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REVISTA

NÚMERO 2
JULHO 2022
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REVISTA

NÚMERO 2
JULHO 2022
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Associação ARTIGO 19 Brasil e América do Sul

Diretora Regional Denise Dourado Dora

Conselho de Administração Belisário dos Santos Júnior


Bianca Santana
Eduardo Pannunzio
Kátia Brasil
Luciana Guimarães
Luís Eduardo Regules
Malak Poppovic (Presidente do Conselho)
Marcos Rolim

Conselho Fiscal Dirlene da Silva


Marcos Fuchs
Mário Rogério Bento

Coordenação Luana Almeida (Jornalista responsável - MTB 52528)


Editoração Romulo Santana Osthues
Reportagem e Redação Leonardo Valle
Revisão Nana Soares

Capa Cestaria Yanomami


Direção de Arte e Fotografia Eliana Abitante
Tratamento de Imagens José Fujocka
Licença Creative Commons
5

Apresentação
6
O futuro de nossa democracia

Cenário
11
Eleições no Brasil acontecem em cenário crítico às 12
liberdades fundamentais
Onde estamos? 13

Campanhas de desinformação: novas tecnologias, 14


novos desafios
Políticos eleitos estão engajados em disseminar fake news 16
Desinformação é projeto institucional 18

Rupturas democráticas já não são apenas ameaças 20


Novas tendências na repressão aos protestos 22
Mulheres negras são alvos da violência política 23
Proteger jornalistas, comunicadoras e comunicadores 26
é proteger a democracia

Entrevistas
29
Jamil Chade 30
Preta Ferreira 36
Edson Fachin 42
Vladimir Garay 48

Perspectivas
57
Agenda de Expressão 2022 58
6

Apresentação

O futuro de nossa democracia

É com renovadas esperanças que espaços de liberdade de expres-


trazemos a vocês o segundo nú- são, imprensa e manifestação li-
mero da Revista Artigo 19 – Elei- mitados e ameaçados, sendo que,
ções 2022: Defendendo a Liber- neste período, Hong Kong, Afega-
dade de Expressão. Esta é uma nistão e Brasil foram os que tiveram
iniciativa da Associação ARTIGO a queda mais pronunciada desses
19 Brasil e América do Sul, organi- direitos fundamentais, como de-
zação criada em 2007, que atua de monstra o Relatório Global de Ex-
forma coordenada com a ARTIGO pressão da ARTIGO 19 Internacio-
19 Internacional estabelecida na nal 1, publicado em junho deste ano.
Inglaterra, em 1987, por inspiração
do artigo dezenove da Declaração Destruir espaços cívicos de expres-
Universal dos Direitos Humanos. são e manifestação é, em si, um
atentado aos direitos humanos, mas
A liberdade de expressão e o aces- também é uma estratégia de erosão
so à informação vêm sendo se- democrática. Plantar desinforma-
veramente atacados no mundo e ção, perseguir jornalistas, constran-
no Brasil. Na última década (2011- ger a participação popular, propagar
2021), vários países tiveram seus discursos de discriminação e ódio,

1 https://artigo19.org/2022/06/30/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-perdeu-liberdade-de-expressao-nos-
ultimos-dez-anos-aponta-levantamento-da-artigo19
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além de legislar em favor de meca- no País depois de vários anos en-


nismos de controle e vigilância, têm frentando, de um lado, a omissão do
sido uma prática de governos e par- governo federal com a proteção de
lamentares autoritários. Diferente jornalistas, comunicadoras e comu-
do que muitas vezes pensamos, não nicadores e das liberdades demo-
são as guerras ou inimigos externos cráticas, e de outro lado, o desmon-
que produziram massacres humani- te ativo dos sistemas de informação,
tários. São governos que investem dos mecanismos de participação e
contra seu povo, desvirtuando sua ataques a quem defende os direitos
função e suas responsabilidades. humanos. Maria Ressa, jornalista fi-
Temos exemplos históricos, como lipina premiada com o Nobel da Paz
o Holocausto nazista, ou ditaduras em 2021, afirma que “informação é
como as de países latino-america- poder” e que precisamos de um en-
nos, onde o Estado perseguiu, tor- gajamento coletivo para defender
turou e matou cidadãs e cidadãos. as democracias no mundo.
Estes momentos servem como aler-
tas para a construção, e continuida- Neste número da Revista Artigo
de de uma arquitetura internacional 19, nos dedicamos a levantar os vá-
de direitos humanos, capaz de pro- rios aspectos do processo eleitoral
teger pessoas da perversão de seus brasileiro, analisando os muitos de-
próprios governantes. safios que enfrentamos e enfrenta-
remos até outubro de 2022. E de-
Essas experiências de autoritaris- pois, no período pós-eleitoral e de
mo e violência de Estado nos levam transições de governos, com as
a refletir sobre a importância do mo- ameaças recorrentes feitas por au-
mento que vivemos no Brasil em toridades governamentais e mem-
2022, com as eleições gerais para bros das forças armadas à reputa-
governos e parlamentos estaduais ção e lisura do pleito. Ataques ao
e federal. Precisamos nos posicio- voto eletrônico – utilizado com su-
nar sobre a urgente necessidade cesso nas eleições brasileiras há
de renovação da liderança política muitos anos –, boicote a sistemas
8

de participação popular e acesso à Tendo esse universo de desafios


informação, ampliação de medidas como pano de fundo, conversamos
restritivas de liberdades democráti- com Preta Ferreira (p. 36), artista
cas e perseguição a comunicadoras e liderança política e social, sobre
e comunicadores têm sido a tônica as estruturas de discriminação que
do contexto brasileiro no último perí- impedem, sabotam e bloqueiam a
odo. Para responder a este cenário, expansão das liberdades de expres-
a ARTIGO 19 desenvolve várias es- são de muitos grupos da sociedade,
tratégias de incidência, como mos- em especial a população negra, os
tramos na matéria principal desta povos indígenas, as mulheres e as
edição, a partir da página 12. pessoas LGBTQIAPN+. Essas es-
truturas de discriminação de gênero,
Já para a seção de entrevistas, raça e etnia têm impedido que pes-
convidamos Jamil Chade, jornalis- soas desses grupos se manifestem
ta que faz a cobertura do Brasil na publicamente, mesmo com manda-
ONU e outras esferas da coopera- tos públicos, por meio de mecanis-
ção internacional. Jamil nos brinda mos de censura e violência política.
com uma análise do impacto dessa No Brasil, acumulam-se os casos
situação de tensão política que cer- de perseguição a parlamentares
ca as eleições brasileiras de 2022, mulheres, negras e negros, trans,
em especial sobre o risco para a li- lésbicas e gays, através de amea-
berdade de imprensa e a reputação ças virtuais e presenciais. Nesse
internacional do País (p. 30). Discur- ambiente, as liberdades democrá-
sos de autoridades que indicam um ticas e o direito à participação e à
desacordo prévio com resultados representação eleitoral ficam captu-
eleitorais, ataque às instituições do rados pelo medo e pela impunidade.
estado democrático de direito e a
conclamação a revoltas são ingre- Outro tema nesse debate se refere
dientes dos piores populismos au- à campanha contra o voto eletrôni-
toritários – e os resultados desses co capitaneada pelo atual governo
processos já causaram suficientes federal, levantando suspeitas sobre
traumas à humanidade para que a lisura do processo eleitoral e seus
nos aventuremos a repeti-los. resultados. Para refletir sobre essas
9

ameaças, entrevistamos o ministro cia e busca por igualdade e justiça.


Edson Fachin (p. 42), do Supre- Defender as eleições, votar pelos
mo Tribunal Federal e presidente direitos humanos, eleger pessoas
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) representativas da diversidade do
até agosto deste ano. Na entrevis- povo brasileiro e apoiar transições
ta, ele revela as múltiplas iniciativas pacíficas é, hoje, uma agenda fun-
do TSE para resguardar, mais uma damental para garantir nosso futuro.
vez, o ambiente seguro do processo
eleitoral brasileiro. Durante a elaboração desta revista,
vivemos em sobressalto e acompa-
Por último, buscamos trazer para o nhando a dor dos povos Yanomamis
debate as lições do processo eleito- sendo atacados, das mulheres se-
ral no Chile, com todas as questões questradas, estupradas e mortas, e
que envolvem as democracias con- de seu esforço íntegro e imenso por
temporâneas como desinformação, sobreviver. Acompanhamos tam-
manipulação de dados, uso exten- bém, com horror e tristeza, a busca
sivo de mensagens, redes e plata- pelo jornalista Dom Phillips e pelo
formas sociais. Contamos com a indigenista Bruno Pereira, assassi-
experiência de Vladimir Garay (p. nados no início do mês de junho no
48), da organização Derechos Di- Amazonas, a inércia do Estado bra-
gitales, que nos brinda com exem- sileiro em proteger a floresta e seus
plos e reflexões desse recente, e povos, e o risco de todas as pesso-
ainda muito vivo, processo político as que os defendem.
e eleitoral.
Aos povos amazônicos, dedicamos
Assim, também convidamos você esta edição, e o fazemos trazendo
que nos lê a se engajar na defesa sua arte e sua expressão em nossa
do que temos de melhor na socie- capa.
dade brasileira, reforçando nossas
experiências recentes de democra- Desejamos boa leitura!

