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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

FABIANE HELENE VALMORE

ARTE E (Lou)CURA: o transitar pelos caminhos da arte como forma de


desconstrução da loucura e fabricação do artista (RJ, 2019-2021)

Curitiba, 2021
2º ano de Covid-19
FABIANE HELENE VALMORE

Monografia apresentada à disciplina TCC em Sociologia II do


Curso de Graduação em Ciências Sociais; Departamento de
Sociologia, Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal
do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do Diploma de
Bacharel em Ciências Sociais – Linha de Formação: Sociologia

Orientadora: Profa. Dra. Maria Tarcisa Silva Bega


Coorientador: Doutorando em Filosofia (UFPR): Tiago Rickli

Curitiba, 2021
2º ano de Covid-19
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS — SCH
COORDENAÇÃO DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Ata de Defesa — Monografia


A académica FABIANE HELENE VALMORE, do Curso de Ciências Sociais, teve sua
monografia "ARTE E (LOU)CURA: O TRANSITAR PELOS CAMINHOS DA ARTE COMO
FORMA DE DESCONSTRUÇÃO DA LOUCURA E FABRICAÇÃO DO ARTISTA", arguida
pela comissão examinadora composta pela Professora Doutora MARIA TARCISA SILVA
BEGA (orientadora), pelo Doutorando TIAGO RICKLI, pela Professora Doutora NELI
MARIA CASTRO DE ALMEIDA e pela Professora Doutora SIMONE MEUCCI (membros).
A monografia foi defendida no dia 14 DE DEZEMBRO DE 2021.

Após arguir a candidata conclui-se pelo sinalizado abaixo:


( X ) Aprovado (a) ( 100 ) Nota cem
( ) Reformular e apresentar nova versão no prazo de __________

Observação: dada a qualidade da pesquisa, quer no campo empírico como na


argumentação teórica, a banca indica a publicação da mesma sob a forma de livro.

Curitiba, 14 de dezembro de 2021.

Professora Doutora MARIA TARCISA SILVA BEGA


Orientador

Doutorando TIAGO RICKLI


Membro

Professora Doutora NELI MARIA CASTRO DE ALMEIDA


Membro

Professora Doutora SIMONE MEUCCI


Membro

FABIANE HELENE VALMORE


Aluna

Universidade Federal do Paraná — UFPR / Setor de Ciências Humanas — SCH / Coordenação do Curso de Ciências
Sociais / Rua General Carneiro, 460 - 90 andar / Centro / Curitiba - PR / CEP 80060-150 / Tel. (41) 3360-5085
DEDICATÓRIA

Aos que duvidam, buscam controlar, deliram e alucinam com um mundo melhor.
Aprendamos: não é exatamente por aí que conseguiremos.
Há que se lapidar tudo isso.

A ação correta provém do pensamento correto [...] não há


possibilidade de cura ou de melhoria no mundo que não comece
pelo próprio indivíduo. Para dizer drasticamente: o homem que
vive num asilo de mendigos ou o parasita nunca resolverão a
questão social. (JUNG, 2019, p.117)

Aos amigos artistas que construíram junto comigo essa pesquisa no meio de tanta dor.
De tanta poesia.

... nem todos vocês se fazem presentes diretamente nomeados aqui – alguns,
cansados de já terem falado tanto para pesquisadores, jornalistas e afins, preferiram
honestamente me explicar o quanto é ruim sentir-se “cobaias”, como se já não (n)os
bastassem sê-lo costumeiramente, da medicina, da psiquiatria... Da vida. Preferiram
comigo, não correr esse risco novamente.
Outros, decidiram interromper a entrevista e não autorizá-la por receio, por medo,
de tornarem públicas “denúncias e nomes”, incluindo aí, instituições psiquiátricas,
usuários/clientes/pacientes, trabalhadores e militantes da rede pública de saúde mental do
Rio de Janeiro; partidos políticos e parlamentares, além de membros da própria família.
Tantos outros porque, ou não se sentiram seguros e/ou preparados o suficiente para
conversar/fazer a entrevista à distância, usando recursos tecnológicos, ou mesmo porque
nem os possuem.
Outros, porque os “problemas da vida” e/ou a chegada da morte impediram.
Muitos, também, devido a pandemia COVID-19 e o modo como ela foi (des)tratada no
nosso pais. E por fim, mais um tanto, porque eu não recebi autorização do Museu de
Imagens do Inconsciente nem do Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana para realizar
essa pesquisa em suas dependências, no Instituto Municipal Nise da Silveira.

A todos vocês eu dedico essa pesquisa e ofereço a minha gratidão.


Espero que muito ainda tenhamos juntos a fazer e sentir porque
“SOMOS TEIMOSOS E A VIDA INSISTE”
AS CÉLULAS SEM TÍTULO
Jorge (Joe) Romano Gilson Secundino
Em memória Em memória

Minha mente paira Nada além


Para a realidade e a verdade que a pura e simples vaidade de viver
Não tenho raiva Nada além
Essa é a mais pura inocência pela simples vontade de estar vivo
Sem sentido, sem angustia em um momento preciso
Agora, eu ascendo o meu incenso preciso, bem detalhado
Para o ambiente espiritual. preciso, bem informado
formando máculas

Nada é como o amanhã De espinhos se fez meu coração


Que nasce de novo coração vaidoso
Nada é como o verde das plantas mas é fútil
Nem como a chuva que cai na aurora
E o amor que Deus nos deu É como se eu tivesse morrido num dia
Nunca mais sofreremos qualquer
Porque o hino cura e não desse conta de estar morto
Morri
Mas isso não quer dizer que eu tenha
O mundo está ensangüentado perdido os sentidos
São crimes, muito sangue pois meu espírito
Muitas guerras, muita fome sente-se
Racismo e diferentes ideologias o vento, o ar, o mar e a brisa
Nessa situação a vida é suja
Há muita lama nas esquinas Sem você talvez não fosse ninguém
Mas há ainda uma flor e amor Tô cansado
Dentro desse caldeirão Cheguei agora
Mas isso não me impede
de estar aqui
como aqui me sinto
como ar, como mar, os montes, os vales,
e novamente a brisa

Ao fim e ao cabo, cantemos:


“A vida é leve, a vida é pesada. O fardo que carrega é você quem faz.
É você quem traz...” (Teatro de DyoNises)
AGRADECIMENTOS

Subamos, nem que façamos escadas “as nossas próprias costelas”.


Vitória Lobato Valmore, 13 anos, 2020

Muitas são as pessoas que estiveram comigo nos últimos quatro anos e que de
várias maneiras se fazem presentes nessa pesquisa. Agradeço imensamente a todas elas
pelos laços afetivos de amizade, terapêuticos, acadêmicos, institucionais, familiares e
mesmo os de outros tipos, mantidos (ou não) desde o período de concepção dessa
pesquisa. Cito apenas algumas, mas ciente de tantas outras ao redor de cada qual.
Somos aqui: mesclas.
À Diana Kolker, desde 2018, quando fiz a minha primeira visita ao Museu Bispo
do Rosário, e dela recebi de presente o livro que me fez desejar fazer essa pesquisa.
Ao médico psiquiatra Edmar Oliveira, por ter me recebido em seu apartamento
para uma conversa quando eu ainda nem havia iniciado a escrita do projeto dessa
pesquisa. Não menos, sou grata ao professor Domingos, da UTFPR, que super (ou não)
por acaso, numa conversa de corredor, me falou da sua amizade com o Dr. Edmar. Estava
feita a ponte para uma conversa/pesquisa exploratória sobre o tema da loucura e da arte
com um ex-diretor do Hospício de Engenho de Dentro. Entre eles, em comum, o Piauí.
Ao professor do Instituto de Medicina Social da UERJ, Martinho Braga, por ter
me recebido na UERJ quando sobre essa pesquisa só havia o desejo de realiza-la.
Agradeço também à Sandra, colega pesquisadora que eu conheci na praia – na Praia
Vermelha, e no meio de uma tarde de conversa ela me disse: vou te apresentar para o
professor Martinho, da UERJ, ele poderá te ajudar. E ajudou!
À Raquel Fernandes, diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea,
que me acolheu, me aceitou e me reconheceu como pesquisadora, como pessoa do jeito
que sou. À toda a Colônia Juliano Moreira, pelo seu percurso atual de vida verde-azul
celeste, antes que de morte. Ao Rennan, João Henrique, Josi, Wilton, Valter, Elihas,
Luizinho, Ivanildo, Fabiano, Claudia, Erô, Veridiana... A todos os rostos, corpos e olhares
que cruzaram os meus passos entusiasmados e mesmos os chorosos. Aos artistas do
Atelier Gaia e conviventes do Polo Experimental, absolutamente todos.
A todos do Museu de Imagens do Inconsciente, apesar de todos os pesares. Do
primeiro ao último dia em que estive nele como paciente em terapia, guardo comigo
muitas memórias bonitas e sensiveis. Nesse período, o meu confronto com o outro se deu
de maneira tão profunda que foi dentro de mim mesma que eu me deparei com a
estranheza: serviu de espelho para mim. Do que vi, senti, percebi, intui, amei... porque já
parte de mim, muito serviu de contorno, mas também de fuga, de desespero. Acima de
tudo: desejo de compreender - o que nessa pesquisa tentei fazer. Uma pena ter havido
tanto embaraço mais que compreensão e no limite eu não ter podido ser aceita como
pesquisadora. Tampouco permanecer como paciente.
Ao Marcelo Valle, coordenador do Espaço Travessia: agradeço e sempre me
lembrarei do afetuoso e encorajador “sim” que me ofereceu diante do meu pedido de
poder estar como pesquisadora pelo menos numa parte do Nise da Silveira, frequentada
por mim nos interstícios dos tempos em que permaneci no Museu de Imagens do
Inconsciente como paciente. Desde antes da autorização me oferecida em meados de
2019, muitas foram as nossas conversas e dele sempre recebi o apoio e incentivo
necessários à realização dessa pesquisa. À direção do Instituto Municipal Nise da Silveira
por ter compreendido e me permitido estar como pesquisadora, a despeito da minha
condição anterior de pessoa que buscou no Nise da Silveira, luz para a minha escuridão
psíquica. À Paula Barros, gratidão.
Ao Alexandre Ribeiro Wanderley, psicanalista e coordenador do Coletivo
Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou!, por ter me recebido em seu consultório e me
escutado falar sobre o projeto dessa pesquisa. Ao final, não me esqueço, com todo o
habitus próprio de um psicanalista, quando perguntei a ele sobre a relevância do projeto
de pesquisa apresentado para o Tá Pirando e para a sociedade, ouvi dele algumas
considerações, mas também: se é do seu desejo realizar a pesquisa, realize-a. Agradeço
à toda “Equipe Tá Pirando”, presente num grupo de Whatszap, pela convivência quase
que cotidiana por já dois anos. Apre(e)ndi uma imensidão nesse tempo que espero
perdure. Agradeço ao Instituto Municipal Philippe Pinel por essa oportunidade,
especialmente, à Vera Roçado.
Ao Vandré Mathias Vidal, agradeço pelo reconhecimento sempre demonstrado da
importância dessa pesquisa para os Cancioneiros do IPUB, grupo musical vinculado ao
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, idealizado e
coordenado por ele já há 25 anos. Tomo a liberdade aqui de dizer que se por um lado eu
recebi autorização menos do que eu gostaria para estar reunida com os Cancioneiros; por
outro, poder refletir sobre o porquê dessa limitação também trouxe ganhos analíticos para
essa pesquisa. Não apenas o permitido, o abundantemente acessado, visto, se transforma
em dados de pesquisa. Os limites, também. Agradeço igualmente, à Julia Leite.
Ao Vitor Pordeus, especiais são também os meus agradecimentos, pelo médico
psiquiatra transcultural e terapeuta junguiano que foi meu, também, e por ter me
oportunizado com toda liberdade possível ser paciente e pesquisadora junto ao Teatro de
DyoNises. Com ele e os “melhores atores do mundo”, aos quais agradeço de modo
bastante amoroso todo olhar e mãos dadas, fui aprendendo que cuidar do outro é cuidar
de mim; que cuidar de mim é cuidar do mundo. Foi no Teatro de DyoNises o meu
encontro maior e mais prolongado com a loucura. Me lembro ainda de maneira muito
viva das cantigas, das rodas, das cenas, dos cortejos e das avaliações no final de cada
ritual. Uma cachoeira borbulhante em dias de muito sol. Mas também de frio, sentir e
buscar compreender a loucura e o artista que daí insurge.
De modo especialmente grata, deixo aqui registrada a minha tamanha alegria de
ter sido aluna da Universidade Federal do Paraná e de ter nela, já, concluído o curso de
graduação em Ciências Sociais (linha de formação: Ciência Política) e o Mestrado em
Ciência Política. Foi a realização de um grande sonho meu. Permanecer nas Ciências
Sociais e depois, decidir pesquisar o tema da loucura foi algo tão inesperado quanto foi a
minha entrada numa profunda crise existencial que fez colapsar a minha saúde mental.
Agradeço a todos os professores desses dois cursos e especialmente, nesse momento, à
minha professora orientadora Maria Tarcisa Silva Bega, por ter aceitado de pronto e
compreendido o meu desejo e processo de pesquisa. Depois, pela orientação dessa
pesquisa. Ao NEAB/UFPR pela oferta do Curso de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação
na Pós UFPR - 3a Edição, que me ajudou na escrita do projeto dessa pesquisa. Ao
CAPA/UFPR – Centro de Assessoria de Publicação Acadêmica, pelas várias assessorias
recebidas que me ajudaram a pensar essa pesquisa – desde a Camila até a Cecilia. À
COPAP/UFPR, na pessoa do professor Julio Gomes e à secretária do Curso de Ciências
Sociais, Patricia Cochake, eu agradeço pela prorrogação do prazo de realização dessa
pesquisa devido problemas de saúde meus. Igualmente à profa Tarcisa, que de pronto
esteve disposta a defender a minha permanência no curso e a realização dessa pesquisa.
Agradeço também aos Comitês de Ética em Pesquisa da UFPR, do IPUB/UFRJ e
da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ), pela avaliação,
considerações e emissão de Pareceres Favoráveis à realização dessa pesquisa. Igualmente
aos Centros de Estudos dos Institutos Municipais Nise da Silveira, Juliano Moreira e
Pinel. À Frente Estamira de CAPS – Resistencia e Invenção, eu agradeço pela
oportunidade de poder me aproximar e aprender sobre a saúde mental do estado do Rio
de Janeiro. E especialmente, à Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial (FASM - Nacional), pelo conhecimento e luta
compartilhados durante a construção e realização da I Conferencia Popular Nacional de
Saúde Mental Antimanicomial. Aprendo a militar e a fazer política pública com vocês!
Igualmente à recém fundada Coletiva de Luta Antimanicomial do Paraná (CLAP) -
obrigada por tentarmos juntas construir no Paraná uma Saúde Mental menos reacionária.
Ao Vinicius Armiliato, psicanalista e pós-doutor em filosofia da psicanalise pela
PUCPR, pela atenta leitura da, então, Introdução Contextualizada, dessa pesquisa, ainda
em 2019, que ora se transformou no capitulo 1, e, pela oportunidade de estudos oferecida
no Grupo de Estudos Psicopatologia e Insurgência – Darwin, Freud, Canguilhem, que
conduz com tanta delicadeza e conhecimento. Igualmente, aos colegas desse Grupo.
Ao Caio Henrique, Luiza Skrzypek e Adrielly Faria eu agradeço pela ajuda
enorme que me deram na transcrição de algumas das entrevistas.
Ao Luciano Vianna, que defendeu a Tese “Paradoxos de uma ciência à deriva: o
Hotel da Loucura e alguns modos de perder-se em uma pesquisa”, na Antropologia
Social da UFSC, pelas conversas sobre autoetnografia que estou podendo ter com ele.
Aos grupos online de auto e mútua ajuda: AMA Ouvidor/a de Vozes, Fênix na
Pandemia e Escuta na Quarentena, vinculados aos cursos de Enfermagem e de Terapia
Ocupacional da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), por me permitirem pensar,
expressar e acolher o sofrimento psíquico. Especialmente às professoras Larissa Dall
Agnol e Lia Ubessi e à estudante de Terapia Ocupacional, Maitê. Igualmente, a todos os
colegas do grupo online de ouvidores de vozes, Nossas Vozes, de Curitiba, e à psicóloga
Loraine Oltmann que o conduz. Nesse grupo tive o meu primeiro contato mais explícito
com o saber sobre a experiencia de ouvir vozes. Obrigada por me permitirem estar com
vocês. Agradeço também ao Projeto Analisar, organizado por psicanalistas de Curitiba,
por meio do qual eu pude me aproximar da teoria freudiana. À Patrizia Corsetto, pelos
bate-papos que os projetos “Mais Ainda” e “Diálogos do Lacaneando” oferecem a partir
da psicanálise – foi lindo me encontrar com James Joyce! Também, à Elenice Milani,
pelas sessões de Psicanálise e Cinema, desde o Museu Guido Viaro.
À Nelma de Oliveira, uma amiga psicóloga, por ter me ajudado a pisar firme
quando tudo me era desmoronamento. Aos demais psicanalistas que me atende(ra)m e
atravessa(ra)m comigo a vida, nesses últimos tempos: Gratidão. Viva o SUS. Viva o
Coletivo de Psicanálise na Praça Roosevelt.
Ao Tiago Rickli, psicanalista e doutorando no curso de Filosofia (UFPR) por ter
me acompanhado, me escutado e me fazendo escutada desde o final de 2019, discutindo
comigo muitas minucias dessa pesquisa - um verdadeiro e atencioso interlocutor.
Às professoras Neli de Almeida (IFRJ) e Simone Meucci (UFPR) agradeço e me
sinto alegre e honrada por tê-las como integrantes da Banca Examinadora no dia da
Defesa Pública dessa pesquisa. Queridas, ambas. Não menos, minha professora
orientadora Tarcisa Bega.
À minha família tão pequena e confusa. Tão Valmore sem já um deles. Adriano,
Magda e minha sobrinha Vitória: agradeço por existirmos sempre perto um dos outros.
Um Viva aos nossos novos guris, meus sobrinhos: Vicente e José Miguel. Outro Viva
para a minha mãe, Maria Helena: Saúde, Fé e Força para enfrentar e vencer mais um
câncer aos 71 anos de vida. Obrigada por ter junto com o meu pai José Renato (em
memória) desejado muito fazer estudar os seus dois filhos.
À natureza: sol, mar, terra, verde, estrelas... Ao Santo Daime. À Deus.
Minha filha Renata Valmore Anes, não sei ainda se é o caso exatamente de te
agradecer pelo radical tensionamento que dilacerou todos os meus valores e disparou o
que me trouxe até aqui – ainda incerta, mas muito distante daquela que já fui. TE AMO.
Téia e Raus, vocês, o verde lindo cheio de curvas e o som da natureza noturna da
cidadezinha de Alegre (ES), me trouxeram folego para finalizar essa pesquisa em
condições tão adversas - por fim, dentro de um hospital com a minha mãe. Obrigada.
Obrigada querido Marlon Parreira, por me abrigar na sua casa como um familiar
sempre que eu preciso/desejo estar no Rio de Janeiro – desde a sua avó e em diferentes
circunstancias.
A todos os artistas, usuários dos serviços públicos de saúde mental do Rio de
Janeiro, que participam diretamente dessa pesquisa, não apenas os agradeço por tantas
conversas e aprendizados trocados, como afirmo ser uma honra tê-los em meu caminho
de pesquisa e de vida. Um abraço afetuoso em cada um de vocês: Demetrius, Orlando,
Adilson Tiamo, Hamilton, Eneas, Stela, Renata, Cida, Rogéria, Arlindo, Leonardo
Lobão, Pedro Mota, Eduardo Marciano, Antonio Naná, Antonio Carlos, Marcelo, João
Batista, Bellagamba, Edson Antunes, Flavio Londres e Gilson Secundino (em memória).
Santiago Leão, meu grande amigo, José Alberto, Miriam Rodrigues, Jaci de
Oliveira (Pelezinho), Reginaldo Terra (o Rei SOL), Wellignton(s), Alex, Patricia Ruth,
Clovis Aparecido, Samy Chagas, Munique Mattos, Rodrigão e Nilo Sergio: agradeço a
vocês também - nossas conversas me ajudaram a pensar/sentir a arte, a loucura... a vida.
"Um missionário da Era Medieval disse que ele havia encontrado o ponto aonde o céu e a Terra se tocam..."1

Se quando quis saber da Ciência Política procurei pelos cientistas políticos.2


Agora, que resolvo saber sobre Arte e (Lou)cura não o faço diferente.

Dito isso, confesso:


Não foi à toa que eu escolhi escrever uma autoetnografia.
E além disso, pergunto:
Não dizem que é para o espaço que costuma ir o louco - o lunático?

1
A gravura original está na página 163 do livro "L'atmosphère: météorologie populaire", publicado em
1888, pelo astrônomo francês Nicolas Camille Flammarion (1842-1925). Disponível em: http://dan-
scientia.blogspot.com/2012/05/ilustracao-de-flammarion.html. Acessado em: 11/11/2019
2
“A Ciência Política no Brasil: Tema, Teoria e Método na percepção dos editores de sete periódicos
nacionais (Qualis A1, A2 e B1)”, disponível em:
<http://www.humanas.ufpr.br/portal/cienciassociais/files/2015/08/MONOGRAFIA-FABIANE-
HELENE-VALMORE.pdf>. Acessado em 29/06/2021.
“Ciência Política no Brasil: A percepção dos editores de periódicos científicos nacionais e a produção
publicada (2005-2014)”, disponível em:
<http://www.cienciapolitica.ufpr.br/ppgcp/wp-content/uploads/sites/4/2017/03/Dissertacao-Fabiane-
Valmore.pdf>. Acessado em 29/06/2021.
Devo ter ido no dia em que escrevi:

Sobre estar em suspenso


Sem narcóticos nem afins
Exceto, os nossos próprios
Desde dentro e com vida própria
É justo?

Estar em suspenso
Flutuando sem ar
sem espaço definido
pra se saber onde se pode dar

À deriva.
É justo?

Virar e desvirar-se
Balançar
pra cá e pra lá
Cambalear
pernas pro ar

Ao léu!
É justo?

Num afogar-se
sem água, sem mar

E num-quase-não-existindo
procurar uma janela
pra pular

E pulando-a
pousar num porto seguro!?

É justo?
Sem assim o desejar

...porque ainda resta, resta, resta


muito o que olhar, sentir e desvendar
até atravessar.

Desde sempre me perguntando se é justo. (11 novembro 2019)


Ainda hoje duvidando de mim mesma. (17 maio 2020)
A escrita é uma forma de não sucumbir. (15 setembro 2021)
RESUMO

Esta pesquisa autoetnografica foi idealizada algum tempo depois da busca feita pela
própria pesquisadora, em sofrimento psíquico, por terapias alternativas à psiquiatria
tradicional no Museu de Imagens do Inconsciente, no interior do Instituto Municipal Nise
da Silveira - sem que se soubesse basicamente nada sobre aquilo que é comumente
considerado loucura. Mais precisamente, depois de uma primeira visita ao Museu Bispo
do Rosário Arte Contemporânea, localizado na antiga Colônia Juliano Moreira. Ambos,
antigos hospícios localizados na cidade do Rio de Janeiro. Crítica, diante de uma suposta
romantização da loucura e, interessada no como pode insurgir da loucura, o artista,
nasceu e foi construída essa pesquisa – que se desdobrou desde aí, em diversas outras
questões: o que pode levar uma pessoa a viver a experiencia da loucura e quando tornada
artista, no interior de espaços públicos terapêuticos que valorizam a arte e a cultura no
tratamento e cuidado da saúde mental antimanicomial, quais os limites, alcances e
desafios dessa nova condição intersubjetivamente reconhecida – a de artista – na relação
da loucura com a sociedade? Para tanto, cinco desses espaços integram o campo empírico
da presente pesquisa, no interior dos quais além de observação participante e de realização
de entrevistas em profundidade com 21 artistas, usuários dos serviços públicos de saúde
mental do Rio de Janeiro, serviram também como espaços de troca de afeto, acolhimento,
militância e resistência política para a própria pesquisadora – de imersão existencial e
acadêmica. Apoiada principalmente em Canguilhem (1995), Axel Honneth (2003) e Nise
da Silveira (1987, 2001, 2015) busca-se narrar a loucura, os inumeráveis e perigosos
estados do ser, enquanto uma experiencia de desrespeito - de maus-tratos físicos, de
privação de direitos e de humilhação social -, mas também, a arte, o afeto e a cultura – o
amor, o direito e a solidariedade- como formas de desconstrução da loucura e fabricação
do artista - como normatividade vital e reconhecimento reciproco. Quando de dentro da
loucura insurge o artista que quer viver da arte, como o político profissional que vive da
política, como tornar esse desejo uma realidade possível e socialmente compartilhada,
dada a presença de realidades outras, psíquicas e tão radicalmente singulares presentes na
experiencia da loucura, mas, também, de uma realidade social desigual, preconceituosa e
injusta que a impõe?

Palavras-chave: Arte; Loucura; Artista; Luta Antimanicomial; Políticas Públicas


.
ABSTRACT

This auto ethnographic research was idealized some time after the researcher's own
search, in psychological distress, for alternative therapies to traditional psychiatry at the
Museum of Images of the Unconscious, inside the Nise da Silveira Municipal Institute -
without basically knowing anything about what it is commonly considered madness.
More precisely, after a first visit to the Bispo do Rosário Contemporary Art Museum,
located in the former Colônia Juliano Moreira. Both, former hospices located in the city
of Rio de Janeiro. Criticism, in the face of a supposed romanticization of madness and,
interested in how the artist can arise from madness, was born and built this research -
which has since, unfolded into several other questions: what can lead a person to live the
experience of madness and when I became an artist, within therapeutic public spaces that
value art and culture in the treatment and care of anti-asylum mental health, what are the
limits, scopes and challenges of this new intersubjectively recognized condition - that of
artist - in the relationship of madness with society? Therefore, five of these spaces are
part of the empirical field of the present research, within which, in addition to participant
observation and in-depth interviews with 21 artists, users of public mental health services
in Rio de Janeiro, they also served as spaces for exchanges of affection, acceptance,
militancy and political resistance for the researcher herself – of existential and academic
immersion. Supported mainly by Canguilhem (1995), Axel Honneth (2003) and Nise da
Silveira (1987, 2001, 2015), it seeks to narrate madness, the innumerable and dangerous
states of being, as an experience of disrespect - physical abuse, deprivation of rights and
social humiliation -, but also , art, affection and culture – love, rights and solidarity – as
ways of deconstructing the madness and fabrication of the artist – as vital normativity and
reciprocal recognition. When from within madness arises the artist who wants to live from
art, as the professional politician who wants to live from politics, how to make this desire
a possible and socially shared reality, given the presence of other realities, psychic and so
radically unique present in the experience of madness, but also of an unequal, prejudiced
and unfair social reality?
Keywords: Art; Madness; Artist; Anti-Asylum Fight; Public policy
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABP – Associação Brasileira de Psiquiatria


AFDM – Associação de Familiares de Doentes Mentais
ALMA – Associação de Moradores da Rua Lauro Muller e Adjacências
AMA Ouvidor/a de Vozes – Grupo de Auto e Mutua Ajuda
AVC – Acidente Vascular Cerebral
CAPA/UFPR - Centro de Assessoria de Publicação Acadêmica da Universidade Federal
do Paraná
CAAE – Certificado de Apresentação de Apreciação Ética da Plataforma Brasil
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CLAP – Coletiva de Luta Antimanicomial do Paraná
CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgotos
CEP-SMS/RJ – Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio
de Janeiro
CEP/UFPR – Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde da
Universidade Federal do Paraná
COPAP/UFPR – Coordenadoria de Procedimentos Acadêmicos e de Permanência da
Universidade Federal do Paraná
CPRJ – Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro
CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil
CID – Código Internacional de Doenças
CNS – Conselho Nacional de Saúde
DINSAM - Divisão Nacional de Saúde Mental
DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
EAT – Espaço Aberto ao Tempo
ECT – Eletroconvulsuterapia (Eletrochoque)
ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
FASM – Frente Nacional Ampliada de Defesa da Saúde Mental da Reforma
Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial
IFB – Instituto Franco Basaglia
IMASNS - Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira
IMPP – Instituto Municipal Philipe Pinel
IMASJM – Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira
IMS/UERJ – Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPUB/UFRJ - Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro
LAPS – no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção
Psicossocial
MAOC – Museu de Arte Osório Cesar
mBrac – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
MII – Museu de Imagens do Inconsciente
MinC – Ministério da Cultura
MNLA – Movimento Nacional de Luta Antimanicomial
MONULA – Movimento Nacional de Usuários da Luta Antimanicomial
NEAB/UFPR – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
NUPPSAM – IPUB – Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental –
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro
NCCS/SMS-RJ – Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde
do Rio de Janeiro
PICs –Práticas Integrativas e Complementares
PTS – Plano Terapêutico Singular
RAPS - Redes de Atenção Psicossocial
RFI – Rádio França Internacional
RPG – Role-Playing Game
SILOS – Sistemas Locais de Saúde
SMSDC-RJ – Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro
UPA – Unidade de Pronto Atendimento
UPAC – Universidade Popular de Arte e Ciência
18M – 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial no Brasil
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 18

CAPÍTULO I
AUTOETONOGRAFIA E ESCRITA POÉTICO-CIENTIFICA: DO FAMILIAR
AO DISTANTE-FAMILIAR ........................................................................................ 22

CAPÍTULO II
DA LUTA ANTIMANICOMIAL E DA REFORMA PSIQUÁTRICA .................. 48

CAPÍTULO III
DA CARACTERIZAÇÃO E DAS VIVÊNCIAS DO/NO CAMPO DE PESQUISA
........................................................................................................................................ 64

3.1 TEATRO DE DYONISES - Universidade Popular de Arte e Ciência (UPAC) ..... 64

3.2 ESPAÇO TRAVESSIA - Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde - Instituto Municipal


de Assistência à Saúde Nise da Silveira (IMASNS) ....................................................... 75

3.3 COLETIVO CARNAVALESCO “TÁ PIRANDO, PIRADO, PIROU!” - Instituto


Municipal Philipe Pinel (IMPP) .................................................................................... 92

3.4 MUSEU BISPO DO ROSÁRIO ARTE CONTEMPORÂNEA - Instituto Municipal


de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM) ..................................................... 112

3.5 GRUPO MUSICAL “CANCIONEIROS DO IPUB” - Instituto de Psiquiatria da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ) ............................................... 132

3.6 CONSTRUÇÃO, REALIZAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS EM


PROFUNDIDADE ....................................................................................................... 142

CAPITULO IV
VOZES E ARS DOS ARTISTAS ANTIMANICOMIAIS: um diálogo com Nise da
Silveira, Jung, Canguilhem e Axel Honneth ................................................................. 150

4.1 LOUCURA COMO “EXPERIENCIA DE DESRESPEITO” ................................. 154

4.2 DESCONSTRUÇÃO DA LOUCURA COMO “NORMATIVIDADE VITAL” .... 167

4.3 FABRICAÇÃO DO ARTISTA COMO “FORMA DE RECONHECIMENTO” ... 186

4.4 NISE DA SILVEIRA E OS “INUMERÁVEIS ESTADOS DO SER” ..................... 199


4.5 DESAFIOS, ALCANCES, EXPECTATIVAS, RESISTENCIA E MILITÂNCIA
FRENTE À CONDIÇÃO ADQUIRIDA DE ARTISTA: “UM LUGAR PARA O
SINGULAR” ................................................................................................................. 212

À GUISA DE CONCLUSÃO ..................................................................................... 221

REFLEXÕES PÓS DEFESA: um diálogo a partir da Banca Examinadora ......... 230

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 246

APÊNDICES
APÊNDICE 1 – TCLE (Pacientes-Artistas) ................................................................. 251
APÊNDICE 2 – TCLE (Coordenadores/Responsáveis pelo Campo de Pesquisa ......... 254

ANEXOS
ANEXO 1 - O DIA EM QUE QUEM PIROU FOI À RUA BRINCAR COM QUEM TÁ
PIRANDO (Alexandre Ribeiro Wanderley) ................................................................. 257
ANEXO 2 - A felicidade e a desilusão da medicina (Vitor Pordeus) ............................ 259
18

INTRODUÇÃO

A condição de homens doentes (...) não é sem valor para o conhecimento.


Friedrich Nietzsche

[...] sem as ideias de valor do investigador não existiria nenhum princípio de


seleção nem conhecimento sensato do real singular, assim como sem a crença
do pesquisador na significação de um conteúdo cultural qualquer resultaria
completamente desprovido de sentido todo o estudo da realidade individual.
Max Weber

Esta pesquisa autoetnografica busca narrar histórias de vida de pacientes


psiquiatrizados e compreender como ao longo de uma vivencia terapêutica-artística e
cultural, pode, daí, insurgir o artista - mais precisamente, de dentro da loucura.
Esse interesse pessoal e de pesquisa surgiu a partir de uma busca alcançada de
tratamento terapêutico por meio da arte no Museu de Imagens do Inconsciente, no interior
do Instituto Nise da Silveira, pela própria pesquisadora, logo depois de ter tomado
conhecimento da vida e obra da doutora Nise da Silveira e, com a vida, já, bastante
paralisada e não desejosa de um tratamento psiquiátrico tradicional.
É, portanto, o campo de pesquisa desse trabalho, o próprio Instituto Municipal
Nise da Silveira - um antigo hospício que desinternou em 26 de outubro de 2021, o último
paciente internado em longa permanência - juntamente com outros dois institutos
municipais cariocas: a antiga Colônia Juliano Moreira e o Instituto Philippe Pinel. Além
desses, o Instituto Federal de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
localizado no campus da Praia Vermelha, onde fora o 1º Hospício da América Latina, e
o Teatro de DyoNises, idealizado e coordenado pelo médico psiquiatra transcultural,
Vitor Pordeus, no contexto do antigo Hotel da Loucura que funcionou no Nise da Silveira
- atualmente, em funcionamento nos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro.
Além do Teatro de DyoNises, e precisamente no interior dessas instituições,
integram o campo de pesquisa, o Espaço Travessia, o Museu Bispo do Rosário, o Coletivo
Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou! e os Cancioneiros do IPUB. Cinco espaços
públicos que operam numa lógica antimanicomial e buscam respeitar a singularidade de
cada um enquanto produz arte, política, cultura, liberdade, afeto e solidariedade - em
poucas palavras: saúde mental e o fim das práticas antimanicomiais.
Perceber a existência de pacientes-artistas dentro de instituições psiquiátricas me
levou a questionar como ocorre(u) essa possibilidade. Não só essa possibilidade de
19

fabricação do artista, como também, uma outra: a de desconstrução da loucura - não a


socialmente construída, mas antes, a subjetivamente sentida. Foi, então, a partir daí que a
relação entre Arte e (Lou)cura se tornou o tema dessa pesquisa e o transitar pelos
caminhos da arte, parte do processo de construção dela.
Dito isso, é bom reforçar: essa pesquisa nasceu e se fez dentro de um processo de
crise existencial e de sofrimento psíquico, também, vivenciados pela própria pesquisadora
que vê nesses espaços, escolhidos como campo de pesquisa, a possibilidade de se colocar
como pesquisadora, mas também como pessoa que busca encontrar algum sentido na
vida. Ou vice-versa. Foi diante desse duplo interesse: de pesquisa e pessoal, portanto, que
se considerou aqui a escrita de uma autoetnografia como possibilidade privilegiada,
porque capaz de acolher a própria pesquisadora como sujeito da própria pesquisa que
realiza. Fabiane e Valmore encontram ambas espaço nesse trabalho e foi ora uma, ora a
outra, que no processo de concepção e construção dessa pesquisa atuou
predominantemente.
Inegável foi o quanto isso de fato estreitou os laços entre a pesquisadora e os
participantes dessa pesquisa - 21 artistas, usuários dos serviços públicos de saúde mental
e 5 coordenadores, trabalhadores da saúde mental – de um tal modo que, ainda que num
contexto de pandemia que ceifou a vida de milhares de pessoas, que exigiu o isolamento
social e, portanto, interrompeu o funcionamento das atividades presenciais cotidianas em
todos os espaços que integram essa pesquisa, foi possível construí-la. Incluindo
entrevistas em profundidade. Significou, portanto, que a relação construída antes da
existência sequer do projeto de pesquisa que orientou esse estudo seguiu sendo fortalecida
e ampliada, não sem tensões ou mesmo rompimentos ocasionais/pontuais.
Essa relação de afeto e confiança que permitiu à pesquisadora estar com os
participantes, inclusive de algum modo, podendo compartilhar a vida com alguns deles,
e desde aí, construir coletivamente os dados para essa pesquisa, teve no processo de
decisão, negociação, realização, transcrição e análise das entrevistas papel muito
importante, visto que sem a qual, possivelmente, as condições de realização das
entrevistas, assim como o conteúdo e a compreensão delas, poderiam ter resultado
empobrecidos – menos densas, intimas e reflexivas. Conhecer os participantes dessa
pesquisa, suas histórias de vida, e mesmo me fazer conhecida deles, nos possibilitou
trocas, sintonias e liberdade de expressão dilatadas em todo o processo dessa pesquisa.
Foi muito devido a isso, a possibilidade e condições sentidas/encontradas por mim para
rearranjar as suas narrativas, as suas histórias e feitos, segundo uma lógica, um percurso,
20

que resultou dividido em 5 seções construídas a partir de três autores: Honneth,


Canguilhem e Nise da Silveira, nos quais eu me apoio e os localizo.
Essa lógica, uma espécie de fio condutor, criada e orientada a partir desses 3
autores, que se referem, respectivamente, às experiências de desrespeito como “formas
de reconhecimento recusado”, à “normatividade vital” e aos “inumeráveis estados do
ser”, dá sentido, narra e busca responder a questão principal dessa pesquisa: como insurge
da loucura o artista? Um pouco mais: recua e avança em relação à essa questão principal
– recua para aproximar do tempo/circunstancias em que se sentiram/foram tornados e
considerados loucos e avança, para compreender os alcances, limites e desafios, outros,
decorrentes, agora, da nova condição adquirida de artistas: da loucura, de si, do/pro
mundo. Uma vez artistas o que fazer com isso?
A essa altura, são as entrevistas em profundidade realizadas com os 21
participantes, artistas, a fonte privilegiada da qual, diante de um borbulhar de palavras,
sentimentos, memoria, lembranças, quereres, sonhos, criticas, desabafos, política, cultura,
poesia, arte, recusas, recuos e avanços – histórias de vida, narrativas, lapsos e rearranjos
- a pesquisadora extrai, em negociação com as falas deles, ainda que dando vazão a elas,
recortes. Tal como diante de uma bancada cheia de azulejos coloridos e com texturas
diversas, munida de ferramentas, superfície/placas e cola, eu me vi no Bispo do Rosário
criando mosaicos – flores, navio, lua –, frente às aproximadas 300 páginas de entrevistas
transcritas fiz algo semelhante. Produzi cacos e juntando-os, procurei dar forma e sentido,
procurei montar uma narrativa, outra, para dar conta de falar sobre “o transitar pelos
caminhos da arte como forma de desconstrução da loucura e fabricação do artista”.
Tomei a frente, aqui: carregando comigo toda a caminhada, escutei até mesmo os
silêncios e as palavras incompletadas, as palpitações, pausas, pressas, preces - os tropeços
do verbo; recortei, decidi e dei orde(/ns)m. Desenhei, não traços e curvas; mas palavras
contornadas. Produzi conhecimento. Imagens: de mim e do outro.
Para tanto, e a fim de chegar nas já citadas 5 seções, a presente pesquisa segue
estruturada da seguinte maneira: após essa Introdução, o capitulo 1 apresenta e
contextualiza o percurso de concepção e desenho de pesquisa. Em seguida, o capitulo 2,
faz considerações institucionais, políticas e de contexto sobre a Luta Antimanicomial e a
Reforma Psiquiátrica. Acrescido a isso, o capitulo 3, apresenta o campo de pesquisa e o
percurso de construção, realização e análise das entrevistas, para finalmente, desembocar
nas 5 seções do capitulo 4: Vozes e Ars dos Artistas Antimanicomiais. A primeira,
quarta e quinta seções dizem respeito ao recuo e o avanço já mencionados. E as segunda
21

e terceira dizem respeito à relação desconstrução da loucura e fabricação da artista e


constituem, portanto, o núcleo dessa pesquisa. Na sequência, as Considerações Finais.
Chegando na cidade do Rio de Janeiro, eu escrevi em setembro de 2019:

Aqui o sol faz ferver


Impossível permanecer indiferente
no tanto faz

As pessoas correm, se atropelam


A vida flui

As montanhas me acolhem
E eu oscilo em paz com elas
O mar desvairado me acalma
porque eu vejo nele
o incansável ir e vir além do horizonte

Não me lembro de mim


Não há tempo

Aqui eu também temo a violência


Não a desconhecida que está dentro de mim
A externa, à qual também ninguém escapa

Me sintonizo aqui... o caos e eu


Lado a lado
Ombro a ombro

Aqui eu não vibro sozinha.


Fabiane Valmore

Incluo aqui esse texto-poema porque foi me sentindo mais ou menos assim que eu
estive transitando pelos 5 espaços empíricos dessa pesquisa – ora estava neles, a Fabiane;
ora, a VALMORE - a depender do estado das coisas e de mim.
22

CAPITULO 1
AUTOETONOGRAFIA E ESCRITA POÉTICO-CIENTIFICA: DO FAMILIAR
AO DISTANTE-FAMILIAR

É necessário se espantar, se indignar e se contagiar.


Só assim é possível mudar a realidade.
Nise da Silveira

[...] sobre o que repousa uma crença cultural, a não ser num fantasma partilhado?
Sigmund Freud

Esta pesquisa autoetnografica é sobre Arte e (Lou)cura3, mais especificamente


sobre o transitar pelos caminhos da arte como forma de desconstrução da loucura e
fabricação do artista. Está aí o título dessa pesquisa e, já nele, algo de uma hipótese que
se pretende verificar. Transitar é tomado aqui no seu significado literal e me apareceu no
exato instante (junho de 2019) em que com saudades, e já em Curitiba, imaginei os
caminhos existentes no Nise da Silveira4 que levam até à arte em meio à loucura que o
permeia – livre e mesmo a confinada. Já a expressão desconstrução da loucura, utilizo-
a porque assumo de saída, junto com Foucault (1987), que ela é social, cultural e
historicamente construída5 – portanto, passível de ser descontruída. O uso do termo
fabricação do artista, no entanto, foi provocado pela observação empírica e ligeira, feita
por mim, de que alguns colegas-pacientes que pude conhecer no Nise da Silveira e no
Bispo do Rosário se auto intitulam artistas e se sentem autorizados a responderem desse

3
Essa maneira de escrever a palavra loucura dando espaço para se pensar a cura dentro da loucura foi
utilizada por mim logo depois que eu assisti o documentário “Arte na (lou)cura”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Bn5EQO5XJO0&fb_action_ids=10153850058927542&fb_action_t
ypes=og.shares&fbclid=IwAR2VO8nN8BYOmhxr77PczOiuY8lcHdZsIcots1Y523O1ZJprWi2ryvVL7G
k>. “A cura é a reconquista de um estado de estabilidade das normas fisiológicas. Ela estará mais próxima
da doença ou da saúde na medida em que essa estabilidade estiver mais ou menos aberta a eventuais
modificações. De qualquer modo, nenhuma cura é uma volta à inocência biológica. Curar é criar para si
novas normas de vida, às vezes superiores às antigas. Há uma irreversibilidade da normatividade
biológica”. (CANGUILHEM, 1995, p. 188).
4
O antigo Centro Psiquiátrico Pedro II recebe hoje o nome de Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Nise da Silveira e fica localizado em Engenho de Dentro, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.
5 Para uma primeira aproximação a respeito dessa construção, ver: CHERUBINI, Karina Gomes (2006)
Modelos históricos de compreensão da loucura. Da Antiguidade Clássica a Philippe Pinel. Disponível
em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12432-12433-1-PB.pdf>. Acesso em
29/05/2019. Nesse artigo, a autora discorre sobre três modelos de compreensão da loucura: modelo mítico-
religioso (sustenta a influência sobrenatural como causa da loucura - surge na Grécia e Roma Antigas.
Depois, reaparece durante a Idade Média, sob as feições do demonismo), modelo organicista (tem seu
início na Idade Antiga, com Hipócrates, o Pai de Medicina. Persiste até a atualidade, justificando o emprego
de terapêuticas psiquiátricas biológicas, como a eletroconvulsoterapia e o modelo psicológico (inicia na
Antigüidade Clássica, com os autores de tragédia grega. Após um período de esquecimento, com
prevalência de outros modelos, é retomado por Philippe Pinel, que passa a considerar as paixões na
etiologia da loucura)
23

lugar social às questões su(/o)bjetivas postas pela vida. Resta, assim, justificado o uso
desse termo que me apareceu como uma lembrança (quando eu já me encontrava na
condição de paciente-pesquisadora) de um dado sensível (percebido e sentido a partir de
uma e(/a)fetiva vivência minha no mundo dos fenômenos que ora busco compreender por
meio dessa pesquisa) – qual seja: a existência de pacientes-artistas no interior de
hospitais psiquiátricos públicos, antigos hospícios, localizados na cidade do Rio de
Janeiro. É dessa lembrança, portanto, que surge a questão principal da presente
pesquisa: Como ocorre a fabricação do artista num contexto de tratamento e cuidado da
saúde mental pública engajado no Movimento da Luta Antimanicomial, norteado pelos
princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira e que privilegia a arte, a cultura e o afeto
na lida com a loucura na cidade do Rio de Janeiro?
Dessa questão principal desdobram-se outras tantas. Dentre elas, a que mais tem
me inquietado enquanto realizo essa pesquisa é a que se refere aos limites e alcances das
políticas públicas de saúde mental brasileira e de fomento à cultura na sustentação
material e emocional dessa nova condição de artista adquirida por uma parte dos pacientes
que passam a desejar poder construir para si uma carreira profissional no campo
artístico e cultural - um novo modo de viver (ou retonardo - porque abandonado,
impedido, roubado?), um “nome próprio” social-cultural-artístico e/ou politicamente
reconhecido para si (desvinculado ou não do contexto de tratamento da saúde mental).
Que passam a desejar viver de um modo menos contrariado, nos termos de Canguilhem
(1995) e sem a tarja social e política que os prendem dentro do estigma da loucura.
E ainda assim, quando já lhes restarem construídos um nome a ponto de desejarem
falar/discursar em primeira pessoa, um suporte e uma singularidade capazes de lhes
situarem sem tantos balanceios no mundo e restadas as suas psiques com melhores
condições de se haver com o desejo, com a vontade de se projetarem noutras direções que
não apenas às circundadas pelos espaços e afetos institucionalizados de cuidado à saúde
mental, de forma despatologizada – quando sentirem que “a vida é, de fato, uma atividade
normativa” (CANGUILHEM, 1995, p. 96) e nela, se sentirem chamados a lutar, como
suportá-los com tudo o que os torna sustentados? Como suportá-los junto com aquilo que
eles constroem como possibilidade de vida? Como pensar, criar e sustentar um lugar pro
radicalmente singular numa sociedade como a nossa tão ainda distante de pretender
valorizar, por exemplo, a alteridade e a empatia? Do singular ao social, como acolher o
que nos é tão estranho - senão, também, reconhecendo em nós mesmos o porquê de
tamanho estranhamento?
24

Loucura e cidade
estão em minha mente.
Estou sensível ou estou doente?
Quem é que tá PIRANDO?
Quem é que já PIROU?

A moça encantadamente sonha uma cidade


em que o brilho não ofusque a liberdade
dos que dançam loucamente
ao Som que a cidade calou...

A cidade se move e a loucura comove.


Assim disse o poeta!
Pule o seu preconceito e os muros de hospícios
Tudo o quanto te impeça

De escutar a canção que o louco dançou


De ter a visão da paz e do amor!

Cidade me dê faculdade emocional para ser integral!

A cidade ameaça e o louco se abraça


A cidade acolhe, mas o louco se recolhe
A cidade se cala, mas o louco ouve VOZES
A cidade brilha em cores e o louco alucina
A cidade morre e o louco a socorre

Oh cidade porque vê o louco desigual?


A nossa loucura luta pra ser normal!
Vem pirar com a gente para além de um carnaval
Aceitem a loucura, ela é real!6

Mais tarde, esse transitar pelos caminhos do Nise da Silveira (IMNS) que eu
havia experimentado na condição de paciente dos Ateliês Terapêuticos do Museu de
Imagens do Inconsciente ganhou novos contornos e propósitos. Abarcou, além da zona
norte, a sul e a oeste do município do Rio de Janeiro. Além do meu olhar de paciente, o
de pesquisadora. Se é possível restar fabricado o paciente-artista, por que não, o paciente-
pesquisador? E mais, se de dentro da loucura brota a arte – costumeiramente denominada
autsider, bruta (Jean Dubuffet), virgem (Mário Pedrosa) – por que não, a produção de

6
Esse poema tornado musica intitulado Loucura e Cidade foi criado a partir de um convite feito por mim
em novembro/19 nos grupos de whatszap do Tá Pirando, Pirado, Pirou! e do Teatro DyoNises após ter
surgido em minha mente três versos na véspera do “Seminário Memórias da Loucura II - dos muros e
grades à ocupação da cidade”, que eu participei em novembro/19 no Instituto Municipal Nise da Silveira.
Participaram da construção desse poema: Santiago Eleyson Leão, Orlando Santos Baptista, Romulo
Rodrigues, Thiago Beck, Munique Mattos e, eu, Fabiane Valmore.
25

conhecimento cientifico? Já não brotou o paciente-militante cônscio dos seus direitos e


deveres presente e tão essencial no Movimento da Luta Antimanicomial7?
Para falar desses novos contornos e propósitos opto pela escrita compartilhada de
uma autoetnografia em estreito diálogo – existencial, poético, solidário, espiritual,
político, social, cientifico, horizontal e democrático – com muitos dos que dela participa
e me permitem conhecer e buscar compreender as suas relações consigo próprio (ou
nossas, conosco mesmos?), com a sociedade, com a saúde mental, com a loucura, com a
arte – com a vida, enfim. Construo, portanto, uma pesquisa, mas, desde antes e durante
toda ela, relações reciprocas de afeto com todos que falam aqui junto comigo num
verdadeiro corpo-a-corpo. E são muitos. Grata por isso sou imensamente.
Interessa, então, perguntar aos pacientes-artistas que transitam pelos caminhos
da arte - nos limites do campo de pesquisa aqui analisado - como ocorre(u) exatamente
essa fabricação. Interessa especificamente compreender o que os motivou e os levou à
essa condição publicamente assumida de artista. Que sentido eles procura(ra)m dar
para as suas próprias vidas por meio da arte? Ou, isso tudo veio de fora, do social, do
outro? Quando “recolhidos da realidade”, de uma realidade socialmente compartilhada,
encontram abrigo no difícil caminho de volta do lugar a que foram levados de mãos dadas
pela loucura? Encontram na arte um modo de perceber, confrontar, reagir, ressignificar,
equilibrar, de suportar e acolher – de se haver frente a algo insuportável, até então,
rejeitável, repudiado e negado, dentro e fora de si? O artista se constrói enquanto o ego
se movimenta num árduo diálogo entre arte, obra, loucura e lucidez? Entre novas e velhas
realidades psíquicas remodeladas, perdidas e substituídas; se reinventa, se fabrica
artista, o louco?8
A criação do título da presente pesquisa ocorreu quase um ano após o surgimento
do meu primeiro e vago interesse pelo tema da loucura enquanto objeto de estudo
sociológico. Naquela ocasião (julho de 2018) em que eu apenas vislumbrava a
possibilidade de produzir uma pesquisa sobre a loucura eu ainda não havia me deparado
com a seguinte citação de Antonin Artaud apresentada pela Nise da Silveira (1987, p.5.):

7
O Movimento da Luta Antimanicomial tem o dia 18 de maio como data que remete ao Encontro dos
Trabalhadores da Saúde Mental, ocorrido em 1987, na cidade de Bauru (SP). Um pouco da história desse
movimento pode ser lido no Relatório Final do Encontro de Bauru: 30 anos de luta “Por uma sociedade
sem manicômios”.
Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/11/relatorio-encontro-de-bauru-1.pdf>.
Acesso em 29/06/2020.
8
Na ocasião em que levantei essas questões eu não tinha ainda lido os seguintes artigos escritos por Freud:
“Neurose e Psicose” e “A perda da realidade na neurose e na psicose” – ambos disponíveis em Neurose,
Psicose, Perversão (2016).
26

“o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos”, para então poder me referir
a ela nesses termos, como o faço a partir de agora (junho de 2019). Tampouco com uma
outra, também de Artaud (s/d, p. 33), que chegou até mim em outubro de 2019: “Ninguém
alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, ou inventou senão para
sair do inferno”9. São nesses termos, portanto, que eu penso, observo e sinto a razão da
arte produzida num contexto de apaziguamento e ressignificação do sofrimento psíquico.
“Haverá pára-raio para o nosso desmaio no momento preciso? Haverá alivio da dor em
momentos propícios? “Haverá paradeiro para isso?” Reproduzo aqui, essas duas
questões cantadas em versos pelos Tribalistas numa de suas canções para pensar a força
da arte, do processo criativo e expressivo, diante da angustia existencial a que cada um
de nós está sujeita10. Não como um mero alivio entorpecente puro e simples que a derruba
quase sempre de forma efêmera e superficial. Para isso, existem as chamadas “pílulas da
felicidade” que a psiquiatria tradicional tanto preza e prescreve. Mas sim, como força
capaz de fazer expressar o inconsciente. De torna-lo materializado no teatro, na música,
na dança, na poesia, no desenho, na pintura, na escultura - enfim: no ato criativo. De
mobilizar e tornar expressas e vitoriosas forças ordenadoras auto-curativas11, frente ao
caos interno do sujeito absurdamente angustiado, capazes de fazer nascer a poesia da
dor. Não como um fim, expresso no objeto de arte em si, mas como processo – como
relação que se estabelece entre esse objeto e o seu criador. Entre o artista e a sua obra.
“Não há objeto de arte. Há objeto de relação”, nos ensina Lygia Clark.
Mais especificamente, esse meu interesse em construir uma pesquisa sobre a
loucura surgiu durante a leitura de um dos livros que recebi de presente do Museu Bispo
do Rosário Arte Contemporânea (mBrac), em julho de 2018, na ocasião da minha
primeira visita à antiga Colônia Juliano Moreira. “Das Virgens em Cardumes e da Cor
das Auras” (2017) é o título desse referido livro como também da exposição organizada
pela curadora e crítica de arte independente Daniela Labra e que esteve aberta ao público
entre junho de 2016 e fevereiro de 2017 no Museu Bispo do Rosário.

9
Esta citação consta na página 33 de Van Gogh O Suicidado pela Sociedade. Disponível em:
https://teatroemescalahome.files.wordpress.com/2019/10/antonin-artaud-van-gogh-suicidado-pela-
sociedade.pdf. Acessado em 28/11/21
10
Versos da música Paradeiro + Consumado - Tribalistas
11
Ver Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatria rebelde: “(...) Acredito, pela experiencia, que na
atividade criadora são mobilizados vários aspectos da psique, porque se dá a oportunidade para que se
exprimam as forças ordenadoras autocurativas que se opõem às dissociações, às desordens causadas pelos
conflitos psicológicos. Essas forças instintivas são um movimento que vem do inconsciente. Como todo o
sistema biológico se defende, por que o psíquico seria o único a não se defender? A autorregulação
biológica se processa e a psíquica não pode fugir a uma regra de todo o sistema biológico.”. (Mello, 2014,
p. 27)
27

Num dado momento da leitura desse livro que reúne relatos de experiências
escritos por artistas-residentes que procuram aproximar arte e saúde mental, numa lógica
antimanicomial, por meio de performances realizadas com a participação de pacientes da
antiga Colônia Juliano Moreira, me apareceu de súbito o seguinte questionamento:
Estão esses artistas romantizando a loucura?
Isso porque naquela ocasião em que pela primeira vez eu me deparava com a
loucura (alheia e institucionalizada) - com o sofrimento e a estranheza que ela suscita -
não havia ainda percebido que ela também de/en[canta]. Então, enquanto lia os relatos e
observava as fotografias que os acompanhavam, não pude deixar de estranhar que
pudessem conviver juntos, tão lindos e delicados relatos com o inevitável caos emocional,
que a meu ver, naquela ocasião, necessariamente, experimentavam os pacientes,
principalmente os internos, quando do término de uma residência artística sem que essa
pudesse ter servido a mais nada além do que pode oferecer/trocar no tempo/espaço de sua
duração. Me fora impossível não perguntar na ocasião: e depois, quando os residentes
artísticos fazem seguir suas vidas fora dos muros do hospício, como resta, no limite, para
cada paciente interno retornar para o seu cotidiano moralmente aprisionado dentro de
uma “instituição total”, nos termos descritos por Goffman (2015). Na ocasião em que fiz
esses questionamentos, eu não conseguia reconhecer e legitimar de pronto os efeitos
futuros e terapêuticos das intervenções artísticas citadas nos relatos que eu lia, porque me
pareciam, antes de tudo, efêmeras, e como tal, sem sentido, paliativas, fugazes. A arte
vinha visitar a loucura e depois se retirava sem deixar nada de si – simples assim,
concluía eu, equivocadamente em julho de 2018. Muito menos me foi possível pensar
na possibilidade de que tais performances poderiam inscrever marcas na memória e no
corpo dos participantes, provocando nesses, em alguma medida, significados e sentidos
mais duradouros que o próprio tempo físico de duração das residências – re mi nis cên
cias. Mais ainda, que tais residências pudessem provocar/sustentar o desejo, a
insurgência, a fabricação do artista. No limite, que pudessem tornar facilitada a
constituição de uma nova identidade pessoal, social e política, de uma nova subjetividade
capaz de questionar a (própria)loucura. Só conseguia me perguntar como seria para os
pacientes retornar à rotina sem poder contar com as relações de afeto e com os momentos
de criação, sublimação e catarse que podem oferecer as atividades realizadas durante uma
residência artística. Como se fossem imprescindíveis que sustentáculos emocionais se
fizessem presentes o tempo todo. Como se o silêncio e a reflexão posteriores dentro da
solidão, ainda que e se devastadores da alma, não pudessem trazer à luz, uma nova
28

realidade fundamental12. Não havia ainda entendido as manifestações/produções


artísticas e culturais como portadoras da capacidade de construir e (re)afirmar novos
afetos, novas formas de ver, sentir, amar, se relacionar, agir e se sustentar no mundo.
Como propiciadoras possíveis de novas subjetividades e de (auto)percepção e afirmação
de singularidades.
Eis um dos trechos do referido livro que me fez pensar tudo isso:

Outra artista, Fernanda Magalhães, com o mote da exposição [mencionada


acima], realiza uma residência artística na Colônia e desenvolve sua ação
junto às mulheres internas de longa duração, dentro dos pavilhões que ainda
conservam características asilares, resquícios do velho hospício. Ela também
se propõe a trabalhar sobre a opressão da mulher: as amarras da estética e dos
padrões de beleza. Num lindo trabalho de corpo, se aproxima dessas
mulheres, fechadas em seus próprios corpos, com suas próprias linguagens,
muitas das vezes impenetráveis, reproduzindo um certo automatismo que se
repete e se apresenta com um alheamento e indiferença ao outro. Mas, de modo
delicado e despretensioso, através do toque, da dança, da música, do uso dos
objetos, do brincar com fotografias, algo se configura e uma conexão se
estabelece. Mesmo com as mulheres mais refratárias, aquelas que suas
cuidadoras diziam serem indiferentes e que não se comunicavam, foi possível
manter algum tipo de relação. Esse trabalho permitiu uma desconstrução do
olhar daqueles que são responsáveis pelo cuidado dessas usuárias, que foram
surpreendidos ao descobrir que as imagens reveladas nas fotos e estampadas
nos corredores da instituição não retratavam as pacientes que eles estavam
habituados a conviver, mas apenas mulheres, em sua singularidades e
feminilidades. Em uma proposição em que tais mulheres foram vistas como
iguais, sem a estética estereotipada do doutor, algo pôde ocorrer. Despiram-
se, mesmo que por um instante, de mortificações subjetivas e foram capazes
de interagir com novos estímulos e, assim, apontar novas possibilidades de
abordagem, que não necessitam estar limitas ao estatuto da palavra.
(LABRA, 2016, p.18-19, grifos meus)

Na ocasião em que eu me colocava esses questionamentos eu nada sabia a respeito


dessas experiências humanas ali relatadas. Eu estava mesmo, era, completa e
emocionalmente posicionada no papel de paciente tentando compreender o que me
ocorria e não exatamente no de uma pesquisadora em formação, buscando
pensar/desenhar um projeto de pesquisa. Sendo assim, basicamente, pensei: está bem....
a residência artística acontece, e com ela, alguns pacientes demonstram evolução no seu
quadro clínico e terapêutico... mas, e depois?: ao findar desse suporte psicossocial e
emotivo, dessa relação de afeto que a arte provoca, cada paciente não retornará a lidar,
muitas vezes em silêncio, com o seu sofrimento psíquico? Na melhor das hipóteses, até

12
Trecho da canção tema Cancioneiros do IPUB (criação coletiva): “Quando amanhece o dia, penso numa
solução/ Vem aquela melodia/ Pra espantar a solidão. Quando aqui cheguei, encontrei muito carinho/ No
Cancioneiros do IPUB, nunca mais me senti sozinho. [...] Mas o canto da liberdade, me deixa assim
mexido/ Descubro não existe idade, prá uma nova realidade [...] Fundamental...”. (grifos meus)
29

que outras ações intermitentes como essa possam surgir em socorro a eles? Pois bem, foi
exatamente nesse ponto que me doeu aceitar a coexistência da beleza e delicadeza
contidas nos relatos com o fato de que muitos dos pacientes já estão ali internados desde
há muito sem que quase nada pudesse ter lhes sido feito para ajuda-los a resolver a vida
de fato. Me pareceu, naquele momento, que os artistas, assim como o mBrac que os
recebiam não pensavam sobre os dias seguintes ao término da residência – sobre o
sentimento de abandono e o vazio existencial que os pacientes voltariam a sentir logo
depois de terem podido se alegrar na companhia dos artistas-residentes. Como se
absolutamente, tais residências não deixassem no hospício reminiscências
borbulhando ao se despedirem dele. Como se absolutamente... o sentimento de abandono
e o vazio existencial, meus, fossem necessariamente, também, os deles. E o sendo, como
se absolutamente... a loucura, por vezes, também, ela, não tivesse o poder de afastá-los
disso. Assim como a mim. Para que também serve enlouquecer?
Todas essas questões traziam, até mim, antes uma confusão existencial do que
uma possibilidade clara de construção de um projeto de pesquisa sobre o tema da loucura.
Até que num segundo momento, ainda incerta sobre o quê a respeito da loucura eu poderia
pesquisar, busquei conhecer um pouco mais sobre esse tema, participando como ouvinte
do I Seminário Histórias da Loucura: Trajetórias e desconstrução do hospício que
ocorreu no Instituto Municipal Nise da Silveira, em novembro de 2018. Durante esse
evento, o meu interesse pelo tema da loucura foi amadurecendo e alguns desenhos de
pesquisa começaram a surgir, ainda que de uma forma muito questionável, distante e
inimaginável. Ou seja, a ideia de realização de uma pesquisa sobre a loucura apenas me
aparecia como um desejo sem que eu tivesse a menor ideia de como conseguir forças e
meios para satisfazê-lo.
Não apenas o conteúdo das palestras e dos debates subsequentes contribuíram com
as minhas reflexões pessoais e cientificas, mas, em grande medida, o tipo de relação
estabelecida entre os participantes do seminário (uma relação na qual eu não me dava
conta exatamente de diferenciar ali quem era e quem não era paciente da saúde mental -
como é de praxe pensar ser possível e imediata fazer essa distinção). Digo isso porque o
seminário ocorreu em alguns espaços do Instituto cujo acesso não era controlado. Ou seja,
qualquer pessoa, mesmo os pacientes, podiam não só transitar por esses espaços, como
também participar deles, inclusive com direito a voz e de resposta. Claro que em alguns
momentos o respeito genuíno fazia parte disso tudo entre todos os participantes e a
30

interação ocorria de fato, mas noutros, não mais que uma certa tolerância politicamente
correta se fazia presente num silencio sem respostas.
Foi nessa ocasião (novembro de 2018) que eu reiterei meu interesse e necessidade
clínica/terapêutica de ser atendida como paciente nos Ateliês Terapêuticos do Museu de
Imagens do Inconsciente, já demonstrado em junho de 2018. Aliás, foi devido a esse meu
interesse de receber um tratamento terapêutico por meio de atividades expressivas,
criativas e livres que eu acabei me deparando com esse universo todo. Inclusive com o
Movimento da Luta Antimanicomial brasileira e, mais tarde, com a Lei da Reforma
Psiquiátrica, 10.216/2001, cujo Projeto de Lei tramitou por 12 anos no Congresso
Nacional. Ser uma paciente do Museu era a minha prioridade e esperança de poder tratar
as minhas dores emocionais sobre as quais eu já não tinha controle algum – tampouco
entendimento e parâmetro. A Psicanálise e a Homeopatia desde aquele momento não
conseguiam, sozinhas, me sustentar emocionalmente em pé. Buscando, então,
experimentar possibilidades adicionais de tratamento alternativo à psiquiatria tradicional
ou não-dinâmica13 acabei me deparando com uma trilogia documental dirigida por Leon
Hirszman (1986) denominada Imagens do Inconsciente”14, o mesmo diretor de “Eles Não
Usam Black Tie”, e coordenada pela Dra. Nise da Silveira15, reconhecida
internacionalmente pela maneira revolucionária e humanizada com que buscou tratar os
pacientes esquizofrênicos por meio de expressões artísticas enquanto dirigiu a Seção de
Terapêutica Ocupacional, entre 1946 e 1974, desse antigo Centro Psiquiátrico que hoje
possui o seu nome.
Importante mencionar que na ocasião (maio/18) em que eu assisti à essa trilogia
eu absolutamente nada sabia sobre a esquizofrenia e tampouco sobre a vida e obra da
doutora Nise da Silveira. Sequer percebi, ou não pude perceber, que os três casos clínicos

13
Sobre a Psiquiatria não-dinâmica em contraposição à dinâmica podemos ler na Tese de Doutorado de
Eurípedes Gomes Jr, página 334, o seguinte: “PSIQUIATRIA DINÂMICA - Segundo Ellenberger, este
termo representa uma linhagem evolutiva da psiquiatria, cujas raízes estão nas práticas milenares que
buscam uma cura psíquica para as doenças. O xamanismo, o exorcismo, o hipnotismo, a mediunidade e
seus derivados fazem parte dessa linha que resultou na descoberta do inconsciente e na psicanálise. Esta
estirpe opõe-se à psiquiatria orgânica ou não-dinâmica. Enquanto esta última privilegia as descrições
nosológicas e o estudo das doenças, a primeira interessar-se-ia primordialmente pela cura ou bem estar
do paciente.”. Disponível em: < https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/2016/Mencoes-
Honrosas/Ciencias-Sociais-Aplicadas-Euripedes-Gomes-Cruz-Junior.PDF>. Acesso em 20 set. 2020.
14
Uma série sobre três histórias de vida - sobre as obras de três artistas portadores de esquizofrenia do
então, Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro. Fernando Diniz (Em busca do espaço cotidiano);
Adelina Gomes (No reino das mães) e Carlos Pertuis (A barca do sol) – disponíveis no YouTube.
15
Para uma primeira aproximação da vida e obra de Nise da Silveira ver a Entrevista concedida por ela em
1992, em sua casa no Rio de Janeiro – publicada na Revista Psicologia: Ciência e Profissão em 1994.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931994000100005>.
Acesso em 26/05/19.
31

narrados nessa trilogia têm a ver com a psicose – outra palavra que eu só conhecia de
ouvido. Muito provavelmente porque no domínio do senso comum a psicose
(esquizofrenia, paranoia...) é mais conhecida como loucura16. Importava-me apenas o
sentimento que me fora despertado por essa trilogia e pelo pouco que eu ia descobrindo
sobre a vida e obra da Nise da Silveira. Uma camarada cujo aniversário de nascimento
fora lembrado pelo Partido Comunista Brasileiro17, em fevereiro de 2019, como parte da
luta antimanicomial. Importava-me pensar e esperar que produzindo desenhos num atelier
terapêutico eu conseguiria expressar o que verbalmente não me estava sendo possível e,
assim, compreender e ressignificar o que estava (des)acontecendo comigo. Desejei trocar
a palavra já que não-dita por imagens do inconsciente que eu supus erroneamente ser fácil
mostra-las. No fundo achei que eu seria lida sem que eu precisasse falar. Não sabia ainda
que teria que dar voz ao desenho, ou que dele escutaria algo – fui descobrindo aos
poucos, enquanto me surpreendia ao perceber, que mesmo traços quaisquer lançados no
papel iam ganhando forma, sentido e porquê como se não tivessem sido desde o começo
traçados aleatoriamente e sem (cons)ciência do que deles resultariam. Fui percebendo que
a minha interação com os traços, com as cores, com o papel, com a aquarela ou com o
lápis, me remetia absolutamente, também, à minha conhecida, silenciada e negada própria
história, ao meu jeito de existir no mundo e comigo mesma. Fui reparando que enquanto
eu desenhava eu construía também uma narrativa negociada sobre mim e comigo mesma.
Lembranças (traumáticas?), questionamentos inquietantes, mas também prazerosas e
diversas respostas (im)possíveis vinham à tona em meio aos fragmentos abstratos já
postos e repostos no papel que eu seguia buscando dar sentido, forma e cor até que
restasse tudo já dito, admirado, espantado - (sublimado? Integrado?), ainda que não
exatamente compreendido, nos limites de cada papel utilizado, de cada traço feito,
desviado, tangenciado e desfeito, de cada cor posta, de cada espessura reforçada ou
suavizada. Por exemplo, até que os limites e fronteiras avançados ou mesmo impostos
por mim no entrelaçamento de cada cena do desenho já tivesse me mostrado de forma
surpreendente como eu lido igualmente com eles fora do papel. Tudo isso, no entanto,
não me impede jamais de perceber novas conexões a cada novo olhar lançado e detido
num desenho já tido como pronto. Tudo, mas não em todos os desenhos, me aparece no

16
Morel (1809-1873) teve um papel destacado na história da psiquiatria. Foi o primeiro a usar o termo
demência-precoce, que Kraepelin formularia como conceito e posteriormente Bleuler denominaria
esquizofrenia - o termo científico para a popular loucura. (EURIPEDES JUNIOR, 2015, p. 67)
17
Em memória de Nise da Silveira: manicômios nunca mais!. Disponível em:
<https://pcb.org.br/portal2/22371/em-memoria-de-nise-da-silveira-manicomios-nunca-mais/>
32

papel, ao fim e ao cabo, como se eu já o soubesse, já o conhecesse de antemão sem, no


entanto, saber que já o sabia. “Que é a arte, afinal, do ponto de vista emotivo, senão a
linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós?” (Mario Pedrosa, 1947).
Dito, isso, peço licença para compartilhar aqui o resultado daquilo que
pretensamente era para ser tão somente um croqui de troncos de árvores feito no verso de
uma folha de papel já utilizada, já que muito diz sobre o que eu acabo de descrever.

Essas imagens produzidas na virada do dia 20 para o 21 de julho de 2020 não


foram idealizadas por mim antes de se tornarem concretas no papel, como já dito. Elas
me apareceram quase todas de pronto e de maneira arbitraria quando olhei para os quatro
troncos de arvores tão logo terminara de desenhá-los. Não as enxerguei de forma clara e
bem delineada logo que as vi, mas me senti chamada a trazê-las à tona, a literalmente
contorná-las, inclusive, enquanto situações por meio das quais eu pude travar um diálogo,
um encontro atemporal comigo mesma, uma a uma, parte por parte. Sem com isso poder
me isentar da decisão que me vi tendo que tomar quanto a tornar ou não inofensivo algo
desse desenho que insiste em me fazer interrogar, ao mesmo tempo em que me oferece,
justamente, algumas respostas. A fim de que tudo aí me restasse, ao menos visualmente,
definitivamente inofensivo, bastaria para isso traçar, agora sim, literalmente, acima das
33

marcas já inscritas, uma outra história e, assim, correr o risco de encobrir novamente o
que insiste em comparecer. Mas se assim o faço, em mim apenas permanece. Aí está...
E é a isso que também podemos chamar de obra?
Que podemos chamar de obra, especificamente, nos termos daquilo que Foucault
(2017, p.530) escreveu na última página de História da Loucura?:
“Ali onde há obra, não há loucura”.
Toda essa minha recente vivencia com a feitura de desenhos e mesmo com a
escrita de poemas teve início quando finalmente eu fui aceita no Museu de Imagens do
Inconsciente como uma paciente e lá estive entre janeiro e março de 2019. Tudo ali era
muito novo para mim. Poder desenhar e pintar livremente e de forma criativa das 9h às
16h, 5 dias por semana; me relacionar num ambiente de aceitação e de dores abraçadas
em que eu me sentia bastante acolhida pelos terapeutas e, mais ainda, pelos colegas-
pacientes do Museu; almoçar diariamente na companhia de alguns desses colegas e trocar
com eles experiências sobre o que é ser um sujeito neurótico ou psicótico, sobre o que é
ser um artista do Museu, sobre o que é ter estado internado por anos a fio num manicômio,
sobre a experiencia espiritual/transcedental como forma de apaziguamento das dores da
alma, sobre os estigmas que recaem sobre os que sofrem sem que ninguém possa ver as
feridas - e mais do que tudo isso: estranhar e me reconhecer no/a partir do outro,
observar e sentir cada vez mais intimamente todo o espaço aberto ao tempo18 do lado de
dentro dos muros do Instituto: ensolarado, verde e com folhas enormes e amareladas das
amendoeiras cobrindo o chão. Beleza essa, que contrasta com a tristeza dos bancos vazios
e mesmo com a dos ocupados, quando, por corpos estáticos e olhares, muitas vezes,
perdidos. Descamisados em muitos sentidos. Um gueto (?) que acolhe a uns, que
testemunha o recolhimento de outros tantos para dentro de si próprios, que direciona -
que encoraja um bocado a visitar o mundo do lado de fora do casulo que é, seja o Instituto,
seja os lugares onde residem, seja o reino das mães... Mas que também expulsa, provoca
e não nota que alguns, necessitados de outros ares, optam por doses homeopáticas e
intermitentes de auto-expulsão. Ainda bem que é possível transitar e que os caminhos são
diversos e amplos.
Enfim, eu estava mesmo era envolvida e, ainda que encantada, muito preocupada
com todo um desequilíbrio emocional que me impedia de prosseguir com as tarefas
cotidianas. Isso de um tal modo, que durante esse período raras foram as vezes em que eu

18
Quase um ano depois de ter escrito aqui essa expressão tomei conhecimento do EAT – Espaço Aberto
ao Tempo, criado por Lula Wanderley, no final dos anos 80, dentro do hoje Instituto Nise da Silveira.
34

me lembrava ou conseguia levar adiante qualquer reflexão sobre a construção de um


projeto de pesquisa. Existia, sim, uma vontade, porém, projetada num horizonte não
sabido, por mais que eu já me encontrasse atrasada na realização e defesa de um
trabalho de concussão de curso (TCC). Agradeço imensamente à UFPR e, especialmente,
à minha professora orientadora, Maria Tarcisa Bega Silva, ao professor Júlio Gomes
(COPAP/UFPR) e à secretária do curso de Ciências Sociais, Patrícia Cochake, por terem
compreendido, aceitado e analisado todo um conjunto de relatórios médicos e
psicológicos a respeito da minha condição de saúde vivida entre 2016 e 2019 que
culminou com a prorrogação do tempo de conclusão do curso e, portanto, da concepção,
escrita e defesa da presente pesquisa.
Me interessava mesmo era compreender porque eu me sentia tão aprisionada
frente aos terapeutas, frente a mim mesma e aos meus colegas-pacientes que criavam suas
produções enquanto eu me perdia paralisada num emaranhado de senões e tudo me
parecia impossível de ser dito, colocado e mostrado no papel (ou para mim mesma?). Um
e outro colega-paciente, não demoram a notar essa minha dificuldade de iniciar ou mesmo
de permanecer com um desenho no papel (visto que eu julgava qualquer esboço meu
horrível e descabido e quase nada desenhava por causa disso) e logo trataram de me
encorajar e de apaziguar a minha angustia expressada com tantos porquês. Fizeram isso
sem julgamento algum e com muito respeito e carinho por mim. Foi assim que eu me
senti atravessada pelo afeto logo nos meus primeiros dias como paciente no Ateliê do
Museu de Imagens do Inconsciente. Tempos depois fui me aproximando e
compreendendo o conceito de “afeto catalisador”’ criado pela Nise da Silveira. Fui
aprendendo entre avanços, retrocessos e muitas pausas que qualquer que fosse a imagem
produzida por mim, mais que na escrita do processo de construção dela que eu costumava
fazer em seu verso, é d(n)ela mesma e já desde o seu processo de construção que é
possível extrair e até mesmo fazer transbordar um tanto de mim mesma, como se “por um
fio” (nos vários sentidos que essa expressão nos oferece) eu fosse me tornando li(ga)da,
dita, pelo desenho que ia surgindo até onde, nele, mais nada restasse ser dito, escutado,
visto, traçado ou retocado – e com isso, poder pôr um ponto final em cada desenho, foi
se tornando, para mim, uma decisão menos penosa, embora, nas coisas da vida, ainda não.
Em set.19 eu escrevi um longo texto/poema sobre o ponto final. Dele, deixo aqui o
começo:

Saber pôr o ponto final nas frases é fácil


35

Difícil é saber pôr ponto final nas coisas da vida

Não é na vida, são nas coisas da vida que eu estou falando

Às vezes o ponto final já está ali


mas a gente não o enxerga
Ao contrário, ele nos escorrega
e deixa uma lacuna
um vazio
entre um tanto de coisas e outro tanto
que a gente só espera
em vão
vê-lo preenchido

Esse vazio, essa lacuna


... igual areia de praia em dias de muito frio
ninguém habita.
Tá lá sozinho
...

Arte é a expressão dos sentimentos. Essa era a lição que eu aprendia nos Ateliês
do Museu de Imagens do Inconsciente. Assim eles demonstravam o orgulho e a
preocupação carinhosa que sentiam uns pelos outros sem que apesar disso, conflitos
esporádicos deixassem de existir. Evidente era, de qualquer modo, a certeza de que por
meio da arte é possível dar vazão às emoções represadas e ganhar alguma paz.
Demonstravam também um certo sentimento de dever cumprido após cada dia de
atividade no Museu, como se a estadia ali equivalesse, “de fato”, a um dia de trabalho
realizado, aquele tipo de trabalho moral e socialmente aceito, que dignifica o homem
perante a materialidade da vida19 e que por isso o torna portador de estima social.
De estima, não de estigma.
São justamente relações de afeto espontâneas como essas - formadas por laços de
amizade e confiança mútuos - construídas coletivamente em ambientes artístico-cultural
e terapêuticos públicos de saúde mental do Rio de Janeiro, no contexto da Luta
Antimanicomial e norteado pela Lei da Reforma Psiquiátrica, produto dessa luta que
ainda se faz necessário travar, que essa pesquisa toma como objeto de pesquisa,
permeadas pela arte - como aquilo que dá relevo ao que já existe ou mesmo faz insurgir
o novo – no caso da presente pesquisa: o artista.

