Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Unidade II
Passemos, então, para a unidade II, que apresentará as duas abordagens psicológicas que fornecem
diferentes subsídios para a Pedagogia não diretiva: Abordagem Humanista e Abordagem Psicanalítica.
4 ABORDAGEM HUMANISTA
Os nomes mais representativos da abordagem humanista são Carl Rogers (psicólogo americano) e
Alexander Neill (educador escocês), sendo que o primeiro desenvolveu uma teoria, enquanto o segundo
baseou suas ideias em uma experiência educativa na Inglaterra, existente até hoje.
Para compreender melhor o significado dessas ideias, é importante destacarmos que elas
se desenvolveram ao longo do século XX, em um movimento histórico que ia na contramão
das práticas pedagógicas inspiradas em princípios empiristas e comportamentais que eram
extremamente valorizadas. Até então, a imagem que se esperava encontrar nas escolas era a de
um professor rígido, bem preparado tecnicamente e que exercesse sua autoridade mantendo-se
superior e distante dos alunos. Ao mesmo tempo, havia a ideia de que os alunos, naturalmente
bagunceiros e indisciplinados, precisariam ser conduzidos com mão firme, segundo a crença de
que o medo e a submissão faziam parte necessariamente do sentimento de respeito.
Assim, esses dois autores, de diferentes maneiras, baseavam-se na ideia comum de resgatar o aluno
dessa condição de medo e dependência, restituindo-lhe o lugar de liberdade, independência e, assim, de
prazer em aprender que levaria ao alcance da felicidade. Eles se contrapunham aos métodos tradicionais
e comportamentais de ensino, como detalharemos a seguir.
50
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
De acordo com Mizukami (1986), na abordagem humanista a ênfase está nas relações interpessoais
e no ensino centrado no aluno. O objetivo maior é o desenvolvimento da personalidade do indivíduo,
dos seus processos de construção e organização pessoal da realidade e da sua capacidade de atuar como
uma pessoa integrada. Há preocupação constante com a vida psicológica e emocional do indivíduo,
com a sua orientação interna, com o autoconceito. Em poucas palavras, a educação humanista almeja
o desenvolvimento por cada aluno (pessoa) de uma visão autêntica de si mesmo, orientada para a
realidade individual (subjetiva) e grupal, na qual está inserido.
O homem, desse modo, não é determinado por modelos prontos, não é resultado de uma série de
condicionamentos, mas cria-se a si próprio de maneira livre e se apresenta como um projeto permanente
e inacabado. Encontra-se em processo de vir-a-ser.
Por consequência, podemos afirmar que, de modo geral, essa perspectiva entende que o professor
não deve centralizar a transmissão dos conteúdos, não deve ensinar nos moldes tradicionais, apenas
cabe a ele criar condições para que os alunos aprendam, com base nos seus interesses e por meio das
suas próprias experiências. O professor atuará como um facilitador da aprendizagem.
Vamos conhecer um pouco mais das ideias do psicólogo norte-americano Carl Rogers (1902-1987).
Formado em História e Psicologia, aplicou à educação princípios da psicologia clínica, atuando como
psicoterapeuta por mais de 30 anos. Rogers é considerado o representante da terceira força na Psicologia
(o humanismo), junto ao behaviorismo (de que tratamos anteriormente) e da psicanálise (que será
abordada mais à frente).
Esse autor concebe o ser humano como fundamentalmente bom, curioso e possuidor de uma
“tendência atualizante, que consiste na aceitação do pressuposto de que cada pessoa pode desenvolver‑se,
crescer” (MIZUKAMI, 1986, p. 41). Entretanto, nesse processo de crescimento, precisará de ajuda para
poder evoluir, e aqui entrará em ação tanto um psicoterapeuta quanto um educador.
De acordo com Rogers (1977a), o homem é arquiteto de si mesmo. Deve tornar-se progressivamente
consciente de sua incompletude interior e exterior, de que é um ser em transformação e um agente
transformador da realidade. A ênfase está no processo e não nos estados finais de ser, por isso esse autor
não aceita um projeto de planificação social, baseado no controle e manipulação das pessoas – e aqui
podemos perceber uma crítica direta à máquina de ensinar de Skinner.
A base para o desenvolvimento pleno de uma pessoa será, nessa teoria, a qualidade de relacionamento
interpessoal que ela irá experienciar e que irá possibilitar aos indivíduos a autorrealização. O foco está
na pessoa como um todo (sentimentos, atitudes, pensamentos, relacionamentos) e não apenas nos
comportamentos.
51
Unidade II
Lembrete
O desenvolvimento é entendido como um processo integral, que deve envolver a pessoa inteira, não
podendo acontecer de modo separado quanto aos aspectos intelectuais e emocionais, sendo que Rogers
defende, inclusive, que os primeiros dependerão dos segundos. Vejamos, no trecho a seguir, como o
autor esclarece essa questão:
Segundo Rachel Rosenber, psicóloga estudiosa e seguidora da teoria humanista, uma das maiores
contribuições de Carl Rogers para o campo da educação é sua visão do aluno como “pessoa que pode e
quer aprender, que busca sempre condições de crescimento pessoal, inclusive, mas não exclusivamente,
por meio do domínio de informações e técnicas” (ROSENBERG, 1977, p. 19). Vemos, mais uma vez, que
o autor possui um olhar essencialmente positivo e otimista frente ao ser humano.
Por conta da ênfase que Rogers dá aos aspectos internos e subjetivos de cada um –
condenando a busca por referências e padrões determinados externamente –, ele é incluído
nas pedagogias não diretivas, com base inatista. No entanto, é importante enfatizar que ele
não propõe um inatismo “puro”, pois considera de fundamental importância as interações com
o meio, principalmente o meio social. Para ele, o que de fato importa é a percepção que cada
um tem da realidade, e não a disseminação de uma realidade única, cientificamente correta. O
conhecimento é sempre individual e a autoridade maior perante ele, que o legitima e lhe atribui
valor e sentido, é o próprio sujeito.
52
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Sendo assim, na terapia, como na escola, o adulto deve atuar com o objetivo de ajudar cada
indivíduo (paciente ou aluno) a encontrar seu próprio esquema referencial, a tornar-se uma
pessoa verdadeira e autêntica. O único caminho para a plena realização e para a felicidade deve
passar por um desenvolvimento emocional, na forma de sentir, de perceber, de aceitar a si mesmo
e aos outros.
Para destacar as contribuições de Rogers ao campo pedagógico, formulamos um quadro com base
nos comentários feitos pelo próprio autor no artigo A política da educação (ROGERS, 1977a). Nele, o
autor afirma suas convicções ao mesmo tempo em que faz críticas ao ensino tradicional, como você
verifica a seguir.
Quadro 7
Analisando as informações do quadro 7, vemos que Rogers propunha mudanças radicais frente
ao ensino tradicional, o que ele mesmo chamou de “uma revolução completa. Não se trata de um
modo de remendar o ensino convencional, mas de colocar a política da educação em total rebuliço”
(ibidem, p. 141). Examinemos mais de perto essas ideias.
A primeira condição para uma relação pedagógica efetiva é a crença incondicional no aluno,
na sua capacidade para aprender e na sua tendência para o crescimento. Isso parece simples, mas
Rogers buscava justamente a simplicidade e as condições mais essenciais para entender os processos
e fenômenos humanos. Nesse ponto, inclusive, emergia uma crítica sua à psicanálise, a qual, segundo
Rogers, baseava-se em construções teóricas mais complexas e abstratas e pouco comprováveis
(ROGERS, 1977a).
53
Unidade II
Como para Rogers a experiência pessoal e subjetiva forma a base para a construção do
conhecimento no processo de vir-a-ser da pessoa, a educação terá como finalidade a criação de
condições para que isso ocorra. Educação está diretamente relacionada a tudo aquilo que envolve
o crescimento pessoal, interpessoal e intergrupal, por meio da autodescoberta.