Denise Dourado Dora

Diretora Regional da ARTIGO 19 Brasil e América do Sul


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11
Eleições no Brasil acontecem em cenário crítico às 12
liberdades fundamentais
Onde estamos? 13

Campanhas de desinformação: novas tecnologias, 14


novos desafios
Políticos eleitos estão engajados em disseminar fake news 16
Desinformação é projeto institucional 18

Rupturas democráticas já não são apenas ameaças 20


Novas tendências na repressão aos protestos 22
Mulheres negras são alvos da violência política 23
Proteger jornalistas, comunicadoras e comunicadores 26
é proteger a democracia
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Cenário

Eleições no Brasil acontecem


em cenário crítico às
liberdades fundamentais
Leis, decisões judiciais e repressão policial são usadas para impedir
os direitos à livre expressão, à manifestação e ao acesso à informação,
afetando negativamente o exercício da democracia

As eleições presidenciais e legisla- 12.527/2011) e as campanhas de


tivas no Brasil de 2022 acontecem desinformação orquestradas por au-
em um cenário profundamente mar- toridades. Todos esses fatores po-
cado por ataques às liberdades de dem afetar negativamente o exercí-
expressão e manifestação e ao di- cio da democracia e a preservação
reito ao acesso à informação. Es- das instituições democráticas.
ses ataques se materializaram no
uso abusivo de leis, decretos e atos Para que um processo eleitoral le-
administrativos pelo governo fede- gítimo e livre ocorra, é importante
ral visando a cercear jornalistas, o fortalecimento de princípios de-
comunicadoras e comunicadores e mocráticos, o que inclui garantir as
pessoas da oposição política, assim liberdades fundamentais e propor-
como decisões judiciais e repres- cionar um ambiente adequado para
são policial utilizadas para coibir a atuação de uma mídia indepen-
manifestações em espaços públi- dente, que possa disseminar infor-
cos. Somam-se a isso os ataques mações de qualidade e, assim, co-
à Lei de Acesso à Informação (LAI, laborar para um voto consciente.
13

“É impossível efetivar direitos hu- tem a democracia. Um deles é o Re-


manos sem o acesso à informação latório Global de Expressão (GxR,
qualificada. Isso impede eleitoras e na sigla em inglês), publicação anu-
eleitores de tomar decisões inteli- al da ARTIGO 19 que reúne informa-
gentes, de exercer o controle social ções de diversos países sobre como
sobre a administração pública e as eles garantem o direito de sua po-
candidaturas”, exemplifica Júlia Ro- pulação manifestar opiniões sem
cha, coordenadora da área de Aces- medo de censura ou ataques por
so à Informação da ARTIGO 19 Bra- parte do governo e de atores priva-
sil e América do Sul. dos. Para isso, são utilizados dados
do Varieties of Democracy Institute
Para eleitoras e eleitores, é igual- (V-Dem), um instituto de pesquisa
mente importante conhecer os me- independente da Universidade de
canismos de transparência e as tec- Gotemburgo, na Suécia, que conta
nologias envolvidas nas eleições. com cientistas sociais em todos os
Isso garante sua legitimidade, o res- continentes.
peito aos seus resultados e a pre-
servação da democracia. Não por Em 2022, o Brasil ocupa a 89ª po-
coincidência, são justamente esses sição entre 161 países, e passou a
os alvos das campanhas de disse- ser considerada uma nação de li-
minação de fake news em redes so- berdades restritas, caindo 58 posi-
ciais e aplicativos de mensagens. ções entre 2015 e 20212. A queda
se acentuou após 2018: o GxR des-
taca que as violações de liberdade
Onde estamos? de expressão se intensificam no pe-
ríodo eleitoral. Em 2020, o mês de
Alguns dados ajudam a localizar outubro concentrou 16% dos casos
o Brasil em relação às ameaças e do ano ou 15 episódios em um to-
perdas de direitos que comprome- tal de 42.3

2 https://artigo19.org/2022/06/30/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-perdeu-liberdade-de-expressao-nos-
ultimos-dez-anos-aponta-levantamento-da-artigo19/
3 https://artigo19.org/2021/07/29/relatorio-global-de-liberdade-de-expressao-2020-2021/
14

Entretanto, quando olhamos para a nos campos da liberdade de expres-


América do Sul como um todo, bons são e dos direitos digitais. Todos
exemplos de preservação das liber- esses processos foram permeados
dades fundamentais vêm do Chi- por fake news e são monitorados
le – atualmente, na 29ª posição no por organizações como a Derechos
ranking mundial e dentro dos países Digitales, que investiga a ação das
sul-americanos mais bem posiciona- campanhas desinformativas nos atu-
dos, atrás apenas do Uruguai (21ª) ais trabalhos da constituinte. Entre-
e da Argentina (22ª). O Chile viven- vistamos o diretor de incidência da
ciou eleições presidenciais e legisla- organização, Vladimir Garay, sobre
tivas recentemente, junto às discus- esses decisivos momentos da histó-
sões para elaboração de uma nova ria recente do país. A conversa está
Constituição que promete avanços disponível a partir da página 48.

Campanhas de desinformação:
novas tecnologias,
novos desafios
A sociedade está mais experiente sobre como lidar com fake news
no período eleitoral. Contudo, há novos desafios, como tecnologias
maliciosas que despontam e a falta de um marco legislativo que
responsabilize agentes de desinformação

O uso de tecnologias para dissemi- panhas de fake news orquestradas


nar campanhas de desinformação por grupos organizados e com inte-
nas eleições não é novidade, porém resses políticos e econômicos espe-
redes sociais e aplicativos de men- cíficos. Quatro anos depois, a socie-
sagens aceleraram e ampliaram o fe- dade está mais experiente sobre as
nômeno. “As eleições presidenciais tentativas de influenciar o eleitorado
de 2018 marcaram o ápice de cam- por meio de notícias enganosas. Isso
15

não significa, porém, o fim dessa ativi- com sistemas espiões. São malwa-
dade”, descreve Paulo José Lara, co- res, softwares e dispositivos digitais
ordenador da área de Direitos Digitais que coletam e transmitem informa-
da ARTIGO 19. ções sem consentimento de quem
usa. Causa especial receio os movi-
Outras tecnologias e formas de atu- mentos, de grupos ligados ao gover-
ação se consolidaram, e impõem no- no federal, de adquirir softwares es-
vos desafios para preservar a legitimi- piões de empresas internacionais,
dade e a integridade das eleições. É como Pegasus 5 e Darkmatter 6. Este
esperado, por exemplo, maior uso de último foi utilizado por regimes saudi-
deepfakes nas campanhas de desin- tas para monitorar opositoras e opo-
formação – tecnologia que se vale de sitores, incluindo jornalistas.
recursos da inteligência artificial pa-
ra substituir rostos em vídeos e foto- Outra tendência é o uso antiético de
grafias. “A sociedade apresenta uma dados abertos como os OSINT (Open
tendência errônea de confiar no que é Source Intelligence, ou Inteligência
imagem, som e outros elementos de de Fonte Aberta), que são informa-
sentido. Com a evolução da tecnolo- ções voluntariamente postadas por
gia, certas evidências que pareciam usuárias e usuários em redes sociais
inegáveis passam a contar como ele- e plataformas online, e que são então
mentos de dúvida”, pontua Lara. cooptadas por softwares ou opera-
ções de buscas. “Também são espe-
Em relação à ação de hackers, além radas campanhas de desinformação
de invasões de diferentes níveis e in- em ecossistemas de nichos, como fó-
tensidades a servidores e sites de runs de discussões, plataformas e re-
instituições – como aconteceu com des sociais usadas por grupos espe-
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cíficos, que são espaços com pouco
no segundo turno das eleições 4 de ou nenhum monitoramento social”,
2020 –, desponta uma preocupação acrescenta Lara.

4 https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/tentativas-de-ataques-de-hackers-ao-
sistema-do-tse-nao-afetaram-resultados-das-eleicoes-afirma-barroso
5 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/05/25/empresa-de-software-espiaopegasus-
deixa-edital-que-e-rodeado-de-incertezas.htm
6 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/01/18/darkmatter-foi-usado-para-investigar-
jornalista-saudita-morto-em-consulado.htm
16

Contra esses novos desafios, mere- tamento da Diretoria de Análise de


ce destaque a parceria do TSE com Políticas Públicas da Fundação Ge-
agências de checagem de informa- túlio Vargas (DAPP-FGV) 10. Ao todo,
ção, redes sociais e aplicativos de foram monitoradas 394.370 posta-
mensagens no combate às notícias gens sobre ambos os assuntos, que
enganosas durante o período eleito- obtiveram 111.748.306 interações,
ral. Entre eles, o único a não se ma- somando curtidas, comentários e
nifestar havia sido o Telegram 7, que compartilhamentos. A pesquisa ainda
chegou a ser suspenso por medida alertou que autoridades e servidoras
do Supremo Tribunal Federal (STF) e servidores em cargos eletivos estão
e, posteriormente, liberado após no- engajados em espalhar conteúdo en-
mear um representante no Brasil e ganoso. O ranking foi liderado pelos
se comprometer com o monitora- deputados federais Carla Zambelli
mento de fake news.8 9 (PSL-SP), Bia Kicis (PSL -DF) e Fili-
pe Barros (PSL-PR). O chefe do Exe-
cutivo, Jair Bolsonaro, mesmo com
Políticos eleitos 42 postagens no período, foi respon-
estão engajados em sável por 3.878.011 interações – uma
disseminar fake news média de 92.333 por publicação.

Campanhas organizadas de fake “É preciso contabilizar o uso de re-


news miram desinformar sobre voto des sociais dessas autoridades
impresso e fraudes nas urnas ele- como mecanismo oficial, uma vez
trônicas. Entre novembro de 2020 e que a população as utiliza para se
janeiro de 2022, o Facebook Brasil informar. Isso aumenta a responsa-
recebeu 888 posts diários com es- bilidade do emissor”, justifica Júlia
sas temáticas, segundo um levan- Rocha, coordenadora da área de

7 https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/03/09/tse-reitera-convite-ao-telegram-para-
acordo-de-combate-as-fake-news-nas-eleicoes.ghtml

8 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2022/03/22/telegram-as-mudancas-que-levaram-stf-a-
liberar-aplicativo-no-brasil.htm

9 https://artigo19.org/2022/03/19/suspensao-do-telegram-viola-liberdade-de-expressao-e-direitos-
humanos-de-comunidades-inteiras/

10 https://democraciadigital.dapp.fgv.br/estudos/desinformacao-on-line-e-contestacao-das-eleicoes/
17

Acesso à Informação da ARTIGO o primeiro marco legislativo contra


19. A responsabilização de autori- esse fenômeno. Atualmente, aguar-
dades envolvidas na difusão de in- da votação na Câmara dos Deputa-
formações enganosas em ambiente dos. “Uma coisa é uma pessoa com
online está prevista no Projeto de Lei 300 seguidores postar uma mentira,
(PL) 2630/2020 11. Batizado “PL das outra são autoridades em cargo pú-
Fake News”, ele institui a Lei Brasi- blico com milhares de conexões. As
leira de Liberdade, Responsabilida- penalizações devem ser diferentes”,
de e Transparência na Internet, e é aponta Lara.

