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2 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

ELEIÇÕES 2022

Calmaria
na França?
POR SERGE HALIMI*

O
s próximos dez meses da vida po- quanto incompreensível. Mas a greve ro, um avanço fascista na França capaz A taxa de abstenção e a força da
lítica francesa serão marcados dos eleitores exprime também o des- de induzir as pessoas a buscar, como inércia, que beneficiam quem quer que
por uma avalanche de notícias gosto por uma campanha política que carneirinhos assustados, a proteção do esteja de saída, impedem que se tirem
alarmantes, que provocarão pâ- chapinhou na lama da demagogia de bom pastor do Élysée. outros ensinamentos de um escrutínio
nico na segurança1 e injunções dramá- extrema direita, a ponto de levar a pen- O fracasso – provisório? – da mano- caracterizado, além do mais, por jogos
ticas para “conter” uma extrema direita sar que os grandes problemas do mo- bra imaginada por Macron é tão retum- de alianças sem coerência nacional.
impulsionada por esse clima de medo? mento eram a segurança, a delinquên- bante quanto a queda de vários de seus Assim, tudo está por fazer. Mas só a
Esse encadeamento não é uma fatali- cia e a imigração, três áreas que, de ministros de prestígio, e os resultados ideia de não estar antecipadamente
dade, pois a eleição presidencial de resto, escapam largamente à compe- obtidos pelas formações que o apoiam condenado a escolher sempre entre o
2022 não está decidida antecipada- tência das regiões. A despeito desse (11% em média, ou seja, 3,66% dos elei- mal e o pior lembra, apesar de tudo,
mente. Seus dois prováveis finalistas, condicionamento alimentado pela mí- tores inscritos!) beiram a catástrofe, uma pequena calmaria. 
Marine Le Pen e Emmanuel Macron, dia e suscetível de inflar as velas do sobretudo em se tratando de partidos
com efeito, saem muito debilitados dos Rassemblement National a fim de fes- que contam com a maioria das cadeiras *Serge Halimi é diretor do Le Monde
escrutínios regionais concluídos há tejar seu adversário do segundo turno na Assembleia Nacional. Para um pre- Diplomatique.
pouco. Seu fracasso contundente sur- na próxima primavera, o partido de Le sidente que gosta do exercício solitário
preendeu pela amplitude. Pen perdeu mais da metade de seus su- do poder – a ponto de adiar excepcio- 1   S
 egundo as estatísticas oficiais, o número de
Sem dúvida, as taxas de abstenção frágios em comparação com o escrutí- nalmente um toque de recolher sanitá- homicídios oscilou, nestes últimos dez anos
excepcional (66,72% no fim do primei- nio análogo anterior (2.632.000 votos rio a fim de garantir que a semifinal de na França, entre 784 e 866 por ano, ou seja,

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de dois a três por dia. Isso basta para alimen-
ro turno) equivalem a uma condenação contra 6.019.000 em dezembro de 2015). um torneio de tênis fosse jogada... –, es- tar permanentemente as cadeias de informa-
do recorte territorial, tão arbitrário Semelhante resultado não revela, é cla- sa desaprovação é impactante. ção ávidas por catástrofes e fantasias.

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JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

A hora e a vez dos deputados federais


POR SILVIO CACCIA BAVA

A
crise política se precipita com as A pressão da sociedade vai crescen- para a produção das condições em que pitão, como a demissão do ministro da
500 mil mortes e números assus- do, e os parlamentares são sensíveis a prosperam seus negócios. A turma do Defesa e dos chefes do Exército, Mari-
tadores de contaminação e óbi- essas pressões. Dia 24 de julho está Guedes já não conta mais com o apoio nha e Aeronáutica, podem não querer
tos diários; a saturação dos hos- marcada nova manifestação. Eles vão que tinha junto ao poder econômico. embarcar nessa tentativa. O que vão
pitais e a sabotagem da campanha de enfrentar eleições no ano que vem e não O governo Bolsonaro vive seu mo- ganhar, se podem continuar no poder
vacinação pelo governo demonstrada querem afundar com o governo Bolso- mento de maior fragilidade, e estão na sem Bolsonaro, apresentando-se na
pela CPI da Covid-19; a falta de vacinas, naro. A depender da situação, o centrão mesa alternativas como o impeach- próxima eleição como alternativa a um
de oxigênio, de respiradores; e agora os pode se dividir, ou mesmo retirar seu ment e a renúncia. Há quem proponha novo governo do PT?
fortes indícios de corrupção na compra apoio a esse governo. Fica aberta a por- uma negociação: Bolsonaro renuncia, A oportunidade de impedir Bolso-
de vacinas pelo governo. Tudo envol- ta do impeachment. A questão é urgen- e ele e sua família não vão para a ca- naro é agora, em seu momento mais
vendo diretamente a família Bolsonaro te. Não dá para esperar as eleições. deia. Um governo interino, com Mou- frágil, acusado de corrupção com as va-
e seus seguidores negacionistas. Os Há muitos interesses em jogo. Mui- rão, assumiria até a posse dos novos cinas. Cabe à sociedade civil uma mo-
responsáveis por esse genocídio já es- tos militares não querem voltar para a eleitos, e os militares escalariam um bilização maciça, uma campanha diri-
tão identificados. caserna. Os magistrados resolveram de seus quadros – fala-se no próprio gida aos deputados federais que os
A avaliação que vai se generalizan- influir na governança e querem preser- Mourão ou no general Santos Cruz – pressione para abrir o processo de im-
do de que Bolsonaro é responsável pelo vados seus privilégios; o Executivo foi para disputar com Lula. 2 Mas é bom peachment e julgar Bolsonaro. Sem
genocídio – não o único, mas o princi- capturado por milicianos; o Congresso que se diga: esse governo interino terá Bolsonaro, o cenário político se abre
pal responsável – fez despencar a popu- é composto, em sua maioria, por ban- todo o processo eleitoral em suas mãos para a disputa eleitoral, e será uma no-
laridade do presidente. O fim do auxílio cadas corporativas que não se interes- e nenhuma disposição dos militares de va página de nossa história. 
emergencial e depois sua tardia reto- sam pelo bem comum. E agora, com a voltar para a caserna.
mada com menos da metade do valor crise de energia que se anuncia, o po- Acuado, Bolsonaro pode tentar o
anterior, e somente para uma parte dos der econômico percebeu que precisa golpe buscando mobilizar as PMs e as 1   P esquisa IPEC, UOL, 25 jun. 21.
2   Rafael Barifouse, “Militares planejam se manter
que dele precisam, provocaram o afas- do Estado, do investimento público em milícias. Mas as Forças Armadas, de- no poder ‘com ou sem Bolsonaro’, diz coronel
tamento político de importantes parce- infraestrutura, dos recursos públicos pois de receberem duros golpes do ca- da reserva”, BBC News Brasil, 12 jun. 2021.

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las dessa população que antes aderira
ao governo em razão do apoio que rece-
bera. Outro elemento a considerar: vá-
rias igrejas evangélicas neopentecos-
tais se afastaram de Bolsonaro.
Pesquisas recentes indicam que hoje
Lula tem a preferência de 41% dos evan-
gélicos. Ele perdeu uma grande base de
apoio nesse mundo evangélico.1
As manifestações do dia 19 de ju-
nho trazem com força um novo ele-
mento para a cena pública. Trazem de
volta a pressão da sociedade por mu-
danças. Maior, ocorrendo em muitas
cidades, com uma grande presença de
jovens, e contando com a participação
de muitas instituições, partidos políti-
cos, centrais sindicais, entidades, re-
des, movimentos sociais e coletivos,
que, nesse dia de protesto e mobiliza-
ção, se reapropriaram das ruas da cida-
de. Na prática criou-se uma frente am-
pla de defesa da democracia e pelo
impeachment de Bolsonaro.
Essa frente apresentou um novo pe-
dido de impeachment, consolidando
uma centena de pedidos anteriores.
Com um ato no Congresso, esse pedido
foi entregue ao presidente da Câmara
dos Deputados, Arthur Lira, que até há
pouco declarava que não via “circuns-
tância” para o impeachment prosperar.
Essas manifestações dão um recado
para o Congresso: chega! Não podemos
continuar com esse governo que não
combate a pandemia e desconhece a
urgência de enfrentar a fome de mi-
lhões de brasileiros e brasileiras. Fora,
Bolsonaro! Mas qual é o plano B? Se sai
Bolsonaro, quem vai assumir a Presi-
dência? Mourão? E o que muda?
© Claudius
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CAPA

O Brasil no redemoinho: o governo


Bolsonaro e o butim da burguesia
O novo padrão de acumulação brasileiro tem reforçado o poder econômico e político dos segmentos
primários, intensivos em commodities, e bancário-financeiro, abrindo espaços para a intensificação da
exploração dos recursos naturais e da força de trabalho

POR EDUARDO COSTA PINTO*

P
arafraseando Guimarães Rosa, o meio do redemoinho, lançado em vá- nismos de flexibilização e/ou quebra 2018), de desestruturação de bases pro-
Brasil está na rua, no meio do re- rias direções, retorcido e deslegitimado do regramento jurídico para alcançar dutivas2 e de degradação institucional.
demoinho,1 que é “a briga de ven- pelos ventos que sopravam de outras seus fins por meio da geração de insta- Desde 2015, o Brasil vive uma traje-
tos. Quando um esbarra com ou- paragens. Esse novo vento, na verdade, bilidade política (um dos elementos tória caótica, sem rumo, com a deterio-
tro, e se enrolam, o doido espetáculo”. ampliou o redemoinho que já tinha ga- centrais de sua estratégia) e de vaza- ração e a perda de legitimidade das ins-
Desde 2015, a “briga de ventos” provo- nhado forma em 2015. mentos ilegais para a imprensa, para tituições, que continuam existindo
cou a destruição de empresas e empre- Esse “doido espetáculo” foi impul- pressionar os agentes políticos e as ins- materialmente, mas perderam a capaci-
gos, a deterioração das instituições sionado pelo vento vindo dos Estados tâncias superiores do Judiciário a pros- dade de reduzir incertezas e incentivar
(Executivo, Legislativo e sistema políti- Unidos, que trouxe a bactéria perigosa seguir no combate à corrupção. Os fins os avanços das ações humanas econô-
co, Judiciário e Forças Armadas) e a for- geradora da instabilidade para o corpo (combate à corrupção e refundação do micas, sociais e políticas coordenadas.
te redução da autonomia nacional. brasileiro. Após a descoberta do pré-sal, Brasil) justificariam os meios. Com isso, impede-se qualquer padrão
Esse “doido espetáculo”, em que os órgãos de inteligência norte-ameri- Esse vento norte-americano, que se de formação de expectativas econômi-
permanecemos até hoje, sob o governo canos, sobretudo a Agência Nacional de tornou devastador, provavelmente po- cas e políticas a respeito do devir, crian-

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Bolsonaro, foi formado por vários ven- Segurança (NSA), vinham espionando deria ter sido contido por mecanismos do-se um encurtamento das decisões e
tos, vindos de diversas direções e in- a Petrobras e a presidenta Dilma Rous- institucionais básicos em sua fase inicial dificultando-se os investimentos, a for-
tensidades. O vento que veio dos quar- seff, conforme arquivos obtidos com o de expansão. No entanto, ele ganhou mação de consensos políticos mínimos
téis, trazendo o capitão Bolsonaro, ex-analista da NSA Edward Snowden, força e foi alimentado por diversas for- e a configuração de um padrão de de-
somente apareceu no final de 2017 e em 2013. Mais recentemente, com o ca- ças sociais nacionais (frações da bur- senvolvimento inclusivo socialmente e
não pode ser responsabilizado exclusi- so da Vaza Jato, ficou explícito que o De- guesia, políticos, burocracia estatal, sustentável ambientalmente.
vamente pela profunda crise (em suas partamento de Justiça dos Estados Uni- classes médias, STF etc.) que procura- Se por um lado essa crise impede o
múltiplas dimensões: econômica, polí- dos passou informações, de forma vam alcançar seus interesses num con- devir, por outro ela vem possibilitando
tica, social, institucional e democrática ilegal, para a Operação Lava Jato. Para texto de crise econômica e política. Es- uma profunda reconfiguração do capi-
e sanitária) que o Brasil atravessa. muitos analistas, as primeiras informa- sas forças sociais achavam que, cada talismo brasileiro, capitaneado, em
As bandeiras, levantadas em 2018 ções sobre a corrupção na Petrobras e uma isoladamente, poderiam conter o boa parte, pela burguesia em seu proje-
pelo candidato Bolsonaro e pelos mili- suas conexões com as empresas líderes vento ou direcioná-lo para destruir seus to de desmanche da Constituição de
tares, do restabelecimento da ordem da construção civil nacional, obtidas competidores, adversários e desafetos. 1988 e das capacidades governamen-
econômica, política, moral e psicosso- pela Lava Jato em Curitiba, teriam vin- Com isso, o redemoinho se formou e ga- tais (empresas e bancos estatais, ins-
cial brasileira vêm caindo uma a uma: do do Departamento de Justiça, repas- nhou uma força inimaginável, e segue trumentos de intervenção direta do Es-
desde a posse em 2019 até a não puni- sadas provavelmente pela NSA. deixando um rastro de golpes institucio- tado na economia e criminalização das
ção do general da ativa Eduardo Com essas informações, a força-ta- nais (impeachment de Dilma, em 2016, e políticas públicas verticais), para abrir
Pazuello, ex-ministro da Saúde, que refa de Curitiba passou a utilizar meca- exclusão da candidatura de Lula, em novos espaços de acumulação e recu-
participou de manifestação política
com o presidente, ato proibido pelo re-
gimento do Exército. Gráfico 1  T AXA DE LUCRO DAS 500 MAIORES EMPRESAS PRIVADAS DE CAPITAL ABERTO
Apesar de não ser sua causa, a forma
de governar de Bolsonaro amplia a cri-
se na medida em que, por um lado, mi- 20,0%
na as instituições (sistema político, STF
etc.) que já estavam fragilizadas e, por 15,0%
outro, concede benesses, em troca de
apoio, para os militares, tais como tra- 10,0%
tamento especial no quadro da reforma
da Previdência, ampliação dos cargos 5,0%
ocupados no governo, reestruturação
da carreira militar (que implicou au- 0,0%
mento salarial nos níveis hierárquicos
mais altos) e ampliação dos gastos e in- -5,0%
vestimentos do Ministério da Defesa, 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
mesmo com o teto de gastos.
Bolsonaro e os militares hoje no go- Total Geral 13,6% 12,4% 7,8% 7,7% 7,0% 1,2% 7,2% 8,6% 13,4% 11,7% 9,2%
verno não são o fato gerador da crise
Não financeiras - privada 16,3% 14,0% 8,3% 6,4% 8,6% -0,9% 7,4% 8,9% 13,9% 8,0% 8,8%
brasileira, e sim uma infecção oportu-
nista que se apropria de um corpo 15,4% 15,1% 13,1% 13,7% 15,4% 18,8% 15,0% 15,0% 16,9% 18,4% 13,5%
Bancos - privados
doente. O Brasil já se encontrava no
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perar as taxas de lucro das quinhentas mega e da grande burguesia), com a cri- das quarenta maiores empresas do se- adota uma resistência “ultraintensa à
maiores empresas não financeiras pri- se de 2015 e 2016 e com os efeitos destru- tor (com dados disponíveis) desde 2015, mudança social”, voltando-se de forma
vadas de capital aberto que caíram en- tivos da Lava Jato, passou por importan- sobretudo em 2020, quando a taxa al- “sociopática” para “a preservação pura
tre 2011 e 2015 (Gráfico 1). tes modificações, com o aumento do cançou o patamar de 21% (Gráfico 2), e simples do status quo [defesa de privi-
Para isso, os setores dominantes poder dos segmentos comerciais (varejo muito superior às taxas do setor bancá- légios e do lucro a qualquer custo]”.4
brasileiros se unificaram, desde o golpe e serviços, sobretudo os médicos), com rio-financeiro, que foi de 13,5% (Gráfi- Esse novo padrão de acumulação
parlamentar de 2016, passando pelo go- a manutenção do poder dos segmentos co 1), sendo as mega e as grandes em- brasileiro tem reforçado o poder eco-
verno Temer, até o governo Bolsonaro, bancário-financeiro, com a forte redu- presas as que obtiveram as maiores nômico e político dos segmentos pri-
com seu ministro da Economia, Paulo ção dos segmentos industriais, exceto taxas de lucro. mários, intensivos em commodities e
Guedes, em torno do juízo de que a úni- aqueles intensivos em capital baseado Esses resultados das taxas de lucro bancário-financeiro, abrindo espaços
ca alternativa para destravar a acumu- em commodities (petróleo e gás, side- da mega e da grande burguesia e suas para a intensificação da exploração dos
lação seriam as reformas neoliberais rurgia, papel e celulose, mineração, frações (agropecuária, industrial inten- recursos naturais e da força de traba-
(previdenciária, trabalhista, adminis- produtos alimentares etc.), e com o au- siva em commodities, comercial e de lho. Setores dominantes brasileiros
trativa, teto de gastos) e as privatiza- mento do poder da burguesia agrope- serviços) reforçam o apoio dos setores não recuaram em seu projeto de des-
ções (Eletrobras, venda de ativos da Pe- cuária, que sempre teve um papel so- dominantes brasileiros às medidas de manche, o que impede a construção de
trobras etc.), que repassavam o ajuste bredeterminado no que diz respeito à reformas pró-mercado, mesmo que isso uma conciliação política entre setores
dos custos da crise de acumulação para sua participação política no Congresso. implique apoiar o governo Bolsonaro sociais amplos.
os trabalhadores, pois, para eles, os en- Esse aumento no poder das empre- com todos os seus problemas e a dificul- Nesse sentido, o campo progressista
traves ao crescimento seriam fruto das sas (capital) diante dos trabalhadores, dade de ser controlado pela burguesia. tem de construir um programa mais ou-
políticas de ganhos reais do salário, da com a mudança do padrão de acumula- Com Bolsonaro, a burguesia per- sado (o caso do Plano Biden), que foque
ampliação das políticas de proteção e ção em curso, sob patrocínio da bur- manece no mando (projeto de deses- os investimentos públicos em infraes-
dos gastos públicos com as políticas guesia brasileira, tem sido funcional truturação dos direitos sociais, de des- trutura urbana, em educação e saúde
universalizantes (saúde e educação), para a grande e a megaburguesia brasi- manche da Constituição de 1988, de (bens públicos) e em desenvolvimento
decorrentes da Constituição de 1988. leira (maiores empresas) em recuperar privatizações e da constitucionaliza- ambientalmente sustentável, que deve-
Não por acaso, a burguesia brasilei- sua lucratividade e criar espaços de ção do neoliberalismo), mas sem co- rão, em parte, ser financiados por forte
ra apoiou fortemente o candidato Bol- acumulação. Como isso foi possível, mando, em virtude do aumento dos elevação dos impostos sobre o 1% mais
sonaro e seu ministro da Economia mesmo com o PIB crescendo muito conflitos num contexto de crise institu- rico (aumento do IPTU, do ITR, dos divi-
neoliberal, defensor das privatizações e pouco entre 2016 e 2020? Isso aconte- cional em curso. Ou seja, as reformas e dendos, das heranças etc.). O 1% mais
das reformas pró-mercado. Nesse sen- ceu em virtude: 1) de um profundo pro- as privatizações seguem como rolo rico deve ser nosso foco político – so-
tido, a redução da atuação do Estado cesso de concentração e centralização compressor, mas sem o controle de mente assim a esquerda vai se conectar
brasileiro na economia, por meio da de capital, sobretudo no setor de co- parte da burguesia, como visto no pro- com a demanda eleitoral antissistema

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venda de ativos públicos e das privati- mércio e serviços. Ou seja, as grandes cesso de privatização da Eletrobras. da população. E não adianta fazer um
zações de suas empresas, tem sido alar- empresas estão comprando ou ga- Cabe observar que a adoção desse programa ousado e depois girar com-
deada pelo governo Bolsonaro, pelos nhando mercado das pequenas e mé- projeto da burguesia dificilmente seria pletamente, como Dilma em 2015.
setores dominantes brasileiros e pelos dias empresas; 2) da redução do custo viável politicamente, da forma como Sem o apoio da população, o campo
economistas de mercado como o cami- da força de trabalho (direto e indireto, vem sendo realizado, em condições progressista pode até ganhar a próxima
nho do nirvana para o crescimento vinculado à reforma trabalhista), que institucionais normais. Portanto, os eleição em 2022, mas não conseguirá
econômico e o desenvolvimento social. tem implicado na redução dos salários golpes foram funcionais para mudar o governar nem levar o jogo até o fim do
O problema é que o nirvana nunca diretos e indiretos dos trabalhadores; padrão de acumulação. Nesse sentido, tempo determinado institucionalmen-
chega para todos. Pelo contrário, o Bra- 3) da elevação dos preços das commo- o vento mais intenso do redemoinho te. Em outras palavras, não conseguirá
sil permanece no redemoinho, numa dities desde 2017; 4) da desregulamen- em que o Brasil se encontra é provoca- tirar o Brasil do redemoinho, para que
profunda crise econômica, social e ins- tação ambiental e trabalhista, para fa- do pela sanha dos setores dominantes seja possível uma nova travessia, que
titucional. A questão é que esse rede- cilitar a expansão da agropecuária e do brasileiros, sobretudo das frações vin- incorpore socialmente a população e
moinho tem sido funcional para a mega extrativismo em novas fronteiras; e 5) culadas ao agronegócio e à finança. construa um desenvolvimento susten-
e a grande burguesia brasileira (maiores do processo de privatização, que está Assim como em outros momentos tável ambientalmente. 
empresas) aumentarem seus lucros abrindo novos espaços de acumulação. históricos, a classe dominante brasileira
desde 2016, conforme visto no Gráfico 1. No que tange à fração da burguesia “burlou [e burla] de maneira permanen- *Eduardo Costa Pinto é professor do
Cabe observar que o bloco no poder agropecuária, chama atenção a trajetó- te e recorrente as leis vigentes, sacadas a Instituto de Economia da Universidade Fe-
do capitalismo brasileiro (frações da ria de crescimento das taxas de lucro fórceps de outros quadros históricos”3 e deral do Rio de Janeiro (UFRJ).

 o longo do livro Grande sertão: veredas, Gui-


1   A
marães Rosa utiliza uma frase emblemática e
Gráfico 2 
TAXA DE LUCRO DE 40 EMPRESAS DO SETOR AGROPECUÁRIO: 2015-2020 (%) cheia de simbolismo que vai nortear essa grande
obra: “O diabo na rua, no meio do redemoinho”.
30% 2   A desestruturação das bases produtivas e
institucionais brasileiras interessa, sim, aos
25% agentes externos, especialmente aos norte-
-americanos e seu Estado nacional, pois isso
20% (i) possibilitou a abertura da exploração do
pré-sal para as empresas estrangeiras; (ii)
15% contribuiu para a ampliação de vendas de
equipamentos para essa exploração por em-
10% presas estrangeiras, como a norte-america-
na Halliburton; (iii) desestabilizou o engaja-
5% mento do Brasil nos arranjos configurados
pelos Brics; (iv) desestabilizou a presença
0% das empresas de construção civil nacional
2015 2016 2017 2018 2019 2020 (Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa) na
-5% América Latina e África, abrindo espaços
2015 2016 2017 2018 2019 2020 para novos entrantes; (v) permitiu a compra
da Embraer pela empresa norte-americana
Grande (R$ 0,3 bilhão < Receita Líquida > R$ 2 bilhões) 9% 15% 14% 20% 19% 30% Boeing; e (vi) possibilitou o acordo de uso
da base de Alcântara pelos Estados Unidos.
Médio (R$ 5 milhões < Receita Líquida > R$ 300 milhões) 2% 1% 7% 9% 3% -1% 3   Francisco de Oliveira, “Jeitinho e jeitão: uma
tentativa de interpretação do caráter brasilei-
Mega (Receita Líquida > R$ 2 bilhões) 8% 13% 15% 15% 13% 21% ro”, Piauí, out. 2012, p.10.
4   Florestan Fernandes, A sociologia numa era
Total 8% 13% 14% 15% 13% 21% de revolução social, Zahar, Rio de Janeiro,
1962, p.211.
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ENTRE CONTINUIDADES E RECONFIGURAÇÕES NO OESTE DO PARÁ

Reprimarização, corredores
logísticos e dinâmicas da soja
O modelo de inserção internacional do Brasil cria vulnerabilidades e compromete o desenvolvimento.
Ele promove desindustrialização, desemprego, acentuação das desigualdades e degradação ambiental.
exportação de commodities altera a distribuição espacial das atividades extrativas, reforça corredores
exportadores e expande as fronteiras extrativas

POR KARINA KATO, SOCORRO LIMA, ANDRÉA LEÃO, SANDRO LEÃO, VALDEMAR WESZ JUNIOR, GRACIANE SIMONE LEITE BARBOSA*

N
a virada do século XXI, impul- cursos naturais. Em consequência, vegetal (drogas do sertão), na agricul- vias do Brasil, ADM, Caramuru,
sionada pelo boom das commo- ampliou-se a demanda global por pro- tura de pequena escala (séculos XVIII- Cargill e Louis Dreyfus. Essa rota é
dities, a economia brasileira pas- dutos primários, acentuando-se a de- -XIX) e na exploração da borracha (sé- 34% mais barata que o trajeto até San-
sou por um processo de pendência de boa parte dos países da culos XIX-XX). Esta última possibilitou tos (SP). Os planos da ferrovia Ferro-
reprimarização (Lamoso, 2020) de sua América Latina desses produtos.2 transformações socioespaciais impor- grão renovam essas esperanças. A se-
pauta exportadora, quando os produ- Não é possível compreender esse tantes (Oliveira, 1983). A concorrência gunda, que passa pelo porto da Cargill,
tos primários passaram a ter mais peso quadro sem fazer referência ao “efeito com a borracha asiática, contudo, im- em Santarém, impulsiona a soja no
nas exportações do que os industriali- China”. No Brasil, a participação da pactou as exportações, levando a re- Planalto Santareno. Diante de mar-
zados. Esse fenômeno deixa marcas agropecuária e da indústria extrativa gião a uma longa estagnação, que foi gens de lucro cada vez mais espremi-
profundas no território, fomentando nas exportações passou de 15% em 2000 interrompida em dois momentos do sé- das, produtores têm reivindicado a
estruturas logísticas, impulsionando a para 45% em 2020. O comércio com a culo XX: 1) na década de 1920, com a ex- construção de um segundo porto em

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exploração de recursos naturais e re- China cresceu significativamente: em periência malsucedida de Henry Ford Santarém (em Maicá), o que gerou
configurando disputas territoriais. 2000, era o destino de 2% das exporta- em Fordlândia e depois em Belterra, no mobilização social sobre os impactos
Ao chegar à Amazônia, em estados ções; em 2020, de 32% (Ministério do oeste paraense (Santos, 1980; Oliveira, negativos para a área urbana afetada.
ou regiões tradicionalmente exporta- Desenvolvimento, Indústria e Comér- 1983); e 2) na Segunda Guerra Mundial, Vale enfatizar que a ampliação de
dores de matérias-primas e produtos cio). Os produtos exportados para o país quando o governo brasileiro, via Acor- rotas de escoamento se dá no bojo de
agrícolas, a reprimarização acentua asiático, em 2020, foram soja, minério do de Washington, incentivou a produ- uma acelerada expansão da produção
dinâmicas extrativas e amplia as dis- de ferro, óleos brutos de petróleo, celu- ção da “borracha natural”. de soja no território brasileiro. A área
putas por recursos naturais. Olhare- lose e carnes bovina, suína e de aves. As políticas públicas para a Ama- plantada saltou de 1,3 milhão para 36,9
mos para o oeste do Pará, na Amazônia O modelo de inserção do Brasil no zônia se renovaram com as políticas milhões de hectares entre 1970 e 2020,
Legal, para investigar como a inserção sistema internacional cria vulnerabili- desenvolvimentistas do governo mili- correspondendo a mais de 50% dos cul-
de uma commodity que é alvo de inte- dades e compromete alternativas futu- tar (1960). Novamente, interesses na- tivos temporários (Conab, 2020). A soja
resses globais, a soja, altera as dinâmi- ras de desenvolvimento. Ele tem levado cionais e internacionais se materiali- avança em direção aos Cerrados e à
cas territoriais. Os resultados da pes- à desindustrialização, ao desemprego, zaram em complexos minerais e Amazônia. A região Norte, onde se lo-
quisa1 indicam os ritmos, atores e à acentuação das desigualdades sociais energéticos, no avanço da fronteira caliza o oeste do Pará, foi a que apre-
drivers do avanço da soja no Planalto e econômicas e à degradação ambien- agropecuária (expansão da soja e da sentou a maior ampliação da área: de
Santareno. A recente corrida por recur- tal. A exportação de commodities altera pecuária de corte) e no comércio de 2000 a 2018, 2.385% (de 73 mil para 1,9
sos naturais transforma o território na- a distribuição espacial das atividades madeira, sem considerar as popula- milhão de hectares)!
cional, acentua dinâmicas históricas extrativas no território brasileiro, refor- ções locais e seus modos de vida ou a Segundo a Embrapa (2004), desde
de exploração de recursos naturais ça corredores exportadores e expande imensa riqueza representada por sua 1990 se conformaram três grandes
amazônicos e reproduz (e aprofunda) as fronteiras extrativas. O oeste do Pará biodiversidade. áreas de produção de soja no Pará: 1)
desigualdades fundiárias. se consolida como uma das novas e Polo Nordeste (Paragominas, Ipixuna,
mais movimentadas “fronteiras agrí- OS CORREDORES Ulianópolis e Dom Elizeu); 2) Polo Sul/
A REPRIMARIZAÇÃO E SEUS colas e de estruturação de corredores QUE TRAZEM A SOJA Sudeste (Redenção, Marabá, Conceição
REBATIMENTOS NO TERRITÓRIO logísticos”. Os produtores do norte de É nesta conjuntura que a soja ganha do Araguaia, Santa Maria das Barreiras
A recente valorização das commodities Mato Grosso (principal zona produto- peso no oeste do Pará: de um lado, e Pau d’Arco); e 3) Polo Oeste (Santa-
agrícolas e minerais teve importantes ra) têm buscado novas rotas logísticas: com a expansão das áreas produtivas; rém, Mojuí do Campos, Belterra, Ruró-
desdobramentos na economia brasilei- entre 2013 e 2017, as exportações de de outro, com portos, estradas, hidro- polis, Itaituba, Novo Progresso, Trai-
ra. A escalada nos preços de 2003 a 2011 Mato Grosso via Arco Norte saltaram vias e ferrovias. O setor produtivo tem rão, Aveiro, Placas, Uruará). A soja
deveu-se a uma combinação de fatores: de 13% para 43% (Confederação Nacio- apostado em corredores logísticos pe- chegou ao oeste do Pará em 1997 com
efeitos de mudanças climáticas, desva- nal de Transportes, 2018). lo Arco Norte (ferrovia, hidrovia, por- produtores “sulistas” vindos de Mato
lorização do dólar, aumento no preço do tos), região estratégica no escoamento Grosso (Rondonópolis/Campo Verde,
petróleo, acentuação da crise energética O OESTE DO PARÁ E do grão. São duas as rotas: a primeira, Primavera do Leste/Lucas do Rio Ver-
com a maior atratividade dos agrocom- SUAS RECONFIGURAÇÕES via transporte rodoviário (BR-163), li- de, Nova Mutum e Sorriso). Em 2005,
bustíveis, estagnação das taxas de pro- O oeste do Pará tem 732.509,5 km 2 e ga o norte de Mato Grosso até Itaituba, alcançou 35 mil hectares. Entre 2006 e
dutividade agrícola, aumento da de- corresponde a 59% da área do estado, onde estações de transbordo de car- 2013 a área com soja manteve-se entre
manda por matérias-primas por países com população de 1.159.000 habitantes gas (ETCs) privadas embarcam a soja 30 mil e 40 mil ha. A estagnação se de-
emergentes (China e Índia). Destaca-se (IBGE, 2010). Sua economia consiste na em barcaças (até 30 mil ton.) até o veu à descapitalização dos produtores
a dimensão financeira, pois a busca por exploração dos recursos naturais, agro- porto de Barcarena ou de Santarém. e ao aumento da pressão ambiental
alternativas aos investimentos finan- pecuária, comércio, serviços e agricul- Várias empresas se instalaram: Bun- (desmatamento). Em 2006, a Moratória
ceiros na crise de 2008 fortaleceu estra- tura de autoconsumo. No passado, sua ge/Amaggi, Companhia Norte de Na- da Soja determinou que empresas do
tégias lastreadas em commodities e re- economia se baseou no extrativismo vegação e Portos (Cianport), Hidro- setor não comprassem ou financias-
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 7

sem soja de terra desmatada da Amazô-


nia, levando os produtores a buscar so- Gráfico 1  ÁREA PLANTADA COM SOJA EM BELTERRA, SANTARÉM E MOJUÍ DOS CAMPOS1
luções para o passivo ambiental. Como
exemplo citamos o projeto Soja Mais 60.000
Sustentável (2004), parceria da Cargill Beterra (PA)
com a The Nature Conservancy (TNC),
que ampliou o monitoramento da pro- 50.000 Satarém (PA)
dução. A partir de 2014, a área com soja
voltou a crescer, dando um salto em Mojuí dos Campos (PA)
2017, quando chegou a um patamar de 40.000
55 mil ha (Gráfico 1).3
Na Figura 1 (virando a página) é
possível perceber as transformações no
30.000
uso do solo no Planalto Santareno: em
1985 predominavam áreas de floresta
(verde); em 1995 houve a ampliação da
pastagem (amarelo) em áreas de vege- 20.000
tação nativa; em 2005 aumentaram as
áreas de pastagem e proliferaram la-
vouras temporárias (rosa), ausentes até 10.000
o início dos anos 2000. A instalação do
porto da Cargill, em 2003, marcou o
“arranque”. Posteriormente, os planos 0
em torno do Corredor Tapajós, com a
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1997

1999

retomada do debate do asfaltamento e


duplicação da BR-163, em 2013, e a ins-
talação de mais de quinze portos priva- Fonte: IBGE – Produção Agrícola Municipal (2020).
dos em Itaituba fomentaram o cresci- 1 Mojuí dos Campos, antes distrito de Santarém, foi emancipado em 2012. Por isso, temos dados do município apenas a partir de 2013.
mento da produção.

CONTINUIDADES E
Gráfico 2  VARIAÇÃO DOS PREÇOS DE TERRAS EM BELTERRA E SANTARÉM (2001-2020) (R$/ha)
®® https://t.me/PDFs_Brasil
RECONFIGURAÇÕES NAS
ÁREAS RURAIS DO OESTE DO PARÁ
a) A substituição da agricultura de
pequena escala por monoculturas e a 9.000
concentração de terras
8.000
Ao longo dos anos, o Planalto Santare-
no sofreu um processo de concentra- 7.000
ção: dos 300 a 400 produtores de soja
observados entre 2003 e 2005 restaram 6.000
120 em 2017, segundo o sindicato local.
A área com soja, contudo, aumentou. 5.000
Estudos apontam que, além da ocupa-
ção das áreas de pecuária, a soja avan- 4.000
çou em zonas anteriormente ocupadas
pela pequena produção familiar (Val-
3.000
buena e Cohenca, 2006; Carvalho e Tu-
2.000
ra, 2006). Contribui com esse quadro o
recente desmonte e esvaziamento de 1.000
importantes políticas públicas volta-
das para esse grupo. A maior vulnera- 0
bilidade dos pequenos produtores, as-
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sociada a um maior aquecimento do


mercado de terras na região, leva esses
agricultores familiares a vender suas
terras e sair do campo. Floresta Amazônica (Difícil acesso à BR) Pastagem Formada (1,5 UA/ha)
Pastagem Formada Terra Agrícula/Grãos Diversos (55 sc soja/ha)
b) A apropriação do discurso ambien-
tal pelo setor produtivo e a substitui- Fonte: Elaborado pelo Gemap (pesquisador Junior Aleixo) com dados do Instituto FNP.
ção de matas por lavouras de soja
A questão ambiental tem papel central
ao frear ou acelerar a expansão da soja c) A valorização das de terras, com imobiliárias que che- d) Facilitação da
no oeste paraense. O discurso dos pro- terras e o jogo especulativo gam antes e negociam as terras em blo- regularização fundiária
dutores combina produtividade e mo- Avança a corrida por terras na re- co, preparando o terreno para os inves- O Programa Terra Legal e as recen-
dernização com sustentabilidade. Eles gião, seja para fins produtivos (frontei- tidores. Tudo isso se reflete num tes mudanças nos marcos da regulari-
defendem que a tecnologia permitiria o ra agrícola), logísticos ou para a espe- intenso aumento do preço das terras zação fundiária impulsionam a expan-
uso racional dos recursos e menor im- culação (sobretudo a partir de 2010). O na região (Gráfico 2). Diante de um são da soja ao facilitarem a regularização
pacto ambiental. Assim, esses produto- mercado de terras, impulsionado pelo mercado que se aquece, os posseiros, fundiária de terras públicas federais na
res se projetam como os agentes da pre- Estado, incentiva a crescente privati- pequenos produtores e povos e comu- Amazônia Legal. Nosso campo indica
servação ambiental e se contrapõem à zação e mercantilização das terras pú- nidades tradicionais são pressionados que os produtores têm adotado a estra-
agricultura mais tradicional, “menos blicas. Avança também a profissionali- a deixar suas terras ou vender suas tégia de fragmentação de propriedades
sustentável”. zação na identificação e regularização propriedades. para facilitar a regularização. Só em
8 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

2014 foram destinados 9.928.655 hecta- Figura 1  USO DO SOLO NO PLANALTO SANTARENO
res no oeste do Pará, glebas públicas fe-
derais próximas à área da BR-163. A
maior parte dos imóveis regularizados
se localizava no Planalto Santareno, em
áreas propícias à produção de soja.
A reprimarização da economia bra-
sileira acentua o que David Harvey
(2011) aponta como a “complexa dinâ-
mica do desenvolvimento das desi-
gualdades da acumulação do capital”.
O oeste do Pará, desde o início de sua
ocupação, foi marcado pela dinâmica
de exploração dos recursos naturais. A
exploração mineral e, recentemente, o
cultivo da soja assinalam essa conti- 1985 1995
nuidade e reconectam essa região com
as dinâmicas globais de corrida por re-
cursos. A atual dinâmica de reprimari-
zação imprime mudanças não apenas
no território, mas também na vida con-
creta de populações que são desterrito-
rializadas e afetadas em seus modos de
vida e nas formas com que se relacio-
nam com os territórios e os recursos
naturais. Por isso, cada vez mais os mo-
vimentos sociais do campo e da cidade
vêm questionando as dimensões desse
modelo econômico que espolia recur-

2005 2018
sos e não atende aos princípios da equi-
dade e da justiça social e ambiental. 

