar proceder a inquérito social e a outras diligências que considere necessárias.
Estes latos poderes concedidos ao tribunal evidenciam claramente o caráter
público da tutela.
Reconheceu-se que, no quadro da legislação anterior, os processos de tutela se
arrastavam por falta de iniciativa dos terceiros interessados, tornando-se ineficazes e
deixando milhares de menores em situação de desproteção jurídica.
Aos tribunais são atribuídos poderes inquisitórios específicos, que lhes permitem
após a instituição da tutela, prosseguir com a ação intentada, e depois dela instituída
fazer, também o acompanhamento do seu exercício até que ela seja finda nos casos
previstos na lei.
Ao Ministério Público cabe representar os menores, de acordo com o art. 36.°,
alínea a) da Lei Orgânica da PGR (aprovada pela Lei n.° 22/12).
Esse dever vem hoje consagrado no art. 186° da Constituição alínea b) que dispõe
«exercer o patrocínio judiciário de incapazes, de menores e de ausentes».
A ação da tutela inscreve-se no quadro de uma ação pública em que a iniciativa
processual incumbe a um órgão do Estado, o representante da Procuradoria Geral da
República, e em que o interesse prosseguido com a ação é o da proteção do menor
tutelado.
A proteção jurídica do menor através da criação dos meios tutelares, é o fim de
todo o processo que visa uma intervenção mais eficaz dos órgãos do Estado em relação
aos menores que se encontrem em situação de orfandade ou de abandono familiar,
mercê de todas as circunstâncias adversas que foram vividas nas últimas décadas no
nosso País e que não estejam completamente sanadas.
Aliás, o Código do Processo do Julgado de Menores — Decreto n.° 6/03 de 28
de janeiro, veio estabelecer no seu art.0 40.° o acolhimento do menor em família
substituta o que de facto permite o exercício da tutela de menores pelo representante do
agregado familiar.

[129] Tutela constituída voluntariamente.


Como realidade na sociedade angolana surge a tutela de facto que tanto pode
resultar da perda, desconhecimento ou ausência dos progenitores, como de ato
voluntário da parte deles, que entregam o filho menor a um terceiro, normalmente
pessoa de família irmão/irmã mais velho, tio/tia ou pessoa considerada idónea,
(designada como padrinho/ madrinha) a qual passa a exercer de pleno a autoridade
paternal em relação ao menor.
Essa realidade geralmente tem como causa razões de ordem económica que
determinam tal entrega ou ainda a perspetiva de uma melhor condição de educação e
formação profissional nesse agregado familiar.
Podemos integrar esta realidade na previsão legal da alínea c) do art. 222.° que
prevê a instituição da tutela quando os «pais estejam, há mais de um ano, sem exercer
defacto a autoridade paternal».
Quando por esta situação de facto se pretende integrar e receber proteção
jurídica, temos o que podemos designar como «tutela facultativa» ou «tutela constituída
voluntariamente» pois o pedido de instauração do processo de tutela parte ou do próprio
progenitor ou da pessoa que tem o menor a seu cargo. No entanto a maior parte das
vezes, esta realidade é estabelecida à margem do direito e deparamos-nos com a tutela
de facto, de que adiante nos ocuparemos.
Em princípio a autoridade paternal não é renunciável nem pode ser objeto de
cessão, mas pode ser considerada como uma delegação de poderes que importa apreciar
sob o ponto de vista legal.
Convém distinguir entre a delegação temporária de poderes, ou seja a da pessoa
que tem o menor a seu cargo, e a constituição do que podemos designar como tutela
facultativa ou tutela voluntariamente constituída e que foi devidamente formalizada
judicialmente.
A primeira é feita de íbrma informal e tem caráter meramente transitório.
Já a segunda requer a intervenção do tribunal e não depende da simples vontade
do titular mas da apreciação que for feita pelo juiz.
No entanto uma vez instituída a tutela que na verdade passa a ser integrada no
regime da tutela obrigatória, ela fica subordinada às demais regra do instituto da tutela
e só poderá terminar nos termos legais que veremos adiante, constam do art. 243.° e por
decisão judicial.

[130] Escolha, requisitos e nomeação do tutor.


O sistema adotado pelo Código de Família é o da tutela dativa, pois é ao tribunal
que compete nomear o tutor — art. 224.°, n.° 1.
Os critérios a seguir para a escolha do tutor veem previstos no art. 233.°, que
permite que o tribunal nomeie o tutor de acordo com o seu prudente arbítrio e tendo em
conta o superior interesse do menor e da sociedade.
O tribunal, ao escolher o tutor, poderá ter em conta, como vimos, a vontade dos
pais, homologando-a (art. 224.°, n.° 2), ou «conforme as circunstâncias poderá optar
por um parente ou afim do menor, ou por pessoa que tenha o menor a seu cargo ou que
por ele revele particular afeição» — art. 233.°, n.° 2.
A pessoa do tutor tem que satisfazer os requisitos que a lei prevê no art. 226.° e
que, similarmente com o que acontece em relação ao adotante, devem assegurar que a
pessoa a designar seja idónea sob todos os pontos de vista: que seja um cidadão ou uma
cidadã com bom comportamento moral, profissional e social, capaz de educar o tutelado
e de defender os seus interesses.
Deverá ser maior de idade e estar no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos.
No Anteprojeto do Código Penal está prevista como pena acessória no art. 62.° no caso
de condenação em pena superior a 3 anos a proibição do exercício de função por período
de 2 a 5 anos que dependam de «homologação da autoridade pública ».
Assim pela futura lei penal como pela lei de família, não poderá ser nomeado
tutor quem tiver sido condenado na referida pena de prisão.
A situação económica do tutor deverá permitir-lhe prover ao sustento do tutelado
quando este não disponha de recursos próprios.
É ainda necessário que não existam, da parte do tutor, nem direta nem
indiretamente, interesses antagónicos aos do tutelado.
Os interesses antagónicos entre o tutelado e a pessoa indigitada para tutor podem
ser de diversa natureza e devem ser devidamente acautelados pelo tribunal que tiver de
fazer a nomeação. Assim, uma pessoa não deve ser escolhida como tutor quando essa
pessoa vá concorrer com o tutelado a uma herança indivisa, quando ela for litigiosa;
quando houver qualquer litígio entre essa pessoa, o seu cônjuge ou os seus parentes e o
tutelado, ou parentes próximos deste; quando
essa pessoa for devedor ou credor do menor ou de seus parentes próximos;
quando houver inimizade entre essa pessoa e os familiares do tutelado ou com o próprio
tutelado.
Consequentemente, o cargo de tutor não pode ser entregue a quem não tenha
plena capacidade para reger a sua pessoa e os seus bens nem a quem tenha qualquer
conflito de natureza judicial ou extra-judicial com o menor ou que o tenha tido com os
seus pais ou parentes mais próximos.
Sob o ponto de vista económico a situação é diferente da que se verifica com a
adoção, pois o tutor pode não ter o encargo de prover aos alimentos do tutelado, sempre
que este tenha bens que lhe permitam ser economicamente auto-suficiente.
A nomeação do tutor incumbe ao Juiz, observados os trâmites legais e as
circunstâncias do caso sub-iudice, como prescreve o citado art. 224.°.
Recomenda o art. 225.° do Código de Família que: «A tutela respeitante a dois
ou mais irmãos caberá sempre que possível a um só tutor», obstando à separação dos
irmãos e preservando a estrutura familiar.
«Para a nomeação do tutor o tribunal tem que ouvir obrigatoriamente o parecer
do Conselho de Família » (art. 232.° do Código de Família), dado que, em princípio,
deverá ser este órgão dimanado do próprio meio familiar, que melhor conhece a pessoa
dotada de idoneidade para o exercício do cargo.
A não audição do Conselho de Família constitui uma nulidade processual de
caráter absoluto e insanável. O Conselho de Família tem intervenção primordial no
processo de instauração e funcionamento da tutela.
De igual modo, o tribunal «deve ouvira opinião do próprio tutelado que tenha
completado 10 anos de idade» — art. 232.°. Mais uma vez a lei reconhece ao menor o
direito de ser ouvido em questão de tanta relevância na sua vida como seja a designação
da pessoa que irá exercer as funções de tutor.
Uma vez instituída a tutela, ela está obrigatoriamente sujeita a registo — art. l.°,
alínea i) do Código do Registo Civil.

[131] Natureza jurídica do cargo de tutor.


O cargo de tutor é um cargo de natureza pessoal, não transmissível a terceiros,
por contrato ou por morte.
É um cargo de natureza voluntária e não de natureza obrigatória, diferente¬mente
aliás do que acontece na quase totalidade dos demais sistemas jurídicos. Considera-se
que a tutela é um munus publicum que incumbe aos membros da família em razão dos
vínculos familiares.
O art. 227.° do Código de Família diz expressamente que: «A aceitação do cargo
de tutor é voluntária», pelo que os direitos e deveres que advêm do cargo não devem
ser atribuídos a alguém especificadamente.
O caráter voluntário da tutela vem consagrado na lei por se entender que ele é
mais benéfico para o menor: — é sem dúvida preferível que a pessoa que venha a ser
designada como tutor esteja disposta a aceitar espontaneamente o cargo, tendo em conta
a responsabilidade afetiva e patrimonial que dele advém.
O Código Civil que foi revogado, entendia o cargo de tutor de caráter obrigatório,
por se entender que ele constituía um dever dos membros da família, um dever familiar
inerente à qualidade de parente ou afim do menor.
Essa obrigatoriedade já não existiria em relação às pessoas que não fizessem
parte da família do menor.
As funções do tutor são em regra gratuitas, não recebendo o tutor qualquer
retribuição por exercer a administração dos bens do tutelado. Mas, em certas
circunstâncias, poderá ser fixada remuneração ao tutor — art. 228.°, n.° 1.
Como veremos adiante, o tribunal e o Conselho de Família podem atribuir ao
tutor, a título de retribuição da sua atividade de gestor dos bens do tutelado, uma certa
percentagem do rendimento destes bens. Tal poderá acontecer quando o volume de bens
herdados pelo tutelado vá exigir ao tutor uma especial dedicação de tempo e empenho
empresarial. O art. 228.°, n.° 2 prevê ainda: «O tutor tem direito a ser indemnizado pelas
despesas que justificadamente, tenha feito no exercício das suas funções».
O cargo de tutor é também, por natureza, provisório, pois destina-se a suprir a
falta de representante legal do menor.
A tutela extingue-se, pois, nos casos em que houver «A cessação das
circunstâncias que motivaram a instituição da tutela» e «quando o tutelado atingir a
maioridade» — art. 243.°, alíneas c) e b).