19
Foucault afirma que as novas significações dadas à pobreza – “não são pobres apenas aqueles que não
têm dinheiro, mas todo aquele que não tem a força do corpo, ou a saúde, ou o espírito e o juízo” – a
importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados modificam o sentido
da loucura. (EURIPEDES, 2015, p. 26)
36

Mais especificamente, busco descrever e compreender como e em que medida a


internalização da condição de artista vai se dando nesses ambientes por parte de alguns
dos pacientes/usuários/clientes. Como parte deles20 vai se assumindo, se sentindo
autorizada, legitimada e reconhecida (em quais espaços? de que modo? por quem? em
que medida?) enquanto artista (atores, poetas, músicos, compositores, desenhistas,
pintores, escultores, dançarinos, etc.) no/do campo da saúde mental e mesmo fora dele? -
e mais, como por meio dessa condição de pacientes-artistas, vão se tornando (ou
insurgindo-se) ativistas/militantes/protagonistas do campo psi e adensando a luta política
em favor de uma causa, dos seus próprios direitos enquanto cidadãos-usuários dos
serviços públicos de saúde mental? Ou seja, como tudo isso vai se juntando à política
numa luta conjunta e anterior pela desconstrução da loucura, pelo direito à liberdade e,
no limite, em defesa da democracia?
Dito isso, primeiro, é preciso esclarecer que no presente trabalho, Fabiane é o
sujeito que vive a experiencia terapêutica – que se apresenta como parte (nativa?) do
contexto estudado – como uma paciente que, transitando pelos caminhos da arte, da
homeopatia, da psicanálise, da psicologia analítica, de diversas outras terapias
alternativas, da espiritualidade, e mesmo dessa pesquisa, busca compreender e dar conta
da sua própria loucura, da sua queda abismal, do seu vazio existencial e vai escrever na
primeira pessoa do singular. Que ainda assim, ou justo por isso, cantou emocionada já na
saída do portão principal do Instituto Nise da Silveira em direção às ruas do Engenho de
Dentro, na última 5af antes do carnaval 2020, ao som da bateria A Insandecida do Bloco
Carnavalesco Loucura Suburbana, que já há 20 anos alegra, conscientiza e rompe os
muros do hospício no meio de muita cor, beleza, calor, corpos e almas solidárias, mas
também, vaidosas, egoicas, umas mais outras menos, o seguinte refrão: "Tem
maluco que sabe que é maluco/ Tem maluco que acha que é normal".
Valmore, por outro lado, é a pesquisadora que, atenta ao que já conseguiu
observar, sentir, imaginar, refletir, questionar, pesquisar e partilhar a partir da sua própria
e recente experiencia pessoal, social, política terapêutica e acadêmica com a loucura
busca enquanto constrói essa autoetnografia21, descrever e analisar o potencial de

20
No caso especifico do MII, segundo Eurípedes Cruz Junior (2015, p. 213), em sua Tese de Doutorado,
“Aqueles que se assumem como artistas são raros, e mesmo assim muitas vezes o fazem de uma maneira
peculiar”.
21
Método qualitativo de pesquisa por meio do qual o sujeito pesquisador busca construir narrativas
de experiência pessoal a partir de si próprio – incluindo aí o reconhecimento de que a sua experiencia
pessoal e emocional, seus pressupostos e posicionamentos integram a escolha do objeto de pesquisa e
conduz todo o processo de desenvolvimento da pesquisa. A autoetnografia é, nesse sentido processo, mas
37

desconstrução da loucura e fabricação do artista dos espaços terapêuticos, campo da


presente pesquisa, localizados no interior de antigos hospícios públicos da cidade do Rio
de Janeiro22, a partir, principalmente, das falas, performances e das produções imagéticas
e culturais dos próprios pacientes-artistas que transitam por esses espaços.
Fabiane e Valmore – claro, uma mesma pessoa – aparecem, então,
simultaneamente nesse trabalho, como paciente e como pesquisadora, tanto no campo de
pesquisa como no universo acadêmico do qual faz parte enquanto aluna do curso de
graduação em Ciências Sociais na UFPR, dentro do qual realiza essa pesquisa. Na
universidade, não como uma paciente de fato, obviamente, mas como pesquisadora que
carrega no corpo, na alma e no pensamento, se não as próprias marcas que acabam por
permitir o desencadeamento de uma experiencia humana de enlouquecimento; com
certeza, as emoções, os sentimentos, o estranhamento e o fascínio que o contato com a
loucura provoca. No campo de pesquisa, idem. Não apareço exatamente como uma
paciente nele. Mas sem dúvida, sinto, me posiciono e experimento ora a condição de
paciente que precisa de cuidados e, portanto, me misturo aos demais de igual para igual
e participo das oficinas terapêuticas junto a eles; e, ora, como pesquisadora, ciente da
distância que preciso tomar daquilo que busco observar e compreender.
Impossível, nesse caso, crê-se aqui, escrever um texto acadêmico nos moldes de
uma ciência cartesiana, positivista, que prega a neutralidade cientifica e a objetividade do
conhecimento cientifico como máximas a serem seguidas. Prefiro, antes, seguir com
Weber (1987) e assumir como uma ilusão, a possibilidade de uma ciência social livre de
juízos de valores – sem com isso, contudo, fazer resultar uma pesquisa cientifica em tão

também é produto. É a própria pesquisa que desse método resulta. Nela, o pesquisador, completamente
imbricado nos fenômenos que estuda, busca se posicionar e interagir frente aos sujeitos de “sua”
pesquisa por meio de relações de poder horizontalizadas, buscando com isso responder à uma
necessidade política (dando visibilidade ao grupo estudado, tanto mais quanto minoritário e subalterno for
esse grupo) e social (produzindo saberes plurais a partir de diferentes visões de mundo). Busca-se, desse
modo, com uma autoetnografia, conectar o autobiográfico e o pessoal ao cultural, social e político. Ou
seja, a autoetnografia implica uma introspecção autoconsciente, por parte do pesquisador, guiada por um
desejo de entender melhor tanto a si próprio como aos outros através do exame de suas próprias ações e
percepções em referência e no diálogo com os outros. (SPARKES, 2000; VERSIANI, 2002 e 2005; SANTOS,
2017; SANTOS E BIANCALANA, 2017; ONO 2017; REIS, 2018; SANTOS, 2017; ROCHA, ARAUJO e
BOSSLE, 2018 e MAGALHAES, 2018)
22
Instituto Municipal Nise da Silveira (1. Espaço Travessia – Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde);
Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (2. Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea - Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura); Instituto Municipal Philippe
Pinel (3. Coletivo Carnavalesco “Tá Pirando, Pirado, Pirou!”), Instituto de Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – IPUB/UFRJ (4. Grupo Musical “Cancioneiros do IPUB”) e Universidade
Popular de Arte e Ciência (5. Teatro DyoNises, antigo Hotel da Loucura que nasceu no Nise em
09/07/2012 e teve suas atividades interrompidas em 2016 ). O Teatro de DyoNises, mesmo acontecendo
fora do Nise da Silveira continua integrando o rol dos espaços analisados nessa pesquisa. Informações:
<http://www.upac.com.br/#/home>. Acesso em: 29/06/2019.
38

somente considerações subjetivas e/ou interessada na justificação de posições ideológico


e políticas minhas. Nesse sentido, essa pesquisa autoetnografica23 - porque reconhece e
acolhe a subjetividade, a emocionalidade e a influência da pesquisadora - é uma obra
coletiva que põe em diálogo, a cada encontro com os participantes dela, subjetividades,
identidades, singularidades, representações, contradições e concepções de mundo para
falar da loucura e da sua relação com a arte e com a cultura. Deste modo, objetividade e
subjetividade se fazem presentes na construção teórico-empírico e escrita da presente
pesquisa e podem ser observadas dialeticamente num continuum que vai do
estranhamento ao familiar e todo perpassado pelo modo como se coloca, ora a
pesquisadora, ora a paciente, na escrita desse trabalho. Além disso, saber (periférico) e
poder (subalterno) se entrecruzam aqui, assim como, os enfrentamentos e as denúncias
que daí advém.
A “objetividade” do conhecimento no campo das ciências sociais depende
antes do fato de o empiricamente dado estar constantemente orientado por
ideias de valor que são as únicas a conferir-lhe valor de conhecimento, e ainda
que a significação desta objetividade apenas se compreenda a partir de tais
ideias de valor, não se trata de converter isso em pedestal de uma prova
empiricamente impossível da sua validade. E a crença - que todos nós
alimentamos sob uma forma ou outra – na validade supra-empirica de ideias
de valor últimas e supremas, em que fundamentamos o sentido da nossa
existência, não exclui, antes pelo contrário inclui, a variabilidade incessante
dos pontos de vistas concretos a partir dos quais a realidade empírica adquire
significado. (WEBER, 2003, p.126, grifos do autor)

No tocante a práxis acadêmica e político-ideológica da autora, o conceito


gramsciniano de intelectual orgânico é aqui valorizado e defendido. Desde aí, não
escrevo sobre o outro, ou pelo outro, e sim, numa perspectiva dialógica e polifônica, com
o outro - a partir de um convívio com o outro – no caso, com o portador de estigma, com
o rotulado, com o diagnosticado, e por vezes, também, resignado e dopado pela psiquiatria
tradicional. Mas também e a despeito disso tudo, com o que tenta ou já conseguiu de
maneira criativa (re)inventar-se a si próprio.
Além disso, essa pesquisa se apresenta também como uma possibilidade
acadêmica, social e política a mais de dar visibilidade e voz a um grupo socialmente
delimitado e historicamente silenciado, marginalizado, segregado, estereotipado e
estigmatizado (o dos loucos) e desse modo contribuir para que transformações no
imaginário social sobre a loucura possam ser ampliadas em direção contrária ao

23
Sobre o lugar da Autoetnografia nos debates das Ciências Sociais ver o artigo publicado por Silvio
Matheus Alves Santos: “O método da Autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e
desafios”, publicado em 2017, na Plural – Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP.
39

estranhamento e repulsa tão peculiares que ela costuma causar sobretudo aos desavisados.
A esse respeito coloco uma questão: Como pode uma pesquisa acadêmica pretender
contribuir com o processo de transformação do imaginário social se ela circula e quando
muito apenas entre seus pares e dentro de uma lógica que, por sinal, consta bem explicada
no Homo academicus de Pierre Bourdieu?
Se me aproximo da Psicanálise, da Psicologia Analítica, da Filosofia e da Arte a
partir das minhas experiências pessoais e terapêuticas e das leituras que delas faço, é para
fazer caber aqui, além, das Ciências Sociais, outras áreas do conhecimento
imprescindíveis à compreensão da relação entre Arte e (Lou)cura que busco alcançar.
Nesse sentido a transdiciplinariedade é valorizada na presente pesquisa e justifica o
diálogo com os seguintes autores: Canguilhem (1995), Axel Honneth (2003), Thomas
Szasz (1974), Foucault, Goffman (2015), Jung (2015, 2015a, 2019), Nise da Silveira
(1987, 2001, 2015) Artaud (s/d), Lygia Clark.
Visibilidade igualmente busco com essa pesquisa dar à arte e à cultura enquanto
instrumentos de desconstrução social da loucura. Mas também em termos mais
subjetivos, como parte de processos terapêuticos com potencial de diminuir o sofrimento
psíquico via equilíbrio de forças internas e possibilidade de socialização, de criação de
sentimento de pertença e de troca de afeto. Isso porque sabe-se que o processo de
enlouquecimento é também um produto histórico, social, político e cultural - do
abandono/exclusão familiar e social, da pobreza, dos vários tipos de desigualdades24; do
sentimento introjetado de injustiça sofrida, do desamor, do não pertencimento ao meio
social, do desajuste às normas sociais, da incapacidade de ser normativo. De uma baixa
ou nenhuma capacidade de suportar às frustrações advindas dos “problemas na vida”,
ainda mais quando insiste no indivíduo um certo “sentimento de vida contrariada”, para
usar expressões de Thomas Szasz25 e Georges Canguilhem, respectivamente. Um
processo de enlouquecimento em maior grau advindo de problemas sentidos como
insustentáveis num dado momento e lugar a cada sujeito singular, como sustenta a
psiquiatria dinâmica, do que produto de um distúrbio químico, físico, orgânico, genético

24
Sobre o impacto da desigualdade e da austeridade na saúde mental ver:
<https://www.rtp.pt/noticias/mundo/relatorio-da-onu-desigualdade-e-austeridade-fomentam-doencas-
mentais_n1155907>. Acesso em 29/06/2019.
25
A subjetividade humana não pode ser esquecida em decorrência dos nossos medos. Nas palavras de
Thomas Szasz: “Não tenciono propor uma nova concepção da “doença psiquiátrica” nem uma nova forma
de “terapia”. A minha intenção é […] a de sugerir que os fenômenos atualmente chamados de doenças
mentais sejam revistos de uma maneira mais simples, que eles sejam removidos da categoria das
doenças, e que sejam considerados como as expressões da luta do homem contra o problema de como
ele deveria viver” (Szasz, 1960).
40

propriamente dito, como prega a psiquiatria tradicional26, atualmente hegemônica no


Brasil capitalista e defensor da indústria farmacêutica. Dois campos discursivos27.
Impossível não reiterar, portanto, que essa pesquisa pretende apelar às autoridades
públicas de saúde mental brasileiras, por meio da ciência e mais particularmente, da
Sociologia – uma “ciência que tem como meta a compreensão interpretativa da ação
social (produtora da estrutura social) de maneira a obter uma explicação de suas causas,
de seu curso e dos seus efeitos” (WEBER, p. 9, 1987)28 -, por um olhar cada vez mais
humanizado e, portanto, de não retrocessos29 no que tange aos avanços já alcançados no
Brasil pelo Movimento da Luta Nacional Antimanicomial no contexto da Reforma
Psiquiátrica brasileira, cujo compromisso, no Brasil, desde o final da década de 1970, é
dizer “Não ao Manicômio”, enquanto forma de encarceramento da loucura, e lutar por
outras percepções, ações e discursos relativos à experiência humana do enlouquecimento
que superem a concepção de que uma pessoa é louca, ou doente mental, porque e quando
tão somente desviante das normas de condutas estabelecidas moral e socialmente em cada
momento histórico pelos “donos do poder”.
Me movo e luto aqui, a partir do que penso, faço e sinto (cada vez mais perplexa!),
ainda que como produto dos limites que a minha condição de existência periférica me
impõe, buscando cuidadosamente ajustar palavra e gesto. “Ajuste o gesto à palavra.
Ajuste a palavra ao gesto!”, clama, inspirado no Príncipe Hamlet, de Shakespeare, o
médico-ator Vitor Pordeus, em cada ritual do Teatro DyoNises, organizado e dirigido por
ele nos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro. Sobre isso, um esclarecimento: não
sou uma mulher negra (embora minha filha o seja), tampouco LGBT, num pais racista e
homofóbico como o Brasil. Isso por si só, e de forma comparada, torna a minha existência
mais leve. Também não sou já uma mulher com baixa escolaridade, pertencente às

26
Capra (1997, p. 123) escreve que “em vez de tentarem compreender as dimensões psicológicas da doença
mental, os psiquiatras concentraram seus esforços na descoberta de causas orgânicas [...]”.
27
Ver (COSTA JUNIOR e MEDEIROS, 2005) Alguns conceitos de Loucura entre a Psiquiatria e a Saúde
Mental: Diálogos entre os opostos? De um lado, é possível destacar os trabalhos de Vitor Pordeus (Rio de
Janeiro) e Vera Dantas (Ceará). <http://www.somosvos.com.br/a-medicina-do-cuidar-e-ser-
cuidado/?fbclid=IwAR3K6FU1pNDKmZLoIZCIKeecukef1UJUVHMBepfEJzXVrkRLmDN9K9UCXW
s>. Acesso em 21/08/2019. Por outro lado .....
28
Para Weber (1987), a sociologia é uma ciência que procura compreender a ação social do indivíduo
- a compreensão e a percepção do sentido que o ator atribui à sua conduta.
29
Como os que podem ser vistos na Nova Nota Técnica n. 11/2019 do Ministério da Saúde que esclarece
as mudanças implementadas entre 2017 e 2018 na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da
Política Nacional sobre Drogas. Disponível em: <http://pbpd.org.br/wp-
content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf>. Acesso em 25/05/2020. E também, nas Diretrizes para um
Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil - Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP
Gestão 2020-2022. Disponível em: < https://www.abp.org.br/diretrizes>. Acesso em 05/12/2020.
41

camadas mais pobres do meu país e sem qualquer tipo de capital cultural. Mas os meus
antepassados o foram e, desde aí, carrego comigo as feridas e mazelas dessa condição
herdada. Inclusive as neuroses adquiridas no esforço de superação competitiva, desigual
e injusta dessa minha condição. Neuroses, essas, que agora sigo buscando tomar
conhecimento e me curar delas. É desse lugar social, político, material e emocional que
eu escrevo numa linguagem científico-poética30 e de forma coletiva, compartilhada, esse
trabalho. Ou seja, minhas inquietações existenciais, acadêmicas, políticas, sociais,
econômicas, ético-morais, filosóficas e espirituais, assim como as dos participantes da
presente pesquisa se entrecruzam e fazem parte da presente pesquisa. Deixar claro a
ocorrência dessa situação é uma questão de honestidade Intelectual. Imprescindível, pois
situa o leitor desde mesmo pressupostos outros, além do teórico-metodológico, assumidos
e defendidos aqui pela pesquisadora.
Feito esse capitulo que contextualiza o processo de concepção e construção dessa
pesquisa levando em conta os limites, alcances, impasses, percalços e pressupostos
pessoais, de campo de pesquisa, teórico e metodológico, busco em seguida apresentar e
discutir a convivência que pude experimentar em campo, e mesmo fora dele, junto aos
participantes dessa pesquisa, em diálogo com a obra dos autores e com muitas pessoas
que aqui se fazem presentes.
Apresento e analiso por meio dos contínuos competição-cooperação, vertical-
horizontal, rupturas-permanência, as relações/vínculos de afeto, de cura e também, as de
poder e controle (afinal, o lugar de fala do sujeito discursivo define o que ele diz e o que
ele não diz) e de discurso (num sentido foucautino... em Djanina Ribeiro – discurso como
um sistema que estrutura determinado imaginário social, sobretudo no que diz respeito a
poder e controle) presentes nos cinco espaços terapêuticos já mencionados, sem tampouco
compará-los. Interessa aqui, antes, analisar o potencial da arte e da cultura como forma
individual, coletiva e afetuosa de desconstrução da loucura e fabricação do artista e mais
especificamente, o movimento que faz surgir dentro da loucura uma nova identidade, a
do artista, do que avaliar e mensurar a capacidade individual de alcance desse propósito
em cada um desses espaços. Ou seja, o que ocorre nesses espaços terapêuticos de cuidado,
culturais, sociais e existenciais - a construção e manutenção de redes afetivas e simbólicas
- são tomados nesta pesquisa como um conjunto de atividades de comum propósito, ainda
que diversas, localizadas e mesmo dirigidas por instituições públicas diferentes.

30
Opto por esse tipo de linguagem porque ciência e poesia, são ambas, maneiras possíveis de se
compreender o universo ao nosso redor.
42

Importante dizer que eu parto do pressuposto de que a arte e a cultura possuem sim esse
potencial de cura/desconstrução da loucura31, logo, compreender o movimento que vai
dessa desconstrução à fabricação do artista32 é o que importa nessa pesquisa. E é sobre
esse movimento que surge a hipótese de pesquisa que se pretende verificar aqui.
Por fim - e agora que aprendi mais uma vez com Antonin Artaud que “a vida é
um consumir-se em perguntas”, inevitavelmente me resigno quanto a existência delas e
me sinto apaziguada mesmo se, aqui, mais perguntas que respostas forem colocadas -
espero em alguma medida que os resultados dessa pesquisa possam não só fazer avançar
a ciência, como também servir como instrumento de resistência e luta por políticas
públicas de Estado para a saúde mental capazes de valorizar e fomentar o papel da arte e
da cultura na diminuição do sofrimento psíquico. Busco assim contribuir com a
possibilidade de substituição dos estorvos o(su)bjetivos e simbólicos inerentes ao
imaginário social da loucura pela liberdade, dignidade, respeito e reconhecimento
coletivo de quaisquer formas de se existir no mundo – ainda que de forma radicalmente
singular possam se apresentar mutuamente a cada um de nós
Importante salientar aqui as seguintes palavras da Nise da Silveira:

“Eu tinha bons amigos, mas de uma maneira geral a terapêutica ocupacional
não goza de bom conceito na nossa cultura. Por exemplo, com a pintura:
começavam aquelas lendas de que eu queria fazer artistas. Sempre evitei a
palavra arte, nunca usei nem arte-terapia; eu uso a expressão dar forma às
emoções, às imagens do inconsciente. A palavra arte já implica numa
valorização, embora eu ficasse muito contente quando chegavam pintores e
críticos de arte que achavam que muitos trabalhos eram de excelente
qualidade. (...) eu guardo com o mesmo cuidado uma pintura ou um
rabisco”. (Silveira, 2009, p. 53).

Com isso é preciso informar que embora eu utilize a expressão “fabricação do


artista” e também faça uso da palavra arte, o que importa aqui é saber, não o quanto

31
Tal pressuposto se baseia nos resultados de pesquisas acadêmicas recentemente defendidas sobre a
relação arte e loucura. GONÇALVES (2010), FRANCO (2011), CAVALCANTI (2013), CRUZ JUNIOR
(2015), FERRARI (2015), VAZ (2017), GONÇALVES (2017), PRADO (2017), VIANA (2018), SODRE
(2018), MAGALDI (2018), CRUZ (2018), CAMPOS (2018), PORDEUS (2018), VIDAL (2019)
32
Sade, Van Gogh, Artaud, Nietzsche, Arthur Bispo do Rosário, os pacientes históricos do Nise da Silveira,
dentre tantos... Pelbart (1993, p.97) assim conceitua a diferenciação entre o pensamento do Fora e a
loucura: “seria possível pensar a loucura como exposição total e sem mediação da zona de subjetivação ao
Fora. Para Deleuze, a característica maior desse Fora é a de consistir no Jogo de Forças, do Acaso e do
Indeterminado, ao qual temos acesso sempre historicamente, isto é, segundo estratificações de Saber,
diagramas de Poder e modalidades de subjetivação determinadas. Na loucura, o sujeito ficaria exposto
sem proteção alguma à violência desse Fora, e sem condições de estabelecer com ele um vaivém ou
uma relação. Abertura máxima ao Fora, e ao mesmo tempo extravio no temporal abstrato, que é sua
marca.” (que produz a sua obra por meio da realização de uma passagem para o lado exterior da
racionalização, da desrazão, de uma maneira diferente daquela produzida por meio daquilo que Foucault
nomeou de o “Pensamento do Fora)
43

estão ou não legitimadas pelo campo artístico acadêmico-formal as


produções/manifestações artísticas realizadas dentro do contexto da saúde mental e sim,
o valor e o significado que os pacientes-artistas dão às suas próprias
produções/manifestações/expressões artísticas e, a partir delas, às suas próprias vidas.
Mais ainda, e em termos weberianos, o sentido que dão/buscam dar, os pacientes-
artistas, às suas produções/manifestações artísticas realizadas sob a mediação de
instituições psiquiátricas e/ou de cuidado e atenção à saúde mental. Não importa aqui
analisar nem tampouco avaliar a qualidade estética da obra de arte produzida pelos
pacientes-artistas e, sim, o sentimento, as emoções, os afetos que a condição de artista
provoca e traz consigo... Como afirma Nise da Silveira (2015), “não importa se a
produção é um rabisco ou uma pintura”. Ou, como pude observar na antiga Colônia
Juliano Moreira, se a boneca obayomi foi ou não produzida totalmente por um dos
pacientes durante uma oficina manual de confecção dessas bonecas e sim, que esse
paciente ao olhar para a sua boneca, já pronta, e com olhos de admiração, chamou a si
próprio de artista. No limite, interessa aqui saber os caminhos que levam alguns dos
pacientes à essa condição subjetiva de artista e, como desdobramento disso, o que os
fazem sentir-se autorizados enquanto tais. O que constrói, afirma, ressignifica e expressa
novas identidades num processo dinâmico e contínuo de produção de sentidos - de
novas subjetividades?
Finalmente, uma apresentação mais pormenorizada dos capítulos seguintes dessa
pesquisa. No Capítulo 2, faço considerações institucionais, políticas e de contexto sobre
a Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica a partir dos principais marcos históricos
e legais do Movimento da Luta Antimanicomial Brasileira, inspirados pelo italiano
Franco Basaglia e, concomitantes à luta pela redemocratização do Brasil, passando pela
Lei da Reforma Psiquiátrica, assinada em 2001- fruto dessa luta e propiciadora de um
novo e mais humanizado modo brasileiro de se pensar, (com)viver e cuidar da loucura,
até o presente ano – cujos percalços e desafios políticos, sociais e econômicos ainda
necessitam ser enfrentados, resistidos e superados, à exemplo da atual (janeiro de 2021)
proposta de revogação das 99 Portarias Ministeriais liderada pela Associação Brasileira
de Psiquiatria (ABP) e em articulação com o (des)governo federal.
No Capítulo 3, apresento o campo de pesquisa e o percurso de construção,
realização e análise das entrevistas, os artistas e os coordenadores dos serviços/campo
de pesquisa desse estudo, assim como os roteiros de questões e o modo como foram
analisadas as respostas oferecidas.
44

Finalmente, no Capítulo 4, Vozes e Ars dos Artistas Antimanicomiais (RJ,


2019-2021), descrevo e analiso a partir dos dados construídos durante a realização das
entrevistas em profundidade com os participantes dessa pesquisa (pacientes-artistas, e
coordenadores dos serviços/campo de pesquisa), o transitar pelos caminhos da arte como
um percurso terapêutico e de construção e representação simbólica, artística, social,
cultural e política de si, mas também de cidadania, enquanto um direito humano, social e
democrático pelo qual ainda se faz necessário lutar no Brasil – a despeito do avanço que
representa desde 1988 a nossa cidadã Constituição Federal, mas também justo e devido
ao modo como têm funcionado as nossas instituições democráticas. Trânsito esse, como
forma de desconstrução (social e subjetiva) da loucura e fabricação do artista – objeto e
objetivo último dessa pesquisa. Para tanto, esse capitulo está subdividido em cinco
seções, trechos de falas e produções artísticas dos 21 artistas, participantes dessa pesquisa,
em dialogo especialmente com Georges Canguilhem (1995), Axel Honneth (2003) e Nise
da Silveira (1987, 2001, 2015) como pode insurgir da loucura o artista.
Nas Considerações Finais, à guisa de conclusão, reflito alguns pontos percebidos
como os mais importantes e capazes de tornar compreendido literalmente o sentido e o
título dessa pesquisa: Arte e (Lou)cura: O transitar pelos caminhos da arte como forma
de desconstrução da loucura e fabricação do artista.

***
Em tempo: eu já havia dado por concluída a escrita desse capitulo 1, até que a
saudade e a emoção que eu senti quando vi no final da manhã de 29 de set. de 2020,
postado na página do facebook do Instituto Municipal Nise da Silveira, imagens da
“Galeria de Arte à Céu Aberto”, me fizeram justo aqui retornar mais uma vez. Incluo,
aqui, uma das imagens dessa Galeria, também, devido às folhas da amendoeira (a única
memória física/natural original e bonita que vai restar do hospício Pedro II?), e em
seguida uma reflexão pessoal minha, porque dela, surgiram questões que serão
apresentadas mais adiante nessa pesquisa.
45

Fotografia: Instituto Municipal Nise da Silveira

Eu só sei que sinto muita saudade desse lugar


Que um dia estive antes de estar.

As cores me lançam a urgência de aí retornar


para ver o cinza que tanto me faz plasmar, antes que ele deixe de restar...
à mim, que tanto vivo a voar.

Ficará eu, somente eu, no preto e branco, sozinha a flutuar?


Até que, então, puderem as cores, me chamar para um outro lugar. 33

33
“GALERIA DE ARTE À CÉU ABERTO. Há alguns anos, a Direção do Instituto Municipal Nise da
Silveira investe na criação de uma Galeria de Arte à Céu Aberto na instituição. Alamedas, muros e fachadas
de antigos pavilhões de internação psiquiátrica ganham novos contornos e sentidos com os murais de
grafite. O objetivo dessa aposta é superar barreiras de exclusão enraizados em espaços que tiveram sua
existência marcadas pelo isolamento e pelo estigma social sobre a loucura. Se antes as pessoas entravam e
saíam transitando somente de passagem no conhecido e, por vezes, temido hospício de Pedro II, hoje é
comum visitarem o Instituto para fotografar os painéis artísticos, acompanharem as pinturas e divulgarem
os trabalhos. Uma simples experiência de circulação é atravessada por cores, muitas cores, desenhos,
pinturas e painéis produzidos por diferentes artistas que, ao doarem seus trabalhos, imprimiram suas marcas
colaborando para a construção de outro olhar para uma instituição que vem em processo de desconstrução
de seu aparato asilar. É importante notar que antes de estampar o espaço aberto, os grafites já ocupavam
o interior das enfermarias em processo de desativação. A onda de cores se ampliou posteriormente para
toda a unidade, configurando-se como uma Galeria de Arte à Céu Aberto. A arquitetura cinza e
monótona, passou a ser revestida por uma estética humanizada. Com cores leves e descontraídas, os
conhecidos muros que antes dividiam tanto simbolicamente quanto concretamente loucura e sociedade, são
hoje revestidos por uma arte convidativa e interativa capaz de produzir novas conexões. Os painéis traçam
outra experiência perceptiva no encontro com esse lugar que progressivamente deixa de ser uma
instituição psiquiátrica e se transforma em um endereço cultural da cidade, um polo de promoção de
saúde, memória, arte e cultura na zona norte do Rio de Janeiro. É possível acessar virtualmente todas
as obras através da nossa Galeria no Instagram: https://instagram.com/galeria_de_arte_em_grafite....”.
Disponível em: <https://www.facebook.com/imnisedasilveira>. Acesso: 29 set. 2020.
46

A Mesa I: “Do hospício ao território de memórias: o futuro da Colônia Juliano


Moreira”34, que abriu na manhã do 27 de maio de 2021 o II Seminário de
Desinstitucionalização do IMASJM: Uma Travessia Para o Amanhã, me trouxe mais
uma vez aqui, basicamente oito meses depois da escrita do parágrafo anterior.
Quando em set. 2020 me perguntei com um certo sentimento de pesar e de
inquietude sobre o que vai restar preservado da memória do Hospício Pedro II, não estava
exatamente claro para mim, o porquê dessa minha pergunta. Da dor, da violência e do
abandono sentidos dentro do hospício - da vida roubada que tiveram milhares de seres
humanos, loucos de toda ordem: prostitutas, bêbados, pobres, negros, sequestrados em
nome da ciência para dentro do Hospício, sem garantia alguma de sair da “cidade
hospitalar”, lobotomizados, entregues para morrer, nas palavras de Raquel Fernandes,
diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea - de fato, nada deve restar
existindo. Mas, além dos testemunhos históricos registrados de maneiras variadas de todo
esse horror, o que deixar restar vivo do Hospício, para que diante dele, forças
humanizadas impeçam-no de retornar?
Uma prova de que essa pesquisa se constrói dentro de um movimento vivo e
dinâmico, portanto, não linear, é o retorno que faço aqui mais uma vez a esse capítulo,
iniciado em 2019, dessa vez, muito perto do prazo de encerramento de realização desse
trabalho. Todo o campo dessa pesquisa, ainda que enfrentando todos nós uma pandemia,
se manteve em atividade online/remota, cada qual numa velocidade e volume próprios.
Muitas foram as realizadas nas quais eu pude estar presente. Em 08 de novembro de 2021,
no último encontro do Ciclo de Debates “Endereços na cidade: é o fim do manicômio,
promovido pelo Instituto Municipal Nise da Silveira, será discutido “O encerramento da
longa permanência no Engenho de Dentro”. Me trouxe aqui, um dia antes do
acontecimento desse evento, o fato de que sem compreender nem tampouco me dar conta
da profundidade que hoje consigo um pouco melhor – e é também isso que eu desejo com
esse trabalho de pesquisa, especialmente, às pessoas fora do universo consciente da
loucura, que porventura se interessarem pela leitura desse trabalho – pude ver/conhecer
nesse Instituto Nise da Silveira, ainda no ano de 2019, algumas pessoas que aos poucos
fui descobrindo que viviam ali. Uma delas, no entanto, absolutamente sem qualquer
capacidade de compreensão da minha parte, eu a vi, várias vezes, completamente nua, no
quintal daquilo que poderia ser uma casa qualquer, se não estivesse localizada dentro de

34
Esse II Seminário está disponível em: <https://youtu.be/ekjK2BXBZKA>. Acessado em 27/05/2021
47

um hospício. Tinha muros baixo, varanda, porta, portão e árvores. E tinham pessoas
também. Certa vez, fugiu (?) e eu pude assistir uma funcionária chama-lo enquanto ele
corria com o seu corpo nu, de homem negro, alto e forte – tão nua como devia ser toda a
sua vida (?) – por um dos caminhos que eu busquei transitar e que chamei de caminhos
da arte. Penso agora enquanto escrevo essas linhas o quanto esse caminho foi e será na
memória de milhares que o transitou outra coisa bem diferente e triste da beleza que a
arte pode nos permitir sentir. Mas também, que hoje no Instituto Nise da Silveira, sem
mais nenhuma pessoa internada, já estão sendo dados os primeiros passos no chão e na
construção de um parque: o Parque Urbano Nise da Silveira!

Fotografia: Marcelo Valle, Instituto Nise da Silveira, 2021


Derrubada do muro do Hospício de Engenho de Dentro. Esse já caiu por inteiro.
Que caia o hospício! A começar pelo que está dentro de cada um de nós.
48

CAPÍTULO II
DA LUTA ANTIMANICOMIAL E DA REFORMA PSIQUIÁTRICA

[...] Estou vivendo


No mundo do hospital
Tomando remédios
De psiquiatria mental

Haldol, Diazepam
Rohypnol, Pro-me-ta-zi-na

Meu médico não sabe


como me tornar
um cara normal.
...
Sufoco da Vida35►
Hamilton de Jesus Assunção

Portanto, existe medicina, em primeiro lugar, porque os homens se sentem


doentes. É apenas em segundo lugar que os homens, pelo fato de existir uma
medicina, sabem em que consiste sua doença. [...]. É sempre a relação com
o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação
de patológico. (Canguilhem, 1995, p. 189)

No Brasil, a Lei Federal 10.2016/2001 da Reforma Psiquiátrica acaba de


completar 20 anos (em 06 abril de 2021).
Fruto de uma militância social e política aliada à luta pela redemocratização do
Brasil desde a década de 70 e inspirada na reforma psiquiátrica italiana de Franco
Basaglia (1924-1980), precursor da “Psiquiatria Democrática”, essa lei que “dispõe sobre
a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental”, foi aprovada após 12 anos de tramite no Congresso
Nacional, desde a apresentação do Projeto de Lei 3657/1989 de autoria do sociólogo, à
época, deputado federal pelo PT/MG, Paulo Delgado. Foi essa Lei que revogou a

35
A música Sufoco da Vida, de Hamilton Assunção, integrante do grupo musical Harmonia Enlouquece,
vinculado ao Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro (CPRJ), pode ser acessada no Show de Estrelas. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=kWEQT2T4Hw4&feature=youtu.be>. Acessado em 24 jan.
2021. Consta no DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MUSICA POPULAR BRASILEIRA que o grupo
Harmonia Enlouquece estreou em 2001 no "Dia Mundial da Saúde", no evento "Cuidar, sim, excluir, não",
na Lagoa, Zona Sul do Rio de Janeiro. Contudo, teve essa música "Sufoco da vida" censurada pela
organização do evento [...] porque o evento era patrocinado pelos laboratórios [farmacêuticos] [...]”.
Disponível em: <https://dicionariompb.com.br/harmonia-enlouquece/dados-artisticos>. Acesso em
26/04/2021. Hamilton Assunção também é integrante do Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado
Pirou!
49

legislação de 1934, até então, em vigor. E foi Basaglia em 1979 quem declarou ter
visitado um “campo de concentração nazista”, ao se referir ao Hospital Colônia, criado
em 1903, em Barbacena, Minas Gerais. Em 1980, esse hospital, “depósito de indesejáveis
sociais”, teve o seu funcionamento interrompido e 60 mil mortes de pessoas consideradas
loucas contabilizadas dentro dos seus muros, desde a sua fundação (ARBEX, 2013,
Prefacio)36,
Na Itália, Basaglia, com a Psiquiatria Democrática. Na Inglaterra, a
Antipsiquiatria, com David Cooper e Ronald Laing. Nessa mesma esteira e época:
Thomas Szasz, Georges Canguilhem, Goffman e Foucault. Um pouco mais tarde,
Deleuze e Guatarri, com o Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, de 1972.
Inspirações, essas, vindas da Psicanálise, da Fenomenologia existencialista e dos ideários
de esquerda, notadamente, do marxismo – e conhecidas como a nova psiquiatria
(MAGALDI, 2020; ROUDINESCO, 1998; OLIVEIRA, 2011).
E também no Brasil, os psiquiatras clássicos, pioneiros e revolucionários. Todos
nordestinos:
- Juliano Moreira (1872-1933), o primeiro psiquiatra negro do Brasil,
considerado o pai da psiquiatria brasileira e grande divulgador das ideias de Freud, lutou
contra teses racistas que relacionavam a miscigenação a doenças mentais e assumiu entre
1903 e 193037, a direção do Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, que hoje
se chama Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM) e abriga
o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac). O ano de 1903, por isso, é
considerado o marco inicial da Psiquiatria cientifica brasileira.
- Ulysses Pernambucano (1892-1943), precursor da noção de determinação
sócio-economica da saúde mental, trabalhou no Hospital Nacional e no Hospital
Tamarineira, em Niterói/RJ. Seus estudos sobre a arte dos alienados “inspirou a primeira
tese sobre o tema no Brasil, de autoria do psiquiatra Silvio Moura, na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro” (Magaldi, 2020, p.202; apud Andriolo, 2006)
- Osório Cesar (1895-1979), pioneiro na introdução e reconhecimento do papel
da arte na lida com a loucura, publicou em 192938 o estudo intitulado “A expressão

36
A partir do livro Holocausto Brasileiro publicado pela jornalista Daniela Arbex, foi produzido um
documentário com o mesmo nome do livro e está disponível em: <Holocausto Brasileiro, Documentario. -
YouTube>. Acessado em 08/05/2021
37
Ver Carvalhal LA. Loucura e Sociedade: o pensamento de Juliano Moreira (1903-1930) [monografia
de bacharelado em História]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1997.
38
Um pouco antes, em 1922, o historiador de arte e psiquiatra alemão Hans Prinzhorn publicou o livro
Bildnerei der Geisteskranken. Em português: Expressões da Loucura. Para escrever esse livro, Osório Cesar
50

Artística nos Alienados”, realizado a partir das produções artísticas dos pacientes do
Complexo Hospitalar do Juquery, que acabou de zerar (em abril/21) a quantidade de
internações de longa duração mantidas por quase 125 anos, desde a sua inauguração em
1898, e abriga o Museu de Arte Osório Cesar (MAOC), fundado em 1985 e reinaugurado
em 2020, após ter ficado fechado por 16 anos. Curioso notar que o nome Juquery, de
origem indígena, é dado à planta Yu-Keri, popularmente chamada de “dormideira” - justo
porque, ao ser tocada, se recolhe. Tal como o ser humano quando tocado pela loucura?
E, quando dentro do hospício, também, pelo temido “sossega leão”, que faz dormir, que
garante a dormideira geral39 dos já, em duplo sentido, recolhidos? O que se pode
considerar mais curioso: essa relação da planta com o nome de um hospício que recolhe
para dentro dos seus muros os já “tocados’ ou a informação oferecida pelo MAOC40, de
que, de fato, o nome do Hospital foi escolhido em referência à planta dormideira, porém,
porque presente no Parque Estadual do Juquery? O que é mais curioso: haver dormideira
justo onde foi construído o hospital ou o hospital receber justamente um nome indígena
usado para nomear a dormideira?

se inspirou em Prinzhorn, “que organizou a coleção de obras de pacientes psiquiátricos mais importante da
Europa”: Coleção Prinzhorn (CRUZ JUNIOR, 2015).
39
A dormideira advinda do “sossega leão” foi mencionada em 13/04/21 pelo Adilson Tiamo, um dos
artistas participantes dessa pesquisa, no grupo do WhatsApp da Equipe Tá Pirando do qual faço parte desde
novembro de 2019, em resposta ao meu pedido de reflexão coletiva sobre o porquê do Hospício Juquery
ter o mesmo nome dado a uma planta chamada dormideira. Eu mesma não havia feito essa associação. Ele
sim, e de imediato – pelo fato de já ter vivido, ele, “a dormideira” geral e eu não? Aliás, vivido ou
suportado? Um “sossega leão” para garantir a “dormideira geral”, para “acalmar’, dopar os pacientes e,
portanto (ou principalmente?), o sossego noturno nas enfermarias de manicômios/hospitais psiquiátricos –
no lugar de um acolhimento capaz de apaziguar a dor até o barulho se aquietar desde dentro? Adilson
Tiamo, em 14 dez. 2020, quando ingressou no grupo do whatszap da Frente Estamira assim se
apresentou ao grupo: “Sou Adilson Tiamo, sou do caps Manuel de Barros. Sou Conselheiro do Museu
Bispo do Rosário. Cantor e compositor dos blocos de carnaval Loucura Suburbana. Tá Pirando. Pirou.
Zona Mental e Império Colonial e vocalista da banda 762 do Polo de Arte e Cultura da Colônia: Juliano
Moreira”.
40
Frente a isso, busquei junto ao MAOC, saber o porquê do nome Juquery dado ao Hospital, justamente,
porque ele está localizado em Franco da Rocha, mas o atual município, vizinho, Mairiporã, era antes,
chamado de Juqueri. Quis saber se o nome do Hospital foi escolhido em função do nome do município
ou da planta. Para a minha surpresa, fui informada de que, sim, o nome do hospital foi escolhido em
referência à planta dormideira, porém, devido à presença dela no Parque Estadual do Juquery. Duplamente
surpresa fiquei, quando fui informada de que o município Juqueri ainda não existia quando o Hospital foi
construído e, mais: que teve o nome alterado, no caso, para Mairiporã, em função de um pedido da
população que se considerou incomodada por morar num município, cujo nome remete à um hospício. Ou
seja, morar em um município cujo nome remete ao um hospício, traz consequências tão indesejáveis à
população, porque carregadas de estigma, capazes de justificar a validade do pedido de alteração do nome
de um município. Por fim, quando perguntei se já haviam associado a planta dormideira à loucura, a
resposta foi negativa e eu recebi um convite para escrever uma poesia tratando dessa relação e encaminhá-
la para o Museu. Quem sabe um dia! (conversa realizada por mensagem privada na página do Facebook do
MAOC, no dia 13/04/21, com o Técnico em Museologia do MAOC)
51

Por fim, Nise da Silveira (1905-1999): uma “psiquiatra rebelde”, discípula de


Jung e de Spinoza41, que mostrou pro mundo que o que cura a dor, o sofrimento psíquico,
é a alegria, é o afeto, é a liberdade, é a falta de preconceito42. E foi com a arte, uma
delicada ferramenta, no lugar das violentas sessões de eletrochoque que se negou a aplicar
dentro do Hospício de Engenho de Dentro, que Nise da Silveira permitiu à loucura, aos
inumeráveis estados do ser43 vivenciadospelos pacientes por ela atendidos, desde 1944,
poder expressar-se livremente, de maneira espontânea, criativa e improvisada – poder
“dar forma às emoções, às imagens do inconsciente” (SILVEIRA, 2009, p.53), porque
tocada pelo afeto recebido num ambiente acolhedor, necessário para que o processo de
cura pudesse acontecer.
Primeiro, num “pequeno dormitório do hospital”, que havia sido transformado em
sala para atividades ocupacionais (costura e bordado), pelo dr. Fabio Sodré; depois, na
Seção de Terapêutica Ocupacional (incluindo o ateliê de pintura e de modelagem),
fundada em 1946, pela própria Nise da Silveira e, por fim, a partir de 1952, no Museu de
Imagens do Inconsciente, fundado como centro de estudo e pesquisa para a compreensão
do processo psicótico, localizado no hoje, Instituto Municipal Nise da Silveira (MELLO,
2014) – também, ainda, Centro Psiquiátrico Pedro II, como pode ser lido logo na entrada
do Instituto.
Importante situar que em 1933 Nise da Silveira foi aprovada em concurso público
para o Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospício Nacional de
Alienados, na Praia Vermelha, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas, já em
1936, após ter sido acusada de comunista ficou presa no presídio Frei Caneca, na cidade
do Rio de Janeiro, até ser libertada em junho de 1937. Desde então, permaneceu refugiada
no norte e nordeste brasileiros até 1944, quando finalmente, foi anistiada e readmitida no
serviço público. Retomou o seu tralhado, dessa vez no Centro Psiquiátrico Nacional, em
Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro e permaneceu nele até completar 70
anos de idade, quando foi automaticamente aposentada pelo serviço público em 1975.

41
Em novembro de 1954, Nise escreveu pela 1ª vez uma carta para C.G. Jung, após ter reunido grande
quantidade de imagens na forma de mandala pintadas espontaneamente pelos esquizofrênicos, buscando
conhecimento sobre “as atividades da psique que tomavam forma na imagem da mandala”. A resposta
chegou logo e Nise viu-se diante de uma nova abertura para a compreensão da esquizofrenia quando pode
ler que do ponto de vista do Jung, as mandalas representavam o potencial auto curativo existente na psique,
mobilizado espontaneamente como uma forma natural e não consciente de compensar a dissociação vivida
pelos indivíduos que as configuravam. (MELLO, 2014, p. 22 e 145-146). De Artaud, Nise adotou a
expressão “inumeráveis estados do ser” e da filosofia de Spinosa, o conceito de afeto.
42
Nise da Silveira, uma mulher à frente do seu tempo. Frases disponíveis em:
<http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/frases.php>. Acessado em 24 jan. 2021.
43
Expressão de Antonin Artaud.
52

Apesar disso, continuou a frequentar o Museu de Imagens do Inconsciente por mais


alguns anos como “estagiaria voluntária”. (MELLO 2014; MAGALDI, 2020)
Trago aqui, mais uma vez, Adilson Tiamo, cantor e compositor, para mostrar uma
das inúmeras demonstrações de amor e de reconhecimento ao trabalho da Nise da
Silveira, feitas pelos artistas que participam dessa pesquisa e que eu pude tomar
conhecimento, em diálogo com eles próprios. Em junho de 2020, recebi no meu whatsapp
um vídeo em que cantava “uma linda história de amor”. Assisti e perguntei ao Adilson
Tiamo, se ele havia conhecido pessoalmente a Nise da Silveira. “Apenas no sonho”, foi
a resposta oferecida por ele, antes das palavras abaixo:

Eu queria cantar, fazer uma música, mas eu tava sem inspiração, sem nada. E eu
tava preocupado. Tava chegando o dia da escolha do samba [do Loucura
Suburbana, pro carnaval de 2017] e eu não tinha apresentado o meu samba. E aí,
pronto... dormi, cara, pensando... e, aí, à noite, eu sonhei: rapaz!!! cá Nise da
Silveira. Apareceu e ela foi e cantou pra mim:

Eu vou lhe contar uma linda história de amor.


Foi em Engenho de Dentro, tudo isso começou.
Nise da Silveira, o meu grande amor.
Sendo ela uma rosa e eu seu beija-flor.
Quando chegou de viagem, tudo isso foi legal.
Me tirou do manicômio, pra brincar o carnaval.
Quando era eu, era ela. Quando era ela, era eu.
Agora ela me beija
Quem beija ela, sou eu.

E prosseguiu me explicando a letra dessa música que afirma ter ganhado de


presente da própria Nise da Silveira durante um sonho. Muito mais tarde, em abril de
2021, ele me explicou: “quando eu falo que eu vi num sonho, eu tô referindo que eu vi/
que eu tive uma visão – que eu sou esquizofrênico... aí, eu como esquizofrênico eu tive
a visão dela cantando assim... assim... a música pra mim. Aí, eu: Caramba!!! Brigado
Nise. Brigado Nise. Peguei o telefone e gravei rapidinho [risos]”

Uma linda história de amor, retrata o seguinte: eu não tô falando do marido dela.
Eu estou referindo nessa música o seguinte: um homem, ele era um doente mental,
que estava no Nise da Silveira internado e a Nise foi pra França, apresentar os
quadros dela lá na França. Eu acho que ela ficou uns 2 anos na França. E quando
ela voltou, aí, sim, a alegria daquele paciente... ele canta a música assim: eu vou
lhe contar uma linda história de amor... porque ele gostava daquela doutora...
(Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

Essa pequena amostra, a partir de um paciente, evidencia o potencial de práticas


humanizadas e o alcance do “afeto catalisador” (SILVEIRA, 2015) no cuidado e convívio
53

com a loucura, defendidas por todos esses pioneiros da psiquiatria – que não descartam a
loucura como uma construção social (FOUCAULT, 2017) e fazem a crítica do manicômio
– uma “instituição total” (GOFFMAN, 2015) de domínio, exclusão e tortura dos que se
localizam fora da curva - fora da norma. Importante lembrar que “uma norma só é a
possibilidade de uma referência quando foi instituída ou escolhida como expressão de
uma referência e como instrumento de uma vontade de substituir um estado de coisas
insatisfatório por um estado de coisas satisfatório” (CANGUILHEM, 1995, p. 212).
Não posso deixar de perguntar aqui também, por que Adilson Tiamo, artista
antimanicomial, buscando equilibrar o povo, substitui visão por sonho, quando narra
parte de sua história de vida. São dele, do Adilson Tiamo, as palavras que seguem:

Eu tive uma visão. Esquizofrenia, mesmo. [...] Na época, [em 2017], se eu falasse
que era uma visão, aí, eles poderiam achar que... vamos internar esse cara. Cê tá
entendendo? Eu tive medo de pessoas falar: vamos internar esse cara! Ele tá
começando a ter ataque, alguma coisa assim. Então, eu falo [que] eu tive um sonho
[...] É melhor falar que teve um sonho. Que assim, as pessoas veem de outra
maneira. [...] É uma maneira que eu aprendi, assim, de... equilibrar o povo [risos].
Equilibra o povo!: você teve um sonho. Na verdade, você teve uma visão, pô. Tive
uma visão. Apareceu pra mim e fez isso. Uma visão. E assim foi. Isso que acontece.

O curta-metragem "Milton Freire, um grito além da história"44, também


evidencia o alcance do método de trabalho cientifico desenvolvido pela Dra. Nise da
Silveira e também, o da Luta Antimanicomial que aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, em 2001 - apesar dos avanços que ainda se fazem necessários.
Por meio dos dois fotogramas abaixo extraídos desse curta-metragem, dirigido por
Victor Abreu, é possível conhecer um pouco desse alcance a partir de uma parte do
percurso de vida (ressignificada) e luta pelo direito de existir com dignidade e autonomia
de um dos principais poetas e militantes da saúde mental antimanicomial brasileira.

44
Esse curta-metragem foi selecionado para a 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, estreou e
esteve disponível de 23 a 30 janeiro de 2021 em: <https://mostratiradentes.com.br/filme/milton-freire-um-
grito-alem-da-historia/>. Milton Freire aparece também falando da sua trajetória na saúde mental, citando,
inclusive, o método de trabalho de Nise da Silveira, em diversos documentários produzidos sobre o trabalho
do ator, pesquisador e médico psiquiatra transcultural Vitor Pordeus. Alguns deles: Hotel da Loucura:
Gênese (2012), disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AylvNmZpwM8>, Hotel da
Loucura: documentário, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KMloGGwUoTc>,
DyoNises: Teatro Ritual de Dionisos a Spinoza disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=gTvpeNraUFA>. Além disso, Milton Freire foi homenageado no
Seminário Memória da Loucura II, realizado no Instituto Nise da Silveira, em novembro de 2019, poucos
dias após o seu falecimento. Essa homenagem pode ser assistida em:
<https://www.youtube.com/watch?v=DSivCsYUSYU&list=PLgZK8mWSWWMywIkJi5Xc2KP4ClZnW
rj1f&index=8> Acessado em: 24 jan. 2021.
54

Fotogramas extraídos do curta-metragem "Milton Freire, um grito além da história", de


Victor Abreu, cedidos para fins de realização dessa pesquisa pelo próprio diretor à pesquisadora.

No final de 1978, durante o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria em


Camboriú/SC, surge o MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental45) e

45
Três médicos residentes do Centro Psiquiátrico Pedro II denunciam no livro de registro da
instituição, as condições de maus tratos e violência que eram submetidas as pessoas internadas; ao mesmo
tempo que denunciavam as condições de trabalho. A partir daí são demitidos 260 trabalhadores das quatro
unidades de saúde mental da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM). Trabalhadores realizam uma
greve em um episódio que ficou denominado como a Crise da DINSAM. É o marco de criação do
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), no Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://laps.ensp.fiocruz.br/linha-do-tempo/1>. Acesso em 15 out. 2020.
55

quase 10 anos depois, em dezembro de 1987, no II Congresso Nacional dos Trabalhadores


de Saúde Mental, realizado na cidade de Bauru/SP, o Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial, que passa a incluir os usuários dos serviços de saúde mental e seus
familiares, com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”.
Um ano antes, em 1986, ocorreu a 8ª Conferência Nacional de Saúde46 - um marco
na história da saúde no Brasil que forneceu as bases para elaboração do capítulo sobre
saúde na Constituição Federal de 1988 - coordenada por Sergio Arouca, então presidente
da Fiocruz, na qual foi deliberada a realização de conferencias temáticas no país, entre
elas, as da área de saúde mental. E, em junho de 1987 a I Conferência Nacional de
Saúde Mental47.
Desde 1988, então, o dia 18 de maio (18M) marca o Dia Nacional da Luta
Antimanicomial no Brasil48, instituído, segundo Paulo Amarante (2017, p.73), “com o
objetivo de provocar o imaginário social a refletir sobre o tema da loucura, da doença
mental, dos hospitais psiquiátricos a partir da própria produção cultural e artística dos
atores sociais envolvidos (usuários, familiares, técnicos e voluntários)”. Importante
lembrar que, ainda segundo Amarante (2017, p.104), essa data foi inspirada no dia 13 de
maio de 1978, dia em que foi aprovada pelo Parlamento Italiano, a Lei n. 180, conhecida
como Lei Basaglia – “que reorganizou o modelo assistencial às pessoas em sofrimento
mental no pais. [...][que] determinou o fim dos hospitais psiquiátricos e possibilitou a
abertura das condições legais para a construção de um novo cenário assistencial e
político”. (2017, p.104, grifo meu).
Importante ressaltar nesse contexto, a eleição (indireta) de um presidente civil em
1985; a criação na cidade de São Paulo do primeiro Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), conhecido como CAPS Itapeva, em março de 1987; a promulgação da
Constituição Federal de 1988 que afirma a saúde como um direito de todos e dever do
Estado e a Lei orgânica 8.080/1990 do Sistema Único de Saúde (SUS) que reitera e
garante esse acesso universal e de forma igualitária (mas não equitativa) à saúde em todo
território nacional.

46
Relatório Final da Oitava Conferência Nacional de Saúde disponível em:
<http://www.conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_8.pdf>. Acesso em 26/04/21
47
Ver Relatório Final da I Conferência Nacional de Saúde Mental. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/CNS_mental.pdf>. Acesso em 15 out. 2020.
48
Ver o Manifesto 18M – Tá Pirando, Pirado, Pirou!, produzido em 2020. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=b22JB1w1rB0>. Acessado em 26 jan. 2021.
56

Igualmente, em setembro de 1989, o Projeto de Lei 3657/1989, de autoria do ex-


deputado (PT/MG) e sociólogo, Paulo Delgado, posteriormente transformado na Lei
Ordinária da Reforma Psiquiátrica 10.216/2001. Assim como também, a Declaração de
Caracas, segundo Pedro Delgado49, psiquiatra e professor da UFRJ, um documento
importante para a evolução da Reforma Psiquiátrica que afirmou, em novembro de 1990,
a necessidade de substituição/superação do modelo hospitalocentrico e assumiu o
compromisso de desenvolver um modelo comunitário de saúde mental. Em 2005, no
governo Lula, o Brasil foi escolhido para sediar a “Conferencia 15 anos de Caracas”, na
qual foi reafirmada como uma direção estratégica correta e eficaz aquela substituição
defendida lá em 1990. Brasil e Chile nessa ocasião, foram os dois países que
especialmente tinham avançado nas recomendações de Caracas.
As quatro Conferencias Nacionais de Saúde Mental50, a primeira, já citada em
1987, no Rio de Janeiro, e as demais, realizadas em Brasília, em 1992, 2001 e 2010,
segundo Paulo Amarante (2017, p.79-80), ofereceram “possibilidades inigualáveis de
participação dos atores sociais na discussão e construção das políticas de saúde mental e
atenção psicossocial”.
Isso, não sem conflitos. Por exemplo, a realização da IV Conferência Nacional de
Saúde Mental, exigiu, antes, várias manifestações da sociedade, em particular dos
movimentos antimanicomiais, que culminou com a Marcha dos Usuários pela Reforma
Psiquiátrica Antimanicomial, em setembro de 2009, em Brasília, realizada como forma
de reinvindicação da IV Conferência Nacional Popular da Saúde Mental, que por fim foi
realizada no ano seguinte, em 2010.
Importante também ressaltar a celebração dos “30 anos de luta por uma sociedade
sem manicômios, realizada durante o Encontro de Bauru 51, que reuniu mais de duas mil
pessoas, na Universidade Sagrado Coração, na cidade de Bauru/SP, em dezembro de

49
Essa fala do psiquiatra e professor Pedro Delgado, integrante da Frente Estamira de CAPS, pode ser
acessada em: <https://youtu.be/bQyqTD8dte4>. Além disso, a Declaração de Caracas, documento
produzido a partir da Conferência Regional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental nos
Sistemas Locais de Saúde (SILOS), realizada na Venezuela, em 1999, pode ser acessada em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_caracas.pdf>. Acesso em: 24/04/21.
50
Os Relatórios Finais da II, III e IV Conferências Nacionais de Saúde Mental estão, respectivamente,
disponíveis em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/2conf_mental.pdf>
< http://www.crpsp.org.br/povos/povos/legislacao/Relat_final_III_Conf_Nac_Saude_Mental.pdf>
< http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/relatorio_final_IVcnsmi_cns.pdf>.
Acesso em: 26/04/2021
51
O Relatório do Encontro de Bauru: “30 anos de luta por uma sociedade sem manicômios” está
disponível em: <https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/documentos/pagina/carta_de_bauru_-
_30_anos.pdf>. Acesso em: 26/04/21
57

2017. E também, em 2001, ano da III Conferência Nacional da Saúde Mental, o


lançamento do filme Bicho de Sete Cabeças52, inspirado nos fatos reais da experiencia de
violência manicomial narrada no livro autobiográfico “Canto dos Malditos”, publicado
pela primeira vez em 1990, pelo paranaense Austregésilo Carrano, que em 1974 foi
internado aos 17 anos pela própria família no Hospital Espirita de Psiquiatria Bom Retiro,
em Curitiba. Permaneceu nesse e noutros até 1977 e, mais tarde, se tornou um dos
históricos militantes53 da Luta Antimanicomial brasileira até falecer em 2008.
Trinta e cinco anos (1987-2022) separam a I da V Conferência Nacional de Saúde
Mental, que acaba de ser anunciada pelo Ministério da Saúde, por meio da Resolução Nº
652, de 14 de dezembro de 202054 e está prevista para ocorrer em maio de 2022. Ainda
sob tensão e disputas.
Poucos dias antes, em 03 de dezembro, o Ministério da Saúde também anunciou
o que ficou conhecido como “revogaço”: uma proposta de revogação de 99 Portarias
Ministeriais que regulamentam a Política Nacional de Saúde Mental, editadas entre 1991
e 2014, tendo como orientação o documento “Diretrizes para um modelo de atenção
integral em Saúde Mental no Brasil – 2020” – portanto, uma proposta de revogação do
arcabouço legal da atual Política de Saúde Mental, resultado de um grande pacto social
em defesa da garantia do cuidado em liberdade e dos direitos humanos das pessoas que
vivem a experiencia do sofrimento psíquico.
Em resposta direta e imediata à essa ameaça de desmonte da Saúde Mental
Antimanicomial brasileira, encabeçada pela conservadora Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP), foi instituída em 04/12/2020, a Frente Ampliada em Defesa da Saúde
Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial (FASM), criada a partir de
um chamado aberto nas redes sociais, feito no dia anterior, por Bernardo Ferreira,
militante da Luta Antimanicomial e usuário dos serviços públicos de saúde mental do Rio
de Janeiro. “Uma pessoa trans, preta, pobre e periférica”, como ele mesmo gosta de se

52
O Bate-Papo: “Bicho de Sete Cabeças”, 20 anos nas telas e na Luta Antimanicomial” pode ser
acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=B_5WlFDaJXc. Acesso em
53
Em 12 de junho de 2021 o Coletivo Gato Seco – No telhado da Loucura entregou o 13º Prêmio
“Carrano” de Luta Antimanicomial e Direitos Humanos homenageando oito pessoas e/ou instituições
dedicadas à luta em prol dos Direitos Humanos, particularmente os das pessoas com sofrimento mental. A
Cerimônia de entrega desse 13º Prêmio está disponível em: <https://youtu.be/JAVpGm4CXH8>. Acesso:
12/06/21
54
Um pouco antes do anuncio dessa V Conferência, nascia em 04 de dezembro de 2020 a Frente Nacional
Ampliada de Defesa da Saúde Mental da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial (FASM), que
segue construindo a 1ª Conferência Nacional Popular de Saúde Mental, prevista para ocorrer em outubro
de 2021 com o propósito de resgatar as conquistas das 4 Conferencias Nacionais já realizadas, além de
endossar, reafirmar e fortalecer a 5ª Conferência Nacional Popular
58

apresentar, escreveu nesse chamado: “Faça parte deste Levante Popular pela garantia
de direitos arduamente conquistados”. Um exemplo de protagonismo dos usuários.
Já em 21/12/20, após a Assembleia Geral da FASM55 realizada nos dias 12 e 15
de dezembro de 2020, a FASM tornou público nas redes sociais o Dossiê - Volume I:
Uma coletânea de Manifestos, Apoios, Notas e Abaixo-Assinados da Sociedade
Organizada contra o Revogaço da Política Nacional de Saúde Mental. Esse Dossiê,
produzido em menos de 20 dias da fundação da FASM, apresentava na ocasião,
aproximadas 68 mil assinaturas que se posicionaram contra essa tentativa de revogação
do marco legal que ampara a Política de Saúde Mental no Brasil.
Três meses depois da publicação desse Dossiê – Volume I, da série
“Manifestações da Sociedade Organizada”, em 20/03/21, a FASM fez o lançamento da
Carta de Apresentação da 1ª Conferência Popular Nacional de Saúde Mental
Antimanicomial 2021, + Liberdade, + Diversidade + Direitos = Democracia, que havia
sido proposta e aprovada na Reunião de Fundação da FASM, com a presença de 238
pessoas e dezenas de entidades, organizações e movimentos sociais.
Em meio a esses protestos, o documento da ABP, acima citado, também foi
questionado e criticado por meio do que ficou conhecido como o “Manifesto dos Mil”,
que já em 12/12/20, quando apresentado na Assembleia da FASM pela médica psiquiatra,
doutora em Filosofia e ativista na luta antimanicomial, Ana Marta Lobosque, dez dias
depois do anuncio do revogaço, contava com assinaturas de pouco mais de 1000
psiquiatras atuantes e em formação contra o “revogaço” e em defesa das Redes de
Atenção Psicossocial do SUS.
Em especial, esse Manifesto mostra claramente a existência de uma tensão dentro
do próprio campo psiquiátrico brasileiro e as disputas em torno das diferentes formas de
se conceber e lidar com a loucura. Consta nesse Manifesto:

Longe de propor uma atenção integral em saúde mental, o modelo proposto [pela ABP],
rígido, hierarquizado, psiquiatrizante, opõe-se frontalmente à estruturação territorializada e
flexível das redes de atenção psicossocial, assim como à sua busca pela liberdade, autonomia
e cidadania das pessoas em sofrimento psíquico.

A ABP fala como se fosse unanimidade entre os psiquiatras, e não é. Um contingente


importante da categoria psiquiátrica não concorda com a Associação. Existem inúmeros
psiquiatras que defendem a reforma, que são totalmente contrários a essas entidades médicas
corporativas mercadológicas.

55
Assembleia Geral da FASM. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7TUfOtlzsyw> e
<https://is.gd/assembleiayoutube15dez>. Acessado em 05/04/21.
59

É preciso dizer, no entanto, que antes do “revogaço” que deu origem à FASM, já
em 201656, com o Golpe que sofreu a Presidenta Dilma Roussef e a Democracia
Brasileira, também se viu ameaçada a Saúde Mental Antimanicomial, defensora do
cuidado em liberdade.
“Sem democracia, o manicômio vence”, é o título de uma entrevista57 concedida
em julho de 2019, pelo médico psiquiatra e ex-diretor do Hospital do Engenho de Dentro,
Edmar Oliveira. Dela, reproduzo aqui dois dos inúmeros trechos que destacam a relação
entre democracia e saúde mental e o conflito entre psiquiatria biológica e Reforma
Psiquiátrica:
Hoje parece que o fascismo caminha a passos largos para dominar as nossas
instituições. E aí, temos que sair com os usuários junto com a sociedade para
lutar por democracia. Sem democracia não tem saúde mental. Só podemos
respirar na democracia. Essa é a luta de agora. Sem democracia, o manicômio
vence. Ele é filho do fascismo. (grifo meu)

Há 30 anos começou um movimento dentro do campo da saúde mental que


vem construindo o que se convencionou chamar de Reforma Psiquiátrica. Há
18, conseguiu-se aprovar a lei da Reforma, a 10.216. Mas mesmo antes dela, a
construção já dava resultados que garantiram a lei. A Reforma Psiquiátrica é
uma construção de práticas em saúde mental que partiu de três princípios:
primeiro, o manicômio tem que ser contestado no campo dos direitos humanos
por ser um dispositivo de custódia, que fere os direitos básicos de cidadania;
segundo, o que a Reforma propõe é uma prática inclusiva da loucura pela
sociedade; e, terceiro, propõe dispositivos comunitários que devem substituir
o manicômio. Ora, como um movimento de construção de uma nova teoria e
prática, a Reforma sempre teve opositores no campo conservador. A
psiquiatria biológica nunca aceitou uma reforma da Psiquiatria — a “ciência”.
Eles querem uma reforma do manicômio. Aqui, Basaglia [Franco Basaglia,
precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano] já dizia que não é o
manicômio que distorce a psiquiatria, mas a psiquiatria que produz o
manicômio. Essa inversão nunca foi “engolida” pela Associação Brasileira
de Psiquiatria (ABP), que nos últimos mandados especializou-se em
combater a Reforma. Portanto a nota técnica de que você fala [Nota Técnica
Nº 11/2019 - CGMAD/DAPES/SAS/MS] é uma aspiração da ABP realizada
na gestão do Quirino [Cordeiro Júnior], ainda no governo Temer. (Edmar
Oliveira, grifo meus)

56
Segundo Cruz, Gonçalves e Delgado (2020) em Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da
política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019, “no período de dezembro de 2016 a maio de
2019 foram editados cerca de quinze documentos normativos [...] que formam o que a nota técnica 11/2019-
CGMAD/DAPES/SAS/MS veio a chamar de “Nova Política Nacional de Saúde Mental”. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462020000300509>. Acesso em 12
set. 2020.
57
“Nessa entrevista à Radis, [Ensp/Fiocruz] o psiquiatra repercute os últimos acontecimentos envolvendo
as políticas públicas de saúde mental e a nova lei de drogas, rebate os argumentos dos que defendem o
encarceramento e explica por que a reforma psiquiátrica é uma construção permanente, nunca terminada”.
Disponível em: <https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/sem-democracia-o-manicomio-
vence#.XRyocHMLgEU.wordpress>. Acesso em: 03/05/2021.
60

Um dos resultados dessa luta permanente e ainda necessária58 - haja visto não só
a necessidade que houve de repudiar o conteúdo da supracitada Nota Técnica 11/2019
que explicita mudanças na Política Nacional de Saúde Mental mas, também, e mais
recentemente, o já citado revogaço, em dez. 2020 - foi a possibilidade trazida pela Lei da
Reforma Psiquiátrica e mais recentemente ainda, pela Lei da RAPS59 de implantação de
formas mais humanizadas de cuidado e atenção psicossocial no contexto de tratamento
da saúde mental – agora, ameaçadas, especialmente desde 2017 com a Resolução 32 que
passa a defender a existência de uma complementariedade, ou seja, da convivência de
hospitais psiquiátricos, junto aos dispositivos substitutivos como os CAPS, por exemplo.
Indo na contramão dos princípios da Reforma Psiquiátrica, internações em
Hospitais Psiquiátricos e terapias com eletrochoques60, no lugar da Atenção e do Cuidado
Psicossocial em Liberdade, estão sendo defendidas pela psiquiatria tradicional biomédica,
hegemônica e conservadora, encabeçada pela ABP, que encontrou no atual (des)governo
federal, espaço para se manifestar e propor todo um aniquilamento legal das conquistas
históricas, sociais e ético-políticas dos últimos aproximados 30 anos de luta
antimanicomial no Brasil. Que lugar ocupam e que incômodos trazem as Redes de
Atenção Psicossocial (RAPS); os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); os Pontos de
Cultura, os Centros de Convivência - a arte, a cultura e a militância/ativismo
antimanicomiais presentes nesses espaços de cuidado (tutelado?), de atenção às formas
graves de sofrimento psíquico (aos sentimentos de vida contrariada!), de possibilidade de
tecelagem de laços afetivos e sociais (institucionalizados?) e, de construção e defesa da
cidadania (de papel?), da liberdade (sob diminutas condições objetivas e materiais de
vida?) e da democracia (formal?) em rede aberta (com limitado direito à cidade?) e no
território (que estigmatiza?). Adversários da Reforma Psiquiátrica, da Luta
Antimanicomial, o que lhes interessam isolar nos indesejáveis sociais?
Se está prevista para maio de 2022, a V Conferência Nacional de Saúde Mental,
anunciada pelo Ministério da Saúde, está sendo construída, também, a partir de uma
iniciativa da Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Luta Antimanicomial

58
Ver Linha do Tempo (1975-2018) disponível no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental
e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP).
<http://laps.ensp.fiocruz.br/linha-do-tempo>. Acesso em 15 out. 2020.
59
Resolução Nº 32, de 14 de dezembro de 2017. Disponível em:
<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cit/2017/res0032_22_12_2017.html>. Acesso em 07/08/2021
60
Rafael Bernardon Ribeiro, psiquiatra nomeado em 18 fev. 21, pelo ministro da Saúde Eduardo Pazuello,
para ocupar o cargo de coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Departamento de
Ações Programáticas Estratégicas, da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, defende o uso de aparelhos
de Eletroconvulsuterapia (ECT) no tratamento da saúde mental.
61

e da Reforma Psiquiátrica (FASM), a “I Conferência Nacional Popular da Saúde Mental


Antimanicomial 2021: + Liberdade + Diversidade + Direitos = Democracia”, prevista
para ser realizada em outubro de 2021. Essa última, com o objetivo de fortalecer a V
Conferencia, mas antes e desde já, como estratégia de enfrentamento das ameaças
governamentais, intensificadas desde 2016, que vem sofrendo a Política Nacional de
Saúde Mental. Transcrevo, aqui, um trecho da fala do professor Pedro Gabriel em
resposta a duas questões dirigidas a ele durante o Webnário61 “20 anos da Lei 10.216:
onde estamos?
[...] Eu acho que em primeiro lugar, respondendo à Yanne Valentin, nós não devemos
subestimar a força das medidas de desconstrução e de retrocesso que estão sendo tomadas.
Porque elas são muito graves. Por exemplo: o privilégio ao financiamento das comunidades
terapêuticas e a ampliação das comunidades terapêuticas... estão totalmente na contramão da
Lei 10.216. As comunidades terapêuticas reproduzem o modelo manicomial, o modelo asilar.
Essa é uma das medidas. A outra, é o desfinanciamento progressivo que está sendo feito/
Domingos Sávio mencionou isso... né. Ele fala em sabotagem. Ele fala como se fosse, assim,
uma estratégia de sabotagem. É um desfinanciamento sistemático. Irregular. Para
produzir uma inanição dos serviços de saúde mental comunitários. Então, o primeiro é
não subestimar. E a segunda coisa é... o processo de resistência, ele, é um processo
certamente político. É impossível sustentar e manter um tipo de... de governo e de gestão,
com o que nós temos nesse momento no Brasil. É preciso, de fato, construir uma estratégia
que seja uma estratégia, também, no plano da política. E no plano das instituições... eu,
hoje, faço parte de um Movimento que se chama Frente Estamira de CAPS - Resistência e
Invenção, que é um movimento aqui do Estado do Rio de Janeiro, justamente para construir
uma rede de solidariedade e resistência aos serviços comunitários. Aos CAPS. Até que se
consiga superar essa tragédia, que é sanitária, mas, é também uma tragédia política e
humanitária, pela qual nossa país está passando. Acho que a pergunta da Bruna Romano,
também, sobre como radicalizar a luta antimanicomial... é isso, em um momento desse
tipo... eu, por exemplo, estou defendendo publicamente a realização da Conferencia
[Nacional] Popular de Saúde Mental, porque eu acho que nós temos que trafegar
caminhos que não são os caminhos normais, porque nós não estamos vivendo uma
situação normal. Então, a Conferência Popular e outras medidas que possam ser estratégias
de mobilização fora do aparato institucional, porque o aparto institucional, neste momento,
foi capturado pelo que há de mais retrógrado e pelo que há de mais desumano no ponto de
vista de políticas públicas e políticas sociais. (Prof. Pedro Gabriel, Frente Estamira de CAPS)

Saliento aqui, que cheguei à FASM em 04/12/2020, no dia em que ela foi fundada,
a partir de um convite feito pelo próprio Bernardo Ferreira no dia 03/12/21 no grupo do
WhatsApp da Frente Estamina de CAPS – Resistencia e Invenção, Projeto de Extensão
NUPPSAM – IPUB/UFRJ, criada no Rio de Janeiro, em 07/12/19, como um coletivo de
trabalhadores, usuários e familiares em defesa da Rede de Atenção Psicossocial, do SUS,
dos Direitos Sociais e da Democracia, da qual faço parte desde maio de 2020.
Como integrante dessa Frente Estamira de CAPS, tenho participado de várias das
Rodas de Conversa – Debates sobre a Pandemia, que acontecem nas tardes de cada terça-

61
Webnário disponível em <https://youtu.be/4tDyO9BhaEo>. Acesso em: 04/05/21.
62

feira e que em 13/04/2021 completou a sua 50ª Roda virtual de Conversa. Incluindo aí,
Rodas Comemorativas e de Luta, como a 49ª62 pelos 20 anos da aprovação da Lei
10.216/01, mencionada no próprio Coletivo como “um marco estruturante no projeto
civilizatório de nosso país”.
Essa 49ª Roda de Conversa recebeu como convidado especial o sociólogo e ex-
deputado federal (PT/MG), Paulo Delgado, autor dessa lei. Nessa ocasião, pedi a ele que
falasse um pouco sobre o papel da Sociologia na construção e defesa do Projeto que virou
lei em 2001. Reproduzo aqui um trecho da resposta oferecida, porque mostra a
importância do pensamento sociológico na construção de um Brasil mais humanizado e
crítico, além da frutífera capacidade da Sociologia co-existir em consonância com outras
áreas do conhecimento e mesmo com a prática política parlamentar.

Eu acho que... se não tivesse lido, por exemplo, Raízes do Brasil, do nosso Sergio Buarque
de Holanda. Se eu não tivesse lido Os Dois Brasis [...]. Se eu não tivesse lido Florestan
Fernandes e que tive a alegria de ter sido colega dele, oito anos, como deputado federal -
aliás, o Florestan Fernandes é quem fez a primeira dedicatória pra mim, como deputado, em
Minas. O Florestan escreveu uma frase que me elegeu, eu acho. Na universidade pelo menos.
[...] tinha acabado de fazer concurso na universidade, tinha virado professor universitário e
logo depois, fui capturado e virei político. Deputado Federal. E também, se eu não tivesse
conhecido o Paulo Freire, que eu conheci muito - foi meu colega na direção nacional do PT.
Eu fui da executiva nacional do PT, 10 anos. E ali ficava com Paulo Freire, com Antônio
Candido - Parceiros do Rio Bonito. A literatura brasileira na época, tinha muita gente
abandonada, como personagem. E personagens muito fortes. Uma Sociologia muito
engajada, havia no Brasil. E eu tive a sorte de ter bons professores de Sociologia. Não eram
nem professores de esquerda, mas eram professores muito receptivos. [...]. E aí, eu tinha um
livro do Merton, Thomas Merton, que era um Sociólogo americano que fazia pesquisa.
Era o mais importante livro texto-base de Sociologia Geral. [...] essa obra me fez
entender o livro da Ana Pitta [citar o livro], me fez entender As Razões da Tutela, do
Pedro [Delgado]. Como é que eu ia entender As Razões da Tutela? Quando o Pedro me
deu, ele me deu assim... como irmão - não foi nem no aniversário... lê isso aí... porque cara,
aquilo ali é difícil de entender, porque tem que ter muito conhecimento do processo repressor
brasileiro. E aí eu fui... A Constituinte foi uma escola muito forte e... ela me... ela coincidiu
muito com o que me interessava na Sociologia. E o Movimento da Luta Antimanicomial
me lembra muito a luta do Sartre contra o colonialismo. Les Damnés de la terre, ou seja,
Os Deserdados da Terra. O prefacio do Sartre ao livro do Frantz Fanon, sobre o colonialismo,
a opressão que os franceses fizeram na África. Esse Prefácio eu usei muito em muitas
argumentações no Congresso Nacional. Eu usava né... porque tinha coisas assim: olha, a dor
do outro é você que estimula. Tinha frases do Sartre... aquele existencialismo irritante dele
né... [...] era difícil de acompanhar o Sartre. Você começava a gostar de uma coisa, tinha uma
coisa melhor ainda. Então, isso me ajudou muito. E a outra coisa, eu acho que é ser de Minas
Gerais, viu Fabiane. Além da Sociologia. [...]. A Sociologia me ajudou muito a entender
as comunidades, as sociedades, a cultura né... o que que é a cultura. Por isso que [a cidade
de] Santos [...] criou o programa [...] Rádio Tam Tam. E o Davi Capistrano, Davisinho, me
falou assim: Paulo, não precisa fazer discurso, não. Entra na Rádio Tam Tam [...]. E o grande
problema da Rádio Tam Tam, a Telma e o David me contavam, é que as pessoas pediam
músicas que o cara do estúdio não conhecia [risos] e o cara de dentro do hospício, o cara de
dentro do manicômio, o cara pedia uma música e eles iam atrás... Era simplesmente do

62
Essa 49ª Roda de Conversa Especial da Frente Estamira de CAPS está disponível em:
<https://youtu.be/4tDyO9BhaEo> . Acessado em 14/04/2021. Minutagem: [41:32 - 52:33]
63

Ernesto Nazaré. Eram músicas... Tinha música clássica... do Villa-Lobos. Aquele cara
considerado doente mental - incapaz e coisa e tal... perigoso -, ele gostava de Villa-Lobos
e Ernesto Nazaré. Aí não tinha como, você, não defender essa lei com cuidado. Essa lei é
um cristal. E aí, eu fui ficando mais, assim, tranquilo pra defender, porque eu fui vendo que
era um problema transhumano - ele ultrapassava classe social, raça, sexo... Gênero. Na época,
a gente falava sexo, não falava gênero. Ele ultrapassava todas as situações. Aí, você conseguia
conversar com as pessoas. Por isso que ele foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique
e foi regulamentado pelo presidente Lula. Então, ou seja, é um Projeto [de Lei] que nós temos
que ter muita segurança para defende-lo. Agora, é um erro achar que é uma coisa
politizada... [...]. Na verdade, é uma artimanha do setor hospitalar. [...]. É um problema
de mercado. É transformar o doente mental em mercadoria outra vez. Isso é impossível de
aceitar. (Paulo Delgado, autor do PL que deu origem à Lei da Reforma Psiquiátrica)

Difícil sintetizar em poucas palavras a Luta Antimanicomial e a Reforma


Psiquiatra brasileiras: contra elas existem em jogo conflitos de interesses sociais,
econômicos, políticos, morais... e nada a ver com elas, a grande parte de uma sociedade
brasileira, ainda necessitada de tomar conhecimento e posição a esse respeito.

[...] Quando eu assisti esse vídeo do [percursionista] Naná Vasconcelos, ele


apareceu. Eu pensava que ele era baiano. Mas ele não era baiano. [Ele é
Pernambucano]. [...]. Aí, quer dizer: ele aprendeu a percussão com aquele...
Berimbau. Ele começou... Do berimbau que ele passou para os outros
instrumentos. [...]. Ele correu o mundo todo.

Eu já fui tachado de Gonzaguinha, na Avenida Atlântica.


[...]. [Se] Tocar música do Gonzaguinha, universitário do mundo todo vai cantar.
[...].
Ele agregava. Não é só intelectuais.

Eu não sou contra Chico Buarque de Holanda. Eu não sou contra é... Vinicius de
Moraes... Vinicius de Moraes foi embaixador. Eu não tô falando de política, não.
Jamelão. Jamelão né... Cartola. Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola... Leci
Brandão... é... tudo aí... É tudo raiz... que eu acho, dentro da música. Os sertanejos...
Sérgio [Reis]... Eu tô falando isso aí, porque eu gosto de transitar em qualquer
gênero de música.

Eu nasci em Cascadura, perto de Madureira. Eu conheci o samba verdadeiro.


Desculpe eu falar pra senhora: eu conheci o verdadeiro samba.

A Portela. Império, Oswaldo Cruz... né... Eu não tô falando/ Mas aqui no centro da
cidade, tinha o João da Baiana. Tinha a Ciata. Eu conhecia... Na Av. Rio Branco eu
vi o último desfile de Rancho da alta sociedade... passava primeiro o Rancho, depois
que vinha os blocos na Av. Rio Branco. Não quer dizer que eu sou melhor do que
ele: batendo... tocando surdo né. Eu conheci o Marçal – Mestre Marçal... da Portela
né. Aniceto [da Portela]. Hoje em dia: aquele... Ze Katimba, lá de Ramos. Tá vivo.
[Gilson Secundino, Tá Pirando, Pirado, Pirou!:]
Zé Katimba: meu padrinho de crisma.

Óh: Zé Katimba... Sidney Magal... Paulinho da Viola... Benedito de Paula... Roni


Von... o Caetano Veloso... Isso tudo, eu acho, que tá dentro da nossa seara... Nós
podemos... A Bossa Nova... [...] como o Antônio [Carlos, também, Cancioneiros do
IPUB] falou: a Folia de Reis... o Folclore...
(Antônio Naná, percursionista dos Cancioneiros do IPUB)
64

CAPÍTULO III
DA CARACTERIZAÇÃO E DA VIVÊNCIA NO/DO CAMPO DE PESQUISA

“Ninguém é doido. Ou, então, todos.”.


Guimaraes Rosa63

3.1 TEATRO DE DYONISES - Universidade Popular de Arte e Ciência (UPAC)

Discípulo de Nise da Silveira, o médico-ator, psiquiatra transcultural, Vitor


Pordeus, nascido e criado na COHAB de Realengo, subúrbio do Rio de Janeiro, é um dos
cinco responsáveis pelos serviços/dispositivos que participam da presente pesquisa. Vitor
idealizou, fundou e dirigiu o Hotel da Loucura, segundo (MAGALDI, 2020), “uma
instituição niseana”, que funcionou dentro do Instituto Municipal Nise da Silveira, entre
2012 e 2016 – um dos mais importantes trabalhos realizados por ele na condição de
Coordenador do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde
do Rio de Janeiro (NCS/SMS-RJ, 2009-2016) e que permanece vivo e atuante como
“Hotel e Spa da Loucura Online”64, contando com aproximados 11 mil seguidores.
Antes, em 2010, Vitor fundou o Teatro de DyoNises e a Universidade Popular de
Arte e Ciência (UPAC). Em 2011 promoveu o 1º Congresso da UPAC que se desdobrou
no “Ocupa Nise”, uma ocupação cultural de cenopoesia, que ocorreu anualmente entre
2012 e 2015 e foi interrompida devido o inesperado, difícil e polemico processo de
fechamento do Hotel da Loucura, logo após ter sido exonerado do cargo de coordenador
que ocupou no NCS/SMS-RJ, durante 7 anos, desenvolvendo diversas atividades
comunitárias, terapêuticas e artísticos-culturais, além dessas, ocorridas nas dependências
do Instituto Municipal Nise da Silveira e registradas, especialmente, nas pesquisas
acadêmicas defendidas nos anos de 2017 e 2018, por Guilherme Gonçalves, Nicole da
Cruz, Felipe Magaldi e Luciano Vianna.

63
A expressão “Ninguém é doido. Ou, então, todos”, está contida no conto A Terceira Margem do Rio,
de Guimaraes Rosa, e foi sugerida por mim como frase-título pro Festival de Arte e Cultura, organizado
e apresentado pela FASM Nacional, durante a I Conferencia Popular Nacional de Saúde Mental
Antimanicomial [online], realizada entre 09 e 12 de outubro de 2021. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=qa_XexnBlVw>. Acessado em 15/10/2021.
64
A página do Facebook do “Hotel e Spa da Loucura Online” está disponível em:
<https://www.facebook.com/hoteldaloucura/photos/4317059368312323>. Acessado em 11/05/2021
65

Fotografia: Hotel e SPA da Loucura Online.


Vitor Pordeus, Instituto Municipal Nise da Silveira

De todo um campo extenso, reconhecido e consolidado de pesquisa cientifica,


ensino e prática desenvolvidos pelo Vitor Pordeus, no município do Rio de Janeiro e em
outros estados brasileiros, inclusive, fora do Brasil, busco nas atividades do Teatro de
DyoNises, junto “aos melhores atores do mundo”, troca de afeto e de conhecimento para
as minhas questões existenciais e acadêmicas presentes nessa pesquisa.
Em fevereiro de 2019 tive a oportunidade de conhecer e participar do Teatro de
DyoNises - dos rituais de cura coletiva realizados na, então, Teatro Clinica Therezinha
de Moraes, localizada no Meier, num casarão da zona norte do Rio de Janeiro65. Nessa
ocasião, a minha busca era tão somente terapêutica. Quando cheguei e subi as escadas,
em plena noite de aniversário meu, não conseguia ter ideia de nada a respeito do que
exatamente eu encontraria. Certo foi que (me) encontrei e me fiz intima como se há muito
já soubesse daquilo tudo.

65
Foi nessa Teatro Clinica Therezinha de Moraes que o Vitor Pordeus deu continuidade no seu trabalho
após o encerramento do Hotel da Loucura, em maio de 2016. Permaneceu, aí, próximo de Engenho de
Dentro, com o Teatro de DyoNises, entre 23/08/2018 e 15/06/2019. Antes, ocupou esse mesmo endereço
como “Nave Nise”. Em seguida migrou para a Biblioteca Parque Estadual, no centro da cidade,
permanecendo nela como DyoNises Teatro Clinica até novembro de 2019. Desde então, e até os dias
atuais, a Teatro Clinica DyoNises ocupa os espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro e continua
promovendo saúde mental pública e comunitária por meio da arte e da ciência. 65 Arte é Ar, Ciência é Luz,
afirma Vitor Pordeus e, em coro, todos os atores do Teatro DyoNises, nas ruas, praças e na praia do
Arpoador. Em tempos de pandemia e chuva o Teatro de DyoNises tem realizado esporadicamente algumas
atividades presenciais, inclusive em espaços privados a convite dos integrantes do próprio Teatro de
DyoNises. Nas considerações finais, à guisa de conclusão dessa pesquisa, eu apresento o meu relato de
experiencia pessoal no Teatro de DyoNises. Com isso, ao narrar um pouco da minha vivencia, como
paciente em terapia no decorrer do ano de 2019, descrevo, indago e apresento, também, o próprio trabalho
do Vitor Pordeus – parte do campo dessa pesquisa.
66

Fotografia: Teatro Clinica Therezinha de Moraes, 2019


Grupo de Estudos – Cartas a Spinoza, Nise da Silveira

Como pesquisadora, meu interesse foi surgindo aos poucos e, em dezembro desse
mesmo ano, a minha intenção de pesquisa foi anunciada pelo próprio Vitor Pordeus aos
integrantes do Teatro de DyoNises. Considerando que eu já havia sido adicionada no
grupo do WhatsApp do Teatro Clinica DyoNises meses antes, em setembro, e que me
mantinha participando dos encontros terapêuticos, esse fato a mais, não gerou
basicamente mudança alguma na minha relação com o grupo e, assim, a partir de então,
meu olhar se voltou, também, para o de pesquisadora a cada novo encontro meu com o
Teatro de DyoNises. Desde o meu primeiro dia, em 14 de fevereiro de 2019, me chamou
muito a atenção perceber a criatividade, a alegria, a seriedade e o modo improvisado como
acontecia todo o ritual, durante aproximadas três horas e meia, sem pausas – exceto, as
raras que cada um dava por necessidades próprias. O Vitor, não me lembro de tê-lo visto
deixando o ritual, senão, no termino dele, incluindo aí, a roda de conversa que finaliza
cada encontro. Poesias, músicas, cantigas populares, tambor - por vezes, violino – e, rodas
de ciranda, fazem parte do drama que transborda movimento, fazendo pulsar a vida em
plena encenação dos shakespearianos Hamlet e Macbeth. Das Bacantes, de Eurípedes, eu
também pude fazer parte - embora, a nada disso, compreendendo bem e muito menos, me
movendo com desenvoltura.
67

Fotografia: Teatro de DyoNises, 2019


“É preciso fingir ser louco, sendo louco. E é preciso fingir ser poeta, sendo poeta”
Trecho do filme Bicho de Sete Cabeças

Fotografia: Fabiane Valmore, 2019. Biblioteca Parque Estadual, RJ


“Nunca estive louco. Estou louco somente por astucia”. Hamlet, Shakespeare.
68

Fotografia: Teatro DyoNises, 2019


“Cantamos Báquio com nossos gritos de Evoé. Quem vai andando aí? Quem está em nosso
caminho? Afaste-se! [...] Obedecendo aos ritos, glorifiquemos nosso deus, Dioniso!”

Fotografia: Teatro DyoNises, 2019.


“O que é isso homem? Não esconda sua dor.
Pois a dor que não ganha palavra sussurra ao coração pedindo-lhe que exploda”.
69

Fotografia: Teatro DyoNises, 2019. I Semana de Saúde Mental do CPII


Teatro Libânio Guedes, Campus Tijuca II do Colégio Pedro II

Se durante o ano de 2019, muitas foram as minhas oportunidades de estar presente


no Teatro de DyoNises, em 2020, apenas pude estar entre janeiro e fevereiro, pois a
pandemia interrompeu todo o curso cotidiano previsto para o ano que se iniciava. Restou-
me acompanhar online algumas das atividades promovidas pelo Vitor Pordeus, como por
ex., as Reuniões Clinicas e o “Curso Online de Psicopatologia Epigenetica na Prática
Clínica Transcultural”66, até que em fevereiro de 2021, dessa vez, ao redor do Monumento
Almirante Saldanha da Gama, no Jardim de Alah, zona sul do Rio de Janeiro, eu pude me
encontrar mais uma vez no Teatro de DyoNises – tão difícil para mim foi, nessa ocasião,
entrar em cena e observar que os atores eram já outros, em grande medida; assim como,
outras, as demandas e o fluir dos corpos. Já não se tratava, nessa ocasião, de uma terapia
com a participação dos melhores atores do Engenho de Dentro. Desde aí, comecei a
refletir o quanto se torna diferente o Teatro de DyoNises, e eu também, fora do contexto
daquilo que é socialmente reconhecido como loucura. E é a partir dessa transição, de uma
instituição pública de saúde mental para a comunidade - pro lado de fora do hospício -
que o trabalho do Vitor Pordeus aparece nessa pesquisa, mais propriamente, refletido.

66
Esse curso é coordenado e ministrado pelo Vitor Pordeus, sob a supervisão da Professora Dra. Jaswant
Guzder, da Division of Transcultural Psychiatry, McGill University, Montreal, Canada.
70

Quase que supondo a resposta, perguntei ao Vitor Pordeus, no 3º dia online do


Festival Soy Loco Por Ti Juquery, durante o 2º Seminário Saúde e Cultura67, em setembro
de 2020: Qual é a grande diferença existente no seu método de trabalho fora do Nise,
quando comparado com o do Hotel da Loucura que funcionou dentro do Nise?
Parte da resposta oferecida por ele eu transcrevo aqui:

[...] a gente desenvolveu conhecimento de teatro dentro do Instituto [Nise da


Silveira] né... a partir do que a doutora Nise fazia... ela fala de improvisação, ela
cita Wassily Kandinski né... no livro, dela, Imagens do Inconsciente... que as
imagens do inconsciente se formam através de improvisação. [...].

A principal diferença é a população né... lá dentro do Hospital a gente tinha uma


população, principalmente, de esquizofrênicos né... psicóticos crônicos, psicóticos
agudos, que são considerados os pacientes mais severos do sistema de saúde e é
justamente onde a Dra Nise [da Silveira] consegue fazer um trabalho muito
importante.

[...] e a gente conseguiu verificar isso também né... [...] aos borbotões no Hotel da
Loucura [...] era pouca conversa e muito teatro... [...] esse efeito anti-psicótico, que
é o que a gente precisaria fazer com a população de rua... com as pessoas que estão
em sofrimento grave... que tão né... marginalizados, sem responsividade aos
medicamentos. [...] É a confirmação do trabalho dela.

Quando a gente começa a trabalhar fora da prefeitura né... e começa na


comunidade... ali, dentro do hospício, Jung é rei. [...]. Agora, na comunidade,
Freud é rei.... né... porque são síndromes neuróticas pra todos os lados e as
síndromes neuróticas são realmente um grande desafio que estamos enfrentando...

[...] eu observei por ex. que diminuiu a taxa de cura... [...] Parece que a neurose tá
mais grave e a gente ta com uma epidemia de neurose no nível individual e essa
epidemia de neurose, ela, é alimentada por um delírio psicótico no nível coletivo,
que é a propaganda de guerra, de violência, de guerra psicológica a que estamos
todos submetidos. Então, através do nosso trabalho, da doutora Nise, Paulo Freire
e também dos outros autores... o próprio Osório Cesar, por causa do Freud, da
leitura, dele, freudiana dos casos, a gente consegue observar isso...

É uma apresentação diferente....


E tem mesmo uma transição, aí, entre o ambiente institucional e o ambiente da
comunidade.
A gente tá reaprendendo, são 12 anos fazendo isso.

Temos muita pesquisa nesse campo para entender por que fazer teatro muda a
ritualidade cotidiana, muda a ritualidade da comunidade, muda a ritualidade da
família e muda... e isso dá resultado de consciência de autonomia psicológica. Isso
a doutora Nise discute na obra dela. O doutor Jung discute na obra dele. E a gente
está na luta né... [...] e eu penso que o grande fenômeno foi esse - a resposta
miraculosa de pessoas que seriam graves e que elas reencontram o caminho da
reabilitação com o segmento com o trabalho clinico.... é muito importante a gente

67
Esse 2º Seminário está Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d0T1jJ5B1AU>, e essa
minha pergunta feita ao Vitor, assim como a resposta oferecida por ele está na minutagem 3:20:08 até
3:27:50. Acesso em 30/06/21
71

resgatar o trabalho clinico, nesse momento. [...]. Todo mundo é louco. Todo mundo
é médico também. Todo mundo tem que praticar as artes de cura.

A medicina virou uma elite cientifica que exclui o nosso tipo de pratica que diz
que a dra Nise não é científica...
É cientifica, sim... a comunidade reproduz.