*Karina Kato, Socorro Lima, Andréa ®® https://t.me/PDFs_Brasil


Leão, Sandro Leão, Valdemar Wesz Ju- China no reordenamento das relações internacio- gia. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1983. p.144-327.
1   T rabalho de campo (novembro de 2017) nos
nior e Graciane Simone Leite Barbosa municípios paraenses de Santarém, Belterra, nais: desafios e oportunidades. Rio de Janeiro: • OREIRO, J. L.; FEIJÓ, C. Desindustrialização:
são pesquisadores e colaboradores do Mojuí dos Campos e Itaituba, com realização Palácio Itamaraty, 16-17 jun. 2011. conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro.
de entrevistas com atores locais chave. • CARVALHO, V.; TURA, L. A expansão do mono- Revista de Economia Política , v.30, n. 2 (118),
Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, cultivo de soja em Santarém e Belterra : injustiça abr.-jun. 2010, p.219-232.
2   Para a Unctad (2019), um país é considerado
Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap), dependente das commodities se estas com- ambiental e ameaça à segurança alimentar. Fase- • SANTOS, R. História econômica da Amazônia
coordenado pelo professor Sergio Leite puserem mais de 60% de suas exportações -Amazônia, 2006. (1800-1920). São Paulo: T.A. Queiroz, 1980.
(em valor). Essa dependência tem um efeito • CNT. Anuário CNT do Transporte : estatísticas SAUER, S. Soy expansion into the agricultural
(CPDA) e vinculado ao Programa de Pós- consolidadas, 2018. frontiers of the Brazilian Amazon: The agribusi-
negativo no desenvolvimento econômico do
-Graduação de Ciências Sociais em De- respectivo país. EMBRAPA. Reunião de pesquisa de soja da re- ness economy and its social and environmental
senvolvimento, Agricultura e Sociedade da 3   O Planalto Santareno envolve os municípios gião central do Brasil. Londrina: Embrapa 2004. conflicts [Expansão da soja na fronteira agrícola
de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, • HARVEY, D. O enigma do capital e as crises do da Amazônia brasileira: a economia do agronegó-
Universidade Federal Rural do Rio de Ja- capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011. cio e seus conflitos ambientais e sociais]. Land
cuja área se caracteriza por solo plano e favo-
neiro (CPDA-UFRRJ). A pesquisa na qual rável ao plantio com sistema mecanizado, si- IBGE. Banco de dados agregados, 2020. Use Policy, v.79, 2018, p.326-338.
este artigo está embasado foi financiada tuada às margens das rodovias BR-163 e PA- • LAMOSO, S. P. Reprimarização no território bra- • UNCTAD. State of Commodity Dependence
370 (Leão, 2017). sileiro. Espaço e Economia , v.19, 2020. 2019 [Estado da dependência em commodities
pelo Conselho Nacional de Desenvolvi- • LEÃO, S. A. V. Agronegócio da soja e dinâmicas 2019]. Nova York, 2019.
mento Científico e Tecnológico (Bolsa de Referências bibliográficas regionais no Oeste do Pará. Tese de Doutorado, • VALBUENA, R.; COHENCA, D. Reativação da
Produtividade e Edital Universal) e pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, fronteira agrícola e aumento da taxa de desmata-
• ARBACHE, J. O canto da sereia: um estudo so- CPDA, 2017. mento ao norte da BR-163, nos municípios de
Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado bre a relação econômica Brasil-China. Artigo pre- • OLIVEIRA, A. E. Ocupação humana. In: SALATI, E. Santarém e Belterra, no Pará, Brasil (1999-2004).
do Rio de Janeiro (Faperj). parado para o Seminário Internacional Brasil e et al. Amazônia: desenvolvimento, integração e ecolo- Agrária , v.4, 2006, p.98-123.
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UMA RECONQUISTA DAS GRANDES CIDADES

A esquerda, uma
ideia nova nos Bálcãs
Desde o fim da Iugoslávia, o debate político nos Bálcãs foi reduzido a um confronto entre nacionalistas
e liberais. Atualmente, uma nova esquerda anticapitalista emerge em defesa dos bens comuns e contra
as crescentes desigualdades. A coalizão da esquerda verde acaba de ganhar a prefeitura de Zagreb,
enquanto uma esquerda soberanista governa o Kosovo

POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E LAURENT GESLIN*

“A
© Možemo Split
ideia do socialismo demo-
crático foi tabu por três dé-
cadas na Croácia. Consegui-
mos reafirmá-lo no debate
político.” Na eleição presidencial de 22
de dezembro de 2019, Katarina Peovic
vestiu as cores da Frente dos Trabalha-
dores, conquistando apenas 1,12% dos
votos. Seis meses depois, contudo, em 5
de julho de 2020, vários partidos, in-
cluindo a Frente dos Trabalhadores,

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unidos em uma coalizão de esquerda
ambiental, surpreenderam nas eleições
legislativas com 7% dos votos e sete
eleitos (de 151 cadeiras). O ensaio ga-
nhou corpo nas eleições municipais de
maio passado: a coalizão obteve maio-
ria absoluta no conselho municipal de
Zagreb ainda no primeiro turno, e, duas
semanas depois, seu candidato, Tomis-
lav Tomaševic, foi triunfantemente elei-
to prefeito da capital, com 65% dos vo-
tos. A coalizão – da qual a Frente dos
Trabalhadores se separou – também te-
ve resultados notáveis em Pula, Split e
muitas outras cidades do país.
A sacudida à esquerda começou na
Eslovênia, onde Združena Levica [A Es-
querda Unida] colocou seus primeiros
membros eleitos no Parlamento em
2014. “Enquanto na Croácia o naciona- Tomislav Tomaševic, da coalização de esquerda, foi eleito prefeito da capital Zagreb, com 65% dos votos
lismo e a guerra esmagaram tudo, na
Eslovênia sempre se manteve uma tra- Para a nova geração da esquerda es- demanda central era a educação gra- manifestantes recordaram que “a pala-
dição de esquerda ativa, com jornais lovena, a insurgência “cidadã” de 2012 tuita, da educação infantil ao doutora- vra ‘fome’ é a mesma em bósnio, croata
como Mladina, espaços de debate, in- desempenhou um papel importante. Já do”, confirma o escritor Igor Štiks, um ou sérvio”. “Esse movimento experi-
telectuais como Slavoj Žižek e muitos primeiro-ministro naquele momento dos líderes da revolta estudantil croata mentou a democracia direta. Os
outros”, explica o deputado Luka Me- (voltou a ser primeiro-ministro de 2012 de 2009. Como na Eslovênia alguns plenums da cidade reuniram-se em um
sec. Às vezes referido como “Tsipras es- a 2013, depois a partir de março de anos depois, esse movimento serviu de plenum de plenums, algo como as ‘as-
loveno”, em referência ao ex-primeiro- 2020), o conservador Janez Janša, esta- escola ativista para toda uma geração. sembleias de assembleias’ dos ‘coletes
-ministro grego Alexis Tsipras, esse va liderando uma política de austerida- Em fevereiro de 2014, o movimento amarelos’ franceses”, enfatiza Štiks.
jovem – com apenas 27 anos quando foi de severa, diminuindo os salários dos chamado de plenums [cidadãos articu- Nenhuma força política, no entanto,
eleito pela primeira vez em 2014 – lide- funcionários públicos e organizando lados em assembleias] incendiou a Bós- conseguiu prevalecer na Bósnia-Herze-
rou notavelmente a Universidade dos cortes nos orçamentos de saúde e edu- nia-Herzegovina a partir da grande e govina. O fracasso desse movimento
Trabalhadores e dos Punks, um espaço cação. Envolvido em escândalos de adormecida cidade operária de Tuzla, pode ser explicado, pelo menos em par-
crucial para o rearmamento intelectual corrupção, foi finalmente demitido do no noroeste do país. Funcionários de te, pelas divisões etnopolíticas no país,
da esquerda. “Minha geração sofreu o cargo no fim de fevereiro de 2013, após fábricas privatizadas que exigiam seus mantidas pelos nacionalistas no poder.
impacto da crise global de 2008. Enten- semanas de protestos. salários não pagos juntaram-se aos ci- “As autoridades sérvias da Bósnia esta-
demos que não haveria emprego para “A crise de 2008 embaralhou as car- dadãos da cidade e assumiram a sede beleceram um cordão sanitário para
todos e que as coisas não melhorariam tas e marcou o surgimento de novas do governo municipal. Denunciando prevenir o contágio, alegando que as
automaticamente. Em suma, devemos questões. Os estudantes denunciaram ao mesmo tempo o modelo neoliberal demandas sociais constituíam traição
não apenas compreender, mas também o modelo liberal de ensino superior que docilmente seguido pela Bósnia-Her- nacional”, relata Krunoslav Stojaković,
transformar a sociedade”, afirma. a União Europeia pretendia impor. A zegovina e as divisões nacionais, os originário de Tuzla e agora diretor do
10 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

escritório regional para o sudeste da cias revisionistas em relação à Segunda casos de endividamento, aluguéis não resta água, ar e natureza, e mesmo isso
Europa da Fundação Rosa Luxembur- Guerra Mundial que animam as direitas pagos ou devolução de um imóvel a eles querem tirar de nós”, indigna-se
go, politicamente filiada ao partido ale- da Croácia e da Sérvia, desenvolve pro- seus proprietários, cujo título datava Aleksandar Vemic, defensor do Rio Bu-
mão Die Linke [A esquerda]. jetos de memória que favorecem uma de antes de 1945. “Alguns ativistas de kovica, na província de Montenegro.
Hoje, as dinâmicas croata e eslove- reflexão crítica positiva sobre a expe- extrema direita tentaram integrar-se às Essas mobilizações sem precedentes
na despertam vocações na Sérvia. Um riência socialista, em particular em sua mobilizações, mas a tentativa falhou”, conseguiram transcender as diferen-
partido da esquerda radical (Partija Ra- dimensão de autogestão. “Até a consoli- sorri Isidora Petrovic, ativista do movi- ças de identidade que estruturam a so-
dikalne Levice, PRL) foi criado em se- dação do poder neoliberal autoritário mento Krov nad glavom [Um teto sobre ciedade montenegrina e contribuí-
tembro de 2020 sobre os escombros da de [Aleksandar] Vucic, em 2012-2014, a sua cabeça]. “É preciso muita determi- ram, em agosto de 2020, para a queda
União Social Democrática (SDU), após Sérvia experimentou muitas formas de nação diante de oficiais de justiça e po- do regime de Milo Đukanovic.1 Um
uma severa obrigação de inventário. resistência dos trabalhadores, como a liciais, sempre em conluio com o poder dos pilares do novo governo, o movi-
“Estamos orgulhosos do envolvimento longa greve de Jugoremedija em Zrenja- estabelecido”, completa. mento Ação Reformista Unida (Uje-
da SDU no movimento antiguerra dos nin, de dezembro de 2003 a setembro de Petrovic tem um olhar crítico sobre dinjena reformka akcija, URA) juntou-
anos 1990 e nas lutas contra o regime de 2004. Trabalhadores ocuparam essa fá- as manifestações “democráticas” do -se ao Partido Verde Europeu e se
[ex-presidente Slobodan] Miloševic. Por brica farmacêutica para protestar con- inverno de 2018-2019: aos seus olhos, reivindica parte de uma esquerda ci-
outro lado, rejeitamos sua participação tra sua privatização e os tribunais aca- representam pouco mais do que uma dadã e ambientalista.
nos governos dos anos 2000 e seu apoio baram por outorgar-lhes o controle da tentativa da oposição liberal de fazer as A junção entre as lutas dos trabalha-
às privatizações”, explica Ivan Zlatic, maioria do capital”, relata Zlatic, con- pessoas falarem sobre ela, após repeti- dores, ambientais e pelos direitos das
membro da presidência do partido. vencido de que a experiência de auto- dos fracassos eleitorais. A jovem está mulheres e das minorias sexuais per-
Zlatic pretende fazer uma avaliação gestão continua ancorada na memória convencida, contudo, de que o regime manece um caminho complexo. Mesec
crítica de A Outra Sérvia (Druga Srbija), das classes trabalhadoras iugoslavas. de Vucic não está imune a uma explo- ressalta que, diante do autoritarismo de
esse amplo movimento que se opôs, são social, como mostrou a revolta es- ultradireita de Janša, homólogo eslove-
muitas vezes com coragem, ao naciona- pontânea dos estudantes que, em julho no do húngaro Viktor Orbán que voltou
lismo e à guerra, e que consegue manter A luta contra a gentrifi- de 2020, rechaçaram o fechamento de ao poder em março de 2020, cabe prin-
os vínculos entre as repúblicas da anti- cação de certos bairros suas residências universitárias por mo- cipalmente à esquerda anticapitalista
ga federação, ao mesmo tempo que de- tivos sanitários. liderar os combates em defesa dos direi-
fende os direitos das mulheres e das mi-
envolve também o com- Nos Bálcãs, a defesa dos comuns se tos e das liberdades fundamentais. Ro-
norias sexuais. “A experiência iugoslava bate aos despejos, extre- mobiliza na forma de manifestações, bert Kozma, do Ne da(vi)mo Beograd,
foi duas coisas: fraternidade e unidade mamente facilitados como os grandes desfiles que anima- sublinha, por sua vez, que pertencer ou
de todos os povos – isto é, internaciona- pela lei sérvia ram Belgrado no início de abril, ou não à União Europeia já não induz dife-
lismo – e direitos sociais. A tradição li- ações locais. Várias lutas se cristali- renças entre os países da região: “Todos

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beral soube salvaguardar o primeiro as- zam na oposição a projetos de micro- pertencem a uma semiperiferia” 
pecto, mas sacrificou o segundo, que A esquerda que tenta crescer e ga- -hidrelétricas, que se multiplicaram
devemos recolocar em primeiro plano”. nhar espaço encontra-se na encruzi- na região e muitas vezes são construí- *Jean-Arnault  Dérens e Laurent Geslin
Para Zlatic, essa “outra Sérvia”, que che- lhada de duas tradições: a das lutas das por empresas próximas aos regi- são jornalistas do Courrier des Balkans.
gou ao poder após a queda de Miloševic operárias e a das experiências munici- mes, com auxílio do Banco Europeu de
em 5 de outubro de 2000, não estava sa- palistas, centradas na defesa dos bens Desenvolvimento (Berd). “A transição 1   L
 er “Clientélisme et vertiges identitaires au
Monténégro” [Clientelismo e vertigens identi-
tisfeita com a adoção de um programa comuns. Assim, a coligação da esquer- tirou tudo de nós: nossos empregos, tárias em Montenegro], Le Monde Diplomati-
de reformas liberais. “Havia uma vonta- da verde, que acaba de ganhar a Câ- nossas fábricas, nosso futuro. Só nos que, fev. 2021.
de de punir os trabalhadores por meio mara Municipal da capital croata, de-
das privatizações, de punir esse povo senvolveu-se por meio da experiência
que não se rebelou contra Miloševic, o da plataforma de Zagreb I NAŠ! [Za-
que, aliás, é falso: esquecemos o papel greb é nossa!]. Seu recente triunfo é EXPERIÊNCIA SOBERANISTA NO KOSOVO
desempenhado pelas greves operárias motivador para o movimento Ne da(-
de outubro de 2000 na queda do regi-
me!”, lembra.
A esquerda eslovena de Levica inte-
vi)mo Beograd [Não afoguemos Bel-
grado], que desempenha um papel
central nas mobilizações contra o sa-
A o obter 50,3% dos votos nas elei-
ções parlamentares de 14 de fe-
vereiro, o movimento soberanista de
eleitores votaram a favor de um líder
que afirma ter sido vítima de uma ten-
tativa de “golpe de Estado” orquestra-
gra o Partido da Esquerda Europeia que de capital orquestrado por incor- esquerda no Kosovo esmagou seus ri- da pelos Estados Unidos.
(PEE), que inclui notadamente o Parti- poradores imobiliários próximos ao vais, em particular os partidos dos ex- Kurti declarou que suas prioridades
do Comunista Francês, o Die Linke ale- Partido Progressista Sérvio (SNS), no -comandantes guerrilheiros do Exérci- seriam a luta contra a corrupção e a
mão e a coligação grega Syriza. “Opera- poder. O centro da cidade foi esvazia- to de Libertação do Kosovo (UÇK). situação econômica, sanitária e social
mos dentro de um quadro europeu, mas do de sua população e arrasado para Albin Kurti, o carismático líder da Vetë- – e não o diálogo com Belgrado. Mas
temos relações mais estreitas com os dar lugar a um luxuoso complexo às vendosje (“Autodeterminação”, em al- qual é sua margem de manobra? As
camaradas da Croácia, da Bósnia-Her- margens do Danúbio, o Belgrade Wa- banês), tornou-se novamente primeiro- forças de esquerda nos Bálcãs ainda
zegovina e da Sérvia do que com os da terfront, supostamente financiado por -ministro. Ele já ocupava o cargo desde cultivam certa reserva em relação a
Itália ou da Áustria. Compartilhamos capital dos Emirados Árabes Unidos, as eleições de outubro de 2019, mas Vetëvendosje, pelo viés nacionalista
referências comuns”, pontua Mesec. Em mas que seria em realidade uma enor- seu gabinete foi derrubado em março assumido,3 mas todas observam com
Zagreb, Peovic também não nega o refe- me operação de lavagem de dinheiro. de 2020 – em meio à pandemia –, interesse a experiência em curso: Kurti
rente iugoslavo: “Os nacionalistas rejei- após a saída da Liga Democrática do demonstrou que uma mudança radical
tam tudo o que é iugoslavo, mas, na “A TRANSIÇÃO Kosovo (LDK, centro-direita), por pres- é possível, mesmo sem o apoio dos
Croácia, para muitas pessoas, isso assu- TIROU TUDO DE NÓS” são da administração norte-americana ocidentais. (J.-A.D. e L.G.)
me um significado positivo: direitos so- Na primavera de 2016, milhares de bel- na época. Donald Trump queria chegar
ciais, férias para todos. Pode haver uma gradinos marcharam atrás da mascote rapidamente a um acordo entre Pristi- 1   L
 er “Dans les Balkans, les frontières bou-
gent, les logiques ethniques demeurent”
dimensão folclórica da ‘iugonostalgia’, do movimento, um pato de plástico na e Belgrado, fundamentado em uma [Nos Bálcãs, as fronteiras se movem, a
enquanto o debate sobre as causas do amarelo gigante. O protesto se esten- possível troca de territórios1 – mas lógica étnica permanece], Le Monde Di-
colapso do Estado comum não acabou. deu contra outros projetos imobiliários cujos termos a Vetëvendosje recusou. plomatique, ago. 2019.
2   Ler Serge Halimi, “Fausses indépendan-
Se as noções de socialismo e Iugoslávia da capital, como a destruição dos anti- Em setembro de 2020, a Casa Branca ces” [Falsas independências], Le Monde
ainda estão ligadas na imaginação de gos estúdios de cinema Avala e dos bos- obteve um “acordo econômico” sem Diplomatique, out. 2020.
muitos croatas, isso não é mais uma ques de Košutnjak. A luta contra a gen- muito significado.2 Embora o Kosovo 3   
Ler Jean-Arnault Dérens, “Essor d’une
gauche souverainiste au Kosovo” [Ascen-
desvantagem para nós”, sugere. trificação de certos bairros envolve cultive, desde o bombardeio à Sérvia são de uma esquerda soberanista no Ko-
A Fundação Rosa Luxemburgo, em também o combate aos despejos, extre- em 1999, uma viva americanofilia, seus sovo], Le Monde Diplomatique, dez. 2017.
um movimento de denunciar as tendên- mamente facilitados pela lei sérvia em
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 11

QUANDO A INFRAESTRUTURA DAS REDES VOLTA A SER GEOPOLÍTICA

Cabos submarinos,
nal.” E isso sem marco legal claro nem
controle. “Os cabos submarinos têm re-
lação com as comunicações interna-

uma questão de Estado


cionais, portanto são um assunto de
Estado. Na França, nunca tivemos a
competência para controlar a DGSE a
respeito dos cabos, e a lei de inteligên-
cia de 2015 não mudou nada”, esclarece
Jean-Marie Delarue, ex-presidente da
Comissão Nacional para o Controle de
O sonho libertário de uma internet regulamentada apenas por empresas privadas Interceptações de Segurança. E a Fran-
está desaparecendo. Por muito tempo impotentes diante de um fenômeno que não ça não é exceção. “As leis de inteligên-
cia aprovadas nos países da OCDE [Or-
entendiam, os Estados estão reconquistando o front na cena digital e têm um peso ganização para a Cooperação e o
cada vez maior na arquitetura física da internet – uma questão de soberania e Desenvolvimento Econômico] após o
poder no século XXI, como eram os cabos telegráficos no século XIX caso Snowden facilitaram a coleta de
dados, que, portanto, só aumentou”,
conclui Crozier.
POR CHARLES PERRAGIN E GUILLAUME RENOUARD* Dos cabos submarinos dependem
as comunicações, os fluxos financeiros,
o acesso a dados armazenados remota-

A
Wehrmacht a chamava de Mar- cia de Segurança Nacional (NSA) dos Do lado dos parceiros britânicos, as mente (a “nuvem”, em inglês cloud). Pa-
tha. Hoje, um casco cor de ferru- Estados Unidos introduziu, em feverei- mesmas brigas. Em 2012, o Govern- ra os Estados, o controle desses fluxos
gem esconde o cinza do concreto. ro de 2013, um vírus computacional no ment Communications Headquarters constitui uma imensa alavanca de in-
Na estrada que segue ao longo do núcleo do site de administração e ges- (GCHQ), serviço do governo britânico fluência geoeconômica. Outro país en-
grande porto marítimo de Marselha ru- tão do SEA-ME-WE 4, um cabo que leva encarregado do monitoramento das te- tendeu isso muito bem: a China. No dia
mo a L’Estaque, a antiga base de sub- as comunicações telefônicas e de inter- lecomunicações, utilizou os cabos para 8 de abril de 2010, segundo um relatório
marinos nazistas está abandonada há net de Marselha para o norte da África, recuperar cookies (testemunhas de co- do Congresso dos Estados Unidos, a
mais de setenta anos. O bunker inaca- Oriente Médio e Sudeste Asiático.1 Para nexão) dos funcionários da operadora China desviou para seus servidores,
bado foi usado como prisão militar pe- a NSA, Marselha é um dos principais belga Belgacom para se infiltrar na re- durante 18 minutos, e-mails com ori-
los Aliados após o desembarque da Pro- pontos de interceptação do mundo. de da companhia, que presta serviços a gem ou destino no Senado dos Estados

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vença. Depois, nada. Até recentemente, governos europeus.3 Em 2014, os fran- Unidos, em seu Ministério da Defesa e
alguns iniciados vinham admirar anti- CLEAN NETWORK, ceses souberam que os serviços britâ- do Comércio e na Administração Na-
gos desenhos esquecidos nas paredes, A LIMPEZA NORTE-AMERICANA nicos acessavam os clientes da Orange cional da Aeronáutica e Espaço (Nasa).
provavelmente obra de prisioneiros ale- “No início, a captação de dados de ca- desde 2011: “Na época, os serviços bri- Em junho de 2019, engenheiros da em-
mães. Agora, eles não estão mais acessí- bos submarinos era justificada pelo an- tânicos suspeitavam que o grupo Iliad presa Oracle descobriram que um gran-
veis, escondidos desde 2020 por trás das titerrorismo”, explica Dominique Boul- tivesse feito um acordo com o Mossad”, de volume de tráfego europeu da Bouy-
instalações da MRS 3, um dos enormes lier, sociólogo do Instituto de Estudos lembra uma fonte interna, que prefere gues Telecom e da SFR foi redirecionado
data centers da companhia Interxion. Políticos de Paris. Após os ataques de 11 ficar anônima. “O GCHQ, por meio da por duas horas em direção à China.
“Não posso deixá-los entrar. São de setembro de 2001, “era necessário Orange, podia medir as variações de E mais: o país pressionou direta-
plataformas de nuvem muito sensíveis captar fluxos em massa nos pontos ne- fluxo nos cabos e determinar se estava mente suas empresas públicas a con-
e temos cláusulas de confidencialidade vrálgicos a fim de monitorar e even- acontecendo alguma coisa entre a trolar a camada física do ciberespaço.
do tamanho de um braço”, diz já de saí- tualmente chegar até os culpados em França e Israel: acordos comerciais, co- “O Estado chinês conquistou um lugar
da Fabrice Coquio, presidente da em- caso de um incidente”. Em vinte anos, laboração, uma operação qualquer... de destaque nos consórcios asiáticos
presa. As instalações são civis, mas a os Estados Unidos tornaram-se o maes- Isso se tornou um procedimento clássi- por meio da China Mobile, China Te-
segurança é digna de uma base militar. tro dos “Five Eyes” [cinco olhos] na co para os Estados.” lecom e China Unicom. De maneira
Aqui está enterrada uma parte dos ca- captação de comunicações que trafe- Após as revelações de Snowden, geral, a grande mudança no tráfego da
torze cabos submarinos de fibra óptica gam por cabos – fala-se de “intercepta- países europeus ficaram indignados, internet para a Ásia deu aos Estados
que chegam a Marselha. Dados vindo ção de cabos” –, efetuada por sondas principalmente a França. Mas o Estado asiáticos (China, Tailândia, Cingapu-
do mundo inteiro, armazenados e tro- colocadas nos grandes pontos de ater- francês, que colabora com a NSA, tem ra) mais peso sobre os cabos: desde
cados em centros de dados dos clientes: ramento de cabos do planeta, com a desde 2008 um programa de escuta de 2010, eles forneceram uma média de
Google, Amazon, Facebook, um escri- cumplicidade das operadoras. “Hoje os comunicações internacionais que tra- 9% dos investimentos, contra 1% en-
tório de advocacia, a companhia de Estados Unidos bombeiam todos os ca- fegam por cabos submarinos.4 Uma no- tre 1987 e 2010”, detalha Félix Blanc,
água local e operadoras de telecomuni- bos. Na França, testamos seus roteado- ta revelada por Snowden mostra que, doutor em Ciência Política especiali-
cações. E também o Estado francês. res Cisco. Sabemos que parte dos dados em 2009, a Direção-Geral da Segurança zado na governança dos cabos sub-
“Não faz muito tempo que os países eu- que saem vão misteriosamente para os Exterior (DGSE) intensificou sua coo- marinos. Para além de sua influência
ropeus se interessaram abertamente Estados Unidos”, declara, anonima- peração com o GCHQ na “busca por in- regional, a China investe em projetos
pelos atores privados de infraestrutura mente, um alto funcionário de uma terceptações maciças por meio da que- situados em áreas estratégicas, como
da internet”, observa Coquio. Secreta- operadora francesa de telecomunica- bra de sistemas de criptografia o Canal da Nicarágua, cuja concessão
mente, eles fizeram isso nos anos 2000. ções. Além da captação em massa, os entregues por fornecedores privados”. também abrange cabos de internet,
Com 99% das comunicações eletrôni- serviços norte-americanos realizam Cinco cabos foram grampeados entre ou a ligação ao continente europeu via
cas intercontinentais trafegando pelos operações direcionadas de espionagem 2008 e 2013 com a cumplicidade da Marselha por meio da primeira liga-
cabos submarinos, os serviços de inte- política (governos, embaixadas) e eco- Orange. E isso é só o começo. ção de fibra óptica chinesa entre a
ligência fizeram deles um de seus terre- nômica. Nos últimos anos, por exem- “Hoje, qual Estado não intervém di- França e a Ásia, chamado Pakistan
nos de ação favoritos. plo, vimos a interceptação em Hondu- retamente junto a suas empresas de te- and East Africa Connecting Europe
Olhando para os grandes prédios ras de um cabo que serve um local lecomunicações?”, pergunta Sébastien (Peace – Paquistão e África Oriental
reluzentes do terminal de navios de turístico onde se reúnem atores econô- Crozier, presidente da Confederação Conectando a Europa). Entre 2016 e
cruzeiro, é difícil imaginar que esta- micos globais, do setor automotivo ao Francesa de Executivos – Confederação 2019, as empresas chinesas participa-
mos em um ninho de espiões. No en- agronegócio, ou do Centro Internacio- Geral de Executivos (CFE-CGC) da ram de 20% das construções de cabos,
tanto, de acordo com os documentos nal de Física Teórica de Trieste, que Orange. “Ser uma operadora de comu- mais da metade delas fora do Mar da
fornecidos pelas denúncias de Edward treina cientistas de todo o mundo na nicação hoje significa aceitar que se China Meridional, sobretudo em paí-
Snowden ao jornal Der Spiegel, a Agên- área nuclear.2 tem uma função na soberania nacio- ses emergentes. 5
12 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

Washington não gosta nada disso. quisadora do Departamento Intermi- mica. Esses dois aspectos as colocam dos nas profundezas abissais: os minis-
“Em 2013, os Estados Unidos já haviam nisterial sobre Questão Digital. Seu ar no centro de grandes questões geopolí- térios das Forças Armadas, dos Estados
provocado o fracasso da implantação de assustado não impede que os Estados ticas, como os cabos telegráficos no sé- Unidos à China, passando pelo Reino
um cabo transatlântico Nova York-Lon- Unidos espionem a China, como quan- culo XIX, o primeiro dos quais ligou, Unido e a França, competem em inven-
dres, da qual participaria a empresa chi- do o serviço secreto da Nova Zelândia em 1852, as Bolsas de Valores de Paris, tividade para se proteger contra uma
nesa Huawei Marine”, recorda Blanc. interceptou, em nome da NSA, um cabo Londres e Nova York. Nas décadas se- “guerra no fundo do mar” (seabed war-
Em 2020, a Comissão Federal de Comu- que passa pelo consulado chinês em guintes, a Eastern Telegraph Company fare), mencionada sobretudo na Atuali-
nicações (FCC) obrigou o Google e o Fa- Auckland.6 Para a China, as infraestru- multiplicou as ligações entre a Grã-Bre- zação Estratégica de 2021. O que o Yan-
cebook a não conectar Los Angeles a turas da internet representam um meio tanha e suas colônias na África, Ásia, tar estava realmente fazendo? O que
Hong Kong, conforme previa o projeto de garantir interesses vitais. Com quase América do Sul, Austrália e especial- fazem os drones submarinos norte-a-
inicial. As gigantes da internet se dobra- 20% da população mundial para 10% mente na costa oeste dos Estados Uni- mericanos e chineses? “Não sabemos.
ram. Oficialmente, o governo dos Esta- das terras aráveis, a China “financia in- dos. Em 1892, dois terços dos cabos do Mas, para além de alguns atos de van-
dos Unidos acusou o terceiro membro fraestrutura tecnológica fora de seu ter- mundo pertenciam a eles. “Ainda hoje, dalismo, sabemos que a grande maioria
do consórcio, a Pacific Light Data ritório para acessar matérias-primas, a rota dos cabos submarinos da inter- dos cerca de cem cortes por ano tem re-
Communication, de Hong Kong, de co- sobretudo recursos alimentares”, se- net segue as rotas do telégrafo do Impé- lação com a presença de barcos de pes-
laborar com os serviços de inteligência gundo Statia Lee, pesquisadora de Ciên- rio Britânico”, destaca Jovan Kurbalija, ca próximo à costa”, responde Camille
chineses. Para Crozier, “a operação ser- cia Política da Universidade de Washin- ex-diplomata especializado em gover- Morel. “Os cabos cristalizam tensões
viu principalmente para enfraquecer a gton. A China Unicom, por exemplo, nança da internet. diplomáticas, mas estamos longe de ver
posição financeira de Hong Kong em um investiu em um cabo entre Camarões e Tanto no Reino Unido como na ações militares. As consequências se-
contexto no qual ela poderia se aproxi- o Brasil em troca de acesso a zonas de França, a partir de 1870 (quando Mar- riam pesadas demais. Uma sabotagem
mar de Xangai e suplantar Londres”. pesca.7 “A estratégia chinesa em relação selha estava ligada a Argel), “os cabos por parte de um país seria como uma
No que diz respeito ao cabo Peace, o aos cabos, voltada ao atendimento da tornaram-se indispensáveis não ape- declaração de guerra.”
governo dos Estados Unidos faz pres- demanda doméstica, sustenta cada vez nas para o comércio marítimo de todas Esse ressurgimento da questão dos
são direta sobre a França. Em outubro mais uma projeção de sua economia di- as grandes potências e suas colônias, cabos coroa uma longa tendência. A
de 2020, Peter Berkowitz, diretor do ór- gital no estrangeiro, na França, na Áfri- mas também para a defesa desse co- partir da década de 1930, o desenvolvi-
gão de planejamento do Departamento ca e, há mais tempo, na Ásia. É o que foi mércio e dessas colônias em tempos de mento do rádio marginalizou os cabos,
de Estado, reuniu-se com assessores do chamado de ‘rota da seda digital’”, deta- guerra”, escreve o historiador Daniel sem, no entanto, fazê-los desaparecer;
presidente da República e com repre- lha Jean-Luc Vuillemin, vice-presidente Headrick.9 Já naquela época, o governo eles continuam sendo mais difíceis de
sentantes dos ministérios das Relações das redes internacionais da Orange. Se- britânico incentivava navios estrangei- interceptar do que as ondas de rádio.
Exteriores e das Forças Armadas. Ele gundo ele, a China chegou recentemen- ros de instalação de cabos a aterrar em Mesmo com a chegada dos satélites, os
apresentou um inquietante relatório te a frustrar a instalação de três cabos suas costas, para que eles pudessem fi- cabos foram usados para a espionagem

