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Fundada em 1950

VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


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CARTA AO LEITOR
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VELHA ESCOLA Putin na KGB e a


estátua do fundador do serviço secreto,
Felix Dzerzhinsky, em 1991: saudade da

REPRODUÇÃO
mão de ferro da União Soviética

AGRESSÃO
DESNECESSÁRIA
HÁ NA INVASÃO da Ucrânia pela Rússia, inaceitável mo-
vimento bélico do autocrata Vladimir Putin, uma série de
nuances que evidentemente não justificam a imoral agres-
são contra a autonomia de um país, mas ajudam a entender
o que o levou a tal excrescência. Um dos modos de com-
preender a decisão do presidente russo é enxergar seu apego
atemporal por uma grandeza que se extinguiu com o tempo.
Vale lembrar o que escreveu Madeleine Albright, secretária

1|3
de Estado americana entre 1997 e 2001, no segundo manda-
to do democrata Bill Clinton. Encarregada dos primeiros
contatos com Putin no Kremlin, ela contou em um artigo o
que extraiu das conversas iniciais com o neoczar: “Putin fa-
lou sem emoção sobre sua determinação de ressuscitar a
economia da Rússia e reprimir os rebeldes chechenos. Ele
alegou entender por que o Muro de Berlim teve de cair, mas
não esperava que toda a União Soviética entrasse em colap-
so. Putin está envergonhado com o que aconteceu com seu
país e determinado a restaurar sua grandeza”. Para Albright,
“nem mesmo que o Ocidente seja de alguma forma capaz de
dissuadir Putin de uma guerra total — o que está longe de
ser garantido no momento —, é importante lembrar que sua
competição de escolha não é o xadrez, como alguns su-
põem, mas o judô”.
Apegado às fronteiras desfeitas pela história, Putin aplica
ippons, tiros e bombas de modo a fazer valer a sua ideia de
Rússia. Ele se inspira no passado para pavimentar o futuro —
mas não pelo aspecto positivo. Seu objetivo é alimentar guer-
ras, arma que considera inescapável para redesenhar o ma-
pa, como fez em 2014, ao anexar a Crimeia, e agora nova-
mente. Pior: nada indica que ele queira parar por aí. Um epi-
sódio vergonhoso, que teve pouco destaque no fim de 2021,
ajuda a iluminar o caminho trilhado pelo autocrata. Em 28
de dezembro, a Suprema Corte, controlada e pressionada por
Putin, decidiu proibir o Memorial — uma instituição cívica
montada pouco antes da dissolução da União Soviética dedi-

2|3
cada a relembrar a triste memória da repressão de Stalin, pa-
ra que nunca mais ocorresse. O grupo brotou nos anos 1980,
antes ainda do fim do império, de mãos dadas com as políti-
cas de glasnost (abertura) e perestroika (reconstrução), pro-
movidas por Mikhail Gorbachev. Um de seus membros fun-
dadores foi o físico nuclear Andrei Sakharov, o mais conheci-
do dissidente de Moscou. Putin não é comunista, mas a liqui-
dação do Memorial contra o stalinismo tem o objetivo de
apagar os crimes do século XX para que ele mesmo possa
realizar os seus no século XXI. O fim do Memorial traz uma
mensagem clara e terrível: as repressões foram necessárias
na história soviética e podem ser agora também.
Inimigo da democracia, perseguidor implacável de seus
adversários políticos, Putin usa métodos anacrônicos na reso-
lução de problemas atuais (e, para infelicidade do Brasil, nem
Jair Bolsonaro nem Luiz Inácio Lula da Silva, os favoritos na
eleição deste ano, o recriminaram). Contrariado, ele poderia
ter questionado diplomaticamente o fato de os Estados-mem-
bros da Otan terem autorizado o fortalecimento de vizinhos
da Rússia. É um problema que deveria — e pode ainda — ser
resolvido ao redor de mesas de negociação. O ex-burocrata da
KGB, porém, aproveitou a situação para pôr em prática o que
aprendeu em sua velha escola: a agressão. Em sua megaloma-
nia saudosista da mão de ferro, a guerra — e somente ela — é
capaz de alimentar seus delírios nostálgicos. Uma lástima.
Mesmo com um cessar-fogo, tal passo desnecessário preocu-
pa, atrapalha e envergonha a humanidade. ƒ

3|3
ENTREVISTA CIRO NOGUEIRA
RUY BARON

“O PT É UM
RETROCESSO”
O ministro-chefe da Casa Civil afirma que a
economia vai definir a eleição presidencial, ataca
Lula de forma inédita e garante que, em caso de
derrota, Bolsonaro vai aceitar o resultado das urnas

DANIEL PEREIRA

1 | 10
NA PAREDE que fica em frente à sua mesa de trabalho no
Palácio do Planalto há uma foto de Golbery do Couto e Sil-
va, que ocupou o mesmo cargo nos governos militares dos
generais Ernesto Geisel e João Figueiredo. Fiador da aliança
entre Jair Bolsonaro e o Centrão, Ciro Nogueira explica que
o retrato já estava lá quando assumiu o posto — e lá conti-
nua porque ele não sabe de quem foi a ideia e não gosta de
“mexer nas coisas”. “Golbery foi um ícone na época dele,
mas não há muita semelhança entre a gente”, afirma. Cha-
mado de “bruxo” em razão de sua reconhecida capacidade
de articulação, Golbery foi decisivo para a distensão e a
abertura política do país após a fase mais violenta da ditadu-
ra. Já Ciro, que se define como um amortecedor, trabalha
diariamente para evitar confrontos entre o presidente da Re-
pública e os demais poderes, que, segundo ele, desviam
energia que deveria ser aplicada na solução dos principais
problemas do país. Nem sempre dá certo. Em entrevista a
VEJA, o ministro avalia que conseguiu desanuviar o am-
biente, chama Bolsonaro de grande democrata, afirma que
o Centrão evoluiu e ataca acidamente Lula, de quem já foi
um entusiasmado apoiador. Confira os principais trechos.

As sucessivas crises do Executivo com os demais pode-


res terminaram? O grande desafio aqui era sair daquele
momento de instabilidade e preparar o país para a retoma-
da. O quadro político como um todo foi responsável pela
instabilidade, que contribuiu para que o dólar, que poderia

2 | 10
estar em 4 reais, 4 reais e pouco, atingisse 5,70. Isso preju-
dicou muito a população, porque hoje tudo é dólar, o arroz
é dólar, o combustível é dólar. Eu tenho certeza de que tere-
mos um ano muito melhor em 2022, até por causa do fim
da pandemia. O principal avanço que teremos será a redu-
ção da inflação pela metade e a volta do emprego num rit-
mo que fará do Brasil um exemplo para o mundo.

Qual foi o conflito mais difícil de contornar? Na pande-


mia, criou-se uma CPI daquelas, um espetáculo desne-
cessário, senadores enlouquecidos porque estavam na
TV, uma vontade de aparecer, mesmo que aquilo prejudi-
casse a vida das pessoas e criasse instabilidade no país.
Eu dizia na época: “Vocês podem esperar porque na elei-
ção a verdade vai aparecer”. E a verdade apareceu. Hoje,
o Brasil é um exemplo para o mundo de combate à pan-

“Eu também já falei lá atrás que


o Bolsonaro era fascista. Hoje me
arrependo porque agora conheço o
presidente. Houve amadurecimento
de todo o quadro político”
3 | 10
demia. Às vezes, me pergunto o que teria ocorrido se o
presidente não fosse o Bolsonaro, mas o Fernando Had-
dad. Teria sido o caos. O país teria testemunhado convul-
sões e saques, e o Haddad certamente não teria termina-
do o governo dele. Com responsabilidade, conseguimos
investir mais de 700 bilhões de reais para evitar que as
pessoas passassem fome, para manter empregos, ajudar
empresas, estados e municípios.

O presidente não contribui para a instabilidade ao atacar


ministros do Supremo ou colocar sob suspeita a segu-
rança das urnas? Nós temos de respeitar a independência
entre os poderes e colocar o interesse da democracia e do
cidadão acima de qualquer disputa ou divergência. Houve
erros de parte a parte. Tínhamos de estar focados na reto-
mada econômica, no emprego e na renda, e não em provo-
cações desnecessárias. O fundamental é que a gente saiu
dessa situação amadurecido e consciente de que o Supre-
mo, o Congresso e o presidente têm cada um a sua atribui-
ção. O presidente tem uma maneira muito espontânea de
dizer as coisas e é preciso respeitar isso. Eu pessoalmente
confio nas urnas eletrônicas, mas não quer dizer que elas
não possam ser fraudadas. Então, é preciso uma vigilância
permanente, inclusive da sociedade.

Quais foram as provocações desnecessárias? Ministros


falando fora dos autos.

4 | 10
O presidente aceitará o resultado da eleição independen-
temente de qual seja? Não tenho dúvida. O presidente é
um grande democrata. Se tem uma pessoa que respeita a
democracia no país é o presidente, ao contrário do PT. Qual
foi o presidente da República que o PT não propôs impea-
chment? Propôs do Collor, do Itamar, do Fernando Henri-
que, do Michel Temer e do Bolsonaro. É o mesmo PT que
fica chamando os outros de golpistas.

Por que o governo é tão mal avaliado? Não dá para com-


parar o nosso governo com os anteriores. Quem foi melhor
primeiro-ministro, o (Winston) Churchill, a Margaret That-
cher ou o Boris Johnson? Ninguém enfrentou uma guerra
como o Churchill, como ninguém enfrentou uma pande-
mia como o Bolsonaro. Não tenho dúvida de que o próxi-
mo governo do Bolsonaro será muito melhor. Por isso,
acho que o presidente tem direito a esse segundo mandato
— e o melhor, sem o risco de colocar uma Dilma Rousseff
como sucessora depois.

Como o senhor define o Centrão? Nada neste país foi


aprovado nos últimos trinta anos sem que tivesse o apoio
do Centrão, dos partidos de centro, que têm a coragem de
expressar a vontade da maioria e não pensam apenas ideo-
logicamente. Os partidos de centro serão reconhecidos nas
urnas, como ocorreu nas últimas eleições municipais, nas
quais foram os grandes vencedores. O centro também será

5 | 10
o grande vencedor neste ano. Os partidos de centro nunca
estiveram tão fortes porque eles têm muito mais sintonia
com a população.

E a parte do fisiologismo, da corrupção? Acho que os par-


tidos de centro se transformaram e devemos isso ao presi-
dente Bolsonaro. Ninguém mais do que eu sabe como fun-
cionavam os governos anteriores, do Fernando Henrique,
do Michel, de Lula e Dilma. Entregava-se o ministério de
porteira fechada, e hoje não existe mais isso. Também não
temos mais indicações políticas em estatais. Os partidos de
centro avançaram muito nesse amadurecimento político.
Por isso, eu confio que jamais vamos voltar ao passado do
PT porque a sociedade não vai mais aceitar que se entregue
a Petrobras e o Banco do Brasil a partido político. Não ha-
verá mais fisiologismo como se tinha no passado.

Os governos anteriores entregavam, mas vocês rece-


biam de bom grado. Nós amadurecemos, porque ninguém
mais vai fazer política dessa forma, as pessoas não vão mais
aceitar, porque no fundo quem paga é o cidadão.

O senhor despacha a poucos metros do gabinete do ge-


neral Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Seguran-
ça Institucional, que comparou o Centrão a ladrões. Eu
também já falei lá atrás que o Bolsonaro era fascista. Hoje
me arrependo, porque agora conheço o presidente Bolso-

6 | 10
naro. São situações de outra época. Houve um amadureci-
mento de todo o quadro político, meu, do presidente, do
ministro Heleno. Temos um relacionamento de respeito.

O Centrão ficou famoso, entre outras coisas, por apoiar


todos os governos. Essa postura também mudou? Os
partidos de centro correspondem hoje a 70% do Congres-
so, e eu não posso falar por todos. Eu falo pelo Progressis-
tas e jamais apoiaria um governo que nos remetesse ao pas-
sado, como é o governo do PT. Eu vejo o PT hoje como
aquelas novelas que têm de ser reprisadas, e a gente é obri-
gado a assistir. Eu acho que as pessoas querem novelas no-
vas, histórias novas.

Mas o seu partido hoje está com o PT na Bahia. Você está


falando de uma exceção. Nós nunca tivemos o Progressis-

“O Lula de 2022 é muito pior que


o Lula de 2002. Ele agora diz que
vai revogar a reforma trabalhista,
intervir no preço da Petrobras e
acabar com o teto de gastos”
7 | 10
tas tão unido. Antigamente era dividido, metade votava no
PT, metade votava no PSDB. Hoje, temos 98% do partido
fechado com o presidente. Você jamais vai ver o senador
Ciro no próximo governo apoiando o PT. Tenho convicção
de que seria um erro voltar àquelas pessoas, aquelas figuras
que fizeram tão mal ao país no passado. Seria um retroces-
so muito grande para o Brasil.

O senhor inclui o ex-presidente Lula entre essas figuras


que representam um retrocesso? O grande adversário
do Lula na próxima eleição será o Lula de 2002. O Lula
de 2022 é muito pior do que o Lula de 2002. Ele agora diz
que vai revogar a reforma trabalhista, intervir no preço da
Petrobras, acabar com teto de gastos. Meu Deus, o dólar
vai para 20 reais. É um Lula que vem magoado porque foi
preso, cercado de pessoas que sofreram nos aeroportos,
nos restaurantes. É um Lula mais próximo da Venezuela,
de Cuba, do que de um país que possa se integrar ao mun-
do desenvolvido.

O senhor tem se mostrado mais agressivo com relação a


Lula, a quem já chamou de sedutor. O PT quer fazer as
pessoas acreditarem que o jogo acabou antes mesmo de ter
começado. Eu não vou deixar e, por isso, comecei a lem-
brar das pessoas que estão vindo junto com Lula: Gleisi
Hoffmann, o Antonio Palocci, o Guido Mantega. Não é só
o Lula. E não é o Lula do Emmanuel Macron (presidente

8 | 10
da França), é o Lula do Maduro, o Lula de Cuba. Parece
que ninguém estava percebendo isso.

O que decidirá a eleição de 2022? A economia. Vi uma


pesquisa outro dia dizendo que, dos indecisos, mais da me-
tade votaria no presidente se a inflação caísse e o emprego
voltasse. E graças a Deus a inflação vai cair e o emprego vai
voltar. É por isso que ele está crescendo. Eu não tenho dú-
vida de que o presidente teve um mau momento nas pes-
quisas, mas daqui a dois meses ele vai estar empatado com
Lula na margem de erro e, nas convenções, já vai estar na
frente. Depois, vocês vão começar a fazer as contas para
saber se o presidente Bolsonaro ganha no primeiro turno.

Por que as pesquisas não mostram essa recuperação?


A imprensa diz que o Bolsonaro vive no cercadinho, mas
não é verdade. Quem está no cercadinho é o Lula, que não
pode sair de casa, que só dá entrevista para quem não vai
fazer pergunta complicada. O Lula hoje parece que está
dando entrevista para o Granma (órgão oficial do Partido
Comunista de Cuba). Até no Nordeste, o Bolsonaro é um
fenômeno, as pessoas querem abraçar o presidente, têm or-
gulho de andar com a camisa verde e amarela, com a ban-
deira do Brasil. O Lula não esperava conviver com outro
fenômeno popular como Bolsonaro. Outra coisa, o Lula vai
ouvir muito nesta eleição que nunca antes na história deste
país ficamos tanto tempo sem corrupção, demos tanto be-

9 | 10
nefício à população, blindamos as estatais e tivemos res-
peito ao teto de gastos e à responsabilidade fiscal.

Qual a relevância do Auxílio Brasil na recuperação de po-


pularidade do presidente? Não vou negar para você que
não tenha. O presidente demonstrou uma grande sensibili-
dade social, deu quinze anos de Bolsa Família em auxílio
emergencial e depois dobrou o valor do antigo Bolsa Famí-
lia. As pessoas associam o benefício ao presidente, 100%.
As pessoas vão ver quem cuidou mesmo da população,
quem teve coragem de enfrentar determinadas coisas que
eram difíceis de enfrentar. O Pix, por exemplo, que tirou o
lucro dos bancos. Isso é histórico. É preciso ter coragem pa-
ra enfrentar a Febraban (Federação Brasileira de Bancos). É
lógico que muita coisa ainda não está clara que foi o gover-
no que fez, mas com o tempo as pessoas perceberão. Este é
um governo muito mais de ação do que de propaganda.

O que justifica a posição do presidente Bolsonaro em re-


lação à invasão da Ucrânia? Defendemos uma posição de
neutralidade. Temos de pensar primeiro nos interesses do
Brasil, ter a visão do Brasil, não a visão da Otan, da China
ou dos Estados Unidos. Somos dependentes dos defensivos
agrícolas da Rússia, do mesmo jeito que a Europa depende
do gás da Rússia. Nós é que vamos agora romper com a
Rússia e ficar sem os defensivos? Temos de pensar primei-
ro nos interesses do nosso país. ƒ

10 | 10
IMAGEM DA SEMANA

O BLOCO DA HIPOCRISIA

SIM, apesar dos números ainda altos de casos e mortes em


decorrência da Covid-19, é possível dizer que a pandemia
caminha para o início do fim — há uma clara tendência de
queda de ambos os índices no país. Mas ainda não é hora de
sair por aí comemorando antecipadamente. No Carnaval de
2022, esse que não aconteceu, com desfiles adiados para
abril, o país ofereceu cenas constrangedoras. Nas grandes
cidades houve aglomerações, festas fechadas e blocos na
rua, apesar da proibição explícita. No Rio de Janeiro,
ANTONIO LACERDA/EFE

1|2
milhares de pessoas se reuniram para desfilar na
Região Central e na Zona Portuária da cidade. Segundo
a fiscalização do município, oito grupos muito animados
foram dispersados. “Esses blocos, em essência, nascem
do improviso”, defendeu o secretário municipal de Ordem
Pública, Breno Canevalle. “As pessoas vão se aglomerando,
o Carnaval está no DNA do carioca.” Talvez esteja mesmo,
mas seria melhor que uma outra parcela desse mesmo DNA
se impusesse: a da solidariedade, da empatia e do jogo
de cintura. A cena da foliã de máscara cirúrgica
no braço é constrangedora, passando uma
mensagem desafinada em relação ao momento.
Se queremos mesmo vencer a pandemia, e sair da
longuíssima Quarta-feira de Cinzas a que fomos submetidos,
o respeito às regras é fundamental. Soa hipócrita,
para dizer o mínimo, um dia defender a manutenção do
necessário rigor contra o vírus, criticando quem não usa
máscaras em shoppings, e no outro postar fotos da farra
ao lado de dezenas de pessoas. Nem tudo é Carnaval. ƒ

Fábio Altman

2|2
CONVERSA VIVIANE SEDOLA

A DROGA DO
PRECONCEITO
Apesar de avanços recentes, ainda há muita resistência
a respeito da maconha medicinal, diz fundadora de
plataforma digital que aproxima pacientes a médicos
para tratamentos à base da planta
DIVULGAÇÃO

EXPANSÃO A criadora da Dr. Cannabis: o serviço tem hoje


mais de 50 000 cadastrados e deve crescer 30% em 2022

1|3
Recentemente, a Anvisa aprovou a importação de três no-
vos produtos à base de Cannabis. É um indício de que está
havendo uma liberação no país para esse tipo de medica-
mento? Agora temos mais de dez produtos nessa condição,
mas o preço dos medicamentos importados é ainda muito alto e
nossa luta é para a liberação do cultivo no Brasil para fins medi-
cinais, o que não ocorre ainda por muito preconceito.

De onde vem esse preconceito? Ele existe tanto por parte


de médicos quanto de pacientes. Mas a conscientização au-
mentou muito nos últimos anos. As pesquisas científicas já
mostraram que é um caminho seguro. O principal argumento
contrário ainda é que a liberação do cultivo levará ao uso ir-
restrito. Temos de lutar contra quem tem medo do desconhe-
cido e não busca conhecê-lo.

Existem mesmo benefícios comprovados cientificamente


da Cannabis para o tratamento de doenças? Sim. Confor-
me comprovam diversas pesquisas recentes, ela tem um po-
tencial enorme como remédio. Possui baixos efeitos colaterais,
zero registro de óbitos por overdose, é potencialmente barata
e pode substituir várias drogas insatisfatórias, como no trata-
mento de dores crônicas.

Há alguma chance real de mudança na legislação brasileira


para permitir o cultivo por aqui para fins medicinais? Exis-
te um projeto de lei numa comissão especial da Câmara dos De-

2|3
putados, o PL 399 de 2015, que ainda não avançou, está parado
faz anos. É preciso haver uma mobilização entre os deputados.
Vale lembrar que, em nenhum momento, falamos em liberar o
uso recreativo, nem em criar premissas para que isso seja feito.

Qual o papel da sua empresa, a Dr. Cannabis, nesse movi-


mento pró-liberação? A Dr. Cannabis agenda consultas en-
tre pacientes que precisam do tratamento e médicos dispostos
a utilizá-lo. Ela também oferece os produtos e cuida da buro-
cracia, passando por prescrição, permissão e importação até o
remédio chegar à casa do paciente.

Como você começou a se envolver com esse assun-


to? Descobri no fim de 2017 que existiam médicos prescre-
vendo Cannabis desde 2015, mas a um número pequeno de
pacientes. Percebi que muitas pessoas não sabiam da existên-
cia do remédio, e que isso era um problema de comunicação.
Sendo formada em relações públicas, apostei que conseguiria
resolver esse problema criando a plataforma.

Você usa Cannabis para algum tratamento? Eu uso óleo


de canabidiol para controle de ansiedade, me ajuda a dormir.
Também tenho dores nas mãos de tanto usar celular e teclado,
então uso um creme à base de canabidiol que me ajuda muito
em dias de crise. ƒ

Diogo Magri

3|3
DATAS

O INÍCIO DE UMA
REVOLUÇÃO

ROBERT GARNER/MIT

1|4
Deve-se ao empenho e à inventividade de David Boggs
uma das criações mais decisivas do século XX, a Ether-
net. O engenheiro americano ajudou a construir a tecno-
logia de rede capaz de conectar computadores a impres-
soras e outros dispositivos, atalho para a internet como
a conhecemos hoje. Sem o trabalho de Boggs talvez não
pudéssemos enviar e-mails, visitar um site por meio do
smartphone e trabalhar a distância para cumprir os pro-
tocolos sanitários exigidos pela pandemia de Covid-19.
Tudo começou em 1973. Depois de completar o cur-
so de engenharia elétrica em Princeton e Stanford,
Boggs conseguiu um estágio na Xerox. Ao lado de ou-
tro jovem aprendiz, Bob Metcalfe, ele desenvolveu um
modo de enviar informações de um computador a outro
por meio de impulsos elétricos. O resto é história, reno-
vada pelos avanços da tecnologia. A Ethernet evoluiu
ao longo do tempo. Tornou-se padrão da indústria digi-
tal e protocolo dominante para redes em escritórios.
Mais tarde também seria usada, em escala bem menor,
em residências. Contudo, vale ressaltar que o wi-fi pre-
sente em todas — todas mesmo! — as
INOVAÇÃO circunstâncias da vida moderna só fun-
Boggs, um ciona porque antes houve o passo dado
dos criadores por Boggs. Ele morreu em 19 de feve-
da Ethernet: reiro, em Palo Alto, nos Estados Uni-
conexão entre dos, em razão de insuficiência cardía-
computadores ca. Tinha 71 anos.

2|4
UM MESTRE DO VIOLÃO
Para o paulistano Carlos Barbosa-Lima, o violão era o
mais democrático dos instrumentos, atalho para encon-
tros e, portanto, para a paz. “O violão é do cidadão co-
mum, facilita a diversidade, a aproximação entre as cultu-
ras”, disse certa vez. Essa universalidade foi sempre o tom
de Barbosa-Lima, músico eclético, que mantinha as unhas
da mão direita ligeiramente compridas, para facilitar o
dedilhar. Unia Bach com Beatles, Gershwin com Tom Jo-
bim, em arranjos
mundialmente cele-
brados — menos
talvez no Brasil, on-
de costuma valer a
máxima de Jobim:
“No Brasil, sucesso
é uma ofensa pes-
soal”. Ele morreu
em 23 de fevereiro,
em Paraty, aos 77
anos, de infarto.

UNIVERSALIDADE
Barbosa-Lima:
arranjos de Bach a
SESCTV/DIVULGAÇÃO

Beatles, de Gershwin
a Tom Jobim

3|4
BETTMANN/GETTY IMAGES

RECORDE Landy, o campeão da


milha: marca adiada pela II Guerra

HISTÓRIA ABAIXO DE QUATRO MINUTOS


Correr a milha — o equivalente a 1 600 metros — em me-
nos de quatro minutos era um dos feitos mais buscados
por atletas nos anos 1950. O primeiro a conseguir foi o
britânico Roger Bannister, em 1954, com 3m59s. Logo
atrás dele vinha o australiano John Landy, que menos de
dois meses depois da conquista do adversário alcançou a
marca, com 3m58s. Ele foi celebrado como herói, virou
manchete de jornais, personagem festejado mundialmen-
te. “Aqueles quatro minutos eram uma barreira psicológi-
ca”, disse. “Poderiam ter sido quebrados antes não fosse a
II Guerra.” Hoje, o recorde da milha, que não é prova
olímpica, é de 3m43s13, do marroquino Hicham El Guer-
rouj. John Landy morreu em 24 de fevereiro, aos 91 anos,
em Victoria, na Austrália. ƒ

4|4
VEJA ESSA

Edição: LÍZIA BYDLOWSKI

“Não queremos celebrar,


porque algo muito perturbador
está acontecendo a nossa volta.”
GIORGIO ARMANI, estilista, que, “em respeito aos
envolvidos na tragédia que se desenrola na Ucrânia”, fez um
desfile totalmente silencioso na Semana de Moda de Milão

MARCO PIRACCINI/MONDADORI/GETTY IMAGES

1|4
“Neutralidade neste conflito Rússia-Ucrânia
significa desumanidade e parcialidade.”
JOÃO DORIA, governador de São Paulo e candidato à
Presidência, alfinetando as posições do governo e do PT

“Putin pode cercar Kiev de


tanques, mas nunca conquistará
o coração e a alma do povo iraniano.”
JOE BIDEN, presidente dos Estados Unidos dado a lapsos de
memória, cometendo mais uma gafe (queria dizer, óbvio, “povo
ucraniano”) no discurso anual sobre o Estado da União

“Um atlas do sofrimento humano


e uma condenação aberta ao
fracasso das lideranças
em questões de clima.”
RELATÓRIO do Painel Intergovernamental sobre Mudança
Climática da ONU, resumindo as conclusões pessimistas de seu
mais detalhado estudo sobre o aquecimento global

“Você não vai a Kiev “Nunca alcançaram


porque você está nada como grupo.
com medo.” Na verdade, foram
DARIA KALENIUK, uma decepção.”
ativista ucraniana, JIM O’NEILL, economista
confrontando britânico que há vinte anos
o primeiro-ministro britânico inventou o acrônimo Bric
Boris Johnson, que dava uma (Brasil, Rússia, Índia e China)
coletiva na Polônia, onde se para as economias emergentes
encontrou com outros líderes mais promissoras, fazendo um
europeus. O vídeo viralizou balanço de suas projeções

2|4
“A ambição comercial
da Tiffany cruzou a linha
entre a gestão normal dos negócios
e a concorrência desleal.”
CARTIER, joalheria francesa de alto luxo, em ação contra a
americana Tiffany, a quem acusa de ter contratado uma
ex-funcionária sua para descobrir segredos de fabricação de
uma de suas linhas mais caras

“Eu não sou nem comunista,


nem direita, nem esquerda,
nem central, nem de quadro (sic),
nem de lado, nem de frente.
Eu sou antipalhaçada, babaquice
e coisa ruim.”
ANITTA, cantora recém-despertada para a política,
respondendo a críticas nas redes sociais

“Bolsonaro era só um
personagem, como a Gretchen.”
LUCIANA GIMENEZ, apresentadora, negando que seja
próxima do presidente, uma presença frequente em seu
programa nos tempos de deputado federal

“Eu é que fico honrado.”


