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No âmbito do nosso estudo teremos que nos debruçar sobre o ramo de direito
que regula e disciplina as relações jurídicas familiares.
Estas relações jurídicas têm como alicerce um fenómeno social que é constituído
pela família. A família é em si um fenómeno natural inerente à sociedade humana. A
socialização da pessoa humana inicia-se na família.
O conceito de família não é, de qualquer forma, um conceito estático e imutável.
Muito pelo contrário: como os demais fenómenos humanos e sociais, está sujeito a um
processo de evolução e transformação. Não se pode entender a família como um
instituto uniforme, sendo que dentro do mesmo Estado pode haver mais de um tipo de
grupo familiar.
Dentro do Direito de Família estão englobados diversos sub-ramos de direito: o
direito matrimonial, que regula as relações jurídicas de natureza pessoal e patrimonial
que se estabelecem entre os cônjuges; o direito da filiação ou direito paterno-filial, que
estabelece os direitos e deveres entre pais e filhos; o direito de parentesco, que
determina os efeitos jurídicos existentes entre pessoas ligadas por laços de sangue
provenientes duma ascendência comum; o direito da afinidade, que regula as normas
vinculativas da aliança que se estabelece entre o cônjuge e os parentes do outro cônjuge,
ou, se quisermos entender num sentido mais lato, as normas que regulam a aliança entre
duas famílias; o direito da tutela, que visa regular as formas de substituição da
autoridade paternal; o direito que regula as relações jurídicas que provêm da adoção, a
qual, como veremos, estabelece um vínculo jurídico idêntico ao da filiação entre
pessoas não ligadas entre si por laços de filiação biológica, etc..
Dentro do Direito de Família iremos ainda estudar determinadas situações de
facto que, pela sua importância, o legislador não pode ignorar, tais como a
união livre entre um homem e uma mulher à margem do casamento, denominada
união defacto. E também a separação de facto entre cônjuges que, embora unidos
legalmente por laços do matrimónio, cessam, à margem do divórcio, a convivência
comum.
Outra situação de facto de grande relevância no Direito de Família é a chamada
posse de estado das relações jurídicas familiares, a que o legislador reconhece efeitos
legais, tais como a posse de estado de casado ou a posse de estado de filho, que atribui
ao filho uma real vivência como tal.
Delas se faz derivar importantes consequências de direito e há quem chame a
este fenómeno a juridicização das relações de facto.
Dentro da família vigoram institutos de natureza patrimonial, como os regimes
matrimoniais de bens entre os cônjuges, onde está prevista a regulação de questões
como a aquisição e a gestão patrimonial dos bens do casal, a sua alienação, e ainda a
administração do património dos filhos menores atribuída aos progenitores, etc.. A
própria estrutura e funcionamento do direito sucessório estão intrinsecamente ligados
às normas do Direito de Família.
O Direito de Família ou, se quisermos dizer, «os direitos de família» são em geral
os direitos que tutelam os interesses das pessoas que fazem parte da comunidade
familiar. A família pode
assim ser definida como um grupo social relacionado entre si por obrigações e
direitos recíprocos.
O estado familiar é a situação subjetiva da pessoa dentro da família, como titular
duma pluralidade de direitos, poderes e deveres específicos.
a) Codificação do Direito de Família
Os sistemas de direito socialista rejeitavam a divisão bipartida do direito em
direito público e direito privado, adotando uma conceção unitária do direito, dimanado
de uma fonte única do poder do Estado.
O que é importante realçar é que, nesses sistemas, o Direito de Família
consti¬tuía um ramo autónomo do direito, destacado do direito civil. Autonomizava-se
o direito de família em razão do tipo específico das instituições jurídicas que ele regula,
pelo que, nesses países, as leis de família eram leis destacadas dos códigos civis.(1)
A nível do continente africano também se nota a tendência de autonomizar o
direito de família com a publicação dos respetivos códigos Leis de Família de S. Tomé
e Príncipe (1977), os Códigos de Família da Costa do Marfim e da Argélia. As leis de
Família, Divórcio e Filiação de 1976, de Cabo Verde foram
revogadas e as normas inseridas de novo no Código Civil pelo Decreto-
Legislativo n.°12-B/97 de 30 de Junho.
Nos sistemas de direito romano-germânico, que englobam a Alemanha e países
da Europa Ocidental, as normas de direito de família estão integradas nos respetivos
códigos civis. Verificamos que num sistema jurídico que nos é próximo, o direito
brasileiro, foi aprovado pela Lei n.° 10 406 de 10 de janeiro de 2002, o novo Código
Civil que consagra o seu Livro IV ao Direito de Família, seguindo assim o sistema
romano-germânico.
No entanto na Catalunha, Espanha, existe o Código de Família que foi
autonomizado do Código Civil espanhol. O Código de Família aprovado pela Lei n.°
9/1990 de 15 de julho com alterações das leis n.° 3/2005 e n.° 10/2008.
Porque se vive numa época de profundas alterações em todo o mundo, no direito
de família, tem sido frequentemente usado o método de publicação de leis avulsas que
atualizam pontualmente importantes matérias de direito de família. No Chile foi
publicada a Lei n.° 19 947, de 17 de maio de 2004, a Lei do Casamento Civil. Na
República Popular da China vigora a Lei do Casamento de 1980 que sofreu profunda
revisão em 2001. Na Suécia foi aprovada a Lei dos Conviventes, de 2003. Em França
foi aprovada a Lei do Divórcio de 26 de maio de 2004, que entrou em vigor em 1 de
janeiro 2005.
Em Moçambique foi publicada a Lei n.° 10/2004 de 25 de agosto que aprovou a
Lei da Família e que veio revogar o respetivo Título do Código Civil. Na África do Sul
foi aprovada a Lei da União Civil que entrou em vigor em novembro de 2006 e que foi
a primeira lei no continente africano a reconhecer efeitos à união entre pessoas do
mesmo sexo. A Lei 54/2006 da Itália,
veio alterar o Código Civil na matéria relativa ao exercício da autoridade paternal
por pais separados, estabelecendo e regulando o exercício da autoridade paternal de
forma conjunta.
Na Suíça foi aprovada a Lei do Partenariado Registado, que passou a vigorar a
partir de 1 de janeiro de 2007, aplicável a uniões entre pessoas do mesmo sexo. A
Noruega aprovou a Lei do Casamento em junho de 2008 que entrou em vigor em janeiro
de 2009 e que permite casamento formal entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo
sexo.
Em Portugal foi publicada a Lei n.° 61/2008 de 31 de outubro que veio alterar o
regime jurídico do divórcio, fazendo-o por via da alteração das disposições do Código
Civil e completando-as com alterações ao Código de Processo Civil e do Registo Civil.
No ano de 2009 foram alteradas disposições relativas ao estabelecimento da filiação,
Lei n.° 14/2009 e relativas ao casamento Lei n.° 29/2009, de 29 de junho, que passou a
permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mais recentemente, a Lei n.° 2/2011
de 15 de março, veio estabelecer o precedimento a seguir no registo civil para se alterar
a mudança de sexo c de nome próprio.
já no sistema de direito anglo-saxónico o direito de família é integrado em leis
específicas sobre os seus institutos fundamentais, como o casamento, divórcio, filiação
e direitos da criança. Mesmo em países que procederam a reformas legislativas
importantes após as mudanças no mundo socialista manteve-se o direito de família em
diplomas separados.^3' Há que apontar que a República Checa apesar de muita
controvérsia, optou por introduzir a partir de 1998, as reformas do direito de família no
Código Civil.
b) Função promotora do Direito de Família
Por fim, devemos apontar a função promotora do direito de família no âmbito do
comportamento dos membros da família e na defesa dos legítimos interesses dos seus
membros tal como são tutelados por lei.
Importa reconhecer que o direito de família está proíúndamente imbricado com
questões que se prendem com a sociologia e a antropologia e que estudam as bases do
comportamento humano no meio social e em que se estrutura o direito costumeiro.
É certo que questões de natureza eminentemente política se vão repercutir no
direito de família, como sejam a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana à
liberdade e à igualdade, a posição da mulher na sociedade, a política de cada país em
relação ao aumento ou à diminuição da população.
Acontece com frequência haver um desajuste entre o conteúdo da norma
jurídicae a prática social, porque muitas vezes o peso das tradições leva à exploração e
à opressão dentro da família e ao desrespeito dos princípios defendidos por lei e ao uso
abusivo de direitos. Mas também é certo que o conhecimento, por cada pessoa, dos seus
próprios direitos permite que mais facilmente se reivindique o seu exercício e a sua
aplicação subjetiva.
Por isso as reformas no campo do direito de família têm um indiscutível impacto
no meio social e atuam como agente promotor do progresso da própria sociedade. O
direito de família confere um verdadeiro poder de intervenção pela via legal, alterando
comportamentos anteriores que deixaram de ser protegidos por lei.
Muitas vezes as normas do direito de família são, na sua essência, normas de
conteúdo ético- jurídico que definem o tipo ideal das relações familiares. Este ramo do
direito não pode, por conseguinte, ser encarado de forma passiva como a reprodução, a
nível jurídico, de uma realidade social. Ele deve antes traduzir- -se num meio de atuação
nas estruturas sociais, visando em concreto um novo comportamento e um novo
relacionamento entre os membros da família.
ARTIGO 10.°
DIREITOS DE VIUVEZ DAS MULHERES E HOMENS
1. Os Estados Partes deverão promulgar legislação e fazê-la cumprir, de modo a
garantir que:
a) as viúvas não sejam sujeitas a tratamento desumano, humilhante ou
degradante;
b) salvo determinação em contrário por um tribunal competente, a viúva se tome
automaticamente encarregada de educação dos seus filhos e tenha a custódia dos
mesmos em caso de morte do esposo;
c) a viúva tenha direito a viver na casa matrimonial após a morte do esposo
d) a viúva tenha acesso a emprego e a outras oportunidades para que possa prestar
um contributo significativo à sociedade;
e) a viúva tenha direito a uma porção equitativa na herança do seu esposo;
f) a viúva tenha direito de voltar a casar-se com qualquer outra pessoa de sua
escolha; e
g) a viúva esteja protegida contra todas as formas de violência e discriminação
em razão
da sua condição.
2. Os Estados Partes deverão adotar medidas legislativas para assegurar que os
viúvos gozem dos mesmos direitos que as viúvas nos termos do n.° 1 do presente artigo.
ARTIGO 11.°
CRIANÇAS DO SEXO FEMININO E MASCULINO
1. Os Estados Partes deverão adotar leis, políticas e programas para garantir o
desenvolvimento e proteção de meninas:
a) eliminando todas as formas de discriminação contra as meninas a nível da
família, da comunidade, de instituições do Estado;
b) assegurando que as meninas tenham igual acesso à educação e a cuidados de
saúde e não sejam submetidas a tratamento algum que lhes faça desenvolver uma auto-
-imagem negativa;
c) assegurando que as meninas gozem dos mesmos direitos que os meninos e
sejam protegidas de atitudes e práticas culturais danosas, em conformidade com a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Carta Africana sobre os
Direitos e o Bem-Estar da Criança;
d) protegendo as meninas da exploração económica, do tráfico de seres humanos
e de todas as formas de violência, incluído abuso sexual;
Por sua vez, o direito escrito privado, como era designado, também foi sendo
alterado, e em 1910, com a proclamação da República, foram introduzidas importantes
reformas ao Código Civil do século XIX.
A Lei do Divórcio, de 3 de novembro de 1910, veio permitir a dissolução do
casamento por divórcio, tanto sob a forma de divórcio litigioso como sob a forma de
divórcio por mútuo consentimento. A Lei n.° 1, de 25 de dezembro de 1910, ocupa-se
do casamento, conferindo validade tão somente ao casamento civil. A Lei n.° 2, de 25
de dezembro de 1910 (lei da Proteção dos Filhos) versa sobre o direito de filiação.
Entretanto, foi celebrada entre Portugal e a Santa Sé uma Concordata (Maio de
1940), que trouxe importantes alterações em matéria de direito de família,
designadamente quanto à validade do casamento canónico, à renúncia ao direito ao
divórcio e à atribuição do conhecimento das causas relativas à nulidade do casamento
católico aos tribunais eclesiásticos.
A Concordata só entrou em vigor nas antigas colónias cerca de seis anos depois,
pelo Decreto n.° 35 461, de 22 de janeiro de 1946, mas com diversas adaptações/ *
O segundo Código Civil Português, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47 344,
entrou em vigor nas antigas colónias por força da Portaria n.° 22 869, a partir de 1 de
janeiro de 1968. O seu Título IV é dedicado exclusivamente ao direito de família e nele
se espelham as conceções retrógradas das relações jurídicas familiares, quer no campo
das relações matrimoniais (em que é reconhecido o poder marital do marido sobre a
mulher, o poder exclusivo deste como administrador dos bens do casal), quer no campo
das relações de filiação, discriminando os filhos legítimos dos ilegítimos (com
importantes restrições para estes últimos no campo dos direitos pessoais e sucessórios)
e atribuindo ao pai, nas relações paterno-filiais, poderes prevalecentes, aparecendo a
mãe como mera conselheira/ '
Toda esta matéria foi profundamente reformulada em Portugal depois do 25 de
abril, com a publicação do Decreto-Lei n.° 496/77, fruto das transformações políticas e
económicas operadas naquele país, que afastaram os anteriores princípios
discriminatórios. Aliás o direito português tem sofrido constante alterações,
modernizando-se nos seus conceitos e procedimentos, com profundas alterações
designadamente em matéria de direito de família.
respeitantes aos processos cíveis que ainda estejam em vigor (...)». Este diploma
contem ainda normas vigentes em matéria de processo relativa ao direito das relações
paterno filiais.
Mais recentemente foi publicado o Decreto n.° 31/07 de 14 de maio a que adiante
nos referiremos.
l.°).Decorridos que são mais de 20 anos sobre a sua aprovação, reconhece-se que
se torna necessário a sua adaptação às novas conceções que se vão criando sobre o
direito de família, que acelcradamente se vão processando em todo o mundo.
b) Sistemática do Código de Família
A Lei n.° 1/88, que aprova o Código de Família, contém normas de natureza
transitória e outras de natureza processual.
Convém atentar no conteúdo do Preâmbulo, pois ele traça algumas linhas mestras
que alicerçam as novas instituições do direito de família: «O novo código insere-se no
combate de toda a humanidade progressista contra o obscurantismo (...)» e deve
entender-se «como meio real da emancipação política, económica e social dos
trabalhadores angolanos>>.
Na verdade, o novo código acolheu os princípios jurídico-sociais então
consagrados no direito de família dos países progressistas, adaptando-os à nossa
realidade.
No Preâmbulo vêm enunciadas as suas linhas orientadoras, tais como a proteção
de todos os filhos nascidos ou não do casamento dos pais; o da divisão justa das tarefas
e responsabilidades no seio da família; a igualdade do homem e da mulher em todas as
relações familiares; a abolição da validade do casamento canónico; o novo conceito de
casamento com maior relevância para os seus aspetos pessoais do que para os
patrimoniais; a possibilidade da legalização das uniões de facto; a nova conceção da
dissolução do casamento por divórcio; a garantia do direito ao estabelecimento da
filiação; a simplificação dos mecanismos da tutela; o reforço da obrigatoriedade da
prestação de alimentos, mormente quando destinados a menores, etc..
A Lei n.° 1/88 contém ainda normas sobre a sua aplicação no tempo (art. 3.°);
sobre a contagem de prazos de natureza substantiva (art. 4.°); sobre a concessão de um
novo prazo para a propositura da ação de impugnação da paternidade do marido da mãe
(art. 5.°).
Os arts. 6.° e 7.° contêm normas de natureza processual de grande interesse
prático, pois mandam aplicar a todas as ações de natureza familiar a forma do processo
especial de jurisdição voluntária do art. 1409.° do Código de Processo Civil, o qual, por
sua vez, remete para as normas processuais dos arts. 302.° a 304.°, referentes aos
incidentes da instância. O art. 7.° abre ao juiz um largo poder de intervenção processual,
alterando a posição do julgador de uma posição meramente dispositiva para uma
posição de intervenção na recolha da prova. O escopo do tribunal será o de obter a
descoberta da verdade material, de forma a poder decidir o objeto da lide de uma forma
justa e de acordo com a realidade dos factos.
Compreende-se tal posição ao ter-se em conta que no direito de família estão em
jogo não só interesses pessoais mas também interesses sociais. Estas alterações
só são aplicáveis em segundo plano, pois o próprio Código de Família inclui
normas dc natureza processual em diversos dos seus Títulos.
Por outro lado, estava-se na expetativa de que se procedesse a reformas na lei
processual civil vigente, de forma a simplificá-la e a torná-la mais consentânea com a
nossa realidade e também com as exigências de celeridade do mundo moderno, o que
infelizmente até ao momento não aconteceu.
Adotou-se transitoriamente esta via para permitir maior intervenção do juiz no
desenrolar do processo, procurando-se tornar este menos formal.
No art. 8.° vem transposta a matéria que vinha consignada nos artigos 3o, 4o e
5o da Lei n.° 53/76 sobre o pedido de conversão em divórcio da separação de pessoas
e bens, normas estas que foram mantidas com caráter transitório, para a hipótese, pouco
provável, de algum interessado não ter entretanto exercido aquele direito desde a data
da publicação da lei.
O art. 9.° veio confirmar a obrigatoriedade do registo civil de todos os atos
mencionados nos diplomas pertinentes, designadamente no Código do Registo Civil.
Os atos sujeitos a registo obrigatório vêm enunciados no art. l.° do citado Código. A
publicação do Código de Família tomou necessária a adaptação das normas do registo
civil ao novo diploma, com especial relevância em questões como a união de facto, a
filiação, a adoção e outras.
E, embora tenha sido elaborado um projeto sobre tal matéria em 1993, o certo é
que ele não chegou a ser publicado, como o não foi ainda a adaptação do Regulamento
do Ato do Casamento às normas do Código de Família.
Adiante veremos a importância das normas do registo civil e como elas se
refletem sobre a prova da titularidade do estado civil das pessoas.
O art. 10.° refere-se à revogação tácita da legislação anterior com conteúdo
contrário ao da nova lei e bem assim à revogação expressa de outros textos legais, em
especial das normas do Código Civil, bem como das diversas leis publicadas após a
Independência Nacional.
O conteúdo destas últimas leis foi, aliás, no essencial, integrado nos diversos
títulos do novo Código de Família fazendo parte dos respetivos institutos.
Do Código Civil vigente foram revogados o art. 86.° do Livro I sobre o domicílio
legal da mulher casada, os arts. 143.°, 144. e 146.° sobre a tutela, e a totalidade do Livro
IV sobre o direito de família.
As novas normas contidas no Código tornam urgente a necessidade de alterar
outros ramos de direito. As normas de direito das sucessões carecem de ser adaptadas
aos novos conceitos contidos no Código de Família, designadamente o da unidade do
conceito dc filiação, o de adoção como forma de parentesco, os direitos sucessórios na
união de facto, etc..
O Código Civii contém ainda normas de conteúdo abertamente discrimi¬natório,
tanto na parte geral (as normas de conflito em direito internacional privado em que
prevalece a lei pessoal do marido), como no Livro das Sucessões, normas que, embora
revogadas por inconstitucionais, deverão ser banidas do
código.
O Código de Família está dividido em oito Títulos: — Princípios fundamentais
— Constituição da família
— Casamento
— União de facto
— Relações entre pais e filhos
— Adoção
— Tutela
— Alimentos
O conteúdo dos 8 títulos é, em síntese, o seguinte:
0 Título I contém os princípios fundamentais que norteiam todo o diploma.
O Título II tem 3 capítulos: o das disposições gerais sobre as fontes das relações
jurídicas familiares, o do parentesco por laços de sangue, o da afinidade e do conselho
de família.
0 Título III, que é o mais extenso, compõe-se de 5 capítulos: o das disposições
gerais, que inclui o conceito de casamento, a ineficácia da promessa de casamento, a
capacidade matrimonial; o da celebração do casamento; o dos efeitos do casamento; o
da anulabilidade do casamento e o da dissolução do casamento.
O Título IV refere-se à união de facto e tem 3 capítulos: o das disposições gerais
com o conceito de união de facto e seus pressupostos legais, o do reconhecimento por
mútuo acordo c o do reconhecimento em caso de morte ou rutura.
O Título V tem 3 capítulos: o primeiro sobre os direitos e deveres entre pais e
filhos; o segundo sobre o exercício da autoridade paternal c o terceiro sobre o
estabelecimento da filiação.
O Título VI abre com o capítulo que contém os princípios gerais da adoção, vindo
depois o que contém as formas da adoção e o que se refere ao processo de adoção.
O Título VII contém 4 capítulos: o que contém as disposições gerais e se refere
aos sujeitos e fins da tutela; o da constituição da tutela; o do exercício da tutela e o do
termo da tutela.
O Título VIII, concernente aos alimentos, define no seu capítulo I o respetivo
conceito e os sujeitos ativos e passivos da obrigação alimentar, a forma da sua
prestação, a sua natureza e a cessação da obrigação; o capítulo II refere-se à
obrigação de alimentos em caso de casamento e de união de facto.
[15] Princípios fundamentais do Código de Família e seus conceitos genéricos a)
Princípios fundamentais do Código de Família
O Título I, «Dos princípios fundamentais», contém normas que, pelo seu alcance
e importância normativa, se podem equipar a verdadeiras normas de natureza
constitucional.
Os princípios básicos enunciados neste Título I vão servir de estrutura e nortear
todas as demais normas contidas no Código.
Podemos, em síntese, indicá-los da forma seguinte:
1) Especial obrigação do Estado de proteção à família, pela sua importância
como núcleo fundamental da organização da sociedade, promovendo o direito à
instrução, ao trabalho, ao repouso e a seguros sociais.
2) Especial obrigação da família de promover a educação cultural e moral de
todos os seus membros dentro dos princípios do amor ao trabalho e de fidelidade à pátria
e em especial a dos jovens, em ordem à sua integração na sociedade.
3) O direito de cada membro da família ao desenvolvimento da sua personalidade
e aptidões no interesse da nova sociedade.
4) A igualdade do homem e da mulher em todas as relações jurídicas familiares.
5) A igualdade de todas as crianças perante o Estado e a especial obrigatoriedade
da sua
proteção, tanto pela família como pelo Estado.
6) A criação de uma nova moral nas relações familiares, estruturada na igualdade
de direitos, no respeito da personalidade dos seus membros e no princípio da
solidariedade recíproca.
Através da concretização destes princípios, procura-se obter uma transformação
na estrutura familiar, de forma a conseguir que, ao nível das suas relações internas, se
estabeleça uma interdependência recíproca mais justa e mais favorável aos membros
que a compõem.
b) Conceitos genéricos do Código de Família
O Código de Família recorre a diversos conceitos genéricos ou conceitos de
con¬teúdo jurídico indeterminado, que a doutrina classifica como verdadeiras normas
em branco cujos limites não são definidos com exatidão e cujo preenchimento terá que
ser encontrado, em cada caso concreto, pelo intérprete ou pelo julgador.
A entidade ou o agente a quem caiba a aplicação da lei tem que se socorrer de
ideias supra-jurídicas, como os conceitos de boa-fé e de má-fé, para decidir de questões
tão importantes como a dos efeitos do casamento anulado (cfr. art. 72.° do Código de
Família). Na fundamentação do pedido de divórcio litigioso menciona-se que deve ser
invocada causa grave ou duradoura (art. 97.°) que comprometa a vida em comum dos
cônjuges. Nas questões que têm a ver com a situação dos menores, como seja a dos
direitos e deveres paternais, menciona-se que eles devem ser exercidos no interesse e
em beneficio dos filhos e da sociedade (art. 127.°, n.° 2). Nas decisões sobre o exercício
da autoridade paternal, o tribunal deverá sempre ter em conta o beneficio e o interesse
do menor e a sua adequada inserção no meio social (art. 160.°). Nos requisitos legais
para o adotante impostos no art. 199.°, n.° 1, alínea b) menciona-se que ele tem que
possuir idoneidade moral e bom comportamento social, especialmente nas relações
familiares. Na nomeação do tutor, o tribunal terá em conta os interesses do menor e da
sociedade (art. 233.°, n.° 1).
Trata-se de expressões propositadamente amplas e de contornos difusos, que vão
permitir a quem tem de aplicar a lei ter em conta, por um lado, os sentimentos
predominantes num determinado momento histórico, e, por outro, as circunstâncias
específicas do caso concreto. Só essa valoração complexa permitirá que a lei se tome
justa ao ser aplicada. No fundo, estamos perante a aplicação do princípio da equidade,
que, em sentido restrito, consiste na «apreciação das circunstâncias de facto confiada à
consciência do juiz e que éfeita de acordo com as ideias morais e sociais do povo a que
pertence» .
A vigência da lei, prolongando-se no tempo, torna necessário que se ajuste a
decisão à nova realidade concreta subjacente à norma jurídica. A integração dos factos
à previsão da norma legal nem sempre é uniforme e depende da conceção que a dado
momento a sociedade tem sobre determinados valores e até pode acontecer que em
simultâneo, se confrontem sobre as mesmas questões posiçõesadversas.
É no momento em que a norma vai ser aplicada que se vai delimitar para aquele
caso em concreto, a forma como se integra o conceito genérico.
[16] Relevância do direito costumeiro
O facto de coexistirem no mesmo país diversas etnias com usos e costumes
diferentes, embora possa ser positivo sob o ponto de vista da riqueza cultural, pode, por
outro lado, ser usado como elemento desagregador do novo Estado, suscetível de fazer
reavivar o tribalismo, travando o processo necessário à coesão política da nação.
Também a unidade legislativa, como é óbvio, põe fim à discriminação entre dois
tipos de cidadãos dentro do mesmo país que se verificava na ordem jurídica colonial,
que contrapunha o estatuto de direito pessoal regulado pelo direito escrito e o estatuto
pessoal do direito costumeiro.
É certo que diversos Estados adotam sistemas de pluralismo jurídico ou seja,
admitem que vigorem dois ou mais sistemas jurídicos diferentes e que eles se apliquem
diferentemente aos diversos grupos étnicos que coabitam dentro do território do
respetivo Estado. Este sistema era predominantemente aceite nas colónias britânicas
que previa em simultâneo a vigência em matéria de direito de família e sucessões, das
leis inglesas, das normas do direito indiano e do direito costumeiro das populações
indígenas.
Esta não é a orientação política do Estado angolano que já se afirmava «como de
caráter unitário e laico» pela Lei Constitucional, art. 4.°, n.° 2, alínea e).
O princípio de que Angola é um estado unitário vem reafirmado na Constituição,
no seu art. 8.° «Angola é um Estado unitário que respeita, na sua organização, os
princípios da autonomia dos órgãos do poder local e da desconcentração e
descentralização administrativas, nos termos da Constituição e da lei».