[...]. E a arte é o bem-fazer. A arte é o bem-fazer. Cooperar né... tentar romper com
competitiva da neurose que é uma doença perigosa. Acho que é isso. Respondi né.
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)

No final do ano de 2018, eu já havia trocado algumas mensagens por e-mail com
o Vitor buscando saber como funcionava, afinal de contas, o trabalho dele. Nessa ocasião
eu procurava terapias alternativas à psiquiatria tradicional. Não me adiantaram muito, tais
mensagens, nem tampouco assistir alguns dos vídeos disponíveis na internet sobre o Hotel
da Loucura. Precisei estar e sentir presencialmente, no coletivo, para aos poucos
compreender as rodas de ciranda, as cantigas, os personagens, as fantasias, os figurinos,
Shakespeare, as bruxas de Macbeth e o fantasma no Hamlet, Jung, A Pedagogia para a
Autonomia de Paulo Freire, Nise com as imagens do inconsciente e a Emoção de Lidar,
As Bacantes de Eurípedes, Spinoza, as poesias, Drummond, Brecht, o improviso, a
criatividade, a Cenopoesia, Vera Dantas e as cantigas de Ray Lima, a intensa seriedade e
poesia de todos os melhores atores do mundo – “o mundo é um palco e todo mundo é
ator”, o cortejo, a espiritualidade presente. Dionisos, mas também Fausto. O tambor, a
cura, o rito. “Loucura sim, mas tem seu método! Evoé. No Arpoador, o Rei Sol. O pavão
e, também, o Mysteriozo, do Ney Matogrosso, no Campo do Santana, ao redor da
Biblioteca Parque Estadual. Ao final, a roda de conversa sobre o ritual, mediada e
comentada pelo Vitor Pordeus – momento especial de aprendizado e reflexão pessoal e
coletiva guiada pela psiquiatria transcultural, pelo teatro e pela psicologia analítica.

O ator é o limite do ator. [...] geralmente um bom espetáculo tem uma boa sombra,
um bom vilão... e uma boa transformação. Uma boa revolução daquela vilania em
possibilidade - em heroísmo né, porque é isso que vai fazer a mudança. E A gente
tem trabalhado nessa base. Pra sobreviver, a gente entra em cena - faz vilão...
mata, morre... e aí depois vem o Dionísio, depois vem a festa, depois vem a
alegria. Mas sempre tem que ter um Hamlet, sempre tem que ter um Macbeth,
sempre tem que ter um Penteu, tem que ter um Fausto, pra gente poder quebrar
esse ambiente ideológico, mortífero né... violento, nazista... que a gente vive pra
poder fazer uma afirmação de liberação. Nessa afirmação da liberação é que os
pacientes curam. E aí, cada um evolui na sua medida, na sua necessidade.
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)
72

Fotografia: Teatro DyoNises

Eu sempre me vi num Teatro Municipal. De eu ser uma soprano... ou de eu ser


uma bailarina no Teatro Municipal. Ou eu ser uma musicista, tocar um
instrumento. [Fabiane: e uma pintora?]
Uma pintora. Era isso/ era isso que eu queria pra mim. [...]
[Fabiane: e como artista... atriz? No teatro do Vitor Pordeus?]
Ah eu gostaria!, porque eu acho que... eu acho que o Vitor Pordeus, ele, é muito,
assim, generoso né... porque... ele abraça a loucura de outra forma né... é uma
outra visão, porque tem gente que gosta muito de dizer que o louco é delirante...
é inventor, inventa as coisas.
Eu acho que ele pode ser mais que isso.

E a maneira como o Vitor olha isso, como ele reconhece... porque a pessoa quando
entra num teatro, vai fazer um cinema, ela é... tipo assim: um delirante de um
personagem né... não concorda? Eh... ele tá ali se expressando. Ele tá vivendo
um papel né... mas sem se prender muito nele. É expressão né... é o momento
daquela hora. De criar, de transmutar aquilo né...
(Renata I., Teatro DyoNises; Espaço Travessia)
73

Nós fizemos o que fizemos no Hotel da Loucura porque eu ficava lá dentro [do
Nise da Silveira] final de semana... de noite... Tava lá atendendo todo mundo.
Conversava com todo mundo. Era porta aberta. E muita gente ali: não cobrava
consulta pra ninguém porque era SUS. Orientava... trabalhava e fazia tudo.
E tem que ter/ tem que ter vinculo: é xamanismo.
Tem que ter o xamã presente.
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)

[...] eu gostei muito daquela [questão] do tempo livre... e tal... [...]. [gostei] de
falar sobre o Teatro de DyoNises que sempre me agrada. Mas uma coisa que eu
queria acrescentar, pra você, na sua pesquisa e, acho, que você deveria botar
também... é que eu acho que a loucura, Fabiane, em grande parte, é uma coisa
espiritual. Entendeu? Eu não acredito que seja uma coisa cartesiana - que a
pessoa seja uma máquina e tenha que se entupir de remédio. Eu acredito mais
numa coisa espiritual. Que com amor e arte se cure. [...] O que a psiquiatria
conhece como uma doença, é uma coisa mais espiritual. Não que seja uma coisa
espiritual... que seja uma coisa de espírito... que seja uma coisa de macumba... ou
uma coisa católica: de castigo de Deus. Mas uma coisa espiritual de ser uma
ancestralidade adormecida. De ser o espírito da minha mãe já preoc/ já... já
arrasado com a educação que ela teve com a mãe dela... passando pra mim. [...] E
não uma coisa cartesiana [...] pra me encherem de remédio, pra me deixarem uma
babaca [...]. (Stela Sepulveda, Atriz Cyber Bacante do Teatro de DyoNises)

[...] Qual é o critério pra você dizer que você é ator? Se você interpreta o
personagem, se você conta bem uma história, se você sabe fazer bem um ritual
teatral, você é ator. [...] O que define o artista é a realização artística. É a
construção prática. Não é a palavra. [...] Tem a ver com ver e ser visto. [...]. Tem
a ver com dialogo. Tem a ver com relação. E tem a ver como diria o Pierre
Bourdieu, com os valores ideológicos do tempo né... do tempo histórico. Então, a
arte no nosso tempo, ela, é considerada uma coisa de celebridade. Ela é
considerada um exercício feito por poucos iluminados. [...]

Ah, eu sou ator... Ah é?! Qual novela que você fez? Ahh não fiz novela, não.
Então, você não é ator né...
A pessoa não sabe o que é um ator, não sabe o que é um artista.
Não sabe nada.
Sabe o que é um monstro sagrado construído ideologicamente pelos valores
capitalistas e isso é uma cilada. [...].

A arte tem a ver com uma manifestação interior. Com uma manifestação do
inconsciente. Uma revelação. Uma construção coletiva. Uma construção de
entendimento, de evolução. [...] O Pelezinho ele fala: a gente faz teatro de
verdade. O nosso teatro é de verdade, um teatro vivo... é um teatro que transforma.
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)

Pelezinho, Jaci de Oliveira, faz música também! Recebi dele um áudio para essa
pesquisa, pelo whatszap: “Fabiane Valmore, na escuta. Fabiane Valmore. Fabiane
Valmore. Na escuta! [...] Olha a letra que eu fiz pro Reginaldo. Olha a letra”. E cantou:
74

Reginaldo. Reginaldo. Reginaldo.


Lá do Pau-Ferro...
...
Reginaldo... e Pelezinho, dupla famosa
de todos os tempo.

Reginaldo. Reginaldo. Reginaldo.


Lá do Pau-Ferro...

Reginaldo. Reginaldo.
Alegria de falar com o Rei.
Alegria de falar com o Rei

Alegria de falar com ele...


Reginaldo Terra, diante de si. ...de todos os tempo... do Teatro do Vitor
Após décadas de vida no hospício.
Fotografia: Teatro de DyoNises, 2021 Alegria de falar com Rei, com Rei, com Rei.
Exposição Nise da Silveira: Com Rei [Hamlet]
A Revolução pelo Afeto, CCBB - RJ Reginaldo...

[...] a ciranda é uma coisa, assim, regional. É uma coisa, assim, que mexe com o
inconsciente meio coletivo. Entendeu? E os personagens, é uma coisa mais de
insight. Entendeu? É mais um sociodrama que se faz. Entendeu? Pelo menos esse
é o meu ponto de vista. [...] Aliás, não seria sociodrama. Seria mais psicodrama,
os personagens. (Stela Sepulveda, atriz Cyber Bacante do Teatro de DyoNises)

Nós trabalhamos com uma concepção de arte como diria o Mario Pedrosa né,
que trabalhou muito tempo com a Nise: uma arte virgem, uma arte espontânea,
uma arte improvisativa. Uma arte que emerge do inconsciente né... Como diria o
Kandinsky: uma improvisação. [...] Então, essa questão de ser artista, Fabiane,
é muito perigosa. Porque quando você começa a falar que é artista, as pessoas
falam com essa cabeça de celebridade. Aí daqui a pouco tão fazendo/ dando
ordem... querem toalha branca... querem né... fazer estrelismo, querem fazer
arrogância, querem fazer né... E aí, cadê o personagem? Cadê a história? Cadê a
peça? Cadê a narrativa? Não tem. Só tem Ego. Só tem Self. Só tem Ego forçado
né... [...]. Não há protagonista sem coro, nem coro sem protagonista. Há uma
metamorfose, uma transformação e no teatro onde isso acontece. E isso é trabalho
do ator. Então, é isso que a gente tem que ver: o que que é o ator? o que que é o
artista? Antes de falar ah é artista, ou não é artista. O que que é arte???

[...] Então, isso é um campo, assim, de muita disputa porque as pessoas defendem
esse modelo elitista clar/ abertamente aqui na Colônia. Na Colônia todo mundo
quer sonhar/ pensa em elite, em galeria de arte, em museu... em coisa que pobre
não entra. Onde gente preta não entra né. Ninguém pensa que um terreiro de
Candomblé é uma obra de arte. Que um terreiro de Umbanda é uma obra de arte.
Que uma roda de capoeira é uma obra de arte. Que uma escola de samba
desfilando com 10 mil pessoas numa avenida é uma obra de arte das maiores da
história da humanidade né... Ninguém pensa que... um... um... bairro bonito, bem
preservado e com verde, com arvore, com arvores bonitas, com espaços públicos
bem cuidados é uma obra de arte. Ninguém pensa que um casamento bem vivido,
uma relação bem vivida é uma obra de arte né. Então, isso, é que é a questão né...
As pessoas estão fetichizando a arte.
Como estão fetichizando a ciência. Como fetichizam o dinheiro.
75

Então, a gente compra muito gato por lebre. E o paciente psiquiátrico é o primeiro
a comprar gato por lebre porque ele já compra essa história de nosologia
psiquiátrica. Que é uma mentirada. Não funciona na realidade. A natureza nunca
soube de nosologia psiquiátrica na vida. [...] Quantos artistas eu perdi porque não
se autorizaram a entrar em cena. Quantos artistas, quantos atores, perderam a
oportunidade de cura. Quantos pacientes perderam... Ah não! Teatro eu não sei
fazer. Teatro eu não posso fazer. Quantas vezes eu ouvi autoridade aí da saúde
pública falando: Não... teatro não é pra todo mundo. A arte não é pra todo
mundo. (Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)

***

3.2 ESPAÇO TRAVESSIA – Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde - Instituto Municipal


de Assistência à Saúde Nise da Silveira (IMASNS)

Já o Espaço Travessia, foi inaugurado pelo fotógrafo e comunicador social,


Marcelo Valle, ocupando o lugar do Hotel da Loucura, algumas semanas depois do Vitor
ter sido exonerado da coordenação do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, em 11 de maio de 2016.
Esse processo de transição do Hotel da Loucura para o Espaço Travessia, dentro
do Nise da Silveira, ocorreu em meio a uma crise que envolveu manifestações públicas a
favor do Hotel da Loucura, e, portanto, contra a exoneração do Vitor Pordeus. E
consequentemente, contra a entrada do Marcelo Valle, que havia sido convidado a
assumir o referido Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde no lugar do Vitor Pordeus, em
maio de 2016, logo após a referida exoneração.
Um pouco da dimensão da profundidade dessa tensão68 que se configurou
imediatamente após a exoneração do Vitor Pordeus em 2016 e se complexou durante o
processo de transição que culminou com a entrada do Marcelo Valle no Nise da Silveira
e, portanto, com o encerramento das atividades do Hotel da Loucura e a subsequente
criação do Espaço Travessia, pode ser percebida ainda hoje (2021) na fala de ambos.
Deixo aqui, as respostas oferecidas pelo Vitor Pordeus e pelo Marcelo Valle,
quando solicitei que me contassem um pouco de suas histórias de vida dentro da Teatro
Clinica DyoNises e dentro do Espaço Travessia. Respectivamente:

68
Existem muitos registros e pesquisas acadêmicas que narram e/ou analisam o encerramento das
atividades do Hotel da Loucura. Alguns, estão disponíveis em:
“Morreu o Hotel da Loucura” <https://youtu.be/hfJJfIukH2M>
“O Hotel da Loucura corre perigo” < https://youtu.be/ZxSxYZqDGwM>
“Hotel da Loucura chega ao fim com exoneração de idealizador” <
<https://oglobo.globo.com/rio/bairros/hotel-da-loucura-chega-ao-fim-com-exoneracao-de-idealizador-
19761064>
76

Então, eu comecei a fazer teatro lá em Realengo, quando eu tinha 9 anos. [...]


era um grupo amador chamado Caras e Máscaras [...] num condomínio [...] na
avenida Santa Cruz, que é a avenida principal. Eu morava na Cohab [de Realengo]
né... que era bem, assim, pra dentro. [...] me fixei e montamos o Chapeuzinho
Vermelho, da Maria Clara Machado. [...] foi uma experiencia muito positiva. As
nossas famílias se envolveram muito. [...]. Foi uma experiencia, assim, muito forte,
muito mágica para mim, nessa época... isso durou anos. [...] daí, eu lembro,
quando eu já tava com uns 12 anos, assim, já tava tipo na 7ª serie, a minha mãe
veio com a história de que eu tinha que parar de fazer teatro pra poder estudar...
porque eu queria ser médico. Já queria ser médico, mas queria ser ator também.
Eu falava pra ela que eu queria ser ator e médico. E, aí, eu paro de fazer teatro e
vou pro 2º grau em Técnico de Patologia [...] encontro vários amigos nerd, assim,
na turma, na escola, lá em Realengo, e a gente jogava muito RPG. [...] aí, eu fui
me afastando do teatro...[e] depois, do RPG. [...]. Aí, vem o Rock in Roll do
vestibular em medicina, né... que foi muito difícil para mim. Eu venho de
Realengo [...] não foi uma educação forte - eu estudei em colégios do subúrbio,
considerados né... que não preparam direito, não sei o quê... Então, eu tive essa
neurose muito intensa de me preparar pro vestibular de medicina. E aí, eu só vivo
disso, né. Eu ficava exclusivamente voltado pra isso... tento a primeira vez, no
final do 3º ano e não passo... tento a segunda vez e passo pra UFF. E aí, começa
toda a loucura da Escola Médica...

[...] começa aquela ciência cartesiana... aí, começa aquela coisa de estudar
anatomia, biologia celular, imunologia... eu me dei bem com a imunologia [...] eu
já sabia imunologia do Curso Técnico de Patologia. Então, isso me abriu as
portas da pesquisa em imunologia... a hematologia, e tal...

E, aí, tem a coisa da morte do meu avô que foi um trauma do 3º ano... e, aí, eu
fico adoecido durante o curso médico inteiro. A partir do 3º ano já vira um filme
de terror... eu já não consigo mais... já tem alguma coisa fora do... do... da ordem,
ali, que eu não conseguia entender direito.

Aí, vou pra Israel, [pro Instituto Wiezmannn], em 2004, faço a minha pesquisa com
imunologia - ganho Bolsa de Pesquisa de 10 anos. 10 anos eu fui imunologista [...]
trabalhando com muita dificuldade... eu sentia que faltava alguma coisa. Eu
ficava doente, tinha crises, ficava deprimido. Persistia algum problema.

E, aí, eu vou pra fazer doutorado em imunologia na USP e, também, em paralelo


nessa trama, vem o trabalho com o Nelson Vaz e o [Humberto] Maturana, né...
[...] a professora que me expulsou [da USP] quando ela me expulsa, quando ela
assina o meu termo de desligamento, ela fala assim: você tá indo atrás de um
filosofo de fim de linha e de um imunologista que não sabe de nada de medicina.

O filosofo de fim de linha é o Humberto Maturana que é o maior biólogo vivo, o


maior biólogo do século XX e XXI... [faleceu em 07/05/21]. É ele o novo Darwin,
né... o Darwin do Sul. E o Nelson Vaz, é o maior imunologista brasileiro. É o
Pasteur do Sul, também – reformula o pensamento imunológico. E aí, eu entendi
isso: que eu tava na verdade incomodando, ameaçando. Mas muito deprimido,
doente. Adoecendo, levando porrada... levando porrada desses nazistas se
passando por Nise. Todo mundo de jalequinho branco, fazendo pose, sentando
em gabinete... mas no fundo, fazem uma ciência nazista, uma biologia nazista.

Uma ciência que seleciona o superior do inferior, né... que só trata quem pode
pagar, só trata quem é branco. Quem é preto, morre, aí, 30 anos antes - não tem
77

nada, não tem nem nutrição. Então isso incomoda né... os jalecos brancos, né...
os doutos professores das cátedras e dos púlpitos da faculdade de medicina.

[...] isso, foi uma coisa que foi conflito com a minha origem. Eu, quando vi o
meu avô morrer por negligencia medica no hospital público dos pobres, isso, me
estilhaçou. Isso me jogou na cara uma situação que eu já sabia que acontecia, que,
eu, ali não tinha recursos, ainda, para interferir e, hoje eu tenho [...]. E isso foi
uma sensação de destruição mesmo. [...]

A medicina que eu pratico, hoje, não exclui a minha família. A medicina que eu
era forçado a praticar dentro de hospital, hospital privado... eu saí contratado pra
trabalhar no Pró-Cardíaco, que é o hospital mais rico e mais importante da cidade
do Rio de Janeiro. Eu saí da UFF... o meu professor de cardiologia me levou pra
trabalhar no Pró Cardíaco. Eu fui trabalhar na Secretaria [Municipal] de Saúde
[do Rio de Janeiro] porque o meu chefe do Pró-Cardíaco virou o Secretário de
Saúde da noite pro dia, com Eduardo Paes, o prefeito da época, que agora
voltou... é... havia feito... e essa [pessoa, Hans Fernando Dohmann] foi uma
pessoa que foi queimada no processo da gestão, foi totalmente destruído...
politicamente. Justamente por quem tá hoje no poder.

Então, é uma situação de você ser coerente com a sua origem, Fabiane,
entende?! Você não pode trair a sua origem, você não pode trair os seus
ancestrais. Porque se você não souber as suas origens, você acaba sambando no
lado da inquisição. E aí, nessa época, no fundo do poço, já... né... já tinha sido
expulso da USP, já não aguentava mais os meus colegas da medicina, já não
aguentava mais a medicina privada, já não aguentava... é... né... essa falta de
perspectiva né... de ser o médico que eu sonhei na infância né... que hoje eu sou.
Eu sou o médico que eu sonhei na infância. Então, eu... eu... eu... eu... eu fico,
assim, muito mal e volto pro Brasil, volto pro Rio. E também [continuo] indo pra
Israel, frequentemente, que foi uma luz na minha vida, foi um oxigênio, assim,
poder sair dessa realidade tão deprimente - da realidade da medicina colonizada
do terceiro mundo e ter, lá, em Israel, por exemplo, uma medicina onde a
pesquisa é levada a sério, onde todo médico pesquisa, onde todo médico publica,
onde todo mundo é envolvido em projetos, onde tem dinheiro pra isso, onde tem
doações, onde tem... né... é um outro ambiente... realmente...

[...] A Academia Brasileira é um cartório colonial. Todo mundo ali dando


certificado de merda... e reproduzindo, e imitando... a ciência estrangeira, como
se ela tivesse a ver com a nossa realidade. Não tem. Nós temos que formular os
nossos próprios programas de pesquisa. Nós temos que formular a nossa própria
pesquisa de psiquiatria. Sobre Nise da Silveira, sobre Nelson Vaz. Não tem. Sobre
Juliano Moreira, sobre Osorio Cesar, sobre Ulisses Pernambucano né... toda a
tradição da ciência psiquiátrica brasileira – que existe.
Então, quando eu chego nesse entendimento, que as portas tinham fechado...
Entendeu? [...] volta a memória do teatro. Entende? O teatro, ele, me salvou,
justamente, voltando como memória positiva, memória de trabalho.

E aí, eu vou fazer teatro aqui no Rio – que também foi outro martírio. Porque o
teatro é um lugar governado por egos, egos mastodônticos, muita vaidade, muito
diretor idiota, muito ator idiota, muita gente se vendendo, muita gente sem
consciência da importância do oficio do teatro, muita gente sem consciência do
poder de cura que o teatro tem, sem consciência da história do teatro, que tá
lotado, tá tudo ali explicado - não tem que inventar nada. E aí, eu trabalho com
muitos atores e muitos diretores aqui do Rio [...] tudo o que tava aí circulando –
78

o que aparecia eu ia... porque eu tava em formação. Eu decidi que eu ia voltar a


ser ator e que ia restaurar né, essa ideia de teatro, na minha vida, como prática.

[...] aí, eu tinha uma amiga muito importante nessa época chamada Duse
Nacarati... que é uma grande atriz [e faleceu em 2009]. [...] e, também, o Ney
Matogrosso, que já era meu amigo [...]. No nível pessoal, as 2 referencias mais
importantes que eu tenho são atores. O Ney é um ator que canta. Ele fala: eu sou
um ator que canta. E a Duse, uma grande comediante. [...]. Dois artistas
extremamente humanos, extremamente simples. [...]. E a Duse me falou: vai na
Camila Amado, vai na Camila Amado, que a Camila vai te ajudar. E a Camila me
ajudou muito. Ela foi a primeira pessoa a falar assim: Calma menino, não é só
Apollo. Tem Dioniso também. E isso foi uma explosão na minha cabeça. [...] aí,
que eu comecei a ler sobre Dioniso, estudar Dioniso, entender o que que é Dionísio.
Mas isso foi, realmente...

Em 2006, no comecinho da caminhada. E, aí, eu vou trabalhando, trabalhando...


aí, a Duse fala: agora acho que você tem que ir no Amir... Haddad. Vai no Amir.
Ela me levou no [grupo de teatro] Tá na Rua, me apresentou ao Amir [Haddad], e
eu comecei a trabalhar com o Amir, lá no Tá na Rua.

Não sai, fiquei. Eu trabalho com o Amir até hoje né. [...] eu trabalhei com ele uns
9 anos contínuos – que foi de 2006 até 2014, que foi quando teve o Ocupa Nise,
em 2014, com a Rede Brasileira de Teatro de Rua. A partir dali a gente, meio que
se afastou mais um pouco, justamente para poder dar mais ênfase no aspecto
terapêutico, né... dar mais ênfase no aspecto niseano do trabalho, que é um aspecto
que o Amir não valoriza tanto na pratica dele né... a coisa da terapia... é... de
assumir o teatro como uma ferramenta de cura, de terapia, de medicina né...

[...] Eu acho que o Tá na Rua é a base metodológica do que a gente faz em termo
de teatro. [...] aí, vou pra... fundo o laboratório Tupi Nagô e faço a primeira peça:
“E ainda assim se move”. Que era a história de um médico [...] e ele queria ser
cientista e é expulso da universidade... tem um paralelo... a personagem principal
dessa peça é a Barbara Malinton, que é uma cientista que ganhou o Prêmio Nobel,
em 1974 com a ideia de que os genes pulam... né. Ela é uma pioneira da
Epigenetica. [...] essa peça tem um momento glorioso: a gente faz 2 noites, que o
elenco era Duse Macaratti, Amir Haddad, Ney Matogrosso, Leão Vieira, Nando
Rodrigues, Miguel Campelo – todos meus amigos, artistas, importantes,
defendendo o repertorio que eu já vinha propondo ali na abertura – que era uma
autobiografia tragicômica tal. Isso é o Laboratório Tupi-Nagô.

Nessa época, eu visito a casa do Spinoza na Haia [Holanda]... eu já tinha uma


ligação muito forte com o Spinoza, já desde antes. E aí, [...] já tamos em 2008. O
Eduardo Paes ganha a eleição e convida o meu chefe do Pró-Cardíaco para ser
Secretário de Saúde. Secretário Hans Dohmann... Hans Fernando Dohmann. E
ele me chama... pra ir junto. Fala: vão bora, cara. Vamo comigo. Vão ver o que
que a gente consegue, aí, pra uma Pasta de Cultura e Saúde. E eu entrei com essa
missão de fazer uma Pasta de Cultura e Saúde pra Secretaria de Saúde69. E fiz. Em
sete anos de trabalho eu fiz [janeiro de 2009 a maio 2016].

É só olhar a produção que nós fizemos. Como nós fizemos. [...] tudo isso foi uma
política municipal de cultura e de saúde. Foi uma política pública executada de

69
Sobre o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde (NCCS) da SMSDC-RJ: ver, Ciência, arte e cultura na
saúde urbana - Vitor Pordeus. Disponível em: https://brasil.campusvirtualsp.org/node/182448>.
http://nccsrio.blogspot.com/
79

portas abertas que toda a comunidade participava. No ápice, né... no início da


experiencia, quando a UPAC [Universidade Popular de Arte e Ciência] foi
fundada, nós tínhamos 14 comunidades. Então, saiam grupos do Complexo do
Alemão e iam ao Museu de Imagens do Inconsciente, visitar o Museu... saiam
encantadas [...] tinha uma van né... que parece que tá nas mãos desses golpistas,
aí... esse pessoal é golpista, Fabiane... [...] eles não têm voz... dentro né... de um
movimento legitimo, de um movimento de construção autentica, que a gente esteja
querendo, né... defender. E, aí, tinha essa van, que a gente... os grupos da
comunidade circulavam [...] a UPAC começou a funcionar, porque os grupos
circulavam e tinham resultado [...] A gente abre as Escolas Populares de Saúde,
no Morro do Urubu, no Complexo do Alemão, em Campo Grande, em... em... na
Agua Santa, no entorno do Hospício... a gente fazia uma agenda com a van [...]

Então, nós víamos que tinha um movimento vibrante. [...] e isso, foi ganhando
força. Das 14 comunidades que nós trabalhamos, a mais vibrante, a que mais
explodiu coisas, a que mais aconteceu coisa, foi o hospício de Engenho de
Dentro, foi o... a Nise da Silveira. Era a energia da Nise, eu via, isso, que a energia
da Nise puxava o bonde... né. A coisa explodia.

E aí, eu comecei a fazer a formação dos Agentes Culturais de Saúde dentro do MII.
Isso, ninguém fala. [...]. Eu coloquei o José Pacheco e o Ney Matogrosso dentro
do MII e não tinha ninguém pra receber [...] o maior educador vivo né... em
atividade no pais, hoje. Então, há algo de podre, há algo de... estranho né...

Aí, em 2010, eu fundo o Teatro de DyoNises, fundo a UPAC, em 25 de março de


2010 [...] que foi a 1ª residência que eu tive né... durante o trabalho da prefeitura.
E, aí, com esse crescimento do Engenho de Dentro, do Museu [de Imagens] do
Inconsciente... o Lula Wanderley foi muito importante pra mim. [...] me
acompanhou o tempo inteiro. O Lula Wanderley não compete. [...]. E ele ajudou a
gente à beça... [...] os pacientes, todos, frequentavam o Hotel da Loucura. Todo
mundo participava, enquanto o pessoal do Museu dizia: não, o Hotel da Loucura
não funciona, não é bom. O Lula sempre apoiou, sempre deu força... e, essa coisa
da Lygia Clark, que ele trabalha - a estruturação do self.
Isso tudo é uma continuidade da clínica de psicose da Nise.

Isso aí, não tem que ter competição, gente. Nós vamos competir pela miséria que
a gente vive. Nós vamos competir por essa merda de cartório colonial que a gente
vive... que tá tudo dando errado... que a política pública anda pra trás... né... Então,
isso é tudo loucura. É loucura entre quem próprio diz que tá trabalhando em torno
de promoção de saúde mental. [...] E aí, fundamos o DyoNises [...] em 2010 [...]
no Chalé, no epicentro do terreno do Hospício de Engenho de Dentro.
80

Fotografia: Fabiane Valmore, junho 2021

E, aí, em 2011, a gente faz o 1º Congresso da UPAC que foi importantíssimo.


Muitos grupos mobilizados, muitas pessoas [...] vem o Ray Lima, a Vera Dantas,
o Movimento de Educação Popular em Saúde, o José Pacheco participou, o pessoal
da Secretaria, as ONGs de promoção de saúde e da Secretaria, tudo né...lá
mamando... não sei o que... todo mundo participando [...] o Junio Santos participa
e aí eu falo com o Junio [...]: vamos fazer o Congresso da UPAC do ano que vem
no Nise - aí, já é a metodologia do escambo livre de rua. Aí, a gente evolui do Tá
na Rua pro escambo livre de rua do nordeste – o Junio Santos, a Vera Dantas e
o Ray Lima. Que é um equilíbrio muito forte, um equilíbrio muito interessante
da cenopoesia.

Aí, do 2º Congresso pra frente, [...] quando começa o Ocupa Nise, 2012, é quando
abre o Hotel da Loucura, o referencial básico é a cenopoesia. Aí, a gente começa
a trabalhar com essa ideia de Cenopoesia e transforma o Engenho de Dentro num
Parque Cenopoético. A gente fazia cortejos em toda parte [...] e tudo era
Cenopoético e formado... matriciado e trabalhado e dialogado com o próprio Ray
Lima, com a própria Vera, que são os criadores dessa linguagem de cenopoética.
O Ray Lima, principalmente, e essa coisa do movimento de escambo livre de rua.
Se você ver o último Ocupa Nise de 2015, ele era chamado de escambo livre de
rua do Engenho de Dentro e eu faço isso em homenagem ao Junio [Santos], à
Vera [Dantas] e ao Ray [Lima] porque eu entendo que o Junio, a Vera e o Ray,
são a esperança do Brasil – e a gente tem que entrar por aí, por outra linguagem.
Por cenopoesia. Isso que funcionou.

O último Ocupa Nise que foi feito, acho que, em setembro de 2015, e eu sou
exonerado em maio de 2016, foi histórico, porque a gente pegou a comida da
comunidade. Todo mundo comeu da comida da comunidade e a gente viu que
funciona mesmo... e gastamos muito pouco... e o Hotel da Loucura crescendo,
cada vez mais crescendo com residências artísticas, grupos... e pessoas. E aí, em
2016, vem a crise e a gente perde o cargo. E, aí, desmorona.
81

O que foi surpreendente é que muitos artistas dentro do Hotel da Loucura se


alinharam com o Hospício. Tão lá alinhado com o hospício até agora... ou, já
desistiram: ficaram um pouquinho e depois foram embora, só ajudaram a
confundir a hora da crise. Muitos funcionários, a maioria se alinhou com o
hospício. Não alinhou com a UPAC. Então, a gente manteve alinhamento com a
UPAC né... e fizemos um ritual de morte do Hotel da Loucura para sinalizar que
aquele espaço não era mais o nosso espaço e que a gente continua essa proposta
[fora do Nise].

Hoje, eu continuo no meu consultório e nas praças públicas. Graças a Deus,


estamos conseguindo reativar isso. Fora que nós tivemos... isso no final do ano de
2018 e o ano de 2019 inteiro e o início do ano de 2020, com muito trabalho. Muito
trabalho clinico. Muito trabalho de teatro. Nós montamos a Lilla. Nós montamos
o Macbeth. Nós montamos o Hamlet na Biblioteca [Parque Estadual]. Montamos
a Lilla no Méier. Montamos o Macbeth na Biblioteca Parque, montamos o Macbeth
no Campo de Santana e, depois, as Bacantes. Foi um ano muito intenso. Foram
quatro peças muito intensas. E as Bacantes, foi o que fechou, antes da pandemia...
que é uma profecia né.. A gente tá vivendo o momento que Dionisos tá preso. E
que Penteu tá governando com o medo, com a morte. E agora, nós estamos
encenando o Hamlet de novo. E tá vindo com força.
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises, 18 fev. 21)

***

[...] Eu [Marcelo Valle] fui convidado a assumir o Núcleo de Cultura, Ciência e


Saúde em maio de 2016. Então, vai fazer cinco anos que eu estou lá né... com os
percalços, mas, vão fazer cinco anos. O Núcleo de Cultura Ciência e Saúde até
então, era o Hotel da Loucura – era um dos braços desse Núcleo. Ele ficava... a
sede principal ficava na Prefeitura do Rio de Janeiro. E era mais ligado à
promoção da saúde. Não à saúde mental. E era coordenado na época, pelo Vitor
Pordeus. E... quando eu entrei, já era Hotel da Loucura... e tinha uma atuação...
o Vitor tava no Canada [...] quando eu entrei, foi muito polêmico, assim né. Teve
muita rejeição, muita... parecia que era uma panela de pressão que tava preste a
explodir e foi o que aconteceu: explodiu.

O Vitor era querido por uns e odiados por outros [...]. Então, em maio [de 2016]
eu assumo, lá, o... então, Hotel da Loucura. Para que a gente não tivesse ... para
dar uma cara nova, dar uma cara mais próximo daquilo que eu acredito, das
coisas que eu acredito, eu renomeei o espaço, para Espaço Travessia, né. Mas
não é só uma questão de nome, é uma questão de atitude também. A gente manteve
muitos funcionários que tavam lá. Só três pessoas saíram na época... né. [...]

Tem alguma coisa que você queria falar ou pontuar [Fabiane]?

[...] O Núcleo de Cultura é o Espaço Travessia, hoje em dia - já não vejo tanta
diferença assim. [...]. Até 2014 esse Núcleo ficava direto no gabinete do prefeito.
[...]. O Vitor [Pordeus] tinha relação muito próxima com o secretário de saúde.
[...]. Em 2014, o Eduardo Paes [...] através do Soranz, que inclusive hoje, é o
atual secretário de saúde... Daniel Soranz, ele, corta essa relação e o Núcleo
passa a pertencer ao organograma do Nise da Silveira. Do Instituto, entendeu?
[...] O Núcleo não é um Núcleo da Saúde Mental, entendeu? É um núcleo ligado
à promoção da saúde. [...] Depois o Núcleo vai parar dentro do Nise - quando ele
[o Vitor Pordeus] cria o Hotel da Loucura, o Núcleo vai se estabelecer lá, com
mais força. Entendeu? Recebendo dinheiro da prefeitura, da promoção da saúde.
82

Tinha uma verba especifica para o Núcleo, hoje em dia já não existe mais. Foi
sendo cortado. [...]. Hoje em dia ele é mais voltado para o espaço, para as ações
no Espaço Travessia. [...]. Mudaram as relações, também - não dá mais para
trabalhar da mesma forma. Temos várias limitações.

Hoje eu resumo o espaço ao Espaço Travessia. O Núcleo, ao Espaço Travessia,


que eu acho que é o que mais representa. [...] Então, de 2016... de maio de 2016
até hoje, como eu te falei, a gente enfrentou muita resistência... eu só fui
conseguir colocar os pés lá dentro, mesmo, em junho ou julho de 2016 - foram
praticamente meses de negociação... com alguns funcionários e com os clientes,
assim... que eram muitos ligados ao Vitor e tal... porque [o que] ele falou na
época, em 2016... foi aquele golpe, foi aconteceu o golpe. O Vitor estava no
Canada [...]. Já estava algum tempo lá no Canada e ele foi exonerado quando tava
no Canada [...]. Não vou ficar julgando nem nada disso. Mas, enfim. O Vitor pelo
o que me parece tava seguindo uma linha muito exclusiva de teatro e estava
abrindo mão de outros projetos e focando só no teatro ali dentro também. Me
parece. [...] Não vou ficar falando do Vitor, eu tô falando do Travessia. [...] só estou
te falando isso, porque o grau de dificuldade de entrada foi em relação a isso. [...]
Então é isso. Teve uma dificuldade muito grande de entrada neste primeiro
momento e muitas críticas, assim, porque eu não sou da área de saúde mental.

Minha formação é em Comunicação [Social]. Sempre trabalhei com fotografia e


comunicação popular em comunidades - seja em zonas rurais ou urbanas. Mas a
minha passagem sempre foi neste sentido. Quando eu recebo o convite para
trabalhar lá é porque eu já havia feito um bom trabalho com cultura. Já tinha
uma pegada que a Superintendência entendeu que seria legal de estar ali dentro,
de alguma forma.

[...] Eu gosto muito, muito, muito de Guimarães Rosa. Eu acho que o Guimarães
tem uma obra muito grande e muito complexa... mas ele consegue transitar bem.
Dialogar bem com o erudito, com o popular, com a filosofia, com o cotidiano do
povo brasileiro de forma geral. [...] ele tem alguns contos que ele fala da loucura.
[...] a maior parte da obra de Guimarães Rosa se passa no sertão de Minas. [...] E
uma delas, pra mim, é a Terceira Margem do Rio e a outra, é o próprio Grande
Sertões Veredas [...] Ele tem umas leituras em cima da loucura que são bem
interessantes. Muitas vezes não são nem explicitas, mas ele fala o tempo todo da
questão da travessia.
A travessia pode ser entendida como a própria vida.
A travessia pode ser entendida como atravessar um momento ruim.
A travessia pode ser entenda como atravessar o sofrimento.

Eu acho que umas das características talvez da loucura ou dessas condições seja
um atravessamento da gente. Atravessar aquele momento ali. Há mil formas de
leituras diferentes.

Eu entendo a loucura como um atravessamento, um mergulho ou...


Tem gente que vai se resolver, tem gente que não vai se resolver.
Por que? Eu não sei.

Acho que não existe uma resposta para isso. Não tem resposta para isso. Tem
psicanalistas, tem analistas que vão tentar dar volta naquilo ali, naquelas questões.

Mas acho que nunca vão conseguir esbarrar naquilo que é a loucura de fato.
Eu acho né.
(Marcelo Valle, Espaço Travessia, 13 mar. 21)
83

Fotografia: Fabiane Valmore, junho 2021.


Patamar de entrada e saída do Espaço Travessia.
“Casa do Sol”, um dos prédios do Nise da Silveira.

Se foi um gato que levou a transformar o velho


conceito de Terapêutica Ocupacional em Emoção de
Lidar, surpreendentemente agora é uma gata, pintada
pelo surrealista Victor Brauner, que nos oferece o
mais exato conceito de esquizofrenia: uma figura
feminina é metade mulher, metade gata e de seu seio
nasce uma flor. (SILVEIRA, 1998, p.31)
84

Fotografias: Fabiane Valmore, junho 2021.


Acesso aos 1º e 2º andares do Espaço Travessia

[...] fui parar no Nise da Silveira. Cheio de arvore, cheio de


natureza. Falei: esse é o meu mund/ bem-estar. Gosto das
pessoas, gostos dos pacientes. [...] Eu adoro ir na Casa do Sol e
ver os escritos. As pessoas/ é maravilhoso porque as pessoas
escrevem na parede, sabe... Tem os pintores que pintam na parede
e tem uns que escrevem.
(Renata I. Espaço Travessia; Teatro de DyoNises)
85

Fotografia: Edson Antunes, Espaço Travessia

Eu só te digo uma coisa: sofrimento, todos nós temos. Só que eu encontrei um


jeito de botar pra fora esse sofrimento. É onde eu encontro afeto e amor. É
quando eu boto o sofrimento pra fora numa tela. Num desenho. Uma coisa que me
fazia muito sofrer eu consigo botar na tela e conversar com esse desenho. Com
esse trabalho. [...] Portanto hoje, o meu remédio foi suspenso né, porque a arte
me fez um homem totalmente diferente, né... um homem mais centralizado. Eu,
quando tô no meu lado, assim, meio... sombrio, porque ainda existe aqueles
fantasma, ainda, na minha cabeça. Das coisas que ainda acontecia... ainda vem.
Mas eu consigo superar isso através de uma tela, através de uma tinta, através de
um desenho. Através de um pesadelo que eu boto numa tela. Isso pra mim é muito
bom, né. Isso é maravilhoso. [...] Então, sofrimento, é aquilo... sofrimento...
quando eu tô no sofrimento eu consigo passar pr’uma tela esse sofrimento. Aí
esse sofrimento some de dentro de mim. (Edson Antunes, Espaço Travessia)

[...] Em 2017, mesmo, eu conheci o [Centro de Convivência e Cultura] Trilhos do


Engenho [no Instituto Municipal Nise da Silveira]. Conheci a Travessia e
conheci... conheci o... o Museu [de Imagens do Inconsciente] da Nise da Silveira.
[...] E foi muito legal essa época. [...] O Travessia, eu vim aqui conhecer... [...] foi
até um colega meu do Trilho do Engenho [que me] falou que aqui tava dando, na
Travessia, um curso de inglês. E aí, eu comecei vir aqui e eu achei aqui
maravilhoso. Era muito aberto... e aí eu conheci o Marcelo. Fiz um desenho aqui
[...] mandaram pro Marcelo e aí o Marcelo achou maravilhoso e falou:
Aahh vamo fazer uma exposição de arte?
Aí eu vim e fiz a exposição [...] de arte [Diálogos com o Vazio], aqui, em 201770.
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

70
Uma parte do trabalho do artista Eduardo Marciano, que esteve em exibição na Ocupação Artística:
“Diálogos com o Vazio”, realizada pelo Espaço Travessia, em 2017, está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=0i-4t-GkGPQ>. Acesso em 19/10/2021
86

Ocupação Artística: “Diálogos com o Vazio”, 2017


Fotografias: Página do Facebook do Espaço Travessia
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

Eu fiz Oficina de Dança [também]. Na época da Oficina de Dança eu fiquei


espantado: eu não queria nem fazer, entendeu? O pessoal me convidou: faz a
oficina de dança! Aí eu conheci a Rita [Serpa], mas mesmo assim... eu num/ eu
gosto mais de desenho. Mas eu faço a terapia ocupacional com a Rita [no Coletivo
“Girassóis da Nise”]. Às vezes a gente se diverte um pouco, entendeu? É legal. É
que eu nunca me interessei com dança... mas aí eu coloco algumas coisas de
dança... na internet... ai, as vezes, eu se inspiro em algumas coisas.
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

Estive no Instituto Nise da Silveira entre janeiro e fevereiro de 2020 para uma
conversa preliminar e informal sobre o projeto de pesquisa e, consequentemente, sobre
as possibilidades de viabilização dele, tão logo fosse aprovado pelo CEP da SMS-RJ71.

71
Em julho de 2020, recebi Parecer Favorável, do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (CEP-SMS/RJ), à realização da presente pesquisa – um
protocolo do Instituto Municipal Nise da Silveira que precisou ser cumprido para a minha entrada em campo
no Espaço Travessia. Às demais três instituições participantes dessa pesquisa, (IPUB-UFRJ, Instituto
Municipal Philippe Pinel e Museu Bispo do Rosário/IMASJM) foram suficientes a aprovação do Projeto
de Pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFPR e dos respectivos CEPs de cada uma dessas três
instituições. No caso do Teatro de DyoNises, recebi autorização do próprio Vitor Pordeus, logo após o
parecer favorável emitido pelo CEP/UFPR, em dezembro de 2019. Significou isso que a minha entrada
formal em campo como pesquisadora em busca da execução do projeto de pesquisa que deu origem a esse
trabalho, em cada um desses 5 espaços, se deu em momentos diferentes. Menciono aqui o fato de que,
desde junho de 2019, respaldada pela Resolução CNS n° 510/2016 que “dispõe sobre as normas
aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais”, concomitante à escrita do Projeto de Pesquisa
que deu origem a esse trabalho, iniciei diálogo com as 5 coordenações/instituições demonstrando o meu
interesse de pesquisa e convidando-as, desde, aí, a refletirem junto comigo e a participarem do
presente estudo. Esses primeiros contatos foram necessários, também, devido a necessidade que houve de
se submeter na Plataforma Brasil para análise ética, não apenas o projeto de pesquisa, mas também diversos
87

Mas, dada a mudança/reestruturação de espaço físico pela qual passava o Espaço


Travessia, nessa ocasião, não pudemos, Marcelo e eu, avançar muito nessa conversa que
já havia se dado pela primeira vez, em julho de 2019, ocasião na qual tramitava o processo
de solicitação de autorização para a realização dessa pesquisa. Pude somente conhecer o
antigo Chalé e a antiga “Casa Amarela”, que estavam na ocasião sendo reestruturados
para abrigar o Espaço Travessia.

Fiz uma exposição de arte aqui em 2017. Eu ia fazer uma exposição de arte, também
em 2019, só que em 2019 teve uma construção civil aqui que falou que ia derrubar
isso aqui tudo... Aí, no final, não teve nada. Tá tudo aqui inteiro. Entendeu?
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

Ademais, a Pandemia causada pela COVID-19, impediu de vez, qualquer ação


possível, presencial e coletiva em todo o decorrer desse ano de 2020, da qual eu pudesse
estar presente para fins de realização dessa pesquisa. Marcelo e eu não perdemos o contato
devido a isso e eu pude desde então conhecer e acompanhar online algumas das atividades
promovidas pelo Espaço Travessia.
Em fevereiro de 2021, retornei ao Rio de Janeiro, mas as atividades coletivas no
Espaço Travessia permaneciam todas suspensas. Nessa ocasião pudemos apenas
conversar sobre a realização das entrevistas para essa pesquisa.
Significou tudo isso que as minhas visitas formais ao Espaço Travessia como
pesquisadora estiveram limitadas/impedidas, mesmo com Parecer favorável à realização
dessa pesquisa emitido pelo CEP da SMS-RJ, em julho de 2020.
Saliento aqui o meu sentimento de pesar pela impossibilidade de realizar a
presente pesquisa junto à Axxx, uma senhora de aproximados 40 e poucos anos, com
quem pude estar muitas vezes durante o ano de 2019, em diversas atividades comumente
consideradas terapêuticas - dos chamados procedimentos de Práticas Integrativas e

outros documentos, dentre os quais, Cartas de Anuência assinadas por cada uma dessas 5
coordenações/instituições que aceitaram me receber como estudante-pesquisadora do curso de graduação
em Ciências Sociais, da UFPR, sob a orientação da professora Dra. Maria Tarcisa Silva Bega, do
departamento de Sociologia. Raquel Fernandes (05 jul.19), Vandré Vidal (17 jul.19), Alexandre Ribeiro
Wanderley (29 agosto 19), Vitor Pordeus (02 set.19) e Marcelo Valle (04 set. 19). O Parecer
Consubstanciado que aprova a realização dessa pesquisa está registrado na página eletrônica da Plataforma
Brasil, pelo número 3.781.930, assim como, o Projeto de Pesquisa, pelo CAAE: 22739019.2.0000.0102.
Minha primeira intenção/desejo/vislumbre de propor na UFPR uma pesquisa sobre o tema da Loucura
aconteceu por mensagem encaminhada por e-mail às professoras Simone Meucci e Tarcisa Silva Bega em
09 ago.18 – logo após ter estado no Museu Bispo do Rosário em julho de 2018. Em novembro de 2018 eu
participei do I Seminário no Nise da Silveira e em julho de 2019, do Seminário, na antiga Colônia Juliano
Moreira. No Museu de Imagens do Inconsciente, eu estive como paciente entre janeiro e março de 2019.
Em 03 out. 19, o Projeto desta pesquisa foi submetido para análise ética, via Plataforma Brasil.
88

Complementares (PICs) e, também, artístico-culturais oferecidas no Espaço Travessia.


Trago aqui, uma dessas ocasiões:
Axxx se levanta, e de pronto, num impulso, sem que houvesse convite para tal,
como que tomando uma atitude urgente e necessária, se dirige ao palco e destranca as
correntes que aprisionavam a personagem do Espetáculo “Pira: do gozo estendido ao
exilio”, realizado pelo Coletivo 22, no dia da abertura da Exposição “Morar em
Liberdade: retratos da Reforma Psiquiátrica Brasileira”, em 22 de julho de 2019. Com
a mesma pressa, me pareceu, que um dia teria conseguido destrancar as suas próprias -
ou estamos, ela e eu, ainda buscando por isso?
Gostaria de ter podido saber dela mesma, da Axxx72, e apresentar aqui, o
significado de tal atitude solidária que de pronto tomou para desacorrentar a personagem
de “Pira”, como mostra a fotografia que segue:

Fotografia: Marcelo Valle. Espaço Travessia, 22/07/2019.


Espetáculo “Pira: do gozo estendido ao exilio”.

72
Segundo Marcelo Valle, resta dificultada a possibilidade de fazer chegar na Axxx a reiteração de um
convite meu para participar da presente pesquisa devido à perda de contato direto com ela. Sinto profundo
pesar maior ainda pelo falecimento do Dalton Carvalho - um dos colegas, bailarinos do “Coletivo
Girassóis da Nise”, que eu conheci no Espaço Travessia e que teria sido convidado para participar da
presente pesquisa se não tivesse nos deixado em novembro de 2020. Em 30 de agosto de 2019, numa única
conversa breve que tive com ele pelo Messenger, no Facebook, ele me escreveu: “Passei a ser voluntário
no Espaço Travessia”. Após tê-lo parabenizado e lhe perguntado se estava feliz trabalhando como
voluntário e qual atividade estava desenvolvendo, recebi como resposta: “Faço acolhimento e monitoria
em grupos visitantes. Super feliz, realizado e pleno” - uma prova da importância do trabalho como
atividade capaz de oferecer reconhecimento social e autoestima, ainda que não remunerado, efêmero e
realizado em condições materiais e subjetivas tão precarizadas.
89

Por que me surpreendi com esse ímpeto de Axxx, que a levou ao palco – que a
levou à se pôr em ato, em cena, à realizar o desacorrentamento da personagem de “Pira”?.
Devido à identificação com o herói, permitida pelos atores-poetas, de que fala Freud, em
“Personagens Psicopáticos no Palco”?:

O espectador tem muito poucas vivências, se sente como um “miserável”, a


quem nada grandioso pode suceder", alguém que abafou por muito tempo sua
ambição, para se colocar como Eu no centro da engrenagem do mundo [...] ele
quer sentir, produzir efeitos, ordenar tudo de acordo com a sua vontade,
em outras palavras, ser herói, e os atores-poetas [...] lhes possibilitam isso,
na medida em que permitem sua identificação com o herói. [...]. (FREUD,
2021, p.45-46, grifos meus)

Sentindo-se convocada pelo espetáculo, Axxx - espectadora, parte do público -


em cena, se fez, ela também, uma das atrizes de “Pira”, uma artista?
Diante dos meus olhos, uma heroína a socorrer “um personagem psicopático no
palco”? Freud (2021), continua:

[...] o drama desce às profundezas das possibilidades afetivas [...]. Desse


modo, todos os tipos de sofrimento constituem o tema do drama, a partir do
qual se promete proporcionar prazer ao espectador, resultando disso como
primeira condição da forma artística, que esta não faça o espectador sofrer [...].
Nessa perspectiva, este sofrimento, logo se reduz ao sofrimento anímico [...].
Aqui, a condição de gozo é que o espectador também seja um neurótico.
Pois apenas nele a liberação e em certa medida o reconhecimento consciente
da moção recalcada pode trazer prazer em vez de simples aversão [...]. No
neurótico o recalque é compreendido como fracasso [...] nele o poeta não
produz um simples gozo libertador, mas também resistência. O primeiro
desses dramas modernos é Hamlet. O tema trata de como alguém até então
normal se torna neurótico pela natureza singular da tarefa a que ele se propõe,
na medida em que uma moção até então recalcada com êxito procura se
legitimar. [...]. Onde a neurose estranha e pronta se opõe a nós, chamaremos o
médico enquanto vivermos e conservaremos a figura como incapaz de subir ao
palco. (Idem, p.46-51)

Resistencia, essa, à qual Axxx, nessa cena, não se curvou? Ao contrário, diante do
encarceramento existencial da personagem no palco, destrancou lhe os cadeados e
afirmou: “Você está livre!”?. Enquanto em mim, a descobri forte nos rituais do Teatro de
DyoNises e em pleno conflito hamletiano: “ser ou não ser, eis a questão”.
Axxx teria enriquecido essa pesquisa se eu pudesse ter conseguido chegar até ela
e, aqui, apresentado, suas percepções sobre o espetáculo “Pira” - sobre a arte, o artista, o
90

palco, o público, a liberdade, a coragem... a loucura... a vida. Sim, também, ela, “A vida
como objeto das Ciências Sociais”73.
Além de “Pira: do gozo estendido ao exilio”, caminhei pelo itinerário de
“Lugar de Cabeça Lugar de Corpo”74 - uma “intervenção teatral realizada a partir dos
princípios do Teatro Documentário, com dramaturgia composta de relatos de mulheres
que viveram a experiencia manicomial como usuárias ou como trabalhadoras da rede
pública de saúde”. (REVISTA JACUBA, n. 02).
“Lugar de Cabeça Lugar de Corpo” nos convida a caminhar por entre as galerias
de arte existentes num dos corredores do Espaço Travessia - antigas enfermarias do
Hospício de Engenho de Dentro. Numa delas, a que mais me chamou a atenção, moviam
sob os nossos pés, centenas de caixas vazias de “remédios de psiquiatria mental” - como
nos (en)canta Hamilton de Assunção, em seu “Sufoco da Vida”.

Fotografia: Fabiane Valmore, julho 2018


Espaço Travessia

73
“A vida como objeto das Ciências Sociais” é o tema da aula inaugural 2021 do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, da UFPR, a ser ministrada em 26/05/21. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=1kKPtyeXF5o>. Acesso em: 26 maio 2021.
74
De agosto de 2017 a novembro de 2019 a En La Barca Jornadas Teatrais ocupou regularmente as
dependências do Espaço Travessia e essa experiencia está registrada na Revista JACUBA Nº 02 – Lugar
de Cabeça Lugar de Corpo Lugar de Memória, lançada em março de 2021 e disponível em:
<https://issuu.com/enlabarcajornadasteatrais/docs/jacubaii?fbclid=IwAR0_Hp1m0tWGXTxVqhllJN-
PRyLPaUTUWI9X5AxsLcG4Sy8pVY3Oz19Rolc>. Acessada em 10/05/21
91

Além da já citada “Sufoco da Vida”,


Hamilton de Assunção, venceu o
concurso de samba do Tá Pirando
201675, cantando:

Faxina nas ideias temos que fazer


êê
êê
O samba é um santo remédio
A letra, explica você...

Como é que é amigo?!


Caiu na depressão....
Já tomou seu remedinho
pra’cabar a confusão?!

A arte é outro remédio...


Corre junto à vida.
Solidariedade é tudo
pra acabar com essa ferida.
Fotografia: Fabiane Valmore, 2019
Espaço Travessia Tá Pirando, Pirado, Pirou!!!

Justo nessa galeria, além de poder ler diferentes nomes de medicamentos e marcas
de laboratórios farmacêuticos - de me perguntar por quanta dor buscou aquilo tudo
anestesiar -, foi inevitável para mim, não prestar atenção especial nas intervenções
críticas, debochadas, afrontosas, resistentes e combativas, feitas por um rapaz jovem, na
ocasião, morador/interno do Nise da Silveira, com quem pude estar outras vezes e,
mesmo, vê-lo desafiar o status quo que impera no que Magaldi (2020) chamou de o
“Mundo Nise”, mesmo para se referir ao período que sucede à morte da Nise da Silveira.
Comportamento esse, até que ponto, individual, social e institucionalmente,
tolerado, permitido, respeitado, desde que dentro dos muros de um hospício? Onde
o louco, o desatinado, pode ser louco, pode falar, gritar, rir e chorar; pode delirar, alucinar,
revelar as cores, sentir e dizê-las belas; pode andar nu, pode intervir e se colocar “fora”
de hora, de contexto e de sentido, a qualquer tempo e em qualquer lugar.

75
Desfile 2016 – Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou!, disponível em:
<https://fb.me/e/3TQxn43R3>. Acesso em 06 jul.2021
92

Em tempos de luta antimanicomial, o quanto desse tanto “permitir”, “respeitar”


e “deixar ser e estar...”, não é, também, isso, o avesso do se importar, do se haver, do
se implicar? No limite, o abandono ou a radicalidade da aceitação alienada, da tolerância,
frente à realidade do outro - tão estranhamente posicionados no mundo, seu corpo e sua
psique? Quanto a mais nisso tudo há, além de um “afeto institucionalizado”?

***
3.3 COLETIVO CARNAVALESCO “TÁ PIRANDO, PIRADO, PIROU!” - Instituto
Municipal Philipe Pinel (IMPP)

Junto com o Teatro de DyoNises e o Espaço Travessia, o Coletivo Carnavalesco


“Tá Pirando, Pirado, Pirou!”, a banda musical “Cancioneiros do IPUB”, que acaba de
completar 25 anos no Dia Nacional da Luta Antimanicomial 2020 e o Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea (mBrac) integram o campo da presente pesquisa.
Em fevereiro de 2019 compareci para o desfile de carnaval do Coletivo
Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou!, quando eu nem cogitava uma possibilidade real
de realizar a presente pesquisa. Mas, de algum modo, curiosa e interessada em conhecer
“blocos de carnaval da saúde mental” – era tudo o que eu sabia sobre o Tá Pirando. Por
motivos pessoais, pouco pude observar/participar dele e, portanto, minhas lembranças e
reflexões desse dia para fins dessa pesquisa são rasas. Mas, não, a emoção que eu senti
durante a concentração do bloco, em frente à UNIRIO – suas cores, alegria, samba e o
contexto da saúde mental antimanicomial, inspirados pela obra literária “Os
Bruzundangas”, de Lima Barreto, publicada em 1923, me fizeram desejar conhecer
melhor, estar junto e convidar o Tá Pirando para participar da presente pesquisa em
meados de 2019. Lima Barreto, o homenageado, esteve internado pela primeira vez em
1914, no Hospital Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, “localizado no mesmo
endereço que o Tá Pirando passa carregando o seu estandarte do sanatório geral”. E nesse
ano de 2019, o tema foi: “Na terra dos bruzundangas: Lima Barreto visionário!”. Desde
aí, pude logo perceber a potência e o interesse desse Coletivo em refletir e pôr em
discussão o próprio Brasil – seja a partir da literatura, como foi o caso dessa vez; do teatro,
com Augusto Boal, em vez anterior; ou, da música, quando a homenageada foi Dona
Ivone Lara76. A arte, inclusive “como remédio”, se movimenta no Tá Pirando, que há 16

Em 2018, a homenageada foi a primeira dama do samba, Dona Ivone Lara, com o tema/enredo: “Foram
76

me Chamar! Eu estou aqui, na luta, na lida, no samba. Salve Dona Ivone Lara.”. Enfermeira e Assistente
93

anos vem mostrando o resultado de um trabalho coletivo que busca se aproximar da


sociedade e convidá-la a perceber que a loucura não está apenas, e sempre, no outro.
Como escreveu João Guimarães Rosa n’A Terceira Margem do Rio:
“Ninguém é doido. Ou, então, todos”.
Em 30 de setembro desse mesmo ano, pela primeira vez entrei no Instituto
Municipal Philippe Pinel e me dirigi até a sala do bloco Tá Pirando para participar de uma
reunião, de uma Assembleia, como é chamada pelo Coletivo, destinada à escolha do
tema/enredo para o desfile de Carnaval 2020. Muitas foram as sugestões, todas anotadas
e colocadas em votação. Eu não apresentei nenhuma - nada que eu pensava me parecia
viável de ser dito. Enquanto de algum modo eu me autocriticava em silêncio, dezenas de
sugestões se atropelavam sem sofrer algum dano. Foram acolhidas, debatidas e, por fim:
uma escolhida, por maioria. Ou melhor, duas.
Nesse dia, a minha participação foi absolutamente tímida e silenciosa. De maneira
muito introspectiva observei admirada a maneira corajosa e despojada com que muitos
apresentavam e defendiam suas ideias. Uma maneira possível, eu diria, apenas num
ambiente de amizade acolhedora e respeitosa, ainda que ali estivessem presentes
pacientes, trabalhadores da saúde, estudantes/estagiários, pesquisadores, professores,
artistas, amigos e não sei, se familiares. Nesse dia, percebi tudo de maneira bastante
horizontalizada e intima.

Social, com especialização em terapia ocupacional, Dona Ivone Lara trabalhou no Antigo Centro
Psiquiátrico Pedro II durante 38 anos até se aposentar, em 1977. Nesse interim, a partir de 1946, integrou
a equipe de monitores da Dra. Nise da Silveira. Órfã de pai e mãe, ainda criança, Dona Ivone estudou em
colégio interno até os 17 anos e cantou nos coros regidos por Villa-Lobos. Em 1965, assumiu a autoria do
samba-enredo “Os Cinco Bailes da História do Rio”, parceria com Silas de Oliveira e Antônio Bacalhau,
tornando-se a primeira mulher a vencer uma disputa de samba-enredo e a ter a sua composição cantada na
Avenida Presidente Vargas, defendendo as cores do Império Serrano, a tradicional escola de samba de
Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, onde foi morar com um tio após sair do internato. Em 2017, foi a
vez de Augusto Boal, com o tema “Meu caro amigo Augusto Boal, o arco íris do desejo vai brilhar no
carnaval”. Hamilton Assunção, participante dessa pesquisa, em 2016, vence o concurso de samba do Tá
Pirando, inspirado pelo tema “Faxina nas ideias. Mais arte, mais solidariedade. O samba é um santo
remédio!”. Em 2015, em 2014... e, dez anos antes, em dezembro de 2004, foi fundado o Coletivo
Carnavalesco “Tá Pirando, Pirado, Pirou!”, que desfilou na rua pela 1ª vez em fevereiro de 2005. Nesse
primeiro desfile, não houve Concurso de Samba, mas o bloco cantou e canta até hoje “Pirou, Pirar”,
uma composição de Joana, Lélis e Demétrius, criada especial e espontaneamente para o bloco.
94

Fotografia: Fabiane Valmore, 30 set. 2019. Sala do Tá Pirando: Marielle Franco, Presente!
Votação dos temas sugeridos para o samba-enredo do Tá Pirando 2020. Na foto, o musico Oswaldo Luiz.

No dia seguinte a essa reunião, fui incluída pelo psicanalista, doutor em Saúde
Coletiva (IMS/UERJ) e coordenador do Ponto de Cultura Tá Pirando Pirado Pirou! –
Folia Arte e Cidadania, Alexandre Ribeiro Wanderley, no grupo Equipe Tá Pirando do
whatsapp e pude, então, me aproximar e participar de parte de todo o processo de
construção coletiva do desfile 2020, que se desdobrou a partir das sugestões apresentadas
pelo próprio Alexandre Ribeiro e pelo Demetrius Lucas, um dos artistas participantes da
presente pesquisa. Somadas, definiram o tema “Dá um Breque no Fake: a Terra é
Redonda e o Mundo dá Voltas!” e deram origem à Sinopse do Enredo 2020, produzida
coletivamente para ser base de trabalho e de inspiração para os compositores e todas as
demais etapas de construção do desfile. Apresento aqui um trecho dela:

Mentira, boato e fofoca existem desde que o mundo é mundo, mas com o
advento da internet e das redes sociais as notícias falsas passaram a se espalhar
na velocidade da luz, prejudicando a vida de muita gente. Por isso o Tá
Pirando traz a sua lucidez pro carnaval carioca e, inspirado no suingue
sincopado do samba-de-breque, manifesta o desejo de uma parada
repentina na propagação das fake news. Porque se a gente não der um
“pega na mentira”, como cantou o tremendão Erasmo Carlos, é a nossa
amada democracia que vai “fechar o paletó”! [...] Ao lado das mentiras que
são divulgadas, há fatos que são negados, como a ocorrência do golpe militar
95

em 1964, a responsabilidade das políticas de segurança pública pela morte de


crianças e jovens negros nas favelas e o conluio ilegal entre juízes e
procuradores em processos judiciais, como vem sendo revelado pela Vaza-
Jato. Neste contexto, ganhou notoriedade o movimento terraplanista, que
sustenta que o nosso planeta é plano. [...] que as agências espaciais são parte
de uma grande farsa, um complô mundial para esconder a verdade. [...] Por
isso, não titubeamos, e botamos a boca no trombone: é preciso dar um breque
no fake! Levaremos verdades para a Avenida Pasteur, mesmo dando lugar
à fantasia e à ilusão tão necessárias à nossa brincadeira de carnaval. E
continuaremos sonhando com um país mais justo, fraterno e solidário com
quem mais precisa de ajuda para ter uma vida digna. [...] Um país em que
seu povo jamais esqueça que direitos humanos são uma conquista da
civilização da qual não podemos abrir mão. Sonhos que hão de se tornar
reais, porque a Terra é redonda e o mundo dá voltas! Mãos à obra,
compositores, vamos começar a mudar o mundo. (Sinopse Tá Pirando
2020)

Retornei ao Tá Pirando em janeiro de 2020 para participar dos preparativos


finais e do desfile do bloco, já anunciado na entrada principal do Pinel.

Fotografia: Fabiane Valmore, 08 jan. 2020

Fiz esse registro fotográfico no 1º dia de gravação dos sambas-enredo do Tá


Pirando. Nesse dia, os compositores compareceram à sala do Tá Pirando para apresentar,
ensaiar e gravar suas composições autorais produzidas a partir do tema que já havia sido
escolhido em setembro de 2019. Foi nessa ocasião que eu pude estreitar um pouco mais
os vínculos afetivos e de pesquisa com o Tá Pirando - embora já estivesse três meses em
diálogo virtual com o Coletivo. Orlando Santos Baptista: poeta, cantor e compositor,
paciente do IPUB/UFRJ, integrante dos “Cancioneiros do IPUB”, eu o conheci
96

pessoalmente, nesse dia. Partiu dele o interesse de participar da presente pesquisa em 15


outubro de 2019, logo depois que eu reiterei no grupo do whatszap, a minha condição de
estudante de Ciências Sociais na UFPR no aguardo de autorização dos CEPs da UFPR e
do Instituto Philippe Pinel, para dar início formal à execução do projeto de pesquisa, até,
então, em análise ética. Logo que eu apresentei o título dessa pesquisa, já naquela época
definido, Orlando foi o primeiro a escrever: “Gostaria de participar” Agradeci a ele e
reiterei a necessidade de aguardar pela autorização antes de iniciar a pesquisa. “Sou
vocalista dos Cancioneiros do IPUB. Pioneiros na área de saúde mental, temos 24 anos
de criação, fundado pelo musicoterapeuta vandré mathias vidal”. “Em 1996”. Assim,
ele se apresentou a mim no grupo. Eu o parabenizei e.... “Vocalista e compositor, né
Orlando?”, lembrou, uma das integrantes do Coletivo, no mesmo instante.

Fotografia: Fabiane Valmore, Sala do bloco Tá Pirando, 08 jan. 2020. Orlando Baptista e Lelis na
gravação do samba “Rosa Caída“, junto com os músicos Iuri e, no cavaquinho, Ronaldo Gonçalves.
Mais à esquerda e ao fundo: Munique Mattos, a jornalista da RFI77 e Alexandre Ribeiro.

Nessa fotografia, Orlando e Lelis se preparam para gravar a música “Rosa Caída”,
composição que fizeram juntos para concorrer no Concurso de Samba do Tá Pirando
2020. Embora já tivesse concorrido em várias edições do concurso de samba-enredo do
Tá Pirando, Orlando esteve presente pro desfile do bloco apenas nesse ano de 2020.

77
“À Rio, le carnaval comme remède aux maladies mentales”, disponível em:
http://www.rfi.fr/fr/amériques/20200221-bresil-rio-carnaval-comme-remè-maladies-mentales-pinel
97

Nesse dia, me surpreendeu a maneira rápida e prática como aconteceram as


gravações. Basicamente os compositores apresentam as suas composições, cantam as
músicas, discutem a melodia e decidem os ajustes instrumental junto aos
músicos/instrumentistas responsáveis pela gravação dos sambas. Traços indicativos de
uma experiencia e intimidade já alcançadas pelo Coletivo - de um sentir-se
reciprocamente à vontade numa atividade que é considerada, também, um trabalho.
Portanto, uma atividade, remunerada ou não, que permite, não apenas a construção de um
sentimento de pertencimento, como também, de dignidade e respeito. Formas de
reconhecimento, tão atreladas e socialmente valorizadas, especialmente pela classe que
vive do trabalho.
Nesse mesmo dia gravamos a campanha de financiamento do Tá Pirando. Sim,
gravamos. Eu também participei! Hamilton Assunção, que também participa dessa
pesquisa, convidou a sociedade a contribuir com o Tá Pirando e não perdeu a
oportunidade de (re)afirmar: “A terra é redonda e o mundo dá voltas!”

Fotografia: Fabiane Valmore.


Sala do Tá Pirando, 08 jan. 2020

Além da campanha, quem passasse em frente ao Pinel, avistava também, o convite


para o já tradicional desfile de carnaval do Tá Pirando. Na ilustração feita pelo artista
98

plástico, Samy Chagas, integrante do Tá Pirando, a Madame Bondão, que faz parte da
identidade visual do Tá Pirando, faz reinar a Constituição Federal Brasileira de 1988 e
igualmente, não deixa de mostrar que a terra é redonda.

Fotografia: Fabiane Valmore, 08 jan. 2020

Retornei ao Tá Pirando, um mês depois, em 08 de fevereiro de 2020, para


acompanhar o Concurso de escolha do samba-enredo a ser levado pra rua no dia do
desfile. Confesso que é constrangedor no ônibus que sai da Central do Brasil em direção
à Praia Vermelha, não descer na praia e, sim, no Pinel – frente aos olhares, todas as vezes,
eu, de algum modo, tentava mostrar que ali eu não era de casa. Por que? Adentrado o
portão, no entanto, a sensação se invertia. Por que? Fico pensando o que pode significar
99

ocupar a cidade graças ao cartão especial de transporte que dá direito à gratuidade, mas
também carimba a testa e posiciona quem faz uso dele, descendo ou não no Pinel.
Nesse dia, 14 composições autorais foram apresentadas e avaliadas pelos jurados
dentre eles, o professor Paulo Amarante78. Gilson Secundino, percussionista, poeta,
artista visual, compositor e cantor, que também integra essa pesquisa, eu o conheci,
exatamente, nesse dia. Dele, me lembro de ter escutado durante uma conversa que
tivemos nesse dia da escolha do samba-enredo: quem tem fome tem que comer. Ou algo
assim. O que nisso me chamou a atenção foi a maneira certeira e firme – quase que como
me querendo dizer que é assim que haveria de ser, e ponto. Mas sabíamos, ele e eu, o
quanto não o é. Mais tarde ele me foi apresentado como o autor do nome dado ao Coletivo.
E isso foi decisivo para convidá-lo a participar dessa pesquisa. Em entrevista, exatamente
1 ano mais tarde, em fevereiro de 2021, quando perguntado pela participação que possui
no Tá Pirando, Gilson Secundino, respondeu:

Ah... eu... eu sou um dos fundadores do bloco. O nome [do bloco], foi numa
consulta terapêutica com o Alexandre Wanderley. O Alexandre chegou... e
conversando né... aí [eu falei:] pô, tem como a gente divulgar... o trabalho que a
gente faz pra levar um pouco mais a sério o nosso trabalho? E que... se é possível
a gente fazer um bloco, criar alguma coisa assim... Ele falou: legal, gostei da ideia.
Aí, eu falei: Tá Pirando, Pirado, Pirou!. E ele falou: gostei da ideia. Aí, abraçou
a ideia e estamos aí, até a presente data.
(Gilson Secundino, Tá Pirando, Pirado, Pirou!79)

78
Paulo Amarante foi um dos indicados para receber o Prêmio Nise da Silveira 2021 de Boas Práticas
e Inclusão em Saúde Mental, pelo deputado federal Chico D”Angelo (PDT/RJ). Consta no Caderno de
Votação da Câmara dos Deputados: “Foi pioneiro do movimento da reforma psiquiátrica no brasil.
Fundador da associação brasileira de saúde mental (abrasme) da qual é presidente de honra. Ativista do
movimento da luta antimanicomial desde o seu início. Fundador do curso de especialização em saúde
mental da fiocruz, que existe há 39 anos e que teve várias edições, anuais no rio de janeiro. E em vários
estados. O curso em questão foi pioneiro na formação para o sus e a reforma psiquiátrica e fonte de
referência para dezenas de outros cursos no país. É doutor honoris causa da universidade das madres da
plaza de mayo e professor de honra de universidades internacionais. Foi fundador do laboratório de estudos
e pesquisas em saúde mental e atenção psicossocial (laps) da fiocruz responsável pelo centro de memória e
pelo site ”memória da reforma psiquiátrica brasileira”. Autor de vários livros na área dos direitos humanos
em saúde mental dentre os quais “loucos pela vida” (há 26 anos em catálogo), “o homem e a serpente”.
“Psiquiatria sem hospício”, e muitos outros. Este ano está lançando “loucura e transformação social –
autobiografia da reforma psiquiátrica no brasil”. Foi presidente do centro brasileiro de estudos de saúde
(cebes), entidade que elaborou a proposta do sus, e um dos dirigentes que foi a brasilia apresentá-la à câmara
dos deputados em 1979”. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/mesa/segunda-
secretaria/servicos/CADERNO_Votacao_NiseDaSilveira.pdf>. Acesso em 27/08/2021.
79
“Com enorme tristeza, comunicamos a passagem do nosso querido Gilson Secundino, que nos
deixou ontem [em 22/08/2021]. Impossível contar a história do nosso coletivo sem mencioná-lo, já que a
expressão lapidar que dá nome ao bloco é fruto de sua mente inquieta e criativa: “Se é pra fazer carnaval,
não vamos fazer só pra quem já pirou e tá internado, vamos pra rua brincar com quem ainda tá pirando!
Tá todo mundo junto, tá pirando, pirado, pirou!”. Dias após a fundação do coletivo, indagado sobre como
se sentia por sua sugestão ter vencido a votação para a escolha do nome do bloco, respondeu: “Fico
contente, mas a ideia não é minha, apenas encontrei as palavras que permeavam o pensamento do
grupo”. Gilson partiu mas deixa conosco a marca de sua generosidade, gentileza e inventividade, ele que
100

[...] O Tá Pirando... é uma fase também áurea em que participou eu e a minha


falecida esposa Elizete Cardeal de Vasconcelos dos Santos. Eu considero ela
como madrinha do Tá Pirando. Assim é... [silêncio] eu prefiro, doutora, deixar
pra outro dia que agora eu não tô mais em condições emocionais de falar mais.
Porque é muita coisa/ quando a gente começa a relembrar as coisas e a gente não
tem o equilíbrio emocional, a gente... acaba... chorando por fora mas rindo por
dentro. Falou!, meu jovem! (João Batista, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[Orlando Baptista: que nem o Palhaço Pirulito né?]

Palhaço Pirulito!!! Ah, o Palhaço Pirulito também é oriundo do Tá Pirando. Dr.


Alexandre foi o único que foi no velório da minha esposa. Foi ele. Chegou lá, deu
uma camisa: João, bota uma camisa na Elizete e tal... eu botei a camisa do Tá
Pirando nela e ela levou pra/pra Papai do Céu dá a benção. Pro nosso Tá Pirando
daqui pra frente ser não um bloco mas uma Escola Carnavalesca. [...] Ela no
caixão com a camisa do Tá Pirando. Aquilo pra mim vai/ é eterno. Como eterno
vai ser a nossa lembrança... como vai ser o nosso convívio reciproco até que um
dia nós estejamos unidos novamente. [...] aquela.... fotografia dela ali no caixão
com a camisa do Tá Pirando [...] aquilo é a melhor.. é o melhor... que eu possa
ter ganho do Tá Pirando. É a melhor honra. Melhor honraria. Melhor
comemoração. Eu considero isso um marco na minha vida psiquiátrica. Daqui
pra frente minha vida psiquiátrica nunca mais vai ser a mesma. [...]. Não tem
palavra pra expressar a minha gratidão pelo Dr. Alexandre Wanderley ter se
lembrado como... uma homenagem póstuma pra minha esposa.
(João Batista, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Essa fala nos permite observar vários pontos interessantes: a condição de


“doutora” em que fui colocada: pelo fato de não estar ali como a um deles, tampouco
como trabalhadora em alguma função socialmente desvalorizada? De qualquer modo, eu
havia já me apresentado como estudante de Ciências Sociais. Tratou-se, então, de um ato
corriqueiro, social e culturalmente ainda praticado e aceito, que serve para colocar (e se
fazer colocadas) as pessoas, em função da posição que ocupam, do capital social que
possuem – cada qual no seu devido lugar na estrutura social? “Você sabe com quem você
tá falando?”, é uma pergunta opressora e coercitiva ainda hoje posta num Brasil que não
respeita homens e mulheres humildes, a pobreza, a pele preta, as mulheres, a diversidade
de gênero, a loucura, a favela e tudo o que está fora e deslegitimado enquanto status quo.

era conhecido por criar instrumentos percussivos feitos de molas, utensílios domésticos e outros que tais,
na melhor tradição de Hermeto Pascoal. A história do campus da Praia Vermelha igualmente não se
conta sem o ronco da cuíca e a banquinha de livros do Gilson. A saudade já é imensa, mas sua herança
é ainda maior. É com ela que seguiremos na luta por uma sociedade sem manicômios! Deixamos aqui
poema recente escrito por Gilson em oficina literária do Caps Franco Basaglia: ‘nada além que a pura e
simples vaidade de viver...” [ver poema completo na página de Dedicatória dessa pesquisa]. Em breve,
informações nos comentários sobre o velório a ser realizado amanhã no Cemitério do Caju. O gurufim,
bem como o de outros dois fundadores do bloco [Luís Carlos Pinto e Elizete, esposa do Sr. João Batista,
o “Palhaço Pirulito”, do Tá Pirando, um dos participante dessa pesquisa que durante entrevista para essa
pesquisa, mencionou-a como a madrinha do bloco] que encantaram nesses tempos de tantas perdas, está
marcado para o próximo desfile do bloco na Pasteur, quando for possível aglomerar com segurança”.
Disponível em: <https://www.facebook.com/tapirando/posts/4994234870592433>. Acesso em 24/08/2021
101

A feliz, atenta, espontânea e terapêutica (?) intervenção feita pelo Orlando: “que
nem o Palhaço Pirulito né?”, que de pronto fez João Batista, o Palhaço Pirulito do Tá
Pirando, mudar de semblante e se pôr mais alegremente, ainda que de maneira saudosa,
a falar do carinho e do reconhecimento que sentiu pela presença “única” do Tá Pirando
no velório de sua esposa que ocorreu em 2020. Eu mesma não teria ousado falar diante
da dor, senão, na linguagem dela mesma. Por fim, o desejo de que o Tá Pirando se
transforme numa Escola Carnavalesca nos convida a pensar no alcance e potencial do
Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou!, uma festa/manifestação popular. Um
produtor de marcos afetivos.

Uau! [Descrever] O Tá Pirando?? Essa pergunta é difícil. Em poucas palavras...


Éhh, cê tem desde a descrição mais formal... um Coletivo Carnavalesco, inserido
no campo da Saúde Mental, nessa interface entre Cultura e Saúde Mental né... [...].
Mas se fosse pra sintetizar muito/ Bom, [...] primeiro essa brincadeira... porque
não existe o não-pirado, existe só quem tá no processo de pirar ou tá pirando...
Então, um pouco naquela paráfrase da fala do Caetano: de perto ninguém é
normal... ou, na linha toda machadiana do Alienista... quer dizer, da questão da
loucura – que ela é/ faz parte da condição humana. [...] e... [...] justamente num
desfile de carnaval de rua né, essa ideia de você desfazer as hierarquias [...] o
equívoco, de quem é o cara que tá pirado, quem é que tá pirando. Volta e meia
tem algum efeito com relação/ efeitos interessantes né... [...] de quebrar um certo
imaginário que foi construído ao longo de muitos séculos e tal. E que tá ai ainda
com os efeitos né de produzir muito sofrimento psíquico. Muito sofrimento né.
Então, pelo viés do humor, tentar produzir um deslocamento subjetivo, um
deslocamento do olhar né. E eu acho que também tem, assim, essas duas funções
que ele cumpre, eu acho. Um, que é de articular uma rede. Então, você tá
participando do Whastzap [do Tá Pirando], você vê que tem gente de todo lugar
ali falando. [...] a gente tem uma troca de informações... [...] tem gente de tudo
que é serviço, dos mais diversos né... tanto usuários quanto trabalhadores. Então,
é essa ideia que a gente diz que é um axioma: que você só combate a exclusão
produzindo redes. Necessariamente você precisa criar redes porque o que a
exclusão faz é cortar as trocas sociais. A exclusão pelo estigma, pela
institucionalização. Mas [também] a exclusão que às vezes, o próprio sofrimento
excessivo pode produzir né.. de interrupção de trocas.
Então, a gente tem que criar rede. Rede entre os serviços e a rede, vamos dizer
assim, da nossa comunidade da Saúde Mental com a comunidade mais ampla da
Cultura, vamos dizer, né. Então, por isso que é lindo. [...] o nosso projeto já vai
direto pro carnaval de rua. [...]. Então, tem muita gente que chega pra fazer
trabalho voluntario né, pra oferecer algum tipo de coisa... no sentido, assim... de...
as mais diversas... Eu tava comentando esses dias a importância que teve Augusto
Boal pra gente né... ele oferecia espaço no Centro Cultural do Teatro do Oprimido
pra gente fazer eventos né [...] É uma mistura muito interessante. Enfim, é isso.
Pra mim é uma alegria. (Alexandre Wanderley, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Na sequência, pude estar presente nos últimos dias que antecederam o desfile
destinados à produção final dos adereços, do carrinho alegórico, dos cartazes, fantasias e
102

figurinos e do ensaio da ala coreografada pela Trupe DiVersos. “Medusa Damares” com
as “mamadeiras de piroca”, “Robozo”: a máquina de produzir e disseminar fake-news,
além de laranjas e barras de chocolate - tudo em alusão ao (des)governo Bolsonaro -
compuseram o carro alegórico que desfilou à frente da bateria do Tá Pirando, “Alta
Dimensão ” e da bateria da Portela, e seguiu os passos de dança e ginga da porta-bandeira,
Cida Lopes, também participante da presente pesquisa, e de seu par, o mestre-sala, Luiz
Claudio dos Santos, que um dia afirmou numa das Assembleias do Tá Pirando: “Tô
maluco mas tô em obra80”.

“Porta-bandeira e Mestre-sala do Tá Pirando pedem passagem: nenhum passo atrás!”


Fotografia: Juliana Morená

[...] Ah... mas mamãe era doente. A família toda é doente. Um morreu com tiro
no ouvido. O outro morreu envenenado. Outro morreu enforcado. Então quer
dizer... mamãe foi internada em Barbacena [no Hospício de Barbacena]. Agora,
titia também? Também. [...] Então, aquilo vai ficando como dentro de você? Não
é não? Só que o seu problema psíquico lá, a sua... o seu distanciamento... e pra
todos efeitos, eu vim com Deus. Então, eu tenho ali uma força que [sem ela] não
tem explicação pra eu estar aqui hoje. E o conforto psíquico? Você toma uma
medicação e você fala assim: ai que bom! O que eu não tava fazendo, agora eu vou
fazer. Agora eu vou dormir. Mas mesmo você tomando a medicação você não tá
livre de nada, porque se você... a crise, eu não sei, mas nunca queira ter. É uma

80
Essa frase inspirou Patrícia Reinheimer a publicar em 2010: Tô maluco, mas tô em obra: A trajetória do
artista moderno e as representações da loucura. Disponível na Revista de Ciências Sociais da UFCE -
v.41, n.1.
103

dor nas entranhas, pior do que dor de parto. É uma ferida tão sangrenta que não
se cura. Então nós só controlamos. [...]. [Fabiane: você produz arte para quem?].
Ahh, pra mim. Pra eu melhorar. Pra você sorrir... ou, chorar. E levar alegria pra
quem chora. Eu queria até, já, gostaria assim, de estar no meio dos doentes,
fazendo eles sorrir, porque mesmo diante da minha dor, eu chorava muito quando
eu cheguei lá no hospital [Pinel] e hoje eu choro, mas eu sorrio mais.

[...] Ahh o Tá Pirando? Foi assim: eu, como não sei dançar nada, mas dizem que
eu sei né... dizem que eu sou maior dançarina [risos] [...] a minha professora de
dança que é a Fabiane... ela era/ é... minha não, nossa né, porque nós, é um
ajudando o outro, ali. Um me puxa, eu puxo o outro. O outro puxa. O outro vai.
E aquilo é uma corrente né... um ajudando o outro. E aí, ela era professora de
dança e ela era a porta-bandeira... e ela falou assim: Ah Cida: a partir de hoje
você vai ser a nossa porta-bandeira do Tá Pirando, Pirado Pirou! E lá fui eu né...

Mas naquela época eu ainda era mais... quer dizer, eu deveria ser muito... eu acho
que eu tenho muito século né. Mas eu deveria já ser muito idosa né. Mas eu fui ser
a porta-bandeira e tô até agora... sendo a porta-bandeira. Não sei depois da
pandemia como é que vai ser. Porque é... como é que fala: as coisas continuam no
corpo né... porque... vem isso, vem aquilo, vem aquilo... e depois: será que você
vai conseguir? E aí diz assim: ah é hereditário. Isso tudo que ela tem é
hereditário. E aí então, a gente não sabe, né. E a gente vai levando um dia de cada
vez. Aí, com o tratamento, com as medicações para tentar nos controlar, e com a
arte para nos levar... porque se não, a gente não vai, porque a vida... é uma arte.
E como eu não sei o que era viver, hoje eu... eu... a loucura me leva à busca da
vida. Então, aquilo pra mim e a vida, é uma arte. Então, eu tô lá no Tá Pirando,
parece que eu tô voando né. E é meu. De todo mundo. E é pra mim. É pra todo
mundo. E um leva... e eu vou lá levando. E eu tô carregando a bandeira.
Uma bandeira né.
(Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Abrindo alas, num Brasil de retrocessos, os globos terrestres reiteraram que a terra
é redonda enquanto a grande faixa de tecido mostrou a impossibilidade da crença
defendida pelos terraplanistas. Foi aproximadamente assim que o Tá Pirando desfilou a
conjuntura política do Brasil e, especificamente, também, a da cidade do Rio de Janeiro:
não faltaram as garrafinhas denunciando a má qualidade da água fornecidas pela CEDAE!
104

Fotografia: Fabiane Valmore. Sala do Bloco Tá Pirando, 2020


Parte do processo de produção dos adereços para o carro alegórico.

Fotografia: Fabiane Valmore. Instituto Philippe Pinel, 2020


Parte do processo de montagem do carrinho alegórico
105

Fotografia: Fabiane Valmore. Sala do Instituto Municipal Philippe Pinel, 08 fev. 2020.
Ensaio da coreografia da comissão de frente com a Trupe DiVersos. Direção: Marta Bonimond
Adereços: terras esféricas de lâmpadas chinesas com continentes em tecido de chita.

Cida Lopes, a porta-bandeira do Tá Pirando, durante a entrevista pra essa


pesquisa, citou a professora Marta Bonimond, da UFRJ, que por sinal, muito no início
dessa pesquisa teve a delicadeza de me recomendar conhecer a Cida, atriz da Trupe
DiVersos e porta-bandeira do Tá Pirando, fazendo inclusive a gentileza de me pôr em
contato telefônico com ela. Mais tarde, pude conhecer a Cida, pessoalmente, na sala do
Tá Pirando, em janeiro de 2020.