PAULO COELHO, escritor, ao aceitar o convite do “braço
acadêmico do Exército BTS” para dar palestra em uma
conferência em Seul. Ele é fã declarado da banda sul-coreana

3|4
“Ele é superalfa, dirigindo tudo,
controlando tudo. (...) Mas também
é o homem mais carinhoso e
gentil do mundo. E tão sexy.”
CARLA BRUNI, cantora e modelo, derramando-se
em elogios ao marido, o ex-presidente francês Nicolas
Sarkozy (que cumpre prisão domiciliar por corrupção)
INSTAGRAM @CARLABRUNIOFFICIAL

4|4
FERNANDO SCHÜLER

LIÇÕES
REPUBLICANAS
ENQUANTO todos prestam atenção (com razão) à guerra na
Ucrânia, coisas inacreditáveis ocorrem por aqui. O ministro
Alexandre de Moraes mandou bloquear as contas do bloguei-
ro Allan do Santos. O Telegram bloqueou, colocando na pági-
na censurada uma notificação algo irônica: “Não pode ser exi-
bida porque violou as leis locais”. Teria sido interessante indi-
car qual exatamente a lei violada. Lei dessas comuns, em de-
mocracias, aprovadas pelo Parlamento. No despacho do mi-
nistro, lê-se que o blogueiro faria parte de uma “estrutura des-
tinada à propagação de ataques ao Estado Democrático de
Direito”. Em outras decisões, ele já havia sido acusado de esti-
mular o “discurso de ódio e polarização”, a “retórica amigo-i-
nimigo”, de “condutas com o fim de desestabilizar as institui-
ções”, promover a “animosidade entre os Poderes”, “organizar
reuniões em sua residência com agentes políticos” e, o mais
intrigante, “apontar o dedo médio para o prédio do STF”.
Há muitas coisas interessantes aí. A primeira é generalidade.
O uso das grandes palavras, que deixam a vigência de direitos
individuais à mercê da consideração subjetiva de uma autorida-

1|6
de. Em particular, chama a atenção o uso de expressões e tipos
penais abertos próximos aos da finada Lei de Segurança Nacio-
nal. Coisas como “fazer propaganda de processos ilegais”, “in-
citar a subversão” ou “difamar” o presidente e o STF. A “fami-
gerada” lei de segurança nacional foi extinta, mas seu espírito
segue vagando por aí. Outro aspecto é a censura prévia. De um
analista, aplaudindo a decisão do ministro, leio que “há razões
para supor que esses canais serão utilizados para sabotar a con-
fiança nas eleições”. O raciocínio é o seguinte: havendo chance
de crime futuro, o melhor é agir logo, calando a voz potencial-
mente criminosa. Para muita gente, é desse jeito mesmo que se
faz uma democracia. O que não é possível é continuarmos a re-
petir, como um dia disse a ministra Cármen Lúcia, que o “cala a
boca já morreu”. Não morreu. A censura prévia está bem viva.
Em uma democracia, os cidadãos podem produzir livre-
mente seus juízos e suspeitas. Os tribunais, não. Estes devem
se manter sob a objetividade das leis. Isto é especialmente
relevante em uma época de intensa polarização política.
Pesquisa recente mostrou que 75% dos eleitores de Biden e
78% de Trump acham que os apoiadores mais engajados do
“outro lado” são um “perigo claro à democracia”. É apenas
um sinal. Por aqui também observamos o discurso quase
obsessivo, à direita e à esquerda, de que o “outro lado” re-
presenta um tremendo risco à democracia. Se deixarmos
que a predileção política afete nossos juízos, e quem sabe de-
cisões tomadas por agentes do Estado, sobre o direito à li-
berdade de expressão, teremos um sério problema.

2|6
DIREITOS Madison, quarto presidente americano:
liberdade de expressão

Os Estados Unidos passaram por uma situação de algum


modo parecida. Foi em 1798, quando o presidente John
Adams assinou o “Ato de Sedição”, que tornava ilegal “es-
crever e imprimir qualquer coisa falsa, escandalosa e mali-
ciosa contra o governo”. A justificativa era a ameaça de
guerra com a França. O historiador David McCullough, bio-
grafo de Adams, foi lacônico: “O motivo óbvio era sufocar a
oposição republicana”. Ao todo, um deputado e duas deze-
nas de cidadãos foram presos, boa parte jornalistas. Quem
reagiu àquele estado de coisas foi um herói das liberdades
americanas. James Madison, autor intelectual do Bill of
UNIVERSAL HISTORY ARCHIVE/UIG/GETTY IMAGES

3|6
“O Brasil não tem
uma sólida tradição
liberal-democrática”
Rights americano e quarto presidente dos Estados Unidos.
Madison escreveu o Virginia Report, de 1800, dizendo que
o Ato de Sedição era contrário à Constituição e ao próprio
espírito da jovem república.
Sua primeira lição dizia que a liberdade de expressão é
uma prerrogativa dos cidadãos, não uma concessão do Es-
tado. O papel da autoridade pública não era fazer “curado-
ria” de opinião, mas garantir direitos. A segunda dizia que,
em uma república, as autoridades não vistas como infalí-
veis, e que por isso devem aceitar um grau maior de “ani-
madversão”. Isto é: criticidade, embate, duro que seja. Res-
pondendo aos que reclamavam dos “excessos” no uso da
palavra, dizia que “certo grau de abuso é próprio do uso de
qualquer coisa”, e que era melhor “deixar crescer alguns
galhos nocivos” do que, ao cortá-los, “prejudicar o vigor
dos que produzem os melhores frutos”.
O Brasil também é uma república e também aqui a liber-
dade de pensamento é uma propriedade dos cidadãos, asse-
gurada pela Constituição. Não passa de uma falácia retrucar
dizendo que a “liberdade de expressão não é um valor abso-

4|6
luto”. É evidente que não. É por isso que definimos, em lei,
criminalizar o racismo. Mas isso não significa que pessoas
possam ser presas, sem direito ao contraditório e ao devido
processo, se alguma autoridade achar que representam uma
“ameaça ao Estado de direito”.
Jacob Mchangama, autor de Free Speech: A History from
Socrates to Social Media, diz que, mais dia, menos dia, a li-
berdade de expressão chega a um estado de “entropia”. Os
detentores do poder começam a dizer que “fomos longe de-
mais” e que é preciso “impor limites”. Isso é comum em épo-
cas como a nossa, quando a rápida expansão de uma nova
tecnologia faz emergir grupos antes marginalizados, cau-
sando incômodo a quem estava acostumado a comandar o
jogo. Foi assim à época em que se popularizou a imprensa.
Erasmo, no século XVI, vociferava com aqueles “impressos
que iriam entupir o mundo com livros e panfletos fúteis, ig-
norantes, subversivos...”. Hoje não são livros. São blogs e ví-
deos no YouTube. Tanto quanto no século XVI, teremos de
aprender a lidar com esse mundo incômodo.
O fato é que faríamos melhor estudando um pouco de
história em vez de perseguir blogueiros irrelevantes. Em
uma democracia, não cabe ao Judiciário se comportar como
xerife da opinião pública ou grande educador da sociedade.
Até por ser inócuo. Da mesma forma que ninguém conse-
guiu parar a prensa de Gutenberg, e, apesar de todas as fo-
gueiras, livros continuaram a incendiar a imaginação huma-
na, é uma ilusão imaginar, nesta época de proliferação de

5|6
redes e informação infinita, que um tribunal irá disciplinar a
opinião, em uma sociedade aberta. Quando muito, produzi-
rá uma caricatura. Será matéria de estudo sobre uma época
de transição, em que a democracia, depois de alguns sola-
vancos, conseguiu ganhar o jogo, mais uma vez.
O Brasil não tem um Madison, nem uma sólida tradição
liberal-democrática. Precisamos construí-la. Como sou
um inveterado otimista, acho que nossa própria Suprema
Corte poderia tomar a vanguarda desse processo. Preser-
vando a mais criteriosa imparcialidade, em vez de ingres-
sar na arena política. Comportando-se não como curadora
de opinião, neste país dividido, mas como curadora de di-
reitos, por definições iguais para todos, nesta república que
devagar vai aprendendo. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
SOBEDESCE

SOBE
ALEXANDRE DE MORAES
A ameaça do ministro do STF de tirar
do ar o Telegram surtiu efeito: o
aplicativo bloqueou três canais
ligados ao blogueiro bolsonarista
Allan dos Santos, investigado
no inquérito sobre milícias
digitais no Supremo.

TARCÍSIO DE FREITAS
Mesmo desconhecido de boa parte
do eleitorado paulista, o ministro
apareceu bem nas primeiras
pesquisas para governador do estado.

COMMODITIES
Os preços do petróleo, minério de
ferro e grãos iniciaram um forte
movimento de alta depois da
invasão russa na Ucrânia.

1|2
DESCE
BIA KICIS
Depois de ser suspensa no
Instagram, a deputada federal
teve os seus vídeos retirados do ar
pelo YouTube durante sete dias.
O motivo é o de sempre: o hábito
de divulgar informações falsas.

DONALD TRUMP
A declaração de que a invasão da
Ucrânia foi um movimento “genial”
de Putin deixou o ex-presidente
em maus lençóis com a
opinião pública americana.

DÓLAR
Mesmo com a instabilidade
provocada pelo ditador russo,
a cotação da moeda americana
frente ao real continua a cair.

2|2
RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Laísa Dall’Agnol e Lucas Vettorazzo

Pelas costas mente ao dizer que ele ga-


O general Joaquim Luna nha salário alto e precisa
ficou magoado com Bolso- “trabalhar”. A agressão,
naro. Na visão do cabeça da mais uma contra militares,
Petrobras, o presidente po- foi devidamente anotada.
deria ter conversado com
ele em privado sobre a crise Saio feliz
dos combustíveis, mas es- Quem conhece o general
colheu atacá-lo publica- diz que Luna não tem apego
FÁBIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

FOGUEIRA Luna: mais um general da


reserva do Exército atacado por Bolsonaro

1|6
a cargos. Se Bolsonaro não fesa, se Braga Netto for
está satisfeito com a gestão, mesmo o vice na campa-
Luna pode procurar coisa nha, será do Exército.
melhor para fazer.
Esperança na virada
Na conta do Centrão As pesquisas do Planalto
Com o aval de Bolsonaro, a mostram que o pagamento
queda do diretor da PF Pau- de 400 reais do Auxílio Bra-
lo Maiurino foi articulada sil é o principal motor da
por Ciro Nogueira. Na visão retomada de Bolsonaro nas
do ministro, além de ter ami- pesquisas. A conferir.
gos demais no STF, Maiuri-
no não conquistou o coração Mudança de vida
da ala política do Planalto. Dono da Havan, Luciano
Hang terá um particular
Com classe com Bolsonaro nos próxi-
Demitido de surpresa, mos dias. Vai mesmo dispu-
Maiurino desabafou citando tar o Senado pelo PL em
Sêneca: “Grandes injustiças Santa Catarina.
só podem ser combatidas
com três coisas: silêncio, pa- Um por todos...
ciência e tempo”. João Doria, Simone Tebet
e Sergio Moro firmaram
Já escolhi um pacto: estarão unidos
Bolsonaro mandou a turma na eleição. O cabeça de
da Aeronáutica baixar a bo- chapa será decidido até 31
la. O novo ministro da De- de maio.

2|6
...todos por um Centrão acreditam que Lula
As conversas para uma ainda pode desistir da dis-
aliança entre o PSDB, o puta presidencial, caso sinta
MDB e o União Brasil tam- que possa ser derrotado por
bém foram concluídas. Se Bolsonaro e pela máquina
nada der errado, estarão do Planalto. Será?
juntos nas urnas.
Até aqui, um desastre
Em outro jogo O almirante Flávio Rocha,
Ainda é cedo para dizer se secretário de Assuntos Es-
Eduardo Leite será candida- tratégicos do Planalto, é o
to ao Planalto pelo PSD, principal conselheiro de
mas Rodrigo Pacheco não Bolsonaro sobre Vladimir
faz questão de esconder seu Putin e a guerra.
desapego. Passou o Carna-
val com a família em Minas, 100% alinhados
sem falar de política. O chanceler Carlos França é
categórico: nenhuma posi-
Pé na estrada ção do Itamaraty sobre a
Sergio Moro fará um giro in- guerra na Ucrânia é divulga-
ternacional nas próximas se- da sem o aval de Bolsonaro.
manas pela Alemanha e Esta-
dos Unidos. Quer colher ideias Fora de lugar
para seu plano de governo. As cobranças públicas do
encarregado de negócios
Calculadora na mão da Ucrânia no Brasil, Ana-
Aliados de Bolsonaro no toliy Tkach, a Bolsonaro

3|6
não foram bem-vistas no Na gaveta
Itamaraty. “É altamente Além de enterrar vinte pro-
impertinente”, diz um au- cessos contra Lula, o STF
xiliar direto do chanceler. cozinha há sete anos um in-
quérito sobre Gleisi Hof-
Não atendo fmann por corrupção. Em
Não há no Itamaraty, aliás, 2018, a PF acusou a petista
nenhum movimento para de receber propinas de um
promover uma conversa esquema no Ministério do
entre Bolsonaro e o presi- Planejamento.
dente da Ucrânia, Volo-
dymyr Zelensky. De volta
Fábio Luís Lula da Silva
Cortando a própria carne retornou ao mundo dos
Em dois meses, a CGU já ex-
pulsou do governo, neste ano,
57 servidores envolvidos em
falcatruas na máquina.

Nada a festejar
MARCELLO CASAL JR./AGÊNCIA BRASIL

A guerra na Ucrânia mexeu


com o bicentenário da Inde-
pendência entre Brasil e
Portugal. Flávia Arruda iria
a Lisboa para tratar do te- SEM CLIMA Flávia: crise
ma, mas cancelou a viagem. na Ucrânia fez a ministra
Não há clima para festa. adiar viagem de trabalho

4|6
negócios. Ele acaba de Efeitos da guerra
abrir, na sala de casa, a Os telefones de Tereza
LLF Tech Participações. Cristina e de seus auxilia-
Com capital de 100 000 res na Agricultura não pa-
reais, a LLF de Lulinha ram de tocar. Ruralistas
vai atuar com tecnologia desesperados cobram a
da informação, suporte ação imediata do governo
de internet, marketing, na crise. Com a guerra, o
consultoria empresarial. que era ativo eleitoral po-
de virar maldição.
Quero paz
Depois de meses turbulen- Comes e bebes
tos no TSE, o ministro Luís Números da Cielo mostram
Roberto Barroso vai bus- que o setor de bares e res-
car águas mais calmas no taurantes retomou o cresci-
STF — leia-se não bater mento desde abril do ano
boca com Bolsonaro. Dei- passado. Em janeiro, as
xará as confusões para Ed- vendas, já descontada a in-
son Fachin. flação, subiram 12,2 %.

Eu avisei A cadeia vai lotar


Os piores prognósticos O ministro da Justiça, An-
de Paulo Guedes se con- derson Torres, deflagra nos
firmaram. A guerra ex- próximos dias uma opera-
plodiu, Bolsonaro colou ção nacional, com a Polí-
em Putin e a OCDE ficou cia Civil dos estados, para
distante. prender covardes que agre-

5|6
diram mulheres. No ano
passado, 10 000 valentões
foram presos.

No ritmo do frevo
Ganhadora de dois Grammy
Latino, Elba Ramalho co-
memora quarenta anos de
carreira com dois shows no
Rio no próximo dia 10, no
LUCAS MENEZZES

Teatro Prudential. Elba pro-


mete “contar histórias, lem-
NO PALCO Elba: brar lugares, explicar pes-
quarenta anos de carreira soas e paisagens sonoras do
comemorados com shows Brasil” nessa viagem. ƒ

6|6
ESPECIAL ESTRATÉGIA

A ERA DA
GUERRA HÍBRIDA
O conflito deflagrado pela Rússia expõe em escala
global um novo modelo de embate, em que as ações
militares são associadas a uma vasta gama de
atividades paralelas para enfraquecer o inimigo
DANIEL HESSEL TEICH, LUANA MENEGHETTI
E LUISA PURCHIO

CAPA: MONTAGEM COM FOTOS DE HADITHA26/SHUTTERSTOCK;


ANDREY SUSLOV/SHUTTERSTOCK; ASATUR YESAYANTS/SHUTTERSTOCK

1 | 13
V
inte horas antes de Vladi-
mir Putin surgir na TV rus-
sa para a anunciar seu pla-
no de ataque à Ucrânia, às
5h40 da manhã do dia 24
de fevereiro, um fenômeno
foi registrado nos servidores e websi-
tes dos ministérios das Relações Ex-
teriores, da Defesa e do Interior do
país. Simultaneamente, os sites ucra-
nianos saíram do ar, junto com os do
Serviço de Segurança Institucional e
do Gabinete de Ministros, todos ba-
seados na capital, Kiev. O ataque co-
nhecido no ramo de tecnologia como
do tipo DDoS (da sigla em inglês para
negativa distribuída de serviço) no-
GENYA SAVILOV/AFP

cauteou as páginas virtuais a partir


da simulação em volu-
me colossal de acessos
CONEXÃO que derrubam o serviço.
Soldado ucraniano Quase simultaneamen-
em área atingida te, outro ataque, dessa
por um míssil: cenas vez de um tipo conheci-
transmitidas em
do como wiper (limpa-
tempo real do
epicentro do conflito dor), apagou dados dos
servidores de institui-

2 | 13
TELEGRAM @VITALIY_KLITSCHKO/AFP
AÇÃO E REAÇÃO
Ataque a um edifício,
UKRAINIAN PRESIDENTIAL PRESS OFFICE/AP/IMAGEPLUS

veículos russos perto


de Kiev e o presidente
ucraniano Volodymyr

TELEGRAM @VITALIY_KLITSCHKO/AFP
Zelensky: disseminação
de imagens como
recurso tático

ções financeiras e empresas ucranianas. No mesmo dia, à


noite, horas antes do anúncio fatídico, a multinacional
Symantec detectou que um novo tipo de invasor digital ha-
via infestado milhares de computadores no país.
Para os ucranianos, os ataques cibernéticos não são no-
vidade. Desde a invasão da Crimeia pela Rússia, em 2014,
o país se tornou um alvo sistemático de brigadas ciberné-
ticas financiadas pelo Kremlin que tentam, por meio de
suas invasões digitais, semear o caos e desestabilizar o
governo. Em 2015 e 2016, o sistema de distribuição de
energia elétrica foi atacado e houve corte no fornecimento

3 | 13
por vários dias, em pleno inverno. Em 2017, um vírus co-
nhecido como NotPetya se infiltrou nos servidores do sis-
tema bancário, invadiu contas e tirou do ar a rede de cai-
xas eletrônicos. Especialistas em segurança cibernética
apontam que, apesar de rapidamente dominado, o ataque
que antecedeu a invasão militar pelo Exército russo foi o
mais sofisticado e ousado já realizado no país. Registros
encontrados no código do vírus wiper mostram que co-
meçou a ser escrito em 28 de dezembro do ano passado.
Ou seja, vinha sendo cuidadosamente preparado, assim
como a invasão por terra, que surpreendeu o mundo.

4 | 13
BEATA ZAWRZEL/NURPHOTO/GETTY IMAGES

INFORMAÇÃO
Moradores de Kiev
A vasta literatura que trata acompanham a
dos assuntos bélicos oferece guerra através dos
uma definição para o cenário celulares em abrigo:
de horror, assombro e estupe- fator de mobilização
da população
fação que tomou o planeta nos
últimos dias. O que se desen-
rola no conflito entre Rússia e Ucrânia é o que os estrategis-
tas chamam de guerra híbrida. Nela, a destruição física no
campo de batalha se mescla a elementos que vão além dos
mísseis, tanques, carros de combates, fuzis e bombas. Se, em
uma semana, o conflito já infligiu mais de 2 000 mortes de
civis e provocou um êxodo de 1 milhão de refugiados, a con-
flagração nos limites da Europa tem uma dimensão inédita
em seu impacto em um mundo globalizado.

5 | 13
O conceito de guerra híbrida começou a ser gestado en-
tre estrategistas americanos a partir da experiência em
conflitos caóticos como os do Afeganistão e do Iraque. Um
dos principais teóricos sobre o assunto, o ex-fuzileiro naval
e especialista em estudos de guerra, Frank Hoffman, ex-
plica que essa modalidade de embate implica a utilização
de recursos ambíguos, de fora do espectro bélico. “Muitas
vezes são ações não letais como ataques cibernéticos ou
mesmo organização de ofensivas de contrainformação em
massa”, diz Hoffman. Cabem nessa categoria ampla o uso
sistemático de redes sociais, aplicativos de trocas de men-
sagens e até mesmo financiamentos por meio de cripto-
moedas. “O ambiente digital é considerado hoje o quinto
domínio de um conflito, depois de terra, mar, ar e espaço”,
explica Carlos Cabral, pesquisador de segurança da Tem-
pest Security, empresa brasileira especializada em ciberse-
gurança e prevenção a fraudes digitais.
Entre as nações com maior poderio nesse novo domínio
se destacam Estados Unidos, China, Reino Unido e Rússia,
segundo um levantamento do Belfer Center, da Universida-
de Harvard (veja o quadro). Apenas os Estados Unidos in-
vestem, em média, 17 bilhões de dólares anuais em seguran-
ça cibernética. Ainda assim, desde 2019, teve invadidos os
sistemas de mais de 250 agências do governo americano e
de 18 000 outras organizações, que ficaram em situação de
risco. A Rússia, que desenvolveu uma notável estrutura de
espionagem e ações digitais a partir da chamada Segunda

6 | 13
O PODER DOS HACKERS
Os países com maior volume de atividades
cibernéticas segundo levantamento do Belfer
Center da Universidade Harvard

MAIOR ATIVIDADE

EUA
China
Reino Unido
Rússia
Holanda
França
Alemanha
Canadá
Japão
Austrália
0 10 20 30 40 50 60 70

7 | 13
Guerra da Chechênia, entre 2000 e 2009, é a principal sus-
peita na grande maioria dessas ações.
A reação dos Estados Unidos, União Europeia, Reino
Unido, Japão e Canadá à invasão russa também é parte de
um novo modelo de embate internacional, com sanções
econômicas de uma sofisticação e escala inéditas. No últi-

ALTA CAPACIDADE DE ATAQUES

EUA
Reino Unido
Rússia
China
Espanha
Israel
Alemanha
Irã
Holanda
França
0 10 20 30 40 50 60 70

8 | 13
mo dia 27, líderes dos sete países mais ricos do mundo, o
G7, decidiram banir um grupo de bancos russos da plata-
forma global de transações bancárias chamada SWIFT
(sigla que em português significa Sociedade de Telecomu-
nicações Financeiras Interbancárias Mundiais). Trata-se
de um sistema de comunicação estabelecido em Bruxelas,

ALTA CAPACIDADE DE DEFESA

China
França
Holanda
EUA
Canadá
Japão
Suécia
Reino Unido
Suíça
Alemanha
0 10 20 30 40 50 60 70

Fontes: National Cyber Power Index 2020, Belfer Center e


Universidade Harvard

9 | 13
na Bélgica, ainda nos anos 1970. Como em uma espécie
de câmara de compensação gigantesca, 11 000 institui-
ções financeiras de mais de 200 países têm registradas e
padronizadas ali suas transações financeiras.
Antes da decisão, as agências de classificação de risco já
haviam rebaixado o país no dia seguinte à invasão — a Stan-
dard & Poor’s à frente, classificando a dívida soberana russa
como junk (lixo, em inglês). Alarmada, a população correu
aos bancos para resgatar seus recursos e tentar converter o
máximo possível de rublos em moeda forte, o que se mos-
trou impossível, dada a falta de dólares e euros no país.
A cotação da moeda despencou 20% em um único dia e o
rublo passou a valer menos que 1 centavo de dólar. O Banco
Central russo elevou os juros do país de 9,5% para 20% e
manteve a bolsa de valores de Moscou fechada. O processo
de retaliações avançou com a divulgação da lista dos sete
bancos excluídos do SWIFT na terça-feira 1º. Entre os bani-
dos estavam o estatal VTB, o segundo maior da Rússia, o
Rossiya, controlado por antigos aliados de Putin, e o VEB, o
banco de desenvolvimento econômico.
Em outra frente, os Estados Unidos e países aliados pre-
pararam uma linha paralela de bloqueios econômicos, entre
eles a proibição de todas as transações com o Banco Central
da Rússia, uma decisão que congelou todos os ativos deposi-
tados nos membros do G7 e atinge metade das reservas in-
ternacionais do país. Além disso, o Fundo Russo de Investi-
mento Direto, usado para levantar recursos no exterior, foi

10 | 13
REPRESSÃO
alvo de sanções. A União Eu- Polícia dispersa
protesto em Moscou:
ropeia (UE) cortou o financia-
posicionamentos
mento a bancos públicos e pri- contra Putin
vados, entre eles o Alfa-Bank, migraram para
o maior do país nessa catego- as redes sociais
ria. O Reino Unido congelou
ativos e excluiu bancos russos de seu sistema financeiro. E
até a Suíça, tradicionalmente neutra e estratégica para nego-
ciações de petróleo e gás, aderiu ao cerco.
Tamanho bloqueio teve efeitos imediatos para os russos.
Desde terça-feira, deixaram de funcionar no país meios de
pagamento eletrônicos globais como Apple Pay, Google Pay,
Visa e Mastercard. Restaurantes e estabelecimentos comer-
ALEXANDRE NEMENOV/AFP

11 | 13
IMPACTO
ciais começaram a exigir paga- Filas em um banco
russo para saque
mento em dinheiro, uma vez de dinheiro: efeito
que as operadoras multinacio- direto das sanções
nais de cartão de crédito parali- determinadas pelos
saram suas atividades. Até países ocidentais
quinta-feira, mais de trinta em-
presas haviam suspendido operações no país, entre elas
Apple, Shell e BP. As montadoras Daimler Truck, Land Ro-
ver, Volvo, GM e Renault cancelaram exportações de auto-
móveis. Twitter e Facebook operam com restrições deter-
minadas por suas matrizes americanas para evitar manipu-
lação pelo esforço de guerra russo. E, apesar do controle
quase absoluto da situação interna e da repressão de mani-
VICTOR BERZKIN/AP/IMAGEPLUS

12 | 13
festações públicas, o Kremlin não conseguiu sufocar com-
pletamente protestos nas redes sociais.
Com o futuro da Ucrânia ainda indefinido, e o da própria
Rússia em risco depois da tresloucada iniciativa de Vladimir
Putin, uma das poucas certezas que se têm é que a guerra
travada no Leste Europeu se constituirá em um marco. A
maneira inusitada que combina tecnologia com esforço béli-
co tradicional vai mudar definitivamente a forma como se-
rão travadas as disputas de poder no futuro. “A guerra agora
se estende por aquilo que eu costumo chamar de zona cin-
zenta de ações”, explica Elisabeth Braw, pesquisadora do
centro de estudos American Enterprise Institute, em
Washington. “São basicamente atos hostis fora do espectro
do conflito armado usados para enfraquecer um país rival
ou uma aliança”, explica. Trata-se de uma nova realidade
que — tomara — o mundo não seja obrigado a testemunhar
com frequência. ƒ

13 | 13
ESPECIAL GEOPOLÍTICA

A NOVA
ORDEM MUNDIAL
Esmagando a Ucrânia, Putin sonha em repor a Rússia
no topo do poder global. Mas o cenário mudou, laços
se romperam e a China se infiltra pelas brechas
RICARDO FERRAZ E CAIO SAAD

O CHEFÃO
Putin, na ponta da
mesa de 20 metros:
indiferente às reações,
ele segue destruindo e
matando na Ucrânia

ALEXEY NIKOLSKY/SPUTNIK/AFP

1 | 11
EM SETEMBRO DE 1990, o então presidente americano
George Bush compareceu a uma sessão conjunta do Con-
gresso para justificar sua ordem de intervenção militar no
Golfo Pérsico. Saddam Hussein tinha invadido o Kuwait e
Bush decidiu enviar tropas para impedir que o território rico
em petróleo fosse anexado pelo ditador iraquiano. Apelando
para a conhecida fórmula de transformar crise em oportuni-
dade, Bush ressaltou em seu discurso que o país estava cum-
prindo o papel que lhe coube em vista das mudanças pro-
fundas ocorridas nas relações entre as nações do Ocidente e
do bloco comunista, que começava a desabar após a queda
do Muro de Berlim, um ano antes: o de garantidor de “uma
nova ordem mundial, em que as nações do mundo possam
prosperar e viver em harmonia”.
Dias antes, Bush comunicara seus planos a Mikhail Gor-
bachev, secretário-geral do Partido Comunista da agonizan-
te União Soviética, que lutava para manter alguma unidade
no seu quintal e não fez objeção à investidura dos Estados
Unidos no posto de guardião da paz planetária. Pois bem: o
bloco comunista ruiu, a cortina de ferro se desfez e a visão
americana, de fato, passou a ditar, com muito pouca resistên-
cia, os acontecimentos ao redor do globo. Agora, a abominá-
vel deflagração de uma guerra entre dois países na Europa,
pela primeira vez em quase oitenta anos, mostra que aquele
combinado com os russos deixou de valer. A pá de cal foi jo-
gada por Vladimir Putin, o senhor do Kremlin, empenhado
em construir a ferro e fogo sua própria nova ordem mundial.

