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Corpo Editorial

Editor Responsável

Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho

Editores Adjuntos

Ademas Pereira da Costa Junior

Iago Menezes de Souza

Colunistas

Ademas Pereira da Costa Junior (Dimas)

Carlos Douglas Martins Pinheiro Filho

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Felipe Moura

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Jorge Felipe Freitas (Fijó)

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Roberto Brito Alves

Viviane Linares

1
Revista Menó

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Revista Menó

Publicação eletrônica trimestral voltada para artigos de divulgação científica, ensaios


políticos, crônicas, contos e poesias.

2 Menó. Número 3, 2021 (Out/Nov/Dez).

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Sumário

Peabiru 3000
Brasil: o mal-estar e seu sonho de superação
Por Dimas
(Des)ocupando
Por Matheus Novaes

Bora Apre(e)nder?
A literatura como fuga do enclausuramento pandêmico
Por Lorena Izabele Lima de Almeida
O ensino de Geografia e o espaço vivido nas escolas
Por Romi da Silva Pereira
Mais educação, menos instrução: por que precisamos discutir sobre o modelo de
educação em nossas escolas e universidades

Por Coletivo Terral

O Negócio é ser Rural


Proposta da Rede de Mulheres das Marés e das Águas dos Manguezais
Amazônicos do Maranhão e Piauí (REMULMANA)
Por Remulmana

Mesa de dama
O que é que a Baixada tem?
Por Fijó

3
Resenha do Pivete
No caos da Baixada Fluminense surge mais uma estrela brilhante e barulhenta no
céu: é Rojão e sua linda celebração explosiva através do EP 5X1.
Por Iago Menezes, vulgo Pivete

Poetizando
Caderno Laboratorial de um Bolsista
Por Walysson Gomes
À noite ele vai embora
Por Luiz Fernandes
O preço
Por Marina Teixeira

Observatório Cotidiano
A cafeteria
Por Roberto Brito
Suicídio em 1° de maio
Por Camila Lopes
Vô Lúcio: o encantador de cavalos
Por Elaine Lima da Silva

Conto do Vigário
Cheiro da Brisa
Por Marcelo Sophos
O primeiro conto da estrada
Por Thiago Sento Sé

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Partiu Resenha
Entrevista com a Livraria da Tarde
Por Carlos Douglas

A verdade é uma questão de imaginação

Por Carlos Douglas


Resenha de O Conto da Aia
Por Marcelo Sophos

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Peabiru 3000

Brasil: um mal-estar e seu sonho de superação


Por Dimas
Como chegamos aqui? Não é uma questão a ser respondida. Pois já estamos onde
estamos. A situação é esta, e está clara. Para nós, brasileiros, a quem escrevo, agora
importa mais saber um endereço fixo, e seguro, para onde ir. Chegou a hora de olhar para
o momento e refletir sobre a nossa direção. Não é assim que se diz? Importa mais saber
para onde ir. E de repente, 2021 chegou ao fim. E com ele o primeiro ano da terceira
década do terceiro milênio da era comum. Começamos em uma trilha de escombros, sobre
corpos e sobre cinzas. Nada fácil, mas nos mantemos otimistas acreditando num próximo
carnaval. E há de se ter otimismo mesmo no pandemônio já que ainda somos brasileiros
vivos. Vai vendo...
O ano que não durou, foi muito pouco para quase nada do que podíamos fazer.
Agora já passado, despercebido ou ignorado, conta no diário da tragédia os últimos
segundos como somatório de corpos anônimos. Bem lentamente os dolorosos sussurros
que carregamos nos primeiros dias desaparecem da memória. E nos acostumamos…
O caminho parece ser este dado até aqui. No trajeto, a tragédia tornou-se um
costume macabro. Será que estamos muito cansados para se levantar e dizer “chega”?
“Basta”? Não há uma gota d'água que transborde o curso dessa história em um movimento
contrário? Me pergunto se a terceira década, este lugar no tempo aqui e agora onde
estamos, teria começado muito antes. Vivemos num tempo que é sinônimo de crises,
sanitária, climática, ambiental, econômica, humanitária e política. Se ele tem se mostrado
assim, como não ver suas raízes se lançando sobre o passado? E como não ver hoje a
presença desse passado que já anunciava com todos os indícios de um mal-estar
generalizado?
Esse mal-estar se preenche com a crise moral e cotidiana que se sintetizou em
meados de 2013. Os avisos vieram de todos os lados. Das ruas, as manifestações da
juventude nas escolas e universidades, as ocupações, gritavam sobre a necessidade
imediata de ao menos se ter coragem de mudar o rumo das coisas. O medo e o ódio
mostraram a impossibilidade de se realizar uma conciliação democrática e a atmosfera
letárgica foi adensada. E de lá em diante nos acostumamos a catar as migalhas de pão que
nos levaram até esse caminho desconhecido.
Às vésperas de 2022, não há muitas dúvidas quanto à escolha entre esquerda, direita
ou um terceiro sentido para o caminho até aqui traçado. Até lá devemos estar atentos para
que a democracia vença! Precisamos superar a ideia de que “nada mais abala o brasileiro”
cuja consequência é o mal-estar e a letargia. E durante esse caminho de superação
precisamos manter a chama, da juventude sonhadora e rebelde, acesa…

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(Des)ocupando
Por Matheus Novaes
Participei de três ocupações estudantis, uma delas me marcou profundamente.
Acontecimento político? Circunstância de aprendizado? Sim, por que não? Mas entre as
sublimes nomenclatures marciais – a “luta” honrada, nos discursos dos velhos
“companheiros” – e as palavras adversas que nossos ouvidos toleravam – de todos os
tipos, vindo de todos os grupos que se queira imaginar – vivia-se; Melhor, convivia-se.
Alguns diriam que as personalidades de lá se encontravam sob uma causa comum. De
todas as versões esta é, definitivamente, a única falsa. Parecia ser verdadeira ao ouvir o
que se dizia, mas não ao ver o que se mostrava. Se me permitem, será útil que se
exemplifique, posto que é da ordem das coisas múltiplas e irredutíveis que lidamos.
Quando escrevo, forço meus dedos sobre meu lápis de um jeito. Caso eu o substitua,
talvez meus dedos doam. Uma interação simples, entre o sensitivo e o pensado, não sendo
nem um nem outro, que resulta, neste instante palpável – cujo manuseio é todo o instante
– na minha escrita. Uma disposição de forças e dedos, e toda uma eteceteria capaz de
enfurecer o platônico dedicado em seu ofício depurador. Este jeito se transmite ao se
mostrar, não na generalização. Na nossa vida estamos repletos de “impurezas” empíricas
de tal tipo, não somente as coisas definidas dos cadastros científicos mas em toda esta
eteceteria – ou multiplicidade – nomeada de “gestos” e “comportamentos”, em que tais
nomes indicam um significado idêntico, por conseguinte equívoco. Acredito que as
ocupações são um Jeito, não um efeito de causas visíveis, não um lugar ou um
acontecimento; e são, sobretudo, Meu jeito, meu jeito que vou, nos limites do que pode
ser dito, tentar mostrar – sabendo, é claro, que isso é impossível não somente pela
incapacidade inerente as palavras mas sobretudo porque não posso reviver o que vivi.
Mostrando meu jeito, minha ocupação, almejo confessar que vivi – para que tal memória
não se turve e desapareça brevemente.
A comunidade daquele lugar apenas na superfície se poderia crer na causa comum
como, de fato, a causa suficiente. Haviam pautas ditas, repetidas e de valor acentuado e
re-acentuado. Eram realmente importantes, precisamos dizer. A memória de um
participante, muito próximo de alguns, falecido durante a ocupação, é inegavelmente um
assunto para se tratar com cuidado. Tal como todas as pautas associadas ao triste ocorrido
– em geral, a precarização da universidade, a permanência estudantil. Todavia, dispensa
argumentos para dizer que não fomos, nem nos mantivemos lá por isso. Parte considerável
dos interessados não ficou nem se manteve. Por que, então? A resposta a esta pergunta é
a mesma que a seguinte: Por que me lembro tão intensamente desta ocupação? Aqui se
inicia a matemática das coisas, quando os múltiplos, em conjunto, dançam infinitamente.
Todos atuamos naquelas circunstâncias cênicas. Quando as luzes subitamente apagaram,
e no breu temíamos a invasão policial ou algo pior, fizemos das geladeiras barricadas
mais por inocência que por engenhosidade – um integrante mais velho ficou muito bravo
ao ser impedido de fumar por causa dessa babaquice. E rimos como nunca rimos quando
elaboramos minuciosamente um susto a um amigo – mais tarde este ficaria muito irritado
por razões políticas e nunca mais nos falamos. Luzes apagadas no caminho do banheiro,
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na parte mais isolada do espaço, desligada no interruptor. Disseram ouvir coisas estranhas
no banheiro e todos atuando um medo para induzi-lo a coragem. Certeiro, foi a vítima
para sua auto comprovação. Checou o banheiro, muito cuidadoso, sem saber que era a
volta o ápice de seu espetáculo e nossa catarse. Escondido no escuro eu segurava duas
tampas de panelas. Quando ele passou ao meu lado sem me perceber eu bati os pratos ao
pé de seu ouvido e as luzes se acenderam – nunca ouvi tanto grito, nunca vi tanto terror;
Este mesmo banheiro era um pouco assustador e por isso um amigo meu pedia que eu o
acompanhasse toda vez que ele precisava fazer algo lá a noite (2021, dispensem as
brincadeiras). No isolamento desse banheiro fazíamos paródias de funk, em que
substituímos alguns termos pelos nomes de integrantes ou organizações presentes – era
uma crítica? Sim, mas a finalidade era rir, e ríamos muito; Tentei mostrar, mas não posso.
Em que pese a dificuldade de descrever cenas engraçadas fora de seu contexto, perdoem-
me, até porque não é de riso que estamos falando. Também havia amor e paranóia na
comunidade dos estressados.
Um rapaz de quatro namoradas em sequência – alguma simultaneidade? Ignoro;
casais complicados porque ninguém sabia se de fato eram casais. Casais possíveis, em
que a tensão ora era um segredo, ora uma fofoca; um pedido insuspeito de carinho; um
convite de dormir juntos dada a curta amplitude do espaço, acaso ou orquestra? Não se
sabe além do que foi confessado, quando o réu em questão foi acusado pela testemunha,
cujo diálogo não reproduziremos porque temos o direito de ficar calados. Mas nos
reservamos também o direito ou o dever de acusar o silêncio, o silêncio das suspeitas, o
silêncio daqueles que ouvem demais as próprias palavras silenciosas. A paranoia do
roubo, da traição, da maquinação política, dos perseguidores de dentro e fora da ocupação,
dos fardados ou à paisana. Quando a verdade escapa de sua frente para o interior dos
outros, e você sabe que exigir esta verdade levará a destruição. Às vezes se indica, com
cuidado, mas volta atrás porque, envergonhado, teme que se revelem as minúcias de seus
temores obscuros, suas fraquezas correlatas. Nesse nível de tensão terríveis decisões são
tomadas levando a novas e mais profundas tensões que além de seus presentes prejuízos
tem a desvantagem de lembrar do acontecido e seus desdobramentos inexoráveis. Ódio
profundo aos portadores do olhar maquinador, eles sabem não somente o que você não
sabe, mas também: você não sabe o que há para saber. Todavia, não se sabe se foi nesse
espírito que aquela moça me ofertou uma faca em troca de meu recuo, quando votamos a
sua expulsão – e de muitos outros, alguns dos quais eu me arrependo.
Dúzias de personagens entrando e saindo do palco e da cena. Independentes de
organizações, organizados, desorganizados também. Discutindo consigo, com suas
organizações e com os amigos próximos os procedimentos conjunturais da economia
política dos afetos. Afinal, não é fácil erguer fronteiras quando se dorme um ao lado do
outro, naquele chão que nós mesmos limpamos um dia inteiro junto de mesas cuja poeira
desenhava os objetos nela esquecidos desde o fechamento do Restaurante Universitário
em questão. Meu corpo, desinfetante. Minha alma, estranha vontade de poder mostrar pra
mim que eu era capaz. Capaz de espalhar do meu Ser para todo o território aquele
insuportável cheiro de desinfetante apenas para dizer, mais para mim que aos outros: Não
se preocupem, isso eu já resolvi. Um homem que vale por cinco faxineiros depois dormiu

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com a alma lavada – e fedorenta. Há um vínculo entre política e higiene e também entre
culpa e ócio. Ver alguém andar é o bastante: Chega. A culpa te consome e você vai atrás
de qualquer coisa para fazer, só que não havia fim. E nesse trabalho de Sísifo de alimentar
centenas de estudantes gratuitamente, manter a limpeza e organizar a segurança estava lá,
o parasita. Alguém, simplesmente, parado. E ele te olhava enquanto sua inércia persistia
e nesse olhar uma língua circunstancial era estabelecida a qual ambos eram fluentes: o
ressentimento. Muitas pequenas confusões e grandes inimizades nasciam de conversas
desse gênero, como quando um pé tatuava sua sola no chão molhado. Homicídios não
houveram, felizmente – se não na imaginação de gente ocupada. Para evitar mal
entendidos, a melhor alternativa era a iniciativa. Um grande sistema de cobranças tácitas
e respostas imediatas se criava em que o efeito de antecipar a causa era a força motriz.
Adequar-se a tais circunstâncias implicava na modulação dos hábitos e
organizações corporais. As madrugadas de vigília, obrigatórias para a manutenção da
segurança, resultaram em conversas silenciosas ou, no caso da extrapolação, em rodas de
violão e debates espontâneos para o terror dos sonolentos. Naquelas madrugadas eu via
pichadores grafando na noite veloz; os corredores da UERJ desabitados, escuros,
brilhavam objetos não identificados; ouvi tiros e curioso, vi. Sobretudo conversei e, no
dia seguinte, percebi que um grande esquema político havia manejado meu horário de
dormir. O esquema era o seguinte. Eu e outro rapaz não estávamos disponíveis a
cooptação e iríamos ficar de segurança. Outros dois que também ficariam estavam sem
organização. Colocaram estes em melhores horários, acompanhados de moças da tal
organização. Resultado: Ódio, ódio, ódio; ódio que só não poderia ser maior do que aquele
que eu senti quando um moço dessa mesma organização me acordou na manhã seguinte.
Multiplique cada tipo dessas experiências por mil, preveja o não-dito e você entenderá
que a comunidade dos estressados faz jus ao seu nome. Sintonia comum, não causa
comum. Sob chão duro estendemos colchões finos, trocando os últimos olhares com
rostos proibidos. Você desaprende e reaprende a sonhar nessas circunstâncias. Sonhos
oníricos, das canções políticas ocasionais, sonhos eufóricos, performados em nossos atos
que somos inteiramente. Vivíamos na intimidade dos pequenos jeitos compartilhados,
desafiando a divisão genérica entre Terror, Amor, Suspense, Ação. Os panfletos, nossos
cartazes cinematográficos diziam se tratar de um filme político próximo do romance
policial. Na verdade, a política era um minúsculo laço idêntico à função das vírgulas entre
as palavras. Nossa história era híbrida, gênero etecétero. Uma rede manufaturada de
experiências, inacabada, posto que até hoje seus participantes sentem este estranho
vínculo, muito familiar, além da rememoração. A ocupação do Bandejão da UERJ foi um
jeito, como o jeito de escrever ou costurar. Para transmitir só posso mostrar, dizer não
basta; contanto, vou escrevendo para que este Jeito, que é meu jeito, mostre que só é meu
porque sou resultado dessa costura coletiva, costura silenciosa e implícita por trás de
nomes antigos. Restaurante universitário, ocupação estudantil, Matheus Novaes,
etecetera.