[132] Poderes do tutor.


As funções do tutor têm como objetivo o exercício da autoridade paternal sobre
o menor, o que engloba a representação pessoal do tutelado por parte do tutor e a
administração dos seus bens.
O exercício da autoridade paternal abrange, como vimos, os direitos e os deveres
descritos nos artigos. 130.° e 131.°, e no seu âmbito inserem-se os direitos e deveres
descritos nos artigos. 135.°, 136.° e 137.°, todos do Código de Família (ou seja, o dever
de guarda, de vigilância, de prestação de cuidados de saúde e educação).
1. Poderes de natureza pessoal
Em atos de natureza estritamente pessoal, o tutor intervém, tal como os pais
naturais, para autorizar o menor a praticar o ato. É o que acontece, por exemplo, no caso
do casamento (art. 24.°, n.° 3) ou no caso de declaração de filiação — art. 174.°, alínea
b). Mas, como já acentuámos, a vontade que tem de ser expressa é a do menor titular
do direito e não a do tutor.
Entende-se em geral que os poderes do tutor em relação à educação e formação
do tutelado não são tão amplos como os dos pais naturais, devendo o tutor respeitar as
opiniões que tiverem sido expressas por eles sobre o futuro profissional dos filhos,
crenças religiosas, etc.
Também aqui, e por maioria de razão, deve ser tido em conta o interesse do
tutelado, o que leva a ponderar sobre quais são as suas aptidões naturais, a atender ao
respeito da sua personalidade e vontade, tal como se exige aos próprios pais nas suas
relações com os filhos — art. 137.°, n.° 2.
O Código Civil previa a existência de um impedimento meramente impediente
no casamento entre o tutor e o incapaz (art. 1604.°, alínea c)), em virtude dos laços
familiares que se estabeleciam e da influência que o tutor podia ter sobre a
personalidade do pupilo. Este tipo de impedimentos não teve acolhimento no Código
de Família.
2. Poderes de natureza patrimonial
O exercício da tutela no aspeto patrimonial sofre mais restrições relativamente
aos poderes que a lei confere aos pais naturais e que vêm mencionados nos artigos 236.°
e seguintes do Código de Família.
Assim, o art. 237.° impõe ao tutor deveres de natureza patrimonial de que estão
isentos os pais naturais. No que toca à administração dos bens do tutelado.
« O tutor como administrador dos bens do tutelado, deverá:
— adminishar os bens do tutelado diligentemente, zelando pelo seu património
e prestando contas da sua administração;
— utilizar os rendimentos do tutelado apenas em beneficio deste;
—fazer o inventário dos bens do tutelado quando o tribunal que o nomeou o não
tiver Jeito.»
Verifica-se, como vimos, que a instituição da tutela está muitas vezes ligada ao
direito sucessório, e, por isso, quando é nomeado o tutor, já se procedeu ao inventário
dos bens do menor.
O tutor não tem o dever de prestar sustento ao menor quando este possuir bens
próprios. Mas tem o dever de administrar esses bens com a diligência de
um bonus pater familiae e de aplicar os rendimentos do tutelado em beneficio
exclusivo deste. Diferentemente dos pais naturais, o tutor não tem direito ao usufruto
dos bens do tutelado. Dentro desta linha de orientação, o tutor deve prestar contas da
sua administração.
Nas despesas comuns da administração podemos incluir as seguintes:
— despesas contraídas em beneficio dos alimentos do tutelado;
— despesas contraídas para a administração do património do tutelado.
O Código de Família não estabelece qual a periodicidade a que deve obedecer a
prestação de contas. Essa obrigação deverá ser cumprida quando o tribunal e o Conselho
de Família o julguem necessário e conveniente, tudo dependendo do volume dos valores
patrimoniais em jogo.
O tribunal pode fixar a periodicidade da obrigação de prestação de contas em
1,2,3, ou 5 anos, desde que o lapso de tempo que for determinado não seja prejudicial
aos interesses patrimoniais do tutelado.
O art. 242.° do Código de Família atribui ao tribunal o encargo de velar pela
prestação de contas do tutor.
As contas do tutor têm que ser aprovadas pelo tribunal, ouvido o parecer do
Ministério Público e em conferência em que esteja presente o Conselho de Família. As
contas podem vir a apresentar um saldo credor ou devedor, consoante o volume de
receitas ou a necessidade de efetuação de despesas. Esses saldos deverão vencer juros
fixados à taxa legal.
A lei impõe também ao tutor a obrigação de proceder ao inventário dos bens do
tutelado, quando, no momento da nomeação do tutor, o cabeça de casal não tiver
iniciado o processo de inventário. O art. 2053.° do Código Civil dispõe que, sempre que
haja menores com direito a serem chamados à sucessão, deverá ser aberto processo de
inventário obrigatório.
Pode assim ocorrer que a nomeação do tutor seja feita após ter sido iniciado o
processo de inventário e então o tutor não terá a obrigação de o efetuar; mas pode
acontecer que a nomeação do tutor preceda a inventariação dos bens do tutelado, caso
em que o tutor é obrigado a fazer o inventário dos bens do tutelado, em processo que
deve ser apensado ao processo de tutela.
Neste caso, o tribunal deve fixar um prazo ao tutor para proceder ao referido
inventário, de forma a serem acautelados os bens do menor. O inventário deverá incluir
a relação do passivo e do ativo do património hereditário.
O tutor tem poderes de administração dos bens do tutelado que englobam a
prática de todos os atos de conservação do seu património, a cobrança de dívidas, a
aquisição e a alienação de bens mobiliários de caráter não duradouro.
O tutor carece, porém, de autorização do tribunal para praticar todos os atos
discriminados no art. 238.° do Código de Família. Na alínea a) deste art. 238.° prevêem-
se as mesmas restrições que são impostas aos pais (art. 141.°) e que se referem à
alienação de bens imóveis e móveis de caráter duradouro, ao repúdio de herança, e a
contrair obrigações que vinculem o filho depois deste ter atingido a maioridade.
A alínea b) veda ao tutor a possibilidade de contrair, em nome do tutelado,
obrigações de qualquer natureza sem autorização do tribunal. Defendemos que o termo
«obrigações» deve ser entendido stricto sensu, abrangendo somente qualquer situação
jurídica que possa colocar o tutelado na qualidade de sujeito passivo de obrigações
pecuniárias ou outras, contraindo empréstimos em seu nome ou como prestador de
garantia de obrigações de terceiros, excluindo pois as obrigações contraídas e solvidas
no âmbito já atrás descrito dos poderes de administração do tutor.
Em sentido amplo, o tutor poderá assim contrair obrigações em nome do tutelado
que decorram dos atos normais destinados às despesas feitas em beneficio do tutelado
e à conservação do seu património, ou seja, em contrapartida de despesas necessárias à
sua atividade.
Já a aquisição de bens móveis e imóveis carece de autorização do tribunal. 0 tutor
não pode exercer comércio em nome do tutelado, dada a natureza pessoal da qualidade
de comerciante, sendo que poderá com autorização do tribunal, continuar a exploração
de estabelecimento comercial ou industrial que o tutelado tenha recebido por doação ou
sucessão.
O tutor carece também de autorização do tribunal para intervir na partilha
amigável em processo sucessório de que o menor seja parte, ou para aceitar herança ou
legado em seu nome.
Por maioria de razão, o tutor não poderá praticar atos de liberalidade em nome
do tutelado.
A propositura de ações também deve ser autorizada pelo tribunal (alínea c) do
art. 238.°), o que abrange ações de qualquer natureza (pessoal ou patrimonial). Intentada
a ação sem a devida autorização, a instância deve ser suspensa até ser decidido se a ação
deve ou não prosseguir. Se for negada autorização deverá o tutor arcar com as despesas
judiciais e extra judiciais.
Mas não carece de autorização do tribunal o chamamento do tutor à demanda
como representante do menor sob sua tutela.
Os atos praticados sem autorização do tribunal são anuláveis, como prevê o art.
239.° do Código de Família, que remete para o art. 145.°. A anulação pode ser declarada
pelo tribunal oficiosamente, ou por iniciativa do Ministério Público ou
de qualquer membro do Conselho de Família, ou por iniciativa de quem mostre
legítimo interesse na proteção do menor. O menor tutelado pode também pedir a
anulação do ato até um ano após ter atingido a maioridade.
Em contrapartida, os atos anuláveis podem ser objeto de validação, como
também dispõe o art. 239.° que, por sua vez, remete para o art. 146.°.
Essa validação pode obter-se por iniciativa oficiosa do tribunal ou dos órgãos
acima mencionados durante a menoridade do tutelado, ou por iniciativa deste depois de
atingir a maioridade, não impondo a lei, neste caso, qualquer limite de tempo. O tutor
deve cumprir com boa fé e diligentemente os deveres do seu cargo. Ele é responsável
pelos atos que pratique culposamente ou intencionalmente em prejuízo do tutelado —
art. 240.°.

[133] Órgãos de acompanhamento da tutela.