2 | 11
Passada uma semana da invasão da fraca e desorganiza-
da Ucrânia por um dos Exércitos mais poderosos do mundo,
o presidente com ares de czar imperial (leia a coluna de Vil-
ma Gryzinski) já percebeu que repor a Rússia no topo da ca-
deia alimentar geopolítica não vai acontecer sem um alto

O ENCOLHIMENTO DO IMPÉRIO
A T É 1 9 8 9

Depois da II Guerra, os Estados Unidos — à frente


da Otan — e a União Soviética disputavam
a hegemonia global

URSS

PAÍSES QUE INTEGRAVAM O PACTO DE VARSÓVIA


PAÍSES-MEMBROS DA OTAN

3 | 11
custo — se é que vai acontecer. A ofensiva encontrou mais
resistência do que o esperado. As sanções econômicas se
acumulam, pulverizando o rublo e impactando o mercado
financeiro doméstico. A nação russa, cuja preservação fun-
damenta as justificativas brandidas por Putin para estran-
gular o vizinho, está banida dos esportes e das artes. A vod-
ca é boicotada e até o drinque da moda, o moscow mule,
vem sendo rebatizado de “kiev mule”.

P Ó S - 1 9 8 9

A queda do Muro de Berlim e o desmonte soviético


deixaram a Rússia isolada na região

RÚSSIA
UCRÂNIA

RÚSSIA
PAÍSES-MEMBROS DA OTAN

4 | 11
A opinião pública em peso se virou contra Putin, o que
não é pouca coisa em tempos dominados pelas irrefreáveis
redes sociais. O Conselho de Segurança da ONU aprovou
uma raríssima convocação de emergência da Assembleia-
Geral para discutir a guerra deflagrada por Moscou. Sem a
presença de chefes de Estado, foi aprovada uma denúncia
simbólica contra as ações da Rússia. A medida não vincu-
lante tem por objetivo demonstrar que Putin está isolado.
“Se a Ucrânia não sobreviver, a paz internacional não sobre-
viverá, as Nações Unidas não sobreviverão e não ficaremos
surpresos se a própria democracia sucumbir”, disse Sergiy
Kyslytsya, embaixador da Ucrânia na ONU. Em outro lance
repleto de simbolismo, os diplomatas esvaziaram o plenário
do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, durante
pronunciamento do ministro das Relações Exteriores russo,
Sergei Lavrov, que falava por videoconferência. Em mais
uma iniciativa, 38 países, liderados pelo Reino Unido, enca-
minharam denúncia de “atrocidades” russas ao Tribunal
Penal Internacional, em Haia.
Mesmo assim, Putin não dá sinais de recuar na campa-
nha que, ao que tudo indica, preparou com cuidado nos últi-
mos anos. Pelo contrário, faz questão de posar sozinho à ca-
beceira de mesas imponentes — a mais recente, em reunião
com seus assessores econômicos, tem cerca de 20 metros de
comprimento —, bem distante dos interlocutores, posição
que tem a vantagem extra de preservar a saúde, uma obses-
são do mandatário, de quase 70 anos, que ainda quer man-

5 | 11
CONTRA E
A FAVOR
Enquanto
Biden (à esq.)
ameaça,
Xi põe panos
quentes:
interesses
opostos
estão em jogo
no xadrez
SAUL LOEB/EPA/EFE

mundial
JASON LEE/AFP

6 | 11
dar por muito tempo. “Esta não é uma crise isolada, e sim o
início de uma intensa e perigosa nova fase nos esforços da
Rússia para renegociar os termos da ordem vigente”, diz
Bruce Jones, pesquisador do Brookings Institution e diretor
do Projeto sobre Ordem e Estratégia Internacional.
Em vez de uma extensão da Guerra Fria — o longo período
em que o arsenal de ogivas nucleares dos dois rivais dissuadia
trocas de tiros —, especialistas veem no belicismo de Putin a
intenção de impor uma “paz quente”, em que entrar e subjugar
pelas armas países soberanos não está fora de cogitação. Em
pleno século XXI, o presidente russo reedita, com frieza e pe-
tulância, uma tática de acumulação de poder comum no sécu-
lo XVII e desde então reprovada no mundo civilizado. Indo
além nessa trilha, em ameaças disfarçadas, o neoczar desper-
tou até o temor adormecido de um ataque nuclear, embora se
considere improvável que chegue a esse ponto.
A chamada distensão, momento em que a URSS enfra-
quecida começou a se aproximar do Ocidente, teve seu gesto
mais simbólico em um encontro em Genebra, em 1985, entre
Gorbachev e o republicano Ronald Reagan, ambos sorriden-
tes e afáveis. Antevia-se ali o mundo novo que se descortina-
ria com a queda do Muro de Berlim, o desmoronamento so-
viético e a ascensão dos Estados Unidos para o topo do poder
geopolítico. A Rússia, àquela altura, era uma sombra do que
havia sido (ainda que armada até os dentes). Putin, há 22
anos no poder, arregaçou as mangas para pôr a casa em or-
dem, tratando de, ao mesmo tempo, sufocar a oposição e ga-

7 | 11
RESISTÊNCIA
rantir um Parlamento obediente. Blindado russo em
chamas ao lado de
Enquanto cuidava disso, a Orga- soldado morto em
nização do Tratado do Atlântico Kharkiv: dificuldade
Norte (Otan), braço armado inesperada nos
criado pelo Ocidente para se primeiros dias
contrapor ao Pacto de Varsóvia
(àquela altura extinto), passou de doze para trinta países-
membros (veja os mapas), incorporando nações da Europa
Oriental, como a Polônia, e ex-satélites grudados na Rússia,
como a Moldávia e a Letônia.
Tendo se assegurado no poder, Putin voltou os olhos
para essa suposta ameaça às suas fronteiras. Em nome da
preservação de sua zona de influência, invadiu e dobrou a
Geórgia quando o país se dispôs a aderir à aliança ociden-
SERGEY BOBOK/AFP

8 | 11
PHOTO 12/UNIVERSAL IMAGES GROUP/GETTY IMAGES

tal, em 2006. A Ucrânia en-


trou no radar em 2014, DISTENSÃO
quando uma “revolução la- Gorbachev e
ranja” depôs o governo pró- Reagan, 1985:
Rússia e também voltou os quatro anos
depois, a queda
olhos para o Ocidente. A do Muro de
Rússia reagiu despachando Berlim selou
GERARD MALIE/AFP

suas tropas para a Crimeia, o fim da URSS


província de maioria russa
na ponta sul do país, que in-
vadiu e anexou — sem muita indignação do resto do mun-
do, diga-se. Supõe-se que a partir daí passou a planejar a
invasão total, à espera do melhor momento — que julgou
ser agora, no abatido e polarizado mundo pós-pandemia.
Se subjugar a Ucrânia, sobreviver às sanções e superar a
atual condição de pária, terá, como queria, recolocado a
Rússia no centro das decisões mundiais. Não será, no en-
tanto, a volta ao passado com que tanto sonha.

9 | 11
Os Estados Unidos, país mais poderoso do mundo, está
partido ao meio, refém de uma barulhenta e obstinada direita
nacionalista que se empenha em romper princípios e laços
consolidados (seu patrono, Donald Trump, por sinal, não es-
conde a admiração por Putin). Essa mesma direita, nascida dos
movimentos tectônicos pós-URSS e disseminada pelo planeta,
forma hoje um bloco que sonha em dar as cartas no xadrez in-
ternacional. A União Europeia, embora tenha se unido a Biden

10 | 11
na reação contra a guerra na Ucrânia, segue uma agenda pró-
pria, à qual se contrapõe a Grã-Bretanha, desgarrada da UE
pelo Brexit. Acima de todos paira, com garras afiadas e mal
disfarçada ambição hegemônica, a China de Xi Jinping.
Putin, antes de dar seu bote, aproximou-se de Xi — os dois
se declaram “melhores amigos”, antecipam um “futuro em
comum” e Pequim, até agora, evitou condenar abertamente a
invasão da Ucrânia. “Xi Jinping pode ter cometido um grave
erro de cálculo. Servir de ponto de apoio para a Rússia neste
momento tem um peso muito maior do que defender a peque-
na Coreia do Norte”, alerta Patricia Kim, pesquisadora do
Center for East Asia Policy Studies, de Washington. O gesto
do presidente russo, curiosamente, traz à mente a histórica vi-
sita de Richard Nixon a Pequim: há exatos cinquenta anos, o
americano apertou a mão de Mao Tsé-tung — justamente pa-
ra reforçar sua posição diante da então URSS.
Era outra China, muito menos poderosa, mexendo os pau-
zinhos para se encaixar entre os dois donos do mundo. Hoje,
Putin sabe que a aliança com Xi só se sustenta enquanto não
bater de frente com os interesses chineses. Os Estados Unidos,
por sua vez, se esforçam para conter Putin cientes de que a
ameaça maior está, isso sim, no Oriente. Neste mundo novo
confuso e em formação, onde a ideologia tem pouca ou ne-
nhuma relevância, Biden, em seu discurso anual sobre o Esta-
do da União, arrancou aplausos ao chamar Putin de “ditador”
e prometer que ele “pagará o preço” do ataque à Ucrânia. No
intrincado jogo das potências, a sorte russa está lançada. ƒ

11 | 11
VILMA GRYZINSKI

O VEXAME DE
VLADIMIR, O PEQUENO
Ele queria ser Pedro, o Grande,
mas se sai mal até dentro de casa

COM ESCRITORES prodigiosos, músicos grandiosos e


história convulsionada, tendo durante um breve período
do século passado se apresentado como pioneira de uma
revolução que abarcaria todo o planeta, a Rússia causa
uma mistura de fascínio e repulsa ao resto do mundo há
pelo menos 400 anos. De Ivan, o Terrível, o czar que ma-
tou o próprio filho, a Josef Stalin, o monstro que devorou
pelo menos 20 milhões de vidas, a Rússia também tem
uma tradição de líderes com algum tipo de psicopatia.
Nas suas duas décadas no poder, Vladimir Putin parecia a
negação disso: frio, calculista, determinado, cabeça de es-
trategista e mão de jogador de pôquer. Tirou a Rússia da
dissolução sistêmica que castigou o país imediatamente
depois do fim da União Soviética e chegou a ter 88% de
aprovação popular. Com o poder cada vez mais absoluto
sussurrando as seduções de praxe, imaginou-se Pedro, o
Grande, o czar da grande modernização do século XVII.
Deu para mergulhar em obras históricas e ouvir as teorias

1|3
do filósofo barbudo Alexander Dugin sobre “o grande
projeto eurasiático”, a emergência de um novo centro de
poder mundial, com os russos bem no alto dele.
O que poderia dar errado em avançar mais um passo
nesse projeto e engolir um país fraco e mal organizado co-
mo a Ucrânia? Estados Unidos e países europeus já ti-
nham assimilado a anexação da Crimeia, com sanções
que mal arranhavam a couraça russa. Estavam debilita-
dos pela pandemia e suas sequelas econômicas, incluindo
inflação e preços do petróleo disparando. A economia
russa, em compensação, estava bem-arrumada; o exérci-
to, reequipado; a opinião pública, controlada.
“Os deuses, quando querem nos castigar, atendem as
nossas preces.” Sem ligar a mínima para a advertência dei-
xada por Oscar Wilde, Putin projetou entrar na Ucrânia co-
mo Vlad, o Conquistador. Talvez imaginasse que a popula-

“Putin talvez não


contasse com a
reação mais
importante de todas:
a dos próprios russos”
2|3
ção etnicamente russa receberia os invasores de braços
abertos, legitimando o abuso inominável. E talvez não con-
tasse com a reação mais importante de todas: a dos próprios
russos, e não apenas da pequena minoria oposicionista. De
filhas da elite que deve tudo a Putin a milionários idem, pas-
sando por jornalistas e artistas que dependem da aprovação
do Estado para existir, esboçou-se um clamor de repúdio
propagado via TikTok, Instagram e Facebook.
Em 25 de agosto de 1968, poucos dias depois que tropas
soviética entraram na Checoslováquia para acabar com o
movimento reformista conhecido como a Primavera de Pra-
ga, apenas oito cidadãos russos, num ato sem precedente,
sentaram-se na Praça Vermelha com pequenos cartazes de
protesto escritos a mão. Todos acabaram em campos de tra-
balho ou hospitais psiquiátricos. Na era das redes sociais, a
praça é virtual. Putin pode não ligar a mínima para posts no
Instagram, mas não pode mudar o fato de que, em vez de
mobilizar a alma russa, o ente coletivo que salva o país nas
grandes crises, está provocando memes em que é ridiculari-
zado. De grande czar da era moderna, agora parece recalca-
do, descontrolado e, por mais que subjugue um país mais
fraco, inevitavelmente pequeno. ƒ

3|3
ESPECIAL RELAÇÕES EXTERIORES

OS ESTILHAÇOS DA
BATALHA NO BRASIL
Benevolência em relação a Putin iguala
Bolsonaro e Lula, abrindo caminho para o centro
democrático marcar diferenças na eleição presidencial
JOÃO PEDROSO DE CAMPOS E TULIO KRUSE

FORA DE HORA
Bolsonaro em
visita ao Kremlin:
solidariedade à
Rússia quando a
Ucrânia já sofria
o cerco das tropas
de Vladimir Putin

ALAN SANTOS/PR

1|8
ERA MADRUGADA da quinta-feira 24 quando os primei-
ros mísseis atingiram cidades da Ucrânia na guerra desenca-
deada pelo presidente russo, Vladimir Putin. O ataque abriu
caminho para a ocupação militar de uma nação independen-
te, espalhou mortos, feridos e destruição. Imediatamente,
provocou a esperada, inequívoca e ampla condenação da co-
munidade internacional, que teve pouca dificuldade para en-
tender quem era o agressor, a urgência de contê-lo e a neces-
sidade de repudiar o seu ato. No Brasil, a 10 000 quilômetros
de distância do campo de batalha, os estilhaços da guerra
atingiram a campanha presidencial e, embora seja cedo para
avaliar o impacto, expuseram as diferenças entre os candida-
tos, mas principalmente as semelhanças entre Jair Bolsonaro
(PL) e Luiz Inácio Lula em Silva (PT). Ambos preferiram op-
tar pela ambiguidade ao se posicionar diante da crise.
Embora pareça difícil, dado o rol de equívocos que já co-
meteu, Bolsonaro se superou. Começou fazendo tudo erra-
do antes mesmo da eclosão do conflito. Uma semana antes
de os tanques avançarem sobre a Ucrânia, o brasileiro achou
que era de bom-tom visitar Putin, a pretexto de tratar de fer-
tilizantes — um assunto importante que poderia ser discuti-
do em momento mais apropriado. “Somos solidários à Rús-
sia”, disse no Kremlin, sem medir o impacto que tinha a de-
claração naquele momento. Depois, tirou foto apertando a
mão do líder russo, que ficou feliz com tanta demonstração
de afeto no momento em que era cada vez mais forte a
apreensão do mundo com a crescente possibilidade de uma

2|8
EM CIMA DO MURO
Gleisi Hoffmann: presidente
VINCENT BOSSON/FOTOARENA

do PT pede paz em nota, mas


não cita quem iniciou a guerra

ofensiva militar na Ucrânia. Já de volta ao Brasil, Bolsonaro


achou ainda que era certo dizer que “o povo ucraniano con-
fiou a um comediante (Volodymyr Zelensky) o destino da
nação” — a declaração estampou manchetes do noticiário
russo e foi interpretada como apoio ao país. Nesta semana,
segundo reportagem do jornal O Globo, o presidente com-
partilhou em um grupo de WhatsApp uma mensagem que
critica a atuação dos Estados Unidos e que exalta a Rússia.
“USA não é mais uma nação virtuosa”, diz o início do texto.
Em uma demonstração inequívoca de que bolsonarismo e
petismo estão bastante próximos na cegueira ideológica provo-
cada pelo antiamericanismo e pelo apreço a regimes totalitá-
rios, a bancada do PT no Senado publicou uma nota no início
da guerra condenando a política dos Estados Unidos de agres-

3|8
ALVO CERTO
Protesto na Paulista: grupo
se manifesta com cartazes em
solidariedade à Ucrânia e com
críticas ao presidente russo

são à Rússia. O post foi apagado logo em seguida e substituído


por uma nota oficial da legenda assinada pela presidente, Gleisi
Hoffmann. “A resolução de conflitos de interesses na política
internacional deve ser buscada sempre por meio do diálogo, e
não da força, seja militar, econômica ou de qualquer outra for-
ma”, dizia o texto, que não mencionava Putin. O ex-presidente
Lula, candidato da sigla ao Palácio do Planalto, logo após o iní-
cio do conflito, soltou uma nota generalista demais para a oca-
sião dizendo que “ninguém pode concordar com a guerra”,
também sem citar a responsabilidade do líder do Kremlin. Foi
como se a agressão à Ucrânia não tivesse mandante.

PAULO LOPES/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

4|8
Os pré-candidatos de centro viram no episódio a possibili-
dade de marcar a diferença entre a chamada terceira via e os
rivais à direita e à esquerda. Em um raro momento de unida-
de, Sergio Moro (Podemos), João Doria (PSDB), Simone Tebet
(MDB) e Luiz Felipe d’Avila (Novo) assinaram um comunica-
do condenando claramente a Rússia e dizendo que, quando a
paz, a soberania e a ordem internacional são ameaçadas, “não
há espaço para a neutralidade”. Foi a primeira declaração
conjunta desde abril de 2021, quando lançaram um manifesto
pela democracia após declarações simpáticas de Bolsonaro ao
golpe de 1964. Na escuridão que hoje contamina a política
brasileira, a iniciativa foi louvável e merece aplausos.
Embora os primeiros estilhaços da guerra já tenham atin-
gido a política brasileira, o tamanho do impacto eleitoral vai
depender da duração e da brutalidade do conflito. Caso a
violência contra os ucranianos torne Putin ainda mais tóxico,
a imagem do aperto de mão com Bolsonaro terá um poder
radiativo na campanha. “Isso pode ocorrer se o Brasil for afe-
tado de forma mais direta pelo conflito, tendo a economia se-
riamente prejudicada”, diz o embaixador Rubens Barbosa.
Nas campanhas presidenciais, relações exteriores sempre fo-
ram mesmo um assunto lateral, mas o PT apanhou muito em
eleições recentes pela conhecida mão estendida a regimes co-
mo os de Cuba e Venezuela, assim como Bolsonaro tem sido
atacado por seu apoio a ditaduras árabes. Isso garante que
nenhum deles levará o tema à eleição, mas abre caminho pa-
ra o centro explorar o tema. “Lula e Bolsonaro não conde-

5|8
nam de forma clara o agressor. Haveria ganho a quem está
livre dessa ambiguidade, por conseguir fazer a crítica perce-
bida pela população como a que faz mais sentido”, avalia o
cientista político Cláudio Couto, da FGV.
No caso de Lula, a lógica que guia o PT não é a da boa di-
plomacia, mas a da geopolítica. Em suas gestões, o tom das
notas do Itamaraty variou de acordo com o grau de afinida-
de com líderes mundiais e o alinhamento da política externa
“ativa e altiva”, que enxergava China e Rússia como parcei-
ros importantes em uma ordem mundial na qual os Estados
Unidos não teriam tanta influência — um equívoco, claro.
Lula condenou de forma enfática a invasão americana no
Iraque em 2003, mas Dilma não fez o mesmo em 2014
quando a Rússia anexou a Crimeia. O tom é parecido agora,
eivado de antiamericanismo e complacência com Putin.
“A grande parcela da culpa é dos EUA e da expansão da
Otan”, disse o ex-chanceler Celso Amorim, principal nome
da política externa nos anos Lula. “É uma
conveniência ideológica. Lula não vê no
Putin alguém de esquerda, mas, na po-

INIMIGOS ERRADOS
Celso Amorim: o ex-chanceler
no governo Lula atacou os
Estados Unidos e a Otan, mas
não apontou o dedo para Putin
ETTORE CHIEREGUINI/FUTURA PRESS

6|8
OUTROS TEMPOS
Oswaldo Aranha na ONU: papel
na criação de Israel é exemplo
do protagonismo que o país já
exerceu na diplomacia mundial

lítica externa do PT, a Rússia desempenha um importante


papel na organização de um mundo multipolar”, diz David
Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP.
Essa dubiedade frente ao dirigente que causou a maior
crise bélica desde a II Guerra já provocou estragos à imagem
do país na atual crise. “O Brasil, como um país importante,
parece ignorar a agressão armada por uma grande potência
contra um vizinho menor, uma postura inconsistente com
sua ênfase histórica na paz e na diplomacia”, sintetizou um
porta-voz do Departamento de Estado dos EUA após Bolso-
naro manifestar “solidariedade” à Rússia. A postura vilipen-
dia a tradição da diplomacia brasileira, ilustrada historica-
ARQUIVO NACIONAL

7|8
mente por Oswaldo Aranha, que, como presidente da As-
sembleia-Geral das Nações Unidas entre 1947 e 1948, teve
papel fundamental na criação de Israel. “Hoje, o Brasil é um
ator marginal no concerto das nações, não é levado a sério
pelo que suas autoridades maiores dizem no foro internacio-
nal”, diz Luiz Augusto de Castro Neves, ex-embaixador no
Japão e na China. O Itamaraty, ressalte-se, faz o que pode
para reduzir o estrago. Na ONU, o Brasil votou por conde-
nar a invasão e pedir a retirada das tropas. “O que está ocor-
rendo aqui não seria possível em nenhum país da estatura
do Brasil”, avalia o embaixador Rubens Ricupero, citando a
“rebeldia” dos diplomatas, que aparentemente ignoram o
que pensa e diz o presidente. É certo que o país tem uma lon-
ga lista de prioridades a discutir na eleição presidencial, mas
a guerra na Ucrânia expôs como os dois atuais líderes da
corrida ao Palácio do Planalto comungam de uma visão pe-
quena do papel do Brasil no mundo. Daqui para a frente, ao
que tudo indica, não haverá como fugir a esse debate. ƒ

8|8
BRASIL PODER

FOGO AMIGO
Sem engrenar como se esperava nas pesquisas,
Sergio Moro enfrenta oposição dentro de seu partido
e pode ficar sem dinheiro suficiente para a campanha
LEONARDO LELLIS

DESAFIO Sergio Moro em São Paulo: lista de


exigências assustou os colegas do Podemos

ROBERTO SUNGI/FUTURA PRESS

1 | 10
A
quela que é considerada a maior fortaleza de Ser-
gio Moro (Podemos) na disputa pela Presidência
da República tem se mostrado também a sua
maior fraqueza. A pose de herói anticorrupção, de
agente implacável contra políticos fora da lei e a
cara de poucos amigos para conchavos que vem
dos tempos na magistratura estão gerando um movimento
capaz de implodir no nascedouro os planos do ex-juiz. Sem
a toga e ainda se adaptando a um figurino que ele um dia ju-
rou não usar, Moro está descobrindo que a vida na política
não é tão fácil como quando ele tinha a prerrogativa de man-
dar e os outros obedecerem. Causa estranheza entre seus
novos colegas, por exemplo, a resistência do candidato em
se encontrar com lideranças cujo passado ele considera de-
sabonador e, em alguns casos, até as selfies de Moro com os
correligionários são reguladas, por receio dele de aparecer
ao lado de quem não tem a ficha limpa. A postura tem aju-
dado a criar desconfiança dentro de seu partido e a ampliar
o rol de dificuldades que a sua candidatura enfrenta.
A falta de traquejo e a indisponibilidade para fotos pode-
riam até ser relevadas se o ex-ministro estivesse em uma con-
fortável posição na disputa. Mas isso não está ocorrendo.
Quatro meses depois de lançar sua pré-candidatura, Moro
ainda não decolou como se esperava. Apesar da expectativa
entre os parlamentares de sua sigla de que seria capaz de su-
perar o patamar de 15% das intenções de voto até março, ele
não consegue ficar acima de dois dígitos. De acordo com o

2 | 10
NO MESMO LUGAR
Quatro meses após entrar na corrida presidencial,
Moro ainda não decolou e amarga alta rejeição

INTENÇÕES DE VOTO (EM %)*


LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA (PT)
JAIR BOLSONARO (PL)
SERGIO MORO (PODEMOS)
CIRO GOMES (PDT)
JOÃO DORIA (PSDB)

41 42

26 25

8 8
8 7
4 3
19/11/21 16/12/21 25/1/22 25/2/22

3 | 10
REJEIÇÃO**
BOLSONARO 62%
DORIA 59%
MORO 54%
CIRO 44%
LULA 43%
Fontes: * Agregador de pesquisas de VEJA, que reúne os dados dos
institutos Datafolha, Ipec, XP/Ipespe, Paraná e Quaest/Genial. ** Pesquisa
XP/Ipespe feita entre 21 e 23 de fevereiro

agregador de pesquisas de VEJA, que leva em consideração a


média de cinco institutos, ele está estacionado na casa dos
8% desde que entrou na corrida eleitoral e permanece longe
dos principais adversários, o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL). Para piorar,
tem a terceira maior rejeição entre os candidatos.
O baixo desempenho agrava o outro ponto de discórdia
dentro do Podemos: a falta de dinheiro. Caiu mal entre os
políticos do partido com mandato a lista de exigências que
Moro apresentou para a sua campanha, como assessorias
jurídicas e de marketing escolhidas pelo presidenciável. Fei-
tas as contas, os parlamentares chegaram à cifra de 60 mi-
lhões de reais. O partido sinalizou que Moro poderia ter 20

4 | 10
milhões, muito pouco para enfrentar campanhas que devem
ter uma grande estrutura, como as de Lula e Bolsonaro. Pa-
ra se ter uma ideia, estima-se que o Podemos terá disponí-
veis cerca de 229 milhões de reais para a disputa toda, so-
mando os fundos Partidário e Eleitoral. A cifra é pouco per-
to do que irão receber o PT (594 milhões de reais), o MDB
(417 milhões de reais) e o PSDB (378 milhões). O União Bra-
sil, que ainda não tem candidato, pode ter quase 1 bilhão de
reais disponível, assim como a frente do Centrão (PP, PL e
Republicanos) que irá apoiar Bolsonaro.
A conjunção dos fatores acendeu o sinal de alerta. Meta-
de da bancada do Podemos, de onze deputados, já olha para
a janela partidária, que está aberta até o dia 1º de abril, como
uma chance de buscar uma melhor oportunidade para reno-
var o mandato por meio de outra legenda. Além da verba
para a campanha, Moro é considerado um empecilho para a
formação de chapas nos estados e uma má companhia na
campanha de quem espera atrair votos de eleitores que pre-
ferem Lula ou Bolsonaro. Nessa debandada, são dadas co-
mo certas as saídas do vice-líder do governo José Medeiros
(MT), que irá se manter leal ao capitão, e João Carlos Bace-
lar (BA), que tem atuação mais à centro-esquerda e uma ba-
se eleitoral amplamente favorável ao candidato petista.
Os sinais de alerta também partem do principal reduto do
ex-juiz: no Paraná, domicílio eleitoral de Moro, o Podemos
perdeu o presidente Cesar Silvestri Filho para o PSDB, que
concorrerá ao governo do estado e formará um palanque para

5 | 10
WAGNER PIRES/FUTURA PRESS
DESAFIO Boneco de Moro: o “super-herói” da luta
anticorrupção terá de ampliar o seu discurso

João Doria (PSDB). Embora integre a base de apoio do gover-


nador Ratinho Junior, o Podemos viu crescer a pressão do PP
no estado, comandado por Ricardo Barros, líder de Bolsona-
ro na Câmara, em busca de uma aliança que garanta o apoio
do governador ao presidente — que não admite a hipótese de
dividir o palanque com o ex-juiz, de quem se tornou desafeto.
Para não deixar Moro sozinho, o partido pode lançar um can-
didato próprio caso naufrague a coligação com Ratinho.
O abandono dos parlamentares do Podemos à candida-
tura de Moro pode ser medido nas redes sociais. São raros
os casos em que os políticos propagandeiam o nome do can-

6 | 10
didato. Bacelar, por exemplo, fez mais de uma centena de
posts no Twitter ao longo de fevereiro — citando Lula, Alck-
min, Doria e criticando Bolsonaro —, mas só um sobre Mo-
ro. O último post do líder da bancada, Igor Timo (MG), de
apoio ao pré-candidato do partido foi feito em dezembro —
a mesma data em que José Nelto (GO) se manifestou pela úl-
tima vez. Léo Moraes (RO), Roberto de Lucena (SP) e Ro-
drigo Coelho (SC) não citaram o ex-juiz na rede social nos
últimos meses. José Medeiros reitera seu apoio a Bolsonaro
e Diego Garcia (PR) chamou Moro de “mamateiro”.
Outro desafio é o estreitamento das possibilidades para
buscar alianças. Além da baixa intenção de votos, o candi-
dato do Podemos enfrenta a antipatia de boa parte da clas-
se política, que quer distância do ex-juiz, cuja atuação na
Lava-Jato teve o efeito de criminalizar a política tradicio-
nal. Foram as resistências de caciques do União Brasil que
esfriaram as conversas para uma composição em torno de
Moro — o partido agora mantém conversas com MDB e
PSDB. Apesar disso, Moro toca a campanha em frente di-
zendo ao eleitorado que não representa a corrupção do
bolsonarismo (rachadinha) nem do petismo (desvios na
Petrobras), mas é incerto quanto isso pode ajudar a alavan-
car a sua candidatura.
Há, no entanto, em setores do Podemos a tentativa de
manter viva a chama de Moro. As maiores demonstrações
do apoio vêm do Senado, onde o partido tem nove parla-
mentares e cuja bancada tem feito sinalizações públicas de

7 | 10
SAULO ROLIM
FIADOR Alvaro Dias: o senador mantém
bancada na Casa unida em torno de Moro

apoio. A voz mais ativa é a do senador Alvaro Dias (PR),


principal fiador da chegada de Moro ao Podemos e de sua
candidatura. Ele minimiza, inclusive, a falta de bons resulta-
dos nas pesquisas. “É muito cedo para qualquer previsão.
Boa parte do eleitorado de centro que não quer Lula nem
Bolsonaro está em compasso de espera”, afirma. A presiden-
te do Podemos, a deputada Renata Abreu (SP), tenta aplacar
as preocupações com a garantia de que o dinheiro será sufi-
ciente para campanhas competitivas. “Eleição não se vence
só com dinheiro, mas com estratégia. Uma boa chapa vale
mais que o Fundo Eleitoral”, diz a parlamentar.