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sobre as ambições globais da China na parcialmente financiados pelo Google car sob vigilância. “A lição era clara”, durante a Guerra Fria.10 No fim dos
instalação de cabos e alertou – e alertas que iriam conectar Hong Kong ao Japão, continua Headrick: “Em tempos de anos 1980, com o advento da fibra ópti-
são sempre empolgantes – sobre os ris- Cingapura e Filipinas. guerra, a nação que tivesse o maior nú- ca, o aumento da capacidade desses ca-
cos de espionagem. “É normal que haja mero de navios de instalação de cabos e bos inaugurou a era da banda larga, da
pressão”, comenta Paul Triolo, membro a Marinha mais poderosa, ou seja, a internet e das grandes operadoras mo-
da consultoria Eurasia Group. “A nu- “Hoje, qual Estado não Grã-Bretanha, controlaria também as vidas por interesses comerciais. “Du-
vem é dos Estados Unidos. Se você é a comunicações de outras nações. O di- rante a primeira década de desenvolvi-
Microsoft ou a Amazon, contanto que
intervém diretamente reito internacional, o respeito aos direi- mento do cabeamento de fibra óptica, a
seus concorrentes na Europa sejam junto a suas empresas tos e à propriedade dos neutros, as pro- indústria de cabos contou com consór-
empresas como Outscale e OVH, não de telecomunicações?” messas de paz e amizade perpétuas e cios de operadoras nacionais, incluin-
há muito a temer. Mas Alibaba e Ten- os laços de fraternidade entre as nações do muitos monopólios estatais”, expli-
cent são outra história.” não se aplicavam mais. O século XX ha- ca Nicole Starosielski, professora da
“Os Estados Unidos intervêm cada ÁFRICA, MERCADO CATIVO via começado”. Foi em 1898, durante a Universidade de Nova York e autora de
vez mais nos cabos, no contexto de sua Outros países também tentam manter Guerra Hispano-Americana em Cuba, The Undersea Network [A rede subma-
guerra comercial com a China”, explica os Estados Unidos a distância, como que os cabos viraram alvo pela primei- rina] (Duke University Press, 2015).
Camille Morel, doutora em Direito e Cuba. Em troca, os norte-americanos ra vez. Depois, no início de cada guerra “Mas a adoção do princípio da concor-
Ciência Política ligada à Universidade proibiram que qualquer cabo que to- mundial, o Reino Unido cortaria os ca- rência por muitos países, seguindo a lei
Jean-Moulin Lyon III. “Na Europa, isso casse a Flórida (quase toda a fibra ópti- bos submarinos alemães. de telecomunicações dos Estados Uni-
é muito recente, mas em 2018 eles já ca latino-americana) se conectasse à Hoje, como outrora, a importância e dos de 1996, confiou o leme aos atores
pressionaram a Austrália e fizeram o ilha. Poucos meses após as revelações a quantidade de dados que trafegam privados.” Em dez anos, a participação
país se recusar a permitir que a Huawei de Snowden, o governo de Dilma Rous- pelos cabos suscitam preocupações. No de capital das operadoras públicas
financiasse a instalação de um cabo en- seff apresentou o projeto de cabo Ella- verão de 2015, bastou que um navio caiu, passando a representar menos de
tre Sydney e as Ilhas Salomão.” Essas Link, entre Brasil e Portugal, como uma oceanográfico russo, o Yantar, rastreas- 1% do investimento total.
ingerências colaboram para um vasto forma de contornar os Estados Unidos se cabos perto da costa dos Estados Na última década, alguns investido-
programa norte-americano que o ex- e restaurar a soberania digital do Bra- Unidos para que um think tank britâni- res norte-americanos poderosos o bas-
-secretário de Estado Mike Pompeo sil. A ambição foi partilhada pela Rús- co, o Policy Exchange, publicasse em tante para operar sozinhos suplanta-
chamou de Clean Network [rede lim- sia, que, como explica Julien Nocetti, 2017 um relatório com o evocativo títu- ram os antigos consórcios, que reuniam
pa]. A “limpeza” norte-americana tinha investigador especializado em internet lo “Cabos submarinos: indispensáveis e dezenas de operadoras: Google, Face-
vários componentes: banir operadoras russa do Instituto Francês de Relações vulneráveis”. Cerca de quarenta pági- book, Amazon e Microsoft. Enquanto a
chinesas (como a China Telecom) ou Internacionais, “está realocando seus nas redigidas sob a supervisão de um China avança no mercado asiático, es-
determinados aplicativos (TikTok, que data centers. No fim de 2019, 60% dos ex-almirante norte-americano expli- sas empresas poderiam controlar a
foi alvo de Donald Trump por algum dados russos ainda estavam armaze- cam por que os russos não descartavam grande maioria dos cabos submarinos
tempo) no país, reduzir a quantidade nados no exterior”. a hipótese de cortar cabos submarinos ocidentais em três anos.11 Em breve, o
de dados armazenados remotamente Ferramentas de vigilância e até de em caso de conflito. O secretário-geral Google terá cinco. O último a entrar em
na China e, claro, “limpar” a rede a ca- opressão – como durante a Primavera da Organização do Tratado do Atlânti- serviço chama-se Dunant. Quase du-
bo, excluindo os atores chineses. Árabe de 2011, quando cabos foram de- co Norte (Otan), Jens Stoltenberg, de- zentas vezes mais poderoso do que os
“É preciso lembrar que a internet é liberadamente cortados pelas autori- fendeu, no fim de 2020, o desenvolvi- cabos instalados há vinte anos, ele liga
norte-americana desde o início. Endos- dades a fim de isolar a população na Sí- mento de missões de vigilância e Virginia Beach a Saint-Hilaire-de-Riez,
samos demais a posição dos Estados ria ou no Egito8 –, as infraestruturas de proteção de cabos submarinos. na França. “No princípio, nos contentá-
Unidos, que exagera a respeito do poder telecomunicações de fibra óptica são Navios de vigilância, drones sub- vamos em alugar largura de banda das
chinês”, lembra Ophélie Coelho, pes- também vetores de influência econô- marinos, sistemas de sonar deposita- operadoras. Mas, dada a explosão do
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 13

tráfego, constatada ou prevista, a me- ção. No jogo da concorrência livre e desenvolvida pelo Facebook. Podemos tipo de contrato é padrão em termos de
lhor abordagem seria investir em nos- sem distorções, que só os europeus res- esperar que os mesmos tipos de proce- controle internacional de infraestrutu-
sos próprios cabos”, declara Jayne Sto- peitam, sempre vamos perder para a dimento ocorram na educação”. ra de telecomunicações. Do lado chi-
well, que negocia contratos para a Amazon e o Google, melhores em todos Para conter a influência dos Estados nês, há muito cuidado para não disper-
construção de cabos submarinos no os aspectos, da exploração à transmis- Unidos e da China no mundo digital, o sar as joias da família: vendida em 2019,
Google. Com o vídeo (YouTube, Netflix, são de dados”, lamenta Boullier. dogma europeu do livre mercado pare- a Huawei Marine foi comprada pela
Twitch) e o armazenamento remoto, o ce a lendária bigorna que deixamos cair compatriota Hengtong, maior fabri-
consumo de dados explodiu: ele seria no pé. A europeia Interxion, segunda cante mundial de cabos ópticos terres-
130 vezes maior em 2021 do que em “Ainda hoje, a rota maior fornecedora mundial de data tres e submarinos, muito próxima do
2005.12 “Quem gere o tráfego é o chama- centers, passou em 2020 para o controle Estado chinês, com o objetivo de racio-
do Gafam [Google, Apple, Facebook,
dos cabos submarinos da American Digital Realty. A chinesa nalizar a política de cabos. “Os cabos
Amazon, Microsoft], do qual a Europa da internet segue as Huawei Marine, uma das maiores insta- ligam um território cada vez mais frag-
depende maciçamente. Ele já usa meta- rotas do telégrafo do ladoras de cabos do mundo, vem de mentado, onde se trava uma guerra po-
de da largura de banda da internet do Império Britânico” uma joint venture com a britânica Glo- lítica e econômica de longo prazo. E os
mundo, e isso pode crescer até 80% em bal Marine, que dá vantagem ao parcei- dois polos normativos são os Estados
2027. Para esses atores, controlar sozi- ro chinês. “No fim dos anos 2000, o Rei- Unidos e a China”, conclui Edward J.
nhos seus fluxos de dados se tornou Na União Europeia, o princípio jurí- no Unido não tinha procedimentos Malecki, geógrafo da Universidade de
uma obviedade”, resume Lucie Greene, dico da neutralidade da rede teorica- para bloquear o investimento estran- Ohio. A União Europeia continua per-
autora de Silicon States [Estados de Silí- mente garante o livre mercado: as ope- geiro em áreas estratégicas. Os chineses dendo o bonde. 
cio] (Counterpoint, 2018). radoras europeias devem assegurar desenvolveram competências ao longo
As empresas de telecomunicações que todo o conteúdo que chega às suas dos anos, depois tiraram os britânicos *Charles Perragin e Guillaume Re-
estão coléricas. “Há alguns anos, o redes nacionais seja transmitido aos das principais posições”, conta Pierre nouard são jornalistas, coletivo Singulier.
Google e a Microsoft eram seus clien- clientes sem degradação da qualidade. Gastineau, jornalista e coautor de Con-
tes. Agora, elas estão reduzidas a ge- Basta então que o Gafam aumente a ca- versations secrètes. Le monde des espions 1   C f. Jacob Appelbaum et al., “Documents re-
renciar o aterramento de cabos em ter- pacidade dos cabos e replique local- [Conversas confidenciais. O mundo dos veal top NSA hacking unit” [Documentos re-
velam unidade de hacking de elite da NSA],
ritórios nacionais e a cuidar da mente os conteúdos mais difundidos. espiões] (Fayard-France Culture, 2020). Der Spiegel, Hamburgo, 29 dez. 2013.
papelada e da ligação com os usuários “Não há necessidade de se instalar na A francesa Alcatel Submarine Network 2   Jacques Follorou e Martin Untersinger, “Révé-
finais. Viraram subcontratadas. E seu Europa para prestar seus serviços, o (ASN), líder internacional na fabricação lations sur les écoutes sous-marines de la
NSA” [Revelações sobre as escutas submari-
modelo de negócio vai depender cada que permite escapar aos controles e de cabos submarinos (47% de participa- nas da NSA], Le Monde, 8 maio 2014.
vez mais de infraestruturas que já não impostos locais”, acrescenta Crozier, ção de mercado), com uma carteira de 3   R yan Gallagher, “The inside story of how Bri-
lhes pertencem”, analisa Andrew da Orange. “É uma regra absurda. Em encomendas preenchida pelo Gafam, tish spies hacked Belgium largest TelCo” [Os

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bastidores de como espiões britânicos hac-
Blum, jornalista e autor de Tubes: A princípio, deveríamos regular os mais foi vendida em 2015 para a finlandesa kearam a maior companhia de telecomunica-
Journey to the Center of the Internet [Tu- fortes para permitir o surgimento dos Nokia, multinacional hoje cobiçada pe- ções da Bélgica], The Intercept, 13 dez. 2014.
bos: uma viagem ao centro da Internet] menores. Mas proibimos essa regula- los fundos de investimentos dos Esta- 4   C f. o relatório da audiência da DGSE perante
a Comissão de Defesa Nacional e das For-
(Ecco, 2013). Mais ainda, o armazena- mentação assimétrica em nome da dos Unidos. Sinal de que a França “não ças Armadas, Assembleia Nacional, Paris,
mento remoto de dados hospedados equidade. É inacreditável!”, exaspera- teve nem a ambição nem os recursos 20 fev. 2013.
em servidores espalhados pelo mundo -se seu colega Vuillemin. para manter uma companhia francesa 5   “Submarine Telecoms Industry Report” [Rela-
tório do setor de telecomunicações submari-
torna as empresas dependentes do ca- Diante da dependência técnica, eco- desse gênero”, lamenta uma fonte sindi- no], n.5, Submarine Telecoms Forum, Sterling
beamento. “A economia da nuvem é nômica e jurídica, os países europeus cal que prefere ficar anônima. Ameaça- (Virgínia), out. 2016.
hoje o motor da indústria dos cabos. incapazes de competir com o Google ou da pela subjugação digital, a França re- 6   R yan Gallagher e Nicky Hager, “New Zealand
plotted hack on China with NSA” [Nova Zelân-
Por razões de custo e eficiência, as a Amazon preferem aumentar o núme- conhece um “grande erro”,14 apesar do dia planejou hackear a China com a NSA],
grandes empresas europeias confiam ro de cabos e provedores (norte-ameri- decreto de 2005 sobre investimentos es- The Intercept, 18 abr. 2015.
seus dados a empresas como a Amazon canos e em breve chineses) para ter, em tratégicos – reforçado por Arnaud Mon- 7   “ Mers et océans: quelle stratégie pour la Fran-
ce?” [Mares e oceanos: qual estratégia para a
Web Services”, observa Boullier. Por caso de cortes, resiliência digital, na fal- tebourg em 2014 –, que deveria proteger França?], relatório de informação n.2042 de
causa da dependência em relação a gi- ta de independência. As regiões mais as grandes companhias nacionais dos Jean-Luc Mélenchon e Joachim Son-Forget,
gantes norte-americanos da nuvem, pobres e menos conectadas, como a fundos estrangeiros. Assembleia Nacional, 19 jun. 2019.
8   D ominique Boullier, “Internet est maritime:
como a Amazon (31% do mercado), a África, não têm esse luxo. O Google está les enjeux des câbles sous-marins” [A inter-
Microsoft (20%) e o Google (7%), os da- instalando o Equiano, um cabo de 6.600 net é marítima: os desafios dos cabos sub-
dos europeus estão à mercê dos servi- quilômetros ao longo da costa oeste da “Os cabos ligam um marinos], Revue Internationale et Stratégi-
que, v.3, n.95, Paris, 2014.
ços norte-americanos, graças ao Cloud África. O Facebook dirige um pequeno território cada vez mais 9   Daniel Headrick, “Le rôle stratégique des
Act, adotado em maio de 2018 pelo go- consórcio, o 2Africa, que até 2023 im- câbles sous-marins intercontinentaux, 1854-
verno Trump. Estejam esses dados ar- plantará o mais longo cabo do mundo
fragmentado, onde 1945” [O papel estratégico dos cabos sub-
mazenados em servidores em solo dos ao redor do continente: 37 mil quilôme- se trava uma guerra marinos intercontinentais, 1854-1945]. In:
Pascal Griset (org.), Les Ingénieurs des télé-
Estados Unidos ou no exterior, um tros. “A dependência será colossal. Es- política e econômica communications dans la France contemporai-
ne [Os engenheiros das telecomunicações na
simples pedido de um juiz norte-ame- sas empresas distribuem a internet gra- de longo prazo” França contemporânea], Comitê para a Histó-
ricano é suficiente para recuperá-los. tuitamente e, em troca, conquistam ria Econômica e Financeira da França (IGP-
Auxiliado por um poderoso sistema mercados cativos”, explica Kurbalija. DE), Vincennes, 2013.
de lobby dentro da União Europeia,13 o Entre esses mercados está o de um Em comparação, em 2003, quando o 10  C f. Matt Blitz, “How secret underwater wireta-
pping helped end the Cold War” [Como escu-
Gafam acumula certificações para a smartphone de baixo custo desenvolvi- capital estrangeiro se aproximou da tas telefônicas subaquáticas ajudaram a aca-
gestão de dados sensíveis. Assim, sem do pelo Google em associação com a empresa de instalação de cabos norte- bar com a Guerra Fria], Popular Mechanics,
terem planejado, empresas e governos Orange. Resumindo: telefones Google -americanos Global Crossing, uma Nova York, 30 mar. 2017.
11  “ Le devoir de souveraineté numérique” [O de-
colocam-se à mercê dos cabos norte-a- funcionando graças ao cabo do Google equipe especial de advogados do FBI, ver de soberania digital], relatório n.7 de
mericanos. “E, às vezes, sem nem con- com aplicativos Android repletos de chamada Team Telecom, frustrou a Franck Montaugé e Gérard Longuet, Senado,
frontar a concorrência”, esclarece anúncios habilmente direcionados. Fé- aquisição por uma empresa de Hong Paris, 1º out. 2019.
12  Félix Blanc, “Géopolitique des câbles: une vi-
Ophélie Coelho. “Esse foi o caso do lix Blanc ilustra a extensão dessa tutela Kong e impôs ao comprador final, a sion sous-marine de l’Internet” [Geopolítica
Health Data Hub, plataforma gerencia- digital: “O Facebook vai conectar seu Singapore Technologies Telemedia, a dos cabos: uma visão submarina da internet],
da pelo Microsoft Azure que desde 2019 cabo à República Democrática do Con- manutenção de cidadãos norte-ameri- Les Carnets du CAPS, n.26, Paris, 2018.
13  Adam Satariano e Matina Stevis-Gridneff,
coleta dados médicos de hospitais fran- go e poderá oferecer aos serviços hospi- canos nos principais cargos, acesso a “Big Tech turns its lobbyists loose on Europe,
ceses para fins de pesquisa.” Resulta- talares do país acesso limitado à rede dados que trafegam pelos cabos e um alarming regulators” [Big Tech coloca seus
do: “Descobrimos que somos depen- social, à Wikipedia e a alguns serviços centro de operações em solo norte-a- lobistas na Europa, alarmando os regulado-
res], The New York Times, 14 dez. 2020.
dentes da maneira como eles hospedam locais. Depois, talvez, utilizarão tecno- mericano que pode ser visitado a qual- 14  “ Mers et océans: quelle stratégie pour la Fran-
e controlam os dados e de sua legisla- logia médica com inteligência artificial quer momento pelas autoridades. Esse ce?”, op. cit.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

100 ANOS DO PARTIDO DE MAO TSÉ-TUNG

O que a China ainda incentivo do “turismo vermelho”, na


esteira de sua história revolucionária.9
Sob o atual presidente, a disciplina

tem de comunista?
interna também foi reforçada. Trata-se
de garantir, por meio de uma campanha
anticorrupção maciça, a moralidade e a
lealdade tanto dos dirigentes quanto
dos membros. Não apenas os potenciais
opositores do poder pessoal de Xi foram
Antes odiados, os capitalistas agora são acolhidos de braços abertos nas fileiras afastados, mas também o controle sobre
do Partido Comunista Chinês – com a condição de que respeitem algumas condições os funcionários aumentou, bem como a
luta contra os “quatro (maus) estilos
e jurem fidelidade a uma organização que, cada vez mais, recebe mais trabalhadores profissionais”: formalismo, burocratis-
de colarinho-branco do que operários mo, hedonismo e extravagância.10

FIDELIDADE AO CHEFE
POR JÉRÔME DOYON* Esse chamado à lealdade e a uma ética
profissional em consonância com a
imagem que o PCC deseja apresentar

A
o festejar seu centenário, o Parti- centes ao mundo dos negócios e deter- o próprio partido se apresenta como ao grande público vale para todos os
do Comunista Chinês (PCC) se minados a marchar com o partido”.4 uma estrutura empresarial inspirada seus membros, inclusive os oriundos
tornou capitalista? Quarenta Resultado: o PCC foi se tornando rapi- no neoliberalismo, com vistas a uma do setor privado. Segundo as diretivas,
anos depois das reformas de libe- damente mais e mais elitista. Já em gestão eficiente da população e da estes últimos devem permanecer fiéis à
ralização econômica lançadas por 2010, os “profissionais” (segundo a ex- economia.7 linha política e, ainda, “regular suas
Deng Xiaoping, mais de 800 milhões de pressão oficial) com diploma de curso Contudo, a importância mínima palavras e atos”, “cultivar um modo de
pessoas saíram da pobreza e o Estado- superior igualavam em número os concedida à ideologia comunista não vida sadio” e permanecer “modestos e
-partido está hoje à frente da segunda camponeses e operários. Dez anos de- põe em questão o nível de fidelidade discretos”.11 Quem não entrar no jogo
economia do mundo – ou mesmo pri- pois, superavam-nos, formando 50% exigido dos membros, que devem dar pode sofrer as consequências. O caris-
meira, se considerarmos a paridade de dos membros (para menos de 35% de provas de “espírito partidário”.8 Próxi- mático Jack Ma, fundador do grupo Ali-
poder de compra –, com 18% do PIB glo- operários e camponeses).5 mo do espírito empresarial, empenha- baba, é um exemplo perfeito. Após cri-
bal1. A introdução da economia de mer- Se “trabalhar para o comunismo” do no êxito da organização a fomentar ticar abertamente a interferência

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cado e a aceleração do crescimento vão figurava entre as principais razões de um sentimento de adesão, esse “espíri- estatal no setor bancário, tornou-se al-
juntas com um aumento exponencial adesão ao partido durante a era maois- to” exibe também matizes de naciona- vo de um ataque orquestrado por ins-
das desigualdades: o coeficiente de Gi- ta (1949-1976), as motivações atuais lismo (ver artigo virando a página). A tâncias do Estado-partido. Sua filial fi-
ni subiu 15 pontos entre 1990 e 2015 (úl- são mais pragmáticas: trata-se, em pri- centralidade do partido na transforma- nanceira, o Ant Group, se viu impedida
timo número conhecido).2 meiro lugar, de facilitar seu “progresso ção contemporânea da China é, assim, de ingressar na Bolsa no fim de 2020 e o
Essas transformações favoreceram o profissional”.6 Podemos ver, por meio regularmente lembrada aos membros, grupo foi informado de que deveria li-
progresso do setor privado, mas o Esta- das formações internas propostas, que seja nos treinamentos ou mediante o mitar suas operações.12 Esse episódio
do mantém um controle direto sobre reflete a vontade do PCC de manter os
boa parte da economia – o setor público © Thomas Peter/Reuters empresários sob pressão para garantir
representa por volta de 30% –, fazendo sua fidelidade, mas também de conser-
da China um caso de escola de capitalis- var certo grau de controle sobre os re-
mo de Estado. Além disso, o PCC conse- cursos financeiros e tecnológicos de
guiu cooptar largamente as elites oriun- suas empresas. O Ant Group detém pre-
das dessa economia liberalizada. Ainda ciosos dados pessoais e financeiros de
que a ideologia comunista não estrutu- centenas de milhões de pessoas que re-
re mais seu recrutamento, a forma orga- correm a seus instrumentos de paga-
nizacional leninista continua no centro mento e a empréstimos online, e o
da relação entre Estado e capital. equivalente a bilhões de dólares circula
O partido, cujas fileiras não cessam diariamente em suas plataformas.
de aumentar, a ponto de terem atingido O maior controle sobre o setor pri-
por volta de 92 milhões de membros vado condiz com as tendências hege-
(ou seja, 6,6% da população),3 foi aos mônicas do PCC, características da era
poucos se transformando em um parti- Uma tela mostra o ex-líder chinês Hu Jintao durante um show comemorativo do Xi Jinping. A carta do partido, de resto,
do de colarinhos-brancos. No início 100º aniversário da fundação do Partido Comunista da China foi modificada em 2017 para salientar
dos anos 2000, o então presidente, Jiang que, “governo, Exército, sociedade ou
Zemin, suspendeu a interdição de re- Ficha de identificação setor educativo – a leste, oeste, sul e
crutar empresários do setor privado, norte –, o partido comanda em todas as
vistos até a época como inimigos de • 23 de julho de 1921 : nascimento do 40 anos; 19,5%, entre 41 e 50 anos; frentes”.13 Nas empresas, isso se traduz
Partido Comunista Chinês (PCC). 17,6%, entre 51 e 60 anos; e 28,9%,
classe, para que o PCC não represen- por um aumento no número de organi-
mais de 60 anos.
tasse mais apenas as classes “revolu- • 91,94 milhões de membros em 2019 zações de base, as células. Se a partir de
cionárias” – operários, camponeses e (6,6% da população). • 50,7% têm diploma de curso supe- março de 2012 o departamento da or-
rior, contra 21,1% em 2000.
militares –, mas também as “forças • Somente 12,3% dos pedidos de ade- ganização que tem por meta gerir seus
produtoras avançadas” do país. Ho- são são aceitos desde a ascensão • 34,8% são operários ou campone- recursos humanos publicou uma dire-
mens e mulheres de negócios selecio- de Xi Jinping, contra 14,5%, em mé- ses; 26,7%, técnicos ou profissio- tiva conclamando a “cobrir de maneira
dia, entre 2002 e 2012 (durante a nais qualificados; 8,4%, funcioná-
nados passaram a ser membros da elite exaustiva” o setor privado, desde 2018
presidência de Hu Jintao). rios; 7,7%, estudantes; 20,3%,
política, garantindo desse modo que aposentados. as empresas cotadas no mercado chi-
suas empresas sejam, ao menos em • 27,9% dos membros são mulheres nês têm a obrigação de abrigar uma cé-
(11,2% em 2000). • 7,4% são oriundos de minorias étni-
parte, protegidas. Seu recrutamento se cas (4% em 2000); estas represen- lula do partido. Hoje, 92% das quinhen-
acelerou sob a presidência de Xi Jinping • 13,6% dos que aderem têm menos tam 9% da população total. tas maiores empresas chinesas
(a partir de 2013), com o objetivo de for- de 30 anos; 20,4% têm entre 31 e possuem uma.14 Ainda que nenhum
mar “um grupo de indivíduos perten- número preciso tenha sido divulgado,
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 15

ORGANIZAÇÃO TEM 92 MILHÕES DE MEMBROS

Um partido para
vazamentos regulares revelam a pre- lher em suas fileiras um número cres-
sença considerável de membros e célu- cente de capitalistas, ao mesmo tempo
las no seio de empresas estrangeiras que se fazia cada vez mais presente nas
instaladas na China.15 empresas. Essa aliança assimétrica vai

a renovação
Essa presença fornece ao Estado- além das fronteiras nacionais: o projeto
-partido uma alavanca de influência das Novas Rotas da Seda (Belt and Road
que ultrapassa as vastas faixas da eco- Initiative, BRI) acelera a internaciona-
nomia sob seu controle. O aparelho dis- lização das companhias chinesas, tan-

nacional
ciplinar do PCC, encarnado pela Comis- to privadas como públicas, que mon-
são de Disciplina e Inspeção, permite tam células do partido no estrangeiro a
punir os membros que infringirem o re- fim de enquadrar seus empregados. O
gulamento, à margem do sistema judi- PCC renunciou ao internacionalismo
ciário. Ele viu seus poderes se amplia- maoista, mas agora exporta seu modo
rem com a campanha anticorrupção. As de organização e seus instrumentos Um mundo separa o Partido Comunista Chinês criado por
sessões de crítica e autocrítica, chama- disciplinares.  um punhado de militantes em julho de 1921 – antes de
das “reuniões de vida democrática”,
reentraram na ordem do dia, permitin- *Jérôme Doyon é conferencista da Ox- ser liderado por Mao Tsé-tung, em 1934 – e a organização
do a expulsão dos funcionários “cor- ford School of Global and Area Studies e de Xi Jinping, cujo número de membros ultrapassa a
rompidos” ou “desleais”. Práticas maois- autor de Négocier la place de l’islam chi- população da Alemanha. Desde o início, o PCC exibe uma
tas tradicionais também são recicladas nois. Les associations islamiques à Nankin
para assegurar não mais a “pureza ideo- à l’ère des réformes [Negociar o espaço do flexibilidade extraordinária enquanto mantém um objetivo
lógica” de funcionários e membros, mas islã chinês. As associações islâmicas em constante: recuperar a grandeza da China
sua adesão à organização e ao chefe. Nanquim e a era das reformas], L’Harmat-
tan, Paris, 2014.
ESTRUTURAS DE VIGILÂNCIA POR JEAN-LOUIS ROCCA*
1   “ World Economic Outlook” [Panorama econô-
Até há pouco, essas células só desem- mico mundial], FMI, Washington, DC, 2020.
penhavam papel secundário no seio

D
2   Sonali Jain-Chandra et al., “Inequality in China
das empresas: recrutavam membros e – Trends, drivers and policy remedies” [Desi- e acordo com sua Constituição, za da economia. A maior parte dos na-
gualdade na China – Tendências, orientações
organizavam para eles treinamento ou e soluções políticas], FMI, 5 jun. 2018. “a República Popular da China é cionalistas chineses concluiu então
atividades sociais e culturais. Agora, 3   Nis Grünberg, “Who is the CCP? China’s um Estado socialista [...] dirigido que somente um Estado forte, domina-
com o objetivo de aprimorar um “siste- Communist Party in infographics” [Quem é o pela classe operária e fundamen- do por um partido único, poderia mo-

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PCC? O Partido Comunista Chinês em info-
ma de empresas modernas, com carac- gráficos], Mercator Institute for China Studies tado na aliança dos operários e campo- dernizar a China e capacitá-la a enfren-
terísticas chinesas”, as diretivas exi- (Merics), Berlim, 16 mar. 2021. neses”. Ninguém se espanta com o fato tar as potências imperialistas.
gem das empresas privadas “adesão ao 4   “Opinião sobre o reforço do trabalho de frente de a Constituição de um país não cor- A Revolução de Outubro de 1917, na
unida no seio da economia privada da nova
princípio segundo o qual o partido tem era”, Escritório do PCC, Pequim, 15 set. 2020 responder exatamente à sua realidade. Rússia, apenas reforçou essa convicção.
poder de decisão em matéria de recur- (em mandarim). Mas, aqui, a diferença é grande. Hoje, a O microscópico PCC levava vantagem
sos humanos”. Ainda é cedo para saber 5   Nis Grünberg, “Who is the CCP?”, op. cit. sociedade chinesa apresenta todos os sobre seu concorrente, o Kuomintang,1
6   Bruce Dickson, “Who wants to be a commu-
que forma essa adesão assumirá, mas, nist? Career incentives and mobilized loyalty in aspectos de uma variante do capitalis- pois se apoiava em uma teoria (o mar-
para Ye Qing, vice-presidente da Fede- China” [Quem quer ser comunista? Incentivos mo: o trabalho é uma mercadoria, a so- xismo), um modelo (o bolchevismo) e
ração Chinesa da Indústria e do Co- de carreira e lealdade mobilizada na China], The ciedade de consumo garante tanto a es- um Estado (a União Soviética). Mas não
China Quarterly, v.217, Cambridge, mar. 2014.
mércio, dirigida pelo PCC, é evidente 7   Ver Alessia Lo Porto-Lefébure, “Formation à tabilidade social como o motor do hesitou, quando julgou necessário, em
que implicará a sujeição da gestão do l’américaine pour dirigeants chinois” [Forma- crescimento, as desigualdades são con- romper com seu principal sustentáculo
pessoal à autoridade do partido.16 ção à americana para dirigentes chineses], Le solidadas por mecanismos de reprodu- (a partir do fim dos anos 1950), com o
Monde Diplomatique, jan. 2021.
Os recrutamentos e demissões fica- 8   Frank N. Pieke, “Party spirit: producing a ção social baseados no dinheiro, na es- modelo e mesmo com a teoria.
riam submetidos ao acordo prévio das communist civil religion in contemporary Chi- colaridade e na exclusão. Ironicamente, Os problemas com a teoria começa-
células a fim de impedir que “os geren- na party spirit” [Espírito partidário: a criação boa parte das classes populares é cons- ram desde o início. Primeira dificulda-
de uma religião civil comunista no espírito par-
tes promovam quem quiserem”, explica tidário da China contemporânea], Journal of tituída por aqueles que deveriam ser os de: o PCC não era o partido da classe
Ye Qing. Ele recomenda igualmente the Royal Anthropological Institute, v.24, n.4, senhores: camponeses e operários. operária. A fraqueza da industrializa-
instalar nas empresas uma estrutura de Londres, dez. 2018. Esse abismo entre a narrativa e a ção limitava o número de operários,
9   Ibidem.
supervisão e auditoria, sob supervisão 10  C f. “The end of the road for Xi’s mass line realidade é característico da história do que representavam apenas 0,5% da po-
do partido, para garantir que elas obe- campaign: an assessment” [O fim da linha Partido Comunista Chinês (PCC). Des- pulação em 1949. Eles constituíam so-
deçam à lei, mas também para detectar para a campanha de massa de Xi: uma avalia- de seu nascimento, em 23 de julho de mente 8% dos membros do partido em
ção], China Brief, v.14, n.20, Washington, DC,
as infrações à disciplina e os “compor- out. 2014. 1921, ele imagina uma sociedade (que 1930 (dos quais 2% eram trabalhadores
tamentos anormais” dos empregados. 11  “Opinião sobre o reforço do trabalho de frente não existe) na qual possa evoluir, con- de fábrica). A quase totalidade dos diri-
O aparelho disciplinar se estenderia unida no seio da economia privada da nova servar-se no poder e transformar o gentes era formada por pessoas instruí-
era”, op. cit.
então a todos, até aos não comunistas. 12  Ver Jordan Pouille, “Alibaba, épopée chinoise” país. Fiel nisso aos ideais revolucioná- das, saídas das classes intermediárias
Segundo essas novas diretrizes, a [Alibaba, epopeia chinesa], Le Monde Diplo- rios do início do século XX, ele conse- (camponeses prósperos, intelectuais
administração das células deverá ser matique, mar. 2021. guiu modernizá-lo, enriquecer uma de província, funcionários).2 Os com-
13  Jude Blanchette, “Against atrophy: party orga-
oficialmente integrada aos estatutos nizations in private firms” [Contra a atrofia: parte não negligenciável do povo e for- bates se deram conjuntamente, sobre-
das empresas, com um orçamento es- organizações partidárias em empresas priva- talecer a nação. Sem dúvida, não é pre- tudo no começo dos anos 1920, mas a
pecífico reservado às suas atividades. das], Made in China Journal, v.4, n.1, Acton ciso procurar mais longe o motivo do classe operária sempre levou uma vida
(Austrália), jan.-mar. 2019.
Isso equivale a codificar juridicamente 14  Neil Thomas, “Party committees in the private apoio popular de que goza. O controle à parte, apoiando-se em suas próprias
as exigências do PCC para que as dire- sector: rising presence, moderate prevalence” da recente pandemia de Covid-19 con- organizações: sociedades secretas, re-
trizes se tornem coercitivas até no caso [Comitês partidários no setor privado: pre- tribuiu para alimentar o sentimento de des de solidariedade com base geográ-
sença crescente, predominância moderada],
das sociedades que não estão sob seu MacroPolo, 16 dez. 2020. que o PCC continua, apesar de seus er- fica e sindicatos.3 Depois de 1949, a in-
controle direto. O funcionamento do 15  “ Party insiders in the ranks: communists infil- ros e defeitos, insubstituível. dustrialização provocou um forte
setor privado vai se assemelhando cada trate Western consulates” [Informantes do Para a China, o início do século XX aumento no número de operários, que
partido nas fileiras: comunistas se infiltram
vez mais ao das empresas estatais. nos consulados ocidentais], The Australian, foi uma época de fracassos. Fracasso passaram a ser perto de 150 milhões
Preocupado com sua própria sobre- Sydney, 15 dez. 2020. nas tentativas de reforma do Império em 1995 (8% da população e um pouco
vivência e caracterizado por um gran- 16  Ye Qing, “Promover a fusão do sistema de di- sob a dinastia Qing (1644-1911); malo- mais de 10% dos membros do partido).
reção do partido e do sistema de gestão das
de pragmatismo, talvez mesmo por um empresas privadas”, China Business Times, gro da República proclamada em 1912, O novo regime proporcionou, a uma
vazio ideológico, o PCC passou a aco- Pequim, 17 set. 2020 (em mandarim). vítima dos senhores da guerra; fraque- parte deles, condições de vida e traba-
16 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

lho muito vantajosas: emprego vitalí- como aconteceu na maior parte dos uma economia robusta e um Estado soal político. Os dirigentes do país são
cio, assistência social, moradia, consu- países socialistas, uma onda de críticas forte a fim de recolocar a China no cen- oriundos do mesmo meio que os revo-
mo coletivo. Transformados em vitrine já havia desabado sobre o regime. Não tro do jogo mundial. A “elite socialista” lucionários do início do regime: filhos e
do regime e instrumento de sua políti- pretendiam suprimir o partido, mas lu- se armou em nova classe dirigente, aliados dos altos funcionários ou mem-
ca de industrialização, esses “emprega- tar contra seus desvios autoritários e acumulando todos os poderes. bros dos círculos profissionais mais
dos e operários” titulares de seu posto sua corrupção, além de denunciar a qualificados.9
defendiam os interesses da classe – às precariedade do nível de vida. Para ca- UMA “PEQUENA Não obstante, se o contrato social
vezes contra o partido. Em 1957, por lar seus opositores, o PCC recorreu a PROSPERIDADE” PARA TODOS não for cumprido e a população não
exemplo, muitos se opuseram à intro- uma teoria de classes fundada não mais No entanto, apesar dos erros e fracas- sentir mais que seu destino está preso
dução de métodos de trabalho “cientí- na relação com os meios de produção, e sos, a China não apenas se tornou uma ao do partido e da nação, o segundo sé-
ficos” e ao reinado dos chefetes socia- sim nos “valores”, isto é, na atitude potência econômica e militar, como culo do PCC corre o risco de ser abre-
listas. Propugnavam pelo igualitarismo diante do poder. A burguesia desapare- também permitiu a boa parte de sua viado. Manter a estabilidade interna
entre operários4 e, durante a Revolução ceu, explicava-se, mas o “espírito bur- população satisfazer seu anseio de in- implica, desse modo, fomentar o cres-
Cultural (1966-1976), exigiram a manu- guês” podia se insinuar em todas as ca- gressar na sociedade de consumo. Ho- cimento, que não pode mais se apoiar
tenção de seus privilégios materiais, beças. Durante a Revolução Cultural, je, as esperanças e o modo de vida do nos capitais estrangeiros e na exporta-
bem como sua extensão aos trabalha- os apoiadores do Grande Timoneiro chinês médio não são em nada diferen- ção de produtos baratos. O partido de-
dores temporários.5 eram considerados em conjunto como tes do modo de vida e das esperanças verá contar daqui em diante com a de-
Segundo problema: o partido con- autênticos revolucionários, não impor- do francês médio. Sem dúvida, o PCC manda interna, com os investimentos
siderava a criação de uma nova socie- tando sua origem real. Essa teoria ser- explica, curiosamente ajudado pela em outros países e com a inovação tec-
dade como um simples meio de restau- viu para eliminar aqueles para quem a mídia internacional, que os “valores nológica: uma espécie de nacionalismo
rar a nação e consolidar seu poder. A solução dos problemas do país residia chineses” se opõem aos “valores oci- econômico que entra em conflito (em
análise em termos de classes não era, no desenvolvimento econômico. dentais”, mas não fornece provas. A parte) com os interesses de outras po-
essencialmente, destinada a dar conta “sociedade harmoniosa” ou o “sonho tências dominantes no cenário inter-
da realidade social, mas a mobilizar a chinês” apenas combinam referências nacional. Depois de cem anos de exis-
população. Assim, as necessidades da Quando Mao Tsé-tung banais – um Estado forte, mas admi- tência, ele forjou uma China forte, mas,
unificação nacional ou da tomada do assumiu o controle do nistrado pela lei, um “bom governo” se- para preservar sua estabilidade, o país
poder supunham a junção com outras gundo o modelo clássico (burocracia não tem outra escolha senão desafiar
forças, como durante a guerra contra o
PCC, em 1934, o proleta- eficiente, prevenção de conflitos) – com os interesses consolidados no mundo
Japão (1937-1945) ou entre 1945 e o iní- riado foi substituído a ideia antiga, também ocidental, de fe- contemporâneo, como se vê pelo con-
cio dos anos 1950. A burguesia nacio- pelo campesinato como licidade coletiva. O “pensamento de Xi flito com os Estados Unidos. E isso
nal era, por exemplo, tida como uma “classe revolucionária” Jinping”, por sua vez, provém do leni- também fragiliza a China. 

