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seja democracia

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© editora periferias, 2022.

formar
coordenação editorial Jailson de Souza e Silva,
Daniel Martins e Rodolfo Teixeira organizar
organização Cleber Ribeiro e Daniel Martins e agir
preparação de texto Cássia da Rosa e Oliveira
revisão Jemima Alves
transcrições Cynthia Rachel Esperança
foto de capa Francisco Valdean
projeto gráfico Érico Peretta

Este livro contou com o apoio à publicação


da Fundação Heinrich Böll

Editora Periferias
Rua Teixeira Ribeiro, 535, Maré, Rio de Janeiro
@periferiasedita | revistaperiferias.org | editora@imja.org.br

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Instituto Pensamentos e Ações para a Defesa
da Democracia
IPAD Seja Democracia

[logo IPAD]

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somos um centro plural de formação po-
lítica do Instituto Maria e João Aleixo, com sede
na Maré, Rio de Janeiro, e atuação em todo o terri-
tório nacional. Com prioridade para jovens da pe-
riferia em todo o Brasil, o IPAD Seja Democracia
se dedica a construir e disseminar conceitos, meto-
dologias e tecnologias sociais que ampliam o lugar
político e as possibilidades dos sujeitos oriundos
das periferias. Trabalhamos para construir uma
agenda social e política que tenha como foco os
interesses da grande maioria da população, em par-
ticular o povo negro.
O IPAD Seja Democracia nasce num contexto
sócio-histórico de ausência de uma agenda de re-
formas sustentáveis cujos interesses maiores repre-
sentem os grupos sociais periféricos — uma agen-
da que rompa com as relações promíscuas entre as
forças políticas e grande parte do empresariado.
Tal ausência representa a perda de hegemonia no
mundo social brasileiro das forças historicamente
comprometidas com a democracia. Com isso, e
aliado a um processo internacional de fortaleci-
mento de forças políticas ultraconservadoras, o
Brasil vem assistindo a uma onda eleitoral e polí-
tica que, em 2018, teve como culminância a elei-
ção de um presidente da república abertamente

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defensor da ditadura, do patrimonialismo institu-
cional e da restrição de direitos fundamentais para
a maioria da população.
Desta forma, o IPAD Seja Democracia contribuiu
para a construção de um processo de formação po-
lítica, que leve em conta as formas de constituição
da sociedade brasileira, do Estado, das estruturas
produtoras e reprodutoras de desigualdade, das al-
ternativas históricas e atuais que contribuam para a
defesa da democracia e para a radicalização republi-
cana. Visa, prioritariamente, reunir e difundir sabe-
res e experiências que contribuam para a construção
de um programa político contemporâneo, que tenha
como ponto de partida a perspectiva dos grupos
sociais periféricos e que enfrente os mecanismos
patrimonialistas que ainda dominam as estruturas
econômicas e políticas nacionais, possibilitando ao
campo democrático retomar a bandeira real e con-
creta da luta contra todas as formas de exploração e
desigualdade.
Este livro, fruto dos momentos de formação do
curso para lideranças jovens de periferia, se movi-
menta numa grande gira de formação, organização
e ação política em defesa da democracia — deman-
dada pela sociedade civil, representada por movi-
mentos, grupos e coletivos de diferentes periferias

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presentes em nosso país. Seja democracia é compos-
to por um conjunto de textos que apresentam forte
pensamento crítico acerca da realidade nacional, a
partir da periferia, capaz de ampliar o potencial de
conceito, teoria e método de organização política
de pessoas interessadas em defender e avançar com
a democracia, enquanto sistema que organiza uma
sociedade garantidora de direitos para todos.

Equipe IPAD Seja Democracia

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A Fundação
Heinrich
Böll e a
promoção da
democracia

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uma sociedade civil atuante, efervescente,
que denuncia, reivindica, aglutina ideias, constrói
pensamentos, argumentos, políticas, respostas —
essa é a sociedade civil brasileira. Foram décadas,
desde o fim da ditadura militar até aqui, de forma-
ção de ONGs, de fortalecimento de movimentos
sociais de vários matizes, estruturas e pautas polí-
ticas. Mas talvez devamos pensar que essa história
tenha começado antes. Houve muitas insurgên-
cias, reivindicações, gritos por liberdade na his-
tória do Brasil. Elas traziam em seu bojo a busca
pela felicidade, pela melhoria de vida para si, sua
família ou sua comunidade. Nunca “os debaixo”
da pirâmide, como nos aponta o geógrafo Milton
Santos, estiveram passivos; sempre construíram
soluções, que muitas vezes não serviram só a eles,
mas serviram para todos.
Hoje, são os moradores, organizações, grupos e
coletivos dos territórios de periferias e favelas; os
movimentos de mulheres negras; os povos tradi-
cionais, em especial indígenas e quilombolas, aque-
les que reivindicam de forma mais contundente a
radicalização da democracia. Apoiar financeira e
politicamente esses grupos é avançar na consolida-
ção da democracia no Brasil. Apoiá-los na consoli-
dação é contribuir para que diversos atores sociais

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possam colocar no debate público a questão do ra-
cismo estrutural e suas consequências perversas, ou
mesmo questionar por que em algumas áreas das
cidades brasileiras o Estado pode matar, sem con-
sequências. É colocar em questão os privilégios de
uma parte da sociedade em detrimento de tantos
outros. É contribuir para que pontes de diálogo
entre grupos possam ser construídas, para que a so-
ciedade civil, de forma autônoma e independente
estabeleça propostas, denuncie, discuta o alcance
da democracia. O livro Seja Democracia nos incen-
tiva a nos juntar a essa reflexão e descobrir como
nos somar às pessoas que exigem que seus direitos
sejam respeitados.
As promessas da democracia são cumpridas a
conta-gotas e, no Brasil, somente as primeiras gotas
caíram até agora.
Como acelerar o processo? Como fazer com que
mais gente fique segura, tenha mais saúde, mais edu-
cação, mais transporte, tudo com mais qualidade? O
caminho é longo, espinhoso e sob conflito e disputa
constantes com aqueles que detêm os poderes finan-
ceiros e políticos.
Mas são os grupos e organizações, como o
Instituto Maria e João Aleixo com a iniciativa IPAD
Seja Democracia que nos estimulam a encontrar

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soluções, caminhos para a construção de uma
democracia feminista, antirracista e ecológica —
nestes tempos tão difíceis, em que projetos funda-
mentalistas e autoritários parecem ter conseguido
avançar de forma tão ampla no Brasil. Nos ciclos
de formação política que o IPAD Seja Democracia
desenvolve com as jovens lideranças das periferias,
há incentivo e subsídios para se pensar sobre con-
juntura, sobre a vida, sobre soluções para os pro-
blemas cotidianos e mais além; se perguntar, ques-
tionar e refletir, propor e agir.
Parabéns à equipe do IMJA e aos autores e auto-
ras do livro por compartilharem conosco seus pen-
samentos e experiências de vida, suas ideias sobre
democracia e como avançar para a sociedade que
queremos, com justiça e liberdade.

Marilene de Paula
coordenadora de programa
Fundação Heinrich Böll

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14 Democracia anunciada pela periferia
Clebero Ribeiro
Democracia: paradigma da potência da periferia
Cleber Ribeiro
22 Democracia em Pretuguês
Thula ePires
Democracia subjetividade
Thula Pires
36 Democracia na diáspora africana
Tukufu
Democracia Zuberi
e patrimonialismo
Jessé Souza
52 FORMAÇÃO DE NÚCLEOS POLÍTICOS
PassosNOS
para aTERRITÓRIOS
formação de núcleos políticas

64 Viver na
Democracia democracia
diáspora nas religiões
Flávia
Tukufu ZuberiPinto | Joaquim Azevedo |
Wesley Teixeira
Democracia e religiões
86 Democracia
Flávia Ponto | Joaquimna luta antirracista
Barbosa | Wesley Teixeira
Valter Silvério
Cultura e estrutura em tensão
122
Valter Radicalizar
Silvério a democracia pelas
lutas feministas e LGBTI+
Heloisa
Por uma agendaMelino
de luta pela democracia

146 POR UMA AGENDA DE LUTA


PELA DEMOCRACIA

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Democracia
anunciada
pela periferia

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em sua definição mais basilar, democra-
cia é o governo em que um grupo de pessoas em
sociedade exerce a soberania sobre si; o que o arti-
go 1º da Carta Universal dos Direitos Humanos
denomina “autodeterminação dos povos”. Essa
definição surge no contexto histórico de luta de
grupos pela libertação de sistemas sociais opresso-
res. Nas escolas e demais instituições produtoras
da visão hegemônica do mundo, para exemplificar
tais sistemas sociais, são apresentadas sociedades
governadas por impérios, monarquias, ditaduras.
A ditadura militar de 1964 a 1985 é o caso mais
utilizado no Brasil.
A Constituição Federal de 1988, chamada
“Constituição Cidadã” nos canais midiáticos, foi um
grande marco de participação ativa da sociedade
civil, organizada em diferentes movimentos sociais.
Há, contudo, um imaginário social em construção
que apresenta o sentido de democracia concluída
pelas instituições do Estado Democrático brasilei-
ro; sendo ele sua causa e efeito.
O uso pelos grandes meios midiáticos da cena
em que o líder indígena Ailton Krenak, em 1987,
na Assembleia Nacional Constituinte realiza seu
discurso em defesa da inclusão dos direitos dos
povos indígenas na carta constitucional, enquanto

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aplica ao rosto a tinta preta de jenipapo — produto
usado pelo povo Krenak em momentos de luto —
estimulou, no imaginário social, um certo consenso
de realização da democracia. Afinal, com a redemo-
cratização, as lutas dos povos indígenas aparente-
mente passaram a estar presentes na “Casa do Povo”,
o Congresso Nacional.
A cobertura do Movimento Caras-Pintadas de
1992, motivado pelo impeachment do então presi-
dente Collor (1990-1992), marcado como uma das
maiores mobilizações brasileiras para exigir resposta
dos deputados federais a favor da saída do presiden-
te, fortaleceu no imaginário social a narrativa de que
o povo, representado pelos jovens, estava exercendo
sua autodeterminação.
Nas manifestações de 2013, por mais difusas que
se apresentassem as pautas, os grandes órgãos de
imprensa concentraram sua atenção na descrença
dos manifestantes na capacidade e legitimidade dos
representantes políticos defenderem seus interes-
ses. A narrativa midiática, que foi tomando contor-
nos interpretativos, afirmava que as manifestações
de 2013 fortaleceram uma crise institucional, que
questionava a pertinência do Estado, representada
pelos políticos, em garantir os direitos básicos esta-
belecidos na Constituição Cidadã.

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O que queremos afirmar com estes marcos que
habitam o imaginário da sociedade é que há uma
narrativa sendo forjada em nosso país acerca do sen-
tido de democracia. Nela os espaços institucionais
do Estado capturam o sentido de democracia e, com
isso, estreitam o campo no qual a sociedade vive
sua autodeterminação. Para o imaginário social, o
Estado, além de ser central na manutenção de uma
sociedade democrática, parece ter capturado por
completo sua implementação e manutenção — o
que tende a “jogar para escanteio”, ou para o campo
oposto, a sociedade civil representada por movi-
mentos, grupos e coletivos existentes em nosso país.
Há aqui um erro de entendimento sobre a capa-
cidade exclusiva do Estado, como instituição, em
garantir a realização dos desejos de liberdades da
sociedade que despertam a queda de regimes não
democráticos. Apenas a causa que resultou no
Estado Democrático brasileiro é capaz de manter
e defender a democracia, ou seja, os interesses da
sociedade civil organizada. Assim, o sentido de
liberdade que estamos convocando neste livro é
aquele manifestado pela maior parcela da popula-
ção brasileira — pessoas empobrecidas; moradores
e moradoras da periferia, negros e negras, migran-
tes, mulheres.

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A referência são esses sujeitos, para quem a de-
mocracia é resultado da luta por liberdades comuns
de grupos que foram inseridos historicamente de
forma precária na sociedade, a fim de manter os
privilégios de uma pequena parcela da população.
São aqueles que têm a necessidade diária de lutar
por um sentido radical de democracia. Digo “radi-
cal” no sentido original da palavra, ou seja, tomar a
democracia pela raiz, pela base — o que no Brasil é
representado pela população moradora das inúme-
ras periferias brasileiras. Estas representam os que,
por terem vivido uma inclusão precária no projeto
de País, trazem em suas estratégias — necessidades,
práticas, desafios e objetivos —, e apresentam para
toda a sociedade potentes projetos de país.
A periferia — por sua concentração e diversidade
populacional, por sua escassez, por suas práticas e
conhecimento de sobrevivência na convivência, ape-
sar das históricas políticas de extermínio do Estado,
por suas necessidades por liberdade relacionadas
diretamente com o acesso a direitos prometidos na
Constituição Federal de 1988 — concentra elevada
demanda e capacidade de radicalizar a democracia.
As diferentes periferias são formadas por pessoas
empobrecidas (indígenas, negras e brancas) que
conseguem desenvolver uma interpretação mais

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ampla do país, por origem e necessidade, devido
ao fato de circularem intensamente entre regiões,
espaço da floresta, urbano e rural, grandes e pe-
quenas cidades. Levam sua energia braçal e inte-
lectualidade às grandes cidades. A grande maioria
dos moradores da periferia tem por necessidade
circular por diferentes espaços da cidade — centro,
subúrbio e favela — onde o contato com diferen-
tes pessoas e realidades diariamente revela estratos
sociais desiguais e combinados.
As massas de pessoas negras, sequestradas no
continente africano, após a abolição da escravidão
de 1888 — jogadas à própria sorte na construção
de condições básicas de sobrevivência —, identifi-
caram as cidades brasileiras como espaços de espe-
rança. As favelas, comunidades e conglomerados,
espaços urbanos possíveis para as pessoas empobre-
cidas, foram criados a partir da luta por moradia e
direito à cidade por essas massas de pessoas negras.
As massas de indígenas que, devido a políticas de
extermínio — como as que vitimaram os Krenak
—, passaram a viver nas periferias dos grandes cen-
tros urbanos. Os Krenak, expulsos de suas terras
no estado de Minas Gerais na década de 1970
para dar lugar a grandes projetos de extração de
minérios, retornam apenas em 1995. Tal retorno,

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resultado de um longo e moroso processo demarca-
ção das terras, condicionou o povo Krenak a habi-
tar próximo a empreendimentos de propriedade da
mineradora Vale S.A, o que mudou profundamente
suas condições de vida. Uma trajetória marcada por
resistência e pela capacidade de construir novos ar-
ranjos de luta coloca o povo Krenak, seu saber, sua
tecnologia e espiritualidade como referência, tanto
para denunciar os violentos efeitos de um projeto
de desenvolvimento econômico que desconsidera
a população dos entornos, quanto para indicar ar-
ranjos sociais que precisam considerar uma relação
de complementaridade objetiva e subjetiva com os
elementos da natureza, em substituição do conceito
de recursos naturais.
No século 20, os povos indígenas, negros e bran-
cos empobrecidos, chamados de migrantes e conhe-
cidos de forma preconceituosa como nordestinos,
saíram em grandes massas populacionais de inúme-
ras localidades do país, principalmente da região
nordeste e passaram a expandir as periferias das
cidades do país, ocupando em especial a região su-
deste, construíram as grandes metrópoles brasileiras.
São essas pessoas que defendem e radicalizam a
democracia, ao historicamente lutarem por melho-
res condições de vida, em dado contexto de escassez

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dentro do qual a solidariedade torna-se estratégia
fundamental para a sobrevivência dessa popula-
ção. Aliam seus recursos, força de trabalho, conhe-
cimento e afetividade que, na maioria das vezes,
em detrimento do Estado, constroem consigo os
sentidos mais orgânicos de democracia em nosso
país. E no avanço de seus direitos, vêm indicando
potentes caminhos de defesa e de avanço da cultu-
ra democrática.
Escutemos a periferia para construir o sentido
de liberdade que seja capaz de orientar a constru-
ção de uma sociedade radicalmente democrática.
Os textos deste livro devem nos ajudar a mapear
os desafios a se transpor, com as efetivas possibili-
dades de projetos de sociedade que a periferia pro-
põe para todo o país.