8 | 10
O inferno astral de Moro se espraia para fora da política e
vem de algum tempo. Sua imagem de herói da Lava-Jato co-
meçou a ser arranhada já em meados de 2019, quando a di-
vulgação de diálogos do então juiz com a força-tarefa do Mi-
nistério Público Federal em Curitiba pôs em xeque a sua im-
parcialidade na Lava-Jato e, tempos depois, culminou com a
anulação de suas decisões e a declaração de imparcialidade
pelo STF na condução dos processos contra o hoje seu adver-
sário eleitoral, Lula. No fim do ano passado, começou a en-
frentar também as crescentes suspeitas a respeito de seu con-
trato com a consultoria americana Alvarez & Marsal, que
atua na recuperação judicial de empresas afetadas por suas
decisões na operação. A imagem de probidade ganhou um
novo arranhão com a investigação que tramita no Tribunal de
Contas da União. A consultoria, que recebeu cerca de 40 mi-
lhões de reais de empresas condenadas na Lava-Jato, teve
Moro como empregado quando ele deixou o Ministério da
Justiça, em 2020. Moro já veio a público declarar quanto re-
cebeu da empresa (3,7 milhões de reais em um ano de serviço)
e reafirmou, com apoio da consultoria, que não atuava em
processos de empresas envolvidas na Lava-Jato. Mas o caso
continua rendendo polêmica. O subprocurador Lucas Rocha
Furtado pediu o bloqueio dos bens do pré-candidato e o vice-
-presidente da corte, Bruno Dantas, requereu à Procuradoria-
Geral da República o aprofundamento das investigações.
Enquanto trabalha para superar as imensas dificuldades
que se apresentam à sua empreitada presidencial, Moro tam-

9 | 10
ROBERT ALVES/MONUMENTAL
DONA DO COFRE Renata Abreu: a dirigente
tenta aplacar ânimos de deputados

bém tem pela frente o desafio de calibrar o seu discurso para


além do combate à corrupção. Se a cantilena moralizante aju-
dou a eleger Bolsonaro em 2018, o assunto já não é mais uma
prioridade para os eleitores. Segundo pesquisa Quaest de fe-
vereiro, a corrupção foi citada como principal problema do
país por 11% dos entrevistados, atrás de economia, saúde e
questões sociais. Se quiser se mostrar competitivo, Moro terá
de apresentar boas propostas para resolver os urgentes pro-
blemas de desemprego e inflação, assuntos com os quais visi-
velmente ainda não tem muita familiaridade. Isso somado ao
fogo amigo dentro do Podemos contra sua candidatura, não
são poucas as adversidades a ser superadas até outubro. ƒ

Com reportagem de Diogo Magri

10 | 10
BRASIL JUSTIÇA

TUDO ARQUIVADO,
NADA ESCLARECIDO
A Justiça encerra
todos os processos
contra o ex-
presidente Lula e
seus filhos, deixando
dúvidas e suspeitas
que devem
ressuscitar durante
a campanha eleitoral
HUGO MARQUES
E LARYSSA BORGES

RASTROS APAGADOS Lula: o Supremo Tribunal Federal


suspendeu a última ação que havia contra o petista

MATEUS BONOMI/AP/IMAGEPLUS

1|8
NOS ÚLTIMOS dois anos, Lula alcançou um feito extraor-
dinário. Condenado e preso, com a carreira política dada co-
mo sepultada e a biografia manchada por denúncias de cor-
rupção, ele conseguiu anular todos os casos que o envolvem,
é candidato à Presidência da República e lidera as pesquisas
de intenção de voto. Isso não quer dizer que o petista não
praticou os crimes dos quais era acusado. Significa apenas
que a defesa dele foi bem-sucedida em demonstrar erros
processuais considerados pelo Supremo Tribunal Federal
como suficientes para encerrar os casos. A campanha eleito-
ral do ex-presidente sabe, porém, que os adversários vão ex-
plorar não só a participação dele nos escândalos de corrup-
ção como também os negócios estranhos e as histórias mal
explicadas que envolvem seus filhos. Apagar os rastros do
passado, portanto, era uma tarefa estratégica para tentar
afastar certos fantasmas.
Lula tem cinco filhos. Quatro deles foram acusados de
crimes de corrupção, organização criminosa, tráfico de in-
fluência, lavagem de dinheiro ou sonegação fiscal. Fábio
Luís Lula da Silva, o mais velho, foi o precursor. Em 2003,
quando o pai assumiu o governo pela primeira vez, Lulinha,
como é conhecido, era funcionário de um zoológico em São
Paulo. Um ano depois, ele se tornou o primeiro milionário
da família. O primogênito largou o emprego no zoológico,
criou uma empresa de games e vendeu parte dela por 5 mi-
lhões de reais (valor da época) para a Oi, concessionária do
setor de telefonia. Apesar de estranho, parecia um simples

2|8
SERGIO LIMA/AFP

NADA A VER COM CAÇAS Luís


Cláudio: o caçula da família recebeu
2,5 milhões reais de um lobista por um
calhamaço de artigos copiados da internet

negócio privado — até que surgiu um lobista da concessio-


nária revelando que Lulinha trabalhava com ele. E o mais
complicado: soube-se que a compra da empresa de games
ocorreu pouco antes de o presidente Lula assinar um decre-
to que beneficiava a Oi numa operação bilionária. Na época,
foram abertas investigações para apurar se havia alguma re-
lação entre uma coisa e outra.
Em janeiro deste ano, a Justiça Federal de São Paulo ar-
quivou o processo que tramitava contra Lulinha, embora o
mistério sobre a fortuna do filho número 1 tivesse ganhado
novas e vultosas informações. A Operação Lava-Jato desco-
briu que a parceria entre a empresa do primogênito e a con-
cessionária de telefonia não terminou em 2004. Pelo contrá-
rio. Lulinha continuou recebendo através de outras empre-

3|8
sas que criou. No total, foram 83 milhões de reais durante
doze anos, de 2004 a 2016. Os advogados alegaram na Jus-
tiça que as provas obtidas contra o rapaz não tinham valor
legal, já que haviam sido colhidas em buscas autorizadas pe-
lo ex-juiz Sergio Moro. Como o magistrado foi considerado
suspeito pelo STF nos casos que envolviam o ex-presidente
Lula, logo os indícios capturados nesse período também não
poderiam ser admitidos. O processo foi arquivado sem que
se soubesse qual era exatamente o valioso serviço que a em-
presa de Lulinha prestava aos seus contratantes. Para a Jus-
tiça, o caso está encerrado.
Na quarta-feira 2, foi a vez de o Supremo Tribunal Fede-
ral sepultar o último processo que envolvia Lula e um de
seus filhos. Em 2014, Luís Cláudio Lula da Silva e o pai fo-
ram acusados de tráfico de influência e lavagem de dinhei-
ro. Segundo o Ministério Público, entre 2014 e 2015, o caçu-
la da família recebeu 2,5 milhões de reais como pagamento
por decisões do governo em favor de algumas empresas.
Uma delas, a sueca Saab, foi vencedora de uma licitação pa-
ra a venda de caças à Força Aérea Brasileira. Os advogados
de Lula pediram ao STF o arquivamento do processo, ale-
gando — como no caso de Lulinha — que alguns documen-
tos anexados como provas tiveram origem na Operação
Lava-Jato e, portanto, também seriam imprestáveis. “Todo
o conjunto de e-mails usado para estruturar a ação dos ca-
ças tinham origem nas ações cautelares da Lava-Jato de
Curitiba, que já haviam sido anuladas pelo STF. As provas e

4|8
conversas dos procuradores mostraram um cenário de fa-
bricação de acusações”, disse a VEJA o advogado de Lula e
Luís Cláudio, Cristiano Zanin.
Na época, a Aeronáutica abriu uma concorrência interna-
cional para adquirir 36 aviões de combate. A Saab contratou
o lobista Mauro Marcondes, amigo do ex-presidente Lula.
Ouvido em Londres, Andrew Wilkinson, então diretor de
marketing de vendas do grupo Saab, confirmou que contra-
tou Marcondes para ter acesso a Lula, que, por sua vez, exer-
ceria influência sobre a então presidente da República, Dilma
Rousseff, a quem cabia dar a palavra final sobre o negócio. O
processo estava nas mãos do ministro Ricardo Lewandows-
ki, do STF. Não havia muitas dúvidas sobre o teor do veredic-
to, que limpa completamente a ficha judicial do ex-presidente
e também a do segundo milionário da família, cuja maior
realização profissional até a ascensão do pai tinha sido servir
como auxiliar de preparador físico de futebol.
“Não é possível ignorar que os procuradores da Repúbli-
ca responsáveis pela denúncia referente à compra dos caças
suecos agiam de forma concertada com os integrantes da
‘Lava-Jato’ de Curitiba, por meio do aplicativo Telegram, pa-
ra urdirem, ao que tudo indica, de forma artificiosa, a acusa-
ção”, disse o ministro em sua decisão. Em outras palavras, o
magistrado considerou que houve uma articulação impró-
pria entre os investigadores de Brasília, onde o caso era apu-
rado, e os procuradores da Lava-Jato para forjar a acusação
contra Lula e o filho. A versão de Luís Cláudio é de que os

5|8
DANILO M YOSHIOKA/FUTURA PRESS

PRIMEIRO MILIONÁRIO Fábio: o


primogênito faturou 83 milhões de reais em
parceria com concessionária de telefonia

2,5 milhões de reais repassados a ele pelo lobista nada mais


eram do que o pagamento por serviço de consultoria espor-
tiva (um calhamaço de recortes copiados da internet). Uma
parte da bolada era oriunda de patrocínios de empresas
coincidentemente beneficiadas por decisões dos governos
petistas — dinheiro que tinha como destino final a liga bra-
sileira de futebol americano.
Outros dois filhos do ex-presidente tiveram seus negó-
cios esquadrinhados nos últimos anos pelas autoridades. O
Ministério Público chegou a identificar repasses que so-

6|8
JEFFERSON COPPOLA

CARGA PESADA Marcos Cláudio, cujo


processo também foi arquivado: ganhando
a vida como motorista de caminhão

mam 1,7 milhão de reais do Instituto Lula (entidade filan-


trópica, sem fins lucrativos e que recebia doações de em-
preiteiras envolvidas na Lava-Jato) e da firma de palestras
do ex-presidente (contratada em várias oportunidades pe-
las mesmas empreiteiras) para empresas dos filhos. A
FlexBR, de Sandro Luís Lula da Silva e Marcos Cláudio Lu-
la da Silva, recebeu pagamentos para supostamente fazer a
triagem de fotos e vídeos para o acervo público do ex-presi-
dente. A FlexBR não tinha nenhum funcionário e faliu no
ano passado. Os processos sobre esses casos também aca-

7|8
baram arquivados — e, de novo, até hoje não se tem uma
explicação minimamente plausível para os aportes.
Os advogados dizem que o arquivamento do último pro-
cesso contra Lula e os filhos vai deixar evidente o nível de
perseguição sofrida pela família desde que o petista deixou o
poder. Lula ficou preso 580 dias, foi condenado a 26 anos de
cadeia por corrupção e impedido de disputar as eleições em
2018. Curiosamente, as carreiras dos filhos degringolaram
com o purgatório do pai. Depois de dois anos como assessor
de um deputado petista na Assembleia Legislativa de São
Paulo, Luís Cláudio voltou a atuar há alguns meses no ramo
dos esportes, sonha em retomar seu projeto de divulgar o fu-
tebol americano no Brasil e, recentemente, foi contratado co-
mo integrante da comissão técnica de um pequeno time de
futebol. Com a reabilitação política de Lula, Fábio Luís reati-
vou a LLF Participações, empresa de tecnologia que tinha se-
de em um terreno baldio e foi acusada de servir como facha-
da para burlar o Fisco. Lulinha ampliou o ramo de atividades
e agora vai atuar também na área de “gestão empresarial, in-
termediação e agenciamento de serviços”. Já Marcos Cláudio
estaria ganhando seu sustento dirigindo um caminhão. E
Sandro se mantém com a ajuda de parentes. A liderança do
petista nas pesquisas de intenção de voto deu aos filhos a es-
perança de um recomeço — mas nada indica que os fantas-
mas do passado vão simplesmente desaparecer. ƒ

8|8
MURILLO DE ARAGÃO

ELEIÇÕES E
LIBERDADE
Estamos diante de uma discussão
que exige responsabilidade

EM UM MUNDO inundado por informações, a questão da li-


berdade de expressão é posta diariamente como um desafio
para a sociedade. A intensificação do fenômeno das fake news
— antiquíssimo, por sinal — é parte da complexidade do as-
sunto. Objetivamente, a liberdade de expressão será tema es-
sencial no processo eleitoral deste ano. Os vetores de interces-
são estão tanto nas narrativas de campanha quanto nos aspec-
tos regulatórios, bem como nas repercussões judiciais de am-
bos. Declarações do ex-presidente Lula de que a mídia eletrô-
nica e as redes sociais precisam ser reguladas revelam a ponta
mais visível do problema. Lula erra ao colocar ambas no mes-
mo patamar. A mídia já é regulada, com limites constitucionais
e legais. Ir além é emular comportamentos ditatoriais. Já nas
redes sociais a questão está na responsabilização de quem es-
creve. Todos devem ter a liberdade de se expressar, mas com a
devida responsabilidade. Nos últimos tempos, a partir de epi-
sódios relacionados às eleições americanas, as redes sociais
avançaram nesse sentido. Mas ainda devem à sociedade.

1|3
Aparentemente, o Tribunal Superior Eleitoral está
atento e mais preparado para enfrentar os desafios das fa-
ke news no processo eleitoral. O aplicativo Telegram, de-
pois de correr o risco de ser banido do Brasil, obedeceu a
uma decisão do Supremo, ainda que a eficácia dessa deci-
são seja duvidosa. O enquadramento das redes sociais e
dos serviços de mensagens não é tarefa simples. Já a mí-
dia tradicional está mais exposta, visto que veículos e jor-
nalistas são processados pelo que eventualmente escre-
vem. Na prática, a imprensa segue a lógica de que todo
mundo pode falar o que quiser, desde que se responsabili-
ze pelo que diz. Por isso esta revista tem um editor res-
ponsável e o colunista que aqui escreve também tem de se
responsabilizar pela opinião que emite. O mesmo não
acontece de forma harmônica nas redes. É uma assimetria
grande e a questão deve ser seriamente debatida.
No campo regulatório, diversas concessões de televisão,
com destaque para as cinco emissoras da Rede Globo, al-

“As emissoras não podem


ser objeto de retaliações
que criem obstáculos
à liberdade de expressão”
2|3
gumas da Record e da Bandeirantes, deverão ser submeti-
das ao processo de renovação. Elas vencem no dia 5 de ou-
tubro, três dias após o primeiro turno das eleições. O tema
surge em um momento ruim pela potencial contaminação
eleitoral. Afinal, os atuais ponteiros têm uma relação con-
flituosa com a mídia. Postos os problemas das redes sociais
e da renovação das concessões, a reflexão a ser feita envol-
ve a liberdade de expressão. Ela, sim, deve ser assegurada.
Responsabilizar as redes e obrigá-las a seguir nossos pre-
ceitos constitucionais não significa obstruir a liberdade de
expressão. Já politizar o debate da renovação das conces-
sões pode se revestir de ameaça a tais liberdades. Há quem
não goste da emissora A ou B, mas todas — de modo geral
— exercem a liberdade de informar garantida pela Consti-
tuição. A questão deve ser tratada com responsabilidade
pelos candidatos e, adiante, pelo Congresso. As redes so-
ciais ampliam a difusão das informações e isso deve ser as-
segurado. Mas as responsabilidades devem ficar claras. As
emissoras de rádio e televisão cumprem papel essencial na
construção da nossa democracia. Não podem ser objeto de
retaliações nem de regulações que possam criar obstáculos
à liberdade de expressão e de imprensa. ƒ

3|3
BRASIL ELEIÇÕES

CORRENDO POR FORA


Apesar das dificuldades, a aliança entre partidos
da terceira via avança e Simone Tebet começa
a ganhar alguma força como alternativa para
esse grupo BRUNO RIBEIRO E REYNALDO TUROLLO JR.

EM CAMPO Simone: agenda intensa pelo país


para convencer o MDB e seus aliados

CRISTIANO MARIZ/AG. O GLOBO

1 | 11
PRESIDENCIÁVEL do MDB, a senadora sul-mato-gros-
sense Simone Tebet até hoje não tem sua candidatura levada
a sério por uma parte importante do seu próprio partido. Pa-
ra os demais postulantes a comandar a terceira via na corri-
da eleitoral deste ano, seria apenas a “vice perfeita”, ou seja,
como única mulher no páreo, pode ser valiosa na composi-
ção da chapa, mas não teria cacife político e projeção nacio-
nal suficientes para se tornar a protagonista do bloco, ape-
sar da atuação destacada na CPI da Pandemia do Senado,
no ano passado. De uns tempos para cá, no entanto, desde
que sua legenda engatou negociações mais produtivas para
a composição de uma aliança com o União Brasil — que é o
maior partido na Câmara, mas não tem um candidato forte
ao Palácio do Planalto —, ela finalmente começou a ser en-
carada como uma opção com verdadeiro potencial de cres-
cimento. Com a ajuda de uma estrutura de campanha sólida
e de uma agenda pública para se apresentar ao país, Simone
trabalha firme com o objetivo de atrair apoios dos caciques
para se viabilizar.
A movimentação da senadora tem sido intensa. Desde
janeiro, já concedeu 38 entrevistas para rádios do interior
do país, podcasts e canais on-line de influenciadores regio-
nais para apresentar uma agenda de austeridade econômi-
ca e combate às desigualdades sociais. O corpo a corpo de-
ve ser intensificado após o Carnaval. Embora já tenha ido,
por exemplo, à favela de Paraisópolis, em São Paulo, e a ci-
dades do interior do estado e de sua terra natal, Simone ain-

2 | 11
NEM LULA, NEM BOLSONARO
Quem são os eleitores que mais
rejeitam a polarização

26%
dos eleitores
preferem que nem
Lula nem Bolsonaro
vençam a eleição

DESSES ELEITORES:
41% VOTARAM EM JAIR BOLSONARO (PL) EM 2018
16% VOTARAM EM FERNANDO HADDAD (PT)
49% AVALIAM DE FORMA NEGATIVA
O ATUAL GOVERNO
55% VIRAM PIORAR A CAPACIDADE
DE PAGAR AS CONTAS
57% DIZEM QUE NÃO VOTARIAM EM
JOÃO DORIA (PSDB)
55% NÃO VOTARIAM EM CIRO GOMES (PDT)
45% NÃO VOTARIAM EM SERGIO MORO (PODEMOS)
15% NÃO VOTARIAM EM SIMONE TEBET (MDB)

3 | 11
DIVISÃO POR SEGMENTO
GÊNERO

43% 57%
HOMENS MULHERES

IDADE
17% 16%
60 anos ou mais 16 a 24 anos

24%
45 a 59 anos

21% 22%
35 a 44 anos 25 a 34 anos

ESCOLARIDADE
28% 35%
Iniciaram Até o ensino
ou concluíram o fundamental
ensino superior

37%
Até o ensino médio

4 | 11
DIVISÃO POR SEGMENTO
RENDA FAMILIAR
27% 33%
Mais de cinco Até dois salários
salários mínimos mínimos
40%
Entre dois e cinco
salários mínimos

RELIGIÃO
28% 51%
Evangélicos Católicos

7%
Não têm religião,
15% não souberam ou
Outras religiões não responderam

COR
41% 55%
Brancos Pretos ou
pardos

3% 1%
Amarelos Não respondeu
Fonte: Quæst Consultoria/Genial Investimentos,
com dados coletados de 6 a 9 de janeiro

5 | 11
da planeja viagens para o Rio de Janeiro e o Paraná, nas
duas próximas semanas, e um tour pelo Norte e Nordeste
na sequência. O mote das viagens é conhecer “o Brasil que
deu certo”, visitando projetos de desenvolvimento que po-
deriam ser expandidos em seu eventual governo, de forma
a construir pontes com lideranças locais para superar a fal-
ta de cabos eleitorais que sobram aos dois líderes das pes-
quisas, Lula e Bolsonaro.
Paralelamente, em busca da construção de uma ideia de
gestora competente, Simone fechou acordo com a economis-
ta Elena Landau para chefiar seu programa econômico, sob
coordenação do ex-governador gaúcho Germano Rigotto, e
contratou o marqueteiro Felipe Soutello (profissional de São
Paulo que fez a campanha vencedora de Bruno Covas ao co-
mando da cidade em 2020). Simone vem mantendo ainda
canais de diálogo com os demais presidenciáveis da terceira
via, como Sergio Moro (Podemos) e João Doria (PSDB), em
um jogo de aproximação que ainda considera que um poderá
ser o vice de outro. Nessas conversas, a definição do titular
da candidatura em geral é associada à posição nas pesquisas
eleitorais. Doria tem 3% das intenções, o que na prática o co-
loca tecnicamente empatado com Simone, que tem 1%, se-
gundo o Índice 2022, agregador de pesquisas de VEJA. Os
contatos com o governador paulista costumam ter a partici-
pação do presidente do MDB, Baleia Rossi. Político próximo
a Doria, ele também é um companheiro frequente do périplo
da senadora junto aos líderes das outras siglas de centro.

6 | 11
As enormes diferenças entre as legendas da terceira via,
as dificuldades regionais e as ambições de seus presiden-
ciáveis pareciam tornar improvável algum acordo por uma
candidatura única ao Palácio do Planalto. A despeito das
dificuldades, porém, as conversas têm avançado e hoje a
possibilidade de um acerto é vista com mais otimismo. O
primeiro passo seria o casamento entre MDB e União Bra-
sil, que é dado como certo. No último dia 22, o presidente
do União, Luciano Bivar, se reuniu em Brasília com Baleia
Rossi, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) e o deputado
LEOPOLDO SILVA/AG. SENADO

PROJEÇÃO Na CPI da Pandemia, em 2021:


atuação combativa nas sessões

7 | 11
Isnaldo Bulhões (MDB-AL) para tratar da aliança em tor-
no de uma candidatura da terceira via. Passado o entusias-
mo inicial pela formação de uma federação — união entre
siglas que precisa durar pelo menos quatro anos e se dar
em todos os níveis de governo —, a ideia deu lugar a uma
coligação entre essas siglas. Em público, lideranças dos
dois partidos adotam um tom diplomático ao comentar a
possível inclusão do PSDB. Em entrevista a VEJA na se-
mana passada, Bivar foi enfático ao dizer que conta com os
tucanos na construção de uma candidatura única. Mas nos
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

ARTICULAÇÃO Doria, com o vice Garcia:


conversas frequentes com Simone

8 | 11
bastidores a conversa é outra. A percepção é que Doria não
está realmente disposto a abrir mão de sua candidatura,
mesmo que continue patinando nas pesquisas. Nas pala-
vras de um emedebista que acompanha as tratativas, “no
campo das possibilidades, a chance de apoio a Doria é mí-
nima”. Apesar desse tipo de descrença, o governador pau-
lista declarou mais de uma vez que aceitaria abrir mão da
liderança, embora continue trabalhando firme para redu-
zir a rejeição a seu nome e crescer com ativos que nenhum
outro candidato de centro dispõe, como o reconhecido mé-
rito para iniciar a
vacinação contra a
Covid-19 no país e a
privilegiada situa-
ção econômica de
São Paulo, estado
que progride a um
ritmo muito maior
que o do Brasil sob
a sua gestão. Doria
conta ainda com o

PRAGMATISMO
CLEIA VIANA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

Baleia Rossi: ciência


de que políticos do
MDB podem não
apoiar Simone Tebet

9 | 11
vice-governador, Rodrigo Garcia, seu candidato à suces-
são estadual, que tem se mostrado um valioso articulador
para aparar arestas junto a siglas da terceira via.
A despeito de Simone ter um currículo de realizações
muito mais modesto que o do governador paulista, líderes
do MDB e do União têm demonstrado um certo encanta-
mento por ela neste momento. Segundo esses entusiastas, a
senadora é ainda pouco conhecida e tem baixa rejeição —
consequentemente, teria mais potencial para crescer, sobre-
tudo porque poderá contar com o maior tempo de TV e re-
cursos para campanha. Além disso, Simone ajudaria na es-
tratégia de liberar candidatos em estados que desejam
apoiar nomes rivais por questões regionais. Existem alas no
MDB, principalmente no Nordeste, que desejam caminhar
com Lula. Correligionários citam o senador Renan Calhei-
ros (AL) como um dos exemplos desse grupo, para o qual
seria indiferente a existência ou não de uma candidatura
realmente competitiva na terceira via.
Antes de ingressar no Senado (está no primeiro manda-
to), Simone, de 52 anos, percorreu uma trajetória centrada
no Mato Grosso do Sul, que incluiu a prefeitura de Três La-
goas (reduto de seu pai, o ex-governador e ex-ministro de
FHC Ramez Tebet, morto em 2006) e o vice-governo do es-
tado. Apesar do protagonismo que obteve na CPI da Pande-
mia, pesa contra ela a falta de uma cesta de realizações mais
robusta em cargos do Executivo. “Ao contrário de 2018, o
eleitor deverá priorizar agora nomes mais tarimbados e ca-

10 | 11
pazes de tocar a máquina da administração pública”, aposta
o cientista político José Álvaro Moisés, da Universidade de
São Paulo. Uma certa inexperiência não impede que Simone
continue sonhando alto, dentro de um cenário no qual o ca-
samento de forças entre MDB, União Brasil e PSDB possa
gerar um fato político novo capaz de finalmente impulsio-
nar a estacionada terceira via. ƒ

11 | 11
RICARDO RANGEL

O BRASIL NA
VANGUARDA
DO ATRASO
A guerra no Leste Europeu revela
onde Bolsonaro e Lula estão

VLADIMIR PUTIN fez uma agressão não provocada à


Ucrânia, país soberano e pacífico. Mentiu que a Ucrânia
não existe como Estado independente. Mentiu que o go-
verno ucraniano é neonazista. Mentiu que seu objetivo é
proteger os habitantes de Donbass (por que a Rússia está
bombardeando Kiev, do outro lado do país?). Mentiu que
foi uma ação para impedir que a Ucrânia entre para a
Otan: não havia perspectiva de inclusão da Ucrânia. E, se
fosse assim, por que Putin concordou com a entrada das
repúblicas bálticas na Otan em 2004? E que argumento é
esse de que se pode invadir um país soberano para impedi-
lo de fazer acordos internacionais?
O mundo não comprou o lero-lero de Putin e repudiou
em peso a invasão. No Brasil, entretanto, nada é simples. Os
bolsonaristas ficaram confusos, sem saber se a Rússia é o
monstro-comunista-inimigo-da-civilização-cristã, como

1|3
disse a máquina de fake news durante anos, ou se Putin é
“conservador”, conforme Bolsonaro agora o descreve. Para
complicar, Putin tem o apoio de outros monstros comunis-
tas, como China, Cuba e Venezuela.
Na dúvida, siga o líder. Bolsonaro — que visitou a Rússia
às vésperas da invasão e declarou “solidariedade” aos rus-
sos — recusou-se a condenar o ataque e avisou que o Brasil é
“neutro”. O Itamaraty faz o que pode para botar o país no
lugar certo, mas todo mundo sabe onde Bolsonaro está.
Faz sentido que Bolsonaro, que defende ditadura e tortu-
ra, apoie Putin, um ditador fascista e homofóbico que acre-
dita na lei do mais forte, mata inimigos e massacra popula-
ções, como fez na Chechênia e faz agora. E que quer recriar
um passado idealizado e glorioso (o Império Russo). Ou se-
ja, é o modelo acabado do que Bolsonaro quer ser.
A esquerda brasileira também ficou tonta. A visão geo-
política tradicional de nossa esquerda tem três linhas bási-
cas: 1) contra os Estados Unidos; 2) a favor de ditaduras de