Assim, a educação deve visar à autoaprendizagem tanto intelectual como emocional, criando
condições para que o aluno se torne capaz de tomar iniciativa, ter responsabilidade, autodeterminação
e discernimento; que saiba aplicar os conhecimentos construídos, adaptar-se às novas situações, aos
problemas, colaborar com os outros sem deixar de ser si mesmo.
Fica claro, portanto, que a educação humanista está pautada em um ensino não diretivo do
professor, pois o processo é conduzido pelo aluno. Porém, diante de tantas mudanças em relação à
pedagogia diretiva, como podemos qualificar o professor facilitador? Em síntese, o que Rogers aponta
como essencial é que o professor precisa ter um self adequado, o que implica tanto o desenvolvimento
de formas fidedignas de percepção de si mesmo e dos outros como a habilidade de ensinar conteúdos
quando isso for necessário.
Observação
É função do professor ser facilitador da aprendizagem do aluno e, como o próprio termo sugere, não
é ele quem centraliza o processo, nem o dirige como nas abordagens diretivas e de inspiração empirista.
Para isso, é preciso desenvolver três qualidades especiais, que podem ser chamadas de condições
facilitadoras da aprendizagem: congruência, empatia, respeito.
Significa que o professor deve buscar ser sempre autêntico e honesto para com o aluno. Ele será
uma pessoa viva, inteira, perante o educando, sem se apoiar ou esconder em uma imagem ou modelo
definido. Ser si mesmo, promovendo um encontro pessoa-a-pessoa, direto e pessoal com o aprendiz.
Podemos pensar em um exemplo relacionado à postura do professor diante do seu próprio erro. Em
uma proposta humanista, considerando que o professor deva ser congruente e autêntico, ele deverá ser
capaz de reconhecer seu erro perante os alunos, mostrando-se tão humano e falível quanto eles, sem
medo de perder a autoridade: o mais importante é ser verdadeiro, sem tentar se esconder dos alunos ou
iludi-los em uma posição idealizada de perfeição.
Empatia
Corresponde a uma condição afetiva interpessoal por meio da qual nós nos colocamos no lugar
do outro. Explicando melhor, ela sugere a habilidade de sentirmos e percebermos o mundo a partir
54
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Respeito
Respeito é uma palavra largamente utilizada, mas que muitas vezes chega a ser banalizada. Nessa
teoria, ele se refere à capacidade de aceitação e consideração positiva incondicional do aluno. Isso
significa o professor prezar, aceitar e confiar no aluno. Respeitar envolve ter estima e precisa ser pensado
de forma articulada às duas outras condições já mencionadas. Ou seja, podemos pensar que o respeito
ao aluno e sua aceitação é inseparável do respeito e da aceitação de si mesmo. Significa, por exemplo,
aceitar a apatia ocasional do estudante, seus desejos desordenados de explorar vias secundárias de
conhecimento e também seu empenho disciplinado para alcançar metas relevantes. Significa tratá-lo
com dignidade quando acerta; quando corresponde ao que se espera de um “bom” aluno e quando
assume o lugar do “mau” aluno.
Um aspecto importante dessa teoria é que não apenas o aluno está em um processo inacabado de
construção de si, mas o próprio professor também vive essa condição. Assim, será um fator extremamente
crucial ao processo de aprendizagem que o aluno reconheça e perceba as atitudes descritas anteriormente
no facilitador.
Nesse sentido, selecionamos uma afirmação de Rogers (1977c, p. 150) que indica quão difícil é
essa mudança de posição, uma vez que, tradicionalmente, a desconfiança e o distanciamento entre o
professor e os alunos foram a regra:
55
Unidade II
Para que esse quadro possa mudar, o autor sublinhou também a necessidade de mudança no clima
institucional. Não é suficiente mudar a postura do professor em sala de aula, até porque essa mudança
dependerá de como tais mudanças serão recebidas por toda a equipe escolar. Rogers insiste que as
inovações não devem ser temidas e que as capacidades criativas dos gestores, professores e alunos
devem ser estimuladas e não abafadas. Ou seja, a mudança proposta transcende os limites da relação
pedagógica para atingir todas as relações escolares, inclusive o modo como o professor será considerado
na hierarquia institucional. Não por acaso o nome do artigo a que nos referimos, de Carl Rogers, inclui
a palavra política, pois suas ideias vão além da relação dual com o aluno, o que, em uma aproximação
superficial à sua obra, pode parecer suficiente.
Além disso, podemos verificar que o autor não defendia romanticamente suas ideias, mas reconhecia
as resistências, o medo e o desconforto que elas poderiam provocar. Em suas palavras:
Vimos que nessa abordagem a aprendizagem deve ser significativa para o aluno: mas o que isso
significa?
Uma aprendizagem significativa deve provocar mudança no aluno e não apenas, nem
necessariamente, um acúmulo de conhecimentos. Essa mudança deve estar articulada com sua vida
futura, sua existência para além da escola, afetando suas atitudes e, no fundo, sua personalidade.
Ela deve ser penetrante e atingir não somente o intelecto, mas diversas camadas da pessoa do aluno.
Ela deve ser, também, autoiniciada, ou seja, basear-se na motivação intrínseca do aluno, seguindo
seus interesses e direcionando-se para aquilo que ele quer saber (e não o mantendo preso a um
planejamento prefixado).
Aparece aqui a ideia de que, para uma aprendizagem ser significativa, ela deve ser automotivada.
Rogers critica duramente a escola tradicional que acaba por retirar do aluno seu prazer natural pelo
conhecer e pelo aprender. Para isso, o professor facilitador deve buscar prover o maior número e
variedade de recursos para que a curiosidade dos alunos não seja perdida e para que os temas tratados
tenham vinculação com situações reais e práticas, sem privilegiar excessivamente o raciocínio abstrato
e formal, características do ensino tradicional.
56
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Por fim, concorde à ideia de que o aluno ocupa o centro do processo educativo, a avaliação do que
foi aprendido deve ter a participação direta do educando. Rogers defende a abolição de exames, notas,
diplomas, enfim, dos controles externos para a aprendizagem.
Quanto aos métodos de ensino, Rogers (1977b) acredita, assim como em relação aos conteúdos
a serem aprendidos, que cada professor é único e, portanto, soluções padronizadas estão fadadas a
serem malsucedidas. Dessa forma, cada um deverá desenvolver seu próprio repertório, baseado em um
processo de autoconhecimento e das próprias experiências pessoais.
Lembrete
Veremos a seguir alguns dos frutos que a aprendizagem significativa e a educação centrada na
pessoa devem produzir.
Lembrete
57
Unidade II
A educação, na concepção humanista, também é conhecida como educação democrática, pois ela
se contrapõe a todo tipo de autoritarismo e violência e também acredita na capacidade de autogestão
dos indivíduos, o que pode e deve ser estimulado nas escolas. Essa valorização do indivíduo corresponde
à meta central da educação que é favorecer a capacidade de autoaprendizagem do aluno, tanto
intelectual como emocional. Ao trilhar seus caminhos pelo conhecimento, o aluno deverá ser fortemente
estimulado a construir seu significado pessoal, ao invés de se apegar à exposição de conclusões prontas.
Essa construção será alimentada pelo debate com colegas, pois as trocas são valorizadas (e não somente
a relação com o professor-facilitador).
Em síntese, podemos destacar três contribuições centrais da teoria rogeriana para a educação:
No interessantíssimo texto de José Coelho Sobrinho (2001), Do que somos capazes? Relato de uma
experiência pedagógica (tese de livre-docência), o autor descreve sua experiência em uma universidade
portuguesa, na qual vivenciou diretamente as propostas de Carl Rogers para a educação.