Evolução de postagens no Facebook sobre fraude nas urnas e voto impresso


Período de análise: 02 de novembro de 2020 a 18 de janeiro de 2021

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Fonte: CrowdTangle | Elaboração: FGV DAPP


Disponível em: Levantamento Desinformação on-line e contestação das eleições (FGV DAPP)

11 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944
18

Desinformação é licitarem dados públicos. No rela-


projeto institucional tório “Infodemia e a Covid-19 – A
informação como instrumento con-
Além das redes sociais, destaca-se tra os mitos”,14 35% dos pedidos de
a utilização de equipamentos ins- informação sobre medidas gover-
titucionais para desinformar, como namentais relacionadas à pande-
as assessorias de comunicação de mia da Covid-19 foram respondidos
órgãos do governo. Dados do GxR com informações incorretas; 25%
apontam que Bolsonaro emitiu 1.682 com informações intencionalmen-
declarações falsas ou enganosas te errôneas; 20% com informações
apenas em 2020, o equivalente a censuradas e 5% com informações
quatro por dia. “Por um lado, há a su- parciais. Apenas 15% foram respon-
pressão de informações científicas, didos na íntegra. “Informação incom-
como, por exemplo, a retirada do ar pleta também é falsa. Quando você
de uma cartilha para a população retira o meio de informação, é como
trans pelo Ministério da Saúde 12. se suas duas pontas se juntassem e
Por outro, divulgam-se informações ganhassem um novo sentido”, ilustra
de cunho moral, mas sem respaldo Rocha. Ela explica que o governo se
científico, como a campanha contra vale de brechas na LAI para barrar
gravidez na adolescência com foco informações.
na abstinência sexual pelo Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos O sigilo, por exemplo, está previs-
Humanos MDH”,13 compara Rocha. to com protocolos: um grupo res-
trito de pessoas pode fazê-lo e em
O governo federal ainda descumpre ocasiões excepcionais. “Algumas
a Lei de Acesso à Informação (LAI, tentativas recentes de ataques à
12.527/2011), que permite à impren- LAI foram barradas, como o decre-
sa e às cidadãs e aos cidadãos so- to 9690/2019, que ampliava o núme-

12 https://www.metropoles.com/brasil/ministerio-da-saude-retira-do-ar-cartilha-para-populacao-trans

13 https://www.brasildefato.com.br/2020/02/08/damares-alves-tenta-impor-doutrina-em-campanha-por-
abstinencia-sexual

14 https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2021/05/Infodemia-e-a-COVID-19-%E2%80%93-A-
informacao-como-instrumento-contra-os-mitos.pdf
19

ro de pessoas que poderiam impu- mações públicas via LAI utilizando


tar sigilo em materiais de interesse outro marco legal”, explica Rocha. O
público”, lembra.15 O governo federal Planalto ainda evocou a LGPD para
também usa uma interpretação equi- impor sigilo de 100 anos sobre quais
vocada da Lei Geral de Proteção de filhos de presidentes tiveram crachás
Dados, a LGPD (13.709/2018), para de acesso ao Palácio do Planalto
barrar os pedidos via LAI. Tal inter- desde 2003; 17 sobre a carteira de va-
pretação garante o direito do cida- cinação do presidente – responsável
dão sobre o armazenamento e o tra- por declarações antivacinas durante
tamento de dados particulares que a pandemia de Covid-19;18 e sobre
estão em instituições e empresas o processo administrativo contra o
públicas ou privadas. general e então ministro da saúde,
Eduardo Pazuello, em atos políti-
A agência Fique Sabendo apontou cos com Bolsonaro que provocaram
que 79 pedidos de informação ne- aglomerações na pandemia.19
gados pelo governo com base na
LGPD 16 chegaram à Controladoria- Em fevereiro de 2022, o Instituto
-Geral da União (CGU) e à Comis- Nacional de Estudos e Pesquisas
são Mista de Reavaliação de Infor- Educacionais Anísio Teixeira (Inep),
mações (CMRI), que são os órgãos órgão vinculado ao Ministério da
responsáveis por dar a palavra final Educação (MEC), evocou a LGPD
sobre o que deve ou não ser publica- para suprimir microdados da sé-
do. O veto foi mantido em 39 casos. rie histórica do Exame Nacional do
“É irregular negar pedidos de infor- Ensino Médio (Enem) e do Censo

15 https://artigo19.org/2020/10/05/organizacoes-alertam-para-violacao-de-direito-a-informacao-
ministerio-da-economia-deve-compartilhar-documentos-sobre-reforma-administrativa/

16 https://fiquemsabendo.com.br/transparencia/lgpd-negativa-cgu/

17 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/07/4940994-bolsonaro-impoe-sigilo-de-100-anos-
sobre-acesso-dos-filhos-ao-planalto.html

18 https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/planalto-sigilo-cartao-vacinacao-bolsonaro/

19 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/08/exercito-atribui-a-lei-sigilo-de-100-anos-em-
processo-sobre-ida-de-pazuello-a-ato-com-bolsonaro.ghtml
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Escolar da Educação Básica. Infor- rais, pauta que está em análise pelo
mações que permitem mensurar os TSE 20. “A medida viola os direitos à
impactos da pandemia para alunos informação e à participação política,
e alunas e pautam pesquisas aca- uma vez que impede que os eleito-
dêmicas e políticas públicas. Para res fiscalizem as candidaturas e en-
completar, há uma tentativa de uso tendam os reais interesses de cada
da LGPD para garantir sigilo so- candidata e candidato e de seus gru-
bre doações a campanhas eleito- pos associados”, explica Rocha.

Rupturas democráticas
já não são apenas ameaças
Ataques às liberdades de expressão e de manifestação se materializam
em censura e perseguições contra manifestantes, ativistas e pessoas
com ideologias opostas às do governo

O Brasil vive pequenas e contínuas área de Espaço Cívico da ARTIGO


rupturas democráticas que exigem 19, Raísa Cetra. Entre as rupturas já
atenção para que não caminhem sistematizadas, Cetra destaca pelo
para cenários mais graves. “Esses menos três.
seriam o uso da força associado ao
questionamento do próprio processo A primeira refere-se às já menciona-
eleitoral”, ilustra a coordenadora da das campanhas de desinformação

20 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/02/tse-vai-decidir-sobre-sigilo-de-doacao-eleitoral-e-
entidades-temem-retrocesso.shtml
21

contra as urnas eletrônicas lidera- tuito de preservar a segurança e a


das por autoridades, que encorajam soberania nacionais.
ações contra o processo eleitoral
democrático. “A segunda trata de O PL 1595/2019, do Major Vitor Hu-
censuras de liberdade artística, prin- go (PSL/GO), cria um Sistema Na-
cipalmente após as mudanças nor- cional Contraterrorista (SNC) 22, e
mativas na Lei de Incentivo à Cultu- chegou a ser aprovado em comis-
ra, a Lei Rouanet, que resultaram em são especial da Câmara dos Depu-
cancelamento de produções com te- tados. “Na prática, o texto autoriza
mática LGBTQIAPN+ e impedimen- a criação de uma polícia secreta e
to do uso de linguagem neutra nos paralela, que pode ser utilizada para
projetos contemplados”, exemplifica. perseguir vozes dissidentes ao go-
Além disso, a biografia de lideran- verno, sem transparência e para fins
ças negras históricas brasileiras foi de controle social”, alerta Cetra. No
excluída do site da Fundação Cul- primeiro semestre de 2022, a ARTI-
tural Palmares. Ações que levaram GO 19 enviou dois pedidos aos pre-
a uma convocação do governo Bol- sidentes da Câmara dos Deputados
sonaro na Comissão Interamericana e do Senado Federal solicitando que
de Direitos Humanos (CIDH), órgão as respectivas Casas se abstenham
da Organização dos Estados Ameri- de votar o PL 1595/2019 e projetos
canos (OEA).21 A terceira ruptura é o similares que debilitem o processo
uso do legislativo e do judiciário na democrático em ano de eleições.
tentativa de censurar liberdades fun-
damentais, como os diversos pro- “Há, ainda, o uso de leis já vigentes,
jetos de lei no Congresso Nacional como aquelas que versam sobre ca-
que buscam alterar e ampliar a Lei lúnia e difamação, para perseguir e
Antiterrorismo (13.260/2016), que foi censurar jornalistas, comunicadoras
discutida e aprovada no contexto da e comunicadores, defensoras e de-
Copa do Mundo de 2014 com o in- fensores de direitos humanos e opo-

21 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/12/pm-que-chefia-rouanet-diz-na-oea-que-cultura-e-
sagrada-e-mistica-e-foge-de-perguntas.shtml

22 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2194587
22

sitoras e opositores”, ressalta Cetra. dão que se manifestam, por exem-


Entre 2019 e 2021, o governo Bol- plo, é um indicador da qualidade dos
sonaro também evocou a então Lei processos democráticos de um país.
de Segurança Nacional (LSN), origi- No Brasil, ataques ao seu exercício
nária da ditadura militar, para perse- incluem: tentativas de aprovação de
guir e criminalizar pessoas da opo- leis restritivas no Legislativo; decisões
sição,23 jornalistas e quem quer que judiciárias impedindo manifestações;
se opusesse às suas políticas.24 A lei repressão policial e declarações de
foi revogada em setembro de 2021 autoridades e mídia estereotipando
e substituída pela Lei de Defesa do e criminalizando manifestantes. “O
Estado Democrático de Direito (nº expediente comum utilizado pela
14.197/2021). “Mesmo que raramen- Polícia Militar (PM) brasileira é in-
te resultem em condenação, tais le- terromper protestos pacíficos antes
gislações acentuam o medo social e da sua finalização, baseando-se em
a autocensura”, complementa. supostas ameaças à ordem pública
e aos danos a patrimônios – como
vidraças de bancos. São utilizadas
Novas tendências na balas de borracha, gás lacrimogêneo
repressão aos protestos e spray de pimenta indiscriminada-
mente contra a integridade física e
O direito à manifestação integra a psicológica de manifestantes e tran-
Declaração Universal dos Direitos seuntes”, descreve Cetra.
Humanos, e é garantido pela Cons-
tituição de 1988. Ele é fundamental Tais ações ainda ocorrem de forma
para o exercício da liberdade de ex- sistemática, caso do ato contra o pre-
pressão, para a defesa e a conquista sidente Jair Bolsonaro em 29 de maio
de outros direitos e para o fortaleci- de 2022, em Recife (PE), nos quais
mento da democracia. A forma como dois homens que não participavam
a polícia lida com a cidadã e o cida- da manifestação perderam a visão