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Bora Apre(e)nder?

A literatura como fuga do enclausuramento pandêmico


Por Lorena Izabele Lima de Almeida1
“Um leitor vive mil vidas antes de morrer. O homem que nunca
lê vive apenas uma.” — George R. R. Martin.
Inicio com esta epígrafe do George R. R. Martin que, apesar de clichê, traduz
exatamente o que é ser um leitor. Além do mais, eu não conseguiria explicar tão perfeita
e sucintamente o significado, então utilizar uma frase que adoro de um autor que gosto
muito me pareceu uma boa maneira de começar esse ensaio.
Dito isso, como todos sabem, a pandemia que se deflagrou no Brasil no início de
2020 deu uma grande reviravolta nas nossas vidas e, assim como a muitos, ela me afetou
bastante, mas, apesar de todas as adversidades, algo que se tornou muito especial na
minha vida acabou (res)surgindo.
No entanto, vou recuar mais um pouco para falar sobre o tema deste artigo. No ano
de 2016 se deu aquilo que podemos chamar entre os leitores de ressaca literária. Isto
ocorreu após o processo do término do Ensino Médio e ENEM, quando fiquei
extremamente sobrecarregada e acabei ficando saturada de ler qualquer coisa que não
fosse necessária para minha formação acadêmica.
A ressaca literária é um período de hiato em que você não consegue ler nada. O
termo faz total sentido quando relacionado a um dos significados para a palavra “ressaca”
no dicionário: “indisposição sentida por quem para subitamente de consumir uma droga
da qual é dependente”. Felizmente, o vício em leitura não tem nada a ver com
dependência química, mas o termo pareceu adequado e acabou se popularizando entre os
leitores.
Desde a minha pré-adolescência eu lia assiduamente e quando isso mudou achei
que nunca mais fosse voltar a ler como antes e que a magia dos livros havia acabado para
mim. Contudo, ainda bem que estava enganada, pois logo no início da quarentena, no mês
de maio de 2020, para ser mais precisa, eu voltei a ler numa intensidade
consideravelmente alta e há muito não vista.
A pandemia, apesar de tudo de ruim que trouxe consigo, conseguiu fazer com que
eu resgatasse minha paixão pela leitura, a qual, sem dúvidas, teria continuado adormecida

1
Criadora de conteúdo digital literário no Instagram @bookstanobcecada, graduanda em Direito pela
UFERSA.

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por um bom tempo, pois minha vida andava em um ritmo tão acelerado que voltar a ler
não estava nos meus planos imediatos.
Quando a quarentena teve início, eu comecei a trabalhar no home office, mas tinha
muito tempo livre, já que a Universidade havia suspendido as atividades em prol do
isolamento social requerido pelo período atípico de pandemia. Diante dessa situação, me
vi extremamente entediada ante a enorme quantidade de tempo ocioso que tinha à minha
disposição.
Sendo assim, decidi que era um excelente momento para retomar o hábito de leitura
e embora não tivesse nenhum livro em mente, sabia que deveria iniciar por um gênero
que gosto e que, de forma geral, é de fácil compreensão e entretenimento. Portanto,
escolhi um romance e logo me vi envolvida na trama e comecei a buscar histórias
similares, depois passei para a leitura de livros do meu gênero favorito, que é fantasia.
Após dado esse pontapé inicial as leituras começaram a fluir em um ritmo acelerado.
A retomada do hábito trouxe consigo uma enorme vontade de compartilhar minhas
leituras. A ideia surgiu após ler um livro que me deixou ansiosa para recomendá-lo a
outras pessoas. Sempre tive vontade de criar um blog e a ideia me parecia muito
interessante, então acabei criando um blog literário e comecei a compartilhar conteúdos
relacionados a livros e às minhas leituras.
Não houve um projeto prévio para que a ideia fosse posta em prática, tampouco um
planejamento do que eu iria postar depois que começasse, qual seria a frequência e quais
conteúdos eu gostaria de produzir, apenas criei o blog e comecei a compartilhar minhas
experiências literárias.
Posteriormente, percebi que deveria ter planejado melhor a coisa, verificado se a
plataforma seria interessante e viável para o fim que eu almejava, e se haveria um público
interessado no que eu estava fazendo. Essa ausência de planejamento e o impulso de
querer criar imediatamente o blog foi sentida pouco tempo depois do seu início, quando
os acessos começaram a cair e a interação era quase nula, posto que a maioria das pessoas
que acessava o blog eram meus amigos e nem eles se mantiveram interessados no que eu
estava produzindo. Parecia mais que eu os estava forçando a consumir um conteúdo numa
plataforma que eles não acessariam normalmente.
Eu fazia a divulgação das publicações do blog por meio do meu perfil pessoal do
Instagram, plataforma que, atualmente, quase todo mundo usa e que é uma das melhores
formas de compartilhar conteúdo. Devido a isso, acabei criando um perfil exclusivamente
para fazer a divulgação das postagens.
Contudo, o Instagram só permitia o compartilhamento de links através dos stories
se o usuário tivesse mais de 10 mil seguidores, de modo que, para redirecionar o público
da plataforma para o blog, era necessário que eu inserisse o link na biografia do meu perfil
para que o usuário pudesse acessá-lo através dele. Talvez percebendo o quanto os usuários
estavam insatisfeitos com isso, a plataforma passou a fornecer uma ferramenta nos stories

11
para que todos possam compartilhar links, sem a limitação de ter 10 mil seguidores para
fazer isso.
Todavia, na época, exatamente por essa “dificuldade”, percebi que não estava sendo
viável manter o blog, pois notei que havia uma indisposição geral para seguir todos esses
passos e que as pessoas estão interessadas em conteúdos entregues “de bandeja”, algo
rápido e fácil de ser consumido, coisas que não demandam qualquer tipo de esforço e
sejam imediatas.
Com isso em mente, mas ainda muito ligada a ideia do blog, porém um pouco
frustrada por não estar dando certo e relutante por abandonar algo que eu queria tanto
manter, decidi compartilhar minhas leituras e outros conteúdos literários exclusivamente
através do Instagram.
Entretanto, assim como no blog, não houve particularmente um planejamento da
minha parte, apenas deixei o blog de lado e segui com o Instagram, postando como podia,
ainda sem uma identidade visual definida, sem saber utilizar corretamente as ferramentas
para criar os posts, sem uma frequência adequada e sem conseguir captar novos
seguidores que se interessassem pelo conteúdo a ponto de interagirem com o perfil.
O início do meu bookgram2 foi bem conturbado, eu não sabia o que estava fazendo
direito, ainda estava bastante ligada ao blog e acabava por produzir um conteúdo que não
era usualmente consumível pelo público do Instagram, já que tinha textos muito longos e
a maioria das pessoas não tem interesse em algo tão extenso. Os usuários das redes sociais
querem posts curtos e rápidos, com informações sucintas, fáceis de digerir e que sejam
visualmente agradáveis.
A parte do visual foi uma das que mais me deram problema, juntamente com a
extensão dos meus textos, pois sempre gostei de escrever muito e não conseguia resumir
minha opinião sobre determinado livro em três ou quatro parágrafos, como também não
tinha a menor ideia de como tirar fotos de livros que chamassem atenção.
Hoje eu sinto que evoluí bastante no visual do meu perfil, mas ainda preciso
melhorar no que diz respeito à extensão dos posts. Consegui diminuir consideravelmente
o tamanho das resenhas e repassar outros conteúdos de maneira mais eficiente, mas ainda
sinto que não é o suficiente. Fui me aprimorando nisso através, principalmente, da
observação de outros perfis do mesmo nicho para me inspirar, analisando o que parecia
dar certo e o que não era tão interessante, e, da tentativa e erro, testando o que agradava
mais ao meu público leitor.
Destarte, entendo que se adequar aos anseios do seu público alvo é de extrema
importância para atingir um número maior de pessoas, mas, pessoalmente, não me agrada
muito a ideia de mastigar tanto uma opinião ou comentário sobre algo a ponto de torná-
los quase inexistente, motivo pelo qual embora eu tenha diminuído o tamanho das minhas

2
Termo utilizado no mundo literário para denominar um Instagram voltado à produção de conteúdo
relacionado a livros. “Book” significa livro, em inglês, e “Gram” vem de Instagram.

12
resenhas sobre os livros que leio, procuro não deixar o texto tão diminuto que não
expressará de fato o que penso sobre a obra.
Por outro lado, com exceção das resenhas, aprendi a entregar os demais conteúdos
(indicações de livros e dicas relacionadas a leitura) de maneira mais rápida e concisa, bem
como consegui me reinventar na forma de repassá-los, explorando as possibilidades que
a plataforma oferece e buscando deixá-los o mais atraente possível, com a ajuda de
aplicativos e sites voltados à produção de conteúdo.
Ainda estou lutando com a plataforma para conseguir me estabelecer de forma
satisfatória, passei por diversos problemas relacionados a bugs e aos algoritmos do
Instagram, os quais me desanimaram bastante e fizeram com que meu perfil não tivesse
o crescimento que eu esperava, mas aprendi a criar estratégias para contornar alguns deles
e sigo tentando fazer dar certo.
Uma das estratégias para contornar essas situações foi aumentar a quantidade de
posts semanais, já que antes eu não tinha um planejamento e só postava quando dava.
Assim, passei a tentar postar um dia sim e um dia não, alternando entre posts de resenhas,
dicas sobre livros, indicações de leituras e reels cômicos sobre livros e leitores. Percebi
que isso melhorou muito o engajamento do meu perfil, pois o que a rede social quer é
usuários ativos e que se dediquem a ela, postando com frequência e utilizando todas as
ferramentas que deixa à disposição deles.
Uma das coisas mais importantes que aprendi com toda essa experiência foi que o
planejamento é algo fundamental quando se começa um novo projeto. Sem um
planejamento adequado dificilmente algo que você pensou dará certo, por mais bacana
que pareça ser na sua mente, até mesmo porque nem o planejamento garante o sucesso,
mas é o primeiro passo para que você chegue lá.
Organização e a imposição de limites a si mesmo também é indispensável, já que
não adianta fazer um planejamento que você não vai seguir no final porque não se
organizou para colocá-lo em prática, ou porque está além do que você pode fazer no
momento. Aprendi que o ideal é começar aos poucos e ser realista consigo mesma quanto
ao que você pode fazer e o que você está disposto a fazer.
Produzir conteúdo para o Instagram tem me mostrado que, apesar de você amar o
que faz, inevitavelmente você irá se estressar e terão momentos que vai pensar em jogar
tudo pro alto e desistir daquilo. Porém, no final, você desiste de desistir, se é que isso faz
qualquer sentido, e continua fazendo aquilo porque é algo tão gratificante que vale a pena
enfrentar as adversidades para continuar fazendo.
Ler e falar sobre minhas leituras também tem me ajudado a encarar outros pontos
de vista, entender outras realidades, refletir sobre temas que normalmente eu não refletiria
e aprender coisas novas com cada personagem e cada história. É fundamental essa
reflexividade acerca de ações literárias e suas relações com as ações do nosso cotidiano,
pois a arte imita a vida tanto quanto a vida imita a arte e sempre temos algo a aprender
com os livros. Por isso a frase do Martin faz tanto sentido para mim, de fato, você vive

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mil vidas na pele de outras pessoas, aprende com os erros e acertos de cada uma, passa
por diversas situações, boas e más, que sempre tem algo a ensinar, tudo isso em lugares
que você poderia jurar que já esteve, porque foi transportado para lá através da leitura.
São viagens curtas e longas que servem como um escape da realidade, ao mesmo
tempo em que ajudam a encará-la de uma forma diferente, melhor, com mais indulgência
e sensibilidade. Ler se tornou um hábito de puro prazer, é o momento no qual mergulho
na história e realmente fujo um pouco da realidade, emergindo em outros universos a
ponto de esquecer um pouco do meu, mas sempre voltando deles com múltiplos
ensinamentos e contribuições.
De certa forma, estas atividades me deram o prazer de construir um espaço
destinado aos livros e que vem se ampliando cada vez mais. Um espaço não só virtual,
mas também físico, já que venho ampliando meu perfil literário tanto quanto a minha
coleção de livros desde 2020. Confesso que este último tem sido um sonho meu desde a
adolescência, e poder fazê-lo agora me deixa extremamente feliz.
Ademais, sinto que minha escrita melhorou bastante desde que passei a ler e
escrever mais, meu vocabulário tem se ampliado e meus textos ganharam maior fluidez e
coerência. Isso vem me ajudando profissionalmente no meu estágio, onde realizo a
produção de peças jurídicas, já que a escrita é minha principal ferramenta de trabalho, e
ver que ela está se aprimorando em decorrência de algo que adoro fazer me deixa muito
feliz e me faz perceber o quão enriquecedora está sendo essa experiência.
Isto porque, quanto mais você lê, melhor, maior e mais rico vai ficando o seu
vocabulário, deixando sua escrita mais coesa e clara. Adicione-se a isso que, como dito
anteriormente, a leitura nos deixa sensíveis a outras realidades e é uma excelente forma
de ter contato com culturas e pensamentos distintos dos nossos, para que possamos
exercitar no senso crítico e sermos mais complacentes.
Para criar um hábito de leitura é importante começar aos poucos, levando em
consideração sua rotina para que consiga estabelecer um momento adequado a ser
dedicado a isso. Você pode começar separando 20 minutos do seu dia para ler, ou ler nos
finais de semana, ler entre suas atividades diárias, como, por exemplo, durante o trajeto
para a escola ou trabalho, o importante é começar de alguma forma e evitar distrações
durante esse momento, principalmente o celular.
O ideal é iniciar com livros de gêneros que você acha que irá gostar, o que pode ser
aferido através das suas preferências de filmes e séries, já que a maioria deles toma por
base obras literárias. É interessante também estabelecer metas de leitura alcançáveis, tais
como determinada quantidade de páginas ou capítulos a serem lidos. Contudo, nada de se
pressionar para ler mais em vez de ler melhor, a leitura deverá ser prazerosa e não se
transformar em uma obrigação, portanto, leia da maneira que é mais confortável para
você.
Sou do tipo que acha que se alguém diz que não gosta de ler é só porque não achou
o livro certo ainda. Eu acredito que todo mundo poderia gostar de ler se tentasse da

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maneira correta, e qual é essa maneira somente a pessoa poderá dizer, pois depende das
peculiaridades de cada um, mas seguir as dicas que eu dei pode ser um bom caminho se
você não faz ideia de como começar.
Voltar a ler representou um resgate de quem eu era, assim como me ajudou em
momentos bem difíceis, levando-me a criar algo em torno disso que vem se tornando
bastante especial na minha vida. Portanto, ter criado um ambiente voltado ao
compartilhamento das minhas leituras está sendo uma experiência maravilhosa e, a
despeito das dificuldades, é algo que me engrandece e que pretendo continuar fazendo. A
leitura se tornou algo essencial na minha vida e não me vejo mais sem ela, tenho
aprendido e crescido muito com os livros e espero que este ensaio inspire alguém a dar
início a este hábito ou a retomá-lo, e que se torne tão especial para vocês quanto é para
mim.
Quem quiser indicações de livros para ler e dicas relacionadas à leitura pode me
seguir no meu bookgram @bookstanobcecada, lá vocês encontrarão diversos conteúdos
bacanas relacionados a livros, em um espaço totalmente dedicado a essa minha paixão e
criado especialmente para compartilhá-la.