“Do que somos capazes?” é um relato de quatro experiências acadêmicas vividas pelo autor na
Universidade Fernando Pessoa, na cidade do Porto, em Portugal. Os princípios pedagógicos que orientaram
o planejamento das disciplinas oferecidas aos alunos dos últimos anos do curso de Relações Públicas
daquela Instituição foram baseados nos estudos taxionômicos de Benjamin S. Bloom, para os objetivos
educacionais nos domínios afetivo e cognitivo, e na proposta de Carl Rogers sobre o ensino centrado
no estudante. O trabalho conclui que a proposta pedagógica baseada nos princípios citados, além de
facilitar o aprendizado, aumenta a participação dos estudantes na consecução das metas propostas.
Saiba mais
Indicamos a leitura completa desse texto: COELHO SOBRINHO, J. Do
que somos capazes? Relato de uma experiência pedagógica. Tese (livre-
docência). São Paulo: Escola de Comunicação e Artes/USP, 2001.
psicoterapia, o impacto causado na educação foi ainda maior. No contexto brasileiro, temos em Paulo
Freire um dos grandes educadores que defenderam os mesmo princípios humanistas de uma educação
para a liberdade. Atualmente, um dos mais importantes educadores que seguem nessa mesma direção é
Moacir Gadotti, educador, escritor e diretor-geral do Instituto Paulo Freire. Reproduzimos a seguir uma
breve entrevista que concedeu à Revista Educação (Edição 100), na qual você pode identificar alguns
desses princípios.
Revista Educação – Qual o diagnóstico que você faz da educação básica no Brasil?
Quais os principais problemas, avanços e retrocessos que a educação vive?
RE – Da forma como o Ensino Superior está sendo administrado atualmente, como você
avalia a formação dos professores do ensino básico? Eles estão preparados para a sala de
aula?
MG – Para mudar o mundo, é preciso primeiro pensá-lo de outra forma; para mudar
a educação, é preciso enxergá-la de outra forma. Na formação do educador, é preciso
enxergar o lado belo, a boniteza de sua profissão. Ser professor hoje não é nem mais difícil
nem mais fácil do que era há algumas décadas. É diferente. Diante da velocidade com que a
informação se desloca, envelhece e morre, diante de um mundo em constante mudança, seu
papel vem mudando, senão na essencial tarefa de educar, pelo menos na tarefa de ensinar,
de conduzir a aprendizagem e na sua própria formação que se tornou permanentemente
necessária. Por isso, na sua formação universitária, falta prepará-los para serem menos
lecionadores e mais organizadores da aprendizagem.
Um dos pontos mais frisados por Gadotti nessa entrevista é a liberdade como elemento fundamental
para que a aprendizagem tenha sentido para o aluno, o que é condição para que ele efetivamente
aprenda. Com isso em mente, vamos em frente com nossos estudos.
O principal pilar da educação, para Neill, é a liberdade. Para ele, os alunos só aprendem verdadeiramente,
e com isso só poderão se tornar felizes em suas vidas, se exercitarem a liberdade de escolha, aprendendo
a conciliar seus interesses com os alheios, de modo que o respeito ao outro é um princípio fundamental.
Diferentemente da escola tradicional, sustentada no medo dos alunos, em Summerhill os alunos
escolhem os cursos que farão e participam de assembleias regulares nas quais se decide todo tipo
de assunto, como as regras e as sanções, havendo debates com espaço para as opiniões de todos,
igualmente. Eis aqui mais um ponto importante dessa proposta: os adultos não exercem a autoridade
assimetricamente, mas auxiliam no cumprimento daquilo que é fruto das decisões coletivas. Exemplos
de punições definidas na assembleia podem ser que o aluno envolvido em um caso de bullying deva ficar
por último nas filas e seja proibido de usar computador, ou que todo o grupo contribua financeiramente
para o concerto da bicicleta de um aluno quebrada por um dos seus colegas.
Outra crítica feita por Neill aos moldes tradicionais refere-se à posição fixa das carteiras alinhadas
e voltadas para o professor. Elas favoreceriam antes alunos dóceis, submissos, do que alunos criativos
60
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Saiba mais
Um dos autores que influenciou seu pensamento foi o psicanalista Wilhelm Reich, seu amigo
pessoal e também seu analista. A psicanálise critica os efeitos da repressão social sobre os
indivíduos, que se tornam mais infelizes, apáticos, passivos, em última instância, mais neuróticos.
Neill baseia-se nessa ideia para defender uma educação que não tenha na frustração e na repressão
seus pontos fortes, mas que valorize e estimule a participação, a responsabilidade e a autonomia
dos alunos.
Uma frase de Neill que sintetiza seu pensamento é “gostaria antes ver a escola produzir
um varredor de ruas feliz do que um erudito neurótico”, deixando claro que, para se atingir a
felicidade, as habilidades intelectuais são secundárias e podem até produzir uma condição de
sofrimento e frustração.
As posições de Neill são mais radicais do que as de Rogers, chegando a afirmar que considera os
livros sem grande importância, enquanto as relações interpessoais e as experimentações são centrais
para o desenvolvimento de uma pessoa íntegra e feliz. No livro Liberdade sem medo, Neil (1963, p. 24
apud MIZUKAMI, 1986, p. 55) afirma que:
Diante de uma afirmação tão radical, somos levados a pensar: qual o papel dos livros na educação?
Parece haver certo fundamento nessa crítica, quando pensamos na submissão exagerada que, por vezes,
percebemos dos educadores perante o “saber verdadeiro” dos livros. Interessante destacar que Neill
inclui esportes, artes, trabalhos manuais no mesmo grau de importância que os conhecimentos básicos
de leitura, escrita e matemática.
61
Unidade II
Saiba mais
No exemplar de n° 24 da revista Nova Escola (2011), o repórter Rodrigo Ratier relata sua viagem à
escola Summerhill, em matéria intitulada: “Nesta escola, aluno pode (quase) tudo”.
A escola, fundada em 1921, fica em um sítio com 48.000 m², com muito verde e casas de
uso coletivo e dormitórios. Lá, o repórter encontrou um casal de brasileiros que trabalham,
respectivamente, como professor de Ciências e como “mãe-da-casa”. Esta função é a de cuidar dos
alunos, pois a instituição funciona em regime de internato. Zoe Readhead, filha de Neill, é quem
dirige a escola, seguindo os passos do pai quanto ao valor supremo da liberdade. Às vésperas de
completar 90 anos, ela aguarda apreensiva a segunda visita da agência governamental que avalia
as escolas britânicas, que ameaçou fechá-la em função de o currículo ser optativo. Ela teme que
isso ocorra e considera que há desconhecimento das ideias mais profundas da sua proposta, e
afirma que muitos de seus alunos alcançam notas acima da média nacional em exames unificados,
semelhantes ao Enem brasileiro.
Em relação ao currículo, o que ocorre é que cada aluno estabelece um plano de estudos, e a
frequência às aulas é sempre voluntária, não havendo punição caso decidam não comparecer, uma
vez que estar motivado para a aula é condição para frequentá-la. Caso isso ocorra repetidamente, a
conversa baseia-se na implicação do aluno nas consequências de suas ausências. As metodologias
seguidas pelos professores são individuais e definidas por cada um deles. Pode haver práticas mais
ou menos convencionais, desde que o interesse dos alunos esteja presente, pois a base do método
é não diretiva e não pretende impor uma didática única aos docentes.
Uma das críticas principais às ideias de Neill é seu caráter utópico, difícil de ser expandido
em redes públicas com alto número de alunos em sala. Não é a única escola democrática
existente, mas certamente uma das mais célebres. Discutir os efeitos de escolas democráticas
nos coloca diante de outra reflexão: sobre as contradições tão profundas das sociedades atuais
que se dizem democráticas, mas mantêm um abismo social e cultural entre seus cidadãos.
Enfim, questionar as escolas democráticas leva-nos necessariamente a questionar os valores
das nossas sociedades.
62
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Lembrete
Saiba mais
Sociedade dos poetas mortos. EUA. Peter Weir. 129 minutos, 1989.
Mr. Holland: adorável professor. EUA. Dir. Stephen Herek. 140 minutos,
1995.
