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transcriação
tradução
arte
organizada î encadernada
artesanalmente pelas
mãos da editora maracaxá
campinas/sp
setembro de 2021
Art. 5º, IX é livre a expressão da atividade
intelectual,
artística, científica e de comunicação,
independentemente de
censura ou licença.
GEN ÊRO
O A
C Ç
Í A
D
I
O
E M P R E S A S GENOCIDAS
futuro e presente de G E N O C Í D I O
Museu
Nacional em chamas
(RJ, 2019)
...........................ataque à MEMÓRIA..........................
é tempo de despejos
autoritários, casas é tudo em nome da isso pra não
invadidas, escolas "Segurança Nacional" falar da
derrubadas, museus, essa ilusão inventada PANDEMIA
florestas e bibliotecas e sempre relembrada COVID
em chamas, ditaduras pela opressão dezenove
de milícias, crianças institucionalizada coronavírus
mortas que assim disfarça
por tiros de polícia, pelo abstrato, mata; vírus
corpos humanos presos burocraticamente virus
e torturados por suas assassina, encarcera; vírus
convicções políticas existencialmente virus
ou só pela cor de suas envenena, ilude;
peles diariamente
por suas ações mata! COVID19
coletivas SarsCov2
tão importante quanto isso, no entanto, é falar da epidemia que
há mais de 500 anos assola a vida das gentes nativas,
diaspóricas e, mais recentemente, as pessoas que sofrem a
letalidade dessa enfermidade e toda gente que não se conforma
com os sintomas dessa epidemia e muito menos aceitarão a
perpetuação dessa doença, que muites chamam de
colonialismo
essa doença é também a principal causadora de outra
enfermidade que assola as gentes daqui:
a FOME
"MAIS DE 100 MILHÕES DE BRASILEIRES NÃO TEM
COMIDA SUFICIENTE OU PASSA FOME, TODO DIA"
A REDAÇÃO
índice
desenho
feito por
Dina em
uma
atividade
de desenho
abstrato,
proposta os traços
em aula de parecem sugerir
artes do linhas que se
ensino entrelaçam e se
médio, que costuram, em
ela movimentos
concluiu circulares
aos 60 anos
pelo EJA
2
como essas que sai no Rio de Janeiro e otras e otras, São Paulo
também, e ver tanta coisa bonita e só dar inspiração de dizer: eu
odeio. NOSSA, chega eu fico pensando, parece... parece uma
"judiação", ela bateu assim no meu ombro ô Dona Dina é que eu
não gosto de carnaval, eu digo sim você não gostar de certas coisas
do carnaval ok. Mas aquelas dançarina, aquela dança que aquelas
menina faz, aqueles homem faz, aquelas pessoas fazem com tanta
dedicação, o ano todo... e que ali, Alda, ninguém mede sacrifício,
cada um pondo tudo que tem de dentro pra fora pra fazer um
trabalho tão bonito daquele, tão... pra três dia ali um momento tão
pequeno pra tanto tempo de batalha eu vejo por esse lado, eu num
vejo só pelo lado nega..., pelo lado de... de alguma coisa que... não
consigo, talvez seja porque eu acho bunita a moda né, eu gosto da
moda, eu gosto das... da arte em geral, né, aquele espeta... aquilo
ali pra mim é um espetáculo é um teatro, é... é tudo de bunito, num
vou dizer que seja bom mas que é bunito é, é bonito de se ver.
4
Maria nos enviou sua arte desde
Michoacán, México @maria_sosa_ruiz
ECOLONIZAR-TE
por Maria Sosa Ruiz
(duas
colonizações)
Lo que tengo
Una cabeza escindida, un pasado doble
dos animales siniestros
un frasco de dos tonalis
un presagio funesto que se hace realidad
prótesis de madera extraída del mar y
el río que se abrieron a tu
entrada
una colonización doble
inferiorización por raza
subordinación por genero
Presente convulso
monstruo de cuatro ojos
lagrimas de minas
cosechas de destrucciones
Lo que queda
6 Plantas que sobreviven
palabras hierbas que no han dejado de
pronunciarse
el uso que atraviesa la muerte de 500 años
cuerpocontenedor
fragmentos de conceptos
fragmentos de objetos
lo que queda es restaurar
recuperar
revivir
cuidar
cuestionar
repensar
Lo que queda
es la batalla cotidiana
así como el arena y el agua de sal.
ritual
f e m e n i n o
funesto
masculino 12 de octubre
de 1985
7
fotografia de Noe Martinez Flores mostra
a pintura feita para uma performance
&
8
Yo/Alvarado
9
Cartas de Muerte
Invocaciones al Señor Puuc
(colagem e aquarela sobre papel de algodão)
10
CURAR O COLECIONISMO
por Alexander Herrera
publicado originalmente em la Gaceta de Investigación
y Creacion de la Universidad de los Andes, nº 3, 2017,
Bogotá, Colômbia [tradução de Tereza Uirapuru]
etiologia do colecionismo:
Os conquistadores não No século XVII os “manuais”
demoraram muito pra perceber para a “extirpação de idolatrias”
que os objetos mais apreciados recomendavam queimar o
pelos nativos de América eram conteúdo, com exceção dos ossos,
feitos para, e depositados com, em fogueiras públicas, as quais
os difuntos, pois estes com as vezes eram tão grandes que
frequência incluíam objetos de lugares como Infernillo e Cerro
metal. Mesmo se tratando Purgatorio mudaram de nome
geralmente de ligas com cobre para sempre. A intensidade da
como base, as notícias de destruição associada à
metais preciosos em grandes cristianização forçada durante
quantidades em terras as campanhas de perseguição
“americanas”, atiçadas pelo religiosa varia de região pra
inca Atahualpa com o inútil região, mas as marcas na
pagamento de seu próprio paisagem ainda são
resgate, despertaram a cobiça reconhecíveis. Peninsulares,
de um continente e deram mestiços, indios e escravos
alento a fábulas que animaram participaram da guaquería por
jovens europeus a deixar o distintos motivos ao longo de
continente todo e cruzar o três séculos, tempo durante o
oceano em busca de tesouros. qual a guaquería passou a
Este afã de tesouro é o mesmo converterse em uma forma de
vetor de contágio que encoraja minério, prontamente regulado
camponeses e ministros, para assegurar o dizimo da
professoras rurais, diplomatas coroa.
