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transgressoar

ano um, núm ero dois

transcriação
tradução
arte

uma vista coletiva


do mundo e da trans
formação

organizada î encadernada
artesanalmente pelas
mãos da editora maracaxá

campinas/sp
setembro de 2021
Art. 5º, IX ­ é livre a expressão da atividade
intelectual,
artística, científica e de comunicação,
independentemente de
censura ou licença.

Constituição da República Federativa do Brasil (1988)

GEN ÊRO
O A
C Ç
Í A
D
I
O

B LSONARO GENOCIDA BOLSONARO


BOLSO ARO GENOCID BOLSONARO G
BOLSONARO GENOCI BOLSONARO GE
BOLSONARO GENOC BOLSONARO GEN
BOLSONARO GENO BOLSONARO GENO
BOLSONARO GEN BOLSONARO GENOC
BOLSONARO GE BOLSONARO GENOCI
BOLSONARO G BOLSONARO GENOCID
BOLSONARO BOLSONARO GE O IDA
ESTADO G E N O C I D A

E M P R E S A S GENOCIDAS

futuro e presente de G E N O C Í D I O

passado futuro e presente


DE ATAQUE À CONSCIÊNCIA
artística e científica

Museu
Nacional em chamas

(RJ, 2019)

...........................ataque à MEMÓRIA..........................
é tempo de despejos
autoritários, casas é tudo em nome da isso pra não
invadidas, escolas "Segurança Nacional" falar da
derrubadas, museus, essa ilusão inventada PANDEMIA
florestas e bibliotecas e sempre relembrada COVID
em chamas, ditaduras pela opressão dezenove
de milícias, crianças institucionalizada coronavírus
mortas que assim disfarça
por tiros de polícia, pelo abstrato, mata; vírus
corpos humanos presos burocraticamente virus
e torturados por suas assassina, encarcera; vírus
convicções políticas existencialmente virus
ou só pela cor de suas envenena, ilude;
peles diariamente
por suas ações mata! COVID­19
coletivas Sars­Cov­2
tão importante quanto isso, no entanto, é falar da epidemia que
há mais de 500 anos assola a vida das gentes nativas,
diaspóricas e, mais recentemente, as pessoas que sofrem a
letalidade dessa enfermidade e toda gente que não se conforma
com os sintomas dessa epidemia e muito menos aceitarão a
perpetuação dessa doença, que muites chamam de
colonialismo
essa doença é também a principal causadora de outra
enfermidade que assola as gentes daqui:
a FOME
"MAIS DE 100 MILHÕES DE BRASILEIRES NÃO TEM
COMIDA SUFICIENTE OU PASSA FOME, TODO DIA"

É QUE enquanto o Estado


for gerido por essa gente
e por essa lógica
de produção­exploração
o mundo será de morte, fome, sangue
e vírus para a maioria
o mundo deixará de ser
mundo, planeta arejado, verde

pAra ser o lar de 4ndr0idE$# e bactérias

&u me pergunto e me perguntam:

qual o próximo passo para a guerra?

a guerra definitiva. a frente popular orgãnica

...kd a guerrylha urbana?...


Pai ó pai afasta de mim esse calíce ó
Mãe, afasta de mim esse cale-se

[todo esse sangue

Como beber dessa bebida


amarga?
tragar a dor?

Mesmo calada a boca


resta o peito
Ressoa silêncio na cidade
Não se escuta

Este silêncio todo


me atordoa
atordoado eu permaneço
atento

Como é difícil, pai, abrir a porta


esse silêncio preso na garganta ó mãe esta
realidade morta morta morta morta

Tanta mentira, tanta força bruta,


filhe...

A REDAÇÃO
índice

Um papo cabeça com Dina


pág. 1
A arte decolonial de Maria Sosa Ruiz
pág.5
Curar o colecionismo
pág. 11
Jacaranda, mi eterna primavera
pág. 15
La voz de la protesta
pág. 18
POÉTICAS
pág. 25
Deus é humor
pág. 33
Sobre o Culto dos Livros
pág. 35
Desenhos de Misael Rey
pág. 39
Desabafo
pág. 43
Pré­concepções quebradas
pág. 45
Nudez
pág. 47
Eu não posso fazer nada
pág. 49
Circuladô de Fulô
pág. 51
A viagem de LSD de Foucault
pág. 53
O atelier de pintura
pág. 57
A Andromeda Negra
pág. 65
Editorial
pág. 74
"Tem pessoas que escreve, escreve, escreve,
manda suas mensagem através de escrita,
eu tenho que falar, porque eu ainda não
aprendi a fazer escrita, a escrever pelo celular"

transcrição do áudio que a costureira


autodidata, contadora de histórias e
filósofa nativa da vida me comunicou
em um dia-feira qualquer por Pedro Torres Busch

Oi Pedro, boa tarde Pedro. né? Eu criei minhas filha


Como você nunca mais ouviu conversando com elas, né,
minha voz? Eu tô sempre conversando mesmo, desde saía
mandando mensagem pra você, do hospital com elas no braço
é que às vezes escuto alguém conversando com elas, e elas
dizer: “ah, Dona Dina fala entendiam minha linguagem e
demais” né então, as minhas eu entendia a linguagem delas
neta fala “ah, minha vó fala né? E assim era nossa
demais” “ah, minha vó fala...” é comunicação até hoje a gente
que eu não escrevo então eu falo tem, tinha muito disso, muito
né? Tem pessoas que escreve, muito muito eu acho isso legal,
escreve, escreve, manda suas muito legal pra desenvolver a...
mensagem através de escrita, ah não sei, talvez seja, talvez
eu tenho que falar, porque eu sim talvez não, mas se pra mim
ainda não aprendi a fazer fez bem pra minhas filha
escrita, a escrever pelo celular, a também,elas nunca reclamaram
Mariana que andou me dando né, nunca me disseram “mãe,
umas dicazinha rapidinho com o não gostei do que você me
Marquinho mas não foi possível ensinou quando eu era criança”,
ainda aprender, mas eu chego no sentido falar, né, no sentido
lá. EU CHEGAREI LÁ. Tudo de conversar, em outras coisa
bem Pedro? Então mas aí sobre creio que sim...
o Pedrinho né, é assim mesmo, Mas enfim, voltando ao que
a criança... as criança são muito interessa, também né, sobre...
inteligente, todas, elas nascem costura né, PEDRO. COSTURA
com o qi muito elevado, e elas, É COISA DE... DE LOUCO.
de acordo com o meio ambiente Apesar de, a arte é uma coisa
onde vivem vão desenvolvendo de... de louco também né?
1
Que num tem... é infinito, num tem fim, graças à Deus que
não tem né? Sempre há uma coisa nova, sempre há um...
um jeito da gente de fazer parece até que a gente tá
descobrindo algo de novo, e quando a gente sente um prazer
no que faz a gente... a gente começa a viajar nesse mundo
né? Eu acho legal, muito bom... bom demais.

desenho
feito por
Dina em
uma
atividade
de desenho
abstrato,
proposta os traços
em aula de parecem sugerir
artes do linhas que se
ensino entrelaçam e se
médio, que costuram, em
ela movimentos
concluiu circulares
aos 60 anos
pelo EJA

Então, eu gosto muito do que eu faço e por isso... e por isso eu


gosto, eu acho bonito, acho lindo, hoje eu fui pro médico cedo,
lá no hospital CEM, aqui ele é meio distante aqui de casa né,
aí eu tive eu tenho que pegar um uber e aí agora como eu sou
muito criança, não posso andar só tem que ter companhia né?
Tudo que eu não gosto é de incomodar as pessoas né, mas... a
gente não faz só o que gosta né Pedro? Na vida também tem
dessas coisas né. Aí... eu incomodei a minha vizinha a Alda né
ela foi comigo, 5 e 30 a gente já tava... “Dona Dina” num sei
que lá, e eu já tava de pé e tal, aí fomos. E... e foi legal, aí
cheguei não parei mais fiquei por aqui tal e a gente
conversando de sempre né, e a gente precisa mesmo disso né, e
eu falando pra ela sobre o carnaval, que era isso mesmo sobre
arte que carnaval pra mim é arte né? E aí ela falando ai eu
odeio o carnaval eu digo nossa comé que... eu fico pensando
Alda, falei bem assim pra ela, fico pensando Alda, com todo
respeito que eu tenho pelo gosto dos otro, mas eu fico
pensando comé que uma pessoa olha pruma escola de samba

2
como essas que sai no Rio de Janeiro e otras e otras, São Paulo
também, e ver tanta coisa bonita e só dar inspiração de dizer: eu
odeio. NOSSA, chega eu fico pensando, parece... parece uma
"judiação", ela bateu assim no meu ombro ô Dona Dina é que eu
não gosto de carnaval, eu digo sim você não gostar de certas coisas
do carnaval ok. Mas aquelas dançarina, aquela dança que aquelas
menina faz, aqueles homem faz, aquelas pessoas fazem com tanta
dedicação, o ano todo... e que ali, Alda, ninguém mede sacrifício,
cada um pondo tudo que tem de dentro pra fora pra fazer um
trabalho tão bonito daquele, tão... pra três dia ali um momento tão
pequeno pra tanto tempo de batalha eu vejo por esse lado, eu num
vejo só pelo lado nega..., pelo lado de... de alguma coisa que... não
consigo, talvez seja porque eu acho bunita a moda né, eu gosto da
moda, eu gosto das... da arte em geral, né, aquele espeta... aquilo
ali pra mim é um espetáculo é um teatro, é... é tudo de bunito, num
vou dizer que seja bom mas que é bunito é, é bonito de se ver.

"é fazendo e aprendendo"


E é isso Pedro mas quando eu
Enfim, mas é isso Pedro, a tiver oportunidade nós vamo ter
moda tem de... a costura né, é essa oportunidade, eu vou dar
arte como você mesmo inspira aí algumas dica pra você, você tá
e tá falando, e não deixa de ser, pronto já, prontinho, não tem
né? E é assim que começa, você muito o que aprender, é fazendo
já sabe manejar com a agulha, e aprendendo... eu creio que
botar uma linha numa agulha e sim, agora umas dicas sim, eu
montar um... olha aí essa roupa fiz um cursinho básico em
do Pedrinho que você bolou aí, Manaus, de corte de costura
com tanta vontade com tanta com as freira né, lá em Manaus,
inspiração e tudo, se fosse um tirei meu certificado rapidinho
caso de fazer um desfile uma com seis meses de aula,
coisa dessa aí já... já valia, frequentei uma escola né
entende? Já valia. Era... já tava particular era umas duas três
valendo tudo porque é uma coi... horas de aula com as freira só
é arte, e é uma coisa pura, pura mesmo pra aprender a tirar
não tem uma maldade não tem medida e traçar o molde, com
um nada, apenas um trabalho minhas medida né, com as
uma arte ali que você fez essa medida que eu tiro das pessoa,
montagem aqui, tá me traçar o molde, não é traçar um
entendendo? Tantas roupa de modelo, apenas o molde. Então,
estopa que foram feita e que quando a gente faz isso parece
ganhou foi título, né? No sentido assim “ah, você é uma
de arte. móldista”. Tudo bem, mas foi
um curso muito prático muito
3
assim na prática sabe não é uma coisa assim uma técnica,
num é um conhecimento assim nas medida com toda uma
técnica não, memo porque eu mal sabia lê e mal sabia
escrever, como até hoje, e de lá pra cá eu não fiz outro curso
mais, eu aprendi tirar os molde das revista, que também são
muito bom, maravilhoso, mas aí já não é um molde seu né,
você tá com ele pronto você só aprendeu à tirar, e ver o
tamanho se é médio se é grande se é pequeno pela...
conhecendo as letra P pequeno médio M tamanho Médio
grande G G grande, assim, sabe Pedro? Mas é legal, muito
bom, eu gosto, muito muito muito muito muito mesmo, tá?
Se eu tiver dez se eu tiver cem vida, em todas cem vida eu
vinha eu vim como costureira, pode ter certeza que eu tô
muito feliz, muito satisfeita, se eu puder passar alguma coisa
alguma dica pra você passarei, tá? Com o maior prazer, não
se preocupe, deixa passar; mais longe já teve, o pior já
passou e o melhor está por vir, olhe, essa epidemia essas
coisa que tá aparecendo aí ela vai passar como todas as
outras já passaram também, nada é eterno única coisa que é
eterna é a palavra de Deus mais isso aí não, como ela veio
ela vai...