A seguir, apresentamos trechos de um texto de Rubem Alves, escritor, psicanalista, educador. O texto
original foi publicado no jornal Correio Popular, de Campinas (SP), em que o escritor mantém coluna
bissemanal. Durante a leitura, reflita sobre o papel do professor na atualidade.
63
Unidade II
A pipoca
Rubem Alves
A culinária me fascina. De vez em quando eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que
sou mais competente com as palavras do que com as panelas.
[...]
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar.
Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois
foi precisamente isso que aconteceu.
A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem,
brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás,
conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente
aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação
metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca
que estoura, de forma inesperada e imprevisível.
Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem
competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve
alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo,
esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado
a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter
imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma
enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros
quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam
comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária,
em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É
muito divertido ver o estouro das pipocas!
[...] O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo
poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser
crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não
passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
64
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
[...] Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez
mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada
em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação
que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso
prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: Puf!! — e ela aparece como
outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta
rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
[...] Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar.
Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.
Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perdê-la-á”. A sua presunção e
o seu medo é a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar
duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para
ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que
não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem
que a vida é uma grande brincadeira...
“Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi
precisamente isso que aconteceu”.
Nesse texto, Rubem Alves, de maneira metafórica, nos permite refletir sobre as diferentes formas de
transformação pelas quais passa o professor ao longo de sua formação: o professor pode deixar de ser
milho e se transformar em uma linda pipoca, ou o professor pode ser sempre um “piruá”. Em sua opinião,
quais das teorias psicológicas aplicadas à educação, estudadas até este momento, possibilitariam a
segunda transformação?
Na abordagem tradicional, o professor é aquela pessoa que não aceita as mudanças, está preso aos
padrões, às convenções, será sempre um “piruá”. Nas palavras de Rubem Alves: “[...] por mais que o fogo
esquente, se recusam a mudar, elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito
delas serem”.
O professor, em uma perspectiva humanista, será sempre incomodado pelo “calor” da relação humana,
verdadeira, com seus alunos; será instigado a procurar estratégias que possibilitem a transformação
de si mesmo, bem como de seus alunos. Isso mesmo, de seus alunos também, pois nunca se sentirá
plenamente realizado em seu trabalho docente quando perceber, ao final do ano letivo, que seus alunos
se tornaram “piruás”.
65
Unidade II
Após estudarmos as bases teóricas de uma educação humanista e o sentido que ela dá a uma
aprendizagem significativa, vamos comentar brevemente um artigo chamado Aprendizagem significativa,
sob o enfoque da psicologia humanista, no ensino de Ciências do 2º ciclo do Ensino Fundamental.
Esse artigo relata a experiência concreta de três educadoras, Rosa, Laporta e Gouvêa (s/d), professoras
do Centro Universitário Fundação Santo André (FSA). As autoras relatam um projeto de ensino de
Microbiologia, desenvolvido com professoras de Ciências de duas escolas públicas e seus alunos de 7º e
8º anos do Ensino Fundamental. O foco do trabalho foi a aprendizagem significativa, na expectativa de
contribuir para a transformação da relação pedagógica, valorizando as pessoas que aprendem e aquelas
que ensinam.
Saiba mais
No projeto, foram realizadas, durante seis meses, seis oficinas. Cada uma delas era relativa a
diferentes temas da área: células, vírus, bactérias, algas microscópicas, protozoários e fungos e
eram realizadas tanto com os professores das escolas como com os alunos. A ideia principal foi
partir de materiais simples e de fácil acesso, como sucata, material de padaria e material plástico, e
provocar os participantes das oficinas a construírem jogos, miniaturas, modelos tridimensionais. Ou
seja, promover vivências e experiências que os levassem a agir e criar enquanto aprendiam. Foram
realizados questionários e entrevistas com os professores, e duas avaliações de desempenho dos
alunos: antes e após a realização das oficinas.
Além disso, os professores de Ciências relataram que, para realizar as tarefas, os alunos precisaram
ser curiosos, fazer perguntas, observar e comparar. O trabalho coletivo tornou-se uma necessidade.
Houve a oportunidade para o estabelecimento da relação com o outro, a partir de vínculos afetivos,
permitindo construção do conhecimento em parceria.
A confecção de parte do material utilizado nos jogos pelos próprios alunos proporcionou uma
oportunidade ímpar de interação humana. A construção dos diferentes modelos propostos permitiu ao
aluno visualizar as células, compará-las entre si e com as descrições dos textos de apoio. Nas discussões,
a contextualização dos temas possibilitou a integração das experiências vividas no dia a dia dos alunos.
Como conclusão, Rosa, Laporta e Gouvêa (s/d) consideram que, em sua pesquisa, puderam
verificar a ocorrência de aprendizagem significativa nos alunos, acompanhada de mudanças nos
66
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Como nesta disciplina nossa intenção é, além de fornecer subsídios teóricos e práticos para sua
ação futura como educador, levar você, aluno, a refletir criticamente sobre os temas abordados,
apresentamos, a seguir, uma crítica feita por Dermeval Saviani, estudioso de Filosofia e História
da Educação.
Saviani (2000) examina as consequências geradas pela grande influência que a psicologia de
inspiração humanista ocasionou nas escolas. Ele reconhece que, inicialmente, ela teve um propósito
válido, ao se contrapor ao modelo tradicional de ensino – o qual acabava alimentando uma escola
elitista e seletiva –, valorizando os indivíduos como únicos e diferentes. O ambiente austero, sombrio,
opressor e silencioso, dava lugar a um ambiente alegre, movimentado, diversificado, barulhento.
Embora o movimento a que ele se refira – a Escola Nova – não tenha sido liderada especialmente
por Carl Rogers (que estamos estudando nesta disciplina), suas ideias também reforçaram esse
movimento. Outros educadores como Decroly e Montessori contribuíram ativamente para ele, e
mesmo as ideias de Jean Piaget também serviram de inspiração para o movimento escolanovista.
Um aspecto da crítica de Saviani que nos parece pertinente abordar neste momento do texto é que,
politicamente, essas ideias podem acabar realimentando a discriminação na escola. Por demandarem
maiores investimentos (dada a formação do professor e a atenção mais individualizada aos alunos), no
caso da sociedade brasileira, por exemplo, não havia recursos suficientes, de modo que sua implantação
nas redes públicas de ensino se deu de forma precária, prejudicando o ensino. Nas palavras de Saviani
(2000, p. 10):
Com essas questões colocadas, nós vemos, mais uma vez, que a adoção de um determinado
método de ensino não é uma escolha neutra pelo educador; ela envolve concepções
filosóficas, epistemológicas, políticas, sobre o sentido da aprendizagem, o papel da escola e do
professor e como elas se relacionam com os valores sociais mais amplos. E reconhecer essas
dimensões, embora não seja um processo fácil, é fundamental na formação do educador –
desde o momento da graduação como na sua formação continuada –, como um desafio a ser
enfrentado diariamente.
67
Unidade II
5 ABORDAGEM PSICANALÍTICA
Sigmund Freud (1856‑1939) formulou a teoria da psicanálise que, desde então, tem influenciado o
modo como as sociedades ocidentais compreendem o funcionamento e a constituição do psiquismo e
suas relações com o universo familiar e cultural. Vamos sintetizar alguns elementos de sua biografia e da
construção inicial da sua teoria, por entendermos que serão úteis para formar uma ideia do estudante
e pesquisador por trás da teoria.
Freud nasceu em Freiberg, Morávia (hoje República Tcheca), em 6 de maio de 1856. Por
problemas financeiros, sua família mudou‑se para Viena em 1860, quando tinha apenas quatro
anos, e lá Freud viveu até 1938, aos 82 anos, um ano antes de emigrar para Inglaterra onde
morreu aos 83 anos. De família judia humilde, vivia em um pequeno apartamento, e, por ser o
primogênito e excelente aluno, possuía regalias como ter seu próprio quarto e uma lâmpada a
óleo para estudar, enquanto os demais tinham apenas velas. Isso nos mostra como, tanto em
seu ambiente familiar como para o próprio Freud, o estudo tinha importância central, além das
expectativas que pairavam sobre ele.