e monges, a buscar e comprar Paradoxalmente, é nesse
peças arqueológicas em toda a contexto que surgem as
América Latina. primeiras coleções de objetos de
Em que pese as dúvidas arte préhispânica, apenas
iniciais entre setores do clero mencionadas em testamentos
em torno da legalidade da pobremente estudados. Dada a
profanação das tumbas dos importância histórica da
“indios” por sua condição de passagem de uma valorização
pagãos ou “gentis”, a prática claramente mercantil e centrada
prontamente se instaurou. no metálico dos objetos "pagãos"
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[o impacto do deslumbramento
original monumentalizado nos de semana ou feriados. Em
“museus do ouro” de Bolívia, uma segunda etapa, o paciente
Peru, Equador e Colômbia] a passará de buscador inveterado
um reconhecimento de seu a comprador compulsivo, e cedo
valor estético, mnemônico e então a enfermidade começará
histórico, esta falta de estudos a atacar a vista do paciente.
é surpreendente. Mais cedo ou mais tarde
Um segundo giro nas terminará comprando por
trajetórias de valoração do que ouvir, sem olhar, ou olhando
hoje chamamos patrimônio, sem ver aquilo que não quer
uma transformação desta ver. Tão pouco faltará quem se
enfermidade colonial, surge aproveite do colecionista e
com a chegada do projeto substitua por réplicas peças
ilustrado no século XVIII. Com originais de sua coleção ou
as gestas de independência e a simplesmente as roube ou
formação das republicas sul quebre sem querer. Porém, há
americanas, a enfermidade que se reconhecerse que a alta
colonial se transforma, pois se qualidade dos segundos
consolida o reconhecimento de originais à venda nas ruas de
que os objetos do passado não Rosales ou Usaquén, aqueles
só podem ter um valor estético, que os colecionadores
mas também um valor perspicazes não compraram,
histórico e testemunhal que não é casual. A produção de
independe da estética. E é réplicas de cerâmica pré
nesta variante da enfermidade colombiana tem mais de 150
[a busca do conhecimento anos de tradição, sendo quase
mediada pela acumulação, tão antiga quanto o
mais ou menos sistemática e colecionismo.
ordenada, de objetos de Diferentemente da produção
atraente exotismo] onde se artística da família Alzate, que
situam os museus nacionais, levou à invenção de novas
assim como uma grande culturas précolombianas ao
quantidade de coleções longo de gerações, a maioria
particulares como aquela de dos replicadores fabricam
1070 objetos arqueológicos, cerâmicas bastante parecidas
etnográficos e artesanías com as originais. Em muitos
reunidas por Luis Raúl casos lançam mão de
Rodriguez Lamus ao longo de fragmentos originais para criar
sua vida. peças hibridas.
colecionismo caseiro: Uma olhada superficial, talvez
O colecionismo caseiro de acompanhada de uma boa
peças de arte préhispânica é história, má luz ou óculos
uma variante particular da velhos podem ser suficientes
enfermidade com tempo de para viabilizar a transação que
incubação e manifestação aliviará alguns dos sintomas do
longos, mas que se pode enfermo por um momento, ou
contrair com escavações de fim dois.
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Ainda que não seja uma doença fatal, o colecionismo de peças
préhispânicas tende a acabar só com a morte do paciente. São
raros os casos de morte violenta, embora o degolamento de
comerciantes de arte préhispânica com cuchillos cerimoniais não
seja desconhecido. Uma coleção sem colecionista tende a
converterse em um problema para os parentes. Se não há
contágio na família, aos herdeiros se abrem dois cenários
possíveis: dissolver a coleção e recuperar uma fração do dinheiro
investido ou mantêla integra e câmbiala por prestigio.
Conscientes das possiblidades e desafios decorrentes de manter
uma coleção, os familiares do enfermo buscarão entregar a coleção
a um prestigioso museu ou instituição para devolvêla ao âmbito
do público.
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poéticas
Na leiteria, a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos [agosto de 1964]
de leite,
e no espelho meu rosto. São Entre lojas de flores e de
quatro horas da tarde, em maio. sapatos, bares,
mercearias, boutiques,
Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo viajo,
a vida num ônibus Estrada de
que é cheia de crianças, de flores FerroLeblon.
e mulheres, a vida, Volto do trabalho, a noite
esse direito de estar no mundo, em meio, fatigado de
ter dois pés e mãos, uma cara mentiras.
e a fome de tudo, a esperança.
O ônibus sacoleja. Adeus,
Esse direito de todos Rimbaud, relógio de lilases,
que nenhum ato concretismo,
institucional ou constitucional neoconcretismo, ficções da
pode cassar ou legar. juventude, adeus,
que a vida
Mas quantos amigos presos! eu compro à vista aos
quantos em cárceres escuros donos do mundo.
onde a tarde fede a urina e terror. Ao peso dos impostos, o
Há muitas famílias sem rumo, esta tarde, verso sufoca, a poesia
nos subúrbios de ferro e gás agora responde a inquérito
onde brinca irremida a infância da policialmilitar.
classe operária.
Digo adeus à ilusão,
Estou aqui. O espelho mas não ao mundo. Mas
não guardará a marca deste rosto não à vida,
se simplesmente saio do lugar, meu reduto e meu reino.
ou se morro, Do salário injusto,
se me matam. da punição injusta,
Estou aqui e não estarei, um dia, da humilhação, da tortura,
em parte alguma. do terror,
retiramos algo e com ele
Que importa, pois? construímos um artefato,
um poema,
A luta comum me acende o sangue uma bandeira.
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.