Sendo certo que a unidade legislativa, como é óbvio, põe fim à discriminação
entre dois tipos de cidadãos dentro do mesmo país que se verificava na ordem jurídica
colonial, e contrapunha o estatuto de direito pessoal regulado pelo direito escrito e o
estatuto pessoal do direito costumeiro.
No entanto, o pluralismo jurídico é hoje aceite como uma realidade do direito
angolano na recente opinião dos analistas. Entende-se que as alterações a nível político
e social que se operaram no país, permitem a coexistência de pluralismos jurídicos no
Estado que na sua essência é um Estado heterogénio.
Atualmente a Constituição no seu art. 7.° veio consagrar a aplicabilidade do
direito costumeiro: « É reconhecida a validade e a força jurídica do costume que não
seja contrário à Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana.»
Esta redação é distinta da que vinha prevista no Anteprojeto de Constituição que
não chegou a ir por diante, de além de não ser contrário à Constituição, tampouco «ser
contrário á lei». No referido Anteprojeto da República de Angola de 2004,
posteriormente abandonado, previa-se no seu art. 6.°: «É reconhecida a validade do
costume que não seja contrário à Constituição nem à lei vigente».
É certo que o direito costumeiro permanece a vigorar em Angola pois é
indesmentível a sua força e persistência não só pelas suas raízes culturais entranha¬das
nas comunidades, mas ainda em razão dos privilégios que ele outorga a certos membros
da família que dos mesmos não querem abdicar.
Tal é reconhecido pelos estudiosos da realidade jurídica angolana que
salvaguardam a existência do costume com efetiva vigência jurídica.112)
É um facto que nesta matéria, relevantes doutrinários vinham já sustentando a
existência no quadro normativo angolano de pluralismo jurídico.
«No que respeita ao pluralismo jurídico a primeira característica é a sua enorme
riqueza e complexidade. A riqueza reside no facto de sociologicamente vigorarem em
Angola e Moçambique várias ordens jurídicas e sistemas de justiça.
Quanto ao pluralismo jurídico, cuja relação geral não unívoca com a
democra¬cia ficou feita, a reflexão diz respeito aos múltiplos mecanismos de resolver
conflitos que analisámos na cidade de Luanda. »
No Código de Família procurou-se recolher alguns institutos tirados do direito
costumeiro, aproveitando o que de rico nos ensinou a experiência do nosso povo. Como
exemplo, podemos apontar o conselho de família, órgão de natureza consultiva do
tribunal, e a união de facto, de relevante preponderância na nossa realidade social, além
de outras opções feitas quanto ao regime económico do casamento e quanto à relevância
do vínculo do parentesco, entre outros.
Em contrapartida, não foram acolhidos outros usos e costumes não conci¬liáveis
com princípios fundamentais consagrados na lei constitucional ou em convenções ou
pactos internacionais que Angola subscreveu que, em última análise, têm a ver com os
direitos fundamentais da pessoa humana.
«Em última análise os atos que o direito não impõe nem proíbe, e que são por
isso irrelevantes para ele, ficam abandonados à disponibilidade das partes, que podem
assim escolher entre vários comportamentos (...)».
Por sua vez o constitucionalista Carlos Feijó aborda diretamente o
reconheci¬mento e validade do costume e sustenta que de acordo com o art.° 7.° da
Constituição:
«A primeira ideia que ressalta é a de que a validade e força jurídica do costume
são reconhecidos pela Constituição (...) a segunda ideia imediata que ressalta do
preceito é a de que a validade e força do costume não dependem da sua conformidade
com a lei (...). Só merece tutela do Estado se não contrariarem a Constituição e não
atentarem contra a dignidade da pessoa humana.»
E em conclusão afirma: «A natureza plural do Estado e nação angolana deu
origem a um processo que culminou no pluralismo jurídico da ordem jurídica angolana
caracterizado pela presença simultânea do direito do Estado e dos diversos direitos de
origem consuetinária ordemada nas comunidades rurais.»
«Nos anos pós-Independência o posicionamento do Estado angolano face ao
direito costumeiro pode caraterizar-se dentro dos critérios usados na doutrina como
vigorando praeter legem, ou seja, para além da lei escrita, ainda que, na opinião dos
comentadores, de uma forma tímida (...). No entanto, face ao direito costumeiro, a
posição tomada não foi nem de expresso repúdio nem de repressão, porque se não
proibiu a vigência das normas contidas nos usos e costumes. Tampouco, ao inverso, se
aceitou em bloco a sua vigência como normas de direito de aplicação coerciva, tal como
as do direito escrito» .
Põe-se, porém, a questão melindrosa e delicada de saber como apreender e
atender ao direito de família costumeiro, e em que medida é compatível com os
princípios fundamentais do ordenamento jurídico vigente. Acresce a falta de recolha
documental do teor do direito costumeiro que é diversificado nas diversas etnias do
País.
A autoridade do costume coexiste em regra com dois fatores:
— a autoridade dos chefes e a autoridade dos antepassados.
Para que se possa falar em costume como fonte de direito, é necessário, como é
sabido, que se verifiquem simultaneamente os seguintes requisitos:
— a existência de um determinado comportamento social reiterado e
comummente aceite pelos membros de uma determinada comunidade;
— a convição da obrigatoriedade desse comportamento, de forma a tomá-lo
vinculativo perante os membros dessa comunidade.
A propósito das questões do dote e do alembamento, que são explicáveis sob o
ponto de vista histórico e cultural mas que se traduzem em práticas discrimina¬tórias
contra a mulher, o Presidente da República sublinhou que elas não podiam ser
eliminadas de um dia para o outro pela simples publicação de um decreto.
Reconhece-se que só com a evolução global da sociedade e com novas condições
sociais serão alteradas ou eliminadas as tradições que não se coadunem com os novos
parâmetros do desenvolvimento e do progresso.
A alteração constitucional ora operada, obriga-nos a rever em concreto em que
medida é o direito costumeiro suscetível de aplicação coerciva e de reconheci-
mento a nível dos órgãos do Estado, designadamente dos Tribunais. A regra geral
é, como sabemos, a da aplicação da lei escrita de caráter geral e de cumprimento
obrigatório para todos os cidadãos. Pode aceitar-se, no entanto, que o costume seja
aplicável, em certas condições, a título integrativo, ou seja, em complemento da lei. O
costume será porém aplicável nas comunidades sujeitas às autoridades tradicionais,
quando não contrariem princípios constitucionais.
Neste aspeto específico há que ter em conta o que vem disposto na Lei n.° 18/88,
de 31 de dezembro — Lei do Sistema Unificado de Justiça, no que se refere à
competência dos Tribunais Municipais, pois nele vamos encontrar a possibilidade legal
de aplicação do direito costumeiro pelos órgãos juridicionais.
A alínea d) do art. 38.° desta Lei dispõe que compete aos Tribunais Populares
Municipais «Preparar e julgar as questões cíveis, seja qual for o seu valor, quando as
partes estiverem de acordo com a aplicação exclusiva de usos e costumes não
codificados, sempre que a lei o permita.»
Desta disposição pode retirar-se o seguinte quanto aos limites da aplicação do
direito costumeiro, seja qual for o ramo do direito em causa, desde que englobado na
designação genérica de causa cível:
— que as partes o aceitem voluntariamente;
— que ele não contrarie os princípios fixados na Constituição.
Infelizmente, o funcionamento dos Tribunais Municipais, a nível sobretudo das
províncias do interior do país, tem impedido até há pouco, um mais amplo exercício da
sua competência, que na prática tem vindo a incidir quase unicamente na área do direito
penal.
Não temos conhecimento da aplicação em concreto desta norma no âmbito do
direito da família Cremos mesmo ser de recear que o direito costumeiro esteja a ser
aplicado mesmo contra os princípios constitucionais, lá onde existia o vazio originado
pela falta de cobertura judicial para a proteção efetiva dos direitos dos cidadãos, ou nos
casos em que são estes que evadindo-se da ordem jurídica legalmente estabelecida, vão
acolher-se às suas regras.
O estudo do direito costumeiro assume, sem dúvida, importância por duas razões
fundamentais: por um lado, possibilita o conhecimento aprofundado do comportamento
social de um determinado povo; por outro lado, proporciona o enriquecimento que pode
advir de alguns dos seus princípios.
De qualquer forma, em matéria de direito de família, o direito costumeiro não
pode, por si só, ser considerado como norma jurídica com poder normativo e
vin¬culativo obrigatório. Ele pode vigorar de facto entre grupos nacionais, na medida
em que tal for aceite tacitamente pelos membros de determinado agregado social. Mas
os princípios constitucionais são iguais para todos os cidadãos e o seu cumprimento só
pode ser exigido coercivamente dos órgãos do Estado com competência legal para tal.
Desde que não integrado na norma constitucional, o direito costumeiro no geral
só pode interessar aos juristas e aos tribunais, como órgãos de aplicação do direito,
como situações de facto subjacentes ao comportamento humano, e nesse aspeto a sua
importância real é indiscutível.
Não se deve nunca perder de vista, porém, que a sua importância está
circuns¬crita a este aspeto, não sendo admissível que uma norma do direito costumeiro
se sobreponha, ou, menos ainda, contrarie uma norma constitucional.
Considera-se inaceitável que dentro do mesmo Estado funcionem duas ordens
jurídicas distintas uma reconhecendo e proclamando os direitos humanos fundamentais
aos seus cidadãos e outra que consagre a sua discriminação e a supressão dos seus
direitos. Neste sentido podemos citar alguns dos mais distintos doutrinários do direito
africano.
Assim, Kéba M’Baye reconhece que nos países saídos da situação colonial se
verificava a coexistência de duas comunidades (uma europeia, outra africana), com dois
estatutos diferentes (um moderno, outro tradicional), «mas a distinção entre os cidadãos
e os indígenas não é mais possível em razão da igualdade de todos perante a lei, pelo
que é de tentar criar um direito unificado, aplicável ao conjunto dos nacionais, qualquer
que seja a sua origem, as suas crenças e os seus estatutos anteriores. >>
Também Guy Kouassigan, no seu estudo sobre direito de família na África negra
francófona, vem afirmar que «a elaboração de um novo direito de família aparece como
uma necessidade imposta pelos imperativos do desenvolvimento económico. Trata-se
de uma verdadeira revolução, que deve substituir por um direito criador do futuro tanto
quanto possível com a codificação dos costumes que opõem a sua imutabilidade às
necessidades de mudança.» E conclui dizendo: «o progresso é na verdade o
aprofundamento de si próprio (...) é necessário que se reaproprie do seu mundo
revalorizando os seus valores e os seus conceitos e que elimine o que não se prestar à
sua restruturação (...) como por exemplo a deturpação do dote costumeiro ou do
consentimento para casamento, trata-se de dados que perderam o seu fundamento
tradicional e que não se inserem no movimento de transformação. »
A realidade mostra-nos que entre os cidadãos do país existem diversos tipos de
comportamento, uns segundo a lei moderna, outros segundo os diversos
direitos costumeiros. Para estes últimos não será certamente de um momento
para o outro que se desvanecerá a suapraxis baseada em crenças íntimas e práticas
centenárias. Importa não perder de vista que em muitos países do continente africano
continua a vigorar, em matéria de direito de família, parte do direito costumeiro
(havendo até tribunais próprios para conhecer das questões afetas a tal matéria), e que
é em si diferente do direito escrito, o qual, em muitos casos, é ainda o direito colonial,
ou seja o direito francês na África dita ffancófona e o direito inglês na África dita
anglófona.
Podemos citar a República dos Camarões, que é um estado composto por cerca
de 250 grupos étnicos, onde vigoram em simultâneo as leis francesas e inglesas e as
diversas regras do direito costumeiro.
No Zimbabwe permanece igualmente o sistema da dupla vigência do direito
escrito c do direito costumeiro, o que tem suscitado acesas questões sobre a prevalência
da lei escrita sobre normas abertamente discriminatórias do direito costumeiro.
Designadamente, foi reivindicada a aplicação da lei da Maioridade Legal, lei publicada
depois da Independência e que reconhece a todo o cidadão, homem ou mulher, plena
capacidade civil, ao contrário do que acontece no direito costumeiro, em que à mulher
é atribuído um estatuto de menor durante toda a sua vida.
Ao analisar a textura da sociedade africana no período colonial sob domínio
inglês, Martin Chanok observa que o direito costumeiro não se limita a simples regras
de comportamento de uma comunidade, mas é uma forma de manter a ordem e as
relações de poder. Mais adiante acrescenta que nas antigas colónias britânicas a lei
costumeira era aceite como a congruência de interesses entre os homens mais velhos da
comunidade e os administradores britânicos. Conclui afirmando: «Não desejo que me
compreendam como subestimando a necessidade da intervenção do estado no direito de
família, com um papel vital no reverter de iniquidades estabelecidas e na proteção dos
dependentes. Em África, como em muitos outros lugares, a vida é vivida fora da lei e
envolve valores e padrões de comportamento que são diferentes dos que vêm
enquadrados no sistema legal».
No estudo sobre o direito de família no direito costumeiro da África do Sul,
igualmente se concluiu que: «A <invenção> da <tradição> dum direito costumeiro
africano teve profundo impacto no estatuto da mulher no direito costumeiro africano
(...). A invenção dum direito costumeiro tradicional, de família africano originou uma
significativa fonte de opressão, subordinação e discriminação contra a mulher.
(...) O sistema é na verdade um legado do passado (...). Ou vai a sociedade sul-
africana estabelecer uma nova sociedade baseada num sistema de direito de família
geral moderno, baseado em valores da dignidade humana, da igualdade, do não racismo
e do não — sexismo?»
Para concluir, entendemos que o direito costumeiro ou tradicional só poderá ser
reconhecido e aceite com força vinculativa de norma de direito se for livremente aceite
pelo cidadão e desde que a sua aceitação esteja em área da disponibilidade das partes.
Ele terá forçosamente que ser rejeitado quando o seu conteúdo viole princípios
constitucionais ou internacionais, como sejam o da liberdade e igualdade de todos os
cidadãos perante a lei, ou o do mútuo consentimento para a celebração do casamento.
É pelo registo civil que se prova a condição de cidadão, por outras palavras, o
registo civil contem em si a prova da cidadania, da condição de cidadão angolano.
Na apreciação dos termos nacionalidade e cidadania há quem entenda que eles
se não confundem.(2)
Como regra o registo civil é obrigatório e consiste no único meio de prova dos
factos sujeitos a registo. Sem nos alongarmos na apreciação destas questões poderemos
adiantar que infelizmente por razões históricas e culturais, o registo civil em Angola
sofre de debilidades estruturais e não tem cumprido as atribuições que a lei lhe confere.
Para substituir a falta de registo civil, recorre-se com frequência à prova dos
factos por via de testemunhos, geralmente das autoridades tradicionais, que não se
revestem de precisão ou mesmo de veracidade. São por demais conhecidas as
dificuldades que têm advindo da falta de segurança do sistema de registo civil.
O art. 9.° da Lei n.° 1/88 mantem a obrigatoriedade do registo de todos os atos
previstos nas leis do registo civil e subsidiariamente no Código do Registo Civil em
vigor. O acesso às certidões dos atos do registo civil é, em regra, livre, mas as certidões
de cópia integral estão sujeitas a restrições. '
Os direitos familiares, pelo seu caráter estável e duradouro, estão
obrigatoria¬mente sujeitos a registo. O art. l.° do Código do Registo Civil define quais
os factos que constituem objeto do registo civil, havendo ainda a acrescer os que
importam a sua modificação ou extinção/ *
Porque são factos que se vão refletir na vida pessoal e familiar do cidadão, devem
ser objeto de registo obrigatório.
O registo civil destina-se a fazer prova dos atos sujeitos ao registo obrigatório.
Segundo a lei, na falta de registo, a prova só poderá ser feita por outro meio que conste
das ações de estado ou de registo civil — art. 4.° do Código de Registo CiviP*.
Como veremos diversos artigos do Código de Família reiteram este princípio: o
art. 38.°, n.° 1, quanto ao ato de casamento e o art. 162.°, n.° 1, quanto ao
estabelecimento da filiação.
No Código de Família foi alargada a intervenção das Conservatórias do Registo
Civil e a atribuição da sua competência em processos familiares. A elas passou a caber,
designadamente:
— receber a declaração dos nubentes sobre a adoção do regime económico do
casamento;
— o processo de divórcio por mútuo acordo que já lhe era atribuído pela Lei n.°
9/78 de 26 de maio, em certas condições;
— o processo de reconhecimento da união de facto por mútuo acordo;
— o processo de impugnação de declaração de filiação feita por terceiro que não
o progenitor;
Tomemos como exemplo A (pai) que teve de X dois filhos, X’ e X”. A veio a
casar com B (mãe). A e B tiveram três filhos, respetivamente C, C’ e C”.
Posteriormente, B enviuvou de A e veio a casar com Y. De B e Y nasceram os filhos
Y* e Y”.
Relativamente a C, C’ e C”, temos que eles são entre si irmãos germanos ou
bilaterais. Já em relação a X e X’, eles são unicamente irmãos pelo lado do pai, ou seja,
irmãos consanguíneos.
E, em relação a Y* e Y”, C, C’ e C” são irmãos pelo lado de sua mãe, ou seja,
irmãos uterinos. Qualquer destes são, entre si, irmãos unilaterais.
Assim e exemplificando:
— A e B tiveram os filhos C, C’ e C” — irmãos germanos.
— A e X tiveram os filhos X e X’, que são, relativamente aC,Ce C”, irmãos
consanguíneos.
— B e Y tiveram os filhos Y’ e Y”, que são, relativamente a C, C’ e C”, irmãos
uterinos.
Os irmãos consanguíneos e os uterinos, como só têm um progenitor comum, são
irmãos unilaterais.
É de notar que X* e X” não têm qualquer vínculo de parentesco com Y* e Y”
por não terem entre si qualquer progenitor comum.
Figura 3 — Irmãos bilaterais e unilaterais
b) Graus de parentesco
0 parentesco é medido por graus, e é tanto mais próximo quanto menos são os
graus de parentesco que há entre dois parentes.
A lei define a forma do cômputo dos graus de parentesco, partindo aliás de uma
base natural de contagem das diversas gerações.
O art. 1581.°, n.° 1 do Código Civil explicava como se fazia o cômputo dos graus,
dizendo: «Entre parentes na linha reta, há tantos graus quantas as pessoas que formam
a linha de parentesco, excluindo o progenitor.»
O n.° 2 do art. 1581.° dizia que na linha colateral se contavam os graus pela
mesma forma, subindo por um dos ramos e descendo pelo outro, mas sem contar o
progenitor comum.
0 Código de Família faz por igual forma a contagem dos graus de parentesco,
embora no art. 10.° se fale de gerações e não em pessoas que compõem a linha de
parentesco.
Aplicando estes conceitos, veremos que a contagem dos graus de parentesco se
faz contando as gerações entre as pessoas em causa, ou contando os parentes incluídos
na linha de
Nos termos do art. 2132.° do Código Civil, são sucessores legítimos os parentes
c o cônjuge. A ordem da sucessão legítima vem especificada no art. 2133.° e tem como
limite os colaterais do 6.° grau.
A classe dos sucessíveis vem ordenada de forma escalonada, de acordo com a
ordem e a proximidade do grau de parentesco.
O art. 2157.° do Código Civil define como herdeiros legitimários os
des¬cendentes e os ascendentes, que são especialmente protegidos.
b) Obrigação e direito a alimentos
Outro importante efeito que decorre do parentesco é a obrigação e o direito de
alimentos, que, como já temos dito, provêm do direito e dever de assistência que deve
existir entre os membros da família.
O direito e a obrigação de alimentos vêm regulados no Título VIII do Código de
Família e estabelecem-se entre pessoas ligadas por diferentes vínculos familiares, como
o parentesco, o casamento, a união de facto, a afinidade e a tutela, por vezes.
O art. 249.°, n.° 1 do Código de Família dispõe sobre quem está obrigado a
prestar alimentos ao menor, mencionando em primeiro lugar os pais e adotantes e depois
os outros ascendentes, irmãos maiores, e tios e o padrasto ou madrasta, o que significa
que a obrigação de alimentos a um menor se estende até ao 3.° grau da linha colateral e
a um afim, como veremos.
Entre maiores, a obrigação vem regulada no n.° 2 do art. 249.° e estabelece-se
entre cônjuge ou ex-cônjuge, descendentes ou adotados e irmãos, ou seja, na linha
colateral a obrigação estende-se só até aos parentes do 2.° grau.
c) Impedimento matrimonial
0 parentesco produz ainda efeitos no campo do direito matrimonial, pois pode
constituir impedimento matrimonial.
Há tipos de parentesco que importam a proibição absoluta de contrair casamento,
como é o caso do casamento entre parentes em linha reta (ex: entre pai e filha, ou entre
mãe e filho) e ainda o casamento entre parentes no 2.° grau da linha colateral, ou seja,
entre irmão e irmã. Era o que prescrevia o art. 1602.° do Código Civil e vem consignado
no art. 26.° do Código de Família.
O art. 26.° proíbe o casamento entre parentes ou afins na linha reta na sua alínea
a), e o casamento entre parentes do 2.° grau da linha colateral na sua alínea b). Os atuais
artigos 25° e 26° do Código de Família foram reformulados na sua redação após a
consulta popular efetuada sobre o projeto do Código para tornar mais compreensível o
seu conteúdo. No corpo destes artigos definc-se agora o próprio conceito de
impedimento matrimonial absoluto c relativo.
A redação do art. 26.°, alínea b) também foi alterada, pois onde antes se
mencionavam os «irmãos naturais ou adotivos» passou a dizer-se «parentes no segundo
grau da linha colateral», o que, por força do que já vem estatuído no art. 8.°, tem
precisamente o mesmo alcance.
O parentesco em 3.° grau, entre tio e sobrinho, constituía impedimento
meramente impediente segundo o que dispunha a alínea b) do art. 1604.° do Código
Civil.
Tal impedimento não vem previsto no Código de Família.
Esta questão foi objeto de controvérsia aquando da consulta popular do projeto
do Código de Família.
Houve quem sustentasse que se deveria introduzir obrigatoriamente o
impedimento de casamento entre tio e sobrinha ou entre tia e sobrinho, dado o lugar
privilegiado que tem o tio materno e a tia na sociedade em que predomina o sistema
matrilinear.
Tal tipo de união seria considerada incestuosa em diversas áreas do direito
costumeiro no nosso País.
Não obstante, essa posição não prevaleceu, porque se concluiu que não seria
necessário proibir tal tipo de casamento quando fosse o próprio direito costumeiro a
rejeitá-lo.
Os impedimentos matrimoniais relativos são fixados em normas de natureza
excecional, por serem de natureza proibitiva. Eles impedem a celebração do casamento
entre certas e determinadas pessoas e contêm restrições ao direito de casar. Ora o facto
de não se proibir não significa, como é óbvio, que esse tipo de casamento seja
favorecido pelo legislador.
O casamento entre tia e sobrinho ou tio e sobrinha poderá, pois, ocorrer entre
nubentes que não sigam as normas predominantes do direito tradicional, pelo que a
proibição não foi introduzida no Código de Família como impedimento matrimonial.
d) Exercício de funções e direito de acionar
Também veremos que o parentesco tem relevância no exercício de certas funções
de natureza familiar, como a de membro do conselho de família (art. 17.°, n.°s 1 e 2),
ou a de tutor de menor ou interdito (arts. 233.° e 235.°).
A função de membro do conselho de família é atribuída aos parentes das partes
no processo e a tutela cabe em primeiro lugar, de forma genérica, aos parentes do
tutelado.
De igual modo podem os herdeiros propor certas ações de estado, como a do
reconhecimento da união de facto por morte de um dos companheiros (art. 123.°, b)) e
de impugnação de declaração de filiação (art. 189.°), e os parentes na linha reta têm o
direito de prosseguir na ação de anulação de casamento (art. 68.°, n.° 1).
e) Impedimentos e inabilidades
O parentesco impede, por outro lado, o exercício, em determinados casos, das
funções de alguém que nelas está investido. Pode fundamentar o impedimento do Juiz,
no caso do art.
que a lei obrigatoriamente prevê a sua intervenção, leva à nulidade dos autos e
consequentemente da decisão que tiver sido proferida.
Noutras ações, a lei indica que o Conselho de Família poderá vir a intervir
facultativamente, seja por iniciativa das partes, seja por iniciativa do próprio tribunal,
quando o considere útil para a decisão da causa.
Convém, porém, ter em atenção que, por força do art. lé.°, n.° 2 do Código de
Família, a intervenção facultativa do Conselho de Família depende não só do facto de
as partes tal requererem mas ainda do tribunal entender que o pedido é pertinente.
A intervenção do Conselho de Família fica, pois, nestes casos, sujeita ao prudente
arbítrio do julgador.
Em síntese, podemos indicar que a audição do Conselho de Família se processa:
1 — Intervenção com caráter obrigatório
a) na autorização para casamento de menores quando houver injustificada recusa
por parte do seu representante — art. 24.°, n.° 3;
b) no reconhecimento por via judicial da união de facto - art. 125.°;
c) na escolha do nome do filho no caso de desacordo dos pais — art. 133.°, n.°
2;
d) na tutela, para a nomeação do tutor de menor e de maior interdito — arts.
232.°e235.°,n.01;
2 — Intervenção com caráter facultativo
a) nas ações de divórcio, quando for útil à conciliação dos cônjuges — art. 105.°,
n.° 3;
b) nas ações relativas ao exercício da autoridade paternal — art. 139.°, a);
c) nas ações de estabelecimento ou de impugnação de filiação — art. 195.°;
d) nas ações para instituição de adoção — art. 215.°;
c) em todas as demais ações familiares, segundo a regra geral do art. 16.°, n.°l b)
Novas perspetivas de intervenção
Como já referimos reconhece-se como necessários a existência de órgãos de
mediação familiar que possam intervir numa fase preliminar do litígio, ouvindo as
partes, propondo modos de comportamento novos, suscetíveis de atenuar os
antagonismos. Eles aparecem com uma função marcadamente neutral para pacificarem
os ânimos e elucidarem as partes sobre os seus direitos. Esses órgãos são quase sempre
integrados por técnicos especialistas, como psicoterapeutas, juristas, sociólogos, etc..
Entre nós, o Conselho de Família poderá em breve ser substituído por um órgão de
mediação e ser chamado a intervir numa fase pré- judiciária, ou seja, antes da introdução
em juízo de qualquer ação familiar, o que está em vias de ser implementado.
CAPÍTULO 8.°
A FILIAÇÃO
[35] Importância do direito da filiação; sujeitos da relação jurídica de filiação
a) Importância do direito da filiação
A filiação é a relação jurídica que se estabelece entre cada pessoa e os seus
progeni¬tores. Como os demais direitos familiares, é de natureza intercorrente e
recíproca e estabelece-se entre alguém e aquele homem e aquela mulher que o
conceberam.