23 https://www.conjur.com.br/2021-mai-31/mpf-arquiva-inquerito-noblat-boulos-base-lsn

24 https://www.brasildefato.com.br/2021/03/26/utilizada-contra-opositores-de-bolsonaro-lei-de-
seguranca-nacional-pode-ser-revista
23

após serem alvejados nos olhos.25 sobre como exercer o direito à livre
“Entretanto, também, observamos manifestação de modo que seja
agora uma tendência de detenção de acessível a todas e todos. Também,
manifestantes apenas por portarem a organização estimula um olhar crí-
cartazes, camisetas ou proferirem tico às declarações de autoridades e
palavras de ordem contra o governo. às reportagens que buscam estere-
Isso viola o direito à pluralidade de otipar e criminalizar manifestantes.
opiniões que integra o jogo demo- Vale questionar: elas explicam os
crático”, adverte a coordenadora. motivos pelos quais aquelas pesso-
A violência policial e seu aparelha- as estão ali ou apenas destacam os
mento com o judiciário criam uma incômodos que a manifestação cau-
atmosfera de medo e incentivam a sa no cotidiano? A força empregada
autocensura, com ativistas deixando pela polícia ao dispersar uma mani-
de comparecer a protestos e de se festação é justificada e proporcional?
manifestar com receio de violações
à sua integridade física. “O Judiciário
e alguns atores privados também se Mulheres negras são alvos
valem dessa atmosfera para proces- da violência política
sar manifestantes, sendo as mulhe-
res, os jovens, a população negra, a A violência com motivação política
população periférica e a comunidade é outro exemplo de ruptura de laços
LGBTQIAPN+ quem sofre repressão democráticos. Ela acontece durante
ainda maior”, complementa Cetra. todo o ano, mas tende a aumentar
justamente no período eleitoral. Em
A ARTIGO 19 espera que essas 2020, o TSE apontou 263 casos de
tendências de silenciamento não se ameaças e lesão corporal, homicídio
perpetuem e, por meio de campa- tentado ou consumado. Desses, 200
nhas como a #LivreParaProtestar 26, se concentraram entre setembro e
forma lideranças políticas e ativistas novembro.27 O Grupo de Investiga-

25 https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2021/05/30/homens-atingidos-pela-pm-com-balas-de-
borracha-nos-olhos-perdem-parte-da-visao-eles-nao-estavam-em-protesto-contra-bolsonaro-dizem-
parentes.ghtml

26 https://livreparaprotestar.artigo19.org/

27 https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/levantamento-mostra-alta-na-violencia-
contra-candidatos-em-2020
24

ção Eleitoral da Universidade Fe- tadunidenses.30 “Jornalistas e comu-


deral do Rio de Janeiro (Giel/UFRJ) nicadoras mulheres, representantes
revelou aumento de 93,5% dos ca- eleitas negras, LGBTQIAPN+ e peri-
sos de violência contra lideranças féricas, lideranças do campo e indí-
políticas no quarto trimestre de 2020 genas são as pessoas mais atingidas
em relação ao trimestre anterior.28 pela violência política”, contextualiza
No mesmo ano, o relatório Disque- Ana Gabriela Ferreira, coordenadora
Denúncia identificou a influência da da área de Gênero, Raça e Diversi-
milícia e do tráfico nas campanhas dades da ARTIGO 19. “Especialmen-
eleitorais de 14 cidades fluminenses. te nos últimos seis anos, com a aber-
No período da campanha eleitoral, tura de discursos misóginos, racistas
foram recebidas 13 informações e lgbtfóbicos, além da ampliação do
sobre a atuação de traficantes e 24 poder bélico do garimpo, agronegócio
sobre a de milicianos. e de outros setores que afetam dire-
tamente lideranças do campo, temos
Por todos esses motivos, a OEA ex- visto uma escalada considerável de
pressou preocupação em relação ao ataque a essas pessoas”, completa.
ambiente de medo e intimidação nas
eleições brasileiras em documento Mulheres negras eleitas de todo o
enviado ao TSE em 2022 29 – incluin- País têm enfrentado inúmeros ata-
do a repetição de atos contrários aos ques e ameaças. É o caso das ve-
resultados das urnas, como a inva- readoras: Carol Dartora (Curitiba);31
são do capitólio após as eleições es- Erika Hilton (São Paulo);32 Ana Lúcia

28 http://giel.uniriotec.br/?file=boletins

29 https://www.conjur.com.br/2022-fev-03/oea-alerta-ambiente-medo-intimidacao-milicia-eleicoes

30 https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-01/apos-invasao-congresso-dos-eua-
certifica-vitoria-de-joe-biden

31 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/12/06/ameaca-morte-carol-dartora-curitiba.
htm
32 https://www.cartacapital.com.br/politica/erika-hilton-registra-queixa-apos-ameacas-de-morte/
25

Martins (Joinville);33 Karen Santos e assassinato de Marielle Franco, em


Daiana Santos (Porto Alegre);34 Ben- que racismo e misoginia se mistu-
ny Briolly (Niterói),35 entre outras. ram e nos quais o discurso de ódio é
“Casos que usualmente remetem ao bastante evidente”, analisa Ferreira.

Violência contra candidatos:


Quantitativo de homicídios tentados e consumados em 2020 (por mês)

49

17

4 4 6
2 1 2 1 1
0
JAN/20 FEV/20 MAR/20 ABR/20 MAI/20 JUN/20 JUL/20 AGO/20 SET/20 OUT/20 NOV/20

Fonte: Assessoria Especial de Segurança e Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).


Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/levantamento-mostra-alta-na-violen-
cia-contra-candidatos-em-2020

33 https://www.brasildefato.com.br/2020/11/18/vereadora-negra-e-ameacada-em-sc-a-gente-mata-ela-
e-entra-o-suplente-que-e-branco

34 https://sul21.com.br/noticias/politica/2021/12/vereadoras-da-bancada-negra-de-porto-alegre-sao-
ameacadas-de-morte/

35 https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2020-12-08/vereadora-trans-e-negra-e-ameacada-vou-te-
matar-do-jeito-que-matamos-marielle.html
26

Proteger jornalistas, ARTIGO 19. Outra preocupação é


comunicadoras e com comunicadoras e comunicado-
comunicadores é res locais e comunitários. “Enquan-
proteger a democracia to as grandes e médias cidades
contam com veículos de comuni-
A violência contra jornalistas, comu- cação estruturados, que oferecem
nicadoras, comunicadores e veícu- certa proteção institucional a sua
los de comunicação no Brasil atin- equipe de jornalistas, aproximada-
giu seu ápice em 2021, segundo o mente 2/3 das cidades do Brasil
levantamento anual da Federação possuem blogueiras e blogueiros,
Nacional dos Jornalistas (Fenaj). radialistas e demais comunicado-
Foram 430 episódios, contra 428 ras e comunicadores comunitários
em 2020 e 208 em 2019 36 (gráfico como principais responsáveis pelo
p. 27). Em 2020, o GxR registrou fluxo de informações”, explica Fir-
464 declarações públicas do pre- bida. “Seu caráter independente os
sidente da República, de ministras, deixa mais vulneráveis a violações.
ministros, assessoras e assessores Além disso, muitas e muitos se en-
que atacaram ou deslegitimaram contram em territórios de disputa
jornalistas e o seu trabalho. As vio- de terra – como a Amazônia – ou
lações contra jornalistas, comunica- que estão sob o comando do trá-
doras e comunicadores somaram fico e de milícias”, complementa.
254 casos, sendo 123 cometidas por
agentes públicos e 46 (18%) conten- Atualmente, a proteção para comu-
do expressões racistas, sexistas ou nicadoras e comunicadores em situ-
lgbtfóbicas. ação de risco é realizada por ações
do Estado e da sociedade civil. No
“Nas eleições de 2022, teme-se que primeiro caso, há o Programa de
tais violências se intensifiquem e se Proteção de Defensores de Direitos
tornem ainda mais direcionadas”, in- Humanos (PPDDH), que passou a
dica Thiago Firbida, coordenador da vigorar em 2007 e, apenas 11 anos
área de Proteção e Segurança da depois, integrou ambientalistas, co-

36 https://fenaj.org.br/ataques-a-jornalistas-e-ao-jornalismo-mantem-patamar-elevado-e-somam-430-
casos-em-2021/
27

municadoras e comunicadores en- de 50 organizações, e o Programa


tre seus assistidos. “Problemas de de Proteção do Comitê Brasileiro de
estrutura e de metodologia, porém, Defensores de Direitos Humanos
ainda fazem com que o programa (CBDDH). Elas recebem solicita-
seja pouco eficiente na oferta de se- ções de proteção por meio de seus
gurança às vítimas”, assinala Firbida. respectivos sites. “Os casos passam
por uma avaliação de risco e um de-
No âmbito da sociedade civil, a senho de proteção que pode articu-
ARTIGO 19 compõe duas iniciati- lar Ministério Público, defensorias e
vas: a Rede Nacional de Proteção equipamentos jurídico, psicológico e
a Jornalistas e Comunicadores (A de segurança física do Estado”, re-
Rede) 37, que é articulada por mais sume Firbida.