maquina de costura de Dina

para onde quer que ela vá


a máquina sempre vai junto

4
Maria nos enviou sua arte desde
Michoacán, México @maria_sosa_ruiz

ECOLONIZAR-TE
por Maria Sosa Ruiz

S u trabajo se genera desde la búsqueda del pasado colonial y como


este constituye eventos y dinámicas sociales contemporáneas. El
énfasis de su investigación se centra en los procesos surgidos de la
colonización de América, como el epistemicidio de los mundos
prehispánicos, el racismo, el sexismo y la invisibilización de formas
de vida i conocimientos no occidentales.
Partiendo del concepto de Ecología de Saberes, su trabajo se
caracteriza por lo colaborativo y el diseño de procesos de producción
fuera del estudio de artista. La contemporaneidad es un contenedor
de realidades simultáneas, así el trabajo de Sosa sólo puede
plantearse a partir de construir perguntas desde lo colaborativo,
especulativo y transdisciplinario, traduciendo sus planteamientos y
perguntas em acciones, esculturas, publicaciones, videos,
conferencias, plásticas y performances.
Su quehacer artístico parte de la exploración de técnicas tanto
artesanales proprias de su estado, como de producción de objetos
rituales prehispánicos y contemporáneos.
tradução: Seu trabalho se gera a partir do resgate do passado
colonial e como este constitui eventos e dinâmicas sociais
contemporâneas. A ênfase da sua investigação se centra nos
processos surgidos da colonização da América, como o
epistemicídio dos mundos pré­hispánicos, o racismo, o sexismo
e a invisibilização de formas de viver e conhecer não ocidentais.
Partindo do conceito de Ecologia dos Saberes, seu
trabalho se caracteriza pelo colaborativo e pelo desenvolver de
processos de criação fora do estúdio de artista. A
contemporaneidade consiste em realidades simultâneas. Nesse
sentido, o trabalho de Sosa só pode semear­se a partir da
construção de perguntas sobre o colaborativo, o especulativo e
o transdisciplinário, traduzindo suas semeaduras e perguntas
em ações, esculturas, publicações, videos, conferências,
pinturas e performances.
Seu querer­fazer artístico parte da exploração tanto
de técnicas artesanais próprias de seu estar quanto da
produção de objetos rituais pré­hispánicos e contemporâneos.
5
Dos
colonizaciones

(duas
colonizações)

Lo que tengo
Una cabeza escindida, un pasado doble
dos animales siniestros
un frasco de dos tonalis
un presagio funesto que se hace realidad
prótesis de madera extraída del mar y
el río que se abrieron a tu
entrada
una colonización doble
inferiorización por raza
subordinación por genero
Presente convulso
monstruo de cuatro ojos
lagrimas de minas
cosechas de destrucciones
Lo que queda
6 Plantas que sobreviven
palabras hierbas que no han dejado de
pronunciarse
el uso que atraviesa la muerte de 500 años
cuerpo­contenedor
fragmentos de conceptos
fragmentos de objetos
lo que queda es restaurar
recuperar
revivir
cuidar
cuestionar
repensar
Lo que queda
es la batalla cotidiana
así como el arena y el agua de sal.

[traduza esta poesia para a língua brasileira e nos envie


em editoramaracaxa@gmail.com, publicaremos sua
tradução na próxima edição da revista]

ritual

f e m e n i n o

funesto
masculino 12 de octubre
de 1985

7
fotografia de Noe Martinez Flores mostra
a pintura feita para uma performance

&

arte pré­hispânica, de povos originários


inspiração da pintura corporal

8
Yo/Alvarado

(colagem, autorretrato e códice de Huamantla)

9
Cartas de Muerte
Invocaciones al Señor Puuc
(colagem e aquarela sobre papel de algodão)
10
CURAR O COLECIONISMO
por Alexander Herrera
publicado originalmente em la Gaceta de Investigación
y Creacion de la Universidad de los Andes, nº 3, 2017,
Bogotá, Colômbia [tradução de Tereza Uirapuru]

pingente criado entre os anos 500 e 1.500


por gentes nativas de Abya Yala.
roubado e agora guardado no Museu do Ouro
de Bogotá. foi, junto a outras obras de arte ritual
indígena, cedido à Pinacoteca de São Paulo
em 2010 para a exposição "Ouros do eldorado"

O colecionismo é uma enfermidade comum, antiga e contagiosa


de que sofrem muitas instituições e indivíduos, também
universidades e eu. Usualmente se manifesta na juventude com
um número reduzido de conchas ou rochas recolhidas junto a
algum rio ou praia, mas com frequência se estabelece, se
transforma e cresce durante toda a vida, podendo inclusive chegar
a ser hereditária. À diferença do colecionismo de pedras,
chaveiros, moedas ou livros, a acumulação exclusiva e excludente
de peças de arte pré­hispânica se insere em uma larga tradição de
destruição e alienação das bases materiais da história indígena.
11
Se a história nos ajuda a aprender do passado poderia
falar­se de uma enfermidade autoimune de origem
colonial. Seu sintoma mais diagnóstico é a guaquería: o
saque de sítios arqueológicos para buscar tumbas e
oferendas indígenas que contenham peças de valor.
Desconhecemos a maneira de extirpar esta enfermidade,
mas sabemos que é possível contê­la e necessário estuda­
la, e sabemos também que os museus e as coleções
museográficas universitárias podem exercer um papel
chave no processo de cura(ção).

etiologia do colecionismo:
Os conquistadores não No século XVII os “manuais”
demoraram muito pra perceber para a “extirpação de idolatrias”
que os objetos mais apreciados recomendavam queimar o
pelos nativos de América eram conteúdo, com exceção dos ossos,
feitos para, e depositados com, em fogueiras públicas, as quais
os difuntos, pois estes com as vezes eram tão grandes que
frequência incluíam objetos de lugares como Infernillo e Cerro
metal. Mesmo se tratando Purgatorio mudaram de nome
geralmente de ligas com cobre para sempre. A intensidade da
como base, as notícias de destruição associada à
metais preciosos em grandes cristianização forçada durante
quantidades em terras as campanhas de perseguição
“americanas”, atiçadas pelo religiosa varia de região pra
inca Atahualpa com o inútil região, mas as marcas na
pagamento de seu próprio paisagem ainda são
resgate, despertaram a cobiça reconhecíveis. Peninsulares,
de um continente e deram mestiços, indios e escravos
alento a fábulas que animaram participaram da guaquería por
jovens europeus a deixar o distintos motivos ao longo de
continente todo e cruzar o três séculos, tempo durante o
oceano em busca de tesouros. qual a guaquería passou a
Este afã de tesouro é o mesmo converter­se em uma forma de
vetor de contágio que encoraja minério, prontamente regulado
camponeses e ministros, para assegurar o dizimo da
professoras rurais, diplomatas coroa.
e monges, a buscar e comprar Paradoxalmente, é nesse
peças arqueológicas em toda a contexto que surgem as
América Latina. primeiras coleções de objetos de
Em que pese as dúvidas arte pré­hispânica, apenas
iniciais entre setores do clero mencionadas em testamentos
em torno da legalidade da pobremente estudados. Dada a
profanação das tumbas dos importância histórica da
“indios” por sua condição de passagem de uma valorização
pagãos ou “gentis”, a prática claramente mercantil e centrada
prontamente se instaurou. no metálico dos objetos "pagãos"
12
[o impacto do deslumbramento
original monumentalizado nos de semana ou feriados. Em
“museus do ouro” de Bolívia, uma segunda etapa, o paciente
Peru, Equador e Colômbia] a passará de buscador inveterado
um reconhecimento de seu a comprador compulsivo, e cedo
valor estético, mnemônico e então a enfermidade começará
histórico, esta falta de estudos a atacar a vista do paciente.
é surpreendente. Mais cedo ou mais tarde
Um segundo giro nas terminará comprando por
trajetórias de valoração do que ouvir, sem olhar, ou olhando
hoje chamamos patrimônio, sem ver aquilo que não quer
uma transformação desta ver. Tão pouco faltará quem se
enfermidade colonial, surge aproveite do colecionista e
com a chegada do projeto substitua por réplicas peças
ilustrado no século XVIII. Com originais de sua coleção ou
as gestas de independência e a simplesmente as roube ou
formação das republicas sul­ quebre sem querer. Porém, há
americanas, a enfermidade que se reconhecer­se que a alta
colonial se transforma, pois se qualidade dos segundos
consolida o reconhecimento de originais à venda nas ruas de
que os objetos do passado não Rosales ou Usaquén, aqueles
só podem ter um valor estético, que os colecionadores
mas também um valor perspicazes não compraram,
histórico e testemunhal que não é casual. A produção de
independe da estética. E é réplicas de cerâmica pré­
nesta variante da enfermidade colombiana tem mais de 150
[a busca do conhecimento anos de tradição, sendo quase
mediada pela acumulação, tão antiga quanto o
mais ou menos sistemática e colecionismo.
ordenada, de objetos de Diferentemente da produção
atraente exotismo] onde se artística da família Alzate, que
situam os museus nacionais, levou à invenção de novas
assim como uma grande culturas pré­colombianas ao
quantidade de coleções longo de gerações, a maioria
particulares como aquela de dos replicadores fabricam
1070 objetos arqueológicos, cerâmicas bastante parecidas
etnográficos e artesanías com as originais. Em muitos
reunidas por Luis Raúl casos lançam mão de
Rodriguez Lamus ao longo de fragmentos originais para criar
sua vida. peças hibridas.
colecionismo caseiro: Uma olhada superficial, talvez
O colecionismo caseiro de acompanhada de uma boa
peças de arte pré­hispânica é história, má luz ou óculos
uma variante particular da velhos podem ser suficientes
enfermidade com tempo de para viabilizar a transação que
incubação e manifestação aliviará alguns dos sintomas do
longos, mas que se pode enfermo por um momento, ou
contrair com escavações de fim dois.
13
Ainda que não seja uma doença fatal, o colecionismo de peças
pré­hispânicas tende a acabar só com a morte do paciente. São
raros os casos de morte violenta, embora o degolamento de
comerciantes de arte pré­hispânica com cuchillos cerimoniais não
seja desconhecido. Uma coleção sem colecionista tende a
converter­se em um problema para os parentes. Se não há
contágio na família, aos herdeiros se abrem dois cenários
possíveis: dissolver a coleção e recuperar uma fração do dinheiro
investido ou mantê­la integra e câmbia­la por prestigio.
Conscientes das possiblidades e desafios decorrentes de manter
uma coleção, os familiares do enfermo buscarão entregar a coleção
a um prestigioso museu ou instituição para devolvê­la ao âmbito
do público.

o que fazemos com isto?


O número de coleções privadas de bens arqueológicos na América
Latina deve ser astronômico e poderia ver­se isso como indicador
de uma pandemia de séculos. Mudanças legislativas a nível global
e regional sugerem o início de um longo ocaso. Pouco a pouco, mas
cada vez mais, as coleções de arte pré colonial acumuladas por
indivíduos privados passam para os museus e universidades, que
devem responder à pergunta: o que fazer com esse apanhado
desordenado de objetos guaqueados e comprados, alienados e
inventados, de obras mestras da replicação mescladas com peças
de cerâmica e líticas originais e fragmentadas? A única resposta
possível é dar o exemplo daquilo que se pode fazer para sanar as
feridas deixadas pela enfermidade: ressarcir o dano
acumulado retornando todo o possível ao âmbito do
comum. Em outras palavras, catar as páginas perdidas
e devolvê­las ao livro da história.

itakuatiara, ou pintura rupestre, isto é, pintura em pedra (itá =


palavra tupinambá que significa pedra) encontrada na Serra da
Capivara, no sudeste do Piauí, essa serra é lar da maior
concentração de pinturas rupestres das américas e talvez do
mundo. O pigmento ocre-vermelho usado nesta pintura foi
14 datado entre 17.000 e 25.000 anos atrás.
JACARANDÁ,
minha eterna primavera
por Karla Corona
publicado originalmente na Revista Horizontes, do
Colegio de Estudios Latinoamericanos, Universidad
Nacional Autónoma de México (UNAM), agosto de 2020.
[tradução de Aureliano Caminhamar]