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O ensino de Geografia e o espaço vivido nas escolas
Por Romi da Silva Pereira3
O ensino de geografia está centrado na prática educativa ministrada pelo professor
e na inter-relação do mesmo com os alunos. Essas relações de interação entre professor e
aluno, ocorre a necessidade do docente articular para obter as possibilidades da realidade
vivida pelo discente. O professor não deve intervir para acabar com os desejos e anseios
do aluno, mas para libertá-lo das correntes invisíveis que o cercam em seu cotidiano.

Tendo em vista a importância do ensino de geografia e suas limitações no que diz


respeito ao ensino de nível médio e fundamental, é preciso antes de tudo analisar os
aspectos de âmbito, social, cultural, político, e principalmente a relação da realidade
vivida entre alunos e professores.

Nesse sentido, significa dizer que o processo de construção do ensino de geografia


é transformado mediante as características de produção e reprodução do espaço social. A
sociedade moderna constitui um cenário que liga entre si as relações entre o homem e a
natureza, que modifica os espaços vividos, que os mesmos também se transformam em
espaços de contradição social e cultural. Mas é preciso ver além dessas contradições para
que possamos precisamente chegar a uma sociedade de bem estar social, político,
econômico e cultural.

O espaço sociocultural conduz reflexões sobre a realidade vivida da sociedade, ou


seja, a ação da humanidade como processo de construção do espaço geográfico a partir
das transformações antrópicas sobre o meio natural. Nessa perspectiva é preciso verificar
as formas de dominação, exploração e exclusão que predominam no sistema capitalista.
O ensino/ aprendizagem de geografia crítica proporciona realizar elementos essenciais
para projeção da formação de cidadãos críticos para transformar o espaço vivido.

Aprender é um exercício dinâmico e complexo principalmente quando pensamos o


espaço vivido da sociedade. Esse processo de ensino/aprendizagem na geografia crítica
para compreender a realidade vivida por todos os discentes. Podemos verificar como um
dos maiores desafios da educação na atualidade é trabalhar com a capacidade crítica e
reflexiva do educando, a fim de prepará-lo para a luta e o enfrentamento das
desigualdades sociais presentes na sociedade atual, totalmente articulada no sistema
capitalista.

Nessa perspectiva observamos que o ensino de geografia é bastante amplo e por


isso devemos trabalhar com a transdisciplinaridade principalmente com a sociologia,
história e filosofia, mas também com várias áreas de ensino que têm objetivos da

3
Professor da rede municipal de Poção e Serra Talhada/PE. Graduado em Geografia pela Universidade
Regional do Cariri (URCA), e Especialista em Ensino de Geografia, História e Filosofia.

16
construção da realidade vivida das economias, políticos e culturais dos discentes. A
ciência geográfica tem que apresentar temáticas para promover debates em nossa prática
como pensadores revolucionários para transformar o ensino tradicional, por novas
abordagens dos ensinos críticos e reflexivos para existir a integração do meio
sociocultural, político e econômico

Em outras palavras, a educação como prática de liberdade não pode apenas estar
preocupada com a cultura individual que a sociedade capitalista impõe e modela o
comportamento do espaço vivido. A proposta de uma pedagogia libertadora, a partir dos
problemas enfrentados pelo aluno no seu cotidiano, faz com que ele possa entender e
compreender a realidade vivida de sua classe social, e possa também obter o senso crítico
na medida em que o processo do sistema capitalista evolui.

O ensino de Geografia como forma do saber epistemológico, parte do princípio de


que tanto o conhecimento tradicional como os novos métodos (a pedagogia neo-tecnicista
em moda atualmente), proporcionaram diversas interpretações da realidade, isto é, o
conhecimento tem por objetivo a adaptação do indivíduo ao meio social, e acaba por vezes
a condicionar os alunos a aceitarem como natural as desigualdades sociais. O
relacionamento entre professor e aluno em muitos casos é predominante de forma
autoritária do professor que exige uma atitude receptiva dos alunos e impede qualquer
comunicação entre eles no decorrer da aula, o professor transmite o conteúdo na forma
de verdade a ser absorvida: em consequência, a disciplina imposta é o meio mais eficaz
segundo o sistema educacional para assegurar a atenção e o silêncio.

Isto ocorre devido a práticas pedagógicas conservadoras e dos meios econômicos


e políticos que existem em muitos casos para a transmissão de conteúdo ao aluno, e não
identificam que esses conteúdos partem das relações de interesses do capitalismo.

Para isso é necessário desenvolver práticas educativas em que os alunos possam ver
a realidade vivida como o processo de transformação social, cultural e política, garantindo
que o aluno desenvolva o senso crítico quando o mesmo se depara com o conhecimento
tradicional a possibilidade de novos conhecimentos. A questão da identidade
sociocultural, de que faz parte a dimensão individual e a de classe dos educadores cujo
respeito é algo fundamental na prática de um educador. Nesse sentido podemos perceber
que a educação é mais que um processo meramente científico, sendo preciso entender e
interpretar a realidade vivida dos alunos em seus modos culturais, econômicos e sociais
em que vivem.

É preciso refletir sobre o ensino de modo que possamos analisar a realidade


socioespacial do sistema educacional e apostar no reconhecimento do ensino de
geografia, caso contrário, corremos o risco de interpretar seu objeto de estudo de forma
ingênua e perigosa para o ensino. Nesse sentido, o espaço vivido deve ser incorporado e
utilizado em novas práticas educativas, por isso os conteúdos assimilados constituem em
dominação de conhecimento relativamente incorporada pelos professores que reflete as
realidades sociais dos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem.

17
A valorização do ensino de Geografia como instrumento libertador e crítico do
saber é o melhor serviço que se presta aos interesses sociais e culturais do espaço vivido.
A própria escola pode contribuir para eliminar a relação da seletividade imposta pelo
sistema de ensino burocratizado e tornar-se mais democrática a serviço do social. A
motivação depende da força de estimulação do problema e das disposições internas e
externas do aluno. Assim o processo de aprendizagem se torna uma atividade de
descoberta, é uma auto-aprendizagem e que também se incorpora estruturalmente os
princípios sociais e pessoais deles.

Portanto, é preciso saber dialogar com cada aluno para se obter uma melhor
concordância na dialética que existe entre professor e aluno. Ensinar geografia no ensino
fundamental e médio requer uma postura diferenciada frente aos alunos, devido a maneira
como cada um interage no meio social frente ao seu espaço vivido. Nesse processo temos
várias dificuldades que precisam ser superadas, para que o processo educacional se torne
de maneira prazerosa e não como uma tortura mental como o que acontece em grande
parte dos sistemas de ensino.

18
Mais educação, menos instrução: por que precisamos discutir
sobre o modelo de educação em nossas escolas e universidades
Por Coletivo Terral

A mudança causada pela pandemia na rotina dos estudantes e professores em todo


país foi visível. No lugar de um ambiente físico, surgiu um espaço virtual que teria,
segundo muitos teóricos das metodologias ativas, a possibilidade de maximizar o
aprendizado dos estudantes. Entretanto, na prática docente diária, foi perceptível que toda
essa empolgação tecnológica apregoada aos quatro cantos muitas vezes não passou de um
canto de sereia, tendo em vista que, dentro de um espaço potencialmente disruptivo, as
práticas arcaicas de educação foram reproduzidas, adquirindo uma performance ainda
mais tradicional. Não houve mudança significativa na aprendizagem, porque a aula
instrucionista – que não forma autores, pesquisadores, apenas memorizadores e
repetidores – ainda é proeminente nas instituições de ensino. Acabam persistindo sistemas
prontos, como caixas educacionais, nas quais o professor, como mero reprodutor de
métodos autointitulados ativos, acaba por, em uma infinidade de mudanças, realizar o
mais do mesmo educativo perpetuado por décadas na educação brasileira.
É sabido que vários problemas estruturais foram e ainda são detectados nesse novo
cenário educacional, já existentes antes e durante a pandemia, a saber: a falta de internet
e/ou a sua precariedade na casa de estudantes e docentes; o descaso do governo federal,
em especial, em ajudar os estudantes a terem internet em seus lares; o trabalho em excesso
de professores e alunos; a pressão sofrida pelos professores por mais produtividade; os
casos de ansiedade, depressão e esgotamento mental e cognitivo decorrentes desse
período dentre outros. Gostaríamos, entretanto, de direcionar nossa análise para um outro
lugar muitas vezes não visto, porque é facilmente encoberto pela dura camada de verniz
dada pelo ensino tradicional arcaico e obsoleto de ensino-aprendizagem: a aula
instrucionista.
Possivelmente você esteja se perguntando por que razão a aula seria um problema,
e não uma solução plausível diante do caos que estamos vivendo. A questão precisa ser
colocada da seguinte forma: por quais razões precisamos da aula tal como ela é
preconizada nos espaços institucionais? E, se precisamos de aula, de que tipo ela seria?
Se formos assistir e participar da maior parte das aulas remotas que estão sendo dadas no
país, em geral encontraremos um professor falando e alunos ouvindo. Qual o problema
disso? Não seria assim que se aprende? Não é ouvindo o professor/tutor/orientador que
os alunos vão aprender a matéria?
Na verdade, há um grave problema nisso. Ensinaram-nos que os saberes formais,
consolidados, realmente se aprendem apenas na escola, que nela aqueles recebem
tratamento pedagógico-didático necessários para a aprendizagem e que nela aprendemos
a estudar – um erro gravíssimo, porque aprender e estudar são ações que praticamos
intuitivamente desde a tenra idade, sem haver a estrutura formalizada e instrucional que
o espaço escolar tradicional oferece. Mas de que tipo de estudo aqui estamos falando e de

19
que tipo de forma de aprender? Estudar, na perspectiva da instrução, significa ouvir,
copiar, memorizar as informações ditas pelo professor ou pela professora e transcrevê-las
em uma avaliação escrita, uma prova, com o fim tão almejado de obter aprovação na
disciplina. Nesses termos, o conceito-ação de estudar, que também se confunde com o
conceito-ação de aprender, significa não faltar aula, ser assíduo, ser um ouvinte atento,
ser participativo – mas dentro dos limites do ensino tradicional. No mesmo sentido, as
avaliações se transformam em métodos de correção dos aprendizes, a régua pela qual é
medida a aprendizagem. Mesmo se tratando a escola de espaço de educação formal,
institucionalizada, e ainda havendo outros espaços de aprendizagem construídos em
ecologias ou ecossistemas o mais das vezes mais orgânicos, menos formais e, por isso,
menos instrucionistas, é o caráter meramente robótico, mecanicista, unidirecional dos
espaços formais de educação, como o da escola em tempos de pandemia, que tem
"cimentado" a prática de ensino-aprendizagem em termos teleologicamente instrucionais
e corretivos: um saber-para, mas um “para” cuja ontologia é tão somente a aprovação,
validação, diplomação da correção.
O ensino tradicional é, pois, resultado de sistematizações datadas desde a Idade
Média, mas sua didática foi consolidada e forjada aos moldes da sociedade disciplinar,
típica do século XIX, após a Primeira Revolução Industrial desenvolvendo a urbanização
e conseguinte processo maciço de escolarização das grandes cidades europeias. É
importante situar a conjuntura social e política para compreender esse fenômeno: para o
contexto da sociedade disciplinar e das políticas de dominação dos corpos (como ressalta
Foucault em seus estudos sobre novas formas de governamentalidade e
biopoder/biopolítica), a educação tradicional foi uma proposta disruptiva e bastante
inovadora. Concebendo a educação como repasse do conhecimento desenvolvido em
cascata, havia, portanto, método definido, tampouco didática. O método tradicional,
naquele contexto, trouxe a construção de um paradigma moderno, tal qual a introdução
das máquinas à vapor na construção de produtos têxteis. As formas disciplinares de poder,
como nesse tipo de escola, contudo, não desapareceram na passagem dos séculos XX e
XXI, mesmo com tentativas de superá-las, mas antes se colocaram como camadas
adicionais de regulação dos corpos, ao pôr em funcionamento a amplificação do
instrucionismo.
Se pensarmos todos os desdobramentos técnicos, científicos e epistemológicos, a
escola se manteve como uma tecnologia de época. A escola, numa perspectiva tradicional,
é a reprodução de um modelo esgotado em si, que reproduz um condicionamento
psicossocial de dois séculos passados. A questão central do debate é: apesar de toda
inovação tecnológica, na educação prevalece a mesmice de compreensão da construção
do conhecimento ainda vigente. O tradicionalismo é uma prática anacrônica, que não leva
em consideração diversos contextos de ensino e aprendizagem. Pior que isso, com a
ascensão da tecnologia, uma compreensão reflexiva recuou mais ainda: o novo tecnicismo
criou pacotes prontos de modelos educacionais replicáveis, tais como uma comida "fast
food". Quando se degusta, o gosto é artificializado, repetido, sem o verdadeiro sabor de
comer - e aqui, de educar.

20
Relevante notar que, em momento algum, foi colocado em foco a aprendizagem do
estudante e do professor (sim, ele ou ela aprende durante o processo, negar isso é assumir
a ideia de que o docente deve apenas transferir informação). Mais ainda: repare que não
foi dado destaque para qual tipo de educação queremos para a nossa população. O que
basta nesse modelo de ensino é dar conteúdo para dizer que aquilo foi visto em sala e,
mais à frente, ser cobrado e mensurado com o intuito de dar uma nota e parametrizar os
aprendizes. Criam-se, desse modo, formas programadas de hábito e repetição.
E qual o real valor dado para a aprendizagem? Aparentemente nenhum. O mercado
e as escolas preparatórias para vestibulares convenceram a sociedade de que a melhor
escola ou faculdade para estudar é aquela que faz o estudante passar em um processo
seletivo; é preciso deixar muito claro, entretanto, que educar não se limita a essa pequena
parte de um todo um processo complexo que é formar alguém para a vida, a cidadania, o
trabalho, a política, os direitos humanos, dentre outras dimensões da vida humana e não
humana. Sim, você leu corretamente: não humana. Porque não há como acreditar que nós,
humanos, nos bastamos e que o planeta Terra, por exemplo, está ao nosso bel-prazer.
Uma forma de deformar o estudante, e por consequência sua família e a sociedade,
é enchê-lo de aula, uma após a outra: de 7h às 12h45, de 13h às 18h45, se quiser à noite
também, o freguês escolhe. Só não pode escolher tempo para imaginar, pensar, pesquisar,
transgredir, romper ideias, isso a escola não pode oferecer, já que a interatividade
possivelmente latente que o espaço oferece circunscreve o aprendiz a uma habituação a
um conjunto de rotinas e tarefas cuja finalidade nunca é a longo prazo, como um objetivo
crítico-reflexivo de transformação do indivíduo pelo conhecimento. Aula, nessa
concepção bancária, como dizia Paulo Freire, significa estar exposto a ouvir alguém, o
aluno pode até falar, mas não muito, porque atrapalha a aula, e aula é tempo, e tempo é
dinheiro, e dinheiro é o que importa no capitalismo. É a economia aplicada à educação:
uma acumulação primitiva de conteúdos que serão investidos em determinados
momentos-chave para o estudante, que almeja alguns objetivos utilitários - o sucesso em
processos seletivos, cada vez mais exigentes e excludentes. Sabe-se cada vez mais para
aplicar determinado tipo de informação aplicada (construção de meros conhecimentos de
técnicas de realização de provas) cada vez mais complexas. Neste sentido, a educação
serve mais à imposição de comportamentos homogêneos, habituais, predispostos a
objetivos mercadológicos, transformando-se em forma de controle direto sobre os
indivíduos. Como diria Jonathan Crary, a respeito das modalidades de ação 24/7 (“24
horas por 7 dias” da semana), típicas do capitalismo pós-fordista, a pretensão de valorizar
a educação e a participação cívica, crítica, reflexiva, muitas vezes se esgota na medida
em que a cidadania, o protagonismo e a agência do aprendiz são suplantadas pela
condição de espectador e do professor, pela de transmissor.
Por onde andará a (co)criação, a justiça social, a inventividade, a proteção ao meio
ambiente, a imaginação, a consciência cidadã, a participação política no processo de
educar alguém? Nesse tipo de escola não há espaço para isso nem nunca haverá. Para os
tecnocratas da educação, isso não interessa, o que vale, de fato, é saber se o estudante vai