A violência contra jornalistas


e ataques à liberdade de imprensa no Brasil
Censuras 140 casos 32,56 %
Descredibilização da imprensa 131 casos 30,46 %
Agressões verbais/ Ataques virtuais 58 casos 13,49 %
Ameaças/ Intimidações 33 casos 7,67 %
Agressões físicas 26 casos 6,05 %
Cerceamento à liberdade de imprensa por meio de ações judiciais 15 casos 3,49 %
Violência contra a organização dos trabalhadores/ sindical 8 casos 1,86 %
Impedimentos ao exercício profissional 7 casos 1,63 %
Ataques cibernéticos 4 casos 0,93 %
Atentados 4 casos 0,93 %

Assassinato 1 caso 0,23 %


Injúria racial/ Racismo 1 caso 0,23 %
Fonte: Fenaj

37 https://rededeprotecao.org.br/a-rede/
28
29

EN
TRE
VIS
TAS 29
Jamil Chade 30
Preta Ferreira 36
Edson Fachin 42
Vladimir Garay 48
30

Entrevista

Foto: Divulgação

Jamil Chade
Jornalista, correspondente internacional e colunista

A desinformação é
estratégia de poder
31

Há mais de 20 anos, as políticas interna e externa brasileiras con-


tam com o olhar crítico e vigilante do jornalista Jamil Chade. Cor-
respondente internacional sediado na Suíça desde o ano 2000,
Chade já percorreu mais de 70 países, cobriu crises de refugia-
dos e eleições, e entrevistou chefes de Estado. Também inte-
grou uma rede de especialistas no combate à corrupção da or-
ganização Transparência Internacional e foi um dos pesquisa-
dores da Comissão Nacional da Verdade, estabelecida para in-
vestigar os crimes da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Na grande imprensa internacional, colaborou com o El País, The


Guardian, BBC, CNN, Le Temps, Swissinfo, CCTV, Al Jazeera e
France24, além de ser colunista do UOL e do Grupo Bandeiran-
tes. Foi um dos jornalistas agredidos por seguranças do presiden-
te Jair Bolsonaro durante a cobertura do encontro do G20, em ou-
tubro de 2021, na cidade de Roma. Em entrevista para a ARTIGO
19, Chade comenta o papel do jornalismo em um cenário de de-
sinformação, falta de acesso à informação, ataques do governo e
desmonte das instituições.
32

ARTIGO 19: Podemos prever um ARTIGO 19: Qual é o papel do jor-


cenário de desinformação, discur- nalismo contra esse cenário?
sos de ódio e o aumento da violên-
cia contra comunicadoras e comuni- JC: Um país é construído por ele-
cadores nas eleições? mentos diversos: estrutura física,
saneamento, educação e tantos ou-
Jamil Chade: Esse é o grande pe- tros. O jornalismo faz parte da infra-
rigo e a ameaça, pelo histórico dos estrutura da democracia. Não so-
últimos três anos e pelo que aconte- mos os únicos, e nem devemos nos
ceu nas eleições de 2018. Intensifi- considerar os principais, mas somos
caram-se ameaças físicas e virtuais. um pilar que, quando ameaçado,
O que a gente precisa internalizar é também ameaça a forma da demo-
que um ataque é um ataque, tanto cracia. Impedir ataques à imprensa
faz se virtual, na rua ou em uma en- não se refere apenas a proteger o
trevista coletiva. Temos a tendência indivíduo, a repórter ou a equipe de
de classificar o ataque virtual como televisão que está em uma cobertu-
menos grave, de impacto menor, e ra local: é proteger o direito da popu-
naturalizá-lo como parte da vida do lação de ser informada. Não é ques-
mundo virtual. Ele não é [menos gra- tão de autoproteção, mas de garantir
ve] por vários motivos. Ainda que vir- que essa estrutura esteja funcionan-
tual, é sentido de forma real. Como do para informar. Em um momento
jornalista, você deixa de usar certa de eleição, garantir que a população
palavra ou suaviza um comentário possa ser informada colabora para
em um futuro artigo, ainda que de que ela possa tomar uma decisão
forma inconsciente. Todos os ata- consciente sobre o destino que dará
ques têm o mesmo objetivo: cons- ao seu país e à sociedade. É garan-
tranger o trabalho da imprensa e co- tir que aquela decisão individual seja
locar obstáculos no nosso trabalho baseada em informações concretas
em momentos importantes, como e bem apuradas. Assim, é importan-
nas eleições. te um ambiente suficientemente sóli-

“ Investir no jornalismo é o maior


antídoto e a vacina contra a desinformação”
33

“A desinformação é deliberadamente usada


como estratégia de poder. Tem como função
não apenas desinformar, mas manipular
a população a ir em uma ou outra direção,
criando situações de incertezas”

do para que não haja censura ou au- JC: Quatro anos após todos aque-
tocensura. Estes não acontecem por les episódios, a desinformação está
acaso: são produtos de um clima de mais sofisticada. A desinformação
medo e de vulnerabilidade. Em ou- é deliberadamente usada como
tras palavras, é necessário assegu- estratégia de poder. Tem como fun-
rar que a imprensa faça o seu traba- ção não apenas desinformar, mas
lho sem constrangimentos. manipular a população a ir em uma
ou outra direção, criando situações
ARTIGO 19: Sobre as campanhas de incertezas. Ela gera questiona-
de desinformação com fake news, mento sobre a realidade, desmonta
quais as diferenças e similaridades a confiança nas instituições e no
em relação às eleições presidenciais próprio sistema democrático. Além
e legislativas de 2018? de mentir sobre um determinado
34

candidato, tem como característica ARTIGO 19: Como combater a


levar o voto para outro. Quem fo- desinformação?
menta a desinformação se beneficia
de alguma forma com a corrosão JC: Não há outra forma de superar
que ela promove. Diferente de 2018, a era da desinformação senão com
penso que há um reconhecimento investimento em jornalismo. Informar
de que a desinformação ameaça a se faz com apuração e tempo, o que
democracia, faz parte das redações exige investimento. Investir no jorna-
e coberturas da imprensa e sua dis- lismo é o maior antídoto e a vacina
seminação em plataformas deve ser contra a desinformação.
vista com preocupação. Isso é sufi-
ciente? Não é. Porém, ao contrário ARTIGO 19: Você prevê novas
de 2018, existe uma percepção de ações do chamado “gabinete do
que as plataformas são responsá- ódio” nas eleições de 2022?
veis pelos conteúdos colocados ali.
Não quer dizer que quem promove JC: Eu e o Lucas Valência fizemos
a desinformação não vai aparecer para o UOL uma série de reporta-
com novas técnicas, estratégias e gens que mostravam a intensifica-
canais. Hoje, por exemplo, a de- ção na busca por tecnologias tanto
sinformação é utilizada em canais de espionagem quanto de difusão de
oficiais – como pela Secretaria de informações por membros do gabi-
Comunicação (Secom) do governo nete do ódio. É, no mínimo, um aler-
federal –, e não paralelos. ta para as eleições.

“ Censura e autocensura não ocorrem por


acaso: são produtos de um clima de medo e
vulnerabilidade”
35

ARTIGO 19: Você enxerga outras das instituições, inclusive se a prote-


ameaças à liberdade de expressão ção é suficiente ou não. Havia uma
e ao acesso à informação se conso- ideia de que as instituições estavam
lidando até o período eleitoral? funcionando e não corriam risco, que
a democracia era sólida o suficiente
JC: A primeira se refere à Lei de para evitar uma corrosão por dentro.
Acesso à Informação (LAI). Muitas Não é. Alguns desmontes foram fre-
solicitações de informações pú- ados pelo Congresso Nacional, pe-
blicas são negadas ou divulgadas lo Supremo Tribunal Federal (STF)
com atrasos que podem, claro, im- e por parte da imprensa. Mas outros
pactar na forma como a população não puderam [ser freados], e acon-
é informada. A LAI tem se mostrado teceram. Algo que precisa ser anali-
muito importante para a sociedade sado é se as estruturas são de fato
e precisa ser preservada. Também desenhadas de forma sólida o sufi-
vejo ministérios e órgãos do gover- ciente para enfrentar novos testes
no ignorando pedidos da imprensa de estresse que virão no futuro.
para explicar posições, políticas
[públicas] e tomadas de decisões. ARTIGO 19: Qual é o papel do jor-
Essa incapacidade de acessar a in- nalismo frente aos passos do próxi-
formação por meio dos órgãos pú- mo governo eleito?
blicos é preocupante.
JC: A vigilância é permanente e não
ARTIGO 19: O que pode ajudar, a tem partido político ou ideologia.
partir de 2023, a restaurar essas Com o próximo governo, o compor-
instituições e estruturas que foram tamento da imprensa não pode ser
desmontadas? diferente. É preciso manter todo tipo
de pressão por transparência, escla-
JC: O reconhecimento desses anos recimento e garantias democráticas.
de captura das instituições para ob- Reforçar o papel do jornalismo co-
jetivos particulares. Ele é necessário mo olhos da sociedade nessas ins-
para que outra etapa seja iniciada. tituições, para que o cidadão saiba
Também, pensar quais instrumentos o que é feito em seu nome e com o
e caminhos precisam ser estabele- seu dinheiro. É garantir a sobrevida
cidos para evitar novos sequestros da democracia.
36

Entrevista

Foto: Rodrigo Zaim

Preta Ferreira
Multiartista, escritora e ativista da luta por moradia

Na periferia,
fake news mata
37

Cultura e luta por direitos humanos se misturam na trajetória da mul-


tiartista Preta Ferreira. Ativista da luta por moradia e atuante no Mo-
vimento Sem Teto do Centro (MSTC), na cidade de São Paulo, Pre-
ta se tornou símbolo da criminalização dos movimentos sociais ao
ser acusada, sem provas, de associação criminosa e extorsão. Em
2019, ficou 108 dias presa na Penitenciária Feminina de Santana.