[...] tem o outro preparo que eu fiz, também, com a Marta Bonimond né - Oficina
de Teatro... e eu saí dali uma artista!!! Aí, veio o pessoal lá de fora e falou assim:
olha, agora cada um aqui tem a sua profissão. Você, Cida, é uma artista! Porque
você já estudou, você tem seu diploma, você já fez o trabalho. Você... trabalha. E
uma coisa que eu fiz, antes da Marta Bonimond, foi também com a Carla, com a
Carla... Carla Estefa - esqueci o sobrenome. Com a Carla. Ela fez a peça
Mandalando. [...] era uma mandala e através dali ela trabalhava as mandalas e
através dali ela fez uma peça Mandalando, onde eu desenrolava um grande
barbante com aquela arte... aquela leveza... tentando desenrolar a minha vida! A
minha história! Eu, procurando a liberdade. Eu queria liberdade! Liberdade de
ir, liberdade de poder rir, de poder falar, de poder... eu fui proibida de falar com
muitas pessoas, tanto é que eu trabalhei numa empresa e eu nunca pude conhec/
falar com meu chefe, porque as pessoas me botavam medo e faziam terrores sobre
mim. Então, [...]. (Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)
106

Por fim, chegada a tarde do desfile, em 16 de fevereiro de 2020, teve a


concentração, o baile carnavalesco... e de repente, o desfile. Eu, que não estou nada
acostumada a todo esse ritual, simplesmente me vi caminhando e ajudei a abrir alas pro
bloco passar, em meio a uma multidão. Difícil foi para mim me posicionar no papel de
pesquisadora. Eu estava ali, suponho, igual a todo mundo: às voltas com a emoção que a
alegria provoca81. Foi tudo muito rápido na minha percepção. De repente cumprimos o
percurso, em plena Avenida Pasteur, zona sul do Rio de Janeiro e chegamos em frente ao
Pão de Açúcar. Aí, uma outra etapa se iniciava: aquela em que o Tá Pirando se sente
honrado com a presença das fanfarras convidadas que avançam um pouco mais e chegam
nas areais da Praia Vermelha. Nas próprias palavras de Alexandre Ribeiro, concedidas
em entrevista para essa pesquisa, “uma dimensão simbólica riquíssima fazer o desfile
justamente, ali, na Avenida Pasteur...”

[onde] tinha sido construído o 1º Hospício da América Latina, por D. Pedro II,
em 1852. [...] Um dado, assim, também, interessante, pra dizer um pouco sobre
como é que um certo formato ganhou uma tradição [...], é o fato... até em nome da
ideia de criação de rede, de parceria, de integração social etc., [de que] a gente,
quando chega, ali, em frente ao Pão de Açúcar né... onde a gente pode visualizar
a nossa passista gigante, ali, conforme o Samy [Chagas, artista plástico e usuário
dos serviços públicos de saúde mental] imaginou... a gente, depois de cantar aquele
samba que é com a letra do Oswald de Andrade e a melodia do Caetano, que é "No
pão-de-açúcar. De cada dia. Dai-nos Senhor. A poesia de cada dia", a gente canta
e, aí, a gente vêm, e simbolicamente, entrega o bastão para o bloco convidado. E
esse bloco convidado vai no formato acústico... ele leva o cortejo até, ali, nas areias
da Praia Vermelha e... diante do mar... a gente tem aquela visão, toda, de
liberdade. Então, a gente passa pelo antigo hospício que é o Fórum de Ciência e
Cultura da UFRJ, atualmente, né... e chega até o mar.
(Alexandre Ribeiro Wanderley, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Mais tarde, já por volta das 21h, a porta da sala do Tá Pirando foi fechada pondo
fim ao 16º desfile – dessa vez, sem o tradicional apoio financeiro da Petrobras e do Ponto
de Cultura, mas ainda assim, resistindo com a potência das Baterias da Portela e Alta
Dimensão e a força social e política do samba vencedor, de autoria de Munique Mattos,
Luiz Fernando e Rodolfo Caruso que juntos permitiram a alegria dos foliões. Eis a estrofe:
Meu samba, assim
É um clamor por liberdade
Por paz, justiça, igualdade
Dignidade e direitos sociais

81
Ver CECCHETTI, Juliana (2017). Rastros de um carnaval: caminhos alegres entre a Psicologia, cidade
e a Luta Antimanicomial. Curso de Graduação em Psicologia. Universidade Federal Fluminense.
107

Tá Pirando, Tá Pirado...
Pirou!!!
Nesse mundo que dá voltas
A história não acabou!
A descoberta do Brasil
Foi a primeira fake News
E a verdade ninguém sabe,
Ninguém viu!

Fotografia: Fabiane Valmore


Sala do Tá Pirando, por volta das 21h de 16 de fev. 2020.

Eu desfilo desde há... nós tá no 2023/ [Fabiane: 21?] 21. Desde abril de 2006.
Quando eu tava internado em dezembro de 2005, aí, deixaram ir com paciente,
aqui, pra Benjamim Constant. Não desfilei. Só fiquei vendo. Aí depois, 2007, 2008,
2009, 10. Até hoje. [...]. Arte, Loucura e Política. Não é isso? Bom... a gente vê o
sambódromo, como as escolas carnavalescas: tem a parte alegórica. A parte
alegre, que é sambar. Mas tem a parte política da competição: qual escola de
samba vai ser campeã? Qual escola de samba vai ser a melhor pelo jurado? – que
é a parte política né. A loucura, é o Tá Pirando, Pirado, Pirou!!
(Flavio Londres, folião do Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Isso tudo, quando ninguém imaginava uma pandemia por vir. Algum tempo
depois, em abril de 2020, Demetrius Lucas publicou em sua página do Facebook:
Ontem... hoje... e sempre! Poesia não foi nem nunca será tal qual uma simples
bronha tresloucada. Poesia é ressignificação estética das nossas vidas. [...] O
homem em breve vai em missão a Marte, o planeta do deus da guerra, e essa
coordenada está pra minha forma de análise gerando de forma temporal, a COVID-
19. E é semânticamente que desde já, todos nós temos que nos mobilizar... E como?
Se blindando com ARTE(S). IN THE FLESH, AND YOU CAN DANCE IF YOU'RE
WARNER... DEVE-SE SIM QUE SE CONSEGUIR RETER PROPOSIÇÕES
ARTISTICO-PROTOCOLARES QUE NOS DEFENDAM ATÉ ACHAREM A
CURA COM A VACINA. [...] LEMBRE-SE: É Arte. Cair, faz parte. Mas não deixe
de bolar a sua. Afinal, ela não é só pra enfeitar. É também para que nós possamos
de verdade protocolar socialmente. EVOÉ A TDS!!!
108

Nave Espacial Protocolar “PREMIUM CYGNUS”


Demetrius Lucas, nov. 2019

Logo depois, em maio de 2020, durante a leitura de um artigo do Marcello


Azevedo82, eu me dava conta do quanto, de fato, não há tão somente um único lugar
especifico para a loucura – ela já transita pelos caminhos da arte, particularmente, em
datas comemorativas de resistência e festa, como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial
e o carnaval. Essa minha percepção, cada vez mais reiterada, ganha força na História Viva
de criação e origem do Tá Pirando, Pirado, Pirou!, contada por Alexandre Ribeiro, num
outro trecho da entrevista que ele me concedeu:

Teve o carnaval de 2004. [...] era principalmente com o pessoal que toca
percussão num bloco chamado Empolga às 9 e aconteceu essa... um evento, assim,
absolutamente espontâneo, não programado... e aquela festa ali dentro do Pinel,
dentro do pátio... de repente, se formou ali um cortejo e a gente começou a
circular pelo Pinel, por vários setores do Pinel – vamos, ali, pelo ambulatório,
passando pelas enfermarias, até a gente ir para o Pátio do Pinel e ficar, ali,
tocando em frente à enfermaria de alcoolistas. E eu costumo dizer que essa é uma
gafe que a gente fez, porque a gente ficou cantando músicas como Cachaça... “se

82 Cancioneiros do IPUB - uma difícil jornada em busca da realidade: um estudo crítico de uma oficina
terapêutica. Cadernos IPUB. Vol. VI, Nº Especial, 2000, Trabalhos apresentados no XXII Congresso dos
Cursos de Especialização, Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
109

você pensa que cachaça é água...” [...] quando terminou, todo mundo ficou,
assim, bem animado e... algumas pessoas... uma pessoa, na verdade, que agora
eu não me recordo o nome dela, mas eu lembro dela ter dito: quando chegar o
carnaval, vamos desfilar pela UFRJ. Vamos sair do Pinel. Vamos fazer um
desfile né... Como proposição. Mas, ficou no ar. Quando foi dezembro de 2004,
eu me lembrei disso, e falei: vamos fazer, sim.

E vamos fazer de um jeito... porque aí, tinha um fator que eu acho que foi
importante, também, que é o fato de que o Coletivo, ele, não é ligado unicamente
a uma instituição. Ele, já, de partida, ele, é uma articulação entre quatro
instituições. E isso, tem a ver com uma percepção, aí, minha, já, desde a época de
residente, de perceber o Pinel, vizinho ao Instituto de Psiquiatria da UFRJ e
pouquíssimo intercâmbio. Pouquíssima rede. E a ideia de trabalhar em rede, de
trabalhar no território, muito forte. Mas, eu não via essa comunicação acontecer
entre duas instituições vizinhas.

E a primeira ideia que eu tive, então, foi procurar o Vandré [Vidal], que, eu
conhecia assim de nome, de ter visto apresentação dos Cancioneiros [do IPUB],
mas, não tinha uma relação com ele. Então, me dirigi até o Instituto de Psiquiatria
[da UFRJ] e no caminho eu encontrei essa querida amiga, Neli [de Almeida],
que trabalhava no Instituto Franco Basaglia (IFB), que é uma ONG, ligada aos
direitos dos usuários né...

... e com ela, eu tinha uma parceria muito antiga já, 94/95. Eu e ela nos juntamos:
eu, como residente e, ela como psicóloga do Instituto Franco Basaglia, a gente
organizou uma Semana da Luta Antimanicomial né... no 18 de Maio. Com muitos
eventos. Então, talvez, umas das principais, foi chamar a Companhia Orgone de
Dança, lá de Santos, que era ligado com o Renato Di Renzo, que é o cara que criou
a Rádio Tam Tam, lá em Santos e tal. Então, eles vieram aqui apresentar um
espetáculo de teatro chamado “Na sala de Espera do Doutor Sigmund”. E a gente
trouxe esse grupo. Aí, tivemos que fazer várias articulações: conseguimos com o
Teatro de Oficina, conseguimos a hospedagem pra trupe. Teve uma apresentação
da TV Pinel, em praça pública - botamos um telão lá no Lago do Machado... Enfim,
então, já foi... eu diria, assim, desde o começo, me formou, a questão da produção
cultural e essa articulação entre saúde mental e cultura. Desde o começo.

Pra mim é muito espontâneo, muito orgânico, isso né... na verdade.

Então, nesse dia que eu fui caminhando em direção ao Vandré, eu cruzei com a
Neli [de Almeida] e falei: Neli, tô aqui, vou conversar com o Vandré. A gente tá
querendo, agora, pra esse carnaval de 2005, fazer um cortejo pela UFRJ. E a
Neli, falou: ótimo, vamos fazer, então, já... Vamos para a rua, vamos ficar só na
UFRJ, não.

E quando eu fui conversar com o Vandré, o Vandré me contou que, inclusive, já


tinha havido anos atrás, uma vez em que houve o pessoal lá do Núcleo de Atenção
Psicossocial, lá do Hospital-Dia né... do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, já tinha
feito uma vez, uma festa junto com a Associação de Moradores da Lauro Muller.
Mas isso, tinha sido anos atrás e nunca mais aconteceu. Mas o Vandré me sugeriu
que eu fosse conversar com o Presidente da Associação da Lauro Muller, que é
a ALMA, o nome da entidade, que é o Abílio Tosin. Então, eu fui conversar e ele
falou: vamos, então, marcar um dia, fazer uma... você vai participar de uma
Assembleia da Associação de Moradores e vai trazer a ideia. Aí, poucos dias
depois, eu fui, levei a ideia - todos ficaram super-animados, disseram que iam
110

contribuir, com doações de fantasias e coisas assim. Havia, assim, essa grande
coincidência, porque o Abílio era sindicalista da Petrobrás.

Então, esse nosso primeiro 1º desfile, que foi então, uma costura entre Pinel,
IPUB, Instituto Franco Basaglia e Associação de Moradores da Lauro Muller, a
gente, contou com o apoio de um carro de um sindicalista da Petrobrás. Era um
carro, mesmo, acho que era um chevette e, aí, tinha uma caixa de som no porta-
malas, a gente fez a concentração dentro do Pátio do Pinel né... chamamos o
Walter Alfaiate, que é um sambista falecido, morador, dali, de Botafogo - isso tudo
tá documentado naquele documentário que a TV Pinel fez né.... Então, o Walter
Alfaiate começou a... cantando, ali, a gente foi caminhando, saímos pela rua do
Pinel, Wenceslau Brás, entramos, ali, pra gente se juntar com o pessoal do Instituto
de Psiquiatria [da UFRJ] e saímos, ali, pela Lauro Muller... e fizemos um trajeto
super curto. Foi um desfile curto na realidade né.... Me me lembro que era... o
pessoal da Fina Batucada, que era um grupo de percussionistas só de mulheres
percussionistas. E aí, muitos amigos percussionistas de vários blocos, também,
participaram. A cantora, era a cantora do Empolga às 9 e aí, foi muito feliz, assim,
foi muito animado. E, aí, sentiu que iria continuar.

Então, bom... aí, é importante dizer que... eu pulei essa parte, essa história que já
foi recontada várias vezes, mas, que não dá pra falar da origem do bloco, sem
contar a questão do nome né... que o Gilson Secundino, talvez já tenha adiantado.
Então, nós fizemos, assim, uma série de reuniões pra gente decidir como é que ia
se dar a criação desse bloco, decidir as cores, decidir qual seria o símbolo etc.
Então, as cores né... Azul-laranja, o verde-limão, o azul-turquesa, tudo por meio
de votação. Foram as cores que eu sugeri, junto com a Esther, do Papel Pinel.

O símbolo do bloco foi essa Passista que o Samy [Chagas], já tinha desenhado,
ela, nas oficinas do Papel Pinel né... e, aí, foi a própria Esther que falou: olha, eu
já tenho um símbolo que seria incrível pro bloco, que seria esse símbolo que o
Samy levou, essa passista. E levou também, um outro desenho, de um sambista
né... com o pandeiro na mão, com chapéu de malandro. E aí, a gente juntou. A
primeira camisa, a gente fez exatamente com essa junção.

E o nome, é esse nome, muito interessante, que o Gilson Secundino criou... com
esse discurso: é pra fazer carnaval, a gente tem que ser audacioso, não vamos
fazer carnaval só pra quem já pirou e tá internado no Pinel. Vamos pra rua
brincar com quem ainda tá pirando, Tá Pirando, Pirado, Pirou!. tá tudo mundo
ruim. E ganhou. Então, essa é a história.
(Alexandre Ribeiro Wanderley, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Ou seja, ao longo dos últimos quase 40 anos e no contexto da Luta


Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira foi sendo possível conviver junto,
além de angustia, violência e dor: liberdade, arte, cultura e militância do lado de dentro
dos muros que já começaram a ruir, ou, mesmo, a ganhar outras cores. Antigos hospícios
são até lembrados e procurados como lugar de acolhimento e de recuperação da saúde,
como demonstra uma das canções produzidas por Adilson Tiamo, que transitando por
esses caminhos todos, em dias de luta e festa da saúde mental, muitas vezes carrega uma
enorme faixa que grita por liberdade.
111

Fotografia: Fabiane Valmore, 2020. Desfile do Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana


Adilson Tiamo e Hamilton Assunção. Ao fundo, Boneco do Bispo [do Rosário], resultado de
um projeto coletivo do Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura (mBrac),
coordenado por Elihas Di Jorge, para o carnaval 2019.

Liberdade segundo ele, tão essencial para a vida quanto a saúde e a cultura, vai
muito além da liberdade de expressão. Perpassa questões como: os horrores da
escravidão; os difíceis relacionamentos afetivos e familiares; as relações de poder e de
classe que atravessam a vida; as manifestações religiosas, sexual e de gênero; o direito de
ir e vir - de ocupar a cidade; o direito à moradia e ao convívio familiar e social. Liberdade
em geral, diz ele. Mas, sem atrapalhar a liberdade do outro. Sem ultrapassar o limite da
liberdade do outro. Liberdade enquanto cidadania, enquanto corpo social. Adilson
Tiamo sabe bem o valor da liberdade e não se cansa de repetir: “1 ano, 5 meses e 4 dias”,
para falar dos tempos que passou no Hospício de Bangu. Sobre o dia que ele pode retornar
à liberdade, ele me contou: pude ver o sol nascer e se pôr na direção correta outra vez.
Dentro do Manicômio Judiciário ele perdeu o sentido até do giro da natureza ao redor
dele mesmo. Adilson esteve preso num manicômio. E os terraplanistas, por qual
motivo se confundem, também? Eis o samba que ele compôs e canta, acompanhado de
seu violão, criado tão precipitadamente, para concorrer no concurso de samba 2021 do
112

Tá Pirando, mal sabendo cada um de nós que a pandemia causada pela COVID-19, não
permitiria realiza-lo83. Nem tampouco o de 2022. Sem tema pro enredo, sem sinopse pro
Carnaval 2021, ele declarou cantando:

Tô ficando maluco, eu tô!


Tô pirando, pirado.... pirou!
Com a cabeça na lua, eu vou...

É no Pinel, que a saúde melhorou... (bis)

Tô perdido no tempo...
Sem sol e sem chuva.
Sem documento!
Tô com fome e com sede
Na rua, passando, um mal momento!
Com a cabeça rodando
Como a terra, em movimento...
Eu vou pro Pinel, viver uma vida de acolhimento.

***

3.4 MUSEU BISPO DO ROSÁRIO ARTE CONTEMPORÂNEA - Instituto Municipal


de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM)

Arthur Bispo do Rosário, negro, pobre e nordestino, foi diagnosticado com


esquizofrenia paranoide próximo do natal de 1938 (FRANCO, 2011) e em 05 de julho
de 1989, faleceu, após ter (sobre)vivido basicamente 50 anos internado. Chegou no
Hospício da Praia Vermelha, encaminhado pelo Mosteiro de São Bento, localizado no
centro do Rio de Janeiro, após ter se apresentado aos frades como “aquele que veio julgar
os vivos e os mortos”. Daí, foi transferido para a antiga Colônia Juliano Moreira, em
Jacarepaguá, onde em obediência às vozes que escutava, assumiu como missão, a tarefa
que lhe fora incumbida: inventariar o mundo e apresentá-lo a Deus no dia do Juízo Final.

83
O Coletivo Carnavalesco foi fundado em dezembro de 2004 e já no carnaval de 2005 realizou o seu 1º
desfile, sem, contudo, realizar o tradicional concurso de escolha do samba que ocorre anualmente desde
2006. Vale destacar que apesar da existência de um concurso que decide qual música/samba será cantada
no dia do desfile, nas palavras de Adilson Tiamo: “o importante é colocar o bloco na rua e mostrar para
o mundo a liberdade dos pacientes mentais, para que podemos ser exemplo na cura da doença mental
no mundo. No carnaval, temos como mostrar os trabalhos dos profissionais dos CAPS e do hospital de
doentes mentais, através da criatividade, amor e dedicação”. Além da já citada reportagem feita pela
Radio France Internacional, o Tá Pirando foi mostrado também na China, cuja matéria está disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=7Of2zh890qs&app=desktop>
<https://www.youtube.com/watch?v=Yl6aWcIvDN4&feature=youtu.be> . Acesso em 09 out. 2020.
113

“… E você, vai se transformar em Jesus Cristo, como é que é?


Ah, não vou me transformar não, rapaz
Você está falando com ele”. 84

Fotografia: Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

“[...] Por que que o maluco, às vezes, patológico, repete uma história há anos?
Não será porque que ele foi pouco ouvido?
E aí, ele ouve vozes e repete as vozes...”
José Alberto, 201985

É uma honra ser louco porque no mundo onde nós vivemos, só tem louco. Só tem louco. [...]
Gente, até três vezes, uma pessoa normal, ouve vozes durante o dia. [...] Passou três vezes não
é normal. Assim diz a ciência. Eu ouço sempre de manhã quando eu acordo. Então, nem
esquento a cabeça. Tá dentro de mim mesmo. Não estou nem aí. Tô dentro dessas três vezes.
[...] Ahh... por favor: se você ver eu conversando sozinho, não me interrompe que é falta de
educação - a pessoa tá conversando e vem outro interromper? [...] Deixa eu falar sozinho
porque estou falando comigo mesmo. Estou falando como uma pessoa que é igual a eu mesmo.
Entendeu? [...] Melhor falar sozinho, do que falar com pessoas que não estão nem aí com você.
Quando você fala sozinho você tá falando com [um]a pessoa igual a você, que pensa igual a
você, veste igual a você, calça igual a você. Tem a sua cara: igual a você. A cor...
SOU EU MESMO.
(Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

84
Trecho de um diálogo com Bispo do Rosário, presente no documentário “O Prisioneiro da Passagem”.
Disponível em: <https://youtu.be/8MzFTaOvsCQ>. Acesso: 07 jul. 2021.
85
Trecho da fala de José Alberto, um dos artistas do Museu de Imagens do Inconsciente, durante o
Seminário Memória da Loucura 2, promovido pelo Instituto Nise da Silveira, em novembro de 2019.
Disponível em: <(18) 10. DEBATE Mesa 1 - Os lugares da loucura na Cidade: do isolamento à ocupação.
- YouTube>. Acesso: 07 jul. 2021.
114

E quando você está falando com outras pessoas, tem pessoas que está ouvindo e depois que você
vira as costas: Aí, viu: por isso a vida dela vai de água abaixo - se deu mal. Ahh, tomara que ela
se ferra. É ASSIM QUE A PESSOA AQUI FORA PENSA. Tomara que a pessoa se ferra. [A
pessoa] Fora da loucura. Aí, fala pra todo mundo sua vida particular. Debocha de você, põem
você lá no chão. Na tua frente é sua amiga, nas costas sua inimiga. [...] E você, consigo mesmo,
não tem isso. Você entra num assunto e discute. Sua forma de conversar é: Adilson, o que você
acha? Tu vai fazer ou não fazer? Não sei, cara. Se eu fazer qual é o objetivo que eu vou ter? E
se eu perder? O que eu vou perder? Vale a pena fazer ou não? É COMIGO MESMO.

O que eu vou ganhar? Eu tenho oitenta por cento para ganhar e trinta por cento para perder.
Ah, então eu vou jogar - vale a pena, tem mais chance pra ganhar. Ah: mas acontece que você
tem chance, meio a meio. Se eu tenho meio a meio, então eu não vou. Por que eu não vou? Se
tem um avião, de cem aviões, daqui para o Paraná. Se cem, noventa aviões, caem no meio do
caminho, pra que eu vou pegar avião pra ir para o Paraná? Vou de ônibus pô. Vou de ônibus.
Eu tô mais seguro. Então, é melhor ir de ônibus. Então, é melhor falar comigo mesmo.

[...] Pode chamar de louco à vontade. Tô esquentando a cabeça com isso, não. [...]. Eu sou louco
pela vida, louco pelo amor, louco pela arte, não é? Meu amor: se você não for louco nessa vida
que você está, você não vive. [...] Antes eu não vivia. Só trabalhava. Droga!. [...] A loucura é a
coisa mais linda que tem, garota!

[...]. A loucura faz sofrer [também].


Você tem que tirar a parte boa da loucura, do sofrimento... Tem que conseguir.

Quero ficar com coisas boas ou ruins? [...] Separa as ruins... sofrimento... e pega a boa. Pega
a boa. Qual é o problema? Eu peguei de bom foi o seguinte: eu aprendi a viver com arroz e
feijão e ovo cozido. E eu aprendi o seguinte: ter um teto. Um teto, almoço e janta. Não importa
se a cama tem colchão ou não. Pode ser até no chão. No papelão. Tá bom até demais. Tô vivendo.
No dia seguinte eu tô cantando e tô alegre. Eu aprendi viver com isso aí. Para se viver não precisa
ter dinheiro. Não precisa você ser melhor que todo mundo e nem pisar em ninguém. Isso é
derrota. Isso não é vitória é derrota.
[...] A ALEGRIA ESTÁ NO ESTADO DE ALMA QUE ESTÁ DENTRO DE VOCÊ.
(Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

“Registro de Minha Passagem pela Terra”, foi o título dado à primeira exposição
individual de Arthur Bispo do Rosário, inaugurada em outubro de 1989, no Parque Lage,
Rio de Janeiro. Desde então, a obra de Bispo, hoje, Patrimônio Cultural Brasileiro,
reconhecido, em setembro de 2018, pelo IPHAN, já foi apresentada em vários lugares do
Brasil e do mundo. Inclusive, ao lado de Nuno Ramos, no centenário da Bienal de Veneza,
em 199586, seis anos após a sua morte. Em vida, apenas em 1982, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, teve algumas de suas obras exibidas. Segundo o IPHAN, “o
Acervo de Arthur Bispo do Rosário é formado por 805 peças, entre elas, estandartes,
indumentárias, vitrines, fichários, móveis, objetos e vagões de espera”

86
Ver Dossiê Arthur Bispo do Rosário, 2012. Disponível em: <http://www.bienal.org.br/post/351>.
Acesso: 07 julho 2021.
115

Em 2000, o então Museu Nise da Silveira, no interior da antiga Colônia Juliano


Moreira, passou a denominar Museu Bispo do Rosário. E desde 2002, Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea (mBrac).

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021

Passando por essa entrada, muitas vezes, desde 2018, eu visitei o Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea e o Polo Experimental de Arte, Cultura e Convivência. Se
no Museu e no Polo Experimental existem movimento, beleza e vida, mas também,
memória e resquícios dos tempos do hospício, não tão diferentes das encontradas no
caminho do Museu até o Pavilhão 10, no Núcleo Ulisses Vianna, onde estivera isolado,
trancado e produzindo, o próprio Bispo do Rosário; transitar por esses espaços: pelo
Centro Histórico da antiga Colônia Juliano Moreira, visitar a cela do Bispo, é um misto
de sentimentos quase inexplicáveis – como narrar o inimaginável a partir dos escombros,
do resto, que diante dos nossos sentidos aparecem-nos escuro, frio, melancólico e
silencioso, exceto pelo movimento da natureza e pela luz que sombreia o interior daquilo
que forçosamente serviu de moradia para seres humanos, tornados desumanizados pela
ciência, força e razão, pelo Estado, que dita sobre a vida e o paradeiro do outro87?

87
Ver BURROWES, Patrícia (1999). O universo segundo Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro:
Editora FVG.
116

Fotografia: Fabiane Valmore, jul. 2019.


Na Placa azul: “Pavilhão 10 Ulisses Vianna. Cela de Arthur Bispo do Rosário.
Futuras Instalações do Museu Bispo do Rosário”

Nessa fotografia, a árvore mais à esquerda – foi o que me levou a pensar o que
teria sido viver isolado por décadas dentro de um Hospício - tão antiga quanto a dor dos
que ainda vivem e reproduzem a lembrança de aí terem sido lançados.
Deixo aqui algumas outras imagens registradas por mim em julho de 2019 durante
uma visita mediada que pude realizar para conhecer a cela do Bispo nesse Pavilhão 10.

Fotografia: Fabiane Valmore, nov. 2019. Antigo Refeitório dos pacientes.


... parte do percurso, em direção ao Pavilhão 10.
117

Fotografia: Fabiane Valmore, nov. 2019.


Interior do antigo “Pavilhão 10 Ulisses Vianna”
Antiga Colônia Juliano Moreira
118

Fotografias: Fabiane Valmore, nov. 2019


Interior do Pavilhão 10, Núcleo Histórico Ulisses Vianna

No final do corredor mostrado na imagem mais à cima, chega-se aos quartos-


fortes, cubículos individuais com portas de ferro, para onde eram levados e trancados os
pacientes considerados “mais agitados”. A “cela” do Bispo é a que se avista no horizonte
119

da imagem, à direita do encontro das 2 paredes. Com o tempo, Bispo foi fazendo dessas
“celas”, seu espaço/oficina/atelier de recriação do mundo. No centro, cercado pelas
“celas”, uma ala sem camas, destinadas aos pacientes das enfermarias, que ficavam aí
amontoados no chão.

No meu reino tudo será feito de ouro, prata e brilhante. Todo o meu
povo vai lá para cima conhecer o ambiente, para depois vir a encarar a
terra. De acordo com meu Fichário, que é também de ouro, prata e
brilhante. Aquele que eu achar conveniente desce. Os hospitais
psiquiátricos vão acabar. E não haverá mais doenças. Nem miséria.
Tristeza também não. A minha estadia aqui na Terra, junto com o meu
povo vai ser a vida. A vida para todos os tempos e glória. Mais nada.
Arthur Bispo do Rosário, 1982

Fotografia: Fabiane Valmore, nov. 2019


Refeitório e Quarto – Enfermaria
120

Fotografia: Fabiane Valmore, nov. 2019 Fotografia: Fabiane Valmore, nov. 2019
Banheiro - Enfermaria Banheiro – Quarto-forte

Mas também, a paisagem montanhosa que nos leva do Museu, no Edifício Sede
Heitor Peres, até o Polo Experimental e, mais adiante, ao Núcleo Histórico Rodrigues
Caldas, no Centro Histórico, onde estão concentradas as construções mais antigas da antiga
Colônia. Por exemplo, a Capela e o Portal.

Fotografia: Fabiane Valmore, 2018


Acesso ao Polo Experimental e ao Centro Histórico
121

Fotografia: Fabiane Valmore, 2018. Fotografia: Fabiane Valmore, 2021


Capela de Nossa Senhora dos Remédios Portal – extremidade oposta à entrada
Núcleo Histórico Rodrigues Caldas principal do mBrac

Essas imagens, memória histórica de uma instituição psiquiátrica pública


brasileira, aos poucos estão sendo reconstruídas. Junto com elas, estão se transformando
as relações sociais e políticas, em torno do tema da loucura. E o Polo Experimental
Cultura, Educação e Convivência é um espaço coletivo onde essa mudança é vivida,
não sem conflitos e tensões observáveis entre os próprios artistas que buscam, eles
próprios, demarcarem, cada qual, um espaço próprio de trabalho, de produção de arte e
de existência. Ainda que coletivo, mas almejado individual e privado, dentro dos limites,
dessa vez, sem muros. Mas, demarcados pelos olhares e atitudes, deles próprios, que
cercam pra si, um espaço singular e subjetivo – um espaço de negociação identitária, de
produção de subjetividades. Um território88, ao mesmo tempo privado e social, singular
e coletivo, ainda que transparente e sujeito às visitas constantes vindas de qualquer lugar
do mundo – curiosas: acenam, se aproximam, observam, perguntam e se retiram, para
talvez, nunca mais.

Artista!? Que nada.


Me chamam de artista, porque não me conhecem, não sabem o meu nome.
Eu não sou artista da televisão, não passo no jornal... como vão saber o meu nome?
Aí, me chamam de artista.89

88
É no território que os mecanismos de solidariedade, de fraternidade, de rejeição e discriminação são
edificados no dia a dia de uma determinada cultura social. Atuar no território significa transformar o lugar
social da loucura em uma sociedade. (AMARANTE, 2017) livro Saúde Mental e Atenção Psicossocial
89
Essa foi a resposta aproximada oferecida a mim, por um/a dos/as artistas do Ateliê Gaia, logo após eu ter
dito a ele/a: “Que chic, hein... como é ser chamado/a de artista? Fiz essa pergunta, logo após ter
presenciado um funcionário do mBrac, que de passagem por nós, disse a um grupo de acadêmicos que
visitava o Polo Experimental: esse/a é um/a dos/as nossos/as artistas, aqui do Atelier Gaia.
122

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021


Polo Experimental de Convivência, Cultura e Educação

Fotografia: Fabiane Valmore, nov. 2019.


Polo Experimental de Convivência, Cultura e Educação

Esse registro fotográfico foi feito durante o Projeto “(Não) Coma o


Microfone”90, da artista Veridiana Zurita, residente na Casa B (mBrac), que fez parte da
exposição: Utopias: “Vida para todos os tempos e glórias”. “Quem Atirou em Nóis
Errou”, é o título de uma das músicas de Clóvis Aparecido dos Santos, escultor e
compositor, integrante do Atelier Gaia - Coletivo de artistas vinculado ao Museu Bispo
do Rosário Arte Contemporânea.

90
Disponível em <https://outraspalavras.net/descolonizacoes/quem-atirou-em-nois-errou/>. Acesso: 09
ju.2021
123

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021. Atelier Gaia, Museu Bispo do Rosário


Área de trabalho do artista Pedro Mota.

[...] gostaram tanto desse carimbo com o nome da minha pintura [...].
[Fabiane: [...] “Prosperidade, Felicidade em Tudo” é uma marca, um
sentimento?] É o nome de todo trabalho meu. De quando eu comecei em casa.

[Fabiane: [...] era tudo que você queria e precisava? “Prosperidade, Felicidade
em Tudo”? Por que você escolheu essa frase?]
É porq/ quando eu pintava em casa, quando eu comprei o material todinho
conforme eu te disse... comprei uma mesa, 4 cadeira, aqueles armários de abrir e
fechar, não tem? Aí eu colocava do lado de fora. No quintal, lado de fora. Aí que
que acontece? Lá tinha uma árvore, daquelas de cachinhos de fruta né, que chama
de nêspera, não sei o que aquela coisa, tipo cachinho de uva. Enchia de frutinha,
madurava e os passarinho ficava comendo né. Comendo naquela alegria. De
manhã cedo, tinha vez de tá tudo cantando... comendo... e eu, lá: pintando e
apreciando. E as sementes caía no chão, nasceram no meio do quintal. Eu passei
a plantar num saquinho. Saquinho de arroz, de feijão. Qualquer coisinha que tinha
pra plantar eu plantava no saquinho plástico. Aí já nascia as mudas no saco
plástico né. As sementes já nascia no saco plástico, foi pras muda grande né. Aí
que eu fiquei: Prosperidade: tá nascendo. Prosperidade: tá prosperando né. Os
passarinho cantando e comendo: tá feliz, tá alegre. Tá tendo o que comer: alegria.
Prosperidade né: as mudinhas.

Felicidade: os passarinho cantando feliz. Cantando, comendo: felicidade. Em


tudo: de eu tá ali pintando né. Aquele vento de vez em quando, que nem tá
fazendo lá fora né. E participando de tudo. Em Tudo né. Aí eu criei este nome.
Prosperidade né: tudo que tá nascendo, tá prosperando né. Felicidade né: tá
cantando, tá tendo o que comer né. Tá feliz né? E em Tudo: de eu tá ali pintando.
Participando daquele momento né. Conforme você disse: o ventinho bom né, lá
fora né. E eu né, pintando e olhava, ficava contente. Os bichinho cantando. Aí eu
coloquei: Em tudo. [...] eu cheguei a plantar aqui na Colônia, aquelas mudinha
que eu plantei né, naquela ocasião. Eu trouxe um [bo]cado aqui pra Colônia. Um
[bo]cado foi lá pra onde meu irmão mora. E que acontece? Frutificou tudo. [...]
tempo de chuva eu já estava na varanda. Na varanda de casa. E apreciando
né, cantando né. Mesmo com chuva, eles tão cantando. Tão feliz né. Eu na
varanda, desenhando, as vezes né? Aí que aconteceu? Tô até hoje né...
nesse andamento de tudo né. (Pedro Mota, Museu Bispo do Rosário)
124

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021. Polo Experimental, Museu Bispo do Rosário


Área de trabalho dos artistas Clóvis Aparecido e Arlindo de Oliveira (mais à esquerda)

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021.


Bancada de trabalho do artista plástico Arlindo de Oliveira.
Nas paredes, rostos desenhados por ele. Pendurados: móbiles.

Foi sentada nessa cadeira que eu tive a minha primeira conversa com o Sr. Arlindo –
recebi dele os primeiros detalhes do que significa ter vivido 50 anos preso num hospício e,
também, uma pergunta: E você? Quem é você? Não me foi difícil responde-lo em detalhes.
Ao contrário, difícil foi perceber como pudera eu perguntar, se dentro das celas, o banho era
com chuveiro, quando a resposta foi: garota: não tinha nem banheiro... nem vaso sanitário...
125

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021. Atelier Gaia, Museu Bispo do Rosário


Área de trabalho da artista Rogéria Barbosa.

Fotografia: Fabiane Valmore, 2021. Atelier Gaia, Museu Bispo do Rosário


Área de trabalho do artista Leonardo Lobão
126

Arlindo de Oliveira, Clóvis Aparecido, Pedro Mota, Rogéria Barbosa e Leonardo


Lobão, são integrantes, junto com outros artistas, do Atelier Gaia - um espaço de arte,
criação, formação, convivência, liberdade e saúde, vinculado ao Museu Bispo do Rosário
Arte Contemporânea, que estimula a prática artística e profissional dos integrantes do
Ateliêr Gaia, e é gerido coletivamente pelos artistas com o apoio e acompanhamento da
curadoria pedagógica e geral do Museu, Diana Kolker e Ricardo Resende,
respectivamente
A atual diretora do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, Raquel
Fernandes, em entrevista concedida para essa pesquisa diz sobre essa integração do
Atelier Gaia, e o porquê dele, com o Museu Bispo do Rosário:

Bom, eu vim para o Museu em 2013. Eu recebi um convite pra poder fazer uma
integração dos... né... porque o Museu de uma certa forma, ele tava um pouco
isolado da assistência né... do restante do Instituto, enfim. E aí, então, quando o
Diretor do IMASJM me convidou, ele... na época eu tava no Centro de
Convivência [atual Polo Experimental] e ele me convidou pra que eu pudesse tá
integrando os dispositivos culturais do Instituto né... para que a gente pudesse
fazer um trabalho, onde que o Museu se aproximasse mais da assistência. [...] no
início, eu não tinha nenhuma experiência com esse dispositivo: Museu né... toda a
minha formação, minha prática... eu sou psiquiatra, de formação e, então,
assim... pensar... eu não entendida nada do que que era os bastidores de um
Museu né... de pensar como realizar uma exposição, todas essas coisas. Então,
tudo isso eu tive que ir aprendendo. Mas o meu desafio, a coisa que me chamou
atenção né... que motivou o meu desejo, era poder pensar como transformar o
Museu... porque eu sempre acreditei que os dispositivos culturais tinham grandes
possibilidades de serem transformadores, de fazer essa integração da sociedade
com a clínica. E aí, então, o meu desafio foi esse né... de poder estar fazendo esse
trabalho. [...] Da cultura [...] como potência.

[Fabiane: Nesse decorrer como você avalia o alcance, os limites desse desafio?].
Eu, cada vez mais acredito [...] nesse caminho. Não, assim, como algo
terapêutico, mas como potência [...] uma aposta... eu acho que a gente trabalha
fazendo esta aposta que é na potência do sujeito. Então, o trabalho aqui no Museu
sempre foi esse - de fazer com que... é... é... o que tenho feit/ procurado fazer... a
gente tem um trabalho de memória, de resgate da memória... desse passado do
asilo né... o passado, também, dos artistas que pass/ que né... que por aqui
viveram e tudo... mas, também, nessa potência de transformação. Então, eu
acredito que isso é muito... que isso se confirmou né... fazendo com que... de fato,
construindo, isso, que a gente chama de uma clínica ampliada.

Então, é uma clínica do sujeito. Então, eu acho que... isso é muito potente, assim...
eu acredito que isso se configurou. Acho que essa Exposição que a gente está
fazendo agora [em fevereiro de 2021], “Arte como Ponto Vital”, pra mim, é um
reflexo disso - eu acho... é... aponta essa trajetória né...

Quando eu comecei né... aqui há oito anos atrás, o Gaia, o Atelier Gaia, por
exemplo, ele, tava afastado do Museu. Então, a gente fez todo um trabalho né... de
inclusão [...] do Ateliê [Gaia] nesse processo do Museu. Mas, não assim... mas, o
127

tempo todo pra produzir uma autonomia, uma descoberta, uma potência, uma
integração. Então, eu acho que isso tá muito positivo. Então, [...] o Ateliê, talvez,
seja o mais significativo disso, assim.

O Ateliê era o Ateliê Terapêutico Gaia. Então, tinha uma função muito... talvez,
de um acompanhamento, mas, ainda, numa posição... é... como é que eu vou dizer
isso... num sentido de, talvez, mais intervencionista da clínica, sabe? Onde você
vai lá... e que você diz... e que você, você enquanto profissional da saúde, você vai
lá e tem esse lugar de um maior poder - talvez, se a gente for pensar nisso né...

E, aí, o que eu acho que a gente foi fazendo nesse processo foi deslocar, fazer
essa desconstrução desse poder né... da clínica né... que é dado ao profissional,
enfim; e tentar, de alguma maneira, sem desmerecer o profissional nessa
trajetória né... mas, fazer uma aliança, onde a gente pudesse estar caminhando
junto. Então, você não tem o lugar do médico-paciente sabe? essa relação
hierarquizada de papéis muitos marcados. [...] Se a gente pensar nessa coisa,
assim, do curador e pintor, então... e aí, eu acho que é um reflexo dessa exposição,
é justamente isso... que a gente trabalhou, a gente fez a trajetória... estimular eles,
enquanto artist/ poderem se reconhecer enquanto artistas e a partir daí, também,
poderem é... dizer, assim: como eles querem se ver representados, como é que
eles podem tá de fato com seus trabalhos na exposição. Como é que eles podem
ser curadores de si né...
[Fabiane: em vários sentidos... curadores de si].
Exatamente, exatamente né... eles se curarem, vem dessa palavra que é cuidar, né.
Então, como poderia ser isso? Então, eu acho que a gente fez um processo de
cuidado coletivo. Então, eu acho que esse foi o... e eu acho que é isso que a gente
entende né. Então, ao mesmo tempo eu cuido e ao mesmo tempo eu sou cuidada
né... enfim.

Então, eu acho que tem essa relação, muito nesse sentido. Então, eu acho que isso
é muito interessante. Acho que a gente está num processo [...] foram oito anos
nessa construção, nessa trajetória de empoderamento, de... [...] E isso foi
também, quando a gente, também, mudou a relação com os artistas do circuito
externo: vinham pra cá... também, a gente começou a construir uma outra relação,
também, né... uma relação, também, não hierarquizada, onde se descobria junto,
aqui, como é que ia ser desenvolvido tudo. Os trabalhos, os projetos. Então, eu
acho que isso foi também muito interessante. Não ficou uma coisa, também de: eu
venho aqui para sugar essa essa... [Fabiane: o material] o material né... ou, se tipo
assim: né... sei lá, querer poder de alguma maneira, ainda mantendo essa relação
de nós e eles né... Então, eles que tão aqui na Colônia, eles que... Então, eu acho
que a gente, o tempo todo, tentou romper com isso, assim né. Então, é um trabalho
que... quando, também, os artistas de fora veem, eles também são transformados
pelo processo. Interagem junto nesse processo. Então, eu acho que isso, talvez,
seja o mais interessante né... de como desconstruir essas relações de poder.

[Fabiane: menos controle e mais autonomia... quando você estava encontrando


palavras para expressar o deslocamento que vocês tentaram fazer?]
Sim, sem dúvida. Sem dúvida.

É como que fazer essa aposta de autonomia do sujeito, do lugar que ele pode tá
né... E fazendo com que [Fabiane: qualquer lugar que seja esse] e que a gente vai
ampliando as possibilidades dele, disso né... Na medida em que a gente vai
criando essas relações de troca, eu também vou ampliando meu repertório, vou
ampliando as minhas possibilidades de desejo né...
128

Então, se eu antes, eu tinha uma certa... enquanto artista, eu conhecia só um


determinado universo... à medida que eu estabeleço novas relações de troca, eu
amplio também, meu repertório. Eu amplio minhas possibilidades e amplio o meu
desejo né... e aí, eu posso buscar novas coisas né... enfim. Produzir outros... não
que isso... isso... isso é crescer. É um crescimento que é com conflito,
descobertas... abrir mão de determinados padrões... Não é uma história, assim,
linear né... é uma história de idas e vindas. Avanços e tudo.

Mas, eu vejo nisso um processo muito rico né... e a ideia é que a gente possa, cada
vez mais, ampliar para que os outros dispositivos de saúde da cidade, possam
contar conosco e que a gente possa ir trabalhando mais nesse sentido né... pra
que... eu acho que é um pouco isso... pra que, também, o profissional de saúde
possa se sentir representado, também, pelo projeto do Museu né... já que gente vai
contar a história, a gente conta né... - não é um museu histórico, é um museu de
arte - mas, ao mesmo tempo, quando a gente está falando dessa memória... tem...
né... a gente tem esse legad/ essa ambição de preservar a memória. Então, a gente
também tem um pouco dessa História né... e como é que a gente faz com que cada
ator desse processo possa se sentir representado né... e possa sentir... que possa
colocar a sua fala, a sua dificuldade...
Acho que é um pouco essa busca que a gente tem tentado fazer.

[Fabiane: quando você falou em resgate da memória me veio à cabeça a


performance do Arlindo... e daí, eu fiquei pensando em te perguntar que memória
que se resgata ali... a dele ou a do Bispo? Ou de ambos, sei lá].
Ele chama a performance dele de triformance.
[Fabiane: Ahh, tri. E ele explica?]
Ele fala... ele chama de triformance.
Então, é um processo que é ele, é Bispo, é o próprio Ulisses Viana, o próprio
Pavilhão [Ulisses Viana]. Então, esse processo de transf... [Fabiane: que legal...]
É por isso que é muito interessante né... assim... se a gente pensa nessa história do
Arlindo né... A história dele, toda, enfim.
(Raquel Fernandes, Museu Bispo do Rosário)

Muitas foram as minhas possibilidades de estar na antiga Colônia Juliano Moreira.


No 1º dia em que visitei o Museu Bispo do Rosário, em julho de 2018, logo na portaria
dele, no Edifício Sede, eu fui avisada de que a exposição havia se encerrado no dia
anterior. Um dia antes! Insisti, perguntando, se algo ali eu podia conhecer, ou se alguém
poderia me receber. Qualquer coisa, menos retornar sem nada, depois de quase duas
horas gastas até ele. Me permitiram subir as escadarias de mármore branco e ampla do
Edifício Sede que dá acesso ao Museu. Assim, pela primeira vez caminhei em estado de
alerta por entre corredores razoavelmente compridos, largos e silenciosos - até que me
deparei com dois rapazes e um susto. Tive receio, embora nada neles tivesse aparente a
ponto de me provocar esse sentimento. Era o ambiente, ou melhor, a sensação
completamente desconhecida dele.
Não demorou muito e eu bati numa porta entreaberta. Nela, me apresentei à pessoa
que me atendeu e fui apresentada rapidamente por ela a alguns aparelhos/instrumentos
129

médicos dos tempos violentos do eletrochoque, da lobotomia - guardados num armário


de madeira antiga, uma espécie de cristaleira, à vista, posicionada logo na entrada da sala.
E também, de pronto, aos dois rapazes: Luizinho e Ivanildo, os monitores do Museu. Em
seguida, fui convidada a conhecer o Polo, na companhia deles, que executam esse
trabalho de apresentar o Polo e o Centro Histórico aos visitantes. Me lembro bem de ter
perguntado à funcionária não apenas pelo caminho até o Polo, mas principalmente, se eu
poderia me sentir segura indo até lá na companhia deles. Dito isso, toda essa minha
apreensão desapareceu em poucos minutos. No caminho, a paisagem e a História da
Colônia, misturadas com os “problemas de nervos” que o Ivanildo me contava tê-lo
levado à condição de usuário dos serviços públicos de saúde mental, já não me
deixavam apreensivas. Muito pelo contrário.
Noutras diversas ocasiões fiz esse mesmo trajeto sem tampouco conseguir dar
conta da relação estranha e intima que se estabelece entre mim e aquilo que um dia foi
um hospício. A paisagem ampla e verde, mas sabida, antiga e de dor; os artistas do Atelier
Gaia, que de alguns, mais que de outros, consegui me aproximar, conhece-los e me fazer
conhecida; a oficina de mosaico, onde eu pude, também, quebrando cacos de azulejos,
tentar juntar os meus, existenciais, por mais de uma vez; a oficina de bordado e costura,
a que mais me impressionou e que de algum modo, não desejei muito me demorar, apesar
da beleza dos veleiros e dos arquedutos bordados por mãos, quase que absolutamente de
mulheres, gratas e com olhar ternos, quando elogiados e/ou vendidos, os seus trabalhos;
o espaço onde as refeições por vezes são preparadas e/ou servidas, inclusive, por mim e
à convite deles; onde aniversários são comemorados e partilhadas, as esperanças pra nova
idade; onde compositores cantam e ensaiam as suas músicas autorais. Enfim, onde se faz
conviver a vida com tudo o que pode haver e restar em cada uma que se faz presente por
lá. No final de cada tarde, as despedidas, a ida para casa ou para algum lugar qualquer. O
sentimento de dever cumprido, também. Afinal, num dia, um dos artistas do Atelier Gaia,
em conversa comigo, me disse: “se a gente não trabalhar, não fica aqui, não”.
Em mim, a expressão “afeto institucionalizado” me põe a procurar sentido e
tentar compreender isso tudo que me cabe também. Sofrer com os que sofre(ra)m e
apre(e)nder junto a eles a vida e a falta dela. A arte de viver e de se fazer artista de si
próprio. De ouvir, lindamente, e depois cantar, com Clovis Aparecido, uma das canções
feitas por ele. Que se aparece aqui escrita é porque pedi a ele que me a ditasse para que
eu pudesse escrevê-la e na sequência, acompanha-lo cantando. Não sabia que a posição
130

dos versos mudaria de lugar ou que novos versos seriam acrescentados a cada nova vez
que cantássemos juntos.
Me queixando com ele sobre isso, já que, como, então, eu poderia acompanha-lo,
aprendi com ele, que a música é como uma criança, que vai crescendo, quando cantada,
e que a ordem da letra e, mesmo, a própria melodia, variam conforme o sentimento a cada
nova vez que se canta uma mesma música – sol, flor, lua, mar e ouro variou de lugar;
sol, lua, mar, escuridão e flor alternou na sequência das estrofes; peixe, mar, sol, pão,
vinho, uva, pera, maçã, cobra, elefante e o leão fluiu um a um como que numa espécie de
associação livre. Liberdade, improviso e desprendimento foi o que eu sentir existir nas 4
ou 5 vezes que eu me coloquei a cantar junto com ele. No limite, fui instruída a cantá-la
do jeito que eu me sentisse à vontade, mesmo fazendo dupla com ele, no violão.

Muito mais que um peixe


Ô menina bonita Muito mais que o mar Teus cabelos branqueados
Você é a minha vida O sol Criou todos os seus filhos
Brilha muito mais que o sol O pão E depois Jesus levou você
Muito mais do que a flor O vinho
Muito mais do que a lua A uva Muito mais do que o cavalo
Muito mais do que o mar A pera alazão
Muito mais do que o ouro A maçã Cocoveia o mundo todo
A cobra Em toda essa cidade
Ilumina a minha alma O elefante Com as suas lindas patas
Ilumina a minha vida E o leão Com as suas ferraduras
Ilumina o meu destino Batendo nesse asfalto
Você é o meu pedaço Me tirando dessa escuridão
Ô minha paixão querida O meu pedaço é seu
Filha do Nosso Senhor O seu pedaço é meu Soltando fogo pra cima
O meu pedaço é seu Iluminando a escuridão
Enquanto nasce o sol
Você é o meu pedaço
A lua Enquanto nasce o mar
O meu pedaço é seu
O mar A lua
O seu pedaço é meu
A escuridão A flor
O meu pedaço é seu
Enquanto morre uma flor
Muito mais que o relâmpago
Nós comemos na cozinha
Enquanto nasce o sol Muito mais do que o sol
Nós comemos na sala
A lua Muito mais do que a lua
Comemos no quarto
O mar
A escuridão
Eu tiro a sua meia
Enquanto morre uma flor
Sem tirar a sua sandália

Bebemos vinho gelado


Eu beijo a sua boca
Eu arrumo a sua mini-saia
Eu arranco a sua saia Clóvis Aparecido
Eu te cubro com a coberta 21 nov. 2019
131

Clovis Aparecido, além de musico, também é artista plástico – faz com


cimento/concreto e tinta, muitas de suas esculturas - seus “brinquedos”. Em novembro de
2019, em visita à exposição “Utopias, vida para todos os tempos e gloria”, no Museu
Bispo do Rosário, e, interessada num de seus trabalhos, perguntei a ele se estava à venda,
de acordo com os meus olhos, um fusquinha branco, como a lua (?), decorado com
corações-flores vermelhas.

Fotografia: Fabiane Valmore, novembro 2019


Exposição “Utopias, vida para todos os tempos e gloria”
Sala expositiva do mBrac dedicada aos trabalhos do artista Clovis Aparecido.

Nem me respondeu que sim, nem que não – a não ser que ele ainda precisava
concluir esse trabalho. Passados alguns meses, retomei esse meu interesse e dessa vez,
ele me encheu de perguntas. Quis saber de mim, onde eu guardaria o carrinho. E foi
insuficiente eu responder que na minha casa. Quis saber, aonde, na minha casa. Quis
132

saber, também, por que eu queria esse carrinho. Bem... eu já tinha elogiado especialmente
esse trabalho dele e reiterei o elogio. Daí ele me disse: eu faço um outro igual para você.
Agradeci e me contive. De repente, eu escuto dele, algo assim: vou vender meus
brinquedos e ficar sem eles? Conversamos um pouco e rimos juntos, um riso de
compreensão-mutua – logo depois veio a pandemia.

***
3.5 GRUPO MUSICAL “CANCIONEIROS DO IPUB” - Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ)

A música como possibilidade de expressão e registro dos sentimentos dos


pacientes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB/UFRJ) inspirou a criação do
grupo musical Cancioneiros do IPUB, no campus da UFRJ da Praia Vermelha, em
1996. No Dia Nacional da Luta Antimanicomial desse mesmo ano, os Cancioneiros
estrearam, se apresentando no Clube da Esquina, um “Clube Terapêutico de lazer
assistido”, que também inaugurava as suas atividades nesse mesmo dia. Vandré Matias
Vidal, musicoterapeuta, à época aluno do curso de Especialização em Atenção ao
Psicótico e mais tarde, Mestre em Atenção Psicossocial (IPUB-UFRJ), foi o idealizador
e nesses 25 anos, o coordenador da banda. O meu primeiro contato com os Cancioneiros
se deu justo num dia, em 2019, quando eu estava no IPUB/UFRJ e fiquei sabendo que
estava prestes a acontecer a defesa da dissertação de mestrado produzida pelo Vandré:
“Cancioneiros do IPUB: 22 anos de um grupo musical brasileiro”. Pude assisti-la e não
me demorou muito convidá-lo para fazer parte dessa pesquisa. Em fevereiro de 2021, no
dia da entrevista feita com ele, “Mestre Vandré” se apresentou e falou um pouco da
origem e da relação dos Cancioneiros com o Clube da Esquina, antes mesmo de
iniciarmos a entrevista. Reproduzo aqui, parte dessa fala introdutória:

[Me chamo] Vandré Matias Vidal. Musicoterapeuta. Mestre em Atenção ao


Psicótico, pelo IPUB e coordenador e idealizador do grupo Cancioneiros do IPUB,
que foi criado em 1996, a partir de minhas observações relativas às pessoas em
tratamento no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, também chamado como Instituto de
Psiquiatria da Universidade Brasil, com a sigla IPUB. E essas pessoas que fazi/
traziam música, essas músicas tinham um significado especial na vida dessas
pessoas. Diferentes daquelas que eles cantavam no setting musicoterapico. [...].
Essas, que eles compunham tinha uma história, estavam ligadas, às vezes, a
momentos de grande sofrimento, a momentos, assim, marcantes na vida de cada um.
Então, eles traziam essa questão... e a ideia era que a gente registrasse todo esse
material. Mas, a partir dessa reunião pra registrar, a gente percebeu que a gente
podia divulgar essas músicas que eram... que tinham sido feitas. E começamos a
133

pensar na possibilidade de fazer um grupo pra divulgar essas músicas. Isso foi
acontecendo de forma muito espontânea e a nossa estreia, enquanto projeto,
enquanto grupo, foi no 18 de Maio de 1996, na inauguração de um clube
terapêutico, que por coincidência, tinha um nome de um grupo de... de um
movimento de compositores de Minas Gerais – o Clube da Esquina. [...]. O nosso
Grupo da Esquina é uma atividade de lazer, assim, que a gente chama de lazer
assistido, ou não. Ela é feita aqui nessa... no Campus da Praia Vermelha.
Exatamente numa esquina. E a ideia era exatamente que as pessoas que tinham
uma dificuldade de sair de casa, de fazer um lazer durante o final de semana,
pudesse ter um dia de lazer assistido. Pudessem pensar numa programação fora
daqui, [do IPUB] que eles pudessem ir ao cinema, ir ao teatro... né... fazer alguma
atividade lúdica. [...] a ideia era exatamente minimizar a solidão e o sofrimento
das pessoas que não tinham aonde ir. Ou então, tinham dificuldades de sair no
final de semana né... [...]. Então tinha... desse grupo tinham pessoas do antigo Cais
do Pinel, pessoas do IPUB, do Hospital-Dia do IPUB e de outras instituições
psiquiátricas. Na época, ainda não existiam os CAPS, como tem hoje tá. [...]. A
inspiração maior... claro que algumas pessoas que faziam parte do Clube da
Esquina também eram compositores. Mas por ser o espaço, inicialmente que eles
iam ficar, numa esquina, então, deu a ideia de Clube da Esquina. [...] tem uma
música que a gente fez no 1º ano do Clube da Esquina. Os Cancioneiros fez uma
música coletiva chamada Clube da Esquina. Que fala, que começa assim: “Clube
da Esquina é um lugar onde a gente pode se encontrar”. Aí, o Demetrius cantou:

“no sábado...
Se não houvesse, ficaríamos tristes
Mas somos teimosos e a vida insiste”.

[...]. Só a música já explica muita coisa. É o hino do Clube da Esquina.


(Vandré Vidal, Cancioneiros do IPUB)

Vinte e cinco anos depois, em janeiro de 2021, Demetrius Lucas, afirmou em entrevista
para essa pesquisa:

A arte, ela, te ensina uma coisa, entre outras coisas: ela te ensina que quando você
tá num problema, tem a solução. Mas pra você perceber a solução que você não
sabe, você tem que chegar e se permitir. Deixar o seu olhar captar e o seu ouvido
captar... a sua percepção sensitiva captar é.... é... como eu posso falar... é... a
resposta do... do... do... no ar. A resposta do... do... do cosmo. Do cosmo. Do cosmo
vivendo em todo voc/ envolvendo todo você... você tá, assim... se treinar naquilo.
Entendeu? Se treinar e deixar a vida te ensinar a você perceber como ela é... Pra
você, pelo menos. Ou pro outro. E você dividir aquela opinião do outro com você...
e até se unir a outros grupos que pensam igual a você e criar tribos... criar vínculos
por aí, na arte né... [...] A arte para alguns, ela, é toda e totalmente espiritual. [...]
Mas o que tange à minha paz interior: a arte é uma coisa que me alavanca na
compreensão do mundo, entendeu? Ela é minha bússola, ela é minha janela para
o mundo. Ela é minha porta, meu confinamento, meu estúdio com mundo. Minha
casa com mundo. A arte, ela, é meu canal de expressão de situações, assim, das mais
variadas. Situações de tristeza, de raiva, de ira, de solidão, de paz interior, de
alegria, de coletividade fraterna - naturalmente, integrada à minha individualidade.
Então, a arte é social. Ela é coletiva. Com a linguagem artística, você pode [...]
dissolver, assim, julgos… prisões, dissolver aprisionamentos, dissolver
chantagens… Mas isso, [...] sempre buscando a pureza e não o ego.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)
134

[...] um dia torna-se incerto o significado dos pontos de vista adotados


irrefletidamente, o caminho perde-se no crepúsculo. A luz dos grandes
problemas culturais deslocou-se para mais além. Então a ciência prepara-se
também para mudar o seu cenário e o seu aparelho conceitual, e fitar o fluxo
do devir das alturas do pensamento. Ela segue a rota dos astros que
unicamente podem dar sentido e rumo ao seu trabalho [como o Fausto, de
Goethe]: ‘... desperta o novo impulso./ Lanço-me para solver sua luz eterna./
Diante de mim o dia e atrás a noite./ Acima de mim o céu, abaixo as ondas’/.
(WEBER, 2003, p. 127, grifos meus)

No horizonte: um flerte entre Arte e Ciência?

Continuando a fala do Vandré:


O projeto Cancioneiros do IPUB e a minha história dentro dele, se confunde um
pouco com a minha história, em termos de vida. Porque eu tinha acabado de me
formar em musicoterapia. Eu era musico na época da aeronáutica tá. O meu nome,
Vandré, é em homenagem a um grande compositor que em 1968 fez uma música
chamado Pra não dizer que não falei de flores. Então, a minha história tem a ver
com essa questão da música popular e da composição popular. E a minha
formação, também, enquanto musico... eu era... na época em tocava violino na
Aeronáutica, no Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica, aqui no centro do
Rio de Janeiro e tinha uma bagagem muito forte, com o canto coral. Eu vindo do
grupo coral da escola. A gente chegou a viajar por vários lugares... depois eu
participei da Faculdade Souza Marques - tinha um coral, também, muito bom, com
o professor e maestro Silas [Ramos] Sias. E esse grupo Coral da Souza Marques,
principalmente, a gente chegou a viajar, fazer viagens fora do Brasil, pra concursos
e festivais. Encontros de corais, não só no Brasil, mas também fora do Brasil. Então,
a minha vida musical tinha a ver com essa coisa de grupo e de músico, também. E
eu gostava muito de compositores. Eu achava que os composi/ mesmo não sendo
autenticamente um compositor... às vezes eu faço, mas eu não me considero um
compositor. Sou um musico, um musicoterapeuta e gosto de música. Então, eu
valorizo muito as composições, as músicas. É daí, essa minha percepção e essa
minha construção do projeto... que eu queria valorizar essas pessoas que tinham
algo a dizer em suas músicas. E esse algo a dizer, se a gente não conseguisse... não
pudesse registrar... e, de uma certa forma, dar uma visibilidade, essas músicas e
essas composições iam se perder com o compositor que tinha feito.

Então, dai, veio a história do projeto, do registro, para que se pudesse registrar
essas composições das pessoas que gostavam de compor, que iam até a seção de
musicoterapia e outras, que andavam pelo pátio, gritando, as vezes, até berrando as
suas músicas. Então, essas músicas tinham um significado pra elas. Então, a minha
história, daí, enquanto musicoterapeuta foi toda a minha formação, o curso de
especialização que eu fiz em saúde mental teve como tema Cancioneiros do IPUB.
O curso de mestrado, também. Eu já fiz já um apanhado dos vinte anos do projeto
Cancioneiros do IPUB. Eu fiz uma espécie de cartografia. Mas, não só cartografia,
como tem um pouco da história do projeto, pegando algumas coisas de cartografia,
mas pegando, também, um pouco de antropologia né... de etno de autoetnografia,
pegar um pouco da história de cada um... Aí, a gente fez uma... uma... um período
de trabalho, para que a gente pudesse tentar identificar quais foram os pontos
positivos, o que mudou na vida daquelas pessoas, em vinte anos. E a minha
proposta agora para o mestrado é que a gente possa terminar de fazer o nosso livro
e também, construir um espaço que seja... como já é referência... mas que isso se
torne efetivamente uma referência pra compositores e músicos que queiram
participar com a gente.
135

[Fabiane: O Sr. idealizou os Cancioneiros... o Sr. era estagiário ou não, do IPUB?].


Eu era aluno de... eu idealizei como estagiário de musicoterapia, mas depois eu
comecei como aluno de Especialização do Curso de Assistência ao Psicótico.
[Fabiane: Como surgiu o nome Cancioneiros?]
O Cancioneiros surgiu em 96. Cancioneiros, o nome... como eu queria fazer esse
registro, uma colega musicoterapeuta, ela, lembrou da época dela de Portugal, que
tinham os Cancioneiros Portugueses. Então ela deu/ pode botar Cancioneiros do
IPUB. Depois a gente foi ver que Cancioneiros é o coletivo de [...] poetas. Então, o
nome tinha tudo a ver com... e do IPUB, porque, exatamente, do Instituto de
Psiquiatria da Universidade do Brasil, que atende com o nome Instituto de
Psiquiatria da UFRJ, que também atende com o nome e com a sigla IPUB. Que já
era conhecida anteriormente, tá. (Vandré Vidal, Cancioneiros do IPUB)

Dentre os cinco dispositivos/serviços que integram o campo da presente pesquisa,


com o grupo Cancioneiros do IPUB foi o que eu menos pude estar junto. O início das
atividades previstas pelos Cancioneiros do IPUB, para o ano de 2020, coincidiu com o
início da pandemia que pausou as atividades presenciais regulares do grupo. Embora de
forma remota os Cancioneiros venham se encontrando nas tardes de sextas-feiras desde
maio de 2020, apenas no final de julho eu recebi autorização para estar com eles. O meu
primeiro encontro como pesquisadora junto aos Cancioneiros, ocorreu em 31 de julho de
2020, quando, então, eu pude rever alguns dos integrantes e conhecer outros. Nesse dia
eu fui apresentada ao grupo pelo Vandré Vidal, musicoterapeuta, idealizador e
coordenador dos Cancioneiros, e formalmente falei sobre essa pesquisa convidando-os a
participar dela. Desde esse dia e até 15 de outubro, aconteceram 10 desses encontros
virtuais91, dos quais eu pude estar em 9 deles. Justo pro encontro que contou com a
participação do Marcello Azevedo, psicólogo e musico convidado pelo Vandré a integrar
os Cancioneiros à época da criação do grupo, eu não recebi o link de acesso à sala virtual
para estar junto com eles.
Esses 9 encontros virtuais com os Cancioneiros, entre 31/07 e 15/10 de 2020, por
aproximadas 1 hora e meia cada, me possibilitaram perceber um pouco da dinâmica do
grupo, supostamente muito diferente daquela anterior à pandemia – seja porque nem todos
os integrantes do grupo se faziam presentes nos encontros, ou mesmo, devido aos limites
tecnológicos que impossibilitam a abertura de vários microfones simultaneamente para
que uma banda musical possa ensaiar, gravar, testar som, etc. Considerando também que
os Cancioneiros do IPUB estão produzindo um songbook para comemorar seus 25 anos,
essa foi a principal preocupação do grupo percebida por mim na maioria desses encontros

91
Os 10 encontros ocorreram nas seguintes datas: 31 de julho; 07, 14, 21 e 28 de agosto; 11, 18 e 25 de
setembro; 02 e 15 de outubro de 2021.
136

– de um tal modo que pude até mesmo conhecer um pouco da história de algumas
músicas/composições ainda não gravadas pela banda e mesmo das de saudosos
(ex)integrantes dos Cancioneiros.
[...]. Nós vamos gravar um novo Songbook e esperar a pandemia acabar. Nós
estamos gravando, na verdade. Só falta terminar de gravar. Vai demorar um
pouquinho, mais vai ser melhor do que o outro. Vai ter até... diz o Vandré, uma
noite de autógrafo. [...]. Agora não posso criar expectativa de ser um músico.
[...expectativa] musical. Poderia ter sido. Tive toda chance de ter sido isso. Toda
chance que o Vandré não quis aproveitar. [...]. Meu sonho maior é que fosse um
grupo musical e pudesse mostrar para todo mundo que nós somos capazes de ser
uma pessoa igual a todo mundo. É isso.
(Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Num desses encontros me deparei pensando sobre o cuidado que exige fazer
caminhar um processo de inclusão/gravação póstuma de uma música/composição – isso
porque uma canção que eu ainda não conhecia da Joana de Fatima, integrante dos
Cancioneiros, já falecida, foi citada como uma das músicas que vai fazer parte do já
referido Songbook que está sendo produzido para comemorar os 25 anos de Cancioneiros.
I love you
so help all staurim
So help all again
So help all staur
Oh! Baby
So help all again
Mereci bo cru
Merci bo cru staurim
So help all again
So help all stauri
Oh! Baby
So help all again

Narro aqui esse acontecimento menos porque uma das questões-problemas


levantada a respeito dessa canção foi em relação a manter ou não a fidelidade integral do
conteúdo/letra da música, uma vez que nela constam frases em língua estrangeira, inglês
e francês, algumas delas, fora do padrão formal desses idiomas, mas porque basicamente
essa foi a única ocasião em que eu participei fazendo alguma consideração pessoal
durante os nove encontros em que estive presente. Logo que percebi que estava em pauta
essa discussão sobre reproduzir ou não uma canção tal como fora composta, a minha
reação imediata foi defender que se mantivesse a letra original da música em respeito à
compositora e à sua produção artística. Devo dizer aqui que se de imediato senti dúvida
sobre o cabimento desse meu comentário, senti, também, sobre o grau de
envolvimento/pertencimento que me coube desfrutar – ou que não foi possível construir
137

junto aos Cancioneiros do IPUB. Disso tudo dito, o que considero importante aqui é
descrever um pouco daquilo que é, também, estar em campo de pesquisa. Talvez, ainda
mais devido às especificidades próprias decorrentes do campo da saúde.
Tempos depois desse encontro, por motivos pessoais de saúde meus, precisei me
ausentar das atividades de pesquisa por 40 dias. Isso significou que eu precisei aguardar
nova autorização para retornar às reuniões virtuais até julho de 2021 - um ano desde esse
meu primeiro encontro. Nessa ocasião, fui solicitada pelo coordenador dos Cancioneiros,
André Vidal, a falar brevemente sobre o andamento dessa pesquisa, declarada ao grupo,
por ele também, importante para fortalecer os princípios da Reforma Psiquiátrica. Nesse
dia, a reunião foi curta e os encaminhamentos e preocupações do grupo continuaram em
torno da produção do Songbook e da gravação do CD pra comemorar o aniversário de 25
anos do grupo. Nem todos os integrantes do grupo têm conseguido estar ou se manter
presentes nesses encontros semanais, seja devido às limitações de acesso à tecnologia,
seja em função de uma certa insegurança emocional sentida frente às atividades remotas.
Interessada em apresentar os Cancioneiros do IPUB aos organizadores e colegas
do Curso de Extensão Arte, Loucura e Saúde Coletiva oferecido pela UFSC92, convidei-
os a participar do Sarau dos Sonhos, atividade de encerramento desse curso que aconteceu
em setembro de 2020. Nessa ocasião, estiveram presentes para representar o grupo, os
músicos Orlando Baptista e Gustavo Baptista e as estagiarias Isadora Gimenes e Giselle
Casado. Orlando apresentou a trajetória da banda, que se confunde com a sua própria, e
cantou algumas de suas composições autorais, mais uma vez, esperançoso de tornar

92 “Os organizadores do Curso de Extensão “Arte, Loucura e Saúde Coletiva”, agradecem a


participação dos “Cancioneiros do IPUB” no “Sarau dos Sonhos”, espaço de apresentação virtual de
expressão artística promovido como atividade de encerramento desse curso que foi oferecido pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no mês de agosto de 2020. A participação dos Cancioneiros
do IPUB ampliou a alegria sentida durante o “Sarau dos Sonhos” que contou com participantes de várias
regiões do Brasil. Os músicos, Orlando Baptista e Gustavo Baptista e as estagiarias Isadora Gimenes e
Giselle Casado nos contaram um pouco da História e da importância terapêutica, cultural, política e social
da Banda que já possui 24 anos. Pudemos conhecer os vídeos das músicas “Sintomas” e “Vai Passar”. Essa
última, produzida no contexto da pandemia que estamos vivendo. Além disso, Orlando Baptista nos
apresentou a trajetória musical e artística da Banda da qual faz parte desde a formação dela em 1996,
mesclando nessa fala, a sua própria trajetória como musico, compositor, usuário e militante da saúde mental
pública carioca. Não apenas falou, mas também cantou ao vivo “Rios de Saudade”, “Solitário Viajante” e
no final, nos presenteou com mais uma canção, “João”, produzida em homenagem a um amigo dele.
Gustavo não pode participar até o final do Sarau, mas não deixou de nos dizer que os Cancioneiros é um
espaço em que ele ganhou uma voz própria, onde encontrou amigos, músicos e pessoas que tem a
compreensão de que a diversidade e a compreensão são fundamentais para um desenvolvimento pacífico e
produtivo da sociedade. O “Sarau dos Sonhos”, como todo bom sonho, não tem regra, nem norma, nem lei.
Ele apenas acontece. Sonhamos e somos sonhados. Foi assim que poesias, desenhos, pinturas, músicas,
vídeos, fotografias, cantigas e tudo o que serve para dar conta do sentimento que se apossa em nós, foram
compartilhados com muito afeto e esperança de dias melhores, por todos nós na noite de 02 de setembro de
2020.”
138

conhecidos a banda, mas também, o seu sonho de poder ser “resgatado dos Cancioneiros”
– de poder viver da música, como um “artista profissional”
Uma das músicas cantadas por Orlando foi “Sintomas”93. Segundo ele,
considerada pelo próprio Vandré, “o carro-chefe dos Cancioneiros”. “Sintomas [...] é
algo forte porque ela passa a verdade sobre a gente – [passa] o que nós sentimos [...]”:
afirmou Orlando Baptista, em entrevista concedida para essa pesquisa. Em outras
ocasiões não se cansa de dizer: “Sintomas é uma pequena aula de psicopatologia”,
“Sintomas apareceu na prova da UFRJ” 94. Não demonstra com isso, apenas orgulho,
mas também, indignação: já que, a despeito disso tudo, a despeito de fazer parte dos
Cancioneiros há 25 anos, ainda busca por reconhecimento social e viver
profissionalmente da música. Orlando sonha em poder ser “resgatado dos Cancioneiros”
ao mesmo tempo em que afirma: “Eu nasci e vou morrer Cancioneiros do IPUB”

[...] isso não é só do compositor que está ligado à saúde mental. Infelizmente no
Brasil e em vários lugares do mundo, os compositores não são reconhecidos/os
criadores das músicas não são reconhecidos adequadamente. Eu falo isso porque
a gente sabe de vários compositores, principalmente de sambas, que fizeram
sambas maravilhosos e tudo... e que não conseguiram comprar nem um
barraquinho na favela né... (Vandré Vidal, Cancioneiros do IPUB)

[...]
Se eu olho
Ou escuto alguém falar

Se alguém ri
Ao me olhar

Eu penso que é pra mim


Eu penso que é de mim

Vozes, escutei
E pensei que alguém me perseguia

Eu tinha medo de pensar


E alguém entender o que eu via

93
Vídeo Produzido pela TV PINEL, 1999. Relançado em 2007. No relatório final de "Loucos pela
Diversidade: da diversidade da loucura à identidade cultural. "Sintomas" de Miguel Dantas e Orlando
Baptista. CANCIONEIROS DO IPUB- Local Campus da Praia Vermelha da UFRJ e IPUB. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=DMPHb-t0YFU>. Acesso em: 17 /07/2021
94
Concurso Público UFRJ - Edital 293/2016 - C-305 Musicoterapeuta – Geral. Disponível em:
<https://concursos.pr4.ufrj.br/images/arquivos293-2016/Provas/WEB%20C-
305%20Musicoterapeuta.pdf>. Acesso em 25/08/2021.
139

Eu achava que era Hitler


Ou judeu

Eu estava fora de mim


Eu era um ateu
Sem meu Eu
[...]

Sintomas
Orlando Santos Baptista
Miguel Souza Dantas

[...] eu me lembro que uma vez eu estava no Clube da Esquina e um cara falou
assim: vai pra lá seu animal. [...]. Isso foi há muito tempo. Não foi agora. Eu acho
que a Luta Antimanicomial ainda tava começando. Entendeu?. Nem sei se tinha
Luta. Então, agora mudou bastante. Agora tem uma visão diferente. Mas nem
todos. Nem todos. Você é rotulado. Você é carimbado. [...]. Um inválido. Uma
pessoa que... mesmo que você tenha defeito... você tem defeito é porque você tem
problema. É isso. Eu acho que de qualquer maneira você não tem como mudar. Você
não tem como sair disso. Você tem que se aceitar e fazer com que as pessoas te
aceitem também. (Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Há 25 anos, quando a gente começou os Cancioneiros do IPUB, a gente/ claro


que essas pessoas que já traziam as suas músicas, eles de uma certa [maneira?] se
consideravam compositores, tá. Eles se consideravam compositores, apesar de
que todo o entorno deles não o consideravam. Mas eles se consideravam. Alguns
até... tem a história de um dos nossos compositores que ele já vinha tentando essa
vida de compositor já há muito tempo. Mas existia sempre/ a música para ele tava
relacionado com... é... com... com crises né. Outros, já tinham essa ideia de
registrar até suas composições. Mesmo que de forma muito rudimentares: as
músicas as vezes não tinham letras, mas ele tinha como proposito, registrar essas
composições, essas canções que ele fazia - que ele dava um valor. Ele queria/até o
sonho dele era poder ganhar um dinheiro com essas músicas... então?... E temos
outros também que já tinham participado/ foram encaminhados exatamente
porque ficavam cantando pelo pátio suas músicas. E essas músicas tinham
significado pra essas pessoas. (Vandré Vidal, Cancioneiros do IPUB)

Agora a grande questão foi depois da primeira apresentação: essas pessoas


começaram a ser identificadas pelo entorno como compositores... como
Cancioneiras! E isso já deu uma identidade pra eles, enquanto artista, enquanto
musico que antes não exista. Existia aquela coisa muito solta né. [...]

E isso foi importante porque a família começou a ver também... [...] essas pessoas
todas começaram a apresentar em vários eventos... aparecer na televisão, abrir
shows de artistas famosos, viajar... [...] começaram a se sentir artistas. [...]

Quando a gente gravou o 1º CD em 1998, foi o Songbook e CD: “Cancioneiros do


IPUB”, algumas pessoas achavam que dali, iriam ganhar muito dinheiro. Mas
depois que a gente percebeu e eles perceberam que... não era muito... tão assim
dessa forma que acontecia: o fato de ter gravado um disco não representava que
eles iam mudar de vida. Não pelo menos, financeiramente.
140

Mas muitos deles mudaram o pensamento e amadureceram enquanto pessoas


produtivas. Enquanto artistas. Enquanto compositores. [...] A gente sempre falou
que apesar de ser um trabalho artístico e musical, [o grupo] estava vinculado ao
tratamento. E que era importante eles crescerem, não só no tratamento, mas
cresceram também quanto artistas. Daí, começaram surgir parcerias – que a
parceria foi melhorando muito o conteúdo e o trabalho de todos né... um que era
muito bom em letra... de repente se juntou com outro que era bom em melodia. Isso
fez com que o trabalho crescesse e o mais importante é que todos eles se sentiam
uteis e participantes de um grupo. (Vandré Vidal, Cancioneiros do IPUB)

Songbook e CD – Cancioneiros do IPUB, 1999


As músicas ‘Sintomas” e “Clube da Esquina” constam nesse CD

Destruir a loucura e fabricar o artista? [silêncio]. É a pessoa lutar né. Se tu tá


na loucura né.. tá na loucura, no lado da loucura, assim... que nada dá certo né...
se você quer ser um artista, quer... ter uns talentos né... a pessoa tem/quer dizer:
a loucura que se diz, assim, é de... de a pessoa não... [ficou em aberto]. Não a de
maluco né, pra sobreviver. A pessoa trabalha no lado da loucura ué. Deixa de ser
louco e trabalha pro lado dela. Se a pessoa é maluco. Se a pessoa é louca. Ela
deixa de ser louco... ela faz o artista... e vai pros loucos mostrar o que ela desfez e
tá fazendo, pra eles. Se eu sou um louco né... sou um maluco e aí tem a
oportunidade de eu ser um artista né... assim: tocar no Cancioneiro e tal. Então,
fala então: parei de ser maluco, eu vou tocar no Cancioneiro... e vou trabalhar
pra aqueles maluco parar de ser maluco. Vou mostrar a eles aonde eu tava... como
que eu tava, como que eu tô me achando... e que eles também façam a mesma
coisa. (Antonio Carlos Costa, Cancioneiros do IPUB)

[...] os sentimentos no amor? Eu sou um solitário.


Tem até uma música que diz assim:

Nessa rua, nessa rua


Tem um bosque
[silêncio]
Que se chama solidão...
Dentro dela mora um anjo
Que roubou meu coração
141

Quer dizer: sentimento, assim, de amor... essa coisas... as vezes eu tô no


Cancioneiro... eu não me/ eu me ligo mais é na... na música né.
Mas a pessoa sente alguma coisa.
Mas a pessoa não tem coragem de se expressar.

E sobre o amor, assim... sobre o amor, a pessoa tem que procurar... procurar a ser
ajudado né. É igual/ igual eu tava numa instituição né, conheci uma menina.
Conheci uma menina.
[Fabiane: e como a arte te ajuda a lidar com esse sentimento?]
Ahh canta música pra/ pra menina. Canta música!
Me leva morena me leva
Me leva pro seu bangalô
Leva
Leva
Leva morena
Que eu vou

[Fabiane: você cantou pra menina?]


Cantei. Canto. Tem música que diz:

Eu já vivo enjoado de viver aqui na Terra


Amanhã eu vou pra lua
Vou levar minha mulher
Ela então me respondeu: Nós vamos, se Deus quiser
Vou fazer uma casinha
Toda cheia de sapé
Amanhã às sete horas
Nós vamos tomar café

Essa aí é uma música também que... quem tá fora do/ fora da músi/ fora dali... a
pessoa... pra quem sabe ler, um pingo é letra. Quem sabe ler, um pingo é letra né.
(Antonio Carlos Costa, Cancioneiros do IPUB)

Essa pouca possibilidade de vivência conjunta com o grupo, provocada, também,


pela pandemia, me dificulta narrar e buscar analisar a dinâmica, a gestão e a maneira
como se dão as interações no interior do grupo a partir da minha observação participante,
como propus no projeto de pesquisa. Quero dizer com isso que, se por um lado,
prever/pretender estar em campo de pesquisa, ainda mais num contexto pandêmico, não
garante a observação dos “imponderáveis da vida real”, nas palavras de Malinowski
(1984) - dos fenômenos observáveis “em sua plena realidade”, tão necessária à escrita
dessa pesquisa; por outro, nos lembrarmos de que as “condições de campo”, segundo
Evans Pritchard (1950) constituem um dos fundamentos determinantes da qualidade de
uma pesquisa etnográfica, ajuda a justificar descrições menos densas dos que as desejadas
– produtos também dos limites enfrentados durante a feitura dessa pesquisa.
A despeito disso, no entanto, ter assistido à defesa e lido a Dissertação de
Mestrado sobre os 22 anos dos Cancioneiros do IPUB, defendida pelo próprio Vandré
142

Vidal (2019), além dos trabalhos do Marcello Azevedo (1999, 2000) e da Amanda Ribeiro
(2020), somados às entrevistas em profundidade realizadas com os pacientes, músicos,
integrantes dos Cancioneiros do IPUB, me permitem situar o grupo e refletir o objetivo
da presente pesquisa: como insurge da loucura, o sentimento/reconhecimento social e
individual de que se é artista. E desde aí, os limites, alcances e desafios dessa relação
entre arte e loucura, entre arte e terapia, entre o artista e o mundo do trabalho. Tudo isso,
muito mais do ponto de vista dos próprios pacientes-artistas, do que dos trabalhadores da
saúde mental pública, que idealizam, lutam - inclusive e, ainda, por melhores condições
de trabalho - e criam coletivamente dispositivos/serviços/redes no campo do atendimento
psicossocial, que inclui atividades no território, e portanto, inclusão e maiores condições
de construção e sustentação de laços sociais e afetivos, àqueles, cujo sofrimento psíquico
é considerado grave, pelo campo da saúde mental.
Cidadania e Humanidade, no limite. Mas ainda, e no conjunto, gestos e
atitudes/ações, muitos em construção e, mesmo, no discurso, como poderão ser
percebidos nas palavras dos mais de 20 pacientes-artistas que aceitaram participar dessa
pesquisa, seja concedendo entrevistas e/ou mantendo comigo, inúmeros e contínuos
diálogos, inclusive, tensos, apreensivos e conflituosos, desde 2019. Interações
institucionais e privadas constituem desse modo, a fonte de construção dos dados dessa
pesquisa.

***
3.6 CONSTRUÇÃO, REALIZAÇÃO E ANÁLISE DAS ENTREVISTAS EM
PROFUNDIDADE

Este item apresenta as condições de negociação, realização, análise das entrevistas


em profundidade realizadas com 21 artistas - usuários dos serviços públicos de saúde
mental e 5 coordenadores dos serviços que integram o campo dessa pesquisa.
A decisão pela realização de entrevistas em profundidade decorreu do fato de ser
essa técnica de pesquisa uma possiblidade de construção de dados qualitativos guiada por
um roteiro de questões previamente elaborado e em consonância com a questão principal
e os objetivos de uma determinada pesquisa. Além disso, considerou-se aqui que
entrevistar é interagir. É perguntar, escutar, refletir e falar. É tomada de decisão em ato.
É enveredar, se perder e procurar, durante a escuta das respostas oferecidas pra cada
questão, até fazer chegar a vez da próxima. E mesmo respeitar, perceber e compreender
143

o fim posto pelo próprio entrevistado à cada questão do roteiro. É também, sem julgar,
simplesmente seguir adiante no roteiro quando/se o entrevistado se decide por não
responder uma ou outra questão.
Foi aproximadamente dessa maneira que 21 artistas no decorrer do ano de 2021
foram entrevistados por mim. A maioria deles, individual e presencialmente, num único
dia e respectivamente, nas dependências dos espaços – campo dessa pesquisa - que
frequentam e realizam suas atividades terapêuticas, culturais e artísticas. Outros, devido
às circunstancias, coletivamente e, realizada durante dois dias95. Duas entrevistas foram
realizadas na residência dos entrevistados e uma na praia do Flamengo. Alguns,
finalizaram a entrevista à distância, por chamada de vídeo, e outros realizaram-na, toda
pela internet.
Importante destacar que a pesquisa, o contido no título, a questão principal, a
metodologia e objetivo dela, assim como, a pesquisadora, a professora orientadora, a
UFPR e o curso de Ciências Sociais, foram exaustivamente apresentados a cada um
desses 21 participantes que gentilmente aceitaram participar dessa pesquisa. Além disso,
antes do início de cada entrevista realizada, o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), aprovado pelos Comitês de Ética da UFPR e da Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, foi lido e interpretado pela pesquisadora, tendo
em mãos uma cópia desse Termo, o entrevistado, para acompanhar a leitura e pedir
esclarecimentos que julgasse necessários. Esse procedimento de leitura, interpretação e
esclarecimentos de dúvidas do TCLE, durou aproximados 15 minutos e foi seguido da
coleta de assinaturas minha e de cada entrevistado. Vale ressaltar que antes da assinatura
do TCLE, cada entrevistado foi solicitado a responder no próprio TCLE como e se deseja
ser identificado nessa pesquisa. Todos me autorizaram a registrar seus próprios nomes e
sobrenomes, identificando-os às suas falas e produções artísticas. Exceto uma
participante, que me solicitou a abreviação de seu sobrenome e, dois outros: a inclusão
de seus nomes artísticos. Apenas um entrevistado solicitou não responder 2 das 12
questões e todos demonstraram satisfação por terem participado e contribuído com essa
pesquisa. Um entrevistado, antes do término, da conclusão da entrevista, e depois do
terceiro encontro respondendo às questões do roteiro, desistiu de participar dessa pesquisa
por motivos pessoais.