[maio de 1964]
FERREIRA GULLAR
XANADU -signatura rerum-
-a marca das coisas-
museu do orgulho nacional
S H I V A ~deus dançarino~
Peço ao deus dançarino
capacidade de improviso Pensei em manter provisionado um
pois só aprendi a andar nos trilhos estoque razoável de planos B, até
Careço urgentemente de jogo de que conseguisse pensar nalguma
cintura coisa
de modo a não desmoronar a cada Mas, veja lá,
tropeço mais um agarramento
fora do script nesse mundo de intercorrências
Talvez eu seja enamorada das exatas incessantes
proporções
de tempo e espaço Não.
no desenrolar dos brotos das árvores
nascer e pôr do sol, giro dos planetas Rogo ao deus dançarino
e quisera da vida que assim fossem Que meus passos surjam a um só
a sucessão dos fenômenos tempo com a música
e encontros Já que a vida é em tempo real e sem
Em cadência harmoniosa, os ensaio
acontecimentos Quero a geração espontânea e
Justeza e equidade adaptável
como as proporções áureas no maleável, graciosa
desenho das conchas Sem peso
em suas espirais desespero
A ninguém nada faltasse ou xequemate
A ninguém nada sobrasse Estamos na pista.
Nem dinheiro, nem assento, nem Mascarados.
amores Segue o baile.
Nem beleza, nem comida, nem
espantos LUCIANA BARBEIRO
PARA MINHAS COMPANHEIRAS QUE RESISTEM
23 de novembro de 2019
II
Em tua memória
Peru será um país feminista
Te prometemos que sim, companheira
Sua luz se expandirá sobre nossas dores
Sanará cada ferida aberta
RAIKAY
TROPYCAL
teatro covid
pix
no chapéu é tropessando
que se aprende
a dançar
isto
estava escrito na beira de um livro
um mapa
tudo depende uma pá
da época um mapa
da flor, do fruto uma pá
do ventre um mapa
uma pá
um mapa
u m apá
infinitamente
as abelhas
sugam flores um segredo
esperam na fila calado
os humanos na boca
infinitamente do ouvido
o mundo
se lê
nos pixo
já ouvi falar
do tal estação
do TAO é estar são
com os frutos que
tão
algumas folhas
o sorriso é rabiscos, galhos
a flor da linguagem está festa
a alma
faz primavera a
serotonina
é que
calcifica
os grãos
da
memória
eu sou um velho
de 70 anos
eu sou uma criança que sei eu da vida?
de 70 primaveras
nada além
do que não sei
antes de subirmos
pra lua
deveríamos ter aprendido
a conversar
com as águas vivas
sementes
aqui são entes madrugada,
tudo é entes são o
ou se tornará sementes gorgorejar
mercadoria das
mercadoria maritacas
mercadoria rejuvenesce
até você meu cansaço
entardecer
avua aves
vês?
vento
luzes acesas
vozes amigas por uma só fresta
chove melhor entra toda a vida
que o sol empresta
montanhas ao longe
montanhas nos olhos há de vir no vento
da libélula admirado de si mesmo
esse advento
primavera
até a cadeira
olha pela janela ALICE RUIZ
DEUS É HUMOR
por Fernando Alves Medeiros
1
Deus jamais ri. É uma máxima que, mesmo jamais
escrita, parece ser velha de tão repetida. É uma verdade
naturalmente aceita, endossada, sem prova concreta. Como
um axioma. Da mesma forma que matemáticos aceitam que a
reta é infinita.
A prosa bíblica, no limiar entre a solenidade e a vagueza,
nunca me deixou pistas. Aliás, ela sempre afirmou outra
coisa. Foi Jack Miles (acho) quem disse que, nas Sagradas
Escrituras, Deus só foi capaz de amar a partir do livro de
Isaías.
Ora, consultando a minha empoeirada Bíblia de bolso,
poderia dizer que Deus só foi capaz de amar após a página
630.
Se a menção ao amor de Deus só ocorre à época do
cativeiro babilônico, chego à Nova Jerusalém do Apocalipse
sem uma menção sequer ao humor de Deus.
Deus jamais ri. Está escrito que o Rei Davi dançava com
seus súditos, entoando cânticos, tocando pandeiros e
instrumentos de sopro. Talvez de uma maneira um pouco
diferente do que hoje, nos cultos neopentecostais da esquina
da sua rua, em marcação de palmas, alegres corinhos e
pedidos de oferta.
Mas Deus, nessa história toda? Talvez quieto e sisudo,
aguardava tranquilo toda aquela festa terminar.
2
Contase que Michelangelo pintou a Capela Sistina
completamente alcoolizado. O Deus retratado por ele no
célebre afresco “A Criação de Adão” é um ser enérgico, de
feições robustas. Como um pai que afirma a sua própria
autoridade através da violência. Ele cria o homem sem um
sorriso vago, seja de satisfação ou sadismo. Um ato
meramente protocolar.
A Idade Média atravessa um bocado dividida entre as
benesses do Espírito e as concupiscências da Carne. Talvez
daí a diametral oposição entre as liturgias religiosas e as
festas populares.
33
De um lado, missas proferidas em andamento lento,
cheias de silêncios e contrição de alma, o homem
minúsculo diante da esmagadora e gigantesca presença de
Deus — e da arquitetura, igualmente opressora. Do outro,
o Profano bebendo e cantando, tomando as ruas, com
alarido e sorriso no rosto, em nada encanado com
hierarquias e relações de poder. E tudo em andamento
acelerado.
O riso estava ligado às festas profanas, e também estava
bem distante dos festejos devocionais realizados no Átrio. Veio
então a explicação dos Padres da Escolástica. O riso é obra
do Demônio.
3
Até que veio outra frase, recente é verdade, mas que já
nasceu idosa: Deus está morto.
Ora, Deus está morto porque jamais riu? Ou nunca ri,
porque é morto?
4
Não creio que Deus seja sempre sério. É preciso um pouco
de humor para começar a criar algo depois de uma eternidade
na solidão. A criação, para Deus, toma assim um estranho
intuito. É um projeto. Deus, parece, quer provar alguma coisa,
como um estudante que avança a madrugada no laboratório,
testando produtos químicos. Para nada, absolutamente. Exceto
que os elementos tenham reverência pelo manipulador dos
frascos, em espírito e em verdade.