21
acertar as questões das provas e, assim, fazer daquela escola uma referência nos números
governamentais.
Nesse sistema, como se pode ver, o que importa é dar e receber aula, e muita aula.
Entupir os sentidos dos estudantes até estourá-los. Exaurida: é assim que uma criança do
1º ano do ensino fundamental já começa a se sentir quando inicia a vida enquadrada nas
escolas. É bastante comum as crianças desse período reclamarem que a escola deixou de
ser um espaço de alegria para um ambiente de tédio em que se copia, soletra, conta. O
que a escola fez com a curiosidade científica das nossas crianças? O que a escola fez com
a arte? Além do mais, se desaprende a ter um conhecimento espontâneo e livre e se inicia
a “catequização” em categorias e cosmovisões fechadas, herméticas e não contraditórias.
Mas o que é a vida sem a contradição? Paulo Freire indaga que o diálogo pode ser
comunicativo, mas também dialético e epistêmico, além de ser um sintoma saudável de
sociedades democráticas e não autoritárias. A curiosidade infantil pode se tornar a
curiosidade epistêmica. E caminhos diversos não se coadunam no instrucionismo. Há
apenas um, e aquele é o único possível.
Já podemos vislumbrar como esse estudante chegará no ensino médio.
Possivelmente sua cognição estará completamente deformada, imaginando que aprender
se resume em duas ações: ouvir alguém falando por horas e horas e saber demonstrar o
que ouviu e leu em testes padronizados de larga escala para passar nas provas. Será que
saber pensar se tornou "démodé"? Essa mentalidade mudará nos quatro ou mais anos de
universidade? Possivelmente não. A não ser que ele encontre docentes comprometidos
com a sua educação e aprendizagem, o que significa tornar o aprendiz em alguém curioso
que pesquise e produza conhecimento, e não apenas deposite informações descobertas
por outros cientistas nas provas.
E aqui fica a pergunta: onde está a produção de conhecimento da escola?
Certamente ali não se constitui apenas como um ambiente para se assimilar conhecimento
morto, consolidado; mas, sobretudo, para dar continuidade ao que já foi descoberto por
outros inventores, pesquisadores e cientistas. Não se assiste a aulas apenas para ficar
repetindo e memorizando o que foi descoberto; assiste-se a aulas para continuar criando,
errando, imaginando, inventando como todo e qualquer aprendiz faz; no entanto, nesse
tipo de ensino instrucionista, não há espaço para invenção, para a construção em conjunto
de novas formas de existências. A escola é uma preparação para desafios futuros, e não
apenas entendimento de desafios já passados, debatidos e institucionalizados. É
fundamental ter espaço para a criação genuína, para a criatividade de construção de óticas
das múltiplas realidades dos viventes. O pensamento enciclopédico é bom, mas inócuo e
por muitas vezes sem sentido para o preenchimento de questionamentos éticos,
existenciais e dos devires que a vida nos coloca.
Enquanto tivermos escolas, institutos, faculdades e universidades com a
mentalidade "auleira", não teremos espaço para inventividade, pesquisa, curiosidade nem
para desenvolvimento de pensadoras e pensadores em nosso país. Serão apenas espaços
de treinamento, normalização e acumulação de conhecimentos. Apenas curadoria de
conteúdos que, com o avanço das tecnologias de Inteligência Artificial e de

22
algoritmização da educação, em breve o professor pode ser substituído por plataformas
interativas com os estudantes, distribuindo conteúdos e instruindo de forma bastante
eficaz, dentro deste modelo tradicional-instrutivo-tecnicista.
Nesse sentido, é que nós, do Coletivo Terral, acreditamos que não é necessário
preencher os estudantes com aulas instrucionistas em nossos ambientes de aprendizagens,
solapando o espaço, enquanto lócus de construção do conhecimento, pelo tempo (quanto
assiduidade e tempo na aula, melhor); precisamos, sim, de espaço e tempo para estudo,
imaginação, pesquisa, produção, autoria docente e discente, interação, tudo isso visando
tendo o bem comum. Como se pode ver, portanto, educar vai além de ensinar e aprender.
Educar é um processo mais amplo. Educar é, por exemplo, cuidar para que cada um,
humano ou não, se sinta parte da trama da vida.

23
O Negócio é ser Rural

Proposta da Rede de Mulheres das Marés e das Águas dos


Manguezais Amazônicos do Maranhão e Piauí (REMULMANA)
Por Remulmana
O Estuário do Rio Amazonas e Seus Manguezais Amazônicos se estende do estado
do Amapá até a cidade de Barroquinha no Ceará, na Área de Proteção Ambiental do Delta
do Parnaíba. Composto por florestas de mangue, apicuns e áreas com diferentes usos, este
importante ecossistema abriga atividades extrativistas tradicionais como pesca,
mariscagem, catação de sururu e caranguejo, além de turismo de base comunitária. Estas
atividades são muito importantes na garantia de alimento, renda, direito ao trabalho e
segurança alimentar para boa parte da população nesta região.
Cerca de 120 mil pessoas dependem diretamente da pesca e atividades associadas
para sua sobrevivência nesta região, garantindo sua produção e reprodução social,
cultural, religiosa e afetiva com este ecossistema.
São nestes manguezais amazônicos, lugar de vida, que produzem e se reproduzem
socialmente as mulheres das marés e das águas dos manguezais amazônicos, responsáveis
pela segurança alimentar da maioria das suas famílias e também de grande parcela da
sociedade.
É neste lugar que surge a necessidade de se criar uma rede de mulheres dos
“maretórios”, que se mantém viva do Amapá ao Ceará, mas que pela extensão, foi
ganhando várias formas de articulação. Uma delas é a Rede de Mulheres das Marés e das
Águas dos Manguezais Amazônicos do Maranhão e Piauí – Remulmana. Segundo Kátia
Barros, que faz parte da rede, “são mulheres de “maretórios” de Reservas Extrativistas
criadas em torno de parques nacionais e outros “maretórios”, que se unem com objetivo
de se fortalecer e atuar no combate às inúmeras ameaças a estes ecossistemas, na luta
pelos seus direitos, por políticas públicas e pela comercialização dos seus produtos
através da economia solidária e do comércio justo”.
No dia 31 de julho passado a rede organizou a Feira dos Produtos dos Manguezais
Amazônicos do Maranhão e Piauí, visando dar visibilidade a esta produção sustentável,
tradicional e oriunda do extrativismo familiar. O evento ocorrerá em frente à Casa do
Maranhão, em São Luís do Maranhão.

24
Mesa de dama

O que é que a Baixada tem?


Por Fijó
Em contraste com a muito variável e atribulada história da Baixada, dois eixos
parecem possuir certa permanência: o nexo entre a constituição dos poderes
políticos locais e o uso de métodos violentos, como os assassinatos; e a
condição periférica em relação à cidade do Rio de Janeiro. Esses dois aspectos
das circunstâncias políticas, econômicas e sociais da região (...) são
fundamentais para a compreensão de como se engendram as lógicas criminosas
que fazem da Baixada uma das regiões mais violentas do estado, apresentado
um patamar quase que constante de alta letalidade violenta, há décadas.
(RODRIGUES, 2018, p. 118)4

Toda vez que se fala na Baixada Fluminense, principalmente sendo morador,


discute-se como aqui é perigoso. Como a vida, desse lado da Baía de Guanabara, parece
ser truculenta e mal vivida. Sem tempo para respirar, sem tempo para correr. Jogados ao
léu e rezando aos céus por um salvador, ou ao menos uma salvação. Raros são os
momentos em que a Baixada é enaltecida, e mais raros ainda os momentos em que é
reverenciada. Quando acontece, tal fato se dá pela presença de personalidades e
expressões artísticas baixadenses, que mesmo com todas as dificuldades conseguem um
pouco mais de visibilidade, passando a fazer parte do que é chamado stream, ou seja, o
que está sendo colocado em voga, sendo discutido, sendo apreciado. Nomes como Seu
Jorge5, Ludmilla6, YOÚN7, entre outros, seguem aparecendo na mídia e, com muito
orgulho, falam de suas origens na Baixada e como isso os moldou enquanto artistas e, por
que não dizer, moldou seu caráter.
Quando não é esse o caso, o que se ventila a respeito da Baixada nos principais
veículos de mídia é uma amostra – nem sempre verdadeira – do caos que vivemos todos
os dias. Operações policiais que parecem acontecer sem o menor vestígio de preparo;
níveis de desemprego nas alturas, que nos afeta diretamente uma vez que buscamos e

4
RODRIGUES, A.L. Homicídios na Baixada Fluminense: Estado, mercado, criminalidade e poder. In:
PENALVA, A., CORREIA, A.F., MARAFON, G.J., and SANT'ANNA, M.J.G., eds. Rio de Janeiro: uma abordagem
dialógica sobre o território fluminense [online]. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018, pp. 116-142. Disponível em:
<https://doi.org/10.7476/9788575115169.0006>. Acesso em: 21 de dezembro de 2021.
5
Jorge Mário da Silva, nascido em 1970 em Belford Roxo, é ator, cantor, compositor e multi-
instrumentista brasileiro, reconhecido mundialmente como um dos grandes nomes da MPB, do Rhythm
and Blues, do samba e do soul. Seu Jorge fez o papel de Carlos Marighella na produção biográfica
Marighella, dirigida por Wagner Moura.
6
Nascida e criada em Duque de Caxias, Ludmilla Oliveira da Silva, ou simplesmente Ludmilla, é uma
cantora, compositora, multi-instrumentista, atriz e empresária brasileira. Recentemente, Ludmilla se
tornou a primeira mulher preta a ultrapassar a marca de 1bi de streamings.
7
Duo formado por Shuna e Gian Pedro, YOÚN mistura jazz, blues e muita música brasileira. Em 2020, a
dupla esteve presente no projeto “Proteja Os Seus Sonhos” 2, que também contou com nomes como Zezé
Motta, Luedji Luna, Thiago Pantaleão e Kalebe.

25
precisamos cada vez mais de oportunidades fora da Baixada, mesmo com seu território
extenso; ou até mesmo mais uma variante de COVID, que começa a se espalhar pelo
centro do Rio, mas afeta principalmente a mão-de-obra desse lugar, que está
frequentemente associada aos “recursos humanos” baixadenses. Mas fica o
questionamento: é só isso que a Baixada tem a oferecer? Alguns nomes na música e
desastres/tragédias? Parece raso, tratando-se de um território habitado por quase 4
milhões de habitantes8.
Assim como a Baiana de Carmen Miranda9, questionamos aqui: o que será que a
Baixada tem? Será que é unicamente aquilo que a grande mídia diz que temos – caos,
tragédia e um pouquinho de arte? Não existem expressões dentro do esporte? Não existe
apelo da baixada dentro da política? Não existem, porventura, acadêmicos que estão neste
momento estudando sobre as variantes da COVID, podendo assim trazer uma solução
mais rápida e eficaz contra esse tal vírus que nos assola há quase dois anos?
A imagem da Baixada Fluminense como um lugar onde “se correr o bicho pega,
se ficar o bicho come”, apesar de uma imagem incompleta, caiu no senso comum. Para
quem olha de fora, se acredita piamente na falácia de que as coisas seriam problemáticas
demais, ao ponto de não conseguirmos espaço relevante em nenhum lugar mais, somente
na arte e mesmo assim passando sufoco. Tal imagem preconceituosa se faz prejudicial
quando nós – moradores da Baixada – acreditamos nela e nos conformamos com nossas
vidinhas medíocres. Uma vez aceita essa realidade, fica muito mais difícil atravessarmos
as barreiras que historicamente já existem, pelo fato de não acreditarmos que somos
capazes de ocupar outros lugares, com trabalhos relevantes.
É admirável o trabalho feito pela equipe de base do Duque de Caxias Futebol
Clube, cuja categoria sub-17 feminino venceu a Taça Unifoot 2021, campeonato com
final sediada no estádio Nilton Santos. É louvável o trabalho do Prof. Renato Mendes, ou
simplesmente Natö, com o Projeto Aulada, no qual são trazidos elementos da arte para
explicar eventos e traços historicamente sustentados até hoje, de uma forma fácil de
entender e de discutir. É digno de se lembrar, ainda, a caminhada de cada um dos
baixadenses que levanta todos os dias de manhã cedo para trabalhar, e trazer para dentro
de casa, para seus filhos, sua família e/ou afins, um pouco de dignidade e alegria em meio
ao caos que de fato vivemos, mas que não podemos resumir nele toda a experiência de
vida baixadense. Faz-se injusto.
Em resumo, não venho aqui dizer o quanto é legal e simples viver na Baixada. Até
porque me gera riso só de escrever tal coisa. É difícil. É complicado. É viver em
esquecimento por parte das autoridades e morrer por ser lembrado pela munição da
polícia. É ter que colocar o chapéu muito acima de onde a mão alcança, porque ou é isso
ou não se coloca o chapéu em lugar algum, tentando viver carregando seu chapéu nas
mãos. Mas precisamos ressaltar a extensa variedade de movimentos acontecendo – ao

8
Dados de 2020, atualizados pelo IBGE. Fonte: <http://www.rj.gov.br/Uploads/Noticias/1327008%20-
%20Fevereiro%202021%20-%20Baixada%20Fluminense.pdf>. Acesso em: 21 de dezembro de 2021.
9
“O que é que a Baiana tem?”, lançado em 1939, foi uma música lançada para o filme Banana da Terra,
produzido por Wallace Downey e dirigido por Ruy Costa.

26
mesmo tempo – na Baixada. Movimentos do esporte, movimentos artísticos, movimentos
educacionais, movimentos sociais. Movimentos que fazem a diferença. Movimentos que
precisam ser relacionados a tudo que, hoje de forma mais intensa do que nunca, a Baixada
tem. A Baixada teve. A Baixada sempre vai ter.