“As principais lideranças


brasileiras são incapazes
de defender a democracia
com firmeza”
2|3
esquerda; 3) contra ditaduras de direita. Até o fim da Guerra
Fria, era fácil conciliar as três linhas, hoje é impossível.
Grande parte da esquerda, PT e penduricalhos incluídos,
optou pelo antiamericanismo, que é supremo.
O PT condenou a “política de longo prazo dos Estados
Unidos de agressão à Rússia e de expansão da Otan” —
nem uma palavra sobre a agressão da Rússia à Ucrânia. O
ex-chanceler petista Celso Amorim é “contra as sanções”
(mas não contra a Rússia) e “a favor do diálogo” (mas não
da Ucrânia).
Lula tuitou que “ninguém pode concordar com ataques
militares de um país contra o outro” — não mencionou Rús-
sia nem Ucrânia. Depois, falou da Rússia, mas antes criticou
o Ocidente: “Foi assim que os Estados Unidos invadiram o
Afeganistão e o Iraque e que a França e a Inglaterra invadi-
ram a Líbia; é assim que a Rússia está fazendo com a Ucrâ-
nia”. Esqueceu que a Ucrânia é democrática e pacífica; o
Afeganistão, dominado pelo sanguinário Talibã, protegia o
terrorista Bin Laden; a Líbia era uma ditadura em sangrenta
guerra civil e a intervenção foi determinada pela ONU.
O mundo inteiro está unido em defesa da Ucrânia, mas as
principais lideranças brasileiras são incapazes de defender a
democracia com firmeza. Nós somos a vanguarda do atraso. ƒ

3|3
BRASIL POLÍTICA

VELHAS PRÁTICAS
Após surpreender em 2018 com a defesa
da mudança dos costumes políticos, o Novo vive
pressão interna para flexibilizar suas bandeiras em
nome do pragmatismo eleitoral DIOGO MAGRI

FORA DO JOGO Amoêdo: surpresa na última disputa


presidencial, ele enfrenta a oposição da ala bolsonarista da sigla

JOÃO ALLBERT/FUTURA PRESS

1|5
QUANDO SURGIU, em 2015, o Novo tinha a ambição de ser
a antítese das legendas que dominavam a política brasileira,
criticadas pelo clientelismo, pela falta de espírito público e pe-
la busca da perpetuação no poder. A proposta, sintetizada no
nome escolhido, atraiu simpatizantes e desembocou no de-
sempenho surpreendente de 2018. Embalado pelo sentimento
da antipolítica que tomava o país, o partido elegeu já na pri-
meira disputa nacional oito deputados federais e um governa-
dor (Romeu Zema, de Minas Gerais) e levou o pouco conheci-
do João Amoêdo ao quinto lugar na eleição presidencial, com
2,6 milhões de votos, superando nomes como o da ex-minis-
tra Marina Silva. O discurso tinha como pilares a economia
de dinheiro público, a limitação da reeleição a uma vez e o ve-
to às alianças oportunistas, entre outras coisas. A expectativa
era ampliar conquistas após esse começo altamente promis-
sor. Aos poucos, no entanto, a sigla ameaça regredir pela pres-
são de velhas práticas. Às vésperas de novo encontro com as
urnas, ela enfrenta desavenças internas que podem fazer com
que a promessa de um jeito diferente de fazer política seja rele-
gada a um segundo plano em nome do pragmatismo eleitoral.
O sinal de insatisfação com os princípios puristas da legen-
da já havia sido dado em 2020 por Zema, que reclamou da di-
ficuldade de ter candidatos a prefeito em razão do veto a coli-
gações e da política de selecionar os escolhidos por concurso.
Comparadas ao universo político brasileiro, as regras do Novo
são realmente rigorosas e nem todos se enquadram. Em Mi-
nas, estado com o maior número de municípios (853), o parti-

2|5
DIVULGAÇÃO

RACHA Bancada da legenda:


atritos e preocupação com a reeleição

do disputou apenas três prefeituras. No país, elegeu um prefei-


to (em Joinville) e só dezoito vereadores. Em setembro passa-
do, Zema voltou a pressionar por uma flexibilização. “Eu que-
ro me manter no Novo, mas tenho receio de ele não viabilizar a
minha eleição”, disse o governador, já assediado por outras si-
glas, como o União Brasil. Segundo ele, em congresso no fim
de 2021, houve cobranças por novos rumos. “Todos querem
mudanças. Ou o partido muda ou ele acaba”, sentenciou.
O apelo encontrou eco na cúpula. Eduardo Ribeiro, presi-
dente da legenda, defendeu uma nova lógica de atuação “flexí-
vel e com mais capilaridade”. “O termo de compromisso assina-
do pelos filiados para se candidatar vai sofrer ajustes”, afirmou,
mas sem dar detalhes. Conforme apurou a reportagem de
VEJA, a pressão é por mais liberdade para alianças, possibilida-
de de mais de uma reeleição e maior tolerância com o uso de di-
nheiro público — o partido impõe limite de 50% para cota par-

3|5
lamentar e verba de gabinete e veta o Fundo Eleitoral (dinheiro
público para campanhas). As medidas, que rompem com a pe-
dra fundamental da legenda, ainda precisam passar pelo Dire-
tório Nacional, que está dividido, mas Ribeiro conseguiu um
trunfo ao aprovar mudança no estatuto que dá a ele o voto de
minerva em caso de empates em votações. Polêmica, a iniciati-
va foi parar na Justiça em dezembro passado. “Existe uma ten-
tativa de desvirtuar o partido”, critica Patricia Vianna, secretá-
ria nacional de Assuntos Institucionais e Legais da sigla, que
assinou a ação judicial e um manifesto distribuído aos filiados.
As desavenças entre puristas e pragmáticos está na raiz do
surpreendente afastamento da principal liderança, João
Amoêdo — isso depois de o ex-banqueiro conquistar uma
quantidade relevante de eleitores na última eleição. Ele deixou
o comando do partido em março de 2020 e em junho de 2021
desistiu de disputar a Presidência de 2022 pelo Novo. O posto
acabou sendo ocupado pelo cientista político Luiz Felipe
d’Avila, que, por enquanto, amarga a parte de baixo das pes-
quisas. “Eu não fui aprovado para encabeçar a chapa porque
alguns parlamentares pensam que um candidato que critica
Bolsonaro irá prejudicá-los”, afirma Amoêdo. “Isso é priori-
zar o mandato em vez da instituição.”
A dúvida hamletiana a respeito da postura com o governo
tensiona, de fato, o partido. Enquanto a direção defende o im-
peachment, a bancada vai noutra direção. Dois deputados
afrontaram claramente a cúpula: Marcel van Hattem (RS), o
mais votado do partido em 2018, e Lucas Gonzalez (MG). “Re-

4|5
sumo a minha indepen-
dência com uma frase:
nem atrito e nem afeto”,
justifica Gonzalez. O
choque deve levar à saí-
RICARDO MATSUKAWA

da de deputados na jane-
la que vai até 2 de abril.
DESAFIO D’Avila: nome escolhido Para piorar esse cenário,
para tentar o Palácio do Planalto já ocorreu um encolhi-
mento na base da sigla:
ela chegou a ter 48 539 filiados em setembro de 2019, mas per-
deu um terço deles. “O maior problema que a legenda tem é
definir de uma vez por todas sua natureza ideológica”, diz
Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper.
Mas há outros dilemas. Ao mesmo tempo que vai à Justi-
ça questionar os 4,9 bilhões de reais do Fundo Eleitoral, o
partido tem perdido a capacidade de atrair recursos do uni-
verso privado. Segundo a prestação de contas de 2021 feita
ao TSE, de uma receita de 31,6 milhões de reais, 29 milhões
de reais foram bancados pela verba pública do Fundo Parti-
dário (o Novo não usa o dinheiro, mas o deposita em um
fundo). Pior: a contribuição de pessoas físicas foi próxima de
zero, um sinal de deterioração do pressuposto de que a le-
genda deveria depender do apoio voluntário do cidadão. Em
2018, dos 15,2 milhões reais, 13,4 milhões de reais chega-
ram pelas mãos da militância. Como se vê, o desafio do No-
vo hoje é não envelhecer rápido demais. ƒ

5|5
BRASIL POLÍCIA

“ELE É UM
CARA ESQUISITO”
O PM reformado acusado de matar Marielle
diz a VEJA que foi ajudado por Bolsonaro, de quem
era vizinho, mas que mal o conhece. E, claro, alega
inocência MARINA LANG E SOFIA CERQUEIRA

O INTERNO NÚMERO 33 Lessa: prótese com a ajuda


do presidente, então deputado federal pelo Rio

MARCELO THEOBALD/AG. O GLOBO

1|5
PRESO sob a acusação de haver executado a vereadora
Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes em 2018,
no Rio de Janeiro, o policial militar reformado Ronnie Les-
sa, como era de esperar, nega sua participação no crime, diz
ser vítima de armação e aponta o dedo para um morto, o
chefão miliciano Adriano da Nóbrega. Em entrevista exclu-
siva a VEJA por meio de videoconferência, autorizada pelo
Supremo Tribunal Federal, Lessa também confirmou que
recebeu ajuda do presidente Jair Bolsonaro no fim de 2009
— embora afirme que mal o conhece. Depois de perder par-
te da perna esquerda na explosão de uma bomba em seu
carro, ele conta que o presidente, então deputado federal,
intercedeu para que seu atendimento fosse priorizado na
Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR),
no Rio de Janeiro. “Bolsonaro era patrono da ABBR. Quan-
do soube o que aconteceu, interferiu. Ele gosta de ajudar a
polícia porque é quem o botou no poder. Podia ser qualquer
outro policial”, disse.
O PM reformado nem teria feito muito uso do favor: dei-
xou o tratamento após duas semanas, porque a prótese “era
bem simplesinha” e o seguro que recebeu lhe permitiu com-
prar uma melhor. A proximidade do clã presidencial com a
ABBR é pública e notória: entre 2004 e 2018, Bolsonaro
destinou ao menos 4,6 milhões de reais em emendas parla-
mentares para a instituição, sem contar a generosidade dos
filhos. Lessa, o interno número 33 da Penitenciária Federal
de Segurança Máxima de Campo Grande, em Mato Grosso

2|5
MÍDIA NINJA
QUEM MATOU? Marielle: quatro anos depois,
o crime ainda não foi esclarecido

do Sul, desde dezembro de 2020, ainda acrescenta: “No fi-


nal dessa história eu saio como mal-agradecido. Nunca fui
apertar a mão dele”.
Com aparência envelhecida e pesando 65 quilos, 30 a me-
nos do que quando foi preso, em março de 2019, Lessa,
51 anos, gesticula nervosamente, com três algemas entrela-
çadas nos pulsos, ao falar do duplo homicídio. Durante a uma
hora fixada pelo Departamento Penitenciário Nacional para
a entrevista, o sargento reformado insistiu que nunca foi pró-
ximo do presidente, apesar de ter sido vizinho dele e do filho

3|5
Carlos em um condomínio na Barra da Tijuca. “É um cara
esquisito. Se vi cinco vezes na vida, foi muito. Um dia cumpri-
menta, outro não, e mesmo assim só com a mãozinha. E nun-
ca vi os filhos dele”, garante.
Na entrevista, Lessa atribui a intermediação do crime ao
ex-capitão Adriano, chefe do bando de milicianos e assas-
sinos de aluguel conhecido como Escritório do Crime, que
foi morto pela polícia na Bahia em 2020. “Ele estava num
patamar em que não entrava mais num carro para dar tiro
em ninguém, mas tenho quase certeza de que o grupo dele
fez”, acusa. Na sua versão, acabou implicado por obra do
próprio Adriano, que quis se vingar por Lessa não tê-lo
aceito como sócio em uma academia de ginástica da qual
era dono em Rio das Pedras, área de atuação do miliciano.
Só que o tal “grupo dele” aparece, no processo de federali-
zação do caso, como sendo o do próprio Lessa: o primeiro
suspeito de ter executado Marielle e Anderson, o também
miliciano Orlando da Curicica, sugeriu em sua delação ao
Ministério Público Federal “que o pessoal do ex-PM Ronnie
Lessa” integrava o Escritório do Crime.
Após Curicica ser descartado como autor dos disparos,
todas as evidências recaíram sobre Lessa, que nega de pés
juntos. “Eu não matei aquela menina. Hoje consigo enxergar
que existia plano A, B e até um C”, disse. E segue explicando
à sua maneira as provas que constam da denúncia do MP flu-
minense. Por que, dois dias antes do crime, buscou o endere-
ço do ex-marido de Marielle que constava como o dela em

4|5
um portal da polícia — e onde a vereadora esteve naquele dia,
horas antes? Na versão dele, porque recebera uma ligação
com oferta de permuta de um imóvel naquele exato local. Por
que também buscou na internet um silenciador para subme-
tralhadora HK MP5, a mesma que, segundo a polícia, foi usa-
da no crime? De acordo com Lessa, era uma inocente procu-
ra de peças — mais uma coincidência incrível — para uma
réplica da arma. Já os papéis encontrados em seu poder com
o nome do ex-vereador Cristiano Girão, um dos suspeitos de
ser o mandante do duplo homicídio, seriam parte de uma in-
vestigação que fazia na polícia e que, em sua defesa, diz que
não tinha nada a ver com o caso.
A promotoria está convicta da condenação de Lessa, ape-
sar dos tropeços do processo. Nestes quatro anos, as investi-
gações já correram o risco de passar para a esfera federal,
tiveram cinco delegados à frente, duas promotoras deixaram
o inquérito alegando “interferências externas” e há uma série
de interrogações ainda sem resposta, inclusive as duas mais
prementes: quem mandou matar Marielle e por quê. O pró-
prio Lessa, no entanto, se diz confiante em que vai se livrar
das acusações e faz planos para lá de simples: quando sair da
cadeia, vai viver da criação de peixes, “longe do Rio”. Faz
sentido. Contar histórias de pescador Lessa já sabe. ƒ

5|5
ECONOMIA CONTAS PÚBLICAS

O PREÇO DAS
BONDADES
O governo lança pacote de medidas para tentar
reanimar a letárgica atividade econômica e também
ajudar a levantar a combalida popularidade de
Jair Bolsonaro com vistas à reeleição
VICTOR IRAJÁ

O OTIMISTA Ministro Paulo Guedes: apesar


do cenário adverso, ele acredita que as
medidas darão importante estímulo à retomada

EDU ANDRADE/ASCOM/ME

1|6
U
ma das qualidades do ministro da Economia, Pau-
lo Guedes, é, sem dúvida, sua resiliência aliada à
convicção de que tudo dará certo no final. Por isso,
ele não abandona o governo, mesmo admitindo
que sua biografia foi rasgada, e acha que seu lega-
do entrará para a história. Para seus críticos, mui-
tos que o conhecem desde o mercado financeiro, tal com-
portamento é motivado por uma visão distorcida da realida-
de, de quem confunde seus desejos com a vida prática. Na
sexta-feira de Carnaval, 25, tal otimismo inveterado deu as
graças — mais uma vez. Com o país se preparando para

PACOTE DE BENESSES
As medidas planejadas do governo
para estimular a economia

REDUÇÃO DO IPI
Corte de 25% na alíquota de produtos
industrializados, como eletrodomésticos,
eletrônicos e carros, adotada no último dia 25

VALOR

19,6 bilhões de reais


em renúncia fiscal

2|6
uma folia de pouca animação, ainda sob os efeitos da pande-
mia de Covid-19 e do conflito na Europa, ele comemorou o
que considera um passo decisivo para reanimar a letárgica
atividade econômica brasileira.
Naquela tarde pré-carnavalesca, o ministro anunciou o
corte de 25% da alíquota do imposto sobre produtos indus-
trializados (IPI), em uma tentativa de estimular o consumo
e oferecer um alento à indústria, um dos setores mais afeta-
dos pelo desempenho ruim da economia. “Vamos cumprir a
promessa de que o excesso de arrecadação vai ser usado pa-
ra reduzir impostos”, escreveu Guedes em um grupo de
WhatsApp, na madrugada de sábado. “Vamos reindustriali-
zar o país, investindo pequena parte do superávit de janei-
ro.” Em suas mensagens, ele referia-se à arrecadação federal

SAQUE DO FGTS
Reedição da liberação esporádica do saldo
das contas de trabalhadores, com valores
entre 500 e 1 000 reais

VALOR

30 bilhões de reais
provenientes do fundo que financia
infraestrutura e construção civil

3|6
do primeiro mês do ano, que somou 235 bilhões de reais, al-
ta de 18,3% em relação ao mesmo mês de 2021, descontada
a inflação do período. Com a redução do IPI, o governo dei-
xará de recolher cerca de 19 bilhões de reais em 2022, conta
dividida entre a União, estados e municípios.
A redução do IPI não é uma medida isolada e vem acom-
panhada de outras ações desenhadas no Ministério da Eco-
nomia, claramente focadas no cenário eleitoral. Ainda em
março, deve ser editada uma medida provisória que autoriza
o saque de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Ser-
viço (FGTS). De acordo com Guedes, cerca de 40 milhões
de trabalhadores poderão resgatar valores entre 500 e 1 000
reais das contas, o que levará a um total de 30 bilhões de
reais a serem abatidos no fundo utilizado em programas de

CRÉDITO PARA EMPRESAS


Reedição do Pronampe, programa de
estímulo de empréstimo de bancos a
pequenas e médias empresas com
garantias do governo

VALOR

100 bilhões de reais


Fonte: Ministério da Economia

4|6
ROGERIO DE SANTIS/FUTURA PRESS

CRÍTICA Fila de saques do FGTS:


a decisão incomodou o setor de construção civil

infraestrutura e moradia. Em outra frente, o ministério pre-


para um programa de crédito com base no Pronampe, me-
dida que ofereceu linhas de financiamento com garantias do
governo durante a pandemia. Na nova versão, devem ser li-
berados 100 bilhões de reais a pequenas e médias empresas.
Positivos em uma primeira análise, os anúncios atraí-
ram muitas críticas. A redução do IPI, por exemplo, provo-
cou uma enxurrada de protestos entre parlamentares liga-
dos à Região Norte e à Zona Franca de Manaus, que perde
sua vantagem tributária. O setor de construção civil criti-

5|6
cou o saque do FGTS pelo risco de comprometer progra-
mas como o Casa Verde e Amarela (antigo Minha Casa
Minha Vida). Já o programa de apoio às empresas, em fase
de elaboração por Guilherme Afif, assessor de Guedes, é
considerado um risco por ter seu financiamento atrelado à
taxa Selic, com viés de alta em decorrência da nova políti-
ca de juros do Banco Central.
O problema dessas medidas, porém, não são os interesses
afetados pela perda dos seus benefícios. A questão que preo-
cupa é quanto isso vai custar aos cofres públicos (veja o qua-
dro), o contexto e as razões que as movem. “Existem muitas
propostas que, em ano eleitoral, podem ser contraproducen-
tes e não são viáveis. Podem ter até o efeito contrário ao de-
sejado”, alerta Marcílio Marques Moreira, ex-ministro da
Fazenda. Segundo ele, o conjunto de ações, além do pouco
efeito positivo, ignora as reais necessidades da economia do
país, que está em compasso de lentidão. Rubens Ricupero,
ex-ministro da Fazenda, concorda e avalia as iniciativas co-
mo “erráticas”, ainda mais num momento de instabilidade
provocado pela invasão da Ucrânia pela Rússia. “Guedes jo-
ga qualquer coisa para que Bolsonaro não seja derrotado na
eleição”, acrescenta. “Isso não vai mudar o quadro e ainda
piora a situação para quem vem depois”, analisa. Recurso
recorrente no histórico econômico brasileiro, os pacotes de
bondades, de fato, quase sempre têm um preço alto demais.
Vale conferir se, com esse, o otimismo de Guedes era justifi-
cado ou se foi apenas mais um devaneio de Carnaval. ƒ

6|6
GENTE
CLEO GUIMARÃES

NUDEZ COM
MODERAÇÃO
JOÃO MIGUEL JÚNIOR/GLOBO
Pela fama que ganhou na versão original
exibida em 1990 pela finada TV Manche-
te, é automático associar a novela Panta-
nal a mulheres nuas em meio à natureza
exuberante. Intérprete da mãe de Juma
Marruá na versão que a Globo exibe a
partir de 28 de março, JULIANA PAES
diz que, alto lá, não é bem assim. “A nove-
la não vai ter grandes apelos sexuais”,
garante. “Tem uns momentos no rio, mas
nada exagerado.” Nas chamadas que a
emissora vem exibindo, de fato, Juliana
tem exibido uma nudez, digamos, com-
portada — mais atiçando a curiosidade do
espectador do que mostrando alguma
coisa. “O código estético adotado pela di-
reção foi o de não gravar nada explícito”,
afirma a nova Maria Marruá, papel que
coube a Cassia Kis no folhetim que há
mais de trinta anos abalou o Ibope da
Globo. A conferir.
TWITTER @SEANPENN

NA PRÓPRIA PELE
“Eu e dois colegas caminhamos quilômetros até a fronteira da Polô-
nia, depois de abandonar nosso carro na beira da estrada.” Com a
foto ao lado, puxando uma mala fechada com fita adesiva, e esta le-
genda, o ator SEAN PENN, 61 anos, informou haver se unido aos
refugiados que fogem dos ataques russos à Ucrânia — pelo menos
1 milhão até agora. Antes de deixar o país, Penn esteve em uma en-
trevista coletiva do presidente Volodymyr Zelensky, que agradeceu
“a manifestação de coragem” do ator. “Sean Penn mostra uma bra-
vura que falta a muitos outros, em especial a alguns políticos ociden-
tais”, disse. Penn está filmando um documentário sobre o cerco e a
invasão — segundo ele, “um erro brutal, com vidas perdidas e cora-
ções partidos” — e já havia estado em Kiev em outras ocasiões.

3|5
MUDANÇA DE PADRÕES
Decididos a modernizar
as regras do concurso, os
organizadores do Miss
Alemanha acrescentaram
à beleza os requisitos “ca-
ráter” e “missão” e abri-
ram a porta à diversidade.
Foi nesse cenário que a
brasileira DOMITILA
BARROS, 37 anos, ati-
vista social com mestrado
em ciência política, rece-
beu a faixa de vencedora
e se tornou a primeira ne-
gra e imigrante a ganhar o
título, deixando para trás
TRISTAR MEDIA/GETTY IMAGES

159 concorrentes. “Omun-


do mudou, minha gente”,
diz Domitila, nascida em
uma favela do Recife chamada Linha do Tiro. Radicada em Berlim
desde 2006, ela está a duas horas de Kiev, a capital ucraniana sob
bombardeio russo, mas prefere não dar palpite. “Em vez de ser a
bonitona que fala sobre tudo, prefiro abrir espaço a pessoas mais
capazes do que eu”, pondera.

4|5
VOLTA POR CIMA
Linda, a modelo checa EVA
HERZIGOVA, 48 anos, apro-
veitou a Semana de Moda de Mi-
lão para, em dois desfiles (fe-
chou o da Missoni com um ves-
tido multicolorido de lurex), fa-
zer um retorno triunfal às pas-
sarelas. Eva pegou Covid em
dezembro de 2020 e custou a
se recuperar. Em janeiro, postou
no Instagram que ainda passava
por longos momentos de “tre-
medeira incontrolável, confusão
mental e cansaço”. No mês se-
guinte, internou-se em um spa
na Suíça, porque “parece que
meu corpo não consegue se li-
vrar sozinho dos sintomas de
longo prazo”. A top model dos
anos 1990, hoje radicada na Itá-
lia e mãe de três filhos, diz estar
INSTAGRAM @EVAHERZIGOVA

recuperada agora e foi recebida


com aplausos. “Finalmente es-
tou de volta”, celebrou. ƒ

5|5
GERAL SAÚDE

FÔLEGO DE
CAMPEÕES
Depois de identificar o vírus da Covid-19 e criar
vacinas e remédios para combatê-lo, a ciência
agora aponta os melhores exercícios físicos para
ajudar na recuperação respiratória, muscular e
mental de quem ficou com sequelas
PAULA FELIX

DE VOLTA Andreia e Celio: o programa


devolveu o equilíbrio ao arquiteto

EGBERTO NOGUEIRA/ÍMÃFOTOGALERIA

1 | 10
A
Covid-19 é uma doença surpreendente. Para cerca
de 173 milhões de sobreviventes, 40% dos casos
registrados no mundo, ela parece não acabar. A
etapa aguda é superada, comemora-se mais uma
vida salva, mas uma lista enorme de sequelas per-
manece como uma trava a impedir que os pacien-
tes retornem à vida como era antes do coronavírus. Ao con-
junto de sintomas novos ou antigos que perduram por mais
de quatro semanas depois da alta dá-se o nome de Covid
longa. O mais comum é a fadiga, seguida da falta de fôlego,
insônia, dores nas articulações e problemas de memória. A
ansiedade e a depressão alimentam o girar da roda, pren-
dendo os pacientes em um pesadelo sem fim.
Para o imenso contingente de pessoas que se encontram
nessa situação há um consenso: um dos remédios mais efi-
cazes é a prática de exercícios físicos. Eles melhoram o con-
dicionamento respiratório e muscular, atenuam dores crôni-
cas, ajudam a dormir melhor e têm efeito decisivo na redu-
ção da ansiedade e da depressão. Por isso, a atividade física
se tornou vital no processo de reabilitação. Ela auxilia os in-
divíduos a readquirirem capacidades de uso corriqueiro, co-
mo o equilíbrio ao andar ou energia para erguer um simples
copo de água.
A necessidade é tão urgente que programas de treino es-
tão sendo criados para ajudar esse grupo. Uma das iniciati-
vas é a da Associação Cristã de Moços, face brasileira da or-
ganização inglesa Young Men’s Christian Association. A en-

2 | 10
POR QUE É PRECISO
VOLTAR A SE EXERCITAR
A atividade física ajuda na superação de
dificuldades físicas e mentais pós-Covid

Previne obesidade e agravamento


de outras doenças crônicas, fatores de
risco para a enfermidade

Reduz a ansiedade e a depressão

Recupera o tônus muscular

Auxilia na força e no equilíbrio

Promove o recondicionamento respiratório

Aumenta a concentração

Melhora o sono

A IMPORTÂNCIA DO CHECK-UP
Mesmo depois de casos leves, é fundamental
buscar um médico e fazer um check-up,
inclusive cardiológico, para verificar a gravidade
das sequelas e atividades contraindicadas antes
de praticar qualquer atividade física

3 | 10
tidade lançou o YCare,
programa multidiscipli-
nar de recondicionamen-
to respiratório, cardio-
vascular, muscular e
cognitivo de indivíduos
que têm sequelas. “Há
pessoas que não conse-
guem levantar o braço
para pentear o cabelo”,
diz a educadora física
Andreia Praça, uma das
idealizadoras do projeto.

DIVULGAÇÃO
O plano consiste na reali-
zação de rodas de con- VIRTUAL Avatar e robô em
versa, ginástica respira- São Paulo: a tecnologia
tória e atividades para potencializa os movimentos
desenvolver concentra-
ção, força e resistência. O treino pode ser presencial ou on-
-line e tem duração de trinta minutos. Atualmente, é ofereci-
do em dez unidades na capital paulista e nas instalações da
entidade no Sul do país.
O arquiteto Celio Calestine, de 78 anos, de São Paulo,
participa das sessões. Ele teve Covid-19 em julho do ano
passado. Foram quatro dias de internação e, com o cansaço
que passou a sentir após a recuperação, havia até pensado
em suspender a inscrição na academia, mesmo sendo adep-

4 | 10
to de exercícios físicos. O surgimento do YCare o levou de
volta. Dois meses depois, tinha recuperado o tônus e a capa-
cidade musculares perdidos para a Covid-19. “Os treinos me
ajudaram a retomar minha vida mais rapidamente”, resume.
Na internet, há guias ensinando exercícios de respiração
e atividades para condicionamento físico que podem ser rea-
lizados com segurança. Um exemplo é a cartilha do Institu-
to de Medicina da USP (procure por Rede Lucy Montoro/
Apoio ao Autocuidado em Reabilitação após a Covid-19).
Também está à disposição, em inglês, o documento prepa-
rado pelo Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra com in-
formações sobre treinos que podem ser executados em casa
com o auxílio de cadeiras ou mesmo no sofá (busque por
London North West University Healthcare/Post Covid-19
physiotherapy advice). Na Rede de Reabilitação Lucy Mon-
toro, em São Paulo, a robótica e a realidade virtual foram in-
tegradas à recuperação. Os pacientes fazem treino de mar-
cha e de membros superiores usando um sistema que impe-
de quedas e estimula o campo cognitivo por meio do uso de
realidade virtual. “A exigência cerebral e física feita com os
equipamentos tem um resultado fantástico”, explica a fisia-
tra Linamara Battistella, idealizadora da instituição.
A escolha, intensidade e frequência dos exercícios estão
sendo estabelecidas com base nas informações que come-
çam a surgir de pesquisas científicas iniciadas tão logo ficou
claro que a Covid longa seria outro desafio na pandemia. Os
estudos consideram os impactos da doença em diversos sis-

5 | 10
PILARES DA
RECUPERAÇÃO
Alguns exercícios têm se
destacado nos treinos indicados

IOGA
O QUE FAZ

Melhora a Atenua a
respiração, a ansiedade e
flexibilidade e a a depressão
força muscular

COMO PRATICAR
As posições podem ser feitas em
casa, com supervisão especializada
Intensidade leve por ao menos duas
semanas, com aumento gradativo
Sessões diárias

6 | 10
CAMINHADA
O QUE FAZ

Ajuda na Fortalece a Diminui a


recuperação musculatura ansiedade e
dos pulmões das pernas a depressão
e coração

COMO PRATICAR
Diariamente
Inicialmente, o ritmo deve ser
estabelecido pela pessoa
Com o avanço, é possível fazer
caminhadas mais rápidas. Porém o
praticante não deve sentir dificuldades
Um termômetro de bom
condicionamento é conseguir manter
uma conversa e não sentir falta de ar

7 | 10
EXERCÍCIOS
FUNCIONAIS
O QUE FAZEM

Tonificam Desenvolvem
os músculos foco e atenção

COMO PRATICAR
Os exercícios são feitos para garantir
a execução dos movimentos do dia a
dia, como agachar-se, sentar-se e
levantar-se
Podem ser feitos dentro de casa sem
necessidade de equipamentos
No início, o treino deve
ser bem leve e em dias alternados
Fontes: Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido
(NHS) e The British Medical Journal

8 | 10
DIGITALVISION/GETTY IMAGES

FLEXÍVEL Prática de ioga: indicada para


alongar os músculos e reduzir a ansiedade

temas do organismo, detalhando de que forma o coronaví-


rus age nos músculos, no coração, nos pulmões e no cérebro,
por exemplo. Também tomam como referência medidas efi-
cazes de reabilitação adotadas em pacientes que sofreram
problemas cardíacos, pulmonares ou neurológicos graves,
muitas delas bastante úteis no caso da Covid-19. Em geral, o
que se viu até agora é que ioga, caminhada e exercícios feitos
usando o peso do próprio corpo são boas opções e se com-
plementam. A ioga alonga os músculos e acalma a mente.
As caminhadas melhoram o condicionamento cardiovascu-
lar. Os movimentos de resistência dão força muscular. O iní-
cio de qualquer atividade física, no entanto, só deve ser feito
depois de avaliação médica. Se a regra já era básica, no caso
da Covid-19 segui-la é indispensável.

