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ADRIANE MUSSI
CURITIBA
2019
ADRIANE MUSSI
Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Norma da Luz Ferrarini
CURITIBA
2019
AGRADECIMENTOS
RESUMO
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO………………………………………………………………….... 6
2 PRÉ - HISTÓRIA……………………………………………..……..…………… 9
3 ANTIGUIDADE……………………………………………………………….… 12
4 IDADE MÉDIA………………………………………………………………….. 22
5 IDADE MODERNA…………………………………………………………..… 31
5.1 RENASCENÇA…………...…………………………………………………..… 33
5.2 ILUMINISMO……………………………………………………………………. 39
6 IDADE CONTEMPORÂNEA……………………………………………..…… 44
6.1 ROMANTISMO…………………………………………………………….…… 44
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………...…… 54
REFERÊNCIAS………………………………………………………………... 61
1 INTRODUÇÃO
Diferentes momentos históricos podem favorecer ou dificultar o
desenvolvimento dessas possibilidades de humanização do Homem, mas é
certo que a continuidade desse desenvolvimento (concretização) constitui a
substância do Homem (o concreto, que em si é possibilidade e, pela
contradição interna, desenvolve-se levando as diferenças a existirem, para
serem superadas); aquela só deixará de existir se não mais existir nem
História nem Humanidade (CIAMPA, 1989, p. 68)
2 PRÉ – HISTÓRIA
O início da história registrada começa por volta de 3.000 a.C., dividida por
períodos. O Paleolítico foi dividido em Paleolítico Inferior, há aproximadamente 300
mil a. C. e Paleolítico Superior, até 10 mil a.C., quando tem início o período
Neolítico. O que marca o período Paleolítico, ou Idade da Pedra, são as ferramentas
de pedra, pau e osso, enquanto no Neolítico tem-se a formação de aldeias estáveis
e a agricultura (LINS, 2017a).
No Paleolítico, não se conhecia o vínculo entre sexo e procriação e os
homens sequer imaginavam qual era seu papel na reprodução humana, condição
esta que perdurou por milênios - a fertilidade era das mulheres e a elas eram
associados os poderes que regem a vida a morte. O corpo feminino era um
receptáculo mágico que sangrava conforme as fases da Lua, produzia indivíduos e
tinha o poder de erguer o órgão genital masculino, experimentando e oferecendo o
prazer sexual (LINS, 2017a).
Embora a mulher fosse dotada de tamanho poder, não havia a noção de
casal, tampouco uma ideia de submissão ou hierarquia entre os gêneros. O
matrimônio ocorria em grupos e, por consequência, só a linhagem materna era
considerada (LINS, 2017a).
Dentre os primatas, durante a relação sexual, não há encontro face a face;
isto é uma experiência sensual única do ser humano - também o é o orgasmo
feminino, que se acredita ter surgido como uma resposta à nova posição sexual e
que torna o sexo mais agradável. Do ponto de vista evolutivo de Charles Darwin, a
postura vertical forçou a humanidade a reconsiderar a posição de acasalamento e a
estabelecer um diferente conceito de beleza (LINS, 2017a).
Os ritos sexuais de todos os animais são uma marca registrada de cada
espécie, como, por exemplo, a época em que estão no cio, o tempo de gestação, a
escolha de parceiros e número de filhotes. Portanto, delimitados e com o fim de
procriação. Já entre humanos há outros fatores envolvidos e que interferem em
seus comportamentos sexuais, desde as crenças religiosas e os códigos jurídicos
até os interesses coletivos e os desejos individuais. Assim, enquanto a atividade
sexual dos animais se rege por mecanismos biológicos hormonais, visando apenas
10
para filho, oprimindo a mulher. É neste grande contexto que surge a família
patriarcal baseada na propriedade privada (BEAUVOIR, 2016).
O sistema patriarcal, que se fixou por volta de cinco mil anos atrás, dividiu a
humanidade em homens e mulheres, colocando-os em rivalidade. Assim, ficou
estabelecido o que é masculino e o que é feminino, subordinando cada sexo a seu
correspondente. Isto causou uma ruptura no indivíduo que, sendo obrigado a
corresponder a um destes ideais (ser feminino ou masculino), teve de rejeitar uma
parte de si. Neste contexto também surgiu a noção de sujeição da mulher,
apoiando-se em dois fundamentos: o controle da fecundidade, como uma maneira
de restringir sua sexualidade, e a divisão sexual de tarefas, uma forma de mantê-las
limitadas a tarefas específicas. Como se verá adiante, o cristianismo ajudou a
generalizar esta repressão sexual (LINS, 2017a).