Durante todo o exercício da tutela o tutor é acompanhado pelo Conselho de
Família, que neste instituto assume a sua maior relevância (artigos. 16.° a 19.° do
Código de Família). Na escolha dos 4 membros que o compõem, devem ser observadas
as normas do art. 17.°, n.° 2 e devem ser escolhidos 2 membros da linha paterna e 2
membros da linha materna, relativamente aos ascendentes do tutelado.
No caso de não serem conhecidos os progenitores ou um dos progenitores do
tutelado, então terá de recorrer-se às pessoas que convivam com o menor, como
vizinhos, pessoas das suas relações sociais, etc.
Trata-se sempre de um órgão colegial, que deve tomar as deliberações que serão
homologadas pelo tribunal. O Conselho de Família, depois de ter sido ouvido sobre a
nomeação do tutor, permanece desde o início até ao termo da tutela como órgão de
acompanhamento. As intervenções do Conselho de Família no processo de tutela são
primordialmente, as seguintes:
— Na nomeação do tutor e possível remuneração.
— Aprovação do ativo e passivo constante do inventário.
— Dar parecer sobre qualquer pedido de autorização judicial pedido pelo tutor.
— Dar parecer sobre as contas apresentadas pelo tutor.
— Vigiar o desempenho do tutor no exercício da sua função desde o seu início
até ao seu término.
Além do Conselho de Família, o próprio tribunal também é órgão de
acompanha¬mento da tutela, representando o Estado no seu dever de proteção ao menor
— art. 242.° do Código de Família.
Ao tribunal, através da Sala de Família, incumbe o dever de velar pelo bom
funcionamento da tutela, de forma que os interesses de natureza pessoal e patrimonial
do tutelado sejam devidamente salvaguardados.
São aplicáveis ao comportamento abusivo do tutor as disposições de proteção
social do menor prescritas para progenitores naturais e que constam do art. 14.° da Lei
n.° 6/96 (Lei do Julgado de Menores).®
Tanto o Conselho de Família como o próprio tribunal podem ser
responsabilizados se descurarem os seus deveres de órgãos de acompanhamento da
tutela. Embora o art. 240.° do Código de Família se limite a mencionar a
responsabilidade do tutor, tal não significa que o Estado não possa também ser
responsabilizado, se, como órgão judicial, não exercer diligentemente as funções que
lhe são atribuídas no acompanhamento da tutela e evidenciadas no citado art. 242.°.
[134] Remoção e renúncia do tutor
O exercício do cargo de tutor pode cessar antes de terem terminado as causas que
levaram à necessidade da existência legal da nomeação do tutor.
O tutor pode ser removido das suas funções, por iniciativa do tribunal, nos casos
previstos no art. 244.° do Código de Família.
As causas de remoção são de dois tipos:
a) sempre que se verifique que o tutor não está a zelar devidamente pelos
interesses pessoais e patrimoniais do pupilo;
b) Quando se revele inidóneo, quer por revelar inaptidão para o exercício do
cargo quer por deixar de reunir os requisitos legais que são impostos para a sua
nomeação e vêm previstos no art. 226°.
® Lei n.° 19/96 de 19 de abril:
ARTIGO 14.°
(Aplicabilidade de medidas de proteção social)
As medidas de proteção social são decretadas, quando esteja em perigo o bem-
estar físico ou moral do menor, designadamente, quando ocorram qualquer das
seguintes situações:
a) sejam vítimas de maus-tratos físicos, morais ou de negligência por parte de
quem os tenha à sua guarda.
A remoção do cargo de tutor ou de membro do Conselho de Família pode ainda
derivar da sua condenação definitiva em pena maior, como prevê o art. 76.° do Código
Penal,® o que aliás seria sempre de integrar na previsão do citado art. 244.°, alínea b).
Quando, pelo seu comportamento, o tutor se revele inidó- neo para o cumprimento das
funções inerentes ao cargo ou quando o seu com¬portamento negligente se revele
prejudicial aos interesses do tutelado ou quando seja inapto para o seu exercício, ele
deve ser removido.
A alínea b) prevê igualmente a remoção do tutor quando ele deixar de reunir os
requisitos legais, o que em parte se sobrepõe ao que atrás se referiu. Pois os requisitos
legais obrigam a que este esteja no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos e que
tenha um comportamento moral, profissional e social idóneo, que demonstre ser
suscetível de ser um bom educador para o tutelado.
Quando ocorrer a interdição legal do tutor, é óbvio que ele terá de ser removido.
Bem assim quando, no decorrer da tutela, surjam interesses antagónicos entre tutor e
tutelado que incompatibilizem o normal relacionamento entre ambos, que deve ser
muito próximo do relacionamento entre pai e filho.
Factos supervenientes podem vir a tomar necessária a remoção do tutor e a sua
substituição por outro que preencha as condições legais.
O tribunal goza de grande amplitude nos poderes de remoção do tutor, remoção
que pode ser pedida pelo Ministério Público, pelos membros do Conselho de Família
ou por pessoa que mostre interesse legítimo na proteção do menor.
Para a remoção deverá o tribunal ouvir os órgãos de tutela, o Ministério Público
e o próprio menor, desde que tenha a idade mínima legal.
Mas a remoção do tutor não é obrigatória, pois, de acordo com as circunstâncias,
o tribunal pode ponderar qual a forma de melhor proteger o interesse do menor e pode
ordenar ou não a sua remoção.
É o que se infere do corpo do art. 244.°, segundo o qual o tribunal «poderá»
determinar a remoção do tutor, o que indica que será o tribunal a decidir se, naquele
caso concreto, há ou não conveniência em se proceder à remoção do tutor.
O tutor pode, por seu lado, renunciar voluntariamente ao cargo. {3) Código
Penal:
ARTIGO 76.°
(Efeitos da condenação em pena maior)
O réu definitivamente condenado a qualquer pena maior, incorre: (...)
3. ° — Na (perda) de ser tutor, curador, procurador em negócios de justiça, ou
membro do conselho de família.
O art. 245.° do Código de Família é omisso quanto às causas que podem ser
invocadas para alicerçar o pedido de escusa.
O Código Civil português prevê uma série de fundamentos legais para a
justificação do pedido, que vão do exercício de certos cargos políticos e religiosos, à
idade, local de residência, estado de saúde, não ter a qualidade de parente ou de afim,
etc.. No nosso direito, como a aceitação do cargo é de natureza voluntária, entendeu-se
deixar em branco as possíveis causas a invocar pelo tutor, confiando-se ao arbítrio do
tribunal a decisão sobre se elas são ou náo justificativas do deferimento do pedido.
Sempre que ocorra a remoção ou renúncia do tutor, este é obrigado a prestar
contas da gestão do património do tutelado.
Na prestação de contas, que pode ser efetuada de forma simplificada, o tutor
deverá discriminar, por um lado, todas as receitas obtidas em representação do menor,
devendo indicar, no que se refere às despesas, os gastos feitos por conta da
administração dos bens e aqueles que respeitem aos alimentos do tutelado. Nas despesas
com os alimentos estão abrangidos os custos da habitação, alimentação, instrução,
cuidados de saúde, etc.. As despesas devem, em regra, ser justificadas com documentos
escritos, com exceção daquelas cujos usos tal dispensem.
O tribunal e o Conselho de Família, como órgãos de acompanhamento da tutela,
são responsáveis perante o tutelado pela exigência de rigorosa prestação de contas por
parte do tutor.
Quando cessar as suas funções de tutor, e designadamente, quando o tute¬lado
atingir a maioridade, tal como os progenitores devem fazer em relação aos filhos, está
adstrito a fazer a entrega material do bens móveis e imóveis por si administrados.

[135] Tutela vacante, administrativa e de facto


A situação atroz que se viveu durante anos no nosso País devastado pela guerra
e pelo êxodo maciço das populações, tornou realidade a situação de desamparo de
milhares e milhares de crianças.
Perante tal conjuntura, já não era possível designar o tutor de uma forma normal
dentro da família. E isto porque a família se desagregou ou porque o menor foi
rechaçado, desde o nascimento, pela própria família que o não acolheu.
O Código de Família prevê esta situação no seu art. 233.°, n.° 3, dispondo que,
«verificada a impossibilidade de constituição da tutela voluntária., será o menor
declarado abandonado ».

Já vimos qual o conceito jurídico de um menor em situação de abandono,


definida no art. 200.°, n.° 2 do Código de Família. Os fundamentos de facto que levam
à declaração de abandono são os mesmos, quer na tutela quer na adoção: a verificação
pelo tribunal de que o menor não tem quem efetivamente exerça em relação a ele os
deveres que integram o exercício da autoridade paternal.
Só que a declaração de abandono que se opera no processo de adoção é
normalmente desencadeada porque o adotante ou adotantes pretendem obter dela o
efeito jurídico da dispensa do consentimento.
No processo de tutela, a declaração de abandono surge no prosseguimento da
instauração da tutela e põe-lhe fim, porque, verificada a impossibilidade da nomeação
do tutor, há que aplicar a previsão do art. 234.° do Código de Família.
Será o Tribunal de Família a declarar a tutela vacante por impossibilidade de
nomeação de tutor, e comunicar o facto aos órgãos competentes de assistência social.
2. Tutela administrativa
O menor declarado abandonado deverá ser internado em estabelecimento de
assistência ou de educação, cabendo o cargo de tutor ao respetivo diretor.
Por outras palavras, é o próprio Estado, através das suas instituições
vocaciona¬das para o efeito, que vai assumir o encargo de criar e educar aquele menor
abandonado pela sua família. Esta tutela é de natureza administrativa e sai do âmbito
das previsões do Código de Família, sendo a tutela exercida pelo diretor do
estabelecimento sem órgãos coadjuvantes.
O tribunal pode ser chamado a intervir quando haja que decidir questão relevante
na vida do menor ou quando surja um terceiro que mostre interesse legítimo na proteção
do menor.
O que entre nós se passa é que, dado o elevado número de crianças a carecer de
tutela, são os próprios órgãos do Estado que não dão cumprimento às disposições legais
que obrigam à instituição obrigatória da tuteia pelos tribunais, que não
são chamados a intervir, como deviam, em tão relevante processo na proteção do
menor.
O Código de Família (art. 229.°, n.° 2) impõe, como vimos, a determinadas
pessoas e entidades o dever de participar ao Ministério Público junto da Sala de Família
do respetivo Tribunal Provincial a existência de um menor em situação que exige a
instauração obrigatória de um processo de tutela, nos termos do art. 222.° do referido
Código.
Muitas vezes este dever não é cumprido, o que significa que, com frequência,
funcionários dos organismos estatais e organizações humanitárias tomam conta do
destino do menor de forma administrativa, colocando-os em instituições de assistência
ou em famílias substitutas, à margem dos procedimentos legais. Fica omisso todo o
acompanhamento judicial que devia ser feito, e ficando o menor entregue à sua sorte e
desprotegido.
3. Tutela de facto
A tutela de facto ocorre quando alguém se auto-investe na função de tutor,
exercendo essas funções sem para elas ter sido nomeado pelo tribunal, ou seja quando
a tutela não está institucionalizada como tutela facultativa ou obrigatória.
Na verdade, a tutela junto do tribunal, surge quando o menor tem um património
a proteger e o parente ou afim do menor ou a pessoa que o tem a seu cargo não cumprem
o dever de participação que lhes é atribuído pelo já citado art. 229.°, n.° 2. Assim, e
mais uma vez, vemos que em Angola muitas situações familiares são resolvidas à
margem dos órgãos judiciais e do Registo Civil. A tutela de facto tem na verdade uma
ampla implementação no País e mantém- se como tal, enquanto não surgir razão
determinante para legalização da situação de facto.
E isto pela evidente razão de que, na quase totalidade dos casos, o menor que
carece seja instituída a tutela, não tem qualquer património, muito pelo contrário,
precisa de quem cuide dele, tomando sobre si os encargos de assistência material e
outros que incumbiriam aos pais.
Vemos que, em muitos casos, aparece por livre vontade quem queira tomar conta
do menor, prestando-lhe cuidados de assistência em substituição dos pais, sendo a tutela
exercida dentro da família pelos avós, pelos tios, no mais comum dos casos, pelos
irmãos mais velhos quando os menores ficam órfãos.
Noutros casos a tutela é mesmo exercida por pessoas que não têm vínculo
familiar com o menor como aliás se verificou no conturbado período de guerra.
Nestas situações, a tutela constitui um encargo familiar, já que o tutelado não é
possuidor de qualquer bem. É, porém, importante ter em linha de conta que, nos casos
em que houver bens do menor a acautelar, tem que se proteger o seu
direito de sucessível, cabendo ao Ministério Público propor a competente ação
de inventário obrigatório e exigir a prestação de contas, quando for caso disso.
Os atos de administração porventura praticados pelo tutor «de facto» não
vinculam o tutelado e devem ser considerados como os de um gestor de negó¬cios,
podendo ser ratificados pelo tribunal ou pelo tutelado depois de atingir a maioridade.
O Código de Família dá relevância à tutela de facto, designando quem exerce
essas funções como «apessoa que tem o menor a seu cargo» e a mesma referência é
feita no art. 233.°, n.° 2 quando se refere à nomeação do tutor dizendo que ele deve ser
escolhido entre «os parentes e afins do menor ou a pessoa que tiver o menor a seu
cargo».
De igual modo, tanto na Lei n.° 19/96 de 19 de abril, Lei do Julgado de Menores,
como no Decreto n.° 6/03 de 28 de janeiro, Código de Processo do Julgado de Menores
existem diversas referências à «pessoa que tem o menor a seu cargo».