A filiação constitui, por isso, o primeiro elo, certamente o mais profundo, entre
todos os que constituem as relações de parentesco.
O vínculo de parentesco é, aliás, o resultado de um encadeado mais ou menos
alargado de sucessivas filiações.
A situação jurídica do filho constitui um estado familiar que assume importância
fundamental dentro das relações de família. É nas relações de filiação que se manifesta
com maior relevo o princípio de solidariedade e cooperação que deve prevalecer entre
os membros da família de grau mais próximo, ou seja, entre pais e filhos.
Ao serem enunciados os princípios fundamentais subjacentes ao Código de
Família é sublinhado (art. 4.°) que as crianças merecem especial atenção no seio da
família e que a ela cabe, em colaboração com o Estado, assegurar-lhes a mais ampla
proteção e prover à sua educação. Este princípio tem hoje consagração no já citado art.
35.°, n.° 6, da Constituição.
O n.° 2 do art. 127.° do Código de Família explicita que: « Os direitos e deveres
paternais devem ser exercidos em beneficio dosfilhos e da sociedade».
Estamos perante verdadeiros poderes funcionais que são atribuídos ao respetivo
titular mas de que não é este o beneficiário.
O Estado, como sociedade politicamente organizada, tem interesse na defesa da
família e em especial na defesa das crianças. Essa defesa abrange a preservação
da sua vida, a saúde e o normal desenvolvimento e mais ainda a sua defesa quanto
ao aspeto da sua formação moral, inteletual e profissional. Por isso o Estado dá uma
especial atenção ao modo como são exercidos os direitos e os deveres paternais,
impedindo que eles assumam formas antissociais que prejudiquem a criança e a própria
sociedade onde ela vive.
O interesse do Estado na proteção do menor e da sociedade dentro das relações
jurídico- familiareséasseguradopela intervenção do Ministério Público nas ações
judiciais relativas à situação jurídica dos menores — consagrados na Lei n.° 22/12 da
PGR a que nos referimos. Estes poderes vêm atualmente consagrados na Constituição
— art. 186.°, alínea b).
Podemos dizer que o Estado controla a forma como os pais exercem os seus
direitos e deveres funcionais, chamando o tribunal a intervir quando eles são exercidos
contra os interesses dos filhos ou quando os pais os maltratam física ou inteletualmente,
ou são negligentes no seu exercício, abandonando-os e não lhes prestando a devida
proteção e assistência.
Tal como consta da Lei do Julgado de Menores aprovada pela Lei n.° 9/96, de
19 de abril e do Decreto n.° 6/03, de 28 de janeiro que aprovou o código de Processo de
Julgado de Menores e legislação complementar, o Estado através dos seus órgãos
judiciais e de assistência deve proteção social à criança.
Os direitos dos menores merecem pois, especial proteção por parte de todos os
órgãos estatais com competência para intervir nos assuntos que a eles dizem respeito,
tal como os Tribunais, a Procuradoria da República, as Conservatórias do Registo Civil,
os organismos de assistência, etc., constituindo uma área em que está em causa o
interesse público.
O papel dos pais na criação e educação dos filhos é considerado de primordial
importância, tendo sempre em conta que os pais têm o dever de o exercer no interesse
da sociedade em geral, colaborando com as escolas e as instituições sociais de apoio à
infância e à juventude na formação das crianças e dos jovens.
b) Sujeitos da relação jurídica de filiação
Podemos definir o instituto jurídico de filiação como o conjunto de normas que
estabelece essa relação específica entre pais e filhos, bem como as que definem os
direitos e deveres recíprocos entre uns e outros.
A palavra filiação vem do termo latino filliatio, que tem a sua raiz na palavra
fillius, da qual derivou «filho».
A situação jurídica de filho é assim um estado familiar de caráter permanente,
situação essa que, vista em sentido inverso, corresponde à situação jurídica de pai e de
mãe respetivamente.
A filiação é, pois, o vínculo jurídico que liga o filho a cada um dos seus
progenitores.
A relação jurídica de filiação desdobra-se em dois vínculos, o que se estabelece
entre o filho e o pai e o que se estabelece entre o filho e a mãe.
Pode também falar-se, com rigor, no vínculo de paternidade e no vínculo de
maternidade.
Ao falar-se de filiação pensa-se em geral na filiação natural biológica. Mas no
nosso sistema jurídico ela abrange igualmente a filiação adotiva.
Esta molda-se, aliás, precisamente nos termos em que se processa a filiação
natural, com a diferença de o vínculo de adoção ter como causa a sua declaração por
sentença constitutiva do vínculo.
No direito de filiação estão abrangidas as relações entre pais e filhos, em regra a
partir do nascimento dos filhos, mas com maior relevância durante a sua menoridade,
abrangendo o chamado direito dos menores e o complexo de direitos e deveres que
constituem a autoridade paternal.
Essas relações prolongam-se sob forma diferente após a maioridade dos filhos e
permanecem em regra durante a vida de uns e de outros.
A relação jurídica de filiação tem como causa o facto natural da procriação e não
está dependente do estado de casado ou não casado do pai e da mãe. Veremos que,
quando os pais estão unidos pelo casamento, a lei faz presumir o vínculo de paternidade
em relação ao marido da mãe.
A base da filiação é essencialmente biológica. Mas, porque nem sempre se vai
determinar diretamente a filiação biológica, a lei socorre-se de determinados critérios
legais para o seu estabelecimento.
O Código de Família afastou desta forma o sistema segundo o qual a filiação se
estabelece por reconhecimento do progenitor (pai ou mãe), que seria um ato voluntário
deste e por si só constitutivo de direito.
No Código Civil anterior este ato era designado por «perfilhação». É agora aceite
o sistema de filiação assente no facto natural da procriação, com repercussão jurídica
da filiação biológica.
O estabelecimento da filiação não depende, porém, da vontade do progenitor,
pois ele pode verificar-se por via de presunções legais, por via da declaração do
progenitor, ou de terceira pessoa, ou ainda advir de uma decisão judicial que a
reconheça.
[36] Direito ao estabelecimento da filiação
Para que os pais assumam a plenitude dos seus direitos e cumpram os seus
deveres para com os filhos, o Estado tem todo o interesse em que seja estabelecida a
filiação, quer em relação ao pai, quer em relação à mãe.
O direito ao estabelecimento da filiação vem hoje expressamente reconhecido no
art. 129.°, n.° 1, do Código de Família : «A todos é reconhecido o direito ao
estabelecimento da filiação» o qual deve ser considerado como direito fundamental da
pessoa humana.
A Convenção sobre os Direitos da Criança no seu art. 7.°, n.° 1, consagra: «A
criança será registada imediatamente após o seu nascimento e terá direito desde o
momento em que nasce a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a
conhecer os seus pais e a ser cuidada por eles.»
Este artigo consagra afinal o direito à identidade que assiste a cada ser humano,
distinguindo cada pessoa de todas as outras.
Este direito vem corroborado no art. 8.° da mesma Convenção que obriga a
«respeitar o direito da criança de preservar a sua identidade, inclusive a nacio¬nalidade,
o nome eas relaçõesfamiliares.»
Por sua vez a Carta Africana dos Direitos e Bem Estar da Criança no seu art. 6.°
assegura que a criança tem «direito ao nome, o direito ao registo e o direito a uma
nacionalidade.»
O Decreto n.° 31/07, de 14 de maio, veio no seu art. l.° determinar «Agratuitidade
do registo de nascimento e de óbito para a primeira infância (...) e na atribuição do
bilhete de identidade a menores na faixa etária prevista no artigo 7.°». Este diploma
veio tomar gratuito o registo de nascimento efetuado dos 0 aos 5 anos de idade e a
concessão gratuita do bilhete de identidade aos menores dos 8 aos 11 anos de idade.
No direito ao estabelecimento da filiação está subjacente o interesse público em
proteger o direito de todo o cidadão a conhecer os seus progenitores e o direito a que a
filiação que for estabelecida corresponda à verdadeira filiação natural. Direito hoje de
novo consagrado na Lei n.° 25/12 de 22 de agosto de 2012, a que atrás nos referimos.
Do estabelecimento da filiação paterna e materna deriva para o filho o direito à
titularidade substancial da relação de filiação.
O conceito de filiação hoje corrente como vimos, não é o que existia
anterior¬mente e que contrapunha os filhos legítimos (que advinham do casamento dos
pais) aos filhos ilegítimos ou filhos naturais, estes muitas vezes considerados como
filhos nascidos do pecado, os filhos bastardos.
Hoje aceita-se que a família tanto pode ser constituída com base no casamento,
como na união de facto, no parentesco com base nos laços de sangue, ou na adoção, não
havendo lugar à discriminação entre os seus membros em razão da sua proveniência.
Assim, todos os filhos têm, em relação aos pais, iguais direitos e deveres,
independentemente da existência ou não de vínculo matrimonial.
Aliás o atrás citado art. 35.° da Constituição veio no seu n.° 5 dispor: « Osfilhos
são iguais no seio da família, sendo proibida a sua discriminação e a utilização de
qualquer designação discriminatória relativa à filiação.»
Os pais têm, em relação aos seus filhos nascidos dentro ou fora do casamento,
iguais direitos e deveres e o Código de Família já consagrara no seu art. 128.° a
igualdade dos filhos, dispondo: «Osfilhos têm iguais direitos e estão sujeitos aos
mesmos deveres para com os pais, estejam estes unidos ou não pelo casamento.»
Chegou-se assim à aceitação de um conceito unitário de filiação, segundo o qual
a situação jurídica do filho é uma só, correspondendo a um único estado de filho.
O estabelecimento da filiação consiste essencialmente na questão jurídica de
determinar, em relação a cada pessoa, a sua filiação. Se é certo que ninguém, ao nascer,
vem externamente identificado como filho de tal pai ou de tal mãe, o legislador tem que
se socorrer de critérios legais que levem a atribuir em concreto a maternidade e a
paternidade em relação à pessoa em causa.
Sabemos que, relativamente ao direito à filiação, o Código de Família consagra
os seguintes princípios:
— cada cidadão tem direito a ver estabelecida a sua filiação;
— a filiação estabelecida deve, em regra, estar de acordo com a filiação biológica
ou natural.
Se a filiação não estiver estabelecida o filho carece do estado jurídico de filho e
o pai e a mãe carecem do estado respetivo, não podendo dejure exercer os direitos e
deveres que lhes cabem por lei. É o próprio Estado que procura assegurar o direito ao
estabelecimento da filiação a cada cidadão.
A titularidade substancial da filiação deriva do facto natural que é a procriação e
do nascimento com vida, convertendo-se em titularidade formal da filiação quando é
inscrita no assento do registo civil.
No campo da procriação da espécie humana e demais seres vivos, também os
avanços da ciência nas últimas décadas têm sido consideráveis e ela tem-se
desenvolvido de forma tão acelerada que as questões postas, de natureza jurídica, social
e ética, se tornam cada vez mais complexas.
Para o que agora nos interessa, e que é o estabelecimento do vínculo jurídico da
filiação, importa desde já aceitar que a filiação pode advir, além da forma normal da
conjugação carnal entre um homem e uma mulher, e de outras formas englobadas na
designação genérica de «procriação medicamente assistida ».
Estes métodos científicos de procriação surgiram da necessidade de tornar
possível que o homem ou mulher estéreis ou com dificuldade em terem filhos ou até em
razão do falecimento do parceiro masculino, venham a ter descendência.
As hipóteses desta procriação medicamente assistida são bastante diversificadas:
— doação de óvulos e/ou doação de esperma, com a fecundação de embriões
implantados no útero da mãe biológica;
— inseminação artificial em que a mulher é fecundada artificialmente, sendo
que, se a mulher for casada, pode dar-se o caso de a fecundação ser efetuada com o
esperma do marido, ou de dadores terceiros, com o consentimento do marido;
— fecundação em laboratório, ou seja, a fecundação in vitro, que dá origem ao
«bebé proveta», que é inserido no útero da mãe;
— situação em que intervêm mães portadoras, mães subrogadas ou mães
substitutas, situação em que a mulher que dá o óvulo que é fecundado não é a mesma
em cujo útero o embrião é inserido e no qual se processa toda a gestação e o parto;
— inseminação post-mortem na viúva a partir do esperma congelado do falecido
marido.
É evidente que as diversas situações que foram descritas exigem um
condicio¬nalismo legal que as regulem, bem como um suporte de princípios éticos em
que se baseiem e que variam consoante as convições aceites pelas diferentes
comunidades humanas.
Questões como o direito de recorrer à procriação medicamente assistida quando
não há condições para a fecundação normal pelo ato sexual, as do destino a dar aos
embriões excedentários após a fecundação artificial operada em laboratório, vão
prender-se com princípios tão importantes como o de determinar qual o momento em
que se inicia a vida do
ser humano. Sendo ainda que esses embriões guardados em laboratório poderiam
vir a ser usados para dar vida a seres humanos para além da morte dos respetivos
progenitores.
No caso das mães portadoras importa definir se o filho deve ser atribuído à
mulher que deu o óvulo ou àquela que suportou todo o processo de gestação e em cujo
útero ele se desenvolveu sucessivamente até ao nascimento. No caso de acordo prévio
com a mãe portadora sobre a entrega final do filho à mulher que deu o óvulo e em cujo
interesse se baseou a gravidez, como classificar esse acordo e qual a sua validade?
Princípios éticos e jurídicos, tais como o do anonimato dos doadores, da
gratuitidade das doações com proibição de venda de materiais genéticos, impres-
cindibilidade do consentimento dos diversos intervenientes nos procedimentos usados,
são já geralmente aceites. Definir quais os limites a pôr ao direito à procriação que
assiste a cada ser humano, e se o mesmo deve estar condicionado ao facto do progenitor
ser heterossexual ou homossexual, têm sido objeto de acesas controvérsias.
Questiona-se se o direito à procriação deve ou não ser considerado como um
direito humano fundamental, se deverá ser limitado ao condicionalismo económico-
social do genitor. Por outras palavras, como exigir tanto da futura mãe como do futuro
pai uma maternidade e uma paternidade consciente, tendo como prioritário o interesse
da criança ?
Não temos ainda no direito angolano nenhuma legislação sobre toda esta
complexa e controversa matéria e o Código de Família faz só uma breve alusão à
inseminação artificial que ocorre dentro do casamento, dizendo no art. 192.°, n.° 2 que:
« O marido da mãe não pode impugnar a paternidade do filho concebido por
inseminação artificial, à qual tenha prestado consentimento».
Pressupõe-se, neste caso, que tenha havido doação de esperma por terceiro que
não o marido, o que se costuma designar por procriação heteróloga, por vir dum dador
que não o marido.
Mas poder-se-á questionar sobre o procedimento a seguir se posteriormente o
marido vier a contestar a sua paternidade.^
Dada a omissão do nosso sistema jurídico relativo à procriação medicamente
assistida, o que não significa que cidadãos angolanos a ela não recorram, teremos
decerto que nos socorrer de normas integradoras para preencher o vazio legal.
[37] Novos métodos aplicáveis ao estabelecimento da filiação; conceitos legais
do estabelecimento da filiação
Em relação à titularidade substancial da filiação, a lei aponta critérios legais que
vão auxiliar a definir como se estabelece a filiação. Esses critérios variam consoante se
trata de estabelecer o vínculo da maternidade ou o vínculo da paternidade e ainda
consoante se está perante filho nascido do casamento ou fora do casamento.
O vínculo da maternidade vai-se estabelecer através do facto natural do parto,
que é diretamente verificável. Mas o mesmo já não acontece em relação ao vínculo da
paternidade,
que tem a sua origem no momento da fecundação do óvulo, por via sexual,
momento este que, no estado de evolução da ciência em que nos encontramos, não é
ainda determinável.
Atualmente dado os extraordinários progressos e avanços da ciência genética é
possível provar com um elevadíssimo grau de certeza a relação biológica entre pais e
filhos. Cada indivíduo apresenta o seu próprio sistema genético-cromossómico
diferente do outro.
Examinando as respetivas células com núcleo, o ADN (definido como uma
macro molécula complexa contida nas células de cada pessoa, mais precisamente no
núcleo celular) determina- se seja a identidade de cada indivíduo seja as dos respetivos
progenitores.
O gene é uma unidade na cadeia do ADN, o qual é a molécula dentro do núcleo
de cada célula. Em termos muito simples, temos que cada ser humano tem em cada
célula um núcleo que contém 23 pares de cromossomas que constituem o genoma. Por
exames específicos pode adiantar-se, com uma margem de erro praticamente nula, quem
é o pai biológico e a mãe biológica de cada ser humano.
A determinação do ADN é um verdadeiro bilhete de identidade genético.
Havia pois uma diversidade de situações, que tinham então a sua raiz na
incapacidade de determinação biológica da paternidade e que costumava ser sintetizada,
embora com manifesto exagero, na expressão latina mater semper est certa, pater
nunquam.
A mãe pode ser certa e por isso se fixa a regra segundo a qual o estabelecimento
da maternidade deriva do facto do parto.
É o que dispõe o art. 167.° do Código de Família, que estabelece: «0
estabelecimento da maternidade resulta em qualquer caso, dofacto do nascimento». Mas
o início da capacidade civil só se inicia com a vida do titular. Será pois simultaneamente
necessário que determinada mulher dê à luz uma criança, o que se traduz no facto do
nascimento, e que a criança havida desse parto nasça com vida e tenha determinada
identidade.
A prova da identidade da pessoa que nasceu pode fazer-se, na normalidade dos
casos, pela posse de estado de filho em relação à mãe.
Em suma, a maternidade estabelece-se pelo facto natural do parto e da identidade
biológica do filho.
Há conceitos legais que têm que ser tidos em conta e que eram de capital
importância para entendimento desta matéria, mostrando-se hoje com muito menor
relevância.
Esses conceitos são os de posse de estado de filho e o de período legal de
conceção. O primeiro interessa a todo o instituto do estabelecimento da filiação, quer
em relação ao vínculo da maternidade, quer em relação ao vínculo de paternidade, pois
consubstancia a situação material de filho. O conceito de período legal de conceção
interessa para fazer funcionar a regra da presunção da paternidade e releva quer haja
casamento dos pais, quer não haja.
a) A posse de estado de filho
Este período de tempo não é de natureza rígida, e costuma ser fixado tendo em
conta o interesse do filho, admitindo que a conceção pode ter decorrido dentro de todo
esse período. É possível, em concreto, fixar a data provável de conceção, através da
determinação do período em que se processaram as relações sexuais de que poderia ter
decorrido a fecundaçào.(3)
Atualmente através de exames médico-legais feitos sobre a pessoa do recém-
nascido é possível determinar com limitada margem de erro, a duração da sua gestação.
Estes exames, que devem incidir sobre o peso, estatura, perímetro craniano e outros
aspetos do seu desenvolvimento físico e neurológico, podem alcançar a posteriori a
fixação da época da conceção dentro de uma margem de probabilidade de cerca de 2
semanas de diferença.
Consequentemente, a determinação feita a posteriori de que a data da conceção
e o tempo da gravidez foi mais ou menos prolongado, pode vir a afastar a atribuição da
paternidade a um pretenso pai. Mas se, durante todo o período legal de conceção, as
relações entre a mãe e o pretenso pai se mantiveram, a presunção funciona em pleno.
Ao fixar o período legal de conceção, o legislador teve em vista que o tempo
normal de gestação do feto humano é, no mínimo, de 180 dias, cerca de seis meses, e,
no máximo, de 300 dias, cerca de 10 meses. Excecionalmente, admite-se que o período
de gestação possa ser inferior a 6 meses ou prolongar-se além dos 300 dias, podendo,
segundo alguns, atingir os 302 ou 310 dias.
Se tal acontecer, terá que ser o interessado (o filho ou qualquer terceiro
legitimamente interessado) a fazer a prova de que a conceção ocorreu fora desse
período. É o que dispõe o n.° 2 do art. 166.° do Código de Família. Dá-se aqui a inversão
do ónus da prova e o tribunal, de acordo com a prova que for produzida, poderá fixar a
data provável da conceção fora do período legai.
A fixação da data provável da conceção pode ser pedida em ação específica
proposta para esse efeito, ou suscitada como questão de facto essencial em ação que
vise o estabelecimento ou impugnação de paternidade, quer para concluir que ela se
deve dar como provada, quer para a afastar no caso concreto.
[38] Filiação havendo casamento dos pais
No caso de haver casamento dos pais a filiação estabelece-se por presunção legal.
O casamento dos pais constitui a forma legal de constituição da família. Por isso
mesmo, a lei faz derivar dele, em relação ao marido e à mulher, simultaneamente,
(5) Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade, p. 321. Coimbra,
1983: «A idade gestacional (...) diminuindo o período legal de conceção para um espaço
de tempo relevante muito menor e conseguindo provar que a coabitação entre a mãe e
o réu se verificou nessa altura, o autor acrescenta nitidamente o valor causal da
coabitação provada relativamcnte ao nascimento(...).»
O filho que nasça até 300 dias após a cessação da coabitação beneficia da
presunção da paternidade do marido da mãe. Esta regra, como já vincámos, é suscetível
de ser afastada por prova em contrário que possa demonstrar perante
0 tribunal que a gestação em concreto durou mais ou menos tempo, através de
exames periciais efetuados após o nascimento do filho.
Também a mulher poderá usar de meios de prova tendentes a demonstrar que,
mesmo após a cessação da coabitação, voltou a manter relações sexuais com o marido.
Neste último caso, deixará de funcionar a presunção legal de paternidade do marido da
mãe, invertendo-se o ónus da prova, cabendo à mulher fazer a prova da paternidade do
marido. Estes princípios são aplicáveis mutatis mutandis ao casamento que for anulado
por sentença transitada em julgado.
c) Filho concebido ou nascido antes do casamento
Considera-se concebido antes do casamento dos pais o filho que nascer até aos
primeiros 179 dias posteriores ao casamento. Suponhamos que o filho nasceu em
1 de junho de um ano e que os pais A e B contraíram casamento em 1 de março
desse ano.
O período legal de conceção confina-se entre o máximo de 10 meses e o mínimo
de 6 meses. Ora, nesta hipótese, teríamos somente o período que abrange os meses de
março, abril e maio, o que leva a dar como certo que o filho foi concebido antes do
casamento, facto esse que afasta desde logo a presunção de paternidade do marido tal
como configurada na lei. Por maioria de razão, o mesmo acontece quando o filho nasce
antes de os pais terem celebrado o casamento.
Qualquer destas situações é hoje muito frequente. Muitas vezes, o facto de a
mulher se encontrar grávida antes do casamento leva a apressar o casamento para que
o filho nasça depois do casamento dos pais. Os filhos concebidos ou nascidos antes do
casamento estavam, segundo o critério do Código Civil, na situação de filhos ilegítimos.
O casamento dos pais operava a legitimação dos filhos. Os efeitos da legitimação,
consignados no art. 1875.° o Código Civil, eram os de conferir ao filho o estado e o
título de filho legítimo.
O Código de Família trata desta matéria no seu art. 164.°, englobando na mesma
disposição o caso de a conceção ou o nascimento do filho se ter operado antes da
celebração do casamento.
Esta disposição já não tem em vista, como é óbvio, conferir aos filhos
conce¬bidos ou nascidos antes do casamento o estatuto de filho legítimo, que não tem
hoje qualquer acolhimento legal.
Com eia visa-se o acolhimento de uma situação muito generalizada de existência
de filhos cuja proteção se pretende assegurar, pois simplifica a forma do
estabelecimento da sua filiação em relação a ambos os pais, se este, por qualquer razão,
ainda se não tiver operado. Assim, permite-se que, por declaração efetuada no processo
preliminar de casamento, os cônjuges mencionem se existem filhos já concebidos, no
caso filhos nascituros ou filhos já nascidos anteriormente a essa data.
Se tal declaração for feita, o Conservador do Registo Civil deverá lavrar,
concomitantemente com o assento do casamento, o assento ou assentos de nascimento
respeitantes aos filhos. Isto no caso de os respetivos assentos de nascimento não terem
sido lavrados, pois, se eles já existirem, será averbada a sua filiação em relação a um ou
a ambos os cônjuges consoante tenha ou não sido já estabelecida a filiação em relação
a ambos os pais.
Tem aqui plena aplicação o disposto no Regulamento do Ato de Casamento (o
Decreto n.° 14/86), que obriga os nubentes a declararem se têm ou não filhos nascidos
antes da celebração do casamento (art. 3.°, n.° 2, alínea e)). Tendo em conta que existe
muitas vezes negligência por parte dos pais em proceder aos registo dos filhos, esta via
permite, de forma expedita e simplificada, obter a declaração que leva ao
estabelecimento da filiação do filho em relação a ambos os progenitores, caso tal se não
tenha verificado antes.
d) Filho nascido do novo casamento da mãe
Esta questão irá ser abordada a propósito da não existência de impedimento
meramente impediente designado como «prazo intemupcial» podemos porém explicitar
qual a razão de ser da disposição legal contida no art. 165.° do Código de Família.
Pode acontecer que uma mulher casada dissolva o seu casamento e vá contrair
novo casamento antes de decorridos 300 dias sobre a data da dissolução do casamento
anterior. Pode até dar-se o caso de uma mulher já casada vir a contrair segundo
casamento sem estar dissolvido o casamento anterior, ou seja, em situação de bigamia.
Em tais situações, deparamo-nos com conflitos de presunção de paternidade.
Ora, dentro da regra prescrita no art. 163.° em conjugação com a do art. 166.°,
n.° 1, ambos do Código de Família, os filhos nascidos até 300 dias após a dissolução do
casamento presumem- se filhos do marido da mãe. Mas se a mãe tiver contraído novo
casamento logo a seguir à dissolução do anterior casamento, dado que o Código de
Família não instituiu nenhum prazo intemupcial, pode haver dupla presunção de
paternidade.
De acordo com o conceito de período legal de conceção que interessa para definir
o que deve entender-se por «filho concebido durante o casamento», se a mulher vier a
contrair novo casamento e se o filho nascer depois de 180 dias após a celebração do
segundo casamento e dentro dos 300 dias posteriores à data da dissolução do casamento
anterior, vão entrar em conflito duas presunções de paternidade, em relação a esse filho,
a do primeiro marido e a do segundo marido.
No caso de o segundo casamento ter sido realizado sem ter sido dissolvido o
casamento anterior, estaremos perante um casamento que está ferido de vício insanável
por falta de capacidade matrimonial da nubente. Mas, ainda que o casamento seja
anulado, esse facto não altera a presunção de paternidade em relação ao segundo
marido. Como veremos em relação aos efeitos do casamento anulado, estão
salvaguardados, pelas disposições dos artigos 71.°, n.° 3 e 163.° do Código de Família,
os direitos dos filhos dele nascidos.