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aliada objetiva, em detrimento do es- nismo (“preservar o domínio do parti-
trato burguês comprador (vendido aos do sobre todas as organizações”), do *Jean-Louis Rocca, professor da Scien-
estrangeiros) ou burocrático (vendido Tudo se confundiu novamente ao Iluminismo (favorecer a ciência, “criar ces Po e pesquisador do Centre de Re-
ao Kuomintang). fim dos anos 1970 e sobretudo a partir uma comunidade de destino para a hu- cherches Internationales (Ceri), é autor de
Do mesmo modo, se o campesinato dos anos 1990. A maior parte dos mem- manidade”), do discurso humanista The Making of the Chinese Middle Class:
assumiu um papel central, foi por uma bros da classe dirigente que tinham si- (melhorar a vida e o bem-estar das pes- Small Comfort and Great Expectations [A
razão prática, não teórica. A partir de do afastados voltou ao poder e foi aos soas) e ainda das ideias comuns a todas construção da classe média chinesa: pou-
1927, as organizações urbanas acaba- poucos inserindo mecanismos capita- as nações de hoje (“viver em harmonia co conforto e muitas esperanças], Palgrave
ram destruídas pelo Kuomintang. listas no coração da economia políti- com a natureza”).7 Macmillan, Nova York, 2017.
Quando Mao Tsé-tung assumiu o con- ca. Para eles, somente um novo con- Longe de traí-los, o PCC permanece
trole do PCC, em 1934, o proletariado trato social inspirado na promessa de fiel a dois princípios. Por um lado, pre-
foi definitivamente substituído pelo prosperidade poderia garantir a res- serva o mito de uma sociedade sem 1   F undado em 1912, o Kuomintang, partido na-
cionalista, primeiro combateu os comunistas
campesinato como “classe revolucio- tauração da potência chinesa e a pere- classes; por outro, recusa-se a abando- e depois se uniu a eles para enfrentar a ocu-
nária”. Todavia, se os campos chineses nidade do partido. A contrapartida era nar a ideia de uma fusão entre nação e pação japonesa, antes de se opor ao PCC
apresentavam fortes desigualdades o abandono da luta de classes como partido. Repetimos: não se trata de após a Segunda Guerra Mundial. Derrotado,
refugiou-se em Taiwan com suas tropas. Ali,
sociais, os camponeses pobres não método de dominação. Os operários, criar uma sociedade igualitária, mas de conservou o poder pela força e em seguida
eram, de modo algum, revolucioná- “senhores do país”, foram substituídos permitir ao conjunto da população pelas urnas, até março de 2000.
rios. As pressões econômicas obriga- por camponeses-migrantes, sem direi- conquistar uma “pequena prosperida- 2   James Pinckney Harrison, The Long March to
Power: A History of the Chinese Communist
ram também à busca do apoio das ca- tos e encaminhados para o trabalho. de”. Pouco importa que as diferenças Party, 1921-72 [A longa marcha rumo ao po-
madas mais educadas e dinâmicas, Em 2002, com a teoria das “três repre- de renda sejam abissais, desde que ca- der: uma história do Partido Comunista Chi-
como o “campesinato médio”. A refor- sentatividades”, era preciso respeitar da um consiga um bem-estar razoável e nês, 1921-72], Præger, Nova York, 1972.
3   Gail Hershatter, The Workers of Tianjin, 1900-
ma agrária de 1950 melhorou a situa- os interesses não só dos trabalhadores que a pobreza desapareça. Para grande 1949 [Os trabalhadores de Tianjin, 1900-
ção no campo e conquistou o apoio e intelectuais, mas também dos em- parte da população, esse objetivo justi- 1949], Stanford University Press, 1993.
dos habitantes; mas logo, a partir de presários, que geravam crescimento e fica (por enquanto) a predominância 4   M ark W. Frazier, The Making of the Chinese
Industrial Workplace: State, Revolution, and
meados da década, a coletivização empregos, reforçando a potência na- absoluta dos interesses nacionais e da Labor Management [A criação do ambiente
transformou os camponeses em uma cional. Em uma China sempre socia- unidade em torno da organização. de trabalho industrial chinês: Estado, revolu-
classe explorada, cuja atividade servia lista, eles não podiam ser exploradores Afora nos anos 1980, durante os ção e administração do trabalho], Cambridge
University Press, 2002.
para financiar a industrialização e a (ver artigo de Jérôme Doyon). O país quais alguns membros preceituavam 5   Elizabeth J. Perry e Li Xun, Proletarian Power:
construção do socialismo. era, portanto, uma sociedade sem um “socialismo humanista” ou formas Shanghai in the Cultural Revolution [Poder
classes, composta de “assalariados variadas de democracia “popular” no proletário: Xangai na Revolução Cultural],
Westview Press, Boulder (Colorado), 1997.
A TEORIA DAS “TRÊS com renda média”, em que cada um sentido próprio do termo, o PCC nunca 6   C f. The Making of the Chinese Middle Class,
REPRESENTATIVIDADES” deveria contribuir para a felicidade e a levou em conta verdadeiras propostas op. cit.
Por fim, o PCC se viu às voltas com um grandeza nacional. Sem dúvida, o par- alternativas. Ainda hoje, mesmo os 7   John Garrick e Yan Chang Bennett, “La pen-
sée de Xi Jinping” [O pensamento de Xi
terceiro problema: para fortalecer a na- tido tinha inimigos – mas inimigos da mais críticos se inquietam com os fer- Jinping], Perspectives Chinoises n.2018/1-2,
ção, devia contar com a política ou com nação, na realidade.6 mentos de instabilidade ocultos nas Hong-Kong, 2018.
a economia, com a luta de classes ou Desse ponto de vista, é difícil anali- eleições,8 sem falar do conservadoris- 8   Émilie Frenkiel, Parler politique en Chine. Les
intellectuels chinois pour ou contre la démo-
com a prosperidade? Depois de decla- sar a trajetória do PCC em termos de mo político de grande parte da popula- cratie [Falar de política na China. Os intelec-
rar, em 1956, que sua política havia eli- “abandono” (ou “traição”) do ideal so- ção. “Que vamos ganhar votando?”: tal tuais chineses pró e contra a democracia],
minado os inimigos do socialismo, Mao cialista. Desde o início, o socialismo é, ao que parece, o estado de espírito Paris, 2014.
9   David S. G. Goodman, Class in Contemporary
concluiu que a luta de classes continua- proclamado não era um objetivo, e sim atual. Esse conservadorismo pode ser China [Classe na China contemporânea], Po-
va necessária. Mas naquele momento, um meio para unificar o país, construir visto também na permanência do pes- lity Press, Cambridge, 2014.
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 17

UM ACORDO QUE FRAGILIZA OS LAÇOS ENTRE BELFAST E LONDRES

O Brexit vai unir rias mais importantes do unionismo –


e do próprio Trimble. O Sinn Féin e o
IRA haviam advogado que a maioria

as duas Irlandas?
unionista dentro das fronteiras norte-
-irlandesas não tinha muita importân-
cia. De acordo com eles, a região era
uma entidade política artificial e ilegí-
tima; a maioria nacionalista da ilha em
seu conjunto deveria, então, vencer no
Revoltas explodiram na Irlanda do Norte na primavera de 2021, especialmente nos que chamavam de “veto unionista”. O
bairros pró-Reino Unido, fiéis a Londres. Depois do plebiscito a favor do Brexit, em GFA rejeita essa interpretação da reali-
dade: todos os signatários, inclusive o
2016, a nação norte-irlandesa negocia com Bruxelas, com um grande vencedor: Sinn Féin, tiveram de “reconhecer a le-
o campo favorável à reunificação das Irlandas, cujas esperanças foram gitimidade de qualquer escolha formu-
reanimadas pela falta de escrúpulos de Boris Johnson lada pela maioria da população norte-
-irlandesa em razão de seu estatuto”.6
O tratado de paz não especifica o
POR DANIEL FINN* que deve se passar logo após a decisão
do Reino Unido de abandonar a União

A
inda ignoramos a amplitude das Somente 17% afirmaram querer a reu- Unionista de Ulster [UUP, sigla do Uls- Europeia: ninguém pensou nisso em
consequências do Brexit para a nificação com a República da Irlanda.2 ter Unionist Party], David Trimble, pu- 1998. De acordo com os termos do
Irlanda do Norte. Mas ele já fez No entanto, um mês depois da elei- blicada em fevereiro passado no coti- acordo, os governos britânico e irlan-
diversas vítimas: o Partido Unio- ção da Assembleia da Irlanda do Norte, diano Irish Times, sediado em Dublin. dês reconheceram “a relação singular
nista Democrático [DUP, sigla do De- em 2016, os eleitores britânicos esco- Em 1998, Trimble recebeu o Prêmio entre seus povos e a cooperação es-
mocratic Unionist Party] e, de modo lheram abandonar a União Europeia. Nobel da Paz, junto com o dirigente treita entre seus países enquanto vizi-
geral, todos os partidários da tutela bri- As vozes inglesas, favoráveis ao Brexit nacionalista John Hume, por ter parti- nhos cordiais e parceiros dentro da
tânica sobre Belfast e sua região. (56% dos votos), abafaram o “não” nor- cipado das negociações preliminares União Europeia”. A eleição de 2016 não
Quando, em dezembro de 2015, Ar- te-irlandês, apesar de nítido e claro ao Acordo da Sexta-Feira Santa (Good violou explicitamente o GFA, mas le-
lene Foster herdou a direção do DUP, (44%). Ao contrário da maior parte dos Friday Agreement, GFA), assinado na- vantou questões às quais os dois go-
tudo parecia favorável a seu partido e à partidos locais, que defendiam o “per- quele ano. Durante muito tempo prin- vernos e os partidos norte-irlandeses
causa que ela defendia. Em 2007, após manecer” (continuar na União Euro- cipal partido unionista, o UUP perdeu deveriam responder.

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anos de tergiversações, o DUP tinha peia), o DUP se alegrou com esses re- grande parte de seu eleitorado em be- O DUP defendeu a ideia de que a
aceitado compartilhar o poder com o sultados e se dedicou a defender o nefício do DUP após 1998. A partir de maioria pró-Brexit no Reino Unido de-
partido Sinn Féin. Dois anos antes, o Brexit, apesar da agitação que ele susci- então, membro conservador da Câma- veria se impor à maioria norte-irlande-
braço armado do Sinn, o Exército Re- tava. Uma estratégia desastrosa. ra dos Lordes, em Londres, Trimble sa favorável à sua manutenção na União
publicano Irlandês [IRA, sigla do Irish Há cinco anos ninguém poderia conclamou ao voto pelo “Leave” (saída Europeia. Especialmente Trimble se de-
Republican Army], tinha abandonado imaginar que hoje, enquanto Foster da União Europeia), enquanto o UUP dicou a defender essa lógica... sem per-
as armas e declarado um cessar-fogo abandona seu posto, o futuro se revela- defendia o “Remain” [permanecer]. ceber que ele serrava o galho em que es-
permanente. ria tão sombrio para o DUP. Nas elei- Em 2016, ele avaliou que o Brexit ofere- tava sentado colocando em questão a
Alguns antigos aliados do reveren- ções de 2017, faltaram cerca de mil vo- cia a possibilidade de “provocar um definição da autodeterminação inscrita
do Ian Paisley, fundador do DUP, viram tos (em um colégio eleitoral de mais ou renascimento britânico em escala no Acordo da Sexta-Feira Santa. Se a po-
nesse acordo uma forma de capitula- menos 1,25 milhão de pessoas) para planetária”. 3 pulação britânica pôde decidir largar as
ção diante do nacionalismo e do IRA. que o partido não cedesse o primeiro No entanto, em sua coluna, Trimble amarras europeias contra a vontade da
Mas não o campo unionista em sua to- lugar para o Sinn Féin. Pela primeira denunciou o protocolo da Irlanda do maioria norte-irlandesa, por que não
talidade. Por ocasião de dois escrutí- vez na história da Irlanda do Norte, os Norte, que ele descreveu como uma estaria em condições de impor à região
nios regionais que ocorreram em 2007 unionistas não obtiveram maioria dos “transfiguração gigantesca e antide- um arranjo específico com Bruxelas
e 2011, o DUP cimentou sua posição de assentos. O próximo escrutínio será em mocrática da posição constitucional que a distinguisse da Grã-Bretanha?
principal partido unionista e de força maio de 2022. No momento, as pesqui- da Irlanda do Norte”. “Imploro a meu A questão foi colocada com uma
política dominante da Irlanda do Nor- sas preveem para o DUP uma degrin- governo, ao governo da República da acuidade particular em janeiro de 2017,
te, com cerca de 30% dos votos. Duran- golada em torno de 9% em relação a seu Irlanda e à União Europeia que deixem quando a primeira-ministra conserva-
te as eleições de maio de 2016 – as ter- resultado de 2017 e uma pesada derrota de tratar de maneira superficial as dora da época, Thereza May, prometeu
ceiras desde que o DUP tinha aceitado diante do Sinn Féin. conquistas do acordo de Belfast”, es- retirar seu país do Mercado Único e da
a partilha do poder e que se deram pou- Paralelamente, o apoio à perspecti- creveu.4 Segundo ele, esse protocolo União aduaneira: um projeto batizado
co depois da chegada de Foster à dire- va de uma reunificação irlandesa au- significa que “a Irlanda do Norte não é como “Hard Brexit”. A aplicação dessa
ção –, o partido recuou menos de 1%, mentou. Sem dúvida, a permanência mais um membro integral do Reino opção ao conjunto do Reino Unido im-
com um resultado (29,2%) bem supe- no Reino Unido não sofre nenhuma Unido, que ela foi anexada por Bruxe- plicava o reaparecimento de uma fron-
rior ao do Sinn Féin (24%). ameaça iminente, mas a relação de for- las e se encontra subordinada a leis eu- teira física – com controles alfandegá-
Além desses bons resultados, os mi- ças sobre a questão não permite mais a ropeias, assim como a um tribunal de rios – entre a Irlanda do Norte e a
litantes do DUP podiam se vangloriar seus defensores se mostrarem confian- justiça europeu que não tolera nenhu- República da Irlanda. Dublin se opôs a
pelo fato de que não pesava mais ne- tes. Mesmo sem referendo num futuro ma contestação”.5 No entanto, a miopia isso categoricamente, com o apoio de
nhuma ameaça séria sobre a união en- próximo, o protocolo da Irlanda do dessa análise não escapou aos leitores Bruxelas. Só restaram três opções para
tre a Irlanda do Norte e a Grã-Breta- Norte que figura no acordo assinado do Irish Times, conscientes do fato de Londres: abandonar a União Europeia
nha.1 O Sinn Féin, que tem como entre o primeiro-ministro britânico, que foi a facção pró-Brexit do campo sem acordo, retomar a promessa de
principal objetivo manter a emancipa- Boris Johnson, e a União Europeia em unionista que “tratou com superficia- Thereza May e trabalhar em um “soft
ção em relação a Londres, admitiu que dezembro de 2020 já enfraquece os la- lidade as conquistas” do GFA. Efetiva- Brexit” ou aceitar um arranjo específi-
a unidade irlandesa não poderia ocor- ços entre Belfast e Londres. As disposi- mente, na prática, o protocolo da Irlan- co concernente à Irlanda do Norte.
rer sem desfrutar primeiro de um apoio ções comerciais e as relações com Bru- da do Norte é resultado de sua Para os unionistas, essa terceira op-
majoritário no Norte. Ora, em uma pes- xelas dos dois lados do Mar da Irlanda irresponsabilidade. ção era a pior, e muito pior. Logo após
quisa feita em janeiro de 2013, 65% das são diferentes. as eleições gerais britânicas de junho
pessoas entrevistadas declararam que, A amplitude dos danos que o Brexit ALFÂNDEGAS NO MEIO DO MAR de 2017, que privaram May de sua maio-
no caso de um referendo, elas votariam infligiu ao unionismo transparece em A concepção da autodeterminação ins- ria no Parlamento, o DUP clamou alto e
por uma manutenção no Reino Unido. uma coluna do ex-dirigente do Partido crita no GFA constituiu uma das vitó- forte. Fortalecido por seus dez assentos
18 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

Ronda com
em Westminster, ele se encontrava en- com o nacionalismo irlandês. Os unio-
tão na posição de domínio – uma chan- nistas sofrem pelo fato de seu senti-
ce que, no entanto, jogou fora ao se ali- mento de pertencimento à comunida-
nhar sistematicamente com as posições de britânica não encontrar eco do outro

os nacionalistas
da facção pró-Brexit mais radical do lado do Mar da Irlanda: a maior parte
Partido Conservador, disposto a correr dos britânicos não os considera perten-
o risco de se opor a May. Crítico mais centes à mesma nação que eles e não
veemente da primeira-ministra, John- hesitariam em deixar a região abando-

irlandeses
son tomou a palavra durante a Confe- nar o Reino Unido se isso facilitasse a
rência do DUP, em novembro de 2018, vida política da Grã-Bretanha.
para qualificar o projeto de acordo com Nesse contexto, tudo levava o DUP a
Bruxelas de “capitulação”. se mostrar favorável à campanha pró-
Durante muito tempo, os unionis- -Brexit lançada por Johnson e por Nigel
tas desconfiaram dos dirigentes políti- Farage – ex-dirigente do Partido pela POR HADRIEN HOLSTEIN*, ENVIADO ESPECIAL
cos britânicos. Mas o DUP optou por Independência do Reino Unido [Ukip,
apostar em Johnson, embora célebre sigla do United Kingdom Independen-

S
por suas reviravoltas e sua falta de cre- ce Party] –, uma vez que ela representa- ábado, 3 de abril de 2021, Lon- segunda-feira? Encontro às 14 horas no
dibilidade. Favorável ao Brexit unica- va uma forma de nacionalismo mais donderry. O nome desta cidade cemitério em Creggan”.
mente na medida em que isso lhe per- assumida e mais exclusiva que emana- da Irlanda do Norte tem seis le- Segunda-feira, 5 de abril, Derry.
mitiria se aproximar do poder, Johnson va do próprio centro do Reino Unido. tras mudas para os católicos que Época da Páscoa. Quando nos dirigi-
ridiculariza seus engajamentos junto Infelizmente, para ele, esse nacionalis- nela residem: as seis primeiras. Por mos para o bairro de Creggan, saindo
ao DUP e renegocia um acordo do mo britânico anabolizado zombava da aqui, não gostam muito de Londres. de Bogside, os muros são cobertos de
Brexit desde sua chegada à 10 Downing sorte da Irlanda do Norte. Desse modo, Há alguns dias, visando à chegada grafites: “Merda aos britânicos”, “Sol-
Street, em julho de 2019. a mão de Johnson não tremeu quando do fim de semana da Páscoa, bandeiras tem Paul McIntyre”,2 “A injustiça britâ-
Em vez do backstop [rede de segu- ele tratou de trair seus antigos aliados. enfeitam as casas do Bogside, um bair- nica não é justiça!”. Na chegada ao ce-
rança, conhecido também como salva- Os unionistas protestaram em vão con- ro católico. Tricolores, com as cores da mitério, os cartazes que chamam para a
guarda irlandesa] que postergaria a re- tra o protocolo da Irlanda do Norte, o República, ou bordadas com as pala- manifestação são colados nos vasos,
solução do problema norte-irlandês, que, em parte, explica a explosão de vras “Irish Republic” [República Irlan- nas lixeiras ou nos medidores de
Johnson aceitou a ideia de barreiras al- manifestações violentas na região no desa] em letras douradas e brancas eletricidade.
fandegárias no meio do Mar da Irlan- fim de março.8 num fundo verde. Sua presença come- Membro da sede nacional do Saora-
da, mais que entre as duas entidades Editorialistas advogam para que o mora a Easter Rising [Revolta da Pás- dh, Sean, de 33 anos, alfineta um lírio

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irlandesas. O protocolo da Irlanda do Sinn Féin e os favoráveis a uma Irlanda coa]. Durante essa rebelião armada, republicano na lapela de seu casaco, em
Norte, que formaliza a ideia, teve efeito reunificada não se beneficiem da trai- em Dublin, na Páscoa de 1916, os inde- seguida caminha na alameda central
no início de 2021. Para o ex-prefeito de ção submetida pelos unionistas para pendentistas irlandeses proclamaram em direção ao túmulo republicano onde
Londres e seus aliados, a urgência de avançarem sua causa. Mas será que é a emancipação da ilha. Apesar de sua está inscrita a “Roll of Honour” [Lista de
romper com o mercado único e com a mesmo realista esperar que atores polí- rendição imperativa poucos dias de- Honra], com o nome dos combatentes
união aduaneira tinha mais peso do ticos que consagraram sua vida à uni- pois, o evento é considerado a certidão locais do IRA que morreram pela causa.
que sua solidariedade com o unionis- dade da ilha adiem seu objetivo justa- de nascimento da “Irlanda livre”. Um microfone e um púlpito decorado
mo norte-irlandês. mente no momento em que sua No início da tarde, o sol forte substi- com um buquê verde, branco e alaranja-
Furioso, o DUP teve de se render à realização parece ao alcance da mão?  tuiu a bruma espessa da manhã. Umas do foram instalados para a ocasião.
evidência: ele preparou sua própria cinquenta pessoas se reúnem em frente Diante de um público de uma centena
derrota. Os unionistas favoráveis ao *Daniel Finn  é autor de One Man’s Terro- ao marco histórico Free Derry Corner, de pessoas e uma dezena de jornalistas,
Brexit estavam dispostos a impor sua rist: A Political History of the IRA [Terroris- que delimita uma zona cuja autonomia a comemoração começa debaixo de gra-
preferência pelos nacionalistas, assim mo de um homem só: uma história política os residentes declararam entre 1968 e nizo e ventania. Um jovem de uns 20
como pela minoria unionista pró-per- do IRA], Verso, 2019. 1972. O pequeno grupo reúne militan- anos de idade lê a declaração de inde-
manecer. O governo de Johnson agiu tes do Saoradh, um partido republica- pendência de 1916. Tommy, ex-preso po-
em detrimento deles de maneira seme- 1   A Grã-Bretanha é um território geográfico no de extrema esquerda contrário ao lítico de 47 anos, lê a declaração escrita
lhante, mas às suas custas. Os norte-ir- que compreende a Inglaterra, a Escócia e o Acordo da Sexta-Feira Santa (Good Fri- atualmente pelos republicanos encarce-
landeses partidários do Brexit são hoje País de Gales. day Agreement, GFA), que acabou com rados no Reino Unido e na Irlanda. En-
2   M ark Devenport, “Opinion poll indicates NI
vítimas de uma lógica política que eles voters would reject Irish unity” [Pesquisa de o conflito armado em 1998. Fundado fim, Sean faz um discurso reafirmando
contribuíram para promover. opinião pública indica que eleitores norte-ir- em 2016, o Saoradh é aliado da Associa- a urgência da luta revolucionária con-
Sem dúvida, os historiadores terão landeses rejeitam a unidade irlandesa], BBC ção de Bem-Estar do Prisioneiro Repu- duzida pelo Saoradh e a necessidade de
News, 5 fev. 2013.
dificuldade de se mostrar gentis com 3   Sam McBride, “How Arlene Foster fell: Even blicano Irlandês [IRPWA, sigla da Irish trabalhar por uma república socialista
Foster; mas seria injusto considerá-la a as she dismissed the threat, the knives were Republican Prisoner Welfare Associa- irlandesa reunificada. Ele evoca a espe-
única responsável por essa derrota. being plunged” [Como Arlene Foster caiu: ao tion], criada para dar ajuda aos prisio- rança de transmitir a “chama republica-
mesmo tempo que ela não considerava a
Teoricamente, o DUP poderia ter de- ameaça, as facas estavam sendo cravadas], neiros republicanos, e do Novo Exérci- na” às gerações futuras e fala da repres-
fendido o “permanecer” no referendo News Letter, Belfast, 1º maio 2021. to Republicano Irlandês (New IRA), são e da censura a que são submetidos
de 2016, e depois um Brexit “soft” após 4   G areth Gordon, “Senior Ulster Unionists contrário à deposição das armas. “A IR- os militantes do Saoradh. Ele salienta
appeal to members for Leave vote” [Apelo
a vitória do “abandonar”.7 Na prática, aos membros unionistas do Senior Ulster PWA organiza todos os meses uma reu- também a solidariedade de seu movi-
as escolhas do DUP, após 2016, eram para o voto “abandonar”], BBC News, Lon- nião mensal, aqui no Free Derry Cor- mento para com a Palestina. O hino ir-
inevitáveis: elas refletem mais as con- dres, 18 jun. 2016. ner, para alertar sobre a situação dos landês ressoa; a multidão se dispersa.
5   Os unionistas preferem chamar o Acordo da
tradições do unionismo moderno do Sexta-Feira Santa de “Acordo de Belfast”. prisioneiros”, explica Joe,1 de 28 anos.
que a incompetência de qualquer um 6   David Trimble, “Protocol threatens rather than “Muita gente ainda ignora que uns trin- “OS MUROS DA PAZ”
de seus dirigentes. protects Belfast Agreement” [Protocolo ta republicanos foram presos por suas Um helicóptero da polícia sobrevoa o
ameaça mais do que protege o Acordo de
Belfast], Irish Times, Dublin, 20 fev. 2021. convicções”, acrescenta Declan, de 24 bairro. “Quatro noites de sublevações
AMARGA DESILUSÃO 7   “Good Friday Agreement” [Acordo da Sexta- anos. Duas bandeirolas são abertas na no Waterside, e eles deslocam um heli-
O unionismo do Ulster é uma forma de -Feira Santa]. Disponível em: www.dfa.ie. margem da estrada e uma caixinha pa- cóptero para a comemoração”, ironiza
8   S e todos os partidários do Brexit na Irlanda
nacionalismo britânico que emerge na do Norte não tivessem votado, ou então ti- ra doação é estendida aos motoristas de Tommy ao sairmos do cemitério. Há
periferia do Reino Unido e, em geral, se vessem votado “permanecer”, não teriam al- automóveis. A maior parte dos que pas- alguns dias, os lealistas, defensores da
revela mais combativo que seu equiva- terado a maioria favorável à saída da União sam na estrada é indiferente. Final- monarquia, estão em ebulição. Tudo
Europeia no Reino Unido.
lente do centro. Ele aparece em um es- 9   C f. “Cloddish insensitivity” [Insensibilidade mente, Danny, de 22 anos, me pergun- começou em 30 de março no bairro
paço político singular, onde se rivaliza cruel], LRB blog, 14 abr. 2021. ta: “Você vem para a comemoração na Waterside, na outra margem do rio da
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 19

cidade de Derry, antes de se propagar preciso desviarmos pelo centro da cida- pessoas encapuzadas dançam ao som cionalista por meio da gestão dos pro-
por Belfast, Carrickfergus e Newtow- de. Cerca de trinta membros do Sinn de música eletrônica, enquanto o mo- blemas rotineiros da população e a
nabbey. No cenário de descontenta- Féin – representantes locais eleitos, torista faz viradas controladas diante compensação das ausências do Estado.
mento ligado ao Brexit (ler artigo na simples militantes ou trabalhadores de da barreira policial. No momento se- Rumo ao New Lodge, um bairro po-
página anterior), a centelha é parte de associações – se reuniram para evitar guinte, três jovens chegam com coque- pular e nacionalista na área norte de
uma decisão da Justiça: não perseguir qualquer confusão na ordem pública no téis molotov. Eles têm dificuldade de Belfast. Na véspera, tinham explodido
os dirigentes do Sinn Féin (principal ambiente dos republicanos, garantindo acendê-los. Quando, enfim, os lançam, conflitos entre os jovens desse bairro e
partido republicano, historicamente que os jovens católicos não vão entrar os pavios não mantêm a combustão: os de Tiger Bay. Por volta das 23h30, fo-
ligado ao IRA) que, em junho de 2020, em confronto com os lealistas. Para por falta de tempo ou de meios, foram mos nos encontrar com outros mem-
transgrediram as normas sanitárias eles, trata-se de uma prova do controle fabricados com papel higiênico. bros do IRSP. Com seus cachecóis sobre
por ocasião do enterro de um ex-co- social exercido pelos republicanos nos Sábado, 10 de abril. Belfast, 22 ho- o nariz e seus capuzes, boinas ou bo-
mandante do IRA, quando a província bairros nacionalistas, o que não acon- ras. Patrick é um ex-prisioneiro do nés na cabeça para lutar contra o frio
ainda estava confinada. Habitualmen- tece no lado unionista. Aqui, a situação Exército de Libertação Nacional Irlan- da noite, praticamente só era possível
te, os líderes paramilitares e os traba- ainda é calma. Mas mais longe... dês [Inla, sigla do Irish National Libera- ver seus olhos.
lhadores sociais se envolvem para apa- Subimos novamente a rua mar- tion Army] e, a partir de agora, é mili- Os militantes, uns dez, batem à por-
ziguar as tensões. Considerando-se geando um dos inúmeros “muros da tante do Partido Socialista Republicano ta de uma casa. Patrick pretende resol-
traídos pelo Brexit, desta vez se recu- paz” da cidade: separações sobrepos- Irlandês [IRSP, sigla do Irish Republi- ver uma querela que aconteceu na vés-
saram a apelar para a calma. tas de chapas de aço e de grades de uma can Socialist Party], uma formação re- pera com o homem que mora ali.
Quinta-feira, 8 de abril, Belfast, por altura superior à das erguidas entre Is- publicana marxista contrária ao Acor- Enquanto Patrick se ocupava em achar,
volta das 19 horas. Há cerca de uma ho- rael e a Palestina. Construídos pelo do da Sexta-Feira Santa. Ao sair de sua no bairro, um “delinquente”, um “filho
ra um furgão da polícia se confronta Exército britânico no início dos anos casa, ele entra em um carro onde Ri- da puta” suspeito de ser um agente da
com jovens lealistas no bairro protes- 1970 em reação às sublevações, esses chard, Steven e Kevin o esperam. Nós polícia, informante e provocador, o re-
tante Shankill. Diante dos lançamen- muros que isolam as comunidades reli- atravessaremos Shankill para chegar sidente da casa o insultou de “vendido”.
tos de garrafas e pedras, o veículo re- giosas são agora perfeitamente integra- ao bairro católico Falls. Patrick tecla Para Patrick e seus camaradas do IRSP,
cua lentamente. Atrás da polícia, no dos à política local e à gestão de manu- em seu celular indicando ao mesmo o insulto é grave. O insulto o associa
fim da rua, o objetivo dos lealistas: dois tenção da ordem. Após várias centenas tempo automaticamente a rota a se- aos antigos membros do IRA que pas-
portões de ferro ligados a um bloco de de metros, a multidão é mais densa e a guir. Ele se esquece de que, naquela ho- saram para o Sinn Féin, que eles acu-
concreto. Eles separam o bairro de seu circulação é interrompida. Na frente da ra da noite, os portões de ferro que se- sam de ter abandonado a luta revolu-
vizinho católico. Em geral, a polícia fe- fila, jovens republicanos entram em param os bairros comunitários estão cionária e as classes populares – em
cha os portões à noite, por volta das confronto com a polícia. De um lado, fechados. Por duas vezes tivemos de suma, traidores da causa. É preciso, en-
22h30. Mas, em razão das recentes ten- cerca de vinte indivíduos mascarados dar meia volta e, em seguida, nos resig- tão, um acerto de contas não só para la-

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sões, eles já estão fechados. Nos baten- lançam garrafas, pedras e fogos de arti- nar a desviar pelo centro da cidade. var a honra de Patrick, mas também
tes, os poderes públicos penduraram fício; do outro, um canhão com água, Depois de uns vinte minutos, para- para lembrar para a população a dife-
mensagens de reconciliação que, pelo protegido por duas fileiras de blinda- mos em frente a uma casa. Enquanto os rença entre o Sinn Féin e o IRSP. Patrick
visto, não convencem os insurgentes: dos, mantém os insurgentes a distân- outros acendiam um cigarro, Patrick exige seu pedido de desculpas de ime-
“Jamais existe uma boa guerra ou uma cia. O engenho saiu da naftalina pela bate à porta, entra e sai de novo alguns diato. O homem obedece. “É o que faço
paz ruim”, “Quanto mais se transpira primeira vez depois de seis anos. minutos depois com dezenas de sacos quando há um problema. Eu sigo os jo-
pela paz, menos se sangra na guerra”. plásticos cheios de latas de conservas, vens até que eles entrem em casa para
Durante os tumultos na cidade, os COMPORTAMENTOS ANTISSOCIAIS cereais e produtos alimentícios de to- saber onde moram e depois volto com
lealistas chegaram a passar por um dos O enfrentamento se inscreve em uma dos os tipos. Com a pandemia de Co- camaradas do IRSP”, explica calma-
portões e a entrar no bairro católico, o monotonia semelhante àquela que aca- vid-19, a coleta e a distribuição de gêne- mente Patrick ao voltar para o carro.
que desencadeou trocas de balas e co- bamos de observar entre os lealistas. ros alimentícios foram generalizadas Num vaivém ao acaso pelas ruas, o
quetéis molotov entre lealistas e repu- Um jovem corre em direção aos furgões entre redes republicanas, assim como a grupo efetua uma patrulha em New
blicanos. Após uma semana de insur- e lança um projétil antes de ser alcan- confecção de viseiras de proteção des- Lodge. Ele procura ter certeza de que
reições lealistas contra a polícia, as çado pelo canhão de água. Um carro – tinadas aos profissionais da área de não há manifestações, inícios de mo-
hostilidades tomaram uma forma in- provavelmente roubado, a julgar pelo saúde. Essas atividades se inscrevem tins ou simplesmente comportamen-
tercomunidades, o que não acontecia buraco enorme no para-brisa de trás – numa longa tradição republicana de tos “antissociais”, uma denominação
havia uns dez anos. Nessa noite, os jo- faz idas e vindas. Dentro dele, várias estruturação em rede do território na- vaga que engloba atos que vão de sim-
vens pretendem recomeçar o ataque. © NH5/Flickr ples distúrbios sonoros até o tráfico de
Espalhados na multidão, vários ho- drogas, passando pela corrida em veí-
mens encapuzados discutem e sabo- culo roubado.
reiam uma cerveja tranquilamente, en- Às 2 horas da madrugada, a ronda
quanto outro vagueia erguendo uma acaba, mas não as atividades militan-
bandeira da Grã-Bretanha. Depois de tes de Patrick. Ele vai dedicar o resto de
meia hora, uns dez furgões da polícia sua jornada para levar uma ajuda ad-
chegam como reforço. Agentes munidos ministrativa aos moradores do bairro,
de equipamentos antiprotesto descem sejam demandas de habitações sociais
dos veículos. As ordens ressoam através ou a denúncia de locais insalubres. Ele
dos alto-falantes. Insultos se espalham vai interceder também para assegurar
como respostas. A polícia simula carre- uma mediação com os grupos parami-
gar suas armas para ganhar terreno de litares que ameaçam aplicar sanções
novo. Os policiais retiram os obstáculos aos jovens nacionalistas considerados
que impedem os furgões de avançar e, culpados por alguma falta. A sentença
em seguida, entram novamente nos veí- mais comum nessas circunstâncias? O
culos. A coreografia é conhecida por to- kneecapping, ou seja, a destruição da
dos. Quando os jovens ficam muito pró- rótula do joelho por uma bala. 
ximos da linha dos blindados, os
policiais saem, levam algumas pedra- *Hadrien Holstein  é pesquisador.
das, depois vão embora nos furgões, e
tudo continua como antes. 1   T odos os nomes foram modificados.
2   Militante republicano acusado pelo homicídio
Bairro Springfield, do outro lado dos da jornalista Lyra McKee, assassinada em
portões de ferro. Para chegar aqui, foi “Você está entrando agora na livre Derry”, bairro católico de Londonderry abril de 2019.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

FEBRE HUMANISTA NOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO

Empresas de 2018, em suas cartas anuais a todas


as empresas das quais é acionista. Di-
retor da maior gestora de ativos do
mentalizada pelo neoliberalismo”, ex-
plica-nos o economista Thomas
Lamarche. O objetivo: tornar aceitável

socialmente
mundo, ele insistiu principalmente es- uma ordem capitalista cada dia mais
te ano sobre a urgência em elaborar contestada fingindo denunciar os ex-
planos que busquem a neutralização cessos da financeirização e da visão de
da emissão de carbono. Isso não o im- curto prazo, sem, para tanto, ceder às

responsáveis?
pediu de conservar US$ 85 bilhões em demandas concretas de regulação,
investimentos em carvão. Pouco im- controle de capitais ou taxação. Jean-
porta que, entre agosto de 2019 e agosto -Dominique Senard, coautor do relató-
de 2020, a BlackRock tenha votado con- rio que inspirou a Lei Pacte, dizia expli-
tra 90% das resoluções da assembleia citamente ao Échos em 2018: 6 “Os
geral exigindo das empresas que agis- Trinta Gloriosos** acabaram e o Estado
De tempos em tempos, a ideia volta: fantasiar o lobo sem sobre o clima: o New York Times de bem-estar social desapareceu. Hoje
para que ele se comporte como um cão pastor. Apesar acredita ver nos feitiços de Fink “um há uma verdadeira necessidade de
momento decisivo para Wall Street, da- criar um liberalismo aceitável por to-
dos fracassos sistemáticos, a esperança renasce, a cada queles que levantam questões ligadas à dos. [...] Se não nos engajarmos na via
vez acompanhada de novos métodos, mais eficazes. natureza intrínseca do capitalismo”.3 de um liberalismo tranquilo e solidá-
É o caso da proposta de criar empresas responsáveis, Já os tão comentados “princípios de rio, iremos na direção de grandes pro-
governança” da poderosa Business blemas”, explica quem na época dirigia
que apaziguariam os antagonismos nos locais de trabalho Roundtable em 2019 não tiveram mui- a Michelin, alguns meses antes de es-
tos resultados. Esse lobby de grandes tourar o movimento dos “coletes ama-
patrões norte-americanos, represen- relos”. Dois anos e uma pandemia de-
POR LAURA RAIM* tando principalmente a Apple, a pois, Senard, então presidente da
Boeing, a JP Morgan Chase e a Amazon, Renault, anuncia a supressão de 4.600
havia marcado os espíritos ao declarar postos de trabalho na França e mais de

“V
ocê acaba de derrubar a es- nunciou também à sua aposentadoria pela primeira vez que eles não deviam 10 mil no exterior, apesar dos 5 bilhões
tátua de Milton Friedman!” de 1,2 milhão de euros por ano. mais servir apenas a seus acionistas, de euros de empréstimos garantidos
Emmanuel Faber está orgu- A Danone apressou-se, segundo Fa- mas a “todas as partes interessadas”. pelo Estado dos quais se beneficiou a
lhoso em 26 de junho de ber, em “reinventar um modelo de em- Essa mudança de tom não impediu montadora de automóveis.
2020. Na assembleia geral da Danone, presa vivaz, uma economia a serviço os signatários de atingir marcas de vio- As novas disposições sobre a res-