27
Resenha do Pivete

No caos da Baixada Fluminense surge mais uma estrela


brilhante e barulhenta no céu: é Rojão e sua linda celebração
explosiva através do EP 5X1.
Por Iago Menezes, vulgo Pivete
Eu conheci o Rojão em Niterói, na Cantareira, em 2019, quando ele começou a
namorar uma amiga minha. Nós estávamos bebendo, é óbvio, pois estávamos na
Cantareira e rapidamente fizemos amizade. Caxiense, flamenguista, preto e que gosta de
Rap, não tinha como não dar “match”. O tempo passa e estamos aqui falando do EP desse
flamenguista que deixa bem escuro (pra não dizer deixar claro) o time que torce
estampado na capa do seu EP de estreia.
Sobre o Rogger eu sei que nasceu em Duque de Caxias na Baixada Fluminense, que
ele tem 24 anos e estuda Ciências Sociais na Rural (UFRRJ), em Seropédica. É operador
de áudio, produtor musical e é conhecido pelo vulgo ROJÃO.
O Rojão é uma explosão sonora desde seu primeiro single “Baixada Cruel” que é
uma mistura de Grime e Funk, numa miscelânea caótica que personifica a aura da baixada
fluminense. Baixada essa que tem violência, porém também tem cultura, educação, poder,
glória e, o principal, tem história. Algo que a sucessão de governantes corruptos e
desprezíveis não vão conseguir apagar jamais. A “Baixada Cruel” de Rojão produzida
por Buzu é um grito, porém também é um tour pelas cidades que compõem a Baixada
Fluminense. Preenche nosso imaginário com personagens, situações e referências de um
lugar que não é muito falado e nem muito ouvido.
Neste ano de 2020, ele decidiu soltar um EP, que particularmente é um formato que
eu gosto muito. Para quem não sabe a sigla EP vem do inglês “Extended play” e é usada
para determinar algo que não é pequeno suficiente para ser um single e nem grande o
suficiente para ser um álbum. Deu para entender? Um EP em média tem 2-5 faixas em
comparação um álbum tem 12 faixas em média. O do Rojão tem cinco faixas: Zumbi,
Baixada Cruel, De Caxias até Seropa, Censura e Bandida. Todas produzidas por Buzu na
Margot Studios exceto Zumbi, a primeira faixa do EP, que é um instrumental produzido
pelo próprio Rojão que também é produtor musical.
O EP 5X1 vem carregado de Grime e Funk, ritmos que são mesclados para servir
de alicerce para letras que falam desde a revolta com uma polícia violenta e despreparada
que ceifa nossa juventude negra. Nas faixas “Censura” e “Bandida”, que mordem,
arranham, nos fazem relembrar os tempos de Furacão 2000 mesmo não sendo um funk
miami bass.

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Também tem “Zumbi” que é a primeira faixa do EP e um grito de liberdade que
clama por Palmares e Zumbi na voz de Abdias do Nascimento. “Censura” que vem
também em uma pegada política retratando os anos de descasos do povo fluminense com
os desgovernos e desmandos de uma corja política que só o Rio de Janeiro tem. E “Caxias
Até Seropa” uma celebração a esses dois lugares que fazem parte da trajetória e vivência
do Rojão que tem a participação do Radar. O EP 5X1 do Rojão já está disponível no
Spotify, Youtube, Amazon Music, Tidal e Deezer.

Entrevistei o músico e produtor Rogger, vulgo Rojão, para saber um pouco mais
da sua trajetória e da construção do seu EP de estreia:
ROJÃO?
Rojão* foi um apelido que surgiu no ensino médio, umas garotas que sempre
gastavam onda na aula comigo, um dia uma dessas garotas durante a aula, chegou e disse:
“A lá é o Rojão”! Eu nunca tinha recebido um apelido que usasse uma derivação do meu
nome, achei foda e fui me apresentando em todo lugar usando esse nome. O bom foi que
eu gostei do apelido e ele ainda se tornou um nome artístico.
TRAJETÓRIA?
Eu sempre fui ligado ao HIP HOP de várias formas, eu fui BBOY* e por muitos
anos eu fiquei afastado. Já com o apelido consolidado na UFRRJ*, na faculdade, eu me
deparei com uma roda que estava acontecendo, acho que era um Projeto de Extensão. Não
era uma batalha de rap e sim uma roda que você chegava e rimava. A gente ia aprendendo
e ensinando como fazer uma rima 4x4* e etc. Era uma grande união que foi meu ponto
de partida para me transformar em um MC.
DE CAXIAS ATÉ SEROPA*?
Durante essa trajetória pude conhecer uma gama de pessoas de um município
distante da Baixada Fluminense, que é Seropédica, conheci também o Radar que
felizmente está comigo na faixa “DE CAXIAS ATÉ SEROPA” do meu EP 5X1.
BAIXADA FLUMINENSE?
Eu gosto de pensar que meu lugar é sempre na Baixada Fluminense*, lugares onde
eu sou bem vindo, bem tratado. Não só na Baixada, mas no subúrbio no geral, zona oeste,
zona norte. Sempre são lugares que me sinto representado, pois sempre tem pessoas com
realidades parecidas com as minhas. Caxias e Seropédica são lugares que eu mais tenho
conexões, pois são lugares onde morei.
E O SOM?
É Rojão, explosivos sonoros, trabalhar o caos das coisas, batidas meio niilistas ou
meio melancólicas, mas te coloca para dançar. Porém, sempre falando de coisas fortes,
pois é o que a gente vive, o que a gente percebe e o que a gente vê. Vamos sempre falar
sobre essas paradas, pois é a nossa realidade.

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E O BUZU?
Ele foi o cara que chegou assim para mim: E aí mano, vamos produzir um EP? Ai
eu “caralhoooooo”, caralho vamo que vamo mano. Aí eu desembolsei uma verba e fomos
A questão principal nem é a verba, porque em comparação financeiramente eu gastei
pouco, mas todo o processo de construção do EP 5X1. Eu fiquei um ano inteiro
trabalhando com o BUZU na Margot Studios, tiveram letras que demoraram muito para
ficar prontas. A gente já tinha os beats tudo pronto, foi o que construímos primeiro, a
linha melódica para dar uma ideia de ritmo. E depois fomos para a letra e eu fiquei me
questionando o que falar e o que fazer. Aí o Radar foi essencial, pois o refrão de “Caxias
Até Seropa” foi um refrão que ele pensou e eu adaptei. Devo 50% da música para ele.
RADAR?
Eu o conheci em Seropédica que felizmente está no trabalho comigo. A gente fez
tudo a distância, nós já nos conhecíamos, mas não estávamos nos encontrando por causa
da pandemia. Ele mora em Seropédica e eu moro em Caxias. E ele tinha que vir a Caxias
para gravar o som “De Caxias até Seropa”, mas ele estava sem celular. Ele me mandou
uma mensagem antes de sair de casa e eu calculei o tempo que demorava para ele chegar
no ponto de ônibus que desceria. Quando eu cheguei no ponto, ele estava saindo do
ônibus. Só tínhamos esse dia para gravar. Foi tranquilo, pois Buzu é uma pessoa que te
deixa totalmente à vontade para trabalhar. Um profissional incrível, uma pessoa
excepcional e se preocupa de fato com o artista que está trabalhando. Foi muito fácil
trabalhar com ele.
GRIME?
Eu já estava começando a me interessar bastante pelo Grime e pelo Drill, quando
comecei o projeto do EP, mas eu não sabia nada sobre. Eu só escutava, mas não tinha
noção. A partir daí comecei a gostar da sonoridade e decidi fazer algo parecido, mas com
minha cara. Comecei a estudar e soltei o single “Baixada Cruel”, que me possibilitou ter
acesso a um feedback e ir atrás da parada. Escutei bastante para entender esse universo
que é novo, principalmente aqui no Brasil, que no ano passado ainda não estava tão
popularizado. Anti Constantino foi uma das primeiras figuras que eu vi falando sobre
Grime aqui no Brasil e ele é meu conterrâneo.
FUNK?
O Funk foi onde eu comecei a ter interesse por música eletrônica quando eu era
molequinho e eu não fazia ideia... Tinha um caderno de quando eu era criança que
perguntava o que eu queria ser quando crescer e eu respondia dizendo: “Eu quero ser
Funkeiro”. Sempre foi uma parada que eu gostava muito, eu sempre gostei muito de funk.
Depois com o tempo o HIP HOP foi me abraçando e eu fui descobrindo novos caminhos
com o HIP HOP, FUNK E MÚSICA ELETRÔNICA. Eu acho interessante mesclar as
coisas, diversificar.

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EP 5X1?
Eu resumiria como um Rojão explodindo no céu, fazendo barulho para caralh@ e
brilhando. E o povo olhando para o céu não vai apreciar só pelo barulho, mas porque
achou bonito.

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Poetizando
PÔ-Esia, Erê-sia, Melãn-colia e Alê-gria!
Pode a ciência inspirar poemas e transpirar pó-ética? Pode um químico se encantar com
as palavras e misturá-las ao sabor das sub-stâncias? A fórmula da água é H2O, mas eu
bebo mesmo é água. Pode a poesia consagrada através dos seus versos escapar para a
prosa, tal como em Fernando aquele que era pessoa até no nome? Pode a poesia ocidental
que tem um de seus últimos grandes épicos através das mãos de outro português saudar
Caô Kabecile? Pode a poesia compor a inquieta manifestação da anima feminina?
Transmutando em palavras a causa, o grito, a dor e o amor de ser o que se é? Não sei o
que a poesia pode (?), mas sei que ela pode mudar.
Felipe Moura

Caderno Laboratorial de um Bolsista


Pesa, dissolve,
ajusta, aquece,
precipita, Isola,
purifica e repete.

Pesa, dissolve,
ajusta, aquece,
precipita, Isola,
purifica e repete.

Pesa, dissolve,
ajusta, aquece,
precipita, isola,
purifica, aplica,
descarta e esquece.
Walysson Gomes

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À noite ele vai embora.
Não sei para onde leva todos os seus ditos. Que classifica uns, “resolve” os problemas
de outros e, alguns, não se deixam enganar: maldito!
Pois, no caminho, deixa um torvelinho. Que sobe e desce. Vai e vem. Às vezes não
deixa.
Faminto,
Comeu e escondeu sua comida. Debaixo da cama, entre-linhas e paredes. E não cansa
de destilar maus dizeres.
Mas, de tudo, só tenho isso a dizer: Kaô Cabecile.
Luiz Fernandes

O preço
Nos cobram que sejamos lindas
Nos cobram que sejamos mães
Nos cobram que sejamos doces
Que cozinhemos bem
Que não nos queixemos
Que mantenhamos a calma
Que não alteremos a voz
Taxam o nosso sexo
E as nossas vontades
Com mil tabus odientos
Precificam nossos corpos
Comprazendo-se das nossas inseguranças
Mas, ao final, quem paga por tudo isso?
Senão nossas dores e angústias?
Quanto custa ser mulher?
Qual é o valor de nossa existência
A verdade é que
Não devemos nada a eles

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Não devemos nada à sociedade
Não devemos nada ao Estado
Nada à religião
Tampouco aos filhos, pais ou avôs
Já pagamos com o sangue daquelas que vieram antes de nós
Essa dívida que não nos pertence
Mas que assumimos quando nos quisemos livres
Não nos pesam mais vis encargos obtusos
De absurdas imposições
Assim como nossa natureza, nossa alma está liberta
O único compromisso que ainda nos resta
É de sermos plenas,
Humanas,
Reais,
Falíveis,
Imperfeitas,
O que quisermos e o que não quisermos
Porque, a despeito dos hipócritas, retrógrados e misóginos de toda a sorte
Quem e o que somos é só da nossa conta
Marina Teixeira

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Observatório Cotidiano

A cafeteria
Por Roberto Brito
A cafeteira, em geral, reúne pessoas viciadas na substância cafeína. O mais
engraçado (e contraditório) é que quase ninguém pensa na cafeína enquanto toma uma
xícara de café. Na cafeteria, todos conversam entre si, para si, consigo mesmos, com
pessoas estranhas (o que tem sido raro nos tempos de hoje), com seus pares. Os olhares
se entrecruzam, pupilas dilatam sob o efeito do café. A música é alta o suficiente para
distrair a conversa e mesmo para desconcentrar os que leem. Aqui, sinto a mesma
desatenção que observo em bibliotecas: uma pena não servirem café nas bibliotecas. O
clima dá sono, há um ruído na sala que ronda os ouvidos, faz a pele esfriar, dá aos ouvidos
a mesma desatenção dada aos olhos, um vai-e-vem propício para a desatenção dos
sentidos.
O primeiro efeito do café é a atenção forçada a algo completamente distinto no
ambiente; o segundo efeito, é a desatenção de si; o terceiro é uma pequena cefaleia; o
quarto é a sensação de obrigatoriedade para com as atividades propostas para serem
realizadas neste recinto (pois qual seria o motivo de tomar café em uma cafeteria?). Os
outros efeitos são mera consequência do efeito: um efeito rarefeito, misto de atenção
forçada como aquela mesma desatenção de quando passa uma mulher exalando
feromônio. Você vê, mas é um ver desatento. Você se propõe a ler, e acaba prestando
atenção no cheiro doce da mulher ao seu lado. Você quer tomar café, mas na verdade
queria mesmo é sentir o gosto amargo da boca daquela mulher que exala o cheiro doce;
esse doce facilmente adocica esse gosto amargo do café na boca.
Um namorado fala suas besteiras de rotina. Ao seu lado, sua namorada come um
bolo e ele discursa com um talento “impecável”. Ela olhava para ele como quem olhasse
para um pedaço de torta de chocolate. Um outro casal, ao lado, toma um café gelado e
permanecem calados, trocando olhares de introdução de conversa chata, típico momento
de um casal desatento. Outras duas mulheres fofocam sobre aquela mulher da firma que
ambas odeiam. Alguns estão isolados, concentrados em leituras desatentas, típicos
personagens da cafeteria.
Enquanto todos esses personagens combinam esse “tipo ideal” de lugar, lá
embaixo, os funcionários trabalham: torram o café, ferve o leite, esquentam os pães e as
roscas, trabalham na cafeteria como se fossem funcionários de uma firma muito
importante. Atendem-nos com uma educação deseducada, onde, se pudessem, ao invés
de servirem o café educadamente, jogariam em nós e ririam ao prazer de nos ver queimar
no café fervendo. Duvido muito que gostem de beber café. A cafeteria tem dessas coisas:
pessoas em leitura “blasé”, um cheiro rançoso de café torrado, uns olhares entrecruzados
e forçados. Nunca tinha parado para pensar o quão chato é o ambiente de uma cafeteria.
Prefiro as praças nas tardes de sábado.

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Suicídio em 1° de maio
Por Camila Lopes
Era apenas um homem comum quando levantou de manhã prestes a calçar seus
sapatos quase não convencido de que suas horas eram melhor aproveitadas garantindo
sorrisos preenchidos de prazer que o dinheiro jamais poderia comprar. Ao pensar nos seus
chefes, pensou em seu emprego, lembrou do cansaço que sentia e do crescimento notável
que os donos da empresa se vangloriam, como se fosse deles o trabalho empregado para
gerar tanta riqueza. “Ivan, os ricos tiram seu mérito do gerenciamento da exploração, nada
mais!”. Dizia o seu avô quando ainda estava vivo, depois de contar alguma história do
antigo emprego em uma indústria têxtil, que se localizava no Barreto, Niterói. Grande
Rio de Janeiro! Palco de grandes revoltas e lamentações, todo bom carioca gosta de contar
história.
Recordando-se da frase de seu avô e dos motivos que o levaram a tal recordação,
perguntou-se: mas e a crise? Em casa não entra mais carne (apenas nos churrascos de
domingo) porém meus patrões se gabam do crescimento anual? Bom, a anunciação foi
feita sob festa, bebida liberada, banda, a Patrícia e o Cláudio (que são do mesmo setor) se
beijando escondido no jardim do salão e um breve entretenimento silenciador de questões
principais. A amnésia alcoólica do dia seguinte serviria a um grande expurgo mental que
coloca qualquer síndrome de Burnout no chinelo, as pélvis frementes, a agitação das
palavras soltas pelo ar, pessoas loucas e felizes, espontâneas, relaxando os corpos
cansados liberando fluidos, soltando suas articulações enferrujadas de rotina. Tudo
imerso na mais barata distração. Após entreterem-se, os funcionários vão para casa
assistir ao jornal ouvindo falar dos problemas diários como se fossem distantes, como se
tivessem em outro país, nada demais ou até mesmo muito relevantes para gerar uma
revolta aprisionada curada em terapia ou postagens fora do tom nas redes sociais.
Não só o entretenimento era silencioso, mas os gestos, as formas, as intenções por
trás das relações daquelas pessoas dentro do prédio. Tudo era motivo para se desconfiar,
qualquer deslize em ambientes de trabalho pode virar seu fim, as fofocas têm que ser
planificadas, seus movimentos calculados.
No dia 1° de maio, Ivan suicidou-se. Mas não temos com o que nos preocupar,
porque doeu um pouco. Antes o entretenimento adormeceu-lhe, as drogas anestesiaram-
lhe, e a rotina esvaziou seu poder de criação, tornando Ivan mais um receptáculo da
alienação.