Aos 26 anos, forma‑se em Medicina, começa a clínica particular, mas continua realizando atividades
de pesquisa científica. Dedica‑se aos estudos de Neurologia e Psiquiatria, tendo interesse pelas
relações entre sintomas mentais e distúrbios físicos. Isso faz com que consiga uma bolsa de estudos
para estudar com Jean‑Martin Charcot (1825‑1893), em Paris. Este o recebe como um estudante
capaz e o autoriza à tradução de seus escritos para o alemão ao voltar para Viena. Esse psiquiatra e
pesquisador francês tornou‑se famoso por desenvolver o método da hipnose para o tratamento de
distúrbios histéricos.
Saiba mais
68
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Portanto, a ideia central de Charcot, que foi fielmente seguida por Freud, era que tais perturbações
físicas não eram expressões de um foco lesional (neurológico), mas de um processo sugestivo, emocional,
traumático, que desencadeava uma sintomatologia física. Exemplos de sintomas de histeria: paralisa nos
braços, cegueira, crise convulsiva etc. Assim, para Freud, a histeria tratava‑se de uma doença psíquica
cuja origem requeria uma explicação psicológica, e os estudos com Charcot levaram‑no a utilizar
inicialmente a hipnose como instrumento terapêutico.
Lembrete
Freud teve outro grande mestre, o médico e fisiologista austríaco Joseph Breuer (1842‑1925), com quem
explorou amplamente a dinâmica da histeria por meio da utilização do método catártico. Tais experiências foram
publicadas e serviram de origem para a teoria psicanalítica que Freud continuaria a construir por mais de 50 anos.
Um passo importante de Freud, que possibilitou a originalidade de sua teoria, foi ser capaz de ir
contra as ideias de seus mestres, propondo algo novo ao encorajar seus pacientes a falarem livremente
e a relatarem seus sintomas. Não se tratava mais de colocar os pacientes em transe hipnótico, mas de
fazê‑los falar sem censura sobre seus sintomas e sobre sua vida, associando livremente. Será, pois, em
1896, que ele irá utilizar pela primeira vez a palavra psicanálise para descrever seus métodos.
Por volta de 1900, forma‑se à volta de Freud um grupo de médicos interessados em seus estudos
entre eles: o psicólogo austríaco Alfred Adler (1870‑1937), o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi
(1873‑1933), o psiquiatra suíço Carl Jung (1875‑1961), o psicanalista austríaco Otto Rank (1884‑1939),
o psicanalista alemão Karl Abraham (1877‑1925) e o psicanalista galês Ernest Jones (1879‑1958). O
grupo formou uma sociedade, documentos foram escritos, uma revista foi publicada e o começo do
movimento psicanalítico começou a se expandir. No entanto, alguns membros abandonam o grupo
pelas divergências teóricas com Freud e mais tarde cada um deles fundou sua própria teoria, sendo Carl
Jung o mais conhecido em nosso meio.
Saiba mais
Para você saber mais sobre a vida e a obra de Sigmund Freud, sugerimos
duas biografias.
69
Unidade II
Freud passou o resto de sua vida dedicando‑se a ampliar e a elucidar a psicanálise. Suas obras
completas compõem 24 volumes. Morreu em 1939, após lutar durante 15 anos contra um câncer na
boca e mandíbula, tinha dores continuas e sofreu 33 cirurgias para deter a doença que cada vez mais
se expandia.
A seguir, vamos apresentar alguns conceitos da psicanálise com dois objetivos. Em primeiro
lugar, este material fornece elementos necessários para o entendimento da evolutiva humana em
uma perspectiva psicanalítica. Em segundo lugar, buscamos permitir a você, futuro professor, uma
compreensão geral sobre a teoria e, principalmente, as suas implicações na educação.
Três conceitos centrais da psicanálise, e que nos interessam aqui, são: inconsciente, sexualidade e
transferência. Vejamos os aspectos principais de cada um deles.
Junto com o astrônomo Nicolau Copérnico e o biólogo Charles Darwin, Freud revolucionou os
paradigmas das ciências sobre o homem. Os dois primeiros nos reposicionaram frente ao mundo físico e
animal: teoria heliocêntrica, substituindo a geocêntrica, e a teoria da evolução das espécies, atestando
a continuidade entre os homens e outros animais. Freud, por sua vez, retirou o poder supremo que era
atribuído à nossa consciência (por exemplo, aquele atribuído por meio do racionalismo cartesiano:
“penso, logo existo”), demonstrando que todos nós possuímos uma dimensão inconsciente que provoca
efeitos reais em nossas vidas. Ele estudou, além dos sintomas psiquiátricos, os sonhos, os chistes e os
atos falhos como manifestações do funcionamento mental inconsciente. Como os sonhos, os chistes
(que podemos entender como as zombarias ou ironias cotidianas) e os atos falhos (esquecimentos e
trocas nas falas) ocorrem com qualquer pessoa – e não somente com doentes mentais – sua teoria
acaba por tratar do funcionamento psíquico humano em geral. Isso será importante para pensarmos,
inclusive, tanto o professor como o aluno segundo as lentes que ele propõe.
70
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Em um primeiro momento da sua teoria, Freud construiu um modelo teórico sobre o inconsciente
chamado de topológico. Ele tratava das relações entre três níveis de consciência da mente:
• consciente: fenômenos que podem ser percebidos conscientemente pelo sujeito (por exemplo:
nosso nome, o lugar onde estamos);
• pré‑consciente: fenômenos que não estão conscientes, mas podem se tornar (por exemplo:
lembrar‑se de um número telefônico ou o que comemos no almoço de ontem);
• inconsciente: fenômenos que não são conscientes e somente com um trabalho especial podem
tornar‑se (conteúdos e sentimentos mais profundos, que se revelam nos sonhos e durante uma
análise).
Freud ilustrava esse modelo com a figura de um iceberg : assim como sob uma pequena
parte visível e emersa sobre as águas, sabemos que há uma massa muito maior de gelo, o
mesmo pode servir para entendermos que o consciente é somente uma pequena parte (aquela
visível ou perceptível por nós) sobre uma quantidade muito maior que permanece submersa em
nossa mente (o pré‑consciente e o inconsciente). Aqui, temos a repressão como uma força que
supervisiona e controla as fronteiras entre esses níveis, principalmente entre o inconsciente e
os demais.
Com o desenrolar de sua teoria, sempre baseada na prática clínica, Freud desenvolveu outro modelo
para o inconsciente chamado de modelo dinâmico. Nele, encontramos conceitos que fazem parte hoje
em dia da linguagem cotidiana: id, ego e superego, que representam instâncias, dimensões do nosso
mundo mental:
• id: é a fonte de prazer (libido); é formado pelos instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes;
ele é regido pelo principio do prazer;
• ego: cuida de nossa vida cotidiana, dos relacionamentos sociais e é regido pelo principio da
realidade, ou seja, ele consegue retardar a possibilidade de prazer, visando à harmonia entre o id,
as exigências do superego e os interesses do próprio ego;
Aqui, ganha destaque um aspecto importante: o inconsciente, para Freud, é mais do que um adjetivo,
uma característica de alguns sentimentos ou pensamentos; ele corresponde a uma dimensão da nossa
mente que possui um modo típico de funcionamento diferente do funcionamento da mente consciente,
ou da mente em vigília (acordada). Tal funcionamento corresponde ao princípio do prazer, ou seja, ele
não possui censura, ele busca a satisfação a todo custo, não segue nosso tempo cronológico, nem
nosso julgamento racional e moral. Nossos sonhos, que nos parecem quase sempre absurdos quando
acordamos, funcionam segundo esse princípio e, assim, apresentam imagens e ideias que sofreram
condensações e deslocamentos. O mecanismo de condensação significa, como o nome diz, que um
elemento do sonho (por exemplo: uma pessoa, Sr. P) representa vários elementos e significados que nele
71
Unidade II
ficaram reunidos, condensados (por exemplo a profissão do Sr. P, o nome do Sr. P, a cor da roupa do Sr.