Deus jamais ri? A realidade, dizem os filósofos, é um fluxo
caótico de acontecimentos carentes de significação. Mas o
homem nunca se cansa de enxergar no caos um motivo cifrado,
alguma razão profunda. Há crentes que veem Deus no pôrdo
sol, no canto do pássaro, no sorriso da criança. Há aqueles que
veem Deus no sofrimento, na tristeza, na morte, nos fins de
ciclo.É correto dizer, repetindo o senso comum, que a pessoa só
vê do que seus olhos estão cheios.
Deus ri das nossas tentativas em colocar diques e válvulas
no fluxo de fatos e coisas e sonhos e lágrimas que passam pela
gente aos borbotões. Deus ri da nossa desastrada maneira de
explicálo com formatações redondinhas da ABNT.
Deus é humor. Um humor terrível, essa é a verdade. Que
nos faz chorar com suas brincadeiras e piadas. Nunca vi
tamanha predileção em brincar de escondeesconde justo no
momento da aflição. E é certo que nunca entendemos a
complicada sofisticação de suas piadas, difíceis de engolir e
34 estranhas de aceitar.
SOBRE O CULTO DOS LIVROS
por Jorge Luis Borges
publicado originalmente em Otras inquisiciones
Buenos Aires, Argentina, 1952
[tradução de Pedra Torre Bosque]
A
sonoro; a estranha arte que se inda mais extravagantes
iniciava, a arte de ler em voz que os muçulmanos foram
baixa, nos traria consequências os judeus. No primeiro
maravilhosas.Conduziria,passados capítulo de sua Bíblia é dita a
muitos anos, ao conceito do livro famosa sentença: "E Deus disse:
como fim, não como instrumento façase a luz, e se fez a luz", os
de um fim. (Este conceito místico, cabalistas raciocinaram que a
transladadoàliteratura profana, virtude dessa ordem do
desembocaria nos singulares Senhor procedeu das letras
destinos de Flaubert e de Mallarmé, das palavras. O tratado Sefer
à
de Henry James e de James Joyce). Yetsirah (Livro da Formação),
noção de um Deus que fala escrito na Síria ou na Palestina
com os homens para ordená por volta do século VI, revela que
lhes algo ou proibirlhes algo, JEOVÁ DOS EXÉRCITOS,
se sobrepõe a do Livro DEUS DE ISRAEL,
Absoluto, a de uma Escritura DEUS TODO PODEROSO, criou
Sagrada. Para os muçulmanos, o o universo por meio dos números
ALCORÃO(tambémchamado O Livro, cardinais, que vão de um à dez, e
Al Kitab), não é uma mera obra de das vinte e duas letras do
Deus, como as almas dos homens ou o alfabeto. Que os números são
universo; é um dos atributos de Deus instrumentos ou elementos da
como Sua eternidade ou Sua ira. No Criação é dogma de Pitágoras e
capítulo XIII, lemos que o texto Jâmblico; que as letras também o
original, a Mãe do Livro, está sejam é claro indício do novo culto
depositado no Céu. Maomé Algazali, o da escritura.
DESENHOS de Misael
Salve planeta!
sou MISA EL REY Eu me
artista de expresso pelo
Ribeirão Preto/SP desenho para
criar emoções
e reflexões
sobre o interno
da minha
mente
39
A ARTE É UMA PROFISSÃO QUE SE ESTENDE ALÉM DAS MÃOS DO ARTISTA
40
o beijo
41
além de
d
e
s
e
n
h
a
r
componho
e sou
beatmaker
FÉ PROS DE FÉ
42
D E S A B A F O
Este texto não é para pedir biscoito. Este texto é para desabafar o que eu ainda não
consegui verbalizar. Este texto é sobre o que eu quero gritar. É sobre o que eu quero e
sobre o que eu não quero, e parece que quando a gente escreve é melhor ouvido do que
um grito, e choca menos do que quando a gente chora. Eu quero falar de liberdade. Da
minha liberdade. Quem roubou minha liberdade? Quem me condenou antes mesmo que
eu entendesse o que tava acontecendo quando eu saí do útero da minha mãe então
perceberam que ao invés de um falo eu tinha uma buceta. Porque falar 'falo' não é feio
e falar buceta é palavrão? Porque quando meu irmão grita ou fala palavrão está tudo
bem? Porque não ter um falo faz com que eu tenha que agir assim e assado pra não ser
feia? Quem diz se eu sou feia ou bonita e porque isso é tão importante pra mim? Porque
eu tenho que ser sempre bonita? Porque quando um homem chora é sinal de que ele
deve ser acolhido e quando eu choro tem que julgar se eu tenho ou não motivo pra
chorar? Porque quando um homem erra ele merece um abraço, um passeio, um colo e
uma segunda, terceira, infinitas chances e quando eu erro sou uma vagabunda que não
se deve confiar? Porque uma mãe solo deve esquecer sua sexualidade e ter sua honra
(palavra que abomino) sempre questionada, diariamente, e um pai solo é um herói?