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Vô Lúcio: o encantador de cavalos
Por Elaine Lima da Silva
Meu bisavô materno se chamava Lúcio. Contam que ele costumava ficar "louco"
vez ou outra, naquele tempo ainda não se tinham "caixinhas" onde se guardava que tipo
de loucura era. Antes de chegar por ‘aquelas Lagens’, ele andava por Lagoa Vermelha no
Rio Grande do Sul. Conta-se que quando não estava ‘louco’, era um homem gentil e
generoso, com muitas habilidades. Qualquer que fosse a brabeza de um cavalo, ele
amansava. Meu avô, seu genro, contava que ele amansava cavalos que ninguém dava
jeito. Se “achegava” perto do animal e proferia algumas palavras, ao mesmo tempo em
que o acariciava com as costas de um facão, sem machucá-lo. Depois disso, pra mostrar
o serviço feito, ele entrava com o cavalo na casa de seu dono e pedia pro ‘bichano’ se
deitar na cama e Lúcio provava, assim, a obediência do animal.
Certa feita, há uns 50 ou 60 anos mais ou menos, um filho dele deu pousada - como
era costume dos mais antigos - para uma família de estranhos viajantes, vindo do Rio
Grande do Sul. Papo vem, papo vai, entre um chimarrão e outro, eis que chegaram num
denominador comum: o homem que estava viajando com sua família e meu tio-avô que
os recebera no Planalto Catarinense, eram afinal irmãos, filhos de Lúcio. Pelo que se
conta, Lúcio já era casado e fugiu do Rio Grande do Sul para as ‘bandas de Lages’ e se
casou de novo com minha bisavó. Mas voltando a sua loucura, cada vez que esta o
assombrava, a vizinhança toda em polvorosa, corria para contê-lo, não era fácil, ele estava
sempre armado e era um homem grande e forte. Não podendo, os policiais, chamados de
inspetores de quarteirão ou brigada, como dizia meu avô, eram chamados para ajudar.
Até que um dia, Lúcio foi baleado e morto. Seu filho mais velho com 14 anos na época e
meu tio-avô, chamado Lope, estava sentado em uma pedra que servia de escada para a
cozinha, correu e amparou seu pai ferido. Antes de morrer suas últimas palavras foram:
"não faça inimizades, não se iluda com formosura de mulher e troque a arma pelo rosário".
Naquela época até mais ou menos a década de 1970 nos campos de Lages, com ou sem
motivo, mas por via das dúvidas, todo mundo andava armado.

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Conto do Vigário

Cheiro da Brisa
Por Marcelo Sophos
Essa noite me pareceu um conto do nosso querido velho maldito Charles Bukowski.
Estava em casa tentando assistir pelo computador, via online, ao espetáculo do Rock
n´Rio. Esse era o ano de 2011 e ainda morava em Cabo Frio, região dos lagos, interior do
Estado do Rio de Janeiro. Havia passado num concurso de professor e acabei me mudando
para lá. Como não havia amizades locais ainda, me distraia como podia, geralmente nas
belas praias e no álcool a noite, para me aquecer longe da família e de meus velhos amigos
irmãos, menos quando precisava trabalhar é lógico. Voltando, a conexão de internet dessa
época era péssima, no auge do seu um megabyte, deixando a imagem quadriculada e a
todo momento perdendo o sinal. Me levantei impaciente e resolvi ir para um bar de rock
conhecido, na orla da Praia do Forte, que se chamava atrativamente de Tocaia.
Como as coisas são curiosas, se eu tivesse ficado em casa e visto mal e porcamente
pela tv e depois dormido, não teria essas rápidas histórias malucas para escrever dentro
de uma outra história que é a minha. A vida é movimento, ou devir como dizia Heráclito.
Bem, tomei uma dose extra de whisky Chivas dezoito anos que ganhei de aniversário do
meu cunhado, a vida naquela época não era tão difícil com a continuação do governo de
esquerda. Enfim, tomei mais uma dose saboreando aquela delícia de ouro líquido
enquanto fumava um baseado. Quando terminei de me arrumar, nada elegante, de
bermuda e chinelo, afinal era um bar descontraído e aberto para a rua, na cara da praia,
me adiantei e sai. Parti em direção ao bar, sentido orla, não era distante, apenas uma meia
dúzia de quarteirões. Sozinho pela noite, numa cidade estranha para mim, desconhecida
e aberta de possibilidades e de pensamentos, tudo podia acontecer, desvelando-se
potencialidades infinitas.
Solitário em ruas desertas, segui em direção ao mar, é muito bom caminhar em
direção a ele, sempre tenho boas vibrações é como se o vento mostrasse sua aproximação
com seu cheiro salgado, nos purificando. Até que avistei o boteco mais rock ‘n’ roll da
cidade, pelo menos era, e foi por um tempo. Me contaram que ele já teve seu auge, assim
como o próprio rock contestador, que felizmente ou infelizmente, nos dias de hoje, sua
raiz permanece viva nos guetos dos guetos, e não esses falsos coroas boomers do rock em
suas motos barulhentas e seus bares bacaninhas que ostentam a bandeira do brasil,
vivendo em seu mundo distorcido e fascista. Claro que não são todos, nunca são todos. O
rock é liberdade, anárquico e contestador, um dia ele volta, ele sempre voltará, pois, a
rebeldia é o grito da alma humana contra esse sistema podre e falido.
O clima estava agradável, sentei para tomar minha primeira cerveja, bem gelada
por sinal, no telão full HD do bar, rolava o final da apresentação da banda Snoll Patron.
O dono do estabelecimento, de cabelos brancos estava trincado no pó e não parava de
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falar, estava numa animação desmedida, pois iria no final de semana, melhor dizendo,
domingo, 25/09/2011 para o mega espetáculo elitista Rock In Rio, ver sua banda favorita,
o Metallica, ou seja, hoje, dia que escrevo esse conto.
Eu estava em paz, pleno e satisfeito com minha trajetória de vida até ali, não era
todo dia que nos sentimos assim. A brisa fria da orla que entrava refrescava o calor, via
meu rock de boas refletindo sobre o mundo. Próximo a mim, na minha esquerda, havia
outro coroa, estava tentando ganhar uma quarentona muito louca de goró. As minhas
costas, um rapaz tocava “ao vivo”, baixinho para o lado de fora, apenas para as moscas,
era quinta-feira de madrugada, e havia apenas, sei lá, umas cinco pessoas, sem contar o
dono atendente e sua “fiel” esposa. Dizem que ela tirou o cabaço de muito moleque
roqueiro da cidade, se é verdade eu não sei, mas já vi ela dando muito mole para alguns,
inclusive para um ex-aluno meu, foi até meio surreal, levantando a saia e mostrando a
bunda, mas isso é uma outra história que testemunhei na vida boêmia. E como um amigo
me falou certa vez: “porque se mostrou, é o seguinte...conselho de um pai velho...cheio
de cabelos brancos hetero sis normativo. Melhor você dizer que comeu. Porque se uma
mulher te mostra a bunda, você tem que comer. Não importa o quão feia e nojenta ela
possa ser...”.
O show mais aguardado, aquele que encerraria a noite, era da banda muito querida
pela geração dos anos 90, o Red Hot Chilli Peppers, particularmente não achei muito
bom, talvez estivesse cansado, ou realmente o som não estava legal. De repente, chegou
um senhor aparentemente louco, ou era apenas um artista bêbado de cachaça que dançava
em troca de algumas moedas ou cigarros por sua performance, o problema é que ele
dançava sem pedir e ficava puto, pois ninguém lhe dava dinheiro, apenas uns varejos, e
não demorou muito para ele chegar até mim. Dançou, fez sua graça, e até que o velho
dançou relativamente bem, para quem não se aguentava em pé, mas não iria dar dinheiro
para ele é claro, primeiro porque não tinha sobrando, segundo porque não cobrei por uma
aula de filosofia indireta, então ficou tudo quitado.
Conversamos um pouco, ele me mostrou uns CDs próprios que ele vendia em
búzios por trinta reais cada, para eu, um professor, eram apenas dez reais, como sou
professor de filosofia caiu para cinco reais. Curioso, será que ele achou que somos mais
pobres que os outros professores ou foi por respeito ao pensamento filosófico? Ele acabou
por me convencer, fiquei até surpreso com esse artista inesperado, fui comprar um dos
CDs, mesmo não gostando muito do estilo de música, que era forró, e para minha
surpresa, não tinha dinheiro, apenas o suficiente para duas cervejas e o cartão, bem, o bar
não aceitava cartões o que foi um problema. Infelizmente não pude dar uma força para
senhor dançarino, músico e poeta, um artista completo, então ele rodou um tempo por ali
com suas danças e rodadas de chapéu e se mandou para búzios, para mais shows de rua,
muito louco. Para mim ficou uma lição que havia esquecido, não subestimar os doidos e
bêbados de ruas, eles ainda carregam aquela alma do velho romantismo alcoólatra, das
gerações beatniks, verdadeiros “vagabundos iluminados” como diria Jack Kerouac.
Debruçado sobre o balcão do bar, limitado a apenas uma cerveja, fui sorvendo
lentamente o ouro liquido, enrolava em cada gole para tentar chegar até ao final do Red

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Hot antes de pedir outra. A quarentona bebaça, do nada, xingou alto e se estressou, saindo
fora do coroa, indo para o seu grupo de amigos do outro lado, o cara ficou muito puto;
pelo que eu entendi, ele falou alguma merda para mulher, não estava prestando muita
atenção nesse momento, mas nas conversas anteriores percebi o perfil do cara. O típico
macho escroto, provavelmente pensou que por ela estar alterada de cerveja, que ele
arrumaria uma transa fácil, vulgarizando a mulher por suas roupas curtas e coladas, ela
não quis ficar com esse babaca. Ele ficou lá, nem se abalou, devia estar acostumado a ser
rejeitado, devia até se orgulhar de ser tosco, olhava sem pudores para as partes intimas
das minas enquanto falava gracinhas machistas com o dono do bar.
Enquanto assistia a televisão, apareceram uns jovens que marcaram poucos
minutos, tomando seus vinhos baratos, foram comprar uns cigarros a varejo, havia um
punk entre eles, todo descolado com seu moicano e suas roupas rasgadas, todos jovens.
O “futuro da nação”, pensei, não de forma pejorativa, acredito na liberdade dos indivíduos
de traçar seu próprio destino e respeitava demais o estilo de vida de cada um, pé na
estrada baby. Foram chegando outras pessoas, do lado de fora, nas mesas ficaram a turma
do punk, outro grupo jogando cartas que voavam com o vento, um casal que assistia o
rapaz tocar, e uma mesa próxima do balcão que me encontrava estavam duas gatas
conversando sobre algum papo cabeça ou de suma importância, pois o mundo não exista
para elas ao seu redor.
Tudo tranquilo, perguntei para a mulher do bar se iriam estar aberto na hora do
metal, no domingo, quando chegou uma moto barulhenta no estilo Harley-Davidson, não
entendo de motos, era tipo aquela do Exterminador do Futuro. O cara chegou com seu
jaquetão de couro preto no melhor estilo dos motoqueiros, conhecia o dono do bar, pediu
uma cerva que entornou praticamente de primeira e foi direto para o banheiro dar um
teco, uma cheirada, voltando transtornado e com a cara torta. Pediu outra rodada, e só
depois foi olhar ao seu redor, quando me viu, ali silencioso vendo à TV, estava na cara
que ele queria falar, se comunicar, pois a onda bateu forte. Eu estava seco, havia tomado
toda minha última latinha, sem grana, apenas com meu cartão, que de nada serviria.
Não demorou muito para o cara puxar assunto, trocamos algumas ideias aleatórias:
“como está o rock?”, “e esse rock n rio como tá?”, “sai do trabalho só agora”, essas coisas.
Ele percebeu que eu não estava bebendo e perguntou se eu queria tomar uma, expliquei a
situação e ele apiedou-se dessa alma alcoólatra e me pagou umas quatro cervejas. O foda
que com isso teria que dar atenção ao cara, mas tudo bem, ele era gente fina e estava
prestando um favor a ele, ter que aturar sua loucura de pó. Falou que trabalhava pesado
numa plataforma petrolífera em Macaé e como era explorado em seu trabalho
terceirizado. Entrei com o discurso marxista, luta de classes, alienação essas coisas, para
buscar esclarece-lo do necessário levante popular para uma real melhoria da sociedade.
Foram conversas doidas, íamos da revolução industrial aos illuminatis, naquela altura da
bebedeira, tudo fazia certo sentido, consegui caminhar pelas loucuras do pensamento do
sujeito e também talvez ele das minhas, quem sabe...
O show do Red Hot estava chegando ao final. O rapaz da porta parou de tocar suas
músicas. Outro grupo chegou ao bar, um jovem com quatro gatinhas, não era lugar pra

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eles, o bar era muito alternativo, aqui na terrinha a massa é pagodeira ou funkeira, após
uma rodada de bebidas, partiram. Tomei minha quarta cerveja, agora que tinha percebido
que o cara era gaúcho, tinha ido novamente ao banheiro dar seu tequinho. Aproveitei a
deixa, decidi voltar para casa, deviam ser umas três horas da madrugada, ainda cedo, mas
já estava bom, chega de aturar gente doida. Voltei tranquilo, sentindo o cheiro da brisa, o
vento novamente me livrando das vibrações estranhas que esses bares carregam, encostos
perdidos, sejam vivos ou mortos.