95
Três participantes não puderam estar presentes no 2º dia, em 12/02/21, para a conclusão da entrevista.
Tampouco foi possível novo encontro com eles em momento posterior para a conclusão da entrevista.
144

Orlando Santos Baptista seria o 2º participante a ser entrevistado. No entanto,


assim que Orlando e eu chegamos no IPUB/UFRJ para fazer a entrevista, Gilson
Secundino estava à minha procura, em atendimento a um pedido meu que fora transmitido
a ele por uma das trabalhadoras do CAPS Franco Basaglia, com quem eu havia feito
contato para tal fim, já que na ocasião ele não possuía telefone próprio. Diante disso e
num consenso, Gilson Secundino foi entrevistado antes do Orlando – após nós três termos
almoçado juntos. Nesse mesmo dia, fui apresentada pelo Orlando, nas dependências do
IPUB/UFRJ para um grupo de amigos dele: Marcelo Diniz, Antônio Nana, Antônio Costa
e João Batista – quando então, pude falar dessa pesquisa e convidá-los para participar
dela. Para minha satisfação, eles aceitaram de pronto o meu convite e um deles me
perguntou: “podemos começar, então?”. Minha resposta não poderia ser outra, a não
ser: claro! Com o João Batista, o único do Tá Pirando, dentre esses, eu já havia, em
momento anterior e na companhia do Demetrius, podido estar com ele no IPUB -
justamente no dia da defesa da Dissertação de Mestrado do Vandré Vidal, coordenador
dos Cancioneiros do IPUB. Significou tudo isso que nesse dia 08 de fevereiro de 2021 a
entrevista fora iniciada de maneira coletiva, a pedido deles mesmos, que me disseram
entusiasmados: “somos amigos, mesmo!” Ainda que de forma não planejada foi dessa
maneira que ocorreu.
Nesse dia, considerando que apenas a 1ª questão das 12 que integram o roteiro de
entrevista foi respondida por todos eles, incluindo o Orlando, combinamos depois de
aproximadas 3 horas juntos, que daríamos continuidade no dia 12 de fevereiro. De fato
aconteceu assim, porém 2 integrantes (Antonio Naná e Marcelo Diniz) não puderam
comparecer para finalizar a entrevista, ao mesmo tempo em que Flavio Londres se juntou
a nós nesse dia 12 e respondeu a todas as questões do roteiro de entrevista, inclusive à
primeira que havia sido respondida pelos demais, em 08/02/21.
Importante dizer que antes do dia de realização das entrevistas com cada
participante, eu já havia estado com eles e muito já conversado sobre a pesquisa, exceto
com os colegas que pude conhecer apenas em 08/02, no dia da entrevista. Todas as
entrevistas foram realizadas com seriedade, comprometimento e tempo disponível para
que o dialogo reflexivo pudesse se fazer presente. A todos eles eu me preocupei em
perguntar como estavam se sentindo durante e após a conclusão da entrevista, se gostaram
das questões, se gostariam de dizer algo mais... E as respostas, foram sempre de
agradecimento e de reconhecimento à essa pesquisa e ao trabalho deles. E mesmo, para
um ou outro, foi sentida como algo terapêutico.
145

TABELA 1: Dados da Entrevista


Artistas entrevistados Ano de realização das Serviço/Dispositivo
entrevistas: 2021
1 Demetrius Lucas Peixoto de 10 janeiro Cancioneiros do IPUB
Andrade
2 Gilson Secundino 08 fevereiro Tá Pirando, P. Pirou!
3 Orlando Santos Baptista 08 fevereiro Cancioneiros do IPUB
13 março e 08 jul. (online)
4 Marcelo Soares Diniz 08 fevereiro - incompleta Cancioneiros do IPUB
5 Antonio Naná Carlos dos Santos 08 fevereiro - incompleta Cancioneiros do IPUB
6 Antonio Carlos Costa 08 e 12 fevereiro Cancioneiros do IPUB
7 João Batista dos Santos 08 e 12 fevereiro Tá Pirando, P. Pirou!
8 Flávio Londres 12 fevereiro Tá Pirando, P. Pirou!
9 Arlindo Oliveira da Silva 09 fevereiro Bispo do Rosário
10 Hamilton de Jesus Assunção 10 e 12 fevereiro Tá Pirando, P. Pirou!
11 Adilson Tiamo Nogueira 10 fevereiro Bispo do Rosário
12 Pedro Mota 11 fevereiro Bispo do Rosário
13 Rogéria Barbosa 11 e 28 fevereiro (online) Bispo do Rosário
14 Renata I. 15 fevereiro Teatro de DyoNises
Deuses do Olimpo
Louros da Loucura
- Desistente 17 e 28 fevereiro e 04 março -
15 Leonardo Lobão da Rocha 18 fevereiro Bispo do Rosário
16 Alexandre Bellagamba 07 março (online) MONULA
Surfista Prateado
17 Eneas Elpidio de Souza 16 junho Tá Pirando, P. Pirou!
18 Eduardo Marciano 17 junho Espaço Travessia
19 (Apare)Cida Lopes 19 junho Tá Pirando, P. Pirou!
20 Stela Luisa Miranda Sepulveda 07 outubro (online) Teatro de DyoNises
Cyber Bacante do Teatro de
DyoNises
21 Edson Antunes 07 novembro (Whatszap) Espaço Travessia

Dito isso, as tabelas 1 e 2 apresentam o nome dos 21 artistas entrevistados,


participantes-chave dessa pesquisa, as respectivas datas e serviços e o roteiro de
entrevista. O 21º participante, Edson Antunes, dadas as dificuldades que impediram um
encontro presencial e mesmo remoto, para a realização da entrevista, aceitou responder
às questões pelo Whatszap, através de envio de áudios.
Jaci de Oliveira, o Pelezinho, e Reginaldo Terra, o Rei Sol, ambos integrantes
históricos do Teatro de DyoNises, infelizmente por motivos diversos, ainda que tivessem
aceitado o meu convite para participar dessa pesquisa, não houve tempo, nem condições
para a realização da entrevista. Uma pena. Com o Pelezinho, tive numa oportunidade, por
mensagem de áudio no whatszap e para fins dessa pesquisa, poder ouvi-lo uma única vez.
[...] Eu fui até a Praça General Osório, com a bolinha pequeninha... aí, estava lá
o Vitor [Pordeus], [inaudível], Clara, a Radio Tupy, a Radio Nativa em Companhia.
Aí, eu fiz o meu número [de embaixadinhas]. Fiz o meu número. Aí, dali ele falou:
146

onde que a gente tiver é só você entrar em contato – vai lá. Eu ia! Vai lá que a
gente vai tá lá. Eu ia! Aí, fizemos: primeiro começamos na baixada, Vigário Geral,
Agua Santa, vários lugares do Rio de Janeiro. Cinelândia... e Fomo e fomo e fomo
pra muitos lugares. Primeiro foi aqui, primeiro. Cinelândia. Vários shows...
Catete... e vários lugares. [...] depois... depois... Depois que veio a Biblioteca
[Parque Estadual] lá na Central. Presidente Vargas – ficamos lá um tempinho.
Ficamos lá... Fizemos também Parque de Santana. E lá, como você viu, lá na Rua
Maranhão, [no Meier], 1 ano... que você ficava com vergonha de entrar na Roda.
Aí eu te incentivava... Claro, para o ano [de 2022] vai voltar tudo. Vai voltar tudo.
[...] O pessoal ia no Congresso do Ocupa Nise todo mês de setembro, do ano. [...]
E também, veio o Tiago Beck, veio formar... já na rua Maranhão, 2018. Depois eu
te passo mais coisa. [...]. Curta! Segura a Marimba! Futuca! Caiu na rede é peixe.
Só Vitória.
Jaci de Oliveira (Pelezinho) Teatro de DyoNises.

TABELA 2 – Roteiro de Entrevistas


Nº QUESTÕES
1 Se você se sentir à vontade conte um pouco da sua história de vida e do seu percurso
terapêutico em ambientes artístico-culturais.
2 Como você se vê e se sente visto a partir da sua condição de paciente dos serviços
públicos de saúde mental do Rio de Janeiro?
3 Como você foi se tornando, se reconhecendo e sendo reconhecido como um artista?
4 Qual o papel da arte e da cultura no seu processo de obtenção de conforto psíquico e de
reconhecimento social?
5 A sua produção artística expressa lembranças anteriores à sua entrada nesses ambientes
artístico-culturais e terapêuticos?
6 Como você vivencia a partir da arte as seguintes questões: sofrimento, afeto e amor
7 Como você relaciona loucura, arte e política?
8 Como você lida com as seguintes questões: tempo livre, trabalho, renda e estigma?
9 E com autonomia e liberdade?
10 Desconstrução da loucura e fabricação do artista possui alguma relação na sua
opinião?
11 Você produz arte para quem?
12 Para finalizar, você gostaria de dizer alguma coisa sobre ter sido um dia chamado de
louco, caso isso tenha acontecido com você?

Considerando que transcrever é relembrar, reviver, se dar melhor conta das


minucias, da riqueza e da pobreza do dito e do não dito durante uma entrevista. Que
mesmo durante a transcrição já se inicia um trabalho de análise, um deter-se para
(de)marcar: falas, risos e pausas, a seleção e localização de trechos no corpo da pesquisa
147

já acontece nesse momento de transcrição. Importante ressaltar que por outro lado, a
escrita da pesquisa também provoca o inverso: de certos pontos/momentos da pesquisa
vai-se para as entrevistas transcritas e mesmo para os áudios delas. Na construção dessa
pesquisa esteve imbricados trechos/momentos/reflexões das entrevistas que ficaram
comigo mais fortemente registradas na memória desde o momento de realização delas, de
um tal modo que quanto mais se adensavam a quantidade de entrevistas realizadas, mais
eu já percebia nexos entre elas.... e os autores: Canguilhem, Honneth e Nise da Silveira
que foram aos poucos num movimento dinâmico, dialético (?) me permitindo localizar as
falas dos entrevistados numa espécie de chão teórico que aos poucos foi se tornando as 5
seções do capitulo 4 – com as quais pretendo um fio condutor capaz de percorrer a questão
principal da pesquisa, mas também um antes e um depois dela.
Além desses 21 artistas, foram entrevistados também os coordenadores de cada
um dos 5 serviços que integram o campo da presente pesquisa. O desejo de convidá-los
para participar dessa pesquisa por meio de entrevista foi em função de tornar mais
conhecido o campo de pesquisa a partir da visão de seus próprios idealizadores e/ou
coordenadores/diretores. Mas também de verificar se as expectativas, limites e desafios
citados/apontados pelos 5 coordenadores se repetem nas falas dos 21 artistas
entrevistados.

TABELA 3 – Coordenadores – Campo de Pesquisa

Coordenadores Ano de realização das Serviço/Dispositivo


entrevistas: 2021
1 Raquel Fernandes 09 fevereiro Bispo do Rosário
2 Vandré Vidal Mathias 13 fevereiro Cancioneiros do IPUB
3 Vitor Pordeus 18 fevereiro Teatro de DyoNises
4 Alexandre Ribeiro Wanderley 01 e 08 de março (online) Tá Pirando, P. Pirou!
5 Marcelo Valle 13 março (online) Espaço Travessia

Aos coordenadores dos 5 espaços que integram essa pesquisa foram feitas apenas as
três perguntas seguintes:
1. Gostaria que você me contasse um pouco da sua história de vida dentro do:
( ) Espaço Travessias
( ) Grupo Musical Cancioneiros do IPUB
( ) Coletivo Tá Pirando, Pirado, Pirou
( ) Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
( ) Oficina Livre de Teatro / Teatro Clínica DyoNises

2. Como você compreende e avalia o movimento que vai do engajamento inicial


dos pacientes/usuários dos serviços públicos de saúde mental nas atividades
148

artísticas, até o ponto em que eles próprios passam a se reconhecerem e a se


autointitularem como artistas? Nesse sentido, é possível falar em fabricação de
artistas no contexto de cuidado da saúde mental? Ou seja, basta espaço, tempo
e condições objetivas para insurgir da loucura o artista? Em fim e no limite,
subjetivamente, o que separa a arte da loucura e vice-versa?

3. Quais avanços, limites e desafios você gostaria de destacar quando você


observa o artista que emerge de dentro da loucura?

No conjunto, o propósito dessas 3 questões frente às 12 perguntadas aos artistas é em


alguma medida fazer juntar às falas dos artistas-usuários as dos coordenadores dos
serviços/coletivos/dispositivos que eles frequentam e nos quais foram se reconhecendo
como artistas. Isso para fins de se tentar não apenas conhecer mais detidamente a história
de cada um dos serviços participantes dessa pesquisa, mas os motivos, as expectativas, as
circunstancias e o contexto de idealização e criação desses espaços. Por que e pra quê
foram criados? Em que medida o desejo pessoal molda e provoca nas instituições públicas
novos espaços e possibilidades, outras, de sociabilidade e tensionamentos? Ademais, os
usuários, tornados artistas, percebem, pensam, sentem, atuam e discursam sobre os
espaços que frequentam e produzem vida e arte de maneira similar, em consenso com a
pratica e o discurso - por mais horizontalizados que buscam promover as formas de
convívio e os processos de tomada de decisões – dos coordenadores, pessoas sabidas,
trabalhadores da saúde mental – 1. que experimentou o teatro ainda criança e retomou a
ele já médico quando diante do sentimento de que as portas da ciência e da medicina lhes
haviam sido fechadas; 2. que convidou amigos foliões de blocos de carnaval de rua para
participarem do carnaval dos internos do Instituto Municipal Philippe Pinel, onde, desde
mesmo os tempos em que fora residente, logo depois de ter concluído o curso de
psicologia, desenvolveu atividades culturais, como por exemplo, a capoeira e as rodas de
cantoria; 3. que gostando muito de compositores, idealizou ainda como estagiário de
musicoterapia, o grupo musical Cancioneiros do IPUB, para valorizar pessoas que tinham
algo a dizer em suas músicas/composições apresentadas e cantadas nas seções de
musicoterapia e mesmo no pátio do IPUB; 4. que acreditando que os dispositivos culturais
têm grandes possibilidades de transformar e integrar sociedade e clínica, aceitou o convite
e o desafio de dirigir o Museu Bispo do Rosário, ainda que sem nenhuma experiencia
com esse tipo de dispositivo, e sim como psiquiatra, mas apostando na potência do sujeito
149

e na construção de uma clínica ampliada, a partir do Museu. De uma clínica do sujeito;


5. que gostando muito de Guimaraes Rosa, além de ser comunicador social e fotografo,
escolheu, inspirado no conto A Terceira Margem do Rio, nomear de Espaço Travessia,
os 3º e 4º andares da Casa do Sol, que foi convidado a coordenar, um dos prédios no
interior do Nise da Silveira, antigas enfermarias, hoje tornadas, parte dela, ateliês e
galerias de arte.
Arrisco aqui - com essa brevíssima e pontual apresentação de parte dos interesses
pessoais de cada um dos 5 coordenadores – concluir que poder contar com a possibilidade
de realização de um trabalho criativo e capaz de responder aos anseios/desejos pessoais
de maneira positiva, ainda que como no caso do Tá Pirando, de forma não remunerada,
ajuda a explicar um pouco como nasceram e se mantem vivos, saudáveis e cheio de afeto
todo o campo dessa pesquisa. Em poucas palavras: poder ser criativo, pensar e tomar
decisões - pertencer - no lugar de apenas executar tarefas alienantes de acordo com a
lógica da divisão social do trabalho é um privilégio numa sociedade capitalista, injusta,
meritocrática e desigual como a nossa brasileira. Privilégio esse que se estende a todos os
que transitam por esses espaços todos, mas não tão suficiente, assim. Necessário, mas não
suficiente, como apontam os artistas, participantes dessa pesquisa. E em alguma medida,
mesmo os coordenadores. Por exemplo: ainda é um sonho a ser realizado pelo Tá Pirando,
poder juntar e gravar os sambas-enredos, registrar e divulgar mais amplamente, dessa
maneira, o trabalho de 16 anos ininterruptos do Coletivo Carnavalesco que tem levado
pras ruas a voz e a lucidez da loucura.

A vida procura ganhar da morte em todos os sentidos da palavra ganhar [...].


(CANGUILHEM, 1995, p. 208)
150

CAPITULO IV
VOZES e ARS de pacientes-artistas antimanicomiais: um diálogo com Nise da
Silveira, Canguilhem e Axel Honneth

Quem sofre gravemente olha, de sua condição, com uma assustadora frieza para as
coisas lá fora: (...). Nesse estado não se pode ouvir música sem chorar.
Friedrich Nietzsche

“O palhaço quando quer aparecer, ele se pinta.


[Fabiane: e o artista?]
Quando ele deixa de ser humano pra ser demasiadamente humano”.
(Gilson Secundino, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Quando me deparei em 16 out. 2020 com esse trecho de Nietzsche no Aforismo


114, “Do conhecimento daquele que sofre”, eu havia há pouco acabado de escrever:

Vejo tudo parado, quieto e já silenciado


Bem aprofundado, sereno e calmo

Vejo a morte: quieta, imóvel, como que se em vida a tudo já tivesse passado
Apenas a vejo e por meio dela (profundamente e desde a alma)

... dela quem??


Da morte ou da alma

... por meio dela, vejo tudo lá fora


à correr, pular, dançar, viver e sofrer.
tudo lá fora à nascer, morrer, amar e desamar

À desaguar no mar!

Mas também, no olhar:


a lástima, a dor, as dores...
os quereres a sempre querer.

E me retorno a ela...

me vendo nela, por meio dela

vejo lá fora...
“Serenidade pela Morte” todo o resto
Arte criada para acompanhar o poema ao ... todas as coisas das quais já me retirei
lado na página do Facebook da 11ª Parada me desarmei, me aquietei.
Gaúcha do Orgulho Louco - 2021
Eduardo Marciano, Espaço Travessia Fabiane Valmore, set. 2020
151

Dito isso, esse capítulo apresenta as entrevistas realizadas com 21 artistas - usuários
dos serviços púbicos de saúde mental do Rio de Janeiro - e busca narrar como se deu o
processo, o percurso terapêutico: subjetivo, social, artístico, cultural e político que os
levou à essa condição autointitulada de artista. Estruturado em cinco seções, recuo e
avanço na história de vida de cada um desses 21 artistas em relação à questão principal -
com isso, tentando faze-la melhor compreendida. Percorro desde a loucura como uma
experiencia de desrespeito, passo pela interrogação sobre a possibilidade de uma relação
direta entre desconstrução da loucura e fabricação do artista num contexto de cuidado
público da saúde mental e de luta antimanicomial por meio da arte, da cultura e do afeto
e chego nos desafios, alcances, expectativas (políticas, sociais e subjetivas), resistência
e militância, frente à condição adquirida de artista, por parte desses 21 participantes, que
no limite, parecem buscar um lugar pro singular.
1. Loucura como “experiencia de desrespeito”
2. Desconstrução da loucura como “normatividade vital”
3. Fabricação do artista como “forma de reconhecimento intersubjetivo”
4. Nise da Silveira e “os inumeráveis estados do ser”
5. Desafios, Alcances, Expectativas, Resistencia e Militância frente à condição
adquirida de artista: “Um lugar para o singular”
Aqui, são os entrevistados - os artistas participantes dessa pesquisa, que discutem e
narram a partir de suas próprias perspectivas e vivencias apresentadas a mim, o percurso
que os levou à condição de artistas. Claro, sou eu, a pesquisadora, que dirige essa narrativa
- por mim, compreendida, já, como coletiva -: que decide o rumo, as pausas, os diálogos,
conexões e aproximações guiada, principalmente, por Honneth, Canguilhem e Nise da
Silveira.
Busco, também, a cada final de seção, escrever breves considerações. De resto, são
eles que narram suas histórias de vida – cada qual, suas próprias rupturas biográficas
provocadas pela experiência de enlouquecimento; de adoecimento... muitas vezes
oriundas da perda de um emprego/do trabalho, de um pai ou de uma mãe. Tais
experiências trazem consigo desvios, fugas, buscas, outras, realizadas, muitas vezes, à
deriva, a ermo e, por isso, consideradas disparates frente ao “normal” – frente às
expectativas socialmente padronizadas e suportáveis. Controladas, esperadas, porque
conhecidas - pré-concebidas. Mas também, pela nova identidade adquirida – a de artista:
da loucura, da Luta Antimanicomial... de si próprio, pro mundo.
152

Além das referidas considerações no final de cada seção desse capitulo, lanço, minhas,
palavras poucas; mas, muitos grifos nos trechos vindos deles, dos artistas, que tomo um
tanto como palavras minhas. Por que eu precisaria parafraseá-los, aqui, se dito e em bom
tom, já está? Não faço, já, um tanto, quando corto, extraio, remendo, costuro e apresento
grifos, para narrar e destacar o que aqui importa e que me fez desejar pergunta-los?
Antoine Compagnon (2007), no livro O Trabalho da Citação, afirma:

O grifo assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que marca, que
sobrecarrega o texto com o meu próprio traço. Introduzo-me entre as linhas
munido de uma cunha, de um pé de cabra ou de um estilete que produz
rachaduras na página; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto:
faço-o meu. (p. 17, grifos meus)

Quando me ponho a escrever, disponho de um certo número de unidades


dispersas, materializadas (em fichas por exemplo) ou não. Talvez o estatuto
dessas unidades não tenha uma diferença essencial, que elas sejam citações ou
não, nem que alterem muita coisa na escrita. Aliás, estaria eu em condições de
me recordar, de enunciar a origem das unidades que não são citações? Não
seria possível que elas também o fossem? O trabalho da escrita é uma
reescrita já que se trata de converter elementos separados e descontínuos
em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los (de
tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim? Reescrever, reproduzir
um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações
ou as transições que se impõem entre os elementos postos em presença um do
outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário. (p. 38-39, grifos
meus)

Trabalho a citação como uma matéria que existe dentro de mim; e,


ocupando-me, ela me trabalha; não que eu esteja cheio de citações ou seja
atormentado por elas, mas elas me perturbam e me provocam, deslocam uma
força, pelo menos a do meu punho, colocam em jogo uma energia - são as
definições do trabalho em física ou do trabalho físico. Da citação, mascataria
e tecelagem, sou a mão-de-obra. É de toda a ambivalência da citação,
mascarada por uma canonização metonímica, que está carregada essa noção de
trabalho: a ambivalência do genitivo, em que a citação é matéria e sujeito, em
que eu sou ativo e passivo [...] O trabalho da citação, apesar de sua
ambivalência ou por causa dela, é uma produção de texto, working paper.
A leitura e a escrita, porque dependem da citação e a fazem trabalhar,
produzem texto, no seu sentido mais material: volumes. (p. 45-46, grifos meus)

Pedir aos artistas que contassem um pouco de suas histórias de vida e de seus
percursos terapêuticos em ambientes artístico-culturais foi a maneira escolhida para abrir
as entrevistas e conhecer um pouco mais da história de vida de cada um deles,
imediatamente antes de convidá-los a responder as demais 11 questões abertas e semi-
estruturadas sobre várias temáticas que no conjunto buscam traçar o percurso que os
levaram a condição de artistas. Loucura, Arte, Serviços Públicos de Saúde Mental,
Cultura, Política, Identidade, Reconhecimento Social, Sofrimento, Afeto, Amor, Tempo
153

Livre, Trabalho, Renda, Estigma, Autonomia e Liberdade: palavras, aqui, ditas por vozes
socialmente pouco escutadas – “volumes”.

[...] primeiro: ninguém pede pra ser louco no mundo né... A pessoa se torna... um...
um... associado à loucura pelos traumas que leva, né... na bagagem, né. Então, o
mundo, de certa forma, ele, me vê como uma pessoa assim... desligado do mundo.
Mas não, desligado do planeta - desligado dos processos vinculados com a vida
normal de cidadão. De ser vivente dos papéis sociais no propósito profissional,
institucional, cultural e... normal... [de uma ordem social vigente] De uma vida de
uma pessoa plena de direitos. Entendeu? E deveres. [...]. O tempo livre pra mim?
Eu não consigo chegar e usar bem o meu tempo livr [...]. Porque eu tenho... eu
sou uma pessoa que tem... é... que é cercada por problemas psíquicos né... Então,
o meu tempo livre e a minha renda... para administrar... ela até acontece na intenção
de ser feito isso, mas a realidade é que... sabe... as estruturas de poder do país, do
mundo, eles, contestam esse meu... essa minha situação de vida precária e me
invalida. Me inviabilizam e me diminui. Me enfraquecem. É isso o que eu vejo.
Um enfraq/ uma... uma... uma indissolúvel falta de perspicácia das estruturas...
financeira, das estruturas de mídia... com a minha situação. Entendeu? [...]. Me
desqualificando. [...]. E não tem auto-solução [...] pro cliente de saúde mental.
Somente se ele se libertar de certas mazelas. Mazelas que são: trabalho, condição
de um trabalho, um equipamento melhor de dispositivos móveis que é pra poder se
disponibilizar melhor pra buscar... questões inerentes à relação com questões
financeiras, com questões de trabalho... de trabalho... de trabalho profissional...
[...]. [Fabiane: políticas públicas, sociais... capazes de proporcionar essa lida de
modo menos angustiante?]. Totalmente. É a saída. É a solução.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Foram com essas palavras que o poeta e artista visual Demetrius Lucas Peixoto
de Andrade concluiu a entrevista concedida pra essa pesquisa. Esse trecho da fala dele é
parte da resposta oferecida à questão 8: “Como você lida com as seguintes questões:
tempo livre, renda, trabalho e estigma?”, que ele solicitou poder responder apenas no
final da entrevista. Essa necessidade de “se libertar de certas mazelas”: sociais,
políticas, culturais, econômicas, psiquiátricas e, mesmo, familiares – misérias humanas e
mesmo, problemas existenciais, é reclamada por todos os artistas, participantes dessa
pesquisa.

[...] os médicos são treinados para tratar de doenças corporais - e não de


"doenças" econômicas, raciais, religiosas ou políticas. [...] e não de inveja e
ódio, medo e loucura, pobreza e estupidez, e todas as outras misérias que
cercam o ser humano [...] a psiquiatria não é um empreendimento médico,
mas um empreendimento moral e político [...]. Embora o paciente fosse
possivelmente tratado de um modo mais ou menos gentil quando era
considerado doente, ele era, ao mesmo tempo, destituído da oportunidade
especial de se rebelar contra as exigências a ele imposta. Essa forma de protesto
não era permitida, e aqueles que tentavam protestar eram rotulados de “doentes
mentais” [...] o que os médicos fazem para curar o doente, e o que fazem para
controlar o 'subversivo' (SZASZ, 1974, p. 7-9; 56-77, grifos meus)
154

4.1 LOUCURA COMO “EXPERIÊNCIA DE DESRESPEITO”

[Fabiane: ...o Museu faz/]


...convitinhos? Faz. [...] Ahh eu dou... eu dou... dou.
É mesmo que papel higiênico de... é mesma coisa que papel higiênico.
Pega e joga fora.
[...] Pra não arranjar problema, prefiro nem dar, né não?
Prefiro nem dar o papel. [...]. Então, deixa pra lá.
Arlindo de Oliveira, Museu Bispo do Rosário

[...] com a experiência do rebaixamento e da humilhação social,


os seres humanos são ameaçados em sua identidade da mesma
maneira que o são em sua vida física com o sofrimento de
doenças. Axel Honneth

No capítulo 6 de Luta por Reconhecimento, “IDENTIDADE PESSOAL E


DESRESPEITO: violação, privação de direitos e degradação”, Axel Honneth (2003),
após ter distinguido 3 padrões de reconhecimento intersubjetivos possíveis de serem
adquiridos pelas vias do amor, do direito e da solidariedade e seus correspondentes níveis
de auto-relação prática: autoconfiança, autorespeito e autoestima, passa a distinguir
experiências sociais de reconhecimento recusado, de rebaixamento pessoal. Ou seja, de
violação, privação de direitos e de degradação - formas de desrespeito capazes de
desmoronar a identidade de uma pessoa, de lesar ou mesmo destruir justamente a
autoconfiança, o auto-respeito e/ou a auto-estima.96
Experiências de maus-tratos físicos em que são tiradas violentamente de um ser
humano todas as possibilidades de livre disposição sobre seu corpo, como ocorrem na
tortura ou na violação. Trazem consigo, o sentimento de humilhação, de vergonha social
e a consequente perda de confiança em si e no mundo social - de morte psíquica.

Geralmente é assim: quem não tem poder aquisitivo vai para psiquiatria. Quem
tem, vai pra psicanálise. [...]. Há um estigma, sim. Entendeu? Há um estigma
sim... aquela nuance do manicômio, do perímetro manicomial, do espaço
manicomial... porque aí, você se envolveu com a psiquiatria e ser visto como uma
pessoa que tá convivendo no ambiente manicomial é um espaço de estigma e de
preconceito, sim. E até de certo grau, assim... de... de... prejuízo residual.
Entendeu? Em alguns aspectos, né... se a pessoa não tem muito conduzido em si,
um norte pra se tratar... éhh.... de um bom médico, um bom psicólogo, bons
técnicos... de contato, assim, afetivo e tal... de se confiar naquelas pessoas e se
entregar pra aquilo, a pessoa não faz bem, não... e se desencaminha [...].
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

96
Respectivamente adquiridas na “socialização mediante a experiencia da dedicação emotiva”, no “processo de
interação socializadora” e no “encorajamento baseado em solidariedade de grupos”. (2003, p. 215, 217-218)
155

[...] foi para mim uma novidade constatar, logo que abri minha clínica, o
número relativamente grande de esquizofrenias latentes que evitam o
hospício, de modo inconsciente, mas sistemático, buscando auxílio e
orientação junto aos psicólogos. Nestes casos, não se trata, de forma alguma,
de simples predisposição esquizoide, mas de verdadeiras psicoses que ainda
não minaram por completo a ação compensatória da consciência. (JUNG,
2015, p. 220)

O [estigma] psicanalítico é muito menor do que o psiquiátrico. Infinitamen/ em PG,


infinitamente... muito infinitamente inferior ao estigma do campo psiquiátrico... em
total... em todos os aspectos. [...]. Falar que vai pra psicanálise é falar que você
vai deitar no divã pra ser tratado. Falar que vai pro psiquiatra é falar que você vai
pra um manicômio ser tratado com eletrochoque... vai ser suscetível a várias
camadas de olhar. Entendeu? Vários níveis. Não tô falando que psiquiatra é... é
cruel. Não. [...] [Mas, que] Vai tomar remédio, tomar injeção, fazer exames de
sangue. Psicanalista nem ped/ que eu saiba pede pra fazer exames pra você entrar
no caminho... da psicanálise. Mas você não tem um papo, assim, mais corporal. É
um papo mais... mais de transferência. Entendeu? De transferência terapêutica,
afetiva. (Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Abro aqui um parêntese, pois acredito que essa diferenciação apontada pelo
Demetrius possa ser exemplificada por meio da inspiração relatada pelo Orlando Baptista,
também Cancioneiros do IPUB, que teve para compor “Rios de Saudades”.

Rios de Saudade ►

“Ahh que vontade que eu tenho... de Eu me sinto um inútil. Desacordado.


sentir o seu calor No chão, como um bêbado pisado
E... me apaixonar por você... ah meu Idolatrando a ilusão. E o coração
grande amor sofrendo calado.
Eu me encho de poesia.
Sentir nos seus olhos... todo o seu desejo Mas me separo da alegria, quando estou
Sinceras verdades, com muito amor ao seu lado.
Faço versos com hipocrisia. Dando
Quero beijar os seus lábios razão à burguesia
Com toda vontade.... Com um pensamento insensato.

Amor você é toda a minha vaidade Eu me vejo um louco aflito


Sinceras verdades Entre vozes, emoções e gritos
Amar a saudade E um grande medo indesejável

Você é a minha esperança sem dor Eu me sinto abalado por um terremoto


Um incêndio ou um vulcão reativado.
[...]”
156

[...] parei de fazer o Palavrear. Aí juntei com o Cláudio [integrante dos


Cancioneiros – em memória]. Ele começou a tocar... pera aí [pensei]: isso aí...
[d]isso aí sai uma música. Aí eu fiz a “Rios de Saudade” e fiz “Dia Sem Tempo”,
depois que eu saí com a terap/ da terapia com a psicóloga. [...]. Eu não sei
exatamente/ eu não sei, assim, dizer com certeza - exatamente - se a inspiração foi
da… eu acredito que foi depois que eu saí da terapia da psicóloga. Porque existe
at/ mas ela/ na verdade, era algo que existe/ existia mais do meu lado do que do
lado dela. Mas eu tinha certeza. Quase certeza. Não 100%. [...] acontece que eu
era uma pessoa mais nova... eu acho que sei lá... [ela] não pode confiar...
(Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

A transferência em si nada mais é do que uma projeção de conteúdos


inconscientes. Primeiro são projetados os conteúdos chamados superficiais do
inconsciente, reconhecidos através de sonhos, sintomas e fantasias. Neste
estado o médico interessa como um amante eventual [...]. A seguir, aparece
preponderantemente como pai: pai bondoso ou furibundo, conforme as
qualidades que o pai verdadeiro tinha para o paciente. Uma vez ou outra o
médico também recebe atributos maternos, o que já pode parecer estranho, mas
ainda está dentro dos limites do possível. Todas essas projeções de fantasias
são calcadas em reminiscências pessoais. Finalmente, podem surgir fantasias
de caráter exaltado. Nestes casos o médico fica dotado de propriedades
sobrenaturais. Torna-se um bruxo, um criminoso demoníaco, ou então o bem
correspondente: um verdadeiro salvador. (JUNG, 2015, p. 32-33)

Eu me chamo João Batista dos Santos. E eu sou paciente psiquiátrico desde 1980.
Por conseguinte, a minha primeira internação foi no Engenho de Dentro. Hoje,
Nise da Silveira. 1980. Depois, a minha 2ª internação - depois de ter peregrinado
por esses hospitais todos... foi em 1996. Aliás, a 2ª foi também em 1980, aqui no
Pinel. Mas só que naquele tempo as grades/as janelas ainda não tinham sido
descalafetada, os muros não tinham sido desvendados. Ou seja, naquele tempo do
Beijoqueiro... Seu Moacir, dono das fazendas... essas estórias que a gente ouvia
nas enfermarias e contava também. Só que depois de passar por esse suplicio todo,
essa sofrência, eu vim parar aqui no Pinel, em 1996. Já aí, então, uma junta médica
diagnosticou que eu era é... Bipolar. Ou seja: lá fora eu era tratado como
esquizofrênico.

Sabe aquela farmacologia toda de...


Hadol... Fernegan... Prometazina... Haloperidol, que eu já falei.
E, aí, era aquela... choque-elétrico...
Só não peguei, ainda, a lobotomia, porque eu já peguei a... psiquia/ a Reforma
Psiquiátrica - eu já peguei, ela, no final.
Então, peguei só o eletrochoque.

[...] Depois de ter sofrido muito. [...] a minha vida virou da agua pro vinho ou do
vinho pra agua. Entendeu? Porque aqui eu tive uma junta médica que me
diagnosticou como Bipolar e Psico-Maníaco-Depressivo... e daqui [do Pinel] eu
fui encaminhado pro IPUB, onde eu tive as terapias... fui fazer Hospital-Dia lá.
Nunca esqueço daqui. Daqui. Fui oriundo daqui.

Aqui a minha vida foi salva. Graças ao Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
(João Batista, “Palhaço Pirulito”, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)
157

Atualmente eu me sinto muito desconfortável, sabe, Fabiane. Porque eu fui


obrigada a tomar durante meses, um remédio, que me deixou toda trêmula. Ou
seja, qualquer um percebe que eu tenho problemas, entendeu? Se não for
problemas psiquiátricos. Problemas neurológicos. Ou seja, eu tô assim é...
estereotipada. Entendeu? Como doente. Quer dizer que é assim que eu me vejo.
[...] ontem na fisioterapia, eu tava tremendo: a menina perguntou se era por causa
do ar-condicionado - eu tive que dizer que era o remédio que eu andava tomando.
Que eu tava tomando, antes, porque eu tinha pedido pra suspender, porque deixava
efeito colateral. Isso foi terça-feira. Ontem, quarta, eu fui no médico, o médico
percebeu que eu tremia, entendeu? Eu caio na boca do povo. Entendeu? Na
realidade. (Stela Sepulveda, Atriz Cyber Bacante do Teatro de DyoNises)

[...] Um belo dia cheguei para trabalhar 8 horas da manhã, o porteiro falou
assim: não, não precisa marcar o ponto. Você está de aviso-prévio. Venha dia tal
receber os seus direitos. Aí, tá bem. Eu voltei pra casa... e acho que eu surtei né...
Na época era o banco Bamerindus e nós recebíamos por quinzena... aí, tinha que
aplicar o dinheiro no over, no open, pra receber... Entendeu a coisa? Aí, aquilo foi
me torturando... eu achava que não ia cumprir - porque eu sou filho único -
[que] não ia cumprir com as obrigações. Aí, acabou... acabou... eu... foi um surto.
Eu surtei e fiquei dentro de casa. Dentro de casa, só esperando o tempo passar e
vivendo com a indenização. Aí, a minha mãe me trouxe para, ali, pra Cruz
Vermelha, para o Hospital Psiquiátrico, mas era muito remédio pesado. Uma
carga de remédio pesado. Eu fiquei em casa, tipo assim: 3 meses confinado. Aí,
depois, minha mãe conseguiu me trazer aqui pro Rocha Maia. Aí, aqui no Rocha
Maia, o médico psiquiatra me encaminhou para o IPUB, aqui da UFRJ né. Aí, eu
consegui ser consultado... o médico - até hoje eu não esqueço o nome do médico
- o Marcio, falou assim: - era bem precário a triagem – ele falou assim: vou
segurar essa bomba. Bomba era eu! Mas aí, até hoje não sai da minha cabeça
que eu sou uma bomba. Mas meu pavio é muito longo.
(Antonio Naná, Cancioneiros do IPUB)

Esse olhar crítico a respeito daquilo que pode ser chamado de “medicalização da
tristeza” (SOCUDO, 2015), da vida, legitimada pela psiquiatria convencional e sentida
como um estigma basicamente por todos os 21 participantes dessa pesquisa, nos permite
várias reflexões – inclusive nos remete para questões de classe e de desigualdades sociais.
Fica claro aqui quem comumente pode deitar-se num divã para fazer escutada
reiteradamente as suas dores emocionais e quem, em massa, por outro lado, recebe
prescrições médicas para ter as suas, silenciadas; pelo próprio corpo, porque, dopado,
sedado, para usar um termo técnico. Muitas vezes para garantir não mais que corpos
“dóceis” capazes de produzir para o Capital.
Experiências de privação de direitos ou de exclusão social, medidas também pelo
alcance material dos direitos institucionalmente garantidos, não representam somente a
limitação violenta da autonomia pessoal, mas também uma perda de auto-respeito. Ou
seja, uma perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade
nas interações sociais, como pessoa moralmente imputável diante do outro e portadora da
158

expectativa intersubjetiva de ser reconhecida como capaz de formar juízo moral. “Modos
de desrespeito pessoal, infligidos a um sujeito pelo fato de ele permanecer
estruturalmente excluído da posse de determinados direitos no interior de uma
sociedade” (HONNETH, 2015, p. 216). Trata-se aqui de uma morte social.

[...] quem não pode [pagar] é o SUS. Acho que a melhor área que existe no Brasil.
Os que se doam ao SUS esquecem as margens clínicas do seu consultório e vai na
necessidade do núcleo. Da origem. Do fundamento. Onde né... passa a ser uma
particularidade e ao mesmo tempo, uma convenção de problemas que, ali, [fora do
SUS] é abafado. E quando se abafa esses diagnósticos, há uma oxigenação [...]
para essas pessoas né... porque não pode falar: ahh tá curado. Tá, deixa ele ir pra
rua, direto. [...]. Abafa aquilo ali e aquilo ali vai pegando fungos. Quando a pessoa
vai pras áreas terapêuticas, aqueles problemas vai pegando fungos que vão se
deteriorando. A visão pra quem trabalha com a margem esquerda da sociedade, já
sabe né... já tem ciência disso, que é isso. E precisam... os técnicos precisam... na
verdade, isso é uma coisa pro governo tomar vergonha e investir. Investir em
insumos abundantes porque vai chegar mais pessoas e mais pessoas e mais
pessoas com problemas psiquiátricos. Uns camuflados e outros, aberto ao
público. [...]. Camuflado, é esses que eu falo pra você: o cara é um artista, aí não
quer entrar no hospital do SUS pra não dizer que ele é maluco. E na verdade ele
não é maluco, ele tá se tornando um maluco. [...]. Ai, quando ele começa a
encontrar o médico... vai, senta no divã pra falar seus problemas... e essa margem
que tá aqui no SUS, não. Quem tem o dinheiro próprio pra pagar, entra numa sala.
Sai e você não vê. E o SUS é diferente: é aquele livro aberto. Entrou: o nome tá ,
ali, a cara tá ali, o sintoma tá ali. [...]. Se eu quero deixar aquela pessoa alegre,
eu deixo. Se eu quero deixar aquela pessoa entristecida, eu sei onde catucar pra
que aquilo ali aconteça né. Então, fica exposta, de verdade. O tratamento do SUS,
ele, é exposto. Não que seja ruim, ele é ótimo. Mas pra quem tem dinheiro, passa
batido ali na porta. Como bom samaritano. Mas lá no fundo, naquele prédio
bonito, onde tem um consultório... ele vai lá, os passos dele estão lá, as digitais
dele tá naquela porta, as palavras dele está naquela sala. O ouvinte dele, o ouvinte
del/ o técnico dessa pessoa, ela camufla essa pessoa. Ela fica na surdina. Fica
como lixo debaixo do tapete. Quando você levanta o tapete daquele consultório, o
lixo está todo ali debaixo, grudado nas paredes. Grudado no teto daquela sala. E
o louco, não, ele, já vem aberto, mesmo, desde a entrada. Já pisou ali pra dentro,
já sabe... O que essa pessoa veio fazer aqui dentro? Normal ela não tá. Normal
essa pessoa não tá. E se tiver, ela, tá falando mentira. E é isso aí que o SUS
mostra. (Hamilton de Jesus Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Venham quem quiser vir. [O SUS é púbico e universal]. Agora quero ver ir, quem
quiser ir... assim, do nada... num consultório de um psicólogo que te cobra caro.
De um psiquiatra. De um terapeuta... Aí, você olha assim: passou o maluco lá pra
dentro. Saiu de lá de dentro. Não sabe de nada. Só quem sabe se tem um psicólogo
lá é quem trabalha naquele prédio. Quem não trabalh/ quem não passa na porta
pra lá e pra cá. Pra lá e pra cá, jamais vai imaginar que ali tem um tratamento
[...] E hoje em dia nós estamos numa raridade, do desconhecimento, do lixo que
estão fazendo nos governos com essas pessoas que se preparam pra tratar no SUS.
Deixando as pessoas sem nada! Papel... sem gaze, sem nada. Sem os remédios.
Não pode ser assim. Não pode ser assim. [...]. É um plano rico dentro da pobreza.
Não é um plano rico dentro da riqueza. É um plano... pobre, que eu digo, no
sentido de não ter os insumos. Mas totalmente rico, na forma inovada que essas
pess/ que esses técnicos estão tentando movimentar... [....]. Eles tentam mover essa
159

corrente. Ir botando óleo pra ir tirando essa ferrugem do psicológico né.... Então,
os técnicos, em todas a áreas que mexe com a psiquiatria... e não só na psiquiatria,
tod/ precisam de insumos pra que há[ja] o movimento. Os insumos que eu digo é
em todos os sentidos. Poxa, imagina: você tem todos os insumos, mas você não
tem o alimento. Então, o paciente vai ficar com fome. Vai começar transitar de
uma forma errada. Tem que ter tudo. Tem que ter o alimento. Tem que ter os
insumos pros técnicos. Tem que ter os remédios. Não para transformar aquela
pessoa numa pessoa medicamentosa. Não. Mas pausadamente. Certo. Como é a
ética. [...]. Eles tendo esses insumos, vão saber como diminuir essa dosagem.
Trazer uma vida mais plena. Porque sem essa plenitude, estaremos todos
desconfiados uns com os outros. Sem insumos, estaremos todos com a mão sem
bolso, pra se proteger e sem paciência, no sentido dos técnicos com os pacientes.
Se não houver isso é melhor que Jesus chegue logo, mesmo, de verdade e retroceda
logo, retroceda logo. Porque Ele nos deu uma forma educada de viver e a
deseducação que está querendo prevalecer, não pode. Está totalmente doentio.
Não podemos deixar ficar com essa mazela fragmentando as nossas
possibilidades. Uma hora, a possibilidade de altas alegrias. Uma hora, uma
possibilidade de altas tristezas. Não. Vamos deixar plano, pra que possamos
andar pra onde há mais satisfação da vida. [...].

Vamos plantar a semente para que ela cresça pra cima, não que ela cresça pra
dentro da terra. [...]. Poxa, vamos dar insumos para fazer vários tipos de plantas
frutíferas também nessas áreas psiquiátricas, para que possamos pegar do pé,
também, e levar pra cozinha, também. Se sobrar, doar pra escolas porque eles
ficam doentes também precisando de comer, as crianças. E quando começa a
adoecer de pequeno, essa pessoa vai se tornar um grande doente. Quando
podemos trata-las, vão crescer pessoas saudáveis. Pessoas saudáveis. Então,
trazendo essa coisa saudável pra sociedade, com certeza, vamos pisar um pouco
na loucura, no sentido da doença. Não da loucura palavra. Porque tem loucuras
boas que é aquela que nos resplendece e tem a loucura ruim - aquela que nos
adoece.

Então, vamos tentar estancar essa que nos adoece, essa loucura, e vamos
transformar essa loucura, tipo Tá Pirando, Pirado, Pirou! é uma loucura que nos
traz para a sanidade num sentido mais de compreender melhor, sentir mais
estável. Sentir mais à vontade. Ver que não tem ali um círculo pesado. Mas, sim,
um círculo harmonioso. [...] que não acabe a psiquiatria. Mas sim, conseguir...
possamos com essa transformação, a verdadeira... a verdadeira.... o verdadeiro
passo pra frente. Passinho pra trás, manicômio nunca mais. Vamos conseguir
desmanicomializar a sociedade.

Tem os CAPS, tem os hospitais, assim, como uma forma de agregar essas pessoas,
mas pr’um mundo melhor, não pra enclausurarmos [...] Nós não somos um grupo
unitário. Nós somos um grupo de verdade. [...] não adianta tratar só de mim. [...]
porque ninguém consegue viver individual. É muito ruim. Vai viver no mundo
sozinho, individual? Não é pra todos, isso. [...]. Precisamos uns dos outros.
Mesmo tendo a truculência. Do desgaste. [...]. Todos vieram com grandes
problemas, mas que com essa instituição, esses problemas foram cobertos. Estão
virando fungos porque ali habita o bem. Habita o carinho. Habita a ética. Habita
a verdadeira humanidade. Agora, esse desconhecimento... esse ostentar só eu
quero, só eu tenho, só eu posso - não, para que todos possam. Por isso o SUS, é
isso. Para que todos... não é aquele consultório fechadinho. Pra todos. É pro negro.
É pro branco. É pro mestiço. É pro mendigo. É pro rico. Entra quem quer. Mas,
com certeza, é aberto. Não é aquela porta fechada que você bate e ninguém abre.
160

[...][Fabiane: como você vê a questão do estigma comparando 2 tipos de


instituições: pública e privada?]
Ah, na camuflagem. O do SUS já chega delirante, coisa. E o do privado ou do
particular, ele, passa como se não houvesse nada: chega lá dentro, ele põe da
loucura, a mais intensa, pra loucura mais simples. Engatilhado, ali... já no
sentido, eu passo na sociedade: ninguém vai rir de mim. Ninguém vai falar que
sou maluco. Ninguém vai falar nada. E o que já entra na instituição... os nego já
entra... ahh entrou pra dentro, não tá bem não. Foi pra essa direção, essa pessoa
não tá bem. Mas realmente, essa pessoa não está bem. [...] É porque tá escrito
assim ó: Psicólogo. E no coisa [no SUS], não: tá Psiquiatria. Lá, [no SUS] você
encontra os psicólogos. E o psicólogo reservado, não... sala tal, psicólogo. Não
vem daquele quadro psiquiátrico. Ele [o SUS] é bem, assim, braços abertos.

Quem entra pra psiquiatria? É o médico que trabalha com louco. É o psicólogo
que trabalha com o louco. É o assistente social que trabalha com o louco. É o
faxineiro que trabalha com o louco. Porque o faxineiro também passa a ser
referência que ele tá ali fazendo a higiene, passando por todas aquelas
tramitações.

Um enfia o dedo dentro do nariz, o outro caga no chão. Outro mija ali. Outro
anda pelado. Tá aberto. E você no privado, você, não vê isso. [...]. É uma
vomitada, sabe? É uma vomitada na frente de todo mundo.

E esse [o privado] não. Chega lá, tem um mictório... doutor: quero ir no... ou,
psicólogo: quero ir na sal/ ali, no banheiro. [...]. Tudo restrito. No coisa, não. É
aberto mesmo: é um maluco passando pra lá. Outro passando pr’ali. Um
gritando. Isso é na cara. Agora, no restrito, não. Então, vamos dar mais atenção
a esses que estão abertos. O SUS. Vamos trazer coisas para o SUS.
(Hamilton de Jesus Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Tão logo as pessoas têm mais dinheiro do que necessitam, sejam quais forem
as necessidades de vida que considerem, elas esperam através dele serem mais
felizes. E, visto que a maioria das pessoas ainda assim não conseguirá ser feliz,
algumas delas utilizarão parte de seu dinheiro buscando a felicidade através da
psicoterapia. Desse ponto de vista, a função social da psicoterapia é semelhante
não apenas à função da religião, como também à do álcool, do tabaco, dos
cosméticos e das diversas atividades recreativas. Essas considerações
atingem a relação entre classe social, doença mental e o tipo de tratamento
recebido. É sabido que as pessoas educadas, ricas e importantes recebem
tratamento psiquiátrico muito diferente do que recebem as pessoas
pobres, não educadas e de pouca importância. (SZASZ, 1974, p. 68, grifos
meus)

O cara que tem loucura, ele, é cidadão pra votar. Votar, ele vota. Conta lá.
Computa o voto dele. Mas não é político. Não é um ser político. Não é um
cidadão. [...] fiz até uma poesia com isso... ahh podia trazer... vou dar o grosso:
não é porque o cara toma um remedinho, tem uma psicóloga ou um psiquiatra
que ele é louco. Não faz mal a ninguém. Salvo em crise e dependendo de cada
um. Eu, quando tô em crise eu virada Jesus. Queria curar todo mundo. Beijar
todo mundo. Tem gente que não... (Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] mas louco, na minha linguagem, que eu botei na poesia do Foucault, é o


corrupto, é o cara que estupra, é o cara... o comerciante que quer ganhar mais que
o lucro. Prefere deixar a gente passando fome. [...]. É um motorista que não pega
os idosos com direitos adquiridos... Não são loucos. [...]. Entende a discrepância
161

de como que é a questão do viver, da vida? [...]. É um cara louco. Agora, o cara
matou 5: assassino. [...]. Qual é o mais louco? O remedinho do CAPS? Não faz
mal a ninguém, só pede cigarro... [risos]. Cigarrinho é fogo: Louco! Agora o cara
estupra, pedófilo, faz um montão de maldade aí... Se não for pego, continua
fazendo. Vai chamar de louco? Ninguém chama. Se chamar dá ruim né... por
isso ninguém chama [risos]. Mas eu? Eu sou louco.

Sei lá, sei lá


Tantas coisas
Pra Repensar, repensar...

Valores, amores, dores...


E em meu coração
Só penhores

A dialética do viver
Com artes, religiões etc...
Pra quem na verdade nem sabe mais
O que é o seu ser

Paixões, Canhões, Visões


Tempos trabalhosos, afetados
Pelo desprazer, doer, dói

Dor que não constrói


Que corrói, mas, não destrói
A amabilidade e capacidade
De Sentir O Doer...

Eneas Elpidio
O Pensador Negro

[Fabiane: você já foi chamado de louco?]


Já. Já aconteceu. Eu, quando tava no 2º grau, eu tinha um professor de Física, o
Mxxxxx, que ele era saxofonista. Muito do bom. Aí, ele me chamou pra participar
do grupo de música dele. Era um teclado, uma bateria. Eu no violão e ele no sax.
Eu ia em todos os ensaios... Normal. Tocava... era lindo... [...] aí, eu falei assim:
óh a doutora do Pinel - na época do Hospital Dia, já tinha [o Hospital Dia] - falou
assim: Eneas, traz o teu grupo de música pra poder tocar com a gente. Aí, eu fui
falar com o professor. Inocentemente, cara... Assim... o cara era bom, o cara tem
um temperamento... sabe... assim: comedido, bom senso. Cara bacana, tranquilo,
moderado... Um cara que eu admirava muito, ele. Eu admirava muito. Quando eu
falei/ quando eu chamei o grupo pra tocar na... no outro ensaio, que eu chamei
o grupo pra tocar no Natal do Pinel: mas tu é do Pinel? Tu é um louco?
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[Fabiane: ele não sabia?] Não sabia.


[Fabiane: e até então, cê era um musico ali]. Eu era um musico.
[Fabiane: igual todo mundo?]/
Me cortou do grupo: ah, não venha mais, não. Foi difícil superar isso. [...].

Quando eu chamei o grupo pra tocar na Festa de Natal do Pinel, inocentemente. Ele
falou: você é do Pinel? Você é louco? [...]. Você é louco? Ah, não venha mais não...
que não sei o quê... [...]. Colocou uma etiqueta na cara. [...]. E parou de falar
162

comigo no colégio! [...]. Ensaiava na casa dele. [...] [Ele] Achou um absurdo. Não
falou mais comigo e ainda me cortou do grupo. Na escola, parou até de falar
comigo. Passava de cara... assim... Na aula, ele evitava olhar pro lugar que eu tava
sentado. Nem olhava pra mim. [...]. Preconceito. Criaram um estigma. [...].

Tem o louco que faz mal. Tem o louco que abençoa: que vive a vida normal até
melhor do que muita gente. Mas criaram só uma palavra: louco. Não é que eu
quero classificar, não. Mas ver quem é quem. No singular. [...]. Manada!
Boiada!. viu como que é? Tem boi bonito! Entende? Tem boi que vale mais do que
a manada toda [...]. Porque é mais fácil conduzir... ser conduzido pela liderança,
quando põe todo mundo igual. Quando eu não vejo o singular... [...]. Aí, uns
pagam por outros.

Tudo bem, tem gente que tem medo né. Eu acho que o preconceito vem mais
disso. [E] se o cara surtar?: matar minha mãe, pegar minha mulher e me dar um
soco. Não são todos. É um problema complexo. Bem complexo.

[...]. [Fabiane: ele já te conhecia um pouco né pra saber o seu comportamento].


Já conhecia. De oito a nove meses. Só falei isso: tocar no Pinel, onde eu faço
tratamento. Ele: você é louco?
[...]. Ele falava que eu tocava muito.
Que eu era um bom músico. Nunca viu uma harmonia tão bonita, ele falava.

Quando eu falei... na minha fala... [...]. Mostrou pra ele que eu era louco.
Emblema né [...]. A gente não sabe né. [...]. Mas é um ato... assim... muito...
involuntário. Como diz Aristóteles: ato involuntário e voluntário. Acho que ele
tava assim... ele não pensou bem, ele não raciocinou em cima. Ele não
deliberou. Ele foi pela emoção... o que ele aprendeu, o que ele escutou. [...]. E
teve mais: eu nem toquei naquele dia. Acabamos de falar e tal. Fiquei triste... já
desci... Ah, tudo bem... não precisa vir, tá bom? e tal...
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Sobre “Tempo Livre, Trabalho, Renda e Estigma”, perguntei na questão 8:


Como você lida com tudo isso?
Com uma certa angustia. [...] porque nem sempre a gente tem aquilo que a gente
quer. E às vezes, a gente fica adiando, adiando, adiando, adiando... até ter uma
oportunidade de conseguir aquilo que a gente quer. Coisas que agora é
emergencial, que fez parte do Coletivo, do dia-a-dia, do comum, dentro de uma
cidade grande, aqui em Rio de Janeiro, na Urca [zona sul carioca]... eu não tenho
um telefone celular. O garoto da esquina tem telefone. [...]. Nós nos coisificamos.
O homem se coisificou. O homem virou coisa.
(Gilson Secundino, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)
(Em memória)

Renda?! Acho que só tem o "R".


[Fabiane: É?!].
É, o "R". Pra fazer renda tem que ter "E". Tem que ter "D". Tem que ter "A". Só
tem a primeira letra: "R". Que pode significar: Renda Rasgada. Renda Sem
Recurso. Renda Ridícula. Renda Furada.
(Hamilton de Jesus, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)
163

Aqui, resta mais escancarado ainda o que cabe à pobreza – dentro ou fora da
loucura: ser excluída, estigmatizada e desrespeitada sob o olhar e a aprovação de um
Estado brasileiro que cuida com descaso da coisa pública, e por excelência, das
“instituições totais”. Não apenas o Estado, mas também a sociedade que o reitera e desvia
o próprio olhar daquilo que põe à margem.
Experiências de desvalorização social, de ofensa, de degradação cultural de
algumas formas de vida ou modos de crença consideradas de menor valor ou deficientes,
tiram dos sujeitos atingidos toda a possibilidade de atribuírem um valor social às suas
próprias capacidades, de se referirem à condução de suas vidas como a algo a que caberia
um significado positivo no interior de uma coletividade. Produzem, portanto, uma perda
de auto-estima pessoal, uma perda da possibilidade de se entender a si próprio como um
ser estimado por suas propriedades e capacidades características. Lesam, portanto, a
honra, a dignidade, o status de sujeitos socialmente não aceitos. Aqui fala-se Vexação.

[...] fizemos o Circo Voador97 porque fizeram um financiamento coletivo para


pagar os/ pra tu ver né... vai o Djavan, lá. Vai o... sei lá mais quem, lá... né...
Robert/Roberto Carlos, não vai. Mas o... sei lá... Fábio Jr. Sei lá mais quem.
Biquíni Cavadão... vai alguns caras famosos, lá, eles pagam. Eles fazem tudo né...
e ainda pagam a pessoa. Tudo. Eu não sei exatamente se fazem uma divulgação,
como é que é para pagar os funcionários. Mas no nosso caso... né... nós não
recebemos nada. Nada. (Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Exatamente, muito pelo contrário. Fizeram um financiamento coletivo para


pagar. Mas é o Circo Voador né. É o Circo Voador. Então, né... estou feliz. A
gente se conforma né. A gente/o cara tá com fome: o cara come feijão, arroz e
ovo. Vai fazer o que? Tá com fome né. É assim né.

Enquanto que o cara que tá cheio da grana lá... come caviar, como bife com batata-
frita e outras coisas mais. Lagosta. A gente, o cara pobre ali sem nada: vai fazer o
que? Aceita qualquer coisa.

Agora: fizemos um show uma vez no Solt. No Hotel Solt, em Copacabana. Eu


falei assim: Vandré, leva... leva... leva o lanche. Leva o lanche. Aí, chegamos lá,
não tinha coffe-break. Não tinha nem um/já fizemos show que tinha Fofura né. Era
Fofura. Mas era Fofura né... Lá no Hotel Solt!, não tinha nada. Não tinha nada.
Aí, pegamos o nosso lanche. Aí, começamos a abrir. Aí, o cara pegou e falou assim:
mas o que que é isso ai? O que vocês estão fazendo?

Nos trouxemos o nosso lanche ué... e comemos o nosso lanche. Porque não tinha
um café. Não tinha um coffe break. Um hotel de luxo né... é um absurdo ne.
Entendeu? Então é isso. Você...´você acab/ tem horas que é pior ainda. Tem horas
que a gente não tem nem o q/ já teve show que nós bebemos água lá no coisa...
no barriu. Agua no barriu. A agua era no barriu. Lá na Colônia Juliano Moreira.
Uma feijoada, nego falou que era gostosa -uma feijoada ridícula, sabe... nós

97
...no evento “ I Circular da Loucura” realizado em maio de 2019 no bairro da Lapa, Rio de Janeiro.
164

comemos, foi num galpão, assim... Eu não sei se tem imagem disso, sabe. Mas faz
muito tempo, isso. Nós fizemos um show lá.

E uma vez nós íamos fazer um show no Manicômio Judiciário. Eu não estava lá
nesse dia - porque eu ia fazer. Eu ia fazer. Mas o Claudio né... o Antônio Claudio:
não, não... eu não vou fazer no Manicômio Judiciário. Ué, se eu tivesse lá eu
faria... mas você quer o quê? Afinal de contas você é o quê? Você não é usuário
também? Por que tá com medo deles? Eu ia fazer. Se eu estivesse lá eu ia fazer.
Mas eu não estava lá nesse dia.
[Fabiane: é a falta de reconhecimento social que faz vocês passarem por isso?]
Ah com certeza. [...] não fosse Saúde Mental, eles, talvez até pagassem cache. Ou
então, não convidaria. Ou então, não convidaria. Mas infelizmente foi isso.
Acontece que o evento, na verdade, não foi feito pelo hotel. Eles alugaram o hotel.
Mas é um absurdo. Acho que alguém tinha uma verba lá... porque poderia ter um
coffe break né.. Então, vários shows já tivemos Coffe Break. Outros não. Então,
como eu falei: tinha uma vez que comemos Fofura. Só tinha Fofura lá pra gente.
Então é isso. (Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Eu acho que... a arte deveria ser melhor reconhecida. Porque as pessoas pouco
frequentam galeria de arte. Entendeu? Poucas pessoas apreciam uma pintura que
tá aqui na frente... tá escondida aí (e aponta para uma pintura na parede). Se não
fosse patrimônio público levava pra casa. Levava pra casa. Botava na esquina e
vendia ela por um bom preço se eu não quisesse. Mas tá aqui. Tá escondida.
Ninguém tá vendo. [...] O Museu tá aqui né... o Museu do carnaval. Do Tá
Pirando. Mas quem é que conhece esse Museu? [...] Quem conhece?
[Fabiane: [...] E por que o senhor acha que as pessoas não sabem, sequer sabem?
Porque não é de interesse político ser mostrado esse tipo de trabalho. [...] Porque
incomoda. Quanto mais alijado, quanto mais expurgado, quanto mais
discriminado... mais fácil é pra ser dominado.
(Gilson Secundino, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] estigma é uma... uma... uma... uma coisa muito dura né. Pra quem passa né.
Pra quem passa né. Porque as vezes, a pessoa ta aí, e não passa né... Mas a gente
que tá dentro de um hospital psiquiátrico e foi internada num hospital Pinel e que
te dizem que é hospital de louco... dali pra cá, você vai ser louca toda vida. E você
tem um/ realmente não é mentira porque você tem um tratamento. Você tem um
equilíbrio, mas você não tem a cura. Porque do nada, de repente, você não é mais
nada. Certo? (Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] mesmo que digam que não é louca, você caiu na boca do povo, sabe?! Todo
mundo sabe que você tem problema, que você é uma inútil, que você pasta, que
você não pode namorar, que você não pode ter vida. Entendeu? Que você é uma
louca, entendeu? Caiu na boca do povo! Entendeu? Caiu.
(Stela Sepulveda, Atriz Cyber Bacante do Teatro de DyoNises)

Embora tenha deixado de trabalhar na clínica em 1909 para me dedicar


inteiramente à prática psicoterapêutica, não perdi o contato com a
esquizofrenia. Na verdade, apesar de temer o contrário, foi justamente então
que, para meu espanto, estabeleci um contato real com essa doença. O número
de psicoses latentes e potenciais é surpreendentemente grande em
comparação com o número de casos manifestos. [...] Não são poucas as
165

neuroses clássicas como histeria e neurose obsessiva que, durante o


tratamento, se revelam como psicoses latentes, podendo, por vezes,
transformar-se em psicoses manifestas – e a este fato todo psiquiatra deveria
estar atento. Embora um destino benevolente, mais do que um mérito, me tenha
poupado de ver algum doente meu chegar a um surto psicótico, vi, como
consultor, um número imenso desses casos. Acompanhei, por exemplo,
neuroses obsessivas clássicas em que os impulsos gradualmente foram se
transformando em alucinações auditivas correspondentes, ou casos
comprovados de histeria encobriram as mais diversas formas de
esquizofrenia. (JUNG, 2015, p.220)

Por dentro do nosso dedo? Perguntei?


É.
Tem osso.
Osso... mais o que?
Sangue...
Hãã... mais o que? No osso, em cima do osso?
Pele.
Não... Eu não vou falar... pra depois nego dizer: pô... cê sabe de muita coisa e não quer falar.
Eu não vou falar o que que é.
O Sr. sabe o que que tem?
Eu sei! Já falei pra muita gente. Muita gente não acreditou. Aí, eu trouxe pra cá por escrito. A
pessoa leu e olhou... CERTINHO! Tu viu aonde? Ah não sei onde que eu vi, não. Não sei onde
que eu vi, não. [risos] Só sei que tem.
Só sabe que sabe né
É. Só, eu, que...
[Interrompi a fala dele, perguntando:] por dentro do osso?
Em cima do osso. Aqui não é só carne. A senhora tá vendo carne aqui? Não né?
Tem osso...
Tem osso por dentro. Aqui, não são um osso, não. São dois osso. É um juntado com outro.
Como se aqui fosse um joelho né... [apontei para a articulação do dedo indicador)
Então, o que que tem: tem carne, tem pele, tem sangue né, tem osso.
Tem nervo. Não tem nervo?
Tem.
O que mais que tem???
Não sei. Vocês que são, assim, acadêmico, que deve saber, né?!
Ahh, mas de medicina né. Eu não sou de medicina.
Ah mas quem é acadêmico deve saber... porque eu não vou falar porque tem muita gente que
são acadêmico e estuda, primeiro, o artista, pra ver o artista que que tem pra falar. Então, eu
não gosto de falar o que que tem por aqui [durante a enrevisa], não.
Tem 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10. E vai daqui até cá,.. assim, ó (apontando para os 10 dedos das
mãos). Daqui da junta... também a junta. Vai até aqui.
Eu não vou falar porque muita gente me... me obrigou a falar o que que eu tenho/o que que a
gente tem aqui ó: [e apontou pra junta do seu próprio dedo]
Te obrigou?
É, mas eu não falo o que que tem.
Ah bom... eles queriam saber, mas o sr. não contou
É, eu não falo
O sr. já contou pra alguém?
Eu [falo]: vem cá... tu não é acadêmico? Tu não faz, assim... é... essas pessoas que morrem... tu
não estuda o corpo? [pergunta feita pelo Sr. Arlindo, aos acadêmicos de medicina]
Autopsia né.
É.
Ah é... estudo [respondem os acadêmicos]
Tu nunca viu nos ossos, não? [pergunta feita pelo Sr. Arlindo, aos acadêmicos de medicina]
166

É cartilagem? [pergunto mais uma vez, tentando encontrar a resposta]


É outra coisa.
Ah não... eu nunca vi esses negócio... tá tá tá [com tom de voz irônico me conta a resposta que
recebe dos acadêmicos e blá blá blá]
Essas pessoas que o Sr. perguntou, eram estudantes de medicina?
Era
...porque estudantes de medicina estudam o corpo humano né
O corpo humano da pessoa. Depois de morto, né
...
Ali, vão estudando pedacinho por pedacinho.
Pedacinho por pedacinho.
Ninguém nunca me ensinou, não. Mas eu sei
...
Então, quer dizer que o sr. sabe... não é sangue, nem osso...
É osso, mas tem... em cima do osso da pessoa. Em cima do osso. Não tem nada em volta, não.
Será que eu descubro se [ahh Descobre] eu estudar? [ihh não vai descobrir nunca. Nunca]
O sr. já contou pra alguém?
Não conto, não.
O Sr. já viu?
[risos nossos]
O sr. viu no sr. mesmo?
Não, não. Em outras pessoas. Gente morto
Nossa Senhora. Bicho?
Não, não. É de gente. Não é nada de bicho.
Eu tô falando se é bichinho que tem em cima do osso
Não, não tem nada de bicho, não.
Nem bactéria... nada disso?
Nada. [risos]
Nossa... agora eu vou ficar curiosa também, hein
Éh...
Mas eu já entendi que o sr. [não vai me dizer]
... Deixa vir a minha performance98... que a gente tudo conversa, tá...
Vai vir gente/um bocado de gente. Né não?!
Sim.
Então, isso aí.
Na performance, eu posso perguntar isso?
Ué... pergunta... tô a disposição de todos/qualquer um
Mas eu se eu perguntar lá... o sr. vai responder? Ou eu vou passar vergonha?
Não... passar vergonha, não. Agora se for muita gente falando... um fala, outro fala... aí, eu saio
de perto. Deixo a pessoa falando sozinha com a parede.
É as vezes, a gente quer sossego né... e se ficar um monte de gente falando... a gente sai de fininho
e deixa a pessoa ali
É isso aí.

Devo dizer que nesse diálogo de aproximados 6 minutos eu não percebi de


imediato o relato que o Sr. Arlindo Oliveira, artista plástico do Atelier Gaia (mBrac) me
oferecia sobre a ocasião em que fizera a mesma pergunta feita a mim, também para outros
acadêmicos, no caso, de medicina. Durante esse trecho da entrevista, enquanto

98
Arlindo Oliveira em ocasiões especiais apresenta sua performance no espaço onde conviveu com o
próprio Bispo do Rosário. Na Exposição Arte Ponto Vital, em cartaz no Museu Bispo do Rosário é
possível assisti-la e também no Youtube. Disponível em: <https://youtu.be/haTipUTcfEg>. Acesso em
30/10/2021
167

conversávamos, o que me mais chamou a atenção foi o seguinte comentário: “Vocês que
são, assim, acadêmico, que deve saber, né?!”, Eu não soube responder nem tampouco o
estudante de medicina. Importante notar o tom debochado utilizado para me dizer que o
acadêmico de medicina não soube responder “o que que a gente tem por dentro do dedo”,
quase querendo me mostrar o absurdo desse não-saber, que ele, por outro lado, sim,
mesmo sem ninguém tê-lo ensinado, é portador. Que concepção de saber acadêmico ele
possui e coloca em xeque frente ao dele, empírico, singular? E mais, tal como um
acadêmico convida seus interlocutores para conhecer seus trabalhos publicados, seu
currículo Lattes, Arlindo também tem para o que convidar: para prestigiar a performance
artística que realiza na Colônia Juliano Moreira. Ocasião essa, exata e especial, na qual
ele também tem o que dizer e a ensinar.
Essa primeira seção, denominada Loucura como forma de desrespeito,
subdividida em três subseções baseadas nos capítulos 5 e 6 de Luta por Reconhecimento,
oferece inúmeros exemplos e reflexões que dão mostra do sentimento de impotência,
indignação e de humilhação – de “vergonha social” – vindos de experiências de
desrespeito. Tornados desprezíveis, invisibilizados, estranhos, desqualificados, não
encontram no olhar do outro, assentimento, validação – sentimento de pertença. Se
perdem, assim, auto-centrados, os enlouquecidos, dentro de suas próprias existências?

***
4.2 DESCONSTRUÇÃO DA LOUCURA COMO “NORMATIVIDADE VITAL”

“Curar é criar para si novas normas de vida”


Canguilhem, 1995, p. 188

Quando eu chego na sala, quem me atende?


Ela! Elizabeth Valiê. Nunca esqueço disso.
Choramos. E ela falou: Enéas, vou ter que internar você.
Eu falei pra ela: poxa doutora, não faça isso comigo.
Eu não quero com 18 anos de idade, entende, pegar o estigma da loucura.
Eu quero viver, mesmo com essa doença. O máximo que eu puder.
Aí que ela chorou mais ainda.
Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!

Então, o artista é o seguinte: ele... é lógico que isso tem uma coisa crucial da arte:
o instrumento... a apresentação da sua arte em si. Quando você cria vínculo com
uma estrutura de arte [...] Essa estrutura, bem-criada, matricialmente, ela, vai te
dar condições de chegar e extrapolar a sua loucura. Entendeu? Então, eu vejo
assim: você pode ser um artista de desenho, de pintura, mas você tem que ter
168

equipamentos de arte que... sabe, que tem qualidade, que tem luxo. Entendeu? Para
você fazer bem a arte né... Quanto mais luxo você tiver no material, mais capricho
você vai dar na arte e mais, assim... mais assombro você vai causar nas pessoas.
Não só a você e à pessoa que tá vendo a obra de arte. Entendeu? [...]. Qualquer
um vai ter a mesma opinião: não!!! tá demais, muito bom!, porque a sua matriz
de arte permitiu criar esse vínculo, extrapolar e fazer uma coisa belíssima.
Entendeu? É isso. [...]. Vou te dar um exemplo: Adilson Tiamo. Eu vou dar um
caso de um amigo meu. (Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Adilson, eu já conheço ele há mais de 12 anos. Do carnaval e de uma região da


zona norte. Do Tá Pirando. [...] Ele já é era um campeão de samba do Tá Pirando
- não, [alias], do Loucura Suburbana e tal... por vários anos. [...] ele passou por
uma mazela muito forte de piora do quadro clinico dele. Todo mundo sabe disso
né. [...]. Então, a gente sofreu muito com ele e tal. Participamos muito da vida dele
[...]. Discutíamos muito [...] sempre lá no Loucura Suburbana e tal... lá no Nise
[da Silveira]. Quando ele foi solto, o Adilson passou por uma auto-avaliação
pessoal dele próprio e ele mesmo se reconduziu de forma assim própria, a
recuperar o tempo perdido que ele teve enquanto artista, para encantar e para
expandir a arte dele. Difundir a arte dele né... mudando o quadro mimético dele:
a roupa e tal. Então, o Adilson, ele, criou vários níveis de trama no campo da saúde
mental. Criou altas vinculações. Vários programas, vários vídeos, vários ensaios...
No show do Loucura, ele apareceu com uma roupa que não era nem do Loucura,
mas uma roupa de fantasia das mais tresloucadas. Um disbunde que você nem pode
imaginar. Tão criativa, que eu não me esqueço... tinha arco-íris na roupa. Então,
minha mente vai a mil. Eu não consigo me firmar no que ele fez. Eu nunca
esqueço que ele teve em 2019 [no desfile do Bloco de Carnaval do Loucura
Suburbana], ele foi uma das coisas que me aguentou no bloco pra eu fazer um
bom desfile [tocando na bateria]. Ele, o Fernando Mesquita, o André Coeli,
também, e, você. Os quatro. Mas ele foi demais, foi demais. Ele chegou sério, triste,
meio acanhado, me deu um fora, assim... Mas depois, sabe... eu fui vendo que ele
foi se soltando, soltando E HOJE É UMA ESTRELA DA SAÚDE MENTAL.
Entendeu?

Então, o que eu ia te falar é que você tem que criar, assim, uma roupagem nova.
Você tem que desconstruir o próprio pesadelo que cê passou. Tem que tirar um
viés desse pesadelo... se projetar nele, com esse pesadelo... deixar ele pra trás...
[ináudivel] e mesmo nesse pesadelo, nesse inferno... criar um caminho para mim,
que eu nunca mais vou me desviar. Ele fez uma pesquisa de... visual, pesquisa de
indumentária... pesquisa cultural, dele, de como ele se inserir. Começou a
trabalhar de outra forma, mais invocadas. Tem um diferencial que é o seguinte:
ele tem quase 60 anos de idade, não tem? Então, ele é uma pessoa muito madura.
Muito vivida. E ele vêm da saúde mental, já, de muito tempo, já... batalhando. Ele
é do Rio de Janeiro e tal. Então, ele tem muita canja para fazer de forma muito
competente. Ele faz e venceu nisso. Ele conseguiu desconstruir a loucura.
Entendeu? Transformar ela em... em... porta-voz dos loucos da forma mais bela
que ele poderia ter feito pra saúde mental. É isso.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação determinada, mas
ser também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que
caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o
normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma
habitual e de instituir normas novas em situações novas. [...] O homem
sadio não foge diante dos problemas causados pelas alterações – às vezes
169

súbitas – de seus hábitos, mesmo em termos fisiológicos; ele mede sua saúde
pela capacidade de superar as crises orgânicas para instaurar uma nova ordem.
O homem só se sente em boa saúde – que é, precisamente, a saúde – quando
se sente mais do que normal, isto é, não apenas adaptado ao meio e às suas
exigências, mas, também, normativo, capaz de seguir novas normas de
vida. (CANGUILHEM, 1995, p. 158-161)

[...] uma pessoa, quando é artista, ela, pra ter desenvolvido em si, o princípio de
se tornar artista, de escolher esse caminho tão, assim... cultuado... e discutido na
sociedade, mesmo, né... como é o do cientista, do professor... [...] destacado né...
em vários níveis: na arte visual, na escultura, nas artes plásticas, na poesia, na
literatura, na música, no balé... Então, a arte, de modo geral, ela, expressa em si,
uma chama que o artista tem dentro de si que foi despertado num certo momento
da sua apropriação do espaço físico do mundo à sua volta... né com os
dispositivos que lhe foram disponíveis ter para ter o contato com o mundo... ele ter
uma impressão do mundo, ser impressionado pelo mundo. Uma impressão, assim,
forte. Uma impressão, assim, potencialmente, quase que infindável e ele cair num
susto, assim, na primeira vez que ele teve esse contato e pensar: bem, o que será
que foi isso que eu tive? Um susto? Um espanto? E ele ter várias interpretações
sobre isso e várias impressões sobre essa questão desse susto que ele tomou. Desse
deslumbre que ele teve com o mundo né. Mas é um deslumbre que se dá em vários
níveis, Fabiane. Porque o artista, ele, de um certo modo... pra ele ser um artista de
forma, assim, mais ligado ao campo do mainstream, do campo mais formal da arte,
ele tem que ter um susto. Mas um susto controlado. E o artista da loucura, é um
susto mais assim... mais imponente. Um susto mais descontrolado né.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Então, eu posso te falar isso com segurança. Existe um fio tênue entre o artista
formal, do meio formal, do mainstream né, do campo formal mesmo da arte com
o artista da loucura. Os dois encantam. Cada um no seu recôndito né... E os dois
se comunicam um com o outro. Tanto um como o outro se reconhecem como artista
né... e se comunicam... e se intervala. E se expressam um com o outro. E reconhece
o trabalho do outro como artístico e tal. Elogia, discursa, disserta. Mas também
tem o lado desse fio tênue né... que um, foi um campo, assim, mais formal de
impressões colhidas da sua vida né... que são tanto no campo afetivo, no campo...
campo, também é... campo afetivo, mesmo né. Pode ser um afeto íntimo, um afeto
familiar, um afeto com amigos, um afeto com a vida, com a natureza, com o mundo,
com o cosmo; uma iluminação, assim, filosófica, uma iluminação espiritual.

Isso nos dois campos: tanto no artista formal quanto do artista da loucura. Isso
que eu posso te falar de início né... [...] mas no caso, desconstruindo já [a
loucura], pensando na luta antimanicomial e na reforma psiquiátrica... o artista
louco, ele, só se descobriu artista depois de vários avanços no mundo.

Então, por exemplo, a reforma psiquiátrica se deu em 1987 né... o início da reforma
psiquiatra, em Bauru, nessa época estávamos descosturando um processo de
ditadura no país. Esse processo é um processo que beliscou todo mundo no campo,
assim, das liberdades individuais no país. Mas cada um do seu lado [...] de uma
forma diferenciada: o campo formal optou pela ruptura ideológica, pela ruptura
acadêmica, pela ruptura postural do ideário; já, o artista da loucura, ele, só
acompanhou isso e procurou vivenciar de mais barato, de mais ondas... mais
prazeres com a vida, mais interpretações - reinterpretações e ressignificações
da sua vida pessoal e do seu contato íntimo com o mundo.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)
170

Faíscas azuis
Que perigo...

Raios no céu
É de se tirar o chapéu...

Fagulhas, fração de segundos


Robôs em fuga
Luzes, eu curto com argúcia
Frenesi...
Espere cair em si
Alegria começa aqui...99

“O espanto verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela doença”, nos


afirma Canguilhem (1995, p. 76). “O que será que foi isso que eu tive? Um susto? Um
espanto?” Ainda que se descoberto artista, o da loucura, dentro dos limites “da sua vida
pessoal e do seu contato íntimo com o mundo”, numa atitude mais lúdica e descolada
com a arte e, de deslumbre com o mundo, “só acompanhou” por que? É também do
Demetrius, a seguinte fala:

[...] meu pai adoece, tem um AVC. Aí eu perco os rumos da minha vida. [...] faço
o meu tratamento no IPUB, na minha primeira internação psiquiátrica em 91.
Nessa internação eu internalizo, assim... os rumos da saúde mental, já, desde o
início, já.. [...] E depois disso... eu não saio mais da Saúde Mental. Vou me
internando... vou me inter/ vou me integrando à Saúde Mental. Me integrando,
me integrando, me integrando... e, aí, entro nos Cancioneiros [...] em 1996. A
primeira banda psiquiátrica da América Latina. Depois, conheço o pessoal do
CEP 20000, também - já fora da Saúde Mental, no campo mainstream, já, artístico
e cultural. Éh... a minha interação inicial é essa: CEP 20.000 e Cancioneiros. [...]
Eu fui confiando no amanhã a partir das minhas internações... Eu fui me
acalmando, acalmando, acalmando... e quando vi... virei poeta do CEP.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Então, olha só... quando vai no fundamento, assim, de uma realidade, de uma
profundidade... a gente vive nas brincadeiras, aqui, porque essas artes elas
fazem... ficam se tornando uma brincadeira, no sentido de tirar aquele estigma
pesado.... Mas a gente - como que eu vou falar - continua vivendo num mundo
capitalista. A gente sai pro lado de fora, tu não consegue pegar uma bala de
graça. [...]. (Hamilton Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Não muda. [...] Não muda nada.

Eu me sinto assim: voei pra caramba... mas quando voei eu tava no mesmo lugar.
[...]. Imagina assim: eu dependo de mim, de mim, de mim... a pessoa mais
importante eu perdi. Eu não tenho mais... as pessoas têm pai e mãe. Eu sou
totalmente... eu pago um preço do passado. Trancafiado no sentido de... por

99
Trecho da música “Sortilégio”. Letra: Demetrius Lucas e Arranjo Musical: Miguel Souza Dantas.
Disponível em TV Pinel - O Canto do Canto Demétrius “Nil” Lucas:
<https://www.youtube.com/watch?v=y-rAi5F9F5o>. Acesso em: 27/08/21
171

exemplo: ele [um outro participante dessa pesquisa] queria o amendoim àquela
hora... mas ele não tinha o dinheiro pra ir lá comprar... Fica assim. [Fabiane: à
mercê?] É. Porque os médicos e o Estado não são obrigados a te dar dinheiro.
Poxa, eu acho que a saúde tinha que te pegar. [A gente] bota os outros pacientes
bem... mas... [...] Não tô reclamando da vida o que anda ocorrendo com a gente.
Venho de longe... me doou... vou voltar pra longe. [...]. Você tá segura no Sistema.
[referindo-se à minha condição de servidora pública, de acadêmica...]. Nós tamos
numa linha cheio de dentinhos. Qualquer coisa arrebenta, vai embora.
(Hamilton Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] é muito bom a gente chegar num CAPS, se tratar e ir pra casa. Tô livre. Ou,
[...] de repente, dependendo do meu PTS (Plano Terapêutico Singular) não vou
ficar... se der pra sair. Casos e casos. Depende do PTS, mas eu tô livre. [...]
multidisciplinar né... eles não cuidam só da sua cabeça... problema de moradia, de
confusão na rua, de doenças... fazem uma relação com a Clínica da Família... se
tiver uma diabetes, se tiver uma pressão alta, eles, já arrumam. É muito legal.
Agora, a minha crítica: fala de inclusão social, mas não tem um projeto
econômico... (Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Eu falei na reunião, inclusive ganhei uma questão: não tem um projeto de


comunicação com a realidade... um jornal pra ler de manhã, pelo menos segunda-
feira. Não tem um curso de inglês. De música, que eu queria dar. Não tem. Eu
queria criar um grupo de leitura. Eu crítico:
Que reabilitação é essa?
Fazer desenho, escutar música, um abracinho, comer e tomar remédio?

O cara morre assim, sem saber a capacidade [que possui]. Não tô falando... [tem]
casos e casos. E é por isso que chama caso singular. Tem gente que realmente não
consegue. Mas, tem muita gente que consegue, como eu. [...] A psicóloga falou:
Enéas, gostamos da tua ideia, discutimos... também não podemos fazer muita
coisa, mas criamos uma roda de conversa, com tema livre. [...] eu falei com o
pessoal na reunião: não tem manicômio, mas tá estático. Tá em marcos antigos.

E, agora, o marco futuro? Eu tava lendo uma coisa tão interessante de Nietzsche,
no Zaratustra: qual a fala e o pensamento que você quer para o futuro, que ainda
não chegou? Lindo isso né? Não é profundo? [...]. Será repetir o presente? Que foi
repetido pelo passado? Aí, eu toquei, não toquei? Toquei muito. Aí, criaram o
grupo de... [...] pediram para eu poder estar lá. Vai ser coordenado por mim e com
a psicóloga. [...]. Já preparei um tema. Botar logo arrebentando: TRABALHO.
Sou mal né?
[Fabiane: mas é essencial né].
Essencial. [...] porque você entra no sistema, te dão um salário mínimo e acha
que você pode viver. (Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] há de se convir que a determinação das constantes fisiológicas, pela


elaboração de médias experimentais obtidas apenas no âmbito de um
laboratório, corre o risco de apresentar o homem normal como um
homem mediano, bem abaixo das possibilidades fisiológicas de que os
homens em situação de influir sobre si mesmos ou sobre o meio são,
evidentemente, capazes, mesmo aos olhos cientificamente menos informados.
[...] a fisiologia espera do homem concreto — e não do homem cobaia de
laboratório em situação bastante artificial — que esse homem concreto fixe,
ele mesmo, as margens de variações toleradas pelos valores biométricos.
[...] Se podemos falar em homem normal, determinado pelo fisiologista, é
porque existem homens normativos, homens para quem é normal romper
172

as normas e criar novas normas. [...] Não são apenas as variações


individuais — que ocorrem nos "temas" fisiológicos habituais do homem
branco dito civilizado — que nos parecem interessantes como expressão da
normatividade biológica humana; são, mais ainda, as variações dos próprios
"temas" de grupo para grupo conforme os gêneros e os níveis de vida, em
relação com as tomadas de posição éticas ou religiosas relativas à vida, em
suma, a normas coletivas de vida. (CANGUILHEM, 1995, p. 129-130)

[...] é aflitivo e difícil obedecer ao médico que diz: "Poupe-se!". "É fácil
dizer para eu me cuidar, mas tenho minha casa para cuidar", dizia, por ocasião
de uma consulta no hospital, uma dona-de-casa que não tinha nenhuma
intenção irônica ou semântica ao dizer esta frase.* Uma família significa a
eventualidade do marido ou de um filho doente, da calça rasgada que é preciso
remendar à noite, quando o menino está na cama, já que ele só tem uma calça,
de ir longe comprar pão se a padaria próxima estiver fechada por infração aos
dispositivos regulamentares etc. Cuidar-se... como é difícil, quando se vivia
sem saber a que horas se comia, sem saber se a escada era íngreme ou não, sem
saber o horário do último bonde porque se a hora tivesse passado, voltava-se a
pé para casa, mesmo que fosse longe. (CANGUILHEM, 1995, p. 158-159)

Um pouco da minha história é o seguinte: eu nasci no Espírito Santo e mudei para


o Rio de Janeiro. Naquela época o meu pai foi embora e deixou minha mãe com
oito filhos e eu tive que trabalhar num lixão pra sustentar a casa. [...] A vida se
tornou muito complicada pro meu lado. Eu era muito magrinho demais. Eu tinha
dificuldade na escola de comprar material. Até que cheguei na 5a série e fiquei
reprovado porque a prova fala do... de um livro chamado O Pequeno Príncipe e
eu não tinha dinheiro para comprar O Pequeno Príncipe. Então, eu não pude
fazer a prova [...]. Por isso que até hoje eu não gosto de ler. [...] engraçado nessa
história toda que eu não gosto de ler... mas adoro escrever. Escrevo tudo errado
[...] mas eu invento cada história. Todo dia eu invento história... [...].
(Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

Depois fui para São Paulo em 1975, comecei a trabalhar de carteira assinada.
Levantava cinco horas da manhã pra trabalhar, né ou não é? Aí, trabalhava no
Brás, na Rua Bresser. E voltava pra casa? Não. Eu ia pra São Miguel Paulista
estudar. De São Miguel Paulista ia andando até Itaim Paulista. De Itaim Paulista
ia andando até Jardim Jacy, que pertence a Guarulhos. Que é do outro lado do Rio
Tiete. Pra mim chegar em casa e descansar. Tirar agua do poço, tomar banho,
fazer a janta para levar no dia seguinte. [...] Dezessete anos, 5a série.