Ou seja, é através do trabalho (a atividade vital humana, que não pode ser
determinada casualmente) que o homem supera sua condição primária, biológica
para se tornar um ser com particularidades históricas socialmente desenvolvidas. E
tal atividade não é determinada ao acaso porque é dotada de consciência prévia
que se antecede à transformação concreta da realidade; portanto, é uma ação
material e objetiva, uma práxis (MARTINS, 2008).
Então, quando essas barreiras biológicas são superadas, tal salto qualitativo
permite com que sejam desenvolvidas novas propriedades, como as funções
cognitivas e afetivas (MARTINS, 2008).
E, assim, podemos fazer uma ligação com as mudanças ocorridas na
organização social.
12
3 ANTIGUIDADE
1
Aposento familiar destinado para uso exclusivo feminino, via de regra situado no andar superior da
casa (LINS, 2017a).
2
"Desejo intenso de bens e gozos materiais; apetite sexual" (AMORA, 1999, p. 162).
3
“O conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia” (AMORA, 1999, p. 533).
4
"Doutrina moral que se baseia no desprezo do corpo e das sensações físicas" (AMORA, 1999, p.
14
2
"Desejo intenso de bens e gozos materiais; apetite sexual" (AMORA, 1999, p. 162).
16
Javé Deus disse para o homem: 'Já que você deu ouvidos à sua mulher e
comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra
por sua causa. (...) Você é pó e ao pó retornará. (...) Então Javé Deus
expulsou o homem do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora
tirado (Gn 3:17-23).
Então, Paulo, em sua carta aos Romanos, doutrina de maneira a explicar que
Jesus Cristo veio para nos redimir deste pecado e da morte (pois, antes do pecado
original, os homens eram imortais), conforme este trecho:
Tudo o que se vinculasse à carne era considerado mau. Com esta ideia,
pensadores cristãos criaram teorias complexas sobre um possível modo de geração
transitório, no qual Adão e Eva se reproduziriam de forma similar às plantas (sem
pecado, sem prazer), caso não tivessem cometido o pecado original (LINS, 2017a).
A expressão "pecado da carne" veio para justificar a repressão às práticas
sexuais. O cristianismo foi pioneiro em relacionar a carne e o pecado. Era crença
comum a ideia de que as virgens tinham poderes sobrenaturais e milagrosos, como
a capacidade de prever o futuro (LINS, 2017a).
Portanto, o pecado original sexualizado foi uma invenção cristã. Antes, ele
era tido como uma afronta a Deus por sua desobediência e tentativa de obter
conhecimento, nada relacionado ao sexo. Para o Judaísmo, o pecado de Adão e
Eva era de conhecimento e uma competição com Deus. Foi o cristianismo que
trouxe a noção de que Eva tenta Adão e assim surge a condição humana com todo
o sofrimento inerente. É o corpo que oportuniza o pecado e a punição é a
necessidade do trabalho, a vergonha da nudez e a morte. O medo da punição
eterna acarretava no flagelo do corpo, na tortura. Para evitar o desejo sexual, se
evitava tomar banhos, tocar ou ver o corpo, comer muito pouco e somente alimentos
que deixassem o corpo frio e seco (LINS, 2017a).
Explica Abdo (2012):
17
Por meio deste trecho, retrata-se como a mulher era e ainda é vista pela
moral religiosa, ou seja, como um 'mal necessário', cuja finalidade é a de apenas
gerar filhos. Fantasias e atos sexuais diversos são considerados pecado e, portanto,
geradores de culpa e consequente castigo.
3
“O conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia” (AMORA, 1999, p. 533).
18
Ferreira (2013) conta que no início do século III, o Império Romano tinha por
volta de 60 milhões de habitantes e menos de 1% desta população era cristã. Ao
final deste século, a proporção alcançou 10%. Em meados do século IV, por volta
de dez anos após a morte do Imperador Constantino, 56,5% da população se
declarava cristã.
Lins (2017a) traz dados um pouco diferentes. Afirma que, quando o
Imperador Constantino, no ano de 312, converteu-se ao cristianismo, apenas 5% ou
10% da população do império era cristã (de um total estimado em 70 milhões de
habitantes). Mas Constantino não impôs sua religião à população. Já o Imperador
Teodósio, oitenta anos depois, em 392, tornou o cristianismo a religião do Estado, o
que quer dizer que ninguém mais poderia ter outra crença, sendo punido caso a
tivesse.