Cleber Ribeiro
coordenador geral
IPAD Seja Democracia

21
Democracia
em Pretuguês
Thula Pires

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pensar a democracia fora das amarras do
senso comum é mais interessante do que propria-
mente ficar reforçando algumas ideias que foram
entendidas por um determinado grupo como as
que sedimentam o conceito de democracia.
Nesse esforço, a questão que me parece mais la-
tente é pensar a democracia como algo que ainda
não é, como um devir, como algo a ser construído,
algo a ser consolidado. A grande dificuldade con-
tinua sendo: vamos construir o quê? Consolidar
o quê? Aonde nos leva esse devir? É sempre incô-
modo pensar em democracia quando se entende
que todas aquelas promessas da democracia mo-
derna não nos foram entregues, principalmente
considerando grupos em situação de vulnerabili-
dade. Ao mesmo tempo, há uma grande dificulda-
de em nomear, ou mesmo definir o que seria essa
democracia.
A ideia de democracia e as discussões acerca do
tema ficam muito reduzidas ao âmbito do proces-
so eleitoral; a democracia tal como hegemonica-
mente difundida ficou atrelada à ideia de votar, de
ser eleito, de como se pensam os processos eleito-
rais e quais são os parâmetros para a definição de
quem ganha uma eleição. É esse o momento em
que boa parte das elites brasileiras se aproximam

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para discutir democracia, para entoar a ideia de
democracia, principalmente perto de grupos em
situação de vulnerabilidade.

«A questão que me
parece mais latente é
pensar a democracia
como algo que ainda não
é, como um devir, como
algo a ser construído,
algo a ser consolidado.
A grande dificuldade
continua sendo: vamos
construir o quê?
Consolidar o quê? Aonde
nos leva esse devir?»

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Isso gera um incômodo muito grande, gera um
grande afastamento por parte da população, ou me-
lhor, dos grupos majoritários da população brasilei-
ra — majoritários em termos numéricos, e não em
termos de capacidade de exercício político de fato.
A despolitização e afastamento correspondem em
muito a essa incapacidade — sobretudo por nossa
origem colonial-escravista — de dar nome, de dizer
e de escutar essa ideia de democracia. Mesmo sa-
bendo que a democracia, colocada nesses termos é
insuficiente, isso não nos basta. Mesmo sabendo o
que não queremos, não se tem ainda um avanço no
debate a ponto de permitir dizer, exatamente, qual
é a noção de democracia que queremos construir.
Esse problema fica muito explícito, por exemplo,
quando uma pessoa moradora de periferia diz que
democracia não é uma questão no lugar onde ela
mora. É preciso perceber a violência do que isso
significa. Muitas dessas pessoas efetivamente discu-
tem democracia boa parte do tempo, sem conseguir
nomear, sem conseguir definir que essas discussões
são efetivamente discussões acerca da democracia.
Isto, exatamente, porque a democracia — que
nos é apresentada como grande modelo de orga-
nização política a seguir, manter, respeitar e defen-
der a todo custo — está ancorada em uma versão

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liberal e moderna. E mesmo ancorada nessa versão
liberal e moderna, ainda é importante discutir como
as ideias de Estado de Direito, de sistemas eleitorais,
de pluralismo político, de direitos fundamentais,
de participação popular no processo de tomada
de decisão política, de representação, de soberania
popular podem se inserir nessa democracia liberal
e moderna, se, justamente por ser liberal e por ser
moderna, ela necessariamente parte da manutenção
de hierarquias de humanidade entre nós.

«Esse problema fica


muito explícito, por
exemplo, quando uma
pessoa moradora
de periferia diz que
democracia não é uma
questão no lugar
onde ela mora. É preciso
perceber a violência do
que isso significa.»
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Há, então, aqueles que estão na zona do ser e que,
portanto, terão acesso a todas essas promessas e à
capacidade efetiva e real de vivenciar o Estado de
Direito; o processo de representação, a capacidade
material e simbólica de participar, afetar e influenciar
os sistemas eleitorais, fazendo com que suas deman-
das e agenda política figurem de maneira equitativa
no pluralismo político, entre esses diversos campos
de informação de vontades e ideologias políticas.
O problema é que na zona do ser, o ser que con-
segue usufruir das âncoras próprias da ideia de de-
mocracia exerce tudo isso como atributos exclusi-
vos, algo que só a esse grupo é devido, que só esse
grupo é capaz de exercer. Em relação àqueles que
estão na zona do não ser — como faltam aspectos
básicos para o reconhecimento da própria capaci-
dade como sujeito político, como sujeito de direito,
como sujeito —, falta o reconhecimento pleno da
igual humanidade. A única gramática que organiza
a nossa vida, na zona do não ser, é a gramática da
violência. É por isso que temos uma percepção tão
aguçada e um olhar crítico para esse modelo de or-
ganização política que se denomina democrático e
que se acumplicia com a hierarquia de humanidade,
que vemos como algo que não queremos. Este é um
modelo de que não fazemos parte.

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Quanto mais se apresentam essas agendas demo-
cráticas, mais aumenta a dificuldade em se nomear
tudo que representaria para nós um compromisso
democrático, de forma efetiva. O fato de não ser-
mos reconhecidos como sujeitos políticos plenos
e autônomos faz com que essas agendas não sejam
encaradas como democráticas, e com que reprodu-
zamos a despolitização e a falsa ideia de que o que
nós discutimos e disputamos não é democracia.
Considerando apenas a recente história democrá-
tica brasileira, da Constituição Federal de 1988, ex-
clusivamente, até 2016 — período reconhecido pela
estabilidade democrática — há diversos exemplos
de cumplicidade dessa democracia com as hierar-
quias de humanidades entre nós. Apesar de ter sido
um momento de fortalecimento das instituições
públicas, em que os mecanismos de participação
avançaram significativamente — não só conselhos,
mas experiências como orçamentos participativos e
outros processos de participação direta, audiências
públicas e uma série de outras medidas que foram
adotadas, consolidadas ao longo desses quase 30
anos —, em tese, no conjunto, fariam imaginar uma
real capacidade de interferência no processo públi-
co de tomada de decisão e, portanto, na definição
agendas de prioridades, do que efetivamente deve

28
ser considerado pelo Estado como profundamente
relacionado à noção de soberania popular.
Por outro lado, dentro desse período de esta-
bilidade democrática, há também um intenso
acirramento das proibições, segregações das mais
diversas, desde o cárcere às segregações urbanas e
do campo, por exemplo, que fazem com que efe-
tivamente nós tenhamos muito pouco a dedicar a
esse modelo de organização.
A democracia liberal moderna não tem ofereci-
do um modelo de organização da liberdade, nem
trazido uma capacidade real de produção de meca-
nismos de contenção da soberania do Estado pelo
exercício da soberania popular. Ao contrário, o que
se vê é a redução da noção de soberania popular à
ideia de soberania do Estado, e pior: uma sobera-
nia do Estado que se exerce pela necropolítica. Por
isso, assumir hoje o desafio de pensar democracia
é, antes de tudo, assumir o desafio de definir o que
nós entendemos por democracia.
Assumir esse desafio é também recuperar os múl-
tiplos processos políticos que nos possibilitaram
chegar até aqui, falando da zona do não ser e o que a
viabilizou, a despeito de todas as investidas desuma-
nizadoras do Estado e de suas instituições, ainda ofe-
recendo inúmeros processos e práticas democráticas.

29
«A democracia liberal
moderna não tem
oferecido um modelo
de organização da
liberdade, nem trazido
uma capacidade real de
produção de mecanismos
de contenção da soberania
do Estado pelo exercício
da soberania popular. Ao
contrário, o que se vê é
a redução da noção de
soberania popular à ideia
de soberania do Estado,
e pior: uma soberania do
Estado que se exerce pela
necropolítica»

30
Exatamente por não querer construir uma socie-
dade que reproduza hierarquias de humanidades,
nosso primeiro compromisso é o reconhecimento
pleno da nossa humanidade, e isso é um compro-
misso sem o qual nenhuma noção de democracia
pode se sustentar. Para pensar um modelo que se
organiza a partir de um poder fundamentado no
povo, é preciso que esse povo, esse sujeito político,
seja reconhecido sem mediações.
Outra dimensão que é importante reaprender,
uma vez que os processos de desumanização nos
retiram as capacidades, é a de como a autodefini-
ção é cerceada. Não nos é garantida a possibilidade
de definirmos a nós mesmos, nem de interpretar o
mundo a partir das nossas preconcepções.
É preciso exercitar essa capacidade de autodefini-
ção, pois, efetivamente, nós nos mantivemos vivos
a despeito de tudo que nos é negado o tempo in-
teiro. Precisamos reconhecer esse viver como algo
que, de fato, informa e nomeia o mundo e, assim,
assumir a disputa por essa nomeação. Assumir
uma noção de representação que não seja aquela
relacionada à delegação de uma função, à delega-
ção do poder a uma outra pessoa, mas entender a
responsabilidade política intrínseca a uma noção
de representação que não se dê por mediação, que

31
não se dê por meio de alguém tomando decisões em
nome de, de alguém que esteja ali com a responsa-
bilidade política de fazer valer não os próprios in-
teresses, mas o interesse da coletividade que se vê
representada nessa pessoa.
Quando se fala de representação, não se está que-
rendo delegar nada a ninguém, mas efetivamente se
utilizar das mais diversas formas de interferir, de de-
finir e de fazer com que o Estado funcione de forma
a dar conta de todas as formas de vida que estão no
seu território, e não apenas daqueles que têm a sua
humanidade plenamente reconhecida.
É preciso entender que democracia significa as-
sumir poder. Isso acarreta também ter a responsa-
bilidade de fazer com que a liberdade seja o nosso
grande ponto de orientação, nosso grande lugar de
referência. Uma liberdade plena, e não uma liber-
dade que se acomode e se mascare a partir de um
padrão de humanidade que não dá conta de todas
as possibilidades de existência na natureza.

32
«É preciso entender que
democracia significa
assumir poder. Isso
acarreta também ter
a responsabilidade
de fazer com que a
liberdade seja o nosso
grande ponto de
orientação, nosso grande
lugar de referência. Uma
liberdade plena, e não
uma liberdade que se
acomode e se mascare
a partir de um padrão
de humanidade que
não dá conta de todas
as possibilidades de
existência na natureza»

33
Nós pensamos liberdade de formas distintas, e é pre-
ciso que se possa exercer todas essas possibilidades
de ser livre no mundo. É papel de uma democracia,
enquanto modelo de organização de um poder so-
berano e popular, realizar esse processo.
A liberdade vem sendo reduzida a dimensões que
só fazem sentido ou são pensadas a partir da zona do
ser. É preciso que a zona do não ser discuta o que en-
tende por liberdade, não só pela disputa, mas porque
efetivamente experimentamos a violação da liberda-
de de forma muito mais severa. Temos muito mais
dimensões da liberdade a oferecer para o mundo do
que ele tem nos oferecido, exatamente por termos
sido tolhidos de liberdade em tantas dimensões. Por
isso é que também oferecemos dimensões muito
complexas e muito mais completas de exercício da
liberdade para toda a sociedade brasileira.
É preciso entender que está na hora de, novamen-
te, organizar esse projeto de Estado que a gente quer:
um projeto de nação, se é que vamos insistir em
determinados aspectos, em determinadas dimen-
sões. Independentemente disso, é preciso tomá-lo
nas mãos. Dispomos de uma série de experiências
extremamente interessantes do ponto de vista do
modelo de organização política para uma socieda-
de plural, uma sociedade complexa, uma sociedade

34
formada por dimensões das mais distintas, em que
as pessoas consigam viver em liberdade, sem que
se neguem.
Uma sociedade em que cada um possa ser exata-
mente o que é.

35
Democracia
na diáspora
africana
Tukufu Zuberi

36
tenho interesse genuíno pelo que é possível
e preciso fazer para remover e elevar as populações
negras da África e da diáspora da situação que hoje
vivem, para que possam ter uma experiência hu-
mana verdadeira e positiva. Esse interesse tem a
ver com minha preocupação com o sentido geral
e pleno do que é humanidade.
Eu gostaria que considerássemos o impacto
de uma democracia eurocêntrica colonial nas
Américas, em particular nas comunidades indí-
genas, nas comunidades negras, nas comunidades
empobrecidas. Do ponto de vista da experiência
da diáspora, por exemplo, o nascimento da demo-
cracia é fundamentalmente problemático. Tanto
para os africanos da diáspora africana, quanto para
os indígenas das Américas, pensar na democracia
e no colonialismo é uma questão carregada; nós
não vemos o colonialismo como solução para a
democracia.
Ao longo da nossa experiência, a escravização
foi um problema da democracia; para a democra-
cia, a escravidão foi um problema fundacional.
Mas o que eu quero dizer com a democracia?
Democracia, de forma direta, quer dizer o gover-
no pelo povo. Na democracia plena, o governo é
feito pelo povo através de ações diretas ou através

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de meios e instituições democráticas sobre as quais
ele tem real controle.
A pergunta que se impõe é: quem é o povo, então?

«Ao longo da nossa


experiência, a
escravização foi um
problema da democracia;
para a democracia, a
escravidão foi um
problema fundacional»

Durante todo o processo de colonização no Brasil,


nos EUA, na Colômbia, na Nova Zelândia e no
mundo inteiro, os escravizados, assim como as po-
pulações indígenas, não eram considerados pessoas.
Nasce aí, no momento em que a maioria da po-
pulação não era sequer considerada gente, povo, a
noção de democracia que até hoje experimenta-
mos. Quando a democracia nasce, os colonizados
não são seres humanos, não são pessoas. Quando a

38
democracia nasce, os escravizados ainda não são
gente — não têm o estatuto pleno de ser humano.
Na experiência da diáspora, a ideia de democra-
cia tem a ver com questionar quem está no controle.

«Na experiência da
diáspora, a ideia de
democracia tem a ver
com questionar quem
está no controle»

Na realidade, o potencial da democracia continua


sendo comandado por tiranos que tentam neutra-
lizar um movimento progressista que é feito, cria-
do e fomentado por aqueles que não eram sequer
considerados sujeitos válidos da democracia.
Dentro da ideia de sujeito da democracia, pensar
populações marginalizadas e diaspóricas é extre-
mamente necessário para pensar e entender o que
nós queremos afirmar por democracia.
Antes de pensar na nossa ideia de democracia,
temos que elevar o nosso estado de consciência

39
para além das limitações do eurocentrismo, para
além das limitações da supremacia branca, para
além das formas de marginalização e opressão que
têm sido impostas sobre nós. Eu, por exemplo,
estou nos Estados Unidos, dentro de uma demo-
cracia americana, mas isso não quer dizer que eu
seja parte dessa democracia americana, apesar de
estar nela.

«Dentro da ideia de
sujeito da democracia,
pensar populações
marginalizadas
e diaspóricas é
extremamente
necessário para pensar
e para entender o que
nós queremos afirmar
por democracia»

40
A diáspora africana está, de fato, espalhada por todo
o mundo. Aqui, vamos focar, sobretudo, naqueles
que vieram pelo Atlântico; a conversa sobre diás-
pora africana na Ásia fica para um outro momento.
Em primeiro lugar, devemos lembrar que, daque-
les que foram retirados, violentamente extraídos da
África e trazidos para a América, muitos morreram
no translado: ou no continente Africano enquanto
ainda eram transportados lá dentro, ou no trasla-
do pelo Oceano Atlântico, e depois de chegarem
aos portos do Rio de Janeiro e a outras partes da
América. Foi esse movimento em particular, esse
traslado específico, o gerador da grande diáspora
pelo Atlântico nas Américas.
Foi pelo sacrifício provocado nesse processo, e
não pelo que chamam de “tropas Colombianas”,
como sugerem alguns dos meus colegas demógra-
fos, que a população humana chegou a 1 bilhão,
no período entre 1500 e 1800. Foi pelo sacrifício
das populações nativas na África, nas Américas, na
Ásia e em outras partes do mundo.
É importante que nossa perspectiva sobre demo-
cracia veja através e para além da hipocrisia da su-
premacia branca que dissemina esses dados falsos.
Tento me contrapor a isso pensando essas ideias em
termos do contexto atual das sociedades em que

41
vivemos. Este é um mundo capitalista e é um mundo
racista. É um mundo, então, do capitalismo racial;
de um capitalismo racializado. Esse sistema não tem
sido benéfico para a diáspora africana. Quando eu
falo das ações do capitalismo racial, estou procuran-
do jogar luz sobre o ataque incessante às populações
da diáspora africana.
Para entender isso, é preciso transcender a lógica
branca da realidade. Temos que investigar concei-
tos estruturantes da humanidade, como cidadania,
sujeito de direitos, sujeito político. Esses mesmos
aspectos e conceituações estão inseridos nas formas
de destruição e controle dos processos democráticos,
como têm estado pelos últimos 500 anos. São cate-
gorias, em si, racializadas.