Daí que, por força destas disposições legais, possa vir a verificar-se conflito de
presunções de paternidade. Para resolver tal conflito deve ter-se em conta o que dispõe
o art. 165.° do Código de Família. Esta disposição contém a presunção legal de que,
neste caso, a paternidade seja atribuída ao segundo marido e não ao primeiro, e isto por
uma questão de realismo, uma vez que o relacionamento com o marido do último
casamento deve ser aquele que, com mais probabilidade, levou à fecundação.
Embora o art. 165.° do Código de Família não o diga expressamente, tem que se
entender que a presunção da paternidade do segundo marido é uma presunção juris
tantum e como tal pode ser afastada em ação própria de impugnação. Nessa ação de
impugnação poderá intervir quem nela tiver legítimo interesse, ou seja, o filho,
representado pelo Ministério Público ou por si próprio, quando maior, e o primeiro ou
o segundo marido, para afastarem ou reivindicarem a paternidade do filho.
[39] Filiação não havendo casamento dos pais
Quando os pais não estão unidos pelo casamento, a lei não faz operar,
relativa¬mente a eles, o estabelecimento do vínculo de paternidade pelo facto do
nasci¬mento, pelo que há que operar o seu estabelecimento por via de presunções legais,
quando tal for o caso em concreto.
a) Vínculo da maternidade
O art. 167.° do Código de Família contém a regra geral segundo a qual o
estabe¬lecimento da maternidade resulta, em qualquer caso, do facto do nascimento,
como já foi mencionado.
Há, pois, que provar que uma mulher deu à luz determinado filho, bem como a
identidade do filho. Por nascimento deve entender-se a separação completa e com vida
do feto do ventre materno.
Se o feto se separa sem vida do ventre materno é um nado-morto, que não chega
a ter personalidade jurídica. A prova da identidade do fi lho faz-se, na generalidade dos
casos, pela posse de estado de filho, consubstanciada no tratamento próprio de filho que
a mãe lhe dispensa. Mas, na falta de posse de estado, essa prova pode ser por outros
meios (prova documental, por testemunhas, pericial etc.).
A falsa declaração sobre a existência de um parto por uma mulher que não tenha
dado à luz, constitui uma infração penal, o crime de suposição de parto, previsto no art.
340.° do Código Penal. A falsa indicação de nascimento ou morte de filho é igualmente
punida criminalmente, nos termos do art. 341.° desse Código.41
O Anteprojeto do Código Penal prevê igualmente os crimes de registo de
nascimento inexistente — art.0 226.° e o crime de parto suposto — art. 227.°.(5)
ARTIGO 340.°
(Parto suposto e substituição de infante)
1. A mulher que sem ter parido, der o parto alheio como seu, ou que tendo parido
filho vivo ou morto, o substituir por outro, será condenada a prisão maior de 2 a 8 anos.
§ Io. A mesma pena será imposta ao marido, que for sabedor e consentir.
ARTIGO 341.°
(Falsas declarações relativas a nascimento ou morte de infante)
Será punida com prisão maior de 2 a 8 anos e com multa a falsa declaração dos
pais dum infante, feita com o consentimento ou sem consentimento deles, perante
autoridade competente e com o fim de prejudicar o direito de alguém, e bem assim a
falsa declaração feita perante a mesma autoridade e com o mesmo fim, do nascimento
ou morte de um infante que nunca existiu.
ARTIGO 226.°
(Registo de nascimento inexistente)
1. Quem declarar no registo civil nascimento inexistente é punido com pena de
prisão de 1 a 3 anos ou com pena de multa de 120 a 360 dias.
2. Se a declaração for feita com a intenção de prejudicar outra pessoa a pena é de
prisão de 2 a 6 anos de prisão.
ARTIGO 227.°
(Parto suposto)
Quem der parto alheio como seu é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
A disposição do art. 167.° é bem clara ao dizer que o estabelecimento se opera,
em qualquer caso, pelo facto do nascimento, e isto tem o alcance de fazer produzir o
efeito jurídico do estabelecimento do vínculo, independentemente do facto de a mãe ter
ou não idade núbil.
Mesmo que a mãe não tenha idade núbil, a maternidade considera-se estabelecida
porque ela não depende da vontade do progenitor, antes deriva do facto jurídico do
nascimento.
b) Vínculo da paternidade
A lei estabelece dois casos de presunção da paternidade, mesmo que não haja
casamento entre a mãe e o pretenso pai.
Essas regras de presunção da paternidade vem expressas no art. 168.° do Código
de Família, que usa uma forma menos conclusiva do que aquela que consta do art. 167.°
respeitante ao estabelecimento da maternidade.
Diz o art. 168.° que a paternidade «pode resultar», expressão que indica uma
simples presunção legal, a admissão da possibilidade de que assim seja, e que o
legislador quis acolher na lei.
Trata-se de uma presunção ope legis, que a lei formula em benefício da atribuição
da paternidade aos filhos nascidos de pais não casados. Estamos perante uma disposição
inovadora que não constava do sistema jurídico anteriormente vigente. Esta disposição
do Código de Família visa fazer funcionar o beneficio da presunção legal de paternidade
em duas situações muito comuns entre nós e que em princípio devem levar a que se
considere como estabelecida a paternidade.
É o caso da posse de estado de filho e o de existência de união de facto entre a
mãe e o pretenso pai durante o período legal de conceção.
Em qualquer destes casos, o filho ou quem o represente, tem apenas que fazer a
prova de que se encontra na posse de estado de filho, ou que a sua mãe viveu em união
de facto com aquele que pretende ser o seu pai, durante o período legal da conceção.
Não se exige, como acontecia no Código Civil no caso da «convivência
notó¬ria» ou «concubinato duradouro» a que se referia o art. 1862.°, que a situação de
união de facto se tivesse prolongado para além do nascimento do filho.
Para aplicação do disposto no art. 168.°, alínea b), basta que tenha havido a
situação de união de facto durante o período legal da conceção. Não é necessário que a
união de facto tenha sido objeto de reconhecimento nem sequer se exige que reuna os
pressuposto legais para que se possa operar o seu reconhecimento.
O alcance deste art. 168.° é precisamente o de permitir que beneficiem da
presunção legal de paternidade em relação ao companheiro da mãe os filhos
nascidos de todas as uniões de facto existentes no nosso país, incluindo as uniões
poligâmicâs, que não poderão ser objeto de reconhecimento.
A força destas presunções legais não é, porém, de molde a impedir que o pretenso
pai as possa afastar e venha negar a sua paternidade. Simplesmente, se ele o quiser fazer,
terá que ser ele a provar que não é o pai.
O afastamento da presunção que deriva da posse de estado de filho, como consta
da abundante jurisprudência estabelecida sobre a matéria a propósito das disposições
pertinentes que constavam do Código Civil, não é questão de fácil aplicação.
A posse de estado de filho só pode ser afastada se o pretenso pai provar que, por
razão decisiva e convincente, veio a retirar ao filho o tratamento que lhe dispensava
nessa qualidade. Ou seja, o pai é que terá de provar o facto que alterou a situação
anterior em que considerava o filho como seu e que levou a modificar a titularidade da
posse de estado de filho que lhe atribuía.
No caso de presunção derivada de união de facto, será igualmente o pretenso pai
que terá de provar que a mãe manteve relações sexuais com outro homem durante o
período legal de conceção, ou que a união de facto se não verificou durante esse mesmo
período, ou existia impossibilidade física de o filho ser por si gerado.
É um ato pessoal, pois só pode ser levado a cabo pelo próprio ou por terceiro que
seja constituído como procurador com poderes especiais para o ato. É ainda um ato
voluntário, que deve dimanar da vontade livre e esclarecida da pessoa que emite a
declaração. Se houver vício na declaração por erro essencial, coação ou falsidade, a
declaração pode ser anulada.
Uma vez operada a declaração, esta é de natureza irrevogável, pelo que não pode
ser retirada pelo declarante, como consta do art. 173.° do Código de Família. Pressupõe
a lei que se trata de uma confissão exata e feita de acordo com a verdade dos factos.
O art. 170.° do Código de Família refere-se ao estabelecimento da filiação
operado por via de declaração no caso em que se não verifiquem quaisquer das
circunstâncias previstas nos artigos anteriores, ou quando for de afastar a presunção de
paternidade prevista na lei.
A declaração de filiação é, como na generalidade dos atos previstos no direito de
família, um ato formal segundo o qual o progenitor se assume como tal.
O art. 175.° do Código de Família estabelece as formas legais de que deve
revestir-se a declaração:
a) declaração perante os órgãos do registo civil, que deverá constar de um assento
assinado pelo declarante;
b) declaração perante o tribunal, que deverá ser reduzida a termo, de acordo com
o estatuído no art. 7.°, n.° 2 da Lei n.° 1/88, que aprovou o Código de Família;
c) declaração em documento autêntico ou autenticado lavrado pelo notário,
sendo necessário, neste caso, que se trate de documento com reconhecimento presencial
de letra e assinatura — art. 375.° do Código Civil.
A declaração do progenitor perante o funcionário do registo civil constitui a via
mais comum de reconhecimento do vínculo que o liga ao filho, e tanto pode constar do
assento do nascimento como ser feita posteriormente.
A declaração feita perante o tribunal pressupõe, como é óbvio, que esteja
proposta em juízo a pertinente ação para o estabelecimento da filiação.
Se a parte contra quem foi proposta a ação na qualidade de pretenso progenitor,
aceitar a imputação de maternidade ou paternidade que lhe é atribuída, o juiz da causa
deverá mandar exarar nos autos um termo do qual conste não só a identificação do
progenitor como a do filho e no qual seja recebida formalmente a declaração de filiação.
A declaração feita perante o notário pode constar de documento autêntico (como
escritura pública ou testamento) ou documento autenticado cujo conteúdo vise
expressamente essa declaração.
Tem-se discutido na doutrina se a declaração de filiação feita em testamento
perderá a sua validade no caso de o testamento ser revogado. O Código de Família não
aborda expressamente essa questão, mas, dada a forma como está redigido o art. 175.°,
entendemos que, se for válido o testamento quanto à capacidade do testador e à forma
usada, e desde que a emissão de vontade esteja isenta de vício, a declaração feita sobre
a filiação constante desse documento autêntico mantém plena torça para o
estabelecimento do respetivo vínculo.
Em súmula podemos concluir que a declaração de filiação é um ato pessoal,
voluntário, formal e irrevogável.
Ocorre com frequência que, aquando da celebração de casamento de um homem
com uma mulher que já tem um filho anterior relativamente ao qual não foi ainda
estabelecida a paternidade, o marido, mesmo não sendo o pai natural, faz a declaração
de ser ele o pai natural, em declaração contrária à verdade, e com a cumplicidade da
mãe.
Pretende-se integrar a criança na nova família que se constitui, prescindin¬do-se
de um processo de adoção que seria o adequado. É a paternidade por «complacência».
Pretende-se desta forma estabelecer uma relação de paternidade
sócio-afetiva que não se baseia na paternidade biológica.
A capacidade para emitir a declaração vem estatuída no art. 174.° do Código de
Família, que permite que ela seja feita por quem tenha a idade mínima para contrair
casamento. São, por conseguinte, capazes de fazer a declaração a mulher com mais de
15 anos de idade e o homem com mais de 16 anos, em conformidade com o disposto na
alínea a) do art. 174.° do mesmo Código.
No caso de incapacidade do progenitor, a declaração deve ser suprida nos termos
gerais de direito, como prevê a alínea b) do mesmo do art. 174.°. Trata-se, porém, de
ato de natureza estritamente pessoal, pelo que a declaração provém sempre do próprio
progenitor, ainda que ele seja menor ou incapaz.
A declaração de maternidade pode ser estabelecida pela própria mãe a todo o
tempo (art. 171.°, n.° 1 do Código de Família) e a declaração de paternidade pode ser
estabelecido pelo pai a todo o tempo (art. 172.°, n.° 1 do mesmo Código). Permite ainda
a lei a declaração de paternidade em relação ao filho nascituro, desde que identificada
a pessoa da mãe (art. 176.°).
Esta possibilidade de fazer a declaração a todo o tempo tem que ser, porém,
compreendida dentro dos termos legais, pois, além do caso da constituição do vínculo
da adoção, que já mencionámos atrás, há ainda outra restrição que vem prevista no art.
177.°, n.° 2, em relação a filho maior, pois neste caso a declaração não poderá ser feita
sem o consentimento do filho.
Entende-se que se o progenitor não cumpriu o seu dever de declaração da sua
qualidade de pai ou de mãe, até à maioridade do filho, ou seja na fase da infância e
juventude quando ela era mais necessária, este deve ser ouvido sobre tal declaração, e,
de acordo com o seu interesse, vir ou não a prestar o seu consentimento a tal ato.
Se, entretanto, o filho houver falecido e tiver deixado descendentes, serão estes,
por si ou pelos seus representantes legais, que deverão prestar o consentimento — art.
177.°, n.° 2, já citado. As razões para tal condicionalismo legal são as mesmas do n.° 1,
pois entendeu-se que se transmite aos herdeiros do filho falecido o direito de consentir
ou não na declaração. Se o filho já tiver falecido sem deixar descendentes, deve
entender-se que a declaração já não pode ser emitida porque já não há quem preste
consentimento.
No caso de filiação incestuosa a que se refere o art. 183.° do Código de Família,
ambas as declarações podem ser emitidas, mas a que for feita em segundo lugar será
considerada secreta. A filiação incestuosa é que resulta do facto de pai e mãe
estarem impedidos de contrair casamento em razão de laços de parentesco ou
afinidade em linha reta ou de parentesco no 2.° grau da linha colateral.
A orientação do art. 183.° é a de admitir o estabelecimento da paternidade e da
maternidade, mas com a ressalva de que um destes vínculos, indiferentemente, deve ser
considerado secreto para se não revelar perante o filho e terceiros a situação de incesto
e imoralidade em que se operou a procriação.
Não obstante, fica a permanecer, segundo o n.° 2 do art. 183.°, a obrigatoriedade
da prestação de alimentos do segundo progenitor em relação ao filho, sendo ainda a
filiação relevante para a constituição de impedimento matrimonial.
[42] Declaração feita por terceiros que não o progenitor
O Código de Família veio permitir que a declaração seja feita, em determinadas
condições legais, por terceira pessoa que não o progenitor.
Com o alargamento a terceiros da possibilidade de fazer tal declaração teve-se
em mente levar a que seja possível o estabelecimento da filiação em um maior número
de casos.
Dado, porém, o melindre que pode advir de declaração feita por terceiro, o
Código de Família concede, em contrapartida, a mais ampla possibilidade de
impugnação à pessoa que tiver sido indigitada como progenitor e que não vier a aceitar
tal imputação. Não obstante, se o progenitor tiver conhecimento da declaração de
maternidade ou de paternidade que lhe for atribuída e não a impugnar no prazo legal, a
declaração torna-se plenamente eficaz, produzindo os mesmos efeitos legais atribuídos
à declaração feita pelo próprio progenitor.
A lei estabelece distintas condições legais para o caso de declaração de
mater¬nidade ou de declaração de paternidade feita por terceiro que não o progenitor.
Relativamente à declaração para o estabelecimento de maternidade, rege a
segunda parte do art. 171.°, n.°s 1 e 2 do Código de Família. Ela pode ser operada por
declaração de terceiro, desde que se verifiquem as seguintes condições, insertas no n.°
1 deste artigo:
a) que seja feita por terceiro que tenha conhecimento do facto do nascimento;
b) que seja feita dentro do prazo de 3 anos após o nascimento;
c) que seja feita durante a vida da mãe.
De acordo com o n.° 2 deste art. 171.°, a declaração de outrem que não a mãe
deve ser notificada à mãe.
A notificação deverá ser operada pelo Conservador do Registo Civil segundo a
forma prescrita na lei, podendo a pretensa mãe impugná-la ou não.
Rdativamente à declaração de paternidade, ela só poderá ser feita por outra
pessoa se esta for a própria mãe do filho. Trata-se de uma disposição de caráter
verdadeiramente inovador. Por via de tal permissão legai, faculta a lei que seja a mulher
que deu à luz o filho que venha fazer a declaração, atribuindo a paternidade a quem ela
entende ser o pai natural.
Esta declaração feita pela mãe do filho está sujeita a condicionalismo legal mais
rigoroso e pode ser livremente impugnada pelo pretenso pai.
O art. 172.°, n.° 2 do Código de Família fixa as seguintes condições para que
possa ser declarada a paternidade do filho por terceiro:
a) que a declaração seja feita pela mãe do filho;
b) que seja feita dentro do prazo de um ano após o nascimento;
c) que seja feita durante a vida do pai;
d) que possa ser pessoalmente notificada à pessoa declarada como pai.
Previne-se desta forma a obrigatoriedade de a pessoa indicada como pretenso pai
vir a ter conhecimento da atribuição de paternidade que lhe é feita e restringe-se a
legitimidade para fazer a declaração à própria mãe, encurtando-se para um ano o prazo
dentro do qual a declaração pode ser feita. Grave é a responsabilidade que impende
sobre a mãe do filho, pois, ao fazer tal declaração, ela sabe que poderá vir a ser
impugnada pelo interessado, o que leva à posterior necessidade de fazer prova do facto
por via judicial.
Qualquer destas declarações feitas por terceiro que não o progenitor não têm a
força afirmativa do facto que é atribuída à declaração do próprio progenitor, pois é
permitida a impugnação pelo pretenso progenitor por simples declaração de oposição.
O art. 178.° do Código de Família permite, sem restrições, que a declaração de
filiação feita por terceiro seja impugnada, impondo só um limite de prazo para tal. A
impugnação deverá ser deduzida dentro do prazo de um ano após a pessoa indicada
como progenitor ter tido dela conhecimento, mas não poderá ser feita pela via do registo
civil após decorridos 5 anos sobre a data em que tenha sido lavrado o ato de registo.
Dá-se como assente que se a pessoa indicada como progenitor não impugnou,
junto da Conservatória do Registo Civil, a qualidade que lhe foi atribuída por terceiro,
de pai ou de mãe, é porque dá a sua anuência e aceita a declaração feita.
Se tiverem decorridos 5 anos após a declaração no registo, por uma questão de
estabilidade da situação do filho, que deve ser protegida, já a declaração de impugnação
não poderá ser feita junto dos órgãos do Registo Civil, como já referimos.
Não obstante, a última parte do art. 178.° é bem clara, quando salvaguarda que,
quer no caso de ter decorrido um ano sobre a data do conhecimento da declaração, quer
no caso de terem decorrido 5 anos sobre a data em que for lavrado o ato de registo, o
pretenso progenitor que quiser afastar o vínculo de paternidade ou de maternidade,
poderá sempre recorrer à impugnação por via judicial.
[43] Declaração de afastamento da presunção da paternidade do marido da
mãe
O estabelecimento da paternidade dos filhos de mulher casada é atribuído ao
marido da mãe, nos termos da regra consagrada no art. 163.° do Código de Família. Tal
disposição é de caráter genérico, mas pode sofrer ressalvas, como prevê a parte final
desse art. 163.°, que, a título excecional, permite que seja afastada a presunção legal.
É preciso ter em mente que, ao permitir-se o afastamento da presunção legal de
paternidade do marido da mãe, como atrás vimos, se estão a prever situações de
separação de facto dos cônjuges em que em regra a coabitação cessou, ou em que já não
existe entre os cônjuges uma verdadeira união de vida.
Tendo em conta certas condições excecionais em que uma mulher, embora
formalmente casada com determinado homem, tenha na realidade encetado vida marital
com outro, permite a lei o estabelecimento da verdadeira paternidade do filho de acordo
com o vínculo natural.
Instituíram-se regras de natureza excecional, que permitem, dentro de certas
condições, quer à mulher casada, quer àquele que se considere como progenitor natural,
fazer a declaração contrária à presunção de paternidade do marido.
Saliente-se que idêntica faculdade não é conferida ao marido, o qual, se pretender
afastar a presunção da sua paternidade em relação a filho nascido da mulher com quem
for casado, terá obrigatoriamente que recorrer a ação de impugnação de paternidade.
Os artigos 180.° e 181.° do Código de Família, que permitem declaração de
paternidade contrária à presunção legal, tiveram, pois, em conta situações em que os
cônjuges se encontravam separados de facto e que prevaleciam no passado quando o
divórcio era mais difícil de obter. Admite-se que possam ainda surgir no presente,
precisamente quando os cônjuges estabelecem novas uniões, sem terem a cautela de
dissolver atempadamente o casamento anterior.
Foram, pois, razões de natureza pragmática que levaram a admitir que,
inde¬pendentemente da propositura de ação judicial, como acontece na generalidade
dos sistemas jurídicos, se permitisse à mulher casada ou ao progenitor natural
afastar, por simples declaração, uma presunção legal com a força daquela que
deriva da regrapater is est quem nuptiae demonstrant.
Trata-se dum processo que deve correr na Conservatória do Registo Civil e que
permitirá repor a verdadeira identidade do genitor, afastando uma atribuição legal de
paternidade coberta pelo vínculo do casamento.
Há, porém, que ter em conta que existe um apertado condicionalismo legal a ser
observado para que a declaração seja válida.
Só tem legitimidade para fazer a declaração a mulher casada e o progenitor
natural, de acordo com o que dispõem o n.° 1 do art. 180.° e o n.° 1 do art. 181.°.
A declaração só é considerada válida e eficaz caso se verifiquem as seguintes
condições:
a) haja ausência de posse de estado entre o filho e o marido da mãe;
b) que a declaração possa ser pessoalmente notificada ao marido da mãe;
c) que o marido a não venha impugnar dentro do prazo de um ano.
A primeira condição (a não existência de posse de estado entre o filho e o marido
da mãe) é de natureza substancial e de caráter decisivo, pois deve assentar numa
situação real e concreta de que o declarante tem que ter conhecimento, e que não pode
falsear, sob pena de responsabilidade (civil e criminal) por falsas declarações.
Se o marido reconhecer e tratar o filho como tal, e se, portanto, se tiver
estabelecido entre ambos a posse de estado, já a declaração do afastamento da sua
paternidade não poderá ser feita nem pela mulher nem por aquele que se considere
progenitor natural.
Neste caso, o legislador optou por dar preferência à estabilidade das relações
íamiliarese designadamente àpatemidade social, postergando a possível paternidade
biológica ou natural. Na verdade, se o marido da mãe considerar o filho como seu e por
essa via estiver estabelecida a sua paternidade, esta só poderá ser afastada através de
ação própria, que é ação de impugnação da paternidade do marido.
A segunda condição posta na lei é a de que a declaração de afastamento da
paternidade do marido lhe possa ser notificada pessoalmente. Obsta-se desta forma a
que se faça tal declaração no caso de morte ou ausência do marido.
Por fim, a última condição para que a declaração se possa tornar eficaz consiste
no facto de, uma vez efetivada a notificação pessoalmente ao marido, este a não venha
impugnar no prazo legal, que a lei fixa em 1 ano, tanto no n.° 2 do art. 180.° como no
n.° 2 do art. 181.°.
O silêncio do notificado durante todo o prazo conferido por lei para a
impugnação é entendido, por via de presunção legal, como comprovativo da sua
concordância com a declaração feita sobre o afastamento da sua paternidade em
relação ao filho nascido de mulher com quem está ainda unido pelo matrimónio.
O art. 182.° do Código de Família atribui exclusivamente ao marido a
legiti¬midade para fazer a impugnação e define a forma que esta deve revestir.
A forma da declaração é a mesma que vem prevista no art. 179.°, relativa à
impugnação de declaração feita por terceiro que não o progenitor.
Ou seja, admite-se que o marido impugnante use de qualquer forma de
impu¬gnação oral ou escrita, sendo necessário apenas que o funcionário do registo civil
se certifique da identidade do impugnante. Havendo oposição à declaração pelo marido,
a lei considera inexistente a declaração feita pela mãe ou por quem se considere
progenitor natural, averbando-se oficiosamente ao registo de nascimento do filho a
paternidade do marido da mãe.
Se tal ocorrer, vai de novo aplicar-se a previsão legal que obriga a que a
presunção da paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe só possa ser
afastada por via de ação de impugnação judicial. Ou seja terá que ser no foro, que se
terá que averiguar qual a verdadeira filiação paterna do filho.
[44] Ações judiciais de filiação
As ações relativas à filiação são de dois tipos:
— ações de estabelecimento de filiação — que se destinam à determinação
jurídica de vínculo de filiação paterna ou materna;
— ações de impugnação de vínculo de filiação já estabelecido mas que se
entende ser contrário à verdade biológica e que portanto deve ser substituído pelo
verdadeiro.
A tendência na doutrina, hoje em dia é para considerar que os dois tipos de ações
não devem estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade ou de prescrição, pois têm a
ver com a salvaguarda dum direito fundamental da pessoa humana, o direito à
identidade própria de cada indivíduo. Domina assim na doutrina que as normas que
limitam no tempo a propositura destas ações devem ser consideradas como feridas de
inconstitucionalidade.
Por um lado interessa defender o interesse do filho em conhecer a sua verdadeira
progenitura, mas por outro lado interessa também defender a estabilidade sócio- -
afetivas em que assentam as relações familiares.^
(?1 Guilherme de Oliveira — obra citada, p. 465: «É necessário organizar um
regime que se abra à verdade biológica e que dê um ensejo para cada indivíduo descobrir
o seu lugar no sistema dc parentesco; mas a certeza e a segurança também são valores
de organização social.»
Dado o princípio já enunciado do direito ao estabelecimento da filiação, a lei
permite com a maior amplitude que, caso ele não se verifique por via das presunções
legais ou por declaração, seja o tribunal a estabelecer por sentença essa filiação.
O art. 184°, n.° 2, do Código de Família permite a propositura da ação:
a) ao Ministério Público oficiosamente, até 3 anos após o nascimento;
b) ao filho, por si próprio ou pelo seu representante legal enquanto for menor ou
por
quem for designado como seu curador especial para o efeito no caso de
incapacidade.
A ação proposta pelo filho pode ser proposta sem limite de prazo, e
independen¬temente do facto de o Ministério Público ter decaído na ação por si
proposta — art. 186.°.
«Os filhos devem respeito, cuidados e assistência aos pais». São deveres e
permanente extensivos a toda a relação paterno-filial quer durante a meno ^ como
depois da maioridade.
A autoridade paternal tem como conteúdo um conjunto de poderes, de deveres e
de prerrogativas que incidem sobre a própria pessoa física e moral do filho e sobre o
seu património.
Com vista à prossecução dos fins para cuja realização se atribui a autoridade
paternal, a lei prevê o dever de obediência dos filhos em relação a seus pais. É estatuído
no art. 137.° do Código de Família o princípio genérico de que os filhos devem
obediência aos pais. A lei estabelece, porém, as linhas orientadoras desse dever, pois no
art. 137.°,n.°l menciona que: «Osfilhos menores devem obediência à legítima
autoridade paternal», o que quer enfatizar que essa autoridade tem que ser exercida
dentro da finalidade legal para a qual é atribuída (o interesse do menor), pois se o não
for toma-se ilegítima e como tal não há que pedir ao filho obediência.