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os acionistas, com mais de 99% dos vo- do ser humano”,1 quando, inesperada- lação de leis sociais e ambientais mais ponsabilidade das empresas estão no
tos, apoiaram a qualificação da empre- mente, em novembro do mesmo ano, o elevadas que seus pares não signatá- mesmo texto de lei que prevê a privati-
sa à mission,* um estatuto criado pela grupo anunciou a supressão de 2 mil rios,4 pois, contrariamente ao que afir- zação de várias empresas públicas. Os
Lei Pacte – plano de ação para o cresci- postos de trabalho, sendo de 400 a 500 ma a doutrina oficial europeia sobre a aeroportos de Paris estão condenados a
mento e transformação das empresas na França, ou seja, a maior demissão “vantagem competitiva” que uma boa passar para as mãos do setor privado?
–, de 2019. Foi uma estreia para uma so- em massa de sua história. Ela é, contu- “performance social” traria, ética e Uma vez que o grupo tenha se munido
ciedade francesa cotada em Bolsa e um do, altamente lucrativa, e a pandemia rentabilidade são, muitas vezes, anta- de uma nova “razão de ser”, seria tão
verdadeiro desaforo ao economista pouco pesou sobre seu volume de ne- gônicas. Um estudo da HEC5 [escola de problemático “acolher os passageiros,
norte-americano preferido do patrona- gócios. Mas o mercado de ações caiu e a Altos Estudos Comerciais] mostra de explorar e imaginar aeroportos, de ma-
to liberal. De agora em diante, a “razão Danone é menos rentável que suas con- fato que os fundos especulativos são neira responsável e através do mun-
de ser” da gigante alimentar não será correntes Nestlé e Unilever. “É doloro- “duas vezes mais bem-sucedidos em do”? A receita é antiga. Em 2006, o en-
mais apenas o lucro, mas também, e so”, porém “a proteção da rentabilidade controlar as empresas socialmente res- tão primeiro-ministro britânico, David
mais nobremente, “melhorar a saúde”, e do lucro é fundamental para uma em- ponsáveis”, estas últimas suspeitas de Cameron, havia revelado um segredo
“preservar o planeta e renovar os re- presa”, defendeu Faber na rádio France não maximizarem o quanto poderiam aos empresários. Que aqueles que “ain-
cursos”. “Patrão humanista e atípico”, Inter, em 24 de novembro de 2020. Qua- os lucros dos acionistas. da consideram a responsabilidade das
como gosta de descrevê-lo a imprensa tro meses depois foi demitido. empresas como sendo um socialismo
de economia, Faber não se contenta Dotar-se de uma “razão de ser” e, “CRIAR UM por meios secretos” se tranquilizem:
apenas em contemplar diariamente, mais amplamente, “trabalhar para o LIBERALISMO ACEITÁVEL” “Quanto mais as empresas adotarem
em seu escritório, a fotografia de um bem comum” é também o que Larry “A responsabilidade social das empre- voluntariamente práticas responsá-
sem-teto tirada por Lee Jeffries: ele re- Fink, CEO da BlackRock,2 solicita, des- sas [RSE] foi profissionalizada e instru- veis, [...] mais o apelo para uma redu-
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 21

© Unsplash
ção do controle e da regulação se tor- ponsáveis é por meio de leis que, por
nam plausíveis”.7 Assim, o movimento exemplo, as obriguem a dar mais voz
de desregulação promovido pela União aos empregados nas decisões do grupo
Europeia foi acompanhado por apelos ou a pagar indenizações às comunida-
de Bruxelas para “ir além das obriga- des que elas abandonam, aumentando
ções jurídicas” das empresas pelas os impostos sobre as empresas.” 
“ações voluntárias” de “responsabili-
dade social”8 – um pouco à imagem do *Laura Raim  é jornalista.
correio [La Poste], que abriu seu capital
conforme as recomendações euro- 1   D  iscurso de Emmanuel Faber diante dos acio-
nistas, 26 jun. 2020.
peias. A companhia recebeu a nota 75 2   Ler Sylvain Leder, “BlackRock, la finance au
(de 100) em 2020 (a mais alta já atribuí- chevet des retraités français” [BlackRock, as
da pela agência de classificação de ris- finanças protegendo os aposentados france-
ses], Le Monde Diplomatique, jan. 2020.
co extrafinanceira Vigeo Eiris), que 3   Andrew Ross Sorkin, “BlackRock’s message:
considerava, entre outras coisas, o ta- Contribute to society, or risk losing our su-
manho de sua frota de veículos elétri- pport” [Mensagem da BlackRock: contribuir
para a sociedade ou arriscar perder seu
cos e sua taxa de 7% de emprego de pes- apoio], The New York Times, 15 jan. 2018.
soas com deficiência. Os cerca de 4   Aneesh Raghunandan e Shivaram Rajgopal,
cinquenta empregados que, em dois “Do socially responsible firms walk the talk?”
[Empresas socialmente responsáveis fazem o
anos, se suicidaram por causa da reor- que dizem?], Social Science Research Net-
ganização forçada do trabalho pare- work (SSRN), abr. 2021.
cem não ter pesado... 5   M ark R. DesJardine, Emilio Marti e Rodolphe
Durand, “Why activist hedge funds target so-
Por mais inofensivas que possam cially responsible firms: The reaction costs of
parecer essas declarações humanistas signaling corporate social responsibility” [Por
sobre o papel das empresas na cidade, que hedge funds ativistas visam empresas
responsáveis: os custos da reação de sinali-
não poderíamos reduzi-las a operações zar para a responsabilidade social corporati-
de marketing. A história mostra que A responsabilidade social foi instrumentalizada pelo neoliberalismo va], Academy of Management Journal, Nova
elas jamais foram consensuais, nem York, 22 abr. 2020.
6    Muriel Jasor, “Jean-Dominique Senard: ‘Le
entre os capitalistas nem entre os mili- tavelmente hierárquicos e autoritários retórica da RSE. Presidente de empresa sens et le pourquoi nourrissent la motivation’”
tantes antiliberais. Os debates teóricos do mundo dos negócios”.12 E Peter liberal e candidato derrotado à lideran- [Jean-Dominique Senard: “O sentido e o por-
e estratégicos em torno da finalidade Drucker, o “papa da gestão”, lembra de ça do Medef em 2018, Jean-Charles Si- quê alimentam a motivação”], Les Échos, Pa-

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ris, 8 jun. 2018.
das empresas emergiram nos Estados uma constante na história: “Todos os mon nos explica que, a seus olhos, o ris- 7   Discurso de Cameron diante da organização
Unidos nos anos 1950, quando se mul- despotismos esclarecidos acabaram le- co é menos jurídico que cultural: “Dizer Business in the Community, 6 maio 2006.
tiplicaram as sociedades por ações mo- vando à revolução”.13 que o capitalismo deve ser responsabi- 8    “ Livre vert. Promouvoir un cadre européen
pour la responsabilité sociale des entrepri-
dernas, que têm a particularidade de Para neutralizar essas expectati- lizado é um jogo perigoso, pois é uma ses” [Livro verde. Promover um quadro euro-
não serem mais dirigidas por patrões- vas, os economistas neoliberais elabo- admissão de fracasso. Quem se descul- peu para a responsabilidade social das em-
-proprietários.9 Desprovidos de moti- raram, nos anos 1970, as “novas teo- pa se desculpa, de algum modo. As em- presas], Comissão Europeia, Bruxelas, 2001.
9   Para uma história dos debates em torno da
vações patrimoniais, em nome do que rias da empresa”, conferindo-lhes uma presas colocam o dedo numa engrena- “administração ética”, cf. Grégoire Chama-
os gerentes assalariados exercem seu visão pacificada. Só há um conjunto de gem sem fim, pois nunca cederão o you, La Société ingouvernable. Une généalo-
poder? O economista Howard Bowen relações entre agentes livres e iguais, suficiente”. De fato, assim que Faber gie du libéralisme autoritaire [A sociedade in-
governável. Uma genealogia do liberalismo
fornece a resposta,10 ao introduzir a no- deixando de lado as hierarquias e res- anunciou a diminuição de sua remune- autoritário], La Fabrique, Paris, 2018.
ção de “responsabilidade social” dos ponsabilidades decorrentes dessa in- ração na Danone, a Oxfam o intimou a 10  H oward Bowen, Social Responsibilities of
chefes de empresa, que tirariam sua le- teração. Essa ofensiva permitiu despo- dar um passo adiante e “assumir o the Businessman [A responsabilidade so-
cial do homem de negócios], Harper, Nova
gitimidade do fato de que, não sendo litizar permanentemente as teorias compromisso estruturante de inscre- York, 1953.
proprietários, seriam capazes de levar sobre a RSE, que continuaram se de- ver em [seus] objetivos um teto dos be- 11  Milton Friedman, “A Friedman doctrine – The
em conta “todos os interesses implica- senvolvendo nos anos 1980, como as nefícios pagos aos acionistas para alo- social responsibility of business is to increase
its profits” [Doutrina Friedman: a responsabili-
dos”, o que deveria igualmente passar que mobilizaram a noção de “partes car as somas em questão em um fundo dade social de um negócio é aumentar seu
por atos de filantropia. interessadas” (stakeholders),14 que de- dedicado à transição social e ecológica lucro], The New York Times, 13 set. 1970.
Quando o avanço dos movimentos vem ser levadas em consideração nos de [sua] empresa”.15 Se Simon simpati- 12  “ The power of the democratic idea” [O poder
da ideia democrática], sexto relatório do
contestatórios nos anos 1960 obrigou mesmos termos que os acionistas za com o desejo dos partidários da RSE Rockefeller Brothers Fund Special Studies
ainda mais as empresas a assumir res- (shareholders). de “evitar a revolução”, ele estima que Project, Doubleday, Garden City (Nova
ponsabilidades, os pensadores neoli- Um episódio recente da história da “é melhor admitir que o capitalismo York), 1960.
13  Peter F. Drucker, The New Society: The Ana-
berais se preocuparam: não seria peri- RSE na França: a Lei Pacte revisou pela pode ser um sistema brutal e adotar a tomy of the Industrial Order [A nova socieda-
goso reconhecer implicitamente que primeira vez no Código Civil a defini- pedagogia para explicar por que ele é, de: a anatomia da ordem industrial], Harper,
elas são locais de poder a serem legiti- ção do objeto social da empresa, agora apesar de tudo, o único possível”. Nova York, 1950.
14  R . Edward Freeman, Strategic Management:
mados ao lhes atribuir uma missão que obrigada a levar em conta “as questões Mais inesperada ainda é sua denún- A Stakeholder Approach [Gerenciamento es-
não seja rentabilidade? Para Friedman, sociais e ambientais de sua atividade”. cia da natureza antidemocrática da tratégico: abordagem do acionista], Pitman,
“a doutrina da ‘responsabilidade so- Um avanço modesto: “O governo evi- RSE: “Não é o papel de uma assembleia Boston, 1984.
15  “ Lettre ouverte du Mouves et Oxfam à Emma-
cial’ implica a aceitação da visão socia- tou sobretudo tocar no código penal geral de empresa decidir como salvar o nuel Faber, PDG de Danone” [Carta aberta de
lista segundo a qual são mecanismos para responsabilizar criminalmente os planeta. A RSE é uma privatização do Mouves e Oxfam a Emmanuel Faber, PDG da
políticos, e não mecanismos de merca- dirigentes”, observa o pesquisador em interesse geral. E se considerarmos que Danone], 25 jun. 2020. Disponível em: ht-
tps://impactfrance.eco.
do, que são apropriados para determi- ciências de gestão Jean-Philippe Denis. as empresas agem de maneira legal, 16  “The sham of corporate social responsibility”
nar a alocação dos recursos”.11 Se admi- De fato, após alguns protestos, o patro- mas irresponsável, cabe ao Estado le- [A farsa da responsabilidade social corporati-
tirmos que temos o direito de “levar o nato francês conformou-se rapida- gislar para taxar ou interditar uma ati- va], Robert Reich, 31 dez. 2019. Disponível
em: https://robertreich.org.
mesmo tipo de questões às governan- mente com o texto de lei. O movimento vidade considerada perigosa ou po- *   “ Entreprise à mission”, forma de empresa ino-
ças privadas que aquelas que dirigimos das empresas da França (Medef) ado- luente”. Paradoxalmente, sua posição vadora, dotada de “uma razão de ser”, que leva
a outros tipos de governo”, advertia um tou, em janeiro de 2019, uma razão de se une em parte à de Robert Reich, o em consideração os impactos sociais e am-
bientais. [N.T.]
relatório da Fundação Rockefeller em ser: “Agir conjuntamente para um cres- economista norte-americano apoiador **  A expressão Trinta Gloriosos, ou Trinta Anos
1960, haverá necessariamente uma cimento responsável”. do senador e ex-candidato democrata à Gloriosos, designa os trinta anos que se se-
contradição entre “a tradição democrá- Inscrevendo-se na tradição de primária Bernie Sanders, que qualifica guiram ao final da Segunda Guerra Mundial e
constituíram um período de forte crescimento
tica de um governo fundado no con- Friedman, uma fração do capital fran- a RSE de “golpe”.16 “A única maneira de econômico na maioria dos países desenvolvi-
sentimento e os procedimentos inevi- cês permaneceu, no entanto, hostil à tornar as empresas socialmente res- dos. [N.T.]
22 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

DIREITA NEOFASCISTA VERSUS DIREITA TRADICIONAL

As frações burguesas
e o governo Bolsonaro
A conjuntura pandêmica é marcada pela polarização entre a direita neofascista, ou
bolsonarista, e a oposição de direita, ou direita tradicional. A análise de documentos e
declarações de capitalistas e associações empresariais na imprensa indica que esse
conflito exprime uma divisão das frações burguesas em torno da política sanitária.
Por outro lado, também indica sua unidade em torno da política econômica, o que explica
o caráter vacilante da direita tradicional e os limites de sua ação oposicionista ao governo

POR ANDRÉ FLORES PENHA VALLE E OCTÁVIO FONSECA DEL PASSO*

BOLSONARISMO, FRAÇÕES dem recompor o apoio popular de Bol- aumento de sua reprovação nas faixas
BURGUESAS E A PANDEMIA sonaro até as eleições de 2022. de renda acima de dez salários mínimos
O bolsonarismo, como fenômeno polí- Do outro lado da polarização, a di- e as saídas de Sérgio Moro e Luiz Henri-
tico, é um movimento reacionário de reita tradicional vocaliza os interesses que Mandetta do governo. Outras repre- ia Roriz
© Cá ss
massas das classes médias e da peque- do grande capital e se apresenta como sentações da alta classe média, como o
na burguesia, que persegue a mudança alternativa de “centro” em relação ao MBL e o Vem Pra Rua!, também vêm de-
do regime político. Esse movimento, bolsonarismo e ao lulismo. Ela inclui o fendendo as recomendações da OMS e
de caráter neofascista, atua para di- PSDB e setores do DEM e do MDB, em assumiram a bandeira do impeach-
fundir o negacionismo em relação ao particular os governadores desses par- ment. Esse rompimento apresenta uma

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coronavírus, por meio de um discurso tidos, que protagonizam a oposição ao divisão da alta classe média nesse perío-
conspiracionista que apresenta a pan- governo e subordinam os governadores do, entre a ala negacionista, base do neo- dutores rurais vêm assumindo aberta-
demia e as vacinas como instrumentos e parlamentares da centro-esquerda. fascismo, e a ala pró-isolamento, base da mente a medida, colocada em prática
de disputa de hegemonia e controle so- Na pandemia, a direita tradicional vem direita tradicional. pela prefeitura de Chapecó, tida como
cial pela China. defendendo as recomendações da OMS No início de 2021, com a autoriza- “cidade-modelo” pelo bolsonarismo.
Sem necessariamente reproduzir o e, em diferentes níveis de intensidade e ção das primeiras vacinas pela Anvisa,
discurso conspiracionista, a burguesia não sem contradições, seus governado- as frações burguesas vêm convergindo FRAÇÕES BURGUESAS
industrial, a burguesia comercial vare- res precisam enfrentar o negacionismo em torno da pressão sobre o governo E A POLÍTICA ECONÔMICA
jista e os produtores rurais ligados à ex- quando consideram fechar o comércio, pela vacinação em massa; contudo, di- Na eleição presidencial de 2018, Bolso-
portação de bens primários aderiram suspender as atividades escolares, videm-se quanto à estratégia. Enquan- naro angariou o apoio das frações bur-
ao negacionismo por meio do discurso adiantar feriados locais e executar to- to as frações negacionistas defendem a guesas ao anunciar que seu ministro da
que opõe as defesas da vida e da econo- ques de recolher. compra de vacinas para as empresas, Economia seria o ultraliberal Paulo
mia, sob o argumento de que o fecha- O capital financeiro, o capital es- por meio do PL 948/2021, com o objeti- Guedes. A escolha soou como música
mento de estabelecimentos e o desem- trangeiro no setor automotivo e das te- vo de furar a fila do Programa Nacional para os ouvidos daqueles que, a partir
prego são mais letais que o vírus. A lecomunicações, a indústria de alimen- de Imunização, as frações isolacionis- do golpe de Dilma Rousseff, se unifica-
dependência do trabalho e do consumo tos, os setores de supermercados e tas apoiam a compra de vacinas para o ram em torno do programa neoliberal
presencial, em setores com menor grau construção civil e os produtores rurais SUS, organizando-se no grupo Unidos ortodoxo. Jogam a favor do governo a
de automação e digitalização, e o custo voltados para o mercado interno tam- pela Vacina para driblar a inércia do necessidade das frações burguesas por
de oportunidade ante o aumento da de- bém vêm defendendo o isolamento so- governo e estabelecer uma diplomacia mais investimentos em infraestrutura
manda chinesa por soja e carne bovina cial como condição para a reabertura paralela com as farmacêuticas e os Es- e a desvalorização do real, que torna os
parecem influenciar o posicionamento total da economia junto com a vacina- tados produtores. Em março, cerca de preços dos ativos mais atrativos, mas
dessas frações. Durante a pandemia, ção em massa. Essas frações apresen- quinhentos economistas e gerentes de jogam contra as incertezas políticas
elas demandaram e foram atendidas tam, de maneira mais ou menos aberta, instituições financeiras assinaram por causa das oscilações na populari-
pelo governo com o corte de salários e críticas ao negacionismo e à demora na uma carta pública criticando o governo dade de Bolsonaro e das consequências
jornadas, suspensões de contratos de compra de vacinas enquanto fatores de pela recusa das vacinas e atacando o da gestão que ele fez da pandemia, que
trabalho e da alíquota do IOF e leilões instabilidade política e fuga de capitais. impacto econômico e fiscal decorrente já deixa mais de 500 mil mortos.
de aeroportos, portos e rodovias. A facilidade de adequação e a redução do atraso na imunidade coletiva. Apesar de ter realizado medidas im-
O negacionismo também encontrou dos custos administrativos com o home A convergência em torno da campa- portantes para o conjunto da burguesia,
apelo em trabalhadores manuais infor- office e o crescimento da demanda do- nha de vacinação em massa não impede surgem insatisfações com o fato de que
mais e subempregados, politicamente miciliar por internet, alimentos e servi- o prosseguimento das investidas nega- entraremos no último ano do governo
desorganizados, que precisam ir às ruas ços de delivery parecem influenciar o cionistas. A pressão por parte dos seg- Bolsonaro com diversas promessas ain-
para garantir a sobrevivência. O paga- posicionamento dessas frações. mentos farmacêutico e hospitalar em da não cumpridas, como a privatização
mento do auxílio emergencial de R$ 600 As medidas restritivas também são torno do “tratamento precoce”, baseado dos Correios. Mas não só. As reformas
contribuiu para aumentar a populari- apoiadas por parcelas da baixa classe em medicamentos ineficazes e com efei- administrativa e tributária não avança-
dade de Bolsonaro nesses segmentos. média e do proletariado organizado, que tos colaterais para pacientes de Covid-19, ram, e o Pacto Federativo e a PEC Emer-
Contudo, com a piora da pandemia e a possuem alguma garantia de renda para está presente na atual conjuntura e vem gencial, que pretendiam reorganizar as
redução do valor e dos beneficiados pe- cumpri-las, e por parte da alta classe sendo investigada pela CPI aberta no finanças dos estados e municípios, não
lo novo auxílio, o apoio ao governo re- média que rompeu com o governo du- Congresso Nacional. Um caso singular é encontraram apoio no Legislativo. Do
fluiu no primeiro semestre de 2021. Essa rante a pandemia, como demonstram os o de Santa Catarina, onde as associações mesmo modo, certas concessões de ae-
volatilidade indica que o avanço da va- panelaços nas regiões abastadas onde empresariais da burguesia industrial, da roportos, ferrovias, rodovias, portos,
cinação e a recuperação econômica po- Bolsonaro venceu as eleições em 2018, o burguesia comercial de varejo e dos pro- companhias de saneamento básico e o
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 23

sido mais contundente nas críticas ao


negacionismo, tem reagido negativa-
mente diante do desgaste sobre o go-
verno e os riscos que se apresentam
sobre a aprovação das reformas neoli-
berais no Congresso. Diante de tal ce-
nário, a CPI encontra apoio nos seg-
mentos da baixa classe média e de
parcela da alta classe média, e dos tra-
balhadores organizados que se opõem
ao negacionismo. O aumento cons-
tante da desaprovação ao governo nos
últimos meses repercute no Legislati-
vo, que é mais permeável ao voto po-
pular por se apresentar como repre-
sentação da vontade coletiva.
Ao mesmo tempo que se acirram os
conflitos entre o neofascismo e a direi-
ta tradicional, a anulação das condena-
ções de Lula recoloca a esquerda no jo-
go político como uma força relevante,
tanto no processo eleitoral quanto nas
ruas, mas não é capaz de posicioná-la
no centro da disputa política, porque os
trabalhadores manuais se encontram
desorganizados e com baixa capacida-
de de luta, como demonstram os redu-
zidos números de greves e ocupações
de terra. A possibilidade de Lula ser
candidato espreme a direita tradicio-
nal entre ele e Bolsonaro e pode fazer

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com que ela jogue mais duro para ten-
leilão da rede de internet móvel 5G estão Os conflitos pontuais podem ser INSTABILIDADE POLÍTICA E PERS- tar se garantir enquanto candidatura
paralisados. Assim, se por um lado há observados em torno da desoneração PECTIVAS DE UM FUTURO PRÓXIMO alternativa de direita. Por esse motivo e
uma unidade das frações burguesas pe- de impostos sobre importação, que Com o aumento do número de mortos e pelo desgaste que a pandemia tem ge-
las reformas neoliberais e uma expecta- opõe a burguesia industrial ao capital as evidências de boicote às medidas de rado ao governo é grande a chance de a
tiva de que elas se concretizem, por ou- estrangeiro; da elevação da taxa Selic, combate à pandemia, a direita tradicio- CPI não encerrar os trabalhos sem
tro lado existem divergências, por que opõe a burguesia industrial ao nal viu a oportunidade de tentar tirar a apresentar resultado concreto.
enquanto pontuais, que indicam que capital financeiro; da política ambien- iniciativa política de Bolsonaro via CPI Ao retorno de Lula à cena política
essa unidade não contempla todos os tal, que opõe produtores rurais às tra- da Covid-19. São quatro as linhas de in- devemos somar as manifestações dos
aspectos da política econômica. dings do agronegócio; das desonera- vestigação que preocupam o governo: dias 29 de maio e 19 de junho, que fo-
As principais medidas tomadas pelo ções da indústria de automóveis, que a) negligência na compra de vacinas; b) ram amplas e capilares e apresentaram
governo envolvem: i) as privatizações opõem as montadoras ao capital incentivo a tratamentos ineficientes e a possibilidade de a esquerda assumir a
(PPI, Nova Lei do Gás, Novo Marco do financeiro; da política de preços da aglomerações; c) influência de médicos vanguarda da oposição ao bolsonaris-
Saneamento, Eletrobras), ii) as desregu- Petrobras, que opõe as transportado- negacionistas externos ao Ministério mo, caso logre mobilizar outros setores
lamentações trabalhistas (Reforma da ras e indústrias ao capital financeiro; da Saúde no combate à pandemia; d) fa- dos trabalhadores e propor um progra-
Previdência, Lei da Liberdade Econô- e das regras de privatização que alte- vorecimento de farmacêuticas produ- ma próprio que ataque a política eco-
mica), iii) as desregulamentações finan- ram a política de preços da Eletrobras, toras de remédios receitados em trata- nômica. Bolsonaro, que está sendo
ceiras (Cadastro Positivo, Nova Lei das que opõem setores da indústria ao mentos precoce e da vacina Covaxin. acuado nas ruas, no Legislativo e no
Agências Reguladoras, Autonomia do capital financeiro. Diante da ameaça, Bolsonaro vem STF, tentará responsabilizar a esquerda
Banco Central) e iv) a abertura econômi- incentivando a politização das PMs e do por uma possível terceira onda de Co-
ca (mercados de refino, gás, compa- Exército, e busca avançar na fidelização vid 19. No entanto, a Globo e os grandes
nhias aéreas, sistema bancário, redu- O avanço da vacinação e e organização de setores que compõem jornais têm buscado responsabilizá-lo
ção das alíquotas de importação para sua base social, como os clubes de tiro e e vêm divulgando as manifestações, si-
a recuperação econômica nalizando uma mudança de postura e a
máquinas e equipamentos industriais). os motoclubes. A direita tradicional,
Em seu conjunto, essa política aten- podem recompor o apoio por sua vez, reagiu por meio da quebra tentativa de disputar seu programa.
de aos interesses da burguesia associa- popular de Bolsonaro do sigilo sobre o processo administrati- O desenvolvimento da luta de mas-
da ao capital internacional, particular- até as eleições de 2022 vo do ex-ministro da Saúde, o general sas pode alterar a posição das frações
mente o capital financeiro não Eduardo Pazuello, no Exército, que se burguesas mais vacilantes, que até
bancário, ligado ao mercado de capi- tornou investigado ao lado do ex-chan- aqui não romperam efetivamente com
tais. Uma vez que a desregulamentação Apesar de até o momento prepon- celer Ernesto Araújo e do atual ministro o governo. Nessa perspectiva, a fratura
financeira atinge a indústria e a abertu- derar a unidade no posicionamento da Saúde, Marcelo Queiroga. entre os de cima depende diretamente
ra econômica atinge as empresas nacio- das frações burguesas, a intensifica- Nesse contexto, a burguesia indus- da entrada em cena dos de baixo. As
nais, são as reformas neoliberais contra ção dos conflitos provocados pela trial e a burguesia comercial de varejo forças democráticas e populares deve-
os trabalhadores e as privatizações que abertura econômica e pela desregula- têm mantido o apoio ao governo dian- rão levar isso em conta para formular o
unificam o conjunto da burguesia e de- mentação financeira pode assumir a te da CPI, ao mesmo tempo que co- programa mais adequado para a luta
terminam seu apoio ao governo, até o primazia, assim como os conflitos de- bram reformas que ainda não foram contra o neofascismo. 
momento, por meio do discurso ideoló- correntes da pandemia. Cabe destacar, realizadas e a vacinação em massa. Os
gico pela redução do “Custo Brasil”, que contudo, que essa possibilidade ainda produtores rurais têm convocado mo- *André Flores Penha Valle e Octávio
encobre o aumento da taxa de explora- não se verifica nos posicionamentos bilizações em defesa de Bolsonaro e Fonseca Del Passo  são doutorandos em
ção por meio da redução do custo de re- das associações empresariais e suas contrárias à iniciativa dos parlamen- Ciência Política na Unicamp e editores da
produção da força de trabalho. representações políticas. tares. E o capital financeiro, que tem revista Cadernos Cemarx
24 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

POR QUE O IMPOSTO UNIVERSAL SOBRE PESSOA JURÍDICA É UM AVANÇO

E as transnacionais enfim
vão pagar, mas só um pouco...
Muito tímida! Muito dependente da boa vontade de Washington! Muito fácil de ser revertida por uma
nova administração! Não faltam motivos para diminuir o imposto universal sobre empresas privadas defendido
por Joe Biden. Apesar de suas falhas, contudo, a medida opera uma inversão política fundamental: ela tira das
corporações a ideia de que pairavam acima da lei

POR ALAIN DENEAULT*

E
m 2017, o Google depositou cerca Norte. E repisa um paradoxo tenaz: o Entretanto, se a considerarmos pelo abusaram dessa diferenciação jurídica.
de 20 bilhões de euros em suas presidente norte-americano às vezes lado jurídico e não apenas do ponto de Jogaram bem o processo de transferên-
contas nas Bermudas depois de se mostra mais poderoso na escala di- vista das receitas fiscais, a medida pro- cia entre filiais e o licenciamento em
fazê-los passar por vários paraí- plomática mundial do que em seu país. posta por Biden constitui um passo à matéria de direitos de propriedade in-
sos fiscais. Neste ano, na França, a Biden pôde exigir a adoção de sua pro- frente. Ela confere às corporações o es- telectual sobre as marcas, multiplican-
transnacional só pagou 14,1 milhões de posta por seus pares internacionais tatuto de sujeitos de direito, quando do as acrobacias contábeis entre as en-
euros em impostos sobre lucros – uma sem encontrar resistência, mas foi in- antes somente suas filiais eram consi- tidades ativas (nos países com alguma
ninharia para ela. Oficialmente, seus capaz de convencer os republicanos do deradas pelo Estado, uma a uma e inde- taxação sobre os lucros) e montando
setecentos empregados no país não Congresso a aceitar essa taxa de im- pendentemente umas das outras, como estruturas fantoches nos paraísos fis-
vendiam nada à França: apenas secun- posto de 21% nos Estados Unidos. Ele entidades jurídicas. Desde seu surgi- cais, onde acumulavam ficticiamente
davam a filial irlandesa do grupo, que queria mesmo, no início, fixá-la em mento progressivo, há um século, elas lucros não declarados em outro lugar.
mantinha as contas sob os auspícios 28%. Uma ambição das mais modes-

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complacentes desse paraíso fiscal eu- tas: era de 35% quando Donald Trump
ropeu.1 Já a Amazon, o gigante da dis- levou suas malas para a Casa Branca
tribuição online, vai se esquivando, em janeiro de 2017...
ano após ano, do imposto federal sobre Ultimamente, todos os grandes paí-
o lucro das empresas nos Estados Uni- ses da Organização para a Cooperação
dos e chega, no Velho Continente, a de- e o Desenvolvimento Econômico
clarar perdas justamente no momento (OCDE) reduziram sua carga tributá-
em que uma crise sanitária põe às cla- ria, procurando imitar os paraísos fis-
ras seus lucros.2 Nesta primavera, a or- cais em vez de combatê-los. Na Alema-
ganização independente ProPublica nha, no Canadá, na França e nos países
confirmou que, como particulares, os escandinavos, a taxa oficial caiu bem
bilionários famosos – Jeff Bezos, Mi- abaixo dos 30% durante a década de
chael Bloomberg, Warren Buffett, Carl 2010. E, não contentes, as transnacio-
Icahn, Elon Musk e George Soros – não nais multiplicam os estratagemas para
pagam (ou quase não pagam) impostos diminuí-la ainda mais.
nos Estados Unidos, aproveitando-se
de todas as brechas fiscais que as leis PARAÍSO FISCAL,
colocam à sua disposição.3 UM ABUSO DE PODER
Paradoxalmente, só os Estados O economista Thomas Piketty tem ra-
Unidos, seus melhores aliados, pare- zão ao afirmar que, com uma taxa tão
cem hoje capazes de enfrentar essas insignificante, avalizada pelos pró-
multinacionais em questões de tribu- prios Estados, a medida parece consa-
tação e investimentos no exterior. Foi, grar um regime fiscal privilegiado pa-
portanto, necessário que o presidente ra as corporações. “Ante o fato de que
Joe Biden pleiteasse, junto a seus par- as transnacionais poderão continuar
ceiros do G7, em favor de um imposto depositando seus lucros como bem
universal de 15% sobre o lucro consoli- entenderem nos paraísos fiscais, pa-
dado (isto é, o lucro acumulado do gando somente um imposto de 15%, o
conjunto de suas filiais) para que os G7 está oficializando a entrada em um
outros países, em geral muito confusos mundo onde os oligarcas pagam es-
na matéria, o seguissem. Nada a ver truturalmente menos impostos do
com a frase risível e sem efeito “Os pa- que o resto da população”, escreveu
raísos fiscais e o segredo bancário aca- Piketty no Le Monde (12 jun. 2021). E
baram”, lançada pelo presidente fran- os países do Sul não se beneficiarão
cês Nicolas Sarkozy por ocasião do em nada desse novo contexto. Conti-
encontro do G20 em 2009. nuarão tirando fracas receitas do sis-
Todavia, a taxa a ser aplicada a esse tema fiscal internacional, com seu
imposto universal, 15%, é mínima, pa- mercado reduzido sempre ao comér-
ra não dizer irrisória. Corresponde à cio de matérias-primas, oficialmente
gorjeta que normalmente os fregueses pouco rentáveis e, portanto, pouco
dão nos restaurantes da América do tributáveis.
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 25

Convém não esquecer os representan- tica dessa medida fiscal internacional, particulares afortunados se mostram te o direito fiscal dos Estados onde as
tes da Starbucks explicando em 2012, contrariando as tentativas de reduzi-la realmente ativos. Os poderes públicos empresas atuam, mas também o direi-
aos parlamentares do Reino Unido, que à dimensão contábil. O responsável pe- se metem nos negócios de outros Esta- to em si. As zonas e os portos francos
não geravam renda em seus países por- la medida na OCDE, Pascal Saint- dos. O Parlamento das Bahamas, por impedem o exercício do direito do tra-
que precisavam aplicá-la em outras es- -Amans, pode se apresentar como o ar- exemplo, inventou as exempted compa- balho, enquanto outros paraísos regu-
truturas do mesmo grupo, proprietá- quiteto desses acordos – os quais, nies [empresas isentas], que não preci- latórios, como as Ilhas Cayman para a
rias nos paraísos fiscais de uma série entretanto, contradizem diametral- sam pagar impostos sobre o lucro nem especulação em Bolsa, as Ilhas Mar-
de licenças e direitos de uso. Esses mente a retórica que ele vinha empre- informar a identidade de seus adminis- shall para a exploração petrolífera ou o
montantes subtraídos permitiam à en- gando havia tempos. Afirmava que o tradores, desde que não desempenhem Canadá para a indústria mineira, pro-
tidade apresentar ao fisco uma decla- caso exigia, em essência, muito conhe- absolutamente nenhuma atividade no tegem os grupos que aí investem em
ração de renda negativa. cimento técnico e algébrico, e isso im- arquipélago. Ou seja, só podem aplicar matéria de direito ambiental ou direi-
Tecnicamente, a decisão do G7 põe plicava um esforço titânico para com- lá capitais gerados no estrangeiro. Des- tos da pessoa. No que tange aos direitos
em curto-circuito, ao menos em parte, patibilizar os regimes fiscais de cerca se modo, as Bahamas legislam sobre o da pessoa, sabe-se que as transnacio-
o papel dos paraísos fiscais, pois dora- de duzentos países. Na época, Saint- modo como o capital será administra- nais são hábeis em se desembaraçar
vante as transnacionais serão tributa- -Amans propalava em todas as mídias do e tributado em todos os cantos do perante os tribunais quando uma filial
das considerando-se a totalidade de que “harmonizar o imposto sobre as mundo... exceto nas Bahamas. sua se envolve em um escândalo em
seus lucros: pouco importa a identida- empresas em nível mundial [...] agredi- Quando a comissária da União Eu- qualquer parte do mundo. Com fre-
de da filial que detenha este ou aquele rá o princípio de soberania dos Esta- ropeia para a Concorrência, Margrethe quência, o juiz não concorda em con-
fundo ou onde ela esteja instalada. De dos”.4 Com uma declaração, Washing- Vestager, tentou – na contracorrente de denar a sede social de uma empresa por
nada adiantará, a uma grande empre- ton revelou a pouca consistência desse sua própria instituição – anular em aquilo que uma de suas filiais, de direi-
sa do agronegócio, da informática ou discurso, pois não são os progressos 2016 as vantagens fiscais que a Irlanda to próprio, perpetrou no estrangeiro.
da energia, confiar seus direitos de técnicos no plano da contabilidade in- proporcionava à empresa de informáti- Exemplo disso é a decisão do Tribunal
propriedade intelectual ou alguns fun- ternacional que fazem avançar as polí- ca Apple, ela forjou uma definição do de Haia, que, em 2013, se recusou a
dos a entidades das Bermudas, Irlanda ticas: as políticas é que forçam as mu- papel desse paraíso fiscal que poderia condenar a sede da empresa Shell, si-
ou Luxemburgo: eles ficarão sujeitos tações contábeis. se aplicar a todos os outros. Segundo tuada na Holanda, por desmandos am-
ao imposto. Lançadas essas bases, o Assim, os paraísos fiscais são uma ela, a Irlanda, ao decidir sobre o impos- bientais gravíssimos cometidos na Ni-
imenso desafio consistirá agora em questão política e diplomática. O que to das empresas na escala da Europa e géria, pelos quais ela atribuía a
aumentar a taxação. se tem são leis votadas por Estados a não só de seu país, abusava de seu po- responsabilidade à filial.
A abordagem de Biden confirma a fim de inibir o direito em vigor nos lu- der legislativo e se imiscuía nos negó- Resta uma perturbadora constata-
natureza altamente política e diplomá- gares onde as grandes empresas e os cios de outros Estados. A decisão de ção: só os Estados Unidos parecem em
Margrethe Vestager foi finalmente in- condições de permitir, ou futuramente