Porque se assumo que tenho libido eu sou ridicularizada e não sou uma mãe digna
para o meu filho que é saudável graças à Deusa que eu tenho que ser? Porque quando
decido me priorizar sou egoísta e quando um homem se prioriza ele é maduro e
admirável? Porque quando um homem sofre ele tem o direito de se recuperar da forma
que precisar e eu tenho que ter um prazo pré determinado pra sofrer senão sou
rancorosa? Porque omens tem o direito de sentir e nem precisar falar sobre seus
sentimentos e eu tenho que justificar o porque de sentir? Quem disse que meu corpo
descoberto é um convite? Quem disse que gostar do meu corpo e mostrálo é sinal de
promiscuidade e que isso fala sobre meu caráter? Quem disse que eu preciso ser aceita
e pra isso devo me calar, me cobrir, não beber álcool, não questionar, não desobedecer,
etc...? Eu não quero mais competir com outra mulher, eu não quero mais me comparar,
eu não quero me sentir fraca por sentir, eu não quero mais me explicar, eu não quero
mais ser respeitada só se estiver com um homem do lado, eu não quero mais ver as
minhas abrindo mão de seus talentos por conta de seus descompanheiros. Você que
inventou a prisão que é ser mulher, tenha a fineza de desinventar. Eu não quero
mais competir com outra mulher, eu não quero mais me comparar, eu não
quero me sentir fraca por sentir, eu não quero mais me explicar, eu não
quero mais ser respeitada só se estiver com um homem do lado, eu não quero
mais ver as minhas abrindo mão de seus talentos por conta de seus des-
companheiros. Vc que inventou a prisão que é ser mulher, tenha a fineza de
desinventar. Não sou menos capaz de nada por ser mulher e não preciso provar nada
pra ninguém. Me deixa em paz, me deixa viver, me deixa sentir, me deixa gozar. Não é
um pedido de permissão. Eu não consigo mais nadar a favor dessa corrente. Nadar
contra a corrente é mais cansativo e desafiador, mas deixa meus braços mais fortes.
Não me impeça de nadar e nem queira me ensinar a direção que devo ir. Quem é você
pra me dizer o que devo fazer, se você também ainda não chegou no fim da trajetória?
Se quiser vir junto venha! Gosto de companhia! Se não quiser boa sorte no seu trajeto,
se parar na minha frente eu vou ter que te colocar um pouco pro lado e continuar meu
caminho. Sou revoltada porque me deixaram com sangue nos olhos de tanto que
43
apanhei e me debati nas guerras. Me enjaularam, mas o instinto da pantera é correr,
caçar e sobreviver. Se ninguém me solta eu quebro a jaula e fujo! Respeito é bom mas é
só pra quem tem! A fera tá ferida mas não morreu. E todo mundo sabe que fera ferida
tende à atacar. Deixa a fera correr ou não reclame do ataque! No mais vai todo mundo se
foder gostoso que é melhor!
ANA RAIZ
44
PRÉ CONCEPÇÕES QUEBRADAS
Sempre fui obstinada em algumas concepções que carrego. Houve sempre respeito à
opinião alheia, mas o orgulho de argumentar, de defender pontos de vista, sempre foram
marcantes em minhas conversas. Quebrar preconceitos foi um exercício que tive que
praticar muito e o valor que dava aos aprendizados sobre o movimento feminista estava
muito baseado no conhecimento que minhas amigas tinham do assunto. Por isso é que
sempre que discuto ou reflito sobre alguns aspectos do feminino ou do feminismo, sinto ser
necessário empregar bons argumentos, para também facilitar a comunicação, o acesso à
informação, e para não agir superficialmente como eu fazia, quando me baseava em
preconceitos. *Acreditava que A ROUPA MOTIVA ASSÉDIOS. Agora entendo, e afirmo
categoricamente, que nada justifica o acesso ao corpo de outra pessoa sem permissão. Soa
óbvio, mas para algumas pessoas, como para mim antes, existem justificativas... A única
pessoa que detém poder sobre o corpo é quem é done do corpo. A pessoa que porta o corpo,
que carrega e sente o corpo. É simples, independente de qualquer outro fator externo, como
roupa, diálogo, olhares. Sem permissão é crime. Repare que falei pessoa, mas quem são
mais afligidas por esses abusos são mulheres. Em diversas culturas, orientais e ocidentais,
o corpo feminino é objeto que não deve ser descuidado, pois algum homem no meio do
caminho pode acreditar ter o poder de tomar posse. Temos que lutar todos os dias para ter
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o direito básico de existir em nossas peles. *Acreditava que O ABORTO É CRIME. E isso
também está relacionado com não ser dona do próprio corpo. Olha que escrevo isto
grávida de oito meses e optei por manter a gestação, estou feliz embora inesperadamente
mãe. Pessoalmente tenho uma série de receios sobre procedimentos abortivos, mas não
consigo aceitar que o Estado ou outras pessoas decidam sobre o corpo de uma mulher.
Como bióloga entendo que até determinado momento da gestação não há
desenvolvimento de uma forma de vida que sofra com a agressividade do procedimento.
Mas o aspecto mais agravante desse tema é que a mulher que sofre com o aborto é a
mulher pobre. Crime ou não, mulheres com situação financeira favorável têm a
possibilidade de escolher entre realizar ou não o procedimento. Mulheres pobres que
realizam o procedimento morrem ou adquirem sequelas graves. Outro aspecto que me
incomoda profundamente sobre o tema é a falsa moralidade. Sempre me revolto quando
alguém afirma que em caso de estupro justifica realizar aborto, mas se a mulher quis ter
relações sexuais sem proteção, então tem que arcar com as consequências. Veja bem, isso
é punir uma mulher pela vivência sexual, algo que nada tem a ver com a proteção à vida.