[136] Termo da tutela


Como já dissemos, a tutela é de natureza provisória, pois visa tão somente o
suprimento da autoridade paternal e tem o seu termo pelas mesmas causas jurídicas que
levam à cessação desta, ou seja, a morte do tutelado ou o facto de este ter atingido a
maioridade. A regra é que ela termina quando o menor atinge a maioridade por ter
atingido os 18 anos ou por ter sido

emancipado pelo casamento (art. 132.°, n.° 2, alínea a) do Código Civil) ou


quando tiver sido constituído o vínculo da adoção.
Mas a tutela pode ainda cessar quando deixem de verificar-se as circunstâncias
específicas que, naquele caso concreto, levaram à constituição da tutela. O art. 243.° diz
que:« Constituem causas de cessação da tutela:
a) a remoção e a renúncia do tutor;
b) a maioridade ou o levantamento da interdição do tutelado;
c) a cessação das circunstâncias que levaram à instituição da tutela.»
No caso da alínea a) estamos perante um caso de cessação relativa, porque a
tutela cessa em relação ao tutor mas não em relação ao tutelado, a quem deve ser
nomeado outro tutor.
Deve proceder-se à nomeação de novo tutor, como prevê o art. 246.°.
Os outro casos são casos de cessação absoluta da tutela em relação à pessoa do
tutelado.
Especificadamente, as circunstâncias que podem alterar a constituição da tutela
serão:
a) estabelecimento do vínculo da paternidade ou da maternidade quando o
tutelado seja filho de pais desconhecidos;
b) regresso do pai ou da mãe ausente ou impossibilitado de exercer o cargo;
c) termo da inibição da autoridade paternal;
d) cessação do impedimento de facto por parte dos pais de exercerem a sua
autoridade
paternal.
A cessação da tutela por qualquer das causas aqui apontadas obriga sempre o
tutor à prestação de contas, tal como no caso da remoção e da renúncia, e à entrega do
património do tutelado.
O tribunal deverá sempre lavrar decisão em que se fundamente o que levou à
cessação do processo de tutela.
CAPÍTULO 20.°
Os ALIMENTOS

[137] Conceito, função social e fonte da obrigação de alimentos


A relações jurídicas familiares caraterizam-se por serem de natureza recíproca,
solidária e intercorrente. O grupo familiar tem entre si vínculos de diversa natureza,
como o parentesco (natural ou por adoção), o casamento, a afinidade, a união de facto
ou a tutela. Os membros do grupo familiar têm também a obrigação dc prestar entre si,
assistência moral e material.
A obrigação de prestar alimentos é uma forma de prestação de assistência
material entre os membros da família.
No conceito de alimentos está abrangido tudo quanto o alimentado necessita para
a sua sobrevivência e manutenção como ser social.
Há quem classifique os alimentos em naturais e civis, englobando os alimentos
naturais as necessidades naturais do alimentado (como alimentação e vestuário) e
integrando os alimentos civis outro tipo de necessidades (como habitação, instrução, e
saúde, etc.).
O art. 247.° do Código de Família dá-nos o conceito de alimentos, dizendo no
n.° 1 que eles compreendem tudo aquilo que for necessário ao sustento, saúde, habitação
e vestuário. O n.° 2 deste artigo acrescenta que nos alimentos devidos a menores se
compreende ainda a educação e instrução.
A obrigação de alimentos emana do dever de cooperação e solidane c instituído
com a finalidade de proteger os interesses do próprio organsmo constituído pelo grupo
familiar.
Os alimentos abrangem assim tudo quanto é necessário para a vida, incluindo os
gastos com a saúde, as despesas da demanda se o credor de alimentos tiver de recorrer
a juízo para exercer o seu direito, e até as despesas fúnebres que se têm
com a morte de familiares.
A obrigação de alimentos tem uma função social muito relevante, pois, recaindo
sobre os membros da família, leva a que sejam estes a satisfazer as necessidades.
Se tal não acontecer, e se esse dever não for cumprido, a obrigação de alimentos
vai recair sobre (e vai onerar) a própria sociedade e o Estado onde esses membros
carentes e desprotegidos se encontram.
O Estado é, pois, diretamente interessado em que seja devidamente cumprida a
obrigação de alimentos por aqueles que a isto estão obrigados por lei.
Em Angola, fruto da agudizaçáo da situação de guerra, deu-se em larga medida
a rutura do próprio tecido social e grande número de famílias vivem desprovidas de
bens, deslocadas das suas áreas de residência e produção, ficando impossibilitadas de
cumprir os seus deveres familiares.
Viveu-se uma situação social de tal gravidade que não só as famílias como o
próprio Estado se viram impossibilitados de atender às necessidades alimentares de toda
a população. Neste período de crise aguda, foi necessário recorrer à comunidade
internacional para prestação de ajuda alimentar.
Nota-se uma deterioração do que se passava na sociedade tradicional angolana
em que a prestação de alimentos dentro da família extensa, era muito preponderante.
Anteriormente, acontecia que a prestação de alimentos entre os membros da
família persistia para lá da obrigação legal e era feita de forma voluntária, por vezes
entre parentes e afins em grau afastado.
Nos países economicamente desenvolvidos a obrigação de alimentos é cada vez
mais restrita e póe-se em regra entre parentes em linha reta, cônjuge e pouco mais.
O desenvolvimento do sistema de segurança social leva a que seja o Estado,
através das suas instituições de previdência e segurança social, ou as empresas
seguradoras que concedem pensões ou subsídios por incapacidade ou reforma, que
permitem a subsistência das pessoas maiores impossibilitadas de angariar recursos, sem
terem de recorrer a prestações de alimentos dentro do círculo familiar.

[138] Natureza jurídica dos alimentos


A obrigação de alimentos existe opelegis, pois em regra é a lei que estabelece
quem a ela está obrigado.
Mas podem existir outras fontes desta obrigação, como o contrato e o testa-
mento, o instituto da falência, etc.. Nestes casos a obrigação de alimentos estará
regulada pelas normas do Direito das Obrigações, do Direito Sucessório, etc..
Dentro do âmbito do nosso estudo, vamos circunscrever-nos ao direito a
alimentos que nasce dentro das relações jurídicas familiares e que resulta diretamente
da lei.
A obrigação de alimentos é uma obrigação de natureza estritamente pessoal,
como as demais obrigações e direitos que se inserem no Direito de Família.
Embora ela se possa resolver mediante uma prestação de valor pecuniário, ela
não é de forma alguma uma obrigação de natureza patrimonial. Trata-se, aqui, de um
direito de natureza pessoal.
Esta natureza pessoal deriva do objeto e da causa da obrigação de alimentos. Ela
tem como objeto a proteção do direito à vida do próprio titular do direito de alimentos,
pois visa prover à sua subsistência e ao seu interesse imediato como pessoa humana.
Destina-se exclusivamente, a satisfazer as necessidades e o sustento do alimentando
Como tal, o direito a alimentos dever ser considerado como um direito fundamental da
pessoa humana, integrado no direito mais amplo que é o direito à vida.
O art. 259.° (Caráter pessoal) prescreve: «0 direito de alimentos é
imprescri¬tível, irrenunciável intransmissívela terceiros e impenhorável».
Como um direito estritamente pessoal, não pode ser exercido senão pelo próprio
titular ou pelo seu representante legal.
Concomitantemente, a obrigação de alimentos tem como causa a existência de
um vínculo familiar, é uma obrigação específica imposta em razão desse vínculo
existente entre alimentante e alimentado.
É uma obrigação de natureza recíproca, porque, em princípio, ela estabelece-se
entre os membros da família em reciprocidade: os pais têm obrigação de alimentar os
filhos e estes, por sua vez, quando maiores, terão obrigação de alimentar os pais; os
cônjuges, marido ou mulher, têm obrigação de prestar entre si alimentos, etc..
É uma obrigação de ordem pública, porque eia não se limita a satisfazer os
interesses de cada credor de alimentos, mas também o interesse geral da sociedade.
Precisamente por isso, o Estado toma uma série de medidas para que a obrigação de
alimentos seja satisfeita, de forma a que ela não venha a recair sobre a coletividade em
geral.
A obrigação de alimentos e o crédito alimentar têm uma natureza estritamente
pessoal e em razão da sua própria natureza jurídica, não estão sujeitos ao regime geral
das demais obrigações.
Do caráter pessoal do direito a alimentos reconhecido no art. 259.° do Código de
Família, decorre que ele só pode ser exercido pelo próprio titular e não por via sub-
rogatória.
Ele é imprescritível porque pode ser exercido em qualquer ocasião, desde que se
verifiquem as condições legais para tanto.
O titular do direito pode não o exercer e deixar de pedir os alimentos. Quando
tal acontecer, a lei presume que o facto de os alimentos não terem sido pedidos significa
que eles não eram necessários. Existe até o princípio aceite de que os alimentos não têm
natureza retroativa.
Eles só são devidos depois da data da propositura da ação ou da sua fixação por
acordo (art. 254.° do Código de Família), não podendo ser pedidas prestações pretéritas.
Não seria aceitável para a estabilidade das situações jurídicas que alguém fosse de uma
só vez pedir vários anos de pensões alimentares anteriores.
É certo que a lei civil dispõe que as prestações alimentícias já vencidas
prescrevem no prazo de 5 anos, como prevê o art. 310.°, alínea f) do Código Civil. Mas
isso não significa que o direito em si, seja prescritível.
A eventual inércia do alimentado pode deixar prescrever pensões já vencidas,
mas isso não impede que se formule novo pedido de prestação alimentar. O pedido de
alimentos, desde que fundamentado na lei, pode ser pedido a qualquer tempo.
É ainda um direito indisponível, que não pode ser cedido a outrem, nem
transacionado, porque tutela um interesse essencial de determinada pessoa.
E é também um direito irrenunciável, porque, pela mesma razão, a renúncia iria
pôr em causa esse mesmo interesse essencial.
Ele é atribuído a uma pessoa em concreto, mercê do vínculo familiar que o liga
ao devedor, por conseguinte ele não pode ser cedido inter vivos nem transmitido mortis
causa.
É um bem fora do comércio, que não pode ser usufruído por alguém que não seja
o respetivo titular. É também um direito impenhorável, mesmo que parcial¬mente, e
isto porque a lei, ao prever que seja fixada a prestação alimentar, tem em vista
estabelecer o quantum indispensável à pessoa que com ela é beneficiada, não podendo
esse quantitativo ser reduzido.
Não pode haver compensação de dívida do credor da prestação de alimentos para
com o devedor dessa prestação. Quer dizer: mesmo que o beneficiário da pensão de
alimentos tenha uma dívida para com quem lhos presta, o devedor da obrigação de
alimentos não pode fazer valer essa dívida para operar a compensação do seu crédito
com o seu débito respeitante às prestações alimentares.