Já Ferreira (2013, p. 29) explica que o cristianismo surgiu num ambiente de
pluralismo religioso (que ele chama de pagão), e que o rápido crescimento do
cristianismo se deu porque "a fé cristã tinha um elevado padrão ético - que incluía
auxílio aos menos favorecidos, a proibição ao infanticídio, a condenação ao aborto,
ao divórcio, ao incesto, à infidelidade conjugal e à poligamia".
No século III, o Império Romano do Ocidente começou a apresentar sinais de
crise, tendo ocorrido sua queda em 476 d.C. Já a parte oriental do império, o
4
"Doutrina moral que se baseia no desprezo do corpo e das sensações físicas" (AMORA, 1999, p.
61)
19
Amar e ser amado era para mim a coisa mais doce, sobretudo se podia
gozar do corpo da criatura amada. Deste modo manchava com torpe
concupiscência a fonte da amizade, e obscurecia seu candor com os
vapores infernais da luxúria. E apesar de tão torpe e impuro, desejava com
afã e cheio de vaidade, passar por afável e cortês (grifo nosso). (Agostinho,
3--, p. 19).
(...)
Durante esse período de nove anos – dos dezenove até os vinte e oito
anos – fui seduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas
muitas paixões; publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam
liberais; ocultamente, com o falso nome de religião, mostrando-me aqui
soberbo, ali supersticioso, e em toda parte vaidoso (Agostinho, 3--, p. 27).
(...)
Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu
passado, porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza
desses afetos, atraindo para ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços
que me aprisionavam (grifo nosso) (Agostinho, 3--, p. 30).
Cabe falar brevemente sobre Paulo, que viveu entre 9 e 64 d.C. Apesar de
não ter conhecido Cristo, Paulo é a segunda figura mais importante do Cristianismo.
Ele teve uma educação clássica, pois descendia de uma família judia e rica; além
disto, era cidadão romano. Perseguia os cristãos, mas se converteu ao ter uma
visão de Jesus, quando passou a pregar em seu nome (LINS, 2017a).
Paulo também considerava o sexo repulsivo, considerando-o como um
obstáculo para a salvação e quem optasse pelo celibato era considerado como
alguém superior (LINS, 2017a).
Salzman e Lawler (2012) fazem uma consideração neste contexto, afirmando
que é preciso notar que Jesus Cristo (e o Novo Testamento) não estabeleceu uma
nova ética sexual cristã, tendo se pronunciado acerca do tema apenas duas vezes.
Mas outros seguidores, como Paulo, o fizeram de maneira mais aprofundada.
Assim, pode-se observar que desde o princípio do cristianismo, através de
pensadores como Santo Agostinho e de São Paulo, a sexualidade foi regrada e
reprimida, condição esta que se intensificou na Idade Média, conforme se verá
adiante.
22
4 IDADE MÉDIA
"Na tradição católica, a atividade sexual está institucionalizada nos limites
do matrimônio e da procriação, e a moralidade sexual é a moralidade
conjugal" (SALZMAN e LAWLER, 2012, p.21).
5
“Quem, ou aquele que professa doutrina contrária aos dogmas da Igreja” (AMORA, 1999, p. 360)
23
Foi nesta época histórica, também, que foi proibido aos clérigos se casarem.
Mesmo sob protestos de diversos religiosos, foi determinado que os padres
deveriam manter o celibato, mesmo que a Igreja realmente almejasse a castidade
(LINS, 2017a).
Conforme os teólogos da época, o homem poderia deixar claro quando
desejasse uma mulher; ela, de maneira contrária, deveria se esquivar de tal
manifestação, ficando o marido encarregado de decifrar em sutis detalhes femininos
se estava autorizado a avançar para um ato sexual. Isso quer dizer que era
obrigado à mulher sempre manifestar pudor e vergonha, comportamentos
considerados naturais do sexo feminino à época. Além disso, o prazer deveria ser
vivido com a amante, pois o marido não deveria acariciar ou excitar sua esposa até
alcançar a lascívia6 (LINS, 2017a).