P no sonho). O mecanismo de deslocamento opera no sentido de, por exemplo, sonharmos que estamos
irritados com uma pessoa (por exemplo: o mesmo Sr. P), quando, na realidade, esse afeto (raiva) deveria
ser direcionado para outra pessoa, como o irmão da pessoa com quem sonhamos (irmão do Sr. P), que
pode nem aparecer no sonho. Refazer esse caminho através das condensações e deslocamentos de um
sonho é um processo que realizamos em análise, com o auxílio de um psicanalista.
Esses mecanismos integram os chamados mecanismos de defesa do ego e têm como função
principal favorecer que nossos desejos inconscientes possam ser expressos (afinal são uma parte nossa!),
porém que o façam de modo a não desestruturar nossa mente consciente, causando um sofrimento
insuportável. E por que causariam sofrimento? Porque nossa mente consciente, comandada pelo ego,
também sofre pressão do superego, da nossa moralidade, a qual poderia julgar, reprovar e condenar
duramente tais desejos, os quais, portanto, precisam passar por essas transformações, ou esses disfarces.
Em uma análise, esses processos tornam‑se conhecidos e podem ser elaborados ou receberem outros
significados, o que proporcionará alívio e condições para que vivamos melhor.
Ou seja, o que devemos salientar aqui é que, para Freud – e isso nos será útil para pensarmos no
sentido dado à educação por ele – a mente vive em permanente conflito entre essas instâncias que não
poderão ser suprimidas, mas devem encontrar formas de coexistirem e permitirem o desenvolvimento
e a realização de cada um de nós. Ou seja, ele nos impulsiona a construir formas possíveis e próprias a
cada um de viver e conviver conosco e com as outras pessoas.
Quando esses conflitos são muito intensos ou a repressão é muito rígida, pode ocorrer o
desenvolvimento de neuroses e psicoses. De modo sucinto, no primeiro caso, ocorrem sintomas (como
crises de pânico, comportamentos compulsivos e ideias obsessivas), mas não há um rompimento da
relação com a realidade. Já nas psicoses, essa ruptura ocorre, podendo haver, por exemplo, a produção
de delírios e alucinações.
Lembrete
O conceito do inconsciente foi tratado em vários momentos na obra de Freud, sendo reformulado e
ampliado. Neste texto, apenas destacamos algumas ideias gerais para nossos objetivos. Passemos, então,
ao segundo conceito que mencionamos no início: a sexualidade.
72
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
As ideias de Freud a respeito da sexualidade sofreram, e ainda sofrem, críticas e geram intensos
debates. De qualquer forma, é necessário que tratemos delas aqui, ainda que brevemente, pois se
articulam diretamente com a questão do aprender.
Em primeiro lugar, é fundamental que façamos uma distinção: para o fundador da psicanálise, a
sexualidade vai além do ato sexual entre duas pessoas adultas. Ele vai demonstrar que, desde bebês,
já possuímos uma sexualidade, vivemos excitações sensoriais e sexuais que possuem características
diferentes desse ato. Ele vai propor o que ficou conhecido como as fases psicossexuais do desenvolvimento,
entendendo por sexualidade, como mencionamos, todas as ligações afetivas estabelecidas pelo sujeito
desde o nascimento à idade adulta.
A libido (energia afetiva que mobiliza o sujeito na perseguição de seus objetivos) se apoia e busca
satisfação em diferentes partes do corpo ao longo do crescimento. Essas partes são chamadas de “zonas
erógenas” e caracterizarão cada fase de desenvolvimento infantil: fase oral, fase anal, fase fálica, período
de latência e fase genital.
Vejamos isso com mais atenção. À medida que ocorre o desenvolvimento orgânico, todos nós
sabemos que determinadas regiões do corpo permanecem naturalmente em evidência com intensa
inervação neurológica, sendo também alvo de ações educativas da família e da sociedade (lembramos,
por exemplo, do controle esfincteriano envolvido no momento de retirada das fraldas). Com isso, além
da maturação física que se encontra em curso, podemos concluir que essas regiões corporais serão mais
estimuladas pela exploração do próprio corpo pela criança e pela atenção do ambiente, de maneira que,
como o desenvolvimento físico não se separa do psíquico, esse processo mobilizará sentimentos, ideias
e fantasias nos indivíduos.
Freud utilizou o termo erógeno para se referir a essas partes do corpo, pois ele queria frisar que a
elas se associavam experiências de prazer e/ou desprazer, para além de um exercício apenas funcional
e mecânico.
No quadro a seguir, sintetizamos as partes do corpo associadas a cada zona erógena, a idade
aproximada em que ela está em evidência e o nome da fase psicossexual freudiana correspondente.
Quadro 8
Fases do desenvolvimento Idade aproximada Zona erógena corporal
psicossexual
Fase oral 0 a 1 ano e 6 meses Boca/dentes
Fase anal 1 ano e 6 meses a 3 anos Esfíncteres
Fase fálica 3 anos a 4 anos Genitais
Período de latência 5 anos a 12 anos Relacionamento social/escolar
Genitais/estrutura final da
Fase genital 12 anos em diante personalidade
Cada uma das fases, portanto, terá como característica principal das relações afetivas estabelecidas
o modelo das zonas erógenas correspondentes. Por exemplo, na fase oral, o bebê vive intensamente a
73
Unidade II
relação com o mundo por meio da boca. Seja no movimento mais passivo e receptivo da amamentação,
seja em um movimento agressivo, ao ter de usar os dentes para mastigar (destruir) a comida. É
importante sublinhar que as características de cada fase não desaparecem de nossas vidas, embora não
devam ocupar mais o centro dela, como na infância, e podemos identificar sua presença em atividades
e relacionamentos posteriores. Em um exemplo rápido, nós muitas vezes estabelecemos relações de
dependência com algumas pessoas (como com professores), diante das quais adotamos uma posição
passiva e receptiva, como se quiséssemos ser “amamentados” por elas.
Neste livro‑texto, como já dissemos, não iremos nos aprofundar na teoria psicanalítica, mas extrair
dela elementos que nos auxiliem a refletir sobre o tema do conhecimento e da aprendizagem. Sendo
assim, queremos nos ater um pouco sobre a fase da latência.
Como indicado no quadro, nessa fase, não existe uma zona erógena corporal específica associada:
por que será?
Após os primeiros anos nos quais a excitação corporal era a tônica, há um período no qual a libido
deverá ser redirecionada a outros fins, dentre os quais o pensamento e o conhecimento são os mais
importantes. A curiosidade e o desejo de saber, antes, estavam associados às funções corporais (“para
que serve esta parte do meu corpo?”) e às funções de vida e reprodução (“de onde eu vim?”, “de onde vêm
os bebês?”). Todos reconhecemos alguns momentos até embaraçosos quando somos alvo de perguntas
de crianças nessas direções.
Freud chamou a atenção da sociedade para que tal curiosidade das crianças não fosse
sufocada por atitudes e valores moralistas excessivamente repressores (por exemplo, ameaçando
cruelmente as crianças quando mostravam necessidade de conhecer e manipular seu corpo,
incluindo os órgãos genitais). Ele entendia que a mesma curiosidade sobre si, sobre o próprio
corpo e sobre os corpos de outras pessoas (principalmente as diferenças entre os sexos) iria
servir de motor para a curiosidade posterior diante de conteúdos escolares, de tal modo que
se a criança fosse excessivamente tolhida no início isso poderia refletir em um bloqueio no
aprendizado futuro.