[...]Depois de dois anos e meio em São Paulo, vim para o Rio de Janeiro e
comecei a estudar. Aí, eu entrei numa firma como ajudante de cozinha. Daí eu vi
um amigo meu que virou... como é que se chama... Eletricista. Eu perguntei como
é que ele foi... ele explicou: foi na Escola da Aeronáutica. Aí, eu fui na Aeronáutica,
me inscrevi pra ser mecânico de automóvel. Mas como eu não passei na prova.
Tirei nota seis. De 10,0 tirei 6,0. Então, fiquei segurado como mecânico de
refrigeração. [...]. Mas lembra de uma coisa: Eu não servi o quartel. E não era
nada. Eu cortava o cabelo baixinho e entrava como se fosse um soldado. Até
pegar o meu diploma. [...] E ali eu parti para o mundo para ser ajudante de
mecânico de refrigeração. Até um dia, eu virei mecânico profissional. Aí,
trabalhei muitos anos. Muitos anos como mecânico. Me aposentei. Aí, tive filho,
casei. Tive tudo isso. Fui pra casa, minha vida tava tranquila, mas os barulhos
das máquinas continuou na minha cabeça. Aonde eu fui parar? Sabe aonde?

No Hospital Psiquiátrico [Jurandyr] Manfredini. [...] A firma me demitiu e eu


fui embora pra casa. Aí, depois de uma semana eu comecei a ouvir uns barulhos.
173

O barulho dos maquinários. Sonhava que tava trabalhando todo dia. E os


barulho do maquinário direto na minha cabeça. Foi aí que a minha mulher me
levou... onde? pro psiquiatra. Porque a minha situação era psiquiátrica. Só eu que
ouvia o barulho. Mais ninguém. Como o meu pai era esquizofrênico. [...]. Até hoje
sou [CID] F20. O meu pai também era. [...].

Com o meu pai era o seguinte: o meu pai, ele, chegava em casa de manhã, ele se
trocava de roupa, sentava com os compadres dele, lá, que ia para a missa todo dia.
E aí, ele falava: como é que vai a comadre Ester? A comadre Teresa? Como é que
tá/e a plantação de melancia? Como a gente já sabia que ele falava sozinho. Não
existia ninguém, era só a imaginação dele. A gente descia e cumprimentava: como
é que vai o senhor, seu Zé? Como é que vai a esposa do senhor?. E as plantação
de melancia? Sabia que não tinha ninguém ali no sofá. Era só meu pai. Eu passava
e cumprimentava todo mundo. Se a gente passasse sem cumprimentar, meu pai
puxava a gente: falta de educação. Não tá vendo o pessoal aqui, não, pô. Aí pronto.
O que aconteceu? Aconteceu que eu peguei e fiz o que? Eu peguei e comecei...
[a ouvir vozes, também]. Aí, a família descobriu.

Lembra que no começo da história eu falei que meu pai foi embora? Mas quando
meu pai ficou doente teve que voltar. [...] Ficou doente em São Paulo. Aí voltou
para o Rio de Janeiro, doente. Esquizofrênico. Aí, nós aprendemos a lidar com
meu pai, com a esquizofrenia dele. [...]. [Eu] Tinha quase cinquenta anos, já.

[Fabiane: antes dessa ocasião não tinha acontecido isso com você].
Nunca, nada comigo. Uma pessoa normal igual todo mundo.

[Fabiane: você ouve vozes hoje em dia?].


Ouço. Tranquilo. Mas eu sei distinguir o que é e o que não é.
Aprendi através de uma senhora chamada Jó Lisboa que era terapêutica
ocupacional. Ela me ensinou como viver com a doença.

[Fabiane: você considera uma doença ouvir vozes?]


Não, não. Eu não considero... ouvir, uma doença, não.
Eu sinto uma coisa superior aos outros.

Naquela época em que eu fui internado. Naquela época que eu fui para o hospital,
minha mulher me levou no hospital, eu passava por uma senhora de idade que
tava quase para se aposentar, chamada Jó Lisboa e a Dona Estela. [...]. E ela
começou a me fazer o seguinte: A partir de hoje... trouxe a roupa do meu marido.
Usada, mais tá limpa. Você pode usar. Aí, me trocava de roupa. Aí, passado
quinze dias... eu trouxe uma camisa do meu marido. Limpa, você pode usar. Tira
essa suja e põe uma limpa. Ah Adilson você tá legal. Que tal quando você vir
aqui, você fazer a barba? Faz a barba. Aí, tal... aí eu fazia a barba. Ai um dia ela
falou comigo: Adilson, você... isso, já tava com cinquenta e tal. Já tava fazendo
tratamento psiquiátrico, com problema de esquizofrenia. Ela começou a me
ajudar. Começou a me ajudar. Um certo dia ela chegou perto de mim, me deu um
abraço. O máximo que ela tinha assim... me abraçava sempre. Uma pessoa que me
tratava com carinho.

E de tanto ela me falar com carinho eu [me] abria. Falava tudo para ela, porque
com aquele carinho dela, fazia com que eu poderia conversar os meus particular
com ela. Então, tudo o que eu via, o que eu não via, eu conversava com ela.
Porque se falar em casa, a pessoa tá dizendo que você enlouqueceu, mesmo. Aí,
tem que internar. Então conversava com a Jô. Um certo dia a Jô fez eu andar
bonitinho. Agora, limpinho. Não tô mais fazendo xixi nas calças, não tô mais
174

barbudo, eu tô penteando o cabelo direitinho. Outra vez, ela mandou eu ir


perfumado. Eu ia cheirosinho, toda vez que ia no hospital. E ela começou a me
ensinar a pintar. Fazer quadro. Pintar. Aí, eu comecei a pintar. Cheirosinho,
bonitinho. Ninguém sabia que eu era uma paciente. Eu tavo ali bonitinho, numa
boa. Barba bonitinha, tal, tal.

Aí, pronto: começou a acontecer coisa comigo que... estranho que eu não sentia
antes. Ai um certo dia ela falou pra mim. Falou o seguinte: Adilson, eu tenho uma
coisa pra falar com você. Particular. Só eu e você. Eu disse: tá bom. Aí, ela me
chamou [no] particular e falou comigo: oh, você tem esquizofrenia... tal, tal. Você
tem que aprender a viver com isso. (Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

Adilson Tiamo é citado pelo amigo Demetrius Lucas, no início dessa seção como
exemplo de “desconstrução da loucura” justamente pela “nova roupagem” que ele
conseguiu criar pra si, desde, mesmo, a retomada do autocuidado básico, que precisou
fazer, incentivado pela terapeuta numa relação de afeto e cuidado. Por meio do “carinho
dela”, da terapeuta, Adilson Tiamo foi aprendendo “a viver com isso”, com a
esquizofrenia, que já havia sido também a do próprio pai.

Em matéria de patologia, a primeira palavra, historicamente falando, e a


última palavra, logicamente falando, cabem à clínica. Ora, a clínica não é
uma ciência e jamais o será, mesmo que utilize meios cuja eficácia seja cada
vez mais garantida cientificamente. A clínica é inseparável da terapêutica, e
a terapêutica é uma técnica de instauração ou de restauração do normal,
cujo fim escapa à jurisdição do saber objetivo, pois é a satisfação subjetiva
de saber que uma norma está instaurada. Não se ditam normas à vida,
cientificamente. Mas a vida é essa atividade polarizada de conflito com o
meio, e que se sente ou não normal, conforme se sinta ou não em posição
normativa. (CANGUILHEM, 1995, p. 185-186)

Desconstrução da loucura. Desconstruir ela, é o seguinte: quando você passa a


gostar da loucura, você passa a desconstruir ela. Você para de pegar no cocô.
Vamos ser sincero: você para de pegar/ tomar aquele mijo que tu bebia. Agora
vamos desconstruir ela. Vamos beber uma água, vamos começar a pintar as
paredes, aqui, bonitinho. Vamos limpar as paredes. Vamos varrer o chão. Você
começou construir outro tipo de vida. Desconstruiu aquela vida. [Por]que você
começou a enxergar diferente. Desconstruir. Você começou ver as coisas
diferentes. E para você começar a ver as coisas diferentes, é necessário de muitas
coisas: principalmente, uma boa terapêutica. Uma boa médica psiquiátrica para
de dar um remédio co rre ta men te! – porque ultimamente, vou te contar: só a
graça. (Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

Corretamente. Uma boa pessoa para tomar conta de você e mandar você tomar
banho na hora exata. Tomar banho na hora exata. O que que é na hora exata? Na
hora exata, não é seis horas da manhã, não. Na hora exata é quando o sol nasc/
sai. Toma banho, e assim vai. Você começa a valorizar um pouco a vida. Começa
a valorizar a vida. Aonde as pessoas não dá nada - no meu caso, que já ficou
internado. Já fui um cara que não sabia de nada. Aí, você começa a viver de
novo. Por que?
175

A construção através de uma terapêutica fez com que construísse a minha vida
outra vez. E enxergar o mundo totalmente diferente. Adilson, me dá um abraço,
aqui, Adilson! Não é assim, Adilson. É assim. Olha a diferença?! Ela não brigou
comigo. Adilson, me dá um abraço aqui, Adilson. Não é assim: é assim. Você
entendeu? Cê tá entendendo? [Fabiane: É o afeto].
É o afeto. Começa, você, trabalhar nesse assunto [...]
O que que é o afeto? É um carinho. É ou não é? Coisa boa.

[...] Eu pego as coisas ruim e transformo. Transformo no afeto. Transformar no


amor. É a ferramenta disso tudo. É através da arte que você faz tudo isso, aí.
Através da arte, da pintura. É através da música. [...]
Agora você vai dizer pra mim: esquizofrenia é ruim? Pra mim foi bom, porra. Pra
mim foi bom. [...]. E o que mais me alegra nessa brincadeira toda é que eu aprendi
uma coisa na vida: eu só aprendi viver, eu só voltei viver nessa terra. O que faz eu
viver na terra, o que trouxe eu viver na terra. Qual objetivo que eu tenho na terra
e a alegria que eu tenho na terra. Depois que eu fiquei com doença mental. Que
antes eu não vivia. Só trabalhar e ir pra casa. Trabalhar e ir pra casa. Então, o
que que o homem faz: trabalha e vai pra casa e produz filho na mulher.
Mais nada.

[...] Eu começo ver a boniteza na árvore. Hoje eu começo ver a boniteza num
desenho. Eu começo a ver a boniteza no rosto daquele sofrimento de uma
pessoa... [...] Então, você acaba descobrindo que a alegria e a felicidade não tá no
bem material. Tá no estado espiritual que a pessoa tem por dentro. Você tá
entendendo? [...]. A esquizofrenia fez com que enxergasse o mundo de outra
maneira. Pegou o mundo assim ó e transformou de outra maneira. É assim que
se vive: Adilson. E a vida ficou muito melhor. Porque eu era ruim para cantar.
Hoje eu sou cantor - o Adilson Tiamo que canta aí fora. [...] E vou te falar uma
coisa pra você: eu só passei ser feliz, só passei viver, depois que eu fiquei doente
mental. Antes disso eu não vivia. (Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

A saúde, depois da cura, não é a saúde anterior. A doença não é uma variação
da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida. [...] A doença é, ao
mesmo tempo, privação e reformulação. [...] Curar, apesar dos deficits,
sempre é acompanhado de perdas essenciais para o organismo e, ao mesmo
tempo, do reaparecimento de uma ordem. A isso corresponde uma nova norma
individual. Ser sadio significa não apenas ser normal em uma situação
determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras
situações eventuais. [...] ser capaz de instituir novas normas, mesmo
orgânicas. (CANGUILHEM, p. 149, 156 e 158, grifos meus)

Adilson Tiamo é um artista múltiplo. Cantor, idealizador e vocalista do conjunto


musical 762 (Sete Meia Dois), criado na Colônia Juliano Moreira e compositor de vários
blocos de carnaval de rua da saúde mental púbica carioca. Incluindo aí, o Tá Pirando,
Pirado, Pirou! e o Bloco Carnavalesco Império Colonial que reúne os diversos serviços
de saúde mental, arte, educação e cultura do IMASJM e a comunidade ao redor do Museu
Bispo do Rosário. É também, Conselheiro do Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea (mBrac), onde já integrou o Coletivo de artistas do atual Atelier Gaia
antes de se dedicar à música. Atualmente apresenta nas tardes de quarta-feira, o quadro
176

762 no programa da Rádio Delírio Cultural - um projeto realizado pelo Polo Experimental
de Convivência, Cultura e Educação, no qual ele apresenta suas produções artísticas e dá
o seu recado em favor da saúde mental e da cultura. “Depois do sol, quem ilumina você?
É a cultura!!!”, afirma Adilson Tiamo. Além disso, produz filmes/vídeos-curtos com o
uso de celular próprio para apresentar e divulgar nas redes sociais suas produções
autorais, artísticos e culturais, individual e coletiva: sua própria história de vida, sua
relação com a loucura, com a liberdade e com a cultura.
Interessante observar que o nome dado a esse quadro, 762, é não apenas uma
repetição do nome do conjunto 762, que à época de sua criação, Adilson Tiamo ainda não
havia escolhido com satisfação, escutar: “Adilson, Ti Amo!”, sempre que chamado pelos
seus amigos e inclusive pela sua família - que por sinal, é também, Tiamo.

Já deu um abraço no seu filho? Um abraço é importante, cara.


[Fabiane: você foi abraçado Adilson?].
Fui nada, cara. Meu pai nunca me deu um abraço. Eu nunca tive um pai pra me
dar um abraço, cara. Nunca. Minha mãe nunca me colocou no colo pra fazer eu
dormir. Vou te contar... eu nunca tive amor de pai e mãe. Nunca tive disso. Nunca
teve esse amor. Nunca tive isso, não, cara. Só: faz isso aqui! faz/ só recebia ordem.
Só fazia e recebia ordem, mais nada. Pô, dói pra caramba. Isso dói.

[Fabiane: até hoje?].


Dói até hoje. [...]. Fico triste. Eu fico triste. Isso aí vai aumentando mais... é como
se fosse dentro da sua alma. Vai criando uma ferida do tamanho de uma
pedrinha. Uma pedrinha. Uma pedrinha, assim, da praia. E aquela pedra vai
crescendo, vai crescendo... daqui a pouco você toma ódio pela sua família. Cê
pega/ toma ódio por todo mundo. Passa a não gostar de todo mundo. Daqui a
pouco cê tá revoltada com a vida. Tem pessoas que vão até pra droga - porque
começou lá em baixo. (Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

[...] Eu acho o estigma como chaga. Uma ferida. [...][Fabiane: e a loucura, é um


estig/ é uma chaga?] É uma chaga, sim, porque a dor é uma mestra que chega na
nossa vida. [...] É uma mestra. Porque quando a gente passa pela dor, a gente...
a gente reflete, a gente... a gente... repensa tudo da nossa vida. A gente repensa o
que que é vida, a gente repensa o que que é morte... A gente repensa o que que é
família, a gente repensa o que que é amigos, a gente repensa o que que é trabalho,
o que que é vida, o que é Deus, o que foi Jesus. O que... o que é o mundo, o que é
a vida.. [...] eu vejo pessoas como uma ferida... tem as pessoas que se armam
tanto - você já notou que tem pessoas que quando estão feridas, elas têm que se/
como o corpo dela tá cheio de chagas, de feridas, elas tem que aprender a criar
cascas né... né. Cascas muito grossas e feridas muito profundas né... é como se
fosse uma armadura né... [...]. Eu já... já observei que tem pessoas que querem
mostrar o tempo todo que são fortes e geralmente, essa força que elas gostam de
demonstrar, às vezes, bruta, é a própria casca dessa ferida né... E aí, que demora
muito tempo né... eu acho que através de muito reconhecimento das próprias
feridas - o que acontece: quando a pessoa se liberta disso a casca cai. E quando a
casca cai, como é que tá? [Fabiane: cicatrizada]. É. Exatamente assim. Assim é a
nossa vida. (Renata I., Teatro de DyoNises; Espaço Travessia)
177

Então, eu tenho aprendido a lidar com essas pessoas feridas. Feridas... e com
essa casca grosseira por fora. Quanto mais as feridas, mais profundas, mais a
casca é grossa. Mais a casca é. Entendeu? Isso que eu entendo. Mas quando a
gente perdoa, quando a gente tá livre diss/ quando a gente se liberta... aquela
casca caia, a ferida já... já passou. Às vezes cria aquela casca porque, talvez, se
não tivesse aquela casca, uma mosquinha podia pousar, criar um bicho né... Então,
a vida nos dá feridas... e ensina a gente a criar casca. Mas não por muito tempo
né. [Fabiane: nunca por muito tempo?] Nunca por muito tempo. [...] A não ser
que você se liberte disso. Ou alguém te faça se libertar disso.

[Fabiane: a arte ajuda nessa libertação?] Ajuda. Ajuda, sim. Ajuda a se expressar
porque quanto mais você se expressa, mais você tá se movimentando. E quanto
mais você se movimenta, mais você tá respirando. E aí, você tá se inspirando.
Aquilo tá... seu cérebro tá/ as células do seu corpo tá trabalhando, o cérebro tá...
Entendeu? É isso. Mas eu acho que falta muita vontade pra mim, de pintar. Ainda
não me chegou a hora. Mas vai me chegar a hora. Vamos ver depois dessa
quarentena seu eu consigo. (Renata I., Teatro de DyoNises; Espaço Travessia)

“Tudo é mistério
Nesse seu luar...
Ai se eu morresse assim
Tantos céus afins
Muita história
Eu tinha pra contar...”

Bem, a minha história, ela, começa quando eu nasci né.


Bem, quando eu nasci, a minha mãe verdadeira não tinha como me criar... que ela
já tinha alguns filhos, já, e era empregada doméstica e separada do meu pai. Meu
pai deixou ela doente e tudo... Aí, ela passou uma pneumonia pra mim né... e eu fui
internado né... e no hospital eles/ ela queria me dar pra alguém né, porque ela não
tinha condições de me criar. Daí, é... Enfim, fui parar numa enfermeira né... que
nunca me deu carinho, nunca me deu amor. Nunca me deu nada, a não ser
educação, né... eu estudava nos melhores colégios de Niterói... enfim, colégios de
Padre né, e... mas, amor, mesmo, de mãe e filho eu nunca tive. Sabe?
(Alexandre Bellagamba, Surfista Prateado, MONULA)

Só fui ter com meus 15 anos de idade quando eu fui morar com a minha tia Geni
né... Ocorreu inúmeras coisas nesse meio tempo... [...] A morte já teve de cara
comigo várias vezes. Mas aí ela olhou para mim e falou assim: não, esse cara
merece viver – vou levar ele agora, não. Realmente, eu já passei por coisas que eu
não sei como eu tô vivo até hoje. Acho que a [inaudível] tem dentro de mim é muito
grande, é muito forte. Entendeu? Eu sou praticamente uma fênix. Eu tenho
poemas escritos. A Fênix, inclusive. Sobre a Fênix e tal. Então, assim, eu sempre
arranjo um jeito de me levantar, de, sabe, de cabeça erguida e... sabe: vamo que
vamo. vida que segue. E é mais uma prova essa Covid né... que eu tô passando.
Mas Graças a Deus eu tive Cov/ eu tive Covid no início, na verdade, tá. Logo no
início, eu tive. Mas eu fiquei tipo assim: tossindo muito, com catarro, mas eu não
tive febre, não. Foi uma coisa muito leve. E não era virose.

Aí, no Quartel, quando eu fui servir o Quartel, foi o meu primeiro surto psicótico.
Foi em 1985. Eu me lembro bem porque foi na época do 1° Rock um Rio. Eu
queria tanto ir e não fui né. Mas peguei o show todinho pela televisão e... eu sou
muito fanzaço de Guns N’ Roses, Scorpions, Queen, sabe... eu sou fanzaço deles.
U2. U2, então, nem se fala. Meu surto do Quartel foi meio muito traumático.
178

[...] “Se você vê estrelas demais....


Lembra que o sonho não volta atrás
Chega perto e diz: Anjo...”

[Fabiane: Como você se sente em relação à palavra surto?]


Olha: quando eu tô em surto eu sei de tudo o que acontece à minha volta mas eu
não tenho controle. É como se eu estivesse incorporado. Entendeu? É como se
fosse uma incorporação, mesmo. Eu vejo muito o surto como uma incorporação.
[Fabiane: espiritual?] É.
Fabiane: você tá em 1985... que mais você quer contar?]
Esse foi o início da minha história na Saúde Mental.
Rejeição familiar. Rejeição familiar...

Essas coisas todas me levaram a eu usar drogas. Entendeu? Então, eu pegava


onda, era surfista... Então, assim, tudo foi acontecendo né... Fui internado no
HCE, cara. Eu levei paulada de porrete. Eu fui torturado dentro do Quartel. No
Hospital Geral do Quartel. Eu fui torturado lá.
(Alexandre Bellagamba, Surfista Prateado, MONULA)

“Sete Meia Dois”, foi, também, a maneira estigmatizada como certa vez
Adilson Tiamo me contou ter tido a sua existência associada ao ônibus circular 762
que passa na Colônia Juliano Moreira. Curioso, além disso, é a origem do nome Tiamo.
Surgiu, segundo ele, em decorrência de ter sido “expulso” por um período, do referido
conjunto 762, como forma de punição por ter se apresentado cantando marchinhas de
carnaval, a pedido da organização, antes da hora marcada para a apresentação do grupo
762, num dos shows que a saúde mental antimanicomial carioca costuma fazer no Dia
Nacional da Luta Antimanicomial. Uma vez temporariamente impedido de integrar o
762, buscou alternativa: deu para si um novo nome, uma nova identidade visual e
fez a vida seguir: foi normativo.

Durante o sofrimento eu tiro sempre uma coisa boa. Sofri. Estou acostumado a
sofrer, mesmo. Tô costumado a dormir no chão. É ou não é? Não tomar banho,
passar fome e sede. Então não existe... o sofrimento para mim é uma coisa
passageira. Uma hora vai passar. É ou não é? [...]. Dali vou tirar alguma coisa
que vai me lucrar depois. Não sei o que é, mas tem que ser uma coisa boa pra mim
lucrar. [...]. (Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)

Essa potência criativa e normativa, é também para Adilson Tiamo, a maneira


como ele afirma “esconder” a tristeza que sente. Revela ao mesmo tempo as tensões, os
preconceitos, conflitos e relações de poder, inerentes à condição humana, que busca
superar e conviver. Tudo o que não se pretende com este trabalho, é romantizar a
loucura. É unanime dentre os participantes, que antes de qualquer coisa, a loucura é no
mínimo relativa e ninguém está isento da possibilidade de vive-la, de sofrê-la, de amá-la.
179

Mesmo quando a doença torna-se crônica, depois de ter sido crítica, há sempre
um "passado" do qual o paciente ou aqueles que o cercam guardam certa
nostalgia. Portanto, a pessoa é doente não apenas em relação aos outros,
mas em relação a si mesma. [...] O homem normal é o homem normativo,
o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma única
de vida é sentida privativamente e não positivamente. Aquele que não pode
correr se sente lesado, isto é, converte sua lesão em frustração e, apesar
daqueles que o cercam evitarem mostrar-lhe sua incapacidade — como
quando crianças afetuosas evitam correr em companhia de um menino manco
—, o enfermo sente muito bem à custa de que repressão e de que abstenções
por parte de seus semelhantes qualquer diferença entre eles e o próprio
enfermo é, aparentemente, anulada. (CANGUILHEM, 1995, p. 108-109)

Eu fui transformando a minha arte através do tempo. Eu, por exemplo, só


desenhava cruz e mão. [Aliás] Cruz e sangue. Cruz e sangue. Pintava tudo de
vermelho. Cruz e Sangue. Depois eu comecei a desenhar mãos e olhos. Mãos e
olhos. Todos os meus desenhos... todo mundo sabia que era eu quem tinha pintado,
porque tinha mãos e tinha olhos. Agora eu pinto o quê? A maioria dos meus
desenhos, quase todos, que eu saiba, os olhos são pintados de preto, anulando a
visão. [...]. Eu fui modificando o comportamento, o meu querer, o meu bem estar,
ou, não. Através dos meus desenhos, que eu posso mostrar isso. Hoje em dia todos
os desenhos têm cores. Antes eu pintava só de marrom, preto e vermelho. Hoje em
dia eu sou colorida. Meus desenhos são bem coloridos.
(Rogéria Barbosa, Museu Bispo do Rosário)

[Fabiane: cruz e sangue, cruz e sangue... tem alguma explicação?]


Era a vida mesmo. Eu era muito... deprimida, eu era muito triste. Eu apesar de eu
não viver a tristeza, né... mas eu conseguia passar no desenho o que era a vida
pra mim. Uma vida triste, uma vida cansada. Uma vida estressada. Aí eu fazia
isso na minha arte. Isso é visível nos meus desenhos. Visível. Se você ver um
desenho meu, antes, durante e depois, você não vai/ isso aqui não é a Rogéria.

Nise da Silveira (2001, p. 131), em O Mundo das Imagens, no capítulo A cruz e


seu simbolismo, cita Jung: “A arvore obviamente significa o filho que a mãe traz outra
vez para o seu seio, isto é, para a caverna onde habita. [...] Dentre os múltiplos símbolos
da cruz, sua principal significação é o de árvore da vida e de mãe”.

[Fabiane: depois você falou que começou a desenhar mãos e olhos... e esses tem
um porquê, também?]
As mãos eu acho, eu acho, eu acho, eu... eu... quase que você falou né.... é uma
pergunta que você fez para mim que eu vou ter que refletir até terapeuticamente
nas minha terapia: por causa de que que eu modifiquei esses desenhos? Hoje em
dia não pinto mais as mãos nem olhos... e por que isso? Por que eu comecei a
pintar dessa forma e por que que agora eu não pinto mais? Eu acho que é uma
pergunta que... é... é que, somente mesmo na terapia que eu vou conseguir
descobrir, isso.

[Fabiane: hoje em dia você falou que desenha olhos pretos... eu não me lembro a
palavra que você usou].
Eu pinto... eu vedo os olhos. São todos eles vedados.
[Fabiane: e porque você veda?]
Eu não sei, não. Eu acho que eu pintava... eu achava que eu pintava os olhos/
escuro porque eu não sabia desenhar olhos. Eu sei desenhar olhos e eu descobri
180

que não é essa a caus/ a razão. Eu sei desenhar olhos, então por que que os olhos
têm que tá vedados. Isso aí é uma incógnita. Eu não sei porque que eu vedo os
olhos. Outra pergunta pra terapia. Obrigada.[risos].

[Fabiane: será que você não quer que a sua obra enxergue o mundo igual você
enxerga?]
Eu acho que chama a atenção. Eu não tinha reparado isso. Mas chama a atenção
das pessoas, a venda nos olhos das figuras né... dos desenhos. Então, isso chama
bastante atenção das pessoas né... as pessoas ficam perguntando por que os olhos
são vedados: o que eu não quero enxergar ou o que eu quero enxergar através
dos olhos escondidos. Eu não ser descoberta, mesmo. Entendeu? Porque antes
todo mundo fala ahh... através dos olh/ porque meu olhar indica muita coisa. Se
você quer saber se eu tô bem ou se eu tô mal, você vai descobrir isso nos meus
olhos. Porque eu demonstro isso, no olhar. No olhar eu demonstro se eu tô bem
ou se eu tô mal
.
[Fabiane: será que você veda os olhos das suas pinturas para que quem olhar pra
tua obra não saber o estado emocional daquela obra, daquele personagem
desenhando porque o olho está vedado e ninguém pode ver nos olhos do desenho
aquilo que as pessoas podem olhas nos seus olhos?].
Eu é... eu vou fazer uma exposição, eu preciso fazer uma exp/ eu não sei se eu quero
[inaudível] agora, em si... mas no lançamento do meu livro né... então, é um
assunto né... que você abordou agora que eu não tinha visto ainda em terapia e
nem eu mesma pensando nisso, a respeito: o que é esse significado dos olhos
vedados. Entendeu? pra mim era só meu método de... de eu não querer ser vista,
de não ser reconhecida através dos olhos.

Eu me lembro quando eu fiquei cat/ quando eu fiquei catatônica pela primeira vez,
a médica fal/ a médica... um dia antes de eu ficar catatônica, três pessoas falaram
comigo: nossa, cê ta com um olhar diferente, tá com o olhar diferente e eu fiquei
catatônica no dia seguinte. A minha mãe me observa se eu tô bem ou se eu tô mal,
através dos olhos, também, entendeu? Vai ver esse olho branco... vai ver esse olho
não sei/caído... vai ver se esse olho tá arriado... A minha mãe consegue ver isso.

Cê acha que eu não vedo esses olhos pra minha mãe não me ver?!
Porque não importa o que os outros pensam de mim. Entendeu? Não importa.

Importa pra mim é minha mãe.


Eu tenho a minha mãe como a minha... a minha cesta básica.

[Fabiane: será que inconscientemente você teve a ideia de desenhar os olhos


fechados, vedados] Inconscientemente. Inconscientemente.
(Rogéria Barbosa, Museu Bispo do Rosário)

Peço licença e abro outro parêntese aqui: logo que eu recebi da Rogéria Barbosa,
pelo WhatsApp, em novembro de 2021, o poema que segue, muito depois de tê-la
entrevistada, eu, ainda que o tivesse lido com pressa, sabia que voltaria a ele. Relendo as
falas dessa seção, me detive em “Eu tenho a minha mãe como a minha... a minha cesta
básica” e imediatamente retornei ao poema. Autorizada por ela, deixo-o aqui:
181

Quem sou?
Quem você será diante da loucura que te espelha?
Diz pra mim que feri apenas por medo ou solidão?
És uma pessoa que implora por meu amor, pelo desejo que já não tenho,
que nunca possuiu ou carregou no ventre...
Quando era menina teus olhos só exalava ternura...
com um véu sobre a cabeça de chifre sofreu como um ateu.

Mulher porque sangra?


Porque em tuas mistas saias gira a pomba do céu? Do teu céu.
As formigas passeiam no teu leito e finge ainda viver na doçura a tua
amarga loucura...

Ah!!! Senhor tenho frio. Tenho dor peço perdão...


Minha mãe fiz chorar. E no meu útero sangrar.

Minhas vestes vestem o homem nu. Veste aquele que morreu por mim.
Cheguei hoje na janela e só avistei um olhar de piedade o qual não foi o
suficiente pra não me lançar nos teus braços....
Triste partida era apenas uma delicada mulher...
Não sinto no teu túmulo as lágrimas tão presentes enquanto amamentava
aquele pequeno ser.
Que hoje vi no azul teu olhar a me dizer: Vai deixar saudades.
Mas vai passar, como sempre achava.
Pois a dor não é eterna.

Minha amada que hoje fica a triste frase tão conhecida:


A QUI JAZ UMA GRANDE SONHADORA.
ELA ACREDITOU... SONHOU... AMAMENTOU...
E NESSE GRANDE MOMENTO DE SOLIDÃO...
PARIU O DESCONHECIDO QUE TE LEVOU A RAZÃO...

HOJE ESSA MULHER PEDE PERDÃO. PEDE A CURA PRA


SOLIDÃO.
Rogéria Barbosa, 16 nov. 21

[Fabiane: justamente pra ninguém ficar sabendo... olhos, esses, que nos desenhos
você não se obriga a mostrar pros outros, coisa que nos seus, não tem como?].
Nossa, você parece até a entrevistada... responde tudo. [risos]

[Fabiane: Eu não. [risos...] Eu tô pensando junto com você].


Então, eu tô achando isso legal. Tô refletindo também. Tá me perguntando, tô
refletindo. Tá falando aí, eu tô... tá dentro de mim. [Fabiane: normalmente eu não
fico falando assim não... é que dessa vez me chamou muito a atenção...].
(Rogéria Barbosa, Museu Bispo do Rosário)

[...] tenho vontade de voltar àquela Renata. Tenho vontade que volte. Pra pintar
bonito, pra quem sabe, uma artista, aí, plástica né... Não sei quando a Renata vai
voltar a pintar com toda perfeição. Com tanto prazer, com tanto sonho, com tanto
gosto... uma tela. [Fabiane: Já existiu essa fase da Renata pintando com tanto
gosto, com tanto prazer?] Existiu já. Já existiu. [Fabiane: Adulta?] Já.
182

[Fabiane: e você sabe o que que diminuiu isso tudo?]


Olha: as vezes eu vivo na vida que eu não sei em que mês estamos, em que dia
estamos, em que ano estamos. Eu/ parece que eu tô vivendo o tempo de Deus.
Assim, uma amiga minha falou assim: Renata, você ta morta?

Falei: não, tô viva. Tô vivendo o tempo de Deus, tá! [risos].


Mas isso não é viver.
Aí eu falei: poxa... mas é isso.
Mas eu quero me situar.

[...] Fora do tempo, nem fora do espaço, eu não tô, não. Tô/ Eu tô dentro. Eu me
perco nas datas, mês... mas eu sei quando é segunda, terça, quarta, quinta e sexta.
Sábado e domingo. [...] parece que é uma vida sem significância né.

Eu acho que eu fico triste porque todo mundo diz/ porque... eu sou tão feliz com
as coisas que eu tenho – as pessoas acham que... eu nunca/ eu sou infeliz porque
eu não tenho saúde, porque eu não tenho um marido, porque eu não tenho um
sapato de marca, porque eu não tenho uma roupa de marca, porque eu não tenho
uma casa montada.... E, às vezes, eu sentia que isso me incomoda. Tipo assim:

Gente, será que eu tenho que ser obrigada... na frente dos outros a ser infeliz
porque eu não tenho o que todo mundo tem? Que eles têm? Gente, por favor...
(Renata I. Espaço Travessia; Teatro de DyoNises)

Uma norma, uma regra, é aquilo que serve para retificar, pôr de pé,
endireitar. ‘Normar’, normalizar, é impor uma exigência a uma existência, a
um dado, cuja variedade e disparidade se apresentam, em relação à exigência,
como um indeterminado hostil, mais ainda do que estranho. [...]. Uma norma
só é a possibilidade de uma referência quando foi instituída ou escolhida
como expressão de uma referência e como instrumento de uma vontade
de substituir um estado de coisas insatisfatório por um estado de coisas
satisfatório. [...] O oposto de preferível, em determinado campo de avaliação,
não é o indiferente e sim aquilo que é repelente ou, mais exatamente, repelido,
detestável. [...]. Em resumo: sob qualquer forma implícita ou explicita que
seja, as normas comparam o real a valores, exprimem discriminações de
qualidades de acordo com a oposição polar de um positivo e de um negativo.
[...] O normal é o efeito obtido pela execução do projeto normativo, é a norma
manifestada no fato. (CANGUILHEM, 1995, p. 211-213)
183

Fotografia: Fabiane Valmore, CCBB-RJ, 2021

Renata é a única artista contemporânea do Museu de Imagens do Inconsciente que


integra a exposição “Nise - A revolução pelo afeto”, atualmente em cartaz no Centro
Cultural do Banco do Brasil100 (CCBB-RJ). Reproduzo aqui as palavras escolhidas por
ela, para acompanhar essa pintura feita em 2016. Consta logo acima desse quadro numa
das paredes do CCBB-RJ:
“O sangue que pulsa da Terra
é o centro da força que emerge para
fora causando as consequências.
Fogo, água e terra no mesmo elemento.”

Então, isso me incomodava muito. Agora, eu não tô ouvindo mais isso. Eu tô


vivendo meu tempo. A minha vontade. A minha felicidade. Tá entendendo?
Porque... sei lá... as pessoas acham: Ah num... num é filho de Deus porque olha
a vida dela. Toda errada.... tem nada.... tem nada... Aí as pessoas botam no
YouTube... é... por que a sua vida tá dando cer/ tá dando errado? Como se fossem,
as pessoas, um modelo. Um... um... uma pessoa muito certa pra dizer o que eu
devo fazer. (Renata I. Espaço Travessia; Teatro DyoNises)

100
Tours virtuais à mostra Nise: A Revolução pelo Afeto estão disponíveis em: <https://ccbb.com.br/rio-
de-janeiro/programacao/nise-da-silveira-a-revolucao-pelo-afeto/#> Acesso em 14/09/2021. Já o catálogo
online dessa exposição, está disponível em:
<https://api1.linkr.bio/callbacks/go?url=https%3A%2F%2Fwww.mbaraka.com.br%2Fnise&hash=YRq6
B2OX&type=1&id=lRJW2wpX>. Acesso em 12/01/2021.
184

Eu só vou fazer aquilo que eu tenho vontade. Porque entre eu ficar desagradada e
agradar os outros. Eu prefiro me agradar. Não que eu seja egoísta. Mas que eu
seja/que eu tenha a minha personalidade de.../quero que me respeitem por aquilo
que eu sou e que eu escolhi ser... entendeu? Opção minha.... cada um tem uma
opção. Então, cada um cuide da sua vida e viva feliz da maneira, com as
condições que tem, entendeu? Porque tem muita gente que quer viver fora da
realidade. Eu vi uma frase que humildade... vem da palavra húmus, do grego... e
significa terra. Chão. Entendeu? E tem pessoas que não tem essa humidade. Não
tem esse chão. Não tem esse humu... que é duas palavras humil-dade. E tem pessoas
que são totalmente fora disso. De humildade. Não tô dizendo que eu sou humilde,
não. Mas as pessoas têm um tipo de comportamento, assim, sabe...
Por que que eu tenho que ter o que todo mundo tem? [...]

[Fabiane: [...] as pessoas acham que você não tem saúde devido à que?]
À minha loucura mesmo.
(Renata I. Espaço Travessia; Teatro DyoNises)

A saúde perfeita não passa de um conceito normativo, de um tipo ideal.


Raciocinando com todo o rigor, uma norma não existe [ela não tem realidade
empírica], apenas desempenha seu papel que é o do desvalorizar a
existência para permitir a correção dessa mesma existência. Dizer que a
saúde perfeita não existe é apenas dizer que o conceito de saúde não é o de
uma existência, mas sim o de uma norma, cuja função e cujo valor é relacionar
essa norma com a existência, a fim de provocar a modificação desta. Isso não
significa que saúde seja um conceito vazio (CANGUILHEM, 1995, p. 54)

[...] Olha só, eu tenho uma coisa a dizer. Um rapaz chegou uma vez... eu tava no
hortifrúti. Um senhor... aí, ele perguntou assim: menina, tudo bem com você?
Você prefere ter saúde ou paz? Pensa aí. Aí eu pensei né... pensei e falei: olha só
meu senhor... eu escolho ter paz, porque quem não tem paz, não tem saúde não,
tá. Foi isso que eu respondi para ele [risos]. [Fabiane: e ele?]
Ele ficou perplexo! olhando para minha cara [risos].
(Renata I. Espaço Travessia;Teatro DyoNises)

[Fabiane: a falta de paz adoece, então?]


Claro que sim, cara. Olha só: eu acabei de crer... que... olha só: se você compra
uma roupa e você compra uma roupa para você... porque você quer se sentir feliz
com essa roupa... e dentro dessa roupa. Compre. Se você quer ir no salão para
fazer a unha para você. Vá no salão e faça a unha. Pinta de vermelho... pinta de
azul... pinta de dourado... de tudo que quiser. Se você for numa sapataria e você
quiser comprar um sapato... compra para você e não para os outros. Porque a pior
coisa do mundo é você fazer as coisas pros outros e não para você. Entendeu?
Essa é a pior vaidade que uma pessoa pode ter. Entendeu? A gente tem que fazer
pra gente. Se não, fica uma coisa/você fica infeliz... isso são pessoas assim: que
gostam de aparecer, que gostam de ser invejadas... ou então, você/se você quiser
comprar um carro... é tipo assim: você não quer comprar um carro porque você
quer dirigir, você quer se locomover... Não. Você quer ser vista ali dirigindo o
carro. Os outros te olhando... Olha eu aqui dentro do carro ó...
Tô falando mentira?!

Olha eu aqui ó... tá vendo esse carro é meu. Esse carro foi caro para cacete. Esse
carro é meu. [...] Isso aí é infelicidade. Isso é... ter uma liberdade... assim, que
não é nada saudável. [...] Eu acho assim: que a sociedade tem sido um espelhinho
de modinha. Entendeu: Um espelhinho de modinha. De tudo assim/querem ser
185

pessoas espelho. Mas tipo assim: querem ser vistos. Nossa: eu tô aqui nesse
emprego!, eu tô aqui nesse carro.. tô assim... tipo assim: não é pra eles. É querer
ter coisas que... entendeu? ah... eu posso ter.. [...] Elas são escravas. São escravas
da própria vaidade delas. Eu não quero ser escrava de vaidade, orgulho nenhum.
Entendeu: Porque isso não é ser livre, não. Eu acho que isso nem é viver. A
verdade é essa. A pior coisa do ser humano é a comparação. É isso que estraga
as pessoas. Hoje estamos numa sociedade de comparações. Você é comparado o
tempo todo. O que você tem. O que você é. O que você parece. E as pessoas não
são o tempo todo o que as pessoas pensam o que elas são. Entendeu?

E eu detesto comparações. Eu gosto de botar roupa não combinando. Por que não?
Eu gosto/ me sinto livre de sair com uma roupa que eu quero. Se estão me
olhando... ah tá na moda, não tá... Essa é minha liberdade. Eu acho que toda a
liberdade deve ser dosada com muito respeito. Entendeu? Muita... muito... como
é que eu vou dizer... porque respeito é o que sai de você pra dar pros outros. Isso
que sai de você é o respeito que você tem a você. E que você vai ter com o outro.
Entendeu? É isso. (Renata I. Espaço Travessia; Teatro DyoNises)

Que que é o gosto? O gosto é ideológico? O gosto é econômico?


[...] O que a gente chama de beleza, de belo, tem a ver [...] com os valores de
seleção natural? Seleção dos mais aptos? De inferiorização dos diferentes? De
discriminação... De projeção da sombra sobre os grupos diferentes?
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)

Desconstruir a loucura... é muito vago né... por causa que depende qual o tipo de
loucura que a pessoa... tá fazendo ou... porque a loucura não é só transtorno
mental né. A loucura é... loucura é... é ver uma televisão de mais... loucura é...
gostar de mais de uma pessoa. Loucura é você comer muito chocolate. Tudo o que
é a mais é loucura. Entendeu? Então, o paciente psiquiátrico, ele, é um pouco a
mais em tudo. Na intensidade do amor, do ódio... da ansiedade, da angustia, da
depressão... É mais ou menos isso. (Rogéria Barbosa, Museu Bispo do Rosário)

[...] às vezes, o artista é o louco né. Raul Seixas: totalmente louco [...]. Eu acho
que quando o cara assume a loucura como um dom e tá um pouco ainda racional
pra não fazer merda, é o artista. Entendeu? Quando ele ainda tem um pedaço da
consciência né... de não fazer mal a ninguém, de não se prejudicar né... Como eu.
[...]. Porque a arte é a loucura. [...]. É só ter uma ponte de consciência pra não
prejudicar ninguém e não me prejudicar [...] [é só ter] o contato da realidade. [...]
na crise... você perde o contato e fica inconsciente totalmente. [...]. Se
desconstruir a loucura, não é mais artista do meu ponto de vista. Como que ele
vai compor? Falando que gosta de dinheiro? De banco? De mulher gostosa? De...
Aí vem [...] a futilidade que tá ai. O louco não. [A obra do louco não é fútil]. Eu
acho - uma [su]posição. As composições são verdades intimas. Verdades
intrínsecas. Fortes. Entendeu? (Enéas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

É sempre um quase que transforma um desarrazoado (aquele que tem relação


com o Fora) em insano (aquele que está dentro do Fora), um artista num
delirante ou um delirante num pensador do Fora. É da passagem de um para
outro que devemos tratar, discriminando os, se quisermos responder à pergunta
[...]: como é possível a relação com o Fora sem que dela advenha a loucura? E
a outra, correlata ou anterior a esta, tal como Michel Foucault a formulou: o
que condenaria à loucura aqueles que uma vez tentaram a experiência da
desrazão? (PÁL PELBART, 1989, p. 172, grifo do autor)
186

[...] antes do bloco eu tinha uma personalidade muito melancólica. Introvertida.


[...] no bloco eu fui aprender o social: compartilhar, estar junto com o outro,
perceber o outro, perceber a relação - onde eu virei poeta, diretor de música... Em
2017, eu fiz cinco sambas, que foi sobre o Teatro do Oprimido, do Augusto Boal.
Me encantei com a história dele. [...] Fiquei em 1º e 3º lugar [no concurso do Tá
Pirando]. [...] Aí, eu tô lá na Avenida Pasteur, no carnaval. [...] umas 6 a 7 mil
pessoas cantando meu samba... não surtei lá em cima do caminhão porque não
aguentei a emoção? [risos]. Meu Deus... comecei a ficar nervoso... Não foi um
surto psicótico, mas de ansiedade. Não teria como explicar. Eu sei que eu fiquei
diferente pela emoção conduzida a mim. [...] Fiquei emoç/ só sei que eu sai de
lá... minha irmã foi. Aí, depois que eu consegui viver, tocar a vida... minha família
voltou. [...] Eles viram que eu consegui superar o problema.
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Bem, para fabricar o artista você tem que desconstruir a sua loucura, sim,
entendeu? A pessoa que... você vê que tem músicas que a gente ouve ou, então,
quadros que a gente vê... ou, até grafite, que a gente vê na rua né... que são, assim,
ousados e que mostra de certa forma, assim, dentro de um quadro, assim, de visão,
assim, temporal é... a médio prazo... de curto à médio-longo prazo, uma evolução,
de acordo com o impacto da obra que o cara cria e tal... de um quadro psicótico,
de distanciamento do mundo, de nós, para nós, o mundo... até neuras, neurose e
tal... psicose e tal. [...][Fabiane: e construir a loucura... ela é construída?]
Ela é inculcada. É trauma.
[...] É o preconceito, a discriminação, o bullyng, a violência.

[Fabiane: e sair... [...] desenlouquecer?]


Pela cultura, pela arte.
[...] Ressignificando [...]. Isso não é logo, não. É com muito tempo. Muito tempo.
Tencionando o mundo, tencionando a si mesmo.
(Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Defendo que essa seção II, Desconstrução da loucura como “normatividade


vital”, oferece exemplos daquilo que para Canguilhem é curar-se. Segundo ele: “Curar é
criar para si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas” (1995, p. 188).
“Hoje em dia eu sou colorida”, afirma Rogéria Barbosa, artista integrante do
Atelier Gaia do Museu Bispo do Rosário. Hoje em dia ela não desenha apenas cruz e
sangue. “... Não foi um surto psicótico, mas de ansiedade. Não teria como explicar. Eu
sei que eu fiquei diferente pela emoção conduzida a mim” – afirma Eneas Elpidio, poeta,
compositor e músico, integrante do Tá Pirando. Ele só sabe que ficou diferente diante da
emoção sentida. Ele sentiu que conseguiu “superar o problema”. “Durante o sofrimento
eu tiro sempre uma coisa boa”. Essa “coisa boa”, que o Adilson consegue extrair a
gente pode admirar e se alegrar por meio da arte que ele produz - por meio das “novas
normas de vida” que ele cria para si? Ele e muitos dos demais participantes dessa
pesquisa – ainda que diante da seguinte realidade que não muda, que ainda não mudou,
187

que talvez, nunca mudará, conforme afirma Hamilton de Jesus. Conforme critica Eneas
Elpidio. Ambos integrantes do Tá Pirando.

[...] quando vai no fundamento, assim, de uma realidade, de uma profundidade...


a gente vive nas brincadeiras, aqui [...]. A gente [...] continua vivendo num
mundo capitalista. [...]. Não muda. [...]. Não muda nada. (Hamilton de Jesus)

[...] é muito bom a gente chegar num CAPS, se tratar e ir pra casa. Tô livre. [...].
É muito legal. Agora, a minha crítica: fala de inclusão social, mas não tem um
projeto econômico... (Eneas Elpidio)

***

4.3 FABRICAÇÃO DO ARTISTA COMO FORMA DE RECONHECIMENTO

[A] Reputação social dos sujeitos se mede pelas realizações individuais que eles
apresentam socialmente no quadro de suas formas particulares de auto-realização.
Axel Honneth, 2003, p. 208

Eu fui me tornando [artista] pela vontade de não ser inútil.


Ter problema, mas não ser inútil.
E dentro desse não ser inútil, levar o meu caráter e levar a minha dignidade.
Hamilton de Jesus Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!

[...] você era uma prisioneira e de repente: Ahh, eu posso ir? Pode! [...] a gente
foi pro Largo do Machado fazer arte e aí as meninas que trabalhavam comigo,
chegou e falou assim: Ah, eu te vi! Você é atriz? Eu falei assim: sou! Então, quer
dizer: elas viram e vieram comentar né... perguntar... Aí, você tá ocupando o
espaço e colocando mais alguma coisa que você não sabia que você podia fazer
né. (Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

E a arte? A arte é coisa de louco, mesmo! Por que? Porque hoje eu faço isso.
Mas eu não fazia. Quem sabe aquilo tava preso dentro de mim e, aí, a loucura
despertou né. E não só de mim. Diante de outros que faz tantas coisas
maravilhosas que eu também fico encantada. E a coisa linda é que até nos meus
ensaios... quando é uma cena triste... a gente vê aquele ar que você tá
transmitindo pro outro. A verdade de dentro de ti, né... porque a pessoa pensa
que a gente é mentirosa. A gente é julgado na sociedade... e depois que você fica
maluco, você carrega um estigma, né. (Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

A arte pra mim... é o meu braço direito. Só tem me ajudado. É coisas que eu não
pensava mais ter retorno da sociedade. Me julgava já alijado da sociedade. Hoje
em dia eu tô... assim,.. Graças a Deus, bem. Fazendo rir... sabendo sorrir na hora
exata... Aqui é muito bom. Isso é... só emoções. [E cantou:]

“Quando eu estou aqui


eu vivo esse momento lindo...
Olhando pra você
E as mesmas emoções, sentindo....[...]
188

Se chorei ou se sorri
O importante é que emoções eu vivi.”
(João Batista, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Eu pintei o dia a dia do manicômio na primeira exposição. Aí, fiz a hora da


Consulta, a hora da Visita, a hora do Banho. Aí criei esse trabalho. O banho
também é importante. A higiene... a higiene dos pacientes. Aí, eu criei o meu... o meu
“Banho”, porque tem vários artistas que fazem após o banho. Eu fiz durante o
banho. Aí, eu fiz os pacientes. Minha primeira exposição. [...] É um nu artístico. É
um nu frontal. E foi censurado na Casa França-Brasil. Mas no Museu Nacional
de Belas Artes, eu expus ele. Ele tá aqui dentro [do Museu Bispo do Rosário].
(Leonardo Lobão, Museu Bispo do Rosário)

“O Banho”, Leonardo Lobão.


Exposição Arte Ponto Vital, Museu Bispo do Rosário
Fotografia: Fabiane Valmore, fev. 2021

[Fabiane: aqui são 2? Ou ele tá no espelho?]


São dois.
Eles estão na mes/ a loucura de um espelha no outro porque todos os 2 são loucos.
Então, eles têm a mesma/ a impressão que dá é que eles estão de frente pro espelho.
Mas não tão.
[Fabiane: no caso, quando o sr. fala: a loucura de um espelha no outro/] Porque a
loucura de um é a loucura do outro. Então, é como se fosse: olhando pra um, é o
espelho do outro. [Fabiane: o encontro com o outro fora do manicômio também
serve de espelho?] Olha... pode acontecer porque... tem aquele velho ditado: de
artista, poeta e louco todo nós temos um pouco. E em escala, todos são louco né.
Então, isso pode acontecer também. [Fabiane: [...] o que é ser chamado de louco?]
Isso aí me deixa um pouco triste né... de saber que tem tantas pessoas mal-educada
que não sabem lidar com.... com o paciente. Então, chamam de maluco... gira... Isso
ofende porque a gente tem esse tratamento pra fazer e a gente sente constrangido
com isso.
189

[...] QUANDO ME CHAMAM DE LOUCO EU PENSO NA MINHA ARTE


COMO RESPOSTA.

[...] [Fabiane: como que o sr. se sente sendo convidado pra participar de uma
pesquisa sobre a loucura? O sr. se sente constrangido?]
Não. Não me sinto constrangido porque eu já superei isso. Entendeu. Eu já superei.
Eu já... eu levo uma vida normal. Eu pago as minhas contas, eu tenho
responsabilidade com os meus projetos... Então, isso... exposições... essa coisas...
já preparo material pras exposições... eu vej/ eu me vejo mais como artista do que
como louco. [...]. Esse é o meu talento. [e aponta para os quadros na parede do
Museu]

[Fabiane: [...] o sr gostaria de contar um [...] pouquinho dessa CAMINHADA?]


Essa caminhada foi suando muito a camisa... foi muito suor... e o meu médico, o
médico que eu tinha.... que eu não vou mencionar o nome... ele viu que eu tinha
talento pra art/ pintura e escultura. E modelagem. Aí, me chamou pra fazer terapia.
Foi aí que eu comecei preparar uns trabalhos em tela menores pra poder fazer/
pra vender na Praia Vermelha. Aí caiu no gosto do público. Aí o pessoal começou
a comprar... eu vendia bem os meus trabalhos.... Aí eu comecei a me reconhecer
como artista devido ao público né... Mas foi muita luta. Muita constr/ muita suor
pra mim poder fazer as exposições...

Por exemplo, a exposição do Museu Nacional de Belas Artes... tinha uns 5 meses/
3meses para mim fazer 21 telas para a exposição. E eu fiz em tempo record. Por
isso que elas são dinâmicas. Não tem muito acabamento, também. [...] E eu tive
que comprar meu material. Essas telas [...] esse trabalho são material caro [...].
Eu comprei o material com venda... Fazia venda dos meus trabalhos... foi aí que
eu comecei a me reconhecer como artista e construir a minha vida como artista.

Releitura do Dia a dia do Manicômio, Leonardo Lobão, 2021


Mural pintado numa das paredes do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
Fotografia Panorâmica, Fabiane Valmore, 2021
190

Esses são meus trabalhos que eu expus no Museu Nacional de Belas Artes. Uns
trabalhos relacionados ao dia a dia do manicômio. Na Galeria Mário Pedrosa. E
agora eu fiz uma releitura dos meu trabalho. Que é a hora do alm/ do café, a hora
da terapia de pintura, a consulta, terapia agrícola, os arcos da Colônia, a insônia,
o chafariz, o almoço. É o dia a dia do manicômio que eu fiz, entendeu? E esse
trabalho, na primeira vez que eu fiz no Museu Nacional de Belas Artes foi muit/a
crítica foi favorável. E agora eu repeti ele, fiz uma releitura em outra versão. Eu
vivi isso, eu fui interno. Eu vivi isso. Ainda faço tratamento, até hoje. Mas são os
trabalhos relacionados à Colônia. Foi a minha primeira exposição. [...] eu fui
interno várias vezes e esse trabalho aqui, ele é patrimônio do Museu. Agora ele
não vai sair mais.
Ele é patrimôn/ fui convidado pra fazer um patrimônio do Museu.

[...] Eu, quando fui interno, eu sofri muito, eu tomei AZT. E hoje em dia eu vivo
da arte. Eu fiquei muito feliz de ser convidado para fazer o Painel da Colônia. Já
fiz várias exposições: Barbacena, Museu Nacional de Belas Artes, Teatro Carlos
Gomes, Ribeirão Preto, Juiz de Fora, Joinville, Santa Catarina e hoje eu vivo da
arte. Ganhei uma bolsa daqui, para dar aula para outros usuários de pintura e
desenho. E hoje eu me mantenho né? Bom, não muito bem. Mas ajuda bastante, a
bolsa e as vendas dos meus trabalhos. Ok? [...] Eu fiz meu primeiro trabalho de
arte quando tinha uns 11 a 12 anos, no primário, ainda. 10 anos ou 11 anos, fiz
no primário. Era a história do Brasil. Dom Pedro, Tiradentes, aquelas coisas
todas. Desenhava os índios, as caravelas e a professora escrevia e nós
ilustrávamos com desenho e pintura. E foi meu primeiro trabalho de arte. Mais
tarde... eu só exercitava, fazia desenhos de guache, lápis cera, pastel. Aí mais tar/
eu fiz um trabalho aos 17 anos na primeira tela que eu fiz foi com 17/18 anos.
Voluntariamente. Eu vi um rapaz com a tela na mão, achei interessante e fiz a
minha.

Foi o meu primeiro/ primeira tela que eu construí e tive o meu primeiro surto
com 28 anos, 29 anos. Eu fiz segundo grau antes disso. Fiz segundo grau,
desenho mecânico. Falta cumprir carga horária em desenho mecânico, mas já
prestei exame vestibular. Passei no teste de habilidade específica para
Arquitetura, que eu tirei nota máxima no teste de habilidade, mas não consegui
passar no vestibular. Porque um teste de habilidade específica é uma prova se faz
antes, para quem vai fazer Arquitetura, faz essa prova antes, aí eu fiz esse trabalho.
E eu já me sobressaltava em desenho e pintura. Aí, eu hoje me reconheço como
artista. A arte bruta já tomou espaço no mercado e eu já me sinto realizado com
meus trabalhos. (Leonardo Lobão, Museu Bispo do Rosário)

O conceito de arte bruta foi criado pelo artista francês Jean Dubuffet na década de
1940. Reproduzo aqui duas citações disponíveis na Tese de Doutorado de Eurípedes
Junior, intitulada “Do Asilo Ao Museu: Ciência E Arte Nas Coleções Da Loucura”.
Ambas localizadas na página 115:

Entendemos [como Arte Bruta] os trabalhos executados por pessoas imunes à


cultura artística, [...] seus autores fazem tudo (assunto, escolha de materiais de
trabalho, meios de transposição, modos de escrita) por seus próprios meios e
não segundo os clichês da arte clássica ou da arte da moda. Assistimos aqui à
operação artística completamente pura, bruta, reinventada por inteiro em todas
as suas fases por seu autor, partindo apenas de seus próprios impulsos. Uma
191

arte onde se manifesta apenas a função da invenção, e não aquelas, como na


arte cultural, do camaleão e do macaco (DUBUFFET, 1949/2001a, p. 202).

Nós não vemos nenhuma razão de fazer, como alguns o fizeram, um


departamento especial. [...] Estamos convencidos que os mecanismos da
criação artística entre eles são exatamente os mesmos das pessoas reputadas
normais. E, além disso, esse conceito de normalidade é altamente questionável.
Quem é normal? [...] O ato da arte, com a extrema tensão que lhe é implícito,
o fervor que o acompanha, poderá algum dia ser normal? Enfim, as “doenças”
mentais são extremamente diversas – existem quase tantas doenças quanto
doentes, parece bem arbitrário colocá-las todas dentro dessa vitrine especial da
Doença. Nosso ponto de vista sobre a questão é que a função da arte é a mesma
em todos os casos, e não existe arte de loucos como não existe arte dos
dispépticos ou dos doentes do joelho (DUBUFFET, 1949/2001a, p. 202, aspas
do autor).

[...] Pintar eu já pintava. Pintar eu já pintava. Mas, aí, eu fui me reconhecer como
artista, porque a minha primeira exposição foi aqui no Museu Bispo do Rosário.
Minha primeira exposição. Eu comecei fazer as primeiras vendas... aí eu comecei
a me reconhecer como artista, aqui na Colônia. Mas eu já fazia arte. Já fazia
painéis para aniversariantes, debutantes... aí eu fazia painéis... Cebolinha,
Pateta... Cinderela. Aí eu comecei a fazer os meus primeiros painéis na
adolescente. Para aniversário. Agora como artista, só aqui na Colônia [Juliano
Moreira] mesmo. (Leonardo Lobão, Museu Bispo do Rosário)

[...] O que me fez me ver artista foi o gosto das pessoas pelo meu trabalho. A
realização dos meus trabalhos melhoraram na Colônia. Com exercício, com muito
exercício. Pintando várias telas. A primeira exposição que eu fiz eu pintei 21 telas
por 17 Museu Nacional de Belas Artes. [Fabiane: 21 telas?] 21 telas e 17 expus.
Retratei Arthur Bispo do Rosário que era um paciente conhecido. E hoje... e...
agora eu me reconheci como artista porque caiu no gosto do público, entendeu?
O pessoal começou a gostar, se interessar, me chamar para exposição. Aí eu já
me senti artista. Foi aí que eu vi que eu tenho um potencial de arte. Foi isso.
[...] na verdade eu já me/ eu... sabia que tinha potencial, mas não sabia que o
pessoal gostava. Eu só me senti realizado quando o povo me alertou sobre isso.
O espectador me alertou. O meu potencial, eu já sabia que tinha. Mas o... o artista
não basta ter um dom, ele tem que ter afinidade pelo trabalho, tem que gostar
daquilo. E eu já gostava. Mas o público começou a se interessar também e foi aí
que eu me sent/ eu me realizei e descobri que eu sou artista.

[Fabiane: A sua descoberta então tem a ver com reconhecimento?]


Com reconhecimento. A minha descoberta/ Ainda eu não sou reconhecido
totalmente. Mas a minha descoberta foi com o reconhecimento do público.
O que que adianta eu pintar e não agradar... a ninguém?

[Fabiane: Dessas telas que o Sr. foi mencionando, desde a primeira ali... o café da
manhã, né?]
Café da manhã, a oficina de pintura, o ateliê de pintura, a consulta, terapia
agrícola, os arcos da Colônia, a insônia, o almoço, o chafariz. É o dia a dia do
manicômio. [...] O café da manhã é que mais me traz lembrança. [...] A consulta
era de mês em mês. [...] então, o dia que eu ia para consulta, eu não ia para o
ateliê. [...] isso não interferia no meu trabalho. Eu trabalhava livre. [...] eu fazia
Terapia Ocupacional na internação. Eu criava meus trabalhos e o pessoal
adorava minhas esculturas... modelagem. Fazia modelagem. O pessoal adorava.
O pessoal adorava. (Leonardo Lobão, Museu Bispo do Rosário)
192

Basicamente, o que me deu, assim, uma perspectiva... tem uma palavra que eu
gosto de falar... é... PROJEÇÃO! Foi no bloco [Tá Pirando, Pirado, Pirou!]: aí
eu me senti como artista. [...] Eu não me considerava.

[Fabiane: você considera o Tá Pirando um ambiente terapêutico?].


Considero. Muito bom. Mas só que é um ambiente terapêutico na vertical101. Todo
mundo igual. Inclusive, uma razão do bloco, é trazer familiares, técnicos, usuários
e a comunidade pro bloco. Então, ali, ninguém me vê como louco. Entendeu? É
um cara que toca. Ele é artista e tem um dom. O cara é bom. Toda hora: você toca
pra caramba... você é um bom músico. Tem um levante toda hora e aí, vai criando
um conceito né... o auto-conceito melhorado de si próprio. Entende?

Cara: ninguém nunca falou isso na igreja. Agora não sei por que. Tá Enten/ não
é uma crítica à religião, porque a religião eu gosto. Tô falando a questão de
música. Entendeu? [Fabiane: [...] Talvez porque na igreja] ...tá tocando pra Deus.
´[...]. Não pro homem. [...]. Uma anulação do ser. [...].É uma questão que... [...]
eu não quero falar porque a religião pra mim é fé. Não tem raciocínio. Entendeu?
Eu gosto de acreditar e pronto. Porque não tem como raciocinar Deus. Inclusive,
o nome de Deus é só o nome. É uma energia. [...]. É fé. [...]. Vamos parar por
aqui.
.
[Fabiane: sim, vamos voltar. [...] você tava falando que foi no Tá Pirando...]
Começaram a me elogiar. [...] eu saia pra cantar com o pessoal do Tá Pirando, eu
ganhava um dinheirinho, não muito [...]. Isso foi me mostrando a minha
capacidade. Já toquei na UERJ. Já viajei pra tocar com [inaudível]. Vários
lugares. [...] além dos elogios, de verem né... a minha habilidade musical ser
reconhecida... depois, me elegeram como um diretor de música, professor de
composição. Eu estudei harmonia. Adoro harmonia funcional, harmonia clássica,
entende?

[...] uma vez, engraçado: eu tava num espaço cultural lá em Botafogo, quando eu
morava em Botafogo. Tô lá, chega um casal: vem cá, você não é do bloco Tá
Pirando? Vai tocar hoje aqui? [...] Eu estava lá com uma amiga. A moça [me]
reconheceu. Viu o reconhecimento!? Lembrar! Você não é do bloco? Toca né...
[...] E eu toquei. Não no mesmo dia. Fui convidado a tocar na Consciência Negra
em 2019 [...] Antes da pandemia. Eu ia tocar em 2020, tava contratado no Espaço
Cultural Olho da Rua.

Inclusive o dono do espaço cultural ele é meu amigo, dei aula de música pra ele,
pra irmã dele e dei aula de inglês pro pai dele. Viramos amigos. De vez enquanto
eu vou na casa deles. Mas aí teve o problema da pandemia - ficaram triste porque
não tiveram mais como manter o espaço. [...] ia muito artista. Tinha vida noturna...
bebida, comida. Era frequentado por pessoas maravilhosas, lindas. Aí, eu fui lá,
dá pra falar um pouquinho, mostrar o olhar de depressão?

101
A palavra “vertical”, no lugar da esperada horizontal, empregada por Eneas Elpidio, para afirmar que
o Tá Pirando consiste num ambiente terapêutico regido por relações horizontalizadas, onde “Todo Mundo
[é] igual”, nos convida a diferentes interpretações do porquê dela. Uma delas: ter escapado de seu próprio
inconsciente. Mais ainda, se observarmos que a frase: “Mas só que é um ambiente terapêutico na
vertical”, começa com uma conjunção adversativa, empregada para exprimir compensação de
pensamentos. “Muito bom. Mas...”. É também dele a seguinte afirmação: “No limite, a linguagem do
homem, na verdade, é inconsciente. Sem o condicionamento social. Entendeu? O inconsciente é arte.
Liberta e cura”.
193

Passei lá o dia com eles. Almocei, conversei com o Sr. Pedro Breves, um excelente
artista plástico [...]. Antônio Breve, [alias]. Pedro é o garoto. Pedro é o filho. [...].
Então, eu fui reconhecido. O que acontece: Toquei. Falei duas poesias e toquei
três músicas. O pessoal enlouqueceu. [...]. Depois que eu toquei, que acabou a
apresentação, veio um grupo de pessoas: você vai tocar aonde semana que vêm?
Você tá aonde? A gente quer te acompanhar, quer te seguir.

[...] Foi esse reconhecimento, ali, do bloco, de me ver como musico, como artista.
Não um usuário. Não um cristão. Aquela coisa que eu falei do universal. Do
logotipo. Do emblema. Não. Me viram como um cara: o cara toca, pô,
independente do que ele seja. [Fabiane: te viram como o Eneas?].
Como Enéas. Até hoje me veem. [...]. Inclusive, conheci você: uma pessoa
fantástica, maravilhosa, através do bloco. Me trouxe muita riqueza. Hamilton.
Tanta gente boa. Cláudio, Munique. Sem falar nos técnicos - são maravilhosos.
Que cabeça né? O pessoal tem uma cabeça maravilhosa. Sempre boto uma poesia
lá. Tô lá no grupo [do Tá Pirando]. Não gosto muito de grupo, não. Gosto de ligar
pras pessoas. De falar. Mas é assim. Então é isso. O reconhecimento veio no bloco.
Dos elogios. De reconhecer a minha arte como linda, como um... né, [como] uma
arte... eles até falavam: profundo né... que tocava no coração, no violão, minhas
músicas, minhas letras, meus poemas. Tinha gente que até chorava, entendeu?

Inclusive, eu dei uma palestra, no Centro Psicanalítico do Rio de Janeiro... como


os psicanalistas choraram... Me chamaram para fazer outra palestra, depois. Não
pelo bloco, pra eles mesmos. Entendeu? É lindo. Tô nesse dilema da vida né. Na
dialética. Reconhecimento me trouxe reconhecimento.

[...] Eu quero falar do estigma hoje. Como é o estigma na minha vida?: Onde eu
moro me chamam de professor, numa comunidade. Todo mundo gosta de mim e
sabem que eu tenho problema, porque eu falei. Porque como que eu vou autorizar
alguém mandar no meu pensamento e eu me sentir X ou Y? Quero ser eu, meu
irmão. Entende a diferença? Não ligo. Tratou bem, continua no rol. Tratou mal:
graças a Deus, não era pra entrar. Não consideram professor louco? maluco?
musico... Cara você é maluco, toca pra caramba! Nossa que maluco é esse? É uma
forma, assim, brincando, entendeu? O estigma não é nada - porque pra eu pensar
que eu sou estigmatizado, eu tenho que aceitar aquele pensamento, seja ele qual
for. Eu tenho que autorizar aquele pensamento passear na minha cabeça e me dar
sentimento. [...]. Então, não deixo nem entrar. E se estiver muito pesado, eu chamo
a lei. Tem a lei a meu favor. (Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

É o caráter público que os direitos possuem, porque autorizam seu portador a


uma ação perceptível aos parceiros de interação, o que lhes confere a força de
possibilitar a constituição do auto-respeito; pois, com a atividade facultativa
de reclamar direitos, é dado ao indivíduo um meio de expressão simbólica,
cuja efetividade social pode demonstrar-lhe reiteradamente que ele
encontra reconhecimento universal como pessoa moralmente imputável.
[..] os próprios grupos atingidos debatem publicamente a privação de direitos
fundamentais, sob o ponto de vista de que, com o reconhecimento denegado,
se perdem também as possibilidades de auto-respeito individual. Nessas
situações históricas... vem à superfície da linguagem o significado psíquico
que o reconhecimento jurídico possui para o autorespeito de grupos
excluídos: sempre se discute nas publicações correspondentes que a
tolerância sobre o subprivilegio jurídico conduz a um sentimento
paralisante de vergonha social, do qual só o protesto ativo e a resistência
poderiam libertar. (HONNETH, 2003, p. 197, grifos meus)
194

Agora o lado artístico, foi em 1996 que eu entrei nos Cancioneiros [do IPUB].
Na verdade, teve o lado poético também. O lado de poesia né... que eu escrevia.
Tirei uma menção honrosa no ateliê. Tirei o 1º primeiro lugar no Sesc Madureira
e uma menção honrosa no mesmo concurso. [...]. Aí depois, um cara falou assim:
ahh se você faz poesia você pode fazer música. Aí, eu realmente comecei a
perceber que eu conseguiria fazer música, também. E aí, em 1996 eu juntei com
Antônio Cláudio, esse que faleceu [nos dias próximos dessa entrevista] e fiz a
música Rio de Saudade. Fiz a música Rio de Saudade e Dias Sem Tempo. Aí, entrei
nos Cancioneiros né... e continuo lá né... fazendo minha divulgação né. Nós já
abrimos o Canecão. Já abrimos Paralamas do Sucesso e Alceu Valença, na
Bahia. Fizemos [a novela] Caminhos das Índias102. (Orlando Santos Baptista,
Cancioneiros do IPUB)

Beth Sena cantou com os Cancioneiros do IPUB em plena TV Globo no ano de


2008, num dos horários historicamente mais nobres dessa emissora:
Os verdadeiros marginais
É o otario que diz.
É aquele que diz
Fantasiados de homem da lei

A Beth “estourou”
Lá na Cidade de Deus

Quando veio o pé preto


A Beth se escondeu
...

Eu acho que eu faço isso por amor à arte né... porque eu não crio mais uma
expectativa. Mas... eu busco uma saída aqui fora pra/ pra conseguir ser
reconhecido.

[Fabiane: quem falou pra você que se você faz poesia, então você faz música,
também?]
Ah, foi um cara que é evangélico. É evangélico. Ele não falou exatamente pra
mim, não. Na verdade, uma pessoa falou pra esse evangélico. E ele não tinha a
ver com música. [...] Aí, eu absorvi pra mim.

Eu simplesmente achei que aquilo serviria para mim também. Porque, eu, às
vezes, eu fazia algum tipo de música, alguma coisa. Só que eu nunca tentei. Chegou
um dia, eu sentei com o Cláudio lá, e na mesma hora fiz a música Rios de Saudade
e Dias Sem Tempos
[Fabiane: O Antonio Claudio, que acabou de falecer... você encontrou ele já nos
Cancioneiros? Ou antes?].

102
Essa participação dos Cancioneiros em eventos de grande porte, citada pelo Orlando: abertura de shows
no Canecão, Rio de Janeiro – da Leila Pinheiro, da Beth Carvalho e do Diogo Nogueira e; também, fora do
Rio, dos Paralamas do Sucesso e Alceu Valença na Concha Acústica do no Teatro Castro Alves, em
Salvador/BA, além da novela “Caminho das Índias”, que tratou o tema da esquizofrenia, se deu no contexto
do projeto “Loucos por Música”, criado com recursos da Lei Rouanet, no período em que Gilberto Gil fora
Ministro da Cultura. A participação especial dos Cancioneiros do IPUB na novela Caminho das Índias em
que aparece essa música da Beth Sena está disponível em:
<https://www.facebook.com/watch/?v=1764319903858682>. Acessado em 12/09/2021
195

Eu encontrei antes. Pouco antes eu encontrei ele no Palavrear. Ele e o Miguel


Souza Dantas, no Palavrear né... [...] Palavrear, a gente escrevia poesia, algumas
coisas... pensamentos. Tinha algumas poesias lá... [há] muito tempo atrás. Antes
dos Cancioneiros. Uma vez, ela [a xxxx]... eu brincando com ela: veja bem como
que é a loucura. Não está só na gente. Porque tem muito doido por aí. Eu descobri
muita gente doida por aí a fora… tudo bem que existem casos né de pacientes...
mas de pacientes… pelo menos aqueles mais tranquilos, mais conscientes das
coisas, estão em plena perfeição. Mais perfeito que muita gente que nunca foi
internada. [...] O pior de tudo não é ser louco. O pior de tudo é ser ignorante.
Ser ruim né...

Então, [...] ela falou assim para mim: vai ter uma festa e aí, cada um traz um
negócio né. Ai eu simplesmente falei: ah eu vou trazer minha boca. Brincando
né. Aí ela falou... falou assim mesmo: você pensa que alguém aqui é palhaço?
Quer dizer: é uma loucura total né... quer diz/ ela levou a sério uma coisa que eu
tava brincando né. Não sei. Aí, eu peguei e parei de fazer o Palavrear. [...]

[Fabiane: você fez Rio de Saudade e qual a outra?]


Dias sem tempo. Sem tempo para fazer as coisas né. Dias sem tempo para fazer as
coisas. O tempo não espera por muito tempo. Eu vou chorando, eu vou sofrendo.
Só que ele esqueceu como toca a música. Ele esqueceu. Aí, tem que refazer. Essa
música não foi gravada. Eu tentei entrar nos Cancioneiros/ botar nos
Cancioneiros, essa música. Mas aí o Marcelo Azevedo né... que era um ditador...
falou: ah... mas aí você tá levando muita vantagem... não sei o que. Então, tá.
Fizeram um sorteio e acabou entrando a música da Joana [de Fatima]: “Baby”
né. Então, tá tudo bem.

[Fabiane: da música Rio de Saudade... você quer contar um pouco como foi o seu
processo de criação].
Essa música na verdade eu me inspirei [...] na música do Frejat: "Amor meu
grande amor". Mas era totalmente diferente né. Mas é uma inspiração. Num
trecho da palavra... eu acho essa palavra assim que/ eu acho interessante né...
porque é... o Cazuza fez a música "Mentiras sinceras me interessam". Aí, eu pensei
assim: pô, se ele fez mentiras sinceras, eu posso fazer sinceras verdades. Aí, eu
peguei e fiz Sinceras Verdades. Eu acho interessante. Mas a parte mais melhor
mesmo "Ah que vontade que eu tenho de sentir o seu calor. Me apaixonar por
você, ah meu grande amor". Acho que essa parte é mais sentimental né... mas é
totalmente diferente. Não tem nada a ver de plágio, de nada. É uma coisa minha,
mesmo. Criação minha. [...]. Foi ela que fez eu entrar nos Cancioneiros. [...].
(Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Se eu sou uma artista no Teatro de DyoNises? No momento eu tô parada, Fabiane.


Mas eu me considero uma atriz Cyber Bacante do Vitor e o Vitor, inclusive, me
apresenta para as pessoas como atriz dele. [...]. Não como uma paciente ou amiga
dele. Ele me apresentava com atriz dele. Entendeu? Por isso eu me considero atriz
do Vitor Pordeus. [Fabiane: [...] você já se considerava uma atriz antes de
conhecer o trabalho do Vitor?].
Bom Fabiane, eu comecei desde criança no colégio. Eu levava jeito, as professoras
gostavam do meu trabalho. Elas simpatizavam comigo. Eu fazia bem. E depois, eu
sempre ganhei a simpatia das professoras de teatro. Entendeu? No tablado, a
professora logo arrumou um papel/ uma peça pra mim. [...] Eu tenho um passado,
um histórico de atriz. Entende? [...] Eu já percebia que eu levava jeito. Mas eu
comecei a assumir, mesmo, com o Vitor. Assumir, foi com o Vitor [Pordeus].
(Stela Sepulveda, Atriz Cyber Bacante do Teatro de DyoNises)
196

Olha, eu vou te falar: que eu comecei, assim, a [me] ver, mesmo, [como uma
artista] foi com a Marta [Bonimond, da Trupe DiVersos], que ela me acordou
aquilo que eu vivi [...] com [a Carla] do Mandalando, né. Então, esse primeiro
trabalho, pra mim, foi quando eu, desenrolando aquilo ali, que eu sentia
realmente que eu era aquele rolo de linha. De barbante. E eu tava desenrolando
eu mesma, a minha matéria. Você tá entendendo? [...] quando eu entrava no
palco e eu nem [entre risos] sabia de nada. Olha!? E as pessoas perguntavam
assim: como é que você consegue fazer essa/ isso? Quem via né. Eu dizia assim:
ué?... Eu não tinha como explicar, porque é a vida né. E... e... e, aí, quando
chegou na Marta, que a Marta começou fazer o teatro pra gente... nós fizemos o
curso lá, de não sei quanto tempo, fizemos trabalhos durante... apresentamos não
sei quantas peças. [...] Nós fizemos muito trabalho, tipo... nós fizemos o... Ah é
porque eu tô falando muito, aí, fugiu da minha cabeça. [...], nós apresentamos em
Paquetá é... em outros lugares também. E nós apresentamos também ali no...
na Cacilda Becker [...] E a Marta quando ela... ela dá os estudos pra gente, ali, a
gente escrevendo... dá material. E a gente se torna, mesmo, um artista, mesmo. E
vai dançarino, escambau né, porque a gente dança, a gente apresenta, a gente
canta... e a gente... e a gente... parece esse céu azul aí [de início de noite na praia
de Botafogo] com essa estrela andando, ali. Você tá entendendo? E flui. E ela fez
a peça com a gente e os meninos vieram lá de fora, lá da Holanda, não sei da onde,
do... lá do sul, lá, sei lá da onde. E agora vocês vão apresentar... aí, My name is
Aparecida. I am is artista!. [...] Então quer dizer, isso para mim foi... sei lá sabe?
Parece que a gente tá em outro mundo. E aí a gente lembra tudo aquilo que me
diziam que eu era aqui ness/ naqueles mundos que eu vivi. Quer dizer, que eu não
sei explicar. Lá, ele, era diferente. (Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Como ocorre a fabricação do artista num contexto de tratamento e cuidado da


saúde mental pública engajado no Movimento da Luta Antimanicomial, norteado pelos
princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira e que privilegia a arte, a cultura e o afeto na
lida com a loucura na cidade do Rio de Janeiro?
É essa, a principal questão de pesquisa que busquei formular e responder com esse
trabalho de pesquisa. Recoloco-a aqui porque as palavras de vários dos participantes dessa
pesquisa, especialmente presentes nessa seção, permitem uma resposta possível: por meio
da relação com o outro. Da validação e do “encorajamento afetivo” vindo do outro. Do
que vem de fora. Do “reconhecimento intersubjetivo” – mútuo, recíproco – possível de
ser alcançado, como nos diz Honneth (2003), pelas vias do amor, do direito e da
solidariedade. Mais precisamente da dedicação emotiva, do reconhecimento jurídico e do
assentimento solidário.

[...] Que nem essa [exposição] que teve lá no mural da parede. Lá na exposição
[“Utopias: A Vida para Todos os Tempos e Glória”] que teve lá no Museu [Bispo
do Rosário, de set. de 2019 até jan. 2020]. Foi QUAREN-TA e OI-TO PIN-TURA
[minhas] na parede. [...] Era um monte de folhinhas de papel né? [...]. Muita gente
tirou foto gostando bastante. [Achando] bacana! e não sabia qual que achava mais
bonita. Eu fiquei bobo vendo aquilo. Sabe como né?! [risos] [...] E as pessoas
naquela alegria de ver. Um monte de gente olhando. Entendeu? Aí você/ como
que vai ficar a tua mente vendo aquilo, né não? As pessoas tirando foto, contente
197

né... Meus Parabéns! Tudo feliz. Tendeu? Aí poxa: num tem outra coisa a dizer,
né? [risos de satisfação e alegria] (Pedro Mota, Museu Bispo do Rosário)

Vem do outro, de um outro concreto, mas também... vem do mundo, de uma


relação intima com o Cosmo... e consigo próprio.

Eu acho que uma pessoa pra ser percebida como artista, ela, tem que se perceber
como um indagador. Como uma pessoa estética. Ela tem que ter uma vivencia
estética do mundo. Ela tem que ter tipo um olhar, assim, de fotografia do mundo.
Um olhar e um ouvido treinado pra ouv/ pra perceber a trilha sonora do mundo,
a trilha sonora das coisas que ela percebe no mundo e a fotografia... o lado cênico
do que ela tá percebendo, ali, de beleza artística, de beleza estética, pra ela
assimilar aquilo e desenrolar aquilo pra depois, né. Então, eu, por exemplo, sou
um cara, assim, que tenho um ouvido treinado né... e um olhar treinado, também,
pra arte. Eu já vi muitos filmes, já, lindos, já, no cinema, na televisão, já andei
muito... meu pai já... já viajei muito com a minha família, também... já passei por
belas locações, também, de vida, assim, de estar naquele lugar, naquele espaço,
lá... Então, é isso que vai inculcando em você, no seu... no seu... [inaudível
(ouvidor?)] artístico né... no seu receptor artístico, a sua visão de...
Artista de si próprio né..
Você vai aprendendo em você a sua... a sua gíria... a sua... o seu maneirismo de
falar... a sua maneira de falar... seu maneirismo de chegar e de se expressar,
também... o meu desenho, o meu poema, o meu cantar... o meu gesticular, se
expressar e tal... gestual... o meu andar, o meu dia-a-dia de sobrevivente do mundo
né...Então, eu vi que depois de um certo tempo, assim, viajando muito com a
minha família e acumulando, assim, locações na minha vida né... eu fui me
sentindo mais feliz com a minha vida ao invés de toda uma bagatela de problemas
que foram se desenv/ que foram acontecendo paulatinamente ao redor de mim em
todas essas coisas que eu tive de adolescente, de infantil e de jovem né...
[...] Mas, como é que eu vejo que o outro se enxerga sendo artista? Bem, primeiro:
eu tô falando de uma forma, assim, bem livre né... bem assim... eu tô
desconstruindo esse falar... então, eu não tô focando, por exemplo, se eu sou
sertanejo, se sou roqueiro, se sou punk, se eu sou hip hop, se eu sou forrozeiro... se
eu sou é... carimbo, se eu sou... Não é nada disso, música clássica, não é nada
disso... se eu sou heavy metal, se eu sou hard rock, se eu sou valsa, nada disso. Eu
tô focando em mim, como uma pessoa que percebe os sons né... e assimila eles
conforme a própria lida que esses sons têm com o meu dia-a-dia né... com o meu...
com o meu... com a minha construção do dia à noite. A minha rotina... né.
Então, eu vejo que a minha arte, ela, tá assim... situada em torno na minha
rotina. Então, se por exemplo, na minha rotina, eu tô com muito parente... ou lido
com muitas pessoas, assim, humildes, também... eu vou construir um caminho pra
mim com mais humildade... ouço muito forró, ouço muito sertanejo, aqui em Rio
das Ostras... já vivo há mais de um ano e meio, já, em Rio das Ostras... forró,
sertanejo, também. Mas no Rio de Janeiro eu ouvia funk, ouvia... ouvia pop, ouvia
Mix, Radio Mix, Radio Cidade, ouvia.... ouvia [Dion?], ouvia [B?] - então, eu
ouvia muita coisa pop também... (Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

Alexandre Bellagamba, o Surfista Prateado, artista plástico, poeta e militante da


Saúde Mental Antimanicomial, co-fundador do MONULA, Movimento Nacional dos
198

Usuários dos Serviços de Saúde Mental da Luta Antimanicomial, também foi convidado
para participar dessa pesquisa, especialmente para falar sobre a militância dos usuários
dos serviços públicos de saúde mental. Deixo aqui um trecho da fala dele porque nos
remete para o reconhecimento social que a militância também pode oferecer aos usuários,
que buscam, eles próprios, participar do Movimento da Luta Antimanicomial. Assim
como, para as relações de amizade, de estudo/profissionalização e de conflitos entre os
próprios usuários e no interior da própria Luta.

No IPUB [Instituto de Psiquiatria da UFRJ], eu fiz o meu estágio do Curso de


Acompanhante Domiciliar em Saúde Mental da Escola Politécnica Joaquim
Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz. [...]. Inclusive, foi uma dificuldade
danada porque eu tava lá como estagiário e os usuários me viam como usuário
né... Eu tinha que manter uma certa distância, uma certa/ eu tinha que ter muito
tato para [tosse/inaudível]. [...] era complicado porque os usuários já tavam
acostumados comigo como usuário né... então, vinham me abraçar... [e eu precisei
dizer:] olha só: eu tô aqui como profissional de vocês. Eu não posso ficar... sabe...
também... né... porque eu estou aqui, pô, em avaliação, cara, de curso né...
Então, aí, entenderam. [...] Isso foi acatado. Eles me adoram. Eles me adoravam.
Aliás, os usuários né, a grande maioria deles me adoram.

Só alguns babacas né que tão aí no MNLA [Movimento Nacional de Luta


Antimanicomial], como por ex. o Xxxx né, que pra mim é um merda - desculpe o
termo, mas... enfim. Ele é muito... ele é fantoche dos funcionários né. Ele é muito
manipulado pelos funcionários. A voz dele é totalmente profissional. Não é uma
voz dos usuários, autêntica. Entendeu como que é?

Existem usuários que... por querer viajar... ficar em hotel... entendeu? e tal... eles
são comprados, digamos assim. Eu não sou comprado.

[...] O curso quando você tem uma boa colocação na parte teórica você tem a
opção de escolher. Como eu fui o 2º lugar no curso, na parte teórica, [...] eu escolhi
o IPUB, exatamente porque eu já conhecia o IPUB. Já conhecia o pessoal de lá, a
galera de lá... ia ser mais fácil pra mim. Foi tranquilo. [...] A minha Coordenadora
Denise que é Coordenadora de Estágio lá, simplesmente falou pra mim, assim:
Alexandre, você é um exemplo da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Quer mais elogio que esse?

Foi da boca dela hein... a Denise Correia.


[E porque você acha que ela falou isso?]
Porque ela acha que eu sou mesmo um exemplo da Reforma Psiquiátrica
Brasileira. É uma pessoa que deu certo por causa da Reforma. Entendeu?