«Este é um mundo
capitalista e é um mundo
racista. É um mundo,
então, do capitalismo
racial; de um capitalismo
racializado»

42
Desde o século 19, o Planeta Terra, digamos, em
toda sua geografia global, foi reorganizado por
essas linhas raciais que definiam quem era cidadão
de primeira ou segunda classe, quem era humano.
Nesse contexto, surge a categoria racializada de ci-
dadão, uma das mais abertas à disputa no contexto
da democracia que se conhece hoje.
Os movimentos negros no Brasil, EUA e Co-
lômbia, para citar exemplos, têm sido centrais nas
batalhas pelo significado de humanidade, de ser
humano, de ser cidadão. A própria ideia de demo-
cracia, de que seria realmente o povo que controla
as instituições, que toma decisões de governo, é
bastante abstrata, se não a contextualizarmos com
exemplos concretos. Um exemplo é uma tendên-
cia de adotar essa lógica do que foi a colonização
europeia que desenvolveu as Américas — quero
dizer todas as Américas, não só os EUA.
Para dar outro exemplo, a democracia como
sistema de pensamento recebeu a sua articulação
mais nítida na transição do século 18 para o sécu-
lo 19. Quando as pessoas falam acerca desse perío-
do, sobre a Revolução Francesa, a Revolução dos
Estados Unidos da América, se esquecem de que a
única revolução democrática que ocorreu nesse pe-
ríodo entre os séculos 18 e 19 aconteceu no Haiti.

43
Foi só no Haiti que a emancipação dos escraviza-
dos e o fim da tirania que eles seguiam sofrendo foi
posta como foco central.
O sofrimento que o povo haitiano ainda vive é
fruto de uma retaliação à audácia que se demons-
trou ao se levantar contra a tirania e escravização
ainda no século 19 e dizer: “O meu povo deve ser
livre! Nós seremos um povo livre!”.

«Foi só no Haiti que


a emancipação dos
escravizados e o fim da
tirania que eles seguiam
sofrendo foi posta como
foco central»

Havia ainda outra proposta de como definir demo-


cracia, de como formar uma democracia, baseada na
criação de “novas europas”.
Essa ideia de “novas europas” talvez lembre a al-
guns a história do Brasil, que pode ser exemplificada

44
em uma história que aconteceu comigo em um
museu brasileiro sobre imigração. Eu perguntei à
diretora da instituição: “E a gente, os africanos?
Você está falando dos imigrantes da Europa, Itália,
Alemanha, de várias partes do mundo…”. Ela me
explicou a essência do Brasil, com uma interpre-
tação racional do que ela entendia como a ca-
racterística brasileira. Excluiu a música, porque
a música veio dos africanos. E a dança, porque a
dança também veio dos africanos. O ponto que
ela enfatizava, então, era o da administração po-
lítica e econômica, por terem sido levadas a cabo
por imigrantes europeus. Ela não foi a primeira a
fazer esse tipo de consideração — essas conside-
rações, na verdade, estão na base, no fundamento
das Ciências Sociais no Brasil.
Isso não é diferente do que se vê nos Estados
Unidos, onde o pensamento social e político tam-
bém propõe que as bases e o fundamento da socie-
dade americana vêm do Ocidente Europeu. Essa
ideia é englobada pela narrativa dominante de que
realmente os europeus chegaram a diferentes partes
do mundo, e, quando se estabeleceram nessas co-
lônias chamadas de colônias europeias, onde quer
que tenham se estabelecido — isto é, os britânicos,
os franceses, no Norte da América, no Canadá e

45
em outros espaços, o Brasil inclusive —, trazem afri-
canos, extraídos à força, e se estabelecem nessas geo-
grafias, chamando-as de nova Europa. Até mesmo
as guerras de independência contra a Inglaterra,
Portugal, o processo de independência do Brasil,
fazem parte do projeto de criar “novas europas”.
Essa nova Europa, em suas teorias e considera-
ções da democracia, não estendia essa democracia
aos povos nativos, aos povos indígenas, e nem aos
povos africanos, excluídos da democracia durante
a escravização. Os escravizados não tinham demo-
cracia. Em situações de colonialidade, o colonizado
não tem realmente uma experiência de democracia.
Não seria difícil, penso, concordar que, mesmo de-
pois dos processos administrativos de descolonização,
os povos colonizados continuem sofrendo com a de-
mocracia. Depois da escravização, os libertos conti-
nuaram sofrendo sob o chamado regime democrático.
Por isso mesmo, imediatamente depois da escra-
vização, os emancipados começaram a lutar para
expandir o conceito e entendimento do que fosse
democracia. Para esse fim, era preciso mudar como
eles e seus descendentes anteriormente escravizados,
são descritos. É preciso mudar o que significa ser
cidadão, mudar o que significa “ser humano”. Eles
precisam mudar o seu sentido existencial, o que a

46
sua personalidade significa, o que sua persona po-
lítica significa.
Dessa forma, é na diáspora africana que se vê o
potencial da possibilidade de democracia. Depois
de definitivamente contestada, a ideia racista de
que africanos não são seres humanos dá lugar à to-
mada de consciência de que a diáspora africana é
de seres humanos.
Uma vez que se começa a radicalmente transfor-
mar o que significa ser cidadão, o que significa ser
uma pessoa, ser gente, somente a partir daí, exis-
tirá a possibilidade de uma democracia autêntica.
É por isso que dizemos que o potencial genuíno e
autêntico da democracia nasceu com a emancipa-
ção dos escravizados da diáspora.
Essa é a grande contradição da supremacia bran-
ca, da lógica de que a humanidade são só eles. A
nossa humanidade, a humanidade da diáspora
africana, expõe a contradição do conceito de hu-
manidade da supremacia branca e se opõe a ela
diretamente, e percebe-se que, na verdade, a ideia
de democracia era uma ideia de democracia ra-
cial. Democracia racial é simplesmente o resulta-
do da relação da democracia com o colonialismo,
com a colonialidade. A democracia racial nasceu
do fato histórico da escravização.

47
«Uma vez que se
começa a radicalmente
transformar o que
significa ser cidadão, o
que significa ser uma
pessoa, ser gente,
somente a partir daí,
existirá a possibilidade
de uma democracia
autêntica. É por isso que
dizemos que o potencial
genuíno e autêntico da
democracia nasceu com
a emancipação
dos escravizados
da diáspora»

48
Uma vez que se eliminam a escravização e o colo-
nialismo, são postos em prática os jogos liberais
de liberdade parcial — “A gente vai te dar direito
a isso, mas você tem que imitar o nosso compor-
tamento”. O convite é para ser negro, desde que
vestindo uma máscara branca. E com que se parece
essa máscara branca? Como é que ela é percebida?
Estamos sendo chamados a ignorar os processos
estruturais que criam a hierarquia racial. A hierar-
quia racial é assim: um sistema em que as ideias
que dominam todo o espaço são as brancas, no
qual a supremacia branca se coloca como completa
e possível no campo filosófico, religioso, espiritual,
econômico e político.
Há cerca de dois anos, em visita ao Brasil, eu fa-
lava com algumas pessoas sobre o fato de o Brasil
ter uma população majoritariamente negra. Eu
disse: “Isso é uma contradição política, não é?”,
porque olhei para as eleições que estavam acon-
tecendo naquele momento, e para todos aqueles
que tinham cadeiras no senado e no congresso, e
perguntei: “Onde é que está essa maioria”?
A contradição está refletida na realidade políti-
ca do país. Espero que não me levem a mal; não é
uma crítica específica ao Brasil, mas uma crítica à
supremacia branca na esfera política. Eu poderia ir

49
ali ao lado e perguntar na Colômbia, e ver a mesma
situação. Poderia perguntar às pessoas negras nas
ruas de Cuba, com o imenso respeito que tenho
pela Revolução Cubana, e seria a mesma coisa.
Nos Estados Unidos, isso está tão intrínseco às es-
truturas de poder que até dos políticos negros que
chegam a acessar algum espaço de poder se exige que
demonstrem evidências de suas máscaras brancas.
É isso que precisa mudar, para que mude também,
ou acabe, a democracia racial. Esse sistema é uma
hipocrisia da qual o Brasil é um grande exemplo.
Na realidade, tanto o caso do Brasil quanto o dos
Estados Unidos são a demonstração clara da contra-
dição de imaginar que o povo é quem governa.
Uma outra parte do problema é a inabilidade,
na modernidade, de aplicar ideias democráticas à
economia. Esse é um elemento fundamental para
qualquer ação de reparação, porque qualquer outra
coisa é uma ilusão. Sem um processo de reparação
dessas riquezas construídas com o suor e sangue
dos colonizados africanos e indígenas, essa inabili-
dade se evidencia.
É isso que dizemos, ao falar sobre racismo es-
trutural. O processo vai para além, atravessa gera-
ções. Por independer das limitações individuais e
não poder ser transcendido por elas — o racismo

50
estrutural não pode ser superado nem pelo indivíduo
extraordinário, excepcional.
Não é de mais um bilionário que a gente preci-
sa, mas pensar como distribuir as riquezas que são
resultado do trabalho humano de forma mais equi-
tativa. Assim, retornaríamos a essa ideia de demo-
cracia: tendo, enfim, uma preocupação com o povo,
as pessoas.
A democracia racial realmente só pode oferecer li-
berdade parcial. São os jogos neoliberais que estimu-
lam no imaginário social que é possível ter na demo-
cracia uma forma gradual de progredirmos enquanto
sociedade, sem a preocupação ou desejo de desfazer a
injustiça racial dentro do sistema democrático.
No Brasil, Colômbia, Estados Unidos, em qual-
quer lugar do mundo onde exista democracia racial,
os movimentos negros trazem esperança. A prova
disso é que dentro dos movimentos negros se encon-
tram as propostas mais radicais para a democracia
de nosso século. Nele há uma demanda histórica de
propor, lutar e experimentar a mudança da própria
definição de democracia.

51
FORMAÇÃO
DE NÚCLEOS
POLÍTICOS
NOS
TERRITÓRIOS

52
Quais são os desafios da nossa
democracia?

No tempo atual, com o avanço dos grupos políti-


cos e sociais conservadores, autoritários, em escala
internacional, o Brasil vive uma onda política que
culminou na eleição de representantes de agendas
antidemocráticas: racista, patrimonialista e pa-
triarcal. Essa onda ameaça as conquistas de direitos
da população trabalhadora em nosso país, especial-
mente pessoas negras e moradoras da periferia.
O patriarcado, patrimonialismo e o racismo es-
trutural são elementos fundamentais para enten-
dermos a onda que ameaça a democracia:
O patrimonialismo é um instrumento his-
tórico de poder centralizador do Estado. Ele se
organiza pela manutenção de um poder político
que se preserva restrito ao controle de pequenos
grupos e famílias, hegemonicamente brancos, que
historicamente se perpetuam no Estado. Não há
distinção clara entre as esferas públicas e privadas e,
com base nesta organização, o sentido de comum
no público não existe.
Já o patriarcado é um sistema social em que
a figura do homem mantém o poder na socieda-
de. Nele somente os homens ocupam as funções

53
de liderança política, autoridade moral, privilégio
social e de controle das propriedades. Todo corpo
que não se aproxima desta figura está destituído de
direitos na disputa pelo poder no Estado.
Por fim, o racismo estrutural normaliza e
concebe como verdade padrões e regras baseadas em
princípios discriminatórios de raça. Ele é parte de
um processo social, histórico e político que elabo-
ra mecanismos para que as pessoas ou grupos não
brancos sejam destituídos diariamente de seus di-
reitos garantidos pelo Estado brasileiro.
superar o patrimonialismo, a condição racista,
patriarcal e machista presente na sociedade brasilei-
ra, significa caminhar para uma convivência cada
vez mais potente que apenas a democracia pode
proporcionar.
É tempo, mais que em todos os tempos, de radi-
calizar a democracia em favor da vida, da dignidade
humana e do bem viver.
É preciso construir uma agenda por reformas sus-
tentáveis identificada com os interesses dos grupos
sociais da periferia. Para isso, é fundamental realizar
percursos formativos que nos ajude a interpretar e
transformar a realidade brasileira.

54
O que podemos fazer?

Ao longo do tempo, a população da periferia (prin-


cipalmente negra, indígena e demais grupos em-
pobrecidos) vem construindo estratégias democrá-
ticas de disputa pelo poder institucional, a partir
da superação do racismo, do patrimonialismo e
do patriarcado. É nosso objetivo contribuir com
as jovens lideranças da periferia na construção de
potentes estratégias na atual disputa pelo poder na
sociedade. Para isso, o IPAD te convida a criar um
núcleo de formação política em sua periferia.

O que são núcleos de formação


política?

São grupos compostos por pessoas que se reúnem


a partir da necessidade de construir ações que me-
lhorem a vida dos moradores de sua comunidade,
favela, quebrada, bairro, município, por meio da
Formação, Organização e Ação Política Coletiva,
capaz de transformar sua realidade.

55
Os núcleos políticos têm os
seguintes princípios:

→ Superação do Racismo Estrutural

→ Superação do Patrimonialismo Institucional

→ Superação do Patriarcado

→ Superação de todas as formas de exploração que


se desenvolvem no capitalismo

56
Como construir um núcleo de
formação política?

1 Mapear quais temas, ambiente e


pessoas devem participar do núcleo

O primeiro passo é identificar o ambiente e o pú-


blico onde o núcleo pode ser formado. Exemplos:
associação de amigos do bairro, pré-vestibular co-
munitário, colegas de trabalho, grupos da igreja,
coletivos e instituições sociais, coletivos de arte.

Mapeie as demandas iniciais das pessoas para, com


assertividade, identificar como essas pessoas se
reconhecem e o que querem mudar no mundo, a
partir de sua comunidade, favela, quebrada, bairro
ou cidade.

Quais as demandas iniciais das pessoas por mudan-


ça de sua realidade social?
Qual o perfil das pessoas que formarão o núcleo?
Onde será construído o núcleo político?

57
2 Estabelecer quantas pessoas
integrarão o núcleo

Busque realizar diálogos ampliados em que todos


os integrantes consigam falar e ser ouvidos. O nú-
mero de pessoas deve ser considerado a partir das
condições de estrutura do local onde serão realiza-
dos os encontros do grupo (presencial ou digital).
Propomos que o núcleo tenha, ao menos, cerca de
dez pessoas.

Quantas pessoas formam seu núcleo?

3 Definir os temas de interesse e a


quantidade de encontros

A quantidade de encontros dependerá do forma-


to e do tema/desafio que convoca as pessoas para
a formação do núcleo. Em seguida, construa uma
proposta preliminar de criação do núcleo que me-
lhor auxilie na formação, organização e execução
de ações capazes de transformar a realidade de sua
comunidade, bairro e cidade.

58
Qual é o objetivo do núcleo?
Quantos encontros ocorrerão?
Quais serão os temas trabalhados?
Como os temas serão trabalhados?

O próximo passo é apresentar a proposta prelimi-


nar às pessoas, convidando-as para fazer parte do
núcleo.

4 Definir o local, o horário e data em


que acontecerão os encontros

Defina, em diálogo com as demais pessoas, local,


data e horário dos encontros do núcleo. No 1º en-
contro, pactue com todos a definição da data e
horário. É muito importante manter a frequência
do grupo. Os encontros poderão ser presenciais ou
por meio digital.

Onde ocorrerão os encontros?


Qual será a periodicidade dos encontros?
Em que horário e dia da semana/mês?

59
5 Definir o método das atividades do
núcleo

Pactue com as pessoas convidadas a forma como


serão trabalhados os temas nos encontros do nú-
cleo. Exemplos: apresentação dos vídeos do IPAD
e outros, leituras de textos ou de matéria de jor-
nal, passeios expositivos, rodas de conversa, diálo-
gos com professores convidados. É fundamental
que o Racismo Estrutural, o Patrimonialismo e o
Patriarcado, sejam trabalhados desde os primeiros
encontros. A pessoa formadora do núcleo poderá
priorizar um dos conceitos, mas precisa apresentar
os três conceitos para os integrantes do núcleo.

Após os primeiros encontros, as pessoas do núcleo


precisam mapear/identificar como tais conceitos
ajudam a compreender as demandas iniciais das
pessoas por mudança da realidade social de sua
comunidade, bairro, cidade. E o quanto seus desa-
fios estão relacionados ao atual contexto de nossa
democracia.

Como ocorrerão os encontros?

60
6 Realizar o primeiro encontro com as
pessoas

Após realizadas as cincos etapas, convide as pessoas


para o primeiro encontro do núcleo. No primeiro
encontro todas as pessoas precisam saber o obje-
tivo do núcleo e apresentar seus interesses iniciais
em integrá-lo. Apresente a proposta de encontros
(os temas a serem trabalhados, o formato, a perio-
dicidade e a quantidade dos encontros). Pactue
todos os pontos da proposta com as pessoas.

7 Pactuar e realizar ações em defesa


da democracia

Após os primeiros encontros, o núcleo poderá ela-


borar estratégias para a defesa da democracia. As
pessoas do núcleo precisam melhor compreender
os desafios vivenciados coletivamente, para ela-
borar estratégias de intervenção em sua realidade.
Saber as características do grupo que forma o nú-
cleo é fundamental para intervir em cada desafio.
Para cada desafio, faça as seguintes perguntas ao
núcleo:

61
Quais são suas forças para intervir no desafio?
Quais são suas fraquezas que limitam a intervenção?
Quais oportunidades que se identifica no contexto
em que o desafio se apresenta?
Quais ameaças o grupo terá ao intervir no desafio?