[ 139] Garantia da obrigação de alimentos


O crédito alimentício goza de especial garantia, pois o Código Civil dispõe no
seu art. 705.° (Credores com hipoteca legal): «Os credores com hipoteca legal são: (...)
a) O credor por alimentos.»
Como tem vindo a ser entendido, «A justificação da atribuição duma hipoteca
legal radica na necessidade de garantir determinados credores que não poderiam obter
o consentimento do devedor para uma hipoteca convencional, ou só o poderiam obter
com dificuldade ou sacrificando a natural delicadeza existente entre credor e devedor.
>> Elas traduzem-se numa especial garantia dada por lei ao crédito alimentício em razão
do direito protegido.
«Cumpre salientar — como aliás decorre da letra do art. 704.° — estas
hipo¬tecas, ao invés do que acontece com as hipotecas voluntárias, não resultam da
vontade das partes, mas antes da determinação da lei, podendo constituir desde que
exista a obrigação a que servem de segurança ». «No caso particular da obri¬gação de
alimentos, o instrumento que pode servir de base ao registo da hipoteca poderá (...) ser
a certidão da decisão judicial que haja condenado o devedor».
O crédito de alimentos está pois sujeito a registo, como prevê o art. 2.°, n.° 1,
alinea h), do Código do Registo Civil.
A hipoteca poderá ser registada logo que esteja constituída a obrigação e sem
embargo de ela se referir a obrigações futuras ainda não vencidas, dado o caráter
periódico das obrigações alimentícias. A hipoteca pode incidir sobre bens imóveis e
sobre bens móveis sujeitos a registo.
Alem desta garantia, gozam ainda de privilégio mobiliário geral sobre os bens
móveis, nos termos estabelecidos no art. 737.° do Código Civil: «0 crédito por despesas
indispensáveis para o sustento do devedor e das pessoas a quem este tenha a obrigação
de prestar alimentos, relativo aos últimos seis meses.» [140] Sujeitos ativos e sujeitos
passivos da obrigação de alimentos
A obrigação legal de alimentos vem genericamente estatuída no art. 249.°, n.°s
1 e 2. Mas dentro do Título VIII do Código de Família essa obrigação vem ainda
mencionada no art. 260.°, que se refere aos cônjuges e companheiros de união de facto,
e no art. 262.°, que estabelece o mesmo direito entre ex-cônjuges e ex-companheiros de
união de facto.
Aliás, nas relações entre cônjuges está previsto na lei o dever recíproco de
assistência material (art. 43.°) e de contribuição para os encargos da vida familiar (art.
46.°).
Após a dissolução do casamento, pode persistir a obrigação de alimentos, quer
no caso de divórcio por mútuo acordo (art. 85.°, alínea b) quer no caso de divórcio
litigioso (art. 104.°, n.° 1, alínea a) e art. 111.°).
Nas relações paterno-filiais vem estabelecida, por um lado, a obrigação dos pais
de prestarem assistência (art. 131.°) e de se responsabilizarem pelos alimentos dos filhos
(art. 135.°) e, por outro lado, a obrigação dos filhos de prestarem assistência aos pais
(art. 132.°).
Do lado do sujeito ativo da obrigação alimentar, devem distinguir-se duas
situações, de acordo com o que dispõe o art. 248.° «Só poderão pedir alimentos: a) Os
menores; b) As pessoas que não possam pelo seu trabalho garantir o seu sustento e não
disponham de recursos.»
Há portanto que distinguir entre a obrigação de alimentos a menor e a maior de
idade, sendo a primeira de caráter incondicional, ou seja o menor tem sempre direito a
receber alimentos. Já em relação a maiores o direito a alimentos está sujeito ao
condicionalismo expresso na lei.
Aliás da redação do corpo art. 248.° que usa o termo «Só», se pode retirar a
norma orientadora sobre quais os maiores que têm direito a alimentos no nosso
ordenamento jurídico: os que não tenham capacidade para o trabalho e simultaneamente
não disponham de recursos.
Este posicionamento legal correspondia a uma conceção de sociedade dirigida
para o socialismo, em que cada cidadão tinha o direito-dever de estar inserido no
mercado de trabalho e de autonomia dos jovens a partir dos 18 anos. Com o ensino
superior gratuito e o acesso garantido ao mercado de trabalho não se colocava a questão
da prestação de alimentos a filho maior na fase de concluir a sua formação profissional.
A transformação dessa realidade leva a que se deva alterar a lei para uma melhor
proteção dos filhos maiores de 18 anos, mas que necessitem de apoio dos pais para a
sua formação de ensino superior, no condicionalismo que for estatuído por lei.
A obrigação de alimentos a menor, é mais extensa, e incumbe em primeiro lugar
aos pais e adotantes e depois aos demais ascendentes em linha reta, sem qualquer limite
(avós, bisavós, etc.). Faltando os ascendentes, a obrigação recai sobre os irmãos
maiores, sejam eles germanos, uterinos ou consanguíneos, não distinguindo a lei
nenhuma prioridade entre eles. Os tios são ainda obrigados a prestar alimentos aos
sobrinhos, no caso da falta dos parentes atrás mencionados, pelo que a obrigação de
alimentos entre parentes existe até ao 3.° grau da linha colateral. Em último lugar
aparece o padastro ou a madrasta, mas só no caso da morte do cônjuge, o que significa
que a obrigação de alimentos existe só no l.° grau da linha reta da afinidade.
A Convenção sobre os Direitos da Criança no seu art. 27.° n.° 2 atribui
primacialmente aos pais «assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades
económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança».
A obrigação de alimentos entre maiores cabe, em primeiro lugar, ao cônjuge ou
ex-cônjuge e, por extensão, ao ex-companheiro de união de facto que reuna os
pressupostos legais para o reconhecimento.
Seguem-se por esta ordem: os descendentes (e dentre eles os de grau mais
próximo) e os adotados, os ascendentes (dentre eles os de grau mais próximo) e os
irmãos, também sem distinção entre irmãos bilaterais ou unilaterais.
A obrigação de alimentos entre maiores vai só até ao 2.° grau na linha colateral.
A ordem presente na lei é de natureza taxativa e cada obrigado na respetiva escala deve
cumprir a obrigação de alimentos em sucessivo e não em simultâneo.
Como a obrigação é de natureza recíproca, aquele que é hoje sujeito ativo (credor
da obrigação) pode mais tarde passar a ser sujeito passivo (devedor da obrigação).
A obrigação de alimentos pode recair sobre mais de um sujeito passivo: pai e
mãe, avós maternos e paternos, diversos irmãos maiores, etc..
Havendo concurso de obrigados à prestação de alimentos cía resolve-se de forma
diferenciada.
A obrigação de alimentos dos pais em favor de filhos menores é obrigação de
natureza solidária (art. 135.° do Código de Família), o que significa que o filho a pode
pedir por inteiro a um dos pais, tendo aquele que a prestar, direito de regresso em relação
ao outro.
Havendo mais do que um obrigado (por exemplo os avós em relação a um neto,
os filhos maiores em relação ao pai ou à mãe, etc.) o credor de alimentos pode optar
entre pedir a prestação de alimentos a um só devedor ou a um conjunto de devedores.
A lei não determina, dentro de cada classe de obrigados, qual a prioridade a dar à linha
materna ou à linha paterna de parentesco, a este ou àquele parente quando forem mais
do que um dentro da mesma classe.
Se o credor propuser a ação contra um só parente de um determinado grau de
parentesco, este poderá ou chamar à ação os demais co-obrigâdos ou usar contra eles o
direito de regresso para pagamento da sua quota-parte se apurar que eles também
estavam em condições de contribuir para os alimentos.
O art. 253.° do Código de Família refere-se à pluralidade de obrigados, dizendo
que, quando a obrigação recair sobre mais de uma pessoa, a prestação de cada uma será
proporcional à sua capacidade económica.
Dentro de cada classe de obrigados, a obrigação de alimentos não é solidária mas
proporcional à capacidade económica de cada um (art. 253.° do Código de Família).
O n.° 3 do art. 249.° diz que a obrigação pode ser repartida por vários obrigados.