Ou seja: eu fui curado socialmente, falando.


Eu hoje posso dizer que eu sou uma pessoa respeitada. Entendeu?

Apesar dos meus trancos e barrancos, do meu jeito meio esquisito de ser,
entendeu? De às vezes ser prepotente, ser arrogante e tal... mas as pessoas me
respeitam como História né... Afinal tô no Movimento da Luta Antimanicomial
desde mil novecentos e... noventa e... quatro. Não, 93, eu acho. 94, por aí. [...]
como História dentro do Movimento. Entendeu? Cê quer mais o que?
199

O V Encontro [Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial], que foi o


Encontro que teve o racha né... simplesmente foi escolhida uma fotografia de
escultura minha, com o tema que é “O Grito”103 e o tema do Encontro foi “O Grito
dos Usuários”. [...] a Marcia viu na exposição e encomendou. A Marcia Schimidt.

[...] O MONULA nasceu aí também [durante esse V Encontro]. [...] Era só o


MNLA e a AFDM, que era antagônica ao Movimento. ASSOCIACAO DE
FAMILIARES DE DOENTES MENTAIS, que era contra o Movimento.
[Fabiane: isso ainda existe?]

Olha, se existe tá parado, porque... eu não vejo/ eu não ouço mais falar, não.
Depois que assinou a Lei, minha filha, eles começaram a ter que engolir.

[...] A Lei que era do deputado Paulo Delgado. [...] Ela foi sancionada em 2001.
[...] [No mesmo ano desse] V ENCONTRO, em Miguel Pereira, Rio de Janeiro.
[...] Até hoje, não existiu Encontro igual àquele. Ficamos num Hotel Fazenda
show de bola... com piscina aquecida. Nossa, show de bola! A estrutura era muito
grande! Eu fazia parte da Comissão Organizadora, também.
(Alexandre Bellagamba, o Surfista Prateado, MONULA)

“Depois que assinou a Lei, minha filha, eles começaram a ter que engolir”. Essa
constatação relatada por Alexandre Bellagamba, um dos usuários históricos da Luta
Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, é um sinal daquilo que Axel Honneth discute
quando trata do autorespeito que pode ser adquirido/sentido pela via do direito – do
reconhecimento jurídico. Vai de par com essa frase do Alexandre, uma outra, do Eneas
Elpidio, afirmada por ele quando discorreu, na seção Fabricação do Artista como forma
de Reconhecimento, sobre o estigma: “se estiver muito pesado, eu chamo a lei. Tem a
lei a meu favor”.
Nesses dois exemplos, a lei aparece como possibilidade de que o respeito ao outro,
enquanto um direito conquistado, seja imposto. Não exatamente ao outro, enquanto
pessoa particular, mas universal e porque dentro de um grupo, de uma categoria para a
qual já foi conquistado uma lei capaz de protege-lo. Vale reiterar aqui a Lei 10.2016 de
2001: que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” e, também, o fato de que,
devido às relações jurídicas, é possível (é esperado, imposto?), reconhecer os seres
humanos como pessoas, ainda que sem precisar estimá-los por suas realizações ou por
seu caráter. (HONNETH, 2003, p. 185)

103
Relatório Final do V Encontro Nacional de Saúde Mental, realizado em 2001, mesmo ano de aprovação
da Lei da Reforma Psiquiátrica. Disponível em: <http://laps.ensp.fiocruz.br/arquivos/documentos/9>.
Acesso em 03/11/2021
200

4.4 NISE DA SILVEIRA E “OS INUMERÁVEIS ESTADOS DO SER”

O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos


Antonin Artaud

Não há realidade absoluta, de um ponto de vista crítico


Jung, 2019, p.109

Eu tinha outros lugares que você nem queira sonhar, onde era.
Eu não vivia aqui. Eu não quero falar.
Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!

[...] eu confundo as pessoas - acho que desde quando eu nasci - porque hoje eu
penso: como eu estou aqui hoje? Daquele jeito que eu fui. Que sou. Ou que serei.
Ou que não serei. Então, eu tenho muita dúvida. [...] quando você escuta voz,
quando você vê vulto, quando você vê as pessoas transformar na sua frente... que
só você sente, que ninguém tá sentindo, que ninguém tá sabendo [...].
(Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] Amor: porque passei a conhecer mais pessoas né. Mais gente né. Que nem tô
aqui né, participando dessa entrevista, sua, aqui, né. As pessoas que procuram se
interessar pelo nosso trabalho. Pela nossas artes. Muita gente gostaram. Muita
gente procuraram ver. Um amor né? Aquela alegria das pessoas ver nossos
trabalhos né. Isso tudo traz o amor de frente né. [...] Sofrimento: muita das vezes
passa a ser esquecido né, porque muita das vezes a gente passa a ser reconhecido,
né? Nosso trabalho passa a ser reconhecido e o sofrimento fica um pouco pra trás
né, porque a gente está sempre naquela esperança né, de uma melhora né. De
uma mudança né, pra vida melhor, né? [...] Afeto: é a pessoa né... abraçar nosso
trabalho né? A pessoa olhar nosso trabalho né... e sentir né, o que a gente sente,
né... de querer ter uma vida melhor e ver uma coisa [na gente] né: um ESFORÇO!
né!? (Pedro Mota, Museu Bispo do Rosário)

[...] eu nasci em 1998 né. [...] no hospital em Santa Tereza. [...] Eu, desde
pequenininho, eu precisava fazer muitos tratamentos. Tratamentos assim... pra
desenvolver né... Eu tive uma epilepsia generalizada. [...] Com quatro anos de
idade eu fiquei com essa epilepsia e deixou algumas sequelas que foi a fala e a
escrita. [...] aí, eu fiz tratamento mesmo. Minha mãe botou eu na fono e ela achava
que eu só podia fazer fono. [...] Lá no hospital de Piedade a fono falou que eu não
ia precisar só de fazer fono, que eu precisava fazer outros tipos de tratamento:
como coordenação motora, problemas é... psicólogo... tratamentos psiq/ é...
tratamentos, assim, que iam me desenvolver né. Não era só fono. E aí a minha mãe
na época até chorou. [...] Eu me lembro. E aí, eu comecei a fazer os tratamentos
né. [...] porque eu tremia muito, sabia? Eu tremia muito. Nervosismo né. [...]
Agora a minha parte artística. [...] eu desenho bastante desde pequeno. [...]
Quando eu era criança, eu gostava muito de desenhar desenhos animados que
passavam na televisão. [...] Eu se inspirava também nos jogos de videogame. [...]
Personagens lutando né... o carro voando... Eu achava maneiro isso aí né.
[...][HOJE EM DIA] Eu desenho muita arte no sofrimento né. A maioria das
minhas arte é um pouco de sofrimento né [...] coisas deformadas né. [...] A única
coisa que eu desenhei de amor... que eu realmente/do jeito que eu tinha desenhado
201

uma parte de amor, foi quando eu desenhava flor... no meu caderno. Que chama
“Dois Frutos se beijando” né...

[...] Eu acho que eu se inspiro mais no sofrimento mesmo. No sofrimento. Na


raiva. Mas é uma raiva que não existe na vida real né... que eu sou. É porque eu
gosto de retratar. É porque eu, sinceramente, antes de eu ser um desenhista, eu
gostava muito de escutar bandas de rock. Eu gosto muito de se inspirar no rock. E
a minha vida toda foi inspirada no rock né. Então, eu faço aquelas coisas sinistro.
Eu gosto de canibal... Eu gosto de serial killer, violência... e coisa. Eu gosto de
desenhar essas coisas, realmente. Desse negócio de... dessas músicas de death
metal, trash metal, punk rock, hard core. Eu gosto muito disso, entendeu?
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

“Sério Canibal”
Eduardo Marciano, Espaço Travessia

[Fabiane: [...] Como é para você desenhar o sofrimento?]


Ah cara... eu desenhar o sofrimento? Cara... é... aquele negócio: que todo mundo
desenhasse parte romântica... parte colorida... e coisa, não existiria filme de
terror. Não existiria filme de porradaria. Filmes de luta. Não existiria os filmes
de suspense e só existiria filme romântico né. Então, existe uma parte que as
pessoas, ela, têm uma inspiração com filmes de terror, com a parte de sofrimento.
A parte de coisa... Entendeu? E... realmente é esse negócio... que precisa.
Entendeu? Se não, o mundo seria tudo igual, não é? O mundo seria tudo igual.
E aí, não existiria personalidade né. Todo mundo seria uma personalidade só né.
Então, com um belo/com um dia... tipo... eu não vou te dizer que eu vou ficar a
minha vida toda desenhando... sexualidade.... [que eu ] vou ficar a minha vida
toda desenhando... é.... coisas de serial killer. Coisas de violência. Canibal. Essas
coisas todas.
Vai chegar uma hora que eu vou desenhar uma arvore... uma casa, um céu. Vai
chegar uma hora que eu vou fazer isso, porque eu ja vi um pouco de figura urbana.
Eu desenho um pouco de avião, de carro, moto, pessoas... entendeu? Eu gosto
202

muito, entendeu? [...] Vai chegar uma hora que eu vou desenhar árvore, planta,
flores e coisa. Entendeu?

[Fabiane: [...] como é para você desenhar o sofrimento? Emocionalmente? você


sofre junto? Ou você se sente mais aliviado?]
Eu sinto mais aliviado. Eu gosto de desenhar... coisas macabras, coisas violentas
porque eu gosto mesmo. Entendeu? É minha personalidade. Entendeu? Eu vejo
filme de terror e às vezes eu nem se assusto. Entendeu? Depende da personalidade
da pessoa. Entendeu? [...] Ah... o amor... o amor faz parte também cara. Tipo: eu
sinceramente... eu sou uma pessoa romântica. [...] Eu não gosto de assistir séries
e filmes românticos porque eu sofro junto com o filme, né.
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

“Sem Título”
Eduardo Marciano, Espaço Travessia

Se é verdade que o corpo humano é, em certo sentido, produto da atividade


social, não é absurdo supor que a constância de certos traços, revelados por
uma média, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas
normas da vida. Por conseguinte, na espécie humana, a frequência
estatística não traduz apenas uma normatividade vital, mas também uma
normatividade social. Um traço humano não seria normal por ser frequente;
mas seria frequente por ser normal, isto é, normativo em um determinado
gênero de vida, [...]. (CANGUILHEM, 1995, p. 125-126)

A minha arte, a minha loucura... Cara, eu tenho um pouco de loucura né... Assim:
eu tenho loucuras, assim... alucinações. Eu tenho alucinações. Coisas que não
existe... né. Às vezes, eu penso até coisas que eu não sou, entendeu? Mas com a
203

arte, você desenvolve melhor né. Você começa a pensar um pouco né... porque às
ve/ só que a perturbação, eu não vou ficar sempre com a perturbação. A
perturbação, ela, fica um pouco. Depois acaba. Depois ela some né... Com
tratamento... psicólogo... psiquiatra... você vai melhorando o seu comportamento.
Eu tenho muito pensamento intruso [...] Às vezes eu tenho a imagem... eu vejo
as imagens violentas. [Fabiane: você já pensou em desenhá-las?] [...]
Não. A maioria desses desenhos que eu faço no papel não tem nada a ver com o
meu pensamentos intruso. (Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

As imagens do inconsciente objetivadas na pintura tornam-se passíveis de uma


certa forma de trato, ainda que não haja nítida tomada de consciência de suas
significações profundas. Retendo sobre cartolinas fragmentos do drama
que está vivenciando desordenadamente, o indivíduo dá forma a suas
emoções, despotencializa figuras ameaçadoras. (SILVEIRA, 1987, p.58)

[...]. Eu, numa época, quando eu comecei a ter pensamentos intrusos, eu tava até
pensando que eu tava ficando esquizofrênico né, porque eu ficava, assim, tipo...
vendo coisas... né... e aí, eu ficava com perturbação. Aí eu imaginava que eu ia
pegar um pau de... um pau e ia bater na cabeça de uma pessoa. Que eu ia fazer
alguma violência sexual com alguma pessoa... coisas que eu nunca vou fazer.
Entendeu? Aí eu fico sempre com pensamento intruso – tipo... acontece que eu vejo
uma reportagem na televisão e a reportagem que são meio, assim, sexual... violência
sexual... não sei o que... aí eu fico neurótico né. Eu fico tipo assim, com
perturbação. Eu fico neurótico. Aí, eu não gosto muito de falar muito, nisso.
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

“Sem Título”
Eduardo Marciano, Espaço Travessia

“Natureza dupla” não é simplesmente uma expressão literária mas um


fato científico que sempre despertou interesse na psicologia e na
psiquiatria quando aparece sob a forma de consciência dupla ou cisão da
personalidade. Os complexos dissociados sempre se distinguem pelo seu
caráter e humor peculiar, como observei num caso semelhante. Não raro o
deslocamento gradualmente se estabiliza e substitui, ao menos
superficialmente, o caráter original. Todos nós conhecemos pessoas que, à
primeira vista, parecem muito engraçadas e divertidas. Porém, em
determinadas circunstâncias, na intimidade, na vida privada, podem mostrar-
204

se soturnas e macambúzias, mantendo aberta uma velha ferida. Algumas


vezes, a verdadeira natureza rompe a casca artificial: subitamente
desaparece a alegria e surge uma outra pessoa. Uma só palavra, um só gesto
pode atingir a ferida e evidenciar o complexo residente no fundo da alma.
(JUNG, 2015, p.50)

[...] eu fiquei preocupado porque eu tava com perturbações que eu nunca tive,
entendeu? Mas graças a Deus eu não sou esquizofrênico, não - porque eu não
escuto vozes. Eu só vejo a imagem, mas eu não escuto vozes, entendeu? É porque
o esquizofrênico, ele vê uma realidade. Não é? Ele vê uma realidade. Eu não. Eu
tenho o pensamento intruso mas eu não tenho a realidade. Eu não vejo a realidade.
Tipo: eu não vou ter uma realidade de querer estuprar uma mulher ou fazer
coisa. Eu só faço uma coisa que não existe. Queria fazer aquilo, mas... mas não
existe. Entendeu? Entendeu? É um pensamento intruso. Uma coisa que não
existe, entendeu? É uma cois/é como se fosse uma coisa que você viu na televisão
e você ficou traumatizado e achando que você ia fazer a mesma coisa. [...] Aquilo
vai embora. Tipo: com tratamento psiquiátrico e psicólogo, aquilo vai embora.
Mas que eu/o que que eu faço: pra mim/com esses pensamentos intrusos, assim?
Eu tomo uma água, eu... bebo uma água... desenho... olho pro céu, falo com a
minha mãe, converso com a minha mãe... aí ela me relaxa, entendeu? [...] É
porque eu tenho uma ansiedade generalizada. Uma ansiedade... uma ansiedade
derivada da minha doença. Da epilepsia, não é. E aí eu fiquei com uma sequela.
E essa ansiedade, ela é muito acelerada, entendeu? Às vezes eu penso até em... no
futuro. Às vezes a minha cabeça... você tá em 2020 mas a minha cabeça tá em
2040. É muito ansioso cara. Muito ansioso. Entendeu?
(Eduardo Marciano, Espaço Travessia)

Riklin trouxe importantes contribuições a essa questão em seu trabalho Über


Versetzungsbesserungen. Cito um de seus casos como exemplo: a senhorita
M.S., de vinte e seis anos, culta e inteligente, há seis anos caiu doente por breve
tempo, restabelecendo-se tão bem que recebeu alta. Não foi diagnosticada
dementia praecox. Antes da doença apaixonara-se por um compositor com
quem tinha aulas de canto. Tendo cantado um solo num concerto, o
compositor a cobriu de elogios e admiração. O amor rapidamente alcançou
um grau muito intenso de paixão com períodos de excitação patológica.
Ela foi levada ao hospital Burghölzli. De início, via sua internação e tudo o
mais que lhe havia acontecido como uma “descida ao Hades”. Inspirava-lhe
esse estado mental a última composição do referido músico, a peça “Caronte”
(Charon). Depois desta passagem purificadora no submundo, ela interpretava
o que havia acontecido no sentido das dificuldades e lutas que teve de enfrentar
para se unir ao amado. Passou a achar que uma das pacientes era o seu
amado e, durante algumas noites, ia para a cama dela. Depois achou que
estava grávida, ouvia os gêmeos no corpo, uma menina igual a ela e um menino
parecido com o pai. Em seguida, acreditava ter dado à luz e tinha alucinações
que uma criança estava a seu lado na cama. Com isso a psicose acabou. A
paciente descobriu uma substituição salutar para a realidade. Foi
rapidamente se acalmando, ficando mais livre no comportamento e no andar.
(JUNG, 2015, p. 87)

[...]: o que são essas séries de ideias dissociadas, qual a natureza de seu
conteúdo? [...] Freud deu esplêndida resposta a essa questão. Por volta de
1893, Freud mostrou como o delírio alucinatório provém de um afeto
intolerável para a consciência, como esse delírio é a compensação de um
desejo não satisfeito e como o indivíduo de certo modo foge para a psicose
a fim de encontrar, no delírio-sonho da doença, aquilo que a realidade lhe
recusou. (JUNG, 2015, p. 30)
205

Ahh... o que eu posso dizer: eu não posso falar, assim, a história de vida, porque
eu já prestei atenção que não tem como cê falar da história de vida,. Porque não
da um livro. Dá um livro, dá dois, dá três... e não vai acabar nunca. Então, o que
eu vou falar é que... que as... as... as consequências né... eu tive um surto psicótico
quando eu é... é... é... deu um apagão e parei no Pinel. E eu, assim, eu era uma
prisioneira desde/ parece que é desde quando eu nasci. Eu não fui conhecida...
não/ foi uma situação muito difícil, que eu hoj/ parece que eu já nasci com
problema, mas que ninguém nunca viu problema. Tanto é que eu sou uma pessoa
que... passa despercebida e nunca fui vista, né. E no decorrer dos tempo, as coisas
foram acumulando e, de repente, explodiu. E eu fui parar no Pinel.
(Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

E então, eu era uma pessoa... eu era prisioneira e de repente eu fiquei na janela,


presa no Pinel. Assustando tudo e todos. E eu pensei que eu saí de uma prisão e
entrei numa prisão... verdadeira. Que era ali que eu queria ficar. E ali eu deitei -
que eu, antigamente, eu não conseguia dormir, a cama rodava e eu pensava que
eu tava com labirintite - passaram remédio e tudo. E a cama rodava, rodava,
rodava, e aí quando eu cheguei ali no IPUB, a doutora me... me deixaram lá. Me
acharam na rua, me deixaram lá. A doutora... só ouvia assim: me deram uma
injeção e falaram assim que eu tava muito violenta e botaram eu num quarto e
falaram assim: deixa ela ali que ninguém vai mexer com ela. E ali eu fui. Fiquei
numa gradezinha, pensando que eu já não sabia mais sonhar né. Já não sonhava
né. Quer dizer, eu acho que eu nunca sonhei.
E ali... e ali é que eu me fechei mesmo.
E depois dis/ tempos depois, que eu também não tenho noção do tempo, eu
acordei... e começaram fal/ eu comecei/ começaram a me... me ouviram, me
atenderam, me... Foi me acompanhando, né. Hoje eu posso falar sobre isso.
Mas um tempo atrás eu não conseguia, né.

Mas aquilo vai entrando pra dentro da gente porque você tem alguém que te ouve,
alguém que fala contigo. Você tá vendo alguém. Alguém que... tá com você ali, lado
a lado... que... e... você... ai você... eu comecei. Fiquei ali no Pinel. Depois fiquei
ali - quando eu pude ir pra enfermaria, eles me encaminharam pra enfermaria. Fui
num acompensado (?) e falei assim: nossa, pra onde tão me levando. Aí fiquei lá
na enfermaria lá da UFRJ, no IPUB né... E aí, eu tinha um espaço livre, mas eu
não queria espaço livre. Eu tinha muito medo. Muito medo.

Eu queria ficar presa ali dentro. Não queria sair. Não queria que ninguém me
visse, também. E eu não saia. Não tinha pátio livre pra mim, porque eu não tinha
coragem de sair. E eu tinha uma amiga que tomava conta de mim, lá dentro. Uma
outra paciente, que ela é... eu acolhia ela e ela me acolhia. Então, uma tomava
conta da outra né. A gente lia a Bíblia, a gente penteava o cabelo, uma da outra.
Eu fazia até trança... nela. E ela diz que eu/hoje ela diz pra mim que eu fazia com
ela, que eu assumi o papel da mãe dela, ali dentro. E que eu até penteava, trançava
o cabelo dela né... e eu falando: e você me guardou. Hoje eu não posso ficar mais
internada porque quem vai me vigiar né... Então, a gente já fica com aquele... como
é que eu vou arrumar... eu tenho que me tratar, porque eu não posso me internar.
E ai eu fui ficando, ficando... e dia vai, dia vem... e eu só entrei/eu só sabia chorar
e dar crises. E depois eu chegava/começava a chorar eles me botava numa aula
de música e falava assim: toma aí, fica com ela aí, pra ver se ela melhora. E eu
sai dali cantando: “a minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia...”.
Como é que é? Não sei. E aí era assim.
[...] A doutora Fabiane lá, a terapêutica, que ela faz é... aula de dança... cismou
que eu tinha que dançar. E eu sou uma pessoa que eu nunca pude fazer nada, a
não ser trabalhar. Eu trabalho desde quando eu nasci né. Então eu não sei o que
206

que é infância, eu não sei o que que é uma liberdade. Eu não sei o que que é... o
Eu! Porque eu nunca fiz pra mim. Só fiz pelas pessoas. E eu não me conhecia.
Então, eu ficando, ficando, ficando - porque não dá pra falar tudo né - eu... eu...
sin/ eu tenho oito/ eu vou fazer 8 ano agora em... agosto de 2021. Porque... dizem
que eu tenho 60. Mas eu nasci de novo. Porque até então, aqueles anos, eu não
vivi. Então agora, eu nasci louca pra viver.

Por que? A loucura é... leva a gente... faz a gente transformar... e ficar louca pra
viver o que você nunca conseguiu. Entendeu? Então, eu pensei assim: Nossa! Eu
senti quando eu nasci. E agora? Eu acho assim: eu tenho que fazer duas
identidades né, uma/porque eu tenho um papel lá que fala que eu tenho 60, mas
eu tenho 8. [...] Eu não sabia fazer nada pra mim. Eu não me conhecia. Eu vivia
em outros mundos que você nem tem noção quais são. E também eu não vou falar
aqui porque eu não quero voltar atrás. Eu preciso continuar seguindo.
(Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Eu falo que as vezes é necessário quebrar protocolos. Porque eu vejo a vida


técnica, profissional, acadêmica, muita na questão de hierarquia. [...] eu gosto do
horizontal: sentimento com sentimento. Humano pra humano. Sabe o que ela fez?
Ela me dava dinheiro de passagem todos os dias pra eu passar o dia no Pinel. Na
verdade, criamos o 1º Hospital Dia, nem existia. Nem em sonho. Tinha a sala de
oficina lá que funcionava, que eu gostava, que eu ia. Botou meu nome pra tomar
café, almoçar. Já saia de lá jantado. E me atendia três vezes por semana.
Olha que amor.
Pra não me internar, que eu pedi, ela fazia esse sacrifício. Me dava dinheiro pra
comer final de semana, perto de casa. Quebrou todo protocolo. Essa coisa toda.
Entende? [...] [Fabiane: ela era uma médica?]
Psiquiatra. Inclusive ela era chefe de Perícia no INSS. Queria me aposentar, eu
não quis. Ela acreditou em mim: eu nunca vi um garoto tão forte na minha vida.
Toda sessão, basicamente, a gente chorava. Lindo, lindo, lindo, isso. Aí, fomos...
Aí, eu falei pra ela: poxa doutora, eu fiz um curso... tava trabalhando de auxiliar
de compositor topográfico né... minha história é uma linda tá? E eu queria
trabalhar. Enéas, você não tem condições. Mas eu vou conseguir doutora, eu vou
falar pro Pastor pra ver se ele conhece alguém. Tudo bem, fica à vontade. Lembra
que eu tô aqui pra te apoiar. Qualquer decisão que você tomar na sua vida eu tô
aqui pra te apoiar. Eu falei com o Pastor, o Pastor arranjou um moço lá que tem
uma refrigeração. Eu fui. Muito sintomas. Gente, vocês não imaginam como eu
tava mal. Mas eu queria viver. Como diz Nietzsche: a vida é configuração mental
e fisiologia. O resto você inventa. Segue ou não segue. Você se configura.
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Porque a saúde não é uma constante de satisfação, mas o a priori do poder


de dominar situações perigosas, esse poder é usado para dominar perigos
sucessivos. A saúde, depois da cura, não é a saúde anterior. A consciência
do fato de curar não ser retornar ajuda o doente em busca de um estado de
menor renúncia possível, liberando-o da fixação ao estado anterior
(CAMGUILHEM, 2005, p. 70).

Até pra você pensar em Deus, numa religião, numa filosofia, numa política, tem
que passar pela tua mente. Você autorizar pensar aquilo. Isso que me dava força.
Entendeu? Fui lá no irmão, na refrigeração. Ele falou assim: éh irmão, tô vendo
que você não vai dar pra ter refrigeração, não. Já vi. Mas vamos ver aqui no jornal
pra ver se tem alguma coisa na tua área. Ele abriu, fez uma oração, apontou e
falou: vai nesse aqui. [...] Toma um banho e vai nesse aqui. [...] Quando cheguei
207

lá na gráfica, que eu falei com seu Pacheco, que Deus o tenha, eu trabalhei uns
oito a nove anos com ele. Fui até encarregado, depois. Tudo em crise. Casei em
crise. [...] Ele virou pra mim, filho: minha sobrinha tem o mesmo problema que
o teu. Olha Deus!? Só fuma, só toma café. Nem banho, nem se alimenta direito...
você tá pedindo um emprego de auxiliar de compositor?! Na época... hoje é
computador né... virou... tem o designer... [...]. Eu tinha essa profissão, que eu fiz
no SENAI, que minha mãe me colocou. Me preparando. Minha mãe era muito
sabia. Vou falar um pouco dela depois. E ele falou: vou fazer mais. [...] eu quero
que você seja o meu profissional. Você vai ficar... você quer ficar depois do
expediente? Uma hora, duas horas, aprendendo comigo, pra poder se tornar um
profissional, pra eu te pagar o piso? Que era muito dinheiro, o piso. [...]. Eu era
dezoito anos. Aí eu ficava, ele me ensinando. Todo dia. Todo dia. Que ele era
também um bom profissional. Já tinha assinado minha carteira como profissional
mesmo sem eu saber a função. Olha Deus [na minha vida]. Aí, botar quase 4
salários min/quase já fiquei bom. Por aí, já quase fiquei bom [risos]. Doente,
empregado, ganhando quase quatro salário mínimo. Era muito dinheiro. Aí, eu
pude comer, comprar roupa e eu, poxa... aí, eu fiquei legal. Mas mesmo assim:
toda vez que eu passava mal, ele deixava eu deitar no depósito, no estoque. Ou ir
pra casa ou ir no Pinel. Ele liberava. Me liberava duas vezes por semana, pra falar
com a doutora. E a doutora e ele conversavam. Uma proteção. E a minha mãe
falou antes de morrer: eu vou partir, mas Deus vai colocar anjos na sua vida, pra
te ajudar, meu filho. Eu pedi pra Ele, Ele prometeu. Eu vou partir em paz. Logo
que ela falou isso, na outra semana, ela faleceu. E veio a doença pra mim.
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Tudo bem. Aí eu tô... passava mal, ia pro estoque, deitava, voltava a trabalhar ou
eu ia pra casa. Ligava pra doutora lá no hospital, chamavam ela: doutora
Elizabeth, eu posso ir aí que eu não tô aguentando? Eu ia. Às vezes, ela até
esperava, depois do expediente... à noite, pra eu chegar... Anjos. Aí, outro anjinho
que entrou na minha vida. Fui vivendo né. Dinheiro não é tudo né... cara. A doença
continuou. Perturbado. [...] eu sou músico né... eu tocava na igreja e tinha um bar
evangélico, em Irajá, aqui no Rio. Aí, eu tô lá tocando e tinha uma garota me
olhando. Ela me olhava... cheio de vol/ será que ela tá me olhando mesmo? Já
era eu pensando que era sintomas. Ah não. O que que aquela mulher quer comigo?
O que aquela negra que comigo? Bonita desse jeito. Uma negra linda. Nossa... aí,
a amiga dela chegou: óh... minha amiga quer falar contigo. Mas, bem aquela? É.
Ela quer... veio aqui, mas ela tá com vergonha. Você pode falar com ela? Pronto.
Falei com a garota. Namoramos. Noivamos e casamos. Técnica de enfermagem.
Olha isso: remedinho na mão [risos]. Posso reclamar de nada, não é mesmo,
professora? Remedinho na mão. Tudo bonitinho. Aí, o meu patrão me botou como
encarregado. Responsável pela gráfica. Aumentou mais o salário, ainda. Eu abria
a gráfica, eu ia no banco fazer depósito. Sacar dinheiro. Quando ele não estava lá,
eu era responsável pela gráfica. Tudo isso em crise.

[...] Eu não aguentava mais os sintomas em si. Pedi a Deus: Senhor, me ajuda.
O Deus da minha mãe. O que eu posso fazer com essa doença? Eu não tô
aguentando. Eu tava bem, eu tenho casa, comprei tal, sou casado, mas sofro
muito. Falando essa parte de sofrimento. Eu fiz técnico de enfermagem no Liceu.
Às vezes, eu pedia a ela [pra esposa] pra me buscar no trabalho ou no curso de
administração, que eu fiz, que eu não aguentava nem voltar pra casa. Tão
sintomas. Todo mundo me perseguindo. Querendo me matar. Eu via isso, via
aquilo, escutava aquilo. E no dia das provas? Mas eu tirava nove e dez. Dia de
prova era certo ela ir lá pra poder me buscar pra levar pra casa. [...] Eu falei com
Deus. Deus falou: abra a Bíblia. Aí, eu abri a Bíblia [...] A Bíblia falou: o
conhecimento enaltece, enriquece e engrandece. Aí me deu um insight. Ahh...
208

conhecimento! Comecei a ler. Meu primeiro livro que eu li, foi psiquiatria,
psicologia, filosofia, sociologia... Aí fui lendo até hoje. Aí eu fiquei forte, que os
sintomas sumiram basicamente. Eu pude controlar.
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[Humberto] Maturana concebe que a vida, em suas mais variadas formas, trata-
se de um processo de conhecimento entrelaçado com a realidade. Nas palavras
dele, “todo ato de conhecer faz surgir um mundo”. Assim, a realidade na
qual cada indivíduo vive é o que ele constrói a partir da sua percepção, ou seja,
da sua visão de mundo ou modelo mental, ao mesmo tempo em que esta mesma
realidade também retroage sobre o indivíduo, construindo-o. [...] Alias, o que
Maturana revelou pela fenomenologia biológica, nomes como Nietzsche já
intuíam pela via da filosofia, quando enunciou: “Contra o positivismo, que
perante os fenômenos diz: ‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos é
o que não há; há apenas interpretações’ [...]. Tudo é subjetivo. 104

[...] um dia eu tava em casa né... me ajudou bastante, também, essa sacada: uma
cebolinha lá, só uma partinha podrinha e a outra boa. Eu falei, cara... eu sou
aquela cebola, né gente. Já pude perceber pelo conhecimento. Ter percepção
diferente. Porque a gente é conteúdo e referência externa. A referência externa
manda no meu conteúdo interno e vice e versa. Física quântica, hoje, que eu já
aprendi, um pouco. Aí, a cebolinha tava lá... eu falei: eu sou aquela cebola. Eu
tenho a doença pretinha, ali, que tá marcadinha... mas eu posso falar, eu posso
tocar violão. Sou casado, posso transar. Posso andar. Posso ter uma casinha.
Posso, posso... veio tanto posso. Basicamente eu fiquei bom.
(Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

A pergunta que então se coloca é a seguinte: a causa da esquizofrenia é ou


não única e absolutamente psicológica? [533] Como sabemos, em todos os
campos da medicina, esse tipo de questão é mais do que embaraçante, podendo
ser respondida somente em pouquíssimos casos. A etiologia comum repousa
sobre o concurso de condições distintas. Foi por isso, alias, que as palavras
causalidade e causa foram retiradas do vocabulário médico e substituídas por
condicionalismo. Concordo plenamente com essa medida, já que é impossível
provar, ainda que de modo aproximativo, se a esquizofrenia é,
primariamente, uma doença orgânica ou uma doença de origem
psicológica. Embora possamos suspeitar com várias razões da natureza
orgânica do sintoma primário, não podemos ignorar o fato comprovado de
que muitos casos têm origem por ocasião de um choque emocional, de uma
decepção, de uma situação difícil ou modificação do destino etc., e que,
além disso, muitas recaídas e melhoras se devem a condições psicológicas.
(JUNG, 2015, p. 208)

[...] Agora tô querendo uma nova etapa da minha vida. Entende? que eu tô
querendo pautar. E vou conseguir. E, não pararam anjos de me ajudar, de estarem
comigo. Pessoas boas né... tem participado da minha vida. Se eu for falar aqui...
Inclusive a minha psiquiatra, a Elizabeth Vallier, foi a minha madrinha de
casamento. Que eu não conseguia na época. Não vou conseguir falar em cima,
[no altar] Elizabeth: não, Eneas, eu vou estar contigo. Eu vou ser sua madrinha,
pra você olhar pra mim e conseguir assinar. Depois eu vou embora. Aí, teve uma
hora lá, o pastor falando né... eu suando, nossa, nervosão, querendo tremer... Ela:

104
Maturana: sem cooperação e alteridade, não há futuro. Disponível em “Outras Palavras”:
<https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/maturana-sem-cooperacao-e-alteridade-nao-ha-futuro/>.
Acessado em 14/09/2021
209

com licença Pastor. Veio, me enxugou com o lenço. Lá no altar, gente. Todo mundo
chorou. Todo mundo sabia. Minha família sabia que eu tinha problema.
Acharam até um ato heroico: eu casar e querer ter responsabilidade, que talvez
eu não conseguia. Mas quando eu falei, lá no começo, que eu ia viver, mesmo
apesar da doença. O estoicismo. Entendeu? Li Nietzsche. Eu li os filósofos. Eu li
a Bíblia, um pouco. Eu retomei a leitura da Bíblia, agora de novo. Eu fui criando
ferramentas pra lidar com a doença e com a vida. Mas sofri um pouco. É por isso
que eu tenho essa tenacidade, essa intrepidez. Porque a doença me trouxe
benefícios de eu ser um ser humano melhor. Forte, capaz e amar a humanidade
porque eu sei o que é sofrer. É isso. (Eneas Elpidio, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

O estigmatizado pode, também, ver as privações que sofreu como uma


bênção secreta, especialmente devido à crença de que o sofrimento muito
pode ensinar a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras pessoas: "Mas
agora, distante da experiência do hospital, posso avaliar o que aprendi.
(Escreve uma mãe permanentemente inválida devido à poliomielite.) Porque
aquilo não foi somente sofrimento: foi também um aprendizado através
dele. Sei que a minha consciência das pessoas aumentou e se aprofundou, que
todos os que estão perto de mim podem contar com minha mente, meu coração
e minha atenção para os seus problemas. Eu não poderia ter descoberto isso
correndo numa quadra de tênis." (GOFFMAN, 2015, p. 13)

[...] Minha primeira crise que eu tive né... foi em 1976. Eu acho. Não sei
exatamente. Eu escrevia muita redação no colégio né... [...] e gostava de escrever
redação. Depois passei a escrever poesia. Depois em 1986 eu entrei em crise...
trabalhei no Clube de Regatas do Flamengo e comecei a ter medo de sair do
vestiário. Aí, eu andava meio assim né... estranho, estranhamente... dificuldade de
andar... essas coisas todas. (Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Na esquizofrenia encontram-se, com muita frequência, conteúdos estranhos


que inundam a consciência de maneira mais ou menos repentina e fragmentam
a coesão interna da personalidade de forma característica. Enquanto a
dissociação neurótica jamais perde seu caráter sistemático, a esquizofrenia
apresenta um quadro de acidentalidade assistemática que, muitas vezes, mutila
a continuidade de sentido tão característica das neuroses, a ponto de se tornar
irreconhecível. (JUNG, 2015, p. 219)

Eu trabalhava na Gávea... aí eu entrei em crise, comecei a andar em Copacabana


né... [...] e fiquei internado um mês. Um mês no IPUB né... depois que eu passei
mal: entrei no ônibus de turista né... eu achava que tinha que fugir de alguma
forma. Eu acho que na realidade tinha que fugir daquilo que estava me
atrapalhando né... conscientemente, eu sabia mais ou menos que aquil/ eu era uma
forma de chamar a atenção. Não sei exatamente. Só sei que eu entrei no ônibus
de turista e... fiquei lá sentado. Eu acho que na verdade, eu estava me achando
uma pessoa né... totalmente né... eu achava que o ônibus ia sair... que eu ia lá para
outro estado... só tinha gringo lá. Gringo, não. Era pessoal chileno... argentino.
Aí, depois, em 1991, eu entrei em crise também. Tive uma crise, mas eu fugi. Fugi
do hospital... e depois, passando mal na rua né... um bombeiro me chamou e me
pegou... e as pessoas ficaram rodeando achando que eu tinha epilepsia... só ficava
escutando isso né... mas eu ficava sem controle né. Então... Aí, o bombeiro me
pegou [e] falou: você tem esquizofrenia? Aí, eu falei: tenho, ué. Aí, tomei injeção
e fiquei bom e a doutora me liberou [...] O enfermeiro do corpo de bombeiros que
me deu a injeção [...] me levou pro hospital. Aí, eu estava/eu não sei porque... eu
fiquei com medo de ser reconhecido. Não sei porque. Eu acho que não queria mais
voltar pra ser internado... Então, eu menti totalmente. Aí, a doutora perguntava
210

um monte de coisa eu falava: eu não sei, não sei. Aí ela falou: assim não é fácil.
Assim não vai dar certo. Aí, eu peguei... eu tava até sem camisa neste dia... e fui
embora. Fui lá pra casa do meu irmão. Aí, cheguei lá, o porteiro falou, assim: não
pode entrar sem camisa, não... aí, eu fui entrando. Entrei direto. Aí, quando chegou
lá em cima, minha cunhada tava lendo a Bíblia. Tava lendo a Bíblia lá..
coincidência né. Apareci justamente para ela... tava lendo a Bíblia porque sabia
que eu tava precisando. (Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Ocorre com a medicina o mesmo que com todas as técnicas. É uma


atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o
meio e organizá-lo segundo seus valores de ser vivo. É nesse esforço
espontâneo que a medicina encontra seu sentido, mesmo não tendo encontrado,
antes, toda a lucidez crítica que a tornaria infalível. Eis por que, sem ser ela
própria uma ciência, a medicina utiliza os resultados de todas as ciências a
serviço das normas da vida. Portanto, existe medicina, em primeiro lugar,
porque os homens se sentem doentes. É apenas em segundo lugar que os
homens, pelo fato de existir uma medicina, sabem em que consiste sua doença.
Qualquer conceito empírico de doença conserva uma relação com o conceito
axiológico da doença. Não é, portanto, um método objetivo que qualifica como
patológico um determinado fenômeno biológico. É sempre a relação com o
indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de
patológico. Embora admitindo a importância dos métodos objetivos de
observação e de análise na patologia, não parece possível que se possa —
com absoluta correção lógica — falar em "patologia objetiva". É claro que
a patologia pode ser metódica, crítica, armada de meios experimentais. Essa
patologia pode ser considerada objetiva, em relação ao médico que a pratica.
Mas a intenção do patologista não faz com que seu objeto seja uma matéria
desprovida de subjetividade. (CANGUILHEM, 1995, p. 188 -189)

Aí o que que aconteceu: quando chegou em 1986, mais ou menos... eu já escrevia


poesia né... redação - essas coisas todas. [...]: eu fui trabalhar no Clube Regata
do Flamengo, sendo botafoguense né... era Clube Regata do Flamengo, sendo
botafoguense. Eu tinha que torcer pro Flamengo porque se não meu salário não
atrasav/ atrasava. Então, tinha que torcer pro Flamengo. Fazer o quê?!
(Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Essa parte do áudio/da entrevista eu escutei muitas vezes pois me chamou a


atenção não necessariamente o fato de que “tinha que torcer pro Flamengo”, ainda que
botafoguense. Mas sim, mais do que o porquê disso, a negação contida: ”porque se não
meu salário NÃO atrasava”. Trata-se aqui de um tropeço do inconsciente?

Mas eu gostava, sabe... eu gostava... era uma coisa emocionante porque quando
tinha festa do Flamengo, então, ia todo mundo lá... fazia uma bagunça e tudo... O
Zico [...] Então, aí, quando... quando aconteceu, quando/ depois/ aí quando eu
trambalhei lá no Regata do Flamengo eu comecei a andar meio estranho...
estranho né... comecei a andar estranho. Ter medo de sair do vestiário... então, eu
notei ... eu notei alguma coisa estranha. Teve uma vez até que eu cheguei pra minha
mãe – falei que tinha um emprego pra ela lá... no Regatas do Flamengo. E não tinha
emprego nenhum Era coisa da minha cabeça. E eu também/ e eu comecei né...
depois que eu comecei a ver coisas, a... a ouvir a porta fechando e abrindo... e
comecei a andar em Copacabana....[...] Só sei que eu fiquei internado. Fiquei
internado né... e, aí, nessas épocas toda eu participei de um concurso - concurso de
poesia né... [...]. E aí, em 96, exatamente em 96, eu encontrei os Cancioneiros né...
211

[...] Ai, eu descobri o meu talento pra música, também. E aí, tô até hoje lá nos
Cancioneiros, há 25 anos né... Faço a minha divulgação. O Antonio [Naná] é
percussionista. O Marcelo, também, já foi do grupo.
E também, participo, também, do Tá Pirando.
Todo ano eu participo do Concurso do Tá Pirando né, que é importante.
Eu acho importante. Eu acho que é importante também a/ a gente/ Eu participo
também com o Antonio Carlos da “Voz dos Usuários”, que é importante. Eu
participo da “Comunidade de Fala”, também. E trabalhei na TV Pinel, também,
né. Trabalhei 1 ano na TV Pinel. Que eu acho que é uma forma de mostrar o outro
lado da loucura né... mostrar que nós somos pacientes e não... seres humanos desa/
inaceitáveis né. Eu acho que é importante a sociedade nos aceitar como nós somos.
Entendeu? Porque ninguém tem culpa de ser o que é - na verdade né...

Eu acho que o preconceito é muito grande né... Eu acho que... por isso que eu gosto
de fazer o que eu/ a música né... como inspiração... como/ a arte né... Porque eu
mostro às pessoas que... eu tenho o meu talento e eu posso ser útil. Como o Miguel
Falabella né... tem transtorno bipolar. O Elvis Presley tinha transtorno bipolar. A
Marilyn Monroe tinha transtorno bipolar. E... parece que outras pessoas também...
tinham. Rita Lee né... Rita Lee, também. E outras aí que não falam né... [e] que tão.
Então, a loucura tá em qualquer tipo de pessoa.

Então, vou caminhando no grupo [Cancioneiros do IPUB] porque é um grupo


terapêutico. Hoje em dia eu tenho uma visão diferente do grupo. Eu tenho uma
visão que é um grupo terapêutico. Que não é uma coisa que... não tem lucro,
realmente. Eu faço por amor. É uma arte. Mas, eu acho de certa forma, tem uma
divulgação né... Então, eu tento pelo menos me destacado/ resgatado/ ser resgatado
do grupo - esse é meu sonho né. E aqui fora também paralelamente eu tento buscar
uma saída. [...] e nós já temos 25 anos. Participamos do Loucos por Música né...
nós participamos também/ nós fizemos o Canecão, duas vezes. Nós fizemos, na
Bahia, na Concha Acústica da Bahia. Com 6 mil pessoas! né... no Show do
Paralamas do Sucesso e Alceu Valença... O Circo Voador! Mas como é uma coisa,
assim... sabe como é né? Tudo é o dinheiro. Tudo é o dinheiro. O dinheiro é o que
move tudo né. O Circo Voador foi no 18 de Maio [no Dia Nacional da Luta
Antimanicomial) e também né... exatamente nesse dia, já tinham falado pra mim -
de uma certa forma, já tinham falado pra mim: óhh isso aqui não vai dar em nada...
Isso é algo que só no 18M [...] (Orlando Baptista, Cancioneiros do IPUB)

Eu, como bipolar, tenho domínio das minhas emoções. Hoje eu posso estar rindo
por dentro e chorando por fora. Chorando por fora, rindo por dentro.
Ou seja: sou um ator.
[...]Eu me sinto um estudo. Eu não me sinto um paciente psiquiátrico
propriamente dito. Eu me sinto um estudo como se não só o Instituto Philippe Pinel,
o Instituto de Psiquiatria [da UFRJ], estivesse me observando. Mas através dessa
observação que há aqui, o mundo inteiro iria me observar. Ou irá me observar.
E aí... um tem como utopia, outros tem como/ Eu me considero um visionário.
Entendeu? Eu poderia dizer que... definir numa quadrinha:

O homem que é atento ao canto da vida, compreende a natureza e o seu


significado... é um sábio que satisfaz o seu interior.
Aquele que não realiza o ser para o qual nasceu ilude-se com o conhecimento.
Pra não dizer: tolo.
(João Batista, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

SEM MAIS.
212

4.5 DESAFIOS, ALCANCES, EXPECTATIVAS, RESISTENCIA E MILITÂNCIA


FRENTE À CONDIÇÃO ADQUIRIDA DE ARTISTA

João Batista, o Palhaço Pirulito do Tá Pirando, foi de Roberto Carlos à Glauber


Rocha, e cantou já próximo do final da entrevista coletiva, para surpresa minha:
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
[...]
Tá contada a minha estória
Verdade e imaginação
Espero que o sinhô
Tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
Que a terra é do homem
Num é de Deus nem do Diabo.

Como a experiencia de desrespeito está ancorada nas vivencias


afetivas dos sujeitos humanos, de modo que possa dar, no plano
motivacional, o impulso para a resistência social e para o conflito,
mais precisamente, para uma luta por reconhecimento? (HONNETH,
2003, p.214).

É com essa questão em mente de Axel Honneth e emocionada com as lembranças


e esperança que me vieram quando de pronto ouvi “Se entrega Corisco! Eu não me
entrego, não!, cantada de repente após mais de 3 horas juntos com os colegas do Tá
Pirando e dos Cancioneiros do IPUB, nas dependências do Instituto Philippe Pinel, em
fevereiro de 2021 – a única entrevista feita de maneira coletiva - que tento pensar e
escrever essa última seção. De um tempo não longínquo em que era comum e legitimado
pelo Estado brasileiro encerrar com o selo da loucura e, portanto, encarcerar, silenciar e
deixar morrer toda espécie de estranheza humana, batizada de patológica, até os dias
atuais, muito se avançou na lida com a loucura. Não o suficiente, no entanto, a ponto de
serem poucos os desafios ainda a serem superados individual e coletivamente. A lógica
manicomial não se desmorona por completo apenas com a derrubada de muros físicos
que demarcam o dentro e o fora. O livre e o impedido. Nem tampouco com a soltura e
ramificação da loucura pela cidade. Existem também e bastante enraizadas as barreiras
de poder simbólico e de fato: subjetivas, políticas, econômicas, culturais e sociais -
difíceis de cair por terra pela força bruta e legal, se não, por ocasião de uma consciência
213

outra, valores éticos outros, visões de mundo outras, capazes juntas, de uma outra cultura:
Antimanicomial e Despatologizante. De uma “Luta por Reconhecimento?”
Da questão principal, reapresentada e discutida na seção 3 desse capítulo,
desdobram-se outras tantas. Dentre elas, a que se refere às políticas públicas especificas
de saúde mental e de fomento à arte e à cultura, preocupadas com a sustentação material
e emocional de pessoas, artistas, usuárias dos serviços públicos de saúde mental, que
diante de uma nova condição/identidade adquirida – a de artista, nascida dentro de uma
parte, justo, desses serviços, passam a desejar para si uma carreira profissional, um
trabalho remunerado, no campo artístico e cultural mais amplo - um novo modo de viver
menos contrariado, nos termos de Canguilhem (1995) e sem a tarja social e política que
os prendem dentro do estigma da loucura. Um “nome próprio” social-cultural-artístico e
politicamente reconhecido.
A respeito dessa segunda questão e nos limites dessa pesquisa o que nos é possível
sobre ela, resta já dito por todos os artistas participantes dessa pesquisa, que juntos
dialogam, expressando suas angustias e anseios – suas lutas e conquistas. Passa
particularmente, pela necessidade, ainda existente, de defesa, reconhecimento, ampliação
e financiamento do nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Público e Universal. Passa pela
necessidade de maior compreensão e participação política da sociedade no processo de
construção, defesa e controle social da democracia. Pela ampliação do debate popular,
acadêmico, social e político a respeito da loucura – pela aceitação da diferença. Como já
dito: “Ninguém é doido. Ou, então, todos”. Passa pelo respeito à vida e ao direito de ser
o que se é, desligado de aviltamentos sociais e de práticas políticas e hierarquizadas de
anulamento e segregação da diferença. Passa pela necessidade de afirmação e validação
dos sujeitos - das singularidades. Como alcançar um pouco disso tudo numa sociedade
adoecida e desimportada de si? Nas palavras de Antonio Naná, um dos Cancioneiros do
IPUB): “[...] cega, muda e surda... e preconceituosa [...] por atitude”.

Ô Aparecida: como é que é viver sozinha? Aí eu peguei e comecei a olhar, assim,


pro céu... pro horizonte... assim... que eu não via nada... e aí, falei assim: ah,
sozinha? A força vem do alto, né. Então não tem como eu te explicar como é que
é mor/ viver sozinha. Por que? Porque eu não vivo sozinha. Eu vivo com você. Eu
vivo com aquele - porque se eu cair aqui, aquele lá, vai me socorrer. Aí vai achar
meus documentos aqui da UFRJ, vai me levar lá pro Pinel e eu vou tá lá, não é?
Se eu cair aqui é assim. Igual fizeram comigo quando eu tava jogada na rua - que
me pegaram e me levaram e me deixaram no Pinel. [...]. E é assim. E eu não [me]
sinto sozinha por toda diferença que eu tenho - porque aqui fora [da instituição
psiquiátrica], pode até me chamar de doida né: que eu sou maluca, igual falou;
que eu sou inválida, igual falaram; mas eu acho que eu não sou nada disso né.
214

Eu sou maluca pra poder ver se eu consigo viver alguma coisa aqui na terra,
ainda. (Cida Lopes, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

[...] Depois dessa pandemia, eu quase não tenho vindo [pro Museu Bispo do
Rosário]. Porque a fir/ a... o negócio da... do/ a situação financeira né. Que nem
eu te falei. Que [eu] ia aposentar e aquela coisa toda. Prejudicaram tudo.

A gente tinha aquele cartãozinho. Tem que tá renovando... e aquilo me trouxe um


destorno muito grande. Um aborrecimento/ ficar renovando cartão. Aquela coisa
toda. Tem que tá andando atrás de uma coisa e outra, para ter o cartãozinho pra
an/ pra não tá pagando dinheiro de passagem. Sem pagamento quase nenhum...
entendeu?. Isso aí me trouxe um enfraquecimento. E eu procuro evitar de
aborrecimento. Se eu ficar nervoso, eu me descontrolo todo. Eu procuro até me
concentrar, entendeu? Pra num ficar aborrecido. [...] Pra eu não ficar né...
distúrbio da mente da gente né. Você ficar né naquela apavoram/ [...] Eu procuro
evitar tudo que me aborrece. Ficar, entendeu? Aí tinha aquele cartãozinho do
ônibus, tinha que tá recarregando aquilo pra... pra se precisar andar de ônibus.
Tinha que ir lá pra cidade... Tem que lá pro Posto de Saúde... Pegar um laudo...
médico. É tanta coisa né. Tem que ir lá na Clínica da Família. Clínica da Família.
Aí, vai pra Clínica da Família... Fora aqui! A Colônia! Que às vezes, a gente passa
pelo tratamento né. Tem que levar o laudo médico. Ir na Clínica da Família. Pra
depois ir lá... pra Prefeitura!. Aí chega na Prefeitura, rejeita tudo. Manda tudo
pra Clínica da Família. Nesse dia, pô: nunca mais mexi no meu cartão de ônibus.
Já pensou/ você vai/ aí, sabe que aconteceu? Aí depois mandou lá... pra não sei
onde. Longe. Pra voltar de novo. Aí eu fiquei/ aí eu parei né. Aí eu frequento
pouco. (Pedro Mota, Museu Bispo do Rosário)

[...] Eu acho que a gente sendo matriculado na Colônia - que a gente faz parte aqui
da Colônia - como que deveria ser feito né? A própria Colônia ter tudo pra cada
pessoa que frequenta né. Todos os direitos né. Do seu pagamento... do seu cartão.
A própria Colônia. A gente não era pra tá andando atrás de um lugar e de outro.
Porque aqui na colônia já tem Clínica da Família e tudo né. Já tem de tudo. O
que que [deveria] acontecer: eles mesmo deviam né, resolver nossos assuntos. Não
a gente ter que tá resolvendo. Procurando por um lugar e por outro. Pra ficar
chateado, nervoso. Aquela coisa ou outra né.

Você chega lá num lugar, você tá aborrecido. Você chega num lugar a pessoa vai
te tratar mal. A pessoa vai querer né, dizer que você fez uma coisa errada. Você
não fez.
[Fabiane: Você acha que podia centralizar tudo aqui?]
Tudo aqui. A gente devia ter cartãozinho pra todo mundo. Acho que a Colônia
devia tá tendo isso. Eu acho que deveria ter tudo! Tudo isso. Acho que deveria.
Você não ter que precisar de tá procurando laudo médico, pra ver/resolver
[Fabiane: E você acha que isso tem a ver com política?]
Tem a ver! Com certeza tem a ver ca política. Porque aqui já deveria tá todo
encaminhamento de todos os órgãos públicos né. Todos os departamentos públicos.
Se é um direito seu. É seu. né? Tem como, né? Você tem um direito a uma coisas
né. Vão querer tirar o que é seu? Não é certo, né?
E a política é que tem que olhar isso, né. É a política.

[Fabiane: que mais que caberia à política? ] Resolver nossos assuntos.


[Fabiane: quais outros assuntos?]
Em tudo. Em tudo, em tudo. A Clínica da Família: ó que que acontece? A Clínica
da Famí/se eu for precisar de uma Clínica da Família, pelo lugar que eu moro, tem
215

que ir pra um lugar mais longe, do que os outros mais perto. Ó, tem Posto de Saúde
próximo. Tem aqui a Clínica da Família que é mais perto do que a outra que eles
encaminham pra ir. É totalmente um/ totalmente desgovernado. Uma/ você vê
aquela coisa, totalmente o contrário do certo. E quem fez, eles estudaram!! Muita
gente estudou. Muita gente se formou. E não procura ver o lado, melhor, dos
outros.

Se eles procurar ver o lado melhor dos outros, vai ver o lado melhor deles também.
Se eles não querem ir num lugar distante né... as pessoas também não quer, né?
Se você vai ajeitar uma coisa pra mim: procurar um lugar mais perto, conseguir
mais perto de mim. Pra você vai ser a mesma coisa. Você provavelmente precisa
das coisas mais próximas de você né? [Fabiane: sim]
É a mesma coisa isso aí. Eu acho que deveria ter uma modificação muito grande
nisso aí. Todos é patrimônio público. Faz de conta né: a Clínica da Família que
eles alegam que eu tenho que ir. Lá na Praça Seca. Newton Bethlem. É um Posto
de Saúde no Tanque. O Jorge Saldanha. O mais próximo. Se eu for no Posto de
Saúde do Tanque. Eles manda ir pra Praça Seca. Que é mais perto.
[Fabiane: confusão]
Praça Seca pro Tanque. Aí eu vou na Praça Seca... aí que que acontece?: eles
não diz que o Tanque é mais perto. Realmente eu lamento! Tem que ir pra lá [diz
a funcionária].
[Fabiane: é o verdadeiro joga pra lá, joga pra cá. Não é isso?]
Entendeu? É tudo isso. É várias coisas que você vê que é totalmente errado.
Totalmente errado.

Ontem, ultimamente... eu tenho até conversado com os Seguranças na Colônia,


com as pessoas, que eu tenho um Projeto de Lei. De ter o quê? Novas delegacia.
Que se eu precisar de uma delegacia, a mais próxima é a Taquara. E é ali mesmo.
Se for em outro lugar, rejeita. E a Taquara ultimamente tá tudo negócio do online
né. Que nem eu te falei né. O serviço público, tudo negócio do online. E a Taquara
vira uma sede. Uma delegacia matriz. Aond/Tudo quanto é lugar tem comentado
isso. Em cada local, uma delegacia, uma filial. Faz de conta: eu moro no
[INAUDIVEL Paulo Ofoni], uma delegacia filial no [INAUDIVEL Paulo Ofone].
Aqui na Colônia, uma delegacia filial, num lugar por aqui. Pras pessoas daqui
preci/, entendeu? Aí vão procurar ver. Tendo a delegacia: vai o procurador de
justiça, vai o delegado, vai os promotores saber das avaliação hospitalares né?
Qual que é mais perto, qual que é mais longe. Tendo as delegacia, vai fazer isso.
Aí os delegado vai procurar o pessoal lá do Posto de Saúde do Tanque. Que vai
levar lá no [inaudível?Paulo Ofone]. Lá na Praça Seca né, o procurador de justiça
pro/pro soldado, do Posto de Saúde da Praça Seca, levar lá no [inaudível?Paulo
Ofone] para saber qual que é mais perto, qual que é mais longe, né. É, eu acho
que deveria ser assim, entendeu? O procurador de justiça, os promotores, oficial
de justiça. Saber se eles estão falando certo, entendeu? Cê vai no Tanque. Não:
tem que ir lá pra Praça Seca que é mais perto. Jorge Saldanha. E lá, é longe pra
caramba, em vista do Tanque. Aí alega que é mais perto.
[Fabiane: chega lá, não é] Não é.
É isso. E só nisso aí... aí Praça Seca já é pra pegar aquele negocinho do cartão do
ônibus, entendeu? Tem que ter um laudo médico lá da Praça Seca, na Clínica da
Família, pra renovar o cartão do ônibus. E quem vê essa coisa que realmente
estão fazendo errado, fica com a cabeça quente, entendeu? Aí dali, vai lá para a
cidade... pô, tem que trazer da Clínica da Família. Não sei que...
É um transtorno tremendo, entendeu?
[Fabiane: eu sei]
Aí que nem tô te falando: mais delegacia né. Que as delegacias, se for na
Taquara: É essa aqui mesmo! A delegacia é essa. Fazer as outra delegacia né
216

que... aí vai ter os delegados do local né, pra saber se essa/ aquilo ali é verdade
né. Que as outras delegacias já devia ter procurado saber disso há muito tempo
né. Das avaliações médicas né... por causa de que aquela pessoa foi lá, se aqui é
mais perto né? Se for na delegacia tem que ir na mais próxima né?
[Fabiane: sim]
Onde eu sempre pensei nisso, né. As avaliação que eles fazem por conta própria.
Ih... a população devia... entendeu? ter/ você num protesta pra várias situação?
Pra isso nunca teve protesto. Pra isso nunca teve aquela manifestação. Aquela
revolta. Pra isso nunca existiu.

[Fabiane: pra mudar alguma coisa né?]


Não. Pra mudar, não. Pra consertar, entendeu? Pra colocar no lugar. As coisas
certas no lugar. As coisas certas no lugar
[Fabiane: então, sim... mudar do errado pro certo] É

Até aqui na Colônia. Se a gente se consulta aqui na Colônia, cê num tá no


Hospital Psiquiátrico? Já devia ter tudo aqui. Pô, você não se aposentou,
precisava do/ do/ né, daquele documento da aposenta/ trazia o documento, recebeu
tua aposentadoria. Tudo... né?
[Fabiane: Eu sei, é tipo centralizar] É!
[Fabiane: Deixar tudo num lugar só.] É, saber qual lugar que tem que ficar né.
Fabiane: sim] Que é tanta coisa. Que as pessoas ficam/

[Fabiane: e sobre loucura?]. Isso aí já é mais que loucura, né não?


[Fabiane: (gargalhadas) eu imaginei que você ia falar isso]
Isso é mais que uma loucura (gargalhadas) [...]. Não é não?
Não é mais que uma loucura? Aí vai lá pra Praça Seca... né...

E sabe de onde me veio essa ideia de ter mais delegacia?


Tem pessoas que me chama de delegado!
[Fabiane: é?]
É. E eu fico lembrando do salário dos delegado, que é uma coisa que eu nunca
botei a mão no salário.
[...] Delegado é uma profissão.
[Fabiane: Alguém vai te convencer que você é delegado?]

Ué, mas as pessoas diz. Eu vou falar que não?


[Fabiane: sim, mas você acredita?]

Eles falando... sabe que que eu fico pensando? Nas profecia! Pra quem vai pra
igreja evangélica - que lê a bíblia, as profecias bíblica... muitas coisas falava e se
cumpria. [...] pras pessoas que vão pra igreja. A Besta falou com Balaão? São só
as pessoa falando. Não é animal falando né?

Jonas, vai pr’um lugar! O Jonas deixou de ir pra quele lugar. Não foi engolido
pelo peixe? Ló teve que largar a cidade de Sodoma e Gomorra. Noé teve que fazer
uma arca.

E se nesse tempo que nós tamo agora... se eu tenho que ser um delegado, mesmo?

Vê as doença. Tanta doença que existia né? Agora veio uma piorzinha, né?
[Fabiane: uma piorzona, né?]
Né não? Vão que seja uma profecia... de eu ter que ser, de ter que existir isso.
217

[Fabiane: eita. e aí?] Porque as coisas erradas tão de frente né... ninguém vai
dizer que aquilo tá certo né.

[Fabiane: Então as pessoas te chamam de delegado?]


Muita gente chama de delegado. Uma porção. Aqui na Colônia tem uma porção.
Antigamente tinha uns passeios, que a gente ia antigamente, [inaudivel] tinha uns
que só me chamava de delegado. Aí foi alastrando. Outras pessoas. Aí... eu:

Pô! Fazer delegacia é a melhor coisa né. Delegado tem que tá numa delegacia.
Tem que ter um bom salário. Um delegado recebe muito.

E fazendo as delegacias filiais lá, da maneira que eu tô te dizendo. As filiais não


precisaria receber aquele dinheiro todo que a matriz recebe. Geralmente é a/
[Fabiane: A matriz recebia e distribuía pras filiais, né?]
A matriz né... que eu falo, é essas ativa. As mais antigas.
[Fabiane: sim, tipo a Sede.]
Sede. Virar uma Sede. Essas que já tem. Em cada local, ter uma filial. Como a
outra é a matriz, a filial recebe menos. Não receber aquela/ [Fabiane: sim].

Geralmente um delegado recebe uma multidão de dinheiro. Uma bolsa cheia


dessa aí de dinheiro. O delegado né, uns 10 mil por aí a fora, né não?

[Fabiane: ô, deve ser até mais] Né não? As filiais recebem menos né. Recebem
menos. Que não precisa receber muito.

[Fabiane: como começou essa história de te chamarem de delegado?]


Muita gente, há bastante tempo.

[Fabiane: Mas por que será que eles chamam?]


Talvez seja uma profecia bíblica né. Já pensou? [Fabiane: Entendi]

Eu fiquei pensando nisso... de eu ser castigado... se [eu] rejeitar também, né não?

[Fabiane: Ahn... como?]


Se for um dom de Deus. Se for uma iluminação de Deus. Entendeu?
Que nem as pessoas eram chamadas por... Já pensou? Eu fiquei pensando nisso.

[Fabiane: Mas eu não entendi o rejeitado e o castigado. Eu não entendi]


Jonas não foi/ rejeitou de ir pr’um lugar que Deus determinou?
[Fabiane: Ah tá entendi, sim]
Não recebeu o castigo? [Fabiane: Entendi, entendi]
Ló não teve que sair da cidade de Gomorra que Deus ia destruir aquilo tudo?
Ló não saiu. Deus não destruiu? A mulher virou estátua de sal.
[Fabiane: Entendi, entendi. Você fica pensado: será que é uma profecia eu ser
delegado?]
Que que Noé fez? Noé faz a arca, que vai vir um dilúvio.
[Fabiane: Sim]. Entendeu?
E se isso aí for determinado por Deus, pra ser feito a situação?

Os erros, já sei. Não precisa de falar onde tá errado. Várias coisas eu sei né?
Quem tem falado são os outros que me diz. Não é as pessoas que chegou pra mim
e falou. Eu mesmo tenho visto. Várias situação. Entendeu? Eu observo as coisas.
As pessoa/ elas vê que eu já tenho essa ideia. Como outras coisas mais foi
resolvida, que eu mesmo falava, antigamente. E muitas coisas era feita. E as
pessoas pensaram por isso. Entendeu? Chama delegado.
218

[Fabiane: Sei. Então: delegado... artista...]

Éh, eu... eu... entendeu? E aí... a pessoa tem falado né. Eu não sou. Entendeu?
Mas se falou, eu tenho que aceitar, né não? Vai que vem um dinheiro daquele.

Um salário bom daquele né?


[Fabiane: Pois é né?]
Vou dizer que não quero?
[Fabiane: (gargalhadas) quem que não vai querer né?]
Não é bom para nós? [Fabiane: Claro que é]
... pra vida artística? [Fabiane: Claro que é.]
Isso aí. Eu tenho pensado nisso tudo.

[Fabiane: Entendi. E a arte?]


A arte... a arte é uma coisa que deixa a gente tranquilo né... A arte... As pessoas
gosta da gente - no bom sentido da coisa né... [...].
(Pedro Mota, Museu Bispo do Rosário)

[...] a questão terapêutica é fundamental pra que as pessoas continuem


sobrevivendo e vivendo as dificuldades do mundo, tá... O fato delas serem
reconhecidas ou, não; serem bons compositores ou, não... não pode ser algo que
faça [com] que elas saiam desse cuidado, desse autocuidado, que é inerente à vida.
Então, o autocuidado é o básico de tudo. Agora, qualidade artística, isso aí, a
gente vai construindo. A pessoa tem que ter a arte para viver - não viver somente
pela arte né, não sucumbir diante do seu potencial artístico - que vários artistas,
a gente vê aí, vários artistas sucumbiram. Morreram até jovens né, 27 anos que é
o clássico dos... e não só artistas da saúde mental, mas que sucumbiram né... por
conta dessa falta de cuidado pra vida - que a mus/ que nenhuma canção pode ser
maior que a vida de qualquer pessoa. É por isso: “cuidado meu bem... há perigo
na esquina”. Como dizia o Belchior: “Como os nossos pais”.
(Vandré Vidal, Cancioneiros do IPUB)

Enfim, eu participei do Tá Pirando, Pirado, Pirou!, da Luta Antimanicomial...


[...] e até hoje eu continuo buscando. Eu, o Orlando [Santos Baptista]... O
Orlando é compositor também... Nós somos compositores e temos músicas. Tamo
procurando divulgar nossas músicas também, né... ele tem samba, ele tem... ele
tem todo tipo de música. Ele grava vários estilos. Eu também gravo vários estilos...
e a gente tá procurando aí um caminho pra divulgar nosso trabalho.
(Marcelo Diniz, Cancioneiros do IUPB)

[Antonio Naná: [...] Você, Marcelo, participou lá no IPUB, de uma Rádio...]


É verdade. Radio Atividade [...] no pátio. [...] eu era o locutor da Rádio.
[...] a gente colocava a caixa de som pra fora.
[Antonio Naná: ...em frente à cantina]
Éh, aí, o pessoal que tava lá fora ficava escutando a Radio [...]
Era só a locução e tinha uma pessoa que fazia o comercial. [...]. Era ao vivo. [...].
Sem antena. [...] Com microfone. [...]. Uma simulação de Rádio. [...] Tinha
recadinho de namorad/ de... de namoro, porque na época a ala feminina era junto
com a ala masculina. Então, tinha namoro dentro do... da internação. [...] Ahh
faz muitos anos. [...] Eu tava, inclusive, internado quando fiz essa Rádio. [...] Pra
mim foi uma terapia né. (Marcelo Diniz, Cancioneiros do IPUB)
219

A arte, ela, desconstrói a loucura porque ela ocupa sua mente. E a construção do
artista é o que você começa a se posicionar naquela arte. Se eu sou um mal
cantor, não adiantou eu ir pra aquela arte, que eu só vou atrapalhar - quer dizer,
vou fazer uma terapia, mas o verdadeiro artista, ele, vai ficar: pô, ele erra toda
hora - nem vou nem falar nada, mas toda hora essa pessoa atrapalha. Agora, se
eu for da argila e não for da música, eu vou arrebentar na argila e vão falar:
poxa, é no calado que ele faz mais. Se eu for da culinária, não adianta argila,
não adianta música. A música vai ser pra mim ouvir, mas eu estou concentrado
em fazer a comida. Então, a comida me tira da loucura. Vai me fazer um artista
da alquimia. Não um artista da música, um artista do desenho, um artista do
crochê, um artista... vai me botar no... Então, eu acho que ela descontrói a
loucura, no sentido de ocupar a sua mente. Mas, quando você não é renumerado
pra’quilo... que você sai daquele momento, daquela terapia, você fica coisa de
novo. Começa a ficar constrangido de novo. Por exemplo, quem fuma, não fica:
tia, paga um cigarro pra mim?, paga um doce pra mim?, dá um real? Não tá te
roubando. Ta te pedindo. Mas é muito ruim. Era melhor que ela
tivesse. (Hamilton Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Ocupar a mente, impedir que uma pessoa se sinta e seja considerada inútil... e
mesmo, tantas outras possibilidades oferecidas pela arte no contexto de tratamento e
cuidado da saúde mental - como evitar o aparecimento de um certo constrangimento, de
uma nova angustia causada pela falta de remuneração, pela falta de trabalho, pela falta de
condições materiais capazes de fazer seguir a vida quando ela, a vida mesma, já se
transformou numa arte, numa vida que produz arte? Como dar conta dos problemas da
vida, além daqueles que a terapia, o autocuidado, o autoconhecimento, a produção de
arte, conseguem resolver ou pelo menos amenizar? Como responder à pergunta que se
repete: Sou artista, e agora?
“Meu sonho é ser resgatado dos Cancioneiros”, não se cansa de sonhar, Orlando
Baptista, já há 25 anos integrante - compositor e cantor - dos “Cancioneiros do IPUB”.

[...] essas coisas que eu peço da sociedade... né: re-co-nhe-ci-men-to.


Que nós somos louco, mas [...] nós temos dom e talento. [...].
Só falta reconhecimento. (Antônio Naná, Cancioneiros do IPUB)

É preciso de uma boa política pública para enobrecer a arte e a loucura.


(Orlando Santos Baptista, Cancioneiros do IPUB)

[...] As necessidades e normas da vida de um lagarto ou de um carapau em


seu habitat natural se exprimem pelo próprio fato de esses animais estarem
naturalmente vivos nesse habitat. Mas basta que um indivíduo questione as
necessidades e as normas dessa sociedade e as conteste — sinal de que essas
necessidades e normas não são as de toda a sociedade — para que se perceba
até que ponto a necessidade social não é imanente, até que ponto a norma
social não é interna, até que ponto, afinal de contas, a sociedade, sede de
dissidências contidas ou de antagonismos latentes, está longe de se colocar
como um todo. Se o indivíduo levanta a questão da finalidade da sociedade,
não seria porque a sociedade é um conjunto mal unificado de meios, por falta
220

justamente de um fim com o qual se identificaria a atividade coletiva permitida


pela estrutura? [...] "Nenhuma sociedade, diz Lévi-Strauss, é
fundamentalmente boa, mas também nenhuma é fundamentalmente má; [...].
(CANGUILHEM, 1995, p. 116)

Um apelo-solução urgente aparece aí nas palavras de Antonio Naná e Orlando


Baptista, ambos Cancioneiros do IPUB - um apelo à Sociedade e ao Estado Brasileiro,
que não deixam de fazê-lo, igualmente, todos os participantes dessa pesquisa. Pedro
Mota, um dos artistas do Atelier Gaia, no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea,
também anda “pensando nisso tudo” - nas delegacias... em ser delegado...

Ninguém sabe o que é a “psique”, como ninguém sabe até onde a natureza
da psique se estende. Uma verdade psicológica é, portanto, uma coisa tão boa
e respeitável quanto uma verdade física que se limita à matéria, como aquela à
psique. (JUNG, 2015a, p.260, grifos meus)

[...] os loucos são considerados comumente seres embrutecidos e absurdos.


Custará admitir que indivíduos assim rotulados em hospícios sejam capazes de
realizar alguma coisa comparável às criações de legítimos artistas – que se
afirmem justo no domínio da arte, a mais alta atividade humana” [...]. Antes
que se procurasse entendê-los, concluiu-se que tinham a afetividade
embotada e a inteligência em ruínas [...]. Hoje está demonstrado que mesmo
após longos anos de doença a inteligência pode conservar-se intacta e a
sensibilidade vivíssima. (SILVEIRA, 2015, p.18-19, grifos meus)

[Fabiane: quer falar mais alguma coisa Secundino?]


Não... [Aliás] Eu acho que... precisa ter perseverança pela vontade. Pelo amor à
causa, também. Acho que a rapaziada tá de parabéns, porque é difícil numa
sociedade tão estigmatizada como essa, botar a cara na lata e assumir a identidade
de paciente de Hospital Psiquiátrico e ter esse embasamento que vocês têm.
(Gilson Secundino, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)
[Em Memória]

Assim foi concluída a entrevista coletiva realizada para essa pesquisa em 12 de


fevereiro de 2021. Gilson Secundino, já não entre nós, parabenizou seus amigos do Tá
Pirando e dos Cancioneiros e ponderou sobre a relação da sociedade frente aos pacientes
psiquiatrizados. Repito aqui, como uma intenção minha também, as palavras de Thomas
Szasz, em o Mito da Doença Mental (1974): “A minha intenção é […] a de sugerir que
os fenômenos atualmente chamados de doenças mentais [...] sejam removidos da
categoria das doenças, e que sejam considerados como as expressões da luta do homem
contra o problema de como ele deveria viver”.
221

À GUISA DE CONCLUSÃO

Mas o que poderá “criar” um indivíduo que, porventura, não seja


poeta? Por causa deste equívoco muitas pessoas, nos tempos modernos,
intitularam-se “artistas”, por sua própria conta e risco. Como se a “arte”
nada tivesse a ver com a “capacidade”. Talvez quando não tenhamos
mais nada a criar, criemos-nos a nós mesmos. (JUNG, 2015a, p. 206)

Venho pensando há muito tempo como e o que afinal de contas devo fazer constar
finalmente registrado nesse trabalho. O que dizer em resposta à pergunta: o que esse
trabalho de pesquisa, essa imersão pessoal e acadêmica da Fabiane e da Valmore – da
Fabiane Valmore – tem a dizer? Tantas coisas e nenhuma. Como sintetizar em
retrospectiva um panorama humano tão grande e complexo? Paraliso diante de tal tarefa.
Escrevendo isso, aqui, ganho tempo e busco palavras. Organizo o meu pensamento, mas
também deixo claro o que já é sabido: o conhecimento é uma construção coletiva e
interessada - o social e humano: também, um mergulho dentro de nós mesmos.

Ouço ainda hoje a voz e o tambor.


Sinto ainda toda a energia e o fluir da vida.
O sol forte e a imensidão do mar.
Sim, há reminiscências e elas reverberam em mim.
(Fabiane Valmore, Teatro de DyoNises, set. 2021)

Cada Ritual do Teatro de DyoNises é diferente105. Ainda que com o mesmo


tambor, com o mesmo afeto, com as mesmas cantigas e no mesmo lugar. As lembranças
evocadas, os insights e despertares de toda ordem e profundidade que chegam até mim,
que me atravessam, às vezes, como um compressor - até mesmo as fugas de pensamento,
que busco o tempo todo evitar para me fazer presente, tudo isso me afeta, se soma a cada
encontro e eu vou ficando lentamente diferente. Ou melhor, pensando diferente. Há que
se ter paciência. É um processo doloroso, mas de aprendizagem. O corpo ainda não se
dobrou de todo - o meu corpo, melhor dizendo. E como é difícil escrever meu corpo.

105
Esse Relato de Experiencia foi escrito por mim em novembro de 2019 a partir das minhas estadas como
paciente nos rituais de cura do Teatro de DyoNises no decorrer desse mesmo ano. Durante basicamente
todo o tempo de construção dessa pesquisa, me perguntei onde nela eu o incluiria. Exatamente aqui, foi
assim, muito de repente, uma decisão tomada. Além disso, reitero, três anos mais tarde: sim, há
reminiscências. A arte enquanto relação, perdura, reverbera para além do tempo-espaço em que
ocorre. Se dela restam marcas que subsistem - marcas bonitas, saudosas, melancólicas - mesmo quando ela
já não se faz presente: lê-las, sabê-las, de fora, não significa inteira e necessariamente, uma romantização
da loucura, como em meados de 2018 eu supus completamente. Devo dizer também que uma versão muito
aproximada desse relato consta publicada na seção Experiências vividas: narrativas em primeira pessoa,
da revista Cadernos Brasileiros de Saúde Mental (CBSM – v. 13 n. 37 (2021)).
222

Senti-lo, colocá-lo em exposição, emprestando a ele personagens que pedem vida. No


teatro, na praça, no palco, na rua, na praia, por meio de nós. Como de repente, por meio
do corpo, de um corpo desajeitado, dar vida, emprestar vida, com-par-ti-lhar vida -
(re)inventar vida tantas mil, quando mal se percebe ter um? Quando ele está
acostumado a testemunhar e não, a atuar? Ele, meu corpo, permanece fortemente
engessado, enquadrado, dentro de uma cultura moralista que ajudou a conformá-lo dentro
de parcos limites de desenvoltura. Engessado por uma sociedade que forma para o
trabalho alienante, que educa para as mediocridades do cotidiano, que “vigia e pune’, que
o encerra, enfim, dentro de um discurso médico-cientifico – como uma extensão do
pensamento, como uma máquina. Tal como um “bocado de cacos clonados, globalizados
padrões de ser”. Muito dolorido exigir dele e de pronto, que se misture aos já
dançantes, como se já estivesse pronto para isso. Ou, ainda que desacostumado a se
deixar ver, pedir a ele que dance ao redor do caldeirão junto às bruxas de Macbeth
e ajude a exorcizar os demônios internos que nos consome. Desconcertante tudo
isso? Claro que sim. O mal-estar (subjetivo) salta aos olhos e trava a respiração. Às
vezes, nos leva, nos obriga a escapar disso tudo. Quantas vezes precisei me buscar de um
voo dado em pleno ritual? Enquanto voava, não estavam ali meus pensamentos. Já tinham
saído, fazia tempo, em busca eterna de entendimento do que acontece lá do lado de fora
de mim mesma, da minha existência no mundo. Somente o corpo permanecia ali. Claro,
funcionando, no entanto, de forma totalmente instrumentalizada, rotinizada e nada
criativa – como uma coisa. E bem separadinha do pensamento, conforme um dia assumiu
Descartes que assim é a relação entre corpo e pensamento/espirito e nos explicou Le
Breton, sobre a dualidade entre corpo e pessoa, sobre o fato de que “o corpo é associado
a ter um corpo e não a ser um corpo”. Querendo, é possível fugir de vez disso tudo.
Mas resolve?
Corpo e Mente se entreolham mutuamente desconfiados para ver quem decide.
Refletir ou Agir? Eis a questão! Como tornar público e coletivo um corpo que se fez
privado e íntimo? “Mexe, mexe, mexe, vocês que podem mexer”, canta Vitor Pordeus e,
em coro, com ele, todos os “melhores atores do mundo”. Impossível não sentir o
confronto interno entre a falta de trejeitos engenhosos com o corpo ainda não brincante,
a mente acelerada querendo a tudo controlar, compreender e justificar e a certeza dos dias
futuros em que o mexer-se não será uma questão de opção - quando as pernas já entregues,
não aguentarem mais o corpo que carregou, por exemplo. “Espírito da terra, Espirito da
agua, Espirito do fogo, Espirito do ar, mexe, mexe, mexe, vocês que podem mexer”, de
223

forma nada equivocada e com ouvidos mais atentos a essa canção, somos convidados a
pensar, sentir, reconhecer e mais que tudo, a dissolver no caldeirão, em cena, as profundas
angustias existenciais, as pulsões que nos implodem exigindo satisfação, as inseguranças,
incertezas, impasses e hesitações que nos afogam num mar de dúvidas constantes – que
nos imobiliza –, a ansiedade desmedida que nos encerra num beco de saída e nos exige
decidir entre vida e morte, as frustrações que nos faz desabar num abismo sem fim, as
carências de todo tipo, os medos, os sentimentos de abandono, vergonha, humilhação e
repugnância que nos deprecia, culpa e pune, os (des)amores e tantos outros dissabores
dilacerantes – verdadeiros colapsos internos - até que não haja mais cor, nem conteúdo,
nem forma disso tudo na sombra, sem elaboração, sem ressignificação, sem cura. Apenas
poesia. Utopia?!. Tão difícil é assumir interna e publicamente uma disposição para isso.
Aceitar a exposição de si-própria, como que despojada de mascaras, de braços dados
com a humildade e a gratidão num tempo-espaço imerso de afeto – onde quem já se
curou é convidado a curar o próximo no Teatro DyoNises. Torturante, desafiador.
Conseguir, demanda renascer depois de um luto feito de si próprio? Decerto, exige a
queda do Ego. Um verdadeiro “ser ou não ser, eis a questão!”. Afinal, espera-se de nós,
numa “sociedade do espetáculo”, que falemos de dor, de perdas, de fracassos, de não-
quereres, ou que exaltemos os alcances materiais e simbólicos e convivamos com o fato
de que também os relacionamentos, mesmo os amorosos, se tornaram mercadorias e, o
amor, liquido?
“O que te sustenta mais...
O sopro em cores do universo?
Os bens materiais?
Que faz de ti e tuas crenças?
De ti e tuas artes?
De tua ciência?
Com quanto amor se faz?
Quanto amor se faz?
Quanto de amor te faz?”

A despeito de tudo, essa canção, no entanto, eu a canto alegre porque sei que há
muito é o “sopro em cores do universo”, no limite, o que me sustenta e move. Difícil é
suportar as consequências de nossas (des)escolhas quando elas nos coloca numa
corda bamba: “Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz
ou pegar em armas contra o mar de angústias – e combatendo-o, dar-lhe fim?”.
Entrelaçada nesse confronto todo, como que numa tentativa de dar cabo dele, ao
invés de permanecer adoecida e assim isenta de tomar decisões, me soa como um
224

chamado à vida, cantar ao som do tambor, “Entre em cena, antes que a cortina fe-
che!”. Isso tudo ecoa na minha cabeça entre um ritual e outro e me faz mergulhar num
mar de angustia, cujas ondas me levam de uma cantiga a outra e me fazem debater entre
os trechos das encenações de Hamlet e Macbeth, a partir dos quais, sombras minhas
ganham luz, mas, ainda não, entendimento suficiente. Por que de súbito me cobri com
um véu negro e de improviso me fiz fantasma do Rei Hamlet numa das noites, no
Teatro Clinica Therezinha Moraes?. Nos rituais de cura, de passagem, muitos
sentimentos, emoções, corpos e olhares se entrecruzam com os meus e me encorajam, me
dão esperanças, mas também, medo e desassossego. É tudo tão difícil. Tem que se ter
muita coragem para fazer do estranho (alheio e do nosso) o familiar. Coragem tem que se
ter, é fato. Mas quem a busca com esse propósito, quem insiste pelo alcance dela, será
por que de algum modo já percebeu, mesmo antes de o saber por si próprio ou de ter lido
em Freud, que “O Estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é
conhecido, de velho, e há muito familiar”? Tem que se ter muita vontade, força e
persistência para conseguir tomar um rumo na vida no lugar de tomar um comprimido
buscando apatizar tudo o que pulsa e exige satisfação. Ou isso é uma tolice? Muita escuta
afetuosa e qualificada se faz imprescindível. Tem que se estar de mãos dadas para dar
conta da travessia - das ruinas, penhascos, abismos, correntezas, turbilhoes e redemoinhos
de emoções, delicadezas e dor. Como aceitar que viver querendo pegar manga no pé
de abacate é uma insensatez? Como se não bastasse tudo isso, como cantar sem desabar
penhasco abaixo até que se possa compreender que “A vida é leve, a vida é pesada, o
fardo que carrega é você quem faz, é você quem traz...”? Até que se possa ter condições
de procurar, reconhecer e de se desvencilhar dos ilusórios, fantasiosos e inconscientes
fardos acumulados, máscaras, fantasmas - sombras? Até que se consiga percorrer o
processo de individuação e fabricar o colorido e intimo lugar capaz de acolher toda a
nossa singularidade, toda a nossa realidade psíquica? “Um lugar pro singular”.
Tenho pensado sobre isso a partir de Canguilhem e, com ele, tentado suportar e
compreender os limites e alcances diante de um “sentimento de vida contrariada” que
ora me vejo embalada no meio de tantas balas – perdidas, asseguradas e mesmo
desembaladas. “A vida só se eleva à consciência e à ciência de si mesma pela
inadaptação, pelo fracasso e pela dor”, afirma Canguilhem (1995, p. 169) em O Normal
e o Patológico. A feitura dessa pesquisa me coloca em diálogo direto e concreto com a
vida na medida exata em que procuro, aqui, descrevê-la, compreendê-la. E transitando
pelos caminhos da arte, pelos quais desenvolvo essa pesquisa, vive-la. Logo, arte e ciência
225

me acompanham nessa tarefa, ainda que tímidos sejam os meus movimentos por meio de
mim mesma, do outro, do social... nessa empreitada que é o viver e fazer desse viver
objeto de pesquisa. Produtos de um “processo civilizador”? Das neuroses que daí advêm?
Cadê os corpos livres fora da loucura, fora das manifestações artísticas e religiosas
idiossincráticas? Fora das relações afetivas mutuamente compreendidas e respeitadas.
“Haverá paraíso sem perder o juízo ou sem morrer?”, já perguntaram os Tribalistas em
uma de suas canções. É preciso dialetizar, poetizar, amar, humanizar. É preciso de
ar, muito ar, de ars, para respirar. Evoé! “Cuidar de mim é cuidar do outro, cuidar do
outro é cuidar de mim”. Um outro mundo se faz necessário e urgente. Possível? Aí já é
uma outra utopia bem mais complicada. Nas cirandas de mãos dadas, me sinto segura.
Por que?: porque nelas tenho base e não estou solta a cargo de mim mesma. Sou um elo
na corrente. E isso não é de todo ruim e nem tudo está perdido, afinal, resta em mim
interesse de cantar com ânimo e esperança especiais, ainda que titubeando: “Quem deu
esse nó, não soube dar. Esse nó tá dado, eu desato já (...)”. O que eu preciso desatar?
Amarras sociais e morais? Sim. Um Outro, do qual eu dependo para caminhar tal como a
um alicerce e sobre o qual quando perguntada “Qual a distância que você precisa ter do
outro para ser feliz?”, eu respondo em silencio e perplexa: nenhuma!? Como que
percebendo que algo não está bem. Como que me dando conta de que a esse Outro está
presa a minha existência, tanto quanto, livre de mim, a minha angustia? Sim, outra vez.
Como que numa tentativa de me defender desse sentimento, dessa constatação, desse mal-
estar, fujo por um instante e me rendo junto com Caetano e Jorge Mautner: “Não, não é
minha culpa. Essa minha obsessão (...) Psicótico, neurótico, todo errado. Só porque eu
quero alguém que fique Vinte e quatro horas do meu lado No meu coração, eternamente
colado”. Um pouco mais adiante, quando me dou conta, já retornei e me vejo cantando
em uma só voz com o grupo todo. “Me ensina que eu te ensino o caminho, no caminho.
Com tuas pernas, minhas pernas andam mais”. Nesse momento, a unidade do grupo já é
uma realidade aos meus olhos e eu já não me sinto tão fora da curva. Sim, “teatro é espaço
e relação” e de ombros abraçados, podemos cantar e repetir: “Somos um círculo, dentro
de um círculo. Sem início e sem fim”. Nessa hora quem é de transe, já entrou. Daí, cantar:

"Não perde a oportunidade do amor, criatura.