Com base nas respostas para cada desafio, defina


com o núcleo o que primeiro deverá ser trabalhado.
O próximo passo é a ação. Os encontros permanen-
tes do núcleo ajudarão a avaliar as ações realizadas e
ajustar as estratégias.

8 (RE)tomada de novos ciclos

Um dos objetivos do núcleo é que os/as integrantes


multipliquem os núcleos, assim que finalizados os
encontros propostos.

O NÚCLEO DE FORMAÇÃO POLÍTICA DEMANDA


UM DIÁLOGO SINCERO ENTRE OS DIFERENTES
SABERES DAS PESSOAS QUE O COMPÕEM

texto completo disponível em Mapa de Formação


Política (sejademocracia.com.br)

62
63
Viver
democracia
nas religiões
Flávia Pinto
Joaquim Azevedo
Wesley Teixeira

64
Flávia Pinto

só há 131 anos que a escravização ofi-


cialmente acabou. Ela deixou sequelas muito
dolorosas e danosas ao tecido social brasileiro, in-
clusive no que tange à intolerância religiosa, sobre-
tudo em ambientes populares, periféricos.
O processo de invasão euro-cristã precisa ser fa-
lado de forma didática e não romantizado como
nos livros escolares e palestras. A verdade desse
processo é o genocídio mais duradouro da história
da humanidade, arrastando-se por 400 anos.
Quando negros e negras no Brasil levantam o
debate sobre o processo de escravização, tem gran-
de dificuldade em debater o assunto. Com 400
anos de escravização e apenas 131 anos desde a
abolição, como seria possível o comportamento
da sociedade brasileira não estar ainda fortemente
influenciado pelo pensamento dominante, mer-
cantilista, capitalista? É possível estarmos livres
desta herança? Não.
Diversos corpos estão submetidos a essa realida-
de do pensamento euro-cristão. O negro é ainda
mantido no lugar de pessoa escravizada, subalter-
na, a quem é vedado ascender a cargos de poder

65
e permitido somente as funções de salários mais
baixos. Os corpos de mulheres negras ainda são as
maiores vítimas do feminicídio, pedofilia e violên-
cia doméstica. Os corpos indígenas e de pessoas ho-
moafetivas são constantemente demonizados.
Ainda sobre o pensamento colonizador euro-
-cristão, precisamos refletir sobre a influência do
dominador, que não foi só geográfica e teve um
forte viés religioso. Foi um determinado discurso
religioso que justificou o processo de escravização,
afirmando que nativos dessas regiões eram “seres
sem alma”, e, por isso, poderiam ser submetidos à
escravização, ao estupro, engravidar violenta e com-
pulsoriamente ou serem assassinados. Sequer me-
reciam o próprio nome, os nomes que traziam dos
povos africanos e indígenas.

66
«Só há 131 anos
que a escravização
oficialmente acabou. Ela
deixou sequelas muito
dolorosas e danosas
ao tecido social
brasileiro, inclusive no
que tange à intolerância
religiosa, sobretudo em
ambientes populares,
periféricos.»

Transitando nos espaços de que foram excluídos


durante 400 anos, e que por todo esse tempo
foram frequentados por pessoas brancas, os corpos
negros causam estranhamento. São naturalmen-
te olhados com a expectativa de que a qualquer
momento possam roubar, quebrar, destruir algo.
Assim é a reprodução do pensamento colonizado
e religioso sobre os povos indígenas e negros.

67
Se hoje a cultura do estupro no Brasil é tão insi-
diosa, colocando o país em quarto lugar em cultura
do estupro, quinto em feminicídio e terceiro em pe-
dofilia, isso se deve, ao menos em parte, a esses mais
de 500 anos de dominação euro-cristã colonizadora.
Nós temos praticado esse comportamento. Pensem
na lógica expressa no gesto ritualístico-religioso em
que a mão da mulher é oferecida pelo pai a um outro
homem, ao noivo. Isso é a cultura patriarcal estabele-
cendo que o seu corpo não pertence a mulher, e que
ela, portanto, deve carregar dois nomes, o do pai e o
do marido, gravados nela como marcas no gado.
Em Umbanda Religião Brasileira: guia para lei-
gos e iniciantes, discuto que existe uma religiosida-
de brasileira, que o processo de fusão cultural aqui,
forçado e compulsório, resultou em um amálgama
de religiosidade, cultura e compreensões de mundo.
A Umbanda é uma religião genuinamente brasileira,
com saberes indígenas e africanos milenares repro-
duzidos pelos caboclos e pretos-velhos nos terreiros.
Porém, a ausência de consciência, de entendimen-
to da realidade étnica, cultural e religiosa do povo
acarreta um não diálogo com saberes milenares. Na
contramão, os livros escolares tendem a apresentar
histórias do Brasil que partem de uma imagem de
um padre na missa para povos indígenas sorridentes.

68
Essa é a ideia que as crianças brasileiras apreendem
dos livros como sendo a história do Brasil. Ainda
é urgente afirmar que o Brasil não tem 520 anos.
Com 11 mil anos de existência, segundo os lau-
dos arqueológicos mais recentes, no caso dos indí-
genas, e entre 10.000 e 140.000 anos de existência,
no caso dos negros (os cinco esqueletos mais an-
tigos encontrados concentraram-se no continente
africano), esses povos têm uma cultura religiosa
que orienta inclusive seus sistemas de organização
política e jurídica.
É o pajé, é o Iyanifa, é o Babalaô, é a cultura
matriarcal na qual a mulher exerce um papel de
liderança — não no sentido de confrontar homem
e mulher, mas no sentido de legitimar na mulher
o papel do sagrado feminino, o papel do Oráculo
que traz o conhecimento maior, e que, portanto,
lhe confere o papel de proporcionar equilíbrio —
fundamental — para a sustentação de projetos
democráticos e plurais na sociedade.
Desta forma, afirmamos que a Umbanda orienta
nossos olhares e práticas de organização sociopolí-
tica capazes de transpor os desafios de nossa socie-
dade, no sentido de radicalizar a democracia.

69
«Afirmamos que a
Umbanda orienta
nossos olhares e
práticas de organização
sociopolítica capazes
de transpor os desafios
de nossa sociedade, no
sentido de radicalizar a
democracia.»

70
Joaquim Azevedo

favelas erguidas pelo povo negro escra-


vizado foram os primeiros espaços a comportar a
continuidade da cultura oriunda da África. Como
olharmos para as favelas sem vermos que lá nossos
cultos passam a ser cada vez mais repreendidos ou
proibidos? O que falta em nossa diáspora para ser-
mos respeitados?
Essas são perguntas que constantemente estão
em minha mente. A resposta é sempre a mesma e
dolorosamente devemos seguir confiando, lutan-
do e produzindo novas elaborações e estratégias
dentro de nossos grupos. Sempre com o intuito de
modificar pensamentos negativos com relação aos
seus iguais, pois é isso que inviabiliza a nossa cres-
cente. Seria melhor para todos nós se enxergásse-
mos e ouvíssemos o que a natureza ancestral tem
para nos dizer e mostrar. É dela que virá a solução
para o povo seguidor da cultura Iorubá, que é rica
de princípios tão importantes para a humanida-
de. Sempre fomos sustentáveis, mas hoje em dia
a comercialização de nossa religião é maior que a
habilidade que possuímos de mantê-la.

71
O simples fato de não fazermos mais o nosso
papel tem tornado insustentável a execução de
nossas ações religiosas. Exemplo clássico disto é
o plantio. Os elementos utilizados nos ebós e na
preparação das comidas ofertadas aos Orixás eram
plantados entre os membros da comunidade religio-
sa, ou até mesmo em seu espaço quando suficiente,
como nas casas matrizes. Hoje em dia, seguimos o
fluxo do capitalismo e compramos os grãos em su-
permercados. Nem lembramos mais que as feiras,
além de possuírem valores mais baixos, trazem essa
ideia de comunicação entre Exu e os nossos ances-
trais. Se quisermos acompanhar a evolução existen-
te no planeta, devemos fazer com que nossos Egbés
passem pelo o mesmo processo. Novos espaços pre-
cisam compreender a lógica atual, ou nos mantere-
mos dentro de nossas roças à moda antiga. Há quem
goste, mas será que esse é o caminho? Sempre fomos
parte da sociedade, apesar de por séculos marginali-
zados, pois os deuses adorados por nós estão ligados
à natureza, por mais que o entendimento passado
durante os anos não fosse compreendido e esclare-
cido por nossos antigos/as zeladores/as.
Essa compreensão é possível quando olhamos
para a Bahia e para o Rio de Janeiro. O Engenho
Velho da Federação está localizado na região

72
central de Salvador. Populosa, a primeira institui-
ção de Candomblé do Brasil, não suscita incômo-
do algum, por respeito ao passado histórico e pela
boa conduta de seus adeptos.
Poderia citar outras comunidades que fazem
parte do bairro e suas elevações, vista por muitos
como favela. No Rio de Janeiro não foi diferente,
quando o centro da cidade foi o local escolhido
para dar início às nossas tradições. Em especial, na
zona portuária. A nação de Ketu Opo Afonjá deu
início às suas atividades no bairro da Saúde, na
Pedra do Sal. Entretanto, nesse caso, assim como
nas demais Casas de Axé do estado, a cidade ex-
pulsou a cultura afro-brasileira para a Baixada
Fluminense. Atualmente, o Ilê Axé Opo Afonjá
RJ, gerenciado por Mãe Regina de Iemanjá, se
encontra em Coelho da Rocha e foi a primei-
ra casa de Candomblé tombada pelo INEPAC
(Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), em
1º de junho de 2016.
Esse isolamento impossibilitou a todos conhe-
cerem mais sobre a cultura vinda da África, pro-
porcionando aos segmentos evangélicos amplo
espaço de atuação e maior envolvimento com o
público, impedindo que o povo periférico co-
nhecesse de fato sua própria história e origem. Os

73
ensinamentos deixaram de ser com os mais velhos
e aproximaram os negros dos templos evangélicos,
cada vez mais atuantes nas favelas cariocas. Como
se agarrar ao que não faz mais parte de seu espaço
de crescimento?
Aos poucos os Egbés foram sendo retirados de
maneira cruel das favelas, antes seu principal redu-
to. Depois de conviver com religiosos em minha fa-
mília e ser agraciado com boas amizades religiosas,
pude entender melhor esse processo em que a ex-
clusão da cultura fez com que o povo de matriz afri-
cana desconhecesse sua história e sua consolidação
dentro de nosso país. Isto causa conflitos religiosos
entre quem deveria caminhar pela mesma estrada e
comungar da mesma ideia.
Tudo isso me fez repensar projetos e dar a eles
uma roupagem mais democrática para essa luta que
travamos, e iremos travar incansavelmente, de reto-
mada pelos nossos espaços, até que a pluralidade seja
uma linguagem normal entre as religiões.
Que esse processo de readequação passe por con-
versas mais diretas com o povo de favelas e periferias
e entre as lideranças das diversas diásporas existen-
tes e reconhecidas pelo poder público. Os direitos
precisam ser iguais, mas a população necessita saber
quais são, do contrário persistirá o medo do seu

74
ingresso no segmento religioso. Afinal de contas,
poucos querem fazer parte de uma religião tão mas-
sacrada como o Candomblé e a Umbanda.
O símbolo maior de nossa cultura é a resis-
tência e não temos que combater uns aos outros.
Precisamos lutar juntos, como iguais que somos. E
assim, darmos as mãos rumo ao progresso que o
Orixá nos preparou para obter. Sem pisar em nin-
guém, mas reconhecendo que nossa crença possui
começo, meio e fim. Não temos bíblia, mas somos
uma religião que respeita seus pares.

75
Wesley Teixeira

sou morador de duque de caxias, do morro


do Sapo. Falo de um lugar de religião evangéli-
ca, sou da Igreja Projeto Além do Nosso Olhar e
componho o movimento da luta progressista no
meio evangélico, como a Frente de Evangélicos
Pelo Estado Democrático de Direitos, o Coletivo
Esperançar, o Movimento Negro e outras iniciati-
vas nessas disputas de narrativas.
Religião e Democracia são termos eurocêntricos.
A palavra que vem do Latim religare carrega con-
sigo uma visão geral social formada por uma con-
cepção europeia das coisas. Democracia também é
uma ideia greco-romana. Essas ideias são muito in-
fluentes na base da organização da nossa sociedade;
ideias que já dividiram corpo, alma, espírito, como
os helênicos faziam. Assim tendem a ser formados
nossos processos de pensamento de interpretação da
história do mundo a partir desse referencial euro-
peu. É extremamente importante saber que nossa
leitura de mundo vem desse pensamento.
O catolicismo chega às Américas com a expansão
marítima, e os protestantes, com a perseguição que

76
sofriam na Europa. Estes formam a população ini-
cial dos Estados Unidos, e os católicos, em grande
parte, a América Latina, tanto onde foi colonizada
por portugueses quanto por espanhóis.
O catolicismo, bem como o protestantismo
chegam aqui de forma colonizadora, valendo-se
de apagamento histórico, ataques aos povos origi-
nários, e também compactuando com todo o pro-
cesso de crescimento deste continente e enriqueci-
mento da elite, que foi a escravidão.
Essa visão da história reafirma toda a carga
opressora que também parte da religião, e não
pode ser ignorada. A religião é reflexo dos momen-
tos de disputa daquela sociedade, e pensando nisso,
não há processo de opressão sem contestação.
Nesse processo de diáspora, nasce uma reli-
gião de onde venho e de que faço parte, a religião
pentecostal.
William J. Seymour, homem negro norte ame-
ricano, rompeu com a Igreja, iniciando um movi-
mento pentecostal muito ligado a uma forma de
adoração que passava por um movimento do corpo,
pelo falar, e que era formado por negros e brancos,
orando juntos num pequeno armazém. Esse arma-
zém foi várias vezes denunciado na mídia, suposta-
mente pelo barulho e incômodo que provocava. Aí

77
já se nota a visão racista que não tolera olhar negros
e brancos juntos, num movimento. Ainda assim,
esse movimento se espalhou e aumentou, especial-
mente depois de um terremoto que fortaleceu uma
visão apocalíptica da época.
Esse movimento chega ao Brasil trazido por mis-
sionários suecos, primeiro na cidade de Belém do
Pará, e em seguida chega à cidade do Rio de Janeiro,
onde, a princípio, foi instalada no bairro de São
Cristóvão, mas logo se expandiu para o bairro de
Madureira.
Esses marcos são importantes em um país onde a
religião oficial foi o catolicismo, fato que se materia-
liza, claro, na perseguição de terreiros de candomblé
e no racismo religioso, mas que também significava
que a algumas religiões era vetado ter templos.
A religião começou em 1930 e, até 1990, era
muito pequena, minoritária. Também cresce numa
visão muito antagônica à cultura social brasileira.
Tudo que representasse essa cultura, para a religião
pentecostal, era considerado mundano. Os fiéis
eram orientados a se vestir com roupas que cobris-
sem ao máximo seu corpo; os membros não parti-
cipavam de festas como o carnaval e a festa junina,
não assistiam televisão, não frequentavam praias,
não iam ao cinema. Tais práticas eram consideradas

78
mundanas. Houve também um grande controle se-
xual e reprodutivo, com a proibição do sexo antes
do casamento, o sexo sendo visto como algo errado.
Todas essas normas se formam pela lente do pro-
cesso europeu.
Entre as contestações, a Teologia da Libertação,
na América Latina, teve um papel muito impor-
tante, principalmente na Igreja Católica. Na
Nicarágua, conseguiu motivar uma revolução. A
Teologia da Missão Integral foi também pensada
para a América Latina, a partir da justiça social e
dos pobres.
A Teologia da Libertação usa um referencial
marxista, que a Teologia da Missão Integral con-
sidera em menor grau. Ambas partem, e é essa a
questão central, de uma ideia de justiça social, da
relação entre a fé e a pobreza, e do papel do cristão
nessa relação. René Padilla é um grande represen-
tante da Teologia da Missão Integral, bem como
o teólogo brasileiro Ariovaldo Ramos. Ambos
defendem essa linha de justiça social. No Brasil,
temos Leonardo Boff e Frei Betto, que nas déca-
das de 1970, 1980 e 1990, trabalharam nas comu-
nidades eclesiais de base, a partir da Teologia da
Libertação.

79
«Entre as contestações,
a Teologia da
Libertação, na América
Latina, teve um papel
muito importante,
principalmente na Igreja
Católica. Na Nicarágua,
conseguiu motivar uma
revolução. A Teologia
da Missão Integral foi
também pensada para a
América Latina, a partir
da justiça social e dos
pobres.»