Os cristãos, que separaram o amor (assunto de Deus) do sexo (do Diabo)
procuravam alimentar nos indivíduos o sentimento do olhar de Deus e o medo do
julgamento divino. Então, o amor carnal era completamente substituído pelo amor a
Ele7, o que O agrada. Essa visão influenciou o casamento cristão que, por melhor
que fosse, sempre era maléfico, pois, a cada relação sexual com prazer, ali estava o
pecado. O que hoje se chama de amor era tido como uma paixão irracional que
afasta de Deus. Ou seja, o amor não caberia no casamento. Por isso, foram criadas
regras como, por exemplo, o casal só poder se deitar juntos após a ceia, ainda que
isso não fosse uma permissão para o ato sexual em si (LINS, 2017a).
Abdo (2012) explica que só se abriam exceções ao sexo no casamento
apenas para evitar pecados maiores.
Quanto ao adultério, a Igreja adotou um só padrão sexual, embora fosse mais
permissiva com o homem. A esposa traída deveria aceitar o marido, enquanto o
marido deveria expulsar a esposa pecadora. Se uma esposa separada vivesse com
outro homem, a penitência a ser aplicada era de 14 anos. Já o marido que vivesse
com sua amante só cumpriria penitência de contrição8 por sete anos (LINS, 2017a).
Havia a modalidade de casamento continente, no qual os cônjuges se
abstinham de relações sexuais. Este modelo era apoiado por Santo Agostinho, que
o afirmava como o sonho cristão, ideal que durou por vários séculos. Esta
6
"Lubricidade, luxúria, sensualidade" (AMORA, 1999, p. 419)
7
"Ele", aqui escrito em letra maiúscula, para situar que se está se falando, no contexto cristão, de
Deus.
8
Ato pelo qual o católico se arrepende por ter ofendido a Deus” (AMORA, 1999, p. 173)
24
11
"Repulsa mórbida do homem às mulheres" (AMORA, 1999, p.466)
26
5 IDADE MODERNA
12
Assim chamadas por Simone de Beauvoir as revoluções francesa e industrial.
33
5. 1 RENASCENÇA
"Um animal imperfeito, sem fé, sem lei, sem medo, sem consistência.
(ditado francês do século XVII sobre as mulheres)" (FEDERICI, 2016, p.
288).
15
Durante três séculos, o Malleus foi a Bíblia dos inquisitores e esteve na
banca de todos os julgamentos. Para Rose Muraro, quando cessou a caça
às bruxas, no século XVIII, houve grande transformação na condição
13
Feiticeiras costumavam roubar sêmen de homens adormecidos, causar impotência, esterilidade e
abortos, além de doenças e deformidades em partes íntimas. A feitiçaria era um pacto com o Diabo
(LINS, 2017a).
14
A braguilha, em inglês chamada de codpiece, era uma peça de vestimenta medieval, usada nos
séculos XV e XVI para cobrir os órgãos genitais masculinos. Está associada à simbologia da
masculinidade (WIKIPÉDIA, 2018?).
15
Bula promulgada pelo papa Inocêncio VII, em 1484, para reforçar a caça aos feiticeiros. Até então
a Inquisição perseguia hereges – essa data marcou o início da perseguição à mulheres (e homens)
acusados de bruxaria (LINS, 2017a).
35
Casar por amor é uma ideia radical que se propaga. Não somente os
aristocratas e os intelectuais estavam começando a pensar que o amor
poderia associar-se ao casamento, mas a classe média também. Esta, que
aumentava, há muito tempo vinha invejando a conduta da nobreza na
esfera do amor romântico. O burguês e sua esposa não podiam dispor de
tempo, nem de dinheiro, para episódios extraconjugais de amor cortês. Ele
e sua mulher tinham, por tradição, descartado esse amor, fazer ao mesmo
tempo uso da moral cristã para justificar seu ponto de vista. Entretanto, os
ideais românticos unidos ao casamento constituíam algo que as classes
médias não somente podiam aceitar, mas pelo qual também haviam estado
ansiando, embora secretamente.
37
Desta forma, o lar passou a ocupar um espaço cada vez maior na vida das
mulheres. Sob o argumento religioso do casamento, a vigilância moral foi reforçada
e a mulher se tornou cada vez mais submissa e obediente ao marido. Enquanto
filhos homens e maridos podiam ter acesso ao mundo exterior ao lar, as mulheres e
filhas ficavam presas em casa - e isso teve reflexo na sexualidade exercida por
ambos os sexos. Ainda, o marido detinha todos os direitos sobre a mulher, que não
tinha qualquer autonomia patrimonial. A esposa deveria aceitar todo o imposto de
bom grado. Na prática, as relações eram muito violentas e havia muita discordância
entre os casais (LINS, 2017a).