A grande questão é: o aborto sempre vai existir, é livre para mulheres ricas e é sentença
para mulheres pobres. Hoje defendo a descriminalização e a promoção do aborto no SUS
como direito da mulher brasileira de decidir sobre manter ou não uma gestação com
segurança. Me dá um desespero lembrar que tinha esses préconceitos. Mudei
profundamente minha percepção sobre esses aspectos da vida. Pra começar, tinha muitos
pudores com meu corpo, inclusive para conhecer minha própria anatomia. Acreditava
que mulheres que saíam com vários caras perdiam valor. A virgindade era algo a ser
valorizado, algo como um aspecto virtuoso. Hoje vejo que não tem o menor sentido, ainda
mais quando escrevo. Hoje sei que somos donas de nossos corpos e prazeres. Que
decidimos quantes e quais parceires podemos ter ao longo de nossa vida e que isso nada
tem a ver tipo de pessoa que somos, com o nosso caráter, personalidade ou quais valores
temos como nossos. Hoje percebo que nenhum comportamento nesse aspecto me diz algo
sobre o que as pessoas são, que desejos são pessoais e que podemos realizar o que for,
desde que com consentimento. A liberdade sexual deve ser bemvista, bem como o
autoconhecimento. Devemos conhecer e curtir nossos corpos para expressar nossa
sexualidade e saber expor aos nossos parceiros o que desejamos, com respeito com o
outro e com nós mesmas. Essa visão me permitiu entender como funciona minha
sexualidade e também mudou minha visão predominantemente machista sobre questões
sexuais. Por exemplo, acreditar que homens sentem prazer com mais facilidade e que é
natural não ficar satisfeita. Hoje percebo quando alguém está sendo egoísta. Entender
quando não quero ou quando quero muito. Nos abster desse conhecimento básico sobre
nosso corpo faz com que nosso comportamento seja repleto de autosabotagem e torna
nossas relações muito mais uma doação que troca. Nesse tema o que posso aconselhar é
que possamos nos conhecer, nos respeitar, expressar os desejos que temos e também os
que não temos, e quando não queremos
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N U D E Z
Jenipabu um de abril de 2021
os cotovelos arranhados a pele fina cansada de sustentar os sonos desengonçados da
viagem. voltei mas a alma ainda perambula em outros mundos, carrega malas e
mochilas pesadas em sonhos exaustivos, alma abrigase em lares desconhecidos de
gente amigável, caminha à beira de estradas, é mais livre que o meu corpo que repousa
já em porto natal, oco e confuso pelo conforto estranho de estar nunca em casa,
estacionária.
um jejum, uma prece desmaterial chamamento à alma andeja: vem que já recontei os
hematomas pelo corpo, me ajuda a lembrar as coordenadas ocasiões destas lembranças
da estrada, vem com o fio da meada da vida que levava e por tão pouco andar e por tão
muito viver já e´ foco de outra olhada, vem que me distraí e atravessei rios e mares, fiz
pontes nos ares, refiz afetos terrestres, visitei novidades e atravessei tantos conceitos,
tantas paisagens que agora preciso de alma pra retomar, retocar as perspectivas que
antes projetava; anda que a vida é constructo e autômata, não concluo materialidades
experimentáveis, liberdades fixas.
Jeni dez de abril de 2021
dias poeirentos, tudo fica mais desorganizado. me olho no espelho e uma vez mais não
tenho ideia do que pensar, não reconheço a bela figura nem as linhas harmoniosas
deste rosto misto, dourado, maduro, pósmoderno... não! contemporâneo de
desidentificação. tanta mistura demora pra se apreciar; antes desconhecia o reflexo
feio, agora tampouco sei quem é a bela imagem que sendo bela já vale, vale a confusão
do não familiar. porque estás triste belo caramelo? saudade. e a incerteza toda da vida,
a conta magricela e de bolsos furados. me entristece não saber dançar graciosamente
pra varrer a poeira do velho costume de estar sempre partindo de onde não pertenço
pra onde não sei o que me espera
Baía formosa vinteoito de abril de 2021
em 2020 sobrava eu pro tanto de vida que eu tinha pra dar conta, este ano faltam eus
pra preencher a quantidade de papéis em que me meti. ano passado foi profundo, este é
ano de intensidades (inauditas)
ontem tive minha primeira aula de surf e percebi na hora que a posição em que escrevo
estas letras preguiçosas é como a de deitar na prancha, de remar. hoje foi a segunda e
me doem as costelas e o pescoço (: pesquoço :) tropeçei na poesia toda do leminski. o
pouco que li me dá uma coceirinha boa em meus símbolos; vamos ver como me afeta a
realidade escrita
*
a onda é uma coisa viva, me propulsiona com uma força familiarmente orgãnica, um
bicho onda grandalhona, forçuda e elegante como tudo que é naturalmente grande. há
conexão sensível, e perceptível quando não há
a consciência do mar tem estado acessível na minha realidade, ou os deuses do mar
tem sido benevolentes pra mim e eu sou grata pela experiência, que experimentar é o
praquê serve.
experimento descobrir o que tem logo depois daquela dificuldade acolá, mais ali, aquela
coisa fácil de evitar e achei que vale a experiência, tem valído aprender tanto e
enlouquecer um tanto mais, numa onda dessas de perder o referencial de tempo, e às
vezes o de 'pra cima e pra baixo, certo e errado', desaprender o dual 47
é uma ilha, dona formiga. you trapped in it. look around though is it nice? is there
beauty? tenho conversado com a loucura, ou com a incerteza (não estou certa) e parece
ser em mim que a desidentificação é uma programação possível em camadas infinitas,
olho para as minhas dores e dificuldades com um interese curioso e excitado pelo
enredo. an acquired taste. escuto meu corpo falar o que lhe brota com a verdade da
espontaneidade treinada e leio lhe os símbolos (des)codificando ao mesmo tempo a
realidade de que sou prisma [digo prisma espontaneamente, pois gosto de palavras
iridescentes]
Baía formosa trinta de janeiro de 2021
trago numa caixa de ar dolorido de um vazio, um coração nunca preenchido
no grande ar de fora a euforia fatal da dança final. danço nu no alto de um penhasco
entardecido de dourado, danço alto no penhasco nu em vento ensandecido; o vento me
atravessa toda a nudez, atravessa tudo e preenche afinal o alívio, a soltura, a liberdade
última, a morte breve de liberdades vazias
enfim acaba o insignificante significado não atribuído. quem perde tempo inventando
tudo isto? o tempo não se perde, o tempo é tudo que se tem pra atribuir significados e
dançar o tempo todo ou somente de tempos em tempos
dançar junto, mesmo que seja pra trocar o dolorido niilismo pelo afiado valor do amor, o
peito cheio de sangue engolfante de afetos molhados, viscosas biologias fenotípias
específicas de rechear solidões pesadas de tão ocas
já morri em poesia, eu vim amar
GEYSA SOLARES
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EU NÃO POSSO FAZER NADA
(...) Sei que estou adiando a história e que
brinco de bola sem a bola. O fato é um ato?