Corríamos entre as gentes quando nos puxaram,


perdi as mãos de minha companheira entre a multidão e
caí no chão. Consegui levantar e segui correndo, mas ao
final dessa noite nos encurralaram entre as ruas Busto e
Quintana. Sabíamos o plano de ação ante uma possível
repressão, mas não pudemos escapar, estávamos sozinhas.
A Força Armada nos golpeou, nos pisoteou, nos botou em
um carro e nos cobriu com uma manta. Eu soltei golpes
em todas as direções que me foram possíveis, mas não
logrei me safar. Me amarraram os braços em uma posição
realmente incômoda e depois de um forte golpe na cabeça,
quedei inconsciente.
Ao despertar me encontrava em uma casa,
completamente nua, doída até a alma e completamente só.
Meu corpo percebia a frieza do piso e a umidade das
paredes. Pude sentir o sangue da minha cabeça
escorrendo pelo meu rosto, mas não podia limpá-lo por
que tinha as mãos atadas. Meus olhos queriam fechar mas
eu, com todas as minhas forças, conseguia mantê-los
abertos, intentando descobrir o meu paradeiro. Durante
dias permaneci sem comer um bocado, ninguém falou
comigo, ninguém me procurou. Me haviam abandonado e
trancado. O lugar era bastante grande, mas não se
escutavam ecos, ninguém me ouviu gritar, não havia nem
um só ruído, eu me sentia desconcertada e atormentada.
Jamais soube quantos dias passaram exatamente desde
meu confinamento, mas eu os senti como se fossem anos.
Um dia uns homens me despertaram com uma
cumbuca de água gelada, começaram a interrogar-me
sobre minha companheira Jacarandá, melhor conhecida
como Rabiosa, me disseram que devia dar-lhes toda a
informação possível e que me deixariam sair dali.
15
A princípio zombaram do meu aspecto, ainda que em
realidade eu não pudesse sentir mais que asco por tudo
que já me haviam feito passar e por tudo o que eu sabia
que me esperava. Tinha que ser forte, mas também tinha
que ser mais inteligente que eles, devia usar todas as
táticas que seu maldito sistema me havia ensinado desde
pequena, que não eram mais que ceder à minhas ideias
para comprazer seus ouvidos, me deixar manipular e
fingir estar do seu lado, trair meus pensamentos e meus
ideais em cada resposta, viver para a complacência alheia
e deixar minhas utopias de lado. Eles, orgulhosos de seu
trabalho de salvadores nacionais, se sentiam vangloriados
pela pátria ao livrarem-se da virulenta revolta, e eu,
desejosa de cuspir-lhes na cara, nesse momento só podia
pensar em sair viva dali.
Me tiraram a venda dos olhos, me deram um copo
com água e depois se sentaram na minha frente. Me
fizeram ler o título do jornal desse dia: “Começou a luta
Salvadorenha contra o comunismo”. Nesse momento eu
compreendi perfeitamente que mais uma vez a hegemonia
política da direita salvadorenha voltava ao poder. Seu
argumento principal sempre seria o comunismo.
Jacarandá e eu jamais fomos comunistas, mas ao
crermos firmemente na liberdade plena de toda
pessoa e na autogestão, fomos candidatas à
execução e ao nosso silêncio eterno. Fomos
condenadas ao sofrimento e à execuções sumárias
por parte das forças do governo. Os homens que
vigiavam minha cela não paravam de descrever-me a
dolorosa morte de minha companheira Jacarandá. A
penduraram pelas mãos no teto e a golpearam com barras
de ferro, lhe deslocaram a escápula e um ombro, com um
aparato elétrico lhe atormentaram durante horas, mas eu
sei que jamais falou. Colocaram cabos nos dedos de seus
pés, conectando e desconectando a corrente uma e outra
vez. A golpearam com cinturões e quando seu corpo já
não resistiu mais, violaram sua sagrada essência. Mesmo
com todos nossos mecanismos de auto cuidado,
caímos, e nos destroçaram por dentro e por fora a
gana de querer seguir vivendo.
No dia seguinte me transladaram à uma prisão, ali
passei dias, semanas, meses talvez. Permaneci
trancafiada, fui torturada. Sabia que os corpos de minhas
companheiras já flutuavam em ácido, sabia que seus ossos
haviam sido destroçados, mutilados, que os haviam
deixado sem pele. Soube por outros companheiros de cela
que ali os agentes utilizavam maquinário de moer carne
16
para fazer-nos falar. Meu corpo coloria de vermelho o
cimento todo dia pelos golpes e eu pensava... Já não vivo
mais, nem um segundo mais. Por momentos pensava em
negociar minha liberdade e minha dignidade, mas nem
pra isso tinha forças, estava afogada de dor. Durante a
noite pensava em Jacarandá, pensava que jamais voltaria
a vê-la e isso fazia eu me sentir triste, mas depois pensava
em nós duas rindo entre as gentes, cantando e dançando
na praia em janeiro. Pensava na força do nosso carinho e
na nossa amizade, isso me mantinha viva e me deixava
dormir uma vez mais. Os dias se faziam eternos, mas eu já
não tinha medo. Me sentia cansada fisicamente, mas
ainda não haviam conseguido desmoronar minha
humanidade.
Minha fuga foi possível em uma tarde de março,
graças ao empenho da Resistência Nacional, um grupo
guerrilheiro pertencente à Frente Farabundo Martí para la
Liberación Nacional, tinha um vago conhecimento do seu
trabalho, haviam me salvado a vida e eu não podia estar
mais que agradecida. Entraram no quartel, se escutaram
disparos, vidros quebrando e fechaduras explodindo.
Entre dois guerrilheiros me levaram de minha cela,
soltaram meus braços amarrados e cobriram minha nudez
com suas roupas. Me carregaram, junto aos demais presos
e presas, pra cima de uma camionete velha com cabine.
Nos explicaram que deviam deixar-nos no centro e que de
lá nós teríamos que buscar ajuda por nossa própria conta.
Com o passar dos anos seguintes logrei fugir de El
Salvador e converti o vírus da raiva em imunidade ativa,
me aferrei em estimular minhas defesas, a gerar vínculos
de cuidado coletivo. A converter toda fúria em
ferramenta de combate e alegria. Melhorei meus
atributos sociais e não cedi a suas manifestações de
agressividade, de ressentimento, de terror e de medo,
nunca mais. Cada dia que passa, quando me sinto
enfastiada da vida, penso em minha Jacarandá e em seu
sorrisão de eterna primavera e aí, volto a encontrar força
para seguir lutando. Até hoje, seguem nos chamando de
infecciosas, mas a liberdade não só se propaga como uma
praga, a liberdade está semeada e disposta a florescer em
qualquer lugar, desde as montanhas e o alto mar até o
cimento atravessado pelo sangue.
A liberdade só será alcançada com a
desobediência e a rebeldia.

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poéticas
Na leiteria, a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos [agosto de 1964]
de leite,
e no espelho meu rosto. São Entre lojas de flores e de
quatro horas da tarde, em maio. sapatos, bares,
mercearias, boutiques,
Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo viajo,
a vida num ônibus Estrada de
que é cheia de crianças, de flores Ferro­Leblon.
e mulheres, a vida, Volto do trabalho, a noite
esse direito de estar no mundo, em meio, fatigado de
ter dois pés e mãos, uma cara mentiras.
e a fome de tudo, a esperança.
O ônibus sacoleja. Adeus,
Esse direito de todos Rimbaud, relógio de lilases,
que nenhum ato concretismo,
institucional ou constitucional neoconcretismo, ficções da
pode cassar ou legar. juventude, adeus,
que a vida
Mas quantos amigos presos! eu compro à vista aos
quantos em cárceres escuros donos do mundo.
onde a tarde fede a urina e terror. Ao peso dos impostos, o
Há muitas famílias sem rumo, esta tarde, verso sufoca, a poesia
nos subúrbios de ferro e gás agora responde a inquérito
onde brinca irremida a infância da policial­militar.
classe operária.
Digo adeus à ilusão,
Estou aqui. O espelho mas não ao mundo. Mas
não guardará a marca deste rosto não à vida,
se simplesmente saio do lugar, meu reduto e meu reino.
ou se morro, Do salário injusto,
se me matam. da punição injusta,
Estou aqui e não estarei, um dia, da humilhação, da tortura,
em parte alguma. do terror,
retiramos algo e com ele
Que importa, pois? construímos um artefato,
um poema,
A luta comum me acende o sangue uma bandeira.
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.

[maio de 1964]
FERREIRA GULLAR
XANADU -signatura rerum-
-a marca das coisas-
museu do orgulho nacional

para o País do Futuro


um Museu do Amanhã

a réplica da jules rimet uma calcinha da lilian ramos


a carta de mário de andrade um exemplar de marimbondos de
a prensa que decepou o dedo do lula fogo
o fusca do itamar um exemplar de anônima
o morcego negro do pc farias intimidade
a bola do 7x1 um exemplar de o mago
um pixuleco um barril de petróleo do pré­sal
a caneta da princesa isabel o relatório da odebrecht
o trono de dom pedro a camisa amarela do ronaldinho
o revólver de getúlio a caixa de engraxate do pelé
o cofre da amante de adhemar a sela do cavalo do figueiredo
fuzis do carandiru os óculos escuros do costa e silva
uma viatura da rota o rayban do figueiredo
o caveirão os óculos de grau de geisel
um lp 78 rotações com a música bota os óculos da militante dilma
o retrato do velho um pau de arara
a vassoura e os bilhetinhos do jânio a caravela dos 500 anos
o casaquinho de pele de rosane um disco tropicália
a mala de viagem do yoki um exemplar da constituição de
a carta de getúlio 1988
um exemplar de os sertões furado de o quepe do general castelo branco
balas um capacete de pm da ditadura
o lada de collor o pato de troia da fiesp
o fusca do itamar
as camisetas de mensagem de collor
o portal da casa da dinda com ADEMIR DEMARCHI
uma antiquada lamborghini
a perua fiat elba do impeachment de
collor
o cheque­fantasma de pc farias
que pagou a perua elba presenteada
a rosane
uma veraneio da polícia dos 70
a cueca do irmão de josé genuíno
o que restou do puma do riocentro
a bala de borracha de alckmin que
vazou o olho de um jornalista
a tanga de crochê do gabeira
sucio todo conceito apenas ao recordá­lo,
sucio por la naturaleza aunque arraigados en el esclerosado
sucio por la belleza y la humildad Passado
de la pelota del malabaris de las pois volvemos la vista al cielo
calles, su movimiento y lo perro de a divagar en la abrupta e suave
los becos absurda
sucio por la suciedad mismo existência
puro amor por el polen del polvo a acontecer, desfolhando­se
pura investidura de la lama transmutanto
el barro creador cantiga perene lig=ngu#agens,conceitos, imagens
a reposar en la sola dos descalços entendemos entonces que o céu é
e aun las manos de los oprimidos pouco
o chão é que é muito é a
caminando criação da desconstrução
pedras e chocalhos exalando
em meio tanta suciedad dialetos e transmutações
no me omito passiones, amores, perdições
yo sé que la fartura de las colores sonoras canciones
és lo destino mesclas
y no me acostumbro la estabilidad humo de amor
es la ilusión de las preguiças vuelta al mundo de las
la ausencia de suciedad y sangre manos regadas de palavras
illusion burguesa interseccionadas
no adianta el prefecho obrar en las ruas desnudas
lavagem sociale, proceder del solar verano más cru
el fechamiento de las plazas y del arrocho planetário
rincões públicos
no es posible que se impeça los pájaros soplan
a vista de las paragens humanas lo assopro de la simples
erigidas urbanas la calle verdad que és la
vai siempre abierta en conjunción verdade tá na rua
és voz y carne no letra y papel e el amor também
és carbón y fuego rasgado de lo la verdad ta ná
pecho del asfalto mistura
com potência de amor y en el mar tanbien
suavidad de nucleo magma y magia e
magna via és sucio mi corazón a voz que se oube
y como és embolorada mi resolución não tem nacion
no decido nada o por nadie até és una voz sucia
Marx esqueço en riba de la mesa embolorada, carcomida,
mismo porque la verdad es el polvo selvagem e humana
latente en cualquier gesto e toda apenas
palabra no necesita hablar­se apenas eso
cuando
el isqueiro enciende la fumaça sujeira
alastra las
significaciones e já ressignificamos CAMINHAMAR
Agora
costura
no fim do mundo
Eu quero alguém que se me costure por
dentro Passando pelos substratos
Pelas vísceras – coração inclusive Passando pela água
E as mucosas Dentre o mato
Não tenho paciência pras maquiagens Pé no chão
pras superfícies Não me interessam as superfícies
pros espelhos planos polidas
Não quero a perda de tempo das futilidades Não me interessam
E dos jogos de cena As coisas lavadas e desinfetadas
Quero antes a natureza da semente dentro Não tenho mais idade pra isso.
da terra Nunca tive.
Enraizando
Germinando

S H I V A ~deus dançarino~
Peço ao deus dançarino
capacidade de improviso Pensei em manter provisionado um
pois só aprendi a andar nos trilhos estoque razoável de planos B, até
Careço urgentemente de jogo de que conseguisse pensar nalguma
cintura coisa
de modo a não desmoronar a cada Mas, veja lá,
tropeço mais um agarramento
fora do script nesse mundo de intercorrências
Talvez eu seja enamorada das exatas incessantes
proporções
de tempo e espaço Não.
no desenrolar dos brotos das árvores
nascer e pôr do sol, giro dos planetas Rogo ao deus dançarino
e quisera da vida que assim fossem Que meus passos surjam a um só
a sucessão dos fenômenos tempo com a música
e encontros Já que a vida é em tempo real e sem
Em cadência harmoniosa, os ensaio
acontecimentos Quero a geração espontânea e
Justeza e equidade adaptável
como as proporções áureas no maleável, graciosa
desenho das conchas Sem peso
em suas espirais desespero
A ninguém nada faltasse ou xeque­mate
A ninguém nada sobrasse Estamos na pista.
Nem dinheiro, nem assento, nem Mascarados.
amores Segue o baile.
Nem beleza, nem comida, nem
espantos LUCIANA BARBEIRO
PARA MINHAS COMPANHEIRAS QUE RESISTEM

23 de novembro de 2019

Em frente ao Palácio da Justiça


Vejo mulheres abraçadas
embaixo destas nuvens que se entrelaçam no horizonte
perdoaram a si mesmas por tanto silêncio
e hoje já não tem medo
agora vemos com nosso terceiro olho e nos iluminamos umas as outras
Minha companheira me fala no ouvido:
Escuta o latir dos tambores
são os corações de nossas ancestrais
que nos transmitem energias
prontamente me conecto com estes seres de luz
e se regenera a minha aura
me elevo e a água do eucalipto se derrama sobre meu corpo
brotam sementes dentro de mim
com tuas palavras purificadoras

II

Nesta tarde mítica


convocamos nossas irmãs
assassinadas
violadas
e esquecidas por este sistema anulador de memórias
ligamos velas brancas e verdes
para acendermos com o fogo de seus espíritos
irmãs
não estamos sozinhas
agora somos todas
as que juntas lutamos e somos uma só voz que em uníssono canta:

Dorme tranquila, criança inocente


Não se preocupe com nossas vidas
Juntas lutamos
Todas valentes
E se algo acontecer queimamos tudo
E se algo acontecer queimamos tudo
E se algo acontecer queimamos tudo
III
fevereiro de 2020

Solsiret se reencarna em cada mulher presente nesta marcha


Reviveremos teu nome aos Céus
Até a explosão da cidade

Em tua memória
Peru será um país feminista
Te prometemos que sim, companheira
Sua luz se expandirá sobre nossas dores
Sanará cada ferida aberta