Os papéis sociais, assim, foram definidos através as funções que cada um
exercia para a ordem pública. A masculinidade deveria ser dominante, viril e
agressiva. Assim, se um rapaz forçava ter sexo com uma moça, ele estaria
exercendo o que a sociedade espera dele. Já a moça deveria ter tido mais cautela
para que tal situação nunca chegasse a ocorrer ou deveria ter sido protegida pelos
homens de sua família (LINS, 2017a).
Falar de sexo, na Renascença, foi uma via muito popular de autoexpressão e
protesto. Nasce aqui uma crítica à Igreja, conforme explica Lins (2017a, p. 320 e
321):
Foucault (2017) explica que no século XVII o sexo foi reduzido à linguagem,
havendo um discurso controlado e sendo banidas algumas palavras, para que
houvesse um começo de dominação deste no plano real. Porém, em contrapartida,
houve uma explosão discursiva até o século XX (período em que Foucault escreveu
sua obra), em que as restrições acerca do tema geraram um aumento do discurso
indecente. Como exemplos da multiplicação dos discursos como exercício do poder,
temos as restrições feitas pela Igreja Católica, em que, apesar de que tudo deveria
ser dito e da necessidade de se examinar os atos, pensamentos, memórias e
sonhos, instruiu-se que não deveriam ser explicitadas minuciosamente as peripécias
sexuais no ato da confissão em si, sendo recomendada a discrição – daí o bom
cristão.
O importante é transformar o desejo em discurso, ainda que seja necessária
a neutralização das palavras sempre que possível. Vale mencionar tais cuidados
são acessórios à função principal de tornar a sujeição à censura “moralmente
aceitável e tecnicamente útil” (FOUCAULT, 2017, p. 23).
Foucault (2017) resume que o Direito Canônico, a pastoral cristã e a lei civil
eram os três grandes códigos que regiam os costumes e as práticas sexuais até o
final do século XVIII. Cada um deles definiu em sua esfera o que era lícito e ilícito, e
os três focavam na questão matrimonial: deveres e exigências conjugais, carícias
inúteis, fertilidade, frequência das relações (como por exemplo tempos de proibição
como a Quaresma ou períodos de abstinência). Assim, o sexo marital era
sobrecarregado de normas e a relação dentro do casamento era o grande foco de
repressões. Outras práticas, como a sodomia ou a sexualidade das crianças
permaneciam tratadas de maneira confusa ou indiferente. A condenação, para todos
estes códigos, era o destino tanto para infrações às regras das alianças quanto
desvios em relação à genitalidade - não havia distinção nítida entre as punições às
leis do casamento ou a busca de prazeres "estranhos".
Portanto, até o final da Idade Média, a população acreditava nos preceitos da
Igreja e em Deus. Mas, teve início, gradativamente, questionamentos acerca da
conduta da Igreja e do papel de seus representantes como mediadores válidos. A
Igreja, que tinha uma postura gananciosa e contraditória em relação aos seus bens
e à questão da salvação do homem, gerou questionamentos dentre os próprios
cristãos. Em consequência, durante o Renascimento, Martinho Lutero deu início à
39
5. 2 ILUMINISMO
Com o (...) Iluminismo, a Europa foi varrida por uma maré de ceticismo e
indiferença para com a fé cristã. E o conflito entre essas novas filosofias e a
igreja católica chegou ao seu auge com a Revolução Francesa. Nessa
época, as lideranças revolucionárias aboliram os privilégios do clero, que foi
reduzido à condição de funcionário público, sujeitando-se às intervenções
do Estado. Os bispos passaram a ser eleitos pelo voto, quando dirigentes
civis também eram escolhidos.
40
Muitas não sabiam como preencher o vazio que sentiam, pois, libertas de
quaisquer entraves, não sabiam como direcionar suas energias ou a quem
consagrar seus corpos, lembrando que recebiam uma fraquíssima educação e por
isso não se envolviam em atividades intelectuais. Entretanto, foi nesta época que o
movimento pela igualdade entre homens e mulheres teve seu início. 1789, ano da
Revolução Francesa, foi o início das reivindicações femininas contra a segregação
que sofrem até os dias atuais (LINS, 2017b).