De acordo com o n.° 2 do art. 137.°: «A medida do seu desenvolvimento a
personalidade e vontade dos filhos deve ser tida em conta pelos pais ».
Quis-se sublinhar aqui a necessidade de aplicar um dos princípios fundamentais
do Código de Família (consignado nos seus art. 2.°, n.° 2 e art. 6.°), e que se refere à
contribuição que todos os membros da família devem dar para que cada um possa
realizar plenamente a sua personalidade e as suas aptidões, tendo em conta o respeito
pela sua personalidade, a especial proteção à criança e o espírito de colaboração e
entreajuda.
A reforma constitucional introduzida pela Lei n.° 23/92, de 16 de setembro,
previa no art. 30.°, n.° 2, que o Estado promovesse o desenvolvimento harmonioso da
personalidade das crianças e dos jovens; e o art. 31.° vinha explicitamente consagrar o
princípio de que o Estado, a família e a sociedade deviam promover o desenvolvimento
harmonioso da personalidade dos jovens e das crianças.
No art. 80.° (Infância) da atual Constituição vem consagrado no n.° 2: «As
políticas públicas no domínio da família, da educação e da saúde devem salvaguardar o
princípio do superior interesse da criança como forma de garantir o seu pleno
desenvolvimento físico, psíquico e cultural».
Aliás, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança no seu art.
12.°, n.° 1, já confere à criança «(...) o direito de expressar as suas opiniões livremente
sobre todos os assuntos relacionados com a criança (...)» e no n.° 2 o de expressar
livremente a sua opinião em todos os assuntos que lhe digam respeito em «(...)
processojudicial ou administrativo (...) » e «<? direito a que as suas opiniões sejam tidas
em conta, de acordo com a sua idade e maturidade».
Estamos perante uma nova conceção, oposta à do autoritarismo e da prevalên¬cia
da vontade de adulto sobre a da criança e do jovem, anteriormente dominante.
Os pais devem respeitar a personalidade, as aptidões e inclinações pessoais do
filho, não lhe impondo regras de conduta ou opções na sua vida, como sejam a escolha
de fé religiosa, de profissão, da celebração ou não de casamento, etc., que contrariem a
vontade do filho.
O conteúdo da autoridade paternal engloba poderes-deveres de natureza pessoal,
de natureza patrimonial e de representação dos filhos menores.
[49] Conteúdo de natureza pessoal
O conteúdo de natureza pessoal da autoridade paternal vem expresso no art. 135.°
do Código de Família, segundo o qual «Incumbe aos pais a guarda, a vigilância e
0 sustento dos filhos menores e a prestação de cuidados com a sua saúde e
educação ». Importa analisar cada um destes poderes-deveres discriminados na lei:
1 — Poder-dever de guarda
Este poder-dever envolve, na sua materialidade, o encargo direto do filho pelos
pais e está ligado, portanto, à própria pessoa física do filho. O dever da guarda ou
custódia é da maior relevância e pode dizer-se que dele derivam os demais direitos e
deveres paternais. Este direito vem hoje de novo consagrado no art.0 9.° da Lei sobre a
Proteção Integral da Criança (Lei n.° 25/12 de 22 de agosto de 2012,
D. R. n.° 162). Os pais devem manter os filhos em convivência direta consigo,
protegendo- os na sua integridade física e moral e integrando-os no seu agregado
familiar em vivência comum.
O direito de guarda consubstancia-se assim na obrigação e no direito do filho a
viver com os pais na residência destes. Este poder-dever vem consignado no art. 136.°
do Código de Família: « Os filhos menores devem viver com os pais, não podendo
deixara residência destes sem o seu consentimento».
Por via do poder-dever de guarda, os pais estão investidos no direito de fixar o
domicílio do filho menor. O domicílio do menor é, em regra, o do seu representante
legal, como prevê o art. 85.°, n.° 1, do Código Civil.
A retirada dos filhos menores da residência dos pais sem o seu consentimento
constitui ilícito penal que pode ser tipificado na forma de subtração de menores
— art. 342.°, no constrangimento do menor a abandonar a casa dos pais ou
tutores
— art. 343.°, ou na ocultação troca ou descaminho de menores — art. 344.°,
todos do Código Penal.
O Anteprojeto do Código PenaJ prevê no art. 231.° o crime de Subtração ou
recusa de entrega de menor.
Os pais podem pedir a intervenção de meios policiais para a entrega do filho que
for ilicitamente retirado da sua guarda.
Inversamente, a lei não permite que os pais afastem os seus filhos menores da
residência familiar, seja por meio de expulsão ou de qualquer outro meio violento ou
fraudulento. O art. 18.° da Lei do Julgado de Menores, Lei n.° 9/96, de 19 de abril,
carateriza a violação do dever de proteção social ao menor e engloba na sua alínea b)
como violadora desse dever: «A ordem de saída do menor da residência familiar nào
autorizada pelo Julgado de Menores, por parte dos pais, tutores ou qualquer pessoa que
tenha o menor a seu cargo.»
O abandono dos filhos constitui igualmente um ilícito penal, sendo uma das
formas do crime de abandono de família.'
Os pais podem, no entanto, delegar os seus poderes em terceira pessoa,
colocando o filho em colégio, em casa de parente, ou instituição social, desde que seja
idónea a entidade a quem o menor é entregue.
Dá-se então a continuação do exercício do poder-dever de guarda através desse
intermediário. Esta delegação do poder-dever de guarda pela entrega material do filho
a terceiro é um ato de natureza temporária e sempre revogável.
2 — Poder-dever de vigilância
O poder-dever de vigilância atribui aos pais o dever de velarem pela integridade
física e moral dos filhos, afastando-os dos perigos que os possam atingir na sua própria
pessoa ou na sua formação moral. Os pais devem proteger o filho na sua integridade
física, não permitindo que ele seja exposto a perigos dos quais, em razão da sua
menoridade, não esteja apto a defender- se, impedindo que sofra lesões ou que a sua
vida corra algum risco.
No aspeto moral, devem velar sobre as relações do filho, impedindo que ele
conviva e acompanhe pessoas moralmente mal formadas que possam incutir-lhe vícios
ou comportamentos censuráveis. Os pais têm o direito de fiscalizar as relações sociais
dos filhos.
Este direito ter que ser exercido no interesse do filho e não deve estar submetido
a caprichos ou malquerenças dos pais. Se os pais impedirem a relacionamento com os
avós ou outros parentes próximos do menor, como irmãos, tios e primos, o tribunal pode
ser chamado a intervir, se essa proibição tiver caráter abusivo e for injustificada.
Os pais têm o direito de abrir a correspondência do filho menor, no quadro do
dever de vigilância sobre as relações sociais do filho — art. 461.°, n.° 1 do Código
Penal.
Nele está também englobado o controlo sobre a vida privada do filho e a difusão
da sua imagem ou de relatos de índole pessoal.
Do dever de vigilância resulta ainda para os pais a obrigação de impedirem que
o filho pratique atos lesivos dos direitos de outrem, sendo no geral responsáveis pelos
atos cometidos pelo filho. O art. 491.° do Código Civil responsabiliza os pais
relativamente aos danos causados a terceiros por filho menor, naturalmente incapaz,
quando não tenham exercido de forma diligente o seu dever de vigilância.
de natureza solidária, ficando vedada qualquer cláusula que exclua ou limite essa
responsabilidade que por força do art. 79.° será declarada nula.
Ora envolvendo a qualidade de sócio fundador a responsabilidade pessoal
descrita na lei comercial, é manifesto que extravasa os poderes legais de representação
de filho menor para a constituição de uma nova sociedade em que ele apareça na
qualidade de sócio fundador.
Na verdade, como já vimos, os poderes de administração legal dos bens do filho
menor é no essencial dirigida para os atos de administração ordinária e por conseguinte,
destinada à sua conservação e frutificação normal, não podendo envolver atos dos quais
possa advir responsabilidade pessoal imputável ao menor.
Pelo atual dispositivo da lei, entendemos que a constituição duma nova sociedade
comercial, em que o menor entre como sócio fundador, nem tam¬pouco poderá ser
enquadrada como ato de administração extraordinária cuja autorização possa ser dada
pelo tribunal, como vem previsto no art. 141.° do Código de Família.
A qualidade de sócio fundador envolve responsabilidade de natureza pessoal e
só pode ser assumida por quem tenha plena capacidade civil pelos efeitos de que dela
derivam. Daí que tampouco ela não possa ser objeto de autorização judicial, sendo de
afastar por completo a intervenção de um menor no ato de constituição duma sociedade
comercial.
Por maioria de razão é também de afastar poder um menor ser investido em
qualquer cargo social na qualidade de gerente ou administrador, para os quais a mesma
Lei n.° 1/04 exige que as pessoas investidas tenham plena capacidade de agir. O menor
poderá ser sócio não fundador unicamente em sociedade de capital.
Já a situação que decorre posteriormente à constituição da sociedade e aquisição
da qualidade do sócio tem que ser encarada de forma diferente. Ao sócio menor não
poderão ser atribuídas funções de gerência comercial, mesmo
através do seu representante legal, pois são funções atribuídas em razão da pessoa
escolhida para a gerência e não podem ser objeto de delegação.
Em consequência, passam a estar sujeitos a autorização judicial quaisquer atos
que envolvam alienação ou oneração de quotas sociais ou alteração do pacto social. Mas
cabem nos atos da administração ordinária, os poderes dos pais de representarem os
filhos nos atos que decorram da vida normal da sociedade, como a aprovação de contas,
recebimento de dividendos e lucros, eleição de órgãos sociais, etc..
4 — Anulação e validação de atos praticados pelos pais
Os atos de administração praticados pelos pais dentro ou fora dos seus poderes
de administração e que sejam lesivos dos interesses dos filhos podem ser anulados —
art. 145.° do Código de Família.
A anulação pode ser pedida pelo Ministério Público durante a menoridade do
filho. E o próprio filho pode vir pedir a anulação do ato dentro do prazo de um ano após
ter atingido a maioridade.
Além de que, como já apontámos, os pais podem ser responsabilizados pelos atos
que, intencionalmente ou com grave negligência, pratiquem em prejuízo dos filhos (art.
144.°, n.° 2). Aos pais que administrem indevidamente os bens do filho, violando os
seus deveres para com este, fazendo um uso abusivo dos seus poderes, pode ser retirado
o poder legal de gestão dos bens dos menores, procedendo-se à remoção dos seus
poderes de administração.
A remoção da administração é uma sanção contra a gestão inapropriada dos
progenitores que redunde na lesão dos interesses económicos do filho, seja por
incapacidade dos pais, seja por apropriação ou dissipação indevida dos bens daquele.
Em contrapartida, os atos feridos de invalidade, por não terem sido devidamente
autorizados pelo tribunal, podem ser validados nos termos do art. 146.° do referido
Código.
Pode ocorrer que determinado ato tenha sido benéfico para o património do filho,
justificando-se que seja suprido o vício na sua celebração. A validação pode ser feita a
pedido dos pais durante a menoridade do filho ou pelo próprio filho após ter atingido a
maioridade, não impondo a lei de família um prazo para o pedido.
Quando o filho atinja a maioridade os pais devem fazer-lhe a entrega dos bens
que estejam na sua administração remetendo-os à sua posse.
menor ser submetido a uma intervenção cirúrgica, a saída do menor do país por
longo tempo, etc.) já é necessário que ambos os pais sejam chamados a representar o
menor.
Do poder de representação dos pais estão excluídos os atos de natureza
estritamente pessoal (art. 138.° do Código de Família) c os atos de natureza patrimonial
sujeitos a autorização judicial (art. 141.° do mesmo Código).
Os atos de natureza estritamente pessoal são aqueles que estão ligados à própria
vontade e consciência do menor, titular do direito, e em que é essa vontade própria que
tem de ser expressa.
Como atos de natureza estritamente pessoal estão englobados: o consentimento
para casamento, previsto no art. 35.° do Código de Família que tem que ser dado pelo
próprio nubente, embora tenha que ser complementado com a autorização dos pais
prevista no art. 24.°, n.° 3.
O consentimento à adoção, a que refere o art. 203.°, que é indispensável à
constituição do vínculo da adoção de menores que tenham completado 10 anos de idade.
A declaração do vínculo da qualidade de progenitor, seja de maternidade ou de
paternidade, feita por menor que já tenha a idade mínima para contrair casamento, ou
seja, 16 e 15 anos, respetivamente, para homem e mulher, como consente o art. 174.°,
alínea a), não carece de autorização. Já no caso de idade inferior àquelas a declaração é
feita pelo menor e tem que ser objeto de autorização pelo representante legal — art.
174.°, alínea b).
A audição do menor que tenha completado 10 anos de idade em todas as causas
a si respeitantes — art. 158.°, n.° 3, do mesmo Código representa também um direito
de natureza pessoal a ser exercido pelo menor.
A audição do menor constitui «uma das consequências mais importantes do
princípio favor filii que o julgador deve ter em conta como elemento relevante da sua
decisão.»
De realçar que a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança,
de 1996, no seu art. 3.° dispõe:
«A criança que segundo o direito interno é considerada como tendo o necessário
discernimento, nos processos em que seja interessado e perante uma autoridade
judiciária é titular dos seguintes direitos (...)
a) receber toda a informação pertinente;
b) ser consultada e exprimir a sua opinião;
c) ser informada das consequências eventuais da aplicação da sua opinião e das
consequências eventuais de qualquer decisão.»
-, l°g° que cessar a causa jurídica de que deriva a inibição ela cessa lenoridade
do progenitor, da incapacidade ou da ausência), cessa :to a inibição, assumindo o
progenitor a plenitude do seu exercício Código de Família). s do art. 152.°, acima
mencionado, e do art. 155.° a inibição é ialmente e terá que ser levantada ou alterada
também judicialmente ipetente processo. E isto porque só o tribunal pode decidir se se
que a decisão anterior seja alterada.
A declaração da inibição pode ser total ou parcial, sempre depois de
devida¬mente apreçadas as circunstâncias do caso. O mesmo se passa com o
levantamento
da inibição.
Estas disposições do Código de Família quiseram acautelar todas as mais
diversas situações que podem surgir nas relações entre pais e filhos e em que seja
necessário proteger a pessoa do filho.
A alínea a) do art. 155.° menciona a circunstância de o progenitor estar impedido
de facto de exercer a autoridade paternal. Tal pode ocorrer no caso de enfermidade
prolongada, de ausência do País por período longo, embora sendo conhecido o paradeiro
do progenitor, condenação a pena de prisão, etc..
A alínea b) desse artigo refere-se a toda a conduta do progenitor que possa
envolver perigo moral para o filho, tais como atos de crueldade, maus tratos físicos e
morais e condutas socialmente condenáveis, que possam refletir-se no seu
relacionamento com o filho.
A negligência do progenitor em relação ao cumprimento dos seus deveres para
com o filho vem mencionada na alínea c) do citado art. 155.°. Abrange o abandono e
desamparo mais ou menos completo do menor.
A negligência pode também revelar-se na má administração do património do
filho, praticando atos lesivos ou omitindo deveres de proteção dos seus interesses, o que
levará à remoção dos poderes de administração de bens por parte dos pais por decisão
judicial.
Maior gravidade tem a prática de crime doloso cometido contra a pessoa do filho
e a condenação do progenitor em pena maior, sobretudo se disser respeito à prática de
crime de ofensas corporais graves ou atentado contra a vida, ou de crimes de natureza
sexual.
Mesmo nos casos de maior gravidade, a inibição da autoridade paternal traduz-
se numa suspensão dos direitos e não retira aos pais em definitivo a titula¬ridade desses
direitos.
Ela é, assim, de natureza temporária, muito embora a sua extensão e duração
variem consoante a natureza do caso concreto.
A declaração de inibição não exonera o progenitor da sua obrigação e prestar alimentos
ao filho, pois a prestação de alimentos é um dever que a sempre, em primeiro plano, aos
pais.
Por essa razão, o art. 157.« do Código de Família consagra o principio de que,
mesmo depois da inibição, o progenitor deve prestar alimentos ao .
A situação do menor em relação à sua família e, em especial, aos seus pais, o seu
enquadramento social e todo o processo que visa o seu crescimento físico e inteletual
são questões de tão magna relevância que se não podem circunscrever ao âmbito das
relações jurídicas privadas.
A criança e o adolescente carecem de proteção legal em todo o período que
antecede a maioridade e essa proteção cabe ao tribunal no qual o Procurador da
República intervém sempre em representação dos interesses do menor.
0 tribunal pode intervir, não só durante a coabitação dos pais no caso do art.
140.°, mas também quando os pais estejam separados de facto, como estabelece o art.
148.°, ou sempre que for necessário declarar ou levantar a inibição da autoridade
paternal — arts. 155.° e 156.°, todos do Código de Família.
Como regra genérica estatui o art. 158.° deste Código que o tribunal deve tomar
as medidas necessárias à proteção do menor e decidir sobre as questões que a este
respeitem, sempre que as circunstâncias de facto o exijam.
As decisões serão tomadas depois de audição obrigatória, em todos os casos, de
acordo com o n.° 2 e 3 desse mesmo artigo:
— do representante do Ministério Público;
— do menor que tenha completado 10 anos de idade nas causas a si respeitantes.
Estabeleceu-se, com caráter facultativo, a audição, decidida oficiosamente pelo
tribunal ou a pedido das partes, dos órgãos de natureza consultiva que são o Conselho
de Família ou organismos de assistência social de apoio à juventude — art. 159.° do
mesmo Código.
Como fim último a ter em vista por todas as decisões judiciais, está o benefício
e interesse do menor e o da sociedade onde ele se insere^17*
A prevalência deste interesse superior da criança sobre o dos pais, tutores ou
outros interventores na causa não pode sofrer qualquer desvio, como imperativa¬mente
vem consignado no art. 160.°. Definir o que constitui « o superior interesse da criança»
tem sido objeto de aprofundamento.
(,7) «O critério do interesse do menor não pode deixar de ser ligado ao
pressuposto da valorização c adaptação das circunstâncias concretas; De facto um voto
de preencher, de quando em quando, enquanto critério de natureza subjectiva que esta
ligado a identidade pessoal e particular daquele menor particular c não da natureza
objectiva c predeterminada nem determinável...a audição do menor estabelece a
diferença, pois representa na minha opinião e indubitavelmente o instrumento
processual mais eficaz para tentar senão realizar pelo menos tê-lo em vista.» — Lea
Querzola, in Ricercatore deWUniversità di Bolonha, pg. 1361.
Como já referimos, o conceito do superior interesse da criança que é
pre¬valecente em todas as decisões quer judiciais quer administrativas que lhe digam
respeito, é um conceito jurídico indeterminado que se concretiza para cada caso de
acordo com as suas circunstâncias específicas.
A lei deixa em branco as delimitações para que ao ser aplicada ela possa atender
ao condicionalismo do momento nos aspetos individuais e sociais.
As decisões judiciais tomadas em processos desta natureza são transitórias e
suscetíveis de ser alteradas sempre que se modifiquem as próprias circunstâncias de
facto que lhes serviram de fundamento, como aliás acontece em todas as decisões
proferidas em processos de jurisdição voluntária. Mas o art. 161.° do Código de Família
entendeu expressar de novo este princípio.
O tribunal competente sob o ponto de vista territorial é o da residência do menor
no momento da instauração do processo — art. 6.°, n.° 1 do Código de Processo do
Julgado de Menores.
a) Intervenção judicial no caso de coabitação dos pais
O tribunal deverá intervir a pedido de um ou de ambos os pais quando a
divergência destes seja sobre questão de natureza grave.
Nestes litígios o tribunal terá que exercer o papel de um árbitro do conflito,
procurando obter dos pais uma solução conciliatória, sem nunca perder de vista a
primazia do interesse do filho menor.
Em todos os casos de dissídio dos pais, o juiz tem que executar o trabalho
deli¬cado de um conselheiro das partes, procurando esclarecer-se sobre as condições
de vida da família, quais as normas de conduta até aí seguidas em situações idênticas,
qual a finalidade em vista por cada um dos pais, etc..
b) Intervenção judicial no caso de separação de facto dos pais
O exercício da autoridade paternal em separado pode ser estabelecido por via de
acordo entre os pais, como já vimos, vem previsto no art. 148.°, n.° 1 do Código de
Família, como veremos em relação ao divórcio por mútuo acordo (art. 85.°, alínea a)) e
em relação ao divórcio litigioso (art. 109.°, n.° 1 do mesmo Código).
Em todos estes casos, qualquer dos progenitores ou terceira pessoa, através do
Ministério Público, podem ir a tribunal suscitar a sua intervenção, sendo a decisão
obrigatória para os progenitores, para o filho e para terceiros.
c) Intervenção judicial no caso de inibição da autoridade paternal ou de
necessidade de aplicação de medidas de proteção social
A intervenção do tribunal no caso de ser necessário declarar a inibição da
autoridade paternal é da iniciativa do Ministério Público. As normas processuais são,
além das que vêm contidas no Código de Família, as do Decreto n.° 6/03, de 28 de
janeiro, do Código de Processo do Julgado de Menores.
Em termos latos, podem participar ao Ministério Público para que este venha a
agir em juízo em representação do menor, qualquer parente deste, afim, ou pessoa que
o tenha a seu cargo, tal como funcionário público ou entidade privada que tenha
conhecimento da necessidade do procedimento judicial.
Estamos perante uma situação em que sobreleva o interesse público da defesa do
menor, esbatendo-se a estrutura familiar, por incapaz de exercer o papel que lhe está
reservado na lei, e em que é o direito social de defesa do menor que tem de ser assumido
pelos órgãos judiciais e órgãos sociais para tal vocacionados.
A Lei n.° 9/96, de 19 de abril (Lei do Julgado de Menores) estabelece no seu art.
14.° quando devem ser aplicadas as medidas de proteção social aos menores,
especificando, além do mais, nas suas alíneas a) e b), que tal ocorre quando eles «sejam
vítimas de maus tratosfisicos ou morais ou de negligência por parte de quem os tenha à
sua guarda ou se encontrem em situações de abandono ou desamparo». Nestes casos,
será o Julgado de Menores a intervir para tomar as medidas adequadas e previstas no
n.° 18, e não a Sala de Família do Tribunal Provincial, como acontece sempre que
estejam em causa as relações familiares.
Por sua vez o Julgado de Menores quando aplica qualquer medida que envolva
alteração ou inibição no exercício da autoridade paternal, deve dar conhecimento do
facto ao Ministério Público junto da Sala de Família competente para procedimento —
art. 22.° da Lei n.° 9/96.
CAPÍTULO I0.°
O CASAMENTO
[59] Breve história da evolução do casamento
Uma breve retrospetiva histórica do instituto do casamento mostra que, durante
um longo período da vida do homem, o casamento não se formalizava por qualquer ato
solene. Era o estabelecimento da vida em comum de forma plena entre homem e mulher,
feito no propósito de fundarem a família, que caraterizava o casamento. No direito
romano já se distinguia o simples concubinato do casamento, pela affectio maritalis,
elemento subjetivo que evidenciava o propósito comum de convivência duradoura entre
homem e mulher.
Com o advento do cristianismo, as convições religiosas passaram a dominar por
inteiro o instituto do casamento, o qual passou a ser considerado como um sacramento
em que intervinha a vontade divina. O casamento devia, pois, revestir-se de forma
canónica e era o ministro do culto que autorizava a celebração. Só numa época mais
recente, ou seja, a partir
duas vontades para a aceitação dos efeitos que vão derivar do ato praticado, que
são comuns e recíprocos e que vão instituir entre ambos relações de natureza pessoal e
familiar próprias do vínculo conjugal.
Há, no entanto, que ter em conta que a autonomia da vontade das partes se
circunscreve a dois pontos, que são aliás de decisiva importância:
— cada pessoa é livre de casar ou não casar;
— cada pessoa é livre de escolher a pessoa do outro sexo com quem quer celebrar
o casamento.
O direito à livre celebração e à livre escolha do nubente é reconhecido nos
instrumentos internacionais já mencionados relativos aos direitos humanos.
À declaração de vontade expressa no ato de casar são aplicáveis subsidiaria-
mente alguns princípios essenciais a todos os negócios jurídicos em geral,
designadamente os que se referem à nulidade por falta ou vício de vontade.
Mas, uma vez emitida a vontade, é a lei reguladora do direito matrimonial que
determina todos os efeitos jurídicos que derivam da celebração do ato do casamento.
Nenhum dos nubentes pode celebrar o casamento impondo condições ou
cláusulas que alterem ou modifiquem os efeitos legais. Por exemplo, a lei não
consentiria que fosse celebrado um casamento em que os cônjuges se
comprome¬tessem a não viver juntos.
A lei não consente também que os nubentes imponham prazos à convivência
conjugal.
A vontade dos nubentes não pode, pois, impor-se para além da celebração do ato
de casamento, pois os efeitos do ato estão previamente estabelecidos na lei.
Estamos perante uma declaração de vontade dirigida a produzir certos efeitos
previstos na lei, efeitos esses que não podem ser nem restringidos nem alargados.
No consentimento não existe, por conseguinte, a liberdade de estipular quais os
efeitos jurídicos a produzir pelo ato, caraterística do direito das obrigações .
Aliás, como veremos, está previsto que durante a celebração do casamento o
oficial do registo civil proceda perante os nubentes à leitura dos artigos do Código
respeitantes aos direitos e deveres que derivam para os cônjuges do ato de casamento.
Isto pressupõe que os nubentes devem estar previamente esclarecidos dos efeitos do ato
que vão praticar e que antecipada e conscientemente os aceitem.
Como definir, pois, a natureza jurídica do casamento?
Cremos que o casamento deve ser entendido como um negócio jurídico familiar
bilateral, com a natureza de um pacto, celebrado entre os nubentes. É o ato jurídico
condição da aceitação do estado de casado, que dele decorre, estado de casado que se
estabelece em reciprocidade entre os dois nubentes.
Através da celebração do casamento os nubentes comprometem-se a
estabele¬cer uma convivência mútua integral e recíproca de vida, de natureza estável e
duradoura, ou seja, a convivência familiar do tipo marital. Comprometem-se a cumprir
os seus deveres pessoais e matrimoniais, quer entre eles, quer em relação aos filhos
comuns.
Mas põe-se ainda a questão de saber quantas vontades intervêm no ato jurídico
do casamento: apenas as dos dois nubentes ou ainda a do Estado através do funcionário
do registo civil que celebra o casamento?
Será então o casamento um negócio jurídico plurilateral, em que é necessária a
intervenção da vontade do Estado ao declarar os nubentes casados?
Esta opinião é afastada pela corrente doutrinária representada por aqueles que
encaram o casamento como um contrato civil: a vontade do Estado não intervém no ato
da celebração do casamento de forma diferente daquela em que intervêm os notários ao
lavrarem os documentos autênticos.