9 | 10
Há um nó, daí o cuidado: os principais órgãos atingidos
pela Covid-19 são exatamente os mais exigidos na execução
de exercícios. Por isso, coração e pulmões devem apresentar
condições para funcionar considerando o esforço ao qual se-
rão submetidos. Não foi surpresa, portanto, quando pesqui-
sadores do Imperial College de Londres publicaram no pe-
riódico científico The British Medical Journal um artigo re-
comendando aos médicos que, ao prescrever a realização de
exercícios aos pacientes com sequelas de Covid, eles obede-
çam ao mantra de que cada caso é um caso.
Os cientistas sugerem estratificar os pacientes de acordo
com a gravidade do quadro da doença enfrentado e o histó-
rico de outras enfermidades. Orientam, ainda, que o inter-
valo mínimo antes de voltar a se exercitar deve ser de sete
dias após a alta e com baixo esforço nas primeiras duas se-
manas. São cuidados relevantes — e sobretudo individuali-
zados — a ser tomados para que a atividade física pós-Covid
seja realmente um remédio, e não mais um veneno. Não é o
caso, naturalmente, de acrescentar drama aos problemas de
saúde contraídos mesmo depois da cura do vírus respirató-
rio — mas convém permanente atenção. A medicina tam-
bém aprendeu com o inédito vírus. ƒ

10 | 10
GERAL BELEZA

O MITO DAS CURVAS


Pesquisa mostra que a grande maioria
das brasileiras não se encaixa no formato
que combina cintura fina e quadris avantajados,
o muito exaltado corpo “violão” DUDA GOMES

INSTAGRAM @IZA

1|5
NO IMAGINÁRIO popular, a brasileira típica tem quadris
avantajados e cintura fina, o célebre formato “violão”, canta-
do em prosa e verso. Na mais conhecida “confirmação” dessa
característica, a espetacular Martha Rocha (1932-2020), fa-
vorita no concurso de Miss Universo 1954, teria perdido a
coroa por causa de 2 polegadas no quadril acima do permiti-
do (uma balela inventada por um fotógrafo e só desmentida
por ela décadas mais tarde). Agora, uma pesquisa minuciosa,
elaborada com o propósito de definir um padrão de tama-
nhos para as confecções, põe abaixo esse mito. Segundo le-
vantamento da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT), 76% das brasileiras têm o corpo no formato retan-
gular, com mínima diferença entre tórax e quadril, e cintura
pouco pronunciada. Na forma de “colher”, que mais se apro-
xima na pesquisa ao “violão”, estão apenas 5% das brasilei-
ras. “O corpo ‘violão’, explorado no cinema, na música e na
propaganda, nunca foi o padrão
daqui. A realidade do Brasil é
REVISÃO HISTÓRICA mais complexa, por resultar da
Iza, espetacular
miscigenação de europeus, africa-
exemplo do biótipo
“colher”, ou “violão”, nos e indígenas”, explica Denise
de 5% das brasileiras: Bernuzzi de Sant’Anna, historia-
no passado, a imagem dora da PUC-SP.
sexista divulgada em
Para coletar seus dados, a AB-
campanhas turísticas do
governo era degradante. NT transportou Brasil afora um
Hoje, é sinônimo de body scanner, equipamento ca-
orgulho feminino paz de medir com precisão 116

2|5
partes do corpo humano,
pelo qual passaram 6 400
mulheres ao longo de cin-
co anos. As medições
apontaram cinco biótipos
principais, predominando,
de longe, o “retângulo” —
que independe de peso e
altura e culmina nas im-
pecáveis proporções do
corpo da modelo Gisele
Bündchen. A estrutura
corporal, ao contrário do
formato dos olhos e do ti-
po de cabelo, não é imutá-
BACKGRID/THE GROSBY GROUP
vel e depende do meio em
que se vive — segundo
pesquisas, 40% dela é ge-
nética e 60%, moldada PERFIL EM
por fatores ambientais.
“Os hábitos locais influen-
LINHAS RETAS
Gisele, mais que perfeita
ciam a maneira de lidar no tipo físico “retângulo”,
com o corpo e a forma que de 76% das mulheres daqui:
ele vai assumir”, afirma o ao contrário do que se
pensava, o corpo da maioria
geneticista Salmo Raskin. tem mínima diferença entre
Os concursos de miss, tórax e quadril, e cintura
a partir dos anos 1950, fo- pouco pronunciada

3|5
ram os impulsionadores do mito da mulher-violão, ao privi-
legiar a cintura fina e os quadris e coxas largos, que eram o
padrão de beleza na época. Mas o rótulo viria a colar defini-
tivamente nas brasileiras nas campanhas turísticas promo-
vidas pelo governo no exterior, sobretudo entre 1960 e 1980.
Nelas, a imagem do “paraíso tropical” sempre trazia na li-
nha de frente mulheres com pouca roupa e quadris e reta-
guarda exuberantes, mensagem sexista e degradante que
acabou sendo apagada na propaganda e em outras frentes.
Hoje em dia, “violões” como Kim Kardashian, Beyoncé e a
brasileira Iza exibem suas formas como prova de força femi-
nina, com orgulho e proposital descaramento.
No que se refere a seu objetivo inicial, a ABNT espera
que, de posse dos resultados da pesquisa, as confecções pos-
sam padronizar os tamanhos das peças femininas, de ma-
neira que um P ou G tenham aproximadamente as mesmas
medidas em todas as marcas. “A intenção é conseguir unifi-
car os padrões”, diz Maria Adelina Pereira, superintendente
do Comitê Brasileiro de Têxteis e do Vestuário da ABNT,
ampliando para os trajes delas uma uniformização que já
existe para roupas masculinas e infantis. Como não há regu-
lação atualmente, cada marca usa o molde que bem enten-
de. A orientação da ABNT é que, junto com os tradicionais
P, M e G e outras indicações de tamanho, a etiqueta inclua a
medida em centímetros de busto, cintura e quadril aos quais
a roupa se destina. Além de facilitar a vida das consumido-
ras, a uniformização dará maior eficiência às vendas por co-

4|5
mércio eletrônico, em que, na falta de provador, 10% das
compras são devolvidas. Grandes redes varejistas, como
Renner e Amaro, já anunciaram que vão aderir à nova pa-
dronização, que não é obrigatória. “Ela vai contribuir para
dar mais segurança à cliente”, diz Fernanda Feijó, diretora
de estilo da Renner. Boa notícia para a brasileira, seja ela
“retângulo”, “colher” ou qualquer outra configuração. ƒ

5|5
GERAL CIÊNCIA

O PERIGO
VEM DE BAIXO
Novo estudo aponta que o centro da Terra está
esfriando mais rápido do que se imaginava, o que
pode levar ao aumento da incidência de erupções
vulcânicas e tsunamis LUIZ FELIPE CASTRO

EXPLOSÃO Vulcão Etna: a mudança da


temperatura do planeta acelera fenômenos como este

SALVATORE ALLEGRA/AP/IMAGEPLUS

1|5
CIENTISTAS vêm alertando há anos para uma série de
ameaças ao futuro da humanidade, como o acúmulo dos ga-
ses do efeito estufa na atmosfera — o terrível causador do
aquecimento global —, tormentas, tempestades tropicais e
outros fenômenos climáticos. O inimigo, portanto, costuma
vir “de cima”, mas agora soa também um alerta interno, di-
reto do centro da Terra. O núcleo do planeta está esfriando
mais rápido do que se imaginava. No curto prazo, a mudan-
ça poderá aumentar a incidência de fenômenos como erup-
ções vulcânicas e maremotos. No longuíssimo, os efeitos se-
rão ainda mais devastadores.
A parte de dentro do globo terrestre é formada por um
núcleo interno, um núcleo externo, o manto e a crosta, com
uma distância de aproximadamente 3 000 quilômetros en-
tre seus pontos extremos. As temperaturas do núcleo, que
hoje variam entre 4 400 graus e 6 000 graus, similares às do
Sol, foram arrefecendo gradativamente ao longo dos últimos
4,5 bilhões de anos, num processo que se confunde com a
evolução da própria vida. No início, a superfície era um mar
de magma. Com o passar de alguns milhões de anos, ela foi
tomando a forma que conhecemos e que permitiu o surgi-
mento da existência de vida na Terra.
Trata-se, portanto, de um fenômeno bastante lento, de
modo que nenhum de nós nem mesmo nossos descendentes
mais próximos corremos qualquer risco de ver o centro da
Terra esfriar a ponto de tornar o lar da humanidade um lo-
cal inerte, como Marte ou Mercúrio. Um estudo recém-lan-

2|5
MARTIN MEJIA/AP/IMAGEPLUS

EFEITOS SEVEROS No Peru: vazamento


de óleo provocado por maremoto

çado pelo Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique


(ETH) em parceria com a Carnegie Institution for Science,
dos Estados Unidos, no entanto, apontou uma surpreenden-
te aceleração no processo natural de resfriamento, o que au-
menta o risco de transtornos nem tão distantes assim.
É no centro da Terra que se forma o campo magnético
que protege o planeta de um tipo específico de radiação, os
chamados ventos solares. O calor das profundezas também
desencadeia a movimentação das placas tectônicas, dando
origem a erupções como a do vulcão ativo Etna, na região
da Sicília, na Itália. De acordo com os cientistas da ETH de
Zurique, mudanças na temperatura interna no núcleo pode-
riam interferir no funcionamento das placas. Como resultado

3|5
UM NOVO PLANETA VERMELHO?
Apesar do esforço dos líde-
res do estudo em garantir
que ainda é cedo para tirar
conclusões sobre os riscos
de o centro da Terra esfriar a MARTE
ponto de causar preocupa- Perigo à vista:

ISTOCK/GETTY IMAGES
ções para seus habitantes, planeta estéril
as comparações com o nos-
so vizinho de sistema solar mais fascinante e cercado de misté-
rios foram inevitáveis. Segundo os autores da pesquisa, o fenô-
meno pode fazer com que as movimentações das placas
tectônicas desacelerem a um ponto irreversível, interrompendo a
atividade no manto e a proteção do campo magnético da Terra.
Para simplificar: isso tornaria a Terra tão estéril quanto Marte.
“Nossos resultados podem nos dar uma nova perspectiva e su-
gerem que a Terra, como os outros planetas rochosos Mercúrio e
Marte, está esfriando e se tornando inativa muito mais rápido do
que o esperado”, disse o cientista japonês Motohiko Murakami. O
estudo, publicado no periódico Earth and Planetary Science Let-
ters, não apontou o que pode ser feito para interromper ou reme-
diar o processo de arrefecimento do núcleo, mas intrigou a co-
munidade científica internacional, que deve se aprofundar no
tema. A saga marciana da Terra está apenas começando.

4|5
desse processo, é possível que maremotos e erupções acon-
teçam com maior frequência e em lugares que jamais passa-
ram por essa experiência.
Os efeitos do esfriamento serão severos. Peixes e plantas
de mares profundos morreriam, pois os raios solares não
chegam até lá e eles dependem do calor do centro da Terra.
Isso desequilibraria a cadeia alimentar e levaria espécies da
superfície à extinção. Há outros efeitos curiosos. O giro das
rochas derretidas do núcleo da Terra, ricas em metais, pro-
duz eletricidade e gera o campo magnético da Terra. Com o
núcleo frio, essas rochas se solidificariam e o magnetismo
acabaria. Ou seja, todas as bússolas parariam de funcionar,
pois a Terra ficaria sem seu campo magnético. O planeta tal
qual o conhecemos é a soma de incontáveis fenômenos físi-
cos. É impossível controlar a maior parte deles, como o que
se passa no seu núcleo. Cabe à humanidade preservar o ou-
tro lado — o de cima. ƒ

5|5
PRIMEIRA PESSOA

ARQUIVO PESSOAL

1|4
APRENDI A APANHAR
Noivo de uma atleta trans, Lucca Michelazzo, 24 anos,
sofreu preconceito na Escola de Sargentos

CONHECI a Thaynna por intermédio de um amigo em co-


mum, quando estava me preparando para entrar nas For-
ças Armadas. Nossa paixão foi arrebatadora e logo come-
çamos a namorar. Eu havia me relacionado antes tanto
com mulheres cis — aquelas que se reconhecem em todos
os aspectos com o gênero de nascença — quanto com mu-
lheres trans, que nasceram com o órgão masculino, mas
não se identificam com ele. Para mim não há diferença, o
que importa é a pessoa. A Thaynna me completa em diver-
sos aspectos. O preconceito, no entanto, existe e não é sim-
ples conviver com ele. Durante um tempo, não contei so-
bre o namoro para a minha família. No quartel, tentava ser
discreto, mas nem sempre é possível guardar segredos.
Quando a pandemia começou, tomei conhecimento de
que alguns colegas de farda sabiam que eu namorava uma
mulher trans. Tinha acabado de ingressar na Escola de
Sargentos das Armas, um passo importante na concretiza-

2|4
ção do meu sonho de crescer na carreira militar. O aumen-
to de casos de Covid-19 nos obrigou a ficar internados no
alojamento e a fofoca se alastrou. Um amigo falou que o
pessoal estava comentando o assunto. Eu me afastei um
pouco da turma, mas, mesmo assim, ouvia frases do tipo:
“Você viu o Michelazzo namorando aquele traveco?”. A
expressão preconceituosa se tornou uma constante em mi-
nha vida. O jeito foi ignorar as ofensas e colocar meu foco
no treinamento. Deu resultado: mostrei serviço e ganhei
confiança. Ter valor na caserna fez com que eu mesmo me
valorizasse, ainda que vivendo um relacionamento amoro-
so pouco usual.
O primeiro ano do curso foi na minha cidade, Natal. A
coisa ficou feia mesmo no segundo ano, quando tive de me
mudar para Minas Gerais, onde fica a sede da ESA. Já en-
trei marcado. Alguns oficiais vieram pedir para eu tomar
cuidado na convivência com os colegas: “Chega quieto,
sem levantar bandeira”, me disseram. Toda tentativa de
defender ideologia dentro do quartel é proibida e eles que-
riam evitar que eu desse respostas diretas, do tipo “namo-
ro uma trans, sim, e você não tem nada a ver com isso”.
Acatei os conselhos, mas a postura não aliviou a pressão.
Qualquer errinho que eu cometia ganhava uma proporção
muito grande. Todo mundo me zoava, era um massacre.
Mas também tive apoio em alguns momentos. Um dia, co-
meçou a circular mais uma foto em que eu aparecia com a
Thaynna, com a legenda: “O aluno da ESA chegando com o

3|4
seu travequinho”. O capitão me chamou para me dar uma
força. Alguns sargentos se solidarizaram. Luta melhor
quem sabe apanhar e essa lição eu aprendi, a ponto de ser
apontado como o aluno com melhor preparo psicológico.
Com a família também foi difícil. Esperei dois anos pa-
ra contar para minha mãe. Ela não aceitou muito bem no
começo, ficou preocupada com a impossibilidade de a gen-
te ter filhos. Aos poucos, porém, o impacto inicial foi supe-
rado e hoje minha mãe ama a Thaynna. No dia da forma-
tura, fiz questão da presença de meus parentes e da minha
namorada. Nunca tive vergonha de aparecer com ela em
público, pelo contrário, sempre fomos juntos à padaria, à
academia. Estávamos comemorando na casa da minha avó
quando tomamos conhecimento de uma mensagem de áu-
dio que viralizou. Nela, um sargento mais antigo do que eu
questionava com indignação: “Como é possível um traveco
ir à formatura de um sargento? Botar o quepe na cabeça
dele? Isso é um absurdo. Alguém tem de avisar que esses
travecos não são bem-vindos!”. Prestei queixa na polícia
por transfobia, preconceito e racismo, e espero que os au-
tores sejam responsabilizados. Dessa vez, o ódio foi derro-
tado — recebemos apoio nas redes sociais de gente que
nunca vi na vida. Como soldado, estarei sempre pronto a
defender o Brasil. Como homem, não deixarei de defender
a mulher que amo. ƒ

Depoimento dado a Caio Sartori

4|4
GERAL MOBILIDADE

VOU DE TÁXI
O tradicional meio de transporte foi dado como
morto com a chegada dos aplicativos, mas
resistiu e agora mostra força para competir
pela preferência do público ANDRÉ SOLLITTO

FILA Aeroporto de Congonhas, em São Paulo: a procura


pelos velhos conhecidos cresceu durante a pandemia

RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS

1|5
QUANDO os aplicativos de transporte desembarcaram no
Brasil, há quase oito anos, o futuro do táxi como modelo de
mobilidade foi dado como incerto, para dizer o mínimo.
Poucos acreditavam que um sistema arcaico, em que era
preciso caçar carros disponíveis na rua, seria páreo para a
novidade, movida a aplicativos fáceis de usar, balinhas e
garrafas de água de cortesia e, o mais importante, um pre-
ço muito abaixo do que os passageiros estavam acostuma-
dos a pagar. Um estudo divulgado pelo Departamento de
Estudos Econômicos (DEE) do Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (Cade) em 2018 mostrava que as cor-
ridas de táxi caíram 56,8% entre 2014 e 2016 em virtude da
concorrência. A sobrevivência parecia pouco plausível.
Mas agora, alguns anos e uma pandemia mais tarde, a si-
tuação é bastante diferente e o que se vê é a procura crescente
pelos táxis. De acordo com um levantamento feito pelo apli-
cativo Vá de Táxi, a base de motoristas parceiros subiu 10%
em 2021 em comparação com 2020 — são atualmente cerca
de 140 000 taxistas. O volume de corridas cresceu 37% e a
plataforma viu o número de novos usuários subir 64%, para
superar a marca de 1 milhão de pessoas cadastradas. Outros
levantamentos semelhantes reforçam a tendência. O Sindica-
to dos Taxistas Autônomos do Município do Rio de Janeiro
(Stamrj) relata um aumento de 60% no movimento diário.
“Os números retratam como a pandemia foi positiva para a
categoria”, afirma Glória Miranda, CEO da Vá de Táxi. “Os
taxistas estão saindo da crise muito fortalecidos.”

2|5
FERNANDO MORENO/AGIF/AFP

NA TELA Uber: a qualidade do serviço


caiu e abriu espaço para concorrentes

O retorno ao serviço tradicional oferecido pelos taxistas


é motivado por diversos fatores. O aumento do preço dos
combustíveis é o principal. Em 2021, a gasolina subiu 46%,
segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombus-
tíveis (ANP), e o etanol, 59%. O preço dos veículos, sejam
novos ou usados, também disparou. É comum motoristas
de aplicativo alugarem o carro que usam como ferramenta
de trabalho. Com o aumento explosivo dos valores das diá-
rias, as corridas se tornaram menos lucrativas.
Na lógica que baliza o mercado, o aumento de custos
foi repassado para os passageiros. Segundo o Índice Na-
cional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), o

3|5
PÉ NO ACELERADOR
Os dados que confirmam a tendência*

64%
foi quanto cresceu o
número de novos usuários

37%
foi o aumento da demanda
por corridas

10%
foi quanto avançou a base
de motoristas
* Comparação entre 2020 e 2021
Fonte: Aplicativo Vá de Táxi

4|5
preço das corridas por app subiu 26% em 2021 diante de
2020. Além da disparada dos valores, o sumiço de carros
também incomodou usuários. Na crise, a maior parte dos
motoristas passou a selecionar apenas as viagens que
realmente valiam a pena, deixando passageiros a ver na-
vios. Nos últimos meses, cresceram os relatos de usuários
que esperaram mais de trinta minutos pelo carro, e não
foram poucos os que simplesmente não encontram um
único veículo disponível.
Preços mais altos praticados pelos aplicativos, longas es-
peras e o sumiço dos carros formaram o contexto ideal para
que os táxis se tornassem novamente competitivos. Ressal-
te-se que a desafiadora conjuntura afetou menos os taxistas.
Eles têm descontos na compra de veículos e usam gás natu-
ral como combustível, que ainda é a opção com melhor cus-
to-benefício do mercado. A tarifa para o consumidor final
também sofreu pouco reajuste, ao contrário do que aconte-
ceu com os serviços oferecidos pelos apps.
A disputa, porém, está longe de terminar. Empresas glo-
bais como a Uber têm poder de sobra para determinar os
caminhos que o mercado deverá seguir e certamente estão
prontas para contra-atacar. Na verdade, tudo indica que há
espaço para todo mundo, na medida em que ter o próprio
veículo não é mais o principal sonho de consumo das novas
gerações. “O usuário só quer chegar ao seu destino com ra-
pidez e segurança”, diz Glória Coelho. Tanto faz se for no
banco de trás de um táxi ou de um carro de aplicativo. ƒ

5|5
GERAL CRIME

SELVAGERIA
FUTEBOL CLUBE
Recentes episódios de violência atingem
torcedores e atletas, mas as autoridades
do esporte não agem com determinação
para coibi-los ALESSANDRO GIANNINI

NA MACA Mathias Villasanti ferido: pedras


jogadas no ônibus atingiram o volante do Grêmio

LUCAS UEBEL/EFE

1|5
HÁ UMA GUERRA em curso no Brasil. As batalhas acon-
tecem dentro e fora dos estádios de futebol e atingem tanto
torcedores quanto jogadores e comissões técnicas. Apenas
neste ano, pelo menos seis grandes episódios de violência
tomaram de assalto o noticiário esportivo. Em um deles, um
torcedor morreu baleado em frente ao Allianz Parque, em
São Paulo, após a derrota do Palmeiras para o Chelsea na fi-
nal do Mundial de Clubes, no Catar. Em outras duas oca-
siões, atletas foram hospitalizados com ferimentos graves. É
uma escalada impressionante e sem precedentes que man-
cha o futebol mais vitorioso
do planeta. Contudo, apesar
da grita generalizada contra
esse estado de coisas, as in-
vestigações se arrastam e
raramente os agressores são
identificados e punidos com
o rigor necessário.
Os sinais para que se faça
INSTAGRAM @CAMILA_ALVESFER

algo são evidentes — e de


perder o fôlego. Na última
semana de fevereiro, no es-
paço de três dias, quatro ATENTADO
ocorrências violentas des- Danilo Fernandes: o goleiro
pontaram vergonhosamen- do Bahia foi atingido por
te. O ônibus que transporta- bomba lançada por seus
va a delegação do Bahia foi próprios torcedores

2|5
RUI SANTOS/ONZEX PRESS E IMAGENS/FOLHAPRESS

INVASÃO Paraná Clube: os jogadores


do time foram perseguidos dentro do campo

atingido por bombas no caminho para a Arena Fonte Nova,


em Salvador, onde o time enfrentaria o Sampaio Corrêa em
partida da Copa do Nordeste. O goleiro Danilo Fernandes
sofreu ferimentos pelo corpo, um dos quais perigosamente
perto do olho, e foi internado. Câmeras de segurança mos-
traram a ação do grupo. Apesar do incidente, a partida foi
realizada, com placar de 2 a 0 para o time baiano. Naquela
mesma noite, a torcida do Náutico, eliminado da Copa do
Brasil pelo Tocantinense, recepcionou com pedras a van
que transportava a equipe. Ninguém se feriu.
Na Região Sul, não é diferente. Em Porto Alegre, o ôni-
bus do Grêmio foi alvo de pedradas na chegada ao Estádio
Beira-Rio para o clássico regional contra o Internacional,
válido pelo Gauchão. O volante paraguaio Mathias Villa-

3|5
PETER ROBINSON/EMPICS/GETTY IMAGES

HOOLIGANS Bélgica, 1985: 39 mortos


antes de Liverpool e Juventus

santi, ferido na cabeça, pouco abaixo do olho esquerdo, pre-


cisou ser levado ao hospital. A cúpula gremista pediu adia-
mento do jogo e foi atendida pela Federação Gaúcha de Fu-
tebol. Em Curitiba, torcedores do Paraná Clube invadiram o
gramado do Estádio Vila Capanema no fim da partida con-
tra o União pelo campeonato estadual. Estavam inconfor-
mados com a derrota por 3 a 1 que rebaixou o time para a
segunda divisão e passaram a perseguir os jogadores em
campo. A partida foi interrompida, e o Batalhão de Choque
local acionado.
Há o que fazer? Sim, e bastaria um olhar retrospectivo. Em
1985, o mundo se espantou com a Tragédia de Heysel, na Bél-
gica, quando 39 pessoas morreram no dia da final da Taça
dos Campeões da Europa entre Liverpool e Juventus. Pouco

4|5
antes da partida, os torcedores ingleses atacaram os italianos,
pressionando-os contra os painéis que os impediram de en-
trar no campo. Na época, a então primeira-ministra britânica
Margaret Thatcher declarou guerra “aos hooligans”, que ator-
mentavam o futebol inglês há mais de uma década. E foi a pe-
dido dela que a Associação de Futebol suspendeu os clubes
ingleses das competições europeias por um ano. A Uefa, mais
rigorosa, estendeu a suspensão por outros quatro anos e afas-
tou o Liverpool de torneios oficiais até 1991. Foi um tratamen-
to de choque que, ressalte-se, reduziu a selvageria nos grama-
dos britânicos. Não seria incoerente aplicá-lo ao Brasil.
No entanto, esse tipo de remédio amargo ainda não foi
utilizado pelas bandas de cá, extremamente leniente com as
barbaridades. Para além das investigações policiais, nada é
feito para punir comportamentos violentos que têm por trás
a marca indelével das torcidas organizadas. “Há semelhan-
ças entre os comportamentos dos famigerados hooligans e
dos torcedores organizados do Brasil”, diz Benjamin Rosen-
thal, professor da Fundação Getulio Vargas. “Agem em gru-
po coeso, movidos por um senso de lealdade e em nome de
uma imagem machista.” Têm, portanto, todas as caracterís-
ticas para dar problema. Há uma agravante hoje em dia:
muitas vezes, os ataques são combinados em conversas nas
redes sociais, que reproduzem o ódio e a intolerância que se
veem na sociedade. Resta esperar que as autoridades do fu-
tebol façam sua parte. Antes que seja tarde — e ao grito de
gol se sobreponha o do horror. ƒ

5|5
GERAL DIVERSÃO

DOCES
BÁRBAROS
Com série no streaming, filme nos cinemas
e games, os guerreiros vikings estão em alta,
mas descobertas arqueológicas mostram que não
eram tão violentos assim ALESSANDRO GIANNINI

LUTA DE SANGUE Cena da primeira temporada de Vikings:


Valhalla: a trama é baseada em personagens históricos

BERNARD WALSH/NETFLIX

1|7
CRISTALIZADA no imaginário popular, a visão do vi-
king como um guerreiro bruto e selvagem, navegador há-
bil e saqueador impiedoso foi construída ao longo de sécu-
los e reproduzida em livros, filmes, séries, quadrinhos e vi-
deogames. Há até fantasias de Carnaval compostas do fa-
moso capacete ornamentado com chifres, que por sinal
tem origem nos figurinos de uma montagem de 1876 da
ópera O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, inspira-
da na mitologia nórdica. Ou seja, quase todo mundo já ou-
viu falar deles, de uma maneira ou de outra. Mas, assim
como o folclórico chapéu com cornos, há muitos falsos
conceitos envolvendo o ancestral povo do Norte. As tolices
continuam a ser repetidas incessantemente.
Não por acaso, e talvez agora com uma interpretação
mais adequada, uma nova onda viking tomou de assalto a
indústria do entretenimento. Na Netflix, estreou recente-
mente Vikings: Valhalla, spin-off da consagrada série
Viking. A história é inspirada em um personagem fascinan-
te, o rei Ragnar Lothbrok, que teria vivido entre os séculos
VIII e IX, na Suécia e Dinamarca. Não há evidências de que
tenha existido, o que o transformou em uma figura ainda
mais saborosa, tanto para a série quanto para a coleção de
livros Crônicas Saxônicas, de Bernard Cornwell. Em abril,
os cinemas exibirão O Homem do Norte. O diretor Robert
Eggers também bebeu das andanças mitológicas de Loth-
brok. No filme, o príncipe viking Amleth busca a vingança
pelo assassinato de seu pai — a semelhança com o Hamlet,

2|7
NEW REGENCY PRODUCTIONS

VINGANÇA O Homem do Norte, de Robert Eggers:


lenda nórdica inspirou filme

de Shakespeare, não é coincidência. No mundo dos games,


a temática é responsável por sucessos estrondosos como
Assassin’s Creed: Valhalla, um dos jogos mais vendidos da
história, calcado no Grande Exército Pagão, formado por
guerreiros dinamarqueses e noruegueses que em 865 invadi-
ram o que é hoje o território da Inglaterra. Outro blockbuster
estrondoso é Valheim, com 4 milhões de cópias negociadas
no Steam, serviço de venda de jogos digitais. Lançado há ape-
nas um ano, Valheim já está entre os preferidos dos usuários.
Por que, afinal, os vikings exercem tanto fascínio? De
793 a 1066, a Era Viking transformou o mundo nórdico.