Se algum dos obrigados não puder satisfazer a prestação, a parte que lhe cabe acresce
aos demais (art. 253.°, n.° 2). A cada co-obrigado caberá uma cota proporcional à sua
capacidade económica o que desde logo não envolve uma responsabilidade solidária.
No entender da doutrina, a ordem e a hierarquia entre os obrigados só é aplicável
quando estes podem prestar integralmente os alimentos: se o obrigado mais próximo
não pode prestá- los, deve fazê-lo o obrigado seguinte; se aquele só pode prestar parte,
deve o seguinte prestar o resto .
A ordem de prioridade deve ser seguida: só quando se verificar a impossibilidade
dos primeiros obrigados poderão ser demandados os que se seguem. Como a prestação
de alimentos está sujeita ao condicionalismo da capacidade económica de quem a
presta, nem sempre é possível determinarapriori qual dos co-obrigados está em
melhores condições materiais de a satisfazer.
Estamos, porém, perante uma forma especial de concurso de devedores, a qual
não se rege stricto sensu pelas regras da obrigação conjunta. O alimentado pode requerer
a prestação de alimentos a um só dos obrigados, aquele que entende estar em situação
de maior desafogo económico para a poder prestar.
Neste caso, como vimos, cabe ao demandado fazer intervir na ação os demais
co-obrigados para estes virem a assumir a obrigação da prestação da sua quota- parte,
ou vir a posteriori exercer a ação de regresso contra eles. No caso de dentro duma classe
de obrigados um ou mais, não estiverem em condições de prestar alimentos, a obrigação
recai sobre os demais que integrem essa mesma classe.
O alimentando é que, a nosso ver, não deve ver dificultado o direito à obtenção
da pensão de alimentos, sem embargo de que, se o devedor escolhido não for o mais
indicado sob o ponto de vista da capacidade económica, este pode só vir a ser condenado
a uma prestação de acordo com a sua capacidade.
Já atrás vimos como se concretiza a obrigação de alimentos entre cônjuges, pois
quando existe coabitação essa obrigação efetua-se na participação comum nos encargos
gerais da vida familiar que visam prover às necessidades da vida material e inteletual
dos membros da família.
Essa obrigação prolonga-se havendo simples separação de facto c depois da
dissolução do casamento por divórcio — artigos 260.° e 262.°, n.° 1 do Código de
Família.
A obrigação de alimentos entre os companheiros de união de facto produz-se
desde que esta reuna os pressupostos legais para o reconhecimento por comum acordo
ou por via judicial — art. 260.°. No primeiro caso, os efeitos são os mesmos que os do
casamento, e os companheiros passam a ter reciprocamente os mesmos direitos e
deveres dos cônjuges, entre os quais se inclui o de prestar alimentos. No segundo caso,
o pedido pode ser formulado conjuntamente com o do reconhecimento da união de facto
por via judicial.
No caso de reconhecimento de união de facto judicial por rutura, ele produz os
mesmos efeitos que a dissolução do casamento por divórcio (art. 126.° do Código de
Família).
Mas o regime aplicável não é o mesmo que ocorre no caso de divórcio.
Neste caso, o art. 111.° do Código de Família manda atender à situação social e
económica, à necessidade de educação dos filhos e às causas do divórcio.
No caso da união de facto que terminou por rutura, o art. 262.°, n.° 2 impóe que
o companheiro não tenha dado causa exclusiva à rutura.
Compreende-se a razão de ser desta disposição, uma vez que a união de facto é
de natureza eminentemente voluntária, e, portanto, se um dos companheiros é o
responsável exclusivo do fim da união, não seria curial que pudesse ainda vir pedir
alimentos ao ex-companheiro.
A disposição nova introduzida no art. 264.° do Código de Família prevê que o
pai de uma criança já concebida, mesmo que não coabite com a respetiva mãe, esteja
obrigado a prestar alimentos durante o período de gravidez e até seis meses após o parto,
pois, em regra, durante este período, a mulher não tem condições para exercer uma
atividade profissional plena.
Neste caso, a obrigação de alimentos tem a sua raiz no vínculo de paternidade
em relação ao nascituro e ao recém-nascido, sendo necessário que se verifiquem os
demais requisitos legais.
[ 141 ] Modo, vencimento e lugar de cumprimento da obrigação de alimentos
A obrigação de alimentos pode ser prestada por duas formas:
a) em prestação pecuniária;
b) em espécie.
A forma de prestação em espécie é aquela que normalmente é prestada quando o
alimentado vive em economia comum com quem está obrigado a prestar-lhe os
alimentos e dele recebe a habitação, o sustento, o vestuário, etc..
A prestação pecuniária ou pensão de alimentos, traduz-se numa determinada
quantia em dinheiro que é entregue ao alimentado ou ao seu representante legal. Esta
prestação tem caráter periódico e prolonga-se enquanto vigorar a obrigação de prestar
alimentos.
O art. 252.° do Código de Família estabelece que, em princípio, os alimentos
devem ser fixados em prestações pecuniárias mensais.
Permite, porém, que seja adotada solução diversa quando tal se justifique.
A lei prevê que se possa acumular a prestação pecuniária com a prestação em
espécie, como por exemplo quando o pai pode dar a um filho, além de uma pensão
mensal, o direito ao levantamento de bens de comércio para consumo, a assistência
médica, ou permitir a entrega de produtos agrícolas ou pecuários para alimentação, etc..
Em cada caso, e de acordo com as circunstâncias concretas, será fixado o modo
como deve ser cumprida a prestação.
Os alimentos podem ser fixados por acordo das partes ou por decisão judicial.
Se os alimentos disserem respeito a menores, o acordo terá de ser homologado pelo
tribunal.
Quando os alimentos tiverem sido fixados de forma amigável entre o
alimen¬tado e o devedor da obrigação, os alimentos são devidos a partir da data do
acordo.
No caso de terem sido fixados por decisão judicial, os alimentos são devidos
desde a data da propositura da ação (art. 254.° do Código de Família), pois entende-se
que foi a partir dessa data que o alimentado começou a necessitar de que lhe fossem
atribuídos os alimentos.
Como vimos, os alimentos não retroagem. Há duas formas de fixação de
alimentos: os alimentos provisórios e os alimentos definitivos.
Atendendo à premência que o alimentado pode ter em que lhe sejam prestados
os alimentos, por poder estar em causa a sua sobrevivência, está previsto que eles sejam
fixados a título provisório. Na verdade, a situação de urgência em que se encontra a
pessoa que vem pedir os alimentos pode não ser compatível com o decurso até final de
uma ação judicial.
A finalidade da lei é assegurar o cumprimento da obrigação alimentar o mais
rapidamente possível.
O art. 256.°, n.° 1 do Código de Família permite que, não estando ainda reunidas
as condições para uma decisão definitiva, o juiz possa, segundo o seu prudente critério,
conceder alimentos provisórios, devendo indicar como provisoriamente responsável
pelo seu pagamento um único obrigado.
O alimentado em caso algum terá de restituir os alimentos provisórios que
recebeu — art. 256.°, n.° 3. Isto compreende-se porque, destinando-se os alimentos, sob
as suas diversas formas, a ser consumidos, torna-se impossível a sua devolução.
Mas se quem prestou alimentos não foi a pessoa que estava obrigada a fazê-lo,
ou se só uma pessoa prestou alimentos sendo vários os obrigados a prestá-los, essa
pessoa terá direito a ser reembolsada do que tiver prestado, total ou parcialmente, por
aquele(s) sobre quem recaia a obrigação de alimentos ou por aquele(s) que também
era(m) legalmente devedor(es) da prestação (art. 256.°, n.° 2, do Código de Família).
Quanto ao lugar do cumprimento da obrigação de alimentos, o Código de Família
nada estatui, pelo que é de aplicar a regra geral das obrigações segundo a qual o lugar
do cumprimento da prestação é no domicílio do credor (art. 774.° do Código Civil).
Deverão ficar a cargo do devedor todos os custos que derivarem do cumprimento da
obrigação no domicílio do alimentado.