Vejamos que não se trata de estimular os pensamentos infantis sobre temas sexuais, mas de
compreender que eles fazem parte de um desenvolvimento saudável, de todo e qualquer indivíduo, e
que ser curioso, algo tão fundamental para a vida escolar, começa desde o momento em que somos
ainda bebês.
Aqui, surge outro conceito freudiano: a sublimação. Esse conceito se refere justamente ao
mecanismo psíquico que permite modificar o objeto para o qual nossa libido se direciona, extraindo o
conteúdo sexual e substituindo‑o por outros fins socialmente aceitos e necessários: como redirecionar
a curiosidade corporal para o conhecimento e a arte.
Na fase de latência, as principais curiosidades e interesses das crianças devem dirigir‑se para o
universo da educação e da cultura, o que será abalado, mais adiante, com o advento da puberdade
e da adolescência. Isso porque, nesse momento, um novo salto na maturação física genital própria
74
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
da puberdade levará a libido e se reencontrar com temas sexuais, os quais desaguarão, no futuro, na
escolha afetiva que será feita por cada indivíduo.
Saiba mais
Para prosseguirmos com o último conceito anunciado – a transferência – e, com isso, desenvolvermos
mais a fundo as ideias de Freud sobre a educação, nós recorreremos principalmente a um livro bastante
difundido nos meios pedagógicos: Freud e a educação: o mestre do impossível (KUPFER, 1995).
De acordo com Kupfer (1995), embora Freud não tenha escrito um volume específico sobre a educação,
esse tema permeou toda a sua obra, uma vez que, para ele, o funcionamento psíquico pode ser fruto direto
das influências educativas recebidas pelo indivíduo. Dessa forma, para a autora, as ideias de Freud sobre a
educação encontram‑se em conexão com seus conceitos para compor a teoria psicanalítica.
No início de sua obra, Freud mostra‑se otimista no sentido do papel profilático que a educação
poderia desempenhar frente à saúde mental dos indivíduos. Para ele, a educação deveria auxiliar a
criança a aprender a dominar seus instintos, sendo capaz de reprimi‑los e redirecioná‑los. Muito embora,
Freud também condenasse uma repressão excessiva da sexualidade, como ocorria nos anos de passagem
do século XIX para o século XX.
75
Unidade II
a querer saber mais sobre si e sobre o mundo. E, mais do que isso, na teoria freudiana “o desejo de saber
associa‑se com o dominar, o ver e o sublimar” (ibidem, p. 81). Ou seja, é necessária certa agressividade
no ato de conhecer: é comum ouvirmos expressões metafóricas sobre isso, como quando dizemos que
precisamos “mastigar e absorver” as informações recebidas pelos nossos mestres, não é mesmo?
Exemplo de aplicação
Você já tinha parado para pensar na agressividade necessária ao ato de aprender e em como esse ato
tem semelhanças com a digestão alimentar?
Ao longo de sua vasta obra, Freud vai deixando mais claros os limites da ação pedagógica entre
proibir e permitir ao aluno a realização de seus desejos, em função da complexidade da psique humana,
dos muitos obstáculos interiores ao processo de amadurecimento, do conflito entre o desejo individual
e as exigências da vida em comunidade. Ele vai se dar conta de que esse processo de constituição da
nossa personalidade não é passível de controle e determinação externos, pois dependerá de um processo
interno e de uma combinação única e pessoal de cada indivíduo.
De acordo com Kupfer (1995), sobre a aprendizagem propriamente dita, Freud não tem escritos
específicos, mas gostava de pensar nos determinantes psíquicos que levam alguém a ser um “desejante
de saber”, como os cientistas e as crianças pequenas. Em outras palavras, estudar esse tema em uma
perspectiva freudiana significa entender o processo ou a razão pela qual um sujeito se sente motivado
para o conhecimento: o que reafirma a propriedade de estudarmos tais ideias nesta disciplina.
Além da perspectiva interna e subjetiva envolvida no desejo de saber e conhecer, que foi enfocada até
aqui, o ato de aprender pressupõe uma relação com outra pessoa, a que ensina. Mesmo lendo um livro, nós
nos relacionamos com um alguém imaginário – o autor – que ocupa esse lugar. Mesmo nas descobertas
que fazemos sozinhos, em uma condição de autodidatismo, realizamos um diálogo interior entre nós,
como aprendizes, e uma outra parte em nós, que ocupa esse lugar de suporte para nosso diálogo.
Para aprender é necessária a presença de um outro – que, depois dos pais, se concentra na figura
do professor – colocado em determinada posição que pode ou não propiciar a aprendizagem: “Por isso,
a pergunta ‘o que é aprender?’ envolve a relação professor‑aluno. Aprender é aprender com alguém”
(ibidem, p. 84).
Freud insistirá que, para que um professor seja ouvido por seu aluno, ele precisará estar revestido
de uma importância especial, de modo que a relação entre um professor e um aluno não esteja no
valor dos conteúdos cognitivos transmitidos e sim no campo estabelecido entre os dois. Esse campo é
formado pelas relações afetivas entre ambos, semelhantes à relação afetiva primitivamente dirigida ao
pai (a primeira figura de autoridade, de poder, de admiração, de conhecimento para uma criança). É esse
campo que estabelece as condições para o aprender, sejam quais forem os conteúdos transmitidos. Em
psicanálise esse campo chama‑se transferência, uma manifestação do inconsciente (ibidem).
76
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Inicialmente, Freud cunhou o conceito de transferência para tratar de um fenômeno que ele percebeu
na situação analítica, na relação entre o paciente e seu analista. Ele verificou que o paciente, sem se
dar conta disso, vivia na relação com o analista, sentimentos que derivavam de relações anteriores
que ele vivera nas relações familiares primitivas. Por exemplo, um paciente podia sentir‑se julgado e
oprimido pelo analista, quando, na verdade, o que se percebia no transcorrer da análise era que ele se
sentira muitas vezes dessa forma diante de um pai vivido como muito autoritário e dominador. E esses
sentimentos não necessariamente possuíam um teor negativo, podendo ocorrer o fato de um paciente
facilmente simpatizar‑se com o analista, atribuindo‑lhe sentimentos de afeição e generosidade, que ele
havia experimentado na relação com alguma figura marcante de sua infância, como uma avó.
Lembremos que nós, aqui, estamos ilustrando de modo bastante sintético, um dos conceitos mais
fundamentais da teoria psicanalítica e, mais do que isso, da técnica que sustenta uma análise. O que
desejamos destacar é que Freud acabou por estender esse fenômeno da transferência para além das
paredes de um consultório, verificando que ela opera em outras relações de poder e conhecimento,
como na de médico‑paciente e na de professor‑aluno. Em outras palavras, ele insistiu que um professor
pode tornar‑se a figura a quem serão endereçados os interesses de seu aluno porque ele é objeto de uma
transferência. E o que se transfere são as experiências vividas primitivamente com os pais ou figuras
correlatas (ibidem).
O aluno transfere para o professor os sentimentos carinhosos ou agressivos da sua relação com os
pais. Conscientemente ou não, o professor utiliza a ascendência que assim adquire sobre o aluno para
transmitir ensinamentos, valores, inquietações. Pois não é verdade que os professores de quem mais nos
recordamos, com quem mais aprendemos, são aqueles que melhor nos seduziram? Na escola, bem como
na vida, nós aprendemos por amor a alguém. Portanto, transferir é conferir um sentido especial àquela
figura determinada pelo desejo, e o aprendizado está pautado nessas relações transferenciais.
Lembrete
À medida que ocorre o fenômeno da transferência, o professor torna‑se depositário de algo (positivo
ou negativo) que pertence ao aluno e isso lhe confere um poder na relação. Em outras palavras, a
ideia de transferência mostra que aquele professor em especial foi investido inconscientemente pelo
desejo daquele aluno, e é a partir desse investimento que a palavra do professor ganha poder, passando
a ser escutada. Observe que nós utilizamos os termos “investimento/investido”, comuns no campo
psicanalítico, pois eles acentuam a dinâmica, o movimento de uma quantidade de energia (libido) que é
colocada em outra pessoa com quem estabelecemos uma relação.