Hortelã e muña ñañay


Para teu coração calêndula

WENDY YASHIRA PALIAN SOTO

RAIKAY
TROPYCAL
teatro covid
pix
no chapéu é tropessando
que se aprende
a dançar

a primeira bucha é a mão DIGITAL


u primeiro pincel o dedo
a primeira cor tenho nos DIGITO
vermelho olhos
poesia DIGITAL
na mão
meu filho olhos DIGITO
dançando nos dedos
à música mãos DIGITAL
do sol DIGITA

isto
estava escrito na beira de um livro
um mapa
tudo depende uma pá
da época um mapa
da flor, do fruto uma pá
do ventre um mapa
uma pá
um mapa
u m apá
infinitamente
as abelhas
sugam flores um segredo
esperam na fila calado
os humanos na boca
infinitamente do ouvido
o mundo
se lê
nos pixo
já ouvi falar
do tal estação
do TAO é estar são
com os frutos que
tão

algumas folhas
o sorriso é rabiscos, galhos
a flor da linguagem está festa
a alma
faz primavera a
serotonina
é que
calcifica
os grãos
da
memória
eu sou um velho
de 70 anos
eu sou uma criança que sei eu da vida?
de 70 primaveras
nada além
do que não sei
antes de subirmos
pra lua
deveríamos ter aprendido
a conversar
com as águas vivas

sementes
aqui são entes madrugada,
tudo é entes são o
ou se tornará sementes gorgorejar
mercadoria das
mercadoria maritacas
mercadoria rejuvenesce
até você meu cansaço
entardecer
avua aves
vês?
vento

PÉDRA TORRES BUSCH

luzes acesas
vozes amigas por uma só fresta
chove melhor entra toda a vida
que o sol empresta

montanhas ao longe
montanhas nos olhos há de vir no vento
da libélula admirado de si mesmo
esse advento

primavera
até a cadeira
olha pela janela ALICE RUIZ
DEUS É HUMOR
por Fernando Alves Medeiros

1
Deus jamais ri. É uma máxima que, mesmo jamais
escrita, parece ser velha de tão repetida. É uma verdade
naturalmente aceita, endossada, sem prova concreta. Como
um axioma. Da mesma forma que matemáticos aceitam que a
reta é infinita.
A prosa bíblica, no limiar entre a solenidade e a vagueza,
nunca me deixou pistas. Aliás, ela sempre afirmou outra
coisa. Foi Jack Miles (acho) quem disse que, nas Sagradas
Escrituras, Deus só foi capaz de amar a partir do livro de
Isaías.
Ora, consultando a minha empoeirada Bíblia de bolso,
poderia dizer que Deus só foi capaz de amar após a página
630.
Se a menção ao amor de Deus só ocorre à época do
cativeiro babilônico, chego à Nova Jerusalém do Apocalipse
sem uma menção sequer ao humor de Deus.
Deus jamais ri. Está escrito que o Rei Davi dançava com
seus súditos, entoando cânticos, tocando pandeiros e
instrumentos de sopro. Talvez de uma maneira um pouco
diferente do que hoje, nos cultos neopentecostais da esquina
da sua rua, em marcação de palmas, alegres corinhos e
pedidos de oferta.
Mas Deus, nessa história toda? Talvez quieto e sisudo,
aguardava tranquilo toda aquela festa terminar.
2
Conta­se que Michelangelo pintou a Capela Sistina
completamente alcoolizado. O Deus retratado por ele no
célebre afresco “A Criação de Adão” é um ser enérgico, de
feições robustas. Como um pai que afirma a sua própria
autoridade através da violência. Ele cria o homem sem um
sorriso vago, seja de satisfação ou sadismo. Um ato
meramente protocolar.
A Idade Média atravessa um bocado dividida entre as
benesses do Espírito e as concupiscências da Carne. Talvez
daí a diametral oposição entre as liturgias religiosas e as
festas populares.
33
De um lado, missas proferidas em andamento lento,
cheias de silêncios e contrição de alma, o homem
minúsculo diante da esmagadora e gigantesca presença de
Deus — e da arquitetura, igualmente opressora. Do outro,
o Profano bebendo e cantando, tomando as ruas, com
alarido e sorriso no rosto, em nada encanado com
hierarquias e relações de poder. E tudo em andamento
acelerado.
O riso estava ligado às festas profanas, e também estava
bem distante dos festejos devocionais realizados no Átrio. Veio
então a explicação dos Padres da Escolástica. O riso é obra
do Demônio.
3
Até que veio outra frase, recente é verdade, mas que já
nasceu idosa: Deus está morto.
Ora, Deus está morto porque jamais riu? Ou nunca ri,
porque é morto?
4
Não creio que Deus seja sempre sério. É preciso um pouco
de humor para começar a criar algo depois de uma eternidade
na solidão. A criação, para Deus, toma assim um estranho
intuito. É um projeto. Deus, parece, quer provar alguma coisa,
como um estudante que avança a madrugada no laboratório,
testando produtos químicos. Para nada, absolutamente. Exceto
que os elementos tenham reverência pelo manipulador dos
frascos, em espírito e em verdade.
Deus jamais ri? A realidade, dizem os filósofos, é um fluxo
caótico de acontecimentos carentes de significação. Mas o
homem nunca se cansa de enxergar no caos um motivo cifrado,
alguma razão profunda. Há crentes que veem Deus no pôr­do­
sol, no canto do pássaro, no sorriso da criança. Há aqueles que
veem Deus no sofrimento, na tristeza, na morte, nos fins de
ciclo.É correto dizer, repetindo o senso comum, que a pessoa só
vê do que seus olhos estão cheios.
Deus ri das nossas tentativas em colocar diques e válvulas
no fluxo de fatos e coisas e sonhos e lágrimas que passam pela
gente aos borbotões. Deus ri da nossa desastrada maneira de
explicá­lo com formatações redondinhas da ABNT.
Deus é humor. Um humor terrível, essa é a verdade. Que
nos faz chorar com suas brincadeiras e piadas. Nunca vi
tamanha predileção em brincar de esconde­esconde justo no
momento da aflição. E é certo que nunca entendemos a
complicada sofisticação de suas piadas, difíceis de engolir e
34 estranhas de aceitar.
SOBRE O CULTO DOS LIVROS
por Jorge Luis Borges
publicado originalmente em Otras inquisiciones
Buenos Aires, Argentina, 1952
[tradução de Pedra Torre Bosque]

N o oitavo livro da Odisséia se lê que os deuses tecem


desgraças para que não falte às futuras gerações o que
cantar; a declaração de Mallarmé: O mundo existe para
chegar a um livro, parece repetir, uns trinta séculos depois, o
mesmo conceito de uma justificação estética dos males. As
duas teleologias, no entanto, não coincidem integralmente; a
do grego corresponde à época da palavra oral, e a do francês,
à uma época da palavra escrita. Em uma se fala de cantar e
na outra de livros. Um livro, qualquer livro, é para nós um
objeto sagrado: Cervantes, que talvez não escutava tudo o
que diziam as gentes, lia até "os papéis amassados das
ruas". O fogo, em uma das comédias de Bernard Shaw,
ameaça a biblioteca de Alexandria; alguém exclama que
arderá a memória da humanidade, e César lhe diz: "Deixa
arder, é uma memória de infâmias". O César histórico, na
minha opinião, aprovaria ou condenaria a fala que o autor
lhe atribui, mas não a julgaria, como nós, uma brincadeira
sacrílégica. O motivo é claro:
35
PARA OS ANTIGOS A PALAVRA ESCRITA NÃO ERA
OUTRA COISA ALÉM DE UMA CONTINUAÇÃO DA
PALAVRA ORAL. é sabido que Pitágoras não escreveu; Gomperz
(Griechische Denker, 1896) defende que assim obrou por ter mais fé na
virtude da instrução falada. De maior força que a mera abstenção de
Pitágoras é o testemunho inequívoco de Platão. Este, em Timeu,
afirmou: "É dura tarefa descobrir o criador e pai deste universo, e,
uma vez descoberto, é impossivel declará­lo a todos os homens", e em
Fedro narrou uma fábula egípcia contra a escritura (cujo hábito faz
com que a gente se descuide do exercício da memória e dependa de
símbolos), e disse que os livros são como as figuras pintadas, "que
parecem vivas, mas não respondem nenhuma pergunta que lhes é
feita". Para atenuar ou eliminar este inconveniente, imaginou o
dialogo filosófico.
CLEMENTE ESCREVEU SEU RECEIO
O mestre escolhe seu discípulo, A RESPEITO DA ESCRITURA EM FINS
mas o livro não escolhe a seus DO SÉCULO II; NO FIM DO SÉCULO
leitores, que podem ser maus ou IV SE INICIOU O PROCESSO MENTAL
estúpidos; este receio platônico QUE, COM O DECORRER DE MUITAS
perdura nas palavras de GERAÇÕES, CULMINARIA NO
Clemente de Alexandria, homem PREDOMÍNIO DA PALAVRA ESCRITA
de cultura pagã: "O mais SOBRE A FALADA, DA PENA SOBRE A
prudente é não escrever e sim VOZ. UM ADMIRÁVEL ACASO QUIS
aprender e ensinar de viva voz, QUE UM ESCRITOR FIXASSE O
por que o escrito não se move" INSTANTE (APENAS EXAGERO AO
(Stromata) e nesse mesmo CHAMÁ­LO INSTANTE) EM QUE
tratado: "Escrever em um livro TEVE PRINCÍPIO O VASTO
todas as coisas é deixar uma PROCESSO.
espada nas mãos de um CONTA SANTO AGOSTINHO,
menino", que derivam também NO LIVRO VI DAS 'CONFISSÕES':
dos evangelhos: "Não dê o "Quando Ambrósio lia, passava a vista
sagrado aos cães nem jogue a sobre as páginas penetrando sua alma,
pérola aos porcos, para que não no sentido, sem proferir uma palavra e
pisoteiem com os pés, voltem e o sem mover a língua. Muitas vezes ­ pois
despedacem" (Mateus, 7, 6). Esta que ninguém era proibido de entrar, nem
sentença é de Jesus, o maior dos havia o costume de avisá­lo quem viria ­
mestres orais, que uma só vez o vimos ler calado e nunca de outro modo,
escreveu umas palavras na e ao cabo de um tempo nos íamos,
terra e não as leu nenhum conjecturando que aquele breve intervalo
homem: ele concedia à si para reparar seu
Isto diziam eles, tentando­ espírito, livre do tumulto dos negócios
o, para que tivessem de que alheios, não queria que o ocupassem com
o acusar. Mas Jesus, outra coisa, talvez receoso de que um
inclinando­se, escrevia com ouvinte, atento às dificuldades do texto,
o dedo na terra. (João, 8, 6) lhe pedisse a explicação de uma
passagem obscura ou quisesse discuti­la
36
com ele, de modo que não poderia ler Algazel dos escolásticos, declarou:
tantos volumes quanto desejava. Eu "O Alcorão se copia em um livro,
entendo que lia desse modo por conservar se pronuncía com a língua, se
a voz, que tomava­a com facilidade. Em recorda com o coração e, sem
todo caso, qualquer que fosse o propósito embargo, perdura no centro de
de tal homem, certamente era bom". Deus e não altera seu caminho
SANTO AGOSTINHO FOI DISCÍPULO pelas folhas escritas nem pelos
DE AMBRÓSIO, BISPO DE MILÃO, entendimentos humanos". George
ATÉ O ANO 384; TREZE ANOS Sale observa que esse incriado
DEPOIS, EM NUMIDIA, REDIGIU Alcorão não é outra coisa que sua
SUAS CONFISSÕES E AINDA O ideia ou seu arquétipo platônico;
INQUIETAVA AQUELE SINGULAR é verossímil que Algazel tenha
ESPETÁCULO: UM HOMEM NUMA recorrido aos arquétipos,
CASA, COM UM LIVRO, LENDO SEM comunicados ao Islã pelas
ARTICULAR AS PALAVRAS.* Epístolas dos Irmãos da Pureza e
Aquele homem passava por Avicena, para justificar a
diretamente do signo da escritura noção da Mãe do Livro.
para a intuição, omitindo o signo

A
sonoro; a estranha arte que se inda mais extravagantes
iniciava, a arte de ler em voz que os muçulmanos foram
baixa, nos traria consequências os judeus. No primeiro
maravilhosas.Conduziria,passados capítulo de sua Bíblia é dita a
muitos anos, ao conceito do livro famosa sentença: "E Deus disse:
como fim, não como instrumento faça­se a luz, e se fez a luz", os
de um fim. (Este conceito místico, cabalistas raciocinaram que a
transladadoàliteratura profana, virtude dessa ordem do
desembocaria nos singulares Senhor procedeu das letras
destinos de Flaubert e de Mallarmé, das palavras. O tratado Sefer
à
de Henry James e de James Joyce). Yetsirah (Livro da Formação),
noção de um Deus que fala escrito na Síria ou na Palestina
com os homens para ordená­ por volta do século VI, revela que
lhes algo ou proibir­lhes algo, JEOVÁ DOS EXÉRCITOS,
se sobrepõe a do Livro DEUS DE ISRAEL,
Absoluto, a de uma Escritura DEUS TODO PODEROSO, criou
Sagrada. Para os muçulmanos, o o universo por meio dos números
ALCORÃO(tambémchamado O Livro, cardinais, que vão de um à dez, e
Al Kitab), não é uma mera obra de das vinte e duas letras do
Deus, como as almas dos homens ou o alfabeto. Que os números são
universo; é um dos atributos de Deus instrumentos ou elementos da
como Sua eternidade ou Sua ira. No Criação é dogma de Pitágoras e
capítulo XIII, lemos que o texto Jâmblico; que as letras também o
original, a Mãe do Livro, está sejam é claro indício do novo culto
depositado no Céu. Maomé Algazali, o da escritura.