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validada em 2020 pelo tribunal da impedir que se repita, esse tipo de dis-
União Europeia. Não obstante, ela con- positivo. A Europa não foi capaz de su-
tribuiu para definir uma legislação focar o fenômeno offshore em seu seio.
offshore e abriu a porta às medidas que, A União Europeia moldou o continente
hoje, Biden está prometendo. segundo as lógicas da própria globali-
Em vez de iniciar uma guerra diplo- zação, deixando, por exemplo, a Romê-
mática contra todos os países que, à se- nia e a República de Malta se desenvol-
melhança da Irlanda, abusam de seu verem como uma zona franca, a Irlanda
poder, Washington convenceu o G7 a e a Holanda como paraísos regulató-
adotar um princípio que torna as medi- rios e Luxemburgo como um super-
das deles inoperantes: reconhecer as mercado de legislações permissivas. 
multinacionais como sujeitos de direi-
to enquanto tais. Por enquanto, é difícil *Alain Deneault,  professor de Filosofia da
prever a eficácia dessa medida. Para Universidade de Moncton (Canadá), é au-
avaliar seu alcance, podemos adotar tor de Une escroquerie légalisée. Précis
dois critérios. Primeiro, o indicador dos sur les “paradis fiscaux” [Uma vigarice le-
investimentos estrangeiros diretos galizada. Informes sobre os “paraísos fis-
(IED). Se as pseudotransações inter- cais”], Écosociété, 2016.
grupos, que tornam artificialmente as
Ilhas Cayman, Luxemburgo e Delawa- 1   B oris Cassel e Matthieu Pelloli, “En 2018,
re grandes centros financeiros interna- Google n’a payé en France que 17 millions
d’euros d’impôt” [Em 2018, na França, o Goo-
cionais, não diminuírem, isso signifi- gle só pagou 17 milhões de euros em impos-
cará que ainda restam maneiras de tos], Le Parisien, 1º ago. 2019; e Maxime Vau-
dissimular ativos em paraísos fiscais. dano, “Optimisation fiscale: Google évite des
milliards d’impôts en déplaçant toujours plus
Segundo: as empresas deveriam logi- de profits aux Bermudes” [Otimização fiscal:
camente contribuir mais para o tesou- o Google deixa de pagar bilhões em impostos
ro público dos Estados onde atuam. ao deslocar cada vez mais lucros para as Ber-
mudas], Le Monde, 4 jan. 2019.
Hoje, o imposto sobre as empresas re- 2   Rupert Neate, “Amazon had sales income of
presenta apenas 5%, mais ou menos, da 44bn in Europe in 2020 but paid no corpora-
base tributária da França ou da Alema- tion tax” [A Amazon lucrou 44 bilhões de eu-
ros na Europa em 2020, mas não pagou ne-
nha. E esses dados incluem a parte dos nhum imposto corporativo], The Guardian,
impostos paga pelas pequenas e mé- Londres, 4 maio 2021.
dias empresas, bem mais oneradas. Em 3   J esse Eisinger, Jeff Ernsthausen e Paul Kiel,
“The secret IRS files: Trove of never-before-
comparação, nelas os impostos sobre o -seen records reveal how the wealthiest
consumo e os lucros dos particulares avoid income tax” [Os arquivos IRS secre-
oscilam entre 60% e 65%. tos: acervo de registros inéditos mostra
como os mais ricos evitam imposto de ren-
Não bastasse isso, convém ter em da], ProPublica, 8 jun. 2021.
mente que a questão fiscal é apenas um 4   Sarah Belhadi, “Pascal Saint-Amans (OCDE):
dos numerosos aspectos do problema ‘Sur l’optimisation fiscale, il fallait changer de
paradigme’” [Pascal Saint-Amans (OCDE):
global das legislações de conveniência. “Quanto à otimização fiscal, seria preciso mu-
© Lila Cruz Estas permitem contornar não somen- dar de paradigma”], La Tribune, 27 nov. 2015.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

DEZ ANOS DE GUERRA CIVIL

Por que o regime divisão blindada e responsável pela re-


pressão, encontramos vários alauítas de
prestígio à frente do Estado. O diretor

sírio sobreviveu
do Departamento de Segurança Nacio-
nal, Ali Mamluk, e o ministro da Defesa,
Ali Abdallah Ayyub, são consultores
próximos de Assad. Embora tenha ido
para a reserva em 2019, o ex-diretor de
Inteligência da Aeronáutica, Jamil Has-
Em dez anos, o conflito que devastou a Síria deixou 500 mil mortos e 12 milhões san, também continua influente. Ao
de deslocados. Dado como derrotado em 2011, o presidente Bashar al-Assad foi salvo contrário, a família Makhluf, da mãe do
presidente, parece perder fôlego desde a
pelas intervenções militares da Rússia, do Irã e do Hezbollah. Sua sobrevivência deve-se queda do rico empresário Rami Ma-
também à solidariedade no seio de sua comunidade, os alauítas, e ao controle absoluto khluf, primo em primeiro grau de As-
exercido por sua família no país sad. Considerado muito independente e
prestigiado por causa das clientelas que
soube aliciar no curso da década, Ma-
POR ADRIEN CLUZET* khluf deve sua desgraça, sobretudo, a
seu rival, Maher al-Assad.
Para além dos conflitos internos,

E
m 26 de maio de 2021, o presiden- sição equipada e mantida por grandes LEALDADE DO EXÉRCITO essa “comunidade religiosa que se tor-
te sírio, Bashar al-Assad, foi eleito potências e da desconfiança de parte da O primeiro, mais importante, foi a co- nou política”, como definiu o sociólogo
para um quarto mandato com, população? Ele se beneficiou da inter- munidade alauíta. Os postos principais Michel Seurat,4 corresponde ao que o
segundo os números oficiais, venção militar decisiva de seus aliados do governo, do Exército, da educação e historiador magrebino Ibn Khaldun
95,1% dos votos (88% em 2014) e uma russos e iranianos, bem como do Hez- do Baas foram ocupados por represen- definiu, evocando a Idade Média, como
participação de 76,4%. O escrutínio bollah libanês, mas sua força reside nos tantes desse ramo do islã considerado uma ‘assabiyya, isto é, um grupo de so-
ocorreu unicamente nas regiões con- alicerces lançados por Hafez al-Assad e herético pelo sunismo ortodoxo.3 Os lidariedade tribal, imprescindível a seu
troladas pelo regime e por seus alia- legados ao filho, Bashar. O brigadeiro alauítas, que constituem cerca de 10% ver para a compreensão do poder nas
dos. Ignorou o Nordeste (zona curda) e Hafez al-Assad, que governou a Síria de da população síria (para 75% de muçul- sociedades árabes medievais.5 Segun-
a província de Idlib, ainda nas mãos 1970 até sua morte, assumiu o comando manos sunitas e 10% de cristãos), che- do seus escritos, vários momentos da
dos rebeldes apoiados pela Turquia. O do Estado depois de um golpe, o tercei- garam ao poder, pela primeira vez, gra- história política teriam assistido a uma

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resultado dessa eleição, da qual toma- ro desde a chegada ao poder do partido ças a Hafez al-Assad. Se, depois de 2011, ‘assabiyya apoiada na predicação polí-
ram parte dois outros candidatos, não Baas, em 1963. Contrariamente a seus o círculo que toma decisões se fechou tico-religiosa (da’wa) para se apropriar
é de surpreender, em razão do domínio predecessores, contudo, ele conseguiu em volta da família do presidente, so- do poder (mulk el-hukm).
do presidente sobre o país; porém, sus- garantir alianças duradouras apoian- bretudo com seu irmão mais novo, Valendo-se desse esquema em sua
tenta a imagem de governante inamo- do-se em diversos pilares. Maher, general-comandante da quarta ascensão, Hafez al-Assad nunca deixou,
vível que ele construiu ao longo de dez ao longo dos anos, de atribuir impor-
anos de guerra civil. © Omar Sanadiki/Reuters tância primordial aos membros de sua
Em março de 2011, na esteira das re- comunidade no seio do Estado. Em tro-
voltas árabes e depois da queda de três ca, seus filhos e ele próprio preferiram,
dirigentes da região, a saída do clã As- nos períodos de contestação (como foi o
sad parecia inevitável. Além da pressão caso durante a revolta encabeçada pela
interna, exercida sobretudo pelas ma- Irmandade Muçulmana em 1982), ligar
nifestações populares em Deraa, publicamente seu destino ao dos alauí-
Homs, Hama e Alepo, o regime estava tas. Nos últimos dez anos, o regime se
encurralado pelo intervencionismo empenhou em convencer estes últimos
das monarquias do Golfo, da Turquia e de que seu futuro dependia dele, ainda
das potências ocidentais. Enquanto op- que ao preço de perdas humanas im-
tava por uma repressão cega, grupos portantes em suas fileiras. Damasco
jihadistas, às vezes rivais, entraram em também iniciou a temporada de caça às
cena. O Catar e a Arábia Saudita finan- poucas vozes dissonantes em seu seio.6
ciaram e armaram, cada qual, seus pre- Essa posse do poder, apesar da ób-
feridos.1 A Frente Al-Nosra, apoiada por via inferioridade demográfica dos
Doha, opôs-se assim, com frequência, a alauítas, apoiou-se igualmente em
facções islâmicas sustentadas pelo rei- alianças com as burguesias urbanas,
no saudita, entre as quais Jaych al-Is- comerciantes, principalmente sunitas.
lam e Ahrar al-Cham. Na França, ape- Permitindo-lhes enriquecer e facilitan-
sar das muitas opiniões desfavoráveis do uniões matrimoniais com membros
no seio do serviço diplomático,2 as ad- do clã, a família Assad conseguiu ga-
ministrações Nicolas Sarkozy e, em se- rantir a fidelidade de várias redes das
guida, François Hollande preferiram elites sírias. Assim, o casamento do
uma política dura, que se traduziu pelo presidente com Asma Akhras, descen-
reconhecimento, em 24 de fevereiro de dente de uma rica família sunita, que
2012, da Coalizão Nacional Síria como ele conheceu em Londres, contribuiu
única representante do povo sírio. Mais para a construção da imagem de um di-
comedidos nesse caso, os Estados Uni- rigente não sectário.
dos de Barack Obama também pedi- Segundo pilar do regime legado a
ram a saída de Assad. Bashar al-Assad por seu pai: o partido
Então, como explicar sua sobrevi- Baas como instrumento de produção
vência? Como entender a capacidade de ideológica. Sua doutrina, que mistura
resistência do regime, apesar das nu- nacionalismo árabe, influências socia-
merosas defecções no Exército, da opo- Apoiadores de Bashar al-Assad comemoram a reeleição listas e laicismo, inspirou a Constituição
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 27

adotada em 1973. Historicamente no Um dos demitidos foi Ali Duba, o dire- mo) surgiram como alternativa ao regi- tares e para os cargos de segurança se
centro da política do mundo árabe desde tor aparentemente intocável da inteli- me. Mas sua derrota no terreno militar repartem entre pró-russos e pró-ira-
as décadas de 1960 e 1970, o Baas era, na gência militar de 1973 a 2000. E o cargo e a imagem negativa que lhes foi impu- nianos. Se o chefe do Estado-Maior, ge-
Síria, a passagem obrigatória para quem foi entregue mais tarde a Assef Chau- tada, principalmente depois das exa- neral Salim Harba, é pró-russo, Teerã
desejasse subir os degraus do poder. Es- kat, marido da irmã mais velha do pre- ções cometidas pela Organização do conta com Mohamed Mahala, consul-
se partido representa, assim, uma rede sidente, que sucumbiu em um atentado Estado Islâmico (OEI), redundaram em tor de segurança junto ao palácio presi-
de recrutamento e formação primordial. suicida em Damasco (2012). sua relativa marginalização, da qual o dencial, e com o general Jamil Hassan,
Apesar do recuo de sua implantação lo- regime nunca deixa de tirar proveito. o comandante da Aeronáutica que
cal durante os últimos vinte anos, ele mantém boas relações com a República
preserva uma função social importante, Membros do clã RIVALIDADE ENTRE Islâmica. Por fim, em Maher al-Assad, o
conforme se vê por sua onipresença jun- presidencial monopoli- RUSSOS E IRANIANOS Irã tem um aliado de peso no círculo
to a organizações profissionais, associa- No plano militar, a intervenção russa imediato do presidente.
ções ou universidades e escolas. Em 6 de
zam algumas unidades permitiu ao poder controlar o espaço Manipulador tanto no plano externo
abril, foi o Baas que organizou a cerimô- do Exército e dos aéreo e alvejar as posições inimigas nas quanto no interno, este último à espera
nia de entrega de diplomas aos alunos da serviços de inteligência zonas consideradas estratégicas. Ini- da reintegração de seu país na Liga Ára-
Universidade de Damasco. ciadas no outono de 2015, essas opera- be,10 Bashar al-Assad não duvida da pe-
A partir de 2011, o partido envidou ções aéreas visaram primeiro as re- renidade de seu regime. Para deixar bem
ainda mais esforços para defender o regi- Por fim, o terceiro pilar sobre o qual giões próximas da capital e do eixo clara a ambição dinástica do clã, sua es-
me. Tomado como alvo desde as primei- repousa o regime de Bashar al-Assad é o Damasco-Homs, antes de ampliar pro- posa e ele já começaram a preparar o fi-
ras manifestações, principalmente o in- Estado, que ele tornou seu, de modo que gressivamente seu alcance, com o lho mais velho, chamado Hafez... 
cêndio de sua sede em Deraa (março de qualquer tentativa de desalojar o pri- avanço das forças do Estado. Em terra,
2011), o Baas aderiu à linha presidencial e meiro é vista como um ataque contra o essas forças são apoiadas por milhares *Adrien Cluzet  é jornalista.
optou pelo método duro em relação a segundo. Isso explica, como observou de guardas revolucionários iranianos –
seus oponentes, que descreve como ter- Michel Seurat, por que o Estado sírio se egressos, sobretudo, da unidade espe- 1   V er Karim Émile Bitar, “Guerres par procura-
roristas financiados pelo estrangeiro em opõe à sociedade e assume uma perpé- cial Al-Qods –, libaneses membros do tion en Syrie” [Guerras por procuração na Sí-
ria], Le Monde Diplomatique, jun. 2013.
uma série de comunicados de imprensa tua posição defensiva em relação a ela.8 Hezbollah e milicianos palestinos que 2   Christian Chesnot e Georges Malbrunot, Les
e discursos de seus porta-vozes. Desse fenômeno decorre uma longa tra- permaneceram leais ao regime. Já a Chemins de Damas. Le dossier noir de la rela-
De resto, seu poder se apoia desde dição de medidas repressivas e violen- China teria enviado centenas de instru- tion franco-syrienne [Os caminhos de Damas-
co. O dossiê negro da relação franco-síria],
sempre no aparato militar. Membros do tas que nada consegue atenuar. Os mas- tores em áreas não militares, dando Robert Laffont, Paris, 2014.
clã presidencial monopolizam algumas sacres de 1982 em Hama, cujos bairros apoio médico ou logístico. 3   Ver Sabrina Mervin, “L’étrange destin des alaou-
unidades do Exército e dos serviços de insurgentes foram bombardeados pela Em contrapartida, a Rússia, além de ites syriens” [O estranho destino dos alauítas

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sírios], Le Monde Diplomatique, jan. 2013.
inteligência. Por exemplo, foi o domínio força aérea, ou os ataques químicos da conseguir uma base naval em Tartus e 4   Michel Seurat, Syrie. L’État de barbarie [Síria.
de Hafez al-Assad sobre a Aeronáutica Ghuta, nos arredores de Damasco, em uma base aérea em Hmeimim, assinou O Estado de barbárie], Presses Universitaires
que permitiu seu golpe de Estado em 2013, e de Khan Cheikhun são aconteci- com Damasco vários acordos de explo- de France, Paris, 2012.
5   Ibn Khaldoun, Discours sur l’histoire universelle.
1970. Hoje, os serviços de inteligência mentos, entre outros, que provocaram a ração de gás, petróleo e minas de fosfa- Al-Muqaddima [Discurso sobre a história uni-
(mukhabarat) desempenham um papel indignação da “comunidade internacio- tos, em caráter exclusivo. Quanto ao versal. Al-Muqaddima], Sindbad, Paris, 1997.
crucial: cinco ramos distintos7 formam nal” – mas não fragilizaram o regime.9 Irã, a vitória de Bashar al-Assad garan- 6   Georges Malbrunot, “Syrie: des Alaouites se
distancient du régime de Bachar el-Assad” [Sí-
um aparelho de segurança onipresente De um modo mais geral, o poder sí- te um corredor seguro até Beirute e o ria: os alauítas se distanciam do regime de
no seio da sociedade e são frequente- rio também tirou proveito da atomiza- Mar Mediterrâneo, para não falar das Bashar al-Assad], Le Figaro, Paris, 4 abr. 2016.
mente jogados uns contra os outros pa- ção da sociedade por causa do papel facilidades concedidas a seus comer- 7   Segurança Militar, Segurança Aérea, Segu-
rança Geral, Direção da Segurança (ex-Segu-
ra que nenhum ganhe importância ex- preponderante da célula familiar, dos ciantes. Portanto, iranianos e russos rança de Estado), equivalentes ao antigo De-
cessiva. Quando sucedeu ao pai, em bairros, dos clãs, das comunidades e exercem agora, em retribuição a seus partamento de Segurança Interna francês,
2000, Bashar al-Assad ordenou uma dos grupos religiosos. Essa fragmenta- esforços de guerra, uma influência não dependem em teoria do comando regional do
partido Baas; e Segurança Política para os
reestruturação completa desses servi- ção representa um obstáculo à emer- negligenciável sobre as decisões de um adversários e residentes estrangeiros.
ços para garantir sua lealdade. De 2000 gência de uma oposição unida, capaz Estado que lhes delega o controle de 8   Michel Seurat, op. cit.
a 2002, inúmeros consultores e altas au- de superar as divisões. Em razão da suas fronteiras externas. Diante dessa 9   Ver Emmanuel Haddad, “Improbable justice
internationale en Syrie” [Improvável justiça
toridades militares foram dispensados: predicação político-religiosa, os gru- perda de soberania no exterior, Damas- internacional na Síria], Le Monde Diplomati-
não pareciam suficientemente fiéis ao pos islâmicos (para alguns membros co tenta conservar o controle no plano que, out. 2017.
presidente e estavam muito próximos da Irmandade Muçulmana ou inspira- interno valendo-se da rivalidade cres- 10  Ver Adlene Mohammedi, “Syrie, retour feutré
dans la ‘famille arabe’” [Síria, retorno discreto
de seu tio, Rifaat al-Assad, que nunca dos por eles e para os mais próximos do cente entre Moscou e Teerã. Desde à “família árabe”], Le Monde Diplomatique,
escondeu o desejo de governar o país. salafismo radical ou mesmo do jihadis- 2019, as nomeações nos quadros mili- jun. 2020.
28 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

CENSURA E REPRESSÃO NO MAGREB

Informar tem seus perigos


Alvo das autoridades argelinas e marroquinas, que instrumentalizam a justiça para amordaçá-los, os jornalistas estão
na linha de frente da luta pela democratização de seus países. No Marrocos, dois processos ilustram esse conflito.
Na Tunísia, apesar do fim da censura instaurada pelo antigo regime, o setor midiático luta para se estruturar

POR PIERRE PUCHOT*

D
e Argel, a voz é calma; o tom, as- em março de 2020, recomeçaram na clara: “As autoridades argelinas não pensos. O TSA está inacessível para os
sertivo. Do outro lado da linha, primavera de 2021. As demandas con- querem mudança nem imprensa livre”, internautas argelinos desde junho de
Khaled Drareni, diretor do site tinuam as mesmas: um Estado civil e traduz Lounes Guemache, cofundador 2019. Na época, as autoridades tenta-
Casbah Tribune, impressiona não militar, justiça independente e do site Tout sur l’Algérie (TSA), que ram criar um “contra-Hirak”: a censu-
por sua serenidade. Condenado, em se- eleições livres. O clima, contudo, não é também cobre o Hirak desde o início. ra não poupou esse jornal online que,
tembro de 2020, a dois anos de reclusão mais o mesmo do início do movimen- “Ele quer que a mídia diga a mesma coi- com 25 milhões de visitas por mês,
por “ameaçar a unidade nacional” e to. A Argélia atravessa “um dos piores sa que ele. Para ele, existe agora uma afirma ser o principal meio de comuni-
“incitar multidão desarmada”, e liber- momentos de sua história” em termos ‘nova Argélia’, onde está tudo bem, mas cação da Argélia. Visado desde 2017, o
tado em 19 de fevereiro de 2021 após de liberdade de imprensa, afirma Dra- não está. O dinar desvalorizou 17% em TSA está interditado, sem nenhuma
onze meses na prisão de Koléa, Drareni reni: “Entre colegas, costumávamos 2020; estamos enfrentando uma grave explicação ou identificação da origem
é funcionário da TV5 Monde. No espa- dizer uns aos outros: ‘O declínio da im- crise econômica e social. O trabalho dessa solicitação. Nenhuma decisão do
ço de um ano, ele se tornou símbolo da prensa começou com Abdelaziz Boute- dos jornalistas nunca foi tão difícil, pe- tribunal foi tornada pública. O próprio
luta pelas liberdades públicas em seu flika em 1999’. Mas hoje a situação está lo menos desde o fim do partido único, governo nega qualquer responsabili-
país e fora dele. No fim de março, a Su- piorando. Saïd Boudour, Sofia Marrak- em 1989. Mesmo durante a ‘década dade. A gestão do site não foi convoca-
prema Corte anulou a condenação e chi, Mustafa Bendjama: são inúmeros sombria’ do terrorismo [1992-2000], a da por nenhuma autoridade. “Ficamos
pediu novo julgamento – o terceiro – os jornalistas perseguidos e presos pe- mídia podia debater e criticar as autori- com a impressão de que há alguém es-
para Drareni, a quem o regime não per- las autoridades apenas por fazerem dades. O poder quer assustar as pes- condido nas sombras, dotado de su-

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doa pela cobertura intensiva do Hirak, seu trabalho”. soas para virar a página sobre o Hirak. perpoderes e que pode proibir o que
movimento popular que sacode a Argé- Com a aproximação das eleições Mas não adianta”, completa. achar melhor”, lança Guemache, que
lia desde 16 de fevereiro de 2019. parlamentares antecipadas, marcadas E, quando as informações veicula- denuncia essa arbitrariedade. “Retro-
Depois de sua saída da prisão, o jo- para 12 de junho de 2021 pelo presiden- das não são de seu agrado, o regime cedemos ao padrão antes do Hirak,
vem jornalista reencontrou os cami- te Abdelmadjid Tebboune, jornalistas e empunha a tesoura. Vários sites, como quando as decisões sobre a mídia po-
nhos dessas manifestações, que, inter- manifestantes são alvo constante das o Inter-lignes e o jovem jornal digital diam ser tomadas fora de qualquer es-
rompidas pela pandemia de Covid-19 forças de segurança.1 A mensagem é Twala, estão temporariamente sus- trutura legal”, diz.

© Moises Patrício
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 29

A ARMA DA DIFAMAÇÃO Sem Fronteiras, pede a libertação de juntamente com o Nawaat, um pionei- em particular na luta silenciosa entre a
Adotada por referendo em novembro Radi. “Temos de falar de Omar Radi! É ro da ciberimprensa tunisiana inde- presidência e o Executivo.6 Essas mani-
de 2020, a nova Constituição da Argélia necessário organizar uma rede de soli- pendente, um dos poucos meios que pulações de opinião são realizadas por
afirma que nenhum site pode ser sus- dariedade em todo o Magreb para li- produz reportagem – foram cerca de meio de “todas as técnicas de comuni-
penso sem decisão judicial. No entan- bertar nossa imprensa e nossos meios trinta em 2020. Conteúdo “aberto”, cação modernas”, acrescenta Kha-
to, em abril de 2021, TSA, Casbah Tribu- de comunicação”, insiste Drareni. acessível por todos e publicado em dhraoui. Ele destaca o papel das “em-
ne e outros ainda permaneciam Quando o encontramos em Casablan- francês, árabe e inglês. Híbrido, o mo- presas que criam contas falsas e
inacessíveis. Em seu último relatório ca, em novembro de 2019, ciente de delo de negócios do Inkyfada é baseado atacam, de uma forma sem preceden-
sobre a situação dos direitos humanos que poderia ser preso a qualquer mo- em múltiplas atividades de treinamen- tes, candidatos às eleições”. Foi o que
no mundo,2 a Anistia Internacional mento, por qualquer motivo, Radi dis- to e desenvolvimento de tecnologia pa- aconteceu durante a campanha presi-
apelou ao governo argelino para per- se que estava em “liberdade condicio- ra outros meios de comunicação. Dos dencial de 2019. O Facebook então deci-
mitir que os jornalistas façam seu tra- nal”. Um mês depois, foi detido sob trinta funcionários, metade se dedica diu encerrar várias contas, incluindo as
balho de forma independente, sem custódia, dessa vez por criticar um ao jornalismo. Com um volume de ne- de parentes de Karoui.
ameaça ou intimidação, e solicitou a li- magistrado no Twitter. gócios de 500 mil euros anuais, o Esse caos político-midiático torna-
beração de sites bloqueados. Enquanto Inkyfada reinveste os rendimentos em -se ainda mais preocupante na medida
isso, todas as noites, a equipe do TSA seu próprio desenvolvimento, confor- em que a Tunísia está experimentando
publica uma mensagem de mídia social A Argélia atravessa “um me exige o modelo “sem fins lucrati- um declínio das liberdades públicas.
orientando seus leitores a usar uma re- vos” da associação em que se baseia. Os “O código penal é usado para processar
de privada virtual (VPN) e continua a
dos piores momentos de números de atendimento são modes- ativistas e manifestantes. Não ocorreu
cobrir notícias políticas e as marchas sua história” em termos tos, mas significativos: 200 mil page nenhuma reforma real do sistema de
do Hirak às sextas-feiras. de liberdade de imprensa views por mês, para 50 mil visitantes justiça. O artigo 86 do código das tele-
Depois de mais de dois anos de cen- únicos. Um exemplo, sem dúvida. Con- comunicações, relativo às redes so-
sura, contudo, os meios já não são os tudo, uma experiência ultraminoritá- ciais, ou à difamação de funcionários,
mesmos. Dos cerca de vinte jornalistas As denúncias de estupro não são a ria em um espaço midiático devastado, pode ser mobilizado a qualquer mo-
em tempo integral que trabalhavam no única forma de pressão utilizada pelas segundo Malek Khadhraoui, diretor do mento para restringir as liberdades.
TSA no início de 2019, restam apenas autoridades marroquinas para acabar Inkyfada. “Na Tunísia, faltam investi- Sem falar na impunidade de que gozam
seis. A versão em árabe foi suspensa. A com o jornalismo independente – que, gações jornalísticas. A informação em as forças de segurança”, lamenta Guel-
TSA vive de suas “reservas” financeiras em vinte anos, praticamente desapare- si é escassa: de uma dezena de canais lali, da Anistia Internacional. Os tuni-
e graças aos poucos anunciantes que ceu do reino. Em 29 de dezembro de de televisão privados, apenas um trans- sianos ainda se lembram da prisão de
ainda lhe são fiéis. O site perdeu 90% de 2020, Maâti Monjib, fundador da Asso- mite um jornal diário! Assim como as centenas de manifestantes, a maioria
sua receita de publicidade, sua princi- ciação Marroquina de Jornalismo In- rádios, as emissoras de TV são voltadas deles menores, em janeiro de 2021, du-

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pal fonte financeira, e registra entre 4 vestigativo (AMJI) e figura da luta pelos para o entretenimento, porque atrai rante as comemorações dos dez anos
milhões e 5 milhões de visitas por mês, direitos humanos no Marrocos, foi pre- mais publicidade. Também enfrenta- da revolução.
apenas. “Hoje, as pessoas se informam so em Rabat. Processado por “lavagem mos um problema ético: os meios de Falta de reformas de um lado, falta
sobre a Argélia por meio da mídia es- de dinheiro” no âmbito do financia- comunicação dominantes são aqueles de regulamentação e órgãos de investi-
trangeira. Ou pelas redes sociais – o mento de treinamentos para jornalis- que foram criados sob Ben Ali”, analisa. gação do outro: o campo da mídia tuni-
que é grave, porque as fake news abun- mo investigativo, foi preso e, na se- Os principais canais de televisão, como siana permanece vulnerável a pressões
dam por aí. Estamos caminhando para quência, condenado em janeiro de 2021 o Nessma, de propriedade de Nabil Ka- de todos os tipos. Último episódio: a
uma situação em que a Argélia, apesar por “fraude” e “atentado à segurança roui, ex-candidato às eleições presiden- nomeação, no início de abril, de Kamel
de suas centenas de títulos e meios de do Estado”. Em 23 de março, após uma ciais de 2019, permanecem próximos Ben Younès para a direção da Tunis
comunicação, não terá mais uma im- greve de fome de dezenove dias, o jor- ao poder político e industrial.5 Afrique Presse (TAP), a agência nacio-
prensa confiável”, suspira Guemache. nalista de 60 anos foi libertado sob Em 2013, foi criado um órgão para nal de notícias. Acusado por funcioná-
Na primavera de 2021, as autorida- fiança. “Mais do que a ameaça de uma tentar regular o setor: a Alta Autoridade rios da agência de envolvimento em
des argelinas não foram as únicas a pena de prisão, a difamação se tornou a Independente para a Comunicação Au- serviços de propaganda e censura no
mirar nos jornalistas: no Marrocos, em arma da polícia política para desquali- diovisual (Haica). Sem sucesso. “Na âmbito do antigo regime, ele acabou re-
um contexto de tensões sociais recor- ficar os oponentes e forçá-los a mudar Tunísia, instituições independentes, nunciando. O caso demonstra a incom-
rentes, 3 Omar Radi seria julgado em 27 sua retórica. Eles prendem os jornalis- incluindo a Haica, não conseguiram se preensão e até mesmo o desinteresse
de abril, após nove meses de prisão tas mais emblemáticos para assustar os livrar da polarização política”, lamenta manifestados pelo Poder Executivo tu-
preventiva, mas seu julgamento foi no- outros. E funciona! Estamos isolados Ferjani, que participou da aventura nisiano nas regras mais básicas da éti-
vamente adiado. Jornalista investigati- dentro da profissão. Em geral, o dispo- desde o início. “Por dois anos, conse- ca jornalística. 
vo e cofundador do jornal online Le sitivo de segurança do regime está em guimos escapar da influência dos dois
Desk, ele vem sendo submetido a um uma corrida e age de forma cada vez principais partidos da época, o Nidaa *Pierre Puchot  é jornalista.
tratamento particularmente severo há mais repressiva para tentar silenciar a Tounès e o Ennahda. Depois da alian-
dois anos. Assediado pelas autoridades ira do povo marroquino”, relata. ça, em 2015, não foi mais possível. Hoje,
por seus artigos ou por publicações em Na Tunísia, desde a revolução de ja- a Haica é mais como uma pequena as- 1   L er Akram Belkaïd, “Algérie, les louanges et la
matraque” [Argélia, a admiração e o cassete-
redes sociais, atacado com virulência neiro de 2011, o contexto é bem diferen- sociação sem nenhum poder real do te], Horizons arabes, 30 set. 2020. Disponível
pelos meios de comunicação próximos te. “O que está acontecendo atualmen- que um órgão regulador”, avalia. em: https://blog.mondediplo.net.
ao poder, ele está preso desde 29 de ju- te no Marrocos lembra o que vivemos 2   “ Rapport 2020/21: la situation des droits hu-
mains dans le monde” [Relatório 2020/21: a
lho de 2020. Acusado de “atentado ao sob o regime de Zine al-Abidine ben FECHAMENTO DE situação dos direitos humanos no mundo],
pudor com violência”, tornou-se réu de Ali”, observa Riadh Ferjani, professor CONTAS DO FACEBOOK Anistia Internacional, 7 abr. 2021.
uma acusação de estupro – o que ele de Sociologia da Mídia em Túnis. “Com Nesse contexto, a importância cada vez 3   Ler “Au Maroc, ‘on te traite comme un insecte’”
[No Marrocos, jornalistas são tratados como
nega veementemente, assim como seu um detalhe: aqui, as autoridades usa- maior das redes sociais nos assuntos insetos], Le Monde Diplomatique, abr. 2020.
colega e também acusado da mesma ram os jornais para difamar os adver- públicos contribui “para a polarização 4   Ler Larbi Chouikha, “Médias, la réforme ina-
coisa Imad Stitou. sários: lá, eles são atacados em reporta- e a histeria” de um debate político “par- chevée” [Meios de comunicação, a reforma
inacabada]. In: “Le défi tunisien”, Manière de
“Esses casos servem para quebrar a gens de televisão”, completa. ticularmente doentio”, avalia Kha- Voir, n.160, ago.-set. 2018.
solidariedade internacional em torno Desde a revolução tunisiana, as dhraoui. No início de abril, o vazamen- 5   C f. Thameur Mekki, “Dossier: Nessma, retour
de jornalistas cujo trabalho é reconhe- práticas evoluíram, e a lenta constru- to de uma gravação indicando que o sur cinq ans d’impunité d’un média hors-la-loi”
[Dossiê: Nessma, retorno após cinco anos de
cido como de utilidade pública”, expli- ção de um cenário midiático pluralista gabinete da presidência da República impunidade de uma mídia fora da lei], Nawaat,
ca Amna Guellali, diretora responsá- passou por várias etapas.4 O jornalismo teria feito uma manobra para destituir 26 abr. 2019.
vel pela região do Magreb e Oriente investigativo, entretanto, continua es- o primeiro-ministro mostrou em que 6   “Tunisie: nouvelle tension dans le bras de fer
qui oppose le président au premier ministre”
Médio na Anistia Internacional – orga- casso. Fundado em 2014, ano da adoção medida o Facebook continua sendo [Tunísia: mais tensão no impasse entre presi-
nização que, assim como a Repórteres da nova Constituição, o Inkyfada é, central no acerto de contas do poder, dente e primeiro-ministro], RFI, 23 fev. 2021.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

ENTREVISTA ITAMAR VIEIRA JR.