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O primeiro conto da estrada
Por Thiago Sento Sé
Permitam que eu possa me apresentar. Meu nome é Thiago e me tornei professor
do ensino médio e fundamental em um país de terceiro mundo que despreza a educação.
Onde vivo, para um professor como eu ter um mínimo de dignidade é preciso trabalhar
em três ou quatro escolas diferentes, correndo de um lado para o outro, é isso que eu faço
para sobreviver. No meu segundo ano de formado pela faculdade de Artes Visuais, passei
em um concurso público que me garantiu estabilidade financeira, já que essas escolas que
mais parecem empresas vivem mandando os professores para o olho da rua quando estão
prestes a completar os três anos de casa e tem um aumento salarial garantido por lei.
A história que eu vou contar agora é muito conhecida nas paradas das estradas,
cafés e todo tipo de entretenimento que se possa ter ao longo das rodovias entre as rodas
de conversa de rodoviários. Mas naquela época, eu ainda não frequentava essas paradas
tanto quanto a sala da minha casa, e nunca tinha ouvido escutar. Talvez vocês não a
conheçam também, mas ela é real.
A escola pública a que fui designado a trabalhar ficava em outra cidade, no interior
do estado, em um vilarejo ainda mais afastado. Com os 183 quilômetros de distância entre
minha casa e o trabalho, e com a estabilidade do concurso, o meu sonho de comprar um
carro se tornou uma necessidade, inclusive porque no turno noturno, os ônibus já nem
rodam naquela região. Os dias foram se passando e as primeiras impressões que tinha à
priori, de uma escola antiga e caindo aos pedaços, deram lugar ao carinho e receptividade
daquelas pessoas carentes de tudo. Me viam chegar no ronco do meu carro vermelho
esportivo, ou quase isso, vestindo minhas roupas modernas, tal como um E.T. chegando
em seu disco voador. Perguntavam-me como era a capital e como se vivia numa cidade
violenta. Em contrapartida, me falavam sobre cavalos, suas raças e tipos de marchas,
falavam de passarinhos cantores e o quanto eles poderiam ser valiosos. Perguntavam se
eu andava de skate. Ouviam animados minha gaita de boca, como se fosse um verdadeiro
show, quando eu chegava animado pela adrenalina causada pela velocidade da estrada.
Uma coisa que desde o primeiro dia não mudou, era o prazer de ir e vir por aquela
velha rodovia interestadual, perigosa e mal sinalizada, mas quando se é jovem, pouco
ligamos para esse tipo de coisa. Antes de sair de casa era um ritual, tomar um refrigerante
energético e fumar aquele cigarrinho, você sabe, para fazer a cabeça. Já na estrada uma
parada para encher o tanque, almoçar e pista!
Trabalhava no turno da tarde e no turno da noite, com educação de jovens e adultos.
Após dez tempos de 50 minutos e um intervalo entre turnos, era hora de partir. Tomava
um balde de café e voltava para a estrada, cansado, mas feliz. Algum som da segunda
metade do século XX ligado ao moderno aparelho de som, compunha a trilha sonora da
jornada. O vidro aberto servia para me manter acordado ao mesmo tempo em que
respirava o sereno da noite, misturando o ar puro daquela estrada rural.

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Pois foi justamente em uma noite dessas que tudo aconteceu. Àquela altura já havia
decorado boa parte dos perigos potenciais da estrada, curvas traiçoeiras e radares de
velocidade. Acelerava seguro, porém alerta. O ar entrava gelado pela janela do carro. O
peito fechado em uma jaqueta, assim como a garganta, boca e nariz por uma faixa de
tecido. Um gorro na cabeça completava o traje. No rádio a voz de uma falecida cantava
um spiritual, o painel de instrumentos do carro marcava 23:43. Alguns antigos postes de
luz de mercúrio alaranjada iluminavam espaçadamente a beira da estrada de interior, onde
começava a se formar uma névoa. A noite estava escura, sem lua ou estrelas.
Antes de entrar na interestadual, ainda na zona rural, no final de uma grande reta,
que se podia sentir a potência máxima do motor, reduzi para 100km/h devido a uma
grande curva que se aproximava, que dava em uma ponte sobre um córrego. Nesse
momento, enquanto contornava a grande curva, as luzes de led super branca dos faróis,
iluminavam uma mulher agitada no acostamento, quase saltando na frente do carro,
desesperada para que eu parasse. Com o vento entrando pela janela e a velocidade, pude
apenas identificar o pedido de socorro por meio do choro e de palavras indefinidas. Parei
rapidamente o carro no acostamento, a uns dez metros depois de passar pela pequena
ponte, sem desligar o motor, sai do carro. A mulher vinha correndo em minha direção.
Aquele tipo de mulher que chama nossa atenção, você sabe, naturalmente, apesar da
forma simples como se vestia, blusa branca, calça jeans e o longo cabelo preso em um
rabo de cavalo. Mas não foi nada disso que chamou minha atenção, e sim, seus olhos
arregalados e seu rosto pálido e angustiado.
Gesticulava enquanto falava de um acidente terrível. Na direção que ela apontava,
na saída da curva e pouco antes da ponte, pedaços de carro indicavam o local. Tentando
manter a calma, me apressei até a ribanceira e pude ver as luzes de freio do carro
acionadas em meio a escuridão, e o carro enfiado entre as pedras do pequeno córrego.
Enfiei a mão no bolso a procura do meu celular, para chamar a emergência, enquanto me
aproximava, então percebi que o havia deixado dentro do carro. Quando me virei para ir
buscá-lo, não vi mais a mulher na beira da estrada, resolvi seguir até o acidente e avaliar
as condições. O mesmo rabo de cavalo, dessa vez desfeito pelo impacto, a mesma camisa
branca, dessa vez lavada em sangue vivo e os mesmos olhos arregalados. O mesmo rosto
angustiado, agora só existia a metade do nariz para cima, todo o resto se resumia a um
buraco de carne e sangue, pedaços de ossos e dentes em repouso morto ao volante.
Ainda em choque, enquanto me virava para pedir socorro, percebi algo se mexendo
no chão escuro do carro, assustado percebi que entre os bancos havia uma criança
atordoada, tentava se levantar. O mesmo rabo de cavalo, o mesmo olhar angustiado, mas
dessa vez em uma versão infantil, começou a pedir socorro e chamar pela mãe. As horas
seguintes foram de telefonemas, ambulância, polícia, hospital e intermináveis horas até
que o avô da criança chegasse para assumir tudo e eu pudesse seguir com minha vida, da
forma como alguém segue depois de passar por uma história dessas, passando todos os
dias pelo mesmo lugar.
Talvez, assim como eu, você não seja um rodoviário. Talvez você frequente as
estradas apenas nos feriados e finais de semana, e talvez você também nunca tenha ouvido

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falar dessa história. Mas o fato é que muitas vezes quando paro na ida ou na volta, escuto
essa velha história da estrada, contada por velhos motoristas. Algumas pessoas dão risada,
ou confundem com entretenimento. Mas a verdade é que todos os dias, milhares de
espíritos se perdem de seus corpos nas longas estradas desse mundo, e perdidas pedem
socorro.

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Partiu Resenha
Caros Leitores e leitoras,
A entrevista do volume é com a Livraria da Tarde, uma livraria de rua tradicional na
cidade de São Paulo, condida por Mônica Pereira. Continuo querendo ouvir e entender as
livrarias independentes que são atuantes nas redes sociais em bandeiras sobre a
democratização da leitura, educação e cultura. Para continuar na leitura, apresento a
resenha do livro de Ursula K. Le Guin, A Mão Esquerda da Escuridão. Um título
fundamental da ficção científica que nos ajuda a pensar a diferença cultural, a questão de
gênero e a androginia. Continuo com isso o projeto de relacionar a literatura com contexto
histórico de produção e com discussões da sociedade atual. Por fim, trago um convidado,
Marcelo Sophos, que apresenta a resenha da série de televisão O Conto de Aia, baseado
no livro homônimo de Margareth Atwood. Boa Leitura!
Carlos Douglas

Entrevista com a Livraria da Tarde


Por Carlos Douglas

Instagram: @livrariadatarde

Site: https://www.livrariadatarde.com.br/

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Telefone: +55 11 3064-9664

Whatsapp: +55 11 96383-1939

E-mail: site@livrariadatarde.com.br
CD: Conte um pouco da história da Livraria da Tarde: Como surgiu? Quem são as pessoas
que trabalham no projeto? Como é dirigir uma livraria independente?
Livraria da Tarde: Olá, eu sou a Mônica Carvalho, proprietária da Livraria da Tarde.
Ela surgiu de um sonho meu, sempre fui apaixonada por livros e livrarias, especialmente
as livrarias de rua. Como leitora eu sentia falta de espaços acolhedores e aconchegantes

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aqui em São Paulo, uma cidade que em geral é muito dura, as pessoas estão sempre com
pressa, e com pouco tempo para se encontrarem.
Eu não venho do mercado livreiro, trabalhei muitos anos no mundo corporativo,
em RH e desde 2010 me tornei sócia de uma consultoria de educação corporativa. Depois
de quase 20 anos nesse mercado, resolvi realizar o sonho de trabalhar com cultura e
literatura. Chamei uma amiga para ser minha sócia, mas acabou não dando certo a
parceria e assumi o projeto sozinha. Abri a livraria em dezembro de 2019, e de lá para cá,
depois do susto da chegada da pandemia, acredito que conquistamos nosso espaço e
construímos uma identidade forte que tem nos dado muitas alegrias.
Nossa equipe é constituída por 3 livreiros, que são parte fundamental para o
sucesso da livraria. Eles são grandes leitores, apaixonados por literatura, cultura e arte, e
isso faz toda a diferença no atendimento ao cliente. São eles Zilmara Pimentel, Thamires
Marins e Ageu Habacuque. Desde que abrimos nossa loja online, temos o apoio remoto
também do Viktor Matts.
Fazer gestão de uma livraria independente tem dores e delícias como fazer gestão de
qualquer negócio. O lado bom é poder escolher o acervo de acordo com a proposta de
valor, com os clientes leitores, é ter liberdade para realizar ações que tenham a ver com a
identidade da marca, conhecer muitos clientes pelo nome, receber muito carinho e afeto
de muita gente. O lado desafiador é ter negociações mais duras com editoras, ter que
provar que somos profissionais e sabemos fazer gestão do negócio.
CD: A livraria é muito atuante na internet, especialmente no Instagram, e aparece
promovendo causas sociais, como a oposição à taxação dos livros. Qual a importância de
uma livraria atuar nesse tipo de causa?
Livraria da Tarde: Acredito que temos um papel pedagógico em relação à
conscientização das pessoas quanto ao papel do livro, da cultura e das livrarias na nossa
sociedade. Uma livraria não é um comércio como outro qualquer, embora seja um
negócio, precise dar lucro (muita gente não entende isso... mas como vamos pagar nosso
aluguel, funcionários, fornecedores?), também é um espaço cultural, um local de fomento
ao pensamento crítico e formação de leitores. Nas redes conseguimos levar essas ideias
para um público maior. Na livraria falamos apenas com as pessoas que estão em SP,
moradores ou visitantes. No Instagram e Facebook falamos com muito mais gente,
pessoas que nunca nos visitaram, e muitas nunca nos visitarão.
Desde que abri a Livraria da Tarde procuro me envolver nas discussões e ações que
são fundamentais para a sustentabilidade das livrarias e para o mercado do livro como um
todo, seja por meio das entidades do livro, ou me associando a pequenos livreiros como
nós. Já fizemos uma campanha contra a privatização dos correios, nos posicionamos
contra a taxação dos livros, e atualmente estamos apoiando a criação da lei que
regulamenta os descontos para lançamentos de livros, a fim de colocar limites ao leilão
que se tornou a venda de livros pelas grandes lojas online como Amazon, Americanas e
Magazine Luiza.

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CD: Como é ser uma livraria de rua nos dias de hoje? Vocês consideram que a
concorrência da Amazon e outros site de vendas online tem colaborado para a falência
das livrarias físicas?
Livraria da Tarde: Ser uma livraria de rua é acreditar na força e potência dos livros e
das livrarias como locais de encontro e fomento à leitura. Não é fácil, confesso que tem
dia que é desanimador ver os clientes olhando os preços na livraria comparando pelo
celular com as lojas online, e muitas vezes questionando os valores, como se nós
estivéssemos colocando um sobrepreço, quando na verdade quem define o preço de um
livro é a editora.
Eu não sou contra a concorrência das vendas online, pelo contrário, acho que elas
são fundamentais para os livros chegarem às cidades que não têm livrarias (e são muitas).
O que não dá e acaba impactando muito no mercado de livrarias físicas são esses
descontos absurdos que muitas dão apenas para ter os dados dos clientes em sua base
abrindo mão da margem. Como são empresas poderosas, elas não se importam com a
margem de lucro do livro, porque sabem que venderão outros produtos com margens
maiores e vão compensar.
Não sei dizer se essas vendas online têm colaborado para a falência das livrarias
físicas. Acho que tem muitos outros fatores que tem contribuído, além desse, obviamente.
Não ter uma gestão financeira, controles e uma equipe bem formada podem levar à quebra
de qualquer negócio.

CD: Como é ser uma livraria independente? Como as livrarias têm conseguido sobreviver
nesse contexto desfavorável de ataques à cultura e pandemia?
Livraria da Tarde: Estamos lutando como a maioria dos outros negócios, e temos
contado muito com uma comunidade de leitores que valorizam as livrarias de rua, que
sabem da importância das livrarias para que as cidades fiquem mais ricas culturalmente
e para a formação de novos leitores. Ter um governo contrário à cultura não significa ter
um povo que pensa igual. E nós brasileiros sabemos o valor da nossa cultura, a
importância da arte para nossa sobrevivência. A pandemia só aumentou essa percepção.
O que seria de nós sem as lives do Gil, do Milton e do Caetano? Sem as conversas com
escritores, teatros online? Imagine passar uma pandemia sem ter um livro para ler?
CD: Qual o futuro das livrarias, na visão da Livraria da Tarde?
Livraria da Tarde: Penso muito no que estamos cultivando hoje e vamos colher no
futuro. Temos investido muito em clubes de leitura como lugar de formação de leitores,
em breve voltaremos com os eventos para o público todos os públicos e especialmente o
infantil, nossos leitores mirins amam ouvir histórias e participar delas. Eles são
importantíssimos, porque serão leitores adultos. Já estamos vendo as pessoas voltarem a
frequentar a livraria, e serão cada vez mais o lugar de encontros significativos com outros
leitores, autores, livreiros e com os próprios livros. Um lugar de afeto, troca de
experiências, conhecimento e percepções.

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CD: Qual a mensagem que vocês deixam para todas as pessoas que amam livros e
conhecimento?
Livraria da Tarde: Ocupem os espaços culturais da cidade! Sejam as livrarias,
bibliotecas, teatros, centros culturais. A rua é nossa, a cidade é nossa, a gente precisa se
apropriar para ter uma vida plena. Quanto mais gente nesses espaços, menor a violência,
mais gente engajada em apoiar projetos, mais empregos, mais renda. Conversem com
livreiros, aproveitem essa troca para conhecer diferentes autores, estilos, linguagens, é
uma viagem barata comprar um livro que nenhum algoritmo pode te indicar!

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A verdade é uma questão de imaginação

Por Carlos Douglas

Ficha técnica: A Mão Esquerda da Escuridão é um romance de ficção científica escrito


por Úrsula Kroeber Le Guin que aborda os conflitos culturais, psicológicos e políticos
devido a chegada de um humano diferente da espécie de humanos do planeta Gethen.
Tudo começa quando o Ekumen, uma união de planetas humanos, manda Genly Ai como
mensageiro, o propósito de sua viagem era convencer pacificamente as nações do planeta
Gethen a se somarem como membros da coordenação. O livro foi lançado no Brasil em
2014 pela Editora Aleph e está na sua terceira edição (2019), com a tradução de Susana
L. de Alexandria, a capa de Giovanna Cianelli, ilustração da capa de Marcela Cantuaria
e um prefácio de Neil Gaiman.