* Os comentadores advertem que, naqueles tempos, o costume era ler em


voz alta, para penetrar melhor o sentido, por que não havia sinais de
pontuação,nemsequerdivisãodepalavras, e lia­se em conjunto, para moderar
ou resolver o inconveniente da escassez de códices. 37
O SEGUNDO PARÁGRAFO DO SEGUNDO
CÁPITULO REZA:" VINTE E DUAS LETRAS
FUNDAMENTAIS: DEUS AS DESENHOU,
AS GRAVOU, AS COMBINOU, AS PESOU,
AS PERMUTOU, E COM ELAS PRODUZIU
TUDO O QUE é E TUDO O QUE será ".
LOGO SE REVELA QUE A LETRA TEM
PODER SOBRE O AR, E SOBRE A ÁGUA, E
SOBRE O FOGO, E SOBRE A SABEDORIA, E
SOBRE A PAZ E SOBRE A GRAÇA, E SOBRE O
SONHO, E SOBRE A CóLERA, E COMO (POR
EXEMPLO) A LETRA kaf, QUE TEM PODER
SOBRE A VIDA, SERVIU PARA FORMAR O SOL
NO MUNDO, A QUARTA­FEIRA NO ANO E A
ORELHA ESQUERDA NO CORPO.

Mais longe ainda foram os Galileu Galilei aparece em


cristãos. O pensamento de abundância o conceito do
que a divindade havia universo como livro. A
escrito um livro os levou a segunda seção da Antologia
imaginar que havia escrito dele, publicada há três anos
dois, e que o outro era o por Favaro, na Itália, se
universo. Em princípios do intitula O Livro da Natureza.
século XVII, Francis Bacon Copio o seguinte parágrafo:
declarou em seu Advancement "A filosofia está escrita
of Learning que Deus nos naquele grandíssimo livro que
oferecia dois livros, para que continuamente está aberto
não incidíssemos em erro: o ante nossos olhos (quero dizer,
primeiro é o volume das o univero), mas que não se
Escrituras, que revela Sua entende se antes não se estuda
vontade; o segundo é o volume a língua e se conhece os
das criaturas, que revela Seu caracteres em que está escrito.
poder e que este era a chave A língua desse livro é a
para aquele. Bacon se matemática e os caracteres são
propunha a fazer muito mais triângulos, circulos e outras
que uma metáfora; opinava figuras geométricas".
que o mundo era redutível a Thomas Browne, lá em 1642,
formas essenciais confirmou: "Dois são os livros
(temperaturas, densidades, em que costumo aprender
pesos, cores), que integravam, teologia: a Sagrada Escritura
em número limitado, um e aquele universal e público
abecedarium naturae manuscrito que está patente
(abcdário natural) ou a série para todos os olhos. Quem
de letras com que se escreve o nunca o viu no primeiro, o
texto universal. Nas obras de descobriu no outro" No mesmo
38
parágrafo se lê: "Todas as sentimentos, suas ideias, nem
coisas são artificiais, por que a qual é seu nome verdadeiro,
Natureza é a Arte de Deus". seu imperecível Nome no
Transcorreram duzentos anos registro da Luz... A história é
e o escocês Carlyle, em um imenso texto litúrgico,
diversas partes de sua obra, e onde os jotas e as
particularmente no ensaio pontuações não valem
sobre Cagliostro, superou a menos que os versículos ou
conjectura de Bacon; cápitulos integros, mas a
carimbou que a história importância de um ou de
universal é uma Escritura outro é indeterminável e
Sagrada, que desciframos e está profundamente
escrevemos incertamente, e escondida" (L'âme de
na qual também somos Napóleon, 1912). O mundo,
escritos. Depois, Leon Bloy segundo Mallarmé, existe
escreveu: "Não há na Terra para um livro; segundo Bloy
um só ser humano capaz de somos versículos ou palavras
declarar quem é. Ninguém ou letras de um livro mágico,
sabe o que veio fazer neste e esse livro incessante é a
mundo, à que ou à quem única coisa que há no mundo:
correspondem seus atos, seus é, melhor dizendo, o mundo.

DESENHOS de Misael
Salve planeta!
sou MISA EL REY Eu me
artista de expresso pelo
Ribeirão Preto/SP desenho para
criar emoções
e reflexões
sobre o interno
da minha
mente

39
A ARTE É UMA PROFISSÃO QUE SE ESTENDE ALÉM DAS MÃOS DO ARTISTA

40
o beijo

41
além de
d
e
s
e
n
h
a
r
componho
e sou
beatmaker

Saúdo a todos que conhecerem estas obras e


mando um salve à mais p ra quem se sentir
t e n t a d o a c o n h e c e r o m e u t rabalho
musical @misa.elrey

FÉ PROS DE FÉ

42
D E S A B A F O
Este texto não é para pedir biscoito. Este texto é para desabafar o que eu ainda não
consegui verbalizar. Este texto é sobre o que eu quero gritar. É sobre o que eu quero e
sobre o que eu não quero, e parece que quando a gente escreve é melhor ouvido do que
um grito, e choca menos do que quando a gente chora. Eu quero falar de liberdade. Da
minha liberdade. Quem roubou minha liberdade? Quem me condenou antes mesmo que
eu entendesse o que tava acontecendo quando eu saí do útero da minha mãe então
perceberam que ao invés de um falo eu tinha uma buceta. Porque falar 'falo' não é feio
e falar buceta é palavrão? Porque quando meu irmão grita ou fala palavrão está tudo
bem? Porque não ter um falo faz com que eu tenha que agir assim e assado pra não ser
feia? Quem diz se eu sou feia ou bonita e porque isso é tão importante pra mim? Porque
eu tenho que ser sempre bonita? Porque quando um homem chora é sinal de que ele
deve ser acolhido e quando eu choro tem que julgar se eu tenho ou não motivo pra
chorar? Porque quando um homem erra ele merece um abraço, um passeio, um colo e
uma segunda, terceira, infinitas chances e quando eu erro sou uma vagabunda que não
se deve confiar? Porque uma mãe solo deve esquecer sua sexualidade e ter sua honra
(palavra que abomino) sempre questionada, diariamente, e um pai solo é um herói?
Porque se assumo que tenho libido eu sou ridicularizada e não sou uma mãe digna
para o meu filho que é saudável graças à Deusa que eu tenho que ser? Porque quando
decido me priorizar sou egoísta e quando um homem se prioriza ele é maduro e
admirável? Porque quando um homem sofre ele tem o direito de se recuperar da forma
que precisar e eu tenho que ter um prazo pré determinado pra sofrer senão sou
rancorosa? Porque omens tem o direito de sentir e nem precisar falar sobre seus
sentimentos e eu tenho que justificar o porque de sentir? Quem disse que meu corpo
descoberto é um convite? Quem disse que gostar do meu corpo e mostrá­lo é sinal de
promiscuidade e que isso fala sobre meu caráter? Quem disse que eu preciso ser aceita
e pra isso devo me calar, me cobrir, não beber álcool, não questionar, não desobedecer,
etc...? Eu não quero mais competir com outra mulher, eu não quero mais me comparar,
eu não quero me sentir fraca por sentir, eu não quero mais me explicar, eu não quero
mais ser respeitada só se estiver com um homem do lado, eu não quero mais ver as
minhas abrindo mão de seus talentos por conta de seus des­companheiros. Você que
inventou a prisão que é ser mulher, tenha a fineza de desinventar. Eu não quero
mais competir com outra mulher, eu não quero mais me comparar, eu não
quero me sentir fraca por sentir, eu não quero mais me explicar, eu não
quero mais ser respeitada só se estiver com um homem do lado, eu não quero
mais ver as minhas abrindo mão de seus talentos por conta de seus des-
companheiros. Vc que inventou a prisão que é ser mulher, tenha a fineza de
desinventar. Não sou menos capaz de nada por ser mulher e não preciso provar nada
pra ninguém. Me deixa em paz, me deixa viver, me deixa sentir, me deixa gozar. Não é
um pedido de permissão. Eu não consigo mais nadar a favor dessa corrente. Nadar
contra a corrente é mais cansativo e desafiador, mas deixa meus braços mais fortes.
Não me impeça de nadar e nem queira me ensinar a direção que devo ir. Quem é você
pra me dizer o que devo fazer, se você também ainda não chegou no fim da trajetória?
Se quiser vir junto venha! Gosto de companhia! Se não quiser boa sorte no seu trajeto,
se parar na minha frente eu vou ter que te colocar um pouco pro lado e continuar meu
caminho. Sou revoltada porque me deixaram com sangue nos olhos de tanto que
43
apanhei e me debati nas guerras. Me enjaularam, mas o instinto da pantera é correr,
caçar e sobreviver. Se ninguém me solta eu quebro a jaula e fujo! Respeito é bom mas é
só pra quem tem! A fera tá ferida mas não morreu. E todo mundo sabe que fera ferida
tende à atacar. Deixa a fera correr ou não reclame do ataque! No mais vai todo mundo se
foder gostoso que é melhor!

ZAFIRAH ALIMAH HAFSA

ANA RAIZ

44
PRÉ ­ CONCEPÇÕES QUEBRADAS
Sempre fui obstinada em algumas concepções que carrego. Houve sempre respeito à
opinião alheia, mas o orgulho de argumentar, de defender pontos de vista, sempre foram
marcantes em minhas conversas. Quebrar preconceitos foi um exercício que tive que
praticar muito e o valor que dava aos aprendizados sobre o movimento feminista estava
muito baseado no conhecimento que minhas amigas tinham do assunto. Por isso é que
sempre que discuto ou reflito sobre alguns aspectos do feminino ou do feminismo, sinto ser
necessário empregar bons argumentos, para também facilitar a comunicação, o acesso à
informação, e para não agir superficialmente como eu fazia, quando me baseava em
preconceitos. *Acreditava que A ROUPA MOTIVA ASSÉDIOS. Agora entendo, e afirmo
categoricamente, que nada justifica o acesso ao corpo de outra pessoa sem permissão. Soa
óbvio, mas para algumas pessoas, como para mim antes, existem justificativas... A única
pessoa que detém poder sobre o corpo é quem é done do corpo. A pessoa que porta o corpo,
que carrega e sente o corpo. É simples, independente de qualquer outro fator externo, como
roupa, diálogo, olhares. Sem permissão é crime. Repare que falei pessoa, mas quem são
mais afligidas por esses abusos são mulheres. Em diversas culturas, orientais e ocidentais,
o corpo feminino é objeto que não deve ser descuidado, pois algum homem no meio do
caminho pode acreditar ter o poder de tomar posse. Temos que lutar todos os dias para ter

45
o direito básico de existir em nossas peles. *Acreditava que O ABORTO É CRIME. E isso
também está relacionado com não ser dona do próprio corpo. Olha que escrevo isto
grávida de oito meses e optei por manter a gestação, estou feliz embora inesperadamente
mãe. Pessoalmente tenho uma série de receios sobre procedimentos abortivos, mas não
consigo aceitar que o Estado ou outras pessoas decidam sobre o corpo de uma mulher.
Como bióloga entendo que até determinado momento da gestação não há
desenvolvimento de uma forma de vida que sofra com a agressividade do procedimento.
Mas o aspecto mais agravante desse tema é que a mulher que sofre com o aborto é a
mulher pobre. Crime ou não, mulheres com situação financeira favorável têm a
possibilidade de escolher entre realizar ou não o procedimento. Mulheres pobres que
realizam o procedimento morrem ou adquirem sequelas graves. Outro aspecto que me
incomoda profundamente sobre o tema é a falsa moralidade. Sempre me revolto quando
alguém afirma que em caso de estupro justifica realizar aborto, mas se a mulher quis ter
relações sexuais sem proteção, então tem que arcar com as consequências. Veja bem, isso
é punir uma mulher pela vivência sexual, algo que nada tem a ver com a proteção à vida.
A grande questão é: o aborto sempre vai existir, é livre para mulheres ricas e é sentença
para mulheres pobres. Hoje defendo a descriminalização e a promoção do aborto no SUS
como direito da mulher brasileira de decidir sobre manter ou não uma gestação com
segurança. Me dá um desespero lembrar que tinha esses pré­conceitos. Mudei
profundamente minha percepção sobre esses aspectos da vida. Pra começar, tinha muitos
pudores com meu corpo, inclusive para conhecer minha própria anatomia. Acreditava
que mulheres que saíam com vários caras perdiam valor. A virgindade era algo a ser
valorizado, algo como um aspecto virtuoso. Hoje vejo que não tem o menor sentido, ainda
mais quando escrevo. Hoje sei que somos donas de nossos corpos e prazeres. Que
decidimos quantes e quais parceires podemos ter ao longo de nossa vida e que isso nada
tem a ver tipo de pessoa que somos, com o nosso caráter, personalidade ou quais valores
temos como nossos. Hoje percebo que nenhum comportamento nesse aspecto me diz algo
sobre o que as pessoas são, que desejos são pessoais e que podemos realizar o que for,
desde que com consentimento. A liberdade sexual deve ser bem­vista, bem como o
autoconhecimento. Devemos conhecer e curtir nossos corpos para expressar nossa
sexualidade e saber expor aos nossos parceiros o que desejamos, com respeito com o
outro e com nós mesmas. Essa visão me permitiu entender como funciona minha
sexualidade e também mudou minha visão predominantemente machista sobre questões
sexuais. Por exemplo, acreditar que homens sentem prazer com mais facilidade e que é
natural não ficar satisfeita. Hoje percebo quando alguém está sendo egoísta. Entender
quando não quero ou quando quero muito. Nos abster desse conhecimento básico sobre
nosso corpo faz com que nosso comportamento seja repleto de auto­sabotagem e torna
nossas relações muito mais uma doação que troca. Nesse tema o que posso aconselhar é
que possamos nos conhecer, nos respeitar, expressar os desejos que temos e também os
que não temos, e quando não queremos