“A literatura brasileira estava muito


restrita ao urbano e à classe média”
Em entrevista, o premiado escritor Itamar Vieira Jr. afirma que seus livros narram histórias marginalizadas na produção
contemporânea e ajudam a contar a história do país

POR GUILHERME HENRIQUE*

V
encedor do Prêmio Jabuti, no movido por críticas ou elogios. Meu história deles. São histórias que têm po eu sentia falta dessa multiplicidade.
Brasil, e do Oceanos, em Portu- compromisso com a escrita é algo mui- como pano de fundo esse sentimento A literatura brasileira estava muito res-
gal, com o elogiado romance Tor- to pessoal e acontece independente- de estar só no mundo, algo que aconte- trita ao ambiente urbano e à classe mé-
to arado, o escritor Itamar Vieira mente dos prêmios, dos elogios e tam- ce com todos nós em algum momento dia. Acredito que a literatura é o regis-
Jr. lançou em junho, pela editora Toda- bém das críticas. Vou escrever sempre da vida, quando nos encontramos com tro da história de um povo, de um país,
via, Doramar ou Odisseia, livro que reú- que achar necessário. Os exageros de nossos fantasmas. e cada autor dá o testemunho do seu
ne contos inéditos e outros já publica- qualquer lado me incomodam. Em O espírito aboni das coisas narro tempo. O meu testemunho é buscar
dos quando o baiano não figurava a história de um indígena que precisa histórias improváveis, que não surgem
entre as estrelas da literatura nacional. Certa vez, o escritor Osman Lins afir- se afastar da sua aldeia para encontrar com muita frequência e que são funda-
As histórias fincam pé na temática nor- mou que decidiu escrever um romance uma erva que vai salvar sua mulher. To- mentais para entender o meu país.
teadora de sua obra, versada na trajetó- quando sentiu a mão firme para uma da a jornada, que é cheia de autorreve-
ria dos despossuídos e dos desvalidos. longa narrativa. Você está lançando lação, é muito solitária, com sons dos O que há de universal nas
“Acredito que a literatura é o regis- um livro de contos precedido de um homens que estão matando a floresta. histórias que você cria?
tro da história de um povo e cada autor romance. Como foi no seu caso? Essa solidão também aparece em Alma, Tudo. Esses personagens têm medo,
dá o testemunho do seu tempo. O meu Eu gosto dos dois gêneros, seja con- baseado em uma história oral que cir- desejam a liberdade ou são frágeis de

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testemunho é buscar histórias impro- to ou romance. O conto tem o arco tem- cula nas comunidades tradicionais alguma forma. A beleza da literatura é
váveis, que não surgem com frequên- poral que remete a uma conversa em baianas, de uma mulher negra que dei- esta: viver a vida de qualquer pessoa.
cia e que são fundamentais para en- um café ou bar. Como leitor, sempre li xou o cativeiro e andou por 400 quilô- Fico pensando no percurso de Torto
tender o meu país”, disse o escritor ao muitos contistas, pessoas que fizeram metros para ser livre. arado, por exemplo. Enquanto escrevia
Le Monde Diplomatique Brasil em en- minha cabeça, como Clarice Lispector, No último conto do livro, que retrata
trevista por chamada de vídeo em Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes a busca de Arthur Bispo do Rosário [ar-
meados de junho. Telles e João Guimarães Rosa. O ro- tista sergipano], reproduzo aquilo que é
O autor, que se mantém como servi- mance é algo mais duradouro, um tem- conhecido como “síndrome de Deus”,
dor público no Instituto Nacional de Co- po maior de envolvimento e dedicação que todos nós, criadores de arte, temos
lonização e Reforma Agrária (Incra) em mais profunda. Durmo e acordo com um pouco. É uma trajetória solitária, en-
Salvador, recusa o título de maior escri- os personagens e vivenciando a atmos- volvida por seus demônios, para criar o
tor brasileiro da atualidade, dá detalhes fera do texto. Como já escreveu o [escri- Manto da Apresentação, algo maravilho-
do romance que está por vir e analisa a tor argentino Julio] Cortázar: em uma so e improvável. Enfim, a solidão atra-
conjuntura atual sob o governo de Jair luta de boxe, o conto vence por nocau- vessa todas as histórias e é algo que todos
Bolsonaro. “Vivemos um retrocesso te, e o romance, por pontos. O conto é o nós conhecemos de maneira íntima.
porque houve certa leniência das oligar- poder da síntese, de expressões que não
quias e dos capitalistas em torno dessa são fundamentais no texto. É a vitória Você sempre esteve em comunidades
figura que ocupa a Presidência da Repú- no poder de um golpe certeiro. tradicionais, algo que aparece em
blica. Ele [Bolsonaro] é um carimbo Agora, o que define um e outro é a Torto arado. Raduan Nassar diz que
desses retrocessos”, afirma. história, quando ela não se resolve de sempre preferiu a observação da vida
maneira imediata. O romance precisa à leitura excessiva. Como é para você?
Le Monde Diplomatique Brasil – Uma de mais espaço para avançar, e invaria- Há autores que voltam sua escrita
reportagem recente o definiu como o velmente outras coisas emergem. Con- para experiências interiores. Veja Clari-
“maior escritor brasileiro hoje”, mas fesso que isso não está muito claro no ce Lispector, por exemplo. Ela tem uma
você já se declarou escritor só nas meu processo criativo: quando deve ser escrita muito intimista e sua obra se
horas vagas. Como isso funciona? um conto ou quando deve ser um ro- volta para o existencial. Mas até mesmo
Itamar Vieira Jr. – A minha rotina mu- mance. Tenho projetos de contos e pro- Clarice tinha um olhar observador, em
dou bastante, mas continuo trabalhan- jetos de romance, mas tudo depende da histórias como Mineirinho e A hora da
do como servidor público do Incra. O escrita. Agora mesmo estou escrevendo estrela, cuja inspiração são os nordesti-
livro ficou conhecido em um período um novo romance e sei que a narrativa nos da feira de São Cristóvão, no Rio de
de restrição, por causa da pandemia, não se resolve em poucas páginas. Janeiro. Para mim, a escrita é uma for-
então atuo mais como escritor quando ma de educação, e a minha educação
não estou trabalhando. Minhas entre- Doramar e Odisseia tem muitos contos passa por várias coisas, não só o ensino
vistas são sempre depois do expedien- que falam sobre a solidão. É proposital? formal. Tem a ver com a própria etimo-
te, aliás. O que tem faltado agora é tem- Esse é o tema que une todos os con- logia da palavra, que fala sobre “sair de
po para escrever. Sobre esse título, aqui tos de maneira inexorável. São perso- si e encontrar o outro”. Gosto de sair de
no Brasil é assim: oito ou oitenta. Ou nagens que estão vivendo suas odis- mim e encontrar histórias que façam
você não vale nada, ou é a pessoa mais seias, aventuras pessoais, trilhando sentido para mim e que não são encon-
preciosa do mundo. Não me afeta. O caminhos, e em algum momento se tradas com facilidade pelos leitores. O
meu compromisso é com a literatura. encontram solitários. E se deparam Brasil é um país imenso, com uma po-
Tudo que eu escrevi até agora não foi com algo que é incontornável para a pulação diversa, e durante muito tem-
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 31

o livro, não tinha editora, não era co- Tenho uma origem familiar negra, Você está trabalhando em um novo zer aquilo que considero relevante.
nhecido e não fazia ideia de como pu- indígena, misturada com europeus po- romance com temática semelhante Não apenas para Itamar, mas para a
blicaria essa obra. Acabei movido pelo bres que chegaram à Bahia no início do de Torto arado. Qual é o desafio de sociedade. Não sou neutro, e a minha
interesse de que narrar essa história século XX. Para mim, é muito impor- criar personagens que não se repitam? literatura não é neutra. Embora seja li-
era algo importante para mim, porque tante explorar essas narrativas e falar a Meus personagens têm vida pró- teratura e se debruce sobre a expe-
via algo humano e sem fronteiras no partir do meu lugar. A literatura é uma pria. Eles começam com uma ideia a riência humana, essa minha com-
enredo, embora o contexto e a localida- necessidade de comunicação com o partir do confronto do autor com a rea- preensão se dá pelo ser político que
de estivessem restritos ao interior da outro, mas também uma forma de lidade, mas, à medida que a história vai sou e pelo contexto que nos rodeia.
Bahia. O que aconteceu? O livro foi pu- aprofundar a minha ancestralidade. É se desenrolando, esses personagens Mas tem dias em que eu acordo e pen-
blicado primeiro em Portugal, porque o ambiente onde me sinto confortável. ganham vida própria. Quando escrevo, so onde estou e o que está acontecen-
venceu um prêmio que eu nem sequer A Toni Morrison é uma grande referên- tenho alguma noção do que vai aconte- do neste país.
imaginava. Aí, o livro veio para o Brasil cia na minha vida. Ela teve uma in- cer no decorrer da trama, mas quase
e encontrou pessoas de norte a sul, de fluência definitiva na forma como es- sempre sou surpreendido e há mudan- Já vi você dizer que “há uma conjunção
diversas origens e classes sociais. crevo, porque foi graças a ela que ça de rumo. Na experiência acadêmica de forças sempre tentando impedir
Embora eu fosse movido pela ideia enxerguei nossa história com uma cen- até o doutorado, com estudos voltados os avanços sociais no Brasil”.
de que havia ali algo universal, eu des- tralidade única. A vida de pessoas ne- para a Antropologia, pude exercitar es- Quais são essas forças?
confiava disso e me perguntava qual gras na obra de Toni Morrison é exata- sa veia de pesquisador. Acho que a es- Nasci em 1979, em uma família sim-
interesse essa obra suscitaria. Neste mente isso. Qualquer evento que crita literária não se dissocia muito dis- ples. Meus pais eram muito jovens e
momento, Torto arado já foi vendido acontece no seio da sua comunidade é so. Quando estou escrevendo, preciso com uma vida muito dura. Fui perce-
para mais de dez idiomas, incluindo algo importante, relevante, e pode se estar atento, ouvir e olhar as ações dos bendo o que a ditadura militar signifi-
alemão, inglês, francês, croata, búlga- tornar uma grande história. Toni Mor- personagens, para descobrir subjetivi- cava já na infância. Tenho uma remota
ro... É uma história que fala de pessoas rison dizia que antes de começar a es- dades e complexidades. lembrança das Diretas Já, do meu pai
negras no interior da Bahia. No fundo, crever precisou tirar o homem branco envolvido com o sindicato e da felicida-
essas editoras encontraram algo que que estava em seus ombros. Ela viu que de que ele manifestava por votar pela
fala ao coração do ser humano. a partir daquele lugar poderia contar “Quando escrevo, tenho primeira vez, aos 32 anos, na eleição
histórias magníficas para mudar a per- alguma noção do que vai presidencial de 1989. Tivemos um pe-
Toni Morrison disse que em alguns cepção dos leitores sobre si e sobre o ríodo sombrio, tenebroso e de supres-
momentos sua mente era uma casa outro. Agora, pode ser que no mercado
acontecer no decorrer da são de direitos, sem exercer nossa cida-
fechada, porque ela era cobrada e só editorial haja uma ideia de nicho de trama, mas quase sempre dania plena, algo que ainda nos aflige
conseguia escrever sobre o racismo. mercado. Mas, como autor, não consigo sou surpreendido” em certa medida. Pouco a pouco cons-
Já ouvi você dizer que essa literatura pensar assim. Carolina Maria de Jesus, truímos um país, com quase trinta

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diversa pode ser transformada em Machado de Assis... ninguém imaginou anos de democracia pujante, com a
nicho. Há um impasse aí? Esse nicho a literatura como nicho. Mas talvez isso Enquanto eu escrevia Torto arado, adoção de políticas públicas que atin-
acontece porque escritores brancos ocorra nas editoras e é algo que precisa percebi que o assunto não havia se es- giram setores conservadores e privile-
não escrevem sobre racismo? se dissolver com o tempo. gotado. Esse novo livro não é uma con- giados deste país. Uma parcela insatis-
tinuação, mas uma narrativa que ainda feita da sociedade nunca aceitou isso
se debruça sobre a questão da terra, os plenamente. Se olharmos para o passa-
conflitos agrários. Dali, alguns perso- do, sempre houve avanços e retroces-
nagens surgem, outros chegam timida- sos. Nossa república nasce com um gol-
mente e tomam a história para si... Aí pe, depois há uma outra ditadura nos
eu preciso reescrever. É algo que vai se anos 1930 e 1940.
desenrolando de maneira muito miste- Ainda assim, tenho uma profunda
riosa. Ainda não encontrei nenhum au- esperança, porque temos capacidade de
tor que falasse honestamente como se mobilização. Sinto que há um poder que
dão esses meandros da criação literá- emana das comunidades, na periferia e
ria. Depois, quando o livro está pronto, no campo. É aquilo que o [geógrafo]
me sinto abandonado pelos persona- Milton Santos caracterizava como o pe-
gens, e vida que segue. ríodo popular da história. Ele fez uma
crítica feroz à globalização, chamando-
O que é a “esperança engajada” que -a de perversa. Quando ele escreveu Por
você diz ter sobre o Brasil e como ela uma outra globalização, estava falando
se manifesta em nossa realidade? justamente desse protagonismo popu-
Quem me vê falando assim parece lar, que se organiza para ter a casa pró-
que eu acordo todos os dias com um pria, como no MTST, pelo acesso à terra,
sorriso no rosto. Não é verdade! Con- os movimentos indigenistas e quilom-
fesso que sou uma pessoa até melancó- bolas. Há um país que está amadure-
lica. Mas, quando olho para trás e vejo cendo. Nós vivemos um retrocesso por-
todos os traumas pelos quais passamos que houve certa leniência das
e torno a olhar para este tempo cruel e oligarquias e dos capitalistas em torno
duro, imagino que tudo já foi pior. Há dessa figura que ocupa a Presidência da
três séculos, pessoas como nós [o re- República. Ele é um carimbo desses re-
pórter é negro] seríamos cidadãos de trocessos. Tudo que está acontecendo
segunda classe no país. Hoje, apesar de serviu para nos chacoalhar de que a de-
tudo, podemos falar de maneira altiva, mocracia não está consolidada e é uma
estamos encontrando uma voz a duras construção permanente. Vamos usar
penas para falar sobre o racismo. Isso todas as armas possíveis para que ela
me traz certo otimismo. permaneça íntegra, com mais gente
A esperança engajada é que nós de- participando dela. Vivemos um mo-
vemos ser a transformação que quere- mento de má sorte, nefasto, mas que vai
mos ver no mundo. Neste momento ficar para trás. 
em que sou quase sempre obrigado a
falar sobre o Brasil, aproveito para di- *Guilherme Henrique  é jornalista.
© PriWi
32 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

ARTES

Um tráfico de apreenderam 6 mil objetos resultantes


de escavações ou roubados, sobretudo
vasos gregos e etruscos – os mais fáceis

especialistas
de vender –, fragmentos das paredes de
Pompeia e 5 mil polaroides fotografa-
dos pelos tombaroli, que permitem
comparar as obras com os catálogos da
Sotheby’s ou dos museus. Alguns obje-
tos são fragmentados. “Vender os peda-
No ranking do tráfico internacional, o comércio ilegal de obras de arte ocupa o terceiro ços permite evitar um delito junto às
lugar, atrás apenas das drogas e das armas. Ele prospera apesar da criação de unidades alfândegas”, especifica Maurizio Fio-
rilli, advogado do Estado no processo
de investigação especializadas e da tomada de consciência do que representa para os de Medici. E prossegue: “Os vendedo-
países roubados. Na Itália, o tráfico conjuga práticas de vigaristas estabelecidos e a res se beneficiam deles sobretudo para
lavagem de obras por parte de especialistas ganhar mais dos compradores. Eles
vendem um fragmento, depois outro,
até que o museu esteja disposto a gas-
POR PASCAL CORAZZA* tar uma fortuna para reconstituir a
obra, que, em seguida, será exposta
com toda a publicidade que merece”.

A
© Wikimédia
questão de restituir obras outrora No final dessas investigações, Ferri
roubadas de países colonizados, indicia Hecht, mas também Marion
assim como as pilhagens recen- True, curadora no Getty Museum, o
tes em zonas atormentadas pela maior museu privado de arte do mun-
instabilidade, torna claras as disputas, do. Embora outros estabelecimentos
principalmente políticas e simbólicas, estejam ligados ao tráfico, como os de
do tráfico de arte. Contudo, esses negó- Nova York, Princeton, Boston, Cleve-
cios clandestinos também operam, há land, Toledo..., nenhum deles tinha os
séculos, sem nenhum derramamento recursos do museu californiano: US$
de sangue, graças às fragilidades da le- 250 milhões por ano. O bilionário Paul
galidade, intervindo na oferta e na de- Getty “era proprietário também de uma

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manda e movimentando somas consi- ilha perto de Nápoles”, lembra Fiorilli. E
deráveis: “O comércio ilícito de bens completa: “Ele possuía uma embarca-
culturais ocupa o terceiro lugar no rol ção para alto-mar. Quando comprava
das atividades criminosas internacio- as peças dos clandestinos de Cerveteri,
nais, depois do tráfico de drogas e de ele os levava para a ilha e, de lá, direta-
armas”, expressa com precisão o Cour- mente para os Estados Unidos”.
rier de l’Unesco (9 out. 2020). A pilha- Entre 400 e 550 túmulos etruscos,
gem do patrimônio da Itália, rico em de acordo com a Unesco, foram saquea-
vestígios etruscos, gregos e romanos, dos em Cerveteri após 1945. O laissez-
com destino principalmente aos Esta- -faire era a regra. “Os tombaroli levavam
dos Unidos e a seus milhares de mu- suas gamelas para comer ao meio-dia”,
seus, durou cerca de sessenta anos e sa- lembra um habitante dos arredores. No
lienta a importância financeira desse entanto, a lei italiana de 1939 estipula
“comércio”, seu papel na busca de pres- que não se pode descobrir objetos, ex-
tígio e as dificuldades encontradas pe- ceto “por acaso”, e que estes devem ser
los representantes da lei. declarados. Mas... afirma um advogado
“Entre nós, vale mais roubar uma calabrês: “Tenho um cliente que, todo
obra de arte do que um jeans”, disse- Uma das crateras do pintor antigo Eufrôni. A obra está em um museu em Berlim verão, desce para pescar uma ânfora no
-nos o procurador Paolo Giorgio Ferri casco de um navio naufragado. Eu o
pouco antes de sua morte, em junho de baroli – “ladrões de túmulos” que, em aliado circunstancial. A investigação de aconselhei a ir à prefeitura, mas a re-
2020. Mesmo que uma unidade de cara- troca de um pagamento irrisório e na Watson sobre a Sotheby’s suscitou uma compensa paga pelo Estado é tão irrisó-
bineiros especializada no tráfico tenha obscuridade, trabalham no tráfico de auditoria interna na célebre casa de lei- ria que ele continua”.
sido criada em 1969, somente em 1995 objetos arqueológicos, na terra ou no lões, cujos advogados vieram a Roma Em 1970, a Unesco estabeleceu uma
foi formada uma equipe de magistra- mar – concluíram que foram engana- entregar seus catálogos a Ferri. Vende- convenção visando “proibir e impedir
dos. Ferri a integrou desde sua origem. dos. Hecht declarou ter comprado o dores que trabalham para Medici ocu- a importação, a exportação e a transfe-
No carro de um capitão da Guarda de vaso de um colecionador armênio que pam nisso um bom espaço: “Os leilões rência de propriedades ilícitas de bens
Finanças (polícia aduaneira e financei- o teria conservado na Suíça. Em 1973, dão um pedigree a obras que não o têm”, culturais”. 2 “Mas, depois da venda da
ra) que morreu em um acidente numa um dos seis homens que desenterra- explicou Ferri. “Eles permitem também cratera de Eufrônio, a atividade, antes
rodovia em 1994, os policiais encontra- ram o vaso declarou, ao New York Ti- inflar os preços, graças a compradores artesanal, tornou-se industrial”, conta
ram fotografias de objetos de arte e, em mes, a data (1971) e o lugar da escava- testa de ferro. Estes fazem subir as ofer- Fabio Isman, jornalista no Il Messagge-
seu apartamento, um documento escri- ção: as necrópoles etruscas de tas para a conta de um mesmo patrão, ro. 3 A Unesco estabeleceu, então, outra
to à mão por ele: o organograma de Cerveteri, ao norte de Roma.1 que decide no final o valor do objeto. convenção em 1995: a Unidroit. Nem a
uma rede de tráfico internacional. O organograma indica Giacomo Medici revendia para os museus dizen- França nem os Estados Unidos a
No comando, o norte-americano Medici como auxiliar de Hecht. Ele mo- do: ‘Comprei por tanto na Sotheby’s, me ratificaram...
Bob Hecht, um nome já conhecido pe- ra bem perto de Cerveteri e é considera- dê um pouco mais que isso...’.” Dez anos depois, em 2005, True,
los carabineiros. Em 1972, ele tinha do suspeito do roubo de 20 mil peças. As informações dadas pela Sothe- acusada de ter facilitado as aquisições
vendido a cratera (um tipo de vaso) do “Quando a equipe foi criada, em 1995, by’s somam-se às descobertas feitas, duvidosas do Getty Museum, compa-
pintor antigo Eufrônio para o Metro- eu já investigava sobre Medici e suas re- em 1995, no Port Franc de Genebra, receu a um tribunal penal romano.
politan Museum of Art de Nova York lações com a casa de leilões Sotheby’s”, uma zona de armazenamento não sub- Fiorilli defendeu o Estado italiano; Fer-
(MET) por US$ 1 milhão. Ao descobri- declarou Ferri, que encontrara em um metida ao serviço das alfândegas. No ri atuou como procurador. Uma estreia
rem o montante da transação, os tom- jornalista britânico, Peter Watson, um entreposto de Medici, os carabineiros mundial. O magistrado tinha boas car-
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 33

DE ANDRÉ MALRAUX A JACK LANG, UMA DEMOCRATIZAÇÃO INACABADA

Agora, tudo
tas na mão: graças aos polaroides en- mansão. Já o tráfico, este persiste. Em
contrados na casa de Medici com os ca- 2016, os carabineiros fizeram uma bus-
tálogos do museu, ele levou os ca nos entrepostos suíços do britânico
advogados do Getty Museum a condu- Robin Symes, que, com Hecht, vendia

é cultural!
zir uma investigação interna. A audito- para os grandes museus dos Estados
ria, que propôs esconder das autorida- Unidos, Japão, França, Reino Unido, Is-
des transalpinas alguns documentos, rael etc. o que Medici lhe fornecia. Esse
chegou a dois jornalistas do Los Angeles espólio compreende 17 mil objetos de
Times: Jason Felch e Ralph Frammoli- arte, dois sarcófagos etruscos, frag-
no, finalistas do prêmio Pulitzer de mentos de um afresco de Pompeia e Quase todos os políticos concordam em afirmar, com
2006 por esse trabalho, que revelou que uma cabeça de Apolo, feita de mármo- uma convicção tocante, que a cultura é fundamental
a metade das mais belas peças antigas re, datada do século I a.C.
do museu é proveniente do tráfico Ferri investigou 2.500 pessoas; res- para a democracia. Falta definir em que e como.
internacional.4 tam milhares de outras. Desde 1969, os Da “democratização” à “democracia”, da “exceção”
Para se defender, True declarou que carabineiros repatriaram 800 mil obras, à “diversidade”, a política cultural mudou profundamente
a instituição foi “desonrada por colabo- mas, segundo Fiorilli, “80% dos objetos
radores”. Ela fez alusão a Jiří Frel, que etruscos ou romanos no mercado são desde o escritor e ministro da Cultura André Malraux,
mudou do MET para o Getty Museum de origem clandestina”. “O Getty Mu- particularmente nas fileiras da esquerda
em 1974. Em 1977, ele adquiriu por US$ seum aceitou nos restituir um grande
3,8 milhões o Jovem vitorioso, atribuído número de obras”, salientou Francesco
a Lísipo, o escultor de Alexandre, o Rutelli, ministro da Cultura entre 2006 POR SERGE REGOURD*
Grande. Encontrada em 1964 por um e 2008, durante o governo de Romano
pescador no alto-mar de Fano, cidade Prodi. Entre elas, a Afrodite de Morgan-

A
costeira do Adriático, a estátua tornou- tina, adquirida por US$ 18 milhões – o pandemia provocou uma grave chamar de um referencial apto a defi-
-se atração do museu, a ponto de ser re- maior preço alcançado por uma obra da crise do setor cultural (não es- nir os fundamentos, ou as finalidades,
nomeada “The Getty Bronze” [O bron- Antiguidade. A cratera de Asteas, vendi- sencial), mas esse infeliz aconte- de uma política cultural. Um resumo
ze do Getty]. Expulso dos Estados da por Becchina para o Getty Museum, cimento apenas trouxe à luz uma cruel, mas impactante, pode ser dado
Unidos em 1986 por razões fiscais, Frel voltou para a Itália em 2005, três anos situação mais antiga e de maior ampli- com a conversa famosa entre Hollande,
se uniu a Gianfranco Becchina, que, de antes da cratera de Eufrônio. tude: a do declínio das políticas cultu- presidente da República, Manuel Valls,
acordo com o organograma, é outro au- Falta o “Getty Bronze”. O Tribunal rais há várias décadas e da perda de re- primeiro-ministro, e Fleur Pellerin,
xiliar de Bob Hecht e vive na Sicília, em Constitucional avaliou que, apesar de ferências, nessa área, por aqueles que quando esta foi nomeada ministra da

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Castelvetrano, berço da família daque- ter sido encontrado em águas interna- nos governam. Os sinais exteriores Cultura. Ela ficou perplexa ao ouvir a
le que iria se tornar o suposto chefe da cionais, levado para a terra por um bar- mais elementares são perceptíveis à missão que lhe confiavam. Sua agenda,
Cosa Nostra, Matteo Messina Denaro. co italiano, ele era italiano. “Espera- primeira vista, pelo lugar que a questão tal qual a definiram seus interlocuto-
Podemos nos perguntar: como a mos com impaciência apresentar um cultural ocupa nas campanhas eleito- res, seria simples: primeiro, “ter ideias”
‘Ndrangheta, a Cosa Nostra ou a Ca- recurso diante do Tribunal Europeu rais, nas quais é reduzida ao mínimo e, para tê-las, “encontrar-se com Jack
morra podem ignorar um tráfico de 6 dos Direitos Humanos”, disse-nos Julie ou a nada. As manifestações são múlti- Lang e sua esposa, Monique”; depois,
bilhões a 15 bilhões de euros por ano, Jaskol, da Getty Trust. Na realidade, em plas, mas convergentes, em um contex- assistir aos espetáculos (“Faça isso to-
segundo a estimativa de Édouard Plan- 1968, o Superior Tribunal julgou que to dominado pela lógica empresarial e das as noites”); e, por fim, dizer aos ar-
che, responsável desde 2007 pelo pro- não havia nenhuma prova de que a es- pela confiança cega nas virtudes do tistas “que foi bonito... e que eles são
grama de luta contra o tráfico ilícito de tátua fosse propriedade da Itália. Pro- mercado: ausência de interesse pelas uma alavanca econômica”. Infelizmen-
bens culturais e a favor de sua restitui- longar a batalha judiciária é a arma dos problemáticas artísticas e culturais no te, essa conversa aconteceu mesmo.2
ção para a Unesco? “É lucrativo”, reco- norte-americanos. Já a dos italianos é o recrutamento e formação das novas No entanto, a criação do Ministé-
nhecia Ferri. E prosseguia: “No entan- embargo dos empréstimos aos museus elites; rotatividade rápida dos minis- rio dos Assuntos Culturais no início
to, o setor é extremamente específico: da América do Norte. tros da Cultura (quatro durante os sete da Quinta República, chefiado por An-
um negociante internacional de arte Em outros lugares, os negócios con- anos de Valéry Giscard d’Estaing, três dré Malraux, tinha um programa sem
tem necessidade de uma expertise que o tinuam também. Em Paris, em junho durante os cinco de François Hollande nenhuma ambiguidade, conforme o
crime organizado não tem”. Antes de de 2020, um especialista, uma antiga e já três durante os quatro de Emma- decreto de 24 de julho de 1959: “Tor-
moderar: “Mas os territórios estão sob curadora do Louvre e o presidente da nuel Macron); deriva incontrolável das nar acessíveis, ao maior número de
controle...”. Quando os carabineiros fi- Pierre Bergé e Associados foram inter- mídias de massa rumo ao divertimento pessoas possível, as obras capitais da
zeram buscas nos locais utilizados por pelados, suspeitos de terem falsificado puro, que contribui para uma degene- humanidade, primeiramente da Fran-
Becchina, em 2002, no entreposto de a história das obras roubadas desde ração do espaço público ainda mais ça”. Missão qualificada, com justiça,
Basileia, eles apreenderam 6.315 obje- 2010 no Egito, no Iêmen, na Síria e na Lí- profunda do que haviam previsto de democratização cultural e que pa-
tos de arte, 8 mil fotografias, 13 mil do- bia para revendê-las legalmente, sobre- Theodor Adorno e Jürgen Habermas, os rece inerente à própria existência do
cumentos. Eles sabem que ele adquiriu tudo ao Louvre Abu Dhabi e ao MET.  filósofos da Escola de Frankfurt, quan- ministério – tanto que ninguém ja-
um palácio em Castelvetrano. Mas “os do se interrogavam sobre as conse- mais a questionou.
serviços secretos italianos não conse- *Pascal Corazza  é jornalista. Autor, entre quências da cultura de massa...1 A “re- Obstáculos político-sociais impedi-
guiram provar que ele tinha ligações outros livros, de Voyage en italique [Viagem volução” digital, entronizando os ram o cumprimento desse generoso
com a máfia”, explica Isman. pela Itália antiga], Transboréal, Paris, 2012. algoritmos e suas recomendações, veio objetivo: das condições de trabalho às
Em 2011, Becchina foi considerado agravar o processo de ruptura com condições de acesso às obras, inúmeras
culpado por tráfico ilegal de antiguida- uma das mais belas definições de cul- dificuldades privaram as classes ditas
1   Nicholas Gage, “Farmhand tells of finding
des, mas, depois de recorrer, foi libera- MET’s vase in Italian tomb” [Trabalhador rural tura já feitas, do poeta – e diplomata – populares do gozo da maior parte da
do por prescrição. Como, um ano an- conta que encontrou vaso do MET em túmulo Saint John Perse: o “luxo do desacostu- oferta artística, enquanto as classes
tes, True. Como Hecht, o chefe da rede. italiano], The New York Times, 25 fev. 1973. mado”... O exemplo do Pass Culture, médias superiores, já providas de certo
2   Ler Philippe Baqué, “Enquête sur le pillage
Todos liberados, salvo Medici. Julgado des objets d’art” [Investigação sobre a pilha- destinado aos jovens de 18 anos, é es- capital cultural, se apropriavam dela.3
em 2004, ele não foi beneficiado pela gem de objetos de arte], Le Monde Diplomati- clarecedor: aos usuários que fizeram Esse fracasso relativo levou, décadas
Lei Cirielli, que, sancionada no ano se- que, jan. 2005. menos de duas reservas, o site propõe depois, com a eleição de Mitterrand e a
3   C f. Fabio Isman, I predatori dell’arte perduta. Il
guinte, reduziu pela metade os prazos saccheggio dell’archeologia in Italia [Os pre- as ofertas mais populares dos sete últi- nomeação de Lang, ao surgimento de
de prescrição. Ele foi condenado a oito dadores da arte perdida. A pilhagem da ar- mos dias das categorias culturais que uma nova grade de valores para definir
anos de prisão domiciliar, como todo queologia na Itália], Skira, Milão, 2009. eles “já praticaram”. as tarefas do ministério: “Permitir a to-
4   Ralph Frammolino e Jason Felch, “The Getty’s
culpado com mais de 70 anos de idade troubled goddess” [A deusa problemática do No âmago desse processo de deser- dos os franceses cultivar sua capacida-
– em outras palavras, em sua luxuosa Getty], Los Angeles Times, 3 jan. 2007. dação reside a perda do que convém de de inventar e criar, exprimindo li-
34 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2021

vremente seus talentos” (decreto de 10 glês), inaugurou-se um novo período (2007): cada qual deve poder vivenciar e antes mesmo de 1981, como se vê pela
de maio de 1982). de extensão do intercâmbio livre, que sua identidade cultural como “o con- Lei Haby (1975), não faltaram textos le-
Portanto, graças à realização desses assinalou uma vigorosa ofensiva norte- junto das referências culturais pelo gislativos, que se sucederam desde en-
potenciais criativos, a democracia cul- -americana de desregulamentação. qual uma pessoa, sozinha ou em co- tão para insistir em que colocar em
tural seria finalmente conquistada. Para proteger as indústrias culturais mum, se define, se constitui, se comu- prática qualquer projeto de democrati-
Uma ampliação considerável do campo do país (cinema e audiovisual, sobretu- nica e quer ser reconhecida em sua zação pressupunha inevitavelmente o
das atividades culturais acompanhou do) e dar a entender que se abre mão do dignidade”. Ela foi em seguida adotada ensino artístico na escola.10 Mas a esses
essa valorização da criatividade de ca- resto, foi invocado o conceito de “exce- a fim de amparar práticas característi- dispositivos faltava eficácia jurídica, e
da um. O grande prestígio concedido a ção cultural”, que desempenhou bri- cas de certos locais ou comunidades, pode-se supor que eles não serão con-
gêneros frequentemente definidos até lhantemente o papel de máscara.7 Mas fazendo assim prevalecer uma ideolo- cretizados, agora que “a proteção e a
então como “menores” – a história em esse conceito, que se baseia no direito gia liberal (centrada na diferença do promoção da diversidade das expres-
quadrinhos, o rock, o rap etc. – contem- internacional, logo passou a ser utili- indivíduo e na atribuição de direitos a sões culturais” (discurso de Franck
plou também áreas novas, como a “ar- zado de maneira fluida, para designar essa diferença) sobre a visão democrá- Riester em uma reunião da Unesco por
te” culinária e a moda, e nenhuma de- a “cultura francesa”, e acabou substi- tica, indissociável do princípio de videoconferência em 22 de abril de
veria ser considerada, em natureza ou tuído rapidamente por um novo “refe- igualdade.9 Situação agora perigosa 2020), que animam atualmente o mi-
qualidade, inferior às belas-artes tradi- rencial”, de poderes encantatórios: a em um contexto político-social con- nistério, podem se apoiar na suposta
cionais. Essa recusa a toda e qualquer diversidade cultural. juntamente dominado por fortes in- imediaticidade dessas expressões. O
hierarquia foi repisada em tom categó- Ora, assim como a inclusão, no terpelações identitárias e por uma jogo da cultura é sempre político; suas
rico: “A originalidade da política que campo cultural, das práticas do coti- fragmentação digital que encerra os definições e meios, também. Como
quisemos conduzir [...] consiste em re- diano conseguiu desnaturar a ambição indivíduos em estreitos perímetros lembrava Hannah Arendt, “cultura e
cusar de maneira total, radical e abso- democrática do acesso às obras do pa- culturais separados. política pertencem uma à outra”.11 
luta a oposição entre o que seriam, de trimônio, a substituição da exceção pe- Para além da nítida distinção entre
um lado, a grande arte, a grande ambi- la diversidade cultural teve por conse- o projeto defendido por Malraux, que *Serge Regourd  é professor universitá-
ção, a grande criação, e, de outro, a cul- quência aumentar a confusão entre visava promover a emancipação dos ci- rio e autor de SOS Culture, Indigène Édi-
tura cotidiana”.4 Ou seja: não tendo si- cultura no sentido artístico e cultura dadãos, e o de Lang, que pretendia faci- tions, 2021.
do possível tornar o cultural popular, no sentido antropológico – praticada litar o desenvolvimento individual, as
agora se pretendia tornar o popular pela convenção da Organização das contradições próprias a cada uma des- 1   C f., sobretudo, Jürgen Habermas, L’Espace
cultural. Em maio de 1968, tudo era po- Nações Unidas para a Educação, a sas duas concepções não podem ser ig- public [O espaço público], Payot, Paris, 1988
(1. ed.: 1962).
lítico; doravante, tudo seria cultural.5 Ciência e a Cultura (Unesco). A conven- noradas, pois esclarecem o impasse 2   C ena do documentário Un temps de prési-
ção afirma que “a cultura deve ser con- das políticas culturais contemporâ- dent [Um tempo de presidente], de Yves Jeu-
DA EXCEÇÃO À DIVERSIDADE siderada como o conjunto dos traços neas. A democratização cultural, se- land, 2015.

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3   Além dos trabalhos de Pierre Bourdieu, cf. as
Os dois grandes ministros da Cultura distintivos espirituais e materiais, inte- gundo Malraux, deveria logicamente pesquisas publicadas pelo Ministério da Cul-
da Quinta República, Malraux e Lang, lectuais e afetivos que caracterizam postular uma ação educativa, pedagó- tura a partir de 1973 sobre as “práticas cultu-
que tiveram em comum sua longevida- uma sociedade ou um grupo social” e gica, que permitisse o acesso às gran- rais dos franceses”.
4   Jack Lang, discurso sobre a política da cultu-
de excepcional no cargo (mais de dez que ela “engloba, além das artes e ciên- des obras. Entretanto, essa postura se ra, Assembleia Nacional, Paris, 14 nov. 1989.
anos cada um) e sua proximidade com cias, os modos de vida, as maneiras de chocaria com a convicção profunda do 5   Cf., entre outros, Michel Schneider (que foi por
o monarca republicano, ilustram duas conviver, os sistemas de valores, as tra- ministro, segundo a qual a arte e a be- um breve tempo diretor de música e dança no
ministério de Lang), La Comédie de la culture
concepções distintas da relação entre dições e as crenças”. Apresentada como leza não dependem de nenhum ensino, [A comédia da cultura], Seuil, Paris, 1993.
cultura e democracia. Nas duas expe- um “imperativo ético” que implica res- mas de um choque estético individual, 6   Perry Anderson, La Pensée tiède [O pensa-
riências, porém, foi um corpus doutri- peitar “os direitos das pessoas perten- de uma relação carismática com as mento morno], Seuil, Paris, 2005.
7   Serge Regourd, L’Exception culturelle [A ex-
nário perfeitamente identificável que centes às minorias e os direitos dos po- obras. Já a concepção de Lang, parado- ceção cultural], Presses Universitaires de
esclareceu a ação pública. vos autóctones”, a diversidade cultural xalmente, ao dilatar o perímetro da ar- France, Paris, 2004.
A “degringolada” das últimas déca- se apoia nos “direitos culturais”, parte te, ressaltava no mesmo movimento a 8   C onvenção sobre a Proteção e a Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais,
das, como define o ensaísta britânico integrante dos direitos humanos.8 importância decisiva da pedagogia ar- Unesco, 2005.
Perry Anderson,6 corresponde à insta- Essa concepção, transformada em tística e cultural: em novembro de 1981, 9   C f. Walter Benn Michaels, La Diversité contre
bilidade de todo referencial novo. Com princípio das ações do ministério, está em um discurso na Assembleia Nacio- l’égalité [A diversidade contra a igualdade],
Raisons d’Agir, Paris, 2009.
a liberalização mundial do comércio, inscrita na lei que rege a Nova Organi- nal sobre o projeto cultural, ele insistia 10  Entre outras, a lei de 8 de julho de 2013, de
organizada principalmente no quadro zação Territorial da República (lei NO- na necessidade de “uma grande lei so- orientação e programação para a reforma da
do último ciclo (1986-1994) de negocia- TRe, de 2015), que reconhece, após al- bre a educação artística”. escola da República; a lei de 26 de julho de
2019, por uma escola confiável...
ções do Acordo Geral de Tarifas Adua- gumas hesitações, esses direitos, Nessa área – poderia haver demo- 11  Hannah Arendt, La Crise de la culture, Galli-
neiras e Comércio (Gatt, na sigla em in- definidos pela declaração de Fribourg cratização sem acesso igual ao saber? – mard, Paris, 1989 (1. ed.: 1972).