Os meses no cárcere e suas reflexões sobre o racismo estrutu-


ral que leva ao aprisionamento e ao genocídio da população ne-
gra foram relatados no livro “Minha carne: diário de uma prisão”
(Boitempo, 2021). Em 2019, Preta recebeu o Prêmio Dandara da
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), que é
concedido às pessoas que contribuem para a valorização da mu-
lher afrodescendente, latino-americana e caribenha. Em entrevista
à ARTIGO 19, Preta analisa as tentativas de silenciamento aos di-
reitos de manifestação e expressão nas favelas e periferias, assim
como o potencial informativo e libertário das artes e da comunica-
ção comunitária nesses espaços.
38

ARTIGO 19: Como você enxerga a ARTIGO 19: Há um aumento do


permeabilidade das fake news nas conservadorismo nessas regiões?
regiões periféricas?
PF: Sim, se você pensar nas proibi-
Preta Ferreira: Houve um cresci- ções das pessoas de cantarem funk,
mento de fake news nessas regi- por exemplo, nessa criminalização
ões porque, quando a gente fala das artes que podem libertar. Mas,
de redes sociais, é preciso lem- também, entendo que aumentou o
brar que todo mundo na favela tem número de pessoas nessas regiões
WhatsApp, Instagram ou TikTok. que entendem seus corpos como po-
Quem detém poder também usa as líticos, que são revolucionárias.
redes e a televisão para mexer com
o social, para entrar nesses lares e ARTIGO 19: As políticas de genocí-
cabeças. E na periferia, fake news dio da população preta influenciam
mata. Muita gente, por exemplo, na liberdade de expressão e de ma-
acreditou que a Covid-19 não existia nifestação dessa juventude nas fave-
e se infectou. Precisamos ficar aten- las e periferias?
tos sobre como esse governo estuda
para disseminar fake news, já que PF: Claro, isso se chama racismo e
não consegue ganhar uma eleição necropolítica; e impactam brutalmen-
em um processo que seja democrá- te as pessoas pretas nas favelas. Mi-
tico. Por outro lado, penso que essa nha mãe tem medo de que os filhos
mesma internet ajudou a derrubar o saiam de madrugada e não voltem
presidente Donald Trump nas elei- mais, porque se a polícia os vê na
ções dos Estados Unidos. rua à noite, mata. Tivemos recente-

“Os movimentos sociais denunciam e exigem


direitos que são constitucionais, que não são
um favor”
39

“ Vejo a arte e a cultura na periferia como


de extrema importância porque elas falam
todas as linguagens e entram em todos os
lugares – inclusive, naqueles onde a política
formal não chega”

mente as chacinas no Jacarezinho, nunciam e exigem direitos que são


no Rio de Janeiro, e na Gamboa, em constitucionais, que não são um fa-
Salvador. E me pergunto quantas ve- vor. É um direito, não estamos rou-
zes a gente vai assistir às mesmas bando de ninguém. Se os direitos da
coisas, ver essa ideia de associar Constituição fossem garantidos, não
bandido à população periférica. Ban- precisaria haver movimentos sociais.
dido nunca é o de colarinho branco. Somos criminalizados porque tra-
Enquanto isso, a gente luta para que zemos para as camadas de baixo a
o direito à vida das pessoas pretas e questão de direitos e a luta por eles.
periféricas seja garantido. Quando somos criminalizados, os
valores são invertidos. Há uma tenta-
ARTIGO 19: Nesse período que an- tiva de silenciamento, porém não se
tecede as eleições, você observa silencia a fome, as pessoas morando
a criminalização dos movimentos nas ruas e o desemprego. Além dis-
sociais? so, lutar no Brasil é difícil e arriscado,
porque estamos lutando contra a es-
PF: Bem, sou uma das representan- peculação imobiliária, contra um cor-
tes disso, de ser presa por me ma- po político que quer nos matar – e já
nifestar. Os movimentos sociais de- matou Marielle Franco.
40

ARTIGO 19: O Movimento Brasi- importante incentivar os artistas nas


leiro Integrado pela Liberdade de periferias, e há muitos que precisam
Expressão Artística (Mobile) apon- somente de apoio.
tou pelo menos 223 casos de cen-
sura e ataques à liberdade artísti- ARTIGO 19: Como você vê o papel
ca desde 2019. Como você analisa da comunicação comunitária nas
esse silenciamento nos espaços eleições?
periféricos?
PF: Fundamental, porque a cultura
PF: A polícia chega dizendo que a audiovisual, principalmente, sempre
música é apologia ao crime, pren- foi muito elitizada. A periferia come-
dendo, silenciando, impedindo a li- çou a estudar e aprendeu a fazer
berdade de expressão. Vejo a arte e as suas próprias narrativas, não
a cultura na periferia como de extre- deixando mais que essas fossem
ma importância porque elas falam apropriadas. As pessoas passaram
todas as linguagens e entram em to- a se entender não como tarefeiras,
dos os lugares – inclusive, naqueles mas como fazedoras de conteúdo.
onde a política formal não chega. A É uma linguagem que pode ajudar
arte alerta e fala sobre liberdade a a disseminar informações sobre as
essas pessoas. Tem um significado eleições.

“A periferia começou a estudar a linguagem


audiovisual e aprendeu a fazer as suas próprias
narrativas. (...) É uma linguagem que pode
ajudar a disseminar informações nas eleições”
41

Livro foi grito


por liberdade
e justiça

Imagem: Reprodução

Capa do livro de Preta Ferreira, lançado em 2021

A criminalização dos movimentos sociais no Brasil ganhou mais um


capítulo no dia 24 de junho de 2019, quando Preta Ferreira e outros
militantes do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) foram presos
sob acusação, sem provas, de extorsão e associação criminosa. O
habeas corpus da multiartista demoraria 108 dias para ser concedi-
do, período em que ela registrou a rotina, as reflexões e emoções
vividas no cárcere. Escritos que deram origem ao livro “Minha car-
ne: diário de uma prisão” (Boitempo, 2021), e são um retrato do ra-
cismo estrutural que encarcera a população negra e das injustiças
do sistema judiciário. “Percebi que o povo preto nunca foi livre, pois
nossos direitos não são garantidos, estamos sempre lutando para
sobreviver, fugir da escravidão. (...) A verdadeira liberdade é muito
difícil de ser alcançada”, ela narra em um dos trechos do livro.
42

Entrevista

Foto: Divulgação

Edson Fachin
Ministro do Supremo Tribunal Federal

Basta que as pessoas


se atentem aos fatos,
e não às narrativas
43

Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2015, Edson


Fachin foi anteriormente advogado, procurador do Estado do Para-
ná e professor de direito civil da Faculdade de Direito da Universi-
dade Federal do Paraná (UFPR). Presidente do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) até agosto deste ano, seu desafio tem sido dar con-
tinuidade às ações da Corte para impedir que a disseminação de
notícias falsas prejudique a integridade eleitoral, uma vez que há
campanhas de desinformação que buscam difundir alegações sem
provas de fraude nas urnas eletrônicas – campanhas que se inten-
sificam nos meses que antecedem as eleições.

Entre as iniciativas do TSE contra o problema, merece destaque o


Observatório da Transparência Eleitoral, mecanismo que amplia o
monitoramento e a participação da sociedade na defesa do proces-
so eleitoral, e que conta com a ARTIGO 19 como integrante. Em
entrevista, Edson Fachin analisa as particularidades do Brasil em
relação às fake news eleitorais e explica as ações voltadas para
monitorar, responder e investigar disparos de informações mentiro-
sas em massa.
44

ARTIGO 19: Qual é o raio-x do Brasil com foco em desinformações graves


de hoje em relação à vulnerabilidade e contra comportamentos inautênti-
às fake news no período eleitoral? cos, como o uso de contas falsas e
robôs. Atuará, também, para conter
Edson Fachin: A desinformação disparos em massa, com o fim de
tem afetado negativamente proces- assegurar a plena aplicação daquilo
sos eleitorais em todo o mundo, por- que consta da legislação eleitoral.
tanto, é uma preocupação crescente
e compartilhada. Alguns elementos ARTIGO 19: Quais são as diferen-
indicam a necessidade de atenção ças e as semelhanças em relação às
por parte da Justiça Eleitoral brasilei- eleições passadas?
ra. Teorias conspiratórias que anun-
ciam fraudes sem plausibilidade ou EF: A principal semelhança é o pro-
respaldo em provas e a constância longamento da era da pós-verdade,
de discursos virulentos e ataques às na qual o debate público ressai con-
instituições chamam a atenção no taminado por inverdades forjadas
contexto nacional. que exploram, entre outros aspec-
tos, a fragilidade emocional. Quanto
ARTIGO 19: Sobre a atuação contra ao posicionamento da Justiça Eleito-
informações falsas nas eleições de ral, a principal diferença é estrutural:
2022, o que podemos esperar? a partir deste ano, o trabalho do TSE
para a contenção do fenômeno assi-
EF: O TSE resguarda a democracia nalado ganhou uma unidade perma-
zelando pela depuração do ambien- nente e exclusivamente dedicada a
te informativo. Nesse sentido, tem essa tarefa. Nas eleições de 2022,
se preparado para preencher vácu- a Assessoria Especial de Enfrenta-
os de informação e difundir, com má- mento à Desinformação (AEED),
ximo alcance, informações oficiais e composta por uma equipe multidis-
adequadas sobre o processo eleito- ciplinar com sete servidores, atuará
ral, em ordem a estimular um debate para informar, capacitar e responder
público racional e menos antagônico a casos de desinformação. Há, para
aos efeitos negativos de operações mais, ganhos notáveis no aprofun-
comunicativas que visam à desesta- damento do plano estratégico, de
bilização. Da mesma forma, tem in- sorte que já temos soluções dese-
tensificado ações de monitoramento, nhadas para tanto.
45

“Teorias conspiratórias que anunciam fraudes


sem respaldo em provas e a constância de
ataques às instituições são pontos que chamam
a atenção no contexto nacional”

ARTIGO 19: O que mudou em re- de desinformação. Os casos vão


lação às normas para remoção de acompanhados das corresponden-
conteúdo falso/ calunioso em am- tes informações oficiais capazes de
biente de internet nas eleições? subsidiar análises profissionais, re-
alizadas por especialistas sérios e
EF: Duas novidades que merecem independentes. Na conjuntura atual,
menção seriam a proibição expressa é importante ressaltar a fundamen-
de disparos em massa e a explicita- talidade da função social cumprida
ção de que a divulgação ou o com- pelos checadores de fatos.
partilhamento de fatos sabidamente
inverídicos ou descontextualizados ARTIGO 19: Como se dá a parceria
que atinjam a integridade eleitoral do TSE com os aplicativos de men-
implicam em violação do marco re- sagens e redes sociais?
gulatório das campanhas, e podem,
naturalmente, ensejar sanções. Am- EF: Através de parcerias estabele-
bos os dispositivos constam de reso- cidas e cultivadas mediante diálogo
lução aprovada pelo plenário do TSE próximo e reuniões periódicas, em
em dezembro do ano passado. busca de soluções conjuntas no en-
frentamento à desinformação. Des-
ARTIGO 19: Como se dá a parceria ses diálogos resultam compromis-
do TSE com as agências de checa- sos especificados em memorandos
gem de fatos (fact-checking)? de entendimento, eventualmente
enriquecidos com termos aditivos
EF: Por intermédio de uma coali- sempre que novas possibilidades
zão composta por nove agências, surgem. De uma forma geral, as
às quais o TSE encaminha casos plataformas digitais têm-se revelado
46