3|7
IRON GATE STUDIO

MITOLOGIA Valheim: o game vendeu


4 milhões de cópias e tem 500 000 usuários

Sem se organizar em um estado, os povos da Escandinávia


percorreram a Europa, partes da Ásia, da África e até da
América do Norte — cinco séculos antes de Cristóvão Co-
lombo desembarcar no Caribe. Pequenas nações indepen-
dentes que acabariam se tornando Noruega, Suécia e Dina-
marca, os povos do Norte compartilhavam culturas e estilos
de vida parecidos, embora as línguas tivessem diferenças.
Suas crenças tradicionais, no entanto, acabaram sendo, com
o tempo, subordinadas ao cristianismo.
O imaginário dos vikings foi delineado a partir dos rela-
tos dos agredidos. Foi só no século XII que os islandeses re-

4|7
NÃO É NADA DISSO
Cinco equívocos acabaram se
cristalizando com o passar do tempo

1. CA PAC E T E S
COM CHIFRES

Não existem evidências arqueológicas ou


escritas sobre o uso desse tipo de proteção,
que provavelmente tem origem nos figurinos
de uma montagem de O Anel do Nibelungo,
ópera de Wagner inspirada na
mitologia nórdica

2. UM E STA D O O U
IM P ÉR I O UN I F I CA D O

Nunca houve uma nação ou império


viking. Os assentamentos vikings e as rotas
comerciais levaram os escandinavos por
toda a Europa e em partes da Ásia, África e
até da América do Norte meio milênio antes
de Cristóvão Colombo chegar ao Caribe

5|7
3. B Á R BA RO S
E S E LVAGE N S
Muito lembrados por suas invasões, os vikings
estavam mais interessados em estabelecer
novas rotas comerciais por meio de suas
conquistas. Mas nem todos esses povos
estavam envolvidos em viagens de invasão

4 . F UN ER A I S
P I ROTÉ C N I C O S
Nem todas as práticas funerárias vikings
envolviam barcos em chamas. Isso
dependia muito do status, da posição
social e da idade da pessoa falecida

5. R E ST R I TO S
À E S CA N D I N Á V I A
Partindo do que é hoje a Noruega, a Suécia e
a Dinamarca, os vikings e seus descendentes
viajaram por todo o mundo conhecido, desde o
território onde está o Canadá até o que é o Irã

Fonte: The Franklin Institute

6|7
gistraram um generoso pacote de textos poéticos e em pro-
sa, as Eddas, que descrevem o panteão dos deuses nórdicos
e germânicos. Daí tomaram forma Odin, Thor e Loki, que
remetem aos personagens da Marvel, variações muito higie-
nizadas de seus originais.
Em quase todas essas recriações, prevalece o perfil do
viking bombado, cabeludo, branco e de olhos azuis. O este-
reótipo, que na primeira metade do século XX foi apropria-
do pelos nazistas para justificar o arianismo, foi derrubado
por estudos arqueológicos. Eles mostraram que os nórdicos
eram um povo diverso, cujas explorações e conquistas con-
tribuíram para misturar sua assinatura genética. A ideia de
que eram bárbaros pagãos e violentos, com seus dracares
que se transformavam em esquifes em chamas para seus
mortos, também está longe de ser uma verdade absoluta.
Para além dos clichês, há alguma verdade nesses relatos,
escreve o professor Neil Price no livro Vikings: a História
Definitiva dos Povos do Norte (Criativa): “Mas os escandi-
navos também exportaram novas ideias, tecnologias, cren-
ças e práticas para as terras que descobriram e os povos
que encontraram”. A história sempre ensina. Por isso, é fun-
damental voltar a ela, sem parar. ƒ

7|7
GERAL AMBIENTE

LIXO INVENCÍVEL
Relatório mostra que a quantidade de plástico
nos oceanos vai quadruplicar até 2050
e é necessário agir agora para evitar uma
catástrofe irreversível ANDRÉ SOLLITTO

POLUIÇÃO Tartarugas marinhas: ingestão


de lixo industrial põe em sério risco a população da espécie

EYEEM/GETTY IMAGES

1|5
EM MEADOS DE 2015, o mundo se comoveu com um ví-
deo gravado na Costa Rica que mostrava o sofrimento de
uma tartaruga marinha enquanto um biólogo usava alicates
de metal para extrair de seu nariz um canudinho de plásti-
co. As imagens viralizaram graças à firme disposição dos
ativistas ambientais, que alertaram sobre o risco do uso ex-
cessivo do produto e do descarte inadequado nos oceanos.
A justa indignação estimulou o surgimento de um movi-
mento global de proteção da vida nos oceanos. Algumas das
maiores redes de alimentos e bebidas do planeta, como
McDonald’s, Burger King e Starbucks, deram os primeiros
passos e abandonaram as versões plásticas, que passaram a
ser substituídas por alternativas feitas de papel. Nos anos se-
guintes, conglomerados empresariais se comprometeram a
reduzir o uso do material nas atividades industriais e gover-
nos criaram leis que restringiram a sua adoção. Era de su-
por, portanto, que os mares estivessem irremediavelmente
no caminho da salvação. A realidade, porém, mostrou um
cenário bem diferente.
Apesar das boas intenções, as medidas tiveram pouco
efeito prático. Um novo relatório da organização WWF,
centrada na conservação e recuperação ambiental, mostra
que a situação é dramática — e pode piorar. A partir da
análise de 2 590 estudos, o documento adverte que até o
fim do século uma área marítima duas vezes e meia o ta-
manho da Groenlândia terá excedido os limites ecologica-
mente perigosos de concentração de microplásticos. O cál-

2|5
culo é baseado na proje-
ção de que a produção de
plástico dobrará até 2040
e, com isso, o volume de
resíduos jogados no mar
terá quadruplicado até
2050. Os efeitos já são sen-
tidos: 2 144 espécies en-
contraram resíduos plásti-
cos em seu hábitat e 88%
dos animais marinhos são
impactados negativamen-

DIVULGAÇÃO
te pelo lixo jogado no
oceano. A conclusão: o POUCO EFEITO Canudo
plástico continua onipre- de papel em refrigerante do
sente e, se não for contido, McDonald’s: medida louvável,
provocará estragos ainda mas ainda insuficiente
maiores no planeta.
“Eliminar a contaminação plástica do oceanos é muito
complicado”, diz Heike Vesper, diretora do Programa Ma-
rinho da WWF Alemanha. “O plástico se degrada cons-
tantemente e, portanto, permanece nos mares por anos a
fio.” A situação é dramática, mas nem tudo está perdido.
Não há muito que fazer a respeito da degradação iniciada
no passado, mas é possível criar mecanismos no presente
que protejam o meio ambiente no futuro. Segundo especia-
listas, uma medida decisiva seria reduzir a zero a produção

3|5
TRAGÉDIA ANUNCIADA
Os efeitos do descarte
inapropriado são graves

2 144 90%
espécies marinhas dos pássaros
já encontraram marinhos e 52%
plástico em das tartarugas já
seu hábitat ingeriram plástico

1 511 Em 30 anos,
regiões do mundo o volume de
são impactadas pela detritos
poluição causada nos oceanos vai
pelo material quadruplicar

4|5
de plástico virgem a partir de combustíveis fósseis. O Bra-
sil, contudo, parece ir na direção contrária. Um levanta-
mento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
aponta que, em 2020, o país concedeu 124 bilhões de reais,
ou 2% do PIB, em subsídios aos combustíveis fósseis, 25%
a mais do que em 2019.
Ninguém duvida da relevância do plástico na sociedade
moderna — e seu uso hospitalar, durante a pandemia, tem
se mostrado vital —, mas ele só poderá continuar a ser usa-
do em larga escala se os efeitos deletérios não ameaçarem o
ambiente. Um caminho possível é investir na produção de
alternativas, como o bioplástico feito a partir de fontes reno-
váveis de biomassa, mercado em que o Brasil tem enorme
potencial. Iniciativas como a coleta, reciclagem e reintrodu-
ção de embalagens na cadeia produtiva também são louvá-
veis. Tudo isso depende da boa vontade de governos, em-
presas e dos próprios cidadãos.
A pressão pela mudança existe. Dois milhões de pessoas
assinaram uma petição da WWF defendendo a adoção de um
tratado global sobre o tema, e o documento recebeu apoio de
100 empresas multinacionais e 700 organizações da socieda-
de civil. A Assembleia da ONU para o Meio Ambiente se reu-
niu nesta semana em Nairóbi, no Quênia, para debater um
acordo sobre a poluição plástica que pode definir os rumos da
política ambiental. O futuro da vida nos oceanos depende de
um compromisso imediato. As tartarugas agradecem — e
nós, bípedes supostamente inteligentes, também. ƒ

5|5
GERAL GASTRONOMIA

PEGADA VEGGIE
Embora o carpaccio preferido continue sendo
o de carne vermelha, restaurantes apostam em
versões do tradicional prato veneziano feitas
com legumes e frutas SIMONE BLANES

PALADAR DEMOCRÁTICO
Abobrinha bem fininha: uma escolha que caiu no gosto

DIVULGAÇÃO

1|3
PRATO CLÁSSICO da gastronomia italiana feito com fi-
níssimas fatias de carne vermelha, o carpaccio está ganhan-
do sabores mais tropicais e vegetarianos no verão brasileiro.
A iguaria pode ser encontrada nas mesas mais requintadas
do país em versões que, no lugar da tradicional matéria-pri-
ma, estão delícias como camarão, polvo, queijo, beterraba,
berinjela e melancia. Há uma única transgressão desautori-
zada: o ingrediente principal deve ser servido cru e em las-
cas afiladas. Saindo disso, tudo é possível.
No Sky Hall Garden, em São Paulo, faz sucesso o carpac-
cio de abobrinha. “Ele agrada a vegetarianos, veganos e até
quem come carne”, diz o chef Martin Casilli, que acrescentou
à composição molho de granita de limão e menta. Em casas
de comida japonesa, figuram experimentações com toques
orientais. O chef Tsuyoshi Murakami, dono de um restauran-
te na capital paulista que leva o seu nome, oferece aos clien-
tes carpaccios de vieiras, lagostim, cavaquinha e opções com
picles e broto de bambu. “Como os sashimis, os carpaccios
ficam ótimos com molhos especiais”, diz Murakami. Os pra-
tos com frutas, como melancia e abacaxi, são sobremesas.
Para os puristas, a atual onda inovadora não combina
com a iguaria de carne vermelha que nasceu em 1950, em
Veneza, no lendário Harry’s Bar. Revendo sua origem, contu-
do, não há tanta invencionice assim. O carpaccio foi criado
depois que a condessa Amália Mocenigo pediu ao amigo
Giuseppe Cipriani (1900-1980), dono do lugar, que lhe pre-
parasse algo com carne crua, já que por recomendação médi-

2|3
HELIO NOGUEIRA/DIVULGAÇÃO

SABOR HETERODOXO Fatias de melancia: refrescância


para a sobremesa, em prato adequado ao verão

ca ela teria de aderir a uma dieta rica em ferro por causa de


uma anemia. Cipriani fez a famosa entrada e a chamou de
carpaccio em homenagem ao pintor renascentista Vittore
Carpaccio (1465- 1526), reconhecido pelos vermelhos de
suas telas. A ideia de combinar fatias delgadas a um bom mo-
lho por cima é tão boa que, hoje, as versões podem ser enca-
radas como uma homenagem ao clássico veneziano. Até por-
que o tradicional, com azeite, mostarda, limão, alcaparra, sal,
pimenta e parmesão, permanece o preferido. “Os pedidos au-
mentam cerca de 20% no verão”, diz o chef Pedro Mattos, do
Papagallo Cucina, restaurante paulistano que também deu
sua pitada na criação de Cipriani. No Papagallo, o carpaccio
é servido com queijo grana padano e rúcula. Vale para o car-
paccio a frase de Anthony Bourdain (1956-2018): “O que for
mais chocante se torna a minha refeição de escolha”. ƒ

3|3
LUCILIA DINIZ

QUARESMA
UCRANIANA
A delicada arte eslava de pintar
ovos como contraponto à guerra

A QUARESMA recém-iniciada é um tempo de reflexão.


Neste ano, será um intervalo de quarenta dias entre um Car-
naval que não houve e uma Páscoa que as incertezas atuais
tornam ainda mais necessária. É um tempo em que somos
convidados a pensar sobre o sentido da vida, a perdoar, a
afastar o ódio eventual de nossos corações, um tempo para
nos voltarmos à família, para exercermos a fraternidade. É
especialmente cruel, portanto, que a violência que engolfou
a Ucrânia tenha se manifestado como uma triste ironia, jus-
tamente neste hiato em que deveríamos estar comemorando
a fé na humanidade.
Deixo os aspectos militares da guerra para os especialis-
tas em geopolítica. O que me interessa é o ser humano tra-
gado repentinamente pelo drama, que, sendo coletivo, é
também individual, na medida em que se trata da soma de
tragédias pessoais. Na reportagem da TV, um pai toca a ja-
nela do ônibus que levará a filha pequena a um destino mais
seguro, enquanto ele se prepara para resistir. Lá dentro, a

1|3
menina se despede, fazendo o gesto de quem quer alcançar
o inalcançável — a mão protetora. Entre eles, o vidro gelado
como um coração desamparado é a metáfora perfeita do po-
der destrutivo que só o homem, entre todos os animais, é ca-
paz de infligir a seus semelhantes.
Pois esse pai e essa criança deveriam estar em casa, junto
a outros membros da família, cuidando de coisas mais im-
portantes — como a confecção de “pêssankas”. Aqui no Bra-
sil muita gente já pintou, e ainda pinta, casca de ovo, sem se
dar conta de que essa tradição eslava é tão cara aos ucrania-
nos. Embora a palavra nunca tenha sido acolhida por nossos
dicionários, a arte é conhecida. É um artesanato delicado
por natureza, a começar pelo suporte físico, pois o ovo pode
trincar como um sonho interrompido. Mais importante, no
entanto, é a simbologia de vida, prosperidade e saúde encer-
rada naquela casca colorida e frágil.

“O que me interessa
é o ser humano tragado
repentinamente pelo
drama, individual
e coletivo”
2|3
As “pêssankas” remetem à gangorra da história do po-
vo da região, que alterna momentos de liberdade e de per-
seguição. Desde épocas imemoriais, os ovos eslavos pinta-
dos eram alimentos da alma, dignos de serem presentea-
dos às mais elevadas divindades. Mais tarde, com o cris-
tianismo, passaram a representar o espírito da Páscoa. Du-
rante o regime comunista, a alegria retratada nas finas
cascas foi esmagada sob coturnos ateus e insensíveis.
A tradição voltou a florescer após o fim do império soviéti-
co e a independência da Ucrânia para ser, agora, mais uma
vez ameaçada. Mãos habilidosas de mulheres, que nestes
dias deveriam estar dedicadas à produção de “pêssankas”,
estão ocupadas demais em fabricar coquetéis molotov,
aquelas bombas caseiras incendiárias cujo clarão serve
mais para denunciar ao mundo uma agressão do que para
deter o poderio dos tanques inimigos.
Quem conhece a tradição diz que as “pêssankas” não são
apenas ovos pintados. São também ovos “escritos”, termo
que estaria presente em sua origem etimológica. As imagens
e as palavras são variadas, mas a mensagem é uma só: a sau-
dação ao renascimento. De Cristo, sim, mas também da vida
em geral. Nesta quaresma, uma criança ucraniana a salvo
em alguma cidadezinha do interior do país haverá de pintar
um ovo que celebrará o renascimento da esperança. ƒ

3|3
GERAL MODA

CORPO EM EVIDÊNCIA
Depois de dois anos dentro de moletons e
pijamas, na clausura da pandemia, as mulheres
começam a exibir as formas. Eis o recado dos
recentes desfiles de alta-costura SIMONE BLANES
TEPHANE CARDINALE/CORBIS/GETTY IMAGE

PODEROSA O modelo Dior exibido por Rihanna


grávida: a essência do que se viu nas passarelas

1|5
A CHEGADA da cantora Rihanna na manhã da terça-feira
1º de março à Paris Fashion Week — semana de moda mais
badalada do mundo — deu a temperatura do que aconteceria
dali a pouco, no desfile da coleção de inverno 2023 da Dior.
Linda aos seis, sete meses de gestação (poucos sabem o tempo
exato), a artista surgiu com as formas exuberantes à mostra, a
bordo de um modelo criado para ela pela grife francesa. O
que Rihanna vestia (ou revelava) é a essência de uma das mar-
cas mais fortes da temporada. As transparências se tornaram
onipresentes nas peças recentes das casas de alta-costura,
aparecendo em detalhes vazados, rendas e tecidos fluidos. A
ideia é dar à beleza do corpo a evidência que merece.
A tendência começou a ganhar força com os naked dres-
ses, os vestidos totalmente transparentes que apareceram no
ano passado em resposta aos moletons, pijamas e camisetas
que as pessoas estavam usando havia mais de um ano, entre
quatro paredes, por causa da pandemia. De lá para cá, o de-
sejo de expor a pele se intensificou, refletindo no que se vê
agora nas passarelas. “As pessoas querem se mostrar, tomar
vento, pegar sol”, diz a stylist e consultora de moda Manu
Carvalho. “Foi muito tempo com o corpo escondido por
roupas e pelo isolamento social.”
O anseio tem seu ápice agora, momento em que a distân-
cia entre o recato doméstico e a euforia social diminui. Pou-
co a pouco, a vida retoma seus trilhos graças à vacinação e à
suspensão das medidas restritivas adotadas em vários paí-
ses. Como depois da tempestade vem a bonança, a resposta

2|5
IMAXTREE

PRADA CHANEL
Onde: Milão Onde: Paris
Conceito: mistura Conceito:
de tendências arrojo com
(minissaias e pinta de
transparências) fetiche
DOMINIQUE CHARRIAU/WIREIMAGE/GETTY IMAGES

3|5
ANTONIO CALANNI/AP/IMAGEPLUS

JEAN-PAUL
GAULTIER
Onde: Paris
Conceito:
estampas
em 3D e
cores
fortes

FENDI
Onde: Milão
Conceito:
leveza e
silhueta
orgânica
DIVULGAÇÃO

4|5
brotou com estardalhaço e arrojo. Não à toa, portanto, os
vestidos diáfanos foram um show à parte nas passarelas.
“Antes, as transparências apareciam de maneira básica”, diz
Manu Carvalho. “Agora, são ousadas e elaboradas.” Exem-
plos nítidos do que descreve a especialista foram apresenta-
dos pela Chanel na capital francesa, e com um gostinho es-
pecial de fetiche, mostrando o que antes era tabu mostrar.
Some-se ao grito de rebeldia — sim, a roupa é uma for-
ma poderosa de expressão feminina e de autoestima — um
interessante movimento de uso de tecidos que ajudam a
ampliar a sensação de transparência. No desfile de Jean-
-Paul Gaultier, estampas em 3D emolduravam lindos e
longos vestidos see-through (em tradução livre do inglês,
ver através). Há quem diga que os excessos das semanas de
moda delas não saem, de tão ousados. Não é verdade. As
minissaias e corsets de Alexandre Vauthier, em Paris, e o
repertório da Prada para o inverno de 2023, mostrado em
Milão, comprovam que as peças translúcidas podem, sim,
ser transportadas das passarelas para a vida real. Vesti-las
talvez exija algum atrevimento. Se faltar, e houver dúvida
em torno do que deixar visível no corpo, convém lembrar
do que disse a estilista Coco Chanel (1883-1971): “A moda
é arquitetura: é uma questão de proporções”. Se a guerra
na Europa não nos embrutecer, triste e melancolicamente,
justo agora que começávamos a sair da Covid-19, é possí-
vel vislumbrar um 2022 translúcido, límpido como havia
tempos não vivíamos. ƒ

5|5
CULTURA CINEMA

NOITE SUJA Zoë Kravitz, a Mulher-Gato, e Pattinson


como Batman: novatos nas suas personas secretas

UM MUNDO SOMBRIO
Bruce Wayne nunca foi tão traumatizado
quanto na interpretação de Robert Pattinson, nem
Gotham tão doente quanto no Batman notável — e
opressivo — do diretor Matt Reeves, uma visão
perturbadora da degradação urbana e ética
ISABELA BOSCOV

JONATHAN OLLEY/DC COMICS

1|7
O
mal-estar sempre pairou sobre Gotham. Mas agora
a metrópole é ainda mais ameaçadora que o fora na
trilogia Cavaleiro das Trevas, e mais degradada até
que na versão moldada na Nova York dos anos 70
de Coringa. No Batman (The Batman, Estados Uni-
dos, 2022) do diretor Matt Reeves, já em cartaz no
país, Gotham é suja, insalubre, corrupta, doente, desgoverna-
da — um pesadelo urbano do qual não se pode acordar. O si-
nal do Homem-Morcego, personagem que encontrou Robert
Pattinson na hora certa, é projetado quase sem pausa no céu,
mas o justiceiro mal faz diferença contra as criaturas que de-
voram a cidade à noite; os criminosos, os delinquentes, os ca-
fetões, as gangues de cabeça raspada são como um burburi-
nho que não para. Mas é com o som de uma respiração pesa-
da, concentrada, que começam os eventos que farão Bruce
Wayne de fato mergulhar na persona que criou: por uma
mira, alguém observa um menino que, fantasiado para o Hal-
loween, alegra-se com a chegada dos pais de uma festa — um
eco do próprio Bruce, que teve os pais assassinados na infân-
cia em circunstâncias semelhantes. Mas a vítima, agora, é o
prefeito Don Mitchell, pela quarta vez candidato à reeleição e
pela primeira vez prestes a perder o cargo para uma jovem
negra que enuncia com clareza o que ele tenta obscurecer: que
Gotham está largada aos cães.
A vez do próprio Mitchell acaba de chegar, e é o filho
pequeno quem encontra o corpo do pai, morto de maneira
horripilante por uma figura encapuzada e mascarada, com

2|7
“É UM
PERSONAGEM
DESAFIADOR”

JONATHAN OLLEY/DC COMICS


Enquanto Robert Pattinson
secretamente tentava se colo-
car na órbita de Batman, o di-
retor Matt Reeves escrevia o INTUIÇÃO
roteiro com ele em mente. O ator no filme: ele topou
O ator, 35 anos, falou a VEJA. antes de ler o roteiro

Que lugar Batman ocupa para você entre filmes co-


mo O Farol, Bom Comportamento ou High Life? Sou
atraído por coisas aleatórias e parece não haver escolha algu-
ma no que faço. Fui a uma reunião com o produtor Dylan Clark
para outro projeto e, no caminho, li que ele estava ligado a Bat-
man. Nunca havia me ocorrido interpretar Batman, mas pensei,
hummm, e se? Nunca corri atrás dessa ou daquela coisa, mas,
nesse caso, insisti mesmo. Até que conheci Matt Reeves e nos
demos muito bem. E Batman parecia a coisa certa no momento
certo, como se fosse parte da jornada que eu estava tentando
percorrer. É um personagem desafiador, e eu estava no clima
para bastante pressão. Foi difícil, foi divertido e foi também
meio incrível filmar durante a pandemia.

3|7
Se você tivesse de definir a emoção motriz do seu
Batman, seria a raiva? Há o elemento de raiva, mas,
quanto mais eu entrava no personagem, mais o achava trági-
co. Bruce Wayne acha que escolheu essa vida: por causa da
riqueza e do poder, ele cria mecanismos psicológicos para
lidar com o trauma do assassinato dos pais. Mas, se a per-
sona de Batman o faz sentir-se forte de novo, ela põe a ele, e
a todos em volta dele, em constante perigo também. É um
fardo, e nem mesmo está dando resultado; nada do que ele
faz diminui o crime ou atenua a violência. Bruce está salvan-
do Gotham ou está em uma trilha niilista de autodestruição?

Matt Reeves escreveu o roteiro com você em


mente. Qual o peso que seu instinto teve em fazer
com que a sua visão e a dele se encontrassem?
Matt é um perfeccionista total, e eu concordei em fazer o fil-
me antes mesmo de ver o roteiro. Mas instinto é algo que se
pode treinar, e alimentei o meu com as expectativas dos fãs,
os filmes anteriores, as toneladas de quadrinhos. Levei uma
mala cheia de graphic novels do Batman para as filmagens,
e li e reli todas elas dezenas de vezes, pensando, “Isso fun-
ciona? E isso?”. Parece instintivo, mas me preparei mais pa-
ra esse filme do que para qualquer coisa que tenha feito an-
tes no cinema.

4|7
um emblema no peito e sem nenhuma feição à mostra.
Quem pensar no Zodíaco, o serial killer que instaurou o pâ-
nico na área da Baía de São Francisco entre 1968 e 1969,
acertou no alvo: foi ele a inspiração para Reeves materiali-
zar no vilão Charada, aqui interpretado por Paul Dano, seu
conceito de um terror sem rosto e sem propósito que se pos-
sa adivinhar (leia a entrevista com o diretor em veja.abril.
com.br). O mesmo, porém, vale para Bruce Wayne. Quan-
do põe a máscara e se torna Batman, também ele é um
agente do terror, e também ele está um passo mais próximo
de linhas que não devem ser cruzadas.
O anonimato em que Batman age e a dualidade que a
identidade oculta permite a ele são a razão fundamental pe-
la qual ele é o herói de quadrinhos ao qual mais o cinema
retorna — a cada vez em clima mais sombrio. Esta, entre-
tanto, é a encarnação mais jovem do personagem, e de lon-
ge a mais traumatizada. No desempenho repleto de riscos
de Robert Pattinson, Bruce Wayne é quase um vazio; não é
ele quem preenche a fantasia, mas ela que o preenche. Sem
vida fora da sua missão e desinteressado da fortuna que
herdou e que, como avisa o mordomo Alfred (Andy Serkis),
está minguando, este Bruce não se faz de playboy e pouco
tem de arsenal além da armadura, das lentes de contato ca-
pazes de gravar o que está vendo — sempre em imagens es-
curas e afuniladas — e do carro que é todo motor, arma-
mento e ângulos duros. Nessa Gotham lamacenta, nem o
Pinguim (Colin Farrell, irreconhecível) ganha a graduação

5|7
JONATHAN OLLEY/DC COMICS

PERVERSÕES Colin Farrell, irreconhecível


como o Pinguim: facilitador para os poderosos

de adversário. Ele é, isso sim, um facilitador repelente, um


fornecedor de vícios e perversões que os poderosos prati-
cam juntos, amarrando-se uns aos outros.
Esse é, enfim, o Batman da solidão urbana e da depres-
são, que só pela sensação de fracasso ou pelo luto consegue
se conectar com alguém. Por exemplo, com o detetive Gor-
don (o excelente Jeffrey Wright), cronicamente posto de es-
canteio nesse ninho de corrupção promíscua que é Gotham
porque a honestidade exala dele como um cheiro ruim. Ou
ainda com Selina Kyle, que ensaia os primeiros passos como
Mulher-Gato na busca por uma amiga desaparecida e que,
em mais uma ótima interpretação de Zoë Kravitz, é um re-
trato muito reconhecível de uma mulher habituada a ser
usada mas cansada de se resignar a isso.