Juro que este livro é feito sem palavras.
É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio.
Este livro é uma pergunta.
A eternidade é o estado das coisas neste momento. A palavra é fruto da palavra. Existir
não é lógico. Na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade. Tão pouco sou, tão
pouco é, tão pouco foi, tão pouco será: é apenas tudo: é só o vazio que é fato e é ato tanto
o quanto o é a plenitude. E se assim ressoamse as primeiras palavras estes fonemas as
primeiras badaladas da reflexão é que a forma é conteúdo e não há outra maneira de
analisar o livro em questão senão com a palavra nua, se não com a pergunta. Qual é o
peso da luz?
A Hora da Estrela (1977) é um daqueles livros onde quem lê pode exergar plenamente,
ou ao menos entrevesar, de leve, a marca indelével de quem o escreveu. Mesmo que a
escrivinhação se estruture em primeira pessoa e no masculino, Clarice Lispector não
esconde a sua voz. Ela grita alto pelos ventos sem tempo sobre os mistérios da vida e
da arte. A arte considerada em si mesma, como movimento, progressão, ato e fato
criador. Como começar pelo início se as coisas acontecem antes de acontecer? Pois não se
começa pelo início e nem pelo fim, se começa por começar, por assim dizer,
simplesmente, pela urgência das palavras que precisam ser ditas. E serão, se não aqui
como agora, por outras gentes.
Portanto, abordarei neste rascunho sentimental poucos, ou quase nenhum, pormenor
do enredo da história de Macabéa. Apenas aqueles fatospedras que, a meu ver,
contribuem para a reflexão aqui tecida, sem destino, sem hora e com ciência. Pois
pensar é um ato e sentir é um fato.
O livro, esse objetofato transformado em ato material a partir da cabeça quente da
escritora, escrito com o corpo todo, com a carne, com as veias e ossos, com a vida inteira
afluindo no instante mesmo do expressar, é uma obra sobretudo "coletiva" e
"existencialista", digamos assim, é um apelo, levado às ultimas consequências, em
nome da busca de cada ser humano por sua força interior, por sua existência. Por sua
alquimia de alma.
As coisas são de tal jeito, existem de tal forma, acontecem por isso e por aquilo. Mas há
de ser assim para sempre? Ou melhor, há de ser assim agora? Neste exato momento
instanteluz?
Será esta história um coágulo de Clarice? Uma espécie de carpintaria metafísica?
"Quem sou eu?" provoca necessidade. Quem se indaga é incompleto. Quem se indaga se
transforma, transgressoa, se movimenta, age, acontece. Será que o livro não é
simplesmente um silêncio plangentemente musical que se ressoou? Não é algo
propagado em carcaçapapel além dos limites da própria obra e ainda da pessoa que a
escreveu?
Clarice anota: as palavras emanam um sentido secreto que ultrapassa as palavras e
frases.
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A autora nos brinda com a nudez das palavras e da Criação. Nos demonstra a
fugacidade da existência, a continuidade da 'vida', a ilusão que pode ser o tempo
considerado em si mesmo e a força, que este mesmo tempo tem, de destruir ou de
perpetuar os fatos acontecidos. Ela nos diz que os fatos são pedras duras das quais não
podemos fugir. Restando claro, ainda que subentendido, e aqui posso estar equivocada,
que ela fala da morte. O fim. Fim de quê? Aliás, o livro inteiro pode ser considerado
uma reflexão sobre a vida, a morte e o tempo. Às vezes negase e às vezes se enaltece
todos os três conceitos.
Ora, é claro que a história é verdadeira embora inventada e como que estou escrevendo
na hora mesmo em que sou lido e, como podese notar e anotar, pelos trechos
mencionados, A Hora da Estrela, este livro de tantos nomes possíveis, é um livro repleto
de contradições, e absurdos, assim como o é e sempre foi a Natureza Humana. Eu me
pergunto se isto foi minuciosamente planejado ou se a escritora simplesmente se
entregou ao fato de escrever. Fato é que ela não se separa da história, ela é a história.
No desenvolvimento da escrita ela transmuta constantemente sua perspectiva
enquanto criadora. Hora conta a história, hora reflete filosóficamente sobre o ato de
contar e o fato de existir. Eu me me pergunto se contar é uma forma de existir, forte
como o ser.
Em uma das páginas da obra a narradora diz que limitase, humilde e simplesmente, a
contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Essa moça é
Macabéa. Nordestina de Alagoas, virgem e datilógrafa, ela é quase sempre tristemente
adjetivada. Dizse que não faz falta a ninguém, que ninguém a olha na rua, que é
inócua e magérrima. Mas dizse também que ela vive. Que ela não é só uma
personagem enfiada em uma estória. Que ela tem movimento e existência fora das
páginas. Que ela é. Pois as palavras se prolongam, sempre e sempre, para além do
espaço-ato em que foram criadas. Não é à toa que no fim da história Macabéa, após
consultar uma cartomante, passa a se sentir grávida de futuro. Ela toma consciência
total da sua existência, assim, instantaneamente. Uma estrela de mil pontas. E então,
morre.
À história, nos diz Clarice, segue-se o silêncio e a chuva caindo. Tais palavras evocam
uma atmosfera etérea de perdição incerta, mas patente, essencial, inevitável. O
movimento é espírito. O tempo é movimento. O corpo é espírito. O livro.
O livro termina da mesma forma que começou. Como se todas as palavras acontecidas
fossem um breve soluço (ou coágulo) a transitar em relação constante com o movimento
da vida, que continua, perene, insofismável, independentemente do que se escreva,
pense, sinta ou fale. Independentemente da existência de cada ser. Mesmo assim, cada
ser deve lutar por sua consciência e para que todos possam fazer, sim, existir as suas. É
que tudo no mundo começou com um sim. Sim. E faz tempo de morangos. Sim. Pra
tentar entender esta obra, a fundo, vamos terminar pelo começo.