O casamento era firmado e movido por interesses financeiros; o amor,
considerado praticamente inacessível, poderia até surgir após o matrimônio, mas
nunca antes dele. Não era considerado muito adequado ver um marido e uma
esposa juntos, em público, tampouco que dividissem suas intimidades ou interesses
- o ideal era que tivessem vidas apartadas. Aos homens era autorizado que
tivessem casos fora do casamento e as mulheres também poderiam os ter, caso os
maridos não se importassem (se se importassem, ela poderia até ser condenada a
pena de morte). O marido era a autoridade da casa, vendo sua esposa como uma
parceira - desde que ela soubesse seu lugar de inferioridade, sendo a submissão
indispensável e entendendo a esposa que tudo que corresse no casamento era
culpa exclusiva dela, como a infidelidade do marido ou possíveis irritações que ele
viesse a ter. Apesar de ser juridicamente permitido que ele a espancasse, já não era
mais uma prática vista com bons olhos - a recomendação era a de confinamento
domiciliar (LINS, 2017b).
O sexo no casamento era considerado uma masturbação a dois. Não havia
intimidade, cumplicidade. Havia obrigação, não desejo. Assim, toda a ejaculação
que fosse extravaginal era condenada, especialmente no sexo anal, pois não visava
a procriação (LINS, 2017b).
Apesar disto, surge modestamente nesta época um ideal de companheirismo
entre os casais, baseado no afeto e no respeito. É a noção da esposa como
companheira de um grande homem, lhe dando suporte (LINS, 2017b).
O divórcio era plenamente aceito e ambas as partes poderiam pedi-lo, pelos
mais diversos motivos, tais como: incompatibilidade de gênios, demência, ausência,
emigração, etc. Como os direitos eram iguais, neste caso, para homens e mulheres,
surgiu neste contexto a oportunidade de se pensar em um casal igualitário. Mesmo
com essas facilidades, o marido ainda poderia vender sua esposa caso desejasse
se divorciar (LINS, 2017b).
42
Nesta época ocorre uma invasão pornográfica, pois as relações entre alma e
corpo estavam se modificando e, no início, estas obras surgiram como uma
resistência ao Estado e à Igreja. É uma época em que libertinos16 e puritanos
coexistem; havia uma busca pela liberdade acompanhada de uma longa trama
cultural (LINS, 2017b).
Lins (2017b, p. 61) explica que "a pornografia do século XVIII pode ser
definida como a apresentação escrita ou visual de todo comportamento sexual que
viola deliberadamente os tabus morais e sociais aceitos". A Igreja e o Estado ainda
controlam o povo, mas não a aristocracia.
A masturbação foi repreendida fortemente e as práticas homossexuais
sofreram uma interdição absoluta. Jovens rapazes afeminados eram considerados
de um terceiro "gênero" (apesar de esta noção ainda não ser clara à época),
chamado sodomita. A percepção daquilo que era do masculino começa a gerar
ansiedade (LINS, 2017b).
As doenças venéreas se disseminam nessa época, especialmente por causa
das prostitutas. Surge o mito de que relacionar-se com uma virgem curaria as
doenças, pelo que a prática do rapto de meninas de 13 anos ou menos é presente
em arquivos judiciários (LINS, 2017b).
A partir da Revolução Francesa17, a Igreja vai ensinar aos jovens nobres que
a causa da catástrofe foi o comportamento libertino de seus pais, o que tornará a
nova geração antilibertina. Surge uma nova repressão à sexualidade, que perdurará
por algum tempo (LINS, 2017b).
O casamento como contrato civil surge durante a Revolução, espelhando-se
nos princípios de liberdade e igualdade e trazendo-os para o privado. A partir deste
movimento o casamento passou a ser laico, unindo os casais mediante suas
vontades e diante da lei, não mais de Deus. Assim, a ideia do casamento cristão
indissolúvel não estava mais em voga (LINS, 2017b).
16
Os Libertinos surgiram na França e refletiam o modelo de vida da corte à época do Rei Sol, Luís
XIV. Nos bailes havia incitação ao adultério, incentivada pelo próprio rei. A liberdade sexual, a
apologia ao prazer individual, era um privilégio aristocrático (LINS, 2017b).
17
"Em 1789, cerca de um em cada cinco europeus era francês; foi uma revolução em massa,
diferente de todas que a precederam e a seguiram, e muito mais radical que qualquer outra. A
Revolução Francesa não desejava apenas mudar um governo antigo, mas abolir a forma antiga de
sociedade. Ela teve como objeto questionar os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências
reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os usos e, de alguma maneira, esvaziar o
espírito humano de todas as ideias sobre as quais se tinham fundamentado até então o respeito e a
obediência." (LINS, 2017b, p. 77).