No entanto, como esse lugar ocupado pelo professor é irreal, baseado em desejos e experiências
inconscientes, ele precisa ser capaz de, aos poucos, desocupá‑lo, tornando o aluno capaz de ser seu
próprio mestre, de sair dessa posição de dependência inconsciente e necessária, para uma posição ativa,
77
Unidade II
de senhor dos próprios desejos e opiniões. Nas palavras de Kupfer (1995, p. 92): “tudo o que esse aluno
quer é que seu professor ‘suporte’ esse lugar em que ele o colocou. Basta isso”.
Contudo, seria esse pedido facilmente atingido pelo professor? Aqui, mais uma vez, percebemos a
complexidade das ideias de Freud ao afirmar que o próprio professor necessitará lidar com seus desejos
inconscientes na relação com seus alunos: seus desejos de poder, de dominação etc. Além de que ele
próprio possui imagens de professor dentro de si que podem não corresponder àquilo que o aluno nele
verá. Nada simples, não é mesmo?
Dessa forma, cabe ao professor renunciar a um modelo determinado por ele próprio, aceitar
o modelo que o aluno lhe confere, ser investido (“atravessado”, outro termo psicanalítico) pelo seu
desejo e conduzi‑lo à conquista de uma real autonomia. Caso contrário, se subjugar o aluno impondo
seus próprios valores e ideias, ou seja, impor‑lhe seus próprios desejos, impedirá a possibilidade de
aprendizagem no aluno (cessando o desejo do aluno). O aluno irá aprender conteúdos, gravará e
memorizará informações, mas não será um sujeito pensante e autônomo.
Deixamos para esse final, talvez a mais famosa frase de Freud que envolve o tema da educação,
escrita em um dos últimos escritos de suas obras completas Análise terminável e interminável (FREUD,
1937): “[...] educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível [...]”. O que ele queria
dizer com isso?
Eram momentos finais de sua vida, nos quais vivia os tormentos de um câncer de boca. Naquele
momento, ele questionou, principalmente, o poder da análise em estabelecer uma cura para os males
do psiquismo, para as angústias e para o sofrimento psíquico. Resumidamente, chega à conclusão que
ela é impossível, pois sempre haverá conflito e o trabalho do ego de articular tais desejos não cessará,
pois eles movem a vida psíquica.
E quanto à educação?
Ele a afirma impossível, pois ela nunca poderá aplacar o movimento da mente, de reprimir, ocultar
e transformar determinados desejos em nome de outros. Mas isso não significa que ela não tenha valor
ou função.
Caso paremos para refletir sobre essas ideias de Freud, concluiremos que, de fato, a educação é uma
profissão paradoxal, ou impossível. Porém, isso não nos deve paralisar; ao contrário, deve dar‑nos força
para que, reconhecendo sempre os limites da ação educativa, insistamos no favorecimento da emancipação
progressiva do aluno. Afinal, o professor é também movido pelo desejo, é seu desejo que justifica sua ação
docente: não podemos nem devemos abrir mão dele. Porém, estando ali, precisamos renunciar a esse
desejo para permitir a aprendizagem do aluno. Eis o grande desafio que essa abordagem nos coloca.
78
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
Em um texto mais recente, intitulado sugestivamente de Freud e a educação dez anos depois,
Kupfer (1999) retoma as relações entre Freud, a psicanálise e a educação. Esse texto integrou um
exemplar da Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, cujo título foi exatamente Psicanálise
e educação: uma transmissão possível.
Para nossos objetivos, desejamos realçar o que ela fala sobre o trabalho do educador psicanaliticamente
orientado:
Ou seja, o eixo do trabalho docente consiste em auxiliar o aluno a escolher e percorrer seu próprio
caminho, rumo ao conhecimento e, no final das contas, rumo à sua própria constituição como sujeito.
Saiba mais
Voltemos, então, ao nosso tema principal. É hora de recolocarmos uma questão apresentada no
início desta unidade. Portanto, caro aluno, durante a leitura até este ponto, você percebeu elementos
que relacionam a abordagem psicanalítica com a pedagogia não diretiva?
79
Unidade II
Observação
Embora não se trate de uma teoria puramente inatista, a estrutura de personalidade de cada um,
ou seja, a dinâmica entre o id, o ego e o superego e a coordenação das relações entre inconsciente,
pré‑consciente e consciente, e a formação dos mecanismos de defesa entre eles: tudo isso consiste
em processos subjetivos e tais processos possuem certa carga de determinação, ou seja, um caráter
constitucional relativo a cada indivíduo. Entretanto, será nas relações com os outros que essas
possibilidades irão ganhar força, expandir‑se, ou retrair‑se. Por isso, o ambiente (e aí entramos nós
professores) tem, sim, papel importante, mas cada um deverá se haver com a pessoa que é e que se
tornou.
Saiba mais
80
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E TEORIAS DA APRENDIZAGEM
dos limites do cuidado, incluindo um olhar educativo. Mariotto (2003) discorre sobre as possibilidades de
interlocução entre esses saberes, propondo, essencialmente, que a creche seja não apenas um lugar de
cuidados instrumentais, mas que se reconheça nisso o dispositivo de transmissão de saberes, afirmando
sua vocação educativa, mais do que pedagógica, localizando também sua responsabilidade no trabalho
de prevenção. Claro que, como Freud já alertou, a prevenção não se dá de forma definitiva, pois o
conflito é parte da constituição do nosso psiquismo, da nossa personalidade. Porém, cabe ao educador
dos anos iniciais desenvolver, como diz a autora, um olhar diferenciado sobre a criança em constituição,
mas também “uma abertura para fazer de sua prática uma interrogação permanente, capaz de provocar
uma mudança de posição junto à criança que é atendida, cuidada e educada” (MARIOTTO, 2011, p. 6).
Saiba mais
Resumo
81
Unidade II
Rogers alertava que sua posição não era apenas radicalmente oposta
ao comportamentalismo, como ela pressupunha mudanças radicais no
funcionamento das escolas, assim como no modo de ser professor: o que
se assemelhava a uma revolução, gerando medo e resistências.
Exercícios
Questão 1 (Enade 2008). Há uma discussão do “ser” professor que envolve a diferenciação entre a
pedagogia do professor e a pedagogia do mestre. A função do professor é ensinar a todos a mesma coisa e
a do mestre, anunciar, a cada um, uma verdade particular, uma resposta singular e uma realização. Nesse
sentido, o mestre é o condutor do discípulo até si mesmo, um agente de seu processo de individuação.
O discípulo confia no mestre para que o instrua e o conduza enquanto ele não for capaz de se conduzir
sozinho, entendendo que a condição de discípulo é provisória. Assim, a experiência do mestre, adquirida
através da prática e da sagacidade, é, na verdade, a capacidade de discernimento dos espíritos que,
ao pressentir as possibilidades de cada um, propõe-lhes fins ao seu alcance, assim como os meios de
alcançá-los, através da utilização das suas capacidades.
A) II.
B) IV.
C) I e II.
D) I e III.
E) I, II e III.
I – Afirmativa correta.
Justificativa: pela leitura do texto, podemos concluir que é importante que o aluno confie no mestre.
II – Afirmativa incorreta.
Justificativa: pela leitura do texto, verificamos que o trabalho do mestre baseia-se no respeito à
individualidade e não na reprodução de padrões.
IV – Afirmativa incorreta.
Justificativa: a função do mestre é anunciar, a cada um, uma verdade particular, uma resposta
singular e uma realização.
85
Unidade II
Qual é a ação fundamental para que uma escola tenha o projeto político-pedagógico pretendido?
B) Diagnóstico permanente da realidade escolar com registro dos dados e das discussões.
86