ANA CAROLINA DE SOUZA BRITO

46
N U D E Z
Jenipabu um de abril de 2021
os cotovelos arranhados a pele fina cansada de sustentar os sonos desengonçados da
viagem. voltei mas a alma ainda perambula em outros mundos, carrega malas e
mochilas pesadas em sonhos exaustivos, alma abriga­se em lares desconhecidos de
gente amigável, caminha à beira de estradas, é mais livre que o meu corpo que repousa
já em porto natal, oco e confuso pelo conforto estranho de estar nunca em casa,
estacionária.
um jejum, uma prece desmaterial chamamento à alma andeja: vem que já recontei os
hematomas pelo corpo, me ajuda a lembrar as coordenadas ocasiões destas lembranças
da estrada, vem com o fio da meada da vida que levava e por tão pouco andar e por tão
muito viver já e´ foco de outra olhada, vem que me distraí e atravessei rios e mares, fiz
pontes nos ares, refiz afetos terrestres, visitei novidades e atravessei tantos conceitos,
tantas paisagens que agora preciso de alma pra retomar, retocar as perspectivas que
antes projetava; anda que a vida é constructo e autômata, não concluo materialidades
experimentáveis, liberdades fixas.
Jeni dez de abril de 2021
dias poeirentos, tudo fica mais desorganizado. me olho no espelho e uma vez mais não
tenho ideia do que pensar, não reconheço a bela figura nem as linhas harmoniosas
deste rosto misto, dourado, maduro, pós­moderno... não! contemporâneo de
desidentificação. tanta mistura demora pra se apreciar; antes desconhecia o reflexo
feio, agora tampouco sei quem é a bela imagem que sendo bela já vale, vale a confusão
do não familiar. porque estás triste belo caramelo? saudade. e a incerteza toda da vida,
a conta magricela e de bolsos furados. me entristece não saber dançar graciosamente
pra varrer a poeira do velho costume de estar sempre partindo de onde não pertenço
pra onde não sei o que me espera
Baía formosa vinteoito de abril de 2021
em 2020 sobrava eu pro tanto de vida que eu tinha pra dar conta, este ano faltam eus
pra preencher a quantidade de papéis em que me meti. ano passado foi profundo, este é
ano de intensidades (inauditas)
ontem tive minha primeira aula de surf e percebi na hora que a posição em que escrevo
estas letras preguiçosas é como a de deitar na prancha, de remar. hoje foi a segunda e
me doem as costelas e o pescoço (: pesquoço :) tropeçei na poesia toda do leminski. o
pouco que li me dá uma coceirinha boa em meus símbolos; vamos ver como me afeta a
realidade escrita
*
a onda é uma coisa viva, me propulsiona com uma força familiarmente orgãnica, um
bicho onda grandalhona, forçuda e elegante como tudo que é naturalmente grande. há
conexão sensível, e perceptível quando não há
a consciência do mar tem estado acessível na minha realidade, ou os deuses do mar
tem sido benevolentes pra mim e eu sou grata pela experiência, que experimentar é o
praquê serve.
experimento descobrir o que tem logo depois daquela dificuldade acolá, mais ali, aquela
coisa fácil de evitar e achei que vale a experiência, tem valído aprender tanto e
enlouquecer um tanto mais, numa onda dessas de perder o referencial de tempo, e às
vezes o de 'pra cima e pra baixo, certo e errado', desaprender o dual 47
é uma ilha, dona formiga. you trapped in it. look around though is it nice? is there
beauty? tenho conversado com a loucura, ou com a incerteza (não estou certa) e parece
ser em mim que a desidentificação é uma programação possível em camadas infinitas,
olho para as minhas dores e dificuldades com um interese curioso e excitado pelo
enredo. an acquired taste. escuto meu corpo falar o que lhe brota com a verdade da
espontaneidade treinada e leio lhe os símbolos (des)codificando ao mesmo tempo a
realidade de que sou prisma [digo prisma espontaneamente, pois gosto de palavras
iridescentes]
Baía formosa trinta de janeiro de 2021
trago numa caixa de ar dolorido de um vazio, um coração nunca preenchido
no grande ar de fora a euforia fatal da dança final. danço nu no alto de um penhasco
entardecido de dourado, danço alto no penhasco nu em vento ensandecido; o vento me
atravessa toda a nudez, atravessa tudo e preenche afinal o alívio, a soltura, a liberdade
última, a morte breve de liberdades vazias
enfim acaba o insignificante significado não atribuído. quem perde tempo inventando
tudo isto? o tempo não se perde, o tempo é tudo que se tem pra atribuir significados e
dançar o tempo todo ou somente de tempos em tempos
dançar junto, mesmo que seja pra trocar o dolorido niilismo pelo afiado valor do amor, o
peito cheio de sangue engolfante de afetos molhados, viscosas biologias fenotípias
específicas de rechear solidões pesadas de tão ocas
já morri em poesia, eu vim amar

GEYSA SOLARES

48
EU NÃO POSSO FAZER NADA
(...) Sei que estou adiando a história e que
brinco de bola sem a bola. O fato é um ato?
Juro que este livro é feito sem palavras.
É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio.
Este livro é uma pergunta.

A eternidade é o estado das coisas neste momento. A palavra é fruto da palavra. Existir
não é lógico. Na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade. Tão pouco sou, tão
pouco é, tão pouco foi, tão pouco será: é apenas tudo: é só o vazio que é fato e é ato tanto
o quanto o é a plenitude. E se assim ressoam­se as primeiras palavras estes fonemas as
primeiras badaladas da reflexão é que a forma é conteúdo e não há outra maneira de
analisar o livro em questão senão com a palavra nua, se não com a pergunta. Qual é o
peso da luz?
A Hora da Estrela (1977) é um daqueles livros onde quem lê pode exergar plenamente,
ou ao menos entrevesar, de leve, a marca indelével de quem o escreveu. Mesmo que a
escrivinhação se estruture em primeira pessoa e no masculino, Clarice Lispector não
esconde a sua voz. Ela grita alto pelos ventos sem tempo sobre os mistérios da vida e
da arte. A arte considerada em si mesma, como movimento, progressão, ato e fato
criador. Como começar pelo início se as coisas acontecem antes de acontecer? Pois não se
começa pelo início e nem pelo fim, se começa por começar, por assim dizer,
simplesmente, pela urgência das palavras que precisam ser ditas. E serão, se não aqui
como agora, por outras gentes.
Portanto, abordarei neste rascunho sentimental poucos, ou quase nenhum, pormenor
do enredo da história de Macabéa. Apenas aqueles fatos­pedras que, a meu ver,
contribuem para a reflexão aqui tecida, sem destino, sem hora e com ciência. Pois
pensar é um ato e sentir é um fato.
O livro, esse objeto­fato transformado em ato material a partir da cabeça quente da
escritora, escrito com o corpo todo, com a carne, com as veias e ossos, com a vida inteira
afluindo no instante mesmo do expressar, é uma obra sobretudo "coletiva" e
"existencialista", digamos assim, é um apelo, levado às ultimas consequências, em
nome da busca de cada ser humano por sua força interior, por sua existência. Por sua
alquimia de alma.
As coisas são de tal jeito, existem de tal forma, acontecem por isso e por aquilo. Mas há
de ser assim para sempre? Ou melhor, há de ser assim agora? Neste exato momento­
instante­luz?
Será esta história um coágulo de Clarice? Uma espécie de carpintaria metafísica?
"Quem sou eu?" provoca necessidade. Quem se indaga é incompleto. Quem se indaga se
transforma, transgressoa, se movimenta, age, acontece. Será que o livro não é
simplesmente um silêncio plangentemente musical que se ressoou? Não é algo
propagado em carcaça­papel além dos limites da própria obra e ainda da pessoa que a
escreveu?
Clarice anota: as palavras emanam um sentido secreto que ultrapassa as palavras e
frases.
49
A autora nos brinda com a nudez das palavras e da Criação. Nos demonstra a
fugacidade da existência, a continuidade da 'vida', a ilusão que pode ser o tempo
considerado em si mesmo e a força, que este mesmo tempo tem, de destruir ou de
perpetuar os fatos acontecidos. Ela nos diz que os fatos são pedras duras das quais não
podemos fugir. Restando claro, ainda que subentendido, e aqui posso estar equivocada,
que ela fala da morte. O fim. Fim de quê? Aliás, o livro inteiro pode ser considerado
uma reflexão sobre a vida, a morte e o tempo. Às vezes nega­se e às vezes se enaltece
todos os três conceitos.
Ora, é claro que a história é verdadeira embora inventada e como que estou escrevendo
na hora mesmo em que sou lido e, como pode­se notar e anotar, pelos trechos
mencionados, A Hora da Estrela, este livro de tantos nomes possíveis, é um livro repleto
de contradições, e absurdos, assim como o é e sempre foi a Natureza Humana. Eu me
pergunto se isto foi minuciosamente planejado ou se a escritora simplesmente se
entregou ao fato de escrever. Fato é que ela não se separa da história, ela é a história.
No desenvolvimento da escrita ela transmuta constantemente sua perspectiva
enquanto criadora. Hora conta a história, hora reflete filosóficamente sobre o ato de
contar e o fato de existir. Eu me me pergunto se contar é uma forma de existir, forte
como o ser.
Em uma das páginas da obra a narradora diz que limita­se, humilde e simplesmente, a
contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Essa moça é
Macabéa. Nordestina de Alagoas, virgem e datilógrafa, ela é quase sempre tristemente
adjetivada. Diz­se que não faz falta a ninguém, que ninguém a olha na rua, que é
inócua e magérrima. Mas diz­se também que ela vive. Que ela não é só uma
personagem enfiada em uma estória. Que ela tem movimento e existência fora das
páginas. Que ela é. Pois as palavras se prolongam, sempre e sempre, para além do
espaço-ato em que foram criadas. Não é à toa que no fim da história Macabéa, após
consultar uma cartomante, passa a se sentir grávida de futuro. Ela toma consciência
total da sua existência, assim, instantaneamente. Uma estrela de mil pontas. E então,
morre.
À história, nos diz Clarice, segue-se o silêncio e a chuva caindo. Tais palavras evocam
uma atmosfera etérea de perdição incerta, mas patente, essencial, inevitável. O
movimento é espírito. O tempo é movimento. O corpo é espírito. O livro.
O livro termina da mesma forma que começou. Como se todas as palavras acontecidas
fossem um breve soluço (ou coágulo) a transitar em relação constante com o movimento
da vida, que continua, perene, insofismável, independentemente do que se escreva,
pense, sinta ou fale. Independentemente da existência de cada ser. Mesmo assim, cada
ser deve lutar por sua consciência e para que todos possam fazer, sim, existir as suas. É
que tudo no mundo começou com um sim. Sim. E faz tempo de morangos. Sim. Pra
tentar entender esta obra, a fundo, vamos terminar pelo começo.
Ora, já na dedicatória pode­se encontrar a cerne vital da obra. Nela, a autora diz se
dedicar à seu sangue rubro­escarlate, às criaturas mitológicas que habitam sua vida, à
saudade do que passou, à toda uma profusão de musicalidades que afetam­a
metafisicamente e, segundo nos conta, a permitem concretizar e confluir todo o instante
em si mesma, em seu "eu", seu 'ser'. Logo em seguida ela nega que seu "eu" exista
apenas em si mesmo ou somente no instante de sua criação: o seu "eu" é "vós". A
escritora necessita do outro, ou, melhor dizendo, o seu "eu" se projeta e se estende, até
esbarras nos outros "eus". Como agora, quando (e onde) refletimos sobre estas palavras
50
impressas há 44 anos e, em simbiose cultural atemporal, fazemos do eu de Clarice
vós(z) ativa.
Nessa breve e gigante dedicatória Clarice nos convida a, pasmem, terminar o livro por
ela. Clarice nos requisita uma resposta para sua inacabada escrivinhação. Mas, talvez,
não haja resposta alguma. Só a inexatidão do futuro em qualquer tempo e em qualquer
lugar. Talvez a resposta seja uma pergunta. E a única certeza que podemos ter são as
palavras, a continuidade material, mas não necessariamente objetiva, das vidas que
passaram. Podemos ter certeza de que a existência se perpetua por meio da palavra.
A Hora da Estrela foi o último livro que Clarice Lispector escreveu na vida, em 1977.
Ela morreu junto com Macabéa. No entanto, elas vivem elas vivem elas, pela palavra,
na vida do som. Aqui e ainda no futuro. A morte é um encontro consigo. Afinal, qual o
sentido? Qual é o significado dessa criação que chamamos livro? Há resposta, existem
respostas reais, para os questionamentos apresentados na obra? Peço licença à quem lê
pra requisitar a ajuda de Clarice em completar estas inacabadas palavras, desde lá, até
aqui, e para frente: Basta descobrir a verdade que ela logo já não é mais: passou o
momento. Pergunto: o que é? Resposta: não é.