Não perde a oportunidade do amor, criatura.
Em nossa cidade no virar de uma esquina
É mais fácil cair no crime, que no amor...
Mas o amor um dia vem,
para o ouvido atento,
226

a pele sensível,
o pulso acelerado.
Não perde a oportunidade do amor, criatura.
Não perde a oportunidade do amor, criatura...
cria a tua criatura, criatura cria tua.
Não perde a oportunidade do amor, criatura”

Tudo isso soa para mim como o ápice daquilo a que deveríamos todos nós nos
preocuparmos em não perder. Nesse momento, me sinto parte de um todo que vai me
aparecendo, pouco a pouco e permeado de “coincidências significativas”, ritual após
ritual, crise após crise, ali e acolá, juntamente com uma certeza crescente de que, sim, de
que vou acabar conseguindo ver tudo o que precisa ser visto e passado em revista... um
tipo de certeza parecida com aquela oferecida pela neblina em dias de inverno... sim, ela
passa e dá lugar à luz do sol em cada amanhecer por mais frio, escuro e onde quer que
seja e estejamos. Tais quais as memórias traumáticas quando ganham luz. “Saia pra rua,
venha se divertir, como teatro que é festejo e os brincantes estão passando aí”. E não é
que ora um, ora outro, homens, mulheres, crianças e idosos, transeuntes desconhecidos,
com e sem teto, aceita o nosso convite conforme vamos em cortejo caminhando e
cantando da Biblioteca Parque Estadual em direção ao Campo de Santana?!

“Chegue mais perto ator, atriz.


Companheiro, companheira dia-a-dia.
Venha logo homem, deixa de bobagem.
A arte é nossa linguagem de tecer cidadania.

Uns olham, outros olham e cantam. Uns poucos, de tanto que olham, se juntam à
roda ensaiando um cantarolar. Arte Pública chamando o povo para ganhar saúde mental.
Nessa hora, uma das minhas cantigas preferidas do ritual, me põe de corpo e alma, no
aqui e agora e eu canto em festa:

“Bocado de molambos molhados manchando o chão.


Bocado de molambos molhados manchando o chão.
Mas o que tinha dentro era gente ainda, era gente ainda.
Mas o que tinha dentro era gente ainda, era gente [linda]”.

Linda, aqui, eu canto por conta própria e risco.


Oh muito obrigada... oh muito obrigada! Evoé!
227

Pensar é bem mais fácil e raso que sentir


Sentir, a gente sente no corpo, na alma.
Na carne.
E ela está viva.
Se mexe. Pulsa. Reclama dor e a gente vê

A gente faz até por onde cessar esse movimento todo


É concreto, tá ali diante dos nossos olhos

Mas, em momentos limites, o pensamento


fica mesmo, é sem saber o que fazer

Bom... sem saber o que fazer, o pensamento já está acostumado a ficar.


Daí, as dúvidas e as hipóteses geradas sem fim

Mas quando é no corpo.


Quando esse corpo lateja e pede urgência:
aí a coisa ficou séria mesmo
e o pedido de socorro não cessa.

Nessas horas, terá o pensamento que se virar e dar conta?


Ou será o corpo mesmo
que dançando sem parar
vai pôr silencio em si próprio?
(Fabiane Valmore, nov. 2019)

Não é psicologia. É teatro. A gente acompanha pela mudança concreta do corpo.


Da cabeça, da cara da pessoa... e isso se manifesta por habilidade expressiva.
Quanto mais habilidade expressiva a pessoa desenvolve, quanto mais ela se
manifesta, melhor. Isso tá bem claro no nosso trabalho. A gente vê essa relação direta
entre engajamento teatral no coletivo, no trabalho, e evolução psiquiátrica favorável.
[Fabiane: entre neurose e psicose você vê essa evolução muito diferente né...].
Muito diferente.
O psicótico é instável e entregue.
O neurótico é estável e retraído.
O psicótico faz teatro muito melhor, só que ele não continua. O neurótico geralmente
nem consegue entrar em cena. Ou entra em cena com muita dificuldade. E é muito
estável e é retraído. E o psicótico, não. Ele é desabrido.
Pela performance você discrimina na hora.
(Vitor Pordeus, Teatro de DyoNises)
228

O porquê dessa pesquisa, o que me motivou a realiza-la, foram dois fatos. Primeiro:
pensar e questionar uma suposta romantização da loucura no contexto de residências artísticas
realizadas no Museu Bispo do Rosário – as primeiras desse tipo que tomei conhecimento. Depois:
perguntar como insurge o artista da loucura. Se essa foi a ordem dos fatos percebidos e
questionados por mim, construir essa pesquisa significou embaralhá-los e ver surgir outros.
Quando todos entrelaçados, me perguntei – ou melhor, escutei reiteradamente dos artistas,
histórias de rupturas biográficas: de dor e de construção de modos de viver, de conceber e de se
estar no mundo, outros. Exemplos de experiências de desrespeito, mas também de
reconhecimento intersubjetivo. Tão abundantes quanto, de normatividade vital - nos termos de
Canguilhem, de cura. De cura do que? Dos inumeráveis e perigosos [possíveis] estados do ser?.
Não, exatamente. Mas talvez, dos modos de ver, sentir, perceber, conviver, agir e reagir frente a
si próprio e ao outro – de cura dos modos já insustentáveis de se criar, de se pôr e de se manter
em relações existências e sociais, ainda mais quando permeados pelo sentimento de vida
contrariada, que gera crises, que critica e exige rupturas.
A condição de artista adquirida, conquistada, assumida, legitimada e validada: fabricada,
nos espaços terapêuticos presentes nessa pesquisa – social e intersubjetivamente reconhecida –
se custa alterar, ou mesmo se nunca será suficiente para modificar a posição social, via entrada
no mundo do trabalho, no campo profissional artístico e cultural, dos artistas participantes dessa
pesquisa; se nunca será suficiente para modificar, de todo, o status social de cada um deles -
as condições materiais/objetivas de sobrevivência, oferece, ao menos, um lugar, um papel social
– uma resposta possível às tão comumente perguntas colocadas e valorizadas numa sociedade
capitalista, neoliberal, meritocrática e preconceituosa como a brasileira: O que você faz? Você
trabalha com que? Fulano faz o que? Ah é... e ele trabalha onde? Ele estuda?
Poder responder a essas questões na condição autointitulada de artista é poder respirar
com algum alivio social que não demora, no entanto, tornar-se ofegante e constrangedor toda vez
que se impõe a necessidade de demorar-se nessa resposta. Como discorrer sobre a posição social
que se ocupa, nesse caso, fora dos pares, fora do espaço protegido da saúde mental
antimanicomial? O quanto ainda é necessário avançar pelas vias do amor, do direito e da
solidariedade, em busca da autosegurança, do autorespeito e da autoestima, no interior e fora da
Luta Antimanicomial, a ponto de fazer a loucura transitar sem tanto precisar se fazer presente e
necessária, justo, por causa de uma realidade socialmente compartilhada que a impõe? Pelas vias
do amor e do afeto a doutora Nise da Silveira já caminhou e deu mostra pratica e científica do que
se pode alcançar nessa caminhada – e essa pesquisa, em parte, crê-se, é testemunha disso.
229

[...] a construção que eu faço de arte é uma construção assim: ela tem dois níveis:
a construção de artista e a construção de... de pessoas ligadas ao movimento de
arte [...] Ali é um poeta, um artista visual, uma pessoa livre. Uma pessoa que quer
expressar o bem, expressar a comunhão entre as pessoas, a interação... em torno
de um propósito, assim, de paz, de festa, de realização física, realização, também,
de posses, também financeira, também, bem-estar financeiro. Bem-estar de saúde,
também. Bem-estar coletivo, também. Tá vivenciando aquilo, tá confraternizando
e tá exaltando...

o amanhã o morcego
o SOL A CORUJA
o arco-iris o gavião
a nuvem o FALCÃO
A ESTRELA A águia
a onda... da praia A GAIVOTA
O quebra-mar o curió
a ÁRVORE o CANÁRIO
a montanha O Pardal
o morro O QUERO-QUERO
o RIO o...
A CACHOEIRA ANDORINHA
a estrada de terra Rolinha
a estrada OS BICHOS
mato OS CARROS
a ponte As motos
a casa As bicicletas
o passáro Os Trens
O GATO os ônibus
o cão os aviões
o cavalo Os Navios
a galinha OS BARCOS
o galo As lanchas
A BORBOLETA
O GRILO
a cigarra

Tá... tá querendo extrapolar, assim, as coisas que você faz na lida diária né...
Você vai se contornando com aquilo né e vai assegurando aquilo pro seu ideário
[...] um conteúdo relacional com aquilo. SE RELACIONA E SE SALVA.
Entendeu? É isso. (Demetrius Lucas, Cancioneiros do IPUB)

A vida passa como chuva na vidraça.


A vida passa como passa o temporal.
Viva o Gurufim
Carnaval
Viva o Gurufim
Carnaval
(Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário)
Em processo de criação pro próximo desfile do Tá Pirando, que já tem enredo definido:
“Gurufim pra recomeçar”.
230

REFLEXÕES PÓS DEFESA: Um dialogo a partir da Banca Examinadora

Logo depois da apresentação e defesa online dessa pesquisa realizada nas


dependências da Universidade Federal do Espirito Santo (campus de Alegre), que
gentilmente me abrigou para esse fim, eu assisti inúmeras vezes a gravação e prestei muita
atenção em cada gesto, cada olhar e tom de voz, de toda a Comissão Avaliadora presente
no dia da defesa dessa pesquisa. Inclusive nos meus e nos dos convidados. Enquanto isso,
recuperava na memória e nas páginas acima, parte do processo de construção dessa
pesquisa, enquanto, também, buscava conversar com os colegas, artistas, participantes
dessa pesquisa - especialmente com os que puderam estar presentes no dia da defesa:
Orlando Baptista, Adilson Tiamo e Rogéria Barbosa – inclusive, convidando-os para fins
dessa pesquisa, a produzirem algum relato sobre terem participado e me acompanhado na
feitura e avaliação dessa pesquisa. Eis o que eu recebi por escrito no meu whatszap:

São palavras de pesquisa da Fabiane Valmore. Que sua pesquisa. Deveram transformar
em livros. Pois ela é uma escritora que escreve, o que fala as personagem, com a
própria escritora que vive a realidade dos autores da sua pesquisa. Com isso, ela faz
uma nova maneira das pessoas verem o mundo que vive. e pensar como ver o mundo.
Como [se] estivesse em duas janelas. uma em cada lado da rua. olhando para a mesma
rua. vendo o mundo em duas direção oposto. Nem Flaud (escrevi o nome do psiquiatra
errado) NÃO SABE ESPLICAR. (Adilson Tiamo, Museu Bispo do Rosário, 18/12/21)

Meu nome é Orlando sou usuário de saúde mental, conheci a Fabiane Valmore no bloco
ta pirando pirado pirou, durante a gravação com a Lelis outra usuária de saúde mental,
gravando o samba rosas caída, participei da sua pesquisa e achei interessante e
enriquecedor a sua fala defendendo os nossos direitos, não só no hambito da arte mas
também pondo se no lugar dos usuários inaltecendo os direitos humanos, fisicos e
mentais, com etica e sabedoria, fabricando uma nova imagem do louco" sendo solto
das amarras e das ferramentas que os impedem de crescer como ser humano,
construindo uma nova visao artistica e humanitária, nos dando esperança de ter uma vida
digna como um ser humano comum artista, e nāo louco" poucos nos vêem com esses
olhos, não nos fabricam mas destroem nos com defeitos, quebrando os nossos sonhos,
sonhos de sermos reconhecidos, simplismente, fascistas, sem sentimentos, autoritários
insensíveis e egocêntricos, que se perdem no caminho de uma estrada sinuosa que só
eles ganham, foi muito importante a excelente participação da Neli Almeida, e outros
que, julgaram a pesquisa, dando a nota 10, por puro merecimento demonstrativo, que
soma com diversas experiêcias uma só emoção. (Orlando Baptista, Cancioneiros do
IPUB, 20/12/21)

Como não ser grata?


Como não sentir que, sim, que essa pesquisa pode cumprir uma certa função social?
Que extrapola a academia?
Que ela possa ser lida e frutificar na sociedade, no meio do povo.
Na Academia, na Luta Antimanicomial.
231

Nilo Sergio Fernandes de Oliveira: ator da psiquiatria psicossocial, cantor,


poeta, comunicador, crítico literário e articulador antimanicomial – artista e militante
antimanicomial, usuário dos serviços públicos de saúde mental carioca, também foi
convidado para participar dessa pesquisa. Embora tenha de pronto aceitado o meu convite
em fevereiro de 2021 para participar desta pesquisa e, desde então, mantido contato
comigo, essa pesquisa acabou sendo realizada e defendida sem a participação direta dele.
Não exatamente por falta de vontade dele ou minha. Mas devido às circunstancias que o
fazia precisar “pensar bem”, e esperar, até sentir-se mais seguro para participar. Eu já
havia feito a defesa dessa pesquisa quando recebi dele, mais uma mensagem de áudio
reiterando o desejo de se fazer presente aqui também. Conversamos e a possibilidade que
encontramos foi, em decorrência das 6 questões que me foram colocadas pelas
professoras Neli de Almeida e Simone Meucci, que ele discorresse sobre alguma delas e
junto comigo buscássemos refletir e construir uma resposta. Ele então, de pronto,
escolheu falar sobre a da Romantização da Loucura a partir da música Balada do Louco.

Dizem que sou louco por pensar assim


...
Se eles são famosos, sou Napoleão
...
Se eles têm três carros
Eu posso voar
...

Deixo aqui transcrito quase que na integra o conteúdo de 2 áudios recebidos, cada
um com pouco mais de 8 minutos. Juntamente, o cartaz do documentário dirigido por
Rogério Faria Jr., porque nele consta uma foto do Nilo Sergio. Mas, também, pelo fato
curioso – uma sincronicidade (?) – de que tomei conhecimento desse documentário
gravado no Hospício de Engenho de Dentro, no contexto do Hotel da Loucura, num
momento próximo daquele em que Nilo Sergio escolhia Balada do Louco, justamente
para falar sobre a romantização da Loucura. Não, Nilo Sérgio, não quer ser Napoleão!

[...] Balada de um Louco e a outra... Maluco Beleza [...]. Essas duas músicas, elas,
anistiaram os pacientes psiquiátricos da função de loucos - loucos comuns, loucos
que matam, loucos que roubam, loucos que quebram tudo em casa - porque deu a
eles dignidade.

[...] eu tenho 61 anos, eu vi todas essas músicas serem lançadas. Balada de um louco,
já não aguento mais ouvir isso. Mas é o Hino da Reforma Psiquiátrica. Entende?
E eu jamais cantaria ela porque ela não me representa. Eu não me escondo atrás da
Balada de um Louco ou do termo de Maluco Beleza.
232

Nesse cartaz, em destaque: Nilo Sergio!

Inclusive esse menino que é nitidamente um paciente psiquiátrico que é o Criolo


Doido né... que toca muitas/ foi até gravado pelo Ney Matogrosso. Ele acha que
ser chamado de louco é uma láurea. É um presente de... de respeito, porque ele teria
que caminhar muito pra ser um Criolo Doido. O “doido” do Criolo né... Ele é muito
respeitado na comunidade dos músicos. Eles não conhecem o Nilo Sergio, por
exemplo, que é muito mais consistente do que ele, né...

O Rapaz do Detonautas é muito citado no movimento de política do Brasil.


Coitado. É um pobre coitado. Não tem consistência, não tem conteúdo. É um
roqueiro que tem mídia. Alguém dá mídia pra ele e a mim não dão, né.
Muito pelo contrário.

Então, a Balada de um Louco é isso: ela diz que... você... não-sei-o-que... eu sei
voar... né... É o tal do empoderamento... eu não gosto de gírias. De modas.

As roupas que eu uso são roupas que eu acho bonitas. Não é porque tá na moda ou
não. Eu ando de manga cumprida desde a minha adolescência. Eu gosto de me
compor como uma pessoa dita normal, entende?

Mas eu tremo os lábios em função do excesso de remédio que eu tomei nesses 61


anos né... praticamente, que eu me atendo. Desde 1979. Com 19 anos.

[...] Eu tive no mínimo 17 internações: de 5 a 6 vezes no manicômio de Engenho


de Dentro, umas 6 vezes no Pinel, umas 4 ou 5 no IPUB, 2 na clínica do Rio de
Janeiro, particular... A minha primeira internação, eu não sabia onde eu estava.

Eu não quero falar as tristezas que eu passei dentro do manicômio.


Pelo menos hoje.
233

[...] Então, essas duas canções, ELAS, TIRAM O PODER DA DISCRIMINAÇÃO.


Entende?

Porque mesmo os que nunca tiveram internação... nunca usaram remédios


regularmente, psiquiátricos... eles também têm vontade de... sair voando... de não
dar satisfação à sociedade... porque eles bebem 2 ou 3 garrafas com os colegas, de
cerveja, e se sentem lá no alto.

Por exemplo: eu tenho um processo, que quando eu tô feliz, eu rio muito, eu brinco,
eu falo, eu grito... E esse pessoal parece que ele tem que usar droga e álcool pra se
animar. Mas eu não preciso disso. Se eu tiver com colegas que eu teja feliz, eu fico
eufórico. Eu falo demais, eu já não durmo aquela noite, entende? Mas, não. Eles
precisam de álcool e droga. Entende? Álcool, principalmente. Mais do que droga.
Felizmente nós tiramos o tabaco da televisão. Você já viu a coisa de indústria de
cerveja, fazer propaganda de esporte? Qual é a coerência que isso tem? [...] Eu não
sei o que que a maconha vai financiar... mas que vai legalizar vai. A pressão é
muito grande. É difícil uma categoria profissional que não tenha usuário de
drogas né. Ai, as pessoas, às vezes, usam drogas pra fazer a cabeça.

Pra ficar o que? Doido!

Eles falam isso: eu quero ficar doidão!! - que é outro termo da sociedade pra falar
em loucura né. Como se loucura fosse uma coisa bonita.

LOUCURA, É UM SOFRIMENTO EMOCIONAL AGUDO,


INCONTROLÁVEL E, ÀS VEZES, INCURÁVEL.

[...] Isso aumentou muito com a pandemia [Covid-19] porque a pandemia no


mundo, ela... ela desvirginou a liberdade que a gente tava tentando construir né.
Até por causa do dirigente que a gente tem: o infectável, o imorrível, o imprendível
Capitão Jair Bolsonaro né. Eu prevejo uma Conferência [Nacional de Saúde
Mental], 5a, que vai ser neste ano que vem [em maio de 2022] que vai ser muito
barra pesada.

Muita agressão porque os militantes da saúde de direita tão botando os bracinhos


de fora. Já tão fazendo declarações que vão superar os 15 anos de erro das... Erro
pra eles. Mas nós fechamos leitos, nós fechamos manicômios, nós demos
democracia. As pessoas votam... questões. Os pacientes têm preponderância na
Frente Ampliada de Saúde Mental [Antimanicomial – FASM].

[...] O PACIENTE ESCAPOU DE SER DISCRIMINADO NÉ... E aí, criaram/


veio o poeta Paulo Coelho junto com o poeta Raul Seixas né, que foi o primeiro
roqueiro do rock in roll do Brasil. E realmente né... pari passu com os Mutantes.
[...]. Então foi romantizado o que era a loucura, o que era arte... era poesia, era
tudo né...

Isso é uma teoria, um pouco, principalmente, do Vitor Pordeus – que ele acha que
os estados alterados da consciência sem droga, são semelhante à momento de loucura
intensa. Entende? Aí... aí, romantizaram. Vitor Pordeus romantizou muito.

Ele é contra o uso de remédios né. Eu trabalhei com ele na praia e eu saia
adoentado de lá. Surtado do... do ensaio, porque eu fazia catarse em ambiente
público. Eu me entregava como Fausto. Como um misógino. Como homofóbico.
234

Como um perverso né. Eu pegava dentro de mim esses personagens né... Essas
personas. Aí, ficava muito bem: porque era eu!

Eu não tava interpretando nenhum personagem. Eu tava dizendo: olha, gente: se eu


pudess/ se fosse no meu caso, eu faria tal coisa: uma coisa bem má... contra a mulher,
contra o homossexual, contra paciente psiquiátrico né.

Ai, eu fiz um poema que seria pensando na condição do Milton Freire [poeta e
militante histórico da Luta Antimanicomial (em memória)] porque ele teve muitas
sessões de eletroconvulsoterapia, que agora temos um documento que diz/ que
a ONU decretou que é semelhante à tortura - tortura física.

Isso ainda vai dar muito pano pra manga, porque até pessoas do nosso campo, pra
amigos que não reagem, eles conversam horas e horas... com o paciente até
convencê-los né. Ou seja, tá decidido. [...] porque se você fica duas horas com uma
pessoa e ela não desiste de não tomar o choque, é porque você quer impor pra ela
uma coisa que não interessa [a ela]. Temos grandes amigos, gestores e profissionais
de saúde que usaram de uns poucos anos pra cá essa máquina, que agora e com
anestesia - você nem sente nada. Mas no tempo do Milton Freire, era amarrado e
com um bolo de pano na boca pra não morder a mandíbula e era muito sofrido.

Aí eu escrevi o seguinte: O poeta empresta seu Eu lírico ao sofredor. [...]


Então, ele começa:

O poeta empresta seu Eu lírico ao sofredor


Eles me chamam de louco
Como não sou louco, não tomo remédios

Tratar-me como uma psicóloga? Nem pensar


Não me interessa o que ela pensa de mim
Da minha loucura

Desfaleço em qualquer lugar


Tenho pesadelos
E grito

Recuso-me a me submeter ao outro


Por isso não estudo
Não trabalho
Minha ocupação é procurar a mulher amada
Idealizada dentro de mim

Abordo constantemente as mulheres


E elas se dizem ofendidas
Por o meu objetivo é reproduzir
A Felicidade

Vivo de Memórias do passado


Desconecto, entendendo o mundo
Caduco
235

Agora, uma citação de Carlos Drummond de Andrade:

“Não escreverei cartas de suicidas


Nem distribuirei entorpecentes

Meus amigos estão taciturnos


Nos nutrem muitas esperanças

Minha matéria é a vida


A vida presente
Os homens presentes

Então, o que que isso tem a ver com euforia romântica, que foi citada lá na Balada
de um louco? Quando a gente fala romântico não é a novela de romantismo, de beijar
na boca, de dormir junto, de fazer sexo. É uma Escola literária, que surgiu no final
do século XIX [...]. Então, o que que isso tem a ver com o romantismo?

O fato do eu lírico, que é o Milton Freire, não querer tomar remédio!

Por que que o paciente não quer tomar remédio?


Porque vão dizer que ele é louco!
Ele não é louco!? Ele não vai tomar remédio!
Aí se interna e, realmente, fica provado que ele é louco.

O SISTEMA É MUITO PERVERSO. ENTENDE?

Aí, ele não quer tomar remédio


E adoece.
Às vezes pega remédios caríssimos e abandona na porta da unidade [de saúde]. Que
faz falta em outro horário, pra outros pacientes.

Buscando compreender melhor por que as músicas Balada do Louco e Maluco


Beleza, escolhidas por Nilo Sergio, para falar da romantização da loucura, “anistiaram
os pacientes psiquiátricos da função de loucos” dando a eles “dignidade”, eu pedi a ele
que tentasse me explicar um pouco mais. Inclusive, porque as reflexões dele, a partir da
cultura – nas próprias palavras dele, me remetem mais ainda ao texto A “objetividade”
do Conhecimento nas Ciências Sociais. No qual, Max Weber (2003) afirma:
[...] o que para nós se reveste de significação naturalmente não poderá ser
deduzido de um estudo “isento de pressupostos” do empiricamente dado; ao
contrário, é a premissa para que algo se converta em objeto de análise
(2001, p.51). A tentativa de um conhecimento da realidade “livre de
pressupostos” apenas conseguiria produzir um caos de “juízos existenciais”
acerca de inúmeras percepções particulares. [...] Este caos, só pode ser
ordenado pela circunstância de que, em qualquer caso unicamente um
segmento da realidade individual possui interesse e significado para nós,
posto que só ele se encontra em relação com as ideias de valor culturais
com que abordamos a realidade. Portanto, só alguns aspectos dos fenômenos
particulares infinitamente diversos, e precisamente aqueles a que conferimos
uma significação geral para a cultura, merecem ser conhecidos, pois apenas
eles são objeto da explicação causal (p. 53-54). [...] o decisivo são as ideias de
valor sob as quais consideramos a “cultura” em cada caso. A “cultura” é
um segmento finito do decurso infinito e destituído de sentido próprio do
236

mundo, a que o pensamento conferiu – do ponto de vista do homem – um


sentido e uma significação (p. 57-58). [...] A premissa transcendental de
qualquer ciência da cultura reside não no fato de considerarmos valiosa uma
cultura valiosa qualquer, mas sim na circunstancia de sermos homens de
cultura, dotados da capacidade e da vontade de assumir uma posição
consciente diante do mundo e de lhe conferir um sentido. [...] Seja qual for
o conteúdo dessa tomada de posição, tais fenômenos possuem para nós uma
significação cultural, que constitui a base única de seu interesse cientifico. [...]
Disso resulta que todo conhecimento da realidade cultural é sempre um
conhecimento subordinado a pontos de vistas particulares. [...]. O
conhecimento cientifico-cultural tal como o entendemos encontra-se preso,
portanto, a premissas “subjetivas” pelo fato de apenas se ocupar daqueles
elementos da realidade que apresentam alguma relação, por muito indireta que
seja, com os acontecimentos a que conferimos uma significação cultural (p.
58-60, grifos em negrito, meus; em itálico, do autor)

Durante toda a releitura desse texto realizada após a defesa dessa pesquisa, do qual
trouxe aqui essa citação grande, busquei encontrar resposta para a pergunta que eu
considerei a mais difícil, feita pela professora Simone Meucci, dado que me resta(va)
dúvida sobre eu ter conseguido de fato fazer nesse trabalho uma reflexão sociológica:

QUAL CIÊNCIA SOCIAL É ESSA QUE VOCÊ PRATICOU?


Se ela foi também uma terapia? Se ela foi também reconhecimento...
Se ela foi também normatividade vital...
Se ela foi uma visita aos estados do ser... né.

Confesso, também, que nesse mesmo texto, especialmente nessa citação, eu


acredito ter encontrado condições para justificar e sustentar o incomodo, dois na verdade,
que senti nos seguintes trechos de fala da professora Neli de Almeida:

[...] efetivamente, do ponto de vista né... do nosso lugar de técnicos né... de


trabalhadores e trabalhadoras da saúde mental, a gente tá num certo caminho, né,
num certo domínio, de dar visibilidade às pessoas em processo de sofrimento... em
construir espaços de interlocução... mas isso não significa exatamente, exatamente...
num concreto da vida, um projeto de vida para essas pessoas, né? Muitas vezes é um
projeto de vida para uma bandeira. Mas não é um projeto de vida para essas
pessoas concretas – esses sujeitos materiais concretos né. E isso me ocupa bastante,
mesmo né... a minha cabeça, mesmo, né... Ocupa bastante porque a gente precisa
para além das bandeiras, trazer soluções concretas para as pessoas. [...] Eu vou
formular depois uma questão concreta para Fabiane, a partir daí.

[...] Nesses universos que Fabiane frequentou, justamente por eu também


frequentar e conhecer, vejo aí essa relevância... éh... dessa... dessa possibilidade
da Fabiane ter trazido à superfície, essas pessoas, né. Seus entendimentos, seus
valores, suas concepções. Isso é muito... é muito raro, também, porque,
normalmente, mesmo no campo da saúde mental, essas vozes ficam muito
diminuídas, secundarizadas, porque a gente não tem os espaços materiais pra que
essas vozes aconteçam, né? E efetivamente a gente está falando de pessoas muito
valorosas, muito talentosas, como Fabiane pode demonstrar e se vocês pudessem
conhecer, vocês, também, teriam essa dimensão exata, né? O Clóvis [Aparecido, do
Museu Bispo do Rosário], por exemplo, ele é um gênio. Ele é um gênio. Da música,
237

da escultura, né. E... há todo um conjunto de limitações para que essas pessoas
realmente possam caminhar.

O que tem chamado mais a atenção e ocupado/orientado a pratica profissional e o


fazer cientifico, a produção de conhecimento e de espaços de atenção e cuidado da saúde
mental antimanicomial carioca? Com Weber, na citação acima, resta claro que o interesse,
os valores, a visão de mundo, os pontos de vistas... os pressupostos do pesquisador,
definem o objeto de pesquisa. Definem o que importa pesquisar. Por isso me senti
incomodada quando ouvi: “normalmente, mesmo no campo [acadêmico?] da saúde
mental, essas vozes ficam muito diminuídas, secundarizadas, porque a gente não tem
os espaços materiais pra que essas vozes aconteçam, né?” E me pergunto, então: os
espaços materiais ou de interesse (de pesquisa)?. Até mesmo porque, guardadas as
devidas proporções, em Estigma – Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada,
de Goffman (2015, p.21), é possível ler:

“[...] Se se perguntar a alguém quem era Franklin D. Roosevelt, a resposta


provavelmente será que ele foi o trigésimo segundo presidente dos Estados
Unidos e não que ele era um homem que sofria de poliomielite, embora muitas
pessoas, é claro, pudessem mencionar a poliomielite como informação
suplementar, considerando interessante o fato de que ele tenha conseguido
abrir caminho até a Casa Branca a despeito de sua desvantagem. O aleijado,
entretanto, provavelmente pensará na poliomielite do Sr. Roosevelt logo
que ouvir o seu nome. (grifos meus)

Além disso, no Prefácio de A “objetividade” do conhecimento...” escrito por


Gabriel Cohn, também é possível ler:
A cultura opera como uma espécie de filtro, que seleciona no interior do
conjunto das experiências possíveis aquelas que serão consideradas
significativas no interior de determinados grupos humanos. O importante não
é a vigência de valores já dados, mas os próprios homens como atores que, ao
agir orientam-se por diretrizes que lutam para fazer valer também para os
demais. [...] Isso tudo significa que a Ciência como conhecimento [...] é
conhecimento [...] daquilo que os homens de certa sociedade, em certa
época, reputam importante, que valha a pena ser conhecido. E para
selecionar o que importa, o que tem significação para o conhecimento, só há
um critério; o da referência daquilo que se busca saber as ideias de valor que o
próprio pesquisador como membro da sociedade sustenta. (p. 10-11, grifos
meus)

O outro incomodo, aliás, talvez, mais uma surpresa, um achado, uma curiosidade
meio que já sanada, me aparece exatamente nesse ponto da fala dela, da professora Neli:
“Muitas vezes é um projeto de vida para uma bandeira. Mas não é um projeto de vida
para essas pessoas concretas – esses sujeitos materiais concretos né”. E me pergunto:
Que bandeira? Uma bandeira em nome de que(m)? Uma abstração, uma frustração, frente
238

aos desejos, necessidades e expectativas dos artistas que daí insurgem? Uma bandeira,
em primeiro lugar, a favor de melhores condições objetivas de trabalho? Uma disputa
política pela concretização de ideais, intenções, propósitos e interesses de cada agente, de
cada ator, de cada trabalhador da saúde mental, em luta? Uma utopia??

Ora, nem todas as três esferas de reconhecimento contem em si, de modo geral,
o tipo de tensão moral que pode estar em condições de pôr em marcha conflitos
ou querelas sociais: uma luta só pode ser caracterizada de "social" na
medida em que seus objetivos se deixam generalizar para além do
horizonte das intenções individuais, chegando a um ponto em que eles
podem se tornar a base de um movimento coletivo. Segue-se daí [...], que
o amor, como forma mais elementar do reconhecimento, não contém
experiências morais que possam levar por si só a formações de conflitos
sociais [...]. Em contrapartida, as formas de reconhecimento do direito e da
estima social, [essas, sim], representam um quadro moral de conflitos sociais
[...]. Portanto, se aqui, na relação jurídica e na comunidade de valores, as
finalidades individuais estão abertas em princípio para universalizações
sociais, então, ali, na relação do amor, elas estão encerradas de modo
necessário nos limites estreitos de uma relação primária. Dessa delimitação
categorial já resulta um primeiro conceito preliminar e rudimentar do que deve
ser entendido por luta social no contexto de nossas considerações: trata-se do
processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são
interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma
que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva
por relações ampliadas de reconhecimento. (HONNETH, 2003, p. 257, grifos
meus)

Pelo que de fato e no limite, luta, e mesmo cabe lutar, a Luta Antimanicomial,
frente à loucura do outro, mas também, frente às condições objetivas e concretas de
vida dessas pessoas, desses “sujeitos da margem”? - assim denominados pela propria
professora Neli, os nossos e tantos outros artistas antimanicomiais, usuários dos serviços
públicos de saúde mental?
Talvez, mais difícil ainda de encontrar uma solução seja tentar responder, eu
mesma, a essa “questão concreta”, inquietação minha também, colocada por último, pela
professora Neli de Almeida:

COMO PRODUZIR/ PRODUZIR ou GARANTIR... VIDA SOCIAL AOS


USUÁRIOS E ÀS USUÁRIAS DA SAUDE MENTAL?
Quais são os elementos, quais são os fatores, quais são as estruturas, né... O que que
de fato produz esse reconhecimento, garante esse reconhecimento? [...] Questões
concretas né... você traz essas quest/ essas demandas a partir das próprias vozes,
né... dos usuários. Então, essa questão concreta né...

Dado que a conexão com a internet travou prejudicando a escuta dessa questão,
solicitei à professora Neli, poder repeti-la:
239

Então, Fabiane, é quase que uma consequência, assim, decorrente das questões que
você foi levantando né... Quando por exemplo o Eneas [Elpidio] fala do
trabalho... né... uma das falas finais [da sua apresentação]. Então, como que você
vê essa solução né, uma solução mais efetiva né... pra esse reconhecimento.
Entendeu? Eu acho que você já sinaliza isso, mas eu queria te ouvir...

Tentar responder a essa “questão concreta” me faz pensar na possibilidade de uma


chamada ampla, de um convite contínuo à sociedade e ao Estado para refletir e agir frente
à questão política e moral da loucura e do sofrimento que existe ao redor dela. Nesse
exato ponto me permito aqui propor uma reflexão, que tentemos traçar um paralelo, a
partir de considerações sobre o “sofrimento assistido” feitas pela Cynthia Sarti, no final
da Aula Inaugural 2021: A Vida como Objeto das Ciências Sociais, do programa de pós-
graduação em Sociologia da UFPR, em resposta a um pedido meu. A partir do
antropólogo Didier Fassin, Cynthia afirma:

[...] o que o Fassin fala quando ele fala o sofrimento a ser assistido... quando o
problema do asilo [político] na razão, como ele chama de “razão humanitária”,
passa a focar o sofrimento... ele está criando uma base desigual por definição.

É muito diferente você dizer: o asilo está baseado no reconhecimento de um direito


do qual o cidadão, a pessoa, é privado... Você dá a ele esse... esse... reconhecimento
[...] pelo direito internacional, vamos dizer assim né. Por um outro registro. É muito
diferente porque [...] o que tá implicado nessa forma de asilo político, como foi o
que viveram os exilados políticos, é um pressuposto de igualdade.

Quando o sofr/ o que eu acho que é interessante na análise do Fassim, é que ele
mostra como pensar o asilo pelo sofrimento, por esse registro moral, introduz
uma desigualdade - você tá recebendo aqueles necessitados de uma ajuda porque
eles atribuem/ dá a eles uma condição de exilado, de refugiado, por algo que lhes
falta, introduzindo uma dimensão de desigualdade. E por um eixo moral né. São os
sofrimentos a serem assistidos. Isso abre o caminho pr’um tratamento
humanitário e não um tratamento de reconhecimento da violência que levou eles
à situação do exílio.

Então, com isso... por ex. [...] muitas pessoas pra conseguirem o registro né, o
registro de residência... elas, pra poder entrar no pais, elas se dizem doentes - para
poder ter... que aí elas são aceitas. Ou seja, não há mais o reconhecimento do direito
político ao asilo. O asilo passa a ser algo aceito como um direito humanitário.

Então você vem acolher um doente, mas não alguém que foi vítima de uma
violência e perdeu o direito de cidadania no seu pais - que era o princípio do direito
ao asilo né... Então, isso não existe mais. É assim que você vai criando a figura dos
cidadãos que não são pra ser acolhidos, mas cidadãos pra ser tolerados porque
estão doentes ou indesejados. Quer dizer: você não dá outra saída.

Ou eles são tolerados porque eles estão doentes e precisam ter uma ajuda humanitária
ou eles são indesejados. Nenhum dos casos você tem o reconhecimento da violência
à qual eles foram submetidos e que levou eles ao pedido de asilo.
240

Penso, mas posso estar equivocada, a partir dessa fala, que talvez, do mesmo
modo, também no campo da saúde mental antimanicomial, reconhecer e lutar, antes,
contra os fatores, os condicionantes, os contextos e impedimentos políticos, sociais,
subjetivos e materiais que levam à experiencia da loucura do que buscar acolher e
reconstruir a vida dos sujeitos que buscam (ou são levados) nos dispositivos públicos de
saúde mental, acolhimento e possibilidade de se manter de maneira radicalmente singular
num mundo socialmente compartilhado, sem que se procure igualmente reconhecer que
a necessidade concreta de se alcançar uma mudança de status social desses “sujeitos da
margem”, possa ser uma saída, uma entrada mais a fundo na questão de “como produzir
vida social”, de fato, concreta, aos usuários e usuárias da saúde mental que buscam
reconhecimento social e respaldo financeiro. Que não querem viver como que sob um
“coma induzido”, como, certa vez, me disse um dos artistas dessa pesquisa. Mas também
defendo que para isso seja importante a configuração de uma rede que ultrapasse os
limites daquela já alcançada pela saúde mental. Talvez, uma rede tecida pelas mãos da
educação, do trabalho, da cultura, da Justiça, do Congresso Brasileiro, da assistência
social, possa sustentar melhores condições de moradia, de saneamento básico, de
alimentação, transporte, lazer, segurança pública, vestuário, higiene, previdência, saúde
física e bucal, etc. etc. junto com a família, a sociedade, a universidade – no limite, com
e a partir do Estado. De um estado ampliado, para falar em termos gramscinianos?
Necessidades essas, estruturais, de toda uma grande maioria do povo brasileiro. Talvez
de mais objetivo, penso na luta pela defesa de editais de arte e cultura específicos e
direcionados para os artistas, usuários dos serviços públicos de saúde mental e, mesmo
em cotas, nos demais editais de arte e cultura, como forma de inclusão e reparação
histórica desses sujeitos, até mesmo, desacreditados, tal como objetivam as cotas raciais.
Penso também numa espécie de agencia nacional pública que mantivesse cadastrados
esses artistas, direcionando-os a espaços públicos tornados parceiros: museus, teatros,
galerias de arte, escolas, universidades, centros culturais... onde pudessem divulgar e
apresentar suas produções artísticas a preço popular. Significaria isso, também, acesso à
arte de forma ampliada e a custo baixo para a população e fonte de renda e satisfação para
esses artistas – ainda que compulsoriamente aposentados ou beneficiários de algum
programa social. No limite, um passo adiante na aceitação social da loucura como uma
forma de existência possível e real.
Retorno aqui à questão da romantização da loucura e às palavras de Nilo Sergio:
241

[...] Por que que eles são anistiados? Eu perguntaria pra você: quem é anistiado?
É aqueles que... que traficou o status quo, [que] se tornou aquele guerrilheiro...
roubou a nação...

[...]. E os pacientes psiquiátricos nunca roubaram ninguém. Ficaram violentos:


mataram a mãe, mataram a mãe... mataram o pai. Ou então, destruíram o
apartamento, como eu destruí, porque eu não tinha direitos. Se eu não tinha direito,
ninguém ia ter.

[...] Aí, eles foram anistiados por que? Quem é preso? Quem é preso é porque
causou algum dano à sociedade. Não é isso? [...] Então, porque que alguém é
anistiado? Porque cumpriu com a pena e tá na hora de sair.

E no manicômio judiciário, nós temos uma grande luta, porque as pessoas ficam
lá 10, 30, 40 anos.

O Nardoni que matou a filha por causa de uma paixão por uma mulher, não ficou
nem 10 anos e já foi solto. A Richthofen também matou o pai e a mãe e foi solta.
Entende? É assim: quem tem dinheiro se libera.

E eles são perversos. Eles tinham que estar no manicômio. Tomar remédio e tudo.
[...] a gente não quer que a pessoa fique lá 30, 40 anos porque cometeu um delito,
quando o preso comum não fica 20. Entende? [...] Então, porque que ele vai ser
anistiado? Porque ele causou algum mal à sociedade.

Essa sociedade que maltratou ele, diz que ele maltratou a sociedade.
Então, a família interna ele....

[...] Eu digo que foi anistiado porque... como a pessoa dança, canta... se cansa,
pra não incomodar a família em casa, come na unidade... é um verdadeiro
Hóspede da Utopia né... como diz o livro do Gabeira... [...] Fernando Nagle Gabeira.
Aí, ele... ele é anistiado. Porque ele tava preso, não tava? Não tava sob... sob...
clausura? [...] eu sei o que é privação de liberdade né? Você não tem ideia do que
é esperar dar 3 horas para ver a família. E tem gente que nunca vai ver a família.
Tem casos que a pessoa diz assim: olha, amanhã eu venho te tirar daqui.
E nunca mais aparece.
Mas alguém tem que trabalhar, não tem? Pra manter os outros?
E é ela que abandonou o filho no manicômio.

As pessoas não entendem isso. Pensam que as pessoas são más. Tem essa coisa
moral: ahh a parente era má.... abandonou o filho... tanto que o ultimo que saiu do
presidio, do manicômio da Nise da Silveira... ela chorou na televisão e disse: olha
infelizmente eu não posso trazer meu filho pra a minha casa, mas eu amo meu filho.
Ele vai para uma Residência Terapêutica e vai ser muito feliz.
Foi o último paciente. Pelo menos que se saiba né.

[...] Então, a pessoa tá presidiário, não tá? Presidiário anistiado. Eles são
anistiados porque são louco. E qual é o caminho que pessoas do bem... e,
também, eles, próprios, escolheram? É A ARTE!

É arte que diz que ele tem direito a fazer teatro, dança... ser feliz... ser alegre.
Fazer passeios, fazer festas... sabe? Eventualmente ter uma psicóloga, que na
minha unidade [no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro – CPRJ] nem todo mundo
tem... tomar seu remedinho direito pra não surtar... E não é muito necessário,
não. Eu descobri que a gente não tem nenhuma doença. A gente tem ansiedade e
242

depressão. A gente não tem esquizofrenia... bipolar... essas coisas todas, que é coisa
de médico doido... sabe? que nunca estudou direito a Reforma [Psiquiátrica].

[...] Ai, ele é anistiado porque tem uma música que diz: ele pode até ser louco, se
é que ele é louco, mas ele não/ ele é louco, mas ele é uma pessoa do bem - ele não
mata ninguém, ele não rouba ninguém, sabe? Ele não deseja o que não é dele. É
humilde. Muitos passam fome. Se não tiver aquela comida daquele dia... não vai
comer naquele dia. Entende?

Não sabe cozinhar um arroz... não lava uma roupa... tanto qu/ como na minha
unidade: traz percevejo da casa deles pra dentro do manicômio. O Manicômio foi
desentupido 2 vezes. Já contaminaram 2 vezes o CPRJ. POR QUE? Porque o CPRJ
não tem Residência Terapêutica.
QUAL O DEBATE???
Eles são porcos ou o manicômio não dá a devida qualidade que devia dar?

Ele é anistiado porque um sistema cultural libera a arte que diz que ele
constantemente não é um bandido. Que ele é um louco manso!
Assim como o Criolo Doido [...] [também] não entende isso.
Criolo Doido, acha muito bonito ser doido.

Nilo Sergio, fez questão de deixar claro que falaria da romantização da loucura a partir
da cultura, antes que da política – como se (ess)a fala dele, a própria cultura, essa pesquisa
e, mesmo a vida, pudessem existir fora da política, fora dos valores, dos significados e
sentidos, que conduzem as nossas ações sociais. Gabriel Cohn, no Prefácio de “A
‘objetividade’ do Conhecimento...”, afirma:

Cultura, para ele, [para Weber] não é um campo de consensos normativos, de


diretrizes de avaliação às quais todos aderem, mas é um campo de disputas,
de luta entre os homens para definir quais são as qualidades das coisas, das
condutas e das ocorrências que têm caráter exemplar e podem servir como
orientação perante o mundo. [...] É que, para ele, [para Weber] o mundo da
cultura não é aquela dimensão da realidade social que confere sentido ao que
os homens fazem, mas ao contrário, é aquela arena significativa em que os
próprios homens atribuem valor ao que fazem. (p.10, grifos meus)

Será que a Fabiane romantizou [a loucura]? Será que ela conseguiu não romantizar?
[...] pra mim tá muito claro que não foi romantizado. Mas como foi esse caminho
pra não romantizar? As suas escolhas, o jeito de organizar as entrevistas...
(Professora Simone Meucci)

[...] Você fala na romantização da loucura né... foi o seu primeiro espanto: será
que a loucura está sendo romantizada? [...] eu tentei ver no seu texto, como é que
você ia produzir uma solução pra esse seu espanto né... Afinal, a loucura tá sendo
romantizada? Eu não encontrei no seu texto uma resposta pra isso, né... [...] E eu
não sei como você, na verdade, nesse trajeto, você respondeu essa pergunta. [...]
Então, eu fiquei curiosa em relação a isso. (Professora Neli de Almeida)
243

Procurando melhor refletir e responder a essas 2 questões sobre a romantização


da loucura, e bem próxima de Weber, fui me permitindo trazer aqui essa longa fala do
Nilo Sergio, que discorre sobre a romantização da loucura e até coloca perguntas:
“QUAL O DEBATE???
Sobre se a loucura está sendo romantizada, como supus em 2018, dentro do
contexto exato apresentado nas páginas 27 a 29 dessa monografia, e sobre como procedi
para buscar não romantizá-la, nesse trabalho, o que posso dizer é que quando li:

Outra artista, Fernanda Magalhães, [...] realiza uma residência artística na


Colônia e desenvolve sua ação junto às mulheres internas de longa duração,
dentro dos pavilhões que ainda conservam características asilares, resquícios
do velho hospício. [...] Num lindo trabalho de corpo, se aproxima dessas
mulheres, fechadas em seus próprios corpos [...] aquelas que suas cuidadoras
diziam serem indiferentes e que não se comunicavam [...]. Em uma
proposição em que tais mulheres foram vistas como iguais, sem a estética
estereotipada do doutor [...]. Despiram-se, MESMO QUE POR UM
INSTANTE, de mortificações subjetivas e foram capazes de interagir com
novos estímulos [...] (LABRA, 2016 p.18-19, grifos meus)

... sim, pensei que eu pudesse estar de cara com a romantização da loucura. Um
ano depois, porém, eu já podia escrever na página 27 dessa pesquisa:

Na ocasião em que fiz esses questionamentos, eu não conseguia reconhecer e


legitimar de pronto os efeitos futuros e terapêuticos das intervenções artísticas
citadas nos relatos que eu lia, porque me pareciam, antes de tudo, efêmeras, e
como tal, sem sentido, paliativas, fugazes. A arte vinha visitar a loucura e
depois se retirava sem deixar nada de si – simples assim, concluía eu,
equivocadamente em julho de 2018. Muito menos me foi possível pensar na
possibilidade de que tais performances poderiam inscrever marcas na memória
e no corpo dos participantes, provocando nesses, em alguma medida,
significados e sentidos mais duradouros que o próprio tempo físico de duração
das residências – re mi nis cên cias. Mais ainda, que tais residências pudessem
provocar/sustentar o desejo, a insurgência, a fabricação do artista. No limite,
que pudessem tornar facilitada a constituição de uma nova identidade pessoal,
social e política, de uma nova subjetividade capaz de questionar a (própria)
loucura.

Constam desse modo, entre as páginas 27 e 29 dessa pesquisa todo um discorrer


que culmina com: “Como se absolutamente, tais residências não deixassem no hospício
reminiscências borbulhando ao se despedirem dele”. É nesse ponto que eu dou, ou
suponho dar, uma solução para aquele “meu primeiro espanto”, assim chamado pela
professora Neli - claro, dentro dos limites e contexto exatos, nos quais a questão fora
posta por mim.
Já a questão feita pela professora Simone Meucci, sobre como caminhei aqui
buscando não romantizar... sobre como fiz as minhas escolhas [de pesquisa], como
organizei as entrevistas... é possível dizer que vi na loucura, poesia, mas principalmente,
244

dor. E sentindo-a, eu também, meu olhar, meu ponto de vista, meu interesse último...
estiveram desde o início imbricados e voltados pra ela. Impossível achar bonita a dor – o
que dela brota, insurge, pode até acontecer de ser. São coisas bem diferentes o adubo e
a flor que nasce dele. Ademais, ter lido no início desse curso de Ciências Sociais, A
integração do Negro na Sociedade de Classe, de Florestan Fernandes e A Situação da
Classe Trabalhadora na Inglaterra, de Engels e, agora: Nise da Silveira, Jung, Freud,
Foucault, Canguilhem, Goffman, Thomas Szasz e Axel Honneth, reforçou e guiou o meu
olhar desde sempre voltado e interessado na compreensão das misérias humanas.

[...] A validade objetiva de todo o saber empírico baseia-se única


exclusivamente na ordenação da realidade dada segundo categorias que são
subjetivas no sentido especifico de representarem o pressuposto do nosso
conhecimento e de se ligarem ao pressuposto de que é valiosa aquela verdade
que só o conhecimento empírico nos pode proporcionar. Com os meios da
nossa ciência, nada poderemos oferecer àquele que considere que essa verdade
não tem valor, dado que a crença no valor da verdade cientifica é produto de
determinadas cultura, e não um dado da natureza. Mas o certo é que buscará
em vão outra verdade que substitua a Ciência naquilo que somente ela pode
fornecer, isto é, conceitos e juízos que não constituem a realidade empírica
nem podem reproduzi-la, mas que permitem ordená-la pelo pensamento de
modo válido. (WEBER, p.125-126, grifos do autor. Em negrito, meus)

Talvez, no capitulo 4 dessa pesquisa eu tenha realizado, justamente, algo dessa


“ordenação da realidade dada”. Consta na página 20 dessa pesquisa:

Tal como diante de uma bancada cheia de azulejos coloridos e com texturas
diversas [...] eu me vi no Bispo do Rosário criando mosaicos – flores, navios,
lua – frente às aproximadas 300 páginas de entrevistas transcritas fiz algo
semelhante. Produzi cacos e juntando-os, procurei dar forma e sentido.
Procurei montar uma narrativa, outra, para dar conta de falar sobre “o transitar
pelos caminhos da arte como forma de desconstrução da loucura e fabricação
do artista”. Tomei a frente, aqui: carregando comigo toda a caminhada,
escutei até mesmo os silêncios e as palavras incompletadas. As palpitações,
pausas, pressas, preces. Os tropeços do verbo. Recortei, decidi e dei
orde(/ns)m. Desenhei, não traços e curvas; mas palavras contornadas.
Produzi conhecimento. Imagens: de mim e do outro.

A arte, ela, desconstrói a loucura porque ela ocupa sua mente. E a construção do
artista é o que você começa a se posicionar naquela arte. Se eu sou um mal cantor,
não adiantou eu ir pra aquela arte, que eu só vou atrapalhar. Quer dizer, vou fazer
uma terapia. Mas o verdadeiro artista, ele, vai ficar: pô, ele erra toda hora - nem vou
nem falar nada, mas toda hora essa pessoa atrapalha. Agora, se eu for da argila e não
for da música, eu vou arrebentar na argila e vão falar: poxa, é no calado que ele faz
mais. Se eu for da culinária, não adianta argila, não adianta música. A música vai
ser pra mim ouvir, mas eu estou concentrado em fazer a comida. Então, a comida me
tira da loucura. Vai me fazer um artista da alquimia. Não um artista da música, um
artista do desenho, um artista do crochê, um artista... [...] Mas quando você não é
renumerado pra’quilo... que você sai daquele momento, daquela terapia, você fica
coisa de novo [...] e retorna pro local de sofrimento. Começa a ficar constrangido
de novo. Por exemplo, quem fuma, não fica: tia, paga um cigarro pra mim? Paga um
245

doce pra mim? Dá um real? Não tá te roubando. Ta te pedindo. Mas é muito ruim.
Era melhor que ela tivesse. (Hamilton Assunção, Tá Pirando, Pirado, Pirou!)

Trago aqui novamente esse recorte da fala de Hamilton de Jesus Assunção,


oferecida em resposta à questão 10: Desconstrução da loucura e fabricação do artista
possui alguma relação na sua opinião?, porque acredito que exemplifica bem o que eu
assumo, aqui, com a expressão fabricação do artista – ou seja: uma experimentação, um
fabricar-se a si próprio. Uma descoberta de si. Aqui essa expressão passa longe da ideia
de um artificialismo, de um forjar. De uma manufatura, nos termos da Engenharia
Mecânica. É um fabricar em termos orgânico, subjetivo, mais que mecânico.
Além disso, esse trecho da fala do Hamilton, também me ajuda a responder porque
eu desde sempre soube que romantizar a loucura não era o que eu pretendia fazer....
Quando eu me perguntei sobre a romantização da loucura em 2018 durante a
leitura dos já referidos relatos de experiencia, escritos a partir de residências artistas
realizadas no Museu Bispo do Rosário, a minha questão era justamente sobre o depois.
E depois???
Hamilton, nos oferece um pouco da resposta.
Depois, há também “o retorno pro local de sofrimento”

Por fim, no meio de várias conversas com um colega do grupo de ouvidores de


vozes, “Nossas Vozes”, de Curitiba, em 12 de janeiro de 2021, fui perguntada:

Fabi... Quando você escreve e diz que sua angústia é transcrita, é porque tem
esperança que a compreendam? Mas se sim, que é angustiada, ou que é uma
pesquisadora? Porque, como você poderá conter o modo como vão te interpretar?
E afinal, como você quer ser vista? (Emerson Junior, grupo Nossas Vozes)

A minha resposta para essa questão e tantas outras tem sido já há um tempo:
No fundo, nada disso me importa. Eu beiro a borda.
Qual borda?
A do abismo - fácil de cair.
(Fabiane Valmore, 2021)

Dizendo isso aqui no final, respondo um pouco ao Emerson, meu colega do grupo
Nossas Vozes, mas também à professora Simone Meucci: Sim, essa pesquisa foi para
mim, “uma visita aos [inumeráveis] estados do ser”. Acolhimento e Fuga. Um espaço
íntimo de existência, sentires e reflexões teórico-metodológicas e existenciais.
Muito Obrigada.
19 jan. 2022
246

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251

APÊNDICE 1 – TCLE (Pacientes-Artistas)

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


CURSO DE GRADUAÇÃO
Bacharelado em Ciências Sociais – Linha de Formação: Sociologia
Universidade Federal do Paraná - UFPR

Nós, professora orientadora Dra. Maria Tarcisa Silva Bega e aluna Fabiane Helene
Valmore, estamos convidando ____________________________, paciente-artista do
( ) Espaço Travessia/Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde (Instituto Municipal Nise da Silveira)
( ) Grupo Musical Cancioneiros do IPUB (IPUB/UFRJ)
( ) Coletivo Tá Pirando, Pirado, Pirou! (Instituto Municipal Philippe Pinel)
( ) Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (Instituto Municipal Juliano Moreira)
( ) Teatro Clinica DyoNises (Universidade Popular de Arte e Ciência)
para participar de uma pesquisa intitulada Arte e (Lou)cura: o transitar pelos caminhos
da arte como forma de desconstrução da loucura e fabricação do artista, pois a
maneira como você foi se reconhecendo/construindo como artista é de grande
importância para a compreensão da insurgência do artista dentro da loucura – objetivo
principal da presente pesquisa.

Essa pesquisa é importante porque permite que os próprios pacientes-artistas dos espaços
terapêuticos mencionados acima narrem as suas histórias de vida, os seus percursos
terapêuticos por meio da arte e o papel de suas produções artísticas na constituição de
uma nova identidade/subjetividade e papel social para si (o de artista).

a) O objetivo desta pesquisa é descrever e analisar o movimento que a arte, em contexto


terapêutico, pode provocar no sentido de desconstruir a loucura e fabricar o artista para
fins de compreensão da insurgência do artista dentro da loucura.
b) Caso você participe da pesquisa, será solicitado que você por meio de uma entrevista
ofereça respostas a um roteiro de questões na forma de entrevista. No total são 12
perguntas sobre arte, saúde mental, loucura, trabalho e sociedade. Contudo, se durante a
entrevista você preferir não responder alguma(s) dessas 12 perguntas você precisará
apenas avisar à pesquisadora dessa sua decisão. Poderá inclusive desistir de dar a
entrevista e até mesmo solicitar que as respostas já oferecidas sejam desconsideradas pela
pesquisadora a qualquer momento.
c) Para tanto, você deverá comparecer no dia e horário tacitamente pré-agendados (entre
você, o coordenador do serviço assinalado acima e a pesquisadora) no mesmo local onde
você frequenta e realiza suas atividades artístico-terapêuticas conforme indicado acima
para conceder uma entrevista que levará aproximadamente 1 (uma) hora, será registrada
em um gravador e reprodutor de voz digital portátil e, posteriormente, transcrita.
d) É possível que você experimente algum desconforto emocional provocado pelas
lembranças evocadas durante a entrevista. Caso isso ocorra, ou você se sinta constrangido
diante de uma ou mais questões do roteiro de entrevista e deseje não respondê-la(s), basta
solicitar à pesquisadora para seguir para a próxima questão ou mesmo, interrompê-la
definitivamente ou solicitar um reagendamento para o término dela. Se você achar
importante e necessário poderá solicitar pronto-atendimento terapêutico e/ou clinico certo
de que o coordenador/responsável pelo serviço indicado acima lhe auxiliará nesse seu
pedido.
252

e) O benefício esperado com essa pesquisa é que você possa se sentir ouvido sobre a sua
história de vida, sobre a sua relação com a arte e sobre o que você pensa e sente quando
fala sobre a loucura na certeza de que terá a sua voz reproduzida numa pesquisa cientifica
e que portanto poderá ser lido(a) por outras pessoas, pesquisadoras ou não. Ou seja,
conceder uma entrevista para fins de realização de uma pesquisa cientifica oferece como
benefício espaço e tempo de reflexão sobre o papel que você ocupa no mundo tornando
público (tendo a sua identidade preservada/no anonimato, se assim você desejar) seus
anseios e sua experiencia a fim de que a ciência possa avançar, de que políticas públicas
para a saúde mental possam vir a ser influenciadas pela sua fala e dos demais colegas que
aceitarem participar dessa pesquisa.
f) As pesquisadoras Maria Tarcisa Silva Bega e Fabiane Helene
Valmore, responsáveis por este estudo, poderão ser localizadas pelo intermédio da
Secretaria do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná, no 9º andar
do Edifício D. Pedro I, situado na Rua General Carneiro, 460 – Centro, Curitiba, Paraná
- de 2af a 6af, das 8h às 12h, por telefone (41) 3360-5093 (exceto no período de
isolamento social devido à pandemia causada pelo Covid 19) ou por email:
fvalmore@bol.com.br e tarcisa.silva@gmail.com. Assim, você poderá esclarecer
eventuais dúvidas a respeito dessa pesquisa a qualquer momento que considerar
necessário. Além disso, o contato com a aluna Fabiane Helene Valmore também poderá
ser feito pessoalmente, entre julho e novembro de 2020, nas ocasiões em que ela estiver
na cidade do Rio de Janeiro. Assim como, a qualquer momento, por email
fh.valmore@bol.com ou por telefone (41) 995 44 71 74.
g) A sua participação neste estudo é voluntária e a qualquer momento você pode
interrompê-la e solicitar a devolução desse Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido. O seu atendimento e/ou tratamento está garantido e não será interrompido
caso você desista de participar desta pesquisa.
h) Enquanto essa pesquisa está sendo realizada as informações oferecidas por você
durante essa entrevista poderão ser conhecidas pelo coordenador/terapeuta responsável
pelo serviço assinalado acima e pela professora orientadora dessa pesquisa, Dra. Maria
Tarcisa Silva Bega. Depois de concluída a pesquisa, as respostas oferecidas por você
durante essa entrevista (parcial ou integralmente) se tornarão públicas por meio dessa
pesquisa acadêmica. Você poderá escolher, por meio desse TCLE, se deseja que essas
informações permaneçam anônimas, por meio de um código no lugar do seu nome, para
que a sua identidade seja preservada e mantida sua confidencialidade, ou se prefere torna-
las públicas de forma identificada por meio do seu nome completo e vinculadas ao serviço
acima indicado por você.
i) O material obtido por meio dessa entrevista será utilizado nessa pesquisa e
disponibilizado sem custo algum para você nos formatos digital e impresso. Em seguida,
será armazenado junto com o conjunto das demais entrevistas e anexado ao próprio corpo
da presente pesquisa ou oferecida ao Centro de Estudo/Biblioteca vinculada ao serviço
que você frequenta indicado a cima.
j) Não haverá despesas extras para a realização dessa pesquisa (uma vez que você a
entrevista será realizada no próprio local e horário que comumente você frequenta as
atividades no serviço assinalado acima) e você não receberá qualquer valor em dinheiro
pela sua participação.
k) Você terá a garantia de que eventuais problemas referentes a um desconforto emocional
sentido por você durante a sua participação nessa entrevista serão acolhidos no exato
momento e local de realização dessa entrevista – ficando o coordenador/responsável pelo
serviço assinalado responsável para lhe prestar esse atendimento/acolhimento inicial.
253

l) Quando os resultados dessa pesquisa forem publicados, não aparecerá seu nome, e sim
um código, a menos que você prefira e declare ser identificado pelo seu nome completo
e de forma vinculada ao serviço indicado acima, por meio do presente TCLE.
m) Se você tiver dúvidas sobre os seus direitos como participante de pesquisa, você pode
contatar também o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Setor de Ciências
da Saúde da Universidade Federal do Paraná (CEP/SD - UFPR), pelo telefone (41) 3360-
7259 ou por email: cometica.saude@ufpr.br. O Comitê de Ética em Pesquisa é um órgão
colegiado multi e transdisciplinar, independente, que existe nas instituições que realizam
pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil e foi criado com o objetivo de proteger os
participantes de pesquisa, em sua integridade e dignidade, e assegurar que as pesquisas
sejam desenvolvidas dentro de padrões éticos (Resolução nº 466/12 Conselho Nacional
de Saúde). Além desse CEP/SD – UFPR, você poderá, também, entrar em contato com o
Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (CEP
SMS/RJ) localizado na Rua Evaristo da Veiga, 16 – 4º andar, Centro, CEP: 20031-040,
Rio de Janeiro, por telefone: (21) 2215-1485 e/ou por email: cepsms@rj.gov.br. Também
poderá acessar o site: http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/comite-de-etica-em-pesquisa.

Diante do exposto nos parágrafos anteriores, eu, ______________________ residente à


________________________________ concordo em participar da pesquisa
intitulada Arte e (Lou)cura: o transitar pelos caminhos da arte como forma de
desconstrução da loucura e fabricação do artista.

Eu fui completamente orientado/a por Fabiane Helene Valmore sobre a natureza,


propósito e duração dessa entrevista. Eu pude questioná-la sobre todos os aspectos do
estudo. Além disto, ela me entregou uma cópia desse Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), o qual li, compreendi e me deu plena liberdade para decidir acerca
da minha espontânea participação nesta pesquisa. Eu entendi que sou livre para
interromper minha participação a qualquer momento sem precisar justificar a minha
decisão, sem qualquer prejuízo para mim e sem que esta minha decisão afete o meu
tratamento/atendimento no serviço indicado acima. Eu entendi que se durante a pesquisa
eu me sentir emocionalmente desconfortável eu poderei ser acolhido pelo
coordenador/responsável pelo serviço assinalado acima no momento de realização dessa
entrevista.
Depois de tal consideração, concordo em cooperar com esta pesquisa.
Você prefere ser identificado/a na presente pesquisa pelo seu nome completo e de
forma vinculada ao serviço indicado acima?
( ) sim ou ( ) não

Estou recebendo uma via assinada deste Termo.

Rio de Janeiro, ____ de ___________ de ________.

Participante: _____________________________________
Assinatura: _____________________________________

Pesquisadora: Fabiane Helene Valmore


Assinatura: _____________________________________
254

APÊNDICE II – TCLE (Coordenadores/Responsáveis pelo Campo de Pesquisa)

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO


CURSO DE GRADUAÇÃO
Bacharelado em Ciências Sociais – Linha de Formação: Sociologia
Universidade Federal do Paraná

Nós, profa. orientadora Dra. Maria Tarcisa Silva Bega e aluna Fabiane Helene Valmore,
estamos convidando ___________________________, coordenador(a)/responsável pelo
( ) Espaço Travessias (Instituto Municipal Nise da Silveira)
( ) Grupo Musical Cancioneiros do IPUB (IPUB/UFRJ)
( ) Coletivo Tá Pirando, Pirado, Pirou! (Instituto Municipal Philippe Pinel)
( ) Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (Instituto Municipal Juliano Moreira)
( ) Teatro Clinica DyoNises (Universidade Popular de Arte e Ciência)
para participar de uma pesquisa de graduação intitulada Arte e (Lou)cura: o transitar pelos
caminhos da arte como forma de desconstrução da loucura e fabricação do artista.

Essa pesquisa é importante porque convida o coordenador/responsável de cada um dos


espaços artísticos-terapêutico acima (campo de pesquisa) a falar sobre a sua história de vida
dentro do serviço que coordena e o modo como compreende e avalia a insurgência do artista
no contexto de tratamento da saúde mental mediado pela arte e pela cultura.

a) O objetivo desta pesquisa é descrever e analisar o movimento que a arte em contexto


terapêutico pode provocar no sentido de desconstruir a loucura e fabricar o artista.
b) Caso você participe da pesquisa, será solicitado que você ofereça respostas a um roteiro de
questões na forma de entrevista. Porém, se durante a entrevista você preferir não responder à
alguma(s) pergunta(s) você precisará apenas avisar à pesquisadora dessa sua decisão. Poderá
inclusive desistir de dar a entrevista e até mesmo solicitar que as respostas já oferecidas sejam
desconsideradas pela pesquisadora.
c) Para tanto, você deverá comparecer no dia e horário tacitamente pré-agendado entre você
e a pesquisadora para a realização da entrevista que levará aproximadamente 30 (trinta)
minutos.
255

d) É possível que você experimente algum desconforto emocional provocado pelas


lembranças evocadas durante a entrevista. Caso isso ocorra, ou se você se sentir constrangido
diante de uma ou mais questões do roteiro de entrevista e deseje não respondê-la(s), basta
solicitar à pesquisadora para seguir para a próxima questão ou mesmo, interrompê-la
definitivamente ou solicitar um reagendamento para o término dela.
e) O benefício esperado com essa pesquisa é que você possa se sentir ouvido sobre a sua
história de vida, vinculada à do serviço que você coordena, uma vez que ele faz parte do
campo da presente pesquisa, sobre a sua relação com a arte e sobre o que você pensa e sente
quando fala sobre a loucura na certeza de que terá a sua voz reproduzida numa pesquisa
cientifica e que portanto poderá ser lido(a) por outras pessoas, pesquisadoras ou não. Ou seja,
conceder uma entrevista para fins de realização de uma pesquisa cientifica oferece como
benefício espaço e tempo de reflexão sobre o papel que você ocupa no mundo e
particularmente no serviço que coordena – suas relações com as pessoas que fazem existir
esse serviço e suas relações com a arte e a loucura, tornando público (porem no anonimato,
se você assim o desejar) seus anseios e sua experiencia no campo da saúde mental a fim de
que a ciência possa avançar, de que políticas públicas para a saúde mental possam vir a ser
influenciadas pela sua fala e pela dos demais colegas que concederem entrevistas como você
à essa pesquisa
f) As pesquisadores Maria Tarcisa Silva Bega e Fabiane Helene Valmore responsáveis por
este estudo poderão ser localizadas pelo intermédio da Secretaria do Curso de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Paraná, no 9º andar do Edifício D. Pedro I, situado na
Rua General Carneiro, 460 – Centro, Curitiba, Paraná - de 2af a 6af, das 8h às 12h, por
telefone (41) 3360-5093 ou por email: fvalmore@bol.com.br e tarcisa.silva@gmail.com.
Assim, você poderá esclarecer eventuais dúvidas a respeito dessa pesquisa a qualquer
momento que considerar necessário. Além disso, o contato com a aluna Fabiane Helene
Valmore também poderá ser feito presencialmente entre setembro e novembro de 2020, nas
ocasiões em que ela estiver na cidade do Rio de Janeiro. Assim como, por e-mail
fh.valmore@bol.com ou por telefone (41) 995 44 71 74.
g) A sua participação neste estudo é voluntária e a qualquer momento você pode interrompê-
la e solicitar a devolução desse Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
h) As informações oferecidas por você durante a entrevista serão de conhecimento da
professora orientadora dessa pesquisa, Dra. Maria Tarcisa Silva Bega a qualquer momento
enquanto essa pesquisa estiver sendo construída. No entanto, se qualquer informação for
divulgada em relatório ou publicação, isto será feito sob forma codificada, para que a sua
256

identidade seja preservada e mantida sua confidencialidade, exceto se você desejar ser
identificado e declarar por escrito esse seu desejo no presente TCLE.
i) O material obtido por meio dessa entrevista será utilizado nessa pesquisa e disponibilizado
sem custo algum para você nos formatos digital e impresso. Em seguida, será armazenado
junto com o conjunto das demais entrevistas e anexado ao próprio corpo da presente pesquisa
ou oferecida ao Centro de Estudo/Biblioteca vinculada ao serviço que você coordena.
j) Não haverá despesas extras para a realização dessa pesquisa e você não receberá qualquer
valor em dinheiro pela sua participação.
k) Se você tiver dúvidas sobre seus direitos como participante de pesquisa, você poderá
contatar também o Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CEP/SD) do Setor de
Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, pelo telefone (41) 3360-7259. O
Comitê de Ética em Pesquisa é um órgão colegiado multi e transdisciplinar, independente,
que existe nas instituições que realizam pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil e foi
criado com o objetivo de proteger os participantes de pesquisa, em sua integridade e
dignidade, e assegurar que as pesquisas sejam desenvolvidas dentro de padrões éticos
(Resolução nº 466/12 Conselho Nacional de Saúde).
Eu, _________________________________ li esse Termo de Consentimento e compreendi
a natureza e objetivo do estudo do qual concordei em participar. A explicação que recebi
menciona os riscos e benefícios. Eu entendi que sou livre para interromper minha participação
a qualquer momento sem justificar minha decisão e sem qualquer prejuízo para mim. Sendo
assim, eu concordo voluntariamente em participar deste estudo.
Você prefere ser identificado na pesquisa pelo seu nome completo e de forma vinculada ao
serviço indicado acima? ( ) sim ou ( ) não

Rio de Janeiro, ___ de ___________ de _______

________________________________
Coordenador do Serviço indicado acima

_______________________
Fabiane Helene Valmore
Pesquisadora
257

ANEXO I

Rio de Janeiro, fevereiro de 2004


Por Alexandre Ribeiro Wanderley
Psicólogo do Núcleo de Atenção Psicossocial do IMPP

O DIA EM QUE QUEM PIROU FOI À RUA BRINCAR COM QUEM TÁ


PIRANDO

É verdade que Momo já vinha comparecendo ao Pinel, ainda que timidamente: nas
últimas edições da festa, concursos de fantasias e sambas organizados pela TV Pinel,
alguns batuqueiros do “Empolga às 9” e um palhaço do “Gigantes da Lira” alegraram o
carnaval dos pacientes. Em 2005 surgiu o desejo de transpor os muros e se misturar ao
movimento de revitalização do carnaval de rua do Rio de Janeiro, que há pouco mais de
6 anos vem transformando o cenário da cidade no mês de fevereiro, mudando o rumo de
uma festa que se tornava cada vez mais elitizada, para inglês ver e celebridade aparecer.
O primeiro passo foi a aproximação entre duas instituições de saúde mental que
embora vizinhas se conhecem pouco. Logo na primeira conversa com os Cancioneiros do
IPUB, veio a certeza de que era possível colocar o bloco na rua e a vontade de que esse
bloco resultasse de uma criação coletiva, envolvendo usuários e funcionários dessas
instituições, além de moradores do entorno e quem mais quisesse participar. Partiu de
Gilson Secundino a primeira sugestão de nome para o bloco – que posteriormente viria a
ganhar o concurso para eleição do nome definitivo: “Eu penso que o nome pode ser ‘TÁ
PIRANDO, PIRADO, PIROU!’”. E explicou: “A gente tem que ser ousado e pretensioso.
Não vamos fazer uma festa de carnaval apenas pra quem já pirou, vamos pra rua brincar
com quem tá pirando!”. Indagado dias depois sobre como se sentia ao saber que sua
sugestão havia conquistado o maior número de votos, após disputa acirrada com “Loucura
por conveniência”, sugestão de outra usuária, Gilson respondeu: “fico contente, mas a
idéia não é minha, eu apenas encontrei as palavras que permeavam o pensamento do
grupo. Agora precisamos comunicar à RIOTUR para não termos problemas com
patente”.
O contato com a Associação de Moradores da Lauro Müller selou o desejo de festejar
na comunidade. Com o apoio da ALMA, iniciamos campanha para doação de fantasias
pelos moradores, decidimos o trajeto do bloco e conseguimos o empréstimo do carro de
som dos sindicalistas da Petrobras. Depois de decidido o nome, seguiu-se a votação para
escolha das cores e do logotipo. As cores vencedoras, sugestão desse que ora escreve e
de Esther, foram o laranja, o azul turquesa e o verde limão. Para o logotipo, Neli deu
a ideia de juntar os dois desenhos de Samy, produzidos na oficina de criação permanente
do Papel Pinel, que estavam a princípio separados: a passista cujas ancas delineiam os
contornos do Pão de Açúcar e o malandro de pandeiro na mão. Com a boa vontade de
Esther e sua equipe foram confeccionadas as camisas do bloco, que logo se esgotaram. A
afirmação de um usuário de que gostava mesmo era do carnaval de Veneza foi a senha
para a construção de máscaras de gesso, feitas com o esmero de Júnia, técnicos e
estagiárias do Pinel. Walter Filé sugeriu o nome do xará Walter Alfaiate, emérito sambista
e morador ilustre do bairro, para apadrinhar o bloco, convite prontamente aceito. Com
duas reuniões semanais ao longo de janeiro (4f no IPUB e 5f no Pinel) e com o apoio
258

decisivo do IFB, AMOCAIS, TV PINEL, Setor de Comunicação do IMPP, PAPEL


PINEL e Cancioneiros do IPUB, a idéia do bloco se tornou realidade.
No dia 3 de fevereiro essa alegre bagunça organizada ganhou as ruas, após o
aquecimento com os internos, que desfilaram suas fantasias, e a primeira canja de
Alfaiate. Antes mesmo de sairmos do pátio, Esther comentou: “hoje parece que não tem
doença nesse hospital”. E lá se foi o “Tá pirando, pirado, pirou!” atravessando o campus
da UFRJ em direção à rua Lauro Müller. Músicos do “Céu na Terra” no sopro, as meninas
da “Fina Batucada” na percussão, sob a batuta do mestre Rico, Vandré no cavaquinho,
Elisa do “Empolga às 9” cantando marchas e sambas, presença de batuqueiros do
“Empolga”, “Bangalafumenga”, “Monobloco”, “Brejeiro”, músicos do “Harmonia
Enlouquece” e agregados garantiram o som. À frente da trupe, o abre-alas composto por
um garboso estandarte - preparado cuidadosamente por Shirley - e o não menos garboso
casal de mestre-sala e porta-bandeira, Luis Cláudio, leve e solto em sua vistosa camisa-
de-força e Neli, faceira com seus véus esvoaçantes. Os foliões que não tinham fantasias
se ornavam com caixas de psicotrópicos distribuídas ao longo do trajeto. “Ei, você aí,
me dá um remédio aí!”, gritou um transeunte. No intervalo entre um samba enredo e uma
marcha, um usuário disparou: “Pirou por que? Por que pirou?”. Elisa, que assumiu
o microfone do carro de som, repetiu o refrão, para em seguida perguntar: “Quem já
pirou? Quem tá pirando?”. A essa altura, já não cabia tal distinção: em uníssono, todos
respondiam afirmativamente a ambas as perguntas.
A celebração dionisíaca da vida que o carnaval encarna tem na loucura uma prima
irmã. Dando vazão ao lado alegre da loucura, uma iniciativa como essa contrapõe-se ao
sofrimento excessivo que tantas vezes persiste não obstante os nossos melhores esforços.
Parafraseando Foucault, nos momentos em que o gesto louco se expressa por meio da
irreverência, da criatividade e da vitalidade, “a obra não falta”. Franco Rotelli escreveu
certa vez que não há melhor centro de atenção psicossocial do que um mercado
popular, com sua profusão de odores, cores, ruídos e trocas humanas de toda sorte.
Esse foi o espírito em que foi concebido o “Tá pirando”. [incluir meu poema de
chegada ao Rio] Bem, nem tudo correu conforme o previsto – mas, afinal, previsibilidade
não é mesmo o nosso forte. O pessoal do Instituto Benjamin Constant, que chegou a
flertar com o bloco, deixou o namoro para o próximo ano. Os sambas de Joana, Lelis e
Demetrius, compostos especialmente para o bloco, foram cantados no Parque General
Leandro, quando boa parte dos músicos já tinha se dispersado. O momento apoteótico
aconteceu mesmo no final da Lauro Müller, com mais uma canja de Walter Alfaiate,
seguida pela participação luxuosa de Tantinho da Mangueira. Ao fim e ao cabo, saldo
mais que positivo: já se ventila a ideia de criar uma oficina permanente de carnaval.
Gestada em menos de dois meses, a cria nasceu de parto (relativamente) normal. E ali,
naquela esquina, se deu o batismo da criança em praça pública, com as bênçãos de seu
ilustre padrinho. No final, ficou um gostinho de quero mais. Melhor assim: a festa de um
ano dessa criança promete. Evoé Baco! (grifos, meus)
259

ANEXO II
A felicidade e a desilusão da medicina.
Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2019
Por Vitor Pordeus106

Entrei na escola médica com 17 anos, há 23 anos atrás, havia sido um sacrifício
grande sair da COHAB de Realengo para estudar medicina na UFF em Niterói,
viajava para a Tijuca todo dia e voltava para estudar no MV1 que meus pais pagavam
com parcos recursos para eu bem suceder. Foi pirante, tive crises de pânico nas vésperas
do vestibular, quando eu e minha mãe fomos a Niterói de ônibus para ver a lista, apesar
de ver nome ali, estava tão estressado que não consegui ficar feliz, só consegui ficar feliz
nos trotes, fiquei eufórico, foram as semanas mais felizes da minha vida. Achava que
tinha alcançado meu sonho e da minha família, da minha mãe para ser mais exato.
E partimos para cima da faculdade e algo começou a ficar estranho, logo no segundo
período, quando começaram os rituais cadavéricos nas excessivas e intermináveis aulas
de anatomia, os abusos, o professor rindo contando a morte dos pacientes em cirurgia na
sala de aula de anatomia, perseguindo alunos, reprovando arbitrariamente, exigindo
conteúdos absurdos, assediando os mais jovens e vulneráveis à posição de poder, o regime
violento de conteúdos e provas submetido a jovens aprendendo a ter contato com a morte,
a miséria e a doença. Nunca me adaptei a isso, mas isso realmente virou problema
menor com a morte por erro médico do meu avô que por azar acabei atendendo a
parada cardíaca, e isso me estilhaçou, foi minha primeira grande destruição de
alma.
O que realmente salvou minha vida científica espiritual na UFF foi o encontro com
Nelson Monteiro Vaz. Nelson, que foi professor na UFF e estava na UFMG, veio a UFF
a convite de um seminário de imunologia que eu organizei e convidei ele, eu era diretor
científico no nosso Diretório Acadêmico Barros Terra. Nelson me colocou no caminho
médico científico que estou até hoje tanto é que é só pegar nossos artigos que estamos
citando Maturana há 15 anos e Nelson há 40. Além dos traumas já citados, comecei a ver
que havia algo de podre no reino da medicina moderna quando comecei a acompanhar
pacientes de forma mais contínua, e por mais tempo que os estudantes normalmente são
colocados para fazer. Pois devido a meu trabalho na cardiologia com meu Professor
Evandro Tinoco Mesquita, trabalhei uns dois anos no ambulatório de cardiologia e
insuficiência cardíaca, e comecei a suspeitar quando recebia os mesmos pacientes seis
meses depois com a mesma queixa de antes, aumenta a droga, mexe na droga,
devolve para a comunidade, volta seis meses depois com a mesma queixa até evoluir
para o óbito. Comecei a refletir que se nós médicos não fossemos capazes de
influenciar o modo de viver e cultura do paciente, muito pouco poderíamos fazer
para atacar as doenças devorando a comunidade. Mas esse entendimento não veio
assim tão fácil. Já nessa época eu trabalhava e trabalho ainda com o Nelson Vaz, e
fazíamos projetos inovadores na área nova da imunocardiologia. Evandro me levou para
trabalhar com ele no Hospital Pró Cardíaco, onde fui contratado ao me formar, e a
diretoria do hospital me doou uma passagem de avião internacional para ir trabalhar na
Universidade de Tel Aviv com Yehuda Shoenfeld um dos grandes imunologistas básicos
e clínicos daquele país. Shoenfeld me deu uma bolsa de pesquisa de dez anos que definiu
minha carreira, em Tel Aviv pesquisava e trabalha na clínica com doenças autoimunes.
Em Israel me tornei discípulo e amigo do outro grande imunologista Irun Cohen chefe da

106
https://web.facebook.com/vitor.pordeus/posts/10158916404972542 contato@upac.com.br
260

imunologia do Instituto Weizmann, outro grande gênio que me reforçou muito as


reflexões já iniciadas com Nelson Vaz sobre o papel das emoções, da dieta, do exercício
físico, da música e do teatro sobre a saúde humana e ecológica. Nelson Vaz e Irun Cohen
são os únicos fisiologistas do sistema imune em atividade hoje no mundo, são os líderes
entre os poucos pesquisadores que estudam o sistema imune na fisiologia, isto é no viver
saudável, no funcionar normal. Quando você, como médico e como pesquisador,
começa a prestar atenção no que o organismo está fazendo enquanto caminhamos,
tomamos um café, comemos um bolo, amamos, nos aborrecemos, tudo, todos os
sistemas moleculares, todos os circuitos imunológicos estão em franca operação,
trabalhando duro para que nosso corpo e nossa mente vivam o tanto que vivem. Isso
muda tudo. Nelson sempre falou: como vamos entender a doença se não sabemos a base
que é a saúde? O grande Mestre da Clínica Médica e da Semiologia Ivan da Costa Barros
dizia: precisa estudar fisiopatologia das doenças para entender os sinais e os sintomas do
doente, a fisiologia e a fisiopatologia. Que é exatamente a mesma ideia de entendermos
melhor o que é saúde para depois entender propriamente o que é o desvio patológico.
Cohen, o cientista com o maior número de "Nature" e "Science" publicados no país me
disse: "Vitor tenho aqui uma dúzia de patentes de tratamentos de doenças autoimunes,
alergias que podem ajudar muito, mas a indústria farmacêutica bloqueia e dificulta a
realização dos estudos clínicos" Nenhum governo do mundo encara o Big Money da Big
Pharma, nem o israelense. Então só se pesquisa a doença, se inventam drogas e exames,
se inventam doenças só pelo lucro. Eu começava a entender a enrascada humana que eu
entrei querendo ser médico. O trauma da morte do meu avô ficou oculto e eu desenvolvi
uma síndrome depressiva grave que durou 5 anos. Ao saber melhor dos detalhes da
podridão do sistema pseudo-científico médico eu ficava mais e mais deprimido. Paralisei
em vários momentos. Pensei em suicídio em vários momentos. Eu quebrei muitas vezes.
Mas renasci todas as vezes. Ainda estou renascendo neste caminho da medicina, de
encarar as doenças que devoram a humanidade, que devoraram minha família e tentaram
me devorar até hoje. Doente, ouvi a voz: "a medicina está fechada para você, a ciência
está fechada para você, vá estudar teatro." Fui estudar com a Camilla Amado que me
curou: "Não é só Apolo menino, tem Dionísio também.", e fui trabalhar com o Amir
Haddad que completou meu processo terapêutico e reabilitou psicologicamente através
do teatro, me curei finalmente desse trauma médico. Galileu de Brecht foi um dos
remédios "Eu poderia falar em latim, para poucos, ou falar na língua do povo, para muitos.
Para as novas ideias precisamos daqueles que trabalham com as mãos. Quem senão eles
quer saber a causa das coisas?" Depois do Amir veio a Nise e, depois, a psiquiatria
transcultural, no Canadá. Eu tinha minha ferramenta de auto cura, o teatro, o método Amir
Haddad de Ator. Conhecer o Museu de Imagens do Inconsciente realmente mostrou que
loucura tinha mapa e método, me lanço a estudar Jung, Kandinsky, Hans Prinzhorn, teoria
sobre improvisação, muito trabalho, muitas experiências importantes acontecendo nas
práticas nas comunidades, Paulo Freire se mostra método eficaz de promoção de saúde
mental, seu diálogo com a Nise é fundador. Tomei a coragem necessária e abro o
Teatro de DyoNises dentro do Hospício do Engenho de Dentro em 2011 dois anos
depois de iniciado o trabalho nessa comunidade de Nise, seguindo os passos deixados
por ela, começo a me estarrecer ao ver a mesma resposta clínica que ela havia visto
70 anos antes de mim quando começou a trabalhar, psicóticos crônicos, muito
debilitados, com o convívio artístico, criativo, dialógico, cooperativo começam a
evoluir psicologicamente, ganham autonomia, ganham identidade através da
expressão das imagens do inconsciente, no nosso caso pelo teatro. Uma avalanche de
pacientes se tornam atores, gravam filmes, viajam, fazem peças, ganham prêmios. Nasce
o Hotel da Loucura. Pela primeira vez desde que comecei a estudar medicina aos 17
261

anos, vi meus clientes curarem na minha cara, dentro do teatro, cantando,


dançando, gente que antes não falava. Era o afeto catalisador de Nise, mais poderoso
que a bomba atômica. Nise ensina isso em sua obra: a cura só nasce do desejo, da
cooperação, do ambiente favorável e da sinceridade.
Quando consigo a cooperação do cliente é a alegria de ver esse método revivendo, nossos
resultados todos divulgados e publicados são essas provas, podem ser acessados por
todos. Há, ainda, entretanto, este fato que aprendi a duras penas e muita pesquisa
científica com os líderes mundiais da imunologia e da psiquiatria: as doenças são
resultado da cultura, do modo de viver, da dieta, das emoções, das maneiras de se
relacionar. Hipócrates, que já sabia disso tudo e o saber dele se perdeu dentro da
medicina moderna tem esse axioma: antes de curar alguém, pergunte-lhe se está
disposto a abandonar as causas da doença. Aí o afeto é catalisador e a cura ocorre.
Artigo raro em tempos de competição e loucura epidêmica que vivemos no Rio de Janeiro.
Nise? Nise? Onde estás? (grifos, meus)

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