muito sensíveis à causa democráti- ARTIGO 19: Como o Observató-


ca, atuando com responsividade às rio da Transparência Eleitoral, co-
reivindicações encaminhadas pela alizão do TSE com a sociedade ci-
Justiça Eleitoral no âmbito do enfren- vil, tem contribuído para a verifica-
tamento à desinformação. ção da segurança das urnas e da
confiabilidade do voto eletrônico?
ARTIGO 19: De quais mecanismos
de vigilância para um pleito seguro o EF: O Observatório da Transparên-
Brasil dispõe? cia nasce como mais um esforço da
Justiça Eleitoral para dirimir o cená-
EF: O Brasil dispõe de instituições rio de dúvida em torno das mecâni-
fortes e comprometidas com a pre- cas afetas à organização do proces-
servação da integridade dos pleitos. so eleitoral. Por seu intermédio, o
A Justiça Eleitoral e o Ministério Pú- TSE consegue colher impressões e
blico Eleitoral, com auxílio das for- subsídios valiosos para avançar em
ças policiais, nesse sentido, estão sua política de plena transparência,
atentos e trabalham constantemente aumentando assim o conhecimento
pela segurança do processo eleito- público sobre o sistema eletrônico
ral. A gestão atual do TSE, a propó- de votação e sobre a alta integridade
sito, elegeu como tema a mensagem das eleições brasileiras.
“Paz e segurança nas eleições”, em
ordem a ressaltar a importância da ARTIGO 19: O que a população de-
tolerância e do respeito mútuo como veria saber sobre as tecnologias de
elementos de estabilidade política e voto e a segurança do voto?
preservação dos laços sociais. A nor-
malidade constitucional exige, entre EF: Basta que a população não se
outras coisas, que a coesão nacional distraia e que as pessoas se aten-
não seja abalada pelo resultado das tem aos fatos, e não às narrativas. A
urnas. É preciso que, independente- vida moderna é caracterizada, entre
mente das divergências de pensa- outras coisas, pelo excesso de infor-
mento, as pessoas continuem uni- mação. Encontramos uma esfera pú-
das em busca de valores e ideais es- blica na qual a identificação da ver-
táveis, entre os quais a justiça, e que dade é dificultada pela abundância
resolvam suas diferenças em termos de lixo informativo. A Justiça Eleitoral
pacíficos, julgando candidatos e re- tem um histórico de 90 anos sem ne-
presentantes políticos nas eleições. nhum, frise-se, sem nenhum episó-
47

“Conhecimento gera confiança e, assim sendo,


ocupa um lugar privilegiado no horizonte da
Justiça Eleitoral”

dio de fraude. E o sistema de vota- são sinais evidentes da preocupação


ção eletrônico, plenamente auditável do TSE nessa seara. Conhecimen-
e amplamente abonado pela comu- to gera confiança e, assim sendo,
nidade especialista, tem assegura- o tema em questão ocupa um lugar
do, nos últimos 25 anos, votações privilegiado no horizonte programáti-
seguras – igualmente sem qualquer co da Justiça Eleitoral.
indício, mínimo que seja, de exposi-
ção a ataques e manipulações. ARTIGO 19: O discurso contra as
urnas eletrônicas foca o termo “elei-
ARTIGO 19: Você vê a necessidade ções limpas”. O que são eleições
de trabalhar mais com a população o limpas?
tema da segurança do voto?
EF: Eleições limpas são, basicamen-
EF: Sem dúvida. A Justiça Eleitoral te, aquelas depuradas de vícios e
garante a democracia, entre outras transgressões, realizadas, portanto,
medidas, assegurando que informa- dentro dos parâmetros constitucio-
ções adequadas cheguem à popula- nais e legais. Pressupõem, nesse ca-
ção. E tem ciência, nesse contexto, minho, ampla observância dos pre-
de que a desconfiança quanto à se- ceitos éticos e jurídicos que norteiam
gurança do voto decorre, sobretudo, as disputas políticas, incluindo o res-
de um problema de desconhecimen- peito às leis, ao direito difuso a infor-
to. A criação do Comitê de Trans- mações adequadas e, logicamente,
parência das Eleições (CTE) e do à vontade popular, fielmente repro-
Observatório de Transparência das duzida pelo resultado das urnas. Ao
Eleições (OTE), assim como a insti- assegurar eleições limpas, a Justiça
tuição do Programa de Fortalecimen- Eleitoral cumpre com o seu papel
to Institucional a partir da Gestão da constitucional de instituição garanti-
Imagem da Justiça Eleitoral (PROFI) dora da democracia brasileira.
48

Entrevista

Foto: Divulgação

Vladimir Garay
Jornalista e diretor de incidência da Derechos Digitales

Diversas questões na agenda


pública são vulneráveis
à desinformação
49

As eleições presidenciais do Chile de 2021 ocorreram em um mo-


mento político intenso, atravessadas pela pandemia de Covid-19 e
pela Convenção Constitucional que iria escrever a nova Constitui-
ção do país. Um contexto que deu margem para a proliferação de
inúmeras campanhas de desinformação com o objetivo de influen-
ciar a sociedade civil.

Acompanhando esse processo e as discussões da nova constituin-


te estavam a organização Derechos Digitales e seu diretor de inci-
dência, Vladimir Garay, que é licenciado em comunicação social e
jornalismo pela Universidade do Chile e mestre em arte, pensamen-
to e cultura latino-americana pela Universidade de Santiago do Chi-
le. Em entrevista à ARTIGO 19, o jornalista explica como as campa-
nhas de desinformação buscaram afetar o trabalho da Convenção
Constitucional, além de destacar as conquistas e os desafios da
nova Constituição em relação à liberdade de expressão e aos direi-
tos digitais, sinalizando lições aprendidas que podem ser levadas
em consideração para as eleições do Brasil, em outubro deste ano.
50

ARTIGO 19: Qual era o contexto sido realizado o plebiscito, no qual os


político do Chile na última eleição cidadãos aprovaram a ideia de es-
presidencial? crever uma nova Constituição. Outra
questão relevante é que, de uma for-
Vladimir Garay: Desde 2019, uma ma ou de outra, todas as discussões
série de transformações muito impor- políticas estão atravessadas pelas
tantes e profundas vem ocorrendo discussões sobre a nova Constitui-
no Chile. Desde o chamado “levan- ção. E a isso ainda se acrescenta o
te social”, passando pela possibilida- contexto da pandemia, no qual uma
de de escrever uma nova Constitui- das questões mais discutidas são os
ção e até na eleição de Gabriel Boric sucessivos saques parciais dos fun-
como presidente. E isso tem levado dos de pensão.
a uma série de transformações ainda
em curso: as prioridades e os discur- ARTIGO 19: O que mudou na disse-
sos têm sido repensados. Os atores minação de notícias falsas nas elei-
políticos e o equilíbrio das forças po- ções de 2021 em comparação com
líticas mudaram. O setor mais enfra- as eleições anteriores?
quecido com tudo isso é a direita, e
me parece que isso tem empurrado VG: Não existe muito um ponto de
as facções mais radicais a procurar comparação, por isso, é muito difí-
outros meios de influência política. cil dizer. Hoje existe mais conheci-
mento sobre a disseminação de in-
Em relação às eleições, tivemos um formações falsas ou tendenciosas, e
calendário eleitoral com uma carga também há um maior discernimento
política atípica. O segundo turno pre- na hora de detectá-las. Ao mesmo
sidencial de dezembro de 2021 foi tempo, o fenômeno está se tornan-
precedido pelo primeiro turno em no- do mais complexo, pois tem surgido
vembro, que também coincidiu com uma série de questões que atingem
uma eleição parlamentar e de conse- significativamente a agenda pública
lheiros regionais. Em maio de 2021, e que são vulneráveis à desinforma-
tivemos uma eleição municipal, uma ção. Vi algumas coisas nessa elei-
eleição de governadores regionais e ção que eu pessoalmente não tinha
uma eleição dos representantes que visto antes. Por exemplo, publicida-
fariam parte da Convenção Constitu- de paga no Facebook contra alguns
cional para escrever a nova Consti- candidatos com informações falsas
tuição. E em outubro de 2020, havia (ou, pelo menos, com uma interpre-
51

tação muito parcial) sobre o futuro ARTIGO 19: Como as campanhas


dos fundos de pensão caso esses de desinformação têm afetado o tra-
candidatos ganhassem as eleições. balho da Convenção Constitucional?

Outra coisa é que é possível ver VG: A direita majoritariamente es-


uma rede articulada de contas sim- colheu votar “não” no plebiscito que
patizantes de direita no Twitter, que propunha a nova Constituição e, ten-
conseguem recorrentemente chegar do obtido uma menor representação
aos trending topics com informações na eleição dos constituintes, encon-
falsas ou tendenciosas. Esse fenô- trou no compartilhamento de infor-
meno não é novo – é, inclusive, an- mações falsas uma estratégia útil,
terior ao plebiscito de 2020 –, mas o que parece ter dois tipos de con-
me parece que é algo que se tornou sequências relacionadas: primeiro,
mais palpável ao longo do último dificulta a comunicação sobre o tra-
ano e meio. E certamente vai con- balho da Convenção – que já é uma
tinuar até o plebiscito de ratificação tarefa difícil; de tempos em tempos,
da nova Constituição, provavelmen- cria-se uma controvérsia em torno de
te assumindo novas formas. declarações falsas ou deturpadas, e

“ [Na Constituição chilena] temos visto


avanços interessantes com relação ao
direito à privacidade e aos dados pessoais.
Ainda há coisas que precisam ser decididas
em temas como acesso e liberdade de
expressão, por exemplo”
52

é preciso investir tempo e energia vil e o Serviço Eleitoral (SERVEL)


para corrigi-las. Em segundo lugar, em algumas recomendações sobre
gera um ambiente de incerteza so- a desordem informacional, que tam-
bre a percepção do trabalho da Con- bém estávamos divulgando para as
venção, que, em última análise, é eleições de 2021. Além disso, esta-
difícil de medir corretamente, princi- mos trabalhando em uma pesquisa
palmente porque são discursos que sobre “desordens informacionais”
encontram espaço nos meios de co- associadas ao trabalho da Conven-
municação tradicionais. E, por isso, ção Constitucional, que, como já
se tornam um argumento utilizado mencionei, permeia todas as discus-
pelos setores mais conservadores sões políticas no país e certamente
para tentar frear as transformações, as eleições presidenciais de 2021.
afirmando que essas medidas po-
deriam comprometer o resultado do ARTIGO 19: Quais estratégias fo-
plebiscito de ratificação. ram importantes nesse processo?