[142] Medida e natureza variável dos alimentos


Como foi mencionado, a medida dos alimentos é fixada consoante as
possibilidades económicas de quem os presta e a necessidade de quem os recebe. E se
quem pede os alimentos é alguém que devesse fazer parte do agregado familiar do
obrigado, como o cônjuge ou o filho, aí a obrigação é mais ampla.
Deverá atender-se ao nível social e económico de quem está obrigado a prestar
alimentos, de forma a que quem os recebe possa manter um nível de vida idêntico àquele
de que beneficiaria se vivesse no seio do agregado familiar do obrigado a prestar os
alimentos.
Quando a prestação de alimentos for devida a filho menor deverão ser tidas em
conta as suas necessidades de instrução e educação e de manutenção do nível de vida
idêntico ao do pai ou da mãe que lhe presta os alimentos.
O art. 251.° do Código de Família contém uma disposição inovadora, pois,
quando os alimentos forem devidos a filhos menores, o seu montante deve ser fixado
entre o mínimo de 1/4 e o máximo de 1/2 do valor auferido pelo progenitor em causa.
No cômputo desse montante serão englobados todos os valores auferidos (vencimentos,
rendimentos e outras formas de ganhos).
Ao fixar a prestação de alimentos, o tribunal, de acordo com o seu prudente
arbítrio, deverá determinar qual o quantitativo justo, de forma a não prejudicar o demais
agregado familiar do obrigado, nem tampouco permitir que a prestação fixada não seja
adequada à satisfação das necessidades do obrigado.
Quanto maiores forem os recursos económicos do obrigado, maior será,
obviamente, a pensão alimentar, procurando-se obstar a que os tribunais sigam a
tendência que tem vindo a predominar, de fixarem pensões diminutas.
Na sociedade angolana, com a permanência das relações de poligamia de um
homem convivendo maritalmente com mais de uma mulher e tendo delas em simultâneo
vários filhos, põe-se com acuidade a questão de saber qual o quantum a fixar. E isto
porque, na maioria dos casos, o obrigado não tem na verdade capacidade económica
para arcar com a responsabilidade de prestar alimentos, instrução e educação a todos os
filhos que procriou. Se o obrigado tiver vencimento certo, não será possível ir além de
metade do seu valor.
Pode até verificar-se a impossibilidade de prestação de alimentos por de tal
resultarem graves prejuízos para o cônjuge, para outros filhos menores e para o próprio
obrigado.
A solução legal, no caso de o obrigado não ter disponibilidade para satisfazer
uma prestação pecuniária, é a de este se oferecer para receber em sua casa o alimentado,
como vem previsto no art. 252.°, n.° 2 do Código de Família.
Esta via de solução tem que partir da iniciativa do obrigado, que deve requerer
isso mesmo à entidade que tiver o pedido entre mãos, o tribunal, mas tem que ser aceite
voluntariamente pelo alimentando, ou pelo seu representante legal, pois não se pode
impor uma convivência familiar indesejável.
Como em regra, o pedido de alimentos é formulado pela mãe relativamente ao
pai, esta forma de cumprimento da obrigação levaria a que o filho deixasse de estar
entregue à mãe para passar a conviver com o pai e uma madrasta, o que em regra não é
bem aceite.
Na maior parte dos casos, esta solução também não é satisfatória, pois, se os
recursos já são insuficientes, o acréscimo de mais uma pessoa dentro do lar só virá a
piorar a situação daqueles que lá se encontram e não vai satisfazer devidamente as
necessidades do alimentado.
A lei trata de forma diferente a obrigação de alimentos quando forem prestados
a maiores, pois neste caso, como vimos, o credor do pedido tem que justificar que não
possui recursos e que não tem possibilidade de os angariar pelos seus próprios meios.
Cada cidadão tem o dever de trabalhar para prover à sua própria subsistência, devendo
em cada caso ser avaliada a situação de quem pede os alimentos.
Uma vez fixada a prestação alimentar, ela será variável desde que se alterem as
circunstâncias em que se baseou a decisão.
Ela visou uma situação concreta e será alterada de acordo com as circunstâncias
que lhe serviram de premissa, quer em relação ao sujeito ativo quer em relação ao sujeito
passivo da obrigação.
O art. 257.° do Código de Família prevê a natureza variável da medida dos
alimentos, dizendo no seu n.° 1 que ela pode ser alterada de acordo com as
circunstâncias de quem recebe e de quem presta os alimentos. Trata-se de um princípio
de ordem pública, pelo que não pode ser objeto de renúncia.
O n.° 2 do art. 257.° acrescenta que, por essa razão, poderão ser chamadas outras
pessoas a prestar os alimentos. Pode ocorrer que, depois de terem sido atribuídos os
alimentos, a pessoa que esteja obrigada a prestá-los se venha a encontrar na
impossibilidade de continuar a fazê- lo, podendo transferir-se a obrigação para outro
parente de grau mais afastado.
Ao invés, pode o alimentando deixar de carecer de pensão de alimentos, em
virtude de passar a dispor de recursos próprios, etc..
Quando a prestação de alimentos estiver desajustada em razão da alteração do
custo de vida, os interessados podem pedir a sua atualização.

Certas legislações prevêem expressamente que sejam fixadas cláusulas de


indexação que permitam uma atualização permanente das pensões alimentares,
mantendo assim o valor real da pensão e o poder de compra do alimentado relativamente
aos bens de que necessita para a sua subsistência.
Dada a situação inflacionista que atualmente se vive, consideramos mesmo
indispensável que nas decisões judiciais se prevejam índices de atualização permanente
das pensões alimentares, poupando aos alimentados a necessidade de recorrer
periodicamente a juízo para obter a atualização do valor da pensão.

[143] Execução da obrigação de alimentos


Porque a prestação de alimentos visa prover à subsistência de uma pessoa, esta
finalidade confere-lhe especial importância de natureza social. Não é só o interesse do
beneficiário que está em jogo mas o da sociedade, e, por conseguinte, o do próprio
Estado. Está instituído o princípio de que a falta de cumprimento da obrigação de
alimentos se presume, e, salvo prova em contrário, recai sobre o próprio obrigado.
Daí que nos diversos sistemas jurídicos estejam previstas medidas específicas
para obter coercivamente o cumprimento da obrigação, enveredando por vias expeditas
de execução e prevendo sanções de natureza penal para os relapsos.
No geral, a falta de cumprimento da obrigação alimentar é punida criminalmente
e é considerada como violação de obrigação de assistência familiar. Os pressupostos do
delito são por um lado um sujeito em estado de necessidade e por outro um sujeito
obrigado a prestar alimento, sendo em regra previsto que o incumprimento se verifique
por determinado período de tempo.
No aspeto criminal, é certo que existia, como ainda existe, a Lei n.° 2053, de 22
de agosto de 1952 (Lei do Abandono de Família), que pune a falta de cumprimento
voluntário dos deveres conjugais e paternais, designadamente o não cumprimento da
obrigação alimentar.
O conceito de abandono abrange uma conduta que consiste na ausência da
prestação de ajuda material e moral que a lei impõe a um membro da família, seja na
qualidade de cônjuge seja na qualidade de progenitor e que se traduz na assistência
material e moral, inererentes à «patria potestas, à tutela ou ao estado matrimonial».
«Abandono quer dizer omissão, desamparo, renúncia, ou abstenção de algo que
se é obrigado relativamente à família, imposto pela natureza ou pela lei« O delito de
abandono de família castiga a omissão dos deveres de assistência de solidariedade
conjugal e paternofilial» .
O Anteprojeto do Código Penal integra como «Crimes Contra Outros Bens
Jurídicos Familiares» o crime de Abandono material no art. 230.°: «1 — Quem sem
justa causa, deixar de prover à (...). Cônjuge ou de pessoa em situação análoga, de filho
menor de 18 anos ou incapaz para o trabalho, ou de ascendente incapacitado não lhe
proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão
alimentícia a que estejajudicialmente obrigado (...) épunido com pena de prisão até 2
anos ou com multa até 120 dias.» A omissão tem que ter caráter voluntário e ser
imotivada, sem causa que a justifique.

A Lei Contra a Violência Doméstica, Lei n.° 25/11 de 14 de junho, integra o


abandono familiar como infração criminal definindo como «qualquer conduta que
desrespeite, de forma grave e reiterada, a prestação de assistência nos termos da lei»,
art.° 3.°, n.° 2 al. f). No seu art.° 25.°, al. b) define como crime público entre outros
«afalta reiterada de prestação de alimentos a criança » que é punido com a pena de
prisão de 2 anos, se outra mais grave lhe couber nos termos da legislação.
Para satisfazer as necessidades de sobrevivência do alimentado, certos sistemas
legais prevêem que seja o Estado a substituir-se ao devedor, adiantando o pagamento
da pensão em falta
Em França, por exemplo, prevê-se até que, em certas condições, se use o
pro¬cesso de cobrança pública em que é exequente o Procurador da República e que
segue as normas de cobrança das contribuições diretas devidas aos Estado.
O Estado, por sua vez, toma sobre si o encargo de pagar previamente a pensão
de alimentos ao seu beneficiário, executando depois o devedor com o acréscimo de uma
taxa legal.
Em Portugal a Lei n.° 75/98 de 19 de novembro estatui que seja pago pelo Estado
ao menor residente em território português, desde que o alimentado não possua
rendimentos superiores ao salário mínimo nacional, a pensão de alimentos que devia
ser paga pelo obrigado.
O sistema previsto antes da entrada em vigor do Código de Família, ou seja no
Código Civil e no Estatuto da Assistência Jurisdicional aos Menores, era de débil
garantia quanto à efetiva cobrança da pensão de alimentos, verificando-se inúmeros
casos em que os obrigados ficavam impunes, apesar de não cumprirem as suas
obrigações legais, mesmo quando reconhecidas por decisão judicial.
Há que reconhecer, porém, que a Lei do Abandono de Família, ao longo da sua
longa existência, não tem sido objeto de aplicação prática e tem deixado sem sanção a
generalidade dos casos de violação dos deveres de assistência familiar, quer sob o ponto
de vista moral quer material. Mormente o dever de prestar alimentos, que é sem dúvida
um dos mais importantes.
Com a publicação do Código de Família, a situação sofreu alterações e
simplificaram-se os mecanismos da respetiva cobrança.
O Preâmbulo da Lei n.° 1/88, que aprovou o Código de Família, menciona
precisamente as alterações feitas quanto à medida de alimentos devidos a menores,
acrescentando que se atribui ao tribunal a possibilidade de ordenar à entidade patronal
do obrigado que pague os alimentos diretamente ao alimentando.
No geral, podemos dizer que a execução da obrigação de alimentos pode efetuar-
se por duas vias:
a) Por via civil, em ação executiva especial;
b) Por via criminal, funcionando o pagamento das prestações como condição de
ser dispensada ou extinta a pena, como acontece na legislação portuguesa e está previsto
na projetada lei penal angolana.
Já mencionámos que a obrigação de alimentos é uma obrigação «dever» de
interesse e ordem pública, pelo que o seu incumprimento está sujeito a sanções
especiais, diferentes das demais obrigações em geral.
O art. 255.° do Código de Família prevê o que poderá ser feito pela via judicial
civil, no caso de execução de alimentos.
Contrariamente ao que acontecia na legislação anterior, o Código de Família
atribui ao tribunal que proferir a decisão, em regra a Sala de Família, competência para
a execução da respetiva sentença.
O n.° 1 do art. 255.° diz expressamente que o tribunal deve promover
oficiosamente todas as diligências que se mostrem necessárias.
O alcance desta disposição é muito lato. Permite que, por iniciativa do próprio
juiz, que pode para tal mandatar o escrivão do tribunal, se investigue a existência de
bens do devedor, pedindo informações a entidades públicas e privadas para saber da sua
situação económica, e, em consequência, proceder à penhora dos bens que forem
encontrados.
Neste caso o interesse público de satisfazer as necessidades do alimentado
prevalece sobre o dever de sigilo profissional a que as entidades bancárias estão
adstritas, devendo estas prestar as informações que lhes forem solicitadas para efeito de
execução coerciva da dívida.
O Ministério Público e o credor de alimentos podem também vir aos autos indicar
os bens a apreender para satisfação da quantia exequenda.
Como muitas vezes acontece que o devedor dos alimentos procura subtrair-se à
sua obrigação ocultando os seus bens em nome de terceiros, o tribunal deverá, investigar
e se em concreto se convencer de tal, ordenar a penhora sobre bens que estejam na
efetiva posse do obrigado, como recheio de residência, viaturas automóveis, etc..
No caso de se tratar de trabalhador por conta de outrem, o n.° 2 do art. 255.°
permite que se efetue o pagamento direto entre o centro de trabalho (seja ele entidade
patronal pública ou privada) e o beneficiário da pensão de alimentos.
Dispensa-se assim a intervenção do obrigado nesse pagamento, o que
simulta¬neamente encurta o prazo de recebimento e obsta a que haja desvio por parte
do obrigado. Opera-se a sub-rogação do crédito do devedor sobre o terceiro que é seu
devedor, diretamente a favor do credor da obrigação alimentícia.
Basta para tal que o tribunal mande proceder à notificação judicial de ter¬ceiro
que é devedor do salário ou vencimento, ficando esse terceiro obrigado a
satisfazer o cumprimento da obrigação enquanto perdurar a decisão e sc mantiver
a obrigação jurídico-laboral ou de emprego.
O devedor da prestação, que pode consistir em salários, participações em lucros,
comissões, prémios ou outros rendimentos, fica obrigado a operar o pagamento que lhe
foi notificado ao alimentando, sob pena de incorrer nas sanções previstas para o
depositário infiel.
Na grande maioria dos sistemas jurídicos, a tendência é, como vimos, considerar
hoje a falta injustificada de pagamento da pensão de alimentos como uma infração
penal, prevista entre os delitos cometidos contra a família.
A legislação penal angolana carece de urgente atualização, de forma a punir os
infratores que voluntariamente se furtem ao cumprimento da obrigação de alimentos.
A execução da obrigação de alimentos pode seguir em simultâneo a via civil e a
via criminal, de forma a que seja alcançado o cumprimento efetivo da obrigação, sempre
tendo em conta o interesse do beneficiário e o da sociedade em geral, em que ela seja
devidamente satisfeita.
O citado art. 27.° da Convenção dos Direitos da Criança, prevê no seu n.° 4 que
sejam tomadas medidas para a cobrança da pensão alimentar mesmo entre Estados
diferentes.
Entre Angola e Portugal foi celebrado o mencionado Acordo de Cooperação
Jurídica e Judiciária aprovado pela resolução n.° 60/04 e publicado em 7 de novembro
de 2005 que no seu Capítulo II sobre Reconhecimento e Execução de Decisões
Relativas a Obrigações Alimentares — nos artigos 14.° e seguintesprevê as condições
que permitem que sejam executadas as decisões judiciais proferidas sobre alimentos
entre nacionais dos referidos Estados.
Este acordo celebrado em 30 de agosto de 1995, e aprovado pela Assembleia
Nacional em sessão de 10 de agosto de 2004, foi só publicado na data acima indicada.
Com um total de 145 artigos é extensivo a diversas áreas de direito sendo que em
matéria de direito de família ele incide sobre «Reconhecimento e Execução de Decisões
Relativas a Obrigações Alimentares».