O oficial do registo civil seria, segundo este ponto de vista, mera testemunha
privilegiada, pois a causa do vínculo matrimonial estaria na permuta das declara- çócs
de vontade dos nubentes e o ato de casamento fica perfeito logo que o consentimento é
prestado.
Cremos que esta conceção não traduz de forma cabal a intervenção do Estado no
ato solene do casamento, cujo processo formal teremos de estudar mais adiante.
O funcionário do registo civil tem que verificar se estão reunidos os
pressupos¬tos legais para autorização do casamento, ou seja, a capacidade dos
nubentes, e tem que lavrar despacho a autorizar a sua celebração.
E no ato da celebração do casamento é indispensável a intervenção dos
nuben¬tes e do oficial do registo civil, além de duas testemunhas que certifiquem a
prática do ato e a identidade e capacidade matrimonial dos nubentes.
Expresso o consentimento dos nubentes, o casamento considera-se celebrado e o
oficial do registo civil proclamará que os nubentes estão unidos pelo casamento. É certo
que a vontade do conservador do registo civil não intervém no ato em si, mas a sua
intervenção tem natureza certificativa e a sua participação é indispensável à própria
existência jurídica do ato.
Vemos, pois, que o Estado intervém no ato do casamento antes da sua
celebra¬ção, estando presente ao ato através do conservador do registo civil e recebendo
na ordem jurídica a declaração dos cônjuges para lhe atribuir eficácia legal. A
declaração emitida pelo conservador do registo civil, proclamando o ato, é, em nosso
entender, elemento indispensável à sua eficácia jurídica.
Entendemos, porém, que é juridicamente mais correto fazer a distinção entre o
vício de inexistência jurídica e o da nulidade absoluta.
Do conteúdo das normas do Código de Família consideradas essenciais à própria
existência jurídica de casamento, podemos estabelecer os pressupostos de existência do
ato de casamento em si, da seguinte forma:
a) Diversidade do sexo
É essencial que o ato de casamento seja celebrado entre duas pessoas de sexo
diferente. Este requisito deriva da própria natureza substancial do casamento, que a lei
define como a união plena entre a homem e mulher. Afasta-se a aceitação legal ou a
equiparação ao casamento de qualquer tipo de união, estabelecida entre pessoas do
mesmo sexo, como seja o homossexualismo.
No Código de Família, o próprio conceito de casamento (art. 20.°) implica que
este ato pressupõe a união de um homem e uma mulher em plena comunhão de vida,
conceito legal que arreda, sem dúvida, qualquer tipo de união entre pessoas do mesmo
sexo.
Aliás este conceito de obrigatoriedade de diversidade de sexo está atualmente
reforçado com o já citado art. 35.°, n.° 1 da Constituição que ao definir a família
expressa que tanto o casamento como a união de facto devem ser constituídos «entre
homem e mulher».
Devemos acrescentar que se tem acentuado a nível de muitos sistemas jurídicos
a alteração do próprio conceito de casamento definindo-o com a união entre duas
pessoas, mas omitindo que elas devem ser de sexos diferentes, precisamente para
permitir que o casamento se celebre entre pessoas do mesmo sexo.
Mais complexos para o nosso sistema jurídico, poderão ser os casos de
intersexualismo e transexualismo, em que pode ocorrer ser uma pessoa portadora de
genes intermédios entre o género masculino e o feminino (intersexualismo) ou ser
suscetível de alteração de morfologia de um sexo para outro (transexualismo).
Na verdade, num caso destes, pode um dos nubentes apresentar-se como sendo
de um determinado género, quando mais tarde se verifique haver uma alteração quanto
ao género a que pertence.
Em casos como estes já não se estaria perante a inexistência jurídica do
casamento, mas perante um caso de anulabilidade do casamento por erro quanto às
qualidades físicas essenciais do outro nubente, se tivesse havido ocultação dessas
circunstâncias.
b) Duas declarações de vontade
No momento de celebração do casamento é essencial a existência de uma
declaração de vontade por parte de cada um dos nubentes.
O casamento, como negócio jurídico bilateral, pressupõe que sejam emitidas
duas declarações de vontade e a omissão de declaração por parte de qualquer dos
nubentes é causa de inexistência. No caso do casamento celebrado por procuração, pode
esta ter deixado de produzir efeitos em virtude da sua revogação por parte do mandante
ou por caducidade em virtude da morte deste, ou por estar a procuração ferida de
falsidade. A falta de declaração de
A inexistência jurídica pode ser invocada em qualquer tempo, seja por via de
ação seja por via de exceção.
[63] Validade do casamento: elementos de fundo e elementos de forma
O casamento, como negócio jurídico bilateral e solene, é constituído por
elementos de natureza substancial e de natureza formal, que podem ser classificados
como:
a) Condições de fundo, englobando a capacidade matrimonial e o mútuo
consentimento;
b) Condições de forma, que se referem ao processo preliminar do casamento e à
celebração do ato do casamento.
As condições de fundo referem-se à aptidão natural para contrair o casamento e
englobam a diferença de sexo, a idade púbere, a saúde física, a inexistência de
impedimentos previstos na lei e em concreto aplicáveis aos nubentes, e que se fundam
em razões de ordem genética e social.
A vontade de contrair casamento e a capacidade das partes para o celebrarem é
também um elemento essencial à validação do casamento.
As condições de forma reportam-se ao processo preliminar que antecede o
casamento e à forma solene e pública da celebração.
(10) Anteprojeto do Código Penal:
ARTIGO 224.°
(Simulação de competência para celebrar casamento)
Quem se fizer passar por autoridade competente para celebrar casamento e, nessa
condição o celebrar é punido com a pena de prisão de 1 a 3 anos ou com a multa de 120
a 360 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição penal.
Estado de saúde
Na legislação de muitos países é exigido aos nubentes um certificado médico
comprovativo de que eles não padecem de doenças contagiosas ou hereditárias, tendo
em vista a proteção da saúde da sociedade em geral.
Nesses casos, não se pode celebrar o casamento sem ser apresentado um
certifi¬cado pré- nupcial, emitido por um médico, que declare o nubente fisicamente
apto a contrair matrimónio e atestando não ser ele portador de doença hereditária ou
contagiosa.
O esclarecimento sobre a globalidade da situação física de cada nubente é um
dever que se impõe a ambos os nubentes que pretendam vir a celebrar casamento, dado
que do casamento irá resultar uma plena comunhão de vida que envolve a vida sexual
recíproca e em regra, a procriação de filhos comuns.
É assim fundamental que os nubentes saibam se há risco de contaminação de
doenças contagiosas ou de genes de doenças hereditárias, transmissíveis à
descendência.
A questão põe-se com especial acuidade na região sub-sahariana do continente
africano onde se instalou o flagelo da propagação do vírus V1H e do Síndroma da
Imunodeficiência Adquirida — SIDA. A Lei n.° 8/04, de 1 de novembro, que tem como
finalidade a proteção integral da saúde na prevenção, controlo, tratamento e
investigação do VIH/SIDA impõe o dever aos infetados de informarem sobre a sua
situação os respetivos parceiros sexuais.111*
Ora de acordo com o disposto no art. 15.° da mesma lei, o portador que não
cumpra os citados deveres que lhe são impostos incorre nas penalidades nele
previstas/12*
A transmissão dolosa do vírus é punida como crime de envenenamento e a
meramente negligente como o crime de homicídio negligente Já o Anteprojeto do
Código Penal prevê uma punição menos rigorosa/13*
Entre nós predomina a opinião médica de que não deviam ser permitidos
casamentos entre duas pessoas portadoras de doença de sangue, predominante em países
de clima tropical, a drepanocitose, comummente designada como de «células
falsiformes», dado que o facto de caso ambos os progenitores serem portadores do genes
dessa doença, isso levará a que a mesma seja transmitida por via hereditária aos
descendentes. «Estima-se importante a implementação no País, de forma sistmática, do
aconselhamento genético, como via de gradualmente se diminuir e diluir o Gene S nas
comunidades mais afetadas. >>
Já a impotência ou esterilidade dos nubentes não leva, por si só, como vimos, à
impossibilidade de contrair o casamento.
A condição comprovativa do estado de saúde do nubente não era exigida pelo
Código Civil, nem o é pelo Código de Família, pelo que não há que fazer a prova da
aptidão física do nubente para o casamento.
Aliás, é de ter em conta que as pessoas eventualmente portadoras de doenças
hereditárias e contagiosas podem manter uma união de facto, o que não evitaria os
malefícios da transmissão dessas doenças entre si e aos descendentes.
2 — Impedimentos matrimoniais
Além da idade núbil, a lei exige, como elemento definidor da capacidade
matrimo¬nial, a circunstância negativa de que se não verifiquem em relação aos
nubentes quaisquer impedimentos matrimoniais.
As normas que estabelecem os impedimentos matrimoniais devem ser
consi¬deradas como normas de natureza excecional e portanto de interpretação restrita,
pois de facto restringem um direito fundamental da pessoa humana que é o direito de
casar.
Os impedimentos matrimoniais podem ser classificados como impedimentos
dirimentes absolutos, impedimentos dirimentes relativos, ou impedimentos meramente
impedientes.
Podemos assim concluir, a contrario sensu, que existe capacidade matrimonial
quando se verifica a inexistência de qualquer impedimento matrimonial previsto na lei.
Era este o entendimento do artigo 1600.° do Código Civil, que definia a regra geral de
que tinham capacidade para contrair casamento todos aqueles em que se não verificasse
algum dos impedimentos matrimoniais nele previstos.
Regra idêntica vem consignada no Código de Família (art. 23.°): «Têm
capacidade para contrair casamento todos aqueles em que se não verifique algum dos
impedimentos matrimoniais previstos nos artigos seguintes ou em lei especial». No
recente diploma que aprovou o Estatuto do Diplomata, Decreto Presidencial n.° 209/11
de 3 de agosto, foi aprovada a interdição aos funcionários diplomáti¬cos de contrairem
matrimónio ou de terem ligação marital com pessoa de nacionalidade estrangeira ou
que receba qualquer tipo de remuneração de Estado estrangeiro — art. 41.°, n.° 2.
A doutrina costuma distinguir entre impedimentos dirimentes e impedimentos
não dirimentes ou meramente impedientes. Os impedimentos são em geral factos
jurídicos que obstam à realização do casamento.
Os impedimentos dirimentes são aqueles que dirimem, ou que destroem os
efeitos do casamento.
Os impedimentos dirimentes são, pois, os que proíbem que o casamento se
celebre e costumam ser classificados em duas categorias:
a) impedimentos dirimentes absolutos;
b) impedimentos dirimentes relativos.
Os primeiros impedem a pessoa em causa de casar seja com quem for: dizem-se,
por isso, impedimentos dirimentes absolutos.
Os impedimentos dirimentes relativos impedem unicamente que duas pessoas
casem uma com a outra, mas não impedem que casem com outrem. Mas tanto uns como
outros impedem que se realize o casamento. Em sentido lato, todos os impedimentos
constituem obstáculos à celebração lícita e válida do casamento.
Demência
O primeiro impedimento dirimente absoluto é o da demência. Esta proibição de
contrair casamento funda-se simultaneamente em duas razões: não permitir que o ato
de casamento seja celebrado por quem não tenha capacidade de discerni¬mento para
compreender o alcance do ato que pratica e portanto os efeitos pessoais e sociais do
casamento e impedir que indivíduos portadores de taras psíquicas as vão transmitir à
sua descendência.
A incapacidade por demência abrange não só a interdição por demência
decretada por sentença judicial, e reconhecida sob o ponto de vista jurídico, mas ainda
a demência notória, o que quer dizer, a que se evidencia como facto público, e que
portanto é geralmente conhecida no meio onde o nubente vive. A demência será
considerada notória quando seja do conhecimento público das pessoas do meio social
em que vive o portador da doença, mesmo que esta seja desconhecida do outro nubente.
Em sentido jurídico, a demência abrange todas as diversas doenças do foro
psiquiátrico, sejam elas de que natureza forem, e não só a demência em sentido clínico.
A demência constitui causa de incapacidade matrimonial mesmo que o
casamento seja celebrado num intervalo lúcido da doença mental. Aliás discute-se se é
possível falar em intervalos lúcidos num doente mental pois cientistas há que sustentam
que a doença está sempre subjacente, embora possa ter períodos de crise em que ela se
acentua. Procura-se assim proteger interesses sociais que são lesados pela celebração
de um casamento de consequências nefastas para o outro cônjuge e até para o próprio
demente e para a possível prole.
Em certas legislações a demência é encarada como causa de nulidade absoluta
do casamento em razão de vício do consentimento.
Se houver sentença de interdição ou inabilitação por anomalia psíquica anterior
ao casamento, ela impede em absoluto a celebração do casamento, enquanto não for
levantada a interdição.
Se a sentença de interdição for posterior, mas nela for fixado o início da doença
mental em data anterior ao casamento, este fica ferido de nulidade. O artigo 1601.°,
alínea b), do Código Civil previa este impedimento, expressando que ele abrangia a
demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação
por anomalia psíquica.
No mesmo sentido dispõe o Código de Família, que proíbe em absoluto o
casamento no caso de demência, quando esta for notória, ou no caso de interdição ou
inabilitação por anomalia psíquica (art. 25.°, alínea a)).
b) Casamento anterior ou união de facto legalmente reconhecida
O segundo impedimento dirimente absoluto provém do facto da existência de
casamento anterior não dissolvido ou de união de facto legalmente reconhecida, que,
como veremos, produz os efeitos do casamento.
O casamento pode ter sido celebrado no país ou no estrangeiro ou ter sido
celebrado sob a forma civil ou canónica, desde que em condições legais de produzir
efeitos civis. A alínea b) do
citado art. 25.° do Código de Família dispõe que o casamento ou união de facto
legalmente reconhecida impedem o casamento com qualquer outra pessoa enquanto o
casamento ou a união anterior não forem dissolvidos.
Este impedimento visa a consagração do princípio da monogamia, comum a
todos os países democráticos. Ele deriva do conceito de igualdade de direitos e deveres
do homem e da mulher no casamento, complementando-o com o próprio conceito do
casamento, que assenta numa plena comunhão de vida entre marido e mulher.
A bigamia ou poligamia, que pressupõem a existência simultânea de dois ou mais
casamentos celebrados seja por um homem com mais de uma mulher, seja por uma
mulher com mais de um homem, não são consentidos na nossa ordem jurídica. Há quem
fale em poligamia sucessiva quando alguém dissolve um casamento anterior, por
divórcio, para, após a dissolução, contrair novo casamento com outro cônjuge.
Quem tiver o estado de casado não pode celebrar novo casamento enquanto o
anterior não for dissolvido, pelo que só pode contrair casamento quem estiver no estado
de solteiro, viúvo ou divorciado.
A união de facto, para produzir efeitos como tal, carece de um processo de
reconhecimento.
O reconhecimento da união de facto para o fim de constituir impedimento
matrimonial tem que ser anterior ao casamento e resultante do mútuo acordo dos
companheiros, mediante um processo proprio e um despacho administrativo de
reconhecimento, devendo depois ser objeto de registo no livro próprio, como adiante
estudaremos.
Não obsta, porém, à celebração de casamento, a existência de união de facto,
ainda que reunindo os pressupostos legais de reconhecimento, desde que o
reconhecimento se não tenha previamente operado, por via do comum acordo dos
companheiros. O acordo mútuo para o reconhecimento da união de facto é essencial
para o seu reconhecimento, como veremos.
c) Impedimentos dirimentes relativos
Estes impedimentos matrimoniais fundam-se na existência de certos vínculos
familiares existentes entre duas pessoas e ainda na existência de facto ilícito penal grave
(crime de homicídio voluntário cometido por um dos nubentes contra o cônjuge do
outro). Embora sejam designados como impedimentos dirimentes relativos, eles
impedem em absoluto que se celebre o casamento entre as pessoas em causa.
Se a despeito do impedimento, o matrimónio vier a ser celebrado, a existência
do impedimento é causa de invalidade e conduz à anulabilidade do casamento.
Os impedimentos dirimentes relativos vêm definidos no corpo do art. 2° o
Código de Familia como aqueles que «impedem a celebração do casamento entre si das
pessoas a que respeitam». ,
Deixou-se desta forma em aberto que leis especiais, tal como o Estatuto do
Diplomata, restrinjam a capacidade matrimonial.
Interessa comparar como foram ou não acatados no Código de Família os
impedimentos meramente impedientes previstos no Código Civil.
Eram eles os seguintes: Prazo intemupcial
Não vem previsto na maioria das atuais legislações. O n.° 1 do 1605.° definia o
conceito de prazo intemupcial como o espaço de tempo que decorria entre a data da
dissolução, declaração de nulidade ou anulação de um casamento e a data a partir da
qual podia o ex- cônjuge vir a contrair novo casamento. Esse prazo intermédio vinha
fixado na lei em 180 dias para o homem e em 300 dias para a mulher.
A razão de ser deste impedimento fundava-se em razões do foro social, que
visavam impedir que alguém que terminou a vida conjugal com uma pessoa, viesse a
reatar de seguida um casamento com outra.
Certas legislações designam este prazo como «delai de viduité» ou de «luto
vedovile».
Em relação à mulher invoca-se a questão da turbatio sanguinis, ou seja, a
incerteza sobre a verdadeira paternidade do filho nascido nos trezentos dias que
decorressem após a dissolução do primeiro casamento.
Como tivemos oportunidade de aprofundar, a lei fixa o denominado «período
legal de conceção» para, a partir desse conceito, poder atribuir a paternidade do marido
relativamente aos filhos concebidos e nascidos durante o casamento.
Ora, o Código de Família no seu art. 165.° prevê a hipótese em causa, na parte
relativa às regras gerais do estabelecimento da filiação, dizendo que, no caso de segundo
casamento da mãe, antes de dissolvido o casamento anterior ou dentro dos 300 dias
posteriores à sua celebração, presume-se que a paternidade é do marido do casamento
celebrado em último lugar. Trata-se, porém, de mera presunção suscetível de ser ilidida
pela parte interessada.
O artigo 1605.°, n.° 2 do Código CiviJ permitia que a mulher contraísse
casamento dentro de prazo de 180 dias após a dissolução do casamento anterior, desde
que obtivesse declaração judicial de não estar grávida ou se entretanto tivesse tido um
filho após a dissolução do casamento ou da declaração de nulidade ou da anulação.
Esta matéria já tinha sido objeto de alteração pelo artigo 8.° da Lei n.° 53/76, que
estipulava que o prazo internupcial era contado a partir do trânsito em julgado da
sentença de separação de pessoas e bens, que tivesse sido convertida em divórcio, ou
da data do abandono do lar ou da separação de facto, desde que a mesma tivesse sido
reconhecida em sentença com trânsito em julgado.
O direito à integridade física e moral obsta a que qualquer dos cônjuges exerça
violência corporal ou ameaças sobre o outro. O marido, pelo facto de o ser, não pode
agredir corporal e voluntariamente a mulher, porque esse comportamento ilícito,
penalmente relevante (crime de ofensas corporais voluntárias) não é «justificado» pelo
facto de existência do vínculo matrimonial.
Aliás, hoje vem tipificado nos modernos sistemas penais o crime de violência
doméstica exercida entre pessoas que coabitam no mesmo lar, cujo âmbito vem definido
na Lei n.° 25/11 de 14 de julho, no art.° 2.°.
A anterior tese sustentada com base no Código Penal, de que o crime de violação
não pode ser praticado pelo marido sobre a mulher, pelo facto de não se tratar de cópula
ilícita, também não tem já acolhimento na lei penal moderna.
O Anteprojeto do Código Penal prevê o crime de agressão sexual com penetração
que é punido mesmo que praticado por cônjuge do agente^
O direito a dispor do seu próprio corpo pertence em exclusivo ao próprio
cônjuge, entendendo-se que a mulher casada pode livremente decidir sobre a
interrupção voluntária da gravidez e sobre o uso de métodos de planeamento familiar.
Igualmente, o marido pode decidir sobre os métodos contracetivos de que entenda fazer
uso.
Tais questões, pelo seu melindre e importância na vida do casal, devem, tanto
quanto possível, ser decididas por consenso dos cônjuges, mas em nenhum caso poderá
um dos cônjuges coagir o outro a um determinado comportamento contra a sua vontade.
A integridade moral do cônjuge tem que ser respeitada pelo outro, preservando
o direito de cada um à honra, à vida íntima, à imagem, à correspondência própria, aos
contatos telefónicos próprios, enfim, o direito ao relacionamento no seu meio familiar
e social.
Cada cônjuge tem o direito às liberdades fundamentais de natureza política,
cívica, sindical, cultural ou religiosa, podendo os cônjuges ter as suas próprias
convições, o que não impede que, em caso de falta de espírito de tolerância, isso não
possa redundar em litígio entre o casal.
Os direitos pessoais do marido ou da mulher devem ser exercidos pelo próprio
cônjuge lesado por ação de terceiro, em ação de natureza criminal ou civil.
Deve considerar-se revogada a legislação penal que permitia ao marido
constituir-se assistente em ação penal em que seja ofendida a mulher (art. 4.°, n.° 3 do
Decreto-Lei n.° 35 007),(6) não só por ser uma norma discriminatória, mas porque o
direito à ação penal ser de natureza pessoal e não transmissível.
O mesmo sucede com a permissão de poder o marido ter acesso à
correspon¬dência da mulher (art. 461.°, §1.° do Código Penal, já revogado na legislação
portuguesa pela reforma de 1977).
Entre nós, esta disposição deve considerar-se tacitamente revogada pela
legislação constitucional e pelo Código de Família, que constituem a base da legislação
angolana posterior à Independência nacional.
Sabido que o relacionamento entre marido e mulher é estabelecido numa base de
confiança recíproca e permite o acesso à intimidade do outro, é a própria lei a proteger
os segredos do casal: um cônjuge não pode testemunhar contra o outro
a constranger a sofrer penetração sexual por terceiro é punido com pena de prisão
de 2 a 10 anos de prisão.
ARTIGO 4.°
(Assistentes)
Podem intervir no processo como assistentes:
(...)
4.° — O marido nos processos por infração contra a mulher, salvo oposição
desta. (art. 216.°, n.° 3 do Código de Processo Penal), nem pode ser perguntado por atos
puníveis ou desonrosos que o outro cônjuge haja praticado (art. 218.° do mesmo
Código).(7)
O direito ao exercício de profissão ou atividades vem consignado no art. 47.° do
Código de Família e é uma emanação da preservação dos direitos fundamentais que
cada cônjuge mantém para além do casamento.
Cada cônjuge conserva o direito à imagem, à intimidade, à honra, às suas
relações familiares e sociais. Há, no entanto, que ter em conta que a plena comunhão de
vida dos cônjuges implica que, em regra, os dois atuem em conjunto na vida social e no
seio da família, família esta que vem alargada para cada um deles pelo novo vínculo da
afinidade derivado do vínculo do casamento.
A compatibilidade e o equilíbrio entre os direitos e os deveres de natureza
profissional e as atividades dos cônjuges e os seus deveres dentro do matrimónio têm
que ser encontrados de forma a que não haja prejuízo de uns em relação aos outros.
terceiros, mesmo que de boa fé, por simples declaração do outro cônjuge que não
tenha intervindo no ato em causa, devendo, porém, fazê-lo em tempo útil para não
prejudicar terceiros de boa fé.
(7) ARTIGO 216.°
(Incapacidade para ser testemunha)
Não podem ser testemunhas:
(...)
3.° — (...) o marido ou mulher do ofendido da parte acusadora ou do
ARTIGO 218.°
(Factos que não podem ser perguntados às testemunhas e aos déclarantes)
As testemunhas não serão perguntadas por factos puníveis ou desonrosos por elas
praticados ou por (...) marido ou mulher.
No Código Civil anterior (art. 1674.°), o marido, dentro do seu poder marital,
tinha, por força direta da lei, o de poder de representação da família.
Hoje, porque tanto o marido como a mulher têm plena capacidade civil, o Código
de família permite que qualquer dos cônjuges, indistintamente, represente a família
perante terceiros, por mera presunção de agir segundo o consenso de ambos.
O poder de representação dos cônjuges vem consignado em diversas normas da
nova Lei das Sociedades Comerciais, Lei n.° 1/04 de 13 de fevereiro, que permite a
representação dum cônjuge sócio de sociedade pelo outro, designadamente em
assembleias gerais (artigos 191.°, n.° 4,277.°, n.° 3 e 400.°, n.° 1), bem como no caso
de contitularidade de quotas (art. 245.°, n.° 1).(8)
Isto não impede, como veremos, que qualquer dos cônjuges possa, através de
mandato, constituir um terceiro como administrador dos seus bens (art. 54.°, n.° 2,
alínea b) do Código de Família).
Nos diversos sistemas jurídicos procura-se cada vez mais o recurso às medidas
de conciliação, evitando a rutura dos laços matrimoniais ou o menor desgaste sob o
ponto de vista psicológico e emocional entre os cônjuges, o que, na maior parte das
vezes, se vai refletir na sua atividade laborai e no meio social a que pertencem.
O combate à violência doméstica, por meios legais envolvendo entidades
judiciais, policiais, médicas, terapeutas e outros, é hoje considerado essencial a uma
convivência mais sã e equilibrada entre marido e mulher.
Legislação específica sobre a violência doméstica no campo do Direito Penal e
do Direito de Família tem vindo a ser adotada em muitos países dos diversos
Continentes , incluindo Angola.
A questão da violência doméstica, pela sua importância e repercussão no meio
social, deixou de ser considerada do « foro privado» para ser por inteiro atribuída à
responsabilidade do Estado, que deve obrigatoriamente intervir, não deixando as
vítimas da violência entregues à sua sorte e desamparadas.
Medidas são tomadas contra os cônjuges que têm comportamentos censuráveis
sob o ponto de vista familiar ou até criminal, tais como a proibição de certas condutas:
molestar o outro por palavras ou por gestos, proibição de entrar em áreas específicas da
residência familiar ou mesmo proibição de entrada em toda a residência, etc..
Podem ser dadas ordens de proteção pessoal em relação a membros da família,
em regra a mulher e os filhos, no caso de ameaça de uso da violência ou quando esta já
tenha sido usada. É o que acontece na presente legislação inglesa, que, de acordo com
a lei da Violência Doméstica e Procedimento Matrimonial, prevê que o tribunal possa
proferir injunções que proíbam a um dos cônjuges determinados comportamentos
censuráveis. O não acatamento de uma ordem do tribunal é punido com prisão como
crime de desobediência.
Na esfera das relações íntimas e pessoais dos cônjuges reconhece-se a
dificul¬dade da ingerência de terceiros, designadamente do tribunal, para o
apazigua¬mento dos conflitos. Cada vez mais se procura ajudar a resolver esses litígios
pela mediação ou conciliação, que, como vimos, pode existir numa fase pré-judicial ou
ser já atribuída aos órgãos judiciais.