43
Lins (2017b, p. 82) explica que "no final do século XVIII, os discursos sobre o
corpo perdem o caráter religioso por conta das revoluções políticas, sociais e
científicas. Entretanto, com novos argumentos, trazem reforço para a dominação
masculina sobre a mulher." Isso porque, apesar de a dominação não mais se
reforçar pelo divino, e sim por uma interiorização da inferioridade feminina, num viés
social. A mulher deve ser protegida do mundo exterior, enquanto o marido sai para
conquistar o mundo. O grupo familiar fica cada vez mais afastado da sociedade.
44
6 IDADE CONTEMPORÂNEA
Este período histórico será explicitado através do Romantismo e do Século
XX. A atualidade será abordada nas considerações finais.
6.1 ROMANTISMO
O romântico adorava aquilo que era natural ao homem e aquilo que fosse
singular em cada pessoa. Prezava a sensação e emoção como essenciais
à vida e considerava humano que os sentimentos das pessoas mudassem
a cada momento e situação. (...) A paixão revigorante dos românticos
cativara a fantasia da classe média, mas seu ataque a instituições desde
muito prezadas tornou os românticos inaceitáveis diante da burguesia
poderosa. O código burguês acentuava responsabilidade pessoal pelos
atos de cada um, respeito aos pais e adesão formal à religião.
18
"Período histórico durante o qual a Inglaterra se transformou, de sociedade feudal-mercantil, de
economia preponderantemente agrária, (...) em economia industrial, caracterizada pela produção em
grande escala, mediante a utilização crescente de máquinas, sociedade na qual passou a
predominar a burguesia. (...) A Revolução Industrial inglesa (...) teve caráter predominantemente
econômico, com repercussões políticas” (ENCICLOPÉDIA, 1980, p. 9877).
45
6.2 SÉCULO XX
Salzman e Lawler (2012) explicam que o matrimônio foi tido por séculos
como um contrato cujo objeto é o direito dos cônjuges sobre os corpos um do outro,
de forma vitalícia, para que haja relações sexuais a fim de procriarem. A procriação
era, então, o principal objetivo do casamento. Porém, o Papa Pio X, em meados dos
anos 1930, conciliou estes conceitos com a noção de que o matrimônio deveria ser
uma união que possuísse amor conjugal (um amor que se prova através de feitos) e
intimidade. Este Papa determinou, então, que o amor mútuo e a intimidade entre os
cônjuges eram, na realidade, o principal tema do casamento, não mais a procriação.
Portanto, na visão católica que se construiu no século XX, o casamento nada
mais é que
19
Esta luta é retratada, por exemplo, no documentário "She is beautiful when she is angry" (em
tradução livre, "Ela é bonita quando está braba"), que fala sobre as mulheres feministas dos anos de
1960 e sua luta contra o patriarcado e o machismo. (SHE, 2014).
52
disseram, séculos atrás, sem que haja uma interpretação cabível, pois o
conhecimento que detinham à época sobre sexualidade não pode ser a única fonte
para um juízo moral no século XX.
Assim, explicam que a Igreja Católica, em 1971, por meio da Octogesima
adveniens20 afirmou que o ensinamento social da Igreja se compõe de (i) propor
critérios para reflexão; (ii) oferecer critérios para julgamento; e (iii) apresentar
diretrizes para a ação. Isso quer dizer que a responsabilidade pessoal acerca dos
próprios atos toma proporções maiores, uma vez que a Igreja dá os parâmetros de
como se deve agir, porém a decisão final é de cada pessoa. A isso, chamam de
liberdade (SALZMAN e LAWLER, 2012).
Todavia, isso somente se aplica à moralidade social. Para a moralidade
sexual, a tradição do passado ainda é amplamente aceita, não como algo que daria
uma direção, um norte, mas como uma lei estática a ser obedecida de maneira
inquestionável. Assim, fica evidente o conflito entre os posicionamentos da Igreja
(se rígido ou conferindo responsabilidade ao indivíduo) e isto gera dúvidas tanto
para os estudiosos da Igreja quanto para seus seguidores (SALZMAN e LAWLER,
2012).
20
Carta Apostólica escrita pelo Papa Paulo VI, em 1971, por ocasião do 80° aniversário da encíclica
Rerum Novarum. (CARTA APOSTÓLICA OCTOGESIMA ADVENIENS, 1971).