ARTIGO 14.° (Decisões abrangidas)


1. Opresente capítulo é aplicável às decisões em matéria de obrigações
alimentares provenientes de relações de parentesco, casamento e afinidade proferidas
por tribunal de Estado Contratante.
2. O presente capítulo é também aplicável às transações celebradas sobre essa
matéria perante essas entidades e sobre essa matéria.
X As decisões e transações referidas nos números antecedentes tanto podem ser
as que fixem alimentos como as que modifiquem decisões ou transações antecedentes.
4. 0 presente capítulo é ainda aplicável às decisões e transações em matéria de
união de facto nos precisos termos em que o direito respetivo tenha correspondência no
Estado de execução.
5. Para efeitos do presente capítulo o Estado referido no n.° 1 designa-se Estado
de origem.
Desconhecemos qual tem vindo a ser o âmbito de aplicação deste Acordo e como
tem vindo a processar se na prática o seu desempenho.

[144] Extinção do direito e da obrigação de alimentos


A extinção do direito e da obrigação de alimentos pode resultar de duas ordens
de fatores:
a) a verificação de um facto;
b) a decisão judicial.
Os casos de extinção da obrigação de alimentos vêm expressamente previstos no
art. 258.° do Código de Família, regulando o art. 263.° a obrigação entre ex-cônjuges
ou companheiros de união de facto.
O art. 258.°, n.° 1, alínea a), diz que a obrigação de alimentos cessa pela morte
do obrigado ou do alimentado. No seu n.° 2 prevê este artigo que o alimentado exerça
o seu direito em relação a outros, igual ou sucessivamente obrigados.
É a consequência legal da caraterística pessoal do direito a alimentos, que não é
transmissível post mortem. Essa intransmissibilidade verifica-se quer em relação ao
credor dos alimentos (pois o seu direito não se transmite para os seus herdeiros) quer
em relação ao devedor dos alimentos (pois os herdeiros deste não ficam obrigados ao
cumprimento da obrigação).
Isto não significa que, se houver prestações já vencidas e não pagas, o credor da
obrigação (o alimentando), não possa vir exigi-las sobre os valores existentes da herança
do devedor da obrigação. Por ter cessado o vínculo familiar que unia o obrigado e o
alimentado, deixou de existir um dos pressupostos legais.
Na obrigação de alimentos entre ex-cônjuges ou companheiros de união de facto,
a que já nos referimos, ela extingue-se ainda pela verificação dos factos mencionados
no art. 263.° do Código de Família (ter sido contraído novo casamento ou ter sido
constituída nova união de facto).
A extinção da obrigação por via de decisão judicial é aplicável a todos os demais
casos. O art. 258.° do Código de Família menciona como casos de extinção da obrigação
os seguintes:
a) quando o alimentado maior de idade viole gravemente os seus deveres para
com o obrigado;
b) quando aquele que presta os alimentos não possa continuar a prestá-los ou
aquele que os recebe deixe de ter necessidade deles.
Por sua vez o art. 263.°, no caso específico de ex-cônjuges e companheiros,
acrescenta ainda o caso de atentado grave contra a honra do obrigado.
No caso da alínea b) do art. 258.° estamos perante pessoas ligadas por vínculo
familiar que estão adstritas a determinados direitos e deveres específicos. Havendo
violação grave desses deveres, pode julgar-se extinto também o dever de alimentos.
Em regra, dado o caráter de reciprocidade da obrigação alimentar, se aquele que
era obrigado a prestá-la não a prestou, como por exemplo no caso do pai em relação ao
filho menor que deixe desamparado, tem de se entender que, mais tarde, o pai não pode
vir pedir alimentos ao filho.
Igualmente é de aplicar tal disposição quando, durante a existência do vínculo
conjugal, um dos cônjuges viole gravemente os seus deveres para com a família
matrimonial.
A violação grave do dever pode ser apreciada pelos tribunais, sopesando as
circunstâncias de cada caso concreto e avaliando se os factos são em si graves, se
revestem de natureza dolosa ou meramente culposa.
Por fim, cessa a obrigação de alimentos quando o obrigado deixe de poder
continuar a prestá- los ou ainda quando quem os receber deixe de ter necessidade de os
receber. Num caso e noutro, estaremos perante pressupostos legais da obrigação de
alimentos que, se deixarem de existir, vão fazer extinguir a própria obrigação.
Na verdade, a obrigação de alimentos, que é de natureza variável, pode ser
reduzida ou até extinta consoante se alterem as circunstâncias económicas do obrigado
e do beneficiário.
As disposições do art. 258.° do Código de Família são de natureza geral e são
aplicáveis a todos os casos da obrigação de alimentos.
Já quando a obrigação de alimentos se verifica entre ex-cônjuges ou
com¬panheiros de união de facto, o vínculo familiar deixou de existir, havendo tão
somente um prolongamento do dever de assistência material que vinha do vínculo
anterior. Daí que não se possa mencionar a violação de um dever recíproco.
O Código Civil tinha um conceito mais restrito da obrigação de alimentos neste
caso, pois mencionava que era causa de extinção o facto de o alimentado se tornar
indigno pelo seu comportamento moral.
O Código de Família não aceitou este critério, pois entendeu-se que o facto da
indignidade moral do alimentado não lhe retirava a carência dos alimentos.
O art. 263.° do Código de Família impõe que o alimentado cometa algum ato
dirigido diretamente contra a pessoa do obrigado.
E tem que ser um ato grave: um atentado contra a vida ou um grave atentado
contra a honra do obrigado. Os factos previstos no art. 263.° devem ser posteriores à
dissolução do casamento ou à rutura da união de facto.
A propósito da dissolução do casamento por morte, já foi mencionado que o
cônjuge sobrevivo tem direito a ser alimentado pelos rendimentos do cônjuge falecido,
como estabelece o art. 261.° do Código de Família.
Os herdeiros ou legatários a quem tenham sido transmitidos os bens são
chamados a responder pelos alimentos na proporção do respetivo quinhão. Trata-se de
um encargo da herança a ser visto também no âmbito do direito sucessório. Se o encargo
recair sobre bens imóveis, ele está sujeito a registo, de acordo como o n.° 3 deste art.
261.°.
O art. 264.° prevê que: «0 pai que não coabite com a mãe do filho é obrigado a
prestar-lhe alimentos, quando ela deles careça, relativamente ao período de gravidez e
até 6 meses após o parto».O vínculo que liga o progenitor ao nascituro é o fundamento
da obrigação de alimentos que se prolonga pelos seus primeiros 6 meses de vida, em
relação à mãe do filho, tendo em conta que ela no período pós-natal estará
impossibilitada de trabalhar.
BIBLIOGRAFIA
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MARIA DO CARMO MEDINA
Ficheiro de Legislação da República Popular de
Angola — Fascículos L°, 2. °, 3.0
Acórdãos do Tribunal da Relação — 1976a 19 ,9
Código de Família (divulgação)
Participação no livro «Femme em Angola»
Estudo «A mulher e a criminalidade» inserido na
Tese «27anos na luta pela Paz»
Acórdãos do Tribunal Supremo — 1990
Código de Família (Anotado) — 1998
Código de Família (Anotado) — 2a edição revista
e actualizada — 2005
Direito de Família — Lições — 2001
Direito de Família — 2.aedição revista
e actualizada — 2005
Lei de Bases do Ambiente (colaboração) — 2001

Angola: Processos Políticos da Luta pela


Independência — 2003
Lei do Julgado de Menores e Código de Processo do
Julgado de Menores ( Anotados) — 2004 CEDANT ARMA TOGAE

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