Há ainda um recorte de gênero, dentro do qual


cabe destacar duas teólogas muito importantes:
Ivone Gebara e Nancy Cardoso, que propõem uma
perspectiva de gênero das teologias de contestação.

80
No restante deste texto, o enfoque recai sobre uma
teologia de contestação fundamental no contexto
brasileiro: a Teologia Negra.
Ronilso Pacheco, neste aspecto, é uma leitura
fundamental. A teologia negra procura descolo-
nizar o olhar de leitura das escrituras bíblicas. É
importante observar os marcos desse olhar, dessa
contestação, dessa visão eurocêntrica de leitura da
bíblia. Dos movimentos muito fortes feitos por
protestantes, o de Martin Luther King, conheci-
do pastor batista, é famoso entre os movimentos
por direitos civis. Outro grande nome é o Bispo
Desmond Tutu, da África do Sul.
Vale ressaltar que o Jardim do Éden é um marco
para essa teologia, que situa o surgimento da hu-
manidade onde também o fazem os historiadores,
na África. Quando se narram os rios que saíam do
Éden, são rios que atravessam a África e a Ásia, a
exemplo da passagem bíblica de Agar, a que mui-
tas teólogas negras recorrem para elucidar a loca-
lização do Éden na África. O principal e mais im-
portante texto está em Êxodo 3:7, em que Deus se
posiciona contra a escravidão no Egito, também
um território da África. A escravidão, nessa visão,
é condenada por Deus. Deus vai contra o Faraó,
a favor do povo oprimido, e decide libertá-los.

81
Deus, aqui, é um Deus de libertação, um ponto
muito comum entre as outras teologias de contes-
tação e libertação.
O povo liberto das opressões recebe uma sequên-
cia de condutas a partir da justiça social: não opri-
mir, ser justo com estrangeiros, se preocupar com os
que naquela sociedade estavam mais desprotegidos,
como os órfãos e as viúvas, grupos, naquela época,
em vulnerabilidade social. O povo recebe orienta-
ções de justiça, como a de não acumular riquezas
e terras. No Livro de Juízes, vê-se, por isso, muitas
violências, estupro, morte, praticadas por um povo
que tinha justamente recebido orientações sobre o
sacramento da vida. “Não matarás” — a vida está
no lugar do sagrado.
Esse povo se esquece dessas orientações de conduta,
e passa a ser questionado por profetas como Isaías e
Jeremias, defensores da libertação, de um Deus que
olha para os pobres, para os aprisionados, para os cati-
vos, que não tolera injustiças. Jesus também vem nesse
mesmo processo de contestar as táticas desse povo.
Jesus, um jovem negro, que nasceu numa perife-
ria — o Egito é um território africano —; quando
nasce, precisa ser escondido no Egito. E não se es-
conderia uma criança branca em meio à crianças ne-
gras. Ele cresce e é torturado e morto pelo Império

82
Romano — o poder daquela época — justamente
por trazer uma mensagem de libertação.
É uma mensagem para que olhemos para aque-
les que estavam na prisão, que estavam desabriga-
dos, nus, com fome, pessoas com as quais ele se
identifica, colocando-se junto às necessidades do
povo. Sua mensagem é profética no sentido de
anunciar uma outra possibilidade de mundo, um
mundo baseado no perdão, na misericórdia, na
paz, no amor que era o Reino de Deus.
É importante pontuar que, num contexto so-
cial muito racista e segregado, Jesus profetiza a
fé cristã, fundando uma mensagem de justiça. A
teologia negra vem dessas bases. Não à toa, as reli-
giões pentecostais e neopentecostais se tornaram
as mais negras do Brasil.
Os neopentecostais nascem com o neoliberalis-
mo ao longo das décadas de 1980-1990, mudando
a ideia pentecostal anterior, que se apartava das
coisas mundanas, para uma ideia de que o mundo
lhes pertencia. Engajam-se, então, em um processo
de gospelização: se inserem nos grandes meios de
comunicação, com forte concentração de capital.
A Teologia da Prosperidade se torna a base dessa
Igreja, uma Igreja que busca conquistas materiais,
bem como políticas. Ela passa a representar o

83
projeto de poder a partir do qual os grupos neopen-
tecostais hegemônicos passam a orientar sua atua-
ção e expansão na sociedade. Uma das maiores igre-
jas neopentecostais, longe de ser a única, é a Igreja
Universal do Reino de Deus.
Ao passar a condicionar esta Igreja a objetivos
materiais e políticos, concretizam a ameaça à demo-
cracia a partir do desrespeito à laicidade do Estado,
à negação dos direitos sexuais e reprodutivos e de
gênero, compondo, assim, uma expressiva frente de
participação da política da agenda reacionária mais
ampla do Brasil.
Por outro lado, a base dessa religião é negra. A ca-
pacidade para o diálogo entre essa Igreja e as necessi-
dades das pessoas depende dessa compreensão. Nela,
muitas pessoas receberam e recebem acolhimento.
Assim, forma-se uma comunidade cujos membros
são considerados com dignidade, como seres hu-
manos, têm voz e podem se expressar, recebem sub-
sídios quando precisam. Com isso, é importante
pensarmos em como propor um diálogo com os
progressistas e movimentos negros quanto à religião
de nossa sociedade. Esse diálogo é importante para
a construção da democracia, hoje ameaçada.

84
85
Democracia
na luta
antirracista
Valter Silvério

86
não é possível falar do brasil sem falar
de uma tradição de intelectuais negros e de mo-
mentos em que esses intelectuais negros tiveram
uma participação importante no processo de de-
mocratização, digamos, da sociedade global, com
reflexos em diferentes países. Há, desde o início,
uma peculiaridade nesses intelectuais que acho
necessário pontuar: a situação deles é bastante
interessante porque, recompondo brevemen-
te o processo histórico, verifica-se que atuavam
aproximadamente a partir de 1884-1885, quan-
do houve a conferência de Berlim de partilha do
continente africano.
O processo de partilha do continente africano,
portanto, estimulou um conjunto de intelectuais
e ativistas negros de diferentes partes do mundo a
se reunir, pela primeira vez, em uma Conferência
Panafricana. Aqui, pretendo refazer um pouco esse
trajeto até chegarmos ao Brasil, no que talvez seja
a discussão mais interessante, a que proponho no
título “Tensão entre cultura e estrutura”.
Essa tensão entre cultura e estrutura não é cons-
trução minha, mas uma construção histórica pró-
pria a partir da visão desses intelectuais negros,
entre os quais figuram algumas referências do meu
trabalho na atualidade. Essa pesquisa continua em

87
andamento, embora eu tenha feito uma defesa de
uma tese de titularidade, Transnacionalismo negro e
diáspora africana, pela qual, em grande medida, se
orienta este capítulo.
Entre as minhas preocupações atuais está pensar
um pouco no Brasil a partir do crescente uso do
termo “globalização”, na emergência de um processo
de luta contra o racismo de característica transna-
cional, e de que o Brasil, portanto, participa.
Por trás disso, parece existir uma perspectiva an-
tirracista mais transnacional, cujas consequências,
no caso do Brasil, eu procuro localizar exatamente
na ação do movimento negro contemporâneo.
Pode-se falar em um movimento negro que atuou
no Brasil durante todo o século 20, mas aqui estou
partindo do movimento negro de 1978, em cuja
luta se cria, entre outras coisas, o que chamo aqui
de “campo normativo”, que tem a sua origem na
Constituinte de 1987.

88
«Pode-se falar em um
movimento negro que
atuou no Brasil durante
todo o século 20, mas
aqui estou partindo do
movimento negro de
1978, em cuja luta se
cria, entre outras coi-
sas, o que chamo aqui
de “campo normativo”,
que tem a sua origem na
Constituinte de 1987.»

Os reflexos dessa luta aparecem precisamente na


Constituição, e a partir disso é que estou localizan-
do um campo normativo mais favorável a um de-
bate sobre presença dos descendentes de africanos
na formação social brasileira.
Também me oriento um pouco por uma tensão
que parece muito presente no debate acadêmico,

89
mas também no debate social: a tensão de dois
tipos de narrativas. A narrativa da teoria social mais
tradicional — estou restringindo aqui a teoria so-
cial à Sociologia, Teoria Política, Antropologia
—, que, mais ou menos a partir dos anos 1970-80,
vem sendo tensionada pelo chamado “pensamento
pós-colonial”. Meu entendimento do pensamento
pós-colonial consiste nas vertentes dos estudos su-
balternos, nos estudos decoloniais mais presentes na
realidade do Sul da América.
Essa tensão é produtiva, no sentido em que repo-
siciona o debate da agência dos intelectuais negros
sobre a própria discussão e formulação do que pode-
ria ser uma democracia. A importância disso está em
uma questão que eu gostaria de demarcar desde já:
para os intelectuais ativistas negros, há três diferen-
tes formas de discriminação racial e racismo. A si-
tuação paradoxal em que se viam era que, se por um
lado, a África foi construída como um continente
sem história, e durante a primeira metade do sécu-
lo 20, esses intelectuais e ativistas tinham por pauta
a emancipação do continente africano, por outro
lado, eles viviam em Estados Nacionais ou coloni-
zados, como Brasil e Estados Unidos, que já eram
pós-coloniais, mas não reconheciam a possibilidade
de cidadania das populações negras.

90
«Para os intelectuais
ativistas negros, há
três diferentes formas
de discriminação racial
e racismo»

Esse processo perdura toda primeira metade do


século 20. A partir dessa perspectiva, vários inte-
lectuais se orientaram por aquilo que a literatura
chama, e eu também, de uma perspectiva radical
negra, que fez com que se aproximassem do debate
do socialismo, por um lado, e por outro, tentas-
sem construir uma alternativa a essa circunscrição,
a essa clausura que existia nos Estados Nacionais.
No caso da democracia americana, por mais es-
tranho que pareça falar nisso, a população negra
nos EUA só foi conquistar o pleno direito ao voto
a partir dos anos 1960, mais precisamente 1968,
até então, tinha-se um conjunto de restrições, uma
dificuldade enorme.
Os países africanos vão lutar durante todo o sé-
culo 20, ou pelo menos até a década de 1960, pelas
independências. No caso de países como o Brasil,

91
o voto não era um voto livre para todos até muito
recentemente, excluindo, por exemplo, o analfabe-
to. As restrições para mulheres votarem se estende-
ram até a década de 1930, mais precisamente até
a Constituição de 1934. Como, então, caracterizar
esse tipo de democracia? Fica clara a diferença entre
a perspectiva abstrata de democracia e as práticas
sociais reais.
Quero chamar a atenção para a alternativa que
esses intelectuais enxergavam, que era precisamente
a tradição de pensamento orientada pelo socialis-
mo. Socialismo, como a democracia, é uma atitude
mental. Em uma sociedade socialista ou democrá-
tica, faz-se necessária uma atitude mental socialista
ou democrática, e não a adesão rígida a um padrão
político, para garantir que as pessoas cuidem bem
umas das outras.

«Socialismo, como a
democracia, é uma
atitude mental. Em uma
sociedade socialista
ou democrática, faz-se
92
necessária uma atitude
mental socialista ou
democrática, e não
a adesão rígida a
um padrão político,
para garantir que as
pessoas cuidem bem
umas das outras»

Mais do que construir um conceito abstrato de de-


mocracia, ou um conceito abstrato de socialismo,
talvez seja importante, no fundamental, criar, e
que haja educação nesse sentido, condições de bem
viver. Isso significa ter a preocupação de cuidarmos
uns dos outros. Quando se pensa no socialismo ou
na democracia, do ponto de vista de um vir-a-ser
transnacional ou nacional, essas perspectivas certa-
mente se orientam pelo marxismo, pelo marxismo
leninista, que oferece as melhores explicações de
como o imperialismo funciona no interior do ca-
pitalismo de monopólio.

93
Se tanto o continente africano quanto os negros
na América tiveram que lutar ao longo da história
para se colocar enquanto povos com história e cons-
truir a possibilidade de adquirir direitos como os
outros, é preciso entender essa história a partir dos
impérios coloniais — o império colonial português,
o império colonial espanhol, o império colonial fran-
cês, o império colonial holandês e o inglês.
Essa perspectiva é importante para o conjunto
deste argumento. Não basta só falar em capitalismo,
sem falar em imperialismo. Nós vivemos, ainda hoje,
uma cultura fomentada no interior do imperialismo,
parte significativa da qual foi construída a partir da
distinção entre raças. Nossa história começa exa-
tamente dentro desse contexto em que se concebe
raça inferior e raça superior, no interior da cultura
imperial e imperialista.
Se os africanos foram considerados povos sem
história, nós, enquanto descendentes de africanos,
somos pessoas sem história também. Um dos efeitos
da cultura imperialista foi, portanto, escrever nas
nossas mentes uma história que era a própria his-
tória da Europa, do Ocidente. Fomos constituídos
como povo sem história, e os membros de um povo
que não tem história não podem ser sujeitos da pró-
pria experiência.

94
Isso significa que coube aos e às intelectuais ati-
vistas negros e negras, espalhados por vários lugares
do mundo, construir tanto uma análise das formas
como os poderes imperiais forjaram a dominação
racial (a origem do racismo), quanto desenvolve-
rem estratégias que assegurassem a sua existência
subjetiva e física frente a uma cultura política im-
perial que negava a humanidade de negros, negras
e africanos, bem como de outros grupos.
Sem considerar isso, é impossível entender por
que, por exemplo, um policial norte-americano
mata um sujeito sem nenhuma justificativa, ou
mesmo como, em nosso cotidiano aqui nas peri-
ferias brasileiras, jovens negros são tratados e eli-
minados. Existe no imposto imaginário coletivo
algo que não nos vê enquanto humano. Isso tem
uma história.
No que tange à estrutura política imperial e seus
desdobramentos, o foco deve incidir sobre formas
de associação, estratégias discursivas, denúncias
e análises conjunturais que sejam realizadas por
esses intelectuais negros e negras, que não têm sido
consideradas adequadamente nas análises contem-
porâneas mais progressistas.

95
«O foco deve incidir
sobre formas de
associação, estratégias
discursivas, denúncias
e análises conjunturais
que sejam realizadas
por esses intelectuais
negros e negras, que não
têm sido consideradas
adequadamente
nas análises
contemporâneas mais
progressistas»

Vivemos em instituições de ensino atreladas a um


sistema educacional, no Brasil e em grande parte do
mundo, criado a partir dessa cultura imperial e, por-
tanto, necessariamente, em um sistema racializado.
Normalmente, nossa formação é espelhada em um

96
conjunto de intelectuais e acadêmicos brancos e
brancas, o que leva a pensar: “será que não existem
intelectuais negros e negras?” Será que não existe
uma escola alternativa?
Existe uma história alternativa que foi, o tempo
todo, invisibilizada. Só muito recentemente, a par-
tir da emergência do pensamento pós-colonial nas
suas diferentes matrizes, é que essa história passa a
ser contada.
A educação é uma chave para democratizar qual-
quer sociedade. Um debate estratégico para esse
contexto exige que se pense nas perguntas que não
estão sendo feitas. Duas delas, e há muitas outras,
são as seguintes:

1. Quais são as consequências de situar,


em termos históricos, as origens do trans-
nacionalismo negro no período imperial, e
não no período pós-colonial?

Tem-se a impressão de que a história da ação negra


começou depois de 1968, ou depois da Segunda
Guerra Mundial. Não é bem assim — não é nada
assim. A história não começou ontem.

A segunda questão:

97
2. Uma vez que os intelectuais e ativistas
negros e negras, como sugerem os novos
estudos históricos, atuaram na construção
de um anticolonialismo — o anticolonialis-
mo precede o antirracismo — transnacio-
nal e tricontinental (a América, a África e
a Ásia, desde a virada do século 19 para o
século 20, articulavam-se contra o colonia-
lismo), como isso diverge do “nacionalismo
anticolonial” discursivo dos partidos comu-
nistas, socialistas, dos partidos da social
democracia?

O confronto das respostas a essas duas questões,


que tem levado a um embate positivo entre partidá-
rios da teoria social, que enfatizam a modernidade
como ponto de partida, e do pensamento pós-co-
lonial que, por sua vez, localiza a colonização e a
cultura imperial como ponto de partida. É interes-
sante essa insistência na questão da modernidade.
O que ela significa?

98
«Tem-se a impressão de
que a história da ação
negra começou depois
de 1968, ou depois da
Segunda Guerra Mundial.
Não é bem assim — não
é nada assim. A história
não começou ontem»

O mundo costuma ser pensado a partir do ilumi-


nismo, de meados do século 17, ou 18, a depender
do autor da escola de pensamento. As pessoas que
leram um pouco sobre o pensamento decolonial,
o pensamento pós-colonial, os estudos subalter-
nos, podem verificar que seus autores constroem
histórias a partir do encontro colonial, e não a
partir do iluminismo.
Essa talvez seja a primeira grande questão que
aparece nos cursos de Ciências Sociais. Ainda que
a história retroceda ao encontro colonial, ela é con-
tada a partir da Grécia, Roma, França e Inglaterra.
Há uma história paralela que não é contada.