54
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
tanto o homem como a mulher podem ser fortes ou fracos, corajosos ou
medrosos, agressivos ou dóceis, passivos e ativos, dependendo do
momento e das características que predominam em cada um,
independente do sexo (LINS, 2017a, p. 29).
Como foi possível perceber ao longo deste trabalho, pouco do que construiu
a moralidade da Igreja Católica acerca da sexualidade veio diretamente de Jesus
Cristo. Muito veio de pensadores religiosos, como Paulo e Agostinho (LINS, 2017a).
Entretanto, é extremamente forte a influência da Igreja Católica em questões
contemporâneas, mesmo entre aqueles(as) que não praticam a fé cristã. Isso
porque muitos valores foram arraigados à sociedade como um todo, num patamar
que superou o da religião.
A Idade Média foi um período de grande influência na atualidade, é a matriz
do presente. Foi nos séculos que seguiram a Antiguidade (portanto, quando já
existente o cristianismo) que a virgindade foi cada vez mais glorificada; que a
mulher foi tida cada vez mais como inferior; que a relação com os corpos ficou cada
vez mais distante; e que o ato sexual foi cada vez mais reprimido. Grande parte das
pessoas continua a sofrer pelos seus desejos e a sentir culpa e vergonha por suas
práticas sexuais (LINS, 2017a).
Lins (2017a, p. 242 e 243) explica que
21
Sigla cujo significado é: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Transexuais e Travestis,
Interssexuais e o símbolo "+", que engloba termos como Queer, Assexuais, Panssexuais, dentre
outros (FOX, 2019).
22
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, conforme reportagem do "O Globo" de
2018. (QUEIROGA, 2018).
59
Por fim, para se concluir sobre todo o exposto neste trabalho, Lígia Martins
(2008) explica sobre uma das premissas gerais do materialismo histórico-dialético, a
dialeticidade singular-particular-universal. Isso quer dizer que um fenômeno
expressa sua imediaticidade em sua expressão singular, enquanto em sua
expressão universal demonstra a sua complexidade, a sua totalidade histórico-
social. Então, é na particularidade do fenômeno, ainda que singularidade e
universalidade sejam opostos, que se verificam as especificidades pelas quais a
singularidade se constitui em dada realidade e de modo determinado, porém, não
completo, não universal.
Nesse sentido, Ciampa (1989) afirma que a identidade, que é contraditória,
múltipla e mutável, se constitui a partir de uma construção histórica conjunta e,
também, individual. Cada pessoa interfere na identidade daqueles que estão ao seu
redor e vice-versa.
O indivíduo se sente correndo o risco de não saber quem é quando a unidade
de sua identidade parece estar ameaçada. A primeira identificação que se tem é
com o nome próprio - geralmente as pessoas se ofendem quando outras trocam seu
primeiro nome. A regra geral é que o nome próprio nos diferencie dentro de nosso
primeiro núcleo (comumente, a família), ao passo que o sobrenome nos iguala aos
familiares. Assim, diferença e igualdade constituem a primeira noção da identidade.
Isso vai ocorrendo sucessivamente, à medida que os círculos aumentam, o que se
pode perceber quando se diferenciam homens e mulheres23 como identidades
diferentes e, muitas vezes, opostas (CIAMPA, 1989).
Ciampa (1989, p. 64) explica que
O que une um grupo não é uma substância, mas um verbo (agir, pensar,
trabalhar) em comum; ou seja, uma ação. E é pelo agir que alguém se torna algo.
Um indivíduo é o que faz, mas isso traz a seguinte questão: a identidade é
23
Consideramos que o ideal seria utilizar os termos "feminino" e "masculino". Porém, como o texto
data de 1989 e estas noções ainda não haviam sido exploradas tais como nos dias atuais,
respeitamos a forma com que o autor se exprime, entendendo, todavia, que ele se refere ao que hoje
chamamos de gênero.
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REFERÊNCIAS
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, promulgado por João Paulo II, Papa. Tradução
Conferência Episcopal Portuguesa – Lisboa. 1983. Disponível em:
62
http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-canonici/portuguese/codex-iuris-
canonici_po.pdf Acesso em 13 fev 2019
FERREIRA, F. A. Igreja Cristã na história: das origens aos dias atuais. São
Paulo: Vida Nova, 2013.
LINS, R. N. O livro do amor, volume II. 6 ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017b.
POSTER, M. Teoria Crítica da Família. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A, 1978.
SHE is beautiful when she is angry. Direção de Mary Dore. Netflix, 2014. (1h32m.),
son. color.