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JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 35

FEMINISTAS DO LESTE E DO SUL, UMA CONTRIBUIÇÃO ESQUECIDA

As “avós vermelhas” fundada em Paris em 1945 por ativistas


de esquerda, reunindo participantes de
quarenta países. Os governos ociden-

do movimento feminista
tais, geralmente chefiados por homens,
retrataram a FDIF como uma “organi-
zação criptocomunista”. Seu ramo nor-
te-americano, o Congresso de Mulhe-

internacional
res Americanas, foi dissolvido em 1950
após uma investigação da Comissão
Parlamentar sobre Atividades Antia-
mericanas. Em janeiro de 1951, a sede
da FDIF teve de sair de Paris depois que
sua presidente, Eugénie Cotton, tam-
Apesar da produção editorial profícua, a história do feminismo tem seus bém chefe do ramo francês da federa-
pontos cegos. A contribuição dos países do antigo Bloco Oriental, por exemplo, ção (a União das Mulheres Francesas),
fez campanha contra a guerra colonial
raramente é mencionada. Entretanto, a aliança que amarra suas organizações na Indochina.
de mulheres quelas das antigas colônias do Sul desempenhou um papel crucial Em suas novas instalações estabe-
no avanço da igualdade de gênero em todo o mundo lecidas em Berlim Oriental, a FDIF tor-
nou-se uma poderosa caixa de resso-
nância dos interesses das ex-colônias
POR KRISTEN R. GHODSEE* no mundo. No fim da década de 1960, a
federação e suas organizações afiliadas
incentivaram as nações emergentes da

S
e você é uma mulher que vive e mulheres a assumir, além do trabalho como uma de suas razões de ser, não África e da Ásia a criar organizações de
trabalha no Ocidente nos dias remunerado, as tarefas domésticas que apenas porque o Estado precisava de mulheres no modelo daquelas que exis-
atuais, provavelmente nunca ou- os homens se recusavam a fazer. Por um exército de reserva de trabalhado- tiam na Europa Oriental, oferecendo
vir falar das búlgaras Elena Laga- causa da escassez, comprar produtos ras em tempos de guerra, mas também para isso apoio financeiro e logístico.
dinova e Ana Durcheva, ou das zambia- básicos exigia tanto esforço quanto es- porque os líderes dos Estados Unidos No contexto da descolonização, a
nas Lily Monze e Chibesa Kankasa, às calar o Himalaia; fraldas descartáveis e temiam que os ideais socialistas sedu- via socialista que combinava a nacio-
quais, no entanto, deve parte de seus produtos de higiene feminina eram fre- zissem as donas de casa norte-ameri- nalização dos recursos naturais, o pla-

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direitos. Isso porque os vencedores da quentemente impossíveis de encon- canas frustradas, jogando-as nos bra- nejamento econômico e o desenvolvi-
Guerra Fria apagaram de sua narrativa trar. E os escalões superiores do poder ços dos “vermelhos”. mento dos serviços sociais constituía
as muitas contribuições que as mulhe- político e econômico continuaram am- uma alternativa atraente ao neocolo-
res do Bloco Oriental e dos países do Sul plamente ocupados por homens. Ainda A COSMONAUTA SOVIÉTICA nialismo oferecido pela manutenção do
deram ao movimento feminista inter- assim, os avanços foram notáveis. Após Em 17 de junho de 1963, a primeira pá- modelo capitalista. Muitos líderes de
nacional. O triunfalismo do Ocidente 1945, as mulheres que viviam na União gina do New York Herald Tribune trazia países independentes do Sul forjaram
após o fim da União Soviética eliminou Soviética e na Europa Oriental passa- a seguinte manchete: “Soviética loira é então alianças com aqueles do Bloco
das memórias qualquer legado positivo ram a integrar largamente o mercado a primeira mulher a ir para o espaço”, Oriental – para grande desgosto dos Es-
associado à experiência socialista. Esta de trabalho, enquanto no Ocidente fi- enquanto a do Springfield Union dizia: tados Unidos, que temiam a expansão
foi reduzida ao autoritarismo, às filas caram com frequência confinadas à “Soviéticos colocam em órbita primeira da influência soviética. Ao mesmo tem-
nas padarias, ao gulag, às restrições de cozinha e à igreja. mulher cosmonauta”. Os jornais publi- po, as organizações da Europa Oriental
viagens ao exterior e à polícia secreta. Durante a Guerra Fria, a condição caram imagens de Valentina Tereshko- colaboraram com aquelas que surgiam
O mundo ocidental tem a tendência das mulheres na sociedade despertou va, de 26 anos, sorrindo em seu esca- na Ásia, na África e na América Latina.
de ignorar que a rápida modernização entre os dois blocos uma rivalidade que fandro de cosmonauta com a inscrição Juntas, elas contestavam a ideia de que
da Rússia e de alguns países da Europa acabou estimulando avanços nos paí- em cirílico “CCCP”. “Os russos deram as mulheres pudessem encontrar solu-
Oriental coincidiu com o advento do ses ocidentais. Em 1942, os norte-ame- assim a prova de que as mulheres po- ções para seus problemas dentro de es-
socialismo de Estado. Em 1910, por ricanos conheceram, fascinados, as dem competir com os homens nos exer- truturas político-econômicas que per-
exemplo, a expectativa de vida na Rús- proezas da jovem atiradora de elite so- cícios mais difíceis aos quais nos convi- petuavam outras formas de opressão e
sia czarista era de cerca de 33 anos, con- viética Lyudmila Pavlichenko (309 na- da o desenvolvimento da tecnologia”, desigualdade.
tra 49 anos na França. Em 1970, ela ti- zistas abatidos entre seus feitos), que escreveu Nicolas Vichney na edição do Por iniciativa da FDIF, conforme a
nha mais que dobrado, chegando a 68 fez uma turnê pelos Estados Unidos jornal Le Monde (18 jun. 1963). Enquan- proposta de uma delegada romena, a
anos na União Soviética, apenas três com a primeira-dama Eleanor Roose- to os líderes ocidentais continuavam ONU declarou 1975 Ano Internacional
anos menos do que na França. A União velt. Os Estados Unidos só começaram temendo as consequências da liberta- da Mulher, buscando chamar a aten-
Soviética consagrou o princípio da a se preocupar com a ameaça represen- ção das mulheres da vida familiar tra- ção de governos de todo o mundo para
igualdade jurídica entre os sexos em tada pela emancipação das mulheres dicional, os soviéticos haviam colocado a condição feminina. A iniciativa foi
sua Constituição de 1918 e legalizou o soviéticas após o lançamento do satéli- uma delas em órbita... Em reação ao nú- estendida para uma Década para as
aborto em 1920 – na vanguarda de todo te Sputnik, em 1957. A União Soviética, mero de medalhas de ouro acumuladas Mulheres, marcada por três importan-
o resto do mundo. Ela fez grandes esfor- que mobilizava duas vezes mais massa pelas atletas soviéticas nos Jogos Olím- tes conferências na Cidade do México
ços para financiar formas coletivas de cinzenta que os Estados Unidos – a dos picos de Munique, em 1972, os norte-a- (1975), em Copenhague (1980) e em
cuidado das crianças, muito antes que homens e a das mulheres –, iria deixá- mericanos liberaram naquele ano um Nairóbi (1985). Trabalhando em con-
o Ocidente se preocupasse com isso, e -los para trás na conquista do espaço? orçamento federal para o atletismo fe- junto com a ONU, uma coalizão de
investiu maciçamente na educação e na No ano seguinte, o governo norte-ame- minino. Cada avanço no Bloco Oriental mulheres do Leste e do Sul conseguiu
formação das mulheres. Apesar das ricano aprovou uma lei de defesa na- obrigava os países capitalistas a tomar impor uma agenda progressista cujos
múltiplas disfunções do planejamento cional alocando fundos para a forma- novas medidas. ecos perduram.
centralizado, o Bloco Oriental alcan- ção científica de mulheres. Até o início dos anos 1970, a União O véu do esquecimento que recaiu
çou, após a Segunda Guerra Mundial, Em 14 de dezembro de 1961, o presi- Soviética e seus aliados dominaram os sobre a contribuição dos países socia-
um significativo progresso científico e dente dos Estados Unidos, John F. Ken- debates sobre a situação da mulher listas para a libertação das mulheres
tecnológico, para o qual as mulheres nedy, assinou o Decreto n. 10.980, que dentro da ONU. Eles também ocupa- deve-se a uma acepção estreita da cau-
contribuíram enormemente. criou a primeira Comissão Presidencial ram um lugar central nos congressos sa feminista no Ocidente. Ao longo do
Claro, tudo estava longe de ser per- sobre a Condição da Mulher. Seu organizados pela Federação Democrá- século XX, e ainda hoje, ativistas de
feito: a cultura patriarcal obrigou as preâmbulo cita a segurança nacional tica Internacional de Mulheres (FDIF), inspiração marxista têm sido critica-
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dos por sua indiferença às questões de Essa não era a opinião das delega- ca do Sul em pleno apartheid ou em mo socialista ou comunista – era o caso
raça e gênero e por sua tendência a das do Bloco Oriental, que pretendiam uma ex-colônia devorada pela pobreza, sobretudo das mulheres negras, como
priorizar a luta de classes sobre todas usar a conferência como uma tribuna pela violência e por níveis crescentes de Angela Davis e Claudia Jones. No en-
as outras grandes divisões da socieda- para combater o que acreditavam ser dívida externa? tanto, suas ideias permaneceram na
de. No entanto, os antigos países socia- as raízes da desigualdade entre os gê- As delegadas africanas insistiam no porta das delegações oficiais, onde o
listas da Europa Oriental que reivindi- neros. Em particular, elas apoiavam os fato de que a luta contra o racismo era confronto Leste-Oeste prevalecia. “As
cavam tal tradição fizeram mais para apelos das africanas, asiáticas e latino- tão importante quanto a luta contra o norte-americanas descobriram que
promover a emancipação das mulheres -americanas pela expropriação das sexismo. “São dois lados da mesma podiam ser vilipendiadas, o que cho-
e a descolonização do que se admite, grandes corporações herdadas da era moeda”, declarou Annie Jiagge, juíza do cou profundamente algumas delas”,
especialmente quando comparados colonial e pela nacionalização dos re- Supremo Tribunal de Justiça de Gana, à escreveu Arvonne Fraser em 1987 a res-
aos países ocidentais. De Tirana, ao cursos como forma de financiar o de- frente da delegação de seu país. A jurista peito da conferência da Cidade do Mé-
sul, a Tallinn, no norte, de Budapeste a senvolvimento social e econômico, in- expressou sua frustração com as mu- xico. “O novo movimento feminista
Vladivostok e além, em países como dispensável para a melhoria da lheres norte-americanas, que deseja- norte-americano exortou-as a conside-
China, Vietnã, Cuba, Nicarágua, Iê- condição feminina – e de todos. vam centrar o debate na igualdade entre rar todas as mulheres como amigas, co-
men, Tanzânia e Etiópia, o ideal sovié- Das 133 delegações presentes na os sexos quando seu presidente acabava mo um povo unido por uma causa co-
tico da “mãe trabalhadora” levou os Es- Conferência Mundial do México, 113 de ajudar o general Augusto Pinochet a mum. Perceber, em seu primeiro
tados a financiar creches, cantinas eram presididas por mulheres. A União derrubar Salvador Allende, presidente encontro internacional, que não era as-
públicas e programas especiais dedica- Soviética nomeou a astronauta Teresh- democraticamente eleito do Chile, e sim foi para algumas motivo de decep-
dos a apoiar suas cidadãs. Enquanto as kova para chefiar sua delegação, e a bombardeava o Vietnã. Em um apelo ção e exasperação.”4
mulheres norte-americanas lutavam Bulgária escolheu Elena Lagadinova, publicado em 1975, intitulado “Ouvir as Após a conferência da Cidade do
para poder frequentar universidades uma doutora em Agrobiologia que foi a mulheres para mudar”, Jiagge disse: “A México, muitos governos adotaram no-
reservadas aos homens e ter igualdade mais jovem engajada na luta contra a emancipação feminina não tem sentido vas leis, passaram a coletar estatísticas
de oportunidades na vida profissional, monarquia aliada aos nazistas na Se- se não incutir nas mulheres a vontade e criaram escritórios e ministérios es-
os Estados socialistas já haviam adota- gunda Guerra Mundial. A Zâmbia esta- de combinar sua própria liberdade com peciais para as mulheres. Graças aos
do uma série de reformas destinadas a va representada por Chibesa Kankasa, a luta para emancipar-se de todas as for- esforços de diplomatas e ativistas, as
garantir o equilíbrio entre a vida pro- uma heroína da luta pela independên- mas de opressão. A mulher libertada proteções em termos de propriedade,
fissional e a familiar. Como nos disse cia em relação aos britânicos que teve, não deve tolerar que seu país oprima os herança, guarda dos filhos e nacionali-
Arvonne Fraser, ex-delegada norte-a- porém, de cancelar sua ida por motivos outros. Em um mundo onde um terço da dade5 foram estendidas. Os Estados fo-
mericana da FDIF na Cidade do México pessoais. A cubana Vilma Espín de Cas- população monopoliza dois terços da ri- ram obrigados a generalizar a licença
e em Copenhague: “Ninguém queria tro, revolucionária de primeira hora e queza total, os países ricos precisam parental, as creches públicas, os bene-
admitir, menos ainda um membro da esposa de Raúl Castro, o irmão de Fidel, adaptar seu modo de vida”.2 fícios para as famílias e outros recursos

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delegação norte-americana, mas havia foi para relatar os avanços de sua ilha destinados a apoiar as mulheres em seu
pouca dúvida de que as mulheres ti- em termos de emancipação feminina: duplo papel de trabalhadoras e mães.
nham mais poder, pelo menos no plano
Os Estados Unidos só
“Já alcançamos tudo o que esta confe- Em 1980, em Copenhague, vários paí-
jurídico, no bloco socialista”. rência reivindica. O que podemos fazer ses-membros da ONU assinaram a
Durante os preparativos para a I aqui é compartilhar nossa experiência começaram a se preocu- Convenção para a Eliminação de Todas
Conferência Mundial sobre a Situação com outras mulheres. As mulheres são par com a ameaça repre- as Formas de Discriminação contra as
da Mulher, da ONU, em 1975, não havia parte do povo, e, se você não falar de sentada pela emancipa- Mulheres, tratado que os Estados Uni-
consenso sobre os objetivos do evento. política, nunca mudará nada”, lançou
ção das mulheres dos e um punhado de países refratá-
Muitas ocidentais, sobretudo as norte- na tribuna a mulher que, em 1960, criou rios, como o Irã, o Sudão e a Somália,
-americanas e as francesas, esperavam a Federação das Mulheres Cubanas, soviéticas após o lança- ainda não ratificaram.
que ele se concentrasse nas questões de com milhões de filiadas. mento do satélite Sputnik Ao longo da Década das Nações Uni-
igualdade jurídica e econômica, forçan- Os Estados Unidos inicialmente co- das para as Mulheres (1975-1985), a FDIF
do os Estados-membros da ONU a ado- gitaram enviar um homem para repre- coordenou e financiou a participação
tar medidas para atenuar as disparida- sentá-los: Daniel Parker, diretor da KARL MARX OU BETTY FRIEDAN em conferências de centenas de ativistas
des entre homens e mulheres. Nos Agência dos Estados Unidos para o De- A solidariedade entre as mulheres dos do Sul, que foram para a Cidade do Méxi-
Estados Unidos, por exemplo, as mulhe- senvolvimento Internacional (Usaid). países socialistas e as do Sul levantava co, Copenhague e Nairóbi graças a pas-
res não podiam, na época, estudar em Os norte-americanos encaravam a problemas ideológicos para as ociden- sagens aéreas doadas pela Aeroflot,
Harvard, Yale e Princeton; Columbia só conferência como uma oportunidade tais. Para sua grande surpresa, as com- Balkan Air, JAT Yugoslav Airlines e ou-
permitiu a educação mista em 1981. para discutir sobre as mulheres. Assim, panheiras do Sul repreendiam seu fe- tras companhias aéreas do Bloco Orien-
Em muitos países ocidentais, as mu- consideravam que um homem podia minismo de inspiração liberal e tal. Em 1977, a FDIF e a Federação das
lheres lutavam por equidade salarial, perfeitamente representar a posição de tachavam suas ideias de imperialistas. Mulheres Cubanas abriram em Havana
igualdade no trabalho e proteção legal seu país a respeito dos temas na ordem As feministas do Sul consideravam que uma escola dedicada a preparar mulhe-
contra a discriminação sexista. Elas do dia. Foi somente após protestos de as norte-americanas e suas aliadas su- res para cargos de responsabilidade na
combatiam os preconceitos culturais feministas que Patricia Hutar foi no- bestimavam o quanto as mulheres do ONU. Uma estrutura semelhante foi
que lhes atribuíam o papel “natural” de meada corresponsável pela delegação. resto do mundo viam no capitalismo a criada em Sofia, em 1980, para ativistas
cuidar da família, em detrimento de sua Além disso, os Estados Unidos impedi- raiz de sua opressão. “Eu vi feministas africanas e asiáticas. Em 1985, a FDIF e o
autonomia. Mas a criação de uma nova ram que a primeira-dama Elizabeth na América do Norte surpresas ao des- Comitê de Mulheres Búlgaras encarre-
ordem econômica mundial ou a resis- Ford participasse da conferência, te- cobrir que nem todo mundo comparti- garam-se de hospedar e alimentar cen-
tência ao neocolonialismo lhes pare- mendo uma politização excessiva dos lhava da convicção de que o patriarca- tenas de mulheres africanas que partici-
ciam preocupações totalmente alheias debates. Ao contrário, as mulheres do do era a causa principal da opressão param do fórum de ONGs realizado
ao desejo de afirmação das mulheres. Bloco Oriental queriam contrabalan- feminina e que as mulheres do Terceiro paralelamente à conferência de Nairóbi.
“O Ano Internacional das Mulheres”, çar o peso dos homens em cargos im- Mundo se sentiam mais próximas de Apesar das tensões ocasionais, es-
declarou Françoise Giroud, chefe da de- portantes da ONU e nos ministérios Karl Marx do que de [feminista norte- sas mulheres conseguiram tecer redes
legação francesa e secretária de Estado das Relações Exteriores, intervindo nas -americana] Betty Friedan”, conta Jane transnacionais. Lily Monze, figura im-
para a Condição da Mulher sob a presi- agitadas questões geopolíticas da épo- Jaquette, cientista política norte-ame- portante do feminismo na Zâmbia, te-
dência de Valéry Giscard d’Estaing, “te- ca. Delegadas do Sul exigiam falar de ricana que participou do fórum de ve sua primeira experiência em uma
rá sido apenas mais uma trapaça se seus desenvolvimento, colonialismo, racis- ONGs realizado paralelamente à confe- conferência internacional em Moscou.
resultados forem sutilmente desviados mo, imperialismo e redistribuição da rência oficial da Cidade do México.3 Entrevistada em 2012, a ex-integrante
para causas políticas nacionais ou in- riqueza em escala global. De fato, qual Nesse espaço de discussão informal, da delegação oficial da Zâmbia em Co-
ternacionais, por mais urgentes, respei- era o sentido de defender a igualdade havia algumas mulheres ocidentais penhague e Nairóbi, que se tornou em-
táveis ou nobres que sejam.”1 entre homens e mulheres em uma Áfri- que reivindicavam para si um feminis- baixadora de seu país na França, reto-
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 37

Zâmbia, faleceu em 2018.10 Essas três


© Museum of Cosmonautics, Moscou

mulheres tinham arquivos pessoais e


lembranças de suas atividades durante
a Década das Nações Unidas para as
Mulheres que teriam sido perdidos se
seus proprietários não tivessem tido a
generosidade de nos deixar fotografar e
guardar uma parte deles.
Embora seus nomes sejam frequen-
temente esquecidos, essas mulheres
formaram fortes coalizões baseadas
em sua aspiração de construir um
mundo mais justo e pacífico, onde os
lucros não sejam mais importantes que
as necessidades essenciais. Os ideais
socialistas uniram-se na luta contra as
injustiças perpetradas em nome da de-
fesa do livre comércio, e essas solida-
riedades Leste-Sul habilmente usaram
as rivalidades da Guerra Fria para for-
çar avanços em termos de direitos das
mulheres em todo o mundo. Nossas
“avós vermelhas” acreditavam que ou-
tro mundo era possível. Se suas vozes
morreram, torcemos para que seus so-
nhos permaneçam. 

*Kristen R. Ghodsee,  professora de Es-


tudos Russos e da Europa Oriental e mem-
bro do Graduate Group of Anthropology da
Valentina Tereshkova em treinamento para sua missão Vostok (1963) Universidade da Pensilvânia, é autora de

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Pourquoi les femmes ont une meilleure vie
mou as diversas formas de apoio dos de 200 euros por mês. Se tivessem re- quisadores. Em 2018, morreram duas sexuelle sous le socialisme [Por que as mu-
países do Bloco Oriental às mulheres servado dinheiro para a aposentadoria, feministas norte-americanas que ha- lheres têm uma vida sexual melhor sob o
africanas que desejavam lutar contra o teriam perdido tudo quando os bancos viam tido um papel central durante a socialismo], Lux, Montreal, 2020.
imperialismo ocidental. “Essa coope- búlgaros faliram em meados da década Década das Nações Unidas, com 92 e
ração nos ajudou”, disse ela. “Além das de 1990. Mesmo que tivessem guarda- 100 anos. A primeira, Fraser, recebeu
1   C itado por Jennifer Seymour Whitaker, “Wo-
visitas recíprocas – às vezes elas vi- do dinheiro debaixo do colchão, ele te- um obituário no The New York Times,7 e men of the World: Report from Mexico City”
nham aqui, às vezes íamos vê-las –, pu- ria evaporado sob o golpe da hiperin- a Minnesota Historical Society coletou [Mulheres do mundo: relatório da Cidade do
demos contar com bolsas para estudar flação que se seguiu. Os serviços oitenta caixas contendo, entre outras México], Foreign Affairs, v.24, n.1, Nova York,
out. 1975.
em países socialistas e com o paga- públicos desapareceram, o sistema de coisas, seus discursos e relatórios da 2   B rochura disponível em: http://bcrw.bar-
mento de custos para participarmos saúde foi desmantelado e o preço dos época em que integrava a delegação nard.edu/archive/militarism/listen_to_the_
das conferências.” Esse apoio militante medicamentos disparou. oficial dos Estados Unidos na Cidade women.pdf.
3   Jane Jaquette, “Crossing the line: From acade-
e material dos países socialistas levou o Os vencedores da Guerra Fria não do México e em Copenhague. A segun- mic to the WID office at USAID” [Cruzando a
governo dos Estados Unidos a financiar sofreram tais reveses. A maioria das da, Mildred Persinger, organizadora do linha: da academia ao escritório do WID na
organizações feministas liberais (cen- mulheres norte-americanas que com- Fórum Anual Internacional de Mulhe- Usaid]. In: Arvonne S. Fraser e Irene Tinker
(dir.), Developing Power: How Women Trans-
tradas na questão da igualdade entre pareceram às três conferências mun- res, realizado paralelamente à confe- formed International Development [Poder em
homens e mulheres) nos países do Sul. diais pertencia às classes superiores e rência oficial na Cidade do México, le- desenvolvimento: como as mulheres transfor-
Estivesse seu país alinhado à União So- tinha o privilégio de viver em um país gou seus documentos à Biblioteca maram o desenvolvimento internacional], The
Feminist Press at CUNY, Nova York, 2004.
viética ou aos Estados Unidos, as mu- que continuava funcionando. Em 2007, Wyndham Robertson, vinculada à Uni- 4   Arvonne S. Fraser, The UN Decade for Wo-
lheres do Sul se beneficiaram financei- Fraser considerava que ela e o marido versidade Hollins, na Virgínia. Em ge- men: Documents and Dialogue [A década das
ramente da competição entre grandes viviam a “velhice de ouro”, pois goza- ral, essas instituições dispõem de mulheres da ONU: documentos e diálogo],
Westview Press, Boulder (Colorado) e Lon-
potências, o que lhes permitiu partici- vam “de boa saúde física e contavam meios para digitalizar os documentos, dres, 1987.
par de muitos eventos internacionais com uma poupança para a velhice, o que facilita a busca por fontes de pri- 5   Em alguns países, as mulheres perdiam sua
ao longo da década 1975-1985. pensão, seguridade social, além de não meira mão por pesquisadores. Os ar- condição de cidadã ao se casarem com um
homem de outro país, e seus filhos só po-
Em 2010, quando começamos nossa terem nenhuma grande carga”.6 Eles ti- quivos de Persinger sobre a Década das diam reivindicar a nacionalidade do marido.
pesquisa sobre o movimento interna- nham tempo e recursos para escrever Nações Unidas para as Mulheres tam- Ler Warda Mohamed, “Femmes arabes,
cional pelos direitos das mulheres, suas memórias e produzir trabalhos de bém estão disponíveis em formato di- l’égalité bafouée” [Mulheres árabes, igualda-
de desprezada], Le Monde Diplomatique,
nunca imaginamos a que ponto essa pesquisa sobre suas experiências du- gital no banco de dados “Women and jan. 2014.
história havia sido distorcida em favor rante a Década das Nações Unidas. Es- Social Movements, International”, hos- 6   Arvonne Fraser, She’s No Lady: Politics, Fa-
das feministas norte-americanas e suas creviam em inglês, em uma sociedade pedado pela Alexander Street Press. mily, and International Feminism [Ela não é
uma dama: política, família e feminismo inter-
aliadas ocidentais. Como a contribui- dotada de uma subcultura feminista As mulheres dos países socialistas nacional], Nodin Press, Minneapolis, 2007.
ção das mulheres do Bloco Oriental e do dinâmica e desejosa de tornar pública a do Leste e do Sul não tiveram direito a 7   N eil Genzlinger, “Arvonne Fraser, who spoke
Sul pode ter sido apagada, apesar da in- história das mulheres. tais atenções. A búlgara Ana Durcheva, out on women’s issues, dies at 92” [Morre
aos 92 anos Arvonne Fraser, que tratou das
fluência de sua coalizão dentro da ONU que foi tesoureira da FDIF em Berlim questões das mulheres], The New York Ti-
e do eco de suas trocas internacionais? ARQUIVOS AMEAÇADOS Oriental de 1982 a 1990, morreu de para- mes, 10 ago. 2018.
Parte da resposta a essa pergunta As ativistas feministas ocidentais ge- da cardíaca em 2014.8 Elena Lagadinova, 8   C f. “A death in the field” [Morte no campo],
Savage Minds, 8 jan. 2015.
está na transição brutal dos regimes ralmente têm influência e conexões pa- ex-presidente do Comitê das Mulheres 9   Ver “The youngest partisan” [A mais jovem ca-
comunistas para a “democracia” e o li- ra garantir que seus documentos pes- da Bulgária e relatora-geral da confe- marada], Jacobin, 12 jan. 2017.
vre comércio. As mulheres que conhe- soais sejam preservados em arquivos rência de Nairóbi, morreu dormindo em 10  C f. “Freedom fighter and politician Mama Chi-
besa Kankasa has died” [Morre a política e
cemos na Bulgária entre 2010 e 2017 vi- ou sociedades históricas e tornados outubro de 2017.9 Chibesa Kankasa, que ativista pela liberdade Mama Chibesa Kanka-
viam com pequenas pensões de cerca acessíveis às jovens gerações de pes- já liderou a Brigada de Mulheres da sa], Lusaka Times, 29 out. 2018.
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MISCELÂNEA

livros internet
NOVAS NARRATIVAS DA WEB

Sites e projetos que merecem seu tempo

PANDEMIAS, CRISES
E CAPITALISMO um Estado mínimo, expressão cuja polifonia passou MENTIRÔMETRO
Rosa Maria Marques, Marcel a iludir e/ou a ludibriar os atores no conflito distri- Em 904 dias como presidente, Bolsonaro
Guedes Leite, Solange butivo. O neoliberalismo, escrevem os autores, “não deu 3.200 declarações falsas ou distor-
Emilene Berwig e Marcelo constitui um ‘regime’ de acumulação, e sim a ex- cidas. As checagens são feitas semanal-
Álvares de Lima Depieri, pressão, no plano da política econômica, do orde- mente pela equipe da redação Aos Fatos,
Expressão Popular namento e da reprodução societal, de um específico e a base agrega todas as falas do menti-
regime de acumulação”. O que o caracteriza ainda roso feitas a partir do dia de sua posse. Há

D esde o fim do século passado, quando se impôs


como modelo econômico dominante, o neolibe-
ralismo, enquanto nova conformação do capitalismo,
é a “clara escolha” das atividades nas quais o Es-
tado atua e que delega ao setor privado. Ou seja,
o neoliberalismo é o momentum da hipertrofia de
um infográfico no qual se pode acompa-
nhar as mentiras acumuladas por semana
ou por mês e ainda selecionar os temas:
está – para usar a feliz expressão título do livro de apropriação do Estado por uma classe social para a coronavírus, segurança, cultura, precon-
Wolfgang Streeck – “comprando tempo”. Essa di- manutenção de sua dominação. ceitos, entre dezenas de outros. A decla-
lação cada vez mais breve, à la Minsky, fez dessa Essa conformação, sustenta o livro, está distante ração falsa mais repetida (88 vezes até
encarnação liberal uma metamorfose ambulante. É de desencarnar pela força frágil de medidas paliati- junho) era de que o STF proibiu o governo
isso que confunde, embaça, nubla o discernimento vas. A obra começa pela análise da economia mun- federal de agir contra o vírus.
e faz muitas boas almas acreditarem em sua morte dial, avança para a questão da desigualdade social, https://bit.ly/bozofakes
tranquila logo que o Estado é chamado para aliviar a ressignificação da saúde pública, a emergência da
suas dores, em geral de origem endógena. renda básica universal como um antídoto ao fim da
Na crise de 2008, muitos viram o keynesianismo coesão social e o impacto tecnológico no merca- ONDE FICA O FUNDO?
se incorporar por definitivo. Com a pandemia, voltam do de trabalho, e encerra expondo as limitações de Do mar, no caso de um infográfico intera-

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a inventar coisas como uma tal de “Bidenomics”, ins- medidas ambientais sob a égide do lucro. Todos os tivo desenvolvido pelo programador e de-
tigando apressados a concluir que o neoliberalismo capítulos enriquecem uma interpretação mais preci- signer Neal Agarwal. Basicamente, uma
seria mais uma vítima da crise sanitária. Em meio sa de pandemias e crises – assim, no plural –, já que página em que você vai rolando o mouse
a essa precipitação, Pandemias, crises e capitalis- o capitalismo é o que sempre foi.  para baixo e percebendo que o oceano é
mo surge como uma intervenção teórica e reflexiva um lugar mais estranho do que imagina.
reorganizadora do debate público. [Jorge Felix] Doutor em Ciências Sociais (PU- O site Deep Sea já foi visto mais de 10
Um dos pontos mais luminosos é o esclarecimen- C-SP), professor da Universidade de São Paulo milhões de vezes e está instalado em al-
to de que o neoliberalismo jamais foi sinônimo de (EACH) e jornalista. guns aquários em cidades do mundo. Mas
outros projetos de visualização de dados
desenvolvidos por ele são igualmente in-
teressantes e divertidos. Por exemplo, um
site que permite gastar o dinheiro do Bill
(dos versos “E lá fui eu pela imensidão do mar/ Essa Gates em diversos objetos e outro que
onda que borda a Avenida de espuma/ Me arrasta compara visualmente a velocidade de di-
a sambar”), que embalou o desfile da Portela em nheiro ganho ou gasto por diversas insti-
1981. E Hélio escreveu “100 anos de liberdade – tuições, como Nasa e Facebook.
TRÊS POETAS DO Realidade ou ilusão” (“Pergunte ao Criador/ Quem https://neal.fun/
SAMBA-ENREDO pintou esta aquarela/ Livre do açoite da senzala/
Rachel Valença, Leonardo Preso na miséria da favela”), do Carnaval de 1988,
Bruno e Gustavo Gasparani, um dos sambas mais emblemáticos da história da STREET VIEW NY 1940
Cobogó Mangueira. Mas, mais do que isso, os três têm um Entre 1939 e 1941 foram realizadas pelo
brilhante “conjunto da obra” – personificando, com governo de Nova York fotografias de todos

O livro olha para os artistas que se dedicam a


combinar os versos e as melodias que fazem
cada Carnaval transcender a avenida e ingressar em
suas carreiras e criações, a arte e a magia do Car-
naval carioca.
Os três autores traçam um panorama do gênero
os edifícios de diversos bairros da cidade.
Em 2018, o arquivo público municipal fez
um trabalho de digitalização e organiza-
nosso imaginário coletivo: os compositores, aqui re- samba-enredo, esboçando um painel de sua evo- ção de mais imagens, permitindo saber
presentados pelos mestres Aluísio Machado, David lução e suas transformações ao longo do tempo. exatamente onde cada uma foi tirada – e
Corrêa e Hélio Turco. A pesquisadora Rachel Va- O livro abre no melhor espírito carnavalesco, em a partir daí foi possível criar um site em
lença, o jornalista Leonardo Bruno e o dramaturgo tom de conversa: assim como fazem os poetas do que você pode clicar em milhares de pon-
Gustavo Gasparani reverenciam esses expoentes Carnaval ao criarem suas obras, os autores se sen- tos da cidade e ver fotos da época. Uma
que fizeram história no Carnaval carioca em nar- taram em roda e jogaram palavras no ar, esmiuçan- espécie de máquina do tempo conectada
rativas que, reconstruindo as trajetórias individuais do com muita propriedade o mundo dos fazedores ao street view.
desses três poetas do samba-enredo, revelam os de samba. Como define no prefácio o jornalista e https://1940s.nyc/
bastidores do gênero no Brasil e atravessam oito pesquisador Sérgio Cabral, Três poetas do samba-
décadas de cavaco, repique e tamborim. -enredo “é uma espécie de farol para quem deseja [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
Aluísio é autor do inesquecível “Bum bum pati- navegar, a qualquer hora do dia ou da noite, pelo Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
cumbum prugurundum”, que marcou a vitória da mundo do samba”.  ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
Império Serrano em 1982. David compôs “Das ma- pela ECA-USP e doutorando em Design
ravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite” [João Veiga] Jornalista. na FAU-USP.
JULHO 2021 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

CAPA
Ano 14 – Número 168 – Julho 2021
Que capa forte! Bem à altura. www.diplomatique.org.br
Alessandra Fróes, via Instagram

02
A capa toca no fundo do coração de quem Eleições 2022 DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
não se conforma com a desigualdade no Brasil. Calmaria na França? Silvio Caccia Bava
Amélia Sobral, via Instagram Por Serge Halimi Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e

Sempre considerei a educação uma das princi- 03 Editorial


A hora e a vez dos deputados federais
Rubens Naves

Editor
pais vertentes para tensionar planos em prol da Por Silvio Caccia Bava Luís Brasilino
superação/redução da desigualdade. A pandemia
escancarou que essa realidade está cada dia mais 04 Capa
O Brasil no redemoinho: governo
Editora-web
Bianca Pyl
distante, quimérica, já que a própria educação é Bolsonaro e o butim da burguesia Editor de Arte
absurdamente desigual. Por Eduardo Costa Pinto Cesar Habert Paciornik
Mariana Prates, via Twitter Reprimarização, corredores Estágio em Jornalismo
logísticos e dinâmicas da soja Laura Toyama e Samantha Prado
Essa capa da Helô D’Angelo é tão precisa Por Karina Kato, Socorro Lima,
Revisão
que está ali representada até a diferença Andréa Leão, Sandro Leão, Valdemar W. Lara Milani e Maitê Ribeiro
entre as máscaras nos dois lados do vidro. Junior e Graciane Barbosa
Gestão Administrativa e Financeira
Antonio Araujo, via Twitter
09 Uma reconquista das grandes cidades
A esquerda, uma ideia nova nos Bálcãs
Leila Alves

Assinaturas
Essa capa dói de tão real. Por Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin Larissa Alves
Cibeli Mel, via Twitter assinaturas@diplomatique.org.br
11 A infraestrutura das redes e geopolítica
Cabos submarinos, uma questão de Estado Tradutores desta edição
CRISE DA EDUCAÇÃO Por Charles Perragin e Guillaume Renouard
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Não é crise, é projeto.
Alan Costa, via Instagram 14 100 anos do partido de Mao Tsé-tung
O que a China ainda tem de comunista?
Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Por Jérôme Doyon Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
NEGACIONISMO DISFARÇADO Um partido para a renovação nacional
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Só quem conhece a realidade de uma escola públi- Por Jean-Louis Rocca Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
ca sabe: protocolos de segurança, é tudo balela. José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,

®® https://t.me/PDFs_Brasil
Eliane Souza, via Instagram 17 Acordo fragiliza laços entre Belfast e Londres
O Brexit vai unir as duas Irlandas?
Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
Por Daniel Finn e Vera da Silva Telles.
DEMOCRACIA MILITARIZADA Ronda com os nacionalistas irlandeses
Temos que lutar com muita garra para não Assessoria Jurídica
Por Hadrien Holstein, enviado especial Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
perder o pouco de democracia que ainda temos.
Laura da Mata, via Instagram 20 Febre humanista nos conselhos
de administração
Escritório Comercial Brasília
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
Empresas socialmente responsáveis? jh@marketing10.com.br
COLÔMBIA E O INIMIGO INTERNO Por Laura Raim
É a força do capital no empenho de manter o Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
privilégio da burguesia! Para isso, retiram as 22 Direita neofascista versus direita tradicional
As frações burguesas e o governo Bolsonaro
da associação Palavra Livre, em parceria
com o Instituto Pólis.
pedras do sapato (leia-se, opositores).
Por André Flores e Octávio Fonseca Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
Joaquim Oliveira, via Instagram
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
24 Por que o imposto universal sobre pessoa
jurídica é um avanço
Tel.: 55 11 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
E as transnacionais enfim vão
O DIPLÔ AGORA TEM UMA NEWSLETTER pagar, mas só um pouco... Assinaturas: Leila Alves
Por Alain Deneault assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
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DÉJÀ-VU usando 26 Dez anos de guerra civil
Por que o regime sírio sobreviveu
Impressão
D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda.
o QR CODE ao lado Por Adrien Cluzet CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhan-
guera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086,

28 Censura e repressão no Magreb


Informar tem seus perigos
Cep: 07753-040 - Cajamar - SP

Por Pierre Puchot

30 Entrevista Itamar Vieira Jr.


“A literatura brasileira estava muito restrita ao
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
ambiente urbano e à classe média”
Por Guilherme Henrique Fundador
Hubert BEUVE-MÉRY
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil : 32 Artes
Um tráfico de especialistas
Presidente, Diretor da Publicação
envie suas críticas e sugestões para Serge HALIMI
Por Pascal Corazza
diplomatique@diplomatique.org.br Redator-Chefe
As cartas são publicadas por ordem
de recebimento e, se necessário,
33 Uma democratização inacabada
Agora, tudo é cultural!
Philippe DESCAMPS

Diretora de Relações e das Edições Internacionais


resumidas para a publicação. Por Serge Regourd Anne-Cécile ROBERT

Os artigos assinados refletem o ponto de 35 Feministas do leste e do sul,


uma contribuição esquecida
Le Monde diplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
vista de seus autores. E não, necessariamen- As “avós vermelhas” do movimento www.monde-diplomatique.fr
te, a opinião da coordenação do periódico. feminista internacional
Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
Por Kristen R. Ghodsee
com 37 edições internacionais em 20 línguas:

38
32 edições impressas e 5 eletrônicas.
Miscelânea ISSN: 1981-7525
Capa: © Paulo Ito
®® https://t.me/PDFs_Brasil

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