6|7
Depois de seu trabalho vigoroso, cheio de músculo, em
Planeta dos Macacos: o Confronto e a Guerra, Matt Reeves
parte aqui para uma reconceituação ainda mais ambiciosa,
além de profundamente pessimista. Trabalhando com uma
paleta feita quase só de vermelho e de escuridão em densida-
des diversas que a música de Michael Giacchino faz pulsar, e
filmando em closes fechados ou em cenários sufocantes nos
quais as pessoas se amontoam em orquestrações notáveis de
movimentos, Reeves dá ao submundo de Go-
tham um sentido adicional, o de uma terra de
penumbra em que ninguém está morto nem
completamente vivo. Se faltam ao seu
Batman os crescendos, o arrebata-
mento e a realização exuberan-
te do espetáculo da trilogia de
Christopher Nolan, é porque
o mundo já não é o de dez ou
quinze anos atrás e não se
trata mais aqui da erupção
do caos, mas, sim, dos es-
combros que ele deixa na
sua passagem. ƒ

SEM ROSTO Paul Dano,


como o Charada: inspirado
no serial killer Zodíaco

JONATHAN OLLEY/DC COMICS

7|7
CULTURA MÚSICA

PANTERAS Eric Burton (à esq.) e Adrian Quesada:


som que é um antídoto à infantilização do pop atual

O BOM ROCK
DAS ANTIGAS
Como a união de um músico de rua da
Califórnia com um guitarrista do Texas deu
origem ao Black Pumas, banda que faz sucesso
resgatando — com brilho — as raízes do gênero

MERRICK ALES/DIVULGAÇÃO

1|3
O AMERICANO Eric Burton aprendeu a tocar e a cantar na
igreja, e até alguns anos atrás vivia da grana que ganhava em
apresentações no píer de Santa Mônica, em Los Angeles.
Com o sonho de se tornar músico profissional, mudou-se em
2017 para Austin, no Texas, onde também passou a apresen-
tar suas covers de Otis Redding, Marvin Gaye e Al Green nas
calçadas da cidade. Foi então que o destino propiciou uma
grata conjunção astral: na mesma época, o experiente guitar-
rista Adrian Quesada, treze anos mais velho, havia deixado
sua banda de música latina e deparou com Burton tocando
na rua. Assim nascia o Black Pumas — uma das bandas mais
respeitáveis da atualidade. “Nossa química é transcendental.
Se eu aprendi a tocar na igreja, Quesada formou sua própria
igreja, baseada no rock’n’roll”, disse Burton a VEJA.
Da união do músico ambulante com o veterano guitarris-
ta surgiu, de fato, um peculiar caleidoscópio sonoro. Se Bur-
ton trouxe a influência do soul e do blues, Quesada contri-
buiu com referências que incluem até artistas brasileiros, co-
mo Os Mutantes e Caetano Veloso — mas calcadas, sobretu-
do, no velho e bom rock. A eclética mistura resultou em um
artigo que andava em falta no gênero: qualidade musical. O
Black Pumas faz rock honesto e básico, que bebe das raízes
da música negra com muita inspiração — e sem firulas. A
voz afinada de Burton remete ao melhor do blues feito no
norte dos Estados Unidos, enquanto a levada rítmica de
Quesada une o som da Motown ao estilo dos arrojados solos
de Prince. Talvez venha daí a dificuldade da crítica interna-

2|3
cional em rotular o trabalho dos dois, classificando-o de
“soul psicodélico”, seja lá o que isso signifique. O que impor-
ta, enfim, é que se trata de música de gente crescida — um
antídoto à infantilização crescente do pop.
Em 2020, apenas um ano após o lançamento do primei-
ro álbum, eles já haviam sido indicados ao Grammy. Recen-
temente, abriram os shows dos Rolling Stones em Minnea-
polis. Se não fosse pela pandemia, teriam engatado uma ex-
tensa turnê internacional, que previa um show em São Pau-
lo. O cancelamento da apresentação, no entanto, agora será
compensado: em 27 de março, a dupla finalmente tocará na
cidade, como atração do festival Lollapalooza. “Aprendi nas
ruas a criar um palco para mim mesmo e a me conectar com
o público”, diz Burton. O rock agradece. ƒ

Felipe Branco Cruz

3|3
CULTURA TELEVISÃO

LUZ, CÂMERA
E ORAÇÃO
Da hilária série The Righteous Gemstones ao filme
Os Olhos de Tammy Faye, produções retratam
com acidez o modo como a fama e o dinheiro
corrompem líderes religiosos RAQUEL CARNEIRO

DIVINOS PECADORES Kelvin, Jesse, Eli e Baby Billy,


da família Gemstone: personagens nada santos

RYAN GREEN/HBO

1|5
EMBALADOS por uma suave música cristã entoada em
mandarim, três pastores americanos — um pai e seus dois fi-
lhos — realizam uma maratona de 24 horas de batismos em
Chengdu, na China. O clima de paz espiritual é interrompido
por uma discussão comezinha entre os irmãos sobre quem
batiza melhor. Nas alfinetadas, os dois homens agem como
crianças e não economizam nas palavras de baixo calão. De
volta aos Estados Unidos, na Carolina do Sul, a imagem já
manchada de humildes missionários se desfaz de vez para o
espectador da série The Righteous Gemstones, da HBO: o
trio protagonista viaja em jatinhos particulares (três aerona-
ves nomeadas de “O Pai”, “O Filho” e “O Espírito Santo”) e é
recebido no aeroporto com pompa por seus funcionários e
pela irmã que ficou para trás — ela, tão temperamental quan-
to o restante da prole. Em cinco minutos do primeiro episó-
dio, a série americana — que acaba de encerrar a segunda
temporada, na HBO Max — apresenta com ironia a família
de televangelistas Gemstone. O clã é a fina flor da cafonice.
Sai do aeroporto em carros de luxo rumo a um complexo
com hectares a perder de vista, que abriga as quatro mansões
onde cada um deles mora, um parque de diversões temático
bíblico e um ginásio para os cultos. Na entrada, o portão cer-
cado por seguranças armados exibe um versículo e um aler-
ta: “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles é o rei-
no dos céus. Não ultrapasse”.
Já renovada para uma terceira temporada, The Righteous
Gemstones faz milagre ao transitar com perspicácia pelo

2|5
SEARCHLIGHT PICTURES

APARÊNCIAS Jessica em Os Olhos de


Tammy Faye: casal estelionatário

terreno minado da religião. Traz personagens de caráter


questionável e um humor escrachado comparável ao nacio-
nal Porta dos Fundos. Mas, ao contrário da trupe brasileira,
o roteiro assinado por Danny McBride — intérprete do filho
mais velho, Jesse Gemstone — destina seu escárnio não aos
fiéis ou a personagens bíblicos: a grande sacada da série é rir
das armadilhas produzidas pela hipocrisia e embaladas pela
tríade fama, dinheiro e fé. Na primeira temporada, os prós-
peros pecadores enfrentam bandidos que chantageiam Jesse
com um vídeo no qual ele participa de uma festinha regada
a drogas e prostitutas. A filha do meio, Judy (a afiada Edi
Patterson), tenta furar o clube do bolinha que domina a igre-
ja. Já o caçula Kelvin (Adam Devine) quer provar seu valor

3|5
ao pai, Eli (John Goodman, ótimo), com a ajuda de um ex-
satanista. O grupo fica completo com o cantor e cunhado pi-
lantra de Eli, Baby Billy (Walton Goggins).
Criados a partir de um apanhado de referências reais, os
Gemstone evocam alguns famosos televangelistas ameri-
canos que proliferaram na TV entre os anos 70 e 80 — fe-
nômeno que hoje se expandiu da TV para novas platafor-
mas, chegando ao streaming. Entre as inspirações da série
está Jim Bakker, marido de Tammy Faye (1942-2007) —
casal real retratado no filme Os Olhos de Tammy Faye, ain-
da inédito no Brasil e indicado aos Oscars de maquiagem e
atriz — para uma Jessica Chastain irreconhecível na pele e
peruca da pastora e cantora gospel do título. Jim e Tammy
criaram um império a partir de popular programa de TV
evangélico apresentado entre 1974 e 1987 — o casal cons-
truiu um parque apelidado de Disneylândia cristã, hoje
abandonado. Afundou em escândalos, até Bakker ser con-
denado por fraude. Aos 82 anos e em liberdade, ele foi pro-
cessado em 2021 por vender na TV pílulas “abençoadas”
contra a Covid (alguém lembrou do caso do pastor Valde-
miro Santiago, no Brasil?).
Pregadores vertidos em celebridades são matéria-prima
frutífera na história do cinema e da TV. O filão vai de rotei-
ros chapa-branca na linha do nacional Nada a Perder, sobre
a trajetória de Edir Macedo, líder da igreja Universal e dono
da TV Record, até comédias pastelonas hollywoodianas,
como Fé Demais Não Cheira Bem (1992), estrelada por Ste-

4|5
ve Martin. Com a ascensão dos evangélicos na política e na
cultura, uma nova onda de produções agora vem explorar a
engrenagem que move as megaigrejas, complexos que ofere-
cem entretenimento disfarçado de ritual religioso. Se The
Righteous Gemstones aposta no sarcasmo, o seriado ameri-
cano Greenleaf e o argentino Vosso Reino, ambos na Net-
flix, carregam nas cores dramáticas ao acompanhar prega-
dores que, fora do olhar do rebanho, comungam de todos os
sete pecados capitais — e mais um oitavo não menos deleté-
rio: o gosto peculiar pelo poder. Como avisa a Bíblia, o amor
ao dinheiro é a raiz de muitos males. ƒ

5|5
CULTURA LIVROS

A VOZ DA CONSCIÊNCIA
Em um ensaio implacável e atual, o franco-argelino
Albert Camus (1913-1960) expõe sua lucidez humanista
— uma qualidade que o fez voltar à lista de mais
vendidos na pandemia DIEGO BRAGA NORTE

COERÊNCIA ACIMA DE TUDO


Camus: “Não é mais tanto do indivíduo que a
sociedade deve defender-se, mas, sim, do Estado”

RUE DES ARCHIVES/AGIP

1|4
QUANDO A SOCIEDADE francesa é confrontada com algo
absurdo, revoltante, injusto, contraditório ou simplesmente
curioso, em alguns círculos sociais do país há uma máxima
que nunca sai da moda — e sempre pega bem: “O que Camus
pensaria sobre isso?”. Essa maneira cotidiana de recorrer ao
filósofo e escritor Albert Camus (1913-1960) é um bom ter-
mômetro para mensurar a atualidade de sua obra. O romance
O Estrangeiro (1942), que já foi citado em músicas de The Cure
e Caetano Veloso, reapareceu mais recentemente na faixa As
Caravanas, de Chico Buarque. A história do francês que mata
um árabe e põe a culpa no sol rendeu ainda um prêmio Gon-
court ao escritor argelino Kamel Daoud, com O Caso Meur-
sault (2015), que reconta o assassinato do ponto de vista da ví-
tima. As peças teatrais de Camus ganham novas montagens
anualmente. E, valendo-se de coincidências quase premonitó-
rias, seu livro A Peste (1947) voltou à lista de best-sellers em
vários países durante a pandemia do novo coronavírus.
Mais que um filósofo existencialista identificado com o
“absurdo da condição humana”, expressão que se tornou o
epítome de sua obra, o franco-argelino Camus foi um pensa-
dor extremamente instigante. Sua originalidade é atestada no
ensaio Reflexões sobre a Guilhotina, que acaba de ganhar
sua primeira edição no Brasil. Publicado originalmente em
1957, o texto levanta argumentos morais, filosóficos e estatís-
ticos para defender o fim da pena de morte. Ela vigorou na
França até 1981 e a brutal guilhotina, celebrizada na Revolu-
ção de 1789, foi usada pela última vez há menos de cinquenta

2|4
anos, em 1977, na execução do
assassino confesso Hamida
Djandoubi, em Marselha.
Em seu livro O Homem Re-
voltado (1951), Camus já critica-
va a legitimação da violência
como um fim em si mesmo,
ação justificada como “necessá-
ria” em diferentes processos
históricos. O autor planejava in- REFLEXÕES SOBRE
cluir naquele livro um capítulo A GUILHOTINA, de
sobre a pena de morte, mas não Albert Camus (tradução de
o fez. Reflexões sobre a Guilho- Valerie Rumjanek; Record;
tina supre essa lacuna, mas vai 96 páginas; 59,90 reais e
além ao analisar os vínculos en- 41,90 reais em e-book))
tre o indivíduo e o Estado. “Há
trinta anos, os crimes de Estado se sobrepõem em muito aos
crimes dos indivíduos (...). Não é mais tanto do indivíduo que
nossa sociedade deve, portanto, defender-se, mas, sim, do Es-
tado”, escreve Camus em uma passagem de lucidez notável.
Para o filósofo, a execução repete o crime que se preten-
de punir, impõe uma sentença irreversível e sujeita a erros
humanos, e resguarda-se como medida de exemplaridade
duvidosa, pois as estatísticas demonstram que não há rela-
ção entre o fim da pena de morte e um eventual aumento da
criminalidade. Camus afirma que a pena capital nada mais
é que uma vingança pura e simples, um resquício instintivo

3|4
e primitivo em sociedades civilizadas. Para ele, a lei de ta-
lião — aquela que prega o olho por olho, dente por dente —
“é da ordem da natureza e do instinto, não é da ordem da lei.
A lei, por definição, não pode obedecer às mesmas regras
que a natureza. Se o assassinato está na natureza do ser hu-
mano, a lei não é feita para imitar ou reproduzir esta nature-
za. Ela é feita para corrigi-la”.
Do ponto de vista lógico e estritamente racional, sem
apelar para sentimentalismos ou ideologias, é difícil discor-
dar do autor. A força de sua argumentação reside tanto na
clareza de suas ideias e propósitos como nos fatos elencados
no ensaio. A mistura de robustez intelectual com objetivida-
de perpassa as obras e opiniões de Camus — daí vem gran-
de parte de sua constante (talvez crescente) atualidade. Ou-
tro atributo — muito raro no mundo de pós-verdades, can-
celamentos e mea-culpa midiáticos — é a coerência.
Ao longo de sua vida, Camus adicionou camadas metafísi-
cas aos seus romances e peças, entremeando-os com suas
ideias filosóficas; atuou na imprensa de resistência francesa
ante a ocupação nazista; ao contrário de existencialistas como
Jean-Paul Sartre, que defendeu o regime de Stalin até onde
pôde, Camus rompeu com os comunistas para manter-se fiel
ao seu antitotalitarismo à esquerda e à direita; e causou es-
panto à intelligentsia ao posicionar-se contra a independência
da Argélia, então colônia francesa. Em seus erros e muitos
acertos, Camus não foi só um pensador fiel às convicções: ele
era — e ainda é — uma voz da consciência humanista. ƒ

4|4
CULTURA VEJA RECOMENDA

AMIZADE As meninas de Pequena Mamãe: um drama


francês delicado e de imensas emoções

CINEMA
PEQUENA MAMÃE (Petite Maman, França, 2021. Em cartaz nos cinemas)
Uma das mais talentosas cineastas em atividade, a francesa
Céline Sciamma, de Tomboy e Retrato de Uma Jovem em
Chamas, cunha um filme de simplicidade enganosa e de
emoções imensas, mas firmemente contidas, a partir da his-
tória de Nelly (Joséphine Sanz), de 8 anos, que se hospeda
com os pais na casa da avó que acaba de morrer a fim de re-
tirar dela os pertences pessoais e fechá-la. De volta ao cená-
rio de sua infância, Marion (Nina Meurisse), a mãe de Nelly,
está em um sofrimento que não expressa e que talvez tenha
motivos adicionais; seu pai (Stéphane Varupenne) pisa em
ovos. Passeando pelo bosque próximo, Nelly conhece uma
menina da sua idade, parecida com ela (Gabrielle Sanz), e
entende que é a sua mãe — ou uma versão mais acessível de-
la, capaz de compartilhar sua inquietude.
DIVULGAÇÃO

1|8
INSTAGRAM @METRONOMY
ROCK MODERNO Metronomy:
baladas existenciais com melodias finas

DISCO
SMALL WORLD,
de Metronomy (Virgin; disponível nas plataformas de streaming)
A evolução do quinteto britânico Metronomy
desde 2006, quando lançaram o solar álbum de estreia Pip
Paine, até o mais recente e contemplativo Small World, séti-
mo da carreira, foi suave e tranquila. Eles deixaram no passa-
do as baladas pop para investir em canções doces e melancó-
licas, com pegada de rock e melodias finas, como a existencial
Things Will Be Fine. Em Hold Me Tonight, Joseph Mount di-
vide vocais com Dana Margolin, do Porridge Radio, para ce-
lebrar o tempo que passou com a família na pandemia.

2|8
LIVRO
M, O HOMEM DA PROVIDÊNCIA,
de Antonio Scurati (tradução de Marcello Lino;
Intrínseca; 608 páginas; R$ 99,90 e R$ 69,90 em e-book)
Em 1929, o ditador italiano Benito Mussolini firmou um
acordo com a Igreja Católica que fez do Vaticano um Estado
independente. Por isso, o papa Pio XI e o alto clero se refe-
riam a ele como “o homem da providência” — alcunha que
intitula o novo livro de Scurati. Sequência do excelente
M, o Filho do Século, o romance avança no exame do totali-
tarismo de Mussolini, agora entre 1925 e 1932. Combinando
pesquisa histórica e elementos ficcionais, o autor disseca a re-
lação entre o fascismo e a Igreja Católica. ƒ

3|8
CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 nas pEgaDas Da alEMoa
Ilko Minev [4 | 10#] BUZZ

2 É assiM quE acaba


Colleen Hoover [1 | 29#] GALERA RECORD

3 a garota Do lago
Charlie Donlea [10 | 127#] FARO EDITORIAL

4 torto araDo
Itamar Vieira Junior [3 | 57#] TODAVIA

5 a rEVolução Dos bichos


George Orwell [5 | 175#] VÁRIAS EDITORAS

6 os sEtE MariDos DE EVElYn hugo


Taylor Jenkins Reid [2 | 45#] PARALELA

7 1984
George Orwell [9 | 118#] VÁRIAS EDITORAS

8 DEu Match
Carolina Vila Nova [0 | 1] LITERARE BOOKS

9 o VEnDEDor DE sonhos — o chaMaDo


Augusto Cury [0 | 1] DREAMSELLERS

10 ViolEta
Isabel Allende [0 | 1] BERTRAND BRASIL

4|8
NÃO FICÇÃO
1 MulhErEs quE corrEM coM os
lobos Clarissa Pinkola Estés [1 | 95#] ROCCO

2 o Diário DE annE FranK


Anne Frank [2 | 261#] VÁRIAS EDITORA

3 MEDitaçõEs
Marco Aurélio [8 | 26#] VÁRIAS EDITORAS

4 Fora Da lata
Luiz Quinderé [10 | 2] ROCCO

5 lula, VoluME 1
Fernando Morais [3 | 12] COMPANHIA DAS LETRAS

6 sapiEns: uMa brEVE história Da huManiDaDE


Yuval Noah Harari [4 | 261#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

7 o contaDor DE histórias
Dave Grohl [0 | 2#] INTRÍNSECA

8 laDY KillErs: assassinas EM sÉriE


Tori Telfer [6 | 57#] DARKSIDE

9 pEquEno Manual antirracista


Djamila Ribeiro [0 | 97#] COMPANHIA DAS LETRAS

10 rápiDo E DEVagar
Daniel Kahneman [5 | 151#] OBJETIVA

5|8
AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Mais EspErto quE o Diabo
Napoleon Hill [2 | 146#] CITADEL

2 o poDEr Da autorrEsponsabiliDaDE
Paulo Vieira [0 | 71#] GENTE

3 Do Mil ao Milhão
Thiago Nigro [5 | 155#] HARPERCOLLINS BRASIL

4 os sEgrEDos Da MEntE Milionária


T. Harv Eker [3 | 356#] SEXTANTE

5 quEM pEnsa EnriquEcE


Napoleon Hill [7 | 77#] CITADEL

6 o hoMEM Mais rico Da babilônia


George S. Clason [1 | 67#] HARPERCOLLINS BRASIL

7 sEja F***!
Caio Carneiro [0 | 114#] BUZZ

8 MinDsEt
Carol S. Dweck [8 | 105#] OBJETIVA

9 o poDEr Do hábito
Charles Duhigg [6 | 262#] OBJETIVA

10 a coragEM DE sEr iMpErFEito


Brené Brown [0 | 61#] SEXTANTE

6|8
INFANTOJUVENIL
1 colEção harrY pottEr
J.K. Rowling [3 | 104#] ROCCO

2 aMor & gElato


Jenna Evans Welch [1 | 33#] INTRÍNSECA

3 o pEquEno príncipE
Antoine de Saint-Exupéry [7 | 338#] VÁRIAS EDITORAS

4 harrY pottEr E a pEDra FilosoFal


J.K. Rowling [5 | 332#] ROCCO

5 VErMElho, branco E sanguE aZul


Casey McQuiston [4 | 48#] SEGUINTE

6 uMa garota cubana, chás E aManhãs


Laura Taylor Namey [0 | 1] ALTA NOVEL

7 Mil bEijos DE garoto


Tillie Cole [6 | 13#] OUTRO PLANETA

8 os Dois MorrEM no Final


Adam Silvera [0 | 6#] INTRÍNSECA

9 atÉ o VErão tErMinar


Colleen Hoover [2 | 6#] GALERA RECORD

10 uM DE nós Está MEntinDo


Karen M. McManus [0 | 23#] GALERA RECORD

7|8
[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas
o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas

Pesquisa: Yandeh / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Belém: Leitura,
SBS, Belo Horizonte: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Betim: Leitura, Blumenau: Curitiba, Brasília:
Cultura, Disal, Leitura, Saraiva, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha: Santos,
Campina Grande: Cultura, Leitura, Campinas: Cultura, Disal, Leitura, Loyola, Saber e Ler,
Vozes, Campo Grande: Leitura, Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas: Santos, Capão da Ca-
noa: Santos, Cascavel: A Página, Caxias do Sul: Saraiva, Colombo: A Página, Confins: Leitura,
Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Pá-
gina, Curitiba, Disal, Evangelizar, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba,
Livrarias Catarinense, Saraiva, Fortaleza: Evangelizar, Leitura, Saraiva, Vozes, Foz do
Iguaçu: A Página, Kunda Livraria Universitária, Frederico Westphalen: Vitrola, Goiânia: Leitu-
ra, Palavrear, Saraiva, SBS, Vozes, Governador Valadares: Leitura, Gramado: Mania de Ler,
Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos: Disal, Livraria da Vila, Leitura, Ipatinga:
Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Saraiva, Joinville: A
Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes, Jundiaí: Leitura, Lins: Koinonia Livros, Londri-
na: A Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura, Manaus: Leitura,
Vozes, Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: Leitura, Saraiva, Natal: Leitura, Niterói: Blooks,
Palmas: Leitura, Paranaguá: A Página, Passo Fundo: Santos, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis:
Vozes, Poços de Caldas: Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron, Di-
sal, Santos, Saraiva, SBS, Vozes, Porto Velho: Leitura, Recife: Cultura, Disal, Leitura,
Saraiva, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Saraiva, Rio Claro: Livruz, Rio de Janeiro: Blooks,
Disal, Janela, Leitura, Saraiva, SBS, Vozes, Rio Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Es-
cariz, LDM, Leitura, Saraiva, SBS, Vozes, Santa Maria: Santos, Santana de Parnaíba: Leitu-
ra, Santo André: Disal, Saraiva, Santos: Loyola, Saraiva, São Caetano do Sul: Disal, São José:
Curitiba, São José do Rio Preto: Leitura, São José dos Campos: Curitiba, Leitura, São José dos Pi-
nhais: Curitiba, São Luís: Leitura, São Paulo: Aeromix, A Página, Blooks, CULT Café Livro
Música, Cultura, Curitiba, Disal, Leitura, Livraria da Vila, Loyola, Megafauna, Nobel
Brooklin, Saraiva, SBS, Vozes, WMF Martins Fontes, Serra: Leitura, Sete Lagoas: Leitu-
ra, Sorocaba: Saraiva, Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura, Teresina:
Leitura, Uberlândia: Leitura, SBS, Vila Velha: Leitura, Saraiva, Vitória: MultiLivros, SBS, Vi-
tória da Conquista: LDM, internet: A Página, Amazon, Americanas.com, Authentic E-com-
merce, Boa Viagem — E-commerce, Bonilha Books, Cultura, Curitiba, Leitura, Ma-
gazine Luiza, Saraiva, Shoptime, Submarino, Vanguarda, WMF Martins Fontes

8|8
DORA KRAMER

DONOS DO PODER
CACIQUES dos partidos e respectivos candidatos à Câmara e
ao Senado não escondem o jogo: estão mais interessados na
eleição de deputados e senadores do que em investir nas candi-
daturas a presidente da República. Mesmo o PT, em sua dian-
teira até agora folgada, articula alianças de olho vivo e faro fi-
no na execução do plano de reforço às tropas no Congresso.
Tanto é assim que as principais legendas resolveram colo-
car suas maiores estrelas na disputa por vagas no Parlamento.
Normalmente o costume era deixar candidaturas de gente
conhecida para os cargos de governador ou senador. Isso mu-
dou quando os partidos decidiram direcionar o foco ao Legis-
lativo, notadamente à Câmara. Governadores têm indepen-
dência menor que parlamentares na relação com o Planalto.
A importância do Congresso se baseia em várias razões:
o protagonismo da Casa na condução da agenda do país é
uma; outra, a derrama de verbas públicas distribuídas de
acordo com o tamanho das bancadas; e a terceira, a corre-
lação de forças internas e externas, firmada a partir da fra-
gilidade política do governo de Jair Bolsonaro. Fraqueza
decorrente do erro original de visão — a ideia de que pode-
ria contar com bancadas temáticas em detrimento das

1|4
agremiações —, que o obrigou a optar pela entrega do con-
trole da agenda do Planalto ao Poder Legislativo.
Criou-se um ambiente de desequilíbrio de poder já visto
em governos cujos presidentes tiveram o mandato interrom-
pido, mas nunca a ponto de contagiar as campanhas da elei-
ção seguinte. E muito menos na dimensão de agora, com
tanto empenho de parlamentares e dirigentes partidários
em transformar a assimetria de força, antes circunstancial,
em situação permanente.
O próximo Congresso se pretende tão ou mais poderoso
que o atual. Dia desses o presidente da Câmara, Arthur Lira,
deixou isso muito claro ao comentar medidas sugeridas por
candidatos para quando, e se, chegarem ao Planalto: “Gos-
taria de lembrar que no meio de presidentes que estão lá e
dos que estarão, há o Congresso Nacional”.
Os parlamentares eleitos neste ano não vão querer abrir
mão da conquistada autonomia no manejo das emendas ao
Orçamento nem estarão dispostos a retroceder no exercício
da derrubada de vetos presidenciais, prática antes excepcio-
nal que se tornou corriqueira. Basta comparar.
A um ano de completar o mandato, Bolsonaro teve 35%
de seus vetos a matérias aprovadas no Parlamento derruba-
dos total ou parcialmente. Na Presidência de Luiz Inácio da
Silva foram 0,5%, sob Dilma Rousseff, 1,5% e na gestão de
Michel Temer, 16,5%.
O avanço do Legislativo sobre o Executivo é nítido. A
permanência dessa condição é obviamente desejada pelos

2|4
“O próximo presidente vai
encontrar um Congresso
empenhado em ser cada
vez mais poderoso”
partidos que trabalham fortemente para isso. Podem até não
se submeter às regras rígidas das federações que os obrigam
a afinidades em nada condizentes com as práticas partidá-
rias em vigor, mas preparam um plano B.
Para escapar de exigências praticamente inexequíveis os
partidos, combinam alianças de modo a formar grupos de
atuação conjunta para concorrer ou pelo menos dividir com
o Centrão a influência sobre o mandatário a ser eleito ou
reeleito. A ideia é que na próxima legislatura não haja um,
mas vários Centrões a ditar os rumos do governo a partir do
Congresso, de preferência tendo gente experiente na compo-
sição das bancadas. Agora a palavra de ordem não é a da re-
novação pura e simples, com a eleição de figuras novas. O
esforço é pela volta de políticos de destaque: ex-ministros,
ex-governadores, ex-senadores e ex-deputados que ocupa-
ram posições importantes em governos anteriores.
Nesse cenário, seria imprescindível a manifestação dos
candidatos a presidente sobre como pretendem lidar com

3|4
um Congresso que faz e acontece — só cumpre decisões ju-
diciais quando quer, estabelece a destinação de recursos em
benefício próprio como bem entende, entre outras liberda-
des — e tenciona fazer e acontecer muito mais.
Nenhum dos candidatos disse coisa alguma a respeito
dessa desarmonia entre os poderes. Mas quem for governo
em 2023 ou tem coragem de enfrentar o tema da reforma de
um sistema político-eleitoral caduco, com quase 100 anos
de existência, ou cairá na ilusão de que em sua majestosa
presença no Planalto será tudo diferente. Não será. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

4|4

Você também pode gostar