Os organismos de mediação são neutros por natureza e procuram encontrar as
causas do desentendimento entre os cônjuges de forma a alcançar a sua concilia¬ção.
Quando tal não for possível e houver irredutibilidade de parte a parte, procura-se então
obter a negociação amigável da separação ou do divórcio. Na primeira fase têm tido
grande relevo os terapeutas especializados, os consultórios de diagnóstico matrimoniai
entregues a psicólogos ou a juristas, bem como orga¬nismos de natureza social.
Quaisquer destes órgãos devem poder analisar com imparcialidade os dissídios
na vida do casal, investigando as diversas causas que lhes dão origem e que, como
vimos, podem ser de múltipla natureza e carecerem de tratamento médico ou de
recuperação, como no caso do vício inveterado de alcoolismo.
Podem ter também natureza psicológica ou mesmo cultural.
Na fase judicial dos conflitos também se dá relevância à conciliação, que pode
ser levada a cabo pelo tribunal.
Na legislação italiana prevê-se a intervenção do juiz num âmbito bastante
restrito, mais de natureza arbitrai do que jurisdicional.
Tanto no processo de divórcio por mútuo acordo como no processo de divórcio
litigioso, a nossa legislação de família só prevê a conciliação dos cônjuges na fase
judicial, fase durante a qual ela se mostra pouco profícua.
De igual modo, a legislação processual não foi objeto de revisão depois da
publicação do Código de Família, pelo que se mostra cheia de lacunas em matéria das
providências cautelares e das providências específicas que protejam efetivamente os
direitos dos cônjuges, tais como o direito à integridade física, o direito à permanência
na residência familiar, etc..
CAPÍTULO 14.0
EFEITOS PATRIMONIAIS DO CASAMENTO
A — As dívidas comuns
No regime de comunhão de adquiridos, a responsabilidade dos cônjuges pelas
dívidas comuns é solidária — art. 61.°, n.° 2; no regime de separação de bens, a
responsabilidade é meramente conjunta — art. 63.°, n.° 2 do Código de Família.
As dívidas comuns vêm contidas no art. 61.° do Código de Família e podem ser
contraídas por ambos ou por um só cônjuge, mas são comunicáveis ao outro. Na verdade
desviando-se das regras comuns do direito de obrigações segundo as quais só o próprio
pode contrair dívidas que o vinculem, no âmbito das relações matrimoniais pode um só
cônjuge vir a contrair dívidas que o obriguem a ele e ao outro cônjuge que não interveio
no negócio jurídico.
Tal acontece em relação aos gastos decorrentes da vida familiar normal que têm
que ser feitas para acorrer às necessidades do agregado familiar e devem corresponder
ao padrão económico-social de vida do casal.
Estas dívidas são dívidas comunicáveis pois vão responsabilizar o outro cônjuge
que não interveio no contrato de que a dívida deriva.
São elas:
a) As dívidas contraídas por ambos ou por um deles para ocorrer aos encargos
da vida familiar — art. 61.°, n.° 1.
Embora o Código o não diga expressamente, pode admitir-se que a dívida seja
anterior ao casamento, como por exemplo as despesas com a viagem de núpcias, com a
aquisição de mobiliário para a residência familiar, etc..
É importante precisar o conceito de encargos da vida familiar, porque eles
englobam o maior caudal de despesas do agregado familiar. Algumas legislações, como
a francesa e a espanhola, discriminam na lei o que deve entender-se por «cbargesdu
mariage» ou «cargos dei matrimónio».
Eles abrangem os gastos necessários à subvenção das necessidades da família (o
casal, os filhos e outros integrantes do agregado familiar), necessidades que englobam
o sustento, alimentação, educação dos filhos, as despesas de habitação, de instalação,
de férias e descanso, os gastos com assistência médica, as despesas judiciais, sejam elas
feitas no interesse de um ou de ambos os cônjuges, etc..
Essas despesas devem pois estar em consonância com os usos e a situação
económica dos cônjuges ou seja com o respetivo trem de vida e não devem ser
excessivas, sendo em regra de natureza periódica, sem embargo de por vezes surgirem
esporadicamente por contingências da vida familiar.
Se algum dos cônjuges tiver filhos de união anterior que façam parte do agregado
familiar, os encargos respeitantes ao sustento, habitação e educação desses filhos estão
incluídos nos encargos normais da vida familiar.
A contribuição de ambos os cônjuges para os encargos normais da vida familiar
é, como já tivemos ocasião de ver, a concretização de um dos deveres conjugais, o dever
de assistência material recíproco, entre marido e mulher.
Os alimentos devidos aos descendentes comuns, bem como aos de cada um dos
cônjuges anteriores ao casamento, são considerados como encargos normais da vida
familiar.
Na verdade, por força do disposto no n.° 4 do art. 61.° foi tornado mais amplo o
conceito de encargos normais da vida familiar, pois agora abrange os alimentos devidos
aos descendentes comuns e aos descendentes de cada um dos cônjuges, havidos antes
do casamento.
Nesta disposição equiparam-se todas as despesas havidas com os alimentos dos
descendentes comuns e dos descendentes que qualquer dos cônjuges tenha tido antes do
casamento, quer o alimentado viva em economia comum com os cônjuges, quer viva
em economia separada. Por exemplo, os filhos nascidos de uma união de facto anterior
que vivam com o outro progenitor, mas que recebam pensão de alimentos de um dos
cônjuges.
Esta obrigação, que é solidária para ambos os cônjuges, revela a importância da
declaração inicial para o casamento, que obriga a que se indiquem os filhos havidos
antes da sua celebração e que vem expressa no art. 3.°, n.° 2, alínea e) do R.A.C.
Procura-se desta forma proteger os interesses dos filhos, pois a obrigação de alimentos
vai ser extensiva ao outro cônjuge, mesmo não sendo ascendente do alimentado.
A comunicabilidade da dívida deriva por conseguinte da finalidade que se teve
em vista, independentemente do facto de terem sido contraídas por um só cônjuge.
b) As dívidas contraídas em proveito comum do casal — art. él.°, n.° 1.
As dívidas abrangidas por esta previsão têm que ser constituídas depois da
celebração do casamento e dentro dos poderes normais da administração atribuídos ao
cônjuge. O proveito comum do casal afere-se pelo fim visado ao ter sido contraída a
dívida, e não pelo resultado efêtivamente obtido com a transação.
O proveito comum do casal é um conceito jurídico distinto do dos encargos
normais da vida familiar. Ele pressupõe, por parte do cônjuge, que ele contraiu
a dívida no exercício dos seus poderes de administração de bens e que haja uma
situação objetiva da qual possa inferir-se que a intenção era obter um determinado
proveito ou beneficio para o casal.
A atividade exercida deve ter em vista um determinado beneficio para o casal
Por outras palavras, deve ser uma atividade lucrativa, da qual, segundo as regras da
experiência comum, deverá resultar uma vantagem material para o casal. Ora, segundo
os princípios do risco ou da probabilidade, os dois cônjuges, que podem auferir o lucro,
também serão responsáveis pelo prejuízo, se tal ocorrer.
Por exemplo: um dos cônjuges contrai uma dívida para a instalação de um
aviário, com a mira de obter lucro de tal exploração; se essa exploração vier a cessar
por ocorrer uma epidemia que dizime as aves, a dívida deve considerar-se contraída em
proveito comum do casal, muito embora a empresa não tenha dado lucro, mas sim
prejuízo.
O proveito comum do casal engloba não só interesses de ordem material mas
também interesses de ordem inteletual. Como exemplo destes últimos pode indicar-se
o da formação profissional superior de um dos cônjuges. É o fim visado pelo devedor
que deve ser tido em conta, mas esta intenção deve ser apreciada dentro das regras
normais da experiência comum e corresponder a uma atividade da qual se possa
legitimamente esperar beneficio para o casal.
O Código de Família nada diz sobre as dívidas contraídas pelo cônjuge no
exercício do comércio, ao contrário do que dispunha o art. 1691.°, alínea d) do Código
Civil.
A Lei n.° 6/03 veio alterar e revogar diversos artigos do Código Comercial, ainda
vigente, designadamente dando a seguinte redação ao art. 15.°: «As dívidas comerciais
do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio».
Esta nova redação segue a que foi adotada pela lei portuguesa, o Decreto-Lei n.°
363/77, de 2 de setembro, e fez desaparecer a presunção que havia na redação anterior
do mesmo artigo de que as dívidas do cônjuge comerciante se presumiam contraídas
em proveito comum do casal.
O anterior art. 1691.°, n.° 1, alínea d), do Código Civil que responsabilizava
ambos os cônjuges peias dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do
comércio, foi revogado por ter sido revogado todo o seu Livro IV e o art. 61.° do Código
de Família não tem disposição equivalente.
Nesta conformidade, entendemos que desaparecida a presunção legal, incumbirá
sempre ao credor do comerciante o ónus de alegar e de provar que a dívida contraída
no exercício do comércio, entendendo-se o exercício do comércio como prática
reiterada e habitual, resultou em proveito comum do casal.
Este regime não se aplica, porém, se entre os cônjuges vigorar o regime de
separação de bens.
A Lei n.° 6/03 veio ainda no seu art. 3.° revogar os artigos 9.° e 16.° do Código
Comercial de conteúdo abertamente discriminatório em relação à mulher, consagrando
agora no art. 7.° que «tem capacidade para praticar atos de comércio toda a pessoa com
capacidade civil».
O proveito comum do casal não se presume, salvo quando a lei o declarar, como
era o caso da lei especial que regulava e protegia as relações comerciais.
Mesmo neste caso, deve entender-se que a lei se refere ao cônjuge comerciante
e não a atos isolados de comércio. São também de excluir os atos de mero favor, mesmo
se praticados no exercício de atividade comercial.
O ónus da prova do proveito comum, quando a lei não fizer presumir a sua
existência por força de disposição especial, recai sobre o credor. Cabe ao cônjuge
interessado fazer a prova do afastamento da presunção legal, quando ela existir, e cabe
ao credor a sua prova, no caso de falta de presunção — art. 61.°, n.° 3.A regra é a de
que o credor deverá fazer a prova da existência do proveito comum do casal, cabendo
ao cônjuge ou cônjuges interessados fazer a prova do afastamento da presunção, quando
existir lei especial a presumir esse proveito comum.
c) Dívidas que onerem bens próprios ou bens comuns.
As dívidas que recaiam sobre bens próprios de um dos cônjuges mas que
produzam rendimentos comuns que vão beneficiar ambos são também consideradas
como dívidas comuns. É porém necessário que vigore o regime de comunhão de bens
entre o casal.
Devem ser incluídas nas dívidas contraídas em proveito comum do casal as que
onerem doações, heranças ou legados, que vinham mencionadas no art. 1693.°, n.° 2 do
Código Civil, e ainda as que recaiam sobre bens próprios ou bens comuns, desde que
esteja em causa a perceção dos rendimentos ou frutos desses bens.
Compreende-se que os encargos que recaiam sobre bens comuns (quando a
doação, herança ou legado venha a ingressar nos bens comuns) ou sobre os bens
próprios (quando esteja em causa a perceção de rendimentos) sejam encarados pela lei
como uma dívida comunicável. Há, porém, que restringir este caráter de dívida comum
no caso de doação, legado ou herança, pois a dívida só poderia ir até ao valor do bem
ou direito em causa e não para além desse valor.
No caso de encargos sobre bem próprio de um cônjuge, só há comunicabilidade
da dívida se este produzir fruto ou rendimento, pois se assim não for a dívida não é
comunicável.
d) São ainda consideradas como dívidas comuns as queforam contraídas por
ambos os cônjuges ou por um deles com o acordo do outro — art. 61.°, n.° 2 do Código
de Família.
Neste caso não é relevante saber-se qual a natureza da dívida nem qual a sua
finalidade, porque existe a vontade de ambos os cônjuges no negócio jurídico de que
resultou a dívida, e, como tal, nos termos gerais de direito, a dívida é de ambos, como
sujeitos da relação jurídica em causa.
Os factos imputáveis ao cônjuge podem ser ilícitos ou lícitos, sejam factos
culposos ou não culposos.
As dívidas que derivem de atos ilícitos praticados por um dos cônjuges são
sempre incomunicáveis.
e) Dívidas que derivem da responsabilidade objetiva de um dos cônjuges.
No caso da responsabilidade meramente civil, dispõe a segunda parte da alínea
b) do art. 62.° que, se eles estiverem abrangidos pelo disposto no art. 61.°, n.°s 1 e 2,
podem obrigar ambos os cônjuges, desde que entre eles vigore o regime de comunhão
de bens.
Por exemplo: a responsabilidade por acidente de viação na qualidade de
proprietário da viatura que o ocasionou, quando a viatura circulasse em benefício
comum do casal. Quando a responsabilidade civil não derivar de dolo ou culpa do
cônjuge devedor, mas de
Podem ser constituídas por violência psicológica como ameaças e coação, ou por
injúrias dirigidas contra o outro cônjuge, podendo ser proferidas na presença deste ou
de terceira pessoa que leve o seu teor ao conhecimento do cônjuge ofendido.
Têm também que ser proferidas com o propósito de ofender o outro cônjuge,
ou seja com animus injuriandi.
Fundamentalmente, podem apresentar-se sob três tipos diferentes:
— Injúrias verbais, que consistem em expressões proferidas ou escritas pelo
outro cônjuge;
— imputação caluniosa, que consiste em atribuir ao outro cônjuge um
procedimento indigno;
— injúrias reais, que consistem num comportamento do outro cônjuge em si
mesmo ofensivo da integridade moral do cônjuge ofendido.
Neste tipo legal de fundamento de divórcio é muito importante considerar
atentamente as circunstâncias concretas de cada caso, a gravidade objetiva da ofensa, o
comportamento do cônjuge ofendido, o grau de preparação, os hábitos de linguagem e
outros elementos que vão condicionar a maior ou menor gravidade a atribuir à ofensa.
Ela tem que ir repercutir-se profundamente nas relações pessoais dos cônjuges, de forma
a que a vida em comum fique efetivamente comprometida.
O Código de Família, na esteira do que já tinha sido iniciado pela Lei n.° 53/76,
veio indicar certas causas objetivas de divórcio (art. 89.°, alíneas a), b),
c) e d)), que se reportam, como vimos, a factos que se prolongam no tempo e são
de natureza duradoura.
E — A separação de facto por três anos
Neste fundamento previsto no art. 98.°, alínea a), não há que atender às
circunstâncias ou motivos que levaram os cônjuges à separação. Nem sequer interessa
saber se ela foi ou não iniciada por acordo de ambos os cônjuges. Daí que não haja que
ter em conta a intenção de pôr fim à vida em comum, como era exigida para o abandono
do lar.
A separação de facto traduz-se na violação, por ambos os cônjuges, do dever de
coabitação, e a sua continuidade no tempo demonstra a vontade dos cônjuges no corte
das relações conjugais. Não basta uma suspensão temporária da convivência conjugal
em que se mantêm relações e interesses comuns, e que como vimos pode ser motivada
por razões atendíveis, como seja a atividade profissional de um dos cônjuges, a
necessidade da sua formação profissional, motivos de saúde, etc. Para se configurar este
fundamento a lei exige:
— a separação dos cônjuges durante um mínimo de três anos, com suspensão
total e completa de todas as relações pessoais entre os cônjuges como tal;
— que o tempo de separação tenha decorrido de forma contínua e ininterrupta.
b) Vínculo da afinidade
O vínculo da afinidade, que liga o cônjuge aos parentes do outro, não cessa com
a dissolução do casamento por morte. É esta, como já vimos, a regra do art. 15.°, n.° 2
do Código de Família. Este vínculo mantém-se mesmo que o cônjuge sobrevivo venha
a contrair novas núpcias.
e) Obrigação de alimentos
Pode acontecer que o cônjuge sobrevivo não disponha de recursos para se manter
pelo facto de os bens do de cujus terem sido atribuídos post mortem a outros herdeiros
ou legatários, nem tenha direito a pensões de segurança social ou outros meios que lhe
permitam sobreviver com um nível de vida idêntico ao que mantinha durante a vigência
do casamento.
Eventualmente, se o cônjuge viúvo carecer de alimentos estes podem vir a ser
retirados dos rendimentos dos bens deixados pelo falecido. Quando tal ocorre, estamos
perante o prolongamento do dever de assistência entre os cônjuges para além da
dissolução por morte, pois entendeu-se que o defunto se preocuparia com as condições
de vida do cônjuge viúvo depois da sua morte.
Este princípio vem expresso no art. 261.°, n.° 1 do Código de Família, nos termos
do qual, em caso de morte de um dos cônjuges ou do companheiro de união de facto
judicialmente reconhecida, o viúvo ou companheiro sobrevivo têm direito a ser
alimentados pelos rendimentos dos bens deixados pelofalecido.
Este princípio já vinha consignado no art. 2018.° do Código Civil. Este encargo
recai sobre todo o património que foi objeto da sucessão, deverá ser suportado pelos
herdeiros na proporção das respetivas quotas hereditárias e não pode exceder os limites
destas. Este direito a alimentos do cônjuge sobrevivo é designado como «apanágio do
cônjuge viuvo».
2. Efeitos de natureza patrimonial
O art. 75.° do Código de Família contém as regras aplicáveis à dissolução do
casamento por morte no seu aspeto patrimonial. Do confronto deste preceito com o do
art. 80.°, que estabelece os efeitos patrimoniais da dissolução por divórcio, fica claro o
tratamento mais favorável que a lei dá ao cônjuge viúvo.
a) Direitos e benefícios
O cônjuge sobrevivo mantém os direitos e benefícios que haja recebido em razão
do casamento, como refere o art. 75.°, n.° 1 do Código de Família. Entre esses direitos
podemos mencionar as regalias de natureza social do defunto que sejam transmissíveis
ao seu cônjuge e que não se extingam com o casamento, o direito a pensões de segurança
social que se transmitem para o cônjuge viúvo pela morte do titular do direito. Os
benefícios havidos em razão do casamento podem ser de diversa natureza, tal como as
doações feitas pelo outro cônjuge ou por terceiro, antes ou durante o casamento, os
valores dos prémios de seguros ou prestações de natureza assistencial e feitas pelo
cônjuge falecido.
Dentro dos objetivos da Proteção Social do trabalhador encontra-se a
necessidade de «garantir a sobrevivência dos seus familiares em caso de morte». — Lei
de Bases da Proteção Social, Lei n.° 7/04, de 15 de outubro {Diário da República, n.°
83), art. l.°, alínea a).
O regime jurídico desta lei foi, como vimos, definido pelo Decreto n.° 38/08 de
19 de junho (Diário da República, n.° 112) que estabelece no seu art. 6.° «Estão
vinculados à Proteção Social Obrigatória na condição de dependentes do segurado: a)
o cônjuge ou pessoa em união de facto.»
Garante-se desta forma o direito à pensão de sobrevivência ao cônjuge do
trabalhador falecido. O companheiro da união de facto tal como o cônjuge, tem direito
à pensão de sobrevivência, no caso de falecimento do trabalhador — art.° 6-° alínea a)
do Decreto n.° 38/08 de 19 de junho.
O Decreto Presidencial n.° 8/11 de 7 de janeiro, atribui o subsídio de funeral ao
cônjuge do segurado — art. 3.°, já atrás citado.
Em certos casos é atribuído ao cônjuge viúvo o direito de representação a título
póstumo, designadamente na defesa dos direitos pessoais relativos ao respeito pela
memória do falecido.
b) Direito sucessório
O cônjuge viúvo tem a qualidade de sucessível do de cujus em relação à sua
herança, surgindo na 4.a classe dos sucessíveis, conforme vem disposto no art. 2133.°,
alínea d), do Código Civil.
Na legislação portuguesa atual tal situação está alterada, porquanto o cônjuge
viúvo surge como herdeiro sucessível, tanto na l.a como na 2.a classe dos sucessíveis,
conjuntamente com os descendentes e os ascendentes.
Pelo que dispõe o Código Civil ainda vigente, o cônjuge sobrevivo, no caso de
não haver descendentes ou ascendentes do de cujus, tem direito ao usufruto vitalício
dos bens da herança como legatário legítimo (art. 2146.°).
Além de que o cônjuge viúvo mantém o pleno direito a todas as deixas
testamentárias outorgadas pelo cônjuge pré-defúnto. As liberalidades não sofrem
qualquer restrição, salvo as que respeitem às reservas dos herdeiros legitimários.
c) Liquidação do património
O fim do regime económico do casamento tem particular importância quando o
regime de bens do casamento for o de qualquer tipo de comunhão de bens, seja ele o de
comunhão geral de bens (que era o regime-regra antes da entrada em vigor do anterior
Código) ou o da comunhão de adquiridos, que, a partir de então, é o regime supletivo
geral.
No regime de separação de bens os patrimónios de cada cônjuge estão separados,
mas pode haver igualmente a necessidade de liquidação do passivo ou de divisão de
bens adquiridos em comum. A cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges
opera-se em regra em duas fases:
— liquidação do passivo;
— partilha dos bens comuns.
A liquidação do passivo é feita procedendo-se em primeiro lugar ao pagamento
das dívidas contraídas perante terceiros. A dissolução do casamento fàz cessar a
moratória legal sobre as dívidas exclusivas de cada cônjuge, as quais passam logo a ser
exequíveis — art. 64.°, n.° 1 do Código de Família.
Todas as dívidas a terceiros, comuns ou exclusivas, devem ser liquidadas. Em
segundo lugar são liquidadas as dívidas contraídas pelos cônjuges entre si.
Estes encargos são satisfeitos sucessivamente pela meação do devedor no
património comum e depois pelos bens próprios do devedor — art. 75.°, n.° 3 do Código
de Família.
Uma vez liquidado o passivo, passa-se à partilha dos bens comuns e à
determinação do património pessoal de cada cônjuge, o qual é integrado pelos
respetivos bens próprios e pelos bens que passam a integrara sua meação. Como a
palavra indica, a meação consiste no direito a metade dos bens comuns do casal.
Importa distinguir entre a liquidação e partilha dos bens do casal e a liquidação
e partilha sucessória do património do de cujus. Esta liquidação e partilha pode ser
realizada conjuntamente no mesmo ato, mas uma coisa é a titularidade do direito do
cônjuge sobrevivo sobre os bens do dissolvido casal e outra é a titularidade dos direitos
dos herdeiros ou legatários aos bens do falecido.
Neste caso são aplicadas as regras da devolução sucessória e são chamados os
herdeiros ou legatários, entre os quais pode estar ou não incluído o cônjuge viúvo, e
então estes são chamados a receber os bens próprios e os bens que passem a integrar a
meação do defunto.
Ao operar-se a partilha dos bens comuns, o cônjuge sobrevivo goza do direito de
preferência que lhe é concedido pelo art. 75.°, n.° 2 do Código de Família.
Esse direito de preferência consiste em poder integrar a sua meação sobre os bens
especificados na lei e que são:
a) os bens que tenham sido usados na vida do lar;
b) os bens que tenham sido usados como instrumentos próprios ou comuns de
trabalho.
Mais uma vez se entendeu que, dado o fim especial a que estão adstritos tais
bens, e em beneficio dos fins para que foi constituído o matrimónio e a sua correlação
íntima com a estabilidade da família, se deveria dar uma proteção especial na afetação
desses bens, beneficiando o cônjuge sobrevivo, que poderá preferencialmente querer
que eles passem a fazer parte da sua meação.
O direito de propriedade e de fruição de tais bens deve estar afeto a este cônjuge
e, para que ele não seja privado deles, concede-lhe a lei o direito de preferência sobre
os demais herdeiros do falecido.
d) Transmissão do direito ao arrendamento da residência familiar O direito à
residência familiar constitui um dos direitos mais relevantes que deriva do casamento e
que tem o seu prolongamento legal aquando da sua dissolução.
Em todas as legislações se atende cada vez com maior atenção ao destino da
residência familiar depois de extinto o vínculo matrimonial.
O direito ao arrendamento da casa destinada à habitação transmite-se ao cônjuge
viúvo, desde que não separado de facto, de acordo com o que vem consi¬gnado no
Decreto n.° 43 525, de 7 de março de 1961 (Lei do Inquilinato), ainda em vigor. O
Decreto n.° 43 525 dispõe que a transmissão da posição jurídica do inquilino se defere,
em primeiro lugar, ao cônjuge sobrevivo (alínea a), n.° 2 do art. 76.°).
Este princípio foi inserto no n.° 4 do art. 75.° do Código de Família, que atribui
a transmissão do direito ao arrendamento da residência familiar ao cônjuge sobrevivo,
mas ressalvando que essa transmissão se opera nos termos que foram fixados na lei.
Esta, como é óbvio, é a lei civil sobre o direito de arrendamento, onde se determinam
os pressupostos legais de tal transmissão do direito, como a efetiva convivência
conjugal à data da morte do cônjuge titular do arrendamento, ou outras que a lei entenda
fixar.
[106] Efeitos da dissolução do casamento por divórcio
Os efeitos da dissolução do casamento por divórcio são no geral idênticos aos da
dissolução por morte. Mas o art. 80.° exceciona alguns aspetos de natureza patrimonial
que aplicam um regime de desfavor à dissolução do casamento por divórcio.
Ao afastar a conceção do divórcio sanção e a declaração na sentença de divórcio
de qual o cônjuge culpado ou principal culpado, procurou-se desdramatizar o divórcio
e impedir que se exacerbassem os antagonismos entre os cônjuges, que muitas vezes
faziam das ações de divórcio litigioso uma verdadeira arena onde eram expostas as
misérias físicas e morais de um e de outro, produzindo sequelas de ódio recíproco
irreversíveis.
Daí que o divórcio por mútuo acordo se revele uma forma menos desgastante das
relações pós-conjugais e torne possível que sejam os cônjuges a regular, por acordo,
diversos efeitos decorrentes da declaração do divórcio.
No divórcio litigioso também é possível serem os cônjuges a estabelecer por
acordo as questões relativas aos direitos sobre os filhos menores, ainda que sob
homologação do tribunal, e a direitos patrimoniais como a partilha de bens, atribuição
da residência familiar, etc., minimizando os efeitos do litígio. Há que ter em conta que,
se for proposta ação de divórcio e se os cônjuges se reconciliarem e desistirem da ação,
ou se o cônjuge que a propôs vier a decair na ação, se restabelece de pleno toda a
situação pessoal e patrimonial anterior.
a) Data de produção dos efeitos em relação aos cônjuges
Os eleitos da dissolução do casamento por divórcio produzem-se, regra geral, a
partir do trânsito em julgado da sentença, quanto aos efeitos nas relações pessoais dos
cônjuges (art. 81.°, n.° 1 do Código de Família) e no que diz respeito às relações
patrimoniais (art. 82.°, n.° 1 do mesmo Código).