99
Essa tensão produtiva interessa, portanto, à relei-
tura das ações anticoloniais dos intelectuais e ativis-
tas negros e negras, que suscita duas novas questões:
como a África e a diáspora africana foram construí-
das no interior dos discursos políticos e acadêmi-
cos durante o império? Quais são as consequências
dessa construção da África como continente sem
história, e dos negros como um problema?
Talvez seja sensível a alguns essa ideia em particu-
lar. “Vocês é que racializam”. “Vocês é que são racis-
tas”. Essa é uma construção muito antiga, em que o
problema são os negros. Por quê? Porque a África
foi construída como continente sem história, e isso
significa que seus povos não são considerados plena-
mente humanos.

«Como a África e a
diáspora africana foram
construídas no interior
dos discursos políticos
e acadêmicos durante
o império? Quais são as

100
consequências dessa
construção da África
como continente sem
história, e dos negros
como um problema?»
É a essa construção do continente africano, e,
portanto, ao próprio pertencimento a Estados
Nacionais, como o Brasil, que reagem os inte-
lectuais negros e negras. Entre as conferências e
congressos pan-africanos promovidos por eles,
vale mencionar o Encontro Universal das Raças;
a Internacional de Trabalhadores e o Comitês
de Trabalhadores Negros; e os Congressos de
Escritores Negros de Paris e Roma, em que tinham
representantes brasileiras, nos anos de 1956 e
1959; o Festival de Artes Negras de Dakar, onde é
feita a denúncia do senador Abdias do Nascimento
sobre o genocídio da população negra no Brasil.
A partir daqui, consideraremos o impacto do
livro Negras Raízes, de Alex Haley, publicado em
1976, e, por fim, a conjuntura e os desafios desse
novo cenário político, com base nesse campo nor-
mativo construído pelo movimento negro.

101
Na conferência de Berlim de 1884, a África foi
partilhada entre os impérios português, espanhol,
francês, inglês, belga e alemão. Quando se assis-
te a filmes sobre a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial, o que se retrata é uma luta entre os paí-
ses europeus, sem qualquer ênfase ao fato de que
as lutas das duas guerras mundiais estavam centra-
das na questão da partilha do continente africano.
Essa é a parte ausente das narrativas nos filmes.
Recentemente, um historiador inglês fez um docu-
mentário para a BBC de Londres, intitulado “The
world’s war: forgotten soldiers of empire”, que trata
dos 2,5 milhões de africanos, asiáticos e indianos
que lutaram pelo império inglês ou pelo império
francês. Os números de colonizados que lutaram
na linha de frente nessas guerras variam, podendo
chegar a 4 milhões.
A partilha do continente africano ocorre no final
do século 19, alterando toda a história global, e a
do que conhecemos como modernidade. Esta his-
tória não costuma aparecer na ementa dos cursos: a
discussão da relação entre as guerras e a partilha do
continente africano.

102
«Esta história não
costuma aparecer na
ementa dos cursos: a
discussão da relação
entre as guerras e a
partilha do continente
africano»

Uma primeira reação vai aparecer na Pan-African


Conference — a conferência pan-africana de julho
de 1900. Focando na questão das raças nativas, em
1900, a ideia de raça está absolutamente presente,
de uma forma que aponta para a questão que es-
tava sendo discutida na primeira conferência Pan-
Africana, onde estavam representantes dos descen-
dentes de africanos de todas as partes do império
britânico — dos Estados Unidos, da Abissínia, da
Libéria, e do Haiti.
Foi nessa conferência que W.E.B. Du Bois fez a
famosa declaração de que a questão do século 20
seria a questão da linha da cor, que divide brancos
e não-brancos no mundo. Ao dizer isso, Du Bois

103
estava pensando em uma linha da cor no sentido
horizontal: ela separa quem está acima da linha da
cor de quem está abaixo dela, ou seja, os não bran-
cos abaixo dos brancos. É muito fácil imaginar que
a questão da superioridade e da inferioridade racial
é uma aposta da virada do século 19 para o século
20, e há um intelectual negro fenomenal que vai
precisamente observar esse grande problema que é
a linha da cor — o próprio Du Bois.
O Congresso Universal das Raças em 1911 foi
presidido por um lorde em inglês, foram convida-
dos o presidente do Haiti, representantes do Japão,
da Pérsia, de países da África, entre outros. A pro-
posta básica desse Congresso Universal das Raças
era melhorar o convívio entre as raças. Não se pode
esquecer de mencionar o representante do Brasil
nesse congresso, João Batista de Lacerda, vinculado
ao Museu Nacional e defensor da tese do branquea-
mento racial, uma perspectiva da questão das raças
no Brasil absolutamente distinta daquela proposta
por Du Bois na mesma sessão.
O congresso, claro, foi sediado em Londres. Nas
fotos da época, é possível observar a diversidade
dos presentes. O resultado do congresso — teses,
inúmeras apresentações de trabalhos, um livro bas-
tante volumoso — foi quase puramente teórico.

104
Os resultados práticos foram quase iníquos, uma
vez que a noção de raças superiores e inferiores
continuava absolutamente incrustada nas lideran-
ças imperiais. As representações negras e africanas
reagiram, escrevendo vários textos denunciando
essa inflexibilidade com relação à ideia de supe-
rioridade e inferioridade racial.
No contexto da Primeira Guerra Mundial,
cujo pano de fundo foi a partilha do continente
africano, a pauta estabelecida desde o primeiro
Congresso Pan-africano, de 1919, é a emancipação
do continente africano. Du Bois, aliás, participou
de todos os congressos africanos até 1945.
Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial
se constrói uma discussão no interior das interna-
cionais socialistas, comunistas, que resulta na cria-
ção de um jornal chamado “The negro worker” (“O
trabalhador negro”), publicado pelo Comintern
(a Internacional Comunista) entre 1928-1937. É
nesse jornal que a importância da emancipação do
continente africano e, por consequência, o deba-
te da situação dos trabalhadores e da população
negra dos Estados Nacionais são discutidos. A im-
prensa negra se fez e ainda se faz presente em pra-
ticamente todos os países multiétnicos, multirra-
ciais que tiveram escravidão: uma imprensa muito

105
específica, que se insere no debate de classe e raça
de hoje. Ao longo de nove anos da publicação, essa
representação da África, de um lado, e do outro, os
Estados Unidos aparece em vários números, sinali-
zando que os trabalhadores negros, os intelectuais
negros, os ativistas negros sempre tiveram clara a re-
lação entre sua condição de sujeito e a emancipação
do continente africano.
No 5º Congresso Pan-Africano, em 1945, em
Manchester, na Inglaterra, quando já havia árabes
e judeus unidos no palanque, se forjam lideran-
ças africanas como Julius Nyerere, Kwame Nkrumah
e Jomo Kenyatta — todas essas lideranças africanas
estão nesse congresso que origina o movimento de
luta pela libertação do continente africano. São 50
anos de luta contra o colonialismo no continente
africano, entre o primeiro Estado africano livre,
Gana, e o último a se libertar, que foi a África do
Sul, em 1994, com o fim do apartheid.
A luta anticolonial está na origem de vários outros
processos de luta no interior dos Estados Nacionais.

106
«A luta anticolonial
está na origem de
vários outros processos
de luta no interior dos
Estados Nacionais»

Houve ainda os congressos dos escritores e artistas


negros de 1956 e 1959 (deste último participam
dois brasileiros: um artista plástico e um informan-
te do professor Florestan Fernandes na pesquisa
sobre negros e brancos em São Paulo, que tam-
bém resultou em dois livros sobre a integração do
negro na sociedade de classe). É neste segundo que
Fanon profere um discurso chamando os partici-
pantes à luta de libertação. Do congresso de 1956,
participa Josephine Baker.
Em 1955, acontece a Conferência de Bandung.
Em 1956, o Congresso de Escritores Negros em Paris
mencionado anteriormente e, em 1959, o de Roma.
Entre 1956 e 1959, no entanto, surge um
livro extremamente importante, e muito lido, de
Chinua Achebe, traduzido para o português como
O mundo se despedaça. A capa da primeira edição

107
sempre diz muito sobre o contexto em que um livro
é publicado. Em 1958, a capa do livro de Achebe
continha uma representação do problema que ocor-
ria desde 1884, ou, na verdade, desde o início da es-
cravidão no Brasil ou em qualquer lugar do mundo.
É uma representação do cristianismo, um homem
branco com uma bíblia e uma cruz, de um lado, e
uma representação de um africano e todo o ideário
cosmológico desse africano, do outro. Ainda que
ele escreva sobre a Nigéria, é interessante que aqui
já se vê como a dimensão religiosa atravessa a expe-
riência colonial em todos os tempos.
Há também um autor muito pouco lido no
Brasil, mas que é extremamente importante.
Malcolm Ivan Meredith Nurse, cujo nome de
guerra é George Padmore, integrou o Comintern
e tornou-se um dos personagens mais importan-
tes no processo de libertação de Gana. Natural de
Trinidad Tobago, aqui, no continente americano,
ele escreveu muito sobre o processo de emanci-
pação do continente africano, mas também sobre
Inglaterra, sobre América Latina.
O conjunto de intelectuais negros e negras oriun-
dos de Trinidad e Tobago e sua ação no cenário glo-
bal mostra que havia, de fato, um anticolonialismo
tricontinental, entre América, África e Ásia.

108
Em 1966, acontece o Festival Mundial de Artes
Negras onde Abdias do Nascimento faz a denún-
cia sobre o genocídio da população negra no Brasil.
Nessa altura, a história do Brasil muda e adquire
um sentido mais transnacional. Curiosamente, o
Brasil manda uma delegação de capoeiristas para
representar o poder estabelecido após o golpe mi-
litar. No mesmo evento, há uma representação do
governo ditatorial por negros capoeiristas e Abdias
do Nascimento denunciando o genocídio da po-
pulação negra.

O tema de impacto do livro Negras Raízes


é a saga de uma família americana. Mais de 10 mi-
lhões de exemplares foram vendidos nos primeiros
anos de lançamento. A primeira versão adaptada
para a televisão, exibida na extinta TV Tupi, cati-
vou toda uma geração. Muitas pessoas importantes
desse período reconhecem o papel desempenhado
pela série na inspiração de uma preocupação dos
jovens negros em se reconhecerem enquanto per-
tencentes originariamente ao continente africano.
Há outras versões da série. Em 2012, Laurence
Fishburne representou Kunta Kinte em uma ree-
dição. Ler e assistir a quaisquer dessas versões

109
ajuda a perceber a mudança que seu sucesso demar-
ca na forma como se discutia a questão do negro e
do africano.

Em 1985, logo no início da abertura polí-


tica no Brasil, houve a preocupação de ressituar
a questão racial a partir de uma perspectiva pro-
gressista. O seminário “O pensamento de esquerda
e a questão racial”, realizado no mesmo ano, con-
tou com a presença dos professores Muniz Sodré,
Helena Theodoro, Wilson Nascimento, Joel Rufino,
Octavio Ianni, Werneck Vianna — todos discu-
tindo a questão da esquerda e a questão racial. Os
debates resultaram no número 12 dos cadernos de
Estudos Afro-Asiáticos, publicado em 1986. Ele
apresenta uma discussão do ponto de vista de um
pensamento negro brasileiro — com os seguintes
pares relacionados à questão racial: o pensamento
de esquerda; a prática política e o materialismo his-
tórico. Abordou ainda axé e vida, e a transição do
escravismo para o capitalismo.
Contudo, não se pode esquecer que o movi-
mento negro na sua fase contemporânea surgiu em
1978, durante a ditadura militar.

110
«Não se pode esquecer
que o movimento
negro na sua fase
contemporânea surgiu
em 1978, durante a
ditadura militar»

No começo do processo de abertura democrá-


tica, a tradição de pensamento mais à esquerda
prezava pelo debate da questão racial, em que se
envolveram Florestan Fernandes, Octavio Ianni,
Joel Rufino, Clóvis Moura, autor de Rebeliões da
Senzala, do ano de 1958.
A grande tensão, no contexto desse seminário,
era exatamente o problema que está no nosso títu-
lo: os intelectuais negros se apoiavam na defesa da
importância da cultura de matriz africana, mais vi-
sivelmente a partir da religiosidade africana, para
assim pensar a continuidade entre África e Brasil,
ou entre África e o novo mundo, de maneira geral.
Quando essa questão se colocava, por exemplo,
nos textos de Muniz Sodré, Joel Rufino e Clóvis
Moura, ponderava-se: “O que é o racismo, senão

111
uma construção que nega a nossa história e a nossa
condição de sujeito? Como podemos adquirir essa
noção de que somos parte de um universo cultural
distinto do universo europeu?”
Exatamente pela identificação das continuidades
chamadas de africanidade, de axé.

«O que é o racismo,
senão uma construção
que nega a nossa
história e a nossa
condição de sujeito?
Como podemos
adquirir essa noção de
que somos parte de
um universo cultural
distinto do universo
europeu?»

112
Se esse era o debate, por outro lado, havia como
pensar a questão da emancipação e da construção
da democracia a partir, digamos, de uma perspecti-
va mais materialista histórica, com o debate sobre
classe e raça que se estabeleceu nos anos 1950 e é
retomado nos anos 1980 com esse seminário.
Os intelectuais negros, maioria no seminário,
mostram a dificuldade que os setores progressistas
têm de entender o lugar da questão racial nas pos-
sibilidades de construção de uma democracia efe-
tiva. Isso constitui duas perspectivas: ou se pensa
o negro no seu conjunto, ou seja, como portador
de uma herança africana, entendendo essa herança
africana de maneira ampla, ou se pensa o negro
a partir da ideia de que ele é uma construção da
modernidade.

«Ou se pensa o negro


no seu conjunto, ou
seja, como portador de
uma herança africana,
entendendo essa

113
herança africana de
maneira ampla, ou se
pensa o negro a partir
da ideia de que ele é
uma construção da
modernidade»

No confronto da ideia de relações raciais com a


ideia de racialização, para entrar de vez no argu-
mento, as relações raciais pressupõem o negro
pensado a partir da modernidade, portanto sem a
sua herança originária africana. A partir da raciali-
zação, em contrapartida, observa-se o impacto da
cultura imperial e do processo chamado de coloni-
zação sobre a construção de um imaginário social
ou de um negro enquanto ser construído no inte-
rior dessa cultura imperial. Como diz Franz Fanon,
quem constrói o negro é o branco.
As relações raciais e o fenômeno da racialização
constituem pontos de partida muito diferentes
para pensar nossas condições. Além disso, quan-
do se discute a questão de raça ou classe, o ponto
de partida tem muita importância. Na década de

114
20, enquanto alguns autores priorizavam a classe,
Marcus Garvey, por exemplo, priorizava a raça.
Por trás dessa questão do que vem primeiro, fi-
gura uma discussão sobre como se deu a forma-
ção social desses Estados Nacionais como Brasil,
Estados Unidos, ou qualquer país multiétnico,
multirracial de base escravista.
A perspectiva que adoto, portanto, é a de que
vivemos em formações sociais racialmente estru-
turadas em dominâncias, isto é, a raça tem um
papel central na estruturação dessas sociedades.
Por isso, é crucial entender a cultura imperial e
seu papel na construção, por exemplo, das pró-
prias disciplinas em que somos formados e in-
formados — Antropologia, Sociologia, Ciência
Política e História.
Se começo a contar a história do negro a par-
tir do Iluminismo, o resultado é um. Se começo
a contar essa mesma história a partir do encontro
colonial, é absolutamente outro. O que muda é o
entendimento da forma como o negro é construí-
do. Se é construído exclusivamente como escravo,
ou se é construído como escravo que se rebelou
em todo o tempo. A ideia de sujeito inconforma-
do com a própria condição é central.

115
«O que muda é o
entendimento da
forma como o negro
é construído. Se é
construído exclusivamente
como escravo, ou se é
construído como escravo
que se rebelou em todo
o tempo. A ideia de
sujeito inconformado
com a própria condição é
central»

O professor Clóvis Moura constrói uma oposição


não entre casa grande e senzala, mas sim, entre casa
grande e quilombo. A existência de quilombos no
Brasil e em todo o continente americano desde o
momento do encontro colonial demonstra que a
agência, a reação à escravidão está sempre presente.

116
Um dos grandes desafios da contemporanei-
dade é pensar o seguinte: discute-se o negro tra-
balhador — e é obvio que o negro é trabalhador
— ele construiu esses países em que vivemos, a
partir do trabalho escravo e, posteriormente, do
trabalho assalariado. Isto difere do trabalhador
europeu, que não passou por um processo de es-
cravização contemporânea. No Brasil e Estados
Unidos o trabalho produz uma ontologia da sua
formação, considerando o impacto da escravidão.