É importante notar que houve ca- VG: Uma coisa de que nos torna-
sos em que os próprios constituin- mos muito conscientes na Derechos
tes implantaram estratégias de vira- Digitales é a necessidade de ser-
lização de informações falsas. Isso é mos moderados e cautelosos, to-
relevante, pois mostra que a desor- mando certa distância dos discursos
dem informacional passou a ser um mais catastróficos e barulhentos, e
elemento da estratégia política que de tentar colocar os problemas em
não é executado apenas de “fora” da perspectiva para identificar sua com-
política institucionalizada, mas tam- plexidade a partir de um panorama
bém pelas autoridades eleitas, algo local. E é um processo que ainda
que já vimos no Chile também no não acabou.
Congresso.
ARTIGO 19: Qual foi o papel da so-
ARTIGO 19: Como a Derechos Di- ciedade civil com relação a essas
gitales lidou com a disseminação de estratégias?
fake news nas eleições?
VG: Em geral, acho que as organi-
VG: Durante o plebiscito de 2020, zações que não trabalham com tec-
trabalhamos em conjunto com ou- nologia e questões de direitos hu-
tras organizações da sociedade ci- manos tendem a ser um pouco mais
53

suscetíveis aos discursos alarmis- VG: Acredito que sim. Isso fica mais
tas. E acho que uma questão impor- claro no caso da Convenção Cons-
tante foi tentar convencê-los de que titucional, que tem uma composição
era necessário ser cauteloso e olhar de gênero paritária e inclui assen-
o problema com cuidado. Em todo tos reservados para representantes
caso, poder gerar sinergias com ou- dos povos indígenas, duas caracte-
tras organizações é sempre positi- rísticas que são altamente criticadas
vo, e nos permite pensar em coisas pela extrema direita. Na Derechos
que não teríamos pensado por con- Digitales, preferimos falar sobre “de-
ta própria, ao mesmo tempo em que sordens informacionais” para tentar
nos permite atingir pessoas que es- abranger diferentes tipos de discur-
tão mais distantes do que fazemos. sos disruptivos que visam a inserir
Acho que também vale destacar a ruído ou caos na discussão pública.
abertura do SERVEL durante o pri- Eu acho que essas táticas têm me-
meiro plebiscito para pensar sobre nos a ver com a disputa “da verdade”
essas e outras questões importan- no sentido factual, de fatos verificá-
tes, que têm servido como insumos veis, e mais a ver com o sentido de
para o desenvolvimento de suas pró- tornar difícil de entender a verdadei-
prias estratégias sobre tais temas. ra representatividade desses discur-
sos na população como um todo. E,
ARTIGO 19: Houve alguma relação às vezes, essa dificuldade em men-
entre as campanhas de desinforma- surá-los corretamente acaba dando
ção e o discurso de ódio? a eles um peso maior do que eles re-

“ Os atores políticos e o equilíbrio das forças


políticas mudaram. O setor mais enfraquecido
com tudo isso é a direita, e me parece que isso
tem empurrado as facções mais radicais a
procurar outros meios de influência política”
54

almente têm, por exemplo, na mídia tas pela Comissão de Direitos Fun-
ou no discurso dos políticos. damentais, a liberdade de expressão
deve ser discutida.
ARTIGO 19: Quais foram as mudan-
ças na Constituição Chilena em rela- ARTIGO 19: Todas essas mudanças
ção aos direitos digitais? estavam relacionadas ou influencia-
ram as eleições?
VG: Essa é uma discussão que ain-
da está aberta. Temos visto avanços VG: Como mencionei antes, a dis-
interessantes com relação ao direito cussão sobre a nova Constituição
à privacidade e aos dados pessoais. permeia tudo. Isso ficou claro no
Também foi aprovada uma norma segundo turno das eleições presi-
sobre a vida livre de violência que denciais, com um candidato expres-
inclui o âmbito digital. Ainda há coi- samente a favor do processo consti-
sas que precisam ser decididas em tuinte (Boric) e um contra (Kast).
temas como acesso e liberdade de
expressão, por exemplo. ARTIGO 19: Com relação à difusão
de notícias falsas e desinformação,
ARTIGO 19: Houve alguma mudan- quais são os desafios que persistem
ça na Constituinte quanto à liberda- no Chile?
de de expressão?
VG: Parece-me que o primeiro de-
VG: Esse é um tema que tem sido safio – e o mais importante – é po-
tratado em comissões específicas der ter um entendimento mais con-
formadas dentro da Convenção. Por solidado do problema em nível local.
exemplo, a Comissão de Direitos Para entender, por exemplo, o quão
Fundamentais aprovou uma norma problemática essa questão realmen-
de liberdade de expressão com inci- te é, quais são seus efeitos sobre as
sos pendentes sobre as limitações; discussões particulares e em grupos
na Comissão sobre Sistemas de Co- particulares. Isso é o principal.
nhecimentos, existem normas sobre
liberdade de imprensa e sobre direi- ARTIGO 19: Qual é o papel da so-
to de retificação. Da próxima vez que ciedade civil na superação desses
o plenário revisar as normas propos- desafios?
55

VG: Acredito que o papel da socieda- identificação biométrica é extrema-


de civil é central. Desde a produção mente importante hoje em dia, mas
de conhecimento, gerando estraté- questões básicas, como as normas
gias de mitigação, envolvendo-se que regulam a criação e o processa-
nas discussões de políticas públicas mento de bases de dados, ainda são
(que não costumam ser muito boas um problema que precisa de solução
e não percebem o estrago que algu- na maior parte dos países da Amé-
mas propostas causam na liberdade rica Latina. No campo da liberdade
de expressão) e, acima de tudo, ten- de expressão, a discussão sobre
tando entender o que está aconte- censura algorítmica é outra questão
cendo e como isso nos afeta. central. Em relação ao uso da inteli-
gência artificial, as discussões sobre
ARTIGO 19: Quais direitos digitais discriminação são temas extrema-
ainda devem ser protegidos? mente importantes atualmente. A
discussão sobre o acesso à Internet
VG: Os direitos digitais são um cam- como condição para o exercício de
po essencialmente dinâmico. Em direitos. Discussões sobre o impacto
geral, me parece que precisamos da tecnologia nas formas estruturais
de normas melhores em muitos as- de discriminação e violência. Enfim,
pectos. Quanto ao direito à privaci- a lista é longuíssima. Ainda há muito
dade, tudo o que tem a ver com a trabalho a ser feito.

“Houve casos em que os próprios constituintes


implantaram estratégias de viralização de
informações falsas. Isso é relevante, pois
mostra que a desordem informacional passou a
ser um elemento da estratégia política”
56
57

PERS
PEC
TIVAS 57
Agenda de Expressão 2022 58
58

Perspectivas

AGENDA DE
EXPRESSÃO 2022
Eleições democráticas dependem de ações

A ARTIGO 19 atua em diversas frentes visando a defender e pro-


mover o direito à liberdade de expressão e o acesso à informação.
Em 2022, iniciativas específicas buscam fortalecer o processo
eleitoral e garantir sua legitimidade, como este segundo número
da Revista Artigo 19, que é uma das ferramentas de populariza-
ção do conhecimento produzido na instituição, circulando tanto
na versão impressa quanto digital pelo território brasileiro e em
outros países da América do Sul. Este ano, a publicação ganhou
versões digitais em três línguas: português, espanhol e inglês.

Conheça outras ações que estão em nossa perspectiva:


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PRESERVAR
Preservar a democracia com informação
e tecnologia

A ARTIGO 19 acredita nas possibilidades de utili-


zação da tecnologia para fortalecer a democracia.
Eleições livres exigem ambientes virtuais demo-
cráticos, com direito à expressão e sem discur-
sos de ódio e perseguição. Hoje, também depen-
dem de tecnologias de voto e apuração seguras
e transparentes. A área de Direitos Digitais da or-
ganização participa da Comissão de Transparên-
cia do TSE atuando para garantir liberdade e res-
ponsabilidade digital. Além disso, estão em curso
pesquisas e seminários com partidos, candidatu-
ras, agentes políticos e tomadoras e tomadores
de decisão para pensar o futuro da democracia
em conjunção com as tecnologias digitais. O ob-
jetivo é produzir conteúdo em linguagem compre-
ensível sobre os elementos técnicos, jurídicos e
tecnológicos que envolvem as eleições; assim
como identificar e explicar os principais argumen-
tos desinformativos sobre as urnas eletrônicas.
60

PROTEGER
Proteger jornalistas, comunicadoras e
comunicadores

Proteger e fortalecer jornalistas, comunicadoras e


comunicadores locais resulta em uma sociedade
bem-informada e apta a exercer seus direitos à
participação política. Em 2022, o foco é monito-
rar ataques e violações no contexto de cobertura
política e eleitoral, sendo possível entender se as
tendências de risco se alteram ou se intensificam
por conta das eleições. Além de integrar redes de
proteção para jornalistas, comunicadoras e co-
municadores ameaçados, a organização acolhe
diretamente casos de violações e capacita cole-
tivos, veículos e movimentos sociais sobre segu-
rança digital e física – também incidindo sobre o
Estado para que ele ofereça uma resposta ade-
quada a profissionais sob ameaça.
61

FORMAR
Formar para a participação política

Ataques recentes ao direito ao protesto gera-


ram desinformação sobre como ele deve ser
exercido. Formações com lideranças políticas e
ativistas para responder dúvidas jurídicas estão
programadas para possibilitar que o direito à ma-
nifestação continue sendo exercido. A ARTIGO
19 monitora o fechamento dos espaços de par-
ticipação popular que impactam o processo elei-
toral brasileiro e promove alertas sobre ameaças
ao processo eleitoral. Estão previstas campanhas
e publicações de combate ao discurso de ódio,
diferenciando-o da liberdade de expressão. A or-
ganização também atuará no combate à violência
política de gênero por meio de denúncias nacio-
nais e nas cortes internacionais.
62

DEFENDENDO A LIBERDADE
DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO

+55 11 3057.0042
+55 11 3057.0071
@artigo19
@artigo19
@artigo19brasil
artigo19.org
63
64

DEFENDENDO A LIBERDADE
DE EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO

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