[as frases em itálico são citações diretas de A Hora da Estrela]

TERESA QUADROS

CIRCULADÔ DE FULÔ (leia em voz alt ) a


circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não
posso guiá eviva quem já meu deu circuladô de fulô e ainda quem falta me
dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo
e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para
outros não existia aquela música não podia porque não podia popular
aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não
tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais
megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão
um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como
um nervo tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa
da mão do sol enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde
a boa forma é magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro
malcozido no choco do desgôsto até que os outros vomitem os seus pratos
plásticos de bordados rebordos estilo império para a megera miséria pois
isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo
engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas na malícia da
maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a
travessia azeitava o eixo do sol pois não tinha serventia metáfora pura ou
quase o povo é o melhor artífice no seu martelo galopado no crivo do
impossível no vivo do inviável no crisol do incrível do seu galope
martelado e azeite e eixo do sol mas aquele fio aquele fio aquele gumefio
51
azucrinado dentedoendo como um fio demente plangendo seu viúvo
desacorde num ruivo brasa de uivo esfaima circuladô de fulô de fulô
circuladô de fulôôô porque eu não posso guiá veja este livro material de
consumo este ao deus ao demodarálivro que eu arrumo e desarrumo
que eu uno e desuno vagagem de vagamundo na virada do mundo que
deus que demo te guie então porque eu não posso não ouso não pouso não
troço não toco não troco senão nos meus miúdos nos meus réis nos meus
anéis nos meus dez nos meus menos nos meus nadas nas minhas penas
nas antenas nas galenas nessas ninhas mais pequenas chamadas de
ninharias como veremos verbenas açúcares açucenas ou circunstâncias
somenas tudo isso eu sei não conta tudo isso desaponta não sei mas ouça
como canta louve como conta prove como dança e não peça que eu te guie
não peça que te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me
deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no
fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá
que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo
torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois
o mestre que me ensinou já não dá ensinamento bagagem de miramundo
na miragem do segundo que pelo avesso fui destro sendo avesso pelo
sestro não guio porque não guio porque não posso guiá e não me peça
memento mas more no meu momento desmande meu mandamento e não
fie desafie e não confie desfie que pelo sim pelo não para mim prefiro o
não no senão do sim ponha o não no im de mim ponha o não o não o não
será tua demão

HAROLDO DE CAMPOS

V
Ê
N
U
S

@misa.elrey
52
A HISTÓRIA DA VIAGEM DE LSD
DE MICHEL FOUCAULT
por Mitchell Dean & Daniel Zamora
[tradução de Tereza Uirapuru]

o filosofo francês queimou e reescreveu muito da


“História da Sexualidade” como resultado das
revelações proporcionadas pelo ácido lisérgico
Na primavera de 1975, Ele ficou tão tomado pela
Michel Foucault começava a atmosfera libertária de São
reivindicar seu posto como Francisco que ponderou
grande intelectual francês do emigrar e virar californiano.
século vinte. Ele estava Parece então que Foucault se
prestes a publicar o primeiro apaixonou pela Califórnia. Foi
volume do trabalho que lá que o austero pensador
agarraria esse rótulo para si, anti­humanista dos anos 60,
“História da Sexualidade”. que havia proclamado a
De saco cheio da conformista “morte do homem” em aberta
e enrustida cultura francesa hostilidade à filosofia de
da época, ele procuraria liberdade de Jean Paul Sartre,
novamente refúgio em outros experimentaria, durante a
lugares, continuando um década final da sua vida,
padrão de sua vida adulta novas formas de relatar aos
que o havia levado para a outros e se reinventar, nos
Suécia, Polônia e depois clubes de São Francisco. É
Tunísia, onde viveu maio de dito que foi lá também que ele
68. 53
se tornou o “último homem” a no fim dos anos 60.
tomar LSD (ácido lisérgico). As suas qualidades de
Foucault descreveu o evento alteração da percepção foram
como uma “experiência concebidas na época em parte
grandiosa, uma das mais como profunda autoanálise e
importantes da minha vida.” psicoterapia e em parte como
Ainda que o filósofo francês só experiência religiosa intensa.
muito tarde na vida tenha feito Timothy Leary fundaria até
experimentos com mesmo uma igreja, a “League
alucinógenos, enquanto muitos for Spiritual Discovery” (liga
outros depois “dropariam para a descoberta espiritual)
ácido” (assim eram chamadas que tinha o LSD como
as “viagens” pessoais desse sacramento, e o próprio
tipo), seu apogeu cultural Foucault concorda que a
aconteceu no fim dos anos 60, experiência foi “mística”,
e, nesse sentido, Foucault foi o oferecendo à ele “visões de uma
“último homem” intelectual nova vida” e “uma perspectiva
conhecido da época a tomar renovada” de si mesmo.
LSD na primeira onda coletiva Alguns meses depois, em
do seu uso como uma uma carta à Simeon Wade, o
substância de expansão da jovem acólito que o havia
consciência. Ele havia sido convidado à tomar a
precedido por Timothy Leary, substância,Foucault escreveu
Aldous Huxley, Allen Ginsberg que a experiência o havia
e muites outres. Dropar ácido levado a reescrever
era o que fazia a juventude que inteiramente o primeiro
experenciava a contracultura volume de “História da
no fim dos anos 60 na Sexualidade”. Ele deixou de
California. Entre 1964 e 1966, lado centenas de páginas já
o escritor Ken Kesey e sua prontas, jogou o segundo
trupe “Merry Pranksters” volume inteiro no fogo e
viajaram pelos Estados Unidos então abandonou os
em um ônibus psicodélico, rascunhos do trabalho de
parando regularmente pra múltiplos volumes. Com
organizar festas de LSD. Estes exceção do primeiro volume,
“testes com ácido” seriam o que se tornou um manifesto
salto para o surgir da Geração para o emergente movimento
Beat e do movimento hippie queer na Califórnia e em
nos anos seguintes. Sem outros lugares, nenhum dos
dúvida o LSD e outros outros volumes foi publicado
psicodélicos continuaram sendo em sua forma inicial. Foucault
usados, com variações e às foi até a “Claremont Graduate
vezes prevalências, mas nunca School” no sul da Califórnia
mais o ácido lisérgico, e a durante a primeira das várias
experiência trazida por ele, visitas de pesquisa que fez à
definiu cultura, arte, moda e Berkeley. Dada a natureza
estética num geral como o fez relativamente obscura da insti­
54
tuição, sua presença só pode Richard Strauss, Stockhausen
dever­se à insistência de Wade, e Pierre Boulez. Foucault
o autor de uma fanzine tomou ácido nos espasmos
independente chamada Chez finais de um período em que o
Foucault. LSD era considerado “exercício
espiritual”, e que logo foi
substituído pelo
empreendedorismo movido à
cocaína das discos e boates do
fim dos anos 70.
O efeito em Foucault foi
profundo. Ele inclusive
alteraria radicalmente a
direção de suas pesquisas
Foucault é retratado lá com nos anos seguintes.
seu suéter branco e óculos de Quando ele finalmente
sol branco de aros amplos que o publicou o segundo e o terceiro
faziam parecer uma mistura de volumes da História da
Kojak com Elton John. Sexualidade quase oito anos
Acompanhado por seu amor e depois, o projeto colocou como
companheiro, pianista Michael central as “técnicas do self” que
Stoneman, Wade levaria ele havia descoberto na ética
Foucault à uma jornada que da grécia clássica e da roma
culminou na viagem de ácido antiga. Ao invés de estudar
em “Zabriskie Point”, no a sexualidade através dos
“Death Valley” (Vale da Morte), paradoxos de repressão e
os remanescentes desérticos de confissão herdados do
um lago que secou há 5 milhões cristianismo, ele insere na
de anos atrás. O celebrado reflexão as múltiplas e
cineasta italiano, M. Antonioni, diferentes maneiras que os
havia começado a filmar ali seu humanos podem ver a si
clássico californiano, Zabriskie mesmos, governar a si
Point, em 1968, tendo como mesmas, e como buscam os
pano de fundo os protestos des humanos moderar, controlar
estudantes, o movimento dos ou liberar, dependendo do
Panteras Negras, cultura caso, o que é considerado
psicodélica e liberação sexual. como prazeres, desejos ou
Seu filme incluía uma orgia no tentações da carne. O que
local. Em maio de 1975, chamam “sexualidade” não
podemos supor que era menos seria mais vista como uma
um evento de vanguarda verdade profunda a ser
estética que um clichê hippie descoberta interiormente ou
dropar ácido lá. Ao menos o trio inconscientemente, como Freud
encontrou uma trilha sonora acreditava. é simplesmente
mais sofisticada para seus mais um caminho em que
devaneios que Antonioni, nos reinventamos como seres
substituindo Pink Floyd e humanos em relação com o
Grateful Dead por fitas de erotismo, o lar e a família, o dia 55
Nós não devemos libertar nossa sexualidade
mas libertar a nós mesmos de todo esse sistema
confessional que fez surgir essa libertação baseada
na sexualidade.
a dia e a ética. Dada a sua
relatividade histórica, e suas O escândalo do trabalho de
relações com a cultura Foucault sobre prisões (Vigiar
confessional do cristianismo e Punir, 1975), por exemplo, foi
medieval, a sexualidade era a sua substituição da ideia de
algo que os antigos podiam nos que elas [prisões] podem
ajudar a escapar, ou, como deformar e brutalizar o sujeito
Foucault com frequência humano, pela alegação de que
pontuava, algo a partir do em sua busca por maior
qual podemos pelo menos humanismo elas fabricavam os
“pensar de outra forma”. próprios sujeitos que
Nós não devemos libertar dominavam e subjugavam.
nossa sexualidade mas libertar Depois de suas experiências na
a nós mesmos de todo esse California e sua exposição ao
sistema confessional que fez “culto californiano do self”,
surgir essa libertação baseada entretanto, o “subject” de
na sexualidade. Foucault se tornou livre, um
Não seria injusto dizer que agente ativo capaz de fazer­se
durante os anos 60 Foucault através de exercícios físicos e
participou da obsessão de um espirituais, e com o potencial
certo tipo de filosofia francesa para a autotransformação
em tirar fora o “subject” [em radical por meio das
inglês “sujeito” mas também experiências extremas. “Fazer
“objeto” de pesquisa ou do ‘princípio do prazer’ um
“assunto”], um termo estranho ‘princípio de realidade’ é um
que é tanto técnico quanto problema ético e político a ser
obscuro. Rejeitar o sujeito (o resolvido na atualidade”,
“self”), anunciar sua morte ou a escreveu Foucault para Wade.
morte da autoria, se tornou Nesse sentido, engajar­se em
coisa comum no discurso e na aventuras eróticas,
teoria literária de Foucault, experimentos psicotrópicos e
Barthes, Derrida e companhia. na “invenção” de novos estilos
Nos anos 70, o “sujeito” foi de vida tornou possível a
explicado não apenas como um transgressão do sujeito
tipo de ficção dos padronizado produzido pelas
pronunciamentos das ciências instituições do moderno
sociais e comportamentais, mas “welfare state”. Pra colocar isto
como resultado da aplicação de em termos de neoliberais
tais pseudociências dentro do estadunidenses, Foucault fazia
que estadunidenses como a leitura na época: o
Erving Goffman chamavam de “empreender do ‘self ’” estava
“instituições totais” do asilo; o tendendo a colocar sua própria
hospital, a escola e, acima de identidade em risco no ato da
56 todas, a prisão. “self­criação”.
Foucault e Stoneman no 'Vale da Morte'

publicado originalmente em
Imagens do Inconsciente
(1981)
por Nise da Silveira
O atelier de pintura era inicialmente apenas um setor de atividade
entre vários outros setores da Terapêutica Ocupacional, seção que estava
sob minha responsabilidade no Centro Psiquiátrico Pedro II (Rio de
Janeiro). Mas aconteceu que desenho e pintura espontâneos revelaram­
se de tão grande interesse científico e artístico que esse atelier cedo
adquiriu posição especial.
Era surpreendente verificar a existência de uma pulsão
configuradora de imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade
estava desagregada. Apesar de nunca haverem pintado antes da doença,
muitos dos frequentadores do atelier, todos esquizofrênicos,
manifestavam intensa exaltação da criatividade imaginária, que
resultava na produção de pinturas em número incrivelmente abundante,
num contraste com a atividade reduzida de seus autores fora do atelier,
quando não tinham mais nas mãos os pincéis.
Que acontecia?
57
Carlos Pertuis, década de 50, óleo sobre tela

Nas palavras de Fernando estaria possivelmente a resposta:


"Mudei para o mundo das imagens. Mudou a alma para outra coisa. As
imagens tomam a alma da pessoa".
Se "as imagens tomam a alma da pessoa" entende­se a necessidade
de destacá­las tanto quanto possível do roldão invasor. Pintar seria agir.
Seria um método de ação adequado para defesa contra a inundação pelos
conteúdos do inconsciente.
O atelier de pintura me fez compreender que a principal função
das atividades na Terapêutica Ocupacional seria criar oportunidade
para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores
encontrassem forma de expressão. Numa segunda etapa viriam as
preocupações com a ressocialização.
O atelier de pintura não cessa de levantar problemas, questões
difíceis que obrigam o médico à refletir, à estudar.
Aquilo que feriu a atenção logo de início foi a alta qualidade de
muitas das pinturas, desenhos e modelagens. Eu me surpreendia. (...)
Mario Pedrosa, no Correio da Manhã de 07/02/1947, escrevia
lucidamente: "Uma das funções mais poderosas da arte é a revelação do
inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado
anormal. [...] As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem
simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede
que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas,
sedutoras, dramáticas, vivas ou belas enfim constituindo em si
verdadeiras obras de arte".
Será forçoso reconhecer que os críticos de arte mostraram­se
surpreendentemente mais atentos ao fenômeno da produção plástica dos
58 esquizofrênicos que os psiquiatras brasileiros.
Aliás, no mundo inteiro, os psiquiatras em sua grande maioria
recusam a aceitação do valor artístico das pinturas e desenhos dos
doentes mentais. Mantêm­se irredutíveis, repetindo sempre os velhos
chavões "arte psicótica", "arte psicopatológica", arraigados à conceitos
pré­formados da psiquiatria, insistentes em procurar nessas pinturas
somente reflexos de sintomas e de ruína psíquica.