«A existência de
quilombos no Brasil e
em todo o continente
americano desde o
momento do encontro
colonial demonstra que
a agência, a reação à
escravidão está sempre
presente»

117
É uma tentativa de análise que considera toda uma
tecnologia da força de trabalho negra através da
racialização, que é diferente de relações raciais. A
racialização implica que a dimensão da cultura é
extremamente importante para entender como
essas sociedades racialmente estruturadas em do-
minância funcionam. Nesse sentido, é preciso es-
tabelecer certo equilíbrio entre o conhecimento da
forma como a cultura imperial nos construiu e seus
desdobramentos, cujos impactos ainda persistem.
As disciplinas acadêmicas não mudaram; conti-
nua-se ministrando cursos de Sociologia que desta-
cam a Revolução Francesa sem falar da Revolução
Haitiana, destacam a Revolução Industrial sem
falar da produção de tecidos na Índia, muito mais
avançadas que na Inglaterra. Não se conta com uma
história da sociologia que mostre sua trajetória
até os anos 1950, até a Segunda Guerra Mundial,
até o surgimento da UNESCO. Na maioria dos
casos, por exemplo, nem se estuda W.E.B. Du Bois,
hoje reconhecido como o fundador da sociologia
americana.

118
«As disciplinas
acadêmicas não
mudaram; continua-se
ministrando cursos
de Sociologia que
destacam a Revolução
Francesa sem falar da
Revolução Haitiana,
destacam a Revolução
Industrial sem falar da
produção de tecidos
na Índia, muito mais
avançadas que na
Inglaterra»

Com base em tudo isso, pode-se pensar que uma


das coisas mais importantes que têm ocorrido no
Brasil foi vista no eecun, o Encontro Nacional
de Estudantes e Coletivos Universitários Negros,

119
realizado em maio de 2016 no auditório da ufrj.
Segundo os organizadores, compareceram cerca de
2.500 jovens: o resultado de uma luta política pela
democratização da universidade do Brasil, dentro
dessa cultura política racializada. Sem uma mu-
dança no currículo, esse processo se perpetua. A
importância desse evento está na representação de
uma movimentação dos jovens negros em diferen-
tes espaços, não só na universidade, reivindicando,
por exemplo, a ideia de quilombo, de coletivos que
se denominam a partir de personagens da história
negra brasileira e africana, ou num contexto inter-
nacional mais ampliado.

«A democracia tem que


ser entendida como
uma construção que
passa por uma releitura
da cultura imperial e
seus desdobramentos
no Brasil, para
que se entenda as
120
sociedades racialmente
estruturadas em
dominância»

Quem visita Londres tem a possibilidade de pagar


uma quantia — em certa época, de 4,50 libras —
para visitar o túmulo de Karl Marx. Os mais aten-
tos, no entanto, talvez percebam, ali próximo, o
túmulo de uma mulher chamada Claudia Jones.
Ela foi militante comunista em Nova York, e de-
pois em Londres, onde criou um jornal entre o fim
dos anos 1940 e o início dos 1950. Ela é jamaica-
na. Também foi uma das fomentadoras do carna-
val de Notting Hill, atualmente muito famoso em
Londres. A história dela é contada no livro Left
of Karl Marx: the political life of black communist
Claudia Jones (À esquerda de Karl Marx: a vida po-
lítica da comunista negra Claudia Jones).
É reconstruindo, assim, a história das pessoas
ativistas e intelectuais negras, que começamos a
entender, ou ao menos a priorizar, o que vem pri-
meiro: raça ou classe para uma efetiva construção
de uma democracia em que a cor e a raça não te-
nham importância.

121
Radicalizar a
democracia
pelas lutas
feministas e
LGBTI+
Heloisa Melino

122
é preciso falar sobre o que são os femi-
nismos: a quem se referem, de quem é o bem-
-estar que buscam, onde atuam, para, em seguida,
professar as potências de movimentos construídos
por mulheres e dissidentes sexuais, demonstrando
que essas sujeitas são, sim, sujeitas revolucionárias.
E o são apesar da insistência das tradições políticas
— mesmo as progressistas — em deslegitimar esses
corpos como agentes de mudança sistêmica.
O campo progressista tradicional é cúmplice
do conservadorismo neoliberal quando margi-
naliza as agendas e lutas de mulheres, de pessoas
lgbti+, de pessoas negras e de povos indígenas,
alegando que essas são “pautas identitárias”, de
menor relevância, e que causam divisões entre os
trabalhadores na luta que realmente importa: a
luta de classes.
É preciso relembrar que a classe é também uma
identidade. O lugar de enunciação baseado na si-
tuação econômica é também uma fissura no ideal
de sujeito universal imparcial proposto pela racio-
nalidade iluminista. O racionalismo fala de sujei-
tos incorpóreos e abstratos. Ao tratar da condição
econômica desse sujeito, o marxismo o despoja da
universalidade e da abstração e atribui uma iden-
tidade: burguês ou trabalhador. O problema é

123
que as tradições param aí, e não levam em conta
que, além do trabalhador, há a trabalhadora. Há a
pessoa que é trabalhadora e é negra, indígena, asiá-
tica etc., e a pessoa que é trabalhadora e é branca,
assim como há a pessoa trabalhadora cisgênera,
trans, travesti; e também a pessoa trabalhadora he-
terossexual, lésbica, gay, bissexual, assexual. Existe
a pessoa trabalhadora que recebe 100 mil reais de
salário por mês e mora em um apartamento ou casa
de 300 m2, em uma das regiões que recebem mais
investimentos públicos da cidade, como existem
as pessoas trabalhadoras que vivem em favelas, pe-
riferias, e até em situação de rua, que sobrevivem
com um salário mínimo ou catando latinhas para
alimentar a família.
Assim como o trabalhador não ocupa o mesmo
lugar de poder que o burguês, nenhum desses tra-
balhadores e trabalhadoras está no mesmo lugar
que os demais. Nós temos classe econômica, sim,
mas temos também sexo-gênero, raça, cor, etnia,
origem geográfica, sexualidade, moramos em de-
terminados territórios e exercemos ocupações
diferentes, com diferentes regimes de trabalho.
Estamos cansades de ouvir que “o trabalhador não
quer saber disso, quer saber de comida no prato”. Já
é passada a hora de compreender que não são só as

124
relações de trabalho que fazem a comida faltar no
prato e que fazem a polícia matar e estuprar quem
vive em favelas e proteger quem vive nos bairros
de elite das cidades. Há elementos nessa história
que só fazem sentido se combinados, e todos têm
o mesmo grau de importância.

«Já é passada a hora


de compreender que
não são só as relações
de trabalho que fazem
a comida faltar no
prato e que fazem a
polícia matar e estuprar
quem vive em favelas
e proteger quem vive
nos bairros de elite das
cidades. Há elementos
nessa história que

125
só fazem sentido se
combinados, e todos
têm o mesmo grau de
importância»

Temos algo em comum. Em alguma escala, somos


todes explorades, somos todes combustível de uma
máquina que opera para moer muitos e gerar lucro
para poucos. Somos descartáveis, algumes mais, ou-
tres menos. Somos corpos que produzem e, quando
deixamos de “produzir” o que interessa a “eles”, nos
tornamos obsoletes e somos substituídes.
Por quem e por que são as lutas feministas e
lgbti+? Por isso tudo. Queremos destruir esse sis-
tema para colocar outra coisa no lugar. Temos dese-
jo de mudar tudo.
Não conduzimos políticas identitárias, condu-
zimos a necessidade de abarcar as identidades na
política. E por quê? Porque foi com a degradação,
exploração e extermínio das nossas identidades que
o capitalismo se construiu, e é pelo ataque às nossas
identidades que o capitalismo se reproduz, atualiza
e aprofunda. Vou dar um salto no tempo e explicar

126
uma parte dessa história para dar sentido ao que
estou dizendo.
Teorias latino-americanas recontam a histó-
ria do capitalismo enquanto padrão do sistema
mundial de poder, para explicar que vivemos
uma modernidade alicerçada na colonialidade.
Colonialidade, porque é a reconfiguração das rela-
ções coloniais para manutenção do poder eurocên-
trico e estadunidense sobre o resto do mundo. Os
autores com quem trabalho, para quem se interesse
por procurar, são Anibal Quijano, Walter Mignolo
e Maria Lugones, principalmente.
A degradação da posição social da mulher na
Europa foi um processo que levou mais de 200
anos para se consolidar. Quando a ideia de que ho-
mens e mulheres são determinados biologicamen-
te a partir da forma de sua genitália (dimorfismo
sexual) chegou nas Américas, “ser mulher” já era
um lugar de desvalorização. Essa divisão ganha ou-
tros contornos quando os colonizadores reparam
que os povos nativos das Américas e da África não
tinham as mesmas hierarquias sexuais/de gênero
e nem as mesmas práticas sexuais. Presumiam que
parte dos motivos de os povos indígenas e africa-
nos serem inferiores aos brancos era que não dis-
tinguiam entre os sexos da mesma forma que as

127
classes dominantes europeias, como considera Kyla
Schuller, intelectual estadunidense nos estudos de
gênero, raça e sexualidades.
As hierarquias sexuais (ou de sexo-gênero), a im-
posição da heterossexualidade, o modelo familiar
nuclear e a invenção da raça como categoria de sepa-
ração entre os seres humanos mais ou menos evoluí-
dos, assim como as relações de trabalho, são basilares
para o sistema mundial de poder em que vivemos.
Da mesma maneira, a formação do Estado-Nação
e as noções de democracia e cidadania também são
fundantes do sistema mundial de poder capitalista,
pois foi com a riqueza da exploração das terras e cor-
pos colonizados que as nações europeias enriquece-
ram, que se criou uma classe burguesa na Europa e
que, por fim, erigiram-se os Estados-Nação como
forma de organização social, e o capitalismo como
um sistema mundial de poder.
O processo de configuração do Estado-Nação
se inicia com um poder político central sobre um
território, que precisa ser mais ou menos estável
por um longo período, exercido sobre sua popula-
ção. Na Europa, esse processo aconteceu com dois
movimentos históricos: um colonialismo interno,
que promovia a “limpeza do sangue” e expulsou
e dizimou povos que não se adequavam à ideia de

128
“igualdade” das classes dominantes; e outro colo-
nialismo, este imperialista, iniciado com a inva-
são às Américas, o genocídio e escravização dos
povos nativos, a dominação de terras, entregues
aos europeus, e a extração de riquezas, para am-
pliar o poder das nações colonizadoras, a princí-
pio, Portugal e Espanha, e em seguida, Inglaterra,
França e Holanda.
A classificação da população mundial a partir
da ideia de “raça” é combinada com as hierar-
quias de sexo-gênero e com as relações em torno
do trabalho, de acordo com as necessidades do
capital em cada contexto histórico e geográfico.
Na Europa e para os homens “brancos”, são as re-
lações salariais que prevalecem; no mundo colo-
nial, para os “negros”, “índigenas”, “mestiços”, são
as relações servis ou de escravização. Essa reclassi-
ficação social, além de distribuir a população do
mundo na organização do trabalho, também a
distribuiu entre as instituições públicas e privadas
de controle da sociedade. Foram as necessidades
do mercado de individualizar e igualar as pessoas
até os limites de seu interesse que deram a base
das lutas sociais pela nacionalização dos Estados
europeus, assim como pela fundação da cidadania
e da democratização.

129
Ao passo que, na Europa, impérios se reconfigu-
raram em Estados-Nação, na América Latina, foram
instaurados impérios coloniais sobre sociedades
identificadas como racialmente inferiores. Esses im-
périos coloniais bloquearam os processos de nacio-
nalização das sociedades colonizadas e, quando os
processos de formação de Estados-Nação finalmen-
te aconteceram, levaram à independência, mas não
à descolonização, porque se manteve a dependência
econômica dos Estados-Nação europeus. Os novos
Estados da América Latina não podiam ser conside-
rados nacionais, e as elites brancas que dominavam
(e ainda dominam) os processos de geração e gestão
dos recursos eram (e ainda são) parte de uma mi-
noria demográfica com interesses alinhados aos das
sociedades europeias. Eram, portanto, estados inde-
pendentes, mas ainda sociedades coloniais, e muito
menos democráticas.
Esses elementos não podem ser retirados da aná-
lise quando se fala de combater o sistema mundial
de poder capitalista, porque sem eles, o capitalis-
mo não existiria, como não teriam sido formados
os Estados-Nação modernos. Desta forma, não só
a classe social, mas também as hierarquias entre os
sexos-gêneros, a heterossexualidade compulsória e
a invenção do conceito de raça, todos e ao mesmo

130
tempo, são igualmente fundantes do sistema capi-
talista, da formação de Estados-Nação e da concep-
ção de direitos, democracia e cidadania.
A crise que vivemos agora é o aprofundamento
de uma crise anterior, que se iniciou em 2008 nos
EUA e na Europa, fruto de um capitalismo cada
vez mais predatório baseado em capitais especu-
lativos. A pandemia da Covid-19 acelerou drasti-
camente o avanço do neoliberalismo, agravando a
pobreza e a concentração de renda com uma rapi-
dez até então inimaginável.
À medida que essa crise se aprofunda, o disfarce
progressista e liberal do neoliberalismo fica cada
vez mais fragilizado, e seu alinhamento às narrati-
vas e práticas conservadoras e retrógradas fica cada
vez mais evidente. Destacam-se, cada vez menos
tímidos, os fundamentalismos religiosos e movi-
mentos de supremacia branca, inclusive a partir de
palanques públicos e governamentais.
Todas as violências aumentam: a violência do-
méstica em relacionamentos íntimos, a violência
doméstica familiar motivada por LGBTIfobia, a
violência de agentes policiais contra as populações
de favelas e periferias, o racismo institucional, a
violência econômica, o extrativismo, a destruição
do meio-ambiente e a violência contra os povos

131
indígenas — e estas não são todas — são fenômenos
que caminham lado a lado.
A cruzada anti-gênero, que acusa as feministas e
as pessoas lgbti+ de promoverem uma “ideologia
de gênero” que destrói a família e a inocência das
crianças, fica cada vez mais presente na arena públi-
ca de debates. Essas ideologias anti-gênero não são
mero adorno, uma vez que candidatos à presidên-
cia, em anos eleitorais, apressam-se em lançar seus
manifestos contra a legalização do aborto e contra
a “ideologia de gênero” nas escolas, e sem pudor
alardeiam que a homossexualidade, a transexuali-
dade e a travestilidade são desvios de famílias mal
estruturadas. Como diz Gayle Rubin, antropóloga
estadunidense, “é em tempos de destruição sem pre-
cedentes que as pessoas ficam perigosamente malucas
sobre a sexualidade”.
Algumas questões precisam ser respondidas, afi-
nal. É realmente verdade que as lutas feministas e
antirracistas são “lutas identitárias” que pretendem
dividir a classe trabalhadora? A luta anticapitalista
que não parte de princípios feministas e antirracis-
tas é, efetivamente, emancipatória? Caso seja, para
quem? E, por fim, mas não menos importante, é
possível construir novas formas de democracia que
viabilizem uma sociedade menos injusta e desigual?

132
A esta pergunta respondemos que sim. Como?
O projeto democrático radical requer que se
lute contra todas as formas de dominação hege-
mônicas ao mesmo tempo, não apenas uma, nem
primeiro uma. Quando somos tão diferentes e es-
tamos em posições sociais tão distintas, no entanto,
como podemos criar alianças ou coalizões políti-
cas para o enfrentamento das desigualdades?
Chela Sandoval, teórica feminista chicana (me-
xicana-estadunidense), desenvolveu uma ideolo-
gia-práxis de atuação em política para movimentos
feministas, chamada de Metodologia das Pessoas
Oprimidas (Methodology of the Oppressed). A pro-
posta de Sandoval vem acompanhando as identi-
dades fronteiriças que o movimento estadunidense
de mulheres terceiro-mundistas invocava para si.
Esse movimento foi composto por mulheres que
viviam nos EUA, negras, chicanas, latinas, nati-
vo-americanas, asiáticas, muitas delas lésbicas ou
bissexuais. Além do racismo das feministas bran-
cas, também falavam da heteronormatividade e da
rivalidade entre mulheres, alimentada pelos ho-
mens, seus companheiros de luta. Compunham
esse movimento mulheres como Audre Lorde,
Gloria Anzaldua, Cherrie Moraga, Cheryl Clark,
bell hooks, dentre outras.