Ora, já na dedicatória podese encontrar a cerne vital da obra. Nela, a autora diz se
dedicar à seu sangue rubroescarlate, às criaturas mitológicas que habitam sua vida, à
saudade do que passou, à toda uma profusão de musicalidades que afetama
metafisicamente e, segundo nos conta, a permitem concretizar e confluir todo o instante
em si mesma, em seu "eu", seu 'ser'. Logo em seguida ela nega que seu "eu" exista
apenas em si mesmo ou somente no instante de sua criação: o seu "eu" é "vós". A
escritora necessita do outro, ou, melhor dizendo, o seu "eu" se projeta e se estende, até
esbarras nos outros "eus". Como agora, quando (e onde) refletimos sobre estas palavras
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impressas há 44 anos e, em simbiose cultural atemporal, fazemos do eu de Clarice
vós(z) ativa.
Nessa breve e gigante dedicatória Clarice nos convida a, pasmem, terminar o livro por
ela. Clarice nos requisita uma resposta para sua inacabada escrivinhação. Mas, talvez,
não haja resposta alguma. Só a inexatidão do futuro em qualquer tempo e em qualquer
lugar. Talvez a resposta seja uma pergunta. E a única certeza que podemos ter são as
palavras, a continuidade material, mas não necessariamente objetiva, das vidas que
passaram. Podemos ter certeza de que a existência se perpetua por meio da palavra.
A Hora da Estrela foi o último livro que Clarice Lispector escreveu na vida, em 1977.
Ela morreu junto com Macabéa. No entanto, elas vivem elas vivem elas, pela palavra,
na vida do som. Aqui e ainda no futuro. A morte é um encontro consigo. Afinal, qual o
sentido? Qual é o significado dessa criação que chamamos livro? Há resposta, existem
respostas reais, para os questionamentos apresentados na obra? Peço licença à quem lê
pra requisitar a ajuda de Clarice em completar estas inacabadas palavras, desde lá, até
aqui, e para frente: Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais: passou o
momento. Pergunto: o que é? Resposta: não é.
TERESA QUADROS
HAROLDO DE CAMPOS
V
Ê
N
U
S
@misa.elrey
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A HISTÓRIA DA VIAGEM DE LSD
DE MICHEL FOUCAULT
por Mitchell Dean & Daniel Zamora
[tradução de Tereza Uirapuru]
publicado originalmente em
Imagens do Inconsciente
(1981)
por Nise da Silveira
O atelier de pintura era inicialmente apenas um setor de atividade
entre vários outros setores da Terapêutica Ocupacional, seção que estava
sob minha responsabilidade no Centro Psiquiátrico Pedro II (Rio de
Janeiro). Mas aconteceu que desenho e pintura espontâneos revelaram
se de tão grande interesse científico e artístico que esse atelier cedo
adquiriu posição especial.
Era surpreendente verificar a existência de uma pulsão
configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade
estava desagregada. Apesar de nunca haverem pintado antes da doença,
muitos dos frequentadores do atelier, todos esquizofrênicos,
manifestavam intensa exaltação da criatividade imaginária, que
resultava na produção de pinturas em número incrivelmente abundante,
num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora do atelier,
quando não tinham mais nas mãos os pincéis.
Que acontecia?
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Carlos Pertuis, década de 50, óleo sobre tela
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EDITORIAL
Esta revista está sendo publicada em um momento em que o mundo [e
principalmente nós, este país de merda] estamos colapsades. É um momento
doloroso e que parece que nunca vai acabar, mas também é um momento que
nos propicia muita reflexão e percepções coletivas pois, em situações extremas
como esta, as pessoas começam a mostrar cada vez mais suas verdadeiras faces.
Os rótulos, as classes, as ações e os discursos, começam a significar mais do que
apenas símbolos cotidianos que mastigamos quase inconscientemente. As cartas
estão na mesa, a verdade está cristalina e aberta para todes verem, graças ao
papel das gentes com senso coletivo e ideias acesas, de celular e livro na mão, e
ao trabalho da mídia realmente independente (midia ninja, ponte jornalismo,
the intercept brasil, alma negra jornalismo, dentre tantas outras) A guerra
ideológica no Brasil hoje é uma guerra de narrativas. O que se vê é a queimada
de um lixão à céu aberto, com cheiro de enxofre, sangue e merdas ópiáceas. A
morte de rios, florestas e bichos. O negacionismo. Pois desde 2018 que por aqui
muitas pessoas saíram definitivamente do esgoto e perderam a vergonha de
dividir com o mundo suas crenças arcaicas, atrasadas e primitivas, como a de
que uma ditadura militar é a única “salvação” do país ou que vacinas não
funcionam, que a pandemia não existe, que a terra é plana, que algumas "raças"
são superiores a outras, assim como algumas culturas, que só não trabalha
quem não quer, que algumas religiões valem e outras não, que bandido bom é
bandido morto, que a escola deve ser neutra, que menino e menina tem cor que
pode e cor que não pode, que a “ideologia de gênero” não sei o que*, que a
natureza só existe para ser transformada pelo trabalho, que quilombos são
“terras improdutivas”, que a quarentena é uma limitação das “liberdades
individuais” (pra citar alguns exemplos). E nós já sabemos que essas tais
“liberdades” tão apregoadas pelos pseudodefensores de uma democracia
abstrata, são uma instituição burguesa, aristocrática e hierarquizante, pois
então não há nada novo sob o sol. Mesmo assim, o resultado do pleito foi uma
surpresa grande, para muita gente, mas o que veio depois apenas nos mostrou
que na verdade desconhecíamos a realidade do nosso país. A realidade e a
mentalidade de grande parte da nossa população. E que "a direita" soube
antever e organizar muito bem segundo seus interesses os rumos que a nação
institucional seguiria e seguirá ainda. Mas nós seremos resistência. Esta
revista é um espaço vivo de resistência cultural. É contraacultura
hegêmonica esta impressão e registro, e seu objetivo principal, além
de divulgar arte urgente, é aniquilar por inteiro as formas de pensar
e controlar do cistema.
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