Adelina Gomes, década de 60, óleo sobre papel

Fora da área da psiquiatria é que se desenvolveu o movimento


contrário à discriminação das expressões de arte não condicionadas por
cânones culturais. Conhecedores de arte afirmavam a existência de
valores estéticos em obras de esquizofrênicos. Leon Degand, crítico de
arte, primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, veio ao
hospital escolher pessoalmente desenhos, pinturas e modelagens, do
ponto de vista da qualidade artística, para apresentá­las naquele museu,
na exposição 9 Artistas de Engenho de Dentro (outubro de 1949). Mario
Pedrosa, a partir do encontro com desenhos e pinturas de internados no
Centro Psiquiátrico, disse: "Os artistas de Engenho de Dentro superam
qualquer respeito à convenções acadêmicas estabelecidas e à quaisquer
rotinas da visão naturalista e fotográfica. Em nenhum deles as receitas
de escola são levadas em consideração".
Tudo isso me alegrava profundamente. Mas sempre me mantive
discreta quanto a pronunciamentos sobre a qualidade das criações
plásticas dos doentes. Isso competia aos conhecedores de arte. O que me
cabia era estudar os problemas científicos levantados por essas criações.
E certamente era um problema científico à investigar o fato de que
certos esquizofrênicos, inclusive alguns ditos "crônicos", exprimissem
suas vivências através de formas que os conhecedores de arte
admiravam. E, acima de tudo, eu me sentia no dever de ressaltar o
aspecto humano desse fenômeno. Foi esse o sentido do prefácio que
escrevi para o catálogo da exposição do Museu de Arte Moderna de São
Paulo, do qual citarei trechos:
"[...] os loucos são considerados comumente seres embrutecidos e
absurdos. Custará admitir que indivíduos assim rotulados em hospícios
59
sejam capazes de realizar alguma coisa comparável às criações de
legítimos artistas ­ que se afirmem justo no domínio da arte, a mais alta
atividade humana. [...] Antes que se procurasse entendê­los, concluiu­se
que tinham a afetividade embotada e a inteligência em ruínas. Hoje está
demonstrado que mesmo após longos anos de doença a inteligência pode
conservar­se intacta e a sensibilidade vivíssima [...] Os hospitais, porém,
continuam seguindo rotina de raízes em concepções já superadas.
Cumpre reformá­los. [...] Seja a exposição agora apresentada uma
mensagem de apelo neste sentido, dirigida a todos que aqui vieram e
participaram intimamente do encantamento de formas e de cores
criadas por seres humanos encerrados nos tristes lugares que são os
hospitais para alienados".

Emygdio de Barros, década de 70, grafite sobre papel

Fernando Diniz, década de 50, óleo sobre papel


60
Fernando Diniz, década de 50, óleo sobre tela

Os psiquiatras interessados na produção plástica das pessoas com


diagnóstico de esquizofrenia desde muito tempo notaram nessa produção
a quase ausência da figura humana e mesmo das formas orgânicas em
geral. Predominavam a abstração, a estilização, o geometrismo. Estas
características foram atribuídas à um processo regressivo que iria da
desumanização, não figurativismo, estilização, geometrismo, até a
dissolução da realidade. A expressão plástica, nesta sequência, estaria
revelando continuado esfriamento da afetividade, desligamento cada vez
maior do mundo real. mas eu não examinava as
pinturas dos doentes que
frequentavam o atelier
sentada no meu gabinete,
eu os via pintar
via suas faces crispadas, via o
ímpeto que movia suas mãos
A impressão que eu tinha era estarem eles vivenciando "estados do ser
inumeráveis e cada vez mais perigosos" (A.Artaud). Não me era possível
aceitar a opinião estabelecida: pintura não figurativa significaria
embotamento da afetividade, tendência à dissolução do real.
Por um feliz acaso encontrei esclarecimento para este desafiante
problema no livro Abstração e Natureza, do historiador de arte Wilhelm
Worringer. Ele sustenta que o sentimento estético move­se entre dois
polos: a necessidade de empatia e a necessidade de abstração."Do mesmo
61
modo que a necessidade de empatia, como pré­suposição da experiência
estética, encontra satisfação na beleza do mundo orgânico, a necessidade
de abstração encontra beleza no mundo inorgânico, no cristalino ou, em
termos gerais, nas leis abstratas". Uma ou outra destas tendências
básicas será mobilizada segundo as relações da pessoa com o cosmos. Se
estas relações são confiantes, o prazer estético será gozo de si mesmo
objetivado, será empatia com o objeto.
Mas, se o cosmos infunde medo, se os fenômenos do mundo externo
na sua confusa interligação provocam inquietação interior, diz
Worringer, é mobilizada a tendência à abstração. A arte virá retirar
as coisas desse redemoinho perturbador, virá esvaziá­las de
suas manifestações vitais sempre instáveis para submetê­las às leis
permanentes que regem o mundo inorgânico. Por meio de processos de
abstração, o homem procura "um ponto de tranquilidade e um refúgio".
A tendência a empatizar funciona se o indivíduo nada vê nos
objetos que o hostilize. Ele encarna o cosmos sem temores e deseja uma
relação íntima com os objetos do mundo externo. Alcançará esta relação
por meio da empatia, isto é, transferindo conteúdos de sua psique
para os objetos, animando­os e atraindo­os para si.
E quando o mundo parecerá mais hostil do que na vivência de
estados do ser, ditos estados psicóticos?
Não se trata de inquietação metafísica de artistas ou de filósofos
face ao mundo. Trata­se de alguma coisa muito mais imediata, muito
mais viva e atuante.
A experiência no atelier de pintura do hospital psiquiátrico decerto
confirma recuo diante da realidade externa, vivenciada
ameaçadoramente, assim como medo da realidade interna, talvez ainda
mais perigosa.
Se a linguagem proposicional desarticula­se funcionalmente na
esquizofrenia, também o discurso em figuras (figurativo), narrando uma
história, será quase impossível e talvez indesejável no sentir do pintor.
Uma outra linguagem vem, então, afirmar­se mais ampla, não cingida a
quaisquer convenções. Linguagem direta, força psíquica carregada de
paixão e de angústia.

Elisio Canal, década de 60, guache sobre papel


62
A ANDROMEDA NEGRA
por Elizabeth McGrath
publicado originalmente no Journal of the Warburg and
Courtauld Institutes, Vol. 55, 1992, Londres, Inglaterra
[tradução de PTB]

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EDITORIAL
Esta revista está sendo publicada em um momento em que o mundo [e
principalmente nós, este país de merda] estamos colapsades. É um momento
doloroso e que parece que nunca vai acabar, mas também é um momento que
nos propicia muita reflexão e percepções coletivas pois, em situações extremas
como esta, as pessoas começam a mostrar cada vez mais suas verdadeiras faces.
Os rótulos, as classes, as ações e os discursos, começam a significar mais do que
apenas símbolos cotidianos que mastigamos quase inconscientemente. As cartas
estão na mesa, a verdade está cristalina e aberta para todes verem, graças ao
papel das gentes com senso coletivo e ideias acesas, de celular e livro na mão, e
ao trabalho da mídia realmente independente (midia ninja, ponte jornalismo,
the intercept brasil, alma negra jornalismo, dentre tantas outras) A guerra
ideológica no Brasil hoje é uma guerra de narrativas. O que se vê é a queimada
de um lixão à céu aberto, com cheiro de enxofre, sangue e merdas ópiáceas. A
morte de rios, florestas e bichos. O negacionismo. Pois desde 2018 que por aqui
muitas pessoas saíram definitivamente do esgoto e perderam a vergonha de
dividir com o mundo suas crenças arcaicas, atrasadas e primitivas, como a de
que uma ditadura militar é a única “salvação” do país ou que vacinas não
funcionam, que a pandemia não existe, que a terra é plana, que algumas "raças"
são superiores a outras, assim como algumas culturas, que só não trabalha
quem não quer, que algumas religiões valem e outras não, que bandido bom é
bandido morto, que a escola deve ser neutra, que menino e menina tem cor que
pode e cor que não pode, que a “ideologia de gênero” não sei o que*, que a
natureza só existe para ser transformada pelo trabalho, que quilombos são
“terras improdutivas”, que a quarentena é uma limitação das “liberdades
individuais” (pra citar alguns exemplos). E nós já sabemos que essas tais
“liberdades” tão apregoadas pelos pseudo­defensores de uma democracia
abstrata, são uma instituição burguesa, aristocrática e hierarquizante, pois
então não há nada novo sob o sol. Mesmo assim, o resultado do pleito foi uma
surpresa grande, para muita gente, mas o que veio depois apenas nos mostrou
que na verdade desconhecíamos a realidade do nosso país. A realidade e a
mentalidade de grande parte da nossa população. E que "a direita" soube
antever e organizar muito bem segundo seus interesses os rumos que a nação
institucional seguiria e seguirá ainda. Mas nós seremos resistência. Esta
revista é um espaço vivo de resistência cultural. É contra­a­cultura
hegêmonica esta impressão e registro, e seu objetivo principal, além
de divulgar arte urgente, é aniquilar por inteiro as formas de pensar
e controlar do cistema.

* é assim que o cidadão de bem ultraconservador que estupra


criancinhas escondido ou que sem vergonha passa pano pra abuso de
menores chama a educação das crianças sobre seus corpos e sobre o que
é CONSENTIMENTO, sobre a importância da autonomia corporal e do
74 cultivo do corpo como lar.
.Já passou da hora de destruirmos por inteiro o sistema colonial que infecta
como um vírus toda a nossa cultura. Para aqueles e aquelas que pensam que o
colonialismo é coisa do passado, que a crença em "raças", em raças “inferiores”
e “superiores” não existe mais, que não existem mais lugares definidos para
diferentes povos e epistemologias, devemos dizer, de novo e de novo, que isto
não é verdade. Nosso país foi construído sobre essa mentira.Aliás, não existe
país subdesenvolvido, de primeiro ou de terceiro mundo ou qualquer adjetivo
que enquadra a vida e os países em uma perspectiva hierárquica. O mundo é o
mundo, ora. Existem países e países no mundo. Existe um mundo só, o
planeta terra. É muita pachorra que os capitalistas consigam incutir no
amago de cada brasileire a convicção de que somos pais, mães e filhes de um
tal terceiro mundo, que somos subdesenvolvidos, isto é, desenvolvidos em uma
qualidade inferior, um país explorador e exportador, de matéria prima mal
acabada, de “macumba para turista” e blá blá blá o que quer este patriarcado
lusoamericanóide é simplesmente que continuemos aceitando e perpetuando
as suas formas de existência, pensamento e organização, todas elas impostas,
muito das vezes, ou quase sempre, violentamente, a custo de vidas, de
culturas e da natureza. A escravidão acabou, o colonialismo acabou? Não.
Tudo continua, mas foi aperfeiçoado, modernizado pra parecer que é outra
coisa quando sutilmente cometem ainda genocídios e epistemicidios, do alto de
uma pretensa superioridade institucionalizante. A Natureza nativa está sendo
leiloada a empresários gringos, a distribuição de água no Brasil já pode ser
patrimônio da N&stlê ou da Coc@­Col@, pra que elas possam sujar os nossos
rios com os dejetos de seus venenos e, num futuro de escassez, escolher quem
terá água e quem não. O próximo é a distribuição de energia elétrica, os
correios, a universidade e a escola pública, tudo privatizado, pra melhor
controlarem­nos no dia e nos anos seguintes e nos seguintes que virão.

Mas não adianta tentar controlar nossas mentes, senhor milico.


Muito menos a expressão da alma de todos esses espíritos que
conhecem a liberdade e o humanismo. Que querem ouvir e cantar a
música da vida, não a da morte. Sempre cantaremos,
independentemente de censura ou licença, existiremos e
exerceremos o nosso ofício, de SER, de dançar a vida e pela vida.

Por uma igualdade real. Pela desconstrução da colônia, no peito de


cada ser que aqui nascer. Pela transgressão e pelo soar do sol do
sul.

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