133
A identidade fronteiriça ou identidade mestiza
é uma identidade que rejeita o binarismo ociden-
tal, é uma fusão entre dois mundos, que resulta em
um terceiro, com uma “cultura de fronteira”. As
pessoas que habitam essa “fronteira” são as pessoas
desviadas, renegadas, as que atravessam os confina-
mentos do que a sociedade considera “normal”. São
também chamadas de “sister outsider” ou “irmãs
forasteiras”. Essas identidades fronteiriças são in-
corporadas por pessoas que, assim como as pessoas
imigrantes que não têm documentos — imigrantes
“ilegais”, como são conhecidas — não são considera-
das legitimamente humanas. Apesar de brutalmen-
te perseguidas, essas pessoas fronteiriças insistem
em sobreviver, tomadas por uma coragem que vem
do desespero. Como o mar, não podem ser contidas
pelas amarras de dominação do poder, então criam,
recriam, inventam e reinventam formas de vida e
organização comunitária baseadas, principalmen-
te, na solidariedade, nos afetos e nas possibilidades
contingenciais de coalizão.
Busca-se aí um projeto de radicalização da demo-
cracia que reconheça o conflito, ou a divergência,
como potência de construção de modos alternativos
de alianças, de vida, de organização comunitária e
de projetos de sociedades menos desiguais. As irmãs

134
forasteiras, ou mulheres de identidade fronteiriça,
são mulheres que se contradizem entre si, que não
seguem uma linha específica de atuação, mas flu-
tuam entre as linhas possíveis, avaliando o cená-
rio no qual estão inseridas para agir da forma que
entendam como a mais eficaz para aquela situa-
ção específica. Suas diferenças não são oposições.
Potencializam-se ao reconhecer a necessidade de
uso da imaginação para pensar formas novas de
atuação que nada tenham a ver com as práticas de
dominação e subordinação existentes.
A Metodologia das Pessoas Oprimidas é dinâ-
mica e trabalha com múltiplas verdades, pois vem
de uma forma de vida que busca a sobrevivência
em diferentes ambientes nos quais vivem mulheres
e pessoas com históricos e identidades múltiplas
e distintas. Esse tipo de atuação exige constante
questionamento interno e reinvenção, pois, sem
isso, qualquer movimento social tende a reprodu-
zir processos de exclusão e dominação. Reconhece-
se a existência de identidades bem definidas, assim
como se reconhece sua contingência a partir da
relação com o contexto. Além de muita força,
invoca-se flexibilidade e graça, ou generosidade,
para alcançar o reconhecimento das alianças pos-
síveis entre pessoas distintas comprometidas com

135
relações mais igualitárias de raça, sexo, gênero, clas-
se, território e justiça social.
Quando perguntam o que são os feminismos
contemporâneos, respondo que são “treta”. Quando
me perguntam o que podem ser, digo que podem ser
a potência de reinvenção de sociedades mais iguali-
tárias, mais justas e mais efetivamente democráticas.
Feminismos contemporâneos são “treta”, em
parte, graças ao período em que vivemos, que é de
grande profusão de discursos pelas novas tecnolo-
gias. Esse momento é muito positivo, primeiro por-
que mais pessoas atualmente têm acesso aos históri-
cos das lutas feministas e a anseios de novos mundos,
a partir de diversas perspectivas; e segundo, porque
o excesso de “treta” entre os feminismos e movimen-
tos de mulheres indica que as mulheres estão impli-
cadas politicamente em buscar esses novos mundos
e os buscam de forma acalorada, apaixonada.
Vamos a um panorama desses “feminismos con-
temporâneos”, ou como costumo chamá-los, dos
feminismos plurais ou dissidências feministas: fe-
minismo liberal, feminismo marxista/socialista,
feminismo “radical”, feminismo negro, transfemi-
nismo, feminismo interseccional, feminismo indí-
gena, lesbofeminismo, putafeminismo, feminismo
favelado, feminismo periférico, feminismo gordo,

136
feminismo anticapacitista, feminismo matricên-
trico, para citar alguns.
Quais dilemas estão colocados hoje para nós?
A lista das polêmicas é extensa: “recortes” de raça,
classe, gênero etc; “você não tem lugar de fala”;
“fora, macho”; “piroco”; “prostituição é estupro
pago”; “nem vadia, nem santa, sou mulher”; “em
defesa da família”; “o feminismo divide a classe
trabalhadora, pois exclui os homens e debilita a
unidade da demanda”; “as mulheres não estão pre-
paradas para a liderança pois são intransigentes”;
“mulheres negras são raivosas”; “mulheres lésbicas
invejam o pênis e odeiam os homens”; “mulheres
trans são homens doentes querendo se infiltrar no
feminismo”; “ser LGBTI+ é desvio pequeno-bur-
guês”; “o feminismo negro está dividindo o movi-
mento negro”; “a classe trabalhadora quer comida
no prato”. E quantas mais não habitam o universo
dos debates de gêneros e sexualidades, vindo tanto
de dentro quanto de fora dos feminismos, tanto
de setores progressistas quanto de conservadores?
Peço licença para uso de termos não muito
bonitos, mas que todo mundo escuta o tempo
inteiro (e muita gente ainda fala): “filho da puta”,
“viadinho”, “bichona”, “piranha”, “puta”, “vadia”,
“vagabunda”, “mal-comida”, “corno”, “arrombada”,

137
“frígida”, “nenhum homem te pegou de jeito”, “vai
tomar no cu”. Todos esses substantivos e adjetivos
têm em comum o uso do erótico para depreciar
mulheres e pessoas LGBTI+, em nossas identida-
des e por nossas práticas sexuais, até mesmo quan-
do são direcionados aos homens heterossexuais — o
homem é corno pois a mulher com quem ele se rela-
ciona é uma vagabunda que o chifrou; filho da puta
é autoexplicativo.
Aqui cabe mais um questionamento: por que o
erótico é, o tempo inteiro, usado contra as mulhe-
res? A quem, ou a que, interessa localizar o erótico
como algo pejorativo e depreciativo? Audre Lorde,
poetisa negra estadunidense, mais uma das irmãs
forasteiras, responde chamando nossa atenção às
potências do erótico. No texto “Os usos do erótico
como poder” ela explica o que é o erótico e por que
ele é tão potente: ter paixão, ter tesão por alguma
coisa é um sentimento incrível, que uma vez senti-
do vamos querer sentir sempre, por honra e respeito
a nós mesmas. Audre explica, nesse mesmo texto,
por quem o erótico é tão perseguido e negado, e a
quem, ou a que, interessa que não tenhamos acesso
a essa potência erótica que existe em todas, todos
e todes nós. Audre continua por tratar da cruelda-
de de exigir que vivamos sem acesso ao erótico, às

138
paixões, à nossa plenitude de realizações, porque
esse sistema faz isso conosco diariamente, ao exigir
que tenhamos empregos que não nos mobilizam,
ao nos obrigar a renunciar a quem somos, ao que
desejamos, para cumprir uma função social. Uma
função que, em verdade, não é social, mas voltada
apenas às necessidades de maximização de lucro
da menor parcela da humanidade — o 1% que
concentra 50% da riqueza do mundo, quando
mais de 50% da população mundial vive em mi-
séria absoluta. Eles não nos querem efetivamente
vivas, vivos ou vives, mas produzindo o que eles
dizem ter valor, mesmo que isso nos leve — e
muito frequentemente leva — ao sofrimento e ao
desespero.
Gloria Anzaldua, poetisa chicana, no entanto,
admoesta a não nos deixarmos derrubar. Gloria,
que cunhou o termo “identidade fronteiriça”, fa-
lava muito da importância de as mulheres negras,
latinas, nativo-indígenas, asiáticas, lésbicas, bisse-
xuais, trans, enfim, as “renegadas”, firmarem seu
lugar no mundo pela escrita como legítimas pro-
dutoras de conhecimento. Tanto para demonstrar
que mulheres são potentes na escrita quanto para
incentivar outras mulheres “renegadas” a não aban-
donar o lugar da escrita, afinal é isso que impõe

139
a razão ocidental — que apenas homens brancos,
cisgêneros e proprietários estejam em lugar de eru-
dição e influência. Em seu texto “Falando em lín-
guas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro
mundo”, ela nos invoca a manter acesas as paixões.
Em seguida, Gloria diz para jogar fora as abstrações
e o aprendizado acadêmico, porque ela justamente
se refere à imposição de uma escrita neutra, impar-
cial, universal; um projeto epistemológico ocidental
de nos afastar do cotidiano, tirar nossa paixão pelos
debates em todas as searas, principalmente os deba-
tes sobre a sociedade em que vivemos, sobre Estado,
Nação e Democracia.
A radicalização da democracia, como também
defendia Chantal Mouffe, cientista política belga,
precisa incluir o pluralismo de ideias, apenas mo-
bilizado a partir das paixões. Precisamos divergir,
precisamos saber discutir sem nos destruir. Ao elen-
car as “tretas” feministas e diversos nomes para os
feminismos que conhecemos em atuação hoje, de-
monstrei que existe um sem-número de mulheres
agentes da própria vida e interessadas em construir
projetos alternativos de sociedade. Esses projetos,
posso apostar, apresentam muitas semelhanças,
assim como algumas dissonâncias. Há, certamente,
diferenças que são inconciliáveis, a principal delas

140
muito provavelmente diz respeito à exclusão de al-
gumas mulheres dos feminismos, como se fossem
menos legitimadas em sua condição de mulheres
do que outras, seja por serem quem são, pelos
ofícios que exercem, pelo local onde moram ou
pelo acesso que têm ou tiveram ao longo da vida
à educação institucional. Esta é uma armadilha
da hegemonia na qual todas, todos e todes esta-
mos sujeites a cair, não apenas as feministas, mas
agentes políticos de qualquer movimento social
contestatório. Porque somos absolutamente apai-
xonadas, apaixonados e apaixonades pela possibi-
lidade de reinvenção do mundo. E é por isso que
todas, todos e todes precisamos estar sempre com
a atenção aguçada.

«Precisamos divergir,
precisamos saber
discutir sem nos
destruir»

141
Os feminismos não são apenas uma teoria ou
um movimento social. São ambos e mais. Dizem
respeito a como vivemos nossas vidas, como nos
relacionamos com nossas redes de trabalho, de
amizades, com nossas famílias, a como nos relacio-
namos romântica, afetiva e sexualmente e a como
nos relacionamos com a natureza. Os feminismos
contemporâneos conectam a violência machista à
violência produzida pelo agronegócio e pelo extra-
tivismo de terras, às diferenças salariais, ao trabalho
doméstico, que ainda hoje nem sequer é conside-
rado trabalho. Conectam a violência da financeiri-
zação neoliberal à violência policial nos territórios
de favelas e periferias, à feminização da pobreza, ao
genocídio negro e indígena e ao encarceramento
em massa de homens negros e de mulheres negras e
pobres, assim como conectam a criminalização do
aborto à motivação racista de todas essas violências.
Os feminismos são lentes de análise, são perspecti-
vas sobre os problemas sociais que não podem ser
menosprezadas.

142
«A potência das lutas
feministas e LGBTI+
pela radicalização
democrática
consiste na busca
por alianças possíveis
e contingenciais,
em busca da
descolonização das
fronteiras, assim como
de nossos corpos,
nossas mentes, nossos
espíritos, de nós todas,
todos e todes por inteiro,
como quem somos e
podemos vir a ser»

143
Acima de tudo, se estamos interessadas em socie-
dades efetivamente democráticas, a potência dos
feminismos se relaciona com praticar a dissidência
com amorosidade, desvencilhando-nos de micro-
fascismos, de universalidades homogeneizantes e
verdades absolutas. Precisamos, não só as feminis-
tas, mas todas as mulheres, homens e pessoas não
binárias, aprender a lidar com a angústia da incer-
teza, pois se queremos — e queremos! — construir
novos mundos, será preciso navegar por mares ainda
pouco navegados sem saber em qual porto ancorare-
mos, se é que algum dia poderemos ancorar.
A potência das lutas feministas e LGBTI+ pela
radicalização democrática consiste na busca por
alianças possíveis e contingenciais, em busca da
descolonização das fronteiras, assim como de nos-
sos corpos, nossas mentes, nossos espíritos, de nós
todas, todos e todes por inteiro, como quem somos
e podemos vir a ser.

144
[em agosto de 2021, após dois anos com in-
cidência na formação política de jovens lide-
ranças da periferia, o IPAD Seja Democracia
realizou, nos diversos estados que o com-
põem, ciclos de seminários com professo-
res e alunos da rede IPAD, em torno do tema
“nossa agenda de luta pela democracia” que
resultou na carta manifesto homônima]

145
A democracia em nosso país deve incluir
nossa liberdade, nossas liberdades comuns.
Das pessoas empobrecidas, moradores de perife-
rias, negros e negras, migrantes, mulheres, indíge-
nas e quilombolas, para quem o sentido de demo-
cracia é resultado de uma luta pela sobrevivência
dos seus, por direitos coletivos e, finalmente, por
liberdades comuns.
A democracia em nosso país deve nos incluir, par-
tir de nossos sonhos, nossas experiências de vida, de
nossas demandas e de nossos espaços. Ao pensarmos
em democracia, não podemos limitar suas possibi-
lidades a uma inclusão precária num projeto de país
que historicamente rejeita nossas existências. A de-
mocracia em nosso país deve incluir nosso desejo
por liberdade.
Nas periferias, espaços de lutas e de busca por
melhores condições de vida, não há somente a pers-
pectiva e o entendimento do que é a falta de direi-
tos, mas há, sobretudo, a força criativa, as redes de
solidariedade e inventividade que nos permitem
propor e criar novas e potentes formas de vivermos,
nos relacionarmos e idealizarmos as possibilidades
de uma democracia. Entendemos que as periferias e
seus sujeitos devem desempenhar o protagonismo
nesta construção.

146
Em nossa caminhada ensinamos e aprende-
mos, pensamos e fazemos, idealizamos e vivemos.
Compreendemos a importância de relacionar as
teorias com a realidade e nos dedicamos a propôr
ações coletivas que construam participação política,
orientadas por elementos centrais de nossa estraté-
gia: nossos sonhos, nossa realidade, nossa vontade
e nosso poder.
Com isso, apresentamos nossa agenda de luta.
Ela é orientada pelos seguintes objetivos:

1 Lutar por políticas antirracistas e de


gênero para a população da periferia,
como condição para realização do
Estado Democrático de Direito.

2 Exigir estratégias garantidoras


da segurança alimentar para a
população da periferia.

3 Combater a violência policial e a


política do encarceramento da
juventude da periferia.

147
4 Defender o Sistema Único de Saúde, a
partir do atendimento das demandas
dos moradores das diferentes periferias
que formam o Brasil.

5 Lutar por políticas ambientais que


dialoguem com as estratégias
de sustentabilidade econômica dos
moradores da periferia.

6 Promover o fortalecimento da
participação ativa dos moradores da
periferia nas eleições.

7 Criar estratégias e ações que


contribuam para a participação das
pessoas das periferias nas tomadas
de decisões sobre as políticas públicas
efetivadas em seu território.

8 Defender o direito à educação pública,


gratuita e com qualidade social em
todos os níveis e modalidades.

148
@ipadsejademocracia
sejademocracia.com.br

149
Equipe IPAD Seja Democracia

coordenador geral
Cleber Ribeiro de Souza

coordenadora de articulação institucional


Mariana Evaristo dos Santos

coordenação polo Minas Gerais


Glenda Jaqueline Rodrigues Vaz dos Santos,
Miriam Gomes Alves e Roberto Raimundo

coordenação polo Rio de Janeiro


Douglas Viana

coordenação polo Pernambuco


Auta Jeane da Silva Azevedo

coordenação polo Bahia


Rodrigo Alves Souza Batista

coordenação polo São Paulo


Marta Heloisa de Nazareth Costa

coordenação polo Paraíba


Luiz José Mamede de Lima

152
Instituto Maria e João Aleixo

direção geral
Jailson de Souza e Silva e Alberto Aleixo

coordenação executiva
Felipe Moulin

coordenação administrativa
Felipe de Almeida da Mota

coordenação de comunicação
Mariane Del Rei

coordenação UNIperiferias
Heloisa Melino

153
154
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Seja democracia / organização Cleber Ribeiro. -- 1. ed. -- Rio de


Janeiro : EDUNIperiferias, 2022.
Bibliografia.
ISBN 978-65-87799-13-1
1. Brasil - Política e governo 2. Cidadania 3. Ciências políticas
4. Democracia - Brasil I. Ribeiro, Cleber.

22-100945 CDD-321.81

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Democracia e cidadania : Ciências políticas 321.81
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

155
realização

156
150
A periferia tem projetos de radicalização da
democracia. Esta é a afirmação que orienta todo o
esforço de construção de Seja Democracia — um
chamado para a formação política de todas as
pessoas que buscam, a partir da compreensão da
realidade brasileira, meios pragmáticos de defesa da
democracia em nosso país. Ser democracia implica,
antes de tudo, identificar os projetos de sociedade
produzidos pela periferia e, com eles, orientar
nossas energias para formar, organizar e agir pela
radicalização da democracia brasileira.

ISBN 978-65-87799-12-4

159

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