Mini BIO: Ursula Kroeber Le Guin nasceu em 21 de outubro de 1929 e faleceu em 22


de janeiro de 2018. Foi uma escritora estadunidense conhecida por suas obras de ficção
científica e fantasia. Le Guin publicou pela primeira vez em 1959 e sua carreira se
estendeu por quase 60 anos, tendo produzindo mais de 20 romances e mais de 100 contos,
além de poesias, crítica literária, traduções e literatura infantil. O pai de Úrsula, Alfred
Louis Kroeber era antropólogo na Universidade da Califórnia, e sua mãe, Theodora
Kroeber (nascida Theodora Covel Kracaw) era uma psicóloga que estabeleceu uma
carreira de sucesso como autora e que escreveu, dentre outras obras, Ishi in Two Worlds

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(1961), uma biografia sobre Ishi, um nativo americano que se tornou o último membro
conhecido da tribo Yahi.

A recepção

O romance foi publicado pela primeira vez em 1969 e hoje é um clássico com mais
de 50 anos de existência. Uma história que envelheceu bem, continua atual e relevante.
Na época, o livro foi muito bem recebido pela crítica, se tornou muito popular e foi
reeditado mais de 30 vezes. Ganhou o Prêmio Nebula, concedido pela Science Fiction
Writers of America, e o Prêmio Hugo, determinado pelos fãs de ficção científica. E, em
1987, a revista Locus classificou-o em segundo lugar na lista "Melhores Romances de
Ficção Científica de Todos os Tempos". O sucesso do livro foi tão grande que o crítico
literário Harold Bloom chegou a dizer que "Le Guin, mais do que Tolkien, levou a fantasia
ao status de alta literatura no nosso tempo".

Além do sucesso editorial, o romance é considerado um marco na trajetória literária


da autora. Apontado pelos críticos como sua "primeira contribuição ao feminismo", o
romance foi realizado num contexto de efervescência política e cultural, onde as questões
de gênero, desnaturalização e contracultura entraram com força no debate público. No
campo literário americano os debates foram pautados pelas releituras de Simone de
Beauvoir e publicações como A Mística Feminina, de Betty Fridman. O romance é
marcado pela relação nós x eles, pelo encontro cultural com o outro, pela vivência de um
estrangeiro, somadas as diferenças físicas virtuais entre tipos diferentes de humanos,
sobretudo com relação ao sexo.

O livro transborda a mentalidade culturalista que hegemonizou o debate acadêmico


nas ciências humanas, especialmente a partir dos estudos de Franz Boas, Margareth Mead
e Ruth Benedict. No prefácio, Neil Gaiman diz acertadamente que "Le Guin tem um toque
de poeta e um olho de antropóloga". Os editores da Aleph descrevem Úrsula como uma
escritora de ficção pautada no debate das ciências humanas, como a sociologia e
antropologia. Segundo a própria Úrsula, "o objetivo do experimento mental (...) não é
prever o futuro (...), mas descrever a realidade, o mundo atual. (...) A ficção científica não
prevê; descreve (...). Previsões são feitas por profetas". Nesse sentido, a autora redigiu a
frase que titula esse artigo, pois quem descreve o faz a partir de seu próprio ponto de vista,
ou seja, “a verdade é uma questão de imaginação”. Uma afirmação que se encaixa na
metodologia e epistemologia típicas do campo das ciências humanas, onde o objeto e
sujeito dos estudos coincidem.

O romance, assim que foi publicado, esteve no centro de um debate feminista.


Alexei Panshin fez objeções ao uso de pronomes de gênero masculinos "ele/seu/dele"
para descrever os personagens andróginos do romance. Também houveram críticas com
relação a heteronormatividade durante o kemmer, o período do cio entre os gethenianos,
pois a trama só apresenta arranjos de casais compostos por homem e mulher. Sarah
LeFanu escreveu que Úrsula perdeu uma oportunidade de experimentação, pois os "heróis

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masculinos com suas crises de identidade, presos nas garras do individualismo liberal,
servem de peso morto no centro do romance".

Em 1976, Úrsula responde às críticas em seu artigo Is Gender Necessary?''.


Incialmente, argumenta que a questão de gênero era apenas um tema secundário em
relação ao tema primário, lealdade e traição. Na versão revisada do artigo, publicada em
1987, Úrsula voltou atrás e afirma que a questão de gênero era central para o romance.
Disse que havia descrito o gênero como tema periférico por que se sentia na defensiva
sobre usar pronomes masculinos em seus personagens. Úrsula conclui sobre a recepção
do romance: "homens estavam inclinados a ficarem satisfeitos com o livro, que permitia
uma visita segura à androginia (...). Mas muitas mulheres queriam ir além, arriscar mais,
explorar a androginia de um ponto de vista feminino". Ao final, Úrsula acaba fazendo
uma autocrítica com relação a essa questão: "as mulheres estavam certas em pedir mais
coragem da minha parte".

A narrativa

A história é instigante e tecnicamente muito bem executada por parte da autora. A


narração conduz o leitor a um exercício constante de relativização e desnaturalização,
fazendo Genly Ai, o principal narrador do romance, viver situações em que é necessário
lidar com seus preconceitos com relação aos alienígenas. Genly Ai é o narrador principal
e a voz que fala por "nós", que representa o leitor e se aproxima culturalmente dele no
quadro da ficção. O romance conta a história de Ai, chamado de "mensageiro", um
personagem que exerce papel diplomático ao buscar atrair as nações do mundo de Gethen
para a aliança de planetas humanos, o Ekumen.

O "mensageiro" chega ao planeta e aterrissa sua nave no reino de Karhide. Vai


sozinho propositalmente, para que seja visto com curiosidade e não com medo. Ai tem
um protocolo de aproximação e um método de ação com os nativos definidos por regras
coletivas estabelecidas num código de ética. Em muitos aspectos a história de Ai se
assemelha a de um antropólogo introduzindo-se no campo de pesquisa. Inicialmente,
Genly Ai não se adapta facilmente ao clima do planeta, extremamente frio, e aos costumes
dos nativos, o conduzindo a constantes situações de desconforto, desentendimento e
inadaptabilidade. Então, Ai busca um informante e, nesse contexto, encontra seu
interlocutor, Therem Harth rem ir Estraven, conselheiro do monarca de Karhide.

No fim da primeira metade do livro, depois que sofre um grave revés em sua carreira
política, Estraven surge como narrador secundário da trama, compondo um quadro
narrativo onde só haviam a voz de Genly Ai e a "voz do mundo". A princípio não parece
um narrador, mas apenas uma "voz do mundo", surgida para elucidar o leitor sobre a
natureza peculiar do modo de vida e da mentalidade dos gethenianos. Entretanto, ao longo
do romance percebemos que a narrativa de Estraven joga um papel muito mais importante
ao acrescentar alteridade, questão que não está somente expressa no tema do enredo, mas
na própria experiência narrativa construída pela autora.

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Ao convidar o leitor a pensar como o nativo, Estraven o conduz a encarnar o
alienígena e sofrer na pele seus dilemas peculiares, seus dramas pessoais e sua dificuldade
na relação com o estrangeiro, Genly Ai. Assim, utilizando a analogia de Ruth Benedict,
o romance proporciona a experiência de utilizar as lentes culturais gethenianos para ver
gethenianos e terráqueos, e utilizar as lentes culturais terráqueas para ver terráqueos e
gethenianos. Neste sentido, a experiência narrativa do livro proporciona uma reflexão de
superação do binarismo nós x eles com relação a cultura, mas não apenas, também
extrapola a oposição bem e mal, claro e escuro, macho e fêmea.

A sexualidade

O romance é um thriller de intrigas e disputas políticas cheios de revezes, fugas,


prisões e reviravoltas surpreendentes, mas o pano de fundo da experiência do narrador
com toda essa conjuntura é definido por sua experiência conflitiva com a natureza cultural
e biológica dos alienígenas. A condição sexual específica dos gethenianos é o centro da
vazão de grande parte do estranhamento cultural de Ai. Por alguma razão que a trama
acaba por explicar, os gethenianos eram indubitavelmente humanos, mas diferente de
todos os outros humanos que Genly Ai conhecia. Eram ambissexuais, permaneciam num
estado de inatividade, somer, completamente andrógenos, até entrar no cio, kemmer, onde
ao final do processo poderia assumir dependendo de circunstâncias específicas uma
dominância masculina ou feminina. Um mesmo getheniano poderia ser pai de uma
criança e mãe de outra, sem que haja dominância da parte desse indivíduo entre os
comportamentos, assim como considerado por Aí e nós como masculinos ou femininos.

As implicações psicológicas da condição sexual getheniana não são desprezadas


pela autora que, pela voz de Ai e outros estrangeiros, questiona a condição específica da
formação da psique daquele tipo de humano. Uma questão levantada é que o complexo
de Édipo não faz sentido entre os gethenianos, pois "não existe nenhuma divisão em
metades forte e fraca (...), ativa e passiva", ou macho e fêmea como sexos permanentes.
Neste sentido, não existe sexo sem consentimento, pois todos estão na mesma condição
até definirem para o masculino ou feminino.

Neste sentido, a experiência do gênero não está mediada por relações de poder
hierárquica, mas por uma estrutura equânime entre os indivíduos iguais do ponto de vista
da sexualidade. Nas sociedades gethenianas, incesto entre irmão é permitido, vedado
apenas o juramento de casamento monogâmico (kemmering), mas o incesto entre
diferentes gerações da mesma família era expressamente proibido. A descendência dos
indivíduos é matrilinear, reconhecida a partir da mãe, chamada de "genitor carnal"
(amha). A apresentação desse estudo sobre o parentesco e a sexualidade dos gethenianos
é conduzido pela autora como uma introdução em temas importantes de interseção entre
a antropologia e a psicanálise.

O fato de Genly Ai ser um indivíduo permanentemente macho era ser visto como
uma aberração, um "pervertido". A condição sexual permanente dos humanos não-
gethenianos causavam desprezo e repulsa na maior parte dos gethenianos. Em diversos

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momentos da trama, Ai também expressa sua repulsa a condição sexual getheniana. Em
um dos momentos chave de sua jornada, Ai assume abertamente seu preconceito para
Estraven: "não queria oferecer minha confiança, minha amizade a um homem que era
mulher, uma mulher que era homem". A jornada empática de Genly Ai é compreender o
que é ser getheniano, ao passo que busca solucionar as questões políticas que envolvem
a sua missão de aliar Gethen ao Ekumen.

Durante a jornada pelo gelo Ai obtém uma compreensão ampliada da cultura


getheniana: o intenso convívio entre Ai e Estraven, inclusive durante o kemmer do último,
faz com que eles consigam compartilhar um laço telepático (mindspeak), levando Ai a
compreender e aceita a natureza dupla da sexualidade de Estraven. As sociedades
gethenianas em seu funcionamento diário são assexuadas (somer), os indivíduos não são
neutros, mas potencialidades integrais, macho-fêmea. Genly Ai gradualmente se afasta
do comportamento "masculino" e, ao longo do romance, se torna mais integral ou
andrógeno (somer), assumindo um comportamento menos racionalista, e mais paciente e
afetivo.

Conclusão

O romance nos faz pensar muitas questões sobre o outro, a alteridade, as diferenças
entre os gêneros e o persistente tema da dualidade na cultura ocidental. Assim como diz
a canção getheniana: a "luz é a mão esquerda da escuridão e escuridão, a mão direita da
luz". Uma temática que possibilita uma alusão ao yin e yang, onde a referência a cultura
oriental apresenta uma solução para a perspectiva polarizada da cultura ocidental marcada
pela dualidade de opostos. A condição de integralidade homem-mulher e o reflexo disso
na cultura getheniana são expressões da crítica da autora com relação a as temáticas da
cultura e do gênero.

Apesar do romance apresentar uma raça de humanos em que quase não há


influência social sobre a sexualidade dos indivíduos, a trajetória de Ai demonstra que
apenas o mergulho intensivo nos significados compartilhados, na linguagem e na cultura
gethenianas que possibilitaram a superação da barreira entre ele e os alienígenas. A
primazia do elemento cultural e não do biológico sobre o comportamento se confirma na
transformação de Genly Ai, que mesmo sob a condição permanente de macho, consegue
compreender a condição getheniana e modificar seu comportamento ao ponto de se tornar
o mais próximo que um humano não-getheniano pode chegar de um nativo.

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Resenha de O Conto da Aia
Por Marcelo Sophos
“O patriarcado, um câncer que assola a sociedade há anos, é apresentado em sua forma
mais brutal e impiedosa: homens que, sem medo, se sobrepõem aos demais e,
principalmente, sobre as mulheres” (Margaret Atwood).

Ficha técnica:
O Conto da Aia (2017).
Emissora original: Hulu
Adaptação de: O Conto da Aia, Margareth Atwood.
Prêmios: Prêmio Emmy do Primetime: Melhor Série Dramática, dentre outros.
Autores: Margaret Atwood, Bruce Miller, Yahlin Chang, dentre outros.
Gêneros: Distopia, Ficção utópica e distópica, Ficção científica, Tragédia.
1h/episódio.
Atualmente tem 4 temporadas.

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Sinopse original: Depois que um atentado terrorista tira a vida do presidente dos
Estados Unidos e de grande parte dos outros políticos eleitos, uma facção católica toma
o poder com o intuito de restaurar a paz.
Descrição
A série O Conto da Aia é baseada no romance distópico da escritora canadense
Margaret Atwood, publicado em 1985. Os eventos se passam num futuro próximo, após
o golpe de estado de um grupo terrorista fundamentalista cristão no governo dos Estados
Unidos. Chamada de Gilead, a nova Republica é um governo teocrático cujos
fundamentos e leis se baseiam no antigo testamento bíblico.
Após o golpe, a personagem Offred, uma mulher bem sucedida, vê sua vida
arruinada quando o governo toma todos os bens das mulheres e os transfere para seus
maridos, e logo depois todas as mulheres são demitidas de seus empregos. Muitas são
aprisionadas e enviadas para uma escola de reeducação, onde aprendem as funções de
uma aia. A resistência a essa educação é punível com torturas e morte. Apesar de tudo,
Offred luta como pode contra o sistema, de cabeça abaixada para o status quo, pois sempre
sua vida está em risco, sendo estrategista e meticulosa em suas ações.
Analise
Diferente de distopias como 1984, Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451, que
trazem apenas ideias para um futuro, antecipando eventos, O Conto da Aia traz ideias que
já aconteciam nos EUA em seu passado, onde mulheres eram usadas para povoar o novo
mundo com o dom da maternidade, usando a submissão feminina descrita nos textos
bíblicos como argumento de superioridade da masculinidade.
É nesse cenário que a autora desenha as experiências reais vividas por muitas
mulheres ao redor do mundo. Basta ficar atento aos noticiários, ao crescente número de
feminicídios, ou refletir como nos lugares e nos transportes públicos, metrôs, ônibus e
trens, essa realidade está presente em nosso dia a dia. A pouco, o lançamento de uma
personagem da D.C. famosa, a Mulher-Maravilha, foi reinventada, numa leitura atual em
prol da representatividade negra. A nova heroína, mulher negra e homoafetiva, pouco
sensualizada, gerou o ódio daqueles que querem manter a ideia do patriarcalismo,
erotizando e submetendo a mulher como algo que os homens possam opinar e avaliar seus
corpos.
A protagonista da série e livro, é uma mulher forte, empoderada, astuta e sagaz,
pronta para lutar pelos desafios contemporâneos. A história é um extremo do que pode
acontecer caso fechemos os olhos e baixemos as bandeiras da luta por igualdade. É um
alerta para os perigos de um estado fundamentalista, levantando o debate sobre o poder
da religião sobre o Estado.

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