Mas estes artigos permitem que certos efeitos pessoais e patrimoniais deixem de
processar-se no caso de a sentença de divórcio fixar a data do fim da coabitação dos
cônjuges em data anterior à sentença. O fim da produção desses efeitos pode retrotrair-
se à data em que cessou a coabitação, quando tal for fixado na decisão que declarar o
divórcio (arts. 81.°, n.° 2 e 82.°, n.° 1).
Aliás, na modalidade do divórcio por mútuo acordo a declaração do divórcio
provisório suspende o dever de coabitação dos cônjuges (art. 94.°) que se presume
termina a partir de então.
A cessação da produção dos efeitos pessoais do casamento tem particular
rele¬vância quanto à presunção da paternidade dos filhos nascidos da mulher casada.
A cessação da produção dos efeitos patrimoniais faz-se sentir tanto quanto aos
bens adquiridos a título oneroso a partir da data do fim da coabitação, como quanto às
dívidas comuns que tenham como causa jurídica a satisfação dos encargos da vida
familiar ou o proveito comum do casal. Cessando a coabitação dos cônjuges e passando
estes a viver numa situação de separação de facto, já não pode proceder qualquer dessas
causas que tornam comunicáveis as dívidas. Entendemos que a data de propositura da
ação de divórcio deve ser tida em conta para efeitos patrimoniais, designadamente
quanto à natureza das dívidas contraídas por um só cônjuge.
Em alguns sistemas jurídicos os efeitos patrimoniais da dissolução do
casa¬mento por divórcio produzem-se entre os cônjuges a partir da data da propositura
da ação, permitindo que eles cessem a partir da data do fim da coabitação dos cônjuges,
Mas essa ressalva não podia ser invocada pelo cônjuge a quem fosse atri¬buída a culpa
exclusiva e principal responsabilidade na declaração do divórcio(,).
Tendo em conta que a ação de divórcio pode vir a ser proposta meses ou anos
após se ter verificado a separação de facto entre os cônjuges e que o processo judicial
se pode prolongar por longo período, seria injusto que um dos cônjuges se viesse a
aproveitar da atividade desenvolvida pelo outro cônjuge sem a sua contribuição, ou que,
ao invés, viesse a ser prejudicado por dívidas de que não beneficiou.
A sentença que vier a declarar o divórcio e que fixar a data do fim da coabitação
como a data em que cessaram as relações de ordem pessoal e patrimonial entre os
cônjuges, vai assim produzir efeitos retroativos a essa data.
b) Data de produção dos efeitos em relação a terceiros
Os efeitos da dissolução do casamento por divórcio só se produzem muito mais
tarde em relação a terceiros, ou seja, após o registo de sentença que, como vimos, é de
natureza obrigatória, devendo o tribunal comunicá-la oficiosamente à Conservatória
competente.
É o que vem disposto no n.° 2 do art. 82.° do Código Família e que está de acordo
com a natureza secreta do processo de divórcio, a que, em princípio, só os cônjuges têm
acesso. Esta disposição pode não ser aplicada em relação a terceiros que se prove terem
conhecido a existência do divórcio e que tenham agido intencionalmente em prejuízo
de um dos cônjuges, ou quando tenha havido concertação fraudulenta entre um dos
cônjuges e terceiros, para prejudicar o outro cônjuge.
1. Efeitos de natureza pessoal
a) Em relação ao nome
O direito ao uso do nome adquirido em razão do casamento, seja quanto ao
apelido do outro cônjuge, seja quanto ao nome comum da família, cessa totalmente
quando se dá a dissolução do casamento por divórcio — art. 36.°, n.° 2 do Código de
Família.
No Código Civil (art. 1675.°) era a mulher que perdia o direito ao uso do nome
do marido, pois só esta podia optar pelo uso do apelido deste. Mas hoje a situação é
recíproca quer quanto à aquisição do direito ao uso do nome por parte de ambos os
cônjuges quer quanto à perda desse direito em razão da dissolução do casamento por
divórcio.
A nossa lei não prevê que um dos cônjuges, geralmente a mulher divorciada,
continue a usar o apelido adotado em razão do casamento, como acontece noutros
sistemas jurídicos.
b) Vínculo da afinidade
Depois da discussão popular de que foi objeto o projeto de Código de Família,
ficou a constar do art. 15.°, n.° 2, como já referimos, que o vínculo da afinidade se
mantém mesmo para além da dissolução do casamento.
Aliás, o impedimento matrimonial fundado no vínculo da afinidade em linha reta
irá sempre perdurar, mesmo que dissolvido o casamento, como constava do texto do
projeto. Permanecem assim todos os efeitos já referidos e que derivam da existência
deste vínculo.
c) Direito de voltar a casar
Como já dissemos, é o principal efeito que deriva da dissolução do casamento
por divórcio e ele pode ser exercido após o trânsito em julgado da sentença do divórcio.
Operado o trânsito da sentença, qualquer dos cônjuges pode voltar a casar sem ter que
aguardar por qualquer prazo intemupcial, que o nosso Código de Família não
estabelece. A nossa lei também não estabelece limites no número de vezes em que se
pode obter o divórcio, nem proíbe os cônjuges que se divorciaram de se voltarem a
casar.
O facto dc existir adultério de um cônjuge com terceira pessoa praticado na
vigência do casamento também não impede que o cônjuge, depois do divórcio, venha
precisamente a contrair casamento com essa pessoa.
d) Presunção da paternidade do marido
Caso a mulher que obteve o divórcio venha a contrair casamento logo após a
dissolução do anterior e venha a haver conflito de presunções de paternidade quanto a
filho que venha a nascer nos 300 dias após a dissolução do casamento, é chamada a
regra contida no art. 165.° do Código de Família, que atribui a presunção de paternidade
ao marido do casamento celebrado em segundo lugar.
No caso de divórcio, importa ainda reter o facto de que o prazo de 300 dias de
presunção de paternidade do marido do casamento anterior se conta, não do trânsito em
julgado da sentença, mas da data do fim da coabitação do casal, caso esta conste da
sentença.
e) Efeitos em relação aosfilhos
Os direitos e os deveres dos pais em relação aos filhos não se alteram pelo facto
do divórcio, pois o direito-dever de velar, manter e educar os filhos menores mantém-
se em relação aos progenitores, seja qual for o estado civil destes.
Como já referimos, para as relações entre pais e filhos não releva, segundo o
Código de Família, o facto de os pais serem ou não casados entre si, mas sim o de
coabitarem ou não.
Sem embargo de se manterem os direitos dos pais sobre os filhos, quer após o
divórcio quer após o fim da coabitação, a verdade é que, na generalidade dos casos, é
sobre os filhos que mais negativamente se refletem os seus efeitos.
Cessando a coabitação dos cônjuges, a autoridade paternal deixa de poder ser
exercida em comum pelo pai e pela mãe, passando a ser exercida em separado (art.
148.°, n.° 1 do Código de Família).
Como já foi referido, os pais podem chegar a acordo sobre o exercício em
separado da autoridade paternal, mas esse acordo deve sempre ter em conta os interesses
do menor e a melhor garantia da sua educação e desenvolvimento. Se os pais
estabelecerem o acordo sobre o exercício da autoridade paternal, definindo os direitos
de cada um deles ao convívio pessoal com os filhos, a obrigação de cada um referente
aos alimentos do menor, a forma de intervenção e decisão sobre as questões mais
importantes da vida dos filhos, etc., o tribunal deverá examinar esse acordo e homologá-
lo quando entenda que ele satisfaz os interesses do menor — art. 109.°, n.° 1 do Código
de Família. Esse acordo pode ser obtido quer durante a ação de divórcio quer dentro de
30 dias após o trânsito em julgado da sentença que declara o divórcio — art. 109.°, n.°
2.
Se os pais não tiverem chegado a acordo, e se o pedido sobre o exercício da
autoridade paternal tiver sido formulado conjuntamente com o pedido de divórcio, o
juiz decidirá de acordo com o que vem previsto no art. 108.°, n.°s 1 e 2, em conjugação
com as disposições dos arts. 148.° a 151.° do Código de Família. O tribunal só decidirá
sobre o exercício da autoridade paternal no processo de divórcio se tal lhe for pedido
por qualquer das partes. De salientar que, ao proferir a sua decisão, o tribunal não tem
que ter em conta as causas de divórcio, como acontece relativamente às questões do
direito a alimentos e do direito à atribuição da residência familiar.
Quis-se, deste modo, fazer a distinção entre o comportamento dos cônjuges entre
si, e nessa recíproca qualidade, e a conduta de cada um deles para com os filhos, na sua
qualidade de pai ou mãe.
O efeito mais importante que deriva do exercício em separado da autoridade
paternal é, na generalidade dos caso, o da entrega do filho a um dos progenitores, pois
será este que manterá com o menor o convívio quotidiano. A ele caberá em especial a
sua guarda e vigilância, bem como a sua formação e educação.
Estas decisões judiciais são suscetíveis de ser alteradas sempre que se
modi¬ficarem as circunstâncias em que se fundamentaram (art. 161.° do Código de
Família), pois são decisões proferidas em processo de jurisdição voluntária e mais no
espírito de uma decisão graciosa que obtenha, para o caso concreto em análise, a melhor
solução.
Se as circunstâncias que determinaram os cônjuges ou o tribunal a decidir ser de
certa forma se alterarem substancialmente, a decisão pode também ser alterada, para
melhor atender à nova situação.
f) Direito a alimentos
O direito-dever de assistência material entre os cônjuges pode não se extinguir
com a dissolução do casamento e perdurar para além dele a obrigação recíproca de
alimentos.
A atribuição do direito a alimentos entre cônjuges divorciados vem prevista no
art. 111.° do Código Família, e é recíproca em relação ao marido e à mulher. O art.
262.° do Código de Família vem reconhecer o direito a alimentos entre ex-cônjuges,
dizendo que esse direito será exercido nos termos do art. 111.°. Procura-se por esta
forma que, após a dissolução do casamento, o cônjuge menos favorecido
economicamente mantenha um nível de vida equivalente àquele que tinha.
Os critérios de atribuição do direito a alimentos são, de acordo com este art.
111.°, os que dizem respeito à situação social e económica dos cônjuges, à necessidade
de educação dos filhos e às causas do divórcio.
O que sopesará na decisão a tomar pelo tribunal é a questão de saber se o cônjuge
divorciado que vai receber alimentos está ou não a carecer deles para manter a sua
sobrevivência em condições económico-sociais idênticas às que tinha durante a
vigência do casamento, por não ter recursos próprios nem capacidade profissional para
os angariar.
Em regra é a mulher que ocupando-se do trabalho doméstico e da criação dos
filhos e dos cuidados a ter com outros membros do agregado familiar, deixa de ter uma
carreira profissional em que possa progredir, e que fica em situação desvantajosa
aquando da rutura da relação conjugal.
E haverá ainda que ponderar o interesse pela educação dos filhos a impor que
um dos ex- cônjuges, em geral a mãe, se mantenha a cuidar deles provendo às suas
necessidades diretas de cuidados com a alimentação, vestuário, habitação e outras.
A duração do casamento é igualmente um fator importante a ter em conta na
decisão a proferir.
A causa ou causas de divórcio, que ainda melhor explicitaremos, também devem
ser atendidas na atribuição do direito a alimentos.
O direito a alimentos por parte do cônjuge divorciado garante-lhe o direito à
pensão de sobrevivência, nos termos da alínea d), n.° 1 do art. 46.° da Lei do Sistema
de Segurança Social (Lei n.° 18/90, de 27 de outubro).
As decisões sobre alimentos a ex-cônjuges estão sujeitas a alteração, como aliás
todas as decisões sobre obrigações alimentícias, como prescreve não só o art. 111.°, n.°
2 mas também o art. 257.°, n.° 1 do Código de Família.
A cessação da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, que veremos adiante,
vem prevista no art. 263.° do Código de Família, e opera-se quando o ex-cônjuge
contraia novo casamento ou constitua nova união de facto, e bem assim quando se
verifique grave atentado contra a vida ou contra a honra do obrigado.
2. Efeitos de natureza patrimonial
A dissolução do casamento por divórcio produz os efeitos patrimoniais
mencionados nas alíneas a), b) e c) do art. 80.° do Código de Família e dá lugar ainda,
quando tal for o caso, ao direito ao arrendamento da residência familiar,
a) Liquidação do passivo e partilha de bens
Os efeitos quanto à partilha de bens comuns e liquidação do passivo são no geral
inteiramente idênticos aos da dissolução do casamento por morte.
Tal como neste caso, deixa de haver património comum e cada cônjuge passa a
ter a titularidade dos seus bens próprios.
A partilha de bens ocorre quando o casamento tenha sido celebrado segundo o
regime de comunhão geral de bens ou o regime de comunhão de adquiridos. Se o regime
económico adotado no casamento for o da separação de bens, não há que proceder à
partilha de quaisquer bens, salvo se se tratar da divisão de bens havidos em regime de
compropriedade.
Antes de receber a sua meação, cada cônjuge deverá conferir o que deve ao
património comum ou ao outro cônjuge.
São liquidadas em primeiro lugar as dívidas para com terceiros e depois as
dívidas dos cônjuges entre si, cessando a moratória legal.
Satisfeito o passivo, é então dividido em duas partes iguais o que restar dos bens
comuns, como estabelece o n.° 3 do art. 75.°, aplicável por força do art. 80.°, ambos do
Código de Família.
A cada cônjuge é igualmente atribuída a titularidade dos seus bens próprios que
eventualmente tenham estado sob administração ou usufruição do outro cônjuge.
A diferença que a lei estabelece entre a dissolução por morte e por divórcio,
reside em que, neste último caso, nenhum dos cônjuges tem direito de preferência sobre
certos bens comuns, como vem mencionado no n.° 2 do art. 75.° quanto aos bens usados
na vida do lar ou como instrumento próprio ou comum de trabalho.
b) Perda do direito sucessório
No direito civil anteriormente vigente dava-se particular relevância à declaração
de culpa atribuída a um dos cônjuges, para dela fazer derivar efeitos patrimoniais, que
eram como que uma sanção legal para o cônjuge considerado culpado ou principal
culpado do divórcio.
c) Perda de benefícios
Hoje, o Código de Família, ao dar preferência à conceção de uma causa genérica
única como fundamento do divórcio, já não procura culpabilizar os cônjuges para daí
tirar consequências patrimoniais. No entanto, o art. 80.°, alínea c) menciona que a
dissolução do casamento por divórcio faz perder os benefícios recebidos em razão do
casamento.
Importa fixar o alcance desta disposição e o seu âmbito de aplicação, tendo em
conta que o conceito de divórcio sanção foi afastado enquanto fonte geradora de
consequências de natureza patrimonial.
Podem considerar-se benefícios todas as formas de enriquecimento material e até
mesmo de estatuto social que qualquer dos cônjuges obtém em conexão direta com a
sua situação jurídica derivada do estado de casado.
Em primeiro lugar, podem mencionar-se as doações efetuadas ao cônjuge pelo
outro cônjuge ou por terceiros, antes ou depois da vigência do casamento, mas em razão
do matrimónio.
Igualmente se devem englobar as deixas testamentárias feitas com a mesma
finalidade pelo de cujus.
No conceito de benefícios podem ainda incluir-se os prémios de seguros ou outra
forma de prémios, pensões ou subsídios atribuídos a um dos cônjuges, ou por
designação do outro cônjuge ou por via de disposição legal.
Como benefício social podemos indicar, a título de exemplo, o direito a uso de
passaporte diplomático, o direito de usufruir de direitos associativos ou institucionais
de pessoas coletivas públicas ou privadas de que o outro cônjuge fosse membro, etc..
Interessa agora definir como se opera a perda de benefícios que vem prevista na
lei. Aqui haverá que distinguir duas situações distintas. Se o benefício patri¬monial
adveio de ato de vontade do outro cônjuge ou de terceiros, entendemos que a perda
dessa liberalidade não se opera ex oficio pela simples declaração do divórcio.
Será necessário que o cônjuge ou o terceiro que fez atribuição de liberalidade
venha revogá-la por ato expresso, pois a declaração do divórcio não leva desde logo a
entender que a vontade anterior que levou à prática do ato de liberalidade tenha deixado
de existir.
O ex-cônjuge ou o terceiro que a outorgou pode até estar interessado em manter
o benefício concedido ao ex-cônjuge. A perda do benefício deve, pois, resultar de um
ato de vontade do autor da liberalidade.
Já quando o benefício ou o direito resulte de disposição legal ou estatutária que
seja atribuída ao outro cônjuge como tal, é manifesto que, perdida a qualidade de
cônjuge, desaparecerá ipsofacto, obrigatoriamente, o direito a esses benefícios.
d) Atribuição da residência familiar
Extinto o matrimónio, cessa o direito-dever de coabitação dos cônjuges, que
passam a viver em habitações separadas. O direito à habitação da residência familiar é
hoje um valor económico e social de acentuado realce, que é protegido na maioria dos
sistemas jurídicos.
Durante a vigência do casamento, é especialmente protegido o direito ao
arrendamento familiar e, aquando da dissolução do casamento, a atribuição de
residência familiar é um bem que, pela sua importância, tem um estatuto especial, dada
a sua afetação material à convivência do agregado familiar, o que justifica que ele seja
protegido não só durante a permanência do casamento mas também para além da sua
dissolução.
Em alguns destes sistemas o direito à habitação da residência familiar c protegido
não só quando ele se baseia num contrato de arrendamento celebrado por qualquer dos
cônjuges, mas também quando o casal reside em habitação que seja propriedade de um
só dos cônjuges ou bem comum do casal.
Nestes últimos casos, o tribunal pode atribuir o direito ao arrendamento ao
cônjuge que não seja proprietário e mandar constituir um contrato de locação forçada
entre o ex-cônjuge proprietário e o ex-cônjuge que passa a ocupar a posição de locatário.
No Código de Família só vem prevista a atribuição da residência familiar a
residência seja propriedade comum dos cônjuges ou o direito de habitação resulte de
contrato de arrendamento celebrado entre qualquer dos cônjuges e um terceiro.
O direito à atribuição de residência familiar vem mencionado no art. 85.°, alínea
c), no art. 104.°, alínea c), e no art. 110.°, todos do Código de Família.
É um direito que, inter-partesy tem de ser discutido no âmbito das relações
patrimoniais dos cônjuges e que, nas relações com terceiros, requer a intervenção
obrigatória do marido e da mulher conjuntamente, dado ser um bem que só por ambos
pode ser alienado. Da mesma sorte, em todas as ações em que se discuta o direito ao
arrendamento ambos os cônjuges têm que ser chamados a juízo, sob pena de
ilegitimidade, quer os cônjuges sejam autores quer sejam réus, como atrás referimos.
Os cônjuges podem dirimir entre si esta questão por via de acordo, dada a sua
natureza patrimonial, solução que é obrigatória nas ações de divórcio por mútuo acordo
(art. 85.°, alínea c) do Código de Família) e facultativa nas ações de divórcio litigioso.
Podem ainda deixar que o tribunal decida a questão quando esta lhe for posta — art.
104.°, n.° 1, alínea c), dentro dos parâmetros do art. 110.° do Código de Família.
De acordo com os parâmetros previstos neste art. 110.°, o tribunal, ao operar uma
atribuição preferencial do direito à residência familiar a um dos cônjuges, deve ter em
conta:
a) as condições de vida dos cônjuges;
b) o interesse dos filhos do casal;
c) as causas do divórcio.
Nas condições de vida dos cônjuges estão incluídas as de natureza profissional,
económica e até social.
Nas condições de natureza profissional podem incluir-se o local de trabalho, ou
o facto de ser exercida atividade profissional na residência familiar.
Nas condições económicas, inclui-se, por exemplo, na maior ou menor
solvabilidade de um dos cônjuges; nas condições sociais poderá atender-se ao facto de
o cônjuge ter no local outros membros da sua família, de desenvolver atividade
relevante na área de residência, etc..
Em segundo lugar, há que atender ao interesse dos filhos do casal, o que
representa, em última análise, determinar a qual dos progenitores deve ser feita a entrega
da guarda dos filhos, para, em razão disso, atribuir a esse progenitor o direito de
permanecer na residência familiar.
Em terceiro lugar, a lei refere que o tribunal, ao fazer a escolha sobre qual dos
dois cônjuges justifica a atribuição da residência, deverá ponderar sobre as causas do
divórcio. De novo a lei faz menção às causas do divórcio, como já o fez em relação ao
direito de alimentos.
É novamente o princípio da segurança das relações jurídicas que faz com que
seja indicado um prazo para o exercício deste direito, findo o qual cessa o direito ao seu
exercício.
O prazo de dois anos é contado a partir do fim da união, pelo que, se ela findou
por morte de um dos companheiros, é essa a data relevante. Se findou por rutura, o prazo
conta-se a partir da data em que definitivamente cessou a coabitação.
O processo judicial para o reconhecimento ou mero atendimento da união de
facto segue os trâmites do processo especial, já mencionados em termos gerais para o
processo de divórcio, ou seja, os que vêm previstos nos arts. 6.° e 7.® da Lei n.° 1/88.
Como norma específica, temos o art. 125.® do Código de Família.
Na averiguação judicial de existência da união de facto é obrigatória a
intervenção do Conselho de Família, como já mencionámos, pelo que a falta de
constituição e audição do Conselho de Família constitui uma nulidade processual
insanável. Esta nulidade é do conhecimento oficioso do tribunal e, uma vez verificada,
leva à anulação do processo a partir do momento em que ele devia intervir, nos termos
dos arts. 201.® e 202.® do Código do Processo Civil O Conselho de Família deverá ser
constituído por dois membros escolhidos entre os familiares do homem, e dois
escolhidos entre os familiares da mulher — art. 17.°, n.° 2 do Código de Família.
Compreende-se que a lei considere imprescindível ouvir o parecer do Conselho
de Família, pois melhor que ninguém serão os familiares do casal que poderão ou não
confirmar a existência e a permanência da união de facto, caraterizada pela sua natureza
de facto público no respetivo meio social dos companheiros.
Ao analisar a prova produzida, o tribunal deverá apurar se estão verificados todos
os pressupostos legais para que a união de facto possa ser reconhecida quanto à
capacidade matrimonial dos companheiros, o início e o término da união de facto, para
o preenchimento do período legal, e ainda o da singularidade da união.
Mesmo que a união de facto tenha sido iniciada sem o preenchimento dos
pressupostos legais, ela pode vir a ser reconhecida, como já vimos, se, a partir de
determinado momento e pelo menos durante o período mínimo de três anos
consecutivos, eles se verificarem.
Também se pode dar o inverso, ou seja, preencher a união os requisitos legais, e,
a partir de determinado momento, tal deixar de acontecer (por exemplo, se deixar de ser
singular em relação ao homem que inicia simultaneamente outra união de facto com
outra mulher).
Neste caso, se se der a rutura da primeira união, o companheiro ou compa¬nheira
da união que foi válida para produzir efeitos, pode vir, dentro do prazo de
dois anos, pedir o respetivo reconhecimento. c) Efeitos do reconhecimento
Uma vez provada a existência da união de facto que preencheu os pressupostos
do art. 113.°, n.° 1, o juiz deve reconhecer essa união, indicando, tanto quanto possível,
quando ela se iniciou e quando veio a terminar para, assim, determinar o período em
que ela produziu efeitos, designadamente quanto à aquisição de bens comuns,
responsabilidade por dívidas, presunção legal de paternidade por parte do companheiro
dos filhos nascidos da união, etc.
A data do fim da união marca a cessação das relações pessoais e patrimoniais
dos companheiros, uma vez que esta termina por simples ato de vontade de um ou de
ambos.
Não obstante, não é demais realçar o largo alcance da sentença que vier a
reconhecer a união de facto que tenha preenchido os pressupostos legais, uma vez que
os efeitos dessa união são equiparados por lei aos do casamento dissolvido.
Assim, se a união de facto terminou por morte de um dos companheiros, os
efeitos do reconhecimento são os mesmos da dissolução do casamento por morte — art.
126.° do Código de Família.
Como vimos, a Lei de Bases da Proteção Social, Lei n.° 7/04 de 15 de outubro
cujo regime jurídico foi definido pelo Decreto n.° 38/08 de 19 de junho (Diário da
República, n.° 112) estabelece no seu art. 6.° «Estão vinculados à Proteção Social
Obrigatória na condição de dependentes do segurado: a) o cônjuge ou pessoa em união
defacto.»
Garante-se desta forma o direito à pensão de sobrevivência ao companheiro da
união de facto tal como ao cônjuge, no caso de falecimento do trabalhador — art. 6.°
alínea a) do Decreto n.° 38/08 de 19 de junho.
Se a união de facto terminou por rutura, os efeitos que o reconhecimento produz
são os mesmos da dissolução do casamento por divórcio, como indica o citado art.
126.°.
Os efeitos pertinentes da dissolução do casamento são aqui de aplicar, salvo
quanto aos efeitos de natureza pessoal do casamento que se não chegam a produzir na
união de facto e que estão intrinsecamente ligados ao casamento como ato, como sejam
o nome de família, a afinidade e a aquisição de nacionalidade. Em relação aos filhos,
dado o fim da coabitação, são de aplicar, por inteiro, as regras já mencionadas contidas
nos art. 147.° e seguintes do Código de Família.
No campo das relações patrimoniais os efeitos são praticamente os mesmos.
Haverá o direito a partilha dos bens comuns adquiridos a título oneroso durante a união,
pois é de aplicar supletivamente o regime de bens da comunhão de adquiridos.
A responsabilidade pelo passivo segue igualmente as mesmas regras da
dissolução do casamento, devendo em primeiro lugar proceder-se à liquidação do
passivo.
O direito à atribuição da residência familiar verifica-se também nas mesmas
condições dos artigos. 75.°, n.° 4 e 110.° do Código de Família.
As regras aplicáveis do direito a alimentos são igualmente as previstas para o
caso de dissolução do casamento por morte. O art. 261.°, n.°s 1 e 2 atribui ao
companheiro sobrevivo de união de facto reconhecida o direito de ser alimentado pelos
rendimentos deixados pelo falecido.
No caso de rutura da união de facto que reuna os pressupostos legais, o
companheiro que não tenha dado causa exclusiva à rutura tem direito a alimentos, como
prescrevem as disposições dos artigos. 260.° e 262.°, n.° 2 ambos do Código de Família.
Por outro lado, a constituição de nova união de facto por pane do companheiro
que tinha direito a alimentos, faz cessar esse direito, como prescreve o an. 263.° do
Código de Família.
A decisão que reconhecer a união de facto dissolvida por mone ou por rutura está
sujeita a registo, pois é constitutiva de relações jurídicas familiares, como
expressamente estipula a parte final do art. 126.° do Código de Família.
Ela deverá ser comunicada oficiosamente pelo tribunal à conservatória do registo
civil da área da última residência comum dos companheiros da união de facto, aplicando
por remissão o disposto no an. 120.° do Código de Família e o art. 101.° do Código do
Registo Civil.
CAPÍTULO 19/
A TUTELA